Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais [3 ed.] 8520316913

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Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais [3 ed.]
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INSTITUTO BRASILEIRO DE POLÍTICA E DIREITO DO CONSUMIDOR CONTRATOS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR Vol. 1 EDITORA AFILIADA BIBLIOTECA DE DIREITO DO CONSUMIDOR (p. 1) INSTITUTO BRASILEIRO DE POLÍTICA E DIREITO DO CONSUMIDOR Vol. 1 - Contratos no Código de Defesa do Consumidor - 3ª edição, revista, atualizada e ampliada - Cláudia Lima Marques. BIBLIOTECA DE DIREITO DO CONSUMIDOR 1. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. revista, atualizada e ampliada - Cláudia Lima Marques. 2. Proteção do consumidor no contrato de compra e venda - Alberto do Amaral Júnior. 3. Responsabilidade civil do fabricante e a defesa do consumidor - José Reinaldo de Lima Lopes. 4. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro - Sílvio Luís Peneira Rocha. 5. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto (Os acidentes do consumo no Código de Proteção e Defesa do Consumidor) - James Marins. 6. Controle das cláusulas contratuais abusivas - Teoria e prática Coordenação: Antonio Herman V. Benjamin. 7. Proteção ao Consumidor - Maria Antonieta Zanardo Donato. 8. Código do Consumidor comentado. 2. ed. revista e ampliada, 2ª tiragem Arruda Alvim, Thereza Alvim, Eduardo Arruda Alvim e James Marins. 9. Condições gerais do contrato de adesão e contratos de consumo sob a ótica do Código do Consumidor - Renata Mandelbaum. 10. Direito do consumidor - Aspectos práticos - Perguntas e respostas Newton de Lucca. Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Marques, Cláudia Lima Contratos no Código de Defesa do Consumidor. o novo regime das relações contratuais / Cláudia Lima Marques. - 3. ed. rev., atual, e ampl., incluindo mais de 250 decisões jurísprudenciais. - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1998. (Biblioteca de direito do consumidor; v. 1).

Bibliografia. ISBN 85.203.1691-3 1. Consumidores - Leis e legislação - Brasil. 2. Consumidores - Proteção Brasil. 3. Contratos. 4. Contratos - Brasil. I. Titulo. II. Série. 98-4620 CDU-347.44:381.6 (81) Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Contratos e consumidores Direito 347.44:381.6(81) (p. 2) CLÁUDIA LIMA MARQUES CONTRATOS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR O novo regime das relações contratuais 3ª edição revista, atualizada e ampliada, incluindo mais de 625 decisões jurisprudenciais BIBLIOTECA DE DIREITO DO CONSUMIDOR - 1 EDITORA RT REVISTA DOS TRIBUNAIS (p. 3) INSTITUTO BRASILEIRO DE POLÍTICA E DIREITO DO CONSUMIDOR - v. 1 Biblioteca de Direito do Consumidor CONTRATOS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR 3ª edição - revista, atualizada e ampliada, incluindo mais de 625 decisões jurisprudenciais CLÀUDIA LIMA MARQUES 1ª edição: 1992 - 2ª edição: 1995. © desta edição: 1999 EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA. Diretor Responsável: CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO CENTRO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR: Tel. 0800-11-2433 Rua Tabatinguera, 140, Tel. (011) 3115-2433 CEP 01020-901 - São Paulo, SP, Brasil Térreo, Loja 1 - Caixa Postal 678 Fax (011) 3106-3772 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfilmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a Inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos do Código Penal) com pena de prisão e multa, busca e apreensão e indenizações

diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). Impresso no Brasil (01 - 1999*) ISBN 85-203-1691-3 (p. 4) Aos meus mestres, brasileiros e alemães e ao amigo Antônio Herman Benjamin, em agradecimento pelo estímulo e segura orientação intelectual. A Johannes Doll, esposo e companheiro. (p. 5) (p. 6, em branco) APRESENTAÇÃO "qui dit contractuel dit juste"{1} Em 1933, Louis Josserand manifestava sua preocupação com o fim daquilo que chamou a "idade de ouro"{2} da liberdade contratual. Ao revés do que temia o grande jurista francês, o princípio da autonomia da vontade - e de resto toda a teoria do contrato - hoje está mais forte do que nunca, já que mecanismos foram e estão sendo idealizados para corrigir suas imperfeições. E, entre todos os afetados por tais imperfeições e exageros da teoria contratual clássica, o consumidor desponta como sua maior vítima. Na Exposição de Motivos do Segundo Substitutivo do Projeto de Código de Defesa do Consumidor (CDC), de autoria do Deputado Geraldo Alckmin e que está na origem do texto hoje vigente, assim escrevemos: "a proteção do consumidor deve abranger todos os aspectos do mercado de consumo. Muitas vezes - como no caso de publicidade enganosa - o consumidor é lesado sem que sequer tenha chegado a firmar efetivo contrato com o fornecedor. Mas é no instante da contratação que a fragilidade do consumidor mais se destaca. É também neste momento que as normas legais existentes, especialmente aquelas do Código Civil, se mostram incapazes de lhe assegurar proteção eficaz". A proteção contratual do consumidor, de fato, está no âmago do direito do consumidor E, passado um ano da vigência do CDC, não se publicou nenhuma obra que cuide, com exclusividade, do novo regime contratual instaurado. * (1) Palavras de Fouillée, inspirado no pensamento de Kant. (2) Josserand, Louis "Le contrat dirigé". In Recueil Hebdømadaire, n. 32, chronique, 1933, p. 19. (p. 7) Não é, pois, sem razão que o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor sente-se profundamente honrado em iniciar sua coleção Biblioteca de Direito do Consumidor, editada pela Revista dos Tribunais, com o livro Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O Novo Regime das Relações Contratuais, de autoria da professora Cláudia Lima Marques. Conheci a professora Cláudia Lima Marques no "1.º Congresso Europeu Sobre Condições Gerais dos Contratos", realizado em Coimbra, em maio de 1988, quando eu era o relator brasileiro. Logo em seguida a visitei na Alemanha, onde ela concluía seu mestrado.

Em contato com seus professores alemães pude perceber a imensa estima que eles sentiam pela agora autora. Seu campo de pesquisa, já naquela época, se encaminhava para a proteção contratual do consumidor. Alguns aspectos da personalidade de Cláudia Lima Marques não posso deixar de ressaltar aqui, mesmo correndo o risco de dizer muito menos do que gostaria ou do que ela merece. Sua juventude é o primeiro traço que chama atenção de qualquer um que a encontre pela primeira vez. Mas por trás de suas feições jovens, de imediato se percebe duas outras de suas qualidades: um grande senso de responsabilidade - "germânica", se preferirem - e uma vinculação perene com a defesa do interesse público. Realmente, em todos os seus escritos e trabalhos vamos sempre encontrar o fio da preocupação com os "vulneráveis" ou "débeis" da sociedade industrial (weaker parties), massificados ou não. E, entre estes, a autora escolheu o consumidor como seu objeto de pesquisa e de formulação jurídica. Professora concursada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um dos membros mais ativos do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, com importante papel na criação de sua seção gaúcha, a autora tem diversos artigos sobre esta matéria publicados. É, sem dúvida, um dos expoentes da nova geração de juristas que desponta no país. Mas será que o tema em questão merece realmente os estudos de pessoa tão qualificada? Será que o consumidor e os contratos em que é parte (contratos de consumo) são realmente dignos de uma pesquisa aprofundada? Ou, indo mais longe, não seria pretensioso desejar, através do estudo da posição jurídica do consumidor, reformar toda a teoria dos contratos? (p. 8) A resposta é bem simples: sem consumidor não há sociedade de consumo, sem esta não há mercado e sem mercado não há contratação massificada. Assim, estudar e regular o status contratual do consumidor é, em último caso, afetar a grande maioria dos contratos firmados no cotidiano do mercado. A revolução industrial trouxe consigo a revolução do consumo. Com isso, as relações privadas assumiram uma conotação massificada, substituindo-se a contratação individual pela coletiva. Os contratos passaram a ser assinados sem qualquer negociação prévia, sendo que, mais e mais, as empresas passaram a uniformizar seus contratos, apresentando-os aos seus consumidores como documentos pré-impressos, verdadeiros formulários. Foi, por um lado, um movimento positivo de transformação contratual ao conferir rapidez e segurança às transações na sociedade massificada. Mas o fenômeno trouxe, igualmente, perigos parA os consumidores que aderem globalmente ao contrato, sem conhecer todas as cláusulas".{3} Mas não se imagine que a proteção contratual do consumidor seja um problema brasileiro ou de terceiro mundo apenas. É um tema universal que, de uma forma ou de outra, vem sendo enfrentado pelo legislador desde o Código Civil italiano de 1942. No Brasil, antes do CDC, não fazia mesmo sentido se falar em proteção contratual do consumidor, já que este, assim denominado, inexistia como entidade jurídica com perfil próprio. Havia, isso sim, ja um esforço da jurisprudência no sentido de mitigar o rigor do nosso Código Civil e o apego descomedido da doutrina a certos princípios que, diante da sociedade de produção e consumo em massa, gritavam por

reforma. Quando falamos em contratos no Código de Defesa do Consumidor estamos, efetivamente, cuidando de contratos de consumo. E quando estudamos os contratos de consumo ou sobre eles legislamos assim o fazemos em razão de algo que poderíamos denominar de vulnerabilidade contratual do consumidor. É esse fenômeno jurídico - mas também econômico e social - que leva o legislador a buscar formas de proteger o consumidor * (3) Calais-Auloy, Jean. Droit de la Consommation. Paris, Dalloz, 1986, p. 143. (p. 9) No plano da teoria do contrato, proteger o consumidor é, antes de mais nada, um esforço de pesquisa da tipologia dessa vulnerabilidade, de resto reconhecida ope legis (CDC, art. 4.º, I). Na vida do mercado, busca-se tutelar o consumidor principalmente em dois aspectos: na sua integridade físico-psíquica e na sua integridade econômica. Muitos, com acerto, dirão que a tutela da saúde do consumidor sobrepõe-se à sua proteção econômica. Mas a verdade é que, além dessa preocupação sobre em relação a que proteger o consumidor (integridade físico-psíquica ou integridade econômica), há também uma outra sobre o quando tutelá-lo. E, neste ponto, a questão contratual se torna central. A fragilidade do consumidor manifesta-se com maior destaque em três momentos principais de sua existência no mercado: antes, durante e após a contratação. É, portanto, com os olhos voltados para o iter contratual do consumidor que o legislador e os órgãos de implementação atuam. Em outras palavras: toda a vulnerabilidade do Consumidor decorre, direta ou indiretamente, do empreendimento contratual e toda a proteção é ofertada na direção do contrato. Daí a importância que assume a matéria contratual no amplo círculo de proteção do consumidor. Muito mais do que ocorre com o resguardo da saúde do consumidor, a tutela da sua integridade econômica (aí se incluindo a proteção contratual) é uma questão de posição jurídica do sujeito amparado. Aqui a proteção se dá em favor de quem contrata ou é estimulado a contratar. O que se quer, por essa via, é a alteração da correlação de forças, no plano econômico e jurídico, entre consumidores e fornecedores, francamente desfavorável àqueles. Como se vê, e não há como fugir, tal tutela opera sobre ou ao redor do contrato de consumo. Para auxiliar na superação das dificuldades contratuais do consumidor o direito tem articulado soluções as mais diversas, muitas de caráter cosmético, outras atuando apenas no plano da informação e umas poucas reconhecendo, pura e simplesmente, que o princípio da autonomia da vontade exige uma profunda reflexão e, a partir, daí, verdadeira revisão. É importante, contudo, salientar que todo o esforço de reforma do regime contratual encetado pelo direito do consumidor não visa arrasar e sim aperfeiçoar a liberdade contratual. Seria, por assim dizer, uma tentativa - nem a primeira, nem a última - de preservar a essência do (p. 10) princípio. Conseqüentemente, o direito do consumidor não contesta a validade da liberdade contratual (da mesma forma que não ataca o regime da propriedade privada) mas, simplesmente, se insurge contra a forma como ela tem se manifestado, em especial no mercado de consumo.

Já em 1943, Friedrich Kessler, com muita propriedade, escrevia que "a liberdade contratual permite que as empresas legislem através de contratos e, o que é até mais importante, legislem de uma forma autoritária sem que para tanto tenham que usar uma aparência autoritária. Os contratos de adesão, em particular, podem, pois, se tornar instrumentos eficazes nas mãos de senhores feudais todo poderosos da indústria e do comércio, permitindo-lhes impor sua própria nova ordem feudal e subjugando um grande número de vassalos".{4} A liberdade contratual, realmente como princípio absoluto sempre deu azo a inúmeros abusos. Ora, eram exageros, relacionados com o discernimento do contratante débil, ora eram percalços oriundos da liberdade plena de um dos contratantes e da ausência de liberdade do outro. Tudo a provocar discrepância entre a vontade real e a vontade declarada do consumidor. A teoria jurídica, em tais circunstâncias, servia somente para amparar um mito de equilíbrio. Os institutos clássicos de contenção dos abusos criados pelo princípio da autonomia da vontade não amparavam, em absoluto, o consumidor. Na fase da sociedade pessoal, antes do surgimento da sociedade de consumo, na medida em que, de regra, só uma pequena parcela da população detinha os meios de produção, é evidente que só uns poucos, de fato, contratavam repetidamente. E para esta minoria os instrumentos tradicionais se mostravam eficazes, que não fossem para impedir, mas ao menos para reparar os vícios da liberdade contratual. Com o aparecimento da sociedade de massa os partícipes no mercado se multiplicaram e os contratos explodiram em quantidade. Na sociedade moderna o contrato deixou de ser um privilégio da minoria e incorporou-se ao dia a dia do cidadão comum, em especial do consumidor E em uma situação de explosão contratual os remédios contratuais clássicos mostraram-se totalmente inadequados. * (4) Kessler, Friedrich. "Contracts of adhesion - Some thoughts about freedom of contrat". In Columbia Law Review, vol. XLIII, maio, 1943, n. 4, p. 640. (p. 11) É sob esse pano de fundo que surge o CDC e, agora, o livro da professora Cláudia Lima Marques. A autora, evidentemente, conhece o assunto da proteção contratual do consumidor, mas não o esgota em seu livro. Como diz muito modestamente, logo no pórtico de seu trabalho, trata-se de "uma contribuição ao estudo dos reflexos do Código de Defesa do Consumidor no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no que se refere ao regime das relações contratuais". Uma excelente e oportuna contribuição. Na primeira metade da Parte I, verdadeira introdução crítica, Cláudia Lima Marques analisa "a renovação da teoria contratual", distinguindo, nos passos da Comissão das Comunidades Européias, contrato de adesão e contratos submetidos a condições gerais. Conclui afirmando que o CDC, como "conseqüência da nova teoria contratual", "é um reflexo de uma nova concepção mais social do contrato, onde a vontade das partes não é a única fonte das obrigações contratuais, onde a posição dominante passa a ser a da lei, que dota ou não de eficácia jurídica aquele contrato de consumo". Em seguida, na segunda metade da Parte I, a autora enfrenta um dos maiores desafios da interpretação do CDC, ou seja, a identificação,

dentre as diversas modalidades de contratos, daqueles que se submetem ou não ao regime codificado. A questão é da mais alta relevância. Basta que lembremos a polêmica levantada pelos bancos - hoje totalmente superada - sobre a inclusão de seus contratos na malha do CDC. Mais recentemente, discutiu-se, nas páginas de O Estado de S. Paulo, a questão dos contratos de transporte aéreo internacional. A primeira metade da Parte II cuida da proteção do consumidor na formação do contrato, analisando em profundidade o desaparecimento da regra do caveat emptor e o surgimento de uma obrigação geral de informar, seja no momento publicitário, seja em instante mais próximo da contratação propriamente dita ou até mesmo no âmbito do próprio contrato. Finalmente, na última metade da Parte II, a autora dedica-se a proteção do consumidor quando da execução do contrato. É aí que analisa as regras básicas norteadoras da interpretação dos contratos de consumo, a proibição das cláusulas contratuais abusivas, o controle judicial dos contratos de consumo e os diversos tipos de vícios de produtos e serviços. (p. 12) Se é certo que não concordamos em tudo e tudo com as posições da autora, também podemos afirmar que não vacilaríamos em subscrever sua obra por inteiro. E foi exatamente com esse espírito que a recomendamos à editora e ao próprio Instituto de Política e Direito do Consumidor. ANTONIO HERMAN V. BENJAMIN Membro do Ministério Público de SÃo Paulo Mestre em Direito pela University of Illinois, EUA. um dos redatores do Código de Defesa do Consumidor e presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do consumidor. (p. 13) (p. 14, em branco) SUMÁRIO Abreviaturas 21 Introdução à terceira edição 23 Introdução à segunda edição 27 Introdução à primeira edição 31 PARTE I - A RENOVAÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL 1. A NOVA TEORIA CONTRATUAL 35 1. A concepção tradicional do contrato 37 1.1 Características principais 38 1.2 Origens da concepção tradicional de contrato 40 a) O direito canônico 40 b) A teoria do direito natural 41 c) Teorias de ordem política e a revolução francesa 42 d) Teorias econômicas e o Liberalismo 43 1.3 Reflexos da teoria contratual e do dogma da autonomia da vontade 44 a) A liberdade contratual 45 b) A força obrigatória dos contratos 47 c) Os vícios do consentimento 47 2. A nova realidade contratual 49 2.1 Noções preliminares: Os contratos de massa 49

2.2 Os contratos de adesão 53 a) Descrição do fenômeno 53 b) A formação do vínculo 56 c) A disciplina dos contratos de adesão 58 (p. 15) 2.3 As condições gerais dos contratos (cláusulas contratuais gerais) 59 a) Descrição do fenômeno 59 b) A inclusão de condições gerais nos contratos 62 c) A disciplina das condições gerais dos contratos 66 2.4 Os contratos cativos de longa duração 68 a) Descrição do fenômeno 68 b) A estrutura dos contratos cativos de longa duração 74 c) Disciplina 77 2.5 As cláusulas abusivas nos contratos de massa 80 3. Crise na teoria contratual clássica 84 3.1 Crise da massificação das relações contratuais 84 3.2 Crise da pós-modernidade 89 4. A nova concepção de contrato e o Código de Defesa do Consumidor 101 4.1 A nova concepção social do contrato 101 a) Socialização da teoria contratual 102 b) Imposição do princípio da boa-fé objetiva 105 c) Intervencionismo dos Estados 116 4.2 O Código de Defesa do Consumidor como conseqüência da nova teoria contratual 117 a) Limitação da liberdade contratual 118 b) Relativização da força obrigatória dos contratos 122 c) Proteção da confiança e dos interesses legítimos 126 d) Nova noção de equilíbrio mínimo das relações contratuais 133 2. CONTRATOS SUBMETIDOS ÀS REGRAS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR 139 1. Contratos entre consumidor e fornecedor de bens ou serviços 140 1.1 Conceitos de consumidor e de fornecedor 140 a) O consumidor stricto sensu 140 b) Agentes equiparados a consumidores 153 c) O fornecedor 162 (p. 16) 1.2 Contratos de fornecimento de produtos e serviços 163 a) Contratos imobiliários 166 b) Contratos de transporte, de turismo e viagem 174 c) Contratos de hospedagem, de depósito e estacionamento 182 d) Contratos de seguro e de previdência privada 187 e) Contratos bancários e de financiamento 197 f) Contratos de administração de consórcios e afins 206 g) Contratos de fornecimento de serviços públicos 209 h) Compra e venda e suas cláusulas 215 i) Compra e venda com alienação fiduciária 216 2. Contratos de consumo e conflitos de leis no tempo 218 2.1 Aplicação do Código de Defesa do Consumidor e conflitos de leis 219 a) Características do Código de Defesa do Consumidor e reflexos na sua aplicação 220 b) O papel da Constituição Federal na interpretação e aplicação do Código de Defesa do Consumidor 225

c) Os critérios de solução de conflitos de leis e suas dificuldades 229 d) Conflitos entre normas do Código Civil, de leis especiais e de leis anteriores com o Código de Defesa do Consumidor 242 e) Conflitos entre normas do Código de Defesa do Consumidor e de leis especiais e gerais posteriores 246 2.2 Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos anteriores 254 a) As garantias constitucionais do direito adquirido e do ato jurídico perfeito 257 b) A garantia constitucional da defesa do consumidor 271 c) A aplicação imediata das normas de ordem pública 272 CONCLUSÃO DA PARTE I 279 PARTE II - REFLEXOS CONTRATUAIS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR 3. A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR QUANDO DA FORMAÇÃO DO CONTRATO 283 1. Princípio básico de transparência 286 1.1 Nova noção de oferta (art. 30) 288 a) Vinculação própria através da atuação negocial 294 (p. 17) b) Publicidade como oferta 304 c) Informações e pré-contratos 318 d) Cláusulas contratuais gerais 321 e) Sanção 323 1.2 Dever de informar sobre o produto ou serviço (art. 31) 324 a) Amplitude do dever de informar do art. 31 325 b) A publicidade como meio de informação 327 c) Sanção. As regras sobre o vício do produto 333 1.3 Dever de oportunizar a informação sobre o conteúdo do contrato (art. 46) 335 a) Amplitude do dever de informar do art. 46, 1.º 336 b) Sanção 337 1.4 Dever de redação clara dos contratos 339 a) Redação clara e precisa (art. 46) 339 b) Cuidados na utilização de contratos de adesão 340 c) Sanção 341 2. Princípio básico de boa-fé 342 2.1 Publicidade abusiva e enganosa 343 a) Conceito de publicidade 344 b) Publicidade como ilícito civil - A publicidade enganosa 347 c) Publicidade como ilícito civil - A publicidade abusiva 349 2.2 Práticas comerciais abusivas 352 a) Práticas comerciais expressamente vedadas 353 b) Obrigação de fornecer orçamento prévio discriminado 360 c) Respeito às normas técnicas e ao tabelamento de preços 361 2.3 Direito de arrependimento do consumidor (art. 49) 362 a) A venda de porta-em-porta (door-to-door) 363 b) Regime legal da venda de porta-em-porta 365 c) Vendas emocionais de time-sharing e vendas a distancia 374 4. PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR QUANDO DA EXECUÇÃO DO CONTRATO 389 1. Princípio básico da eqüidade (equilíbrio) contratual 390 1.1 Interpretação pró-consumidor. Visão geral 391 1.2 Proibição de cláusulas abusivas 401

a) Características gerais das cláusulas abusivas 402 (p. 18) b) Da nulidade absoluta das cláusulas abusivas 409 b.1 Lista única de cláusulas abusivas 410 b.2 Autorização excepcional de modificação de cláusulas 412 c) As cláusulas consideradas abusivas 415 c.1 A lista do art. 51 416 c.2 A norma geral do inciso IV do art. 51 421 c.3 As cláusulas identificadas pela jurisprudência 424 1.3 Controle judicial dos contratos de consumo 548 a) Controle formal e controle do conteúdo dos contratos 549 b) Controle concreto e em abstrato 550 c) Papel do Ministério Público e das entidades de proteção ao consumidor 552 1.4 Novas linhas jurisprudenciais de controle do sinalagma contratual e de recurso à ineficácia de cláusulas 553 a) A tendência de ineficácia de cláusulas não informadas ou destacadas corretamente 554 b) A tendência de revitalização do sinalagma no tempo e correção monetária 557 c) A tendência de controle da novação contratual e do equilíbrio 562 2. Princípio da confiança 573 2.1 Novo regime para os vícios do produto 576 a) Vícios de qualidade - vícios por inadequação 582 b) Vícios de qualidade por falha na informação 590 c) Vícios de quantidade 591 2.2 Novo regime para os vícios do serviço 592 a) Vícios de qualidade dos serviços 593 b) Vícios nos serviços de reparação 598 c) Vícios de informação 599 2.3 Garantia legal de adequação do produto e do serviço 600 a) Noções gerais 600 b) Garantia legal e novo prazo decadencial 604 c) Relação da garantia contratual com a garantia legal 609 2.4 Garantia legal de segurança do produto ou do serviço (Responsabilidade extracontratual do fornecedor) 615 a) Deveres do fornecedor de produtos perigosos 618 b) Limites da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço - (A responsabilidade do comerciante) 620 c) Direito de regresso 630 (p. 19) 2.5 Inexecução contratual pelo consumidor e cobrança de dívidas 632 2.6 Inexecução contratual pelo fornecedor e desconsideração da personalidade da pessoa jurídica 636 a) Noções gerais 636 b) A desconsideração da personalidade da pessoa jurídica 637 CONCLUSÃO DA PARTE II E OBSERVAÇÕES FINAIS 641 BIBLIOGRAFIA 647 (p. 20) ABREVIATURAS CC ou CCB - Código Civil Brasileiro CF - Constituição Federal CDC - Código de Defesa do Consumidor CNDC/MI - Conselho Nacional de Defesa do Consumi-

dor, Ministério da Justiça CONDGs - condições gerais dos contratos Brasilcon - Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor BGB - Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil Alemão) BGH - Bundesgerichtshof (Corte Federal Alemã) Dir. do Consumidor - Revista de Direito do Consumidor (São Paulo Brasilcon) DROITS - Revue française de Theorie Juridique (Revista, Paris) JECP - Juizados Especiais e de Pequenas Causas JZ - Juristen Zeitung (Revista, Tübingen) NJW - Neue Juristische Wochenschrift (Revista, Frankfurt) RDM - Revista de Direito Mercantil (São Paulo) Rev. AJURIS - Revista da Associação de Juízes do Rio Grande do SuL (Porto Alegre) Rev. eur. dr. consommation - Revue Européenne de Droit de la Consommation (Louvain. Bélgica) Rev. int. dr. comp. - Revue internationale de droit comparé (Revista, Paris) Rev. inf. legisl. - Revista de Informação Legislativa (Senado Federal, Brasília) RT - Revista dos Tribunais (São Paulo) (p. 21) RF - Revista Forense (Rio de Janeiro) STF - Supremo Tribunal Federal STJ - Superior Tribunal de Justiça TA - Tribunal de Alçada TACiv - Tribunal de Alçada Cível TJ - Tribunal de Justiça (p. 22) INTRODUÇÃO À TERCEIRA EDIÇÃO Sete anos após a sua entrada em vigor, o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, continua a despertar o interesse da doutrina brasileira e, principalmente, dos práticos do direito. Sua incorporação ao sistema jurídico nacional foi surpreendente, sua assimilação na jurisprudência lenta, mas decisiva, e hoje o direito contratual brasileiro não pode ser completamente entendido sem um estudo profundo dos princípios e avanços impostos por essa lei. A jurisprudência brasileira assimilou a maioria de seus novos conceitos e normas, mas resistiu a alguns avanços, como demonstrará a análise de mais de 625 julgados incorporados a esta obra. Nesse sentido, esta terceira edição deve-se não só ao aparecimento de abundante doutrina especializada, mas, principalmente, à necessidade de traçar um panorama nacional realista sobre a aceitação e utilização do Código de Defesa do Consumidor na jurisprudência brasileira. Ainda é cedo para esboçar um balanço da efetividade dessa lei, mas as linhas jurisprudenciais já começam a cristalizar-se, por vezes, em interpretações mais ousadas do que as da doutrina, por vezes, ainda com um conservadorismo receoso com o momento atual da ciência do direito. O cômputo geral foi, porém, extremamente positivo e o CDC pode ser considerado uma lei de grande utilização prática, como comprova o expressivo número de jurisprudên-

cias citadas. Assim, na primeira parte mais teórica deste estudo, procuramos aprofundar a análise desse momento atual, em que pese uma certa crise da ciência do direito, crise na insegurança jurídica, crise na multiplicidade das leis, e propor novas saídas através de figuras e princípios tradicionais do direito, agora revitalizados. Incluímos assim um novo estudo sobre a chamada crise da pós-modernidade, procurando captar os seus reflexos no direito contratual brasileiro, pois, mesmo ciente da insegurança dessa denominação e da ousadia de uma tal análise, pareceu-me necessário e positivo propor uma discussão científica e crítica desse (p. 23) novo tema, frente aos belos estudos da doutrina estrangeira que pude acompanhar durante meu Doutorado na Alemanha. Na prática, a grande discussão nacional continua sendo a definição exata do campo de aplicação do Código de Defesa do Consumidor, discussão esta que tende a aumentar com a eventual aprovação de um novo Código Civil, de um ainda maior número de leis especiais e mesmo de uma legislação internacional com origem no Mercosul. Motivo pelo qual aumentamos e atualizamos, nesta edição, a análise do campo de aplicação da Lei 8.078/90 e dos eventuais conflitos com outras normas. O CDC já possui sete anos de vigência e, com o aumento da atividade Legislativa, resolvemos incluir um estudo sobre os conflitos do CDC com as já existentes leis especiais posteriores em matéria de contratos de consumo. Na segunda parte desta obra, ao analisarmos os reflexos contratuais do Código, procuramos trazer as linhas jurisprudcnciais mais significativas, as novas discussões judiciais e extrajudiciais sobre a forma e o conteúdo dos contratos de consumo, sem modificar, porém, o espírito, nem o plano da obra. A idéia básica continua sendo identificar no direito brasileiro, no mercado e na prática dos profissionais do direito (law in action) as inovações e as discussões oriundas dos novos princípios introduzidos ou concretizados no Código de Defesa do Consumidor. A pesquisa jurisprudencial executada não pode ser exaustiva, em virtude da enorme produção jurisprudencial nacional existente sobre o tema em face dos limites da autora. Tivemos como base a Revista de Direito do Consumidor, do Instituto Brasileiro de Direito do Consumidor, que já se encontra no 26º número, as pesquisas realizadas em todo o Brasil do Departamento acadêmico do Brasilcon e as publicações em revistas e repertórios especializados. Também a abundante doutrina sobre o tema, em especial, os excelentes artigos e livros especializados, não podem ser totalmente exauridos, mas, na medida do possível, foram considerados. Nesta edição, priorizamos a análise da jurisprudência (já abundante) dos Tribunais estaduais e aumentamos a análise da jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre temas que se referem a relações de consumo. Por fim, mantivemos o plano e o caráter da obra, que demonstrou ser útil aos profissionais do direito e aos estudantes universitários. (p. 24) Aumentada a parte teórica e, especialmente, atualizada e complementada a análise da jurisprudência brasileira e das novas

práticas do mercado de consumo, espero que esta terceira edição possa contribuir efetivamente para um ainda maior entendimento e aplicação prática do Código de Defesa do Consumidor e das demais leis de consumo no mercado brasileiro. Junho 1998. (p. 25) (p. 26, em branco) INTRODUÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO A necessidade de uma nova edição atualizada desta obra nasceu, em parte, da boa recepção que mereceu no Brasil inteiro; mas nasceu, principalmente, do forte impacto das normas protetivas dos direitos do consumidor no ordenamento jurídico nacional, especialmente no direito civil. Nestes três primeiros anos de vigência do Código de Defesa do Consümidor formou-se uma abundante e frutífera doutrina especializada no tema, que só agora pôde ser considerada e analisada conjuntamente com a doutrina estrangeira no assunto. Esta segunda edição, porém, somente ganha verdadeiro sentido, quando analisada a prática contratual do mercado brasileiro após a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor. Foram as mudanças voluntárias no dia-a-dia das relações de consumo e os reflexos da imposição dos novos princípios do Código nas relações litigiosas que nos levaram a atualizar e a modificar - esperamos que para melhor - esta obra, complementando a visão teórica com os novos reflexos práticos do CDC no regime dos contratos. O núcleo principal desta segunda edição é, portanto, a atual jurisprudência brasileira e a análise de suas tradicionais ou renovadas linhas de pensamento em matéria de relações contratuais de consumo. Esta nova edição traz cerca de 267 decisões jurisprudenciais brasileiras, não só dos Tribunais Superiores e Tribunais Estaduais principais, mas também algumas decisões originais de magistrados de primeiro grau e das Câmaras Recursais dos juizados Especiais e de Pequenas Causas. Trata-se naturalmente, de uma pesquisa aleatória e incompleta, vinculada em muito as fontes limitadas da autora. A pesquisa jurisprudencial executada não teve pretensões de ser exaustiva, nem foi seu intento reproduzir em detalhes as linhas tradicionais do direito contratual clássico, ao contrário, o levantamento tem caráter exemplificativo e concentrou-se na influência do CDC e das (p. 27) novas linhas doutrinárias do direito contratual na atuação diária e efetiva do Judiciário. Face a experiência acumulada nestes primeiros anos de aplicação do Código, esperamos que semelhante obra possa ajudar ao profissional do direito e aplicador da lei a identificar rapidamente a influência modificadora - ou não - dos princípios da boa-fé objetiva e de eqüidade contratual no sistema do direito civil brasileiro, servindo a pesquisa jurisprudencial especialmente para identificar a eficácia prática da lei nova e os campos onde sua aplicação ainda não é aquela desejada. A jurisprudência brasileira tem contribuído muito para o desenvolvimento e interpretação do Código de Defesa do Consumidor, mesmo se observarmos que sua atuação é ainda diferenciada, e, por vezes, até contraditória de Estado para Estado da Federação. Consideramos, porém, que a atuação concreta e prudente dos juízes brasileiros

está a merecer um destaque especial da doutrina, e se possível no sentido original do pensamento dos julgadores. De forma a poder reproduzir com a máxima sinceridade intelectual o pensamento e a ratio do julgador, superando a sua simples utilização como apoio às opiniões emitidas na primeira edição, optamos por reproduzir nas notas de rodapé muitas das ementas das decisões citadas, mesmo conscientes de que as ementas são pálida representação do conteúdo dos acórdãos e do pungente direito dos juízes nesta matéria. Esperamos que esta opção não torne a leitura excessivamente pesada, e que, ao contrário, possa ser um efetivo instrumento de pesquisa e de convencimento para o profissional do direito, ao possibilitar uma visualização mais imediata da argumentação e da motivação aceita pela jurisprudência citada. Entre a jurisprudência analisada e reproduzida incluímos também decisões dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, tendo em vista a importância conquistada por estes Juizados na efetiva (e rápida) defesa dos interesses dos consumidores. De forma a evitar qualquer discussão sobre a legitimidade desta "fonte jurisprudencial", mencionaremos apenas as decisões das Câmaras Recursais, constituídas por magistrados de carreira, decisões que foram reproduzidas nos veículos oficiais de publicação dos Tribunais de Justiça de cada Estado. A jurisprudência oriunda dos Juizados é pouco conhecida ou divulgada, mesmo entre os conciliadores, árbitros e juízes. Nesse sentido, consideramos que sua divulgação pode ser fator importante para a conquista de uma maior harmonia de decisões no país, assim como contribuir para (p. 28) uma salutar - e pouco existente - "troca de experiências" com as vias tradicionais da Justiça. Quanto às modificações executadas no texto, foram incluídas, na primeira parte do livro, análise mais detalhada sobre os contratos de longa duração, sobre a definição de consumidor stricto sensu e agentes equiparados pelo CDC a consumidores, assim como sobre a aplicação do CDC no tempo e os conflitos de leis oriundos de sua entrada em vigor. Especialmente modificada e complementada pela atual prática jurisprudencial apresenta-se a parte dois desta obra, onde foi incluída uma análise mais detalhada do fenômeno da vinculação própria através da negociação contratual, assim como novos títulos sobre as características das cláusulas abusivas, sobre a autorização excepcional de modificação de algumas cláusulas pelo Judiciário e sobre as principais cláusulas abusivas identificadas pela jurisprudência brasileira nestes primeiros anos de vigência do CDC. O Código de Defesa do Consumidor, como lei nova e rejuvenescedora do Direito Civil brasileiro, tem atraído a atenção de juristas interessados na evolução da ciência jurídica e dos instrumentos legais garantidores de relações sociais mais equilibradas e leais; tem despertado contínuo interesse nos profissionais do direito em geral, advogados, conciliadores, membros do Ministério Público e magistrados. O CDC conseguiu em poucos anos transformar-se em uma realidade, uma lei de assumida função social a impor um novo patamar de harmonia e de boa-fé objetiva no mercado de consumo. Sua importância e seus reflexos positivos no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no que se refere ao novo regime das relações contratuais, não podem mais ser negados. Esperamos que este trabalho, renovado e atualizado com a nova doutrina e jurisprudência brasileira possa ser uma contribuição válida ao estudo e à prática das novas linhas

positivadas no Direito Civil pátrio pelo Código de Defesa do Consumidor. Dezembro 1994. (p. 29) (p. 30, em branco) INTRODUÇÃO À PRIMEIRA EDIÇÃO 1. Plano da obra I - O presente trabalho pretende ser uma contribuição ao estudo dos reflexos do Código de Defesa do Consumidor no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no que se refere ao regime das relações contratuais. Trata-se de analisar o Código, enquanto inovação, mas de explicitá-lo, enquanto resultado da evolução teórica e doutrinária do direito como ciência. Este aspecto foi até agora pouco observado pelos autores que comentam as normas do Código, como se este rompesse com a história e a evolução do pensamento jurídico. Bem ao contrário, o Código rompe com o pensamento individualista, liberal da concepção clássica de contrato, mas representa a própria evolução, a própria positivação da teoria da função social do contrato, que desde o século XIX aparecia nos ensinamentos ideais de mestres como Jehring, Morin e outros. Os juristas, acostumados com o pensamento tradicional, poderão assim situar-se e situando-se, interpretar as normas do Código com maior embasamento, com maior segurança, entendendo e sua ratio, evitando assim interpretações que deturpem o seu fim, que as tornem inócuas ou radicais em excesso. O chamado Direito do Consumidor é parte do Direito, é parte da ciência, é parte da evolução do pensamento jurídico, criando novos conceitos, pensando topicamente e dando novo conteúdo a noções-chaves como a boa-fé, a eqüidade contratual, a válida manifestação de vontade, a equivalência de prestações, a transparência e o respeito entre parceiros Na fase précontratual. Este estudo volta-se, assim, tanto para aqueles que estão agora aprendendo, quanto para os profissionais do direito, que a todo momento devem sugerir condutas, julgar e resolver problemas envolvendo as relações contratuais entre consumidores (todos) e fornecedores (profissionais). (p. 31) II - O presente trabalho divide-se em duas grandes partes. uma mais teórica, dedicada ao estudo da evolução da Teoria Contratual, que tem por fim apresentar o Código de Defesa do Consumidor (CDC) como conseqüência desta renovação no pensamento jurídico, e uma segunda, mais prática, onde será analisado o novo regime legal imposto pelas normas do Código quando da formação dos contratos de consumo e quando da execução destes. Esta segunda parte estudará uma a uma das normas do Código que possuem algum reflexo nas relações contratuais, mesmo que este reflexo seja indireto, eventual ou futuro, pois as novas normas acompanham as relações de consumo desde a sua fase pré-contratual até uma nova proteção na fase pós-contratual. A apresentação das normas do Código será sistematizada tendo em vista os novos princípios básicos que o CDC introduz no ordenamento jurídico brasileiro, de forma a facilitar a sua interpretação e o entendimento de sua ratio. Da mesma forma optamos pela transcrição das principais normas no texto, para facilitar a leitura e a rapidez no

entendimento de nossas observações. Em face da novidade do tema, recorremos, em muito nesta primeira edição, à experiência do direito comparado, que nos foi transmitida, tão sensatamente, pelos mestres alemães e suíços. Por fim, cabe esclarecer que a exposição sobre o novo regime das cláusulas abusivas é propositalmente sintática, porque o tema comporta, em face da experiência do direito comparado, uma análise monográfica, que já está sendo preparada. O presente trabalho é, portanto, amplo em sua análise, pois ampla é a aplicação da nova lei nas relações contratuais no mercado brasileiro, mas não pretende ser mais do que um primeiro passo, uma primeira contribuição para o entendimento desse fato novo, deste novo espírito introduzido no ordenamento brasileiro. É um estímulo à discussão, uma modesta tentativa de sistematização, aberta à crítica e crescimento, em face da novidade e da importância do tema. 2. Introdução ao tema A Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor ou CDC, entrou em vigor em 11 de março de 1991, representando uma considerável inovação no ordenamento jurídico brasileiro, uma verdadeira mudança na ação protetora (p. 32) do direito. De uma visão liberal e individualista do Direito Civil, passamos a uma visão social, que valoriza a função do direito como ativo garante do equilíbrio, como protetor da confiança e das legítimas expectativas nas relações de consumo no mercado. Em matéria contratual, não mais se acredita que assegurando a autonomia de vontade e a liberdade contratual se alcançará, automaticamente, a necessária harmonia e eqüidade nas relações contratuais. Nas sociedades de consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em massa, as relações contratuais se despersonalizaram, aparecendo os métodos de contratação estandardizados, como os contratos de adesão e as condições gerais dos contratos. Hoje estes métodos predominam em quase todas as relações entre empresas e consumidores, deixando claro o desnível entre os contratantes - um, autor efetivo das cláusulas, e outro, simples aderente. É uma realidade social bem diversa daquela do século XIX, que originou a concepção tradicional e individualista de contrato, presente em nosso Código Civil de 1917. Ao Estado coube, portanto, intervir nas relações de consumo, reduzindo o espaço para a autonomia de vontade, impondo normas imperativas de maneira a restabelecer o equilíbrio e a igualdade de forças nas relações entre consumidores e fornecedores. O art. 1º do Código de Defesa do Consumidor deixa claro que a nova Lei representa exatamente esta intervenção estatal, ordenada pela Constituição Federal de 1988, em seus arts. 5º, inciso XXXII e 170, inciso V. No Código estão positivadas as novas regras para a proteção do consumidor, as quais têm como fim justamente harmonizar e dar transparência às relações de consumo (veja art. 4º, caput in fine CDC). O novo Código pretende regular todas as matérias conexas às relações de consumo na sociedade; ao nosso estudo, porém, interessa somente a mais representativa e abrangente destas relações: a relação contratual entre o consumidor e o fornecedor de bens ou serviços.

Vários enfoques poderiam ser dados ao estudo do novo regime das relações contratuais entre consumidor e fornecedor de bens e serviços. Neste estudo, vamos sistematizar as novas normas, relacionando-as com os princípios básicos instituídos pelo Código de Defesa do Consumidor, destacando o que elas têm de novo em relação ao ordenamento jurídico brasileiro tradicional, pois somente o conhecimento e o domínio dessas mudanças possibilitará uma adaptação sem grandes traumas dos contratos e das práticas comerciais existentes no mercado. (p. 33) (p. 34, em branco) Parte 1 - A RENOVAÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL 1 - A NOVA TEORIA CONTRATUAL SUMARIO: 1. A concepção tradicional do contrato - 1.1 Características principais - 1.2 Origens da concepção tradicional de contrato: a) O direito canônico; b) A teoria do direito natural; c) Teorias de ordem política e a revolução francesa; d) Teorias econômicas e o Liberalismo - 1.3 Reflexos da teoria contratual e do dogma da autonomia da vontade: a) A liberdade contratual; b) A força obrigatória dos contratos; c) Os vícios do consentimento - 2. A nova realidade contratual - 2.1 Noções preliminares: Os contratos de massa - 2.2 Os contratos de adesão: a) Descrição do fenômeno; b) A formação do vínculo; c) A disciplina dos contratos de adesão - 2.3 As condições gerais dos contratos (cláusulas contratuais gerais): a) Descrição do fenômeno; b) A inclusão de condições gerais nos contratos; c) A disciplina das condições gerais dos contratos - 2.4 Os contratos cativos de longa duração: a) Descrição do fenômeno; b) A estrutura dos contratos cativos de longa duração; c) Disciplina - 2.5 As cláusulas abusivas nos contratos de massa - 3. Crise na teoria contratual clássica - 3.1 Crise da massificação das relações contratuais - 3.2 Crise da pós-modernidade - 4. A nova concepção de contrato e o Código de Defesa do Consumidor - 4.1 A nova concepção social do contrato: a) Socialização da teoria contratual; b) Imposição do princípio da boa-fé objetiva; c) Intervencionismo dos Estados - 4.2 O Código de Defesa do Consumidor como conseqüência da nova teoria contratual: a) Limitação da liberdade contratual; b) Relativização da força obrigatória dos contratos; c) Proteção da confiança e dos interesses legítimos; d) Nova noção de equilíbrio mínimo das relações contratuais. A idéia de contrato vem sendo moldada, desde os romanos, tendo sempre como base as práticas sociais, a moral e o modelo econômico da época. O contrato, por assim dizer, nasceu da realidade social. (p. 35) Efetivamente, sem os contratos de troca econômica, especialmente os contratos de compra e venda, de empréstimo e de permuta, a sociedade atual de consumo não existiria como a conhecemos. O valor decisivo do contrato está, portanto, em ser o instrumento jurídico que possibilita e regulamenta o movimento de riquezas dentro da sociedade.{1} Para as partes, o contrato objetiva, fundamentalmente, uma troca de prestações, um receber e prestar recíproco. Assim, contrato de

compra e venda é um sinalagma, em que um contratante assume a obrigação de pagar certo preço para alcançar um novo status jurídico, status de proprietário (seja de um automóvel, televisão ou mesmo de bens alimentícios), enquanto o outro assume a obrigação de transferir um direito seu de propriedade, porque lhe é mais interessante, no momento, ser credor daquela quantia. A idéia de troca, de reciprocidade de obrigações e de direitos serve para frisarmos a existência dentro da noção de contrato de um equilíbrio mínimo das prestações e contraprestações, equilíbrio mínimo de direitos e deveres. Note-se que o contrato remedia a desconfiança básica entre os homens e funciona como instrumento, antes individual, hoje social, de alocação de riscos para a segurança dos envolvidos e a viabilização dos objetivos almejados pelas partes.{2} Para a teoria jurídica, o contrato é um conceito importantíssimo, uma categoria jurídica fundamental trabalhada pelo poder de abstração dos juristas, especialmente os alemães do século XIX, quando sistematizaram a ciência do direito.{3} É o negócio jurídico por excelência, onde o consenso de vontades dirige-se para um determinado fim. É ato jurídico vinculante, que criará ou modificará direitos e obrigações para as partes contraentes, sendo tanto o ato como os seus efeitos permitidos e, em princípio, protegidos pelo Direito. * (1) Assim ensinam os mestres comparatistas Zweigert/Koetz, p. 7, sobre a evolução desta visão econômica do contrato e sua importância ainda nos dias de hoje, Poughon, Le contrat, pp. 47 e ss. (2) Como relembram os mestres da common law, o contrato, além da exchange functíon, possui uma importante função de alocação de riscos na sociedade moderna, veja o excelente Atiyah, p. 716. (3) Sobre o sistema do direito e a evolução dos conceitos da Teoria do Direito, veja a obra basilar de Karl Larenz, Metodologia e sobre a história do pensamento jurídico, veja o excelente Wieacker. (p. 36) A concepção de contrato, a idéia de relação contratual, sofreu, porém, nos últimos tempos uma evolução sensível, em face da criação de um novo tipo de sociedade, sociedade industrializada, de consumo, massificada, em face, também, da evolução natural do pensamento teórico-jurídico. O contrato evoluirá, então, de espaço reservado e protegido pelo direito para a livre e soberana manifestação da vontade das partes, para ser um instrumento jurídico mais social, controlado e submetido a uma série de imposições cogentes, mas eqUitativas. Este primeiro capítulo é, portanto, dedicado ao estudo da referida evolução da teoria contratual, evolução esta oriunda da realidade social e da ciência do Direito, que, no Brasil, culminará com a criação do Código de Defesa do Consumidor. 1. A concepçâo tradicional do contrato Na ciência jurídica do século XIX, a autonomia de vontade era a pedra angular do Direito.{4} A concepção de vínculo contratual desse período está centrada na idéia de valor da vontade, como elemento

principal, como fonte única e como legitimação para o nascimento de direitos e obrigações oriundas da relação jurídica contratual.{5} Como afirma Gounot,{6} "da vontade livre tudo procede e à ela tudo se destina". É a época do liberalismo na economia e do chamado voluntarismo no direito. A função das leis referentes a contratos era, portanto, somente a de proteger esta vontade criadora e de assegurar a realização dos efeitos queridos pelos contraentes.{7} A tutela jurídica limita-se a * (4) Veja os clássicos ensaios de Michel Villey, "Essor et décadence du voluntarisme juridique" e de A. Rieg, "Le rôle de la volonté dans la formation de l’acte juridique d’aprés les doctrines allemandes du XIX siécle", ambos nos Archives de Philosophie du Droit, vol. 4, Paris, Sirey, 1957, pp. 87/98 e 126-132. (5) Assim, os comparatistas alemães Zweigert/Koetz, p. 7; veja também o recente Jacques Ghestin, "La notion de contrat", in Recueil Dalloz/Sirey, 1990, n. 23, p. 147. (6) No original, "de la volonté libre tout procede, à elle tout aboutit", apud Bessone, Natura Ideologica, p. 944. (7) Relembre-se aqui a noção clássica de negócio jurídico, como declaração de vontade dirigida a um fim, tutelando o direito tanto esta vontade como os efeitos pretendidos pelas partes, veja a obra de Azevedo, pp. 6 e ss. (p. 37) possibilitar a estruturação pelos indivíduos destas relações jurídicas próprias assegurando uma teórica autonomia, igualdade e liberdade no momento de Contratar, e desconsiderando por completo a situação econômica e social dos contraentes. Na concepção clássica, portanto, as regras contratuais deveriam compor um quadro de normas supletivas, meramente interpretativas, para permitir e assegurar a plena autonomia de vontade dos indivíduos, assim como a liberdade contratual. Esta concepção voluntarista e liberal influenciará as grandes codificações do Direito e repercutirá no pensamento jurídico do Brasil, sendo aceita e positivada pelo Código Civil Brasileiro de 1917.{8} 1.1 Características principais Como primeira aproximação ao estudo da concepção tradicional de contrato vamos examinar a definição do grande sistematizador do século XIX, Friedrich Karl von Savigny, segundo a qual, o contrato é a união de mais de um indivíduo para uma declaração de vontade em consenso, através da qual se define a relação jurídica entre estes ("Vertrag ist die Vereiningung mehrerer zu einer übereinstimmenden Willenserklärung, wodurch ihre Rechtsverhältnisse bestimmt werden"){9}. Esta definição, em princípio simples, tem grande valor para a nossa análise, pois nela já podemos encontrar os elementos básicos que caracterizarão a concepção tradicional de contrato até os nossos dias: (1) a vontade (2) do indivíduo (3) livre (4) definindo, criando direitos e obrigações protegidos e reconhecidos pelo direito. Em outras palavras, na teoria do direito, a concepção clássica de contrato está

diretamente ligada à doutrina da autonomia da vontade e ao seu reflexo{10} mais importante, qual seja, o dogma da liberdade contratual. * (8) Assim Couto e Silva, Perspectivas, p. 134. (9) Apud Zweigert/Koetz, p. 6. (10) Concordam Weil/Terré, p. 25, Rieg, p. 126, Larenz/AT, p. 35, Laufs, p. 255, Raizer, p. 12, Almeida Costa, p. 77, Reale/Nova Fase, p. 87, Couto e Silva, RT 655, p. 7, Gomes/Transformações, p. 9, porém, para os comparatistas Zweigert/Koetz, p. 9, Koendgen, p. 119 e Kramer/Muenchener, p. 1090, os dogmas teriam o mesmo nível, sendo a característica mais importante a liberdade contratual, a qual não seria simples "reflexo" ou elemento do dogma da autonomia da vontade. A tradição brasileira e francesa é a que seguimos. (p. 38) Para esta concepção, portanto, a vontade dos contraentes, declarada ou interna, é o elemento principal do contrato. A vontade representa não só a genesis, como também a legitimação do contrato{11} e de seu poder vinculante e obrigatório. Tendo em vista o papel decisivo da vontade a doutrina, a legislação e a jurisprudência, influenciadas por esta concepção, irão concentrar seus esforços no problema da realização dessa autonomia da vontade;{12} somente a vontade livre e real, isenta de vícios ou defeitos, pode dar origem a um contrato válido, fonte de obrigações e de direitos. Nesse sentido, a função da ciência do direito será a de proteger a vontade criadora e de assegurar a realização dos efeitos queridos pelas partes contratantes. A tutela jurídica limita-se, nesta época, portanto, a possibilitar a estruturação pelos indivíduos de relações jurídicas próprias através dos contratos,{13} desinteressando-se totalmente pela situação econômica e social dos contraentes{14} e pressupondo a existência de uma igualdade e liberdade no momento de contrair a obrigação. Esta concepção clássica de contrato, individualista, liberal e centrada na idéia de valor da vontade, influenciará o pensamento brasileiro,{15} sendo aceita pelo Código Civil de 1917.{16} Mas a concepção clássica de contrato não é fruto de um único momento histórico, ao contrário, ela representa o ponto culminante e aglutinador da evolução teórica do direito após a idade média e da evolução social e política ocorrida nos séculos XVIII e XIX, com a revolução francesa, o nacionalismo crescente e o liberalismo econômico. A compreensão desta teoria clássica contratual exige, portanto, que se analise igualmente as origens dessa concepção, sempre tendo em vista o reflexo que estas influências teóricas e sociais tiveram no nascimento da doutrina da autonomia da vontade (1.2). * (11) Assim, Kramer/Muenchener, p. 1091 (ver § 145, 3, b). (12) Concordam Zweigert/Koetz, p. 8. (13) Nesse sentido Raizer, p. 12. (14) Assim, o mestre de Porto Alegre, Couto e Silva/Perspectiva, p. 134. (15) Veja sobre a repercussão do pensamento Filosófico-jurídico europeu no pensamento jurídico brasileiro, a lição de Reale, Nova Fase, p. 219. (16) Assim, Pontes de Miranda/Fontes, p. 377 e Couto e Silva/Perspectiva,

p. 137. (p. 39) É necessário, igualmente, que se identifique que conseqüências jurídicas se originaram, nos ordenamentos jurídicos de quase todos os povos europeus e também entre nós, da aceitação desta concepção clássica de contrato (1.3). 1.2 Origens da concepção tradicional de contrato A concepção tradicional de contrato, segundo frisamos, está intimamente ligada a idéia de autonomia da vontade, eis porque é possível identificar suas origens analisando a evolução deste dogma basilar do direito. Segundo doutrinadores franceses,{17} quatro são as principais origens da doutrina da autonomia da vontade no direito: a) O direito canônico - O direito canônico contribuiu decisivamente para a formação da doutrina da autonomia da vontade e, portanto, para a visão clássica do contrato, ao defender a validade e a força obrigatória da promessa por ela mesma, libertando o direito do formalismo exagerado e da solenidade típicos da regra romana.{18} O simples pacto faz nascer a obrigação jurídica, como fruto do ato do homem. É o direito canônico que vulgariza a fórmula ex nudo pacto nascitur. Para os canonistas, a palavra dada conscientemente criava uma obrigação de caráter moral e jurídico para o indivíduo. Assim, livre do formalismo excessivo do direito romano, o contrato se estabelece como um instrumento abstrato e como uma categoria jurídica.{19} * (17) Assim Weill/Terré, p. 50 sobre as origens da doutrina da autonomia da vontade. (18) Segundo Puig Peña, p. 2, o pactum ou conventio, no direito romano, significava um simples acordo que por si só não gerava uma actio, nem vínculo obrigacional, sendo necessário um plus (causa civilis) para se transformar em contractus: a forma especial, ou mais tarde, a execução por uma das partes. De outro lado, se Roma possuía um conceito mais objetivo de contrato e diferenciado do atual, isto não impede que alguns doutrinadores visualizem na relação de forças entre o disposto na lex e as instituições do ius (incluindo aqui os atos jurídicos) um conceito de autonomia privada bastante semelhante ao atual, como espaço reservado para a auto-determinação dos indivíduos, veja a controvérsia em Frezza, p. 481 e Carressi, p. 265. (19) Assim concluem também Mazeaud/Mazeaud/Chabas, p. 53. (p. 40) b) A teoria do direito natural - É na teoria do direito natural que encontramos, porém, a base teórico-filosófica mais importante na formação dos dogmas da concepção clássica: a autonomia da vontade e a liberdade contratual. Como ensina Reale,{20} à luz do Direito Natural, especialmente devido às idéias de Kant, a pessoa humana tornou-se um ente de razão, uma fonte fundamental do direito, pois, é através de seu

agir, de sua vontade, que a expressão jurídica se realiza. Kant{21} chegaria mesmo a afirmar que a autonomia da vontade seria "o único princípio de todas as leis morais e dos deveres que lhes correspondem". Estas idéias de Kant tiveram muita influência na Alemanha à época da sistematização do direito e serão uma das bases da Willenstheorie,{22} para a qual a vontade interna, manifestada sem vícios, é a verdadeira fonte do contrato, a fonte que legitima os direitos e obrigações daí resultantes, os quais devem ser reconhecidos e protegidos pelo direito. Para Wieacker,{23} os pandectistas do século XIX, ao sistematizarem a ciência do direito e os conceitos jurídicos, basearam-se na ética da liberdade - e do dever de Kant. Para este famoso historiador do direito, é na ideologia do jusnaturalismo que vamos encontrar a fonte do que ele chama "paixão burguesa pela liberdade". Efetivamente, é no direito natural que encontramos a base do dogma da liberdade contratual, uma vez que a liberdade de contratar seria uma das liberdades naturais do homem, liberdade esta que só poderia ser restringida pela vontade (Wille) do próprio homem.{24} O próprio Kant{25} afirmada que as pessoas * (20) Reale/Nova, p. 61. (21) Kant, "Kritik der Praktischen Vernunft" apud Reale/Nova, p. 60. (22) Assim concluem tb. Zweigert/Koetz, p. 8. (23) Wieacker, p. 280. (24) Concordam igualmente Zweigert/Koetz, p. 8, em interessante estudo. Ernst Wolf relembra que o § 823 do BGB ao citar os bens e valores, os quais lesados originam a pretensão de ressarcimento por ato ilícito no direito alemão, inclui "a liberdade", como interesse e direito natural do homem. Wolf, Ernst, "Vertragsfreiheit - eine Illusion?", FSKeller, p. 360. (25) Kant/Grundlegung zur Methaphysik der Sitten, p. 375: "Man sah den Menschen Durch seine Pflicht an Gesetze gebunden, man liess es sich aber nicht einfailen, dass er nur seiner eigenen und dennoch allgemeinen Gesetsgebung unterworíen sei, und dass er nur verbunden sei, seinen eigenen, den Naturzweck nach aber allgemeinen gesetzgebenden Willen gemaess zu handeln". (p. 41) só podem se submeter às leis que elas mesmas se dão, no caso, o contrato. Wieacker chega a considerar o jusnaturalismo, com as influências por ele recebidas da tradição católica, como a força mais poderosa no desenvolvimento do direito, depois do Corpus Iuris Civile.{26} Mas não só as teorias ético-jurídicas tiveram influência na formação de concepção clássica de contrato, também as teorias de ordem política e econômica ajudaram a moldá-la. c) Teorias de ordem política e a revolução francesa - Já se afirmou que o direito moderno nasce com a Revolução Francesa,{27} neste sentido queremos destacar a influência que a famosa teoria do contrato social exerceu sobre o direito contratual. Esta teoria de Rousseau lança a idéia do contrato como base da sociedade, sociedade politicamente organizada, isto é, o Estado. Aqui vamos reencontrar o dogma da vontade livre do homem, pois, segundo esta revolucionária teoria francesa, a autoridade estatal tem o seu fundamento no consentimento dos sujeitos de

direito, isto é, os cidadãos. Suas vontades se unem (em contrato) para formar a sociedade, o Estado como hoje o conhecemos. Nas palavras célebres de Rousseau: "Já que nenhum homem possui uma autoridade natural sobre o seu semelhante, e uma vez que a força não produz nenhum direito, restam, portanto, os contratos (as convenções) como base de toda a autoridade legítima no meio dos homens".{28} Note-se que também aqui está presente a idéia de renúncia à parte da liberdade individual. É necessário renunciar através do contrato social, mas a própria renúncia é expressão do valor da vontade. O contrato é, assim, não só a fonte das obrigações entre indivíduos, ele é a base de toda a autoridade. Mesmo o Estado retira sua autoridade de um contrato, logo a própria lei estatal encontra aí sua base. O contrato não obriga porque assim estabeleceu o direito, é o direito que vale porque deriva de um contrato. O contrato, tornando-se um a priori do direito, revela possuir uma base outra, uma legitimidade essencial * (26) Wieacker, p. 297. (27) Assim Reale/Nova, p. 73. (28) Nas palavras originais, Rousseau, p. 45, L. I., Cap. IV: "puisque aucun homme n’a une autorité naturelle sur son semblable, et puisque la force ne produit aucun droit, restent donc les conventions pour base de toute autorité légitime parmi les hommes". (p. 42) e autônoma em relação às normas: a vontade dos cidadãos.{29} A teoria do contrato social conduz, portanto, à idéia de importância da vontade do homem.{30} Destaque-se, por fim, a maior realização da Revolução Francesa no campo do Direito Civil, o Código Civil Francês de 1804. O Code Civil, elaborado na época napoleônica, conjuga as influências individualistas e voluntaristas da época com as idéias do Direito Natural Moderno: tendo, segundo Reale,{31} remota fonte hobbesiana. Marco da história do direito, esta codificação, que influenciada grande parte dos ordenamentos jurídicos do mundo, coloca como valor supremo de seu sistema contratual a autonomia da vontade, afirmando, em seu art. 1.134, que as convenções legalmente formadas têm lugar das leis para aqueles que as fizeram.{32} Esta visão extremamente voluntarista do direito contratual influenciará várias codificações, inclusive a nossa, moldando para sempre a concepção clássica de contrato. d) Teorias econômicas e o Liberalismo - As teorias econômicas do século XVIII, em resposta ao corporativismo e as limitações impostas pela igreja católica, propõem a liberdade como panacéia universal.{33} Para estas teorias, é basicamente necessária a livre movimentação das riquezas na sociedade.{34} Uma vez que o contrato é o instrumento colocado à disposição pelo direito para que esta movimentação aconteça, defendem a neces* (29) Assim Puig Peña, p. 3. Já o mestre alemão Coing/Rechtsphilosophie, p. 33, observa que exatamente neste momento, o homem (Menschen) volta a ser visto como cidadão (Bürger) e o direito dos homens (direito natural) vai cedendo espaço para o direito dos cidadãos (direito civil ou bürgerliches Recht, em alemão), direito dos iguais na sociedade civil. (30) Assim Weil/Terré, p. 51.

(31) Reale, Nova Fase, p. 87 e Villey, p. 683. (32) No original: "Art. 1.134 - Les conventions légalment formées tiennet lieu de li à ceux qui les ont faites", nossa tradução no texto foi influenciada por aquela de Reale, Nova Fase, p. 90, veja também sobre o sistema contratual do Code Civil, Morin, Révolte, p. 13 a 17. (33) Kramer/Krise, p. 22. (34) Veja Amaral, Autonomia, p. 26 e tb. o excelente Atiyah, p. 277, o qual destaca a importância da idéia de propriedade privada, a possibilitar essa liberdade de trocas de mercadorias na sociedade. (p. 43) sidade da liberdade contratual. Acreditava-se, na época, que o contrato traria em si uma natural eqüidade, proporcionaria a harmonia social e econômica, se fosse assegurada a liberdade contratual. O contrato seria justo e eqüitativo por sua própria natureza. Na expressão da época: "Qui dit contractuelle, dit juste".{35} O modelo do synalagma serve como base para esta visão econômica do contrato, a qual reafirmará ser este precipuamente um instrumento de troca do "inútil" pelo "útil", visando a realização de interesses individuais daqueles que contrataram. Note-se aqui uma dupla função econômica do contrato: instrumentalizar a livre circulação das riquezas na sociedade e ao mesmo tempo indicar o valor de mercado de cada objeto cedido (sua nova "utilidade"). Evolui-se, assim, para considerar o contrato menos um instrumento de troca de objetos, mas sim uma troca de valores.{36} No século XIX, auge do Liberalismo, do chamado Estado Moderno, coube a teoria do direito dar forma conceitual ao individualismo econômico da época, criando a concepção tradicional de contrato,{37} em consonância com os imperativos da liberdade individual e principalmente do dogma máximo da autonomia da vontade.{38} 1.3 Reflexos da teoria contratual e do dogma da autonomia da vontade A doutrina da autonomia da vontade considera que a obrigação contratual tem por única fonte a vontade das partes. A vontade humana é assim o elemento nuclear, a fonte e a legitimação da relação jurídica contratual e não a autoridade da lei. Sendo assim, é da vontade que se origina a força obrigatória dos contratos, cabendo à lei simplesmente colocar à disposição das partes instrumentos para assegurar o cumprimento das promessas e limitar-se a uma posição supletiva. A doutrina da autonomia da vontade terá também outras conseqüências jurídicas * (35) Assim Koendgen, p. 119, segundo Ghestin, "L’utile", p. 36 a expressão é de Fouillée, veja em português Schwab/Ajuris 39, p. 17 "quem diz contratual, diz justo". (36) Assim conclui tb. Poughon, pp. 54 e ss. (37) Veja detalhes na tese de Lobo, pp. 35 e ss. e em Bessone, Natura ideologica, p. 945. (38) Assim também, excelente, Reale, Nova Fase, p. 91. (p. 44) importantes como a necessidade do direito assegurar que a vontade criadora do contrato seja livre de vícios ou de defeitos, nascendo aí a

teoria dos vícios do consentimento. Acima de tudo o princípio da autonomia da vontade exige que exista, pelo menos abstratamente, a liberdade de contratar ou de se abster, de escolher o parceiro contratual, o conteúdo e a forma do contrato. É o famoso dogma da liberdade contratual. Vejamos, portanto, em detalhes estas conseqüências e reflexos no mundo do direito da aceitação da doutrina da autonomia da vontade: a) A liberdade contratual - A idéia de autonomia de vontade está estreitamente ligada a idéia de uma vontade livre, dirigida pelo próprio indivíduo sem influências externas imperativas. A liberdade contratual significa, então, a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, liberdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o conteúdo e os limites das obrigações que quer assumir, liberdade de poder exprimir a sua vontade na forma que desejar, contando sempre com a proteção do direito. Para alguns novos autores alemães,{39} os dogmas da autonomia da vontade e da liberdade contratual deveriam ter o mesmo nível e importância na caracterização da teoria tradicional do contrato. Evitando teorizar se o dogma da liberdade contratual teria sua origem na doutrina da autonomia da vontade ou não, eles preferem uma análise funcional da teoria contratual, destacando que o contrato é, para o liberalismo econômico do século XIX, um dos mais importantes institutos jurídicos, pois instrumentaliza a movimentação de riquezas na sociedade. Para estes autores,{40} a idéia de liberdade contratual preencheu três importantes funções à época do liberalismo, momento de maturação da concepção tradicional de contrato. De um lado permitia que os indivíduos agissem de maneira autônoma e livre no mercado, utilizando assim de maneira optimal as potencialidades da economia, baseada em um mercado livre, e criando, assim, outra importante figura: a livre concorrência. De outro lado, nesta economia livre e descentralizada, deveria ser assegurado a cada contraente a * (39) Assim os comparatistas famosos, Zweigert/Koetz, p. 9, o respeitado comentário do BGB, Kramer/Muenchener, p. 1090 e a Habilitationsschrift de Koendgen, p. 119. (40) Koendgen, p. 119 a Kramer/Muenchener, p. 1091. (p. 45) maior independência possível para se auto-obrigar nos limites que desejasse, ficando apenas adstrito à observância do princípio máximo: pacta sunt servanda. Koendgen{41} destaca aqui, que esta ampla liberdade de contratar pressupõe juridicamente a aceitação de que a obrigação assumida é limitada a determinado ato e em determinado espaço de tempo. Ganha, assim, importância para o direito o consenso, a vontade de indivíduo, o Conteúdo e os limites desta vontade, interna ou declarada. A terceira função do dogma da liberdade contratual pode ser denominada como função "protetora". Na visão liberal, o Estado deveria abster-se de qualquer intervenção nas relações entre indivíduos. Assim, se o indivíduo era livre e tinha a possibilidade de se autoobrigar, tinha direito também de defender-se contra a imputação de outras obrigações para as quais não tenha manifestado a sua vontade. Como se observa, mesmo nesta exposição alternativa do dogma da liberdade contratual este aparece intrinsecamente ligado à autonomia da vontade, pois é a vontade, que, na visão tradicional, legitima o

contrato e é fonte das obrigações, sendo a liberdade um pressuposto desta vontade criadora, uma exigência, como veremos, mais teórica do que prática. Preferimos aqui destacar os reflexos que ambos os dogmas tiveram na teoria contratual tradicional, assim temos, por exemplo, o princípio da liberdade de forma das convenções, o da livre estipulação de cláusulas e a possibilidade de criar novos tipos de contratos, não tipificados nos Códigos. Na teoria do direito, a liberdade contratual encontra um obstáculo somente: as regras imperativas que a lei formula.{42} Mas no direito contratual tradicional estas regras são raras e têm como função justamente proteger a vontade dos indivíduos, como, por exemplo, as regras sobre capacidade. No mais, as normas legais restringem-se a fornecer parâmetros para a interpretação correta das vontades das partes e a oferecer regras supletivas para o caso dos contratantes não desejarem regular eles mesmos determinados pontos da obrigação assumida, como, por exemplo, as regras sobre o lugar e o tempo do pagamento. * (41) Koendgen, pp. 119 e 120. (42) Assim Carbonnier, p. 146 e Weil/Terré, p. 53. (p. 46) b) A força obrigatória dos contratos - Se, para a concepção clássica de contrato, a vontade é o elemento essencial, a fonte, a legitimação da relação contratual; se, como vimos, até mesmo a sociedade politicamente organizada tem sua fonte em um contrato social; se o homem é livre para manifestar a sua vontade e para aceitar somente as obrigações que sua vontade cria; fica claro que, por trás da teoria da autonomia da vontade, está a idéia de superioridade da vontade sobre a lei.{43} O direito deve moldar-se à vontade, deve protegêla e reconhecer a sua força criadora. O contrato, como diz o art. 1.134 do Código Civil francês, será a lei entre as partes. A própria lei, oriunda do Estado, vai buscar o seu poder vinculante na idéia de um contrato entre todos os indivíduos desta sociedade. A vontade é, portanto, a força fundamental que vincula os indivíduos. À idéia de força obrigatória dos contratos significa que uma vez manifestada a vontade as partes estão ligadas por um contrato, têm direitos e obrigações e não poderão se desvincular, a não ser através de outro acordo de vontade ou pelas figuras da força maior e do caso fortuito (acontecimentos fáticos incontroláveis pela vontade do homem). Esta força obrigatória vai ser reconhecida pelo direito e vai se impor frente à tutela jurisdicional. Ao juiz não cabe modificar e adequar à eqüidade a vontade das partes, manifestada no contrato, ao contrário, na visão tradicional, cabe-lhe respeitá-la e assegurar que as partes atinjam os efeitos queridos pelo seu ato. Lembre-se por último que, como corolário da liberdade e autonomia da vontade, a força obrigatória dos contratos fica limitada às pessoas que dele participaram, manifestando a sua vontade (inter partes). c) Os vícios do consentimento - Do dogma da autonomia da vontade, como elemento criador das relações contratuais, retira-se o postulado que só a vontade livre e consciente, manifestada sem

influências externas coatoras, deverá ser considerada pelo direito. Aqui, portanto, a base da teoria dos vícios do consentimento, presente no Código Civil brasileiro, nos arts. 86 a 113. Se na formação do contrato estiver viciada a vontade de uma das partes, o negócio jurídico é passível de anulação. Como se vê, a validade (e a eficácia) jurídica do contrato mais uma vez dependem da vontade criadora. A própria * (43) Assim concluem Weil/Terré, p. 55. (p. 47) escolha, no art. 147, II do CC, da figura da anulabilidade rende homenagem a autonomia da vontade, pois ao contrário da nulidade, que deve ser declarada ex officio pelo juiz, a anulabilidade só repercutirá na validade e eficácia do ato se for manifestado o interesse das partes neste sentido e antes da prescrição da ação. Ao direito interessava, portanto, identificar qual vontade serve de fonte e legitimação do contrato, se a vontade interna (posição defendida pela Willenstheorie) ou se a vontade declarada (posição defendida pela Erklärungstheorie).{44} Apesar da grande influência exercida por Savigny, defendendo a prevalência da vontade interna, os códigos se dividiram, especialmente o Código Civil Alemão (BGB) de 1900, de um lado aceitando a figura do erro e de outro, preocupados com a segurança e a estabilidade das relações jurídicas e a proteção do terceiro de boa-fé, confirmando o conteúdo do que foi efetivamente declarado.{45} Ainda quanto às conseqüências do dogma da autonomia da vontade, cabe destacar que se o consentimento viciado não obriga o indivíduo, o consentimento livre de vícios o obriga de tal maneira que mesmo sendo o conteúdo do contrato injusto ou abusivo, não poderá ele, na visão tradicional, recorrer ao direito a não ser em casos especialíssimos de lesão.{46} Os motivos que levaram o indivíduo a contratar, suas expectativas originais, são irrelevantes. Nas discussões do fim do século XIX, no início do século XX, sobre a prevalência da vontade interna ou da vontade declarada encontra-se já a semente da nova concepção de direito dos contratos. É a discussão entre a visão filosófica e metafísica do contrato e uma visão mais social ou funcional do processo. Vejamos, portanto, como a posterior evolução da sociedade, com a revolução industrial e massificação do consumo, acentuou ainda mais esta discrepância entre o que os norte-americanos, corretamente, denominam law-in-the-books e law-in-action.{47} * (44) Veja Nery, pp. 8 a 15. (45) Sobre a posição de compromisso dos §§ 116 e seguintes do BGB, veja Koendgen, p. 3. (46) Veja sobre a lesão e cláusula rebus sic stantibus. Couto e Silva/RT, p. 7 e a obra específica de Caio M. da Silva Pereira. (47) Expressão de Friedman, apud Koendgen, p. 2. (p. 48) 2. A nova realidade contratual 2.1 Noções preliminares: Os contratos de massa Na concepção tradicional de contrato, a relação contratual seria obra de dois parceiros em posição de igualdade perante o direito e a sociedade, os quais discutiriam individual e livremente as cláusulas de

seu acordo de vontade. Seria o que hoje denominaríamos de contratos paritários ou individuais.{48} Contratos paritários, discutidos individualmente, cláusula a cláusula, em condições de igualdade e com o tempo para tratativas preliminares, ainda hoje existem, mas em número muito limitado e geralmente nas relações entre dois particulares (consumidores), mais raramente, entre dois profissionais e somente quando de um mesmo nível econômico. Na sociedade de consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em grande quantidade, o comércio jurídico se despersonalizou{49} e os métodos de contratação em massa, ou estandardizados, predominam em quase todas as relações contratuais entre empresas e consumidores.{50} Dentre as técnicas de conclusão e disciplina dos chamados contratos de massa, destacaremos, neste estudo, os contratos de adesão e as condições gerais dos contratos ou cláusulas gerais contratuais. Como se observa na sociedade de massa atual, a empresa ou mesmo o Estado, pela sua posição econômica e pelas suas atividades de produção ou de distribuição de bens ou serviços, encontram-se na iminência de estabelecer uma série de contratos no mercado. Estes contratos são homogêneos em seu conteúdo (por exemplo, vários contratos de seguro de vida, de compra e venda a prazo de bem móvel), mas concluídos com uma série ainda indefinida de contratantes. Logo, por uma questão de economia, de racionalização, de praticidade e mesmo de segurança, a empresa predispõe antecipadamente um esque* (48) Em nosso trabalho O Controle Judicial das Cláusulas Abusivas nos Contratos de Consumo usamos o termo contratos paritários, já Alpa, em "Le contrat "individuel" et sa définition", Rev. int. dir. comp. 1988, 327, prefere a expressão contrato individual. (49) Assim Pasqualotto/RT, p. 55. (50) Assim tb. Roppo, p. 313. (p. 49) ma contratual, oferecido à simples adesão dos consumidores, isto é, pré-redige um complexo uniforme de cláusulas, que serão aplicáveis indistintamente a toda esta série de futuras relações contratuais. Alguns comparam esta predisposição do texto contratual a um poder paralelo de fazer leis e regulamentos privados (lawmaking power).{51} Poder este que, legitimado pela economia e reconhecido pelo direito, acabaria por desequilibrar a sociedade, dividindo os seus indivíduos entre aqueles que detêm a posição negocial de elaboradores da "lex" privada e os que a ela se submetem, podendo apenas aderir a vontade manifestada pelo outro contratante. Certo é que os fenômenos da predisposição de cláusulas ou condições gerais dos contratos e do fechamento de contratos de adesão tornaram-se inerentes à sociedade industrializada moderna: em especial, nos contratos de seguros e de transportes já se observa a utilização destas técnicas de contratação desde o século XIX.{52} Hoje, elas dominam quase todos os setores da vida privada, onde há superioridade econômica ou técnica entre os contratantes, seja nos contratos das empresas com seus clientes, seja com seus fornecedores, seja com seus assalariados.{53} Note-se que estas novas técnicas contratuais, de pré-elaboração

unilateral do conteúdo do contrato, também são utilizadas por empresas públicas ou concessionárias de serviços públicos (por exemplo, no fornecimento de água, luz, serviços de transporte, correios, telefonia).{54} * (51) Veja sobre a discussão proposta, Bessone, Natura Ideologica, pp. 947-951; o tema da natureza das cláusulas predispostas e dos contratos por adesão, se predominantemente normativos ou voluntários, já foi objeto de vários estudos, entre os quais destacam-se as obras pioneiras de Saleilles e Raiser. A doutrina atual aceita o caráter contratual, privado e voluntário do negócio jurídico concluído através da utilização dessas novas técnicas contratuais, o que não invalida a discussão proposta, pois como lembra Calais-Auloy, p. 121, a legitimação e o reconhecimento de um "poder regulamentador" a ser atribuído a determinados agentes sociais é fenômeno conhecido no direito público. (52) Assim Ulmer/Brandner/Hensen, p. 21 (Einl. 7), lembrando que Raiser visualizava os primórdios destas técnicas já no séc. XV (?). (53) Assim o mestre francês Calais-Auloy, p. 141. (54) Veja a excelente exposição sobre o tema do mestre italiano Alpa/Diritto, pp. 185 e ss. (p. 50) Também em matéria de contratos de trabalho, as técnicas de contratar em massa são utilizadas.{55} A análise dos contratos de trabalho, porém, escapa aos limites deste estudo. A nós interessa especialmente as relações contratuais entre consumidores e seus fornecedores de bens ou serviços, sejam pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, segundo as definições dos arts. 2º e 3º do novo Código de Defesa do Consumidor. Por fim cabe lembrar que nas relações de massa nem sempre os contratos serão feitos por escrito, pois ao lado dos contratos de adesão, expressos em formulários, existem os contratos orais, a aceitação através das chamadas condutas sociais típicas{56} os simples recibos, os tickets de caixas automáticas.{57} Em nosso estudo, todos estes fenômenos devem ser levados em conta. A prefixação de todo o conteúdo do contrato, ou de parte deste, de maneira unilateral e uniforme por só uma das partes contratantes não passou despercebida aos estudiosos do Direito, existindo duas expressões para descrever esta realidade. De um lado prefere a doutrina germânica a expressão "condições gerais dos contratos", ou na tradução de Portugal "cláusulas gerais contratuais", de outro, a doutrina francesa utiliza a expressão "contratos de adesão". Note-se que a expressão "condições gerais dos contratos" enfatiza mais a fase pré-contratual, onde são elaboradas estas listas independentes de cláusulas gerais a serem oferecidas ao público contratante, enquanto utilizando a expressão contrato de adesão a doutrina francesa destaca o momento de celebração do contrato, dando ênfase à vontade criadora do contrato, vontade esta que somente adere à vontade já manifestada do outro contratante. Poderíamos chegar à conclusão que os dois conceitos possuem o mesmo conteúdo, visualizado de momentos diferentes. Esta conclusão,

porém, é apenas superficial e por sua simplificação não serve ao objetivo de nosso estudo, que é analisar estas modernas técnicas, as * (55) Veja sobre o tema Gomes/transformações, pp. 178 e ss. (56) A expressão é de Larenz/AT, p. 471 (§ 28, II). (57) Veja o interessante artigo de Koehler sobre a problemática da contratação automatizada, muito em voga na Europa, tratando também da prestação de serviços através de robôs e computadores. (p. 51) quais abrangem tanto os contratos de massa por escrito como os contratos orais ou não escritos.{58} Neste sentido, para dar maior clareza à exposição, vamos inicialmente acatar a diferenciação feita pela Comissão das Comunidades Européias{59} entre contratos de adesão e contratos submetidos a condições gerais. Como contratos de adesão entenderemos restritivamente os contratos por escrito, preparados e impressos com anterioridade pelo fornecedor, nos quais só resta preencher os espaços referentes à identificação do comprador e do bem ou serviços, objeto do contrato. Já por contratos submetidos a condições gerais dos negócios entenderemos aqueles, escritos ou não escritos, em que o comprador aceita, tácita ou expressamente, que cláusulas, pré-elaboradas unilateral e uniformemente pelo fornecedor para um número indeterminado de relações contratuais, venham a disciplinar o seu contrato específico. Típico aqui seriam os contratos de transporte, contratos de administração de imóveis e mesmo alguns contratos bancários. As expressões condições gerais dos contratos e contratos de adesão não são, portanto, sinônimas, mas, segundo a doutrina e a lei alemã,{60} a expressão condições gerais pode englobar todos os contratos de adesão com formulários impressos, contratos modelo e os contratos autorizados ou ditados pelos órgãos públicos, pois estes também são compostos por cláusulas pré-elaboradas unilateral e uniformemente pelos fornecedores, com a única diferença que nestes casos as condições gerais estão inseridas no próprio texto do contrato e não em anexo. Eis porque muitos autores utilizam indistintamente os termos.{61} Neste estudo, vamos tratar separadamente os temas para que se possa estudar os aspectos individuais de cada técnica de contratação em massa. Assim, analisaremos no primeiro título os contratos de adesão, reservando o segundo título para o estudo das chamadas condições gerais dos contratos. * (58) Concorda tb. Nery/Anteprojeto, p. 292, retirando, porém, outras conclusões. (59) Em seu Bulletin des Communautés Européennes Supplément 1/84, p. 6, item 10. (60) Veja o parágrafo primeiro da lei alemã (AGBG) e Ulmer/Brandner/Hensen, p. 95, nota 66. (61) Os autores argentinos costumam denominar "contratos por adhesión a condiciones generales", pois o contrato de adesão está integrado por cláusulas, e estas cláusulas são condições gerais, veja Stiglitz/Stiglitz, p. 52. (p. 52) Hoje, estas novas técnicas contratuais são indispensáveis ao moderno sistema de produção e de distribuição em massa, não havendo

como retroceder o processo e eliminá-las da realidade social. Elas trazem vantagens evidentes para as empresas (rapidez, segurança, previsão dos riscos, etc.), mas ninguém duvida de seus perigos para os contratantes vulneráveis ou consumidores. Estes aderem sem conhecer as cláusulas, confiando nas empresas que as pré-elaboraram e na proteção que, esperam, lhes seja dada por um Direito mais social.{62} Esta confiança nem sempre encontra correspondente no instrumento contratual elaborado unilateralmente, porque as empresas tendem a redigi-los da maneira que mais lhe convém, incluindo uma série de cláusulas abusivas e inequitativas.{63} Nesta segunda edição, parece-nos útil incluir, além de uma análise dos métodos ou técnicas de contratação de massa, uma análise, ainda que preliminar, das atuais relações contratuais complexas, por alguns chamadas de "pós-modernas". Esta nova realidade aliaria os métodos conhecidos de contratação de massa a relações complexas de longa duração, envolvendo serviços, uma cadeia de fornecedores organizados internamente e com uma característica determinante; a posição de catividade dos clientes-consumidores. Denominaremos este fenômeno de "contratos cativos de longa duração", face a incerteza que cerca o movimento pós-moderno e sua eventual importância na ciência do direito, e face também a nossa opinião pessoal de que a nova teoria contratual, como aqui vamos analisá-la, e as linhas "modernas" e científicas de defesa dos interesses dos consumidores são suficientes e aptas a fornecer respostas eqüitativas a essa nova realidade contratual, já vislumbrada no mercado. 2.2 Os contratos de adesão a) Descrição do fenômeno - Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas são preestabelecidas unilateralmente pelo parceiro contratual economicamente mais forte (fornecedor), ne varietur, isto é, sem que * (62) Neste sentido vale lembrar a conclusão de Mallinvaud, p. 50, que o Direito do Consumidor teria como função "restabelecer nas relações contratuais o equilíbrio", logo a mesma função que visualisamos no novo direito dos contratos (veja nesse Capítulo, o título 4). (63) No mesmo sentido Calais/Auloy, p. 143. (p. 53) o outro parceiro (consumidor) possa discutir ou modificar substancialmente o conteúdo do contrato escrito.{64} O contrato de adesão é oferecido ao público em um modelo uniforme, geralmente impresso, faltando apenas preencher os dados referentes à identificação do consumidor-contratante, do objeto e do preço. Assim, aqueles que, como consumidores, desejarem contratar com a empresa para adquirirem bens ou serviços já receberão pronta e regulamentada a relação contratual, não poderão efetivamente discutir, nem negociar singularmente os termos e condições mais importantes do contrato. Desta maneira, limita-se o consumidor a aceitar em bloco (muitas vezes sem sequer ler completamente) as cláusulas, que foram unilateral e uniformemente pré-elaboradas pela empresa, assumindo, assim, um papel de simples aderente à vontade manifestada pela empresa no

instrumento contratual massificado.{65} O elemento essencial do contrato de adesão, portanto, é a ausência de uma fase pré-negocial, a falta de um debate prévio das cláusulas contratuais e sim, a sua predisposição unilateral, restando ao outro parceiro a mera alternativa de aceitar ou rejeitar o contrato, não podendo modificá-lo de maneira relevante. O consentimento do consumidor manifesta-se por simples adesão ao conteúdo preestabelecido pelo fornecedor de bens ou serviços. Podemos destacar como características do contrato de adesão: 1) a sua pré-elaboração unilateral; 2) a sua oferta uniforme e de caráter geral, para um número ainda indeterminado de futuras relações contratuais; 3) seu modo de aceitação, onde o consentimento se dá por simples adesão à vontade manifestada pelo parceiro contratual economicamente mais forte. O fenômeno dos contratos de adesão é cada vez mais comum na experiência contemporânea, produzindo-se em múltiplos domínios como, por exemplo, o dos seguros, o dos planos de saúde, o das operações bancárias, o da venda e aluguel de bens. Também as empresas públicas e as concessionárias de serviços públicos empregam esta técnica de contratação em massa. O Poder Público utilizase de contratos de adesão nas suas relações diretas com os consu* (64) Veja Bricks, p. 5, sobre as criticas a esta expressão veja, por todos, Nery, Anteprojeto, p. 288. (65) Assim Roppo, pp. 311 e 312. (p. 54) midores de seus serviços e, na maioria das vezes, predispõe as cláusulas dos contratos que serão oferecidos pelos concessionários aos consumidores.{66} Em regra os contratos de adesão são elaborados pelo próprio fornecedor-ofertante, mas também existem contratos oferecidos à adesão, cujo conteúdo deriva de recomendações ou imposições de associações profissionais. Neste caso a doutrina francesa os denominava de "contratos-tipo" (contrats-types), pois a imposição é como se fosse um regulamento que restringe a liberdade dos membros daquela profissão, hoje a expressão é utilizada quase como um sinônimo de contrato de adesão.{67} Também a lei ou um regulamento administrativo pode "ditar" o conteúdo de um determinado contrato, neste caso são denominados "contratos dirigidos" ou contratos "ditados", como por exemplo, no Brasil, os contratos oferecidos por administradoras de consórcios, ditados através de Portaria Ministerial. A expressão contrats d’adhesion costuma ser atribuída ao professor francês Raymond Saleilles, em sua obra do início do século, o qual pretendia destacar através desta denominação que nestes contratos somente uma vontade predomina, a que dita a sua "lei", dita o conteúdo do contrato não mais a um individuo somente, mas a uma coletividade indeterminada de pessoas, as quais vão se limitar a aderir à sua vontade. Para o autor francês, o contrato de adesão se aproxima de uma declaração unilateral de vontade, aproxima-se mesmo da lex romana, do regulamento, devendo esta característica ser levada em conta quando da interpretação dos contratos.{68} Realmente, no contrato de adesão não há liberdade contratual de definir conjuntamente os termos do contrato, podendo o consumidor somente aceitá-lo ou recusá-lo. É o que os doutrinadores angloamericanos denominam contrato em uma take-it-or-leave-it basis.{69}

Sendo assim, por muito tempo discutiu a doutrina o caráter contratual ou não dos contratos de adesão. Para alguns, por sua * (66) Veja a excelente exposição sobre o tema do mestre brasileiro Gomes, Transformações. Contratos, p. 15. (67) Assim ensina Ghestin, Clauses Abusives, p. IX. (68) Veja por todos Nery, Anteprojeto, p. 288. (69) Assim Cheshire and Fifoot’s, Contract, p. 21. (p. 55) estrutura pré-elaborada unilateralmente, por suas características que eliminam a fase de discussão pré-contratual, estes contratos se aproximariam dos atos de direito público, dos atos regulamentares. Para outros não haveria um real acordo de vontades, mas sim um ato unilateral. Hoje a doutrina é unânime em aceitar o caráter contratual dos contratos de adesão (veja título 3). Trata-se de um acordo de vontades representado pela adesão, não sendo essencial ao contrato que seu conteúdo seja discutido cláusula a cláusula em uma fase preliminar, assim também a igualdade de forças dos contratantes não é essencial. Mesmo existindo, na prática, um desigual poder de barganha (unequal bargaining power){70}, não se deve negar o caráter contratual do contrato de adesão (ou por adesão), pois a manutenção do vínculo, na maioria das vezes, beneficia o contratante mais fraco, deve-se sim criar normas e uma disciplina específica adaptada às suas características especiais e que permita um controle efetivo da eqüidade contratual. Passemos, pois, ao exame da formação deste vínculo contratual. b) A formação do vínculo - Enquanto não houver a manifestação de vontade do consumidor, o simples modelo pré-elaborado do contrato de adesão não passa, na feliz expressão alemã, de um pedaço de papel (Stück Papier).{71} O consentimento do consumidor, a sua adesão, é que provoca o nascimento do contrato, a concretização do vínculo contratual entre as partes. Declaração de vontade - Uma vez que nos contratos de adesão o consumidor tem de aceitar em bloco as cláusulas preestabelecidas pelo fornecedor, na maioria das vezes, o consumidor sequer lê completamente o instrumento contratual ao qual vai aderir. Modernamente, porém, considera-se que exista um dever de transparência nas relações de consumo. Assim, o consumidor deve ser informado, pelo menos, deve ter a oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo do contrato. Além do que deverá o contrato de adesão ser redigido de tal forma a possibilitar a sua compreensão pelo homem comum. * (70) Veja Bessone, Law of Contract, p. 499, tb. Calais-Auloy, Clauses Abusivcs, p. 155. (71) Preferindo utilizar a expressão com exclusividade para as "condições gerais dos contratos", veja Nery, Anteprojeto, p. 292. (p. 56) Os contratos de adesão são contratos escritos e, portanto, o consentimento do consumidor seguirá esta forma. Os contratos de adesão, geralmente, apresentam-se em formulários impressos, sendo hoje também comum os elaborados por computadores, o que não os descaracteriza. Note-se que pelas suas próprias características o contrato de adesão exige somente a capacidade dos parceiros contratuais, o con-

sentimento se dá por adesão a uma vontade manifestada de maneira complexa no instrumento contratual, sendo a figura do erro totalmente irrelevante. Para alguns autores da escola francesa poderia haver no contrato de adesão um permanente vício do consentimento, a coação. Esclareça-se que para alguns doutrinadores desta escola só se poderia falar em contrato de adesão quando o fornecedor se encontrasse em posição de monopólio de fato ou de direito, logo, como que forçando o consumidor a contratar.{72} Tal análise, porém, peca pelo exagero, pois uma liberdade de contratar ou não, ainda que mínima, geralmente persiste. O que há é uma superioridade econômica e social, a qual pode levar facilmente a abusos. Interpretação - A interpretação dos contratos de adesão mereceu especial atenção da doutrina desde a sua identificação como método de contratação no início do século. A regra geral é que se interprete o contrato de adesão, especialmente as suas cláusulas dúbias, contra aquele que redigiu o instrumento. É a famosa interpretação contra proferentem{73} presente tanto nas normas do Código Civil Brasileiro (art. 423). Outra linha mestra da interpretação dos contratos de adesão é a da prevalência das cláusulas acertadas individualmente sobre aquelas impressas ou uniformes. Sendo assim, se alguma cláusula estiver escrita à máquina ou à mão, pressupõe-se que esta derive de uma discussão individual, de um acordo de vontades sobre aquele ponto específico da relação contratual, devendo prevalecer e derrogar as outras cláusulas do formulário padrão. Note-se igualmente que a inclusão desta cláusula particular não descaracteriza o contrato como de adesão, sendo também indiferente quem fez a última oferta, se o fornecedor, elaborador do formulário, ou o consumidor. * (72) Veja detalhes em Vallespinos, pp. 309 a 315. (73) Veja von Hippel, p. 123. (p. 57) c) A disciplina dos contratos de adesão - O contrato de adesão não é uma espécie nova e independente de contrato, trata-se de contratos de compra e venda, contratos de transporte, contratos de locação e outros mais variados tipos de contratos, em que se usa, sim, um método comum de contratação, o de oferecer o instrumento contratual já impresso, prévia e unilateralmente elaborado, para a aceitação do outro parceiro contratual, o qual simplesmente "adere" à vontade manifestada no instrumento contratual. Este método de contratação obteve sucesso pelas vantagens que sua utilização traz aos fornecedores e mesmo aos consumidores. A contratação é mais rápida e facilitada, não se faz uma diferenciação entre os consumidores desta ou de outra classe social, o método racionaliza a transferência de bens de consumo na sociedade, possibilitando também a previsão dos riscos por parte dos fornecedores. Entre as vantagens que apresenta, está a rapidez de sua adaptação a novas situações, bastando elaborar um novo contrato modelo e imprimi-lo em um novo formulário. De outro lado a sua elaboração prévia e unilateral como se facilita a inclusão de cláusulas abusivas, cláusulas que asseguram vantagens unilaterais e excessivas para o fornecedor que as elabora. Sendo assim, por suas características e originalidade, tanto a interpretação dos contratos de adesão (controle formal), quanto o controle do conteúdo, da eqüidade dos contratos de adesão, mereceram

especial atenção dos doutrinadores. Na década de quarenta, um professor norte-americano duvidava da possibilidade do direito dos contratos manter sua unidade, em face do incremento do uso dos contratos de adesão.{74} Realmente, a proliferação das técnicas de contratação em massa exigiria uma modificação profunda na teoria contratual e a criação de uma disciplina específica para os contratos de consumo. Uma vez que, pela doutrina alemã, os contratos de adesão podem ser incluídos entre aqueles que utilizam condições gerais, examinaremos agora este outro fenômeno ou método da contratação em massa, para só então abordarmos em detalhes a nova disciplina dos contratos de consumo, especialmente no que se refere ao combate às cláusulas abusivas. * (74) Rakoff, p. 1.176. (p. 58) 2.3 As condições gerais dos contratos (cláusulas contratuais gerais) a) Descrição do fenômeno - Entende-se como contratos submetidos a condições gerais{75} aqueles contratos, escritos ou não escritos, em que o comprador aceita, tácita ou expressamente, que cláusulas préelaboradas pelo fornecedor, unilateral e uniformemente para um número indeterminado de relações contratuais, venham a disciplinar o seu contrato específico. Assim condições gerais dos contratos (CONDGs) é aquela lista de cláusulas contratuais pré-elaboradas unilateralmente para um número múltiplo de contratos, a qual pode estar ou não inserida no documento contratual e que um dos contraentes oferece para reger a relação contratual no momento de sua celebração. Trata-se, portanto, de uma técnica de pré-elaboração do conteúdo de futuros contratos.{76} Segundo a doutrina européia,{77} as características principais da noção de CONDG são: 1. São cláusulas ou condições de um contrato, independente do tipo de contrato. Mesmo negócios jurídicos unilaterais dirigidos a um contrato podem estar aqui incluídos, como por exemplo a declaração de um paciente exonerando dos eventuais resultados da intervenção médica, ou uma renúncia a determinado crédito.{78} 2. São cláusulas pré-elaboradas, isto é, pré-redigidas antes da conclusão do contrato por uma das partes para ser incluídas em um futuro contrato. As cláusulas são consideradas pré-elaboradas também quando estão arquivadas em um computador e são impressas na hora para o cliente, ou datilografadas segundo um formulário, mesmo de memória pelo advogado da empresa. Neste sentido já foram conside* (75) Os portugueses preferem a expressão cláusulas contratuais gerais, veja Decreto-Lei n. 446/85, comentado por Almeida Costa ou por Amaral. (76) Assim Couto e Silva, Condições Gerais dos Negócios, p. 29, para o qual a racionalização dos serviços e a industrialização criaram o "hábito" de se determinar, por antecipação, as cláusulas dos futuros contratos. (77) Estão sendo consideradas aqui a doutrina alemã e a doutrina portuguesa tendo em vista o desenvolvimento que encontraram as leis sobre condições gerais desses países.

(78) Veja a exposição das características em Koetz/Muenchener, p. 1.624, AGBG § 1(5 a 10) e no clássico Raiser, p. 42. (p. 59) radas CONDGs as cláusulas pré-elaboradas pelo tabelião e incluídas em um contrato por escritura pública.{79} 3. As cláusulas devem ser pré-elaboradas para um número múltiplo e indeterminado de contratos,{80} e não pré-elaboradas para um único contrato. Assim, por exemplo, quando o advogado da empresa elabora um contrato específico, não estamos diante de CONDGs, mas sim quando elabora um contrato modelo ou a lista de cláusulas que deverão integrar vários futuros contratos de compra e venda, de aluguel, de empréstimo etc., a serem firmados por seu cliente e consumidores. Note-se que a evolução dos contratos modelos ou a modificação de algumas cláusulas não descaracteriza as cláusulas como CONDGs. 4. As cláusulas são pré-elaboradas unilateralmente por um dos contraentes, ou mesmo por terceiros, e são oferecidas à aceitação do outro. Interessante é o caso em que um terceiro, Tabelião, Imobiliária, Associação de empresários, elabora a lista de cláusulas contratuais. Para a doutrina portuguesa,{81} o importante é a existência de CONDGS, independente de terem sido elaboradas pelo proponente ou por terceiro. Já a doutrina alemã utiliza como critério o fato do terceiro ser neutro em relação à relação contratual (tabelião) ou não (Imobiliária).{82} Parece-me, porém, que a primeira solução é mais justa, porque ao direito interessa a técnica de pré-elaboração unilateral e de simples opção de aceitação para o outro contraente e não a ideologia do elaborador das CONDGs. Como veremos, as CONDGs não têm caráter de regulamento, elas fazem parte da oferta concretizada pelo fornecedor, sendo necessária a sua aceitação de outro parceiro contratual.{83} Cabe lembrar, igualmente, que as CONDGs podem constituir uma parte externa ao contrato, um anexo, um cartaz afixado no estabelecimento, ou, ao contrário, podem estar inseridas no texto do documento * (79) Assim Walchsloefer, Zehn Jahre, p. 167. (80) Assim também Koetz/Muenchener, p. 1.625. (81) Assim a lei portuguesa, art. 2º, veja em Almeida Costa/Comentários, p. 19. (82) Assim Ulmer/Brandner/Hensen, p. 55 (Vor § 1 (5), mas a regra comporta exceções, ver Walchsloefer, p. 167. (83) Assim Schawab/"Validade", p. 9. (p. 60) contratual, não importando a sua extensão, o modo como estão escritas, a sua autoria ou a forma e tipo do contrato.{84} Historicamente, o fenômeno da pré-elaboração unilateral de CONDGs é inerente à sociedade industrializada. Hoje, na prática, existem quase que exclusivamente contratos onde o conteúdo, a exceção do objeto e do preço, já estão determinados em CONDGs ou contratos formulário.{85} Assim, também, por vezes, condutas sociais típicas na sociedade{86} vão indicar o fechamento de um contrato e a aceitação de determinadas cláusulas gerais, como, por exemplo, ao embarcar em um ônibus, ou ao utilizar as prestações oferecidas por máquinas automáticas, fecha-se um contrato submetido a determinadas condições gerais ou condições de utilização afixadas em um lugar visível para o consumidor.

Como frisamos anteriormente, as expressões CONDGs e os contratos de adesão ou contratos formulários não são sinônimos. Relembre-se, porém, que a expressão CONDGs, como a caracterizamos aqui, pode englobar os próprios contratos de adesão, os contratos com formulários impressos, contratos-modelo e contratos autorizados ou ditados pelo Poder Público, pois estes também são compostos de cláusulas pré-elaboradas unilateral e uniformemente pelos fornecedores. Mas as CONDGs caracterizam-se ainda pelo que os doutrinadores portugueses denominam de uma maior rigidez,{87} isto é, não * (84) Assim a lei alemã, AGBG § 1 (2) e principalmente o art. 2º da lei portuguesa, veja Almeida Costa/Comentários, p. 19. (85) Koetz/Muenchener, p. 1.622, este autor excetua os pequenos contratos de compra à vista de gêneros, que não seriam estandardizados. No Brasil, como o CDC será aplicado também a estes contratos não incluídos a observação no texto principal. (86) A expressão sozialtypisches Verhalten é de Larenz/AT, p. 471 (§ 28, II) o qual via nesta conduta também uma forma de aceitação, onde haveria, porém, problemas na declaração de vontade. Hoje não mais se duvida que haja um ato concludente, a maioria dos autores rebatem as dúvidas de Larenz (assim Kramer/Muenchener, p. 1.125, § 151/7), argumentando que isto pouco importa para a natureza do vínculo, pois o animus contratual existe. Veja em português os ensinamentos de Nery/Anteprojeto, p. 284 e ss., o qual, porém, concorda com Larenz, não equiparando estas condutas a contratos. (87) Assim Almeida Costa/Comentários, p. 17, tb. Nery/Anteprojeto, p. 291. (p. 61) há possibilidade de alteração na CONDG de um empresário a pedido do consumidor. Assim, não há a inclusão de cláusulas discutidas individualmente na lista de CONDGs,{88} mas a inclusão destas cláusulas individuais é possível nos contratos de adesão (assim, § 1º, art. 54 do CDC). b) A inclusão de condições gerais nos contratos - As condições gerais dos contratos, como podemos observar, não possuem força de normas legais ou regulamentos,{89} elas necessitam ser inseridas em um contrato para que ganhem força obrigatória em relação às partes contratantes envolvidas.{90} Logo, não basta que o fornecedor determine ao seu departamento jurídico que elabore uma lista de cláusulas ou condições gerais e estas fiquem nas mãos do gerente da loja para que desta vontade unilateral do fornecedor se originem direitos e deveres para os futuros contratantes. As CONDGs terão de ser inseridas nos contratos. O tema da inclusão de CONDG nos contratos de massa fechados pelos fornecedores de bens e serviços com consumidores é um dos temas mais delicados do novo direito dos contratos, pois, como sabemos, nem sempre estes contratos de massa terão a forma escrita. A aceitação das CONDGs - O princípio geral em matéria de

inclusão de CONDGs em contratos de massa pode ser por nós resumido como Princípio da Transparência,{91} significando que as condições gerais unilateralmente elaboradas pelo fornecedor só integrarão o contrato se o consumidor tiver conhecimento delas ou pelo menos tiver tido a oportunidade de ter conhecimento de sua inserção no contrato, antes ou durante a celebração do contrato, e aceitar o seu uso. Se o consumidor não foi informado de seu uso, se não houve transparência, * (88) Assim a lei alemã, § 1.º, Abs. (2). (89) Esta tese foi fortemente defendida nos anos 70 por autores alemães, mas hoje o caráter contratual das CONDGs é unânime, assim Ulmer/Brandner/ Hensen, p. 55 (Vor § 1(5). (90) Veja neste sentido, em português, Schwab/"Validade", p. 9. (91) Aqui o termo, oriundo da doutrina alemã, Transparenzgebot está sendo utilizado em sentido não próprio, em sentido mais amplo, quase como um sinônimo de "dever de informação", pois consideramos a expressão "transparência" muito didática e constitui um dos objetivos básicos do CDC brasileiro, art. 4º. Veja o Cap. III, 1 e Koendgen, "Transparenz", p. 943. (p. 62) o silêncio do consumidor não será interpretado como tendo aceito a inclusão das CONDGs. A doutrina alemã preocupou-se desde cedo com o problema e desenvolveu algumas linhas básicas{92} para a inclusão de CONDGs nos contratos de massa. Vejamos, é necessário que exista o chamado pacto de inserção ou pacto de inclusão das CONDGs; este pacto não constitui um contrato em separado, mas faz parte do próprio contrato de consumo. São três os pré-requisitos do pacto de inclusão: 1. O primeiro requisito é que o consumidor tenha sido informado pelo fornecedor que condições gerais serão usadas no futuro contrato.{93} Normalmente o consumidor será informado pelo fornecedor no momento do fechamento do contrato que o fornecedor usa CONDGs para todos os seus contratos. Para a doutrina alemã não basta que após o fechamento do contrato o fornecedor dê um recibo para o consumidor, onde no verso estejam impressas as CONDGs pactuadas. Os consumidores têm que ter sido informados antes do fechamento do contrato da utilização das CONDGs (lei alemã, AGBG § 2º, I), assim também se o contrato for por escrito, deve haver uma menção em seu texto sobre a utilização das CONDGs.{94} A idéia básica é que, as CONDGs podem influenciar a decisão do consumidor e portanto seria um dever do fornecedor informar sobre o seu uso. Na disciplina do novo Código de Defesa do Consumidor brasileiro, as CONDGs fazem parte da oferta que o fornecedor faz ao público, existindo assim um dever de informar ao consumidor dessas CONDGs, que farão parte do futuro contrato (neste sentido os arts. 30 e 46 do CDC). Excepcionalmente, em alguns tipos de contratos, nos quais seria difícil haver uma menção expressa da utilização de CONDGs na hora da celebração dos contratos, como, por exemplo, nos contratos orais, * (92) Veja os comentários exaustivos de Ulmer/Brandner/Hensen, § 2(23-54), pp. 118 a 135. (93) Assim tb. Larenz/AT, p. 488 (§ 29, a, I).

(94) Assim Ulmer/Brandner/Hensen, pp. 119 e 120, mencionado também "a p. 123 que as CONDGs impressas no verso dos bilhetes de teatro, tickets de garagem, recibos etc., podem não ser consideradas incluídas nos contratos, pois foram entregues para conhecimento após a conclusão do contrato. (p. 63) nos contratos de transporte em ônibus, Contratos automatizados, nos de guarda de automóveis em estacionamentos, a doutrina germânica impõe a afixação das CONDGs em lugar visível no local em que o contrato será fechado, para que o consumidor possa tomar conhecimento destas, se quiser.{95} 2. O segundo pré-requisito para a inclusão das CONDGs é mais subjetivo, é a possibilidade do consumidor tomar conhecimento do conteúdo real das CONDGs.{96} Isto é, não basta a simples menção que CONDGs vão ser usadas no contrato, é necessário que o homem comum possa ler e entender o que significam aquelas cláusulas, quais as obrigações e os direitos que está aceitando (assim também a contrario sensu, art. 46, in fine, do Código brasileiro). Relembre-se aqui, que não raramente o vendedor procura introduzir suas CONDGs no contrato de um modo um pouco furtivo: um texto impresso em letras pequenas, de cor verde, um texto longo, de difícil leitura, impresso no verso de documentos. Nesse sentido, a exigência do CDC de maior transparência (veja art. 4º, caput e art. 46). 3. O terceiro requisito é a aceitação, tácita ou expressa, do consumidor.{97} Assim, se o fornecedor informa sobre a utilização das CONDGs e o consumidor tendo tido a oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo da CONDG imposta, aceita a oferta e fecha o contrato de consumo, aceitou a inclusão das CONDGs em seu contrato específico. Também prevê a doutrina que possa haver uma aceitação anterior ao contrato, em uma convenção básica ou em um pré-contrato, principalmente no caso de relação contratual reiterada entre dois comerciantes. Note-se que o problema da inclusão de CONDGs nos contratos é, em última análise, um problema de interpretação da declaração de vontade do consumidor. O consumidor precisa manifestar a sua concordância com a validade das CONDGs e, uma vez inseridas nos * (95) Assim o texto da lei alemã AGBG, veja em Larenz/AT, p. 488. (96) Assim tb. Koetz/Muenchener, p. 1640, lembrando que a chamada cláusula "salvadora" (ex.: "A responsabilidade do fornecedor fica limitada ao que permite a lei") foi considerada pela jurisprudência alemã como não compreensível ao homem comum, que não possui conhecimentos detalhados sobre a ordem jurídica. (97) Assim Ulmer/Brandner/Hensen, p. 138. (p. 64) contratos de consumo, as CONDGs serão submetidas a um controle, no caso da lei alemã, a um controle judicial, que declarará ineficazes as cláusulas abusivas eventualmente existentes nas CONDGs aceitas.{98} Vejamos, portanto, o problema da interpretação das CONDGs. Interpretação das condições gerais dos contratos - Uma vez inseridas na relação contratual, as CONDGs poderão ser objeto de discussão e de interpretação em uma futura lide. Na interpretação de suas cláusuLas deverá o jurista utilizar-se, de um lado, dos métodos tradicionais de interpretação dos negócios jurídicos,{99} os quais como

se sabe ainda se encontram muito influenciados pelos dogmas da autonomia da vontade e da liberdade contratual, mas deverá também levar em conta a natureza especifica das CONDGs e de sua elaboração. Assim, desenvolveram-se princípios específicos para a interpretação dos contratos submetidos a CONDGs. O principal princípio é o da primazia das cláusulas pactuadas individualmente, escritas ou não, sobre as cláusulas presentes nas CONDGs (Vorrang der Individualabrede).{100} Estas cláusulas pactuadas individualmente ganhariam em força, uma Vez que fruto da vontade de ambos os contratantes e não somente expressão da vontade daquele que formula unilateralmente as CONDGs. Na doutrina européia,{101} por muito tempo se discutiu se a condições especiais (de entrega, de preço, de qualidade) pactuadas oralmente com o cliente prevaleceriam frente as cláusulas da própria CONDG inserida no contrato, as quais previam a validade somente de condições especiais pactuadas por escrito ou frente a uma pessoa previamente autorizada pelo fornecedor. Atualmente, a maioria da doutrina aceita a primazia da cláusula pactuada oralmente, afirmando que neste caso, pela divergência entre as cláusulas, houve uma não aceitação da validade das cláusulas da CONDG, referente a exigência do pacto escrito.{102} * (98) Assim Schwab/"Validade", p. 17. (99) Veja no direito brasileiro o art. 85 do Código Civil e a obra de doutorado de Custódio Ubaldino Miranda, em especial pp. 169 e ss.; veja também as regras sobre interpretação do Código Civil Italiano, arts. 1.362 a 1.371, estas já direcionadas para a função social do novo direito dos Contratos. (100) Assim também Larenz/AT, p. 492 (§ 29, a, II). (101) Assim alerta o belga Fontaine, p. 202. (102) Brox, AT, p. 103 (Rdn. 204,1). Note-se que neste caso a aceitação de uma cláusula individual em princípio, segundo a lei alemã, § 1, Abs. 2. (p. 65) Assim também, em caso de dúvida quanto ao sentido das cláusulas das CONDGs serão estas interpretadas a favor do contratante que não as redigiu. É o princípio da interpretatio contra proferentem, já presente no art. 1.370 do Código Civil Italiano de 1942.{103} O Código de Defesa do Consumidor brasileiro, como veremos a seguir, contempla norma semelhante em seu art. 47, porém referente a todos os tipos de contratos de consumo (interpretação a favor do consumidor). Por fim, a nova função do direito dos contratos, a procura do equilíbrio e da justiça contratual, faz com que se relembre aqui o sempre importante princípio da interpretação dos negócios jurídicos de acordo com a boa-fé. Este princípio sempre foi aceito pela doutrina e jurisprudência brasileira,{104} apesar de nosso Código Civil de 1917 não possuir norma semelhante à cláusula geral do § 242 do Código Civil Alemão ou a do art. 1.366 do Código Civil Italiano. Mas agora a norma do art. 47 do CDC, assim como a cláusula geral de boa-fé no controle das cláusulas abusivas (art. 51, IV do CDC), permitirão que o jurista brasileiro interprete as cláusulas das CONDGs de maneira a respeitar a confiança e os legítimos interesses dos consumidores que aceitaram estas cláusulas pré-redigidas.

c) A disciplina das condições gerais dos contratos - O direito disciplina o modo e os requisitos para a inserção de CONDGs nos contratos de massa, escritos ou não. É o controle chamado "formal" do contrato. Este controle formal em muito se aproxima do controle apregoado pela concepção tradicional de contrato, controle da declaração de vontade, do consenso e da liberdade contratual. As CONDGs, porém, são um fenômeno novo e complexo, onde a vontade e a superioridade técnica, jurídica e econômica de um contratante impõese ao outro, eis porque, via de regra, o simples controle formal e o recurso e interpretação não são suficientes para estabelecer a eqüidade e a justiça contratual. Em se tratando de contratos submetidos a CONDGs não há liberdade contratual, liberdade de determinar o conteúdo do contrato, descaracterizaria a lista como CONDG, passando a ser um contrato de adesão, submetido ao controle da lei. * (103) Assim tb. Alpa/Diritto, p. 185. De igual teor é o § 5. da lei alemã-AGBC, veja comentários em Ulmer/Brandner/Hensen, p. 247. Assim tb. o Projeto de Código Civil Brasileiro, 634-B de 1975, art. 423. (104) Veja a obra de Couto e Silva, Obrigação, p. 70. (p. 66) pois as CONDGs são rígidas e pré-elaboradas unilateralmente. Pode também não haver suficiente liberdade de contratar, liberdade de escolher o parceiro contratual, pois os bens ou serviços oferecidos pelo fornecedor podem ser daqueles de extrema necessidade, ou pode estar o fornecedor em uma situação de monopólio. Mas mesmo que o fornecedor esteja apenas oferecendo o melhor preço, se não há uma livre concorrência em matéria de CONDGs, isto é, se todas as CONDGs oferecidas pelos vários fornecedores do mercado são praticamente as mesmas, como ocorre normalmente, o consumidor por uma questão de economia e praticidade se vê dirigido a aceitar as CONDGs impostas, confiando que nenhum problema ocorrerá. Não é raro que as Condições Gerais contenham cláusulas chamadas abusivas, oriundas da própria possibilidade de elaborar as CONDGs unilateralmente e com anterioridade. Trataremos das cláusulas abusivas em detalhes a seguir, agora o importante é assinalar que coube ao direito a função de disciplinar o conteúdo das CONDGs, de maneira a controlar estes abusos. Este controle pode ser preventivo, ditando o legislador o conteúdo destas CONDGs ou exigindo a prévia autorização de algum órgão administrativo. Ou pode ser repressivo, punindo o legislador o utilizador de cláusulas abusivas em CONDGs, através do controle pelo Poder Judiciário destas cláusulas e da sua substituição por outras, sem que o fornecedor possa se desvincular do contrato assumido com o consumidor. É o chamado controle do conteúdo dos contratos submetidos a CONDGs que tem se mostrado bem mais eficiente e que, por sua importância, será tratado em capítulo especial (capítulo 3). O fenômeno das condições gerais dos contratos e sua utilização em inúmeras relações contratuais, exigiu do Direito uma adaptação específica, a qual tomou a forma de um intervencionismo legal cada vez mais amplo no setor dos contratos de consumo. Assim, vários países promulgaram leis específicas para a defesa, pelo menos contratual, do consumidor: Suécia (1971), Dinamarca e Venezuela (1974), Alemanha e México (1976), Inglaterra (1977), França (1978),

Áustria (1979), Irlanda (1980), Colômbia e Noruega (1981), Luxemburgo (1984), Espanha (1984), Portugal (1985), e agora o Brasil (1990). (p. 67) 2.4 Os contratos cativos de longa duração a) Descrição do fenômeno - Na segunda edição, pareceu-nos necessário incluir, nesta seção dedicada à análise da nova realidade contratual massificada, algumas observações sobre um fenômeno que já se observa no mercado brasileiro atual. Trata-se de uma série de novos contratos ou relações contratuais que utilizam os métodos de contratação de massa (através de contratos de adesão ou de condições gerais dos contratos), para fornecer serviços especiais no mercado, criando relações jurídicas complexas de longa duração, envolvendo uma cadeia de fornecedores organizados entre si e com uma característica determinante: a posição de "catividade" ou "dependência" dos clientes, consumidores. Esta posição de dependência ou, como aqui estamos denominando, de "catividade", só pode ser entendida no exame do contexto das relações atuais, onde determinados serviços prestados no mercado asseguram (ou prometem) ao consumidor e sua família "status", "segurança", "crédito renovado", "escola ou formação universitária certa e qualificada", "moradia assegurada" ou mesmo "saúde" no futuro. A catividade há de ser entendida no contexto do mundo atual, de indução ao consumo de bens materiais e imateriais, de publicidade massiva e métodos agressivos de marketing, de graves e renovados riscos na vida em sociedade, e de grande insegurança quanto ao futuro. Os exemplos principais destes contratos cativos de longa duração são as novas relações banco-cliente, os contratos de seguro-saúde e de assistência médico-hospitalar, os contratos de previdência privada, os contratos de uso de cartão de crédito, os seguros em geral, os serviços de organização e aproximação de interessados (como os exercidos pelas empresas de consórcios e imobiliárias), os serviços de transmissão de informações e lazer por cabo, telefone, televisão, computadores, assim como os conhecidos serviços públicos básicos, de fornecimento de água, luz e telefone por entes públicos ou privados. Denominaremos este fenômeno, estas novas relações contratuais de "contratos cativos de longa duração", sem, porém, desconsiderar que outras denominações poderiam ter sido usadas, como as de "contratos múltiplos", "serviços contínuos", "relações contratuais triangulares", "contratos conexos", "contratos de serviços complexos de longa duração" etc. (p. 68) Alguns doutrinadores estão denominando estas relações contratuais cativas de contratos "pós-modernos".{105} Na edição anterior, de 1995, preferimos não utilizar esta expressão, uma vez que a maioria desses contratos são contratos conhecidos mesmo antes da revolução industrial (por exemplo, os contratos bancários) e não, especificamente, agora na fase industrial que vivemos ou, na fase pós-industrial que caracterizaria a pós-modernidade européia. O novo aqui não é a espécie de contrato (seguro, por exemplo), mas a sua relevância no contexto atual, a sociedade de consumo atual beneficia e fomenta estes serviços, considerados, então, socialmente essenciais, a necessitar uma nova disciplina. Efetivamente, na Europa, pós-industrial e primeiro-mundista,

alguns estudiosos do direito começaram a elaborar nos anos 80 e 90 uma visão "pós-moderna" de nossa ciência,{106} ensaiou-se inclusive a ídentificação de uma estrutura "pós-moderna" dos contratos. Apesar de pouco tratada no direito brasileiro{107} esta "vaga" de pós-modernidade já se observa no direito da vizinha Argentina{108} e como toda nova teoria ou visão do direito traz em si o binômio: contestação da ordem estabelecida e transformação em nova ordem.{109} * (105) Assim o mestre argentino, Ghersi, "La estrutura...", p. 621. (106) Precursores do movimento são os autores italianos e alemães, veja as primeiras observações (ainda muito discutíveis) de Calasso, p. 13 a 20. (107) Exceção feita aos estudos de José Eduardo Faria e Eros Roberto Grau, veja a conferência de Eros Grau no Congresso "Contratos no Ano 2000", em Brasilia, 9 de março de 1994, sobre o momento atual da ciência do direito (Anais do Congresso, ainda inédito). (108) Nesse sentido as criticas observações do Professor da Universidade de Buenos Aires, Carlos Alberto Ghersi, "Responsabilidad de empresas telefónicas", capítulo primeiro, especialmente pp. 41 e ss. (109) Na segunda edição, mencionamos ceticamente: "Esta "vaga" de pósmodernidade que observamos na vizinha Argentina e na, sempre importante para o Direito Comparado, Europa relembra a "vaga" dos anos 80, vinda da América do Norte e sua "economic analysis of law". A pergunta crucial é se sobreviverá e realizará a "revolução" no direito que pretende ou se, como a análise econômica do direito, tenderá a transformar-se em apenas mais uma "visão" do direito, teoria jurídica. Como ensinou André-Vicent, Ph.-I, "Les Révolutions et le Droit", Paris, LGDJ, 1974, p. 7, "Deux élements som essentiels au phénomêne révolutionnaire: une contestation de l’ordre établi, la réalisation d’un ordre nouveau; une contestation radicale (p. 69) Nesta edição, e ainda sem o distanciamento histórico necessário para observar a "verdade" ou não da teoria, sua efetiva aceitação e seus eventuais efeitos no direito, gostaríamos simplesmente tecer algumas considerações sobre o seu potencial identificador de alguns fenômenos contratuais de massa. Esses estudiosos, porém, tiveram o mérito de identificar uma nova geração de contratos de massa, que estamos aqui denominando de "contrato cativo de longa duração" para evitar a expressão, ainda muito incerta, de "contrato pós-moderno"; identificaram, em última análise, a importância renovada (e mesmo avassaladora) dos contratos de serviços no mundo atual. As relações contratuais envolvendo serviços possuem indiscutível importância atual e no futuro. O mercado brasileiro dos serviços é um dos mais pungentes e importantes, envolvendo milhões de consumidores.{110} Estes novos serviços complexos, estas relações contratuais, denomine-se ou não de pós-modernas, multiplicam-se no mercado brasileiro, preocupando juristas, consumidores, e, agora, chegando aos Tribunais.{111} A sabedoria, quero crer, está não em negar a verdade da mudança, a verdade do momento em que vivemos, mas sim em visualizar o *aboutissant à une transformation radicale." O movimento pós-moderno no

direito é uma contestação radical e pode originar uma mudança radical no direito (desregulamentação, recuo do Estado e "desestatização" da sociedade) ou um novo "positivismo" (espero, ético) no Direito, que deixará pouco espaço para a autonomia da vontade nos contratos; veja o nosso artigo "A Abusividade nos Contratos de Seguro-Saúde e de Assistência Médica no Brasil", Anais do Congresso de Brasília, mar./94, ainda inédito)." (110) Impressiona o dado fornecido pela revista Isto É, n. 1.270, de 2.2.94, segundo a qual 32 milhões de brasileiros estão ligados a alguma entidade privada prestadora de serviços de saúde ou de seguro-saúde, movimentando 10 bilhões de dólares por ano. (111) Os Tribunais que mais cedo notaram esta mudança foram os Juizados Especiais e de Pequenas Causas, hoje os Tribunais de Alçada e Justiça. A jurisprudência divulgada dos JEPC no RS apontam como contratos mais sujeitos a lides: os consórcios, os serviços públicos de telefonia, água e luz, os planos de saúde, os planos de previdência privada, as relações de locação e condomínio envolvendo "terceiro", a imobiliária, sem falar nos contratos de fornecimento de produtos ou serviços (especialmente móveis sob medida e trabalhos de reparação), veja ns. 7/8, contendo estatísticas, da Revista Juizado de Pequenas Causas - Doutrina e Jurisprudência, abr./ago.93, Ed. Tribunal de Justiça do RS. (p. 70) fenômeno, compreendê-lo e estudá-lo. E estudá-lo na realidade brasileira (não pós-industrial), adaptando-o para solucionar as lides que começam a multiplicar-se. A sabedoria realmente parece estar no uso dos instrumentos jurídicos que dispomos, em especial o novo Código de Defesa do Consumidor e as novas linhas constitucionais, de forma a dar respostas razoáveis e justas aos casos concretos. Ou seja, caminho inverso de prever o esgotamento e proclamar a imprestabilidade dos instrumentos científicos tradicionais do direito, o que necessitamos é fornecer respostas equitativas e práticas às questões jurídicas atuais, à nova realidade contratual. Neste sentido interessante buscar elementos no direito comparado. Observe-se que o realismo norte-americano{112} denominou estes contratos de "relacionais" (relational contracts),{113} destacando os elementos sociológicos que condicionam o nascimento e a estabilidade destes contratos complexos de longa duração. A contribuição destes estudos, que remontam a 1974, foi grande, pois, observando as relações "não-contratuais", as projeções de troca dos empresários e sua organização em networks, baseadas mais na confiança, solidariedade e cooperação no que em vínculos contratuais expressos, desenvolveu a noção de um contrato aberto, de uma relação contínua, duradoura ao mesmo tempo em que modificável pelos usos e costumes ali desenvolvidos e pelas atuais necessidades das partes.{114} O potencial deste modelo de pensamento contratual é fascinante. Identificar um contrato relacional onde há vínculo, mas não necessariamente contratual, como nas parcerias econômicas furtivas e momentâneas de hoje, identificar um contrato relacional, onde o vínculo oficialmente já acabou, mas há relacionamento a posteriori, como em

um contrato cumprido, não renovado, mas novado ou mesmo reescrito. Identificar um contrato relacional, onde existem vários contratos, com * (112) Assim Oechsler, p. 92. (113) O iniciador desta teoria foi Ian Macneil (veja Macneil, p. 691 e ss.). Veja também seus outros artigos: "Contracts: Adjustment to Long-Term Economic Relations Under Classical, Neoclassical, and Relational Contract Law", in Northwestern U.L.Rev. (1977/78), 854 e ss.; "Values in Contract: Internal and External", in Northwestem U.L. 78(1983), 340 e ss.; "Relational Contract: What We Do and Do not know", in Wis. L. Rev. 1985, 483 e ss. (114) Veja a adaptação desta doutrina para o Brasil, em Macedo, Relacional, p. 127 e ss. (p. 71) várias e diferentes pessoas jurídicas, como os contratos com bancos múltiplos, seis contratos em um só, ou um contrato com quatro pessoas diferentes (banco, corretora, financeira, seguradora ou fornecedora de serviços outros), tudo em um só relacionamento de consumo. Note-se, porém, que esse modelo contratual foi criado em virtude de dificuldades específicas e imanentes ao sistema da commom law com as relações de longa duração.{115} Essas dificuldades de englobar na relação contratual as promessas e informações não formais ou não escritas, de preencher as lacunas contratuais com uma interpretação integrativa pelo Judiciário, são menores em um sistema contratual não solene, como o brasileiro ou o continental europeu.{116} Os demais problemas apresentados podem ser solucionados, no direito brasileiro, pelos princípios da confiança, da boa-fé, da acessoriedade das relações de consumo ou pela teoria da aparência.{117} Sendo assim, a mais importante contribuição destes estudos à nova teoria contratual brasileira é a criação de um modelo teórico contínuo que engloba as constantes renegociações e as novas promessas, bem destacando que a situação externa e interna de catividade e interdependência dos contratantes faz com que as revisões, novações ou renegociações contratuais naturalmente continuem ou perenizem a relação de consumo, não podendo estas, porém, autorizar abusos da posição contratual dominante ou validar prejuízos sem causa ao contratante mais fraco ou superar deveres * (115) Assim Oechsler, p. 93. Especial dificuldade apresenta a doutrina da "Consideration" na conclusão de renegociações ou modificações contratuais não formais. (116) O sistema do CDC, que será analisado mais adiante, segue esta linha não solene e ainda a amplia nos ais. 30, 34 e 48, incluindo toda e qualquer informação na relação contratual de consumo. Sobre o sistema continental europeu, veja Oechster, p. 109 e ss. (117) Segundo Oechster, p. 114, a teoria do contrato relacional é uma reimportação" do modelo jurídico alemão. A solução alemã baseada na responsabilidade pela confiança teria sido recebida nos EUA justamente para suprir os problemas da common law com relações de longa duração e que agora estaria retornando ao continente. A leitura do original de Macneil, ao contrário, parece partir de observações básicas sociológicas, quanto às raízes do contrato, para só então aprofundar-se na relação de

confiança; veja Macneil, p. 701 e ss, em especial. (p. 72) de cooperação, solidariedade e lealdade que integram a relação em toda a sua duração.{118} Em resumo, a teoria do contrato relacional pode contribuir, especialmente, nos contratos de mútuo e em geral de fornecimento de serviços, para uma nova compreensão da confiança despertada pela atividade dos fornecedores e para a aceitação de uma readaptação constante das relações de longa duração de forma a não frustrar as expectativas legítimas das partes, apesar da limitada vontade manifestada inicialmente.{119} Nesse sentido, correta a observação de que o mundo que se desenha no horizonte é o mundo dos serviços. Serviços que, prestados por entes públicos ou por privados, constituem-se em simples abstrações, fazeres e informações, os quais passam a ser, além de úteis, imprescindíveis para a vida e o conforto do homem do final do séc. XX. Vivemos, portanto, um momento de mudança: da acumulação de bens materiais, para a acumulação de bens imateriais; dos contratos de dar para os contratos de fazer; do modelo imediatista da compra e venda para um modelo de relação contratual continuada, reiterada; da substituição, privatização ou terceirização do estado como prestador de serviços, de relações meramente privadas para relações particulares de iminente interesse social ou público.{120} Momento, de uma crescente importância da fase pré-contratual, onde nascem as expectativas legítimas das partes e de uma exigente fase contratual de realização da confiança despertada, com o aparecimento mesmo de alguma póseficácia dos contratos já cumpridos. * (118) Como ensina Macedo, Relacional, p. 335, a teoria contratual relacional tem função descritiva, analítica, mas "o modelo relacional tem também caráter normativo e prescritivo. Assim é que ele recomenda uma revalorização e ampliação do uso do princípio da boa-fé, justiça e equilíbrio contratual como princípios capazes de orientar os agentes contratuais e operadores do direito na direção do reconhecimento das circunstâncias fáticas concretas". (119) Assim também conclui Oechster, p. 117 e ss. (120) Quanto a estas mudanças veja Ghersi, Estrutura..., 626: "... el estado posfordista produce la revolución de los servicios y el modelo de contratación prevalente será otro o mejor otros, más regulativos, duraderos o de tracto sucesivo; con intervención estatal; con rígida distribuición en los beneficios de contrato...; de estructura de adhesion, pero más férrea, con un perfil más objetivo que subjetivo." (p. 73) Trata-se da crise dos antigos paradigmas e aparecimento de novos paradigmas do direito{121} e, mais do que isso, contamos nós, os aplicadores do direito, com instrumentos jurídicos antigos e novos; instrumentos da ciência moderna do direito, esculpidos pelos ideais da Revolução Francesa, de liberdade, igualdade e fraternidade, com a necessária leitura atual da sociedade industrial e massificada. Se o consumidor do futuro será não só um acumulador de bens,

mas um acumulador de serviços, de fazeres que assegurarão a ele e a sua família o bem-estar, a segurança, a saúde, o lazer, o status, as informações, o crédito e todos os outros "bens imateriais" e serviços oferecidos (e desejados) no mercado brasileiro, o direito terá de acompanhar esta mudança. Uma melhor análise desta nova realidade pode indiciar características importantes da estrutura contratual do futuro, facilitando a sua interpretação e a aplicação das normas (de direito privado, de ordem pública e mesmo de direito público), entre elas as de defesa do consumidor, as quais regulam esses novos (velhos) contratos de serviços. b) A estrutura dos contratos cativos de longa duração - Os contratos de serviços sempre foram conhecidos, mas, segundo alguns doutrinadores, o mercado atual apresenta relações contratuais com características tão especiais, que as destacariam. São relações envolvendo fazeres, normalmente serviços privados ou mesmo públicos, servIços prestados de forma contínua, cativa, massificada, serviços autorizados pelo Estado ou privatizados, prestados por pequeno grupo de empresas, geralmente com a utilização de "terceiros" para realização do verdadeiro objetivo contratual (a realização da prestação direta ao consumidor), organizando para tal verdadeiras cadeias invisíveis (pool ou mix) de fornecedores diretos e indiretos (por exemplo: hotéis, transportadoras e agentes de turismo, nos contratos de viagem fechada ou de pacote turístico; médicos e hospitais, nos contratos e planos de saúde; instituições bancárias, nos contratos de cartão de crédito; fabricantes de automóveis ou de eletrodomésticos, nos contratos com as administradoras de consórcios etc.). Tratam-se de serviços que prometem segurança e qualidade, serviços cuja prestação se protrai no tempo, de trato sucessivo, com * (121) Sobre a crise dos paradigmas e a teoria de Thomas Kuhn analisando o desenvolvimento científico, veja a excelente exposição de Alberto do Amaral Jr., "Proteção do Consumidor", pp. 17 e ss. (p. 74) uma fase de execução contratual longa e descontínua, de fazer e não fazer, de informar e não prejudicar, de prometer e cumprir, de manter sempre o vínculo contratual e o usuário cativo. São serviços contínuos e não mais imediatos, serviços complexos e geralmente prestados por fornecedores indiretos, fornecedores-"terceiros", aqueles que realmente realizam o "objetivo" do contrato, daí a grande importância da noção de cadeia ou organização interna de fornecedores e sua solidariedade. O contrato é de longa duração, de execução sucessiva e protraída, trazendo em si expectativas outras que os contratos de execução imediata. Estes contratos baseiam-se mais na confiança, no convívio reiterado, na manutenção do potencial econômico e da qualidade dos serviços, pois trazem implícita a expectativa de mudanças das condições sociais, econômicas e legais na sociedade nestes vários anos de relação contratual. A satisfação da finalidade perseguida pelo consumidor (por exemplo, futura assistência médica para si e sua família) depende da continuação da relação jurídica fonte de obrigações. A capacidade de adaptação, de cooperação entre contratantes, de continuação da relação contratual é aqui essencial, básica. Tais serviços envolvem normalmente obrigações denominadas "duradouras" nas quais "o adimplemento sempre se renova sem que se manifeste alteração no débito".{122} O débito contratual continua o

mesmo, isto é, o dever de prestar continua total, assim, mesmo que, por exemplo, o segurado tenha usado os serviços, o dever de prestar assistência médica ou de reembolsar os gastos com saúde, renova-se, continua o mesmo e total, conforme o objetivo do contrato. Não se trata, nestes casos, de mera divisão da prestação contratual no tempo ou de obrigação divisível, fracionável no tempo e no espaço, mas de obrigações renovadas no tempo, que "são adimplidas permanentemente e assim perduram sem que seja modificado o conteúdo de dever de prestação, até seu término".{123} Entre as relações que podem ser denominadas "cativas", outras existem que aproximam-se mais do modelo da compra e venda a prazo, de forma divisível, pois, aqui apenas observa-se o outro lado da relação jurídica, o lado passivo do devedor-consumidor. A obrigação do consumidor-devedor pode ser * (122) Assim ensinava o grande mestre da Faculdade de Direito da UFRGS, Clóvis V. do Couto e Silva, "A Obrigação como Processo", pp. 211 e 212. (123) Assim ensina Couto e Silva, "Obrigação como Processo", p. 212. (p. 75) divisível nos contratos de consórcios ou mesmo na locação envolvendo os serviços de uma imobiliária, mas a obrigação do administrador do consórcio e do grupo, da empresa imobiliária, administradora e do locador não são divisíveis ou fracionáveis, ao contrário, renovam-se, são obrigações reiteradas até o término do vínculo contratual e a realização total de seu objetivo. O objeto principal destes contratos muitas vezes é um evento futuro, certo ou incerto, é a transferência (onerosa e contratual) de riscos referentes a futura necessidade, por exemplo, de assistência médica ou hospitalar, pensão para a viúva, formação escolar para os filhos do falecido, crédito imediato para consumo. Para atingir o objetivo contratual os consumidores manterão relações de convivência e dependência com os fornecedores desses serviços por anos, pagando mensalmente suas contribuições, seguindo as instruções (por vezes, exigentes, burocráticas e mais impeditivas do que) regulamentadoras dos fornecedores, usufruindo ou não dos serviços, a depender da ocorrência ou não do evento contratualmente previsto. Nestes contratos de trato sucessivo a relação é movida pela busca de uma segurança, pela busca de uma futura prestação, status ou de determinada qualidade nos serviços, o que reduz o consumidor a uma posição de "cativo"-cliente do fornecedor e de seu grupo de colaboradores ou agentes econômicos. Após anos de convivência, da atuação da publicidade massiva identificando o status de segurado, de cliente ou de conveniado a determinada segurança para o futuro, de determinada qualidade de serviços, após anos de contribuição, após atingir determinada idade e cumprir todos os requisitos exigidos, não interessa mais ao consumidor desvencilhar-se do contrato. Tratam-se, igualmente, não só de contratos comutativos, mas geralmente de contratos aleatórios, cuja contraprestação principal do fornecedor fica a depender da ocorrência de evento futuro e incerto. Os profissionais do direito estão mais acostumados a analisar contratos comutativos. Em especial nas relações securitárias, a presença do aleas, do risco inerente a esta relação contratual, pode levar a interpretações nem sempre corretas. Neste sentido, não é demais frisar que incerta nesses contratos é a "necessidade" da prestação e não "se" e "como", com que qualidade, segurança e adequação, deve ela ser prestada. A

aproximação no tratamento jurídico dos contratos aleatórios e comutativos será observada nas novas leis. (p. 76) Verifica-se, igualmente, uma nova solenidade envolvendo estes contratos, concluídos todos por escrito e, no caso dos seguros, através de apólices especiais: são em sua maioria contratos regulamentados, subordinados às disposições da leis especiais, de leis gerais imperativas e das demais regulamentações administrativas aplicáveis.{124} Estes novos contratos de longa duração envolvem, em sua maioria, serviços "autorizados", são controlados, fiscalizados pelo Estado ou por conselhos de profissionais, todos, porém, são prestados por um grupo reduzido de fornecedores, únicos que possuem o poder econômico, o know How, a autorização ou a concessão estatal para oferecê-los no mercado. Tratam-se de negócios jurídicos privados, mas cuja importância econômica e social leva o Estado a autorizar o seu fornecimento, controlar e fiscalizar o seu fornecimento e mesmo, ditar o conteúdo do contrato.{125} Observadas estas especialidades dos contratos de serviço em questão, sob o signo da continuidade dos serviços, massificação e catividade dos clientes, prestabilidade por terceiros do verdadeiro objeto (ou interesse) contratual, internacionalidade ou grande poder econômico dos fornecedores e, acima de tudo, crescente substituição do Estado por fornecedores privados; concluiu-se que os modelos tradicionais de contrato (contratos envolvendo obrigações de dar, imediatos e menos complexos) fornecem poucos instrumentos para regular estas longíssimas, reiteradas e complexas relações contratuais, necessitando seja a intervenção regulamentadora do legislador, seja a intervenção reequilibradora e sábia do Judiciário. c) Disciplina - Estes novos contratos complexos envolvendo fazeres na sociedade representam o novo desafio da teoria dos contra* (124) Sobre a definição de contrato regulamentado, como no Brasil, os contratos de planos de consórcios, de seguros, veja os ensinamentos de Orlando Gomes, "Seguro-saúde", p. 251. Sobre fontes heterônomas dos contratos, veja os ensinamentos basilares de Enzo Roppo, "O Contrato", ob. cit., pp. 137 e ss. (125) Veja, neste sentido, o parecer de Orlando Gomes, "SeguroSaúde", op. cit., p. 250; note-se que o art. 20 do Código Civil brasileiro já mencionava formalidades especiais e autorizações para se constituir determinadas pessoas jurídicas, que irão atuar em determinados setores econômicos, como o mercado financeiro, bancário, securitário etc. (p. 77) tos. São Serviços prestados por um fornecedor ou por uma cadeia de fornecedores solidários, organizados internamente, sem que o consumidor, na maioria das vezes, fique consciente desta organização. Tratam-se de serviços que no contexto da vida moderna, de grande insegurança e de indução através da publicidade massiva à necessidade de acumulação de bens materiais e imateriais (o chamado "poder da necessidade" e a "sedução das novas necessidades"), vinculam o consumidor de tal forma que, ao longo dos anos de duração da relação contratual complexa, torna-se este cliente-"cativo" daquele fornecedor ou cadeia de fornecedores, tornando-se dependente mesmo da manutenção daquela relação contratual ou verá frustradas todas as suas expectativas. Em outras palavras, para manter o vínculo com o

fornecedor aceitará facilmente qualquer nova imposição por este desejada. Esta fática submissão garante um "poder de imposição" em grau mais elevado do que o conhecido na pré-elaboração dos instrumentos contratuais massificados, pois aqui o poder se renova constantemente durante a obrigação de longa duração, permitindo inclusive modificações formalmente "bilaterais" do conteúdo da obrigação e do preço, pois contam com a teórica "aceitação" do co-contratante mais vulnerável. Tal novo poder reflete-se nas cláusulas do contrato massificado e em suas futuras modificações e permite mesmo que o fornecedor libere-se do vínculo contratual, sempre que este não lhe seja mais favorável ou interessante (rescindindo, denunciando, resolvendo o vínculo, cancelando o plano etc). Uma vez que tais relações contratuais cativas podem durar anos e visam, na maioria das vezes, a transferência de riscos futuros ou o suprimento de uma necessidade futura, estabelecendo um verdadeiro processo de convivência necessária entre a empresa fornecedora de serviços e os consumidores, notou-se que a ótica escolástica tradicional, de uma análise estática e unitemporal da relação obrigacional de execução diferida ou contínua não mais oferecia respostas adequadas. O lapso de tempo que se situa entre o nascimento da obrigação e o momento previsto para a satisfação da obrigação principal não pode mais ser visto como um "espaço vazio",{126} ao longo do qual o devedor * (126) A expressão é de Giovanni Muraro, "L’implemento Prima del Termine", in Rivista di diritto Civile, n. 3, ano XXI, mai.-jun./75, p. 270. (p. 78) não é obrigado a qualquer comportamento particular, não se lhe impõe qualquer dever de conduta. Ao contrário, a relação obrigacional é um todo contínuo, onde desde o seu nascimento (e mesmo antes) as partes estão vinculadas por uma série de deveres anexos de conduta (Nebenpflichten), impostos, pelo princípio geral de boa-fé na execução das obrigações.{127} Mesmo antes do vencimento ou da ocorrência do evento futuro e incerto, que dá ensejo à prestação principal, já estão as partes vinculadas a uma série de atos, de condutas gerais, instrumentais ou acessórias em relação ao adimplemento principal, condutas estas não menos importantes para o bom cumprimento das obrigações, para a realização dos interesses legítimos das partes do que a obrigação principal. Trata-se, portanto, de uma nova visão da obrigação, como um complexo de atos, condutas, deveres a prolongar-se no tempo, do nascimento à extinção do vínculo. Aceitar a existência de deveres de conduta anexos aos contratos, deveres anexos contratuais ou obrigações acessórias oriundas do princípio da boa-fé objetiva (como o dever de informar, de cooperar, dever de cuidado, de sigilo, de conselho, de lealdade etc.), significa reconhecer a imposição de um novo patamar de boa-fé no mercado, boa-fé criadora de deveres de conduta contratual. A noção de boa-fé objetiva, enquanto novo princípio a guiar a conduta dos contraentes nos contratos cativos significa uma nova e importante limitação ao exercício de direitos subjetivos. O exercício de um direito subjetivo, como o de estabelecer livremente o conteúdo e as cláusulas contratuais, será contrário à boa-fé (leia-se, abusivo) quando se utiliza para uma finalidade objetiva ou com uma função econômico-social distinta daquela para qual foi ele atribuído ao seu titular pelo ordenamento jurídico, como também quando se exercita

este direito de maneira ou em circunstâncias desleais.{128} O princípio da boa-fé objetiva, limitadora de direitos (= poderes) definirá um novo "grau" de abusividade das cláusulas e práticas comerciais presentes nos contratos oferecidos no mercado. * (127) Sobre os deveres anexos impostos pelo Princípio da Boa-fé Objetiva, veja detalhes neste capítulo, n. 41, letra "c", sobre a nova teoria contratual e a obra de Larenz, "Sch.", I, ob. cit., pp. 26 e ss. (128) Assim os ensinamentos de Luis Diez-Picazo, em seu famoso "Prólogo à Edição Civitas" da obra citada de Wieacker, pp. 19 e 20. (p. 79) Para disciplinar tais relações Contratuais complexas, cativas, de longa duração, passou-se, portanto, a uma visão dinâmica destes contratos massificados, de como sua especialidade e indiscutível importância social imprimem a necessidade de uma nova interpretação das obrigações assumidas, de uma visualização mais precisa da gama de deveres principais e secundários existentes nestas relações contratuais e de que, em virtude da confiança despertada, o paradigma máximo aqui há de ser o princípio da boa-fé objetiva. 2.5 As cláusulas abusivas nos contratos de massa O fenômeno da elaboração prévia e unilateral, pelos fornecedores, das cláusulas dos contratos possibilita aos empresários direcionar o conteúdo de suas futuras relações contratuais com os consumidores como melhor lhes convém. As cláusulas contratuais assim elaboradas não têm, portanto, como objetivo realizar o justo equilíbrio nas obrigações das partes, ao contrário, destinam-se a reforçar a posição econômica e jurídica do fornecedor que as elabora.{129} Não é raro, portanto, que contratos de massa, contenham cláusulas que garantam vantagens unilaterais para o fornecedor que as elaborou, diminuindo os seus deveres em relação ao consumidor, exonerando-o de responsabilidades, diminuindo assim seus riscos e minimalizando os custos de uma futura lide.{130} Assim, por exemplo, as cláusulas referentes às obrigações do fornecedor em caso de inadimplemento, total ou parcial terão como objetivo, geralmente, limitar ao máximo estas obrigações, limitar a responsabilidade contratual do fornecedor, transferi-la a terceiros ou fixar sancionamentos indevidos para o caso de rescisão por parte do consumidor. A concepção e a redação unilateral pelo fornecedor do conteúdo do contrato, como que convida à elaboração de cláusulas que primam pela unilateralidade’{131} dos direitos que asseguram, garantindo vanta* (129) Veja por todos Calais-Auloy, Clauses Abusives, pp. 115 e ss. (130) Assim p. ex.: as cláusulas exonerativas de responsabilidade pelo fato do produto, por vício ou defeito. Roppo, p. 365, relembra que a cláusula de eleição do foro permite concentrar o trabalho forense e o departamento jurídico em um só local, diminuindo os custos, veja o artigo de Xavier sobre o tema.

(131) Assim tb. o mestre Alpa/Diritto, p. 184 e o Ombudsman sueco Edling, p. 7. (p. 80) gens somente para o fornecedor de bens e serviços, quebrando o equilíbrio do contrato e enfraquecendo ainda mais a posição contratual do consumidor. São as chamadas cláusulas abusivas, as quais incluídas em contratos de adesão ou em condições gerais dos contratos vão ser oferecidas à aceitação pelos consumidores. Poderíamos perguntar porque o consumidor aceitaria contratar sob estas condições que lhe são tão gritantemente desfavoráveis. Em verdade, a maioria dos consumidores que concluem contratos pré-redigidos o fazem sem conhecer precisamente os termos do contrato. Normalmente, o consumidor não tem a oportunidade de estudar com cuidado as cláusulas do contrato, seja porque ele as receberá só após concluir o contrato, seja porque elas se encontram disponíveis somente em outro local, seja porque o instrumento contratual é longo e impresso em letras pequenas e em uma linguagem técnica, tudo desestimulando a sua leitura e colaborando para que o consumidor se contente com as informações gerais (e nem sempre totalmente verídicas) prestadas pelo vendedor. Assim, confiando que o fornecedor cumprirá, pelo menos, o normalmente esperado naquele tipo de contrato, ele aceita as condições impostas, sem plena consciência de seu alcance e de seu conteúdo. Mas mesmo que o consumidor tenha oportunidade de inteirar-se plenamente do conteúdo contratual, lendo com calma as cláusulas préredigidas, ainda assim pode vir a aceitar as cláusulas abusivas, ou porque a cláusula estava redigida de maneira a dificultar a compreensão de seu verdadeiro alcance para uma pessoa sem conhecimentos jurídicos aprofundados, ou porque o consumidor necessita do bem ou serviço oferecido. Esta última hipótese pode acontecer quando o serviço oferecido é daqueles imprescindíveis à vida moderna (fornecimento de água, luz, gás etc.), quando o fornecedor encontra-se em posição de monopólio, ou quando todos os fornecedores oferecem praticamente as mesmas condições contratuais (por exemplo: transporte aéreo), quando o serviço ou produto desejado, no momento, só é prestado por aquele fornecedor (por exemplo: determinado espetáculo, filme ou produto em determinada faixa de preço). Note-se que mesmo se o consumidor, um jovem advogado, por exemplo, tiver plena consciência do abuso de determinadas cláusulas do contrato de locação residencial, referentes ao pagamento da taxa de cadastro no valor de (p. 81) um aluguel, ao pagamento das reformas e reparações no apartamento, o que poderá ele fazer? Raramente a Administradora modificará as cláusulas do ajuste, preferindo então locar para outro dos muitos candidatos, perdendo o consumidor a chance de viver naquele agradável bairro da cidade, em apartamento do tamanho e do preço que desejava. Assim, ponderando bem os interesses envolvidos e não querendo ficar privado do bem, o consumidor submete-se e adere à vontade poderosa do fornecedor de bens. A desigualdade fática entre os contratantes é flagrante. A abusividade da cláusula contratual é, portanto, o desequilíbrio ou descompasso de direitos e obrigações entre as partes, desequilíbrio de direitos e obrigações típicos àquele contrato específico; é a unilateralidade excessiva, é a previsão que impede a realização total do

objetivo contratual, que frustra os interesses básicos das partes presentes naquele tipo de relação, é, igualmente, a autorização de atuação futura contrária à boa-fé, arbitrária ou lesionária aos interesses do outro contratante, é a autorização de abuso no exercício da posição contratual preponderante (Machtposition). A abusividade é, assim, abstrata, potencial ou atual, porque ataca direitos essenciais àquele tipo de contrato, porque impõe excessivas ou surpreendentes obrigações, porque leva à lesão do co-contratante. A abusividade é potencial, porque a cláusula talvez ainda não tenha sido executada ou exigida, logo, no mundo dos fatos, sua abusividade é apenas potencial e talvez o consumidor - que geralmente não lê ou se intera totalmente do conteúdo dos contratos - desconheça a sua inclusão em sua relação contratual. É atual, pois no mundo do direito, no conteúdo do contrato, já "existe" tal previsão abusiva, mesmo que não tenha aquele direito contratual sido exercido, mesmo que a previsão não tenha surtido ainda efeitos no mundo dos fatos, mas os direitos e obrigações, que ela assegura ou impõe, já compõem (e desequilibram ou frustram) a relação jurídica que vincula o fornecedor e o consumidor. A abusividade é abstrata, porque jurídica, como o abuso de direito é fenômeno jurídico da má utilização do próprio direito, das autorizações, da liberdade concedida ao indivíduo. E por ser um fenômeno jurídico, a abusividade das cláusulas contratuais necessita, para sua identificação, da atividade do intérprete, do aplicador da lei, daquele que, examinando a relação jurídica e o contrato que vincula o (p. 82) consumidor e o fornecedor, irá concluir pelo caráter abusivo da cláusula. Assim, é a presença da cláusula abusiva nos contratos massificados ou na relação jurídica individual que a torna atual, é a execução do contrato que vai, na maioria das vezes, esclarecer o potencial abusivo da previsão contratual, mas é a interpretação do contrato in concreto, em qualquer desses momentos, a atividade básica para a identificação da abusivfdade das cláusulas. Em outras palavras, a estipulação de cláusulas abusivas é concomitante com a celebração dos contratos, mas a "descoberta", a "identificação" de sua abusividade é geralmente posterior, é atividade do intérprete do contrato, do aplicador da lei, face aos reclamos daquele que, ao executar o contrato, verificou o abuso cometido. A atividade do intérprete para reconhecer a abusividade das cláusulas é, portanto, crucial e deve se concentrar na visão dinâmica e total dos contratos. Segundo a nova Diretiva da Comunidade Européia,{132} a abusividade deve ser observada não na leitura isolada da cláusula, mas na leitura do todo do contrato, na função da cláusula no contrato como está redigido, na repercussão da cláusula naquela espécie de contrato, pois cada contrato têm objetivo e finalidades diferentes, possui características essenciais suas, desperta e envolve outros tipos de interesses e expectativas entre os contratantes.{133} Assim uma cláusula poderia ser abusiva se vista isoladamente, mas não se vista no todo daquele contrato, ou vice-versa, uma cláusula de exclusão

ou de revogação poderia ser lícita na maioria dos contratos de longa duração, mas não naquele tipo específico ou não naquele contrato, redigido de determinada maneira maliciosa. A inserção de cláusulas abusivas nos contratos de massa e sua aceitação pelos consumidores é, portanto, uma realidade a exigir do novo direito dos contratos uma resposta. * (132) Diretiva n. 93/13, de 5.4.93, art. 4, texto em alemão publicado na íntegra in EuZW, 11/1993, pp. 352-354 (Fonte oficial: ABLEG Nr. L, 95, de 21.4.93, p. 29). (133) Veja detalhes sobre a nova Diretiva Européia sobre cláusulas abusivas em Hans Micglitz, "AGB-Gesetz und die EG-Richtlinie über missbräuchliche Vertragsklauseln in Verbraucherverträgen", in: Zeitschrift für europäisches Privatrecht (ZEuP), 1993/522-535. (p. 83) 3. Crise na teoria contratual clássica 3.1 Crise da massificação das relações contratuais Com a industrialização e a massificação das relações contratuais, especialmente através da conclusão de contratos de adesão, ficou evidente que o conceito clássico de contrato não mais se adaptava à realidade socioeconomica do séc. XX.{134} Em muitos casos o acordo de vontades era mais aparente do que real; os contratos pré-redigidos tornaram-se a regra, e deixavam claro o desnível entre os contraentes - um autor efetivo das cláusulas, outro, simples aderente - desmentindo a idéia de que assegurando-se a liberdade contratual, estaríamos assegurando a justiça contratual. Em outros novos contratos a liberdade de escolha do parceiro ou a própria liberdade de contrair não mais existia (contratos necessários), sendo por vezes a própria manifestação da vontade irrelevante, face ao mandamento imperativo da lei (contratos coativos).{135} A crise na teoria conceitual do direito era inconteste.{136} Em 1937, Gaston Morin{137} sabiamente preconizava a "revolta dos fatos contra os códigos", o declínio e o fim da concepção clássica de contrato. Pois, apesar de asseguradas, no campo teórico do direito, a liberdade e a autonomia dos contratantes, no campo prático dos fatos, o desequilíbrio daí resultante já era flagrante. Cumpre, porém, esclarecer que se o voluntarismo e, portanto, a concepção tradicional de contrato se encontravam efetivamente em declínio,{138} para a idéia de contrato esta foi uma crise de transformação, * (134) Veja, por todos, Batiffol, La crise..., p. 13 e ss. (135) Assim denomina Gomes, Transformações, pp. 17 e ss. (136) Clássicas tornaram-se as exposições de Gaston Morin, "Les Tendances actuelles de la théorie les contrats" in: Revue trímestrielle de droit civil, XXVI, 1937, pp. 553 e ss., veja também Weil/Terré, p. 67. Em 1945 Morin escreveria a pequena brochura La révolte du droit contre le code, com o expressivo subtítulo: "La révision nécessaire des concepts juridiques.

(137) Morin/"Tendances", apud Reale, Nova Fase, p. 103. (138) Assim concordava Morin/Révolte, p. 12, que denominou o fenômeno de desagregação da teoria contratual do Code Civil. (p. 84) ou nas palavras lúcidas de Galvão Teles,{139} uma crise de verdadeiro rejuvenescimento. Desde fins do século XIX, o direito não ignorava o aparecimento das doutrinas socialistas, exigindo normas de tutela específica da classe operária e de suas relações Contratuais com o empresariado.{140} A revolução industrial fomentou a formação de classes; os problemas sociais crescem e dão origem à primeira intervenção poderosa do Estado Liberal nas relações privadas: o Direito do Trabalho.{141} A Igreja Católica propõe, em suas encíclicas,{142} uma doutrina social, a mudança de uma moral individual para uma ética social, combatendo tanto as idéias marxistas quanto as do liberalismo selvagem, pois considera que a razão do Estado é vetar pelo bem comum, devendo, portanto, amparar os direitos dos cidadãos, especialmente os mais fracos. No início do século XX, bem antes de seus colegas, Jhering{143} vislumbra a insuficiência da ciência do direito da época, a Jurisprudência dos Conceitos, afastada dos elementos sociais e dos problemas dos tempos modernos, afirmando: "A vida não é o conceito; os conceitos é que existem por causa da vida".{144} Jhering proporia, então, o exame dos fins substanciais do direito, dos fins práticos das normas jurídicas, integrando, assim, elementos sociais na ciência do direito. As idéias de Jhering foram o ponto de partida da "Jurisprudência dos Interesses" do início do nosso século e tiveram uma atuação libertadora para os juízes ao interpretar as leis e preencher as lacunas, pois poderiam aplicar os juízos de valor contidos na lei sem descuidar do caso concreto em julgamento.{145} Mas, infelizmente, a "função social * (139) Galvão Teles, p. 48. (140) Veja Reale, Nova Fase, p. 103. (141) Em seu clássico trabalho A revolta do direito contra o Código, Morin destaca a importância que o surgimento de um novo regime para os contratos de trabalho representou na transformação da teoria contratual, veja Morin/Révolte, pp. 40 e ss. (142) Veja por exemplo a primeira encíclica social do Papa Leão XIII "Rerum Novarum", de 1891, publicada em Documentos Pontifícios, Ed. Vozes, Petrópolis, 1985. (143) Assim Larenz, Metodologia, p. 48. (144) Apud Larenz, Metodologia, p. 49. (145) Assim Larenz, Metodologia, pp. 53 e 59. (p. 85) do direito privado" preconizadas por Jhering{146} permaneceu nas páginas dos livros e revistas doutrinárias não chegando a sensibilizar o legislador do Direito Civil. Temas como a responsabilidade por dano, o abuso de direito, a teoria da base do negócio jurídico (Geschäftsgrundlage), a onerosidade excessiva, as restrições sociais ao direito de propriedade, a proteção da confiança nas relações contratuais, as cláusulas abusivas nos contratos de adesão, só encontrariam alguma disciplina legal após a segunda Guerra ou no pioneiro Código Civil italiano de 1942.

Desde esta época, duas tendências entram em choque, na ciência do direito: de um lado os primeiros clamores por uma socialização do Direito, os quais pediam maior liberdade ao juiz e maior inspiração social nas normas jurídicas, com a relativação do dogma da autonomia de vontade; de outro, a teoria pura de Hans Kelsen{147} voltava-se novamente para a norma, para o labirinto teórico do próprio direito como ciência. Na Europa, antes da segunda Guerra Mundial, a socialização iniciada do Direito foi incapaz de conter o fortalecimento do poder do Estado. Estado e Direito tornaram-se sinônimos. O Estado refortalecido começa um processo estatizante, passa a dirigir e a intervir na atividade econômica, transforma-se em grande parceiro contratual. Deste processo resulta o fortalecimento do Direito Administrativo e do Direito de Trabalho, mas, também, refletirá na chamada "publicização" do Direito Civil.{148} Note-se que, mesmo tendo sido elaborado à época do Fascismo, o Código Civil Italiano de 1942, em alguns aspectos, dá início à socialização do Direito, pois ao mesmo tempo em que respeita os esquemas tradicionais do Direito, disciplina questões jurídicas reclamadas pela nova sociedade de consumo, como o contrato de adesão e as condições gerais dos contratos. No Brasil, mesmo após a segunda Guerra, a tendência mundial de socialização do Direito Civil, especialmente do Direito dos contra* (146) Segundo ensina Larenz, Metodologia, p. 47, von Gierke já utilizara a expressão em obra de 1889. (147) Veja detalhes e crítica à teoria de Kelsen, em Larenz, Metodologia, pp. 81 e ss. (148) Assim Reale, Nova Fase, p. 111, veja Raizer, p. 12. (p. 86) tos, terá pouca repercussão legislativa, exceção feita às novas leis sobre inquilinato, seguros e promessa de compra e venda. A Teoria Pura de Kelsen, porém, fascinará muitos juristas brasileiros, mesmo que nessa teoria pura, a "justiça" ou a "injustiça" do conteúdo de uma norma nenhuma importância tenha, bastando que a norma tenha sido efetivamente estabelecida de maneira legítima pela norma fundamental correspondente.{149} Sendo assim, fácil compreender porque, apesar dos vários projetos{150} de Código elaborados, as normas brasileiras sobre contratos continuaram as mesmas desde o início do século. Mas, também, no Brasil, todo o individualismo e voluntarismo presentes nestas normas, não mais se adaptava à realidade do século XX, com a proliferação dos contratos de adesão, dos contratos cativos de longa duração, a concentração monopolizante de poder em mão das empresas e dos conglomerados Industriais, a presença do Estado na Economia obrigando os particulares em muitos casos a contratar, o novo valor dado aos bens imateriais, autorais e aos direitos fundamentais. Porém, no caso brasileiro, a crise da concepção clássica de contrato só terá uma solução na década de oitenta, mais especificamente, com a edição da nova ordem constitucional, e de seu reflexo mais importante até agora no campo contratual: o Código de Defesa do Consumidor, o CDC se propõe a restringir e regular, através de normas imperativas o espaço antes reservado totalmente para autonomia da vontade, instituindo

como valor máximo a eqüidade contratual. Podemos, assim, concluir que a crise levou o conceito de contrato a um desenvolvimento fecundo.{151} Para muitos o que foi denominado de crise do contrato era, em verdade, a crise do dogma da autonomia da vontade.{152} Efetivamente, no mundo atual podemos verificar que o campo de utilização dos contratos tem se ampliado. Não só o número * (149) Assim também concluiu Larenz, Metodologia, p. 89. (150) Destaca-se aqui o Projeto de Código Civil 634/75, que pretendia, desde 1972, instituir normas em "consonância com o imperativo da função social do contrato", Exposição de Motivos na parte referente ao Direito das Obrigações, p. 20. (151) Assim Galvão Teles, p. 48, Lisboa, p. 103, afirma: "O contrato é instituto jurídico insubstituível". (152) Veja, por todos, Alterini/López Cabana, p. 14. (p. 87) de contratos concluídos é bem maior, em virtude do desenvolvimento da sociedade de consumo, como novos tipos de contratos foram criados (por exemplo: leasing, franchising, factoring, know-how, hedging, shopping center), demonstrando a maleabilidade e a fecundidade deste instrumento jurídico.{153} Certo é que a decadência do voluntarismo no Direito Privado levou à relativização dos conceitos.{154} O direito dos contratos, em face das novas realidades econômicas, políticas e sociais, teve que se adaptar e ganhar uma nova função, qual seja, a de procurar a realização da justiça e do equilíbrio contratual.{155} No novo conceito de contrato, a eqüidade, a justiça (Vertragsgerechtigkeit) veio ocupar o centro de gravidade,{156} em substituição ao mero jogo de forças volitivas e individualistas, que, na sociedade de consumo, comprovadamente só levava ao predomínio da vontade do mais forte sobre a do vulnerável. É o que o Projeto de Código Civil (PL 118/84) denomina "função social do contrato", novo limite ao exercício da autonomia da vontade.{157} Esta renovação teórica do contrato à procura da eqüidade, da boafé e da segurança nas relações contratuais vai aqui ser chamada de socialização da teoria contratual. É importante notar que esta socialização, na prática, se fará sentir em um poderoso intervencionismo do Estado na vida dos contratos e na mudança dos paradigmas, impondose o princípio da boa-fé objetiva na formação e na execução das * (153) Assim também Weil/Terré, p. 67. (154) Assim tb. Gomes, Transformações preconiza o abandono de conceitos, p. 9, em obra hoje clássica, Atiyah, p. 727, relembra que a crise na liberdade contratual é coincidente com a crise na liberdade de propriedade ou, no caso brasileiro, com o reconhecimento da existência de uma função social também para a propriedade privada. (155) Para os comparatistas alemães Zweiger/Koetz, p. 8, a nova função do direito dos contratos é a justiça ou eqüidade contratual; na lição basilar de Atiyah/

Contract, p. II: "The tendency nowdays is to look on lhe law as a positive instrument for the achievement of justice"; para referido autor, o princípio moral e legal de que as obrigações assumidas devem ser cumpridas passa a ser complementado por outro princípio, segundo o qual o agente não deve tirar vantagem de um contrato abusivo ("unfair contract"). (156) Assim Galvão Teles, p. 48. (157) Dispõe o art. 421 do projetato Código Civil: "A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato". (p. 88) obrigações. A reação do direito virá através de ingerências legislativas cada vez maiores nos campos antes reservados para a autonomia da vontade, tudo de modo a assegurar a justiça e o equilíbrio contratual na nova sociedade de consumo. 3.2 Crise da pós-modernidade Com a sociedade de consumo massificada e seu individualismo crescente nasce também uma crise sociológica,{158} denominada por muitos de pós-moderna.{159} Os chamados tempos pós-modernos são um desafio para o direito.{160} Tempos de ceticismo quanto à capacidade da ciência do direito de dar respostas adequadas e gerais aos problemas que perturbam a sociedade atual e modificam-se com uma velocidade assustadora.{161} Tempos de valorização dos serviços, do lazer, do abstrato e do transitório, que acabam por decretar a insuficiência do modelo contratual tradicional do direito civil, que acabam por forçar a evolução dos conceitos do direito, a propor uma nova jurisprudência dos valores, uma nova visão dos princípios do direito civil, agora muito mais influenciada pelo direito público e pelo respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos. Para alguns o pós-modernismo é uma crise de desconstrução,{162} de fragmentação,{163} de indeterminação à procura de uma nova racionalidade,{164} de desdogmatização do direito;{165} para * (158) Assim Tourraine, p. 159, e Lipovetsky, p. 7. (159) A base da expressão no direito parece ter surgido na França, em especial na revista Droit et Societé e nos pensadores franceses Derrida, Foucault, Baudrillard e Lyotard, veja Carty, p. viii. (160) Assim Ghersi, La Posmodernidad, p. 14. (161) Exemplos deste ceticismo são os importantes estudos críticos de Unger, p. 5 e ss. (162) Assim Carty, p. viii: "Pos-modernism as a method of legal desconstruction can as well be applied to the English and other legal orders". (163) Assim Ghersi, Modernos conceptos, p. 200, é bastante negativo, considerando a fragmentação do direito um caminho para seu esvaziamento e destruição como instrumento de Justiça na sociedade, a ser substituído pela economia. Veja "La fragmentación, como ideario filosófico", ob. cit., p. 200 e ss. (164) Ladeur, p. 481. (165) Assim Boaventura de Souza Santos, p. 17. (p. 89)

outros, é um fenômeno de pluralismo e relativismo cultural arrebatador a influenciar o direito.{166} Este fenômeno aumentaria a liberdade dos indivíduos,{167} mas diminui o poder do racionalismo, da crítica em geral, da evolução histórica{168} e da verdade, também em nossa ciência, o direito.{169} Fenômeno contemporâneo à globalização{170} e à perda da individualidade moderna,{171} assegura novos direitos individuais à diferença,{172} destaca os direitos humanos,{173} mas aumenta o radicalismo e o conservadorismo acrítico das linhas tradicionais.{174} Nesta terceira edição, pareceu-me interessante incluir uma análise mais profunda sobre a crise da teoria contratual oriunda destes novos movimentos sociais, filosóficos, culturais e econômicos, que estão sendo denominados pós-modernos e seus eventuais reflexos no direito civil e nos métodos de contratação. Ao tratar dos contratos cativos de longa duração na segunda edição, optamos por não utilizar esta terminologia "pós-moderna", justamente por sua insegurança e pelas críticas constantes que recebe, inclusive de autores como Habermas.{175} * (166) Assim, Jayme, p. 36 e ss. Como ensina Lopes, Transformações, p. 77, "tanto o direito faz parte da cultura quanto possui sua própria cultura: o sistema jurídico é constituído de uma "cultura". São as atitudes que fazem do sistema um todo, uma unidade, e que determinam o lugar dos aparelhos e das normas na sociedade globalmente considerada. A cultura jurídica engloba tanto as atitudes, hábitos e treinamento dos profissionais quanto do cidadão comum." Tal linha de pensamento possui tradição no Brasil, através da escola de Recife e a influência do "culturalismo jurídico" de Tobias Barreto; sobre o tema veja o nosso artigo, "Cem anos", p. 21 e ss. (167) Assim Friedman, Republic, p. 61. (168) Assim Vatino, p. XII. (169) Assim Foucault, p. 80 e ss. (170) Jayme, p. 36. (171) Ghersi, La Posmodernidad, p. 56, menciona relações econômicas sem sujeito, relações de grupos. (172) Jayme, p. 37. (173) Höffe, p. 285 e ss. (174) Assim também Gellner, p. 11. (175) Como afirma Habermas, reconhecer, nomear ou denominar um fenômeno, como se faz com o pós-modernismo, significa se distanciar suficientemente deste e, mesmo, decretar o seu fim. Habermas não se considera pósmoderno, está comprometido com os ideais da modernidade, chega a ironizar a freqüente utilização na literatura atual desta denominação "pós", (p. 90) Nesta edição, porém, após a observação da jurisprudência e da doutrina brasileira, não posso deixar de concluir pela atualidade do tema, a superar qualquer problema de simples denominação.{176} Vivemos um momento de mudanças, não só legislativas, mas políticas e sociais. Os europeus estão a denominar este momento de queda, rompimento ou ruptura (Umbruch), de fim de uma era e de início de algo novo, ainda não identificado, de pós-modernidade. Seria

a crise da era moderna e de seus ideais concretizados na revolução francesa, "de liberdade, de igualdade e de fraternidade,{177} que não se realizaram para todos, nem são hoje considerados realmente realizáveis. Momento em que se desconfia da força e suficiência do direito para servir de paradigma à organização das sociedades democráticas, atualmente em um capitalismo neoliberal bastante agressivo, com fortes efeitos perversos e de exclusão social.{178} Vivemos um momento de mudança também no estilo de vida, da acumulação de bens materiais, passamos a acumulação de bens imateriais, dos contratos de dar, para os contratos’ de fazer, do modelo imediatista da compra e venda para um modelo duradouro da relação contratual, da substituição, da terceirização, das parcerias fluídas e das privatizações, de relações meramente privadas para as relações particulares de iminente interesse social ou público.{179} Se a realidade denominada pós-moderna{180} é a realidade da pósindustrialização, do pós-fordismo, da tópica, do ceticismo quanto às *mas, por fim, reconhece a importância destes pensadores como sensíveis indicadores do Zeitgeist, do pensamento e espírito atual a indicar uma mudança. Veja Habermas, p. 12. (176) Como ensinam Alterini/López Cabana, na idéia de crise e sua análise não há somente o elemento negativo, de desaprovação, mas o elemento positivo, de esperança na descoberta da soLução nova, de superação dos problemas identificados e de evolução. Assim Alterini/López Cabana, p. 12. (177) Assim Carty, p. 1. (178) Veja por todos Tourraine, Alain, "Uma Visão Critica da Modernidade", in: Cadernos de Sociologia/UFRGS, vol. 5, p. 36 e ss. (179) Veja detalhes em meu trabalho sobre time-sharing, p. 64 e ss. (180) Lyotard, p. 13: "Dieses Wort [postmodern] ist auf dem amerikanischen Kontinent, bei Soziologen und Kritikern gebräuchlich. Es bezeichnet den Zustand der Kultur nach den Transformationen, welche die Regeln der Spiele der Wissenschaft, der Literatur und der Kunste seit dem Ende des 19 Jahrhunderts getroffen haben". (p. 91) ciências, quanto ao positivismo;{181} época do caos, da multiciplicidade de culturas e formas, do direito à diferença, da "euforia do individualismo e do mercado",{182} da globalização e da volta ao tribal. É também a realidade da substituição do Estado pelas empresas particulares, de privatizações,{183} do neoliberalismo, de terceirizações, de comunicação irrestrita, de informatização e de um neoconservadorismo. Realidade de acumulação de bens não materiais, de desemprego massivo,{184} de ceticismo sobre o geral, de um individualismo necessário, da coexistência de muitas metanarrativas simultâneas e contraditórias. Realidade de perda dos valores modernos, esculpidos pela revolução burguesa e substituídos por uma ética meramente discursiva e argumentativa {185} de legitimação pela linguagem, pelo consenso momentâneo e não mais pela lógica, pela razão ou somente pelos valores que apresenta.{186} É uma época de vazio, de individualismo nas soluções{187} e de insegurança jurídica,{188} onde as antinomias são inevitáveis e a deregulamentação do sistema convive com um pluralismo de fontes legislativas e uma forte internacionalidade das relações.{189} É a condição

pós-moderna que, com a pós-industrialização e a globalização das economias, já atinge a América Latina e tem reflexos importantes na ciência do direito.{190} É a crise do Estado do Bem-Estar Social. * (181) Habermas, p. 35. (182) Assim Ghersi, La posmodernidad, p. 27: "No queda pues más que añadir, la posmodernidad es también la posmoralidad, es posolidaria, es sin duda le euforia del individualismo y el mercado, gobernados desde la tumba de Bentham por el nuevo perfil utilitarista, aliado al placer y a la felicidad consumista". (183) A crítica dos efeitos negativos ao consumidor latinoamericano da combinação entre privatizações, desregulamentação e utilização apenas fictícia de entes reguladores e de meios alternativos de solução de controvérsias é feita por Stiglitz, Defensa, p. 130 e ss. (184) Assim a visão negativa de Ghersi sobre o pós-modernismo, Ghersi, La posmodernidad, p. 13 e ss. (185) Veja quanto aos atuais problemas da "teoria do discurso" Alexy, p. 13 e ss. (186) Kaufmann, Grundprobleme, p. 224 e ss. (187) Assim a visão negativa de Lipovetsky, p. 7. (188) Sobre a tensão entre o moderno e o pós-moderno e a insegurança no direito, veja o excelente prólogo de Oliveira Jr., p. 7 e ss. (189) Jayme, p. 36 e ss. (190) Veja por todos Ghersi, p. 13. (p. 92) Chame-se como desejar o momento atual de crise (Umbruch) e de mudança, a sua realidade supera qualquer expectativa e seus reflexos no direito não podem mais ser negados. Na procura de quais seriam os reflexos desta crise "sociológica" no contrato, partiremos de uma análise mais ampla, elaborada por meu professor orientador de Doutorado, Erik Jayme da Universidade de Heidelberg, com base nos elementos da cultura pós-moderna e seus reflexos no direito como ciência, para só então examiná-los enquanto sintomas da crise pósindustrial do direito dos contratos. Segundo Erik Jayme,{191} as características, os elementos da cultura pós-moderna no direito, seriam: o Pluralismo, a Comunicação, a Narração, o que Jayme denomina de "le retour des sentiments", sendo o Leitmotive da pós-modernidade, a valorização dos direitos humanos. Para Jayme o direito como parte da cultura dos povos muda com a crise da pós-modernidade. o Pluralismo manifesta-se na multiplicidade de fontes legislativas a regular o mesmo fato, com a descodificação ou a implosão dos sistemas genéricos normativos (Zersplieterung); manifesta-se no pluralismo de sujeitos a proteger, por vezes difusos, como o grupo de consumidores ou os que se beneficiam da proteção do meio ambiente e na pluralidade de agentes ativos de uma mesma relação, como os fornecedores que se organizam em cadeia e em relações extremamente

despersonalizadas.{192} Pluralismo também na filosofia aceita atualmente, onde o diálogo é que legitima o consenso, onde os valores e princípios têm sempre uma dupla função, o double coding, e onde os Valores são muitas vezes antinômicos.{193} Pluralismo nos direitos assegurados, no direito à diferença e ao tratamento diferenciado dos diferentes, ao privilégio de alguns, nos espaços e setores "de excelência". A comunicação seria um valor máximo da pós-modernidade. A nova legitimação do direito, da Justiça, estada na comunicação e no * (191) Jayme, p. 36. (192) Veja sobre pluralismo no direito Friedman, The Republic, p. 11 e ss. Com uma visão positiva deste momento de pluralismo, veja Benedetti, p. 161, que recorrendo a fonte romana comum na Europa preleciona ser uma crise de crescimento: "Tutto il discorso si puó sintetizzare con una formula: lunità nella molteplicità". (193) Kaufmann, Grundprobleme, p. 226, e Jayme, p. 246 e ss. (p. 93) revival da autonomia da vontade, associada a valorização extrema do tempo e do direito como instrumento de comunicação, de informação. Manifestar-se-ia na valorização do passar do tempo nas relações humanas, na valorização do eterno e do transitório, da necessidade de fixar/congelar momentos e ações para garantir a proteção dos mais fracos e dos grupos que a lei quer privilegiar. A comunicação segundo muitos é o atual método de legitimação de todas as ciências, o discurso legitima, a informação cria mitos e transforma-se em verdade, tudo jogos de palavras (Sprachspiele).{194} Assim a nova ética e filosofia são discursivas{195}, assim o consentimento do indivíduo para ser legitimador é só aquele informado e esclarecido.{196} Comunicação é também internacionalidade das relações jurídicas e a revalorização do direito internacional privado e das técnicas de harmonização e unificação das leis.{197} O elemento da narração origina-se na comunicação, é a conseqüência deste impulso de contato, de informação que invade a filosofia do direito e as próprias normas legais. Haveria, segundo Jayme, um novo método de elaborar normas legais, não normas para regular condutas, mas normas que narram seus objetivos, seus princípios, suas finalidades, positivando os objetivos do legislador no microssistema de forma a auxiliar na interpretação teleológica e no efeito útil das normas.{198} O método tradicional de elaborar normas que impunham condutas teria sido superado, pois estas não mais asseguram que os objetivos propostos serão alcançados. Assim o legislador passa a esclarecer seu próprio objetivo (ratio legis), ajudando e fixando a interpretação da norma no futuro, como normas narrativas, que iluminam a interpretação segundo Jayme,{199} mesmo que não cogentes. Normas-objetivo, segundo o jus-filósofo brasileiro, Eros Roberto Grau.{200} * (194) Veja Lyotard, p. 87 e ss. (195) Kaltfmann, Grundprobleme, p. 213. (196) Charbin, p. 7. (197) Jayme, p. 247. (198) A definição de normas narrativas é de Erik Jayme, Narrative Normen im Internationalen Privat - und Verfahrensrecht, Mohr: Tübingen, 1993, p. 16. No Brasil, veja os ensinamentos de Eros Roberto Grau.

