O Novo Código De Processo Civil. O Projeto Do CPC E O Desafio Das Garantias Fundamentais
 978-85-352-6477-7

Table of contents :
Content:
Cadastro, Pages I-III
Copyright, Page IV
Coordenadores, Page V
Os autores, Pages V-VIII
Apresentação, Pages IX-X
1 - Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual, Pages 1-45
2 - Direito fundamental do acesso à Justiça, Pages 47-61
3 - A mediação e o Código de Processo Civil Projetado, Pages 63-85
4 - O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal, Pages 87-98
5 - Ensaio sobre o projeto do Novo Código de Processo Civil frente às políticas públicas e à responsabilidade social, Pages 99-121
6 - Os poderes do juiz e as garantias fundamentais do Processo Civil no projeto do Novo Código, Pages 123-138
7 - Reflexões sobre os poderes do juiz a partir do Projeto do Novo Código de Processo Civil, Pages 139-158
8 - Atos atípicos na informatização e necessidade de inserção do processo eletrônico no futuro CPC, Pages 159-178
9 - A proposta legislativa de permuta de documentos entre as partes, Pages 179-188
10 - A resolução da dúvida sobre os fatos na história do Direito Probatório, Pages 189-201
11 - Ainda sobre a distinção entre Tutela Antecipada e Tutela Cautelar, Pages 203-217
12 - O futuro dos procedimentos no Novo Código de Processo Civil, Pages 219-228
13 - Da extinção do procedimento sumário e da obrigatoriedade do procedimento dos Juizados Especiais Cíveis, Pages 229-246
14 - Desconsideração da coisa julgada material, Pages 247-273
15 - Algumas novidades do Sistema Recursal no Novo CPC, Pages 275-290
16 - Garantismo, contraditório fluido, recursos repetitivos e incidentes de coletivização, Pages 291-318
17 - Precedentes: teoria geral e seus reflexos no projeto de Novo Código de Processo Civil, Pages 319-336

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O novo Código de Processo Civil

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M A R C I A C R I S T I N A X AV I E R D E S O U Z A W A LT E R D O S S A N T O S R O D R I G U E S

O NOVO Coordenadores

O novo Código de Processo Civil

O projeto do CPC e o desafio das garantias fundamentais

Alexandre Freitas Câmara Araken de Assis

Bruno Garcia Redondo Carlos Augusto Silva

Carlos Magno Siqueira Melo

Celso Anicet Lisboa

Delton Ricardo Soares Meirelles

CPC P Fernando Gama de Miranda Netto

Flávio Luiz Yarshell

Fredie Didier Junior

Humberto Dalla Bernardina de Pinho

José Carlos de Araújo Almeida Filho

José Eduardo Carreira Alvim Leonardo Greco

Milton Paulo de Carvalho

Paula Sarno Braga

Rafael Alexandria de Oliveira

Sandro Marcelo Kozikoski

© 2013, Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei no 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Copidesque: Tania Heglacy Revisão: Renato Mello Medeiros Editoração Eletrônica: Mojo Design Elsevier Editora Ltda. Conhecimento sem Fronteiras Rua Sete de Setembro, 111 – 16o andar 20050-006 – Centro – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Rua Quintana, 753 – 8o andar 04569-011 – Brooklin – São Paulo – SP – Brasil Serviço de Atendimento ao Cliente 0800-0265340 [email protected] ISBN 978-85-352-6477-7 Nota: Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra. No entanto, podem ocorrer erros de digitação, impressão ou dúvida conceitual. Em qualquer das hipóteses, solicitamos a comunicação ao nosso Serviço de Atendimento ao Cliente, para que possamos esclarecer ou encaminhar a questão. Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens, originados do uso desta publicação.

Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ R617n Rodrigues, Walter dos Santos O novo código de processo civil : garantias fundamentais do processo : um desafio ao novo CPC / Walter dos Santos Rodrigues, Marcia Cristina Xavier de Souza. - Rio de Janeiro : Elsevier, 2012. 23 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-352-6477-7 1. Processo civil - Brasil. I. Souza, Marcia Cristina Xavier de. II. Título. 12-6386.

CDU: 347.91./95(81)

Coordenadores W A LT E R

DOS

SANTOS RODRIGUES

Professor assistente de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor assistente de Prática Jurídica da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro de Extensão Universitária (CEU, atual Instituto Internacional de Ciências Sociais – IICS). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Advogado.

M A R C I A C R I S T IN A X AV IE R

DE

SOUZ A

Professora de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e do Mestrado em Direito da UCP. Mestre e Doutora em Direito pela Universidade Gama Filho.

Os autores A L E X A NDRE F R E I TA S C Â M A R A Desembargador no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, oriundo do Quinto Constitucional da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – Emerj. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da International Association of Procedural Law.

ARAKEN

DE

ASSIS

Professor Titular (aposentado) da PUC/RS; Doutor em Direito pela PUC/SP. Desembargador (aposentado) do TJ/RS. V

Coordenadores W A LT E R

DOS

SANTOS RODRIGUES

Professor assistente de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor assistente de Prática Jurídica da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro de Extensão Universitária (CEU, atual Instituto Internacional de Ciências Sociais – IICS). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Advogado.

M A R C I A C R I S T IN A X AV IE R

DE

SOUZ A

Professora de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e do Mestrado em Direito da UCP. Mestre e Doutora em Direito pela Universidade Gama Filho.

Os autores A L E X A NDRE F R E I TA S C Â M A R A Desembargador no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, oriundo do Quinto Constitucional da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – Emerj. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da International Association of Procedural Law.

ARAKEN

DE

ASSIS

Professor Titular (aposentado) da PUC/RS; Doutor em Direito pela PUC/SP. Desembargador (aposentado) do TJ/RS. V

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

BRUNO GARCIA REDONDO Mestrando em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela PUC/Rio. Pós-Graduado em Advocacia Pública pela Esap (PGERJ/Uerj-Ceped). Pós-Graduado em Direito Público e em Direito Privado pela Emerj (TJRJ/Unesa). Professor de Direito Processual Civil na graduação da PUC/Rio e nos cursos de Pós-Graduação da PUC/Rio, da UFF, da Uerj, da Emerj, da Fesudeperj, da Amperj, da ESA (OAB-RJ), do CEDJ, do Cepad, da Abadi, da EPD e do IMP/MT. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC) e do Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal (IIDP). Secretário-Geral da Comissão de Estudos em Processo Civil da OAB-RJ. Procurador da OAB-RJ. Procurador da UERJ. Advogado.

C A R L O S A U G U S T O S ILVA Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Doutor em Direito.

CARLOS MAGNO SIQUEIR A MELO Professor Assistente de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Filosofia pela UGF e Especialista em Direito Processual Civil e Direito Civil pela Unesa.

CELSO ANICE T LISBOA Professor Assistente de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá. Advogado.

D E LT O N R I C A R D O S O A R E S M E I R E L L E S Coordenador de Graduação (Faculdade de Direito/UFF). Professor Adjunto do Departamento de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense (SPP/UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF). Pesquisador do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (Lafep/UFF). Doutor em Direito (UERJ).

FERNANDO GAMA

DE

MIR ANDA NE T TO

Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho (RJ), com período de pesquisa de um ano junto à Deutsche Hochschulefür Verwaltungswissenschaften VI

Os autores

de Speyer (Alemanha) e junto ao Max-Planck-Institut (Heidelberg) com bolsa Capes/Daad. Professor adjunto de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (Lafep/UFF).

F L Á V I O L U I Z YA R S H E L L Professor Titular de Direito Processual da Faculdade de Direito da USP. Advogado em São Paulo e em Brasília.

FREDIE DIDIER JUNIOR Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia. Mestre (UFBA), Doutor (PUC/SP) Livre-docente (USP) e Pósdoutorado (Universidade de Lisboa). Professor-coordenador da Faculdade Baiana de Direito. Advogado e consultor jurídico.

HUMBERTO DALL A BERNARDINA

DE

PINHO

Professor Associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor Adjunto da UNESA. Promotor de Justiça no Rio de Janeiro.

JOSÉ CARLOS

DE

AR AÚJO ALMEIDA FILHO

Professor de Direito Processual Civil na Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho. Doutorando em Direito pela Universidad de Buenos Aires. Membro do Instituto Brasileiro dos Advogados e pesquisador no Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (Lafep), da UFF. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico.

J O S É E D U A R D O C A R R E IR A A LV IM Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

LEONARDO GRECO Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Adjunto do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

VII

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

M I LT O N P A U L O

DE

C A R VA L H O

Mestre e Doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Professor do Centro de Extensão Universitária do Instituto Internacional de Ciências Sociais. Titular da Academia Paulista de Direito e da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Advogado.

PA U L A S A R N O B R A G A Professora de Direito Processual Civil da Faculdade Baiana de Direito e da Universidade Federal da Bahia. Mestre pela Universidade Federal da Bahia. Doutoranda na Universidade Federal da Bahia. Advogada.

R AFAEL ALE X ANDRIA

DE

OLIVEIR A

Mestre na Universidade Federal da Bahia. Procurador do Município de Salvador, Bahia. Advogado.

SANDRO MARCELO KOZIKOSKI Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Prof. Adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP.

VIII

Apresentação

O

s professores de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro sentiram a necessidade de aprofundar o debate a respeito do Projeto de Lei no 8.046, de 2010, conhecido como o Projeto do Novo Código de Processo Civil, mormente em função da conjuntura – não restrita apenas às questões relacionadas ao processo, mas também ao direito material e política atuais – em que se encontram os Tribunais pátrios, cuja atuação, por mais comprometimento que tenha com o jurisdicionado, é insuficiente para cumprir a promessa constitucional acerca da razoável duração do processo e, dessa forma, viabilizar o efetivo acesso à justiça. A ideia de promover um evento no qual pudessem ser discutidas – com processualistas de renome – as influências que as garantias fundamentais da pessoa humana exercem e podem sofrer, com as alterações no ordenamento processual civil nacional, amadureceu juntamente com professores de outras universidades do Rio de Janeiro e de outras cidades brasileiras. Nasceu, então, o Seminário “As garantias fundamentais do Processo Civil: um desafio ao Novo Código de Processo Civil”, com realização em outubro de 2012, no Salão Nobre da Faculdade Nacional de Direito. Nesse Seminário, pretende-se verificar o progresso da ciência jurídica correlata ao Direito Processual Civil diante das necessidades urgentes de adaptações hábeis a atender a nova situação jurídico-social na qual se insere o cidadão de hoje, que é mais consciente de seus direitos e, portanto, exerce mais frequentemente seu direito constitucional de ação perante o Poder Judiciário, o qual, por sua vez, sente a dificuldade oriunda do crescente número de demandas e, como a própria prática forense responde, não consegue atendê-las tempestivamente. IX

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Essa realidade suscitou nos juristas e estudiosos do Direito inúmeros debates aproveitados na elaboração do Projeto do Novo Código de Processo Civil, hoje submetido à apreciação do Congresso Nacional. O Projeto, quando aprovado, alterará essencialmente muitos institutos jurídicos na esfera processual, alguns com consolidada interpretação doutrinária e jurisprudencial. Justifica-se, consequentemente, sua apreciação no âmbito acadêmico, aproximando-se estudiosos, professores e estudantes. Com a certeza do Seminário, surgiu a ideia deste livro, pelo qual se pretendeu transmitir e perpetuar àqueles que, por motivos diversos, não puderam comparecer e debater diretamente com os palestrantes as lições por eles ministradas, cuja essência restará, espera-se, aqui registrada. Ideia essa, consigne-se por oportuno, aceita de pronto por todos os juristas envolvidos, muito embora alguns palestrantes, como foi o caso de André Ricardo Cruz Fontes, Cassio Scarpinella Bueno, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro e Sergio Bermudes, ainda que dispostos a participar ativamente do Seminário, não puderam, infelizmente, contribuir com seus artigos e enriquecer esta obra, tendo em vista a impossibilidade de conciliar o prazo de entrega dos textos com os seus outros compromissos. De toda sorte, a Comissão Organizadora espera que seja proveitoso a todos não só o Seminário, mas também a presente obra, ao tempo em que agradece aos palestrantes, autores ou não deste livro, e a todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para a realização tanto de um quanto de outro. Particularmente, registre-se nosso agradecimento à Editora CampusElsevier pelo empenho em preparar a editoração a tempo para o lançamento na data da abertura do Seminário. Somos especialmente gratos aos graduandos Henrique Rangel e Bernardo Zettel, em nome dos quais a Comissão agradece a todos os acadêmicos envolvidos na realização do evento. A Comissão Organizadora do Seminário Marcia Cristina Xavier de Souza – Coordenadora Carlos Augusto Silva Carlos Magno Siqueira Melo Sandro Marcelo Kozikoski Walter dos Santos Rodrigues

X

18 1

Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual L e o n a r d o G r e c o*

Introdução. 1. A efetividade e o garantismo processual. 2. Contraditório participativo. 3. Os desafios atuais à efetividade e ao garantismo. 4. Os padrões de qualidade da justiça e do processo civil. 5. Em busca de novos caminhos para a justiça e o processo civil. 5.1. Soluções nefastas. 5.2. Medidas que apresentam aspectos positivos e negativos. 5.3 Medidas francamente positivas. 6. Considerações finais.

Introdução1 crise da justiça civil contemporânea tem provocado, em vários países do mundo, a busca de soluções heroicas, para enfrentar o volume avassalador de processos e acelerar a prestação jurisdicional. Se não se pode ignorar que algumas dessas soluções aliviam, ainda que temporariamente, a pressão social sobre o judiciário, também é forçoso reconhecer que, em muitos casos, atacam apenas sintomas e não as causas da referida crise. E o preço que a sociedade paga para utilizá-las corresponde muitas vezes a um grave retrocesso na eficácia dos direitos fundamentais, tão penosamente conquistada na segunda metade do século XX.

A

* Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professor Adjunto do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 1. Estudo em homenagem ao Prof. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, por ocasião de sua aposentadoria como professor titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

1. A efetividade e o garantismo processual A efetividade e o garantismo marcaram o direito processual civil da segunda metade do século XX. O Estado Democrático de Direito, que emergiu em todo o ocidente após o término da Segunda Guerra Mundial, é um sistema político fundado na eficácia concreta e na intangibilidade dos direitos fundamentais. No Brasil, esse novo paradigma nas relações entre o Estado e os cidadãos foi atingido com o advento da Constituição de 1988, a partir da qual se expandiu e se consolidou uma nova consciência jurídica, calcada primordialmente na efetividade dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados. Essa efetividade, consagrada no próprio texto constitucional (art. 5º, § 1º), influencia todo o ordenamento jurídico, em especial os ramos do direito público, que se humanizam, tornando-se instrumentos do livre desenvolvimento da personalidade. Transparência, participação democrática, presunção de inocência, devido processo legal, contraditório, igualdade, privacidade, ampla defesa, são algumas das expressões que se tornaram populares no nosso tempo, como representativas de regras mínimas de convivência social, essenciais para que todos os cidadãos vejam respeitada, pelos demais e pelo próprio Estado, a sua dignidade humana. A progressiva clarificação do conteúdo concreto de muitos desses conceitos e valores humanos, que está muito longe de ter-se completado, particularmente em nosso País, de atávica tradição autoritária e paternalista, fez-se acompanhar de um desgastante processo crítico de aferição da eficácia operativa das normas jurídicas, através de critérios políticos, econômicos, sociológicos e antropológicos que, não obstante muitas vezes polêmicos, definem a busca da construção de uma nova ordem jurídica que, respeitando o pluralismo inerente à sociedade moderna, dê a todos condições iguais de encontrar a própria felicidade e de exercer amplamente a própria liberdade sem pôr em risco a felicidade e a liberdade dos demais. Essa revisão crítica da operatividade das instituições jurídico-políticas e das normas jurídicas assecuratórias dos direitos fundamentais certamente seria extremamente positiva para o aprimoramento da convivência pacífica de todos os cidadãos e de todos os povos, se, paradoxalmente, a sociedade moderna, em decorrência da economia de escala, do frenético desenvolvimento tecnológico, da inconstância das políticas econômicas e dos conflitos raciais e religiosos, não tivesse potencializado e modificado as necessidades 2

1 – Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual

humanas, alterando profundamente a aptidão dos bens materiais de satisfazê-las, massificando as relações econômicas e sociais e exacerbando os litígios delas decorrentes, reduzindo o Estado provedor do bem comum à completa incapacidade de atender a todas as demandas e a proteger concretamente todas as situações de fato teoricamente agasalhadas pelo direito. Quando se fala em eficácia dos direitos fundamentais e em efetividade do processo, atualiza-se a lição centenária de Chiovenda, complementada por Barbosa Moreira, de que a justiça deve dar ao titular do direito tudo aquilo a que ele tem direito de acordo com o ordenamento, com o menor dispêndio de tempo, de custo e de atividade humana.2 No Estado Democrático contemporâneo, a eficácia concreta dos direitos constitucional e legalmente assegurados depende da garantia da tutela jurisdicional efetiva, porque sem ela o titular do direito não dispõe da proteção necessária do Estado ao seu pleno gozo. Como bem observa Taruffo, nenhum direito existe de verdade se não está acompanhado pela respectiva tutela jurisdicional.3 A tutela jurisdicional efetiva é, portanto, não apenas uma garantia, mas, ela própria também um direito fundamental, cuja ampla eficácia é preciso assegurar. O Direito Processual procura disciplinar o exercício da jurisdição através de princípios e regras que confiram ao processo a mais ampla efetividade, ou seja, o maior alcance prático e o menor custo possíveis na proteção concreta dos direitos dos cidadãos. Isso não significa que os fins justifiquem os meios. Como relação jurídica plurissubjetiva, complexa e dinâmica, o processo em si mesmo deve formar-se e desenvolver-se com absoluto respeito aos direitos fundamentais de todos os cidadãos, especialmente das partes, de tal modo que a justiça do seu resultado possa ser alcançada pela adoção das regras mais propícias à ampla e equilibrada participação dos interessados, à isenta e adequada cognição do juiz e à apuração da verdade objetiva: um meio justo para um fim justo. Afinal, o processo judicial de solução de conflitos ou de administração de interesses privados se insere no universo mais amplo das relações entre o Estado e o cidadão, que no Estado de Direito contemporâneo deve 2. Giuseppe Chiovenda. Dell’azione nascente dal contrato preliminare. In: Saggi di Diritto Processuale (1894-1937), 1993, v.I, p. 110; José Carlos Barbosa Moreira. Notas sobre o problema da ‘efetividade’ do processo. In: Temas de Direito Processual. 1984, p. 28. 3. Michele Taruffo. Leyendo a Ferrajoli: consideraciones sobre la jurisdicción. In: Páginas sobre justicia civil. 2009, p. 22. 3

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

subordinar-se aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, consoante o disposto no art. 37 da Constituição que, não sem razão, se refere a tais princípios como inerentes “a qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Foram a constitucionalização e a internacionalização dos direitos fundamentais, particularmente desenvolvidas na jurisprudência dos tribunais constitucionais e das instâncias supranacionais de Direitos Humanos, como a Corte Europeia e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que revelaram o conteúdo da tutela jurisdicional efetiva como direito fundamental, minudenciado em uma série de regras mínimas a que se convencionou chamar de garantias fundamentais do processo, universalmente acolhidas em todos os países que instituem os direitos humanos fundamentais como um dos pilares do Estado Democrático de Direito.4 Esse conjunto de garantias pode ser sintetizado nas denominações devido processo legal, adotada nas Emendas 5ª e 14ª da Constituição americana, ou processo justo, constante da Convenção Europeia de Direitos Humanos e do art. 111 da Constituição italiana. Na Constituição brasileira, esse processo humanizado e garantístico encontra suporte principalmente nos incisos XXXV, LIV e LV do art. 5º, que consagram as garantias da inafastabilidade da tutela jurisdicional, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, sem falar nos já citados princípios genéricos da administração pública de quaisquer dos Poderes, e ainda nos da isonomia, da fundamentação das decisões e outros hoje expressamente reconhecidos em nossa Carta Magna.

2. Contraditório participativo Talvez a mais importante dessas garantias, porque ela própria engloba diversas outras, é a garantia do contraditório, consagrada no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal: contraditório como implementação no processo judicial do princípio político da participação democrática ou da chamada democracia participativa; contraditório como a garantia que assegura aos sujeitos parciais do processo a mais ampla possibilidade de influir 4. Mauro Cappelletti; Denis Tallon. Les garanties fondamentales des parties dans le procès civil. 1973, p. 661-774; Luigi Paolo Comoglio. Garanzie costituzionali e “giusto processo” (modelli a confronto). In: Revista de Processo, 1998, n. 90, p. 95-150; Luigi Paolo Comoglio; Corrado Ferri; Michele Taruffo. Lezioni sul Processo Civile. Cap. 3 – Le garanzie costituzionali. 2011, p. 55-95; Serge Guinchard et alii. Droit processuel – droits fondamentaux du procès. 2011; Augusto M. Morello. Constitución y Proceso – la nueva edad de las garantías jurisdiccionales. 1998. 4

1 – Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual

eficazmente em qualquer provimento jurisdicional, especialmente o provimento jurisdicional final, submetendo à cognição do juiz todas as alegações e provas que possam contribuir para essa influência; contraditório como influência com paridade de armas.5 Ninguém pode ser atingido por uma decisão judicial na sua esfera de interesses sem ter tido ampla possibilidade de influir eficazmente na sua formação. O contraditório é consequência do princípio político da participação democrática e, por isso, adequado é qualificá-lo de participativo e pressupõe: (a) audiência bilateral: adequada e tempestiva notificação do ajuizamento da causa e de todos os atos processuais através de comunicações preferencialmente reais, bem como ampla possibilidade de impugnar e contrariar os atos dos demais sujeitos, de modo que nenhuma questão seja decidida sem essa prévia audiência das partes; (b) direito de apresentar alegações, propor e produzir provas, de participar da produção das provas requeridas pelo adversário ou determinadas de ofício pelo juiz e exigir a adoção de todas as providências que possam ter utilidade na defesa dos seus interesses, de acordo com as circunstâncias da causa e as imposições do direito material; (c) congruidade dos prazos: os prazos para a prática dos atos processuais, apesar da celeridade do processo exigida pela duração razoável do processo, devem ser suficientes, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, para a prática de cada ato da parte com efetivo proveito para a sua defesa; (d) audiência prévia dos interessados, anterior a qualquer decisão, devendo a sua postergação ser excepcional e fundamentada na convicção firme da existência do direito do requerente e na cuidadosa ponderação dos interesses em jogo e dos riscos da antecipação ou da postergação da decisão; (e) direito de intervenção dos contrainteressados: o contraditório participativo pressupõe que todos os contrainteressados tenham o direito de intervir no processo e exercer amplamente as prerrogativas inerentes ao direito de defesa e que preservem o direito de discutir os efeitos da decisão que tenha sido produzida sem a sua plena participação.

5. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Garantia do contraditório. In: José Rogério Cruz e Tucci (coord.). Garantias Constitucionais do Processo Civil. 1999, p. 132-150; Leonardo Greco. Garantias Fundamentais do Processo: o Processo Justo. In: Os princípios da Constituição de 1988. Manoel Messias Peixinho, Isabella Franco Guerra e Firly Nascimento Filho (coords.). 2006, p. 369-406; Leonardo Greco. O princípio do contraditório. In: Revista Dialética de Direito Processual. mar./2005, p. 71-79; Leonardo Greco. A busca da verdade e a paridade de armas na jurisdição administrativa. In: Revista do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal – CEJ. dez./2006, p. 20-27. 5

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Nessa visão cooperativa do processo, a prova e a busca da verdade passam a ser componentes essenciais do direito de defesa, o direito de defender-se provando, que não se exaure no direito de propor a sua produção, mas se completa com o direito de efetivamente produzir todas as provas que potencialmente tenham alguma relevância para o êxito da postulação ou da defesa. Conforme já acentuei em minhas Instituições,6 esse direito à busca da verdade exige que sejam expungidas do ordenamento jurídico inúmeras limitações probatórias.

3. Os desafios atuais à efetividade e ao garantismo O processo civil brasileiro, portanto, ainda tem muito que se aperfeiçoar para que tenhamos um sistema judiciário plenamente inserido na efetividade e no garantismo, já atingido em outros países e, no entanto, a partir da década de 1980, passou a sofrer forte impacto de diversos fatores que vieram a pôr em cheque a sua capacidade de concretizar os ideais humanistas do segundo pós-guerra, com a multiplicação frenética do número de processos. O primeiro desses fatores foi a elevação da consciência jurídica dos cidadãos. Boa ou má, a educação básica se expandiu e, em muitos países, como o Brasil, atingiu as camadas mais pobres da população, não se limitando a ensinar o beabá e as quatro operações, mas incutindo nos cidadãos, particularmente nos mais jovens, a consciência dos seus direitos e a necessidade de exercê-los. Essa consciência se enriqueceu com a expansão dos meios de comunicação de massa, como a televisão, e da rede mundial de computadores, veiculando informações e estimulando iniciativas de reivindicação de direitos. O segundo fator foi a exacerbação do demandismo. O estupendo desenvolvimento de novas tecnologias e a oferta de novos produtos aumentou as necessidades de consumo humano e, embora o poder aquisitivo da população tenha se elevado, esta elevação não se deu na mesma proporção daquelas. O novel direito do consumidor é fruto dessa nova realidade. As relações entre os que produzem ou vendem e os que consomem se tornaram tensas, aumentando o grau de exigência dos últimos em relação à qualidade de bens e serviços. Por outro lado, a crise do Estado provedor do bem comum levou para os tribunais a reivindicação dos mais comezinhos direitos que deixaram de ser 6. Leonardo Greco. Instituições de Processo Civil. 2011. v.II, p. 113-148. 6

1 – Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual

devidamente atendidos pelo poder público, como a saúde e a educação, assim como a ingerência em políticas públicas anteriormente de responsabilidade exclusiva da administração, como a do meio ambiente, função absolutamente alheia à formação exigida dos juízes e para as quais o seu método de atuação – o processo judicial – mostra-se inteiramente inadequado. Esses fatores determinaram o crescimento vertiginoso do volume de causas judiciais e o retardamento da sua solução, atraindo para o Judiciário grande parte da insatisfação social com a frustração do cumprimento do seu papel de guardião dos direitos de todos. A esse desgaste a justiça civil reagiu com a simplificação das formas e dos ritos e a aceleração dos procedimentos, bem como a adoção de novos institutos para enfrentar a massificação das demandas e dos recursos, como as ações coletivas e as tutelas antecipatórias, relegando a plano secundário a preocupação com a qualidade das decisões e o respeito às garantias fundamentais do processo. Um dos resultados dessa crise foi a perda da credibilidade dos juízes profissionais e a avaliação desfavorável do sistema judicial pela opinião pública em diversos países, como a França e a Espanha.7 Roberto Berizonce, em recente estudo, ressalta que é preciso recomeçar, empreendendo novamente o caminho das transformações, pois o desafio continua o mesmo: imaginar criativamente os princípios, procedimentos e regras necessárias para adequar o processo civil às novas e renovadas exigências dos tempos. O cenário com que nos deparamos é inédito, pois nele se defrontam valores contrapostos, como celeridade e justiça; urgência e devido processo; tempo de satisfação e tempo que o processo consome.8 Na tentativa de debelar essa crise, os responsáveis pela administração da Justiça têm frequentemente recorrido a economistas e administradores, cuja visão desses problemas é puramente gerencial, resultado do que poderíamos chamar de análise econômica do processo, que passou a produzir dados e estatísticas de confiabilidade duvidosa e a propor metas quase exclusivamente quantitativas. Um dos princípios dessa concepção gerencial da justiça e do processo civil pode ser encontrado na Civil Procedure Rule n.1, em vigor na Inglaterra 7. V. Francisco Cabrillo; Sean Fitzpatrick. La economía de la administración de Justicia. 2011, cap. 7, p. 364-365. 8. Roberto Omar Berizonce. Bases para actualizar el Código Modelo Procesal Civil para Iberoamerica. In: Civil Procedure Review. May-Aug., 2011. In: www.civilprocedurereview.com. Acesso em: 20/04/2012. 7

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desde 1999, que definiu como um dos objetivos do processo civil fornecer a cada caso uma parcela apropriada dos recursos da corte, levando em conta a necessidade de alocar recursos para todos os demais casos (allotting to it (the case) an appropriate share of the court’s resources, while taking into account the need to allot resources to other cases).9 Reflexo dessa mentalidade, que se disseminou entre nós, encontra-se no Provimento nº 7, de 7/5/2010, do Conselho Nacional de Justiça, sobre o aprimoramento do Sistema dos Juizados Especiais, que, no § 1º do art. 3º, dispôs: Art.3º... § 1º Na destinação de recursos materiais e de pessoal observar-se-á a proporcionalidade no tratamento entre as unidades do Sistema dos Juizados e as demais unidades da Justiça comum, adotando-se como critério objetivo o número de distribuição mensal de feitos de ambos os Sistemas.

O irrealismo dessa visão quantitativa da Justiça civil salta aos olhos do mais primário observador dos seus problemas, pois os recursos materiais e humanos alocados à administração da Justiça civil precisam variar em função da complexidade das causas, não sendo justo punir as partes nas causas mais complexas e os próprios juízes que nelas atuam com a alocação a elas de recursos no mesmo patamar exigido pelas mais simples, como as que tramitam nos Juizados Especiais.

4. Os padrões de qualidade da justiça e do processo civil Essa falsa racionalização administrativa e gerencial erige como metas de uma suposta busca da qualidade a celeridade e a produtividade, no intuito de dar vazão à sempre crescente quantidade de processos e de recursos. Todavia, a partir do final da década de 1980, instituições sérias nos Estados Unidos e na Europa passaram a desenvolver projetos de reforma da justiça civil e do processo civil, estabelecendo a priori padrões diversos de qualidade.

9. Neil Andrews. The Three Paths of Justice – Court Proceedings, Arbitration and Mediation in England. 2012, p. 12. 8

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Assim, em 1987 foi desenvolvido nos Estados Unidos, por iniciativa de algumas cortes, o sistema Trial Court Performance Standards (TCPS), que definiu cinco critérios de mensuração da qualidade da justiça:10 (1) Acesso à justiça: as cortes devem assegurar que a estrutura e a máquina judiciária sejam acessíveis a todos aqueles que delas necessitam. (2) Celeridade e tempestividade: as cortes devem exercer a jurisdição de maneira expedita e tempestiva. (3) Igualdade e justiça: as cortes devem oferecer um devido processo e uma proteção legal equânime a todos os jurisdicionados. (4) Independência e controle (accountability): as cortes devem estabelecer as suas responsabilidades legais e organizacionais, publicamente mensurar, monitorar e controlar as suas performances. (5) Credibilidade e confiança: as cortes devem trabalhar para desenvolver a confiança pública de que elas são acessíveis, justas e controláveis.

Pauta semelhante foi desenvolvida na Europa com a criação em 2002 da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (Cepej), vinculada ao Conselho da Europa, e que hoje desempenha importante função de assistência aos países que se preparam para ingressar na União Europeia, para que a sua justiça civil atinja níveis de qualidade e de confiabilidade que lhes permita operar num mercado de livre circulação de pessoas, de capitais, de bens e de serviços.11 Esses programas, se não descuram da busca da celeridade e de soluções para a explosão quantitativa de processos e de recursos, estabelecem como essenciais o fortalecimento de padrões de qualidade, como a independência e a qualificação dos juízes, a estruturação de um processo que respeite as garantias universalmente reconhecidas, a isonomia no acesso à justiça por todos os cidadãos que dela necessitem, e a conquista da credibilidade e da confiança no Judiciário por meio de todos esses fatores e, especialmente,

10. P. Albers. Quality Assessment and the Judiciary: from Judicial Quality to Court Excellence. In: A. Uzelac; C.H. van Rhee (Eds.). Access to Justice and the Judiciary, towards new european standards of affordability, quality and efficiency of civil adjudication. 2009, p. 60. 11. V. A. Uzelac; C.H. van Rhee (eds.). Public and private justice – dispute resolution in modern societies 2007; Judicial case management and efficiency in civil litigation. 2007; Civil Justice between Efficiency and Quality: from Ius Commune to the CEPEJ. 2008; Access to Justice and the Judiciary, towards new European standards of affordability, quality and efficiency of civil adjudication. 2009. 9

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pelo controle da administração da justiça e pela responsabilização dos que se desviarem desses padrões. Por outro lado, é forçoso reconhecer que o Judiciário hoje se depara com dilemas cruciais, que deveriam estar sendo debatidos pela sociedade na eleição dos governantes e na formulação das políticas públicas mais imperiosas para o seu desenvolvimento e para o seu bem-estar. O primeiro desses dilemas é a opção entre a busca da qualidade ou o ataque ao problema da quantidade. O que é melhor para a sociedade: a facilitação do acesso a uma justiça com um padrão inferior de qualidade ou a criação de obstáculos e filtros ao seu acesso para assegurar um padrão mais elevado de qualidade e de confiabilidade das decisões judiciais? O segundo dilema, também de natureza política, diz respeito à alocação pelo Estado dos recursos necessários à administração da justiça. O Estado de Direito contemporâneo promete a todos os cidadãos, a par do acesso à justiça, o acesso a inúmeros serviços públicos considerados essenciais para a própria realização da promessa constitucional da eficácia concreta dos direitos fundamentais: educação, saúde, segurança, energia, transporte, entre outros. Alguns desses serviços, como os três primeiros, são pressupostos do próprio acesso ao direito, sem os quais seria absolutamente inútil assegurar o acesso à justiça.12 Deve a justiça receber do Estado volume de recursos e meios materiais e humanos que não o impeça de alocar aos outros serviços públicos essenciais os meios de que necessitam ou o Estado deve prover à administração da justiça tudo quanto seja necessário para que esta assegure em plenitude a mais completa e rápida eficiente tutela dos direitos de todos, mesmo com o sacrifício de outros serviços públicos essenciais? Esses dilemas precisam ser debatidos pela sociedade e os responsáveis pelo planejamento e implementação de políticas públicas, assim como a universidade, precisam oferecer fórmulas para equacioná-los porque, em verdade, são falsos dilemas. Nenhuma dessas escolhas é desejável ou possível. Se não for resolvido o problema da quantidade, não haverá qualidade e vice-versa. Se o Estado não alocar os recursos necessários a todos os serviços essenciais ao acesso ao direito, não haverá acesso à justiça e vice-versa. Para escapar desses falsos dilemas, será necessário resolver os problemas da quantidade excessiva de processos e da morosidade e, ao mesmo tempo assegurar a todas as causas os meios de que cada uma delas precisa para 12. V. Leonardo Greco. O Acesso ao Direito e à Justiça. In: Estudos de Direito Processual. 2005, p. 197-223. 10

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alcançar uma justiça eficaz na tutela dos direitos de todos, sem sacrificar as necessidades dos outros serviços essenciais. Sem acesso à justiça, não há acesso ao direito, mas este possui outros pressupostos indispensáveis que o acesso à justiça, por si só, não assegura. Uma justiça acessível, eficiente, rápida e de boa qualidade é exigência de todos os instrumentos internacionais de direitos humanos, em pé de igualdade com todos os demais direitos fundamentais.

5. Em busca de novos caminhos para a justiça e o processo civil Há de reconhecer-se que todos os que têm estudado a atual crise da administração da Justiça, seja no Brasil, seja em outras partes do mundo, têm tentado sugerir soluções para enfrentá-la. Por seu lado, o Judiciário, como instituição pública, e os próprios juízes, no exercício de suas funções, têm também adotado providências e atitudes nesse mesmo sentido. Considero importante esboçar uma reflexão crítica sobre algumas dessas trilhas, pois, se entre elas existem aquelas que merecem uma apreciação francamente positiva, há outras que, ainda que à primeira vista sejam positivas, dependeriam de adequada implementação e, ainda outras, que me parecem absolutamente inconvenientes.

5.1. Soluções nefastas 5.1.1. A atual crise da justiça se insere num contexto mais amplo de crise do próprio Estado e de perda de credibilidade das instituições políticas. Não é somente a justiça que não atende mais aos anseios dos cidadãos. É o próprio Estado que não logra dar conta da sua missão de velar pelo bem-estar da população e pelo fornecimento de serviços públicos essenciais, nas suas diversas áreas de atuação. A representação política e o sistema eleitoral tornaram-se reféns de interesses escusos. A sociedade não se sente autenticamente representada pelos governantes e parlamentares eleitos e a própria lei não se impõe como o fruto da vontade geral. No âmbito da administração da justiça, enfraquece-se a noção de jurisdição como atuação da vontade da lei e fortalece-se a ideia de jurisdição como instrumento de pacificação social, de tutela dos direitos dos mais fracos e das minorias e de suprimento dos déficits de desempenho dos poderes legislativo e executivo. Os juízes se sentem menos comprometidos com o respeito à lei e mais engajados na observância de princípios e valores humanos, tal como eles os compreendem e entendem que devam ser aplicados aos casos concretos que 11

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lhes são submetidos. É o espírito da época, a que se convencionou chamar de pós-modernismo, tão bem sintetizado por António Hespanha:13 Ao geral (a reacção pós-modernista) opõe o particular; ao gigantismo do “grande” opõe a beleza do “pequeno” (small is beautiful); à eficácia da perspectiva macro opõe a subtileza da perspectiva micro; ao sistema opõe o “caso”; à heterorregulação a autorregulação; ao funcional opõe o lúdico; ao objectivo opõe o subjectivo; à “verdade” opõe a “política” (o “testemunho”, o “compromisso”).

É a hermenêutica da pós-modernidade, que reduz a autoridade e a observância da lei, favorece o arbítrio, gera insegurança jurídica e estimula o juiz a realizar a justiça à sua moda, criando a lei do caso concreto e substituindo-se aos demais poderes. Esse caminho é incompatível com o Estado Democrático de Direito, ainda mais quando trilhado pelo juiz profissional, que não desfruta de qualquer legitimidade política para erigir-se em legislador. O sistema de controle difuso de constitucionalidade, entre nós adotado, facilita essa postura. No controle dos atos administrativos, o Judiciário, sem qualquer planejamento e sem qualquer estratégia, interfere em políticas públicas e, a pretexto de tutela de direitos fundamentais, substitui os juízos de conveniência e oportunidade da administração. O Judiciário deixa de ser o poder preponderante para tornar-se o único poder, que se sobrepõe aos dois outros e os substitui, embora não disponha de capacidade técnica, de infraestrutura de apoio, nem atue de modo contínuo e organizado para tornar-se gestor de políticas públicas. O método de atuação do Judiciário, reativo e pontual, o induz a dispor sobre o particular, ainda quando examina litígios de massa, incapacitando-o a velar pelo interesse geral, tarefa do legislador e do administrador. 5.1.2. Os juízes se libertam dos grilhões da lei que escraviza, e encontram na instrumentalidade das formas, na economia processual e na celeridade as justificativas teóricas para abandonar o devido processo legal e criarem a sua própria lei processual. Cada juiz põe em prática o seu próprio Código de Processo. A implantação do processo eletrônico contribui para esses personalismos, na medida em que a própria lei faculta o seu uso, a critério de cada juiz (v. arts. 1º, 12 e 13 da Lei nº 11.419/2006). 13. António M. Hespanha. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia. 1998, p. 246. 12

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É preciosa, a esse respeito, a lição de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira:14 O formalismo processual contém, portanto, a própria ideia do processo como organização da desordem, emprestando previsibilidade a todo procedimento. Se o processo não obedecesse a uma ordem determinada, cada ato devendo ser praticado a seu devido tempo e lugar, fácil entender que o litígio desembocaria numa disputa desordenada, sem limites ou garantias para as partes, prevalecendo ou podendo prevalecer a arbitrariedade e a parcialidade do órgão judicial ou a chicana do adversário.

Nesse passo, o autor recorda a clássica lição de Jhering, no Espírito do Direito Romano, de que “a forma é a inimiga jurada do arbítrio e irmã gêmea da liberdade”.15 Se as formas e os ritos não constituem fins em si mesmos, há um núcleo duro e indispensável de formalismo que não pode ser desrespeitado. É o que tenho denominado de ordem pública processual. Já me referi a essa noção quando tratei das nulidades absolutas, no meu livro sobre Execução, como o conjunto de requisitos dos atos processuais, impostos de modo imperativo para assegurar a proteção de interesse público precisamente determinado, o respeito a direitos fundamentais e a observância de princípios do devido processo legal, quando indisponíveis pelas partes.16 Entre esses princípios indisponíveis, porque impostos de modo absoluto, apontei então: a independência, a imparcialidade e a competência absoluta do juiz; a capacidade das partes; a liberdade de acesso à tutela jurisdicional em igualdade de condições por todos os cidadãos (igualdade de oportunidades e de meios de defesa); um procedimento previsível, equitativo, contraditório e público; a concorrência das condições da ação; a delimitação do objeto litigioso; o respeito aos princípios da iniciativa das partes e da congruência; a conservação do conteúdo dos atos processuais; a possibilidade de ampla e oportuna utilização de todos os meios de defesa, inclusive a defesa técnica e a autodefesa; a intervenção do Ministério Público ou de outro substituto processual, como o curador especial ou o curador à lide, nas causas que versam sobre direitos indisponíveis; o controle da legalidade e causalidade 14. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Do formalismo no processo civil. 2009, p. 9. 15. Idem. 16. V. Leonardo Greco. O Processo de Execução. 2001, v. 2, p. 260-267; Leonardo Greco. Os atos de disposição processual – primeiras reflexões. In: José Miguel Garcia Medina et alii (coords.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais – estudos em homenagem à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. 2008, p. 292-293. 13

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das decisões judiciais através da fundamentação; a celeridade do processo, pois a litigiosidade é uma situação de crise na eficácia dos direitos dos cidadãos que o juiz tem o dever de remediar com a maior rapidez possível (CPC, art. 125), especialmente após a introdução do novo inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição pela Emenda Constitucional nº 45/2004; e uma cognição adequada pelo juiz, pois, esse é um dos objetivos essenciais de toda a atividade processual. 5.1.3. Uma das mais graves deformações da justiça civil contemporânea em países da chamada civil law é a tendência incontrolável à hipertrofia da jurisprudência dos tribunais superiores, à sua imposição autoritária aos juízos e tribunais inferiores e à criação de obstáculos quase intransponíveis à sua superação: súmulas vinculantes, súmulas impeditivas de recursos, sentença liminar de improcedência. É sempre oportuno relembrar a lição de Damaska de que os países da civil law não precisam da força vinculante da jurisprudência, porque essa força já resulta da natureza hierárquica da relação entre os tribunais superiores e os juízes inferiores. A suposta importação do stare decisis da common law é absolutamente anacrônica, vindo na contramão da tendência dos países desse sistema, que têm relativizado a rigidez da jurisprudência, nela introduzindo inúmeras válvulas de escape, como a distinguishing, o abandono do precedente desgastado pelo tempo ou causador de grave injustiça. O método lusitano, por nós adotado, oriundo dos assentos da Casa de Suplicação, de cristalização da jurisprudência em súmulas, que são enunciados sintéticos extremamente redutores da complexidade fático-jurídica das causas que os originaram, acaba por transformar os tribunais em verdadeiros legisladores, formuladores de teses jurídicas abstratas que passam a ser aplicadas aos casos futuros, desprendidas dos casos concretos e, muitas vezes, com eles inconciliáveis ou formuladas com base em poucos julgados ou em argumentos secundários. Se o rolo compressor da jurisprudência liquida com a quantidade de processos e recursos pendentes, desestimulando os futuros, o preço que a sociedade paga é muito alto: de um lado, o engessamento da ordem jurídica, pela resistência sistemática que os tribunais opõem a qualquer tentativa de revisão da sua jurisprudência; de outro, o cerceamento do direito de defesa e do direito de influir eficazmente na decisão da causa, imposto a todos aqueles que sofrerão os efeitos da jurisprudência, mas que não tiveram e não terão qualquer possibilidade de ter os seus argumentos considerados na definição da tese jurídica que os prejudica. 14

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5.1.4. Igualmente nefasta é a tentativa, esboçada na Itália entre 2003 e 2009,17 agora também projetada em Portugal,18 de transformação em definitiva da tutela da urgência preventiva ou antecipatória. Essa experiência, a que os italianos denominaram de atenuação da instrumentalidade da tutela cautelar,19 apresenta inúmeros inconvenientes, que não escaparam à crítica da doutrina, entre os quais a estabilização da definição do direito material das partes antes que os pontos controvertidos e o próprio thema decidendum tenham sido fixados na causa principal, sem falar, nos casos de antecipação de tutela, na surpresa e na frustração das expectativas das partes, que resulta da transformação em definitiva da eficácia de provimento entre elas disputado como provisório. O que o autor requereu para ser objeto de cognição sumária e propiciar decisão provisória não pode, sem cognição exaustiva e ao arrepio da vontade expressa das partes, adquirir força definitiva. Nem é possível inferir, da ausência de interposição de qualquer recurso ou da preclusão da sua interposição, a concordância das partes com essa transformação. Trata-se de flagrante violação da garantia da inércia da jurisdição. O prolongamento da eficácia do provimento provisório, mesmo sem a propositura da ação principal, é evolução positiva iniciada no direito francês, acolhida no italiano e também agora no projeto do novo Código de Processo Civil brasileiro,20 porque muitas vezes as partes se acomodam com o cumprimento de um provimento provisório, e abrem mão de buscar de imediato uma solução definitiva que, entretanto, deve sempre estar ao seu alcance. 17. A Lei nº 366, de 03/10/2001, implementada pelo Decreto legislativo nº 5, de 17/01/2003, que dispôs sobre o processo societário e foi revogada pela Lei nº 69, de 18/06/2009, dispunha que os efeitos da decisão cautelar antecedente, caso não proposta a subsequente ação principal, se tornavam definitivos, embora sem a aquisição da autoridade da coisa julgada em outros eventuais juízos promovidos entre as partes com finalidades diversas (Luigi Paolo Comoglio. Spunti innovativi ed ambizioni riformistiche nel nuovo processo societário. In: Paolo Comoglio; Paolo Della Vedova. Lineamenti di Diritto Processuale Societario. 2006, p. 6), admitida a modificação ou revogação apenas se alteradas as circunstâncias apreciadas no momento daquela decisão (op. cit., p. 29-34). Antonio Carratta criticou essa solução, qualificando-a de mistificação normativa e de mutação genética (I nuovi riti speciali societari fra ‘decodificazione’ e ‘sommarizzazione’. In: Lucio Lanfranchi; Antonio Carratta (coords.). Davanti al giudice – studi sul processo societario. 2005, p. 137. 18. João Correia et alii. Exposição de Motivos da Proposta de Reforma do Código de Processo Civil Português. In: Revista de Processo. fev./2012, p. 217: “Logo que transite em julgado a decisão que haja decretado a providência cautelar e invertido o contencioso, é o requerido notificado com a admonição de que, querendo, deverá intentar a acção destinada a impugnar a existência do direito acautelado nos 30 dias subsequentes à notificação, sob pena de a providência decretada se consolidar como solução definitiva do litígio”. 19. V. Giorgio Costantino. Il nuovo processo commerciale: la tutela cautelare. In: Rivista di Diritto Processuale. jul.-set./2003, p. 651 et seq. 20. V. Humberto Theodoro Júnior; Érico Andrade. A autonomização e a estabilização da tutela de urgência no Projeto de CPC. In: Revista de Processo. abr./2012, p. 13-59. 15

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5.1.5. Não menos nefasta é a tendência, verificada entre nós, de progressiva monocratização das decisões dos tribunais superiores. É da natureza desses tribunais a sua colegialidade. A distribuição aleatória da causa ou do recurso a um relator, entre dezenas ou centenas de outros, que, sob o questionável fundamento da impossibilidade de êxito da pretensão do postulante ou de afronta à jurisprudência dos tribunais superiores, decide o pedido ou o recurso, favorável ou desfavoravelmente, num despacho unipessoal, institui uma indesejável justiça lotérica, dependente da sorte, sem uniformidade, sem previsibilidade e, consequentemente, sem credibilidade, desencadeando uma sucessão de recursos que acabam por serem julgados mecanicamente, com o emprego de fórmulas padronizadas ainda menos convincentes, tudo a pretexto de coibir o demandismo e de acelerar o desfecho final do processo. É oportuno recordar a lição de Montesquieu, na sua clássica obra sobre o Espírito das Leis, de que um juiz singular somente pode existir em um governo despótico e que a história romana evidencia a que ponto um juiz único pode abusar do seu poder.21 Até o advento da Lei nº 9.756/1998, que deu ao art. 557 do Código de Processo Civil a sua atual redação, o direito brasileiro sempre prestigiou a colegialidade nos julgamentos dos tribunais superiores, pela maior probabilidade de acerto e de justiça das decisões que esse método de julgamento assegura. Em muitos países, como a França e a Alemanha, essa colegialidade é adotada até mesmo na primeira instância, pelo menos nas causas mais importantes. É inquestionável que o contencioso de massa exige que, de algum modo, pelo menos os casos mais simples, sejam resolvidos em decisões monocráticas. Todavia, isso não pode implicar em abandono da colegialidade, mas deve ser uma forma de aliviar o colegiado dos encargos de que qualquer um dos seus membros pode se desincumbir, sem prejuízo da probabilidade de acerto e justiça dos resultados e sem perda da isonomia, da previsibilidade e da confiabilidade de que devem revestir-se. Afinal, qualquer órgão fracionário e qualquer membro de um tribunal superior, quando adota qualquer decisão, não o faz em seu nome pessoal, mas exterioriza um pronunciamento do tribunal como um todo e exprime a vontade do Estado. Em outro estudo,22 citei os pronunciamentos, que ora torno a reproduzir, de dois dos nossos maiores processualistas, Affonso Fraga e José Frederico Marques: 21. Charles de Secondat, Baron de Montesquieu. De l’esprit des lois. 1949, livro VI, cap. VII, p. 87. 22. Leonardo Greco. Princípios de uma teoria geral dos recursos. In: Revista Eletrônica de Direito Processual. jan.-jun./2010, p. 5 et seq. In: www.redp.com.br. 16

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Do primeiro, em 1941: Sendo o tribunal de segundo grau composto de pluralidade de juízes, geralmente doutos e tirados da instância inferior, onde durante muito tempo exerceram a arte de julgar, segue-se que está em condições de nas suas decisões oferecer melhores arras de retidão à lei e à justiça. Basta o bom senso para mostrar que a decisão do tribunal colegial oferece bem mais segurança de justiça que o juízo singular: dois olhos veem mais que um; acrescendo que é mais fácil o suborno e prevaricação de um que de muitos.23

Do segundo, em 1963: “O princípio que domina e rege todo o Direito Processual pátrio, em matéria de recurso, é o princípio da colegialidade do Juízo ad quem. Com isto, os julgamentos em grau de recurso infundem maior confiança e, de certo modo, são mais seguros que os de primeiro grau”.24 Tão firme era, até há pouco, a consciência da indispensável colegialidade dos julgamentos dos tribunais, que o Supremo Tribunal Federal, em 1986, chegou a declarar inconstitucional o dispositivo do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de Goiás que autorizava a monocratização das decisões, aduzindo: “Em favor de qualquer de seus membros, uti singuli, não podem os Tribunais declinar de competência que a Constituição neles investiu, enquanto órgãos colegiados”.25 É lamentável o clima de incerteza e de degradação do acesso à justiça a um jogo de golpes de sorte que se instaura em tribunais que praticamente transformaram o juízo monocrático em regra e a decisão colegiada em exceção. No Estado do Rio de Janeiro, em que o Tribunal de Justiça possui 20 Câmaras Cíveis com a mesma competência, cada uma delas composta de cinco desembargadores, são 100 juízos monocráticos diferentes adotando decisões sobre causas da mesma natureza, o que significa que a justiça de 2º grau em nosso Estado tornou-se decididamente lotérica, aleatória, dependente da sorte, fenômeno altamente preocupante pela absoluta insegurança do desfecho de qualquer demanda, que eventuais agravos internos para as Câmaras não conseguem satisfatoriamente remediar pela massificação desses julgamentos, que impede que o colegiado exerça plena cognição sobre todas as circunstâncias de cada causa. 23. Affonso Fraga. Instituições do Processo Civil do Brasil. 1941, t. III, p. 14. 24. José Frederico Marques. Instituições de direito processual civil. 1963, v. IV, p. 7. 25. Acórdão na Representação 1.299-9; j. 21/08/1986; p. DJU 14/11/1986. Consultado no site www.stf.jus.br. Acesso em 27/01/2010. 17

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5.1.6. Outro golpe ao duplo grau de jurisdição volta a acentuar-se em alguns países com a redução do efeito devolutivo da apelação, antes entendido como a renovação de todo o processo de primeiro grau e, posteriormente limitado, a partir da reforma austríaca de 1895, à simples renovação do julgamento, tornada excepcional a possibilidade de proposição de novas questões de fato e de direito. A esse estágio chegamos ao Código de 1973. Sob forte influência do direito anglo-americano, atualmente essa tendência de redução cognitiva da segunda instância se exacerba com a reintrodução da proibição de apelação nas causas de pequeno valor,26 a pretendida limitação da apelação às questões de direito, excluído o reexame da matéria de fato, e com a introdução em alguns países da autorização para apelar, verdadeiro juízo de viabilidade de êxito do recurso, a coibir a sua interposição ou a sua admissibilidade.27 Se é forçoso reconhecer que nos julgamentos populares, como o do júri, bem assim nos julgamentos por equidade da justiça de vizinhança, em que, pela legitimidade política ou pela proximidade do órgão de primeira instância em relação aos fatos e à comunidade em que ocorre o litígio, este se 26. Na França, a apelação somente é cabível nas causas de valor superior a 4000 euros (Code de l’organisation judiciaire, artigo R-211-3). 27. V. Remo Caponi. L’appello nel sistema delle impugnazioni civili (note di comparazione anglo-tedesca). In: Rivista di diritto processuale. maio-jun./2009, p. 632, 635-642. No direito inglês, as regras 52.3(6)(a) e 52.3(6)(b) das Civil Procedures Rules somente preveem a permission to appeal nos casos de uma prognose positiva de êxito do recurso ou de outro motivo grave. Na ZPO alemã, reformada em 2011, a apelação deixou de constituir o instrumento de renovação da discussão da controvérsia para tornar-se principalmente meio de correção dos erros do juízo de primeiro grau; se o valor da sucumbência do apelante não ultrapassa os 600 euros, a apelação somente é admitida se suscita uma questão de significado fundamental (§ 511); o tribunal deve julgar o recurso inadmissível se ele não apresenta alguma perspectiva de sucesso, se a causa não tem uma importância fundamental ou se o seu julgamento não apresenta interesse para a evolução do direito ou a uniformidade da jurisprudência (§ 522, n.2). A seção 529 estabeleceu que o tribunal de 2º grau deve adotar a verdade dos fatos acertada no juízo de 1º grau, salvo se elementos concretos suscitarem dúvida sobre a correção ou a completude dos acertamentos relevantes para a decisão e por isso seja necessário efetuar um novo acertamento. A Corte Constitucional Federal parece ter resistido a essa mutilação do reexame da matéria de fato em grau de apelação. Frédérique Ferrand noticia que em 01/10/2004 aquela Corte, em um obiter dictum, julgou contrário ao art. 2º, alínea 1ª, da Lei Fundamental, combinado com o direito à tutela jurídica efetiva, que decorre do princípio do Estado de Direito, o fato de impor, na instância de apelação, uma obrigação aos juízes de ater-se aos fatos constatados em primeira instância, cuja veracidade é contestada pelo apelante e cuja retificação não tinha podido ser obtida do juiz de primeira instância em seguida a um impedimento deste último. Igualmente o Tribunal Superior Federal, correspondente ao nosso STJ, permitiu que o juízo de apelação promovesse a produção de novas provas e a reapreciação dos fatos, desde que verificadas sérias dúvidas sobre os fatos reconhecidos na primeira instância (Frédérique Ferrand. La restriction du champ de l’appel: les précieux enseignements du droit allemand. In: Justices et droit du procès – Du légalisme procédural à l’humanisme processuel. Mélanges en l’honneur de Serge Guinchard. 2010, p. 255). 18

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encontra em nítida posição de vantagem em relação ao de segunda, quanto à probabilidade de proferir uma decisão mais acertada e justa, essas circunstâncias excepcionais não podem ser generalizadas. O reduzido conteúdo econômico do litígio, a pouca frequência com que são reformadas as decisões dos juízos de primeiro grau ou o excesso de recursos que congestiona as pautas dos tribunais superiores não podem reduzir ainda mais o alcance do princípio do duplo grau de jurisdição. Nos países de direito escrito, de juízes singulares de primeiro grau oriundos de processos seletivos que apuram apenas os seus conhecimentos jurídicos, mais do que nos da chamada common law, o acerto e justiça das decisões exigem uma ampla cognição no segundo grau de jurisdição, para aumentar a probabilidade de decisões melhores, que acresçam à cognição de 1º grau a sua crítica e até mesmo uma complementação dessa cognição. O jurisdicionado não pode ficar à mercê de um único julgamento de um único juiz, seja na apuração dos fatos, seja na apreciação das questões de direito. Além disso, há sempre omissões, esclarecimentos, observações, que podem ser mais bem apresentados, especialmente depois que as partes se deparam com os fundamentos de uma decisão desfavorável, levando o seu reexame à presença de juízes mais qualificados e experientes. Como recorda Proto Pisani, a apelação não visa apenas a corrigir os erros dos juízes, mas também das partes e dos próprios advogados.28 Por outro lado, a possibilidade desse amplo reexame é uma garantia contra eventual erro de julgamento ou arbítrio do julgador de primeiro grau. Os juízes são seres humanos, falíveis como todos os demais, cujas decisões devem estar sujeitas a amplo controle, sem prejuízo da sua independência.29

5.2. Medidas que apresentam aspectos positivos e negativos Há um grupo de medidas, que têm sido adotadas ou incentivadas em vários países, que comprovadamente podem ter um impacto positivo na redução do número de processos e de recursos e que vêm sendo implementadas como possíveis soluções para a crise da justiça civil, cujos méritos devem ser exaltados, mas que, por outro lado, precisam ser revestidas de uma 28. Andrea Proto Pisani. Intervento sconsolato sulla crisi dei processi civili a cognizione piena. In: Giuliano Scarselli (coord.). Poteri del giudice e diritti delle parti nel processo civile – Atti del Convegno di Siena del 23-24 novembre 2007. 2010, p. 50. 29. Nesse sentido, é preocupante o teor da Resolução nº 106/2010, do Conselho Nacional de Justiça, que estabeleceu como um dos critérios objetivos de avaliação do desempenho qualitativo dos magistrados, para efeito de promoção, “o respeito às súmulas do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores” (art. 5º, letra e). 19

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série de cautelas, para não mergulharem a justiça numa crise ainda maior de perda de credibilidade e de confiança da sociedade, pela possibilidade de desbordarem em instrumentos de flagrantes injustiças. Impõe-se adotá-las com a preocupação permanente de que contribuam para uma justiça de qualidade, que não cerceie o acesso àqueles que dela necessitam e que respeite integralmente as garantias de um processo justo. 5.2.1. Nos vinte últimos anos, como consequência da explosão da crise da justiça civil, tornou-se comum nos países da chamada civil law a exaltação dos méritos dos métodos alternativos de solução de conflitos (mediação, arbitragem, justiça interna das associações), adotados com muito êxito nos países da common law, especialmente nos Estados Unidos. Cappelletti foi um dos responsáveis pela difusão dessa nova cultura, nos estudos e pesquisas do chamado Projeto de Florença, 30 chamando a atenção para a importância que esses métodos podem ter na expansão do acesso à justiça por todos os cidadãos e para a busca de soluções predominantemente conciliatórias e rearmonizadoras no âmbito da justiça coexistencial, ou seja, na preservação da convivência pacífica e construtiva entre pessoas interdependentes no âmbito de determinados grupos sociais, cuja coesão e solidariedade é imperiosa, como a família, a vizinhança, os comerciantes de um determinado setor etc. Com inteira razão acentua Roberto Berizonce: También está clarificado que solo cierta categoría de conflictos son los que toleran ser canalizados por tales medios alternativos, precisamente aquellos típicos que se derivan de las relaciones de ‘coexistencialidad’ – cuestiones familiares y de menores, de vecindad, de menor cuantía, relaciones de trabajo, inquilinarias y de duración, en general.31

No caso da arbitragem, a confidencialidade e a possibilidade de escolha de julgadores mais afeiçoados à matéria controvertida são fatores que priorizam

30. V. especialmente o livro 1 do volume II e o livro III da obra Access to Justice, editada por Mauro Cappelletti e Brian Garth (Milano: Giuffrè, 1979), assim como o relatório apresentado pelo mestre fiorentino, em 1992, no Simpósio Jurídico W.G. Hart sobre a Justiça Civil e suas alternativas, promovido em Londres pelo Institute of Legal Advanced Studies (in: Revista de Processo, abr.-jun./1994, p. 82-97). 31. Roberto Omar Berizonce. Bases para actualizar el Codigo Modelo Procesal Civil para Iberoamerica. In: Civil Procedure Review. maio-ago./2009. In: www.civilprocedurereview.com. Acesso em: 20/04/2012. 20

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a sua adoção, especialmente em litígios empresariais, de elevado conteúdo econômico e complexidade técnica. Esses métodos constituem instrumentos muito eficazes para aliviar a sobrecarga do Judiciário, inclusive em relação a causas já pendentes da sua apreciação. A sua utilidade tem sido comprovada em todos os tipos de controvérsia, inclusive nas que versam sobre direitos indisponíveis ou em que uma das partes seja o próprio Estado.32 Todavia, devem eles ser preferidos em razão da maior qualidade e confiabilidade da decisão que deles resulta e não como atalho de fuga de uma justiça estatal ineficiente e imprevisível. A maior extensão da autonomia da vontade, que os caracteriza, exige que sejam estruturados de modo que a escolha dos mediadores, conciliadores ou árbitros recaia sobre pessoas particularmente capacitadas e que as decisões ou acordos, que sejam no seu âmbito adotados, não sejam de nenhum modo influenciados pela preponderância de uma parte sobre a outra ou pelo temor de uma delas de que, pela sua inferioridade em relação à outra, tenha de sujeitar-se às suas imposições, sob pena de sofrer um dano injusto ou de ter de submeter-se a uma justiça estatal morosa ou não confiável. Com isso não quero dizer que seja contrário à mediação ou arbitragem entre desiguais ou sobre direitos indisponíveis, porque considero que esses mecanismos podem ser disciplinados de modo a permitir que o Judiciário faça o controle de fundo da qualidade do seu desempenho e do seu resultado, coibindo eventuais distorções. Mas entendo que esses institutos precisam ser disciplinados adequadamente e implantados por meio de programas de qualificação e de instituições que os desenvolvam de modo a assegurar efetivamente uma justiça melhor do que a oficial, pressupondo, ainda, como pano de fundo, que esteja sempre aberta aos litigantes a opção pela solução judicial que, apesar dos seus custos e dos seus riscos, seja efetivamente célere e confiável. 5.2.2. O condicionamento do ingresso em juízo à mediação prévia obrigatória ou, no caso das causas da Administração Pública, à prévia postulação administrativa, são mecanismos, na minha opinião, perfeitamente aceitáveis e que têm sido adotados com maior ou menor êxito em muitos países. Eles podem servir para solucionar numerosos litígios, aliviando a sobrecarga do Judiciário. Ao contrário do entendimento adotado pelo Supremo Tribunal 32. V. Nino Longobardi. Modelli amministrativi per la risoluzione delle controversie. In: Rivista Trimestrale di Diritto Processuale Amministrativo. mar./2005, p. 52-74; Francesco Goisis. Compromettibilità in arbitri (e transigibilità) delle controversie relative all’esercizio del potere amministrativo. In: Rivista Trimestrale di Diritto Processuale Amministrativo. mar./2006, p. 243-284 21

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Federal a respeito das comissões de conciliação prévia trabalhista, 33 parece-me que se trata de mecanismos perfeitamente compatíveis com a garantia constitucional do acesso à Justiça, desde que a postergação do ingresso em juízo seja imposta por um tempo mínimo, facultada a imediata postulação judicial para a busca da tutela da urgência, que porventura se afigure necessária. Ocorre que muitas vezes esses institutos são adotados mais como filtros destinados a limitar o acesso à justiça do que como mecanismos de busca de soluções melhores, mais rápidas e econômicas do que as judiciais. Por outro lado, com frequência têm sido implementados por pessoas totalmente despreparadas e sem qualquer discernimento ou autonomia para contribuírem com proveito para a tutela efetiva de quem tenha razão. No caso de mediação prévia obrigatória, que pode também adotar a forma de uma conciliação preliminar no preâmbulo do processo judicial, não é demais acentuar que se trata de um mecanismo cujo ideal seria a sua adoção voluntária. Todavia, modalidades compulsórias têm sido implantadas em alguns países, como a Argentina e a Itália, como meios de instituir uma nova cultura de solução negociada, ainda inexistente, com maior ou menor êxito, dependendo do modo como foram efetivadas. É preciso antecedê-las de programas adequados de formação de mediadores ou conciliadores qualificados e que despertem a confiança dos litigantes. Esses mediadores precisam ser pessoas reconhecidamente idôneas, que se imponham ao respeito das partes e que, tendo participado de um programa bem estruturado de formação de negociadores, façam uso das técnicas dessa especialidade de modo a captar a confiança das partes e da sociedade e a obter resultados que efetivamente satisfaçam aos que os procuram. Como meio de corrigir eventuais erros e também para encorajar a sua adoção, os provimentos que daí resultassem deveriam ficar sujeitos a anulação ou reforma, num prazo determinado, pela via de um procedimento de cognição exaustiva.34 A prévia postulação administrativa nas causas do Estado pode ser um instrumento de aperfeiçoamento das rotinas e práticas da Administração Pública e de controle e aprimoramento da atuação dos funcionários públicos, mas ela precisa ser rápida e ser exercida por agentes públicos qualificados, com independência e autonomia para, sem temor de qualquer represália, reconhecerem os erros da Administração e proverem à tutela dos direitos dos administrados. Se essa não for a regra, a obrigatoriedade do prévio 33. V. acórdãos nas Medidas Cautelares nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs. 2139 e 2160, in: www.stf.jus.br; acesso em 22/05/2012. 34. V. Andrea Proto Pisani, op. cit., p. 52. 22

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acesso à via administrativa se reduzirá a um simples mecanismo odioso para dificultar o acesso ao direito e à justiça, aí sim, incompatível com a garantia constitucional inscrita no inciso XXXV do art. 5º da nossa Carta Magna. 5.2.3. A introdução do chamado case management ou gerenciamento do processo pelo juiz, inicialmente nos Estados Unidos, por meio do Civil Justice Reform Act de 1990, e posteriormente na Inglaterra, nas Civil Procedure Rules de 1998, representou uma mudança de paradigma dos países da common law, que deu novo impulso ao ativismo judicial já instaurado desde o Código austríaco de 1895 nos países da civil law, nos quais pode ser observada a recente adoção de mecanismos que fortalecem a direção do processo pelo juiz, como a escolha e flexibilização do procedimento e a adoção de um calendário. Essa nova compreensão da função do juiz foi incentivada na Europa a partir da criação, em 2002, pelo Conselho da Europa da Cepej – Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça, assim como pela adoção em 2004, no âmbito do American Law Institute e da Unidroit, dos Princípios do Processo Civil Transnacional, em especial o Princípio 14, assim redigido: 14. Court Responsibility for Direction of the Proceeding 14.1 Commencing as early as practicable, the court should actively manage the proceeding, exercising discretion to achieve disposition of the dispute fairly, efficiently, and reasonable speed. Consideration should be given to the transnational character of the dispute. 14.2 To the extent reasonably practicable, the court should manage the proceeding in consultation with the parties. 14.3 The court should determine the order in which issues are to be resolved, and fix a timetable for all stages of the proceeding, including dates and deadlines. The court may revise such directions.

Louvado em lição de Verkerk, van Rhee assim resume o conteúdo do judicial case management:35 (1) The specific nature of the case should determine to a large extent the rules, directions and orders that govern the proceedings; (2) The rules, directions and orders of proceedings should to a large extent be determined by the judges, parties

35. C.H. van Rhee. Introduction. In: C.H. van Rhee (ed.). Judicial Case Management and Efficiency in Civil Litigation. 2008, p. 3-4. 23

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL and attorneys involved in the case and not by detailed legal provisions; (3) The court should have the necessary procedural discretionary powers to manage the case; (4) The courts’s discretion should be discretion in the weak sense, that is to say, the court should use its powers for a specific goal, i.e. to achieve the disposition of the dispute fairly, efficiently, and with reasonable speed.

Já tive a oportunidade de sustentar que um procedimento legal, previsível e flexível constitui uma garantia fundamental do processo contemporâneo.36 O case management system propugna o planejamento do processo pelo juiz, com a colaboração das partes e dos advogados, definindo as suas etapas para predeterminar o seu fim, mas não exclui a legalidade do procedimento, propondo apenas regras legais menos detalhadas, que abram espaço à flexibilização, a fim de que o juiz possa disciplinar a marcha do processo do modo mais adequado a atingir a meta da solução do litígio com justiça, eficiência e celeridade. O desvirtuamento do espírito do case management system se dissemina no Judiciário, criando a coqueluche da eficiência, que atrai o interesse dos especialistas em gestão pública e empresarial, e passa a influenciar a definição de supostos parâmetros de qualidade a serem uniformemente adotados, criados a partir da visão dos próprios juízes, sem a consulta e a colaboração dos jurisdicionados e dos advogados. Os certificados ISO 9000 são ostentados em certos cartórios do Rio de Janeiro como atestados de qualidade da prestação jurisdicional, mas ninguém perguntou aos jurisdicionados o que eles acham da justiça que lhes é prestada. As supostas metas de qualidade são também impostas pelo Conselho Nacional de Justiça com resultados desastrosos, como o cerceamento do direito de defesa ou a interdição de produção de provas já deferidas. Esvaziam-se as prateleiras e são atingidas metas exclusivamente quantitativas, apontadas como sintomáticas da melhoria da qualidade da administração da Justiça. Já comentamos esse desvirtuamento em linhas acima. Por outro lado, a necessária flexibilização procedimental passa a ser exercitada pelos juízes sem parâmetros legais e sem o recomendável diálogo e o consenso das partes, o que gera grande insegurança jurídica, cria situações absolutamente imprevisíveis para as partes e redunda em enorme disparidade de tratamento. O gerenciamento é positivo, desde que planejado e executado dentro de parâmetros uniformes, implementados após a indispensável 36. Garantias Fundamentais do Processo: o Processo Justo. In: Manoel Messias Peixinho; Isabella Franco Guerra; Firly Nascimento Filho (orgs.). Os princípios da Constituição de 1988. 2006, p. 369-406. 24

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consulta às partes e aos grupos sociais diretamente interessados. Esse é o verdadeiro espírito do case management system, que levou o direito inglês à criação dos pre-action protocols, que definem requisitos e documentos a serem previamente preenchidos e obtidos pelas partes, e dos protocolos adotados no âmbito de certas cortes de apelação italianas, como o Protocollo di Firenze. Afasta-se qualquer ideia de supressão do princípio da demanda ou do princípio dispositivo ou de transformação do juiz num investigador sistemático, harmonizando uma direção mais firme e adequada do processo pelo juiz com a autonomia privada e com as garantias fundamentais do processo.37 5.2.4. Fenômeno comum a diversos sistemas processuais de nosso tempo, que buscam mecanismos para enfrentar o chamado contencioso de massa, é a criação e o aperfeiçoamento de instrumentos de tutela coletiva, de solução coletiva de litígios individuais e de padronização de decisões, como o Musterverfahren alemão, as group litigation orders e os representative proceedings ingleses. Nos países em que se originaram, esses instrumentos têm tido parcimoniosa aplicação38 e uma implementação fortemente influenciada pelo respeito às garantias fundamentais do contraditório e da ampla defesa em relação a cada um dos envolvidos. A cuidadosa e democrática escolha das questões e dos representantes do grupo, a livre adesão dos interessados, a criteriosa comparação das diversas demandas para verificar as suas afinidades e assimetrias, são algumas circunstâncias que têm sido levadas em conta e que têm tido como consequência a reduzida aplicação desses institutos. 39 Entre nós a expansão desses institutos tem sido apregoada como solução para o excesso de demandas e de recursos, sob o influxo da equívoca e anacrônica noção de processo-objetivo, que também tem contribuído para a já criticada exaltação da força normativa da jurisprudência. Ações de controle concentrado de constitucionalidade, ações coletivas, incidentes de resolução de recursos ou de demandas repetitivas florescem como a 37. V. Neil Andrews. The Three Paths of Justice – Court Proceedings, Arbitration and Mediation in England, 2012, p. 14-16 e 64; R.R. Verkerk, What is Judicial Case Management? A Transnational and European Perspective. In: C.H. van Rhee (ed.). Judicial Case Management and Efficiency in Civil Litigation. 2008, p. 27-55. 38. Neil Andrews informa que os representative proceedings são relativamente incomuns na Inglaterra e difunde informação de Rachael Mulheron de que, desde a sua criação no ano 2000 até 2008, somente tinham sido propostas 63 group litigation orders (Neil Andrews. The Three Paths of Justice – Court Proceedings, Arbitration and Mediation in England. 2012, p. 169-184). 39. V. Sonja E. Keske. Group litigation in European Competition Law – a Law and Economics Perspective. 2010, p. 193-244; em especial o capítulo 5. 25

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panaceia para enfrentar o crescimento incontrolável do volume de causas, sob a égide de uma sistemática prevalência do interesse público sobre os interesses dos jurisdicionados e sem facultar qualquer tipo de colaboração dos interessados na escolha das questões e dos representantes do grupo, sem qualquer preocupação de assegurar que os casos-piloto sejam os mais representativos da controvérsia, sem uma análise efetivamente cuidadosa da identidade ou dessemelhança das questões envolvidas em causas que somente na aparência versam sobre os mesmos temas e sem assegurar a todos os interessados, em igualdade de condições, a possibilidade de influir no julgamento dos casos-piloto.40 A ideia de processo-objetivo também sustenta a extensão das decisões a casos futuros, de litigantes que não tiveram qualquer possibilidade de influir no julgamento dos casos-piloto e, mesmo quanto aos casos pretéritos, os tribunais superiores em nosso país têm manifestado uma nefasta má vontade em examinar a correção da aplicação dos seus julgamentos-piloto aos casos concretos pelos tribunais inferiores, como se, a partir dessas decisões de caráter geral, não mais lhes coubesse a responsabilidade de velar pela correta aplicação da Constituição e das leis. Ninguém traduziu tão bem quanto Mauro Cappelletti o risco do distanciamento dos juízes do contato com as partes e com a concretude das controvérsias. É da essência da função jurisdicional o seu desenvolvimento “em direta conexão com as partes interessadas”, que gera no povo o “sentimento de participação”, que confere legitimidade democrática à função judiciária. Não tendo, como o legislador, compromisso com a maioria, é a realidade dos casos concretos e dos dramas vividos pelas partes que torna a criação jurisprudencial, sedimentada ao longo de extenso período de experiências, um elemento fundamental na revelação de princípios e valores duradouros. Desse método, que o legitima e o justifica, o Judiciário não deve afastar-se para imitar o legislador em busca da formulação de

40. Apenas como exemplo da má escolha de recurso “mais representativo da controvérsia”, o Professor José Augusto Garcia, meu colega na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e ilustre Defensor Público, atraiu a minha atenção para o que ocorreu no julgamento, pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, do REsp. 1.199.715, versando sobre a não incidência dos honorários da sucumbência a cargo de autarquias estaduais, quando o seu adversário vencedor é assistido pela Defensoria Pública. O referido recurso foi escolhido como paradigma, apesar de a Defensoria Pública, grande interessada na tese, não ter sido ouvida e ter deixado de atuar na causa quando o feito ainda tramitava em primeira instância. O acórdão, que fixou jurisprudência, não discutiu a questão com a esperada profundidade. O dispositivo do nosso ordenamento jurídico, que trata diretamente do assunto (a saber, o art. 4º, XXI, da Lei Complementar 80/1994, lei orgânica nacional da Defensoria Pública), não foi mencionado na decisão, embora tenha sido por ela frontalmente contrariado. 26

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normas abstratas, distanciadas da realidade da vida.41 A tutela coletiva é um importante instrumento do acesso à Justiça, mas não pode transformar o juiz em legislador e transformar-se em instrumento de supressão da liberdade individual, mas, ao contrário, deve constituir o meio de fornecer aos indivíduos e aos grupos sociais a possibilidade de efetivamente participar da vida social “em condições de liberdade, consciência e responsabilidade”.42 5.2.5. Não é de hoje que a sumarização dos procedimentos foi adotada como a estratégia mais simples e mais barata para acudir à insatisfação da sociedade com a morosidade da justiça. Já em 1901, a reforma italiana oriunda do projeto de Mortara dera nova configuração ao rito sumário, ao qual Taruffo atribuía os seguintes objetivos: garantir uma contínua e mais eficaz direção do processo pelo juiz e assegurar uma ampla fase instrutória com respeito rigoroso às garantias das partes.43 No Brasil não foi diferente, com a criação do procedimento sumaríssimo no Código de 1973, justificada na exposição de motivos de Alfredo Buzaid em cumprimento ao diploma constitucional então vigente, porque se desenvolve “(...) simpliciter et de plano ac sine strepitu. O que o caracteriza é a simplificação de atos, de modo que as demandas sejam processadas e decididas em curto espaço de tempo e com o mínimo de despesas”. A noção de que a causas de menor valor ou de menor complexidade pode corresponder um procedimento com prazos menores, fundamentos de ataque e defesa restritos, julgamentos desvinculados de critérios de estrita legalidade, limitação do número de testemunhas ou substituição dos depoimentos orais por declarações escritas, tomada de depoimentos perante um auxiliar, dispensa do registro dos atos orais e de mais rigorosa motivação das decisões, contraditório mitigado com a concentração de todos os atos em uma só audiência, supressão de instâncias recursais e até perante juízes menos qualificados ou leigos, poderia parecer normal até a emergência do Estado de Direito Contemporâneo, erigido sob a égide do primado da dignidade humana e dos direitos fundamentais, com toda a repercussão que esses insuperáveis valores constitucionais tiveram sobre a teoria geral do processo, reconstruída à luz da efetividade e do Garantismo.44

41. Mauro Cappelletti. Juízes legisladores? 1993, p. 100-107. 42. Costantino Mortati, citado por Nicolò Trocker. Processo civile e Costituzione. 1974, p. 112. 43. Michele Taruffo. La giustizia civile in Italia dal ‘700 a oggi. 1980, p. 169. 44. Candente é a revolta de Antonío María Lorca Navarrete em relação à sobrevivência, na Ley de Enjuiciamiento Civil de 2000, do chamado juicio verbal, sustentando que a sumariedade, que o caracteriza, é incompatível com as garantias fundamentais do processo (v. Antonio María 27

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As vantagens desses procedimentos, como os dos juizados especiais e o sumaríssimo na Justiça do Trabalho, em termos de custos e de tempo, justificam a sua adoção e os apresentam como uma opção adequada para inúmeros litígios, especialmente no âmbito do que Cappelletti denominou de justiça coexistencial, a justiça da comunidade, mais pacificadora do que sentenciadora, a que já me referi no item 5.2.1, desde que ambos os litigantes livremente os escolham, numa opção livre e consciente de usufruírem das suas vantagens, apesar das limitações garantísticas a que terão de sujeitar-se. Entretanto, não podem ser impostos a um ou a ambos os litigantes sem possibilidade de escolha, porque ninguém pode ser obrigado a se sujeitar a uma justiça sem as mínimas garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, a todos asseguradas no texto constitucional e nos instrumentos internacionais de direitos humanos. A celeridade e a economia não podem sobrepor-se à qualidade e ao respeito às garantias fundamentais do processo. Voltaremos mais adiante a essa questão para mostrar em que medida essa sumarização procedimental pode ser conciliada com o respeito àquelas garantias (item 5.3.6.). 5.2.6. O instituto vetusto da coisa julgada também está na berlinda. A formulação clássica dos limites objetivos e subjetivos e, quanto a estes, a distinção entre a eficácia natural da sentença e a autoridade da coisa julgada, genialmente engendrada por Liebman, já não são suficientes para resolver as inúmeras situações trazidas pela judicialização dos novos direitos. As ideias norte-americanas de trazer para o processo todos os pontos de divergência entre as partes, decorrentes da mesma situação fático-jurídica, para que elas não possam mais discuti-los em outros processos e de estender o efeito preclusivo da coisa julgada a fundamentos jurídicos não invocados pelo autor, desde que decorrentes do mesmo conjunto de fatos,45 penetram em países da civil law, nos quais já encontravam suporte no âmbito da jurisdição administrativa,46 como um freio ao abuso do direito de demandar, sugerindo a extensão da coisa julgada aos motivos ou a alguns deles, como no Lorca Navarrete. Es constitucional el juicio verbal? Es realmente la sumariedad un modelo de garantismo procesal? Son posibles los juicios sumarios civiles? San Sebastian, 2011). 45. V. o conceito de cause of action no direito norte-americano em: Jack H. Friedenthal; Mary Kay Kane; Arthur R. Miller. Civil Procedure. 2005, p. 658-667. 46. Na justiça administrativa portuguesa, por exemplo, o juiz pode decidir com fundamento na ofensa de princípios ou normas jurídicas diversos daqueles cuja violação haja sido invocada (v. art. 75º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Site: www.vlex.com; acesso em 31/05/2012. 28

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anteprojeto de Código de Processo Civil elaborado pela comissão de juristas presidida pelo Ministro Luiz Fux,47 e até aos fundamentos jurídicos não explicitados, como no art. 400 da Ley de Enjuiciamiento Civil espanhola de 2000. São opções técnico-processuais válidas, características de uma justiça vivamente empenhada na efetiva pacificação dos contendores. Afinal, a tríplice identidade é apenas a ponta do iceberg do que é a lide como fato social. Oxalá pudesse o Judiciário, num único processo, resolver definitivamente todos os pontos de divergência dos litigantes, para que eles não precisassem mais voltar à sua presença para submeter-lhe qualquer outra questão e pudessem, assim, restabelecer a sua convivência harmoniosa, em benefício de ambos e da própria comunidade. O risco é a surpresa, é a situação de incerteza do que ficará ou não sepultado e não poderá mais ser discutido em outro processo, como decorrência da coisa julgada. Será que o autor e seu advogado, no momento da formulação da petição inicial e antes mesmo de conhecer os argumentos do réu, têm uma visão panorâmica de todas as circunstâncias e situações envolvidas naquele conjunto de fatos que ensejou a demanda, que lhes permita não omitir nenhum ponto que, se não alegado desde logo, não possibilitará a sua arguição em processo diverso? Será que mesmo aquelas questões jurídicas a que as partes não deram atenção maior porque não as consideravam relevantes para a decisão da causa, e que, por isso, não foram objeto de contraditório e cognição exaustivos, se apreciadas na fundamentação da decisão, devem ficar sepultadas pela coisa julgada para não poderem mais ser discutidas em outro processo? Teriam tido as partes, no processo anterior, plena consciência de todas as suas consequências? O sistema da limitação da coisa julgada à apreciação do pedido e a exclusão do seu âmbito dos motivos, salvo se proposta a ação declaratória incidental, pode ter o efeito perverso de permitir a renovação da discussão em novo processo sobre questões amplamente debatidas e profundamente apreciadas no processo anterior, mas dá mais segurança aos limites objetivos da coisa julgada. O que nenhuma das partes requereu que fosse decidido principaliter poderá ser rediscutido e reapreciado em outro processo. Acredito que uma solução intermediária poderia ser encontrada e talvez ser objeto de uma reforma processual. Toda vez que o juiz visualizasse que uma questão de direito, não objeto do pedido, tivesse relevância para o julgamento da causa e exigisse cognição exaustiva, consultaria as partes, facultando-lhes requerer o 47. O art. 484 do anteprojeto estendeu a coisa julgada às questões prejudiciais expressamente decididas. 29

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seu julgamento por sentença, reabrindo-se os prazos para alegações e provas a respeito dessa questão. O princípio da colaboração, hoje tão decantado, deve ter duas mãos. Não são apenas as partes que devem colaborar entre si e com o juiz. Também o juiz deve colaborar com as partes, advertindo-as do alcance que o julgamento da causa poderá adotar. Em relação à impugnação dos atos administrativos, que em nosso direito não é objeto de uma jurisdição especial, embora merecedora de um estudo específico, o que está em jogo, em contraposição à proteção do impugnante do ato administrativo contra a surpresa de ficar vinculado à coisa julgada decorrente da apreciação de fundamento não invocado ao qual não deu relevância, é a estabilidade do cumprimento do ato, que, entre nós, sofre de uma particular vulnerabilidade em razão do prazo excessivamente longo para a sua impugnação (cinco anos), enquanto nos principais países europeus esse prazo varia entre um e três meses. Não me animo a defender a redução desse prazo em face da notória precariedade das relações Estado-cidadão ainda vigorantes em grande parte do território nacional, especialmente nos níveis estadual e municipal, que intimida o cidadão a não impugnar o ato ilegal enquanto o governante não deixe o poder, o que pode levar até quatro ou oito anos, para não sofrer represálias. O Brasil ainda precisa evoluir muito nesse campo. 5.2.7. Tenho sistematicamente me manifestado contrário à mentalidade francamente arrecadatória que foi incentivada na justiça do Estado do Rio de Janeiro, a partir do momento em que, criado o chamado Fundo Judiciário, ganhou ela autonomia financeira em relação ao Poder Executivo, de cujo repasse de duodécimos deixou de depender, para receber e gerir diretamente o produto da receita da taxa judiciária e das custas. A justiça não existe para arrecadar tributos que a sustentem e não pode sobrepor essa atividade-meio à sua atividade-fim, que é a de assegurar o acesso à justiça e de exercer a função jurisdicional. Entretanto, parece-me inegável que o Estado pode utilizar a cobrança das custas (no sentido lato) como instrumento de desestímulo à procrastinação e do demandismo irresponsável ou habitual. Sempre defendi a imposição de novas verbas de sucumbência a cada instância recursal e juros progressivos nas condenações pecuniárias. Reconheço, entretanto, que essas medidas têm de ser implementadas com muito cuidado, caso contrário vão recair justamente sobre a camada da população que já é mais sacrificada pelas obrigações que lhe são impostas pelo Estado, que é a classe média. Num país como o nosso, em que ainda grande parte da população não ultrapassou a soleira da pobreza ou vive na 30

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informalidade, não pagando custas como beneficiária da assistência judiciária gratuita, e em que aos mais ricos o custo do processo não intimida, são aqueles que conseguem viver modestamente com uma receita que apenas permite atender às suas necessidades essenciais e às de sua família, que se sacrificam para tentar amealhar uma pequena poupança para deixar de pagar aluguel e realizar o sonho da casa própria ou do carro popular ou do custeio do estudo do filho, que vão ser mais pesadamente atingidos por essas medidas, que continuo defendendo, mas reconheço que precisam ser complementadas com mecanismos de seguros que os resguardem dos riscos da sucumbência ou amortizem esses riscos. Por outro lado, estou hoje convencido de que grande parte do contencioso de massa que sobrecarrega o Judiciário é composta de ações de cobrança de créditos irrealizáveis, como as execuções fiscais contra pessoas que não têm bens ou empresas que fecharam, as execuções pelo inadimplemento de créditos ao consumidor concedidos pelas empresas do sistema financeiro sem nenhuma garantia, ou de créditos em que a cobrança judicial se tornou mais barata e eficaz do que a cobrança extrajudicial, como as milhares de execuções promovidas pela OAB ou por outros órgãos de fiscalização profissional contra os que não pagaram a respectiva anuidade. Além disso, há processos de grande complexidade e custo, em que os autores estão eximidos de antecipar o custeio dos atos processuais, como é o caso das ações populares (Lei nº 4.717/1965, art. 10). Um bom regime de custas pode frear o demandismo exagerado, especialmente o demandismo habitual,48 sem cercear o acesso à Justiça pelos que dela necessitam. Por outro lado, o Estado precisa prover às suas próprias expensas o custeio de atos que as partes não estão em condições de pagar, e não exigir que todos aqueles de cuja atividade a justiça depende tenham de trabalhar gratuitamente. Se em certos limites é compreensível o regime da ação popular, porque o Estado deve ter interesse em que os cidadãos controlem a exação dos administradores no exercício da função pública, entendo que o Estado não deve arcar com o custeio de demandas manifestamente inviáveis. A justa causa, como condição do interesse de agir, deveria ser sopesada num juízo de admissibilidade rigoroso, em que

48. Em Portugal, o art. 447º-A do Código de Processo Civil, aditado pelo art. 3º do Decreto-lei nº 34/2008, na sua alínea 6, estabelece que “nas acções propostas por sociedades comerciais que tenham dado entrada em qualquer tribunal, no ano anterior, a 200 ou mais acções, procedimentos ou execuções, a taxa de justiça é fixada com o agravamento de 50% face ao valor de referência, nos termos do Regulamento das Custas Processuais”. 31

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o demandante fornecesse ao menos indícios veementes da nulidade e da lesividade do ato impugnado. 5.2.8. A preocupação com a morosidade do processo por parte do juiz manager tem estimulado a exacerbação da repressão às condutas procrastinatórias das partes e à deslealdade processual por sucessivas alterações da nossa lei processual. A lei muniu o juiz do poder de sancionar a parte ou terceiro que não cumprir as suas ordens, como, por exemplo, prevê o parágrafo único do art. 14 do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei nº 10.358/2001; sujeitou à litigância de má-fé o recurso procrastinatório (inciso VII do art. 18 do Código, introduzido pela Lei nº 9.668/1998); impôs, na reiteração de embargos declaratórios protelatórios, a multa de 10% sobre o valor da causa, condicionando a interposição de qualquer outro recurso ao depósito desse valor; instigou o executado a informar a localização dos seus bens, sob pena de ato atentatório à dignidade da justiça (inciso IV do art. 600 do Código, com a redação da Lei nº 11.382/2006). A par disso, o art. 130 do Código sempre facultou ao juiz o indeferimento de provas procrastinatórias. Além disso, inúmeros institutos resultantes do fortalecimento da jurisprudência, como a sentença liminar de improcedência (art. 285-A), a súmula vinculante, a súmula impeditiva de recurso (art. 518, § 1º) e a monocratização do julgamento dos recursos pelos tribunais (art.557) passaram a ser utilizados como meios de acelerar o resultado final do processo. Se a preocupação com o tempo do processo e com a conduta leal das partes merece aplauso, alguns desses mecanismos são intrinsecamente inconvenientes, enquanto outros são frequentemente mal aplicados. Por outro lado, faltam-nos mecanismos que poderiam contribuir positivamente para esses resultados, sem os inconvenientes de alguns dos existentes. Parecem-me intrínseca ou acentuadamente inconvenientes, a sentença liminar de improcedência, a súmula vinculante, a súmula impeditiva de recurso, a monocratização dos julgamentos dos tribunais superiores, e a proibição de recorrer sem o depósito da multa, a que se refere o parágrafo único do art. 538 do CPC. A violação do contraditório, da ampla defesa, do duplo grau de jurisdição e da colegialidade das decisões dos tribunais, a que já fiz alusão anteriormente, tornam as desvantagens desses institutos muito maiores do que as suas vantagens. Por outro lado, a criação de obstáculo econômico à interposição de recurso viola a garantia constitucional do acesso à Justiça. É mal utilizado o poder conferido ao juiz pelo art. 130 do CPC de indeferir as provas procrastinatórias. O juízo de admissibilidade das provas deve 32

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ser caracterizado pela tolerância. O juiz não pode ser preconceituoso, nem autoritário. Para assegurar às partes o direito de defender-se provando, que é um dos elementos da garantia constitucional do contraditório, o juiz não pode deferir apenas as provas que lhe parecem úteis e relevantes, de acordo com a sua perspectiva de julgamento. Deve também deferir todas as provas requeridas que hipoteticamente possam ter alguma relevância ou utilidade na perspectiva de cada uma das partes, salvo se forem manifestamente inúteis e irrelevantes. O juízo de relevância, ensina Trocker,49 há de ser o de não manifesta irrelevância. Para evitar que o deferimento de provas de remota utilidade possa retardar desnecessariamente o desfecho do processo, dispõe hoje o juiz do instituto da antecipação da tutela que, desde que requerida, lhe possibilita prover desde logo à proteção do direito do autor de cuja existência já esteja convencido, sem cercear o direito de defesa do seu adversário. É verdade que há direitos que não podem ter a sua tutela antecipada, como os relativos ao estado das pessoas. Não pode haver antecipação de tutela de sentença de divórcio ou de sentença declaratória de paternidade. Mas pode haver a antecipação de efeitos dessas sentenças, como a prestação de alimentos. Nesses casos, concluindo o juiz a final ter sido a prova totalmente inútil ou irrelevante, requerida com espírito de emulação ou intuito meramente protelatório, deve aplicar ao requerente a multa do art. 18, sem prejuízo da liquidação das perdas e danos a ser promovida pela parte prejudicada. Por outro lado, falta ao direito brasileiro nesse campo, uma estruturação mais consistente do dever de colaboração das partes e de terceiros. Falta-nos uma previsão genérica de astreinte endoprocessual, que pudesse reprimir ações e omissões ilícitas no curso do processo, além dos casos previstos em lei. Há muitas limitações probatórias, sobre as quais já fiz a minha crítica, que induzem o juiz a permitir que as partes e mesmo terceiros se encastelem na sua privacidade para impedir o acesso legítimo à prova do seu direito por parte de outros sujeitos.50 5.2.9. As modernas tecnologias vêm contribuindo positivamente para melhorar a qualidade da cognição, substituindo com vantagem rituais redutores do conteúdo dos depoimentos e debates, como o ditado pelo juiz do termo de audiência e a inquirição de testemunhas por precatória, e conferindo ao registro o realismo da gravação de som e de imagem. No caso da precatória, 49. NicolòTrocker. Processo civile e Costituzione. 1974, p. 527. 50. V. especialmente o capítulo V do v. II das minhas Instituições de Processo Civil (2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2011) sobre as limitações probatórias. 33

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o ato produzido eletronicamente tem ainda a grande vantagem da interatividade entre o juiz da causa e o depoente e, em todos os casos, as gravações conservam com muito maior fidelidade o conteúdo da audiência oral para reexame da prova nas instâncias superiores. Mas o processo eletrônico também empobrece muitos atos processuais, especialmente os que sempre se realizaram em audiências ou sessões de julgamento orais e públicas. A testemunha não mais se defronta com o juiz, mas com um computador e às sessões virtuais não têm mais acesso o público e os próprios advogados, que de tudo tomam conhecimento depois de encerradas. A imediatidade do contato humano entre o juiz, as partes e os demais sujeitos do processo se enfraquecem, reduzindo o caráter participativo do contraditório e distanciando a administração da justiça do controle democrático da opinião pública. A informatização é desejável e dela pode a justiça retirar um grande proveito, desde que ela não se torne instrumento de desumanização do processo e de aprofundamento do fosso que com tantas lutas o Estado de Direito Contemporâneo conseguiu superar, graças ao exercício da colaboração e da solidariedade, incentivadas pela expansão da eficácia das garantias fundamentais do processo.