(199) Jayme, Narrative Normen, p. 16. (200) Grau, Direito, p. 130 e ss. (p. 94) O que Jayme denomina retour des sentiments é, de um lado, a volta de uma certa "emocionalidade", no discurso jurídico, de outro lado é o imponderável, a procura de novos elementos sociais, ideológicos e/ ou de fora do sistema, que passam a influir a argumentação e as decisões jurídicas, criando forte insegurança e imprevisibilidade quanto a solução a ser efetivamente encontrada.{201} A pós-modernidade teria assim as características de uma crise de final de século, de início de algo novo, de mudanças, de inseguranças frente a algo que não se entende e que passivamente se observa. O último elemento, verdadeiro Leitmotive destacado por Jayme, é um revival dos direitos humanos, como novos e únicos valores seguros a utilizar neste caos legislativo e desregulador, de múltiplas codificações e microssistemas, de leis especiais privilegiadoras e de leis gerais ultrapassadas, de soft law e da procura de uma eqüidade cada vez mais discursiva do que real.{202} Parece-me que a crise da pós-modernidade é, em verdade, uma mudança na maneira de pensar o direito. Demonstra de certa forma um certo apatismo e imobilismo em relação às novidades, aos novos desafios, assim como ilumina uma desconcertante crise de ideais e confusão de valores e linhas jurídicas, que têm influência no direito contratual deste final de século.{203} Se assim podemos afirmar, os estudos sobre as mudanças na pós-modernidade, exista ela ou não, como momento histórico, acabaram por realçar ou espelhar o que já acontecera: a transformação do modelo contratual, em face dos limites do modelo contratual do século XIX. Trata-se de uma fotografia, de um momento guardado para ser estudado, mas que ainda nem denominação fixa tem. A verdade é que do modelo estático da compra e venda, de um dar, passamos para um modelo dinâmico, complexo, reiterado e de fazeres de longa duração, como nos contratos de serviços e nos aqui estudados contratos cativos. Passamos de um contrato bilateral e comutativo, para o modelo de um contrato múltiplo, conexo, triangular ou plúrimo, onde nos pólos encontram-se uma variada gama de sujeitos, como o fornecedor direto * (201) Jayme, p. 261 e ss. (202) Assim Jayme, p. 56 e p. 167 e ss. (203) "Reich", in RT 728, p. 19, chega a mencionar uma filosofia "pósintervencionista" e "ecológica" de proteção do consumidor. (p. 95) e a cadeia de fornecedores indiretos e sujeitos protegidos (individuais ou coletivos), como o consumidor-contratante, o consumidor stricto sensu e os consumidores equiparados. A noção de sinalagma, de nexo mínimo in concreto, ganha destaque, assim como a da confiança. Trata-se de um contrato muitas vezes aleatório e, se não, um contrato fictamente-comutativo, pois o importante passa a ser o nexo das prestações e seu equilíbrio (symalagma), não a prestação em si, mas seus anexos, sua qualidade, sua funcionalidade, a informação que a acompanha, o status que assegura, a rapidez e a segurança quanto ao seu prestar. Os valores que nos movem a contratar são outros, outros os desejos, outras as pressões, as necessidades do mundo atual, algumas plúrimas e passageiras, em um quase consumismo.{204}

Do contrato com regime geral e único, passamos para o contrato Com regime jurídico também plural, tendo em vista a aplicação de uma série de leis especiais e gerais à mesma relação contratual em seus mais diversos aspectos. Este conviver de normas de diversas hierarquias e finalidades traz consigo o problema da solução de antinomías, mais do que a segura teoria da revogação expressa, hoje quase não mais usada. Onde há Zersplitterung, onde houve uma auto-implosão das grandes codificações e o aparecimento de vários microssistemas. As antinomias são inevitáveis e mesmos os princípios constitucionais, por vezes, são propositadamente contraditórios. No novo modelo contratual há uma revalorização da palavra empregada e do risco profissional, aliada a uma grande censura intervencionista do Estado quanto ao conteúdo do contrato. É um acompanhar mais atento para o desenvolvimento da prestação, um valorizar da informação e da confiança despertada. Alguns denominam de renascimento da autonomia da vontade protegida. O esforço deve ser agora para garantir uma proteção da vontade dos mais fracos, como os consumidores. Garantir uma autonomia real da vontade do contratante mais fraco, uma vontade protegida pelo direito, vontade liberta das pressões e dos desejos impostos pela publicidade e por outros métodos agressivos de venda, é o objetivo. Esta "nova autonomia" foi denominada por Nicole Charbin , em sua tese de doutorado de 1988, de vontade racional ("vontade * (204) Assim tb. Macneil, Adjustment, p. 856 e ss. (p. 96) rationnelle").{205} A denominação parece-me feliz, pois indica a importância dos novos direitos dos consumidores: o direito à informação, o direito à reflexão e ao eventual arrepedimento como forma de proteção. Os métodos de venda mudaram e estão cada vez mais agressivos, emocionais e apelativos, os desejos dos consumidores aprimoraram-se e o consumismo não é mais um fenômeno isolado, assim está cada vez mais difícil alcançar esta vontade realmente refletida ou "racional", como prefere Charbin. A tese de Charbin é um exemplo de teoria pós-moderna, pois tenta criar um double coding, mudando o sentido exatamente do dogma mais tradicional da teoria contratual: a autonomia de vontade. Agora, quer Charbin frisar a autonomia do outro, do mais fraco, do consumidor; sendo assim a expressão autonomia ganha um novo perfil, uma dupla significação e nunca mais poderá ser apenas (e unilateralmente) entendida como "autonomia do mais forte", do comerciante, do profissional. Assim também frisa o Juiz Schimasky da Corte Federal Alemã, em um artigo de doutrina sobre a autonomia de vontade e os contratos bancários, que a liberdade contratual é uma norma de proteção (constitucional) de pessoas e a Corte sempre tentou proteger esta liberdade. "Entretanto não podemos proteger a liberdade contratual daquele que quer justamente reduzir, limitar ou mesmo excluir a liberdade contratual da outra parte. Liberdade é sempre a liberdade do outro." O magistrado da mais alta corte civil da Alemanha destaca ainda que o contrato é "por essência bilateral, a liberdade contratual é portanto indivisível, ela significa a liberdade dos dois e não somente a liberdade do contratante mais forte."{206} O Professor Erik Jayme, considerou o contrato de time-sharing ou de multipropriedade como o modelo de contrato da época pósmoderna.{207} O time-sharing pode ser definido como um contrato múltiplo e complexo, visando o uso habitacional de um imóvel, de um

complexo de imóveis, assim como dos serviços conexos a esta fruição, tudo por certo tempo a cada período de um ano.{208} * (205) Charbin, p. 216. (206) Schimansky, p. 462 e 463. (207) Jayme, p. 247. (208) Veja nosso artigo sobre time-sharing, in Revista Direito do Consumidor, v. 22, p. 64 e ss. (p. 97) É paradigmático, pois possui uma série de características que podem ser classificadas como pós-modernas, a começar por seu objeto que é o lazer temporário, o uso de um imóvel em uma área turística e serviços conexos, por uma semana ou duas a cada ano.{209} Também há que destacar a natureza dos direitos assegurados aos consumidores, direitos múltiplos, mas nem todos de natureza real, já que a multipropriedade no mais das vezes não transfere nem envolve direitos de propriedade, só direitos reais de uso.{210} Estes direitos limitados de uso aliados a grande quantidade de serviços anexos prestados podem mesmo permitir tipificar este contrato como preponderantemente um contrato de fornecimento de serviços. Outra característica pós-moderna é a multiplicidade de agentes que envolvem este fornecimento de serviços e a fruição dos direitos de uso assegurados pelo contrato de time-sharing, desde o organizador (o incorporador ou verdadeiro proprietário do imóvel e do complexo turístico), o simples vendedor, o verdadeiro proprietário, o administrador do imóvel e do complexo de turismo, os fornecedores diretos da alimentação, de passeios etc. E muitas vezes um contrato "sem fronteiras" ou internacional, pois as áreas e complexos turísticos muitas vezes localizam-se em outro país que o de domicílio ou nacionalidade do consumidor e a participação em "Círculos de Trocas Internacionais" torna possível que a fruição do direito de uso temporário dê-se em qualquer país.{211} Como se pode observar, os valores ou elementos da pós-modernidade são fluídos, os estudos jurídicos ainda incipientes. Em um momento permite esta vaga pós-moderna a criação de teorias como a de Charbin, que prega a revalorização dos direitos humanos. Em outro momento, o radicalismo identifica novamente a vontade como única fonte de legitimação jurídica. Em outras palavras, a revalorização da vontade é positiva no caso do direito do consumidor, mas se radicalizada pode levar a conclusões incoerentes, como a própria deslegitimação do Judiciário para resolver lides de consumo. Observe-se neste sentido o discurso que envolve a arbitragem, a mediação ou outros métodos alternativos de solução de controvérsias, como seriam mais rápidos ou * (209) Veja Martinek, p. 268. (210) Veja Tepedino, propondo a solução através da propriedade da figura do condomínio, para maior segurança dos multiproprietários, p. 106 e ss. (211) Veja, por todos, a obra de Tepedino, p. 7 e ss. (p. 98) mais "legítimos", discurso que omite a discussão sobre perpetuação do desequilíbrio ou a imparcialidade do árbitro. Note-se que o discurso pós-moderno pode disfarçar uma visão neoliberal da economia e da sociedade, com todos os seus perigos,{212} assim como internamente prega um enorme ceticismo quanto a capacidade da ciência (em geral e também da ciência do direito) fornecer respostas eficientes aos problemas atuais.{213} A pós-modernidade também leva alguns a aceitar

a exclusão social de muitos,{214} aceitar uma visão passiva do Estado frente ao hedonismo do mercado e da nova sociedade.{215} Sendo assim, em tempos pós-modernos é necessária uma visão crítica do direito tradicional, é necessária uma reação da ciência do direito, impondo uma nova valorização dos princípios, dos valores de * (212) A fase pós-moderna ou a pós-modernidade apregoa de um lado o esgotamento, os estertores do Estado Social (Welfare State), reeditando ora a insegurança legal, como aliás já se observa na Argentina que, ainda terceiro-mundista, caminha para a desregulamentação, desindustrialização e a privatização total, ora, em sentido inverso, fomentando a hiperregulamentação, face a natural reação do Estado frente ao vazio legislativo e ao abuso das liberdades econômicas. O Estado "Pós-moderno" passa então a impor um forte (radical) controle no mercado, quanto à execução dos contratos socialmente importantes, cujo conteúdo passa ele, totalmente, a ditar, como se observa na Europa. (213) A pós-modernidade seria a nova fase da sociedade, do esgotamento, dos ideais da Revolução Francesa e, conseqüentemente do Direito Moderno iniciado com estes ideais. A Pós-modernidade iniciou como um movimento artístico, cultural, filosófico, fora dos ideais iluministas e face à observação dos limites da ciência frente ao caos, apregoando uma negação ou desestruturação dos modelos tradicionais da ciência moderna, uma fase de crise dos paradigmas, de desmistificação dos conceitos, de desregulamentação, desburocratização e desestatização. Em suma, fase de insegurança conceitual e fática, a qual estaria fadada a ser logo substituída por uma volta ao radical controle estatal das atividades no mercado, a imputação de novos e imperativos deveres e pelo estabelecimento de uma estrutura contratual "repressiva", um contrato de consumo ditado, extremamente formal, regulamentado e controlado pelo Estado. (214) Sobre o tema comenta Domont-Naert, p. 29, citando Lenoir: "Une societé de consommation qui est aussi une societé du spetacle devient par là-même une société de frustation pour bon nombre de ceux que leurs revenues excluent d’une abondance aux limites incertaines et subjectives". (215) Neste sentido a crítica de Ghersi, p. 24 e ss. Veja sobre a atual importância dos direitos negativos frente ao Estado, Ladeur, p. 491 e ss. (p. 99) Justiça e eqüidade e, principalmente, no direito civil, do princípio da boa-fé objetiva, como paradigma limitador da autonomia de vontade.{216} Caso contrário, o próprio direito brasileiro ao privilegiar os mais fortes levará à opressão e exclusão dos mais fracos na sociedade. A crise atual leva a pensar na necessidade de proteção da vontade do Consumidor, como ideal utópico remanescente da metanarrativa da modernidade, de tratamento desigual aos desiguais. É tempo de alterar o ponto de concentração do direito civil e pensar no grupo que recebe as declarações, na confiança despertada pela atuação profissional dos fornecedores e não só em estabelecer

normas que privilegiam aquele que declara, aquele que redige os contratos massificados, aquele que impõe seus métodos de marketíng agressivos ou emotivos de venda. No novo direito contratual, a liberdade contratual do profissional não deve ser a única a merecer proteção jurídica, pois sua posição de poder (Machtposition) nas tratativas contratuais é clara e intrínseca aos métodos contratuais atuais, mas, sim, deve concentrar no outro, no direito e na liberdade do outro. A liberdade do consumidor é que deve ser protegida, sua autonomia de vontade, racional e efetiva. São tempos de relações contratuais múltiplas, despersonalizadas e a durar no tempo e estender-se a toda uma cadeia de fornecedores de serviços e produtos. Tempos que impõem uma visão da obrigação como um processo muito mais complexo e duradouro do que uma simples prestação contratual, um dar e um fazer momentâneo entre parceiros contratuais teoricamente iguais, conhecidos e escolhidos livremente. Segundo o emérito professor de Filosofia do Direito da Universidade de Erlangen-Nürnberg, Reinhold Zippelius, o Direito deve ser um instrumento para uma organização social justa e equilibrada (zweckmäBiger und gerechter Sozialgestaltung).{217} Nesta visão, as normas jurídicas são, portanto, instrumentos que ajudam a determinar a realidade social, conforme os objetivos considerados justos e desejáveis para aquela sociedade. O direito pode ser, portanto, um instrumento de justiça e inclusão social na sociedade atual, instrumento de * (216) Concorda Lopes/Transformações, p. 141 e ss., sobre a necessidade de resposta do direito e de presença ativa e coordenadora do Estado na sociedade. (217) Zippelius, p. 258. (p. 100) proteção de determinados grupos na sociedade, de realização dos novos direitos fundamentais,{218} de combate ao abuso do poder econômico e a toda atuação dos profissionais que seja contrária a boa-fé no tráfico entre consumidores e fornecedores no mercado. Esta visão ativa e positiva do direito civil, como instrumento de combate aos males da sociedade atual através da imposição de um patamar superior de respeito e lealdade nas relações sociais, é possível no Brasil após o advento do Código de Defesa do Consumidor, como será a seguir analisada. 4. A nova concepção de contrato e o Código de Defesa do Consumidor 4.1 A nova concepção social do contrato A nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta{219} e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância.{220} Nas palavras visionárias de Morin "l’homme n’apparait plus comme la seule efficiente du droit, mais il devient la cause finale".{221} Á procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo moderna, o direito destacará o papel da lei como limitadora e como

verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. A lei passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes. * (218) Assim Oliveira Jr., p. 191 e s. e Sarlet, p. 49 e s. (219) Assim Zweiger/Koetz, pp. 6 e 7, e Batiffol, La crise, p. 19. (220) Aqui aludimos tanto à proteção dos trabalhadores nos últimos séculos, quanto a nova proteção contratual dos consumidores. (221) Morin/Révolte, p. 109, em tradução livre: o homem não aparece mais como causa eficiente do direito (origem deste), mas passa a ser a causa final deste (a razão do direito). (p. 101) Conceitos tradicionais como os do negócio jurídico e da autonomia da vontade permanecerão,{222} mas o espaço reservado para que os particulares auto-regulem suas relações será reduzido por normas imperativas, como as do próprio Código de Defesa do Consumidor. É uma nova concepção de contrato no Estado Social, em que a vontade perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu Lugar elemento estranho às partes, mas básico para a sociedade como um todo: o interesse social.{223} Haverá um intervencionismo cada vez maior do Estado nas relações contratuais, no intuito de relativizar o antigo dogma da autonomia da vontade com as novas preocupações de ordem social, com a imposição de um novo paradigma, o princípio da boa-fé objetiva. E o contrato, como instrumento à disposição dos indivíduos na sociedade de consumo, mas, assim como o direito de propriedade, agora limitado e eficazmente regulado para que alcance a sua função social. Para analisar esta evolução do pensamento jurídico até a formação do novo conceito social de contrato, dividiremos o nosso estudo em três partes, inicialmente tratando da evolução teórica do direito dos contratos, que aqui será denominada de socialização da teoria contratual, e após, analisando o método escolhido para alcançar esta socialização na prática, a imposição de um princípio limitador e auto-criador, o princípio da boa-fé, e o fenômeno do intervencionismo do Estado na relação contratual. a) Socialização da teoria contratual - Mencionamos anteriormente, que as proposições de Jhering e a Jurisprudência dos Interesses * (222) Parte da doutrina estrangeira discorda e chega a afirmar que a autonomia da vontade teria perdido seu valor como princípio e nada mais seria do que uma visão atrasada do direito (Atiyah), mais realista Tallon, p. 83, resume esta visão ao parafrasear o famoso "adage" inglês, afirmando que a autonomia da vontade, assim como os "writs", estaria morta, mas ela continuaria a nos governar, tanto ela fascinou os juristas e inspirou o nosso direito positivo". Particularmente, preferimos afirmar a permanência do princípio da autonomia da vontade no direito atual, ressaltando apenas a evolução ocorrida quanto ao seu conteúdo e aos seus novos limites. Nesse

sentido tb. Batiffol, La crise, p. 26. (223) Esta é a conclusão de Paulo Lobo em sua tese sobre o contrato no Estado Social, pp. 127 e 128. (p. 102) (Interessenjurisprudenz) marcaram uma nova etapa na evolução do pensamento jurídico, pois permitiram que elementos sociais, interesses outros que não os derivados da doutrina da autonomia da vontade, passassem a integrar as preocupações do direito dos contratos. Assim também as novas teorias italianas sobre negócio jurídico,{224} influenciaram esta evolução, ao destacarem o papel maior da lei na nova noção do contrato. Para o grande mestre italiano, Betti,{225} a autonomia da vontade não seria a fonte única da obrigação. Na sua famosa definição, a autonomia da vontade deveria ser entendida como auto-regulamentação dos interesses particulares. O contrato seria um ato de auto-regulamentação de interesse das partes, e, portanto, por excelência, um ato de autonomia privada, mas este ato deveria ser realizado nas condições permitidas pelo direito, pois só assim a lei dotaria de eficácia jurídica o contrato. A posição dominante, portanto, é da lei. O contrato seria, então, um instrumento que o Direito oferece para possibilitar a auto-regulamentação dos interesses dos particulares. A vontade é pressuposto e fonte geradora das relações jurídicas já reguladas em abstrato e em geral, pelas normas jurídicas.{226} A ordem jurídica é que, em última análise, reconhece a autonomia privada, é ela pois, quem pode impor limites a esta autonomia. Estes postulados abalariam a onipotência da vontade individual na teoria do direito. Valores como a eqüidade, a boa-fé e a segurança nas relações jurídicas tomam lugar ao lado da autonomia da vontade na nova teoria contratual. Assim, se na concepção clássica de Savigny a vontade interna deveria prevalecer sobre a vontade declarada, vamos observar, quando da renovação da teoria contratual, que a preferência recairá sobre a vontade declarada e a aparência de vontade, na chamada Teoria da Confiança. Enquanto, a Willenstheorie de Savigny valoriza o dogma da vontade, como criadora e única legitimadora do vínculo, peca por desconsiderar a necessidade de segurança das relações jurídicas. Assim, propõe a anulação do contrato mesmo tendo em vista a dificuldade de * (224) Veja a interessante exposição de Gomes, Transformações, pp. 42 e ss. (225) Betti, Emilio, Teoria general del negocio juridico, trad. espanhola, Ed. Rev. de Derecho Privado, Madri, p. 43. (226) Veja Gomes, Transformações, p. 44 citando Betti. (p. 103) prova da vontade interna da pessoa, e uma eventual boa-fé do outro contraente ou de terceiro que adquiriu o bem. Na Teoria da Confiança (Vertrauenstheorie), abrandamento da antiga Teoria da Declaração, valoriza-se mais a vontade declarada do que a vontade interna, tudo com o fim de dar maior certeza e segurança às relações contratuais.{227} É o elemento social, representando pela confiança, ganhando em significação. De modo que, pela Teoria da Confiança, hoje majoritária,

admite-se a responsabilidade de quem, por seu comportamento na sociedade, fez nascer no outro contratante a justificada expectativa no cumprimento de determinadas obrigações.{228} Vamos observar reflexos desta teoria no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, quando a publicidade ou as informações prestadas pelo vendedor vão ser inseridas no contrato (art. 30), uma vez que criam no consumidor justificadas expectativas em relação ao bem, ao serviço ou às obrigações acessórias ao contrato. Em outras palavras, na nova concepção de contrato, o declarante deve responder pela confiança que o outro contratante nele depositou ao contratar.{229} O direito dos contratos socializado redescobre o papel da lei, que não será mais meramente interpretativa ou supletiva, mas cogente (veja art. 1º do CDC). A lei protegerá determinados interesses sociais e servirá como instrumento limitador do poder da vontade. Fala-se mais modernamente na função do direito dos contratos como orientador da relação obrigacional e como realizador da eqüitativa distribuição de Deveres e Direitos.{230} É o que os comparatistas alemães Zweigert e Koetz{231} visualizam como nova função do direito dos contratos, a realização da eqüidade contratual, dentro da concepção de um "Welfare State". Em nossa opinião esta almejada justiça contratual encontra-se justamente na equivalência das prestações ou sacrifícios, na proteção da confiança e da boa-fé de ambas as partes. * (227) Assim também Nery, p. 11 e Gomes, Transformações, p. 14. (228) Assim Koendgen, p. 132, utiliza a expressão "Schutz legitimer Erwartungen", assim, a nova função do direito dos contratos seria proteger os legítimos interesses e expectativas das pessoas. (229) Assim Nery Jr., p. 11. (230) Assim Koendgen, pp. 135 e ss. (231) Zweigert/Koetz, p. 7, utilizam a expressão Vertragsgerechtigkeit. (p. 104) O direito desenvolve, assim, uma teoria contratual "com função social", bem ao estilo daquelas descritas por Wiehweg,{232} isto é, o direito deixa o ideal positivista (e dedutivo) da ciência, reconhece a influência do social (costume, moralidade, harmonia, tradição) e passa a assumir proposições ideológicas, ao concentrar seus esforços na solução dos problemas. É um estilo de pensamento cada vez mais tópico,{233} que se orienta para o problema, criando figuras jurídicas, conceitos e princípios mais abertos, mais funcionais, delimitados sem tanto rigor lógico, como veremos no CDC,{234} pois só assumem significação em função do problema a resolver, são fórmulas jurídicas de procura da solução do conflito, fórmulas que jamais perdem a sua qualidade de tentativa.{235} Como resultado desta mudança de estilo de pensamento, as leis passam a ser mais concretas, mais funcionais e menos conceituais.{236} É o novo ideal de concretude das leis, que para alcançar a solução dos novos problemas propostos pela nova realidade social (título 2.2), opta por soluções abertas, as quais deixam larga margem de ação ao juiz e à doutrina, usando freqüentemente noções-chaves, valores básicos, princípios como os de boa-fé, eqüidade, equilíbrio, equivalência de prestações e outros. São topoi da argumentação jurídica, fórmulas

variáveis no tempo e no espaço, de inegável força para alcançar a solução justa do caso concreto.{237} b) Imposição do princípio da boa-fé objetiva - Como novo paradigma para as relações contratuais de consumo de nossa sociedade * (232) Em sua obra de filosofia do Direito, Tópica e Jurisprudência, traduzida para o português por Tércio Ferraz Jr., veja Wiehweg, pp. 86 e 87. (233) Na definição de Wiehweg, p. 33, a tópica seria uma techne do pensamento que se orienta para o problema, ou nas palavras introdutórias de Ferraz Jr., p. 3, é um modo de pensar por problemas. (234) Por exemplo, quanto ao problema dos abusos da vulnerabilidade do consumidor na venda de "porta-em-porta" (art. 49), a solução será um novo direito de arrependimento, de desistir do contrato, baseado no topoi princípio da boa-fé nas relações de consumo, veja Cap. III, 2.3. (235) Conclusão baseada no conceito de pensamento tópico no direito, presente na introdução de Ferraz Jr., in: Wiehweg, p. 3. (236) O ideal de "concretude" das leis foi perfeitamente explicado na Exposição de Motivos do Projeto de Código Civil n. 634/75, pp. 14 e 15. (237) Veja Wiehweg, p. 4. (p. 105) massificada, despersonalizada e cada vez mais complexa, propõe a ciência do direito o renascimento ou a revitalização de um dos princípios gerais do direito há muito conhecido e sempre presente desde o movimento do direito natural: o princípio geral da Boa-fé. Este princípio ou novo "mandamento" (Gebot) obrigatório a todas as relações contratuais na sociedade moderna, e não só as relações de consumo, será aqui denominado de Princípio da Boa-Fé Objetiva para destacar a sua nova interpretação e função. Efetivamente, o Princípio da Boa-Fé Objetiva na formação e na execução das obrigações possui uma dupla função na nova teoria contratual: 1) como fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os chamados deveres anexos, e 2) como causa limitadora do exercício, antes lícito, hoje abusivo, dos direitos subjetivos.{238} Inicialmente é necessário afirmar que a boa-fé objetiva é um standard, um parâmetro objetivo, genérico, que não está a depender da má-fé subjetiva do fornecedor A ou B, mas de um patamar geral de atuação, do homem médio, do bom pai de família que agiria de maneira normal e razoável naquela situação analisada. Como ensinam os doutrinadores europeus,{239} fides significa o hábito de firmeza e de coerência de quem sabe honrar os compromissos assumidos, significa, mais além do compromisso expresso, a "fidelidade" e coerência no cumprimento da expectativa alheia independentemente da palavra que haja sido dada, ou do acordo que tenha sido concluído; representando, sob este aspecto, a atitude de lealdade, de fidelidade, de cuidado que se costuma observar e que é legitimamente esperada nas relações entre homens honrados, no respeitoso cumprimento das expectativas reciprocamente confiadas.{240} É o compromisso expresso ou implícito de "fidelidade" e "cooperação" nas relações contratuais, é uma visão mais ampla, menos textual do vínculo, é a

concepção leal do vínculo, das expectativas que desperta (confiança).{241} * (238) Veja obra clássica sobre a boa-fé, encontrável também em espanhol, de Franz Wieacker, contando com esclarecedor prólogo de Luis Diez-Picazo. Sobre a importância deste novo Paradigma, veja a obra excelente de Alberto do Amaral Júnior, pp. 77 e ss. (239) Veja Wieacker, "Buena fe", p. 61. (240) Veja sobre a evolução da lides romana à noção européia e pandectista, Pasqualotto, p. 151 e ss. (241) Betti, "Teoria General de las Obligaciones", tomo 1, p. 84. (p. 106) Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação "refletida", uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.{242} A imposição, pela nova teoria contratual, do princípio geral de boa-fé objetiva na formação e execução das obrigações obteve como primeiro resultado - e, talvez, ainda o menos conhecido e aceito pelos juristas - a modificação no modo de visualizar estaticamente a relação contratual. Passa-se a visualizar o contrato como uma relação jurídica dinâmica, quê "nasce, vive e morre", vinculando durante certo tempo, talvez mesmo anos, um fornecedor de serviços, por exemplo, o organizador do plano de seguro-saúde ou a seguradora, e um consumidor e seus dependentes. O contrato é uma relação jurídica total e contínua, que nasce em determinada data, vinculando por exemplo, determinado fornecedor do produto e um consumidor e desenvolvendo-se mesmo antes do implemento do termo inicial ou do vencimento da prestação principal através do nascimento, da modificação ou imposição de novos direitos e deveres para ambas as partes. Assim em um simples contrato de compra e venda de móveis sob medida para entrega em 60 dias, ou em um contrato de compra e venda a prazo, com alienação fiduciária ou mesmo em um contrato complexo e cativo, como o contrato de consórcio para aquisição de bem móvel. Em todos estes exemplos podemos concluir tratar-se a relação jurídica contratual em um feixe de obrigações múltiplas e recíprocas. Os doutrinadores alemães costumam afirmar que as relações obrigacionais são, em verdade, uma "fila" ou uma "série" de deveres de conduta e contratuais ("Reihe von Leistungspflichten und weiteren Verhaltenspflichten"), vistos no tempo, ordenados logicamente, unidos por uma finalidade. Esta finalidade, este sentido único ("sinnhaftes Gefüge"), que une e organiza a relação contratual, é a realização dos * (242) Sobre boa-fé como regra de conduta, como limite à autonomia da vontade e como fonte de novos deveres acessórios, veja a obra de Antonio M. da Rocha e Menezes Cordeiro, "Da Boa-fé no Direito Civil", vol. 1, pp. 632 e ss. (p. 107)

interesses legítimos das partes ("vollständigen Befriedigung der Leistungsinteressen aller Gläubiger"); realização do objetivo do contrato e o posterior desaparecimento da relação ("Erloschen").{243} Trata-se de um verdadeiro processo que se desenvolve no tempo ("in der Zeit verlaufenden Prozess"), um processo social, um processo jurídico, o contrato, visualizado dinamicamente, erradiando uma Série de efeitos jurídicos ("Rechtsfolgen") durante a sua realização, antes mesmo dessa e após.{244} Esta visão dinâmica e realista do contrato é uma resposta à crise da teoria das fontes dos direitos e obrigações,{245} pois permite observar que as relações contratuais durante toda a sua existência (fase de execução), mais ainda, no seu momento de elaboração (de tratativas) e no seu momento posterior (de pós-eficácia), fazem nascer direitos e deveres outros que os resultantes da obrigação principal. Em outras palavras o contrato não envolve só a obrigação de prestar, mas envolve também uma obrigação de conduta. A relação contratual nada mais é do que um contato social,{246} um contato na sociedade que une, vincula pessoas, contato onde necessariamente não se pode esquecer ou desrespeitar os deveres gerais de conduta, os deveres de atuação conforme a boa-fé e conforme o direito. Estes deveres de conduta (Verhaltenspflichten) obrigam-nos a todos, todos os dias, nas relações extracontratuais e muito mais, nas relações contratuaIs. Liberar os contratantes de cumprir Seus deveres gerais de conduta, significaria afirmar que na relação contratual os indivíduos estão autorizados a agir com má-fé, a desrespeitar os direitos do parceiro * (243) Assim as expressões e os ensinamentos hoje clássicos do mestre alemão Larenz, "Sch.", pp. 26, 27, 28. (244) Larenz, idem, p. 28. (245) A observação é do Prof. Clóvis do Couto e Silva, que disseminou e desenvolveu a teoria de Larenz no Brasil, ob. cit., p. 73. (246) A expressão "contato social" foi desenvolvida pela doutrina e jurisprudência alemã para servir de ponto de encontro, de gênero, para as relações contratuais e extracontratuais na sociedade, das quais nascem direitos e obrigações, sempre ao interpretar o § 242 do BGB; sobre a evolução da expressão "sozialen Kontakt", veja: Ralph Weber, "Entwicklung und Ausdenung des § 242 BGB zum königlichen Paragraphen", in: JuS 1992, p. 635. (p. 108) contratual, a não agir lealmente, a abusar no exercício de seus direitos contratuais, a abusar de sua posição contratual preponderante ("Machtposition"), autorizando a "vantagem excessiva ou a lesão do parceiro contratual somente porque as partes firmaram um contrato, escolhendo-se mutuamente de maneira livre no mercado. A relação contratual não libera os contraentes de seus deveres de agir conforme a boa-fé e os bons costumes, ao contrário, a vinculação contratual os impõem, os reforçam. A lógica - e o Direito - impõem que nesses contatos sociais, nesses processos sociais, de inegável relevância jurídica, que são os

contratos,{247} os parceiros contratuais devam também observar seus deveres de conduta, devam também tratar o outro com lealdade e respeito, não danificar o patrimônio do próximo, não impedir que o outro cumpra com os seus deveres, em suma, cooperar na medida do possível segundo a lei. Estes deveres de conduta que acompanham as relações contratuais vão ser denominados de deveres anexos ("Nebenpflichten"), deveres que nasceram da observação da jurisprudência alemã ao visualizar que o contrato, enquanto fonte imanente de conflitos de interesses, deveria ser guiado e, mais ainda, guiar a atuação dos contraentes conforme o princípio da boa-fé nas relações.{248} Dever aqui significa a sujeição a uma determinada conduta, sujeição esta acompanhada de uma sanção em caso de descumprimento.{249} Estes deveres de conduta gerais existem sempre, mas quando integram uma relação contratual vão receber um novo nome especial, uma vez que seu descumprimento dará razão a uma sanção com regime * (247) Larenz, ob. cit., p. 14, chega a denominar estes contatos de contatos "negociais" ("geschäftliche Kontakts"), como grau dos contatos sociais. (248) Sobre a evolução da noção de deveres anexos e a importância da atuação interpretadora da jurisprudência quanto ao § 242 do BGB, veja Larenz, ob. cit., pp. 139 e 140. Referido autor utiliza como expressão genérica também "deveres anexos de prestação" ("Nebenleistungspflichten"), p. 138. (249) Assim como o direito subjetivo é uma noção dupla, faculdade de agir conforme a norma autoriza (facultas agendi) e ação (em sentido material) para proteger aquela faculdade ou atuação, o dever (subjetivado na pessoa do fornecedor de serviços, por exemplo) também é um binômio, sujeição obrigatória a uma conduta ou linha de conduta e sanção, resposta negativa do direito, ao eventual descumprimento da conduta imposta. (p. 109) especial, uma sanção contratual.{250} Descumprir o dever anexo de informar o contratante sobre os riscos de um serviço a ser executado, ou sobre como usar um produto, significa inadimplir, mesmo que parcialmente.{251} Assim, apesar de no Brasil consagrarmos a expressão alemã de deveres anexos ou secundários, enquanto contratuais, tratam-se de verdadeiras obrigações (obrigações acessórias, como os denominam os franceses),{252} a indicar que a relação contratual obriga não somente ao cumprimento da obrigação principal (a prestação), mas também ao cumprimento das várias obrigações acessórias ou dos deveres anexos aquele tipo de contrato. O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8 .078/90, trouxe como grande contribuição a exegese das relações contratuais no Brasil a positivação do princípio da boa-fé objetiva, como linha teleológica de interpretação, em seu art. 4º, III e como cláusula geral, em seu art. 51, IV, positivando em todo o seu corpo de normas a existência de uma série de deveres anexos às relações contratuais. O primeiro e mais conhecido dos deveres anexos (ou das obrigações contratuais acessórias) é o dever de informar (Informationspflicht) (veja arts. 30, 31 do CDC). Este dever já é visualizado na fase pré-contratual, fase de tratativas

entre o consumidor e o fornecedor, quando o consumidor escolhe, por exemplo, o modelo de carro que pretende adquirir, uma simples geladeira ou qual o plano de saúde deverá proteger sua família pelos * (250) Nesse sentido, correta a observação de Junqueira de Azevedo de que no momento pré-contratual devemos denominá-los "deveres" e somente dentro do contrato de "obrigações" acessórias, secundárias ou anexas, veja A. Junqueira de Azevedo "A boa-fé na formação dos contratos", p. 79. (251) Os doutrinadores alemães chegaram a elaborar mesmo uma nova denominação para este tipo de inadimplemento, chamaram de "quebra positiva do contrato" ("positive Vertragsverletzung"), positiva porque a obrigação principal foi cumprida (as máquinas foram entregues, a operação foi executada), mas "quebra" ou "ferimento" do contrato, porque a informação devida (anexa) não foi prestada (os manuais não foram entregues, os riscos não foram esclarecidos para que o paciente pudesse escolher) e isto frustrou, prejudicou, o objetivo do contrato; veja a lição de Emmerich, pp. 240 e ss. (252) Sobre as obrigações acessórias do direito francês e sua comparação com alguns dos deveres anexos do direito alemão, veja Tese de Mayer. (p. 110) próximos anos, tipo, quais são as carências e as exclusões de cada tipo de plano etc. Aqui as informações são fundamentais para a decisão do consumidor (qualidade, garantias, riscos, carências, exclusões de responsabilidade, existência de assistência técnica no Brasil etc.) e não deve haver indução ao erro, qualquer dolo ou falha na informação por parte do fornecedor ou promessas vazias, uma vez que as informações prestadas passam a ser juridicamente relevantes, integram a relação contratual futura e, portanto, deverão depois ser cumpridas na fase de execução do contrato, positivando a antiga noção da proibição do venire contra factum proprium.{253} Neste momento de tomada de decisão pelo consumidor, também deve ser dada a oportunidade do consumidor conhecer o conteúdo do contrato (veja art. 46 do CDC), de entender a extensão das obrigações que assume e a abrangência das obrigações da prestadora de serviços. É a nova transparência obrigatória nas relações de consumo, em que vige um novo dever de informar, imputado ao fornecedor de serviços e produtos, e uma nova relevância jurídica da publicidade, instituída pelo CDC como forma de proteger a confiança despertada por este método de marketing nos consumidores brasileiros.{254} Esta inversão de papéis, isto é, a imposição pelo CDC ao fornecedor do dever de informar sobre o produto ou serviço que oferece (suas características, seus riscos, sua qualidade) e sobre o contrato que vinculará o consumidor, inverteu a regra do "caveat emptor" (que ordenava ao consumidor uma atitude ativa: se quer saber detalhes sobre o plano de saúde, informe-se, descubra o contrato registrado em cartório no Rio de Janeiro ou São Paulo... atue ou nada poderá alegar) para a regra do "caveat vendictor" (que ordena ao vendedor ou corretor de planos de saúde que informe sobre o conteúdo desse, riscos, exclusões, limitações etc). Estabeleceu-se, assim, um novo patamar de conduta, de respeito no mercado, que não admite mais sequer o dolus

bonus do vendedor, do atendente, do representante autônomo dos fornecedores, face ao dever legal. Interessante observar que a doutrina estrangeira visualiza dois tipos de deveres de informação, o primeiro denominado dever de * (253) Assim ensina Wieacker, ob. cit., p. 60. (254) Veja sobre o princípio da transparência o trabalho de Tomasetti, "O objetivo", pp. 52 e ss. e o capítulo 3, da parte II desta obra. (p. 111) "conselho" ou aconselhamento, e o segundo, dever de esclarecimento simples.{255} O dever de esclarecimento (Aufklarungspflicht, em alemão e obligation de renseignements, em francês) obriga o fornecedor do serviço (por exemplo, de seguro-saúde e de assistência médica a Informar sobre os riscos do serviço do atendimento ou não em caso de emergência, exclusões da responsabilidade contratual, modificações contratualmente possíveis etc.), sobre a forma de utilização (necessIdade de autorizações, de exames prévios, de opiniões de médicos do grupo, do tempo total de internação por ano etc.) e a qualidade dos serviços (hospitais conveniados, médicos ligados ao grupo etc.).{256} Já o dever de aconselhamento (Beratungspflicht, em alemão e obligation de conseil, em francês) é um dever mais forte e só existe nas relações entre um profissional, especialista, e um não especialista. Cumprir ou não o dever de aconselhamento significa fornecer aquelas informações necessárias para que o consumidor possa escolher entre os vários caminhos a seguir (por exemplo: diferentes tipos de planos, diferentes carências, diferentes exclusões etc.). Este dever foi identificado como espécie mais forte, mais exigente, do gênero dever de informar, especialmente no caso dos médicos que receitam determinado remédio, que aconselham o paciente a submeterse a determinada cirurgia ou a determinado tratamento, a utilizar determinado hospital, deixando (ou omitindo) de informar as outras possibilidades ou outros possíveis caminhos, que, como especialistas, devem conhecer e informar.{257} Este dever de informar existe também para o consumidor, quando informa, por exemplo, seu estado de saúde à seguradora ou prestadora de serviços. Aqui, porém, trata-se de pessoa leiga, que geralmente * (255) Sobre a diferenciação elaborada na França e Alemanha sobre o dever de informar, veja excelente Mayer, ob. cit., pp. 101 a 104. (256) Estas informações criam expectativas (agora) consideradas legítimas, assim se descumpridas (por exemplo, a qualidade apregoada, ou a cobertura dos riscos não foi cumprida como anteriormente informado), reduzindo faticamente o conteúdo do contrato (os hospitais não são mais conveniados, não há mais atendimento de emergência, como apregoado), há inadimplemento parcial, ou vício do serviço, na terminologia do CDC. (257) Na terminologia portuguesa, todos os deveres de informação são denominados deveres de esclarecimento, veja Menezes de Cordeiro, pp. 601 e ss. (p. 112) pressupõe a boa saúde sua e de seus dependentes. Se informações especializadas são necessárias, há a seguradora de organizar esta pré-

seleção de clientes,{258} pois estas são normalmente desconhecidas ou consideradas não relevantes pelo consumidor, a favor do qual milita uma presunção de boa-fé subjetiva.{259} O segundo dever anexo destacado pela doutrina é o "Dever de Cooperação", dever (leia-se, obrigação contratual) de colaborar durante a execução do contrato, conforme o paradigma da boa-fé objetiva. Cooperar é agir com lealdade e não obstruir ou impedir.{260} Este dever será cumprido de um lado, evitando inviabilizar ou dificultar a atuação do outro contratante, quando este tenta cumprir com suas obrigações contratuais. Assim, por exemplo, quando o consumidor necessite adimplir a sua obrigação e o fornecedor dificulta o pagamento do consumidor, ao determinar que este só pode ser executado em local especial ou em horas difíceis, ou somente após autorizado por determinados papéis ou determinados servidores etc., descumpre seu dever de conduta, suas obrigações acessórias conforme a boa-fé.{261} * (258) Neste sentido, basilar a decisão da jurisprudência gaúcha, antes do CDC: "Seguro-saúde. Doença preexistente. A seguradora que recebe os prêmios, independentemente de examinar a saúde do seu associado, não pode depois escusar-se ao pagamento da cobertura alegando que a causa da internação decorreu de doença preexistente. No caso, inocorre sequer essa relação de causalidade. Ação improcedente. Apelo improvido" (Ap. Civ. 589041169, 5.ª C. civ., j. 22.8.89, rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, in: Jurisprudência TJRS, 1991, 23/119-122). (259) Nesse sentido basilar foi a decisão do TJRS, 6.ª Câmara Cível, Ap. C. 589069400, Rel. Luiz Fernando Koch, "Seguro-saúde. Pedido de restituição de despesas médico-hospitalares. Incomprovação de que doença preexistente e não declarada haja concorrido para o óbito de dependente do segurado. Presunção de boa-fé do segurado quanto às declarações na proposta de seguro. Ação improcedente. Apelo improvído" (in: Jurisprudência TJRS, 1990, v. 1, t. 14, pp. 297-301). (260) Os doutrinadores franceses denominam este dever de "obrigação de lealdade", de "fidelidade à execução", ao objetivo do contrato ("obligation de loyauté" ou "fidelité d’execution"), veja detalhes em Mayer, ob. cit., p. 102. (261) Caso interessante é relatado pela jurisprudência, onde seguradora de saúde queria punir com a reabertura das carências para internação hospitalar indivíduo que no dia do pagamento estava hospitalizado em Hospital conveniado e, por isso, deixou de pagar no dia, adímplindo tão logo recebeu (p. 113) De outro lado, se o fornecedor está obrigado a cumprir com suas obrigações (por exemplo: reembolsar ou fornecer determinados exames e consultas médicas, entregar determinado bem, executar determinado serviço) não deve dificultar o acesso do consumidor aos seus direitos ou inviabilizar que a prestação seja devida (conhecida, tradicionalmente, como exceptio doli).{262} Deve o fornecedor, igualmente, abster-se de usar ou impor expedientes desnecessários ou maliciosos, como exigir uma grande série de autorizações, documentos, solicitações só retiráveis em determinados locais, em determinada hora e por decisão arbitrária

do próprio fornecedor, exigir comunicações imediatas ou em curto espaço de tempo em matérias que envolvem a integridade física, psíquica da pessoa e seus familiares, e ainda mais, exigindo esta atuação contratual sob pena de perda dos direitos contratuais. Estas dificuldades excessivas impedem o cumprimento da prestação principal e significam o descumprimento das obrigações acessórias oriundas do contrato e do dever de conduta segundo a boa-fé: descumprir o dever de cooperação, de lealdade, significa inadimplir, mesmo que parcialmente. Este dever de lealdade, de cooperação, reflete-se também na redação dos contratos, a qual é executada de maneira unilateral e prévia pelo fornecedor. O fornecedor está autorizado a utilizar o método da contratação em massa, através de contratos de adesão, e a imposição de condições gerais, mas deve redigir estes textos de forma clara e precisa, destacando as cláusulas que limitem ou excluam direitos do consumidor. Igualmente, podemos destacar o dever anexo de cuidado (Schutzpflicht).{263} A imposição desta obrigação acessória no cumpri*alta. A partir do dia do vencimento da parcela não "paga", a seguradora negou-se a cobrir seus gastos médicos, alegando que "terceiro" deveria ter pago em dia e que o doente deveria ter se preocupado com o pagamento... na convalescência... O relator Des. Loureiro Ferreira afastou a incidência de tal cláusula sob o argumento de força maior e ausência de culpa do consumidor (Ap. 592088512, TJRS, 3.ª Câmara,j. 30.9.92), mas a consciência do dever de conduta conforme a boa-fé, ou do dever contratual anexo de cooperação na execução das obrigações poderia também ter evitado a lide. (262) Esta exceção tradicional é lembrada por Wieacker, ob. cit., p. 59. (263) Os autores franceses denominam este dever anexo de obrigação acessória de "securité", veja Mayer, ob. cit., p. 113, já os portugueses preferem a (p. 114) mento do contrato tem por fim preservar o co-contratante de danos à sua integridade: 1) a sua integridade pessoal (moral ou física) e 2) à integridade de seu patrimônio. Em seu primeiro aspecto, a obrigação de segurança, anexa ao contrato, manifesta-se, por exemplo, quando da utilização de um meio técnico para alcançar a realização do objetivo do contrato de serviço. Assim, no contrato de transporte do passageiro e de sua bagagem este será feito por um meio técnico (avião, ônibus, carro ou táxi) e deverá o transportador cuidar que nenhum dano sobrevenha aos passageiros e à bagagem sob sua responsabilidade, assim como cuidar para que o meio utilizado (veículo) esteja em boas e adequadas condições.{264} Esta tentativa de preservar a integridade do co-contratante impõese ao fornecedor de serviços para que no momento de sua atuação ou ao organizar a atuação,{265} ou mesmo ao cobrar a sua dívida, não cause danos morais ou patrimoniais ao co-contratante. Assim, quando divulga informações que tomou conhecimento em razão da relação contratual, deve cuidar para não causar danos (morais ou patrimoníais) ao consumidor, desde o simples fornecimento de seu endereço para que

enviem correspondência comercial ou política até a divulgação de sua situação financeira, de saúde ou opinião política, crença religiosa etc.{266} Em resumo, não deve o fornecedor do serviço abusar da sua posição contratual preponderante de poder impor "normas", cláusulas em relação com o consumidor, que façam este ter que suportar gastos desnecessários, destruam o seu patrimônio ou cláusulas que tentem obstruir, ou expor o consumidor à situação constrangedora, quando tenta simplesmente cumprir com suas obrigações contratuais ou adimplir. *expressão, dever de proteção, veja Menezes de Cordeiro, p. 610. Qualquer das denominações é válida e útil à compreensão do fenômeno, motivo pelo qual me inclino pela denominação "dever de cuidado", destacando seu aspecto preventivo. (264) Assim Mayer, ob. cit., p. 65. (265) Veja neste sentido duas decisões do TAMG, sobre danos morais por acusações injustas de furto em estabelecimento comercial, in RT 712/242 (Ap. Civ. 171.069-6, j. 54.94, Rel. Juiz Roney Oliveira) e in RT 734/468 (Ap. Civ. 212.489-6, j. 10.4.96, J. Kildare Carvalho). (266) O CDC impõe como objetivo a reparação integral e efetiva dos danos causados ao consumidores no mercado brasileiro, mencionando o art. 6.º, VI do CDC os danos morais e patrimoniais. (p. 115) Reconhecer a existência de deveres anexos de conduta significa, igualmente, interpretar o contrato de forma mais abrangente. Redigido de forma não clara, ou atuando o fornecedor em sentido contrário do que informou ao consumidor (venire contra factum proprio), deverá o fornecedor, uma vez vinculado ex lege por essas promessas e atuações, cumprir o contrato totalmente. O fornecedor deverá realizar as expectativas (agora legítimas) do consumidor, adimplir seu dever principal e seus deveres anexos. O princípio da boa-fé objetiva é, portanto, um princípio limitador do princípio da autonomia da vontade e um elemento criador de novos deveres contratuais, que deve contar, para sua maior efetividade, com sua previsão legal específica. Para atingir este ambicioso fim, de eqüidade contratual e boa-fé nas relações o Estado utilizará, então, o instrumento que dispõe, o poder de regular a conduta dos homens através das leis, limitando assim a autonomia privada. É o intervencionismo do Estado na vida dos contratos, nosso próximo tema. c) Intervencionismo dos Estados - A filosofia do Estado Liberal exigia uma separação quase absoluta entre o Estado e a Sociedade, Logo aquele não poderia intervir nas relações obrigacionais dos particulares, ao contrário, deveria permitir a liberdade contratual como reflexo do postulado máximo da autonomia da vontade, criadora do próprio Estado politicamente organizado.{267} Conseqüentemente, ao juiz não era permitido mais do que um controle formal da presença ou da ausência da vontade e de um consenso isento de vícios ou defeitos, nunca, porém, um controle do conteúdo do contrato, da justeza e do equilíbrio das obrigações assumidas. De outro lado, à lei cabia uma função interpretativa, no máximo, supletiva da vontade. Com o início da renovação da teoria contratual através das

tendências sociais antes mencionadas, em virtude dos postulados de um novo Estado Social e da realidade da sociedade de massas, o Estado passa a intervir nas relações obrigacionais. * (267) Veja sobre o tema, na excelente tese de Paulo Luiz Lobo, a comparação do contrato no Estado Liberal e de como deveria ser o contrato no Estado Social, especialmente, pp. 35 e ss. (p. 116) No início, o intervencionismo estatal dar-se-á através da planificação de certas atividades, pela fiscalização e controle de certos negócios, pela fixação de quotas e preços mínimos. Mas, aos poucos, o intervencionismo estatal evolui de modo a fomentar a edição de leis limitadoras do poder de auto-regular determinadas cláusulas (p. ex.: cláusulas de juros) e determinar o conteúdo de certos contratos, passando a ditar o conteúdo daqueles contratos em atividades imprescIndíveis (por exemplo: transportes, fornecimento de água, luz).{268} Assim, a intervenção do Estado na formação dos contratos vai ser exercida não só pelo legislador, como também pelos órgãos administrativos.{269} Também o Poder Judiciário terá nova função, pois, se as normas imperativas destas leis, aqui chamadas de intervencionistas, restringem o espaço da liberdade individual no contrato, também legitiMarão ao Judiciário para que exerça o tão reclamado controle efetivo do conteúdo do contrato, controle da justiça contratual, em especial, o controle das cláusulas abusivas. No Brasil, este intervencionismo do Estado nas relações contratuais concentrou-se no tabelamento de preços, no congelamento de aluguéis e salários, na renovação compulsória de locações,{270} na proscrição da usura e na declaração de ineficácia de certas cláusulas exonerativas em determinados contratos, como o de transporte.{271} Mas, exceção feita às normas trabalhistas, uma ampla intervenção legislativa só aconteceria, com advento do Código de Defesa do Consumidor, o qual em seus artigos deixa claro o espírito protetor da nova concepção de contrato que o guia. 4.2 O Código de Defesa do Consumidor como conseqüência da nova teoria contratual Como acabamos de analisar, o direito contratual sofreu uma profunda renovação. As suas transformações devem-se umas aos fatos, como por exemplo, o incremento da vida contratual, cada vez mais * (268) Veja a exposição de Couto e Silva/Obrigação, p. 22, assim também Lobo, p. 52. (269) Assim Teles, p. 44. (270) Veja a exposição de Bittar/Dirigismo, p. 243. (271) Veja exposição de Villela, p. 29. (p. 117) intensa e estandardizada, a mudança de uma economia agrária em economia industrial e capitalista, concentradora de riquezas e de poder, e a criação de uma sociedade de consumo. Outras, devem-se à intervenção dos poderes públicos, chamados a corrigir e a dirigir as forças econômicas e sociais, resultando na institucionalização dos contratos e na intervenção legislativa neste campo antes reservado à autonomia da vontade. Segundo a nova visão do direito, o contrato não pode mais ser

considerado somente como um campo livre e exclusivo para a vontade criadora dos indivíduos. Hoje, a função social do contrato, como instrumento basilar para o movimento das riquezas e para a realização dos legítimos interesses dos indivíduos, exige que o contrato siga um regramento legal rigoroso. A nova teoria contratual fornecerá o embasamento teórico para a edição de normas cogentes, que traçarão o novo conceito e os novos limites da autonomia da vontade, com o fim de assegurar que o contrato cumpra a sua nova função social. Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor representa o mais novo e mais amplo grupo de normas cogentes, editado com o fim de disciplinar as relações contratuais entre fornecedor e consumidor, segundo os postulados da nova teoria contratual. Se no Título 1 desta obra, analisamos as conseqüências que a aceitação da doutrina clássica da autonomia da vontade teve no campo das idéias e postulados jurídicos, cabe agora refazer esta análise tendo em vista, não mais o dogma único da vontade, mas as tendências sociais da nova concepção de contrato, em seu reflexo mais visível, que é a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor. a) Limitação da liberdade contratual - A teoria contratual clássica, através da aceitação total do dogma da autonomia da vontade, assegurava, no campo teórico do Direito, a igualdade e a liberdade de todas as pessoas. O dogma da liberdade contratual era o reflexo mais importante da força criadora da vontade. O indivíduo estaria, assim, livre para contratar ou não contratar, para definir o conteúdo de suas futuras obrigações, para escolher o parceiro contratual que lhe interessaSse. No campo prático dos fatos, com a proliferação dos contratos de massa, especialmente dos contratos de adesão, a liberdade contratual (p. 118) já se encontrava limitada. Ao contrário do que se acreditava, o dogma da liberdade contratual tornou-se uma ficção - em liberdade de um e opressão do outro - assim como a esperada livre concorrência não foi suficiente para conduzir a resultados aceitáveis.{272} A concentração das empresas e os monopólios, estatais ou privados, reduziram a liberdade de escolha do parceiro. Em casos de serviços imprescindíveis, como água, luz, transporte, fala-se mesmo em obrigação de contratar,{273} assim também, no caso de seguros tornados obrigatórios, pois permanece a liberdade de escolha do parceiro, mas não a de redigir ou não o contrato. O dirigismo contratual passa a dominar. O conteúdo de muitos contratos será ditado, regulamentado ou autorizado pelo poder estatal. Os contratos pré-redigidos pelas empresas substituirão o negócio jurídico bilateral antes concluído individualmente, desavarecendo o laborioso processo de negociações e discussões preliminares. Permanece a liberdade de contratar, isto é, a de realizar ou não um determinado contrato, mas a liberdade contratual, liberdade para determinar o conteúdo da relação obrigacional{274} sofreria graves limitações através das novas técnicas de contratação e também, através do intervencionismo legal na vida dos contratos, por exemplo, quando da fixação obrigatória de preços ou da renovação compulsória de locações para os atuais inquilinos.

Galvão Teles{275} destaca que além dessas limitações da liberdade contratual, provindas do exterior, na nova sociedade de consumo teriam tomado grande vulto as, por ele chamadas de, "autolimitações", referindo-se às limitações voluntárias da liberdade futura de contratar * (272) Assim também Schwab, "Liberdade", p. 17, destaca igualmente à p. 19 o início do intervencionismo legal na Alemanha no campo da livre concorrência para proibir os abusos e a concorrência desleal. As leis contra a concorrência desleal, apesar de, em última análise, levarem à defesa do consumidor, não serão analisadas por nós no momento, pois queremos concentrar o nosso estudo no direito contratual, na evolução do conceito de contrato. Veja, porém, sobre o tema o excelente von Hippel, "Defesa", pp. 26 e ss. (273) Veja o interessante artigo de Gomes, "Obrigação de Contratar", reflexo deste pensamento tão em voga à época. (274) Concordam tb. Wald, "Adesão", p. 258 e Pasqualotto, p. 53. (275) Teles, p. 45. (p. 119) assumidas pelas partes, por exemplo, nos contratos que regulam outras futuras relações e nos pré-contratos, como entre nós a promessa de compra e venda de imóvel. O declínio da liberdade contratual é, portanto, um fato na moderna sociedade de consumo. O direito embutido da nova concepção de contrato ao invés de combater este declínio, tentando, por exemplo, assegurar a plena liberdade defendida pelos clássicos, aceita estes novos limites impostos. Passa, porém, a verificar: a) se os limites provêm do poder estatal, se foram legitimamente impostos, respeitando os direitos constitucionais e tendo amparo em alguma lei; b) se provêm dos particulares, se estas limitações, como por exemplo a imposição do conteúdo do contrato, foram abusivas ou se respeitarem os novos postulados sociais da boa-fé, da segurança, do equilíbrio e da eqüidade contratual. A aceitação de uma liberdade contratual limitada vai ter reflexos na teoria do Direito. Assim, na nova noção da oferta, reforça-se o caráter vinculante da oferta, em nome da segurança das relações contratuais e da proteção da confiança, mas, e principalmente, passam a integrar a oferta todas as informações (mesmo as publicitárias), que possam fazer nascer expectativas ilegítimas quanto à qualidade, à quantidade do produto ou quanto ao tipo de obrigações assumidas se aceita a oferta. Nesse sentido, veja a interessante concepção de oferta do art. 30 e ss. do novo Código brasileiro de Defesa do Consumidor, a qual analisaremos em detalhes no Capítulo 3 deste livro. Assim também, o novo direito dos contratos vai limitar a possibilidade das empresas recusarem a contratar com determinada pessoa ou em determinadas ocasiões, seja por respeito aos direitos constitucionais, seja por passar a considerar ilícito o uso do poder econômico e do monopólio para forçar, por exemplo, um aumento de preços. A recusa de contratar, em alguns casos será punida pelas normas jurídicas (veja, por exemplo, o art. 35 do Código de Defesa do Consumidor), com desvantagens de ordem econômica, podendo estas ser interpretadas como levando a uma verdadeira "obrigação de contratar".{276} A tese é discutível. Relembre-se aqui que, desde Jhering e sua idéia de culpa

in contrahendo, mesmo não nascendo o contrato, poderiam nascer obrigações de indenizar prejuízos para aquele que frustra a conclusão * (276) Veja as conclusões de Gomes/Transformações. (p. 120) de um contrato com condutas reprováveis.{277} Assim, no caso em exame, não haveria obrigação de contratar stricto sensu, mas uma punição, equivalente aos eventuais direitos oriundos do contrato, se for recusada a oferta. A limitação da liberdade contratual vai possibilitar, assim que novas obrigações, não oriundas da vontade declarada ou interna dos contratantes, sejam inseridas no contrato em virtude da lei ou ainda em virtude de uma interpretação construtiva dos juízes, demonstrando mais uma vez o papel predominante da lei em relação à vontade na nova concepção de contrato. A nova teoria contratual impregnada por uma visão total da relação e conforme a boa-fé passa também a valorizar o tempo como elemento relevante. Na formação do vínculo, o tempo será considerado como aliado, da racionalidade e reflexão na decisão dos consumidores. O Código de Defesa do Consumidor reconhece a importância das novas técnicas de vendas, muitas delas agressivas, do marketing e do contrato como forma de informação do consumidor, protegendo o seu direito de escolha e sua autonomia racional, através do reconhecimento de um direito mais forte de informação (arts. 30, 31, 34,46 ,48 e 54 do CDC) e um direito de reflexão (art. 49 do CDC). Na execução do contrato, o tempo também passa a ser valorizado, seja pela visão da obrigação como um processo, a protrair-se no tempo para alcançar um só bom fim: a realização das expectativas legítimas de ambas as partes; seja pela valorização do tempo como fator de pressão e catividade. Quanto mais duradoura a relação, mais difícil e prejudicial é seu rompimento para o consumidor, assim cláusulas antes normais, como a de fim de vínculo, passam a ser consideradas abusivas, se a escolha não couber ao consumidor ou se não for colocada à sua disposição (Art. 54, § 2.º, do CDC). Destacam-se os deveres de cooperação e de adaptação para uma maior possibilidade de manutenção do vínculo contratual. A necessidade de proteção da liberdade do contratante mais fraco leva a impor novos riscos profissionais aos fornecedores, que não poderão ser transferidos aos consumidores por nenhuma manifestação vAlida da vontade, a redefinir o abuso. * (277) Veja sobre o assunto também Pasqualotto, RT, p. 54. (p. 121) Da mesma maneira, a nova concepção social levará a um renascimento do formalismo,{278} pois o dever de empregar determinadas formas para o nascimento de obrigações jurídicas representa uma proteção extra para os contratantes menos preparados. A forma leva o contratante a pensar na seriedade do ato que está empreendendo, contribui para que este conheça o teor da obrigação que está assumindo ou, pelo menos, protege e dá publicidade do ato para terceiros. Relembre-se aqui a legislação brasileira sobre o compromisso de compra e venda de imóveis não loteados.{279} Observe-se, também que de certa maneira as novas leis intervencionistas vão ocasionar um renascimento da defesa da liberdade de contratar, da liberdade de escolha do parceiro contratual, através do novo dever de informação imposto ao fornecedor, para que o consumidor possa escolher o parceiro que melhor lhe convier{280} (veja o inc. III do art. 6.º do CDC)

Por fim, cumpre mencionar que esta nova concepção de contrato trouxe como reflexo a possibilidade do poder estatal, seja através do legislador, seja através do controle judicial ou administrativo, proibir determinadas cláusulas abusivas nos contratos de massa, tema que trataremos em detalhes no capítulo terceiro desta obra. b) Relativização da força obrigatória dos contratos - Na visão tradicional, a força obrigatória do contrato teria seu fundamento na vontade das partes. Uma vez manifestada esta vontade, as partes ficariam ligadas por um vínculo, donde nasceriam obrigações e direitos para cada um dos participantes, força obrigatória esta, reconhecida pelo direito e tutelada judicialmente. A nova concepção de contrato destaca, ao contrário, o papel da lei. É a lei que reserva um espaço para a autonomia da vontade, para a auto-regulamentação dos interesses privados. Logo, é ela que vai legitimar o vínculo contratual e protegê-lo. A vontade continua essencial à formação dos negócios jurídicos, mas sua importância e força diminuíram, levando à relativízação da noção de força obrigatória e intangibilidade do conteúdo do contrato. * (278) Assim Malinvaud, p. 53. (279) Veja o Dec.-lei 58, de 10.12.37, art. 22, como redação determinada pela Lei 6.064, de 27.12.73. (280) Assim tb. Malinvaud, p. 52 e o artigo sobre o tema de Fradera. (p. 122) Assim, o princípio clássico de que o contrato não pode ser modificado ou suprimido senão através de uma nova manifestação volitiva das mesmas partes contratantes sofrerá limitações (veja neste sentido os incisos IV e V do art. 6º do CDC). Aos juízes é agora permitido um controle do conteúdo do contrato, como no próprio Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, devendo ser suprimidas as cláusulas abusivas e substituídas pela norma legal supletiva (art. 51 do CDC). É o intervencionismo estatal, que ao editar leis específicas pode, por exemplo, inserir no quadro das relações contratuais novas obrigações com base no Princípio da Boa-Fé (dever de informar, obrigação de substituir peça, renovação automática da locação etc.), mesmo que as partes não as queiram, não as tenham previsto ou as tenham expressamente excluído no instrumento contratual.{281} Relembrese aqui também o enfraquecimento da força vinculativa dos contratos através da possível aceitação da teoria da imprevisão (veja neste sentido o interessante e unilateral inciso V do art. 6.º do CDC). Assim também a vontade das partes não é mais a única fonte de interpretação que possuem os juízes para interpretar um instrumento contratual. A evolução doutrinária do direito dos contratos já pleiteava uma interpretação teleológica do contrato, um respeito maior pelos interesses sociais envolvidos, pelas expectativas legítimas das partes, especialmente das partes que só tiveram a liberdade de aderir ou não aos termos pré-elaborados. As leis, aqui chamadas de leis intervencionistas, autorização o Poder Judiciário a um controle mais efetivo da justiça contratual e ao exercício de uma interpretação mais teleológica, onde os valores da lei tomam o primeiro plano e delimitam o espaço para o poder da vontade. O juiz ao interpretar o contrato não será um simples servidor da vontade

das partes; será, ao contrário, um servidor do interesse geral.{282} Ele terá em vista tanto o mandamento da lei e a vontade manifestada, quanto os efeitos sociais do contrato e os interesses das partes protegidos pelo direito em sua nova concepção social. A pluralidade não é só de leis imperativas a considerar, é também de agentes econômicos, o que revaloriza a solidariedade, como forma de responsabilização da cadeia organizada de fornecedores na socie* (281) Assim tb. concluem Galvão Teles, p. 45 e Weil/Terré, p. 65. (282) Na expressão feliz de Weil/Terré, p. 66, "serviteur de l’intérêt général". (p. 123) dade de consumo atual (arts. 14, 18 e 20 do CDC),{283} e com isto abala as estruturas da divisão entre responsabilidade civil contratual e extracontratual. A pluralidade é também de sujeitos envolvidos e sujeitos a proteger, identificados como sujeitos a tutelar de forma diferenciada, os mais fracos na sociedade. Relativiza-se, assim, o postulado que os contratos só têm efeito entre as partes (res inter alios acta). As novas tendências sociais da concepção de contrato postulam que, em alguns casos, o raio de ação do contrato deva transcender a órbita das partes. Como exemplo, relembre-se a tentativa doutrinária de estender a garantia contratual contra vícios ou defeitos aos terceiros vítimas de um fato do produto, principalmente na doutrina francesa;{284} relembre-se igualmente a intensificação na vida moderna dos contratos em benefício de terceiros, como os contratos de seguro de vida e o de transporte de mercadorias em alguns casos. Aqui, localiza-se um dos mais importantes fenômenos, desafios, do novo direito dos consumidores. Nas relações contratuais de massa a crédito, a relação se estabelece entre o consumidor e a empresa de crédito, mas o bem é fornecido pela empresa-vendedora. Neste triângulo contratual, a acessoriedade da relação de crédito em relação ao cumprimento dos deveres da relação de fornecimento do bem deve ficar clara, para evitar que uma fique independente da outra, impossibilitando as reclamações do consumidor. Assim também, as fases anteriores e posteriores ao momento da celebração do contrato ganham em relevância.{285} Disciplina-se o précontrato, reforçando a sua força obrigatória para que conceda em alguns casos direito real ao beneficiário. Reforçam-se os requisitos da fase pré-contratual ao impor deveres de informação ao fornecedor. Mas especial atenção receberá a fase pós-contratual. A doutrina já havia desenvolvido a teoria da culpa post factum finitum, a qual, baseada no princípio da boa-fé, estendia a eficácia do contrato para além do cumprimento do dever principal.{286} As novas leis intervencionistas, * (283) Veja sobre a solidariedade entre médico credenciado e organizador de plano ou seguro de saúde, Aguiar Jr, RT 718, p. 47. (284) Veja sobre o assunto a obra de Leães, A responsabilidade do fabricante pelo fato do produto. (285) Assim Peneira de Almeida, p. 22, veja art. 46 CDC. (286) Veja a obra de Menezes de Cordeiro sobre o tema, tb. Pasqualotto, p. 54 e Peneira de Almeida, p. 30. (p. 124) especialmente no que se refere ao consumo de bens duráveis,

disciplinarão os deveres anexos à obrigação, impondo, por exemplo, o dever de prestação da chamada assistência pós-venda (veja o art. 18, § 1.º do CDC), o dever de informar sobre o modo e a técnica de utilização de produtos (veja art. 18, caput, in fine), assim como disciplinando a garantia legal e a garantia contratual oferecida pelo fornecedor (veja arts. 24 e 50 do CDC). Em se tratando de contratos cativos e de longa duração, ressurge no direito contratual um fator quase que extinto, a (agora mega) personalidade das relações. As relações de massa, através do método do contrato de adesão e dos atuais métodos de marketing, tendem a ser despersonalizadas. Carlos Alberto Ghersi chegou a denominar as relações pós-modernas de "contratos sem sujeito".{287} Com a devida vênia ao mestre argentino, parece-me que, em se tratando de contratos cativos de longa duração, a manutenção subjetiva do fornecedor ainda importa ao consumidor. Importa ao consumidor quem seja o seu fornecedor principal, não enquanto pessoa a quem subjetivamente confia, como nos moldes pré-industriais, mas enquanto imagemqualidade, enquanto grupo consolidado, enquanto status, enquanto marca e garantia.{288} A manutenção do vínculo com o fornecedor de uma marca consolidada, ou de uma determinada qualidade difereciada, ou de um grupo economicamente forte pode ser importante, e é relevante para o consumidor ao integrar o grupo de fatores que vai assegurar que este receba o que deseja. Fator para que realize as suas expectativas legítimas mesmo no futuro ainda indeterminado. Trata-se aqui de uma reação à fluidez e à fragmentação cada vez maior das relações contratuais. A cessão de direitos ou da posição contratual por parte do fornecedor, muitas vezes utilizada como técnica para poder modificar as cláusulas contratuais iniciais, pode abalar o sinalagma funcional e afetar a realização das expectativas legítimas do consumidor. Logo, deve ser especialmente cuidada, controlada e mesmo evitada.{289} Como se observa, o postulado da força obrigatória dos contratos encontra-se muito modificado pelas novas tendências sociais da noção * (287) Ghersi, Posmodernidad, p. 56. (288) Veja neste sentido sobre os controles e os interesses dos consumidores em matéria de fusão e em especial de cessão de carteiras de seguro, Rubén Stiglitz, in Stigliz, p. 70 e ss. (289) Sobre o tema da cessão e do sinalagma, veja Gernhuber, p. 58. (p. 125) de contrato. O papel dominante agora é o da lei, a qual com seu intervencionismo restringe cada vez mais o espaço para a autonomia da vontade. c) Proteção da confiança e dos interesses legítimos - Ao tratar aqui da proteção da confiança como conseqüência da nova concepção social e não mais, exclusivamente, da teoria dos vícios do consentimento, pretendemos chamar a atenção para este elemento social agora alçado à condição de valor do contrato, a confiança. Note-se, porém, que a teoria dos vícios do consentimento continua a estar presente mesmo na nova concepção social de contrato, tanto que, algumas de suas idéias vão ser usadas como base para novas figuras e obrigações impostas pelas leis intervencionistas. Assim a idéia de erro, como falsa visão da realidade, a qual leva uma pessoa a contratar em circunstâncias que normalmente - se tivesse a verdadeira visão da

realidade não contrataria, será uma das fontes da nova figura do direito do consumidor, o dever de informar, o qual foi imposto de maneira abrangente aos fornecedores de bens e serviços pelo novo Código brasileiro. Ainda quanto à teoria dos vícios do consentimento, cabe salientar aqui que a nova concepção social do contrato levará os doutrinadores e a jurisprudência mundial, especialmente a italiana, a, em caso de divergência entre a vontade interna e a vontade declarada, preferirem a vontade declarada, criando a teoria da confiança.{290} A teoria da confiança, como já mencionamos anteriormente,{291} pretende proteger prioritariamente as expectativas legítimas que nasceram no outro contratante, o qual confiou na postura, nas obrigações assumidas e no vinculo criado através da declaração do parceiro. Protege-se, assim, a boa-fé e a confiança que o parceiro depositou na declaração do outro contratante. A vontade declarada, porém, não prevalecerá se o outro contratante souber ou puder saber razoavelmente que aquela não era a vontade interna de seu parceiro. A teoria da confiança apesar de estar presente, segundo alguns, mesmo no Código Civil Alemão de 1900,{292} serve à nossa análise porque nela observamos * (290) Veja Nery Jr., p. 11. (291) Quando da análise feita sobre a socialização da teoria contratual (4.1). (292) Assim defende Gomes/Transformações, p. 15. Já Nery Jr., p. 14, considera que a teoria, como a entendemos, teria sido adotada somente em 1942 no (p. 126) exatamente esta transformação na visão protetiva do direito, da vontade individual, para o impacto social.{293} A teoria da vontade concentrava-se no indivíduo, aquele que emite erroneamente sua vontade, concentrava-se no indivíduo, aquele que emite erroneamente sua vontade, concentrava-se no momento da criação do contrato: a teoria da confiança concentra-se também em um indivíduo, qual seja o que recebe a declaração de vontade, em sua boa-fé ou má-fé, mas tem como fim proteger os efeitos do contrato e assegurar, através da ação do direito, a proteção dos legítimos interesses e a segurança das relações. O CDC institui no Brasil o princípio da proteção da confiança do consumidor. Este princípio abrange dois aspectos: 1) a proteção da confiança no vínculo contratual, que dará origem às normas cogentes do CDC, que procuram assegurar o equilíbrio do contrato de consumo, isto é, o equilíbrio das obrigações e deveres de cada parte, através da proibição do uso de cláusulas abusivas e de uma interpretação sempre pró-consumidor; 2) a proteção da confiança na prestação contratual, que dará origem às normas cogentes do CDC, que procuram garantir ao consumidor a adequação do produto ou serviço adquirido, assim como evitar riscos e prejuízos oriundos destes produtos e serviços. Uma outra conseqüência da nova concepção social do contrato, que pretendemos frisar, é justamente a mudança do momento de proteção do direito. Não mais se tutela exclusivamente o momento da criação do contrato, a vontade, o consenso, mas, ao contrário, a proteção das normas jurídicas vai concentrar-se nos efeitos do contrato na sociedade, por exemplo, no momento de sua execução procurando assim harmonizar os vários interesses e valores envolvidos e assegurar a justiça contratual. É o que tentamos aqui denominar como efeito de proteção à

confiança e aos interesses legítimos das partes em uma relação contratual. Note-se que a expressão "legítimos interesses", traz ínsita uma certa idéia de valor, como se o direito valorasse a relação contratual e escolhesse alguns dos interesses das partes como tuteláveis e outros como "não-legítimos". É nesse sentido que o mestre brasileiro *Código Civil Italiano. No Código Alemão estariam presentes a teoria da declaração e um principio geral de boa-fé (§ 242), observação que nos parece correta. (293) Com opinião contrária Gomes/Transformações, p. 15. (p. 127) Reale{294} prevê uma nova fase do direito: a Jurisprudência dos Valores, valores estes que levariam o legislador a intervir e, por exemplo, a destruir o importante dogma da personalidade da pessoa jurídica se em jogo estiver a proteção do consumidor. É o caso do art. 28 do CDC brasileiro, o qual prevê a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica em prol dos interesses dos consumidores. Entre os novos legítimos interesses poderiam ser incluídos alguns antes denominados motivos do ato e fora da proteção do direito: agora estes podem ser protegidos. Os motivos quando razoáveis e amparados na boa-fé passam a integrar a relação contratual, como se a ordem jurídica brasileira tivesse aceito a teoria francesa da causa e a tivesse interpretado de maneira subjetiva e psicológica,{295} protegendo as expectativas legítimas que o consumidor teria, mesmo que não se tratem de qualidades essenciais do produto ou de qualidades expressamente garantidas no contrato. Neste sentido, por exemplo, o inciso III do art. 18 do novo Código de Defesa do Consumidor brasileiro. Em tempos pós-modernos, frise-se também a valoração de elementos sociais e antropológicos externos ao contrato ou prévios. Em sua nova obra sobre o direito contratual europeu, Heinz Kötz destaca um fator considerado até então metajurídico como cada vez mais relevante na solução dos conflitos contratuais do momento: a pressão (der Zwang). Encontrando-se um dos contraentes em posição vulneravel de pressionado (Zwanglage), em posição estruturalmente submissa (strukcturelle Unterlegenheit), o exercício de determinados direitos por parte do co-contratante profissional em posição de poder (Machtposition) pode ser um abuso do direito ou um ato contrário aos bons costumes e à boa-fé exigida no tráfico jurídico.{296} Podemos efetivamente identificar na nova relevância jurídica deste fator "pressão", a origem das normas sobre o direito de reflexão, direito de arrepender-se sem causa dos contratos concluídos sobre a pressão das vendas diretas, normas que impõem um grande formalismo informativo para o consumidor, como que tentando protegê-lo de sua condição de inferioridade, de leigo, de vulnerável, normas tentando * (294) ReaLe/Nova Fase, p. 129. (295) Veja sobre a evolução na França em Weil/Terré, p. 65 e sobre a causa no Direito brasileiro, Martins Costa. (296) Koetz, p. 200 e ss. (p. 128) protegê-lo da pressão do marketing, dos métodos de venda, do consumismo exagerado, do superendividamento, das posições monopolistas dos fornecedores, das novas necessidades criadas pela sociedade de consumo. Em se tratando de relações contratuais cativas, parece-me importante destacar a nova relevância jurídica deste fator estrutural-social a pressão. A pressão está no método de venda, de aproximação direta pré

contratual, ou no marketing. A pressão está muitas vezes no próprio objeto do contrato, se essencial ou urgente. Tratando de saúde, de segurança e de casos de emergência devemos considerar o natural abalo do consumidor, o que leva o direito a renovar os deveres dos fornecedores de informar, de cooperar e de tratar com lealdade este consumidor. A pressão estrutural nas trativas reflete-se na engenharia final do contrato. A confiança despertada e as expectativas agora legítimas podem vir a ser frustradas, pois o desequilíbrio estrutural inicial permite que o fornecedor tente transferir ou garantir-se contra riscos profissionais seus. Em contratos de longa duração, o interesse legítimo do consumidor é no sentido da continuidade da relação contratual. Interessa-lhe, via de regra, a renovação contratual chegado o termo final do contrato e, em princípio, que esta renovação se faça nos mesmos termos e condições da apólice inicial. Em matéria de contratos de crédito, novos estudos europeus também valorizam a pressão exercida pela necessidade de crédito como acessório essencial ao consumo de nossos dias. Se a origem latina da expressão "crédito" encontra-se na idéia da confiança no outro ("crede"), esta confiança protegida era, originalmente, aquela do credor em relação ao pagamento futuro do débito pelo devedor; hoje, porém, esta relação de confiança é entendida de forma necessariamente bilateral, confiança a exigir un tratamento legal, transparente e não abusivo entre o profissional do crédito e seu consumidor. A jurisprudência e a doutrina brasileiras tentam atualmente compatibilizar, harmonizar, estes dois princípios básicos do novo direito privado (autonomia da vontade e boa-fé), mais do que os opor. Esta solução exige uma mudança na ótica do aplicador da lei, não somente proteger a autonomia e a eficácia da vontade do profissional, mas elaborar técnicas de proteção da vontade do consumidor. Em outras palavras, não somente proteger a confiança do "vendedor" do crédito, (p. 129) mas também a confiança despertada nos consumidores, seja pela publicidade, seja pela atuação, seja pelo contrato, pelos profissionais do crédito e do financiamento aos indivíduos no mercado. No direito comparado observa-se que as técnicas legislativas de proteção aos consumidores em matéria de contratos envolvendo crédito visam inicialmente garantir uma nova proteção da vontade dos consumidores contra as pressões da sociedade de consumo, isto é, garantir uma autonomia real da vontade do contratante mais fraco. Uma vontade protegida pelo direito, vontade liberta das pressões e dos desejos impostos pela publicidade e por outros métodos agressivos de venda, uma vez que a concessão do crédito ao consumidor está ligada faticamente a uma série de perigos, vale lembrar os fenômenos atuais de superendividamento, insolvência, abusos contratuais etc. Como requer Charbin, esta nova autonomia é vontade racional, vontade qualificada, única a legitimar a vinculação do contratante leigo e vulnerável.{297} Ainda sobre a nova valorização positiva da pressão (Zwang) em matéria de concessão de crédito ou através de métodos de venda e marketing, é necessário frisar que a jurisprudência e a nova legislação não recorrem às noções clássicas de "coação , exercício regular do direito" ou de "estado de necessidade". Trata-se mais de um juízo de constatação de que a sociedade pós-moderna ou a sociedade atual traz

consigo uma grande carga de "pressões" juridicamente relevantes, que nem sempre são bem resolvidas ou resistíveis pelos indivíduos em geral, os quais necessitam então de uma carga extra de proteção para alcançar o reequilíbrio de suas relações contratuais originadas destas pressões. Trata-se aqui não de uma valoração da atuação do outro, do fornecedor e, sim, de uma simples constatação objetiva que "pressões" existem na sociedade e que desequilibram estruturalmente as contratações realizadas, daí nascendo a necessidade de uma resposta jurídica reequilibradora, como o controle do conteúdo do contrato, como um novo formalismo informativo, como o direito de arrependimento sem causa. Isto sempre no intuito de reequilibrar-se ou suprir a "falha fática" na liberdade ou na vontade do contratante mais fraco. Trata-se, pois, de um critério objetivo e atual. O mundo de hoje traz novos desafios ao direito dos contratos e estes só podem ser respondidos convenien* (297) Charbin, p. 216. (p. 130) temente através da aplicação realista e objetiva dos princípios da boafé e da confiança, como no caso concreto descrito. Note-se, porém, que por vezes a jurisprudência valora negativamente o exercício destas pressões e nem sempre somente com a noção de abuso do direito. Em decisões históricas de 1993 a 1996, a Corte Constitucional alemã (BVerfG) e a Corte Federal alemã (BGH) chegaram a considerar "contrária aos bons costumes e à boa-fé" a utilização da necessidade de crédito, de vínculos familiares e da posição contratual de poder na renegociação de grandes dívidas dos Bancos, ao exigir que os familiares (mesmo estudantes e esposas) assinassem garantias contratuais acessórias, que efetivamente "penhoravam" o futuro patrimonial dos indivíduos, superendividando-os para sempre, pois sabia-se desde o ínicio que não teriam condições de "garantir" ou adimplir a grande dívida assumida.{298} Efetivamente, identifica-se na Alemanha uma nova tendência jurisprudencial, de certa forma pós-moderna, unindo a proteção dos direitos fundamentais e dos direitos do consumidor, considerando garantias normais no mercado dos contratos de crédito, como a exigência do aval do filho ou da esposa nas dívidas do pai ou marido, como violadoras dos direitos fundamentais destes garantes. Na decisão de 1993,{299} a Corte constitucional alemã impôs às Cortes inferiores, em matéria de controle das cláusulas de um contrato * (298) A decisão da Corte constitucional é BVerfG Beschl. v. 19.10.1993 - 1BvR 567/89 u.la., in: NJW 1994,36, comentada por Tiedke ZIP 1995,521, Honsetl NJW 1994,565, Löwe ZIP 1993, 1759.Veja a resposta do BGH, IX Senat, j. 2.11.95, considerando contrário aos bons costumes, em caso envolvendo esposa, in FamRZ 1996, p. 277279 e BGH, IX Senat, j. 25.04.96, em caso envolvendo esposa divorciada, in WM 1996, p. 11241128. Veja caso envolvendo proteção à companheira, BGH, IX Senat, j. 23.1.97, in WM 1997, p. 465 e seg. Veja caso envolvendo garantia baseada em eventual herança e inexigibilidade anterior, in BGH, IX Senat, j. 23.1.97, in WM 1997, p. 467. (299) BVerfG Beschl. v. 19.10.93 - 1BvR 567/89 u.la., in: NJW 1994,36. A ementa original é a seguinte: "Die Zivilgerichte müssen - insbesondere bei

der Konkretisierung und Anwendung von Generalklauseln wie § 138 und § 242 BGB - die grundrechtlcihe Gewährleistung der Privatautonomie in Art. 2,I GG beachten. Daraus ergibt sich ihre Pflicht zur Inhaltskontrole von Verträge, die einen der beiden Vertragspartner ungewöhnlich stark belasten und das Egbnis strukturell ungleicher Verhandlungsstärke sind". (p. 131) bancário, a consideração do direito fundamental de desenvolvimento da personalidade (art. 2, I, da Grundgesetz), quando as Cortes civis realizassem a concreção ou subsunção do que seria contrário às cláusulas gerais de respeito aos bons costumes (§ 138 do BGB) e à boafé (§ 242 do BGB). Para concretizar a cláusula geral do § 138 e § 242 do BGB, as Cortes deveriam, segundo a Corte Constitucional alemã, utilizar-se da noção de direitos fundamentais do indivíduo (no caso concreto um estudante de medicina de 21 anos, que serviu de avalista da dívida do pai, um pequeno comerciante) a desenvolver sua personalidade (desenvolvimento da personalidade econômica e social) no futuro. Como conseqüência, este contrato de garantia deveria ser considerado contrário aos bons costumes e à boa-fé, logo ineficaz, uma vez que o garante não tinha nem patrimônio, nem trabalho e estava fazendo uma quase "consignação" de seu futuro e o co-contratante mais forte (Machtposition) aproveitara-se do desequilíbrio intrínseco estrutural da relação para exigir tais garantias. A Corte Constitucional expressamente ordenou às cortes Civis a necessidade do controle do conteúdo dos contratos de crédito e contratos bancários, nos quais o contratante mais fraco é obrigado a suportar cargas anormais para suas condições pessoais (superendividamento, no original, Überschuldung). O mais interessante e revolucionário aqui é a proibição de um abuso frente a um terceiro (filho), que não é, nem será consumidor direito do crédito, e o efeito indireto dos direitos fundamentais em relações entre particulares (Drittewirkung). A pressão é valorizada também nas chamadas vendas emocionais, com as realizadas por empreendimentos de time-sharing ou multipropriedade e nas atualíssimas vendas com marketing direto ou teleshopping. Em ambos os casos, deve haver recurso ao novo prazo de reflexão e o conseqüente direito de arrependimento do consumidor, como forma de protegê-lo destas pressões da sociedade moderna. Antigamente, nas vendas de porta em porta era a presença física do fornecedor ou seu representante que representava a "pressão". Hoje, as novas técnicas criam uma nova vulnerabilidade ao consumidor, pela distância, pelo limite das informações conseguidas ou interessantes a este, pela rapidez da contratação, por sua internacionalidade eventual, pela fluidez e despersonalização necessária do próprio relacionamento contratual eventual. (p. 132) Conclui-se, por fim, que na proteção da confiança dos legítimos interesses não basta a intervenção única do legislador. Estes elementos sociais introduzidos na proteção pela teoria do direito exigirão um estudo caso a caso a ser feito pelos defensores das partes e por fim pelo Poder Judiciário; estudo este baseado principalmente no Princípio da Boa-Fé e nas condições que deram origem à relação contratual. Logo, a nova concepção social vai destacar o papel do controle e da decisão judicial nos contratos de consumo. A confiança volta-se em última análise para o direito, o mercado deve ser um local seguro, onde possa

haver harmonia e lealdade nas relações entre consumidores e fornecedores e onde não necessite-se sempre "desconfiar" do outro. d) Nova noção de equilíbrio mínimo das relações contratuais Nesta terceira edição, em face da análise da jurisprudência brasileira e dos mais comuns conflitos envolvendo relações de consumo, gostaríamos de frisar que o Código de Defesa do Consumidor introduz, igualmente, um segundo e poderoso instrumento para alcançar a justiça ou eqüidade contratual (Vertragsgerechtigkeit), qual seja, uma nova noção de equilíbrio mínimo das relações contratuais. Efetivamente, com o advento do CDC o contrato passa a ter seu equilíbrio, conteúdo ou eqüidade mais controlados, valorizando-se o seu sinalagma.{300} Segundo Gernhuber, sinalagma é um elemento imanente estrutural do contrato, é a dependência genética, condicionada e funcional de pelo menos duas prestações co-respectivas, é o nexofinal que oriundo da vontade das partes é moldado pela lei.{301} Sinalagma não significa apenas bilateralidade, como muitos acreditam, influenciados pelo art. 1.102 do Code Civil francês, mas sim contrato, convenção, é um modelo de organização (Organisationsmodell) das relações privadas.{302} O papel preponderante da lei sobre a vontade das partes, a impor uma maior boa-fé nas relações no mercado, conduz o ordenamento jurídico a controlar mais efetivamente este sinalagma e, por conseqüência, o equilíbrio contratual. * (300) Exemplo desta linha é a decisão já citada do TJRS, ín Rev. de Jurisprudência do TJRS 185, p. 373 e ss. (301) Gernhuber, p. 57. (302) Etimologicamente a palavra grega significa contrato ou convenção e só no direito romano, e em sua interpretação na idade média, que passou a ser considerada sinônimo de bilateralidade perfeita nos contratos; veja Gernhuber, p. 57 e ss. (p. 133) Segundo Caio Mário da Silva Pereira, na filosofia das normas do CDC estaria a proteção do consumidor contra a lesão e os negócios lesionários, preocupando-se especialmente com a justiça comutativa e o princípio da eqüidade.{303} A figura da lesão teria sido revigorada e aceita assim como no Projeto de Código Civil de 1975 (Projeto de Lei da Câmara 118 de 1984), em seu art. 157.{304} Esta preocupação econômica, com a parte mais frágil e "necessitada" na sociedade de consumo, seria como um novo paradigma do CDC, ao lado do aqui já estudado princípio da boa-fé. Data venia ao grande mestre brasileiro, continuo a considerar que o fenômeno de proteção dos interesses econômicos do consumidor, seja através do controle de cláusulas abusivas, seja através desta procura de um novo equilíbrio contratual, é,em verdade, uma projeção do princípio da confiança e da boa-fé positivados no CDC e não, especialmente, da noção de lesão. Concentrar-se no desequilíbrio apenas econômico do contrato de consumo seria uma visão limitada da noção de eqüidade contratual (Vertragsgerechtigkeit) imposta pelo CDC e pelo princípio da boa-fé objetiva. A noção há de ser mais ampla, pois o que se quer é o reequilíbrio total da relação, inclusive de seu nível de tratamento leal e digno, única forma de manter e proteger as expectativas legítimas

das partes, que são a base funcional que origina a troca econômica. Note-se que o famoso § 9º da AGBG da Alemanha não possui nenhuma menção expressa sobre o equilíbrio contratual. Esta noção foi desenvolvida pela jurisprudência como incluída no princípio da boafé, nas exigências de segurança, confiança e lealdade do tráfico jurídico e que agora encontra reflexo na Diretiva européia sobre cláusulas abusivas de 1993. No Brasil, porém, estamos mais acostumados a unir a noção de boa-fé a efeitos e atitudes externas do relacionamento contratual, reservando à noção de lesão, o olhar interno do equilíbrio (razoável) do contrato. Queremos nesta obra frisar que a boa-fé autoriza e mesmo obriga a este olhar interno do contrato, do relacionamento contratual como um todo, impondo novos deveres e novos limites aos que ocupam * (303) Pereira, Lesão, p. 210 e 212. (304) Segundo o art. 157 do Projeto: "Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta". (p. 134) as posições contratuais, de forma a permitir a realização das expectativas legítimas. Assim, para muitos, esta noção de procura de equilíbrio e eqüidade contratual está inserida no princípio da boa-fé ou no princípio formuladOr-máximo, o da confiança. A boa-fé objetiva valoriza os interesses legítimos que levam cada uma das partes a contratar, e assim o direito passa a valorizar, igualmente e de forma renovada, o nexo entre as prestações, sua interdependência, isto é, o sinalagma contratual (nexum). Da mesma forma, ao visualizar, sob influência do princípio da boa-fé objetiva, a obrigação como uma totalidade de deveres e direitos no tempo e ao definir também como abuso a unilateralidade excessiva ou o desequilíbrio irrazoável da engenharia contratual, valoriza-se, por conseqüência, o equilíbrio intrínseco da relação em sua totalidade e redefine-se o que é razoável em matéria de concessões do contratante mais fraco (Zumutbarkeit).{305} O desequilíbrio significativo de direitos e deveres, em detrimento do consumidor, na relação contratual vista como um todo passa a ser indício de abuso, a chamar a ação reequilibradora do novo direito contratual em sua visão social.{306} Já em 1976, o Conselho da Europa esclareceu que para "determinar se uma cláusula contratual era ou não abusiva deveriam os países-membros utilizar o princípio segundo o qual não deve haver "entre os direitos e obrigações dos dois contratantes, os quais decorrem da totalidade do contrato, nenhum desequilíbrio em prejuízo dos interesses dos consumidores."{307} Trata-se, pois, de uma análise funcio* (305) Veja por todos os autores alemães, Fikentscher, p. 130. (306) Segundo a definição do art. 3 da Diretiva 93/13/CEE de 5 de abril de 1993 relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com consumidores, é considerada de cláusula abusiva "quando, a contrário da exigência de boafé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato", in Direito do Consumidor, 21, p. 307.

(307) No original a Résolution 76/47 adoptée par le Comité des Ministres du Conseil de L’Europe, 16.11.1976, Clauses Abusives dans les contrats conclus par des consommateurs et méthodes de contrôle appropriées: "Le critère permettant, dans le cadre de la Résolution, de déterminer si une clause est ou non abusive est le principe selon lequel il ne doit y avoir entre les droit et obligations des deux parties, tels qu’ils découlent de l’ensemble du contrat, aucun déséquilibre au détriment des intérêts des consommateurs" (p. 13, Exposé des Motifs, Strasbourg, 1977). (p. 135) nal e contextual da cláusula, de seus fins e efeitos desequilibradores da engenharia contratual básica. Também o Código de Defesa do Consumidor brasileiro trabalha com a noção de "desvantagem exagerada" (art. 51, IV e § 1 .º, do CDC), isto é, não basta o exagero nos direitos assegurados ao fornecedor por contrato, não basta a vantagem deste fornecedor, o importante é o prejuízo, a desvantagem irrazoável (Unzumutbarkeit) para o consumidor, este, sim, sujeito tutelado na nova noção de equilíbrio das relações contratuais. Protegem-se no Código o objetivo e o equilíbrio contratual, assim como sanciona-se a onerosidade excessiva (art. 51, § 1.º, do CDC), revitalizando a importância da comutatividade das prestações, reprimindo excessos do individualismo e procurando a justa proporcionalidade de direitos e deveres, de conduta e de prestação, nos contratos sinalagmáticos.{308} As expectativas legítimas são, igualmente, o conjunto de circunstâncias cuja existência ou permanência é objetivamente típica ou necessária para aquele tipo de contrato ou para que aquele contrato em especial possa se constituir em uma regulamentação sensata,{309} com razoável distribuição de riscos. Este conjunto de motivações, de causas iniciais que representam as finalidades do negócio admitidas bilateralmente ou típicas daquela relação são a base mínima (objetiva) da relação, do contrato de consumo. Excluídas aquelas circunstâncias que fazem parte dos riscos contratuais típicos,{310} excluídas as expectativas legítimas, que também são denominadas de "causas" ou fontes da confiança despertada no parceiro contratual mais fraco e devedor (Vertrauensumstände), o desequilíbrio da relação é flagrante. Estas expectativas legítimas são, portanto, consideradas, especialmente na doutrina atual alemã, como juridicamente relevantes e protegidas pela cláusula geral do § 242 do BGB sobre boa-fé e das necessidades do * (308) Pereira, Lesão, p. 213. (309) Esta é parte da definição de Larenz da base do negócio, Larenz, Base, p. 171 e ss. (310) Fikentscher, p. 130: "Umstände, auf deren Vorliegen, Entstehen oder Weiterbleiben der Schuldner bei Einigung seiner Verbindlichkeit so sehr vertraut, dass sich de Gläubiger nach Treu und Glauben mit Rucksicht auf die von Schuldner verfolgten Motive auf die Abhängigmachung des Vertrags von dem fraglichen Unstand eigelassen hätte oder rechtlicherweise hätte einlassen müssen..." (p. 136)

tráfico jurídico na sociedade atual.{311} Em outras palavras, são estas expectativas legítimas que formam a "base" do negócio (Geschäftsgrundlage), e será a quebra objetiva da base do negócio (Wegfall der Geschäftsgrundlage) motivo para a revisão do conteúdo dos contratos, sempre na tentativa de manutenção do vínculo e de adaptação da relação ao razoável e suportável por ambos os contratantes.{312} De qualquer forma, priorize-se a lesão ou a boa-fé, um juízo de constatação desta mudança de "visão" do direito civil brasileiro é necessário. É inegável a importância que atinge hoje, na jurisprudência brasileira o controle judicial e administrativo sobre os parâmetros de equilíbrio econômico dos contratos,{313} especialmente os bancários, assim como o controle antes quase inexistente sobre a proporcionalidade das prestações mesmo nos contratos aleatórios, como os de seguro-saúde.{314} Como ensina o voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr.: "...Os princípios fundamentais que regem os contratos deslocam seu eixo do dogma da autonomia da vontade e do seu corolário da obrigatoriedade das cláusulas, para considerar que a eficácia dos contratos decorre da lei, a qual sanciona porque são uteis, com a condição de serem justos... O primado não é da vontade, é da justiça, mesmo porque o poder da vontade de uns é maior que o de outros e nos contratos de adesão, como é o caso dos autos, é mínimo o componente de vontade do aderente para estabelecer o conteúdo da avença" (in Recurso Especial 45.666-/ 5-SP, j. 17.5.94, Rel. Min. Barros Monteiro).{315} * (311) Assim Fikentscher, p. 129 e ss. (312) Veja Larenz, Base, p. 171 e ss. (313) Observe-se a série de ações contra reajustes nos contratos de seguro-saúde, nas escolas e universidades, além das ações que discutem o limite constitucional sobre os juros e os critérios de reajuste nos contratos de financiamento e leasing, como exemplo veja decisões do STJ, in LEX 98, p. 42 e ss; do TJSP, in LEX 137, p. 312, e RT 697, p. 64 e ss. (314) Veja a representativa jurisprudência sobre o controle das mensalidades, prêmios e outras prestações em matéria de seguro-saúde: Assim ações coletivas do IDEC no TJSP, Ap. Civ. 180.713-2, Elias Elmyr Manssour, do MPSP, Ap. C. 261.539-2, j. 31.10.95, Jacobina Rabello, Ap. C. 205.5331, j. 14.09.93, Euclides de Oliveira, AI 20.893-4, j. 20.11.96, Aldo Magalhães e várias ações individuais de consignação e sobre imposição unilateral de reajuste neste mesmo Estado. (315) Veja voto na íntegra in Revista Direito do Consumidor, v. 17, p. 179-180. (p. 137) Parece-nos uma nova conscientização da função do contrato como operação econômica distributiva na sociedade atual, e a tentar evitar a exclusão social e o superendividamento através de uma visão mais social e controlada do contrato.{316} O Estado passa, assim, a interessar-se pelo sinalagma interno das relações privadas e a revisar os excessos, justamente porque, convencido da desigualdade intrínseca e excludente entre os indivíduos, deseja proteger o equilíbrio mínimo das relações sociais e a confiança do contratante mais fraco. * (316) Lorenzetti, p. 468. (p. 138) 2. CONTRATOS SUBMETIDOS ÀS REGRAS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

SUMÁRIO: 1. Contratos entre consumidor e fornecedor de bens ou serviços - 1.1 Conceitos de consumidor e de fornecedor: a) O consumidor stricto sensu; b) Agentes equiparados a consumidores; c) O fornecedor - 1.2 Contratos de fornecimento de produtos e serviços: a) Contratos imobiliários; b) Contratos de transporte, de turismo e viagem; c) Contratos de hospedagem, de depósito e estacionamento; d) Contratos de seguro e previdência privada; e) Contratos bancários e de financiamento; f) Contratos de administração de consórcios e afins; g) Contratos de fornecimento de serviços públicos; h) Compra e venda e suas cláusulas; i) Compra e venda com alienação fiduciária - 2. Contratos de consumo e conflitos de leis no tempo - 2.1 Aplicação do Código de Defesa do Consumidor e conflitos de leis: a) Características do Código de Defesa do Consumidor e reflexos na sua aplicação; b) O papel da Constituição Federal na interpretação e aplicação do Código de Defesa do Consumidor; c) Os critérios de solução de conflitos de leis e suas dificuldades; d) Conflitos entre normas do Código Civil, de leis especiais e de leis anteriores com o Código de Defesa do Consumidor; e) Conflitos entre normas do Código de Defesa do Consumidor e de leis especiais e gerais posteriores - 2.2 Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos anteriores: a) As garantias constitucionais do direito adquirido e do ato jurídico perfeito; b) A garantia constitucional da defesa do consumidor; c) A aplicação imediata das normas de ordem pública. Atualmente, denomina-se contratos de consumo todas aquelas relações contratuais ligando um consumidor a um profissional, fornecedor de bens ou serviços.{1} Esta nova terminologia tem como mérito * (1) Assim na expressão do mestre Calais-Auloy, p. 183. (p. 139) englobar a todos os contratos civis e mesmo mercantis, nos quais, por estar presente em um dos pólos da relação um consumidor, existe um provável desequilíbrio entre os contratantes. Este desequilíbrio teria reflexos no conteúdo do contrato, daí nascendo a necessidade do direito regular estas relações contratuais de maneira a assegurar o justo equilíbrio dos direitos e obrigações das partes, harmonizando as forças do contrato através de uma regulamentação especial. O Código de Defesa do Consumidor, justamente, estabelece normas de proteção e defesa do consumidor (art. 1.º do CDC) e institui em seus arts. 46 e ss. uma proteção contratual às "relações de consumo". Para identificarmos quais são os contratos submetidos às novas normas de Código é necessário ter uma visão clara do campo de aplicação desta lei, tanto ratione personae, definindo quem será considerado consumidor e quem são os fornecedores de bens e serviços, quanto ratione materiae, incluindo ou excluindo contratos especiais, como os de trabalho, contratos administrativos, ou as técnicas especiais de contratação, aqui referidas, como os contratos de adesão e as condições gerais dos contratos. 1. Contratos entre consumidor e fornecedor de bens ou serviços O campo de aplicação do Código possuiria por força do art. 1.º uma importante limitação ratione personae, aplicando-se somente aos contratos onde está presente um consumidor frente a um fornecedor de produtos ou serviços.

1.1 Conceitos de consumidor e de fornecedor a) O consumidor stricto sensu - Quando se fala em proteção do consumidor, pensa-se, inicialmente, na proteção do não-profissional que contrata ou se relaciona com um profissional, comerciante, industrial ou profissional liberal. É o que se costuma denominar de noção subjetiva de consumidor,{2} a qual excluiria do âmbito de proteção das * (2) Veja Benjamin, "Conceito", p. 71; e Comparato, p. 34; veja igualmente sobre o conceito de consumidor no CDC, a obra crítica e original de Maria Antonieta Donato, pp. 63 e ss. (p. 140) normas de defesa dos consumidores todos os contratos concluídos entre dois profissionais, pois estes estariam agindo com o fim de lucro.{3} O legislador brasileiro parece ter, em princípio, preferido uma definição mais objetiva de consumidor. O art. 2.º do Código afirma expressamente que consumidor é "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliZa produto ou serviço como destinatário final".{4} Na definição legal, a única característica restritiva seria a aquisição ou utilização do bem como destinatário final.{5} Certamente, ser destinatário final é retirar o bem de mercado (ato objetivo), mas e se o sujeito adquire o bem para utilizá-lo em sua profissão, adquire como profissional (elemento subjetivo), com fim de lucro, também deve ser considerado "destinatário final"? A definição do art. 2.º do CDC não responde à pergunta, é necessário interpretar a expressão "destinatário final". Nas primeiras edições deste livro, identificamos duas correntes doutrinárias quanto à definição do campo de aplicação do Código: os finalistas e os maximalistas. Para os finalistas, pioneiros do consumerismo,{6} a definição de consumidor é o pilar que sustenta a tutela especial, agora concedida aos consumidores. Esta tutela só existe porque o consumidor é a parte vulnerável nas relações contratuais no mercado, como afirma o próprio CDC no art. 4.º, inciso I. Logo, convém delimitar claramente quem merece esta tutela e quem não a necessita, quem é o consumidor e quem não é. Propõem, então, que se interprete a expressão "destinatário final" do art. 2.º de maneira restrita, como requerem os princípios básicos do CDC, expostos no art. 4.º e 6.º.{7} * (3) Assim Benjamin, "Conceito", p. 77. (4) Veja observações de Moraes, pp. 22 e 23; Donato ao conceituar o consumidor "standard" considera a destinação final seu elemento teleológico e principal, p. 90 e ss. (5) Veja a opinião de Alpa, in Contratto e impresa , p. 372 e ss., segundo a qual é inoportuno definir-se legalmente consumidor de forma única, para todas as relações de consumo, mas sim precisar o conteúdo desta expressão em casos particulares. (6) Principalmente AntÔnio Herman Benjamin, também Alcides Tomasetti Jr., Eros Grau, Adalberto Pasqualotto, Benjamin/"Conceito", p. 77.

(7) Assim Benjamim, Comentários, p. 27, citando Eros Grau. (p. 141) Destinatário final é aquele destinatário fático e económico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo esta interpretação teleológica não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência, é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu. Neste caso não haveria a exigida "destinação final" do produto ou do serviço. Esta interpretação restringe a figura do consumidor àquele que adquire (utiliza) um produto para uso próprio e de sua família, consumidor seria o não profissional, pois o fim do CDC é tutelar de maneira especial um grupo da sociedade que é mais vulnerável. Consideram que restringindo o campo de aplicação do CDC àqueles que necessitam de proteção, ficará assegurado um nível mais alto de proteção para estes, pois a jurisprudência será construída em casos, onde o consumidor era realmente a parte mais fraca da relação de consumo e não sobre casos em que profissionais-consumidores reclamam mais benesses do que o Direito Comercial já lhes concede. Note-se que, de uma posição inicial mais forte, influenciada pela doutrina francesa e belga, como veremos, os finalistas evoluíram para uma posição mais branda, se bem que sempre teleológica, aceitando a possibilidade do Judiciário, reconhecendo a vulnerabilidade de uma pequena empresa ou profissional, que adquiriu, por exemplo, um produto fora de seu campo de especialidade, interpretar o art. 2.º de acordo com o fim da norma, isto é, proteção ao mais fraco na relação de consumo, e conceder a aplicação das normas especiais do CDC{8} analogicamente também a estes profissionais. Já os maximalistas vêem nas normas do CDC o novo regulamento do mercado de consumo brasileiro, e não normas orientadas para proteger somente o consumidor não-profissional. O CDC seria um Código geral sobre o consumo, um Código para a sociedade de consumo,{9} o qual institui normas e princípios para todos os agentes do * (8) Assim Antônio Herman Benjamin, em sua participação no II Congresso de Daños, em Buenos Aires. (9) Assim nosso pensamento inicial, em 1989, no Ministério da Justiça, quando da elaboração do Projeto de CDC pelo Conselho Nacional de Defesa do (p. 142) mercado, os quais podem assumir os papéis ora de fornecedores, ora de consumidores. A definição do art. 2.º deve ser interpretada o mais extensamente possível, segundo esta corrente, para que as normas do CDC possam ser aplicadas a um número cada vez maior de relações no mercado. Consideram que a definição do art. 2.º é puramente objetiva, não importando se a pessoa física ou jurídica tem ou não fim de lucro quando adquire um produto ou utiliza um serviço.{10} Destinatário final seria o destinatário fático do produto, aquele que o retira do mercado e o utiliza, o consome, por exemplo, a fábrica de celulose que compra carros para o transporte dos visitantes, o advogado que compra uma máquina de escrever para o seu escritório, ou mesmo o Estado

quando adquire canetas para uso nas repartições e é, claro, a dona de casa que adquire produtos alimentícios para a família. Esta bipolarização das opiniões traz a necessidade que se reflita mais sobre o tema, não basta repetir o que diz o art. 2.º do CDC, é necessário definir uma linha para interpretá-lo. Para tanto, vamos inicialmente observar a experiência no direito comparado, após, vamos delimitar o problema da definição de consumidor segundo as normas de nosso CDC e, então, em um terceiro momento, definir a interpretação que nos parece a mais razoável. Vejamos a experiência no direito estrangeiro de delimitação do campo de aplicação ratione personae das leis tutelares dos direitos dos consumidores. Assim, na França a Lei n. 78-23, de 10 de janeiro de 1978,{11} dizia-se aplicável somente à proteção contra cláusulas abusivas inseridas em "contratos concluídos entre profissionais e não-profissionais ou consumidores" (art. 35 da lei). Logo, estariam excluídos do campo de aplicação da lei os contratos entre dois profissionais. A jurisprudência francesa, porém, frente aos inúmeros contratos entre *Consumidor-CNDC/MJ e no I Congresso Internacional de Direito do Consumidor, USP, São Paulo, 1989. Interessante observar que, após três anos de vigência, a tendência maximalista permanece na doutrina (veja Donato, p. 90 e ss.), e continua presente na jurisprudência, nas novas técnicas de aplicação das normas ou dos princípios do CDC a novos casos no mercado de consumo, veja nossa análise na letra "b" deste título. (10) Assim manifestação dos representantes da AGADEMI Associação Gaúcha de Empresas do Mercado Imobiliário, no Congresso de Porto Alegre. (11) É a chamada Loi Scrivener, cujo decreto regulamentar é o Décret n. 78.464, de 24.3.78. veja Calais-Auloy, p. 161. (p. 143) pequenos empresários ou profissionais liberais e fornecedores de bens, em que os primeiros, apesar da profissão, agiam nestes contratos sem conhecimentos técnicos especiais e fora do campo de sua atividade comercial, acabou, em 1987, relativizando o conceito{12} e entendendo que o profissional, nestes casos, também é consumidor. A doutrina belga,{13} porém, critica esta tendência francesa atual e considera que só uma definição subjetiva e restrita da pessoa do consumidor permite identificar o grupo mais fraco na relação do consumo, único que mereceria a tutela especial do direito. Neste sentido, o necessário divisor de águas seria o fim de lucro do profissional ao contratador, assim, no caso das pessoas jurídicas, só aquelas sem fins lucrativos poderiam ser assemelhadas a consumidores.{14} Outra experiência significativa no direito comparado é a da lei alemã, de 1976 sobre as condições gerais dos contratos, conhecida pela sigla AGB-Gesetz.{15} Note-se que esta lei alemã optou, desde 1976, por controlar também as condições gerais inseridas em contratos entre dois profissionais ou comerciantes. Mas, supondo que nestes casos haveria um maior equilíbrio no poder de barganha e discussão do conteúdo, tentou reduzir a proteção concedida{16} ao considerar aplicável somente a cláusula geral proibitória de cláusulas abusivas contrárias à boa-fé do § 9.º da lei (§ 24 da AGB-Gesetz). É necessário esclarecer que esta proteção mitigada para os contratos envolvendo dois comerciantes só existe quando o contrato

"faz parte da atividade do estabelecimento do comerciante", caso em que o § 24 manda aplicar, além da cláusula geral, os usos e costumes comerciais. Na palavra atividade estaria a idéia de utilização direta ou * (12) Veja Decisão da Corte de Cassação: Civ. 28 abril 1987. D. 1988. J. 1 (Bull. civ. 1987. I, n. 134). assim tb. o Prof. Claude Witz, em seu curso na Universidade do Sarre, destacou igualmente a importância da decisão Cas. civ. 16 juillet 1987, D. 1988, 49. (13) Assim Bourgoignie, Éléments, pp. 46 e 47. (14) Assim também Benjamin, no artigo "Conceito", anterior ao CDC, p. 77. (15) "Gesetz zur Regelung des Rechts der allgemeinen Geschaeftsbedingungen (AGB-Gesetz)", de 9.12.76. (16) Semelhante é a lei portuguesa, Dec.-Lei 446/85, de 25 de outubro, que prevê listas diferentes de cláusulas abusivas conforme se trata de contrato entre dois comerciantes: veja sobre o assunto Amaral, p. 254 e ss. (p. 144) indireta na produção. assim, por exemplo, uma loja de roupas que compra produtos de limpeza e os utiliza para limpar o estabelecimento, de forma a atrair clientes, os estaria utilizando "na atividade" do estabelecimento comercial. Nos demais contratos, a proteção concedida ao profissional é a mesma concedida a um consumidor comum. Mas, a jurisprudência alemã{17} acostumada até 1976 a controlar o conteúdo de todos os contratos de modo a garantir o cumprimento do princípio basilar do sistema jurídico alemão, o princípio da boa-fé,{18} acabou por interpretar extensivamente a cláusula geral do § 9.º da Lei e a conceder praticamente a mesma tutela aos contratos entre comerciantes.{19} O resultado deste alargamento do campo de aplicação da lei foi decisivo e, hoje, mais de 50% dos casos de aplicação da lei nos Tribunais referem-se a litígios entre comerciantes, o que reduz o nível de proteção concedido pela jurisprudência. Para nós, esta experiência alemã de alargamento do campo de áplicação ratione personae da lei parece indicar que, em se tratando de contratos pré-elaborados unilateralmente, contratos de adesão e de condições gerais dos contratos, a caracterização do contratante como profissional pouca importância tem.{20} Assim, se o direito almeja um reequilíbrio contratual neste campo, deve estender a proteção nestes casos também aos contratos entre dois profissionais, sempre que um deles estiver em situação mais fraca, mais vulnerável. A pergunta que fica é se esta extensão deve ser feita prioritariamente pelo sistema tutelar do CDC ou pelos sistemas gerais.{21} O sistema geral de direito comercial brasileiro conhece o princípio da boa-fé, assim também o sistema geral de direito privado, especialmente com o proposto no Projeto de Novo Código Civil, PL 118/84, que, em seu art. 422, obriga * (17) Veja sobre a evolução da jurisprudência alemã o excelente comentário: Ulmer/Brandner/Hensen/Schmidt, p. 349 e também Heinrichs, Zehn Jahre, p. 30. (18) Sobre o princípio da boa-fé do § 242 do BGB no sistema jurídico alemão, veja Larenz, AT, pp. 38 e ss.; em português, veja Pasqualotto, pp. 52 e 54.

(19) Cf. o comentário Wolff/Horn/Lindacher, p. 509, a jurisprudência entendeu que as cláusulas dos §§ 10 e 11 eram exemplos dos valores perseguidos pelo § 9. (20) Assim conclui tb. Brandner, Zehn Jahre, p. 53. (21) Veja com posição restritiva, Pasqualotto, p. 81 e ss. (p. 145) a todos os contratantes (leigos e profissionais) a guardar na conclusão e na execução dos contratos os princípios da probidade e da boa-fé.{22} Não é demais lembrar que o critério da destinação final (Endverbraucher) foi recusado pelos elaboradores da lei alemã de 1976 sob o argumento de ser "pouco prático",{23} pois exigiria do fornecedor de bens saber se seu parceiro contratual será ou não o destinatário final do bem para poder orientar o conteúdo do contrato. A crítica, no caso brasileiro fica esvaziada, uma vez que o CDC tem um campo de aplicação material mais amplo, regulando relações contratuais e extracontratuais, o que leva a concluir que o critério da destinação final seria o único adequado. Resta interpretar este critério. Voltando nossas atenções para o CDC brasileiro, devemos, em primeiro lugar, limitar o problema. Trata-se neste estudo de definir quem é consumidor em uma relação contratual no mercado brasileiro. Isto porque o CDC utiliza-se de uma técnica multiplicadora do seu campo de aplicação, qual seja a de dividir os indivíduos entre consumidores (art. 2.º, caput) e pessoas equiparadas a consumidor (parágrafo único do art. 2.º). No campo extracontratual, o CDC considera suas normas aplicáveis a "todas as vítimas do evento danoso" causado por um produto ou serviço, segundo dispõe o seu art. 17. As vítimas não são, ou não necessitam ser consumidores stricto sensu, mas a elas é aplicada a tutela especial do CDC por determinação legal do art. 17, que as equipara aos consumidores. O parágrafo único do art. 2.º do CDC estabelece este princípio de equiparação: "Art. 2.º... "Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo." Estamos aqui procurando a definição de consumidor stricto sensu, concentrada na idéia de "destinatário final", e não a de bystander ou terceiro na relação contratual, que de alguma forma interveio ou foi vítima da relação de consumo. De qualquer maneira, pode ser importante para as nossas conclusões saber que as normas do CDC são * (22) PL 118/84, versão Diário do Senado Federal - dez.1997, p. 00144, consta por erro como art. 421. (23) Assim Koetz, Muenchener, p. 1951, § 24 (1) AGBG. (p. 146) aplicáveis por lei, a pessoas que em princípio não poderiam ser qualificadas como consumidores stricto sensu. Feitas estas observações, passamos a definir quem é consumidor striCtO sensu no sistema do CDC brasileiro. Dispõe o art. 2.º: "Art. 2.º - Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final." É necessário interpretar a norma do art. 2.º. O Código, como afirmamos anteriormente, em matéria contratual, representa a evolução

do pensamento jurídico para uma teoria contratual que entende o contrato enquanto sua função social. Para atingir este intento, a nova teoria pensa muitas vezes de maneira tópica, isto é, pensa-se por problemas, tentando resolver um a um, como faremos a seguir. No caso dos contratos, o problema é o desequilíbrio flagrante de forças dos contratantes. Uma das partes é vulnerável, é hipossuficiente, é o pólo mais fraco da relação contratual, pois não pode discutir o conteúdo do contrato; mesmo que saiba que determinada cláusula é abusiva, só tem uma opção "pegar ou largar", isto é, aceitar o contrato nas condições que lhe oferece o fornecedor ou não aceitar e procurar outro fornecedor. O novo direito dos contratos procura evitar este desequilíbrio, procura a eqüidade contratual. Mas existe desequilíbrio em um contrato firmado entre dois profissionais? Como regra geral, presume-se que não há desequilíbrio, ou que não é tão grave a ponto de merecer uma tutela especial, não concedida pelo direito civil e pelo direito comercial. Esta presunção está presente, igualmente, na lei alemã. Mas, como observamos, por vezes o profissional é um pequeno comerciante, dono de bar, mercearia, que não pode impor suas condições contratuais para o fornecedor de bebidas, ou que não compreende perfeitamente bem as remissões feitas a outras leis no texto do contrato, ou que, mesmo sendo um advogado, assina o contrato abusivo do único fornecedor legal de computadores, pois confia que nada ocorrerá de errado. Nestes três casos, pode haver uma exceção à regra geral, o profissional pode também ser "vulnerável", ser "hipossuficiente" para se proteger do desequilíbrio contratual imposto. Existem três tipos de vulnerabilidade: a técnica, a jurídica e a fática. Na vulnerabilidade técnica, o comprador não possui conhecimentos específicos sobre o objeto que está adquirindo e, portanto, é (p. 147) mais facilmente enganado quanto às características do bem ou quanto à sua utilidade,{24} o mesmo ocorrendo em matéria de serviços.{25} A vulnerabilidade técnica, no sistema do CDC, é presumida para o consumidor não-profissional, mas também pode atingir o profissional, destinatário final fático do bem, como vimos no exemplo da jurisprudência francesa. Já a vulnerabilidade jurídica ou científica,{26} é a falta de conhecimentos jurídicos específicos, conhecimentos de contabilidade ou de economia.{27} Esta vulnerabilidade, no sistema do CDC, é presumida para o consumidor não-profissional, e para o consumidor pessoa física. Quanto aos profissionais e às pessoas jurídicas vale a presunção em contrário, isto é, que devem possuir conhecimentos jurídicos minimos e sobre a economia para poderem exercer a profissão, ou devem poder consultar advogados e profissionais especializados antes de obrigar-se. Mas há ainda a vulnerabilidade fática ou sócio-econômica, onde o ponto de concentração é o outro parceiro contratual, o fornecedor que por sua posição de monopólio, fático ou jurídico, por seu grande poder * (24) Assim ensina Amaral Jr./Boa-fé, p. 28: "...o consumidor é vulnerável porque não dispõe dos conhecimentos técnicos necessários para a elaboração dos produtos ou para a prestação dos serviços no mercado. Por essa razão, o consumidor não está em condições de avaliar, corretamente, o grau de perfeição dos produtos e serviços".

(25) Assim ensina a decisão do TARS, Ap. Civ. 193 184 132, 5.ª Câm, rel. João Carlos Branco Cardoso, j. 17.3.94, onde se lê, no corpo do acórdão, p. 5: "O que pode se apreender da experiência do dia-a-dia, é que a pessoa, qualquer que seja, desimportando sua condição de professora universitária na espécie, ao procurar um plano de saúde, deseja a maior cobertura possível. Por isso contrata, e o seu poder de barganha é mínimo, limitandose a escolher entre as várias alternativas, porém não podendo alterálas". (26) A vulnerabilidade jurídica do consumidor foi identificada e protegida pela corte suprema alemã, nos contratos de empréstimo bancário e financiamento, afirmando que o consumidor não teria suficiente "experiência ou conhecimento econômico, nem a possibilidade de recorrer a um especialista", veja BGHZ 93.264 (1984), BGH-NJW-RR 1986, 205 e comentários em Schmelz, p. 1219 (NJW maio 1991). (27) Amaral Jr/Boa-fé, p. 28 e 29, maximaliza esta vulnerabilidade, afirmando: "No plano jurídico, todavia, a vulnerabilidade do consumidor manifesta-Se na alteração dos mecanismos de formação dos contratos, que deu origem ao aparecimento e consolidação dos contratos de massa". (p. 148) econômico ou em razão da essencialidade do serviço,{28} impõe sua superioridade a todos que com ele contratam, por exemplo, quando um médico adquire um automóvel, através do sistema de consórcios, para poder atender suas consultas e submete-se às condições fixadas pela administradora de consórcios, ou pelo próprio Estado. Em se tratando de vulnerabilidade fática, o sistema do CDC a presume para o consumidor não-profissional (o advogado que assina um contrato de locação abusivo, porque necessita de uma casa para a sua família perto do colégio dos filhos), mas não a presume para o profissional (o mesmo advogado que assina o contrato de locação comercial abusivo, para localizar o seu escritório mais próximo do Foro), nem a presume para o consumidor pessoa jurídica (veja art. 51, inciso I, in fine).{29} Isto não significa que o Judiciário não possa tratar o profissional de maneira "equivalente" ao consumidor, se o profissional efetivamente provar a sua vulnerabilidade, que levou ao desequilíbrio contratual. Trata-se, porém, da exceção e não da regra. Concluindo, concordamos com a interpretação finalista das normas do CDC. A regra do art. 2.º deve ser interpretada de acordo com o sistema de tutela especial do Código e conforme a finalidade da * (28) Na sociedade brasileira atual, essenciais são não somente os serviços públicos ou ex-públicos. Veja decisão do TJSP, cuja ementa é a seguinte: Contrato de adesão. Convênio médico-hospitalar. Liberdade ampla de contratar. Igualdade entre as partes. Inocorrência. Serviço necessário à saúde. Relativa liberdade. Recurso não provido. O princípio da autonomia da vontade parte do pressuposto de que os contratantes se encontram em pé de igualdade, e que, portanto, são livres de aceitar ou rejeitar os termos do contrato. Mas isso nem sempre é verdadeiro. Pois a igualdade que reina no contrato é puramente teórica, e via de regra, enquanto o contratante mais

fraco no mais das vezes não pode fugir à necessidade de contratar, o contratante mais forte leva uma sensível vantagem no negócio pois é ele que dita as condições do ajuste" (Ap. C. 232.777-2, Rel. Gildo dos Santos, j. 19.5.94). (29) Assim manifestaram-se por uma limitação teleológica da definição de consumidor os professores paulistas Alcides Tomasetti Junior e Antônio Herman V. Benjamin, quando do Seminário Internacional de Direito do Consumidor - USP, 24 a 27 de setembro de 1990, sendo deste último a idéia de uma presunção de hipossuficiência no caso do consumidor pessoa física. Preferimos, porém, como ensina Adalberto Pasqualotto, reservar a expressão hipossuficiente para os aspectos processuais (art. 6, VIII) e desenvolver, em direito material, o conceito de vulnerabilidade. (p. 149) norma, a qual vem determinada de maneira clara pelo art. 4.º do CDC. Só uma interpretação teleológica da norma do art. 2.º permitirá definir quem são os consumidores no sistema do CDC. Mas além dos consumidores stricto sensu, conhece o CDC os consumidores-equiparados, os quais por determinação legal merecem a proteção especial de suas regras. Trata-se de um sistema tutelar que prevê exceções em seu campo de aplicação sempre que a pessoa física ou jurídica preencher as qualidades objetivas de seu conceito e as qualidades subjetivas (vulnerabilidade), mesmo que não preencha a de destinatário final econômico do produto ou serviço. O destinatário final é o Endverbraucher, o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo (destinatário final fático), aquele que coloca um fim na cadeia de produção (destinatário final econômico) e não aquele que utiliza o bem para continuar a produzir, pois ele não é o consumidor-final, ele está transformando o bem, utilizando o bem para oferecê-lo por sua vez ao seu cliente, seu consumidor.{30} Portanto, em princípio, estão submetidos às regras do Código os contratos firmados entre o fornecedor e o consumidor não-profissional, e entre o fornecedor e o consumidor, o qual pode ser um profissional, mas que, no contrato em questão, não visa lucro, pois o contrato não se relaciona com sua atividade profissional, seja este consumidor pessoa física ou jurídica. Em face da experiência no direito comparado, a escolha do legislador brasileiro, do critério da destinação final, com o parágrafo único do art. 2.º e com uma interpretação teleológica permitindo exceções, parece ser uma escolha sensata. A regra é a exclusão ab initio do profissional da proteção do Código, mas as exceções virão através da ação da jurisprudência, que em virtude da vulnerabilidade do profissional, excluirá o contrato da aplicação das regras normais do Direito Comercial e aplicará as regras protetivas do CDC. Se a jurisprudência inicial privilegiava a corrente maximalista quanto à interpretação do art. 2.º do CDC, estes mais de seis anos de experiência de prática com o CDC parecem ter sensibilizado os magistrados quanto à necessidade de uma interpretação cuidadosa na * (30) Adotando um conceito mais estrito de "insumo" para a produção estão Fábio Ulhoa Coelho, "Compra", p. 42 e Donato, p. 88. (p. 150)

concessão da tutela especial do consumidor stricto sensu, combinada sim com generosa flexibilidade nas equiparações e exceções previstas em lei, sempre utilizando o princípio da vulnerabilidade do art. 4.º, inc. I, do CDC. Esta tendência atual tende a generalizar-se. O próprio Mercosul, em Resolução do Grupo Mercado Comum 123/96{31} tentou definir consumidor-destinatário final e resolver as dificuldades desta interpretação afirmando: "Não se considera consumidor ou usuário aquele que, sem constituir-se em destinatário final, adquire, armazena, utiliza ou consome produtos ou serviços com o fim de integrá-los em processos de produção, transformação, comercialização ou prestação a terceiros".{32} A redação não foi feliz, pois bastaria comprovar que este comerciante "constitui-se em destinatário final", para quebrar a exclusão. Sua lógica, porém, foi minimalista e mesmo se a Resolução não entrou em vigor e tende a ser revogada, pois o Projeto de Regulamento Comum de Defesa do Consumidor do Mercosul foi superado em virtudes de falhas no texto acordado, o Comitê Técnico 7 da CCM/ Mercosul deixou clara a sua intenção de exclusão das relações intercomerciantes. Outro fator que deve ser considerado é que, no Brasil, o Projeto de novo Código Civil pode introduzir definitivamente em todas as relações civis e comerciais o paradigma da boa-fé e com isso, imaginase, diminua o interesse dos "consumidores"-profissionais de incluírem suas relações comerciais inter ou intrafornecedores como relações de consumo, preferindo o sistema tutelar geral do novo Código Civil (e Comercial) ao ágil sistema do CDC. Efetivamente, grande número de empresas têm tentado ver reconhecido no Judiciário seu status de "consumidoras"-destinatárias finais fáticas, pois o sistema do CDC demonstrou ser um setor de excelência e eficiência do direito civil brasileiro, onde as soluções de mérito e de justiça contratual realmente realizam-se. Apoiadas por advogados atualizados, as empresas tornaram-se litigantes comuns a recorrer ao sistema do CDC para resolver seus problemas contratuais intercomerciais, deturpando, assim, o espírito protetivo do CDC e colocando em perigo a proteção do verdadeiro consumidor stricto sensu. A atual resposta * (31) Mercosul/GMC/Res, 123/96, assinada em Fortaleza, em 13 de dezembro de 1996. (32) Anexo de Conceitos, n. I, terceira frase, in: Mercosul/GMC/Res. 123/96, assinada em Fortaleza, em 13 de dezembro de 1996. (p. 151) mais clara da jurisprudência e a eventual atualização que o projetado novo Código Civil trará ao sistema geral de direito civil e comercial tendem a superar este problema inicial da introdução do CDC no ordenamento jurídico brasileiro. Na primeira edição deste livro, ainda antes da manifestação da jurisprudência brasileira, tivemos a oportunidade de afirmar: Correta a corrente finalista, pois há verdadeiro perigo que a interpretação extensiva da norma do art. 2.º transforme o CDC em lei de proteção do consumidor-profissional, do comerciante ou do industrial, quando destinatário final fático do produto e, de regra, destinatário final fático do serviço. Observando os princípios positivados no CDC, perece-me hoje que uma interpretação maximalista estaria realmente

em desacordo com o espírito excepcional da tutela e o fim visado pelo Código, mas caberá à jurisprudência brasileira dar uma palavra decisiva sobre o assunto. Se nossa opinião, continua sendo no sentido da não caracterização ab initio dos profissionais como consumidores stricto sensu, podemos verificar que a posição adotada pela jurisprudência brasileira foi de extrema originalidade. Invocados os novos direitos presentes no CDC em contenda entre dois profissionais, a solução jurisprudencial quanto a abusividade das cláusulas contratuais foi sempre no sentido de um uso "analógico" ou inspirador e como verdadeiro princípio geral (de boa-fé) das normas do CDC.{33} De outro lado, a jurisprudência valorizou os artigos presentes no CDC que criavam a figura do "agente equiparado a consumidor", tanto no campo * (33) Exemplo desta linha de utilização "analógica" do CDC aos contratos entre profissionais, no caso duas sociedades anônimas, é a decisão do TARS, 2.ª C. Cível (Ap. Cível n. 191031798, j. 9.5.91. in: Julgados TA/RS, 78/284287), Rel. Paulo Heerdt: "Contrato de leasing. Plano Verão. Cabível a consignatória para discutir índice do reajuste. Ainda que as Leis 7.738/89 e 7.74/89 tenham permitido utilização de índice alternativo previsto em contrato, não pode o Judiciário chancelar cláusula abusiva em contrato que, por ser de adesão, fere claramente a paridade de tratamento entre os contratantes. Posição reiterada da jurisprudência. agora consagrada pela Lei de Defesa do Consumidor. Apelo provido para julgar procedente a consignatória"; em sentido exatamente contrário, decisão do TAPR, de 18.12.91, comentada e criticada por William Santos Ferreira, in: Direito do Consumidor, 11, p. 196 e ss. (p. 152) extracontratual{34} quanto no contratual (art. 2.º, parágrafo único, arts. 17 e 29 do CDC), tema que passamos a tratar. b) Agentes equiparados a consumidores - Nestes primeiros anos de aplicação do CDC, duas foram as linhas utilizadas pela jurisprudência para atingir a ampliação do campo de aplicação do CDC: a primeira foi a de considerar o CDC como novo paradigma geral de boa-fé nas relações contratuais e utilizar os seus princípios, em especial, a sua cláusula geral do art. 51, IV (cláusula geral de boafé),{35} mesmo a contratos mercantis{36} ou a contratos de polêmica * (34) Mesmo sem citar o art. 17 do CDC, em acórdão referente a perdas e danos por acidente causado por caminhão da empresa apelante, que apresentara defeito após o conserto pela empresa apelada, a 7.ª Câm. Cív. do TJ/RS decidiu: "Indenização. Conserto. Verificada por perícia bastante e insuspeita, a falha do conserto, feito poucos dias antes, procede, a indenização, pretendida pelo dono do veículo consertado. Responsabilidade do reparador pelo conserto feito, consoante o art. 14 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90)". (Ap. Cív. 591007174, j. 10.4.91, Rel. Waldemar Luiz de Freitas Filho, publicado in: Rev. Jurisprudência TJRGS, 152/541-543).

(35) Exemplo claro desta linha é a decisão no Proc. 10.113-288/91 (Esteio/RS), de 23.5.91, do Juiz Carlos Alberto Etcheverry, no qual o magistrado examinava a "validade das cláusulas" do contrato de arrendamento mercantil (Leasing entre duas empresas) "à luz da regulamentação contida no Código de Defesa do Consumidor" face a natureza de contrato de adesão, uma vez que: "Cabe ao Poder Judiciário, quando inexiste lei que verse especificamente sobre a matéria ou, existindo, não é, por hipótese, aplicável a negócios jurídicos celebrados antes de sua vigência, restabelecer o equilíbrio e a igualdade entre as partes, de forma a permitir a conciliação e harmonia entre os fins individuais e sociais...", fazendo suas as palavras de Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 1983, p. 101), segundo o qual: "Deverá a jurisprudência servir-se da cláusula da boa-fé e, sobretudo, da cláusula geral da ordem pública (art. 280.0), em ordem realização de uma sindicância sobre o conteúdo destes contratos" (de adesão). (p. 14 da citada sentença, ainda inédita); contra esta linha, pela não aplicação ao leasing mercantil do CDC, veja decisão do TAPR, Ap. Cív. 45.711-0, 4ª C., j. 18.12.91, Rel. Juiz Ulysses Lopes, publicada na íntegra in: RT 678/180-184. (36) Em decisão analisando a nulidade do título sacado em virtude de cláusula mandato, em discussão judicial envolvendo uma empresa de calçados e uma instituição bancária, o Juiz João Sedinei Ruaro, declarou seu voto na seguinte linha: "Mesmo que se possa discutir o enquadramento da relação negocial do financiamento bancário como relação de consumo, parece certo que é legítima e válida a invocação e aplicação dessa norma do Código do (p. 153) inclusão no sistema do CDC, como, para muitos, são alguns contratos bancários{37} ou contratos de locação;{38} a segunda linha ampliadora do impacto do CDC no mercado veio através da interpretação dada ao art. 29 do CDC. A jurisprudência valorizou a técnica do próprio CDC de instituir "consumidores-equiparados" ao lado dos consumidores stricto sensu e passou a exercer um controle de cláusulas abusivas em contratos de adesão que estariam inicialmente fora do campo de aplicação do CDC,{39} como o contrato entre dois profissionais; assim como a valorar práticas comerciais abusivas entre dois fornecedores ou dois grupos de empresários, práticas que possuiriam reflexos apenas mediatos no que se refere à proteção dos consumidores stricto sensu. O ponto de partida desta extensão do campo de aplicação do CDC é a observação de que muitas pessoas, mesmo não sendo consumidores stricto sensu, podem ser atingidas ou prejudicadas pelas atividades dos fornecedores no mercado. Estas pessoas, grupos e mesmo profissionais podem intervir nas relações de consumo de outra forma a ocupar uma posição de vulnerabilidade. Mesmo não preenchendo as características de um consumidor stricto sensu, a posição preponderante (Machtpo*Consumidor em face da presença e integração no caso de todos os elementos constantes do dispositivo em exame, autorizando a aplicação

extensiva e analógica da lei, atuante o seu espírito e os objetivos visados pelo legislador, buscando inequivocamente afastar as cláusulas abusivas e prejudiciais à parte economicamente mais fraca." (Ap. C. 192044378, TARS, 3ª C. Cível, j. 27.5.92, Rel. Juiz Danúbio Edon Franco, p. 14 (Declaração de voto) do acórdão ainda inédito). (37) Veja a decisão do TARS - Ap. Cív. 191011477 - 1.ª C. Cív. j. 9.4.91 - Rel. Juracy Vilella de Souza: "É nula a cláusula contratual que cria mandato para ser utilizado por pessoa jurídica, integrante do mesmo grupo econômico do mutuante, contra os interesses do mandante, porque abusiva e contrária o que estabelece a Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor)", publicado na íntegra in: Revista de Direito do Consumidor, 6/264-266. (38) Veja a decisão sobre a abusividade da cobrança da "taxa de contrato", taxa de intermediação dos contratos de locação a decisão de Brasília, de 28.5.92, reproduzida na íntegra in: Revista de Direito do Consumidor, 6/295-296. (39) Veja a manifestação pioneira de Hapner, Código, p. 153, contra esta extensão do conceito, veja Benjamin, Anteprojeto, p. 147, para o qual o art. 29 representa apenas uma visão coletiva do consumidor, equiparado do parágrafo único do art. 2.º. (p. 154) sition) do fornecedor e a posição de vulnerabilidade destas pessoas sensibilizaram o legislador e, agora, os aplicadores da lei.{40} O princípio da vulnerabilidade do consumidor está disposto no art. 4º, inc. I do CDC, e, como vimos, a vulnerabilidade pode ser técnica, jurídica (como é o caso do consumidor pessoa física ou do profissional liberal frente a uma instituição bancária ou financeira) ou fática. Na constatação da vulnerabilidade fática, o ponto de concentração é o possível parceiro contratual, a posição monopolista (monopólio de fato ou de direito), a especialidade ou a redução da oferta, o seu grande poder econômico, em suma, a sua superioridade fática frente ao outro parceiro contratual.{41} Na análise anterior, defendemos o ponto de vista que a pessoa jurídica ou o profissional não se beneficia da presunção de vulnerabilidade, mas pode prová-la, sempre que destinatário final econômico do produto ou serviço. No caso de extensão do campo de aplicação do CDC face ao art. 29, a vulnerabilidade continua sendo elemento essencial, superado, apenas, foi o critério da destinação final. Mesmo não sendo destinatário final (fático ou econômico) do produto ou serviço, pode o agente econômico ou profissional liberal vir a ser beneficiado das normas tutelares do CDC enquanto consumidorequiparado. Isto porque, concentrado talvez nesta vulnerabilidade fática, instituiu o legislador brasileiro três normas de extensão do campo de aplicação pessoal do CDC, três disposições legais conceituando os agentes que considera equiparados a consumidores (parágrafo único do art. 2.º, arts. 17 e 29). * (40) Neste sentido exemplar a decisão do TJRS, que em caso de franchising

entre dois comerciantes, decide: "Contrato de Adesão. Desequilíbrio entre as partes. Prevalência do foro da obrigação. Não é por se cuidar de relação de consumo, que não é, que se afasta sedizente eleição de foro, em contrato de franchise, senão porque demonstrada satisfatoriamente, a vulnerabilidade de um dos figurantes, evidenciando-se o desequilíbrio entre as partes do negócio, permitindo a aplicação do art. 29 do CDC, verdadeiro canal de oxigenação do ordenamento jurídico comum" (AI 597036102, j. 29.4.97, Des. Antonio Janyr Dall’Agnol Júnior, in Revista de Jurisprudência do TJRGS, v. 184, p. 184 e ss.) (41) Concorda Donato, p. 108, considerando que o exame da vulnerabilidade é a solução para o impasse entre as posições finalistas e maximalistas sobre a aplicação do CDC, pp. 107 e 108. (p. 155) Como verificamos anteriormente, o parágrafo único do art. 2.º do CDC é das normas de extensão a norma mais geral, segundo a qual: "Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis que haja intervindo nas relações de consumo". Assim, apesar de não se caracterizar como consumidor stricto sensu, a criança, filha do adquirente a qual ingere produto defeituoso e vem a adoecer por fato do produto é consumidor-equiparado e beneficia-se de todas as normas protetivas do CDC aplicáveis ao caso. A importância do parágrafo único do art. 2.º é seu caráter de norma genérica, interpretadora, aplicável a todos os capítulos e seções do Código. A proteção do terceiro, bystander, complementada pela disposição do art. 17 do CDC, que aplicando-se somente a seção de responsabilidade pelo fato do produto e serviço (arts. 12 a 16) dispõe: "Para efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento". Logo, basta ser "vítima" de um produto ou serviço para ser privilegiado com a posição de consumidor legalmente protegido pelas normas sobre responsabilidade objetiva pelo fato do produto presentes no CDC. Na hipótese de cláusulas abüsivas terem sido inseridas em um contrato unilateralmente redigido por um fornecedor de serviços, por exemplo, uma Instituição Bancária e ser este contrato oferecido a adesão de um profissional liberal ou de um pequeno comerciante, poderão estes usar do patamar de boa-fé e respeito das expectativas legítimas introduzidas pelo CDC no sistema de direito brasileiro? No caso da imposição da prática da venda casada ou de recusa de venda entre comerciantes, poderá o pequeno empresário considerá-la abusiva e requerer sua proibição com base no CDC? Trata-se somente de um caso de direito comercial? Trata-se de prática comercial ou prática contratual que prejudica somente diretamente empresários ou prejudica indiretamente também aos consumidores, finais e potenciais, e a todo o mercado. Nas hipóteses que aqui mencionamos, a jurisprudência brasileira passou a valorizar o art. 29 do CDC. O art. 29 é uma disposição especial, que abre o capítulo V do Código sobre "Práticas Comerciais", aplicável, portanto, a todas as seções do capítulo, quais sejam: a seção

sobre oferta (arts. 30 a 35), sobre publicidade (arts. 36 a 38),{42} sobre * (42) Nesse sentido Maria Elizabete Vilaça Lopes, p. 166, destaca que em se tratando da publicidade "não é bastante dizer que as pessoas protegidas por (p. 156) práticas abusivas (árts. 39 a 41), sobre cobrança de dívidas (art. 42), sobre Banco de Dados e Cadastros de Consumidores (arts. 43 a 45) e que se diz aplicável também ao capítulo posterior, o Capítulo VI, dedicado à "Proteção Contratual". Trata-se atualmente, portanto, da mais importante norma extensiva do campo de aplicação da nova lei ao dispor: "Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostos às práticas nele previstas" (grifo nosso). O art. 29 supera, portanto, os estritos limites da definição jurídica de consumidor para imprimir uma definição de política-legislativa! Parece-nos que, para harmonizar os interesses presentes no mercado de consumo, para reprimir eficazmente os abusos do poder econômico, para proteger os interesses econômicos dos consumidores-finais, o legislador concedeu um poderoso instrumento nas mãos daquelas pessoas (mesmo agentes econômicos) expostas às práticas abusivas. Estas, mesmo não sendo "consumidores stricto sensu", poderão utilizar das normas especiais do CDC, de seus princípios, de sua ética de responsabilidade social no mercado, de sua nova ordem pública, para combater as práticas comerciais abusivas! Em verdade, o potencial desta norma ainda foi pouco explorado pelos agentes econômicos presentes no mercado brasileiro, talvez receosos que um dia ela seja usada contra si próprios. Na verdade, sua potencialidade ainda é quase desconhecida e parece conter como único limite a idéia de prejuízo (direto ou indireto) para os consumidores face à prática comercial abusiva. O art. 4º do CDC, em inc. VI, estabelece como norma-objetivo do CDC, como princípio norteador da interpretação do próprio art. 29, "a coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal", desde que "possam causar prejuízos aos consumidores". Assim, um comerciante poderia exigir, por exemplo, a abstenção de outro comerciante que está vinculando uma propaganda enganosa no mercado *essas normas são os consumidores em potencial. É mais do que isso: não só os consumidores em potencial, ou seja, aqueles que podem vir a adquirir ou utilizar produto ou serviço como destinatários finais. Incluem-se todas as pessoas expostas às práticas comerciais, inclusive a empresa". Também nesse sentido manifestação de Alcides Tomasetti Júnior, relembrando o combate à concorrência desleal e sua ligação com a proteção do consumidor. (p. 157) (art. 37, § 1 .º) ou a nulidade de uma cláusula presente nas suas condições gerais de venda, mesmo em contrato comercial (arts. 51 e 54), alegando prejuízo indireto aos consumidores (em verdade, ao mercado). Ao valorizar o art. 29 do CDC, a jurisprudência tenta aproximarse da vontade interventora do legislador brasileiro. A surpresa com esta

decisão extensiva do legislador só é superada se observamos que a jurisprudência alemã também foi autorizada a controlar os contratos comerciais e suas condições gerais firmadas entre dois profissionais desde 1976, assim como a lei portuguesa variando apenas o grau e a extensão deste controle conforme a natureza comercial ou não do contrato. A idéia básica, porém, é a mesma, de imposição de um patamar mínimo de lealdade e boa-fé objetiva. Nesse sentido, destaca-se como verdadeiro leading case, a decisão do Tribunal de Alçada/RS, 2.ª Câm. Cív., Ap. cív. 192188076, Rel. Paulo Heerdt, j. 24.9.92, com a seguinte ementa: "Contrato de crédito rotativo. Juros e correção monetária. Código de Defesa do Consumidor. Conceito de consumidor para os fins dos capítulos V e VI da Lei 8.078/90. Exegese do art. 29 do CDC. Contrato de adesão. Cláusula abusiva. Controle judicial dos contratos. Ainda que não incidam todas as normas do CDC nas relações entre Banco e empresa, em contrato de crédito rotativo, aplicam-se os Capítulos V e VI, por força do art. 29 do CDC, que amplia o conceito de consumidor possibilitando ao Judiciário o controle das cláusulas contratuais abusivas, impostas em contratos de adesão. Cláusula que permite variação unilateral de taxa de juros é abusiva porque, nos termos do art. 51, X e XIII, possibilita variação de preço e modificação unilateral dos termos contratados, Possibilidade de controle judicial, visando estabelecer o equilíbrio contratual, reduzindo o vigor do princípio "pacta sunt servanda"... Ação declaratória julgada procedente para anular lançamentos feitos abusivamente, Sentença reformada." (grifo nosso){43} A clareza da lição jurisprudencial dispensa comentários; se o art. 29 amplia o conceito de consumidor, a lição vale igualmente para os profissionais submetidos à prática abusiva proibida pelo Capítulo V do CDC. Podemos, portanto, concluir que se assim for interpretado o art. 29 uma nova série de hipóteses passarão a incluir-se no campo de * (43) Acórdão publicado na íntegra in: Revista de Direito do Consumidor, 6/274-277. (p. 158) aplicação das normas dos capítulos V e VI do CDC, permitindo uma tutela protetiva daquele profissional, consumidor-equiparado, justamente no âmbito contratual, de forma a reequilibrar a relação e reprimir o uso abusivo do poder econômico. Trata-se talvez de uma nova conscientização da intrincada correlação entre as ações dos agentes econômicos individuais e os reflexos, por vezes danosos e difusos, na sociedade. Neste conflito de interesses e forças da dinâmica sociedade de massas em que vivemos, a ação de um grupo social, os fornecedores, pode efetivamente determinar reações e prejuízos em um grupo difuso de indivíduos, consumidores e mesmo profissionais, equiparados a consumidores, por estarem direta ou indiretamente conectados às práticas dos primeiros. A visão do Estado, como mediador dos interesses envolvidos, vai determinar a relevância jurídica ou não destes atos,{44} a incluir ou excluir determinado grupo de indivíduos do âmbito das novas leis tutelares dos consumidores. De certa forma, o legislador do CDC previa a passividade do consumidor stricto sensu, a prevalência do fornecedor monopolista e a possibilidade de que talvez o consumidor equiparado viesse a instigar a resposta do sistema, o combate efetivo das práticas abusivas,

com diretos e indiretos reflexos positivos para o consumidor, forçando a instituição de um mercado mais harmônico e menos abusivo. De certa forma, o art. 29 agora valorizado renova o sistema, legitimando a atuação de novos agentes econômicos em virtude do dado comum de vulnerabilidade, verdadeiro status análogo ao de consumidor, renova, principalmente, ao instituir instrumentos mais ágeis e sanções mais rígidas do que as conhecidas no direito da concorrência, de parcos efeitos no Brasil. Concorde-se ou não a decisão do legislador e sua interpretação pela jurisprudência, parece-nos certa a tendência, em se tratando de contratos unilateralmente redigidos, contratos de adesão, de expandir o campo de aplicação do CDC. Não está, porém, superado o receio que manifestamos na anterior edição que a expansão da aplicação do CDC venha a baixar o nível de proteção concedido ao consumidor.{45} * (44) Sobre o tema veja interessante parecer de Waldírio Bulgarelli, "Abuso do Poder Econômico e Proteção do Consumidor" in: Direito Empresarial Moderno, p. 33. (45) Exemplo de utilização "maximalista" na jurisprudência gaúcha é o AI 59623517, rel. Cláudio A. R. Lopes Nunes, j. 10.4.97, in Revista de (p. 159) Esperamos, portanto, que a jurisprudência mantenha a linha atual de razoabilidade no controle dos contratos de adesão, privilegiando realmente aqueles consumidores-equiparados que se encontram em fática situação de vulnerabilidade{46} e assegurando para os consumidores stricto sensu eficaz equilíbrio e boa-fé nas suas relações contratuais.{47} Concluímos, então, afirmando que em virtude do disposto no art. 29 do CDC, assim como foi interpretado pela jurisprudência, o legislador brasileiro, para proteger os interesses econômicos dos consumidores, concedeu um novo e poderoso instrumento (as ações autorizadas pelo CDC e sua ética de boa-fé objetiva nas relações negociais) para que os "consumidores-equiparados" (na maioria, também empresários) combatam as práticas comerciais abusivas que os lesam diretamente e que, mediatamente, prejudicam os outros consumidores e a harmonia do mercado. A extensão do campo de aplicação do CDC aos empresários, em casos de incidência das normas materiais dos capítulos V e VI, pode ser considerada quase um novo privilégio, determinado por razões de política legislativa e tendo em vista a realidade brasileira de pouca organização da sociedade civil e de passividade dos consumidoresfinais. Se a jurisprudência atual ainda tende a considerar este novo "privilégio" como positivo, duas tendências contrárias a este "maximalismo" se avizinham: na Europa unificada, defende-se a superação da visão atual do consumidor como mero agente econômico e a imposição de uma visão mais social do consumidor, consumidor como pessoa, *Jurisprudência do TJRGS, v. 182, p. 231 e ss. Tratava-se do relacionamento entre importadora e exportadora de automóveis, e a cláusula atacada foi a de eleição do foro. (46) Neste sentido conclui tb. em sua tese, Donato, p. 247; a autora apesar de discordar com os exemplos por nós fornecidos na primeira edição, pp. 248

e 249, conclui que tb. na aplicação do art. 29 o elemento teleológico da vulnerabilidade é decisivo para a extensão da proteção dos capítulos V e VI às relações entre profissionais. (47) Veja interessante decisão do STJ, que em contrato de crédito rural recusa a utilização do CDC, não porque inaplicável a relação intercomerciantes, mas porque o contrato era anterior a entrada em vigor do CDC, in RE 90.162-RS, j. 28.5.96, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. (p. 160) como sujeito de direitos do século XXI;{48} da mesma forma, o Projeto de Código Civil, PL 118/84, unifica{49} em grande medida as obrigações civis e comerciais, regula "o direito da empresa" (art. 966 e ss., PL 118/ 84){50} e impõe como patamar igualitário para todos os contratos o princípio da boa-fé (art. 422, PL 118/84), função social do contrato (art. 421, PL 118/84) e intervenção reequilibradora nos contratos de adesão (arts. 423 e 424, PL 118/84). Logo, se este projeto for definitivamente aprovado não será mais no status de consumidor equiparado que o comerciante lesado na relação interempresarial procurará sua proteção, mas no direito civil (e comercial) geral. Avistam-se, pois, modificações na jurisprudência. A própria jurisprudência gaúcha evoluiu para considerar que o princípio da vulnerabilidade (presumida para o consumidor pessoa física), imposto pelo CDC, está subsumido no art. 29 do Código, sendo deste pré-requisito lógico. Assim só incluem-se na proteção "equiparada" deste artigo aqueles "profissionais" ou leigos que, vulneráveis, comprovam sua situação de vulnerabilidade fática, econômica, jurídica ou técnica. O Des. Antonio Janyr Dall’Agnoll, em seu voto, após * (48) Assim Alpa in: Contratto e impresa, p. 372 e 373. Note-se que esta visão do consumidor como pessoa foi a iniciadora do movimento consumerista e da consumer rights rhetoric , com o discurso de J. F. Kennedy em 1962: "The consumer is no longer seen merely as a purchase and user of goods and services for personal, family or group purposes but also as a person concerned with the various facets of society which may affect him either directly or indirectiy as a consumer..." (apud, Reich, Consumer, p. 20). Esta visão mais individual de consumidor e do grupo de consumidores a ser protegidos pela lei tende a prejudicar a visão maximalista, pois o homo economicus geralmente age só e assim será protegido, o que não impede, porém, que seja protegido quando somente organizado através de uma pessoa jurídica ou em grupo conseguirá seu intento. Veja-se ainda Alpa, Banche di Dati, p. 54, sobre o que chama de nova "dignidade social", e o direito como instrumento de proteção da identidade individual dos consumidores, pessoas que têm seus dados armazenados em Banco de Dados Públicos e Privados. (49) Veja Parecer final do Senador Josapah Marinho, Parecer 749 de 1997 in Diário do Senado Federal, ano LII-Sup."A" ao n. 208, 15.11.97, p. 8. Trata-se de um novo Livro da Parte Especial, que ficaria dividida em Dir. das Obrigações (Livro I, art. 232 e ss.), Dir. da Empresa (Livro II, art. 966 e ss.), Dir. das Coisas (Livro III, art. 1.196 e ss.), Dir. de Família (Livro

IV, art. 1.511 e ss.), Dir. das Sucessões (Livro V, art. 1.797 e ss.). (p. 161) reproduzir o texto do art. 29 do CDC, pontifica: "Esta "exposição às práticas" implica, ao que me consta, justamente a idéia de sujeição. Este o sentido que se há de extrair: evidenciando o desequilíbrio entre os figurantes do negócio, qualquer que seja ele, portanto, inclusive os que não se enquadrem como "de consumo", incidem os dispositivos dos dois capítulos referidos. A regra contida no art. 29 do CDC, tenho dito com alguma freqüência, evidencia-se como verdadeiro canal de oxigenação do ordenamento jurídico. Foi através dele que se generalizou, evidenciado o desequilíbrio contratual, vale dizer, a vulnerabilidade de um dos figurantes do negócio jurídico, entre outras, a aplicação das cláusulas abusivas".{51} c) O fornecedor - Quanto ao outro pólo da relação contratual de consumo, o Código define fornecedor de bens ou serviços, em seu art. 3.º, como "toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços." Sendo que como serviço, o § 2º do art. 3º entende também as atividades de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, ficando excluídas apenas as de caráter trabalhista. A definição é novamente ampla. Quanto ao fornecimento de produtos o critério caracterizador é desenvolver atividades tipicamente profissionais, como a comercialização, a produção, a importação, indicando também a necessidade de uma certa habitualidade, como a transformação, a distribuição de produtos. Estas características vão excluir da aplicação das normas do Código todos os contratos firmados entre dois consumidores, não-profissionais. A exclusão parece-me correta, pois o Código ao criar direitos para os consumidores, cria deveres, e amplos, para os fornecedores. Quanto ao fornecimento de serviços, a definição do art. 3º do CDC foi mais concisa e, portanto, de interpretação mais aberta, menciona apenas o critério de desenvolver atividades de prestação de serviços. Mesmo o § 2.º do art. 3º define serviço como "qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração...", * (51) AI 597036102, j. 29.4.97, Des. Antonio Janyr Dall’Agnol Júnior, in Revista de Jurisprudência do TJRGS, v. 184, p. 186. (p. 162) não especificando se o fornecedor necessita ser um profissional. A remuneraçãO do serviço é o único elemento caracterizador, e não a profissiOnalidade de quem o presta. A expressão "atividades" no caput do art. 3.º, parece indicar a exigência de alguma reiteração ou habitualidade, mas fica clara a intenção do legislador de assegurar a inclusão de um grande número de prestadores de serviços no campo de aplicação do CDC, à dependência única de ser o co-contratante um consumidor. Nesse sentido a definição de consumidor ganha em importância e tendo em vista a dificuldade normal que terão os juristas para definir, caso a caso, a presença do consumidor e do fornecedor nos contratos existentes no mercado, continuaremos nosso estudo analisando mais detiBdamente os tipos ou espécies de contratos onde a aplicação do CDC será constante.

1.2 Contratos de fornecimento de produtos e serviços Do exame dos arts. 2.º e 3º do CDC, que definem os agentes contratuais, consumidor e fornecedor de produtos ou serviços, podemos concluir que as normas do Código estabelecem um novo regime legal para todas as espécies de contratos (exceto os trabalhistas) envolvendo consumidores e fornecedores de bens ou serviços, não importando se existe lei específica para regulá-los (como o contrato de locação), pois as normas de ordem pública (art. 1.º) do CDC estabelecem parâmetros mínimos de boa-fé e transparência a serem seguidos obrigatoriamente no mercado brasileiro. São os contratos, agora denominados, de consumo, sejam eles de compra e venda, de locação, de depósito, de abertura de conta corrente, de prestação de serviços profissionais, de empréstimo, de financiamento ou de alienação fiduciária, de transporte, de seguro, de seguro saúde, só para citar os mais comuns. Nota-se ainda, diferentemente da lei alemã, que se submeterão às normas do CDC brasileiro tanto os contratos pré-elaborados como quaisquer outros contratos envolvendo consumidores e fornecedores de bens ou serviços. Isto porque, seguindo a solução da lei francesa,{52} o Código subdividiu suas normas em normas especiais para a tutela dos contratos de adesão (art. 54) e normas gerais aplicáveis às cláusulas * (52) Veja Weil/Terré, p. 261 e o art. 35, 1.º e 3.º da Lei 7823. (p. 163) abusivas (arts. 51 a 53), estejam elas inseridas em um contrato de adesão ou em qualquer outro tipo de contratos, paritário ou não.{53} O campo de aplicação do CDC, em matéria contratual, será vasto e diferenciado, pois a nova lei estabelece parâmetros tanto para os contratos envolvendo obrigações de dar, de transferir a propriedade ou somente a posse do bem. denominados contratos de fornecimento de produtos, quanto para os contratos envolvendo obrigações de fazer, denominados genericamente de contratos de prestação de serviços.{54} Como se sabe, o regime legal da obrigação de fazer e da obrigação de dar sempre foi diferenciado e esta será uma das dificuldades sentida pelo CDC, enquanto Código geral de proteção ao consumidor. Certo é que o consumidor pode ser lesado tanto em um contrato visando a prestação de um serviço, quanto em um contrato visando o fornecimento de um produto. Esta bipolarização do campo de aplicação do CDC forçou o legislador a prever normas específicas para os serviços e para os produtos (veja arts. 12 e 14 sobre responsabilidade civil, arts. 18 e 20 sobre vício por inadequação). Note-se porém que, exatamente em suas normas contratuais stricto sensu e pré-contratuais dos arts. 29 a 54 do CDC, o legislador omitiu qualquer tipo de tratamento diferenciado entre estes dois contratos. Conclui-se, portanto, que a disciplina da formação e do controle do equilíbrio contratual será a mesma tratando-se de um contrato de prestação de serviço ou de um contrato de fornecimento de produto. O novo Código, porém, não desconhece que a execução desses contratos será diferenciada e característica. Como nem toda a obrigação de fazer é uma obrigação de resultado, algumas expressões do CDC terão necessariamente uma interpretação diferenciada conforme trate-se de contrato de prestação de serviço ou contrato de prestação de produto. Assim, por exemplo

* (53) Esta é a orientação majoritária na doutrina, veja Nery, Anteprojeto, p. 297 e Hapner, Código, p. 168, contra , a primeira manifestação de Paulo Luiz Neto Lobo, Condições, pp. 157 e 158, superada no artigo "Contratos no Código do Consumidor: Pressupostos Gerais", in: Revista de Direito do Consumidor, 6/136. (54) Aqui incluídos os contratos de garantia e todos aqueles contratos com prestações complexas, veja Bittar/"Adesão", p. 169 sobre os contratos de massa de conteúdo especial. (p. 164) a expressão "vício" do art. 18 e ss., terá sentidos diferentes conforme a natureza da prestação. se ocorrer um vício do produto, este poderá se referir à quantidade, à qualidade ou à informação prestada, se for "vício" do serviço, refere-se à sua "qualidade" ou à sua informação (art. 20). Serviço com vício de "qualidade" é aquele cujo valor foi diminuído pela maneira como foi prestado, ou aquele definido como impróprio, pois se mostrou inadequado para os fins que razoavelmente dele se esperava (§ 2.º, art. 20). Se o contrato de serviço tinha como objetivo uma obrigação de meio e não de resultado, como por exemplo a obrigação de defender os interesses do cliente em uma ação cível, não alcançado o resultado esperado pelo cliente, mesmo assim será difícil caracterizar o vício de qualidade na prestação do serviço. A noção contratual de vício na prestação do contrato facilitará a ação do consumidor, mas, em se tratando de serviços, não é sempre a garantia do resultado, da satisfação de todas as expectativas do consumidor. É no máximo a garantia da adequação do serviço e da diligência no fornecimento deste (art. 24). Já em se tratando de contratos de fornecimento de produto, pela sua própria natureza, adequação e resultado se mesclam, assim, se a embalagem afirma que possui o produto 500 gramas, a noção de vício da quantidade é garantia deste resultado. São disciplinas jurídicas diferentes, mas com um núcleo comum; o art. 23 impõe uma garantia legal de adequação tanto do produto, como do serviço. A finalidade é proteger a confiança, as legítimas expectativas do consumidor, qualquer que seja o objeto do contrato de consumo. É a aplicação do Princípio da Boa-Fé na formação e execução de todos os contratos, especialmente nos contratos de consumo envolvendo serviços, muitas vezes contratos cativos, complexos e de longa duração. Devemos concluir, portanto, que, ao regular tanto os contratos Paritários quanto os contratos de massa, os contratos de prestação de serviços e os contratos de fornecimento de produtos, está o Código de Defesa do Consumidor determinando a aplicação de suas normas de Interpretação e de proibição de abusos à grande maioria dos contratos Civis hoje existentes na sociedade, invadindo searas tradicionalmente dominadas pelas normas do Código Civil e, conforme se interprete a figura do consumidor, também matérias regidas pelo Código Comercial. A delimitação tem sido mais difícil em se tratando de contratos de prestação de serviços, pois um dos contratantes geralmente é o (p. 165) destinatário final, pelo menos fático, do serviço. Nesse sentido, os contratos de prestação de serviços, tradicionalmente regulados por leis especiais ou cujo conteúdo era imposto pelo Estado, têm despertado muita controvérsia nos meios jurídicos quanto à sua inclusão ou não no campo de aplicação do CDC. Sendo assim, queremos analisar a

situação de alguns dos principais contratos de fornecimento de serviços e de produtos colocados à disposição dos consumidores no mercado brasileiro, dando ênfase aos primeiros, sem, porém, nenhuma intenção de análise exaustiva destes contratos. a) Contratos imobiliários - Iniciaremos esta análise com os contratos imobiliários pois estes têm despertado uma certa controvérsia sobre a sua inclusão ou não no campo de aplicação do CDC. Começaremos analisando os contratos elaborados ou concluídos com as chamadas Imobiliárias, empresas administradoras e locadoras de imóveis. Quanto ao contrato de administração de imóvel, o proprietário, que coloca o imóvel seu sob a administração da Imobiliária, não pode ser caracterizado como consumidor stricto sensu, pois não é o destinatario final econômico. O bem está sendo, na verdade, colocado para render frutos civis, aluguéis, logo o proprietário, futuro locador, age como produtor, como fornecedor. Da mesma maneira a sociedade imobiliária é fornecedora e o contrato entre eles está, em princípio, excluído do campo de aplicação do CDC. A exceção poderá ser aceita pela jurisprudência, se o proprietário, que coloca o imóvel a administração pela Imobiliária, for de alguma forma "vulnerável" segundo OS princípios do CDC, a merecer a tutela especial da nova lei. Como tratase, geralmente, de contrato de adesão e com cláusulas caracterizadamente unilaterais, a hipótese de exceção poderá efetivamente acontecer, principalmente com pessoas que só possuem um imóvel para alugar OU que de alguma forma especial são vulneráveis às práticas da Imobiliária-fornecedor. O contrato mais importante, porém, é o contrato de locação de imóvel. Tratando-se de locação comercial a aplicação do CDC fica afastada, mas tratando-se de locação residencial a aplicação das normas protetivas do CDC será a regra,{55} como concorda a jurispru* (55) Assim concorda tb. Benjamin-Forense, p. 251; é grande a importância da aplicação do CDC aos contratos de locação em virtude de sua relevância (p. 166) dência.{56} No caso, trata-se, nas grandes cidades, de contratos de adesão elaborados pelas Imobiliárias; nas pequenas cidades, de contratos de locação ainda paritários e discutidos com cada inquilino. O importante é poder caracterizar a presença de um consumidor e um fornecedor em cada pólo da relação contratual. O contrato de locação é hoje elaborado pela Imobiliária tendo em vista a sua obrigação frente a pessoa, que deixou o imóvel sob sua administração. As partes no contrato, porém, são o locador, proprietário do imóvel, e o locatário. Inicialmente, é necessário que o locatario seja o destinatário final fático e econômico do bem locado; nas locações residenciais esta é a regra. Segundo dispõe o art. 2.º do CDC, o consumidor não é somente aquele que adquire, mas também aquele que utiliza o produto. Como afirma Calais-Auloy, a moradia é uma necessidade pessoal e familiar, sendo, nesse sentido, objeto de consumo.{57} A definição legal de produto está disposta no § 1.º do art. 3.º do CDC e inclui qualquer bem, móvel ou imóvel. Mas, e o fornecedor? O fornecedor é aquele que presta um serviço

ou entrega o produto. Segundo Clóvis Beviláqua,{58} o contrato de Locação de coisa é aquele pelo qual uma das partes, mediante remuneração paga pela outra, se compromete a fornecer-lhe, durante certo lapso de tempo, o uso e gozo de uma coisa infungível. O locador *social e da extrema vulnerabilidade fática, que se encontra o indivíduo ao necessitar alugar um imóvel para sua moradia e de sua família; tal vulnerabilidade, aliada a um mercado de oferta escassa, parece incentivar práticas abusivas, na contratação (cobrança de taxas abusivas, por ex.) e na elaboração unilateral dos contratos; o fenômeno é mundial, veja a reação do direito alemão, na Tese de Doutorado de Tübinger, de Thomas Lang, "Die Anwendung des AGB -Gesetz auf Formularmietverträge und deren Inhaltskontrolle", Tübingen, 1987. (56) Veja decisão do TARS, Ap. Civ. 195049630, j. 29.8.95, Rel. Alcindo Gomes Bittencourt, cuja ementa é: "Ação Civil Pública. Tem o Ministério Público legitimidade para propor ação visando a proteção do consumidor. A relação de intermediação de imóveis para locação submete-se às disposições do Código de Defesa do Consumidor. Cláusulas de contrato de adesão cuja nulidade se reconhece. Inaplicabilidade da Lei 8.078, de 11.9.90, aos contratos firmados anteriormente à sua vigência. Recurso parcialmente provido". (57) Calais-Auloy, 1.ª ed., p. 33. (58) Código Civil, comentado, art. 1.188. (p. 167) entrega para o locatário a coisa alugada, a sua posse e o uso a que se destina e deve garantir o uso pacífico da coisa locada durante o tempo de contrato.{59} O contrato é, portanto, uma cessão temporária do uso e gozo do imóvel, sem transferência da propriedade; é contrato remunerado e de prestação contínua.{60} Assim, a viúva que possui dois imóveis e coloca um para alugar, através de uma Imobiliária, é fornecedora em relação ao consumidor e o contrato de locação elaborado pela Imobiliária está sob o novo regime de eqüidade e boa-fé do CDC. A hipótese contrária pode parecer ineqüitativa, quando a mesma viúva aluga para a família de um advogado, através de contrato individual, sem participação da Imobiliária, seu segundo imóvel. Mesmo neste caso, a viúva é fornecedora, e ao contrato se aplicam as normas do CDC, mas note-se que as regras do CDC visam apenas o reequilíbrio do contrato, a eqüidade, a justiça contratual, a qual não será, em última análise, prejudicial à fornecedora. Resta a possibilidade da jurisprudência brasileira, usando os princípios do CDC, que têm seu ponto de partida na necessidade de reequilibrar a relação contratual, quando esta for equilibrada e o consumidor não hipossuficiente (art. 4.º, I), decida pela exclusão do contrato, excepcionalmente, do campo de aplicação do CDC. A regra, porém, é a inclusão dos contratos de locação nãocomercial no campo de aplicação do CDC, que como norma de ordem pública estabelece um valor básico e fundamental de nossa ordem jurídica. As complexas e reiteradas relações, as quais se estabelecem entre o locatário, o locador, a imobiliária, o condomínio e sua administração, formam uma série de relações contratuais interligadas que estão a desafiar a visão "estática" do direito. Como verdadeiro contrato cativo de longa duração, a locação e suas relações jurídicas

acessórias necessitam uma análise dinâmica e contextual, de acordo com a nova teoria contratual, a reconhecer a existência de deveres principais e deveres anexos para as partes envolvidas, seja o consumidor, seja a cadeia organizada de fornecedores diretos e indiretos. * (59) Veja art. 1189 e Lei 8.245/91. (60) Não estamos tratando aqui do contrato de locação de automóveis, muito comum nos dias de hoje, mas consideramos clara a sua inclusão no campo de aplicação do CDC; veja sobre o assunto a Súmula 492 do STF. (p. 168) O equilíbrio contratual instituído pelo CDC impõe-se à lei especial anterior, que é a Lei 6.649/79 e à lei especial nova, Lei 8.245/ 91. Em ambos os casos, seguiremos a norma do art. 2.º, § 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil, como comentaremos em detalhes a seguir no título 2.{61} Vale lembrar que as normas do CDC são gerais e não revogam expressamente a lei especial existente e nem são revogados por leis especiais posteriores, Como ensina Oscar Tenório,{62} pode haver a coexistência da nova lei em face da anterior lei, desde que compatíveis. A lei especial mais nova não afeta a vigência da lei geral anterior,{63} no que não forem incompatíveis, sendo necessário examinar a finalidade das duas leis. É a regra da compatibilidade das leis.{64} O CDC não trata de nenhum contrato em especial, mas se aplica a todos, a todos os tipos de contratos, se contratos de consumo. Neste caso não revogará as normas especiais referentes a estes contratos, que nem sempre são de consumo, mas afastará{65} a aplicação das normas previstas nas leis especiais anteriores que forem incompatÍveis com o novo espírito tutelar e de eqüidade do CDC.{66} Se a lei é posterior, como no caso da Lei 8.245/91, é de se examinar a compatibilidade do CDC com a lei mais nova. No caso, o CDC e a nova Lei de Locações são perfeitamente compatíveis, tratam de aspectos diferentes da mesma relação contratual e serão usadas conjuntamente quando tratar-se de locações urbanas nãocomerciais. Incompatibilidade há entre o disposto no art. 51, XI do CDC e a volta à autonomia da vontade, prevista no art. 35 da nova Lei de Locações. Existe ainda o contrato de locação de obra ou empreitada, o qual objetiva a execução de determinada obra (resultado final), neste o empreiteiro se obriga, sem subordinação ou vínculo empregatício, a realizar certa obra para outro. É uma obrigação de fim (resultado final), regulada pelo Código Civil de 1917 já com seguranças especiais, como * (61) O título 2 deste capítulo é inteiramente dedicado ao estudo dos conflitos de leis no tempo referentes ao CDC. (62) Tenório, Comentários à LICC, art. 2.º, § 2.º, p. 90. (63) Veja o art. 7º, caput, do CDC. (64) Tenório, Comentários, art. 2.º, § 2.º, p. 90. (65) Assim a lição de Espínola/Espínola, p. 78, os quais propõem um esforço de interpretaçãO para conseguir compatibilizar as normas. (66) Veja Tenório, pp. 89 e 81. (p. 169) a garantia de "solidez e segurança" do art. 1.245. Mas a empreitada situa-se no campo genérico da locação de serviços e se o empreiteiro caracteriza-se facilmente como fornecedor, falta apenas caracterizar o co-contratante como consumidor, sempre que for o destinatário final do bem construído.

Quanto ao contrato de incorporação imobiliária, em que o incorporador faz uma venda antecipada dos apartamentos, para arrecadar o capital necessário para a construção do prédio, fácil caracterizar o incorporador como fornecedor, vinculado por obrigação de dar (transferência definitiva) e de fazer (construir). A caracterização do promitente comprador como consumidor, dependerá da destinação final do bem ou da aplicação de uma norma extensiva, como a presente no art. 29 do CDC (veja o n. 1.1 desta análise). Ao contrato aplica-se, então, em regra as normas do CDC. Isto é importante em face da multiplicação do mercado imobiliário deste tipo de contrato e o perigo de má utilização do instituto, o qual trabalha necessariamente com a figura da promessa de venda, tendo em vista a venda antecipada. No caso existe lei especial, a Lei 4.591/64 e suas modificações, mas as regras de ordem pública do CDC terão aplicação para regular o novo equilíbrio e boa-fé obrigatórios aos contratos de consumo.{67} A jurisprudência brasileira tem sido constantemente chamada a resolver litígios envolvendo consumidores e empresas de incorporação ou de construção, e algumas linhas jurisprudenciais já podem ser identificadas. Na orientação atual do STJ e dos Tribunais Superiores é superável a falta de registro do compromisso de compra e venda para a concessão da escritura definitiva e mesmo da adjudicação compulsória,{68} uma vez que os Tribunais não vêm aplicando a Súmula 167 do STF.{69} * (67) Veja a decisão do JECP/SP, Colégio Recursal da Capital, Rec. 8/92, j. 25.5.92, Rel. Juiz Roberto Caldeira Barioni, reproduzido na íntegra in Direito do Consumidor, 3/213-215. (68) Veja Súmula 76 do STJ: "A falta de registro do compromisso de compra e venda de imóvel não dispensa a prévia interpelação para constituir em mora o devedor". Veja igualmente caso não envolvendo um contrato de consumo, mas mesmo assim interessante do STJ: Recurso Especial 8.877SP (91/0004054-1), Ministro César Asfor Rocha, j. 27.5.97, cuja ementa (p. 170) Quanto ao compromisso de compra e venda, foram identificadas duas cláusulas consideradas abusivas, que merecerão nossa análise mais detida na Parte II deste livro, a cláusula de perda das quantias pagas ou cláusula de decaimento e, eventualmente, a cláusula de financiamento condicional. Ainda não totalmente resolvido pela jurisprudência pátria é o problema da falta de registro imobiliário da incorporação, em verdade um problema penal, segundo a lei específica (art. 50, parágrafo único, I, da Lei 6.766/79) e que tem causado muitos prejuízos a consumidores desavisados,{70} pois tornou-se prática oferecer e mesmo prometer vender terrenos ainda não individualizados como loteamento. As fraudes neste campo tem se multiplicado, inclusive com loteamentos fantasmas ou áreas de proteção ambiental,{71} aproveitando-se do prazo legal de 6 meses para regularização ou mesmo ao completo arrepio da lei especial. Nesse sentido destaco a orientação da Quarta Turma do STJ,{72} que parece basilar neste setor: a omissão do incorporador não deve

constituir estímulo ou vantagem para este, de modo a fazer perder sua *é: "Processual civil e civil. Omissão inexistente. Promessa de compra e venda não inscrita. Imóvel não loteado. Cláusula resolutória expressa. Ineficácia. Necessidade de prévia interpelação. Precedentes. Tendo o aresto recorrido examinado, como na hipótese, todas as questões postas pelas partes, não se pode falar em ofensa aos arts. 515 e 535, III, do Código de Processo Civil. "A falta de registro do compromisso de compra e venda de imóvel não dispensa a prévia interpelação para constituir em mora o devedor" (Súmula 76/STJ), sendo ineficaz a existência de cláusula resolutória expressa no referido tipo de pacto, de acordo com a jurisprudência desta Corte. Recurso não conhecido". (69) Assim a erudita decisão do 1.º TACivSP, reproduzida in: RT 698/103 e, quanto a escritura definitiva, veja decisão do TAMG, in: RT 696/201. (70) Veja-se a referida Decisão do 1.º TACivSP, onde houve determinação do envio das peças ao Ministério Público face a prática, em tese, de crime de ação pública, publicada na íntegra in RT 698/103. (71) Assim a ação civil pública movida pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios contra 500 condomínios irregulares e clandestinos no Distrito Federal. (72) In LEX/STJ 53/97-106, REsp. 2.972-0-GO, j. 23.3.93, onde o STJ reconhece como título executivo o contrato de compromisso de compra e venda de unidade autônoma, mesmo ante a falta de registro imobiliário da incorporação. (p. 171) qualidade de incorporador e exonerá-lo de seus deveres e responsabilidades decorrentes da lei (especial{73} e do CDC),{74} e do contrato. Igualmente, vale a pena lembrar que muitos incorporadores e construtores tentam maquiar seus empreendimentos, especialmente em áreas mais pobres das cidades, como construção de um condomínio fechado o que burla não só as normas urbanísticas, mas também tenta afastar do fornecedor os seus deveres de construção da infra-estrutura necessária à incorporação. Os contratos de construção, presente um consumidor como contratante, também serão regidos pelo CDC.{75} Note-se que, segundo dispõe o art. 7.º, caput, CDC, os novos direitos do consumidor previstos no Código não excluem outros direitos previstos na legislação ordinária anterior, como o da garantia do art. 1.245 do Código Civil, desde que compatíveis com as novas normas. A orientação inicial da 2.ª Seção do STJ de que é de "vinte anos o prazo de prescrição da ação de indenização contra o construtor, por defeitos que atingem a solidez e a segurança do prédio, verificados nos cinco anos após a entrega da obra."{76} acabou prevalecendo na Súmula 194 do STJ.{77} Na prática significa assegurar um prazo ainda maior do que o previsto no CDC, logo, mais favorável ao consumidor, encontrando plena aplicação o art. 7.º do CDC. * (73) No excelente voto, o Min. Rel. Bueno de Souza baseia-se em decisão do

TASP (RT 434/167) e ensina: "Aceitar razões especiosas para subtrair o contrato da disciplina legal obrigatória, ou a transigência desavisada de compromissário-comprador seduzido pela excelência aparente do negócio, será tornar inútil a lei de atos propósitos no campo dos negócios imobiliários e que, eficazmente, procurou defender a economia popular." E complementa: recusar-se a identificar o agente como incorporador "equivale mesmo a negar vigência ao art. 29" da Lei 4.591/64. bem como "permitir se possa extrair vantagem, precisamente, da ausência do registro imobiliário do projeto de incorporação ..." (LEX/STJ 53/105). (74) Em seu voto o Min. Fontes de Alencar cita expressamente o art. 48 do CDC e conclui: "O espírito da lei é no sentido de que essas declarações, ou esses pré-contratos, vinculam aquele que assume o compromisso". (75) Veja RT 727/164. (76) Veja Recurso Especial 62.068-SP, 3.ª T., j. 8.4.97, Rel. Min. Nilson Naves, in LEX JSTJ 99, p. 113-115, com citação dos Recursos Especiais 1.473, 5.522, 8.489, 30.293 e 72.482. (77) Súmula 194 do STJ: "Prescreve em 20 (vinte) anos a ação para obter, do construtor, indenização por defeitos da obra". (p. 172) Incluídos no campo de aplicação do CDC estão também os contratos concluídos no novo sistema financeiro imobiliário, criado pela Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, que institui uma alienação fiduciária de bem imóvel. Para o consumidor, parece-me, salvo melhor juízo, altamente prejudicial a criação desta nova base de direito real (propriedade fiduciária de imóvel), pois a possibilidade de alienação fiduciária da "sonhada casa própria" beneficia desnecessariamente o fornecedor-credOr, ao evitar o atual trâmite judicial exigido para as hipotecas. No novo sistema, o fiduciante, isto é, os fornecedores indiretos (bancos e outros financiadores da construção) ou fornecedores diretos (construtores, bancos e financiadores diretos do negócio com o consumidor), como credor fiduciário imobiliário, pode beneficiar-se do rápido e eficaz processo típico da alienação fiduciária, o qual permite a retomada do bem imóvel, com despejo do consumidor e sua famílía, se o devedor em mora e posterior venda em leilão. A alienação fiduciária de bem móvel foi criada para superar um problema prático do penhor, que exigia a retenção do bem pelo credor para a sua efetivação. Seu sucesso foi imediato e os abusos por parte dos fornecedores também, tanto que grande parte da jurisprudência brasileira da década de 80 versa sobre contratos de compra e venda com alienação fiduciária, dos consórcios de automóveis às suas formas mais atuais. A alienação fiduciária de bem móvel teve como resultado prático também a diminuição da importância do penhor, como garantia. A recente instituição por lei deste novo direito real de propriedade fiduciária parece ter como fonte inspiradora apenas a vontade do Estado de beneficiar ou privilegiar os fornecedores do setor imobiliário, especialmente os bancos e agentes financiadores privados, para que encontrem maior facilidade na cobrança de seus créditos e na retomada de imóveis dados em garantia. Este desenvolvimento legislativo brasileiro parece-me na contramão da história. A jurisprudência de ponta européia é toda no sentido de impor maior

respeito aos direitos humanos dos devedores-bancários justamente quando da exigência de garantias de rápida execução, garantias perigosas para o consumidor, que nem sempre consegue perceber que perderá a posse do imóvel com o não pagamento até de uma parcela, como permite o art. 26 da lei brasileira de 1997,{78} sempre que houver * (78) Note-se que o art. 26 da Lei 9.514/97 menciona, no caput, como fato suficiente para a retomada regulada nos artigos 27,28 e 30, estar "vencida (p. 173) a específica previsão contratual a respeito e o consumidor for constituído em mora. Mencione-se ainda que a nova alienação fiduciária poderá tornar superada a garantia real típica dos imóveis, a hipoteca, passando o credor a exigir do construtor (fornecedor direto) e dos futuros compradores (consumidores) como garantia a alienação fiduciária do imóvel construído. A propriedade fiduciária é direito real registrável, segundo o art. 23 da Lei 9.514/97, ocasionando o desdobramento da posse, tornando-se o consumidor (fiduciante) possuidor direto e o credor (fiduciário) possuidor indireto do imóvel. O consumidor torna-se "depositário" do imóvel do credor e mesmo se a referida Lei de 1997 nada menciona sobre a possibilidade de prisão do depositário infiel, as discussões judiciais ainda existentes sobre a constitucionalidade deste modo de pressão aos consumidores-insolventes pode ganhar novo impulso. Certo é que o consumidor pelo art. 22 da Lei 9.514/97 suporta toda a responsabilidade decorrente do uso do imóvel. b) Contratos de transporte, de turismo e viagem - Quanto aos contratos de transporte destacaríamos o transporte de pessoas ou de passageiros. Este transporte terrestre, por ônibus, por carro e, menos freqüentemente, por trem pode firmar-se por escrito ou não, bastando a conduta do consumidor ao subir no transporte coletivo para formalizar o contrato, que se regulará geralmente por condições gerais afixadas ou não no coletivo. Já o transporte aéreo utiliza as chamadas "condições contratuais" anexadas ao bilhete, o mesmo ocorrendo com o transporte lacustre e marítimo, quando não existe um contrato de adesão por escrito. O contrato de transporte de passageiros é um contrato de prestação de serviços, uma obrigação de resultado. Neste caso a caracterização do profissional transportador como fornecedor não é difícil, nem a do usuário do serviço, seja qual for o fim que pretende com o deslocamento, como consumidor. Em matéria de contratos de transporte, desenvolveu-se na jurisprudência brasileira a orientação inovadora de afastar a autonomia da *e não paga, no todo ou em parte, a dívida", já o § 1.º do art. 26 menciona a intimação para "satisfazer,no prazo de quinze dias, a prestação vencida...", logo, em teoria, uma só prestação vencida, bastaria, se o contrato assim previsse, como parece também indicar o § 2º do referido art. 26 da Lei. (p. 174) vontade e desconsiderar a cláusula de não indenizar incluída pelo transportador no contrato (Súmula 161 do Supremo Tribunal Federal). Nessa mesma linha de proteção do usuário-consumidor, conso-

lidou-se com a Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça a possibilidade de, em caso de acidente no transporte, cumular o ressarcimento do dano material contratual (ferimentos, perda da bagagem) com o de dano imaterial ou dano moral (morte, perda de parte da visão, da possibilidade de locomoção, etc.).{79} A responsabilidade contratual do transportador pelo acidente do passageiro, segundo a Súmula 187 do Supremo Tribunal Federal, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual o fornecedor tem ação regressiva. Estes entendimentos jurisprudenciais e a tendência de indenizar da forma mais completa possível em caso de extravio ou dano à bagagem do consumidor{80} têm resultado em um incremento dos seguros neste ramo de atividade econômica. Já no transporte gratuito e, portanto, excluído do campo de aplicação do CDC, a orientação jurisprudencial tem sido outra. Neste sentido, especifica a Súmula 145 do STJ: "No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave". * (79) Nesse sentido, veja a decisão do TARGS, 4.ª C. Civ., j. 21.3.92, Rel. Juiz Mauro Duarte Gehlen, publicado in: Julgados n. 83, p. 329 e ss. onde um passageiro foi ferido dentro do ônibus por pedra arremessada por um piquete grevista, acarretando o estilhaçamento do vidro e a perda do olho da jovem passageira. A tese de caso fortuito e força maior foi recusada e acompanhando a mais recente doutrina francesa, considerou-se em especial o fato da vítima ser ainda jovem estudante universitária, onde a perda de uma das qualidades físicas, de uma das habilidades ou prazeres humanos ocasiona ainda maior trauma (os chamados "danos adolescentes" ou "danos psicológicos"). (80) Esta tendência vem bem demonstrada na decisão do Juizado Especial e de Pequenas Causas, a qual traz a seguinte ementa: "Responsabilidade civil. Extravio de bagagem. Indenização. Valor total. Prova testemunhal da existência da bagagem. Validade. Reclamação depois de vinte e quatro horas. Irrelevância. A indenização para ressarcimento dos danos oriundos de extravio de bagagem deve ser a mais completa possível. Inaplicável, no caso, a chamada indenização tarifária. A prova testemunhal das existência da bagagem é suficiente. A reclamação após vinte e quatro horas não afasta o dever de indenizar. (Ap. Cív. 17/91, da Capital, Rel. DR. Wilber José Palazzo, 1.ª Turma Recursal, 13.8.91)." (p. 175) Devemos igualmente destacar as duas espécies de transportes, a de passageiros e a de cargas. O contrato de transporte de cargas pode ou não estar incluído no campo de aplicação do CDC, dependendo da existência de um sujeito identificável como consumidor. No transporte de cargas este pode ter fim de lucro, fins comerciais, ou pode simplesmente ter como finalidade o transporte de carga pessoal do consumidor ou bens que são de sua utilização pessoal ou de sua família (mudanças etc.). Nesse caso, o transporte não se insere na cadeia de contratos de produção e será um contrato de consumo. Quanto ao transporte de passageiros, é sempre importante lembrar que a prestação contratual e o regime, especialmente o conteúdo

contratual imposto pelo fornecedor, envolvem indiretamente (e podem violar) direitos fundamentais dos indivíduos, tais como o direito à liberdade e livre movimentação e o direito à vida e à integridade. Este ponto de contato entre o direito constitucional e o direito civil ou comercial influenciará a relação entre particulares (a chamada "Drittewirkung" da doutrina alemã), impondo um exame mais agudo da razoabilidade das cláusulas, da sua necessidade para aquele tipo de transporte e da possibilidade de impor qualquer limite direito de ressarcimento.{81} No direito comparado, observa-se a importância que obtiveram os chamados contratos de "viagem turística".{82} Estes contratos são fechados entre agências de turismo e consumidores, incluindo em seu objeto não só a viagem (aérea, marítima ou terrestre), mas também a hospedagem, os translados e uma série de atividades recreativas, como excursões, idas a museus, shows etc. É um contrato de prestação de serviço, mas os serviços nem sempre são prestados por prepostos da agência e sim por uma verdadeira rede de fornecedores, ficando a depender destes a qualidade da prestação no total. No caso, a relação contratual do consumidor é com a agência de viagem, podendo exigir desta a qualidade e a adequação da prestação de todos os serviços, que * (81) Veja nossa análise sobre os conflitos de leis especiais (que asseguram privilégios históricos aos fornecedores do ramo do transporte aéreo, em troca da inversão do ônus da prova e da facilitação do ressarcimento) e o CDC, no artigo "A Responsabilidade do Transportador Aéreo", publicado in: Direito do Consumidor, vol. 3, p. 155 ss. (82) Veja Ulmer/Brandner/Hensen, p. 737 a 751 sobre a evolução na Alemanha e Ghersi, p. 584, sobre a evolução na Argentina. (p. 176) adquiriu no pacote turístico contratado, como se os outros fornecedores seus prepostos fossem.{83} Desde 1985, a jurisprudência estrangeira diferencia entre o contrato de organização de viagens ou contratos de viagem turística e contratos de intermediação de viagens. Tratando-se de um contrato de organização de viagens, responsabilizam a agência de viagens pela conduta de qualquer prestador de serviços envolvido na viagem turística, prestador este que consideram como um "auxiliar" da agência.{84} A partir da entrada em vigor do CDC, também no Brasil, uma nova importância foi reservada à qualidade (leia-se, expectativas legítimas e razoáveis) e à informação na fase pré-contratual e durante a execução dos contratos de viagens.{85} O resultado prático da inversão de papéis (da caveat emptor para a caveat vendictor) e da imposição legal de novos deveres aos fornecedores, também no ramo do turismo, foi o reconhecimento pela jurisprudência de uma nova responsabilidade (própria e solidária) para as agências de viagens, as quais comercializam os chamados "pacotes turísticos" e passam a ser responsáveis pela atuação de toda uma cadeia de fornecedores por eles escolhidos e previamente contratados.{86} A prática jurisprudencial brasileira nestes três anos passou mesmo a aceitar, nestes casos, a cumulação de danos materiais (geralmente pequenos), com danos morais ou extrapatrimoniais pela frustração das expectativas de lazer.{87} * (83) Nesse sentido conclui tb. Ghersi, p. 585, veja também a norma do art. 34, CDC.