5.3. Medidas francamente positivas Nesta parte do presente ensaio, pretendo apontar algumas diretrizes de reformas fundamentais do processo civil que vêm sendo progressivamente adotadas em modernos sistemas processuais, que me parecem conciliar as exigências da efetividade e do garantismo com as preocupações quantitativas resultantes da explosão de demandas, assim como com a busca da celeridade e a geração parcimoniosa de custos. A sua implementação pode vir a ser complexa e certamente exigirá a formação de quadros tecnicamente aparelhados, mas o investimento necessário será folgadamente recompensado pelos benefícios que decorrerão para a satisfação dos jurisdicionados e a recuperação da imagem do Judiciário. 5.3.1. A primeira providência seria a instauração de um procedimento ordinário verdadeiramente bifásico, tal como adotado recentemente na Espanha, caracterizado pela criação de dois momentos decisórios culminantes, a audiência preliminar e a audiência final de instrução e julgamento, e a eliminação mais extensa possível da fragmentação do procedimento em uma série infindável de decisões intermediárias. A preparação da primeira seria antecedida dos articulados de ambas as partes, a complementação do 34

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contraditório em relação às defesas indiretas arguidas pelo réu e a proposição em concreto pelas partes das provas que pretendem produzir, apontando os fatos cuja demonstração intentam obter com cada uma delas, de tal modo que o juiz, na primeira audiência, com a colaboração das partes, caso frustrada a conciliação, faça, desde logo, uma primeira apreciação do conteúdo e da relevância das provas propostas, fixando, assim, com mais profundo conhecimento da controvérsia, as questões de fato e de direito que devam ser objeto da decisão final, e determinando a sequência dos atos a ser adotada e a produção das provas que ainda se apresentarem necessárias. É da essência do processo bifásico que nenhuma das partes seja surpreendida na audiência final com uma prova cujo conteúdo não tenha podido examinar ou prever, o que comumente ocorre com o arrolamento de testemunhas nas vésperas da audiência e a omissão pela parte que a arrola de qualquer informação sobre o fato que a testemunha assistiu e sobre o qual virá depor em juízo. Dever-se-ia estabelecer que as partes, nos articulados, apontassem desde logo os fatos concretos a serem comprovados pelas provas requeridas, trazendo, prontamente, se possível, declarações escritas das testemunhas a serem ouvidas, o que permitiria ao juiz avaliar com mais precisão a relevância e utilidade do seu depoimento e facultaria ao adversário preparar-se para a sua inquirição. Como observa Trocker, a fase preparatória não se destina apenas a informar as partes na medida necessária para que possam preparar-se para a audiência final, mas a instruir o juiz e oferecer-lhe condições de dirigir com eficiência o processo. A parcial antecipação da instrução probatória permite deixar para a segunda fase apenas os pontos não esclarecidos na fase preparatória, poupando as partes de situações imprevisíveis e facultando ao juiz uma cognição mais segura da causa.51 5.3.2. Consequências de um procedimento efetivamente bifásico serão a concentração da atividade instrutória nas duas audiências, a bastante provável possibilidade de solução amigável pelo conhecimento mais preciso do conteúdo das provas, e a resultante redução do número de pequenas decisões, o que permitirá, sem o risco do abuso de sucedâneos recursais, a eliminação de recursos contra grande número de decisões interlocutórias, reduzindo-se a admissibilidade do agravo basicamente à concessão da tutela antecipada e ao despacho saneador. Esse caminho foi trilhado por Portugal 51. Nicolò Trocker. Le riforme del processo civile in Europa: il ravvicinamento dei sistemi. In: La formazione del diritto processuale europeo. 2011, p. 322. 35

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na reforma recursal de 2007 e pelo anteprojeto brasileiro de novo Código de Processo Civil (art. 929). 5.3.3. Bastante útil na perspectiva da implementação do procedimento bifásico seria a adoção de medidas pré-processuais de preparação do litígio judicial, independentemente da urgência, para dar consistência aos atos postulatórios iniciais e favorecer o efetivo conhecimento pelas partes de todas as circunstâncias relevantes da causa antes do seu ajuizamento, como nos pre-action protocols do direito inglês. A prévia troca de informações e documentos, a inquirição extrajudicial de testemunhas, a produção preventiva de prova pericial, são alguns tipos de atos preparatórios que melhoram substancialmente a fundamentação das postulações das partes, aceleram a composição negociada dos interesses dos litigantes e facilitam a condução do processo pelo juiz. Grupos sociais em que certos litígios se repetem podem celebrar protocolos orientando os seus participantes a respeito do modo de conduzir essa investigação pré-processual. Além da exitosa experiência inglesa, militam, em favor desse robustecimento prévio, a consulenza tecnica preventiva adotada na Itália em 2005,52 os protocolos celebrados a partir desse ano no âmbito de vários tribunais de apelação italianos, como o Protocollo di Firenze, e a reforma processual russa de 2002.53 A Áustria, em 2003, transformou a audiência preliminar, para que nela se apresentem os articulados e as provas, facilitando, assim, o julgamento antecipado da lide.54 Na opinião de Berizonce, a comprovação instrutória dos fatos com anterioridade ao processo assume um valor significativo em si mesma, como elemento de juízo para o processo futuro; ademais, pode resultar útil e a miúdo decisiva, como fator facilitador de um acordo entre as partes.55 5.3.4. Quando Cappelletti propôs a criação de outro modelo de justiça, a que denominou de coexistencial,56 predominantemente pacificadora e não sentenciadora, já se tinha formado a percepção de que as partes não podem 52. Lei nº 80/2005. 53. Beatrice Ficcarelli. Fase preparatoria del processo civile e case management giudiziale. 2011. 54. V. P. Oberhammer; T. Domej. Improving the efficiency of civil justice: some remarks from an austrian perspective. In: C.H. van Rhee; A. Uzelac (eds.). Civil Justice between Efficiency and Quality: from Ius Commune to the CEPEJ. 2008, p. 61-68. 55. Op.cit. V. também a tese de titularidade de Flávio Luiz Yarshell (Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova, São Paulo, 2011), defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 56. Mauro Cappelletti. Problemas de Reforma do Processo Civil nas Sociedades Contemporâneas. In: Revista de Processo. jan.-mar./1992, p. 127-143. 36

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apenas desencadear o processo com as suas postulações, deixando nas mãos do juiz a condução do processo até o seu desfecho final. O juiz profissional está muito longe de ter uma visão completa do mundo e dos problemas que afligem os cidadãos. Empurrar as partes para a arbitragem, para que elas possam escolher julgadores com mais capacidade de compreensão da sua realidade, pode ser um caminho, mas oferece muitos riscos, entre os quais a pouca experiência dos árbitros em exercerem a função de julgar e a ausência de um duplo grau de jurisdição. Se, respeitados certos princípios inderrogáveis, na arbitragem as partes podem ditar o procedimento a ser seguido pelos árbitros, porque não permitir que, perante os juízes profissionais, as partes possam dispor sobre o modo que consideram mais adequado de direção do seu processo, os prazos a serem observados, a escolha de comum acordo do perito a atuar na instrução da causa e tantas outras questões em que a lei atualmente é imperativa ou em que a margem de flexibilidade está entregue ao poder discricionário do juiz? Tudo isso, sem abrir mão da justiça estatal, ao contrário, prestigiando-a e fortalecendo-a, dela usufruindo o que ela tem de melhor, que é a sua experiência na composição dos conflitos e a sua estruturação hierárquica, que garante sempre ao vencido uma segunda oportunidade de julgamento por magistrados mais experientes. São os contrats de procédure, adotados na França,57 e a ampliação dos espaços de contratualização do processo judicial, que, sujeitos à supervisão do juiz para evitar abusos, podem constituir uma opção valiosa para recuperar a credibilidade nos juízes e agasalhar postulações que sem essa autonomia teriam de dirigir-se a uma arbitragem por interlocutores inexperientes, sem o duplo grau de jurisdição, ou serem resolvidas pela força ou por acordos iníquos, impostos pelo litigante mais forte ou pela própria incapacidade da Justiça de tutelar com eficiência e celeridade os direitos dos cidadãos. 5.3.5. Outra inovação que precisa ser adotada e que funciona muito bem em outros países é a modificabilidade da demanda, que permite que o objeto litigioso sofra ajustes no curso do processo, a fim de nele incluir novas questões e assim assegurar que a sentença resolva a situação litigiosa como um todo, tal como ela se configura nesse momento, e não como ela se cristalizou anteriormente, por ocasião da citação.58 O direito brasileiro, nesse aspecto, coloca o autor em uma nítida posição de desvantagem em 57. V. Serge Guinchard; Cécile Chainais; Frédérique Ferrand. Procédure Civile – droit interne et droit de l’Union européenne. 2010, p. 1220-1221. 58. V. Joan Picó i Junoy. La modificación de la demanda en el proceso civil. 2006. 37

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relação ao réu, pois este, dentro de certos limites (CPC, art. 303), pode, depois da contestação, trazer novos fundamentos em favor da sua defesa, enquanto aquele está impossibilitado de fazê-lo a partir da citação, a não ser com a concordância do seu adversário (CPC, art. 264). E, assim, uma única situação litigiosa gera mais de um processo, em que a realidade da vida se fragmenta, determinando a coexistência de decisões parciais que não conseguem satisfazer a qualquer das partes e normalmente desencadeiam novos litígios. É preciso romper essa camisa de força, como o fazem o direito norte-americano por meio do conceito de cause of action, o direito alemão e o direito italiano.59 Essa modificabilidade é combatida por muitos, porque retardaria o desfecho do processo, tornando a justiça muito mais morosa. Esse é um risco que é preciso correr. A lide é um fenômeno da vida social que evolui no curso do processo. A sentença deve ter condições de resolver o litígio tal como ele existe no momento da sua prolação. Somente assim a justiça poderá ser efetivamente pacificadora, pois o objeto litigioso inicial, como já acentuei, é muitas vezes apenas um fragmento do litígio real. A realidade é que a jurisprudência brasileira já vem aceitando essa modificação do objeto litigioso, sem qualquer critério racional, mas louvada apenas na sua intuição subjetiva de que é preciso evitar que o processo judicial sirva de pretexto para decisões iníquas ou injustas. Nas minhas Instituições60 propus alguns critérios para a admissão dessa modificabilidade. De qualquer modo, deve ela ser excepcional porque a estabilidade do objeto litigioso e a previsibilidade do desenvolvimento da relação processual e das suas consequências e a celeridade do processo são valores que merecem ser preservados. Qualquer modificação do pedido ou da causa de pedir, após a citação do réu e sem a sua concordância, deve ser amplamente justificada na conveniência de pacificação dos litigantes e na economia processual, resultando expressamente de manifestação inequívoca de vontade do autor e não do que se vem denominando de interpretação compreensiva dessa vontade, que nada mais é do que arbítrio autoritário do juiz. Proposto acréscimo ou modificação pelo autor, ao réu deve ser amplamente assegurada a possibilidade de apresentar novos argumentos, de propor e produzir novas provas.

59. V. Jack H. Friedenthal; Mary Kay Kane; Arthur R. Miller. Civil Procedure. 2005, p. 658-667. Peter L. Murray; Rolf Stürner. German Civil Justice. 2004, p. 238-239. Mariacarla Giorgetti. Il principio di variabilità nell’oggetto del giudizio. 2008. 60. Instituições de Processo Civil. 2011, v.2, p. 29-30. 38

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Em qualquer caso, deve estar evidenciada a boa-fé do autor, ou seja, a inexistência de indícios veementes de que a alteração tenha sido motivada pela perspectiva de fracasso na demanda originalmente configurada, nem pelo desfecho provavelmente desfavorável de provas dos fatos originalmente alegados, menos ainda como artifício para criar situação imprevisível para o réu, diante dos rumos originalmente seguidos pela demanda. Parece-me que no procedimento ordinário hoje existente no Brasil, deve presumir-se a boa-fé do autor até o saneamento do processo, pois após os articulados e a juntada de documentos pelos dois litigantes, é absolutamente razoável admitir que o autor ajuste a sua postulação a todo o material cognitivo trazido pelo réu. A observância do limite temporal do saneamento do processo é um indício dessa boa-fé, pois ainda não se iniciou a fase instrutória do processo. A modificabilidade deveria também ficar condicionada a não extravasar dos limites da relação jurídica ou da situação fático-jurídica que deu causa ao pedido inicial e que seja evidente a utilidade de, através dela, evitar uma lide posterior. Também ao réu deve ser possibilitada a alegação de novos fundamentos de defesa, após a contestação, além das hipóteses expressamente consignadas no art. 303 do CPC.61 A conveniência de pacificar os litigantes, a economia processual e a conveniência de evitar futuro litígio podem recomendar a aceitação de novos fundamentos de defesa, desde que o réu os proponha, ao autor seja assegurada amplamente a possibilidade de impugná-los, de propor e produzir em relação a eles novas provas e desde que caracterizada a boa-fé do demandado. Também em grau de apelação, sou de opinião que devam ser igualmente observadas essas mesmas diretrizes. Não vejo óbice no princípio do duplo grau de jurisdição a que na apelação sejam trazidas questões resultantes de fatos ou de direito supervenientes, se integrantes da mesma controvérsia. Igualmente devem as partes desfrutar em grau de apelação da ampla possibilidade de produzir novas provas, pois a cognição do 2º grau deve ter a mesma amplitude, com as mesmas garantias de alegação e de defesa da instância originária.62 O tribunal ad quem deve desfrutar, no julgamento da causa, dos mesmos poderes de que dispunha o juiz da causa por ocasião da prolação da sentença de primeiro grau. Por outro lado, ao rejulgar a causa, ele declara o direito que regula a relação jurídica entre as partes, existente, 61. Idem, p. 57-58. 62. V. na nota 27 a reação dos tribunais alemães à tentativa do legislador de impedir o reexame dos fatos em grau de apelação. 39

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de fato e de direito, na data da prolação da nova decisão. Somente a decisão que julga a controvérsia, tal como ela existe, de fato e de direito, nesse momento, terá a possibilidade de efetivamente pacificar os litigantes e não aquela que julga uma controvérsia que se caracterizou por circunstâncias fático-jurídicas pretéritas, que não correspondem mais à realidade da vida das partes. 5.3.6. A sumarização dos procedimentos, como exigência da celeridade do processo, pode ser conciliada com o respeito às garantias fundamentais do processo, como o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, se abandonarmos o mito de que a jurisdição de conhecimento tenha necessariamente de resultar na formação da coisa julgada material. Podem existir procedimentos mais simples, de fácil acesso e manuseio e tramitação rápida, com redução de garantias, desde que a sua adoção seja opcional para o autor e que ao réu, se inconformado com o seu desfecho, seja assegurada a possibilidade de rediscutir a causa em novo procedimento de cognição exaustiva, com as mais amplas garantias processuais.63 É o que tem sido denominado de tutela jurisdicional diferenciada. Juizados de pequenas causas ou especiais, como os denominamos no Brasil, causas de menor complexidade submetidas a juízes de paz ou a colegiados formados de leigos, ações monitórias documentais, interditos possessórios, tutelas antecipatórias com ou sem o requisito da urgência, são institutos em que uma das partes ou ambas se veem na contingência de se submeterem a uma decisão judicial com sérias limitações defensivas, como a exiguidade dos prazos, a impossibilidade de produção de prova pericial e testemunhal, a limitação do número de testemunhas, a produção de provas perante um auxiliar do juiz, a impossibilidade de recorrer da sentença para um tribunal hierarquicamente superior. Condenar esses procedimentos violaria outras tantas garantias fundamentais, como o acesso à justiça e a celeridade. A justiça, de que os cidadãos necessitam no seu cotidiano, deve caracterizar-se pela rapidez, pela simplicidade e pela modéstia dos seus custos. A tutela diferenciada concilia esses procedimentos com as garantias fundamentais por meio da flexibilização da rigidez da coisa julgada material. Alcança-se rapidamente o resultado do processo, que é uma sentença que julga a controvérsia e que apresenta uma ampla possibilidade de entrar no 63. Sergio Menchini. Nuove forme di tutela e nuovi modi di risoluzione delle controversie: verso il superamento della necessità dell’accertamento con autorità di giudicato. In: Rivista di Diritto Processuale. 2006, p. 869/902. 40

1 – Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual

mérito da causa. Na Alemanha ficou famoso o chamado procedimento documental (Urkundenprozess),64 um procedimento de cobrança em que somente são admitidos como prova documentos e os depoimentos pessoais das partes. As partes podem alegar a necessidade de produzir outras provas (testemunhas, perícias). O juiz decide a causa com base apenas nas provas permitidas pelo procedimento, mas se reputar possível que as demais provas alegadas possam produzir uma convicção diversa, ele ressalva na sentença a possibilidade de que a sentença seja revogada em outro processo de cognição exaustiva em que tais provas sejam produzidas. É a chamada condenação com reserva (Ausübung seiner Rechte vorzubehalten). A condenação com reserva não torna o comando da sentença necessariamente vulnerável, como pode parecer, porque a revisão da decisão em procedimento autônomo dependerá de dispor a parte de prova capaz de alterar o resultado. Se o vencido não estiver seguro da razoável probabilidade de reverter o resultado desfavorável não proporá a nova ação, porque terá de arcar com todas as despesas do novo processo, inclusive os encargos da sucumbência. No sistema brasileiro, o reconhecimento de que certos procedimentos mais simples, como os dos juizados especiais, constituam tutelas diferenciadas, permitirá admitir ações de revisão que corrijam eventuais injustiças, sem a preocupação da afronta direta à lei, que proíbe a ação rescisória. 5.3.7. A execução tem sido objeto de recentes projetos de reforma em quase todos os grandes sistemas processuais. Eu mesmo, há mais de dez anos, depois de concluir o meu livro em dois volumes sobre o processo de execução, alinhavei cerca de duas dezenas de providências que, a meu ver, deveriam determinar uma profunda reforma da nossa execução civil.65 Eram medidas sugeridas com base na experiência de outros países e inspiradas, como o presente estudo, na crença na efetividade e no garantismo. Em tempos de reforma do Código, como o que atualmente vivemos no Brasil, ressalvo que uma reforma substancial da execução demandaria uma reflexão mais consistente, que o presente trabalho não comporta, observando que nos últimos vinte anos muitos países efetuaram reformas importantes nessa área, como consequência da experiência mais ou menos exitosa de 64. Peter L. Murray; Rolf Stürner. German Civil Justice. 2004, p. 425-427. 65. A crise do processo de execução. In: César Augusto de Castro Fiuza; Maria de Fátima Freire de Sá; Ronaldo Brêtas C. Dias (coords.). Temas atuais de Direito Processual Civil. 2001, p. 211-286; também publicado no meu livro de Estudos cit., p. 7-88. 41

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implementação de certas providências que, anteriormente, poderiam parecer francamente positivas. A nossa reforma da execução, empreendida pelas Leis nº 11.232/2005 e nº 11.382/2006, apesar da aparente profundidade das alterações, decorrente de grandes mudanças topográficas das disposições, não enfrentou, a meu juízo, os aspectos mais graves da crise da execução, nem adotou as providências necessárias para debelá-la ou, ao menos, minorá-la. Por isso, retomo aqui algumas dessas providências, que vêm sendo acolhidas em outros países e que me parecem francamente positivas, como a descentralização dos atos executórios, do juiz para um auxiliar qualificado, que já existia na França, na Alemanha e na Itália, e recentemente foi adotada em Portugal com os solicitadores, na Inglaterra por meio dos High Court Enforcement Officers – HCEOs,66 nos países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), na Eslováquia, na Hungria, na Macedônia e na Eslovênia.67 Também é preciso enfrentar o problema das execuções inúteis, a saber, aquelas que o credor instaura sem nenhuma perspectiva de efetivamente obter o pagamento do seu crédito porque desconhece a existência de bens do devedor sobre os quais possa incidir a penhora. Essas execuções devem ter a sua instauração condicionada à indicação de bens suficientes a serem penhorados. Também é preciso dar relevo à responsabilidade do credor de efetivamente perseguir o pagamento do seu crédito, não permitindo que ele permaneça meses e até anos com execuções pendentes sem qualquer movimentação. O recente projeto português 68 determina a extinção das execuções que ficarem paralisadas por mais de três meses sem que sejam localizados bens do devedor a serem penhorados. Também defendi, e aqui reitero, algumas outras medidas, que me parecem facilmente concretizáveis e que entendo que teriam consequências bastante positivas no aperfeiçoamento da nossa execução, como a criação de custas acrescidas para os demandantes habituais; a desvinculação do cumprimento de sentença do juízo que proferiu a decisão, para possibilitar a especialização da competência; a criação de mecanismo que facilite ao credor informações sobre a

66. V. R. Turner. A model for an enforcement regime. The High Court Enforcement Officers of the Supreme Court of England and Wales. In: C.H. van Rhee; A. Uzelac (eds.). Enforcement and Enforceability – tradition and reform. 2007, p. 137-146. 67. V. A. Uzelac. Privatization of enforcement services – a step forward for countries in transition? In: C.H. van Rhee; A. Uzelac (eds.). Enforcement and Enforceability – tradition and reform. 2007, p. 83-101. 68. João Correia (coord.). Exposição de motivos da proposta de reforma do Código de Processo Civil português. Revista de Processo. fev./2012, p. 226. 42

1 – Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual

localização dos bens do devedor; a redução da exagerada impenhorabilidade de bens e a extensão das astreintes a todos os pedidos condenatórios. Uma reforma imperiosa, sobre a qual não encontro vozes discordantes, é a do pagamento dos débitos dos entes públicos por meio dos precatórios, que chegou em vários Estados e Municípios a equiparar-se à mais absoluta recusa de cumprimento das condenações judiciais, em flagrante violação às garantias constitucionais do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efetiva. Essas garantias exigem uma execução eficaz e rápida, a que se têm furtado inúmeras pessoas jurídicas de direito público, acumulando débitos impagáveis. A Emenda Constitucional nº 62/2009 agravou ainda mais essa inadimplência, pendendo no STF ação direta de inconstitucionalidade que dificilmente deixará de expungir do nosso ordenamento jurídico diploma tão esdrúxulo.

6. Considerações finais O longo percurso aqui empreendido – e que se impõe que seja logo encerrado – não retrata a dimensão dos muito mais amplos desafios com que se depara o Direito Processual Civil em nossos dias, na busca da eficiência da prestação jurisdicional como instrumento de tutela dos direitos dos cidadãos, sem abandonar o compromisso do Estado Democrático de Direito Contemporâneo com a mais absoluta prioridade do respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais. Escolhi um rol de questões que me pareceram importantes, mas muitas outras existem que mereceriam ser analisadas à luz das premissas aqui estabelecidas. Creio, entretanto, que o panorama aqui delineado permite esboçar algumas conclusões que, talvez, possam servir de diretrizes para que os responsáveis pela condução dos destinos do Poder Judiciário em nosso país e todos aqueles que, profissionais do direito, professores ou pesquisadores, se dedicam ao estudo do Direito Processual Civil, possam esboçar e desenvolver um completo projeto de modernização da justiça civil, que não se faça à revelia dos valores humanos universais. A primeira conclusão que se pode tirar, à luz dos exemplos de países mais desenvolvidos, é que nenhuma reforma de vulto pode ser empreendida sem que o Estado, auscultados os setores mais representativos da sociedade, chame para si a responsabilidade de promover uma Política Pública Nacional de Solução de Conflitos, a ser implementada por um órgão adequadamente estruturado para esse fim, que abranja o planejamento, a definição de 43

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

princípios, o desenvolvimento de estratégias, a fixação de metas e a execução continuada de ações coordenadas de curto, médio e longo prazo, para enfrentar as causas da litigiosidade no nascedouro. Há certos bolsões de litigiosidade que se tornaram particularmente irracionais e opressivos de todos aqueles que neles se enredam, como o das causas da Fazenda Pública (especialmente execuções fiscais), o das relações de consumo de massa (telefonia, sistema bancário) e o das cobranças do sistema financeiro. A segunda conclusão é a de que é preciso restaurar na consciência de todos aqueles que detêm alguma parcela de responsabilidade na administração da justiça civil que a jurisdição, em todos os seus níveis e em todos os tipos de causas, é primordialmente um instrumento de tutela efetiva dos interesses constitucional e legalmente agasalhados das pessoas ou dos grupos de pessoas destinatários das suas decisões, e não de tutela dos interesses do Estado soberano. A terceira conclusão é a de que a jurisdição, assim concebida, pressupõe o fortalecimento da independência e da imparcialidade dos juízes, o que deve começar pela redefinição do sistema de escolha dos Ministros dos Tribunais Superiores. Por outro lado, é preciso assegurar aprimorar a qualificação profissional dos juízes de todos os graus, bem como promover a sua responsabilização, por meio de órgãos disciplinares compostos de membros do Judiciário com bastante conhecimento e afinidade em relação às condições e aos problemas que afetam os diversos grupos de juízes, assegurando que a promoção dessa responsabilidade de nenhum modo possa cercear a sua independência. A quarta conclusão é, a meu ver, a exigência urgente de que seja restaurado o respeito ao primado da lei e o consequente e efetivo cumprimento das decisões judiciais pelos juízes e pelo próprio Estado. Como dizia Calamandrei, no seu Processo e Democracia,69 o Estado de Direito exige juízes que julguem em conformidade com a lei e não juízes que, a pretexto de aplicar a Constituição, deem à lei interpretação inteiramente incompatível com o seu próprio enunciado. No âmbito do respeito à lei se inclui o absoluto respeito à ordem pública processual, ou seja, ao conjunto de requisitos dos atos processuais, impostos de modo imperativo para assegurar a proteção de interesse público precisamente determinado, o respeito a direitos fundamentais e a observância de princípios do devido processo legal, quando indisponíveis pelas partes. Como também, é preciso 69. Piero Calamandrei. Processo e Democrazia. In: Opere Giuridiche. 1965, p. 643-644. 44

1 – Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual

que, mais do que qualquer cidadão, o Estado cumpra as decisões judiciais, pagando, no mais curto prazo possível, todas as condenações que lhe são impostas, e que o Judiciário se sinta suficientemente forte para exigir que isso se concretize. A quinta conclusão é a de que em algumas atividades econômicas se desenvolveu uma espécie de demandismo habitual, que multiplica ações e recursos, que o Estado tem o dever de desestimular, seja por meio de sobretaxas pela excessiva utilização da via judicial, seja pela supressão do efeito suspensivo automático dos recursos ordinários, pela execução provisória exaustiva, independentemente de caução, pela imposição de nova sucumbência em grau de recurso, pela imposição de juros progressivos, pela eliminação do duplo grau de jurisdição obrigatório e de alguns recursos, como embargos infringentes, de divergência ou de declaração, pela subordinação da propositura da execução pecuniária, inclusive a execução fiscal, à indicação de bens a serem penhorados e pela eliminação da exigência de trânsito em julgado para execuções contra a Fazenda Pública. Sugere-se, ainda, racionalizando a atuação das instâncias recursais, a concentração das questões constitucionais e infraconstitucionais em um único recurso especial para o STJ, deste cabendo recurso extraordinário para o STF. Em síntese, é preciso diminuir o número de processos e de recursos, sem reduzir o acesso à justiça por parte dos cidadãos. É preciso agilizar os procedimentos, sem reduzir a amplitude do contraditório e da ampla defesa. É preciso assegurar nas instâncias recursais o mais amplo respeito às garantias fundamentais de um processo justo. É indispensável tornar desvantajosa a interposição de recursos protelatórios. Litigar ou recorrer sem ter razão deve tornar-se desvantajoso. Estas são algumas considerações que nos parecem indispensáveis para que o ideal do processo justo não seja desvirtuado e para que a justiça civil do nosso país se aperfeiçoe e se aproxime sempre mais da sua plena realização, superando todas as dificuldades que a complexidade da vida moderna e o aumento imprevisível de demandas têm gerado. O ilustre homenageado por este estudo, que dedicou a sua vida ao magistério, semeando nas novas gerações o amor a esse mesmo ideal, certamente confia, como eu, que o nosso esforço não terá sido em vão.

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Direito fundamental do acesso à Justiça

Araken de Assis*

Parte I – § 1º Direito de acesso à Justiça. 1. Conteúdo essencial do direito de acesso à Justiça. 2. Finalidades do direito de acesso à Justiça. Parte II – § 2º Limitações do direito de acesso à Justiça. 3. Regime geral das limitações do acesso à Justiça. 4. Esgotamento da instância desportiva. 5. Esgotamento da instância administrativa. 6. Proibição da litisregulação ope iudicis. 7. Exclusão de matérias da tutela coletiva. Referências.

Parte I – § 1o Direito de acesso à Justiça 1. Conteúdo essencial do direito de acesso à Justiça s necessidades intrínsecas à vida em sociedade geram conflitos individuais e transindividuais. Esse fenômeno natural reclama, todavia, mecanismos de resolução e restauração da paz, impondo a supremacia do direito objetivo. O único meio socialmente eficaz e permanente consiste na heterocomposição: o Estado assume a prestação de serviço público, ou jurisdição, institui órgão específico para prestá-lo, cercado de prerrogativas que lhe outorgam isenção, e, em geral, vincula os litigantes aos resultados do instrumento concebido para desenvolver semelhante atividade, que é o processo. Essa função estatal tem a finalidade política de realizar

A

* Professor Titular (aposentado) da PUC/RS. Doutor em Direito pela PUC/SP. Desembargador (aposentado) do TJ/RS. 47

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (...) os direitos reconhecidos na ordem jurídica, e pertencentes a todas as classes de sujeitos, desde as pessoas naturais, as pessoas jurídicas, os entes despersonalizados, e, inclusive, os grupos, a comunidade e a sociedade de um modo geral, face o reconhecimento dos chamados direitos e interesses coletivos e difusos.1

O interessado tem acesso a tal serviço estatal de resolução de conflitos através de um direito subjetivo público específico: o direito à tutela jurídica do Estado. O direito fundamental processual à jurisdição recebe outras designações (v.g., direito ao processo). Nos últimos tempos, em que os direitos fundamentais assumiram posição de destaque na disciplina do processo civil, sobressaiu-se a terminologia “direito de acesso à Justiça” e a seu respeito identificam-se “ondas” ou etapas de desenvolvimento histórico.2 E há também a expressão direito à tutela jurisdicional. Todas representam, ao seu modo, a figura sob exame. É mais interessante, porém, precisar-lhe o conteúdo do que o rótulo, e, nesse sentido, acesso à justiça implica o direito a uma “ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano”. 3 Encontra-se o direito à tutela jurídica do Estado explicitado, obliquamente, no art. 5º, XXXV, da CF/1988: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O destinatário natural e direto da proposição é o legislador. A disposição impede a lei de erigir entraves ao exercício do direito à tutela jurídica do Estado. Por exemplo, instituindo taxa judiciária sem limite de valor, o que grava excessivamente a parte com recursos financeiros. Dispõe a Súmula do STF, nº 667: “Viola a garantia constitucional do acesso à jurisdição a taxa judiciária calculada sem limite sobre o valor da causa”. Segundo certo alvitre, o fundamento da rejeição desse obstáculo do acesso à Justiça reside na aplicação do princípio da proporcionalidade.4 Exemplos históricos também ilustram o ponto. O art. 94 da CF/1937 impedia ao Poder Judiciário “conhecer de questões exclusivamente políticas”. Ora, regras análogas a essa, inseridas na legislação infraconstitucional, mostrar-se-iam, presentemente, flagrantemente inconstitucionais. E, embora dirigido basicamente ao legislador, subentende-se do art. 5º, XXXV,

1. 2. 3. 4. 48

José Anselmo de Oliveira. Direito à jurisdição. 2003, p. 68. Vide Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, Acesso à Justiça. 1999, p. 33-51. Horácio Wanderlei Rodrigues. Acesso à Justiça no direito processual brasileiro. 1994, p. 28. Marcelo José Magalhães Bonicio. Proporcionalidade e processo. 2006, p. 69.

2 – Direito fundamental do acesso à Justiça

que esse direito fundamental abarca todas as pessoas, universalmente, os nacionais e os estrangeiros, incluindo os entes não personalizados. Feita abstração às exceções residuais, e constitucionalmente legítimas, o direito de acesso à Justiça se afigura ilimitado e irrestrito. O interessado em acudir à jurisdição ingressa em juízo, livre e irrestritamente, e por si só tal iniciativa forma com o Estado o vínculo particular chamado de processo. O mecanismo assim forma permite ao interessado veicular quaisquer hipotéticos direitos, pretensões ou ações, cuja existência verificar-se-á no processo, e reclamará a adequada resposta do Estado à sua postulação, cabendo ao órgão judiciário responder-lhe conforme ao direito. Frise-se bem: os direitos, pretensões e ações podem ser individuais ou transindividuais. Importa notar que a disposição constitucional vigente suprimiu o adjetivo “individual” que constava na regra equivalente da CF/1946.5 É inconstitucional, assim, retirar do âmbito do remédio coletivo mais notório, que é a ação civil pública, determinados direitos coletivos. O indubitável caráter ilimitado, abstrato e autônomo do direito de acesso à Justiça, ou direito de ação, todavia, harmoniza-se com a existência de elementos, requisitos e fatores, hauridos do direito substancial, cujo preenchimento o órgão judiciário a apreciar o mérito da postulação, ou objeto litigioso, no todo ou em parte, acolhendo ou rejeitando o pedido do autor (art. 269, I, do CPC). Pode ocorrer que, à primeira vista, sem a necessidade de maiores investigações, o juiz perceba que o autor não tem o direito alegado perante o réu ou que, faltando ao processo condições mínimas de admissibilidade, não seja possível o instrumento chegar ao estágio da análise do mérito. O juiz encerrará, então, prematuramente – no sentido que o fim visado pelo autor não pode ser alcançado – o processo, e, nesse caso, ministra ao autor a única resposta legítima em conformidade com o direito objetivo. Tampouco as condições (ou pressupostos) de admissibilidade dos recursos restringem, inconstitucionalmente, o direito de acesso à justiça. O prolongamento da relação processual, já obtida pelo vencido a resposta adequada do órgão judiciário, submete-se a condições ainda mais rígidas de admissibilidade, a fim de evitar o desperdício da atividade judiciária, mas semelhante disciplina, em tese, é compatível com o direito fundamental – incluindo o depósito prévio do valor da condenação, máxime ante o fato de o duplo grau não representar autêntico direito da parte.

5. Zaiden Geraige Neto. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. 2003, p. 39-41. 49

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Em síntese larga, porém exata, o exercício do direito de acesso à Justiça assegura ao seu titular resposta qualquer do órgão judiciário, conforme ao direito objetivo, e, não, específica e materialmente, resposta sobre o mérito da pretensão processual (objeto litigioso) ou uma decisão de fundo.6 Às vezes, o órgão judiciário não alcança esse estágio, vez que o autor não reuniu todas as condições necessárias para semelhante juízo, o que descarta pronunciamento sobre o mérito. Em outras palavras, o provimento fundado no art. 267 satisfaz, no caso concreto, o direito de acesso à Justiça, ou juízos fundados em questões prévias; por exemplo, o prazo decadencial de cento e vinte e dias para impetração do mandado de segurança (art. 23 da Lei nº 12.016/2009) se afigura constitucional, conforme proclamou a Súmula do STF, nº 632,7 e se cuida de provimento de mérito (art. 269, IV), mas, à toda evidência, o juiz não examina todo o mérito. São de outra natureza, porém, as exigências de depositar o valor da dívida (v.g., do crédito exequendo, a teor do art. 38 da Lei nº 6.830/1980) ou pagar multa, e a de depositar valor em dinheiro para tornar admissível o remédio processual (v.g., o depósito de cinco por cento do valor de cinco por cento do valor da causa, a título de multa, na rescisória, a teor do art. 488, II, do CPC). No primeiro caso, o depósito é indispensável tão só para inibir a pretensão a executar da Fazenda Pública, a teor do art. 151, II, do CTN, e, pelo mesmo motivo, a “garantia do juízo” representa somente um dos requisitos que autorizam o juiz a suspender a execução (art. 739-A, § 1º, in fine, do CPC). Depósito prévio de multa é claramente inconstitucional.8 O segundo caso já se compatibiliza bem menos com a garantia do acesso à justiça. O louvável objetivo de restringir a multiplicação das rescisórias, ou de conscientizar o autor da seriedade da iniciativa de atacar a autoridade coisa julgada, incutindo-lhe seriedade, não se mostram proporcionais ao requisito que, ademais, fere o princípio da igualdade, dispensando a União, o Estado, o Município e o Ministério Público (art. 488, parágrafo único), 9 mas logra paliativo na possibilidade de a parte requerer e obter a dispensa do depósito no caso de falta de recursos financeiros. Da disposição constitucional retira-se a firme ilação, por outro lado, que o interessado tem o direito de provocar a justiça pública preventiva ou 6. Em sentido contrário: Manuel Ortells Ramos. Derecho procesal civil. 2005, p. 40. 7. Em sentido contrário: Nelson Nery Jr. Princípios do processo na Constituição Federal. 2010, p. 183-187. 8. Zaiden Geraige Neto. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. 2003, p. 54. 9. Rogério Lauria Tucci; José Rogério Cruz e Tucci. Constituição de 1988 e processo. 1989, p. 52. 50

2 – Direito fundamental do acesso à Justiça

repressivamente. A esse propósito, o art. 5º, XXXV, da CF/1988 menciona “lesão ou ameaça” a direito. Entende-se por tutela preventiva a que, tempestivamente tomada, impede a própria lesão ao direito, no sentido mais largo possível. Tal polaridade indica que o direito de acesso à Justiça tem densidade normativa peculiar e incorpora os vetores da adequação e da tempestividade. Não se mostraria preventiva a tutela assegurada pelo direito fundamental, mas simplesmente repressiva, inexistissem mecanismos que, reagindo oportunamente às ameaças, evitassem a lesão ao direito alegado. Por via de consequência, o direito de acesso à Justiça engloba, além do direito ao instrumento próprio da atividade jurisdicional, que é o processo, também o direito às providências de litisregulação (execução para segurança e segurança para execução), o direito à celeridade, inerente à litisregulação, e para que se evidencie a necessidade de o juiz tomar medidas desse naipe, o direito de influenciar o convencimento do órgão judiciário, expondo argumentos e ministrando provas.10 Por óbvio, também a litisregulação se submete a requisitos de fato ou de direito; mas, verificadas as respectivas condições, o direito de acesso à Justiça garante à parte resposta positiva ou negativa do juiz a seu respeito. Resta decidir se à lei, sem ferir o direito de acesso à Justiça, cabe proibir genericamente a alteração do estado de fato, ope judicis, como ocorre no caso do art. 7º, § 2º, da Lei nº 12.016/2009. E, seguramente, não cabe à lei proibir, genericamente, o uso de certos remédios processuais (v.g., a ação civil pública, nas matérias arroladas no art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.375/1985). Os obstáculos inibidores ou impeditivos do acesso à justiça, a exemplo da desigualdade social e econômica, expressas na situação de extrema pobreza, a falta de informação pré-processual, o custo do processo, a dificuldade de contratar representante técnico, e outros fatores simbólicos,11 submeteram-se a políticas públicas (v.g., o direito à assistência jurídica plena e integral) que, a mais das vezes, impuseram decisivo refluxo a esses entraves.

2. Finalidades do direito de acesso à Justiça A garantia judiciária do acesso à justiça constitui emanação mais típica e essencial do Estado Democrático Constitucional de Direito.12 Desprovida da possibilidade de acudir à autoridade judiciária, para prevenir ou reparar 10. Italo Andolina; Giuseppe Vignera. I fondamenti costituzionali della giustizia civile. 1997, p. 65. 11. Horácio Wanderlei Rodrigues. Acesso à Justiça no direito processual brasileiro. 1994, p. 31-50. 12. Ronnie Preuss Duarte. Garantia de acesso à Justiça. 2007, p. 87-90. 51

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

lesão a direito individual ou transindividual, a pessoa ficaria desamparada e desarmada, exposta a todas as tropelias, abusos e opressões do Estado e de outras pessoas. Os direitos fundamentais de qualquer índole reduzir-se-iam a mero flatus vocis. A característica básica do acesso à justiça outorga-lhe posição pré-processual. Se existe regra-matriz para os direitos fundamentais processuais, ocupa semelhante posição o direito de acesso à justiça. Em particular, o direito ao devido processo representaria, a rigor, simples consectário: sem o acesso à justiça, inexiste processo, mostrando-se despiciendo cogitar que seja justo e equilibrado.

Parte II – § 2o Limitações do direito de acesso à Justiça 3. Regime geral das limitações do acesso à Justiça É incompatível com o direito instituído no art. 5º, XXXV, da CF/1988 tão só a proibição de o órgão judiciário, prima facie, examinar determinada matéria ou tomar certa providência, ex officio ou a requerimento da parte. Por exemplo, revela-se incompatível com esse direito fundamental processual a parte final do art. 18, a, da Lei nº 6.024/1974 que proíbe intentar ações contra a pessoa jurídica sujeita ao regime da liquidação extrajudicial enquanto esta durar. Em princípio, as condições que a lei estabelece para autorizar o juiz a julgar o mérito (v.g., capacidade para conduzir o processo; interesse processual), ou inadmissibilidade, em tese, do pedido formulado ao juiz, não constituem obstáculos ao pleno exercício do direito de acesso à justiça. Ao contrário, traduzem as exigências irremovíveis para que esse direito seja aproveitado legitimamente. Às vezes, porém, o legislador se vale do artifício de mascarar óbice real do acesso adequado à justiça mediante condição pouco razoável ou irrealizável. Outra questão interessante é a que respeita à unidade da jurisdição. O republicanismo radical eliminou drasticamente os institutos políticos mais característicos da monarquia, banindo o contencioso administrativo; curiosamente, dito instrumento jamais se concretizara no curso do Império. Ao contrário do que sucede em outros países, a exemplo de França, essa tradição imprimiu seu peso. A jurisdição brasileira não se divide em dois ramos autônomos, um deles afeito, independentemente da natureza da lide, à 52

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resolução dos conflitos em que atue como litigante a Administração Pública. Entre nós, a jurisdição abarca quaisquer classes de litígios, apesar da forma federal do Estado, e constitui atividade eminentemente nacional, “tanto na jurisdição federal, como nas jurisdições estaduais”.13 A história constitucional brasileira registra, porém, breve e inócuo retrocesso. O art. 111 da CF/1969, na redação da EC nº 7, de 13/04/1977, possibilitou à lei criar um contencioso administrativo, atribuindo-lhe limitada competência, restrita ao julgamento dos litígios entre servidores e a União, suas autarquias e empresas públicas e federais, o que jamais ocorreu e, de toda sorte, desprovido do atributo da palavra final – as decisões originárias desse contencioso comportariam revisão na via judicial.14 Essa unidade intrínseca à atividade judiciária outorga inaudita extensão ao processo civil. Ele é “mais vasto do que o dos países da Europa continental”,15 abrangendo litígios próprios do direito público, o que não ocorre na jurisdição contenciosa europeia. Segue-se a desnecessidade de o interessado incursionar previamente, esgotando ou não, na via administrativa, antes de postular em juízo. Tanto que configurado o conflito dessa natureza (v.g., entre o servidor público federal e a União, haja vista o corte de certa vantagem pecuniária), divergindo o particular e a Administração (federal, estadual, distrital ou municipal), nenhum obstáculo, em princípio, inibirá a pronta provocação da jurisdição. Mas, há exceções nesse tópico. E, apesar de constitucionalmente legítima, ela abre os itens que tratam de outras limitações do direito de acesso à justiça, que exigem esforços de conciliação e de interpretação conforme a Constituição.

4. Esgotamento da instância desportiva O art. 217, § 1º, da CF/1988 determina que o órgão judiciário só admita “ações relativas à disciplina e às competições esportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, reguladas em lei”. Para essa finalidade, o pronunciamento final da instância administrativa não poderá exceder o prazo máximo de sessenta dias (art. 217, § 2º, da CF/1988).

13. João Mendes de Almeida Júnior. Direito judiciário brasileiro. 1940, p. 32. 14. Frederico Marques. A reforma do Poder Judiciário. 1979, p. 197; Paulino Jacques. As emendas constitucionais nºs 7, 8 e 9 explicadas. 1977, p. 7. 15. Galeno Lacerda, Comentários ao código de processo civil. 2006, v. 8, t. 1, p. 171. 53

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A regra institui flagrante inibição do direito de acesso à justiça. O órgão judiciário negará seguimento à demanda, ou seja, fica impedido de apreciar-lhe mérito, mediante cognição plenária ou sumária, antes do esgotamento do que se conhece por “justiça” desportiva. Esse aparato de aplicação dos regulamentos esportivos originou-se de resolução administrativa, mas desvinculou-se do Estado, e, atualmente, a sua composição e competência se encontra disciplinada nos arts. 49 a 55 da Lei nº 9.615/1998. Cuida-se, portanto, de “justiça” privada, reconhecida e tolerada pelo Estado, e de uma ordem jurídica menor com seus tipos disciplinares e sanções. Não é, entretanto, qualquer matéria de competência da justiça desportiva que inibe o acesso do interessado à justiça. A controvérsia interditada à apreciação judicial, ao menos no primeiro momento, há de envolver penas disciplinares (v.g., a suspensão de certo atleta para a partida final ou decisiva do campeonato) e o regulamento da competição desportiva (v.g., se os critérios de classificação guindaram a equipe A ou a equipe B à fase subsequente da disputa).16 Além disso, prevendo o art. 217, § 2º, da CF/1988, o prazo de noventa dias para o pronunciamento final da justiça desportiva, fica subentendido que, vencido esse prazo, lícito se afigura provocar a jurisdição para apreciar a matéria apontada. O prazo de noventa dias é suficientemente elástico, considerando a realização de ao menos um jogo por semana, para dissipar as tensões, tão mais intensas na seara desportiva quanto pacífica e organizada a sociedade, e eliminar o interesse em litigar em juízo, dando os fatos por consumados. Pode acontecer que o interessado ingresse desde logo em juízo, controvertendo as matérias interditadas. Ao receber a petição inicial, sem prova hábil de que todos os recursos foram utilizados na justiça desportiva, ou que já se ultrapassou o interregno de noventa dias, ao juiz caberá, tecnicamente, extinguir o processo. O fundamento desse ato reside na impossibilidade jurídica do pedido, conquanto momentânea ou transitória, a teor do art. 267, VI, do CPC. Não é dado ao órgão judiciário tomar qualquer providência de litisregulação nas causas subtraídas à sua apreciação. Tal infringiria a irretorquível proibição de sobrepor o ato judicial às decisões da justiça desportiva no interstício de espera previsto no art. 217, § 2º, da CF/1988. Uma das razões de o art. 217, § 1º, instituir condição para o acesso à Justiça consiste em obstar essas 16. Luiz Alberto David Araujo; Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de direito constitucional. 1999, p. 289. 54

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interferências judiciais.17 Impedimento ao controle judiciário de matéria sob julgamento da justiça desportiva mostra-se limitada, parcial e condicional. Limita-se tão só aos litígios a respeito das punições disciplinares impostas, mediante decisão motivada e pública (art. 34 da Lei nº 10.671/2003), sob pena de nulidade (art. 36 da Lei nº 10.671/2003), aos atletas e às equipes, ou decisões concernentes ao regulamento da competição (v.g., o adiamento de certo jogo), que ficam imunes, temporariamente, à apreciação judicial. É parcial, porque o esgotamento da instância desportiva desvela quaisquer matérias, inclusive as proibidas, ao órgão judiciário; e condicional, porque a falta de observância do prazo de noventa dias descerra, incontinenti, o direito de acesso à Justiça. Em matéria de limites, convém realçar que o Estatuto do Torcedor (Lei nº 10.671/2003) confere vários direitos e institui deveres que podem ser objeto de imediata postulação judicial. Por exemplo, o art. 30, caput, da Lei nº 10.671/2003 assegura o direito do torcedor à arbitragem “independente, imparcial, previamente remunerada e isenta de pressões” em cada disputa; ora, não é difícil conceber que alguém, sentindo-se prejudicado pelo fato de o árbitro não ter acrescido ao tempo global da partida o efetivo tempo perdido nas paralisações (v.g., troca de jogadores; atendimento ao jogador no próprio campo de jogo, e assim por diante), ingresse em juízo pleiteando indenização do árbitro, o seu afastamento de partidas subsequentes ou a determinação para que faça curso de atualização e aperfeiçoamento. O fundamento da mitigação do direito de acesso à justiça, em casos tais, não se afigura nítido e plausível. É verdade que os litígios desportivos têm normas próprias. O regulamento dessas competições constitui autêntica ordem jurídica menor. Por óbvio, órgão judiciário não tem o dever próprio do seu ofício de conhecê-la previamente. Ora, posição do juiz, nesses casos, não discrepa de outras situações em que, apesar do princípio do iura novit curia, ignora as regras aplicáveis ao litígio. Exemplo clássico é o da aplicação do direito local (municipal ou do Estado-membro), por vezes o único aplicável (v.g., no litígio entre o servidor público e o Município B) e do direito estrangeiro. Existem, porém, outras hipóteses, como a do litígio entre sócio e clube social. Tal controvérsia exigirá o conhecimento dos estatutos, para deliberar acerca da tipicidade e da existência da infração atribuída ao sócio, bem como da pena prevista para

17. Álvaro Melo Filho. Ação processual desportiva na nova Constituição. 1988, p. 155-156. 55

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o ilícito, matérias repassadas sob a perspectiva dos direitos fundamentais (v.g., a anterioridade do tipo de ilícito à prática do fato). Evidentemente, a qualidade de jurista profissional do juiz assegura-lhe, nesses casos e nos litígios desportivos, toda a expertise necessária para destrinçar o cipoal dos regulamentos. A valer o argumento, pré-excluindo litígios esportivos do crivo judicial, outras matérias de maior relevo – por exemplo, o mercado de capitais – também se subtrairiam à universalidade da jurisdição. O art. 217, § 1º, da CF/1988 expressa a inequívoca hegemonia da organização supranacional de algumas modalidades esportivas, especialmente a do futebol, que a imuniza aos poderes políticos nacionais, e, por óbvio, à ingerência da autoridade judiciária. Litígios desportivos, nesse terreno, que arrecada e movimenta bilhões em transmissão, patrocínios e publicidade, são raros por outra razão. A organização supranacional impõe aos filados, em cascata, “renúncia” ao direito à tutela jurídica do Estado. Duvidosa que seja a constitucionalidade dessa abdicação, feita a priori, desconhecendo o renunciante o respectivo objeto, ninguém se atreve a romper o círculo vicioso. A disposição constitucional comentada é vista com profunda desconfiança ou franca oposição. Sustenta-se que, havendo prejuízo irreparável, o veto cederá perante o direito fundamental processual do acesso à Justiça.18 Ora, ou o art. 217, § 1º, é constitucional, e medidas de litisregulação se mostram inadmissíveis, como já enfatizado, ou não é, e, nessa hipótese, desaparece a própria interdição. O STF admitiu a constitucionalidade da regra especial, ao proclamar que a CF/1988 esgota “as situações concretas que condicionam o ingresso em juízo à fase administrativa”.19

5. Esgotamento da instância administrativa A jurisprudência antiga do STF admitiu a constitucionalidade da exigência, prevista nas leis locais que disciplinavam a relação estatutária entre a Administração e o servidor público – disposição vigente, por exemplo, na lei federal que instituiu o estatuto dos militares20 –, da prévia exaustão da via administrativa.21 E, ainda hoje, só entrevê ofensa indireta ao art. 5º, XXXV,

18. Zaiden Geraige Neto. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. 2003, p. 79. 19. Pleno do STF, ADI 2.160-MC/DF; Rel. Min. Marco Aurélio; 13/05/2009; DJE 22/10/2009. 20. STJ, MS 7.359-DF; Rel. Min. Vicente Leal; Terceira Seção; 11/02/2002; DJU 01/09/2003, p. 216. 21. STF, RE 20.325-SP; Rel. Min. Luiz Gallotti; Primeira Turma; 19/06/1952; DJU 09/10/1952, p. 11.056. 56

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da CF/1988 no julgado das instâncias ordinárias que, sob tal fundamento, nega ao particular interesse processual em juízo.22

6. Proibição da litisregulação ope iudicis Desde tempos remotos o fator tempo entra na equação do processo justo e equilibrado. A formulação da regra jurídica concreta (função de cognição) e, se necessária, a respectiva realização no mundo real (função de execução) demandam tempo. Conforme se percebeu, agudamente, a duração do processo é um dos seus defeitos humanos e, embora aprimorado à exaustão o mecanismo processual, jamais o erradicará integralmente.23 Pois bem. A demora intrínseca ao processo não trava o fluxo da vida. Portanto, o primeiro problema consiste em regular a pendência do processo nessa conjuntura. E, ademais, semelhante demora em geral produz, infelizmente, dano à parte que tem razão. Esse efeito colateral pode e deve ser minorado por meio da tutela preventiva. A medida dessa natureza previne a lesão ao objeto litigioso, mediante a composição provisional da lide, na expectativa da composição definitiva. A composição provisional exibe dois sentidos antagônicos, mas complementares: de um lado, impõe a preservação da situação de fato na pendência do processo; e, de outro lado, conforme as circunstâncias, ela exige a mudança dessa situação de fato.24 Assim, a ordem jurídica, do mesmo modo que proíbe a autotutela, disciplina a passagem da relação jurídica litigiosa, ou lide, à nova condição de relação jurídica não litigiosa, em decorrência da atuação do órgão judiciário. Tal regime recebeu a fausta designação de litisregulação.25 Em princípio, a incerteza quanto à razão, ou não, dos litigantes contraindica qualquer mudança. E o veto à autotutela amarra os litigantes à situação de fato, transformando em ato ilícito a justiça de mão própria. O socorro à Justiça Pública importará proibição de as partes inovarem no curso do processo. Remédio específico, chamado atentado (art. 881), combate eventuais infrações a semelhante dever.26 Em alguns casos, a repressão ao atentado chega ao extremo de tornar o ato da parte fato típico penal (art. 22. Pleno do STF, RE 144.480-SP; Rel. Min. Moreira Alves; 02/04.1996; DJU 08/11/1996, p. 43.212. 23. Francesco Carnelutti. Sistema del derecho procesal civil. 1944, p. 205. v. 1 24. Idem, op. cit., p. 205-206. 25. José Maria Rosa Tesheiner. Medidas cautelares. 1975, p. 49-58; idem, Elementos para uma teoria geral do processo. 2003, p. 155-162; ibidem, Litisregulação, 1972, p. 55-69. 26. Vide, Pontes de Miranda. Comentários ao código de processo civil. 1976, v. 12, p. 381. 57

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347 do CPB).27 A regra geral da litisregulação se traduz na interdição de inovar.28 É procedente, pois, a generalizada denúncia de que o processo é um instrumento conservador. Ocorre que tal imobilidade contraria o autor, que postula modificação da realidade empírica, enquanto o réu, naturalmente, defende a manutenção do estado de coisas.29 O inexorável transcurso do tempo constitui desvantagem frisante da parte que, através do processo, almeja modificar o status quo. Por vezes, o sacrifício imposto ao autor se mostra tão intenso e temível que a diretriz básica há de ceder; do contrário, o pior aconteceria, perecendo o direito litigioso ou a utilidade da sua futura realização. As situações de perigo atingem direitos de toda natureza. Mas, nas obrigações de tolerar e nos deveres legais de abstenção, em particular, o desafio da urgência quase nunca permitirá ao processo, entretido na busca da verdade real (função cognitiva) ou em promover intercâmbio patrimonial equilibrado e transformações de fato (função executiva), satisfazer o autor porventura vitorioso. Ficará sem efeito a célebre máxima, segundo a qual “a necessidade de servir-se do processo para obter razão não deve reverter em dano a quem tem razão”. 30 De nada valeria, nessas situações, o remendo do equivalente pecuniário, porque “nem todos os tecidos deixam costurar-se de tal arte que a cicatriz desapareça por inteiro”. 31 Em tais hipóteses, a interpretação sistemática do ordenamento jurídico revela que a proibição de inovar desaparece, tornando admissível a mudança por ato da parte (v.g., a permissão de o credor “fazer efetivo o penhor, antes de recorrerem à autoridade jurídica, sem que haja perigo na demora”, a teor do art. 1.470 do CC de 2002) ou por ato do juiz, quer assegurando (segurança para execução), quer satisfazendo antecipadamente (execução para segurança). Ora, a variedade e a extensão das medidas judiciais de litisregulação, tomadas pelo órgão judiciário, ex oficio ou a requerimento das partes, induz à intervenção legislativa e, ponderando os interesses em jogo, proíbe-a em casos concretos. É o que se apura na leitura do art. 7º, § 2º, da Lei nº 12.016/2009, in verbis: “Não será concedida medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e 27. José Maria Rosa Tesheiner. Litisregulação. 1972, p. 66. 28. José Maria Rosa Tesheiner. Elementos para uma teoria geral do processo. 2003, p. 157. 29. Italo Andolina. “Cognizione” ed “esecuzione forzata” nel sistema della tutela giurisdizionale. 1983, p. 15. 30. Giuseppe Chiovenda. Instituições de direito processual civil. 1942, v. 1, p. 234. 31. José Carlos Barbosa Moreira. Tutela sancionatória e tutela preventiva. 1980, p. 23. 58

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bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza”. Por via das dúvidas, emprestando caráter geral ao veto, o art. 7º, § 5º, da Lei nº 12.016/2009, pré-excluiu a invocação subsidiária do art. 273 do CPC. Em outras palavras, os direitos indicados não podem ser satisfeitos antecipadamente, seja qual for o remédio processual invocado pelas partes. Disposição mais genérica, compreensiva dos assuntos hoje versados na regra transcrita, localiza-se no art. 1º da Lei nº 9.494/1997 (proibição de liminares contra o Poder Público), declarada constitucional pelo STF. 32 Não têm faltado vozes reconhecendo a incompatibilidade dessa restrição com o direito à tutela jurídica adequada. 33 Todavia, subsiste a regra que os bens da vida somente podem ser obtidos, porque, inversamente, apenas podem ser retirados da outra parte respeitando ao devido processo (art. 5º, LIV, da CF/1988), ou seja, mediante processo justo e equilibrado, em que às partes seja dado influenciar o juiz e produzir prova das suas alegações. A antecipação dos efeitos do pedido, nesse contexto, rigorosamente é a exceção. Nada obsta a ponderação legislativa dos interesses contrastantes, tão democrática quanto a realizada pelo órgão judiciário, e a imposição da regra básica da litisregulação – a proibição de inovar o estado de fato. E nada há de particularmente odioso nos casos contemplados no art. 7º, § 2º, da Lei nº 12.016/2009. Ninguém negará a prevalência do interesse público, incluindo o do erário, sobre interesses particulares, amiúde ligados ao contrabando, no que tange à liberação de mercadorias e de bens provenientes do exterior, e defenderá a reprodução do escândalo da importação sem imposto de automóveis, em meados do século passado. Liberados por força de liminar, e nas hipóteses em que os impetrantes não extraviam os autos, “em conluio com funcionários menos escrupulosos”, a denegação da segurança era inútil, pois os automóveis “já haviam sido alienados e estavam dispersos pelo país”. 34 Nenhum direito fundamental processual é absoluto e a restrição à concessão de liminares antecipatórias se mostra razoável e proporcional aos valores constitucionais.

32. Pleno do STF; ADC 4-MC/DF; 11/02/1998; Rel. Min. Sydney Sanches; DJU 21/05/1999, p. 2. 33. Nelson Nery Junior. Princípios do processo na Constituição Federal. 2010, p. 175. 34. Celso Agrícola Barbi. Do mandado de segurança. 1977, p. 203. 59

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7. Exclusão de matérias da tutela coletiva O art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/1985, na redação da MP nº 2.180-35/2001, é declaração inadmissível à ação civil pública “para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados”. Ora, ao pré-excluir a tutela coletiva, nessas hipóteses, parece flagrante a restrição indevida ao direito de acesso à Justiça. Esse direito permite ao interessado veicular, perante o órgão judiciário, quaisquer direitos, pretensões ou ações individuais ou transindividuais. Não é constitucional negar tutela coletiva a certas matérias. Ademais, o art. 129, III, da CF/1988, é claríssimo ao estabelecer (“... e outros interesses difusos e coletivos”) o princípio do objeto amplo da ação civil pública.35

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A mediação e o Código de Processo Civil Projetado

Humber to Dalla Bernardina de Pinho

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Introdução. 1. Limites do trabalho. 2. Mediação no Brasil: passado, presente e futuro. 3. Principais aspectos da mediação no PL nº 8.046/2010. 4. O horizonte que já se descortina. Questões que devem surgir com a positivação da mediação judicial em nosso direito. Referências.

Introdução texto analisa o tratamento dado pelo PL nº 8.046/2010, que pretende instituir o novo Código de Processo Civil, ao instituto da mediação. São enfocadas as principais características desse meio alternativo de solução de conflitos e apresentadas as questões que devem surgir com a sua introdução no procedimento judicial, destacando-se a facultatividade de sua utilização, a sua inserção dentro dos novos poderes do magistrado e as atribuições do mediador.

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Mediation is potentially a more civilized and more flexible means of resolving a civil dispute than the ‘winner takes all’ systems of arbitration and court adjudication. Furthermore, court proceedings are public, expensive, and adversarial; and arbitration, although, confidential, is often no less expensive and adversarial than court litigation.1

* Professor Adjunto de Direito Processual Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 1. Neil Andrews. Mediation in England: organic growth and stately progress. Texto ainda não publicado e gentilmente cedido pelo autor quando de sua visita à Faculdade de Direito da UERJ, em dez./2011, p. 1. 63

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

1. Limites do trabalho Nesta oportunidade faremos um exame do instituto da mediação, a partir dos dispositivos do texto do CPC Projetado. Não nos aprofundaremos nas questões teóricas que circundam a opção política pelo uso dos meios alternativos de solução de conflitos, ou mesmo os argumentos frequentemente utilizados para criticá-los. Para um exame desses temas, remetemos o leitor aos nossos textos anteriores.2 Apenas como forma de introduzir o assunto, não podemos nos furtar ao registro de que estamos partindo da premissa de que há a urgente necessidade de se compreender melhor o Princípio do Acesso à Justiça, 3 que não está limitado ao acesso ao Poder Judiciário, sob a forma única de uma sentença impositiva. A sociedade deve se conscientizar de que o acesso ao Poder Judiciário deve ser uma espécie de cláusula de reserva, descabendo sua propagação generalizada, ao risco de se incrementar o ambiente de conflituosidade geral que se tornou característica de muitos países principalmente da civil law, convertendo o direito de ação a um perigoso convite à litigância. 2. Humberto Dalla Bernardina de Pinho (org.). Teoria Geral da Mediação à luz do Projeto de Lei e do Direito Comparado. 2008._____. Mediação: a redescober ta de um velho aliado na solução de conflitos. In: Acesso à Justiça: efetividade do processo. Geraldo Prado (org.). 2005, p. 105-124. _____ . Mecanismos de Solução Alternativa de Conflitos: algu mas considerações introdutórias. In: Revista Dialética de Direito Processual. 2004. p. 09-14. _____ . A Mediação e a Solução dos Conflitos no Estado Democrático de Direito (em coautoria com Karol Durco). In: Revista eletrônica de direito processual. p. 20-54, 2009, disponível no endereço http://www.redp.com. br”. _____. A Mediação e as perspectivas para o processo civil contemporâneo. In: Alexander Araujo Souza. Décio Alonso Gomes (coord.). Contributos em Homenagem ao Professor Sergio Demoro Hamilton, 2009, pp. 237/256. _____ . Uma leitura processual dos direitos humanos. O direito fundamental à tutela adequada e à opção pela mediação como via legítima para a resolução de conflitos. In: Renata Braga Klevenhusen (org.). Temas sobre Direitos Humanos em Homenagem ao Professor Vicente Barreto. 2009, p. 63/80. Material adicional pode ser encontrado em http:// www.humbertodalla.pro.br e em http://humbertodalla.blogspot.com. 3. “O marcante crescimento do acesso à justiça, que evoluiu conjuntamente com a passagem da concepção liberal para a concepção social do Estado moderno, permitiu que diferentes grupos sociais buscassem meios eficazes de tutela para a solução dos seus conflitos. Tecnicamente o que se chama explosão da litigiosidade, que tem muitas causas, mas que nunca foi analisado de forma mais profunda. É notório como a nossa estrutura jurídico-política foi sempre muito atenta aos remédios (portanto reformas perenes das normas), quase nunca às causas, deixando de lado análises atentas sobre a litigiosidade que cresce, que é constantemente traduzida na linguagem jurídica e que se dirige à jurisdição sob a forma irrefreável de procedimentos judiciários. Em face de tal hipertrofia, a direção da política do direito deve ser no sentido de uma jurisdição mínima, contra uma jurisdição tão onívora e ineficaz”. (Humberto Dalla Bernardina de Pinho. Michele Pedrosa Paumgartten. A experiência ítalo-brasileira no uso da mediação em resposta à crise do monopólio estatal de solução de conflitos e a garantia do acesso à justiça. In: Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 8, disponível em http://www.redp.com.br.). 64

3 – A mediação e o Código de Processo Civil Projetado

Esta tendência se torna mais grave na medida em que o Estado contemporâneo não está, ainda, preparado para identificar e enfrentar as causas do conflito, comprometendo-se a uma verdadeira pacificação. Some-se a isto o fato de que nosso ordenamento jurídico não está apto a trabalhar com o conceito de conflitos insolúveis, ou seja, que jamais poderão ser resolvidos. Nestes, o máximo que se pode fazer é monitorar e empreender um trabalho de acompanhamento, com o objetivo de manter a disputa em níveis aceitáveis de convivência e civilidade. Assim, a cultura de que qualquer interesse contrariado deve ser imediatamente submetido ao Judiciário deve ser urgentemente modificada, pois a ação é um direito do jurisdicionado e não um dever.4 Ademais, o uso excessivo dos meios judiciais revela uma profunda imaturidade e incapacidade da sociedade em lidar com seus problemas. Por outro lado, deve ficar claro que a intenção não é desprestigiar a jurisdição ou lhe impor limites. Tampouco se deve imaginar que os métodos autocompositivos são a solução mágica para a crise do Estado-juiz ou mesmo que tenham capacidade para substituir integralmente a jurisdição. Vamos trabalhar aqui com a ideia de conscientizar o Poder Judiciário de que o cumprimento de seu papel constitucional não consiste necessariamente na intervenção em todo e qualquer conflito.5 E, nessa perspectiva, a efetividade da prestação jurisdicional significa intervir quando necessário,6 como ultima ratio.7

4. “Unidos pelo conflito, os litigantes esperam por um terceiro que o solucione. Espera-se pelo Judiciário para que diga quem tem mais direitos, mais razão ou quem é o vencedor da contenda. Trata-se de uma transferência de prerrogativas que, ao criar muros normativos, engessa a solução da lide em prol da segurança, ignorando que a reinvenção cotidiana e a abertura de novos caminhos são inerentes a um tratamento democrático”. Fabiana Marion Spengler; Theobaldo Spengler Neto. Mediação enquanto política pública: a teoria, a prática e o projeto de lei. Santa Cruz do Sul, Edunisc, 2010. http://www.unisc.br/portal/pt/editora/e-books/95/mediacaoenquanto-politica-publica-a-teoria-a-pratica-e-o-projeto-de-lei-.html, p. 23. 5. François Ost. Júpter, Hércules, Hermes: Tres modelos de Juez. p. 169-194. In: http://www. cervantesvirtual.com. Acesso em 14/11/2009. 6. Humerto Dalla Bernadina de Pinho. A Mediação na atualidade e no futuro do processo civil brasileiro. Artigo disponível no sítio http://www.humbertodalla.pro.br. 7. “As CPR estabelecem que os tribunais têm cada vez mais observado que os processos judiciais devem ser a última opção, e ações não deve ser movidas de maneira prematura, quando um acordo ainda é possível. Portanto, as partes devem considerar se as formas alternativas de resolução de conflitos são mais adequadas do que o litígio, e, se for o caso, devem se esforçar para entrar em acordo sobre qual das formas há de ser adotada”. Neil Andrews. O Moderno Processo Civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Teresa Alvim Arruda Wambier (trad.). 2009, p. 271. 65

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Como desdobramento deste raciocínio, mesmo quando provocado pelo jurisdicionado por meio da ação, o Estado-Juiz deve avaliar qual é a ferramenta mais adequada8 para tratar aquele conflito, ainda que as partes desejem, 9 imediatamente, uma sentença impositiva. Até mesmo porque, não considerar o uso dos “meios alternativos” pode significar um desperdício, na medida em que, se bem empregados, não só facilitam o acesso à justiça,10 como complementam e auxiliam enormemente o sistema processual.11 Esta ideia se apoia no art. 118 do NCPC, que trata dos poderes do juiz na direção do processo, especificamente no inciso IV, que impõe ao juiz o dever de tentar, prioritariamente, compor amigavelmente as partes. A leitura deste art. 118, diante das novas tendências do common law, nos leva à chamada postura “gerenciadora”12 dos juízes. Desse modo, uma vez que o conflito é apresentado ao juiz, cabe a ele utilizar a ferramenta que julgar mais adequada para “solucioná-lo”. Esta linha de raciocínio será aprofundada adiante. Vejamos, agora, um breve histórico das tentativas de positivar a mediação em nosso ordenamento.

8. Nuria Belosso Martín chama a atenção para a mudança terminológica que já se verifica no direito espanhol. Inicialmente as práticas autocompositivas eram denominadas formas de “resolução alternativa” de conflitos. Com o tempo, passou-se a adotar a expressão “resolução complementar” e, atualmente, utiliza-se a fórmula “resolução adequada”. Nuria Belosso Martín. A mediação: a melhor resposta ao conflito? In: Fabiana Marion Spengler. Doglas Cesar Lucas. (org.) Justiça Restaurativa e Mediação: políticas públicas no tratamento dos conflitos sociais. 2011, p. 321. 9. Humberto Dalla Bernardina de Pinho. Karol Durco. A Mediação e a Solução dos Conflitos no Estado Democrático de Direito. O “Juiz Hermes” e a Nova Dimensão da Função Jurisdicional, disponível em http://www.humbertodalla.pro.br. 10. “Uno dei motivi dello sviluppo dell’ADR è di ordine pratico e congiunturale: i metodi di ADR forniscono una risposta alle difficoltà  di accesso alla giustizia, che molti paesi devono affrontare. Queste difficoltà  si spiegano con il fatto che le controversie sottoposte agli organi giurisdizionali si moltiplicano, le procedure tendono ad allungarsi e i costi sopportati in occasione di tali procedimenti ad aumentare. La quantità , la complessità  e la natura tecnica dei testi legislativi contribuiscono d’altra parte a rendere più difficile l’accesso alla giustizia”. Libro verde relativo ai modi alternativi di risoluzione delle controversie in materia civile e commerciale, disponível em: http://www.mondoadr. it/cms. Acesso em 24/08/2010. 11. “To express this interaction between the public and private forms of civil justice, the author has elsewhere suggested (…) that a helpful metaphor might be `Civil Justice’s strand—consisting of ADR, including arbitration and mediation—and the other strand—the court process—are complementary and entwined. Together the two strands of the public court process and the alternative forms of private dispute resolution have considerable strength”. Neil Andrews. Mediation in England: organic growth and stately progress. Texto ainda não publicado e gentilmente cedido pelo autor quando de sua visita à Faculdade de Direito da UERJ, em dez./ 2011, p. 19/20. 12. Ver, por todos, Judith Resnik. Managerial Judges. December, 1982, p. 376 66

3 – A mediação e o Código de Processo Civil Projetado

2. Mediação no Brasil: passado, presente e futuro No Brasil, a mediação começou a ganhar forma legislativa com o Projeto de Lei nº 4.827/1998, oriundo de proposta da Deputada Zulaiê Cobra, tendo o texto inicial levado à Câmara uma regulamentação concisa, estabelecendo a definição de mediação e elencando algumas disposições a respeito. Na Câmara dos Deputados, já em 2002, o projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e enviado ao Senado Federal, onde recebeu o número PLC nº 94, de 2002. Em 2004, com a Emenda Constitucional nº 45, de 8/12/2004, tornou-se necessário adequar o texto às novas disposições constitucionais, o que levou a um novo relatório do PL nº 94. Foi aprovado, então, o Substitutivo (Emenda nº 1-CCJ), enviado à Câmara dos Deputados em julho de 2006. Em agosto, o projeto foi encaminhado à CCJC, e dele não se teve mais notícia. O Projeto, em sua última versão, logo no art. 1º, propunha a regulamentação da mediação paraprocessual civil que poderia assumir as seguintes feições: (a) prévia; (b) incidental; (c) judicial; e (d) extrajudicial. A mediação prévia poderia ser judicial ou extrajudicial (art. 29). No caso da mediação judicial, o seu requerimento interromperia a prescrição e deveria ser concluído no prazo máximo de 90 dias. A mediação incidental (art. 34), por outro lado, seria obrigatória, como regra, no processo de conhecimento, salvo nos casos: (a) de ação de interdição; (b) quando for autora ou ré pessoa de direito público e a controvérsia versar sobre direitos indisponíveis; (c) na falência, na recuperação judicial e na insolvência civil; (d) no inventário e no arrolamento; (e) nas ações de imissão de posse, reivindicatória e de usucapião de bem imóvel; (f) na ação de retificação de registro público; (g) quando o autor optar pelo procedimento do juizado especial ou pela arbitragem; (h) na ação cautelar; (i) quando na mediação prévia não tiver ocorrido acordo nos cento e oitenta dias anteriores ao ajuizamento da ação. A mediação deveria ser realizada no prazo máximo de noventa dias e, não sendo alcançado o acordo, dar-se-ia continuidade ao processo. Assim, a mera distribuição da petição inicial ao juízo interromperia a prescrição, induziria litispendência e produziria os demais efeitos previstos no art. 263 do Código de Processo Civil. Ademais, caso houvesse pedido de liminar, a mediação só teria curso após o exame desta questão pelo magistrado, sendo certo que eventual

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interposição de recurso contra a decisão provisional não prejudicaria o processo de mediação. Apesar da boa técnica empregada, como já referido, o Projeto não foi adiante e não há mais informações sobre seu trâmite no sítio da Câmara dos Deputados. Quando já se perdiam as esperanças de uma positivação da mediação em nosso Direito, eis que, em 2009, foi convocada uma Comissão de Juristas, presidida pelo Ministro Luiz Fux, e tendo como Relatora a Professora Teresa Wambier, com o objetivo de apresentar um novo Código de Processo Civil. Em tempo recorde, foi apresentado um Anteprojeto, convertido em Projeto de Lei (nº 166/2010), submetido a discussões e exames por uma Comissão especialmente constituída por Senadores, no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. Na redação original, o texto tratava da conciliação e da mediação nos arts. 134 a 144. Em dezembro de 2010, foi apresentado um Substitutivo pelo Senador Valter Pereira, aprovado pelo Pleno do Senado com duas pequenas alterações.13 O texto foi então encaminhado à Câmara dos Deputados, onde foi identificado como Projeto de Lei nº 8.046/2010.14 Nesta nova versão, que alterou mais de 400 dispositivos do Anteprojeto, mediação e conciliação foram disciplinadas nos arts. 144 a 153, com alguns ajustes que serão vistos no próximo item. No início do ano de 2011 foram iniciadas as primeiras atividades de reflexão sobre o texto do novo CPC, ampliando-se, ainda mais, o debate com a sociedade civil e o meio jurídico, com a realização conjunta de atividades pela Comissão, pela Câmara dos Deputados e pelo Ministério da Justiça. Em agosto de 2011, foi criada uma comissão especial para exame do texto, sob a presidência do Deputado Fabio Trad. O texto foi encaminhado por cinco subcomissões, durante o fim de 2011 e começo de 2012. Em junho de 2012 foi liberada a versão provisória com as alterações propostas pela Câmara. Paralelamente aos trabalhos da Comissão do NCPC, em novembro de 2010, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 125,15 que 13. Humberto Dalla Bernardina de Pinho. O Novo CPC e a mediação: reflexões e ponderações. In: Revista de Informação Legislativa, a. 48, n. 190, t. I, abr./jun., 2011, p. 219/236. 14. Todos os passos da tramitação do Projeto do Novo CPC podem ser acompanhados em nosso blog: http://humbertodalla.blogspot.com. 15. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/323resolucoes/12243-resolucao-no-125-de-29-de-novembro-de-2010. 68

3 – A mediação e o Código de Processo Civil Projetado

regulamentou as atividades de conciliação e mediação judiciais, com base nas seguintes premissas: a) o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica acesso à ordem jurídica justa; b) nesse passo, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito nacional, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também os que possam sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação; c) a necessidade de se consolidar uma política pública permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios; d) a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em programas já implementados no país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças; e) é imprescindível estimular, apoiar e difundir a sistematização e o aprimoramento das práticas já adotadas pelos tribunais; f) a relevância e a necessidade de organizar e uniformizar os serviços de conciliação, mediação e outros métodos consensuais de solução de conflitos, para lhes evitar disparidades de orientação e práticas, bem como para assegurar a boa execução da política pública, respeitadas as especificidades de cada segmento da Justiça. O art. 1º da Resolução institui a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, com o objetivo de assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados, deixando claro que incumbe ao Poder Judiciário, além da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão. Para cumprir tais metas, os Tribunais deverão criar os Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, e instalar os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania. A Resolução trata ainda da capacitação dos conciliadores e mediadores, do registro e acompanhamento estatístico de suas atividades e da gestão dos 69

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Centros. Traz, em anexo, o Código de Ética de conciliadores e mediadores judiciais e o conteúdo mínimo dos cursos de formação e aperfeiçoamento de magistrados, mediadores e servidores. Já com a Resolução nº 125 do CNJ em vigor, diante das perspectivas de regramento da mediação judicial pelo Novo CPC, e ante a necessidade de tratar de questões concernentes à integração entre a adjudicação e as formas autocompositivas, em agosto de 2011, tivemos a oportunidade de apresentar sugestões ao Senador Ricardo Ferraço, então envolvido com os trabalhos da terceira edição do Pacto Republicano. Formamos grupo de trabalho ao lado das Professoras Tricia Navarro e Gabriela Asmar e nos dedicamos à tarefa de redigir um novo Anteprojeto de Lei de Mediação Civil. Após exame da Consultoria do Senado, foi apresentado o Projeto de Lei do Senado que tomou o nº 517,16 e que já segue o procedimento legislativo no Senado Federal. O Projeto trabalha com conceitos mais atuais e adaptados à realidade brasileira. Assim, por exemplo, no art. 2º dispõe que “mediação é um processo decisório conduzido por terceiro imparcial, com o objetivo de auxiliar as partes a identificar ou desenvolver soluções consensuais”. Quanto às modalidades, o art. 5º admite a mediação prévia e a judicial, sendo que em ambos os casos pode, cronologicamente, ser prévia, incidental ou ainda posterior à relação processual. É comum encontrarmos referências à mediação prévia e incidental, mas raramente vemos a normatização da mediação posterior, embora esteja se tornando cada vez mais comum (obviamente, há necessidade de se avaliar os eventuais impactos sobre a coisa julgada, o que não será analisado neste trabalho). Outra inovação pode ser vista no critério utilizado para conceituar a mediação judicial e a extrajudicial. Optou-se por desvincular a classificação do local da realização do ato, adotando-se como parâmetro a iniciativa da escolha. Assim, pelo art. 6º, “a mediação será judicial quando os mediadores forem designados pelo Poder Judiciário e extrajudicial quando as partes escolherem mediador ou instituição de mediação privada”. Não foram estabelecidas restrições objetivas ao cabimento da mediação. Basta que as partes desejem, de comum acordo, e que o pleito seja considerado razoável pelo magistrado (art. 7º). 16. O texto pode ser consultado no sítio do Senado Federal, em http://www.senado.gov.br. 70

3 – A mediação e o Código de Processo Civil Projetado

A mediação não pode ser imposta jamais, bem como a recusa em participar do procedimento não deve acarretar qualquer sanção a nenhuma das partes (§ 2º), cabendo ao magistrado, caso o procedimento seja aceito por todos, decidir sobre eventual suspensão do processo (§ 4º) por prazo não superior a 90 dias (§ 5º), salvo convenção das partes e expressa autorização judicial. Ainda segundo o texto do Projeto, o magistrado deve “recomendar a mediação judicial, preferencialmente, em conflitos nos quais haja necessidade de preservação ou recomposição de vínculo interpessoal ou social, ou quando as decisões das partes operem consequências relevantes sobre terceiros” (art. 8º). Por outro lado, caso se verifique a inadequação da mediação para a resolução daquele conflito, pode o ato ser convolado em audiência de conciliação, se todos estiverem de acordo (art. 13). Enfim, sem ingressar nas questões específicas do Projeto, importante ressaltar a intenção de uniformizar e compatibilizar os dispositivos do Novo CPC e da Resolução nº 125 do CNJ, regulando os pontos que ainda estavam sem tratamento legal.