(84) Veja decisão do Tribunal Federal Suíço, de 29.10.85 relatada in: Revue Européenne de Droit de la Consommation, 1987, 129. (85) Exemplo deste novo posicionamento é a decisão: "Excursão turística. Condições precárias e inseguras de embarcação que autorizam o rompimento do contrato pelo passageiro e sua recusa em empreender a viagem. Responsabilidade da operadora e da vendedora. (Decisão unânime)". (Proc. 01190741957, Rec. 12/91, Rel. Antonio Guilherme Tanger Jardim, 3.ª Câmara Recursal do Juizado Especial de Pequenas Causas, 28.6.91). (86) Leading case, neste sentido vem reproduzido na Revista de Direito do Consumidor, 8/180. (87) Veja neste sentido a decisão reproduzida na Revista de Direito do Consumidor, 9/149-150, com a seguinte ementa: "Indenização - Dano moral Contrato - Turismo - Inadimplemento. O descumprimento contratual, decorrente da suspensão de viagem turística, acarreta para o responsável a obrigação de indenizar por dano moral, face à frustração do lazer ocasionada (p. 177) No contexto do turismo desenvolve-se também uma outra relação contratual que enormes proporções assume nos Estados Unidos e na Europa, conquistando no final dos anos 90, o Brasil e a América Latina, trata-se do Time-Sharing. Contrato de múltiplas características geralmente visa o uso de um imóvel em área turística por determinado tempo por ano (1 ou 2 semanas ou meses).{88} O sucesso da fórmula deve-se a seu pragmatismo e flexibilidade: resolve a crise do setor hoteleiro e turístico-imobiliário, ao assegurar-lhe consumidores cativos, mas exige pequeno investimento dos clientes, ávidos de alcançar o tão esperado lazer e descanso em áreas turísticas valorizadas.{89} Por pequena soma de dinheiro, alcançam o consumidor e sua família a fruição de um espaço, de um imóvel em localidade turística procurada, sem que tenham de suportar os custos normais de um imóvel próprio (manutenção contínua, impostos etc.), combinado com vantagens organizacionais: possibilidade de locar para outros a "sua semana de férias" ou mesmo, em caso de não usufruir no seu tempo e lugar determinado, de trocar os seus "direitos habitacionais de uso" de forma a usufruir férias em outro lugar no mundo, através de bolsa internacional de trocas.{90} Seu sucesso devese também ao momento pós-moderno, da procura do lazer, do internacional, da segurança de um momento especial de férias, do *aos contratados (TAMG - Ap. Cível 145.375-6 - BH - 1.ª Câm. Cível Rel. Juiz Zulman Galdino - j. 22.12.92 )". Do corpo da decisão, que se referia a um pacote turístico cujas condições foram alteradas unilateralmente à última hora, retira-se a frase do DD. Relator, p. 150: "Quanto ao dano moral, entendo, data venia do MM. juiz sentenciante, que ele existe, representado pela frustração da viagem, pela privação do lazer, das férias que constituem bem cuja perda é perfeitamente traduzida em valor pecuniário, pois houve um sofrimento, um abalo psicológico dos autores em não podendo realizar o projeto da viagem. A

Constituição Federal (art. 5.º, X) garante e ampara a pretensão dos autores." (88) Detalhes na excelente exposição de Michael Martinek, Tomo III, p. 268 e ss. (89) Tepedino, p. 2. (90) Segundo Tepedino, p. 1: "Com o termo multipropriedade designa-se, genericamente, a relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, repartida em unidades fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam, cada qual a seu turno, utilizar-se da coisa com exclusividade e de maneira perpétua". (p. 178) desejo dos turistas de ter, pelo menos por algumas semanas por ano, uma "casa de férias" própria.{91} Preferimos não incluir este típico contrato de consumo entre os contratos imobiliários, antes tratados, porque nem sempre o contrato de time-sharing faz nascer direitos reais em relação ao imóvel, podendo ser meramente uma relação obrigacional entre a empresa (proprietária ou exploradora de empreendimento turístico) e o consumidor (que desfruta de um direito de uso limitado do imóvel de férias e de suas "comodidades" semelhantes a um hotel). Em Portugal, na nova Lei 275, de 1.8.93, define os direitos do consumidor resultantes desta relação contratual de "direitos de habitação turística", porque podem ser inclusive trocados por "direitos semelhantes" em outros locais, empreendimentos e hotéis, que trabalham com time-sharing. Assim também a nova Diretiva da Comunidade para a proteção dos consumidores envolvidos nestes contratos, Diretiva de 14.3.94, regula apenas os aspectos obrigacionais da relação. A relação do time-sharing é geralmente uma relação complexa, envolvendo geralmente três personagens: o verdadeiro proprietário do imóvel, geralmente um incorporador que tem interesse em revender o "uso" do imóvel para os consumidores, o administrador do timesharing, que organiza ou diretamente cuida do empreendimento turístico, das taxas e do fundo de manutenção, do oferecimento de possibilidades de lazer e de alimentação para os consumidores, que recolhe as taxas e ônus dos co-"condôminos" ou contratantes do timesharing e o consumidor, que vê neste direito de habitação periódica uma segurança para férias e lazer, sem os ônus de uma propriedade e sem o investimento inicial que significa a aquisição de um imóvel. A complexidade do contrato de time-sharing e a pouca compreensão alcançada pelo consumidor dos seus deveres e direitos futuros são considerados fortes indícios da vulnerabilidade do consumidor ou pessoa a ele equiparada que assina o contrato.{92} A proteção assegurada ao consumidor nestas novas relações Contratuais na Europa concentra-se em três temas: a) o direito de * (91) Veja detalhes em Jayme, p. 246. (92) Assim se manifestou o Professor de Heidelberg Erik Jayme, em sua palestra no IV Congresso Luso-alemão, em Konstanz, em 19.11.94; para o referido professor a característica maior deste novo tipo contratual é "o serviço complexo" prestado pelo administrador e (indiretamente) pelo incorporador. (p. 179) informação e de reflexão, permitindo a nova Diretiva um direito de

arrependimento (art. 5.º), proibindo o pagamento antecipado e obrigando a utilização de uma tradução ou versão do contrato em uma língua conhecida pelo consumidor; b) a proteção das expectativas legítimas dos consumidores, estabelecendo as normas européias um tempo mínimo de gozo do direito adquirido (1 semana) e valorizando o adimplemento dos deveres secundários assumidos pelo administrador, tais como alimentação, organização de excursões,jogos etc; c) por fim, a jurisprudência atua protegendo os consumidores nos comuns pré-contratos de time-sharing, nem sempre cumpridos. Esta nova linha de proteção do consumidor deve aqui ser mencionada uma vez que se trata de uma relação contratual de longa duração, que face ao vazio legislativo, deve ser guiada pelo princípio de boa-fé na formação e na execução dos contratos.{93} A caracterização destes contratos e relações como sendo de consumo facilita atingirmos este nível de lealdade e respeito ao consumidor também no Brasil. justamente pois este princípio de boafé e seus deveres anexos encontra-se positivado na nova lei. Na prática brasileira, os problemas mais comuns detectados nos contratos de timesharing foram as vendas agressivas e emocionais,{94} o desconhecimento por parte do consumidor dos direitos que está realmente adquirindo,{95} e das regras de uso do imóvel,{96} a transmissibilidade do time-sharing e sua inclusão entre os direitos hereditários; os vícios, falhas e problemas nos serviços prestados pelos complexos turísticos, pelos complexos de férias e viagens, a variabilidade e abuso nas taxas de * (93) Nesse sentido, interessante decisão do JECP/RS, com a seguinte ementa: "Prestação de serviços de lazer. Inteligência contratual. Não utilizadas todas as diárias do período-base contratual. a revalidação para posterior deve obedecer à proporcionalidade prevista no contrato. Inviável alteração do pedido após citação. Condenação em dinheiro afastada. Sentença parcialmente reformada." (Rec. 10/92, Rel. Dr. Carlos Alberto Alves Marques, 4.ª Câmara Recursal, Porto Alegre, 13.4.93). (94) Veja sobre o tema abundante jurisprudência na Parte II, item 2.3 deste trabalho. (95) Tepedino, p. 49. (96) Neste sentido a jurisprudência tem permitido reabrir o período de arrependimento do art. 49 do CDC, de sete dias, após a comunicação e ciência das cláusulas e previsões de como se dará efetivamente o uso do imóvel. Veja Acórdão de 10 de setembro de 1996, 9.ª Câmara, Rela. Maria Isabel de Azevedo Souza, TARGS, Ap. Cív. 196115299. (p. 180) administração e as cláusulas de perda das quantias pagas e carências das mais diversas.{97} Além do método de venda agressivo, que dá lugar em muitos casos ao arrependimento do consumidor com base no art. 49 do CDC, o segundo maior problema apresentado neste tipo de time-sharing, no Brasil, foi o perigo, comum a todos os contratos, de que o fornecedor ou incorporador não possa construir o empreendimento hoteleiro pretendido, apesar de ter arrecadado a poupança dos consumidores. Neste caso, o Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul permitiu a resolução do contrato e decretou a devolução das quantias pagas, devido a insolvência do hoteleiro-empreendedor e do perigo iminente

de não concluir o prometido imóvel de Lazer.{98} A mora do fornecedor foi contraposto o direito formativo extintivo do consumidor e o fator tempo foi destacado como característico do time-sharing, declarando o Tribunal: "Nesses empreendimentos, seja porque visassem o lazer pessoal do interessado, seja porque objetivassem investimento, o tempo é fator considerável, sendo demasiado o já ocorrido entre a data de conclusão prometida (1990) e o de hoje (1994-1997)".{99} A jurisprudência brasileira tem considerado a internacionalidade do contrato como um perigo extra para o consumidor e assegurado a reabertura do prazo de reflexão de sete dias do art. 49 do CDC, quando o consumidor brasileiro é informado em português do teor do negócio, em especial das cláusulas Limitadoras de seus direitos e das que afastam direitos reais de propriedade, apesar do contrato e proposta insinuarem * (97) Veja por todos Tepedino, p. 122 e ss. (98) Acórdão de 15 de março de 1995, 7.ª Câmara. TARGS. Rel. Antonio Janyr Dall’Agnoll Júnior. Processo 194255485: Promessa de compra e venda. Resolução. Mora na conclusão de obra. Perdas e danos Procede a resolução de promessa de compra e venda, proposta pelo promitente comprador quando a mora na conclusão da obra alcança extensão que vem inutilizando a finalidade ordinária para a qual previsto o empreendimento. Assim, a indefinição quanto à conclusão de prédio hoteleiro em sistema de tempo repartido (time-sharing), pelo promitente vendedor, em detrimento manifesto do promitente comprador, que cumpre, atualizadamente, com parcelas de sua prestação. Perdas e danos que se afastam, respeitantes ao interesse positivo, por não satisfatoriamente demonstradas e insuficientemente registradas na inicial. Apelo parcialmente provido". (99) Acórdão de 15 de março de 1995, 7.ª Câmara TARGS, Rel. Antonio Janyr Dall’Agnoll Júnior, Processo 194255485, p. 7 do original. (p. 181) a aquisição destes direitos.{100} Neste caso, destaca a jurisprudência a importância do princípio da boa-fé e da proteção da confiança do consumidor, a teoria da aparência para estabelecer a responsabilidade solidária e a legitimação passiva de todos os vários fornecedores (diretos e representantes) envolvidos na negociação, uma vez que a publicidade e a venda acontecem em território brasileiro.{101} c) Contratos de hospedagem, de depósito e estacionamento - Nos contratos de hospedagem o serviço será prestado por um fornecedor, empresa de hospedagem, hotel ou mesmo um particular que será remunerado por este serviço. O destinatário final do serviço de hospedagem, por sua própria natureza é aquele que dele usufrui. O agente do contrato pode ser, porém, uma empresa que envia seu empregado para um curso ou seminário naquela cidade, ou que hospeda seus clientes, enquanto duram as tratativas do negócio. Nestes dois últimos casos poderia haver alguma dúvida se os contratos são de consumo, ou simples contratos civis ou comerciais. Quer nos parecer * (100) Veja Acórdão de 19 de dezembro de 1996, 9.ª Câmara, Rela. Maria Isabel de Azevedo Souza, TARGS, Processo 196182760, publicado na Revista de Direito do Consumidor 21, p. 185, cuja ementa é a seguinte: "Multiproprie-

dade. Contrato internacional. Contração no Brasil. Empreendimento localizado no Uruguai. Língua estrangeira. Promitente vendedor. Mandatário. Teoria da aparência. Desconhecimento das cláusulas relativas ao uso do imóvel. Art. 49 do CDC. 1. É parte legítima para figurar no pólo passivo da ação de resolução de contrato internacional de promessa de compra e venda de ações relativa ao uso de imóvel pelo sistema de multipropriedade a empresa brasileira que, no Brasil, promove a informação, publicidade e oferta do empreendimento a ser realizado no exterior como se fosse o titular do direito. A transmissão de confiança de uma situação jurídica e a omissão de sua real condição de mandatária importam na sua responsabilidade pela contratação. Ainda mais quando foi a responsável pela elaboração do contrato, tendo infrigido O princípio da transparência e do dever de informação. Fere o princípio da boa-fé e da doutrina dos atos próprios a alegação de ilegitimidade passiVa ad causam. 2. Não obriga o consumidor a promessa de contrato de multipropriedade celebrado em língua estrangeira e do qual não teve ciência das cláusulaS relativas ao uso do imóvel a ser adquirido. Apelação provida". (101) Acórdão de 19 de dezembro de 1996, 9.ª Câmara, Rela. Maria Isabel de Azevedo Souza, TARGS, Processo 196182760, p. 186 e 187, citando os ensinamentos de Luis Diez-Picazo e Gustavo Tepedino. (p. 182) que a atividade de hospedar alguém, de alimentá-lo fora da empresa e de cuidar para uma estadia tranqüila está muito afastada da atividade de produção da empresa. O serviço prestado pelo hotel se concentrará no beneficiário do contrato, isto é, na pessoa do empregado ou do cliente. Estes são os destinatários finais fáticos do serviço; assim, pela natureza do serviço prestado, a eventual destinação econômica deste, mesmo que presente para a empresa o fim último de lucro ao hospedar seus clientes, pode ser desconsiderada pela jurisprudência.{102} Quanto ao contrato de depósito, cabe mencionar nesta edição, o novo e surpreendente destaque dessa figura contratual nos últimos anos. Este novo destaque deve-se a atuação da jurisprudência, utilizando a figura do contrato de depósito tácito{103} entre o visitante do shopping center ou supermercado, que guarda seu automóvel na garagem ou estacionamento daquele centro de compras, e o administrador do complexo ou proprietário do supermercado, que oferece essa comodidade como "facilities" para o consumidor em potencial.{104} * (102) Problema que tem preocupado a rede hoteleira é o da abusividade ou não da cláusula penal em caso de cancelamento de reservas pelos consumidores, sobre o tema veja decisão impondo o critério da razoabilidade da cobrança face ao contrato preliminar de hospedagem, in: Revista de Jurisprudência do TJRGS, 157/298-299; mais difícil de ser solucionado é o problema da descaracterização da venda casada ao obrigar-se os hóspedes de uma Convenção, que se realiza nos salões do hotel, a ali hospedar-se ou alimentar-se.

(103) Veja o leading case do STJ, reproduzido na íntegra, in: Direito do Consumidor, v. 6, p. 286 e ss. cuja ementa afirma: "Contrato de depósito para guarda de veículo - Estacionamento - Furto - Indenização. 1. Comprovada a existência de depósito, ainda que não exigido por escrito, o depositário é responsável por eventuais danos à coisa. 2. Depositado o bem móvel (veículo), ainda que gratuito o estacionamento, se este se danifica ou é furtado, responde o depositário pelos prejuízos causados ao depositante, por ter aquele agido com culpa in vigilando, eis que é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence (art. 1.266, 1.ª parte, do CC). 3. Inexistentes os pressupostos previstos nas alíneas a e c, do permissivo constitucional, não se conhece do recurso especial. (STJ - REsp. 4.582 SP - 3.ª T. - j. 16.10.90 - Rel. Waldemar Zveiter." (104) Veja as decisões a favor, reproduzidas no Repertório IOB de Jurisprudência ementas 3/7.074 (1ª C. Civ. TJRJ), 3/6.256 (3.ª Turma do STJ), 3/5.530 (4.ª Turma do STJ) e contra, 3/7.317 (2.ª C. Civ. TJPE). (p. 183) A utilização de uma figura contratual, seja a da guarda ou do depósito, para basear a responsabilidade por danos ou furtos ocorridos nos parques de estacionamento não é tese pacífica,{105} mas traz como pontos positivos o fato de exonerar o consumidor de provar a culpa (aquiliana) do estabelecimento, necessitando apenas provar o fato mesmo ter efetivamente estacionado seu carro na garagem ou estacionamento do réu.{106} Igualmente, é verdade que este "estilo" atual de compras ou centro de Compras, em que o consumidor é convidado a dirigir-se a um local fechado, previamente preparado e organizado (mix) para "facilitar" ou "induzir" ao consumo está intimamente ligado ao transporte através de veículos privados. O consumidor desloca-se com seu carro para o centro de compras, onde o organizador (ou grupo) oferece uma série de comodidades: segurança especial, lazer para as crianças, lazer para adolescentes e adultos, possibilidade de alimentação e, é claro, de estacionamento (teoricamente) gratuito. Trata-se, neste sentido, de um fenômeno novo com características pós-modernas: uma múltipla escolha, cativa e pré-ordenada por méto* (105) Veja contra a tese da existência de contrato de depósito a decisão do TJRGS, que traz igualmente as demais posições defendidas no Tribunal, in: Revista de Jurisprudência TJRGS, 156/383-390, com a seguinte ementa: Ação de indenização. Responsabilidade pelo furto em estacionamentos abertos ao público, adjacentes a shoppings ou supermercados. O proprietário de tais espaços não assume a guarda. nem responde por furtos verificados nesses locais, salvo se for comprovada sua manifesta culpa, que não existe por si só. Inexistência do depósito. Inviabilidade de controlar-se o acesso e saída, com a identificação do condutor. Apelação desprovida. (Ap. Cív. 592000145 - 3.ª Câm. Cív. - Porto Alegre, j. 26.2.92, Rel. Des. Décio Antônio Erpen).

(106) Este ponto também é bastante controverso nos julgamentos e a simples ocorrência policial, que é comunicação unilateral do lesado feita a posteriore, não tem sido aceita como bastante (neste sentido a anteriormente citada decisão da 3.ª C. Civ. TJRGS, p. 385). Da leitura dos julgados observa-se que a prova da veracidade da alegação do consumidor em potencial e sua boa-fé subjetiva são dois pontos importantes para o convencimento do julgador, que, em caso de dúvida, tende a decidir contra a pretensão ressarcitória do consumidor ou estaria a exigir uma "prova negativa" do fornecedor (isto é, que o consumidor não estacionou o carro no estabelecimento ou que seu carro não foi roubado), quando a idéia mestra é a de justiça contratual e de adimplemento pelo fornecedor de seus deveres de cuidado e de proteção do patrimônio do consumidor. (p. 184) dos especiais de marketing,{107} onde o indivíduo escolhe a comodidade, mesmo sabendo que talvez pague mais pelo produto e perca mais tempo que nas tradicionais compras nas ruas das cidades, entre o almoço e a volta ao trabalho. Em uma leitura jurídica do fenômeno, um risco de vida (os alemães denominam Lcbensriskio), risco de ter seu automóvel furtado, transforma-se em um risco profissional, risco da própria organização com fins lucrativos, porque o fato passa a estar inserido em um novo contexto de incitação ao consumo, onde o deslocamento com automóveis faz parte da própria oferta, do próprio marketing do comerciante ou grupo de comerciantes.{108} Da leitura da jurisprudência brasileira observava-se, contudo, ainda uma forte recusa em impor ao comerciante a responsabilidade contratual por este risco da vida, preferindo-se, seja as soluções extracontratuais, seja as tradicionais, como a da culpa in contrahendo. A solução da responsabilidade pré-contratual tem como ponto positivo o fato de frisar a existência de deveres anexos de cuidado e de segurança com o patrimônio do consumidor em potencial, pelo simples fato do consumidor e do fornecedor entrarem em contato, quando o consumidor aceita a oferta de utilizar o estacionamento (teoricamente gratuito) do fornecedor. A existência destes deveres de conduta segundo a boafé no mercado, deveres cuja importância é aumentada pelo fato do lucro, do consumo ser a finalidade última da oferta de comodidade, parece-me, particularmente, a fonte última desta nova forma de responsabilidade, que efetivamente tende a estabelecer-se na sociedade de consumo. Por fim, interessa-nos ainda um último aspecto desta posição jurisprudencial, que é a teórica gratuidade deste contrato de consumo, tácito ou não. Para a aplicação das novas normas do CDC, é necessário * (107) A organização como finalidade de consumo nos shoppings center é tanta que inclusive a localização das lojas, das escadas, das entradas e saídas dos estacionamentos é preparada para facilitar tanto a visualização dos produtos, quanto a compra, daí dependendo a valorização dos espaços comerciais. (108) Vale aqui lembrar que a solução contratual do caso pressupõe que o julgador desconsidere a - normal - cláusula de exoneração de responsabilidade

contratual, geralmente colocada em cartazes localizados nas garagens. Tal cláusula de não indenizar já era considerada abusiva antes da entrada em vigor do CDC e foi expressamente mencionada no art. 51, I. (p. 185) verificar a presença de um consumidor na relação contratual. Se o depositante é destinatário final econômico do serviço prestado pelo depositário, pode este ser caracterizado como um consumidor. Esta será, quer nos parecer, a regra. Note-se que as regras do CDC destinamse a regular, se for o caso de contrato de consumo, os depósitos voluntários e os previstos nos arts. 1.282 a 1.287 (depósito necessário). Entre os depósitos necessários está o do hospedeiro em relação às bagagens que os hóspedes trazem consigo (art. 1.284 do CC e Dec. 7.358/73), contrato este anexo ao contrato de hospedagem, considerando-se que a remuneração do hospedeiro está incluída no preço da hospedagem (art. 1.286 do CC). Como já afirmei, no caso de estacionamentos, garagens e afins a jurisprudência brasileira tem considerado que há um contrato de depósito do veículo, ainda que gratuito o estacionamento. No caso das garagens fecha-se um contrato de depósito para guarda do veículo, contrato este remunerado e que pode facilmente ser considerado como contrato de consumo. Semelhante ao que acontece na hospedagem, o serviço prestado concentra-se no objeto, no veículo, logo o proprietário do veículo é o destinatário final não só fático como econômico do serviço. O contrato será submetido às novas regras do CDC. O Superior Tribunal de Justiça já considerou que mesmo sendo gratuito o estacionamento, se o serviço é "prestado no interesse do próprio incremento do comércio", por shopping center ou por supermercado, há um dever de vigilância e de guarda.{109} De regra, os contratos gratuitos estão excluídos do campo de aplicação do CDC, mas, tendo em vista estas últimas manifestações da jurisprudência, a * (109) Veja decisão STJ, 3.ª Turma, no RE 5886/SP, 1991, reproduzidas in: Direito do Consumidor, v. 6, p. 281 e ss., com a seguinte ementa: "De acordo com a orientação da 3.ª Turma, por maioria, existe, em casos dessa espécie, contrato de depósito, ainda que gratuito o estacionamento, respondendo o depositário em conseqüência, pelos prejuízos causados ao depositante (REsp. 4.582). "Serviço prestado no interesse do próprio incremento do comércio", daí "o dever de vigilância e guarda". 2. Embargos de declaração. Imposição da multa. Caso em que a Turma, por maioria de votos, entendeu ofendido o art. 538, parágrafo único, do CPC. 3. Recurso especial, quanto à primeira questão, conhecida pela alínea c, por unanimidade, mas improvido, por maioria de votos, e quanto à segunda questão, conhecido pela alínea a e provido, por maioria de VOtOS. (STJ REsp. 5.886-SP - 3.ª T - J. 19.2.91, Rel. Nilson Naves). (p. 186) sua inclusão como contrato de consumo sui generis" ou pré-contrato de consumo parece de todo possível. A polêmica foi agora pacificada pelo STJ com a edição da Súmula 130: "A empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento". d) Contratos de seguro e previdência privada - Os contratos de seguro foram responsáveis por uma grande evolução jurisprudencial no sentido de conscientizar-se da necessidade de um direito dos contratos mais social, mais comprometido com a eqüidade e menos influenciado pelo dogma da autonomia da vontade.{110}

As linhas de interpretação asseguradas pela jurisprudência brasileira aos consumidores matéria de seguros são um bom exemplo da implementação de uma tutela especial para aquele contratante em posição mais vulnerável na relação contratual.{111} Assim a Súmula 61 do STJ pacifica interpretação pró-consumidor de que existem dois tipos de suicídio, o premeditado e o não* (110) Veja resumo deste desenvolvimento em Araken de Assis, "Controle da Eficácia do Foro de eleição em Contratos de Adesão", in Rev. AJURIS 48/219. (111) Veja as recentes decisões, que seguem as linhas já consolidadas nos Tribunais mesmo no Juizado Especial e de Pequenas Causas: "Seguro. Obrigação de pagar. Compete à seguradora arcar com o risco de sua própria atividade, obrigando-se pelo pagamento do seguro, na hipótese de não ter tomado as prévias diligências para a sua contratação. Se foi omissa em tomar tais cautelas não pode vir alegar que a doença era preexistente à data da feitura do seguro, ainda mais quando não fez tal prova durante a instrução. (Unânime)". (Ap. Cív. 4/92, da Capital, Rel. Dr. Hildebrando Coelho Neto, 1.ª Turma Recursal/RS, 27.2.92). "Contrato de Seguro. Pagamento integral, à vista, do prêmio. Prazo de carência para a aceitação previsto em circular da SUSEP. Inteligência dos arts. 1.432 e 1.433 do CC. Captada a vontade do seguro através de corretora de seguro, que recebe e repassa o valor integral do prêmio à seguradora, obrigasse esta a indenizar o risco coberto. A aceitação do pagamento, sem expressa estipulação, no ato, de condição suspensiva, torna perfeito e acabado o contrato de seguro, prevalecendo o prazo de carência previsto em circular da SUSEP, norma que deve ser interpretada restritivamente." (Rec. 233, Rel. Dr. Domingos dos Santos Bitencourt, 3.ª Câmara Recursal, P. Alegre, 25.3.93). (p. 187) premeditado, afirmando: "O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado". Da mesma forma a jurisprudência não desconhece que muitos destes contratos de seguro são conexos com outros negócios e praticamente irrecusáveis para o consumidor que necessita do negócio principal. Veja-se, neste sentido, confirmando a sensibilidade da jurisprudência no tema, a Súmula 31 do STJ, segundo a qual a "aquisição, pelo segurado, de mais de um imóvel financiado pelo SFH, situados na mesma localidade, não exime a seguradora da obrigação de pagamento dos seguros". Hoje, além dos tradicionais seguros de vida{112} e de responsabilidade civil, existem os planos de aposentadoria privada e os segurossaúde, todos contratados geralmente através de métodos de contratação de massa, contratos de adesão e condições gerais dos contratos. Pareceu-nos necessário, na segunda edição, relembrar alguns aspectos importantes do contrato de seguro-saúde no direito brasileiro, uma vez que este contrato atinge mais de 30 milhões de consumidores em nosso mercado e tende a expandir-se.{113} É um bom exemplo de um contrato cativo de longa duração a envolver por muitos anos um fornecedor e um consumidor, sua família ou beneficiários. Se a

identificação do segurado e dos beneficiários como destinatários finais (consumidores) do serviço prestado pela seguradora, empresa ou cooperativa não oferece maiores dificuldades, dois aspectos devem ser destacados: a inclusão legal destes contratos na lei referente aos seguros e a sua característica como serviços, envolvendo obrigações de meio, mas também, de resultado. Tanto os contratos de seguro-saúde como os, também comuns, contratos de assistência médica possuem características e sobretudo uma finalidade em comum. O tratamento e a segurança contra os riscos envolvendo a saúde do consumidor e de sua família ou dependentes.{114} * (112) Sobre o tema, veja a Súmula 101 do STJ: "A ação de indenização do segurado em grupo contra a seguradora prescreve em um ano". (113) Assim os dados fornecidos pela revista Isto É, n. 1.270, de 2.2.94. (114) Veja as discussões na doutrina sobre a natureza (securitária ou não) destes vários contratos, o artigo da advogada Maria Leonor Baptista Jourdan, "Dos Contratos de Seguro-Saúde no Brasil", in: R. Inf Legisl. n. 180, abr./jun. 1993, p. 415 ss. (p. 188) O contrato de seguro-saúde estava regulado e definido pela lei específica dos seguros, Dec.-lei 73, de 21.11.66, possuindo duas modalidadeS: a) os contratos envolvendo o reembolso de futuras despesas médicas eventualmente realizadas (art. 129), contratos de seguro-saúde fornecidos por companhias seguradoras, empresas bancárias e outras sociedades civis autorizadas; b) os contratos envolvendo o pré-pagamento de futuras e eventuais despesas médicas (art. 135), mercado no qual operam as cooperativas e associações médicas.{115} A nova Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, manteve a distinção conceitual, mas regula ambos os contratos, concentrando-se nas "operadoras de planos privados", as fornecedoras que trabalham com pré-pagamento (art. 1.º, § 1.º, I, da Lei 9.656/98) e nas "operadoras de seguros privados de assistência à saúde", as fornecedoras que trabalham com reembolso (art. 1.º, § 1.º, II, da Lei 9.656/98). A nova lei regula também os sistemas de assistência à saúde pela modalidade de autogestão (art. 1 .º, § 2.º, da Lei 9.656/98). Hoje a forma mais comum continua sendo o contrato da modalidade pré-pagamento, mas cresce o número de fornecedores que oferecem uma forma mista de seguro-saúde (art. 2.º, parágrafo único, da Lei 9.656/98), de reembolço das despesas médicas e de pré-pagamento, onde a utilização dos serviços médicos "conveniados" é livre, não necessitando pagamento e conseqüente reembolso.{116} Note-se que o contrato de planos de saúde ou medicina pré-paga apresenta muitas semelhanças com o contrato de fornecimento de serviços médicos-hospitalares simples, isto é, aquele fechado por um consumidor que procura o médico ou hospital na atualidade de sua doença ,ou acidente e não face a um seguro ou previsão de eventual doença futura. Seria o contrato de medicina paga e não pré-paga.

Destacamos a semelhança de ambos os tipos, pois esses poderiam ser incluídos como sub-espécies de "contrato de assistência médicahospitalar". Esta inclusão facilitaria sobremaneira a aceitação da existência de uma obrigação conjunta de qualidade (leia-se, solidarie* (115) Em seu citado artigo Jourdan, p. 418, defende a inclusão de todas as modalidades sob o nomem iuris de "Seguro-Saúde". (116) Assim tb. Adalberto Pasqualotto, "Fontes do regulamento dos contratos de seguro-saúde e de assistência médica", ainda inédito, propõe um tratamento igualitário. (p. 189) dade){117} entre fornecedores de serviços.{118} Haveria uma obrigação de meio ou de resultado vinculando o consumidor, o executor direto dos serviços (médico, enfermeiros, anestesista etc.) e o fornecedor indireto dos serviços (hospital, consultório médico, empresa que explora economicamente a modalidade de medicina pré-paga), o qual contratou com o consumidor e organizou esta cadeia solidária de fornecedores do serviço médico.{119} A Lei 9.656/98 expressamente menciona a aplicabilidade do CDC (art. 3.º da referida lei) e a necessidade de que a aplicação conjunta do * (117) Assim manifesta-se também Aguiar Jr., RT 718, p. 47, citando como base jurisprudencial decisões do TJRJ no AI 1.475/92, TJMG Ap. Civ. 164.6562, j. 14.12.93, e do TJSP, Rel. Des. Walter Moraes, EI 106.119-1. No mesmo sentido, pela solidariedade com base no CDC e não no art. 929, manifestase Lopez, p. 225. Veja sobre responsabilidade do médico e hospital, TJRS, Ap. Civ. 595.160.250, j. 7.12.95. (118) A solidariedade entre médicos e hospitais é mais facilmente aceita pela jurisprudência, veja como exemplo a decisão do TAMG, reproduzida na íntegra in: Direito do Consumidor, v. 9, p. 151 e ss., veja igualmente histórica decisão do TJSP in: RT653, que mesmo antes da entrada em vigor do CDC aceitou a solidariedade entre famosa empresa de Assistência médica e seguro-saúde e o médico credenciado, por erro médico (EInf. 106.119-1, 2.ª C. Civ., j. 6.3.90, rel. Des. Walter Moraes). Mais recentemente e com base no CDC, veja decisão do Tribunal de Justiça/RS, 3.ª C., Ap. Civ. 595.160.250, j. 7.12.95, Des. Araken de Assis, cuja ementa é: "Civil. Responsabilidade civil. Divulgação de resultado de exame para identificar o vírus da sida. Culpa do médico e do hospital, pela divulgação, e do laboratório, que não ressalvou a possibilidade de erro. 1. O médico e o hospital respondem, solidariamente, pelos danos materiais e morais causados à paciente pela divulgação do resultado de exame para identificar o vírus da sida (síndrome da imuno-deficiência adquirida). Quebra de sigilo inadmissível, no local e nas circunstâncias, considerando o óbvio preconceito contra a doença. Também faltou o médico com o seu dever de informar ao paciente do resultado do exame e de não exigir confirmação do resultado. E há responsabilidade do laboratório, porque não ressalvou, ao comunicar o resultado, a possibilidade de o resultado se mostrar equivocado. Dano

material bem arbitrado. Dano moral majorado". (119) Concorda Ghersi, Medicina Prepaga, p. 162. Segundo o autor: "Existe una expectativa por parte del paciente, acerca del controi y vigilancia que el ente debe ejercer sobre el comportamiento y calidad de los servicios prestados por intermedio de todo su cuerpo asistencial, sean o no dependientes aspecto vinculado indisolublemente con la naturaleza de la obligation." (p. 190) CDC e da lei especial "não implique prejuízo ao consumidor" (§ 2.º do art. 35 da Lei 9.656/98). A jurisprudência brasileira é pacífica ao considerar taiS Contratos, tanto os de assistência hospitalar direta, como os de seguro-saúde, ou de assistência médica pré-paga como submetidos às novas normas do CDC.{120} A expressão genérica contrato de assistência médica é, portanto, dúbia, podendo englobar o contrato legalmente incluído como seguro ou plano de saúde e os demais contratos de assistência médica. Nesse sentido, pode-se conceituar o contrato de assistência médica-hospitalar como contrato de obrigação de fazer prestado por terceiros, cujo fornecedor é geralmente um hospital, grupo de médicos ou de hospitais, os quais oferecem locação de serviços médicos e de internação hospitalar ou planos de saúde em grupo, a particulares e empresas, "contrato atípico misto, emergente da combinação do contrato de assistência médica, profissional, uma locação de serviços médicos e de internação hospitalar, com variedade de serviços médicos-auxiliares, cirurgia, fornecimento de alimentos ao sócio ou beneficiário ou aos seus dependentes, pela sociedade contratada".{121} A nova lei especial prefere a expressão "assistência à saúde", definindo como tais "todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, à manutenção e à reabilitação da saúde" (art. 1.º, § 3.º da Lei 9.656/98). Os planos e seguros de saúde incluem-se todos no campo de aplicação da nova lei como atividades de assistência à saúde, excluídos os contratos de assistência médica própriamente dita. Quanto aos contratos de seguro-saúde, ensina Orlando Gomes que estes contratos destinam-se "a cobrir o risco de doença, com o pagamento de despesas hospitalares e o reembolso de honorários médicos, quando se fizerem necessários.{122} Incluem-se, assim, ainda * (120) Assim, a decisão do TJRGS, reproduzida in Revista de Jurisprudência n. 156, p. 294ss, cuja ementa afirma: "Hospital. É típica entidade prestadora de serviços médico-hospitalares. Portanto, sujeita às normas contidas no Código de Defesa do Consumidor. Improvimento do recurso..." (AI 592044716, 6.ª C. Civ., j. 16.6.92, Rel. Des. Oswaldo Stefanello). (121) Assim Pedro Arruda França, em seu livro Contratos Atípicos, Rio, Forense, 1989, p. 174. (122) Veja detalhes em Orlando Gomes, "Seguro saúde", p. 250. O art. 130 do Dec.-lei 73/66, hoje revogado, dispunha: "fica instituído o Seguro-Saúde para dar cobertura aos riscos de assistência médica e hospitalar." (p. 191) que genericamente, na definição do art. 1 .432 do Código Civil

Brasileiro, como contratos de seguro{123} envolvendo a transferência (onerosa e contratual) de riscos futuros à saúde do consumidor e de seus dependentes, o pagamento direto ou o reembolso dos gastos e serviços médico-hospitalares. Note-se que a idéia dos seguros está intimamente ligada ao anseio humano de controle dos riscos e de socialização dos riscos atuais e futuros entre todos na sociedade. Se inicialmente os seguros, assim como ainda descritos em nosso Código Civil de 1916 envolviam apenas o "indenizar", o "responder" monetariamente, é esta uma visão superada, pois os serviços de seguro evoluíram para incluir também a performance bond, isto é, o contrato de seguro envolvendo a "execução" de uma obrigação, um verdadeiro "prestar", em fazer futuro muito mais complexo que a simples entrega de uma quantia monetária. Além da finalidade comum de assegurar ao consumidor e seus dependentes{124} contra os riscos relacionados com a saúde e a manutenção da vida, parece-nos que a característica comum principal dos contratos de seguro-saúde é o fato de ambas as modalidades envolverem serviços (de prestação médica ou de seguro) de trato sucessivo, ou seja, contratos de fazer de longa duração e que possuem uma grande importância social e individual. Tratam-se de serviços cuja prestação se protrae no tempo, de trato sucessivo. São serviços contínuos e não mais imediatos, serviços complexos e geralmente prestados por terceiros, aqueles que realmente realizam o "objetivo" do contrato. O objeto principal destes contratos é a transferência (onerosa e contratual) de riscos referentes a futura necessidade de assistência médica ou hospitalar. A efetiva cobertura (reembolso, no caso dos seguros de reembolso) dos riscos futuros à sua saúde e de seus dependentes, a adequada prestação direta ou indireta dos serviços de * (123) O art. 1.432 do Código Civil brasileiro define o contrato de seguro como aquele "pelo qual uma das partes se obriga para com a outra, mediante a paga de um prêmio, a indenizá-lo do prejuízo de riscos futuros, previstos no contrato." (124) Sobre dependente adotado, hoje matéria regulada na lei especial, veja decisão do STJ, com voto vencido do Min. Ruy Rosado de Aguiar, in RE 74.498-SP. (p. 192) assistência médica (no caso dos seguros de pré-pagamento ou de planos de saúde semelhantes) é o que objetivam os consumidores que contratam com estas empresas. Para atingir este objetivo os consumidores manterão relações de convivência e dependência com os fornecedores desses serviços de saúde por anos, pagando mensalmente suas contribuições, seguindo as instruções (por vezes, exigentes, burocráticas e mais impeditivas do que) regulamentadoras dos fornecedores, usufruindo ou não dos serviços, a depender da ocorrência ou não do evento danoso à saúde do consumidor e seus dependentes (consumidores-equiparados).{125} Tratam-se, igualmente, de contratos aleatórios, cuja contra-prestação principal do fornecedor fica a depender da ocorrência de evento futuro e incerto, que é a doença dos consumidores-clientes ou de seus dependentes. Os profissionais do direito (moderno) estão acostumados a ana-

lisar contratos comutativos. Em especial nas relações securitárias, a presença do aleas, do risco inerente a esta relação contratual, pode levar a interpretações nem sempre corretas. Neste sentido, não é demais frisar novamente que incerta nesses contratos é a "necessidade" da prestação e não "se" e "como", com que qualidade, segurança e adequação, deve ela ser prestada. Em outras palavras, a prestação nos contratos de assistência médica ou de seguro-saúde, quando necessária, deve ser fornecida com a devida qualidade, com a devida adequação de forma que o contrato, que o serviço objeto do contrato unindo fornecedor e consumidor, possa atingir os fins que razoavelmente dele se espera, fim contratual muito mais exigente do que a simples diligência.{126} * (125) Repita-se aqui o que foi anteriormente mencionado sobre as obrigações "duradouras" e seu contínuo renovar de deveres, veja Parte 1, 1, n. 2.4. (126) A prestação do serviço também deve possuir a esperada "segurança", que aqui conscientemente omitimos, para poder tratar mais detídamente da noção de "vício do serviço". Quanto à segurança o art. 14 e ss. do CDC impoem um novo patamar de qualidade-segurança dos serviços prestados. Leading case foi a decisão da 7.ª Câmara Cível do TJRGS, Ap. Cív. 591007174, j. 10.4.91, Rel. Waldemar Freitas Filho: "Indenização. Conserto. Verificada, por perícia bastante e insuspeita, a falha do conserto, feito poucos dias antes, procede a indenização pretendida pelo dono do veículo consertado. Responsabilidade do reparador pelo conserto feito, consoante (p. 193) Nesse sentido, a relação contratual básica do seguro-saúde é uma obrigação de resultado, um serviço que deve possuir a qualidade e a adequação imposta pela nova doutrina contratual. É obrigação de resultado porque o que se espera do segurador ou prestador é um "fato", um "ato" preciso, um prestar serviços médicos, um reembolsar quantias, um fornecer exames, alimentação, medicamentos, um resultado independente dos "esforços" (diligentes ou não) para obter os atos e fatos contratualmente esperados.{127} Se o consumidor irá curar-se (ou não) é incerto, mas que a vinculação contratual entre consumidor e fornecedor de serviços o obriga a interná-lo, tratá-lo e propiciar serviços de assistência médica ou hospitalar na sua rede, ou simplesmente reembolsar a quantia despendida, isto é certo. Resumindo, o aleas presente nesse contrato de consumo (art. 3º, § 3.º c/c. art. 2.º, art. 29 do CDC) leva a conclusão que incerto é quando deve ser prestada e não se deve ou não ser prestada a obrigação principal. Esta é justamente a obrigação do fornecedor desses serviços: prestar assistência médica-hospitalar ou reembolsar os gastos com saúde, é a expectativa legítima do consumidor, contratualmente aceita pelo fornecedor. A extensão, portanto, da contra-prestação contratual do fornecedor de serviços de seguro-saúde e de assistência médica, a obrigatoriedade dessa contra-prestação é perfeitamente conhecida e, neste sentido, "não aleatória", aleatória é a necessidade ou não de prestar. Por isso, anos podem transcorrer sem que os serviços oferecidos e

contratos sejam prestados ou prestados em importância igual a da *o art. 14 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90)." in: Revista de Jurisprudência do TJRGS, 152/541. (127) Utilizamos aqui a distinção clássica de obrigação de meio e obrigação de resultado proposta por Demogue e reproduzida por Joseph Frossard. "Le distinction des obligations de moyens et des obligations de résultat", Paris, LGDJ, 1965, p. 1, "Parfois, enseignait-il, le débiteur n’est tenu qu’à la diligence du bon père de famille, et le savant auteur proposa alors l’expression obligation de moyens pour qualifier le contenu d’un tel devoir. Quelquefois, ce n’est plus seulement une attitude diligente qui est attendue d’un contractant ou d’un tiers, mais un fait ou un acte précis, un résultat indépendant des efforts fournis pour l’obtenir: la terminologie obligation de résultat devait caractériser ce second groupe." (p. 194) prestação paga pelo consumidor mês-a-mês. O risco, porém, está coberto, o equilíbrio contratual especial, preservado, o contrato em execução quanto a seus deveres secundários e realizando as expectativas legítimas dos consumidores de cobertura dos riscos envolvendo a saúde própria e de seus dependentes. Tratam-se, igualmente, de contratos concluídos por escrito e no caso dos seguros, solenes, de contratos regulamentados, subordinados às disposições das leis especiais, das leis gerais imperativas e demais regulamentações administrativas.{128} Observadas estas especialidades dos contratos de serviço em questão, conclui-se que os modelos tradicionais de contrato (contratos envolvendo obrigações de dar, imediatos e menos complexos) fornecem poucos instrumentos para regular estas longíssimas, reiteradas e complexas relações contratuais, necessitando seja a intervenção regulamentadora do legislador, seja a intervenção reequilibradora e sábia do Judiciário, agora instrumentalizado com as novas normas do CDC. Da mesma forma, os contratos envolvendo planos de previdência privada deveriam merecer maior atenção por parte da doutrina jurídica, pois são responsáveis por grande número de disputas judiciais{129} e muitas vezes, em virtude da defasagem do valor das prestações e pensões pagas, atentam contra a dignidade do consumidor ou beneficiário. As históricas decisões do STF, permitindo a substituição do valor do salário mínimo por outros índices de atualização monetária,{130} * (128) Como ensinava Orlando Gomes, "Seguro-Saúde", p. 251, no conteúdo dos contratos de seguro-saúde "incorporam-se necessariamente disposições legais e, até mesmo determinações de órgãos do Estado, impostas às partes irresistivelmente". Sobre fontes heterônomas dos contratos, veja os ensinamentos basilares de Enzo Roppo, p. 137 e ss. (129) Veja: "Previdência privada. Aposentadoria. Resgate. Quem participa de um plano de aposentadoria de natureza privada, com previsão de resgate

proporcional às contribuições efetivadas, deve receber o valor das parcelas correspondentes com a devida correção oficial, pois se trata de um plano de renda, e a quantia a ser resgatada não pode sofrer redução para atender alegadas reservas, sob pena de prejudicar quem investiu no plano subscrito." (Proc. 01191716602, Rec. 190, Rel. Dr. Silvestre Tasso Ayres Torres, 1.ª Câmara Recursal, 7.5.92, JEPC/RS). (130) Veja as decisões do STF, em especial o leading case (RE 1.10.930/RS, j. 10.4.87, Rel. Min. Sydney Sanches, "Previdência Privada. APLUB. Rea- (p. 195) acabaram por frustrar as expectativas (legítimas) dos consumidores, que contribuíram por anos para este sistema de empresas privadas e hoje recebem menos que um terço do salário mínimo mensal e muito menos do que se tivessem simplesmente investido tais quantias. A jurisprudência posterior ao CDC tem reconhecido a necessidade de a administradora garantir ao menos a atualização monetária das prestações pagas pelos participantes consumidores e sugestões existem para que este setor seja regulamentado com mais rigor e seja introduzido no direito brasileiro o princípio do "administrador prudente" (prudent person rule) previsto na legislação americana sobre fundos de pensão.{131} Com a melhoria do nível de vida na sociedade, com a tendência crescente de privatização, como se observa na vizinha Argentina, este contrato cativo de longa duração tende a multiplicar-se também no mercado brasileiro, face ao desejo do consumidor de garantir-se e a sua família contra os riscos futuros. Este importante serviço oferecido no mercado e a relação contratual resultante da vinculação do consumidor durante anos a determinada empresa de previdência privada estão mencionados expressamente no art. 3.º do CDC e, como novos contratos de consumo, devem obedecer as novas linhas de eqüidade e boa-fé impostas pelo CDC. Resumindo, em todos estes contratos de seguro podemos identificar o fornecedor exigido pelo art. 3.º do CDC, e o consumidor. Notese que o destinatário do prêmio pode ser o contratante com a empresa seguradora (estipulante) ou terceira pessoa, que participará como beneficiária do seguro. Nos dois casos, há um destinatário final do serviço prestado pela empresa seguradora. Como vimos, mesmo no *juste do benefício previdenciário, com invocação de direito adquirido decorrente de relação contratual. Incidência imediata de lei nova, de ordem pública (n. 6.435/77), regulando, a partir de sua vigência, a atualização das contribuições e benefícios, previstos em relação jurídica contratual de trato sucessivo, sem afronta a suposto direito adquirido, sobretudo por não acarretar desequilíbrio social ou jurídico..." in: RTJ, 121/776 e ss., no mesmo sentido, RExt na RTJ 121/705 e ss. (131) Assim manifestou-se Ronaldo Porto Macedo Júnior, no trabalho apresentado ao 4.º Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, Gramado, 8 de março de 1998, intitulado "Os contratos previdenciários. a informação

adequada e riscos do consumidor", ainda não publicado. (p. 196) caso do seguro-saúde, em que o serviço é prestado por especialistas contratados pela empresa (auxiliar na execução do serviço ou preposto), há a presença do consumidor ou alguém a ele equiparado, como dispõe o art. 2.º e seu parágrafo único. e) Contratos bancários e de financiamento - Podemos denominar, genericamente, contratos bancários aqueles concluídos com um banco ou uma instituição financeira. Entre eles destacam-se o depósito bancário, depósito em contra corrente, conta poupança, ou a prazo fixo, o contrato de custódia e guarda de valores, o contrato de abertura de crédito, de empréstimo e o de financiamento. Na sociedade atual os contratos bancários popularizaram-se, não havendo classe social que não se dirija aos bancos para levantar capital, para recolher suas economias, para depositar seus valores ou simplesmente pagar suas contas. E o contrato de adesão por excelência, é uma das relações consumidor-fornecedor que mais se utiliza do método de contratação por adesão e com "condições gerais" impostas e desconhecidas. A possibilidade de o consumidor obter imediatamente uma prestação, um bem, um serviço, seja sob a base contratual de um mútuo, uma venda ou mesmo um leasing, enquanto o fornecedor do crédito aceita esperar até um certo termo para só então exigir o seu pagamento, em outras palavras, o fornecimento de crédito ao consumo considerase hoje um dos fatores mais importantes da atual sociedade de consumo de massa.{132} A operação envolvendo crédito é intrínseca e acessória ao consumo,{133} utilizada geralmente como uma técnica complementar e necessária ao consumo,{134} seja pela população com menos possibilidades econômicas e sociais, que utilizam seguidamente as vendas à prestação, seja pelo resto da população para adquirir bens de maior valor, como automóveis ou casas próprias, ou simplesmente para alcançar maior conforto e segurança nas suas compras, utilizando o * (132) Calais-Auloy, 3. ed., p. 257. (133) A interdependência do consumo como conhecemos e o crédito são tão grandes, que o Code de la Consommation francês destaca um livro para tratar do "endividamento", regulando no primeiro Título o crédito (direto e indireto ao consumidor) em todas as suas formas acessórias ao consumo, artt. 311-1 e ss. (134) Veja conclusões de Howells, p. 176, que traz anexo o texto da Diretiva européia 87/102 de 1986 sobre crédito ao consumo, com suas modificações. (p. 197) sistema de cartões de crédito.{135} A massificação do crédito e um pósmoderno entusiasmo pelo consumo com pagamento postergado têm trazido problemas de insolvência em países (pós) industrializados de primeiro mundo,{136} mas também no Brasil.{137} A caracterização do banco ou instituição financeira como fornecedor está positivada no art. 3.º, caput do CDC e especialmente no § 2.º do referido artigo, o qual menciona expressamente como serviços as atividades de "natureza bancária, financeira, de crédito". Esta inclusão no parágrafo referente a "serviços" pode chocar, uma vez que o contrato de mútuo é um dar e neste sentido o dinheiro seria um "produto", cujo pagamento seriam os "juros". Considerando, porém, o sistema do CDC, que não utiliza as definições de bem

consumível do CC, nem a definição econômica deste "insumo", mas inclui todos os bens materiais e imateriais como produtos lato sensu e, especialmente, um sistema que não especifica os tipos contratuais utilizados, mas sim a atividade em si e geral dos fornecedores, a lógica está em que o "produto" financeiro é o "crédito", a captação, a administração, a intermediação e a aplicação de recursos financeiros do mercado para o consumidor e que a caracterização de fornecedor vem da operação bancária e financeira geral oferecida no mercado{138} e não só dos contratos concluídos. Note-se ainda que contratos bancários típicos são os de intermediação e atípicos, envolvendo outros fazeres acessórios que não implicam intermediação do crédito. Da mesma forma, observando as amplas definições de instituições finan* (135) Calais-Auloy, desde 1975, propugna por um maior controle desta acessoriedade do crédito, chamando a atenção para a importância prática e teórica de proibições legais e controle no que concerne aos contratos de crédito, Calais-Auloy, in Dalloz, 1975, Chron., p. 21. (136) Veja detalhes em Ramsay, p. 192 e ss., que menciona dados de 1997, segundo os quais 1 em 96 famílias norte-americanas teria pedido "falência civil", totalizando mais de um milhão de famílias. Veja também o mencionado artigo de Calais-Auloy e o Code de la Consommation francês. (137) Sobre o tema, Lopes, p. 109 e ss. (138) O fornecedor organiza-se, operacionaliza sua atividade de intermediação e administração, de circulação do dinheiro na sociedade através destas chamadas "operações" em geral, que segundo Abrão, p. 46 e 47, caracterizam-se justamente por sua interdependência entre as típicas e atípicas, "por terem conteúdo econômico e por serem praticadas em massa". Veja também Pontes de Miranda, t. LII, p. 3 e ss. (p. 198) ceiras da Lei 4.594/64{139} e da Lei 7.492/86,{140} conclui-se que também é esta a técnica funcional utilizada pelo legislador do direito comercial para caracterizar a atividade financeira e bancária em geral como um serviço de consumo e comércio colocado à disposição no mercado. A caracterização do banco ou instituição financeira como fornecedor, sob a incidência do CDC, é hoje pacífica.{141} Resta saber se o consumidor é o co-contratante no contrato em exame. Já observamos que a característica maior do consumidor é ser o destinatário final do serviço, é utilizar o serviço para si próprio. Nesse sentido, é fácil caracterizar o consumidor como destinatário final de todos os contratos de depósito, de poupança, e de investimento que firmar com os bancos. A dificuldade está na caracterização do consumidor, nos contratos de empréstimo, onde há uma obrigação de dar, de fornecer o dinheiro, que é bem juridicamente consumível. Nestes casos, a pessoa é destinatária final fática, mas pode não ser a destinatária final econômica. Por exemplo, um advogado que contrata o empréstimo de * (139) Segundo o art. 17, caput, da Lei 4.595/64, instituições financeiras seriam as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e

a custódia de valor de propriedade de terceiros. (140) Segundo o art. 1.º da Lei 7.492/86, amplia-se instituição financeira para englobar qualquer "pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação de recursos, intermediação ou administração mobiliários". Veja também art. 119 do Código Comercial. (141) Veja as decisões do TJRS, até mesmo em ações civis públicas propostas pelo MP/RS contra alguns bancos: Ap. Civ. 59030717, j. 25.6.97, Des. Arnaldo Rizzardo; Ap. Civ. 595095886, j. 20.8.97, Rel. Nelson Antonio Monteiro Pacheco, Ap. Civ. 595100934, j. 20.8.97, Rel. Nelson Antonio Monteiro Pacheco e Ap. Civ. 591167551, j. 20.8.97, Rel. Nelson Antonio Monteiro Pacheco, em cujas ementas lê-se: "A possibilidade jurídica do pedido é clara, porquanto as relações decorrentes da concessão de crédito se amoldam à tutela do CDC". TARS, Ap. Civ. 196197867, j. 12.3.98, Des. José Aquino Flores de Camargo, em cuja ementa lê-se: "Ação civil pública. Ministério Público. Titularidade para propor ação em defesa dos interesses difusos e coletivos. Art. 81 do CDC em combinação com o art. 129, IX, da CF. Ação que visa não só a proteção da comunidade de clientes (p. 199) certa quantia para reformar o seu escritório ou o agricultor, para comprar a semente para plantar. Nestes dois casos, o advogado e o agricultor são destinatários fáticos. mas o produto é insumo para alguma outra atividade profissional. Logo não poderiam recorrer, em princípio, à tutela do CDC. Observamos, porém, que o sistema do CDC é um sistema aberto, que trabalha com a técnica de equiparação de pessoas à situação de consumidor quando se constatar o desequilíbrio contratual e a vulnerabilidade (técnica, jurídica ou fática) da pessoa que contrata com o fornecedor. Parte da doutrina{142} e jurisprudência{143} defende a aplicação do CDC a estes contratos interempresariais. Nesse sentido, podemos concluir que os contratos entre o banco e os profissionais, nos quais os serviços prestados pelos bancos estejam, em última análise, canalizados para a atividade profissional destas pessoas físicas (profissionais liberais, comerciantes individuais) ou jurídicas (sociedades civis e comerciais), devem ser regidos pelo direito comum, direito comercial e leis específicas sobre o tema. Só excepcionalmente, por decisão do Judiciário, tendo em vista a vulnerabilidade do contratante e sua situação equiparável ao do consumidor stricto sensu,{144} serão aplicadas as normas especiais do CDC a estes contratos entre dois profissionais. Para caracterizar estes contratos como contratos de consumo ou não o fator decisivo não é a existência de uma lei especial (por exemplo, Lei do Mercado de Capitais), que regule o contrato bancário, decisiva *do Banespa, como a população em geral, dado o seu caráter declaratório, abstrato e geral. Incidência das disposições do CDC às relações bancárias.

Declaração de nulidade de cláusulas abusivas contidas em contratospadrão. Apelo provido para ampliar a declaração". (142) Veja por todos, Marins, na Revista Direito do Consumidor, v. 6, p. 94. (143) Veja como exemplo caso envolvendo indústria de bebidas e uma operação de leasing com banco, em que houve aplicação do CDC e inversão do ônus da prova do indébito (TARS in Ap. Civ. 196246151, j. 12.6.97, Rel. Rui Portanova). (144) Parece-nos que a vulnerabilidade pode ser mesmo caracterizada pela imposição de um contrato pré-elaborado, mas a decisão final caberá à jurisprudência fixar, a qual pelo menos no Rio Grande do Sul tem decidido pela necessidade da ação reequilibradora nestes contratos bancários e financeiros, veja jurisprudência citada no item 1.1, b. (p. 200) é a presença de um consumidor ou de um profissional-vulnerável, que possa também ser equiparado ao consumidor, em matéria de proteção contratual. No caso do consumidor não-profissional prevalece, em todos os contratos bancários, a presunção de sua vulnerabilidade (art. 4º, I do CDC). A maioria dos contratos bancarios é concluída através da utilização de condições gerais dos contratos e de contratos de adesão. Estes métodos de contratação de massa, como observamos na experiência alemã, servem como indício da vulnerabilidade do co-contratante. Mesmo sendo um advogado o co-contratante, mesmo sendo um comerciante ou agricultor, a vulnerabilidade fática estará quase sempre presente, dependendo da jurisprudência a aplicação extensiva ou não, no caso concreto, das normas tutelares do CDC. Como esta aplicação "analógica" tende a tornar-se a regra, como aconteceu na Alemanha, a melhor solução será os Bancos adaptarem todos os seus contratosformulários, contratos de adesão e condições gerais de serviços, aos patamares de equilíbrio e de boa-fé instituídos pelo CDC. Esta solução é também a mais econômica, pois evita a preocupação em determinar se o co-contratante é ou não um consumidor, e baseia-se na realidade fática de superioridade econômica e técnica que possuem os bancos em relação à maioria dos seus clientes, superioridade esta que facilmente terá como reflexo a aceitação da vulnerabilidade e na hipossuficiência de seu co-contratante. Apesar das posições contrárias iniciais,{145} e com o apoio da doutrina,{146} as operações bancárias no mercado, como um todo, foram consideradas pela jurisprudência brasileira como submetidas às normas e ao novo espírito do CDC de boa-fé obrigatória e equilíbrio contratual.{147} Como mostra da atuação do Judiciário, não se furtando a exercer * (145) Em especial o Parecer para a FEBRABAN, Arnoldo Wald, "O Direito do Consumidor e suas repercussões em relação às instituições financeiras", in: R. inf. legisL, n. 11, jul./set./91, pp. 295-312, segundo o autor o CDC encontraria aplicação somente aos contratos de aluguel de cofres e a mais nenhum dos contratos firmados entre os consumidores e as instituições financeiras. (146) Veja a manifestação, decisiva de Nery, Anteprojeto, pp. 302 a 311.

(147) Veja, considerando as normas do CDC aplicáveis aos contratos bancários com consumidores, Ap. Civ. n. 194092862, 1.ª C. Civ., TARGS, Rel. Juiz Juracy Vilela de Souza, j. 7.6.94 e a já citada decisão da 2.ª C. Civ., TARGS, (p. 201) o controle do conteúdo destes importantes contratos de massa. Destaco a ementa de verdadeiro leading case: "Código de Defesa do Consumidor. Proteção contratual: Destinatário. Cláusulas abusivas: Alteração unilateral da remuneração de capital posto à disposição do creditado: Imposição de representante. Conhecimento de ofício". O conceito de consumidor, por vezes, se amplia, no CDC, para proteger quem "equiparado". É o caso do art. 29. Para o efeito das práticas comerciais e da proteção contratual, "equiparam-se aos consumidores todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas". O CDC rege as operações bancárias, inclusive as de mútuo ou de abertura de crédito, pois relações de consumo. O produto da empresa de banco é o dinheiro ou o crédito, bem juridicamente consumível, sendo, portanto, fornecedora; e consumidor o mutuário ou creditado. Sendo os juros o "preço" pago pelo consumidor, nula cláusula que preveja alteração unilateral do percentual prévia e expressamente ajustado pelos figurantes do negócio. Sendo a nulidade prevista no art. 51 do CDC da espécie pleno iure, viável o conhecimento e a decretação de ofício, a realizar-se tanto que evidenciado o vício (art. 146, parágrafo, do Código Civil). É nula a cláusula que impõe representante "para emitir ou avalizar notas promissórias" (art. 51, VIII, do CDC). (Ap. Civ. 193051216, 7.ª C. Civ., j. 19.5.93, Rel. Juiz Antonio Janyr Dall’Agnol Júnior, TARGS) Observa-se, no direito comparado, uma tendência cada vez maior de incluir os contratos de financiamento, para fins privados, pessoais, ou familiares, e os chamados contratos de crédito direto ao consumidor, entre aqueles que devem merecer a atenção e a tutela especial do direito, a exemplo do art. 52 do CDC.{148} Assim, a partir de 1.º de janeiro de 1991 está em vigor na Alemanha a Lei sobre Crédito ao *Rel. Juiz Paulo Heerdt, de 24.9.92, envolvendo pequeno comerciante e instituição bancária e a nova força do art. 29 do CDC (Ap. Civ. 192188076). (148) Sobre a alienação fiduciária trataremos a seguir, na letra b sobre compra e venda com alienação fiduciária. (p. 202) Consumidor (Gesetz über Verbraucherkredite), a qual segundo orientação da Comunidade Européia, prevê um direito de arrependimento para o consumidor.{149} Muitas preocupações têm surgido no Brasil quanto ao contrato de financiamento, com garantia hipotecária,{150} e os contratos de mútuo para a obtenção de unidades de planos habitacionais. Nestes casos o financiadOr, o órgão estatal ou o banco responsável, caracteriza-se como fornecedor. As pessoas físicas, as pessoas jurídicas, sem fim de lucro, enfim todos aqueles que contratam para benefício próprio,

privado ou de seu grupo social, são consumidores. Os contratos firmados regem-se, então, pelo novo regime imposto aos contratos de consumo, presente no CDC. Estes são contratos típicos por adesão, mas se fechados entre profissionais (para a construção de fábrica, de shopping center) estarão em princípio excluídos do campo de aplicação do CDC. Somente examinando caso a caso a eventual vulnerabilidade do co-contratante é que o Judiciário brasileiro poderá expandir a tutela concedida, em princípio, só ao consumidor não-profissional, usando por exemplo a norma permissiva do art. 29 do CDC.{151} Este tipo de delimitação será extremamente difícil no caso de cartões de crédito,{152} cujo titular for pessoa física, que exerce uma profissão, um profissional liberal, por exemplo, que utiliza o cartão ora para adquirir bens para si ou para sua faniflia, ora para o seu escritório ou * (149) Veja Schmelz, p. 1219(NJW; sobre as Diretivas da Comunidade Européia, veja Bergel e Paolantonio, in: Direito do Consumidor, vol. 7, p. 15 e ss. (150) Veja o artigo do advogado Marcelo G. Rodrigues, "O Problema dos Promitentes Compradores de Imóveis construídos mediante Financiamento com Garantia Hipotecária", in RT 588/266. (151) Veja sobre a extensão do campo de aplicação do CDC através da interpretação jurisprudencial do art. 29, o número 1.1b desta obra; sobre os contratos de Sistema Financeiro da Habitação e a aplicação das normas do CDC a estes contratos, o estudo basilar de Arnaldo Rizzardo, "O Código de Defesa do Consumidor aplicado aos contratos regidos pelo sistema financeiro da habitação", in: Revista AJURIS, v. 60 (1994), pp. 42-61. (152) Sobre os cartões de crédito, enquanto vínculo contratual, veja Ghersi, p. 610, seriam, para alguns, espécies de cartas de créditos, para outros, contratos entre comerciantes (empresa e estabelecimento que aceita o uso do cartão) ou envolveriam duas relações contratuais (consumidor-empreSa e entre empresa e comerciante) para simplificar o crédito e o consumo. (p. 203) para a sua atividade profissional. Nestes casos, a interpretação será próconsumidor. e o contrato de crédito para a pessoa física deverá supor que se trata de um consumidor, adaptando-se ao regime do CDC. Da mesma forma, a poupança privada apresenta dificuldades em sua caracterização como contrato de consumo, pois se a sociedade de consumo está intimamente ligada à poupança popular, o contrato em si pode ser visto como um contrato visando simples investimento. A importância prática deste contrato e a sua caracterização como contrato de adesão, onde várias cláusulas apresentam alto grau de abusividade e onde a mudança das linhas governamentais geralmente afeta as expectativas dos poupadores, devem impor a este contrato um regime equiparado ao contrato típico de consumo, visando proteger a parte vulnerável, o consumidor (pouco importando a sua fortuna) e impor certos riscos profissionais indisponíveis às instituições que captam a poupança popular no mercado. Nesse sentido, concluiu o III Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor que a poupança popular e o crédito ao consumo constituem relação de consumo.{153} No mesmo sentido a

Conclusão n. 2 do Congresso Internacional de Responsabilidade Civil, realizado em Blumenau em 1995: "As instituições financeiras estão sujeitas ao CDC também em relação às operações creditícias ao consumidor". Cabe aqui mencionar também os contratos de capitalização, regulados pelo Decreto-Lei n. 261/67: por este contrato o aderente (geralmente um consumidor pessoa física) pagará ao outro contratante (companhia capitalizadora) contribuições periódicas para receber, em certo prazo, certo capital acumulado, acrescido de juros, cujo pagamento poderá ser antecipado mediante sorteios. Trata-se de uma espécie de formação de recursos financeiros, poupança, que cria expectativas específicas e legítimas nos consumidores, merecendo um controle específico do direito para evitar abusos nestes contratos, principalmente em virtude da vulnerabilidade técnica e jurídica do consumidor médio. É um contrato de adesão, onde nada impulsiona o consumidor a fechar o contrato, a não ser o desejo de formar uma poupança para melhorar * (153) III Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor - O contrato no ano 2000, realizado no Banco Central, em Brasília, abril de 1994. Quanto ao crédito ao consumo, mencione-se a existência da Diretiva da Comunidade Européia n. 88, 22.2.90 (J.O.C.E., n. L 61/14, Diretiva 90/88/CEE), a qual modificou a anterior Diretiva 87/102/CEE. (p. 204) sua vida, mesmo assim, se fechado o contrato entre uma companhia capitalizadora e um consumidor, deverão ser aplicadas as regras saneadOraS do CDC. O grande problema na sociedade de consumo são as relações triangulares, que diluem as garantias de bom desempenho dos serviços e aumentam os riscos para o consumidor. Assim, se um consumidor quer adquirir um bem móvel a prazo, a loja assegura para ele um financiamento através de uma empresa de crédito já localizada dentro da própria loja, o consumidor não se dá conta, mas passa a ser devedor da empresa financeira e não mais do comerciante.{154} As vezes as relações contratuais são entre dois fornecedores, e o consumidor é apenas o terceiro-vítima. Como no caso, comum nos anos 80, em que o consumidor prometia comprar imóvel a ser construído por uma empresa imobiliária, a qual fechava um financiamento com um banco, dando o imóvel (terreno e acessões) em garantia hipotecária, para poder construir o edifício. O consumidor pagava integralmente o seu imóvel, mas não era feito o registro da escritura definitiva de Compra e Venda, sendo que uma cláusula responsabilizava o consumidor pela liberação da dívida (do financiamento) feita pelo construtor, uma vez que a hipoteca (ônus) se transferia junto com a propriedade. Assim também alguns contratos são fechados entre dois bancos, ou entre o Estado ou empresário e o banco, podendo, porém, pela demora do depósito efetivo em conta prejudicar o consumidor-cliente. Conclui-se esta exposição, reiterando a importância alcançada no mundo de hoje pelos contratos bancários e contratos de crédito. A jurisprudência dominante é pela aplicação das normas do CDC a estes contratos, pois, em regra, estão presentes consumidores como outro pólo da relação contratual, atuando como destinatários finais dos serviços, utilizando os serviços para proveito próprio, de seu grupo social ou familiar. As regras do CDC encontrarão aplicação, também, em caso de vulnerabilidade comprovada do contratante, quando o

contrato bancário inserir-se em sua atividade profissional,{155} seguindo * (154) Sobre alienação fiduciária veja letra b a seguir. (155) Aplicando o art. 29 do CDC para estender sua proteção aos contratos comerciais em contrato bancário, veja interessante decisão de 13.4.94, Ap. Civ. 194041851, rel. Juiz Antônio Janyr Dall’Agnol Jr.. com a seguinte ementa: "Código de Defesa do Consumidor - Contrato bancário - Interpretação - Art. 47 do CDC. Havendo divergência de índice de atualização monetária, (p. 205) assim a orientação da jurisprudência brasileira, que já dedicava atenção especial aos contratos bancários e às cláusulas abusivas nele inseridas.{156} f) Contratos de administração de consórcios e afins - Nos contratos do sistema de consórcio, como os denomina o art. 53, § 2º do CDC, a administradora do consórcio caracteriza-se como fornecedor, prestadora de serviços: o contrato é geralmente concluído com consumidores, destinatários finais fáticos e econômicos dos bens duráveis (automóveis, geladeiras, televisores e mesmo imóveis), que se pretende adquirir através dos consórcios. Aos contratos do sistema de consórcio aplicam-se as normas do CDC, a exceção do contrato fechado com alguma empresa, que utilizará os automóveis para a sua atividade profissional, caso em que, mesmo assim, comportaria a aplicação analógica das normas do CDC em virtude da vulnerabilidade do co-contratante, pois os contratos são de adesão e de conteúdo tipicamente ditado, até mesmo por Portarias Ministeriais. Trata-se de um contrato de prestação de serviços,{157} em que a Administradora ou Lançadora arrecada uma contribuição mensal de cada pessoa do grupo de consorciados para a formação de um fundo comum destinado a aquisição, para cada consumidor, de um bem.{158} A Administradora arrecada e gere o fundo, administra o grupo,{159} *porque datilografado espécie que não a constante de impresso, em contrato de adesão. prevalece o que mais favorável ao aderente, nos termos do art. 47 do CDC. Sobre mais favorável, dúvida não pode persistir quanto ao que ordinariamente ocorre - e que é a assinatura em branco dos formulários pelo financiado. Ao predisponente das cláusulas cumpre evidenciar, satisfatoriamente, a anuência do aderente à modificação, pois, aqui, o formulário impresso ostenta-se segurança também desse. Apelo desprovido." (156) Veja o desenvolvimento da jurisprudência brasileira quanto às cláusulas de eleição do foro em contratos bancários, no capítulo IV, 1.2, b. (157) Mas note-se que o próprio STJ (RE 7.742/MG, 1991) afirmou aplicar-se aos consórcios para venda de bens duráveis as normas referentes à alienação fiduciária em garantia.

(158) Para parte da jurisprudência trata-se de contrato de "captação antecipada de poupança popular", veja RT 661/141. (159) A jurisprudência visualiza com clareza as relações de consumo entre a Administradora e cada um dos consorciados. Assim, como exemplo: (p. 206) promove os sorteios, organiza os lances e fornece àquele de direito, ao fim, uma carta de crédito para que possa adquirir o bem na revendedora do produto (a qual teoricamente não tem relação contratual com o consumidor, pois é pessoa jurídica diferente). Para a garantia da Administradora (ou se preferirem do grupo), exige esta, como garantia do pagamento das parcelas eventualmente vincendas, a alienação fiduciária do bem ou a reserva de domínio. O conteúdo do contrato é regulado pelo Dec. 70.951/72 e pela Portaria 330, de 23 de setembro de 1987, do Ministério da Fazenda e previamente aprovado pela Secretaria da Receita Federal,{160} sendo praxe que, além do longo contrato impresso no formulário, integre a relação contratual o "Regulamento do Consórcio" aprovado pela Receita Federal, registrado em algum Cartório de Títulos e Documentos, sem que cópia destas condições gerais seja entregue ao consumidor. Em virtude da presença constante de consumidores como pólo contratual, podemos concluir que os contratos de sistema de consórcios são típicos contratos de consumo, cuja finalidade justamente é permitir e incentivar o consumo de bens duráveis, que de outra forma não estariam ao alcance do consumidor. Mas pelos abusos que já ocorreram neste setor, muito salutar que se estabeleça uma eqüidade, um equilíbrio obrigatório nestes contratos de adesão através das normas do CDC. O * Apelação Cível n. 192199982 - 7.ª Câmara Cível - TARGS, j. 21.10.92, Rel. Antônio Janyr Dall’Agnol Júnior. Consórcio. Restituição de parcelas. "Ilegitimidade passiva da administradora". Tese que não merece acolhimento, em vista do inequívoco fato de que as relações, rigorosamente, se estabelecem entre cada consorciado e a administradora, e não entre consorciados. "Mérito". Restituição que se realiza, com correção, após o encerramento do grupo. Súmula de n. 35 do STJ. Apelo desprovido (in Julgados TARGS, n. 86, p. 303). Veja do TJMT: "Consórcio - Desistência do consorciado - Cobrança das parcelas pagas - Ação proposta contra a Administradora - Legitimidade passiva "ad causam" - Quantia reclamada por ela recebida e administrada. Ementa Oficial: É parte legítima ad causam a administradora de consórcio de veículos para figurar no pólo passivo da demanda em que o consorciado pleiteia restituição das parcelas que lhe foram pagas. (in RT 693/155). (160) A atribuição para tanto foi conferida pelo Dec. 70.951, de 9.8.72. Há que se considerar igualmente a Portaria 190/89 do Ministério da Fazenda. (p. 207) Código imporá uma maior boa-fé e lealdade também quando da formação destes contratos e da informação do consumidor. Mesmo antes da entrada em vigor do CDC, a jurisprudência brasileira já se preocupava em afastar os efeitos mais unilaterais dos

contratos do sistema de consórcios. Assim, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ensinava nos julgados 1.ª Câmara Cível, 27.9.88, rel. Des. Tupinambá Miguel Castro do Nascimento: "Consórcio - Desistência do Plano - Correção Monetária - no consórcio para aquisição de bens duráveis, havendo desistência do plano por um participante e prevista a devolução das quantias pagas - Tal devolução deverá ser realizada com a incidência de correção monetária - Cláusula em sentido contrário - Por ofensiva ao princípio geral de direito do não locupletamento sem causa, inaplicável" e 6.ª Câmara Cível, 10.6.86, rel. Des. Luiz Fernando Koch: "Consórcio - Exclusão de consorciado por mora no pagamento das prestações - se o regulamento do consórcio estabelecia que a purgacão da mora devesse ser feita em moeda corrigida, o mesmo critério deverá ser adotado em relação à devolução das prestações ao consorciado excluído, embora em contrário dispusesse o regulamento - Princípio da boa-fé a nortear a interpretação integrativa dos contratOS.{161} O CDC cuida expressamente dos contratos do sistema de consórcios na norma do art. 53, indiscutível, portanto, sua inclusão no campo de aplicação do CDC. Neste sentido, pacifica a jurisprudência a Súmula de n. 35 do STJ: "Incide correção monetária sobre as prestações pagas, quando da sua restituição, em virtude da retirada ou exclusão do participante de plano de consórcio". Discutível, por sua vez, a inclusão do contrato de leasing, no campo de aplicação do CDC. Se nas edições anteriores, por uma visão finalista do campo de aplicação do CDC, tendíamos a considerar este sempre um contrato de natureza mercantil pura, hoje a sua multiplicação no mercado brasileiro de consumo não mais nos permite esta clara exclusão. O contrato de leasing, regulado como arrendamento mercantil,{162} está sendo utilizado como contrato de consumo simples de pessoas físicas, especialmente no caso do leasing de computadores, leasing de eletrodomésticos e, especialmente, leasing * (161) Decisões citadas in RT 661/142. (162) Veja em leasing interempresarial, negando a aplicação do CDC, TAPR, in RT678, p. 180. (p. 208) de automóveis.{163} Nestes casos, se a empresa de leasing, que é fornecedora, estiver frente a um consumidor stricto sensu, em especial uma pessoa física, o contrato estará incluído no campo de aplicação do CDC. O leasing realmente mercantil, entre dois comerciantes e para fins comerciais, está excluído, podendo apenas ser incluído por ação do art. 29 do CDC ou de tratamento analógico. g) Contratos de fornecimento de serviços públicos - Uma das grandes novidades do sistema do CDC é incluir as pessoas jurídicas de direito público entre os fornecedores, no caso dos serviços públicos que a elas competem (art. 175, CF), prevendo expressamente, no art. 22 do CDC, um dever dos órgãos públicos, de suas empresas, concessionárias ou permissionárias de fornecer "serviços adequados, eficientes, seguros e quanto aos essenciais, contínuos".{164} O Direito administrativo já conhecia a faute de service,{165} baseada, porém, na culpa, também o dever de continuidade; o CDC inova ao impor-lhes um dever legal de adequação,{166} como a todos os outros fornecedores veja Cap. IV, 2.1). Como conseqüência do art. 3.º do CDC os contratos firmados entre os consumidores (destinatários finais) e os órgãos públicos e suas

* (163) Sobre o tema do leasing de automóveis, veja a análise de Ghersi/Muzio, p. 145 e ss. (164) Veja-se decisão do TJBA, in RT 729/261. (165) Assim ensina Adalberto Pasqualotto em seu trabalho, Serviços Públicos, em que examina detidamente o tema e que seguiremos nesta exposição. Veja tb. sobre a relação entre as normas do Direito Civil e o Direito Administrativo, o mestre Cirne Lima. (166) Nesta nova linha de adequação dos serviços prestados pelas empresas estatais, veja a interessante decisão do JECP/RS, com a seguinte ementa: "Telefone. Instalação. Companhia Riograndense de Telecomunicações. Retardo na instalação de ramal telefônico. Firmado o contrato de participação financeira, a CRT resta obrigada a instalar o ramal telefônico no prazo estabelecido, desde que o promitente-assinante tenha cumprido a sua prestação pecuniária. A alegada falta de condições técnicas para fazê-lo, não Configura motivo de força maior aos efeitos de justificar o inadimplemento, em especial quando mais de um ano se decorreu entre a data do ajuste e instalação prometida. Sentença confirmada por seus próprios fundamentos.( Recurso n. 1.050/366/92, Erexim, Rel. Dr. Roberto Laux, 1.ª Câmara Recursal, 24.9.92). (p. 209) empresas também podem, em princípio, ser considerados de consumo. O regime, porém, dos contratos concluídos com a Administração é especial, mesmo se regidos por leis civis, não perde a relação seu caráter dito de "verticalidade", reservando-se a Administração faculdades que quebram o equilíbrio do contrato. Se poderão as normas do CDC reequilibrar, na prática, esta relação é uma pergunta difícil. Certo é que cabe à Administração cumprir as leis, e em realidade, o CDC impõe a ela e a seus concessionários enquanto fornecedores de serviços e eventualmente de produtos, deveres específicos, muitos deles relacionados ao equilíbrio do contrato, como veremos a seguir (Capítulos III e IV). A nova disciplina dos contratos de fornecimento de serviços públicos deverá conciliar as imposições do Direito Constitucional, com a proteção do consumidor e as prerrogativas administrativas. A jurisprudência tem demonstrado alguma dificuldade em conciliar estes ideais. As decisões, especialmente sobre o não cumprimento dos prazos contratuais na entrega de linhas e telefones, variam de Estado, para Estado da Federação,{167} alguns impondo (com função satisfatória e preventiva) efetivas multas diárias pelo descumprimento contratual (art. 84, CDC).{168} Polêmica igualmente a penhorabilidade (Lei 8.009/90) da única linha telefônica.{169} * (167) Em sentido contrário ao decidido no Rio Grande do Sul, veja a interessante construção da justiça paulista de forma a exonerar a TELESP de responsabilidade, in RT695/103 e o leading case, in RT 672/1117, (Ap. 177.1522/8 - 12.ª C. TJSP, j. 6.8.91, Rel. Des. Luiz Tâmbara):

"Linha telefônica - Instalação e funcionamento - Condicionamento à inocorrência de motivos impeditivos de ordem técnica - Cláusula simplesmente potestativa, suspensiva do contrato, pois dependente de circunstârlcias externas à vontade da parte - Cumprimento da prestação esperada exigível somente após verificação do evento condicional suspensivo Inteligência e aplicação do art. 118 do CC e da Portaria 663/79 do Ministério das Comunicações. A subordinação da instalação e funcionamento de linha telefônica à existência de condições técnicas, por depender de circunstâncias externas à vontade da parte, caracteriza cláusula simplesmente potestativa, suspensivl do contrato. Assim, antes de se verificar o evento condicional suspensivo, o titular do direito eventual não pode exigir o cumprimento da prestação esperada, nos termos do art. 118 do CC;" em sentido contrário j. 9.5.91, 6.ª C. Civ. TJSP, in IOB, n. 13/91, p. 276. (168) Assim sobre o leading case da Magistrada de Guaíba, Juíza Rosane Wanner da Silva, no Juizado de Pequenas Causas: (p. 210) Relembre-se que, pela definição de serviços do art. 3.º do CDC, somente àqueles Serviços pagos, isto é, como afirma o § 2.º, "mediante remuneração", serão aplicadas as normas do CDC. Em uma interpretação literal da norma, os serviços públicos uti universi, isto é, aqueles prestados a todos os cidadãos, com os recursos arrecadados em impostos, ficariam excluídos da obrigação de adequação e eficiência previsto pelo CDC. De qualquer maneira, interessa ao nosso estudo somente aqueles serviços prestados em virtude de um vínculo contratual, e não meramente cívico, entre o consumidor e o órgão público ou seu concessionário.{170} Assim, aqueles referentes ao fornecimento de água, energia elétrica, gás, telefonia{171}, transportes públicos, financiamento, construção de moradias populares etc.{172} Pelo exemplo argentino, observa-se que a privatização de alguns destes serviços não dilui a posição monopolista do fornecedor e nem ajuda na proteção e realização dos direitos dos consumidores.{173} * "CRT. Contrato de instalação de telefone. Prazo. Mesmo considerando-se que a instalação dos terminais se daria "a partir de" um mês certo, o cumprimento dessa obrigação não pode ficar ao inteiro dispor do vendedor. Razoável o critério da sentença que utilizou o prazo de noventa dias contados do mês fixado, mesmo prazo válido para a rescisão do contrato por inadimplência dos compradores. Redução do valor da multa ao teto da alçada do juizado" (Recurso n. 39/93, Rel. Wilson Carlos Rodycz, 3. Câmara Recursal/RS, Guaíba, negaram provimento, unânime, 25.3.93). (169) Recurso Especial 0098661/SC, 4.ª T., j. 16.12.1996, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar: "Execução. Penhora. Lei 8.009/1990. Linha telefônica. A impenhorabilidade prevista na Lei 8.009/1990 não se estende ao direito de uso de linha telefônica. Código de Defesa do Consumidor. Vigência. O CDC não se aplica aos contratos celebrados anteriormente a sua vigência".

(170) Como explico na apresentação da obra de Bonatto/Moraes, p. 15 , não visualizo base ou motivo legal para diferenciar entre diversos tipos de taxas e outros serviços prestados uti singuli, que considero todos incluídos no âmbito de aplicação do CDC. (171) Veja sobre telefonia a Súmula 193 do STJ: "O direito de uso de linha telefônica pode ser adquirido por usucapião". (172) Paula, p. 407, prefere denominar estes de "serviços públicos comerciais e industriais". (173) Assim Ghersi, Contratos Telefónicos, p. 7. (p. 211) No Brasil, criadas agencias que visam também a proteção dos consumidores,{174} os novos contratos envolvendo a prestação de serviços telefônicos têm apresentado problemas. entre eles os condomínios de linhas telefônicas, geralmente gerenciados por pessoa privada, cujos pré-contratos ou contratos denominados de "contratos onerosos de cessão temporária de uso de linha telefônica" incluem uma série de cláusulas abusivas e garantias não compatíveis com esta "locação múltipla disfarçada".{175} lgualmente problemáticos são os novos "serviços-passatempo" ou serviços de caráter "informativo" ou "erótico" oferecidos pelas companhias telefônicas oficiais aos seus assinantes e com altas taxas de utilização.{176} Nas relações entre o consumidor e o prestador de serviços tipicamente públicos de primeira necessidade dois pontos de discórdia podem ser identificados: a tendência, hoje amenizada pela ação da jurisprudência, de impor mudanças unilaterais, inclusive por Portaria,{177} prejudicando a posição já vulnerável do consumidor{178} e, em segundo * (174) Assim o art. 3º da Lei 9472/97 que cria a Anatel - Agência Nacional de Telecomunicações menciona especialmente os direitos do "usuário" de serviços de telecomunicações. (175) Contra estes novos contratos, que muitos danos têm causado aos consumIdores, o Ministério Público de Minas Gerais moveu ação civil pública para declarar em abstrato a abusividade das cláusulas (Proc. 024940672280, de 13.9.94). (176) O Ministério Público de São Paulo moveu ação civil pública contra a TELESP por seu serviço "Tele 900", que inclui serviços que consistem na reprodução de mensagens eróticas (Tele Andrógeno, Disque erótico, Tele Fantasia etc.) e mensagens destinadas ao público infantil (Disque Criança, Tele Mônica, Tele Angélica etc.), acompanhados de intensa campanha publicitária, os quais não constituem serviço típico público e levam ao superendividamento do consUmidor/assinante, especialmente pela ação das crianças. (177) Assim a Portaria 508/97 em seu art. 1, tenta impedir que a titularidade de

Assinatura do Serviço Telefônico, a partir de 1 de novembro de 1997, seja transferida por mais de uma vez. O caso está sub judice, por ação civil pública do Ministério Público Federal, justamente alegando ofensa ao CDC e a direitos adquiridos (ver Súmula 473 do STF), onde foi concedida a tutela antecipada, in Proc. 97.004171-3. Juízo Federal da 18ª Vara. São Paulo, 27.10.97. (178) Exemplo destas mudanças unilaterais não comunicadas ou decididas em conjunto são as chamadas "linhas compartilhadas", hoje comuns nas (p. 212) lugar, a forma de cobrança dos créditos, com cortes imediatos ou sistemáticos do fornecimento destes serviços.{179} No âmbito dos contratos envolvendo serviços normalmente públicos, efetivamente, a aplicação do CDC tem encontrado dificuldades mais fáticas do que jurídicas. há que pensar em uma melhor utilização do direito de efetiva reparação dos danos morais coletivos, assegurado pelo art. 6.º, VI, do CDC, como resposta pedagógica e satisfativa a estas reiteradas agressões a cultura geral.{180} A jurisprudência reagiu afirmando que não gozam de presunção de verdade os débitos imputados aos consumidores pelos concessionários de serviço público;{181} há que destacar a importante contribuição que o Ministério Público e as Associações de Defesa do Consumidor têm prestado, procurando solucionar os problemas no nível metaindividual, através de ações civis públicas.{182} *grandes cidades. Sobre a simples substituição do sistema telefônico, veja a seguinte decisão: "Telefone. Substituição do sistema. A substituição do sistema telefônico não automático pelo automático decorre do progresso da ciência e das necessidades sociais e não se transfere como encargo, mas como benefício ao usuário que esteja em dia com os serviços contratados. Apelo improvido" (Rec. 238/92, Rel. Dr. João Abílio de Carvalho Rosa, 3.ª Câmara Recursal/RS, Porto Alegre, 25.3.93). (179) Veja o leading case do TJPR, Rel. Des. Neli Calixto, reproduzido in RT696/ 171, onde na ementa oficial se lê: "Tratando-se de serviço de utilidade pública e devendo a administração direta ou indireta obedecer, entre outros, os princípios da legalidade e moralidade (cf. CF, arts. 5.º, II, e 37, caput), afigura-se inadmissível o seu cancelamento em prejuízo do usuário, por temporária falta de pagamento da tarifa, mesmo porque, em face do elevado valor comercial do direito de uso de linha telefônica, aquele ato em tais circunstâncias importaria em autêntica expropriação sem a correspondente indenização, além de violar o Código de Defesa do Consumidor (cf, arts. 3.º, 51, II, IV, XI, XV, e seu § 1º, I, II e III)"; veja na Parte II, o número 2.5 sobre os novos paradigmas em caso de cobrança de dívida dos consumidores. (180) Sobre o tema do dano moral coletivo, veja Bittar, Revista de Direito do

Consumidor, v. 12, p. 60. (181) Assim veja JECP/RS Proc. 01598512240, j. 15.4.98, J. Guinther Spode, em processo envolvendo contas de luz, na mesma linha, decisões no Proc. 01598512984 da mesma data e mesmo relator, envolvendo contas astronômicas de telefone. (182) Destaque-se aqui a decisão do TJRS, Ap. Civ. 591016738, 1.ª C. Civ., j. 19.11.91, Rel. Des. Elias Mansour: "Ação civil pública - Conceito de (p. 213) Por fim, cabe mencionar que em nossa opinião os serviços públicos gratuitos relacionados como o ensino, como os fornecidos por escolas e universidades públicas, não se inserem como relações de consumo. A contrario sensu, porém, quanto à relação Escola/Universidade Privada - estudante e seus representantes legais, caso menores, a sua caracterização como relação de consumo{183} visando a prestação de serviços de ensino não apresenta maior problema.{184} Note-se, porém, que a legislação específica impõe regras igualmente de ordem pública e pode impor uma determinada porcentagem (10%) para a legitimação de ações discutindo modificações curriculares ou valores das mensalidades. Segundo a jurisprudência majoritária trata-se de interesses individuais homogêneos,{185} o que tem dificultado a justa atuação do MP, amparado no art. 81, parágrafo único, III do CDC e art. 82, com legitimação extraordinária. Nota-se, igualmente, na jurisprudência uma clara distinção entre os prestadores públicos de ensino e as empresas particulares de ensino, distinção que tem sua origem na gratuidade da prestação de serviço público de ensino nas escolas e nas Universidades Federais (art. 3.º, § 2.º do CDC),{186} tendendo a exigir das escolas e universidades privadas *consumidor - Presença de interesse público e/ou difuso - Legitimidade do Ministério Público - Aplicação do Código de Defesa e Proteção ao Consumidor. Ação contra a C.R.T. envolvendo a mudança de sistema de telefonia pela adoção de novas centrais, que teriam resultado em prejuízo ao uso do serviço telefônico. Recurso provido." Mencione-se igualmente a ação pioneira do Ministério Público de Pernambuco contra o corte de energia elétrica como forma de cobrança de dívidas e contra as altas multas moratórias praticadas pelo serviço público, inicial reproduzida in Direito do Consumidor, v. 6, pp. 289 e ss. (183) Assim, considerando relação de consumo submetida ao CDC, veja Recurso Especial 103301-MG, j. 27.11.96, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. (184) Assim LEX-RJTJSP, 136, p. 42, onde o Des. Lobo Júnior esclarece: "Parece não haver dúvida de que os alunos se enquadram no elenco dos consumidores quando se considera a prestação de serviços das escolas privadas e o correspondente pagamento das mensalidades". (185) Exemplo desta linha jurisprudencial são as decisões do TJSP reproduzidas na integra in RT 697/64 e LEX-RJTJSP 136/38. (186) Correto, neste sentido, o posicionamento do TRF da 4ª Região, quando

referindo-se à Universidade Federal preleciona a inexistência de direito adquirido ao "currículo escolar" à época da entrada na Universidade (p. 214) uma atuação conforme a boa-fé com Os seus consumidores,{ especialmente no que tange aos instrumentos de pressão em caso de não pagamento{187} e nas revisões e aditamentos contratuais.{188} h) Compra e venda e suas cláusulas - A compra e venda é o contrato por excelencía da sociedade de consumo, pois permite a movimentação das riquezas, dos bens, dos produtos, A compra e venda está presente vinculando os fornecedores da cadeia de produção (fabricante, montador, distribuidor comerciante) e está presente vinculando consumidor e seu parceiro contratual, o qual denominamos aqui de fornecedor-direto. No direito brasileiro, a compra e venda é um contrato sinalagmatico, em que uma pessoa (no caso, o fornecedor) obriga-se a transferir a outra o domínio de um determinado produto, mediante o pagamento de determinado preço (art. 1.122 do CCB). A inclusão do contrato no campo de aplicação do CDC dependerá da caracterização ou não das partes como consumidor e fornecedor. Na sociedade de consumo atual, a compra e venda pura e simples reduziu-se aos chamados contratos "do dia-a-dia", contratos *Pública. Da ementa do Relator, Juiz Sílvio Dobrowolski (LEX-STJ-TRF, 44/ 461): "A Universidade pode alterar os currículos de seus cursos, porque sua relação com os estudantes não é contratual, mas estatutária Ao implementar as modificações terá, no entanto, de respeitar os créditos obtidos e os efeitos das disciplinas cursadas. Hipótese em que a submissão à mudança curricular resultou de atraso nos estudos, atribuível ao aluno, Denegação da segurança impetrada para afastar a exigência da alteração curricular". (187) Nesse sentido a decisão do JECP/RS, que passamos a reproduzir. Note-se que a generalização de práticas contrárias à boa-fé levou o executivo a incluir no art. 5.º da MP 524, de 7.6.94, regra proibindo a "suspensão de provas escolares, a retenção de documentos de transferência, o indeferimento de renovação das matrículas dos alunos ou a aplicação de quaisquer penalidades pedagógicas ou administrativas, por motivo de inadimplência". A ementa da decisão: "Universidade. Cancelamentos de matrícula e devolução da parcela paga a título de mensalidade. Havendo cancelamento total da matrícula, assiste ao estudante o direito à devolução do pagamento feito por conta da semestralidade, desimportando aviso em contrário Constante de "Agenda Acadêmica", para evitar o enriquecimento indevido do estabelecimento pois nenhum serviço foi nem será prestado. Recurso improvido" (Rec. 142/93, Rel. Dr. Domingos dos Santos, 3.ª Câmara Recursal, j. 23.6.93). (188) Exceção feita ao crédito educativo, veja LEX-STJ/TRF 52/442. (p. 215) referentes à transferência de propriedade dos bens necessários à

sobrevivência e aos chamados contratos de bagatela. Hoje, utilizase para a aquisição de bens de consumo duráveis e produtos de grande valor a compra e venda condicionada (geralmente, venda sob reserva de domínio) e a compra e venda com alienação fiduciária. Estes dois modelos para a alienação de produtos merecem a nossa atenção, uma vez que já analisamos anteriormente a utilização do sistema de consórcios e os contratos bancários e de financiamento em geral. A cláusula de reserva de domínio estipulada em contrato de compra e venda de bens de consumo é ainda comum no Brasil, como forma de garantia nas vendas a prazo. Através deste pacto o fornecedor reserva para si o domínio (propriedade) do produto vendido até o momento em que o consumidor realize o pagamento total do preço. A transferência definitiva da propriedade fica suspensa, através desta condição, restando o consumidor somente com a posse do bem. A ratio do instituto é facilitar ao fornecedor reaver o bem, em caso de inadimplemento (art. 1 .070 do CPC), mas na prática o instituto não tem se mostrado tão eficaz, enquanto garantia de vendas a prazo, eis porque o recurso à alienação fiduciária. i) Compra e venda com alienação fiduciária - A alienação fiduciária em garantia foi instituída na lei que disciplinou o mercado de capitais.{189}} A alienação fiduciária em garantia tem como função principal garantir as operações realizadas pelas empresas de financiamento e investimento, popularmente conhecidas como "financeiras", interessando-nos em especial o chamado "crédito direto ao consumidor". Deixamos para analisar o tema da alienação fiduciária conjuntamente com o contrato de compra e venda e não com os antes estudados contratos de financiamento, justamente, para frisar que o consumidor comum, ao realizar uma compra e venda em prestações não tem presente o fato de estar fechando também um contrato de financiamento. A sociedade atual caracteriza-se por estas relações complexas, triangulares, envolvendo não só o fornecedor-direto e o consumidor, mas outros fornecedores-auxiliares, como no caso da comum compra e venda de bens de consumo com alienação fiduciária. * (189) Veja Lei 4.728, de 14.7.65 e as complementações trazidas ao seu art. 66 pelo Dec.-lei 911, de 1.10.69. (p. 216) O tema é de tamanha importância no mercado brasileiro que de 1991 até hoje o STJ já elaborou três súmulas sobre o assunto.{190} A financeira presta um serviço ao consumidor, ao conceder-lhe um crédito que permitirá a aquisição de um bem durável; sua caracterização como fornecedor não oferece, portanto, maior dificuldade, A caracterização do consumidor como o destinatário final fático do serviço prestado pela financiadora também é pacífica. O contratante pode, porém, não ser o destinatário final econômico do crédito, dependendo este fato da destinação a ser dada ao bem durável adquirido no contrato de compra e venda com alienação fiduciária. A alienação seria assim um pacto acessório ao da compra e venda para a caracterização como contrato de consumo. Note-se que a lei específica sobre a alienação fiduciária possui uma definição mais ampla de quem seja o consumidor, isto é, daquele que pode se beneficiar do chamado "crédito direto ao consumidor", sendo provável que a jurisprudência,

tendo em vista o caráter de adesão do contrato e o que dispõem os arts. 7º e 52 do CDC, amplie a definição de consumidor para considerar todos os contratos de compra e venda com alienação fiduciária como contratos de consumo por natureza, logo submetidos ao CDC. As operações da financiadora, no chamado crédito direto ao consumidor, e que impõe uma relação contratual entre o consumidor e a financiadora-fornecedora, são duas: a) financiamento direto ao consumidor; e b) financiamento com interveniência do fornecedor-vendedor. No crédito direto, há negócio jurídico entre a financeira e o consumidor, para que este possa pagar ao fornecedor-vendedor, exigindo o financiador como garantia obrigatória a alienação fiduciária, a favor da financeira, do bem que este adquiriu. A operação de crédito direto ao consumidor desdobra-se em dois negócios jurídicos, um contrato de abertura de crédito e um negócio cambial (letras de câmbio sacadas pelo consumidor para aceite pela financiadora).{191} * (190) Segundo a Súmula 28 do STJ, o "contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem que já integrava o patrimônio do devedor". Já a Súmula 72 do STJ assevera: "A comprovação da mora é imprescindível a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente" E complementa a Súmula 92 do STJ: "A terceiro de boa-fé não é oponível a alienação fiduciária não anotada no Certificado de Registro do veículo automotor". (190) Veja detalhes em Orlando Gomes, Alienação Fiduciária em Garantia, S. Paulo, RT, 1982. (p. 217) No financiamento com interveniência do vendedor, muito comum no mercado, a financeira exige não só a alienação fiduciária do bem durável em seu favor, mas também que o vendedor se coobrigue pelos títulos emitidos pelo consumidor, como reforço da garantia. Repitam-se aqui as observações feitas anteriormente sobre a Lei 9.514 de 20 de novembro de 1997, que ao instituir o Sistema Financeiro Imobiliário passou a permitir no país a alienação fiduciária de imóveis, já comentada na letra a deste número. 2. Contratos de consumo e conflito de leis no tempo Parece-nos importante, nesta terceira edição, aprofundar o estudo dos casos de conflitos de leis no tempo, ou conflito de normas legislativas aplicáveis aos contratos de consumo. A prática destes mais de três anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor demonstrou que muitas discussões judiciais tem como ponto central a aplicação ou não da lei protetiva do consumidor a determinado contrato de consumo sub judice. Da aplicação ou não das normas protetivas do Código pode depender, portanto, a decisão de tais controvérsias envolvendo contratos entre fornecedores e consumidores. Se na primeira edição já tecíamos algumas considerações sobre os conflitos criados pela entrega em vigor do CDC, seja em relação às leis anteriores, especialmente o Código Civil de 1916 e as leis especiais, assim como sobre os reflexos subjetivos desta escolha da lei aplicável, isto é, os efeitos da lei nova sobre os contratos já existentes

antes da entrada em vigor do CDC; pedimos vênia, para analisar agora mais detidamente a matéria, apesar de tema típico da Teoria Geral do Direito, tendo em vista a sua grande importância prática. Em verdade, sempre que ocorre uma renovação no sistema do direito reacendem-se uma série de dúvidas na mente do aplicador da lei.{192} Qual das leis, por exemplo, deve ele aplicar a determinada relação jurídica, a determinado contrato? Qual o verdadeiro campo de aplicação (192) Como ensina Roberto de Rugiero, p. 164, "A pergunta: dada uma relação jurídica, qual a norma que se deve aplicar? corresponde à outra e inversa: dada uma norma jurídica, quais as relações que por ela são reguladas? "...que assumem importância quando se deve escolher "entre duas normas diferentes pertencentes ao mesmo sistema, mas emanadas sucessivamente". (p. 218) destas leis, que relações jurídicas pretendem regular? Há coincidência entre o campo de aplicação da lei nova e da lei anterior? E se há, serão estas normas incompatíveis? Estaria a lei mais antiga revogada pela mais nova? Não havendo revogação de nenhuma das normas, como interpretá-las de forma integradora ou, se isto não é possível, como preterir uma em relação a outra? Estando revogada ou superada pela mais nova, deverá o intérprete da lei aplicá-la mesmo a relações jurídicas já iniciadas antes da entrada em vigor da lei nova ou somente as novas relações assinadas após a mudança no ordenamento jurídico? Estas dúvidas são quase cotidianas para o aplicador da lei, face ao grande número de leis especiais e gerais existentes no Brasil. As dúvidas mais comuns podem ser divididas em dois blocos, as primeiras referem-se a determinação da vigência (ab-rogação, derrogação ou continuidade das normas) das leis no sistema do direito atual e as segundas referem-se a um aspecto de sua eficácia no sistema (campo de aplicação, efeito imediato e retroatividade da lei). Tendo analisado o campo de aplicação material e pessoal do CDC, no número anterior, passamos agora a examinar os outros aspectos, relembrando, sem nenhuma pretensão de exaustão, quais os critérios e linhas fornecidos pela doutrina e jurisprudência para a solução dos conflitos no sistema de direito brasileiro. Os critérios para determinar a revogação ou a modificação das normas, tema de nossa primeira parte, encontram-se positivados na Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), assim como são fornecidos pela Teoria Geral do Direito; enquanto os reflexos subjetivos da entrada em vigor de uma nova lei estão regulados tanto na LICC, como na Constituição Federal, as quais protegem o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. 2.1 Aplicação do Código de Defesa do Consumidor e conflitos de leis Segundo alguns o conflito de leis no tempo é, em última análise, um conflito de competências,{193} um conflito material entre as normas, o qual só será solucionado através do conhecimento da natureza e das características das leis em contradição aparente. Neste sentido, gosta* (193) A expressão é de Vicente Ráo, citada por Wilson de Souza Batalha, Direito

Intertemporal, Rio, Forense, 1980, p. 187. (p. 219) ríamos de iniciar nosso estudo abordando as características básicas do CDC, enquanto norma jurídica inserida no sistema de direito brasileiro e os reflexos que estas características podem ter no que se refere a sua aplicação pelo intérprete. Em um segundo momento, gostaríamos de analisar o papel da Constituição Federal na interpretação e na origem do Código, tendo em vista os inúmeros reflexos hierárquicos que a origem constitucional de um mandamento ou lei pode ter no direito atual. Por fim, devemos analisar os critérios clássicos e modernos colocados à disposição do aplicador da lei para solucionar as antinomias, contradições ou conflitos no sistema. a) Características do Código de Defesa do Consumidor e reflexos na sua aplicação - Como pudemos observar no primeiro capítulo deste livro, constitui o Código de Defesa do Consumidor verdadeiramente uma lei de função social,{194} lei de ordem pública econômica, de origem claramente constitucional. A entrada em vigor de uma lei de função social traz como conseqüência modificações profundas - e por vezes inesperadas - nas relações juridicamente relevantes na sociedade. Visando tutelar um grupo específico de indivíduos, considerados vulneráveis às práticas abusivas do livre mercado, esta nova lei de função social intervém de maneira imperativa em relações jurídicas de direito privado, antes dominadas pelo dogma da autonomia da vontade.{195} O Código de Defesa do Consumidor é claro, em seu art. 1.º ao dispor que suas normas dirigem-se à proteção prioritária de um grupo social, os consumidores, e que constituem-se em normas de ordem pública, inafastáveis, portanto, pela vontade individual. São normas de interesse social, pois, como ensinava Portalis, as leis de ordem pública * (194) Utilizamos a expressão "lei de função social" pela primeira vez em nosso artigo, "A Responsabilidade do Transportador Aéreo pelo Fato do Serviço e o Código de Defesa do Consumidor - Antinomia entre norma do CDC e de leis especiais", in Direito do Consumidor, v. 3, p. 154 e ss., fonte que será utilizada para muitas das observações aqui reproduzidas. Relembrese, porém, que todo Direito tem função social: o direito é um dos sistemas parciais, logo a expressão aqui utilizada deve ser entendida, não como uma repetição da própria essência da norma, mas como destaque de uma característica ímpar de determinadas leis, que cumprem com a função social do direito privado (veja Larenz/Metodologia, p. 47). (195) Sobre a crise do dogma da autonomia da vontade, veja o primeiro capítulo desta obra, em especial, pp. 70 e ss. (p. 220) são aquelas que interessam mais diretamente à sociedade que aos particulares.{196} As leis de função social caracterizam-se por impor as novas noções valorativas que devem orientar a sociedade{197} e por isso optam, geralmente, em positivar uma série de direitos assegurados ao grupo tutelado e impõem uma série de novos deveres imputados a Outros agentes da sociedade, os quais, por sua profissão ou pelas benesses que recebem, considera o legislador, que possam e devam suportar estes

riscos.{198} São leis, pOrtanto, que nascem com a árdua tarefa de transformar uma realidade social, de conduzir a sociedade a um novo patamar de harmonia e respeito nas relações jurídicas. Para que possam cumprir sua função, o legislador costuma conceder a essas novas leis um abrangente e interdisciplinar campo de aplicação. Consequência direta deste amplo campo de aplicação é o choque entre estas novas leis de função social, como o Código de Defesa do Consumidor, e as normas e dogmas da legislação anterior. Este confronto não pode ser evitado pelo aplicador do direito, não pode ser desconhecido pelo agente econômico, cuja conduta a nova lei regula. O confronto integra a própria finalidade da nova lei, que vem impor uma nova conduta, transformar a própria realidade social. A opção brasileira foi de elaborar, na "idade da descodificação",{199} um novo Código. Ora, o Código significa um conjunto sistemático e * (196) Apud Georges Ripert, "L’ordre économique et la liberté contractuelle", in Mélanges Offert à Genv, Paris, 1959, p. 347. (197) Como ensina Niklas Luhman, Sociologia do Direito II, p. 121, nem sempre as "noções valorativas orientadoras de uma sociedade costumam ser codificadas juridicamente no sentido positivo e técnico", basta lembrar, no caso brasileiro, a não inclusão do princípio da boa-fé (objetiva) no Código Civil Brasileiro e sua atual inclusão no Código de Defesa do Consumidor (arts. 4º, III, e 51, IV). (198) Veja nesse sentido os artigos iniciais do CDC, arts. 4.º a 6.º. (199) A expressão constitui o título da famosa obra de 1979 do italiano Natalino Irti (L’età della decodificazione), na qual previa o fim das codificações que marcaram os sécs. XVIII e XIX. Os códigos superados pelas leis esparsas passariam a fonte residual do direito privado. Apesar de realista a observação, contra ela levantaram-se autorizadas vozes, no XI Congresso da "Académie de Droit Comparé, em 1982, em Caracas, alertando que legislar em forma de Código trazia em si muitas vantagens, veja Sacco, pp. 117-135. (p. 221) logicamente ordenado de normas jurídicas,{200} guiadas por uma idéia básica,{201} no caso do CDC, a defesa de um grupo específico de pessoas, os consumidores. É esta a linha básica que une matérias tão diversas, cuja necessidade de regulamentação nasceu da prática da sociedade de massas, normas pensadas topicamente, mas legisladas sob a égide de uma finalidade comum, sob o manto de princípios comuns. O CDC enquanto codificação, se bem que parcial, é sistematicamente organizada, destacando-se os três capítulos iniciais como os mais importantes de seu sistema, a definir seu campo de aplicação, os objetivos e princípios básicos da lei e os direitos básicos do consumidor. Se ser Código significa ser um sistema, um todo construído e lógico,{202} um conjunto de normas ordenado segundo princípios,{203} sendo assim, não deve surpreender o fato da própria lei indicar em seu texto os objetivos por ela perseguidos, facilitando em muito a interpretação de suas normas e esclarecendo os princípios fundamentais

que a conduzem.{204} Neste sentido, destacamos aqui novamente a importância do art. 4º do Código de Defesa do Consumidor, o qual constitui norma-guia da interpretação de todo o Código, ou como ensina o mestre paulista * (200) Assim a definição de Nolde: "La Codification pourrait être définie comme la création de "système" de régles de droit logiquement unifiées", citado por Erik Jayme, "Considerations historiques et actuelles sur la codification du Droit International Privé", in Recueil des Cours de LA Académie de la Haye, n. 177 (1982, IV), p. 23. (201) Veja Wieacker, p. 39 e ss., sobre as tendências mais atuais: "Questions of Civil Law Codification", Institute for Legal and Administrative Sciences/ Hungarian Academy of Sciences (ed.), Budapeste, 1990. (202) Esta idéia de totalidade construída, organizada logicamente, ganhou em importância no direito com o jusnaturalismo dos sécs. XVII e XVIII e em especial, com o positivismo científico do séc. XIX, veja a interessante obra de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Conceito de Sistema no Direito, de 1976. (203) Esta é a definição de sistema retirada por Canaris dos ensinamentos de Kant, veja Canaris, p. 10. (204) Como ensina Amaral, p. 96, a noção de sistema nos pode ser útil, pois "permite que o fenômeno jurídico, à semelhança do que vem sendo feito no âmbito das demais ciências sociais, seja apreciado como um conjunto harmônico, unitário, coerente de normas jurídicas, constituído em função de valores e princípios emergentes da realidade social...". (p. 222) "norma objetivo",{205} a determinar a visão teleológica, finalista das outras normas presentes no CDC, impregnando o Código com sua ratio, com a finalidade protetiva do consumidor que o legislador desejou alcançar ao editar a lei nova.{206} Da mesma maneira, o método escolhido pelo legislador do CDC para alcançar as suas finalidades protetivas foi ousado, optando, como mencionamos anteriormente pela imposição de novos e rigorosos deveres. Destacamos a especialidade do método escolhido pelo CDC, pois, se a lista do art. 6º do CDC traz os "direitos" que podem se subjetivar no consumidor, o desenvolvimento de todos estes direitos no corpo do CDC será de forma a impor "deveres" ao fornecedor, assegurando assim ao consumidor (e aos órgãos auxiliares, públicos e privados) a possibilidade de compelir aquele fornecedor que está contrariando a norma objetiva a cumpri-la, através de ações coletivas e ações individuais. Ao mesmo tempo, o método de imposição de deveres legais retira do consumidor o poder de (através de contrato) liberar o fornecedor de seu dever.{207} O dever é legal, uma vez que imposto por norma jurídica, norma de ordem pública, logo, indisponível por vontade das partes. Superada a idéia de Código do séc. XIX, de conjunto de normas completo e final ("endgültiges und lückenlöses Werk"),{208} o CDC * (205) Veja os ensinamentos de Grau, "Direito", p. 153, veja também, do mesmo

autor a conferência, "Interpretando o Código de Defesa do Consumidor: Algumas Notas", in Revista de Direito do Consumidor 5/185. (206) Assim concorda o mestre paulista Alcides Tomasetti Júnior, que também as considera normas de interpretação, in "O Objetivo de Transparência", p. 12. (207) A origem, em última análise, do dever do fornecedor não é o direito subjetivo do consumidor, mas a lei imperativa. É uma obrigação imposta pelo poder público a um ou mais agentes econômicos. Sobre a possibilidade de a posteriori o consumidor ou as instituições legitimadas em caso de ações coletivas transigirem quanto ao montante a ser pago (quantum da reparação), veja com opinião afirmativa, Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, Responsabilidade Civil no Código do Consumidor, Rio, Aide, 1991, p. 57. (208) As expressões são de Wieacker, p. 475, veja o nosso artigo, "Rezeption", p. 114. (p. 223) representa uma codificação subjetivamente específica, uma codificação parcial, uma codificação funcional e aberta.{209} Impondo ela novos parâmetros de boa-fé e harmonia nas relações pode efetivamente repercutir, através de suas cláusulas gerais e princípios, em todo o sistema do direito brasileiro,{210} assim como, segundo o seu art. 7.º deixa-se permear por qualquer outra lei protetiva do consumidor. Como codificação aberta, afirma o citado artigo os direitos previstos no CDC "não excluem outros" decorrentes "da legislação interna ordinária". Outras leis especiais para a defesa do consumidor existem, relembre-se aqui a Lei 8.002, de 14.3.90, que dispõe sobre as sanções administrativas para a repressão de infrações atentatórias contra os direitos do consumidor; ou a Lei 8.137, de 27.12.90, a qual dispõe sobre "crimes contra as relações de consumo" e outras normas todas de caráter penal ou o recente decreto regulamentador do próprio CDC, o Dec. 861, de 9.7.93, estabelecendo normas gerais de caráter exclusivamente administrativo. No sistema do CDC serão recebidas também (e especialmente) as normas de proteção dos direitos do consumidor constantes de leis civis especiais, tais como algumas da nova lei de locações e outras. O CDC representa, portanto, o centro de um novo sistema de tutela especial do consumidor, pois disciplina de maneira mais clara e objetiva os princípios da nova proteção do grupo social considerado vulnerável, mas ao mesmo tempo o CDC não exclui as demais normas protetoras dos interesses do consumidor, ao contrário, recebe-as como normas importantes à consecução de seus objetivos. O texto do art. 7.º, caput, é claro, não reivindicando para o CDC a exclusividade dos "direitos" concedidos ao consumidor. Outra será * (209) Esta parece ser a fase do direito atual, superado o ceticismo quanto ao declínio do pensamento sistemático, a infalível descodificação, evoluímOS para considerar a realidade e positiva função do pensamento tópico e da reetização do direito, a determinar necessariamente um sistema mais aberto, com um maior número de "interfaces" de comunicação com os outros sistemas parciais, veja Adriano De Cupis, II Diritto civile nella sua fase

attualle: in Riv. Dir. Comm., LXVIII, pp. 421 a 440. (210) Neste sentido já se manifestaram Ruy Rosado de Aguiar Jr., Antônio Janyr Dall’Agnol e Judith Martins Costa, veja desta última interessante artigo sobre o tema das cláusulas gerais, publicado na Rev. Inf. Legislativa, n. 112, out.-dez./91, pp. 13 a 32. (p. 224) a posição se o Tratado, Lei ou Regulamento retira, limita ou impõe a renúncia aos direitos, que o sistema do CDC assegura ao consumidor. Neste caso, a aplicação do CDC será determinada por constituir-se no corpo de normas que assegura, segundo os novos parâmetros e valores orientadores, eficácia ao mandamento constitucional de proteção do consumidor. Assegura-se, em última análise, através da norma do art. 7º, CDC, a aplicação da norma que mais favorece o consumidor. Podemos, portanto, concluir, quanto às características básicas do CDC que, apesar de formalmente uma lei (Lei 8.078/90), traz o CDC em si uma organização codificada marcada nitidamente por uma idéia centralizadora; o CDC já foi muito bem definido como um novo microssistema{211} introduzido no direito brasileiro. b) O Papel da Constituição Federal na interpretação e aplicação do Código de Defesa do Consumidor - A Constituição Federal de 1988, pela primeira vez na história dos textos constitucionais brasileiros, dispõe expressamente sobre a proteção dos consumidores, identificando-os como grupo a ser especialmente tutelado através da ação do Estado (Direitos Fundamentais, art. 5.º, XXXII).{212} Tendo em vista a nova importância prática e dogmática do texto constitucional de 1988, é esta uma inovação surpreendente no ordenamento jurídico brasileiro e que traz profundos reflexos. Para determinar a abrangência e a importância desta inovação devemos examinar, ainda que rapidamente, a nova função da Constituição no Direito Privado. A lei máxima, o ápice do sistema jurídico dos países democráticos é, atualmente, a Constituição.{213} Nos sécs. XVIII e XIX, como vimos, face a "fraqueza jurídica" da Constituição frente ao Liberalismo dominante a às relações de força na Sociedade, possuía esta uma função meramente negativa (a limitar o Estado). O centro do sistema do direito era representado pelas codificações, em especial pelo Código Civil, Com sua força científica, sistemática e completa, representando a * (211) A expressão é usada por Nery/Anteprojeto, p. 272, citando Orlando Gomes e Natalino Irti. (212) Assim tb. Toshio Mukai, p. 3 e ss. in "Comentários ao Código de Proteção do Consumidor", Art. 1.º, Juarez de Oliveira (Coord.), S. Paulo, Saraiva, 1991. (213) Veja os ensinamentos de Clavero, pp. 79-145 e Hesse, A Força Normativa da Constituição. (p. 225) própria evolução da ciência do Direito. O intervencionismo Estatal, a publicização do Direito Privado no séc. XX e idéia de Estado Social resultarão no reconhecimento de uma função positiva da Constituição, a determinar não só a abstenção do Estado, mas sua ação, a transfigurar e impregnar como medida normativa todo o sistema do Direito.{214} Atualmente não há mais dúvidas de que a Constituição representa a norma máxima, o centro do próprio sistema do direito brasileiro.{215}

Sendo assim, é lógico que a Constituição, norma hierarquicamente superior, sirva de guardiã e de centro irradiador das novas linhas mestras do ordenamento jurídico. Estas linhas mestras constituem a ordem pública de um país, a influenciar todas as leis daquele sistema de direito. O dinamismo e os interesses contraditórios presentes na atual sociedade de massas desencadearam o aparecimento de um grande número de leis esparsas, leis especiais, em um fenômeno que os alemães denominaram de "EstiLhaçamento" do direito (Zersplitterung).{216} Frente aos interesses contraditórios defendidos pelas leis especiais, face a generalização excessiva dos Códigos dos sécs. XVIII e XIX, a ciência do direito teve que buscar a segurança da lei máxima, da lei hierarquicamente superior, para ali resguardar os valores que considerava mais importantes para aquela sociedade. A Constituição toma assim o lugar da Codificação maior. É o fenômeno denominado por Hesse da "Força normativa da Constituição" que leva a Constituição a guiar, com suas novas linhas mestras tanto o direito público quanto o direito privado.{217} O Direito Privado passa a sofrer uma influência direta da Constituição, da nova ordem pública por ela imposta e muitas relações * (214) Nesse sentido as conclusões da citada Tese de Lobo e os ensinamentoS de Hesse, Raizer e Sacco. (215) Considerando que o critério da hierarquia das normas em conflito é um dos critérios clássicos para a solução das antinomias, frisar a idéia do direito brasileiro enquanto sistema organizado, conjunto necessariamente coerente de normas, com uma hierarquia própria, renova a importância da Constituição Federal como centro do sistema, a determinar que seus valores e conceitos estivessem presentes e eficazes não em um só ramo do direito, mas em todo o ordenamento jurídico. (216) Veja a obra de Natalino Irti, p. 3. (217) Veja a aula pioneira de Konrad Hesse, agora traduzida para o português, Hesse/Força, p. 5, assim como o instigante artigo de Clavero, p. 79 e SS. (p. 226) particulares, antes deixadas ao arbítrio da vontade das partes, obtém uma relevância jurídica nova e um conseqüente controle estatal, que já foi chamado de "publicização do direito privado".{218} Ao nosso estudo interessa constatar que, a partir de 1988, a defesa do consumidor incluise, assim, na chamada ordem pública econômica, cada vez mais importante na atualidade, pois legitima e instrumentaliza a crescente intervenção do Estado na atividade econômica dos particulares. Tendo em vista a evolução do direito, como um instrumento de mudança social, os direitos previstos no texto constitucional, tanto os direitos políticos (os chamados direitos fundamentais de 1.ª geração), quanto os direitos econômicos e sociais (direitos fundamentais de 2.ª’ e 3.ª gerações), passam a ter também uma eficácia "positiva". Se tradicionalmente estas previsões constitucionais possuíam um efeito meramente "negativo", no sentido de proibir o Estado de certas atitudes frente aos cidadãos, agora tais previsões ganham uma nova força "positiva", no sentido de obrigar o Estado a tomar certas atitudes,

inclusive a intervenção na atividade privada para proteger determinado grupo difuso de indivíduos, como os consumidores.{219} Daí a tendência do legislador moderno, que procura garantir a eficácia prática dos novos direitos fundamentais do indivíduo, dentre eles os direitos econômicos, através da inclusão destes "objetivos constitucionais" em normas ordinárias de direito privado, como é o caso do próprio Código de Defesa do Consumidor.{220} No Estado Liberal do séc. XIX tal eficácia impositiva dos direitos assegurados no texto constitucional seria impensável, pois ao Estado cabia Justamente o "não fazer", a função negativa antes mencionada, e estas previsões nada mais seriam do que belas linhas programáticas a depender da livre decisão, por conveniência e oportunidade, do Poder Executivo. Hoje a intervenção determinada pela própria Constituição diminui o espaço reservado para os particulares auto-regularem livremente as suas relações negociais, isto é, limita a própria autonomia * (218) Assim ensinou o mestre alemão Raizer, p. 11 e ss. (219) Note-se que o art. 48 das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 determinava ao próprio legislador (poder independente do Estado) a elaboração de um "Código de Defesa do Consumidor", num prazo de 120 dias. (220) Sobre a influencia do modelo intervencionista do direito público no direito privado em nosso século XX, veja o profundo estudo de Hans-Peter Westermann, in AcP 178 (1978), pp. 151-226. (p. 227) privada; diminuindo também o espaço de decisão do próprio Estado e de seus tres Poderes, levados a legislar, executar e interpretar leis conforme as linhas ordenadas pela Constituição.{221} Ao nosso estudo interessa principalmente o fato da defesa deste grupo difuso de indivíduos ter sido erigida a princípio limitador da atividade eConômica (art. 170, V).{222} Efetivamente, prevê o art. 170 da Constituição Federal de 1988, em seu caput, que a ordem econômica tem como fundamento a livre iniciativa e como um de seus limites constitucionais justamente a defesa do consumidor (inc. V), assim como a livre concorrência (inc. IV). Concluindo, face a nova força da Constituição, a determinar a ordem pública e a interpretação de todas as normas do sistema, a coerência deste mesmo sistema exige que o aplicador da lei harmonize os princípios constitucionais aparentemente contraditórios como a defesa do consumidor e liberdade de iniciativa econômica. A antinomia aqui é aparente e desejada pelo próprio Constituinte, da tese e antítese nascerá a síntese: a interpretação do ordenamento jurídico conforme a Constituição, a conseqüente relativização de dogmas e postulados considerados absolutos, como a própria autonomia da vontade nos contratos e a liberdade de contratar. Relembre-se que a Constituição não se submete aos critérios normais que determinam a vigência e a eficácia das leis no tempo. A ordem constitucional, portanto, é o primeiro dos fatores e o hierarquicamente mais forte a ser considerado pelo aplicador da lei. A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu como princípio e direito fundamental a proteção do consumidor e indicou a elaboração de um Código de Defesa do Consumidor, demonstrando a sua vontade (e a necessidade) de renovar o sistema.

* (221) Autores alemães mais ousados chegam a denominar de Estado "PósModerno", a organização estatal posterior a esta intervenção obrigatória, caracterizada por uma nova consciência da necessidade de divisão de riscoS na sociedade e um ceticismo científico e político crescente, veja artigo de Norbert Reich, "Intervenção do Estado na Economia - Reflexões sobre a pós-modernidade na teoria jurídica", in RDP 94, pp. 265 a 282. (222) Concorda Fábio Konder Comparato, "Ordem Econômica na Constituição Brasileira de 1988", in RDP 98 (1990), p. 271, ensinando: "ordem econômica privada é toda dominada pelo princípio da livre iniciativa e da proteção à propriedade privada. A Constituição estabelece, no entanto, algumas disposições limitativas dessa liberdade empresarial privada..." (p. 228) c) Os critérios de solução de conflitos de leis e suas dificuldades - Sempre que há a inclusão no sistema legal de um país um fato novo, um novo corpo de normas ou de novos princípios cria-se para o aplicador da lei a necessidade de analisar as contradições entre textos legislativos novos e antigos ou entre os princípios orientadores da lei atual e da lei anterior, resguardando assim a lógica do sistema e sua atualização. Como ensina Oscar Tenório, a vida das normas jurídicas não é eterna; elaboradas para as relações dos homens em sociedade, têm o seu destino condicionado ao subtractum social que elas disciplinam e ordenam.{223} As mudanças na sociedade mais cedo ou mais tarde refletem em mudanças na legislação em vigor ou em uma nova interpretação dada a normas anteriores;{224} a própria sobrevivência de normas "antigas" é um sinal de seu valor e da sabedoria das novas linhas de interpretação impostas pelo Judiciário e pela doutrina.{225} Na análise que agora se inicia duas expressões serão usadas constantemente: conflitos de leis e antmnomias. Quanto à primeira, a melhor expressão técnica e normalmente usada no Brasil é a de conflitos de leis no tempo, contrapondo-se aos conflitos de leis no espaço, matéria tratada pelo Direito internacional Privado. Neste estudo, porém, gostaríamos de nos permitir usar também a expressão menos técnica "conflitos de normas", com o intuito de melhor esclarecer a natureza destes conflitos temporais. Esta redução pode ser esclarecedora pois se duas "leis" estão em "conflito" para determinar qual será aplicada a um caso, por exemplo, quanto a validade de uma determinada cláusula contratual, se o intérprete conclui pela aplicação de uma das leis (lei prevalente), tal conclusão parece determinar "logicamente" a total exclusão de aplicação da outra lei, mesmo no que se refere a outros temas, como o da interpretação do referido contrato ou a existência ou não de um dever anexo, dever contratual de informação etc. Na maioria dos casos, porém, a contradição existente * (223) O. Tenório, p. 64. (224) Sobre a tendência de introduzir cada vez mais no ordenamento jurídico de países de influência continental européia normas abertas ou cláusulas

gerais para facilitar esta evolução na interpretação e facilitar o exercício de concretude do juiz, veja Scarpelli, pp. 3 a 15. (225) Assim concorda Georges Ripert, "les forces", p. 21, referindo-se ao Code Civil francês de 1804. (p. 229) é apenas entre algumas disposições (normas) destas leis, continuandose a aplicar ambas as leis (a exceção das normas conflitantes) a um mesmo caso concreto. A regra geral é, justamente, da continuidade das leis no sistema. Note-se que, de certa forma, a expressão técnica "conflitos de lei no tempo", pode confundir o aplicador da lei, pois ao frisar o elemento temporal, pode levar a conclusão de que o conflito entre normas é fenômeno sempre passageiro, momentâneo, que o legislador resolverá ao esclarecer na lei nova, que normas das leis antigas estão revogadas, bastando ao aplicador da lei verificar qual foi a solução encontrada para manter a coerência do sistema legal. Se, porém, os poucos critérios legais presentes na Lei de Introdução ao Código Civil foram pensados como suficientes para que o aplicador das leis encontre a natural e definitiva solução para os conflitos entre leis novas e antigas, sabe-se que é raro o caso claro de revogação. Em geral, as leis e mesmo as normas conflitantes continuam a ser reproduzidas, a ser aplicadas em diferentes casos, muitas vezes o conflito (até por razões ideológicas) não é suscitado e, quando suscitado, a solução é casuística, sendo rara a solução definitiva no assunto.{226} A solução definitiva, a que aqui nos referimos, seria a revogaçãO de uma das leis, revogação total (ab-rogação) da lei ou revogação somente de algumas das suas disposições (derrogação).{227} A revogação é a morte da norma jurídica; significa tirar a força obrigatória, a * (226) Dois outros aspectos podem aqui ser relembrados, que a contradição entre leis pode ser oriunda do "espírito" ou ratio contraditória e não da contradição clara entre textos legais, e que a contradição pode apresentar se entre normas presentes até mesmo no mesmo corpo de normas, como o Código Civil. No Direito Constitucional discute-se até hoje se é possível a contradição entre normas presentes na mesma Constituição, o que levantaria o problema de constitucionalidade da Constituição. Certo é, que certas emendas constitucionais ou mesmo disposições transitórias já foram consideradas inconstitucionais, frente aos princípios norteadores da Constituição como um todo. (227) Assim E. Espínola e E. Filho Espínola, A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro comentada, v. 1, Rio, Freitas Bastos, 1943, pp. 74 e 75. A LICC de 1942 menciona ainda a possibilidade de "modificação" das normas, sem que a doutrina esclareça exatamente o que significa esta modificação, se uma derrogação ou se um terceiro gênero, diferente da ab-rogação e da derrogação. (p. 230) vigência de uma norma, por incompatível com as novas normas

impostas pelo legislador.{228} Segundo dispõe o § 1.º do art. 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil, o conflito de leis no tempo pode resolver-se pela revogação (parcial ou total) de uma das leis em conflito, se incompatíveis entre si, se uma regula inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior ou pela revogação expressa. A revogação expressa ocorre somente em casos específicos e claros.{229} Nos demais casos, resta a revogação tácita, a qual exige para a sua determinação um exame muito atento do intérprete, em virtude do disposto no § 2.º do referido art. 2.º da LICC, segundo o qual "a lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior". A regra no direito brasileiro é, como desejamos frisar, a da continuidade das leis, forçando o intérprete, sempre e novamente, a decidir-se pela aplicação de uma das normas. Iludem-se os que consideram que a solução do conflito de leis viria somente do próprio legislador,{230} sem a necessidade de uma maior atuação do intérprete. Ao contrário, no mais das vezes, é o aplicador da lei que soluciona as aparentes contradições no sistema do direito e casuisticamente. O segundo termo técnico destacado é, pois, o de antinomia, vocábulo que, no seu sentido original da teologia e da ciência do Direito, indica a contradição, aparente ou real, entre duas leis ou dois princípios no momento da aplicação prática a um caso concreto.{231} * (228) Tenório, ob. cit., pp. 64 e 65. (229) No caso do CDC, observa-se que a Lei 8.078/90 revogou expressamente somente algumas normas da Lei 7.347/85, que dispõe sobre a ação civil pública, e substituída por novas normas introduzidas pelo CDC. (230) Malgaud, na obra coordenada por Ch. Perelman, "Les Antinomies en Droit", (Travaux du Centre National de Recherches de Logique), 1965, p. 8, afirma que se a lei prevê que um texto (por exemplo, o texto hierarquicamente superior) prevaleça sobre o outro e se a lei afirma isto expressamente, através de um princípio ou norma na Lei de Introdução, por exemplo, não haveria contradição ou antinomia entre os textos, porque somente um dos dois é aplicável ao caso, a lei seria inequívoca, só haveria antinomia ou contradição no sistema quando a lei "est en defaut", isto é, quando a lei (no caso brasileiro, a LICC ou as normas transitórias da lei nova) é incompleta. (231) Assim Paul Foriers, "Les Antinomies en Droit", na obra coordenada por Ch. Perelman, Les Antinomies, pp. 21 e 22. (p. 231) Definir as antinomias no direito como contradições aparentes ou reais entre duas normas de existência simultânea no mesmo ordenamento jurídico, no momento de sua aplicação a um caso concreto, será útil à análise que desejamos empreender, pois frisa justamente os aspectos tratados da matéria: o casuísmo das soluções das contradições entre leis novas e anteriores e a noção da necessidade da manutenção da lógica do sistema. A antinomia, enquanto contradição, nega a coerência interna do sistema, forçando o intérprete a compatibilizar os dispositivos legais (possível em caso de antinomias meramente aparen-

tes){232} ou, não sendo isto possível, leva o aplicador da lei, face ao impasse, a escolher uma, afastando a aplicação da outra (em caso de antinomias reais).{233} Se fosse possível traçar um paralelo entre os três planos do negócio jurídico (existência, validade e eficácia), poderíamos exemplificar que a revogação é a solução mais profunda, pois atinge a "existência" da norma jurídica ou da lei em conflito, retirando-lhe a vigência,{234} fazendo-a desaparecer do sistema do direito atual. Já a solução das antinomias é um exercício de aplicação das normas em conflito mais brando, pois face a contradição real entre normas, o * (232) Veja neste sentido a interessante solução do STF para conciliar a aplicação das ultrapassadas convenções limitadoras da responsabilidade e o espírito da CF/88 de ressarcimento efetivo de danos ao consumidor (danos materiais e morais): "Indenização. Dano moral. Extravio de mala em viagem aérea. Convenção de Varsóvia. Observação mitigada. Constituição Federal. Supremacia. O fato de a Convenção de Varsóvia revelar, como regra, a indenização tarifada por danos materiais não exclui a relativa aos danos morais. Configurados esses pelo sentimento de desconforto, de constrangimento, aborrecimento e humilhação decorrentes do extravio de mala, cumpre observar a Carta Política da República, incisos V e X do art .5.º, o que se sobrepõe a tratados e convenções ratificados pelo Brasil" (DJ 21.2.97, R. Ext. 172720-9, RJ, j. 6.2.96, Rel. Min. Marco Aurélio). (233) Veja-se a obra coordenada por Perelman, trazendo as definições de Malgaud, p. 7, Vander Elst, p. 138, Salmon, p. 285, Szabó, p. 350, e Buch, p. 373; ou, em português, a obra de Norberto Bobbio, Teoria..., p. 81 e ss. (234) Oscar Tenório, pp. 71, 64 e 65, ensina: "revogar uma lei significa tirar-lhe a força obrigatória", revogar "é fazer outro direito, fulminando o que vigorava", se a vigência é "a vida das normas jurídicas", a revogação é O processo técnico para tirar a vida das leis anteriores. Revogada a norma não há que se discutir de sua validade ou de qualquer efeito mais no mundo jurídico. (p. 232) aplicador preferirá uma (por sua especialidade, hierarquia ou anterioridade) dando-lhe "eficácia", enquanto afasta a outra, não considerando-a aplicável ao caso em exame, mas sem decretar-lhe a "morte" ou "inexistência" para casos posteriores.{235} O ponto de toque aqui, em geral, é o diferente campo de aplicação das normas em contradição. No exame da compatibilidade e da continuidade das normas no sistema deve o aplicador, porém, verificar não só os textos e as finalidades específicas das normas, mas também examinar com cuidado o campo de aplicação de cada norma. Se os campos de aplicação ratione materiae e ratione personnae são ora coincidentes ora divergentes, não há interesse do sistema na decretação da perda de vigência de uma das normas, ao contrário, a sobrevivência de ambas é essencial ou estaremos criando uma lacuna não querida no ordenamento jurídico.{236} Necessário analisar, portanto, se da contradição detectada nascerá uma incompatibilidade que decretará a "morte" de uma das normas

(revogação) ou se a contradição pode ser resolvida pela interpretação (antinomia aparente), pelo estudo do campo de aplicação (subsunção específica) ou pela utilização dos critérios de solução das antinomias fornecidos desde a escolástica (solução da antinomia real). O aplicador da lei, portanto, face ao aparecimento de uma contradição entre normas do CDC e leis anteriores, leis gerais ou especiais, ou leis posteriores, gerais ou especiais, verificará inicialmente se é possível compatibilizar as duas normas pretensamente em contradição. Se uma interpretação compatibilizadora, integrativa, que permita a aplicação das duas normas ao mesmo tempo, é possível, será esta a escolhida e desaparecerá a antinomia meramente aparente. Se a contradição entre os textos legais, suas normas e suas finalidades é tal que não permite a aplicação conjunta, integradora das normas, uma norma, por exemplo, permite, enquanto a outra expressamente proibe determinado tipo de cláusula contratual, uma impõe a * (235) Omitimos, conscientemente, a analogia ao plano da validade, tendo em vista os ensinamentos de Kelsen, segundo os quais a validade da norma repousa na norma fundamental, isto é, "as normas jurídicas encontram nas normas superiores o fundamento de sua validade e, a seu turno, constituem o fundamento de validade das normas inferiores", assim W. de S. C. Batalha, Direito Intertemporal, p. 29. (236) Esta foi nossa conclusão no referido artigo, "A Responsabilidade do Transportador Aéreo", p. 161. (p. 233) renúncia de um direito e a outra proibe a renúncia do mesmo direito, estamos frente a uma antinomia real, não solucionável através de simples interpretação das normas. Note-se que a fonte desta incompatibilidade entre as normas pode estar no valor ou princípio que inspirou as leis, umas querendo privilegiar determinados grupos sociais, outras querendo proteger outros grupos sociais, umas querendo atingir a igualdade entre todos na sociedade (leis gerais), outras querendo justamente assegurar um tratamento privilegiado, em determinadas matérias, em determinados contratos, visando um tratamento legal desigual, a beneficiar determinado grupo na sociedade (leis especiais). Se em um mesmo ordenamento jurídico temos leis inspiradas em valores contrapostos, denomina-se essas antinomias de valores em "antinomias de princípio".{237} Em verdade estas antinomias são as mais comuns, muitas vezes solucionadas pelo exame mais acurado do campo de aplicação de cada lei, muitas vezes, porém, a escolha para subsunção não é óbvia e essas antinomias de princípios transformam-se em antinomias reais a exigir o uso dos critérios de solução já clássicos. Em caso de antinomias reais, três são os critérios destacados pela doutrina e utilizados pela jurisprudência para solucioná-las: o cronológico, o hierárquico, o da especialidade. Note-se que os doutrinadores esforçam-se por deduzir tais critérios das normas positivas sobre a solução de conflitos no tempo, no caso a LICC de 1942, ainda em vigor, mas em verdade a origem de tais critérios é jurisprudencial e doutrinária, anterior às próprias codificações e sua idéia de sistema exaustivo e perfeito.{238} O critério cronológico é o mais simples para ser determinado; a própria LICC contém regras sobre a entrada em vigor das leis no tempo

e sua "ordem cronológica". O critério resume-se a presumir que a lei posterior seja prevalente em relação à lei cronologicamente anterior, pois estaria a representar o pensamento e a orientação atual que O legislador quer impor ao sistema. Se o critério cronológico é o de mais fácil determinação, é um critério de pouca utilização independente. Ele só resolverá a contradição entre a lei nova e a lei anterior se houver coincidência de grau hierárquico entre elas e ambas forem leis especiais ou leis gerais. Na maioria dos casos o critério cronológico serve apenas * (237) Veja a obra traduzida de Norberto Bobbio, Teoria..., p. 90. (238) Veja Bobbio, Teoria..., p. 92. (p. 234) como o "detonador" do conflito, sua utilização conjunta com os outros critériOS é que solucionará o impasse para o aplicador da lei. Já o critério hierárquico tem sua origem na idéia de hierarquia entre as leis presentes no mesmo sistema, fixando-se hoje, especialmente, no caráter constitucional, complementar ou derivado de uma das normas em contradição.{139} Segundo este critério a norma hierarquicamente superior deve prevalecer sobre a outra, mesmo sendo esta última posterior, pois também o legislador ordinário deve seguir a hierarquia do sistema legal, quando da sua atividade legislativa, elaborando normas novas da mesma hierarquia se deseja renovar totalmente o espírito do ordenamento. No texto acima, letra "b" desta análise, fizemos questão de frisar a origem constitucional do CDC e do mandamento de proteção ao consumidor, que assegura-lhe uma nova superioridade hierárquica e pode ser de grande utilidade na solução dos conflitos envolvendo outras normas do sistema legal e o CDC. Da mesma maneira, renovamos as observações traçadas na letra "a" deste número, as quais concluem pela determinação da natureza de normas do CDC como normas de ordem pública econômica. No campo do direito privado, há reconhecida superioridade hierárquica para as normas de ordem pública, uma vez que tais normas positivam os valores básicos da sociedade e tendem a prevalecer sob as outras normas de direito privado, na sua maioria disponíveis e de interesse prevalentemente individual.{240} Ainda quanto à hierarquia das normas, discute-se as normas oriundas de Tratado internacional, recebidas no ordenamento jurídico interno devem prevalecer sobre as normas internas mesmo que posteriores, em virtude de sua origem internacional. Em se tratando de normas oriundas de um Tratado internacional recebidas no ordenamento jurídico interno, utiliza-se com freqüência o argumento da univer* (239) A própria Constituição de 1988 fornece uma "ordenação" das fontes legislativas no seu art. 59, note-se que, tomada a lista do art. 59 como determinante da superioridade hierárquica entre as normas brasileiras, aquelas presentes em medidas provisórias teriam menos valor hierárquico do que as presentes em leis ordinárias e leis delegadas, cuja eficácia, porém, suspendem e substituem, se bem que por tempo limitado. (240) Veja sobre o critério hierárquico o excelente estudo de Bobbio, "Des critéres pour résoudre les antinomies", na obra coordenada por Perelman, p. 255 e ss. (p. 235) salidade das normas e da obrigação internacional do Estado Brasileiro

de cumprir estas normas até a denúncia do Tratado, para corroborar a tese da imutabilidade no tempo destas normas "internacionais". Necessários, se fazem, portanto alguns esclarecimentos. O ponto mais importante é o reconhecimento hoje pela doutrina dualista brasileira da não-superioridade dos Tratados e Atos Internacionais frente à Constituição Federal, em verdade fonte de aplicação e de validade do próprio Tratado.{241} O Supremo Tribunal Federal, ainda sob a égide da norma constitucional de 1969, afirmou no RE 0109173/87, ser "Inadmissível a prevalência de Tratados e Convenções Internacionais contra o texto expresso da Lei Magna". A tendência atual é justamente de aproximação do Direito Internacional Público e das Constituições nacionais.{242} Ao invés do conflito procura-se regular no próprio texto constitucional as eventuais superioridades hierárquicas, como a assegurada às normas oriundas da Comunidade Econômica Européia, nas Constituições da Espanha e Portugal. Assim como os próprios valores protegidos pelas Constitui-, ções nacionais, como a lista de direitos fundamentais, passam a ser reconhecidos como "fonte de inspiração" supranacional, como por exemplo nos históricos acórdãos da Corte de Justiça das Comunidades Européias.{243} Como já afirmamos anteriormente, o Direito Internacio-1 nal Público evoluiu de sua fase jusnaturalista para um "realismo não conformista", reconhecendo sua falta de coercitividade frente as constituições nacionais, e buscando linhas de contato e valores éticos comuns.{244} * (241) Veja a obra de Tenório, p. 86, que já em 1955 reconhecia a superioridade da Constituição, assim tb. nossa conclusão, no citado artigo "Responsabilidade do Transportador Aéreo", p. 165. (242) Veja a excelente e realista exposição de Paul de Visscher, "Les Tendances Internationales des Constituitions Modernes", in Recueil des Cours, 1952, Paris, Sirey, pp. 515 a 576. (243) Veja detalhes na obra coletiva, Conséquences institutionneles de l'appartance aux Communautés européennes, Coord. Bertil Cottier, Institut Suisse de Droit Comparé, Zurique, 1991. (244) Na verdade, sempre que o ordenamento jurídico passa a ser instrumento de dominação de um regime de Estado autoritário ou ditatorial, a injuStiça conseqüente das leis internas adotadas traz como reação a volta a Um jusnaturalismo, clamando pela aplicação de princípios e normas do direito natural ou do direito internacional público mundial, como (p. 236) Quanto, porém, ao conflito entre a lei interna (lei ordinária) e o Tratado (ou o Decreto que o promulga) a discussão permanece. A beleza destes argumentos de superioridade hierárquica dos Tratados está nos sonhos monistas, que negam a existência de dois ordenamentos jurídicos autônomos e independentes, um interno e o outro internacional, preferindo ver o mundo como um só sistema, com o recebimento automático dos Tratados assinados pelo país.{245} Mesmo sendo o Brasil por tradição um Estado dualista,{246} não se pode esquecer que o monismo tem como base última a doutrina jusnaturalista, que confunde o Direito Internacional Público com o próprio Direito Natural, nesse

sentido as normas oriundas deste direito supranacional trariam em si uma justiça intrínseca, a ratio naturalis universal. Sobre o tema vale repetirmos a lição de De Visscher, o qual identificou três tipos de sistemas constitucionais: os que recebem ao Tratado, depois de inserido na ordem interna, a mesma autoridade que a lei, sem superioridade (no superior efficacv), como no sistema norteamericano; os sistemas que reconhecem a superioridade do Tratado frente à lei, mas submetem o conflito a um controle constitucional, como o sistema alemão e de outros países hoje pertencentes à União Européia, antiga Comunidade Econômica Européia; e por fim, os que eventualmente estabelecem a superioridade do Tratado sobre a lei, sem controle de constitucionalidade, sistema que seria baseado em monismo radical, de superioridade do Tratado sobre a própria Constituição nacional, previsto, segundo o autor, nos Países-Baixos.{247} *aconteceu após o regime nazista na Alemanha. Tratando-se, porém, de um Estado Democrático de Direito, onde os princípios orientadores da justiça são os mesmos (se bem que não idênticos) ao da ordem jurídica mundial cessam tais clamores, não mais necessários. (245) Interessante observação monista é feita por Celso Ribeiro Bastos, in Comentários à Constituição Federal de 1988, Saraiva, 1988, v. 2, comentário ao § 2.º do art. 5.º da CF. A tese monista ajudaria também a aceitar as normas elaboradas por um órgão supranacional que controlasse a integração econômica dos países do MERCOSUL, nos moldes da Comunidade Econômica Européia. Na realidade atual, porém, tal órgão com competências autônomas e com força de decisão ainda não existe (talvez existirá no Tratado definitivo do MERCOSUL em 1995, o que poderia pressupor uma mudança na Constituição de 1988). (246) Veja-se os arts. 49e 84 da Constituição Federal de 1988, assim tb. a manifestação de Moraes, Código, p. 52. (247) De Visscher, pp. 563 a 569. (p. 237) Como ensina Rezek,{248} a Constituição Brasileira de 1988 não prestou maiores homenagens ao Direito Internacional Público a não ser àquelas que ele realmente merece, isto porque as regras do cenário internacional não estão totalmente fixadas e dependem ainda muito do poder econômico e da importância política de cada país. Assim, não é pelo simples fato de ter sido uma norma inserida em um ato internacional que assegura a ela o fato de ser uma norma justa ou de aplicação conveniente no Brasil.{249} Ainda é necessário diferenciar entre as normas oriundas da ordem internacional e recebidas no ordenamento jurídico brasileiro, há aquelas que positivam valores internacionais como as que dispõem sobre os direitos humanos e garantias fundamentais, mencionados no § 2.º do art. 5.º da Constituição e há aquelas que tratam de interesses econômicos internacionais (Tratados sobre a dívida externa, sobre o direito do mar, direito aeronáutico, direito espacial etc.). Com base no dualismo brasileiro e na superioridade assegurada tradicionalmente à Constituição, a doutrina{250} e a jurisprudência atual têm negado a existência de uma superioridade hierárquica ante o Tratado recebido no ordenamento jurídico interno e a legislação outra interna, principalmente em matéria tributária e comercial.{251}

Já o critério da especialização baseia-se na idéia de leis especiais para reger determinados assuntos ou determinados indivíduos ou grupos, pressupondo a maior força a leis específicas face a leis gerais. Note-se que também o critério da especialização evoluiu no tempo e relativizou-se. Hoje, reconhece-se que a especialização é uma característica tanto material como subjetiva, pois cada vez mais se introduz * (248) Francisco Rezek, in Interpretações da Constituição Federal de 1988, Coord. Ives Gandra Martins, FuB. Brasília, 1988, p. 7. (249) Veja interessante estudo de Fillipi, pp. 226 a 235, no qual conclui, examinando principalmente o GATT-OUC, que não é difícil de acontecer que os países economicamente mais poderosos utilizem tais acordos como instrumento para aperfeiçoar a sujeição econômica dos, sob a aparência de igualdade, mais fracos...". (250) Veja Filippi, p. 226 e ss. (251) Veja Decisão do TRF, 1.ª Reg., REO 113919/BA, de 4.3.90, citando O leading case do STF (RE 80.004/SE) e afirmando: "A tradição constitucional brasileira, diferentemente de outras ordens jurídicas (Lei Fundamental de Bonn, art. 25), não dá prevalência ao ato internacional, mesmo após incorporado à legislação interna, em relação a legislação comum". (p. 238) no sistema do direito leis destinadas à proteção de grupos sociais.{252} Nesse sentido a determinação de uma lei como especial ou geral apresenta hoje aspectos mais casuísticos. Observe-se, por exemplo, que o CDC é lei especial na sua face subjetiva, pois só impõe regras para relações contratuais e extracontratuais envolvendo pessoas, que define como consumidores e fornecedores. De outro lado, é lei geral, em grande parte de sua face material, pois trata de várias relações jurídicas envolvendo consumidores e fornecedores, não tratando exaustivamente ou especificamente de nenhuma espécie de contrato em especial, mas impondo novos patamares gerais de equilíbrio e de boa-fé a todas as relações de consumo. O CDC é, por exemplo, lei especial em relação ao Código Civil de 1917, pois só trata das relações envolvendo os que define (ou equipara) como consumidores. O CDC, porém, só trata de alguns aspectos dos contratos de consumo (dever de informação, garantias, vícios da prestação contratual, cláusulas abusivas, dever de redação dos contratos de adesão etc.), deixando a maioria das regras sobre existência, validade e eficácia da relação para o Código Civil, logo, se o CDC revoga-se uma norma que fosse do Código Civil criaria uma grande lacuna para todos os outros tipos de contratos e para o seu próprio sistema, que não é exaustivo. Cada norma será preservada para atuar em seu campo de aplicação, mas em um caso concreto encontram-se, ambas são teoricamente aplicáveis ao caso. O intérprete frente a esta antinomia real terá de escolher a norma "competente" para regular aquele caso submetido a ele, afastando a aplicação da outra norma. A antinomia é, para o aplicador da lei, ao mesmo tempo um desafio e um momento de subjetividade-criativa, pois deve recorrer não só a lógica, mas aos

valores e finalidades do próprio sistema e escolher a norma, como diria Bobbio, "mais justa para o caso". Com as modificações sofridas pela ciência do direito neste século, há um crescente ceticismo quanto à possibilidade dos critérios tradiCionais propostos desde a escolástica fornecerem soluções absolutas. No campo do Direito Intertemporal, reconheceu-se, na França,{253} que as soluções propostas para o problema da retroatividade da lei e do * (252) Veja Irti, sobre as novas técnicas do legislador, p. 43 e ss. (253) Assim a tese laureada de Françoise Dekeuwer-Défossez de 1977. (p. 239) respeito ao direito adquirido não resultam de uma análise meramente jurídica, são conjunturais, como veremos a seguir, dependendo de fatores filosóficos, sociológicos e ideológicos, o que impede o caráter absoluto das soluções encontradas. Assim, por exemplo, a concepção filosófica que o aplicador da lei possua sobre o direito pode influenciar a sua decisão, pois os efeitos retroativos da lei social nova serão visualizados de forma diferente por aqueles de filosofia mais individualista e por aqueles que concedem maior importância ao bem-comum da sociedade como um todo. Da mesma maneira, a sucessão de leis no tempo possui uma inseparável dimensão sociológica, bastando lembrar que algumas leis são modificadas pelo legislador para que a previsão legal harmonize-se com a moral e os costumes atuais (um exemplo seria a figura introduzida pela Constituição de 1988, da união estável), e sua aplicação imediata não refletirá em nenhum excesso ou novo na sociedade. Já outras leis estão "à frente" da prática social, pois o legislador deseja justamente transformar, orientar a nova conduta que a sociedade terá de assumir, aqui a vacatio legis será maior e a aplicação será imediata, mas para o futuro, quase pedagógica para modificar a conduta social. Por fim, a ideologia do legislador pode influenciar a solução. O legislador de inspiração conservadora adota sistemas que permitam preservar a estabilidade dos direitos adquiridos, dos atos jurídicos já perfectibilizados, enquanto o legislador manifestamente reformista é mais sensível à necessidade de colocar imediatamente em prática as novas normas que considera mais eqüitativas que as anteriores.{254} Os juristas costumam repetir os brocardos: a "lei não pode revogar a lei especial" ou a "lei especial não revoga a lei geral", afirmações corretas e simples, que somente escondem uma realidade: a antinomia entre as normas continua e não foi solucionada pelo caminho geral e definitivo da revogação, em virtude do campo de aplicação ora coincidente ora divergente da lei geral e da lei especial em conflito. O antigo art. 4.º, da Lei de Introdução de 1916, assim dispunha: "... a disposição especial não revoga a geral, nem a geral revoga a especial, senão quando a ela ou a seu assunto se referir, alterando-a explícita ou implicitamente". Hoje preferimos afirmar que as normas de campo de aplicação diferente continuam em vigor "lado* (254) Dekeuwer-Défossez, pp. 4 a 6. (p. 240) a-lado", desde que compatíveis. Se ambas as leis permanecem no sistema haveria prevalência da lei especial. A situação, porém, complica-se quando há conflito entre os critérios de solução das antinomias, isto é, a lei especial nova é hierarquicamente inferior à lei geral antiga.

Neste caso como deverá o aplicador da lei solucionar o conflito? Para Bobbio, se o aplicador da lei tem de escolher entre priorizar o critério cronológico ou o critério hierárquico, deverá considerar como claramente prevalente o critério hierárquico. Se, porém, a decisão é entre o critério cronológico e o da especialização, a resposta já não é tão simples. A jurisprudência costuma presumir que prevalecerá o critério da especialização (lex posterior generalis non derrogat priori speciali). Assim, o conflito entre uma lei geral-posterior e uma lei especial-anterior seria resolvido pela presunção que o legislador sabia do regime especial e não quis afastá-lo pela nova lei geral, pois o regime especial propiciaria maior justiça dos que os gerais. Trata-se, porém, de uma presunção, arraigada, sem dúvida, ao espírito dos juristas, mas que, segundo o mestre italiano, não é absoluta, pois a nova lei geral pode muito bem querer modificar o sistema, passar do privilégio à abolição do privilégio para maior justiça social, prevalecendo sua aplicação quase por uma questão teleológica.{255} Em caso de conflito entre as soluções propostas pelo critério hierárquico e o da especialização, prevalece o critério hierárquico sobre o da especialização, mas também certas relativizações são necessárias. A jurisprudência tende a conceder prevalência às normas especiais, sempre que não em conflito com a Constituição, e sempre que o regime particular realmente se justifique, não constituindo mero privilégio de um grupo político, econômico ou socialmente forte.{256} Como podemos observar a hierarquia entre os próprios critérios de Solução dos conflitos e antinomias não é muito clara, baseandose em presunções, presunções não absolutas que não dispensam o esforço casuístico do intérprete. Não havendo solução clara sugerese a utilização de uma terceira fonte, a Constituição, que como guia máximo do sistema poderá fornecer valores e Linhas de razoabilidade para a escolha a ser efetuada pelo aplicador da lei. Procura-se, em verdade, alcançar uma interpretação "conforme a Constituição" das * (255) Assim a surpreendente conclusão de Bobbio, Des Critéres, pp. 253 a 255. (256) Assim Bobbio, Des Critéres, pp. 255 a 257. (p. 241) normas em conflito para desta extrair a norma prevalente e solucionar a antinomia. d) Conflitos entre normas do Código Civil, de leis especiais e de leis anteriores com o Código de Defesa do Consumidor - Ao aplicador da lei interessa saber em qual diploma legal encontrará o regime jurídico básico e o regime jurídico especial para o contrato que se apresenta frente a ele. Em outras palavras, se as questões, oriundas de um contrato de compra e venda, de locação ou de abertura de conta corrente, ainda são regidas pelas normas anteriores de Direito Civil ou Comercial, ou se vão encontrar sua regulamentação no novo Código de Defesa do Consumidor. Dispõe o art. 118 do CDC que suas normas entrarão em vigor dentro de 180 dias a contar de sua publicação, revogando as disposições em contrário (art. 119). Se queremos saber se o Código de Defesa do Consumidor, matéria contratual, revoga ou não algumas das normas do Código Civil de 1917 referente aos contratos e sua interpretação, teremos de

examinar as regras brasileiras sobre os chamados conflitos de leis no tempo ou Direito Intertemporal. Regras estas contidas na Lei de Introdução ao Código Civil (LICC). Segundo o § 1.º do art. 2.º da LICC, a lei posterior revogará a anterior quando: 1) expressamente o declare; 2) regule inteiramente matéria de que tratava a anterior; 3) seja com ela incompatível. Os primeiros casos não parecem ocorrer na prática; nem o Código revogou expressamente alguns artigos do Código Civil, nem tratou inteiramente de toda a matéria referente a contratos. Mas serão as normas do Código Civil de 1917 incompatíveis com as do novo Código do Consumidor? Não é fácil estabelecer esta incompatibilidade, que emanaria mais do espírito das disposições do que sua literalidade.{257} Assim, por exemplo, seria incompatível a regra do art. 964 do Código Civil, que prevê o ressarcimento da quantia paga indevidamente, com a do parágrafo único do art. 42 do Código, que impõe o reembolso em dobro, a critério do juiz? * (257) Veja sobre o assunto a lição insuperável de Oscar Tenório, p. 81, onde o autor defende a revogação também quando a incompatibilidade "emana do espírito das disposições". (p. 242) Não. Parece-nos que aqui o legislador está criando uma exceção, uma regra especial de proteção para algumas pessoas, a par da regra geral já existente. Sendo assim, o conflito entre as normas do Código de Defesa do Consumidor com as normas anteriores dos Códigos Civil e Comercial serria resolvido pela aplicação da regra do § 2.º do art. 2.º da LICC, segundo a qual a lei nova especial não revogará a antiga lei geral, quando instituir normas especiais "a par das já existentes". Assim, também, a noção de vício dos arts. 18 e 25 do CDC é totalmente diferente da de vício redibitório do art. 1.101 do Código Civil, os prazos de decadência do direito de reclamá-los também são novos, assim como a impossibilidade de se exonerar contratualmente da responsabilidade; mas, nem por isso, os arts. 1.101 e ss. do Código Civil estão revogados, somente não serão mais utilizados quando se tratar de um contrato de consumo. Na prática, os efeitos se aproximam, mas a sobrevivência das regras gerais é importante porque nem todos os contratos serão regidos pela nova lei, nem todos podem ser sempre caracterizados como consumidores e nem o CDC regulou toda matéria referente à existência, à validade e à eficácia dos contratos. Por fim, devemos mencionar a nossa opinião que mesmo contratos regulados por leis especiais submetem-se às normas gerais do CDC, isto em virtude do caráter de normas de ordem pública interna que estas normas assumem (art. 1.º). O espírito protetor do CDC exige que suas normas sobre cláusulas abusivas, por exemplo, sejam aplicadas para anular cláusula presente em contrato de transporte aéreo, que exclui o direito de indenização do consumidor por vícios ou fato do serviço, mesmo que tal cláusula fosse permitida pela Lei específica, lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986.{258} O caso é basilar, pois a autonomia de vontade antes assegurada e protegida em lei, foi afastada por norma de ordem pública, posterior e com fins sociais. Assim tem decidido parte da jurisprudência brasileira, que supera a indenização tarifada do transportador, mesmo em contratos de transporte aéreo internacional, e aplicam o CDC, com sua responsabilidade contratual

ampla e ilimitada por danos materiais e morais.{259} Da mesma forma, * (258) Veja nosso estudo detalhado sobre o caso in "Responsabilidade do transportador Aéreo". (259) Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Ap. Civ. 968/97, 2. Câm. Civ., unânime, Des. Luis Odilon Bandeira, j. 20.5.97, cuja ementa é: (p. 243) aplicam quanto à responsabilidade por vício do serviço dos advogados a legislação especial em conjunto e sob a luz das novas regras do CDC.{260) As normas presentes nas leis especiais continuam válidas para regular todos os contratos civis ou coiciais a que se destinam; tratando-se de contrato de consumo, sua aplicação será afastada naquilo que incompatíveis com o espírito protetor do CDC. Como ensina Oscar Tenório,{261} pode haver a coexistência da nova lei geral em face da anterior lei, desde que compatíveis. A lei especial anterior continua em vigor, ao lado da lei geral nova,{262} no que não for incompatível, sendo necessário examinar a finalidade das duas leis. É a regra da incompatibilidade das leis. Mas de regra "leis que tratam de determinadas matérias se revogam com o advento de um código que veio dispor sobre aquelas matérias". Ocorre que o CDC não trata de nenhum contrato em especial, mas se aplica a todos, a todos os tipos * "Transporte aéreo internacional. Inadimplemento contratual. Ressarcimento dos danos. Dano material. Dano moral. Revisão do valor. Ordinária indenização. Transporte de livros "Rio-Paris" por via aérea. Extravio de uma das europalettes, onde acondicionada a maior parte dos livros transportados, encontrados finalmente em Ufa, nos Montes Urais, e posteriormente reencaminhados à França. Patente o descumprimento da avença, que é obrigação de resultado. Tal fato engendra o dever de ressarcir. Quanto aos danos materiais, seria admissível, em princípio, a indenização tarifada do transportador, nos termos da Convenção de Varsóvia e do Código Brasileiro de Aeronáutica. Ocorre que novas disposições legais compendiadas no Código de Defesa do Consumidor, além de atribuirem responsabilidade objetiva ao prestador de serviços, excluiram a limitação de sua responsabilidade, prevista naqueles diplomas normativos, revogando-os. Constituindo tais diplomas direito interno, podem ser ab-rogadoS, ou derrogados, por lei superveniente, sem necessidade de prévia denúncia formal. Dano moral ocorrente, a ensejar a pertinente indenização. Aplicação, ao caso, do princípio da compensatio lucri cum damno, eis que preSente seu requisito fundamental. Provimento parcial da apelação e dos recursos adesivos". (260) Veja neste sentido decisão do TJRS, Ap. Civ. 596181057, J. 9.10.96, Des. José Aymoré Barros Costa, in Revista de Jurisprudência do TJRGS 184, p. 242 e ss. (261) Tenório, Comentários, art. 2.º, § 2.º, p. 90. (262) Veja o art. 7.º, caput, CDC. (p. 244)

de contratos, se contratos de consumo. Neste caso não revogará as normas especiais referentes a estes contratos, que, relembre-se, nem sempre serão de consumo, dependendo da possibilidade de caracterização das parteS como consumidor e fornecedor mas, afastará simplesmente a aplicação das normas previstas nas leis especiais que forem incomPatíveis com o novo espírito tutelar e de eqüidade do CDC.{263} Como ensinam os mestres Espínolas,{264} quando a lei nova não é diretamente contrária ao próprio espírito da outra norma, "cumpre examinar, cuidadosamente, quais as disposições da lei antiga, que se mostram absolutamente incompatíveis com a nova; quando seja duvidável a incompatibilidade, será o caso de interpretar as duas leis, de modo que se faça desaparecer a antinomia...". Este parece ser o espírito do CDC, que em seu art. 7.º, considera aplicáveis todos os outros "direitos" (direitos do consumidor como afirma o capítulo) que estejam previstos na legislação ordinária. Já as limitações aos novos direitos dos consumidores são consideradas nulas se previstas nos contratos, art. 51, I, e afastadas pela nova lei de ordem pública, se previstas em leis especiais e incompatíveis com o espírito do CDC. A exposição até agora executada permite-nos considerar o CDC como verdadeira lei de função social, como um microssistema orientador introduzido pelo legislador para alcançar um objetivo: uma nova harmonia, lealdade e transparência nas relações de consumo. O CDC apresenta, assim, uma grande força renovadora. Mais do que determinar a revogação, a perda de vigência, de outras normas anteriores (gerais ou especiais), parece-nos que o CDC ocasionará uma nova interpretação das antigas normas, quando a relação for de consumo e ambas as normas encontrarem aplicação. Não sendo possível esta compatibilização entre as normas do CDC e as normas anteriores, deverá o intérprete optar por um dos sistemas, solucionando a antinomia. A posição do CDC como lei especial-subjetiva, lei posterior e hierarquicamente superior, como lei de ordem pública e complementar ao mandamento constitucional, assegurarão a força necessária para que esta lei de função social possa cumprir sua finalidade renovadora. A solução das antinomias é, porém, uma atividade casuística e porque não dizer, subjetiva. Somente uma análise caso-a-caso nos permitirá ao * (263) Veja Tenório, pp. 89 e 81. (264) Espínola/Espínola, p. 78. (p. 245) profissional do direito concluir pela escolha das normas do CDC, como prevalentes, se presente na relação um consumidor vulnerável. Relembre-se que sempre que o intérprete considerar que a utilização dos critérios clássicos (cronológico, hierárquico e da especialização) não resulta em uma clara determinação da norma que deverá prevalecer, poderá igualmente utilizar uma terceira fonte, no caso, a lei máxima do sistema, a Constituição, examinando, no caso concreto, se as leis em contradição cumprem com a determinação de proteção do consumidor "segundo a lei" e protegem suficientemente os outros interesses valorados pela Constituição, como o direito à vida, à inviolabilidade pessoal, à propriedade, à livre iniciativa etc. e) Conflitos entre normas do Código de Defesa do Consumidor e de leis especiais e gerais posteriores - Nesta terceira edição, é necessário examinar também os eventuais conflitos existentes entre a legislação especial, posterior à entrada em vigor do CDC, e esta Lei de 1990, visualizada como lei "geral" de tutela dos consumidores em

todos os contratos e relações de consumo. Assim, por exemplo, temos no país uma nova lei de locações,{265} um novo Sistema Financeiro Imobiliário,{266} uma nova lei de arbitragem{267} e, especialmente, uma lei específica para seguros e planos de saúde,{268} para citar algumas. A tendência tópica e de especialização do direito atual propicia a multiplicação de leis especiais posteriores ao CDC, nos ramos ou contratos mais problemáticos do mercado. Frisem-se as observações anteriores que a lei especial nova não revoga tacitamente a lei geral anterior, uma vez que o campo de aplicação da lei geral é naturalmente mais amplo e não coincidente com o da lei especial nova. Revogá-la significaria inaplicar a lei geral em outras matérias importantes. A lei especial nova, porém, pode afastar, em caso de antinomia verdadeira, a aplicação da lei geral anterior. Note* (265) Lei 8.245/91, veja detalhes da compatibilização desta lei no ponto anterior sobre contratos imobiliários, 1.2, letra a. (266) Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, veja detalhes da compatibilização desta lei no ponto anterior sobre contratos imobiliários, 1.2, letra a. (267) Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, que será comentada na Parte ii, sobre cláusulas influenciando o acesso à justiça, (4)1.2, letra c. (268) Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, veja detalhes da compatibilização deSta lei no ponto anterior sobre contratos de seguro, 1.2, letra d. (p. 246) se que a antinomia é um conflito limitado e típico e que ambas as leis aplicam-se ao caso concreto, prevalecendo a especial posterior no que regula e o regime geral (não incompatível) da lei geral ou especial anterior, se hierarquicamente iguais. Em outras palavras, uma lei especial nova não tem o condão de afastar a incidência do CDC sobre estes determinados contratos de consumo. A lei especial nova regula a relação de consumo especial no que positiva e o CDC continua a regulá-la de forma genérica e em todos os pontos que a lei especial nova não dispuser. Repita-se, pois, que no mais das vezes a lei especial posterior integra-se no espírito da lei geral anterior, ainda mais no caso em estudo, de o CDC atuar como "lei geral de proteção dos consumidores", uma vez que representa a ordem pública e constitucional nacional. A lei especial nova geralmente traz normas a par das já existentes (art. 2º da LICC), normas diferentes, novas, mais específicas do que as anteriores, mas compatíveis e conciliáveis com estas. Como o CDC não regula contratos específicos, mas sim elabora normas de conduta gerais e estabelece princípios, raros serão os casos de incompatibilidade.{269} Se, porém, os casos de incompatibilidade são poucos, nestes há clara prevalência da lei especial nova pelos critérios da especialidade e cronologia. Somente o critério hierárquico pode "proteger" o texto "geral" anterior incompatível. Assim, o CDC como lei geral de proteção dos consumidores poderia ser afastado para a aplicação de uma lei nova especial para aquele contrato ou relação contratual, como no caso da lei sobre seguro-saúde, se houver incompatibilidade de preceitos. O exame da incompatibilidade deve ser, portanto, o ponto central da análise. Sendo assim, quanto mais específica for a norma do CDC

e mais específica for a norma "contrária" da lei nova, maior a probabilidade de incompatibilidade e de ser afastada a aplicação do CDC para aplicar-se a lei nova. No caso da mencionada lei de segurosaúde, Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, é interessante observar que não há nenhuma incompatibilidade expressa entre elas, ao contrário, frisa a nova lei um espírito comum e o interesse na proteção do consumidor. A própria Lei 9.656/98 expressamente menciona a apli* (269) Assim, no caso da ampla lei nova sobre locação, o eventual conflito foi identificado em apenas uma norma de cada lei. (p. 247) cabilidade do CDC (art. 3.º da referida lei especial) e a necessidade de que a aplicação conjunta do CDC e da lei especial "não implique prejuízo ao consumidor" (§ 2.º do art. 35 da Lei 9.656/98). Inegável, porém, que a lei nova ao expressamente autorizar algumas cláusulas, as quais a jurisprudência brasileira, ao aplicar, ao interpretar e ao concretizar as normas do CDC, considerava como cláusulas abusivas, com base na cláusula geral do art. 51, IV, do CDC acaba ameaçando o nível anterior de proteção do consumidor. Assim se a lei nova autoriza o aumento das mensalidades por faixa etária, proibindo-o somente após 60 anos, e a jurisprudência considerava tal aumento abusivo, retrocede o direito pátrio, pois há prevalência da lei especial. São estes, porém, casos cinza, onde nem todas as decisões mantinham esta linha de interpretação e aplicação do CDC. Se o exemplo não é perfeito, o problema principal continua a ser outro, isto é, o da legalização ou positivação do abuso. Justamente criticando as primeiras versões do que é hoje a Lei 9656/98, observei ceticamente: "É possível revogar um princípio legal, intrínseco a um sistema jurídico, como o da boa-fé nas relações privadas, através de simples norma ordinária? Podem normas legais, elaboradas sob o interesse de determinados grupos econômicos e agentes no mercado, realmente autorizar a atuação conforme a má-fé objetiva, na esperança de prejudicar o co-contratante que, por exemplo, esquecerá de inscrever seu filho exatamente um mês antes do nascimento ou simplesmente não poderá fazê-lo por acaso da natureza? Basta estipular por lei um caso de abuso do direito e este potencial abusivo desaparece, tornando-se jurídica a atuação objetivamente abusiva? Será possível submeter o Judiciário e os aplicadores da lei a dar aplicação e eficácia a estas novas normas legais, mesmo se contrárias aos princípios de nosso sistema, aos próprios princípios constitucionais da atividade econômica (art. 170 CF/88) e aos direitos básicos do cidadão (art. 5º, XXXII CF/88)?". Neste momento a dúvida continua. É possível, válido e eficaz autorizar em lei, portarias e medidas provisórias práticas abusivaS e cláusulas abusivas segundo o CDC? Efetivamente passariam, então, estas a poder integrar o regime legal dos contratos, mesmo que de consumo, pois regulados por leis especiais? Ficaria o Judiciário atrelado e estaria seu trabalho de definir o abuso prejudicado, mesmo se ja decidia pacificamente em sentido contrário? Aqui, sem dúvida, o critério hierárquico deve ser observado, assim como nossas observações (p. 248) anteriores sobre a origem constitucional do CDC e da ordem econômica que ele positiva. Também o critério hierárquico entre as próprias leis, pois portarias e mesmo - de certa forma - medidas provisórias devem ser consideradas legislação de hierarquia inferior ou provisória, não

podendo revogar leis de ordem pública, como o CDC (perenemente). Se a antinomia é verdadeira, valem as observações anteriores para a decisão, necessariamente, casuística do aplicador da lei. São perguntas difíceis, que tenho certeza serão respondidas a contento pelo Judiciário, em especial pelo Supremo Tribunal Federal. Renovo somente a importância de um retorno ao estudo do sistema, à filosofia do direito e à procura da justiça para o caso concreto. É necessário dar destaque aos valores e princípios mestres como linhas básicas do direito, sob pena de, nestes tempos pós-modernos, desmoralizar a ciência do direito, que não saberá dar respostas justas para os casos mais simples, tão grande é o número de leis casuísticas e os interesses em conflito no caso concreto. Os princípios positivados no Código de Defesa do Consumidor podem ajudar neste caminho, oxigenando nosso direito civil e garantindo efetividade aos princípios constitucionais. Em resumo, o direito e as leis devem servir à justiça e à harmonia social e não somente à economia ou aos interesses momentâneos. O CDC como lei especial de defesa dos consumidores em relação às leis gerais de regulação das relações civis e comerciais pode também vir a ter conflitos eventuais com uma legislação geral posterior. Há bons motivos para crer que o Projeto de Código Civil, Projeto de Lei da Câmara 118/84 (na Casa de origem, PL do Senado 634/75){270} aprovado em dezembro de 1997 no Senado, seja votado definitivamente em 1998 ou em 1999. Se aprovado, teremos uma situação única: um novo Código unificado de direito privado ao fim de um século, ao fim de uma era em que justamente não se acredita mais em soluções generalizantes, em metanarrativas de igualdade e liberdade, típicas do direito moderno e codificador. É nestes tempos já chamados de pós-modernos que devemos examinar, ainda que rapidamente, o projeto em questão. Um novo código ao mesmo tempo ousado e retrógrado, atualizado e conservadOr, que conhece todas as novas doutrinas, mas que definitivamente * (270) Veja versão consolidada do referido Projeto publicada no Diário do Senado Federal - Suplemento B ao n. 226, de 11 de dezembro de 1997. (p. 249) não incorpora os avanços conseguidos no Brasil pelo Código de Defesa do Consumidor e outras leis da década de 90. Compreende-se tal distanciamento do projeto, uma vez que foi elaborado em 1975, revisado em 1984, e foi o seu texto original, na parte de obrigações, praticamente mantido intacto em 1996 e 1997, em sua última revisão e aprovação. Trata-se, porém, de uma respeitável obra codificadora, esforço herculano de seus autores originais,{271} os festejados professores da comissão elaboradora e revisora Miguel Reale, José Carlos Moreira Alves, Agostinho de Arruda Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert Vianna Chamoun, Clóvis do Couto e Silva e Torquato Castro.{272} A pergunta básica que este esforço legislador pôs à doutrina nacional em 1998 é se preferimos manter o atual, realmente superado e envelhecido Código Civil de 1916, modificando-o pontualmente, especialmente na parte de direito de família ou através da já numerosa legislação especial obrigacional, e confiar na linha atual da jurispru-

dência brasileira, ou se preferimos estabelecer um novo sistema geral de direito civil. Um novo sistema geral de direito civil com belas cláusulas gerais, mas com forte espírito intervencionista e conservador, que poderá ter reflexos paralisadores ou pelo menos consolidadores do direito privado brasileiro neste final de século. Festejar os cem anos da obra de Beviláqua, sem dúvida um Código do século XIX, e optar por um sistema multifacetado e plúrimo ou preferir positivar a doutrina sociológica e moral da década de 70, unificando parte do direito privado, e correr o risco de novamente fechar as portas do século XX, sem abrir as portas do século XXI?! Um difícil dilema. Uma nova lei é sempre um desafio, uma perturbação no sistema. Os juristas, conservadores por excelência, geralmente revoltam-se contra a mudança, protestam e depois, se direito posto, adaptam-se. Não quero aqui ser negativa; ao contrário, desejo honrar os mestres mais experientes que, ao elaborarem o Projeto 118/84, optaram sempre * (271) Sobre as dificuldades de redigir e colocar em vigor um novo Código Civil, veja a descrição das dificuldades na França, que até hoje mantêm seu texto de 1804, com modificações pontuais e leis especiais, em Guimezanes, Nicole, Introduction au droit français, Nomos, Baden-Baden, 1995, p. 26 e 27. (272) Sobre o trabalho da comissão elaboradora e revisora, veja Senado Federal, Código Civil - Anteprojetos, v. 5, Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, Brasília, 1989, p. 7 e ss. (p. 250) por teorias mais conservadoras (e mesmo algumas superadas em seus países de origem), sem dúvida, por boas razões. Apenas lamento que, no momento de se elaborar algo novo, no fim de um século tão criativo e tão contestador{273} tenha se perdido a chance de evoluir, e mais, tenha se perdido a chance de pelo menos positivar alguns dos avanços na proteção dos mais fracos consolidados na década de 90 e já com prática jurisprudencial pacificada no país.{274} Não se trata de reeditar a discussão Thibaut/Savigny sobre a codificação. O projetado Código é uma nova codificação, mais aberta, com maior número de cláusulas gerais, menos exaustiva ao reconhecer e citar as leis especiais existentes, uma codificação muito mais influenciada pelo direito constitucional do que as anteriores, neste sentido, aberta à evolução e à recepção do discurso atual.{275} Trata-se, sim, de ousar analisar criticamente a projetada Codificação, discuti-la e identificá-la como algo em parte positivo, mas também pode ser, em parte, negativo para a evolução atual da ciência jurídica brasileira.{276} O Brasil é um país de tradição formalista, clara herança portuguesa, * (273) Veja, por todos, Linhares, Célia Frazão e Garcia, Regina Leite, Dilemas de um final de século: o que pensam os intelectuais, Cortez, São Paulo, 1996, p. 16 e ss. (274) Sobre o direito dos juízes como fonte (Rechtsquelle), como realização (Rechtsverwirklichung) e como fator de desenvolvimento (Rechtsentwicklichung) do direito, veja Flume, Richter und Recht, in: Werner FlumeGesammelte Schriften - Band. 1, Verlag Otto Schmidt, Köln, 1988, p. 3 e ss.

(275) Sobre a importância desta abertura ao novo (mesmo que discursivo e político), veja as instigantes (e discutíveis) observações de Jürgen Habermas, Direito e democracia entre facticidade e validade, v. 1, Tempo Universitário, Rio de janeiro, 1997, p. 297 e ss. (276) Neste sentido, recorro às dúvidas e às palavras insuspeitas de Savigny, ao responder à Thibaut: "Quanto ao objetivo, estamos de acordo: queremos o fundamento de um direito não dúbio, seguro quanto às usurpações da arbitrariedade e dos assaltos da injustiça, este direito igualmente comum a toda a nação, e a concentração de seus esforços científicos. Para esta finalidade desejam um código, que, contudo, a uma metade somente da Alemanha traria a ansiada unidade, enquanto a outra metade ficaria ainda mais aviltada. Quanto a mim, vejo o ponto de equilíbrio numa ciência do direito organizada, progressiva, que pode ser comum à nação toda" (Da vocação, apud Norberto Bobbio, O positivismo jurídico - Lições de Filosofia do Direito, Cone, São Paulo, 1995, p. 62). (p. 251) e, de um direito, extremamente posItivista,{277} o que assegurará um forte impacto do projetado novo Códico na prática e na interpretação do direito privado brasileiro, se aprovado este projeto. Sendo assim, quero, em virtude dos limites deste estudo, analisar rapidamente o projeto e o seu eventual impacto no direito atual brasileiro. Penso útil retratar, ainda que sucintamente, as matérias reguladas pelo projeto, suas cláusulas gerais e princípios que segue e o conteúdo das normas específicas de direito dos contratos, de forma a poder identificar as inovações por ele incorporadas e positivadas em relação ao Código de 1916 e o Código de Defesa do Consumidor. Somente assim poderemos imaginar como se dará a possivel coexistência, conexão e a mútua influência entre o projetado Código e o Código de Defesa do Consumidor como lei especial e anterior. Em matéria de obrigações e contratos, assimilou o projeto da dogmática dos anos 70 e 80, um forte espírito de intervenção do Estado na conduta moral e autonomia da vontade das partes, introduzindo os paradigmas da função social dos contratos (art. 420), o da boa-fé objetiva na interpretação (art. 112) e na formação e execução do contrato (art. 421), o do controle dos contratos de adesão (art. 422 e ss.) e o da redução das cláusulas penais (art. 412), mas reintroduz o recusado e subjetivo requisito "moral" da causa na forma do motivo determinante (bewegliche Grund) para a validade do ato (art. 165, III), perde a oportunidade de inovar em relação a 1916 quanto ao regime da oferta (art. 426 e ss.), quanto ao regime da promessa (art. 438), ao dos vícios redibitórios (art. 440 e ss.) e ao das perdas e danos (art. 401 e ss.), revalorizando o silêncio como aceitação (art. 110), o caso fortuito interno e externo como causa de liberação da responsabilidade mesmo de profissionais (art. 392) e apresentando uma limitada visão da lesão enorme. Lesão é no projeto somente vício da vontade e não o desequilíbrio da perturbação do sinalagma da obrigação. Como vício da vontade está sujeita, assim, ao regime da anulabilidade (art. 156 c/c 170, II), isto é, à própria autonomia da vontade. Por fim, mencione-Se que enquanto a tendência do CDC e da jurisprudência é de expandir os prazos prescricionais e decadenciais, através da flexibilidade no seu

início ou em interpretações sistemáticas positivas aos mais vulneráveis * (277) Sobre o positivismo jurídico e como aceitá-lo, de forma moderada e ética, como método científico atual, veja Bobbio, Positivismo, em especial, pp. 237 e 238. (p. 252) no mercado, o projetado futuro CC, que visa regular as relações civis e comerciais, reduz drasticamente os prazos prescricionais, prejudicando os litigantes eventuais (art. 204 e ss.). O projeto apresenta algumas normas progressistas como as referentes ao direito da personalidade (art. 11 e ss.), ao abuso da fpersonalidade jurídica (art. 50), às novas provas aceitas (art. 222 e ss.). Seu grande trunfo são as suas cláusulas gerais que podem levar a uma evolução positiva do direito, como, por exemplo, a já existente cláusula geral de proibição de atos ilícitos culposos (art. 185), uma nova e avançada cláusula geral sobre o abuso do direito (art. 186), sobre estipulação em favor de terceiros (art. 435), sobre resolução por onerosidade excessiva e imprevisão (art. 477), sobre enriquecimento sem causa (art. 883 e ss.) e sobre responsabilidade por risco (art. 926). Se o Projeto menciona mais de 18 vezes a boa-fé, deixou inexplicavelmente, porém, de regular os simples deveres de conduta ou anexos oriundos da boa-fé e da proteção da confiança, como o dever de informar, de cooperar, de cuidado e de segurança nas relações contratuais e mesmo extracontratuais. É um Código preocupado com o relacionamento entre iguais (civis entre si e comerciantes entre si). É um Código que faz expressa reserva das leis especiais, dentre as quais se inclui o CDC, logo, não pretendendo revogá-lo como afirmaram inicialmente alguns. O Art. 2.041 do projeto menciona a revogação de toda a legislação "civil ou mercantil" incompatível com o novo Código, mas o artigo subseqüente expressamente menciona as remissões antes realizadas. Parece-me, pois, que este projeto de Código Civil nasce com um pequeno campo de aplicação, quase residual em face de tantas leis especiais que ele mesmo excepciona e, com isto, recepciona expressamente. Frente ao CDC, as incompatibilidades praticamente não existem, pois que nos capítulos referentes ao regime dos vícios redibitórios, às garantias contratuais como a evicção, aos contratos de adesão e aos contratos de serviços em geral faz menção expressa às leis especiais, ressalvando-as. Incompatibilidades seriam apenas de grau, uma vez que o princípio norteador de ambos os estatutos é o mesmo, o da boa-fé objetiva. Da Constituição Federal de 1988, o projeto assimilou as linhas de direito de família e de direitos reais, não, porém, o que de mais interessante havia, a valorização dos direitos fundamentais de nova (p. 253) geração no dia-a-dia das relações privadas,{278} a Drittwirkung alemã, o efeito horinzontal do direito constitucional para assegurar a harmonia nas relações privadas. Ficaram de fora deste Código que unifica as obrigações civis e comerciais (Livro I da Parte Especial) e que regula em detalhes o direito da empresa (Livro II da Parte Especial) as sociedades e pessoas jurídicas (art. 980 e art. 40 e ss.) os títulos de crédito, as linhas de proteção dos mais fracos na sociedade presentes na Constituição Federal, de proteção do consumidor, das crianças, índios e do meio ambiente em geral, todos

relegados, a exemplo do que dispõe o parágrafo único do art. 4.º do Projeto, à legislação especial. 2.2 Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos anteriores Outra importante questão é se as normas do CDC, por trataremse de normas de ordem pública, como esclarece o art. 1 .º da nova lei, aplicam-se automaticamente a todos os contratos existentes no mercado, tenham sido eles concluídos antes ou depois da entrada em vigor da lei. Ou se a proteção do consumidor terá como marco inicial a entrada do Código em vigor. O tema a ser analisado é um dos mais polêmicos e interessantes do novo direito do consumidor e, mesmo, da teoria geral do direito brasileiro: a aplicação ou não das normas do CDC a contratos assinados antes da entrada em vigor da nova lei. Vivemos em uma sociedade de contínuas mudanças, de um pluralismo social, político e étnico, onde as mudanças sociais e O próprio desenvolvimento do mercado e do país levam a uma constante atividade legislativa. As mudanças na legislação, tanto federal como estadual, afetam diretamente a vida dos consumidores, modificam o mercado e suas regras, asseguram novos direitos ou impõem novos deveres. Neste somar e renovar de leis, na maioria leis como objetivos econômicos e políticos, o grande questionamento é a influência dessas modificações nas relações privadas dos consumidores. * (278) Exceção seja feita às normas sobre direitos da personalidade (art. 11 e ss) e o dano moral resultante da violação destes direitos, como foi Já mencionado no texto. (p. 254) Inicialmente, é necessário frisar que as generalizações nesta matéria são perigosas, pois nem todas as leis novas são benéficas aos consumidores, nem todas são prejudiciais. A mudança legislativa pode vir ao encontro dos interesses dos consumidores ou não, e na maioria das vezes, nem mesmo o legislativo ou o executivo podem julgar exatamente quais os efeitos práticos a mudança legislativa trará; afirmase costumeiramente que a mudança legislativa é necessária e favorecerá (direta ou indiretamente) os consumidores, o que nem sempre se confirma na prática. Igualmente, nem todas as leis introduzem preceitos imperativos em relações privadas, matéria que aqui mais nos interessa. As leis com finalidade econômica e as leis com finalidade social, que desejam influenciar o mercado, são normalmente imperativas ou seriam afastadas por disposições contratuais. Se realmente no Brasil a experiência demonstrou, com diversos planos e mudanças econômicas, que a maioria da leis novas com cunho econômico vêm em prejuízo do consumidor, sua eventual aplicação imediata à relações privadas em curso seria em prejuízo imediato ao consumidor e aos direitos por ele assegurados pelo próprio CDC. Ocorre que, como em matéria contratual alguns anos de vigência é um curto tempo, muitas relações contratuais em curso são anteriores a entrada em vigor do CDC e o próprio CDC inclui-se, portanto, para estas relações, como uma lei nova e de ordem pública. O CDC é ótimo exemplo de uma lei com função social que objetiva justamente influenciar o mercado brasileiro, impor um novo paradigma de boa-

fé nas relações de consumo privadas como forma de abrandar o desequilíbrio causado pelo princípio da autonomia da vontade na sociedade de massas. O CDC como lei nova, com um forte e amplo campo de aplicação, procura com seus novos direitos e princípios beneficiar o próprio consumidor e as pessoas legalmente a ele equiparadas. Note-se que a possível influência da mudança legislativa, da entrada em vigor de lei nova, na vida dos indivíduos possui três graus: a influência nas relações futuras é certa e geralmente impossível de ser afastada, mesmo por disposição contratual; a influência nas relações contratuais que já surtiram efeitos e consumaram-se é nenhuma, por motivos práticos e também em virtude da aplicação da garantia do ato jurídico perfeito; a grande pergunta é sua influência sobre as relações (p. 255) atuais à época da entrada em vigor da nova lei, ou melhor sobre os efeitos atuais de relações já existentes antes da entrada em vigor da nova lei. Trata-se, portanto, de um problema diário (a aplicação ou não das normas do CDC às relações contratuais anteriores a sua entrada em vigor), cuja resposta pela jurisprudência brasileira ainda é diferenciada e sobre o qual a doutrina poucas vezes se manifesta. Na primeira edição tivemos a ocasião de afirmar que: "A segunda hipótese é a menos polêmica, pois coaduna com o princípio constitucional do respeito ao ato jurídico perfeito e aos direitos adquiridos (art. 6.º da LICC e art. 5.º, XXXVI da CF), mas relembre-se que tradicionalmente as normas de ordem pública têm aplicação geral e imediata e que a defesa do consumidor também recebeu garantia constitucional (art. 5.º, XXXII da CF). O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 7.904-ES, referente ao Plano Bresser de estabilização econômica, parece ter aceito a tese francesa da existência de normas de ordem pública econômica, normas estas, "que implicam na derrogação de cláusulas de contratos em curso". Completando, no RE 1850-RS, com a afirmação que as normas de ordem pública têm incidência imediata, não prevalecendo sobre elas o direito adquirido e concluindo que os pactos devem ser cumpridos (pacta sunt servanda), mas não têm o condão de derrogar leis imperativas, cogentes. Igualmente, a experiência em direito comparado{279} demonstrou que as novas leis de defesa do consumidor foram aplicadas a todas as relações contratuais em curso quando de sua entrada em vigor. O tema é ainda mais interessante quando se observa que a proteção concedida pela nova lei ao consumidor pode ser dividida em dois momentos. O momento pré-contratual terá de continuar a ser regido pela lei vigente à época; mas, no momento contratual, toda a vez que o efeito do cumprimento do contrato já firmado ofender o espírito da nova lei, ofender os direitos agora assegurados ao consumidor, quebrar o agora obrigatório equilíbrio contratual, este efeito será contrário a esta nova noção basilar do nosso sistema jurídico, à norma de ordem pública, e o juiz poderá aplicar as normas do CDC para afastar este efeito agora proibido. O tema, porém, é complexo em virtude da hierarquia constitucional dos dois valores envolvidos - proteção do consumidor * (279) Veja a experiência em Lancin, p. 379. (p. 256) e respeito ao ato jurídico perfeito - ambos dispostos no art. 5.º da Constituição Federal de 1988."