3. Principais aspectos da mediação no PL nº 8.046/2010 Na redação atualmente disponível do Projeto do novo CPC, podemos identificar a preocupação da Comissão com os institutos da conciliação e da mediação, especificamente nos arts. 144 a 153. O Projeto enfoca, especificamente, a mediação feita dentro da estrutura do Poder Judiciário. Isso não exclui, contudo, a mediação prévia ou mesmo a possibilidade de utilização de outros meios de solução de conflitos (art. 153). A questão mais relevante, a nosso sentir, está na clara opção da Comissão de Juristas pela forma facultativa, e não obrigatória de utilização da mediação. Importante enfatizar esta questão, eis que no passado houve grande controvérsia acerca deste ponto, e no atual momento de revisão do texto pela Câmara, alguns fantasmas teimam em voltar a assombrar a comunidade acadêmica. Isto porque o PL nº 4.827/1998 criava duas espécies de mediação: a prévia e a incidental. Enquanto aquela se realiza em momento anterior à instauração de demanda perante o Poder Judiciário, a mediação incidental, como o próprio nome sugere, ocorreria quando já estivesse em curso o processo judicial.17 17. Art. 3º do Projeto de Lei: A mediação paraprocessual será prévia ou incidental, em relação ao momento de sua instauração, e judicial ou extrajudicial, conforme a qualidade dos mediadores. 71

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O Capítulo V do PL nº 4.827/1998, dedicado à mediação incidental, encerrava em seu primeiro artigo um dos aspectos mais polêmicos daquela proposta legislativa: a obrigatoriedade de realização desse procedimento em todos os processos de conhecimento, salvo as exceções elencadas nos incisos do art. 34. Vale lembrar que a versão inicial, de autoria da Deputada Zulaiê Cobra, não obrigava as partes a participarem da mediação, facultando ao juiz convencê-las da conveniência de se submeter a este método de resolução do conflito.18 A versão final do Projeto, cujos dispositivos impunham a tentativa de mediação entre as partes em litígio, decorreu da fusão entre a proposta inicial da Deputada, concisa e enxuta, que instituía a mediação de maneira facultativa, e o anteprojeto elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual e pela Escola Nacional de Magistratura, mais detalhado, com enfoque na mediação prévia e incidental, sendo esta última obrigatória.19 Muito embora a ideia de se impor a mediação incidental em determinadas hipóteses seja bastante sedutora,20 pensamos que esta não é a melhor solução, e bem andou o PL nº 8.046 ao resistir aos falsos encantos de tal prática. Vejamos o que ocorre hoje na Itália. A Lei nº 69, de 18/06/2009, foi editada em decorrência da Diretiva nº 52, de 21/05/2008,21 emitida pelo Conselho da União Europeia. O art. 60 22 18. Previa-se a possibilidade de o juiz recomendar a mediação, no curso do processo (Art. 4ª Em qualquer tempo e grau de jurisdição, pode o juiz convencer as partes da conveniência de se submeterem a mediação extrajudicial ou, com a concordância delas, designar mediador, suspendendo o processo pelo prazo de até três meses, prorrogável por igual período), bem como a possibilidade de as próprias partes, em caráter preliminar, o requererem. (Art. 6º Antes de instaurar o processo, o interessado pode requerer ao juiz que, sem antecipar-lhe os termos do conflito e de sua pretensão eventual, mande intimar a parte contrária para comparecer à audiência de tentativa de conciliação ou mediação. A distribuição do requerimento não previne o juízo, mas interrompe a prescrição e impede a decadência). 19. O trâmite legislativo integral do projeto se encontrava disponível na Internet, no endereço do Instituto Brasileiro de Direito Processual, www.direitoprocessual.org.br, com última consulta em 01/06/2007. 20. Humberto Dalla Bernardina de Pinho (org.). Teoria Geral da Mediação à luz do Projeto de Lei e do Direito Comparado. 2008. 21. Directive 2008/52/EC of the European Parliament and of the Council, of 21 May 2008, on certain aspects of mediation in civil and commercial matters. Texto disponível em http://www. justice.ie/en/JELR/Pages/EU_directives. “Article 3. Definitions. For the purposes of this Directive the following definitions shall apply: (a) ‘Mediation’ means a structured process, however named or referred to, whereby two or more parties to a dispute attempt by themselves, on a voluntary basis, to reach an agreement on the settlement of their dispute with the assistance of a mediator. This process may be initiated by the parties or suggested or ordered by a court or prescribed by the law of a Member State. It includes mediation conducted by a judge who is not responsible for any judicial proceedings concerning the dispute in question. It excludes attempts made by the court or the judge seised to settle a dispute in the course of judicial proceedings concerning the dispute in question”. 22. Legge 18 giugno 2009, n. 69. (Disposizioni per lo sviluppo economico, la semplificazione, la competitività nonché in materia di processo civile). Art. 60. (Delega al Governo in materia di 72

3 – A mediação e o Código de Processo Civil Projetado

desta Lei autoriza o governo emitir decreto legislativo sobre mediação e conciliação em matéria civil e comercial, de acordo com o direito comunitário. Regulamentando esta Lei, em 04/03/2010 foi editado o Decreto Legislativo nº 28,23 que disciplina três tipos de mediação: mediazione facoltativa, mediazione concordata e mediazione obbligatoria. 24 Como se pode imaginar, o núcleo mais significativo e que vem causando maior impacto é esta última modalidade, alçada ao status de condição de admissibilidade do processo judicial. Ao que parece, o principal objetivo da reforma25 é ab(usar) da mediação para resolver uma grave crise na justiça civil, tornando-se um instrumento de diminuição da carga de trabalho dos juízes e redução do número de processos. Assim, nos termos do art. 5º do Decreto Legislativo 28/2010, qualquer pessoa que pretenda levar uma ação a um Tribunal versando sobre as matérias ali tratadas, deverá previamente experimentar o processo de mediação ou de conciliação. Obviamente tais limites criados pelo legislador têm suscitado questionamentos pela doutrina acerca de sua constitucionalidade face à Carta do mediazione e di conciliazione delle controversie civili e commerciali). 1. Il Governo è delegato ad adottare, entro sei mesi dalla data di entrata in vigore della presente legge, uno o più decreti legislativi in materia di mediazione e di conciliazione in ambito civile e commerciale. (...) Fonte: http://www. parlamento.it/parlam/leggi/090691.htm. 23. Decreto Legislativo 4 marzo 2010, n. 28. Attuazione dell’articolo 60 della legge 18 giugno 2009, n. 69, in materia di mediazione finalizzata alla conciliazione delle controversie civili e commerciali. http://www.mondoadr.it/cms/?p. 2244. 24. Como considerado por Dittrich: “il provvedimento in esame introduce non uno, ma tre diversi tipi di mediazione, tutti soggetti al medesimo procedimento, ma radicalmente differenti quanto ai presupposti. (…) possiamo dire che ci troviamo qui di fronte: a) a un procedimento di mediazione su base volontaria stragiudiziale ed extraprocessuale: le parti possono cioè esperire un tentativo di mediazione prima ed indipendentemente dalla proposizione di una controversia avanti al giudice civile; b) a un procedimento stragiudiziale ma endoprocessuale, con ciò intendendo che l’attività di mediazione viene svolta da un organismo non giudiziale (appunto, l’organismo di mediazione come definito dall’art. 1), ma su sollecitazione (non vincolante) del giudice statale, già attualmente adìto della controversia; è il modello, ben noto nei paesi anglosassoni, della court annexed mediation; c) a una mediazione straprocessuale ed extragiudiziale obbligatoria, prevista dall’art. 5 per una moltitudine di controversie, e qualificata come condizione di procedibilità della causa”. Lotario Dittrich. Il procedimento di mediazione nel d. lgs. n. 28, del 4 marzo 2010. In http://www.judicium. it; acesso em 20/10/2011. 25. Sobre o tema, recomendamos: Chiara Besso. La Mediazione Italiana: Definizioni e Tipologie. Artigo disponível no v. VI da Revista Eletrônica de Direito Processual, disponível em: http://www. redp.com.br. Acesso em 10/01/2011. Domenico Borghesi. Prime note su riservatezza e segreto nella mediazione, disponível em: www.judicium.it, p. 11-12. Sergio Chiarloni. Prime riflessioni sullo schema di decreto legislativo di attuazione della delega in materia di mediazione. In www. ilcaso.it. Cristina Menichino. In: Angelo Castagnola. Francesco Delfini (orgs.). La Mediazione nelle controversie civili e commerciali. 2010. p. 10. Giuliano Scarselli. La nuova mediazione e conciliazione: le cose che non vanno. Judicium. Disponível em: www.judicium.it. 73

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Estado italiano, por conta das inevitáveis repercussões processuais que tal condição pode trazer. Diante disso, algumas associações profissionais ingressaram com ação em face do Ministério da Justiça e do Ministério do Desenvolvimento Econômico perante o TAR Lazio que decidiu, em 2011,26 não serem infundadas as dúvidas suscitadas acerca de alguns dispositivos do Decreto Legislativo nº 28/2010, tais como a excessiva delegação constante no art. 5º, e que a mediação, enquanto fase de pré-julgamento, traduzindo condição de admissibilidade da ação, impede efetivamente o acesso à justiça.27 Foi reconhecido o risco de comprometimento da eficácia da proteção judicial, pois o terceiro parágrafo do art. 60 da Lei nº 69/2009 exige, na verdade, que o exercício da delegação deveria levar a cabo o princípio segundo o qual a mediação tem como objetivo principal a reconciliação de litígios relativos a direitos disponíveis, sem todavia excluir o acesso à justiça. A espera de ouvir o pronunciamento da Corte Constitucional acerca da validade de alguns dispositivos do decreto, associações de advogados italianos vem solicitando a não aplicação do instituto pelos tribunais, argumentando que o juiz, a pedido de qualquer uma das partes, pode admitir o pedido, recusando-se a aplicar o art. 5º do decreto por ser incompatível com a Carta Europeia dos Direitos do Homem.28 Entretanto, recentemente, no âmbito da União Europeia, o Parlamento Europeu decidiu realizar um balanço prévio, em vista do comunicado sobre a implementação da Diretiva referente à mediação prevista para 2013, tendo em conta as maneiras pelas quais os Estados-membros adotaram as medidas para operacionalizar as disposições da Diretiva 2008/52/CE, os problemas que surgiram e alguns aspectos mais específicos registrados em alguns países, levando a adoção de uma Resolução,29 em 13/09/2011. Como não poderia ser diferente, o Parlamento cita a Itália e seu decreto legislativo nº 28/2010 apontando como ponto mais polêmico a regra que diz respeito à realização da mediação obrigatória em relação a uma série 26. A notícia, bem como a decisão, podem ser consultadas em http://humbertodalla.blogspot. com. A íntegra da decisão está disponível em: http://www.ilcaso.it. Acesso em 15/09/2011. 27. No sentido do texto, veja-se: Vicenzo Vigoriti. Europa e Mediazione. Problemi e Soluzioni. In: Revista de Processo. jul./2011, p. 348. 28. Humberto Dalla Bernardina de Pinho. Michele Pedrosa Paumgartten. A experiência ítalobrasileira no uso da mediação em resposta à crise do monopólio estatal de solução de conflitos e a garantia do acesso à justiça. In: Revista Eletrônica de Direito Processual. v.8. Disponível em: http://www.redp.com.br. 29. O texto está disponível em http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-// EP//TEXT+TA+P7-TA-2011-0361+0+DOC+XML+V0//PT&language=PT#def_1_1. 74

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de disputas para as quais, portanto, o acesso à justiça fica condicionado à prévia tentativa de conciliação entre as partes. No entendimento do Parlamento, o § 2º do art. 5º da Diretiva comunitária permite aos Estados-membros a utilização da mediação de forma obrigatória ou a sujeite a incentivos ou sanções, tanto antes como após iniciado o processo judicial, desde que isso não impeça as partes de exercerem seu direito de buscar o sistema judicial. Mais uma vez, parece que se perdeu o foco. Procura-se justificar o uso da mediação obrigatória a partir de sua capacidade de reduzir o número de processos. O argumento é equivocado e maléfico, eis que tal providência em nada contribuirá para a pacificação social. 30 Melhor andou o legislador britânico. Com efeito, as Civil Procedure Rules tratam do uso dos meios alternativos perante a Corte, mas de forma mais amena. Dispõe a Rule 1.4 31 que a Corte tem o dever de gerenciar (manage) ativamente os casos, o que inclui, dentre outras providências: “(e) encouraging the parties to use an alternative dispute resolution”. Nesse passo, como noticia Fernanda Pantoja, 32 apesar de existirem precedentes da High Court, no sentido de restringir as possibilidades de as partes recusarem a recomendação para a mediação, chegando inclusive a determinar a sua realização mesmo quando uma das partes havia expressamente rechaçado essa alternativa, 33 em Decisão de maio de 2004, a English Court 30. Humberto Dalla Bernardina de Pinho. Michele Pedrosa Paumgartten. A experiência ítalo-brasileira no uso da mediação em resposta à crise do monopólio estatal de solução de conflitos e a garantia do acesso à justiça. In: Revista Eletrônica de Direito Processual. v. 8. Disponível em: http://www.redp.com.br. 31. “Civil Procedure Rules. Part One. Overriding Objective. (...) 1.4 Court’s duty to manage cases (1) The court must further the overriding objective by actively managing cases. (2) Active case management includes – (a) encouraging the parties to co-operate with each other in the conduct of the proceedings; (b) identifying the issues at an early stage; (c) deciding promptly which issues need full investigation and trial and accordingly disposing summarily of the others; (d) deciding the order in which issues are to be resolved; (e) encouraging the parties to use an alternative dispute resolution (GL) procedure if the court considers that appropriate and facilitating the use of such procedure; (f) helping the parties to settle the whole or part of the case; (g) fixing timetables or otherwise controlling the progress of the case; (h) considering whether the likely benefits of taking a particular step justify the cost of taking it; (i) dealing with as many aspects of the case as it can on the same occasion; (j) dealing with the case without the parties needing to attend at court; (k) making use of technology; and (l) giving directions to ensure that the trial of a case proceeds quickly and efficiently”. Texto disponível para consulta em: http://www.justice.gov.uk/guidance/courts-and-tribunals/courts/ procedure-rules/civil/menus/rules.htm. Acesso em: 28/12/2011. 32. Fernanda Medina Pantoja. Mediação Judicial. In: Humberto Dalla Bernardina de Pinho (org.). Teoria Geral da Mediação à luz do Projeto de Lei e do Direito Comparado. 2008, p. 192. 33. “For example, in Hurst v. Leeming [2002] EWHC 1051 (Ch), the High Court stated that mediation should be refused only in exceptional circumstances. In Shirayama Shokusan Co. Ltd. 75

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of Appeal limitou o poder da High Court de impor a tentativa de mediação aos litigantes, ao argumento de que obrigar partes que não desejam mediar constitui verdadeira obstrução ao direito de acesso à justiça. Na referida decisão, a corte consignou que um sistema compulsório de mediação ofende o art. 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que protege o direito universal a um julgamento justo, em tempo razoável, por um tribunal independente e imparcial.34 E, dessa forma, mesmo sem impor a mediação, houve significativa redução do número de demandas, como nos dá notícia Chiara Besso, 35 e um considerável aumento no número de mediações, 36 de acordo com Neil Andrews.37 A mediação obrigatória em nada contribui para a real pacificação do litígio. Ela cria uma falsa ideia de filtragem de conflitos, quando na verdade atenta contra uma lógica simples. Assim como ninguém pode ser obrigado a ir a juízo, ninguém também pode ser obrigado a tentar um acordo quando já apresentou sua pretensão ao Poder Judiciário. Retomando o exame do texto do Projeto do Novo CPC, observamos que no art. 144 ficam resguardados os princípios informadores da conciliação e da mediação, a saber: (i) independência; (ii) neutralidade; (iii) autonomia da vontade; (iv) confidencialidade; (v) oralidade; e (vi) informalidade. A confidencialidade é especialmente protegida. Os §§ 2º e 3º do art. 144 determinam que ela se estende a todas as informações produzidas ao v. Danova Ltd. [2003] EWHC 3006 (Ch), the High Court went so far as to order mediation over the objection of one of the parties”, Kathryn Kirmayer e Jane Wessel. An offer one can’t refuse: mediate. In: The National Law Journal, out/2004, p. 1. 34. Halsey v. Milton Keynes General NHS Trust Steel v. (1) Joy & (2) Halliday [2004] EWCA (Civ) 576. Kathryn Kirmayer e Jane Wessel. An offer one can’t refuse: mediate. In The National Law Journal, out./2004, p. 1. 35. Chiara Besso (org). La Mediazione Civile e Commercial. 2010, p. 14. 36. “1.9. Na opinião do autor, a mudança mais significativa é o reconhecimento do potencial da mediação como um meio de se alcançar um acordo. Três novas tendências são perceptíveis aqui. 1.10. Primeiro, o mercado privado de resolução de conflitos na Inglaterra tem recorrido a mediações em casos civis e comerciais. O elevado custo de um processo judicial, causado principalmente pelos altos honorários dos advogados, tem sido um dos fatores significativos. (…). 1.11. A segunda grande mudança é que os tribunais ingleses têm demonstrado grande interesse em realizar mediações. (…) 1.12. Em terceiro lugar, reconheceu-se que os acordos podem ocorrer em diferentes ocasiões, resultantes de diferentes fatores ou estímulos processuais”. Neil Andrews. O Moderno Processo Civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Teresa Alvim Arruda Wambier (trad.). 2009, p. 30. 37. O Prof. Neil Andrews, um dos expoentes da Universidade de Cambridge, vem se dedicando ao tema nos últimos anos. Em dezembro de 2011, tivemos a oportunidade de receber sua visita na Faculdade de Direito da UERJ, para uma exposição, seguida de debate, no Grupo de Pesquisa “Observatório das Reformas Processuais”, liderado pelo Prof. Leonardo Greco. Naquela oportunidade, o Prof. Andrews discorreu sobre os limites e as possibilidades do “case management”. 76

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longo do procedimento, e, ainda, que o teor dessas informações “não poderá ser utilizado para fim diverso daquele previsto por expressa deliberação das partes”. Ademais, conciliador e mediador (bem como integrantes de suas equipes) “não poderão divulgar ou depor acerca de fatos ou elementos oriundos da conciliação ou da mediação”. Importante também frisar, aqui, a relevância da atividade a ser conduzida por mediador profissional. Em outras palavras, a função de mediar não deve, como regra, ser acumulada por outros profissionais, como juízes, promotores e defensores públicos. Neste ponto específico, como um juiz poderia não levar em consideração algo que ouviu numa das sessões de mediação? Como poderia não ser influenciado, ainda que inconscientemente, pelo que foi dito, mesmo que determinasse que aquelas expressões não constassem, formal e oficialmente, dos autos? Ou ainda, imaginem que um Defensor Público acumulasse as funções de patrono de uma das partes e mediador. Num outro cenário, um Promotor de Justiça funcionando como mediador numa Vara de Família. Se no curso do processo surgem indícios do crime de abandono material, não poderá ele tomar providências? Ou ainda se verifica que os interesses da mãe colidem com os da criança, não levará tal situação ao conhecimento do magistrado, provocando a intervenção da curadoria especial? Todas essas situações são inadequadas. Penso que temos que estimular a criação da carreira de mediador, com formação específica e embasamento jurídico e psicológico. De se notar que a Resolução nº 125 do CNJ, em seus anexos, já traz um Código de Ética para mediadores e conciliadores, bem como traça o conteúdo mínimo dos cursos de capacitação a serem oferecidos. Outro ponto que merece destaque é a diferenciação teórica das atividades de conciliação e mediação. No art. 145, a Comissão de Juristas estabelece como critério para tal diferenciação a postura do terceiro encarregado de compor o conflito. Assim, o conciliador pode sugerir soluções para o litígio, ao passo que o mediador auxilia as pessoas em conflito a identificarem, por si mesmas, alternativas de benefício mútuo. Esta diferença é, para nós, muito importante. Diante do sistema que se vislumbra, parece que o NCPC exigirá do magistrado a capacidade de examinar a natureza do conflito e determinar o mecanismo mais adequado para enfrentá-lo. 77

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Levando-se em conta que, com a nova sistemática, o juiz ao receber a petição inicial não mais determinará a citação do réu, mas designará um momento processual para a tentativa do acordo, temos que examinar como isso se dará na prática. Se o magistrado, ao ler a petição inicial, se convence que entre aquelas partes há um relacionamento prévio, continuado e que, apesar do conflito, terá que ser gerido por algum tempo (exemplo: vizinhos, que moram no mesmo prédio e não se suportam, mas que têm que resolver em conjunto questões administrativas do condomínio; ex-cônjuges, com filhos em comum, que precisam regular questões de visita e guarda) e ainda que por força deste relacionamento diversas questões tenham surgido com o passar do tempo e não foram adequadamente compreendidas e resolvidas por elas, deverá cogitar e recomendar o uso da mediação, pois esta talvez seja não apenas a mais adequada, mas possivelmente a única capaz de evitar a procrastinação do ciclo vicioso do litígio. Por outro lado, se se trata de uma relação descartável, ou seja, se nunca houve e nem se pretenda que exista no futuro qualquer vínculo, seja de natureza pessoal ou social, não há necessidade de se recorrer à mediação. Da mesma forma, questões com viés puramente patrimonial, questões consumeristas, ações indenizatórias em geral podem ser bem geridas com o uso da conciliação que, via de regra, se apresenta como uma solução mais rápida e simples, eis que não há a necessidade de se ingressar em assuntos com viés psicológico. Percebe-se, com isto, que a mediação será indicada para questões mais complexas, nas quais existe, além do componente jurídico, um elemento metajurídico, de ordem emocional e psicológica. Muitas vezes há questões que precisam ser bem compreendidas pelas partes antes que se pense em dar a solução jurídica. Nesse passo, de nada adianta, nessas hipóteses, uma sentença impositiva, eis que a solução será superficial e incapaz de atingir o âmago da questão, a fonte do problema. Pensamos que este momento processual, ou seja, o despacho liminar de conteúdo positivo e a determinação da providência mais adequada para tratar o litígio é de suma importância, e, não se precisa dizer, tem natureza personalíssima, não podendo ser objeto de delegação a assessores e servidores. Vamos enfatizar este ponto. O juiz não deve realizar a atividade de mediação e conciliação, embora, pela interpretação literal do art. 118, inciso IV, do PL 8.046/10 isto seja possível. Mas deve, pessoalmente, ler, examinar e despachar as iniciais, a fim de escolher o melhor caminho para aquele 78

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processo (audiência de conciliação, sessão de mediação, audiência especial com o magistrado ou ausência de audiência prévia, nas hipóteses autorizadas pelo art. 323 do Projeto). Aqui se materializa a função gerencial38 do magistrado e isto deve ser incentivado pelos Tribunais e pelo próprio CNJ. No direito inglês esta prática tem gerado bons resultados, como noticia Neil Andrews. Retornando à questão do mediador, importante ressaltar que a versão original do PLS 166/10 exigia fosse ele inscrito nos quadros da OAB. Com o Relatório e o Substitutivo apresentados em 24 de novembro de 2010, prestigiou-se o entendimento da dispensabilidade deste requisito. Esta é uma questão sensível. Não me parece que um advogado, com formação meramente jurídica, tenha alguma condição de realizar uma mediação. Por outro lado, um psicólogo, mesmo que altamente qualificado, terá dificuldades em redigir um acordo juridicamente exequível. Temos que buscar uma solução de equilíbrio. Em se tratando de mediação extrajudicial, os interessados têm ampla liberdade para escolher quem quer que seja para mediar, independentemente de sua formação profissional. No campo da mediação judicial, quero crer que com a institucionalização dos cursos de formação, a partir da Resolução nº 125 do CNJ, será possível criar módulos para advogados, com maior carga de estudos em questões psicológicas, e módulos para psicólogos, a fim de que possam receber a base jurídica necessária. Ademais, além da carga teórica, todos os cursos de formação exigem uma carga considerável de horas de mediação, sujeitas à supervisão constante. Assim, penso que o Projeto não deva exigir que o mediador tenha esta ou aquela profissão. Ao contrário, as Escolas de Magistratura, e muitas já

38. “(...) os tribunais têm amplos poderes de gestão de casos, ou gestão de processos ou gestão de procedimentos. Em seus relatos de 1995-1996, Lord Woolf adotou esta técnica como carro-chefe para as ações em multi-track (litígios múltiplos), incluindo assim todos os litígios da High Court. O tribunal deve garantir que os assuntos sejam focados de forma adequada, que a disciplina seja supervisionada, que os custos sejam reduzidos, que o andamento do processo seja acelerado e que resultados justos sejam facilitados e concedidos. A gestão de processos tem três funções principais: encorajar as partes a se empenharem pelo consenso, sempre que possível (em termos gerais, vide capítulo 11); evitar que o processo tramite muito lentamente e de maneira ineficaz; finalmente, garantir que os recursos judiciais sejam utilizados proporcionalmente, conforme exigido pelo objetivo preponderante, CPR, Seção I.”. Neil Andrews. O Moderno Processo Civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Teresa Alvim Arruda Wambier (trad.). 2009, p. 73. 79

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iniciaram essa empreitada, devem oferecer cursos abertos para os que desejem exercer o ofício de mediador. Com o diploma do curso e a carga horária prática devidamente cumprida, o candidato a mediador judicial requer a sua admissão ao corpo de mediadores do Tribunal, que deverá manter um registro dessa atividade. Esse registro conterá, ainda, informações sobre a performance do profissional, indicando, por exemplo, o número de causas de que participou, o sucesso ou o insucesso da atividade e a matéria sobre a qual versou o conflito. Esses dados serão publicados periodicamente e sistematizados para fins de estatística (art. 147 do Projeto). Aqui vale uma observação. É digno de elogio esse dispositivo por criar uma forma de controle externo do trabalho do mediador, bem como dar mais transparência a seu ofício. Por outro lado, é preciso que não permitamos certos exageros. Não se pode chegar ao extremo de ranquear os mediadores, baseando-se apenas em premissas numéricas. Um mediador que faz cinco acordos numa semana pode não ser tão eficiente assim. Aquele que faz apenas uma, pode alcançar níveis mais profundos de comprometimento e de conscientização entre as partes envolvidas. Da mesma forma, um mediador que tem um ranking de participação em 10 mediações, tendo alcançado o acordo em todas, pode não ser tão eficiente assim. É possível que tenha enfrentado casos em que as partes já tivessem uma predisposição ao acordo ou mesmo que o “nó a ser desatado não estivesse tão apertado”. Preocupa-nos muito a ideia do apego às estatísticas e a busca frenética de resultados rápidos. Esses conceitos são absolutamente incompatíveis com a mediação.

4. O horizonte que já se descortina. Questões que devem surgir com a positivação da mediação judicial em nosso direito Apesar de, neste trabalho, termos nos concentrado nas questões processuais afetas à mediação, somos de opinião que o melhor modelo é aquele que admoesta as partes a procurar a solução consensual, com todas as suas forças, antes de ingressar com a demanda judicial. Não parece ser ideal a solução que preconiza apenas um sistema de mediação incidental muito bem aparelhado, eis que já terá havido a movimentação da máquina judiciária, quando, em muitos dos casos, isto poderia ter sido evitado. 80

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Por outro lado, não concordamos com a ideia de uma mediação ou conciliação obrigatória. É da essência desses procedimentos a voluntariedade. Essa característica não pode ser jamais comprometida, mesmo que sob o argumento de que se trata de uma forma de educar o povo e implementar uma nova forma de política pública. Por outro lado, é preciso cautela para que não sejamos vítimas de um bem arquitetado “golpe de marketing”. A forma como a mediação vem sendo introduzida em alguns ordenamentos distorce o instituto com a finalidade de servir a propósitos meramente estatísticos, e que estão longe de atender às necessidades do cidadão. Pensar em uma instância prévia e obrigatória de conciliação, em hipóteses em que se discute apenas uma questão patrimonial, ou impor sanções pela não aceitação de um acordo razoável (como o pagamento das custas do processo ou dos honorários advocatícios, mesmo em caso de vitória, quando aquele valor é exatamente o que foi decidido pelo magistrado na sentença), podem ser soluções válidas.39 São exemplos do direito inglês 40 e do direito norte-americano41 que merecem ser estudados.

39. Como majoritariamente aceito pela doutrina especializada, o uso dos mecanismos alternativos de conflitos pode se dar por três formas: (1) pela vontade das partes; (2) por força de lei; e (3) por determinação judicial. Richard Reuben. Constitutional Gravity: a Unitary Theory of Alternative Dispute Resolution and Public Civil Justice. v. 47, p. 971. 40. “ (...) O direito inglês não tem um sistema de mediação obrigatória: não requer que as partes envolvidas recorram primeiramente a mediações antes de permitir o exame judicial da controvérsia. Os juízes não se envolvem diretamente nas sessões de mediações, e tampouco podem ordenar uma sanção direta para que as partes se submetam à mediação. Contudo, os tribunais estão preparados para induzir isso indiretamente: suspendendo o processo judicial para que a oportunidade de mediação seja criada; e ordenando altas custas, se uma das partes rejeita sugestões para uma tentativa de mediação, sem motivo plausível (a suspensão é uma ordem do juiz que proíbe diligências na ação, suspensão essa que permanece válida até ser revogada pelo tribunal). A outra parte poderá fazer a sugestão, tanto antes, quanto depois da instauração do processo formal; ou o tribunal pode sugerir uma pausa para uma mediação fora dos tribunais, por vezes sem que uma das partes o requeira”. Neil Andrews. O Moderno Processo Civil. p. 30. 41. Como exemplo, podemos citar a Regra 68 das F.R.C.P.: “Federal Rules of Civil Procedure. Rule 68. Offer of judgment. (a) Making an offer; Judgment on an accepted offer. At least 14 days before the date set for trial, a party defending against a claim may serve on an opposing party an offer to allow judgment on specified terms, with the costs then accrued. If, within 14 days after being served, the opposing party serves written notice accepting the offer, either party may then file the offer and notice of acceptance, plus proof of service. The clerk must then enter judgment. (b) Unaccepted offer. An unaccepted offer is considered withdrawn, but it does not preclude a later offer. Evidence of an unaccepted offer is not admissible except in a proceeding to determine costs. (c) Offer after liability is determined. When one party’s liability to another has been determined but the extent of liability 85. Federal rules of civil procedure Rule 70 remains to be determined by further proceedings, the party held liable may make an offer of judgment. It must be served within a reasonable time—but at least 14 days—before the date set for a hearing to determine the extent of liability. (d) Paying costs after an unaccepted offer. If the judgment that the offeree finally obtains is not more favorable 81

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Mas nunca numa mediação, onde há questões emocionais profundas, muitas vezes inconscientes, que demandam tempo, amadurecimento e mútua confiança para serem expostas e resolvidas. Sujeitar a admissibilidade da ação a uma tentativa prévia e obrigatória de mediação, num caso de grande complexidade, acarretará uma das seguintes situações: a) as partes farão uma mediação simulada e, após duas ou três sessões dirão que o acordo é impossível, preenchendo, dessa forma, a condição legal que lhes foi imposta; b) as partes se submeterão a um procedimento superficial, e verdadeira questão subjacente àquele conflito, que funciona como motor propulsor oculto de toda aquela litigiosidade, não será sequer examinada; c) as partes se recusarão a participar do ato, por saberem que não há condições de viabilidade no acordo, e o juiz rejeitará a petição inicial, por ausência de condição de procedibilidade, o que, provavelmente, vai acirrar ainda mais os ânimos. Nenhuma dessas hipóteses parece estar de acordo com a índole pacificadora da moderna concepção da jurisdição. Contudo, é forço reconhecer que é necessário buscar uma solução para a hipótese nas quais a mediação é a solução mais indicada, mas as partes a recusam sem uma razão plausível. Não se pode permitir que o Judiciário seja utilizado, abusado ou manipulado pelos caprichos de litigantes que, simplesmente, querem brigar42 ou levar o conflito a novas fronteiras. Acredito que todos os operadores do direito já se depararam com algum processo em que isto ficou claro e, não raras vezes, o juiz fica refém do capricho de uma ou ambas as partes por força do princípio do non liquet. Somos de opinião que as partes deveriam ter a obrigação de demonstrar ao Juízo que tentaram, de alguma forma, buscar uma solução consensual para o conflito.

than the unaccepted offer, the offeree must pay the costs incurred after the offer was made”. Texto disponível em: http://www.uscourts.gov. Acesso em 12/01/2011. 42. “What people bring to court is the refuse of our national and community life. Mendacity, greed, brutality, sloth, and neglect are the materials with which we work”. Paul D. Carrington, ‘Teaching Civil Procedure: A Retrospective View’ (1999) 49 Jo of Leg Educ 311, at 328, apud Neil Andrews. Mediation in England: organic growth and stately progress. Texto ainda não publicado e gentilmente cedido pelo autor quando de sua visita à Faculdade de Direito da UERJ, dez./2011, p. 17. 82

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Sustentamos, como já dito antes,43 ampliação no conceito processual do interesse em agir, acolhendo a ideia da adequação, dentro do binômio necessidade-utilidade, como forma de racionalizar a prestação jurisdicional e evitar a procura desnecessária pelo Poder Judiciário, ou mesmo ou abuso do direito de ação. Poderíamos até dizer que se trata de uma interpretação neoconstitucional do interesse em agir, que adéqua essa condição para o regular exercício do direito de ação às novas concepções do Estado Democrático de Direito. Interessante observar que Neil Andrews refere em sua obra o dever das partes de explicar o motivo da recusa em se submeter aos meios alternativos.44 Mas esta é apenas uma das facetas desta visão. A outra e, talvez, a mais importante, seja a consciência do próprio Poder Judiciário de que o cumprimento de seu papel constitucional não conduz, obrigatoriamente, à intervenção em todo e qualquer conflito. Tal visão pode levar a uma dificuldade de sintonia com o Princípio da Indelegabilidade da Jurisdição, na esteira de que o juiz não pode se eximir de sua função de julgar, ou seja, se um cidadão bate às portas do Poder Judiciário, seu acesso não pode ser negado ou dificultado, na forma do art. 5º, inciso XXXV, da Carta de 1988. O que deve ser esclarecido é que o fato de um jurisdicionado solicitar a prestação estatal não significa que o Poder Judiciário deva, sempre e necessariamente, ofertar uma resposta de índole impositiva, limitando-se a aplicar a lei ao caso concreto. Pode ser que o Juiz entenda que aquelas

43. Humberto Dalla Bernardina de Pinho. A Mediação na atualidade e no futuro do processo civil brasileiro. Disponível em: http://www.humbertodalla.pro.br. 44. “Potential litigants have become aware that mediation can secure various economic gains, social benefits, and even psychological advantages, when compared to the other two main ‘paths of justice’, namely court proceedings and arbitration.5 The following points will be uppermost in the minds of disputants when they peer down the barrel of court proceedings: (1) the perception (and nearly always the reality) that court litigation is unpredictable; (2) the judicial process (including extensive preparation for the final hearing) involves a heavy-handed fight for justice, which is a source of expense, delay, and anxiety; (3) court litigation offers little scope for direct participation by the parties, as distinct from legal representatives; (4) final judgment normally awards victory to only one winner; (5) trial is open-air justice, visible to mankind in general; (6) litigation is private war—even if judges pretend that it is governed by elaborate rules and conciliatory conventions designed to take the sting out of the contest”. Neil Andrews. Mediation in England: organic growth and stately progress. Texto ainda não publicado e gentilmente cedido pelo autor quando de sua visita à Faculdade de Direito da UERJ, em dez./2011, p. 1. Neil Andrews. O Moderno Processo Civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. 2009, p. 273. 83

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partes precisem ser submetidas a uma instância conciliatória, pacificadora, antes de uma decisão técnica.45 E isto fica muito claro no Projeto do novo CPC, na medida em que o art. 118 confere uma série de poderes ao juiz, sobretudo no que se refere à direção do processo, mencionando expressamente a adequação e a flexibilização mitigada enquanto instrumentos para se alcançar a efetividade. Nesse passo, é evidente que a maior preocupação do juiz será com a efetiva pacificação daquele litígio, e não, apenas, com a prolação de uma sentença, como forma de resposta técnico-jurídica à provocação do jurisdicionado. Se o novo CPC exige do juiz uma fidelidade absoluta aos Princípios Constitucionais, convertendo-se, de forma inquestionável, num agente preservador das garantias constitucionais, por outro lado, outorga-lhe instrumentos para que possa conhecer o conflito a fundo, compreendendo suas razões, ainda que metajurídicas, a fim de promover a sua pacificação.46 Um juiz garantista e pacificador. Eis o desafio do magistrado em tempos de neoprocessualismo. Tarefa digna de Hércules, que só será possível com o adequado uso da mediação.

Referências ANDREWS, Neil. O Moderno Processo Civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Teresa Alvim Arruda Wambier (trad.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. ANDREWS, Neil. Mediation in England: organic growth and stately progress. Texto ainda não publicado e gentilmente cedido pelo autor quando de sua visita à Faculdade de Direito da UERJ, em dez./2011. BESSO, Chiara. La Mediazione Italiana: Definizioni e Tipologie. Revista Eletrônica de Direito Processual, v. VI. Disponível em: http://www.redp.com.br. Acesso em: 10/01/2011. COMOGLIO, Luigi Paolo. Mezzi Alternativi de Tutela e Garanzie Costituzionali. Revista de Processo, v. 99, p. 249/293. 45. Humberto Dalla Bernardina de Pinho. Mediação: a redescoberta de um velho aliado na solução de conflitos. In: Geraldo Prado (org.). Acesso à Justiça: efetividade do processo. 2005, p. 105/124. 46. Para Boaventura Santos, só a mediação poderia subverter a separação entre o conflito processado e o conflito real, separação que domina a estrutura processual do direito do estado capitalista e que é a principal responsável pela superficialização da conflituosidade social na sua expressão jurídica. Boaventura de Souza Santos. O discurso e o poder. 1988, p. 23. 84

3 – A mediação e o Código de Processo Civil Projetado

DITTRICH, Lotario. Il procedimento di mediazione nel d. lgs. n. 28, del 4 marzo 2010. In http://www.judicium.it. Acesso em: 20/10/2011. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. DURCO, Karol. A Mediação e a Solução dos Conflitos no Estado Democrático de Direito. O “Juiz Hermes” e a Nova Dimensão da Função Jurisdicional. Disponível em http://www.humbertodalla. pro.br. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. A Mediação e a necessidade de sua sistematização no processo civil brasileiro. REDP. a. 4; 5 v. jan.-jun/2010. Disponível em: http://www.redp.com.br. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de [organizador]. Teoria Geral da Mediação à luz do Projeto de Lei e do Direito Comparado, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. PAUMGARTTEN, Michele Pedrosa. A experiência ítalo-brasileira no uso da mediação em resposta à crise do monopólio estatal de solução de conflitos e a garantia do acesso à justiça. In Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 8. Disponível em http://www.redp.com.br. PROJETO DE LEI Nº 8.046/10. Projeto do Novo Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.camara.gov.br. SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER NETO, Theobaldo. Mediação enquanto política pública: a teoria, a prática e o projeto de lei. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2010. http://www.unisc.br/portal/pt/editora/e-books/95/mediacao-enquantopolitica-publica-a-teoria-a-pratica-e-o-projeto-de-lei-.html. VIGORITI, Vincenzo. Europa e mediazione. Problemi e soluzioni. Revista de Processo, n. 197, p. 339-355. 2011.

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O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal Fernando Gama de Miranda Net to

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Introdução. 1. Tipologia do ativismo judicial. 2. Ativismo contramajoritário. 3. Ativismo não originalista. 4. Ativismo de precedentes. 5. Ativismo formal (ou procedimental). 6. Ativismo material (ou criativo). 7. Ativismo de reparação. 8. Ativismo partidarista. 9. Considerações finais. Referências.

Introdução ercebe-se, na atualidade, que uma quantidade extraordinária de questões envolvendo moral, política, economia, meio ambiente, entre outras, tem sido levada à apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF). De fato, a atração de funções que seriam, a princípio, reservadas aos outros Poderes acarreta uma crescente tensão nas relações entre os Poderes Executivo e Judiciário (por exemplo, nos casos Raposa Serra do Sol1 e Cesare Battisti2) como também nas relações entre o Poder Legislativo e Poder Judiciário (v.g. o caso da fidelidade partidária).

P

* Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho (RJ), com período de pesquisa de um ano junto à Deutsche Hochschulefür Verwaltungswissenschaften de Speyer (Alemanha) e junto ao Max-Planck-Institut (Heidelberg) com bolsa Capes/Daad. Professor Adjunto de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (LAFEP/UFF). 1. Petição nº 3388/RR. 2. Processo de Extradição nº b1085. 87

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Como fator de legitimidade, a Corte Constitucional tem buscado, na categoria da “representação argumentativa”, 3 a fonte da legitimidade de suas decisões.4 Com efeito, por força do mandato popular, o legislador possui carta branca para decidir sobre a aprovação de projetos de lei (sem ter que fundamentar o seu voto). O juiz, ao contrário, tem que justificar cada ato decisório seu, na constante busca de adesão popular. É por esta razão que se afirma que “a representação do povo no Tribunal Constitucional é puramente argumentativa”.5 Do ponto de vista da técnica processual, a Lei nº 9.868/1999 incorporou algumas técnicas de decisão que já existiam na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,6 como a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto e a interpretação conforme à Constituição (parágrafo único, art. 28). Isto revela, ainda que de forma incompleta, que, para salvar a lei, são admitidas decisões de perfil aditivo com o consequente afastamento do dogma kelseniano do legislador negativo.7 É neste cenário – de judicialização da política8 – que se destaca o protagonismo do Supremo Tribunal Federal como ator político. Como corolário, a Corte Constitucional finda por outorgar a si mesma o poder de dar a última palavra. No entanto, se, por um lado, a busca de legitimidade e a utilização de técnicas decisórias já são conhecidas, de outro, o agir da Corte Constitucional brasileira se apresenta um tanto contraditória, porque se revela ora conservadora, ora exageradamente radical. A propósito, o Projeto do Código de Processo Civil (PL 8046/2010) indica que os tribunais (inclusive o Supremo Tribunal Federal) devem laborar para a concretização plena do princípio da legalidade. Neste sentido, reza o caput e o inciso IV do art. 882, in verbis:

3. Robert Alexy. “Ponderación, control de constitucionalidad y representación”, in: Robert Alexy. Teoría del discurso y derechos constitucionales. México: Distribuciones Fontamara, 2005. 4. Cf. Margarida Maria Lacombe Camargo; Fernando Gama de Miranda Netto. Representação argumentativa: fator retórico ou mecanismo de legitimação da atuação do Supremo Tribunal Federal? In: Revista de Direito do Estado. 2010. 5. Robert Alexy. Ponderación, control de constitucionalidad y representación. In: Teoría del discurso y derechos constitucionales. 2005. p. 100. 6. Lênio Streck. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica Jurídica. p. 476. 7. Cf. Alexandre Garrido da Silva; Fernando Gama de Miranda Netto; José Ribas Vieira. Juliana Magalhães; Margarida Lacombe Camargo; Noel Struchiner. A função legislativa do Supremo Tribunal Federal e os partidos políticos. In: Revista Jurídica da Faculdade Nacional de Direito/ UFR. 2008, p. 35 et seq. 8. Cf. Luiz Werneck Vianna. A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil. 1999. 88

4 – O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal

Art. 882. Os tribunais, em princípio, velarão pela uniformização e pela estabilidade da jurisprudência, observando-se o seguinte: (...) IV – a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores deve nortear as decisões de todos os tribunais e juízos singulares do país, de modo a concretizar plenamente os princípios da legalidade e da isonomia;

Mas o que significa velar “em princípio” (!) pela estabilidade da jurisprudência? Não se pode querer traçar o perfil do Supremo Tribunal Federal como sendo um tanto conservador – preso à legalidade estrita e sem destacá-lo como órgão de cúpula do sistema judicial. Por outro lado, também não é possível defender a concepção de um Supremo Tribunal Federal livre para decidir independente da lei. É preciso desenvolver uma reflexão crítica sobre o exercício da jurisdição constitucional pelas Cortes, sob pena de sua atuação trilhar o perigoso caminho da supremocracia.9 O modesto objetivo do presente trabalho é o de relacionar algumas decisões da Justiça Constitucional brasileira com as formas de manifestação do ativismo judicial, conforme proposta de William Marshall. Isso pode contribuir para a melhor compreensão do caput e o inciso IV do art. 882 do Projeto do Código de Processo Civil.

1. Tipologia do ativismo judicial Em um contexto de ativismo judicial, o Supremo Tribunal Federal aparece como protagonista no discurso político dos temas polêmicos da nação. Tal postura é acentuada com a renovação dos integrantes da mais alta Corte brasileira e se evidencia ainda mais com o comando do Min. Gilmar Ferreira Mendes no exercício da presidência. É significativo o voto do Min. Relator Carlos Ayres Britto na ADI 3510/DF (Lei da Biossegurança), em que assevera ser o “Supremo uma Casa de fazer destino”. Nesta linha de raciocínio, verifica-se na atuação do STF: (1) valorização da moralidade (ex. vedação ao 9. Oscar Vilhena Vieira. Supremocracia. In: Revista Direito GV, 2009, p. 445: “A ampliação dos instrumentos ofertados para a jurisdição constitucional tem levado o Supremo não apenas a exercer uma espécie de poder moderador, mas também de responsável por emitir a última palavra sobre inúmeras questões de natureza substantiva, ora validando e legitimando uma decisão dos órgãos representativos, outras vezes substituindo as escolhas majoritárias.” Vejam-se as críticas de Ingeborg Maus. Judiciário como Superego da Sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. In: Novos Estudos Cebrap, 2000, p. 183-202; Ran Hirschl. Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New Constitutionalism. 2007. 89

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nepotismo;10 fidelidade partidária);11 (2) adoção do garantismo (ex. restrição ao uso de algemas,12 direito de apelar em liberdade como regra,13 direito de ter acesso a elementos de prova em inquérito); 14 ( 3) revisão de antigas teses para alargar a sua competência (ex. poder de compor o conflito sem a participação do Poder Legislativo por meio do mandado de injunção);15 (4) internacionalização dos direitos fundamentais (ex.: fim da prisão civil do depositário infiel);16 (5) relativização de normas e superação de alguns dogmas (ex. objetificação do recurso extraordinário e a relativização do art. 52, X, da CRFB).17 Todos esses casos poderiam ser estudados a partir do conceito de ativismo judicial. Mas se fizermos a pergunta – o que significa ativismo judicial? – certamente teremos dificuldades em responder. Não há um sentido unívoco para a expressão ativismo judicial, mas vários. Por esta razão é que se propõe estudar a classificação do ativismo judicial desenvolvida por William Marshall,18 relacionando-a a alguns casos da Justiça Constitucional brasileira, nestes termos: (a) ativismo contramajoritário; (b) ativismo não originalista; (c) ativismo de precedentes; (d) ativismo formal (ou procedimental); (e) ativismo material (ou criativo); (f) ativismo de reparação; (g) ativismo partidarista. Resta-nos agora relacionar as formas de ativismo judicial presentes na classificação de William Marshall aos casos do Supremo Tribunal Federal com o intuito de mostrar que essas expressões, além de constituírem 10. Cf. Repercussão Geral: Vedação ao Nepotismo e Aplicação aos Três Poderes. In: Informativo nº 516 do STF. 11. Cf. Infidelidade Partidária e Vacância de Mandato. In: Informativo nº 482 do STF. 12.  Cf. Uso de Algemas e Constrangimento Ilegal. In: Informativo nº 437 do STF; Uso de Algemas e Excepcionalidade. In: Informativo nº 515 do STF; Súmula Vinculante nº 11 do STF: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”. 13. HC 84.078. 14. Súmula Vinculante nº14 do STF: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. 15. Mandado de injunção e direito de greve. In: Informativo n. 468, 480 e 485 do STF. 16. Cf. Prisão civil e depositário infiel. In: Informativo n. 531 do STF. 17. Cf. Reclamação 4335: Cabimento e Senado Federal no Controle da Constitucionalidade – 3. In: Informativo n. 454 do STF. 18. William P. Marshall. Conservatism and the Seven Signs of Judicial Activism. Publicado pela University of Colorado Law Review, 2002. In: . Acesso em 17/06/2012. 90

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ferramentas relevantes para o estudo das decisões judiciais, permitem uma melhor compreensão do fenômeno do ativismo judicial.

2. Ativismo contramajoritário A judicialização da política nos leva a reconhecer o afastamento do debate democrático das vias tradicionais na medida em que os grandes temas da nação são transferidos do âmbito do Poder Legislativo para as Cortes Constitucionais. No Brasil, as práticas contramajoritárias19 contam com o apoio de um Supremo Tribunal Federal estimulado não só pelo aumento crescente da demanda judicial proveniente das omissões legislativas e governamentais, mas também pelo suposto amadurecimento político do Tribunal sobre alguns temas que já passaram pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo. É neste contexto que aparece o ativismo contramajoritário, que se caracteriza pela renúncia às decisões dos Poderes diretamente eleitos. Tal caráter contramajoritário cria uma contradição entre a efetivação dos direitos fundamentais e a democracia, já que a Corte Constitucional passa a dar a última palavra sobre a constitucionalidade da atividade dos outros Poderes, notadamente o Legislativo, definindo o que está ou não de acordo com a Constituição. Dessa forma, a interpretação final da Constituição ficará sempre a cargo do Poder Judiciário.20 Mas poderia o Supremo Tribunal Federal desconsiderar escolhas do Poder Legislativo que nunca tiveram a sua constitucionalidade questionada? A decisão do Supremo Tribunal Federal nos processos envolvendo os Mandados de Injunção nº 670, 708 e 712, iniciados pelos sindicatos dos servidores públicos, ilustra bem a questão. Nesta ocasião o Supremo Tribunal Federal definiu a disciplina para o exercício do direito de greve do setor público (art. 37, VII, da Constituição brasileira de 1988). Com efeito, 19. Veja-se a conceituação a respeito do princípio do contramajoritário em Alexander Bickel. The Least Dangerous Branch The Supreme Court at the Bar of Politics. 1986. 20. Conrado Hübner Mendes. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação, p. 14, classifica as “teorias da última palavra” em: 1) mais inclinadas para cortes constitucionais e juízes; 2) mais inclinadas para parlamentos e legisladores: “a inclinação por juízes, geralmente, é baseada no que poderíamos chamar de ‘presunção de infalibilidade judicial’ (...). A inclinação por legisladores, por sua vez, é baseada na combinação de dois elementos usualmente associados a democracia e igualdade: regra da maioria e representação eleitoral. Teorias da última palavra, a rigor, não rejeitam algum tipo de diálogo ou interação, mas defendem que o circuito decisório possui um ponto final dotado de autoridade por meio de uma decisão soberana ”. Explica o autor que o terceiro tipo de resposta é fornecido por “teorias do diálogo institucional”, que defendem não existir conflito ou competição pela última palavra, mas debate cooperativo permanente entre as instituições (op. cit., p. 15). 91

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em função da dificuldade de se exercer o direito fundamental de greve, o Tribunal Constitucional determinou a aplicação analógica dos dispositivos da Lei nº 7.783/1989, a Lei de Greve do setor privado. Observe-se que o legislador, ao regular o direito de greve previsto no art. 9º, §§ 1º e 2º, da Carta Magna, já havia dito no art. 16 da Lei nº 7.783/1989, que lei complementar trataria da greve no setor público, o que indicava que aquela lei só poderia ser aplicada aos empregados da iniciativa privada. Neste caso, portanto, o Supremo Tribunal Federal adotou claramente uma postura contramajoritária em nome da efetivação do direito fundamental de greve, muito embora os impetrantes tenham manifestado a intenção de desistir da ação.

3. Ativismo não originalista O ativismo não originalista caracteriza-se pelo não reconhecimento de qualquer originalismo na interpretação judicial, sendo desprezadas as concepções mais estritas do texto legal e as considerações sobre a real intenção do legislador. Se, por um lado, o governo tem sido criticado repetidamente pela emissão descontrolada de medidas provisórias, porque atua como um legislador, por outro lado, hoje é o Tribunal Supremo, que se tornou o objeto de insatisfação entre os outros poderes. Na verdade, o Judiciário atualmente regula situações jurídicas complexas que, em princípio, deveriam ser discutidas no âmbito do Parlamento. No caso da fidelidade partidária, o Partido Popular Socialista (PPS), o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Democratas (DEM) exigiram a revogação do mandato dos deputados que mudaram de partidos após a eleição (Mandados de Segurança nº 26.602, 26.603, 26.604 e 26.890). Embora a perda do mandato parlamentar por infidelidade partidária não estivesse prevista no art. 55 da Constituição de 1988 e tampouco no art. 240 do Regimento da Câmara dos Deputados, endossando a resposta do Tribunal Superior Eleitoral, resultante do Inquérito nº 1.389/DF, o Supremo Tribunal Federal decidiu por maioria que a fidelidade partidária deveria ser observada, ignorando o princípio da legalidade (não há pena sem prévia cominação legal). Curioso é que a norma que proibia a infidelidade partidária, de um ponto de vista histórico, podia ser extraída do texto legal do art. 35, V, da Constituição brasileira de 1969, mas havia sido revogada pela Emenda Constitucional nº 25 de 1985, com a redemocratização do país. Neste caso, portanto, a vontade do Poder Constituinte originário não foi respeitada. 92

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4. Ativismo de precedentes O ativismo de precedentes é marcado pela rejeição aos precedentes anteriormente estabelecidos. Há casos muito interessantes, é de se destacar um em que o Supremo Tribunal Federal contrariou a jurisprudência firme do Superior Tribunal de Justiça no sentido de ser obrigatória a presença de advogado constituído no processo administrativo disciplinar. 21 Com efeito, em setembro de 2007, o Superior Tribunal de Justiça editou o Enunciado de Súmula de Jurisprudência predominante nº 343, com o seguinte teor: “É obrigatória a presença de advogado em todas as fases de processo administrativo disciplinar”. Ocorre que na sessão plenária de 07/05/2008 foi aprovado o Enunciado de Súmula Vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal, que trata da defesa técnica por advogado em processo administrativo disciplinar: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. Tal enunciado traz, portanto, conteúdo diametralmente oposto ao teor do Enunciado nº 343 do Superior Tribunal de Justiça. Registre-se que a aprovação da Súmula Vinculante nº 5 ocorreu logo após o julgamento do Recurso Extraordinário 434.059, interposto pelo Instituto Nacional do Seguro Social e pela União contra decisão do Superior Tribunal de Justiça. Na decisão recorrida, o Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem para anular a imposição da pena com fundamento na ausência de defesa técnica no processo administrativo disciplinar, nos termos da Súmula nº 343. No Supremo Tribunal Federal, o Min. Gilmar Ferreira Mendes conduziu a votação unânime no sentido de que a ausência de advogado constituído ou de defensor dativo com habilitação não importa, por si só, nulidade do processo administrativo disciplinar. 21. Mandado de segurança. Processo administrativo disciplinar. Cerceamento de defesa. Ocorrência. Ausência de advogado constituído e de defensor dativo. 1. A presença obrigatória de advogado constituído ou defensor dativo é elementar à essência mesma da garantia constitucional do direito à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, quer se trate de processo judicial ou administrativo, porque tem como sujeitos não apenas os litigantes, mas também os acusados em geral. 2. Ordem concedida. (MS 7.078 – DF. 09/12/2003. Rel. Min. Hamilton Carvalhido). (grifo nosso) Mandado de segurança. Processo administrativo disciplinar. Ausência de defesa por advogado e defensor dativo. Cerceamento de defesa. Ocorrência. I – “A presença obrigatória de advogado constituído ou defensor dativo é elementar à essência mesma da garantia constitucional do direito à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, quer se trate de processo judicial ou administrativo, porque tem como sujeitos não apenas litigantes, mas também os acusados em geral” (Precedentes). II - Independentemente de defesa pessoal, é indispensável a nomeação de defensor dativo, em respeito à ampla defesa. III - Ordem concedida. (MS 10.565 – DF. 13/03/2006. Rel. Min. Felix Fischer). (grifo nosso) 93

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Para atender a exigência constitucional de “reiterados pronunciamentos” da Suprema Corte, apontou-se como precedentes para a confecção da Súmula Vinculante nº 5 o Agravo Regimental no AI 207197, o Agravo Regimental no RE 244277 e o MS 24961. É de se observar que no AI 207197/PR, o agravante questionou a falta de intimação de seu procurador no âmbito de processo administrativo fiscal, e não em sede de processo administrativo disciplinar. Do mesmo modo, o MS 24961-7/DF tratou de procedimento de Tomada de Contas Especial que, igualmente, não constitui processo administrativo disciplinar. O Ministro Marco Aurélio chegou a apontar a inexistência de precedentes com mesmo teor, a justificar a edição de verbete vinculante, mas em vão.22 O verbete restou aprovado sem o cumprimento do requisito constitucional e contra vários precedentes estabelecidos pelo Superior Tribunal de Justiça.

5. Ativismo formal (ou procedimental) O ativismo formal (ou procedimental) é marcado pela resistência das cortes em aceitar os limites legalmente estabelecidos para sua atuação. Neste tema, vale conferir a decisão do caso apreciado pelo Supremo Tribunal Federal em sede de ação declaratória de inconstitucionalidade, envolvendo a criação, por lei estadual baiana, do município Luís Eduardo Magalhães, que teve o seu acórdão publicado em 03/08/2007 (ADI 2240 BA). Com o intuito de coibir a multiplicação de municípios pelo país, a Emenda Constitucional nº 15 de 1996 resolveu estabelecer novos requisitos no art. 18, § 4º, da Lei Maior. No entanto, quando a lei estadual baiana criou o município de Luís Eduardo Magalhães, houve flagrante violação da exigência constitucional. Com efeito, mesmo sem a consulta popular às populações dos municípios envolvidos e a divulgação dos estudos técnicos de viabilidade de desmembramento (que deve ocorrer antes do plebiscito), a Suprema Corte, por maioria, permitiu a inconstitucionalidade sem declarar nula a lei.

22. Acórdão no RE 434.049, p. 768-769, Acesso em 18/06/2012. Disponível em: . 94

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6. Ativismo material (ou criativo) O ativismo material (ou criativo) é resultante da criação de novos direitos não previstos em lei. Pode-se apontar como exemplo recente o caso enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal, julgado nos dias 04 e 05/05/2011, sobre os direitos das uniões homoafetivas, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277DF e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132-RJ. Questionou-se a possibilidade de interpretação conforme à Constituição do art. 1.723 do Código Civil, em consonância com os preceitos fundamentais da Carta Magna, tais como a dignidade da pessoa humana, a isonomia, a não discriminação e a autonomia da vontade, em razão da dúvida levantada quanto à compreensão do instituto da união estável formada pelo homem e a mulher, de acordo com a redação do art. 226, § 3º, da Constituição da República Federativa do Brasil. Em decisão histórica, a Corte Constitucional reconheceu a união estável homoafetiva como entidade familiar, o que impede qualquer leitura discriminatória do art. 1.723 do Código Civil. Além disso, o Supremo Tribunal Federal decidiu que as regras aplicáveis à união estável heteroafetiva também devem ser aplicadas aos companheiros homossexuais, principalmente em questões que tangem direitos patrimoniais, tais como direitos sucessórios, previdenciários, regime de bens etc.

7. Ativismo de reparação O ativismo de reparação é marcado pelo uso do poder judicial para impor ações positivas ou de controle para os outros poderes. Nesta modalidade, merece destaque a declaração de constitucionalidade da chamada “lei da ficha limpa” (Lei Complementar nº 135/2010), do dia 16/02/2012, o que impede que políticos condenados criminalmente por órgãos colegiados sejam candidatos a cargos eletivos. Importante destacar que a chamada “lei da ficha limpa” nasceu do mecanismo da iniciativa popular, depois que grupos que representam a sociedade civil, com a ajuda da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), reuniram mais de 1,5 milhão assinaturas para levar o projeto de lei no Congresso. A lei foi sancionada em junho de 2010 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

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No julgamento, quatro ministros entenderam que a lei violava o princípio da presunção de inocência, mas prevaleceu o entendimento de que tal princípio não tem aplicação absoluta.

8. Ativismo partidarista No ativismo partidarista há o uso do poder judicial para atingir objetivos específicos de um determinado partido, grupo social ou mesmo do governo. Na ADPF nº 46 questionou-se o monopólio dos Correios fundamentado pela Lei nº 6.538/1978 com base na livre-iniciativa. O Tribunal, por maioria, votou a favor da recepção da lei, uma vez que os Correios desenvolvem um serviço público que deve ser fornecido exclusivamente pela União. Para a maioria, o Supremo Tribunal decidiu que a entrega de cartas pessoais deve estar sob o controle da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos ( ECT), enquanto outras formas de correspondência estariam abertas para o mercado. Desta forma, por meio de um ativismo partidário, protegeu-se o interesse governamental, mantendo-se o monopólio da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT-Correios) para emissão de selos e serviços postais de correspondências que contenham informação de interesse específico do destinatário de qualquer natureza. Isto significa que a entrega de cartas pessoais e comerciais, cartões-postais, malotes, faturas de cartões de crédito, talões de cheques, carnês, cobranças de tributos continua a ser exclusividade da estatal, embora as empresas privadas estejam autorizadas a entregar encomendas variadas como jornais, revistas, catálogos de mala direta e produtos vendidos via e-commerce. A votação apertada, por seis votos a quatro, reforça nossa suspeita de que não parece haver razão jurídica séria capaz de sustentar essa forma de ativismo.

9. Considerações finais O presente estudo procurou relacionar alguns casos da Justiça Constitucional brasileira com as várias formas de ativismo judicial, na esteira da classificação de William Marshall, a saber: (a) ativismo contramajoritário; (b) ativismo não originalista; (c) ativismo de precedentes; (d) ativismo formal (ou procedimental); (e) ativismo material (ou criativo); (f) ativismo de reparação; (g) ativismo partidarista. Tal classificação nos fornece um mapa capaz de compreender as variadas manifestações do ativismo judicial e nos permite refletir quais seriam formas 96

4 – O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal

legítimas (ativismo material ou criativo) e ilegítimas (ativismo partidarista) no contexto político do Supremo Tribunal Federal. Isso sugere que nem sempre a legalidade estrita poderá ser observada pela Corte Constitucional, o que nos ajuda melhor a compreender o caput e o inciso V do art. 882 do Projeto do Código de Processo Civil.

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Ensaio sobre o projeto do Novo Código de Processo Civil frente às políticas públicas e à responsabilidade social Carlos Magno Siqueira Melo

*

Introdução. 1. Um breve resumo acerca da essência do Estado e do Direito sob a crítica filosófica. 2. Um breve resumo acerca da essência do Direito Processual Civil sob a crítica filosófica. 3. Alguns dados estatísticos. 4. Punitive Damages? Talvez uma solução para a esfera cível! 5. O Código de Processo Civil e o Novo Código de Processo Civil. 6. Considerações finais. Referências.

Introdução

N

esta coletânea de artigos elaborados por renomados juristas, apresento este ensaio, ao mesmo tempo lisonjeado por publicá-lo, e receoso por tamanha responsabilidade. Porém, uma vez tendo aceitado tal empresa, pretendo contribuir da melhor forma que me é possível nesse momento. Com efeito, esclareço que não tenho, neste ensaio, qualquer pretensão doutrinária, até mesmo porque muitos autores a quem, aliás, devoto o meu total respeito acadêmico e admiração profissional já vêm se ocupando de tal empreendimento. Portanto, o objetivo, aqui, se limitará a correlacionar a idealização do Projeto do Novo Código de Processo Civil a alguns aspectos político-sociais, numa postura interdisciplinar à filosofia e à sociologia, das quais não se pode, entendo eu, pensar o direito de forma empírica sem prejuízo dessa atividade, exigindo-se, nesse fim, a alforria de abstrações que, por ingenuidade talvez, tornam inócuas a função legislativa.

* Professor Assistente de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Filosofia pela UGF e Especialista em Direito Processual Civil e Direito Civil pela UNESA. 99

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Desse modo, atento àquelas disciplinas, me acautelo quanto à legitimidade do discurso travado entre a comissão de juristas encarregada da elaboração do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, o povo e as mais variadas instituições em consultas públicas sobre o direito, sob pena de negligenciá-lo. Nesse prisma, gostaria de esclarecer que, fugindo às regras estabelecidas para elaboração de trabalhos de cunho científico, estou abolindo neste ensaio, como o próprio gênero literário permite, a “terceira pessoa” no intuito de expressar, a priori, as minhas considerações sobre a ideia de um Novo Código Processual na atual conjuntura. Ademais, apreendi como minhas, as lições de Montaigne que, com muita propriedade, observou que “há mais dificuldade em interpretar as interpretações do que em interpretar as coisas, e mais livros sobre os livros do que sobre outro assunto”.1

1. Um breve resumo acerca da essência do Estado e do Direito sob a crítica filosófica De início, necessário é o resgate da ideia de que falta, em nosso sistema, o Princípio do Devido Processo Legislativo, independente da supremacia dos interesses do capital que, arrisco a dizer, desde o advento da Revolução Francesa parecem predominar as atividades parlamentares no ocidente, onde as casas legislativas atuam, muitas vezes, como típicas corretoras de negócios influenciadas por verdadeiros lobistas na defesa de seus objetivos. A situação política brasileira vem confirmar essa asserção. Não obstante, a impostura do sistema não é de hoje. No século IV, antes da era cristã, Platão,2 discutindo sobre a justiça, passou pela tese de “que a justiça nada mais é do que a conveniência do mais forte”, embora tenha deixado clara sua discordância, até mesmo porque, em função dessa “justiça”, puniu-se com a morte, em sua concepção, o homem mais sábio – e justo – que existiu em Atenas. Corroborando a questão, as lições de Schmitt 3 nos remete à constatação de que a norma não é senão uma resultante entre as mais variadas manifestações do fenômeno jurídico, ou seja, é a manifestação que prevalece, excluindo-se as demais. Alinhavando o tópico, Marx4 afirmou expressa1. 2. 3. 4. 100

Michel de Montaigne. Ensaios, III, 13, 2000. Platão. A República. 1997. Carl Schmitt. Teologia Política. 2006. Karl Marx. A Ideologia Alemã. 2010.

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mente que não só o Direito, mas o próprio Estado serve de base aos ideais “da” propriedade privada: Entre os povos surgidos da Idade Média, a propriedade tribal desenvolve-se passando por diferentes etapas – propriedade feudal da terra, propriedade mobiliária corporativa, capital manufatureiro – até chegar ao capital moderno, condicionado pela grande indústria e pela concorrência universal, que é a propriedade privada pura, que se despiu de toda aparência de comunidade e excluiu toda a influência do Estado sobre o desenvolvimento da propriedade. A essa propriedade privada moderna corresponde o Estado moderno, o qual, comprado pouco a pouco pelos proprietários privados por meio dos impostos, termina por ficar completamente sob o controle destes pelo sistema da dívida pública, cuja existência depende, por causa do jogo da alta da baixa dos valores do Estado e da baixa dos valores do Estado na Bolsa, inteiramente do crédito comercial que é concedido pelos proprietários privados, os burgueses. Pela emancipação da propriedade privada com relação à comunidade, o Estado adquire uma existência particular, ao lado e fora da sociedade civil; mas tal Estado não é mais do que a forma de organização que os burgueses adotam, tanto para garantir reciprocamente a sua propriedade e a de seus interesses, tanto em seu interior como externamente. (...) Os escritores franceses, ingleses e americanos, em geral, dizem todos que o Estado só existe por causa da propriedade privada, de tal maneira que essa ideia acabou por passar para o senso comum.

E continua o preclaro autor, Já que o Estado, pois, é a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de um período, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado e dele adquirem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei se baseia na vontade e, mais ainda, na vontade livre, destacada de sua base real. Do mesmo modo, o direito é reduzido, por seu turno, à lei. (...) O direito privado se desenvolve ao lado da propriedade privada, como decorrência da desintegração da comunidade natural.

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E conclui que “cada vez que o desenvolvimento da indústria e do comércio gera novos intercâmbios (companhias de seguros etc.), o direito tem sido regularmente obrigado a admiti-las dentre as formas de aquisição de propriedade”. Disso, alço voo até o Marquês de Sade5 que, incontestavelmente, aponta a ilegitimidade das normas, Se percorremos a Antiguidade, veremos o roubo permitido, recompensado em todas as Repúblicas da Grécia, Esparta e a Lacedemônia o favoreciam abertamente. Alguns outros povos viam-no como uma virtude guerreira. É certo que ele mantém a coragem, a força, a habilidade, enfim, todas as virtudes úteis a um governo republicano e por consequência ao nosso. Ousarei perguntar-vos, sem imparcialidade agora, se o roubo, cujo efeito é nivelar as riquezas, é um grande mal num governo cujo objetivo é a igualdade.

E com a mesma firmeza, continua o filósofo, Qual o espírito de um juramento pronunciado por todos os indivíduos de uma nação? Não é o de manter uma perfeita igualdade entre os cidadãos, de submetê-los igualmente à lei protetora das propriedades de todos? Pergunto-vos agora se é justa a lei que ordena a quem nada possui respeitar quem tem tudo.

Indaga mais: Quais são os elementos do pacto social? Ele não consiste em ceder um pouco de sua liberdade e de suas propriedades para assegurar e manter o que se conserva de uma e de outra? Mas, uma vez mais, com que direito aquele que nada tem se prenderia a um pacto que só protege aquele que tem tudo? Se praticais um ato de equidade conservando, por vosso juramento, as propriedades de um rico, não cometeríeis uma injustiça exigindo este juramento do “conservador” que não tem nada?

E,

5. Sade. A Filosofia na Alcova. São Paulo: Iluminuras, 2000. 102

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Que interesse ele poderia ter em vosso juramento? E por que haveis de querer que ele prometa algo que só seja favorável àquele que tanto difere dele por suas riquezas? (...) Nada, seguramente, é mais injusto: um juramento deve produzir igual efeito em todos os indivíduos que o pronunciam; é impossível que ele possa acorrentar aquele que não tem nenhum interesse em sua manutenção, pois não seria o pacto de um povo livre, seria a arma do forte contra o fraco, contra a qual este deveria incessantemente revoltar-se. É o que acontece ao juramento do respeito das propriedades que a nação acaba de exigir; somente o rico acorrenta o pobre, somente o rico tem interesse no juramento que o pobre pronuncia, com tanta falta de consideração que não percebe que por meio deste juramento, extorquido à sua boa-fé, obriga-se a fazer algo que não se pode fazer com ele face a face. (...) Assim, convencidos, como deveis estar, desta bárbara desigualdade, não agraveis vossa injustiça punindo aquele que nada tem por haver ousado furtar qualquer coisa àquele que tem tudo. (...) Vosso injusto juramento assegura-lhe mais direito que nunca; obrigando-se ao perjúrio por este juramento absurdo para ele, vós legitimais todos os crimes onde este perjúrio o levará.

E sintetiza no livro que publicou em 1795: “Logo, não cabe a vós punir aquilo de que fostes a causa”, ratificando-se a conclusão, as palavras pronunciadas por Margarida, no Fausto, de Goethe:6 “Quem é que te deu, ó Carrasco, esse poder sobre mim?”. Indague-se, então, que “Pacto Social”7 seria esse que não respeita, sob a mesma medida, os interesses dos titulares? Que “Contrato Social”8 seria esse que não respeita o sinalágma contratual, pelo qual se exige o equilíbrio entre prestação e contraprestação que, convém ressaltar, no Brasil, o cidadão é “confiscado” pelo Estado sem que este lhe compense em contraprestação? Ciente disso, afirmou Foucault 9 que “é a pedido do poder real, em seu proveito e para servir-lhe de instrumento ou justificação que o edifício 6. 7. 8. 9.

Johann Wolfgang von Goethe. Fausto. 2004. Thomas Hobbes. Leviatã. 1997. Jean-Jacques Rousseau. Do Contrato Social. 1997. Michel Foucault. Microfísica do Poder. 2004. 103

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jurídico das nossas sociedades foi elaborado”, ou seja, “no Ocidente, o direito é encomendado pelo rei” desde, senão sempre, ao menos da Idade Média e, reescrevendo Marx, Foucault afirma que o Direito é, de modo geral, o instrumento de dominação: “O sistema do direito, o campo judiciário são canais permanentes de relações de dominação e técnicas de sujeição polimorfas. O direito deve ser visto como um procedimento de sujeição, que ele desencadeia, e não como uma legitimidade a ser estabelecida”. Dessa “sujeição”, resulta o Poder Disciplinar que, por sua vez, serve de base à Sociedade Disciplinar. De toda sorte, Foucault debatendo sobre a Justiça Popular foi incisivo ao afirmar que a sua “hipótese é que o tribunal não é a expressão natural da justiça popular mas, pelo contrário, tem por função histórica reduzi-la, dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do aparelho de Estado”. E, tal como outros autores, entende que “na luta contra o poder disciplinar, não é em direção do velho direito da soberania que se deve marchar, mas na direção de um novo direito antidisciplinar e, ao mesmo tempo, liberado do princípio de soberania”. O que corrobora os estudos de Hobbes10 que, sintetizando, verificou que “quando o governo for escolhido, os cidadãos perdem todos os direitos, exceto os que o governo possa achar conveniente conceder”, que parecem ter passado pelo Sermão do Bom Ladrão, pregado por Padre Antônio Vieira, nos idos de 1655, cujo excerto demonstra um suposto diálogo entre certo pirata e Alexandre Magno. Dizia assim: Navegava Alexandre em uma poderosa armada no intuito de conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, o pirata, que não era medroso, respondeu assim: Basta, senhor, porque eu que roubo em uma barca sou ladrão, e vós que roubais em uma armada, sois imperador? E assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros, furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter 10. Hobbes, Op. cit. 104

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furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador por ter roubado uma província! E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes?11

E quando o cidadão se recusa a pagar o imposto que lhe é imposto, é qualificado como inadimplente e será sancionado por tal, como aquele “pirata” e será punido por isso. E quando o Estado desvia do seu prometido objetivo ao desrespeitar as garantias fundamentais do cidadão e os direitos sociais? Não estaria o cidadão, então, diante dos “Alexandres”?

2. Um breve resumo acerca da essência do Direito Processual Civil sob a crítica filosófica É nesse panorama, há muito denunciado por um sujeito “maquiavélico”, por um sujeito “sádico”, por um “comunista” ou por um sujeito rotulado, igualmente de forma pejorativa, como “jurista do nazismo” que o direito é, e continua sendo pensado. Muitos juristas foram formados a partir da década de 1960, marcada a ferro e fogo pela ditadura militar até a redemocratização que, após afastada a “ameaça comunista”, permanecem debruçados sobre idealizações acadêmicas acerca do estado democrático de direito e do pós-positivismo sem, contudo, resolver efetivamente a questão da morosidade da justiça; necessário é que os acadêmicos do direito deixem a caverna, como há muito pensou Platão,12 para que, então, possam enxergar além das sombras que se formam no seu interior, ou seja, possam ver a verdadeira causa dessas sombras... No entanto, durante aquele regime, o poder então instituído subverteu a ordem conforme seus objetivos e, no intuito de evitar discussões a respeito, necessitava de uma sociedade composta – na linha de Lênin – por “idiotas úteis” o que, por sua vez, impunha o obscurantismo. Nessa linha, os intentos do capital estrangeiro que o financiava houve, dentre outros, por adequar o programa pedagógico remetendo, em alguns casos, a filosofia para segundo plano e em outros, simplesmente, suprimindo-a do ensino, sedimentando, por via reflexa, o esperado preconceito quanto essa fundamental disciplina. Conseguiram, numa visão geral, suprimir mecanismos eficazes ao

11. Antônio Vieira. Sermões Escolhidos. 2005. 12. Platão. Op. cit. 105

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desenvolvimento da atividade cognitiva preparada para identificar, segundo a ontologia, o “eu e minhas circunstâncias”.13 Como notou Mascaro,14 A ideia de direito como conjunto de normas, coerentes ou coesas, que ainda hoje se faz como definição do próprio direito, nada mais é do que a afirmação dos paradigmas tradicionais da filosofia do conhecimento e da filosofia política do individualismo redundante no direito natural. O rompimento procedido pelo pensamento contemporâneo no sistema de racionalidade moderno – Marx e a filosofia da práxis, Nietzsche, Freud, Heidegger, dentre outros, não tem encontrado eco na teoria ou na prática jurídicas. Ainda o fenômeno jurídico é apercebido pelo jurista nos moldes tradicionais do racionalismo iluminista, quando não nas tradições metafísicas medievais.

Com efeito, impõe-se a lembrança de que a burguesia conseguiu, num primeiro momento, conter o autoritarismo monárquico ao atrelar a conduta do Executivo à lei, conferindo, com isso, a qualidade de legitimidade dos atos administrativos, percebendo também que o positivismo jurídico, se dogmático, serviria num segundo momento à mudança no paradigma do absolutismo, passando o almejado poder às mãos daqueles que financiam os parlamentares. Disso, resultou, no âmbito do direito processual, o conceito clássico de jurisdição encontrado em Chiovenda15 e repetido frequentemente nos livros de direito processual, que acabam por dogmatizar a ideia de que a jurisdição é a “função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva” que, juridicamente, parece contrariar a inteligência do art. 2º, da Constituição Federal,16 que prega a “independência” e a “harmonia” entre os poderes. Ideia tão bisonha quanto aquela, segundo a qual se pretende defender a tese de que o móbil último dessa função estatal é a paz social, o que me leva a indagar: “paz social” sob a óptica de quem? 13. , José Ortega y Gasset. Meditações do Quixote. 1967. 14. Alysson Leandro Mascaro. Filosofia do Direito e Filosofia Política: a justiça é possível. 2008. 15. Giuseppe Chiovenda. Instituições de Direito Processual Civil. v. II. 16. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 106

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A postura adotada pelos tribunais pátrios potencializa a crise experimentada pelo próprio Poder Judiciário, cuja causa, embora com ela se deparem, cotidianamente, não a enfrentam. A assertiva “diante ausência de disposição legal que o autorize”, como muitos juízes ainda “fundamentam” suas decisões com as quais julgam improcedentes os pedidos dos jurisdicionados – fato constatado inclusive por mim em causa que patrocinei17 – remete as partes ao positivismo jurídico extremo, totalmente aquém do ideal social, que não pode ser confundido com o ideal do capital, pois reduz o direito somente à lei. Infelizmente, o Judiciário vive e revive essa conotação, por vezes repetida de forma, talvez, irrefletida na doutrina, fazendo crer aos operadores do direito nas lições de teoria geral do processo que o juiz faz atuar, pela jurisdição, a vontade da lei no caso concreto. Não percebe, contudo, que o juiz – ao fazer atuar, pela Jurisdição, a vontade da lei no caso concreto – está, na realidade, fazendo atuar a vontade do legislador.18 E, em que pesem as lições acadêmicas sobre o pós-positivismo, segundo o qual supostamente se “expandiu a atividade subsuntiva do juiz para uma atividade verdadeiramente concretizadora e criadora do direito a ser aplicado”,19 temo que, na realidade, se se expandiu a atividade judicial, tal expansão ainda é muitíssimo tímida. Com efeito, essa realidade desloca o Judiciário de sua posição essencial, subordinando-o aos interesses do Poder Legislativo, pois que “a lei” constitui a atividade principal das casas legislativas. Ou seja, se a atividade jurisdicional está limitada à descrição da lei e, consequentemente, à vontade do legislador e estando o juiz “impedido” de outorgar Direitos em função da ausência de disposição legal que os autorize, tornar-se-á inócuo o Poder Judiciário, principalmente quando a lei não guardar, em si mesma, a justiça. Essa ideia, inclusive, inspirou Montesquieu2 0 a concluir que o “poder de julgar era um poder nulo”, tendo em vista que o poder dos juízes estava limitado a afirmar o que já havia sido afirmado pelos legisladores. Isso tudo, repita-se, reduziu não só o direito à lei, mas também foi responsável por uma inconcebível simplificação das tarefas e das responsabilidades 17. TJ-RJ; Apelação cível nº 0002784-47.2007.8.19.0212 (2008 001 20781); Rel. Des. José de Samuel Marques; Terceira Câmara Cível; j. 09/07/2008. 18. Luiz Guilherme Marinoni. Curso de Direito Processual Civil, 2007. 19. Carolina Tupinambá. Novas tendências e participação processual – o amigus curiae no antreprojeto do novo CPC. In: Luiz Fux (coord.). O Novo Processo Civil Brasileiro: Direito em expectativa 2011. 20. Montesquieu. O Espírito das Leis. 1997. 107

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dos juízes, promotores, advogados, defensores e juristas, limitando-as a uma aplicação mecânica das normas jurídicas na prática forense como observou Marinoni.21 Os operadores do direito passaram à condição de meros operários do Legislativo, observando-lhes os interesses e, assim, ratificando-se os anseios de uma parcela ínfima da sociedade eis que o Brasil é um dos países do globo onde a manifesta concentração de renda nas mãos de poucos acarreta nas evidentes desigualdades sociais, não obstante a voga acerca da nova classe média, da responsabilidade social e das políticas públicas. Convém recordar que a força do princípio da legalidade originou-se às margens da Revolução Francesa, cujo Estado, totalmente corrupto, sofria influência da sociedade burguesa que detinha recursos e, no intuito de limitar os abusos do Poder Executivo, atrelou a legitimidade administrativa à observância da lei. Dessa forma, aquela administração só poderia atuar conforme autorização legal o que, por sua vez, acabou por constituir um critério de identificação do Direito, de modo que este seria assim considerado se formatado em norma jurídica, cuja validade não dependeria, necessariamente, de sua correspondência com a justiça, mas somente de ter sido produzida por uma autoridade dotada de competência normativa o que, aliás, contraria a filosofia platônica e aristotélica pelas quais se depreende que se o Direito e a Lei fossem injustos, não poderiam sequer ser considerados “Direito” ou “Lei”,2 2 conferindo-se, desse modo, o poder ao juiz para decidir, acaso exija o processo, contra aquele “Direito” e contra aquela “Lei”, tidos por injustos: era a essência da equidade.2 3 Naquela dimensão a juridicidade da norma estava desligada de sua justiça intrínseca, importando apenas se foi editada por uma autoridade competente e segundo um procedimento regular. Essa filosofia impede o juiz de atuar, limitando-o em seu poder jurisdicional e ratificando a situação consolidada pela lei que privilegia à casta dominante. Por isso eu afirmei acerca da necessidade de um Princípio que oriente o Devido Processo Legislativo. Diga-se, por oportuno, que a lei, que na época do Estado Legislativo valia em razão da autoridade que a proclamava independentemente da sua correlação com os ideais de justiça, não existe mais pois haveria cedido o seu posto de supremacia ao subordinar-se, hoje, à Constituição,24 o que eu, particularmente, ouso discordar tendo em vista que a própria Constituição 21. 22. 23. 24. 108

Marinoni. Op. cit. Alysson Leandro Mascaro. Filosofia do Direito. 2010. Alysson Leandro Mascaro. Ibidem. Marinoni. Op. cit.

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é consequência da atividade legislativa, constituindo-se na lei fundamental por intermédio daqueles que, demagogicamente, afirmam atuar na representação do povo, que de soberano não tem nada pensando-se sob a ótica de Schmitt segundo a qual soberano seria aquele que tem o poder de decidir, não apenas conforme à “regra”, mas principalmente, sobre a “exceção”2 5 como, para ilustrar, as aposentadorias compulsórias aplicadas a juízes pouco ortodoxos para dizer o menos. Aliás, cumpre indicar, pois não há espaço aqui para tanto, o estudo de Müller 2 6 acerca do conceito jurídico de povo. Não poderíamos olvidar, ainda, das lições de Lassalle,27 principalmente aquelas relativas às “constituições de papel”, assim denominadas em caráter pejorativo para demonstrar, em síntese, a sua democrática demagoga que pode, muito bem, ser verificada, por exemplo, nos intentos do art. 78 do ADCT, inserido pela Emenda Constitucional nº 30/2000, cuja inteligência é, por demais, lesiva ao cidadão a ponto de a Ordem dos Advogados do Brasil tratar a questão – desrespeito aos precatórios – como ofensiva aos Direitos Humanos, embora seja, a nossa Constituição de 1988, defendida como uma das mais modernas do Mundo a ponto de receber o cognome de “Constituição Cidadã”; embora seja, a nossa Constituição de 1988, ineficaz nos pontos que mais interessam ao povo: garantias fundamentais e direitos sociais. Porém, há de se concordar que a transformação da concepção de direito faz surgir um positivismo crítico, que passou a desenvolver teorias destinadas a dar ao juiz a real possibilidade de afirmar o conteúdo do direito comprometido com a Constituição, pelo menos no plano ideológico. Disso, deveria suscitar, como afirma Marinoni ter surgido, um novo modelo de juiz frente a um novo modelo de Jurisdição, capazes de abarcar a nova realidade que vem se criando. Entretanto, tal ensinamento ainda é timidamente ministrado nas universidades que vêm pregando, geração após geração, uma concepção conservadora e legalista do direito, “em grande parte pela perda de qualidade crítica dos cursos jurídicos”,2 8 o que resultou no fato de que, O jurista é, ao mesmo tempo, um dominante opressor de quem está sob as leis e um mero dominado oprimido, pois que todos seus regimentos e suas instituições não são livres nem efetivamente autônomos. Somos nós juristas também uma classe medíocre, no meio das opressões, mantendo 25. Carl Schmitt. Op. cit. 26. Friedrich Müller. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 2012. 27. Ferdinand Lassalle. A Essência das Constituições. 2001. 28. Alysson Leandro Mascaro. Filosofia do Direito e Filosofia Política: a justiça é possível. 2008. 109

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um tal regime de opressões que, de resto, também é uma forma de injustiça grave.2 9

O princípio da legalidade, meio encontrado pela burguesia para conter o regime deposto, submeteu o Executivo e o Judiciário à hegemonia do Legislativo, assumindo este, posição óbvia de supremacia: o Executivo somente poderia atuar se autorizado pela lei e nos seus exatos limites e o Judiciário se limitaria a aplicá-la, sem ao mesmo deter a possibilidade de interpretá-la como nos diz, num ar professoral, o pomposo clichê ubi Lex non distinguit, nec interpres distinguere debet. E os juristas, temendo o que se convencionou chamar de a “Ditadura do Judiciário”, seguem ratificando a “Ditadura do Legislativo” que há muito se instaurou. Com efeito, não só no Código de 1973, editado no auge do Regime Militar cujos objetivos eram claramente desfavoráveis ao povo, mas também no Projeto do Novo Código de Processo Civil, encontramos normas que se apresentam eminentemente como freios ao poder do juiz, limitando-o em sua função ao impor, respectivamente, no art. 127 que ele “só decidirá por equidade nos casos previstos em lei” e no art. 120 que “o juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei”, ou seja, apenas quando o Legislativo o autorizar – ou legislador financiado pelo capital – poderá o juiz valer-se da equidade. E assim autorizou o legislador no código atual, em algumas hipóteses tratadas no âmbito da jurisdição voluntária e – seguindo a lógica burguesa de outrora – o Projeto do Novo Código de Processo Civil, no parágrafo único do seu art. 689, ao tratar dos Procedimentos Não Contenciosos, certifica que “o juiz não é obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que considerar mais conveniente ou oportuna”, em outras palavras, mais equânime. Cabem, aqui, as diretrizes traçadas por Wolkmer, (...) cabe avançar na formulação crítica de uma nova legitimidade capaz de superar as limitações e as incongruências da tradição jurídico-formalista que reduz e confunde sempre a legitimidade com o princípio da legalidade. Trata-se de romper com a lógica dominante de que o processo de legitimação do poder estatal se identifica necessariamente com o processo de legalização do exercício do poder. 30 29. Alysson Leandro Mascaro. Ibidem. 30. Antônio Carlos Wolkmer. Legitimidade e legalidade: uma distinção necessária. Revista de Informação Legislativa. 1994. 110

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Enquanto isso não ocorre, segue o direito, bem como o jurisdicionado, como forma de mercadoria nessa sociedade capitalista.

3. Alguns dados estatísticos As estatísticas publicadas pelos Tribunais dos Estados da Federação apontam para o cerne da questão morosidade. Deve-se indagar, entretanto, que se a grande vilã da história judiciária – a morosidade da justiça – é realmente o móbil do Novo Código de Processo Civil, como apontou o Professor Fux, Coordenador da Comissão de Juristas responsável pela elaboração de seu anteprojeto, 31 qual é a causa da morosidade? Por óbvio não poderiam ser, apenas, os recursos de embargos infringentes e agravo de instrumento ou os incidentes de impugnação ao valor da causa ou exceção de incompetência ou a reconvenção. Não é preciso aprofundar para entender que o boom populacional que massificou a sociedade e as suas relações jurídicas nas últimas décadas exigiu um novo modelo de contrato que as regulasse de forma a não inviabilizar o negócio. Surgiu no âmbito do Direito Material, então, a figura do contrato de adesão, pré-redigido unilateralmente pelo fornecedor nas relações de consumo. Digo isso porque o Direito do Consumidor fundamenta – em nossa sociedade de consumo –, praticamente, as relações cotidianas de todas as pessoas, físicas ou jurídicas e, não obstante, é constantemente violado. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro vem, lamentavelmente, divulgando, como fez em maio de 2012, 32 informativos que atestam que o “TJ já recebeu mais de 800 mil processos este ano”, especificando ainda mais, que “nos quatro primeiros meses deste ano o Tribunal de Justiça do Rio recebeu na 1ª Instância 873.136 novos processos e julgou 484.504, totalizando um acervo de 8.838.597”, esclarecendo, também, que “para dar conta de todo esse trabalho, o TJ possui hoje 640 juízes distribuídos pelos 31. “É cediço que os tempos hodiernos reclamam por uma justiça acessível ao povo que conceda ao cidadão uma resposta justa e tempestiva apta a nutrir o respeito que o órgão que a presta, o Poder Judiciário, e a credibilidade necessária diante da cláusula pétrea constitucional da ‘inafastabilidade da jurisdição’. Deveras, apesar das reformas pontuais empreendidas desde a década de 1990, inclusive a que se efetivou após a Emenda Constitucional n. 45, denominada ‘reforma do judiciário’ e que se implementou mediante a edição de inúmeras leis processuais esparsas, o defeito contemporâneo do processo consistente na sua ‘irrazoável duração’ e que se manteve inalterado, impunha um aprofundamento no estudo das causas da tão decantada ‘morosidade da justiça’.” (Luiz Fux. O Novo Processo Civil. In: O Novo Processo Civil Brasileiro: Direito em expectativa. 2011). 32. Disponível em http://portaltj.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/76401. 111

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95 Fóruns do Estado e está realizando processo seletivo para mais 50 juízes”. Por fim, certificou na mesma notícia que “para os Juizados Especiais Cíveis foram distribuídas 526.370 ações no ano passado” e que “neste ano, até o final de abril, foram 187.409”. Isso, considerando que “ao todo, existem 123 Juizados Especiais Cíveis no Estado”. Os grandes conglomerados lideram a Relação das Empresas mais Acionadas no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, inclusive em sede de Juizados Especiais Cíveis. São elas: a Telemar Norte Leste (Oi TNL PCS S.A.), a Light Serviços de Eletricidade S.A. e a Ampla Energia e Serviços S.A., que, de fevereiro de 2010 a janeiro de 2011, tiveram, respectivamente, 31.326, 26.898 e 19.156 ações propostas em face delas e, dentre as trinta empresas mais reclamadas, naquele período, estão também o Banco Itaú com 15.454 ações, o Ponto Frio com 13.798 ações; o Banco Santander Banespa com 13.455 ações; a Claro e Telecom Leste com 12.380 ações; a Vivo S.A. com 11.043; o Banco Bradesco com 10.935; o Itaucard com 10.6653 3 etc. etc. etc. Na mesma linha, o Conselho Nacional de Justiça vem realizando seus seminários para apontar, por exemplo, “Os 100 Maiores Litigantes”. Noutra oportunidade, o Conselho Nacional de Justiça também divulgou o relatório dos cem maiores litigantes do país, resultado de extensa pesquisa realizada pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho junto a todos os tribunais do país e, de acordo com Fernando Marcondes, então secretário-geral, a pesquisa mostrou que a Justiça trabalha para poucas pessoas estimando-se que os cem maiores litigantes correspondam a 20% dos processos no país, sendo o Instituto Nacional do Seguro Social o maior litigante nacional, correspondendo a 22,3% das demandas dos cem maiores litigantes nacionais, seguido pela Caixa Econômica Federal, com 8,5%, e pela Fazenda Nacional, com 7,4%.3 4 O mais grave disso é que temos o próprio Estado, no exercício do Executivo, obstando que o próprio Estado, no exercício do Judiciário, seja efetivo ao negar muitas vezes, Direitos já reconhecidos pela Corte Suprema ao beneficiário, via suas autarquias, impondo aquele a necessidade de demandar nos fóruns e, citado nesses processos, o próprio Estado contesta aqueles Direitos já pacificados, recorre de sentenças que os corroboram, recorre de acórdãos que as ratificam o que, em outras palavras, 33. Disponível em http://srv85.tjrj.jus.br/publicador/noticiasweb.do?acao=exibirnoticia&ulti masNoticias=21608&classeNoticia=2. 34. Revista Eletrônica JusBrasil. Apud Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 3ª Região. Disponível em http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2629454/ inss-lidera-numero-de-litigios-na-justica. 112

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evidencia o seu embuste no exercício do Poder, que é uno e, apenas para fins práticos, foi tripartido. Por isso ressaltei acima a violação do art. 2º da Constituição Federal eis que, tendo em vista o que acabei de falar, “harmonia” entre os Poderes não há, assim como não há “independência” entre eles, uma vez constatada a supremacia do Poder Legislativo sobre os demais.