De forma sucinta, portanto, aparecem aqui os três pontos principais que alimentam a polêmica sobre a matéria: a) o Sistema brasileiro de garantias constitucionais quanto ao respeito ao ato jurídico e aos direitos adquiridos; b) a importância renovada da teoria, de origem no direito comparado, da aplicação imediata das normas de ordem pública econômica; c) o fato de na Constituição de 1988 as garantias constitucionais também incluírem a proteção dos interesses dos consumidores pelo Estado. Considerando a complexidade do tema e a divisão ocorrida na jurisprudência brasileira nestes primeiros anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor devemos, nesta edição, aprofundar necessariamente a análise, apresentando as principais teses aceitas pela jurisprudência brasileira e algumas opiniões pessoais. a) As garantias constitucionais do direito adquirido e do ato jurídico perfeito - Em matéria de aplicação da lei nova a relações contratuais privadas, os valores em conflito são de grande importância: a segurança jurídica e a nova noção de justo ou desejável introduzida pela nova lei. A segurança jurídica é um valor tão importante que alcançou, melhor conquistou, no Brasil, hierarquia constitucional, justamente face a nossa tradição de relativa facilidade na modificação das leis e certa tendência de generalizar, através de leis, a proteção de determinados interesses pessoais ou de determinados grupos ou regiões influentes. Efetivamente a regra do art. 5.º, XXXVI da Constituição Federal de 1988 reproduz a já tradicional garantia constitucional de proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Se as garantias constitucionais vinculam os três poderes, inclusive o legislativo, é geralmente o judiciário o garante efetivo (e último) desta valoração constitucional, afastando abusos ou arbítrios na atuação do legislativO ou executivo. Se não há dúvida sobre a importância da finalidade (ratio) e dos valores que orientam esta garantia constitucional, o mesmo não se pode afirmar quanto a sua interpretação e subsunção. O que realmente significa o Begriff "ato jurídico perfeito"? Quando e como um direito pode ser considerado como "direito adquirido"? São estes termos técnicos verdadeiros sinônimos de "irretroatividade das leis"? (p. 257) "Bem pouco satisfatória" é a expressão usada por Teixeira de Freitas para caracterizar o estado da ciência do direito no que se refere a irretroatividade das leis no tempo e a proteção do direito adquirido.{280} No artigo primeiro de seu Esboço, consciente da importância do tema, afirma ele, porém, que as leis daquele Código não deveriam ser aplicadas "com efeito retroativo". Passado um século da lição do mestre, o estado da ciência evoluiu, chegou mesmo a consolidar alguns princípios e exceções, atingiu um razoável grau de uniformização na jurisprudência brasileira; nas últimas décadas, porém, voltou a entrar em crise, multiplicando as discussões judiciais sobre esses temas centrais: a aquisição de direitos e a aplicação ou não das leis novas aos contratos constituídos antes de sua vigência. Os atuais aplicadores da lei, especialmente do CDC, encontramse na mesma situação incômoda de Teixeira de Freitas: conscientes da

importância do tema, mas com um instrumentário insuficiente ou pouco convincente para solucionar de maneira justa todas as possíveis variantes que se apresentam no dia-a-dia.{281} Neste contexto rarefeito em convicções ganhou em importância a interpretação dada pelo sempre brilhante Min. Moreira Alves do que seja o ato jurídico perfeito (ADin. 493-0-DF-TP){282} Esta interpretação, * (280) Freitas, Esboço, p. 2, veja tb. Vélez Sarsfield, "Código Civil de la Argentina - con notas de Vélez Sarsfield y Legislación complementaria", AZ Editora, Buenos Aires, 1991, p. 6, notas ao art. 3. (281) Assim o TRF da 2.ª Região, para proteger o mutuário do sistema do SFH, afirma que "as leis e regulamentos vigentes no momento da celebração do contrato a ele se incorporam", citando o art. 4.º do CDC, para garantir a equivalência com os salários do mutuário atingido pela mudança legislativa. (AC 02.09750/90-ES, 2.ª T., j. 15.10.90); de outro lado, o STJ em decisões sobre o Plano Cruzado, determinou a sua aplicação imediata aos contratos em curso (RSTJ, 3 (19, p. 496, j. 30.10.91, 4.ª T.); o STF de um lado permitiu a substituição do critério contratual (valor do salário mínimo) pelo novo critério legal (ORTN), reduzindo sensivelmente os planos de pensão ou de previdência privada (RTJ 122/1076); de outro, decidiu pela inaplicabilidade da lei nova sobre a correção monetária nos créditos rurais (RTJ 125/1143); as mesmas dissidências podem ser encontradas nas decisões dos Tribunais estaduais, veja Jurisprudência do TJRGS, v. 1990 (4), 205; 1993 (1), 178, 1993 (1), 273. (282) Reproduzida na íntegra in RT 690/176-266. (p. 258) baseada na originalidade do sistema brasileiro, onde as garantias são constitucionais, como forma de combater as teses do direito comparado sobre a possibilidade de aplicação imediata da lei de ordem pública (letra b, a seguir), é um dos pontos altos da discussão científica sobre a matéria.{283} Note-se, porém, que o fato da discussão científica e jurisprudencial da atualidade concentrar-se na figura do ato jurídico perfeito denota já uma subsunção altamente valorativa. Em verdade, os temas do respeitO ao direito adquirido e do ato jurídico perfeito encontram-se intimamente ligados, especialmente em sua função, pois ambos demonstram a força (e a legitimação), em nosso sistema do direito, da vontade dos indivíduos ( Wille) para criar e manter direitos e obrigações, especialmente frente a leis supervenientes, ou melhor, a força e a legitimação para manter tais direitos e obrigações mesmo que contrariamente ao disposto em leis posteriores.{284} Quanto a sua função, inserem-se ambos no sistema do direito como institutos, ao lado do da coisa julgada, que objetivam assegurar a chamada "segurança e estabilidade da vida social",{285} quanto a sua estrutura, trazem ambos como característica básica o respeito a vontade pactuada, a superação da vontade individual frente a vontade geral, teoricamente representada pela lei nova.

Mencionamos, porém, que concentrar a discussão na figura do ato jurídico perfeito significa já uma opção desvalorativa, uma aproximação à visão pura do direito, porque em sua estrutura de funcionamento, em seu conceito e conteúdo, as duas figuras efetivamente se diferenciam. * (283) Seguirei aqui minhas observações apresentadas no Simpósio "Contratos de Incorporação Imobiliária e a Lei 8.078/90", organizado pelo Centro de Estudos do 1.º Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo e pela Escola Nacional da Magistratura, dia 27.8.93, em São Paulo, sob o título "Ato jurídico perfeito e Código de Defesa do Consumidor - Uma teoria brasileira do ato jurídico perfeito?" (284) Com clareza afirma Celso Ribeiro Bastos, p. 192, "O direito adquirido consiste na faculdade de continuar a extraírem-se efeitos de um ato contrário ao previsto pela lei atualmente em vigor, ou, se preferirmos, continuar a gozar dos efeitos de uma lei pretérita mesmo depois de ter ela sido revogada" (Comentários à Constituição Federal de 1988, v. 2, 1989). (285) A expressão é de Oscar Tenório, p. 207. (p. 259) O conceito de direito adquirido traz em si um potencial valorativo muito maior. Só tem direito adquirido aquele que respeita, não somente uma lei, uma norma, aquele que conclui um ato criador no mundo dos fatos (Tat=Ato), mas aquele que respeita todo um ordenamento jurídico, de normas positivas e princípios (Recht=Direito). O direito adquirido é direito e não ato, sua fonte é abstrata, é a legitimação vinda do próprio sistema jurídico que o reconhece. logo não há direito adquirido ao abuso. Em outras palavras, não há como legitimar por esta figura o ato abusivo, pois se é abuso do direito, se é contrário ao sistema, será contrário ao direito antes ou depois da lei nova positivar alguns dos valores de ordem pública, antes ou depois da lei nova procurar esclarecer as aplicações práticas de algum princípio, como o da boa-fé, que sempre esteve no ordenamento brasileiro, antes ou depois da entrada em vigor do CDC.{286} Evita-se assim a discussão do eventual direito adquirido do fornecedor a ver cumprido o contrato com suas cláusulas hoje consideradas abusivas e nulas por força do CDC, pois a garantia constitucional do art. 5.º, XXXVI dirige-se ao legislador, mas tem um conteúdo aberto valorativo. O direito adquirido nada mais é, portanto, que uma situação jurídica subjetiva que deve ser respeitada pelo legislador. Mas deverá o legislador respeitar o exercício abusivo atual de direito próprio? Em outras palavras pode a outra parte alegar contra a incidência de norma imperativa e de ordem pública, direito adquirido a uma vantagem excessiva, a uma cláusula leonina ou abusiva, prevista anteriormente mas cuja eficácia prática ocorreria agora, ferindo a nova ordem imposta. Como exporemos a seguir (letras b e c), em nossa opinião a resposta deve ser negativa, mas a argumentação é complexa e difícil de ser generalizada para todas as leis novas, pois se trata de verdadeira antinomia de princípios, de exercício de compatibilização de princípios constitucionais, de importantes valores que estão em jogo. O ceticismo

dos mestres nesta matéria parece confirmar este posicionamento valorativo e necessariamente tópico. Pontes de Miranda,{287} citando * (286) Nesse sentido a manifestação do Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., pela aplicação do CDC contra a cláusula de perda total das prestações pagas, REsp. 45666-5-SP. (287) Comentários à Constituição, ob. cit., p. 75. (p. 260) Franz Hoffmann, ensína que a afirmação: "direitos adquiridos devem ser respeitados pelo legislador" é palavra "oca", vazia, pois segundo ele "dos direitos adquiridos, em sentido particular, chama-se justamente àqueles direitos que devem ser respeitados pelo legislador; assim temos um idem per idem. Precisamos indagar quais os direitos que devem receber especial respeito, e então saberemos o que é que se entende, propriamente, por direitos adquiridos". Já a figura do ato jurídico perfeito é menos "valorativa" do que a do direito adquirido, pois tem em sua base inicial uma atividade do mundo dos fatos, que recebe do ordenamento jurídico somente uma legitimação, um status especial, ao ser subsumida no conceito normativo (Tatbestand). Sua base inicial é mais concreta, pura, visualizável e mais fácil de ser mantida, pois não é somente uma mudança no mundo do direito, como o é o nascimento de um direito adquirido ou mesmo direito eventual ou expectativa de direito. Contra esta tendência purista, preferem alguns autores concentrarse na teoria dos direitos adquiridos, considerando o ato jurídico perfeito uma simples exteriorização, uma fonte visualizável do direito já adquirido.{288} O direito adquirido seria a faculdade/ação subjetivada para aquele titular, segundo o direito, de continuar a extrair efeitos de um ato contrário ao previsto pela lei atualmente em vigor. Já o ato "perfeito" seria a fonte, que por ser juridicamente considerado consumado, não pode ser atingido por lei posterior, mantendo a sua força e legitimando os direitos através dele adquiridos.{289} Concorde-se ou não com esta visão instrumental do ato jurídico perfeito, como simples materialização e fonte dos direitos verdadeiramente adquiridos, não há como negar a intrínseca diferença valorativa entre as duas figuras, apesar de idêntica função. Uma vez que a discussão científica sobre a possibilidade de aplicação do CDC a contratos assinados antes de sua vigência, contendo eventualmente cláusulas consideradas abusivas face a nova lei, concentrou-se não na pergunta da aquisição pelo fornecedor deste direito contratualmente assegurado pela cLáusula hoje abusiva, mas sim * (288) Refiro-me aqui aos ensinamentos e expressões do Professor da matéria, Rubens Limongi França, Direito Intertemporal Brasileiro - Doutrina da rretroatividade das Leis e do Direito Adquirido, RT, S. Paulo, 1968, p. 15. (289) Assim o citado Celso Ribeiro Bastos, p. 192. (p. 261) na figura do ato jurídico perfeito cabe tentar uma definição desta figura. Em uma definição provisória, poderíamos dizer que o ato jurídico que se diz perfeito é aquele que já se consumou segundo a égide da lei anterior, agora revogada, modificada ou afastada por lei nova.

Segundo o art. 6.º, § 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, reputa-se "ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou". Justamente porque já se consumou é considerado positivo à segurança jurídica preservar-lhe a validade, mesmo que segundo a lei nova fosse este ato de vontade contrário ao direito. Caracterizado como ato jurídico perfeito está protegido o ato na sua forma original, porque acompanhado pela lei antiga, a qual lhe empresta ou emprestou validade. A grande pergunta é o que significa ser ato "consumado", se é ter surtido seus efeitos, ter se exaurido ou se é simplesmente ter nascido como causa de futuros efeitos, ato assinado pelas partes. No primeiro caso, os efeitos já produzidos estariam incluídos na garantia constitucional, não os efeitos atuais do ato, por não consumados, estes efeitos pendentes ou futuros dos atos já assinados regeriamse pela lei nova.{290} Na segunda visão, da consumação do ato com sua simples assinatura (perfeição do ato), tanto a sua formação, quanto os seus efeitos consumados ou futuros serão regidos pela lei antiga, mesmo que revogada, mas vigente à época da assinatura. Em verdadeiro leading case, referente a mudança por lei do critério de reajuste das prestações da casa própria, o Supremo Tribunal Federal solucionou o caso de forma extremamente positiva para os consumidores envolvidos, mas fixou uma interpretação pura de ato jurídico perfeito que está na prática determinando a não-aplicação do CDC a uma série de contratos hoje litigiosos. Na ementa oficial, ensina o Rel. Min. Moreira Alves: "... Ação direta de inconstitucionalidade. Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado. * (290) Assim ensina Orlando Gomes, Questões, p. 356. (p. 262) O disposto no art. 5.º, XXXVI, da CF, se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito públicO e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedente do STF. Ocorrência, no caso, de violação de direito adquirido. A taxa referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações de custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda. Por isso, não há necessidade de se examinar a questão de saber se as normas que alteram índice de correção monetária se aplicam imediatamente, alcançando, pois, as prestações futuras de contratos celebrados no passado, sem violarem o disposto no art. 5.º, XXXVI, da Carta Magna. Também ofendem o ato jurídico perfeito os dispositivos impugnados que alteram o critério de reajuste das prestações nos contratos já celebrados pelo sistema do Plano de Equivalência Salarial por categoria Profissional (PES/CP). Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade dos arts. 18, caput e §§ 1.º e 4.º; 20; 21 e parágrafo único; 23 e §§ e 24 e §§, todos da Lei 8.177, de 1.3.91." (ADInconst 493-0 (Medida liminar) - DF - TP - j. 8.5.91 - rel. Min. Moreira Alves - DJU 4.9.92.

ADinconst 493-0 - DF - TP - j. 25.6.92 - rel. Min. Moreira Alves - DJU 4.9.92).{291} A tese defendida pelo Rel. Min. Moreira Alves, aplicada com um resultado de justiça inatacável neste julgamento, é hoje majoritária no Supremo Tribunal Federal e tem influenciado, em muito, outros Tribunais e Instâncias inferiores. A tese apresenta três elementos dogmáticos: 1) uma interpretação estrita da perfeição do ato jurídico; 2) uma visão lógica da retroatividade; 3) uma interpretação hierárquica das garantias constitucionais. Por seu interesse e repercussão devemos analisar criticamente cada um destes elementos. O ponto de partida da tese é uma definição estrita do que devemos considerar ato jurídico perfeito. O contrato analisado é o contrato de trato sucessivo, já assinado e que ainda está surtindo efeitos (novos). * (291) Reprodução da íntegra da ementa e do acórdão in RT 690/176. (p. 263) Nesse sentido manifestou-se o Min. Moreira Alves, com costumeira clareza em julgamento anterior, afirmando: "Com efeito ninguém nega que o contrato de locação é um contrato de trato sucessivo. Mas nem por isso, obviamente deixa de ser um contrato consensual, que é ato jurídico perfeito no momento em que ocorre o acordo de vontades entre o locador e o locatário, ou seja, no instante em que se constituiu".{292} A identificação que precedentes do STF{293} faziam entre a "situação definitivamente constituída" e o ato jurídico perfeito, é levada aqui até as últimas conseqüências através da identificação da "perfeição" do ato no momento de sua "constituição". Como conseqüência "os efeitos do contrato em curso no dia da mudança da Legislação regulam-se pela lei da época da constituição do mesmo".{294} Esta definição de ato jurídico perfeito supera, em sua concretização no momento do acordo de vontades, a definição presente na Lei de Introdução que prioriza a "consumação" do ato, não a identificando necessariamente com sua simples "constituição consensual". Concorde-se ou não com esta identificação generalizadora possui ela um fator positivo que é a identificação da importância do equilíbrio inicial do contrato. em outras palavras das expectativas legítimas das partes integrantes do acordo e da aplicação integrativa da lei então vigente.{295} Nesse sentido, emanou seu voto o Min. Nery da Silveira no mesmo caso, afirmando: "Não é possível desconsiderar que a idéia de contrato implica, de certo modo, a de equilíbrio entre interesses opostos, manifestado pelas vontades das partes contratantes, colimando um objetivo, e que por ele se obrigam a cumprir uma determinada conduta satisfativa." Assim, cumpre ter presente "... na sua execução, a necessidade de se resguardar o equilíbrio que presidiu os interesses dos contratantes, ao consentirem".{296} * (292) In Ag. Inst. 99.655-9-SP, j. 14.9.84, Rel. Min. Moreira Alves, reproduzido in Revista Forense 292/221, grifo nosso. (293) No voto analisado são citados os precedentes in RTJ 55/35 e 106/317. (294) Assim o Ministro Relator, p. 251, citando precedentes neste sentido (RTJ 89/634, 90/296, 112/759, 107/394).

(295) Sobre a integração da lei vigente à época da constituição, veja passagem do voto do Ministro Relator in RT 690/219. (296) In RT 690/216. (p. 264) Note-se, porém, que mesmo esta visão do ato jurídico perfeito como ato Simplesmente assinado, constituído, não deve impedir a análise do julgador quanto a licitude do ato, sua consumação nas prestações e efeitos surtidos, e a entrada ou não desta eficácia no patrimônio do credor (direito adquirido). Nesse sentido o voto do Min. Ilmar Galvão{297} dissende ao concentrar seus argumentOs na noção basilar de direito adquirido. Na tese vitoriosa, o exame do direito adquirido dá lugar ao exame da retroatividade ou não existente em caso de aplicação da lei aos efeitos atuais do contrato assinado anteriormente a entrada em vigor da lei nova. Nesse sentido, ensina o Ministro Relator, citando Roubier: "se a lei nova infirmar cláusula estipulada no contrato, ela terá efeito retroativo, porquanto ainda que os efeitos produzidos anteriormente à lei nova não fossem atingidos, a retroatividade seria temperada no seu efeito, não deixando, porém, de ser verdadeira retroatividade", denominada de retroatividade mínima, mitigada ou temperada.{298} No que se refere a visão da retroatividade (2), incluindo a retroatividade mínima sobre os facta pendentia, correta em princípio a tese do STF, pois aqui reside uma das fontes do tratamento por vezes diferenciado do consumidor e mesmo prejudicial a estes. Efetivamente, a irretroatividade das leis é a regra no direito brasileiro e a retroatividade (mesmo que mínima) é uma exceção, e como esta deve ser tratada, logo sua interpretação e aplicação deve ser estrita.{299} Esta posição é muito mais segura para o aplicador da lei, em uma matéria tão controversa e - para os indivíduos - perigosa como os efeitos da lei nova sobre as relações privadas em curso. Assim nas famosas decisões sobre a eliminação do reajuste pelo salário mínimo nos contratos de previdência privada, se o Supremo Tribunal Federal{300} * (297) Na referida ADin, in RT 690/247. (298) In RT 690/213 e quanto a denominação, p. 212. (299) Nesse sentido o voto do Min. Celso de Mello, in RT 690/195, que conclui pela excepcionalidade da eficácia retroativa das leis no sistema de direito constituciOnal POsitivo brasileiro e a nega no caso, face as prescrições "nitidamente mais gravosas" para os mutuários (p. 194). Assim, Ana Paula Borges, p. 25, Citando os ensinamentos de Carlos Maximiliano. (300) Refiro-me a decisão de 30.6.87, Rel. Min. Sydney Sanches, RExt. 107.763-RS, reproduzida in RTJ 122/1.076, onde foi considerada válida - contrariamente ao que dispunha o contrato assinado vários anos antes (p. 265) e posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça{301} tivessem recusado a eficácia imediata, ou retroatividade mínima da lei nova, através de uma interpretação estrita e do decisivo argumento complementar da existência de direitos adquiridos (a futura prestação conforme as expectativas despertadas no mercado pelos fornecedores destes serviços), os pensionistas e aposentados vinculados a empresas de previdência privada não estariam recebendo valores tão ínfimos como os atuais

e teriam efetivamente assegurado um melhor futuro. Se a interpretação e a aplicação do efeito imediato das leis deve ser estreita, parece-nos que a visão lógica e concreta imposta pela tese é excessivamente kelsiana e por sua teórica pureza e abstração pode ser usada para impedir a atuação corretiva do juiz. A visão abstrata da tese cria uma quase impossibilidade de mudar um efeito do contrato, pois estaríamos mudando o próprio contrato, a causa. Este argumento lógico "causa/efeito" falha ao extinguir a possibilidade de exame da "causa", melhor dizendo da validade da "causa", por exemplo, da cláusula contratual ilícita ou abusiva presente neste contrato que agora se examinam os "efeitos". Se não posso modificar nenhum efeito do contrato assinado, sob pena de mudar sua causa-concreta, não posso examinar nenhum aspecto do contrato, ato jurídico "já perfeito", pois qualquer atuação nulificante, modificadora ou mesmo interpretadora de forma teleológica do julgador modificará a "causa histórica", o contrato como formado (lícita ou ilicitamente) no dia da assinatura. Destaco o perigo desta argumentação e sua lógica, pois considero que o princípio da boa-fé nas relações contratuais e o ideal de combate ao abuso do direito e uso indevido das posições dominantes no mercado *- "a substituição do valor do salário mínimo como fator contratual de reajustamento, pelo índice de variação da ORTN", nesta mesma linha RE 1.779-RS (RTJ 122/1.146), RE 105.285-RS (RTJ 124/636) e o RE 105.137-0, Rel. Min. Cordeiro Guerra (DJ 27.9.87). (301) Refiro-me a decisão do REsp. 29-RS (R. Sup. Trib. Justiça, 1 (3) 1.032, nov./89), pela incidência imediata da lei nova de ordem pública, "a regular a atualização das contribuições e dos benefícios da previdência privadas sem violação de direito adquirido." Contra considerando a existência de direito adquirido, face a expectativa de segurança dos consumidores e das pessoas que queriam beneficiar, voto basilar do Des. Adroaldo Fabrício do Tribunal de Justiça/RS, no caso. (p. 266) já existiam antes da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 (e sua garantia de proteção dos consumidores), assim como antes da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor. Levado às últimas conseqüências de sua lógica arrebatadora o argumento significaria a impossibilidade do juiz considerar uma cláusula do contrato assinado como abusiva, frente ao sistema jurídico existente então, pois não poderia lhe negar efeito no momento, ou estaria ferindo o ato jurídico perfeito.{302} É importante frisar que o ato jurídico pode ser assinado e não ser juridicamente perfeito. Como ensinava Clóvis Bevilacqua: "Já ficou dito que o direito adquirido pressupõe um fato capaz de produzi-lo, segundo as determinações da lei" (então vigente). "A segurança do ato jurídico perfeito é um modo de garantir o direito adquirido, pela proteção concedida ao seu elemento gerador."{303} Um ato assinado pode não ser gerador de direitos adquiridos, mas pode ser gerador de efeitos já consumados, agora intocáveis, por isso mesmo a definição do art. 6.º, § 1.º da LICC prioriza a expressão "consumado", para frisar sua diferente função em relação ao direito adquirido.{304}

Parece-nos importante frisar igualmente que o ato jurídico pode ser assinado (perfeito, segundo a tese) e não ser totalmente lícito ou válido. Ou chegaremos à conclusão que era melhor para os consumidores-contratantes não ter o legislador promulgado o CDC, o qual em verdade somente positiva as linhas ético-jurisprudenciais e concretiza princípios já existentes no ordenamento jurídico.{305} Face a nova lei, estaria o julgador impedido de examinar os "atos jurídicos assinados" * (302) Veja decisão do TJDF que considerou aplicável o CDC a contrato assinado anteriormente a sua vigência, mas cujo distrato foi posterior. Tal decisão foi mantida pelo STJ, RE 108236-DF, j. 1.4.97, rel. Min. Barros Monteiro, a contrato anterior para declarar abusiva a cláusula-mandato de um Banco. (303) Comentários ao art. 3º, LICC, p. 98. (304) Abstraindo e generalizando em demasia a noção de ato jurídico perfeito há o perigo desta retirar toda importância da garantia do direito adquirido, pois só haveria necessidade de garantir direitos adquiridos de fonte não contratual, estes sim na maioria inexistentes face a modificação legal. (305) Nesse sentido a lição de Antônio H. V. Benjamin, no Seminário Paraibano de Direito do Consumidor, 26.8.94: "A lei nova vem cristalizar o posicionamento da jurisprudência e acaba prejudicando o consumidor, porque se usa o argumento da não-retroatividade." (p. 267) (causa) e teria que tolerar todos os efeitos, mesmo os antes não tolerados - abusivos - dos atos assinados (efeito). Nesse sentido, destaque a manifestação dissidente do Min. Rui Rosado de Aguiar do STJ, em ação versando sobre cláusula de perdimento: "Diz-se que a sua aplicação a contrato assinado antes de sua vigência significaria violação ao princípio da irretroatividade da lei, assim como expresso na Constituição da República. Ocorre que, tanto agora como antes, não há como admitir um direito subjetivo fundado em cláusula iníqua, nem validade de ato negocial onde se manifesta o arbítrio de uma das partes, com exercício abusivo de direito".{306} Por fim, a tese destaca a originalidade do sistema brasileiro de conflitos de leis no tempo e suas repercussões nas relações privadas, uma vez que - contrariamente à França, Alemanha e Itália, países de origem de muitos dos doutrinadores mais citados na matéria - no Brasil a garantia do ato jurídico perfeito possui hierarquia constitucional.{307} Logo, tal hierarquia subjuga o próprio legislador, que mesmo querendo, não poderá promulgar lei que viole os atos jurídicos perfeitos, cabendo ao Judiciário a garantia deste princípio constitucional.{308} Esta hierarquia constitucional impediria a retroatividade (mesmo que mínima) de qualquer lei infraconstitucional, seja de direito público ou privado, e * (306) Voto vista in REsp. 45666-5-SP, j. 17.5.94, 4.ª T., STJ. p. 3 do original, ainda não publicado. (307) A p. 208 (RT 690) foi transcrito o voto do Min. Moreira onde desenvolve

este pensamento (REsp. 1.451-7-DF): "Aliás, no Brasil, sendo o princípio do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada de natureza constitucional, sem qualquer exceção a qualquer espécie de legislação ordinária, não tem sentido a afirmação de muitos - apegados ao direito de países em que o preceito é de origem meramente legal - de que as leis de ordem pública se aplicam de imediato alcançando os efeitos futuros do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se se alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo modificação na causa, o que é vedado constitucionalmente". (308) Sobre o tema veja artigo de Raul Machado Horta, "Constituição e Direito Adquirido", in Revista Trimestral de Direito Público, 1 (1993), p. 50 e SS. Segundo o autor, a exceção da Constituição autoritária de 1937, as outras Constituições de 1934, 1946, 1967 e 1988 instituíram o princípio do direito adquirido, absorvendo nele a irretroatividade da lei, que deixou de figurar no texto da Constituição, p. 56. (p. 268) dentre estas últimas, as normas de ordem pública normais e as que estabelecem novos "estatutos". Sobre o poder do legislador e a hierarquia constitucional ensinou o Min. Aliomar Baleeiro (RExt. 62.731-GB): "Já se disse que o Parlamento britânico pode tudo... Mas num país de Constituição escrita e rígida não há o mesmo arbítrio. A lei, no Brasil, não pode transformar o quadrado no redondo, sempre que o redondo e o quadrado tenham sido desiCnados como tais na Constituição, expressa ou implicitamente".{309} Interessante notar, que apesar do ceticismo exposto no voto, o Min. Baleeiro concluiu pela eficácia imediata da nova lei e pôs a salvo somente os efeitos já consumados, exemplificando de maneira bastante figurativa: "... Eu contesto é que se possa negar efeitos já produzidos, decorrentes de situação definitivamente constituída. Suponhamos que neste momento a lei marque o teto de 6% à usura. Será feita uma lei ou Decreto-lei baseado na segurança nacional, e dirão no Brasil, no empréstimo, não poderá mais cobrar juros, juro é pecado. Assim, com tais fundamentos morais, ficam proibidos os juros. Tendo validade essa lei, daqui para o futuro ninguém mais pagaria juros, mas quem recebeu juros até hoje não é obrigado a devolvê-los. Ninguém pode pedir de volta o juro que estava vencido até ontem; ninguém deixa de ser credor de juro que estava vencido até ontem. É uma situação definitiva. O credor não pode ser prejudicado". Estes ensinamentos bem refletem a realidade brasileira, de uma mudança constante de leis e da dificuldade conseqüente do julgador. Sendo assim destaque-se a importante identificação que fez o referido Ministro da fonte máxima de nosso sistema: a própria constituição. Este argumento é especialmente importante no caso do CDC, pois a defesa do consumidor não é só princípio da ordem econômica (art. 170, V da CF/88), mas é principalmente direito e garantia fundamental de todos frente ao Estado, inclusive frente ao Legislativo e ao Judiciário (art. 5.º,

XXXII da CF/88); na figurativa linguagem de Baleeiro: um "quadrado" tão constitucional quanto o ato jurídico perfeito e que não deve ser ignorado pelo julgador. * (309) Nesse sentido reproduzo histórica frase do Min. Aliomar Baleeiro (RExt. n. 62.731-GB, j. 23.8.67, in RTJ 45/564). (p. 269) De outro lado, o Min. Baleeiro frisa com grande sabedoria o "status" de credor, relembrando assim - indiretamente - a aquisição de um direito. Quem é credor, segundo a lei antiga, não deixará de sê-lo, apesar da lei nova. Retornamos assim ao tema central do direito adquirido, daquele direito que já está incorporado ao patrimônio do credor, não pelas simples assinatura do contrato, mas por sua "qualificação especial", como direito legalmente adquirido segundo a lei antiga. Certo é que a concentração operada na figura do ato jurídico perfeito tem finalidade fugir da insegurança da noção de direito adquirido. Na jurisprudência atual brasileira, a tese continua a ser utilizada, especialmente para proteger os consumidores dos reiterados planos econômicos, o que é positivo, pois estas intervenções legislativas rompem o sinalagma contratual inicial, consolidam ainda mais o desequilíbrio de forças ao concentrar riquezas e excedem os limites do razoável na vida contratual.{310} De outro lado, a supremacia desta tese deixou tantos outros consumidores, especialmente os ligados a contratos cativos de longa duração, sem a proteção do novo sistema e a depender de uma interpretação atualizadora de um sistema contratual superado. Irrazoável é sem dúvida o caso de ruptura do sinalagma contratual funcional, de quebra da base do negócio, de frustração da finalidade do negócio e de frustração absoluta das expectativas legítimas de um dos contratantes. Todos os outros casos merecem uma ponderação tópica e cautelosa.{311} * (310) Exemplo de utilização atual desta linha de pensamento é a decisão do STF no Recurso Extraordinário 201-176-2/RS, 1.ª T., j. 10.12.1996, Rel. Min. Celso de Mello, reproduzida na íntegra na RT 741/202-206, cujo final da ementa é o seguinte: "O contrato de depósito em caderneta de poupança, enquanto ajuste negocial validamente celebrado pelas partes, qualifica-se como típico ato jurídico perfeito. à semelhança dos negócios contratuais em geral, submetendo-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua estipulação. Assim sendo, caso a sua contratação ou renovação tenha ocorrido antes da entrada em vigor da Lei 7.730/89, não se aplicam as normas dessa legislação infraconstitucional, em virtude do exposto no art. 5.º, XXXVI, da CF, ainda que os rendimentos venham a ser creditados em data posterior". (311) Veja, como exemplo, decisão do TJ/GO, na Revista Forense 338, p. 334, em que o CDC foi aplicado a contrato anterior para declarar abusiva a cláusula-mandato de um Banco. (p. 270) Concluindo, se a tese apresentada é erudita e correta, resta uma grande dúvida quanto à sua possibilidade de aplicação a todos os casos. Encontrou-se verdadeiramente o elemento abstrato, objetivo e neutro capaz de solucionar com justiça todos os casos, através desta estrita interpretação de ato jurídico perfeito? Se a tese ora vitoriosa pode ser usada na maioria dos casos, parece-me que com relação a aplicação do

CDC a contratos anteriores a março de 1991, esta visão abstrata ignora um elemento importante: a hierarquia constitucional da garantia à defesa dos interesses dos consumidores. Por vontade do legislador constitucional estamos aqui frente a uma antinomia de princípios, a uma teórica contradição de valores. De um lado, o respeito à vontade individual consubstanciada no ato alegadamente "perfeito", de outro, o valor social da obrigação do Estado (inclusive do judiciário) de proteger os mais fracos na relação, os consumidores. Trata-se justamente de uma antinomia necessária de valores, um conflito de princípios basilares constitucionais, que deve necessariamente ser decidido pelo julgador. b) A garantia constitucional da defesa do consumidor - A Constituição Federal de 1988 ao regular os direitos e garantias fundamentais no Brasil estabelece em seu art. 5.º, inc. XXXII a obrigatoriedade da promoção pelo Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário) da defesa do consumidor. Igualmente, consciente da função limitadora desta garantia frente ao regime liberal-capitalista da economia, estabeleceu o legislador constitucional a defesa do consumidor como um dos princípios da ordem econômica brasileira, a limitar a livre iniciativa e seu reflexo jurídico, a autonomia de vontade (art. 170, V). Ao garantir aos consumidores a sua defesa pelo Estado criou a constituição uma antinomia necessária em relação a muitas de suas próprias normas, flexibilizando-as, impondo em última análise uma interpretação relativada dos princípios em conflito, que não mais podem ser interpretados de forma absoluta ou estaríamos ignorando o texto constitucional.{312} A procura deste caminho "de meio" é a nova linha de interpretação conforme a Constituição imposta pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Em caso envolvendo os estabelecimentos de ensino e a noção de * (312) Assim a manifestação de Miguel Reale, em 27.8.93, no Simpósio organizado pelo 1.º TACivSP, "Os contratos de incorporação imobiliária e a Lei 8.078/90", em São Paulo. (p. 271) livre iniciativa e defesa do consumidor (ADin 319-4-DF), o Min. Moreira Alves ensina: "... havendo a possibilidade de incompatibilidade entre alguns dos princípios constantes dos incisos desse artigo 170, se tomados em sentido absoluto, mister se faz, evidentemente, que se lhes dê sentido relativo para que se possibilite a sua conciliação a fim de que, em conformidade com os ditames da justiça distributiva, se assegure a todos - e, portanto, aos elementos de produção e distribuição de bens e serviços e aos elementos de consumo deles - existência digna"... "Para se alcançar o equilíbrio da relatividade desses princípios - que, se tomados em sentido absoluto, como já salientei, são inconciliáveis - e, portanto, para se atender aos ditames da justiça social que se pressupõe esse equilíbrio, é mister que se admita que a intervenção indireta do Estado na ordem econômica não se faça apenas a posreriori, com o estabelecimento de sanções às transgressões já ocorridas, mas também a priori, até porque a eficácia da defesa do consumidor ficará sensivelmente reduzida pela intervenção somente a posreriori que, às mais das vezes, impossibilita ou dificulta a recomposição do dano sofrido".{313} Esta nova linha de interpretação relativa necessariamente a mencionada noção de ato jurídico perfeito, ou haverá violação de outro princípio constitucional, que é a defesa do consumidor, ao negar-se o

juiz a examinar a licitude da imposição contratual face ao novo mandamento de maior lealdade no mercado e relativização do dogma absoluto da autonomia da vontade. A jurisprudência brasileira nem sempre tem sido conseqüente com estes princípios, aceitando por vezes a aplicação imediata de normas de ordem pública, por vezes considerando a existência de ato jurídico perfeito, face ao contrato simplesmente constituído antes da entrada em vigor da nova lei. Na utilização de ambas as teorias poderá haver prejuízo para os consumidores, daí a importância deste terceiro elemento: a necessária ponderação da garantia constitucional da defesa dos interesses dos consumidores. c) A aplicação imediata das normas de ordem publica - Por fim, gostaríamos de tecer algumas considerações sobre a combatida tese da aplicação imediata das normas de ordem pública. O direito comparado demonstrou que as leis protetoras dos direitos dos consumidores encontraram aplicação imediata (benéfica) logo após sua entrada em * (313) Pp. 51 e 52 do acórdão original, j. 3.3.93, ainda inédito. (p. 272) vigor, influenciando assim os efeitos atuais de contratos anteriores. Também no Brasil tal teoria encontra apoio em substancial parte da doutrina e da jurisprudência.{314} A justiça de sua aplicação tem seu fundamento na idéia que no Estado de Direito com finalidade social deve ser permitido ao legislador intervir nas relações privadas para impor uma nova ordem pública econômica, mais benéfica à sociedade e, em última análise, aos contratantes. O Estado impõe uma nova ordem pública, limitando assim a autonomia privada, tendo em vista a realização de finalidades que ultrapassam a órbita individualista dos contratantes.{315} Tratando-se de ordem pública econômica, os autores costumam dividi-la em ordem pública de direção (que imprime determinado rumo à economia do país) e de proteção (cria normas para a realização de novas finalidades jurídico-protetivas, como a igualdade real entre filhos, entre contratantes, a eqüidade contratual nos contratos de adesão ou a reparação integral das vítimas etc.).{316} Como pudemos observar, a originalidade do sistema constitucional brasileiro deve ser levada verdadeiramente em conta, não só para proteger as garantias do ato jurídico perfeito, mas também para proteger os interesses dos consumidores. Neste sistema dialético, resta a definir o limite da existência ou não de direito adquirido do fornecedor a ver cumpridas as cláusulas do contrato como foram estabelecidas (contra a aplicação do CDC como lei nova) ou de direito adquirido do consumidor a ver mantidas as cláusulas contratuais protetoras de suas expectativas legítimas (contra a lei nova). Dois aspectos devem aqui serem destacados: a noção positivista de ato jurídico perfeito e a mudança da imagem da retroatividade. Com efeito, a aceitação da aplicação imediata da lei nova de ordem pública (como o CDC. ex vi seu art. 1º) pressupõe uma (314) Muitas das aqui citadas decisões referem-se a contratos anteriores a março de 1991; veja, porém, para exame dos argumentos decisão do TJSP (Rel. Des. Pinheiro Franco), in RT 690/85 e ss., e do TJDF (Rel. Desª. Nancy Arrighi), in Direito do Consumidor, 10/260 e ss.

(315) Assim o ainda inédito artigo de A. H. Benjamin, "Autonomia privada e intervenção do Estado no Contrato. O paradigma contratual da sociedade de massas", p. 60 do original. (316) Veja, por todos, a obra de João Bosco L. da Fonseca, Cláusulas abusivas nOS contratos, Rio, Forense, 1993, p. 123 e ss. (p. 273) interpretação de ato jurídico perfeito conforme o disposto no art. 6.º, § 1.º, da LICC, onde o elemento caracterizador não é a "constituição", mas a "consumação" do ato. Sendo assim, é possível considerar que o ato constituído que ainda não surtiu todos os seus efeitos não está "perfeito", o que não impede, porém, de identificar este ato como fonte de direitos adquiridos.{317} Por trás desta evolução, como bem demonstra Dekeuwer-Défoussez, está uma evolução conceitual criada pela teoria de Roubier.{318} A doutrina da irretroatividade tem fundamento nos ideais da revolução francesa e na primeira geração de direitos fundamentais: os direitos do cidadão contra o Estado. O combate à irretroatividade consistia em uma proteção do individualismo, do indivíduo contra a eventual intervenção do Estado. Com o aparecimento dos direitos fundamentais de segunda e terceira geração, onde o Estado deve deixar sua posição passiva (laissezfaire) e passa ser obrigado a intervir na sociedade, assegurando a constituição direitos contra a omissão do Estado em setores sociais e econômicos, a visão da irretroatividade teve de mudar, não mais considerada atentatória à segurança jurídica.{319} A teoria de Roubier propôs a troca da idéia de direito adquirido (direito do indivíduo a ser protegido contra o Estado) pela noção de situação jurídica, status individual. Para compor esta "situação jurídica" não bastaria somente a manifestação individual, a vontade contratual, mas dependeria ela também da autorização e proteção estatal, através do sistema de direito. O indivíduo não é mais considerado como o titular de um direito que ele defende contra o Estado, ele é colocado em uma situação jurídica dependente das regras e da ordem pública imposta pelo Estado e suas mudanças.{320} Mesmo que a noção de situação jurídica tenha sido abandonada no Brasil, preferindo-se hoje a idéia de aplicação imediata da lei nova aos efeitos atuais do contrato anterior e de direito adquirido, a noção de situação jurídica contribuiu para uma melhor aceitação da retroatividade excepcional das leis com função social, como o próprio CDC. * (317) Assim ensina Oscar Tenório, p. 207. (318) Dekeuwer-Défoussez, n. 11, pp. 11 e 12. (319) Veja Dekeuwer-Défoussez, ns. 202 e 230. (320) Assim Dekeuwer-Défoussez, p. 12. (p. 274) A teoria original distinguia entre as normas de ordem pública normais e aquelas que impunham um novo "estatuto", como por exemplo, o de filho legítimo, hierarquizando as normas de ordem pública no sentido de evitar a aplicação de todas elas as relações contratuais em curso. Por este critério, igualmente, constituiria o CDC e sua ordem pública de proteção um novo "estatuto", uma mudança radical no regime jurídico ao qual estão submetidos os indivíduos.{321} A elaboração de normas de ordem pública e sua entrada em vigor implicariam assim em uma desejada derrogação de cláusulas contratuais contrárias a estes novos mandamentos. A aceitação desta tese, quanto ao que se refere a aplicação do CDC como lei mais benéfica

ao consumidor, mesmo aos contratos anteriores, significa a aceitação da mudança dos princípios orientadores do direito civil - talvez por influência mesmo constitucional - e da possibilidade de intervenção e dirigismo contratual estatal. Esta nova visão desloca a importância do corolário da autonomia da vontade e da obrigatoriedade do pactuado, para o problema da função social do direito privado, para considerar que a eficácia dos atos decorre da lei, a qual os sanciona porque são úteis, com a condição de serem justos tanto no momento de sua formação, quanto de sua execução. Na jurisprudência, a referida aplicação imediata da lei nova de ordem pública tem sido acolhida com maior regularidade no Superior Tribunal de Justiça,{322} enquanto a aplicação do CDC, seja diretamente, seja de seu espírito, para evitar o pré-questionamento constitucional, tem tido maior aceitação nas instâncias inferiores. Desde o final de 1996{323} e em especial em abundante jurisprudência de 1997, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça * (321) Em seu voto dissidente ensina o Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., sobre o CDC (REsp. 45666-5-SP): "Define-se legalmente (art. 1.º) como uma regra de ordem pública de proteção, não tão forte quanto as de direção, através das quais o Estado mais agudamente intervém na economia, mas igualmente indispensável para a obtenção de fins que não seriam atingidos se pudesse ser derrogada pela vontade dos contratantes". (322) Veja REsp. 5.015-SP, j. 30.10.91, sobre plano econômico. (323) Veja, como exemplo, Recurso Especial 41 .493/RS, 4.ª T., j. 29.10.1996, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira: "Compromisso de compra e venda de imóvel. Perda das prestações pagas. Contrato anterior ao CDC. Aplicação do art. 924, CC. Orientação da corte. Precedentes. Recurso parcialmente (p. 275) praticamente pacificou uma linha intermediária de entendimento, a qual, evitando o pré-questionamento constitucional, afirma expressamente a inaplicabilidade do CDC "aos contratos celebrados antes da vigência do mencionado diploma legal",{324} ao mesmo tempo em que utiliza os princípios do CDC e o seu espírito tutelador do mais fraco,{325} visualizando-os já no Código Civil, em especial na autorização do art. 924 CC,{326} para assim diminuir a "patamares justos" as cláusulas penais e as de decaimento, utilizando o patamar de 10% previsto no próprio CDC.{327} Os Tribunais estaduais tendem hoje a *acolhido. Mesmo celebrado o contrato antes da vigência do CDC, o que impunha considerar eficaz previsão contratual de perda das quantias pagas pelo compromissário adquirente, pode o juiz, autorizado pelo disposto no art. 924, CC, reduzi-la a patamar justo, com o fito de evitar enriquecimento sem causa, que de sua imposição integral adviria à promitente vendedora. Circunstâncias especiais do caso impõem a perda de 10% (dez por cento) do que foi pago pelos compradores. Decisão por unanimidade". No mesmo sentido, Recurso Especial 43.544-SP, 4.ª T., j. 9.12.1996, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. (324) Expressão da ementa do Recurso Especial 72.431/DF, 4.ª T., j. 9.6.1997, Rel. Min. Barros Monteiro. Veja sobre penhorabilidade da linha telefônica

a mesma orientação, STJ, Recurso Especial 98.661 -SC, 4.ª T., j. 12.11.1996, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. (325) Veja o interessante acórdão, a procura desta utilização compatível de princípios, do Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., cuja ementa assevera: "Promessa de compra e venda. Cláusula de decaimento. Restituição de parte das prestações pagas. Inaplicável o Codecon aos contratos celebrados antes de sua vigência, de acordo com orientação predominante, e mantida a validade da cláusula que permite a retenção das prestações pagas, é possível a redução judicial para um percentual adequado às circunstâncias do contrato (Recurso Especial 111092/AM, 4.ª T., j. 4.3.97, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar). (326) Assim Recurso Especial 42226/SP, 4.ª T., j. 17.12.1996, Rel. Min. Bueno de Souza, Recurso Especial 43544/SP, 4.ª T., j. 24.2.1997, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Recurso Especial 110006/RS, 4.ª T., j. 18.3.1997, Rel. Min. Barros Monteiro, Recurso Especial 111091/AM, 4.ª T., j. 7.4.1997, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar e Recurso Especial 03981/SP, 4.ª T., j. 20.5.1997, Rel. Min. César Asfor Rocha. Lê-se na ementa do Recurso Especial 110006/ RS, 4.ª T., j. 18.3.1997, Rel. Min. Barros Monteiro: "InocorrênCia de contrariedade ao art. 6.º da LICC, uma vez que o acórdão recorrido admitiu a inaplicabilidade ao caso do Código de Defesa do Consumidor...". (327) Veja na outra corrente Recurso Especial 0094271/SP, 4.ª T., j. 14.10.1996, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, cuja ementa é a seguinte: "Promessa de (p. 276) seguir este exemplo.{328} A importância desta linha intermediária hoje, sete anos após a entrada em vigor do CDC, está mais na confirmação do efeito rejuvenescedor do CDC, do que na sua aplicação em grande número de casos. Concluindo, o tema da aplicação do CDC aos contratos anteriores à sua entrada em vigor é um dos mais polêmicos e difíceis do direito do consumidor. Tanto a doutrina, quanto a jurisprudência dividem-se entre o apoio a várias teses e interpretações. Particularmente continuo a considerar que, na solução dos casos concretos, deve o CDC receber aplicação imediata ao exame da validade e eficácia atual dos contratos assinados antes de sua entrada em vigor, seja porque norma de ordem pública, seja porque concretiza também uma garantia constitucional, ou simplesmente porque positiva princípios e patamares éticos de combate a abusos existentes no direito brasileiro antes mesmo de sua entrada em vigor.{329} Repita-se, pois, a conclusão do II Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor: "O Código de Defesa do Consumidor tem aplicação imediata aos contratos com eficácia duradoura, conforme o art. 170 da Constituição Federal e art. 6.º da Lei de Introdução ao Código Civil".

*compra e venda. Cláusula de decaimento. Código de Defesa do Consumidor. Modificação. A regra do art. 53 do Codecon permite a modificação da cláusula de decaimento, para autorizar a retenção, pela promitente vendedora, de apenas 10% das prestações pagas. Recurso conhecido e provido". (328) Veja decisão TJSP, não aplicando o CDC para evitar discussão constitucional, cuja ementa é: "Contrato. Não se admite a aplicação retroativa da Lei 8.078/90, para abranger atos jurídicos já aperfeiçoados antes de sua entrada em vigor. Tanto não admite a Constituição Federal, ao assegurar como parte dos direitos e garantias fundamentais, em cláusula de impossível desconsideração, que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Não se trata, apenas, de garantia contida em texto de lei ordinária, que se pudesse dizer incompatível com os elevados propósitos do Código do Consumidor, mas de texto Constitucional, contra qual nenhuma lei ou ordenamento inferior pode prevalecer" (TJSP, Ap. 236.925-2/5 - 13.ª C. - j. 21 .6.94 - Rel. Des. Marrey Neto, publicada na RT 711, p. 114). Veja decisão, neste sentido do TJRS, nos EI 596 057 216, j. 2.8.96, Des. Araken de Assis e, em caso envolvendo Aids, Ap. Civ. 597115039, j. 07.08.97, Des. Araken de Assis, publicado na Revista de Jurisprudência, v. 184, p. 361 e ss. (329) Neste sentido, decisão do TJSP (AI. 266 805-2-2, j. 25.9.95, Des. Albano Nogueira, que, em caso envolvendo seguro-saúde, garantiu a estadia do consumidor na UTI por prazo necessário, na RT 723, p. 346. (p. 277) (p. 278, em branco) CONCLUSÃO DA PARTE 1 Na nova concepção social do direito dos contratos, a sua função principal é procurar o reequilíbrio da relação contratual, a chamada justiça ou eqüidade contratual, a qual só poderá ser atingida com uma mudança na ação do direito, evoluindo de uma posição passiva e supletiva para uma ação cogente e determinadora de condutas também na área contratual. Ao direito coube, portanto, a tarefa de procurar o reequilíbrio da relação contratual, a chamada justiça ou eqüidade do contrato (Vertragsgerechtigkeit),{1} criando uma concepção mais social do direito do contrato, voltado menos para a vontade do indivíduo e mais para os reflexos e expectativas que estes contratos de consumo criam na sociedade atual. A posição desigual dos parceiros contratuais na sociedade de hoje, o incremento dos métodos de contratação em massa multiplicou a presença de cláusulas abusivas nos contratos de consumo, que afastam os eventuais direitos e expectativas legítimos dos consumidores em relação ao vínculo contratual, e demonstrou que os métodos tradicionais de controle formal oferecidos pelo direito não conduziam mais a resultados satisfatórios, pois a teórica liberdade de um, era a prisão do

Outro. Fazia-se mister evoluir, conjugar o chamado direito-obstáculo com os anseios de uma maior eqüidade contratual, criando um sistema de disciplina que assegurasse o reequilíbrio das relações contratuais, resolvendo os problemas existentes, negando eficácia às cláusulas abusivas, instituindo deveres cogentes, como o de informação e de redação clara dos contratos pré-elaborados, e criando novas garantias * (1) A expressão é de Ludwig Raizer, que já na década de 30(1935) visualizava a nova função do direito dos contratos como garante da justiça contratual, assim Zweigert/Koetz, ob. cit., p. 8. (p. 279) legais para proteger algumas expectativas básicas dos consumidores, como a de adequação do produto adquirido e a de proteção da saúde e da incolumidade física do consumidor e dos seus familiares expostos à ação do produto comercializado. Se o regime dos contratos entre fornecedores e consumidores mereceu a atenção da doutrina, mereceu também a atenção dos legisladores de vários países,{2} cada um editando leis específicas, as quais procuravam dar melhor solução para o problema, limitando o espaço para a autonomia de vontade, ditando ou não o conteúdo mínimo dos contratos, controlando de maneira prévia ou não os contratos do mercado. Esta procura do regime legal ideal para evitar a frustração da confiança e da boa-fé do consumidor nos contratos de consumo representa uma evolução muito rica no direito comparado, que agora repercute no direito brasileiro, tendo em vista a entrada em vigor do CDC. No Brasil, a intervenção estatal nas relações de consumo deu-se justamente através da imposição pelo novo Código de Defesa do Consumidor, de normas imperativas. Estas normas cogentes (art. 1.º do CDC), em matéria contratual, limitam o espaço antes reservado para a autonomia da vontade, impondo deveres aos elaboradores dos contratos, criando novos direitos para os consumidores e tutelando determinadas expectativas dos contratantes, oriundas da sua confiança no vínculo contratual. Note-se que o contrato, negócio jurídico por excelência, continua a ser um ato de auto-regulamentação dos interesses das partes,{3} e, portanto, um ato de autonomia privada, mas, este ato só pode ser realizado nas condições agora permitidas pela lei. O Código de Defesa do Consumidor é um reflexo de uma nova concepção mais social do contrato, onde a vontade das partes não é a única fonte das obrigações contratuais, onde a posição dominante passa * (2) Leis específicas de proteção do consumidor foram criadas na Suécia (1971), Dinamarca, Venezuela (1974), Alemanha, México (1976), Inglaterra (1977), França (1978), Áustria (1979), Irlanda (1980), Colômbia, Noruega (1981), Luxemburgo (1983), Espanha (1984), Portugal (1985), veja detalhes em Bourgoignie, Élements, p. 21. (3) Assim Gomes, Contratos, p. 42, referindo-se às doutrinas italianas modernas sobre negócio jurídico. (p. 380)

a ser a da lei, que dota ou não de eficácia jurídica aquele contrato de consumo. O princípio clássico da autonomia da vontade vai ser relativizado por preocupações de ordem social. Tentando harmonizar os interesses envolvidos em uma relação de consumo, as novas normas de tutela valorizam tanto a vontade, como a boa-fé, a segurança e o equilíbrio das relações contratuais. O Direito passa a ser o orientador do conteúdo dos contratos, o realizador da eqüitativa distribuição de obrigações e direitos nas relações contratuais{4} e não só o garante da livre manifestação da vontade. Em princípio, estão submetidos às regras do Código os contratos firmados entre o fornecedor e o consumidor não-profissional, comportando a regra, exceções previstas nas próprias normas do CDC e em seus princípios gerais, como a da vulnerabilidade. Em face da experiência no direito comparado, a escolha do legislador brasileiro do critério da destinação final, permitindo exceções com base em uma interpretação teleológica, parece ser uma escolha sensata. Nestes primeiros anos de vigência do CDC ficou demonstrada uma certa tendência de expansão do campo de aplicação - já amplo - da lei protetiva, assim como algumas manifestações pela autonomia dogmática do direito do consumidor. Parece-me que o primeiro fenômeno expansionista nasce da necessidade dos práticos de adaptar os instrumentos existentes no direito civil tradicional às exigências de nossa complexa sociedade atual, massificada e para alguns, já apresentando fenômenos pós-modernos. Se, efetivamente, o CDC tem um enorme potencial rejuvenescedor do direito civil, não nos parece conveniente a sua autonomia em relação a outros ramos do direito, nem a sua aplicação prática a todos os casos no mercado, pois a força e efetividade demonstrada pelo novo Código reside justamente na correção ética de proteger os mais vulneráveis do mercado e, dogmaticamente, em seu papel oxigenador de ordenamento jurídico individualista em excesso. O mandamento de boa-fé objetiva positivado no CDC, os novos princípios reequilibradores das relações jurídicas, suas cláusulas gerais, estes Sim podem repercutir - como já ocorre - no ordenamento jurídico brasileiro como um todo. (4) Assim conclui tb. Koendgen, p. 132. (p. 381) Conclui-se, portanto, que o Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8.078/90, em vigor no Brasil desde 11.3.91, representa uma considerável modificação no ordenamento jurídico brasileiro, modificação esta que terá profundos reflexos nas relações entre os profissionais, fornecedores de bens e serviços, e o seu público consumidor. Dedicaremos os capítulos 3 e 4 desta obra ao estudo destes reflexos, que denominaremos aqui de novo regime legal do contrato de consumo. (p. 282) Parte II - REFLEXOS CONTRATUAIS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR 3. A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR QUANDO DA FORMAÇÃO DO CONTRATO SUMARIO: 1. Princípio básico de transparência - 1.1 Nova noção de oferta (art. 30): a) Vinculação própria através da atuação negocial; b) Publicidade como oferta; c) Informações e pré-contratos; d) Cláusulas contratuais gerais; e) Sanção - 1.2 Dever de informar sobre

o produto ou serviço (art. 31): a) Amplitude do dever de informar do art. 31; b) A publicidade como meio de informação; c) Sanção: As regras sobre o vício do produto - 1.3 Dever de oportunizar a informação sobre o conteúdo do contrato (art. 46): a) Amplitude do dever de informar do art. 46, § 1º; b) Sanção - 1.4 Dever de redação clara dos contratos: a) Redação clara e precisa (art. 46); b) Cuidados na utilização de contratos de adesão; c) Sanção - 2. Princípio básico de boa-fé - 2.1 Publicidade abusiva e enganosa: a) Conceito de publicidade; b) Publicidade como ilícito civil - a publicidade enganosa: c) Publicidade como ilícito civil - a publicidade abusiva - 2.2 Práticas comerciais abusivas: a) Práticas comerciais expressamente vedadas; b) Obrigação de fornecer orçamento prévio discriminado; c) Respeito às normas técnicas e ao tabelamento de preços - 2.3 Direito de arrependimento do consumidor (art. 49): a) A venda de porta-emporta (door-to-door); b) Regime legal da venda de porta-em-porta; c) Vendas emocionais de time-sharing e vendas a distância. O incremento da vida contratual, a massificação dos contratos, que passaram a ser pré-elaborados unilateralmente pelas empresas e pelo Estado, a concentração de capitais e de força econômica e os mono- (p. 283) pólios na nova sociedade de consumo, levaram a um desequilíbrio marcante nas relações contratuais entre consumidores e fornecedores, exigindo uma ação protetora do Estado para com os parceiros contratuais hipossuficientes. O Código de Defesa do Consumidor tem como fim justamente reequilibrar as relações de consumo, harmonizando e dando maior transparência às relações contratuais no mercado brasileiro (art. 4º do CPC). Para alcançar este equilíbrio de forças nas relações contratuais atuais, o CDC opta por regular também alguns aspectos da formação do contrato, impondo novos deveres para o elaborador do texto (fornecedor) e assegurando novos direitos para o consumidor (aderente) quando da formação das relações contratuais de consumo (art. 6.º, III e IV). No direito comparado, observa-se que as técnicas legislativas de proteção aos consumidores em matéria de contratos de consumo visam também garantir uma nova proteção da vontade dos consumidores na formação dos contratos, isto é, garantir uma autonomia real da vontade do contratante mais fraco.{1} Uma vontade protegida pelo direito, vontade liberta das pressões e dos desejos impostos pela publicidade e por outros métodos agressivos de venda, em suma, uma vontade racional (volonté rationnelle).{2} Não há como negar que o consumo massificado de hoje, pós-industrial, está ligado faticamente a uma série de perigos para o consumidor, vale lembrar os fenômenos atuais de superendividamento, de práticas comerciais abusivas, de abusos contratuais, da existência de monopólios naturais dos serviços públicos concedidos ou privatizados, de falhas na concorrência, no mercado, na informação e na liberdade material do contratante mais fraco na elaboração e conclusão dos contratos. Como mencionamos anteriormente (1. 3.2), a expressão de Nicole Charbin "autonomia racional" é feliz, pois indica a importância dos novos direitos dos consumidores e dos novos deveres dos fornecedores, em especial dos deveres anexos de informar, de cooperar, de tratar com

lealdade e com cuidado o consumidor no momento de formação dos contratos, pois somente se assegurarmos este novo patamar de conduta * (1) Veja detalhes sobre estas técnicas legislativas em nosso artigo sobre contratos de crédito. (2) Charbin, p. 216. (p. 284) no mercado poderemos alcançar uma vontade realmente refletida, autônoma e "racional" dos consumidores. Visualizamos aqui um reflexo da função positiva, da força criativa de deveres do princípio da boa-fé objetiva, princípio que interpretando as normas positivas impostas impõe uma atuação refletida do contratante mais forte em relação aos interesses do contratante mais fraco.{3} A boa-fé assim concretizada significa transparência obrigatória em relação ao parceiro contratual, um respeito obrigatório aos normais interesses do outro contratante, uma ação positiva do parceiro contratual mais forte para permitir ao parceiro contratual mais fraco as condições necessárias para a formação de uma vontade liberta e racional.{4} Assegurar informação, proteção contra as pressões (Zwang) dos métodos de venda hoje usuais na sociedade de consumo e tempo para reflexão são objetivos legais nesta procura de uma decisão racional do consumidor. A ratio legis do Código de Defesa do Consumidor é justamente valorizar este momento de formação do contrato de consumo, que passamos a analisar. A tendência atual é de examinar a "qualidade" da vontade manifestada pelo contratante mais fraco, mais do que a sua simples manifestação: somente a vontade racional, a vontade realmente livre (autônoma) e informada legitima, isto é, tem o poder de ditar a formação e, por conseqüência, os efeitos dos contratos entre consumidor e fornecedor.{5} O CDC introduz, efetivamente, no ordenamento jurídico brasileiro dois novos princípios basilares: o Princípio da Transparência e o Princípio da Boa-Fé quando da formação dos contratos de consumo. Os reflexos que estes novos princípios cogentes terão na fase de aproximação entre consumidor e fornecedor, na fase de elaboração do * (3) Veja por todos Aguiar/Cláusulas, p. 18 e ss. (4) Segundo Tomasetti/Transparência, p. 53: "A transparência é um resultado prático, que a lei substancialmente persegue mediante o que se pode denominar princípio da informação" ("a informação tem o sentido funcional de racionalizar as opções do consumidor". (5) Veja Charbin, p. 172 e 177. A autora chega a afirmar que passamos de um momento em que presumíamos "racional" qualquer vontade manifestada pelo consumidor, ao momento atual onde ou exigimos, através de técnicas legislativas dirigidas de intervenção jurídica, que o consumidor mantenha sua razão e autonomia de decisão (autonomia de vontade criada, p. 205) ou educamos o consumidor para decidir de forma racional e informada (autonomia de vontade educada, p. 206). (p. 285) instrumento contratual e na de nascimento do vinculo contratual entre eles, são o tema deste capítulo. 1. Princípio básico de transparência Na formação dos contratos entre consumidores e fornecedores o novo princípio básico norteador é aquele instituído pelo art. 4.º, caput,

do CDC, o da Transparência.{6} A idéia central é possibilitar uma aproximação e uma relação contratual mais sincera e menos danosa entre consumidor e fornecedor. Transparência significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos contratos de consumo. O CDC regulará, assim, inicialmente aquelas manifestações do fornecedor tentando atrair o consumidor para a relação contratual, tentando motivá-lo a adquirir seus produtos e usar os serviços que oferece. Regula, portanto, o Código a oferta feita pelo fornecedor, incluindo aqui também a publicidade veiculada por ele. O fim destas normas protetoras é assegurar a seriedade e a veracidade destas manifestações, criando uma nova noção de "oferta contratual", a qual analisaremos em detalhes a seguir. Como afirmamos anteriormente, transparência é clareza, é informação sobre os temas relevantes da futura relação contratual. Eis porque institui o CDC um novo e amplo dever para o fornecedor, o dever de informar ao consumidor não só sobre as características do produto ou serviço, como também sobre o conteúdo do contrato. Pretendeu, assim, o legislador evitar qualquer tipo de lesão ao consumidor, pois sem ter conhecimento do conteúdo do contrato, das obrigações que estará assumindo, poderia vincular-se a obrigações que não pode suportar ou que simplesmente não deseja. Assim também adquirindo um produto sem ter informações claras e precisas sobre suas qualidades e características pode adquirir um produto que não é adequado ao que pretende ou que não possui as qualidades que O * (6) A expressão Transparenzgebot já existe no direito alemão, mas com um sentido estrito. Aqui gostaríamos de utilizá-la, segundo o caput do art. 4.º do CDC, como um gênero. Veja neste sentido, com base nas Diretivas européias, Reich, in NJW 1995, p. 1.857 e ss., e Cian, p. 421. (p. 286) fornecedor afirma ter, ensejando mais facilmente o desfazimento do vínculo contratual. A jurisprudência brasileira tem utilizado com sabedoria este novo princípio das relações contratuais no mercado.{7} Em verdade, este novo mandamento de transparência, introduzido pelo CDC, possui efeitos concretos de grande importância no dia a dia das relações de consumo. De um lado, o ideal de transparência no mercado acaba por inverter os papéis tradicionais, aquele que encontrava-se na posição ativa e menos confortável (Caveat emptor), aquele que necessitava atuar, informar-se, perguntar, conseguir conhecimentos técnicos ou informações suficientes para realizar um bom negócio, o consumidor, passou para a confortável posição de detentor de um direito subjetivo de informação (art. 6.º, III), enquanto aquele que encontrava-se na segura posição passiva, o fornecedor, passou a ser sujeito de um novo dever de informação (caveat vendictor). Se esta inversão de papéis ocasionada pelo ideal de transparência e lealdade no mercado imposto pelo CDC pode ser considerada renovadora, o sentido e o fim (Sinn und Zweck) do mandamento, como

denominam os alemães a ratio legis, pode ser reduzida à tradicional procura da "verdadeira e livre vontade do consumidor". Visto deste ângulo, o ideal de transparência seria apenas uma nova (e sem dúvida importante) pré-condição para que o consumidor possa manifestar sem medo e livremente sua vontade, e realizar (ao fim) as suas expectativas legítimas, aquelas que o levaram a - informado devidamente sobre o produto ou serviço, ciente de seus futuros direitos e deveres contratuais - escolher aquele fornecedor como seu parceiro contratual. Como nem todos contatos entre o fornecedor e o consumidor levam ao estabelecimento de relações contratuais, a transparência deve ser uma nova e necessária característica de toda manifestação précontratual do fornecedor no mercado, desde a sua publicidade, vitrines, * (7) Assim, por exemplo, a decisão "Cartão de Crédito. Informação equivocada a consumidor sobre incidência de encargos e juros acrescidos sobre o valor da compra, pela utilização do sistema de cartão. Cobrança indevida. Restituição, ao comprador, dos valores pagos a maior, corrigidos pelos índices do BTN, desde o desembolso até o efetivo pagamento (Decisão unânime)" (Proc. n. 01189709122, Rec. 115/89, Rela. Dra. Maria Isabel Broggini, 2.ª Câmara Recursal do Juizado Especial de Pequenas Causas/ RS, 21.12.89). (p. 287) o seu marketing em geral, suas práticas comerciais, aos contratos ou as condições gerais contratuais que pré-redige, as informações que seus prepostos e representantes prestam etc.; o que bem demonstra a abrangência do novo mandamento. O princípio da transparência rege o momento pré-contratual, rege a eventual conclusão do contrato. E mais do que um simples elemento formal,{8} afeta a essência do negócio, pois a informação repassada ou requerida integra o conteúdo do contrato ou, se falha, representa a falha na qualidade do produto ou serviço oferecido. Tal princípio concretiza a idéia de reequilíbrio de forças nas relações de consumo, em especial na conclusão de contratos de consumo, imposto pelo CDC como forma de alcançar a almejada justiça contratual. Resumindo, como reflexos do princípio da Transparência temos o novo dever de informar o consumidor, seja através da oferta, clara e correta (leia-se aqui publicidade ou qualquer outra informação suficiente, art. 30) sobre as qualidades do produto e as condições do contrato, sob pena do fornecedor responder pela falha da informação (art. 20), ou ser forçado a cumprir a oferta nos termos em que foi feita (art. 35), seja através do próprio texto do contrato, pois, pelo art. 46, o contrato deve ser redigido de maneira clara, em especial os contratos pré-elaborados unilateralmente (art. 54, § 3.º), devendo o fornecedor "dar oportunidade ao consumidor" conhecer o conteúdo das obrigações que assume, sob pena do contrato por decisão judicial não obrigar o consumidor, mesmo se devidamente formalizado. 1.1 Nova noção de oferta (art. 30) No direito brasileiro, a oferta ou proposta é a declaração inicial de vontade direcionada à realização de um contrato.{9} Como o contrato é o acordo de duas ou mais vontades, é necessário que um dos futuros contraentes tome a iniciativa de propor o negócio, dando o início à

formação do contrato; ele como que solicita a manifestação de vontade, a concordância do outro contraente (aceitação) ao negócio que está propondo. A oferta é o elemento inicial do contrato. * (8) Assim tb. Reich, Transparence, p. 80. (9) Assim Beviláqua/Código Civil, p. 244. (p. 288) Na visão tradicional, a oferta traduziria uma vontade definitiva de contratar naquelas bases oferecidas, traria em si os elementos essenciais do futuro contrato, eis porque o direito sempre reconheceu efeitos jurídicos próprios à oferta.{10} A oferta ou proposta é obrigatória, tem força vinculante em relação a quem a formula, devendo ser mantida por certo tempo.{11} Basta, pois, o consentimentu (aceitação) do outro parceiro contratual e estará concluído o contrato (art. 1.080 e ss. do Código Civil Brasileiro). A oferta nada mais é, portanto, do que um negócio jurídico.{12} Acostumados a examinar negócios jurídicos bilaterais (especialmente, os contratos), demonstramos dificuldade em separar os efeitos autônomos da oferta e aqueles oriundos da união entre oferta e aceitação para a formação de um novo ser, o contrato. Não podemos, porém, esquecer da existência dos negócios jurídicos unilaterais, aqueles que criam obrigações para um indivíduo. Esta visão autônoma da oferta nos permite, todavia, fixarmos com clareza os seus efeitos. Na teoria contratual clássica, já afirmamos que oferta vincula àquele que a formulou e que deve ser mantida por certo tempo. O que significaria exatamente esta vinculação, seria este sinonimo de obrigação contratual principal? Não, apesar do art. 1.080 de nosso Código Civil utilizar a expressão obrigação, não podemos confundir os efeitos da proposta clássica, com os efeitos do contrato. O proponente não fica obrigado a efetuar a prestação principal. Esta obrigação contratual principal só nascerá após a aceitação, quando da formação do contrato. O proponente fica "obrigado" pela própria proposta, obrigado porque sujeito passivo de um dever jurídico (vinculado a observar certa conduta - manter a oferta - no interesse de outra pessoa, o titular do direito subjetivo);{13} obrigado porque, no caso da oferta, reduzido a um estado de sujeição, isto é, terá de se submeter aos efeitos jurídicos da aceitação do outro, não podendo querer com eficácia em sentido contrário.{14} Submete-se, em última análise, à * (10) Nesse sentido Larenz/AT, p. 455. (11) Nesse sentido a lição de Bevilaqua, Código Civil, p. 244. (12) Concorda Tomasetti, Transparência, que a considera um negócio jurídico Unilateral, seguindo Pontes de Miranda. (13) Assim Andrade, p. 1. (14) Assim ensina Grau, Conceitos, p. 115, citando Carnelutti. (p. 289) iniciativa de atuação do outro, que recebeu a proposta, e detêm assim um direito potestativo a aceitá-la naqueles termos. O proponente não pode retirar a sua voz por certo espaço de tempo e se, neste espaço de tempo, ocorrer a aceitação, o contrato estará formado, mesmo que sua vontade de contratar já tenha sido alterada. A oferta é, portanto, uma declaração de vontade lançada no mundo, a qual o direito anexa um efeito jurídico, o da sua vinculabilidade,{15} da sua condicional irrevogabilidade, para proteger a segurança dos negócios, Esta irrevogabilidade principal só pode ser afastada, segundo

dispõe o art. 1.080 do CCBr, por declaração em contrário na própria oferta ou devido a "natureza do contrato" ou as "circunstâncias do caso". Ser irrevogável significa aqui que o ato criado não desaparecerá do mundo jurídico por vontade unilateral, uma vez criado e válido, terá efeitos, pelo menos o da vinculação. Assim como aquele que prometeu e não cumpriu, aquele que ofertou e voltou atrás sem usar a forma prevista em lei, não faz desaparecer a sua declaração de vontade, ao contrário, sofrerá os efeitos do estado de sujeição, o qual criou através de sua declaração de vontade inicial. Sofrerá os efeitos do contrato, se a aceitação já ocorreu, ou os de seu ato "ilícito" de ter prejudicado, quebrado a confiança, da outra pessoa que acreditou na sua oferta inicial. Se na visão tradicional a oferta já é um fator criador de vínculos, na visão do CDC este poder de vinculação (Bindung), desta declaração negocial, destinada ao consumo, é multiplicado. Note-se que nos contratos de massa, a oferta não é dirigida a pessoas determinadas, mas a todos os indivíduos, enquanto integrantes da coletividade.{16} Esta oferta genérica, mas, principalmente, a publicidade e outras informações prestadas não vinculavam a empresa, sendo * (15) Na lição sábia de Pontes de Miranda, Tratado, XXXVIII, p. 48, 1962: "Sem que as manifestações de vontade entrem no mundo jurídico não há vinculação, porque a vinculação já é eficácia do negócio jurídico. Acontece, porém, que a primeira manifestação de vontade já pode vincular. Tal vinculação resulta de negócio jurídico unilateral, a oferta, com que se há de concluir, com a aceitação, o negócio jurídico bilateral ou plurilateral. O oferente vincula-se por sua oferta e à sua oferta, até que cesse a possibilidade da aceitação, ou à conclusão com os pressupostos necessários". (16) Oferta ad incerta persona, veja Couto e Silva, A Obrigação como Processo, p. 26. (p. 290) consideradas apenas uma invitatio ou um convite para a oferta por parte do consumidor (invitatio ad offerendunm).{17} Assim, na visão tradicional, o consumidor motivado a adquirir um determinado bem, em virtude de uma oferta transmitida pelos meios de comunicação, entrava no estabelecimento comercial e fazia uma oferta ao fornecedor para adquirir aquele determinado bem pelo preço e nas condições anunciadas (três vezes sem juros, por exemplo). O fornecedor ou seu preposto verificando ainda existir tal bem em seu estoque, conduzia o consumidor ao local onde seria fechado o negócio, mas os instrumentos assinados pelo consumidor deixavam claro que se tratava de uma "proposta de contrato", isto é, juridicamente, de uma oferta vinda do consumidor. O fornecedor não estaria vinculado por suas informações iniciais, ao contrário a posição mais gravosa, que é a do ofertante, era reservada para o consumidor. O art. 30 do CDC, porém, modifica e amplia consideravelmente

a noção de oferta no direito brasileiro, dispondo o seguinte: "Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado". Segundo esta norma, portanto, toda a informação, mesmo a publicidade, suficientemente precisa constitui uma oferta (uma proposta contratual), vinculando o fornecedor. O art. 30, ao ampliar a noção de oferta e ao afirmar que as informações dadas integram o futuro contrato, revoluciona a idéia de invitatio ad offerendum. Agora qualquer informação ou publicidade veiculada que precisar, por exemplo, os elementos essenciais da compra e venda: res (objeto) e pretium (preço), será considerada como uma oferta vinculante, faltando apenas a aceitação (consensus) do consumidor ou consumidores em número indeterminado. As conseqüências práticas desta modificação no conceito de oferta parecem claras, uma vez que com os novos veículos de comunicação de massa é impossível ao fornecedor calcular quantos consumidores estarão recebendo a sua "oferta" e poderão após exigir o seu cumprimento (art. 35 do CDC). * (17) Sobre os fundamentos dessa teoria veja em Koendgen, p. 291 e ss, toda evolução histórica e doutrinária sobre o assunto. (p. 291) Tal insegurança é propOSital, pois antes de tudo o CDC visa modificar as práticas comerciais no mercado brasileiro, aumentando o respeito devido ao consumidor como parceiro contratual, que não deverá ser tirado de casa para aproveitar uma "falsa" oferta a preços reduzidos. É o caso da chamada "publicidade-chamariz", em que o fornecedor anuncia um determinado produto a preço vantajoso.{18} Mas ao chegar na loja o consumidor é surpreendido com a informação que o fornecedor só possuía 6 exemplares (já vendidos) por este preço, mas que ainda haveriam outros exemplares de outra marca, porém, pelo preço normal da concorrência. É o princípio da transparência nas relações de consumo, mesmo nessa fase anterior ao fechamento do negócio, exigindo veracidade nas informações que são transmitidas aos consumidores. A nova noção de oferta instituída pelo CDC nada mais é, portanto, que um instrumento para assegurar uma maior lealdade, uma maior veracidade das informações fornecidas ao consumidor. Se alcançado o intento do legislador, terá sido válido este recurso às noções tradicionais da teoria contratual clássica, de oferta e aceitação.{19} O interpretador mais atento reconhece, porém, o perigo do CDC revigorar elementos (como a oferta) deste esquema tradicional de contrato, pois nos contratos de massa é difícil estabelecer se houve uma oferta, qual o seu conteúdo e de quem partiu, se a oferta foi aceita ou foi modificada pelo consumidor, o que caracterizaria uma nova proposta, pelo art. 1.083 do Código Civil. O art. 30 do CDC tenta resolver o impasse, criando um novo regime legal para a oferta, generalizando como proposta contratual, quase todas as manifestações, mesmo a publicidade, oriundas do fornecedor. Estas manifestaçõeS, uma vez vinculativas e obrigatórias para o profissional, passam a integrar o conteúdo do futuro contrato. O CDC como que presume que a "nova" oferta partirá sempre do fornecedor. Esta mistura de

esquemas contratuais, da teoria clássica e da nova teoria social, foi combatida por mestres, como Díez Picazo.{20} * (18) Assim tb. Pasqualotto/Daños, p. 3, em trabalho enviado ao II Congresso de Daños, da Faculdade de Direito de Buenos Aires, ainda inédito. (19) Lobo, p. 126, considerava que tais categorias simplesmente não mais se adaptavam à nova concepção de contrato. (20) Veja Picazo, p. 11. (p. 292) A razão parece estar realmente em uma determinação definitiva e imperativa dos papéis: o fornecedor é sempre o presumido ofertante, o consumidor é aquele que aceita a oferta colocada no mercado.{21} Dogmaticamente este princípio de transparência, este novo mandamento de informação verídica, clara e identificável, enquanto manifestação do fornecedor destinada à conclusão de um negócio ou destinada, genericamente, ao incitamento do consumo em geral, propõe um novo problema, qual seja, a da relevância jurídica destas práticas pré-contratuais. A grande pergunta é qual a força vinculativa destas práticas; em outras palavras, se tais práticas passam a obrigar efetivamente o fornecedor, se esta obrigação cria um liame, representa um novo vínculo juridicamente relevante entre o consumidor (exposto a estas práticas) e o fornecedor que as ordena ou executa. A publicidade,{22} por exemplo, prática comercial de marketing, por muito tempo despertou pouco interesse nos juristas. Fácil, porém, caracterizá-la como uma atividade "consciente e finalística" do fornecedor. É através da publicidade que o fornecedor oferece bens ou serviços ao consumidor, que informa o consumidor sobre determinadas qualidades ou propriedades do produto ou serviço, que desperta interesses, vontades, desejos, que propaga marcas e nomes, que usa a fantasia para ligar determinados sentimentos, status ou atitudes a determinados produtos, em verdade, o fornecedor incita ao consumo, direta ou indiretamente, com sua atividade. * (21) Assim tb. Georges Rouhete, "Droit de la consommation et Théorie générale du contrat", in Mélanges René Rodière, LGDJ, Paris, 1981. (22) Sobre publicidade, veja a excelente análise de Benjamin, Anteprojeto, que traz uma série de definições de publicidade, entre as quais destaco a de Carlos Ferreira de Almeida (apud, p. 170) e de Dorothy Cohen (apud, p. 171): "Publicidade... é toda a informação dirigida ao público com o objetivo de promover, direta ou indiretamente, uma atividade econômica" e o de Dorothy Cohen: "publicidade é uma atividade comercial controlada, que utiliza técnicas criativas para desenhar comunicações identificáveis e persuasivas nos meios de comunicação de massa, a fim de desenvolver a demanda de um produto e criar uma imagem da empresa em harmonia com a realização de seus objetivos, a satisfação dos gostos dos consumidores e O desenvolvimento do bem-estar social e econômico". (p. 293) Face à relevância jurídica que a publicidade experimenta após a entrada em vigor do CDC e aos já atuais casos jurisprudenciais{23} envolvendo o uso da publicidade no mercado brasileiro, gostaríamos

de, nesta segunda edição, aprofundar um pouco mais o seu estudo. Como a publicidade é uma atividade em si criativa e livre, que tanto pode informar, como nada dizer, simplesmente divertir, atiçar a atenção para uma marca ou criar curiosidade sobre um produto,{24} gostaríamos aqui de concentrar nossa análise inicialmente no efeito desta atividade dos fornecedores no mercado, que chamaremos aqui em geral de vinculação própria, seguindo os ensinamentos dos mestres alemães, para só após analisar a causa, isto é, a publicidade em si e sua natureza. a) Vinculação própria através da atuação negocial - Se observamos na ciência do direito uma crise das fontes das obrigações, com o conseqüente aparecimento de novas e inesperadas fontes obrigacionais, parece-nos interessante reproduzir aqui o caminho traçado com êxito por Johannes Köndgen, na Alemanha. Em sua renomada Tese de Habilitação na Universidade de Tübingen, Köndgen surpreendeu a doutrina alemã ao concentrar seu estudo nas novas espécies de vínculos que se formavam na sociedade de massa como forma de identificar as novas fontes de obrigação, analisando com especial atenção a publicidade.{25} A contribuição maior de Köndgen é esta simples inversão, não mais definir relação obrigacional como vínculo jurídico, mas identificar que se há vínculo jurídico há (ou haverá) obrigação. E Köndgen vai mais longe, propõe identificar vínculos juridicamente relevantes outros que os contratos, vinculações entre indivíduos nascidas fora da categoria dos contratos, em virtude dos riscos profissionais de cada um, da confiança criada por determinada atividade na sociedade que necessite * (23) Quanto à relevância jurídica do uso da publicidade, veja Acordo Judicial sobre o slogan "Bom para a boquinha, bom para a barriguinha" levado a efeito pelo PROCON/SP, in Direito do Consumidor, 4, ps. 269 e ss. (24) Segundo ensina Benjamin, Anteprojeto, p. 172, o elemento material da publicidade é a difusão, seu meio de expressão, e seu elemento finalístico é a informação, no sentido que é informando que o anunciante atinge o consumidor, mesmo quando se está diante de técnicas como o non sense. (25) Veja Köndgen, em especial pp. 284 e ss. (p. 294) de aproximação negocial, de um contato social mais especializado com fim (direto ou indireto) de lucro.{26} O tema da tese de Köndgen foi, portanto, a vinculação sem contrato; e para bem identificar o tema, restringiu-o à vinculação dinâmica, vinculação por atuação (de vontade) na sociedade. Traçando um paralelo com a "determinação" (Bestimmung) - que seria a alma, a essencia, da atuação com vontade (livre arbítrio) -, afirma que a determinação juridicamente relevante é a "determinação própria" (Selbstbestimmung, em alemão), assim, propõe estudar a "vinculação própria" (Selbstbindunng), que seria a "alma", a essência das obrigações no mundo individualista, capitalista e liberal, pós-revolução francesa. A legitimação na sociedade atual da vinculação própria estaria também na atuação própria, como na teoria tradicional, mas agora por risco próprio profissional, por interesse negocial próprio.{27} A linha temática escolhida para defender a tese, que agrupa todos estes

fenômenos sob a denominação (combatida) de quase-contratos, foi a da responsabilidade por atos com finalidade (direta ou indireta) negocial (geschäftsbezogene Handeln), responsabilidade, em alemão "Haftung", como projeção necessária da obrigação ou vinculação própria.{28} Enquanto muito se escreveu e teorias foram criadas (as teorias da vontade, da declaração, teorias objetivas) para identificar a vontade juridicamente relevante e o poder de "determinação" que possui o homem quando se obriga (por exemplo, o dogma da liberdade contratual), o tema da "vinculação" por atuação dirigida (direta ou indiretamente) * (26) Interessante notar que Köndgen constrói sua tese procurando analogias com figuras do direito anglo-americano, tais como a categoria das ações "assumpsit" (de origem extra-contratual e delitual), com as antigas obrigações de contratar, as "commom callings", os deveres das "confidential relations", as garantias implícitas, "warranty", motivos de imputação de responsabilidade, "promissory estoppel" etc., para ao fim chegar a teoria de Jhering da culpa in contrahendo, ob. cit, pp. 17 e 96; já no Brasil, foi com a crescente influência das idéias norte-americanas que o próprio CDC tornou-se uma realidade. (27) Köndgen, p. 2. (28) Köndgen, p. 7, na expressão original alemã "Haftung aus geschätsbezogene Handeln". (p. 295) a negócios de interesse próprio, quanto mais se não há posterior contrato, permaneceu um tema lateral. Quando se discute hoje a contribuição do Código de Defesa do Consumidor no Direito Civil brasileiro e as mudanças que impôs ao tornar juridicamente relevante a mensagem publicitária, impondo novos deveres ao fornecedor que dela se utilizar, peço vênia para trazer aqui a discussão que dominou a visão sociológica do direito na década de 80 na doutrina alemã: vinculação própria sem contrato? Köndgen concluiu que há vinculação própria por uso (ato lícito) da publicidade na sociedade de massas. Uma das bases para tal vinculação encontra ele na responsabilidade pela confiança ("Vertrauenshaftung"){29} despertada pela atividade dirigida e profissional do fornecedor; confiança que representa o efeito provável daquele tipo de declaração na sociedade (trata-se também de um standard objetivo). A proteção da confiança, mencionada por referido autor alemão, estaria presente também no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, o princípio geral de boa-fé, positivado no CDC, em seu art. 4.º, inc. III, o qual estipula um mandamento de boa-fé (objetiva) a guiar todas as condutas, em especial aquelas que exigem contato com os consumidores, presumidos legalmente como parte vulnerável da relação.{30} Trata-se de mais um mandamento de proteção da Segurança e da harmonia social ("Vertrauensgebot"), o qual imporia àqueles que utilizarem da publicidade suportar riscos profissionais mais elevados, uma vez que visando lucro (direta ou indiretamente), uma vez que * (29) Idem, p. 7: impressionante é sua exposição (p. 98 e ss.) da doutrina de Canaris, sobre a responsabilidade pela confiança despertada ("Vertrau-

enshaftung"), único autor alemão que une as idéias de imputação da responsabilidade pela atuação (determinação própria), atuação de risco profissional (mesmo que risco menor) com fim de lucro (direto ou indireto), e afirma: "a responsabilidade pela confiança não é responsabilidade/ obrigação "por força" do negócio jurídico, mas responsabilidade "por participação" no meio jurídico negocial ("Teilnahme am rcchtsgeschäftlichen Verkehr") ob. cit., p. 101 e ss. (30) Sobre o princípio da Boa-fé no CDC, veja o recente estudo de Antônio Junqueira de Azevedo, in Direito do Consumidor, v. 3, p. 78 e ss, e sobre o princípio da boa-fé no Brasil, veja o artigo do mestre de Porto Alegre, Clóvis do Couto e Silva, "O Princípio da boa-fé", p. 43 e ss. (p. 296) participando de sua atividade negocial (esfera de necessário controle do empresário) e atingindo um número indeterminado, em grau não controlável, de pessoas (grupo a tutelar). Como afirmamos anteriormente, tanto o princípio da transparência, que agora analisamos, como o princípio da confiança, escolhido por Köndgen para basear sua Tese, são derivações do princípio maior, que é o mencionado princípio da boa-fé (veja Cap. 1. 4.1.b). Boa-fé objetiva, em matéria de publicidade, significa a exigência que esta seja uma atividade leal (atividade refletida, pensando também naquele que recebe a mensagem, o consumidor), que prometa só o que pode cumprir, que se trouxer informações, seja sobre a qualidade, quantidade ou qualquer característica do produto ou serviço, seja sobre as condições do contrato, que esta constitua uma informação correta, verídica, que o próprio intuito de incitar ao consumo seja identificável e a publicidade identificada como tal pelo público. Certo está Köndgen ao frisar que a nova relevância jurídica da publicidade encontra sua fonte nos efeitos desta atividade na sociedade, no caso, para Köndgen, na confiança despertada nos inúmeros consumidores expostos à publicidade. Considerando, porém, que a publicidade nem sempre é tão precisa, informativa ou clara, de forma a despertar expectativas legítimas (contratuais) nos consumidores, não deixando por isso de atingir os consumidores, preferimos frisar aqui a existência de um dever de conduta genérico imposto ao fornecedor que utiliza-se da publicidade: dever de cuidado, de veracidade na informação. Em outras palavras, o mandamento de transparência, presente no caput do art. 4.º do CDC e desenvolvido nos arts. 29 e ss. da lei. Os estudos de Köndgen nos permitem, porém, visualizar que a atividade de comunicar-se por publicidade é uma opção do fornecedor (livre determinação), e que, por suas características de atividade profissional (risco próprio) e por seus importantes e irreversíveis efeitos na sociedade, faz nascer vínculos obrigacionais, tornando-se hoje de relevância jurídica indiscutível. A existência de um vínculo juridicamente relevante unindo dois sujeitos na sociedade traz em si, portanto, o binômio dever/comando, direito/poder; traz em si a idéia de obrigação lato sensu entre estes sujeitos. Esta "obrigação" é a individualização do dever jurídico, abstrato e geral, é a concretização reflexa do direito do outro, que me

coloca em uma situação nova, de subordinação não só a uma conduta (p. 297) própria imposta pelo comando legal, mas também no caso dos direitos potestativos, na dependência da conduta do outro. Seria a simples "atuação negocial" do fornecedor no mercado, entrando em comunicação com o consumidor, seja através da publicidade, seja através de prepostos ou vendedores, seja através de prospectos ou da simples oferta de produtos em sua loja, uma nova fonte de obrigações para este? Estaria o fornecedor submetido a algum tipo de comando legal ou novo dever legal somente porque atua com fim negocial (direto ou indireto) frente a consumidores? Normalmente definimos obrigação (stricto sensu) como um vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com a outra à realização de uma prestação.{31} Afirmamos assim que alguém está "obrigado" somente quando a prestação é (ou passa a ser) exigível. Haveria assim uma dependência intrínseca entre a exigibilidade da obrigação principal e o termo técnico "obrigação", que segundo alguns deveria ser utilizado somente neste sentido estrito. Peço vênia, para utilizar aqui a expressão "obrigação" também em sentido lato, de forma a demonstrar que antes mesmo que a prestação principal (dar, fazer, não-fazer) seja exigível, na visão dinâmica imposta pelo CDC para a relação de consumo, existem outras "prestações", prestações acessórias, Nebenleistungen como as chamam os doutrinadores alemães, já exigíveis em forma de condutas determinadas impostas por lei àquele tipo de aproximação negocial. Segundo Galvão Telles, o termo técnico "obrigação" designa, em sentido amplo, o lado passivo de qualquer relação social, que passe a ser juridicamente relevante. "Obrigação" significa, assim, tanto o dever jurídico pelo qual uma pessoa se encontra vinculada a observar certa conduta no interesse da outra (titular do direito subjetivo), quanto ao estado de sujeição, que se traduz na submissão aos efeitos jurídicos produzidos por iniciativa alheia (no exercício de um direito potestativo).{32} Dever jurídico é uma ordem ou comando dirigido pelo ordenamento jurídico ao indivíduo, a qual ele tem de observar como um imperativo, visando orientar seu procedimento. Ao dever jurídico imposto a um indivíduo (devedor: lado passivo) corresponde um direito subjetivo assegurado a outro indivíduo ou ente (credor: lado ativo). * (31) Assim o Código Civil Português, em seu art. 397. (32) Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra, 1986, p. 9. (p. 298) O estado de sujeição é o correlativo passivo dos direitos potestativos, assim como o dever jurídico o é dos direitos subjetivos propriamente ditos.{33} A sujeição traduz-se na impossibilidade de querer com eficácia em sentido contrário ao que já foi determinado pelo ordenamento jurídico.{34} É uma subordinação irresistível que consiste na necessidade de suportar as conseqüências jurídicas da atuação do Outro que titula um poder potestativo; enquanto o dever jurídico consiste na necessidade subjetiva de obedecer ao comando jurídico, sob pena de sanção do ordenamento jurídico. Ambos são vínculos impostos pelo ordenamento jurídico a determinados sujeitos para a tutela de interesses alheios,{35} o que os diferencia do "ônus", vínculo imposto, mas para a tutela de interesse próprio, para alcançar ou manter determinada

vantagem ou posição preponderante.{36} Pontes de Miranda, em certa passagem, prefere denominar esta "obrigação" lato sensu de "relação jurídica pessoal",{37} de forma a diferenciar claramente da obrigação stricto sensu (vínculo que adstringe alguém à realização da prestação, a um dar, a um fazer, a um não fazer), onde a figura da prestação é dominante, onde a exigibilidade da prestação * (33) Assim ensina Andrade, pp. 1 e 2. (34) Assim ensina Eros Roberto Grau, "Direito", p. 115, citando os ensinamentos de Carnelutti. (35) Concordam os citados autores, Andrade, p. 3, e Grau, p. 118. (36) Segundo Galvão Telles, catedrático da Universidade de Lisboa, ob. cit., p. 9, obrigação, em sentido amplo, pode significar o ônus de adotar determinado comportamento para alcançar ou conservar uma vantagem própria. Parece-nos, porém, que a razão está com Eros Grau, ob. cit., pp. 117 e 118, quando afirma que a noção de õnus não se pode amoldar às relações de natureza obrigacional, não cabendo qualquer alusão a "dever livre" ou "ônus", uma vez que "o sujeito que cumpre a prestação obrigacional não o faz para evitar as conseqüências do inadimplemento, mas age em conformidade de uma imposição normativa". Eros Grau, citando Carnelutti, ensina: "dever e õnus têm em comum o elemento formal, consistente no vínculo à vontade, mas diverso o elemento substancial, porque o vínculo é imposto, quando se trata de um dever, no interesse alheio e, tratandose de ônus, para a tutela de um interesse próprio". (37) Assim o mestre Pontes de Miranda, "Tratado", v. 22, § 2.679, p. 13, que ensina: "Inicia-se a relação jurídica pessoal, porque a prestação pode ainda não ser exigível (= não ter nascido a obrigação)". (p. 299) é o marco.{38} Somente deveríamos, segundo este autor, utilizar a expressão "obrigação" em seu sentido estrito, como a relação jurídica entre duas (ou mais pessoas), de que decorre a uma delas (devedor) poder ser exigida, pela outra (credor), prestação; do lado do devedor, haveria a obrigação (verdadeiramente, a dívida) e do credor, a pretensão.{39} Considerar tal relação jurídica apenas como pessoal, sem afirmar que se trata de relação jurídica pessoal e já de natureza obrigacional, parece-me uma redução perigosa, da mesma forma como é perigoso afirmar que não há obrigação sem a exigibilidade da prestação, como se fosse somente a exigibilidade da prestação principal. Mesmo Clóvis Bevilacqua, autor de nosso Código Civil, aceitava uma definição mais ampla de "prestação", englobando qualquer dar, fazer ou não fazer que fosse "economicamente apreciável", e, portanto, não somente a prestação principal. Parece-nos, neste sentido, possível afirmar que há relação jurídica obrigacional, antes do vencimento da prestação principal, porque já há vínculo jurídico, já há dever. Talvez esta "obrigação" (dever de prestar ou dever contratual de conduta) seja outra ou de outro grau; apenas "obrigação" de cooperar, de informar, de se conduzir conforme, e na direção, da prestação principal, não inviabilizando a prestação, não causando dano ao patrimônio ou à pessoa do parceiro contratual.

Também estes, porém, são comandos jurídicos, impostos para defesa de interesse alheio e pela necessidade de conduta segundo a boa-fé no contrato e fora dele. Trata-se de um comando jurídico e não somente ético,{40} mas por esta diferença de grau, os doutrinadores alemães denominaram estes comandos jurídicos de "deveres" (Pflichten) de cuidado, de cooperação, de informação, diferenciando-os do dever * (38) Telles, ob. cit., p. 9, citando o art. 397 do Código Civil português, ensina ainda que "obrigação", em sentido estrito, é o "vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação" (grifo nosso). (39) Assim a definição de Pontes de Miranda presente no v. 22 do Tratado, ob. cit., p. 12 (n. 6). (40) Beviláqua, ob. cit., p. 8, ainda com uma visão mais tradicional ensinava: "É certo que algumas vezes basta um interesse moral, ou de afeição para dar conteúdo a uma obrigação. Mas desde que a obrigação se torna exigível, há de ter, no conceito e definição, um valor patrimonial... ou pertencerá ao domínio da ética". (p. 300) principal (Leistungpflicht) e evitando o apoio na expressão já tão usada "obrigação" (Schuld ou Verpflichtung). Decisiva foi a contribuição dos doutrinadores alemães das décadas de 50-60 que introduziram uma visão dinâmica e total de obrigação, de um processo complexo, verdadeiro feixe ou conjunto de deveres que vinculam as partes desde a sua aproximação negocial (momento pré-contratual) e continuarão vinculando-as mesmo depois de cumprido o dever principal (pós-eficácia dos contratos).{41} Foram estes estudos que identificando a natureza dupla da obrigação, que faz nascer sempre a prestação primária: débito (Schuld=Obrigação) e a prestação secundária: garantias (Haftung=Responsabilidade),{42} identificando, assim, no vínculo obrigacional a presença de deveres principais (Hauptpflichte) e de deveres outros, que chamaram de anexos ou laterais (Nebenpflichte), todos deveres ligados à prestação ou à conduta na sociedade.{43} Os primeiros ligados à prestação principal do contrato, um dar, um fazer, um não fazer, objeto básico daquele tipo contratual; os outros, deveres de prestações menores, instrumentais ou protetores da prestação principal, verdadeiros deveres de conduta, deveres consistentes também em um fazer (p. ex.: informar), um não fazer (p. ex.: guardar segredo, não causar dano ao patrimônio do co-contratante durante a execução do contrato), em um dar (p. ex.: enviar os manuais com instruções de uso). O próprio Código Civil alemão de 1900, em seu livro 2, já privilegia a expressão "relação obrigacional" (Schuldverhältnis), trazendo como aspecto positivo a lembrança de uma visão dinâmica temporal de obrigação, não como algo (ou apenas um ato) isolado, mas um processo, algo que inicia, se desenvolve e termina. Um processo que chega ao seu ápice justamente quando a prestação principal passa a ser exigível, mas que vincula desde o momento de aproximação negocial e que faz nascer uma série de deveres outros instrumentais que

* (41) Veja, por todos, o mestre alemão Karl Larenz, "Sch", em § 2.º, V. em especial pp. 26 a 28. (42) Veja, no Brasil, a obra de Clóvis do Couto e Silva, Obrigação como Processo, p. 100 e sobre deveres anexos, p. 111 e ss. (43) Veja a tradução para o português da obra de Harm Peter Westerman, p. 15, o qual define relação obrigacional como "uma vinculação jurídica especial, consistente em direitos de crédito e em deveres de conduta, em que participam pelo menos duas pessoas". (p. 301) já são exigíveis desde logo, porque exigíveis, em princípio, da conduta de todos, quanto mais daqueles que se aproximam para negociar.{44} Importa-nos aqui frisar, portanto, que a obrigação é na sua essência um "vínculo", um liame ou laço, como está na origem do próprio termo. Desta afirmação simples e básica podemos retirar conseqüências importantes. A simples identificação da existência de um "vínculo" ligando (por atuação própria ou por determinação legal) dois sujeitos na sociedade, pode assim indiciar, se este vínculo é juridicamente relevante, a existência de obrigações (deveres na sua essência) para estes sujeitos. Certo é que o Código de Defesa do Consumidor introduziu no ordenamento jurídico brasileiro uma série de novos deveres para o fornecedor que se utiliza (patrocina) da publicidade no mercado, como método comercial e de incitação ao consumo. O principal destes deveres é o de "veracidade especial". A publicidade comunica, logo é forma de informação, mas também é livre para não trazer nenhuma informação precisa ou mesmo nenhum sentido, pura ilusão publicitária; mas se trouxer alguma informação, seja sobre o preço, sobre qualidade ou quantidade, sobre os riscos e segurança ou sobre caraterísticas e utilidades do produto e do serviço, esta informação deve ser verdadeira (arts. 36, parágrafo único, 37, § 1.º e 38 do CDC).{45} Introduziu, igualmente, * (44) A "aproximação negocial" (geschäftliche kontakt) como elemento de imputação de deveres já estava presente na teoria de Jhering da culpa in contrahendo, mas foi Dölle, em 1943, que valorizou este elemento ao usar a expressão "soziale kontakt" (contato social), especificando que o contato negocial é um grau mais forte (e por isso, daí onde derivam outros deveres) do que o simples casuístico contato delitual; veja detalhes em Köndgen, p. 98. (45) Assim concorda Benjamin, Anteprojeto, p. 183, denominando-o como "princípio da veracidade". Mais importante que sua denominação, como dever anexo ao princípio, é o seu abrangente efeito prático, já compreendido pela jurisprudência brasileira, pois praticamente acaba com a figura do dolus bonus em relações de consumo, uma vez que a indução ao erro pela publicidade ou informação significa ao mesmo tempo uma violação de um mandamento impositivo do CDC; neste sentido, a exemplar decisão: "Autor induzido em erro pelos anúncios jornalísticos da revendedora, apregoando veículos revisados. Irrelevante que o automóvel em questão não constasse

expressamente do anúncio. A responsabilidade não pode ser debitada ao proprietário, que não teve participação na divulgação realizada pela empresa (p. 302) o dever de identificação da publicidade como tal, de forma a garantir ao consumidor a ciência de que não se trata de informação imparcial, mas de informação finalística para o consumo de determinado produto ou serviço e o dever de conduta leal publicitária, proibindo o que considerou conduta abusiva (art. 37) ou enganosa (art. 37) e assegurando direitos conexos a estes deveres (art. 6º, V), também do CDC. A eventual relação obrigacional, vínculo jurídico, nascido do uso da publicidade na sociedade pelo fornecedor seria, pois, uma modalidade mais individualizada e concreta de dever jurídico, reflexo de uma atuação voluntária ou delituosa do indivíduo na sociedade.{46} Teria o Código de Defesa do Consumidor, pois, introduzido no ordenamento jurídico brasileiro uma nova fonte de obrigações: a publicidade? Seria a simples atuação promovendo seus produtos através de publicidade veiculada por meios de comunicação, ato juridicamente suficiente para criar obrigações? Da publicidade veiculada adviria para o fornecedor responsável algum dever jurídico? Dever de prestar manter preço e qualidade - conforme o anunciado (típica obrigação contratual)? Dever de cuidado com o patrimônio e a segurança daqueles que recebem a publicidade e se dirigem ao estabelecimento comercial (típica obrigação pré-contratual)? Dever de cooperação com aqueles que aceitaram a oferta publicitária, fecharam negócio e agora querem receber a prestação principal (típica obrigação contratual)? Dever de indenizar os danos patrimoniais e morais ocasionados pela publicidade não verdadeira, falha, enganosa ou abusiva (típica obrigação extra-contratual)? Dever de ressarcir a perda econômica ocasionada pela diferença entre o prometido na publicidade e a realidade do produto ou serviço fornecido (típica garantia contratual de vício da coisa)? Efetivamente, o CDC menciona a publicidade como atividade juridicamente relevante em três momentos: 1) quando suficientemente precisa, integra a oferta contratual (art. 30), o futuro contrato (arts. 18 e 20), vincula-o como a proposta (arts. 30 e 35); 2) quando abusiva ou *comercial. Só desta, pois, a responsabilidade. (Decisão unânime)". (Proc. 01190723237, Rec. 66/90, Rel. Dr. Antonio Guilherme Tanger Jardim, 8.ª Câmara Recursal do Juizado de Pequenas Causas/RS, 23.8.90). (46) As obrigações ou relações jurídicas obrigacionais seriam assim de duas espécies, contratuais e extra-contratuais, divisão esta que já se mostra insuficiente para classificar todas as novas fontes de obrigação na sociedade atual. (p. 303) enganosa, é proibida e sancionada (art. 37); 3) nos demais casos, como prática comercial deve ser correta nas informações que presta (arts. 36, parágrafo único e 38), identificável enquanto publicidade (art. 36, caput) e sobretudo, leal (art. 6.º, IV). No CDC, portanto, a prática comercial "publicidade" é verdadeira atividade social, ato juridicamente relevante que se classifica ora (no caso

1) como parte da oferta, negócio jurídico unilateral, ora (no caso 2) como ato ilícito violador de direitos, ora (no caso 3), se despida de poder determinador dos efeitos jurídicos e de uma valoração negativa pela eventual ilicitude. apresenta-se em sua própria essência: ato humano unilateral com fim negocial indireto, onde a determinação de seu conteúdo (as informações trazidas) pode ser livre, mas cujo regime deriva agora da lei que impôs um novo patamar de conduta nas relações sociais conforme a boa-fé objetiva. A publicidade foi, portanto, valorizada como ato de vontade idôneo para criar vínculos obrigacionais (com ou sem contrato) entre fornecedores e consumidores na sociedade brasileira. b) Publicidade como oferta - Queremos destacar aqui a relevância que a publicidade passa a ter no Direito Civil. Pelo art. 30 do CDC, a publicidade passa a ser fonte de obrigação para o fornecedor. Como antevia Konder Comparato, em 1976,{47} "os processos de publicidade comercial, pela sua importância comercial, pela sua importância decisiva no escoamento da produção por um consumo em massa, integram o próprio mecanismo do contrato e devem, por conseguinte, merecer uma disciplina de ordem pública análoga à das estipulações contratuais". No Brasil, com as mudanças introduzidas pelo CDC, a publicidade, quando suficientemente precisa, passa a ter efeitos jurídicos de uma oferta, integrando o futuro contrato. Isto significa que o fornecedor brasileiro deverá prestar mais atenção nas informações que veicula, seja através de impressos, propaganda em rádio, jornais e televisão, porque estas já criam para ele um vínculo, que no sistema do CDC será o de uma obrigação pré-contratual, obrigação de manter a sua oferta nos termos em que foi veiculada e cumprir com seus deveres anexos de lealdade, informação e cuidado;{48} no caso de aceitação por parte do * (47) Comparato/Forense, p. 24. (48) Veja interessante caso sobre oferta de prêmios julgado pelo TJRS, in Ap. Civ. 596088997, j. 29.8.96, Des. Araken de Assis. (p. 304) consumidor, de prestar contratualmente o que prometeu ou sofrer as conseqüências previstas no art. 35.{49} Note-se que, historicamente, a publicidade era considerada mera prática comercial, juridicamente relevante somente quando utilizada como forma de concorrência desleal (art. 196, § 1.º, inc. VIII do Código Penal). A publicidade era relevante, portanto, mais no direito administrativo, comercial e penal, do que no direito civil stricto sensu.{50} A mudança introduzida pelo CDC é, pois, verdadeiramente importante e exige dos juristas uma adaptação. Assim, aceita a proposta feita através de publicidade, o conteúdo da publicidade passará a integrar o contrato firmado com o consumidor, como se fosse uma cláusula extra, não escrita, mas cujo cumprimento poderá ser exigido, mesmo de maneira litigiosa frente ao Judiciário. Trata-se de conteúdo publicitário do contrato, que, na figurativa expressão de Pasqualotto,{51} forma o "contrato invisível", cláusula oral, não escrita, ou se escrita que não integra o corpo de contrato, promessa de qualidade, de preço, de prestabilidade etc., que passa a ser vinculativa para quem o fizer veicular ou "dela se utilizar" (art. 30, in fine).

A nova norma não chega a ser, porém, revolucionária, pois, no Brasil, o Projeto de Código Civil n. 634/75{52} já previa em seu art. 429 que: "A oferta ao público equivale a proposta quando encerra os requisitos essenciais ao contrato, salvo se o contrário resultar das * (49) Veja exemplo jurisprudencial deste vínculo de origem publicitária na decisão do JEPC/SP, Proc. 840/95-6, j. 13.7.95, J. José Ernesto de Matos Lourenço, em que se anunciava cruzeiro mencionando o nome de navio português, roteiro e preço que não correspondiam a realidade: "Obrigação de fazer. Erro na oferta publicitária. Presunção de boa-fé do consumidor. Vinculação da fornecedora ao roteiro de viagem e ao preço veiculado", in Revista de Direito do Consumidor, v. 17, p. 262-265. No mesmo sentido, Processo 359/96, JECP/SP, j. 2.4.96, J. José Ernesto de Matos Lourenço, em caso envolvendo anúncio de desconto de 30% de transportadora aérea: "Oferta publicitária. Passagem aérea com desconto. Não-concessão ao consumidor. Violação do dever de boa-fé. Restituição devida". (50) Veja o clássico artigo de Malinvaud, pp. 52 e ss. (51) Assim manifestou-se Adalberto Pasqualotto, citando os ensinamentos de Roppo, no "VI Curso Nacional de Direito do Consumidor", em 24.8.94, organizado pela Seção Pernambuco do Brasilcon, em Recife. (52) Sobre o Projeto de Lei n. 634/75 veja os Comentários de Bulgarelli, pp. 46 e ss. (p. 305) circunstâncias ou dos usos". O CDC simplesmente assegura a inclusão da publicidade, desde que suficientemente precisa, como oferta. A jurisprudência brasileira não exitou em absorver o espírito do art. 30 do CDC{53} e chegou mesmo a estabelecer uma prevalência da informação, do prometido ou transmitido por via publicitária em relação ao estabelecido ou predisposto no contrato.{54} Esta prevalência está de acordo com a natureza de normas de ordem pública das normas do CDC, ou se poderia através de simples cláusula contratual retirar todo o efeito vinculativo da publicidade, efeito imposto e desejado justamente pelo art. 30 e demais normas do CDC.{55} Observando hoje o disposto no art. 30 do CDC, parece-me sábia a expressão utilizada "suficientemente precisa", porque destaca que a publicidade informativa, assim como as outras informações, não necessita ser "total", isto é, precisa absolutamente todos os elementos do futuro contrato ou elementos que compõem a oferta: alguns elementos podem ser definidos quando do futuro contato negocial entre * (53) Assim concorda J. Martins Costa, Princípio, p. 50: segundo a autora, mesmo antes do advento do CDC esta incorporação das informações prestadas através da publicidade aos contratos já teria sido reconhecida pela jurisprudência brasileira no leading case do Supremo Tribunal Federal, AI 88.416 (Ag. Rg)-RJ, 1.ª T., j. 3.5.83, Rel. Min. Néri da Silveira, reproduzido in RTJ 107/1.013. (54) Sobre a prevalência da informação ou promessa feita através da publicidade a citada autora, idem, nota 12, p. 57, menciona decisão não publicada no TJRGS, segundo a qual: "a promessa, constante de propaganda, de que o

prédio teria telefone em todos os apartamentos significou que a incorporadora assumia a obrigação de instalar as respectivas linhas e de transferi-las aos condôminos, com todos os equipamentos necessários". (Ap. Civ. 591016530, Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Jr., j. 6.6.91). (55) Concorda Rodycz, p. 63, que com a visão do julgador identifica neste elemento o campo para a valoração e interpretação do juiz. O autor, relembrando o caso da Loteria-Instantânea do Esporte Club Internacional, onde se discutiu sem sucesso a identificação dos carros Gol-Gl e Gol-SI, para efeito de premiação, afirma que: "essa suficiência deve ser analisada do ponto de vista dos destinatários da oferta. Tratando-se de crianças, haverá de ser mais exigente, se endereçada a um universo de apostadores em jogOS, sorteios ou loterias, o nível de precisão será outro. Nenhum apostador poderá exigir o cumprimento de uma tentadora publicidade lotérica somente por isso, pois todo o mundo sabe que a sorte faz parte desse negócio" (pp. 63 e 64). (p. 306) fornecedor direto e consumidor. Os elementos, porém, que a publicidade informativa trouxer, estes sim, obrigam e vinculam desde sua veiculação. Trata-se assim de uma diferença com a oferta clássica. A oferta de consumo pode referir-se a apenas uma qualidade do produto ou serviço e já vincula, já integra o contrato que vier a ser celebrado, regulando aquele aspecto se mais favorável ao consumidor, mesmo que a oferta-publicitária não seja total, de um ponto de vista clássico, quanto a presença de todos os elementos contratuais.{56} Como expressão do auto-regramento das relações entre particulares através da declaração de vontade (negócio jurídico), a publicidade pode trazer os elementos que desejar o fornecedor: características, qualidade, segurança, preço, medidas, quantidade, condições de pagamento, condições de crédito, condições da própria oferta, regras para o uso etc. As informações que trouxer, suficientemente precisas, estas, porém, são vinculantes, obrigam desde já o fornecedor e integram o futuro contrato. Face a nova disposição legal, não há mais como negar que da atividade publicitária suficientemente precisa nascem obrigações (deveres especiais) para o fornecedor que a fizer veicular ou que dela se utilizar. Nasce uma relação jurídica obrigacional, um vínculo jurídico, mas qual é a natureza e as características desta relação? Esta vinculação obrigacional possui natureza, inicialmente, précontratual, pois é somente uma declaração unilateral de vontade da qual decorrem deveres jurídicos para o fornecedor e a qual Correspondem direitos para os consumidores expostos à publicidade. Destaque-se que se trata aqui de um vínculo jurídico obrigacional, obrigação no sentido lato.{57} Significa que o fornecedor se encontra * (56) Chaise, p. 11, baseando-se em Picazo, p. 18, cita jurisprudência pioneira espanhola, a qual estabeleceu que se a publicidade estabelecesse a qualidade

dos materiais de construção (pretensamente) utilizados na obra passava esta a Integrar o contrato, devendo prevalecer frente a cláusulas escritas em contrário no contrato de adesão. (57) Em sentido contrário, como antes afirmamos, está o mestre Pontes de Miranda, Tratado, v. 22, § 2.679, p. 13, que defendendo uma visão estática e tradicional de obrigação preleciona: "Ao se lançar, de público, a declaração unilateral de vontade, com o ato de alguém, a que nasça direito, ou ao se concluir o contrato, não se pode dizer que a relação jurídica de obrigação se inicia. Inicia-se a relação jurídica pessoal, porque a prestação pode ainda não ser exigível (= não ter nascido a obrigação)". (p. 307) vinculado a observar certa conduta no interesse de outro, o consumidor (titular de um direito subjetivo), deverá cumprir seus deveres de lealdade, veracidade na informação, deveres de conduta segundo a boafé, deveres anexos de cuidado, de informação, de conselho, de cooperação etc.{58} Significa, igualmente, que o fornecedor se encontra (por ação própria) em um estado de sujeição, face a possível aceitação dos consumidores de sua oferta publicitária; se tal aceitação ocorrer sujeitase o fornecedor às conseqüências irresistíveis da atuação do direito formativo do outro: vincula-se ao contrato e terá de prestar conforme informou na oferta publicitária. Tais observações têm importante reflexo prático. Se observamos, por exemplo, como caso de estudo, o ocorrido em 1991, em Goiânia, onde loja de eletrodomésticos{59} publicou em jornal de grande circulação oferta publicitária de fornos microondas, especificando inclusive o tipo do produto, o preço convidativo, as condições de pagamento e suas características positivas, mas quando grande número de consumidores afluíram à loja, alegou ter fechado os contratos por "coação", três observações podem ser feitas. Se a oferta publicitária foi efetivamente feita, já havia vínculo obrigacional para a loja, logo estado de sujeição à aceitação dos consumidores (mesmo em grande número), pois nada mencionava a oferta sobre o número de fornos que seriam vendidos naquelas condições e o tempo razoável de manutenção daquela oferta. Trata-se de um novo risco profissional daquele que utiliza este método de incitação ao consumo, a publicidade juridicamente relevante; risco que os deveres de conduta impostos ao fornecedor ex vi lege não permite transferir de volta ao universo difuso ou identificável de consumidores. O CDC impôs estes novos deveres legais e assegurou os conexos direitos ex lege aos consumidores, justamente porque se não o fizesse * (58) Sobre deveres anexos na fase pré-contratual veja a obra de António Menezes Cordeiro, Da Boa-fé, em especial pp. 603 e ss., e, comparando o sistema francês de obrigações acessórias e os deveres anexos, veja a tese de doutorado de Hans-Jochem Mayer. (59) Sobre o caso Mesbla/Goiânia, veja o artigo de Tomassetti, Transparência, p. 65 e duas análises do caso publicadas no v. 4 da Revista de Direito do Consumidor, pp. 140-172 e 241-254. Segundo consta o caso continua sub

judice, mesmo assim consideramos úteis tecer alguns comentários e opiniões pessoais. (p. 308) estaria permitindo que se chamassem às lojas através da publicidade de massa consumidores, mesmo se estas lojas não possuíssem tais produtos ou não trabalhassem neste ramo, simplesmente para "brincar" com os consumidores ou atraí-los de forma maliciosa para o interior da loja ou shopping center, na esperança que outra coisa consumissem. Ao igualar a publicidade suficientemente precisa, como o foi a do caso em estudo, à oferta colocou o CDC o fornecedor que veiculou a publicidade no mesmo estado de sujeição à aceitação que já era conhecido pelo próprio Código Civil, no caso da proposta contratual aceita. Se a proposta foi aceita sem modificações e imediatamente não há como querer com eficácia em sentido contrário, o contrato está fechado e só o inadimplemento é possível (dano positivo), mas também sancionado. Após a aceitação, a natureza do vínculo obrigacional ligando o fornecedor e o consumidor (da publicidade) transforma-se em vínculo de natureza contratual, se bem que suas características continuem as mesmas e apenas acrescente-se a possível exigibilidade da prestação principal. O art. 35 do CDC é claro, ao dispor que "se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua escolha: I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos" (grifo nosso). No caso em estudo, tentou-se posteriormente anular judicialmente os contratos firmados naquele dia, sendo que dos consumidores foi exigido que prestassem, pagando o produto nas condições da oferta publicitária e foi-lhes entregue em troca um "documento de crédito", porque não havia na loja "nenhum exemplar do bem ofertado". O argumento principal utilizado foi o de coação psicológica ao gerente que fechou os contratos; mas, como examinamos acima, a proposta aceita tinha sido feita anteriormente (na publicidade), logo, nada caberia ao fornecedor do que cumprir seus deveres de cooperação (não inviabilizar a prestação ou o contrato) e de cuidado (não causar danos Outros ao patrimônio dos consumidores) e reconhecer seu estado de Sujeição à possível aceitação de sua oferta publicitária. O argumento mais interessante ficou secundário: o de eventual equívoco sem culpa (p. 309) do fornecedor na mensagem publicitária. Perguntam-se os estudiosos do assunto: É efetivamente relevante o erro na oferta publicitária? Um erro substancial pode anular a declaração e vontade unilateral da publicidade já veiculada e que já atingiu seus efeitos? Este sim é um tema atual e que extrapola a nova natureza contratual da publicidade, para se concentrar em sua essência como ato unilateral de vontade; ato, portanto, teoricamente revogável e submetido à teoria dos defeitos da vontade.{60} As regras presentes no CDC proibindo a veiculação de publicidade enganosa e publicidade abusiva, como verdadeiros atos ilícitos, parecem reforçar o já mencionado regime ético da publicidade, estabelecidos pelos arts. 30, 35, 36 e 38 do CDC. Para que tais publicidades sejam consideradas abusivas ou

enganosas não é necessária a vontade específica dolosa ou que a aproximação entre fornecedor e consumidor tenha sido com o intuito direto de vender, de comerciar, de concluir contratos, basta a atividade. Basta a atividade de publicidade, como determinação soberana e profissional do fornecedor e sob o risco profissional deste, em caso de falha, erro, ou culpa de terceiro da cadeia organizada ou contratada por ele próprio de fornecedores-auxiliares.{61} Tratando-se de risco profissional (responsabilidade própria do profissional),{62} tratando-se de atuação a qual a lei impõe deveres espe* (60) Pode-se afirmar hoje que a doutrina brasileira, majoritariamente, não aceita a possibilidade de alegar "erro" na mensagem publicitária, considerandoo risco profissional, veja por todos Benjamin, Anteprojeto. (61) Considero que, neste caso, o fornecedor responsável pela publicidade "falha" possui direito de regresso contra o outro fornecedor (seu auxiliar) que efetivamente cometeu o erro (jornal, agência de publicidade etc.). Tal regresso obedece, porém, as regras de direito comercial e não do direito do consumidor, porque não envolve "destinatário final econômico" ou sujeito vulnerável equiparável a consumidor. (62) Köngen desejava justamente partir da vinculação própria por ato com finalidade negocial (atuação) para chegar à responsabilidade própria (efeito), ob. cit., p. 7, e não simplesmente defender mais um "motivo de imputação da responsabilidade" (Zurechnungsgrund), a confiança, caminho já percorrido por Canaris, em 1971; por isso sua análise e a opção por englobar todos os casos na categoria (hoje em desuso) dos quasecontratos. Concorde-se ou não com sua opção, a tese teve o mérito de repassar todas as tentativas dogmáticas de estabelecer tal vínculo (obrigação/responsabilidade), desde o venire contra factum proprium, a estoppel da "equity" (p. 310) ciais (através de norma de ordem pública) não transferíveis aos consumidores, nem mesmo através de previsão contratual (ex vi arts. 1.º, 51, I, e 25 do CDC), terá o fornecedor de suportar a sua falha, responder pela informação mal transmitida, pelo inadimplemento contratual ou pelo ato ilícito eventualmente resultante da publicidade falha.{63} Da mesma maneira, se a oferta publicitária já foi aceita, concluiuse o contrato a que se destinava e não há mais como revogá-la.{64} Reconhece-se um estado de sujeição à atuação do outro, de aceitar ou não a oferta, no prazo razoável e nas condições que foi feita. Aqui vale lembrar a contribuição do Código Civil italiano de 1942 à teoria dos defeitos da vontade, a chamada teoria da confiança. Segundo esta nova espécie da teoria da declaração, havendo divergência (provada) entre a vontade interna e a vontade declarada, prevalece em Princípio a vontade declarada, se (e na medida) em que despertou a confiança. Em

outras palavras, na medida em que criou expectativas legítimas no outro contratante, na população atingida pela declaração (standard objetivo), a vontade declarada prevalecerá, porém, se o outro contratante sabia ou podia saber razoavelmente no mesmo momento da declaração que aquela não era a vontade interna de seu parceiro, poderá a declaração ser anulada. Procura-se assim um equilíbrio entre os valores envolvidos e as dificuldades de prova, preservando prioritariamente a segurança das relações, mas também combatendo a (eventual) má-fé subjetiva.{65} No caso mencionado anteriormente, a publicidade veiculada pela loja de eletrodoméstico tanto despertou (objetivamente) a confiança na população, que grande foi o número de consumidores que afluíram para aceitar a oferta. A aparência de seriedade da oferta foi tanta porque o preço à vista e o preço a prazo veiculados coincidiam razoavelmente, sendo despiciendo mencionar que as lojas costumam anunciar suas *inglesa, a culpa in contrahendo de Jhering, a warranty norte-americana até nós e a responsabilidade por atos profissionais, por informações, por prospectos, por publicidade. (63) Assim conclui, após amplo levantamento da doutrina nacional, também Pasqualotto, p. 113. (64) Veja sobre o caso das Lojas Arapuã de Porto Alegre os comentários de Rodycz, in Estudos, p. 63, e Chaise, p. 127, comentando oito decisões favoráveis aos consumidores no JECP/RS. (65) Sobre a teoria da confiança, veja a excelente obra de Orlando Gomes, Transformações... p. 15 e Nelson Nery, Vícios, p. 14 e ss. (p. 311) melhores ofertas, preços mais baixos pela qualidade do produto que oferecem. Da mesma maneira contribuiu o fato de, no Brasil, com inflação à época de 50% ao mês, ninguém ter plena consciência do que é caro ou barato, dependendo justamente da oferta do mercado, da atuação estipuladora do fornecedor-profissional em vendas. Despertada a confiança no homem médio, que foi atingido pela publicidade veiculada em jornal de grande circulação sem os cuidados devidos, deveria a loja manter sua declaração, só podendo anular o contrato, com base em erro, se houvesse (e fosse provada) má-fé subjetiva de algum dos consumidores. A confiança serve assim a esta teoria como um parâmetro, um dado objetivo, que uma vez atingido traz a impossibilidade de anularse por erro a declaração já veiculada; enquanto que a possibilidade de anulação da declaração serve de exceção justa, a ser permitida somente quando a declaração foi tal que (objetivamente) não despertou a confiança no homem médio ou quando, individualmente, aquele consumidor tiver consciência, no momento da declaração, que ela não era a vontade do fornecedor (logo, a declaração nunca pode despertar a confiança subjetiva daquele indivíduo). Por fim, cabe mencionar que mesmo havendo anulação dos contratos (o caso ainda está sub judice), parece-nos que permanece a responsabilidade pela confiança. Jhering, já no século passado, notara que, estabelecida a aproximação negocial, mesmo que o contrato dela resultante fosse nulo, havia responsabilidade pelo dano negativo.{66} A famosa teoria de Jhering da culpa in contrahendo nasceu justamente de observações sobre casos de contratos nulos, onde mesmo assim o

mestre identificou a existência de deveres especiais de conduta (os deveres anexos), cuja violação resultava em dever de indenizar, de reparar o dano ocasionado por esta aproximação negocial, chamada então de responsabilidade pré-contratual, para atrair o regime contratual mais benéfico no direito alemão da época. A lógica do grande doutrinador alemão é atual, pois se o descumprimento do princípio da transparência, dos deveres anexos por ele impostos, assim como se a frustração da confiança despertada, não for acompanhada de uma reação negativa do ordenamento jurídico, * (66) Sobre a importância da teoria de Jhering, da culpa in contrahendo, no regime atual da publicidade na Alemanha, veja Köndgen, p. 304 e ss. (p. 312) algum tipo de sanção ou inadimplemento, tais normas não terão efeito prático, serão palavras ao vento, dispositivas, programáticas e inefetivas.{67} O CDC e seu regime de ética nas relações entre fornecedores e consumidores almeja justamente um efeito prático. Este será conseguido se tivermos bem claro que o direito de danos (Schadensrecht) tem mais de uma função, não só ressarcimento dos danos efetivamente sofridos (patrimoniais e não patrimoniais, art. 6.º, VI, do CDC), mas também prevenção de futuros casos semelhantes e satisfação minima{68} para aqueles atingidos ou expostos ao ato do fornecedor, que receberiam ao menos seus danos negativos.{69} Feitas estas observações, gostaríamos de frisar, por fim, as diferentes funções da publicidade, que atua não somente como oferta contratual, mas também como informação (assegurando determinada qualidade do produto ou da característica do contrato) e eventualmente como ato ilícito.{70} A publicidade, por exigir um certo poder econômico daquele que a faz veicular, é na maioria das vezes veiculada pelo fabricante do produto e não pelo pequeno comerciante que fechará o contrato com o consumidor. A primeira impressão é que, nestes casos, a publicidade perderia a * (67) Assim, citando o princípio da boa-fé, Amaral Jr., in Revista de Direito do Consumidor, v. 14, p. 50. (68) Os doutrinadores alemães atuais, influenciados pela doutrina norte-americana dos pwlitive damages, destacam a importância desta função "satisfativa" para a futura harmonia no mercado, veja Kern, p. 247 e ss. (69) Concorda Rodycz, p. 65, ponderando que algumas vezes o erro do fornecedor que utiliza-se da publicidade é escusável, mas mesmo assim os danos (ou interesses) negativos do consumidor (deslocamento, tempo, perda de uma chance etc.) devem ser ressarcidos. No mesmo sentido, Grisi, p. 337, considera que face ao descumprimento de um dever anexo pré-contratual que leve de alguma forma a não conclusão do negócio ou a nulidade do contrato, os interesses negativos da parte frustrada devem ser ressarcidos, inclusive as "oportunidades perdidas" (que o autor caracteriza como "lucros cessantes"),

tema ainda controverso e pouco tratado no direito brasileiro, face a nossa visão de dano concreto e "calculável" pelo outro co-contratante. (70) Veja 1.2, letra b (informação) e 2.1, letras b e c (ato ilícito) a seguir; veja também a decisão em ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal/SP contra publicidade de ar condicionado que afirmava ser este "silencioso", considerada enganosa, in Direito do Consumidor, n. 10, p. 281 e ss. (p. 313) relevância jurídica, pelo menos no que se refere ao futuro contrato entre o pequeno comerciante e o consumidor-adquirente do produto. Inicialmente, é necessário destacar o espírito novo do CDC’ e do direito do consumidor, isto porque as normas do Código muitas vezes sobrepujam a clássica barreira do contrato, como que menosprezando a diferença entre uma relação contratual e uma relação meramente extracontratual. Realmente, a publicidade só terá os efeitos do art. 30, como oferta, se for veiculada por aquele que fechará efetivamente o contrato. Portanto se o fabricante, através de campanha nacional faz veicular uma publicidade afirmando que seu produto tem determinadas qualidades, não se trata de uma oferta do comerciante, segundo o art. 30 do CDC, apta a iniciar a formação do futuro contrato, mesmo porque não menciona o preço, elemento essencial da compra e venda. O comerciante que vender aquele produto, que fechar efetivamente o contrato de compra e venda com o consumidor, fará sua própria oferta ao consumidor, que poderá ser diferente daquela do fabricante. Mas ninguém duvida que a publicidade feita pelo fabricante estará sendo, indiretamente, "usada" pelo comerciante para motivar a compra pelo consumidor daquele produto que ele tem em estoque. O art. 30 do CDC, in fine, menciona que a informação "obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar...". Resta saber se esta utilização, indireta, praticamente inconsciente pelo comerciante das campanhas publicitárias dos fabricantes e produtores será aceita pela jurisprudência brasileira como subsumida na hipótese do art. 30. Particularmente, considero que, na hipótese, não será necessária a proteção do consumidor através da nova noção de oferta contratual, pois o consumidor encontrará sua tutela no novo e amplo regime de vícios de informação e de vício de adequação dos arts. 18 e ss. do CDC. Assim, no direito do consumidor, a publicidade, enquanto informação prestada ao consumidor, pode ter outros efeitos jurídicos. OS efeitos nasceriam não da nova noção de oferta, mas do novo dever de informar corretamente sobre as qualidades do produto (art. 18 do CDC - publicidade enquanto informação sobre a qualidade). Nesse sentido, acreditamos que também a publicidade veiculada pelo fabricante pode atingir, indiretamente, o comerciante-vendedor e o contrato firmado.{71} * (71) Mesmo não analisando a hipótese formulada, parece concordar com nossa conclusão Benjamin/Forense, p. 87 (sobre solidariedade) e p. 92 (sobre rescisão do contrato de consumo). (p. 314) Uma vez que o art. 18 do CDC responsabiliza todos os fornecedores pelo vício de qualidade do produto, responsabilizando-os também pela disparidade entre as informações prestadas em mensagem publicitária e a realidade, também o comerciante pode ser obrigado a rescindir o contrato em virtude da nova noção de vício do produto, vício

este no direito tradicional chamado de "redibitório", por permitir a redibição do vínculo contratual (art. 1.110 do Código Civil Brasileiro). A responsabilidade prevista pelo art. 18 é solidária, incluindo tanto o fabricante, como o vendedor final, assegurado a este somente, pelo direito tradicional, um eventual direito de regresso para rever o prejuízo. A responsabilidade prevista no art. 18, como bem ensina o mestre de São Paulo, Antônio Herman Benjamin,{72} e oriunda de uma teoria típica do direito do consumidor, por ele denominada teoria da qualidade, logo não se subsume perfeitamente nas categorias de responsabilidade contratual ou extracontratual. Devemos concluir, portanto, que a publicidade veiculada passa a interessar ao Direito Civil, ou mais especificamente o Direito do Consumidor, seja como oferta, se veiculada pelo futuro fornecedorcontratante (art. 30 do CDC), seja como informação obrigatoriamente correta, a ensejar, segundo o § 1.º do art. 18 do CDC, a substituição do produto por outro, a rescisão do contrato e a restituição da quantia paga, ou o abatimento proporcional do preço, à escolha do consumidor. No que concerne a importância da publicidade no direito contratual, vale examinar a evolução neste sentido apresentada no direito comparado. Quatro institutos do direito podem ser utilizados para reconhecer efeitos civis à publicidade, e proteger aqueles que nela confiaram: o erro, o pacto contrahendo, o quasi-contrato e o ato ilícito. Na França, uma lei de 1905 sobre fraudes, manifestava preocupações em garantir a lealdade das informações prestadas aos consumidores, E a lei de 2 de julho de 1963 já proibia a publicidade enganosa. Mas ao nosso estudo interessa o art. 44 da lei de 27 de dezembro de 1973 (Lei sobre a orientação do comércio){73} que proibe a publicidade, feita de tal maneira a poder induzir os consumidores em erro. Efetivamente o erro, como vício da vontade, nada mais é do que a falsa * (72) CDC-Comentários/Saraiva, p. 38. (73) Todas as informações sobre o ordenamento jurídico francês foram retiradas do artigo de Malinvaud, p. 52. (p. 315) noção da realidade;{74} logo se através de uma publicidade dirigida a um contrato, o consumidor passa a ter uma falsa noção da realidade do contrato ou das qualidades essenciais do produto, está agindo em erro, manifestando a sua aceitação ao contrato em erro, e se a este foi induzido, ocorre o dolo por parte do fornecedor. Ambos são vícios da vontade, que ensejam em nosso sistema atual a anulabilidade do ato (art. 147, II c/c arts. 84 e 96 do Código Civil Brasileiro). A crítica que se pode fazer à utilização do erro para anular um contrato de consumo influenciado por uma publicidade enganosa (art. 37, § 1º do CDC) é ser o erro de difícil prova e somente relevante se "substancial", isto é, de tal relevo, de tal força, que, sem ele, o ato não se realizaria{75} (art. 87 do Código Civil Brasileiro). A idéia de erro, de falsa informação, será usada com mais sucesso para definir a publicidade enganosa, proibindo a sua prática, até mesmo por liminar para evitar danos à coletividade, e impondo sanções civis (perdas e danos), sanções administrativas e penais. É possível, também imaginar a publicidade como fonte de obrigações civis tendo como base a teoria da culpa in contrahendo{76} de

Jhering.{77} Esta reconhecida teoria alemã, afirma que com o início das negociações preliminares (Aufnahme von Vertragsverhandlungen), com o início da aproximação entre cliente e comerciante, e já em seus primeiros contados com vistas a um futuro contrato (vorbereitender geschäftlicher Kontakt), nasceria para ambos uma obrigação legal de cuidado, de esclarecimento e de evitar qualquer dano ao interesse da outra parte.{78} Em caso de descumprimento destes deveres précontratuais, o comerciante ficaria obrigado a ressarcir os danos, segundo o princípio do ressarcimento contratual, isto é, através de perdas e danos. Aquele que veiculasse publicidade enganosa ficaria, portanto, obrigado a reparar os danos causados por sua "culpa quando da celebração do contrato", pois desobedeceu seus deveres de cuidado e de informação * (74) Assim Nery, p. 29. (75) Assim Nery, p. 30, inspirado em Washington de Barros Monteiro. (76) Nesse sentido, no Brasil, manifestou-se Pasqualotto/Daños, p. 1. (77) Sobre a evolução das idéias de Jhering até chegar a esta teoria da "culpa na celebração dos contratos", de 1861, veja, excelente, Larenz/Metodologia, pp. 485 e ss. (78) Assim ensina o mestre alemão Larenz/AT, p. 533, sobre os efeitos civis do contato social. (p. 316) clara para com o consumidor, ao enganá-lo, ao induzi-lo em espécie de erro através da publicidade (ex.: publicidade-chamariz). O sistema parece em muito semelhante àquele criado pelo Código, o qual poderia ter efetivamente evoluído da idéia de culpa in contrahendo, como afirmou Adalberto Pasqualotto.{79} Da mesma maneira, Ferreira de Almeida{80} ao tentar definir as características do Direito do Consumidor, ao tentar criar uma teoria jurídica própria para o negócio jurídico de consumo, conclui que as características seriam justamente a criação de novos e amplos deveres pré-contratuais e também maior controle do contrato, criando igualmente novos deveres pós-contratuais. Já o citado mestre alemão Koendgen preferiu destacar os efeitos jurídicos da publicidade como quasi-contrato ou como ato ilícito. Segundo este doutrinador a publicidade tem uma dupla função: é a promessa negocial de qualidade do produto ou do serviço (geschäftliches Qualitätsverprechen), mas é também "incitação" ao contrato (Verleitung zum Vertrage).{81} Esta função ambivalente teria dificultado a elaboração de uma doutrina civilista sobre seus efeitos. A informação sobre a qualidade do produto{82} foi sempre tratada como mero problema de concorrência desleal, uma vez que a jurisprudência alemã era relutante em incluir a hipótese como equivalente a uma "qualidade assegurada", tratando a publicidade como simples "declaração" não vinculativa. Koendgen discorda, porém, e considera que a informação veiculada cria uma expectativa de qualidade, que será incluída pelo consumidor no contrato, quando o fizer; logo, trata-se de um problema contratual, mais especificamente a publicidade seria um elemento quasi-contratual.{83} No sistema do CDC, como já observamos, a promessa de qualidade pela

publicidade pode dar origem a um vício de informação (descumprimento de dever anexo contratual ou mesmo extracontratual, através da solidariedade do art. 18) ou, se considerada parte da oferta, dar origem a um descumprimento contratual (descumprimento de dever principal). * (79) Pasqualotto/Daños, p. 1. (80) Ferreira de Almeida, pp. 29 e 30. (81) Koendgen, pp. 295 e ss. (82) Problema tratado no ponto 1.2 (a publicidade como oferta). (83) Assim conclui Koendgen, p. 298 (tese de Habilitação em Tübingen). (p. 317) Como "incitação" ao contrato,{84} a publicidade serviria para persuadir o consumidor a fechar o contrato com determinado fornecedor. Sem menosprezar o seu caráter eventual de concorrência desleal, este autor alemão vê na publicidade uma força capaz de manipular a ação do consumidor, criando a persuasão que aquele produto preencherá determinada necessidade social, econômica (real, fictícia) ou psicológica. Nesse sentido considera que devam existir limites bem claros para a publicidade (proibição da publicidade subliminar, da publicidade chamada sugestiva), ou esta incitação à conclusão do contrato poderá representar um elemento delitual da publicidade, poderá causar danos ao consumidor. Nesse sentido, o consumidor enganado poderia exigir o ressarcimento dos prejuízos ("Interesses Negativos") que sofreu ao fechar aquele contrato, induzido pela publicidade, e não outro.{85} No sistema do CDC, o art. 45, vetado pelo Presidente da República, previa, como sanção para a prática da publicidade enganosa ou abusiva, a imposição de perdas e danos, a indenização por danos morais, e também a imposição de uma "multa civil", multa esta semelhante aos punitives dammages do direito norte-americano. Estas perdas e danos com caráter punitivo foram objeto de veto, mas nada impede que, com base no direito tradicional, no art. 159 do Código Civil, requeira o consumidor ou suas entidades de defesa a condenação do fornecedor em perdas e danos reparatórios pelos prejuízos causados pela publicidade ilícita (publicidade enganosa e abusiva, segundo definições do art. 37 do CDC).{86} c) Informações e pré-contratos - Como observamos, o CDC utiliza somente a noção de oferta, equiparando-a sempre a uma proposta contratual, mas além disso a nova lei tem o condão de diluir, ainda mais, a diferença existente entre as manifestações das partes quando da chamada fase de negociações preliminares e as manifestações das partes dirigidas à formação do contrato definitivo, ou oferta e aceitação. * (84) A expressão é utilizada tb. por Diez Picazo, p. 8. (85) Koendgen, p. 299. (86) Nesse caso, o art. 159 do CCB estaria sendo usado em função análoga àquela do § 823, 2.º, do BGB alemão, que prevê o ato ilícito por ofensa a um interesse protegido (um dever instituído) por outra lei, no caso o Código de Defesa do Consumidor. (p. 318) Na visão tradicional, o empresário ou seu preposto prestaria várias informações para o consumidor sobre o produto a ser adquirido, sobre

as formas de pagamentos, os eventuais acréscimos, juros, frete etc., mas estariam as partes agindo na fase pré-contratual, preliminar de negociações, e, portanto, não vinculativa. Agora o CDC amplia a noção de oferta no art. 30, inclui todas as informações suficientemente precisas, mas, principalmente, regula a fase pré-negocial no art. 48 do Código, afirmando o seguinte: "Art. 48. As declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré-contratos relativos às relações de consumo vinculam o fornecedor ensejando inclusive execução específica, nos termos do art. 84 e parágrafos". O art. 48 do CDC reforça a nova noção de conteúdo do contrato disposta no art. 30. Afirma que as declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré-contratos vincularão o fornecedor. Em outras palavras, estas informações farão parte do contrato, uma vez que seu descumprimento ensejará inclusive a execução específica prevista no art. 84. O próprio texto do art. 84 reforça este entendimento, pois dispõe sobre o descumprimento de obrigação de fazer, visando criar meios de obter, no Judiciário, "resultado prático equivalente ao do adimplemento" da obrigação. A repercussão prática da norma do art. 48 não pode ser menosprezada, pois trata-se do sensível problema dos pré-contratos, que no Brasil ganhou vulto com a massificação das promessas de compra e venda de imóvel loteado e não loteado. Na doutrina tradicional, este pré-contrato era considerado mera obrigação de fazer, dando origem apenas a um direito de crédito à conclusão do contrato, a uma ação estritamente pessoal, logo o descumprimento levaria à indenização em perdas e danos e não aos efeitos que teria produzido o contrato. Com a evolução social, o legislador brasileiro foi obrigado a criar, em hipóteses específicas (Decreto-lei 58, de 10 de dezembro de 1937 e Lei n. 6.766, de 19 de dezembro de 1979) e dependentes de formalização,{87} um efeito real para tais promessas, a fim de que o promitente-comprador pudesse ter regularizada a propriedade do * (87) Veja nesse sentido as Súmulas ns. 167 e 168 do STF, exigindo o registro imobiliário do compromisso de compra e venda. Segundo informa Roberto Rosas, Direito Sumular, p. 80, tais Súmulas não têm sido aplicadas pelo agora competente Superior Tribunal de Justiça. (p. 319) imóvel. Segundo dispõe o art. 22 do Decreto-Lei n. 58 de 1937, os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e venda de imóveis não loteados, desde que inscritos no registro imobiliário, atribuem aos compromissários direito real oponível contra terceiros e lhes confere o direito de adjudicação compulsória. A jurisprudência brasileira evoluiu no sentido de considerar inadmissível o arrependimento nesses compromissos, mesmo que permitido pelo art. 1.088 do Código Civil (Súmula 166 do STF), e mesmo existindo cláusula expressa no contrato, quando o fornecedor descumpre o contrato (RTJ 41/355). Por fim, a Súmula 413 do STF pacificou a jurisprudência no sentido de estender aos compromissos de venda de imóveis não loteados a execução compulsória, quando reunidos os requisitos legais. O art. 48 introduzido pelo CDC parece representar mais um passo adiante nesta evolução.{88} Em uma interpretação literal, o artigo parece

permitir, sem o formalismo antes exigido, ao consumidor exigir a execução específica, isto é, que por sentença o juiz substitua-se ao devedor da obrigação fazer e, por exemplo, elabore ou inscreva no registro de imóveis a escritura definitiva de compra e venda do imóvel. A Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já estava firme no sentido de um abrandamento da Súmula 621 do STF, a fim de que o promitente comprador pudesse opor embargos de terceiros, embora não tivesse sido a promessa registrada;{89} resta, portanto, esperar a interpretação que se dará ao art. 48 do CDC. Da mesma maneira os escritos particulares, por exemplo, pequenas promessas feitas por prepostos ávidos em vender (art. 34 do CDC), passam agora a integrar o contrato, como obrigações de fazer. A medida amplia consideravelmente o conteúdo do contrato a ser firmado entre consumidor e fornecedor. Quanto aos recibos, já valiam, segundo a égide do direito tradicional, como meio normal de quitação, uma vez que o art. 1.093 do Código Civil dispunha que a quitação valerá, qualquer que seja a * (88) Nesse sentido a lição do Min. Fontes de Alencar (REsp. 2.972-0-GO, 4.ª T., STF, j. 23.3.93), o qual identifica um pré-contrato de incorporação imobiliária (não registrado) com base no art. 48 do CDC, afirmando: "O espírito da lei é no sentido de que essas declarações, ou esses précontratos, vinculam aquele que assume o compromisso". (In LEX-STF, 53/106). (89) Veja decisão do REsp. 1.480/SP, 21.11.89, in RT 658/197. (p. 320) sua forma desde que cumpra os requisitos do art. 940 (designação do valor e da espécie de dívida quitada, do nome do devedor ou de quem por este pagou, do tempo e do lugar do pagamento, com a assinatura do credor ou de seu representante). A norma do CDC inova ao dispor que as eventuais declarações de vontade presentes nos recibos vinculam o fornecedor. O recibo, enquanto quitação já fazia prova do pagamento, agora se refere o CDC ao hábito, mais ou menos comum, de aproveitar o verso do recibo para fazer declarações e imprimir condições gerais. Quer nos parecer uma norma que deve ser bem interpretada ou nem sempre virá ao encontro dos interesses tutelados pelo CDC, interesses dos consumidores, tendo em vista, principalmente o hábito dos fornecedores de aproveitarem o verso dos recibos para imprimir algumas cláusulas limitativas de direitos contratuais do consumidor. Nesse sentido, mister esclarecer que a norma refere-se somente à vinculação do fornecedor às declarações prestadas, não menciona a eventual vinculação do consumidor com relação a estas CONDGs impressas no recibo. Isto porque, no sistema de informação montado pelo CDC, o consumidor deve ter oportunidade de conhecimento prévio do conteúdo do contrato. Se as condições gerais são entregues ao consumidor, após o fechamento do contrato, no verso do recibo, só podem ser consideradas incluídas no contrato, se o consumidor teve oportunidade de conhecê-las de maneira prévia. É o novo direito de informação que trataremos a seguir. Ao lado desta proteção formal (da declaração de vontade do consumidor), o sistema do CDC assegura uma proteção quanto ao conteúdo destas cláusulas limitativas de direitos. No sistema do CDC,

estas cláusulas, se abusivas (art. 51) podem ser declaradas nulas pelo Judiciário, Mesmo assim, melhor andaria o legislador brasileiro se tivesse previsto normas específicas no CDC sobre a inclusão de Cláusulas extras ou condições gerais no contrato, razão porque analisaremos o problema em seção separada. Vejamos. d) Cláusulas contratuais gerais - No caso específico das condições gerais dos contratos, o CDC brasileiro não possui norma especial para discipliná-las, especialmente para reger o grave problema dos requisitos para a sua inclusão nos contratos de consumo. A falta de Previsão legal explica-se em face da existência do § 3º do art. 51, que (p. 321) previa um controle abstrato e prévio de todas as condições gerais ou cláusulas gerais a serem oferecidas no mercado. Este controle seria exercido pelo Ministério Público e evitaria abusos. Ocorre que o § 3.º do art. 51 foi vetado pelo Presidente da República. Sendo assim, resta apenas sobre o assunto a regra muito ampla do art. 30, a qual inclui as condições gerais na oferta do comerciante, o que pode vir a prejudicar os consumidores. Em princípio, pois, as condições gerais dos contratos, mesmo que somente afixadas em lugar visível nos estabelecimentos comerciais vão fazer parte da oferta. Assim, o consumidor aceitando a oferta, aceitará também as suas condições gerais, as quais passam a integrar o contrato de consumo. Como, no caso das condições gerais dos contratos, o consumidor brasileiro vai aceitá-las, inseridas na oferta, sem se dar conta dos riscos a que está se expondo, é necessário recorrer ao novo e amplo direito de informação instituído no CDC, o qual não diz respeito somente as informações sobre os produtos e sobre as garantias oferecidas, mas o qual inclui igualmente o direito de tomar conhecimento prévio do conteúdo do contrato (art. 46). Observamos, na experiência do direito comparado, que estas cláusulas impressas nos versos dos recibos são consideradas não integrantes do contrato, mesmo porque de regra o consumidor as recebe após a conclusão do contrato.{90} No sistema do CDC brasileiro, em caso de abuso deste método, sem informação para o consumidor das obrigações que está assumindo, dos direitos que está renunciando, será possível ao consumidor desvincular-se das condições gerais impostas, desvinculando-se do contrato como um todo, através do art. 46, que estudaremos a seguir. Outra possibilidade é manter o vínculo contratual e a inclusão das condições gerais, restando aos consumidores o recurso ao controle a posteriori dessas cláusulas pelo judiciário. Mesmo assim, melhor teria andado o legislador brasileiro, se tivesse previsto normas especiais sobre a inclusão das "condições gerais dos contratos", pois com uma regra específica poderia o sistema do CDC permitir que se mantivesse o contrato, o vínculo, a obrigaçãO principal, e somente se afastasse a lista de cláusulas impressas no recibo, isto é, negar a inclusão das CONDGs como conteúdo contratual. * (90) Veja capítulo 1, título 2, n. 2.3. (p. 322) No sistema atual do CDC ou todo o contrato não vincula (art. 46), ou somente uma cláusula é declarada nula (art. 51), faltando a solução intermediária observada no direito comparado, a qual, no Brasil, só poderá ser alcançada por um esforço de interpretação sistemática

da jurisprudência, baseado mais no Princípio da Transparência das relações de consumo do que no texto legal instituído pelo CDC. e) Sanção - A nova noção de oferta, instituída pelo art. 30 do CDC, terá importantes reflexos na prática. Como oferta, as informações e a publicidade, mandada veicular pelo fornecedor, já vinculam o comerciante e o obrigam a manter, por lapso razoável de tempo em termos da oferta. Desta maneira, se a oferta é genérica (por exemplo feita em campanha publicitária regional ou mesmo nacional), deve passar a especificar sua amplitude e os seus limites (estoque, prazo de validade, etc.), pois não será possível ao fornecedor discriminar entre os consumidores. O sistema do CDC não apóia a recusa em contratar, se o consumidor preenche as condições exigidas.{91} No sistema do CDC, a sanção pelo descumprimento da oferta encontra-se positivada no art. 35, que escapou aos vetos do Presidente da República, e traz o seguinte grave enunciado: "Art. 35. Se o fornecedor de produtos e serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: "I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; "II - aceitar outro produto ou prestação equivalente; "III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia e eventualmente antecipada, monetariamente atualizada e perdas e danos". Para alguns, através deste dispositivo, o fornecedor fica como que, praticamente, obrigado a Contratar, a cumprir a sua oferta feita a um público indeterminado (veja também o art. 39, inciso II do CDC). O art. 35 é bem claro ao especificar que, se o empresário recusar dar Cumprimento à sua oferta, o consumidor poderá exigir o cumprimento forçado da obrigação. Nota-se aqui que o CDC pressupõe o fechamento * (91) Veja detalhes em Lobo, p. 97, sobre os limites à liberdade de conclusão dos Contratos. (p. 323) do contrato, em virtude da simples manifestação do consumidor aceitando a oferta.{92} Na segunda hipótese, igualmente, assegura o CDC o direito do consumidor alcançar a prestação contratual, se não do produto que escolheu e sobre o qual concluiu o contrato, então a prestação de outro produto equivalente, se isto interessar ao consumidor. No terceiro inciso do art. 35 fica ainda mais clara a suposição, no sistema do CDC, da conclusão do contrato entre fornecedor-ofertante e consumidor. Este inciso terceiro refere-se ao direito de "rescindir o contrato". Logo, se a rescisão tiver por motivo a recusa do fornecedor de dar cumprimento à sua oferta, oferta esta que representa agora o conteúdo do contrato firmado, o CDC assegura ao consumidor o direito de ver ressarcidas as suas eventuais perdas (restituição da quantia paga, monetariamente atualizada, qualquer outro dano emergente e lucros cessantes). Só resta, portanto, ao fornecedor brasileiro limitar a sua oferta ao estoque, ao que ele pode efetivamente cumprir, ao preço que pretende,

cuidando para veicular somente informações corretas e que possa adimplir.{93} Igualmente, a informação falsa ou insuficiente será considerada pelo art. 18 do CDC como um vício do produto, ficando o fornecedor obrigado a sanar o vício em 30 dias, cumprindo o que prometeu e informou, ou poderá o consumidor exigir, à sua escolha: a substituição, a complementação do bem, a restituição da quantia paga, ou ainda o abatimento proporcional do preço. 1.2 Dever de informar sobre o produto ou serviço (art. 31) Como frisamos anteriormente, transparência é maior clareza, é veracidade e respeito, através de maior troca de informações entre o fornecedor e o consumidor na fase pré-contratual. * (92) Nesse sentido decisão do Juiz Carlos Eduardo Fonseca Passos, 21.ª Vara Cível, RJ, reproduzida in Direito do Consumidor, 4/256 e ss. (93) No caso da publicidade o direito à informação assegurado pelo CDC inclui a possibilidade de requerer sanções administrativas para a publicidade enganosa ou abusiva (art. 37) entre as quais a contrapropaganda (art. 60) e a obrigação do fornecedor de manter em seu poder os dados que dão sustentação à mensagem (art. 36, parágrafo único), como veremos a seguir. (p. 324) Como segundo reflexo do Princípio da Transparência temos o novo dever de informar,{94} imposto ao fornecedor pelo CDC. Este dever de informar concentra-se, inicialmente, nas informações sobre as características do produto ou do serviço oferecido no mercado. O dever de informar foi sendo desenvolvido na teoria contratual através da doutrina alemã do Nebenpflicht, isto é, da existência de deveres acessórios, deveres secundários ao da prestação contratual principal, deveres instrumentais ao bom desempenho da obrigação, deveres oriundos do princípio da boa-fé na relação contratual, deveres chamados anexos.{95} O dever de informar passa a representar, no sistema do CDC, um verdadeiro dever essencial, dever básico (art. 6.º, inciso III) para a harmonia e transparência das relações de consumo, o dever de informar passa a ser natural na atividade de fomento ao consumo, na atividade de toda a cadeia de fornecedores, é verdadeiro ônus atribuído aos fornecedores, parceiros contratuais ou não do consumidor. No Sistema do CDC, o instrumento usado para informar o consumidor sobre determinadas características ou qualidades do bem pode ser tanto a embalagem e apresentação do produto, como aqueles que hoje fazem parte da oferta, os impressos e mesmo a publicidade, veiculada pelo fornecedor-comerciante ou pelo fabricante do produto. É mais uma inovação do CDC, que passa a considerar vinculativas para o fornecedor uma série de informações que, no sistema tradicional, não passavam de meios de promoção de vendas oo, no máximo, um convite à oferta. A novidade mereceu uma análise mais apurada com o fim de delimitar a amplitude do novo dever de informar sobre o produto e serviço e as conseqüências contratuais, ou extracontratuais, que advirão do descumprimento deste dever. a) Amplitude do dever de informar do art. 31 - Enquanto tratado Como simples dever secundário pela doutrina contratual, o dever de

indicação e esclarecimento{96} tinha sua origem somente no princípio * (94) Sobre o dever de informar veja Vera M. J. de Fradera, "O dever de informar", in RT 656/53 a p. 63, assim como Carlos Ferreira de Almeida, "Negócio Jurídico de Consumo", in Boletim do Ministério da Justiça 347 (1985), p. 22 e o clássico Malinvaud, p. 53. (95) No Brasil, veja detalhes na obra de Couto e Silva, Obrigação, pp. 111 a 121. (96) A expressão é de Couto e Silva, p. 112, grande defensor no Brasil dos reflexos do princípio da boa-fé nas obrigações, em sua visão da obrigação Como processo de colaboração. (p. 325) jurisprudencial de boa-fé e só atingia determinadas circunstâncias consideradas pelo Judiciário como relevantes contratualmente. Era um dever de cooperação entre contratantes, portanto, restrito pelos interesses individuais (e comerciais) de cada um. No sistema do CDC este dever assume proporções de dever básico, verdadeiro ônus imposto aos fornecedores, obrigação agora legal, cabendo ao art. 31 do CDC determinar quais os aspectos relevantes a serem obrigatoriamente informados. O art. 31 do CDC ao regular o dever de informar o consumidor, dispõe o seguinte: "Art. 31. A oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras e precisas, ostensivas e em língua portuguesa, preço, garantia, prazos de validade e origem do produto, bem como informar sobre os riscos que o produto apresenta à saúde e à segurança do consumidor". Inicialmente devemos constatar que o art. 31 inclui no dever de informar, instituído pelo CDC, as informações constantes da embalagem do produto. Em 1976, Konder Comparato{97} já destacava a importância destas informações para possibilitar que o consumidor compare o produto com outros de outras marcas, verificando qual deles preenche as condições que deseja. No Brasil, a disciplina legal das embalagens e rotulagens estava restrita aos produtos alimentícios e farmacêuticos. O Código de Defesa do Consumidor revigora essa obrigação do fornecedor e inclui a recusa em dar cumprimento ao que prometia na apresentação ou embalagem na regra do art. 35, para benefício do consumidor brasileiro. Note-se, por fim, que o CDC parece não incluir, em princípio, a apresentação do produto (embalagem) na nova noção de oferta do art. 30, pois, tanto no art. 31, como no art. 35, repete as duas expressões. Esta conclusão não nos parece a melhor frente ao espírito tutelar do Código, mas como a apresentação está mencionada expressamente no art. 35, mesmo que alguns não a considerem como parte da oferta, possuirá no sistema do CDC as mesmas conseqüências, obrigando da mesma maneira o fornecedor, por integrar o seu dever de informar. Segundo o art. 31 do CDC o fornecedor deve cuidar para que sua oferta, assim como a apresentação de seu produto, assegure ao * (97) Comparato, p. 24. (p. 326) consumidor informações claras, precisas e ostensivas sobre as características principais do produto. O rol de características destacado pelo art. 31 é meramente exemplificativo, preocupando-se com as características físicas do produto (quantidade, qualidade, composição), com a sua repercussão econômica (preço e garantia), com a saúde do consu-

midor (prazo de validade e origem do produto) e com a segurança do consumidor (informação sobre os riscos que podem advir do produto). No caso de produtos perigosos ou que possam trazer algum risco à saúde e à segurança do consumidor, o dever geral de informar sobre as características do produto, instituído pelo art. 31, é complementado pelo dever de informar ostensiva e adequadamente a respeito da nocividade ou periculosidade do produto, como dispõe o art. 9º do CDC. O art. 10 do CDC impõe também ao fornecedor um típico dever de vigilância,{98} qual seja, o dever do fornecedor do produto, cuja periculosidade foi afora descoberta, de informar à população e às autoridades competentes. Todas as informações impostas pelo art. 31 devem ser fornecidas em língua portuguesa, mesmo que o produto seja importado de outros países. Tal regra é de ordem pública e pode obter considerável importância, se a economia brasileira realmente integrar-se às economias da Argentina, Uruguai e Paraguai, no que está sendo chamado de "Mercosul". Mesmo que não se forme um mercado comum, como desejam os políticos, a realização de uma "zona de comércio livre", ou mesmo a simples abertura do mercado brasileiro às importações deverá seguir o disposto no art. 31, para proteção do consumidor brasileiro. Quanto às expressões estrangeiras utilizadas para descrever alguma qualidade do produto ou mesmo a sua espécie (por exemplo: compact disc, spray, apart hotel, flat) não estão proibidas pelo CDC, simplesmente deve a embalagem ou a oferta esclarecer igualmente em língua portuguesa do que se trata, isto caso a expressão estrangeira já não estiver incorporada a nossa língua. b) A publicidade como meio de informação - Com a entrada em Vigor do CDC vários aspectos da publicidade comercial passaram a ser juridicamente importantes. Verificamos anteriormente que a publicida* (98) Veja sobre a teoria dos deveres anexos, Couto e Silva, Obrigação, p. 113. (p. 327) de possui, na sociedade de massas, uma dupla função: informa e estimula o consumo de bens e serviços. No momento queremos analisar a publicidade, enquanto meio de informação do consumidor, uma vez que os seus aspectos de "incitação" ao contrato, a consumo, já foram analisados anteriormente no título 1.1, letra "a", Publicidade como oferta. O Princípio da Transparência, instituído pelo CDC para a fase pré-contratual, terá reflexos claros na publicidade, pois esta, enquanto informação ao consumidor, deverá também respeitar os novos parâmetros de veracidade.{99} A jurisprudência brasileira mostrou grande sensibilidade ao tema e tem decidido pelo cumprimento (forçado) da oferta conforme o veiculado{100} e pela "garantia" da informação prestada, quando possível.{101} A mensagem publicitária tem, porém, características próprias (exigüidade do tempo, incitação à fantasia, apelo visual etc.) que deverão ser levados em conta. Mas hoje ninguém duvida da forte influência que a publicidade exerce sobre a população e sobre sua conduta na sociedade de consumo. Nesse sentido, o CDC regula a publicidade, enquanto meio de informação ao consumidor, para lhe vincular alguns efeitos nos arts. 30, 31, 35, 36, 37 e 38.

Koendgen{102} destaca a publicidade como promessa negocial de qualidade do produto (geschäftliches Qualitätsverprechen). Como in* (99) Segundo o comentador Benjamin-Forense, p. 183, o CDC institui mesmo um princípio da veracidade da publicidade, ao proibir a publicidade enganosa (veja nosso comentário no título 2.1 a seguir). (100) Assim a decisão do TJSP, em caso envolvendo publicidade de um aparelho de som, o qual aparecia completo na publicidade, mas cujo preço de venda referia-se apenas a uma das peças, segundo alegava o fornecedor; a decisão confirmou a importância da publicidade como informação afirmando na ementa: "Propaganda enganosa - A propaganda tem como objetivo chamar a atenção do comprador, lhes mostrando as vantagens de comprar o produto. Sendo assim ela deve apresentar as condições reais do produto, para não lesar o consumidor" (TJSP - 4.ª Câm. Civ., Ap. 142.976.1/3-SP, rel. DeS. Alves Braga, j. 17.10.91, v. u.). (101) Veja interessante argumentação do Juiz Federal Sérgio Lazzarini, reproduzida in Direito do Consumidor, 10/277 e ss. (102) Koendgen, pp. 295 e ss. (p. 328) formação sobre a qualidade do produto,{103} poderia ser considerada como hipótese equivalente a uma "qualidade assegurada", logo contratualmente vinculativa. Segundo este autor, a informação veiculada cria uma expectativa de qualidade, que será decisiva para estimular o consumidor a concluir o contrato. Seria, assim, um problema contratual, criando para o fornecedor-contratante a obrigação de fornecer o produto OU O Serviço com as qualidades asseguradas através da publicidade, sob pena de recair em inadimplemento contratual. Mas, na prática, como o contrato entre consumidor e o anunciante nem sempre acontece e como a publicidade afeta um número indistinto de pessoas, conclui este autor alemão que a publicidade pode ser tratada juridicamente com um quasi-contrato.{104} Podemos, igualmente, imaginar seus reflexos como espécie de promessa unilateral de qualidade. Efetivamente, na nova concepção social de contrato, a lei deve proteger as expectativas legítimas dos consumidores criadas pela atividade do fornecedor, protegendo àqueles que confiaram na informação veiculada. É o que ocorrerá no sistema do CDC. Aqui também os limites entre a responsabilidade contratual e extracontratual oriunda da veiculação de informações através de publicidade serão tênues.{105} A eventual promessa de qualidade do produto ou do serviço, veiculada através de mensagem publicitária, se não cumprida pelo fornecedor, pode dar origem à reclamação do consumidor com base no art. 35, que menciona expressamente a recusa à: "oferta, apresentação ou publicidade".{106} * (103) Problema que tratamos anteriormente quando nos referimos à publicidade veiculada pelo fabricante e sua inclusão no contrato (tít. 1.1). (104) Assim conclui Koendgen, em sua tese de Habilitação em Tübingen, p. 298. (105) Veja excelente exposição sobre a impossibilidade de manter a rigidez de tais diferenciações no direito do consumo, em Benjamin/Comentáríos, p. 84, sobre vícios.

(106) O doutrinador italiano Di Majo, p. 114 e ss., tenta construir uma diferença entre as duas figuras baseadas na "forma de aceitação", i. é., a oferta tendendo a uma aceitação (manifestação de vontade) e a promessa tendendo a um "fazer", um atuar que conseguirá o resultado almejado e constituirá a base para o cumprimento da promessa. Parece-nos, porém, que as duas figuras aproximam-se, quanto mais na sociedade moderna, pela sua natureza de declarações de vontade, de negócios jurídicos unilaterais, sendo certo que a publicidade e a oferta publicitária almeja também um "Erfolg", (p. 329) Inicialmente, analisamos o art. 35 em seus aspectos contratuais (1.1), no caso, se a publicidade for veiculada pelo fornecedor-direto. Mas, a inclusão dos termos "apresentação" e "publicidade", ao lado do termo que já englobaria o efeito contratual da publicidade, isto é, enquanto oferta, poderia ser interpretado como criando uma obrigação legal, unilateral, e fazer, de cumprir o prometido a toda uma massa de consumidores. O art. 35 do CDC efetivamente dispõe: "o consumidor poderá, alternativamente, e à sua livre escolha: I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da ... (oferta, apresentação ou) publicidade". Uma interpretação semelhante, se aceita pela jurisprudência, possibilitaria que ações coletivas viessem a exigir o cumprimento do prometido na publicidade, resolvendo-se em perdas e danos pelo art. 84, no caso de impossibilidade prática de obter resultado. A utilização do art. 35 em ações coletivas (não necessariamente de origem contratual), visando o cumprimento da promessa feita através da publicidade, teria efeitos verdadeiramente saneadores do mercado, evitando publicidades falsas, pois o consumidor, ou sua entidade de defesa, não necessitaria recorrer a norma do art. 37, sobre publicidade enganosa, cuja sanção foi vetada pelo Presidente da República (§ 4.º do art. 37 do CDC). A informação falsa caracterizaria tanto um ato ilícito (art. 37), quanto uma promessa unilateral, uma obrigação de fazer exigível legalmente (art. 35). Resta esperar a ação da jurisprudência brasileira em optar por esta interpretação sistemática do CDC, que teria efeitos realmente saneadores. Indiscutível, porém, é o fato da publicidade poder dar origem a um vício de informação, nos termos do art. 18, que será analisado a seguir (letra c), e pode ser considerada parte da oferta, ensejando a aplicação do art. 35 e todo o Sistema para a inexecução contratual. Quanto ao princípio geral de veracidade das informações veiculadas através da publicidade, cabe destacar o que dispõem as normas do art. 38 e o parágrafo único do art. 36: "Art. 36... "Parágrafo único. O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos *como afirmam os alemães, isto é, um resultado especial, que é justamente o consumir (resultado). (p. 330) interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem. "Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina". Ambas as disposições encontram-se na seção III, dedicada à publicidade, no capítulo das práticas comerciais, e reforçam a noção

de dever de veracidade da publicidade, enquanto informação do consumidor, exista ou não vínculo contratual entre o fornecedor do produto ou do serviço e o consumidor que recebeu a informação publicitária.{107} A doutrina estrangeira destaca a responsabilidade que deve haver na mensagem publicitária sobre produtos, que podem trazer algum tipo de risco à saúde do consumidor.{108} Também a publicidade chamada "comparativa" de produtos ou serviços deve assegurar informações verídicas, se possível baseada em pesquisas executada por terceiros, isentas e corretas. A propaganda comparativa foi considerada pela jurisprudência de alguns países como prática de concorrência desleal, tratando-se de comparação de preço ou de qualidade, mas a doutrina considera a propaganda comparativa baseada em dados corretos, como positiva para o consumidor.{109} A Corte Suprema Alemã (BGH), em decisão de 1986, considerou que a publicidade comparativa só é ilícita quando tenta tirar proveito da reputação do outro produto (chamada publicidade parasitária) ou quando se refere ao produto concorrente de maneira a denegri-lo (publicidade "dénigrante").{110} A jurisprudência brasileira tem enfrentado vários casos de publicidade comparativa, onde exatamente a tentativa de denegrir o concorrente tem sido apontada como fonte do caráter abusivo, ao deturpar a * (107) Concorda com esta posição Benjamin-Forense, p. 183, para o qual há no sistema do CDC um princípio de veracidade da publicidade e de inversão do ônus da prova, em se tratando de publicidade. (108) Assim Schumacher, p. 25, comentando o § 5.º da lei austríaca de 1983 sobre práticas comerciais. (109) Assim ensinam Fontaine, 218 e Schumacher, pp. 25 e 26. (110) BGH-, 22 de maio de 1986, Pepsi-Cola v. Coca-Cola, in Revue Européenne de Droit de la Consommation, 212, 1987. (p. 331) informação ao consumidor.{111} Por fim, é necessário frisar que o princípio da transparência obriga que a publicidade seja claramente identificada como tal, como já sugeria o art. 9.º, do Código de Autoregulamentação Publicitária. Nesse sentido, positiva o CDC, no caput do art. 36: "Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal". A idéia básica do art. 36 é proteger o consumidor, assegurandolhe o direito de saber que aqueles dados e informações transmitidos não o são gratuitamente e, sim, têm uma finalidade específica que é promover a venda de um produto ou a utilização de um serviço. O princípio da identificação obrigatória da mensagem como publicitária é comum no direito comparado,{112} e tem como fim tornar consciente ao consumidor - comprador potencial - que ele é o destinatário de uma mensagem publicitária, patrocinada por um fornecedor com o intuito de promover a compra de seu produto. Este princípio serve, de um lado, para proibir a chamada publicidade subliminar, a qual atingiria somente o inconsciente do indivíduo e que, por seu grande perigoso potencial de sugestão, está proibida no mundo desde os anos setenta; de outro lado, o princípio afeta também a prática de merchandising.

Pela técnica do merchandising, hoje comum em novelas de televisão, nos filmes e mesmo nas peças teatrais, um produto aparece na tela e é utilizado ou consumido pelos atores em meio a ação teatral, de forma a sugerir ao consumidor uma identificação do produto com aquele personagem, história, classe social ou determinada conduta social. O aparecimento do produto não é gratuito, nem fortuito, ao contrário existe um vínculo contratual entre o fornecedor e o responsável pelo evento cultural, sendo que o fornecedor oferece uma contraprestação pelo espaço de divulgação para o seu produto. Parece-nos que a norma do art. 36 do CDC não deve ser interpretada de forma a proibir a utilização do merchandising no Brasil. * (111) Veja o caso do "Banho Quente Jacto", que denominava o outro chuveirO de "pinga-pinga", in TJRS, Ap. Civ. 59105160, j. 22.8.91, e também o caso das desentupidoras, TJRS, Ap. Civ. 591048079. (112) Veja Schumacher, p. 24. (p. 332) A solução estaria, como sugeriu Antônio Herman Benjamin,{113} em esclarecer o consumidor-espectador, no início do espetáculo, nos créditos de apresentação do filme ou da novela que os produtos não aparecerão por simples acaso, mas que se trata de uma forma de mensagem publicitária, se possível até citando as marcas dos produtos, o que seria uma "dupla publicidade". c) Sanção: As regras sobre o vício do produto - Para assegurar o cumprimento do novo dever de informação sobre as qualidades e características do produto, o sistema do CDC inclui a falta ou falha na informação como vício do produto ou serviço, dispondo no art. 18: "Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de..., assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, da rotulagem ou mensagem publicitária..." Regra semelhante, quanto aos serviços, está presente no art. 20 do CDC, que inova o sistema brasileiro, ao introduzir uma noção de vício do serviço semelhante àquela do vício da coisa, ou vício redibitório, segundo a definição do art. 1.101 do Código Civil de 1917. Quanto ao novo regime legal dos vícios segundo o CDC, algumas observações são necessárias. O Código disciplina nos arts. 18 e ss. os chamados vícios por inadequação,{114} os antigos vícios redibitórios do Código Civil, que agora ganham nova amplitude e redobrada importância para assegurar o cumprimento das regras de proteção ao Consumidor. Os vícios por inadequação exigem a existência de um vínculo contratual original entre o consumidor e o seu fornecedor-direto,{115} portanto, intecxram a proteção contratual do consumidor, interessando ao nosso estudo, mesmo que o art. 18 imponha uma responsabilidade Solidária para todos os fornecedores da cadeia de produção. * (113) Este autor manifestou dúvidas sobre a compatibilização do merchandising com o sistema do CDC, mas sugeriu como solução possível a "veiculação antecipada de uma informação comunicando que naquele programa ocorrerá um merchandising", veja Benjamin, Forense, pp. 182 e 183. (114) A expressão é de Benjamin/comentários, p. 84. (115) Assim concorda também Benjamin/Comentários, p. 83. (p. 333)

O regime legal dos vícios por inadequação concentra-se na relação econômica equilibrada entre o objeto do contrato e a contraprestação feita pelo consumidor. Nesse sentido, assegura o art. 18 que o consumidor terá direito, alternativamente, ao conserto do bem, à substituição do produto, ao abatimento do preço, ou mesmo à rescisão do contrato, com restituição da quantia paga.{116} Mister, portanto, diferenciar a disciplina do vício por inadequação do novo regime da responsabilidade civil pelo fato do produto ou serviço, que está regulado nos arts. 12 e ss. do CDC e pode ser chamado de regime dos vícios por insegurança. Este último é um regime extracontratual com fundamento na responsabilidade objetiva, visando reparar aos danos extracontratuais ou à saúde sofridos pelo consumidor, enquanto nos vícios por inadequação a responsabilidade, no que se refere a reparação,{117} concentra-se no objeto da relação contratual (produto ou serviço). Quanto ao vício de informação, inclui este tanto as informações fornecidas pela embalagem quanto as veiculadas em mensagem publicitária. Presume-se que o consumidor exigirá, na maioria dos casos, a rescisão contratual, pois a informação falha levou-o a adquirir um produto sem as qualidades ou características que necessitava ou desejava, mas não é impossível que prefira o abatimento do preço, ou a troca por um produto com embalagem já adaptada às normas do CDC. Quanto à falha na informação sobre produtos perigosos ou nocivos, pode ela ensejar a combinação dos dois regimes de responsabilidade. O consumidor pode exigir qualquer das hipóteses do art. 18, em relação ao produto adquirido, e, caso tenha sofrido alguma espécie de dano (mesmo moral) em virtude do defeito de informação, poderá pedir o ressarcimento com base no regime extracontratual do art. 12 e seg. do CDC. Por fim, cabe mencionar que, se o novo regime dos vícios por inadequação pode ser considerado um meio eficaz de pressão, ou como * (116) Trataremos do novo regime legal dos vícios por inadequação mais detalhadamente no Capítulo IV, títulos 2.1 e 2.2. (117) Quanto à origem da responsabilidade por vício de inadequação pode ser ela procurada no dever de qualidade, segundo a Teoria da Qualidade, exposta por Benjamin/Comentários, pp. 82 e 84; é o princípio da proteção da confiança (das expectativas legítimas) do consumidor, que analisaremos no Capítulo IV, 2.1. (p. 334) denominamos aqui "sanção", para evitar o descumprimento do dever legal de informar ao consumidor sobre as características dos produtos, é ele complementado pelas normas dos artigos 24 e 25, referente a obrigatória garantia legal da adequação do produto e do serviço. 1.3 Dever de oportunizar a informação sobre o conteúdo do contrato (art. 46) O CDC é claro ao dispor: "Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo..." Artigo de nítida inspiração no Código Civil Italiano de 1942, o

art. 46 introduz no Brasil o dever de informar sobre o conteúdo do contrato a ser assinado. A melhor expressão é "dever de oportunizar" o conhecimento sobre o conteúdo do contrato, mas, por uma questão sistemática, chamaremos aqui também de dever de informar, o que em última análise não deixa de ser o dever instituído pelo art. 46. O art. 46 do CDC surpreende pelo alcance de sua disposição, Assim, se o fornecedor descumprir este seu novo dever de "dar oportunidade" ao consumidor "de tomar conhecimento" do conteúdo do contrato, sua sanção será ver desconsiderada a manifestação de vontade do consumidor, a aceitação, mesmo que o contrato já esteja assinado e o consenso formalizado. Em outras palavras, o contrato não tem seu efeito mínimo, seu efeito principal e nuclear que é obrigar, vincular as partes. Se não vincula, não há contrato, o contrato de consumo como que não existe, é mais do que ineficaz, é como que inexistente, por força do art. 46, enquanto a oferta, por força do art. 30, continua a obrigar o fornecedor! Mais uma vez o CDC tem forte finalidade educativa, pois a ratio do art. 46 é evitar que o consumidor, vítima de práticas de vendas agressivas, seja levado a não tomar ciência das obrigações que está assumindo através daquele contrato. É o caso do consumidor que assina proposta de plano de saúde, de contrato de seguro, sob as promessas do vendedor, que receberá após, em casa pelo Correio, o texto do Contrato, ou o carnet de pagamento com o valor da prestação atual. É O caso do consumidor que estaciona o carro em garagem, ou que deixa roupas na lavanderia e quando retorna e paga o serviço, recebe no verso (p. 335) do recibo, a lista de cláusulas que regulava a relação contratual, incluindo uma de não responsabilização pelos eventuais danos aos seus bens. Podemos pensar se o art. 46, a desconstituição do contrato, não é uma arma forte demais. No primeiro caso relatado, o art. 46 permite ao consumidor, quando toma conhecimento do conteúdo do contrato, mesmo após ter a ele se vinculado por meio de assinatura anterior, livrar-se do vínculo, procurando outro fornecedor para contratar que ofereça melhores condições contratuais. No segundo grupo de casos, o vínculo contratual representa, ao contrário, a segurança do consumidor, e a melhor solução para ele é considerar não incluída a lista de cláusulas em seu contrato específico ou anular as cláusulas unilaterais e abusivas (arts. 30 e 51 do CDC). a) Amplitude do dever de informar do art. 46, 1.º - O art. 46 terá maior utilização nos chamados contratos de massa, onde a manifestação de vontade do consumidor na maioria das vezes se dá sem que este tenha conhecimento exato das obrigações contratuais que está assumindo. Nesse sentido a norma brasileira pode ter se inspirado no art. 1.341 do Código Civil Italiano, o qual prevê a ineficácia das cláusulas contratuais gerais, se o consumidor não foi informado de seu conteúdo no momento da conclusão do contrato. Este dever de informar, de modo a conseguir a inclusão válida das normas no contrato, pode ter inspirado o legislador brasileiro. Em caso de cláusulas limitativas dos direitos do consumidor ou de qualquer maneira prejudiciais a ele, o art. 1.341 do Códice Civile prevê a necessidade do consumidor assinar ao lado de cada cláusula, para provar que tomou ciência da obrigação que está

assumindo. Segundo doutrinadores italianos, a norma do art. 1.341 não trouxe muitas benesses para o consumidor, em virtude da dificuldade de prova e do fato do consumidor assinar as cláusulas sem lê-las efetivamente, mas tornando-as através de sua assinatura, na prática, imutáveis. No Brasil, esta crítica fica esvaziada, pois, no sistema do CDC, estas cláusulas limitativas poderiam ser declaradas nulas pelo art. 51, se abusivas e, portanto, não onerariam o consumidor. A comparação, porém, deixa clara uma das falhas do sistema do CDC, que é a falta de previsão normativa sobre as maneiras e os requisitos para a inclusão das condições gerais dos contratos, ou (p. 336) cláusulas Contratuais gerais nos contratos de consumo. A lei alemã de 1976, preocupou-se especialmente com o tema, no seu § 2.º, muito usado pela jurisprudência.{118} Com o veto presidencial ao controle preventivo das condições gerais dos contratos previsto inicialmente no § 3.º do art. 51 do CDC, ficamos apenas com a norma do art. 30, comentada anteriormente, que incluirá na oferta estas listas de cláusulas. O fornecedor fica, porém, pelo art. 46 obrigado a assegurar que o consumidor possa ter conhecimento do conteúdo das condições gerais antes de assinar o contrato, ou porque encontram-se afixadas em lugar visível no estabelecimento comercial, ou porque integram o texto do contrato colocado à disposição do consumidor para ler. Ressalte-se, por fim, que o intuito do art. 46 é trazer maior transparência às relações contratuais de consumo na sua fase précontratual, impor maior lealdade e boa-fé nas práticas comerciais, mas não pode ser interpretado como obrigando o consumidor a ler o contrato. Certo é que o fornecedor, para evitar o jugo do art. 46, pode até oralmente destacar para o consumidor quais são as principais obrigações que ele está assumindo, pode colocar cartazes em sua garagem seu banco, nas máquinas que serão usadas pelo consumidor, contendo as cláusulas contratuais gerais ou algumas obrigações especiais. Todas estas práticas são válidas, pois aumentam a transparência e o bom relacionamento entre consumidor e fornecedor, são positivas, pois dão efetivamente oportunidade ao consumidor para conhecer parte do conteúdo do contrato. O art. 46, em sua primeira parte, dispõe apenas sobre uma possibilidade ou oportunidade de darse ciência do conteúdo do contrato ao consumidor, a isso fica obrigado o fornecedor; caberá ao consumidor a decisão de efetivamente ler ou não, de tomar ciência ou não do texto do contrato. Certo é que a insegurança causada pela existência de uma regra como a do art. 46, primeira parte, modificará as práticas comerciais dos fornecedores, nestas negociações preliminares com os consumidores brasileiros, de nível cultural e econômico tão diferenciado. b) Sanção - A sanção instituída pelo art. 46 do CDC para o descumprimento deste novo dever de informar, de oportunizar o conhecimento do conteúdo do contrato, encontra-se na própria norma * (118) Veja sobre o tema a exposição no capítulo 1 sobre nova realidade contratualcondições gerais dos contratos 2.3. (p. 337) do art. 46 o fato de tais contratos não obrigarem o consumidor. "Contratos" não-obrigatórios não existem, logo é a inexistência do vínculo contratual, como o entendemos.

Pelas próprias características da sanção do art. 46 podemos concluir que será necessária a intervenção do Poder Judiciário, mesmo que por meio do Juizado de Pequenas Causas, para tornar clara a inexistência do vínculo contratual e, portanto, das obrigações que dele resultariam. Para concluir, cabe mencionar que a sanção mais grave instituída pelo art. 46 é a insegurança que trouxe aos fornecedores, pois agora mesmo estando o contrato formalizado e, em princípio, juridicamente perfeito, pode vir a ser declarado inexistente em face de um defeito de informação na fase pré-contratual! Este art. 46 tem sido amplamente usado pela jurisprudência brasileira, mesmo no Juizado Especial de Pequenas Causas.{119} Em outras palavras, a possibilidade de conhecimento prévio do texto do contrato e das obrigações nele contidas, em português, é considerada condição essencial para a formação de uma vontade realmente livre, consciente, "racional", única legitimadora do reconhecimento jurídico do vínculo aceito pelo consumidor.{120} O objetivo da norma do CDC é o de assegurar ao consumidor uma decisão fundada no conhecimento de todos os elementos do contrato, em particular do preço, das taxas extras, das condições e as garantias exigidas, das cláusulas limitativas e penais inseridas, dos verdadeiros direitos assegurados * (119) Veja por todas a decisão da 1.ª Turma Recursal dos Juizados/RS: "Timesharing. Tempo compartilhado. Nulidade das cláusulas abusivas. Valor da causa e competência dos juizados/JEC: 1. O valor da causa, nesse tipo de pedido, corresponde ao bem da vida reivindicado - no caso o valor das prestações pagas e objeto do pedido de restituição. 2. Nulidade das cláusulas que colocam o consumidor em desvantagem exagerada (CDC 51, IV); possibilidade de denúncia do contrato a qualquer tempo em razão do vício de manifestação da vontade, captada em circunstâncias em que o descortino crítico estava prejudicado pela atmosfera criada pela vendedora (CDC,46). Recurso desprovido" (Recurso 01196885485, Proc. 01196611964 de Porto Alegre, Rel. Juiz de Direito Wilson Carlos Rodycz). (120) Com razão critica Amaral Jr. a expressão "obrigação" contida no art. 46 do CDC, que seria melhor substituída pela expressão vínculo, Amaral Jr., p. 251. (p. 338) pelo contrato.{121} É nesta ótica que o art. 46 do CDC prevê a possibilidade de requerer ao juiz, em detrimento do fornecedor, a liberação do consumidor do vínculo contratual, isto é, a inoperabilidade do contrato ao consumidor in concreto por falha dos deveres de informação impostos ao fornecedor. 1.4 Dever de redação clara dos contratos O art. 46 do CDC, em sua segunda parte, dispõe: "Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance". Na norma do art. 46, 2.º, estipula o CDC um novo dever específico do fornecedor, que, na sociedade de massa, é normalmente o elaborador dos contratos oferecidos no mercado. A finalidade da norma é assegurar a informação ao consumidor, ou, como estamos querendo frisar, a

transparência necessária nas relações de consumo.{122} Tenta, desta maneira, evitar que o fornecedor utilize a sua superioridade econômica e mesmo técnica{123} (Departamentos Jurídicos ou Consultorias especializadas) para confundir o consumidor e impor a ele obrigações que se tivesse compreendido o sentido do texto, não teria assumido. Este dever de relação clara será ainda maior se o fornecedor desejar utilizar-se de métodos de contratação de massa, como esclarece o art. 54, § 3º do CDC. a) Redação clara e precisa (art. 46) - A grande maioria dos contratos hoje firmados no Brasil são redigidos unilateralmente pela * (121) Veja neste sentido decisão comentada por Nunes, p. 82, apud JACSP, Lex 70:150, cuja ementa é a seguinte: "Direito do consumidor. Compra e venda de linha telefônica. Comprador surpreendido com preço final, depois de pagar o sinal e firmar a promessa de cessão. Pretensão à restituição do sinal pago. Contrato. Equívoco quanto ao preço e condições de financiamento. Incidência do CDC, Lei 8.078, de 1990, arts. 46 e 47. Contrato que não obrigou. Oportunamente desfeito por notificação extrajudicial. Ação procedente. Decisão mantida" (j. 26.7.94, Des. Lobo Júnior). (122) Conclusão semelhante está presente em Pasqualotto, p. 54 que prefere referir-se ao tradicional princípio da boa-fé. (123) Assim concorda Roppo, p. 316. (p. 339) parte economicamente mais forte, seja um contrato aqui chamado de paritário ou um contrato de adesão. Segundo instituiu o CDC, em seu art. 46, in fine, este fornecedor tem um dever especial quando da elaboração desses contratos, podendo vir a ser punido se descumprir este dever tentando tirar vantagem da vulnerabilidade do consumidor. Efetivamente, segundo dispõe o art. 46, os contratos não obrigarão os consumidores "se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance". Este artigo encontra-se na seção de Disposições Gerais do capítulo referente à proteção contratual, logo refere-se tanto aos contratos de adesão e àqueles submetidos a condições gerais dos contratos quanto aos contratos paritários. O importante na interpretação da norma é identificar como será apreciada "a dificuldade de compreensão" do instrumento contratual. É notório que a terminologia jurídica apresenta dificuldades específicas para os não-profissionais do ramo, de outro lado, a utilização de termos atécnicos pode trazer ambigüidades e incertezas ao contrato. Possivelmente, os tribunais brasileiros interpretarão a norma em função do nível de conhecimento jurídico do consumidor médio, isto é, do homem atento, mas sem formação jurídica específica. O art. 46, 2.º, do CDC indica através da utilização das expressões "sentido e alcance do contrato" o ponto mais sensível da futura análise da transparência do instrumento contratual, isto é, a compreensão pelo consumidor das obrigações que está assumindo, especialmente quanto ao valor do pagamento, ao número de prestações, à espécie de correção

e acréscimo possível da dívida, ao tempo de duração do vínculo contratual e o envolvimento em futuras contratações. Uma interpretação sistemática da norma também chegaria a idêntica conclusão, utilizando as normas do art. 51 e do art. 52 para verificar que pontos do contrato foram considerados relevantes na proteção do consumidor. b) Cuidados na utilização de contratos de adesão - Os contratos de consumo que utilizam-se de métodos de contratação em massa sempre despertaram o especial interesse da doutrina e da jurisprudência brasileira. O sistema do CDC destaca uma seção especial para a disciplina dos contratos de adesão. O art. 54 do CDC define contrato de adesão como aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo, sendo (p. 140) que, pelo § 1.º da norma, a inserção de cláusula individual no formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato. Os fornecedores que os utilizarem deverão cuidar para que os contratos sejam redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis de modo a facilitar a sua compreensão pelo consumidor (art. 54, § 3.º), sob pena de ser aplicado o art. 46, não obrigando o consumidor o contrato firmado. Seguindo o modelo do Código Civil Italiano de 1942 (art. 1.341), o § 4.º do art. 54 do CDC prevê que as cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão. Note-se que o mestre italiano Alpa{124} considera esta uma norma inócua, pois, se a cláusula é ineqüitativa ou abusiva, mesmo estando em destaque, com o método da adesão (take it or leave it), ela será aceita de qualquer maneira. E uma vez cumprido o dever de destacála, para a jurisprudência italiana ela se tornava, na prática, "intocável". Mas no sistema do CDC este dever de destaque não exime o fornecedor do controle judicial do conteúdo do contrato. Cabe destacar, por fim, que no sistema original do CDC as cláusulas contratuais gerais, ou condições gerais dos contratos, encontravam-se regidas na seção das cláusulas abusivas, no art. 51, § 3º vetado pelo Presidente da República. A noção de contrato de adesão, do art. 54, é exclusiva dos contratos escritos, contratos concluídos através de "formulários-padrão", como informava o também, vetado § 5.º do art. 54. Com os vetos, e tendo em vista a falta de previsão legislativa expressa, parece-nos que seria conveniente incluir as condições gerais dos contratos, que forem impressas em recibos, propostas ou prospectos, como sujeitas ao regime dos contratos de adesão, como pretendia o vetado § 5.º do art. 54. Quanto às cláusulas gerais afixadas em cartazes nos estabelecimentos comerciais ou transmitidas oralmente, ficaram submetidas às regras gerais da seção I e II (arts. 46 a 53). c) Sanção - A sanção para o descumprimento por parte do fornecedor de seu novo dever de redação clara dos contratos de consumo encontra-se, igualmente, na norma do art. 46. Esta norma prevê a desconsideração do vínculo contratual que teria nascido em

virtude deste contrato "mal" redigido. O art. 46 dispõe que os contratos * (124) Alpa/Diritto, p. 186. (p. 141) não obrigarão o consumidor, seja eles de adesão, contratos paritários ou contratos utilizando condições gerais dos contratos, "se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance". Em última análise, a sanção tem sua origem na presunção de má-fé do fornecedor-elaborador do contrato. Quanto à aplicação da sanção do art. 46, 2.º também aos contratos discutidos cláusula a cláusula, aqui chamados de contratos paritários, será esta certamente polêmica, pois trata-se de hipótese que revolta os espíritos mais acostumados com o dogma da autonomia da vontade. A solução está na exigência da manifestação do Judiciário para declarar se o contrato juridicamente existe ou não, obriga ou não o consumidor. Imaginemos o caso de um advogado, dono de vários imóveis e que os aluga, através de contratos individuais com cada inquilino, mas que inclui no contrato várias remissões e artigos de leis e medidas provisórias, que lhe são favoráveis, pois, como ninguém pode desconhecer a lei, mesmo a lei supletiva, está certo que alcançará seu intento. Os inquilinos assinam os contratos paritários, mas nenhum consumidor médio, nem os inquilinos, conseguiria entender que obrigações estava assumindo, qual o alcance do contrato que assinava. Mais uma vez, a sanção é a insegurança criada pela existência da norma do art. 46, que possibilita ao consumidor livrar-se de um contrato perfeitamente formalizado, assinado e eficaz, por uma falha de transparência (no caso boa-fé) quando da sua formação. 2. Princípio básico de boa-fé O caput do art. 4.º do CDC menciona além da transparência, a necessária harmonia das relações de consumo. Esta harmonia será buscada através da exigência de boa-fé nas relações entre consumidor e fornecedor. Segundo dispõe o art. 4.º do CDC, inciso terceiro, todo o esforço do Estado ao regular os contratos de consumo deve ser no sentido de harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal) sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. Poderíamos afirmar genericamente que a boa-fé é o princípio máximo orientador do CDC; neste trabalho, porém, estamos desta- (p. 342) cando igualmente o princípio da transparência (art. 4.º, caput), o qual não deixa de ser um reflexo da boa-fé exigida aos agentes contratuais.{125} Como o CDC preocupa-se tanto com os aspectos pré-contratuais, como os de formação e execução dos contratos de consumo, destacaremos os reflexos do princípio básico da boa-fé, tanto agora, como no capítulo reservado à execução do contrato. Destacaremos, agora, dois aspectos pré-contratuais: a publicidade e as práticas comerciais abusivas. Ambos estão tratados no CDC no capítulo referente às práticas comerciais, que podem ou não dar origem a um contrato e logo não estão incluídas na proteção contratual stricto

sensu. Ao contrário, o terceiro reflexo do princípio de boa-fé, a ser destacado aqui, é um aspecto contratual, qual seja o direito de arrependimento instituído pelo art. 49 para os contratos fechados fora do estabelecimento comercial. O art. 49 insere-se no capítulo do CDC referente à proteção contratual stricto sensu, mas por estar ligado estritamente ao processo de formação do contrato, através de manifestação de vontade do consumidor, deve ser examinado neste capítulo dedicado ao novo regime legal quando da formação dos contratos de consumo. 2.1 Publicidade abusiva e enganosa Os arts. 36 a 38 do CDC constituem umas das inovações mais comentadas da lei de proteção ao consumidor. O interesse despertado explica-se, pois, até então, o direito brasileiro regulava a publicidade comercial{126} somente em seus efeitos como forma de concorrência desleal ou como criação autoral.{127} * (125) Sobre o princípio da boa-fé como orientador de toda a atividade dos parceiros de uma obrigação, veja a obra do mestre de Porto Alegre, Couto e Silva, Obrigação como Processo. (126) As diretrizes da publicidade eram dadas pela Lei n. 4.680, de 18 de junho de 1965, que oficializou o Código de Ética dos Profissionais de Propaganda, pelo Decreto n. 57.690, de 1.º de fevereiro de 1966 e no art. 220 da Constituição Federal, sendo que algumas leis esparsas também continham normas sobre publicidade, como por ex., a Lei da Economia Popular. (127) O direito penal preocupava-se com a publicidade, de forma a resguardar a imagem da pessoa e a evitar a concorrência desleal; veja detalhes em Bittar, Direitos, p. 90 e Benjamin, Forense, p. 179. (p. 343) Com a entrada em vigor do CDC vários aspectos da publicidade comercial passaram a ser juridicamente importantes. Examinamos anteriormente, nos pontos 1.1 e 1.2, o efeito vinculativo{128} que a publicidade passa a ter, seja contratualmente, como oferta (art. 30), seja como informação obrigatoriamente clara e correta, a responsabilizar quem a veicula (art. 35) e a responsabilizar solidariamente toda a cadeia de fornecedores (art. 18). Esses efeitos vinculativos têm como fim assegurar uma maior transparência nas relações de consumo, pois hoje ninguém duvida da forte influência que a publicidade exerce sobre a população brasileira. No sistema do CDC, porém, a transparência, a informação correta, está diretamente ligada à lealdade, ao respeito no tratamento entre parceiros. É a exigência de boa-fé quando da aproximação (mesmo que extra ou pré-contratual) entre fornecedor e consumidor. Nesse sentido disciplina o CDC, em seus arts. 36 a 38, a informação publicitária para obrigar o fornecedor que dela se utilizar a respeitar os princípios básicos de transparência e boa-fé nas relações de consumo.{129} O CDC prevê ainda efeitos e sanções administrativas e penais correlacionadas à publicidade: sobre estas últimas não teceremos comentários, tendo em vista o caráter civilista que pretendemos impor a este estudo.

a) Conceito de publicidade - Em virtude dos novos efeitos jurídicos reconhecidos pelo CDC à publicidade é necessário determinar o que se deve entender por "publicidade" segundo o sistema do CDC. O Código Brasileiro de Auto-regulamentação Publicitária, define a publicidade comercial como "toda atividade destinada a estimular o consumo de bens e serviços, bem como promover, instituições, conceitos ou idéias", incluindo nessa definição a publicidade governamental e o merchandising. * (128) Benjamin, Forense, p. 150, considera a existência no CDC de um "Princípio da Vinculação da Publicidade"; destaca igualmente como princípios da publicidade no regime do CDC, o da "veracidade", da "não abusividade", da "inversão do ônus da prova" e da "transparência da fundamentação da publicidade", veja detalhes pp. 182 a 184. (129) Segundo dispõe o art. 6.º, inciso VI do CDC, é direito básico do consumidor "a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva"; em direito comparado veja as experiências normativas do Conselho da Europa (1972) e da Comunidade Econômica Européia (1978) relatadas por Stiglitz, p. 15. (p. 144) Preferimos, porém, entender como publicidade, no sistema do CDC, toda a informação ou comunicação difundida com o fim direto ou indireto de promover junto aos consumidores a aquisição de um produto ou a utilização de um serviço, qualquer que seja o local ou meio de comunicação utilizado.{130} Logo fica excluída a propaganda política, já regulada em lei eleitoral, e também a chamada publicidade governamental, que não tenha como fim promover atos de consumo, separando assim claramente o que é propaganda (difusão de idéias) e o que é publicidade (promoção, incitação ao consumo). Este parece ter sido o caminho adotado pelo CDC;{131} sendo assim, o elemento caracterizador da publicidade é a sua finalidade consumista.{132} Como relembram os autores, o vocábulo publicidade deriva do latim publicus, tornar público, publicar de forma geral, vulgarizar, divulgar, e teria sua utilização com o atual aspecto comercial generalizada no início do século XIX, também como forma de distinção para então existente propaganda nazi-facista, política ou governamental.{133} Captando a atenção do público consumidor, informando ou persuadindo, divulgando, promovendo o produto ou serviço e estimulando ao consumo, certo é que a publicidade tem clara feição e finalidade comercial: é ato negocial de um profissional consciente no mercado de consumo massificado.{134} O princípio da identificação obrigatória da mensagem como publicitária, instituído no art. 36, antes mencionado (1.2) tem sua origem justamente no pensamento de que é necessário tornar o consumidor consciente de que ele é o destinatário de uma mensagem patrocinada por um fornecedor, no intuito de vender-lhe algum produto ou serviço. Este princípio serve de um lado para proibir a chamada * (130) A definição foi inspirada naquela da lei belga, de 14 de julho de 1971 sobre práticas comerciais, art. 19, e no art. 37 do CDC; sobre a lei belga, veja Fontaine, p. 15.

(131) Assim ensina Benjamin, Forense, p. 173, em estudo detalhado sobre o tema da publicidade. (132) Para Almeida, Publicidade, p. 133, a publicidade tem como fim promover uma "atividade econômica"; já para Benjamin, Forense, p. 171, "a publicidade tem um objetivo comercial". (133) Assim Chaise, p. 17 citando Sant’ana e Furlan. (134) Concordam Benjamin, Anteprojeto, p. 30, Villaça Lopes, p. 151, Pasqualotto, p. 19 e Chaise, p. 18. (p. 345) publicidade subliminar, que no sistema do CDC seria considerada pratica de ato ilícito, civil e mesmo penal. Antes de passar para a análise da publicidade como ilícito, gostaria de frisar que observando estes sete anos de prática com o CDC, efetivamente, o Código de Defesa do Consumidor trouxe mudanças significativas no relacionamento empresa/consumidor, anunciante/consumidor em potencial e empresa/anunciante. Os princípios que regem o CDC no que se refere à vinculação através da oferta publicitária, à proibição da publicidade enganosa e abusiva transformaram o mercado.{135} Podemos hoje afirmar que os princípios da boa-fé, transparência e proteção da confiança despertada dominam o regime da publicidade no Brasil. As novas exigências deste paradigma objetivo de boa-fé, deste pensar refletido no outro que recebe a informação, neste cujos desejos e impulsos de consumo são despertados, teve conseqüências importantes também no relacionamento entre empresas (fornecedores diretos) e anunciantes, que viram aumentada sua responsabilidade de bem orientar e servir seus clientes, como já previa o Código Brasileiro de Auto-regulamentação Publicitária. O próprio Código de Auto-regulamentação Publicitária reconhece que "a publicidade exerce forte influência de ordem cultural sobre grandes massas da população" (art. 7.º) e deve ser preparado com o devido senso de responsabilidade social (art. 2.º). Constate-se também que foi em matéria de publicidade enganosa e abusiva que a definição de consumidor equiparado do art. 29 e do parágrafo único do art. 2.º do CDC parece ter calado mais fundo na jurisprudência brasileira. Em um país de tantas diferenças sociais, econômicas e culturais, a jurisprudência brasileira foi exemplar ao estabelecer que a publicidade abusiva e enganosa atinge a todos, mesmo aqueles excluídos do consumo, àqueles aos quais a publicidade não se dirige, pois não possuem as condições para consumir, mas que através das televisões, placares e outdoors deste imenso país são atingidos, expostos a estas práticas comerciais abusivas.{136} Em uma belíssima visão de plenitude * (135) Veja a obra de Pasqualotto, sobre os efeitos obrigacionais da publicidade no Código de Defesa do Consumidor, em especial sobre a definição de publicidade, pg. 19 e ss. (136) Veja liminar concedida no caso Benetton/aids (SP, j. 8.7.92, rel. Lineu Bonora Peinado), in Revista de Direito do Consumidor, v. 4, p. 261, e decisão no caso Nestlè (RS, Proc. 01191756947, j. 22.2.92, rel. Wilson

Carlos Rodycz), in Revista de Direito do Consumidor, v. 1, p. 222. (p. 346) do consumidor equiparado como sujeito de direitos (em potencial), como pessoa, mais do que como homo economicus ou ser razoável, estabeleceu uma visão de consumidor digno.{137} b) Publicidade como ilícito civil - A publicidade enganosa - A publicidade é um meio lícito de promover, de estimular o consumo de bens e serviços, mas deve pautar-se pelos princípios básicos que guiam as relações entre fornecedores e consumidores, especialmente o da boafé. As relações de consumo, mesmo em suas fases pré-contratual ou como preferem alguns, extracontratual, devem guiar-se pela lealdade e pelo respeito entre fornecedor e consumidor. Nesse sentido, o Código proíbe a publicidade enganosa dispondo em seu art. 37, caput e § 1.º: "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa... "§ 1.º. É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedade, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. "§ 3º. Para os efeitos deste Código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço". A característica principal da publicidade enganosa, segundo o CDC, é ser suscetível de induzir ao erro o consumidor,{138} mesmo através de suas "omissões". A interpretação dessa norma deve ser necessariamente ampla, uma vez que o "erro" é a falsa noção da realidade, falsa noção esta potencial formada na mente do consumidor por ação da publicidade.{139} Parâmetro para determinar se a publicidade * (137) Assim manifesta-se também Jayme, em seu artigo sobre o direito comparado pós-moderno, in Rivista di Diritto Civile, p. 823. (138) Nesse sentido também a lei francesa de 1973 (Loi Royer), em seu art. 14, define a publicidade de maneira muito semelhante à nossa; veja CalaisAuloy, p. 104; e a lei austríaca sobre concorrência desleal, § 2.º; veja Schumacher, p. 24. (139) Assim concorda Schumacher, p. 24, comentando a jurisprudência austríaca e excelente Benjamin, Forense, p. 197. (p. 347) é ou não enganosa deveria ser o observador menos atento, pois este representa uma parte não negligenciável dos consumidores e, principalmente, telespectadores.{140} Aquele fornecedor, que fizer veicular uma publicidade enganosa, estará a descumprir a proibição legal do art. 37; logo, juridicamente, estará cometendo um ato ilícito,{141} pois o dano em caso de publicidade é difuso, mas facilmente presumível.{142} Note-se que o art. 37 do CDC não se preocupa com a vontade daquele que fez veicular a mensagem publicitária. Não perquire da sua culpa ou dolo, proíbe apenas o resultado: que a publicidade induza o consumidor a formar esta falsa noção da realidade.{143} Basta que a informação publicitária, por ser falsa, inteira ou parcialmente, ou por

omitir dados importantes, leve o consumidor ao erro, para ser caracterizada como publicidade proibida, publicidade enganosa. Os efeitos civis desta publicidade, isto é, a sua caracterização como ato ilícito do fornecedor é que poderá fazer nascer a discussão sobre a culpa (ou dolo) deste. Mesmo assim, é necessário ter em vista que o CDC institui uma presunção de culpa do fornecedor, por ter feito veicular uma publicidade enganosa. Estava ele proibido de fazer uma publicidade enganosa, e o fez. Logo, só se exonerará se provar o caso fortuito , isto é, que uma situação externa à sua vontade, aos seus auxiliares (agência, publicitário contratado etc.), imprevisível e irresistível, tornou a publicidade enganosa. Trata-se, portanto, de uma presunção quase absoluta de culpa, que inverte o ônus da prova, como bem dispõe o art. 38 do * (140) Assim conclui também Schumacher, p. 24, comentando a jurisprudência alemã e austríaca. (141) Segundo Stiglitz, p. 15, a falsa informação através de anúncio publicitário transgride ao princípio neminem laedere. (142) Interessante observar que este ilícito civil tem sido utilizado também como causa para rescisão de um eventual contrato baseado em publicidade enganosa e no art. 30 do CDC, veja decisão do TJSP, cuja ementa é a seguinte: "Contrato de adesão. Plano de saúde. Rescisão. Propaganda enganosa. Aproveitamento de períodos de carência de outros planos. Recusa no cumprimento do avençado. Indução em erro dos contratantes. Rescisão do contrato. Ação procedente", in JTJSP 156/41. (143) Opinião contrária parece ser a de Ulhoa Coelho, p. 161, que considera, para caracterizar a publicidade enganosa, necessário o "dolo intencionalmente voltado a despertar um erro no espírito do consumidor", sem explicitar se refere ao dolo (defeito da vontade) ou dolo (grau de culpa). (p. 348) CDC. Efetivamente, o ônus de provar que a publicidade não é enganosa, que as informações estão corretas (ou que houve caso fortuito) cabe àquele que patrocinou a mensagem publicitária suspeita de ter induzido em erro os consumidores. O assunto realmente é fascinante, e esperamos que em breve monografias específicas estudem os reflexos civis que a publicidade passa a conhecer no direito brasileiro. c) Publicidade como ilícito civil - A publicidade abusiva Mencionamos anteriormente que a publicidade conhecia, nas sociedades de massa, duas funções: informar os consumidores e estimular o consumo. São funções econômicas e que podem causar danos patrimoniais ao consumidor. Mas e os danos morais causados pela publicidade? É inegável seu poder condicionante do comportamento dos consumidores. O próprio art. 7.º do Código de Auto-regulamentação Publicitária reconhecia que "a publicidade exerce forte influência de ordem cultural sobre grandes massas da população" e completava, sugerindo, em seu art. 2.º, que: "todo anúncio deve ser preparado com o devido senso de responsabilidade social, evitando acentuar, de forma depreciativa, diferenciações sociais decorrentes do maior ou menor poder aquisitivo dos grupos a que se destina ou que possa eventualmente atingir". O art. 20 do Código de Auto-regulamentação Publicitária esclarece que

"nenhum anúncio deve favorecer ou estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação racial, social, política, religiosa ou de nacionalidade". Se o CDC pretendia disciplinar a publicidade de forma a coibir futuros danos aos consumidores brasileiros, não poderia restringir a sua tutela, protegendo, como ensina Benjamin,{144} a incolumidade econômica do consumidor e deixando de proteger a sua incolumidade física e moral. Portanto, optou o CDC por proibir também a chamada publicidade abusiva, pois ofensiva aos parâmetros obrigatórios de boa-fé e de respeito que devem guiar as relações de consumo. Dispõe o art. 37 do CDC: "Art. 37. É proibida toda publicidade... abusiva. "§ 2.º. É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a * (144) Veja Benjamin/Comentários, pp. 27 e ss. (p. 349) superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança". A publicidade abusiva é, em resumo, a publicidade antiética,{145} que fere a vulnerabilidade do consumidor, que fere valores sociais básicos, que fere a própria sociedade como um todo.{146} A defesa do consumidor contra a publicidade abusiva será, portanto, também coletiva. O Ministério Público Estadual e Federal e as Associações de Defesa{147} dos Consumidores estão fazendo uso constante de ações civis públicas para evitar este tipo de publicidade no mercado brasileiro.{148} O § 2.º do art. 37 menciona a influência da publicidade em comportamentos do consumidor prejudiciais à sua saúde. Vale lembrar que desde 1988, a Constituição Federal dispõe em seu art. 220, o seguinte: "Art. 220... "§ 4.º. A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais... e conterá sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso".{149} * (145) Veja nesse sentido a sentença proibindo publicidade ofensiva à dignidade dos portadores do vírus da AIDS, com fortes contornos constitucionais, in Direito do Consumidor, 4, ps. 261 e ss. (146) Veja as observações precisas de Pasqualotto sobre a publicidade discriminatória, p. 128 e ss. (147) A pioneira Associação de Proteção ao Consumidor-APC, de Porto Alegre, já está movendo uma ação civil pública contra publicidade veiculada pela televisão, que incitava crianças à prática de delitos (invasão de supermercados etc.) para poder consumir produtos alimentícios do fornecedor. A ação é verdadeiro Leading case no direito brasileiro, pelo menos no campo civil, veja Direito do Consumidor, v. 1.

(148) Veja a série de exemplos jurisprudenciais trazidos por Rodycz, "Abusiva", p. 69 e ss.; mencione-se, igualmente, a atuação dos Procons, por exemplo a ação do PROCON-PGE/SP contra a publicidade do "Tênis da Xuxa", que incentivava a destruição de sapatos velhos pelas crianças de forma a receber os novos tênis... (ainda sub judice). (149) Veja detalhes e opinião pela proibição deste tipo de publicidade no Brasil, o artigo de Maria Elizabeth Vilaça Lopes, in Direito do Consumidor, 1/175, (p. 350) Por fim, cabe frisar que fazer veicular uma publicidade caracterizada como abusiva constitui um ilícito civil{150} e o responsável civilmente é aquele fornecedor que se "utiliza" da publicidade abusiva (ou enganosa) para promover os seus produtos ou os seus serviços, como esclarecia o vetado § 4.º do art. 37 e como esclarece o art. 38, em interpretação analógica para a disciplina da publicidade abusiva. O CDC não preocupa-se com a culpa e eventual responsabilidade civil da agência publicitária, que criou a mensagem abusiva responsabiliza apenas o fornecedor que se beneficia com a publicidade. Esta solução advém do próprio sistema do CDC que desconsidera os problemas da cadeia de produção e concentra-se no consumo e nos consumidores. Aos fornecedores presentes na cadeia de produção resta o direito de regresso que lhe assegurem o direito civil e o direito comercial. Concluindo, cabe mencionar que, além da sanção normalmente cominada ao ato ilícito, e a imposição da abstenção do ato danoso, o art. 37 continha, em seu § 4.º, vetado pelo Presidente da República, uma importante inovação, a possibilidade do Poder judiciário condenar o fornecedor a fazer veicular uma contrapropaganda, a suas expensas. Com veto, a contrapropaganda permanece prevista como sanção administrativa, no art. 56, XII do CDC.{151} A questão não está, porém, resolvida totalmente, pois parte da doutrina defende a possibilidade do Judiciário, em interpretação sistemática do CDC, impor a sanção de contrapropaganda judicialmente.{152} Os efeitos civis da publicidade, como frisamos, são totalmente novos e as reflexões sobre o tema estão apenas começando no Brasil. A importância do tema e o interesse dos profissionais do ramo prometem uma evolução rápida. *com opinião contrária, Benjamin, Autores, p. 214, pleiteando uma melhor regulamentação a exemplo do que ocorre na Comunidade Européia, Rodycz, Abusiva, p. 71. (150) Sobre os ilícitos penais relacionados com a publicidade veja os arts. 67, 68 e 69 CDC. (151) A doutrina majoritária admite hoje a contrapropaganda como sanção judicial, apesar dos vetos, veja neste sentido o levantamento realizado por Chaise, p. 167. (152) Assim Benjamin, Forense, p. 216, contra Ulhoa Coelho, p. 162. Veja sentença condenando à contrapropaganda, in Direito do Consumidor 10/277 e ss. (p. 351)

2.2 Práticas comerciais abusivas Como afirmamos anteriormente o Código de Defesa do Consumidor representa uma mudança importante no espírito das relações de consumo. Suas normas sobre contratos impõem ao fornecedor a adaptação de suas práticas comerciais (publicidade, oferta, técnicas agressivas de vendas) e do texto de seus contratos aos novos princípios defendidos pelo Código, de transparência, boa-fé e equilíbrio contratual. São normas de prudência e boa-fé impostas aos empresários na promoção de suas vendas.{153} As práticas comerciais{154} dos fornecedores de produtos e serviços encontravam disciplina somente nas normas de direito comercial e nos princípios éticos de cada profissão e de cada comerciante. A formação de poderosos conglomerados econômicos deu origem às regras sobre concorrência desleal. Todas estas normas, porém, tinham como ponto de partida, a preservação da liberdade de mercado ou a manutenção de um nível mínimo de ética nas atividades da profissão: nenhuma delas preocupava-se com o destinatário destas práticas, o consumidor. Certo é que o consumidor era beneficiado com o afastamento de determinado profissional do ramo por práticas desleais, mas o prejuízo sofrido pelo consumidor só era juridicamente importante, se pudesse ser reclamado com base na responsabilidade extracontratual prevista no art. 159 do Código Civil de 1917. O CDC mais uma vez inova o ordenamento jurídico brasileiro e estabelece nos arts. 39, 40 e 41 uma série de práticas comerciais que o legislador considera abusivas e, portanto, vedadas. O impacto desta novidade só não será maior em virtude do veto presidencial ao art. 45, o qual previa uma severa sanção (perdas e danos punitivos) para o descumprimento das normas do capítulo. Mesmo assim, permanece a proibição legal de praticar o ato, logo, uma vez praticado o ato antijurídico e causado um dano ao consumidor, poderá ele requerer as perdas e danos compensatórios normais do art. * (153) Assim concorda o mestre argentino Stiglitz, p. 15. (154) Práticas comerciais seriam, segundo ensina Benjamin, Forense, p. 137, "os procedimentos, mecanismos, métodos e técnicas utilizados pelos fornecedores para, mesmo indiretamente, fomentar, manter, desenvolver e garantir a circulação de seus produtos e serviços até o seu destinatário final". (p. 352) 159 do CC, beneficiando-se, conforme decisão do juiz, com a inversão do ônus da prova permitida no art. 6.º do CDC.{155} Mais interessante é a hipótese de ocorrência de dano moral pela prática comercial abusiva (por exemplo divulgação de informação depreciativa sobre o consumidor, art. 39, VII). Segundo o sistema do CDC, art. 6.º, inciso VI, o consumidor tem direito a efetiva reparação tanto do dano patrimonial, como do dano moral. Relembre-se igualmente, que, assim como na propaganda, também nas outras práticas comerciais abusivas o dano pode ser difuso ou coletivo, cabendo, por exemplo, uma ação civil pública.{156} Note-se que os efeitos civis da prática comercial abusiva não inibem a aplicação de outras sanções cabíveis, como as sanções administrativas, as sanções oriundas da prática de concorrência desleal e mesmo, as sanções penais previstas no próprio CDC; não analisare-

mos estas outras sanções tendo em vista o nosso propósito de reduzir este estudo aos aspectos civilistas e contratuais do CDC. a) Práticas comerciais expressamente vedadas - O CDC, além de proibir a publicidade enganosa e a publicidade abusiva, estabelece no art. 39 uma lista de práticas comerciais proibidas. A lista apresenta 9 hipóteses. O antigo inciso X do art. 39, o qual indicava ser a lista apenas exemplificativa, foi vetado pelo Presidente da República, sob alegação de que este inciso tornava a norma "imprecisa" e era inconstitucional, tendo em vista a "natureza penal" do dispositivo. Mesmo discordando dos argumentos usados para impor o veto, devemos concluir, em uma interpretação a contrario, que a lista de práticas abusivas do art. 39 com * (155) Veja neste sentido decisão do JECP/RS, p. 01597542776, 2.ª T., j. 11.11.97, rel. Paulo Antônio Kretzmann, cuja ementa é: "Consumidor. Cartão de crédito. A remessa de cartão de crédito a consumidor, sem solicitação prévia, constitui ilícito, pois é conduta defesa perante o CDC. Se o banco, malgrado a tentativa não aderida de assinatura do pacto creditício, leva a cobrança e anota perante o Serasa o nome do pseudocliente, pelo não pagamento das parcelas relativas à anuidade, e desse fato advêm danos de ordem moral ao cliente não-aderente, cabe ao banco o ressarcimento". (156) Nesse sentido relembre-se inúmeras reclamações sobre métodos de contratação de time-sharing no JECP, que levaram ao MP/RS controlar com sucesso estas práticas. Veja a linha agora majoritária no JECP/RS, permitindo o uso do art. 49 do CDC, ou a rescisão com devolução das quantias, Proc. 01597513239, 1.ª T., R., j. 15.4.98, J. Guinther Spode. (p. 353) o veto tornou-se uma lista exaustiva, podendo ser apenas complementada por outras normas, do CDC ou de leis especiais. A lista do art. 39 é suficientemente clara sobre seus propósitos e pode ser dividida em 4 grupos. No primeiro grupo proíbe o CDC que o fornecedor prevaleça-se de sua superioridade econômica ou técnica para determinar condições negociais desfavoráveis ao consumidor. Assim, proíbe o art. 39, em seu inciso I, a prática da chamada venda "casada", em seu inciso V,{157} a exigência de vantagem manifestamente excessiva do consumidor e, por fim, no inciso IX, que o fornecedor deixe de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixe a fixação do termo inicial a seu exclusivo critério. No segundo grupo de práticas abusivas e, portanto, proibidas pelo art. 39, encontram-se aquelas que prevalecem-Se da vulnerabilidade social ou cultural do consumidor. Segundo o inciso IV, é vedado ao fornecedor "prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços". Muitas das chamadas técnicas de venda sob impulso confiam em seu sucesso devido, justamente, a vulnerabilidade a que reduzem o consumidor. Trataremos a seguir de algumas delas, a venda de porta-em-porta, a venda por reembolso postal

e a venda por telefone, que foram expressamente disciplinadas pelo CDC, instituindo este, inclusive, um novo direito de arrependimento do contrato. Neste grupo podemos incluir também a prática abusiva destacada no inciso VII. Segundo o art. 39, inciso VII, é vedado ao fornecedor repassar informação depreciativa referente a ato praticado pelo consumidor no exercício de seus direitos. Grifamos esta última parte para frisar que não estão proibidas as informações sobre os consumidores (Bancos de Dados e Cadastros de consumidores, regulados nos arts. 43 e ss. do CDC), mas, sim, as chamadas "listas negras" de consumidores que reclamam e exigem seus direitos, agora assegurados pelo CDC, ou de consumidores envolvidos em Associações de Proteção de Consumidores etc. No terceiro grupo, encontram-se as práticas de vendas sem manifestação prévia do consumidor, em que este recebe o produto OU o serviço não requisitado e não tem como devolver o objeto ou não * (157) Note-se que não fica proibida a chamada "oferta combinada" mas sim seu desvio, a venda casada, veja detalhes em CDC, Forense, Benjamin, p. 140. (p. 154) aceitar o serviço e se vê literalmente forçado a contratar. Estas táticas agressivas de vendas ficam proibidas, de maneira muito inteligente, pelo inciso III combinado com o parágrafo único do art. 39. Efetivamente dispõem o inciso III e o parágrafo único do art. 39: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços: "III - enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto ou fornecer qualquer serviço. "Parágrafo único. Os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III, equiparam-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento". A equiparação dos produtos enviados e dos serviços prestados sem nenhuma solicitação do consumidor a "amostras grátis" é uma solução inventiva, cujo fim é realmente acabar com este tipo de prática no mercado brasileiro. Vale lembrar aqui a noção de que as novas normas do Código assumem por vezes uma natureza mais operacional, do que conceitual, como estávamos acostumados nas lições do grande Bevilaqua. Quanto à eficácia prática da norma do art. 39, III não resta a menor dúvida, pode-se apenas discutir se outra solução não seria mais apropriada ao novo princípio geral de eqüidade e equilíbrio das relações entre fornecedor e consumidor. Mas o último grupo de práticas abusivas proibido pelo art. 39 é ainda mais polêmico, trata-se do inciso II, que possui a seguinte redação: "Art. 39. É vedado ao fornecedor: "II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata proporção de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes". Pela primeira vez, o CDC menciona na fase pré-contratual a aplicação de "usos e costumes", menção que acalma o espírito dos comercialistas e contratualistas tradicionais, pois os usos e costumes, no Brasil, são os comerciais desde 1917 (art. 1.807 do CC){158} e geralmente são estabelecidos tendo em vista a superioridade econômica * (158) O art. 1.807 do Código Civil dispõe: "Ficam revogadas as Ordenações, Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes concernentes às

matérias de direito civil reguladas neste Código", apesar do art. 4.º da LICC de 1942, permitir o uso dos costumes "quando a lei for omissa". (p. 355) do fornecedor.{159} Mas, a segurança dos tradicionalistas acaba no inciso II do art. 39, pois, se interpretado sistematicamente com os arts. 30 e 35 do mesmo capítulo (Das Práticas Comerciais), pode levar à conclusão que o CDC institui uma verdadeira obrigação de contratar para o fornecedor. Efetivamente, se "toda informação ou publicidade, suficientemente precisa", segundo o art. 30, é oferta e vincula e se o fornecedor não pode recusar dar cumprimento à oferta, sem sofrer as conseqüências contratuais do art. 35, então, pelo art. 39, II, ele também não pode recusar-se a contratar, se ainda tem estoques, isto é, "na medida de suas disponibilidades de estoque". A conclusão pela existência de uma obrigação de contratar é um pouco forçada, mas é necessário esclarecer que o sistema do CDC não está muito longe desta obrigação, pois disciplina enormemente a fase pré-contratual da relação de consumo. Mas, em verdade, a norma do art. 39, II, deve ser interpretada conjuntamente com aquela do art. 41, referente ao tabelamento de preços. O tabelamento ou o controle de preços já é fato comum no país, tão comum que até o legislador já verificou que os produtos tabelados tendem a desaparecer do mercado e a permanecerem retidos nos estoques dos fornecedores até o fim do congelamento. Ao comentar os reflexos do princípio da boa-fé como paradigma das práticas comerciais no mercado brasileiro, mister, nesta terceira edição, incluir dentre as práticas comerciais "controladas" pelo CDC o art. 43 e seguintes sobre bancos de dados. Como se observou anteriormente, a lista de práticas comerciais consideradas abusivas é tanto de práticas pré-contratuais quanto contratuais. A elaboração, organização, consulta e manutenção de bancos de dados sobre consumidores e sobre consumo não é proibida pelo CDC, ao contrário, é regulada por este; logo, permitida. A lei fornece, porém, parâmetros de lealdade, transparência e cooperação e controla esta prática de forma a prevenir e diminuir os danos causados por estes bancos de dados e/ ou pelos fornecedores que os utilizam no mercado.{160} * (159) Veja, sobre a subjetividade da expressão "usos e costumes" e sua adaptação unicamente ao sistema contratual tradicional, a exposição de Lobo, pp. 99101. (160) Veja interessante caso sobre homônimo, em que se assegurou perdas e danos exemplares ao consumidor: "O banco credor é responsável pelo dano moral provocado contra homônimo, executado em lugar do verdadeiro obrigado, (p. 356) A prática recente brasileira demonstrou, porém, que estes bancos e a utilização, por vezes, maliciosa, outras vezes, negligente destes bancos por fornecedores estão a causar grandes e reiterados danos aos consumidores.{161} Reclama-se do nascimento de uma "indústria do dano moral" no Brasil,{162} mas não se pondera e almeja sinceramente modificar as práticas comerciais dos fornecedores, que alimentam estes bancos e que são solidariamente responsáveis,{163} ou em modificar as práticas comerciais dos próprios organizadores destes bancos públicos e privados, também solidariamente responsáveis frente aos consumido-

res.{164} Trata-se de solidariedade resultante da cadeia de casualidade, ou como explicita a doutrina argentina, de dano resultado de uma atividade ou intervenção plural.{165} Nosso alerta é no sentido de tratar-se, em essência, de uma prática comercial abusiva regulada a contrário pelo CDC. Se esta prática causar dano aos consumidores, material ou moral, deverão estes ser ressarcidos e, mais ainda, deverá a aplicação da lei consumerista ser de tal ordem que pedagogicamente modifique as práticas hoje existentes no mercado.{166} De nada vale a lei (law in the books), se não tem efeitos *pois a execução se realiza no seu interesse, devendo o valor da indenização atender ao exemplary damages" (TJRS, Ap. Civ. 596.210.849, j. 21.11.96, Des. Araken de Assis). (161) Veja neste sentido, frisando que trata-se de risco profissional dos estabelecimentos bancários e dos outros fornecedores indiretos, cadastros, antiga decisão do STF, j. 15.5.70, Rel. Min. Amaral Santos, R. Ext. 68.968. (162) Veja crítica do Des. Décio Erpen, TJRS, in Ap. Civ. 596185181, j. 5.11.96, distinguindo os "dissabores" contratuais e o dano moral. (163) Sobre solidariedade da entidade financeira ou bancária e do Serviço de Proteção ao Crédito ou outros bancos e cadastros na indenização dos danos morais e materiais sofridos por inscrição nestes bancos, veja decisão do TJRS, in Rev. de Jurisprudência TJRGS 174, p. 394. (164) Posição majoritária é que o protesto de título sem causa gera abalo de crédito e o dever de indenizar danos materiais e morais, veja RT 124/139, RT 675/100, JTJ-Lex 145/106, JTJ-Lex 146/118, Julgados TARS, ano 88, p. 363. Veja também RT 707/150, RT 726/369, RT 728/355, RT 730/207 e RT 681/163 (levantamento jurisprudencial do TARS, in RRR 1961189047) (165) Sobre o dano como resultado de uma "intervención plural", veja Alterini/ Lopez Cabana, Responsabilidad, p. 321 e ss. (166) Veja, neste sentido, votos, em decisões do TJRS: "O dano moral, por si mesmo, se caracteriza no só fato da existência da informação disponível (p. 357) práticos na vida dos consumidores (law in action) e no reequilíbrio de situações de poder (Machtpositionen) e relações desequilibradas e mesmo ilícitas.{167} A função satisfativa das perdas e danos civis, mesmo que não punitivas ou exemplares, é uma realidade no sistema do CDC (art. 6.º, VI); é claro, com razoabilidade e proporcionalidade ao ganho auferido pelo fornecedor, com a passividade dos outros consumidores potencialmente lesados pela reiterada prática comercial abusiva do fornecedor. Para evitar o enriquecimento de um consumidor em especial, melhor neste caso seria a atuação do Ministério Público e das Associações de Defesa do Consumidor de forma a forçar a modificação das práticas destes bancos de dados.{168} Os danos materiais e morais sofridos pelo consumidor individual, porém, devem ser todos ressarcidos, pois indenizar pela metade seria afirmar que o consumidor deve

suportar parte do dano e autorizar a prática danosa dos fornecedores frente aos demais consumidores.{169} Como ensina Ghersi, em matéria de danos à pessoa humana e sua dignidade, acentua-se o princípio geral da "obligación de no danar" (nemini laedere) e a prevenção deve ser privilegiada pelo direito justamente pela impossibilidade ou grande dificuldade de ressarcir realmente a vítima.{170} *para uma parcela considerável do público" (Ap. Civ. 584.023.592-3, Des. Adroaldo Furtado Fabrício). "Indenização. Abalo de crédito. Dano moral. O envio injustificado de nome de pessoa para inclusão no Serasa constitui, por si só, dano moral por abalo de crédito" (Ap. Civ. 197.003.817 Pelotas, j. 20.8.97, Des. Roberto Expedito da Cunha Madrid). "Abalo de crédito. Protesto de título já pago. Responsabilidade da instituição financeira mandatária" (EI 597.028.620, j. 4.4.97). (167) Veja neste sentido concessão do dobro do consignado na cártula pelo TAMG como sanção em caso de protesto indevido, in RT 716/270. (168) Neste sentido parecem concordar Bonatto e Moraes, p. 160, que expressamente citam o art. 29 combinado com os arts. 6.º, VI, e 81 do CDC como base para atuações preventivas semelhantes do Ministério Público. (169) Veja, por todos, TARS, Ap. Civ. 196 189 047, j. 13.11.96, rel. Ricardo Raupp Ruschel, onde lê-se: "Não há necessidade de provar eventual prejuízo patrimonial para obter indenização do dano moral. O protesto indevido de título, porque público e notório, causa inúmeros e inesperados constrangimentos à pessoa atingida, impondo-se a responsabilização pela indenização ao apresentante do documento no Ofício". (170) Ghersi/Rossello/Hise, p. 143 e ss. (p. 358) As técnicas de comunicação estão a construir o mundo do futuro, e aqui analisada pós-modernidade, e neste sentido são instrumentos válidos e seu desenvolvimento não pode ser suspenso, sendo dificilmente controlável. De outro lado, a construção jurídica da identidade individual, de uma dignidade social e econômica intangível, é a resposta do direito a este desafio atual. Efetivamente, hoje, o direito privado europeu e as Constituições, assim como a Constituição brasileira de 1988, permitem concluir que dentro desta proteção à pessoa há um direito à privacidade, à reserva (diritto alla riservatezza), um direito à identidade pessoal, um direito de dispor de seus próprios dados pessoais (diritto di disporre dei propri dati personali).{171} Este último direito foi positivado pelo CDC e transparece no art. 43, §§ 2.º e 3.º. O consumidor brasileiro tem direito de dispor de seus dados pessoais, de acessá-los e de saber que estes existem em algum banco de dados público e privado, logo, não deveria ser necessária a lide, a pretensão resistida, o recurso a ação de habeas data, da mesma forma não deveria o fornecedor impor exigências exorbitantes e pouco razoaveis, obstáculos desproporcionais, para que o consumidor pudesse chegar a seus dados e a sua modificação, em caso de eventual erro ou de superação da dívida. Esta reiterada prática comercial é abusiva, pois fere o princípio legal de boa-fé, logo, dever de cooperação, de cuidado e de lealdade, fere a boa-fé necessária e obrigatória entre os parceiros contratuais e nas relações do consumidor com toda a cadeia de

fornecedores indiretos, que o fornecedor inicial utiliza para cobrar sua dívida. Modificar estas práticas comerciais abusivas seria um grande avanço no país, pois não são estes abusos que melhorarão a situação de insolvência no país, mas sim maior respeito e cooperação entre os agentes no mercado. Neste sentido, ressalte-se a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em cuja ementa lê-se: "Serviço de proteção ao crédito. O Ministério Público é parte legítima e a ação civil pública é processo adequado à defesa coletiva do consumidor, universo indeterminado de pessoas unidas pela circunstância fática do consumo. A regularidade dos cadastros e informações relativas ao consumidor interessa não apenas aos cadastrados, mas ao universo dos consumidores (TJRS, Ap. Civ. 591097050, j. 27.11.91, Des. Ivo Gabriel da Cunha). * (171) Assim Alpa, Banche di Dati, p. 54. (p. 359) Neste mesmo sentido decisão do TARS, cuja ementa é: "Responsabilidade civil. Inscrição no serviço de proteção ao crédito. Dano material e moral. 1. Ao fornecer informações a partir dos dados existentes no cadastro dos emitentes de cheque sem fundo do Banco Central do Brasil, ao qual tem acesso mediante convênio oneroso, o Serviço de Proteção ao Crédito torna-se responsável pelos danos causados àquele que é confundido com emitente de cheque cadastrado, em razão da coincidência quanto ao número do CPF e da semelhança no nome. Responsabilidade decorrente do exercício da própria atividade. 2. Na fixação do valor da condenação devem ser levadas em consideração as circunstâncias em que ocorreram o fornecimento da informação incorreta. 3. Não tendo a informação negativa sido divulgada na imprensa, mas apenas em consulta a usuários, incabível a condenação à publicação do fato em periódico diário. Recurso provido em parte (Ap. Civ. 595091364 , 5ª Câmara Cível, Rela. Dra. Maria Isabel de Azevedo Souza, j. 14.09.95).{172} O art. 39 possui ainda dois incisos, o inciso V, que será comentado conjuntamente com a obrigação de fornecer orçamento (letra b) e o inciso VIII, sobre normas técnicas, comentado a seguir, conjuntamente com o art. 41 (letra c). b) Obrigação de fornecer orçamento prévio discriminado - A determinação do preço de um serviço é muito mais subjetiva e complexa do que a determinação do preço de um produto industrial. Muitas vezes, o preço pode variar conforme a rapidez em que o serviço deva ser realizado, conforme as circunstâncias de local (no domicílio, na oficina, necessitando remoção do bem), conforme o material a ser utilizado (madeira mogno, madeira de cedro, compensado etc.) e mesmo, dependendo do fornecedor, conforme a situação econômica daquele que deverá arcar com o pagamento do serviço (os serviços prestados a órgãos públicos e a pessoas jurídicas costumam ter seus preços majorados). Nesse sentido, inova o CDC ao impor, em seu art. 40, a obrigação do fornecedor de entregar ao consumidor orçamento prévio discriminado; obrigação que alguns consideram impossível de ser cumprida,{173} * (172) Publicado no ementário, na Rev de Jurisprudência TJRGS 174, p. 394.

(173) A preocupação foi levantada em Campo Grande no I Encontro Estadual de Defesa do Consumidor, promovido pelo PROCON/MS. (p. 360) dependendo do serviço, como no de consertos de automóveis e máquinas, em que para elaborar o orçamento é necessário remover o bem e abri-lo, o que já oneraria o consumidor. Dispõem o art. 40 e o art. 39, inciso VI: "Art. 39. É vedado ao fornecedor: "VI - executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores entre partes". "Art. 40. O fornecedor de serviço será obrigado a entregar ao consumidor orçamento prévio discriminando o valor da mão-de-obra, dos materiais e equipamentos a serem empregados, as condições de pagamento, bem como as datas de início e término dos serviços. "§ 1.º. Salvo estipulação em contrário, o valor orçado terá validade pelo prazo de 10 (dez) dias, contados de seu recebimento pelo consumidor. "§ 2.º. Uma vez aprovado pelo consumidor o orçamento obriga os contraentes e somente pode ser alterado mediante livre negociação das partes. "§ 3.º. O consumidor não responde por quaisquer ônus ou acréscimos decorrentes da contratação de serviços de terceiros, não previstos no orçamento prévio". Resumindo, o fornecedor do serviço não pode executá-lo antes da expressa autorização do consumidor, sendo obrigado também a entregar um orçamento prévio bastante discriminado. O orçamento prévio poderia ser feito facilmente em determinados serviços de porte, como construções, pinturas; mas apresenta algumas dificuldades nos serviços de pequeno porte e nos consertos. Quanto aos consertos, se para elaborar o orçamento é necessário transportar o objeto, abri-lo ou executar qualquer serviço que já onere o fornecedor, a solução está em informar ao consumidor que estes pré-serviços já serão cobrados e estipular um valor para eles, de modo a cumprir as exigências de transparência nas relações de consumo. c) Respeito às normas técnicas e ao tabelamento de preços - O princípio básico de boa-fé nas relações de consumo deverá refletir nas práticas de vendas dos fornecedores, e principalmente, deve estimular O fornecedor a cumprir voluntariamente as normas legais. Assim, se (p. 361) existem normas expedidas por órgãos oficiais, ou pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo CONMETRO devem elas ser cumpridas, mesmo não sendo obrigatórias para o fornecedor específico. Nesse sentido o CDC inclui no art. 39, em seu inciso VIII, como prática comercial abusiva "colocar, no mercado, qualquer produto ou serviço em desacordo" com estas normas. A finalidade da norma é melhorar a qualidade de vida do brasileiro, melhorando a qualidade dos produtos que consome e dos serviços que são colocados à sua disposição. Trata, igualmente, o CDC da postura que deve tomar o fornecedor em relação ao consumidor quando os seus produtos ou serviços estejam sujeitos ao regime de controle de preços ou de tabelamento.

Dispõe o art. 41 do CDC: "Art. 41. No caso de fornecimento de produtos ou de serviços sujeitos ao regime de controle ou de tabelamento de preços, os fornecedores deverão respeitar os limites oficiais sob pena de, não o fazendo, responderem pela restituição da quantia recebida em excesso, monetariamente atualizada, podendo o consumidor exigir, à sua escolha, o desfazimento do negócio, sem prejuízo de outras sanções cabíveis". A norma advém, sem dúvida, das recentes experiências brasileiras com planos de estabilização econômica, congelamentos e a cobrança de ágio nas relações de consumo, com danos para o consumidor. A dificuldade prática da norma são os chamados "negócios de bagatela", onde o consumidor lesado geralmente não reclama, mas como o dano é coletivo, podemos pensar, no sistema atual do CDC, que as entidades de defesa do consumidor ou o Ministério Público entrem com ações para evitar a prática comercial proibida da cobrança de ágio. Destaque-se que a presença de uma norma específica para o caso de congelamentos de preços e salários no CDC brasileiro é mais do que salutar, tendo em vista a reiterada freqüência com que estes planos ocorrem no país. 2.3 Direito de arrependimento do consumidor (art. 49) Para proteger a declaração de vontade do consumidor, para que essa possa ser decidida e refletida com calma, protegida das técnicas agressivas de vendas a domicílio,{174} o art. 49 do CDC inova o ordenamento jurídico nacional e institui um prazo de reflexão obrigatório e um direito de arrependimento. Dispõe o art. 49 do CDC: "Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 (sete) dias a contar da sua assinatura ou do ato do recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio". Qualquer fornecedor que pratique a chamada técnica de "venda a domicílio", na residência dos consumidores, no seu local de trabalho (repartições, colégios etc.), mesmo que por telefone, ou por malote postal, para propor aos consumidores a conclusão de contratos de compra e venda, de assinatura de periódicos, de consórcios etc., ou para oferecer a prestação de seus serviços, passa a estar submetido ao regime especial instituído pelo art. 49 do CDC, visando assegurar a boa-fé, a lealdade nas relações contratuais entre consumidor e fornecedor, regime este que passamos a analisar. a) A venda de porta-em-porta (door-to-door) - A venda de portaem-porta (door-to-door) ou venda a domicílio (vente à domicile) é uma técnica comercial de vendas fora do estabelecimento comercial, amplamente difundida nas sociedades de consumo,{175} pelas benesses que traz o fornecedor (investimento reduzido, ausência de vínculo empregatício com os vendedores, baixos riscos de reclamação ou devolução do produto), mas que coloca o consumidor em situação de evidente vulnerabilidade (pouco tempo para decidir, impossibilidade de comparar o produto com outros, dependência total das informações prestadas pelo vendedor ou pelo catálogo etc.).

Na década de 70, calculava-se que 35% das vendas ao consumidor nos Estados Unidos tratavam-se de vendas door-to-door. Na Europa, igualmente, o volume de contratos originados por esta técnica, chamada agressiva, de vendas era grande, o que levou a doutrina a defender a * (174) Segundo Lamberterie, p. 717, a venda a domicílio apresenta um caráter particularmente agressivo, porque o consumidor sozinho com o vendedor é extremamente vulnerável e não tem meios de prova das eventuais manobras fraudulentas do vendedor. (175) Veja sobre o tema Bourgoignie, "Clauses", p. 548, sobre técnicas de promoção de vendas na sociedade moderna. (p. 363) necessidade de uma disciplina específica para este tipo de vendas, tendo em conta as suas peculiaridades.{176} A venda a domicílio, segundo Oriana,{177} apresentaria os inconvenientes de duas ordens, quanto à concorrência desleal e quanto ao respeito ao consumidor. A venda de porta-em-porta prejudicaria a concorrência leal pois, sem suportar os ônus fiscais e econômicos para manter um estabelecimento comercial, o fornecedor que utiliza esta técnica vai ao encontro do cliente, que sem poder comparar os preços e a qualidade do produto apresentado e, por vezes, tendo tentado livrarse de importuno vendedor, decide-se pelo produto oferecido. Igualmente, dos vendedores a domicílio não é exigido um nível profissional maior, pois não existe vínculo empregatÍcio entre ele e o fornecedor do produto. sua remuneração se dará por prêmios ou porcentagens. Tudo acaba por incentivar que o vendedor utilize de qualquer artifício, inclusive o de mascarar ou omitir informações importantes para o consumidor sobre o preço, a qualidade e os riscos do produto, para vender mais e alcançar uma retribuição adequada. De outro lado, o consumidor perturbado em sua casa ou no local de trabalho não tem o necessário tempo para refletir se deseja realmente obrigar-se, se as condições oferecidas lhe são realmente favoráveis; não tem o consumidor a chance de comparar o produto e a oferta com outras do mercado, nem de examinar com cuidado o bem que está adquirindo. O consumidor recebe do vendedor, ou da correspondência circular enviada, no mais das vezes, informações incompletas, principalmente sobre o preço da mercadoria (por exemplo: curso de computação grátis e em 3 vezes, sem juros - mas com correção monetária; desconto de 20% à vista: assinando a proposta receberá uma Bíblia de graça, não ficando obrigado a contratar, etc.). Por fim se o produto adquirido apresenta algum defeito ou vício de qualidade, não possui o consumidor a possibilidade de reclamar, pois o vendedor não retornará e a fábrica localizase em outro Estado da Federação, o que desistimula a reclamação. Os abusos nas vendas a domicílio levaram alguns doutrinadores a defender a proibição desta prática,{178} solução radical incompatível com * (176) Veja detalhe em Oriana, p. 1573. (177) Oriana, pp. 1574 e 1575. (178) Veja detalhes em Oriana, p. 1573; já Lamberterie, p. 717, destaca a pressão exercida pelas organizações de defesa dos consumidores para que a venda a domicílio fosse regulada por lei especial. (p. 364) o estágio de desenvolvimento do comércio em muitas partes do Brasil e cujo controle seria praticamente impossível. Melhor solução é a de

disciplinar a venda de porta-em-porta, reconhecendo novos direitos ao consumidor, como o de reflexão e arrependimento, como forma de desistimular a prática e ao mesmo tempo proteger o consumidor. No Brasil, preocupações com estas práticas agressivas de vendas, também chamadas de "vendas sob impulso"{179} (vendas a domicílio, por telefone, por meio de reembolso postal), as quais deixam clara a vulnerabilidade do consumidor (aposentados, donas-de-casa, adolescentes, etc.), levaram o legislador do CDC a editar norma específica para assegurar um mínimo de boa-fé nestas relações entre fornecedores e consumidores, pois os instrumentos tradicionais que o direito colocava à disposição dos consumidores (o erro, dolo e a conseqüente anulação do contrato) esbarravam em evidentes dificuldades práticas e de prova.{180} b) Regime legal da venda de porta-em-porta - Segundo o art. 49 do Código, nos contratos concluídos no domicílio ou no local de trabalho do consumidor, as chamadas vendas de "porta-em-porta", o consumidor terá um prazo legal de reflexão de 7 dias, podendo neste prazo manifestar a sua vontade no sentido de desistir, sem ônus, do contrato já concluído,{181} Direito de reflexão semelhante existe na legislação da França, da Alemanha e dos Estados Unidos.{182} A grande indagação prática é como se deve juridicamente considerar o vínculo contratual durante este prazo de 7 dias. No direito comparado, as soluções são várias, como veremos. A lei alemã de 1986{183} considera que a aceitação do consumidor, a sua manifestação de vontade, fica suspensa e só será eficaz, segundo o § 1.º, "se o cliente no prazo de uma semana não a revogar por * (179) Assim as denomina Bittar, Direitos do Consumidor. (180) Assim tb. Oriana, p. 1574. (181) Destaca Stiglitz, p. 193, que o consumidor pode arrependerse do contrato sem necessidade de fazer constar o motivo desta decisão; veja Assis, p. 69, sobre resolução como desconstituição. (182) Veja detalhes em Calais-Auloy, p. 170, também existem normas semelhantes na Bélgica e Dinamarca (veja Bourgoignie, p. 548). (183) "Gesetz über den Widerruf von Haustürgeschöften und ähnlichen Geschäften" (HaustürWG), de 16 de janeiro de 1986. (p. 365) escrito".{184} Logo, nas vendas a domicílio, a oferta e a aceitação inicial do consumidor não formam um contrato, o que caracterizaria a eficácia normal da aceitação. A aceitação fica como que submetida por lei a uma condição suspensiva, não é eficaz até a passagem do prazo, sem nova manifestação. Se o cliente revoga (Widerruft) sua aceitação, no prazo e nas condições legais, a aceitação nunca terá tido eficácia, o contrato nunca terá sido formado, pois o evento futuro e incerto (a passagem do prazo, sem a revogação), a que estava submetida a manifestação de vontade do consumidor, não ocorreu. A lei alemã disciplina igualmente como se dará a devolução das prestações eventualmente já executadas, o que parece ser um contrasenso, pois, por lei, a aceitação do consumidor ainda não é eficaz, logo não há o seu efeito normal, que seria formar um contrato. Mas no sistema

germânico, acostumado à abstração, a eventual entrega do bem, e transferência da propriedade é desvinculada de qualquer maneira do eventual liame contratual. Assim, o legislador alemão resolverá o problema usando o princípio geral do enriquecimento sem causa (presente no § 812 BGB), de forma a regular as conseqüências da revogação (§ 3º da lei de 1986) e evitar o enriquecimento de qualquer das partes. A lei francesa de 1972,{185} Lei 72-1137, de 22 de dezembro de 1972, prevê em seu art. 3º, hoje consolidado no art. 121-25 do Code de la Consommation (Loi 93.949/93), que "nos 7 dias a contar da proposta de compra assinada pelo cliente ou da sua aceitação contratual, o cliente tem a faculdade de renunciar a estas através de carta recomandée".{186} Na interpretação de Calais-Auloy,{187} o retardo de 7 dias significaria que o contrato não se conclui instantaneamente, até * (184) No original "... cine entgeltliche Leistung gerichtete Willenserklaerung, ..., wird erwst wirksam, wenn der Kunde sie nicht binnen einer Frist von einer Woche schriftlich widerruft" (§ 1.º HaustürWG). (185) "Loi relative à la protection des consommateurs em matiére de démarche et de vente à domicile" (Code Civil Dalloz, art. 1593), comentada por Calais-Auloy/Domicile, p. 266. (186) No original: "Dans les sept jours à compter de la commande ou de l’engagement d'achat, le client a la faculté d'y renoncer par lettre recomandée avec accusé de réception..." (art. 3º Loi 72-1137). (187) Calais-Auloy, Domicile, p. 267, veja também tradução do artigo de CalaisAuloy, in Direito do Consumidor 1. (p. 366) porque o art. 4.º, hoje art. 121-26, da lei francesa proíbe que se exija do cliente qualquer tipo de contraprestação durante este prazo. Segundo a lei francesa não haverá qualquer tipo de execução do contrato durante o prazo de "reflexão". Oriana{188} conclui, então, que se o produto foi entregue ao consumidor atuará ele como depositário do bem. Desta exposição do direito comparado, podemos concluir que a solução francesa de não existência do contrato coloca o consumidor na situação, pouco confortável, de depositário de um bem, que não deseja e que lhe foi "imposto" por uma prática comercial agressiva, que se está a combater. A solução alemã, por sua vez, suspende a eficácia da aceitação, logo o próprio nascimento do contrato, usando uma figura conhecida do direito tradicional, a manifestação de vontade sob condição suspensiva, mas para regular a eventual "eficácia" do ainda inexistente contrato, recorre ao princípio da abstração, instituto desconhecido no Brasil, que considera os negócios reais (tradição do produto) desvinculados do negócio obrigacional (contrato que dá origem à obrigação de entregar o produto e pagar o preço).{189} A solução alemã é válida, porém, quando propõe o princípio do não enriquecimento sem causa para regular a devolução das prestações já executadas, se houve revogação da aceitação inicial. Mas qual terá sido a solução adotada pelo CDC brasileiro? Enquanto outros países possuem leis específicas com vários artigos para disciplinar a venda a domicílio, no Brasil o CDC, como Código geral, só dedicou ao tema o art. 49, que é porém, complementado

por seu parágrafo único, nos seguintes termos: "Art. 49. "Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados". Tanto no caput do art. 49, como em seu parágrafo, o CDC referese à desistência do contrato, no prazo de 7 dias, a contar da assinatura * (188) Oriana, p. 1.576. (189) Segundo Vassili, esta é a solução da Diretiva européia; sendo assim, o prazo de reflexão seria um fator de eficácia do negócio e somente após este teria sua eficácia plena, Vassili, p. 20 e ss. (p. 367) do contrato ou do ato de recebimento do produto ou serviço (execução da prestação principal). Parece claro, portanto, que o sistema brasileiro pressupõe a existência do contrato, restando apenas a discussão sobre sua eficácia ou validade. Quanto à eficácia podemos imaginar três hipóteses. Na primeira, o contrato tem sua eficácia suspensa durante o prazo de reflexão, só podendo o fornecedor exigir o pagamento findo o prazo e não ocorrido o evento futuro e incerto da desistência do consumidor. Seria algo análogo a uma condição suspensiva tácita, em virtude da natureza da venda (venda door-to-door). Examinando-se o parágrafo único do art. 49, que dispõe sobre um dos efeitos do contrato, que é a prestação do consumidor, isto é, o pagamento, verificamos que no sistema brasileiro a venda a domicílio já está surtindo efeitos mesmo antes de findo o prazo de reflexão e que estes fatos não devem inibir o consumidor de exercitar o seu novo direito de arrependimento. Mas também é possível imaginar que o contrato concluído é imediatamente eficaz, surtindo efeitos (prestação e contraprestação) até a ocorrência do evento futuro e incerto que resolve o vínculo contratual: a desistência durante o prazo de reflexão de 7 dias. Seria algo análogo a uma condição resolutiva tácita ou legal, em virtude da natureza especial da venda. O contrato estaria perfeito e terminado, não necessitando nova declaração de vontade para que surta todos os seus efeitos. Se acontecer o evento previsto na condição resolutiva (a desistência do art. 49 do CDC), se extingue o direito estabelecido no contrato, as partes tem que devolver as prestações eventualmente recebidas e ficam liberadas do vínculo contratual. Na redação do art. 49, porém, nada indica a existência de uma condição, de uma cláusula que subordina os efeitos do contrato a evento futuro e incerto, apesar das semelhanças encontradas. Por último, podemos interpretar o art. 49 do CDC como simplesmente instituindo, no direito brasileiro, uma nova causa de resolução do contrato. Seria uma faculdade unilateral do consumidor de resolver o contrato no prazo legal de reflexão, sem ter que arcar com os ônus contratuais normais da resolução por inadimplemento (perdas e danos etc.). O contrato firmado a domicílio seria um contrato, por lei, resolúvel. Como se a antiga figura do direito romano, a cláusula resolutiva tácita, incorporada ao direito alemão (§ 326 BGB), passasse a existir no direito brasileiro. A resolução opera, então, de pleno direito, (p. 368) não necessitando a manifestação do Judiciário, bastando a simples

manifestação de vontade do consumidor em desistir do contrato. Resolver-Se-ia o contrato por atuação desta cláusula resolutiva tácita, presente em todas as vendas a domicílio, liberando os contraentes, sem apagar todos os efeitos produzidos com o contrato, mas operando retroativamente para restabelecer o statu quo ante. Esta última hipótese parece aproximar-se mais do sistema criado pelo CDC. Certo é, que se trata de uma norma complexa, a do art. 49, misturando várias figuras, como o arrependimento, que até então era pré-contratual, a desistência unilateral, enquanto o direito tradicional conhecia somente o distrato, e o prazo de reflexão, que até agora era considerado um simples dever acessório ao contrato. Definir o âmbito, a natureza e os reflexos deste novo direito instituído pelo CDC exigirá da doutrina um longo caminho de discussão e aprofundamento, tarefa para a qual pretendemos dar somente uma pequena e inicial contribuição. Muitos, porém, são os aspectos a ser estudados. Segundo dispõe o parágrafo único do art. 49, exercitado o direito de arrependimento não deverá haver enriquecimento ilícito do fornecedor, em virtude de sua prática agressiva de venda. Desconstituído o vínculo pela manifestação do consumidor, retornaram ambos os contraentes ao status anterior, devendo o fornecedor devolver os valores recebidos, monetariamente atualizados. A regra do art. 49 e seu parágrafo único é, porém, omissa sobre o que ocorrerá com o produto eventualmente entregue ao consumidor. Certamente, pelo princípio da interdependência das prestações, será devolvido ao fornecedor. Mas e se o produto foi danificado? E se desapareceu, sem culpa do consumidor? Ou simplesmente, se já foi usado pelo consumidor, pode este ainda exercitar o seu direito e devolvê-lo? Se o contrato nasceu, o consumidor brasileiro que receber o produto do vendedor de porta-em-porta é mais do que mero possuidor do bem, ou depositário como no sistema francês, ele é possivelmente o novo proprietário do produto, pois a tradição transferiu o domínio. Se ele pretende fazer uso do seu novo direito de arrependimento, no Prazo de 7 dias, deverá cuidar para que o bem não pereça e não sofra qualquer tipo de desvalorização, devendo evitar usá-lo ou danificá-lo (abrir o pacote, experimentar o shampoo, manusear e sujar a enciclopédia etc.). Se o fizer, segundo nos parece, poderá até desistir do (p. 369) vínculo obrigacional, liberando-se das obrigações assumidas, (por ex.: pagamento da segunda prestação, recebimento mensal dos fascículos da enciclopédia etc.), mas como não pode mais devolver o produto nas condições que recebeu (volta ao status quo), terá que ressarcir o fornecedor pela perda do produto ou pela desvalorização que o uso causou, tudo com base no princípio do enriquecimento ilícito. Nestes termos, é a solução do direito alemão que parece-nos adequada ao espírito do CDC, pois pode ser de interesse do consumidor livrar-se do vínculo contratual, mas não é justo que enriqueça sem causa. Assim, com boa-fé resolve-se o vínculo e regula-se a volta à situação anterior, sem que ninguém ganhe com isso. A insegurança causada pelo direito de arrependimento instituído no art. 49 do CDC já é motivação suficiente para que o fornecedor prefira outros métodos de contratação do que a venda de porta-em-porta, alcançando a lei assim seu intento,

sem que se permita o enriquecimento sem causa do consumidor. A única hipótese permitida de enriquecimento sem causa no CDC é o art. 39, III, c/c parágrafo único, o qual equipara a amostras grátis os produtos e serviços enviados ao consumidor sem prévia solicitação. No caso da venda a domicílio, tal hipótese está afastada se houve manifestação de vontade do consumidor aceitando a proposta do fornecedor, como prevê o art. 49, norma específica para o caso. Examinando a experiência no direito comparado, verificamos que ainda existem outras questões que devem ser solucionadas. O primeiro problema, destacado pelo art. 2.º da lei francesa, Lei 72-1137, de 22 de dezembro de 1972, hoje consolidado nos art. 12118 e 125-23 do Code de la Consommation, é o da identificação do fornecedor. A lei francesa obriga o fornecedor que utiliza o método de vendas a domicílio a fechar o contrato por escrito, mesmo que seja no recibo, sob pena de nulidade do vínculo. A idéia é que sem identificar o fornecedor não é possível exercer o direito de arrependimento. A lei alemã de 1986 vai mais longe e institui o dever, no § 2.º, do fornecedor entregar ou enviar um formulário padrão, no qual informa o consumidor que ele possui este direito de arrependimento e que basta preencher o formulário e enviar pelo correio, nos 30 dias subseqüentes à venda.{190} * (190) Semelhante norma encontra-se hoje no art. 121-24 do Code de la Consommation francês. (p. 370) No sistema do CDC, há o dever geral de informação, inclusive a embalagem do produto deve informar a sua origem. A regra específica é, porém, o art. 33 do CDC: "Art. 33. Em caso de oferta ou venda por telefone ou reembolso postal deve constar o nome do fabricante e endereço na embalagem, publicidade e em todos os impressos utilizados na transação comercial". Institui o art. 33, portanto, um novo dever para o fornecedor que quer utilizar-se destas técnicas agressivas de venda. Se o fornecedor descumprir seu novo dever os órgãos públicos, encarregados do controle da atuação do fornecedor no mercado, podem puni-lo administrativamente. Mesmo entidades de defesa do consumidor podem requerer ao Poder Judiciário que estipule prazo, e mesmo multa diária, para a adaptação do fornecedor às normas do Código. Se, porém, a venda ao consumidor já ocorreu, não prevê expressamente o art. 33 o caso de não haver identificação do vendedor, se o exercício do direito de arrependimento fica ou não obstado. Note-se que a falha na informação é um vício, segundo o art. 18 do CDC, logo toda a cadeia de fornecedores seria responsável. Se o consumidor não pode identificar quem era o vendedor ou quem era o seu patrão,{191} poderá reclamar mesmo do fabricante, o direito que lhe reserva o art. 18, § 1º, II do CDC. Mas, como o direito do art. 49 localiza-se na parte contratual do Código, fica, em princípio, por uma interpretação sistemática, restrito ao fornecedor efetivo. Se este não é identificável, torna-se inócuo o art. 49, restando ao consumidor apenas reclamar por vício do produto ou serviço. Seria salutar, portanto, que se acrescentasse um parágrafo ao art. 49 obrigando o fornecedor a identificar-se por escrito,{192} para poder praticar este tipo de venda a domicílio, uma vez que a jurisprudência pode considerar temerário o uso da analogia ao art. 33 para impor mais

um dever legal ao fornecedor. * (191) Segundo dispõe o art. 34 do CDC: "O fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos". (192) Norma semelhante encontra-se na Diretiva da Comunidade Econômica Européia sobre contratos negociados fora dos locais comerciais, de 1977, segundo noticia Stiglitz, p. 33; este autor considera normas semelhantes como uma acentuação da rigidez formal dos contratos, o que seria necessário para a proteção do consumidor destas práticas agressivas de vendas. (p. 371) No sistema do CDC, o art. 39, referente às práticas comerciais abusivas, pode acarretar para o fornecedor, além de uma sanção administrativa, a perda dos produtos enviados ao consumidor, sem solicitação prévia (inciso III c/c § 1.º). Esta norma, porém, não resolve nossa hipótese, em que o consumidor já pagou e não identifica quem foi o vendedor do produto. O segundo problema identificado pela lei francesa é o do método a ser utilizado pelo consumidor para validamente exercitar o seu direito de arrependimento. A lei francesa, em seu art. 3º, hoje art. 121-25 do Code, exige que a "carta de renúncia" seja recomendée" já a lei alemã; considera que o formulário-padrão de "desistência" pode ser enviado por carta normal, valendo o dia em que a carta foi postada, se dentro do prazo de um mês (§ 2.º da HaustürWG). No sistema do CDC, poderíamos sugerir que o consumidor também utilizasse o correio, enviando uma carta registrada, uma "AR", durante este prazo de 7 dias. Mas se o contrato foi firmado por telefone ou pessoalmente, seria possível usar a mesma forma do contrato para o distrato, restando apenas o problema de prova. A carta registrada parece ser a melhor solução, se bem que não possa ser generalizada para todos os casos, até porque o nível de alfabetização do brasileiro é muito diferenciado, e exigir a forma escrita pode ser um obstáculo para o exercício do direito. O terceiro aspecto a ser destacado é o campo de aplicação das leis estrangeiras. Tanto a lei alemã, como a lei francesa aplicam-se somente aos contratos concluídos fora do estabelecimento comercial, em virtude de vendas de porta-em-porta, mas, mesmo assim, limitam a sua aplicação a determinadas circunstâncias. A lei alemã, segundo dispõe o seu § 6.º não se considera aplicável: 1) quando o cliente fecha o contrato na condição de profissional liberal ou comerciante; 2) para contratos de securo.{193} A lei alemã especifica ainda que o direito de revogação da aceitação, segundo o § 1.º, alínea 2, não existe: 1) quando o consumidor requereu a visita do fornecedor ou o início das tratativas contratuais; 2) quando o contrato versar sobre objeto ou prestação equivalente a até 80 marcos alemães (40 dólares americanos); 3) * (193) Quanto à exclusão dos contratos de seguro, a doutrina alemã já se manifesta contrariamente, e segundo informava Teske, em fins de 1990, iniciaram-se os estudos para uma modificação legislativa, pp. 412 e 413 e von Hippel/ Fortschritte", p. 730. (p. 372)

quando a manifestação de vontade do consumidor for feita em cartório, frente ao Tabelião, com fé pública. A lei francesa de 1972 excluía de seu campo de aplicação, pelo art. 8.º os contratos que já são objeto de lei específica, assim como as vendas de produtos de fabricação caseira, e aqueles vendidos regularmente em feiras semanais ou através de veículos nas pequenas cidades e a venda de automóveis novos. No sistema brasileiro, não se mencionam exceções, mas se realmente o cliente é um consumidor, parece-nos que a aplicação do art. 49 ficaria afastado no caso do contrato ser daqueles de conclusão obrigatoriamente fora do estabelecimento comercial, como os feitos por escritura pública, pois a própria solenidade da forma já é a segurança necessária para o consumidor; assim também, por aplicação do princípio da boa-fé, se o consumidor solicitou a visita do fornecedor em seu domicílio ou local de trabalho. Quanto à exclusão dos chamados contratos de bagatela, não nos parece aceitável no caso e na realidade brasileira. O último aspecto que queremos destacar é a dificuldade no tratamento dos contratos de serviços. Poderá o consumidor exercer o seu direito de arrependimento do art. 49, no caso de serviços já executados, como poderão estes ser "devolvidos"? Ou a regra do art. 49, que menciona expressamente os "serviços", só se aplica aos serviços ainda não executados? Na interpretação que propomos acima, o direito de arrependimento é independente da possibilidade física da volta ao status quo, o direito é assegurado para liberar o consumidor do vínculo contratuaL sem ônus, devendo porém, restabelecer o seu parceiro contratual, o fornecedor, na situação que se encontrava antes da contratação. Neste sentido, seria possível ao consumidor exercer seu direito de arrependimento, mas teria que ressarcir o fornecedor pelo serviço já prestado. A pergunta que fica, portanto, é qual seria o interesse do consumidor em exercer este direito nos casos de contratação de serviços prestados a domicílio, daqueles de execução imediata. Se o consumidor não se obrigou a mais nada do que ao pagamento do serviço, manter o vínculo contratual lhe será de maior interesse, porque facilita a reclamação do serviço eventualmente defeituoso ou incompleto. O caso dos serviços, porém, deverá merecer um exame mais acurado da jurisprudência, pois historicamente muitos dos serviços devem ser prestados a domicilio, (p. 373) por sua própria natureza. A lei alemã{194} propõe a solução de se afastar o direito de arrependimento, se foi o consumidor que solicitou ao fornecedor vir até sua residência para, por exemplo, consertar o fogão, a geladeira, pintar a casa, ou reformar o banheiro. Solução semelhante não ofende os princípios do CDC, bem ao contrário se adapta perfeitamente à idéia de boa-fé obrigatória de ambas as partes tanto na fase pré-contratual como contratual. Concluindo esta análise do novo direito de arrependimento, instituído pelo art. 49 do CDC, é necessário reconhecer a dificuldade de classificar esta nova faculdade entre aquelas estruturas antigas e tradicionais, sistematizadas à época do domínio do dogma da autonomia da vontade. Cabe reconhecer que o art. 49 traz importante inovação prática no direito brasileiro, e se fundamenta em razões de justiça ao dificultar e regular a venda de porta-em-porta, com o fim de proteger o consumidor mais vulnerável. Como diziam os autores do Projeto de

Código Civil de 1975,{195} um Código deve ser algo dinâmico, mais operacional do que conceitual, "de modo a possibilitar a sua adaptação às esperadas mudanças sociais, graças ao trabalho criador da Hermenêutica, que nenhum jurista bem informado há de considerar tarefa passiva e subordinada". c) Vendas emocionais de time-sharing e vendas a distância - Nesta terceira edição, é necessário aprofundar a análise do art. 49 do CDC, incluindo dois novos tipos de venda agressiva, nos quais o direito de arrependimento sem causa do consumidor pode e deve ser assegurado: 1) nas vendas chamadas "emocionais", como as ocorridas no Brasil nos contratos de time-sharing ou multipropriedade; e 2) nas vendas a distância por meios instrumentais, tão antigos como a correspondência e o catálogo, e meios eletrônicos, novos como o teleshopping, as compras pela internet e por e-mail. Quanto ao primeiro tipo, parece-me efetivamente que o direito de arrependimento do art. 49 do CDC deve ser assegurado também em caso de vendas emocionais de time-sharing ou multipropriedade, interpretando-se, como tem reconhecido a jurisprudência brasileira, que tais vendas ocorrem "fora" do estabelecimento comercial normal, uma vez que o consumidor é convidado (por telefonemas, com sorteios e * (194) Haustür-WG, § 1.º (2). (195) Exposição de Motivos, pp. 14 e 15. (p. 374) premiações) a comparecer no estabelecimento comercial do vendedor ou representante, especialmente organizado para tal, onde então, em uma festa, coquetel ou recepção, onde se servem mesmo bebidas alcoólicas e onde um clima de sucesso, realização e prazer é oferecido através de vídeos, aplausos, brincadeiras e jogos, onde o consumidor é (des)Informado sobre o contrato e o assina, assim como o seu pagamento, garantido com a assinatura de vários boletos de cartão de crédito, tudo em um clima "emocional" de consumo e prazer que costuma arrefecer até mesmo advogados e juízes. No direito comparado observa-se que as técnicas legislativas de proteção aos consumidores em matéria de contratos de time-sharing visam Inicialmente garantir uma nova proteção da vontade dos consumidores, isto é, garantir uma autonomia real da vontade do contratante mais fraco.{196} Uma vontade protegida pelo direito, vontade liberta das pressões e dos desejos impostos pela publicidade e por outros métodos agressivos de venda, como os convites para festas e reuniões onde distribuem-se bebidas alcoólicas, visitas organizadas e gratuitas aos locais de lazer, oferecimento de prêmios e jogos, visitas, telefonemas e Contatos reiterados para fazer pressão.{197} A decisão irrefletida, não preparada, emocional do consumidor está ligada faticamente a uma série de perigos, vale lembrar os fenômenos atuais de superendividamento, insolvência, abusos contratuais, frustração das expectativas legítimas etc. As vendas de time-sharíng geralmente ocorrem através de métodos agressivos de marketing e contam com a decisão irrefletida, desinformada e emocional do consumidor.{198} * (196) Veja por todos, Tepedino, p. 7 e ss. (197) Veja Charbin, p. 216. (198) Veja decisão da 1ª Turma Recursal dos Juizados, Recurso 01196885485, Proc. 01196611964 de Porto Alegre, Rel. Juiz de Direito Wilson Carlos Rodicz: "Time-sharing. Tempo compartilhado. Nulidade das cláusulas

abusivas. Valor da causa e competência dos juizados/JEC. 1. O valor da causa, nesse tipo de pedido, corresponde ao bem da vida reivindicado - no caso o valor das prestações pagas e objeto do pedido de restituição. 2. Nulidade das cláusulas que colocam o consumidor em desvantagem exagerada (CDC 51, IV); possibilidade de denuncia do contrato a qualquer tempo em razão do vício de manifestação da vontade, captada em circunstâncias em que o descortino crítico estava prejudicado pela atmosfera criada pela vendedora (CDC, 46). Recurso desprovido". (p. 375) A Diretiva européia 94/47/CE de 26 de outubro de 1994 procura assegurar a vontade racional e refletida do consumidor através de três instrumentos: a) em seu anexo traz uma lista detalhada das informações e esclarecimentos que o contrato ou pré-contrato deve conter e em uma língua conhecida pelo consumidor; b) em seu art. 5, 1, prevê um direito de arrependimento imotivado de 10 dias a partir da assinatura do contrato ou do pré-contrato; c) em seu art. 5, 1, prevê igualmente um direito de arrependimento por 3 meses, caso algumas das informações previstas no anexo não constem do contrato ou pré-contrato ou não tenham sido convenientemente informadas ao consumidor. Caso o fornecedor informe ao consumidor o que faltava em seu pré-contrato ou contrato, a entrega destas informações reabrem o prazo de arrependimento de 10 dias, antes mencionado. O art. 5 da Diretiva também proibe o pagamento antes de 10 dias e exige a tradução do instrumento contratual em alguma língua conhecida do consumidor.{199} O Código de Defesa do Consumidor não prevê expressamente uma norma sobre o prazo de reflexão em caso de contratos de multipropriedade, apenas o artigo geral do direito de reflexão de 7 dias assegurados pelo art. 49 CDC. Na venda emocional do time-sharing, o consumidor não reflete sua decisão, obriga-se contratualmente de forma imediata e preenche boletos de cartões de crédito, que mais tarde comprometem o consumidor para o futuro e o obrigam a direcionar seu lazer de forma às vezes indesejável e por períodos que podem ser de até 30 ou mesmo 80 anos! A experiência demonstrou que em matéria de contratos de timesharing, pelo próprio poder de sedução da idéia de assegurar lazer e descanso nos dias de hoje, mesmo em caso de contratos formalizados e concluídos dentro dos estabelecimentos comerciais, o consumidor tem necessidade de um prazo extra para a reflexão. Como assevera Alberto do Amaral Júnior, assegurar somente informação correta "é insuficiente para garantir a proteção do consumidor se não lhe é deixado tempo necessário à formação livre e esclarecida da vontade".{200} O tempo, aliado à informação é eficiente, não a informação em estratégias diretas e agressivas de venda que só aumentam o desequilíbrio e a pressão nas tratativas contratuais. Esta reflexão pode evitar o * {199} Amtsblatt der EG, L 280/85. (200) Amaral Jr., Comentários, p. 188. (p. 376) superendividamento, evitar assumir obrigações indesejadas, assim como a insolvência em vínculos não refletidos e não desejados. O tempo e a informação são os novos instrumentos em tempos pós-modernos para combater a agora relevante "pressão" nos métodos agressivos e emocionais de venda.{201} A lei brasileira prevê um direito de reflexão e de arrependimento somente em caso de contratos concluídos fora do estabelecimento comercial (art. 49 do CDC), por exemplo, como no caso de venda a

domicílio ou por telefone etc. No Brasil, se podemos de um lado concluir pela intenção do legislador do CDC de proteger a "vontade racional" nos contratos fora do estabelecimento comercial, é necessário interpretar esta norma do art. 49 do CDC de forma aberta, para poder incluir os mais variados métodos de contratação emocional em matéria de time-sharing e o marketing direto.{202} Muitos destes métodos agressivos de convencimento e estratégias de venda são executados dentro do "pretenso" ou aparente estabelecimento comercial do organizador de vendas ou do projeto de lazer, em festas, em reuniões e com distribuições de pretensos prêmios gratuitos. Assim tem decidido sabiamente a jurisprudência brasileira: "Contrato particular de promessa de compra e venda de fração ideal 1/52 de unidade a ser construída em condomínio. Utilização por períodos anuais. Tempo compartilhado. Cláusulas abusivas. Decretação de nulidade de ofício. Direito de arrependimento. Código de Defesa do Consumidor. Art. 49. Desconhecimento das cláusulas relativas ao uso do imóvel. 1. O juiz pode decretar de ofício a nulidade de cláusulas abusivas estipuladas em contratos abrangidos pelo Código de Defesa do Consumidor. Hipótese em que houve pedido expresso dos autores. * (201) Assim ensina a decisão da 1.ª Turma Recursal dos Juizados, Recurso 01196885485, Proc. 01196611964 de Porto Alegre, Rel. Juiz de Direito Wilson Carlos Rodicz: "No mérito, não há dúvida de que a captação da vontade do adquirente encontra-se viciada. O método de venda excessivamente agressivo praticado pela ré comporta as acusações feitas na inicial de que foi vítima de pressão psicológica para aderir a um empreendimento sem possibilidade de reflexão" (p. 1). (202) Neste sentido Nery, anteprojeto, p. 330 e ss., frisa que o art. 49 do CDC é exemplificativo e deve ser interpretado extensivamente conforme seu espírito protetor. (p. 377) 2. Para o efeito do exercício do direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC, equipara-se a contratação realizada fora do estabelecimento comercial aquela em que o consumidor, comparecendo em local indicado pelo fornecedor, em razão da estratégia adotada, e submetido a forte pressão psicológica que o coloca em situação desvantajosa, que o impede de refletir e manifestar livremente sua vontade. Hipótese em que o consumidor, atendendo convite por telefone, assiste à apresentação do empreendimento mediante explanações e exibição de vídeo durante aproximadamente três horas, sendo obsequiado com coquetel, assina contrato que somente lá pode ser examinado. 3. Não obriga o consumidor o contrato celebrado, em que as cláusulas relativas ao uso do imóvel adquirido pelo sistema de tempo compartilhado constam de Regulamento que somente lhe foi entregue depois da assinatura do contrato. Recurso desprovido".{203} As novas normas de proteção ao consumidor, se querem ser efetivas em matéria de contratos de time-sharing, devem assegurar o direito de arrependimento em determinado lapso de tempo aos consumidores, pois só assim combateremos de forma eficaz a venda emocional e os métodos agressivos de marketing usados pelos forne-

cedores de time-sharing e poderemos alcançar uma vontade realmente refletida, vontade "racional" e legitimadora do consumidor destes serviços. A boa-fé assim concretizada significa transparência obrigatória em relação ao parceiro contratual, um respeito obrigatório aos normais interesses do outro contratante, uma ação positiva do parceiro contratual mais forte para permitir ao parceiro contratual mais fraco as condições necessárias para a formação de uma "vontade racional". Assim compreendeu a jurisprudência brasileira: "Contrato de multipropriedade. Promessa de compra e venda de fração ideal 1/52 de unidade a ser construída em condomínio. Utilização por períodos anuais. Direito de arrependimento. Código de Defesa do Consumidor. Art. 49. Prática comercial agressiva. * (203) Acórdão de 10 de setembro de 1996, 9.ª Câmara Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul/TARGS, Rela. Maria Isabel de Azevedo Souza, n. 196115299, publicado na íntegra na Revista de Direito do Consumidor, v. 22, p. 239-243. (p. 378) 1. O direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC tem por escopo proteger o consumidor da prática comercial agressiva que o impede de refletir e manifestar livremente sua vontade. 2. Conquanto celebrado na sede do fornecedor, é de se assegurar ao consumidor o direito de arrependimento também aos contratos, cuja formulação foi antecedida de prática comercial agressiva que o coloca em situação de desequilíbrio que não lhe permite refletir. Hipótese em que a oferta é feita em ambiente que mais aparenta uma reunião social durante a qual o consumidor é submetido a forte pressão psicológica que enfraquece seu poder de avaliação das condições e conveniência do negócio. Recurso improvido".{204} Na Diretiva européia este direito de arrependimento é de dez dias (art. 5, 1, primeira hipótese) e pode alcançar até mesmo três meses em caso de falha na informação ao consumidor ou na redação dos contratos de adesão (artigo 5, 1, segunda hipótese).{205} O prazo de dez dias parece um melhor prazo do que os sete dias assegurados pelo Art. 49 do CDC. Certo é que a atuação do Ministério Público no controle abstrato dos contratos de adesão tem assegurado que este prazo de sete dias seja informado ao consumidor e o arrependimento imotivado do consumidor dos contratos de time-sharing seja permitido. O resultado foi excelente, pois somente a imposição deste prazo de reflexão e o exercício reiterado do direito de arrependimento (imotivado) do consumidor podem tornar o uso dos métodos de venda emocional de contratos de time-sharing obsoleto. Isto é, mesmo levado pela emoção, pode o consumidor refletir melhor em sua casa, informar-se melhor e decidir com calma, se deseja manter ou não a obrigação assumida no impulso e na pressão das reuniões de venda, tornando sem utilidade a venda agressiva ou emocional. Necessária para a efetividade do novo direito de reflexão e arrependimento é a vinculação entre o contrato principal de time* (204) Acórdão de 17 de dezembro de 1996, 9.ª Câmara TARGS, Rela. Maria Isabel de Azevedo Souza, n. 196233506. Veja também decisão na Ap. Civ. 196.182.760 de 19 de novembro de 1996 da mesma relatora, publicada na

íntegra na Revista de Direito do Consumidor, 21, p. 185-188. Veja ainda sobre time-sharing acórdãos do TARS in Revista de Direito do Consumidor, v. 22, p. 234 e ss., p. 237 e ss., p. 239 e ss. e p. 243 e ss. (205) Amtsblatt der Eg L 280/85, 29.10.94. (p. 379) sharing, que se termina sem causa, e as cobranças já assinadas de débito na empresa de cartão de crédito do consumidor. A vinculação causal entre estes dois negócios principal e acessório deve ser reconhecida pelo Judiciário brasileiro e determinado o bloqueio também da cobrança nos cartões de crédito. O CDC estabelece nos arts. 18 e 20 uma responsabilidade solidária da cadeia de fornecedores pelo bom cumprimento da obrigação contratual. Esta solidariedade presumida de toda a cadeia de fornecedores poderá ser usada para requerer a suspensão do pagamento dos boletos de cartões de crédito usados para garantir o pagamento futuro do time-sharing, caso o consumidor queira rescindir ou o inadimplemento por parte dos fornecedores esteja sendo discutido em juízo. Quanto ao segundo tema, trata-se das vendas ou contratações a distância, conhecidas como vendas por catálogo ou por correspondência, que hoje se servem da ajuda de meios de telecomunicação, como o teleshopping, com contratação por televisão, por telefone e mesmo por internet, por e-mail etc. O art. 49 do CDC menciona expressamente estas vendas, todas direta ou indiretamente realizadas através de telefones, como incluídas em seu campo de aplicação. Sobre este último método de venda é necessário frisar que, em 20 de maio de 1997, foi aprovada uma norma européia justamente sobre o assunto. A Diretiva 97/7/CE sobre vendas a distância com marketing direto{206} pretende harmonizar internamente as condições e garantias da compra ou fornecimento de serviços e produtos a distância através de técnicas de comunicação para os consumidores no mercado europeu.{207} Trata-se de uma Diretiva mínima e esPecífica, isto é, normas obrigatórias para os governos dos 15 países-membros da União Européia, que deve transformá-la em lei ou em norma interna, realizar seu objetivo material, incorporando este novo patamar mínimo de proteção e garantia ao direito interno, sempre que os negócios envolvam consumidores. A Diretiva 97/7, ao contrário das históricas Diretivas sobre fato do produto e vendas fora do estabelecimento comercial e * (206) Richtlinie 97/7/EG über den Verbraucherschutz bei Vertragsabschlüssen im Fernabsatz, 20.5.1997, in Amtsblatt der EG, 4.6.97, Nr. L 144/19-28. (207) Sobre a referida Diretiva veja nossos comentários na Revista de Direito do Consumidor, v. 24 e o texto de Marco Antonio Schmitt, na Revista de Direito do Consumidor, v. 25, com texto da Diretiva em português. (p. 380) publicidade enganosa, possui um reduzido campo de aplicação (art. 1, Diretiva 97/7). Suas normas são aplicáveis somente nos negócios entre um profissional, fornecedor, e um consumidor, definido como tal na Diretiva (art. 2, alínea 2), como qualquer pessoa física, que conclua os contratos objeto da Diretiva sem objetivo profissional ou fora de sua atividade profissional.{208} A elaboração de Diretivas específicas para proteção dos consumidores, excluindo-se os negócios concluídos entre profissionais e os negócios concluídos por pessoas jurídicas, deve-se, em parte, ao Tratado de Maastricht, que transferiu para a União Européia expressa

competência para legislar em matéria de defesa do consumidor, mesmo que subsidiariamente.{209} A Comissão da Comunidade tem utilizado esta autorização com sabedoria e, como no caso da Diretiva sobre cláusulas abusivas, legislado de forma mínima, permitindo que os países mantenham legislações mais protetivas,{210} harmonizando e não unificando as legislações, ao mesmo tempo em que impede as distorções na concorrência e os danos aos consumidores no mercado europeu.{211} A Diretiva 97/7/CE foi precedida pela Recomendação da Comissão 92/295/CEE, de 7 de abril de 1992, sobre um código de conduta para a proteção dos consumidores em caso de vendas a distância entre ausentes por telefone, televisão ou através de computadores.{212} Estas novas tecnologias de comunicação, aliadas ao chamado marketing direto ou agressivo, acrescentaram à vulnerabilidade técnica e jurídica do consumidor novos problemas, como a crescente internacionalidade * (208) No original: "2. "Verbraucher" jede natürliche Person, die beim AbschluB von Verträgen in Sinne dieser Richtlinie zu Zwecken handelt, die nicht ihrer gewerblichen oder beruflichen Tätigkeit zugerechnet werden können;" (in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/21). (209) Veja como base legal: art. 100ª c/c art. 129a e art. 3, letras B e S, todos do Tratado de Roma CEE, modificado pelo Tratado de Maastricht. (210) Veja art. 14 da Diretiva 97/7, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/24. (211) Veja os nossos comentários: União Européia legisla sobre cláusulas abusivas: Um exemplo para o Mercosul, acompanhados do Texto na íntegra da Diretiva 93/13/CEE do Conselho das Comunidades Européias de 5 de abril de 1993, in Revista de Direito do Consumidor, v. 21, p. 300 a 310. (212) Considerando Nr. 18 da Richtlinie 97/7/EG, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/20. (p. 381) de relações, antes simples e nacionais, como a compra de livros ou de utilidades domésticas. Efetivamente, e também no Brasil, parte da oferta de produtos e serviços é dirigida aos consumidores passivos, assim entendido aqueles consumidores que se encontram em seu mercado nacional e, sem necessitar deslocar-se fisicamente de seu país, que recebem a oferta ou publicidade, oriunda de empresas e fornecedores de outros países, nem sempre com filiais no mercado de comercialização, através de novos meios de comunicação. É o chamado marketing direto, com telefonemas, oferecimento de produtos através da televisão (teleshopping), de computadores (home pages, e-mail, catálogos informatizados etc.). Estas novas técnicas permitem que o consumidor sem sair de sua casa contrate internacionalmente, ainda mais na Europa atual, com plena liberdade de circulação de produtos e de crescente liberdade de estabelecimento e de prestação de serviços. Na América Latina, com a abertura da economia, Liberalização das importações e massificação dos computadores, o mercado informatizado tende a aumentar, sem falar nas vendas antigas por catálogo e correspondência, além do novo teleshopping, já comuns entre nós.{213} A União Européia concluiu que a introdução de tais técnicas de venda e de comunicação (Fernkommunikationstechnik) não deveria

diminuir as garantias e a informação fornecida ao consumidor passivo, motivo pelo qual intervém harmonizando as legislações de forma a assegurar um patamar mínimo de respeito a todos os consumidores que utilizarem destas facilidades no mercado europeu.{214} Este é um exemplo a ser seguido, inclusive pelo Mercosul. O Anexo 1 da Diretiva traz uma lista de treze métodos de comercialização a distância englobados pela Diretiva, entre os quais se encontram os tradicionais métodos do envio de prospectos, com cartão-resposta, o envio de catálogos para compraS, assim como os novos métodos, como a venda por telefone, com ou sem pessoa de contato, por videotexto, televisão, computadores, e-mail, telefax, e teleshopping.{215} No texto da Diretiva destacam-se os arts. 2 e 3 dedicados a estabelecer o campo de aplicação da diretiva, trazendo o art. 2 as * (213) Veja sobre estes métodos mais tradicionais, Amaral Jr., p. 208 e ss. (214) Veja Considerandos Nr. 9 a 14, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/19 e 20. (215) Anhang I, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/26. (p. 382) definições de contráto concluído com utilização de métodos de comunicação a distância (alínea 1), de consumidor (alínea 2), de fornecedor de produtos e serviços (alínea 3), de técnica de comunicação a distância, definida como aquela que permite a contratação sem a presença física simultânea de ambos os contratantes ou seus representantes{216} (alínea 4) e de organizador de técnicas de comunicação a distância, assim considerado o terceiro profissional, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, cuja atividade profissional consiste em colocar à disposição dos fornecedores uma ou várias técnicas de comunicação (e/ou contratação) a distância (alínea 5).{217} Excluídos do campo de aplicação desta Diretiva estão alguns contratos e serviços mencionados no Anexo II, que envolvem serviços bancários, seguros e papéis de crédito, regulados por Diretivas específicas.{218} No mérito, assegura o art. 4 da Diretiva 97/7/CE um extenso direito de informação do consumidor, exigindo que o consumidor seja informado da identidade e do endereço do fornecedor, das características básicas do serviço ou produto oferecido, do seu preço e dos impostos , assim como dos custos de envio e de custos do pagamento ou taxas extras necessárias à prestação (por exemplo, taxa de embalagem, empacotamento especial, postagem etc.).{219} O consumidor deverá ser também informado sobre o custo da comunicação ou da utilização do método de comunicação a distância, se diferente da tarifa básica, sobre o seu direito de arrependimento, sobre o prazo de validade da oferta ou do preço especial, assim como sobre o prazo de duração mínimo do contrato e a forma de sua renovação, o prazo de entrega do bem ou execução do serviço, os detalhes da forma * (216) A Diretiva evita a utilização da expressão "contrato entre ausentes" e prefere mencionar expressamente que "não simultânea presença física corpórea dos contratantes" ("ohne gleichzeitige körperliche Anwensenheit der Vertragsparteien") e traz em seu Anexo 1 uma lista exemplificativa destas atividades, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/21, e Anexo 1, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/26. (217) Veja art. 2, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/21.

(218) São mencionadas especificamente as Diretivas 93/22/CEE, 89/646/CEE, 73/239/CEE, 79/267/CEE, 64/225/CEE, 92/49/CEE, 92/96/CEE, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/27. (219) Veja art. 4, alínea 1, letras a a d, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/22. (p. 383) da prestação e a regularidade com que estes serviços serão prestados.{220} O art. 4 exige ainda que a intenção comercial do contato e das informações prestadas seja expressa, assim como que os países apliquem as normas nacionais de proteção dos incapazes, procurando adaptar este tipo de oferta "eletrônica" às exigências da segurança do tráfico e da boa-fé.{221} Segundo o art. 5 estas informações devem ainda ser confirmadas por escrito ou, se acessível ao consumidor, por e-mail durante o período em que se realizarem as prestações. Caso a prestação seja única e imediata, deverá o consumidor mesmo assim ser informado do endereço do fornecedor, prevalecendo o direito de arrependimento. A importância deste novo dever de informar imposto ao fornecedor de produtos e serviços a distância será dada pela norma do art. 6, pois se o prazo normal e geral para que o consumidor arrependa-se sem causa é de sete dias úteis a contar da contratação dos serviços ou entrega da coisa, em caso de descumprimento de qualquer dos novos deveres de informação do art. 5, o prazo dilatase para três meses, podendo o prazo de sete dias recomeçar no momento em que a informação da identidade do fornecedor chegou ao consumidor. Em caso de exercício do direito de arrependimento deve o fornecedor devolver (sem cobrança de qualquer valor ou taxa) todos os valores recebidos e o consumidor suportar somente os custos da devolução física do produto ou serviço ao fornecedor. A regra do art. 6 da Diretiva é, naturalmente, bastante complexa, pois contempla os vários tipos de contratação a distância. os vários tipos de serviços, mesmo os de prestação única, excluindo apenas a possibilidade de arrependimento sem causa somente nos contratos envolvendo bolsa de valores, fornecimento de software e gravações de vídeo e áudio (se o selo de fechamento for retirado pelo consumidor), assinaturas de jornais e revistas e contratos envolvendo jogos, loterias e sorteios (art. 6, alínea 3). A ratio desta norma merece, porém, um destaque especial, pois exige uma autonomia de vontade qualificada, diríamos, "racional" para vincular o consumidor de forma definitiva, aumentando o risco profissional sempre que o fornecedor não informar corretamente. Em uma visão pós-moderna, a comunicação legitima o consenso e materializa-se, criando uma espécie de * (220) Veja art. 4, alínea 1, letras e a i, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/22. (221) Veja art. 4, alíneas 2 e 3, in Amtsblatt der EG.Nr. L 144/22. (p. 384) formalidade informativa que, se não cumprida, acaba por aumentar os riscos do fornecedor de ver seu esforço de marketing frustrado com o arrependimento (mesmo após meses...) do Consumidor. Ainda mencione-se que o art. 9 da Diretiva proibe o envio, sem prévia solicitação, de produtos ou fornecimento de serviço, se um pagamento é solicitado ou cobrado, considerando que o silêncio ou omissão do consumidor não deve ser considerado como aceitação tácita.

Outra importante novidade da Diretiva é a expressa menção, no art. 6, alínea 4, da Diretiva, que o financiamento (por cartão de crédito ou através de compra a prestações) conexo ou concluído em virtude de uma contratação a distância também dissolve-se, sem custos para o consumidor, quando este exerce regularmente seu direito de arrependimento. A norma deixa para os Estados a forma de realizar esta "dissolução" (Auflössung) do contrato secundário (financiamento) em virtude da extinção do contrato principal (contrato a distância). Esta norma deve ser saudada por todos da família continental européia, como mais do que salutar, uma vez que nos contratos concluídos através da Internet e por e-mail a forma de pagamento mais usada é o cartão de crédito. A norma do art. 6, alínea 4, da Diretiva conecta expressamente esta relação triangular de consumo e obriga a empresa de cartão de crédito a desconsiderar a primeira ordem de cobrança ou desconto, em virtude do exercício do direito de arrependimento por parte do consumidor, seu cliente. A preocupação com esta forma de pagamento por cartão é tanta, que o art. 8 da Diretiva prevê as sanções em caso de má ou errônea utilização do cartão de crédito, cobrança errada, falsificação ou falsidade e a devolução para o consumidor da quantia paga, descontada ou cobrada.{222} Na jurisprudência brasileira, identifica-se ainda alguma dificuldade de conectar estes negócios acessórios de consumo com os negócios principais. Este formalismo de pensamento, em épocas de Pós-modernidade, pode resultar em injustiças materiais sérias. Certo de que o CDC brasileiro também foi tímido neste aspecto, Poderia existir uma norma explícita sobre o tema, vinculando os contratos, mas aqui o recurso a tradicional visão causal de nossos negócios e a regra de que o acessório segue o principal poderiam evitar que dívidas (monstruosas, como no caso do time-sharing) fossem * (222) Veja art. 8, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/23. (p. 385) cobradas apesar de rescindido o contrato principal de consumo ou de qualquer maneira frustrado o vínculo. A pluralidade aqui é de contratos, mas também de sujeitos. Relembre-se que o CDC estabelece nos seus arts. 18 e 20 uma responsabilidade solidária da cadeia de fornecedores pelo bom cumprimento da obrigação contratual. Esta solidariedade presumida de toda a cadeia de fornecedores poderá ser usada para requerer a suspensão do pagamento dos boletos de cartões de crédito usados para garantir o pagamento futuro do contrato, caso o consumidor queira rescindi-lo, ou no caso do inadimplemento por parte dos fornecedores esteja sendo discutido em juízo. Tendo em vista nova garantia legal de prestação de serviços adequados e da qualidade, que o CDC introduz, por norma de ordem pública, em seus arts. 24 e 25, garantia esta mínima e que não poderá ser excluída por cláusulas contratuais, as normas do CDC acabam por atingir toda a cadeia de fornecedores envolvida, direta ou indiretamente na satisfação das expectativas legítimas contratuais dos consumidores. Como mencionamos anteriormente, o CDC impõe uma nova proteção da confiança despertada no grupo de consumidores pela atuação dos fornecedores, ao forçar os que estejam envolvidos direta ou indiretamente com contratos a distância (que necessitam do pagamento por cartões) que cumpram com as informações prestadas e as promessas feitas por seus vendedores, mesmo que autônomos, e representantes. O art. 34 do CDC brasileiro chega a estabelecer uma solidariedade entre o fornecedor, que contratou com o consumidor, e seus vendedores,

mesmo que autônomos, quanto mais em contratos vinculados ou acessórios como estes. Mencione-se ainda também que, se os pagamentos são feitos por cartão de crédito, dispõe o fornecedor do número do cartão do consumidor e pode - pelas técnicas atuais das empresas administradoras de cartões - usá-lo, seja para renovações contratuais forçadas, seja para outras cobranças sem causa, como ameaçam alguns fornecedores infelizmente no Brasil. Este é um novo perigo para o consumidor, ainda mais nas compras por Internet, que pode se tornar cativo daquele que uma vez lhe forneceu algo, de forma que uma vez assinada uma revista, uma televisão a cabo etc., não mais consiga se desvincular contratualmente, como temos observado. A técnica do pagamento por cartões facilita a vida dos consumidores, mas deve interessar ao direito, que necessariamente deve adaptar-se a este fenômeno econômico e regulá-lo. (p. 386) Neste caso, é importantíssima a atuação da jurisprudência brasileira, primeiro aceitando que tais causas sejam decididas no Juizado Especial de Pequenas Causas, pois, mesmo se causas de consumo envolvem elementos de estraneidade e normas de direito internacional privado, encontram ali sua melhor solução, se não há complexidade de prova.{223} Se a prova é simples e o valor da causa reduzido, parece-me que os Juizados encontram base em sua própria legislação para atuar e resolver de forma rápida e eficiente o problema do consumidor. Em segundo lugar, a atuação da jurisprudência brasileira é importante ao estabelecer a vinculação dos boletos assinados (em branco) ou préassinados (no início da relação de consumo) com o desenrolar da relação principal de consumo, ou se estará permitindo aos fornecedores cobrar sem prestar. O recurso ao direito tradicional, como à exceção de contrato não cumprido, e acessoriedade dos negócios deveria evitar que estas cobranças sem causa ocorressem ainda com tanta freqüência no mercado brasileiro. Por fim, mencione-se uma falha na norma do art. 49 do CDC.{224} A referida norma do CDC não engloba um prazo de reflexão em caso de contratos envolvendo crédito. De acordo com o mestre françês Jean Calais-Auloy, o crédito faz nascer dois perigos para o consumidor que não reflete sua decisão: leva a compras desnecessárias e compromete o consumidor para o futuro.{225} A experiência demonstrou que mesmo em caso de contratos formalizados e concluídos dentro dos estabelecimentos comerciais, como normalmente o são os contratos de crédito, o consumidor tem necessidade de um prazo extra para a reflexão.{226} Esta reflexão pode evitar o superendividamento, as compras inúteis, a insolvência e inúmeras violações contratuais, em vínculos não refletidos e não desejados. O direito alemão conhece desde 1974 um * (223) Veja decisões citadas anteriormente e Processo 01597096162 JEC/RS, publicado na íntegra na Revista de Direito do Consumidor, v. 25. (224) Concorda com a crítica Lopes, in R. Inf. Legisl. 129, p. 113. (225) Calais-Auloy, Les cinq réformes, p. 20. No original, "Le crédit fait peser un double danger sur le consommateur qui ne réfléchit pas: il pousse à des achats mutiles et il engage pour l’avenir". (226) Note-se que as recentes Diretivas européias (87/102/CEE e 90/88/CEE) sobre o tema não mais generalizaram o direito de reflexão, veja ABI. Nr.

L 42,S.48 e ABI. Nr. L 61.S.14 EWG, reproduzido in: Hommelhof, P./ Jayme, E., p. 134 e ss. (p. 387) semelhante prazo de reflexão de sete dias em caso de contratos de crédito ao consumo (antigo § 6 da Abzahlungsgesetz introduzido em 15.05.74 e atual § 7 da Verbraucherkreditgesetz, de 17.12.90). Este prazo de reflexão é considerado como o instrumento principal de proteção do consumidor,{227} com seu caráter preventivo e pedagógico, mesmo se as estatísticas demonstram que a utilização deste direito não é tão freqüente quanto se imagina.{228} * (227) Assim Bülow, p. 127 a tendência em direito comparado é garantir estes direitos de reflexão não somente em caso de venda a domícilio, mas também em casO de contratos "estacionários", como os contratos de crédito e de seguros. Veja também Teske, in NJW 91, p. 2.793. (228) De acordO com as estatísticas alemãs o arrependimento depende do tipo de contrato e pode variar entre 0,5% a 5% dos contratos, veja Scholz, p. 128. (p. 388) 4. PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR QUANDO DA EXECUÇÃO

DO CONTRATO

SUMARIO: 1. Princípio básico da eqüidade (equilíbrio) contratual 1.1 Interpretação pró-consumidor. Visão geral - 1.2 Proibição de cláusulas abusivas: a) Características gerais das cláusulas abusivas; b) Da nulidade absoluta das cláusulas abusivas; b.1 Lista única de cláusulas abusivas; b.2 Autorização excepcional de modificação de cláusulas; c) As cláusulas consideradas abusivas; c.1 A lista do art. 51; c.2 A norma geral do inciso IV do art. 51; c.3 As cláusulas identificadas pela jurisprudência - 1.3 Controle judicial dos contratos de consumo: a) Controle formal e controle do conteúdo dos contratos; b) Controle concreto e em abstrato; c) Papel do Ministério Público e das entidades de proteção ao consumidor - 1.4 Novas linhas jurisprudenciais de controle do sinalagma contratual e de recurso à ineficácia de cláusulas: a) A tendência de ineficácia de cláusulas não informadas ou destacadas corretamente; b) A tendência de revitalização do sinalagma no tempo e correção monetária; c) A tendência de controle da novação contratual e do equilíbrio - 2. Princípio da confiança - 2.1 Novo regime para os vícios do produto: a) Vícios de qualidade e vícios por inadequação; b) Vícios de qualidade por falha na informação; c) Vícios de quantidade - 2.2 Novo regime para os vícios do serviço: a) vícios de qualidade dos serviços; b) Vícios nos serviços de reparação; c) Vícios de informação - 2.3 Garantia legal de adequação do produto e do serviço: a) Noções gerais; b) Garantia legal e novo prazo decadencíal; c) Relação da garantia contratual com a garantia legal - 2.4 Garantia legal de segurança do produto ou do serviço (Responsabilidade extracontratual do fornecedor): a) Deveres do fornecedor de produtos perigosos; b) Limites da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço - (A responsabilidade do comerciante); c) Direito de regresso - 2.5 Inexecução contratual pelo consumidor e cobrança de dívidas - 2.6 Inexecução contratual pelo fornecedor e desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: a) Noções gerais; b) A desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (p. 389)

Como afirmamos anteriormente, a proteção dos interesses e expectativas dos consumidores acompanhará o transcorrer das prestações contratuais, a execução do contrato, o cumprimento dos deveres principais e dos deveres acessórios,{1} instituindo inclusive uma proteção pós-contratual, como a obrigação de continuar a produzir peças de reposição, de manutenção técnica dos produtos, de prestar informações sobre as novas descobertas em relação à periculosidade do produto.{2} Para proteger a confiança do consumidor, instituíram-se novas garantias legais de adequação do produto, de segurança e fala-se mesmo em garantia da durabilidade.{3} Para proteger o equilíbrio contratual, a eqüidade de distribuição de direitos e deveres contratuais, serão as cláusulas abusivas afastadas por normas imperativas. Sistematizaremos a nossa análise com a ajuda de dois novos princípios básicos introduzidos pelo CDC em nosso ordenamento jurídico, que denominaremos aqui de Princípio da Eqüidade (Equilíbrio) Contratual e Princípio da Proteção da Confiança, das legítimas expectativas criadas pelo vínculo. Neste ponto da análise queremos frisar que, apesar dos vetos presidenciais, o CDC não instituiu somente um novo controle formal dos contratos de consumo, controle da manifestação da vontade livre e refletida, mas institui também um controle do conteúdo dos contratos de consumo, controle da eqüidade de suas cláusulas de suas prestações e contraprestaçÕes, dos direitos e deveres dele resultantes, controle que será exercido pelo Poder Judiciário, com a ajuda do Ministério Público e das Entidades de Proteção ao Consumidor, e que tem se mostrado eficaz. 1. Princípio básico da eqüidade (equilíbrio) contratual Note-se que, concluído o contrato entre o fornecedor e o consumidor, quando o pacto deve surtir seus efeitos, deve ser executado pelas * (1) Segundo Bourgoignie/"Clauses", p. 512, a proteção dos consumidores deve ser a garantia contra todas as manifestações abusivas do desequilíbrio econômico, técnico e fático que caracteriza as relações entre estes e os fornecedores. (2) Veja, sobre a necessidade de proteção pós-contratual do consumidor, Ferreira de Almeida, pp. 28 e ss. (3) Assim Benjamin/Comentários, p. 33. (p. 390) partes, impõe a nova Lei o respeito a um novo princípio norteador da ação das partes, é o Princípio da Eqüidade Contratual, do equilíbrio de direitos e deveres nos contratos, para alcançar a justiça contratual. Assim, institui o CDC normas imperativas, as quais proibem a utilização de qualquer cláusula abusiva, definidas como as que assegurem vantagens unilaterais ou exageradas para o fornecedor de bens e serviços, ou que sejam incompatíveis com a boa-fé e a eqüidade (veja o art. 51, IV do CDC). O Poder Judiciário declarará a nulidade absoluta destas cláusulas, a pedido do consumidor, de suas entidades de proteção, do Ministério Público e mesmo, incidentalmente, ex officio. A vontade das partes manifestada livremente no contrato não é mais o fator decisivo para o Direito, pois as normas do Código instituem novos valores superiores como o equilíbrio e a boa-fé nas relações de

consumo. Formado o vínculo contratual de consumo, o novo direito dos contratos opta por proteger não só a vontade das partes, mas também os legítimos interesses e expectativas dos consumidores. O princípio da eqüidade, do equilíbrio contratual é cogente; a lei brasileira, como veremos, não exige que a cláusula abusiva tenha sido incluída no contrato por "abuso do poderio econômico" do fornecedor, como exige a lei francesa,{4} ao contrário, o CDC sanciona e afasta apenas o resultado, o desequilíbrio, não exige um ato reprovável do fornecedor; a cláusula pode ter sido aceita conscientemente pelo consumidor, mas se traz vantagem excessiva para o fornecedor, se é abusiva, o resultado é contrário à ordem pública, contrária às novas normas de ordem pública de proteção do CDC e a autonomia de vontade não prevalecerá. 1.1 Interpretação pró-consumidor. Visão geral O primeiro instrumento para assegurar a eqüidade, a justiça contratual, mesmo em face dos métodos unilaterais de contratação em massa, é a interpretação judicial do contrato em seu favor. Inspirado no art. 1.370 do Código Civil Italiano de 1942, o CDC, em seu art. 47, institui como princípio geral a interpretação pró-consumidor das cláusulas contratuais. * (4) A lei francesa, segundo ensina Carmet, p. 16, para caracterizar uma cláusula como abusiva exige a cumulação de três circunstâncias: 1) presente em um contrato entre profissional e consumidor, 2) imposta por abuso do poder econômico, 3) que assegure vantagem excessiva. (p. 391) Segundo a regra tradicional do art. 85 do Código Civil, nas declarações de vontade dever-se-ia "atender mais à sua intenção que ao sentido literal de sua linguagem". portanto, sob o pretexto de "procurar" a vontade "real",{5} interna do aderente ao contrato, a jurisprudência brasileira foi evoluindo no sentido de interpretar cada vez mais positivamente para o consumidor as cláusulas dos contratos de adesão, principalmente em caso de dúvida ou lacuna do contrato.{6} A evolução se deu principalmente quanto aos contratos de seguro. Nesse sentido, basilar a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Quinta Câmara, que afirmou ser possível interpretar cláusula geral de negócio, presente em contrato de seguro, quando omisso o contrato sobre hipótese ocorrida (no caso de suicídio), a favor da beneficiária de seguro.{7} Em verdade, tratandose de contratos de seguro a jurisprudência brasileira, por vezes, chegou mesmo a desconsiderar algumas cláusulas do contrato, sem base legal, mas recorrendo a ficção de que não teria havido consenso sobre aquelas. Exemplo desta postura, pode ser encontrada na decisão, de 1976, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que ao discutir a previsão de exclusão do prêmio, asseverou: "O seguro de vida em grupo é contrato de adesão, em que o aderente não toma conhecimento dos dizeres impressos, mais ou menos inúteis; é de qualquer modo fraca a prova de que a parte tomara ciência do seu conteúdo. A falarse em presunção, mais curial é que milite ela a favor de quem mais perde que ganha e não quem mais ganha que perde".{8} Esta tendência de exigir o consentimento expresso do consumidor para algumas cláusulas, como veremos, tem origem na doutrina italiana e em seu Código Civil de 1942, mas permitiu que a doutrina brasileira desenvolvesse a regra de que a cláusula escrita à mão ou adicionada

a pedido pelo consumidor teria prevalência em relação àquela impressa.{9} * (5) Veja RT370/310. (6) Veja RT612/163. (7) Apelação Cível 588018648, julgamento em 3 de abril de 1988, TJRGS, 5.ª CC, publicado na Revista de Jurisprudência do TJRS 129, p. 410, veja igualmente a Súmula 105 do STF. (8) Apelação cível 89.077, TJRJ, publicado na RT 487/181. (9) Sobre interpretação dos contratos, no sistema tradicional, veja Miranda, pp. 169 e ss. (p. 392) O Projeto de Código Civil{10} prevê, em seu art. 423, o recurso a interpretação mais favorável ao aderente (interpretação contra proferentem). O art. 47 do CDC representa, porém, uma evolução em relação a essa norma e à do art. 85 do CCB, pois beneficiará a todos os consumidores, sendo que agora a vontade interna, a intenção não declarada, nem sempre prevalecerá. O direito opta por proteger o consumidor como parte contratual mais débil, a proteger suas expectativas legítimas, nascidas da confiança no vínculo contratual e na proteção do direito. Assim, a vontade declarada ganha em importância (nova noção de oferta), assim como a boa-fé das partes. Se a interpretação contra proferentem já era conhecida e utilizada no direito brasileiro, é necessário frisar que, após o advento do CDC, a interpretação dos contratos de consumo apresenta um outro elemento diferenciador. O intérprete do contrato de consumo deve necessariamente observar não só a regra do art. 47 do CDC, mas todas as normas do Código que dispõem (e incluem) novos direitos e deveres para o consumidor e para o fornecedor. Em outras palavras, o conteúdo do contrato a interpretar não é somente aquele "posto" em cláusulas préredigidas unilateralmente pelo fornecedor, mas também todo o contexto anterior que constitui a oferta, isto é, a publicidade veiculada, os prospectos distribuídos, as informações prestadas ao consumidor, as práticas comerciais exercidas, tais como a venda casada, a oferta de prêmios ou brindes especiais para incitar a manifestação de vontade positiva do consumidor etc.{11} * (10) Projeto de Lei 634-B de 1975, art. 423. (11) Neste sentido abundante jurisprudência. Veja sobre prevalência da veiculação pela imprensa de plano de saúde "para aidéticos", TJSP Ap. Civ. 240.7932 , Rel. Des. Marrei Neto, j. 25.11.94; também a decisão do Juiz Roberto de Abreu e Silva, 10.ª Vara Cível , Rio de Janeiro, que incluiu o tratamento a portadores do vírus da Aids, mesmo havendo cláusula excluindo o tratamento de "epidemias", tendo em vista as informações prestadas pelos vendedores e promotores de vendas, assim como pela publicidade veiculada, que modificaram o conteúdo contratual, in Direito do Consumidor, vol. 16, p. 202 e ss. Veja também decisões sobre o inadimplemento da empresa OMINT no tratamento de paciente de Aids, in RT 721/113 e RT 719/123. No acórdão de 26.6.95 da 10.ª Câmara do TJSP (Ap. 248.120-2/ 4) esclarece o Relator "...a testemunha ouvida, às fls., esclareceu que a representante da apelante foi cientificada de fato de ser o apelado soropositivo

HIV+ e que, mesmo assim, informou não haver restrição à sua admissão, (p. 393) Quanto as informações prestadas, por disposição legal imperativa (arts. 30 e 48 do CDC), estas manifestações anteriores a conclusão do contrato escrito tornam-se fontes contratuais,{12} fontes contratuais heterônomas.{13} Em caso de conflito entre alguma cláusula contratual e a publicidade veiculada ou alguma outra informação prestada (e provada), a interpretação do conteúdo contratual efetivo deve ser sempre a mais favorável ao consumidor e levar em conta a imperatividade e indisponibilidade das normas do CDC, cuja ratio é justamente assegurar uma melhor posição contratual ao consumidor que não redige (ou influencia) o contrato escrito. Citando os ensinamentos de Aliomar Baleeiro e Prado Kelly, o Min. Sálvio de Figueiredo ressalva o necessário efeito útil (e renovador) das normas, afirmando: "denegase a vigência da lei não só quando se diz que não está em vigor, mas também quando se decide em sentido diametralmente oposto ao que nela está expresso e claro".{14} Quanto às práticas comerciais, sua importância na nova interpretação do contrato de consumo e descoberta de seu verdadeiro conteúdo vinculante não deve ser menosprezada. A jurisprudência brasileira aceitou mesmo a presunção de que muitos contratos de crédito são *exceção feita à carência, tendo sido a representante quem fez a anotação na proposta... Assim , na forma do art. 47 (do CDC), as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor. Dessa maneira, ao aceitar a apelante a proposta de admissão do apelado ao plano, pactuou-se que o apelado, por ser portador do HIV+ deveria respeitar a carência contida no manual. Esta a única ressalva ao atendimento ao apelado" (RT 721/114). (12) Exemplo da força vinculatória da publicidade e prospectos entregues pode ser observado no Acórdão da 2.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ap. Civ. 592022826, j. 15.4.92: "Plano de Saúde. Não pode a seguradora negar-se à modificação da cobertura médico-hospitalar ainda que para diminuí-la, bem como as prestações mensais devidas pelo segurado, desta prevista a faculdade no manual por ela fornecido. Devolução das diferenças em dobro (Código do Consumidor, art. 42, parágrafo único) e devidamente corrigidas desde a data da alteração pretendida". E esclarece o Des. Ivo Gabriel da Cunha, p. 04: "O autor viu-se na contigência de pagar o exigido ou perder o seguro avençado (...). Ora, depois do Código do Consumidor, esse tipo de posição não é mais sustentável; o que está na publicidade obriga o contratante". (13) A terminologia é de Enzo Roppo, em seu basilar estudo, pp. 137 e ss. (14) LEX 56, p. 201, j. 26.10.93, STJ. (p. 394) assinados em brancco e preenchidos após pelas instituições de crédito. Presumindo esta "a prática corrente no país", os juízes consideraram não escrita uma cláusula datilografada contrária a uma cláusula impressa no contrato, mais favorável ao consumidor, invertendo assim as linhas tradicionais de prevalência das cláusulas "individuais".{15} Neste mesmo sentido, a jurisprudência brasileira observando ser prática

corrente no mercado que, para conseguir um financiamento em bancos federais para aquisição da casa própria, um seguro habitacional deva ser feito concomitantemente com os contratos principais, considerou este fato relevante para determinar uma interpretação diferenciada do contrato de seguro habitacional.{16} Face a finalidade de proteção especial das normas do CDC, a interpretação dos contratos envolvendo consumidores e fornecedores deve guiar-se por seus princípios, em especial o princípio da boa-fé, da transparência, da proteção da confiança e das expectativas legítimas dos consumidores. Trata-se, igualmente, de uma interpretação contextual, que procura o sentido e o alcance da vontade expressa no contrato * (15) Acórdão do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, in Ap. Civ. 194041851, 13.4.1994, Rel. Antônio Janyr Dall’Agnoll Júnior, cuja ementa é: "Código de Defesa do Consumidor. Contrato Bancário. Interpretação. Art. 47 do CDC. Havendo divergência de índice de atualização monetária, porque datilografado espécie que não a constante de impresso, em contrato de adesão, prevalece o que mais favorável ao aderente, nos termos do art. 47 do CDC. Sobre mais favorável, dúvida não pode persistir quanto ao que diariamente ocorre - e que é a assinatura em branco dos formulários pelo financiado. Ao predisponente das cláusulas cumpre evidenciar, satisfatoriamente, a anuência do aderente à modificação, pois, aqui, o formulário impresso ostenta-se segurança também desse. Apelo desprovido". (16) Veja a decisão da 3.ª Turma do TRF da 1.ª Região, j. 14.6.93, Rel. Juiz Vicente Leal, cuja ementa assevera: "Ocorrendo dúvidas sobre a existência da invalidez permanente à data da celebração do contrato de seguro, a cláusula contratual que exclui o seguro na hipótese deve ser interpretada a favor do aderente, por se tratar de contrato padronizado, tipicamente de adesão, onde a vontade do segurado é praticamente nula, ou faz o seguro ou não obtém o financiamento" (LEX 55, p. 356). E no corpo da decisão menciona: "Na dúvida, deve prevalecer a versão do segurado, como parte aderente e hipossuficiente de um contrato de adesão, pois não restou provado que o risco assumido pela seguradora decorreu de atos ilícitos do segurado e a hipótese de má-fé foi afastada ex vi do disposto nos arts. 1436 e 1446 do CC" (LEX 55/360). (p. 395) também em seu contexto negocial, na finalidade normal (standard objetivo) deste tipo de contrato, nas expectativas normais para os consumidores neste tipo de negócio (standard objetivo), considerando igualmente os atos e informações anteriores a conclusão do negócio como juridicamente relevante, formando o "todo" a interpretar, a relação contratual a considerar.{16A} Segundo o art. 50 do CDC a garantia contratual deverá ser interpretada como complementar à garantia legal (veja o Cap. IV, 2.3, letra "c"). Em uma visão comparativa, podemos, portanto, dividir os esforços atuais dos intérpretes de contratos de consumo em dois blocos: esforços visando a interpretação de algumas cláusulas obscuras, contraditórias ou ambígüas, e outros visando a interpretação do contrato como um todo, de forma a descobrir as obrigações contratuais válidas, as essenciais e as implícitas.{17}

Para descobrir o sentido e o alcance das cláusulas da relação contratual de consumo, o intérprete utilizará as conhecidas técnicas da interpretação estrita das exceções,{18} da interpretação contra * (16A) Da jurisprudência podemos citar como exemplo desta interpretação contextual pró-consumidor, pela finalidade normal e lógica do contrato: "Direito de sepultamento de familiar em jazigo perpétuo. Adquirente de plano de aquisição de jazigo perpétuo pretendeu sepultar sua mãe, o que não foi permitido pela empresa vendedora do plano, alegando que o jazigo, à nível familiar, somente poderia ser utilizado pelo autor após a morte deste, e não enquanto vivesse. Aguardar a morte de quem contratou o plano, para daí então poder usar o jazigo familiar, é inverter a ordem natural da expectativa de existência da própria família. O contrato assinado prevê especificamente: "Se o plano escolhido incluir utilização perpétua do jazigo e ocorrem dois ou mais óbitos simultaneamente, um sepultamento será feito em jazigo perpétuo e o outro, sem livre escolha e sem ônus para o contratante, em jazigo indicado pelo contratado. Após 3 anos, os restos mortais serão transladados para o jazigo perpétuo". Negado provimento" (decisão unânime). (Proc. 01189725956, Rec. 139/90, relator Dr. Cézar Tasso Gomes, 1ª Câmara Recursal do Juizado Especial de Pequenas Causas/RS, j. 16.7.90). Veja na doutrina sobre "Direito e mudança social, interpretação e desenvolvimento", a obra de Andrade, p. 136 e ss., escrita antes do CDC, mas de grande atualidade. (17) Assim, excelente, Ghestin, Clauses, pp. 85 e ss. (18) Veja decisão do TJRS sobre prevalência do valor da apólice sobre aquele (menos favorável) presente nas condições gerais e especiais, Ap. Civ. (p. 396) proferentem,{19} do efeito útil do contratado,{20} da superioridade das cláusulas individuais mais benéficas ao consumidor, mesmo que orais ou presentes na oferta publicitária e as demais técnicas de interpretação dos negócios jurídicos, guiadas sempre pelo princípio do art. 47 do CDC. Assim, em matéria de seguro-saúde a redação dúbia do instrumento contratual deve beneficiar o consumidor{21} e em matéria de contrato de seguro automobilístico tem entendido a jurisprudência que os danos extrapatrimoniais incluem-se no item "danos pessoais" *594132052, Des. Celeste Vicente Rovani, j. 1.11.94, in Revista de Jurisprudência do TJRGS, n. 170, p. 385. Veja também sobre a definição de suicídio (premeditado e não) para interpretar a favor do consumidor (e restritivamente) a cláusula de exclusão, Súmula 61 do STJ e 1.º TASP, Ap. Civ. 610.637-2, j. 22.8.96, rel. Kioitsi Chicuta, in RT 735/290. (19) Veja sobre a regra in dubio contra stipulatorem, Noronha, p. 156 e ss. (20) Veja interessante decisão do TARS sobre a prevalência de princípios e cláusulas mais favoráveis ao consumidor, que não podem ser sem efeito,

letra morta (inútil), cuja ementa é a seguinte: "Contrato que, contraditoriamente, insere cláusulas firmando a equivalência salarial e ao mesmo tempo exigindo a correção das prestações por índices diferentes da variação salarial. Ofensa aos princípios do CDC, e ao Dec.-lei 2.349/87, sendo que este último, ao permitir a satisfação do saldo devedor até o resíduo final, mesmo que através da prorrogação do contrato, não afastou o direito a equivalência da prestação à renda salarial. Recurso provido, para dar procedência da ação" (Ap. 194012076, Rel. Arnaldo Rizzardo, j. 16.3.94, in RT 711/192-194. (21) Bom exemplo desta linha jurisprudencial é a decisão do TARS em caso de limitação a 30 dias de internação, cuja ementa é a seguinte: "Contrato de Adesão. Redação dúbia. Vontade real das partes indeterminável. Interpretação favorável ao aderente. Tratando-se de contrato de adesão, que, em face de redação falha, gera dúvidas sobre como se interpretar uma de suas cláusulas, a solução deve ser a mais favorável ao aderente, se impossível determinar a vontade das partes ao contratar" (Ap. Civ. 193 184 132, 5ª Câm, rel. João Carlos Branco Cardoso, j. 17.3.94). No corpo do acórdão lê-se, p. 5: "O que pode se apreender da experiência do dia a dia, é que a pessoa, (...) ao procurar um plano de saúde, deseja a maior cobertura possível. (...) Não se pode admitir que a apelante, juridicamente amparada, redija um texto que, embora o considerando redundante, possa germinar a dúvida ante uma simples interpretação literal a qual, geralmente, é posta à disposição das pessoas, nos contratos de adesão". (p. 397) até o montante do seguro e não só os danos materiais como defendiam as seguradoras.{22} Quanto ao segundo bloco (talvez o primeiro temporalmente), o intérprete concentrará suas forças em "descobrir" o sentido e alcance * (22) Exemplo desta linha jurisprudencial é a decisão nos EI 196032114 do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, 4.º, Grupo C., j. 17.3.97, in Julgados TARGS, n. 103, p. 183, cuja ementa é: "Dano moral. Seguro automobilísticO. Inclusão de danos extrapatrimoniais no item danos pessoais. Responsabilidade da Seguradora. Não pode ser apartada a indenização da dor causada pelo dano corporal ou pessoal da do dano moral ou psicológico, forte na bioestrutura do ser humano, corporal e psicologicamente indissolúvel. A divisão existente - corpo e psique -, por evidente, tem o fim apenas pedagógico, para poder melhor estudar a pessoa humana e, não como pretende a seguradora. - Princípio da boa-fé objetiva. Função interpretativa. Havendo dúvida quanto ao significado de cláusula predisposta por uma das partes, a interpretação deve ser no sentido menos favorável a quem a redigiu, é o princípio da interpretatio contra proferentem , ou ainda, e regra in dubio

contra stipulatorem. Esta regra é especialmente importante hoje em dia, devido à difusão dos contratos padronizados e de adesão. - Função Econômica do contrato. O contrato nada mais é do que o revestimento jurídico de uma operação econômica. Dessarte deve-se sopesar, na análise do contrato, a satisfação da necessidade, a obtenção do bem que levou as partes a contratarem e a função econômica que o pacto exerce na vida de relação. E a escolha deverá ser feita de modo a assegurar prevaleça o interesse que se apresenta mais vantajoso em termos de custo social. E o custo social, no contrato de seguro, aponta a divisão dos prejuízos. Precedentes...". No corpo do acórdão - citado o art. 47 do CDC e os seguintes precedentes, todos no sentido de que "dano moral tem natureza de dano pessoal": TARGS. Ap. Civ. 196023121, rel. Armirio José Abreu Lima da Rosa; TARGS. Ap. Civ. 193169638, fel. Juracy Vilela de Sousa; TARGS, TARGS, Ap. Civ. 194047502, rel. Moacir Adiers. No mesmo sentido, outros precedentes: TARGS, Ap. Civ. 196087092, rel. Armirio José Abreu Lima da Rosa; TARGS, Ap. Civ. 295 000799, rel. Armo Werlang, TARGS Ap. Civ. 196 118 012. rel. Léo Lima; TARGS, Ap. Civ. 197 042 062, rel. Luciano Ademir José D’Ávila; TARGS, Ap. Civ. 197 085 962, rel. Ulderico Cecatto; TARGS, Ap. Civ. 197 174 899, rel. Carlos Alberto Alves Marques (DJ 13.3.98); EI da Ap. Civ. 196 032 114, rel. Roberto Expedito da Cunha Madrid (Julgados, n. 103, p. 176); TARGS, Ap. Civ. 191 061 217, rel. Flávio Pâncaro da Silva. Veja também, no mesmo sentido, Prinleiro Tribunal de Alçada Cível de São Paulo, TACSP, Ap. Civ. 698.188-0,j. 15.1.97, rel. Alberto Tedesco, 2.ª Cam. Especial, in RT 740, e Ap. Civ. 711.588-0, rel. Antônio de Pádua Ferraz Nogueira, 10ª Cam. Especial, in RT 749. (p. 398) da relação contratual como um todo, o verdadeiro regulamento contratual, em outras palavras, quais são ou eram os deveres e direitos de cada parte, suas pretensões, suas obrigações. Observa-se aqui uma tendência jurisprudencial de valorar a informação in concreto do consumidor para legitimar sua manifestação de vontade quantô a algumas cláusulas "limitadoras" de seus direitos incluídas em contratos de adesão (veja ponto 1.4), utilizando em conjunto aos arts. 46, 47 e 54 do CDC.{23} A descoberta de obrigações implícitas nos variados tipos contratuais, dos deveres anexos de cada um dos contratantes, dos deveres principais ou dos deveres essenciais naquele tipo contratual, da eventual influência das normas imperativas naquela relação concreta será a tarefa do intérprete da relação de consumo in casu.{24} * (23) Exemplo desta linha da jurisprudência é a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, cuja ementa é: "A cláusula que exclui o direito à internação hospitalar, em letras bem pequenas, evidencia que a contratada não cumpriu com a obrigação legal de dar destaque às limitações do direito do consumidor (art. 46 do CDC). De se concluir, portanto que o caso sub judice não pode ser solucionado pura e simplesmente com a invocação do vetusto princípio do pacta sunt servanda, já que, tratando de relacionamento contratual de adesão, formado entre consumidor hipossuficiente e iletrado

e empresa de assistência médico-hospitalar dirigida por médico, incide com toda sua plenitude o Código de Defesa do Consumidor, sendo de rigor a aplicação dos arts. 46 e 47 do Codex. A conclusão, portanto, é a da procedência da ação para o fim de reconhecer a responsabilidade da contratada pelo pagamento das despesas médico-hospitalares decorrentes da internação do contratante" (Ap. 240.429-2/6, 16.ª C., j. 25.10.94, Rel. Des. Pereira Calças, in RT 719/129). Veja também utilização semelhante do art. 46 e art. 47 do CDC para retirar do vínculo obrigacional cláusula não informada convenientemente antes da assinatura do contrato, na decisão do 1 .º Tribunal de Alçada de São Paulo, Rel. Juiz Lobo Júnior, de 26.7.94, in Revista Direito do Consumidor, vol. 14, p. 172 e ss. (24) Veja a insuperável lição de Roppo, pp. 137 e ss. Sobre as fontes "heterônomas do regulamento contratual"; nesse sentido interessante decisão do JECP/RS: "Compra e Venda - Condições de Venda obscuras. Documento denominado Comprovante de Débito pouco claro, pois as condições do negócio são expressas em números ao invés de palavras, que o comprador não tem obrigação de saber o significado. Falta de clareza está longe de caracterizar bons costumes e práticas comerciais. Os arts. 47 e 52 da Lei 8.078 - CDC são claras a respeito da obrigação de o vendedor ser preciso nas informações de preço e demais condições de venda do bem" (decisão unânime). (Proc. 01190731628, Rec. 163/90, relator Dr. Luiz Felipe Brasil Santos, 1.ª Câmara Recursal do Juizado Especial de Pequenas Causas/RS, 18.12.90). (p. 399) Este esforço para "descoberta" de obrigações implícitas ou não escritas é um misto de interpretação e subsunção, cotidiano inafastável dos profissionais do direito; pode ocorrer tanto quando o contrato nada menciona (ausência de previsão), quanto o contrato prevê justamente o contrário, tentando exonerar o fornecedor destas obrigações através de previsões contratuais expressas. Neste último caso, a tendência atual da jurisprudência consiste em proibir a exclusão de tais "obrigações implícitas" através de previsão contratual, que será então considerada nula.{25} A nova proteção contratual assegurada através da norma de interpretação do art. 47 do CDC traz como grande contribuição o fato de não distinguir, como até então fazia a jurisprudência, entre cláusulas claras e cláusulas ambíguas.{26} Nestes casos, a jurisprudência brasileira geralmente recorre não só ao recurso de interpretação mais favorável ao consumidor, com base no art. 47 do CDC, mas também à idéia de interpretação do contrato (teoricamente com cláusulas claras) conforme sua função econômica.{27} Logo, as cláusulas claras serão interpretadas conforme as expectativas que aquele tipo contratual e aquele tipo de cláusula desperta nos consumidores.{28} * (25) Assim conclui tb. Ghestin, Clauses, p. 92. (26) A observação é da lavra do renomado magistrado gaúcho, Antônio Dall’Agnol Jr., in Cláusulas abusivas, p. 34.

(27) Exemplo desta linha da jurisprudência é a belíssima decisão de 24.10.96 na interpretação de cláusulas de limitação de cobertura de doenças crônicas em contratos de seguro-saúde, cuja ementa é: "Civil. Seguro-saúde. Exclusão de casos crônicos. Inteligência da cláusula contratual. 1. Não infrine os arts. 1.432 e 1.460 do CC a interpretação de que a cláusula, excluindo casos crônicos, dentre os quais se situa a Diabetes Mellitius, não se aplica ao segurado em idade avançada. Interpreta-se o contrato de acordo com sua finalidade econômica e ninguém contrata tal seguro senão para ver cobertos, oportunamente, os achaques da idade. Apelação desprovida" (Ap. Civ. 596094482, 5.ª Câm. C., Rel. Des. Araken de Assis, in Revista de Jurisprudência do TJRS 180, p. 394). (28) Nesse sentido, a mencionada decisão do TJRJ, in RT 612/164, onde o relator, Des. Ribeiro Filho, já em 3.12.85, ensinava, quanto a interpretação dos contratos de adesão: "Na interpretação dessa cláusula, além de observar as normas comuns de interpretação dos contratos, devem ser observadas as normas próprias de interpretação de contratos de adesão ou quase-adesão, em que um dos contratantes formula a declaração de vontade sem a participação da outra e que estão expostas de modo magistral pelo Prof. Orlando Gomes, em seu parecer de fls., nos seguintes termos: "O intérprete (p. 400) 1.2 Proibição de cláusulas abusivas O Código de Defesa do Consumidor inova consideravelmente o espírito do direito das obrigações, e relativa à máxima pacta sunt servanda. A nova lei vai reduzir o espaço antes reservado para a autonomia da vontade, proibindo que se pactuem determinadas cláusulas, vai impor normas imperativas, que visam proteger o consumidor, reequilibrando o contrato, garantindo as legítimas expectativas que depositou no vínculo contratual. A proteção do consumidor, o reequilíbrio contratual vem a posteriori, quando o contrato já está perfeito formalmente, quando o consumidor já manifestou a sua vontade, livre e refletida, mas o resultado contratual ainda está ineqüitativo. As normas proibitórias de cláusulas abusivas são normas de ordem pública, normas imperativas, inafastáveis pela vontade das partes. Estas normas do CDC aparecem como instrumentos do direito para restabelecer o equilíbrio, para restabelecer a força da "vontade", das expectativas legítimas, do consumidor, compensando, assim, sua vulnerabilidade fática. Se no direito tradicional, representado pelo Código Civil de 1917 e pelo Código Comercial de 1850, já conhecíamos normas de proteção da vontade, considerada a fonte criadora e, principalmente, limitadora da força vinculativa dos contratos, passamos a aceitar no Brasil, com o advento do Código de Defesa do Consumidor, a existência de valores jurídicos superiores ao dogma da vontade, tais como a eqüidade contratual, os quais permitem ao Poder Judiciário um novo e efetivo

controle do conteúdo dos contratos de consumo. Como afirmamos na introdução a este estudo, o CDC representa uma verdadeira mudança na ação protetora do direito. De uma visão clássica, liberal e individualista, do Direito Civil, evoluímos para uma visão social, que valoriza a função do Direito como ativo garante do equilíbrio contratual. *tem de averiguar como foi que cada qual dos declarantes entendeu ou podia entender a declaração recebida do outro, ou o comportamento deste. Há que proteger a legítima expectativa dos contratantes, ou, como diz Mosco, o emitente de uma declaração de vontade deve enunciá-la por forma que o destinatário não possa, com a diligência ordinária, lhe atribuir outro sentido, sendo irrelevante que o declarante tivesse realmente querido emprestálo"." (p. 401) O método escolhido pelo CDC para harmonizar e dar maior transparência às relações de consumo tem dois momentos. No primeiro, cria o Código novos direitos para os consumidores e novos deveres para os fornecedores de bens, visando assegurar a sua proteção na fase précontratual e no momento da formação do vínculo. No segundo momento, cria o Código normas proibindo expressamente as cláusulas abusivas nestes contratos, assegurando, assim, uma proteção a posteriori do consumidor, através de um efetivo controle judicial do conteúdo do contrato de consumo. Nosso objetivo é analisar, nesta segunda edição de modo mais detido, este novo e imperativo controle das cláusulas abusivas. a) Características gerais das cláusulas abusivas - Se efetivamente a massificação dos contratos na sociedade atual e a complexidade técnica da elaboração dos novos tipos contratuais permitiram, e mesmo incentivaram, a prática da inclusão de cláusulas abusivas nos contratos, cabe refletir agora, nesta segunda edição, sobre as características principais de ditas cláusulas abusivas. Expressão muito utilizada na doutrina e na jurisprudência atual, é ela poucas vezes definida e o próprio CDC absteve-se de uma definição legal, preferindo indiciar a abusividade em casos expressos (art. 53, por exemplo), deixar sua determinação para a jurisprudência (através de cláusulas gerais, como a do art. 51, IV) ou presumir a abusividade em alguns casos e práticas (lista dos arts. 39 e 51).{29} Para definir a abusividade dois caminhos podem ser seguidos: uma aproximação subjetiva, que conecta a abusividade mais com a figura do abuso do direito, como se sua característica principal fosse o uso (subjetivo) malicioso ou desviado de suas finalidades sociais de um poder (direito) concedido a um agente,{30} ou uma aproximação objetiva, que conecta a abusividade mais com paradigmas modernos, como a boa-fé objetiva ou a antiga figura da lesão enorme, como se seu elemento principal fosse o resultado objetivo que causa a conduta do indivíduo, o prejuízo grave sofrido objetivamente pelo consumidor, O * (29) Assim tb. Aguiar, Cláusulas, p. 13. (30) Segundo Bourgoignie, Clauses, p. 256, este é o caminho seguido pela jurisprudência belga, especialmente no caso dos contratos de serviços públicos e serviços em geral, mas revela este caminho o perigo da própria

teoria do abuso do direito, nem sempre reconhecida ou seguida. (p. 402) desequilíbrio resultante da cláusula imposta, a falta razoabilidade ou comutatividade do exigido no contrato.{31} Quanto ao primeiro caminho está ele muito ligado a própria expressão "cláusula abusiva". Apesar de criticado,{32} este caminho pode ser útil. Trata-se, na verdade, de uma expressão valorativa, moderna, de certa maneira paradoxal. Só pode ser abusivo, o que excedeu os limites e, na visão tradicional de plena liberdade contratual, os limites na fixação das cláusulas contratuais praticamente inexistem. Denominar, portanto, uma cláusula do contrato como abusiva é pressupor a reação do direito contratual, é aceitar a imposição de novos limites ao exercício de um direito subjetivo, no caso, o da livre determinação do conteúdo do contrato. A intervenção do Estado nos negócios privados e a imposição de limites ao dogma da autonomia da vontade vão caracterizar, a atual concepção de contrato. Sendo assim, a identificação de algumas cláusulas presentes nas relações contratuais massificadas como abusivas é fenômeno moderno, oriundo da mudança de valores e de interesses protegidos pelo direito. Se a expressão contém em si inseparável juízo de valor, ao identificar a conduta do elaborador da cláusula como abusiva, seria necessário, portanto, traçar um paralelo entre a abusividade detectada em algumas cláusulas contratuais e a figura do abuso de direito. A causa desta recusa pode ser a insegurança dogmática que envolve toda a categoria de abuso de direito.{33} Na verdade, ainda hoje discutem os doutrinadores se o abuso de direito inclui-se dogmaticamente como um simples ato ilícito ou trata-se de uma categoria jurídica à parte.{34} Note-se que, no Brasil, o Projeto de Código Civil de 1975 incluiu o abuso de direito na categoria dos atos ilícitos, sem especificar, * (31) Nesse sentido Calais-Auloy, p. 134, "é abusiva a cláusula que, pré-redigida pela parte mais forte, assegura a esta uma vantagem excessiva sobre a outra parte". No Brasil, Nery, Anteprojeto, p. 334, sugere como sinônimo de cláusula abusiva, cláusulas opressivas, onerosas, excessivas, concentrandose nos efeitos objetivos da cláusula. (32) Assim Nery, Anteprojeto, p. 334, separa veementemente os institutos do abuso de direito e as cláusulas abusivas. (33) Héléne Brick, por exemplo, em sua famosa obra faz um inventário das cláusulas abusivas existentes, e retira daí os traços essenciais que as caracterizam, pp. 8 e ss. Mas não enfrenta a figura do abuso. (34) Assim tb. Bourgoignie, Clauses, p. 256. (p. 403) porém, se a sanção seria a mesma dos outros atos ilícitos.{35} O Projeto, todavia, contribui em nosso estudo ao trazer a noção de fim social e econômico de um direito, em última análise do dever de boa-fé na conduta social. Serão as cláusulas abusivas simplesmente novos tipos de cláusulas ilícitas? O ato ilícito é aquele desconforme ao direito, que provoca uma reação negativa do ordenamento jurídico, que viola direito ou causa prejuízo a terceiro (dano), fazendo nascer a correspondente obrigação de reparar (responsabilidade).

Já o abuso pressupõe a existência do direito, logo, a atividade inicial é lícita, pois aquele que usa seu direito não prejudica (em princípio) outros (neminen laedit qui suo jure utitur).{36} O abuso do direito seria a falta praticada pelo titular de um direito, que ultrapassa os limites ou que deturpa a finalidade do direito que lhe foi concedido. Assim, apesar de presentes o prejuízo (dano) causado a outrem pela atividade (ato antijurídico) do titular do direito (nexo causal), a sua hipótese de incidência é diferenciada. O que ofende o ordenamento é o modo (excessivo, irregular, lesionante) com que foi exercido um direito, acarretando um resultado, este sim, ilícito. Qual será, porém, a reação do direito frente ao abuso de direito? A reação do direito é negar efeitos àquela vontade declarada através do exercício abusivo de um direito. A desconsideração prática do direito assim exercido, a invalidade e ineficácia da cláusula e a sanção do abuso; não vê o ordenamento jurídico, em princípio necessidade de sancionar (punir) aquele que abusou a perdas e danos, preferindo reequilibrar a situação e assegurar a volta ao status quo. Repara-se e reequilibra-se a situação concreta, o contrato, ao retirar, por exemplo, a cláusula abusiva, mas não se pune "a mais" aquele que abusou de seu poder (direito). A função punitiva que os doutrinadores alemães atuais{37} estão chamando de "satisfatória" do direito civil, ainda não foi bem aceita na prática e doutrina brasileira. Concorde-se ou não com * (35) "Art. 186. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercêlo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico OU social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". (36) Veja os ensinamentos clássicos de Josserand, p. 1, contra PlaniOl e Mazeaud. (37) Assim Kern, p. 248. (p. 404) a posição de nosso sistema esta diferença de grau na reação do direito, entre o ilícito e o abusivo, serve para demonstrar uma certa diferença do fenômeno. A diferença, porém, é mais de grau do que de natureza. Neste sentido, correta a conclusão que as cláusulas abusivas são também contrárias ao direito, ilícitas, se compreendermos o direito não só como o conjunto de leis e de normas, mas como seus princípios gerais, entre os quais, claramente, inclui-se hoje o da boa-fé objetiva.{38} Observa-se, no direito comparado, que as sanções para evitar a prática da inclusão de cláusulas abusivas são sua ineficácia (Unwirksamkeit), como na lei alemã de 1976 (§§ 9, 10, 11 AGBGB), sua declaração como "não escritas" ou sua não inclusão no contrato (art. 35 da lei francesa de 1978, § 3 da lei alemã), expressão tradicional que uns consideram semelhante a inexistência{39} e outros aproximam da nulidade{40} e, por fim, sua nulidade (lei portuguesa, luxemburguesa, brasileira), o que também leva a sua ineficácia. A pretensão a perdas e danos ou a compensação pecuniária, se presente, tem outra origem que a abusividade da cláusula (dano moral, pagamento indevido, quebra da base do negócio etc). A doutrina brasileira prefere, recorrer a comparações com as tradicionalmente conhecidas e combatidas cláusulas ou condições

ilícitas, potestativas e leoninas, para explicar o atual combate às cláusulas abusivas.{41} Trata-se de uma aproximação histórica do fenômeno, que pode ser extremamente útil para a sua compreensão seja como um fenômeno geral, seja como um fenômeno moderno e particular, em um esforço de identificação especial destas cláusulas. No sentido amplo é possível afirmar que as proibições legais referentes às cláusulas leoninas e às condições meramente potestativas representam uma primeira tentativa de combate a cláusulas consideradas "abusivas". Estas cláusulas eram e são combatidas, por ferirem a * (38) Assim conclui Aguiar, Cláusulas, p. 22, citando Almeida Costa. O mestre gaúcho analisa a própria lista do art. 51, a qual traz em seus incs. XIV e XV como abusivas, cláusulas que seriam contrárias à lei, logo ilícitas). (39) Assim Kullmann, p. 59. (40) Assim Calais-Auloy, p. 135, 3.ª ed. (41) Destaque-se aqui os trabalhos de Tomasetti Jr., Rejeição cláusulas abusivas e Caio Mário Pereira, Lesão. (p. 405) ordem pública, os bons costumes, por privarem de todo efeito o ato ou por o sujeitarem no arbítrio de uma das partes. Em uma visão particular, podemos afirmar que o arbítrio e a unilateralidade excessiva na fixação de elementos essenciais do contrato (sujeitos, objeto, preço e consenso) detectados nas cláusulas leoninas e meramente potestativas são características comuns com as cláusulas hoje consideradas abusivas.{42} A diferença estaria no grau de unilateralidade e de arbítrio antes exigido, muito maior do que o atual, e na matéria regulada pelas cláusulas consideradas abusivas, que hoje pode englobar (e geralmente o faz) os elementos não essenciais do negócio, como as garantias referentes ao vício do objeto, a evicção, ao pagamento, ao não atraso do pagamento.{43} De outro lado, mister notar que quanto ao preço, elemento essencial do contrato, e origem máxima da idéia de lesão enorme, a doutrina brasileira reluta em incluir as cláusulas que desequilibram o contrato, prevendo preços leoninos entre aquelas submetidas ao regime jurídico das cláusulas abusivas. Como veremos adiante, mesmo o novo Código de Defesa do Consumidor indicia sanções diferenciadas para estes dois casos: a de nulidade para as cláusulas abusivas stricto sensu e a possibilidade do juiz modificar a cláusula que estabeleça prestações desproporcionais (art. 6.º, incisos IV e V do CDC). Tal tratamento * (42) Em sua obra sobre o direito canadense, L’Hereux, p. 37 cita os três tipos de cláusulas "proibidas": as abusivas, as arbitrárias e as leoninas, caracterizando as primeiras como aquelas que permitem a transferência de responsabilidade; as segundas, as que permitem uma decisão unilateral do fornecedor sobre elementos do contrato; as terceiras, as que impõem custos, taxas e um preço excessivo ou impreciso ao consumidor. Tal denominação diferenciada tem origem na jurisprudência canadense e do Quebec. Nesta obra não seguiremos a nomenclatura sugerida pela autora, mas tais observações servem para destacar a semelhança e a proximidade dos institutos.

(43) Hoje são consideradas abusivas as cláusulas que procuram exonerar o fornecedor da responsabilidade pelo vício do produto ou serviço, pela sua não prestabilidade, pela eventual evicção, transferindo a terceiros a responsabilidade, cláusulas impondo garantias excessivas quanto ao pagamento, como as de perda total das prestações pagas em pró do fornecedor ou do grupo de consorciados, as cláusulas penais excessivas, os juros de mora além do limite legal etc., veja exemplos de cláusulas consideradas abusivas na lista do art. 51 do CDC e na letra "c.3" a seguir. (p. 406) diferenciado merecerá um estudo mais aprofundado a seguir, deve, porém, ser mencionado no momento, pois serve para caracterizar a dificuldade do próprio direito em intervir na fixação deste elemento essencial, que é o preço.{44} As caraterísticas básicas da lesão ou da cláusula leonina identificada, nos contratos comutativos, senam, em uma análise, a desproporcionalidade das prestações daí resultante, no que diz respeito aos valores das prestações previstas, e o dolo de aproveitamento ocorrido, representado pelo abuso da inexperiência e da necessidade premente sentida pelo outro contraente em concluir aquele negócio.{45} A identificação da lesão como fonte da abusividade da cláusula levanta duas questões importantes, que ajudarão a caracterizar as cláusulas abusivas em sua visão atual. Em primeiro lugar é necessário esclarecer se a determinação de uma cláusula contratual como abusiva é concomitante à formação do contrato ou se são fatos supervenientes que as tornam abusivas? Em segundo lugar é necessário estabelecer se a abusividade das cláusulas contratuais depende da malícia, do dolo ou da má-fé subjetiva daquele que as elaborou ou dos resultados práticos que prevêem e que darão causa, se eficazes? Efetivamente, o caráter de abusividade da cláusula é concomitante com a formação do contrato, logo nenhuma ligação tem com as chamadas causas de revisão dos contratos por atuação de fatores supervenientes (regime diferenciado no CDC, por força do art. 6.º, V). A identificação dessa abusividade, exercício de aplicação/subsunção da lei e de interpretação do contrato como um todo e das práticas comerciais, é que pode ser posterior à formação do contrato, como a fotografia atual de um fato já existente.{46} * (44) Roppo, pp. 144 e ss., relembra que o elemento preço é normalmente deixado à autonomia das partes, tanto que raras são as normas (mesmo supletivas) que tratam do assunto. Ou as partes regulam este elemento essencial ou o contrato não sobreviverá, pois o direito civil não considera sua função suprir esta manifestação de vontade, exceção feita aos contratos ditados, contratos obrigatórios e aos referentes a bens e serviços com preços tabelados. (45) Assim ensina Caio Mário, Lesão, pp. 196 e ss. (46) Neste sentido a lição da jurisprudência, na ementa: "Contrato. Plano de Saúde. Aids. Cláusula abusiva. A presença da cláusula abusiva no contrato celebrado ou na relação individual é que a torna atual; é a execução do

contrato que vai esclarecer o potencial abusivo da previsão contratual, é a atividade do intérprete do contrato, do aplicador da lei, que vai identificar (p. 407) E, em segundo lugar, a abusividade da cláusula não depende da boa ou má-fé subjetiva do fornecedor que a impôs ao consumidor. Talvez o fornecedor nem soubesse que tal cláusula é contrária ao espírito do CDC ou mesmo expressamente proibida na lista do art. 51, talvez nem tenha ele redigido o contrato, cujo conteúdo pode até ser determinado por outra norma de hierarquia inferior (Portaria,{47} Medida Provisória etc.), mesmo assim permanece o caráter abusivo da cláusula. Segundo Bricks,{48} todas as cláusulas abusivas apresentam como características ou pontos em comum justamente o seu fim, que seria melhorar a situação contratual daquele que redige o contrato ou detêm posição preponderante, o fornecedor, transferindo riscos ao consumidor, e seu efeito, que é o desequilíbrio do contrato em razão da falta de reciprocidade e unilateralidade dos direitos assegurados ao fornecedor. A tendência hoje no direito comparado e na exegese do CDC é conectar a abusividade das cláusulas a um paradigma objetivo,{49} em especial, ao princípio da boa-fé objetiva; observar mais, seu efeito, seu resultado e não tanto repreender uma atuação maliciosa ou não subjetiva. Tal é a melhor solução em uma sociedade de massas, onde não podemos conceber que uma cláusula seja abusiva porque utilizada pelo fornecedor "A", forte cadeia de lojas, e não, se utilizada pelo comerciante "B", microempresa, em contratos com um mesmo consumidor. Nesse sentido correta a Diretiva 93/13 da Comunidade Européia, de 5.4.93, sobre cláusulas abusivas, que em seu art. 3.º dispõe: "as cláusulas contratuais que não se tenham negociado individualmente *abusividade atual da cláusula. Esta se tornou evidente, com recomendação do próprio Conselho Regional de Medicina. Em face da abusividade não é de se considerar a exclusão pretendida pela Empresa ré. Recurso desprovido" (TJSP, Ap. Civ. 9.096-4, 4.ª Câm. de Dir. Privado, j. 13.6.96, Des. Barbosa Pereira). (47) Veja a nova linha jurisprudencial do STJ, in RT 698/223, com a seguinte ementa oficial: "Na expressão "lei federal" estão compreendidos apenas a lei, o decreto, o regulamento e o direito estrangeiro, não se incluem a portaria, a resolução, a instrução normativa, a circular, o ato normativo, o regimento interno dos tribunais e o provimento da OAB". (AI 21.337-1DF - 1.’ T. - j. 10.6.92 - rel. Min. Garcia Vieira - DJU 3.8.92). (48) Bricks, p. 8. (49) Assim ensina Aguiar, Cláusulas, p. 18. (p. 408) considerar-se-ão abusivas se, frente as exigências da boa-fé, causam em detrimento do consumidor um desequilíbrio importante entre os direitos e obrigações das partes que derivam do contrato".{50} A atuação subjetiva deve ser desconsiderada e dar lugar a um exame do contexto do contrato, de seu equilíbrio, da conduta conforme a boa-fé que dele objetivamente emana.{51} b) Da nulidade absoluta das cláusulas abusivas - Tanto na lista exemplificativa de cláusulas consideradas abusivas constante do art. 51

do CDC, quanto em seu art. 53, referente aos contratos de compra e venda a prazo, a sanção escolhida para coibir os abusos foi a de nulidade absoluta. Como veremos, o legislador brasileiro não se inspirou na técnica alemã de instituir duas listas de cláusulas abusivas e uma norma geral; preferiu instituir uma só lista, no art. 51, sancionado a todas as cláusulas ali descritas com a nulidade absoluta, praticamente escondendo a norma ou cláusula geral no inciso IV da lista do art. 51 complementado pelo disposto no § 1.º do referido artigo. Passados mais de 3 anos de vigência do CDC, podemos concluir que a técnica utilizada pelo legislador brasileiro não prejudicou a aplicação de sua nova ratio aos contratos de consumo. Se a situação ainda não é perfeita no mercado brasileiro e se parte da jurisprudência apega-se ainda ao velho paradigma da autonomia absoluta da vontade, a tendência é claramente no sentido da diminuição das cláusulas abusivas nos contratos de adesão oferecidos no mercado brasileiro. A resposta da jurisprudência brasileira, como um todo, face aos desafios e ações propostas pelo Ministério Público e pelos advogados, pode ser considerada muito boa, como comprova a já abundante jurisprudência. Nesse sentido, gostaríamos de analisar, com a ajuda das decisões jurisprudenciais, a técnica utilizada pelo legislador de sancionar com a nulidade absoluta todas as cláusulas abusivas mencionadas na lista do art. 51 do CDC (b.1) e a exceção feita no art. 6.º, V do CDC, autorizando o juiz a modificar determinadas cláusulas referentes ao preço (b.2), para só após passar a análise das cláusulas consideradas abusivas em espécie (c). * (50) Publicada no JOCE L 95/31, de 21.4.93. (51) Assim dispõe o art. 4.º da referida Diretiva 93/13/CEE. (p. 409) b.1 Lista única de cláusulas abusivas - A lei alemã de 1976 sobre as cláusulas contratuais inaugurou uma nova técnica legislativa{52} em matéria de combate às cláusulas abusivas. Esta lei prevê duas listas de cláusulas, uma de cláusulas sempre consideradas ineficazes (a chamada lista negra do § 11) e a outra, com cláusulas que podem, a critério do juiz, ser consideradas ineficazes (lista cinza do § 10). Para englobar os casos não previstos expressamente nas listas, traz o § 9.º da lei alemã uma cláusula geral de proibição de cláusulas contrárias à boa-fé e que criem uma desvantagem exagerada. O legislador brasileiro preferiu instituir a proteção contra cláusulas abusivas no CDC em apenas uma lista de cláusulas, sempre nulas, prevendo, ou praticamente escondendo, a norma geral de proibição de cláusulas contra a boa-fé no inciso IV dessa lista única.{53} A lista do art. 51 aplica-se tanto para contratos de adesão, como para contratos negociados{54} e prevê sempre a nulidade absoluta{55} das cláusulas que nele se subsumirem. A lista de cláusulas abusivas, prevista no art. 51 do CDC, é apenas exemplificativa.{56} Note-se que, pelo art. 51, § 2.º, a nulidade de uma cláusula não invalida o contrato, exceto "quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer

das partes". * (52) Assim Peter Ulmer, Zehn Jahre, p. 5. (53) No direito comparado vários doutrinadores destacam a importância das normas gerais, cláusulas abertas e interpretação e ao desenvolvimento pela jurisprudência; veja o estudo comparatista de Hondius, pp. 188 e ss., e no direito alemão, Ulmer, Zehn Jahre, pp. 10 e ss. (54) Concordam Aguiar, Cláusulas, p. 20 e Hapner, p. 171. O mestre gaúcho Aguiar, p. 21, traz interessante distinção, afirmando que a lista do art. 51 deveria funcionar como lista negra, em caso de contratos de adesão e CONDGs, mas poderia funcionar como lista cinza, em caso de contratos paritários. Contra Hapner, p. 170, advogando a possibilidade de valoração do juiz. (55) Assim concordam Aguiar, p. 27, Dall’Agnoll, p. 38. Este último, concentrando-se sobre o tema, conclui que a mencionada "nulidade de pleno direito" do art. 51 do CDC é a nulidade cominada, nulidade absoluta do Código Civil (art. 145, V), já Néry, Anteprojeto, p. 298, reclama às nulidades do CDC um tratamento "microssistêmico" autônomo. (56) Assim concordam os comentaristas brasileiros, Amaral, Comentários; Nery, Anteprojeto, p. 295 e Hapner, p. 171. (p. 410) A integração aqui é a dos efeitos do negócio, agora não mais previstos expressamente em virtude da invalidade da cláusula, recorrendo o juiz a normas supletivas ou dispositivas do ordenamento jurídico brasileiro. As nulidades absolutas, como as do art. 51 do CDC, caracterizam-se por não serem sanáveis pelo juiz, passando a relação contratual, naquele aspecto, a ser regida pela lei. Cabe frisar, igualmente, que o art. 6.º, inciso V, do CDC institui, como direito do consumidor, a modificação das cláusulas contratuais, fazendo pensar que não só a nulidade absoluta serviria como sanção, mas também que seria possível ao juiz modificar o conteúdo negocial. Como o CDC não fornece maiores detalhes sobre este novo direito, poderíamos imaginar duas hipóteses, que o juiz modifique a cláusula reduzindo-a ao que permite a lei,{57} a chamada "redução de eficácia" da doutrina alemã, cuja lei, porém, prevê a ineficácia de uma cláusula abusiva e não a sua nulidade absoluta, invalidez não sanável que leva a se desconsiderar por completo a previsão contratual nula, como no sistema brasileiro. Logo a modificação, ou redução da cláusula contratual, só seria possível quando ela não se enquadrasse no art. 51, como cláusula abusiva. A segunda hipótese seria a de, no caso de nulidade da cláusula, o juiz recorrer não só à lei supletiva, mas ao próprio contrato, interpretando a vontade das partes para praticamente criar uma nova cláusula válida. Note-se que pelo art. 47 do CDC, uma interpretação integrativa,{58} em que o juiz procura retirar das outras cláusulas e do contexto do

contrato disposição que falta, poderia ser considerada como próconsumidor, e portanto adaptada ao sistema do CDC. Na verdade as hipóteses previstas no art. 6.º são diferenciadas. De um lado é direito do consumidor a "proteção contra práticas e cláusulas abusivas" (art. 6.º, inciso IV), proteção esta que será assegurada pelas regras dos arts. 30 a 54, incluindo as regras específicas sobre a nulidade absoluta das cláusulas abusivas. De outro, institui o art. 6.º, em seu inciso V, uma exceção no sistema, reconhecendo o direito do consumidor de requerer ao Judiciário a modificação de um tipo de cláusula contratual específica, a do preço ou de outra prestação a cargo do consumidor, sempre que se consubstanciarem circunstâncias especiais, não previstas. * (57) Por exemplo uma cláusula que preveja 20% do valor da prestação como multa de mora seria "reduzida" para prever somente os 10% obrigatórios do art. 52, § 1.º CDC. (58) Veja sobre o tema a obra de Custódio da Piedade/Ubaldino Miranda, p. 209. (p. 411) b.2 Autorização excepcional de modificação de cláusulas - O art. 6.º, inciso V, CDC abre uma exceção no sistema da nulidade absoluta das cláusulas, permitindo que o juiz revise ou "modifique", a pedido do consumidor, as "cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais ou que sejam excessivamente onerosas" para ele em razão de fatos supervenientes. O art. 6.º do CDC traz uma novidade na proteção contratual do consumidor. Em seu inciso V, referido artigo permite que o Poder Judiciário modifique as cláusulas referentes ao preço, ou qualquer outra prestação a cargo do consumidor, se "desproporcionais", isto é, se acarretarem o desequilíbrio do contrato, o desequilíbrio de direitos e obrigações entre as partes contratantes, a lesão. O Poder Judiciário, o Estado, em última análise, intervém na relação contratual de consumo, para sobrepor-se à vontade das partes, para modificar uma manifestação livre de vontade, para impor um equilíbrio contratual. Mais do que nunca este novo direito contratual do consumidor, caracteriza as normas do CDC como intervenção estatal no espaço antes reservado para a autonomia da vontade, de acordo com os postulados sociais da nova teoria contratual do Estado de direito.{59} Não desconhecemos o fato de que, ao retirar-se de um contrato a cláusula considerada abusiva e substituir seu conteúdo pelo regramento legal na matéria, já estamos "modificando" o texto contratual, colmatando a lacuna, integrando o contrato de forma a que se possa dar execução a este, segundo os novos princípios de boa-fé e equilíbrio contratual.{60} Queremos aqui chamar a atenção para o fato do CDC autorizar uma modificação nas cláusulas de preço, onde geralmente não há regra supletiva apta a preencher a lacuna. Neste sentido, a sanção de nulidade absoluta não seria apta a preencher sua função, era necessário autorizar o juiz a agir de forma excepcional, revisando as cláusulas do contrato referente ao preço para reencontrar o equilíbrio perdido com a atual excessiva onerosidade. * (59) No sistema tradicional de contrato foi justamente nos casos de lesão de uma

das partes, pelo simples cumprimento contratual, que as primeiras exceções a regra pacta sunt servanda foram criadas. Veja os ensinamentos de Couto e Silva, RT, sobre a queda da base do negócio. (60) Neste sentido manifesta-se tb. Luís Renato Ferreira da Silva, em sua Tese de Mestrado sobre a Revisão dos Contratos, Teses/UFRGS, 1993, ainda inédita. (p. 412) Prevê ainda o inciso V do art. 6.º do CDC a possibilidade da revisão judicial da cláusula de preço, que era eqüitativa quando do fechamento do contrato, mas que em razão de fatos supervenientes tornou-se excessivamente onerosa para o consumidor. A onerosidade excessiva e superveniente que permite o recurso a esta revisão judicial é unilateral, pois o art. 6.º do CDC institui direitos básicos apenas para o consumidor. A norma do art. 6.º do CDC avança ao não exigir que o fato superveniente seja imprevisível ou irresistível, apenas exige a quebra da base objetiva do negócio, a quebra de seu equilíbrio intrínseco, a destruição da relação de equivalência entre prestações, ao desaparecimento do fim essencial do contrato.{61} Em outras palavras, o elemento autorizador da ação modificadora do Judiciário é o resultado objetivo da engenharia contratual, que agora apresenta a mencionada onerosidade excessiva para o consumidor, resultado de simples fato superveniente, fato que não necessita ser extraordinário, irresistível, fato que podia ser previsto e não foi. Nesse sentido a conclusão n. 3 do II Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor - Contratos no ano 2000, com o seguinte texto: "Para fins de aplicação do art. 6.º, V CDC não são exigíveis os requisitos da imprevisibilidade e excepcionalidade, bastando a mera verificação da onerosidade excessiva". A jurisprudência tem desenvolvido um outro requisito, qual seja o da não imputabilidade do fato causador da onerosidade excessiva ao consumidor.{62} Nesse sentido, a jurisprudência tem aceito, como motivo * (61) Em sua obra clássica, onde expõe a Teoria da base objetiva do negócio, desenvolvida da Teoria da base subjetiva de Oertmann, Larenz concentrase na destruição (objetiva) da relação de equivalência e na frustração da finalidade do contrato, não mais nas pressuposições, vontades ou motivos individuais e subjetivos. Veja Larenz, Base, pp. 130 e ss. (62) Exemplo desta linha jurisprudencial é a decisão do TJDF (DJ 10.12.92, II, p. 41.927), que apesar de utilizar a Teoria da Imprevisão para a rescisão do contrato, ordena a devolução das parcelas pagas. Na ementa baseia-se o relator Des. Vasquez Cruxen na: "impossibilidade do cumprimento das obrigações por parte dos contratantes, por motivos alheios à vontade dos mesmos, como é o caso dos aumentos baseados no índice editado pelo SINDUSCON, que supera a inflação e os reajustes salariais, estabelecendo o desequilíbrio". (p. 413) suficiente para a revisão contratual e para a ação corretora do equilíbrio contratual pelo judiciário, situações em princípios individuais, como

por exemplo a perda do emprego.{63} A tendência, portanto, é do crescimento em importância deste permissivo legal de revisão judicial dos contratos. Dois aspectos devem ser ressaltados: o limite imposto pelo próprio CDC, ao mencionar apenas as cláusulas referentes à prestação do consumidor, geralmente uma prestação monetária, envolvendo o preço e demais acréscimos, despesas e taxas, logo não englobando todos os tipos de cláusulas abusivas; o consumidor, é livre para requerer ou a modificação da cláusula e a manutenção do vínculo, ou a rescisão do contrato, com o fim do vínculo e concomitante decretação seja da nulidade, se abusiva, ou da modificabilidade, se excessivamente onerosa, da cláusula. Parece-me, efetivamente, que a expressão onerosidade excessiva do art. 6.º, V do CDC não encontra sua fonte no Código Civil Italiano de 1942, que, em seu art. 1.467, exige a ocorrência de evento extraordinário e imprevisível, nem no Projeto de Código Civil brasileiro de 1975, art. 478, que além da onerosidade excessiva exigia a "extrema vantagem da outra", mas sim nas teorias mais modernas e objetivas, especialmente a Teoria da Base do Negócio Jurídico, conhecidas pela doutrina,{64} mas até então não positivada no ordenamento pátrio. Os argumentos decisivos que me movem a evoluir frente a opinião defendida na primeira edição desta obra{65} e que mencionar simplesmen* (63) O leading case neste sentido é do TARS, Ap. Civ. 193230547, j. 24.2.94, 6.ª C., Rel. Juiz Moacir Adiers, com a seguinte ementa: "Consórcio - Ação de cobrança - Devolução das parcelas pagas devidamente corrigidas Cabimento - Da legitimidade passiva. Possui legitimidade passiva para a ação de rescisão contratual e devolução das quantias pagas a administradora que recolheu as prestações. Em contrato de adesão, porque as cláusulas são predispostas pelo poder público, admite-se sua revisão, na medida em que não derivam do auto-regramento de vontade das partes. Em contrato de consórcio, tipicamente de adesão, que prevê a devolução das parcelas pagas pelo consorciado desistente sem a devida correção monetária, flagra-se nítido desequilíbrio no tratamento entre contratantes, que merece ser corrigido pelo judiciário". (64) Veja Couto e Silva, Obrigação como Processo, p. 134 e sua crítica a teoria da base subjetiva. (65) Refiro-me a menção à Teoria da imprevisão, p. 168 da 1.ª ed. (p. 414) te que a Teoria de imprevisão{66} teria sido aceita pelo CDC pode ser uma interpretação do art. 6.º, inciso V, prejudicial ao próprio consumidor, pois dele pode ser exigida a referida imprevisão e extrinsibilidade do ocorrido, fatos não mencionados em referido artigo. De Outro lado, enquanto gênero, as teorias sobre a imprevisão sempre visaram prioritariamente a liberação do contratante supervenientemente debilitado, sua desobrigação, retirando assim do consumidor - ou pelo menos diminuindo a intensidade de - seu novo direito a manter o vínculo e ver recriado o equilíbrio contratual original por atuação modificadora do juiz. Esta possibilidade de revisão contratual por fatores objetivos

e supervenientes parece-me efetivamente a maior contribuição do art. 6.º, V do CDC e sua exceção ao sistema de nulidades absolutas. c) As cláusulas consideradas abusivas - De forma a manter a estrutura da análise apresentada na primeira edição, gostaríamos de apresentar inicialmente uma exegese direta dos incs. do art. 51 do CDC (c.1) e de sua cláusula geral, presente no inc. IV do mesmo art. 51, cláusula geral de nítida inspiração no § 9.º da lei alemã de 1976 (c.2); para somente em um terceiro momento (c.3) analisar mais detidamente as cláusulas identificadas pela jurisprudência brasileira como abusivas nestes primeiros anos de vigência do CDC. Esperamos que esta estrutura possa permitir uma análise mais independente da fonte legislativa e uma subsunção mais realista quanto a abusividade detectada nos casos in concreto. O capítulo da Proteção Contratual stricto sensu do CDC, apresenta uma seção especial (seção II) sobre as cláusulas abusivas. Três artigos encontram-se previstos nesta seção, mas a rigor somente dois, a lista exemplificativa de cláusulas abusivas prevista no art. 51 e o art. 53, proibindo cláusulas de perda total das prestações em contratos de compra e venda de móveis ou imóveis e nas alienações fiduciárias, prevêem cláusulas consideradas legalmente abusivas. O art. 52, ao contrário, institui deveres de informação para o fornecedor e assegura direitos específicos para o consumidor nos Contratos de consumo que envolvam o nascimento de uma segunda * (66) Assim Klang, p. 18 citando o mestre Orlando Gomes; já definição do próprio Klang da Teoria da Imprevisão visualiza-a como possibilidade de "Revisão judicial das cláusulas contratuais, com o fim de ajustá-la à nova realidade, e restabelecer o equilíbrio contratual", p. 17. (p. 415) relação contratual, relação de crédito ou de financiamento concedido ao consumidor para que possa adquirir o bem de consumo.{67} O art. 52 prevê, igualmente, um valor máximo para as multas de mora (10%), pelo que se deduz que cláusulas conflitantes com esta disposição legal cogente não poderão ser cumpridas. Segundo nos artigos 51 e 53 do CDC, ficam proibidas, sob pena de nulidade da previsão, três espécies de cláusulas: a) aquelas que impossibilitem, exonerem, atenuem ou impliquem em renúncia dos novos direitos do consumidor instituídos pelo CDC; b) as chamadas cláusulas "surpresa" (apesar do veto presidencial ao inciso V do art. 51); c) aquelas que criem determinadas vantagens unilaterais ao fornecedor. Na lista do art. 51 encontra-se igualmente a cláusula geral do inciso IV. c.1 A lista do art. 51 - A Lista de cláusulas consideradas abusivas pelo CDC apesar de exemplificativa é bem específica e pode ser dividida em três grupos, à exclusão da cláusula geral do inciso IV. Estes três grupos dispõem: Ficam proibidas as cláusulas que limitam os novos direitos do consumidor. O inciso I do art. 51 do CDC considera nulas as cláusulas que afastem ou atenuem o direito à garantia por vício do produto criado pelos arts. 18 e ss. Somente no caso do consumidor ser pessoa jurídica

poderá ser limitado o quantum da indenização. Nos contratos elaborados unilateralmente, as cláusulas limitando ou atenuando os direitos do outro parceiro contratual, o consumidor, eram as mais comuns.{68} Note-se que as normas do CDC se intitulam, no art. 1.º, normas de ordem pública, logo inafastáveis pela vontade das partes. Mesmo assim, em várias passagens o CDC menciona a ineficácia, ou a invalidade de previsões contratuais neste sentido. Assim, por exemplo, o art. 24 dispõe que a garantia legal de adequação dos produtos ou * (67) O assunto tem destacada importância e mereceu em vários países leis especiais, veja a lei belga (Bourgoignie, "Clauses", p. 554), a lei francesa, de 1978, (Lamberterie, p. 701) e a lei inglesa, de 1974 (Salvat, p. 52). (68) Assim concorda Pasqualotto, RT, p. 56 e o mestre italiano Bessone, p. 831. (p. 416) serviços{69} (antiga garantia pelos vícios redibitórios){70} independe de sua inclusão no contrato e não pode mais ser exonerada através de estipulação contratual, como permitia o art. 1.101 do CC. Assim, também, o art. 25 proíbe a estipulação de cláusulas que impossibilitem ou exonerem o fornecedor da obrigação de indenizar os danos causados pelo fato do produto defeituoso, enquanto no direito tradicional, a cláusula de exclusão de responsabilidade civil era, em princípio, permitida.{71} Estas repetições podem ter como finalidade acostumar, ou lembrar os juristas mais tradicionais do novo regime cogente instituído pelo CDC. Discutíveis, porém, são as últimas expressões do inciso I, primeira parte, do art. 51. Em uma interpretação literal, a norma afirma que são (nulas de pleno direito as cláusulas... que) "...impliquem renúncia ou disposição de direitos". A fórmula parece-nos ampla em demasia, logicamente existem direitos disponíveis e direitos indisponíveis, a ratio parece ser, que aqueles destacados no CDC são indisponíveis, logo não podem ser objeto de renúncia. Seria assim, mais uma repetição dos efeitos do art. 1.º, que já estabelece serem de ordem pública as normas do CDC.{72} Serve também de alerta para o fornecedor, no sentido de quando o contrato é de consumo, não deve prever cláusulas que estabeleçam renúncia ou disposição de direitos do consumidor. A lista do art. 51 é uma lista-guia, lista exemplificativa de cláusulas abusivas, e será concretizada pela jurisprudência brasileira. Neste sentido a jurisprudência já tinha se manifestado no sentido de desconsiderar as cláusulas de eleição do foro, sempre que o contrato fosse de adesão, recorrendo à ficção da não manifestação expressa de vontade ou mesmo às regras gerais de direito processual * (69) No direito alemão desenvolveu-se ampla jurisprudência sobre os contratos de viagem e as cláusulas que exoneravam o fornecedor do serviço, por um serviço inadequado durante a viagem no exterior, veja Ulmer/Brandner/ Hensen, pp. 737 a 749. (70) Hoje a denominação correta, em se tratando de relações de consumo é simplesmente "vício", pois a nova noção de vício é bem mais ampla que a anterior, veja neste capítulo, 2.2.