4. Punitive damages? Talvez uma solução para a esfera cível! Os EUA contam, em seu sistema, com um instituto pelo qual se pretende punir, de forma exemplar, à sociedade em geral, o causador de danos. Daí a denominação de exemplary damages ou punitive damages. Tem por objetivo a punição e contenção de condutas reprováveis na sociedade, não sendo, sequer, discutido o eventual enriquecimento lícito ou ilícito da vítima do dano na fase decisória do processo, pois o cerne do instituto é que, além da reparação concedida ao autor, pretende-se punir o réu, ensinando-o, educando-o a não agir de tal forma novamente, bem como desmotivando, pelo exemplo, que outros venham a praticá-lo. Com efeito, nos EUA, expandiu-se a ideia de punir o agente do dano na esfera cível de modo a, realmente, desestimular a sua reincidência ou, dependendo da situação, impor-lhe a adoção de medidas necessárias ao bom funcionamento de seu negócio, atendendo às expectativas nele depositadas. Dessa forma, a tendência, histórica, envereda pela órbita quantitativa, o que acarretou em notáveis decisões judiciais com as quais aplicaram condenações milionárias a título de indenização. Cito, eis que são paradigmas desse instituto, o caso em que a Philip Morris, condenada em Los Angeles a pagar a indenização de US$28 bilhões a um único ex-fumante ou o processo que levou à condenação da concessionária a indenizar ao proprietário de um automóvel BMW usado, no valor de US$4 milhões, somente porque a empresa ocultou sobre a pintura do automóvel novo, antes da venda, por avarias no transporte da fábrica, o que teria reduzido o valor de revenda daquele veículo. E não poderia olvidar, também, da célebre condenação da rede de lanchonetes McDonald’s, obrigada a pagar à Stella Liebeck, uma senhora de 79 anos de idade, o valor de US$2,7 milhões que, posteriormente, foi reduzida a US$540 mil... Seu dano? Queimaduras oriundas de um café fervendo, que lá comprou. No Brasil, a rede McDonald’s também foi punida recentemente pelos danos que causou ao seu consumidor em 2005. O Tribunal de Justiça de 113

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Santa Catarina condenou a empresa franqueada a pagar, a título de danos causados ao autor da ação que engasgou com um plástico pontiagudo de aproximadamente quatro centímetros dentro de uma torta, o valor corresponde a “três mil e dois reais e noventa e cinco centavos”. Será que, enquanto pensava aquele Tribunal estar coibindo o enriquecimento ilícito da vítima, pensava também estar coibindo o agente do dano por sua conduta lesiva com esse valor? Essa postura, trabalhada já há algum tempo perante os tribunais pátrios, cunhou o escatológico conceito acerca da “indústria do dano moral”, obviamente, sugerida pelo próprio capital, uma vez que postular direitos é incomodar o exclusivismo dos lucros fáceis3 5 segundo a sua mentalidade, enquanto instala o capital um verdadeiro polo de “indústrias de causar danos”. Corroborando tais ideais, nega-se não só na jurisprudência, mas também na doutrina, a possibilidade da responsabilidade civil punitiva que, se por um lado teríamos a oportunidade do jurisdicionado – felizardo ou não – por tornar-se um novo milionário, por outro teríamos que os maiores litigantes do país considerariam e reconsiderariam a revisão de seus defasados sistemas operacionais que tantos transtornos causam, pois, na realidade, trata-se de uma decisão comercial, mercadológica: reformular os seus sistemas adequando-os à situação para evitar danos a outrem ou aceitar o risco de eventuais condenações judiciais em função desses danos causados, ou seja, avalia-se o custo de um e de outro e assume-se a posição, na equação, qual o custo real para adequar o sistema e qual o custo eventual oriundo de condenações eventuais? Além disso, a sua influência sobre o Legislativo impôs, no âmbito da Responsabilidade Civil, a redação do art. 944 do Código Civil de 2002, segundo a qual temos que “a indenização mede-se pela extensão do dano”, sendo certo que “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização”, devendo-se transcrever aqui, por necessário, as observações de Cavaliere3 6 no sentido de que “limitar a reparação [do dano] é impor à vítima que suporte o resto dos prejuízos não indenizados”. Não seria mais seguro e inteligente, simplesmente, condenar os maiores litigantes, como o Conselho Nacional de Justiça os denominou, os maiores causadores de danos na sociedade de forma realmente marcante para 35. Alysson Leandro Mascaro. Filosofia do Direito e Filosofia Política: a justiça é possível. 2008. 36. Sergio Cavalieri Filho. Programa de Responsabilidade Civil. 2006. 114

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o agente, tornando-o um exemplo para si próprio e para os outros, como ocorre na corte norte-americana? Até mesmo porque acabar com recursos no intuito de conferir celeridade aos processos, se realmente reduzir o tempo de sua tramitação, não irá impedir que novos processos sejam propostos pelas novas vítimas de danos. O número de ações judiciais movidas em face daqueles litigantes contumazes, causadores de danos, não irá reduzir e o volume de trabalho dos juízes também não. O Projeto de Lei nº 6.960 de 2002 alteraria a redação do art. 944, para determinar ao Judiciário que “a reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao lesante”, mas... Dependemos mais uma vez da “vontade” do legislador! Encerrando o tópico, tenho que até 2001, as condenações fixadas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro a título de danos morais causados pelas instituições financeiras em geral que anotavam, por exemplo, ilegitimamente os nomes de seus consumidores nos órgãos de restrição ao crédito correspondiam a cem, a duzentos salários-mínimos o que, hoje, equivalem a R$60, a R$120 mil; em 2003, os Tribunais reduziram o valor, fixando-o em torno de R$60 mil, hoje, correspondentes a cem salários-mínimos; de 2009 para cá, o entendimento do Tribunal fluminense está perto de R$2 mil para ações da mesma espécie, sendo certo que chegou a fixar, em ações símiles, até, quinhentos salários-mínimos, o que, hoje, em 2012, corresponderia aproximadamente a R$300 mil... O que será que ocorreu de tão grave para modificar radicalmente o entendimento de todo o Tribunal de Justiça fluminense com relação ao quantum da verba indenizatória, passando-a de R$120.000,00 mil para R$1.200,00?

5. O Código de Processo Civil e o Novo Código de Processo Civil Alguns juristas, com muita propriedade, indagaram sobre a real necessidade de se editar um Novo Código de Processo Civil. Eu, ousando um pouco mais, indago ainda: um Novo Código de Processo Civil para beneficiar, realmente, a quem? Pergunto isso porque o direito positivo é, no nosso país, conforme espero ter demonstrado nesse ensaio, a injustiça social legalizada: basta ver – dentre tantos e tantos exemplos – a legislação que autoriza as instituições financeiras na cobrança de juros exorbitantes, cujas taxas se inserem dentre as maiores do mundo; a legislação que possibilita as empresas de transporte coletivo 115

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levar seus passageiros “em pé”, amontoados, sem qualquer segurança em traslados até intermunicipais, enquanto, defendendo a mesma segurança dos passageiros, multa o proprietário (ou o real condutor) de um veículo de passeio pela falta do cinto de segurança. Basta relembrar dos termos do Decreto-lei nº 911, de 1969, editado pouco após o hostil AI-5, que por mais de trinta anos, permitiu a prisão do devedor civil como meio de favorecer às instituições financeiras, titulares da ação de busca e apreensão fundada em contratos de alienação fiduciária que podem, conforme seu exclusivo interesse, requerer no curso daquela ação a sua conversão em depósito e, disso, qualificar por mera equiparação legal com a deturpação da natureza dos institutos, o alienante-devedor como depositário que, se infiel, seria coibido ao cumprimento da obrigação, civil, mediante a sua prisão, o que foi obstada mediante a Súmula Vinculante nº 25, 37 do Supremo Tribunal Federal, além de, igualmente por mais de trinta anos, ter o menor prazo para defesa do réu, devedor – 3 dias – até que, alterando-se a redação do art. 3º em 2004, ampliou-se aquele prazo para 15 dias. Convém relembrar que o atual Código de Processo Civil de 1973, ou seja, pela ditadura militar, época extremamente paranoica diante do pavor ao comunismo de outrora. Paranoia essa, que exigia um controle acirrado sobre a sociedade, incluindo-se as decisões judiciais o que, por seu turno, tornava conveniente um processo burocrático, arrastado, enfim, moroso o suficiente para que pudessem fiscalizar. Hoje, longe da ameaça comunista que “justificou” o Golpe Militar de 1964, eis a formação cultural de uma sociedade essencialmente consumista, o capital pôde sugerir e fomentar sorrateiramente alterações legais, também voltadas à disciplina processual que lhe atendessem aos interesses como a Lei de Arbitragem que, inclusive, permite julgamentos indenes à legislação. Parece, a mim, a justificativa, consciente ou não, do Novo Código de Processo Civil. Sob a égide de um conceito progressista, a Comissão de Juristas liderada pelo Ministro Luiz Fux, instituída para elaboração do Projeto do Novo Código de Processo Civil, fez questão de, orgulhosamente, incorporar a ideologia do American Law Institute – ALI, criado em 1923 inicialmente para promover a simplificação do “ D i r e it o C o mu m ” americano e da sua adaptação às novas necessidades sociais e do International Institute for the 37. STF – Súmula Vinculante nº 25: “É ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. 116

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Unifications of Private Law – Unidroit, 3 8 que nada mais são do que os interesses conservadores do capital, disfarçados de progressismo e neoliberalismo que, como lecionam alguns Juristas, a globalização dos mercados necessita de sistemas jurídicos harmônicos, ou seja, que não venham a conflitar entre si no intuito de viabilizar a efetivação de negócios a nível internacional, mediante “garantias jurídicas” na celebração e consecução dos mais variados contratos, tendo em vista a elaboração de um “Direito Material Internacional”. As Regras de Unificação servem ao propósito de viabilizar as relações entre países e entre cidadãos de países diferentes, com o estabelecimento da disciplina legal. Com o fim de analisar formas para harmonia entre o Direito Privado de vários países, fundaram, em 1926, o International Institute for the Unifications of Private Law – Unidroit que, embora sediado em Roma, segue, obviamente, as determinações das grandes potências para erigir um direito comercial internacional que, antes de tudo, lhes atenda. E o povo – verdadeiro injustiçado, mormente pela morosidade do Judiciário – nisso? Nada muito vil para um sistema que prega nas universidades a máxima “nem tudo que é lícito é justo”, reafirmando, dessa forma, a legalidade da injustiça. Comungo com os apontamentos de Marinoni, para quem A diferença entre o Código Buzaid e o Código de 1939, como todos sabem, é abissal. É evidente aí a preponderância do intento de ruptura. O mesmo não se passa em relação ao Projeto. Este repete em grande parte as redações tais quais já existentes no Código vigente. Em muitos momentos há sutil reescrita do texto, preservando-se integralmente o sentido normativo. Em outros, simples incorporações de textos constitucionais e de diplomas legislativos infraconstitucionais extravagantes. Em novecentos e setenta artigos, não chega a ser significativa a quantidade de verdadeiras inovações legislativas propostas pelo Projeto. Muito, aliás, são simples explicações de soluções doutrinárias que já podem ser extraídas do sistema vigente. 39 38. “A Comissão observou os mais recentes movimentos de homogeneização do sistema processual, respeitando os ‘Princípios Transnacionais de Direito Processual’. (...) Os princípios foram elaborados em uma Joint Venture entre o American Law Institute (ALI) e o International Institute for the Unification of Privates Law (UNIDROIT) e resultaram do amadurecimento da ideia inicial do ALI de formular um código (Rules) de Direito Processual Civil Transnacional focado nas disputas comerciais entre diferentes nações.” (Luiz Fux. O Novo Processo Civil. In: O Novo Processo Civil Brasileiro: Direito em expectativa. 2011). 39. Luiz Guilherme Marinoni. O Projeto do Novo CPC: crítica e propostas. 2007. 117

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Não são a causa da morosidade, repito uma vez mais, os recursos de embargos infringentes e agravo de instrumento ou os incidentes de impugnação ao valor da causa ou exceção de incompetência ou a reconvenção, assim como não serão a solução para ela a instituição de um procedimento, dentre outros, voltado à cooperação internacional como consta dos arts. 25 a 41 e à cooperação nacional nos arts. 67 a 69, nem de um procedimento que regule o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas que frequenta os arts. 895 a 906 do Projeto não terá, igualmente, força para frear a conduta até mesmo porque isso o Judiciário há muito já vem fazendo, como bem se vê das polêmicas declarações prestadas em outubro de 2003, pelo então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, e ratificadas pelo então Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ministro Francisco Fausto, que categoricamente afirmou que “os Tribunais Superiores estão realmente julgando por atacado”, prática esta que é, como ressaltou também o então Presidente do Supremo, Ministro Maurício Corrêa, “coisa corriqueira em vários Tribunais”, mas que, agora, com ares escolásticos, a prática forense denunciada em 2003, que causou certo desconforto aos ingênuos operadores do Direito, irá receber uma formatação legal e um aspecto de evolução do direito processual civil, somente necessária porque o nosso Judiciário não tem “poder” bastante para coibir os litigantes contumazes, sejam eles, de capital público, leia-se Estado no exercício do Executivo, ou privado, leia-se, empresários. A mim soa tudo isso – manifestando expressamente aqui todo o meu respeito pelos membros da Comissão de Juristas responsáveis pela elaboração do Projeto do Novo Código de Processo Civil – como mais um engodo. Mais inteligente seria aproveitar a identificação dos maiores litigantes que tanto ocupam o Poder Judiciário país afora, verificando-se o direito em face deles, postulado, bem como a causa de pedir para, então, perceber que o que poderia, de fato, melhorar a qualidade da prestação jurisdicional atendendo a duração razoável do processo, seria empregar, sem discussões que fogem ao cerne da questão, a essência das exemplary damages pelos nossos tribunais. Não importando, com efeito, se haverá o enriquecimento, que pretendo não chamá-lo de ilícito, mas de desproporcional, de um jurisdicionado qualquer, para sorte ou não dele, ainda que em função da anotação equivocada e ilegítima de seu nome nos órgãos de restrição ao crédito determinada por aquelas empresas, pois, como estou convencido, em menos tempo do que se imagina, elas iriam adequar todo o seu sistema operacional no intuito de minimizar os riscos de tais “condenações milionárias” e, por conseguinte, 118

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abandonar as práticas lesivas, que tantos transtornos, constrangimentos e prejuízos causam. Se o “A” for indenizado, por aquele fato, no valor de R$2 milhões; “B”, igualmente, no valor de R$1,8 milhão e “C” no valor de R$1,5 milhão, talvez não haja por que “D” propor sua ação, eis que seu direito, talvez, não seja desrespeitado. Se estes irão enriquecer às custas das grandes corporações, então, que assim seja, até mesmo porque assim seria por força da prática violadora de direitos por parte dos maiores litigantes que, acaso atuassem em seu ramo com presteza e qualidade, não teriam porque temer a qualquer “condenação milionária”, a exemplo do que conhecemos ocorrer na corte norte-americana pois, nessa hipótese, o direito lhe assistirá.

6. Considerações finais No intuito de atender a efetividade do direito fundamental do acesso à justiça seria mais seguro e inteligente, acredito, impor freios aos maiores litigantes do país, apontados constantemente pelas estatísticas divulgadas não só pelo Conselho Nacional de Justiça, mas também pelos próprios tribunais pátrios, condenando-os, seja o Estado, sejam concessionárias ou empresas públicas ou privadas, pelos danos que eventualmente causarem na sociedade brasileira de forma realmente marcante para o agente, tornando-o um exemplo para si próprio, para as suas concorrentes e para a vítima, como ocorre na esfera da responsabilidade civil norte-americana. Até mesmo porque, estou convencido, simplificar os procedimentos, extinguir espécies de recursos e criar outros institutos processuais no intuito de conferir celeridade aos processos, se realmente reduzir o tempo de sua tramitação, não irá impedir que novos processos sejam propostos pelas novas vítimas de danos, a quem estariam os tribunais potencializando esses danos ao qualificá-las como sócias de “indústrias do dano moral”. O número de ações judiciais movidas em face daqueles litigantes contumazes, causadores de danos, não irá reduzir e, consequentemente, o volume de trabalho dos juízes será o mesmo. Não se trata, apenas, de institutos processuais burocráticos ou defasados o que, por sua vez, demonstra que pouca contribuição teremos com a extinção dos embargos infringentes e a restrição no cabimento do agravo de instrumento ou, ainda, com a supressão dos incidentes de impugnação ao valor da causa ou exceção de incompetência ou da ação de reconvenção. Talvez, mais significativamente, mas não o suficiente para agilizar de forma sensível a tramitação de processos, sejam a supressão do 119

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processo cautelar, possibilitando ao juiz a concessão de medidas com essa natureza nos autos do processo principal e o início da contagem do prazo para apresentação da contestação pelo réu. Embora tão discutida e criticada, a crise não é propriamente do Judiciário, mas do sistema, capitalista, eivado de forte ímpeto liberal que impede o Estado, por qualquer de seus poderes e em função dos mais variados motivos, intervir nos interesses do capital e em suas relações com os meios de produção e acumulação de riquezas, sendo necessário apreender, ainda, as anotações de Marx que, com muita propriedade, constatou que a razão da existência “do Estado” é a de estruturar a satisfação daqueles interesses e, se os juristas não perceberem essa causa primeira do problema, não adiantará qualquer Novo Código de Processo Civil. Nesse sentido, as idealizações acadêmicas acerca do estado democrático de direito e do pós-positivismo não resolverão a questão. Ademais, a Comissão de Juristas e o Congresso Nacional não podem esquecer que quem precisa realmente de justiça no país é aquele que sofre injustiças e, no Brasil, posso falar sem qualquer receio de errar, é a esmagadora maioria da população. Não seria depositada tanta esperança em mecanismos como mediação e arbitragem ou, ainda, em cooperação internacional como meios alternativos de composição de litígios acaso não houvesse tantos litígios tramitando perante o Judiciário, apresentando-se a mim enfadonha, por exemplo, a autodenominação de “O Tribunal da Cidadania” pois que, cuidando do cidadão, propriamente, não está o Superior Tribunal de Justiça... Sinceramente, diante desse panorama, ainda que ora apresentado de forma um tanto dramática, no qual a ausência de políticas públicas comprometidas com a educação do cidadão, sua segurança e saúde, enfim, com a melhoria de sua qualidade de vida evidencia, por parte do Estado, o total desrespeito com sua responsabilidade social, marcado pela ineficácia não só dos direitos sociais arrolados na Constituição Federal, mas também das garantias fundamentais como a duração razoável do processo e, mais, o próprio acesso à justiça, tenho minhas dúvidas com relação à grande promessa de celeridade pelo Projeto na tramitação dos processos judiciais em nossos tribunais e, por isso, recebo o Novo Código de Processo Civil com cautela, não me deixando levar pelo entusiasmo acadêmico.

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Os poderes do juiz e as garantias fundamentais do Processo Civil no projeto do Novo Código Milton Paulo de Car valho

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Introdução. 1. Premissas. 1.1. A liberdade como integrante da dignidade humana. 1.2. O acesso à justiça supõe liberdade. 2. O actus trium personarum. 3. Os poderes do juiz no processo autoritário. 4. Caracteres do Projeto de Código de Processo Civil. Rejeição ou “mitigação” de princípios fundamentais do processo civil. 4.1. Princípio da iniciativa de parte. 4.2. Princípio de obediência à legalidade estrita. 4.3. Princípio de correlação entre sentença e pedido. 4.4. A jurisdição voluntária. 4.5. Princípio de motivação das decisões. 4.6. Princípio do contraditório. 4.7. Princípio da isonomia processual. 5. Da postergação de princípios no Projeto de Código de Processo Civil. 6. Dos poderes do juiz no Projeto de Código de Processo Civil ou A técnica a serviço da rejeição dos princípios. 7. A celeridade dos processos e o exercício das faculdades processuais prejudicados pelo procedimento. 8. Considerações finais. Referências.

Introdução ste artigo é um esboço da breve palestra a ser proferida em congresso promovido pela Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em outubro de 2012. O assunto da reforma do processo civil brasileiro tem preocupado os estudiosos e os profissionais do direito desde que o anteprojeto de código foi apresentado ao Senado, em 2010. A ele também passamos a dedicar nossas atenções tão logo se deu a conhecer o inteiro teor do anteprojeto, sendo dignas de nota as nossas seguintes intervenções: — agosto de 2010: enviamos ao Instituto dos Advogados Brasileiros, no dia 17, proposta sobre o anteprojeto de Código de Processo Civil;

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* Mestre e Doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Professor do Centro de Extensão Universitária do Instituto Internacional de Ciências Sociais. Titular da Academia Paulista de Direito e da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Advogado. 123

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

— agosto de 2010: participamos de reunião, no dia 18, no Instituto dos Advogados de São Paulo, oferecendo críticas aos expositores, Professores Doutores José Roberto dos Santos Bedaque, Cássio Scarpinella Bueno e João Batista Lopes; — agosto de 2010: por carta do dia 22, enviamos ao eminente Professor Doutor José Roberto dos Santos Bedaque, um dos juristas que compuseram a comissão elaboradora do anteprojeto, breves notas sobre a posição dessa obra diante de princípios fundamentais do processo civil; — janeiro de 2011: no dia 28, proferimos palestra na sede da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, sobre o Projeto de Lei nº 8.046/2010. — março de 2011: apresentamos à Academia Paulista de Letras Jurídicas proposta sobre o então Projeto de Lei nº 8.046/2010, que foi aprovada; — junho de 2011: é publicado artigo de nossa autoria intitulado “O português do Projeto” na Revista Digital do Instituto dos Advogados Brasileiros, a. III, n. 10, abr.- jun./2011, p. 36; — inverno de 2011: o Centro de Extensão Universitária – Instituto Internacional de Ciências Sociais promove a publicação de coletânea de artigos de doutrina processual civil sob o título “Direito Processual Civil 2”, pela Editora Quartier Latin, sob coordenação do Dr. Daniel Penteado de Castro e nossa supervisão. Integra essa obra coletiva artigo de nossa autoria intitulado Sobre o Código de Processo Civil, p. 167-195. — dezembro de 2011: participamos e expusemos, no dia 9, de conferência pública realizada na Assembleia Legislativa de São Paulo, com a presença dos Professores Doutores Regina Beatriz Tavares da Silva, Antonio Carlos Marcato, Antonio Cláudio da Costa Machado, Clito Fornaciari, Desembargadores Paulo Dimas de Bellis Mascaretti e Walter Piva Rodrigues, juiz Marcos Onodera, Procurador Rafael Vasconcellos de Araújo Pereira e Deputados Federais Arnaldo Faria de Sá, Vicente Cândido e Sérgio Barradas Carneiro; — março de 2012: participamos das discussões da Comissão Permanente de Direito Processual Civil do Instituto dos Advogados Brasileiros, no Rio de Janeiro, sobre o Projeto Substitutivo de Código de Processo Civil de autoria do Deputado Miro Teixeira; — março/abril de 2012: foi publicado na revista Letrado, do Instituto dos Advogados de São Paulo, artigo de nossa autoria intitulado “Notas sobre a letra e o espírito do Projeto de Cód. Proc. Civil (8.046/2010)”, Informativo n. 99, p. 51; 124

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— abril de 2012: o jornal Diário do Comércio, de São Paulo, dos dias 2 e 3, publica nosso artigo “Acelerar a justiça?”, à p. 3. — abril de 2012: participamos, no dia 28, do 1º Painel de Processo Civil do Litoral Sul do Estado de São Paulo, promovido pela Escola Superior da Magistratura de São Paulo e OAB, Subseção de Itanhaém; — maio de 2012: mantivemos importante debate, no dia 17, na Associação Comercial de São Paulo, com a Professora Doutora Teresa Arruda Alvim Wambier, Relatora da Comissão que elaborou o anteprojeto de Código de Processo Civil; — junho de 2012: promovemos Seminário de Direito Processual Civil, que se realizou no dia 22, no Centro de Extensão Universitária – Instituto Internacional de Ciências Sociais, em comemoração do centenário de nascimento de José Frederico Marques, tendo por tema “A obra de José Frederico Marques e o processo civil brasileiro na atualidade”, com ênfase à discussão do Projeto de Código de Processo Civil. Diante dessa constante presença na discussão do Projeto de Código de Processo Civil, tomamos a liberdade de remeter o prezado leitor a quaisquer dos trabalhos arrolados, inclusive às notas taquigráficas e gravações que existirem, esclarecendo que digressão menos sucinta poderá ser vista na Proposta da Academia Paulista de Letras Jurídicas, junto à Comissão Especial que discutiu o PL 8.046/2010, agora 6.025/2005, na Câmara dos Deputados, bem como, no tocante à rejeição ou aplicação prática dos princípios pelo Projeto, no estudo inserto no livro “Direito Processual Civil 2”, coletânea, como se disse, promovida pelo Centro de Extensão Universitária – Instituto Internacional de Ciências Sociais (Editora Quartier Latin, inverno de 2011).

1. Premissas São premissas destas considerações a liberdade como integrante da dignidade humana e a certeza de que o acesso à justiça supõe liberdade.

1.1. A liberdade como integrante da dignidade humana A liberdade contém-se entre os atributos que compõem a dignidade humana. Esse caráter de elemento da dignidade humana provém da própria natureza, que tem o homem, racional e livre, como o ser superior a todos os seres, não sendo sequer necessário que a Constituição ou qualquer 125

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lei menor o proclame, embora tal respeito, por imprescindível a qualquer coletividade e independentemente de sua soberania, venha solenemente consagrado no art. 1º, inciso III, da nossa Lei Maior como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Não se pode cogitar de dignidade do homem apartada da sua liberdade. O respeito à dignidade do homem supõe o respeito à sua liberdade.

1.2. O acesso à justiça supõe liberdade A segunda premissa destas considerações consiste numa manifestação da liberdade humana, que é a de pleitear direitos e exercer defesa em pleito adverso, consistindo, por consequência, no necessário respeito à liberdade de postular, ou seja, no respeito ao exercício do direito de reclamar a tutela da autoridade civil diante de ofensa ou ameaça a direito. Esse direito à tutela jurisdicional ficou conhecido como direito de acesso à justiça, pois, tendo o Estado chamado para si a tarefa de resolver litígios mediante a aplicação do direito objetivo, cumprindo sua obrigação e entregando o que se definiu como “prestação jurisdicional”, a invocação desse serviço constitui, reciprocamente, um direito face à autoridade. Respeitável e consagrada doutrina sustenta os escopos social e político, além do escopo jurídico na atuação da jurisdição, sendo o primeiro, em síntese, a pacificação da comunidade e o segundo a realização dos fins postos como programas da atividade estatal.1 É evidente que a afirmação da vontade da lei na solução do litígio pelo Estado propicia resultados sociais e políticos, além do estritamente jurídico, que lhe é ínsito. Todavia, esses efeitos sociais e políticos não devem provir do processo, mas da lei que pelo processo se aplica. O processo serve ao direito, não ao Estado ou à ideologia dominante. Até porque a eficácia social ou política está na lei, de modo que da sua aplicação devem decorrer os efeitos por ela previstos. Lembra-se ainda a recomendação que está no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, sendo encontradiça em muitas outras disposições, entre estas as que contêm cláusulas abertas ou conceitos indeterminados. Outrossim é incontroverso que se ao que reclama de ameaça ou ofensa a direito se dá o acesso à justiça, aquele em face de quem se faz a reclamação tem, pela ordem natural das coisas, o direito de defender-se, modo pelo qual este também exerce o seu direito de acesso à justiça. Os exercícios da postulação e da resposta nada mais são do que o exercício da liberdade do 1. Por todos, Cândido Rangel Dinamarco. A instrumentalidade do processo. 2003. 126

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homem dirigida à preservação daquilo que ele considera integrante do seu patrimônio jurídico, moral ou material. A prática dessa modalidade de liberdade faz-se por meio de atos jurídicos típicos e de natureza pública, cuja forma e objeto a lei prevê considerando as espécies e os caracteres dos direitos em disputa.

2. O actus trium personarum Compõe-se, assim, uma importantíssima e gravíssima relação jurídica de três sujeitos, denominada actus trium personarum, com o característico, entre outros que a fazem sui generis, de ser progressiva e dinâmica, isto é, com início na formulação da pretensão do autor e da resistência do réu e término em sentença que se quer justa, isto é, conforme ao direito versado nessa relação jurídica. O outro nome dessa relação jurídica de três sujeitos é processo. O processo é o instrumento de que se serve a jurisdição, um dos poderes do Estado, para resolver litígios mediante a aplicação do direito objetivo. Os litigantes exercem sua liberdade de postular por meio dos seus advogados, conhecedores da técnica da interpretação e da aplicação do direito. Por isso, a Constituição da República declara no seu art. 133 que o serviço do advogado é indispensável à administração da justiça. Pois bem. O direito processual civil brasileiro, na linha, aliás, de todo o direito desde o nascimento da nossa nacionalidade – com exceção do rigor punitivo do Livro V das Ordenações, em matéria exclusivamente penal, portanto – sempre disciplinou a relação jurídica processual segundo normas que, ao mesmo tempo, mantiveram a autoridade do juiz e possibilitaram o patrocínio do direito de cada litigante com a liberdade indispensável a esse mister. É da tradição do nosso processo civil o reconhecimento de que sem liberdade não se pode falar em acesso à justiça. Essa a síntese das premissas postas para as poucas considerações que vamos tecer a respeito da liberdade postulatória conforme tratada pelo Projeto de Código de Processo Civil em discussão na Câmara dos Deputados. Vamos às tais considerações, precedidas de uma como que advertência sobre a caracterização de um código de processo civil autoritário.

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3. Os poderes do juiz no processo autoritário No processo em que o provimento jurisdicional deve atender prioritária ou exclusivamente a interesses do Estado, abandonam-se os princípios garantidores dos direitos individuais, enrijecem-se os poderes do juiz, seu condutor e representante da autoridade, e restringe-se a atividade das partes mediante a imposição de fórmulas, a redução dos recursos e a caracterização exagerada de ilícitos processuais puníveis. A liberdade é alvo, assim, de duplo ataque: a estrutura liberal é minada pela postergação dos princípios, enquanto na prática forense cerceia-se ao litigante o uso livre da argumentação, dificulta-se o pleito sem interferências do que se entende ser de direito, põem-se obstáculos à insurgência contra atos, privados ou públicos, que molestem a liberdade ou cerceiem o direito de recorrer sem rebuços aos órgãos superiores incumbidos de dizerem o direito livremente invocado, em caso de inconformismo com qualquer decisão. Não parece difícil localizar e identificar esses caracteres em sistemas processuais que, no curso da História, serviram a regimes ditatoriais de direita e de esquerda.

4. Caracteres do Projeto de Código de Processo Civil. Rejeição ou “mitigação” de princípios fundamentais do processo civil É do conhecimento de todos a origem do Projeto de Lei nº 8.046/2010, em tramitação pela Câmara dos Deputados: o Senador José Sarney, Presidente do Senado, nomeou comissão de juristas presidida pelo Ministro Luiz Fux para elaborar anteprojeto de Código de Processo Civil. Em nove meses, a comissão apresentou o anteprojeto, que na Câmara Alta tomou o número 166/2010 e ali foi aprovado em 196 dias corridos. Imediatamente, o projeto foi levado à Câmara, onde passou a identificar-se como PL 8.046/2010. Ao contrário da tradição brasileira, não se constituiu comissão de juristas para a revisão do anteprojeto, passando-se a assistir a veemente censura por parte de doutrinadores à pressa com que se tratou de assunto de tanta relevância, ao mesmo tempo em que se iam apontando deslizes graves na disciplina do processo sugerida pelo Projeto. Do Senado, onde praticamente não recebeu emendas, foi logo à Câmara, de modo que a discussão sobre o texto só se tornou possível pelo comparecimento às estéreis audiências públicas ou por meio de cartas a deputados. Em outras palavras, até certo momento foi superficial a discussão sobre o 128

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Projeto, o que se distancia dos métodos democráticos de depuração de um diploma de tamanha envergadura. Sucederam-se três relatores gerais na Comissão Especial da Câmara incumbida da discussão da matéria, constando a presença de dois, se não mais, projetos substitutivos, além das quase 1.000 emendas ao texto oriundo do Senado. Além disso, por despacho do Sr. Presidente da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, apensaram-se ao Projeto de Lei nº 6.025/2005, o mais antigo provindo do Senado sobre a matéria, nada menos do que 83 (oitenta e três) outros projetos, entre os quais o de nº 8.046/2010. Informação de 11 de julho último dá-nos conta de que se deferiu requerimento do Deputado Paulo Teixeira, de realização de reuniões de trabalho, abertas aos membros da Comissão Especial, com especialistas em direito processual civil. O ilustre Professor Fredie Didier, integrante desse grupo de especialistas, enviou recentemente ao Instituto dos Advogados Brasileiros o projeto no estágio em que se encontra. É esse texto o objeto destas considerações. Temos para nós que a insatisfação e a inquietação de considerável parte da doutrina em relação ao Projeto deveram-se ao seu caráter de mero instrumento regulador da importante atividade estatal que é a jurisdição como se se tratasse de qualquer outra atividade administrativa, em que o cidadão requer consoante normas regimentais adrede formuladas, restritos os seus direitos àqueles previstos de modo específico pelas citadas normas, além de suportar influências e intervenções no seu direito e na sua postulação pelo juiz, que é o Estado no processo. Na versão aprovada pelo Senado, não se denotava no Projeto a disciplina da relação jurídica em que os três sujeitos exercem e desenvolvem suas faculdades e seus ônus segundo regras de procedimento asseguradoras do direito postulado, da liberdade de postular e tipificadoras da sua responsabilidade, constitutivas, assim, do devido processo legal. O Projeto não se destinava a regular o processo, mas sim a atividade judiciária: temia-se que, se aprovado, ter-se-ia um código judiciário, não de processo. Até hoje esse temor não se desvaneceu por completo. A razão dessa tendência não se encontra na necessidade de acelerar os serviços judiciários, como tem sido apregoado pelos defensores do Projeto. Não promoverá celeridade do procedimento a lei que admitirá o amicus curiae em primeiro grau de jurisdição, aumentando o número de sujeitos processuais e os seus repetidos pronunciamentos em prazos alongados (atual art. 159); que concederá às partes o prazo de quinze dias úteis para apresentação de 129

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memoriais em substituição do debate oral (atual art. 373, § 2º); que na contagem dos prazos só levará em conta os dias úteis (atual art. 201), os quais, por sua vez, deverão dar lugar também aos feriados prolongados em fins e começos de semana; que criará um complicado incidente para dar efeito suspensivo a cada recurso de apelação (atualmente: arts. 1.009, parágrafo único, c/c 1.028); que criará outro complicado incidente para julgamento dos processos repetitivos (atuais arts. 990 e s.); que concederá prazo em dobro (lembre-se: só de dias úteis e extensão de feriados em começos e fins de semana) à União, Estados, Distrito Federal, municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público, ao Ministério Público e à Defensoria Pública (Projeto atual, arts. 164, 167, 169) etc. Na busca da razão dos caminhos escolhidos pelo Projeto ressaltava mais a característica de vir a ser, a qualquer tempo, um instrumento útil aos interesses políticos do Estado, ou do poder ou da ideologia dominante, como se deve entender. A tal conclusão se chega quando se considera a rejeição, ou “mitigação” de alguns dos princípios liberais que sempre marcaram o nosso processo civil. Na redação atual do Projeto ainda se encontram arranhaduras em princípios, as quais são inadmissíveis em processo civil praticado num Estado que se diz Democrático e de Direito. Enumeremos rapidamente.

4.1. Princípio da iniciativa de parte A recusa de adotar o absoluto princípio da iniciativa de parte – também chamado princípio da ação, da inércia da jurisdição ou princípio dispositivo – hoje estampado no pórtico do Código Buzaid (art. 2º), não se disfarça com o eufemismo do art. 2º projetado, ao dizer que “salvo exceções previstas em lei, o processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial”. Disposição semelhante encontra-se no art. 262 do Código em vigor. Não é da iniciativa do processo que se trata. Se se está tratando “das normas fundamentais do processo civil”, o princípio consiste numa restrição a toda jurisdição estatal, como está lapidarmente enunciado no art. 2º do Código Buzaid: “Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais.” É essa proibição clara, radical e veemente, com seus consectários, que se tem incorporada entre os direitos de acesso à justiça.

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Ademais, como já demonstramos em outros trabalhos, não existem atualmente “exceções previstas em lei” para a aplicação desse princípio,2 nem se recomenda, em sociedade livre e democrática, a admissão de exceções à sua adoção irrestrita. O projeto aprovado pelo Senado permitia a iniciativa da demanda pelo juiz (arts. 20 e 277, respectivamente, a declaratória incidental e a concessão de tutela satisfativa de ofício). O primeiro foi corrigido (a declaração incidente depende de pedido da parte); o segundo, também, com o característico de que permite a distinção entre tutela cautelar e tutela de mérito, sendo possível só aquela e incidentalmente, o que consagra a existência de um poder geral de cautela independente de processo cautelar (atual art. 287). Salvo melhor exame, o Projeto, na sua redação atual, já não contempla exceções ao princípio absoluto da iniciativa de parte, ou inércia da jurisdição. O fato é alvissareiro, mas depende de confirmação depois de vencidas as etapas do processo legislativo ora em curso.

4.2. Princípio de obediência à legalidade estrita A letra e o espírito do art. 119 do Projeto aprovado pelo Senado e levado à Câmara em dezembro de 2010 consistia no abandono expresso do princípio de obediência à legalidade estrita em favor da aplicação de princípios constitucionais nos julgamentos. Deixava as normas legais em segundo plano. O novo texto afirma simplesmente, no art. 122: “O juiz não se exime de decidir alegando lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.” A correção não se censura, mas lhe faltou o complemento que atualmente se lê no art. 126 do Código: “No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.” Pois essa hierarquia na escolha do preceito que resolverá o litígio é imprescindível num país que adota o sistema do direito escrito, sendo, por outro lado e por isso mesmo, da tradição da nossa vida jurídica, do que é exemplo, aliás, a prescrição da norma de supradireito do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, precisamente nos mesmos termos.

4.3. Princípio da correlação entre sentença e pedido Uma violação a esse princípio perdura no texto atual do Projeto, no capítulo do pedido, manifestação de vontade do autor que ao Estado-juiz só é 2. Ver, no capítulo 8 – Princípios gerais do direito processual civil, do livro Teoria geral do processo civil, Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, o subitem 8.2.1.4, de nossa autoria, sob o título “Princípio dispositivo ou de iniciativa de parte”. 131

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dado acolher ou rejeitar, consoante a sua conformidade ao direito objetivo, não lhe sendo lícito alterar por conta da sua autoridade. O artifício do texto faz pensar que pode ter origem na aversão figadal de algum dos redatores do anteprojeto aos direitos do postulante ou à classe dos advogados: é a redação do atual art. 309, caput, no anteprojeto 299, que deveria repetir o vigente art. 289. Com a licença dos prezados leitores, vamos transcrever as disposições, para que se ressalte a artimanha da redação. Dispõe o atual (do Código Buzaid) art. 289: “É lícito formular mais de um pedido em ordem sucessiva, a fim de que o juiz conheça do posterior, em não podendo acolher o anterior.” (grifos nossos). No Projeto: “É lícito formular mais de um pedido em ordem sucessiva, a fim de que o juiz conheça do posterior, se não acolher o anterior.” (grifos nossos). É o Estado-juiz invadindo esfera de direito do autor. Também no atual art. 503 do Projeto está violação ao princípio em referência, pois ali se permite que o juiz transforme o pedido de genérico, em que o quantum devido pelo condenado se apura mediante liquidação, em certo e determinado, impondo de pronto o valor a ser pago. É outra ofensa ao direito do postulante. Além do que, parece estranho se permita formular pedido genérico em ação de obrigação de pagar quantia certa, uma vez que a lei só permite tal forma de pedido nos casos das ações universais, quando não se possa individuar os bens demandados; quando não seja possível determinar, desde logo, as consequências do ato ou fato ilícito, ou quando a determinação do objeto ou valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu (art. 307 do atual Projeto e art. 286 do Código vigente). É a sentença alterando o que foi discutido pelas partes.

4.4. A jurisdição voluntária Insurgimo-nos veementemente contra o fato de não se falar em jurisdição voluntária no Projeto inicial para a disciplina dos procedimentos em que se desenvolve mera tutela administrativa de interesses privados. A ausência do enunciado, que se nos afigurava sintomática, foi reparada com a designação do Capítulo XV do Título III do Livro II (“Dos procedimentos de jurisdição voluntária”). Como o título, por si só, não alcança o efeito de evitar que se leve à jurisdição voluntária – onde se pode julgar sem obediência à legalidade estrita, adotando apenas critérios de conveniência ou oportunidade – pleitos de jurisdição propriamente dita, continuarão causando temor: (a) a inclusão 132

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de um procedimento tipicamente contencioso, nos arts. 745 e seguintes do Projeto na sua redação atual, relativo às notificações e interpelações; e (b) a não reprodução do art. 1.111 do Código vigente, segundo o qual na jurisdição voluntária não há coisa julgada. Embora “não se creia em bruxas”, é de alertar-se que a inclusão de um procedimento de natureza contenciosa entre os de jurisdição voluntária pode constituir precedente à entrada de outros procedimentos contenciosos, mediante o expediente de novos textos de “reforma parcial” do código. Com a mesma intenção se pode entender a não reprodução do disposto no art. 1.111 do Código Buzaid. O risco é o de se tolerar julgamentos de lides, propriamente ditas, mediante aplicação de critérios de conveniência e oportunidade e não das normas legais... que serão cobertos pela coisa julgada!

4.5. Princípio de motivação das decisões O § 1º do art. 501 da redação atual do Projeto enumera os casos em que se não considera válida a sentença por falta de motivação. A enumeração taxativa não tem sentido, trazendo a lembrança de processo autoritário, que tipifica figuras de erros judiciais, de modo a somente não ter eficácia a decisão que padeça, inequivocamente, de algum desses erros. Além disso, a conceituação de sentença não motivada ou não fundamentada é tarefa da doutrina e da jurisprudência, não da lei. Somos pela exclusão do § 1º do art. 501 do Projeto na sua redação atual, ou de norma semelhante. Até porque, do ponto de vista prático, não haverá uniformidade nem na doutrina nem na jurisprudência para a explicação correta de cada uma das hipóteses elencadas nos seus quatro incisos.

4.6. Princípio do contraditório A respeito do grave tema do contraditório, ainda cabem duas observações sugeridas pela presença e pela redação do art. 7º do anteprojeto encaminhado ao Senado e por este aprovado como PL nº 166/2010, e do mesmo art. 7º do Projeto na sua redação atual. A primeira é a de que o Projeto usa repetidamente locuções como estas: “… ouvida a parte contrária…”, “… respeitado o contraditório…”, “… seja dada oportunidade às partes para se manifestar…”, como a sugerir respeito ao princípio. Cabe um parêntese para dizer que muitas delas são já regras de procedimento, para compor a controvérsia, não constituindo homenagem ao princípio do contraditório. Por exemplo: arts. 20, 314, inciso II, 334, 359, 360, 373 e § 2º etc. 133

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As que determinam a audiência da parte, das quais se dão os exemplos acima, são regras inócuas, sem sanção, leges imperfectae. São proposições sem objeto, que às vezes enunciam um princípio, ao qual recomendam obediência sem previsão de invalidade, sanção ou o que o valha para o caso de desobediência. Piero Calamandrei aludiu à “reserva mental na legislação”, expediente posto em prática até hoje, que consiste em incluir num diploma legal norma expletiva do comportamento recomendável, sem, entretanto, nenhuma consequência para a desobediência. O juiz atende ao determinado na lei, ouve a parte, mas decide como bem entende… ou… como é obrigado a decidir. Do punhado de disposições com essa possibilidade indicam-se, ao acaso, os arts. 9º; 10; 382, § 1º; e 499, parágrafo único, do Projeto na sua redação atual, os quais servem de véu diáfano dos poderes fortalecidos do juiz. A segunda observação à presença e à redação do art. 7º do Projeto é que tal dispositivo vinha assim redigido no anteprojeto: “É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz velar pelo efetivo contraditório em casos de hipossuficiência técnica.” A abominável cláusula final – “… em casos de hipossuficiência técnica” – foi eliminada do texto. Mas o “velar pelo efetivo contraditório” ainda perdura. Uma “vigilância” desmedida do contraditório pode levar o magistrado à parcialidade, ou ser assim interpretada conforme as circunstâncias de cada processo. Sem esquecer que a regra pode ensejar ainda algum desmando judicial em detrimento de advogados. A paridade de tratamento às partes já consta em outro preceito, qual o do art. 121, inciso I, e o zelo pelo contraditório é assegurado pelos próprios litigantes, com recursos até a mais alta corte do País, em caso de negativa. Duvidosa, reticente e redundante como está, a disposição do art. 7º citado deve ser simplesmente excluída.

4.7. Princípio da isonomia processual Este princípio consideramos ofendido pelo tratamento dispensado à União, Estados, Distrito Federal, municípios e suas respectivas autarquias e também às fundações de direito público, Ministério Público e Defensoria Pública, no tocante aos prazos em dobro que lhes são concedidos e à remessa obrigatória ao órgão jurisdicional de segundo grau das sentenças proferidas contra a União, Estados, Distrito Federal, Municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público. 134

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5. Da postergação de princípios no Projeto de Código de Processo Civil Quando se discutia o texto primitivo do Projeto de Código de Processo Civil, aprovado pelo Senado e encaminhado à Câmara, onde obteve o número PL nº 8.046/2010, não se podia propugnar por uma revisão dos princípios que o orientavam porque tal obra, em verdade, não se assentava em princípios, mas estava a revelar os únicos objetivos de colocar a jurisdição como e a serviço do Estado e o de reduzir o litigante a um subordinado a esse serviço. Proposição de autoritarismo prático e ostensivo. Os casos de afastamento dos princípios, pelo Projeto atual, que ainda perduram são, a um coup d’oeil, os que alinhamos nos itens anteriores deste trabalho, a partir do de número 4 (quatro).