(71) Também a lei francesa, em seu art. 2.º, proíbe tais cláusulas, veja Berlioz, p. 7 (2.954). (72) Sobre a indisponibilidade veja Benjamin/Comentários, p. 34. (p. 417) sobre o foro.{73} Uma das bases da proteção do consumidor é o seu acesso à justiça.{74} este acesso não pode ser dificultado pelo contrato, que é expressão da superioridade técnica, fática e econômica do fornecedor, pois é redigido unilateralmente por um e imposto à aceitação pelo outro. Os incisos II e III do art. 51, por sua vez, proíbem as cláusulas que retiram do consumidor a opção de reembolso criada pelos arts. 53 e 42, parágrafo único, assim como as cláusulas que transfiram a responsabilidade a terceiros. O inciso VI do art. 51 refere-se ao novo direito criado pelo art. 6.º, inciso X, de inversão do ônus da prova em benefício do consumidor, considerando nula a cláusula que estabeleça a inversão em prejuízo do consumidor. o inciso XVI do art. 51 impede a renúncia ao direito de indenização por benfeitorias necessárias, considerando nula de pleno direito esta cláusula, das mais comuns nos contratos de locação. Segundo o direito tradicional, e a lei específica sobre locações era possível ao locador, ou sua administradora, incluir no contrato unilateralmente redigido cláusulas que afastavam o direito de indenização pelas benfeitorias úteis e necessárias. O CDC não menciona a nulidade de cláusula que disponha sobre a renúncia ao direito de retenção do art. 516 do Código Civil, assim até manifestação da jurisprudência no sentido de uma aplicação analógica do inciso XIV, a interpretação a contrario faz pressupor que tal cláusula não seria por si só abusiva, dependendo das circunstâncias do contrato ser ela excessivamente vantajosa ou contrária à boa-fé (art. 51, IV). Por fim, dispõe o inciso XV que "serão consideradas nulas todas as outras cláusulas não previstas na lista do art. 51, mas que estejam em desacordo com o sistema de proteção do consumidor". Demonstrando bem o espírito exemplificativo da lista, a ser completada pela ação da doutrina e da jurisprudência. * (73) Assim decisão do TJRGS, de 30.5.85, Rel. Des. Galeno Lacerda, comentada por Araken de Assis, in Rev. AJURIS 48/219: "Ineficácia do foro impOStO em contrato de adesão a benefício da seguradora onipotente ... a parte fraca pode valer-se das regras gerais de competência...". (74) Assim concorda Bourgoignie/"ClauseS", p. 515, que destaca a coincidência entre as preocupações com os consumidores e o chamado "acess-to-juStice movement". (p. 418) Ficam proibidaç as cláusulas criadoras de vantagens unilaterais para o fornecedor. Os incisos IX, X, XI, XII e XIII do art. 51 consideram também nulas as cláusulas que prevêem: a opção de concluir ou não contrato, a variação do preço, a possibilidade de cancelar o contrato, e a possibilidade de receber de volta os custos da cobrança da dívida, sempre que igual direito não seja conferido ao consumidor. Nestes casos as cláusulas não são consideradas nulas por seu

conteúdo, mas pela unilateralidade da vantagem concedida, o que as torna abusivas. Assim, o inciso IX prevê a nulidade da cláusula que permite ao fornecedor uma opção "de concluir ou não o contrato" embora obrigando o consumidor, assim quando atendendo a oferta vai a revendedora de veículos e assina proposta de contrato, que será enviada à matriz para verificar se há estoque ou se o consumidor preenche os requisitos necessários. Enquanto isso o consumidor não pode contratar com outro fornecedor e se o fizer, terá que arcar com os ônus de sua quebra contratual. A unilateralidade é patente. A nova noção de oferta instituída pelo CDC talvez venha a diminuir esta prática. O inciso X prevê a nulidade da cláusula que permita ao fornecedor a variação do preço, isto é, da contra-prestação a cargo do consumidor.{75} Em um país acostumado a indexar os débitos futuros, em virtude da inflação, a norma do art. 51, X, tem o mérito de afastar as cláusulas contratuais que permitiam ao fornecedor escolher entre os índices de correção (por ex.: "BTN, IPC, CUB ou outro índice oficial"), pois era impossível ao consumidor prever o quantum de sua dívida e a escolha era unilateral, desequilibrando as prestações pois sempre o índice maior era o escolhido. Dos restantes incisos deste grupo, o XIII merece maior atenção. Segundo este inciso do art. 51 do CDC "são nulas as cláusulas que autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo e a qualidade do contrato, após sua celebração" (grifo nosso). Parece-me * (75) Segundo a reiterada jurisprudência alemã, o consumidor tem o direito de prever qual será a amplitude do aumento dos preços, principalmente em contratos de prestação sucessiva, como os de assinatura de periódicos, veja NJW 1980, 2.518, NJW 1982, 331 e NJW 1986, 3134 e Revue Européenne de Droit de la Consommation, 1987, p. 124. (p. 419) que neste caso foi infeliz o legislador no uso da terminologia, pois, enquanto a modificação do conteúdo do contrato é uma expressão vasta, mas adequada, modificar a "qualidade" de um contrato não é tão fácil. Talvez aqui o legislador queira afirmar, a exemplo do § 10, n. 4 da lei alemã de 1976, que são nulas as cláusulas que prevêem a modificação do conteúdo e da qualidade da prestação contratual. Neste grupo de cláusulas abusivas incluem-se as previstas no art. 53 do CDC, isto é, aquelas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em contratos de compra e venda de móveis e imóveis mediante pagamento em prestações, assim como nas alienações fiduciárias. A cláusula está expressamente prevista no art. 53 como proibida, em virtude da importância hoje alcançada pelas vendas através do sistema de consórcios, os quais previam cláusulas semelhantes, com o beneplácito do Estado, mas pelo caráter abusivo e ineqüitativo de tais previsões contratuais, poderia ter sido objeto de aplicação da cláusula geral do inciso IV do art. 51: "Ficam proibidas as cláusulas "surpresa"." O inciso V do art. 51, vetado pelo Presidente da República, sancionava com nulidade as cláusulas que, segundo as circunstâncias, e, em particular, segundo a aparência global do contrato viessem a surpreender o consumidor, após a celebração do contrato. Este inciso inspirado no § 3.º da lei alemã foi vetado sob o argumento de estar incluído no inciso IV do art. 51, o qual como veremos é no CDC brasileiro a cláusula

geral. Efetivamente parte da doutrina alemã{76} criticava a norma do § 3º, por considerar que todas as cláusulas surpresa poderiam ser incluídas entre as proibidas pela regra geral do § 9.º da lei alemã. Note-se, porém, que o inciso IV do art. 51 CDC não possui o mesmo status do § 9.º da lei alemã, que é expressamente a cláusula geral proibitória daquela lei e que, com sua amplitude, foi a grande responsável pela atualização a evolução da proteção contra cláusulas gerais abusivas na Alemanha,{77} logo, a repetição poderia ser positiva. No CDC, porém, outras cláusulas surpresa foram consideradas nulas. Assim, os incisos VII e VIII do art. 51 consideram nulas as * (76) Assim Hein Koetz, in Muenchener Kommentar zum BuergerliChen Gesetzbuch, v. 1, Parte Geral, Munique: Beck, 1984, p. 1.650 (§ 3.º AGBG). (77) Assim conclui Ulmer, Zehn Jahre, ob. cit., pp. 10 e 11. (p. 420) cláusulas que determinem a utilização compulsória da arbitragem e que imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor. Nesta terceira edição, em virtude da nova Lei sobre arbitragem, Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, reexaminaremos este tema quando da análise das cláusulas identificadas como abusivas pela jurisprudência (1.2, c.3 desta Parte). c.2 A norma geral do inciso IV do art. 51 - O inciso IV do art. 51 combinado com o § 1 .º deste mesmo artigo constitui, no sistema do CDC, a cláusula geral proibitória da utilização de cláusulas abusivas nos contratos de consumo. O inciso IV, de nítida inspiração no § 9.º da lei alemã,{78} proíbe de maneira geral todas as disposições que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja, incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade". As expressões utilizadas, boa-fé e eqüidade, são amplas e subjetivas por natureza, deixando larga margem de ação ao juiz; caberá, portanto, ao Poder Judiciário brasileiro concretizar através desta norma geral, escondida no inciso IV do art. 51, a almejada justiça e eqüidade contratual. Segundo renomados autores, o CDC ao coibir a quebra da equivalência contratual e considerar abusivas as cláusulas que coloquem o consumidor em "desvantagem exagerada" está a resgatar a figura de lesão enorme e a exigir um dado objetivo de equilíbrio entre as prestações.{79} Parece-nos que a norma do inciso IV do art. 51, do CDC, com a abrangência que possui e que é completada pelo disposto no § 1.º do mesmo art. 51, é verdadeira norma geral proibitória de todos os tipos de abusos contratuais, mesmo aqueles já previstos exemplificativamente nos outros incisos do art. 51. A boa técnica legislativa ordenaria que norma tão importante e ampla estivesse contida em artigo próprio e não escondida, talvez por medo do veto, em uma lista de quinze incisos. Mas, seja como for, a cláusula geral da boa-fé da eqüidade e do equilíbrio nas relações contratuais está presente no sistema do CDC representando uma das importantes inovações introduzidas por esta lei no direito contratual * (78) Veja Rieg, p. 926, a tradução é praticamente literal.

(79) Aguiar, Cláusulas, p. 15 menciona inclusive uma cláusula geral da lesão enorme na parte 2 do inciso IV do art. 51, na mesma linha, Pereira, Lesão, p. 212. (p. 421) brasileiro.{80} Segundo o inciso IV do art. 51, são nulas as cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, "que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja incompatíveis com a boafé ou a eqüidade". Três são, portanto, os parâmetros: 1) o conhecido princípio da boa-fé, de inspiração alemã (§ 242 BGB), grande ausente no Código Civil Brasileiro de 1917, que, agora, após os esforços da jurisprudência e da doutrina, encontra-se positivado no sistema jurídico brasileiro; 2) a eqüidade, significando, aqui, mais a necessidade do chamado equilíbrio contratual (na expressão de Raiser, Vertragsgerechtigkeit), do que a inspiração inglesa da decisão caso a caso na falta de previsão legal anterior, uma vez que as normas do próprio CDC, nos seus artigos iniciais, básicos, já instituem linhas mestras para este equilíbrio; 3) a noção de vantagem exagerada, que vem complementada no § 1.º do art. 51, o qual institui alguns casos de presunção de vantagem exagerada, nitidamente inspirados na alínea 2 do § 9.º da Lei alemã de 1976. Destaque-se que para a doutrina alemã o ponto nuclear da cláusula geral do § 9.º AGBG e, portanto, analogicamente, do nosso inciso IV, seria a vantagem exagerada. Consideram que este seja o critério mais concreto, devendo recorrer-se a noções mais amplas de boa-fé para reforçar a idéia de equilíbrio e para não romper com o princípio geral de boa-fé, presente no direito alemão tradicional (§ 242 BGB).{80.A} Quando da elaboração da lei a expressão inicial usada foi "desequilíbrio de interesses", que após foi substituída pela expressão "desvantagem exagerada" do cliente. A fonte da expressão continuaria a ser, porém, a falta de equilíbrio no contrato. No caso da lei brasileira, devido à inexistência de uma previsão legal de boa-fé nas relações obrigacionais,{81} parece-nos razoável que se interprete o inciso IV como prevendo critérios complementares, maS distintos, podendo ora a jurisprudência identificar uma vantagem exagerada, ora uma outra espécie de afronta à boa-fé. O § 1.º do art. 51 estabelece a presunção de ser exagerada a vantagem que "ofende os princípios fundamentais do sistema jurídiCo * (80) Sobre a importância desta cláusula geral de boa-fé para a evolução do direito obrigacional, veja Pasqualotto, RT, p. 54. (80.A) Assim ensina Rieg, pp. 927 e ss. (81) O Projeto 634/75 pretendia introduzi-la no Brasil. (p. 422) a que pertence", o que "restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual", que "se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares do caso". São critérios mais uma vez amplos, mais uma vez inspirados na lei alemã de 1976, na alínea 2.º do § 9.º.{82} Estes critérios serviram na prática alemã para a proteção das legítimas expectativas criadas pelos diversos tipos de contratos. Protegendo estas expectativas, oriundas da lei civil, que era porém dispositiva, a jurisprudência foi reduzindo o grau de

disponibilidade dos direitos oriundos dos contratos, para determinar que um núcleo mínimo deveria ser mantido (Leitbild).{83} Assim, se um contrato de locação dispõe que o inquilino se responsabilizará pela reparação do imóvel, esta responsabilidade não está incluída na natureza normal do contrato de locação que não transfere a propriedade, mas, tal cláusula seria permitida pela lei específica, uma vez que supletiva e dispositiva. No sistema atual tal cláusula pode ser inserida na previsão do inciso III, do § 1.º do art. 51, que proibe cláusulas excessivamente onerosas para o consumidor, considerando a natureza do contrato. O mesmo se poderia dizer de cláusula que responsabiliza o inquilino pelo ressarcimento dos danos causados por incêndio, mesmo que este tenha sua origem em caso fortuito. Neste caso a cláusula ofenderia princípios fundamentais do sistema jurídico, qual seja o da exoneração por caso fortuito e força maior, e poderia ser considerada abusiva com base no inciso I do § 1.º do art. 51. Nesse sentido as hipóteses do § 1.º servem para possibilitar que o Consumidor atinja o esperado com o contrato que firmou, protegendo as suas expectativas legítimas, os seus interesses básicos, quando aceitou obrigar-se. Esta norma geral positivada no CDC, conduz a jurisprudência brasileira a examinar, a partir da entrada em vigor da nova lei, o conteúdo * (82) Mencione-se aqui a contribuição de Barbosa Moreira, Carlos Roberto, "Um caso de má tradução no Código de Defesa do Consumidor", in Direito do Consumidor, v. 9/62 a 68, que critica a tradução do § 9.º da lei alemã (AGBG) feita no § 1.º, inciso I do art. 51 e que sugere como melhor tradução, p. 67: "Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que ofende os princípios básicos do sistema jurídico a que pertence a norma legal cuja incidência foi afastada". (83) Assim Rieg, p. 929. (p. 423) de todos os contratos de consumo a ela apresentados, para decretar a nulidade absoluta das cláusulas, conflitantes com os novos critérios de boa-fé e equilíbrio nos contratos entre fornecedores e consumidores. Cabe-nos, portanto, examinar agora as cláusulas que na prática destes primeiros anos de vigência do CDC, de sua cláusula geral e da lista do art. 51, foram consideradas abusivas pela jurisprudência brasileira. A contribuição da jurisprudência brasileira a exegese do CDC merece nossa especial atenção nesta segunda edição, motivo porque incluímos uma análise específica dos problemas mais constantes. c.3 As cláusulas identificadas pela jurisprudência - Ao incluir uma seção especial analisando a atividade da jurisprudência brasileira na subsunção de casos práticos à lista do art. 51 e aos demais artigos do CDC e da sua atividade de concreção da cláusula geral de boa-fé do art. 51, inciso IV do CDC, desejamos chamar a atenção para a importância renovadora do direito civil (ou oxigenadora, na feliz expressão de Dall’Agnol Jr.), que o CDC tem exercido no dia a dia de nossos Tribunais e Juizados Especiais de Pequenas Causas. Incluímos também decisões que, mesmo não mencionando o CDC, decidiram casos e contratos envolvendo relações de consumo. Note-se que, face a opção de parte do Judiciário de não utilizar

diretamente normas do CDC em lides envolvendo contratos assinados antes da entrada em vigor do CDC (março de 1991), como forma de evitar a discussão constitucional da garantia a o ato jurídico perfeito, muitas decisões baseiam-se seja no princípio da boa-fé, do enriquecimento sem causa, do equilíbrio contratual, da transparência, da proteção da confiança despertada, seja no próprio Código Civil de 1916 e sua noção de combate ao abuso, enquanto outras preferem utilizar o CDC como mera fonte de inspiração, de argumentação ou de interpretação dos contratos. Consideramos que contribuição maior do CDC é a renovação que trouxe ao direito civil, à teoria aqui chamada de clássica dos contratos, são os seus novos princípios e direitos. Sendo assim, estas decisões em matéria de relações contratuais de consumo mesmo não utilizando O CDC merecem nossa atenção, pois, o impressionante reequilíbrio e a justiça contratual alcançada em algumas das decisões possuiu igualmente um efeito multiplicador e podem ser criadoras de um estado de segurança jurídica no mercado brasileiro igual ou maior do que a (p. 424) simples citação ou subsunção em uma determinada lei ou norma. Como o próprio Supremo Tribunal Federal afirmou, em sua basilar decisão sobre a inconstitucionalidade do IPMF, os princípios têm prevalência sobre as normas positivas; os princípios são em última análise a fonte das normas, eles as determinam, as derrogam ou as subjugam a uma nova e atualizada interpretação. Mencione-se igualmente que a presente análise não teve a pretensão de englobar toda a atividade jurisprudencial neste setor, tarefa herculana em um Brasil de tantos Estados, Tribunais e Foros, mas apenas apresentar algumas linhas jurisprudenciais mais constantes. Em matéria de relações contratuais de consumo, nem todas as linhas jurisprudenciais encontram-se pacificadas, ao contrário, muitas vivem um processo de franca modificação, o que se de um lado limita a abrangência deste painel, de outro, permite que se visualize os passos já consubstanciados pela jurisprudência brasileira e, talvez, permita se retire uma certa projeção ou tendência de futuro. Especificamente, quanto às cláusulas identificadas pela jurisprudência brasileira como abusivas ou presumivelmente abusivas, poderíamos dividi-las em dois grupos, em muito coincidentes com os anteriormente mencionados quanto a lista do art. 51 do CDC: as cláusulas limitativas dos direitos do consumidor e as cláusulas desequilibradoras da relação contratual específica. Tratando-se, porém, de matéria ainda não suficientemente sedimentada, vamos preferir uma análise cláusula a cláusula, com a seguinte ordem: 1) cláusulas de exclusão e limitação da responsabilidade contratual (entre elas: as exoneratórias de responsabilidade contratual e extracontratual, as cláusulas de indenização tarifada ou limitada, as cláusulas de limitação da obrigação em contratos envolvendo saúde, a chamada cláusula de decaimento e as cláusulas penais clássicas); 2) as cláusulas influenciando o acesso à justiça (entre elas: a cláusula de eleição do foro, de arbitragem e sobre O ônus da prova); 3) as cláusulas-mandato; 4) as cláusulas de declarações fictas, de informação, de consenso ou de entrega ficta; 5) as cláusulas atípicas de remuneração (entre elas: a de remuneração Variável ou repetida, cláusulas de imposição de índices unilaterais de reajuste ou de imposição de juros acima do limite constitucional); 6) Cláusulas de deliberação do vínculo (entre elas: cláusulas de resolução, rescisão, denúncia, renovação em curto prazo, distrato forçado em

Contratos de longa duração); 7) as cláusulas-barreira. (p. 425) Cabe-nos, portanto, examinar agora as cláusulas que na prática destes primeiros anos de vigência do CDC, de sua cláusula geral e da lista do art. 51, foram consideradas abusivas pela jurisprudência brasileira. A contribuição da jurisprudência brasileira à exegese do CDC merece nossa especial atenção nesta segunda edição, motivo porque incluímos uma análise específica dos problemas mais constantes. 1. Cláusulas de exclusão ou limitação da responsabilidade contratual: Cláusulas de não-indenizar, cláusulas de indenização tarifada ou limitada, cláusulas de limitação da obrigação em contratos envolvendo saúde, cláusulas punitivas e cláusulas penais "stricto sensu" Face a conscientização mundial da necessidade de proteção dos consumidores no mercado e das pessoas a ele equiparadas por lei, é hoje bastante controversa a validade das cláusulas de exclusão e de limitação da responsabilidade contratual.{84} Superada a visão absoluta do dogma da autonomia da vontade e da liberdade de estabelecer o conteúdo contratual, começaram os juristas a repensar esta espécie de cláusula que toca o âmago do contrato: as obrigações de cada uma das partes e seus reflexos em caso de descumprimento. Em verdade, apesar de seus vários nomes e espécies, estas cláusulas regulam (e limitam) ora a realização, ora a frustração da finalidade do contrato, regulam (limitam ou influenciam) ora o cumprimento, ora o efeito do descumprimento das obrigações contratuais assumidas. Devido a sua extrema importância prática para a harmonia do mercado e a realização das expectativas legítimas dos consumidores, trataremos aqui de 5 de suas espécies de maior importância no mercado brasileiro, sem, porém, desconhecer que poderão haver outros tipos de cláusulas de limitação, de exoneração ou que atenuam a responsabilidade do fornecedor e, conseqüentemente, limitam ou levam a renúncia dos direitos dos consumidores que possuem um caráter igualmente abusivo.{85} Iniciaremos com a análise das cláusulas de exoneração da * (84) Estamos utilizando aqui a expressão genérica presente na obra, precisa e exaustiva, de Ana Prata. (85) Em sua exaustiva obra, Ana Prata analisa mais de 25 espécies de cláusulas de exoneração ou de limitação da responsabilidade contratual. Viney, II/248, também as trata conjuntamente, afirmando que todas caracterizam-se pela "paralisia do direito à reparação". (p. 426) responsabilidade em geral, para após analisar as cláusulas de limitação da responsabilidade com indenização tarifada ou limitada, as cláusulas de limitação da obrigação em contratos envolvendo saúde, a chamada cláusula de decaimento ou de perda das prestações pagas e a cláusula penal clássica. 1.1 Cláusulas da exclusão da responsabilidade contratual e extracontratual Para melhor compreender a importância destas "cláusulas de

exclusão e limitação da responsabilidade contratual", podemos partir da figura criada por Larenz para explicar a íntima relação entre o binômio obrigação/responsabilidade. Segundo Larenz, obrigação e responsabilidade são dois lados de um mesmo fenômeno, como um edifício (obrigação) e sua sombra (responsabilidade), que para o parceiro contratual vai significar o nascimento de uma pretensão inicial e primária (realização do fazer, do não fazer ou do obrigacional) e a conseqüente pretensão posterior e secundária para o caso de descumprimento ou frustração (perdas e danos).{86} Esta dualidade entre obrigação e responsabilidade (em alemão Schuld e Haftung) é uma união tão forte, uma interdependência, que não se adapta a idéia de simples causa e efeito, ao contrário só se explica com a visão unitária e ao mesmo tempo dualista de um mesmo fenômeno: quem está obrigado, responde, quem responde é porque está obrigado. Neste sentido, se excluo a responsabilidade contratual de um parceiro, retiro de sua obrigação contratual uma força, uma parte intrínseca, sua sombra, como diria Larenz. Crio uma obrigação pela * (86) Veja Larenz, pp. 23 e 24; note-se que a tradução portuguesa da obra de Larenz geralmente privilegia as expressões: débito e responsabilidade, para bem frisar o caráter de obrigação stricto sensu da expressão Schuld. Mesmo reconhecendo os méritos desta tradução mais estrita, utilizarei nesta obra a expressão de múltiplos significados "obrigação", seja porque estes já foram especificados e discutidos em passagens anteriores, seja porque nossa tradução pode ser útil na compreensão das semelhanças estruturais entre a responsabilidade contratual e extracontratual, hoje defendidas pela teoria unitária. A figura básica de Larenz é a seguinte: da imposição de um dever (de prestar, anexo ou de conduta) nasce uma obrigação para um indivíduo (contratual ou extracontratual) e sua sombra (responsabilidade contratual ou extracontratual conforme a fonte). (p. 427) metade, um leão sem dentes, um objeto sem sombra possível. No outro lado da relação, conseqüentemente, faço nascer uma pretensão inicial positiva, de cumprimento voluntário e primário, mas impossibilito o nascimento da pretensão secundária, da conseqüência do não cumprimento espontâneo e pontual da obrigação.{87} A cláusula de exclusão total da responsabilidade contratual (cláusula de não-indenizar ou de irresponsabilidade) é hoje rara no mercado brasileiro, face a resposta da jurisprudência e da doutrina, que consideram esta cláusula fonte de forte desequilíbrio contratual, vantagem excessiva para uma das partes que redige e impõe o conteúdo contratual, verdadeiro enriquecimento sem causa e, portanto, contrária a boa-fé e abusiva, mesmo face ao direito tradicional.{88} Entre as cláusulas de exclusão da responsabilidade, a doutrina identificou mais de 15 tipos: a conhecida cláusula de não-indenizar (a que prevê a renúncia a todas as conseqüências do descumprimento), a cláusula de irresponsabilidade do fornecedor por atos próprios ou de

terceiros, a cláusula extintiva do dever de prestar, a convenção impositiva de seguro a cargo do consumidor, a cláusula de substituição do dever de indenizar pecuniariamente pelo dever de indenizar em espécie, cláusulas que atestam a qualidade da prestação, e as cláusulas afastadoras de alguns fundamentos da responsabilidade do fornecedor, como a cláusula exoneratória da responsabilidade por atos de terceiros, a negligence clause, a cláusula exoneratória da responsabilidade por culpa ou culpa leve, as cláusulas estabelecendo os "casos de força maior assimilados" e as presunções de "casos fortuitos" para aquele tipo de relação, as cláusulas sobre outras circunstâncias liberatórias,{89} a exoneração da responsabilidade por mora, exoneração por cumprimento defeituoso, exoneração da responsabilidade por referência aos danos, a insurance Clause.{90} * (87) Como afirma Hugh Beale, in Ghestin, Limitatives, p. 161, o contrato de consumo não pode ser redigido pelo fornecedor de forma a ser uma simples "declaração de intenções" de sua parte, de modo que nem cumprir as suas obrigações necessite. (88) Assim Aguiar Dias, II/216. (89) Veja interessante caso do STJ de não exoneração da responsabilidade do construtor por chuvas "excessivas", in RT 676/195. Sobre responsabilidade solidária por desabamento do prédio, veja TJSP, in RT 686, p. 119. (90) A lista foi elaborada por Ana Prata, pp. 56 a 85, na qual expõe uma série de diferenciações, que extrapolam os estreitos limites desta análise. (p. 428) Muitas destas cláusulas são contrárias expressamente a normas do CDC e, portanto, abusivas (ilícitas, se preferirem) e devem ter sua nulidade absoluta declarada pelo Judiciário ex officio. Neste sentido é claro o art. 25 do CDC, segundo o qual fica "vedada a estipulação contratual que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar" prevista seja na seção sobre vícios do produto ou serviço (Seção III do Cap. IV do CDC, que impõe a responsabilidade pelo vício ao fabricante e ao comerciante, solidariamente, sem importar-se com o seguro, sem possibilidade de exoneração da mora ou da alegação de caso fortuito ou força maior, face a idéia de qualidade-adequação), seja nas seções sobre fato do produto ou serviço (Seção II do mesmo capítulo, que ao impor a noção de defeito e inverter o ônus da prova cria a idéia de caso fortuito "interno" e inescusável, superando a noção de culpa e impondo uma qualidade-segurança mínima) e sobre a qualidade dos produtos e serviços, prevenção e reparação dos danos (Seção 1 do Cap. IV do CDC, que superando a idéia de culpa ou de fortuito impõe deveres de informação sobre a periculosidade e mesmo o dever de reparar ou substituir os produtos). O dever de indenizar, ou melhor, a obrigação de indenizar imputada pelo CDC ao fornecedor nestas seções do CDC não pode, portanto, ser afastada por cláusula contratual. Trata-se de uma conseqüência lógica da força e hierarquia das normas do CDC, que são de ordem pública (art. 1.º do CDC), logo, indisponíveis. Dogmaticamente

este dever de indenizar imposto, sem possibilidade de exclusão contratual, e regulado detalhadamente em lei surge como decorrência da necessidade de repartir os riscos da vida social.{91} Tendo em vista a posição sistemática do art. 25 do CDC, no terceiro capítulo do CDC e com um renvoi às seções anteriores, e de forma a também englobar todos os outros deveres e obrigações do fornecedor não mencionados expressamente neste capítulo, o legislador do CDC sentiu a necessidade de complementar a proibição do art. 25 com a norma do art. 51, I do CDC. O art. 51, I, norma geral sobre cláusulas abusivas presentes em contratos de adesão ou paritários de consumo, combate estas cláusulas ao considerar abusivas àquelas que exonerem a responsabilidade por vícios de qualquer natureza ou * (91) Assim ensinava o mestre de Porto Alegre, Clóvis do Couto e Silva em seu artigo de 1967, O Dever de Indenizar. (p. 429) impliquem renúncia ou disposição de direitos. Assim, por exemplo a cláusula que exonerar o fornecedor do dever de informar o art. 33 do CDC (vendas a distância), ou exonerá-lo da responsabilidade pelos atos dos prepostos ou representantes autônomos, imposta de forma expressa como responsabilidade solidária no art. 34 do CDC, é cláusula abusiva, no sentido do art. 51, I e deve ser declarada sua nulidade. A doutrina brasileira e a jurisprudência anterior ao CDC já combatiam este tipo de cláusula, ora porque tentavam regular aspectos da responsabilidade extracontratual em sede de contrato, ora porque contrariavam normas de ordem pública (critério de Pontes de Miranda), violando deveres legais impostos a estes agentes econômicos, ora porque transferiam obrigações essenciais do contratante (critério de Aguiar Dias), exonerando a responsabilidade por dolo ou culpa,{92} exonerando de deveres de cuidado que interessam a saúde, à proteção da vida, da integridade física ou econômica do outro contratante. A caracterização das mencionadas cláusulas de exoneração da responsabilidade contratual como em princípio abusivas (e ilícitas) reserva, portanto, poucas dificuldades. O mesmo não se pode afirmar em relação às cláusulas de limitação da responsabilidade contratual, que apesar de previstas nos arts. 25 e 51, I vão encontrar um tratamento diferenciado também no CDC. O próprio art. 51, I, em sua segunda frase prevê uma exceção, de validade da cláusula, mas somente a cláusula de limitação (não a de exclusão) da responsabilidade entre pessoas jurídicas igualmente o art. 54, § 4.º do CDC menciona deveres de destaque na redação de contratos de adesão contendo cláusulas que limitem direitos dos consumidores. Interessante notar que algumas destas cláusulas procuram mesmo exonerar o fornecedor de uma futura e, eventual, responsabilidade extracontratual. Isto viola frontalmente os dispostos nos arts. 12 e ss. do CDC sobre a responsabilidade dos fornecedores ali expressamente mencionados por fato do produto ou serviço defeituoso. O art. 17 do CDC expande o campo de aplicação destas normas, abrangendo todas * (92) Veja, por todos, Aguiar Dias, p. 128; quanto à impossibilidade de exoneração através do contrato da responsabilidade extracontratual, uma vez que fereria as normas de ordem pública que a impõe, veja os ensinamentos de

Viney, II, pp. 251 e ss. (p. 430) as vítimas destes eventos atentatórios à segurança e saúde dos consumidores e dos consumidores equiparados. A doutrina brasileira mesmo antes da entrada em vigor do CDC já considerava tais cláusulas inválidas ou mesmo ineficazes, face aos limites estritos da força obrigatória do contrato. O tema mantém seu interesse face a posição jurisprudencial de aceitar a cumulação de danos materiais e danos imateriais (Súmula 37 do STJ). O ressarcimento do dano moral foi assegurado ao consumidor pelo art. 6.º, VI do CDC, mas não se limita, como no sistema alemão ao ressarcimento de danos morais em relações extracontratuais. No novo sistema de direito brasileiro a jurisprudência está aceitando a cumulação de pretensões de indenização de danos materiais (entrega de produto falho) e de danos morais (envio do nome do cliente para o SPC durante as conversações para o conserto do produto).{93} Reconhece-se, assim, que a origem de ambos os danos podem ser violações de deveres principais (prestação adequada) e deveres anexos (por exemplo, do dever de cuidado). Conforme mencionamos na parte referente a nova interpretação dos contratos de consumo, a tendência atual é de considerar estes deveres anexos incluídos entre as obrigações contratuais pactuadas, * (93) Assim caso decidido pelo TARS, que traz a seguinte ementa: "Indenização por danos materiais e morais - Cliente especial - Reclamação por defeito de mercadoria aceita após vários meses - Prescrição inexistente - Letra de câmbio sem aceite não pode ser protestada - Nulidade do título Cancelamento de registro do SPC. Aquele que é tido como cliente especial por loja comercial deve ter tido analisadas as suas qualidades pessoais, as possibilidades econômico-financeiras e, particularmente, sua posição social e funcional. Esse conjunto constitui o patrimônio moral do indivíduo que, se se ferido, precisa ser indenizado. Apontada a letra de câmbio no Cartório de Protesto, sem aceite e irregularmente criada, e o envio injustificado do nome de cliente especial ao SPC, para registro, constituem circunstâncias que devem ser sopesadas para a fixação dos danos morais pelo julgador, eis que originam abalo de crédito. Admitindo a loja comercial uma reclamação por defeito do produto mais de 3 meses após a compra, não poderá argüir em seu favor o instituto da prescrição, uma vez que reconheceu o direito do consumidor ao ficar com a mercadoria a fim de exigir providências junto ao fabricante. Indenização cumulativa de danos materiais e morais. Posição da doutrina e da jurisprudência. Dado provimento (unânime)". (Ap. Cív. 190118463, rel. Dr. Flávio Pâncaro da Silva, 2.ª Câm. Cív., TARS, j. 11.4.91). (p. 431) constituindo assim uma garantia de segurança e adequação mínima,{94} de uma boa-fé standard na prestação do serviço ou no fornecimento do produto, isto é, na relação de consumo. Se violado este novo conteúdo contratual não pode o fornecedor desresponsabilizar-se por previsão contratual expressa a respeito. Também no direito comparado tais cláusulas de exoneração dos novos deveres anexos contratuais são consideradas abusivas.{95}

Neste caso a base para a declaração da abusividade e da ilicitude da cláusula de irresponsabilidade eventualmente presente na relação contratual básica pode ser tanto a fonte constitucional e o art. 6.º, VI do CDC, quanto seu art. 51, I ou IV, a cláusula geral de boa-fé do Código. 1.2 Cláusulas de limitação da responsabilidade do fornecedor (de indenização tarifada ou limitada) O mercado brasileiro apresenta uma série de cláusulas, que poderíamos classificar como "cláusulas de limitação da responsabilidade" do fornecedor. Assim a cláusula que impõe uma forma especial para o exercício dos direitos do consumidor, forma não prevista em lei, é limitativa da responsabilidade do fornecedor, pois este só responderá se o consumidor seguir exatamente a forma prevista no texto contratual. Cláusulas alterando o critério de causalidade entre o não-cumprimento e os danos ressarcíveis ou cláusulas encurtando os prazos para reclamar * (94) Veja nesse sentido a decisão do JEPC/RS: Cláusula de exoneração de garantia. Venda de veículo usado, que funde o motor cerca de 20 dias após o negócio. Ineficácia da cláusula em face do dever legal de garantia, imposto pelo art. 24 da Lei 8.078/90 (CDC). Ação julgada procedente. Recurso improvido por unanimidade (Rec. 149/93, rel. Dr. Roberto Lessa Franz, 3.ª Câm. Recursal, Porto Alegre, 24.6.93). (95) Refiro-me aqui, em especial, ao direito inglês, o qual cria a presunção de que tais deveres anexos, por exemplo de informação e cuidado, estariam incluídos no contrato, enquanto verdadeiras novas obrigações implícitas quanto à qualidade, conformidade do bem, condições de venda e título de propriedade do bem (Sale of Goods, Sections 14, 13, 12 e 55). As cláusulas exoneratórias ou limitativas foram proibidas em contratos de compra e venda pelo UCTA. (Unfair Contract Terms Act 1977). s. 6(2); veja Beale, in Ghestin, Limitatives, pp. 169 e ss. O autor destaca a utilização do critériO de reasonableness como instrumento do juiz para verificar a eventual validade das cláusulas. (p. 432) ou invertendo o ônus da prova são todas cláusulas limitativas dos direitos dos consumidores e limitativas a contrario da responsabilidade do fornecedor. Na falta de previsão expressa, a jurisprudência brasileira tem analisado e considerado essas cláusulas ofensivas aos ditames da boa-fé sempre sob a ótica do inciso IV do art. 51, recorrendo geralmente à noção de desvantagem excessiva para o consumidor positivada no § 1.º do art. 51 do CDC.{96} Trataremos destas cláusulas nas próximas subdivisões especiais ou agrupadas sob a denominação de "cláusulas-barreira"; inicialmente, porém, queremos analisar com especial atenção um tipo de cláusula de limitação da responsabilidade: as cláusulas de fixação de um máximo indenizatório e suas variantes, cláusulas de indenização tarifada ou limitada.{97} No direito comparado, quando se analisam as cláusulas de

limitação da responsabilidade e seus efeitos nos contratos de consumo, dois temas são sempre destacados: a necessidade de equilíbrio do contrato e o de segurança nas relações contratuais.{98} Concordam todos que as cláusulas limitativas de responsabilidade da parte mais forte (assim como as de exclusão) desequilibram o contrato, ao impedir uma composição eqüitativa dos interesses privados que o contrato regula.{99} Em outras palavras, quebrando o equilíbrio entre direitos e obrigações (responsabilidade) de cada uma das partes, ao retirar ou limitar as garantias normais que teria a parte mais fraca em contratos sem este tipo de cláusula.{100} * (96) Exemplo dessa linha jurisprudencial é a decisão do TJRS, de 21 de agosto de 1997: "Seguro contra incêndio. Cláusula de depreciação. Nulidade. É nula a cláusula de depreciação inserida em contrato de seguro contra incêndio por afronta ao Código do Consumidor, art. 51, § 1.º, inc. II, eis que, atribuindo à própria seguradora, em caráter unilateral, a fixação do índice de depreciação do bem, põe em cheque o próprio objetivo do contrato (que é a cobertura do risco) e o equilíbrio das partes contratantes. Recurso provido em parte" (Ap. Civ. 597095868, 5.ª Câm. C., Des. Luiz Felipe Brasil Santos, in Revista de Jurisprudência do TJRS, n. 185, p. 373 e ss.). (97) A terminologia e os exemplos de cláusulas limitativas que estamos usando foram retirados da obra exaustiva e sempre recomendada de Ana Prata, p. 86. (98) Assim Viney, "Rapport de Synthése", in Ghestin, Limitatives, p. 331. (99) Veja a Súmula do STF n. 161: "Em contrato de transporte é inoperante a cláusula de não indenizar". (100) Assim, excelente, Viney, p. 331. (p. 433) Há, porém, uma histórica resistência dos juristas à possibilidade de apreciação judicial da equivalência patrimonial ou social das prestações contratualmente acordado;{101} o que os leva muitas vezes por comodismo a privilegiar o dogma da autonomia da vontade, mesmo visualizando que neste tipo de contrato com cláusulas de limitação da responsabilidade, uma das partes está fadada a uma posição de inferioridade no momento da execução (boa ou ruim) do acordado. Visualiza-se hoje que mais do que um desequilíbrio "monetário", tais cláusulas criam um desequilíbrio jurídico, impossível de ser afastado por uma simples (ou prometida) redução no preço. O argumento da admissibilidade das cláusulas de limitação da responsabilidade do fornecedor em função da redução da contraprestação, como se fosse possível ao reduzir o preço de um produto comprar a irresponsabilidade ou o direito de prejudicar os outros, não resistiu a uma análise ética.{102} Coube ao legislador, portanto, a tarefa de estabelecer algumas balizas quanto à possibilidade de limitar contratualmente os direitos do contratante mais fraco, a contrario, à possibilidade de limitar a obrigação/responsabilidade do contratante mais forte.{103} Também no Brasil, o legislador impôs novas balizas, representadas em sua maioria

pelas normas imperativas do CDC. A tendência hoje é contestar a validade das cláusulas limitativas de responsabilidade, mas, para evitar generalizações perigosas, somente daquelas que ameaçam o equilíbrio, a justiça do contrato, deixando ao juiz o papel de concreção do princípio.{104} Assim também o próprio legislador do CDC enfrentou a inclusão de algumas cláusulas limitativas da responsabilidade do fornecedor em contratos de consumo e, para tanto, criou formas especiais a serem cumpridas para a sua validação. Assim a possibilidade de aumentar o prazo para a "sanação" do vício do produto é exemplo de cláusula limitativa de responsabili* (101) Assim ensina Ana Prata, p. 378. (102) Assim Prata, p. 381 citando Roppo e Ripert. (103) Sobre os esforços dos legisladores no mundo, veja as citadas obras de Prata, pp. 380 e ss. e de Ghestin, Limitatives, p. 335 e ss., veja art. 6, 7 e 11 da lei alemã de 1976 e a nova Diretiva da comunidade, anexo, art. 1.º, letras a e b). (104) Assim, após exaustivo exame do direito comparado, conclui tb. Viney, in Ghestin, Limitatives, p. 340. (p. 434) dade prevista nos § 1.º e § 2.º do art. 18 do CDC, e por força do § 3.º do mesmo artigo. Esta cláusula deverá imperativamente "ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor", segundo exige o art. 18, § 2.º do CDC. Assim, também o art. 54, § 4.º especifica que as cláusulas que implicarem em "limitação" de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão. O legislador do CDC, porém, concentrou suas atenções e previu uma linha de proibição genérica às cláusulas limitativas que atenuem a responsabilidade por vícios de qualquer natureza dos produtos ou serviços (arts. 25 e 51, I do CDC) e às que atenuem a responsabilidade de indenizar prevista na seção sobre fato do produto ou do serviço e sobre qualidade de produtos ou serviços (arts. 24 e 25 do CDC). Nestes casos a regra, sem exceções, é a do direito a uma "efetiva" indenização "de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos", previsto no art. 6.º, inc. VI do CDC. Apesar da clareza da previsão legislativa, a realidade brasileira apresentou nestes primeiros anos de vigência do CDC uma série de cláusulas limitativas suspeitas. No ramo dos transportes (marítimos, aéreos ou rodoviários) a resposta jurisprudencial foi no sentido da proibição,{105} declaração de nulidade{106} ou simples superação (através de subsunção diferenciada){107} das cláusulas limitativas da responsabilidade pelo extravio ou perda de bagagem e atraso ou vício na prestação de serviços. Quanto às cláusulas limitativas de responsabilidade em caso de acidente, dano à saúde ou morte dos passageiros, a resposta da * (105) Nesse sentido a decisão do STJ, sobre o transporte marítimo e a inoperatividade da cláusula frente ao disposto no art. 1.º do Dec. 19.473/

30 (Súmula 161 do STF), veja REsp. 9.787-0-RJ, reproduzida in Lex 43/ 113. (106) Assim a decisão do TJES, reproduzida in RT 697/140, com a seguinte ementa: "A empresa que transporta mercadorias se obriga necessariamente a garantir sua segurança e, sendo assim, são nulas as cláusulas que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada". (Ap. 21.933 - 2.ª C. - j. 23.3.93, rel. Des. Antônio José Miguel Feu Rosa). (107) Veja a decisão do TARS, reproduzida in Julgados 85/289 e a seguinte decisão do mesmo TARS: Responsabilidade do transportador - Transporte aéreo. Não se tratando de dano resultante de acidente aeronáutico, incabível (p. 435) jurisprudência brasileira, combatendo estas cláusulas, foi ainda mais enérgica.{108} É a mencionada segunda questão da segurança das relações contratuais. Segurança significa não apenas a expectativa legítima, a confiança despertada quanto ao bom e seguro cumprimento das obrigações contratuais, a informação suficiente,{109} significa igualmente a consciência de saber quais são as obrigações (responsabilidade) assumidas pelo parceiro, que não afetaram terceiros e nem podem ser diretamente transferidas ao segurador ou excluídas, significa por fim, imposição do dever anexo de cuidado em todas as relações de consumo, especialmente as de caráter perigoso ou envolvendo a saúde e a segurança do consumidor e de sua família. Quanto ao dever anexo de cuidado (Schutzpflicht), como mencionamos anteriormente, é este uma obrigação acessória no cumprimento do contrato que tem por fim preservar o co-contratante de danos à sua integridade, seja pessoal (moral ou física), seja a integridade de seu patrimônio.{110} Neste sentido, a obrigação de segurança, anexa ao contrato, manifesta-se quando da utilização de um meio técnico para alcançar a realização do objetivo do contrato de serviço. Assim, no contrato de transporte do passageiro e de sua bagagem este será feito por um meio técnico (avião, ônibus, carro ou táxi) e deverá o transportador cuidar que nenhum dano sobrevenha aos passageiros e à bagagem sob sua responsabilidade,{111} assim como cuidar para que o meio utilizado (veículo) esteja em boas e adequadas condições.{112} *a limitação da indenização prevista no Código Brasileiro do Ar ou na Convenção de Varsóvia. Permanece total a responsabilidade da transportadora pelo pagamento do valor das mercadorias extraviadas, eis que resultante o dano de ato ilícito (unânime). (Ap. Cív. 26.265, rel. Dr. Elias Manssour, 2.ª Câm. Cív., TARS, j. 15.12.81). (108) Veja abundante jurisprudência citada na parte 1 deste trabalho, quando tratados os contratos de transporte, viagem e de turismo; assim como as Súmulas 187 do STF e 37 do STJ. (109) Em especial no direito alemão e suíço, rígido controle é feito quanto à informação suficiente do consumidor sobre as cláusulas limitativas, que serão desconsideradas em caso contrário. Veja Viney, p. 344 e ss.

(110) Veja sobre o tema Mayer, p. 113 e Menezes de Cordeiro, p. 610. (111) Nesse sentido a citada decisão do TARS, in Julgados 85/289, (rel. Juiz Márcio Puggina, j. 5.11.92) em sua ementa ensina: "Transporte aéreo - (p. 436) Em contratos de transporte, algumas leis especiais prevêem a tarifação ou a limitação da responsabilidade do transportador.{113} O princípio do CDC, exposto no art. 6.º, VI, é exatamente o contrário: o da indenização efetiva. Especialmente no que se refere ao transporte aéreo, as lides estão se multiplicando e a resposta jurisprudencial tende a beneficiar o consumidor. Efetivamente a responsabilidade do transportador aéreo vêm regulada, quanto ao transporte internacional, na Convenção de Varsóvia (Dec. 20.704/31) e, quanto ao transporte nacional, no Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86).{114} A responsabilidade do transportador aéreo prevista na Convenção de Varsóvia é uma responsabilidade subjetiva, baseada na culpa. O sistema básico da Convenção representa-se por duas normas: a) a da presunção de culpa do transportador aéreo (ônus), tanto em caso de *Transporte de passageiro acompanhado de bagagem. Desaparecimento de volume contendo equipamento eletrônico (filmadora VC). Pretendida limitação da responsabilidade indenizatória em 3 OTNs com base no art. 262 do Código Brasileiro do Ar. Se a praxe das companhias aéreas é de não exigirem a declaração de valor relativamente à bagagem despachada pelos passageiros, não se pode impor o ônus pela omissão. Dever de indenizar com fulcro no art. 159 do CC. Se o passageiro comprou bilhete de uma companhia aérea mesmo que o transporte seja efetuado por outra, mediante acordo entre elas, este é irrelevante frente ao passageiro. mantida a responsabilidade contratual de quem se obrigou pelo transporte". (112) Assim Mayer, ob. cit., p. 65. (113) A validade destas cláusulas de limitação de responsabilidade dos transportadores está sendo discutida nos JEPCs, veja ementa exemplar: "Transporte rodoviário. Tem responsabilidade de indenizar até 2 volumes, a empresa transportadora, conforme Dec. 92.352, de 31.1.86. Regulamento dos serviços rodoviários interestaduais de transporte de passageiro, art. 98, no valor de 4 vezes o maior valor de referência por volume, deparando-se com um típico contrato de adesão, as cláusulas devem ser colocadas com clareza, pena de se voltar interpretação, na dúvida, contra o predisponente. Não houve seguro pessoal e o tíquete de bagagem não faz qualquer menção. Assim, à luz da eqüidade de juízo (art. 5.º da Lei 7.244/84), não se oferece justa a indenização tarifária, de ínfimo valor (unânime)". (Proc. 01189713330, Rec. 33/89, rel. Dr. Armínio José da Rosa, 3.ª Câm. Recursal do Juizado de Pequenas Causas-RS, j. 21.5.90). (114) As observações que passamos a reproduzir foram desenvolvidas, com maior detalhe, em nosso artigo, in Direito do Consumidor 3/154-197. (p. 437) morte, de ferimento ou de outra lesão corporal sofrida pelo viajante, como em caso de perda, destruição ou avaria das bagagens registradas e cargas; com a inversão do ônus da prova o passageiro não precisa

provar a culpa do transportador. basta a simples existência do dano, mas a inexistência de culpa pode levar à exoneração do transportador; e b) a da limitação da responsabilidade do transportador.{115} Segundo dispõe o art. 17 da Convenção de Varsóvia o transportador responde pelo dano ocasionado por morte, ferimento ou qualquer outra lesão corpórea sofrida pelo viajante, desde que o acidente, que causou o dano, haja ocorrido a bordo da aeronave, ou no curso de quaisquer operações de embarque ou desembarque. Segundo dispõem os arts. 20 e 21, o transportador não será responsável se provar que tomou, e tomaram os seus prepostos, todas as medidas necessárias para que se não produzisse o dano, ou que lhes não foi possível tomá-las ou poderá ver excluída ou atenuada a sua responsabilidade se provar que o dano foi causado por culpa da pessoa lesada, ou que esta para ele contribuiu. A responsabilidade fica presumida, sob prova em contrário, mas ficaria excluída se provada a ocorrência de força maior ou caso fortuito, bem como a culpa exclusiva da vítima. A norma que prevê a limitação da responsabilidade é aquela do art. 22. Segundo o texto do art. 22 da Convenção de Varsóvia, modificado pelo Protocolo de Haia de 1955, "no transporte de pessoas, limita-se a responsabilidade do transportador à importância de 250.000,00 francos poincaré". "Se a indenização, de conformidade com a lei do tribunal que conhecer a questão, puder ser arbitrada em constituição de renda, não poderá o respectivo capital exceder aquele limite". Sendo que no limite não se incluem as despesas para ressarcir os custos judiciais e os honorários advocatícios. Trata-se, portanto, de uma responsabilidade limitada (begrenzte Haftung), cujo montante poderá variar conforme o dano sofrido, não podendo, porém, superar o limite fixado.{116} Este limite sofre duas exceções: 1) segundo dispõe o art. 22, 3.ª parte, um limite maior de responsabilidade pode ser fixado por acordo entre o transportador e o usuário; 2) segundo dispõe o art. 25, modificado pelo Protocolo de Haia, o transportador não poderá se * (115) Assim, Tito Ballarino, "Questions de droit international privé et dommageS catastrophiques", in Recueil des Cours de la Have, 220/330, 1990. (116) Assim concorda Octanny Silveira da Mota, "As Disposições de Direito Internacional Privado no Código Brasileiro de Aeronáutica", in RDC44/47. (p. 438) prevalecer do limite previsto no art. 22, em caso de dolo ou culpa grave sua, ou de seus prepostos.{117} A última norma a ser mencionada é a do art. 23 da Convenção, segundo a qual será nula e de nenhum efeito toda e qualquer cláusula tendente a exonerar o transportador de sua responsabilidade, ou estabelecer limite inferior ao que lhe fixa a Convenção, mas a nulidade da cláusula não acarretará a do contrato. Concluindo, trata-se, no sistema da Convenção de Varsóvia, da imposição de uma responsabilidade subjetiva, e não objetiva, como afirmam alguns, baseada na presunção de culpa juris tantum, que inverte o ônus da prova a favor do consumidor, mas que limita a responsabilidade total do transportador a patamares que, como veremos, são considerados baixos. Quanto à natureza do limite, cabe distinguir a responsabilidade tarifada da responsabilidade limitada. Na tarifação se presume o dano

(evento morte, perda de um braço, de uma capacidade laborativa etc.) e se quantifica estes tipos de danos, na limitação não se presume o dano, este tem que ser provado, o limite opera somente como um quantunl máximo, logo, se o dano comprovado for de menor valor, a indenização poderá ser fixada abaixo do limite máximo.{118} No caso do sistema da Convenção de Varsóvia, o limite previsto no art. 22 é um limite máximo, que não leva à presunção do dano, logo, estamos frente a uma responsabilidade limitada. Por sua vez, o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), Lei 7.565, de 19.12.86, trata de diversos assuntos relacionados ao transporte aéreo e as empresas nele envolvidas, tratando igualmente do contrato e transporte aéreo a partir de seu art. 222. A responsabilidade contratual do transportador mereceu especial destaque, e foi ela limitada, segundo dispõe o art. 246, aos limites estabelecidos nos arts. 257, 260, 269 e 277 do Código. A determinação do valor exato da indenização fixada pela Convenção de Varsóvia não é fácil, como bem demonstra a decisão do * (117) Sobre a dificuldade da definição de dolo, veja Octanny Silveira da Mota, "O dolo do Transportador aéreo face à Lei Internacional e ao Código Brasileiro do Ar", in RT 356/46 a 57 e Mattos, ob. cit., p. 172 e ss. (118) Assim a conclusão da Comissão 3 do Congresso de B. Aires, Daños, ob. cit., p. 100. (p. 439) Supremo Tribunal Federal no RE 113.498-4, em 1987,{119} onde conclui que mesmo o Banco do Brasil teria enganado-se. Razão para toda esta insegurança é que o franco-poincaré em verdade não existe mais, pois a paridade do franco com o ouro foi extinta,{120} assim como aconteceu com muitas outras moedas. A partir daí surgem soluções contraditórias, umas preconizando o uso do valor em ouro previsto no Protocolo de Haia (cada unidade monetária seria constituída de 65,5 miligramas de ouro, ao título de 900 milésimos de metal fino),{121} calculado pelo valor do ouro ao dia da sentença de liquidação;{122} outras tomam por base o valor do franco-ouro estimado pelo Banco do Brasil em cruzeiros, ou mesmo a onça-troy fixada em dólares pelo governo dos Estados Unidos.{123} Sem querer participar desta discussão, considero que bastaria afirmar que os 250.000,00 francos-poincaré previstos no Protocolo de Haia equivaliam a 16.600 dólares americanos,{124} o que representa mais ou menos o preço de 5 passagens aéreas para a Europa, como limite máximo para a indenização (inclusive a devida em prestações alimentícias mensais) por morte, por exemplo, do executivo, pai da família. Como ensina Aguiar Dias sobre a cláusula limitativa de responsabilidade: "Sem embargo de sua utilidade, pois estimula os negócios, mediante o afastamento da incerteza sobre o quantum da reparação, a cláusula limitativa muitas vezes resulta em burla para o credor. Dificilmente se dá o caso de ser o dano real equivalente à reparação prefixada: o mais freqüente é representar um simulacro de perdas e danos".{125} O mestre brasileiro da Responsabilidade Civil, muito antes de pensarmos na defesa do consumidor, sustentava a nulidade desta * (119) In RT 633/211 e ss., rel. Min. Célio Borja, julgamento de 17.12.88.

(120) Para detalhes, veja j. D. Fairbanks Belfort de Mattos, "O Desastre Aéreo em Abidjan, na Costa do Marfim", in RDC 52/181 a 184. (121) É a solução preconizada pelo Min. Francisco Rezek no acórdão anteriormente citado, in RT 633/214 e ss. (122) Esta é a conclusão de Mattos, ob. cit., p. 184 in fine. (123) Veja RTJ 107/384, sobre decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo e pretenso dissídio de jurisprudência. (124) Veja Andreas Lowenfeld, e Allan Mendelsohn, "The United States and the Warsaw Convention", in Harvard Law Review, 80/507, 1967. (125) Dias, ob. cit., p. 128. (p. 440) cláusula, "quando a soma arbitrariamente fixada resulte em verdadeira lesão para o credor, principalmente quando se trate de transporte, cujo contrato geralmente é de natureza a excluir a liberdade de discussão por parte do interessado no serviço".{126} Podemos, neste caso, concluir que se a intenção da Convenção de Varsóvia era realmente estabelecer o equilíbrio entre as posições do transportador e do usuário do transporte aéreo, este equilíbrio não foi atingido com a simples inversão do ônus da prova e com a manutenção do princípio da culpa, pois o limite da responsabilidade foi fixado em patamar realmente tímido, a limitar a ação da justiça. Sob o ponto de vista da responsabilidade civil a vantagem trazida pela Convenção é maior para o transportador aéreo, que se é obrigado a fazer um seguro pode conhecer antecipadamente a extensão dos montantes de indenização, o que diminui seus custos, ainda mais hoje quando o transporte aéreo já provou ser um dos mais seguros estatisticamente.{127} Quanto ao Código Brasileiro de Aeronáutica, tendo em vista a dificuldade criada com a extinção dos índices por ele utilizados para fixar o montante das indenizações, fica praticamente impossível, neste rápido estudo, informar o valor exato da indenização por morte, em se tratando de transporte aéreo nacional. Da jurisprudência consultada, porém, duas conclusões podem ser retiradas. A primeira é que o valor fixado pelo CBA é inferior ao fixado pela Convenção de Varsóvia, assim como era o valor fixado pelo antigo Código Brasileiro do Ar. {128} Em segundo lugar, que a insuficiência da indenização leva a jurisprudência a interpretar (assim como faziam os norte-americanos antes do Acordo de Montreal) de maneira bastante ampla o conceito de culpa grave e de dolo aéreo, ajudados pela Súmula 229 do STF, de forma a afastar a limitação indenizatória e possibilitar o ressarcimento pelo Direito Comum.{129} * (126) Dias, ob. cit., p. 129. (127) Em 1965 o Governo dos Estados Unidos avaliou que se o seguro custava US$ 0,68 "per thousand revenue passenger miles", com um limite de indenização no valor de US$ 16.600, se o limite fosse aumentado para US$ 100.000, o custo do seguro seria, mesmo assim, de somente US$ 0,96, veja Lowenfeld/Mendelsohn, p. 566. (128) Veja-se a ilustradora decisão do TARJ in RT 615/195-196. (129) Veja neste sentido a Jurisprudência in RT 606/219, 623/101103, 626/ 165-170. (p. 441)

Como noticia Gaja,{130} os limites fixados em Varsóvia e aumentados em Haia, em 1955, sempre foram motivo de muita polêmica no mundo, em especial nos Estados Unidos, Itália e Alemanha. Com o tempo e com a desvalorização do ouro e das moedas, o montante no qual a responsabilidade do transportador estava limitado tornou-se muito baixo, de maneira que os passageiros, especialmente em caso de acidente fatal, passaram a suportar, eles, um risco muito grande, assim, de maneira diferente, a jurisprudência de vários países tem se esforçado para amenizar as conseqüências ineqüitativas desta alocação de riscos. Fala-se assim em uma crise do sistema de Varsóvia.{131} De acordo com o Arrangement de Montreal dos Estados Unidos com as companhias aéreas filiadas à CAB e à IATA,{132} um total de 80 companhias aéreas comprometeram-se a aumentar os limites da responsabilidade para vôos partindo, chegando ou com escalas nos Estados Unidos, para 75.000 dólares americanos e note-se, uma responsabilidade objetiva não baseada na culpa.{133} Teoricamente o acordo interino de Montreal não anulou ou denunciou a Convenção de Varsóvia, pois que o art. 22 permitia que os limites previstos na Convenção fossem aumentados por acordo com os usuários, ora como são as companhias que redigem os contratos, sem discussão com os consumidores, passaram elas a incluir, para os vôos tocando o solo norte-americano, uma folha a mais em seu bilhete de passagem, contendo as novas regras.{134} O sistema de Varsóvia não conta, portanto, mais com sua universalidade. Desde 1978, a jurisprudência e os doutrinadores italianos manifestaram dúvidas sobre a constitucionalidade da lei interna, que, * (130) Assim, Giorgio Gaja, "Recenti vicende della Convenziome di Varsovia dei 1929 sul Transporto Aereo Imternazionale", im Rivista di Diritto Internazionale, 1965/95. (131) As palavras são de Tito Ballarino, ob. cit., pp. 332 e 333. (132) CAB - Civil Aeronautics Boardeau (organização norteamericana) e IATA - International Air Transport Association (organização mundial de empresas aéreas). (133) Assim Lowenfeld/Mendelsohn, pp. 396 a 399, já informando que também no caso do Canadá seriam criadas normas especiais. (134) Texto do bilhete de passagem reproduzido pelos citados autores norteamericanos, p. 598, contra a quebra no sistema de Varsóvia veja as críticas de Gaja sobre o Arrangement, ob. cit., p. 103. (p. 442) recebendo a norma da Convenção de Varsóvia, limitava a responsabilidade do transportador aéreo em caso de morte ou de dano à saúde ou à segurança a patamares considerados baixos.{135} A doutrina acabou concluindo que quanto a limitação de responsabilidade permitida por uma lei interna é tal de forma a, verdadeiramente, privar a vítima de um direito de efetivo ressarcimento, e a contradição com as normas do direito interno posterior torna-se intolerável. Acabando por concluir que as normas que fixaram este limite máximo para a indenização, ainda que afastáveis em caso de dolo e culpa grave, não eram de nenhuma maneira conciliáveis com o

princípio constitucional do direito à inviolabilidade do homem, devendo, pois, esta inconstitucionalidade ser declarada pelo Judiciário mesmo se a origem da norma era uma Convenção internacional. Tito Ballarino chega a afirmar que a decisão da Corte Constitucional (Arrêt 132, de 16.5.85) ab-rogou a regra da Convenção relativa à limitação da responsabilidade em caso de morte do passageiro, por violação ao direito fundamental à integridade da pessoa humana. A Corte teria examinado também o problema do tratamento ineqüitativo entre os passageiros do avião e os passageiros de outros meios de transporte e concluído que aqueles não deveriam sofrer restrições a seus direitos fundamentais, em virtude da limitação permitida pela lei ordinária que recebeu a Convenção.{136} Se os Estados Unidos, País precursor da responsabilidade objetiva, interessou-se na administração Kennedy pela proteção mais efetiva de seus cidadãos, a Alemanha, país de grande tradição no cumprimento do princípio de boa-fé nas obrigações e no conseqüente amplo controle judicial do conteúdo dos contratos, não poderia deixar de fornecer um outro exemplo. Em 1983, o Tribunal Federal Alemão (BGH) declarou seis cláusulas presentes no contrato oferecido pela Lufthansa para vôos internacionais como abusivas, e portanto proibidas, determinando a sua não mais utilização, apesar de todas estas normas constarem da * (135) A discussão nasceu em 1978 após uma decisão do Tribunal de Roma, veja detalhes em Canizzaro, pp. 279 a 298, Enzo Canizzaro, "Disciplina Internazionale della Responsabilità dei Vettore Aereo e Costituzione", in Rivista di Diritto Internazionale, LXVII/291,1984. (136) Assim Ballarino, ob. cit., p. 333, com detalhes reproduzidos na nota 63. (p. 443) Sugestão-Resolução 1.013 do IATA.{137} Dois aspectos foram especialmente analisados pelo Tribunal superior da Alemanha: se o fato de uma cláusula contratual encontrar aplicação em vários países ou aplicação "internacional" impediria o controle judicial de sua abusividade ou não; e a relação, em direito alemão, entre as normas da Convenção de Varsóvia e as normas da famosa Lei alemã de controle das cláusulas contratuais gerais, a AGB-Gesetz. No Brasil, a reação contra os patamares limitados de indenização fixados pela Convenção de Varsóvia foi, até 1988, muito reduzida, pois a jurisprudência brasileira não era aberta a teses de inconstitucionalidade e mantinha-se fiel ao entendimento da superioridade dos Tratados face às leis ordinárias posteriores.{138} A única reação foi no sentido de interpretar de forma aberta a noção de culpa grave ou dolo, que retira o privilégio da limitação da responsabilidade.{139} Em se tratando de norma anterior à nova Constituição, o Código Brasileiro de Aeronáutica teve de ser recebido no novo ordenamento jurídico nacional. Inicialmente chamávamos a atenção para o fato de os doutrinadores brasileiros, ao contrário dos italianos, nada mencionarem sobre os eventuais aspectos de conflito das normas do CBA, que limitam a responsabilidade do transportador a patamares considerados baixos e os princípios constitucionais que asseguram o direito à inviolabilidade do homem, direito à vida (caput do art. 5, da CF/ 1988) e direito à proteção do consumidor (inc. XXXII do art. 5º

da CF/1988). Hoje, porém, parte expressiva da doutrina defende essa tese.{140} * (137) Acórdão BGH de 20.1.83, VII ZR 105/81, publicado na Revista IPRax 1984/316 e os comentários de Walter Lindacher, "Zur inhaltskontrolle "internationaler" Flugbeförderungsbedingungen", IPRax 1984/301 (Heidelberg). (138) Veja o excelente trabalho da Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, Rejane Brasil Filipi, no sentido de defender a inexistência de tal superioridade e a equivalência entre a lei interna e o tratado recebido em nosso ordenamento, tudo com base no Acórdão do STF no RE 80.009, veja "Conflitos entre Tratado Internacional e Lei interna posterior no tempo", in ReV. Ajuris 34/226-235. (139) Veja os comentários de Octanny Mota, in Dolo..., p. 47 e J. D. Mattos, o Desastre Aéreo de Abidjan..., ob. cit., p. 170. (140) Veja, por todos, o levantamento exaustivo de Alvim Jorge, p. 114 e ss. (p. 444) Efetivamente, a especialização do tema e o pequeno número de acidentes fatais envolvendo o transporte aéreo nos dias de hoje fizeram com que a tese permanecesse adormecida no cenário nacional por algum tempo, mas a importância do transporte aéreo no mercado atual e a reiterada demanda de aplicação do CDC para dirimir problemas diários fizeram retomar a discussão sobre o tema. Repetimos, pois, nossas observações anteriores: "Se no sistema anterior de responsabilidade subjetiva baseada na culpa, a simples inversão do ônus da prova permitida pelo sistema aeronáutico já era considerada uma vantagem. Mas, tratando-se de norma interna, o CBA obviamente submete-se aos novos parâmetros ditados pela Constituição de 1988 e às normas que complementam estas novas linhas do direito nacional. Parece-nos, portanto, que se o valor da indenização realmente é ínfimo, face às perdas efetivamente ocorridas (morte do pai de família, morte do filho único etc.) e face à atual aceitação do dano moral, tanto na Constituição, como no próprio Código de Defesa do Consumidor, a tese da inconstitucionalidade ou do nãorecebimento de determinadas normas do CBA poderá vir a ser sustentada em nosso País". Em tema de menor importância coletiva e social, no caso o de extravio de mala em viagem aérea, o Supremo Tribunal Federal já decidiu, com base na prevalência da Constituição Federal, superar a barreira da Convenção de Varsóvia e assegurar uma indenização "efetiva", ao conceder danos morais externos à indenização tarifada da Convenção. Logo, em caso de morte do passageiro maior razoabilidade haveria. Veja-se o Recurso Extraordinário n. 172720-9-RJ, cuja ementa é: "Indenização. Dano Moral. Extravio de mala em viagem aérea. Convenção de Varsóvia. Observação mitigada. Constituição Federal. Supremacia. O fato de a Convenção de Varsóvia revelar, como regra, a indenização tarifada por danos materiais não exclui a relativa aos danos morais. Configurados esses pelo sentimento de desconforto, de constrangimento, aborrecimento e humilhação decorrentes do extravio de mala. Cumpre observar a Carta Política da República, incisos V e X do art. 5.º, no que se sobrepõe a tratados e convenções ratificados

pelo Brasil" (DJ 21.02.97, R. Ext. 172720-9, RJ, j. 6.2.96, Rel. Min. Marco Aurélio). Nesse caso vale lembrar os ensinamentos dos doutrinadores italianos, que propunham, ao invés da decretação da inconstitucio- (p. 445) nalidade, uma interpretação conforme a Constituição, isto é, uma interpretação que, utilizando outras normas do sistema, pudesse evitar os excessos do limite de responsabilidade, que o tornariam inconstitucionais. Em seu voto o Ministro Rezek, eminente jusinternacionalista, frisa a aplicação das Convenções de Varsóvia e Haia, mas ao restabelecer a autoridade da sentença de primeiro grau, ensina: "Interpreto os textos que se põem à mesa - as Convenções e a Constituição de 1988 - de modo a compô-los e a não ver, entre eles, incompatibilidade".{141} Este leading case do Recurso Especial n. 172720-9-RJ parece-me indicar a procura dos Tribunais Superiores por uma decisão conciliatória entre os compromissos dos Tratados e o espírito da ordem jurídica atual brasileira, ao realizar uma criativa interpretação "conforme a Constituição" em busca do justo ressarcimento. Trata-se de um primeiro e importante passo. Efetivamente, observa-se nos últimos anos na jurisprudência brasileira, especialmente no primeiro grau e nos Juizados Especiais,{142} uma maior sensibilidade para o tema, acordando uma indenização real do dano material com base no CDC{143} e , no mais das vezes, se existente, uma indenização pelo dano moral, em caso de inexecução do contrato de transporte (atrasos, cancelamento, extravio de bagagens etc).{144} Parece-nos que foi com a entrada em vigor do CDC que os consumidores-vítimas de acidente de aviação conscientizaram-se de * (141) R. Ext. 172720-9, RJ, j. 6.2.96, Rel. Min. Marco Aurélio, voto Min. Francisco Rezek, p. 743. (142) Veja assim decisão do JEPC/RJ: "Bagagens desviadas durante o vôo internacional, sob a responsabilidade de três empresas. Inaplicável a Convenção de Varsóvia e o Código Brasileiro Aeronáutico e aplicável o Código de Defesa do Consumidor. Bem apreciada a matéria. Sentença confirmada" (3.ª T. Recursal, Rec. 028/96, Rel. Mário Assis Gonçalves, DOERJ 5.9.97, p. 160). Contra, pela aplicação da Convenção de Varsóvia, veja do TJRJ, Ap. Civ. 8170/97, Des. Jayro S. Ferreira, DOERJ 25.6.98, p. 175. (143) Veja do JEPC/RJ, 5.ª T. Recursal, Recurso 1998.700.262-0, Rel. J. Otávio Rodrigues, DOERJ 22.5.98, p. 191: "Responsabilidade do transportador aéreo. Violação de bagagem. Indenização cabível. Prevalência do CDC sobre a Convenção de Varsóvia”. (144) Veja decisão concedendo dano material por cancelamento da passagem adquirida, 2ª T. Recursal/RJ, Recurso 533/95. Rela. Teresa de Andrade (p. 446) seus novos direitos e forçaram uma tomada de posição de jurisprudência. A aplicação do CDC para decretar a nulidade de cláusulas do contrato de transporte aéreo nacional e internacional torna-se cada vez mais freqüente.{145} Assim, mantendo nossa opinião sobre a aplicação prevalente do CDC, cabe frisar a conclusão Nr. 1 do Congresso Internacional de

Responsabilidade Civil, realizado em Blumenau em 1995: "O CDC aplica-se aos contratos de transporte aéreo nacional e internacional afastando, como lei nova, especial e de ordem pública qualquer exclusão ou Limitação de responsabilidade do transportador imposta pela Convenção de Varsóvia ou pelo Código Brasileiro de Aeronáutica”. 1.3 Cláusulas de limitação da obrigação em contratos envolvendo saúde Como frisamos na segunda edição desta obra, após a entrada em vigor do CDC, muito se discutiu da abusividade ou não das cláusulas, normalmente presentes nos contratos de seguro-saúde e de assistência médico-hospitalar, que limitam a prestação destes serviços seja somen*Castro Neves, e sobre atraso, concedendo "indenização moderada pelos danos materiais e morais", 3. T. Recursal/RJ, Recurso 5.889/95, Rel. Gilberto Fernandes. Veja sobre culpa da transportadora na perda do vôo marcado e aplicação do art. 14 do CDC, 12.ª T. Recursal, Recurso 330-2/ 98, rel. Célio Geraldo de Magalhães Ribeiro, DOERJ 22.5.98, p. 192. Veja sobre cancelamento 1.º TACivSP, in RT 727/198 e extravio, JTA-Lex 142/ 144. Contra, pela não concessão da indenização por danos morais em virtude do que denomina "transtornos, aborrecimentos ou contratempos", veja decisão do TJSP, in RT 711/107. (145) Veja in RT 727/209-211, decisão do 1.º TACivSP, cuja ementaé: "O contrato de transporte aéreo é de resultado, respondendo o fornecedor do serviço pelos vícios de qualidade que o tornem impróprio ao consumo ou lhes diminua o valor. Por isso, não se trata de obrigação aleatória, cabendo ao transportador, além da obrigação de segurança, a de prestabilidade, sob pena de ter o dever de indenizar, independentemente de qualquer discussão de culpa do contratante faltoso. A cláusula de "Condições do Contrato", que acompanhavam o bilhete, por se tratar de cláusula unilateral, colocada em contrato de adesão, só visando o interesse da companhia transportadora, não tem valor algum conforme o art. 51 da Lei 8.078/90 (CDC). Ap. Sum. 629.715/0- j. 31.10.95, rel. Antonio de Padua Ferraz Nogueira. Sobre atrasos nos vôos, veja decisões do 1.º TACivSP favoráveis aos consumidores, in RT 727/198, RT 727/200. (p. 447) te a determinadas doenças ou espécies de doenças, seja a determinados dias de internação, número de consultas, espécies de consultas etc.{146} A promulgação da controversa Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde,{147} traz nova luz ao tema. Não que a lei especial tenha o condão de afastar a incidência do CDC sobre esses contratos, pois, como vimos, a lei especial nova regula a relação de consumo especial no que positiva e o CDC continua a regulá-la de forma genérica. A lei nova, porém, ao positivar que determinadas práticas e cláusulas antes consideradas abusivas por parte da jurisprudência são - na nova ordem - lícitas, se elaboradas sob determinadas circunstâncias, sem dúvida criará alguma dificuldade para a jurisprudencia. O positivo da lei especial é trazer uniformidade na jurisprudência,

mas no caso específico da Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, ela não é protetiva do consumidor, mas sim consolida o atual estágio de (baixa) lealdade nas relações entre as seguradoras e consumidores e autoriza, contrario sensu, as atuais práticas e planos incompletos das seguradoras. Não foi por outra razão que as entidades de defesa do consumidor manifestaram-se de forma unida contra a aprovação da lei na versão promulgada, justamente depois de anos de luta para que o setor fosse regulamentado por lei. Trata-se mais de uma lei espetáculo, lei para ser notícia de jornal e de televisão, para criar um discurso (ilusório) de que os direitos do consumidor seriam preocupação do governo e do parlamento atual, do que de uma lei para proteger o consumidor efetivamente. Ao contrário vai prejudicá-lo. Neste sentido, urge lembrar que a lei só se aplica obrigatoriamente e expressamente às relações e contratos "celebrados a partir de sua vigência" (art. 35). Fica assegurada a possibilidade de o consumidor optar "pela adaptação" ao novo sistema. Essa opção ativa dos consumidores não nos parece positiva, nem necessária, pois, como o art. 35 em seus parágrafos 1.º e 2.º expressamente frisa, as operadoras devem adaptar (dever profissional) "todos os contratos celebrados", o que "não pode implicar prejuízo ao consumidor". Portanto, os contratos e * (146) Veja a jurisprudência sobre o assunto, comentada por Doralina Mariano da Silva, in Direito do Consumidor 7/233 e ss. (147) DO 4.6.98, Seção 1, p. I-5, com vacacio Legis de 90 dias (art. 36 da referida lei, DO, p. 5). (p. 448) relações anteriores (é necessário frisar a continuidade da relação, apesar da sucessão de contratos, para evitar as "anuências fictas" ao novo regime!) seguiriam regidos apenas pelo CDC, segundo posição majoritária da jurisprudência. No sistema do CDC, não podemos esquecer do art. 7.º do CDC, que é uma interface atualizadora do sistema deste Código. Logo, "os direitos dos consumidores" assegurados pela legislação externa ao CDC (como a Lei 9.656/98) o integram, não porém os limites a esses direitos. Parece-nos, pois, que as precisões conceituais sobre quais cláusulas são abusivas e proibidas, quais cláusulas devem integrar necessariamente um tipo de plano de saúde (agora oficialmente existiram 4 tipos de planos diferenciados), presentes na nova lei, integram o CDC, a interpretação dos contratos em curso e a concreção que os juízes darão ao princípio da boa-fé objetiva que já rege esses contratos, ex vi do art. 7º do CDC. O que é inferior na nova lei ao regime do CDC, interpretado até então pela jurisprudência brasileira, não estaria assim incluído, pois não se trata de "direitos do consumidor" e sim deveres; para modificar contrariamente ao estabelecido no contrato original e na legislação que acompanha o contrato (o CDC), seria necessária uma opção nova do consumidor. Em outras palavras, parece-me que os contratos em curso podem se beneficiar, como vinham se beneficiando, da proteção do CDC, proteção esta complementada por algumas (poucas) precisões da lei especial nova introduzidas pelo art. 7.º do CDC. Isto, sem prejudicar

os consumidores por uma opção obrigatória ao novo sistema por inteiro, o que baixaria o nível de proteção até então assegurado aos consumidores brasileiros pela jurisprudência. A Medida Provisória 1.665, de 4 de junho de 1998,{148} que, no momento de finalizar este livro, encontra-se em vigor, modifica o art. 35 da Lei 9.656/98 de forma bastante duvidosa, ao mencionar que "a adaptação aos termos desta legislação de todos os contratos celebrados anteriormente à vigência desta Lei dar-se-á no prazo de quinze meses a partir da data da vigência desta Lei, sem prejuízo do disposto" no novo art. 35-H (§ 1.º) e retira a expressão "não pode * (148) DO 5.6.98, Seção 1, p. 2-5. Medida Provisória 1.665, de 4 de junho de 1998, que altera dispositivos da Lei 9.656, de 3 de junho de 1998 e dá outras providências. (p. 449) implicar prejuízo ao consumidor", substituindo-a pelo texto: "A adaptação dos contratos não implica nova contagem dos períodos de carência e dos prazos de aquisição dos benefícios previstos nos arts. 30 e 31 desta Lei, observados os limites de cobertura previstos no contrato original". Fica, portanto, a dúvida se todos os contratos, mesmo naqueles em que a opção do art. 35 não se der, devem ser "adaptados" ao novo sistema ou não. Se essa for a interpretação da esdrúxula norma da Medida Provisória, repito, mantendo minha opinião anterior, que esta "adaptação" ao novo sistema só pode significar incluir os novos "direitos" do consumidor no regime contratual, sem impor nenhum prejuízo a esse agente protegido de forma especial. Outra interpretação da referidas Lei e Medida Provisória não pode ser admitida pela jurisprudência, sob pena de ferir o ato jurídico perfeito e o direito adquirido dos consumidores ao aplicar lei nova (ou pior Medida Provisória passageira) que não tem a hierarquia constitucional do CDC e nem a certeza de ser verdadeira norma de ordem pública.{149} A Medida Provisória 1.665, de 4 de junho de 1998,{150} introduz um novo artigo aplicável a todos os contratos em andamento, o art. 35-H, que dispõe: "Art. 35-H. a partirdeS de junho de 1998, fica estabelecido para os contratos celebrados anteriormente à data de vigência desta Lei que: I - qualquer variação na contraprestaçãO pecuniária para 05 consumidores com mais de sessenta anos de idade estará sujeita a autorização prévia da SUSEP; II - a alegação de doença ou lesão pré-existente estará sujeita à prévia regulamentação da matéria pelo CONSU; iii - é vedada a suspensão ou denúncia unilateral do contrato por parte da operadora, salvo o disposto no inciso II do parágrafo único do art. 13 desta Lei; IV - é vedada a interrupção de internação hospitalar em leito clínico, cirurgico ou centro de terapia intensiva ou similar, salvo a critério do médico assistente". * (149) Note-se que o antigo Decreto de 1966 sobre seguros continua em vigor, este sim considerado também norma de ordem pública. (150) DO 5.6.98, Seção 1, p. 5. (p. 450) Da ratio desta norma "provisória" retira-se que realmente a "adaptação" ao novo sistema é opcional para o consumidor, mas que

ele se beneficiará, pelo menos, dessas novidades da lei especial, através de deveres impostos ao fornecedor e não através de modificações prejudiciais de seu contrato por lei nova. Melhor seria a Lei nova e a Medida Provisória citarem, como fazia anterior projeto de lei, o próprio CDC ou seu art. 7.º, evitando redações atrapalhadas como as reproduzidas anteriormente. Comprova-se assim, mais uma vez, que deve haver maior cuidado no Brasil na redação das novas leis e que as normas (ou as Medidas Provisórias) não devem ser redigidas com tanta pressa (e falta de precisão jurídica) a fim de não comprometer seu sentido ou aplicação. Se nem o Executivo, nem o Legislativo sabem exatamente o que desejam como novo regime legal, prevalecerá o regime instituído pelo Judiciário, que já tem opinião majoritária contra adaptações forçadas. Neste sentido é importante reproduzir aqui o nível de proteção alcançado pelo consumidor brasileiro através da interpretação, aplicação e concreção do CDC nos contratos de seguro-saúde e consolidar, assim, o nível de proteção existente hoje no país. Essa fotografia da jurisprudência e dos problemas tópicos desse tipo contratual deve ser complementada com a análise do disposto na nova lei e na sua Medida Provisória 1.665, de 4 de junho de 1998. Notese que se transformada em lei, a Medida Provisória 1.665/98 tende a reduzir ainda mais o nível de proteção ao consumidor alcançado pela Lei 9.656/98. Daí a importância do art. 35 e art. 35-H no futuro. Os abusos tópicos de que trataremos são de dois grupos, conforme na seqüência detalharemos. a) Exclusão de determinadas doenças da cobertura do seguro ou plano O primeiro grupo de cláusulas limitativas dos direitos contratuais dos consumidores identificadas como abusivas por (parte) da jurisprudência brasileira foi aquele que visa excluir do âmbito da relação contratual a cobertura do tratamento de determinadas doenças, doenças denominadas genericamente de "congênitas", "crônicas", "infectocontagiosas" ou especificamente, como no caso do câncer e da aids. Especial atenção merece também a cláusula que exclui o tratamento de doenças "preexistentes", que tem sido usada seguidamente pelos (p. 451) fornecedores para impedir a internação ou tratamentos dos consumidores, alguns até de emergência, e para negar a concessão de guias ou autorizações, igualmente, pela lamentável visão econômica do direito à saúde, merece menção como abusiva a cláusula que exclui da cobertura o tratamento de doença ou moléstia "incurável" ou crônica.{151} Como mencionamos na edição anterior, quanto à abusividade ou não do primeiro grupo de cláusulas que limitam o uso do seguro-saúde ou da assistência médica contratada somente à ocorrência de doenças "menos onerosas", quatro aspectos devem ser destacados: 1) o consumidor é raramente informado sobre estas limitações, criando-se a expectativa de que todas as doenças estão cobertas, com fundamento no CDC, através de seus arts. 31, 46 e 47, há uma interpretação da relação contratual pró-consumidor;{152} 2) as cláusulas limitativas aparecem sem destaque no texto do contrato e por vezes subdivididas em várias cláusulas, dificultando a interpretação e o conhecimento de seu

* (151) Veja bela decisão do TAPR, que em caso envolvendo a Unimed de Curitiba, Medipar, após conceder cautelar inominada objetivando a expedição da guia de internamento hospitalar para cirurgia, deu ganho de causa ao consumidor nas várias ações. Ap. Civ. 96.403-2, rel. Renato Strapasson, j. 4.3.97. Notese que tratando-se de câncer, a seguradora considerou doença crônica incurável e negou qualquer cobertura. Veja sobre a interpretação econômica do direito e as suas injustiças, Mosset, p. 18 e ss. (152) Veja decisões citadas anteriormente, TJSP, Ap. 240.429-2/6, 16.ª C., j. 25.10.94, Rel. Des. Pereira Calças, in RT 719/129. e do 1.º Tribunal de Alçada de São Paulo, Rel. Juiz Lobo Júnior, de 26.7.94, in Revista Direito do Consumidor, v. 14, p. 172 e ss. Veja ainda decisão TJRS citada anteriormente, que repito pela força de sua ementa: "Civil. Seguro-saúde. Exclusão de casos crônicos. Inteligência da cláusula contratual. 1. Não infringe os arts. 1.432 e 1.460 do CC a interpretação de que a cláusula, excluindo casos crônicos, dentre os quais se situa a Diabetes mellitius, não se aplica ao segurado em idade avançada. Interpreta-se o contrato de acordo com sua finalidade econômica e ninguém contrata tal seguro senão para ver cobertos, oportunamente, os achaques da idade. Apelação desprovida (Ap. Civ. 596094482, 5.ª Câm. C., j. 24.10.96, Rel. Des. Araken de Assis, in Revista de Jurisprudência do TJRS n. 180, p. 394.). Veja também TAPR, Ap. Civ. 79.189-3,j. 27.8.95, rel. Campos Marques: "Ação de Indenização. Contrato de Adesão. Seguro-saúde. Cláusula limitando os riscos. Interpretação extensiva. Inadimissibilidade. Ação procedente. Recurso provido. Nos contratos de adesão, as cláusulas duvidosas devem ser interpretadas em favor do aderente". (p. 452) verdadeiro sentido, além de descumprir dever de clareza expresso no CDC (arts. 46 e 54, § 4.º);{153} 3) o contrato é redigido de forma ampla e técnica, podendo as expressões, em princípio, englobar todas, senão a maioria, das doenças humanas, ficando para o arbítrio do fornecedor apegar-se ou não à cláusula;{154} 4) a saúde envolve um bem personalíssimo, indivisivel e indisponível, no sentido da dignidade da pessoa humana, resultando tais limitações a determinados tipos de doença espécie nova de discriminação atentatória aos direitos fundamentais.{155} O tema apresenta fortíssima ligação constitucional e, neste sentido, gostaríamos de iniciar a análise (da abusividade ou não) destas cláusulas relembrando as regras básicas sobre saúde na sociedade e no mercado brasileiro. Segundo dispõe o art. 196 da CF/88, a saúde é direito de todos e dever do Estado, que a presta através de seu sistema único de saúde. * (153) Neste sentido, pela aplicação do art. 54, § 4.º, do CDC e contraditoriedade destas cláusulas que excluem, por exemplo, o tratamento da meningite meningocócica, porque esta também se define como "doença de caráter infecto-contagioso, apresentando características epidêmicas", e outras do

contrato que asseguram tratamento de urgência e de doenças em geral, veja decisão do TJRJ, Ap. Civ. 5176/93, Des. Ellis Figueira, j. 22.2.94, in RDR 1/267 e ss. Assim também as citadas decisões in RT719/129, e do TARS, Ap. Civ. 193.184.132. (154) Exclusões genéricas foram consideradas abusivas pelo TJSP, em linha majoritária, segundo pesquisa do Procon/SP. Abusivas são exclusões de "doenças infecto-contagiosas" (Ap. Civ. 264.741-1, 3.ª Câm., Toledo César j. 13.8.96); "infecção hospitalar" (Ap. Civ. 232.502-2, Scarance Fernandes, j. 2.8.94), e "doença irreversível" (Ap. Civ. 269.377-1, Toledo César, j. 13.8.96): possível exclusão de "patologia ocular" (Recurso 2.103). Quanto a doenças crônicas, jurisprudência dividida, parte considerando não provada que era in concreto "crônica" a doença, logo, considerando lícita a exclusão (Ap. Civ. 212.467-1, Santos, j. 10.3.94 e Recurso 1.615 e 1.748), parte considerando abusiva (Ap. Civ. 269.377-1, Toledo César, j. 13.8.96); Liminares foram mantidas em caso de exclusão de "problemas decorrentes de ingestão de bebida alcóolica" (JTJSP 179/151), "doenças psiquiátricas" (AI 007.223-4, Marcondes Machado, j. 9.4.96). (155) Nesse sentido a conclusão n. 12 do III Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor - Contratos no ano 2000, pleiteia a nulidade da cláusula de limitação da cobertura nos contratos de seguro-saúde. No mesmo sentido, manifestação de Geraldo Martins da Costa, na Revista Direito do Consumidor, v. 21, p. 132 e ss. (p. 453) A própria lei máxima, porém, em seu art. 199, permite a participação de agentes econômicos privados nesse ramo de atividades, assegurando que: "A assistência à saúde é livre à iniciativa privada". O ponto de encontro entre as atividades públicas e privadas envolvendo a saúde será dada pelo art. 197 da CF, ao qual dispõe: "São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado". A única legislação específica sobre seguros-saúde até há pouco era o Dec.-lei 73, de 21.11.66, o qual criou o Sistema Nacional de Seguros Privados e instituiu o seguro-saúde, mencionando as suas modalidades nos arts. 129, 130 e 135. Já a Constituição de 1988 mudou radicalmente a ordem pública brasileira e conseqüentemente o direito privado brasileiro, no que tange às relações no mercado (impondo uma nova harmonia baseada na boa-fé das condutas e no respeito aos direitos dos consumidores, art. 170), e no que tange às relações envolvendo direitos da personalidade e direitos humanos de 2.ª e 3.ª geração (art. 5.º, XXXII).{156} O quadro agravava-se pelo fato do Decreto-Lei n. 73 e sua legislação regulamentadora não dedicarem aos contratos de segurosaúde mais do que três ou quatro normas legais, ocorrendo, por muito tempo, um lamentável fenômeno de "desregulamentação" no setor.{157} Esta falta de base legal, de linhas de atuação e controle do setor refletiu-

se na falha na fiscalização, na omissão e na luta pela continuidade da desregulamentação total do setor por parte dos fornecedores,{158} como * (156) A proteção do consumidor é considerada direito fundamental de 2.ª geração, por ser direito econômico e social; muitos dos serviços "pós-modernoS" mencionados neste estudo (contratos cativos de longa duração), em especial os serviços públicos essenciais e os serviços privados autorizados, tais como os envolvendo a prestação de saúde, vinculam-se estreitamente ao respeito (e à garantia constitucional de não violação) dos direitos humanos hoje reconhecidos. (157) Assim concorda Jourdan, op. cit., p. 417, afirmando que o fato da regulamentação do setor nunca ter se concretizado facilitou que empresas "não dignas" pudessem "funcionar num mercado sem controle do poder de polícia" face à omissão da SUSEP. (158) Interessante notar que os atuais projetos de legislação para o setor são oriundos do Ministério da Saúde, das Secretarias Estaduais de Justiça e (p. 454) se o mercado absolutamente livre evitasse abusos; fazendo pensar se realmente a função controladora, autorizadora e fiscalizadora do Estado estava sendo levada a sério ou se o Órgão diretamente controlador, a Susep, de controlador não teria passado a ser controlado.{159} A aplicação das linhas, paradigmas e normas do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, aos contratos de seguro-saúde apresentou-se, portanto, como importante caminho para alcançarmos o esperado equilíbrio, respeito e lealdade no setor. A jurisprudência originada pela aplicação do CDC ao setor foi imensa. Quanto ao direito constitucional à saúde, o leading case foi a decisão do Recurso Especial 8.095/SP, julgado em 22 de abril de 1996, onde apesar de resultar em decisão de não conhecimento do recurso da seguradora, o Relator Min. Ruy Rosado de Aguiar apreciou o mérito da exclusão de doença, in concreto, da Aids, e concluiu que tal exclusão não pode beneficiar a empresa fornecedora dos serviços de saúde, quando esta não tiver promovido exame de saúde prévio à contratação; concluindo também que a Aids não constitui epidemia capaz de desonerar a seguradora.{160} Hoje não há mais discussão sobre a aplicação das normas do CDC ao setor. Segundo dispõe o art. 3.º, § 2.º do CDC, as atividades securitárias incluem-se no âmbito de aplicação da nova lei, lei também de ordem pública a concretizar o mandamento constitucional de nova harmonia e boa-fé no mercado brasileiro, inclusive no mercado de serviços.{161} *PROCONs, ou são orientações do Conselho Federal de Medicina e não da SUSEP. (159) Adalberto Pasqualotto, em seu inédito trabalho para o III Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, p. 6, citando os ensinamentos de Antônio Herman Benjamin, menciona o fenômeno da "captura" ou da submissão do órgão controlador aos interesses dos "controlados". (160) Outro belo exemplo jurisprudencial está reproduzido na Revista Direito do

Consumidor, v. 21, p. 158 e ss., em que a ementa expressamente menciona: "Plano de saúde. Tutela antecipada. Pretensão da prestadora do serviço de rescindir contrato firmado com prazo de vigência determinado e vencido em pleno tratamento. Pleito do associado de manter-se vinculado. Prevalência da guarida à vida humana, em detrimento de possível direito patrimonial da agravante. Interpretação do inc. II do § 1.º do art. 51 do CDC. Agravo improvido". (161) A aplicação das novas normas impostas pelo CDC ao campo dos seguros é indiscutível, única manifestação contrária e ainda limitada a aplicação de (p. 455) Da mesma maneira, o art. 2.º, em seu caput e parágrafo único, e o art. 29 do CDC definem aquele que contrata os serviços securitários e aquelas pessoas beneficiadas (envolvidas) pelo serviço, assim como as pessoas que se submetem ao método de contratação através de contratos de adesão, como consumidoras ou pessoas equiparadas a consumidores. De forma ainda mais ampla, o art. 17 do CDC dispõe que em caso de defeito no serviço que venha a causar dano à saúde da pessoa, esta será equiparada a consumidor, enquanto vítima do que denomina "fato de serviço". Assim, apesar da nova aplicação da Lei 9.656/98 ao setor, continua sendo aplicável o CDC e parece-nos de grande importância analisar essas relações contratuais sob a ótica da proteção dos interesses do usuario-consumidor ou consumidor equiparado. Neste sentido, dois aspectos devem ser considerados: o respeito às expectativas legítimas{162} do consumidor face ao preço pago e às informações recebidas e à importância social do sistema. O primeiro aspecto destaca a importância da informação fornecida ao consumidor, em especial sobre as exclusões do plano escolhido. Não basta apenas destacar as cláusulas limitativas da cobertura oferecida, é necessário cumprir com seus deveres de informação e aconselhamento. É necessário igualmente transparência e clareza na publicidade e nos prospectos distribuídos.{163} No momento em que a nova lei estabe*uma norma processual do CDC, a qual impediria a denunciação à lide do Instituto Brasileiro de Resseguros-IRB, é a de Voltaire Marensi, "O Código do Consumidor e o Seguro", in RT 671/264-265. (162) Veja a decisão neste sentido do JEPC/RS: "Seguro-saúde. Das seguradoras - Obrigação de reembolsar valores pagos pelo segurado ao hospital Exames e honorários médicos. Segurado que é internado em hospital, realiza exames e submete-se a anestesia geral, para que possa o médico constatar localizadamente o quadro clínico da doença, tem direito a receber ressarcimento pelas despesas efetuadas. As disposições impressas em regulamento geral, anexos, boletins de subscrição nos chamados Planos de Saúde, devem ser interpretadas de forma mais favorável ao aderente, principalmente se ambíguas e contraditórias as situações previstas. Dentro

da moderna ótica de serem vistos estes contratos unilateralmente preparados e conhecidos como de adesão (decisão unânime)". (Proc. 01191701158, Rec. 114, relator Dr. Silvestre Jasson Ayres Torres, 1.ª Câmara Recursal do Juizado Especial de Pequenas Causas, j. 6.6.91). (163) Assim o ensinamento da jurisprudência: "Contrato de adesão. Plano de saúde. Rescisão. Propaganda enganosa. Aproveitamento de períodos de (p. 456) lece um plano ou seguro-referência (art. 10 da Lei 9.656/98), mas faculta a oferta de planos segmentados, cada um com um regime de cobertura obrigatório (art. 12), quais sejam o plano ou seguro ambulatorial (art. 12, I, da Lei 9.656/98), o hospitalar (art. 12, II, da Lei 9.656/98), o obstétrico (art. 12, III, da Lei 9.656/98) e o odontológico (art. 12, VI, da Lei 9.656/98), o dever do fornecedor de informar e aconselhar o consumidor para cada uma dessas escolhas fica redobrado. Note-se que o dever de informar do art. 30 e 31 do CDC não foi revogado nem atingido pela promulgação da lei especial sobre seguro e planos privados de saúde. Em outras palavras, é necessário maior transparência, informação e lealdade ao informar e oportunizar a informação do consumidor sobre o regime (e coberturas) de seu plano ou seguro de saúde. Não há mais como denominar um plano de saúde de "plano integral de saúde" e excluir de sua cobertura a maioria das doenças. A própria Lei 9.656/98 exige clareza nos contratos, regulamentos ou condições gerais dos planos e seguros (art. 16){164} e mesmo a rubrica do consumidor em cada um desses documentos (art. 16, § 2.º).{165} É necessária precisão na exclusão. Exclusões genéricas desequilibram o conteúdo do contrato de seguro-saúde e não devem ser usadas para *carência de outros planos. Recusa no cumprimento do avençado. Indução em erro dos contratantes. Rescisão do contrato. Ação procedente", in JTJSP 156/41. (164) Infelizmente a Lei 9.656/98 contenta-se, a exemplo da Itália, em exigir uma rubrica do consumidor nesses documentos para determinar sua "validade" (art. 16, § 2.º). Essa norma não tem o condão de afastar as normas complementares do CDC, que tratam de outros requisitos de validade (arts. 20, 30, 31,35,46,51 e 53 do CDC), mas essa formalidade informativa pode ser bem utilizada pelo Judiciário quanto à integração desses documentos (rubricados ou não) na relação contratual. (165) A nova exigência de rubrica do consumidor deve ser interpretada não como uma anuência tácita (rubricando um dos documentos e cláusula, concordariam com todas as outras), mas como uma inversão do ônus da prova, de forma a comprovar que o consumidor recebeu todas as informações necessárias e foi lhe chamado atenção dos pontos mais importantes, onde rubricou, evitando decisões e lides como esta: "Contrato. Plano de saúde. Serviço não coberto. Previsão expressa. Desconhecimento por não ter recebido o manual do beneficiário. Alegação após

cinco anos de execução do contrato. Inadimissibilidade. Hipótese, ade(p. 457) acobertar erros de cálculos atuariais ou cobranças a menor de prêmios, de forma a "baratear" serviços que os consumidores nunca poderão usar. A abusividade das cláusulas presentes nos contratos no mercado brasileiro tem sua origem justamente na falta de transparência, precisão e informação deste tipo de contrato. Insere-se assim no previsto no § 1.º, III, do art. 51, que ao concretizar as cláusulas abusivas especifica que são estas aquelas que desequilibram o contrato e "se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual". A cláusula é abusiva porque contrária à boa-fé, mas escolhi propositadamente o inciso III, face as perspectivas de uma análise econômica do direito, pois afirmase constantemente que seria impossível um plano que englobasse todas as doenças. Esta é uma desculpa simplificada, pois tal impossibilidade desaparece face aos cálculos dos riscos, a idéia de verdadeira socialização dos riscos, inclusive com a participação estatal, e os exemplos dos outros países. Preferir ludibriar o consumidor a informá-lo corretamente é a prova da possibilidade de planos melhores e que a concorrência no setor é baixa, especialmente no que se refere às condições gerais dos contratos. Mesmo antes da regulamentação específica ter sido elaborada, identificamos na segunda edição deste livro que "a maioria das lides envolvendo os contratos de seguro-saúde encontraria solução justa e igualitária através da interpretação conforme os princípios da Constituição, da aplicação equilibradora do princípio da boa-fé e de uma nova visão da obrigação como processo. Tal atuação deve ter em mente porém, a harmonia no mercado, a manutenção dos fornecedores corretos e a manutenção do sistema.{166} *mais, de pessoa consciente de seus direitos e obrigações. Embargos rejeitados", in JTJSP 177/220. (166) Levanto aqui o tema da destruição do sistema pela importante tarefa do Poder Judiciário, de dar solução às lides (individuais ou coletivas), fazer justiça, mas sem inviabilizar ou destruir os sistemas econômicos e sociais (reflexo econômico da decisão judicial); penso no caso do Sistema Financeiro da Habitação, no sistema do crédito agrícola e tantos outros, cuja manutenção é as vezes mais importante socialmente do que a "exaustiva" (p. 458) Particularmente, parece-me que o melhor caminho não é impor uma cobertura total, mas melhorar a forma como determinadas exclusões poderiam ser feitas, sempre assegurando uma escolha possível e informada do consumidor. Na situação atual, correta a jurisprudência que simplesmente afasta as cláusulas de exclusão, por abusivas, pois realmente contrariam os ditames da boa-fé no mercado.{167} Três linhas jurisprudenciais podem ser identificadas. A primeira prefere "interpretar" o contrato pró-consumidor e determinar judicialmente as várias concausas para a doença ou que a doença não se enquadra nas exclusões contratualmente previstas.{168} A segunda prefere atacar a cláusula de exclusão em si, sua redação, sua arbitrariedade, o

desequilíbrio que provoca no contrato e, face a frustração das expectativas do consumidor adimplente, considerá-las nulas por abusivas.{169} *e total satisfação do credor (ou devedor) individual. Sobre a importância da manutenção dos sistemas benéficos à sociedade e ao consumidor, veja o voto do rel. Juiz Aldo Ayres Torres, na Ap. Civ. 192176071, 3.ª C. Civ. TARS, j. 13.3.93. (167) Assim a decisão: "Seguro-saúde. Segurado acometido de mal súbito. Internação para realização de exames. Diagnosticada angina peitoral e hipertensão arterial. Afastadas cláusulas contratuais restritivas aos direitos do segurado. Inteligência do art. 51, § 1.º, II, da Lei 8.078/90 (CDC). Cobertura devida pela seguradora. Recurso improvido. (Ap. Cív. 313, relator Dr. Gerci Giaretta, 2.ª Câm. RecursaL"/RS, JEPC). (168) Nesse sentido as decisões do TJRS, em dois diferentes casos de reembolso negado por famosa empresa de seguro-saúde. Na Ap. Cív. 592018170, o reembolso foi negado pela seguradora sob a alegação da uretroplastia ser oriunda de doença congênita do menor, mas outra foi a interpretação da 4.ª Câm. Cív., que considerou a ação procedente e ordenou a indenização dos consumidores, reduzindo, porém, o valor do reembolso ao limite da apólice (j. 9.12.92, rel. Des. João Aymoré Barros Costa, não publicado). Decisão semelhante, em caso de hérnia, cujo caráter "plástico" alegado pela seguradora foi negado pela 1 .ª Câm. Cív. do TJRS já anteriormente ao CDC (Ap. Cív. 588056598, rel. Des. Elias Manssour,j. 1.11.88). Mais recentemente estes casos estão sendo resolvidos no JEPC, onde porém o teto da indenização do RGS é de 40 Salários mínimos; veja neste sentido a decisão anteriormente mencionada (Proc. 01191701158, Rec. 114, rel. Dr. Silvestre Jasson Ayres Torres, 1.ª Câm. Recursal do JEPC, j. 6.6.91). (169) Bom exemplo é a decisão do JEPC, de 3.5.93, Proc. 011927803000, 8.ª JEPC/RS, com forte argumentação, que passo em parte a reproduzir: "Mas, quantos dias, meses ou anos seriam necessários para a caracterização de tal (p. 459) A terceira inverte as posições contratuais, na tentativa de reequilibrar os riscos e afirma ser do fornecedor o dever tanto de informar como de informar-se, logo se aceitou como segurado pessoa com a suposta "doença preexistente" ou congênita, sem fazer os testes necessários, e do seu risco profissional cobrir o tratamento, já que aceitou o pagamento durante anos dos prêmios deste consumidor".{170} Neste primeiro momento, identificamos que a linha majoritária após a entrada em vigor do CDC era "a primeira que, de forma ainda bastante tradicional, interpreta a cláusula contra proferentem, mas evolui a impor conexamente ao fornecedor o pesado ônus de provar a doença congênita, preexistente ou mesmo valores cobrados e a razoabilidade da limitação".{171} *"doença crônica"? Em razão disso, várias decisões judiciais, e, inclusive, agora, por norma inclusive de entidade que disciplina a formação das administradoras de Planos de Saúde, impõe-se que não sejam adotados critérios de exclusão de benefícios com base em conceitos tão vagos como

o de "doença crônica", através do que se constitui uma cláusula tipicamente leonina a favor do administrador do Plano, em detrimento da maioria dos contribuintes que, de boa-fé, aderem aos mesmos e, na hora de necessidade, não obtém a cobertura prometida". (170) Veja decisão exemplar, anterior a entrada em vigor do CDC, mas já seguindo o princípio da boa-fé objetiva, com a seguinte ementa: "Segurosaúde - Doença preexistente. A seguradora que recebe os prêmios, independentemente de examinar a saúde do seu associado, não pode depois escusar-se ao pagamento da cobertura alegando que a causa da internação decorreu de doença preexistente. No caso, inocorre sequer essa relação de causalidade. Ação improcedente. Apelo Improvido". (Ap. Cív. 589041169, 5.ª CC, TJRS, j. 22.8.89, rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Júnior). (171) Bom exemplo é a decisão do TJRJ, in RT 612/163, cuja ementa mencionada é a seguinte: "Contrato de adesão - Assistência internacional de saúde Dúvida quanto à interpretação de cláusula relativa ao custo de despesas hospitalares - Observância de regra própria interpretativa destes acordos em favor do contratante que não formulou as normas do ajuste - Ônus da prova quanto ao fato controvertido pelo outro contratante - Recurso provido Voto vencido. Havendo dúvida quanto à interpretação de cláusula em contrato de adesão, devem ser observadas normas próprias de interpretação destes ajustes levando-se em conta o fato de que neste tipo de acordo a predeterminação unilateral e uniforme do conteúdo da relação contratual é inalterável e, também, que os contratantes aderentes não podem ler com atenção as (p. 460) A Lei 9.656/98 tende a complementar esta tendência da jurisprudência para os contratos novos, uma vez que impõe a cobertura de todas as doenças (art. 10, caput, e art. 12, I e II, da Lei 9.656/98), mesmo as crônicas, congênitas e em estágio agudo. A Lei 9.656/98 tende, porém, a reverter essa tendência ao vedar a exclusão de cobertura às doenças e lesões preexistentes mediante uma redação bastante dúbia. Enquanto a jurisprudência com base apenas no CDC (art. 51, IV e § 1.º) considera, majoritariamente, inócuas, essas cláusulas de exclusão de doenças preexistentes (sem a necessidade de exame prévio do consumidor, pois o fornecedor tacitamente teria aceito o risco e a cobertura), ou mesmo desequilibradoras da engenharia do contrato e abusivas,{172} o art. 11 da nova Lei 9.656/98 dispõe: "É vedada a exclusão de cobertura às doenças e lesões preexistentes à data de contratação dos planos ou seguros de que trata esta Lei após vinte e quatro meses de vigência do aludido instrumento contratual, cabendo à respectiva operadora o ônus da prova e demonstração do conhecimento prévio do consumidor". Esta esdrúxula norma da nova lei especial acaba por considerar "lícita" (repita-se, para contratos novos...) a cláusula de exclusão de cobertura às doenças e lesões preexistentes nos primeiros vinte e quatro meses do contrato e nula a cláusula após (art. 145, V CCBr.). A norma do art. 11 da Lei 9.656/98 impõe, porém, para os primeiros 24 meses do contrato uma prova dificílima e lamentável ao fornecedor, qual seja

a de má-fé subjetiva do consumidor. A jurisprudência atual preferia, seguindo o exemplo do STJ, exigir do fornecedor o exame prévio do *numerosas cláusulas elaboradas. Desta forma, interpreta-se a favor do contratante aderente, cabendo ao outro o ônus da prova do fato controverso (Red.). Contrato de assistência internacional de saúde. Interpretação da cláusula relativa ao reembolso das despesas hospitalares feitas no exterior. Onus da prova relativa ao custo médio no exterior. Procedência da ação proposta para obter o reembolso integral. Provimento do recurso. Voto vencido". (Ap. 39.996 (EDecl), 6.ª C.,j. 3.12.85 e 18.3.86, rel. Des. Basiieu Ribeiro Filho). (172) Veja leading case do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior e decisões exemplares dos Tribunais de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e São Paulo; veja, por todas, decisões do TJRGS: Ap. Civ. 589041169, Ap. Civ. 594087447 (doença preexistente), Ap. Civ. 592018170 (doença congênita), do TJSP: Ap. Civ. 270238-1, Ap. Civ. 254.902-1; Ap. Civ. 250.316-1, e nos JEPC/SP: Rec. 2.377, Rec. 1.341, Rec. 1.100 e Rec. 2.531. (p. 461) consumidor.{173} Se o fornecedor deixasse de executar esse exame, presumia-se que aceitara o consumidor com sua doença mesmo existente (risco da prática profissional). O art. 11 da Lei 9.656/98 pelo menos presume a boa-fé subjetiva do consumidor e exige prova em contrário, mas acaba por desonerar as seguradoras e administradoras de realizar exames prévios, como estas mesmas requeriam insistentemente ao Parlamento. * (173) Como resumo dessa linha jurisprudencial reproduzo a ementa do TJSP que consta no JTJSP 151/164: "Contrato. Plano de Saúde. Admissão de beneficiário sem exame prévio e sem exigir declaração de estado de saúde. Assunção do risco de dar cobertura a casos que eventualmente estariam afastados com o referido exame. Recurso não provido", e no JTJSP 184/39: "Contrato. Plano de Saúde. Doença preexistente. Exclusão. Inadmissibilidade. Empresa que recebeu a proposta sem a realização de exames prévios no associado. Cobertura devida. Recurso provido. Voto vencido". Segundo o relatório da Pesquisa Brasilcon no TJSP, p. 9, no mérito 81, 8% das causas envolvendo exclusão de tratamento teriam sido resolvidas dando ganho de causa ao consumidor, sendo 54,5% liminares. Interessante notar que as esparsas decisões que mantêm a validade e a eficácia das cláusulas de exclusão de doenças preexistentes baseiam-se na má-fé subjetiva do consumidor. Assim TJRJ, Ap. Civ. 7576/96-029 C, Des. Luiz Zveiter, j. 25.2.97, mesmo assim com voto vencido do Des. Gualberto de Miranda com base no art. 54, § 4.º, do CDC e Ap. Civ. 3380/96, Des. Luiz Carlos Guimarães, j. 10.12.96, com voto vencido do Des. Martinho Campos. A prova da má-fé do consumidor é dificil em matéria de contratos de adesão, muitas vezes mal formulados, e em contratos múltiplos, como os concluídos com seguradoras que fazem parte de grupos bancários. Veja TAPR, Ap. Viv. 91.454-9, rel. Manassés de Albuquerque, j. 12.8.96: "quando a captação de clientes se faz na concessão de empréstimos bancários, em reciprocidade bancária e com preenchimento pela seguradora, inexiste má-fé na conduta do segurado". Já o TJRS prefere não declarar a nulidade da cláusula, mas nega que tenha sido provada a preexistência da doença ou exige o exame

prévio. Veja como exemplos Ap. Civ. 594 987 447, Des. Salvador Horácio Vizotto, j. 28.12.94; Ap. Civ. 592 018 170, Des. João Aymoré Barros Costa, j. 9.12.92 e Ap. Civ. 592 070 528, Des. João Loureiro Ferreira,j. 30.9.92. Veja também do TJRS bela sentença concedendo cobertura e mesmo danos morais a segurado com mais de 60 anos, cujo tratamento de complicações da diabetes resultou em cegueira e amputação de ambas as pernas, sendo que a seguradora queria excusar-se, através de aditivo contratual que introduzia restrição de idade, da cobertura de tal doença preexiStente (ap. Civ. 596 088 799, j. 18.6.96, Des. Paulo Roberto Hanke, in Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça, n. 181, p. 308 e ss. (p. 462) Durante a elaboração da hoje Lei 9.656/98, opinamos contra o art. 11 e por sua retirada do texto a ser aprovado, pois é falacioso e perigoso. Isto porque o art. 11 não veda eficazmente a exclusão de doenças preexistentes apesar de assim parecer, mas sim pode ser interpretado de forma contrária como se estivesse a autorizar legalmente essa exclusão. Pior, assim interpretado, o art. 11 autorizaria, ao contrario, que todos os contratos, inclusive o Plano-Referência, possuam cláusula de exclusão de doenças preexistentes, sem que a seguradora tenha que fazer o exame prévio como hoje exigido pela jurisprudência. Sim, o art. 11 da Lei 9.656/98 autorizaria a cláusula em geral, proibindo-a se o contrato tiver, in concreto, uma vigência maior que vinte e quatro meses e a doença for preexistente ao contrato. Essa interpretação não deve prosperar: a cláusula deve ser sempre vedada e só permitida quando acompanhada de exames prévios realizados gratuitamente pelo fornecedor. Ora, a própria lei nova se preocupa com a prorrogação obrigatória desses contratos e restringe as carências a menos de um ano, mas estabelece sem razão alguma uma carência de dois anos para doenças preexistentes. Esse artigo merece ser revogado expressamente na próxima Medida Provisória elaborada sobre o assunto, ou estabelecida judicialmente, de forma rápida, uma outra interpretação pró-consumidor dessa esdrúxula e, parece-me, por sua dubiedade, mal-intencionada norma. A jurisprudência brasileira considerou abusiva essa cláusula de exclusão justamente por sua generalidade. Fora os acidentes, toda e qualquer doença pode-se dizer - e mesmo provar - biologicamente preexistente, ou porque congênita, ou por concausa genética, concausa profissional ou por estar em estágio inicial e incubário há muito tempo.{174} Como se observou, a jurisprudência considerou abusiva a * (174) Surpreendente o grande número de decisões , no país inteiro, que concedem liminares ou decisões positivas para os consumidores em agravo de instrumento, justamente nesses numerosos casos em que o fornecedor nega autorização de internamento, de tratamento ou de exame, por unilateralmen te considerar "preexistente" a doença, o que faz o consumidor recorrer ao Judiciário. Exemplo dessa linha jurisprudencial sempre com resultados favoráveis ao consumidor, mas que comprova a unilateralidade e abusividade

da cláusula e seu constante uso na prática dos fornecedores de segurosaúde, vem do TAPR. Veja AI 85.205-9, rel. Waldemir Luiz da Rocha, j. 18.12.95; Ap. Civ. 70.131-1, rel. Renato Strapasson,j. 8.5.95; Ap. Civ. 94.531-3, rel. (p. 463) exclusão, baseada na idéia de que, se a seguradora ou cooperativa aceita a informação do consumidor e o aceita em seu plano sem o submeter a exames prévios, deve arcar com as suas doenças, mesmo que já potenciais naquela época, interpretando, em última análise, o contexto do contrato em favor do consumidor. Entende-se, com base no CDC, ser risco profissional dessas empresas de saúde contratar com pessoas potencialmente doentes e em risco de saúde. Segurar riscos de saúde e do consumidor desenvolver doenças futuras é a finalidade do plano ou seguro de saúde, não a de contratar apenas com pessoas absolutamente e totalmente saudáveis no momento da contratação. Melhor seria se o art. 11 da nova Lei 9.656/98 fosse revogado, pois anda na contramão da história. De nada adianta a inversão legal do ônus da prova se reintroduzimos a idéia de má-fé subjetiva e a discussão sobre se o consumidor sabia da sua doença. Ao contrário, o CDC e a jurisprudência brasileira presumem sempre a boa-fé deste e a obrigação da seguradora ou plano de cobrir essas doenças (arts. 24, 25 e 51, IV e § 1.º, do CDC). Registre-se, portanto, o perigo de, ao regular por lei esses Planos e Seguros, instituir em lei práticas abusivas e cláusulas abusivas que passarão a integrar o regime legal dos novos planos e seguros de saúde, prejudicando ainda mais os consumidores e renovando o trabalho do Judiciário, que já decidia pacificamente em sentido contrário. Tais esdrúxulas normas desequilibram as relações contratuais privadas mais do que as cláusulas eventualmente abusivas e, portanto, violam os interesses e direitos dos consumidores já protegidos por lei e pela Constituição Federal (art. 5.º, XXXII) e pelo Código de Defesa do Consumidor. Melhor andaria o Parlamento e o Executivo se esclarecessem o que pretendiam com o art. 11 da nova lei: vedar ou legitimar tal cláusula? Na minha opinião essas cláusulas continuam vedadas nos contratos de seguro-saúde em andamento e nos novos contratos assinados após a entrada em vigor da lei especial, nos contratos em andamento com base no art. 51, IV, do CDC e nos novos em face de uma interpretação compatibilizadora da lei e do CDC e em uma provável interpretação literal da norma do art. 11 da Lei 9.656/98. *Antônio Martelozzo, j. 27.11.96; Ap. Civ. 89.838-4, rel. Lauro Laertes de Oliveira, j. 30.4.96; Ap. Civ. 94.274-3, rel. Sérgio Rodrigues, j. 28.8.96; Ap. Civ. 96.403-2, rel. Renato Strapasson, j. 4.3.97 e Ap. Civ. 108.805-9, rel. Ruy Cunha Sobrinho, j. 24.9.97. (p. 464) Polêmica foi também a evolução jurisprudencial que acabou por estabelecer a cobertura do tratamento da Aids,{175} apesar das diversas cláusulas excludentes comuns em todos os contratos de seguro-saúde em que essa doença poderia ser enquadrada como epidêmica,{176} infectocontagiosa,{177} crônica e de notificação compulsória.{178} A Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, parece querer estabelecer de forma geral e pacífica a obrigatoriedade de cobertura da Aids e de seus

efeitos em todos os tipos de plano, pois nos planos referência, ambulatorial e hospitalar nada mais menciona sobre exclusão da Aids, de epidemias, doenças infecto-contagiosas etc, frisando sempre a cobertura de todas as doenças. Sabe-se, porém, que as exclusões dos incisos I a X do art. 10 (plano referência) poderão ser mudadas pelos instituídos Conselhos, e a própria Medida Provisória reintroduz no §4.º do referido art. 10 uma exceção que o parlamento havia afastado da Lei 9.656/98, qual seja, os "procedimentos de alta complexidade" (?). Demonstra-se assim que a insegurança legal é grande. Neste sentido, vale a pena reproduzir aqui alguns passos dessa evolução jurisprudencial, que começou em virtude da interpretação próconsumidor do art. 47 do CDC e das práticas comerciais de algumas empresas que fizeram publicidade ou divulgaram informações que * (175) O leading case é do STF, Recurso Extraordinário 86.095-SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 22.4.96, publicado no DJ de 27.5.96, p. 17.877: "Seguro-saúde. Aids. Epidemia. A empresa que explora plano de segurosaúde e recebe contribuições de associado sem submetê-lo a exame, não pode escusar-se ao pagamento da sua contraprestação, alegando omissão nas informações do segurado" (na íntegra in Revista Direito do Consumidor, v. 20, p. 149-152. Veja leading case do TJSP, no AI 279.785/6, Des. Álvaro Lazzarini, j. 13.2.96: "Não pode o plano de saúde escusar-se da obrigação de prestar ao segurado, portador do virus HIV, o tratamento médicohospitalar necessário, pois a cobertura deve ser generalizada a todas as patologias, independentemente do contrato firmado pelas partes". (176) Veja neste sentido, negando que a Aids seja epidemia, TJSP: "Contrato. Plano de Saúde. Epidemia. Caracterização apenas em situações anômalas e extraordinárias. Recurso não provido", in JTJSP 159/164. (177) Veja decisão na Revista de Jurisprudência do TJRS, v. 23, p. 240 e ss. (178) Veja duas decisões do TJSP permitindo a exclusão do tratamento de doenças "de notificação compulsória", uma vez que assinado o contrato anteriormente à vigência do CDC, Ap. Civ. 247.264-2, Corrêa Vianna, j. 20.12.94, e JTJSP 169/48. (p. 465) cobririam os efeitos da Aids.{179} De decisões que consideravam válida a exclusão de qualquer doença,{180} evoluímos com a Resolução 1 .401/ 93 do Conselho Federal de Medicina para a análise dos valores constitucionais envolvidos,{181} e, após ele, para considerar a ilegalidade da cláusula em 1994,{182} em especial em face da inexistência de exame prévio.{183} Em 1995, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mesmo sem citar o CDC, considerou que, no caso de determinada seguradora, sua prática de aceitar portadores da síndrome da Aids deveria ser valorada como inclusão de nova cláusula na relação contratual e * (179) Veja decisão do STJ, que, mesmo não conhecendo o recurso, ensina: "O quadro fático contido no acórdão, baseado no exame de provas documentais e testemunhais e na interpretação do contrato, revela que a empresa de

saúde, na época da contratação com o recorrido, admitiu portadores de Aids como associados e que estes teriam recebido tratamento por, aproximadamente, dois anos (...). Aceitando a empresa de saúde, à época da contratação com o recorrido, paciente com Aids, não há falar em má-fé do associado ante a eventual omissão sobre ser portador do virus HIV positivo" (RE 89.412-SP, j. 9.6.97, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito). (180) Exemplo neste sentido vem do TJRJ, 1.ª Câm. Civ., Ap. Civ. 2.484/93, Des. Martinho Campos: "Seguro saúde. É lícita a exclusão da cobertura de qualquer doença (Código Civil, artigos 1.432, 1.434 e 1.460)" Veja do TJSP decisão em sentido idêntico, in JTJSP 177/45, e do TJRS, Ap. Civ. 590412130, Des. Clarindo Favretto,j. 14.4.94, cuja ementa é citada na nota seguinte. (181) Assim decisão do TJSP considerando abusiva a cláusula, com voto vencido em contrário, in JTJSP 184/39 e decisão do TJRS, Ap. Civ. 590412130, que, apesar da análise, conclui que: "A resolução n. 1.401/93, do Conselho Federal de Medicina, não obriga as empresas privadas a dar cobertura parcial. A mera exclusão de tratamento de moléstia infecto-contagiosa de notificação compulsória não é cláusula abusiva" (MS 594012130, j. 14.4.94, Des. Clarindo Favretto, in Revista de Jurisprudência do TJRGS 1994, v. 23, p. 240 e ss.). (182) Assim decisões leading case do TJSP na Ap. Civ. 237.402-2, j. 22.8.94, Des. Theodoro Guimarães, e do TJRJ, AI 396/94, j. 6.12.94, Des. João Wehbi Dib, publicada na íntegra na Revista de Direito, v. 27, p. 267-268. No mesmo sentido, ainda em 1994, TJSP, in Ap. Civ. 237.564-2, j. 18.10.94, Des. Viana Santos; Ap. Civ. 240.793-2, j. 25.10.94, Des. Marrey Neto; Ap. Civ. 234.172-2, j. 20.12.94, Des. Benedicto Camargo. (183) Assim TJSP, in Ap. Civ. 234.172-1,j. 20.12.94, Des. Benedicto CamargO, e AI 258.037-2, j. 24.4.95, Des. Albano Nogueira. (p. 466) decidiu: "Aceitando-se a proposta de admissão do contratante no plano de saúde, ciente de que era ele portador da síndrome aidética, tanto que balizou o seu atendimento apenas na observância da carência normal do manual, não sendo o caso de invocar-se a cláusula rebus sic standibus" (Ap. Civ. 248.120-2/4, Des. Massani Uyeda, j. 26.6.95).{184} O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por sua vez, proibiu o tratamento discriminatório a esses consumidores doentes.{185} Em 1996, em leading case o Superior Tribunal de Justiça afirmaria: "Seguro-saúde. Aids. Epidemia. A empresa que explora plano de seguro-saúde e recebe contribuições de associado sem submetê-lo a exame, não pode escusar-se ao pagamento da sua contraprestação, alegando omissão nas informações do segurado" (STJ, Recurso Especial 86.095-SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 22.4.96).{186}

Após a referida decisão, aumentaram o número de cautelares e liminares concedidas.{187} Exclusão de tratamento e de internação é exame do mérito.{188} Realmente, em caso de emergência , não deve o fornecedor ficar discutindo a interpretação de cláusulas e sim concen* (184) Decisão no caso do Omint Ltda, na íntegra, RT 721/113-115. Neste sentido ainda do TJSP decisão na Ap. Civ. 237.564-2, j. 18.10.94, Des. Viana Santos. Contra, decisão do TJRJ também de junho de 1995: "É usual a cláusula excludente de certos riscos nos contratos de seguro, não podendo ser consideradas nulas perante o CDC" (Ap. Civ. 1.284/95, Des. João Carlos Pestana de Aguiar Silva). (185) Na ementa do TJRJ consta: "Plano de Assistência Médica e Hospitalar Portador de Aids - Internação em Hospital não credenciado - Constando da proposta contratual que os atendimentos poderiam ser efetuados na rede credenciada de livre escolha (reembolso), não pode a ré negar-se ao pagamento, sob alegativa de que os aidéticos devem ser internados, exclusivamente, na rede credenciada - Procedência das Ações - Recurso desprovido" (Ap. 2.023/95 , Des. Miguel Pachá). Veja no TJSP a decisão no AI 042.889-4/8, Des. Reis Kuntz. (186) Publicado no DJ de 27.5.96, p. 17.877. (187) Exemplo é a decisão do TJRS, AI 596099150, j. 29.8.96, Des. Luiz Gonzaga Pilla Hofmeister, in Revista de Jurisprudência do TJRGS, n. 180, p. 242243. Veja também exemplo do TJSP, AI 13.186-4, Des. Jorge Tannus, j. 13.6.96; AI 11.635-4, Des. Jorge Tannus, 27.6.96 e AI 007.783-4, Des. Roberto Bedran, j. 4.6.96. (188) Assim TJSP, AI 274.878-2, Des. Alfredo Migliore, j. 5.3.96. (p. 467) trar-se nos deveres de cuidado e de cooperação oriundos do princípio da boa-fé objetiva.{189} A partir de 1996, a jurisprudência majoritária tende a interpretar o contrato de forma mais positiva para o consumidor,{190} considerando inaplicável ao caso da Aids e dos portadores do virus HIV+ a cláusula de exclusão na cobertura e no tratamento de epidemias.{191} A Aids não seria uma epidemia, apesar da posterior conceituação de epidemia realizada pela Organização Mundial de Saúde, pois persistiria a dúvida de sua conceituação.{192} Grande parte da jurisprudência prefere considerar que há um aceite tácito da seguradora para cobrir todas as doenças (não conhecidas pelo consumidor na época da assinatura, consumidor este que se presume de boa-fé),{193} uma vez que o fornecedor inexigiu exames prévios ou não solicitou informações específicas.{194} Parte da jurisprudência considera, com base no art. 51, IV, do CDC, inadmissível a exclusão de doenças com base em cláusula contratual genérica e, portanto, abusivas as cláusulas de exclusão de "epidemias", de doenças "infecto-contagiosas" e outras que afetam a cobertura da Aids e seus efeitos.{195} * (189) Assim TJRS, AI 596099150, j. 29.8.96, in Revista de Jurisprudência do TJRS n. 180, p. 242-243. (190) Veja TJSP, leading case nos Embargos de Declaração n. 238.128-2, Ruiter

Oliva, j. 20.12.94, e decisão de ineficácia, por interpretação, da cláusula de exclusão de responsabilidade em casos de doença infecto-contagiosa: Ap. Civ. 212. 145-1, Gonzaga Franceschini, j. 28.11.95. (191) Assim TJSP, Ap. Civ. 259.981-2, Paulo Franco, j. 21.3.96, e decisões do TJSP publicadas na RT 725/233 e JTJSP 166/69. (192) Assim decisões do TJSP, Ap. Civ. 259.981-2, Paulo Franco, j. 21.3.96, e JTJSP 170/57 e RT725/233. (193) Exemplo de decisão em que o Tribunal considerou provada a má-fé subjetiva do consumidor ao assinar o contrato e não informar que era portador do virus: TJSP, AI 278.923-1, Silveira Netto, j. 1.8.96. (194) Exemplo dessa linha jurisprudcncial é a decisão do TJSP: "Contrato. Plano de Saúde. Aids. Cobertura. Aceitação tácita. Contrato de adesão. Inexigibilidade na proposta de especificação de doenças das quais o proponente é portador. Omissão que corre contra a parte que redigiu tal proposta. Sentença confirmada", in JTJSP 166/149. Sobre aceitação tácita do fornecedor ao pagar várias internações, veja decisão do TJSP, Ap. Civ. 237.564-2, Viana Santos, j. 18.10.94. (195) Veja exemplar ementa da decisão do TJSP: "Contrato. Plano de Saúde. Aids. Cláusula abusiva. A presença da cláusula abusiva no contrato celebrado ou (p. 468) b) Exclusão de determinados tratamentos, exames e limites à internação e à carência Um segundo grupo de cláusulas, semelhante e complementar ao primeiro, foi identificado pela jurisprudência como abusivo, qual seja, o referente à exclusão de determinados tratamentos e exames da cobertura, exíguos limites para as internações, em especial em setores de tratamento intensivo e algumas cláusulas de carência. Os tratamentos de cobertura mais polêmica eram aqueles mais caros, como as quimioterapias, radioterapias, tratamentos obstétricos e odontológicos, órteses e próteses, hospitalizações e fisioterapias em geral, inseminação artificial e determinados exames para diagnóstico. A prática desenvolvida pelos fornecedores foi separar esses tratamentos em planos combináveis. Assim, o consumidor poderia escolher um plano menos custoso e cobertura menor, que excluía o tratamento obstétrico ou o odontológico, por exemplo. Esta prática foi agora "legalizada" pela norma especial, a Lei 9.656/98, que institui quatro diferentes planos ou seguros: o mais completo plano-referência (não obrigatório, mas de oferecimento obrigatório a todos os consumidores) do art. 10 da lei, os planos reduzidos e combináveis do art. 12: ambulatorial, hospitalar, obstétrico e o odontológico. A lei regula apenas o que cada um desses planos obrigatoriamente cobrirá, mas se o consumidor optar (e pagar) apenas por um desses nos futuros contratos de seguro-saúde assinados após a entrada em vigor da referida Lei, não poderá mais reclamar outras coberturas, ou cobertura de Outros tratamentos. O plano referência (o mais amplo deles) não cobrirá uma série de tratamentos (art. 10,

incs. I a X, da Lei 9.656/98), mas essas exceções são modificáveis *na relação individual é que a torna atual; é a execução do contrato que vai esclarecer o potencial abusivo da previsão contratual, é a atividade do intérprete do contrato, do aplicador da lei, que vai identificar abusividade atual da cláusula. Esta se tornou evidente, com recomendação do próprio Conselho Regional de Medicina. Em face da abusividade não é de se considerar a exclusão pretendida pela Empresa ré. Recurso desprovido" (Ap. Civ. 9.096-4, 4.ª Câm. de Dir. Privado, j. 13.6.96, Des. Barbosa Pereira). Veja também neste sentido decisões do TJSP, Ap. Civ. 275.5092, Roque Mesquita, j. 13.5.97, e RT 734/342 e JTJSP 171/38. Contra, TJSP, in RT 735/376. (p. 469) pelo Consu (art. 12, § 1.º, da Lei na redação imposta pela Medida Provisória 1 .665/98).{196} A jurisprudência brasileira considerou abusiva basicamente a recusa de exames necessários e fisioterapias necessárias, cuja exclusão não estava clara no contrato ou constituía cláusula surpresa para o consumidor in concreto ou naquele tipo de plano.{197} Note-se que os fornecedores de seguro-saúde, na prática, muitas vezes estão conscientes de que a negativa de concessão de tal tratamento não encontra fundamento contratual ou é mesmo abusiva. Insistem, porém, na esperança de que poucos reclamem judicialmente. Nos Juizados Especiais, porém, tem aumentado o número dessas reclamações, geralmente com conciliação e acordos, diante da falta de base legal e contratual para essas práticas abusivas.{198} Quanto aos limites nas internações, a jurisprudência não é pacífica, dividindo-se entre aquela que faz valer os limites de internação na UTI,{199} se por tempo "razoável", como 60 dias,{200} e outra que considera abusivo o limite, contrário às indicações médicas e à * (196) Não cobertos estariam os tratamentos experimentais, os de fins estéticos, órteses, próteses, inseminação artificial, rejuvenescimento, emagrecimento, medicamentos importados e para tratamento domiciliar, procedimentos odontológicos complexos, tratamentos ilícitos e antiéticos, casos de cataclismos, guerras e comoções internas, segundo os incisos I a X do art. 10 da Lei 9.656/98. A Medida Provisória reintroduziu a exclusão de "transplantes e procedimentos de alta complexidade" (novo § 4.º do art. 12 da lei especial). (197) Assim TJRS sobre exames complementares e diagnósticos necessários, Ap. Civ. 59207028, Des. João Loureiro Ferreira, j. 30.8.92, e também TJSP, Ap. Civ. 239.132-2/8, Des. Marcello Motta, j. 25.10.94, in RT 716/170-171. Sobre fisioterapia, veja no TJSP, AI 15.605-4, Rel. Des. Pinheiro Franco. (198) Veja exemplos do Juizado Especial Cível de Curitiba, levantados em pesquisa do Departamento Acadêmico do Brasilcon/PR, por exemplo os Pedidos n. 96.007234-6, 96.0007234-6, 96.0007443-8, 96.0006024-6 e 96.0004942-5. (199) Exemplo dessa linha encontra-se na decisão do TJRS, Ap. Civ. 595 192 816,

j. 18.12.95, Des. Paulo Augusto Monte Lopes. (200) Assim TJRS, AI 596174052, j. 5.11.96, Des. Décio Antônio Erpen, em que se lê: "A parte quando contratou sabia da limitação de tempo. A prevalecer a infinidade, possivelmente outra será a tarifa, porquanto os riscos são maiores (...). Todos os planos devem ter limites, pena de um desequilíbrar (p. 470) confiança no vínculo,{201} especialmente se curto (10 dias).{202} Em caso de tentativa de modificação contratual contra o consumidor{203} e cláusulas dúbias,{204} a resposta jurisprudencial foi clara na utilização das novas linhas de tratamento leal e visão contratual do CDC. Pacífica a jurisprudência quanto ao direito à internação, em UTI e em caso de emergência{205} e quando o limite de permanência depende unilateralmente da seguradora. Quanto à carência, não é esta considerada abusiva em geral. Tratase de uma cláusula de limite temporal ab initio da eficácia plena do contrato, permitida em princípio. A jurisprudência considerou essa cláusula, porém, suspeita, sempre que desequilibrar-se a engenharia contratual, e sempre que a carência for utilizada pelo fornecedor para negar acesso ao consumidor ao serviço. Isto é, o serviço de tratamento de saúde deve ser prestado ao consumidor por uma questão de boa-fé e de tratamento leal e cuidadoso com o parceiro contratual, pois a eventual ineficácia da obrigação contratual de reembolsar ou de arcar *todo o sistema, em detrimento aos demais associados" (p. 4). O TJSP considerou razoável a cobertura de internação de 30 dias, contínuos ou não em 12 meses: Ap. Civ. 257.433-2, Des. Gildo dos Santos, j. 16.3.95. Veja também Ap. Civ. 595 192 816, Des. Paulo Augusto Monte Lopes, j. 18.12.95 antes referida. (201) Assim do mesmo TJRS, Ap. Civ. 592 192 816, Des. Araken de Assis e do TJSP, AI 266.805-2/2, Des. Albano Nogueira, j. 25.9.95, in RT 723/ 346. Veja também, resolvendo o conflito a favor do consumidor através da interpretação do art. 47, a antes citada decisão do TJRS, Ap. Civ. 193 184 132. (202) Assim o TJSP considerou infringir o art. 51, IV, do CDC e "exagerada vantagem" a limitação da internação em UTI ao período de 10 dias na Ap. Civ. 266.258-2, Des. Celso Bonilha, e na Ap. Civ. 267.819-2, Des. César Lacerda, j. 13.11.96. Assim também o prazo de 5 dias, in JTJSP 162/43. (203) Assim TJSP, in RT 725/232. (204) Assim decidiu o TJSP pela permanência do internado, in JTJSP 161/113. Assim também o TAPR, citando expressamente o art. 47 do CDC, decidiu que, em existindo uma cláusula com limite fixo de 30 dias e outra com possibilidade de extensão deste prazo, a confiança despertada era no sentido da extensão, criando a dubiedade. Ap. 92.337-7, rela. Regina Afonso Portes, j. 11.8.96. (205) Assim TJSP no AI 279.037-1, Souza José, j. 12.3.96, AI 015.320-1, Cunha Cintra, j. 8.8.96 e AI 34.248-4, Toledo Cesar, j. 18.2.97. (p. 471) com os custos da internação não é razão suficiente para brincar com

a vida do consumidor, para lhe negar tratamento, para fazê-lo trocar de hospital e vir a sofrer danos morais e materiais, como infelizmente ocorre algumas vezes neste país. Assim, a carência é uma cláusula sob suspeita e, em exame liminar, a guia de internação deve ser expedida,{206} a internação deve ser concedida, o tratamento deve ser realizado,{207} mesmo que depois - em discussão de mérito ou em cobrança judicial - o consumidor tenha que arcar com esses custos.{208} A lógica dessas decisões é simples: na balança entre o valor saúde e vida do consumidor e os direitos patrimoniais (contratuais) do fornecedor, que escolheu o consumidor como seu parceiro, deve prevalecer o primeiro, como impõe o princípio da boa-fé objetiva e os princípios constitucionais de defesa do consumidor. Basta lembrar o perigo de erro no diagnóstico{209} de dano irreparável à vida do segurado-consumidor em casos de emergência.{210} para aumentar os deveres anexos de cuidado e de cooperação dos fornecedores.{211} * (206) Assim TJSP, MS 239.210-2, j. 30.6.94, Des. Aldo Magalhães, cuja ementa é: "Mandado de Segurança. Objetivo. Efeito suspensivo a agravo de instrumento. Decisão atacada a qual conceda ordem liminar para a expedição de guia de internação pela impetrante. Alegação de que não houve vencimento do prazo de carência do plano de saúde. Inocorrência do periculum in mora. Impetrante que tem condições de reaver o que dispensa se vier a ser decidido que não responde pelo débito. Segurança denegada". (207) Assim TJSP, Ap. Civ. 265.089-2, j. 24.10.95, Des. Jacobina Rabello. (208) Assim TJSP, cuja ementa é a seguinte: "Seguro. Saúde. Intervenção cirúrgica realizada no período de carência. Reembolso das despesas médico-hospitalares indevido. Ação improcedente. Recurso não provido" (Ap. Civ. 242.276-1, j. 14.2.96, Des. Accioli Freire. (209) Em caso de erro de diagnóstico que obrigou o consumidor a procurar serviços de profissional particular, e em que foi estabelecido o dever de reparar danos materiais e morais, veja TJSP, Ap. Civ. 259.592-1/9-000, Des. Roberto Bedran, j. 24.9.96. (210) Assim decidia o TJRS, mesmo antes da entrada em vigor do CDC. Veja por todos Ap. Civ. 590 082 947, j. 13.12.90, Des. Maria Berenice Dias: "Seguro Privado. O reembolso de despesas médicas, mesmo de facultativos não credenciados, em casos tipificados como de emergência, deve atender aos valores do contrato". (211) Exemplo de erro de diagnóstico encontra-se no Recurso 1340 do JEPC/SP, cuja ementa é: "Contrato. Assistência médica. Erro no diagnóstico por (p. 472) A carência também foi considerada abusiva, com base no disposto no art. 51, VI em especial § 1.º, do CDC, se estabelecido por um período muito longo, quebrar o sinalagma deste contrato aleatório. Assim o Tribunal de Justiça de São Paulo considerou: "Afigurada abusiva a fixação do período de carência para pequenas cirurgias, e,

não tendo o convênio de assistência médico-hospitalar produzido prova alguma que justificasse o prazo tão alargado, aplica-se o art. 51, I, do CDC" (Ap. Civ. 263.362-2/8, 10.ª C., j. 25.5.95, Rel. Des. Borelli Machado).{212} Concorde-se ou não com essa linha jurisprudencial, certo é que a extensão das carências, por vezes mais longas que a vigência dos próprios contratos, sempre foi um dos principais problemas dos consumidores em matéria de planos e seguros de saúde. A matéria teve então tratamento especial na Lei 9.656/98, que estabeleceu prazo mínimo de um ano de vigência contratual (art. 13, I, da Lei 9.656/98) e autorizou as carências estabelecendo, porém, prazos máximos. Segundo o art. 12, V, da referida lei na fixação dos períodos de carência, qualquer dos planos deve estabelecer: "a) prazo máximo de trezentos dias para partos a termo; b) prazo máximo de cento e oitenta dias para os demais casos". A Medida Provisória 1.665/98, atualmente em vigor, introduziu mais uma limitação nesse artigo: "c) prazo máximo de vinte e quatro horas para a cobertura dos casos de urgência e emergência". Neste caso específico das carências a lei especial merece aplauso, pois estabeleceu carências menores que os 360 dias de vigência do contrato e, em casos de emergências, uma carência mínima, apenas o *médica conveniada. Moléstia apontada que necessitava de internação, cujo prazo ainda não estava coberto pela carência. Exames posteriores que revelaram ser o mal da paciente passível de internação, pois já vencido o prazo de carência. Direito ao reembolso das despesas pagas pela internação diante da recusa do fornecimento de guia. Recurso não provido". Consta que parturiente foi enviada de hospital em hospital, pois estaria ainda na carência de seu plano de saúde, causando danos à mãe e ao filho que nasceu em trânsito. Práticas como estas implicam desrespeito básico ao dever de cooperar e de cuidado oriundo do princípio da boa-fé. (212) Decisão reproduzida na íntegra na RT721/127. No mesmo sentido, citando o art. 51, IV, § 1.º, III, do CDC, Ap. Civ. 242.065-2, j. 10.11.94, Rel. Des. Borelli Machado, in JTJSP 169/15; mas contra, pela validade plena da mesma carência, TJSP, Ap. Civ. 214.090-1, j. 5.8.94, Rel. Des. Marco César, e decisão do TJRJ, Ap. Civ. 1.727/95, j. 6.6.95, Rel. Des. Menezes Direito. (p. 473) período necessário para permitir o processamento da associação do consumidor ao plano. Poderia ter ido mais longe a nova lei especial proibindo a imposição de determinadas carências e a sua extrema variedade. Mas andou bem ao regulamentar o assunto, pois permitiu maior transparência e criou segurança para o consumidor. A reabertura da carência por atraso no pagamento, como forma de pressão ao consumidor, foi considerada também pela jurisprudência majoritária como abusiva{213} e será analisada em detalhes como nova forma de cláusula-barreira. Essa carência foi proibida também pela Lei 9.656/98 no art. 13, II, a. Por fim, mencione-se que a jurisprudência tem valorizado em muito a informação prestada ao consumidor sobre

os planos e seguros de saúde. Neste sentido, as promessas executadas pelos vendedores e pelos fornecedores no que se refere aos tratamentos{214} e às carências{215} integram o contrato que vier a ser celebrado e prevalecem em relação às cláusulas escritas. Tratando-se de seguro ou planos de saúde que utilizam o sistema de pré-pagamento ou cobertura somente de tratamentos e atendimentos realizados por médicos e hospitais credenciados, a jurisprudência, ao interpretar e aplicar essas cláusulas, identificou alguns tipos específicos de abusividade, não tanto nas cláusulas contratuais, mas sim nas práticas desses fornecedores. Assim, se o contrato autoriza o tratamento ou cirurgia de emergência em um hospital, considera-se abusiva a cláusula que ainda exige que o médico seja credenciado, em face da impossibilidade de exigir-se que o consumidor nesses casos procure médico credenciado. Ele deve ser atendido por qualquer médico do Hospital, sem distinção.{216} Da mesma forma, o médico do consumidor não pode ser afastado do tratamento ou atendimento realizado em hospital conveniado, somente porque não é credenciado ou foi * (213) Neste sentido também TJSP, Ap. Civ. 235.957-2, j. 25.8.94, Aldo Magalhães, e JTJSP 161/43. (214) Assim TJRS, Ap. Civ. 595 145 954, Des. Clarindo Favretto, j. 8.2.96. (215) Assim TJSP, in JTJSP 158/87, cuja ementa é: "Prestação de Serviços. Planos de Saúde. Prazo de carência. Vendedor que, mentindo dolosamente, garantiu a sua inexigibilidade, para negociar a venda. Responsabilidade do fornecedor de serviços, perante o consumidor, pelo ato de seu representante. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Prazo de carência afastado. Recurso não provido". (216) Assim decisão do TJSP, Ap. 223.242-2, j. 9.5.94, Des. Egas Galbiatti. (p. 474) descredenciado.{217} Os serviços prestados por hospitais não conveniados podem considerar-se, excepcionalmente, cobertos em caso de emergência (pela prevalência da cláusula de tratamento de emergência, mais favorável ao consumidor neste caso) ou de inexistência de vagas na rede conveniada. {218} A grande polêmica ocorrida com relação ao caráter abusivo ou não dos reajustes unilaterais das mensalidades e prêmios dos seguros e planos de saúde será tratada no item referente ao sinalagma e às novas tendências da jurisprudência, assim como o problema da rescisão unilateral e denúncias será tratado no exame das cláusulas de liberação do vínculo (n. 6); os aumentos por faixa de idade serão analisados como cláusula-barreira (n. 7). 1.4 Cláusula de decaimento ou de perda das prestações pagas Devido a insuficiência de poupança privada no Brasil e as dificuldades do crédito ao consumidor, submete-se o interessado em adquirir um bem imóvel ou um bem móvel de elevado valor a contratos elaborados unilateralmente pelo fornecedor, prevendo na maioria das

vezes a alienação fiduciária do bem adquirido, a reserva de seu domínio, a sua hipoteca e uma série de outras cláusulas assecuratórias da posição do credor. Tais contratos, em verdade promessas, costumam concentrar os riscos naturais do negócio para a parte contratante mais fraca, o aderente. O desequilíbrio contratual daí resultante e a insegura realidade econômica do país, muitas vezes, torna insustentável a manutenção do vínculo negocial. A conseqüência é, então, a frustração das expectativas do comprador-poupador,{219} geralmente um consumidor, e a proteção prima facie daquele que elaborou o contrato, o * (217) Veja interessante decisão do TJSP concedendo a indenização por danos morais, Ap. Civ. 262.271-1, j. 27.8.96, Roberto Bedran, e JTJSP 184/97. (218) Assim TJSP: "Internação hospitalar. Plano de saúde. Utilização de hospital não credenciado. Falta de vagas na rede credenciada. Ressarcimento devido. Recurso não provido", in JTJSP 165/90. Veja ainda do TJSP Ap. Civ. 270.116-2, Júlio Vidal, j. 13.11.96; contra, Ap. Civ. 222.589-2, Ruiter Oliva, j. 8.3.94. Veja também Ap. Civ. 240.429-2, Pereira Calças,j. 25.10.94, onde o TJSP utiliza os arts. 46, 47 e 54 para afastar exclusão expressa da cobertura, não suficientemente informada ou destacada. (219) Utilizamos a expressão autorizados pelos ensinamentos do Ministro Sálvio de Figueiredo, in REsp. 5.310/RS. (p. 475) fornecedor, e assegurou para si uma posição contratual vantajosa, a qual poderíamos denominar de posição dominante (Machtposition) do fornecedor de tais produtos no mercado. Neste contexto e em razão de inúmeras ações requerendo a devolução das quantias pagas em virtude de contratos, em especial promessas de compra e venda a prazo de imóveis e bens móveis de alto valor, perguntam-se os juristas brasileiros se o nosso direito atual considera ou não abusiva esta que está sendo chamada de "cláusula de decaimento"{220} a qual prevê, em caso de inadimplemento do devedor, a perda total ou substancial das prestações (quantias) já pagas. A análise de abusividade de tal tipo de cláusulas é feita tanto frente ao direito tradicional{221} e suas noções de abuso de direito e enriquecimento ilícito, quanto frente ao direito atual, posterior a entrada em vigor do CDC, tendo em vista a imposição de um novo paradigma de boa-fé objetiva, eqüidade contratual e proibição da vantagem excessiva nos contratos de consumo (art. 51, IV) e a expressa proibição de tal tipo de cláusula no art. 53 do CDC.{222} O primeiro e importante setor econômico onde este tipo de cláusula de perda das prestações pagas foi constatado pela jurisprudência brasileira foi no setor de consórcios de bens duráveis ,geralmente bens móveis de alto valor, e nos contratos que instrumentam tal tipo de venda com alienação fiduciária. Note-se que hoje o desenvolvimento ocorrido no mercado brasileiro dificulta a identificação de um tipo especial de "contrato de consórcio", pois para subtrair-se ao controle das autoridades públicas, este método de venda está sendo utilizado no mercado sob o manto de outros tipos contratuais, variando sua

denominação desde "contrato de compra e venda a prazo como sorteios", à "cessão de direitos futuros de linha telefônica". A evolução jurisprudencial em matéria de consórcios merece destaque, pois foi no controle do conteúdo deste tipo de contrato ou contratos que a jurisprudência brasileira constatou a abusividade das * (220) A expressão de Pontes de Miranda, que passamos a utilizar, é usual nas decisões dos Tribunais do Rio Grande do Sul, veja Rel. Julgados, v. 81/ 363. (221) Neste sentido a exaustiva análise de Alcides Tomasetti Jr., in Revista Direito do Consumidor 2/52 e ss. (222) Veja, por todos, a análise do Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., em seu Voto dissidente, in REsp. 45666-5-SP, j. 17.5.94. (p. 476) cláusulas de perda das prestações pagas, da exoneração ab initio da responsabilidade do fornecedor de devolver as quantias pagas, deduzidas as parcelas legais. A base desta declaração foi ora o caráter leonino da estipulação,{223} ora a proibição do enriquecimento sem causa,{224} ora as normas do próprio sistema contratual e a noção de boa-fé na execução das relações contratuais.{225} Superada que foi a possibilidade de não devolução das quantias pagas (Súmula 35 do STJ), a controvérsia jurisprudencial neste tipo de relação de consumo concentra-se atualmente seja no momento em que esta devolução deve ocorrer,{226} seja no modo desta devolução das parcelas pagas quanto ao seu devido reajuste financeiro.{227} (Veja também o § 2.º do art. 53 do CDC.) Novas práticas dos fornecedores para impedir a devolução da quantia devida levam a * (223) Veja, por todos, decisão reproduzida in RT 698/110. (224) Usando como base o argumento do enriquecimento sem causa, veja: Julgados TARS 81/277, 86/294. (225) Assim o relator Juiz Araken de Assis: "Cláusula que, tratando desigualmente as partes permite a devolução das parcelas pagas pelo consorciado excluído sem correção e juros. Ineficácia por ofensa ao princípio da boafé" (in: Ap. Civ. 190053025, 3.ª Câm. Civ., j. 6.6.90, TARS). (226) Quanto às diferentes linhas jurisprudenciais na matéria veja as decisões pela restituição corrigida das parcelas pagas, dentro de 30 dias após o encerramento do grupo: TJRS (2.º Gr. Câm. Civ. EI 593062904, j. 10.8.93) TARS (4.ª Câm. Civ. Ap. Civ. 1921170249, j. 17.8.92, e in Julgados 86/294 e 342, tb. 7.ª Câm. Cív. Ap. Cív. 192199982, j. 21.10.92 e in Julgados 83/200, deduzida a taxa de administração e 1.ª Câm. Cív., Ap. Cív. 191181189,j. 31.2.92), TJMT, in RT695/156 e Súmula 35 do STJ (REsp. 7.326-RS, veja voto basilar do Juiz Jauro Duarte Gehlen, transcrito em acórdão substrato da Súmula). Já pela devolução imediata corrigida ou a partir do ajuizamento da ação, veja TJRS (4.ª Cív., Ap. Cív. 592044457, j. 16.6.93), TARS (4.ª Cív., Ap. Cív. 192204691,j. 12.11.92), 1.º TACivSP, in RT698/109, com conseqüente nulidade da cláusula que prevê a devolução 30 dias após

encerrado o grupo. Veja, igualmente, as decisões da 4.ª Câm. Cív. do TARS, pela restituição imediata em caso de má administração ou ato ilícito da administradora, pub. in Julgados 83/222 e 84/348. (227) Quanto a correção, a jurisprudência opta ora pelo preço do bem, TARS, 3.ª Câm. Civ., in Julgados 81/277, ora pela correção e atualização pelo valor do bem na data do vencimento da última prestação paga pelo desistente, TARS, 4.ª Câm. Cív., in Julgados TARS, 86/294, ora correção pelo índice oficial de inflação, TARS, in: Julgados 83/222, citando jurisprudência da 3.ª, 5.ª, 2.ª e 1.ª Câm. Cív. do mesmo TARS. Certa, porém, é a correção e a devolução de parte das quantias pagas, neste sentido, decisão do TARS. (p. 477) jurisprudência considerar hoje abusivas a cobrança de taxas de administração e a aplicação de suspeitos "redutores".{228} As decisões em matéria de consórcios, sem dúvida, foram facilitadas pela própria legislação especial para este tipo de relação contratual, mas este fato não retira a importância desta nova visão mais rígida do que seja um "enriquecimento com causa ", uma causa necessariamente real (prejuízo provado, uso, tempo), mas não mais simples previsão contratual ao estilo de uma cláusula penal précompensatória de eventuais e fictícios danos. Desde 1990 o STJ vinha decidindo pela restituição pelo valor atualizado da quantia paga pelo consorciado retirante ou excluído do plano de consórcio, evolução que pacificou-se com a Súmula de número 35. Esta evolução jurisprudencial como que tende a impor ao fornecedor deste tipo de serviços de administração e de venda a crédito, organizador do plano e executor, um risco profissional novo: o de suportar o perigo de uma eventual desistência ou impossibilidade subjetiva de continuar no grupo, responsável pela poupança; uma vez que tende a transferir para a administradora e não para os outros participantes do grupo, a verdadeira responsabilidade.{229} * (228) Sobre taxas de administração, que podem ter Vários nomes (taxas de administração futura etc.), considerar cobradas duplamente, pois já se encontram na prefixação de prejuízos e na parcela, o leading case é do TARS, Ap. Civ. 194097036, j. 9.6.94, rel. Ari Darci Wachholz; veja também TARS, Ap. Civ. 195031513, rel. Aldo Ayres Torres. (229) Reflexo desta linha de responsabilização podem ser sentidos tanto nas decisões dos Tribunais de Alçada como nas dos JECPs. São exemplos duas decisões: "Desistência de Consorciado - Devolução das parcelas pagas Correção. Pelo seu caráter leonino, merece ser rechaçada cláusula que, em contrato de adesão a plano consorcial, estabelece devolução das quantias pagas ao consorciado desistente pelo valor histórico. Cláusula que, a permanecer vigorando, importaria em manter desequilíbrio às partes contratantes. Correção monetária autorizada, não permitindo o locupletamento sem causa da administradora, pois que não importa em acréscimo da importância a ser devolvida, expressando apenas o valor atual do respectivo equivalente em moeda circulante. Improvimento de ambos os apelos. Negado provimento a

ambos (unãnime)". (Ap. Cív. 191014166, rel. Dr. Osvaldo Stefanello, 1.ª Câm. Cív., TARS, j. 4.6.91); e do JEPC/RS: "Consórcio. Decisão determinando devolução das parcelas do desembolso, é líquida e de responsabilidade das administradoras de consórcios". (Rec. 559/93, rel. Dr. Cezar TasSO Gomes, 2.ª Câm. Recursal, Porto Alegre, j. 18.8.93). (p. 478) Outro importante setor econômico que utiliza-se das cláusulas de decaimento é o da construção civil. As empresas incorporadoras e construtoras em geral incluem tais cláusulas de perda total ou substancial das prestações já pagas em seus contratos de venda e em suas promessas de compra e venda de imóvel a prazo. O caráter de cláusula penal sui generis hoje é reconhecido pelo julgador, e, por força de reiterada jurisprudência do STJ, a conseqüente possibilidade legal de sua redução.{230} Estas cláusulas de perdimento, verdadeiras cláusulas punitivas nos contratos de consumo repugnam os tribunais superiores, que mesmo não aplicando o CDC, mas o CCBr., as revisam e reduzem a 10%, no que se pode hoje identificar como uma linha definitiva de atuação, como em matéria de consórcios. O CDC preocupou-se com a matéria e traz previsão específica de abusividade das cláusulas de perda total das prestações pagas. O art. 53 dispõe: "Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleiteia a resolução do contrato e a retomada do produto alienado". Como se observa, a própria norma do CDC aproxima o regime dos contratos de consórcio e das promessas de compra e venda de imóveis, no que se refere a abusividade de referidas cláusulas.{231} * (230) Veja do Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., a ementa: " Promessa de Compra e Venda. Cláusula de decaimento. Restituição de parte das prestações pagas. Inaplicável o Codecon aos contratos celebrados antes de sua vigência. de acordo com orientação predominante, e mantida a validade da cláusula que permite a retenção das prestações pagas, é possível a redução judicial para um percentual adequado às circunstâncias do contrato" (Recurso Especial 111092/AM, 4.ª T., j. 4.3.97, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar). No mesmo sentido, REsp. 41 .493-RS, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 23.9.96; AI 121.553, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 25.2.97; REsp. 3.981-SP, Min. César Asfor Rocha, j. 20.5.97; REsp. 94.271SP, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 27.8.96; REsp. 113602, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 24.3.97; REsp. 113806-DF, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 1.4.97; REsp. 115672-RS, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 28.4.97; REsp. 119720-RS, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 5.8.97; REsp. 78.459RJ, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 9.4.96. (231) Assim concorda João Baptista de Almeida, p. 109, entendendo que o espírito da lei é a solução amigável da pendência e se, impossível, evitar (p. 479) Efetivamente a experiência da jurisprudência em matéria de consórcios é decisiva pois ambos os contratos apresentam três características semelhantes: contratos de execução diferida no tempo, de pagamento

a prazo ou em prestações, utilização de um fundo ou poupança privada para a execução da prestação principal do fornecedor (entrega do automóvel ou bem móvel de elevado valor, elaboração do contrato de compra e venda e transmissão da propriedade do imóvel construído). Sem desconhecer o potencial pedagógico do art. 53 do CDC e da declaração expressa da nulidade deste tipo de cláusula,{232} parece-nos preferível iniciar o estudo da abusividade da cláusula de decaimento não pela exegese do art. 53, mas sim pela análise da cláusula geral do art. 51, VI, norma mais abrangente e que nos parece capaz de esclarecer melhor a razão de dita abusividade. O art. 53, apesar de norma expressa, restringe-se a determinação da nulidade ex lege de um determinado tipo de cláusula e pode, pois, dar razão a interpretações restritivas, como que limitando a abusividade, a cláusula de perda total e autorizando todas as outras cláusulas de perda parcial das prestações já pagas. A cláusula geral do art. 51, IV, ao contrário, ao exigir o exercício de concreção do juiz, está a esclarecer o motivo de tal nulidade e da reação negativa do direito, sendo mais útil a uma análise exemplificativa como a nossa. Relembre-se, pois, que o art. 51, IV do CDC, considera abusivas as cláusulas que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade". A regra aqui destacada, portanto, é da boa-fé na elaboração e na execução dos contratos. No caso em estudo, estamos frente a uma cláusula prevendo a perda (total ou parcial) das prestações já pagas em benefício do credor, por exemplo, a empresa incorporadora. Em se *o enriquecimento ilícito do credor. O autor defende, igualmente, a dedução de parcelas em função do período de fruição do bem, assim tb. Nascimento, Comentários, p. 70. (232) Fixando em 10% o valor a ser devolvido e considerando nula com base no art. 46 e 53 do CDC a cláusula de promessa de compra e venda anterior à vigência do CDC, decisão MM. Juiz Ricardo Cintra Torres de Carvalho, j. 22.6.92, 26.ª Vara Cível/SP, reproduzida na íntegra, in Direito do Consumidor 3/218-219 e a decisão do TARS, 2.ª Câm. Cív., rel. Juiz Paulo Heerdt, comentada por Vivian Caminha, in Direito do Consumidor 1/229. (p. 480) tratando de um contrato de promessa de compra e venda de imóvel contendo tal cláusula de decaimento, vale concentrarmos nossa análise na existência ou não de desvantagem exagerada para o contratante mais fraco, consumidor ou pessoa a ele equiparado por lei. A desvantagem exagerada é um dos novos parâmetros da abusividade colocados para o exercício de concreção do juiz, uma vez que a própria lista de cláusulas abusivas do art. 51 é meramente exemplificativa. Repita-se que o § 1.º do art. 51 do CDC, fornece alguma ajuda para que o juiz verifique, no caso concreto, o exagero da desvantagem, afirmando que: "presume-se exagerada, entre outros, a vantagem que: I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;{233} II restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar o seu objeto ou equilíbrio contratual; III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerandose a natureza e o conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras

circunstâncias peculiares ao caso". Revista a base legal, resta analisar se a cláusula de decaimento, em casos concretos, assegura uma vantagem exagerada e abusiva para a incorporadora. Em contrato visando angariar poupança privada para suportar o ônus da construção de bens imóveis, com o fito de após revendê-los àqueles que contribuíram na construção do imóvel, prevê esta cláusula que o consumidor deva sofrer a perda total ou de grande parte (geralmente uma porcentagem do total) das quantias já pagas, ao mesmo tempo em que assegura ao empreendedor a propriedade do imóvel já construído, fim maior do contrato; imóvel este, diga-se, que poderá ser novamente revendido.{234} * (233) Mencione-se aqui a contribuição de Barbosa Moreira, in Direito do Consumidor 9/62-68, que critica a tradução do § 9º da lei alemã (AGBG) feita no § 1.º, I, do art. 51 e que sugere como melhor tradução, p. 67: "Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que ofende os princípios básicos do sistema jurídico a que pertence a norma legal cuja incidência foi afastada". (234) No mesmo sentido decisão do TJSP, 11.ª C., j. 4.6.92, rel. Des. Itamar Gaino, Ap. 191.405-2/6, acórdão reproduzido na íntegra in: Direito do Consumidor, vol. 6, pp. 262-263, com a seguinte ementa: "Rescisão Compromissários compradores constituídos em mora - Cláusula determinante da perda dos valores já pagos, considerada leonina - Incorporadora que pode vender o imóvel para outra pessoa sem prejuízo - Parcelas já pagas devem ser devolvidas devidamente corrigidas - Exceção do sinal - (p. 481) Certo é que a referida cláusula assegura uma dupla vantagem ao incorporador: a propriedade do imóvel construído e a propriedade do dinheiro que o financiou, deixando ao promitente-comprador, na maioria das vezes, nem sequer emitido na posse do imóvel, absolutamente nada. A desvantagem do consumidor em virtude desta cláusula é dupla: nem uso, nem propriedade do imóvel construído com sua poupança obtém, nem reembolso da quantia adiantada consegue. Esta previsão contratual de perda total ou parcial do patrimônio do consumidor, sem contra-prestação, atenta contra o direito de propriedade{235} e contra a noção causal de nosso direito, que combate o enriquecimento sem causa. Enquanto ao incorporador assegura-se a propriedade do imóvel e a possibilidade de sua posterior revenda, tal cláusula deixa o consumidor, seu parceiro contratual, em situação de desvantagem total, como se o contrato fosse um contrato de absoluto risco, um contrato aleatório e não um contrato comutativo. Ora, impor tal peso ao consumidor, extinguir todo e qualquer risco profissional do empresário, que lucrou com a construção total do imóvel e impor todos os riscos nos ombros dos poupadores-consumidores parece exagerado. Tal caráter exagerado e leonino da cláusula já foram identificados mesmo face ao direito comum tradicional,{236} quanto mais face a um Código protetivo dos interesses dos consumidores, como o CDC. Parece-nos, pois, que face a norma da cláusula geral de boa-fé e de equilíbrio contratual prevista no art. 51, IV do CDC, a cláusula de decaimento é tipicamente abusiva, uma vez que imputa uma desvantagem exagerada ao consumidor e assegura uma vantagem sem causa ao fornecedor. Como ensina o Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., em seu voto

dissidente no REsp. 45.666-5-SP: "No contrato de promessa de compra e venda de bem imóvel, a cláusula contratual que determina a perda, em favor do promitente vendedor, das prestações pagas, caracteriza nítida perda de justiça por parte do promissário comprador, que não *Inteligência do art. 1.097, CC. Prédio por construir indica que a incorporacdora poderá vender a mesma unidade a outra pessoa, sem sofrer prejuízo, podendo até fazê-lo em melhores condições. Não se justifica, portanto, a perda pelos compromissários compradores, dos valores já pagos". (235) Assim a decisão da 7.ª C. Civ., TARS, in Ap. Cív. 192175891, Rel. Juiz Leonelo Pedro Paludo, j. 16.9.92. (236) Assim ensina Tomasetti, in Direito do Consumidor 2/63. (p. 482) apenas vê desaparecer a oportunidade de aquisição do bem, já certamente mais valorizado do que qualquer moeda, nestes tempos de inflação, como ainda deixa de receber a devolução do que desembolsou. Além da injustiça, ainda há a ofensa aos princípios jurídicos que regulam a resolução, cuja característica está na reposição das partes à situação anterior. Reavendo o bem e embolsando os pagamentos recebidos, o promitente vendedor não só recompõe o seu patrimônio como o enriquece ilicitamente com as prestações, em troca das quais nada despendeu. Com isso quero dizer que a cláusula de decaimento não podia ter reconhecida sua validade no sistema jurídico nacional, ainda antes da vigência do Código do Consumidor, porque violadora de diversos princípios do direito comum e do ordenamento constitucional. O art. 53 do CDC veio apenas expressar um enunciado que já estava presente no ordenamento e era aplicado sempre que necessário para restabelecer o equilíbrio entre as partes, afastar a vigência de cláusulas resultantes do arbítrio de uma, em prejuízo da outra, impor o respeito ao princípio da boa-fé e fazer cumprir o de solidariedade social (art. 3.º, I, da CF)". Efetivamente esta cláusula predisposta unilateralmente pelo contratante economicamente mais forte assegura uma vantagem exagerada a uma das partes. Condena o contratante que rescinde o contrato, com causa ou sem, não a suportar os prejuízos que eventualmente causou, mas simplesmente condená-lo a perda total, a renunciar a todas as expectativas legítimas ligadas ao contrato, assegurando ao outro contratante o direito de receber duas vezes pelo mesmo fato. Nesse sentido, a abusividade da cláusula de decaimento nos contratos de promessa de compra e venda de imóveis oferecidos massivamente no mercado pelas empresas incorporadoras tem merecido enérgica resposta da jurisprudência,{237} na tentativa de reequilibrar * (237) Assim a ementa: "Contrato de promessa de compra e venda Contrato de adesão - Nulidade da cláusula que prevê a perda de todas as prestações pagas em face de rescisão decorrente de mora do promitente comprador. Cuidando-se de contrato de adesão, não pode prevalecer a cláusula que prevê a perda de todos os valores pagos pelo promitente comprador face a rescisão contratual decorrente de mora do promitente comprador, especialmente quando este sequer ocupou o imóvel" (Ap. Cív. 192175891, 7.ª Câm. Civ., TARS, rel. Juiz Leonelo Pedro Paludo, j. 16.9.92), acórdão

Publicado na íntegra in Revista de Direito do Consumidor, 6/271-274. (p. 483) estes contratos de consumo, evitando o que foi considerado enriquecimento ilícito e o abuso do contratante mais forte.{238} Da resposta jurisprudencial dois aspectos devem ser destacados. Nota-se inicialmente uma maior compreensão dos juízes para com os \problemas econômicos (antes considerados) individuais dos consumidores, tais como demissões, redução do valor aquisitivo dos salários, e efeitos individuais de planos econômicos. A quebra do vínculo, a mora, por decisão unilateral do consumidor, se assim motivada, passa a ser punida mais brandamente, como se uma nova espécie de "impossibilidade-Subjetiva" fosse.{239} Esta destacável aproximação do Judiciário com a realidade econômica do brasileiro leva em conta a boafé subjetiva do consumidor e a divisão de riscos na sociedade entre os agentes econômicos.{240} O segundo aspecto a destacar é a falta de unanimidade no que concerne a natureza deste tipo de cláusula, o que vai se refletir nos institutos utilizados para reequilibrar os contratos onde está presente uma cláusula de decaimento. A maioria das decisões, acompanhando a jurisprudência de Turmas do STJ, considera a cláusula de decaimento uma cláusula penal sui generis, de natureza de pena compensatória, optando pela possibilidade do juiz revisar seu valor (ex vi, art. 924 do CC), reduzindo-a.{241} Menor grupo de decisões opta pela ineficácia de * (238) Nesse sentido, Ap. Civ. 192219376, 7.ª Câm. Cív., TARS, rel. Juiz Antonio Janyr Dall’Agnol Junior, j. 4.11.92, cuja ementa é a seguinte: "Promessa de compra e venda. Cláusula de decaimento em contrato de adesão. Sua ineficácia, precipuamente quando o promitente comprador jamais se imitiu na posse", acórdão publicado in RT 696/209. (239) Bom exemplo é a antes mencionada decisão da 7.ª Câm. Civ. do TARS (Ap. Civ. 192175891, rel. Juiz Leonelo Paludo), caso envolvendo um consumidor que perdeu seu emprego antes mesmo de ocupar o imóvel e não mais pode \arcar com as prestações; veja tb. TJDF in Eic 28060-DF-Reg. Ac. 63827. (240) Bom exemplo é a decisão do JEPC/RS que traz a seguinte ementa: "Consumidor - Rescisão contratual. A intervenção judicial é necessária para recompor o equilíbrio entre os contratantes, assegurado pelo CDC, com o que se adota parâmetro fixado no próprio contrato para permitir a rescisão \contratual pelo consumidor" (Rec. 1, rela. Juíza Rosane Wanner da Silva \Bordasch, 3.ª Câm. Recursal negaram provimento, unânime, Porto Alegre, 24.6.93). (241) No sentido da impossibilidade da pena total e da reduzibilidade da \"Cláusula penal", decisões basilares do STJ in REsp. 31 .954-0/RS, "Com(p. 484) tal tipo de cláusula; seguindo os ensinamentos de Pontes de Miranda,{242} ou aceitando mesmo a aplicabilidade no caso de alguma teoria sobre a imprevisão.{243} Superados os problemas com os contratos assinados antes da entrada em vigor do CDC, a tendência é uma maior utilização das normas proibitórias deste tipo de cláusula no CDC, seja o expresso art.

53, seja a cláusula geral do art. 51, IV e § 1.º’ ou mesmo o art. 51, II do CDC.{244} Nesta terceira edição podemos concluir que a utilização do art. 53 do CDC pelos tribunais foi exemplar, utilizando mais seu espírito e sua ratio do que a literalidade dessa norma. Sendo assim, a maioria das *promisso de compra e venda - Cláusula penal compensatória. No compromisso de compra e venda, existindo cláusula que prevê não tenha direito o promitente comprador a devolução das importâncias pagas, tal cláusula deve ser considerada como de natureza penal compensatória, podendo ser reduzido o seu valor com base no art. 924 do CC"; e in REsp. 39.466-0/ RJ, "Cláusula penal - Cumprimento parcial da obrigação. A jurisprudência, acolhendo lição doutrinária, na esteira do art. 924 do CC, delineia entendimento no sentido de que, cumprida em parte a obrigação, em caso de inexecução da restante, não pode receber a pena total porque isso importaria em locupletar-se à custa alheia, recebendo ao mesmo tempo, parte da coisa e o total da indenização na qual está incluída justamente aquela já recebida, sendo certo que a cláusula penal corresponde aos prejuízos pelo inadimplemento da obrigação". (242) Assim interessante decisão do TARS, antes citada, na qual o Juiz relator, Janyr Dall’Agnoll Jr., in RT 696/210, afirma: "a razão está, inteira, com Pontes de Miranda, quando, nada obstante fixado no exame da legislação específica, conclui por sequer ser possível o aproveitamento: "A cláusula de decaimento não possui qualquer aplicação válida, nem produz efeitos. Não se pode nem mesmo pensar em salvá-la como pena convencional até o limite legal" (Tratado de Direito Privado, 4.ª ed., XIII, p. 278). O art. 53, do CDC, em verdade, nada mais fez do que explicitar princípio que já se espraiara no ordenamento jurídico positivo: a esse repugna, e repugnava, o pacto de decaimento". (243) Esta parece ser a linha do TJDF, veja decisão publicada no DJ 20.2.91, Sec. II, p. 2.472. (244) Veja a decisão do TJSP (Ap. Civ. 197.165-2/3) e do magistrado Ricardo Cintra Torres de Carvalho, publicadas respectivamente in Revista Direito do Consumidor 10/196 e ss. e 3/218, assim como os comentários in RDM 88/95: verdadeiro leading case do TJSP foi publicado in RT 690/85 e ss. (p. 485) decisões propõe a nulidade da cláusula de perda total.{245} a redução de cláusulas semelhantes de perdas (de até 90%) do valor pago e autoriza uma retenção mínima de valores (máximo de 10%). Efetivamente, quanto às cláusulas que, nos contratos de consumo em geral, permitem ao fornecedor a retenção das quantias pagas, sua abusividade foi novamente identificada no II Congresso Brasileiro do Direito do Consumidor. A conclusão n. 10 do Congresso pontifica: "A cláusula que permite a retenção dos valores pagos é abusiva, nos termos do art. 53, caput do CDC e configura fraude à lei" quanto aos contratos de promessa de compra e venda de imóveis, a conclusão n. 11 do referido Congresso ensina: "Nos contratos imobiliários é abusiva a cláusula que fixa percentual de retenção dos valores pagos na hipótese de rescisão, devendo o eventual prejuízo ser apurado caso a caso". Nossa conclusão, portanto, com base nas lições da jurisprudência

e na vontade do legislador brasileiro positivada no novo CDC, não pode ser outra que afirmar a abusividade da referida cláusula de decaimento, face à unilateralidade exagerada - leonina mesmo - e frontalmente contrária a boa-fé, princípio máximo do CDC e que este procura assegurar tanto na formação quanto na execução dos contratos de consumo no mercado brasileiro. 1.5 Cláusula penal clássica A forte discussão doutrinária e jurisprudencial originada pelas cláusulas de decaimento ou cláusulas de perda total das prestações pagas acabou por reascender as dúvidas sobre a abusividade ou não das cláusulas penais em geral. Cláusula penal é aquela cláusula teoricamente estimuladora da prestação, do cumprimento do contrato por impor uma pena em caso de inadimplemento parcial ou total ou em caso de mora, é a cláusula prefixadora da indenização, teoricamente compensatória do inadimplemento, também chamada de pena ou multa * (245) Neste sentido, veja por todos decisão do STJ, cuja ementa é: "Civil. Compromisso de compra e venda de imóvel. Perda de parte das prestações pagas. CDC. A regra contida no art. 53 do CDC impede a aplicação de cláusula contida em contrato de promessa de compra e venda de imóvel que prevê a perda total das prestações já pagas, mas não desautoriza a retenção de um certo percentual que, pelas peculiaridades da espécie, fica estipulado em 10%" (RE 85.182-PE, Rel. Cesar Asfor Rocha, j. 14.4.97). (p. 486) convencional, é pacto acessório estipulando multas ou penas para aquele que descumprir suas obrigações contratuais.{246} A experiência demonstrou que a aplicação pura e simples das cláusulas penais assim como previstas nos contratos de consumo, uma vez que frutos da liberdade contratual e da posição dominante do fornecedor, conduzia a abusos. Abusos, principalmente, em razão do caráter especialmente elevado das penas estipuladas,{247} da falta de relação do valor da multa com os danos realmente causados ao parceiro,{248} da pouca transparência destas cláusulas, as quais para melhor garantir a posição do fornecedor transferem para o consumidor os riscos tipicamente profissionais, como o da escolha do parceiro contratual{249} ou do advento de novas circunstâncias impossibilitadoras do normal cumprimento da obrigação.{250} A grande pergunta para o aplicador da lei é se estes abusos transformaram o instrumento, isto é, esta espécie de cláusula em abusiva ou se é o modo de seu exercício, no caso o valor desta "pena contratual" ou as hipóteses em que é prevista, que pode ser abusivo, a depender de um estudo casuístico de uma cláusula penal in concreto. Em outras palavras, seria a cláusula penal uma nova espécie de cláusula abusiva, face ao ordenamento jurídico brasileiro atual ou não? Tendo em vista a resposta jurisprudencial e sua numerosa presença no mercado brasileiro, parece-nos importante analisar seriamente se as * (246) Citando os ensinamentos de Bevilacqua, veja o artigo de José Alves \Ferreira, "Da cláusula penal" in RT301/14 e ss.; em sua obra sobre o tema, Limongi França identifica 20 espécies de cláusula penal, além de 12

subespécies, expondo as 4 teorias existentes sobre sua natureza jurídica: a de reforço, a de pré-avaliação, a de pena e a mista (pp. 139 e 330), veja também acórdão do TARS, in Julgados 86/364. \ (247) Assim conclui tb. Anne Sinay-Cytermann, em seu artigo, "Clauses penales \et clauses abusives: vers un rapprochement", in: Ghestin, Clauses, p. 169. (248) Veja as decisões do TJSP, in RT 690/85 e 691/107. (249) Segundo Reich, in Ghestin, Limitatives, p. 84, o princípio da transparência geralmente é violado por estas cláusulas, seja por seus textos, seja pela falta de informação precisa de sua existência para os consumidores. (250) Em sua premiada obra Denis Mazeaud, p. 7, relembra que a cláusula penal só poderia ser aplicada em caso de incumprimento "por culpa" do devedorconsumidor; sua redação, porém, na maioria das vezes pressupõe esta culpa ou traz mesmo um aspecto de pena objetiva. (p. 487) cláusulas penais a favor dos fornecedores não se revestem de um caráter abusivo face a nova cláusula geral de boa-fé, ao princípio de eqüidade contratual e de proibição da vantagem excessiva imposta no CDC (art. 51, IV). No direito comparado encontramos diferentes métodos de combate ou de regulação deste tipo de cláusula. Assim, o exemplo alemão é de combate às cláusulas penais em contratos de adesão ou em condições gerais dos contratos. A sua lei de 1976 já incluíra em sua \lista negra (§ 11.6) as cláusulas penais ( Vertragsstrafe), proibindo sem possibilidade de valoração aquelas cláusulas nas quais, por mora, atrasos em geral, não pagamento ou terminação do vínculo, e sem necessidade de prova do dano, o fornecedor estipulava o direito de receber uma quantia "punitiva" por tais atitudes do cliente.{251} À primeira vista, a reação alemã contra esta cláusula punitiva pode parecer excessiva, face a utilidade prática que tais cláusulas possuem como "garantia" do cumprimento dos contratos. Considerando, porém, que o fornecedor é aquele que pré-redige os contratos e que incluiria sempre este tipo de cláusula para sua "proteção", transferindo riscos que são seus riscos profissionais, optou o legislador alemão por uma clara proibição. Não se tem notícia que o mercado alemão de consumo tenha sido paralisado ou seus fornecedores sofrido grandes perdas pela impossibilidade de prever contratualmente, em suas CONDGs, tais \"cláusulas de indenização fotfaitaire" ou de "perdas e danos préestipuladas", como são conhecidas.{252} A doutrina alemã tentou inicialmente interpretar de forma restritiva a proibição do § 11.6 AGBG, afirmando que "cláusula penal" visada seria apenas aquela que prevê algum tipo de pena ou punição para os casos expressamente mencionados: mora, inadimplemento, ou quando o parceiro se libera do vínculo contratual. A resposta da jurisprudência foi a de analisar as outras "cláusulas punitivas" segundo a cláusula geral do § 9 da lei alemã e determinar, com base nesta norma geral de boa-

fé, sua abusividade.{253} Note-se que a lei de 1976 também combate as \* (251) Veja detalhes na obra de Schmidt-Salzer, AGB, p. 275 (F216). (252) Sobre as várias denominações dadas às cláusulas penais, veja Denis Mazeaud, p. 4. \ (253) Veja Locher, p. 97, exemplo de "cláusula punitiva", que não foi subsumida \nem no § 11.6, nem no § 9 AGBG, foi a cláusula bancária de Vorfãlligkeit, (p. 488) cláusulas limitativas ou tarifadoras da indenização devida pelo fornecedor (§ 11.5 da AGBG). O outro importante exemplo é o francês. A França através de duas leis, lei de 9.7.75 e lei de 11.10.85, permitiu ao juiz exercer um controle específico do conteúdo deste tipo de cláusula e reduzir até o consideravel estas "penas privadas contratuais".{254} Note-se que ao introduzir este poder de revisão (pouvoir de révision ex office), mais geral{255} do que o nosso art. 924 do CC, reconheceu, porém, o legislador francês a validade (a não abusividade), em princípio, das cláusulas penais, preferindo uma solução casuística a uma proibição genérica. O legislador do CDC não incluiu as cláusulas penais entre as expressamente mencionadas na lista do art. 51. Apenas elaborou uma norma especial para o caso da cláusula de decaimento (art. 53) e previu uma multa moratória de no máximo 10% do valor da prestação, no caso do art. 52, § 1.º do CDC. O fato da lista do art. 51 não mencionar expressamente a abusividade da cláusula penal pouco indica, uma vez que se trata de lista meramente explicativa, como afirma o próprio caput do art. 51. Sem dúvida, porém, a ausência de previsão expressa, a contrário de leis antigas, como a própria Lei de Usura, retira das cláusulas penais aquela "desconfiança", aquela especial atenção que desperta nos juízes em outros ordenamentos jurídicos. A jurisprudência brasileira acostumada ao controle de razoabilidade das cláusulas penais autorizado pelo art. 924 do CC e pela seção especial dedicada ao regime desta cláusula no Código Civil, tem preferido uma solução casuística de não declaração da abusividade de tais cláusulas.{256} Note-se que o regime da cláusula penal no CC não é *isto é, de vencimento antecipado de todos os débitos, em caso de 2 meses \de atraso (BGH, j. 19.9.85, pub. in BGHZ 95/362), hoje, porém, existe lei especial sobre o tema, a Lei de crédito ao consumo, com normas bem mais \rigorosas (Verbraucherkredirgeset:). \ (254) Assim Sinav. in Ghestin, Clauses, p. 170. (255) Em sua tese, Denis Mazeaud, p. 53, considera que tal controle não perdeu o caráter "excepcional" que as normas do Code Civil lhe reservavam. (256) Assim a decisão do STJ (REsp. 39.446-0-RJ), em cuja ementa consta: "Cláusula penal - Cumprimento parcial da obrigação. A jurisprudência, acolhendo lição doutrinária, na esteira do art. 924 do CC, delineia entendimento no sentido de que, cumprida em parte a obrigação, em caso

de inexecução do restante, não pode receber a pena total, porque isso (p. 489) um regime especialmente positivo para os consumidores, geralmente aquele que está em mora ou inadimplente, uma vez que libera o fornecedor de alegar ou provar seu prejuízo, impede o consumidor de eximir-se sob alegação da excessiva onerosidade da cláusula e impõe como único limite quantitativo a própria obrigação principal (arts. 919, 920, 922, 923, 927 do CC). Sem dúvida, a interpretação que a jurisprudência tem dado ao art. 924 do CC, é uma interpretação pró-consumidor, ao reduzir as penas previstas, por vezes totais (veja parte referente a cláusula de decaimento), por vezes tão importantes que frustram qualquer expectativa do consumidor (80%, 60%, 50%, 40%, 30% do valor total ou do valor pago).{257} Mesmo assim, trata-se de uma reação esporádica do Judiciário,{258} que muitas vezes opta pela não caracterização da cláusula como cláusula penal. Note-se que a não caracterização como cláusula penal geralmente é negativa para o consumidor (principalmente se não aplicado o CDC), pois o juiz pode assim autolimitar seu poder de revisão, somente para respeitar indiretamente o dogma da autonomia da vontade. Tal solução pode, porém, também ser positiva para os interesses dos consumidores, ao evitar que se aplique o regime previsto no Código Civil e que se considere, em princípio, tal cláusula como válida (ou não abusiva), segundo a visão do direito civil tradicional, permitindo um maior controle do conteúdo e do desequilíbrio contratual que esta cláusula traz.{259} *importaria em locupletar-se à custa alheia, recebendo ao mesmo tempo, parte da coisa e o total da indenização na qual está incluída justamente aquela já recebida, sendo certo que a cláusula penal corresponde aos prejuízos pelo inadimplemento integral da obrigação". (257) Tal era a tendência mesmo antes da entrada em vigor do CDC, veja: RT 664/69, bom exemplo igualmente é a decisão de 7.4.93, pub. in Julgados do TARS 86/364. (258) Assim, antes da entrada em vigor do CDC, o próprio STJ afirmaria: "É perfeitamente válida a pena convencional compensatória ... constituindo a regra do art. 924 do CC mera faculdade do juiz a não ensejar interposição de recurso especial" (REsp. 506-RJ, 4.ª T., j. 25.9.89, rel. Min. Sálvio de Figueiredo), reproduzido na íntegra, in RT 651/173. (259) Exemplo de utilização positiva para o consumidor da não caracterização como cláusula penal encontramos in RT 670/97. (p. 490) Mencione-se, igualmente, que a sempre atual Lei de Usura, em seu art. 9.º, já pontificava: "Não é válida cláusula penal superior à importancia de 10% do valor da dívida". Destaque-se também a reiterada reação do Judiciário contra as cláusulas penais (punitivas, compensatórias ou indenizatórias) cumulativas,{260} as de caráter leonino,{261} e a sua tendência de tentar evitar o enriquecimento injusto daquele que elabora o contrato,{262} considerando, porém, o uso eventual da coisa e a norma disposta no art. 1 .097 do CC.{263}

A cláusula penal "clássica", como estamos aqui denominando-a, possuía claramente uma dupla função. Em primeiro lugar, a função de garantia da execução do contrato e somente secundariamente, a função de pena, a sancionar a inexecução ilícita da obrigação de garantia.{264} A doutrina e a jurisprudência brasileira sempre destacaram, porém, uma terceira função, qual seja a de prefixar a indenização compensatória.{265} Tendo em vista a importância prática, da mencionada primeira função garantidora (ou de reforço),{266} voltada para a execução voluntária do contrato, foi ela considerada uma cláusula normal e mesmo necessária ao bom cumprimento dos contratos. Nas sociedades de massa, porém, esta sua primeira função perdeu em realidade e em * (260) Veja o acórdão do STJ, Rel. Sálvio de Figueiredo, REsp. 24.053-4-GO, in Lex STJ 43/235 e ss. e decisão do 2.º TASP, in RT 687/133 e ss.; sobre as mudanças jurisprudenciais já ocorridas em relação a não cumulatividade entre cláusula penal e honorários de advogado (art. 8.º da Lei de Usura), veja o artigo de Yussef Said Cahali, pub. na Rev Ajuris 20/181 e ss. \ (261) Veja TJSC, in RT645/U8; sobre útil noção de lesão nestes casos, veja a \solução proposta pelo magistrado José Amir do Amaral, em seu artigo publicado na Rev. Ajuris 46/212 e ss., considerando a necessidade da jurisprudência utilizar-se mais do art. 9.º da Lei de Usura. (262) Veja, declarando a abusividade da cláusula (penal) de decaimento, decisão do TJSP, reproduzida na íntegra in RT 690/85; sobre a irregularidade da praxe dos intermediários de negócios preverem cláusula penal para ambas as partes, em caso de frustração do negócio, veja acórdão do TJSP, in RT 643/92. (263) Veja, como exemplo, a decisão do TARS publicada na íntegra in RT 653/193. (264) Assim a tese premiada de Denis Mazeaud, p. 7, que constrói seu plano tendo como fundo esta diferença de funções. (265) A tendência tem sua origem nos ensinamentos de Clóvis Beviláqua, veja \REsp. (266) A expressão é usada por Limongi França, p. 141. (p. 491) importância. Face a dominante visão econômica do contrato como instrumento para a transferência de riscos, passou-se a privilegiar sua \segunda função, a qual permite em realidade um ranho real, face a inexigibilidade da comprovação dos danos. Sendo assim, mesmo que frustrada finalidade principal do contrato (seu cumprimento), mesmo que liberados os parceiros do vinculo, reservava-se o fornecedor o direito de receber esta "multa" (plus econômico), que de garantia de execução passou a garantir apenas a inexistência de perdas, quase a possibilidade de escolher mal ou de forma especulativa os parceiros \contratuais. Aqui parece-me estar o ceme da abusividade identificada pela lei alemã, na possibilidade da cláusula penal modificar as expectativas e pretensões secundárias, criando um desequilíbrio entre direitos e deveres contratuais, quebrando a justiça contratual inicial, com ou sem culpa do consumidor, punindo o mais vulneráveL, impossibilitando mesmo uma relativa volta ao status quo, mesmo liberando do vínculo ambas as partes. Quanto a segunda função,

também ela evolui, e hoje discute-se na doutrina sua natureza, se verdadeira pena privada ou de simples reparação preestabelecida, tendendo a evolução a superar seu caráter indenizatório.{267} Discutível parece-me, igualmente, se esta estipulada "pena privada" realmente é um dos motivos para o consumidor cumprir (ou sua inexistência, para deixar de cumprir) suas obrigações contratuais, ou se é a expectativa, a finalidade do próprio contrato, que movimenta o consumidor. Notase, de qualquer maneira, que os privilégios de caráter punitivo, assim como aqueles dedicados a facilitar a rápida execução forçada contra o consumidor estão desaparecendo do direito brasileiro, como demonstra a evolução jurisprudencial no sentido da inadmissibilidade da prisão civil em caso de alienação fiduciária, após o advento da Constituição Federal de 1988.{268} Neste sentido, a nova tendência no direito comparado é aceitar o rigor alemão, a regra de abusividade das cláusulas penais, como o mais benéfico para as relações intrinsecamente desequilibradas, como as relações de consumo. No Brasil, ao contrário, a tendência atual é de manutenção das cláusulas penais estipuladas e sua redução proporci* (267) Assim Denis Mazeaud, pp. 301 e ss. (268) Veja por todos, com reprodução dos votos pioneiros do Min. Athos Gusmão Carneiro, a decisão do TARS, rel. Antonio Janyr Dall’AgnOll Jr., in RT695/192. (p. 492) onal, insistindo a jurisprudência na da ficção de que possuam um verdadeiro caráter compensatório ou de prefixação da indenização.{269} Particularmente, parece-me que o futuro encontra-se com as tendências do direito comparado. A segunda função, a função punitiva da cláusula penal, é hoje a dominante no mercado massificado.{270} Ninguém mais se ilude que a escolha das cláusulas contratuais e seus efeitos futuros, ainda mais as que se pode ter certeza da aceitação pelo Judiciário ou da reiterada omissão em utilizar seu poder legal de revisão, tenha como finalidade constituir uma equilibrada engenharia contratual. A engenharia contratual desejada geralmente é a mais vantajosa para o fornecedor, onde os riscos e deveres, se possível, serão transferidos para o parceiro em posição não dominante ou mais vulnerável. O risco da frustração do contrato não deve ser suportado somente pelo consumidor. A cláusula penal é, neste sentido, um poderoso instrumento para destruir o equilíbrio contratual entre direitos e obrigações, mesmo que seja em um momento secundário de inadimplemento ou atraso no cumprimento das prestações por parte do consumidor, constituindo assim uma vantagem excessiva. Este instrumento unilateral é ainda mais vantajoso face a nossa tradição em aceitar tal tipo de cláusula sem discutir sua validade, nem seu conteúdo intrínseco, a não ser quando claramente leonina ou com valores extremamente exagerados. Tema polêmico no mundo inteiro e ainda não decidido definitivamente merece, ao nosso ver, ser novamente analisado pelo legislador brasileiro e talvez, revista a prática jurisprudencial. A cláusula penal em contratos envolvendo consumidores e fornecedores de produtos e serviços, especialmente em contratos de adesão, é uma cláusula * (269) Veja a mencionada decisão do STJ in REsp. 39.446-0-RJ. Note-se que a

insistência no caráter compensatório das cláusulas penais, apesar de fictício, pode ser positivo para o consumidor, pois pelo menos permite a aplicação do art. 924 do CC; neste sentido veja a decisão do STJ, in REsp. 31.9540-RS, com a seguinte ementa: "Compromisso de compra e venda - Cláusula penal compensatória. No compromisso de compra e venda, existindo cláusula que prevê não tenha direito o promitente comprador a devolução das importâncias pagas, tal cláusula deve ser considerada como de natureza penal compensatória, podendo ser reduzido o seu valor com base no art. 924 do CC". (270) Veja interessantes observações de Pinto Monteiro, p. 577 e ss. (p. 493) desequilibradora, mesmo que só tenha atuação quanto a pretensões secundárias: é, como afirmam os autores franceses, uma nova cláusula "sob suspeita". 2. Cláusulas influenciando o acesso à justiça Como afirmamos na 1 .ª edição, a jurisprudência pátria já havia identificado a abusividade latente das cláusulas que, seja pela eleição de um foro especial para o contrato de consumo, seja por impor uma arbitragem privada ou de órgãos ligados aos fornecedores, acabam por dificultar (ou mesmo inviabilizar) o acesso à Justiça, afrontando direitos fundamentais do consumidor. Em verdade, tal prática continuou no mercado brasileiro e muitos contratos de adesão oferecidos ao público prevêem a derrogação de foro, exigindo do Judiciário uma resposta clara. Destaque-se que a resposta judicial nem sempre tem como base as normas do CPC,{271} preferindo os juízes a utilização das normas do CDC, especialmente o art. 100, IV, motivo pelo qual insistimos na análise da abusividade da cláusula de eleição, nos contratos de consumo. O motivo da não utilização das normas do CDC, quanto à abusividade da cláusula de eleição do foro, talvez encontre-se no fato * (271) Assim decisão in Julgados do TARS 83/399, com a seguinte ementa: "Consórcio - Contrato de adesão - Cláusula referente a foro de eleição Invalidade. Aplicação da regra contida no art. 100, IV, do CPC que tem por competente o foro onde se acha localizada a agência ou sucursal quanto às obrigações por ela contraídas. Agravo improvido". (AI 192113645, 9.ª Câm. Civ., Porto Alegre, rel. Dr. Breno Moreira Mussi, j. 16.6.92); já, em sentido contrário, citando o CDC como base legal da decisão, o TJRS, 6.ª Câm. Civ., j. 16.6.92, rel. Des. Oswaldo Stefanello, in RT 156/294: "Código de defesa do consumidor - Foro competente - Denunciação da lide - Vedação. A teor do art. 101, I, da Lei 8.078, de 11.9.90 - CDC - A ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos ou serviços pode ser proposta no foro de domicílio do autor. Hipótese em que não se aplica, na comarca da capital do Estado do Rio Grande do Sul, a Súmula n. 3, das colendas Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que trata da repartição dos feitos judiciais entre o Foro Centralizado e os Foros Regionais. Vedado é, a teor da mesma lei, a utilização, pelo

demandado, do instituto processual da denunciação da lide (art. 88), embora assegurado o direito de regresso do que pagar os danos contra os demais responsáveis (parágrafo único do art. 13)". (p. 494) da lista do art. 51 não conter norma expressa a respeito.{272} Relembrese, porém, que a lista é apenas exemplificativa, contendo seu caput a expressão "entre outras". A cláusula de eleição do foro, geralmente da sede da empresa, localizada em outro Estado ou mesmo "escondida" em alguma parte do Brasil, como no caso de empresas com fins escusos, traduz-se em vantagem exagerada para o fornecedor que contratou justamente no local de domicílio do consumidor e agora quer litigar em outro local. É do risco profissional do fornecedor, que comercia em determinada praça, seja através de filial ou qualquer espécie de representante, manter um sistema de defesa judicial nesta praça, permanente ou eventual.{273} Se o consumidor entrar com a ação, poderá se beneficiar da norma do art. 101 do CDC, mas se a ação é proposta pelo fornecedor a única saída do consumidor, de forma a evitar os gastos de um litígio fora do foro de seu domicílio é a declaração de abusividade (e nulidade) da cláusula de prorrogação da competência relativa. Cláusula comum e admitida em contratos entre comerciantes (veja a Súmula 335 do STF), * (272) Assim conclui Rosa Nery, em seu excelente estudo, p. 113, veja neste sentido o esforço do JEPC/RS, com a seguinte ementa: "Consórcio, Exceção de incompetência - Carência de ação. É competente para julgar ações que envolvam grupos de consórcio, o foro do local onde o aderente realizou contatos com o representante da administradora do consórcio e \onde efetivou os pagamentos (art. 100, IY b do CPC e art. 12, I e II, da Lei 7.244, de 7.11.84, e art. 4.º, I e II da Lei estadual 9.446/91 e Súmula 363 do STJ), e interpretação da Lei 8.078/90 (CDC) (Unânime)". (Rec. 2.163/972, Expediente 364/92, Passo Fundo, rel. Dr. Jasson Ayres Torres, \.ª Câm. Recursal, j. 24.9.92). (273) Veja nesta linha de pensamento, e bastante pedagógica, as decisões do \TAPR, Ap. Civ. 3.812, rel. Noerval de Quadros: "No contrato de adesão, por inexistir a liberalidade de contratar, não prevalece a cláusula de eleição de foro, aplicando-se as regras gerais de competência, em benefício do aderente", e, em especial, AI 96.763-3, j. 4.12.96, rel. Fernando Vidal de Oliveira, cuja ementa é: "Possível a desconsideração do foro de eleição presente em cláusula contratual de contrato de prestação de serviços (adesão), quando o cumprimento das obrigações contratuais pode se dar em diversos locais, diante do sistema nacional adotado, aplicando-se o disposto no art. 100, inciso IV, letra d, do Código de Processo Civil, atrelado ao fato de que a não desconsideração pode ser obstáculo ao acesso a justiça". (p. 495) a referida cláusula agora é nula em contratos entre fornecedores e consumidores, geralmente contratos pré-redigidos unilateralmente e de adesão, por afetar o equilíbrio intrínseco do contrato e por representar vantagem exagerada para o fornecedor.

Nesse sentido, a jurisprudência brasileira dos Tribunais estaduais geralmente conecta a abusividade da cláusula de eleição do foro com o fato dos contratos serem daqueles estabelecidos por adesão,{274} onde o fornecedor impõe com sua pré-elaboração contratual um privilégio para si próprio. Esta linha jurisprudencial chega mesmo a citar o CDC e seu art. 54, § 4.º como base legal indireta para tal ineficácia ou interpretação pró-consumidor desta cláusula limitativa dos direitos do \consumidor (c/c o art. 6.º do CDC).{275} Igualmente, o STJ, como regra, * (274) Assim as decisões do TARS e do 1 .º TASP publicadas in: Julgados 83/179 e RT 697/100, cujas ementas passo a reproduzir: "Consórcio. Tratando-se de contrato de adesão, não pode vingar cláusula impressa, relativa ao foro de eleição, quando em flagrante prejuízo ao aderente. \Agravo improvido". (AI 192107050 - 1.ª Câm. Civ., TARS, j. 6.6.92, rel. Juiz Léo Lima). "Competência - Foro de eleição - Alienação fiduciária - Busca e apreensão - Contrato de adesão - Fixação do foro na comarca da capital - Réu residente em comarca de estado distante - Custo elevado da defesa e seu deslocamento, maiores que o débito em cobrança - Decisão determinando a remessa dos autos à comarca do domicílio do requerido - Admissibilidade - Resguardo do devido processo legal - Sentença mantida - Recurso improvido. Embora conste do contrato de alienação fiduciária a capital como o foro de eleição deve-se considerar, entretanto, circunstâncias ponderáveis a modificar tal situação. A decisão que determinou à remessa dos autos à comarca de estado distante, domicílio da requerida visava resguardar o devido processo legal. desde que a praxe forense vem demonstrando que em hipóteses semelhantes o custo da defesa e do deslocamento do réu são maiores que o débito em cobrança. Por outro lado, no contrato de adesão predomina a vontade exclusiva de uma das partes e, por isso, em caso de dúvida, suas cláusulas devem ser interpretadas contra a parte que as ditou a favor da que simplesmente aderiu" (AI 547.041-1 - 5.ª C. - j. 1.9.93 - Rel. Juiz Joaquim Garcia, 1.º TACivSP, in RT 697/100). (275) Veja a argumentação do juiz Relator Joaquim Garcia, in RT 697/101, o qual cita também decisão do STJ (REsp. 29.602-3/RS): "Foro de eleição Contrato impresso de adesão - Possibilidade de ser desconsiderado, aplicando-se as regras processuais de competência". (p. 496) afasta as cláusulas de eleição do foro em caso de contrato de adesão,{276} exigindo, porém, que esta desestabilize o contrato.{277} \ Esta linha jurisprudencial vem reforçada por minuciosa e erudita \decisão do STJ, cuja ementa resume: "Contrato de adesão - Foro de eleição prevalência da regra geral de competência (art. 100, IV, b, do CPC) - Recurso não conhecido. A cláusula de eleição do foro inserida em contrato de adesão é, em princípio, válida e eficaz, salvo: a) se no momento da celebração, a parte aderente não dispunha de intelecção suficiente para compreender o sentido e as conseqüências da estipulação contratual; b) se da prevalência de tal estipulação resultar inviabilidade ou especial dificuldade de acesso ao judiciário; c) se se tratar de contrato de obrigatória

adesão, assim entendido o que tenha por objeto produto ou serviço fornecido com exclusividade por determinada empresa; II - reconhecida qualquer destas circunstâncias excepcionais, a definição da competência se requer seja procedida segundo as regras gerais estabelecidas pelo diploma processual (no caso, art. 100, IV, b do CPC)." (STJ, REsp. 46.544-3-RS, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, J. 10.5.94){278} Em todas as circunstâncias previstas na decisão do STJ, a figura do consumidor e dos contratos de consumo poderiam se subsumir, o que revela a sabedoria da linha jurisprudencial. Seu perigo é, porém, o casuísmo, o subjetivismo da decisão que não protege o consumidor como um grupo, que não evita (ao contrário incentiva) a inclusão de tais cláusulas nos contratos de adesão, exatamente no sentido contrário ao espírito da lei protetiva do consumidor, a qual vem impor novos deveres profissionais a quem comercia e impossibilita que eventuais * (276) Assim as decisões do STJ in REsp. 37.478-2-RS, REsp. 39.638-7-RS e REsp. 41.634-5. (277) Seguindo esta linha do STJ, veja decisão da 2.ª Câm. Civ. do TARS, in Julgados 82/301, cuja ementa é a seguinte: "Competência - Consórcio Contrato de adesão - Foro de eleição. O foro de eleição, inserido em contrato de adesão, somente pode prevalecer se não é capaz de afetar o equilíbrio que deve existir entre as partes, de modo a não se constituir em injustificado óbice ao livre acesso ao exercício do direito de ação e de defesa". (AI 192012870, 2.ª Câm. Civ., rel. Dr. João Pedro Freire, j. 19.3.92). (278) Semelhante decisão (STJ - REsp. 47.081-1-SP) foi publicada na íntegra in Direito do Consumidor 10/258. (p. 497) ônus ligados aos litígios sejam transferidos para os ombros dos consumidores, desestimulando seu acesso à justiça. Nesse sentido, sem querer discutir a correção, no mérito, dos pontos apontados na jurisprudência, considero preferível uma posição mais genérica, objetiva, como parece-me se retira do CDC. Em verdade, a atual abusividade da cláusula de eleição do foro nos contratos envolvendo consumidores, ex lege presumidos vulneráveis (art. 4.º, I do CDC), tem como base o disposto no art. 51, IV do CDC, em especial na sua norma interpretativa, o § 1 .º, III, do CDC. Este presume a vantagem excessiva do fornecedor quando a cláusula "se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso".{279} Note-se que ao utilizar este novo fundamento legal para a nulidade da cláusula, poderá o juiz decretá-la de ofício, pois as normas de proteção do consumidor são de ordem pública e a nulidade prevista na lista do art. 51 é uma nulidade cominada, absoluta; o que afastaria o problema processual de se tratar de competência relativa (Súmula 33 do STJ).{280} A mesma linha de argumentação pode ser utilizada quando se trata das famosas cláusulas compromissórias, referentes à arbitragem. Neste caso, porém, o CDC foi expresso e na pedagógica lista do art. 51, VII, considerou abusivas e nulas as cláusulas que "determinem a utilização

compulsória de arbitragem". Na segunda edição, alertamos para o perigo de projetos de leis - hoje legislação posta - sobre o tema. Aquelas observações, por sua ainda grande atualidade, serão reproduzidas. Em 1995, escrevíamos: "A prática é hoje, portanto, a da não inclusão destas cláusulas nos contratos de adesão oferecidos no mercado aos consumidores, não necessitando a jurisprudência dar maior resposta ao problema, até mesmo pelo sucesso dos Juizados Especiais e de Pequenas Causas, que também objetivam a conciliação e usam método semelhante ao da arbitragem, só que de caráter público e obrigatório. Tal cláusula, porém, merece nossa atenção, não só pelo seu potencial de abusividade e os prejuízos que pode causar aos * (279) Assim tb. Rosa Nery, idem, p. 113. (280) Nesse sentido a forte defesa de Rosa Nery, idem, p. 115, pela não incidência da Súmula 33 do STJ e a possibilidade do juiz ex officio decretar a nulidade de tais cláusulas em contratos de consumo. (p. 498) consumidores, mas porque reiteradamente projetos legislativos tentam revigorar-lhe a validade. Nesse sentido, a Diretiva da Comunidade Européia sobre cláusulas abusivas identificou como abusivas ambas as espécies de cláusulas influenciando ou dificultando o acesso à justiça pública, afirmando, em seu Anexo 1, letra q, ser abusiva a cláusula que objetive ou tenha por efeito: "suprimir ou obstaculizar o exercício de ações judiciais ou de recursos por parte do consumidor, em particular obrigando-se a dirigirse exclusivamente a uma jurisdição de arbitragem não coberta pelas disposições jurídicas, limitando-lhe indevidamente os meios de prova a sua disposição ou impondo-Lhe um ônus da prova que, conforme a legislação aplicável, deveria corresponder a outra parte contratante".{281} A menção da Diretiva ao particular potencial abusivo da cláusula compromissória de arbitragem nas relações com consumidores merece especial destaque. Tramita em nosso parlamento projeto de lei{282} tentando revogar o artigo específico do CDC, que visa proteger o consumidor contra a imposição de cortes arbitrais privadas, sustentadas pelos fornecedores ou suas federações (art. 51, VII). Tal projeto não merece apoio, pois permite expressamente, em seu art. 4.º, § 2.º, que se inclua uma cláusula compromissória nos contratos de adesão, quando se sabe que o contrato é de adesão justamente porque o fornecedor o pré-redige e impõe seus exatos termos. A ficção do Projeto é de que o consumidor concorda expressamente com a cláusula compromissória a assinando em particular ou mesmo a instituindo. Tal \ficção é injusta, pois cria um falso equilíbrio (Scheingleicheít, como afirma a doutrina alemã), uma falsa bilateralidade de chances no contrato, a qual não ocorrerá na prática. A passividade e a vulnerabilidade do consumidor são a regra. A vantagem exagerada do fornecedor advirá do privilégio de retirar a demanda das mãos do Judiciário e, em especial, do Juizado Especial de Pequenas Causas, que serão substituídos por árbitros pagos pelos próprios fornecedores, em ambiente por eles determinado, sendo quase remota a chance que um consumidor descontente com a decisão arbitral, ainda possua o equilíbrio psicológico e econômico, assim

* (281) Tradução nossa do espanhol da referida Diretiva 93-13/CEE, de 5.4.93. (282) Projeto de Lei 780/92 do Senado que recebeu o n. 4.018/93 na Câmara de Deputados. (p. 499) como o sentimento de certeza do direito para, após, procurar o Judiciário, com uma causa prescrita ou caduca.{283} O legislador brasileiro deve estar atento, pois o referido Projeto de Lei prevê a compulsoriedade da arbitragem, em seu art. 7.º, caso o consumidor "recuse-se a firmar o compromisso arbitral" ou a "comparecer" frente ao árbitro, lavrando este mesmo assim a sentença \que valerá como compromisso arbitral (art. 7.º, § 7.º). Permite-se ao árbitro fugir inclusive do ordenamento em vigor, decidindo por eqüidade, a critério do estabelecido no contrato, incluindo os "usos e costumes" comerciais, o que, em um Brasil tão diferenciado de região, pode ser muito prejudicial ao consumidor. A arbitragem compulsória ou mesmo a arbitragem "fictamente" convencional através de aceitação "expressa" ou de outra assinatura em contrato de adesão são temas bastante polêmicos. O problema central é ser a arbitragem executada por órgãos privados, geralmente oriundos (e pagos) pelos fornecedores, suas federações ou grupos. Se em outros países, de maior tradição de defesa do consumidor e boa-fé nas relações no mercado, tal experiência tende a funcionar, no Brasil, está sendo usada como mais uma manobra para retirar do exame da justiça estes conflitos. É exatamente no seu caráter oficial e público{284} que reside a força dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, órgãos da Justiça, que contam com a ajuda dos servidores públicos, dos Juízes de Direito e, especialmente, dos advogados que atuam como conciliadores e juízes leigos. Se o novo Estatuto dos Advogados já abalou o sucesso dos juizados na defesa rápida, barata e precisa dos consumidores, a aprovação de projetos de lei,{285} que revogam o comentado artigo e * (283) A hipótese de prescrição ou decadência não é impossível face ao veto presidencial do art. 26, § 2.º, II do CDC. (284) Nesse sentido, também na Espanha, país latino, as recémcriadas "Juntas Arbitrales de Consumo", autorizadas pelo real Dec. 636, de 3.5.93, possuem caráter e estrutura oficial, submetidas à Administração pública das ComUnidades Autónomas (Estados), como dá notícia a Professora de Madrid, Sílvia Diaz, p. 178. (285) Refira-se que, tanto no Seminário "Avaliação do Código de Defesa do Consumidor após 3 anos de Vigência", organizado pela Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara, dias 7 e 8.6.94, em Brasília, quanto no Seminário sobre a "Lei Antitruste e Direitos do Consumidor", dias 21 a 23 de setembro, em Porto Alegre, organizado pela Seção RS do (p. 500) instituem a possibilidade de tais cláusulas compromissórias serem inseridas em contratos de adesão e condições gerais dos contratos, seria o golpe final no sistema do JECP, além de um grande atentado ao direito constitucional de acesso à justiça. Parece-me, portanto, que devemos manter o disposto no art. 51,

VI e alargar a experiência, já positiva, do Juizado Especial de Pequenas Causas, até que a sociedade esteja madura para a utilização destes novos meios alternativos de solução de controvérsias também nas relações de consumo, onde o desequilíbrio de forças entre os interessados é intrínseco." A Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, em face das modificações sofridas por sugestão das entidades de defesa do consumidor,{286} nada menciona sobre relações de consumo. Mesmo assim, ao permitir o recurso a arbitragem em contratos de adesão, parecia permitir também que os conflitos de consumo, oriundos desses contratos, pudessem ser submetidos à nova lei. Como comentamos anteriormente, é mais um efeito da crise da pós-modernidade que procura na comunicação, no discurso, no consenso semificto e fragmentado a legitimação da solução e da Justiça, em vez de procurá-la nas instituições (sob suspeita) postas, nos valores positivados em leis, nas próprias normas gerais (antes reflexo da vontade geral). Promove-se um tratamento diferenciado para aqueles que podem pagar por ele ou organizar-se em câmaras arbitrais, Solução teoricamente mais rápida e mais legítima, baseada na norma dos comerciantes (lex mercatoria), não importando tanto sua imparcialidade, que é apenas discursiva.{287} Positivo é que a opinião inicialmente defendida da aplicabilidade da nova lei arbitral às relações de consumo não perseverou. Ao contrário, no país quase não foi utilizada a nova lei pelos fornecedores para resolver seus conflitos entre os fornecedores e os consumidores stricto sensu. Preservou-se, assim, a função do *Brasilcon, referido Projeto foi objeto de moção contrária e de fortes críticas pelo seu potencial neutralizador das normas materiais de defesa do consumidor e do real acesso dos consumidores à Justiça, representando indesejado retrocesso. \ (286) Sobre o tema veja Porto Macedo, Histórico, p. 237. \ (287) Veja nossas observações sobre a crise da pós-modernidade, nesta obra. \Neste sentido manifestação da Professora da UERJ, Rosângela Cavallazzi, em sua palestra na Faculdade de Direito da UFRGS, em 12 de março de 1995, "Tradução da Convenção de Arbitragem nas sociedades de massas". (p. 501) Juizado Especial Cível de Pequenas Causas e dos órgãos administrativos estatais, que nada mais fazem do que uma mediação e uma arbitragem imparcial controlada pelo Estado. As cláusulas contratuais, que imponham a arbitragem no processo \criado pela nova lei, devem ser consideradas abusivas, forte no art. 4.º, I e V, e art. 51, IV e VII, do CDC, uma vez que a arbitragem não-estatal implica privilégio intolerável que permite a indicação do julgador, consolidando um desequilíbrio, uma unilateralidade abusiva ante um indivíduo tutelado especialmente justamente por sua vulnerabilidade presumida em lei.{288} No sistema da nova lei,{289} a cláusula compromissória prescinde do ato subseqüente do compromisso arbitral.{290} Logo, por si só, é apta a instituir o juízo arbitral, via sentença judicial, com um só árbitro (que pode ser da confiança do contratante mais forte, ou por este remunerado); logo, se imposta em contrato de adesão ao consumidor, esta cláusula transforma a arbitragem "voluntária" em compulsória, por

força da aplicação do processo arbitral previsto na nova lei. Por fim, destaque-se ainda que a nova lei permite a arbitragem ex \aequo et bono e o uso de processo civil especial paraestatal. Logo, permite a nova lei, no campo de sua aplicação, o julgamento fora do sistema jurídico legal, fora das imposições e normas do CDC, somente com base em princípios e sentimentos subjetivos de um só árbitro pago pelos fornecedores. O art. 7.º do CDC permite também o recurso a eqüidade, mas somente para introduzir no sistema do CDC "direitos" do consumidor, não limites a estes direitos, ônus ou deveres negativos a este agente presumido vulnerável na sociedade de consumo (art. 4.º, I, do CDC). Certo é que a nova lei de arbitragem tem caráter processual, é norma instrumental do direito civil e não deve ser usada para fugir, ou fraudar à aplicação do direito material imperativo, do direito civil, em relações per se tão desequilibradas e afeitas a abusos como as de consumo. Sabe-se também do direito internacional que a arbitragem normalmente exige três árbitros, tem extremas dificuldades em seu * (288) Assim também Ferreira da Rocha, Cláusula compromissória, p. 36, citando Hapner, Eduardo Arruda Alvim e Alberto do Amaral Jr. (289) Veja arts. 6.º e 7.º da Lei 9.307/96. \ (290) Veja trabalho ainda inédito do Desembargador Melíbio Uiraçaba Machado, Juízo Arbitral - Comentários sobre a Lei 9.307/96, p. 2. (p. 502) processo e execução, o que a torna também custosa e demorada. O discurso pós-moderno de facilidade e rapidez da arbitragem deve ser relativizado ante a experiência internacional que o compara a dificílimos processos envolvendo normas de Direito Internacional Privado em foro estrangeiro, sem litispendência e em face do atual fenômeno do forum shopping, com contratos sobre bagatelas e consumo.{291} Igualmente, o seu laudo é de difícil execução, ainda mais quando ambos não concordam verdadeiramente em submeter sua lide à opinião de terceiros não-estatais. Em resumo, a arbitragem totalmente paraestatal encontra seu campo de atuação nas lides nacionais e nas lides internacionais entre comerciantes de grande porte, e é totalmente desaconselhável nas outras situações. Melhor seria a doutrina e jurisprudência concluir pela inaplicabilidade da Lei 9.307/96 às relações de consumo reguladas em contratos de adesão.{292} As entidades, federações, confederações e associações de fornecedores de produtos e serviços brasileiras resistiram ao entusiasmo liberal desta nova lei sobre soluções alternativas de conflitos e, pelo menos quanto tenho conhecimento, não impuseram ou recomendaram tais cláusulas abusivas, nem criaram câmaras arbitrais especializadas em conflitos de consumo. O acesso à justiça estatal ainda é direito cOnstitucional dos brasileiros e as soluções alternativas de conflitos devem ser supervisionadas pelo Estado, a quem ainda cabe, segundo a ordem constitucional vigente, distribuir Justiça, apesar da crise da pós-modernidade. Estas novas-velhas técnicas foram criadas para resolver conflitos nas relações entre iguais, particularmente entre comerciantes que hoje muito se utilizam da técnica dos contratos de adesão, e não para retirar a proteção estatal hoje concedida ao consumidor. Felizmente, ainda podemos afirmar que: "A prática é hoje a da não inclusão dessas cláusulas compromissórias nos contratos de adesão oferecidos no mercado aos consumidores".

* (291) Assim com visão bastante realista dos limites do discurso dos juristas e \árbitros e da difícil realidade da arbitragem internacional, Rechsteiner, p. 26 e s., em especial, p. 115. As minhas experiências como assessora de árbitros em duas arbitragens internacionais correspondem às impressões do autor. Veja, com uma visão positiva da arbitragem internacional, Araújo, p. 108, pois, segundo a autora, esta permite a autonomia da vontade em DIPr., e o uso da lex mercatoría, que seria ordem jurídica "despolitizada" pela ausência do Estado. (292) Assim conclui Etcheverry, p. 56, e Filomeno, p. 47. (p. 503) Por fim, refira-se que, muitas vezes de forma velada e indireta, alguns contratos impõem em seu texto obrigações de prova ao consumidor, especialmente no que se refere a atuação do fornecedor, à qualidade do produto ou do serviço fornecido. Imagine-se um caso, em que o consumidor perca o interesse na manutenção do vínculo contratual em virtude da mora e da conduta inadequada e inadimplente do fornecedor, tendo em vista a existência de deveres anexos ao dever principal de prestação (deveres de lealdade, proteção e informação), pode versar um aspecto da discussão de mérito sobre a conduta, de boafé subjetiva ou não, do fornecedor e sobre o cumprimento perfeito ou não da oferta realizada. A discussão atinge assim o que podemos denominar da análise da realização ou não das expectativas legítimas despertadas no consumidor pela atuação do fornecedor no mercado e pela formação do vínculo contratual entre eles. Nestes casos, ônus da prova de certos fatos (como o alegado problema de financiamento, os valores cobrados ou a mora desmotivada){293} torna-se um fardo, por vezes insustentável, para o consumidor. Este não possui acesso à atividade e à técnica do fornecedor, que é o profissional agindo na relação dentro de seu campo de atividades, nem poderia o consumidor suportar financeiramente complicadas perícias, levantamentos e outras provas. O resultado desta posição processual debilitada (denominada hipossuficiência pelo CDC) seria a conseqüente improcedência da pretensão pretendida e que necessitasse dessas provas, provas neste caso diabólicas. Para evitar que esta dificuldade de prova dificulte o efetivo acesso à Justiça e a rápida e correta prestação jurisdicional, o CDC incluiu entre os direitos básicos dos consumidores o direito de facilitação da defesa de seus direitos, com a conseqüente possibilidade de inversão do ônus da prova. Reza o art. 6.º, VIII do CDC que é direito básico do consumidor: "a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do Juiz, for verossímil a alegação ou quando ele for hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência". * (293) Relembro aqui a importância, não somente do direito de petição que é constitucional, mas do direito de contestação, por exemplo, dos valores cobrados; veja, neste sentido, sobre o direito de discutir os valores apresentados, jurisprudência anterior ao CDC, in RT 625/107. (p. 504)

Note-se, por fim, que não podem as partes, através de contrato ou qualquer acordo, inverter o ônus da prova em prejuízo do consumidor (art. 51, VI do CDC). Os três tipos de cláusulas cuja abusividade foi aqui analisada, a de eleição do foro mais conveniente para o fornecedor, a de inversão do ônus da prova e a da arbitragem compulsória, apresentam em comum a tentativa de influenciar o acesso do consumidor à justiça (processual e material). O abuso visualizado nestas disposições advém não só do fato do acesso à justiça (processual e material) ser um direito constitucional do cidadão-consumidor, mas também do fato deste risco, na nova sociedade de massa, dever ser suportado por aquele que fornece os produtos, que comercializa, que utiliza os novos métodos de marketing, que age no mercado de consumo. Sua atividade é lícita, seu campo de atuação não é limitado geograficamente, seu lucro é considerado normal e intrínseco a atividade econômica, mas deve organizarse para suportar as eventuais discussões no Judiciário, as eventuais provas ex vi lege exigidas.{294} 3. Cláusulas-Mandato Igualmente interessante é analisar a abusividade ou não das chamadas cláusulas-mandato, as quais através de estipulação elaborada e imposta por uma das partes colocam o credor do débito na posição legal de mandatário do devedor, com plenos e irrevogáveis poderes para fechar terceiros negócios (geralmente sacar títulos abstratos) ou para modificar unilateralmente as bases do negócio em curso (por exemplo, impor e assinar sozinho a re-ratificação da mesma promessa, combi* (294) Nesse sentido, a argumentação da decisão do JEPC/RS que passamos a reproduzir: "Consórcio - Exceção de competência de foro - Irrelevante a eleição de foro nos contratos para ajuizamento de ação. Não prevalece o local de eleição em contratos de consórcios, pois visam as cláusulas criar dificuldades ao consorciado aderente, no exercício de seus direitos. Tratase de contratos de adesão em que o consorciado dispõe de condições de alterar cláusulas preestabelecidas. A competência do foro deve ser fixada no juízo do local da contratação, onde a administradora deve ter agência ou sucursal (art. 100, IV, b, do CPC e item 7 da Port. 190, de 27.12.89)". (Vencida a preliminar de carência de ação, por maioria. No mérito, \unânime). (Proc. 95/89, Rec. 186/92, rel. Dr. Gerei Giareta, 2.ª Câm. Recursal, 17.7.92). (p. 505) nada com confissão de dívida). Tais cláusulas são comuns nos contratos bancários e de locação, mas também nos contratos de promessa de compra e venda de imóveis e de bens de grande valor, contratos de financiamento e de cartão de crédito, sem falar nos novos tipos contratuais, de maior utilização nos negócios comerciais, como o leasing e outros. Tão comuns no mercado brasileiro são estas cláusulas que a ação dos interessados na defesa do consumidor e a resposta da jurisprudência não tardou.{295} A normal utilidade deste tipo de cláusula é conceder ao credor o poder contratual de fazer líquida a dívida conforme o seu interesse e

entendimento, sem necessidade de qualquer participação do devedorconsumidor, que somente assina o contrato e esta autorização "em branco". Através de uma utilização deturpada{296} do instituto do mandato quebram-se dois importantes princípios das relações de consumo: transparência e confiança. O mandato e sua autorização para atuação unilateral faz desaparecer a necessária transparência do negócio, uma vez que sem a possível e eficaz fiscalização do consumidor, age o credor criando uma fictícia declaração do consumidor,{297} minimalizando os seus riscos profissionais ao obrigar o consumidor, seja a um terceiro negócio, geralmente um título extrajudicial, seja a uma modificação unilateral das bases do negócio em curso. * (295) Veja nesse sentido a ação civil pública proposta pelo Ministério Público de São Paulo, contra administradoras de cartão de crédito que utilizavam tais cláusulas, reproduzida na íntegra e a sentença, in Direito do Consumidor 3/198-204. semelhantes ações contra bancos foram intentadas pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, em 1994, com decisões apenas liminares. (296) Assim ensina o Min. Eduardo Ribeiro, in REsp. 13.996-RS, afirmandO: "Traduz a hipótese, em verdade, um artifício para possibilitar a constituição de título executivo. É sabido que o elenco legal de títulos executivos constitui numerus clausus, não sendo lícito que outros sejam estabelecidOs por convenção das partes. O sistema ora em exame passa por cima dessa impossibilidade legal, valendo-se da já assinalada deturpação das finalidades do mandato". Veja a Íntegra da manifestação do Ministro e comentários na obra do Juiz Federal Lourival Gonçalves de Oliveira, p. 188. (297) Veja nesta edição o item relativo à abusividade das cláusulas de declarações fictícias. (p. 506) Como ensina o Ministro Athos G. Carneiro, REsp. 1.641-RJ, só ao Poder Público foi concedido o poder (= direito) de criar título em seu favor nos créditos tributários, motivo pelo qual independente de qualquer exame casuístico posicionou-se pela nulidade absoluta das cártulas emitidas com base em tais cláusulas, mesmo em contratos entre comerciantes, afirmando: "... Ora, em casos como o dos autos, é o credor que está, em realidade, criando o título executivo extrajudicial em seu favor, fixando-lhe o valor e momento da exigibilidade, mercê da outorga de poderes imposta compulsoriamente em contrato de adesão, compulsoriamente a que as pessoas são obrigadas ao uso do crédito bancário não têm como fugir. Ou aderem, ou estão expulsas do mundo dos negócios, pelo menos a imensa maioria dos médios e pequenos empresários, que não têm condição alguma de discutir com os fornecedores de crédito, com as instituições financeiras".{298} Note-se a importância dada ao aspecto de vulnerabilidade que é reduzido o devedor, mesmo se profissional comerciante, face a utilização do método de conclusão de contratos predispostos unilateralmente ou contratos de adesão. Se a jurisprudência protege os pequenos comerciantes, quanto mais os consumidores, destinatários finais,

presumivelmente vulneráveis no sistema do CDC.{299} O segundo princípio atingido é o da confiança. A utilização normal do mandato concedido eventualmente ao credor deveria se dirigir unicamente à celebração do ato, ao estabelecimento do vínculo ou à execução das prestações acertadas, não à execução extrajudicial \(que seria o que os alemães denominam SekundÊtranspruch, pretensão à perdas e danos, ao substitutivo da prestação voluntária), muito menos à determinação do conteúdo obrigacional (seja do valor da dívida, seja uma eventual mudança, re-ratificação ou como queiram chamar as modificações do conteúdo contratual, sem verdadeiro consenso).{300} * (298) RSTJ, 22/200, 1991, j. 18.12.90, com a seguinte ementa: "Invalidade de cláusula, em contrato de adesão, outorgando amplo mandato ao credor, ou a empresa do mesmo grupo financeiro, para emitir título cambiário contra o próprio devedor e mandante. Ofensa ao art. 115 do CC". (299) Este é um dos aspectos mais destacados para basear a nulidade do título extrajudicial emitido com base em cláusulas-mandato impostas em contratos de adesão; veja decisão da 7.ª Câm. Civ., TARS, rel. Araken de Assis, Ap. Civ. 192023085. (300) Assim ensina o Min. Cláudio Santos, in REsp. 1.294-RJ, citando os ensinamentos de Orlando Gomes. Veja Oliveira, p. 190. (p. 507) Como ensina o Min. Cláudio Santos, o princípio da confiança é atingido duplamente, pois ele é o elemento máximo do contrato de mandato, e não pode haver eficaz representação quando os \interesses são conflitantes (nemo potest esse auctor in rein suam), mas ele está presente também no contrato principal, na relação estabelecida entre o fornecedor e o consumidor e o fornecedor passa a agir sem a efetiva fiscalização e a possibilidade do consumidor discutir os valores cobrados ou as modificações contratuais impostas. "O elemento subjetivo da confiança governa a atitude do mandante desde a formação do contrato até sua extinção. Só a alguém em que se confia se concedem poderes para a prática de atos jurídicos ou administração de interesses".{301} Note-se a importância dada ao aspecto de fiscalização dos débitos e das modificações impostas unilateralmente através da utilização da cláusula-mandato, frente a constatação da diferença de interesses entre o fornecedor-mandatário e o consumidor, compulsoriamente-mandatário.{302} A prática é a da inexistência de controle por parte dos consumidores de como são feitos os cálculos da atualização de sua dívida pelo banco ou pelas incorporadoras. Somente após a apresentação da cobrança poderá ele inteirar-se da sua correção ou não e talvez já lhe pese uma ação de busca e apreensão, conforme a espécie de contrato.{303} * (301) Veja a íntegra da manifestação do Min. Cláudio Santos e comentários, in Oliveira, p. 189. (302) Nesse sentido vem decidindo a jurisprudência majoritária dos Tribunais inferiores. Veja-se, a título de exemplo, o acórdão do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, em que não se tratava de mandato para o próprio credor, mas para terceiro e mesmo assim o caráter abusivo do exercício do

direito foi destacado (Ap. Cív. 1910114077, 1.ª Câm. Cív., j. 9.4.91, rel. Juiz Juracy Villela de Souza): "É nula a cláusula contratual que cria mandato para ser utilizado por pessoa jurídica, integrante do mesmo grupo econômico do mutuante, contra os interesses do mandante, porque abusiva e contrária ao que estabelece a Lei 8.078/90 (CDC)": acórdão comentado, in Direito do Consumidor 1/230, por Vivian J. P. Caminha. (303) Basilar neste sentido, declarando a nulidade da letra de câmbio e extinguindo a ação de busca e apreensão, com base em cláusula-mandato presente em contrato de financiamento de veículo, a decisão do Juiz Lino M. D. Batista Ribeiro, reproduzida na íntegra in Direito do Consumidor 5/294-295. (p. 508) Face aos interesses conflitantes não cabe que um possa representar o outro, por exemplo, para executar o pagamento do preço ou emitir um título cambial abstrato em nome do devedor. Discutível, igualmente, é a possibilidade, através da cláusula-mandato, de se falsear um novo consenso, prevendo a possibilidade do representante, na verdade o credor, modificar unilateralmente o conteúdo do contrato, as obrigações e direitos de cada parte em detrimento dos interesses do "mandante". A cláusula-mandato possui, assim, validade discutível, mesmo frente ao direito comum, por permitir antecipadamente o exercício de um direito para além do exigido pelo tipo de contrato assinado, sem a devida fiscalização e, muitas vezes, para além dos parâmetros de conduta segundo a boa-fé na execução dos contratos. No direito tradicional o art. 115 do CC era utilizado para esclarecer o caráter abusivo e potestativo da cláusula inserida tanto em contratos de consumo, como entre profissionais.{304} O direito brasileiro, porém, demorou a visualizar o abuso da simples inclusão deste tipo de cláusula nos contratos de massa. Por muito tempo o STF fazia distinção entre o "uso" do mandato (este permitido) e o "abuso" do mandato (este considerado lesão de direito e proibido),{305} posição que validava a previsão contratual de tais cláusulas-mandato, proibindo apenas os abusos, que se tornassem judiciais e pudessem ser provados em ações específicas. Tal posição era insuficiente, pois obviamente contavam os fornecedores com a passividade típica do contratante mais fraco economicamente, com a demora das contendas judiciais, assim como com a necessidade de prova do abuso. Mais fácil era prever a cláusula, instrumento mais ágil para obter um título extrajudicial para a futura execução do devedor inadimplente. * (304) Assim, o voto do Min. Cláudio Santos, no REsp. 1.294, 3.ª T., STJ, anterior ao CDC, j. 12.12.89: "É certo não haver proibição explícita no direito brasileiro. Entretanto, são condições defesas nos atos jurídicos as que os sujeitarem "ao arbítrio de uma das partes" (art. 115 do CC), o que fatalmente ocorrerá se uma das partes for mandatária da outra para reconhecer débitos e ajustar taxas de juros. Por outro lado, não são desprezíveis as objurgações doutrinárias a essa espécie de contrato, tanto no direito alienígena como no direito pátrio".

\ (305) Veja a lição de Cassio MC. Jr. Penteado, "Pensando sobre a CláusulaMandato: Uso e Abuso", in RT 691/260. (p. 509) O CDC visualizou esta abusividade e sabendo da possibilidade dos fornecedores de produtos e serviços conseguirem facilmente a imposição deste tipo de cláusula no mercado brasileiro classificou-a, expressamente, na lista do art. 51, como uma cláusula abusiva. Efetivamente dispõe o art. 51, VIII do CDC que são nulas de pleno direito as cláusulas que "imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor".{305} Nesse sentido, consolidou-se a jurisprudência pátria com a Súmula 60 do STJ: "É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante no exclusivo interesse deste". Em verdade, as cláusulas-mandato desequilibram consideravelmente a relação contratual, pois asseguram uma dupla vantagem para o credor, já em posição preponderante: este possui um direito creditício contra o devedor e reserva-se o direito de representá-lo, mesmo no que se refere ao comprometimento de seu patrimônio, garantindo o assentimento do devedor. A Súmula 60 do STJ pacificou a jurisprudência pátria. Nesse sentido, igualmente a conclusão n. 11 do III Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, em Brasília, versou sobre o tema afirmando: "É abusiva, nos contratos relativos às relações de consumo, cláusula que outorgue poderes ao mandatário, em conflito de interesses com o mandante, ou que lhe seja lesivo". A cláusula-mandato quebra a comutatividade do contrato, desequilibra-o onerando em excesso um dos contraentes, sujeitando-o ao arbítrio do outro (no que seria condição potestativa e ilícita), e concedendo vantagem excessiva a um dos contratantes, vantagem contrária a boa-fé na execução dos contratos, ao conceder um poder/ direito desacompanhado de qualquer reflexo obrigacional específico. Concluímos, portanto, que a cláusula-mandato, nos contratos de consumo, extrapola os limites do razoável e do necessário para a cooperação entre os contratantes e é abusiva. A declaração de sua nulidade pode ser requerida tanto com base na cláusula geral do art. 51, IV do CDC; uma vez que contrárias à boa-fé e asseguram vantagem * (306) Como ensina a jurisprudência: "Não se diga que a emissão da nota promissória, vinculada que está ao contrato de abertura de crédito, não é negócio dele diferente. Tanto se trata de outro negócio que para a sua realização foi necessária a previsão contratual da outorga de mandato" (Juiz \José Roberto Lino Machado, Proc. 781/92, 23.ª Vara Cível, SRj, 18.5.92, sentença publicada na íntegra in Direito do Consumidor 3/216 e ss.). (p. 510) exagerada e desproporcional ao contratante que predispõe as cláusulas, quanto com base no art. 51, VIII, do CDC, inciso específico e mais utilizado pela jurisprudência.{307} 4. Cláusulas de declaração ficta, de informação fictícia, de consenso ou de entrega ficta O silêncio pode equivaler a uma declaração. O direito alemão conhece os atos concludentes, o direito brasileiro conhece a tradição ficta. Em matéria de proteção ao consumidor, porém, a vulnerabilidade

fática, jurídica e técnica deste sugere uma maior cautela no que se refere a declarações fictas. Em princípio, o ficto "acordo tácito" através do silêncio do consumidor ou mesmo do pagamento da prestação exigida a maior não deve prevalecer.{308} Na prática, não só o fornecedor redige (ou pré-redige) o texto contratual, como terá facilidade de impor uma entrega ficta, de induzir a um silêncio tácito, a uma concordância pacífica e, por vezes, prejudicial aos seus múltiplos consumidores. Assim as cláusulas contratuais que prevêem que o silêncio do consumidor ou sua não manifestação, sua inatividade, significarão a sua concordância com a "renovação do contrato", com a "mudança da forma das prestações", com a "mudança do dia do pagamento", com a "mudança ou sucessão de planos de saúde", com a "rescisão contratual", com a "conclusão do contrato", em caso de envio direto dos bens ao consumidor, com a "informação" teoricamente prestada pelo fornecedor, com a "correção" da cobrança ou dos valores exigidos pelo fornecedor etc. Por mais práticas e pragmáticas que tais cláusulas sejam e por mais razoáveis os motivos econômicos dos fornecedores em utilizá-las, tais cláusulas ligadas a declarações fictas ou presumidas dos consumi* (307) Veja RT 697/176. (308) Assim decisão da 10.ª Câmara Cível do TJRJ, Ap. Civ. 1.025/97, j. 26.6.97, Des. Walter Felipe D’Agostino, cuja ementa é: "Plano de Saúde Modificação do prazo do reajuste de semestral para mensal. Acordo tácito não impede que as demais cláusulas prevaleçam. Se para o Autor se exige a comprovação de seu alegado direito, feita esta, compete ao Réu desconstituíla, não o fazendo obriga-se ao ressarcimento. A aceitação tácita manifestada pelo pagamento, sem objeção, não induz que se aceite pagamento indevido, \porque a maior e fora das regras do contrato". (p. 511) dores, impostas em contratos de consumo, colocam-se hoje sob a sombra do CDC e o perigo de sua eventual abusividade ser decretada. A lei alemã de 1976 já visualizava este perigo e incluiu tais cláusulas na sua lista cinza, de cláusulas cuja ineficácia deve ser \valorada caso a caso pelo Juiz (§ 10, n. 5). Na referida lei alemã, a regra é que uma cláusula, segundo a qual se considera como emitida ou não emitida uma declaração do consumidor (parceiro contratual que não redigiu previamente o contrato, não-predisponente, na terminologia alemã), no caso do consumidor praticar (ação) ou não praticar determinado ato (omissão), será ineficaz, a não ser que: a) tenha sido concedido ao consumidor (parceiro contratual) um prazo adequado para emitir a declaração expressa; e b) o predisponente (fornecedor) se obrigue a chamar especialmente a atenção do parceiro contratual, no começo do prazo, para o significado previsto para o seu comportamento (ação ou omissão). No direito alemão, a ineficácia é a regra deste tipo de cláusula, mas permite-se ao fornecedor provar que cumpriu com seu dever de informação e que avisou (a tempo) o consumidor das conseqüências de seu comportamento. O CDC não conhece regra específica sobre as declarações e a jurisprudência brasileira tem chegado a conclusões semelhantes distinguindo entre os vários casos. Se a cláusula se refere a uma "fictícia

informação" que deveria ser prestada pelo fornecedor, a jurisprudência tende a relembrar o dever de informar previsto nos arts. 30 e 31 do CDC, o novo direito do consumidor à informação adequada e clara (art. 6.º, III do CDC),{309} concluindo pela incidência do art. 51, I (nulidade), quando não simplesmente desconsidera a existência da previsão contratual contra legem.{310} * (309) Sobre a importância do novo direito de informação e seus reflexos constitucionais (ação para prestação de contas), veja decisão do 1.º TASP, 4.ª C., j. 2.6.93, rel. Juiz Otaviano Santos Lobo: "A circunstância de cláusula contratual ter declarado que caberá à administradora prestar informações sobre o andamento do consórcio em assembléias mensais, não retira O direito individual do quotista de pleitear judicialmente a prestação de contas da ré" (acórdão na integra, in RT 698/99). (310) Sobre o inderrogável dever de informar ensina o Des. relator João Loureiro Ferreira (AI 592052054, 3.ª Câm. Civ., TJRS, j. 5.8.92): "A obrigação de bem explicar o plano de saúde é da empresa ofertante do plano, cabendo- (p. 512) Relembre-se que o dever anexo de informação é decisivo quando o consumidor escolhe, por exemplo, qual o plano de saúde deverá proteger sua família, se deseja uma cobertura hospitalar e de que tipo, quais são as carências e as exclusões de cada tipo de plano etc. Aqui as informações são fundamentais para a decisão do consumidor e não \deve haver indução ao erro, qualquer dolo bonus, simulação tolerada ou falha na informação por parte do fornecedor. No espírito do CDC a informação ao consumidor deve ser real e verdadeira e não inverídica ou ficta contratualmente. Nesse sentido, também a Diretiva européia concluiu pela abusividade das cláusulas que tenham por objeto ou efeito "fazer constar de forma irrefragável a adesão do consumidor a cláusulas as quais não tenha tido a oportunidade de tomar conhecimento real antes da celebração do contrato".{311} No caso de "revisão contratual" através de simples "comunicação" ou circular entre os consumidores, autorizada por cláusula contratual, a qual especifica que silêncio dos consumidores valerá como tácita aceitação das novas condições contratuais, a jurisprudência brasileira ainda não se manifestou de forma definitiva. Encontram-se decisões ora recusando as modificações ficticiamente bilaterais prejudiciais aos consumidores, ora aceitando-as com base na autonomia da vontade e nos costumes do mercado. Particularmente, considero que tais cláusulas são abusivas, por contrárias ao inciso XIII do art. 51 do CDC, pois "autorizam o fornecedor a modificar" (na prática) unilateralmente "o conteúdo do contrato ou a qualidade do contrato" (das prestações), após a sua celebração.{312} *lhe a obrigação inafastável de bem informar seus clientes efetivos ou potenciais de todos os termos do contrato". (311) Assim a Diretiva 93-13/CEE, que como diretiva minimal trouxe a lista de

cláusulas abusivas como sugestão para os países que já não possuem tal lista em seu Anexo, 1, letra i; trad. nossa do original espanhol, pub. in Diário Oficial de las Comunidades Europeas, L. 95/33, de 21.4.93. (312) Exemplo de cláusula abusiva, presente em contrato para uso de linha de TV a cabo, em Belo Horizonte, a qual sequer menciona a possibilidade do consumidor não concordar com as alterações, forçando um consenso prévio e ficto com o simples conhecimento: "12.2. A operadora poderá alterar, modificar ou editar o presente instrumento contratual, através de comunicados ou termos aditivos, sempre com o objetivo de aprimorá-lo, com vistas à melhoria das condições de funcionamento do aludido relacionamento, (p. 513) Cláusula ainda comum nos contratos de consumo no Brasil é aquela que prevê a ciência ficta do consumidor do conteúdo do contrato ou das condições gerais a ele aplicáveis, ciência esta que na prática não ocorre, pois o contrato ou as CONDGs estão registradas em algum cartório no país. Tal cláusula afronta o novo direito de informação do consumidor, pois segundo o art. 46 do CDC deve ser dada a oportunidade ao consumidor conhecer o conteúdo do contrato, de entender a extensão das obrigações que assume e a abrangência das obrigações do fornecedor de produtos ou de serviços. Cláusula baseada em consenso ficto é igualmente a conhecida cláusula de "renovação automática", onde o período contratual prorroga-se automaticamente, caso não haja manifestação em contrário do consumidor ou de nenhuma das partes. Sobre a eventual abusividade ou não desta cláusula restam muitas dúvidas. Note-se que a renovação dos contratos de consumo por vezes têm base legal e, geralmente, é do interesse do consumidor. Particularmente, parece-me que o caráter abusivo desta cláusula adviria ou de sua unilateralidade ou da forma (restritiva ou limitativa), ou da forma como o exercício do direito de recusa do consumidor for regulado. Ao consumidor (assinante de revistas, associado em clubes, participante de um abono para teatros etc.) deve lhe ser dada ocasião de manifestar sua vontade em contrário, através de avisos específicos ou, no mínimo chamadas específicas, incluídas nas cobranças do novo período. A *tomando-se a obediência a essas eventuais alterações, modificações ou aditamentos, obrigatória a partir do momento que das mesmas, for dado conhecimento ao usuário, através do Boletim de programação ou de correspondência pessoal ao usuário". Veja também basilar decisão da 5.ª Câm. Civ. do TJRS, Ap. Cív. 591106646, j. 1.10.92, rel. Des. Araken de Assis, com a seguinte ementa: "Previdência privada. Plano empresarial de reembolso de despesas médicO\hospitalares ("Dame", da Golden Cross) - Critério de reajuste de prestações - Aditivo ao contrato prevendo o reajuste pelo Bônus do Tesouro NaciOnal (BTN). Majoração das prestações segundo a variação real do custo das despesas médico-hospitalares - Descabimento. Enquanto vigorar a disposição contratual e o próprio contrato, de resto denunciável e resolúvel pelo interessado, não pode a parte majorar o valor das prestações mensais que

tocam ao parceiro consoante o índice de sua necessidade em lugar do índice do contrato. Hipótese de manifesta procedência da consignatória. Apelação provida". (p. 514) exemplo da lei alemã, a ratio legis seria evitar que a passividade do consumidor possa ser usada contra este e resulte em prejuízo econômico afastável com a devida e prévia informação. Observa-se, porém, que muitas destas cláusulas, ao contrário, procuram dificultar a atuação do consumidor, por exemplo, exigindo que sua manifestação seja por "carta registrada" ou estabelecendo um longo prazo anterior ao término do contrato e a renovação automática (60 ou 45 dias impreterivelmente etc.) e aqui pode residir sua abusividade, valorada, no caso concreto e para aquele tipo contratual, como contrária à cláusula geral do art. 51, IV do CDC. Efetivamente, a nova Diretiva da Comunidade Européia, atual União Européia, considera contrária à boa-fé exatamente este tipo de \cláusula, no n. 1, letra h, do Anexo; afirmando a abusividade das \cláusulas que tenham por objeto ou efeito: "h) Prorrogar automaticamente um contrato de duração determinada se o consumidor não se manifesta em sentido contrário, quando se tenha fixado data-limite demasiado distante para que o consumidor expresse sua vontade de não prorrogá-lo".{313} Cláusulas envolvendo declarações fictas são, porém, mais comuns nos contratos bancários e envolvendo financiamentos, onde geralmente a aceitação e correção dos dados e cobranças é presumida em caso de não manifestação do cliente. Segundo a experiência Européia em matéria de cartões de crédito, o problema central deste tipo de cláusula contratual é que a declaração ficta presumida pelo silêncio do consumidor assemelha-se a um "reconhecimento de dívida".{314} Assim, se o consumidor utilizou seu cartão de crédito e enviada a cobrança, não manifesta sua discordância com o valor, em um determinado prazo (5 dias, 10 ou 25 dias após a data do aviso ou do provável recebimento do aviso), o saldo ou a quantia ali manifestada é presumida como aceita pelo consumidor, com todos os efeitos legais e contratuais possíveis. \ A Corte Federal Alemã baseou-se no referido § 10, 5, a) da Lei \1976 para considerar tal cláusula ineficaz. De forma bastante elucidativa \apegou-se ao fato do cartão de crédito ser uma forma de pagamento * (313) Tradução nossa, do original espanhol, publicado in Diário Oficial de las \Comunidades Europeas, L. 95/33, de 21.4.93. (314) Assim Martinek, t. III, p. 68. (p. 515) \utilizada em viagens, argumento utilizado pelas próprias empresas em sua publicidade, logo, a fixação de um prazo fixo (no caso, 25 dias) para todos os consumidores manifestarem seu descontentamento seria contrário à boa-fé. A validade e eficácia das declarações fictas é a exceção no sistema da lei de 1976, logo as empresas de cartão de crédito, que por motivos de praticidade e interesse seu, quiserem dela se utilizar em suas CONDGs devem prever exceções para os consumidores, por exemplo, em caso de viagem, e devem assegurar além de \"farta" informação, além de "suficiente e razoável prazo de tempo".{315}

Na experiência brasileira, a fonte de abusividade detectada concentra-se mais na unilateralidade{216} da elaboração do documento de dívida, e na sua eventual utilização em execuções,{317} prerrogativa contratual considerada abusiva em geral, quanto mais quando imposta frente ao consumidor, do que na imposição por contrato de uma aceitação ficta do saldo devedor ou da dívida. A posição da jurisprudência brasileira é louvável, mesmo se não utiliza-se diretamente do CDC, mas de seus \* (315) Assim a decisão citada e comentada por Martinek, t. III, p. 68, BGHZ \91.221. A decisão de 17.5.84 afirma em sua ementa que: a) o risco sobre a correção ou falsidade dos comprovantes de compra é da empresa de cartão de crédito e não pode ser transferido para o consumidor; b) o possuidor de um cartão de crédito não é obrigado a conferir imediatamente quando da chegada do saldo a sua correção, sendo suficiente que o faça quando da chegada de uma longa viagem. (316) Segundo afirma o Juiz relator Brandão Teixeira do TAMG (Ap. 121.4160, 5.ª Câm. Civ., j. 12.3.92, in RT 697/167): "A cláusula contratual pela qual a parte se compromete a aceitar como bons os extratos elaborados é destituída de maior valor, pois não é possível reconhecer-se àquela prerrogativa de constituir título executivo em seu próprio favor, disposição \contratual deste jaez ofende o art. 115 do CC, 2.ª parte". (317) Assim a ementa da citada decisão do TAMG, in RT 697/166: "Contrato de abertura de crédito - Cheque especial - Execução inadmissível - Valor cobrado superior ao contratado - Irrelevância de estar acompanhado de extrato de conta-corrente - Documento unilateralmente elaborado que não pode ser qualificado como demonstrativo de dívida líquida e certa Declaração de voto. Não constitui título executivo exigível o contrato de abertura de crédito, mormente se é executado valor superior ao nele consignado, ainda que acompanhado de extrato da conta corrente, unilateralmente elaborado, cujos lançamentos não espancam, por si SÓS, incerteza do saldo executado" (Ap. 121.416-0, 5.ª C., j. 12.3.92, rel. Juiz Brandão Teixeira. (p. 516) princípios. Já a interessante linha jurisprudencial alemã, bem demonstra as exigências de uma fase de execução contratual (e formulação do conteúdo contratual) conforme a boa-fé, pensando refletidamente nos interesses (e possibilidades fáticas) do parceiro contratual. Em matéria de cobranças de dívidas e correção de dados, a jurisprudência brasileira distingue entre a atuação dos bancos e financeiras e a atuação das empresas responsáveis pelos serviços públicos uti singuli prestados à população. Quanto aos bancos a sensibilidade da jurisprudência para a cobrança indevida é tal que, mesmo existindo cláusula contratual prevendo a veracidade do débito lançado em contacorrente ou do saldo devedor e a reflexa concordância ficta do consumidor, refaz o equilíbrio do contrato e aceita condenar a empresa bancária a danos morais pela "conduta ilícita ofensiva ao direito subjetivo" do indivíduo.{318} Quanto a atividade das empresas prestadoras de serviços

públicos e a cobrança das taxas relativas a serviços públicos, a jurisprudência brasileira ainda reluta em utilizar o CDC, preferindo a saída de direito administrativo e a presunção de veracidade do demandado pelo prestador de serviço público, presunção que só cederá face a prova do excesso ou a excepcionalidade da ocorrência, segundo "o senso comum", ensejando a determinação da inversão do ônus da prova pelo juiz, de forma a facilitar a prova da alegação do consumidor.{319} Outro tema interessante e que insere neste contexto é o da tradição ficta, em verdade um ato real, mas que pode ser previsto * (318) Exemplo desta linha jurisprudencial é a decisão do TJPB, onde o relator, Des. Antônio Elias Queiroga, cita abundante jurisprudência do STF e TJSP, decisão reproduzida in RT 696/185, com a seguinte ementa: "Indenização - Dano moral - Débito indevido lançado em conta-corrente, originando saldo devedor, com a transferência para o crédito em liquidação - Conduta ilícita ofensiva ao direito subjetivo da pessoa Desnecessidade de reflexo material - Condenação mantida. O dano moral, causado por conduta ilícita, é indenizável, como direito subjetivo da pessoa ofendida, ainda que não venha a ter reflexo de natureza patrimonial". (Ap. 92.0027138 - 2.ª C., j. 18.8.92, rel. Des. Antônio Elias de Queiroga). (119) Bom exemplo desta linha jurisprudencial, encontra-se na Rev. Julgados do TARS 82/238, cuja ementa é a seguinte: "Consignação em pagamento \Excesso de consumo de água - Corsan - Presunção de regularidade do registro hidrométrico que cede diante da excepcionalidade da ocorrência. Em uma residência modesta, com menos de 32 m2, e apenas três ligações, a normalidade é o consumo em torno da tarifa mínima, como ocorrido nos (p. 517) em cláusula contratual, fazendo prova de sua ocorrência. No direito alemão tal cláusula inclui-se entre as abusivas a depender da "valoração do juiz no caso concreto". O direito brasileiro está mais acostumado à tradição ficta e considera este negócio como causal, o que diminui o perigo desta cláusula, bastando geralmente uma \interpretação pró-consumidor pelo juiz forte no art. 47 do CDC. De qualquer maneira, trata-se também de uma cláusula "cinza" a merecer a valoração do juiz no caso concreto, de forma a verificar se viola ou não o mandamento de boa-fé e equilíbrio nos contratos de consumo (cláusula geral do art. 51, IV do CDC). Note-se que nem todàs as declarações fictas do consumidor ou seu silêncio considerado como declarações são fonte de abusividade. Por vezes, a própria lei utiliza-se desta técnica para presumir a vontade do consumidor, assim o próprio CDC, em seu art. 49, concede ao consumidor um prazo de 7 dias, com elástico termo inicial, e contrario sensu presume que passado este prazo é vontade do consumidor ficar vinculado ao contrato concluído fora do estabelecimento comercial. Trata-se, portanto, de um tipo de cláusula ou de um expediente (a declaração ficta) do fornecedor a ser valorado pelo juiz e cuja abusividade há de ser determinada no caso concreto, conforme a redação exata da cláusula,

conforme o tipo de contrato e as expectativas que cria, conforme a prática comercial anexa a esta estipulação, conforme a interpretação próconsumidor a ser dada a este contrato. 5. Cláusulas atípicas de remuneração Remuneração variável ou repetida, cláusulas de imposição de índices unilaterais de reajuste ou de juros acima do limite constitucional. As cláusulas de remuneração (pagamento) dos serviços e dos produtos são essenciais em uma economia capitalista, como a brasilei*meses imediatamente precedentes. Tendo o hidrômetro medido consumo 5 vezes maior que nos meses anteriores, impendia à fornecedora provar a existência do alegado vazamento, negado pelo consumidor. Regra de experiência segundo a qual o normal não se prova, sim o excepcional. Apelação provida para liberar o autor em face do valor depositado correspondente à tarifa mínima, em consonância com consumos verificados anteriormente" (Ap. Cív. 191178151, 1.ª C., j. 24.3.92, rel. Juiz Juracy de Souza). (p. 518) ra. Em determinadas circunstâncias, porém, as cláusulas envolvendo o preço podem conter previsões tão variáveis, incertas, arbitrárias ou potestativas, que podem ser consideradas abusivas, contrárias aos princípios da boa-fé e da justiça contratual. O direito tem extrema dificuldade de regular o preço, considerado o elemento do contrato onde há maior liberdade da vontade,{320} onde praticamente inexistem regras supletivas a esta manifestação de vontade, onde o expectro de interpretação do aplicador da lei é menor; simplesmente porque aqui, no preço, na remuneração, encontra-se o interesse maior que move ao contrato o fornecedor, especialmente aquele que trabalha com crédito ao consumo e financiamentos em geral. A nulidade de uma cláusula de preço significa, na prática, a "morte" do contrato, salvo em caso de tabelamento legal, podendo as partes no máximo optar pela rescisão do contrato.{321} Por isso mesmo, o CDC em seu art. 6.º, V, excepciona este tipo de cláusula, como mencionamos anteriormente, e opta pela possibilidade de "modificação" da cláusula eventualmente onerosa em excesso,{322} autorizando a atuação sanadora do juiz fora do sistema de nulidade absoluta das cláusulas abusivas previsto no art. 51 do CDC. * (320) Relembro aqui as lições de Roppo, p. 144, segundo o qual mesmo a noção de comutatividade é uma noção relativa, a depender da vontade das partes, onde o direito só intervém em casos graves, em desequilíbrio flagrante, de lesão. (321) Decisão do TJDF (DJ 10.12.92, II, p. 41.927, rel. Des. Vasques Cruxen), utilizando a teoria da imprevisão, face a mora do consumidor em virtude dos aumentos e reajustes do índice do SINDUSCON, superior ao aumento dos salários, bem demonstra o esforço da jurisprudência para fornecer respostas justas a este problema diário, alcançando, no máximo, a rescisão sem perdas e danos para o consumidor. (322) Interessante atuação da jurisprudência, simplesmente impondo uma modi-

\ficação contratualmente permitida, encontra-se na decisão da 2.ª Câm. Cív. \do TJRS, de 15.4.92, Ap. Cív. 592022826, rel. Des. Talai Selistre, com a seguinte ementa: "Plano de saúde. Não pode a seguradora negar-se à modificação da cobertura médico-hospitalar, ainda que para diminuí-la, bem como as prestações mensais devidas pelo segurado desta prevista, a faculdade no manual por ela fornecido. Devolução das diferenças em dobro \(CDC, art. 42, parágrafo único) e devidamente corrigidas desde a data da alteração pretendida. Apelo provido, em parte, tão-só quanto ao montante da verba honorária". (p. 519) A jurisprudência brasileira ainda é tímida em utilizar esta auto\rização legal de modificação das cláusulas referentes ao preço,{322A} com \raras excessões, {322A} preferindo, face a complexidade do tema, solucionar a lide com a decretação da nulidade ou da abusividade de cláusulas acessórias, geralmente cláusulas acessórias de remuneração ou de indexação, sem tocar no verdadeiro problema do equilíbrio financeiro original do negócio.{323} Quanto à eventual abusividade das cláusulas de remuneração e cláusulas acessórias de remuneração, quatro categorias ou tipos de problemas foram identificados pela jurisprudência brasileira nestes primeiros anos de vigência do CDC: 1) as cláusulas de remuneração * (322A) Verdadeiro leading case foi a condenação, com liminar, de famosa Seguradora de Saúde, em ação civil pública movida pelo MP/RS, "a revisar todos os reajustes de contribuições impostos a seus filiados em curso no Estado do Rio Grande do Sul, com observância das respectivas periodicidades. Bem assim, a proceder tais revisões com a utilização do índice de variação do BTN no período de reajuste como base (ou índice de variação dos custos dos serviços médico-hospitalares nos termos da lei e dos contratos) e a \devolver os valores cobrados a maior, devidamente corrigidos..." (decisum da Sentença 25.7.94, 14.ª Vara Cível da Comarca de Porto Alegre. Proc. 01189343419, Juiz Demétrio Xavier Lopes Neto); note-se que o magistrado, evitando a discussão constitucional, não amparou-se no CDC, uma vez \que os reajustes litigiosos eram de 1989, mesmo assim afirma, a lis.: "Vista a questão sobre a ótica do CDC, diversa não é a solução, observando-se a norma e espírito ali insculpidos. É que aqui, repita-se, opera validamente como norma interpretativa - no mínimo". (323) Em caso envolvendo contrato de leasing, no JEPC de Passo Fundo, o \Relator da Turma Recursal, Juiz Facchini Neto, assevera: "Cumpre analisar, assim, se os encargos pactuados eram ou não devidos. Analisando-se a questão sob este prisma, constata-se facilmente que houve \excessos na cobrança dos encargos. De fato, o art. 52, § 1.º, do CDC, estabelece que as multas de mora não poderão ser superiores a 10% do valor da prestação. Apenas juros moratórios de 1% ao mês podem ser acrescidos

à multa contratual. Fora disso, apenas a correção monetária pode ser exigida. Examinando-se a planilha de pagamentos efetuados, percebe-se, porém, que os encargos cobrados pela requerida foram muito além de tais limites, pois para um atraso de 33 dias, por exemplo, a prestação chegou a aumentar cerca de 60%, como ocorreu com o pagamento efetuado em 17.10.90 (planilha de lis., juntada pela R.) Isso representa muito mais do que a inflação do período, acrescida de juros de 1% e cláusula penal de 10%" (fls). (p. 520) variável conforme a vontade do fornecedor, seja através da indicação de vários índices ou indexadores econômicos, seja através da imposição de "regimes especiais" não previamente informados; 2) as cláusulas que permitem o somatório ou a repetição de remunerações, de juros sobre juros, de um duplo pagamento pelo mesmo ato, cláusulas que estabelecem um verdadeiro bis in idem remuneratório; 3) cláusulas de imposição de índices unilaterais para o reajuste ou de correção monetária desequilibradora do sinalagma inicial; 4) cláusulas de juros acima do limite constitucional. Note-se que a identificação destes problemas não significa, porém, a certeza da abusividade deste tipo de cláusulas, nem a formação de uma linha de atuação unitária da jurisprudência. Ao contrário, a jurisprudência encontra-se em plena formação, mesmo assim, uma vez que o tema é de capital importância para a prática, passaremos a uma análise de cada uma das hipóteses. O primeiro grupo de cláusulas atípicas em matéria de remuneração a ser identificado pela jurisprudência foi o das chamadas cláusulas de remuneração variável, onde uma estipulação contratual permite ao fornecedor, de forma direta ou indireta, a variação unilateral do preço. Esta cláusula é considerada abusiva pelo CDC que conhece previsão expressa na lista do art. 51, X. Também ao direito tradicional (art. 115 do CC) repugna esta possibilidade (de sem concordância do parceiro contratual) o fornecedor reservar-se o privilégio contratual de modificar o preço.{324} O preço é elemento essencial do contrato, de sua transparência e base primeira de seu equilíbrio, modificar justamente este elemento de maneira unilateral é arbitrário e, possivelmente, lesionário. O art. 1 .125 do CC prevê mesmo a nulidade de todo o contrato de compra e venda, quando se deixa do arbítrio exclusivo de uma das partes a taxação do preço. O CDC, ao contrário, identifica o mesmo foco de abusividade, de arbítrio neste privilégio unilateral e desequilibrador, mas prevê a nulidade somente da Cláusula que permite esta variação unilateral, subsistindo a cláusula de preço original. O CDC segue assim seu ideal de conservação (sempre que Possível) da relação contratual (art. 51, § 2.º, do CDC). A abusividade deste tipo de cláusulas e a decretação de sua nulidade, forte no art. 51 do CDC ou nas previsões do CC, não deveria * (324) Veja, no mesmo sentido, Aguiar, Cláusulas, p. 21. (p. 521) mais propor dificuldades para a jurisprudência. A capacidade, porém, de disfarçar a unilateralidade da previsão de remuneração ou de sua possibilidade de variação superou as expectativas em um mercado tão móvel como o brasileiro e onde o fenômeno da inflação acaba por convencer que a variabilidade dos elementos do contrato é - em princípio - aceitável e mesmo necessária. Assim, por exemplo, quem

desconfiaria de uma cláusula onde vários índices de correção ou de reajuste, ou índices de atualização monetária estão colocados lado a lado, de forma alternativa, subsidiária ou por ordem de preferência, onde menciona-se a "variação positiva" de um destes índices ou a utilização de "qualquer outro índice", em caso de falta dos primeiros? Da mesma maneira, quem temeria uma cláusula que estabeleça um regime especial, um aumento do preço, da remuneração do fornecedor, quando atingir certa idade, em contrato de seguro saúde ou outro seguro em que o risco do evento é maior conforme a idade? No primeiro caso, a doutrina é unânime no sentido da impossibilidade de previsão contratual de índices alternativos de atualização monetária ou correção à escolha do fornecedor ou com escolha fictamente bilateral do fornecedor e do consumidor, por abusiva e contrária a previsão do art. 51, X do CDC. Nesse sentido a conclusão n. 2 do II Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, em Brasília: "Nas relações de consumo são abusivas as cláusulas que atribuem ao fornecedor o poder de escolha entre múltiplos indexadores".{325} Já a jurisprudência ocila, alguns Tribunais aceitam por vezes índices "alternativos" fora do Sistema Financeiro da Habitação,{326} guiados sem dúvida pela idéia que a "atualização monetária", e portanto, a escolha de um índice ou outro, seria simples correção monetária que nada acrescenta ao preço e não constitui um plus ou um prejuízo possível ao consumidor.{327} Importante setor da jurisprudência * (325) Note-se que, antes da vigência do CDC, alguns planos econômicos previram expressamente esta possibilidade de utilização alternativa de índices (por exemplo o chamado Plano Verão). (326) Veja a decisão do STJ in REsp. 38.242-4-SP: "Compromisso de compra e venda de imóvel - Reajuste de prestações - Índice alternativo. Consolidado na jurisprudência do STJ o entendimento de que: "É lícito o pacto pelo qual, em caso de alienação do imóvel, não abrangido pelo Sistema Financeiro da Habitação, se estabelecem índices alternativos de reajustes das prestações". (327) Sobre a correção monetária, exemplar, veja decisão do 1.º TACiVSP reproduzida in RT 679/119, ou da 3.ª T. do STJ, in Lex 48/231 e ss. (p. 522) brasileira, porém, seguindo a experiência do homem comum de que os índices nem sempre refletem a realidade inflacionária e nem todos levam ao mesmo resultado final,{328} preferem afastar qualquer cláusula que permita ao fornecedor, direta ou indiretamente, por exemplo através da escolha do índice de correção do valor ou da taxa de juros,{329} a variação do preço e a modificação unilateral do contratado,{330} uma vez que esta possibilidade de variação ou escolha unilateral do fornecedor desequilibra as forças do contrato e quebra a paridade de tratamento entre os contratantes.{331} Nos contratos do Sistema Financeiro da Habitação muitas vezes a divisão das cláusulas de remuneração em várias e diferentes cláusulas no texto dos contratos acaba por permitir a variação do preço através

da variação unilateral do percentual de juros. Segundo a conclusão n. 5 do referido Congresso de Brasília tal cláusula também é abusiva.{332} * (328) As diferenças ficam maiores no caso de planos de combate a inflação, veja a decisão do TARS, Rel. Juracy de Souza, j. 16.2.93, Ap. Cív. 192129526. (329) Nesse sentido a decisão basilar do TARS, rel. Antonio Janyr Dall’Agnol Jr., j. 19.5.93, in RT 697/173 e ss., de cuja ementa retiro a passagem: "Sendo os juros o "preço" pago pelo consumidor, nula é a cláusula que preveja alteração unilateral do percentual prévia e expressamente ajustado pelos figurantes do negócio". (330) Veja o citado leading case de extensão do CDC através do art. 29, TARS, rel. Paulo Heerdt, j. 24.10.92, Ap. Cív. 192188076, cuja ementa, em seu final, tem o seguinte teor: "Cláusula que permite variação unilateral de taxa de juros é abusiva porque, nos termos do art. 51, X e XIII, possibilita variação de preço e modificação unilateral dos termos contratados. Possibilidade de controle judicial, visando estabelecer o equilíbrio contratual, reduzido o vigor do princípio pacta sunt servanda". (331) Nesse sentido o leading case do TARS, Rel. Paulo Heerdt, j. 9.5.91, com a seguinte ementa: "Contrato de leasing - Plano verão. Cabível a consignatória para discutir índice de reajuste, ainda que as leis do Plano Verão (7.738/ 89 e 7.774/89) tenham permitido a utilização de índice alternativo previsto em contrato, não pode o Judiciário chancelar a cláusula abusiva em contrato, que, por ser de adesão, fere claramente a paridade de tratamento entre contratantes. Posição reiterada da jurisprudência, agora consagrada pela Lei de Defesa do Consumidor" (in Julgados TARS, 78/284-287). (332) O original da conclusão é o seguinte: "5. É abusiva, nos termos do art. 51, X do CDC, a cláusula que permite ao mutuante a variação do percentual de juros". Sobre a problemática específica dos contratos do SFH veja o excelente artigo de Arnaldo Rizzardo, in Direito do Consumidor 9/67 e ss. (p. 523) A abusividade deste tipo de cláusula encontra-se em dois fatores objetivos: sua unilateralidade e a falta de possibilidade de informação precisa do consumidor (leia-se, transparência mínima da relação contratual) e em dois fatores potenciais: o desequilíbrio contratual que cria e o arbítrio de uma das partes sobre a outra, que permite. Destaco aqui a insegurança criada por este grupo de cláusulas de escolha unilateral e variação unilateral do fornecedor sob o contrato de consumo, pois me parece ser a falta de transparência destas relações um dos motivos da decretação de abusividade destas cláusulas pelo CDC. Assim, também é abusiva a cláusula contratual que prevê a imposição de um aumento das prestações pagas pelo consumidor, dos juros ou de qualquer tipo de remuneração do fornecedor e não

especifica qual será este aumento, ou pelo menos em que bases (percentuais, por exemplo) se dará este aumento ou esta passagem para um regime especial. No caso dos seguros-saúde, os contratos geralmente prevêem um aumento das contribuições quando a pessoa atinge determinada idade (30, 40, 50 e 60 anos), aderindo o consumidor ao contrato, sem saber ao certo o que este aumento representa, pois o contrato não fixa percentuais ou limites para estes aumentos.{333} Um segundo grupo de cláusulas identificadas pela jurisprudência como abusivas ou potencialmente abusivas são as que permitem o somatório ou a repetição de remunerações, de juros sobre juros, de um duplo pagamento pelo mesmo ato, cláusulas que estabelecem um verdadeiro bis in idem remuneratório. Assim a jurisprudência está pacificada quanto a inacumulabilidade da previsão contratual da comissão de permanência com a correção monetária (Súmula STJ n. 30), pois ambas preenchem a mesma função.{334} Mesmo assim os contratos bancários e de financiamento ao consumidor incluem muitas destas cláusulas de bis in idem remuneratório disfarçado sob vários nomes e taxas, cabendo ainda ao consumidor demonstrar (ou em caso de inversão do ônus da prova, alegar) a cumulação, que tais custos já estão embutidos nos juros, \em outras taxas pagas ou na correção monetária. É indevida para * (333) Veja neste sentido os acordos e ações propostas pela PGE e PROCON/SP ainda sub judice. \ (334) Veja decisão do TJRS, in RJTJRS 146/191 e decisão do TARS, in Jul. \82/302, veja decisão do STJ no REsp. 5.380/RS. Segundo a Súmula 30 \STJ, a "comissão de permanência e a correção monetária são inacumuláVeis os consumidores a capitalização de juros. Esta é permitida só excepcionalmente e entre comerciantes, como o próprio STJ fixa em \sua Súmula n. 93. (p. 524) \ Não só o sistema bancário conhece este tipo de cláusula, mas também as famosas taxas de intermediação, que ainda estão presentes em muitos contratos e na prática de imobiliárias,{335} tiveram sua abusividade decretada e sua prática considerada contrária a boa-fé justamente porque o futuro locatário paga um serviço que é contratado (e pago) também pelo locador, recebendo a imobiliária duas vezes pelo mesmo serviço. Muito discutidas na prática são as cláusulas que impõem como índices de reajuste ou de correção o índice da Federação ou do Sindicato dos fornecedores, por exemplo, na construção o índice \SINDUSCON; pois são considerados índices unilaterais{336} sua impo\sição (prevalecendo contra índices oficiais) permitiria uma variação indireta do preço ou pelo menos sua adaptação as necessidades (e expectativas unilaterais) dos fornecedores e de seu setor econômico.{337} Nesse sentido, a conclusão n. 7 do referido Congresso em Brasília: "É abusiva e contrária ao sistema do CDC a cláusula que prevê o reajustamento das prestações nos contratos de consumo por índices setoriais dos fornecedores". Frise-se que abuso do direito aqui é genérico e afeta tanto os consumidores como os outros contratantes, em face da unilateralidade da fixação do índice, tanto que o STJ, com base no art. 115 do CCBr. e após declarar em mais de 18 recursos \especiais nula a cláusula que indexa o débito à variação do índice Anbid

* (335) Veja a ação movida pela PGE e PROCON/SP contra várias administradoras e imobiliárias em São Paulo, ainda sub judice. (336) O próprio STJ denominou-o de "indexador da construção civil" no REsp. 31.428-1, afirmando in Lex 48/254: "Evidenciando que a avença teve por objeto imóvel construído afasta-se a aplicabilidade das normas que estabelecem a incidência de correção monetária (índice da construção civil) sobre os insumos". (337) Importante decisão do TJDF, publicada no DJ 10.12.92, II, p. 41.927 aplica a teoria da imprevisão "ante a impossibilidade do cumprimento das obrigações por parte dos contratantes, por motivos alheios à vontade dos mesmos, como é o caso dos aumentos baseados no índice editado pelo SINDUSCON, que supera a inflação e os reajustes salariais, estabelecendo o desequilíbrio" (rel. Des. Vasquez Cnixen). (p. 525) (Associação Nacional dos Bancos de Investimento e Desenvolvimento), sumulou tal orientação (Súmula STJ 176).{338} Por fim, extremamente polêmicas são as cláusulas de juros acima do limite constitucional de 12% presente no § 3.º do art. 192 da Constituição Federal. Segundo parte da jurisprudência, especialmente de 1.º grau de jurisdição e alguns Tribunais estaduais, o mencionado artigo da Constituição Federal contém norma proibitória e autoaplicável, sem necessitar de qualquer complemento legislativo ou definição legislativa do que sejam juros reais; logo, as cláusulas contratuais que imponham juros reais mais elevados são ilícitas e abusivas, violando previsão constitucional expressa.{339} Já outra parte da jurisprudência, seguindo a orientação do STF considera que o § 3.º do art. 192 da CF que limitou a taxa de juros a 12% ao ano não seria autoaplicável, dependendo de lei complementar e, portanto, as cláusulas dos contratos, especialmente dos contratos com instituições financeiras, seriam válidas.{340} Face a este impasse jurisprudencial, que por seu aspecto bastante pragmático e político provavelmente só terminará quando a economia brasileira estabilizar-se, resta-nos apenas declinar nossa opinião. Parece-nos que a força do limite de juros estabelecido no § 3.º do art. 192 da CF advém de seu sentido e finalidade, sua ratio é atuar, modificando o mercado por uma aplicação imediata, pois nenhum efeito útil teria em caso contrário. Uma interpretação literal e gramatical do próprio texto constitucional também leva a esta conclusão, pois no § 3.º do art. 192 um sinal de ponto e vírgula divide claramente a afirmação (ou princípio) inicial de limite e a segunda parte da frase, onde por fim se menciona a necessidade de regulamentação. Basta apenas valorizar o ponto e vírgula, que significa gramaticalmente um ponto, uma pausa, se bem que mais flexível que o simples ponto, para afastar o adagio da aplicação da expressão final a toda a frase. Note-se que a auto* (338) Súmula 176 do STJ: "É nula a cláusula contratual que sujeita o devedor \à taxa de juros divulgada pela ANBID/CETIP". Veja também Recursos Especiais n. 60.678, 68.529, 56.154 e 92.868, todos oriundos do TARS.

(339) Veja as decisões do TARS, in: Julgados 79/201, 81/314, 81/384, 84/357, veja igualmente a decisão sobre a inconveniência de uniformização da jurisprudência do referido tribunal, in Julgados 84/395. (340) Veja decisão do 1.º TACivSP, in RT 679/119 e decisão do TARS, in Julgados 79/294. (p. 526) aplicação da norma seria por demais salutar para o mercado, pois tratam-se de juros verdadeiros ou reais, logo o plus. 6. Cláusulas de liberação do vínculo: Resolução, rescisão, denúncia, renovação em curto prazo, distrato forçado em contratos de longa duração O sistema resolutório clássico tem como modelo os contratos comutativos imediatos, como a compra e venda, onde as partes sabem exatamente o que esperar como prestação e quanto. Inadimplente uma das partes, a tendência da ciência do direito é autorizar a outra parte a rescindir o contrato ou a denunciá-lo por graves motivos. Liberar os contratantes e fazer retornar as coisas ao estado anterior, é o ideal do sistema resolutório clássico. Trata-se de um direito formativo extintivo dos mais básicos, apoiado na idéia que não se pode obrigar alguém a manter vínculos contratuais que não mais lhe convêm, por culpa ou \inadimplência do outro, ou a manter vínculos contratuais.{340A} Na liberdade de contratar estaria íncita a liberdade de descontratar. Descontratar sofrendo as conseqüências necessárias para a proteção do outro parceiro ou, o caso de inadimplemento da outra parte, sem conseqüências negativas, apenas uma volta ao status quo. Ocorre que nem todas as relações contratuais modernas adaptamse mais a este modelo imediatista, sendo muitas delas relações de longa duração e de prestações contínuas. Da mesma maneira, ganharam em importância no mundo moderno os serviços, os fazeres úteis, onde a almejada volta ao status quo reserva inúmeras dificuldades práticas, assim também constituem muitos destes fazeres contratos aleatórios, envolvendo a expectativa de proteção dos riscos da sociedade moderna, a expectativa de segurança e conforto para o consumidor e sua família. Nestes casos, inadaptado o sistema de liberdade de resolução porque a retroatividade não tornará as coisas como eram já que o risco já ocorreu, o tempo já passou, outra fase da vida está presente (por exemplo, no contrato de seguro-saúde ou de aposentadoria privada), e não é mais possível restituir as coisas no estado anterior. Liberar as partes do vínculo contratual, acabar prematuramente com uma relação * (340A) Sobre incumprimento contratual e rescisão, veja as obras de Ruy Rosado de Aguiar Jr. e Araken de Assis. (p. 527) contratual, pode ser uma penalidade em si para a parte mais vulnerável \da relação.{341} O tema toca princípios basilares de nossa idéia contratual, especialmente o dogma da autonomia da vontade, do direito subjetivo de liberar-se de um vínculo duradouro por nova manifestação de vontade, e por outro lado, o mandamento de proteção da confiança despertada por uma atuação no mercado, por uma áurea de segurança e perenitude. A identificação da abusividade ou não da cláusula contratual que permite esta desvinculação, esta liberação do vínculo, por incumprimento

ou por outros motivos, estabelecendo prazos e maneiras para a denúncia, distrato ou rescisão é um dos temas mais polêmicos e complexos do direito atual. No direito comparado, observa-se uma reiterada intervenção do poder estatal limitando a liberdade dos fornecedores de libertarem-se \dos vínculos contratuais com consumidores, mesmo se inadimplentes.{342} Já a declaração de abusividade destas cláusulas é geralmente deixada \à valoração do judiciário caso a caso{343} ou prefere-se estabelecer em lei ou regulamento os elementos (condições, prazos, notificações etc.) que este tipo de cláusula deverá conter para sua validade e eficácia em \uma determinada espécie de contratos.{344} * (341) Sobre o efeito "sanção" do prematuro final da relação contratual veja \BRUCHNER/OTIT, p. 446. \ (342) Assim, por exemplo, a lei alemã sobre crédito ao consumidor (VerbrKrG), de 17.12.90, em virtude da Diretiva da Comunidade Européia 87/102/CEE, \a qual em seus § 13, Abs. 1 e § 12 permite excepcionalmente a resolução \unilateral (=Rücktritt) por inadimplemento ou mora do consumidor, se o fornecedor concede um prazo extra de 2 semanas para o pagamento atrasado, informando das conseqüências e este prazo não surtiu efeito e se a mora é de 2 parcelas seguidas, que representam pelo menos 10% do crédito ou 5%, se o crédito foi concedido com prazo de mais de 3 anos. \ (343) Assim a lei alemã AGB-GcsetZ de 1976 sobre CQNDGs, em seu § 10, 3. \ (344) Na Alemanha, a lei geral de 1976, AGB-Gesetz, excepciona os contratos de longa duração, pois uma lei especial sobre os contratos de seguro, ainda \da época de Bismarck, a "VVG - Gesetz über den Versicherungsvertrag", de 30.5.80, contém normas detalhadas sobre a possibilidade e as condições \de denúncia do contrato por ambas as partes (§ 8.º, resolução (§ 19), rescisão \unilateral por culpa do segurado (§ 24) e normas especiais (§ 30, 31) para \contratos novos. (p. 528) No Brasil, também a jurisprudência começa a ser confrontada com esta nova visão, já não mais absoluta da autonomia da vontade, do direito (= poder) de liberar-se de um vínculo contratual. Para que o contrato possa cumprir sua função social, para que possa efetivamente ser um instrumento de segurança no mercado, sua interpretação não pode desconhecer a existência de deveres anexos a esta relação contratual, especialmente em se tratando de relações de longa duração, os contratos cativos como aqui denominamos na parte 1 desta obra, ou no caso de contratos aleatórios, como os de seguros. Efetivamente, observando um contrato de longa duração, como o contrato de previdência privada, de seguro-saúde, de prestação de serviços educacionais em escolas ou universidades, verificamos que estes contratos representam uma relação jurídica dinâmica, que "nasce e desenvolve-se", vinculando durante anos, talvez décadas, um fornecedor de serviços, o organizador do plano, administrador da escola ou seguradora, e um consumidor e seus dependentes (consumidoresequiparados). A mencionada-visão da doutrina alemã, segundo a qual

a relação contratual é de um feixe de obrigações complexas e duradouras, pode ser útil a nossa análise. Se a relação jurídica de consumo é assim um verdadeiro processo, o qual se desenvolve no tempo um processo social, um processo jurídico, o contrato, visualizado dinamicamente, erradiando uma série \de efeitos jurídicos (Rechtsfolgen) durante a sua realização, antes mesmo dessa e após,{345} fazendo nascer direitos e deveres outros que os resultantes da obrigação principal. Conclui-se, como afirmamos anteriormente, que a relação de consumo contratual não envolve somente a obrigação de prestar, mas envolve também uma obrigação de conduta. São os importantes deveres de atuação conforme a boa-fé \e conforme o direito (Verhaltenspflichten), os quais nos obrigam a todos, todos os dias, nas relações extracontratuais e muito mais, nas relações contratuais duradouras. Por exemplo, o dever anexo de lealdade, de cooperação, refletese também na redação dos contratos, a qual é executada geralmente de maneira unilateral e prévia pelo fornecedor. Segundo o novo paradigma do CDC, o fornecedor está autorizado a utilizar o método da contratação em massa, através de contratos de adesão, e a imposição de condições \* (345) Larenz, Schr, p. 28. (p. 529) gerais, mas deve redigir estes textos de forma clara e precisa (art. 54, \§ 1.º) destacando as cláusulas que limitem direitos do consumidor. Importante em nossa análise é constatar que, ex vi lege, se o fornecedor de serviços utiliza esses métodos, sua liberdade de elaborar cláusulas resolutórias ou análogas está limitada pelo disposto no art. 54, § 2.º do CDC, pelo qual estas cláusulas só serão permitidas (= não abusivas) se "alternativas", "cabendo a escolha ao consumidor" e não ao fornecedor de serviços. Ao assegurar a escolha ao consumidor, segue o CDC a nova doutrina internacional que, em contratos "pós-modernos", cativos, de longa duração, massificados e de grande importância social, impede a rescisão, mesmo com causa pelo fornecedor, e transfere a decisão para o consumidor, que pode optar pelo "aumento" das prestações, pela sanção por seu descumprimento contratual, até mesmo por alguma modificação{346} do plano para adaptá-los as novas circunstâncias, mas optando, ao mesmo tempo, pela manutenção (e não resolução) da relação jurídica de consumo.{347} Reconhece-se hoje que o contrato de longa duração, de execução sucessiva e protraída traz em si expectativas outras que os contratos de execução imediata, baseiam-se mais na confiança, no convívio reiterado, na manutenção do potencial econômico e da qualidade dos serviços, pois como afirmamos, trazem implícita a expectativa de mudanças das condições sociais, econômicas e legais na sociedade nestes vários anos de relação contratual. A satisfação da finalidade perseguida pelo consumidor (por exemplo, segurança na aposentadoria ou efetiva assistência médica para si e sua família) depende da continuação da relação jurídica, fonte de obrigações. A capacidade de adaptação, de cooperação entre contratantes, de continuação da relação contratual é básica. * (346) Neste sentido basilar a decisão do TJRS citada anteriormente e já aplicando o CDC: "Plano de Saúde. Não pode a seguradora negar-se à modificação de cobertura médico-hospitalar, ainda que para diminuí-la, bem como as prestações mensais devidas pelo segurado, desta prevista faculdade no manual por ela oferecido. Devolução das diferenças em dobro (CDC, art.

\42, parágrafo único) e devidamente corrigidas desde a data da alteração \pretendida". (Ap. Cív. 592022826, 2.ª Câm. Civ., j. 15.4.92, rel. Des. Talai \Selistre). No caso, o segurado viu-se na contingência de pagar o exigido, por mais de um ano, ou perder o seguro-saúde, mesmo querendo modificar seu seguro (e benefícios), face a dificuldades financeiras supervenientes. (347) Veja Ghersi, Contrato de Medicina Pré-paga, p. 121. (p. 530) Dois valores entram aqui em conflito: a expectativa futura dos consumidores na continuação dos vínculos que têm como finalidade justamente protegê-los dos riscos futuros e a lógica regra da autonomia da vontade, que ninguém continua vinculado a uma relação contratual que não mais lhe convém. A solução deste aparente conflito e o caminho do meio entre estes dois valores é o atual desafio da jurisprudência. Da prática brasileira podemos destacar, como exemplo apto a demonstrar a necessidade desta nova visão, a chamada "cláusula de vigência, renovação, reajuste e rescisão" por ambas as partes nos contratos de seguro-saúde.{348} Escolhemos o exemplo dos contratos de seguro-saúde pela sua importância prática no mercado brasileiro e face ao crescente número de litígios que envolve. Tais cláusulas não eram abusivas sob a ótica da análise tradicional dos contratos de trato sucessivo, mas em virtude de sua utilização no mercado brasileiro para acabar com planos de saúde não mais vantajosos ou para retirar da clientela os consumidores que atingem idade mais avançada, está a merecer uma análise mais aprofundada de sua nova "abusividade". Na segunda edição deste livro, antes da introdução da lei específica sobre seguros e planos de saúde, escrevemos: "O próprio legislador brasileiro verificou a possibilidade de abuso na liberação do vínculo em caso de seguros e tentou regular em lei especial estas cláusulas. Assim o Dec.-lei 73/66, lei especial sobre seguros, em seu art. 13, dispõe expressamente que as apólices (leia-se contratos e posteriores alterações, comunicações etc.) "não poderão conter cláusula que permita rescisão unilateral dos contratos de seguros ou por qualquer * (348) Tais cláusulas vem assim formuladas: "12. Vigência, renovação, reajuste e rescisão da apólice - O período de vigência deste Seguro é de 24 meses, contados da data de seu início, constante da apólice, a qual será renovada, automática e sucessivamente, a cada 12 meses, se não houver manifestação em contrário de uma das partes, por escrito, até 30 dias antes do término de cada período anual de vigência. 12.1 O reajuste monetário... 12.1.1 A periodicidade de reajustes das mensalidades é mensal. 12.1.2... 12.2 - Na ocasião dos reajustes serão considerados, ainda, para efeito de cálculo do prêmio, as mudanças das seguintes faixas etárias do Segurado e/ou seus beneficiários dependentes até 35 anos: de 36 a 45 anos, de 46 a 55 anos, e de 56 a 65 anos. 12.2.1 Os segurados, a partir da idade de 66 anos, terão seus prêmios corrigidos anualmente por mudança

de idade, além do reajuste previsto nesta cláusula". (p. 531) modo subtraia sua eficácia ou validade, além das situações previstas em lei". Procurou, assim, o legislador brasileiro evitar a aplicação da cláusula resolutória tácita do art. 1 .092 do CC ou previsão de semelhante poder de resolução em cláusula contratual, constituindo cláusula resolutória expressa. Constata-se, portanto, que o legislador, já em 1966, observara o caráter especial das relações contratuais de longa duração envolvendo seguros em geral, reconhecendo que os interesses, os objetivos, as expectativas legítimas dos consumidores, que os levaram a vincular-se e a pagar durante anos os prêmios dos seguros-saúde, poderiam vir a ser frustradas se permitidas cláusulas resolutórias ou, como chama a lei, cláusulas rescisórias unilaterais neste tipo de contrato. O legislador utilizou talvez de maneira infeliz a expressão "rescisão unilateral", que pode ser interpretada de forma restritiva, mas deixou clara a sua intenção (ratio) nas expressões finais do art. 13 (subtrair "sua validade e eficácia"). A doutrina brasileira já estabeleceu que o art. 1.092 do CC e normas semelhantes tratam do instituto da resolução e não de rescisão contratual.{349} A resolução, enquanto instituto específico, tem efeito extintivo sobre a relação contratual. A resolução é um direito formativo, isto é, um direito (leia-se, poder) destituído de pretensão, com efeito de sujeitar mediata ou imediatamente o co-contratante ou terceiro ao exercício deste poder (= direito subjetivo), sem nada poder argüir.{350} Trata-se do mais forte dos "direitos formativos extintivos", fundado no incumprimento da outra parte. A resolução ex lege do art. 1.092 do CC, portanto, gira em torno de dois elementos: a existência de um contrato bilateral unindo devedor e credor e um inadimplemento contratual imputável ao devedor.{351} O legislador de 1966 tentou afastar estas cláusulas resolutórias, mas a verdade é que o jurista tradicional está acostumado a considerar válidas e possíveis estas cláusulas extintivas, por exemplo, prevendo a possibilidade do distrato futuro ou a possibilidade de resolução unilateral por inadimplemento do devedor. Tratam-se de cláusulas normal* (349) Assim ensina Assis, p. 11. (350) Assim ensina Aguiar Jr., Extinção, p. 17. (351) Assim ensina Assis, p. 43. (p. 532) mente válidas em outros tipos de contratos, mas não nesses contratos pós-modernos, massificados e cativos, de longa duração envolvendo serviços considerados prioritários, como a segurança e a saúde do consumidor e de sua família". As observações continuam válidas, reforçadas inclusive pela nova Lei 9.656/98, que em seu art. 13 prevê a renovação automática dos contratos, estabelece um prazo mínimo de vigência e veda expressamente "a suspensão do contrato e a denúncia unilateral, salvo por fraude ou não pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias, a cada ano de vigência do contrato" (art. 13, II, b, da Lei 9.656/98); veda também "a denúncia unilateral durante a ocorrência de internação do titular" (art. 13, II, c, da Lei 9.656/98).{352} A cláusula geralmente menciona também o distrato futuro, que é a rescisão bilateral, onde faticamente, porém, o desejado "comum acordo" ou "consenso" pode ser imposto pelo fornecedor ou segura-

dora, face a sua posição contratual preponderante. Quando, por exemplo, o fornecedor envia correspondência ao consumidor comunicando a mudança de planos, a extinção de um plano, o aumento nas contribuições, a mudança do índice de cálculo e especifica claramente que o consumidor deve assinar o comunicado para acabar (extinguir) com o seu contrato anterior, sob pena de perder tudo o que pagou e ter de enfrentar novas carências em novo plano de saúde de empresa concorrente, ou ficar vinculado, automaticamente, a um novo plano, já com novo contrato e sob as novas condições impostas unilateralmente pelo fornecedor ou segurado, o "consenso" é só fictício. Trata-se de um distrato, mas de um distrato contrário à boa-fé, mesmo que contratualmente prevista esta possibilidade através de cláusulas de "revogação", "modificação", "cancelamento", "distrato" ou como quiserem chamar. Tais cláusulas impostas em relações de seguro-saúde, cujo objetivo é justamente alcançar alguma segurança para o futuro e manutenção das promessas e condições contratualmente acertadas, é um poder discricionário (ou melhor: formativo extintivo) excessivo, a colocar o consumidor em uma desvantagem excessiva e contrária a boa-fé. Tratase, também, de fraude a lei, ao afastar a aplicação das normas do CDC * (352) Veja decisão do TAPR sobre "nulidade da cláusula que autoriza o cancelamento unilateral do contrato-seguro de vida", in RT 728/359. (p. 533) que garantem a indisponibilidade dos novos direitos do consumidor, e ao permitir a variação faticamente "unilateral" do conteúdo do contrato, das prestações, do preço (art. 51, I, X, XI, XIII do CDC). Assim, também as cláusulas de que possibilitam a resolução unilateral por inadimplemento do devedor, no caso dos seguros-saúde, trazem um novo potencial abusivo. Tais cláusulas trazem nomes diversos (cláusulas de cancelamento por falta de pagamento, de não renovação por descumprimento contratual etc.), como querendo evitar que o magistrado recorde-se disposto no Dec.-lei 73/66 e Lei 9.656/ 98. Tais cláusulas permitem faticamente o exercício de direito extintivo, ao considerar que o inadimplemento do consumidor (atraso ou mora por 30, 60, 90 dias e, em alguns contratos, qualquer atraso, ou mesmo outra forma de inadimplemento dos deveres anexos) pode ser punido com a extinção do vínculo contratual, quando existem outras formas que não o exercício deste poder extintivo do vínculo, reservado contratualmente (e arbitrariamente) ao fornecedor.{353} Aplicável neste caso, para decretar a abusividade destas cláusulas, do exercício deste direito contratualmente previsto através de cláusula contratual, é a norma geral do art. 51, IV do CDC. O § 1.º do art. 51, referindo-se a concreção da norma geral do art. 51, IV, especifica que na observação da vantagem exagerada, da abusividade in concreto das cláusulas, deverá o magistrado ater-se justamente ao fato de tal cláusula ofender ou não os princípios do sistema (por exemplo, os dos contratos de seguro e seguro-saúde, regulados por leis especiais). Note-se que o princípio da boa-fé, princípio orientador das \relações de consumo segundo o CDC (art. 40, III),{354} apresenta dupla * (353) Interessante reconhecimento da existência de deveres anexos de lealdade e cooperação e do efeito equivalente das cláusulas de renovação e de rescisão,

\encontra-se em cláusulas usadas no mercado, "Capítulo XIV - Da Rescisão. \Cláusula 31.ª - Além do caso previsto na Cláusula 28.ª (Da renovação), o presente contrato será rescindido, de pleno direito, independentemente de interpretação, notificação judicial ou extrajudicial se o contratante: a) atrasar o pagamento das mensalidades por mais de 120 dias; b) impedir ou dificultar qualquer exame ou diligência necessária para ressalva dos direitos da contratada; c) omitir, de má-fé, informações ou tentar, por qualquer meio doloso ou fraudulento, obter vantagens ilícitas deste contrato; d) praticar qualquer omissão, falsidade, inexatidão ou erro que influa na aceitação deste \contrato". (354) Veja por todos Aguiar, Direto do Consumidor, v. 14, p. 21 e ss. (p. 534) \função. Tem função criadora (pflichtenbegrundende Funktion), seja \como fonte de novos deveres (Nebenpflichten), deveres de conduta anexos aos deveres de prestação contratual, como o dever de informar, de cuidado e de cooperação, seja como fonte de responsabilidade por \ato lícito (Vertrauenshaftung), ao impor riscos profissionais novos e indisponíveis. Assim, também possui o princípio da boa-fé uma função \limitadora (Schranken-bzw, Kontrollfunktion), reduzindo a liberdade de atuação dos parceiros contratuais ao definir algumas condutas e cláusulas como abusivas, seja controlando a transferência dos riscos profissionais e libertando o devedor em face da não razoabilidade de \outra conduta (pflichenbefreinde Vertrauensunstãnde).{355} A primeira dessas funções da boa-fé e a existência de deveres de cooperação e lealdade entre os parceiros para a realização dos objetivos contratuais devemos destacar aqui, pois nos contratos cativos de longa duração há prevalente interesse do contratante mais fraco na manutenção do vínculo. A nova relevância do fator tempo/contraprestações nas relações cativas de longa duração reflete-se na imposição de um novo patamar de manutenção do vínculo. Certo é que não existem contratos eternos e que repugna ao direito brasileiro contratos de seguro que não prevejam o fim e o tempo de duração da cobertura de riscos (art. 1.449 do CCBr.), prevendo geralmente os contratos de seguros um prazo determinado, mas renovado automaticamente por força de lei. Certo, portanto, que esse novo patamar mínimo de manutenção do contrato possui hoje fonte legal, a qual assegura novos direitos aos consumidores e impõe novos deveres para os fornecedores desse ramo de serviços, considerando abusivas práticas e cláusulas de rompimento antes consideradas normais. Esse é o espírito do art. 13 da lei especial de seguros, do DecretoLei 73/66, dos arts. 13 e 14 da lei especial de seguro-saúde, Lei 9.656/ 98, que vedam cláusulas de rescisão unilateral ou cláusulas que por qualquer outro modo subtraiam a validade e eficácia ou suspendam o contrato de longa duração. O Código de Defesa do Consumidor, no art. 54, § 2.º, admite a cláusula resolutória, mas desde que alternativa, cabendo a escolha ao consumidor. Também considera abusivas as cláusulas que impliquem renúncia a esses novos direitos (art. 51, I, \* (355) Veja por todos, Fikentscher, p. 130 e ss. (p. 535)

CDC), que transfiram a responsabilidade a terceiros (art. 51, III, CDC) e aquelas que autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente (art. 51, XI, CDC). Da análise dos textos legais conclui-se que todos, sem exceção, procuram o equilíbrio contratual através da manutenção do vínculo, evitando-se o rompimento por vontade unilateral do fornecedor, por impedir a própria consecução da finalidade do contrato, e privilegiando soluções alternativas e consensuais, a escolha do consumidor e segundo os princípios do equilíbrio e da boa-fé. O Direito Comparado demonstrou que nos contratos de longa duração a abusividade desta cláusula deve ser regulada por lei{356} e que sua abusividade encontra direta relação com o princípio de boa-fé nas relações, pois muitas vezes está mais na forma de seu exercício, do que na sua simples previsão.{357} Tanto que o legislador alemão a incluiu entre \aquelas submetidas à "valoração do juiz" (§ 10, 3 da AGB-Gesetz de \1976) quanto à sua ineficácia (Unwirksamkeit) e no caso dos seguros, mesmo especificando o contrato causas graves para a resolução e redigida a cláusula de forma clara e destacada, para não se tornar exemplo de cláusula surpresa, fica sempre submetida ao especial \controle da cláusula geral de boa-fé (§ 9.º, AGB-Gesetz de 1976).{358} Observa-se nos contratos de seguro-saúde oferecidos no mercado brasileiro também a presença das chamadas cláusulas de \* (356) Assim a nova versão da lei alemã sobre contrato de seguro (§ 8.º, III, VVG \n. F.) modificou a lei sobre condições gerais dos seguros de responsabilidade \civil (§ 8.º, I, (3) ARB n. F.) e impôs novas condições para que o segurador possa "resolver" ou denunciar o contrato de longa duração, incluindo inclusive o fato do segurador não estar oferecendo "novos planos" ou seguros de longa duração semelhantes ao que pretende rescindir, caso em que não pode ex lege exercitar este direito, mesmo que contratualmente \previsto, veja detalhes em Günther Bauer, Die Rechtsprechung zu den \Allgenseinen Bedingungenfur die Rechtsschut:versichei-ung (ARB) im Jahre 1992, in: NJW 1993, 1.302-1308. (357) Assim uma decisão da Corte Federal Alemã, BGH 27.3.91, considerando \contrária à boa-fé (§ 9.º AGB-Gesetz) cláusula de resolução que previa sua possibilidade de utilização logo após a ocorrência do evento danoso coberto (e efetivamente, indenizado), acabou ordenando uma nova interpretação \para a cláusula considerada antes lícita pelo § 19, II ARB e uma mudança das normas legais; assim Bauer, ob. cit., p. 1.302. (358) Assim ensinam Ulmer/Brandner/Hensen, p. 206, (Nr. 15). (p. 536) cancelamento.{359} Tais cláusulas permitem o cancelamento "por qualquer das partes", sem causa ou por determinadas causas (como a "falta de pagamento" ou a "comprovação de má-fé" do consumidor na "solicitação e/ou utilização de benefícios") e possuem o mesmo efeito extintivo das cláusulas de rescisão unilateral e cláusulas resolutórias expressas. Estas cláusulas de cancelamento permitem, por exemplo, que um grupo hospitalar de grande capital lance um

novo "plano de saúde", com o objetivo especial de construir um Hospital mais completo, eficiente e sofisticado, no qual os segurados que aderissem ao plano e contribuíssem na construção poderiam utilizá-lo. Construído o Hospital, funcionando este eficientemente, o plano de saúde não era mais "conveniente" para o fornecedor e foi cancelado, frustrando as expectativas, obstruindo a realização do objetivo contratual dos consumidores. Nota-se, portanto, que o direito, contratualmente assegurado ao fornecedor, de poder cancelar um plano de saúde, cancelar um contrato, isto é, extinguir uma relação contratual de seguro-saúde individualmente ou em grupo, é abusivo, é contrário as regras mínimas de boa-fé e de sobrevivência deste importante setor econômico e social. A abusividade desta cláusula nos contratos pós-modernos não é ilidida pelo simples fato de ser estabelecida de forma ficticiamente bilateral. O consumidor, como especificamos, após pagar anos e anos, após atingir determinada idade, após ligar-se e acostumar-se a determinada seguradora ou empresa, raramente fará uso desse direito, pois seu interesse é justamente de manutenção do vínculo, de segurança futura. Este direito extintivo não deve ser permitido indistintamente ao fornecedor que atua neste campo econômico, pois é de seu risco profissional ter que manter um plano de saúde que lançou no mercado, ter que manter o vínculo contratual com o indivíduo que pagou contribuições durante * (359) Estas cláusulas vem assim redigidas: "4. Cancelamento do plano de assistência médica. O contrato subscrito entre a seguradora e o beneficiário titular poderá ser cancelado em qualquer momento por qualquer das partes, sem necessidade de se mencionar a causa, não cabendo qualquer indenização ou pagamento. A decisão de cancelamento do plano de assistência médica, deverá ser comunicada por escrito por qualquer uma das partes. (...) O Plano de assistência médica será cancelado automaticamente na data em que ocorrer qualquer das situações abaixo: a) falta de pagamento das cotas nas datas estabelecidas; b) comprovação de má-fé ou fraude referente a solicitação e/ou utilização de benefícios". (p. 537) anos para os seus serviços e talvez nem as tenha utilizado, devido a sua boa saúde e pouca idade. O CDC já menciona que a escolha entre a resolução (liberação do vínculo) e a indenização de sanção deve ser exclusivamente do consumidor, nos contratos massificados (art. 54, § 2.º), quanto mais nos contratos de serviços socialmente importantes e autorizados à iniciativa privada, como os de saúde. As cláusulas de cancelamento (art. 51, IX, do CDC), mesmo que bilaterais, permitem uma vantagem excessiva do fornecedor, o qual embolsa durante anos a contraprestação dos consumidores e, depois, libera-se da vinculação contratual, justamente quando estes mais necessitavam da prestação contratual. Tais cláusulas de cancelamento, mesmo que teoricamente bilaterais, são abusivas por ofensa ao art. 51, IV e § 1.º, II do CDC e fraude ao espírito das normas especiais sobre seguros e seguros-saúde. Por fim, devemos mencionar as cláusulas que especificam a vigên\cia determinada dos contratos.{360} Estas cláusulas, em princípio lícitas e mesmo necessárias, em alguns casos, estão sendo utilizadas de forma

abusiva pelos fornecedores no Brasil. As cláusulas de vigência reduzida (por exemplo: de 12 ou 24 meses), em contratos de seguro-saúde são por vezes mais curta do que muitas carências, reduzindo o conteúdo do contrato. Seu problema maior é estipularem um poder (= direito) contratual de qualquer das partes renovar ou não o contrato, a cada prazo de vigência, bastando para rescindir unilateralmente (denunciar, revogar) o simples envio de comunicação 30 dias antes de vencido o prazo. Como frisamos anteriormente, em se tratando de contratos pósmodernos de serviços cada vez mais essenciais, destaca-se um fator considerado até então metajurídico como cada vez mais relevante na \solução dos conflitos contratuais do momento: a pressão (der Zwang).{361} * (360) Tais cláusulas vem assim redigidas: "Capítulo XII - da vigência e renovação. Cláusula 25.ª - Este comrato terá um período de vigência de 24 meses, a partir da data da aceitação da proposta de admissão. Cláusula 26.ª - O presente contrato será renovado, automaticamente, pelo período de 24 meses, se não houver manifestação contrária por escrito de qualquer das partes contratantes até 30 dias antes do seu vencimento, coincidindo, porém, a sua primeira renovação e as posteriores com o ano civil". (361) Veja interessante decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande \do Sul, Ap. Civ. 593118870, 1.ª Câm. Civ., Rel. Sérgio Gischow Pereira, j. 8.2.94, que, em caso de cessão de carteiras, reforça manutenção do vínculo e usa a teoria da aparência para responsabilizar o antigo fornecedor. (p. 538) Encontrando-se um dos contraentes em posição vulnerável de pressionado, de estruturalmente submisso, o exercício de determinados direitos por parte do outro contratante profissional, em posição de poder, pode ser um abuso do direito ou um ato contrário aos bons costumes e à boa-fé exigida no tráfico jurídico.{362} Em se tratando de relações contratuais cativas, parece-me importante destacar a nova relevância jurídica desse fator estrutural-social de pressão. Nesse tipo de contrato, o interesse legítimo do consumidor é no sentido da continuidade da relação contratual. Interessa-lhe, via de regra, a renovação contratual chegado o termo final do contrato (art. 13 da Lei 9.656/98) e, em princípio, que essa renovação se faça nos mesmos termos e condições da apólice inicial. Já o interesse também legítimo do fornecedor é lucrar com sua atividade, mas sua atuação como co-contratante em relações de consumo está limitada pelo mandamento de boa-fé nessas relações, relações contratuais concluídas com um parceiro ex vi lege considerado vulnerável e tutelado de forma especial. Quanto ao interesse de continuidade da relação, dois aspectos devem aqui ser destacados. Em primeiro lugar, note-se que a perda da condição de segurado, sem culpa ou vontade própria, é nesse tipo de contrato impeditiva da realização do verdadeiro objetivo contratual do consumidor, pois suas expectativas legítimas não eram apenas de conseguir cobertura de riscos no passado, enquanto talvez não necessitasse de tratamento médico-hospitalar, mas de regra sua expectativa legítima, nesse tipo de contrato, era conseguir cobertura desses riscos

de saúde no futuro, quando, já mais velho e menos "atrativo" para o mercado, dele necessitasse. Em segundo, devemos distinguir o caso dos dependentes, cuja perda da condição de segurado-dependente pode ou não frustrar suas expectativas. Segundo os contratos, dependente é aquele assim definido pelas regras tributárias do imposto de renda, isto é, o cônjuge ou companheiro, os filhos solteiros ou outros dependentes declarados como tais. Em se tratando de idosos e de crianças, na condição de dependentes de segurados, a perda dessa condição frustraria as expectativas legítimas do segurado-consumidor, pois que contratou um seguro-saúde familiar e a garantia a sua família foi retirada. \* (362) Kótz/Europ~isches, Vertragsrecht, p. 200 e ss. (p. 539) Note-se, por fim, que a diretiva européia sobre cláusulas abusivas, Diretiva 93/13, levou à modificação do Código Civil italiano, que em \seu art. 1.469-bis presume abusivas uma série de cláusulas de término de vínculo, em caso de contratos de adesão de longa duração, em que o profissional as utilize para evitar a renovação automática ou evitar a continuação da relação sem justa causa. Em resumo, tal cláusula comum no Brasil era considerada lícita, em princípio, nos contratos de longa duração, e estava sendo usada para que os fornecedores pudessem retirar de sua clientela, por exemplo, aqueles que mais necessitavam de cuidados médicos, aqueles que por mais tempo contribuíram com o sistema, aqueles que maiores expectativas tinham quanto à segurança e proteção dos eventos danosos à saúde no futuro: os idosos. A injustiça do exercício deste direito (= poder) contratual, o abuso, a contrariedade à boa-fé é flagrante e foi bem identificada pela evolução jurisprudencial e legislativa.{363} Como afirmamos anteriormente, utilizar as novas normas do CDC a esses contratos pós-modernos, ao exercício atual abusivo desses direitos contratualmente assegurados e preservar os interesses e expectativas dos consumidores é imperativo para a justiça, para a harmonia no mercado e para a preservação desta atividade de prestação de serviços, envolvendo saúde, pela iniciativa privada. Recusar aplicação ao princípio da boa-fé nestes contratos é contrariar a nova ordem pública constitucional e apostar no caos e na insegurança jurídica para tão importante setor de nossa sociedade. A nova abusividade destas cláusulas de extinção do vínculo nos contratos massificados de longa duração, nos contratos cativos e autorizados, como no aqui examinado exemplo dos serviços envolvendo saúde deve ser decretada pela jurisprudência brasileira e a sua conseqüente nulidade. Nulidade absoluta face a contrariedade ao princípio da boa-fé na formação e execução dos contratos, princípio já conhecido pelo direito brasileiro antes de 1990, mas hoje basilar no direito civil pátrio. * (363) Assim também a tendência jurisprudencial, veja recente decisão da 5.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul onde ficou estabelecida a abusividade da cláusula de vigência temporária dos contratos de seguro-saúde por violação às expectativas legítimas dos consumidores

(Art. 51, IV e § 1.º, inc. I, da Lei 8.078/90), Ap. Cív. 596230888, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 5.6.97, DJ 27.6.97. (p. 540) Concluindo, as cláusulas que possibilitam a rescisão unilateral, a resolução unilateral por inadimplemento do devedor, o cancelamento, a modificação ou a não renovação do contrato anualmente, o distrato e outras que permitem a extinção do vínculo contratual, especialmente no caso dos seguros-saúde e de assistência médica, trazem em si um novo potencial abusivo. O legislador brasileiro tentou afastar, ainda que timidamente, estas cláusulas, tradicionalmente consideradas válidas, mas que faticamente permitem o exercício de direito (formativo) extintivo por parte do fornecedor, mesmo que uma fictícia "bilateralidade" seja conseguida. Aplicável neste caso, para decretar a abusividade destas cláusulas, do exercício deste direito contratualmente previsto através de cláusula \contratual, é a norma geral do art. 51, IV c/c § 1.º do CDC. Esperase que a entrada em vigor da legislação especial quanto aos seguros e planos de saúde e uma maior utilização do princípio da boa-fé nas relações de consumo por força do CDC possam retirar do mercado brasileiro definitivamente essas cláusulas. 7. Cláusulas-barreira Outro caso que se localiza na zona cinza, entre o permitido e proibido, entre o abusivo nas relações contratuais de consumo e o simplesmente "prejudicial" ao consumidor são as cláusulas, muitas vezes simples práticas comerciais, que aqui denominaremos cláusula"barreira". São cláusulas presentes em muitos contratos de longa duração ou em contratos envolvendo financiamento que, ao estabelecerem as condições para o exercício dos direitos do consumidor ou para o cumprimento dos deveres contratuais, principais ou anexos, do consumidor ou do fornecedor, impõem tantas dificuldades e exigências, que além de constituírem verdadeiras cláusulas-surpresa, podem ser chamadas de "cláusulas-barreira" ou de impeditivas do exercício de direitos e deveres contratuais. Assim, por exemplo, quando o consumidor necessita adimplir a sua obrigação e o fornecedor, seja através de disposição contratual, seja através de uma prática comercial - prevista ou permitida pelo contrato - dificulta o pagamento do consumidor, ao determinar que este só pode ser executado em local especial ou em horas difíceis, ou somente após autorizado por determinados papéis ou determinados servidores etc. A (p. 541) "barreira" ou a tentativa de impedir a prestação pode voltar-se para a prestação do próprio fornecedor, quando o contrato prevê que esta só será "exigível" após determinadas e múltiplas autorizações, papéis, provas, sem justificativa plausível, apenas para dificultar e desencorajar o consumidor a fazer valer sua própria (e principal) pretensão. Ao impor estas práticas comerciais ou estas cláusulas contratuais procura o fornecedor exonerar-se de seu dever anexo de cooperar durante a execução do contrato, em outras palavras, exonerar-se de suas obrigações contratuais acessórias, conforme a boa-fé. Cooperar, como afirmamos anteriormen-

te, é agir com lealdade, é não obstruir ou impedir, é pensar de maneira refletida também nos interesses (legítimos) do parceiro contratual.{364} Interessante caso de cláusula barreira foi identificado pela jurisprudência brasileira, onde cláusula de contrato de seguro-saúde previa a reabertura das carências para caso de atraso de pagamento. No caso em juízo, o consumidor estava internado em Hospital conveniado no dia do pagamento e, por isso, deixou de pagar em dia, adimplindo, porém, tão logo recebeu alta. A partir do dia do vencimento da parcela não "paga", a seguradora negou-se a cobrir seus gastos médicos, alegando que "terceiro" deveria ter pago em dia e que o doente deveria ter se preocupado com o pagamento, mesmo estando operado. A jurisprudência afastou a eficácia da cláusula com a utilização dos princípios gerais do direito e reconheceu o direito do seguradohospitalizado e não reabertura da carência.{365} Parece-nos importante repetir que, sob o novo paradigma do CDC, as relações de consumo envolvem um dever anexo "de cooperação", dever de colaborar durante a execução do contrato, conforme a boafé objetiva.{366} Não se trata de impor uma nova obrigação ou um novo * (364) Os doutrinadores franceses denominam este dever de "obrigação de lealdade", de "fidelidade à execução", ao objetivo do contrato ("obrigation de loyauté" ou "fidelité d’execution"), veja detalhes em Mayer, ob. cit., p. 102; veja exemplo jurisprudencial brasileiro in: RJTJRS 138/232 e ss. (365) O rel. Des. Loureiro Ferreira afastou a incidência de tal cláusula sob o argumento de força maior e ausência de culpa do consumidor (Ap. 592088512, TJRS, 3.ª C., j. 30.9.92). Note-se que uma maior consciência por parte do fornecedor de seu próprio dever de conduta conforme a boafé, ou do dever contratual anexo de cooperação na execução das obrigações poderia ter evitado a lide e a sucumbência. \ (366) Com opinião contrária, Arnoldo Wald, nos Travaux de l‘Association Henri \Capitant, Rapport Brésilien, p. 262, afirma que o CDC, como lei especial, (p. 542) fazer a alguém, sem base legal (o que seria contrário ao art. 5.º, II da CF/88), mas de uma leitura mais ampla dos deveres inerentes ao contrato, deveres íncitos à relação contratual normal, dever agora imposto por lei. Em verdade, uma maior consciência da existência e exigibilidade destes anexos pode evitar lides a facilitar a prática diária dos novos direitos do consumidor.{367} A doutrina francesa chega a afirmar o nascimento de um novo espírito de colaboração, que supera a mera tolerância e passa a exigir atos concretos de colaboração ou pelo menos atos de não obstrução dos parceiros contratuais.{368} A cláusula-barreira que permite exonerar-se de um dever de boa-fé é contrária à norma do art. 51, IV do CDC, pois desequilibra substancialmente a relação contratual entre o fornecedor e o consumidor. O desequilíbrio, a abusividade de referida cláusula advém do fato do contrato entre as partes tornar-se um instrumento jurídico a impedir a colaboração (normal e desejável) entre os contratantes, instrumento a

autorizar a própria violação do dever anexo imposto imperativamente.{369} *protegeria apenas os "consumidores de boa-fé". A afirmação não é falsa, mas transforma o princípio de boa-fé em norma de boa-fé subjetiva, contrariamente ao que afirma o art. 4.º, III do próprio CDC, diminuindo o seu potencial de utilização. O próprio autor, porém, afirma que no direito brasileiro "a noção de boa-fé constitui, em virtude da lei civil e comercial, uma regra de interpretação dos contratos" (p. 262, trad. nossa). (367) Em seu famoso estudo sobre o combate às cláusulas abusivas Hélene Bricks \já afirmava: "Toda proteção é insuficiente quando sua mise en oeuvre necessita de uma ação na justiça", Bricks, p. 81. \ (368) Nesse sentido a excelente exposição de Picod, p. 104, o qual se bem direcione seu estudo para os contratos entre os comerciantes, chega a afirmar que o dever de lealdade (leia-se boa-fé objetiva) é a expressão de uma nova e mais elevada solidariedade entre as partes. (369) Os deveres de conduta conforme a boa-fé, de colaboração como estamos aqui denominando, não são disponíveis seja por previsão contratual (geralmente nas CONDGs) ou por prática costumeira. Nesse sentido, veja decisão da 6.ª Câm. Civ. do TARS, j. 19.12.91, Rel. Juiz Moacir Adiers, in Julgados 81/291, onde se lê na ementa: "Sendo o cheque emitido por terceiro contra o Banco no qual mantém conta corrente, não é dado a este recusar-se ao seu pagamento direto ao portador beneficiário e a compeli-lo ao seu depósito em conta corrente que este mantém com a instituição bancária da qual é devedor, para fins de compensar com o crédito que este tem para (p. 543) Se o princípio da boa-fé objetiva, se os deveres anexos às relações contratuais foram positivados e aceitos pelo CDC, não pode o direito permitir que seja disponíveis, derrogáveis por simples determinação de vontade das partes, ou nenhum efeito prático terão. Mais do que abusiva, em verdade, a cláusula que contradiz um dever imperativo seria ilícita, contrária à nova ordem jurídica. Como tal classificação conhecida no direito francês não foi utilizada pelo legislador brasileiro, cabe incluí-la como abusiva ou nula.{370} Tal linha de pensamento ampara-se, sem dúvida, em uma valoração do intérprete; valoração que aparecerá em uma análise casuística dos contratos, pois somente se o fornecedor fizer valer tais privilégios contratuais é que o desequilíbrio aparecerá. Uma vez, porém, utilizadas tais cláusulas barreira, poderão estas ter sua nulidade decretada pelo juiz com base na cláusula geral do art. 51, IV, do CDC. \ Já no direito tradicional as figuras da exceptio dou e da exceptio non adimplenti contractus reforçam a existência de um dever de lealdade e cooperação a ser cumprido pelo fornecedor ou pelo consumidor, evitando inviabilizar ou dificultar a atuação do outro contratante,

quando este tenta cumprir com suas obrigações contratuais e preservando o equilíbrio e as expectativas legítimas de ambas as partes. Exemplo de cláusula-barreira que foi identificado na jurisprudência européia e agora encontra-se positivado na lista de cláusulas \abusivas do anexo da Diretiva 93/13/CEE, 1, letra o, é aquela que obriga o consumidor a cumprir primeiro com todas as suas obrigações, mesmo *com o portador do cheque. Na emissão de cheque para ser descontado em Banco com o qual o emitente mantém conta corrente bancária, a devedora é quem emite o cheque, e não o Banco, que atua como mero mandatário. Não pode ele, por isso, recusar-se ao pagamento quando existentes fundos e muito menos obrigar o beneficiário do cheque a fazer o depósito do mesmo em conta corrente, com vistas a operar compensação. Não sendo o Banco devedor da quantia do cheque emitido pela correntista, falta o primeiro dos requisitos da compensação: a identidade entre devedor e credora. Apelação improvida". (370) Interessante notar que também os belgas, veja a obra coordenada por Bourgoignie, Droit des consommateurs, p. 61, vêm a necessidade do juiz decretar a nulidade de todas as cláusulas contrárias a leis imperativas ou de ordem pública, por simples argumento de clareza na interpretação dos contratos. Também o art. 116 sanciona as condições juridicamente impossíveis no plano da validade e não nos planos da existência ou ineficácia. (p. 544) que o fornecedor não tenha cumprido as suas. Cláusula de uma simplicidade total, na verdade contém certa abusividade ao impor ao \consumidor um "dever de pré-prestação total" (Vorleistungspflicht, como denominam os doutrinadores alemães), o que significa a perda da exceção de contrato não cumprido e, nos casos envolvendo serviços públicos, pode levar o consumidor a desistir de reclamar o que imagina ser seu direito. A prática do fornecedor, portanto, viola um direito do consumidor, viola um dever seu de cooperar durante a execução do contrato. A pergunta que fica, então, é sobre a abusividade da cláusula que assegura a contratualidade desta prática.{371} Outro exemplo de cláusula-barreira que foi identificado pela jurisprudência européia refere-se a chamada cláusula de "reclamação da vítima", presente em muitos contratos de seguros de responsabilidade, segundo o qual somente serão indenizados os danos do evento danoso previstos no contrato, se a vítima (leia-se, terceiro) fizer frente a seguradora determinado requerimento até determinado prazo ou entrar na justiça contra o responsável pelo dano (leia-se, segurado).{372} Se deve o fornecedor, igualmente, abster-se de usar ou impor expedientes desnecessários ou maliciosos, que dificultem o acesso do consumidor aos seus direitos ou inviabilizem que a prestação seja devida,{373} como por exemplo, exigir uma grande série de autorizações, * (371) Em caso envolvendo cláusula que proibia a locação em promessa de compra e venda no SFH, a 7.ª Câm. Civ. do TARS (Ap. Civ. 192001154, j. 12.2.92,

Rel. Araken de Assis) afirmou: "Em princípio, tal cláusula, além de válida, é eficaz. Dependerá do fato concreto alegado para preenchê-la, principalmente na sua face axiológica, a procedência ou não da demanda resolutória nele calcada. Hipótese em que ocorreu locação pura e simples, sem Outro motivo senão a exploração imobiliária do imóvel, o que repugna à finalidade social da moradia. Cabimento da resolução...". (372) O acórdão da Corte de Cassação francesa é de 19.12.90 e considerou nula a cláusula que limita a garantia do seguro de responsabilidade somente aos fatos danosos que deram lugar a uma "reclamação da vítima" durante o período de efeito do contrato; veja detalhes no artigo da Professora de Lyon, \Lambert-Faivre, Yvonne, "La durée de la garantie dans les assurances de \responsabilité: fona’ement et portée de la nullité des clauses" réclamation \de la victirne, Recueil Dalloz Sirey, 1992, Crh. III, p. 13, 9.1.92 n. 2. \ (373) A exceptio dou é lembrada por Wieacker, ob. cit., p. 59. (p. 545) documentos, solicitações só retiráveis em determinados locais, em determinada hora e por decisão arbitrária do próprio fornecedor, exigir comunicações imediatas ou em curto espaço de tempo em matérias que envolvem a integridade física, psíquica da pessoa e seus familiares, e ainda mais, exigindo esta atuação contratual sob pena de perda dos direitos contratuais, como imposição de novas carências; se este é o novo dever do fornecedor, as cláusulas que asseguram este direito ao fornecedor devem ser neutralizadas e consideradas abusivas pelo Judiciário? Trata-se de caso de abuso do direito de livre estipulação, de livre contratação ou de caso de mal escolha, de simples prejuízo ou incômodo ao consumidor? A prudência dos juÍzes brasileiros (e mesmo dos fornecedores, que raras vezes se apegam a tais cláusulas... como que "perdoando" os enganos e reclamos do consumidor) tem optado por desconsiderar a incidência de tais cláusulas, em uma fática ineficácia, mais do que decretar-lhes claramente a nulidade com base no art. 51, IV do CDC. Esta declarada "ineficácia" para o caso concreto soluciona o problema do consumidor individual, mas não tem o desejado efeito multiplicador ou preventivo, de forma a desestimular que tais cláusulas seja incluídas nos contratos ou que a prática dos fornecedores mude. Uma maior consciência da aplicabilidade dos deveres anexos, inclusive do de cooperação, traria maior harmonia ao mercado. Parece-nos que a abusividade deste tipo de cláusula localiza-se no seu poder de prever contratualmente a possibilidade do fornecedor "inadimplir parcialmente" o contrato, frustrar seu fim, frustrar as expectativas e o fim almejado pelo consumidor (seu parceiro contratual), sem nada pagar. Localiza-se igualmente na capacidade de trazer prejuízos ao consumidor, inclusive financeiros, senão meramente morais, desequilibrando o contrato, sua justiça de deveres e direitos, sem que nenhuma compensação (nem que fosse no preço do serviço) lhe seja assegurada em troca. Estas dificuldades excessivas, previstas ou auto-

rizadas contratualmente, impedem ou dificultam o cumprimento da prestação principal a contento e significam, portanto, o descumprimento das obrigações acessórias oriundas do contrato e do dever de conduta segundo a boa-fé. E descumprir o dever de cooperação, de lealdade, significa inadimplir o contrato, mesmo que parcialmente. Neste sentido, a lição do rel. Des. Ivo Gabriel da Cunha (Ap. Cív. 5920110771, 2.ª C. Civ., TJRS, j. 25.3.92) sobre a interpretação pró- (p. 546) consumidor dos deveres principais e anexos implícitos nas relações de consumo: "Seguro - Contrato bilateral. A bilateralidade impede que ao simples adimplemento ruim (defeituoso) da obrigação do segurado se oponha o descumprimento da obrigação essencial da seguradora. O recebimento do prêmio em parcelas de amortização monetariamente corrigidas, sem ressalvas, torna insignificante o prejuízo resultante do atraso no seu pagamento. Abusividade da cláusula contratual que institui carência de 60 dias na cobertura quando de atraso superior a 30 dias no pagamento do prêmio, em tais condições. Contrato de adesão que não pode ser interpretado em desfavor do aderente. Sentença confirmada". Por fim, mencione-se que as aqui denominadas "cláusula-barreira" apresentam-se também como cláusulas limitativas dos direitos dos consumidores e devem seguir o mesmo regime das cláusulas limitativas da responsabilidade do fornecedor. Assim, por exemplo, a cláusula que impõe uma forma especial para o exercício dos direitos do consumidor, forma não prevista em lei, é limitativa da responsabilidade do fornecedor, pois este teoricamente só responderá se o consumidor seguir exatamente a forma prevista no texto contratual. Também a cláusula encurtando os prazos para reclamar ou impondo que a reclamação teoricamente "válida" seja feita somente em um local ou de uma forma são limitativas dos direitos dos consumidores assegurados no CDC e tentam limitar a responsabilidade do fornecedor naquela relação contratual especial. Uma cláusula estabelecendo um termo suspensivo da obrigação de indenizar, por exemplo, ou impondo uma determinada relação de causalidade entre o não-cumprimento e os danos ressarcíveis, são cláusulas limitativas{374} dos direitos do consumidor e verdadeiras cláusulas-barreira de validade discutível frente ao disposto no art. 51, inciso I do CDC e à cláusula geral de boa-fé do art. 51, IV do CDC. Cabe frisar nesta nova edição que as cláusulas-barreiras multiplicaram-se no mercado brasileiro, uma vez que servem agora para "dificultar" a realização dos direitos assegurados ao consumidor por lei, quase como se seu uso pudesse "fraudar" ou dificultar a eficácia prática da lei imperativa. A barreira erguida pelas novas cláusulas não é mais direta, isto é, não mais nega o direito em si ou impede sua realização, mas indireta, dificultando o exercício desse direito ou o modo de prestar * (374) Estes exemplos de cláusulas Limitativas da responsabilidade foram retirados da obra exaustiva de Ana Prata, pp. 90 e 102. (p. 547) do fornecedor. Por exemplo, o consumidor tem direito à devolução do que pagou como prestação de seu consórcio. Porém, ao retirar-se do grupo (art. 53 do CDC), as novas cláusulas contratuais dificultarão tanto essa devolução, prolongarão de tal maneira esse prestar no tempo, de forma que o recebimento retardado dela redundará em prejuízo claro

ao consumidor.{375} Outro exemplo: as cláusulas de aumentos das mensalidades para o consumidor que alcança determinada idade. Se a Lei 9.656/98 as proíbe aos 60 anos (art. 15, parágrafo único, da lei especial), é fato hoje que os aumentos significativos de preços dos seguros e planos de saúde ocorrem aos 50-55 anos, não importanto aí o tempo de contribuição do indivíduo. Esse aumento será abusivo, se constituir, como geralmente ocorre, uma barreira à manutenção do consumidor no sistema. Assim, apesar de a lei especial autorizar tais mudanças de faixa (art. 15, caput, Lei 9.656/98), o CDC proíbe a aplicação da cláusula, ex vi do art. 51, IV, § 1.º do CDC, uma vez que é utilizada para tentar dificultar que o consumidor mais idoso continue vinculado ao plano ou seguradora, agora em que, se presume, já não é mais tão saudável. 1.3 Controle judicial dos contratos de consumo O projeto de CDC aprovado pelo Congresso brasileiro previa um controle prévio administrativo dos contratos de adesão e das cláusulas contratuais gerais, a ser exercido pelo Ministério Público, e um controle judicial a posteriori em relação a todos os contratos de consumo. O Presidente da República, porém, vetou a previsão de controle administrativo. O CDC inova ao criar, em seu art. 51, § 4.º, um controle judicial em abstrato. Segundo esta norma o Ministério Público é o único legitimado para propor essa ação de controle abstrato dos contratos * (375) Veja exemplos em matéria de consórcios de automóveis, em acórdão comentado por Nunes, p. 209. O 1.º TASP, citando abundante jurisprudência neste sentido, considerou abusiva a cláusula que posterga a restituição em 60 dias após a distribuição do último crédito do grupo. Veja também \decisões na RT 696/134, RT 725/250. Já na Ap. Civ. 661494-6, Opice Blum, j. 30.1.96, o 1.º TASP considerou abusiva a cláusula que posterga por 30 dias, após o fim do grupo, a devolução, assim como cláusula que impõe "taxa de administração" de 50% do valor pago. (p. 548) oferecidos no mercado, a pedido do consumidor ou a pedido de alguma entidade que o represente.{376} Note-se que o projeto original do CDC continha normas (art. 51, § 3.º e art. 54, § 5.º) prevendo a criação de um controle administrativo geral das cláusulas pré-elaboradas unilateralmente, a ser exercido pelo Ministério Público e cuja decisão teria caráter geral.{377} Tais normas, porém, foram objeto de veto pelo Presidente da República, de maneira que a versão do CDC positivada em lei somente autoriza falarmos de um controle judicial dos contratos de consumo. a) Controle formal e controle do conteúdo dos contratos - O CDC escolheu, no art. 51, a nulidade absoluta{378} como sanção para as cláusulas abusivas, deixando claro o caráter destas cláusulas como gravemente ofensivas ao novo espírito social do direito brasileiro. Uma vez que a nulidade absoluta deverá ser decretada ex officio pelo Poder Judiciário, cria o CDC, na prática, um novo controle incidente do conteúdo e da eqüidade de todos os contratos de consumo submetidos à apreciação do Judiciário brasileiro. Um controle direto \também é possível, segundo os arts. 80 e 83, através de uma ação de

nulidade da cláusula. O CDC institui, portanto, um duplo controle judicial, tanto formal quanto do conteúdo dos contratos de consumo. O juiz examinará, inicialmente, a manifestação de vontade do consumidor, verificando se foi respeitado o seu novo direito de informação sobre o conteúdo das obrigações que está assumindo (art. 46), sob pena de declarar o contrato como não existente; verificará igualmente se houve exercício do novo direito de desistência, assegurado ao consumidor pelo art. 49, no prazo de 7 dias, nos casos de contratos de compra * (376) Veja os leading cases REsp. 95.993-MT, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 10.12.96; REsp. 89.646-PR, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 10.12.96; REsp. 34.155-MG, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 14.10.96 e REsp. 94.810-MG, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 17.6.97. \ (377) Sobre a legitimidade do Ml’ e a visão da doutrina atual e jurisprudência, veja Lisboa, p. 199. (378) Concorda Dall’Agnol, p. 37. O art. 51 refere-se a nulidade de pleno direito, segundo o autor, diz-se "de pleno direito" a nulidade derivada de vício manifesto, de defeito comprovado, visível pelo próprio instrumento ou por prova literal; por isso é admitido ao juiz dela conhecer. "A nulidade deve ser decretada pelo juiz, absoluta que é, mas não dispensa a determinação judicial, no que se insere no sistema normal brasileiro". (p. 549) e venda concluídos fora do estabelecimento comercial, nas conhecidas vendas de "porta-em-porta". O art. 47 assegura também, como frisamos anteriormente, interpretação favorável ao consumidor. De outro lado, os arts. 51 a 53 do CDC impõem um controle do conteúdo do contrato, coibindo especialmente as cláusulas abusivas, sob pena de nulidade absoluta.{379} b) Controle concreto e em abstrato - A escolha da nulidade absoluta como sanção para as cláusulas abusivas descritas na lista do art. 51 do CDC, nulidade esta que deverá ser decretada ex officio pelo juiz brasileiro, faz antever a grande importância que terá o chamado controle incidente, concreto, do conteúdo e do equilíbrio contratual. O § 4.º do art. 51 do CDC permite, também, que a nulidade da cláusula seja requerida em abstrato, mesmo antes, por exemplo, da utilização do contrato-formulário no mercado brasileiro, através de ação promovida pelo Ministério Público. Nesta terceira edição, gostaríamos de frisar alguns momentos desse controle abstrato realizado com sucesso pelo Ministério Público. Em matéria de locação, encontra-se jurisprudência específica sobre esse controle abstrato: "Ação Civil Pública. Tem o Ministério Público legitimidade para propor ação visando a proteção do consumidor. A relação de intermediação de imóveis para locação, submete-se às disposições do Código de Defesa do Consumidor. Cláusulas de contrato de adesão cuja nulidade se reconhece. Inaplicabilidade da Lei 8.078, de 11.09.90, aos contratos firmados anteriormente à sua vigência. Recurso parcialmente provido".{380} Em matéria de contratos bancários, destaque-se a sentença de \16.5.95 do magistrado Gerci Giareta, em ação civil pública de controle abstrato promovida pelo Ministério Público/RS, cuja ementa é: "Ação

declaratória de nulidade de cláusulas inseridas em contrato bancário (contrato de adesão). Legitimação do Ministério Público, aplicação do \art. 129, III, da Carta Constitucional de 1.988 e art. 82, I, do Código de Defesa do Consumidor. Nulidade de cláusulas abusivas. Proibição de uso nas operações futuras. Medida de proteção abstrata e preventiva em * (379) Posição detalhada sobre as formas de controle encontra-se em Amaral Jr., pp. 116 e ss. (380) TARS, Ap. Civ. 195049630, j. 29.8.95, Rel. Alcindo Gomes Bittencourt. (p. 550) defesa dos consumidores. Necessidade da adequação às inovações implantadas pela nova ordem jurídica, decorrente do sistema protetivo que restabelece o equilíbrio contratual entre forneçedor e consumidor. Aplicação do art. 51 do CDC. Procedência da ação".{381} Tais sentenças permitindo o controle abstrato em ações coletivas do MP foram mantidas pelo Tribunal de Justiça/RS{382} e pelo Tribunal de Alçada/RS.{383} Em matéria de compromisso de compra e venda de imóveis destaque-se como modelo a decisão do STJ, no Recurso Especial 105.215 (96/0053455-1), DF, j. 24.6.97, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, em cuja ementa lê-se: "Processual civil, ação coletiva. Cumulação de demandas. Nulidade de cláusula de instrumento de compra-e-venda de imóveis. Juros. Indenização dos consumidores que já aderiram aos referidos contratos. Obrigação de não-fazer da construtora. Proibição de fazer constar nos contratos futuros. Direitos coletivos, individuais homogêneos e difusos. Ministério Público. Legitimidade. Doutrina. Jurisprudência. Recurso provido. I - O Ministério Público é parte legítima para ajuizar ação coletiva de proteção ao consumidor, em cumulação de demanda, visando: a) à nulidade de cláusula contratual inquinada de nula (juros mensais); b) à indenização pelos consumidores que já firmaram os contratos em que constava tal cláusula; c) à obrigação de não mais inserir nos contratos futuros a referida cláusula. II - Como já assinalado anteriormente (REsp 34.155-MG), na sociedade contemporânea, marcadamente de massa, e sob os influxos de uma nova atmosfera cultural, o processo civil, vinculado estreitamente * (381) Número do processo: 01194446926, comentada também por Bonatto/ Moraes do MPRS. Veja com o mesmo teor sentença do mesmo magistrado, processo 01194211098. (382) Veja neste sentido decisão do TJRS, Ap. Civ. 597030717, j. 25.6.97, Des. Arnaldo Rizzardo em cuja ementa é: "Código de Defesa do Consumidor. Contratos bancários. Anulam-se as cláusulas que ofendem dispositivos da Lei n. 8.078/90. Recurso do Banco provido em parte, e provido o apelo do Ministério Público". (383) Assim Ap. Civ. 196 197 867,j. 12.3.98, rel. José Aquino Flores de Camargo, em cuja ementa lê-se: "(...) Ação que visa não só a proteção da comunidade

de clientes do Banespa, como a população em geral, dado seu caráter declaratório, abstrato e geral. Incidência das disposições do CDC às relações bancárias (...)" (p. 551) aos princípios constitucionais e dando-lhes efetividade, encontra no Ministério Público uma instituição de extraordinário valor na defesa da cidadania. III - Direitos (ou interesses) difusos e coletivos se caracterizam como direitos transindividuais, de natureza indivisível. Os primeiros dizem respeito a pessoas indeterminadas que se encontram ligadas por circunstâncias de fato; os segundos, a um grupo de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária através de uma única relação jurídica. IV - Direitos individuais homogêneos são aqueles que têm a mesma origem no tocante aos fatos geradores de tais direitos, origem idêntica essa que recomenda a defesa de todos a um só tempo". Em matéria de bancos de dados e serviço de proteção de crédito, veja decisão do TJRS, Ap. Civ. 591097050, j. 27/11/91, Des. Ivo Gabriel da Cunha, em cuja ementa lê-se: "Serviço de Proteção ao crédito. O Ministério Público é parte legítima e a ação civil pública é processo adequado à defesa coletiva do consumidor, universo indeterminado de pessoas unidas pela circunstância fáctica do consumo. A regularidade dos cadastros e informações relativas ao consumidor interessa não apenas aos cadastrados, mas ao universo dos consumidores". c) Papel do Ministério Público e das entidades de proteção ao consumidor - O Projeto original de Código de Defesa do Consumidor apresentado pelo Conselho Nacional de Defesa do Consumidor/MJ à sociedade brasileira em 1989 previa uma atuação decisiva do Ministério Público, como verdadeiro Onbudsman{384} do mercado, a assegurar que as normas de eqüidade e boa-fé do CDC tivessem repercussão prática no mercado de consumo, especialmente através do controle prévio dos contratos de massa a serem oferecidos aos consumidores. Os vetos presidenciais aos §§ 3.º do art. 51 e 5.º do art. 54 retiraram tal possibilidade de controle administrativo geral e cogente, preferindo optar por um controle essencialmente judicial, como é a tradição brasileira. Perde-se, assim, em agilidade{385} nas decisões. O Papel do \* (384) Sobre o papel do Onbudsman veja em português Edling, p. 7 ou O \ dinamarquês Bernhard Gomard, "Clauses abusives... - Danemark", in revue \mi. Droit. Comparé, n. 3, 1982, p. 614. (385) Veja Edling, pp. 8 e 9. (p. 552) Ministério Público continua, porém, decisivo na proteção do consumidor, seja como órgão de conciliação, seja como legitimado para a ação civil pública,{386} seja como órgão legitimado para propor a ação de controle em abstrato das cláusulas abusivas, segundo o § 4.º do art. 51. Da mesma maneira as associações de defesa do consumidor e as entidades e órgãos da administração pública destinados à defesa dos consumidores passam a ter legitimidade ativa, segundo o art. 100 do CDC, para a proporem as ações coletivas de defesa de interesses individuais homogêneos, previstas nos arts. 91 e ss., as class actions do direito norte-americano, que a partir da entrada em vigor do CDC

passaram a fazer parte do dia-a-dia do Judiciário nacional. Espera-se que a opção do legislador brasileiro pela nulidade absoluta leve o Poder Judiciário, com a ajuda do Ministério Público e dos novos legitimados para as ações coletivas de defesa dos interesses do consumidor, a sanar o mercado brasileiro quanto à utilização de cláusulas abusivas nestes contratos. Os instrumentos para esta verdadeira revolução nas relações contratuais encontram-se positivados no CDC. 1.4 Novas linhas jurisprudenciais de controle do sinalagma contratual e de recurso à ineficácia de cláusulas Nesta terceira edição devemos acrescentar um novo item referente à atuação do Judiciário na concretização do princípio básico da eqüidade ou equilíbrio contratual. Trata-se de linhas jurisprudenciais, algumas até tradicionais, que buscam revitalizar o sinalagma inicial ou final dos contratos de consumo através da força interpretativa do princípio da boa-fé objetiva nessas relações. Tais linhas sempre existiram, usando figuras tradicionais do direito, como a repetição do indébito, o enriquecimento sem causa, e outras mais jovens, como a correção monetária e a quebra da base do negócio. Queremos aqui tecer comentários especiais sobre essas novas linhas, não só porque passaram os magistrados a utilizar-se do CDC como base legal e teleológica, mas principalmente porque essas decisões são reflexos diretos dos princípios informadores do CDC. * (386) Sobre a ação civil pública veja a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, modificada pelo CDC e a obra de Mancuso, especialmente na parte referente à legitimação coletiva, pp. 64 e ss. (p. 553) As decisões que passaremos a analisar não tratam especificamente de cláusulas abusivas, nem concluem pela onerosidade excessiva de algumas prestações. Ao contrário, propugnam uma visão total da relação obrigacional ou uma visão de estrito formalismo informativo para concluir pela ineficácia de cláudulas contratuais não suficientemente informadas e destacadas ao consumidor. As decisões consubstanciam ou representam um controle da totalidade da relação contratual, especialmente um controle concreto do equilíbrio ou nexo entre prestação e contraprestação, motivo pelo qual separamos, anteriormente, estas observações no item 1.2 deste Capítulo, dedicado à proibição de cláusulas abusivas. a) A tendência de ineficácia de cláusulas não informadas ou destacadas corretamente - Após esses sete anos de prática com o CDC, não podemos negar que a jurisprudência brasileira passou a exercitar um forte controle do equilíbrio dos contratos, não somente através de decisões de nulidade de cláusulas abusivas, mas também através de surpreendentes decisões de ineficácia de parte do conteúdo dos contratos de consumo. Surpreendentes foram essas decisões não porque sua base não estivera positivada no CDC; ao contrário, os arts. 46 e 54, § 4.º do Código lhes dão perfeita fundamentação legal. Surpreendente é seu espírito libertador, exatamente contrário ao que queria inicialmente o sistema do CDC. O sistema básico do Código é de inclusão de todas as cláusulas contratuais, escritas ou não, presentes até na publicidade,

na embalagem, nos prospectos, recibos etc., cláusulas afirmadas oralmente por vendedores, fornecedores diretos e indiretos e mesmo por seus representantes autônomos prevalecem; todas essas informações vinculam os fornecedores e integram as relações contratuais, ex vi do art. 30, 31, 34 e 48 do CDC. Justamente por esse espírito básico de inclusão nos contratos de toda e qualquer informação suficientemente precisa, deixaram os autores do CDC de introduzir no Código norma semelhante ao § 3.º \da Agbgesetz alemã, que em matéria de contratos de adesão impõe uma formalidade informativa bastante forte para que uma cláusula possa ser incluída na relação contratual in concreto. Como mencionamos anteriormente, tínhamos dúvidas se essa seria a melhor opção legislativa, quando as novas normas - especialmente européias - tendem a aumentar a informação do consumidor, o dever de informar do (p. 554) fornecedor e a valorizar juridicamente a falta dessa perfeita informação, seja através de um aumento do prazo de reflexão ou arrependimento sem causa do consumidor, seja para simplesmente considerar ineficaz o vínculo ou alguma de suas cláusulas. Parece-nos que a sábia e aqui denominada surpreendente tendência jurisprudencial brasileira de decretar a ineficácia de algumas cláusulas contratuais e mesmo de vínculos inteiros de consumo, com base nos arts. 46 e 54, § 4.º, do CDC, segue essa tendência européia de formalidade informativa.{387} Em outras palavras, cláusulas que estavam sob a análise do Judiciário para que se estabelecesse a sua abusividade ou não (o que levaria à nulidade absoluta imposta pelo CDC) foram consideradas "ineficazes" por problemas de forma, problemas na formação do contrato, na sua elaboração pressupondo-se que o consumidor não tivesse sido suficientemente informado e alertado de sua presença naqueles contratos. Os exemplos dessa linha jurisprudencial são vários. Vejamos alguns casos de contratos de seguro-saúde, em que particularmente optaria pela abusividade simples das referidas cláusulas. Em caso envolvendo cláusula de reabertura de prazo de carência na hipótese de atraso do pagamento, a 9.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo considerou tal cláusula efetivamente nula com base no art. 51, IV, do CDC, por violar o princípio da boa-fé,{388} mas antes afirmou * (387) Bom exemplo é a decisão do JEPC/RS, Recurso 01196885485, Rel. J. Wilson Carlos Rodycz, j. 13.11.96, em cuja ementa se lê: "Time-sharing. Tempo compartido. Nulidade das cláusulas abusivas (...). Nulidade das cláusulas que colocam o consumidor em desvantagem exagerada (CDC, art. 51, IV). Possibilidade de denúncia do contrato a qualquer tempo em razão de vício de manifestação da vontade, captada em circustâncias em que o descortínio crítico estava prejudicado pela atmosfera criada pela vendedora (CDC, art. 46)". (388) Ap. Civ. 235.957-2, j. 25.8.94, Des. Aldo Magalhães, cuja ementa é a seguinte: "Contrato - Cláusula - Plano de Saúde - Imposição de novo prazo de carência por atraso no pagamento - Inaplicabilidade - Desconhecimento pelo consumidor de sua existência - aplicação do artigo 46 do CDC Nulidade decretada - Recurso provido. O fornecedor deverá ter a cautela de oferecer oportunidade ao consumidor para que, antes de concluir o contrato de consumo, tome conhecimento de seu conteúdo, do contrário,

as prestações por ele assumidas não o obrigarão". "Contrato - Cláusula - Plano de Saúde - Imposição de novo prazo de carência por atraso no pagamento - Abusividade - Inteligência do artigo (p. 555) pedagogicamente que tal cláusula era inaplicável e não operava contra o consumidor in concreto, forte no art. 46 do CDC: "Ora, sendo incontroverso, como visto, que ao recorrente não se deu prévio conhecimento do instrumento contratual e notadamente de sua cláusula 14.8.1, contra ele não opera, nos termos do artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor, essa estipulação (...). Ante o exposto, dão provimento ao recurso para declarar a nulidade da cláusula que reabre o prazo de carência no caso de pagamento com atraso e declarar, também, a inaplicabilidade dessa estipulação à relação de consumo existente entre as partes e, em conseqüência, declarar a ré (seguradora) responsável pelas despesas de internação".{389} Assim também o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em caso envolvendo a cláusula de limitação a 30 dias de internação cobertos em UTI, decidiu contrariamente à abusividade identificada pelo magistrado de primeiro grau que entendeu ser esta cláusula válida, com base no disposto no art. 1.460 do CC. Porém, segundo a 5.ª Câmara Cível do TJRJ, ela seria válida, mas ineficaz no caso concreto, forte no art. 54, § 4.º, do CDC, uma vez que não impressa e redigida com o destaque legalmente exigido.{390} O exemplo é interessante por se tratar de um *51, inciso IV da Lei Federal 8.078, de 1990 - Consumidor colocado em condição exageradamente desvantajosa - Equilíbrio rompido - Mora, ademais, já sanada pela correção monetária - Nulidade decretada - Recurso provido. Constituindo a purga da mora medida fundada na eqüidade, que recompõe o contrato, é incompatível a estipulação que não restitui o contrato à normalidade, mas conduz a situação de desequilíbrio entre os \contratantes" (Decisão citada por Nunes, p. 3-5, apud JTL, Lex 161/43). \ (389) Decisão citada por Nunes, p. 3-5, apud JTL, Lex 161/43. \ (390) Ap. Civ. 2.361/97 - 5.ª Cam. Civ., j. 17.6.97, Des. Marcus Faver, cuja ementa é: "Seguro-saúde. Ressarcimento de despesas médico-hospitalares. Contrato firmado entre a Golden Cross e Associação de Servidores da \UFRJ-ASUR. Estipulação de condições gerais de plano de saúde, para seus associados. Adesão da genitora da autora. Filha que necessita de internação em UTI Neonatal. Seguradora que recusa-se a pagar o período de internação superior a 30 dias. Existência de cláusula contratual expressa exoneratória de cobertura, para prazo excedente. Sentença monocrática declarando a nulidade da cláusula. Recursos. Não é nula a cláusula limitativa de riscos. Inteligência do art. 1.460 do Código Civil. Em se tratando, todavia, de contrato de adesão, a cláusula que implique em limitação a direito do consumidor tem que ser redigida com destaque. Possibilidade de fácil e imediata compreensão. Circunstância não ocorrente na hipótese. Caso de (p. 556) plano de saúde em grupo, assinado por uma entidade e no qual o consumidor direto recebia apenas proposta em branco, em que constava que estaria ciente de todas as condições gerais, inclusive exclusões e limitações, mas estas não lhe foram entregues. Realmente, neste caso,

a assinatura do consumidor, assinalando que teria sido informado ou que lhe teria sido oportunizada a informação, era apenas fictícia, prática esta não condizente com o dever de informar e dever de destacar os limites da cobertura e as condições contratuais imposta pelo CDC ao fornecedor, que deveria ter se organizado de forma (assim como entregou as cópias de tal formulário) a atender e informar a todos os que o contrataram em grupo. Já o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo optou por combinar os arts. 46, 47 e 51 do CDC e leis especiais sobre segurosaúde e exercício médico, para determinar a ineficácia da cláusula de exclusão do tratamento da Aids in conccreto, em face do não conhecimento pelo autor dessas cláusulas contratuais, de seu caráter leonino genérico e da indivisibilidade do direito à saúde. Logo, propugnou também sua nulidade.{391} b) A tendência de revitalização do sinalagma no tempo e correção monetária - Os contratos bilaterais, aleatórios e de transferência de riscos futuros, como os de seguro, encontram seu signalagma funcional, seu nexo co-respectivo de prestação e contraprestação, tanto no passar do tempo e desenvolver da relação contratual, isto é, no multiplicar de contribuições, de prêmios, de fazeres e não-fazeres, de reembolsos, de cumprimento de deveres anexos, quanto na sua expectativa de manutenção do contrato, tendo em vista a função econômico-social que esse *ineficácia da cláusula, mas não de nulidade. Interpretação do artigo 54, § 4.º do Código de Defesa do Consumidor. Provimento parcial do recurso". (391) Esta interessante decisão conjunta, em segredo de Justiça, que cita a Lei \3.268/57, art. 15, g, e o Dec. 73/66, é a Ap. Civ. 250.316-1, Rel. Des. \Debatin Cardoso, j. 2.10.96, comentada no relatório Brasilcon, à p. 30. No mesmo sentido da ineficácia (também da nulidade), mas sem citar o artigo específico do CDC, TJSP, Ap. Civ. 212.145-1, Rel. Des. Gonzaga Franceschini, j. 28.11.95, comentada no relatório Brasilcon, à p. 22. Já considerando apenas que tais cláusulas violam o princípio da eqüidade e da boa-fé disposto no art. 51, IV, do CDC, veja do mesmo TJSP, Ap. Civ. 188.788-2, Rel. Des. Marrey Neto, j. 25.10.94, comentada no relatório Brasilcon, à p. 31. (p. 557) vínculo preenche. A álea é a probabilidade de vantagem ou desvantagem na passagem do tempo, uma vez que a prestação da seguradora depende de evento futuro e incerto. A ocorrência ou não de eventos de saúde para o consumidor e sua família é o que torna incerta a necessidade e a quantidade da prestação do fornecedor. Como mencionamos anteriormente, essas características do contrato de seguro-saúde põem em destaque a relevância do fator tempo nessa relação, isto é, a realização do verdadeiro interesse do consumidor pode estar ligado ao fator tempo. O tempo já transcorrido de duração do relacionamento contratual passa a ser, então, juridicamente relevante. Nesse ramo de negócios, a expectativa do consumidor é segurar não só seu presente, mas seu futuro e de sua família, enquanto a seguradora trabalha assumindo também riscos presentes e futuros, através de cálculos atuariais e probabilidades de sinistros de saúde e de coberturas necessárias. O fator

tempo trabalha, porém, contra a seguradora, uma vez que, com o envelhecimento da carteira, naturalmente mais despenderá em reembolso. Note-se que exatamente é esse o risco profissional desse ramo de atividades e quem nele está, deve incluí-lo em seus cálculos e manter as promessas contratuais feitas com os consumidores, evitando frustrar o fim do contrato ou abusar de sua posição contratual ao romper definitivamente com o vínculo. É risco profissional dos fornecedores cobrar corretamente, com base em cálculos atuariais fiéis, as mensalidades e/ou os reembolsos executados.{392} A tendência de manutenção desses vínculos, isto é, dos contratos cativos de longa duração, pode ser vista como uma tendência de proteção do sinalagma funcional desses contratos. Já nos contratos comutativos em geral, com a sucessão de planos econômicos no país, ficou como desafio para a jurisprudência estabelecer aqui qual a justa correção da moeda nestes tempos incertos. A necessidade de correção monetária das dívidas é pacífica,{393} não, porém, * (392) Assim decidiu o TJRS, Ap. Civ. 595 169 921,j. 29.22.95, Des. José Maria \Tesheiner: "Seguro de reembolso de despesas de assistência médica e/ou hospitalar. Incumbe à seguradora o ônus de comprovar a correção dos pagamentos efetuados". (393) Veja por todos, ementa do Recurso Especial 42.226-SP, j. 17.11.96, Rel. Min. Bueno de Souza, nos seguintes termos: "Recusada que fosse a correção monetária, estaríamos a incentivar enriquecimento sem causa do devedor". (p. 558) os índices utilizados no seu cálculo. "A correção nada acrescenta ao débito, atuando como mero fator de preservação da moeda aviltada por processo inflacionário".{394} Assim, por exemplo, a Lei 7.730/89 congelou \o índice OTN, e determinou, em seu art. 10, § 2.º, que nos contratos entre particulares "a cláusula de reajuste com base na OTN adotará o IPC como índice substitutivo (...)". Note-se que o cálculo do IPC de janeiro de 1989 \é bastante controverso, variando de 35,48, 42,72% até 70,28%, sendo \que o STJ, em Corte Especial, já adotou o índice de 42,72%,{395} mas \também, em caso de desapropriação agrária, os 70,28%.{396} A Lei 7.799, de 10 de julho de 1989, republicada em agosto e que instituiu a BTN mensal e a BTN fiscal diária (art. 1.º), modificou o plano econômico e instituiu a BTN fiscal "como referencial de indexação de tributos e contribuições de competência da União" e especificou que esse índice também poderia "ser utilizado, como referencial, para a atualização monetária de contratos ou obrigações expressos em moeda nacional, efetivados após a data da vigência desta Lei (art. 1.º, caput e § 3.º, Lei 7.799/89). Em março de 1990 advém novo plano econômico, o Plano Collor 1 (Lei 8.024, de 12 de abril de 1990), criando uma série de índices, o BTNF, o INPC e após a TR (taxa referencial). Após, a Lei 8.177, de 1.º de março de 1991, instituiu o Plano Collor 1, extinguindo o BTN e \o BTN fiscal (art. 42). Na jurisprudência observa-se um tratamento diferenciado. Os contratos de financiamento habitacional ou empréstimos bancários recebem tratamento especial com o uso da BTN mensal, em virtude

do disposto na Lei 8.024/90.{397} Os débitos agrícolas ou de reajuste de crédito agrícola, na Lei 7.730/89 e nas leis posteriores, em virtude da anistia constitucional, submeteram-se a um regime de reajuste especial.{398} Às contas de poupança popular, ex vi lege, aplica-se o índice de correção legal, o IPC expurgado e o BTN mensal. * (394) Assim ementa do Recurso Especial 42.226-SP, j. 17.11.96, Rel. Min. Bueno de Souza. (395) Veja Lex 79, 139. (396) Veja Lex 79, 138. (397) Veja por todos, Julgados TARGS, n. 91, p. 372 e ss., Julgados TARGS, n. 93, p. 117 e ss. (398) Veja por todos, Recurso Especial 194.909.1, in RT 737, p. 175 e ss, e Julgados TARGS, n. 92, p. 204 e ss. (p. 559) Quanto à polêmica incidência das leis que instituíram planos econômicos a contratos assinados anteriormente, foi reafirmado, em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, de 10 de dezembro de 1996, cujo relator foi o Ministro Celso de Mello e Presidente o Ministro Moreira Alves, o princípio segundo o qual a aplicação da lei nova (no caso a Lei 7.730/89) sobre os efeitos futuros de contrato preexistente, assinado anteriormente (no caso, Caderneta de Poupança) é considerada retroatividade inadimissível, que feriria a garantia constitucional do ato jurídico perfeito disposta no art. 5.º, inc. XXXVI, da Carta Política. A ementa oficial, reproduzida na RT741, p. 202 e 203, assim afirma: "Os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua celebração. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. As conseqüências jurídicas que emergem de um ajuste negocial válido são regidas pela legislação em vigor no momento da pactuação. Os contratos, que se qualificam como atos jurídicos perfeitos, achamse protegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 5.º, XXXVI da Constituição da República. A incidência imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de um contrato preexistente, precisamente por afetar a própria causa geradora do ajuste negocial, reveste-se de caráter retroativo (retroatividade injusta de grau mínimo), achando-se desautorizada pela cláusula constitucional que tutela a intangibilidade das situações jurídicas definitivamente consolidadas. A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro. Razões de Estado, que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo, não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição. As normas de ordem pública, que também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5.º, XXXVI, da Carta Política, não podem frustrar a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desres\peitando-a em sua autoridade. (p. 560)

O contrato de depósito em caderneta de poupança, enquanto ajuste negocial validamente celebrado pelas partes, qualifica-se como típico ato jurídico perfeito, à semelhança dos negócios contratuais em geral, submetendo-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua estipulação. Assim sendo, caso a sua contratação ou renovação tenha ocorrido antes da entrada em vigor da Lei 7.730/89, não se aplicam as normas dessa legislação infraconstitucional em virtude do exposto no art. 5.º, XXXVI da CF, ainda que os rendimentos venham a ser creditados em data posterior" (Recurso Especial 201.176-2/RS, 1.ª Turma, DJU 21.3.1997, in RT 741, 202 e ss.). Manteve, assim, o STJ a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que seguindo a orientação majoritária e firmada pelo próprio Supremo Tribunal Federal{399} quanto ao respeito ao ato jurídico perfeito, conclui pela não aplicação da Medida Provisória 32/89, convertida na Lei 7.730/89, aos efeitos dos contratos em curso e aos contratos de caderneta de poupança{400} por ferir a garantia constitucional através de lei infraconstitucional: "Isso significa, ante a supremacia do postulado constitucional que tutela a integridade do ato jurídico perfeito, que mesmo as leis de ordem pública não podem desconsiderar relações contratuais que foram válidas e precedentemente estipuladas pelas partes (...) Regra básica e inalterável é que todas as conseqüências de um contrato concluído sob o império de uma lei, inclusive seus efeitos futuros, devem continuar a ser regulados por essa lei em homenagem ao valor da certeza do direito e ao princípio da tutela do equilíbrio contratual (...) Em suma: O STF, tendo presente a importância político-jurídica da norma inscrita no art. 5.º, XXXVI da CF - e considerando ainda a grave advertência da doutrina (...) - firmou orientação na matéria ora em exame, enfatizando, na perspectiva do princípio constitucional que protege o ato jurídico perfeito, que "(...) nos casos de cadernetas de poupança cuja contratação ou (...) renovação tenha ocorrido antes da entrada em vigor da MedProv 32, de 15.01.1989, convertida na Lei * () Veja RTJ 106/314 e 143/724. () Recurso Especial 200.514-RS, rel. Min. Moreira Alves, e Recurso Especial 198.304-RS, rel. Min. Sydney Sanches. (p. 561) 7.730, de 31.01.1989, a elas não se aplicam, em virtude do disposto no art. 5.º, XXXVI, da CF, as normas dessa legislação infraconstitucional, ainda que os rendimentos venham a ser creditados em data posterior (...)".{401} Concorde-se ou não com a referida lição jurisprudencial, retirase dela o postulado segundo o qual a garantia constitucional do ato jurídico perfeito deve ser usada para proteger o equilíbrio contratual, a certeza do direito contra as vicissitudes de um mercado incerto como o brasileiro e da reiterada intervenção estatal na econômia e seus efeitos por vezes perversos nos contratos privados. A opção majoritária da jurisprudência brasileira aqui é da manutenção e proteção do sinalagma genético, servindo a correção monetária e os esforços para preservação e atualização dos índices contratuais como instrumentos para esse controle do equilíbrio contratual afetado por fatores externos.

A tendência de preocupação com a correção monetária e o equilíbrio financeiro das dívidas é corroborada pelo grande número de Súmulas recentes do STJ que tratam do tema, como as de número 35, 43, 54, 179 e 186.{402} Dentre estas, destaque-se, por tratar de tema contratual e de consumo, a Súmula 35 do STJ: "Incide correção monetária sobre as prestações pagas, quando da sua restituição, em virtude da retirada ou exclusão do participante de plano de consórcio". c) A tendência de controle da novação contratual e do equilíbrio - Um dos exemplos principais de contratos cativos de longa duração são as novas relações banco-cliente, as quais estão apresentando alguns aspectos novos, que podem ser encontrados também nas relações e contratos de uso de cartão de crédito, nos seguros em geral, nos serviços de organização e aproximação de interessados (como os exercidos pelas empresas de consórcios), nos serviços de transmissão de informações * (401) RT 741, p. 204-206. (402) Súmula 43 do STJ: "Incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo". Súmula 54 do STJ: "Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual". Súmula 179 do STJ: "O estabelecimento de crédito que recebe dinheiro, em depósito judicial, responde pelo pagamento da correção monetária relativa aos valores recolhidos". Súmula 186 do STJ: "Nas indenizações por ato ilícito, os juros compostos somente são devidos por aquele que praticou o crime". (p. 562) e de investimento de numerário alheio, de representação e compra de ações etc. Esses aspectos novos da prática bancária e financeira no Brasil levaram ao aparecimento de novas tendências na jurisprudência brasileira, que agora analisaremos. Gostaríamos, porém, de destacar que essa evolução, ou provocação e resposta, parece indicar - na teoria a consolidação de uma nova noção de contrato, não só a noção social de contrato apresentada nesta obra, mas de uma relação contratual mais fluida, mais fragmentada, menos formal e mais aberta a adaptações e modificações do que a anterior, noção esta que me parece estar começando a ser empregada pelos profissionais do direito ao "controlarem" as novas relações múltiplas entre bancos e consumidores. Essa tendência nasce da eficácia do CDC, que efetivamente aporta uma nova teoria ou visão contratual para o direito civil brasileiro, rejuvenescendo nossa doutrina e prática. Essa visão baseada na boafé objetiva das relações contratuais e em uma noção mais exigente de equilíbrio e eqüidade contratual impõe um novo regime para os contratos cativos de longa duração, dentre eles os contratos bancários e financeiros, proibindo uma série de práticas consideradas abusivas. Dentre essas práticas e cláusulas consideradas abusivas, como comentamos, está a de modificar unilateralmente o conteúdo do contrato, das prestações, da qualidade (art. 51, XIII, do CDC), a de modificar unilateralmente o preço ou valor pago em contraprestação de serviços ou produtos (art. 51, X, do CDC) que imponham a conclusão de Outro negócio jurídico - através de representante - pelo consumidor (art. 51, VIII do CDC) e, de modo genérico, a de estabelecer "obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a

equidade" (art. 51, IV, do CDC). Em outras palavras, o novo regime dos contratos bancários de consumo impede que o elaborador unilateral dos contratos abuse de sua posição contratual (Machtposition) e aproveite-se do desequilíbrio intrínseco e estrutural dessas relações para impor cláusulas abusivas ou contrárias a leis imperativas vigentes e após, mesmo, renove essas relações continuadas por natureza, em virtude da expectativa de contínuo acesso ao crédito e rolagem eventual da dívida. Em face destas limitações, merece nossa especial atenção uma prática bancária existente desde 1993, coincidente com a jurisprudência (p. 563) mais ativa de defesa do consumidor dos Tribunais estaduais. Tendo em vista essa aplicação prática do CDC, os bancos e instituições de crédito passaram a propor a seus clientes uma renegociação "sanadora" ou novação "salvadora" da dívida, a qual, além de consolidar a dívida pendente baseada em juros acima do patamar constitucional e da cobrança reiterada e cumulativa de juros sobre juros e outras práticas reiteradamente consideradas abusivas, retirava do novo texto contratual todos os abusos identificados como tais na jurisprudência e nas novas leis, incluindo aí o CDC. "Adaptou" pois, essa relação continuada aos novos patamares de boa-fé e equilíbrio de prestações exigido por lei, mas perenizando o abuso no débito consolidado, confessado ou renovado na renegociação. Trata-se, pois, de uma prática comercial abusiva do setor bancário, a qual visa ou consegue justamente fraudar o efeito das normas do Código de Defesa do Consumidor, da limitação constitucional dos juros e de outras leis imperativas através da novação da dívida, isto é, do pagamento e fim teórico da relação abusiva e "nascimento" de uma nova relação "sanada" dos vícios da primeira, mas que traz em seus encargos financeiros os frutos do abuso já cometido e "sanado" pela manifestação de vontade do consumidor em novo contrato ou na renegociação. Há nesta "nova contratação" o cuidado de incluir na relação de consumo apenas cláusulas contratualmente lícitas, segundo a jurisprudência majoritária e normas especiais em vigor, inclusive o CDC. Através da teoria contratual normal a solução para esse problema não é da mais fácil, pois que o contrato chegou a seu fim, seu bom fim, que é o adimplemento através da novação, da confissão de dívida ou da renegociação contratual. Teoricamente o primeiro contrato foi extinto. Como propor um exame judicial do conteúdo de um contrato extinto? Parece-me que aqui há de se avançar e aprofundar a análise, pois somente a aceitação de uma espécie nova de pós-eficácia dos contratos, baseada na boa-fé necessária às relações de consumo, pode propor uma solução para esse problema prático de enriquecimento sem causa lícita. O exame judicial do conteúdo do contrato extinto é possível, justamente através da nova visão continuada e de longa duração das relações de consumo, que se compõem de vários e \múltiplos contratos: contratos acessórios e principais, contratos iniciais (p. 564) e finais, de cadeias de fornecedores solidários por lei em virtude justamente dos laços que formam a catividade de seus clientes, fornecedores e consumidores entrelaçados em relações contratuais complexas de consumo, múltiplas e fluidas que são o novo desafio de nosso tempo. Vejamos, pois, duas análises desses contratos cativos de

longa duração. A primeira considera tratar-se de relações e contratos de "relacionais" (relational contracts){403} destacando os elementos sociológicos que condicionam o nascimento e a estabilidade dos contratos complexos de longa duração. A contribuição desses estudos, como frisamos anteriormente, foi grande, pois, observando as relações "não-contratuais", as projeções de troca dos empresários e sua organização em networks, baseadas mais na confiança, solidariedade e cooperação no que em vínculos contratuais expressos, desenvolveram a noção de um contrato aberto, de uma relação contínua, duradoura, ao mesmo tempo em que modificável pelos usos e costumes ali desenvolvidos e pelas atuais necessidades das partes.{404} Essa visão "aberta" e fragmentada de contrato ou relação obrigacional é bastante pós-moderna e atual, com enorme potencial. Identificar um contrato relacional onde há vinculo, mas não necessariamente contratual, como nas parcerias econômicas furtivas e momentâneas de hoje. Identificar um contrato relacional, em que o vínculo oficialmente já acabou, mas há relacionamento posterior, como em um contrato cumprido, não renovado, mas novado ou mesmo reescrito. Identificar um contrato relacional em que existem vários contratos, com várias e diferentes pessoas jurídicas, como os contratos com bancos múltiplos, 6 contratos em um só, ou um contrato com 4 pessoas diferentes, banco, corretora, financeira, seguradora, ou fornecedora de serviços outros, tudo em um só relacionamento finalístico de consumo! Identificar um contrato de troca real, em que há na teoria um contrato unilateral clássico, como no mútuo, destacando a reciprocidade intrínseca das prestações, dos direitos e deveres principais e anexos, faz com \que o nexo (finalne.~us) que liga a prestação oficialmente única e a contraprestação escondida (pagamento de juros pelo capital colocado a disposição e o tempo) reapareça, criando um sinalagma fantasma, uma bilateralidade real, bilateralidade relacional, ousada e absolutamente não-clássica. O modelo relacional é fascinante, mas desenvolvido tendo em vista problemas típicos da common law, que no direito brasileiro, em * (403) Macneil, p. 691 e ss. (404) Veja Macedo Jr., p. 127 e ss. (p. 565) especial com base no CDC, podem ser resolvidos com a utilização dos princípios da confiança, da boa-fé, da acessoriedade das relações de pré-consumo ou pela teoria da aparência.{405} Sendo assim, a mais importante contribuição desses estudos para a nova teoria contratual brasileira é a criação de um modelo teórico contínuo que engloba as constantes renegociações e as novas promessas, bem destacando que a situação externa e interna de catividade e interdependência dos contratantes faz com que as revisões, novações ou renegociações contratuais naturalmente continuem ou perpetuem a relação de consumo, não podendo estas, porém, autorizar abusos da posição contratual dominante, ou - pior - validar prejuízos sem causa ao contratante mais fraco ou tentar superar e descumprir deveres de cooperação, de solidariedade e de lealdade que integram a relação em toda a sua duração.{406} No caso dos contratos de mútuo, parece-me que a teoria do contrato relacional pode contribuir para uma nova compreensão da confiança despertada pela atividade dos fornecedores e para a aceitação de uma readaptação constante das relações de longa duração conforme a boa-fé, de forma a não frustrar as expectativas legítimas das partes,

apesar da limitação da vontade manifestada inicialmente. No caso em exame, os bancos e instituições de crédito passaram a propor a seus clientes uma renegociação "sanadora" ou novação "salvadora" da dívida. Apoiados em cláusulas específicas nos contratos e mediante a contingência nacional de insolvência e falta de crédito, os bancos brasileiros ofereceram aos consumidores desde 1993 uma * (405) Segundo Oechster, p. 114, a teoria do contrato relacional é uma "reimportação" do modelo jurídico alemão. A solução alemã baseada na responsabilidade pela confiança teria sido recebida nos EUA justamente para suprir os problemas da common law com relações de longa duração e que, agora, estaria retornando ao continente. A leitura do original de Macneil, ao contrário, parece partir de observações básicas sociológicas, quanto às raízes do contrato, para só então aprofundar-se na relação de confiança. (veja Macneil, p. 701 e ss. em especial). (406) Como ensina Macedo, Relacional, p. 335, a teoria contratual relacional tem função descritiva, analítica, mas "o modelo relacional tem também caráter normativo e prescritivo. Assim é que ele recomenda uma revalorização e ampliação do uso do princípio da boa-fé, justiça e equilíbrio contratual como princípios capazes de orientar os agentes contratuais e operadores do direito na direção do reconhecimento das circunstâncias fáticas concretas". (p. 566) revisão contratual "sanadora" e novação da dívida, na qual seriam retiradas dos contratos renegociados a previsão de cobrança de juros reais (juros remuneratórios) superiores a 1% ao mês e outras cláusulas consideradas abusivas na jurisprudência e em leis imperativas, como o próprio CDC. Ficava ali, porém, consolidada e confessa a dívida oriunda de anos de cobrança desses juros exagerados, cumulação de taxas, multas, capitalização mensal e outros abusos. A cláusula, que permite a renegociação bilateral benéfica ao consumidor, nada tem de abusiva; ao contrário, procura melhorar e adaptar os contratos de consumo às regras existentes no ordenamento jurídico naquele momento. Infelizmente, a sua prática no mercado brasileiro foi perversa. Perversa, pois criou expectativas no consumidor de que na revisão iriam ser "excluídas" e "retiradas" as cláusulas abusivas de cobrança de juros usurários ou mesmo juros sobre juros. Acabou, porém, preservando o abuso, consolidando-o em imensas e impagáveis dívidas. Perversa, pois ao retirar do contrato atual as cláusulas abusivas, ao impor ao consumidor que confessasse a dívida oriunda do abuso, quase impossibilitou a atuação reequilibradora do Judiciário. Geralmente os fornecedores exigiram a assinatura de confissão de dívida total ou assinatura de títulos de crédito, preservando os juros já cobrados e o passivo deles resultantes já existente, em ficta declaração de que o pagamento era devido, para só então elaborar a novação contratual, agora, sim, sem as cláusulas abusivas e em texto uniforme pré-elaborado unilateralmente. Em outras palavras, os débitos e encargos resultantes de cláusulas tão abusivas que foram retiradas pelos próprios bancos e agentes financeiros na renegociação, encargos contrários à boa-fé, mesmo assim foram cobrados e foram incluídos no passivo, no total da dívida. Esse total foi transportado para a renegociação, assinada confissão ou

título executivo extrajudicial pelo total da dívida e apenas as cláusulas foram retiradas do texto, não seus efeitos abusivos já ocorridos. Essa atitude quase paralisou o controle do Judiciário brasileiro, pois na relação de consumo atual o contrato não mais apresentava as referidas cláusulas abusivas, a prestação inicial (débito) fora paga por novação e o dever de adaptar seus contratos ao CDC já teria sido cumprido. A defesa dos bancos era simples, afirmando que adaptara seu contrato e que não cobrava tais juros usurários ou praticava anatocismo. Meia verdade quase destruidora, pois o controle do conteúdo dos (p. 567) contratos não é só atual, mas sim, desde o início da relação contratual de consumo, relação continuada vista como um processo finalístico, como uma relação de deveres mútuos de conduta, de boa-fé e de prestação, que se prolonga no tempo até atingir o seu fim: o bom cumprimento do objetivo inicial do contrato e das expectativas legítimas (somente as legítimas) de ambos os contratantes. No caso concreto, abusiva foi a cobrança durante anos de encargos baseados ou sustentados por cláusulas consideradas por lei (Constituição e CDC) e por jurisprudência pacífica como abusivas e lesionárias. A jurisprudência respondeu a essa renegociação contratual prejudicial ou revisão abusiva de forma clara. Considerou viável a revisão e o controle do conteúdo de toda a relação, em suas várias fases e contratos renegociados.{407} A relação é efetivamente continuada, {408} é um * (407) Bom exemplo dessa linha jurisprudencial são as decisões, ainda não publicadas, do TARGS, com as seguintes ementas: "Titulo Executivo Extrajudicial - Ação Declaratória Revisional de Contratos - Renegociação. Viável a revisão de toda relação negocial, haja vista ser verificável no contrato de renegociação a incidência de encargos excessivos, o que, por \certo, se repetiu nos contratos renegociados. - Art. 42, Parágrafo Único do CDC - Não há que se falar em quantia indevida, uma vez que o contrato foi livremente firmado, incidindo os encargos contratuais. O que ocorre é a abusividade das cláusulas contratuais (...). O índice mais favorável à recorrente é o IGP-M, devendo este ser o adotado (...). Não caracterizada a mora, inviável a cobrança de multa contratual. (...) - Juros Remuneratórios. Quer pela auto-aplicabilidade da norma constitucional, ou pela legislação infraconstitucional, os juros estão limitados em 12% ao ano. Capitalização. Anual (Súmula n. 121 do STJ e Decreto n. 22.626/33)" (Ap. Civ. 196 123 558, 5.ª C., TARGS, j. 5.9.96, Rel. Juiz Jasson Torres). "Embargos à execução - Instrumento particular de confissão de dívida e vedação da capitalização mensal - Juros moratórios - Índice de correção monetária (...). A alegada novação da dívida não impede a revisão de toda a contratação entre as partes, se esta contém cláusulas nulas (...)" (Ap. Civ. 196 256 275, 4.ª C., TARGS., j. 27.3.97, Rel. Juiza Manuela Martinez Lucas). (408) Assim a jurisprudência majoritária da 4.ª Câmara Cível do TARGS, como se observa nas seguintes ementas: "Contratos Bancários - Revisão. É

cabível a revisão de todos os contratos, mesmo consolidados em renegociação de débito. Relações negociais que constituem uma situação jurídica continuativa que deve ser encarada como uma unidade (...)". (Ap. Civ. \196104160, Rel. Juiz Moacir Leopoldo Hasser); "Revisão de Contrato Confissão de Dívida. A confissão de dívida não impede a revisão do débito nas relações jurídicas continuativas, adequando-se à ordem jurídica. Limite (p. 568) contrato cativo de longa duração, em que o consumidor, na prática, aceitará qualquer renegociação, mesmo que abusiva ou a ele extremamente prejudicial para que não vençam antecipadamente seus débitos e tenha tempo de cumprir sua prestação. No caso, a renegociação nunca poderia ser negada, pois era sanadora de um dos grandes problemas dessas relações econômicas: o preço do crédito, o custo do serviço bancário no Brasil. O que há é impossibilidade jurídica de sanar a nulidade ou ilegalidade por novo acordo, por confissão de dívida ou renegociação das obrigações.{409} As cláusulas antigas eram abusivas, tanto que foram retiradas logo, seus efeitos também estão contaminados por essa abusividade e devem ser retirados da relação, de modo a adaptá-lo à ordem jurídica então vigente.{410} Mister se faz a declaração da abusividade das cláusulas pretéritas, para sanar a relação, reequilibrando-a, declarando-se, por conseguinte, indevidos os encargos e ônus resultantes dessas cláusulas abusivas nulas, de efeitos sempre presentes. É cabível a repetição do indébito.{411} Note-se que a nulidade da cláusula pelo CDC é absoluta; logo, retroage, *de juros e sua capitalização. Juros de mora e multa. Correção monetária e comissão de permanência. Substituição da TR pelo INPC: jurisprudência do STJ" (Ap. Civ. 196088041, Rel. Juiz Moacir Leopoldo Hasser). (409) Veja decisão, ainda não publicada, do TARGS em relação inter-empresarial, mas que no mérito pode servir como exemplo: "Ação Revisional de Contratos Bancários e Repetição de Indébito e/ou compensação. Possibilidade de revisão: relação jurídica continuativa. Impossibilidade de validarse por novação obrigações nulas ou ilegais. Exegese do art. 1.007 do Código Civil. Limite legal de juros e sua capitalização. Distinção entre juros remuneratórios e juros moratórios. Elevação da taxa pelo inadimplemento. Correção monetária. Sucumbência. Provimento parcial do primeiro e integral do segundo apelo") (Ap. Civ. 196 121 811, 4.ª C., TARGS, j. 20.2.97, Rel. Juiz Moacir Leopoldo Hasser). (410) Assim decisão da 4.ª Câmara Cível do TARGS: "Revisão Contratual Cabimento. Cabe a revisão dos contratos bancários para adequação de suas cláusulas à ordem jurídica, em especial no tocante à taxa de juros e sua capitalização. Precedentes da Câmara e do Superior Tribunal de Justiça. Extensão da revisão: relação jurídica continuativa" (Ap. Civ. 196089858, Rel. Juiz Moacir Leopoldo Hasser). (411) Assim a decisão do TARGS, em relação inter-empresarial de leasing, em

\que forte no art. 29 se aplicou o CDC: "Repetição do Indébito. Aplicação do CDC para a hipótese de considerar Erro - Caso de nulidade absoluta. (p. 569) tornando ilícita a cobrança realizada e diminuindo a dívida atual do consumidor.{412} Não havendo mais "causa" para a cobrança de juros executada, reduz-se a dívida, e o pagamento indevido deve ser devolvido. Descabe exigir-se a prova do pagamento errado, como previa o art. 965 do CC., pois no sistema do CDC é dever e risco profissional do fornecedor cobrar corretamente e segundo lhe permitem as normas \jurídicas imperativas (vide art. 42, parágrafo único, do CDC).{413} A alegada novação da dívida não impede a revisão de toda a contratação entre as partes, se esta contém ou continha cláusulas nulas. O controle do conteúdo da relação de consumo contratual autorizado pelo CDC se mostra possível mesmo com o contrato findo, segundo a jurisprudência,{414} pois absoluta a nulidade{415} e (pós) eficaz o paradigma *É cabível a repetição do indébito em contratos já quitados. Quem cobra juros acima de 12% viola expressa disposição de lei. Logo, não há erro (defeito do ato anulável), mas ilícito (defeito do ato nulo). Ademais, mesmo que se considere erro, incide o Código de Defesa do Consumidor, inversão do ônus da prova. Assim não cabe ao devedor provar que pagou com erro, para repetir o indébito, é à instituição financeira que incube demonstrar que cobrou com acerto. Logo, é a instituição financeira quem deve provar que não houve erro.Voto vencido. Apelação desprovida" (Ap. Civ. 196 246 151, 5.ª C. TARGS, j. 12.6.97, Rel. Juiz Rui Portanova). (412) Note-se que mesmo se a nulidade imposta pelo CDC fosse, ad argumentandum, relativa, não teria sido sanada pelo novo acordo, porque também contrato de adesão, segundo o art. 54 do CDC, não se presumindo, pois, que o interessado (prejudicado), o consumidor, com ela tenha concordado efetivamente, se entrou com ação específica em contrário para rever o texto e retirar da relação continuada os efeitos dos abusos antes cometidos. Frise-se que a nulidade imposta pelo CDC é absoluta, até mesmo porque os direitos assegurados no Código são indisponíveis, uma vez que o CDC é norma de ordem pública (art. 1.º do CDC), não prevalecendo sobre eles os acordos e contratos particulares. (413) Assim concorda Benjamin, Forense, 3,ª ed., p. 248-249. (414) No voto vencido da decisão antes mencionada defendia o relator inicial, Juiz Márcio Borges Fortes, que "a revisão de cláusulas contratuais só se mostra possível quando ainda em curso o contrato", sendo então a autora "carecedora da pretensão deduzida na inicial, por absoluta impossibilidade jurídica do pedido" (voto do relator vencido, p. 3-4 do citado acórdão, Ap. Civ. 196 246 151, 5.ª C. TARGS, j. 12.6.97, Rel. Juiz Rui Portanova). (415) Assim o relator vencedor no referido acórdão: "Cobrar juros acima de 12% é ato com objeto ilícito, pois afronta texto expresso de lei. Logo é ato nulo (p. 570) da boa-fé. Note-se aqui a força do princípio da boa-fé objetiva no novo direito dos contratos, força que permite, ao exemplo da pós-eficácia dos

deveres anexos (de sigilo, de cooperação, de cuidado e de não\concorrência), uma pós-eficácia do controle do sinalagma inicial (!), do equilíbrio econômico da relação e da licitude dessas cobranças abusivas, mesmo quitado o contrato, realizado - teoricamente - o seu fim principal. A cláusula e a prática em contratos de adesão que permite a renegociação prejudicial ao consumidor, a revisão contratual abusiva de forma a fraudar o controle do conteúdo da relação contratual continuada é contrária à boa-fé e a lealdade normal entre parceiros contratuais reiterados. Se válida fosse, seria figura próxima a fraude à lei, pois traz um véu de "legalidade" a uma relação contínua que por anos sofreu o impacto da abusividade das cláusulas principais. Essa renegociação, essa revisão contratual, autorizada em cláusula e mesmo que consensual, não pode ter como efeito sanar a nulidade absoluta imposta pelo CDC em seu art. 51 e seguintes. Não há como, por manifestação de vontade das partes, mesmo que teoricamente livre, escapar ao controle e ao patamar mínimo de boa-fé e equilíbrio imposto imperativamente pelo CDC. Essa também é a lógica do Projeto de Código Civil de 1984 quando, em matéria de novação, expressamente dispõe que: "Não podem ser objeto de novação obrigações nulas" (art. 366 do Projeto 118/84). O absolutamente nulo não se sana por vontade das partes! Ainda, quanto ao Projeto de Código Civil de 1984, deve ser também analisado um outro aspecto, pois que este projeto legislativo positiva a figura da lesão, valorizando - pelo menos à primeira vista - o mencionado estado de "premência", de "necessidade", de "inexperiência" que acaba por levar o consumidor a aceitar "prestação manifestamente desproporcional" (art. 156 do Projeto 118/84). Esse *(inválido). (...) esta Câmara tem aceitado, sem qualquer dissonância, a revisão (e por conseqüência o abatimento de valores pagos a maior) em casos de continuidade negocial em que os contratos subseqüentes quitam \os conseqüentes. Sei, o presente caso é diferente. Naquelas hipóteses o pagamento do contrato dá-se por via da novação. Aqui o pagamento foi feito em dinheito. A lei não restringe forma de pagamento, para a imposição do indébito (...) não cabe ao julgador restringir" (...) (Voto do Relator, p. 6, Ap. Civ. 196 246 151, 5.ª C. TARGS, j. 12.6.97, Rel. Juiz Rui Portanova). (p. 571) paradigma da lesão, parece-me, data venia, porém, não ser o melhor, pois remete a uma consideração econômica e não moral da divída consolidada na novação "sanadora". Note-se igualmente que a lesão positivada no Projeto de 1984, em seu texto aprovado pelo Senado, não é o referido paradigma de equilíbrio geral, mas sim um vício da vontade, vontade esta privada revisitada e revalorizada. Sendo assim, a lesão pelo Projeto de novo Código Civil será sancionada somente com a nulidade relativa (art. 177, II), como um outro vício da vontade. Penso que no caso em exame não há vício da vontade, mas vontade, vontade limitada por novos paradigmas legais, pois não há mais espaço para o auto-regramento privado através de cláusulas consideradas abusivas pelo CDC; justamente por ser de ordem pública a norma do CDC é indisponível pela vontade das partes. A ratio no CDC é a proteção da vontade do consumidor, limitando também o seu poder de auto-submissão ao outro co-contratante, visualizando de

forma bastante realista que assim como o consumidor aceitou sem discutir o primeiro texto contratual por adesão, aceitará também o da renegociação ou da novação, mas que ex vi lege nenhum dos dois pode praticar abusos ou autorizar práticas contrárias ao novo patamar de boafé nas relações de consumo. {416} Sem querer trazer uma conclusão stricto sensu a tema tão novo e polêmico como o aqui exposto, gostaria de frisar, por fim, que em face da realidade atual impõe-se pensar as relações bancárias múltiplas atuais e pós-modernas como contratos cativos de longa duração submetidos ao novo regime contratual do CDC, sempre que o outro co-contratante for um consumidor. As operações bancárias, os contratos oferecidos no mercado brasileiro, envolvendo serviços e produtos, dentre eles o crédito, estão regidos pelas regras gerais sobre * (415) Assim pondera o Juiz Carlos alberto Alves Marques na referida Ap. Civ. 196 246 151, 5.ª C. TARGS,j. 12.6.97, Rel. Juiz Rui Portanova, p. 6: "(...) tratando-se de contrato de adesão, não é ao devedor que incube provar ter pago com erro, para repetir o indébito, é ao Banco que cabe demonstrar ter cobrado com acerto, para inviabilizar a pretensão (...) De fato, não há como negar que os contratos bancários, como o questionado, são de adesão, já que as instituições bancárias os apresentam prontos, segundo as diretrizes da orientação macroeconômica vigorantes, legais ou não, constitucionais ou não, sem que o cliente possa discutir suas cláusulas, tal como está no art. 54, do CDC, que se aplica aos serviços bancários, financeiros e de crédito, \como, com evidente clareza, consagra o § 2.º, do art. 30 da dita lei". (p. 572) contratos e pelas regras especiais do CDC, em caso de contratos bancários de consumo. As relações contratuais bancárias são múltiplas e complexas e visualizadas hoje como formadas por um feixe de deveres principais e anexos negociais, e de deveres de informação, e de lealdade pré e pós-negocial, isto é, de "vinculações extranegociais"{417} e negociais que se prolongam no tempo a sujeitar os contraentes a deveres indisponíveis. Há, efetivamente, uma nova geração de contratos de consumo de massa que demonstra uma importância renovada (e mesmo avassaladora) na prática jurisprudencial atual e que estamos aqui denominando de pós-moderna ou de "contrato cativo de longa duração", mas que também pode ser considerada "relacional", se assim preferirem. Mais importante do que acrescentar uma nova denominação a esses novos e velhos contratos, hoje, complexos é identificar essa nova prática e os desafios propostos por essas relações contratuais em cadeia, fluidas, complexas, solidárias, múltiplas, formalmente desconectadas, mas intrinsicamente acessórias ao consumo e que reduzem a uma impressionante posição de catividade e de extrema vulnerabilidade técnica e jurídica o leigo, o consumidor. Do civilista atual esperasse possam contribuir seus estudos para o desenvolvimento de uma nova linha de pensamento, assentada nas figuras, conceitos e direitos da antiga dogmática do século XIX, mas que sejam capazes de resolver os

problemas práticos do dia-a-dia dessa nossa complexa vida em sociedade e do desafiante mercado atual. O direito privado deve ser um instrumento de Justiça e de equilíbrio das relações, a criar harmonia em sociedade e a incentivar o tratamento leal e de boa-fé entre todos, e não um instrumento para perpetuar abusos e consolidar desequilíbrios contratuais continuados. 2. Princípio da confiança A função social do contrato, reconhecida na nova teoria contratual, a transforma de simples instrumento jurídico para o movimento das riquezas do mercado, em instrumento jurídico para a realização dos legítimos interesses do consumidor, exigindo, então, um regramento legal rigoroso e imperativo de seus efeitos. \* (417) Cordeiro, p. 24, citando ensinamentos de Canaris, in Bankvertragsrecht, vol. 1. (p. 573) A manifestação de vontade do consumidor é dada almejando alcançar determinados fins, determinados interesses legítimos. A ação dos fornecedores, a publicidade, a oferta, o contrato firmado criam no consumidor expectativas, também, legítimas de poder alcançar estes efeitos contratuais. No sistema tradicional seus intentos poderiam vir a ser frustrados, pois o fornecedor, elaborando unilateralmente o contrato, o redigia da forma mais benéfica a ele, afastando todas as garantias e direitos contratuais, que a lei supletiva civil permitisse (direitos disponíveis). No sistema do CDC leis imperativas irão proteger a confiança que o consumidor depositou no vínculo contratual, mais especificamente na prestação contratual, na sua adequação ao fim que razoavelmente dela se espera, irão proteger também a confiança que o consumidor deposita na segurança do produto ou do serviço colocado no mercado. Interessante notar que o mandamento de proteção da confiança \(Vertrauensgebot) está intimamente ligado, pode-se mesmo afirmar ser uma conseqüência ética, ao anonimato das novas relações sociais. Como as relações contratuais e pré-contratuais, a produção, a comercialização são massificadas e multiplicadas, sem que se possa claramente identificar os beneficiados (consumidores e usuários), foi necessário criar um novo paradigma. Um novo paradigma mais objetivo do que a subjetiva vontade, boa ou má-fé do fornecedor in concreto, mas sim um standard de qualidade e segurança que pode ser esperado por todos, contratantes, usuários atuais e futuros (expectativas legítimas).{418} Note-se que a ciência do direito para proteger convenientemente a confiança despertada pela atuação dos fornecedores no mercado terá que superar a summa divisio entre a responsabilidade contratual e extracontratual, e o fará revigorando a figura dos deveres anexos \(Nebenpflichten). Estes são deveres de conduta, deveres de boa-fé presentes nas relações sociais mesmo antes da conclusão de contratos, presentes mesmo depois de exauridas as prestações principais ou em caso de contratos nulos ou inexistentes. Em verdade, os deveres anexos \* (418) Nesse sentido, em excelente exposição, Pasqualotto, \"Riscos", pp. 75 e 55. \esta mesma linha de argumentação foi usada na famosa decisão alemã

\"Limonaden-Fa1P", em que uma garrafa de refrigerante explodiu na casa do \consumidor, ferindo seu filho de 3 anos, o qual perdeu um olho e parte da \visão do outro olho, BGH, NJW, 1988, pp. 2.611 e ss. (p. 574) de cuidado, de informação, de segurança e de cooperação estão presentes em todas as relações, mesmo as extracontratuais, pois são \deveres de conduta humana (Verkehrspflichten), só indiretamente (ou eventualmente) dirigidos a prestação contratual. A massificação, a despersonalização, o anonimato das relações de consumo, principalmente tomando em consideração o novo papel da publicidade e das técnicas de venda na economia,{419} complementamse com outro elemento desafiador que é a complexidade tecnológica dos atuais produtos oferecidos no mercado. Por mais simples que a conjunção destes elementos pareça, o resultado jurídico é a mudança das expectativas do consumidor na sua relação contratual com o comerciante. Ao comprar um remédio em uma pequena farmácia ou um refrigerante em um bar, há que se perguntar o jurista que pretensão possui o consumidor contra o fornecedor direto em caso de dano (e normalmente danos graves) a sua saúde e de sua família? Em outras palavras, se o fornecedor direto não mais "domina" o produto por mais corriqueiro que seja, se o comerciante não conhece sua fórmula, não o testa, não o examina, como pode ter agido culposamente ao revendê-lo? Teria o comerciante violado ou descumprido um dever seu ao não examinar o produto, ao colocá-lo no mercado? Resta a pretensão contratual tradicional, mas esta nem sempre é ampla o suficiente para cobrir o efetivo ressarcimento dos danos sofridos. A noção de culpa, e mesmo o recurso à presunção de negligência ou imperícia do fornecedor direto, portanto, não são suficientes para dividir de forma justa os novos riscos na sociedade de consumo. A tendência mundial é, portanto, de imputar tal responsabilidade por danos à saúde e segurança diretamente ao fabricante, produtor ou importador e, em caso de vício contratual por inadequação da coisa adquirida, prever a responsabilidade solidária de toda a cadeia de fornecedores, diretos e indiretos. Trata-se no primeiro caso de uma transferência de funções, de papéis, em uma relação tripla ou triangular, entre o consumidor final, o fornecedor direto (que a doutrina alemã \denomina "pessoa de ligação", Zwischenperson) e o fornecedor indireto, único que domina a técnica do produto.{420} * (419) Assim ensina Pasqualotto, Riscos, p. 75. (420) No direito alemão esta troca de papéis foi esclarecida no leading case \Hünerpestfall (BGHZ 51, 91-108), no qual a Corte Federal Alemã, em (p. 575) Transferindo a função de "garantidor", antes cumprida pelo fornecedor direto (comerciante) para o fabricante, persegue-se assim a realização das expectativas legítimas de segurança dos consumidores frente aos produtos que consomem. Esta mudança de papéis e a imputação de responsabilidades conjuntas a indivíduos vinculados e não vinculados por laços contratuais, demonstra a atual tendência de superar a estrita divisão entre a responsabilidade contratual e extracontratual{421} em matéria de proteção do consumidor e das pessoas ex vi lege a ele equiparadas.{422} A positivação no CDC desta tendência merece uma análise acurada.

É o princípio da Confiança, instituído pelo CDC, para garantir ao consumidor a adequação do produto e do serviço, para evitar riscos e prejuízos oriundos dos produtos e serviços, para assegurar o ressarcimento do consumidor, em caso de insolvência, de abuso, desvio da pessoa jurídica-fornecedora, para regular também alguns aspectos da inexecução contratual do próprio consumidor. Todos estes reflexos do princípio da confiança são tema de nossa análise. 2.1 Novo regime para os vícios do produto Analisar o regime legal dos vícios do produto, no sistema introduzido pelo CDC, é analisar o problema da responsabilidade civil. Os vícios representam na sistemática do CDC a imputação da responsabilidade dos danos (contratuais, extracontratuais, patrimoniais ou morais) ao fornecedor. Os "vícios" no CDC, segundo a melhor doutrina,{423} são os vícios por inadequação (arts. 18 e ss.) e os vícios \por insegurança (arts. 12 e ss.). O novo regime dos "vícios" possui assim aspectos contratuais e extracontratuais. *26.11.68, exculpou o veterinário, que havia vacinado os animais, de qualquer responsabilidade contratual pela "peste" do qual foram vítimas por defeito da vacina e impôs ao fabricante da vacina a responsabilidade (extracontratual) pelo defeito e ônus pela prova da inexistência do defeito e de negligência na sua fabricação. \ (421) Assim tb. Viney, 11300, n. 245. \ (422) Segundo Viney, Introduction, p. ~ é na responsabilidade dos profissionais ante os consumidores que a summa divisio se mostra particularmente inoportuna e tende a ser superada. (423) Assim Benjamin, Comentários, p. 38. (p. 576) Devido ao aspecto contratual que queremos imprimir a este trabalho, vamos nos concentrar no regime dos vícios por inadequação ou por desconformidade{424} alertando que tal regime não é mais simplesmente o de uma responsabilidade contratual (consumidor/ fornecedor-direto);{425} a responsabilidade por vícios ultrapassa tais barreiras para ser imputada a um número maior de agentes, através da solidariedade, imposta pelo art. 18 do CDC, a todos os fornecedores da cadeia de produção. Nasce então a dúvida sobre qual seria o fundamento desta nova e mais ampla responsabilidade civil do fornecedor. De fato, "toda a manifestação da atividade humana traz em si o problema da responsabilidade", no dizer do mestre Aguiar Dias,{426} responsabilidade seria "a repercussão obrigacional da atividade do homem". Esta repercussão ocorrerá principalmente se o homem viola dever, obrigação imposta pelo direito (inclusive a que regula a força obrigatória dos contratos).{427} A idéia nuclear não é mais um juízo de valor negativo sobre a conduta dos agentes, mas, a necessidade de reparação do dano.{428} Hoje, mais do que nunca a culpa é noção insuficiente como geradora da responsabilidade civil. As barreiras entre as responsabilidades de origem contratual e extracontratual estão cada vez mais * (424) Assim os autores franceses distinguem entre "obrigação de segurança" e

obrigação de "conformidade", veja Calais-Auloy, L’Influence, p. 249. (425) Não seguimos neste trabalho a teoria francesa da ficta existência de uma relação contratual entre o fabricante e todos os consumidores, baseada na cadeia de contratos entre os fornecedores. Esta teoria tem fortes inconvenientes processuais, não beneficiando o consumidor, que hoje possui teorias jurídicas mais ágeis e eficazes (responsabilidade objetiva, deveres anexos etc). (426) Aguiar Dias, vol. 1, pp. 1 e 2. (427) Seguimos aqui a noção italiana de negócio jurídico como espaço reservado e protegido pelo direito para a autonomia da vontade, possuindo, no caso do contrato de consumo, a lei supremacia sobre a vontade, veja no Capítulo 1, sobre renovação da teoria contratual os títulos 1 e 3. (428) Conclui Ghersi, Reparación, p. 35, que "todo daño debe ser reparado por dos razones: la necesidad de conservación individual y social de los bienes y servicios, desde un punto de vista económico - por su escasez y alto costo \de reposición y el respecto al ser humano, por su sola existencia", propondo assim uma nova teoria geral da "reparação de situações danosas", p. 36. (p. 577) fluidas, de modo que mesmo os franceses, apegados ao seu sistema de estreita separação entre elas e de não cumulação{429} de pretensões \originárias de áreas diferentes ~(principle du non-cumul), tiveram de criar em matéria de defesa do consumidor um terceiro caminho, uma responsabilidade per si mista.{430} Procura-se uma unidade teórica da responsabilidade, não mais baseada na culpa como noção transcendente, procura-se um outro fundamento unitário, mesmo reconhecendo a necessária dualidade técnica que existe entre a responsabilidade de origem contratual e a extracontratual.{431} O Princípio da Proteção da Confiança, confiança esta despertada no consumidor pelos prodútos e serviços colocados no mercado pela atividade dos fornecedores, exige que se impute, que se responsabilize um maior número de agentes da cadeia de produção, visando à efetiva reparação da vítima/consumidor, como ordena o art. 6.º, inciso VI do CDC. Com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, estamos assistindo mais um passo na evolução do direito civil a procura da efetiva reparação dos danos sofridos pelas vítimas.{432} Como a noção de culpa já não mais satisfaz,{433} procura o direito outros elementos que possam fundamentar a obrigação de reparação do dano, seja através da imposição de deveres anexos ao contrato (dever de qualidade do produto), de deveres anexos à própria atividade produtiva (dever geral de qualidade do produto), seja através da imposição de novas garantias implícitas (não só contra a evicção e contra o vício redibitório, mas garantia de adequação de todo produto introduzido no mercado, podendo pensar se mesmo em uma garantia da segurança do produto). Assim, no sistema do CDC, da tradicional responsabilidade

assente na culpa passa-se a presunção geral desta e conclui-se com a imposição de uma responsabilidade legal. O novo regime de vícios no \* (429) Sobre o princípio de não cumulação (non-cumul), veja Mazeaud, p. 384, n. 403 e ss. (430) Veja as conclusões de André Tunc, p. 33. \ (431) Veja a exposição de Aguiar Dias sobre as doutrinas no direito comparado, \vol. 1, p. 426, n. 154-D. (432) Veja nossas posições sobre a responsabilidade civil, no artigo "Novos Rumos" in RT 629/71 e ss. (433) Assim ensina tb. Aguiar Dias, p. 18. (p. 578) CDC caracteriza-se como um regime de responsabilidade legal do fornecedor, tanto daquele que possui um vínculo contratual com o consumidor, quanto daquele cujo vínculo contratual é apenas com a cadeia de fornecedores.{434} A doutrina brasileira mais moderna está denominando Teoria da Qualidade,{435} o fundamento único que o sistema do CDC instituiria para responsabilidade (contratual e extracontratual) dos fornecedores. Isto significa que ao fornecedor, no mercado de consumo, a lei impõe um dever de qualidade dos produtos e serviços que presta. Descumprido este dever surgirão efeitos contratuais (inadimplemento contratual ou ônus de suportar os efeitos da garantia por vício) e extracontratuais (obrigação de substituir o bem viciado, mesmo que não haja vínculo contratual, de reparar os danos causados pelo produto ou serviço defeituoso). A Teoria da Qualidade se bifurcaria, no sistema do CDC, na exigência de qualidade-adequação e de qualidade-segurança, segundo o que razoavelmente se pode esperar dos produtos e dos serviços. Nesse sentido haveriam vícios de qualidade por inadequação (arts. 18 \e ss.) e vícios de qualidade por insegurança (arts. 12 a 17) do CDC.{436} A esclarecedora apresentação da Teoria da Qualidade por seu iniciador no Brasil, Antônio Herman Benjamin,{437} e a sua perfeita adaptação às normas introduzidas pelo CDC no ordenamento jurídico brasileiro, tornam desnecessária qualquer discussão sobre a utilidade desta teoria na interpretação e no entendimento do novo regime de responsabilidade. Realmente, a responsabilidade do fornecedor em seus aspectos \contratuais e extracontratuais, presente nas normas do CDC (arts. 12 a 27), está objetivada, isto é, concentrada no produto ou no serviço prestado, concentrada na existência de um defeito (falha na segurança) ou na existência de um vício (falha na adequação, na prestabilidade). * (434) Veja nossas conclusões sobre a natureza da responsabilidade pelo fato do produto impostas aos fornecedores pelo CDC, no título 2.4, deste Capítulo. (435) Veja, excelente, Benjamin, Comentários, pp. 38 e ss., baseando-se nos mestres consumeristas Bourgoignie e Calais-Auloy. (436) O CDC não menciona os vícios por insegurança, e sim a responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço e a noção de defeito; esta terminologia

nova, porém, é muito didática ajudando na interpretação do novo sistema de responsabilidade. (437) Comentários, Saraiva, pp. 38 a 43. (p. 579) Observando a evolução do direito comparado há toda uma evidência que o legislador brasileiro inspirou-se na idéia de garantia implícita do \sistema da COmmon law (implied warranty). Assim, o produto ou serviços prestados trariam em si uma garantia de adequação para o seu uso e, até mesmo, uma garantia referente à segurança que deles se espera. Há efetivamente um novo dever de qualidade instituído pelo sistema do CDC, um novo dever anexo à atividade dos fornecedores. Trata-se, como afirmamos anteriormente, de uma responsabilidade legal. O dever anexo de qualidade, qualidade-adequação, e seu reflexo, o vício por inadequação do produto ou do serviço, substituem no sistema do CDC, com largas melhoras, a noção de vício redibitório. Mas tratando-se de responsabilidade pelo fato do produto, responsabilidade puramente extracontratual e não mista, como a oriunda da nova noção de vício (art. 18 do CDC), consideramos que o sistema instituído pelo CDC de uma garantia de qualidade foi complementado por noções oriundas, também, do direito comparado, no caso, da Comunidade Econômica Européia. Esta influência européia destaca a importância da noção de defeito, de modo a evitar as falhas do sistema da common law (de origem contratual), procurando, assim, alcançar uma responsabilidade objetiva eficaz, que está sendo chamada na Europa de responsabilidade não-culposa, e cuja introdução ou não no ordenamento jurídico brasileiro será examinada em detalhes no título 2.4 deste capítulo. Feita esta ressalva, podemos concluir que a Teoria da Qualidade, proposta pelo mestre de São Paulo, permite uma releitura mais adaptada à realidade atual da garantia do vício redibitório, tradicionalmente restrita como responsabilidade contratual, e serve para acentuar a natureza independente da culpa da responsabilidade pelo fato do produto, objetivando-a na atividade do fornecedor, constituindo-se, assim, em instrumento eficaz para atingir a proteção do consumidor. Tratando-se de Direito do Consumidor, a sua causa primeira, a razão de ser de todos estes seus novos institutos, deve ser a atividade do sujeito protegido pelo direito, isto é, o consumidor. O direito muda, evolui a fim de proteger o consumidor, seja em suas expectativas em relação à prestação contratual, seja em suas expectativas em relação a um tipo determinado de serviço ou de produto, sua adequação para determinados fins, ou a segurança que dele razoa\velmente se espera. (p. 580) Nesse sentido, temos pautado toda a sistemática deste trabalho em princípios, princípios estes que seriam a origem das normas do CDC. O princípio, no caso em exame, seria o da proteção da confiança, o da proteção das legítimas expectativas, contratuais e extracontratuais, criadas no mercado de consumo pela atividade dos fornecedores. Estes por sua atividade, e não só com a colocação de sua marca no produto, mas todos os que contribuíram para a colocação daquele produto no mercado, como técnicos, como profissionais, prometeram uma obra isenta de vícios ou defeitos; nisto confiou o consumidor (contratante ou não). O princípio das novas normas sobre vício seria o da proteção da confiança, que o produto ou serviço despertou legitimamente no consumidor. Confiança{438} esta na adequação do produto ou serviço aos

\"fins que razoavelmente deles se esperam", segundo dispõe o art. 20, § 2.º do CDC. O método escolhido pelo sistema do CDC foi positivar um novo dever legal para o fornecedor, um dever anexo, um dever de qualidade, como ensina Benjamin.{439} Se a Teoria da Qualidade concentra-se no objeto da prestação contratual (produto ou serviço), é porque visualiza o resultado da atividade dos fornecedores de modo a imputar-lhes objetivamente o dever de qualidade dos produtos que ajudam a colocar no mercado. Mas seu fim é o mesmo de todas as normas do CDC, a proteção do consumidor, assegurando seu ressarcimento, evitando novos danos, melhorando a qualidade de vida, trazendo maior harmonia e segurança às relações de consumo. Nesse sentido é uma teoria típica do novo Direito do Consumidor, não devendo ser utilizada no Direito Comercial ou Direito Civil comum, pois trata-se de uma responsabilidade legal, dependente dos parâmetros impostos nas previsões legais.{440} Em outras palavras, a ação do fornecedor, a sua prestação e a qualidade de sua prestação, só * (438) Veja sobre a teoria da confiança a obra de Koendgen e nossa exposição no capítulo 1, título 4.2, em especial letra "c". (439) Benjamin, Comentários, p. 39. (440) Nesse sentido a Teoria da Qualidade seria diferente daquela desenvolvida pela jurisprudencia francesa, de Defeito baseada na interpretação do art. 1.641 do Code Civil, que tb. estabelece uma garantia pela funcionalidade do bem, mas se aplica a todos, consumidores ou não, veja detalhes em \Macena de Lima, p. 97. (p. 581) interessa enquanto relacionada com a reação do consumidor ou alguém a ele equiparado. A imposição deste novo dever legal tem seus limites definidos no \CDC,{441} o dever de qualidade liga-se ao princípio da proteção da confiança, confiança esta depositada pelo consumidor no resultado da atividade produtora do fornecedor, confiança esta despertada pela atividade do fornecedor, por seu produto ou serviço, como duas facetas da mesma realidade. Feitas estas observações, passamos a analisar o conjunto de disposições presentes nos arts. 18 a 26 do CDC. a) Vícios de qualidade - vícios por inadequação - Segundo a teoria que estamos seguindo,{442} o sistema do CDC prevê três tipos de vícios por inadequação dos produtos: vícios de impropriedade, vícios de diminuição do valor e vícios de disparidade informativa. Estes últimos denominamos aqui vícios de qualidade por falha na informação, os quais por sua relação com o dever de informação, destacado anteriormente como um dos principais do novo regime contratual do CDC, estudaremos em seção à parte (letra b). Quanto aos vícios por inadequação, o dispositivo mais importante é o do art. 18 do CDC, o qual institui em seu caput uma solidariedade entre todos os fornecedores da cadeia de produção, com relação à reparação do dano (note-se que é um dano contratual na visão do consumidor) sofrido pelo consumidor em virtude da inadequação do produto ao fim que se destinava. Assim, respondem pelo vício do produto todos aqueles que ajudaram a colocá-lo no mercado, desde o fabricante (que elaborou o produto e o rótulo), o distribuidor, ao

comerciante (que contratou com o consumidor). A cada um deles é imputada a responsabilidade pela garantia de qualidade-adequação do produto. Parece-nos, em um primeiro estudo, uma solidariedade imperfeita, porque tem como fundamento a atividade de produção típica de cada um deles. É como se a cada um deles a lei impusesse um dever específico, respectivamente, de fabricação adequada, de distribuição * (441) O vício, por exemplo, só existirá se o germe do vício já existir à época da entrega do bem, afastando a "inadequação" causada por mau uso (veja 2.3.c) e mesmo o vício por insegurança fica afastado se o defeito existia, mas \houve "culpa exclusiva" da vítima (art. 12, § 1.º, III) (veja 2.4). (442) Assim Benjamin, Comentários, p. 86. (p. 582) somente de produtos adequados, de comercialização somente de produtos adequados e com as informações devidas. No sistema do \CDC, a escolha de tal dos fornecedores solidários será sujeito passivo \da reclamação do consumidor cabe a este último. Normalmente, o consumidor preferirá reclamar do comerciante mais próximo a ele, mais conhecido, parceiro contratual identificado, mas o fabricante, muitas vezes o único que possui conhecimentos técnicos para suprir a falha no produto, será eventualmente demandado a sanar o vicio. Dispõe o art. 18 do CDC: "Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade..., podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. "§ 1.º Não sendo o vício sanado, no prazo máximo de 30 dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: "I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; "II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; "III - o abatimento proporcional do preço". Das hipóteses de composição do vício, previstas no § 1.º do art. 18 do CDC, duas são dirigidas especialmente ao fornecedor-direto, isto é, aquele que contratou, que vendeu o produto ao consumidor. São elas a "restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada", prevista no inciso II e o "abatimento proporcional do preço". Nestes casos, o sistema do CDC também prevê uma solidariedade imperfeita; logo todos os fornecedores respondem, em potencial, mas terão direito de regresso contra o comerciante e vice-versa. Se a intenção do consumidor for conseguir a rescisão do contrato (redibição) e o abatimento do preço que pagou, irá normalmente voltar-se ao comerciante, que foi o seu parceiro contratual. Também a hipótese prevista no art. 18, in fine, de substituição das partes viciadas, e do prazo previsto no § 1.º, segundo a qual o fornecedor pode tentar consertar o vício durante 30 dias, após a reclamação do consumidor, parece que será mais usada contra o fornecedor-final.{443} * (443) Veja decisão do JEPC/SP, reproduzida in Direito do Consumidor, 10/275, com a seguinte ementa: "Aquisição de bem durável (aparelho de ar (p. 583) Nunca é demais frisar que este prazo de 30 dias previsto no § 1.º só será utilizado em situações especiais, que permitam a substituição

das partes do produto. Nesse sentido, é claro o § 3.º que exclui o prazo "sempre que em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto, diminuir-lhe o valor...". É um critério bastante subjetivo, que será sempre interpretado pró-consumidor, tendo em vista as expectativas legítimas que o produto despertou nele. Tratando-se de uma sociedade de consumo, o eventual conserto de bens de grande valor geralmente acarreta a diminuição de seu valor. O § 3.º do art. 18 também exclui este prazo de conserto, a favor do fornecedor, "sempre que... se tratar de produto essencial". O CDC não define o que é um produto essencial; a princípio todos os produtos comestíveis e de uso pessoal básico já podem ser aí incluídos. O critério deve ser lido sob o impacto do princípio da proteção da confiança; assim, se o consumidor compra um sapato, mesmo que para utilizar em festas e o sapato apresenta um vício de inadequação, a loja não pode exigir, como ocorreu em Porto Alegre, "o prazo legal de 30 dias" para consertar o sapato ou "talvez depois substituí-lo por outro semelhante". O produto é essencial, quanto à expectativa do consumidor de usá-lo de pronto; logo, deve o consumidor poder exigir de pronto a substituição do produto. Ainda quanto ao prazo do § 1.º do art. 18, confirma a tendência de ter sido criado para benefício do fornecedor-direto o fato do § 2.º do art. 18 prever a possibilidade de convenção contratual a respeito. Efetivamente dispõe o art. 18: "Art. 18... "§ 2.º Poderão as partes convencionar a redução ou ampliação do prazo previsto no parágrafo anterior, não podendo ser inferior a 7 (sete) nem superior a 180 (cento e oitenta) dias. Nos contratos de adesão, a *condicionado) com defeito de qualidade (avaria no compressor). Exigência do fornecedor-direto do prazo de 30 dias para sanar o vício, que não se compadece com a extensão do defeito. Produto, além do mais, que se classifica como essencial, consideradas as circunstâncias do caso. Interpretação dos §§ 1.º e 3.º do art. 18 do CDC. Sentença reformada". (Acórdão da Turma do Conselho Recursal, Proc. 6.133/93, rel. Juiz Jairo dos Santos Ferreira). (p. 584) cláusula de prazo deVerá ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor". O prazo do § 1.º, apesar de utilização rara, como frisamos, tendo em vista o princípio da confiança e o respeito às expectativas do consumidor, trata-se de um prazo semi-dispositivo. Este é um exemplo raro no novo Código de Defesa do Consumidor de um direito poder ser reduzido através do contrato. A autonomia de vontade pode reduzir este prazo para até 7 dias ou ampliá-lo, como será a regra, até 180 dias através de previsão contratual. Parece-nos que não foi feliz o legislador do CDC ao permitir esta quebra no sistema, porque a hipótese de conserto do produto, de sanação do vício amigavelmente é uma das mais interessantes para a proteção das expectativas do consumidor. Através da norma do § 2.º permite o CDC que este direito do consumidor, de conserto do vício, seja postergado até por 180 dias; institui, assim, um direito do fornecedor ao cumprimento do prazo antes que o consumidor possa exigir a rescisão contratual, o abatimento, ou a substituição do produto. Não se diga que a previsão da necessidade de convenção em "separa-

do", ajudará a assegurar a eqüidade da referida cláusula. Como analisamos longamente, tratando-se de contratos de consumo, em especial de contratos de adesão, a imposição de cláusulas pelo fornecedor ao consumidor, sem que este possa se eximir, é um fato. Não importa se o consumidor lerá ou não, se terá consciência ou não dos riscos que está correndo, a experiência mostra que ele se submeterá à imposição do fornecedor, que ele assinará mais este papel colocado à sua frente. Sua confiança será quebrada não só pelo vício do produto, como também pelo prazo longuíssimo permitido em lei. Logo, a própria norma do CDC ofende o seu fim, que seria de reequilibrar a relação contratual. Para evitar abusos, espera-se que a jurisprudência interprete de forma ampla a norma do § 3.º do art. 18, que afasta a imperatividade do prazo para conserto. Somente neste caso, a interpretação será conforme o princípio da proteção da confiança do sujeito protegido pela nova lei, o consumidor. Por fim, quanto à identificação do fornecedor mais visado pelas reclamações de vícios dos produtos, cabe ainda mencionar que a hipótese do inciso I, do § 1.º do art. 18, a da substituição do produto por outro da mesma espécie, parece-nos a que os consumidores mais (p. 585) utilizarão e se voltarão tanto contra o fabricante ou distribuidor quanto contra o seu parceiro contratual, o fornecedor-direto.{444} Este novo direito de substituição do produto viciado não estava presente no sistema do Código Civil de 1917; ao contratante só era permitido redibir o contrato ou reclamar o abatimento do preço (art. 1.105). Sua inclusão é muito salutar, pois permite a satisfação dos interesses do consumidor de maneira rápida e eficaz, evitando mesmo lides judiciais se houver uma maior conscientização dos fornecedores sobre este novo direito do consumidor. Mas pode o consumidor exigir outro produto, de outra marca, para substituir o produto viciado? A hipótese foi prevista no § 4.º do art. 18, que pretende um novo reequilíbrio das prestações contratuais com o pagamento das diferenças. Dispõe o § 4.º do art. 18: "Art. 18... "§ 4.º Tendo o consumidor optado pela alternativa do inciso I do § 1.º deste artigo, e não sendo possível a substituição do bem, poderá haver substituição por outro de espécie, marca ou modelo diversos, mediante complementação ou restituição de eventual diferença de \preço, sem prejuízo do disposto nos incisos II e II, do § 1.º deste artigo". Em nosso estudo, de natureza contratual, devemos destacar como um todo o novo regime legal dos vícios por inadequação que se concentra na relação econômica equilibrada entre o objeto do contrato e a contraprestação feita pelo consumidor. Por fim cabe frisar que a solidariedade instituída pelo art. 18 do CDC não parece rompida pela norma do § 5.º.{445} O novo dever legal tem uma finalidade também educativa para os fornecedores, nesse sentido deve ser interpretada a norma em questão. Segundo o § 5.º do art. 18, o comerciante e o produtor identificado dos produtos in natura são responsáveis solidários pelos vícios do produto, um porque o produziu e outro porque o colocou no mercado e vinculou-se con-

* (444) Note-se que em toda a nossa exposição estamos recusando aceitar a teoria francesa da existência de uma relação contratual entre o consumidor e o fabricante, relação esta que se baseia na ficção de uma cadeia de contratos. Hoje esta teoria não é mais necessária e nem traz benesses especiais ao consumidor pelos problemas processuais que origina. (445) Com opinião contrária Benjamin, Comentários, p. 87. (p. 586) tratualmente com o consumidor. Se o comerciante descumprir também seu dever de identificar a origem do produto a responsabilidade ficará concentrada em sua pessoa, ele é o agente imputável, porque outro não existe frente ao consumidor, destinatário da norma. Na cadeia de produção todos são responsáveis da mesma maneira, podendo haver ação de regresso do comerciante. O produto inadequado no sistema do CDC é aquele impróprio e o que tem seu valor diminuído. A segunda hipótese é mais subjetiva e será determinada caso a caso, tendo em vista o princípio da confiança e do equilíbrio das prestações. A primeira hipótese, porém, é mais objetiva, e o § 6.º estabelece alguns critérios que caracterizam um produto impróprio ao uso e ao consumo: "I - os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos; "II - os produtos deteriorados, alterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação; "III - os produtos que, por qualquer motivo, se revelarem inadequados ao fim que se destinam". A clareza da norma nos leva a comentar somente seus critérios de aplicação. O regime de vícios pressupõe um descumprimento de um dever anexo dos fornecedores, como analisamos anteriormente, um dever de qualidade, dever de adequação do produto ao uso que se destina. Nesse sentido o produto é viciado "de origem", viciado por uma falha na sua adequação que já veio com ele quando foi colocado no mercado. Concretamente, o CDC impõe aos fornecedores a obrigação de liberar no mercado somente produtos isentos de vícios. Tratase de uma obrigação de resultado, não importa perquirir a culpa de algum dos fornecedores da cadeia. O importante é o vício, que será reclamado, normalmente, frente ao comerciante-direto, último da cadeia, aquele que conclui o contrato com o consumidor. Frisamos este aspecto, porque as normas de vícios do CDC não se referem ao problema do mau uso. O mau uso liga-se ao problema do dever de informação; cumprido este dever anexo, o fornecedor só responde pelo vício de adequação do produto, não pelo problema de adequação do produto oriundo de eventual mau uso pelo consumidor (p. 587) ou terceiro. Na expressão feliz de Benjamin,{446} o germe do vício já devia existir no momento da última atividade do fornecedor. Outro não era o sistema do Código Civil Brasileiro, que previa o "vício oculto, já existente ao tempo da tradição" em seu art. 1.104. No sistema do CDC, como analisaremos em detalhes no título dedicado à garantia de adequação dos produtos, o vício pode ser oculto ou aparente, vício da coisa ou do serviço, sempre que haja contrato de consumo, não necessitando ser contrato comutativo, se bem que este seja a regra.

Evitar tal vício na qualidade do produto é dever legal de todos os fornecedores da cadeia de produção, responsáveis pela introdução do produto no mercado de consumo. A responsabilidade nasce com a simples violação do dever legal, não sendo seu pressuposto a culpa do fornecedor ou de seu preposto (negligência, imperícia, imprudência), não importando por isso a ciência, o conhecimento ou não do vício pelo fornecedor responsabilizado (art. 23 do CDC). Alguns autores consideram que no caso há presunção absoluta de culpa.{447} Outros consideram{448} que a obrigação de garantia, isto é, o dever da qualidade que se impõe ao fornecedor, trará como resultado da violação deste dever a atribuição de uma responsabilidade objetiva, sem culpa, que só pode ser afastada em caso de prova de causa alheia (mau uso, culpa exclusiva de terceiro, caso fortuito externo à atividade do fornecedor e posterior à entrega do bem ao consumidor) ou em caso de não aplicação da norma àquele fornecedor (fornecedor alheio ao processo de produção daquele bem).{449} * (446) Benjamin, Comentários, p. 114. (447) Assim Stiglitz, p. 91 e Benjamin, Comentários, p. 114; veja sobre presunção de culpa como o fundamento da responsabilidade por vício a lição clássica de Mazeaud, pp. 375 e ss. (448) Assim propõe a Exposição de Motivos do Projeto Argentino reproduzido em Stiglitz, p. 135, a Lei Argentina aprovada (Lei 24.240 de 15.10.93), porém, sofreu um veto presidencial (art. 11, parte inicial), o qual modificou (praticamente extinguiu) o previsto regime de garantias; veja texto integral da lei em nosso "Estudos". Segundo ensina Stiglitz, Estudos, p. 152, manteve-se apenas o dever anexo de segurança, forte no art. 1.198 do CC Argentino (Cláusula geral de boa-fé) e as regras dispositivas sobre a garantia contratual. (449) Nesse sentido tb. as conclusões de Benjamin, Comentários, p. 114, prevendo que a exoneração do fornecedor só acontecerá se provar a inexistência do vício, do dano, do nexo causal entre eles ou não existir a anterioridade do vício (causa alheia). (p. 588) Parece-nos que, tratando-se de um dever contratual específico e de um dever legal específico, não há mais necessidade de falar-se em culpa, bastando a comprovação do fato, analogicamente a um descumprimento contratual.{450} Não desconhecemos que a idéia de presunção de culpa foi muito importante para facilitar a aprovação do Projeto de Código, tendo em vista a forte reserva que qualquer tipo de responsabilidade objetiva desperta nos setores mais tradicionais. O sistema do CDC seria, assim, um sistema de compromisso, de responsabilidade objetiva para o fato do produto e de presunção absoluta de culpa na responsabilidade contratual e extracontratual por vícios de inadequação. Os resultados são praticamente os mesmos, tratando-se de uma presunção que não pode ser afastada ou de uma responsabilidade objetiva. Os resultados estão nas próprias normas do CDC, com clara

tendência a concentrar, a objetivar a responsabilidade no resultado (falta de adequação) e não na ação (eventual culpa na fabricação do produto, no empacotamento). Isto se deve à necessidade de responsabilizar alguém pelo domínio da técnica de produzir, em uma sociedade de massas, como a nossa.{451} Também o direito tradicional, em matéria de vícios redibitórios, não perguntava da culpa, imputava a responsabilidade ao parceiro contratual, baseado na idéia de equilíbrio das prestações contratuais (sinalagma). Nesse sentido o sistema do CDC não pergunta da eventual culpa, basta o resultado objetivo (existência de um vício), a base subjetiva (quebra da confiança razoável) e a previsão legal do dever violado. O CDC adota, assim, uma imputação, ou atribuição objetiva, pois todos são responsáveis solidários, responsáveis, porém, em última análise por seu descumprimento do dever de qualidade, ao ajudar na introdução do bem viciado no mercado. A legitimação passiva se \* (450) Para Macena de Lima, p. 227, na conclusão de Tese de Doutorado, a presunção de culpa e a inversão do õnus da prova apenas mascaram uma responsabilidade por infração de um dever próprio, que deveria ser objetivada. Particularmente, acredito que a noção de culpa é, no contrato, desnecessária, se observados os princípios de boa-fé e de proteção da confiança. Parecenos que em um Direito do Consumidor a culpa não deveria ser mais pressuposto da responsabilidade. (451) Nesse sentido só a "causa alheia" à atividade de produção e à vida normal do produto exoneraria o fornecedor de suportar o vício. (p. 589) amplia com a responsabilidade solidária e com um dever de qualidade que ultrapassa os limites do vínculo contratual consumidor/fornecedordireto. Concluindo, há a imposição de um dever anexo, não só ao contrato, como eram os vícios redibitórios, mas anexo à própria atividade produtiva, abrangendo assim a todos os fornecedores, conforme dispõe o art. 18 do CDC. Podemos dizer também que o novo dever legal afasta a incidência das normas ordinárias sobre vício redibitório, assim como o dever legal de informar e cooperar afasta as normas ordinárias sobre o erro.{452} O vício, enquanto instituto do chamado Direito do Consumidor, é mais amplo e seu regime mais objetivo, não basta a simples qualidade média do produto, é necessária a sua adequação objetiva, a possibilidade que aquele bem satisfaça a confiança que o consumidor nele depositou, sendo o vício oculto ou aparente. Da mesma maneira, os legitimados passivamente, isto é, os responsáveis são agora todos os fornecedores envolvidos na produção e não só o co-contratante. b) Vícios de qualidade por falha na informação - No sistema do CDC a falha na informação, tipificada pela "disparidade com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária", é considerada vício de qualidade do produto (art. 18 do CDC). O novo regime de vícios de informação pode ter redobrada importância também tratando-se dos chamados contratos de bagatela, pequenas compras em supermercados, contratos de serviços de peque-

no valor, quando a oferta assegure qualidades ou prestações que não existem no produto ou no serviço, por exemplo, a embalagem que afirma ser o refrigerante apto para ser ingerido por diabéticos, o shampoo que afirma ser antialérgico etc. Nestes casos o consumidor * (452) Interessante exemplo da jurisprudência sobre a prevalência do novo dever legal do CDC, em matéria de qualidade, diante das normas ordinárias sobre vício redibitório e erro, encontra-se na decisão do TJRS, cuja ementa ensina: "Consumidor. Automóvel. Vício oculto. (...) Constitui vício oculto o erro quanto ao ano de fabricação, ou modelo, de automóvel, pois não se constata, desde logo, pelo confronto da nota fiscal com o próprio veículo. Caso em que o consumidor adquiriu um automóvel modelo 1995 e recebeu um modelo 1994. Apelo improvido" (Ap. Civ. 597083247, Des. Pedro Freire, j. 10.6.97, in Revista de Jurisprudência do TJRGS, n. 184, p. 377). (p. 590) terá as opções dos arts. 18 e 20 (substituição do produto, abatimento do preço, rescisão contratual etc.). Os vícios por disparidade informativa muitas vezes só poderão ser sanados pelos fabricantes, no que se refere ao conserto ou à substituição por outro em perfeitas condições (art. 18, caput e § 1.º, I), pois são estes que rotulam, embalam o produto e que conhecem as suas fórmulas. Mas ao consumidor interessa rapidez na satisfação de suas pretensões contratuais, por isso fará uso, também em caso de falha na informação, das hipóteses previstas nos outros incisos do art. 18, mas diretamente contra o comerciante, seu parceiro contratual. Destaque-se igualmente a possibilidade do consumidor optar pela substituição do bem por outro de outra espécie, marca ou modelo, desde que haja complementação (ou eventual redução) do preço pago, conforme dispõe o § 4.º do art. 18. c) Vícios de quantidade - Segundo dispõe o art. 19 do CDC, também em caso de vício de quantidade do produto os fornecedores respondem solidariamente.{453} A regra do art. 19 caracteriza-se, porém, por uma maior subjetividade já que excepciona várias hipóteses de diferença de quantidade "decorrentes da natureza" do produto. Parâmetro para se auferir a diferença de quantidade serão as informações constantes "do recipiente, da embalagem, da rotulagem ou da mensagem publicitária". O art. 19 não menciona a oferta, mas a hipótese está claramente incluída uma vez que há obrigação contratual, de cumprir o prometido na oferta em geral e não só na publicidade. Segundo dispõe o art. 19 o consumidor tem a sua escolha, alternativamente: "Art. 19... "I - o abatimento proporcional do preço; "II - complementação do peso ou medida; "III - a substituição do produto por outro da mesma espécie, marca ou modelo, sem os aludidos vícios; "IV - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos". * (453) O art. 18 do CDC já mencionava os vícios de quantidade, mas o regime

legal específico é fornecido pelo art. 19. (p. 591) As opções escolhidas parecem indicar uma tendência a permitir a composição amigável e extrajudicial do litígio, como é a tendência atual, evitando a morosidade e os gastos da lide judicial e privilegiando a utilização dos Juizados de Pequenas Causas e outros foros de conciliação.{454} O acesso à justiça está previsto expressamente como direito básico do consumidor no art. 6.º, inciso VII do CDC. Cabe destacar que, optando o consumidor pela substituição do produto e não sendo esta possível, por força do art. 19, § 1.º CDC, "poderá haver substituição por outro de espécie, marca ou modelo diversos, mediante complementação ou restituição de eventual diferença de preço..." Quanto à reparação do vício de quantidade o sistema do CDC impõe uma responsabilidade específica do fornecedor-direto ou comerciante, a qual romperia assim a normal solidariedade dos fornecedores. É no caso previsto no § 2.º do art. 19 do fornecedor-contratante realizar a pesagem ou a medição do produto e o instrumento utilizado não estiver aferido segundo os padrões oficiais; neste caso assume a responsabilidade sozinho de reparar o "vício de quantidade".{455} 2.2 Novo regime para os vícios do serviço O CDC inova o sistema brasileiro ao introduzir uma noção de vício do serviço, no art. 20. Não que no sistema do direito civil tradicional não existisse remédio jurídico para a falha na execução do serviço contratado; simplesmente, o caso era considerado como inadimplemento contratual e não como vício redibitório. O Código Civil regulava apenas os vícios redibitórios, aqueles vícios ou defeitos ocultos, que tornem a coisa recebida em virtude do contrato comutativo imprópria ao uso a que é destinada ou lhe diminuam o valor (art. 1.101 do CCB). A nova idéia de vício do serviço, capaz de originar até a rescisão do contrato, facilita a satisfação do contratante e agiliza o processo de cobrança da prestação ou da reexecução do serviço, isto porque * (454) Assim tb. Stiglitz, p. 49 e excelente, Benjamin, Comentários, p. 86. (455) Mais uma vez o CDC assume um caráter educativo, conduzindo o fornecedor-direto a auferir os seus instrumentos de pesagem e medição de \forma a desonerar-se desta imputação solitária da responsabilidade. (p. 592) concentra-se na funcionalidade, na adequação, do serviço prestado e não na subjetiva existência da diligência normal ou de uma eventual negligência do prestador de serviços e de seus prepostos. A prestação de um serviço adequado passa a ser a regra, não bastando que o fornecedor tenha prestado o serviço com diligência. a) Vícios de qualidade dos serviços - Enquanto o direito tradicional se concentra na ação do fornecedor do serviço, no seu fazer, exigindo somente diligência e cuidados ordinários, o sistema do CDC, baseado na teoria da função social do contrato, concentra-se no efeito do contrato. O efeito do contrato é a prestação de uma obrigação de fazer, de meio ou de resultado. Este efeito, este serviço prestado, é que

deve ser adequado para os fins que "razoavelmente deles se esperam";{456} é o serviço prestado, por exemplo, o transporte de passageiros, a pintura da parede da casa, a intervenção cirúrgica ou a guarda do automóvel na garagem, que deve possuir a adequação e a prestabilidade normal. Está claro que o fazer e seu resultado são inseparáveis, conexos de qualquer maneira, mas o CDC como que presume que o fazer foi falho, viciado, se o serviço dele resultante não é adequado ou não possui a prestabilidade regular.{457} Se efetivamente o fornecedor agiu ou não com a diligência, o cuidado e a vigilância normal, quando da prestação de sua obrigação, importa apenas para a alegação de um eventual inadimplemento contratual.{458} O recurso usado pelo CDC de instituir uma noção de vício * (456) Veja nesse sentido, exemplo de decisão do JEPC/RS: "Conserto de motor realizado com deficiência - Pagamento do preço pelo cliente - Direito a restituição do quantum despendido - Incabível argumento de que fora serviço contratado pela metade. Não pode prosperar alegação da oficinaré, no sentido de ter o cliente-autor contratado o serviço pela metade. O preço cobrado tem o condão de resolver o problema do motor objeto do conserto, de sorte que a permanência do defeito gera direito à restituição do quantum despendido". (Proc. 01189753161, Rec. 65/89, rel. Dr. Roberto Laux, 1.ª Câm. Recursal do Juizado Especial de Pequenas Causas, 12.10.89). (457) Veja na letra "a", 2.1 a discussão se se trata de uma presunção absoluta de culpa do fornecedor pelo vício ou de uma responsabilidade objetiva. Já nos manifestamos no sentido de tratar-se de uma responsabilidade oriunda de um dever legal e objetivamente imputada, em caso de violação do dever que frustre a confiança depositada pelo consumidor no produto. (458) Veja, quanto ao inadimplemento contratual, interessante decisão: "Responsabilidade Civil Solidária. Empresas integradas na venda de consórcio (p. 593) do serviço facilitará a satisfação das expectativas legítimas dos consumidores também nos contratos de serviços, pois objetiva os critérios jurídicos para determinar se há ou não falha na prestação do fornecedor. Dispõe o art. 20 CDC, quanto à qualidade dos serviços: "Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, podendo o consumidor exigir, alternativamente e a sua escolha: "I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível; "II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; "III - o abatimento proporcional do preço". No caso de vícios de qualidade do serviço importa caracterizar o que seja um serviço "impróprio". Segundo o sistema do CDC, "impróprios são os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam às normas regulamentares de prestabiLidade". (art. 20, § 2.º).

Nunca é demais repetir, que esta concentração feita do sistema do CDC no "serviço prestado" não significa que todas as obrigações de fazer passam a ser obrigações de resultado. Se a obrigação é de meio (por exemplo, um tratamento médico, uma cirurgia), só se pode exigir que o fornecedor preste um serviço adequado para os fins que razoavelmente dele se espera (salas de cirurgia com o material necessário, limpas,{459} preparadas para emergências, ou um tratamento \*respondem solidariamente por conduta ilícita praticado funcionário de uma delas, que vende a mais de um cliente a mesma quota consorcial. Recursos \improvidos. Sentença mantida". (Rec. 473/93, rel. Dr. Cíaudir Fidélis \Faccienda, 3.ª Câm. Recursal, Porto Alegre, 13.5.93 JEPC/RS); veja tb. no caso de contratos médicos, RT 695/84, considerando razoável o serviço prestado e, contra, RJTJRS 160/294, com condenação por danos morais. (459) Grande problema é a responsabilidade por infecção hospitalar, veja decisão do TJRS, Ap. 595 060 146, Des. Osvaldo Stefanello, j. 19.12.95, cuja ementa é: "Responsabilidade Civil. Morte por infecção contraída em hospital. Entidade hospitalar, pessoa jurídica. Aplicação dos preceitos contidos no Código do Consumidor. É o hospital, pessoa jurídica, civilmente responsável por danos materiais e morais sofridos por familiares de (p. 594) médico com remédios e exames normais para aquele caso), mas não se pode exigir que o serviço alcance um determinado resultado (cura do paciente ou evitar a sua morte).{460} Note-se, porém, se o serviço é considerado obrigação de resultado (como vacinação, transfusão de sangue, exames simples, segurança dos instrumentos que utiliza e visitas),{461} basta demonstrar o descumprimento do contrato, o vício do serviço.{462} Em outros casos trata-se da responsabilidade por perda de uma chance{463} ou de deveres inerentes à internação *pessoa que, por infecção hospitalar contraída durante internamento, vier a morrer. Hospital que não presta apenas serviços de hotelaria, mas fornecedor do equipamento e instrumentos cirúrgicos, empregador do corpo de funcionários, mesmo graduados, além de credenciador do corpo médico, sendo, conseqüentemente, responsável por tudo o que ocorrer no período de internamento do paciente, inclusive e especialmente no campo da responsabilidade por dano que decorrer à saúde ou à vida do paciente. Responsabilidade só afastada se o dano decorrer do imponderável, do fortuito ou da força maior, causas externas e excludentes de responsabilidade. Ademais, entidade prestadora de serviços, está, o hospital, sujeito ao CDC, Lei 8.078/90, inclusive no que diz com a inversão do ônus de provar e ao princípio da responsabilidade objetiva (...)" No mesmo sentido, veja decisão do TAMG, in Revista Direito do Consumidor v. 9, p. 151. (460) Sobre as obrigações de meio dos médicos, de diligência e zelo, veja TJSP, \Ap. Civ. 177.280-1/8, Rel. Souza Lima, e também Andorno, p. 224 e ss. (461) Assim Aguiar Jr., p. 39, citando base doutrinária e jurisprudencial.

(462) Polêmica ainda é a inclusão das cirurgias estéticas como obrigação de resultado, apesar de ser esta a tendência. Veja, com revisão da doutrina, \Forster, Nestor José. Cirurgia plástica estética: obrigação de resultado ou obrigação de meios?, in RT 738, p. 83-89. Veja considerando obrigação de resultado, TJRS, Ap. Civ. 595 068 842, j. 10.10.95, Rel. Des. Osvaldo Stefanello, em cuja ementa lê-se: "(...) A cirurgia plástica de natureza meramente estética objetiva embelezamento. Em tal hipótese o contrato médico-paciente é de resultado, não de meios. A prestação do serviço médico há de corresponder ao resultado buscado pelo paciente e assumido pelo profissional da medicina. Em sendo negativo esse resultado ocorre a presunção de culpa do profissional (...)". (463) Veja também o leading case do TJRS, após o CDC, reconhecendo a "perda de uma chance" como fator de responsabilidade médica, Ap. Civ. 592.020.846, Araken de Assis, in RTJRS, n. 158, p. 214: "Liberando o paciente e retardando seu reingresso a instituição hospitalar, o apelante fê-lo perder chance razoável de sobreviver, embora a virulência estatística da doença". Veja, anterior ao CDC, Des. Ruy Rosado de Aguiar Jr., in RJTJRS, n. 149, (p. 595) hospitalar{464} e de deveres de pós-eficácia do contrato.{465} Nestes casos, os limites são do próprio tipo de contrato que vincula as partes não pertencendo à noção de vício do serviço instituída pelo CDC. Por fim, parece-nos que o art. 20 concentra imputação da responsabilidade por vício do serviço naqueles que efetivamente prestam o serviço para o consumidor. Aqui há um dever de qualidade, dever de adequação do serviço. O fornecedor é responsável, não importando a sua culpa. a culpa ou não de seus prepostos, de seus eventuais auxiliares (como no caso dos contratos de viagem turística),{466} de seus representantes. Não é demais lembrar aqui a responsabilidade imposta ao fornecedor de serviços pelo art. 34 do CDC, por ato, diligente ou não, de seu preposto ou representante autônomo.{467} O *p. 459-463. Veja comentários desta linha jurisprudencial em Gerson Luiz Carlos Branco, Aspectos da Responsabilidade Civil e do Dano Médico, in RT 733, p. 66. (464) Assim manifestou-se o TJRS, considerando deveres inerentes à internação hospitalar a proteção contra infecção hospitalar: "Civil. Responsabilidade Civil. Hospital. Morte de parturiente em virtude de infecção hospitalar. Procedência (...). 2. O hospital responde, civilmente, pelos atos de seus médicos, integrantes do corpo clínico e de seu pessoal auxiliar, agindo sob orientação daqueles, bem como pelo descumprimento de deveres inerentes à internação hospitalar. No último caso, se situa a infecção hospitalar, contraída pela parturiente, que não a portava antes da baixa, que representa quebra do compromisso básico de causar-lhe dano em decorrência da \própria internação" (EI 596 057 216,j. 2.08.96, Des. Araken de Assis).

(465) Sobre cuidados básicos pós-operatórios, veja TJRS, Ap. Civ. 595 080 011, j. 30.11.95, Rel. Des. Clarindo Favretto, cuja ementa é: "Responsabilidade Civil. Médico. Cirurgia e morte posterior do paciente. A obrigação do médico não acaba com a cirurgia. mas ele continua juridicamente vinculado ao devido acompanhamento pós-operatório, pena de incorrer em negligên\cia". (466) Veja nesse sentido a decisão de JEPC/RS, com a seguinte ementa: "Responsabilidade civil - Negligência - Motor fundido - Ausência de óleo no motor - Dever de indenizar. É responsável o posto-réu, diante da negligência de empregado que, apesar de cobrar o valor referente à troca de óleo, libera o veículo do autor sem repor o óleo retirado, dando causa ao fundimento do motor. Dever de indenizar o equivalente ao reparo do motor fundido". (Proc. 01188756439, Rec. 44/89, Relator Dr. Silvestre Jasson Ayres Tôrres, 1.ª Câm. Recursal do JEPC/RS, 11.5.89). (467) Veja capítulo II, 1.2. (p. 596) art. 20 do CDC concentra-se na qualidade dos serviços, no resultado obtido e não na atuação direta ou indireta do fornecedor e na valoração desta atuação. Trata-se, portanto, de uma norma genérica de garantia de prestabilidade do serviço que ao mencionar apenas o "fornecedor" institui uma solidariedade legal entre toda a cadeia de fornecedores, organizados para servir ao consumidor.{468} Cabe ao consumidor a escolha de quem irá reclamar, geralmente seu co-contratante direto, como as agências de viagens, que poderão ressarcir-se com base no disposto no parágrafo único do art. 7.º do CDC.{469} Frise-se que no caso de serviços prestados por muitos fornecedores (unidos entre si ou não) o dever legal de qualidade é de todos. Veja interessante precedente de vício de todos os fornecedores por falha no dever anexo de boa-fé, cautela e sigilo, em pequena cidade do interior gaúcho, na decisão do Tribunal de Justiça/RS, 3.ª C., Ap. Civ. 595 160 250, j. 7.12.95, Rel. Des. Araken de Assis, cuja ementa é: "Civil. Responsabilidade civil. Divulgação de resultado de exame para identificar o vírus da sida, culpa do médico e do hospital, pela divulgação, e do laboratório, que não ressalvou a possibilidade de erro. 1. O médico e o hospital respondem, solidariamente, pelos danos materiais e morais causados à paciente pela divulgação do resultado de exame para identificar o vírus da Sida (Síndrome da Imuno deficiência Adquirida). Quebra de sigilo inadmissível, no local e nas circunstâncias, considerando o óbvio preconceito contra a doença. Também faltou o médico com o seu dever de informar ao paciente do resultado do exame e de não exigir confirmação do resultado. E há responsabilidade do laboratório, porque não ressalvou, ao comunicar o resultado, a possibilidade de o resultado se mostrar equivocado. Dano material bem arbitrado. Dano moral majorado". * (468) Desta solidariedade retiram-se também efeitos processuais. Assim decidiu o TJRS que: "Agravo de instrumento. Ação de reparação. Agência de viagem. Legitimidade passiva. Denunciação da lide. Tem a agência de viagem, perante seu cliente, consumidor, a legitimidade passiva para ação de reparação por insatisfatório serviço, resguardada da ré eventual regresso contra outrem como a operadora de viagem, a quem imputa o adimplemento

ruim" (AI 597174499, 6.ª Câm. C., Des. Antonio Janyr Dall’Agnol Júnior, j. 7.10.97, ainda não publicado). (469) Assim decidiu-se no caso antes citado, em que se tratava de venda de "pacotes fechados de turismo". Veja AI 597174499, 6.ª Câm. C., Des. Antonio Janyr Dall’Agnoll Júnior, j. 7.10.97, ainda não publicado, p. 4. (p. 597) O sistema do CDC concentra-se, objetiva-se, no resultado falho (vício) e na resultante violação de um dever legal. b) Vícios nos serviços de reparação - O sistema do CDC inova ao criar uma obrigação específica para o fornecedor de serviços de reparação, disposta no art. 21 do Código. Por imposição legal o fornecedor contratante terá a obrigação de utilizar na reparação do produto peças originais e novas. Efetivamente dispõe o art. 21: "Art. 21. No fornecimento de serviços que tenham por objetivo a reparação de qualquer produto considerar-se-á implícita a obrigação do fornecedor de empregar componentes de reposição originais adequados e novos, ou que mantenham as especificações técnicas do fabricante, salvo, quanto a estes últimos, autorização em contrário do consumidor". Quanto ao dever de adequação do serviço, e portanto das peças utilizadas, originais ou não, este é um dever geral de qualquer fornecedor de produtos ou de serviços no sistema do CDC, como veremos a seguir no título 2.3. O novo Código institui uma garantia legal, inafastável, imperativa de adequação dos produtos e dos serviços para os fins que se destinam (art. 24 do CDC). A norma do art. 21 refere-se, portanto, ao dever de utilizar componentes originais e novos. A única possibilidade do fornecedor de serviços de reparação afastar este novo dever é informando o consumidor de maneira prévia que irá utilizar outras peças (não originais ou já utilizadas) e conseguindo a "autorização" expressa do consumidor neste sentido,{470} como dispõe o art. 21, in fine. Observando a experiência no direito estrangeiro destacam-se dois grupos de problemas nos contratos de reparação: o referente ao preço do serviço e o referente à adequação do serviço ou seu vício. Quanto ao preço a dificuldade começa pela elaboração do orçamento (veja art. \40 CDC), pois muitas vezes é necessário abrir o produto para poder descobrir que tipo de conserto deve ser executado. A cobrança destas horas iniciais de trabalho, ou do transporte do produto até a oficina do comerciante já podem ser objeto de discussão, ou mesmo, para alguns, de espécie de "venda casada", proibida pelo art. 39, I. Particularmente, considero o início da prestação contratual, podendo ser cobrado do * (470) Concorda com a hipótese Benjamin, Comentários, p. 108. (p. 598) consumidor os gastos para a elaboração do orçamento, desde que previamente informado o consumidor e aceita a oferta.{471} Mesmo o necessário transporte do objeto pode ser cobrado, mas deve haver prévio conhecimento e autorização do consumidor, ou o fornecedor passa a executar um fornecimento não autorizado, o que seria uma prática abusiva, segundo o art. 39, VI do CDC. Quanto aos vícios dos serviços de reparação, a experiência demonstra que é difícil para o consumidor exigir a sua correção. O sistema do CDC tenta evitá-los através da exigência de adequação destes serviços de reparação,

exigindo igualmente a utilização de peças novas e originais. c) Vícios de informação - Sobre o novo dever do fornecedor de informação já nos referimos no capítulo III, título 1.2. Queremos agora simplesmente frisar que tratando-se de contratos de consumo objetivando a prestação de serviços, no sistema do CDC, além do problema da inadequação do serviço há o vício de informação. O vício de informação caracteriza-se, segundo dispõe o art. 20, in fine, pela disparidade entre as indicações constantes da oferta ou da mensagem publicitária e o serviço efetivamente prestado. No caso, as opções do consumidor são as mesmas do vício de qualidade do produto (reexecução, abatimento do preço ou rescisão do contrato). Observando-se a experiência de direito comprado podemos antever que esta novidade do CDC será especialmente utilizada em se tratando de contratos de viagem turística ou contratos denominados de "organização de viagens turísticas", nos quais a oferta é feita pela agência de turismo e a prestação de serviços é executada por outras pessoas, consideradas juridicamente como seus "auxiliares" no país ou cidade para onde o consumidor se deslocou.{472} Nesse sentido, já se decidiu que a omissão na oferta, feita por publicidade impressa, de alguns acréscimos no preço total da viagem, tornaria a publicidade enganosa.{473} Tratando-se de responsabilidade * (471) Assim tb. a jurisprudência alemã, relatada por Hensen, pp. 826 e 751. (472) Neste mesmo sentido, trazendo exaustiva pesquisa da nova jurisprudência brasileira sobre pacotes de viagem e contratos de turismo, veja o texto de Tepedino, apresentado no 4.º Congresso Brasileiro de direito do Consumidor, realizado em março de 1998 em Gramado a ser publicado na revista Ajuris. (473) Assim a decisão do Tribunal Federal Suíço, de 26.1.87, comentada in Revue Européenne de la consommation, 1987, 212; relembre-se que a responsabilidade pela publicidade enganosa é extracontratual. (p. 599) contratual, a lei alemã de 4 de maio de 1979 sobre o contrato de viagens,{474} permite que o contrato contenha cláusulas prevendo a eventual mudança de preços, mas até 3 semanas antes do início da viagem e assegurando um direito de desistência do consumidor.{475} O controle sobre os contratos de turismo está sendo realizado com sucesso no Brasil, através de ações civis públicas promovidas pelo Ministério Público e por inúmeras ações individuais, especialmente escolhendo a via do Juizado Especial.{476} A omissão quanto ao preço no sistema do CDC teria como reflexos a responsabilidade contratual de descumprimento do dever anexo de informar, de vício de informação, mas também a responsabilidade extracontratual pela publicidade enganosa e por seus danos causados ao consumidor. 2.3 Garantia legal de adequação do produto e do serviço a) Noções gerais - Entre os novos dispositivos que asseguram a proteção da confiança que o consumidor depositou no vínculo contratual, em seus efeitos principais, que são as prestações recebidas em virtude do contrato, o produto e o serviço, encontra-se a norma do art. 24 do CDC e garantia legal{477} que institui:

"Art. 24. A garantia legal de adequação do produto ou serviço, independe de termo expresso, vedada a exoneração contratual do fornecedor". O sistema do CDC introduz no ordenamento brasileiro uma garantia legal, imperativa, de adequação do produto.{478} Tal garantia \* (474) Reisevertragsgesetz, BGBL./S.509; veja detalhes em Ulmer/Brandner/ Hensen, pp. 737 e ss. (475) Assim Ulmer/Brandner/Hensen, p. 740. Veja a jurisprudência brasileira \sobre o tema, na Parte 1, 2. 1.2, b. (476) Veja inicial da ação civil pública movida pela Procuradora Lea Barboza Vianna Freire (MPRJ), in Revista Direito do Conswnidor, v. 20, p. 300 e ss. (477) Cf. ensina Benjamin, Comentários, p. 119, as garantias no CDC subdividem-se em garantia contra os vícios de quantidade, garantia contra os vícios de qualidade por insegurança (seção I e II) e garantia contra os vícios de qualidade por inadequação (seção III), não tratando o CDC da garantia contra evicção, a qual continua a ser regulada pelos arts. 1.107 a 1.117 CCB. (478) Assim concorda Macena de Lima, p. 98; comentando evolução semelhante no direito francês sobre vícios ocultos (1.645 e 1.646 Code Civil), conclui (p. 600) impede que se estipulem cláusulas contratuais que impossibilitem, exonerarem, ou mesmo atenuem as obrigações pelos vícios de inadequação, dispostas nos arts. 18 a 23, examinados acima. A garantia de adequação do produto é um verdadeiro ônus natural para toda a cadeia de produtores,{479} a adequação do produto nasce com a atividade de produzir, de fabricar, de criar, de distribuir, de vender o produto.{480} No sistema do CDC a garantia de adequação é mais do que a garantia de vícios redibitórios, é garantia implícita ao produto,{481} garantia de sua funcionalidade, de sua adequação, garantia que atingirá tanto o fornecedor direto como os outros fornecedores da cadeia de produção (veja art. 18, caput). A garantia por inadequação exige a existência de uma relação contratual original, pois o CDC só a impõe se existir um consumidor, isto é, aquele que adquiriu o bem de um fornecedor. Mas a partir do ato de consumo, a partir da entrega do produto para o primeiro consumidor, que retira o bem do mercado, passa a existir a garantia legal por inadequação e os pólos desta relação de garantia se multiplicarão. Isto porque de um lado o consumidor-original pode ceder a um outro consumidor-beneficiário (o patrão que recebe um relógio dos empregados no dia de seu aniversário) o produto adquirido,{482} de outro, *que se "impõe aos agentes produtores a obrigação de liberar o produto livre de defeitos. Trata-se de uma obrigação imperativa e de resultado...". (479) Para Benjamin, Comentários, p. 119, a garantia seria uma forma de

alocação de riscos. (480) Utilizando a Teoria da Aparência, a jurisprudência tem estabelecido a responsabilidade de empresas "líderes de grupos" em casos envolvendo consumidores. Veja neste sentido sobre a solidariedade da empresa de cartão de crédito em caso de seguro de vida, 1.º TASP, Ap. Civ. 610.637-2, j. 22.8.96, rel. Kioitsi Chicuta, in RT 735/290. \ (481) Defendemos aqui uma garantia inerente ao produto (ob rem), em alguns aspectos semelhante à desenvolvida pela jurisprudência norte-americana, a inzplied warranty, mas que, no sistema do CDC, adviria da atividade objetiva dos fornecedores (por isso solidários, pelo art. 18) e não só de fundo contratual. Garantia funcional de que o produto será adequado ao seu fim toda vez que ele (fornecedor) participa do processo produtivo. (482) Mesmo no caso de responsabilidade simplesmente contratual o terceiro beneficiário já podia invocar a responsabilidade do fornecedor/contratante (veja Aguiar Dias, p. 194), quanto mais em uma responsabilidade concentrada no resultado (produto) da atividade do fornecedor. (p. 601) o consumidor pode escolher pelo art. 18 se reclamará ao fornecedorcontratante (loja que vendeu o relógio) ou ao fornecedor-fabricante (quem fabricou o produto, colocou a sua marca e possui o know-how), ou mesmo a loja enviará o produto ao fabricante para que este o conserte, pois em se tratando de vícios por inadequação a garantia está muito ligada ao problema de assistência técnica, do serviço, e de outros pós-venda{483} e da reparação da falha no produto (veja art. 18, in fine). Nesse sentido, parece-nos claro que o fim último da garantia de adequação instituída pelo CDC é o reequilíbrio da relação de consumo, especialmente da contratual, pois a garantia concentra-se no objeto do contrato, na sua prestação principal que é o produto ou o serviço adequado ao fim que se destina. Assim, diferentemente do sistema de vício por insegurança, que visa ressarcir os danos sofridos pelo consumidor, a garantia no vício por inadequação visa satisfazer os interesses deste, forçando o cumprimento perfeito da prestação (conserto, art. 18, § 1.º, ou substituição do produto, art. 18, § 1.º, I), ou o reequilíbrio entre as prestações efetuadas (abatimento proporcional do preço, art. 18, § 1.º, III) ou evitar maiores danos ao consumidor e ressarcir os eventualmente já sofridos (através da rescisão contratual, devolução da quantia paga e eventuais perdas e danos, art. 18, § 1.º, II). Mas parece-nos que o fundamento, a origem primeira da garantia legal de adequação não é o contrato de consumo, mas a produção para o consumo, isto é, a participação do fornecedor na cadeia de produção de bens destinados ao consumidor e a confiança que qualquer produto colocado no mercado desperta legitimamente no consumidor, um dever legal, um novo ônus, com base na obrigatória boa-fé do fornecedor no mercado.{484} Seria uma garantia implícita (no sentido literal de implied warranty), garantia natural do produto, garantia que o acompanharia desde o seu nascimento, sua fabricação, mas que só poderia ser

* (483) Parece-me, em uma perspectiva de evolução para um consumo sustentável também no Brasil, que maior atenção deveria ser dada a uma "pósgarantia", em especial no que se refere à retirada de produtos tóxicos ou problemáticos para o meio ambiente, com divisão de responsabilidades entre os fornecedores, que lucraram com estes, e o Estado, arrecadador dos impostos de circulação da riqueza. (484) Sobre o princípio de boa-fé como origem da garantia de vícios redibitórios (contratuais), veja o artigo clássico do Professor Konder Comparato, pp. 92 e ss.; assim como a Parte 1. (p. 602) utilizada pelo consumidor; portanto, só após o contrato de consumo. Esta idéia de garantia como elemento do próprio produto poderia explicar porque todos os fornecedores são responsáveis por ela, e não só aquele que contratou com o consumidor. Esta garantia implícita é mais do que a marca que o fabricante coloca no produto, a garantia é suportada por todos os que ajudam a inserir o produto no mercado (fabricante, distribuidor, montador e comerciante).{485} A garantia, então, acompanharia o produto quando este fosse transmitido a sucessivos consumidores, durante a vida útil do bem, não importando se o vício oculto, por exemplo, em um forno de microondas, aparecerá no primeiro ano ou no segundo, quando já está em mãos da sobrinha da compradora original. Teria assim o CDC instituído não só uma garantia de funcionamento do produto, mas uma garantia até certo ponto de durabilidade.{486} A fonte desta ampla garantia de adequação é a lei, pois segundo o art. 24 do CDC a garantia legal independe de termo expresso e é imposta pelos arts. 18 e ss. do CDC; logo, ex lege. Outra possibilidade de explicar a solidariedade dos fornecedores imposta pelo art. 18 é recorrer ao sistema francês que se apóia na ficção de que o consumidor-contratante teria direitos contratuais contra todos aqueles que estão ligados por contratos de produção, isto é, que fazem parte da cadeia de produção (fabricante que contratou com o distribuidor, que contratou com o comerciante, que contratou com o consumidor-original, que contratou (mesmo através de doação) com o consumidor-sucessivo). Esta parece ser a teoria majoritária no momento na doutrina brasileira.{487} O mesmo vale para as cadeias organizadas por prestadores de serviços, como nos conhecidos planos de saúde, pois o art. 20 do CDC não distingue entre fornecedores diretos (médicos, hospitais) e indiretos * (485) Veja a interessante norma do § 2.º do art. 25 CDC, a qual frisa a responsabilidade solidária daquele fornecedor "que realizou a incorporação" da peça ou componente que causou o vício. (486) As expressões estão presentes na análise de Benjamin, Comentários, pp. 32 e 33, mas o mestre de São Paulo não menciona expressamente se no sistema do CDC se teria alcançado ou não uma garantia pela durabilidade do produto.

(487) Nesse sentido parece interpretar o sistema do CDC o comentador Benjamin, pp. 118 e ss., sem porém entrar no mérito da questão. (p. 603) (administradora do plano ou seguro de saúde misto). Como ensina Ruy Rosado de Aguiar Júnior, a entidade privada de assistência à saúde, que associa ou credencia "interessados através de planos de saúde, e mantém hospitais ou credencia outros para a prestação dos serviços a que está obrigada, tem ela responsabilidade solidária pela reparação dos danos decorrentes de serviços médicos ou hospitalares credenciados."{488} Certo é que a impossibilidade de exoneração dessa garantia ex lege já teria origem na simples natureza de norma de ordem pública (art. 1.º do CDC), mas é considerada tão importante ao sistema de proteção do consumidor que será repetida no art. 25 e no art. 51, I do CDC. A aplicação do art. 1.101 do CC para contratos submetidos ao regime do CDC está, portanto, totalmente, afastada. b) Garantia legal e novo prazo decadencial - Os exíguos prazos para a ação redibitória, dispostos no art. 178, § 2.º e § 5.º, IV do CC,{489} de 15 dias, a contar da tradição, para bens móveis e de 6 meses para bens imóveis, foram causa de ineficiência do sistema tradicional de garantia contra vícios redibitórios, ineficiência aumentada, é claro, pela possibilidade de renúncia contratual a este direito. Eis porque o sistema do CDC preocupa-se especialmente com o tema, instituindo novos prazos, os quais considera de decadência, não só para os vícios ocultos (antigos vícios redibitórios), mas também para os vícios aparentes ou de fácil constatação (art. 26, caput). Queremos destacar que a posição do CDC representa a acolhida de uma evolução jurisprudencial de legeferenda, evolução esta que teve como base os fins sociais a que se destinam as normas jurídicas, como preleciona o art. 5.º da Lei de Introdução. * (488) Aguiar Jr., RT 718, p. 47, citando como base jurisprudencial decisões do TJRJ no AI 1.475/92, TJMG, Ap. Civ. 164.656-2, j. 14.12.93, e do TJSP, Rel. Des. Walter Moraes, EI 106.119-1, cuja ementa reproduz: "Empresa de assistência médica. Lesão corporal provocada por médico credenciado. Responsabilidade solidária da selecionadora pelos atos ilícitos do selecionado (...)". Concorda Lopez, p. 225. (489) Veja também os prazos no Código Comercial (art. 211), os quais não mencionamos aqui devido à nossa opção pela interpretação finalista de consumidor. Sobre a profissionalidade da vítima e o vício redibitório, veja Benjamin, Comentários, p. 35, o qual em um primeiro momento não considerava superado o problema pelo sistema do CDC, opinião com a qual não concordamos. (p. 604) Pioneiro neste sentido foi o Tribunal de Justiça de São Paulo,{490} que em casos de compra de máquinas ou de animais, afirmou que "o prazo prescricional há de contar-se, não da data da entrega, mas de sua experimentação" (RT 134/548). Tais prazos seriam incompatíveis com

as necessidades da vida atual, praticamente anulando o direito do comprador, logo propugnavam uma interpretação adequada às exigências sociais e aos ditames da boa-fé (RF 116/499). Esta tese passou então a ser defendida pelo Supremo Tribunal Federal, que em voto lapidar do Ministro Thompsom Flores, no RE n. 76.233,{491} em 1973, considerava a hipótese: "... na literalidade do dispositivo (art. 178, § 2.º), está claro nele qual seja o momento, o marco zero da contagem; é o momento da tradição. Mas em certas \situações de fato, conforme a natureza da coisa ou do defeito que porte, não seria possível o exercício da ação dentro desse prazo exíguo, se contado da tradição, não tanto pela exigüidade, mas pela impossibilidade da revelação do defeito... Nesse caso, se atendermos à lei, na sua letra fria, estaríamos condenando a um abortamento inapelável o direito dos adquirentes, contra todos os princípios de direito e o bom senso...", propugnando pela mudança da interpretação e afirmando "... essa interpretação adequada às exigências sociais é o imperativo que decorre do enunciado do art. 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum"."... "a ação redibitória objetiva a garantia do comprador contra os defeitos ocultos da coisa adquirida... para que se possa exercer efetivamente o direito à ação, decorrente da garantia... há de ser proporcionado ao comprador um prazo razoável e que este seja contado a partir de quando for possível a revelação do defeito oculto..." (RTJ 68/222).{492} Nesse sentido o sistema introduzido pelo CDC: "Art. 26. O direito de reclamar... "§ 3.º Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito". Os prazos introduzidos, porém, são os mesmos (30 ou 90 dias) para vícios aparentes e vícios ocultos, mas os primeiros contam-se da * (490) Veja RT 134/584, RT 178/581, RT 275/834. (491) In RTJ 68/222. (492) Grifo nosso, trechos citados das pp. 224, 225, 226, RTJ 68. (p. 605) entrega efetiva do produto ou da execução do serviço, e os ocultos, da revelação do defeito. Dispõe o art. 26: "Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: "I - 30 (trinta) dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produto não-durável; "II - 90 (noventa) dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produto durável; "§ 1.º. Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços". Os critérios legais são, portanto, a facilidade de constatação do vício e a durabilidade ou não do produto, concedendo a nova lei, aproximadamente, de um a três meses para a ação do consumidor. A opção pela decadência é majoritária na doutrina{493} e está presente também no Projeto de Código Civil 118/84, que em seu art. 444 apenas duplica os prazos do Código civil atual, não modificando o seu termo

inicial, o que seria mais condizente com a evolução da doutrina e da jurisprudência.{494} A inicial dificuldade de interpretação da norma, do que seria um serviço ou produto não-durável foi superada pela manifestação do STJ, que esclareceu: "Entende-se por produtos não-duráveis aqueles que se exaurem no primeiro uso ou logo após sua aquisição, enquanto que os duráveis, definidos por exclusão, seriam aqueles de vida útil nãoefêmera" (Recurso Especial 114.473, 96/0074492-0-RJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 24.3.97).{495} "Não duráveis seriam * (493) Veja análise detalhada da doutrina em nosso artigo Tendances récentes de la prescription extinctive en droit brésilien in Extintive Prescription On the Limitation of Actions. Reports to the XIVth Congress International \Academy of Comparative Law, Coord. Gwoud. H. Hondius, Editor Kluwer Law International, Haia, Países Baixos, 1994, p. 75-90. (494) Segundo o art. 444 do Projeto 118/84, os prazos decadenciais seriam de 30 dias para móveis e um ano para imóveis, "contados da entrega efetiva" \(Diário do Senado Federal, Supl. 11 de Dez. 1997, p. 146). (495) Publicado no DJ de 5.5.97, cuja ementa na íntegra é: "Direito do consumidor. Ação de preceito cominatório. Substituição de mobiliário entregue com defeito. Vício aparente. Bem durável. Ocorrência de decadên(p. 606) aqueles bens de vida rápida, cuja existência termina pouco tempo depois da aquisição, enquanto que os duráveis seriam encontrados por exceção aos primeiros.{496} Note-se que no sistema introduzido pelo CDC algumas ações (atos) do consumidor "obstam" a decadência do direito. Especialmente a reclamação perante o fornecedor tem sido muito usada pelos consumidores, o que é positivo, pois coaduna-se com o espírito de cooperação e boa-fé do CDC e permite ao fornecedor uma chance para reparar o descumprimento contratual. Recomenda-se, porém, aos consumidores que reflitam sobre a prova desta reclamação frente ao fornecedor, caso a resposta deste for negativa (art. 26, § 2.º, do CDC).{497} A norma do art. 26 não é de todo translúcida, no caput menciona a decadência do "direito de reclamar", evitando falar da decadência do direito subjetivo, ou de prescrição da ação que protege tal direito de receber um produto adequado. Em seu § 2.º a norma do art. 26 dispõe que obsta a decadência: "I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor... até a resposta negativa..." Ora, *cia. Prazo de noventa dias. Art. 26, II, da Lei 8.078/90. Doutrina. Precedente da turma. Recurso provido". I - Existindo vício aparente, de fácil constatação no produto, não há que \se falar em prescrição quiixjiienal, mas, sim, em decadência do direito do consumidor de reclamar pela desconformidade do pactuado, incidindo o art. 26 do Código de Defesa do Consumidor. III - O art. 27 do mesmo diploma legal cuida somente das hipóteses em que estão presentes vícios de qualidade do produto por insegurança, ou seja,

casos em que o produto traz um vício intrínseco que potencializa um acidente de consumo, sujeitando-se o consumidor a um perigo iminente. \ ffl - Entende-se por produtos não-duráveis aqueles que se exaurem no primeiro uso ou logo após sua aquisição, enquanto que os duráveis, definidos por exclusão, seriam aqueles de vida útil não-efêmera". (496) Assim ensina o Ministro Relator no anterior REsp. 114473RJ, citando Antonio Herman Benjamin. (497) Veja exemplo da linha jurisprudencial sobre prova de que o consumidor obstou a decadência, in Revista de Jurisprudência do TJRGS, n. 184, p. 377, em cuja ementa lê-se: "Consumidor. Automóvel. Vício oculto. Decadência \(...). Comprovada, por documentos roborados por testemunhos insuspeitos, a reclamação oportuna (art. 26, § 2.º, da Lei 8.078/90), tem-se como obstada a decadência do direito" (Ap. Civ. 597083427, Des. Pedro Freire, j. 10.6.97). (p. 607) se a decadência fosse efetivamente do direito de reclamar, este já teria sido usado, exercitado como direito, logo não poderia morrer, decair, caducar como se queira. Parece-nos que a regra do art. 26 refere-se à decadência do direito "de reclamar" judicialmente, isto é, decadência do direito à satisfação contratual perfeita, obstada por um vício de inadequação do produto ou serviço. De qualquer maneira, parece-nos que a discussão sobre o verdadeiro sentido da norma está apenas começando. Em decisão do STJ, ficou estabelecido que "não obsta a decadência a simples denúncia oferecida ao Procon, sem que se formule qualquer pretensão, e para a qual não há cogitar de resposta".{498} Vale lembrar que além da reclamação feita frente ao fornecedor, o § 2.º do art. 26 menciona como fato que obstaculiza a decadência: "III - a instauração de inquérito civil, até o seu encerramento". Inquérito civil é aquele instaurado pelo Ministério Público para apurar a existência de fundamento para a propositura de uma ação civil pública.{499} Quando a compatibilidade da nova garantia de adequação do produto, instituída pelo CDC, com outras garantias existentes na legislação ordinária, já nos manifestamos no sentido de sua utilização conjunta, com base no art. 7.º CDC, sempre que compatíveis com as novas normas. Assim, no contrato de empreitada o construtor responde durante cinco anos perante o dono da obra, por força do art. 1.245 do CC. A jurisprudência brasileira é unânime em afirmar que o prazo é de garantia, não prazo para exercício da ação; assim, verificada a existência do defeito, começaria a correr o prazo de prescrição (RT 569/90), se a prescrição era aquela de seis meses prevista no art. 178, § 5.º, IV (RT 567/243) ou a comum aos direitos pessoais (RT 577/85) dependia se o contrato era de fornecimento de material e execução ou só de construção.{500} Igualmente se discutia se a responsabilidade do construtor estava restringida apenas aos vícios de solidez e de segurança, ou abrangeria todo o tipo de vício oculto da construção. Hoje, tratandose de contrato de consumo, e aplicadas as normas do CDC, a garantia legal estende-se a todos os vícios que impedem a adequação do produto

(imóvel construído), sendo que o prazo de cinco anos pode permanecer, como forma de facilitar a responsabilização do fornecedor/cons* (498) Lex 94, p. 153-154, j. 11.11.96, Rel. Min. Eduardo Ribeiro. (499) Sobre o inquérito civil veja a Lei 7.347/85, art. 8.º. (500) Veja detalhes em Aguiar Dias, pp. 371 e ss. (n. 137 e ss.). (p. 608) trutor, mas efetivamente o prazo para decadência do direito começa a correr no momento em que ficar evidenciado o defeito" (art. 26, § 3.º do CDC). c) Relação da garantia contratual com a garantia legal - A \de~~nado garantia, enquanto responsabilização por risco, no caso \por vício de adequação do produto ou serviço, ~&e ser legal, oriunda do próprio CDC, ou contratual, oriunda da manifestação de vontade do fornecedor-direto no contrato (garantia do comerciante), ou do fornecedor-indireto (garantia do fabricante, incluída no contrato como forma de estimular a venda de seus produtos). No sistema do CDC a garantia legal independe de termo expresso (art. 24), existe naturalmente, implícita, interna ao produto, é dever, ônus de todos os fornecedores, como estamos expondo aqui; enquanto a garantia contratual é facultativa, eventual, oriunda da manifestação de vontade expressa do fornecedor, devendo ser disposta em termo \escrito (art. 50). Enquanto a garantia legal refere-se ao funcionamento do produto, à adequação do produto ou serviço, sendo portanto total, a garantia contratual pode ser total ou parcial, pois depende da manifestação de vontade do fornecedor, quando da formação do contrato ou mesmo após, e é, portanto, limitada por esta mesma manifestação. Assim é possível imaginar, por exemplo, uma garantia concedida pelo fabricante de geladeiras, que exclua os problemas do motor ou das partes feitas de borracha. Já a garantia legal inclui necessariamente os vícios no motor, porque uma geladeira cujo motor não funcione, não é "adequada" ao seu uso normal, não gelará os alimentos como é a expectativa legítima do consumidor. A garantia contratual pode ser condicionada a determinadas hipóteses, como por exemplo o comerciante de máquinas de lavar, que garante somente aquelas instaladas por seus técnicos, sendo vedado ao consumidor mesmo abrir a embalagem da máquina, de modo a não danificá-la ou a diminuir o número de peças enviadas pela fábrica para a instalação. Já a garantia legal não pode ser condicionada ou restringida, como bem afirma o art. 25 do CDC. Destaque-se aqui o texto da norma do art. 25 do CDC, o qual proibe uma prática normal no mercado brasileiro, qual seja a de incluir, na lista de cláusulas do termo de garantia contratual, uma cláusula (p. 609) excluindo qualquer responsabilidade extracontratual por eventual fato do produto. Dispõe, efetivamente: "Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas Seções anteriores".{501} A aplicação das normas sobre responsabilidade civil, pelo fato do produto (seção anterior de n. II) e pelo vício (seção III), formam uma

espécie de núcleo rígido, indisponível.{502} Voltando ao tema da garantia contratual, devemos enfocar o momento de seu nascimento, que é o do nascimento, do contrato. Mas \apesar do art. 50, como veremos, prever a obrigação do fornecedor de preencher o termo de garantia, isto nem sempre acontece na prática. A garantia contratual é um plus, um anexo voluntário, por isso pode ser concedida mesmo após a assinatura do contrato. No caso, por exemplo, de um freguês de importadora que após comprar um rádio, sem garantia, volta a loja e o comerciante para facilitar a venda de mais dois rádios para a família lhe oferece a garantia sobre os três produtos durante seis meses, comprometendo-se a trocá-los caso apresentem defeito. Já a garantia legal nasce potencialmente junto com o vínculo contratual original, junto à entrega efetiva do produto ou a execução do serviço; a partir de então o consumidor já pode "reclamar" os direitos assegurados pelo art. 18 do CDC. Como podemos observar, o regime da garantia contratual e da garantia legal são diversos. Na garantia contratual não se pergunta se o vício é oriundo de mau uso, ou de culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, não se pergunta pela vida útil do bem. Se a garantia contratual existe, se a garantia prevista abrange aquele detalhe do produto e se não transcorreu o seu prazo, o fornecedor conserta ou substitui o produto e o devolve ao consumidor. Já a garantia legal é de adequação, de funcionalidade do produto ou serviço, só poderá ser usada se a causa da inadequação é o próprio produto ou o serviço, não abrangendo os casos de mau uso ou de caso fortuito posterior ao contrato, que tornem o bem inadequado ao uso. O fornecedor tem o * (501) O grifo é nosso para destacar que o art. 25 refere-se tb. ao disposto nas seções precedentes (I e II). (502) Ver, porém, para o consumidor pessoa jurídica o que dispõe o art. 51, inciso I, in fine, do CDC. (p. 610) dever legal de entregar um produto em perfeitas condições, adequado para o seu uso, que resista ao uso normal, que dure o tempo ordinário da vida útil deste tipo de produtos. Se a televisão não tem som, presume-se que o problema é interno da televisão, que o produto é inadequado, não importando se o problema nasceu na fábrica, na loja, no transporte que levou o bem à casa do consumidor. Nesse caso, o consumidor pode utilizar a garantia legal. Mas, se o vício originou-se da imprudência do filho menor do consumidor que destruiu o botão que nivelava o som, não havia vício de inadequação do produto, mas houve mau uso, uso não razoável; logo, a garantia legal não será aplicada, só a garantia contratual resolveria o problema. Nesse sentido, podemos concluir que a garantia contratual pode não ser sempre tão ampla quanto à legal, instituída pelo CDC, mas é mais fácil de ser utilizada pelo consumidor, pelo menos o consumidororiginal. Resta analisarmos a relação temporal entre as duas espécies de garantia. Inicialmente é necessário frisar que antes da entrada em vigor do CDC o prazo era de 15 dias para a ação redibitória (veja análise anterior, na letra b). Em virtude deste prazo exíguo, a jurisprudência brasileira, especialmente do Tribunal de Justiça de São Paulo, mais uma vez adaptou o texto superado do art. 178, § 2.º do CCB e à nova realidade social. Criou-se, então, a ficção de que

o prazo de decadência ou prescrição só começaria a fluir depois do término do prazo da garantia contratual. Se a garantia contratual de um relógio, por exemplo, era de um ano a contar da data do contrato, o consumidor poderia entrar com a ação redibitória um ano e quinze dias após a compra. A ratio era alargar o exíguo prazo legal, prazo de "garantia legal". A jurisprudência brasileira argumentava que o fornecedor que concedesse a garantia contratual estava renunciando ao prazo de prescrição legal, dilatando-o por vontade própria, pois no prazo da garantia contratual o consumidor teria a assistência técnica do fornecedor, poderia devolver o produto viciado, mas a garantia contratual não visava o fim (rescisão) do vínculo contratual, ao contrário visava fortalecê-lo, enquanto a garantia legal de vícios redibitórios, como dizia o nome, permitia somente redibir o contrato{503} ou abater no preço. * (503) Veja RT 182/738, 186/100 e 288/332, RJTJRS 10/243. (p. 611) Nesse sentido basilar a decisão do tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na A. C. 585006620, em 1985, onde o Relator Desembargador Galeno Lacerda, expõe os princípios de proteção do consumidor que deveriam levar a uma interpretação mais social da lei civil, defasada no tempo, ensinando: "a interpretação dos dispositivos dos Códigos Civil e Comercial, a propósito dos exíguos prazos da ação redibitória, mais consentânea com as exigências do mundo moderno, de proteção ao consumidor, e com os princípios programáticos do art. 5.º da Lei de Introdução, que ordena ao juiz, na aplicação da lei, atenda os fins sociais a que ela se dirige, e às exigências do bem comum, e, sem dúvida, a que vem sendo adotada de há muito tempo, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, com ressonância neste Tribunal. É que, havendo garantia de bom funcionamento do objeto, dada pelo vendedor ou pelo fabricante, se presume tenha ele aberto mão do prazo de prescrição ou de decadência posto na lei em seu favor. Que se trata de questão disponível, não resta a menor dúvida; não há nenhum interesse público em proteger as indústrias com prazos dessa exigüidade, em detrimento da grande massa de consumidores; ao contrário, o interesse público há de voltar-se, necessariamente, para o universo dos compradores anônimos, perante o qual há de ceder o individualismo jurídico vigorante nas eras remotas de elaboração de nossos vetustos Códigos de direito material. Cumpre, sem dúvida, à jurisprudência o dever primordial de afeiçoar, enquanto não revogados, os velhos textos à nova e impostergável realidade. Essa adaptação se revela perfeita nos acórdãos indicados..." Transcrevemos esta lapidar aula sobre a necessidade de proteção contratual dos consumidores, justamente, para frisar que esta interpretação, literalmente de lege ferenda, era necessária enquanto "não revogados" os antigos textos do art. 178, § 2.º e § 5.º CCB. Hoje, tais textos não estão "revogados", mas não mais se aplicam para reger as relações de consumo, agora submetidas a uma nova lei, o CDC. Se há uma nova lei, em consonância com o interesse público, destacado pelo mestre Galeno Lacerda, há de haver também uma nova interpretação. Esta evolução é necessária e deve ser feita, pois a garantia de adequação do CDC é muito mais ampla que a garantia por vícios redibitórios do antigo art. 178 do Código Civil. Hoje, a interpretação mais favorável ao consumidor é aquela da

\garantia legal implícita de adequação. Assim, se há garantia contratual (p. 612) (express warranty) e esta foi estipulada para vigorar a partir da data do contrato (termo de garantia), as garantias começam a correr juntas, pois a garantia legal nasce necessariamente com o contrato de consumo, com a entrega do produto, sua colocação no mercado de consumo. Ao consumidor é que cabe escolher qual delas fará uso. Pode usar a garantia contratual, porque lhe é mais vantajosa, no sentido de não ter de argüir que o vício já existia à época do fornecimento. Mas pode usar a garantia legal, porque, por exemplo, o vício se localiza no motor do produto (geladeira), que não está incluído na garantia contratual, ou porque o consumidor se interessa em redibir o contrato e adquirir outro produto de \marca diferente. Logo, com a aplicação imperativa do art. 18 e 50 do CDC parece-nos superada a jurisprudência que afirmava começar a garantia legal só após o fim do prazo da contratual. Era uma interpretação pró-consumidor, baseada na falta de legislação específica, que procurava adaptar normas superadas à realidade moderna. As novas normas do CDC são, porém, imperativas, não havendo possibilidade do consumidor ou do fornecedor dispor sobre elas; os limites temporais são outros. A garantia legal possui limites temporais específicos. Se o vício é aparente seus limites serão 30 ou 90 dias da entrega efetiva do produto ou do término dos serviços. Bastando que o consumidor reclame perante o fornecedor, ou perante o Ministério Público para obstar a decadência de seu direito. Vício aparente é aquele de fácil constatação, aquele que não exige conhecimentos técnicos específicos, ou a experimentação do produto. Sendo assim, o prazo de 30 dias para os bens não-duráveis e 90 dias para os bens duráveis parecem razoáveis. A eventual garantia contratual será um plus. Se o vício é oculto, porque se manifesta somente com o uso, a experimentação do produto ou porque se evidenciará muito tempo após a tradição, o limite temporal da garantia legal está em aberto, seu termo inicial, segundo o § 3.º do art. 26, é a descoberta do vício. Somente a partir da descoberta do vício (talvez meses ou anos após o contrato) é que passarão a correr os 30 ou 90 dias. Será, então, a nova garantia legal eterna? Não, os bens de consumo possuem uma durabilidade determinada. É a chamada vida útil do produto.{504} Se se trata de videocassete, por exemplo, sua vida útil seria * (504) A importância do critério de vida útil do produto foi destacada por Antônio Herman Benjamin nas discussões por ocasião do II Congresso de Daños, em Buenos Aires, sendo deste autor o exemplo que analisamos acima. (p. 613) de 8 anos aproximadamente; se o vício oculto se revela nos primeiros anos de uso há descumprimento do dever legal de qualidade, há responsabilidade dos fornecedores para sanar o vício. Somente se o fornecedor conseguir provar que não há vício, ou que sua causa foi alheia à atividade de produção como um todo, pois o produto não tinha vício quando foi entregue{505} (ocorreu mau uso desmesurado ou caso fortuito posterior), verdadeira prova diabólica, conseguirá excepcionalmente se exonerar. Se o vício aparece no fim da vida útil do produto a garantia ainda existe, mas começa a esmorecer, porque se aproxima

o fim natural da utilização deste, porque o produto atingiu já durabilidade normal, porque o uso e o desgaste como que escondem a anterioridade ou não do vício, são causas alheias à relação de consumo que como se confundem com a agora revelada inadequação do produto para seu uso normal. É a "morte" prevista dos bens de consumo. Em outras palavras, caberá ao Judiciário verificar se o dever do fornecedor de qualidade (durabilidade e adequação) foi cumprido. Se o fornecedor não violou o seu dever ao ajudar a colocar no mercado aquele produto, não haverá responsabilidade. Neste sentido, a garantia legal de adequação dos produtos com vício oculto tem um limite temporal, qual seja a vida útil do produto. Quanto à garantia contratual, cabe, porém, esclarecer que ela não pode limitar, excluir ou diminuir a garantia legal, como dispõe claramente os arts. 25 e 51, I do CDC. Nesse sentido, elas só podem ser um plus em relação à garantia legal, ou porque facilitam a assistência técnica, porque não se interessam pela anterioridade ou não do vício, concentrando-se na obrigação de manter a adequação do produto por certo lapso de tempo, mesmo em caso de uso inadequado por parte do consumidor. É nesse sentido que deve ser interpretada a norma no caput do \art. 50 do CDC, que dispõe: "Art. 50. A garantia contratual é complementar à legal e será conferida mediante termo escrito". Quanto à garantia contratual, o art. 50 institui alguns deveres do fornecedor, principalmente de informação e de preenchimento do termo * (505) Defende a necessidade de "anterioridade do vício", isto é, sua existência potencial à época do fornecimento, Calais-Auloy, seguido no Brasil por Benjamin, Comentários, p. 120. (p. 614) de garantia. O parágrafo único do art. 50 deve ser destacado, pois estabelece também alguns deveres acessórios para o fornecedor, tais como: entregar, no ato do fornecimento, além do termo de garantia, um manual de instrução e uso do produto em linguagem didática, com ilustrações. Nesse sentido, cabe destacar um dever pós-contratual do fornecedor, que já está sendo aceito pela doutrina e jurisprudência, no caso, a manutenção de alguma assistência técnica do produto, tanto no prazo da garantia legal, quanto após, pois o ideal é que o produto mantenhase adequado, até mesmo para a proteção da incolumidade física do consumidor e dos terceiros (2.4). Nesse sentido, o projeto original do CNDC-MJ previa também a obrigação de manter a fabricação de peças para a reposição nos 5 anos consecutivos à saída de linha do produto, especialmente no caso dos automóveis. \ No CDC atual, prevê o art. 32 a necessidade dos fabricantes e importadores assegurarem "a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto", e mesmo cessada a produção ou a importação cabe a estes fornecedores manter a oferta "por período razoável de tempo", como dispõe o parágrafo único do art. 32 do CDC. Esperemos que tal norma, sem previsão de tempo, seja suficiente. 2.4 Garantia legal de segurança do produto ou do serviço (Responsabilidade extracontratual do fornecedor)

O consumidor que adquire um produto ou utiliza um serviço oferecido no mercado brasileiro passa a ter, no sistema do CDC, dois tipos de garantia: a garantia legal da adequação do produto ou do serviço, a qual será concretizada através da utilização das novas normas sobre o vício e garantia de segurança razoável do produto, imposta pelo CDC nos arts. 8.º a 17, e que tem por fim a proteção da incolumidade física do consumidor e daqueles equiparados a consumidores.{506} No sistema tradicional, a doutrina acostumou-se a denominar garantia a * (506) Assim ensina Benjamin/Comentários, p. 28; adotamos esta sistemática por considerarmos didática, apesar do CDC usar terminologia diversa: vício, para os vícios de qualidade/adequação e defeito, para a responsabilidade pelo fato do produto, para nós, vícios por insegurança. (p. 615) responsabilidade de origem contratual e reservar o termo responsabilidade para a responsabilidade aquiliana.{507} Note-se que no CDC a garantia de segurança do produto ou serviço deve ser interpretada enquanto reflexo do princípio geral do CDC de proteção da confiança. Nesse sentido, o dever de qualidade\segurança será limitado, como afirma o § 1.º do art. 12 do CDC, "a segurança que dele legitimamente se espera". Não se trata de uma segurança absoluta, mesmo porque o CDC não desconhece ou proibe que produtos naturalmente perigosos sejam colocados no mercado de consumo, ao contrário, concentra-se na idéia de defeito, de falha na segurança legitimamente esperada.{508} No sistema do CDC, a garantia de segurança do produto ou do \serviço tem clara natureza extracontratual, sendo que o art. 12 a impõe ao fabricante, produtor/construtor e importador, só, subsidiariamente ao distribuidor ou fornecedor-direto.{509} O tema estaria, assim, excluído de nossa análise, a qual pretende destacar os reflexos nas relações contratuais trazidos pela entrada em vigor do CDC. Três aspectos, porém, chamam nossa atenção para o tema. Em primeiro lugar, os arts. 8.º a 10 instituem novas obrigações para todos os fornecedores, incluindo, portanto, o fornecedor-direto, que contrata com o consumidor. Em segundo, a possibilidade no direito brasileiro de cumulação dos pedidos com base contratual e extracontratual de ressarcimento de danos contra o mesmo fornecedor destaca a importância de determinarmos, no sistema do CDC, os limites da responsabilidade do fornecedor-direto, do distribuidor-varejista, do comerciante que contrata com o consumidor. Por último, o parágrafo único do art. 13 assegura um direito legal de regresso do fornecedor que arcou com a reparação do dano do consumidor, em relação aos outros fornecedores. Ora, a relação entre o fabricante e o comerciante, e entre o fabricante e o importador também é contratual. * (507) Assim ensina Aguiar Dias, p. 148 (n. 67). (508) Concorda Benjamin, Comentários, p. 60, o qual distingue entre periculosidade inerente e periculosidade adquirida, p. 47. Note-se, porém, que a norma \proibitória do art. 10 do CDC pode ser interpretada como criando para O fornecedor um dever de segurança tal que inibirá a utilização do mercado brasileiro como mercado "cobaia" para, por ex., novos produtos farmacêlticos ou agrotóxicos.

(509) Veja nesse sentido a ação movida pelo PROCON/SP e PGE/SP, contra a coca-cola (fabricante) face a insegurança das garrafas "retomáveis" e danos aos consumidores. (p. 616) Este vínculo contratual na cadeia chamada de "produção" não é tema normal do Código, que se destina somente à proteção do consumidor, como frisamos (Cap. II, 1 .1), mas o art. 13, parágrafo único, excepcionalmente, invade também estes contratos, para, com sua norma de ordem pública, impedir que os fornecedores estabeleçam, usando sua autonomia de vontade, a exclusão deste direito de regresso. Nesse sentido, consideramos que devem ser feitas algumas observações sobre as normas dos arts. 8.º a 17 do CDC. O tema é fascinante, pois para podermos impor a um agente econômico, no caso o fornecedor, a obrigação de reparar os danos causados ao consumidor por um produto, que fabrica, que monta ou que vende no mercado brasileiro, é necessário definirmos um fundamento para esta responsabilidade.{510} Será esta uma responsabilidade baseada na culpa, no risco da atividade ou em um terceiro critério? Quais são os elementos desse ilícito civil? A qual dos fornecedores da cadeia de produção deve ser imputado o ônus do ressarcimento? Poderá o fornecedor não-culpado ressarcir-se frente ao fornecedor culpado do que pagou ao consumidor? Pode o consumidor cumular os pedidos de ressarcimento de danos por vício do produto e de danos por fato do produto, escolhendo o comerciante \mais próximo? Ou deve seguir a hierarquia do art. 12, exigindo as reparações diretamente do fabricante (também responsável no art. 18)? Antes de passarmos as observações sobre a responsabilidade pela segurança do produto, mister tecer alguns breves comentários sobre serviços. Em matéria de hotéis, a jurisprudência brasileira utiliza o art. 14 do CDC para estabelecer que acidentes sofridos nas dependências dos hotéis são acidentes de consumo e, portanto, responde o hotel independentemente de culpa, admitindo-se ainda a cumulação de danos materiais e morais.{511} O dever de segurança nos transportes já foi comentado,{512} mas cabe relatar que a responsabilidade objetiva do transportador terrestre e ferroviário é complementada por legislação especial, como o Dec.* (510) Assim ensinam Rippert/Boulanger, Tratado, Tomo V, p. 22, assim tb. o mestre italiano Alpa, ob. cit., p. 302. (511) Assim decisão do TJBA, Ap. Civ. 22.267-9, j. 6.11.95, Des. Walter Nogueira Brandão, in RT 729/259. (512) Veja polêmica sobre transportes aéreos e a validade das cláusulas referentes aos limites do ressarcimento com base na legislação especial. Veja utilizando a legislação especial, decisão do 1.º TACivSP, in RT 729/224. (p. 617) \Lei 2.681/12, e é considerada unanimemente como obrigação de resultado. A evolução da jurisprudência brasileira é no sentido de valorizar os deveres anexos do fornecedor de transporte, em especial o de cuidado e cooperação.{513} Sobre furto de veículos em shopping centers, supermercados e outros estabelecimentos que contam com estacionamento, a jurispru-

dência é hoje pacífica no sentido da existência do dever de cuidado, de segurança e de vigilância.{514} A responsabilidade das entidades bancárias, quanto aos deveres básicos contratuais de cuidado e segurança é pacífico, em especial a segurança nas retiradas,{515} assinaturas falsificadas{516} e segurança nos cofres.{517} a) Deveres do fornecedor de produtos perigosos - Os arts. 8.º e 10 do CDC impõem aos fornecedores, inclusive ao comerciante final, não fabricante, a obrigação de não colocarem no mercado produtos ou serviços que acarretem "riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição". Em caso de produto perigoso ou potencialmente nocivo fica o fornecedor obrigado a prestar as informações necessárias e adequadas a respeito ao consumidor (art. 8.º), sendo que o art. 9.º do CDC exige que esta informação seja "ostensiva". O fornecedor-direto, mesmo que somente comerciante, terá também este dever especial de informar, mas se o produto é industrializado o parágrafo único concentra-se dever especial de informar na pessoa do fabricante.{518} * (513) Veja interessante caso de queda na porta do coletivo, in RT 728/262. Veja também sobre isenção de deveres especiais no transporte gratuito: TARJ, in RT 728/363, e Súmula do STJ. (514) Veja jurisprudência sobre responsabilidade do fornecedor por furto de veículo, anterior à Súmula, in RT677/103; 677/177; 677/233; 678/215; 638/ 157 e 679/208. (515) Veja RT 675/171. (516) Veja RT 679/92. (517) Veja RT 676/151 e 680/83. (518) É necessário esclarecer que o comerciante continua com o seu dever geral de informação, e com o ônus da garantia de adequação sobre todos OS produtos que ajuda a introduzir no mercado; a norma refere-se apenas aos produtos de periculosidade inerente. (p. 618) O CDC previa, igualmente no art. 11, um dever de retirar o produto do mercado brasileiro, mas este artigo foi lamentaveLmente vetado pelo Presidente da República. Mesmo cumprido este dever anexo de informação e concluído o contrato, o dever de informação sobre a nocividade do produto acompanhará o fornecedor que colocou o produto no mercado. O § 1.º do art. 10 impõe a todos os fornecedores, que posteriormente à introdução no mercado do produto tiverem conhecimento da periculosidade apresentada por este, o dever de informar aos consumidores, como temos observado em ocasiões que os fornecedores oferecem aos seus consumidores consertos "gratuitos" dos freios ou da distribuição determinada marca ou série de automóveis.{519} Note-se que o art. 10 parece mais voltado para fornecedorfabricante, ou para os fornecedores mencionados no art. 12, pois institui o dever de informar às autoridades e aos consumidores, por meio de onerosos anúncios publicitários. No sistema do CDC, porém, o dever de informar é geral. Nesse sentido, pode-se interpretar o art. 10 como instituindo um dever pós-contratual, isto é, um dever de vigilância, dever de informar ao consumidor, se "tiver conhecimento" da

periculosidade de um produto, que ajudou a colocar no mercado. Assim, o farmacêutico informado sobre a proibição de determinado remédio, que causa o câncer, deve informar seus ex-parceiros contratuais da periculosidade do produto vendido, afixando, por exemplo, um cartaz no estabelecimento comercial. Assim, também, o supermercado que descobre que determinado queijo vendido está causando intoxicação nas pessoas que o ingerem, determinada revendedora de carros que descobre que algumas das peças vendidas vieram com defeito de fábrica nos freios. São casos em que os princípios da transparência e da boa-fé nas relações contratuais irão se unir aos princípios da proteção da confiança do consumidor na segurança normal do produto vendido para impor um dever nitidamente pós-contratual ao fornecedor-direto e não simplesmente, extracontratual,{520} como o é para o fabricante. A sanção virá, no sistema do CDC, pela aplicação tanto de normas contratuais (sobre vício de qualidade, substituição de freios no auto\* (519) Veja exemplo de recall litigioso, in: Direito do Consumidor 6/297 e ss. (520) Assim também Ferreira de Almeida, p. 30. (p. 619) móvel, art. 18, caput), quanto das normas extracontratuais, presentes no art. 12 (ressarcimento dos danos causados em acidente de automóvel por falha dos freios).{521} A falta de "segurança", o defeito do produto, dá origem à responsabilidade extracontratual pelo dano, segundo o art. 12 do CDC, tomando em conta a sua falta de segurança esperada ou de informação. b) Limites da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço - (A responsabilidade do comerciante) - Em matéria de responsabilidade civil, o principal valor a ser protegido pelo direito deve ser o efetivo e rápido ressarcimento das vítimas. O CDC para alcançar este fim afasta-se do conceito de culpa e evolui, no art. 12, para uma responsabilidade objetiva, do tipo conhecida na Europa como responsabilidade "não-culposa".{522} A tendência em direito comprado é atribuir ao fabricante{523} a responsabilidade extracontratual pelos danos causados ao consumidor por produtos defeituosos. O CDC adere a essa tendência, modificando o sistema brasileiro{524} que exige a culpa própria (falha na esfera de sua atividade){525} para a responsabilização. O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 12, dispõe: \* (521) Veja em Taschner, Product Liabilitv, pp. 4 a 23, o caso "Mc. Phearson v. \Buick Co. de 1916, um leading case que serve para o autor mostrar a evolução da responsabilidade civil nos EUA; em português Leães, pp. 42 e ss. \ (522) A expressão é adaptada do alemão verchuldensunabhãngigc Hafiung, citada pelo elaborador da Directiva da Comunidade Européia Hans Claudius \Taschner/Produkthaftung, p. 9; sobre a responsabilidade objetiva no CDC, veja os excelentes comentários de Benjamin, p. 45, que considera a responsabilidade tb. objetiva, mas por risco criado pela atividade dos forllecedores. (523) Nesse sentido conclui Leães, pp. 125, 126 e 154, 155; veja igualmente o

\mestre italiano Guido Alpa em sua obra Diritto privato dei CO))SUfl)j, pp. 286 a 334 sobre a responsabilidade do fabricante. (524) Veja os artigos de Caio Mário da S. Pereira "Responsabilidade Civil do \Fabricante", in Rev. de Din C’omparado Luso-Brasileira, jan. 1983, vol. 2, p. 28 e de Orlando Gomes "Responsabilidade Civil do Fabricante" in RDC (32) abr./jun. 1985, p. 12, ou mais recente Luiz C. Ramos Pereira, "Generalidades sobre a Responsabilidade Civil do Fabricante", in RT 654/52. (525) Veja sobre responsabilidade civil extracontratual no direito brasileiro tradicional a obra basilar de José de Aguiar Dias, Da responsabilidade Civil, \Rio de Janeiro, Forense, 1987, especialmente o ml. II. (p. 620) "Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor nacional e o importador respondem, independentemente da culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre a sua utilização e riscos". O sistema do CDC, portanto, imputa ao fabricante, independentemente de sua culpa, a responsabilidade pelo fato do produto defeituoso e não necessariamente ao fornecedor-direto. Na lista do art. 12 o grande ausente é o comerciante,{526} agente ordinariamente responsável pela reparação dos danos, tendo em vista, principalmente, a sua ligação contratual com o consumidor-comprador e a idéia de uma garantia implícita de qualidade-segurança, extensível a terceiros-vítimas. O legislador do CDC, porém, preferiu uma melhor divisão dos ônus econômicos e fixou-se nas figuras do fabricante, construtor e importador.{527} Segundo o art. 13 do CDC, o comerciante será, porém, igualmente responsável (solidário) pela reparação quando: "I - o fabricante, construtor, produtor ou o importador não puderem ser identificados; "II - quando o produto não oferecer uma identificação clara de seu fabricante, produtor, construtor ou importador; "III - quando o comerciante não conservar adequadamente os produtos perecíveis". Podemos concluir que, segundo os arts. 12 e 13 do CDC, o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador são responsáveis principais pela reparação dos danos causados ao consumidor pôr defeito,do produto, independentemente de culpa. O art. 12 estaria, assim, em relação ao art. 13, instituindo uma * (526) Sobre tratamento jurídico da figura híbrida do vendedorfabricante, veja o clássico artigo de Henri Mazeaud, "La responsabilité civile du vendeurfabricant" in revue trimestrielle de droit civil, 53(1955), pp. 611-621. (527) Veja detalhes sobre a responsabilidade do comerciante e do fabricante no Projeto de Código Civil 634/75 em Arthur E. S. Rios, "A responsabilidade civil - os novos conceitos indenizáveis do projeto Reale" in Revista

Forense, 291(1985), p. 121. (p. 621) hierarquia{528} de responsáveis. Por sua vez, em casos especiais, a norma do art. 13 acrescenta mais um responsável solidário à lista do art. 12, o fornecedor-final ou comerciante. Se definirmos responsabilidade objetiva simplesmente como aquela que prescinde de culpa, certamente podemos concluir que o art. 12 do CDC segue a teoria objetiva, na medida em que este artigo afirma nascer a responsabilidade de determinados fornecedores "independentemente da existência de culpa". A teoria subjetiva, ao contrário, afirma que, para responsabilizarmos alguém, é necessário que a este possa ser imputada alguma conduta contrária ao direito (antijurídica), e que tenha esta pessoa agido com culpa (negligência, imperícia, imprudência), exigindo-se a prova da culpa. A culpa pode ser no máximo presumida de maneira absoluta ("nenhuma responsabilidade sem culpa"). Mas, se no sistema do CDC a imputação da responsabilidade é objetiva, o que significa esta hierarquia de responsáveis? Por que ela existe, se a todos os fornecedores, que colaboram na introdução do produto no mercado, o CDC imputaria um dever de qualidade, como afirmamos no título anterior, 2.1? Será que nem todos os fornecedores estão obrigados por este dever legal de qualidade-segurança? O mestre italiano Alpa,{529} observa que a maioria dos defeitos têm sua origem na fabricação, na construção ou no projeto do bem e não quando de sua comercialização. Parece ter sido este o motivo da decisão do legislador do CDC de imputar a responsabilidade, em princípio, àqueles que poderiam ter evitado o defeito (fabricante, construtor e produtor) ou a seus substitutos (o importador e o comerciante, em hipóteses, porém, diferenciadas). O caput do art. 12 especifica que os danos indenizáveis são só aqueles "causados aos consumidores por defeitos... de seus produtos". Seguindo esta linha de pagamento, observamos que, no sistema do * (528) Concorda Benjamin, Comentários, p. 55, para o qual o CDC prevê três tipos de responsáveis: o real (fabricante, construtor e produtor), o presumido (o importador) e o aparente (o comerciante quando deixa de identificar o responsável real), divisão que se assemelha à da Diretiva Européia; veja, porém, o art. 13, III, em que o comerciante seria o responsável real. (529) Alpa, Diritto, p. 302; veja sobre os tipos de defeitos, Taschner, Product \Liabilitv, pp.7e ss. (p. 622) CDC, é necessária a existência de um defeito no produto e um nexo causal entre este defeito e o dano sofrido pelo consumidor, e não só entre o dano e o produto. O produto será defeituoso, segundo dispõe o § 1.º do art. 12, "quando não oferecer a segurança que dele legitimamente se espera". Assim, segundo o § 3.º do art. 12, os agentes não serão responsabilizados quando provarem justamente que: 1) não colocaram o produto no mercado brasileiro, 2) o defeito inexiste, 3) houve a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Ao citar somente o fabricante, o produtor, o construtor, e o importador, o art. 12 do CDC teria imposto o dever legal de segurança somente àqueles fornecedores e só excepcionalmente ao comerciante.

Note-se que doutrinas estrangeiras, como a francesa, tiveram de desenvolver intrincadas teorias, como a da "guarda da estrutura do produto", para poder imputar somente àqueles, que dominavam a técnica de fabricação e que poderiam ter evitado o defeito, a responsabilidade pelo fato do produto.{530} O legislador brasileiro tentou resolver o problema imputando a responsabilidade a alguns agentes e exigindo a existência de um defeito (falha na segurança esperada do produto). Poderíamos terminar por aqui as nossas observações sobre o tema, concluindo que se trata de uma responsabilidade legal de imputação \objetiva (gesetzliche Haftung), mas, ao analisar mais profundamente a questão,{531} observamos que o legislador do CDC pode ter introduzido no Brasil, consciente ou inconscientemente, um novo tipo de responsabilidade objetiva: a responsabilidade não-culposa,{532} cuja adaptação e compreensão na prática podem trazer alguns problemas. Tratando-se de responsabilidade extracontratual, afirmar, como fizemos acima, que ela tem sua origem na violação de um dever legal, * (530) Veja sobre esta teoria francesa a lição de Macena de Lima, pp. 105 e ss. de sua Tese de Doutorado. (531) Veja o nosso "A Responsabilidade do Importador pelo Fato do Produto segundo o Código de Defesa do Consumidor", apresentado na Semana de \Estudos Jurídicos para Integração Latino-Americana, LLADI!UFRGS/1 990. (532) Segundo ensina Hans Claudius Taschner, no Mercado Comum Europeu, a opção por uma responsabilidade não-culposa, concentrada no defeito, foi um caminho de compromisso entre as pressões das empresas, contrárias à adoção de uma responsabilidade objetiva pura, e as necessidades do mercado de uma maior qualidade dos produtos, reduzindo a reparação às hipóteses de defeito, p. 9. (p. 623) e que os deveres legais dos fornecedores são diferenciados, só resolve, \em princípio, problema da imputação (peritus spondet artem suam). Resta, porém, a pergunta sobre qual o fundamento desta responsabilidade. Seria a culpa do fornecedor ao não agir com a diligência necessária, o seu fundamento, como parece exsurgir do inciso III do art. 13? Seria o risco criado pela atividade dos fornecedores, como no caso da responsabilização dos fabricantes? Ou teria esta responsabilidade como base o resultado objetivo da ação do fornecedor, de ter introduzido um produto com defeito e este defeito ter causado dano ao consumidor, como parece ser o caso dos importadores, alçados a posição de responsáveis principais? Esta aparente mistura só pode ser explicada com a análise do direito comparado, que serviu de base para o projeto de CDC. Dois sistemas parecem ter influenciado o legislador consumerista brasileiro, o sistema norte-americano,{533} que partindo das garantias implícitas (contratuais) chegou à responsabilidade objetiva (por risco), e o sistema da Diretiva{534} da Comunidade Econômica Européia,{535} que partiu da idéia de defeito dos produtos industrializados (e só destes) introduzidos no mercado pelo fornecedor (ato antijurídico), para imputar a responsabilidade objetivamente ao fabricante que pode suportá-la e dividir os ônus na sociedade.{536} Desta fusão teria resultado o sistema do CDC. Assim, da aceitação de uma Teoria da Qualidade nasceria, no sistema do CDC, um dever

* (533) Assim Benjamin, Comentários, p. 45, um dos elaboradores do Código. \ (534) Directiva 851374/CEE, de 25.7.85, publicada no Jornal Oficial das Comu\nidades Européias, em 7.8.85, n. Lei 210/29, Fasc. 19, pp. 8 a 12; sobre a Diretiva veja detalhes na obra de seu elaborador, Taschner; em português, veja a Tese de Doutorado de Macena de Lima. (535) Diretiva é uma norma obrigatória para os Estados membros da Comunidade, mas deve ser incorporada ao ordenamento jurídico interno através de leis nacionais, dos Parlamentos. Processa-se, assim, uma harmonização dos direitos, pois concede-se ao legislador nacional um certo espaço quando da transformação em lei interna. (536) Concordam com a influência da Diretiva na elaboração do CDC, Macena de Lima, p. 226 e Benjamin, Comentários, p. 61, se bem que este advirta que muitos de seus aspectos não foram seguidos, p. 56. Em minha opinião, porém, o fundamento da responsabilidade introduzida pelo CDC é o mesmo do sistema da Diretiva européia, por isso destacamos a necessidade de seu estudo. (p. 624) anexo para o fornecedor (uma verdadeira garantia implícita de segurança razoável, como no sistema anterior norte-americano).{537} Este dever seria "anexo" ao produto, isto é, concentrado no bem e não só "anexo" ao contrato, por conseguinte seria um dever legal de todos os fornecedores que ajudam a introduzir (atividade de risco) o produto no mercado. Mas, no sistema do CDC, só haverá violação deste dever, nascendo a responsabilidade de reparar os danos, quando existir um defeito no produto (por influência européia).{538} No sistema do CDC, pode haver o dano e o nexo causal entre o dano e o produto (explosão de um botijão de gás), mas se não existir o defeito (art. 12, § 3.º, II), não haverá obrigação de reparar para o fornecedor, arcando este, porém, com o ônus da prova da inexistência do defeito de seu produto. Ora, se o legislador brasileiro estivesse pensando somente na divisão dos riscos em virtude do lucro da atividade exercida pelo importador, por exemplo, nos casos em que o dano ocorresse, deveria responsabilizar sempre o fornecedor e não obrigar o consumidor, nesta hipótese, a suportá-los. Em nosso CDC, o art. 12 exige tanto o lançamento no mercado do produto, a prova do dano, quanto também um terceiro elemento: o defeito do produto lançado no mercado! Certo é, que se presume, tendo em vista o dano, que exista o defeito, invertendo, assim, o CDC o ônus da prova e o impondo aos fornecedores de bens. Este fato, porém, não diminui a importância da inclusão deste novo requisito para a responsabilização. Segundo o § 3.º, inciso II, do art. 12, não será responsabilizado o agente econômico se provar que não há defeito no produto, apesar de ter colocado o produto no mercado e deste produto ter causado comprovadamente dano ao consumidor. O dever legal instituído no CDC seria, então, de só introduzir no mercado produtos livres de defeitos (art. 12, § 3.º, I e II). Por conseguinte, não basta a atividade de risco de introduzir o produto

\no mercado e lucrar com isto (cujus commodum, e jus periculum), * (537) Sobre a utilização da teoria das garantias implícitas extracontratualmente e a evolução veja a obra de Leães ou a Tese de Macena de Lima. (538) Veja sobre a evolução da noção de defeito na jurisprudência francesa e no direito europeu em Macena de Lima, p. 97. (p. 625) porque também os comerciantes-finais o fazem e não são responsáveis principais no sistema do CDC (art. 12, caput).{539} Assim, na sistemática do Código, todos os fornecedores que ajudam a introduzir o produto no mercado podem ser potencialmente responsabilizados (é o caso do comerciante na hipótese do art. 13), mas a figura européia do defeito concentrou a imputação em alguns fornecedores, não com base no simples risco criado por sua atividade (ou imputaria a todos a responsabilidade, como no sistema norteamericano),{540} mas com base em uma valoração legal específica. Imputou a responsabilidade principal ao fabricante, ao construtor e ao produtor porque presumivelmente deram origem ao defeito, ou poderiam ter, ao menos potencialmente, evitado sua existência; imputou ao importador, porque é o único fornecedor acessível ao consumidor brasileiro, uma vez que o fabricante tem sua sede em outro país; imputou também ao comerciante, quando este for o único fornecedor acessível (art. 13, I), ou, em decisão inovadora dos legisladores do CDC,{541} também, quando este descumprir o seu dever anexo de identificação clara da origem do produto (violação ao art. 31) ou quando for o real causador do defeito do produto perecível, por não ter cumprido seu dever de conservá-lo corretamente (violação ao art. 8.º). Na Europa, o mestre francês André Tunc{542} afirma, simplesmente, que na Diretiva o fundamento da responsabilidade é o defeito e não a culpa; o consumidor fica liberado de provar a culpa do fabricante, mas * (539) Sobre a teoria do risco e as atividades criadoras de riscos veja a obra de \nosso mestre alemão Prof. Michael R. Will, Quellen erhõter Gefahr, \Munique, Beck, 1980, e em português a obra basilar de Ah’ino Lima, Culpa e Risco. \ (540) O Second Restatement of the Law (Tons) de 1965, Section 405, afirma que o vendedor profissional responde perante o consumidor quando seu produto, por seu caráter defeituoso ou simplesmente perigoso, impõe ao consumidor um risco anormal (não razoável), veja Alpa, p. 310 e Macena de Lima, p. 8. (541) Esta solução é diferente da Diretiva Européia, que responsabiliza prioritariamente "produtor" (fabricante, construtor, produtor, art. 3.º, 1.º) e o importador (art. 3.º, 2.º) ou "cada fornecedor", incluindo o comerciante, se o produtor não puder ser identificado (art. 3.º, 3.º); veja sobre semelhanças e diferenças do sistema da Diretiva e do CDC, em nosso Responsabilidade... (542) André Tunc, "La Directiva Européenne sur la Responsabilité du Fait des Produits Defectuex", in Europa-Institut, n. 140, p. 9. (p. 626)

será obrigado a provar o defeito (art. 4.º da Diretiva). Seguindo esta linha de pensamento, a lei européia imputaria o dano ao fabricante, ao produtor ou ao importador sempre que houvesse um nexo causal entre o defeito e o dano sofrido pelo consumidor. Não seria este o fundamento também da responsabilidade no sistema do CDC? Parece-nos, à primeira vista, que o art. 12 do nosso CDC, por influência da Diretiva européia, funciona como uma espécie de hipótese-tipo,{543} na qual se prevê uma responsabilidade legal sem culpa dos agentes ali citados, nos casos e nos limites impostos pela norma. A responsabilidade positivada no CDC é, sem dúvida, objetiva,{544} no sentido de ser independente da existência de culpa, mas não pelo risco da atividade.{545} Seria a introdução, no ordenamento jurídico brasileiro, na chamada responsabilidade não-culposa. Este tipo de responsabilidade exige, para caracterizar o ilícito, a existência de um defeito, \defeito este imputado objetivamente (peritus spondet artem suam) aos fornecedores citados na norma do art. 12 e nos casos especiais previstos do art. 13. Esta imputabilidade objetiva, baseada no profissionalismo dos fornecedores e no defeito efetivamente existente, afastaria qualquer alegação de que o defeito seria, por exemplo, oriundo de caso fortuito ou força maior quando da atividade do fornecedor (corte de energia, erro do computador, erro dos prepostos, etc.). Não se diga que a idéia do descumprimento de um dever legal de segurança (existência do defeito no produto), isto é, a exigência de um * (543) Em recente artigo de Guido Alpa, "Le nouveau régime juridique de la responsabilité du producteur en Italie et l’adaptation de la directiva communautaire" in Revue Int. de Droit Comparé, 1-1991/74, p. 71, concorda o mestre italiano que a directiva introduz uma "hipótese-tipo" para a nova responsabilidade não-culposa. (544) Assim Macena de Lima, ob. cit., pp. 226, 227, na Europa a maioria dos autores concorda que a responsabilidade da Diretiva é também objetiva, veja detalhes no artigo de Geneviève Viney, "La responsabilité du fait des Produits en Droit Civil", Journées de la Societé de Législation Comparé, 1989, p. 585. (545) Assim concluímos em nosso artigo "A Responsabilidade do Importador...", com posicionamento contrário Benjamin, Comentários, defendendo que a responsabilidade no CDC é objetiva, mas baseada no risco, p. 58. Ocorre que a teoria do risco concentra-se na atividade (lícita, mas perigosa) e a responsabilidade prevista no CDC concentra-se no resultado, no defeito (ilícito, contrário ao dever de segurança), exigindo seu nexo causal com o dano. (p. 627) ato antijurídico para que se impute a responsabilidade legal a alguns agentes, não é compatível com a teoria da responsabilidade objetiva,{546} que visa, em última análise, regular os efeitos de um ilícito civil (ato valorado como antijurídico) e alcançar uma justiça distributiva.{547} A Teoria da Responsabilidade Objetiva entre nós evoluiu baseando-se em

leis especiais, as quais excluíam a questão da culpa e imputavam o dever de reparar a uma determinada pessoa.{548} A responsabilidade \objetiva acostumou-se a ser uma responsabilidade legal (gesetzliche Haftung), para a qual o momento decisivo era a imputação do dano a \uma determinada pessoa (Zurechnung),{549} não por culpa deste agente, mas por sua condição pessoal, por sua condição de agente capaz de suportar as conseqüências do evento danoso. Parece-nos que mais uma vez isto ocorreu, como caminho de compromisso entre a responsabilidade pura pelo risco da atividade e a responsabilidade baseada na culpa presumida. O sistema do CDC é somente criticável pela falta de possibilidade do juiz, em caso de produtos não industrializados, imputar a responsabilidade prioritariamente ao comerciante, geralmente mais forte economicamente que o produtor rural ou artesanal.{550} Feitas estas observações, e considerando que o caput do art. 13 impõe a aplicação do art. 12 também para o comerciante, podemos * (546) Veja a excelente exposição do professor argentino Carlos Alberto Ghersi, Reparación de Daños, Buenos Aires, Ed. Universidad, 1989, pp. 161 a 169, em que analisa o ato antijurídico (valoração normativa da conduta), que pode ter sua origem na culpabilidade ou na simples imputabilidade objetiva. (547) Assim ensina tb. Benjamin, Comentários, p. 58. \ (548) Ghersi, ob. cit., p. 98 cita Jiménez de Asuá: "imputar un hecho a un individuo \es atribuirselo para hacerle sufnr las consecuencias". No mesmo sentido, ensina a jurisprudência brasileira (in: RT 698/111): "A atividade de transporte encerra em si o perigo, razão pela qual doutrina e jurisprudência acabaram por instituir regime próprio de responsabilidade civil, assentado no risco, e decorrente do simples fato do exercício. Impera, na matéria, o fator risco, que torna objetiva a responsabilidade, em várias leis que, apartadas da codificação civil, compõem o citado regime específico, inclusive o Dec. Legislativo 2.681/12. Não se cogita, desse modo, de caso fortuito como excludente, ou, simplesmente, é ele afastado do respectivo contexto" (Ap. 531.181-3 - 4.ª C. - J. 9.9.93 - rel. Juiz Carlos Bittar, 1.º TACivSP). (549) Assim tb. os comparatistas alemães Konrad Zweigert e Hein Koetz, p. 433. (550) Nesse sentido, na seção sobre responsabilidade pelo fato do produto, faltaria uma norma análoga à do art. 34 do CDC. (p. 628) concluir que nestes casos, a sua responsabilidade solidária é a mesma do fabricante, oriunda de uma imputação objetiva,{551} dependendo somente do defeito e do nexo causal entre defeito e dano. O comerciante fica liberado da obrigação de reparar o dano, quando ele consegue provar que não ajudou a colocar o produto no mercado, que não existe ou existia defeito no produto,{552} mesmo que tenha havido nexo causal entre o produto e o dano (art. 12, § 3.º, I e II do CDC). O sistema do CDC prevê ainda a exoneração na hipótese do inciso III

do § 3.º do art. 12, de culpa exclusiva da vítima ou de terceiro; hipótese esta que no sistema da Diretiva{553} européia ficaria submetida ao juízo de valor do Judiciário, mas que no sistema do CDC exonera os fornecedores, pois, mesmo existindo no caso um defeito no produto, não haveria nexo causal entre o defeito e o evento danoso (culpa da vítima). Concluindo, concorde-se com a introdução de uma responsabilidade objetiva por risco, ou de uma responsabilidade objetiva mitigada, não-culposa,{554} através do CDC, o importante é frisar que a discussão sobre a culpa dos fornecedores, imputados objetivamente, ficou superada. Agora se discutirá, no direito brasileiro, em todos{555} os casos de \* (551) Assim tb. Thomas Weickhorts, "Bisherige Produzentenhaftung, EG-Produ\kthaftungsrichtlinie und das neue Produkthaftungsgesetz", in JuS 1990/2, p. 89. (552) Esta prova já está sendo chamada de prova diabólica, em virtude de sua dificuldade. (553) O art. 8.º da Diretiva dispõe que se há defeito, há responsabilidade do produtor e seus equiparados, mas esta pode ser "reduzida ou excluída" tendo em vista a ação concorrente da culpa da própria vítima ou de terceiros pelos \quais ela se responsabiliza. Este fato levou Schmidt-Salzer-Hollman (art. \1 /) a afirmar que a culpa se concretiza no defeito, tendendo a subjetivar a responsabilidade, opinião com a qual não concordamos. (554) Para Taschner, p. 9, a responsabilidade não-culposa também é objetiva e por \risco (Gefãhrdungshaftung), possivelmente pelo risco criado pelo defeito. No caso, porém, os resultados práticos são os mesmos, porque se destaca o elemento novo à teoria tradicional do risco, que é a necessidade de um defeito e não só do nexo causal entre a atividade de risco e o dano. \ (555) Serão todos os casos, pois o art. 17 CDC equipara todas as vítimas a consumidores. Logo basta ser vítima de um acidente de consumo, para ser consumidor e requerer a aplicação das normas protetivas do CDC. A expressão acidentes de consumo é utilizada por Benjamin, Comentários, p. 44; nesse sentido basilar a decisão do TA/RS, in: Julgados, n. 84, p. 271. (p. 629) responsabilidade pelo fato do produto (acidentes de consumo), a existência de um defeito. a colocação no mercado e uma eventual culpa exclusiva de terceiro ou da vítima. A discussão sobre a culpa dos fornecedores, ou como CDC denomina, "a causação" do defeito (art. 13, parágrafo único), ocorrerá na cadeia de fornecedores, sendo proibida a denunciação da lide (art. 86) entre os fornecedores solidariamente responsáveis, quando acionados pelo consumidor. Parece-nos, portanto, que este sistema de compromisso instituído pelo CDC alcançará seus fins de efetiva reparação{556} dos danos sofridos

pelos consumidores (art. 6.º, VI) e de conseqüente melhoria da qualidade de vida e qualidade dos produtos oferecidos no mercado \brasileiro (art. 40). c) Direito de regresso - Os fornecedores citados no art. 12 são responsáveis solidários, o consumidor pode escolher qual deles deverá responsabilizar pelo pagamento imediato dos danos. Frente ao consumidor o que vigora é a chamada causalidade alternativa, em que se imputa a todo um grupo de fornecedores uma atividade lícita grupal{557} (a de participar da cadeia de produção), assim frente ao consumidor todos são responsáveis. O comerciante, ao contrário, é responsável secundário, só nas hipóteses de produtos brancos (sem identificação), de falha no cumprimento de seus deveres referentes a identificação de produtos e no caso de produtos perecíveis. Internamente, na cadeia de produção o CDC estipula, em seu art. 13, parágrafo único, a responsabilidade pelo ressarcimento do dano novamente ligada ao defeito do produto, mas desta vez responderá cada fornecedor na medida de sua "participação", isto é, se o defeito pode ou não ser a ele imputado subjetivamente. Assim, se o defeito foi na fabricação do iogurte, no tipo de microorganismo utilizado, o comerciante pode até ser responsabilizado pelos danos causados à saúde de seus clientes e de suas famílias, pois está mais próximo e se presume que tenha falhado na conservação do produto perecível, mas, se o * (556) Note-se que o sistema do CDC, ao contrário da Diretiva européia não prevê um teto máximo para as indenizações. O sistema do CDC também modifica o prazo prescricional, que passa a ser de 5 anos (art. 27) a partir do conhecimento, tanto do dano como também de sua autoria. (557) Sobre a responsabilidade civil dos grupos veja Tese do Mestrado da UFRGS \de Vasco della Giustina, 1991, publicada pela Editora Aide, Rio de Janeiro. (p. 630) defeito do produto foi causado pelo fabricante, terá o comerciante direito de regresso. Se o defeito que deu origem ao evento danoso foi causado totalmente pelo fabricante, terá direito de regresso integral. Dispõe o art. 13, em seu parágrafo único: "Parágrafo único. Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na causação do evento danoso". Trata-se, portanto, no momento do regresso, de uma espécie de solidariedade imperfeita, pois não tem causa única, cada um seria responsável, no momento final, isto é frente a frente com os outros fornecedores, por sua participação na causação do defeito do produto, do resultado.{558} A natureza da responsabilidade é então novamente subjetiva, nos moldes tradicionais, com toda a dificuldade de prova que isto significa. Parece-nos que na inclusão da possibilidade de exercer o direito de regresso contra o verdadeiro causador do dano, em norma de ordem pública do CDC, afasta as estipulações contratuais entre fornecedores de renúncia a este direito. A ratio da norma do CDC, em uma das poucas passagens que invade o regime das relações comerciais entre os fornecedores, é assegurar que seu ideal de socialização dos custos sociais da produção{559} funcione, e que os responsáveis principais, escolhidos pelo CDC, os fabricantes, prováveis causadores dos defei-

tos, suportem os ônus sociais daí oriundos. Por fim, cabe esclarecer que a norma do art. 25 aplica-se também à seção sobre responsabilidade extracontratual. O art. 25 veda a estipulação de cláusula contratual que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista no CDC. Referida norma é aplicável, principalmente, aos contratos entre fornecedor e consumidor, mas na sistemática do CDC nada impede que seja aplicada também excepcionalmente aos contratos entre fornecedores. * (558) Nesse sentido a decisão do JEPC/RS: "Consumidor - Subrogação. O parágrafo único do art. 13 do CDC assegura o direito de regresso àquele interveniente da relação que compõe o dano, dando-se sub-rogação nos direitos assegurados ao consumidor, com o que poderá discutir abatimento no \preço devido". (Rec. 147/93, rela. Dra. Rosane Wannerda Silva Bordasch, 3.ª Câm. Recursal, Porto Alegre, deram provimento ao recurso, 24.6.93). (559) Veja Benjamin/Comentários, p. 34. (p. 631) 2.5 Inexecução contratual pelo consumidor e cobrança de dívidas No caso de inexecução por parte do consumidor, em que ele descumpre a sua obrigação principal, o pagamento, vigoram as regras do Código Civil sobre o tema. Somente dois aspectos civis foram regulados de maneira especial pelo CDC; o primeiro tem a ver com a harmonia e boa-fé nas relações contratuais de consumo e o segundo trata-se de mais um direito especial do consumidor. O primeiro aspecto regulado pelo CDC é o dever acessório de lealdade quando da cobrança da obrigação principal, que uma vez violado pode dar origem ao ressarcimento por danos morais. Dispõe \o caput do art. 42: \ "Art. 42. Na cobrança de débitos o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça". A norma tem caráter civil e assim deve ser interpretada, não utilizando-se para interpretá-la o que dispõe a norma de caráter penal, contida no art. 71.{560} Ora, civilmente o exercício de um direito não constitui coação ou constrangimento; logo, improcedem as afirmações radicais de que a norma do art. 42 impediria a cobrança de dívidas no Brasil, a partir da entrada em vigor do CDC. A norma do art. 42 institui um mínimo ético de conduta, qual seja não expor o consumidor a ridículo, não ameaçá-lo com meias-verdades - como aquelas comuns em cartas de cobrança, ameaçando-o de prisão, quando se sabe da estrita regulamentação legal sobre o assunto -, não impor um constrangimento ao consumidor, como impedi-lo de entrar no estabelecimento comercial etc. Mas, repita-se que a cobrança, judicial e extrajudicial, da dívida é e continua sendo um direito do fornecedor, o qual, porém, deve limitar-se a parâmetros de civilidade normal. Note-se, ainda, que o CDC não prevê sanção específica para o descumprimento deste novo dever do fornecedor. A sanção originalmente prevista era pecuniária, segundo o art. 45, mas foi vetada. Por conseguinte, deverá ser agora * (560) Muitos comentaristas consideram que o art. 42 deve ser "lido em conjunto com o art. 71". veja Benjamin-Forense, p. 241, posição da qual discorda-

mos; as esferas de proteção são diferenciadas, os fins a serem atingidos também (adimplemento conforme a boa-fé e, no penal, proteção da ordem social, evitando ofensas à pessoa do consumidor); se o legislador desejasse que a norma civil tivesse o mesmo conteúdo do tipo penal, o teria feito. (p. 632) deduzida pela jurisprudência dos princípios gerais do CDC, que prevê em seu art. 6.º, VI a efetiva reparação de danos patrimoniais e mesmo morais sofridos pelo consumidor. Neste sentido, mister frisar em geral que o CDC influenciou a definição jurisprudencial atual de quais são os danos indenizáveis em matéria de contratos de consumo, em caso de inexecução do consumidor ou do fornecedor. Como anteriormente comentado, no sistema do CDC os danos morais individuais e coletivos devem ser indenizados e, segundo a Súmula 37 do STJ, "são cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato".{561} Efetivamente, nestes primeiros anos de vigência do CDC, a jurisprudência brasileira têm-se mostrado especialmente sensível ao problema do ressarcimento do dano moral sofrido pelo consumidor em suas relações de consumo com fornecedores e seus auxiliares profissionais (SPC, Cartórios de Protesto de Títulos, Jornais etc.). Esta massiva resposta jurisprudencial, de uma unanimidade poucas vezes observada em matéria de defesa do consumidor, pode ter sua origem na hierarquia constitucional da proteção da personalidade e da dignidade humana, mas demonstrou de forma clara a importância da atuação do Judiciário na criação de uma sociedade mais ética. Ao exigir um tratamento mais leal e transparente dos fornecedores e sua cadeia de auxiliares em relação aos seus clientes, impôs o Judiciário brasileiro através da interpretação teleológica do CDC um novo paradigma de boa-fé nas relações de consumo contratuais, caracterizado pela aceitação do dever de cuidado do fornecedor ao cobrar suas dívidas ou movimentar seus auxiliares, suportando o risco profissional de ter causado dano moral ao consumidor em caso de cobrança indevida de dívida,{562} registro indevido de seu nome do * (561) Veja ainda do STJ as Súmulas 43, "Incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo", 54, "Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual" e 186, "Nas indenizações por ato ilícito, os juros compostos somente são devidos por aquele que praticou o crime". (562) Este é o caso mais comum na jurisprudência, geralmente decidido nos JEPCs, veja como exemplo a seguinte ementa: "Dano moral. Responde por dano moral o comerciante que cadastra indevidamente, cliente que havia pago antes mesmo do vencimento a obrigação. Dano moral é o abalo da auto-estima, do amor próprio, é aquele que causa constrangimento. É (p. 633) SPC,{563} ou de protesto indevido de título abstrato.{564} Nesse sentido, o STJ já foi chamado várias vezes a interpretar o art. 43, §§ 1.º e 5.º do CDC, concluindo que "não podem constar, em sistema de proteção ao crédito anotações relativas a consumidor, referentes a período superior a 5 anos ou quando prescrita a correspondente ação

de cobrança".{564A} Quanto ao crime tipificado no art. 71, segue ele os parâmetros dos dispositivos penais, de interpretação restrita, e no caso de condutas normalmente civis, uma interpretação que leva a sua aplicação somente em casos excepcionais e extremos.{565} O segundo aspecto da cobrança de dívidas destacado pelo CDC é o caso da cobrança indevida. Dispõe o parágrafo único do art. 42: "Art. 42... "Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro ao que pagou *distinto de prejuízo. Aferição do valor indenizatório de forma subjetiva, pela inexistência de parâmetros objetivos (unânime)". (Proc. 221/70-91, São Leopoldo, rel. Dr. Ivan Leomar Bruxel, 1.ª Câm. Recursal/RS, 29.8.91). (563) Veja RJTJRS 159/319; nesta decisão, porém, o TJRS preferiu não utilizar o CDC, presumindo a culpa do fornecedor, uma vez que o consumidor já saldara sua dívida. (564) Veja jurisprudência citada quando da análise da cláusulamandato, Parte II, 1.2, c, e a ementa: "SPC - Comunicação indevida - Protesto cambial indevido e registro no SPC - Abalo de crédito - Dano moral e material. A molestação, o incômodo e o vexame social, decorrentes de protesto cambial indevido ou pelo registro do nome da pessoa no SPC, constituem causa eficiente que determina a obrigação de indenizar, por dano moral, quando não representam efetivo dano material. Sentença confirmada. Negado provimento (unãnime)". (Ap. Cív. 189000326, rel. Dr. Clarindo Favretto, 2.ª Câm. Cív., TARS, 1.6.89). (564A) Assim REsp. 30.666-1-RS, 3.ª T., j. 8.2.93, in RT696/249 e ss., no mesmo sentido REsp. 14.624-0-RS (Lex/STJ 41/189); na doutrina destacam-se a exposição precisa de Antônio Janyr Dall’Agnol Jr., "Cadastro de Consumidores", in Rev. AJURIS 51/196 e ss. e o artigo de Bertram Stürnier, "Banco de Dados e Habeas Data no Código do Consumidor", in Lex/STJ, 49/7 e ss. e ambos explicando a evolução jurisprudencial que levou as Súmulas \11 e 13 do rms sobre o tema. Sobre o tema "Habeas Data no CDC", comparece a decisão do TJRS, in: RJ 160/407, negando a gratuidade da certidão requerida pelo consumidor. (565) Veja alguns exemplos de casos de abusos nas cobranças citados por Benjamin-Forense, pp. 239 e ss. (p. 634) em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipóteses de engano justificável". Tratando-se, portanto, de contratos entre consumidor e fornecedor, duas hipóteses podem ser pensadas. Se ocorre a cobrança de quantia indevida, o fornecedor não só fica obrigado a restituir o que cobrou em demais, como seria normal através da aplicação do art. 964 do Código Civil, como também fica obrigado legalmente a restituir o dobro, corrigido monetariamente, para evitar qualquer dano ao consumidor e, em última análise, para evitar a negligência no cálculo do valor a ser cobrado do consumidor. A restituição em dobro serve, assim, como uma

espécie de multa, de sanção legal. Mas pode ser ilidida se o fornecedor provar que o engano foi justificável". O ônus da prova cabe ao fornecedor e esta será uma prova muito difícil, pois no sistema do CDC o fornecedor deve, como profissional, dominar todos os tipos de erros prováveis em sua atividade, erros de cálculo, impressão do valor errado por computador, troca do nome nas correspondências etc. Em nossa opinião não basta que inexista má-fé, dolo ou mesmo ausência de culpa do fornecedor (negligência, imperícia e imprudência),{566} deve ter ocorrido um fator externo à esfera de controle do fornecedor (caso fortuito ou força maior) para que o engano (engano contratual, digase de passagem) seja justificável.{567} Em matéria contratual a noção de "ausência de culpa" fica deslocada, pois o que há é dever/obrigação de fazer, de cumprir com o que se vinculou. O vínculo contratual exige cumprimento dos deveres principais, mas também dos chamados anexos, entre eles o de respeito, de cooperação e também o de cuidado e vigilância. O próprio vínculo contratual entre fornecedor (cobrador) e consumidor (devedor) impõe que a cobrança seja correta; sendo assim, as falhas serão imputadas ao fornecedor. O CDC teria assim instituído uma imputação objetiva do erro na cobrança ao fornecedor, semelhante àquela que imputou com referência * (566) Com opinião contrária, Benjamin-Forense, p. 250, mas os exemplos de enganos "justificáveis" são todos externos à "esfera de atividade do fornecedor" ou de caso fortuito. (567) Reforçamos a idéia de cobrança indevida, como cobrança contratual para frisar que a noção de "culpa" nos contratos não é mais adequada; para nós há na cobrança indevida um descumprimento contratual do fornecedor, cuja pena já vem prevista legalmente no art. 42, devolução em dobro, e não simples ato ilícito extracontratual que exigiria a culpa. (p. 635) do defeito do produto ou do serviço. Este parece ter sido o caminho utilizado pelo CDC brasileiro, que estipulou uma regra especial no art. 42 para a falha na cobrança de contratos de consumo, isto é, para o descumprimento do dever contratual de correção na exigência das prestações contratuais, impondo uma sanção, o pagamento em dobro da quantia paga a mais. A ratio da devolução em dobro não seria o princípio do enriquecimento ilícito (ato ilícito do fornecedor ou de seus prepostos), mas o descumprimento de um dever contratual (e o enriquecimento sem causa contratual). Se não houve este descumprimento do dever anexo ao contrato de consumo, a devolução será simples, seguindo a regra comum do Código Civil do pagamento indevido, que não distingue a origem da obrigação (tributária, contratual, extracontratual, natural). 2.6 Inexecução contratual pelo fornecedor e desconsideração da personalidade da pessoa jurídica a) Noções gerais - Quanto à inexecução contratual do fornecedor, observamos anteriormente que ela pode ser total ou parcial, descumprimento do dever principal de fornecer o produto, de transferir a propriedade, descumprimento dos novos deveres cogentes (antigos deveres acessórios), anexos de adequação do produto, de informação sobre o produto ou serviço, de informação sobre a periculosidade

específica e outros baseados na boa-fé, como o de esclarecimento sobre o uso do produto, cooperação, auxílio, manutenção da assistência técnica.{568} O CDC regula o descumprimento contratual do fornecedor em muitas de suas normas, mas duas delas merecem destaque. No campo processual, devemos destacar a preocupação do legislador brasileiro com a facilitação do acesso à justiça, como forma de efetivar a proteção do consumidor.{569} O CDC possui uma seção específica sobre a defesa do consumidor em juízo, desenvolvendo no Brasil as ações coletivas, a class action do direito norte-americano, para facilitar a defesa do consumidor, normalmente menos propenso a recorrer à Justiça para fazer respeitar seus direitos; propõem, igualmen* (568) A obrigação como ensina Couto e Silva/Obrigação, passa a ser um \"processo" (Veifahren). (569) Sobre as preocupações com o acesso à justiça veja Bourgoingnie/Clauses, p. 516, Stiglitz, p. 49 e Mancuso, pp. 60 e ss. (p. 636) te, estas normas processuais que se dê prioridade à conciliação e à transação extrajudicial, com o auxílio de órgãos como os PROCONs, as Associações de Defesa (mesmo através de uma nova figura, a Convenção Coletiva de Consumo, art. 107) e principalmente pela ação do Ministério Público. A novidade das normas processuais, sua especialidade, instituindo inclusive a coisa julgada erga omnes e ultra partes (art. 103), completam o sistema de proteção material instituído pelo CDC, merecendo destaque pela excelência de suas normas, que esperamos reflita-se em eficiência e rapidez na solução dos litígios do consumo. O sistema do CDC permite ações coletivas e mesmo uma ação civil pública, movida pelo Ministério Público (art. 51, § 4.º), para declarar em abstrato a nulidade de determinada cláusula presente nos contratos de massa. Nestes casos as ações envolvem interesses metaindividuais; lógico, portanto, que se estendem os efeitos das decisões aos casos futuros e análogos, no caso de procedência do pedido (veja arts. 81 a 104 do CDC). b) A desconsideração da personalidade da pessoa jurídica - No âmbito contratual, cabe destacar a norma do art. 28 do CDC, que \positiva no Brasil a doutrina da Disregard of legal Entity, do direito \norte-americano, doutrina do Durchg4ff no direito alemão, a doutrina da Desconsideração da Personalidade da Pessoa Jurídica, abordada pioneiramente no Brasil por Requião{570} em 1979. A doutrina da desconsideração tem seu fundamento nos princípios gerais de proibição do abuso de direito, e permite ao Judiciário, excepcionalmente, desconsiderar (ignorar no caso concreto) a personificação societária, como se a pessoa jurídica não existisse, atribuindo condutas e responsabilidades diretamente aos sócios e não à pessoa jurídica.{571} O reflexo desta doutrina no esforço de proteção aos interesses do consumidor é facilitar o ressarcimento dos danos causados aos consumidores por fornecedores-pessoas jurídicas. No direito tradicional é o patrimônio societário que responde pelas dívidas da sociedade, estando a responsabilidade dos sócios restrita conforme o tipo de sociedade * (570) Rubens Requião, "Abuso de direito e a fraude da personalidade jurídica

(disregard doctrine)", in RT 410/12. (571) Assim Marçal Justen Filho, A Desconsideração da Personalidade Societária no Direito Brasileiro, São Paulo, Ed. RT, 1987, p. 55. (p. 637) criada (sociedade por quotas de responsabilidade, sociedade anônima, comandita etc.). Ao nosso estudo, restrito aos aspectos contratuais, interessa distinguir os dois aspectos da pessoa jurídica. A pessoa jurídica de direito privado é criada por uma manifestação de vontade (inter vivos ou causa mortis), podendo ser a reunião de pessoas (associação, sociedades civis e comerciais) ou de bens (fundação). Para alcançar a personalidade jurídica submete-se a formalidades, controle e necessidade de registro (arts. 18 e ss. do CC). Alcançada a personificação, considere-se a pessoa jurídica como uma ficção, em honra aos ensinamentos do mestre Savigny, ou uma realidade técnica, doutrina aceita atualmente, certo é que a pessoa jurídica passa a agir na sociedade como ente diferenciado de seus sócios \(art. 20 do CC). Este é o chamado aspecto ativo da personificação que permite ao novo ente ter capacidade ou legitimação para agir, para realizar os seus objetivos societários.{572} Já o aspecto passivo da pessoa jurídica é considerá-la como massa de garantia para as ações e contratos que realiza no mercado. Aqui ocorre a separação - por força última da vontade das partes, ao criarem a sociedade, mas também por autorização do direito - entre os patrimônios dos sócios e dos administradores e o patrimônio da pessoa jurídica. A pergunta que se põe é qual dos aspectos da pessoa jurídica será desconsiderado em favor do consumidor? O juiz declarará a invalidade do contrato, que criou a sociedade, por abuso de direito? Destruirá o Judiciário o ente criado segundo o direito, por se ter desviado de seus fins? Ou imputará o juiz os atos e condutas da sociedade aos sócios, desconsiderando as regras de responsabilidade patrimoniais daquele tipo de sociedade criada, como punição ao abuso ou desvio ocorrido? Ou imputará o juiz tais condutas aos sócios e administradores individualmente, casuisticamente, para evitar o sacrifício de interesses superiores? A doutrina do disregard desenvolveu-se no sistema norte-americano, na procura da solução justa e funcional para o caso concreto, sistema menos formal, onde o conceito de pessoa jurídica se aproximava da ficção proposta por Savigny, e foi desenvolvida pela via especial da equity.{573} Era, portanto, uma solução casuística, excepcional, justa para o caso concreto (eqüidade). * (572) Assim ensina Los Mozos, p. 260. (573) Assim ensina Los Mozos, p. 253. (p. 638) Chegando na doutrina alemã vai sistematizar-se, na tese famosa \apresentada por Rouph Serick à Universidade de Tübingen em 1952, em que procura caracterizá-la como hipótese de abuso do direito e como intenção de fraude à lei.{574} No Brasil vai ganhar, no Projeto de 1975 de Código Civil, traços de invalidade do contrato de criação da sociedade, de verdadeira forma especial de dissolução da sociedade, fato que levantará críticas dos comercialistas.{575} Após, a melhor doutrina fixará que na desconsideração o problema é de imputação do ato jurídico aos sócios. A doutrina

encarregar-se-á de considerar a teoria aplicável somente em casos de desvio das finalidades da sociedade ou abuso de direito, casos graves que justifiquem desconsiderar a pessoa jurídica regularmente constituída, que praticou determinado ato jurídico.{576} O método é mais uma vez tópico e funcional, bem ao gosto do CDC no sentido de resolver o problema concreto do conflito de valores entre a manutenção do dogma da separação patrimonial e os interesses da outra parte contratante com a pessoa jurídica insolvente. Assim, dispõe o art. 28 do CDC: "Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estando de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração". A previsão ampla, englobando todas as hipóteses detectadas no direito comprado e na experiência jurisprudencial brasileira sobre o tema,{577} deixa bem clara a opção legislativa pela proteção do consumidor através da desconsideração sempre que a "personalidade" atribuída à sociedade for obstáculo ao ressarcimento dos danos sofridos pelo consumidor. Nesse sentido, terminamos estas observações, que pretendiam ser breves, transcrevendo o texto do § 5.º do art. 28, * (374) Assim Adalberto Pasqualotto, "Desvio da Pessoa Jurídica", in Rev. AJURIS, 47. (575) Veja detalhes e críticas de Requião ao Projeto 634/75, em Justen, pp. 151 a 153. (576) Assim conclui Justen, em sua monografia, pp. 53, 59, 152. (577) Sobre as decisões nos tribunais brasileiros, veja Pasqualotto/Desvio, p. 209. (p. 639) |do próprio contrato, para responsabilizar objetivamente toda a cadeia de fornecedores, tudo para alcançar a proteção da confiança depositada na sociedade de consumo. Nossa análise tentou, portanto, sistematizar as novas normas, estudando-as enquanto reflexos de princípios básicos do direito tradicional e do novo Direito do Consumidor. Poderíamos genericamente afirmar que o princípio máximo orientador do CDC é o clássico princípio da boa-fé nas relações entre os homens, mas, por uma questão de didática e procurando aprofundar a procura da ratio de cada norma, destacamos a existência de quatro vertentes distintas para as normas do novo Código. Estes princípios são os da Transparência e da BoaFé nas relações entre consumidores e fornecedores, não só em suas relações contratuais mas também pré ou extracontratuais, os Princípios da Eqüidade ou Equilíbrio dos Contratos de Consumo e o Princípio da Proteção da Confiança depositada pelo consumidor tanto no vínculo contratual e em seus efeitos, quanto no produto ou serviço oferecido no mercado. O princípio da Transparência impõe uma nova conduta mais leal e aberta na fase-contratual, antiga fase de negociações preliminares entre os futuros parceiros contratuais. A finalidade destas normas do CDC será, portanto, possibilitar uma aproximação e uma futura relação mais sincera e menos danosa para o consumidor. Transparência

significa, para nós, informação e lealdade na fase pré-contratual. O Princípio da Boa-Fé orientará não só o contrato de consumo, mas, como destacamos, será o guia das práticas comerciais dos fornecedores no mercado brasileiro. O CDC busca, em última análise, transparência e harmonia nas relações de consumo (art. 4.º); esta harmonia será alcançada através da exigência de boa-fé nas relações pré-contratuais entre fornecedor e consumidor. As normas do CDC impõem um novo regime basilar para as práticas comerciais (publicidade e práticas agressivas de venda, inclusive para a chamada venda de porta-em-porta e por reembolso postal), evitando assim que estas práticas se utilizem da vulnerabilidade dos consumidores. No sistema do CDC deveres até então considerados secundários, e nem sempre reconhecidos pela jurisprudência como existentes, passam a ser positivados como obrigatórios nas relações de consumo; assim, o dever de informar passa a ser um dever básico dos fornecedores, anexo à própria atividade de fomentar o consumo, mas também (p. 642) anexo ao próprio contrato, como na doutrina tradicional. Uma das características da nova lei é justamente a imposição de novos deveres anexos, verdadeiros ônus para os fornecedores da cadeia de produção. Destacamos, igualmente, que com a entrada em vigor do Código vários aspectos da publicidade comercial passam a ser juridicamente relevantes, vinculando e responsabilizando aqueles fornecedores que dela se utilizarem para a promoção de seus produtos ou de suas vendas. O Princípio da Eqüidade Contratual, significa o reconhecimento da necessidade, na sociedade de consumo de massa, de restabelecer um patamar mínimo de equilíbrio de direitos e deveres nos contratos, intervindo o Estado de forma a compensar o desequilíbrio fático existente entre aquele que pré-redige unilateralmente o contrato e aquele que simplesmente adere, submetido à vontade do parceiro contratual mais forte. Assim institui o CDC normas imperativas, as quais proíbem a utilização de cláusulas abusivas nos contratos de consumo e possibilitam um controle tanto formal quanto do conteúdo destes contratos, tudo para alcançar a esperada justiça contratual. Por fim, o Princípio da Proteção da Confiança leva o sistema do CDC a concentrar-se também nas expectativas legítimas despertadas nos consumidores pela ação dos fornecedores, protegendo a confiança que o consumidor depositou no vínculo contratual e também na prestação contratual, mais especificamente na adequação ao fim que razoavelmente se pode esperar dos produtos e dos serviços colocados no mercado pelos fornecedores. O Princípio da Confiança garante assim a adequação, a qualidade e mesmo uma segurança razoável dos produtos e serviços de forma a evitar danos à saúde e prejuízos econômicos para o consumidor e os terceiros vítimas. A finalidade destas normas é, em última análise, melhorar a qualidade de vida dos brasileiros, melhorando a qualidade dos produtos que consome e dos serviços que são colocados à sua disposição. Como afirmávamos no início desta obra, a nova lei rompe efetivamente com o pensamento individualista e liberal de nosso Direito das Obrigações. Rompe com a função exclusivamente supletiva das normas que disciplinavam os contratos. E introduz uma nova concepção deste instituto basilar do direito e da economia, concepção esta que vai relativizar o dogma da autonomia da vontade, instituindo estes novos valores imperativos: transparência, boa-fé, equilíbrio,

segurança e respeito nas relações de consumo. (p. 643) Não se exige mais que o consentimento seja livre, se exige que o consentimento seja refletido, oriundo de informações verídicas, baseado na oportunidade de conhecimento do conteúdo das obrigações que se está assumindo. Do direito obstáculo, passa-se ao comando concreto, impondo deveres de conduta e concentrando-se a lei objetivamente no resultado concreto das atividades dos fornecedores, no contrato formulado de maneira unilateral e ineqüitativa, na prestação contratual inadequada ou de menor valor, na segurança inexistente em virtude do defeito do produto ou do serviço. O CDC representa, assim, uma verdadeira evolução no espírito do ordenamento jurídico brasileiro. As idéias, porém, que o guiam não são novas; ao contrário, como tentamos demonstrar, estão positivadas no CDC as teorias que representam o melhor da evolução do pensamento jurídico e da ação criadora da jurisprudência nos últimos dois séculos. São diferentes teorias de fundo social, que podem, porém, ser sistematizadas, enquanto reflexos dos novos princípios básicos de proteção do consumidor, instituídos pelo CDC. A importância destes princípios está em balizar a ação do intérprete do novo texto, evitando excessos. Desta análise do novo Código de Defesa do Consumidor e de seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro, podemos concluir que a maior contribuição da nova lei, no que respeita ao regime dos contratos, não está em regular problemas típicos da sociedade de consumo, que não encontravam resposta no ordenamento tradicional, mas que está em assumir um posicionamento mais social no Direito Civil, no Direito das Obrigações, na esteira do que já acontecia no Direito de Família e de Sucessões, pensamento mais voltado para os efeitos sociais do contrato e menos para a vontade dos indivíduos participantes. Critique-se sua maneira tópica de pensar, seu abrangente campo de aplicação, mas não há como negar que o novo Código é um conjunto funcional e sistemático de normas gerais e cogentes, que garantem a proteção dos consumidores contra várias das manifestações danosas do fático desequilíbrio existente nas relações entre consumidores e forne\cedores no mercado brasileiro. (p. 644) Na primeira edição deste trabalho tivemos a oportunidade de afirmar: "Um Código deve ser algo dinâmico, de modo a possibilitar seu desenvolvimento pela ação da jurisprudência e da doutrina, nesse sentido, é inegável o potencial que representa o Código de Defesa do Consumidor, com seus novos valores de ordem pública, suas normas gerais, que poderão dar origem a uma fecunda renovação no Direito Brasileiro e a uma efetiva melhoria na qualidade de vida neste país. É o que esperamos". Como a análise da jurisprudência brasileira nestes três primeiros anos de vigência do CDC demonstrou, o Código efetivamente rejuvenesceu o direito civil, modificou sensivelmente o direito contratual e introduziu novos patamares éticos no mercado brasileiro. A jurisprudência tem contribuído em muito para uma interpretação ponderada e ao mesmo tempo efetiva das normas do CDC. Mesmo se, em alguns casos, preferem os julgadores utilizar-se de instrumentos mais conhecidos e tradicionais, não há como negar que o espírito de boa-fé objetiva a eqüidade contratual introduzido pelo CDC acaba por influenciar também essas decisões. A abundante jurisprudência e os numerosos trabalhos de doutrina estão a confirmar o que prevíamos: a eficácia prática da lei e sua

importância no sistema do direito civil. O caminho da conscientização da nova função social do direito privado ainda não foi todo percorrido, muitas modificações e reflexos da nova lei devem ser esperados, pois a concreção do princípio da boa-fé na sociedade atual é um dos grandes desafios do direito. Se é impossível fazer ainda uma avaliação completa e total da aplicação do CDC no mercado brasileiro, certo é que nestes três anos o Código apresentou para leigos e profissionais um dos mais eficientes instrumentos legais de reequilíbrio e eqüidade contratual, e esperamos que assim continue. Se o mercado brasileiro ainda apresenta falhas, sem dúvida tornou-se mais leal e transparente. A melhoria das relações entre fornecedores e consumidores é um importante passo para o desenvolvimento de nossa economia e de nosso país. (p. 645) (p. 646, em branco) BIBLIOGRAFIA AGUIAR, Ruy Rosado de Jr. Do Incumprimento Contratual, Rio, Aide, 1991. ____ "Cláusulas Abusivas no Código do consumidor", in Estudos sobre a proteção do Consumidor no Brasil e no Mercosul, Coord. C. L. Marques, 1994, p. 13-32 (cit. Aguiar, Cláusulas). "Aspectos do Código de Defesa do Consumidor", in Revista Ajuris 52/167187, jul./91. "Responsabilidade Civil do Médico", RT 718, p. 33-53. ____ "A Boa-fé na relação de consumo", in Direito do Consumidor, vol. 14, p. 20-27. ALEXY, Robert. "Problemas da Teoria do Discurso", O novo em Direito e Política, in OLIVEIRA Jr., José Alcebíades de (Coord.), Livraria dos Advogados, Porto Alegre, 1997, p. 13-29. ALMEIDA, João Baptista de. A proteção jurídica do consumidor, S. Paulo, Ed. Saraiva, 1993. \ALLAND, Denis. "Ouverture: le contrat dai1S tous ses états", in Droits 12/1 a 6, (Revue, Paris). \ALPA, Guido. Diritto privatto dei consumi, Bologna, Il Mulino, 1986 (cit. Alpa/ Diritto). \-. "Le contrat "individuel" et sa d~finition", in Revue Int. Di: Comp. 1988, 327 (cit. Alpa/Contrat). \-. "Le nouveau régime juridique de la responsabilité du producteur en Italie \et l’adaptation de la directive communautaire", in Revue Int. de Droit \Comparé, 1-1991, p. 71 (cit. Alpa/Producteur). \-. Tutela del consumatore e controlli suiI’impresa, Bologna, Il Mulino, 1977 (cit. Alpa/ Tutela). \"Regole di Mercato e Disciplina dei contratto - A proposito di un recente \saggio di Morton Horwitz" in Rivista dei Diritto Commerciale, LXXIV~ 1976, pp. 22-42.

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