6. Dos poderes do juiz no Projeto de Código de Processo Civil ou A técnica a serviço da rejeição dos princípios Coerentemente com o abandono de alguns e mitigação de outros princípios basilares do processo civil, o Projeto nº 8.046/2010 adotava uma das técnicas características de sistemas processuais autoritários, pois nele se observa o enrijecimento dos poderes do juiz, como aqui se resume fazendo-se comparação com o Projeto no seu estágio atual, este designado, como se disse, PL nº 6.025/2005. Alguns resquícios de autoritarismo perduram. É ver: — Tipificação das hipóteses de falta de motivação das decisões (art. 501, § 1º, item 4.5 supra). — A permissão ao juiz para alterar regras procedimentais preestabelecidas e como tais componentes do devido processo legal (Constituição da República, art. 5º, LIV, e Projeto, art. 121, inciso VI). — Alteração do pedido sem manifestação do autor (itens 4.1 e 4.3, supra). — Supressão do efeito suspensivo da apelação como regra (art. 1.009). — Enumeração taxativa das interlocutórias agraváveis (art. 1.029). — Punição de ilícitos processuais mediante imposição de penas pecuniárias, em número excessivo de hipóteses, como: • art. 78, §§ 1º e 2º (por incidência no mesmo artigo, incisos IV e V); • arts. 81 e 82 (definição de sete hipóteses de litigância de má-fé e imposição de multa);

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• art. 184 (multa correspondente à metade do salário mínimo a quem lançar cotas marginais ou interlineares nos autos); • art. 217, §§ 2º, 3º e 4º (multa ao advogado, ao membro do Ministério Público, ao da Defensoria Pública ou da Advocacia Pública que retiver autos quando intimado a devolver); • art. 337, § 7º (multa por ausência à audiência de conciliação – “ato atentatório à dignidade da justiça”); • art. 539, § 1º (não pagamento da condenação em 15 dias); • art. 552, §§ 1º e 3º (condenação em obrigação de fazer – multa periódica – caracterização, também, da litigância de má-fé e crime de desobediência); • art. 553, §§ 2º e 3º (extensão da multa periódica à execução provisória); • art. 554, § 3º (extensão dos arts. 552 e 553 à obrigação de entregar coisa); • art. 794, parágrafo único (multa por ato atentatório à dignidade da justiça). Outros casos podem ter fugido à pesquisa que realizamos. Observe-se que somente caberá agravo contra as decisões interlocutórias proferidas na liquidação de sentença, no cumprimento de sentença, no processo de execução e no inventário (art. 1.029, § 1º) e sem efeito suspensivo. As demais interlocutórias, exequíveis imediatamente ou no prazo que o juiz fixar, estas só poderão ser impugnadas na apelação. Também a enumeração taxativa das hipóteses de cabimento do agravo constitui medida de sintomática tonificação dos poderes do juiz. O recurso de agravo tem entre as suas finalidades, no processo civil brasileiro vigente, a de resguardar a regularidade do procedimento, uma vez que cabe contra todas as interlocutórias. Pelo Projeto, as decisões interlocutórias não serão recorríveis, ou melhor, somente serão impugnáveis por agravo as decisões mencionadas taxativamente no art. 1.029. É extinto o agravo retido. A lembrança do cabimento sucedâneo do mandado de segurança parece-nos inconsequente, aliás mais grave, porque, com certeza, ou ensejará a edição de diploma modificativo da lei do mandado de segurança (para não o admitir contra algumas interlocutórias) ou a edição de precedente jurisprudencial que o não admitirá para certas hipóteses.

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7. A celeridade dos processos e o exercício das faculdades processuais prejudicados pelo procedimento O anteprojeto solicitado pelo Presidente do Senado, José Sarney, trazia como mote a necessidade de acelerarem-se os serviços judiciários, dada a humilhação que nos causa, a nós, brasileiros, o modorrento caminhar de qualquer pleito em juízo. Tal mote mais se assemelhava a um pretexto, como tivemos oportunidade de afirmar inúmeras vezes, pois o intento principal parecia (e ainda parece) o de possibilitar que o processo civil sirva a interesses estatais, dada a presença dos comandos arbitrários e artificiosos aqui apontados e dos quais restaram sequelas. Que a celeridade dos serviços forenses a ninguém iludia como razão de um novo diploma processual civil provam-no algumas criações do Projeto, como: — a instituição do amicus curiae em primeiro grau de jurisdição, com os consectários dos prazos para manifestações de mais esse sujeito na relação processual; — a contagem dos prazos somente em dias úteis, o que seria medida aplaudível não se encontrassem os serviços judiciários na situação calamitosa em que se acham; — a condução da testemunha pelo próprio advogado; — o incidente de resolução de demandas repetitivas, com as suas possíveis implicações nos princípios do juiz natural e do acesso à justiça; — o intrincado e aleatório incidente de concessão de efeito suspensivo aos recursos (art. 1.009, parágrafo único, do Projeto na sua redação atual).

8. Considerações finais Essas são as críticas que se podem fazer ao texto do Projeto de Código de Processo Civil atualmente em discussão na Câmara dos Deputados, no tocante aos princípios com implicação na orientação política que o mesmo venha a assumir. Outra matéria, qual um melhor e mais aprofundado estudo sobre as regras procedimentais, tecnicamente falando, poderá levar-nos a conclusões menos penumbrosas. Pois, de outra parte, é absolutamente necessário considerar que resultados menos desalentadores podem ser alcançados não pela reforma institucional do processo civil, mas com o emprego de radicais medidas operacionais, que eliminem vezos de há muito entranhados no dia a dia do foro. 137

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Por fim, tem-se a impressão de que há muito ainda a reparar no campo dogmático, assim como – e com muito cuidado – na própria redação no Projeto atual, mas é efetivamente animador o expurgo de muitas regras originárias, presentes no então Projeto nº 8.046/2010, que nos deixavam a impressão de um diploma carregado de tendências teórico-políticas. É preciso lembrar que a liberdade é o traço característico do processo judicial brasileiro, com a qual, em toda sua longa história, no cível e no crime, tornou efetivas as garantias institucionais e constitucionais contra o autoritarismo e o arbítrio. Estamos convencidos de que não se fará jamais justiça preterindo princípios emanados da dignidade do homem, como tais e mais importantes os que tutelam a sua liberdade, e que um código de processo civil é o instrumento de realização concreta desses princípios.

Referências CARVALHO, Milton Paulo de (coord.). Teoria geral do processo civil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

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Reflexões sobre os poderes do juiz a partir do Projeto do Novo Código de Processo Civil Walter dos Santos Rodrigues

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Considerações introdutórias. 1. Contraditório efetivo e hipossuficiência técnica. 2. Declaração incidental com força de coisa julgada. 3. Flexibilização do procedimento. 4. Modificação e estabilização da demanda. 5. A título de conclusão. Referências

Considerações introdutórias spirando resolver os incontáveis problemas que comprometem a qualidade e a tempestividade da prestação jurisdicional, tornou-se recorrente a defesa do incremento dos poderes do juiz e a intensificação de sua participação no processo, inclusive desempenhando suas atividades em regime de colaboração com os litigantes. Tal tendência já não é mais novidade no processo civil, quer seja no direito estrangeiro, quer seja no direito brasileiro. Surpreende que permaneça a ser algo novo a necessidade de reflexão e de construção de um direito processual onde se conjuguem os crescentes poderes da autoridade judiciária com os direitos fundamentais dos demandantes. O projeto traz inovações nesse sentido? Como e onde se verificam a ampliação dos poderes do juiz no projeto? Como se implicam mutuamente os maiores poderes do julgador e os direitos e garantidas das partes?

A

* Professor assistente de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor assistente de Prática Jurídica da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro de Extensão Universitária (CEU, atual Instituto Internacional de Ciências Sociais – IICS). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Advogado. 139

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

É possível relacionar pelo menos cinco artigos do Anteprojeto de Código de Processo Civil elaborado pela Comissão de Juristas (e convertido no Projeto de Lei no Senado nº 166/2010), que manifestam direta e explicitamente o alargamento dos poderes da autoridade judicial no processo civil. São eles os arts. 7º, 19, 107, inciso V, 151, § 1º e 314. Alguns breves comentários sobre cada um deles ajudarão a compreender como o projeto do novo CPC busca aumentar os poderes do órgão julgador. Antes disso, convém esclarecer que serão mencionados também os correspondentes artigos do Projeto de Lei nº 8.046/2010 na Câmara, bem como pelo termo projeto que se faz referência ora a um, ora ao outro, de acordo com o contexto. A análise começará pelo contraditório efetivo, assim denominado pelo projeto.

1. Contraditório efetivo e hipossuficiência técnica Depois de se referir ao princípio da isonomia deste modo: “assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais”, o art. 7º propunha que “[competiria] ao juiz velar pelo efetivo contraditório em casos de hipossuficiência técnica”.1 Não é momento de criticar o uso do verbo “competindo”, no texto original, fora do seu sentido técnico, precisamente no projeto de uma lei processual. Nem é necessário discutir o significado de “hipossuficiência técnica” e suas correlações e diferenciações com outras modalidades de hipossuficiência e com os conceitos de insuficiência de recursos e de vulnerabilidade. Basta cogitar da seguinte suposição: “quando uma das partes estiver representada por advogado incapaz de satisfatoriamente desincumbir-se de seu mister [...], [se,] a critério do juiz, supor que há hipossuficiência técnica, [ele poderia] [...] interferir em favor de uma das partes”2 para garantir a isonomia e o contraditório? Sem dúvida, por “velar” se entende guardar,

1. Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Senador José Sarney (proveniente dos trabalhos da Comissão de Juristas, instituída pelo Ato nº 379, de 2009, do Presidente do Senado Federal). Projeto de lei do Senado nº 166, de 2010: dispõe sobre a reforma do Código de Processo Civil. Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010, p. 2. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 2. Glauco Gumerato Ramos. Poderes do juiz: ativismo (= autoritarismo) ou garantismo (= liberdade) no Projeto do Novo CPC. In: Fernando Rossi et al. (coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao projeto do novo CPC. 2011. p. 709. O autor faz uma afirmação no original, que foi transformada em interrogação na citação. 140

7 – Reflexões sobre os poderes do juiz a partir do Projeto…

vigiar, proteger, cuidar e zelar, vocábulos esses que transmitem a ideia de afastamento entre o sujeito e o objeto. Mas “velar” também expressa as noções de interessar e influenciar. Assim, tanto do ponto de vista semântico como do ponto vista da prática dos tribunais, sobra muito pouco para que “velar” possa traduzir-se e transformar-se em interferir. Para Leonardo Greco é indiferente haver ou não deficiências no desempenho do mandato para a representação processual da parte. Pelo efetivo contraditório deve sempre velar o juiz, independentemente da conduta dos advogados. Se o dispositivo pretendeu autorizar o juiz a suprir as deficiências dos advogados no exercício da defesa deveria ter sido mais claro e precisar em que medida e em que limites essa função pode ser exercida sem comprometer os princípios da imparcialidade e da iniciativa das partes, pois há inúmeras questões de direito que somente podem ser apreciadas com a iniciativa dos próprios litigantes. 3

O mesmo professor entende que deve o juiz suprir a ausência de iniciativa probatória das partes quando lhe parecer possível trazer aos autos algum elemento de convicção não requerido, que venha a esclarecer ponto que se apresenta obscuro em seu entendimento, porque há um abismo de comunicação que impede as partes e os seus advogados de perceber o que se passa no entendimento do juiz. Esse abismo somente seria superado sem necessidade de suprimento judicial da inércia da parte, se este instaurasse no processo verdadeiro diálogo humano, que lhe permitiria efetuar o que a doutrina alemã denomina de Hinweispflicht [grifado no original], o dever de advertência, em que o juiz, sem caráter impositivo, sugere a possibilidade de que alguma outra prova venha a elucidar este ou aquele ponto de fato controvertido, ficando ao arbítrio das próprias partes aceitar ou não a sugestão e requerer a produção da referida prova.4

3. Leonardo Greco. Breves comentários aos primeiros 51 artigos do Projeto de novo Código de Processo Civil (Projeto de Lei do Senado 166/2010). Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro: Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ. a. 4, v. VI, p. 96, jul.-dez./2010. Disponível em: < http://www.redp.com.br/arquivos/redp.6a_edicao pdf>. Último acesso: 15/06/2012. 4. Idem, p. 96-97. 141

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Devido a críticas nesse sentido, o substitutivo [...] optou por excluir integralmente a parte final do art. 7º [– de modo que tal dispositivo termina em: competindo ao juiz velar pelo efetivo contraditório –], já que a interferência do juiz em casos de hipossuficiência técnica [– trecho que foi suprimido –] pode importar na violação do princípio da imparcialidade do Juiz.5

2. Declaração incidental com força de coisa julgada No art. 19 está dito que “[se], no curso do processo, se tornar litigiosa relação jurídica de cuja existência ou inexistência depender o julgamento da lide, o juiz, assegurado o contraditório, a declarará por sentença, com força de coisa julgada”.6 Desta vez, o PLC nº 8.046/2010 não modificou substancialmente o texto original. Apenas substituiu a preposição “por” antes de “sentença” pela combinação de preposição com artigo “na” (além de renumerar o art. de 19 para 20).7 Foi apresentada emenda propondo a alteração do art. 19 para condicionar a declaração incidental com força de coisa julgada sobre relação jurídica litigiosa incidente ao requerimento das partes, sob a justificativa de “ser este requisito a única forma de impedir que o dispositivo seja atentatório ao princípio da iniciativa das partes”.8 Mas a comissão revisora rejeitou a emenda mediante a alegação de que “a questão prejudicial a que se refere o art. 19 passa a integrar o objeto do processo, independentemente de pedido. Dito de outra forma: a proposta legislativa quer justamente inovar a ordem jurídica para assentar que, 5. Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão Temporária da Reforma do Código de Processo Civil (Relator Senador Valter Pereira). Parecer nº 1.624/2010: sobre o Projeto de Lei do Senado nº 166, de 2010, que dispõe sobre a reforma do Código de Processo Civil, e proposições anexadas. Brasília: Senado Federal, 2010, p. 227. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 6. Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Senador José Sarney (proveniente dos trabalhos da Comissão de Juristas, instituída pelo Ato nº 379, de 2009, do Presidente do Senado Federal). Projeto de lei do Senado nº 166, de 2010: dispõe sobre a reforma do Código de Processo Civil. Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010, p. 3. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 7. Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Projeto de lei da Câmara nº 8.046, de 2010: Código de Processo Civil. Brasília: Câmara dos Deputados, 2010, p. 3. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/sileg/integras/831805.pdf>. Último acesso: 15/06/2012. 8. Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão Temporária da Reforma do Código de Processo Civil (Rel. Sen. Valter Pereira). Parecer nº 1.624, de 2010... p. 81. Disponível em:. Último acesso: 15/06/2012. 142

7 – Reflexões sobre os poderes do juiz a partir do Projeto…

mesmo sem pedido expresso, as questões prejudiciais, por disposição legal, passam a fazer parte do objeto do processo”. 9 Tanto é assim, que o art. 490 do PLC nº 8.046/2010 (correspondente ao art. 484 do PLS nº 166/2010), que regula os limites objetivos da coisa julgada, disciplina que “[a] sentença que julgar total ou parcialmente a lide tem força de lei nos limites dos pedidos e das questões prejudiciais expressamente decididas”.10 Esta não é a oportunidade para debater outros desdobramentos desta proposta, tais como, se por relação jurídica litigiosa cuja existência ou inexistência depende o julgamento da lide se entende um ponto ou uma questão ou uma causa prejudicial de mérito – particularmente entendo que se trata apenas de questão e não de ponto (que é uma afirmação não controvertida) e nem de causa (porque esta será resolvida por sentença a ser proferida em outro processo devidamente instaurado no juízo competente) e se trata de questão prejudicial (nunca preliminar) e sempre de mérito. Também não é a oportunidade para esclarecer que a questão prejudicial de mérito só será atingida pela coisa julgada se o juízo for competente também para apreciar a matéria. Ou ainda para debater se esta hipótese se trata de nova modalidade de pedido implícito. Ou mesmo para sistematizar uma explanação sobre os princípios da inércia da jurisdição, da oficialidade, da iniciativa da parte, da demanda e do dispositivo, para que se possa dizer com precisão não apenas qual princípio ou quais princípios estão sendo excetuados, mas para que se possa dizer qual é a extensão da invasão da autoridade judicial sobre a esfera de interesses e direitos da parte. Ou até como deverá se comportar o advogado ao oferecer contestação tendo em vista o ônus da impugnação especificada dos fatos e o princípio da eventualidade. Esta é a oportunidade de, precisamente, chamar a atenção para mais uma intromissão na privacidade ou intimidade das partes e chamar a atenção para mais uma limitação da liberdade das partes em dispor de seu direito subjetivo ou dispor da causa em juízo. Intromissões estas que, por consequência, atentam contra a garantia da imparcialidade do juiz, uma vez que a neutralidade, ou a terzietà, ou o estar o juiz au dessus de la melée, se não 9. Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão Temporária da Reforma do Código de Processo Civil (Rel. Sen. Valter Pereira). Parecer n º 1.624, de 2010... p. 194. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 10. Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Projeto de lei da Câmara n º 8.046, de 2010... p. 81. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 143

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estão comprometidos, pelo menos ficam ameaçados por um juiz que, na prática, formula e julga o seu pedido. Pense-se em litígios envolvendo vizinhos ou parentes, situações nas quais a convivência é quase obrigatória. Ao decidir questões não levantadas pelas partes, o órgão judicante pode até agravar mais a relação conflituosa. De forma deliberada – ao prevalecer uma nova concepção de “objeto do processo” por sobre o princípio da imparcialidade – ou por inadvertência – ao deixar de perceber que não só o princípio da iniciativa das partes estava sendo restringido –, a comissão de revisão não preservou o princípio da imparcialidade neste dispositivo como havia preservado no artigo considerado anteriormente.

3. Flexibilização do procedimento O Projeto propõe um inegável incremento dos ‘poderes’ do magistrado [– lê-se numa passagem do Parecer nº 1.624/2010. Na continuação, aponta uma proposta concreta: –], merecendo destaque a possibilidade de o magistrado adaptar, à luz das características de cada caso concreto, o procedimento reservado pela lei (arts. 107, V, e 151, § 1º).11

Está-se referindo a uma tentativa de positivação do princípio da adequação formal ou da flexibilização do procedimento, que será objeto de análise na sequência. O inciso V do art. 107 tentou incumbir ao julgador, na direção do processo, o poder de “adequar as fases e os atos processuais às especificações do conflito, de modo a conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico, respeitando sempre o contraditório e a ampla defesa”.12 O § 1º do art. 151 tentou, “[quando] o procedimento ou os atos a serem realizados se [revelassem] inadequados às peculiaridades da causa [...], [atribuir ao juízo poder de], ouvidas as partes e observados o contraditório e a ampla defesa, promover o necessário

11. Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão Temporária da Reforma do Código de Processo Civil (Rel. Sen. Valter Pereira). Parecer n º 1.624, de 2010.... p. 42-43. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 12. Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Senador José Sarney (proveniente dos trabalhos da Comissão de Juristas, instituída pelo Ato nº 379, de 2009, do Presidente do Senado Federal). Projeto de lei do Senado nº 166, de 2010... p. 24.Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 144

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ajuste”.13 Estes dois dispositivos tentaram atribuir ao juiz o poder de adequação procedimental. Mas não conseguiram. O instituto suscitou perplexidade e críticas: a flexibilização estaria sempre condicionada à inadequação do procedimento, às peculiaridades da causa? Ou as partes, o Ministério Público e outros terceiros intervenientes poderiam requerer ao juiz as mudanças que julgassem convenientes? A adequação judicial do procedimento não diminuiria a previsibilidade do itinerário processual, não aumentaria a incerteza e a insegurança? O novel instituto não atentaria contra a garantia do devido processo legal? As formalidades no direito em geral e no processo em particular não foram pensadas justamente como garantias da liberdade frente ao arbítrio? As garantias do contraditório e da ampla defesa, formalmente incluídas no projeto, seriam suficientes para frear arbitrariedades? Pensando bem, se o texto originário viesse a ser votado, aprovado, sancionado, promulgado e publicado, finalmente estaria legalizada a realidade de que cada juiz tem seu Código de Processo Pessoal, porque mesmo depois do advento do sistema da unidade processual com a Constituição de 1934, ainda hoje cada juiz conduz o processo como bem entende... Brincadeiras à parte e voltando a falar seriamente, não se estaria colocando uma exceção como regra? As perplexidades e as críticas foram tantas que o substitutivo fez constar expressamente que a previsão do art. 107, V, foi um dos pontos mais criticados do projeto, já que, tal como posto, permite ao Juiz alterar, de acordo com seu entendimento, qualquer fase do processo. Segundo a maioria, na prática, isso pode permitir que cada juiz faça o seu ‘Código’ [– e desta vez quem disse isso foram os Senadores –], que pode gerar insegurança jurídica. Por isso, [concluiu-se que] a regra realmente [deveria] ser alterada.”14

As perplexidades e as críticas foram tamanhas que a comissão revisora “[dando] voz à ampla discussão instaurada por aqueles dispositivos, [entendeu] ser o caso de mitigar as novas regras. Assim, no substitutivo, a flexibilização procedimental, nas condições que especifica, [limitaram-se] 13. Idem, p. 35. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 14. Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão Temporária da Reforma do Código de Processo Civil (Rel. Sen. Valter Pereira). Parecer nº 1.624, de 2010... p. 198-199. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 145

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a duas hipóteses: o aumento de prazos e a inversão da produção dos meios de prova.”15 No PLC nº 8.046/2010, o correlato inciso V do art. 118 passou a disciplinar que incumbe ao juiz “dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova adequando-os às necessidades do conflito, de modo a conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico”.16 A mitigação da flexibilização procedimental aconteceu, por um lado, porque – em que pese o mérito do trabalho e o mérito pessoal de cada jurista integrante da comissão que redigiu o anteprojeto – o texto proposto era insatisfatório. Por outro lado, porque houve pressa para apresentar o anteprojeto no Senado Federal e para enviá-lo à Câmara dos Deputados. E há pressa para aprová-lo nesta casa legislativa. E quando há muita pressa, falta reflexão madura. Para Fernando da Fonseca Gajardoni “[a] flexibilização procedimental poderia ter sido mantida em toda a sua plenitude no [novo CPC], desde que a redação do dispositivo legal que a contemplasse contivesse melhores regras sobre o seu uso [...]”.17 Ele aponta o que chama de “condicionamentos” ou “condicionantes” para a flexibilização, quais sejam: ser utilizada apenas em caráter subsidiário, pois a flexibilização do procedimento se consubstancia em medida de exceção; restringir-se a três situações específicas ou obedecer a três finalidades restritas, a saber: (1) a inaptidão do procedimento para a tutela do direito material reclamado, (2) a dispensa de formalidades consideradas irrelevantes para se atingir o escopo do processo e desde que as partes não sejam prejudicadas e (3) o restabelecimento do equilíbrio entre os litigantes; em todos os casos: estar sujeita ao contraditório, por ele adjetivado de “útil”; assim como ser oriunda de decisão motivada18 – tudo isso mediante a seguinte justificativa: “para que haja limites ao arbítrio judicial no campo do procedimento”19 – e, por último, que “a decisão que ordena a flexibilização [seja] recorrível [...] – e complementa a justificativa 15. Idem, p. 144. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 16. Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Projeto de lei da Câmara n º 8.046, de 2010... p. 21. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 17. Fernando da Fonseca Gajardoni. Op. cit., p. 696. A propósito, o autor se serve da ampliação e redução de prazos processuais como exemplo tanto de flexibilização diante da inépcia do procedimento para a tutela do direito material, como para restaurar a paridade entre demandante e demandado, e se serve da mudança na ordem da produção dos meios de prova como exemplo de flexibilização quando se dispensa formalidade insignificante, sendo ambos os exemplos propostas do PLC nº 8046/2010. 18. Idem, p. 693-694. 19. Idem, p. 696. 146

7 – Reflexões sobre os poderes do juiz a partir do Projeto…

ressaltando: – até para que efetivamente sejam observadas as condicionantes [...] [anteriores].”20 É de se reparar que nas sugestões por ele feitas – bastante complexas para serem deixadas ao talante do julgador e, por essa razão, merecedoras de uma disciplina legislativa mais elaborada – transparecem não só o intento de ampliar os poderes do juiz, mas também a preocupação em conter eventuais arbitrariedades pela via recursal. Sobre os recursos em geral e a recorribilidade das decisões interlocutórias em especial, falar-se-á (sucintamente) mais adiante. Como registrou o Parecer nº 1.624/2010, os dois pontos do projeto mais criticados nas audiências públicas que se realizaram, bem como nas propostas apresentadas pelos Senadores e também pelas diversas manifestações que nos chegaram, [foram] a ‘flexibilização procedimental’ [...] e a possibilidade de alteração da causa de pedir e do pedido a qualquer tempo, de acordo com as regras do art. 314 do projeto.21

A última proposta a ser abordada com mais vagar não poderia deixar de ser a modificação e a estabilização da demanda.

4. Modificação e estabilização da demanda Há alguns problemas que não podem ser considerados novos, mas para os quais, todavia, não encontramos soluções adequadas: como proceder se o autor, depois de citado o réu, quiser desistir não de um pedido, mas de um fundamento que constitui a causa de pedir? Se o autor requerer a modificação da demanda, antes do saneador – assim chamado por apreço pela denominação antiga –, mas o réu citado deixar de se manifestar, admite-se concordância tácita? Se o réu for revel citado por hora certa ou por edital, sua situação pode ser agravada? Ou se durante a instrução probatória, superadas, portanto, as fases postulatória e de saneamento – assim chamadas somente por razões didáticas –, o autor percebesse que não formulou o pedido da maneira mais adequada, embora tenha razão, todos os seus esforços serão 20. Idem, ibidem. 21. Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão Temporária da Reforma do Código de Processo Civil (Rel. Sen. Valter Pereira). Parecer n º 1.624, de 2010... p. 144. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 147

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

desperdiçados? O réu, mesmo sem razão, será beneficiado? Se, nesse estágio do andamento do feito, surgisse um fato novo capaz de dar azo a uma nova causa de pedir, ainda que ambas as partes estivessem de acordo, não poderia ser conhecido e apreciado só porque isto aconteceu após o despacho saneador? A manifestação e a produção de prova pela parte contrária representaria necessariamente um tumulto na marcha processual? Mesmo que o réu seja contrário, sendo-lhe garantido o contraditório e a ampla defesa, poderia ele, abusando do direito de defesa, impelir o autor a instaurar outro processo e deixar de aproveitar o já existente (contrariando o princípio da economia processual)? O juiz, aproveitando o mesmo processo onde foi constatado, poderia conhecer e julgar fato novo de ofício? E se a matéria ou fundamento fosse cognoscível de ofício, poderia fazê-lo inovando a causa e sem ouvir as partes? O réu e o autor podem ser surpreendidos por decisões que julgaram pedidos ou fundamentos sobre os quais não discutiram? Ou mesmo fatos tidos como acidentais, secundários ou acessórios, que não impliquem na modificação do núcleo da demanda, estão sujeitos às mesmas regras legais que os fatos novos ou supervenientes? Na tentativa de resolver problemas dessa natureza, o projeto propôs o art. 314 cujo caput dizia: “[o] autor poderá, enquanto não proferida a sentença, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, desde que o faça de boa-fé e que não importe em prejuízo ao réu, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de quinze dias, facultada a produção de prova suplementar”.22 No parágrafo único deste dispositivo estava escrito: “[aplica-se] o disposto neste artigo ao pedido contraposto e à respectiva causa de pedir”.23 E no parágrafo único do art. 475 (o caput deste artigo correspondia ao art. 462 do CPC/1973) chegou a constar que: “[se fosse constatado] de ofício o fato novo, o juiz [ouviria] as partes sobre ele antes de decidir.”24 Contudo, problemas, estes sim podem ser chamados novos, se revelaram: estaria permitida a inclusão tanto de fatos supervenientes como de fatos novos? O direito de produzir provas não deveria ser garantido a ambas as partes? Após a produção de provas, a parte que se considerasse fadada à derrota 22. Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Senador José Sarney (proveniente dos trabalhos da Comissão de Juristas, instituída pelo Ato nº 379, de 2009, do Presidente do Senado Federal). Projeto de lei do Senado nº 166, de 2010... p. 69. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 23. Idem, p. 69. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 24. Idem, p. 104. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 148

7 – Reflexões sobre os poderes do juiz a partir do Projeto…

no pleito e viesse requerer modificação da demanda, estaria necessariamente agindo de má-fé? Como se provaria ou em que circunstâncias presumir-se-ia a má-fé? Se a modificação requerida implicasse em mais demora no processamento dos autos – afinal, a produção de prova seria facultada não apenas à parte que a requeresse, senão inclusive à parte contrária, uma vez que teria “o direito de defender-se provando”25 –, o juiz poderia indeferi-la embasando sua decisão nos princípios da celeridade, duração razoável, economia ou efetividade do processo, mesmo não constituindo estes princípios como requisitos específicos? Poderia indeferir a modificação da demanda somente mediante requerimento da parte contrária ou inclusive de ofício? Contra tal decisão caberia recurso? Houve senadores que tentaram reformular o projeto propondo que também a possibilidade de prejuízo à marcha processual [passasse] a ser obstáculo ao aditamento ou à alteração do pedido ou da causa de pedir, além de se prever que a decisão que [admitisse] o aditamento ou a alteração [fosse] passível de impugnação por agravo de instrumento. [...] [Uma vez que o] instituto da estabilização da demanda [...] demonstra ser incompatível com [...] [os princípios da efetividade e da celeridade, se houver] a possibilidade de aditamento ou alteração do pedido ou da causa de pedir a qualquer tempo, se tais medidas puderem resultar em perturbação inconveniente da instrução, da discussão ou do julgamento do pleito. [E reiteraram] que da decisão [coubesse] agravo de instrumento, diante das sérias consequências que dela [pudesse] advir.26

E houve quem propôs também nova redação ao art. 314, para afastar a possibilidade de o autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem consentimento do réu, após a citação deste, ressalvando apenas as substituições permitidas por lei[, sendo] [tal] modificação [...] afastada por completo após o saneamento do processo[, sob] [a] justificativa [...] [de] a faculdade prevista [...] fazer com que o

25. Leonardo Greco. Estudos de direito processual. 2005, p. 243. 26. Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão Temporária da Reforma do Código de Processo Civil (Rel. Sen. Valter Pereira). Parecer nº 1.624, de 2010... p. 92. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 149

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL autor possa requerer a alteração do pedido sem que tenha limites a tanto, provocando-se assim uma indesejável perpetuação da lide.27

Entretanto, ainda houve senadores que tentaram a supressão do art. 314, para [retirar] do autor a faculdade de aditar o pedido e a causa de pedir enquanto não [fosse] proferida a sentença, [sob o] [argumento de] que tal dispositivo [ia] de encontro ao princípio da celeridade, que norteia o projeto, seja em virtude da discussão em si que a questão que tenha levado ao aditamento já causaria, seja porque seria gerada uma discussão nova, consistente em se precisar se teria havido ou não prejuízo decorrente do aditamento, podendo inclusive motivar recursos.28

E houve quem aduziu que “a proposta atenta contra a estabilidade do processo, violando potencialmente, dessa forma, os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa”.29 A ocasião não é propícia para recordar os conceitos fundamentais de pedido e causa de pedir, demanda, objeto litigioso, princípio iura novit curia, máxima da mihi factum, dabo tibi ius, ou de diferenciar as teorias da substanciação e da individualização, causa de pedir próxima de remota, causa de pedir ativa de passiva, fato constitutivo de fato particular, direito geral de direito singular, fundamento jurídico de fundamento legal, fato superveniente de fato novo, mutatio libeli de emendatio libeli e modelos rígidos ou flexíveis de estabilização da demanda. Nem abordar os arts. 128, 264, 267, 269, 293, 459, 460 e 462 do CPC/1973. Menos ainda a jurisprudência formada no Superior Tribunal de Justiça sobre a modificação da sentença depois do saneamento do processo e antes da sentença. A ocasião permite reiterar que o grande volume de críticas, a insuficiência do texto proposto e o açodamento para aprovar o projeto, levaram à reprovação da proposta e “[à] opção [...] pela manutenção da regra hoje vigente: [...] [a alteração da causa de pedir e do pedido] é possível até o saneamento do processo que, no substitutivo, fica mais evidenciado que no

27. Idem, p. 93. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 28. Idem, p. 92. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 29. Idem, p. 92. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 150

7 – Reflexões sobre os poderes do juiz a partir do Projeto…

Código vigente”.30 Deste modo, o texto remetido a Câmara, correspondente ao art. 304, propõe que [o] a autor poderá [...] até a citação, modificar o pedido ou a causa de pedir, independentemente do consentimento do réu [...] [, e] até o saneamento do processo, com o consentimento do réu, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de quinze dias, facultado o requerimento de prova suplementar [...]. [E propõe a aplicação do disposto acima] ao pedido contraposto e à respectiva causa de pedir. 31

Antes da aprovação do PLC nº 8.046/2010, Cíntia Regina Guedes escreveu que em razão da extrema abertura dada pela redação do artigo 314 do projeto, alguns parâmetros objetivos [deveriam] ser estabelecidos para se identificar os casos em que se [tornasse] admissível a modificação da demanda na fase instrutória, ou até mesmo após o seu encerramento. Tais parâmetros, a serem estabelecidos pela lei ou pela doutrina [– essa é a opinião dela –], visam principalmente a garantir a observância dos princípios da boa-fé e da lealdade processual, de molde a não se permitir manobras desleais do autor ao promover alterações na demanda que causem surpresa ao demandado, destituindo de eficácia concreta o seu direito de defesa, sem que se verifique real necessidade desta mudança, ante a ponderação dos princípios da economia processual e da lealdade processual. 32

Ela prossegue argumentando que [sem] a adoção de parâmetros claros para se definir quais as hipóteses que traduziriam quebra da conduta de boa-fé, ausência de utilidade da modificação pleiteada, ou prejuízo ao direito de defesa da parte prejudicada (casos em que seria vedada a alteração na demanda), corre-se o grande risco 30. Idem, p. 144. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 31. Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Projeto de lei da Câmara nº 8.046, de 2010... p. 52. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. 32. Cintia Regina Guedes. A estabilização da demanda no direito processual civil. In: Luiz Fux (coord.). O novo processo civil brasileiro (direito em expectativa): reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. 2011. p. 294. 151

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

de o tratamento da matéria continuar a ser casuístico, com cada julgador decidindo da maneira que melhor lhe convém, sendo as partes relegadas à imprevisibilidade, instabilidade e insegurança jurídica, ou seja, justamente o oposto do que se espera de um procedimento judicial. 33

Esta é uma colocação muito pertinente da parte dela: que a decisão que acata ou nega um pedido de alteração da demanda consubstancia-se em uma decisão do tipo interlocutória, que, ao menos em princípio, pelo regime estabelecido pelo projeto do novo Código, não pode ser atacada de imediato pela parte prejudicada, através de agravo de instrumento, o que eleva exponencialmente a responsabilidade do magistrado ao analisar a questão, assim como a necessidade de estabelecimento de limites claros à sua admissibilidade, sob pena de estabelecer-se um sistema de arbítrio judicial em prejuízo da segurança jurídica. 34

É de lamentar que estes parâmetros não puderam ser fixados por ocasião da discussão do projeto no Senado Federal. Esclareça-se que, tanto a adequação procedimental, como a modificação da demanda após o saneamento, não são por si mesmas ou totalmente incompatíveis com as garantias da imparcialidade, do contraditório, do devido processo legal ou qualquer outra. As redações apresentadas nos projetos e aprovadas até a presente etapa do processo legislativo tornaram esses institutos incompatíveis com os direitos e garantias processuais. O conteúdo de toda garantia, princípio, direito, enfim, o teor de todo instituto jurídico é suscetível de atualização, está sujeito a mudanças qualitativas. Veja-se o princípio da imparcialidade. Consiste basicamente no dever do magistrado manter uma posição equidistante de ambas as partes. Foi tão somente na Inglaterra do século XVIII, e mais tarde no continente europeu, que este princípio começou a ser entendido também no sentido de independência do judiciário em relação ao executivo. Tempos depois, acrescentou-se a ideia de independência frente a pressões sociais, econômicas, corporativas, psicológicas etc.35 E atualmente este princípio é questionado quando se aduz a impossibilidade de uma neutralidade axiológica do julgador. 33. Idem, ibidem. 34. Idem, ibidem. 35. Cf. Mauro Cappelletti. Juízes legisladores?. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (trad.). 1999, p. 78. 152

7 – Reflexões sobre os poderes do juiz a partir do Projeto…

Com a garantia do contraditório também não foi diferente. Em meio a avanços e retrocessos, o instituto se aperfeiçoou e seu conteúdo se expandiu. A traços largos, do direito à prévia audiência bilateral antes da sentença e de oferecimento de idênticas oportunidades para o exercício dos direitos de ação e de defesa, a garantia do contraditório incorporou o direito do réu a ser citado para tomar ciência do processo e oferecer defesa, para depois ser acrescida da regra segundo a qual toda a alegação ou prova antes de ser valorada pelo juiz deve ser objeto do conhecimento e manifestação das partes, para, hoje, ser tida como o direito a um diálogo humano com juiz e de influenciar ou participar, em certa medida, da elaboração da decisão judicial. 36 No tocante à factibilidade de positivação da norma, pelo menos até o momento de elaboração deste trabalho, foi perdida ou está sendo desperdiçada uma oportunidade para a legislação incorporar acertos e repelir equívocos presentes na doutrina e na jurisprudência e, assim, promover e consolidar alguma renovação dos conteúdos dos princípios e garantias processuais, notadamente quanto a flexibilização do procedimento e a modificação da demanda antes da sentença.

5. A título de conclusão Além dessas, outras propostas poderiam ser indicadas e analisadas, como as que dizem respeito à aplicação das sanções processuais (dentre elas a multa pelo não comparecimento injustificado das partes na audiência de tentativa de conciliação), as que dizem respeito ao preenchimento de conceitos jurídicos indeterminados, normas abertas, cláusulas gerais e, o pior de todos, conceitos simplesmente vagos (passíveis de serem preenchidos arbitrariamente) ou a transferência para o advogado do ônus de intimar a testemunha (mostra de abuso de poder, uma vez que transfere para quem não tem poder de coerção atividade própria do Poder Judiciário), dentre outras mais. Logicamente, há pontos positivos no projeto, como a vedação de decisões surpresa proposta no art. 10 do PLS nº 166/2010, exemplo de limitação do poder de decidir em virtude do princípio do contraditório (não obstante o parágrafo único incluído pelo PLC nº 8.046/2010 possa merecer alguma crítica).

36. Cf. Leonardo Greco. Estudos de direito processual. 2005, p. 541-556. 153

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O que há de comum entre todos os dispositivos examinados até aqui? Qual é a conclusão a ser tirada a partir dos artigos examinados até o momento? É esta: no intento de dotar o Judiciário de meios para uma justa e tempestiva prestação jurisdicional, o projeto seguiu a tendência atual da ampliação dos poderes do juiz. Porém, em sentido oposto, reduziu os poderes das partes, mitigando certas garantias básicas dos direitos fundamentais das partes. O resultado possível é o risco do aumento das arbitrariedades e da diminuição da qualidade das decisões judiciais, não obstante a prestação jurisdicional seja célere. Como o projeto enfraqueceu as garantias das partes e quais foram as garantias mitigadas? Sobressaem-se três garantias, ou melhor, já se falou de três delas, cabe agora tão somente reiterá-las em síntese conclusiva. Adiante-se que esta enumeração não pretende estabelecer uma hierarquia, tão somente ordenar a explanação. Em primeiro lugar, a garantia da imparcialidade. Os ataques porque passou pelas duas primeiras propostas examinadas, o espaço que reconquistou durante os trabalhos legislativos frente à hipossuficiência técnica e a restrição que sofreu com a declaração de ofício com força de coisa julgada da relação jurídica incidental litigiosa já foram suficientemente abordados, pelo menos de acordo com os fins delineados para esta exposição. Em segundo lugar, a garantia do contraditório. Alguém poderia questionar: mas esta garantia não foi afirmada explicitamente por diversas vezes no projeto? Unicamente nos cinco artigos versados, o contraditório foi mencionado cinco vezes, isto é, uma vez em cada um. Exatamente esta é a questão: a garantia do contraditório foi tratada como garantia meramente formal, esvaziada de efetividade ou de eficácia concreta. Esclarece Milton Paulo de Carvalho:37 [o] Projeto traz um punhado de disposições que apenas aparentemente respeitam ou consagram o princípio do contraditório, uma vez que se está diante daquilo que a técnica legislativa convencionou chamar de ‘reserva mental na legislação’, eis que o direito de a parte falar é reconhecido, mas o magistrado não se sujeita a tal pronunciamento e decide como lhe convém... E [– arremata o professor –], no caso do Projeto, decide irrecorrivelmente. 37. Milton Paulo de Carvalho. Sobre o Projeto de Código de Processo Civil. In: _____; Daniel Penteado de Castro (orgs.). Direito Processual Civil. 2011, v.2, p. 182. 154

7 – Reflexões sobre os poderes do juiz a partir do Projeto…

A terceira não poderia ser outra, senão o direito ao recurso. Dentro do escopo deste trabalho, cumpre chamar a atenção que o projeto deliberou pela extinção do agravo retido e pela redução das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento.38 Essa tomada de posição em conjunto com outras mudanças proposta para o título relativo aos recursos (como por exemplo, a excepcionalidade da concessão de efeito suspensivo) reduz o poder das partes de corrigir enganos e de reagir eficazmente contra arbitrariedades. A fim de compor o quadro das garantias indispensáveis para conter o eventual arbítrio judicial, somam-se mais duas. Aliás, um princípio e uma garantia: o princípio da legalidade e a garantia da motivação das decisões. Quanto a esta última, tendo em vista o público a que é dirigido imediatamente este trabalho, não são precisas longas explanações para realçar a relevância da fundamentação das decisões para efeitos de legitimação democrática do poder judiciário, controle da atividade jurisdicional e segurança da relação jurídica processual. Pena não poder dizer o mesmo sobre o princípio da legalidade. As crises de legitimação ética por que passam os Parlamentos, a rápida e constante inovação e mutabilidade das relações sociais e jurídicas, os fenômenos como a judicialização das relações políticas e sociais ou o ativismo judicial, enfraqueceram nossa confiança no princípio da legalidade, tanto no sentido da aptidão da lei para regular adequadamente as mais variadas e instáveis relações, como no sentido do dever de observar as leis. Com muita facilidade consideramos a lei (de maneira geral) imperfeita, desatualizada, inadequada. Desvalorizamos sua importância e deixamos de cumpri-la. Entretanto, nos esquecemos de substituí-la por alguma outra coisa que possua, ao menos, a mesma legitimação democrática. Do contrário, podemos acertar algumas vezes, contudo estaremos agindo autoritariamente, sendo indiferente (do ponto de vista jurídico-institucional) saber se com boa ou má intenção. Aspiro pela possibilidade de retomar esse assunto num futuro não distante. O maior perigo que levamos em consideração ao longo dessa discussão [– por discussão Mauro Cappelletti se refere ao Projeto de Florença. Tomando emprestadas suas palavras, quereria por ‘discussão’ referir-me a esta exposição –] é o risco de que procedimentos modernos e eficientes 38. Cf. art. 929 do PLC nº 8.046/2010. O acréscimo feito pelo relatório-geral de outras situações cabíveis não é suficiente para reduzir o perigo do abuso de poder, v.g., art. 969 do PLS nº 166/2010. 155

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

[– e agora, sem adulação quereria que ‘procedimentos modernos e eficientes’ se aplicassem ao projeto de novo código de processo civil brasileiro –] abandonem as garantias fundamentais do processo civil – essencialmente as de um julgador imparcial e do contraditório [– pediria licença para acrescentar entre essas ‘garantias fundamentais’ o dever de motivar as decisões, o direito ao recurso, e o princípio da legalidade –]. [...] Por mais importante que possa ser a inovação, não podemos esquecer o fato de que, apesar de tudo, procedimentos altamente técnicos foram moldados através de muitos séculos de esforços para prevenir arbitrariedades e injustiças. E, embora o procedimento formal não seja, infelizmente, o mais adequado para assegurar os ‘novos’ direitos, especialmente (mas não apenas) ao nível individual, ele atende a algumas importantes funções que não podem ser ignoradas. 39

Em outras palavras, de nada serve um processo que se pretende moderno e célere, se ele não tem aptidão para um julgamento justo. Processo justo é aquele que resguarda os direitos e as garantias fundamentais das partes durante todo o seu itinerário. O problema da efetiva proteção dos direitos fundamentais das partes é mais grave e profundo. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira sem aludir explicitamente à imparcialidade, ao contraditório e à legalidade, porém, referindo-se ao “dever de motivar sentença, [ao] atendimento às formalidades estabelecidas em lei para a realização da prova, [à] publicidade do procedimento, [à] possibilidade de recursos em geral e [ao] duplo grau de jurisdição”40 como “anteparo ao arbítrio judicial, por limitar o caráter ‘pessoal’ da decisão e melhorar a sua objetividade,”41 adverte que o emprego dessas técnicas e o respeito aos princípios e garantias mencionados correm o risco de não afastar de todo a onipotência judicial. O problema é muito mais complexo e se mostra bem possível que o órgão judicial, mesmo com uma autêntica proclamação de princípios, ao justificar determinada visão dos fatos, lance mão de critérios vagos e indefinidos, utilizando fórmulas puramente retóricas despidas de conteúdo, aludindo, por exemplo à ‘verdade material’, ‘prova moral’, ‘certeza moral’, ‘prudente 39. Mauro Cappelletti; Bryant Garth. Acesso à justiça. Ellen Gracie Northfleet (trad.). 2002, p. 163-164. 40. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Do formalismo no processo civil. 1997, p. 161. 41. Idem, ibidem, p. 161. 156

7 – Reflexões sobre os poderes do juiz a partir do Projeto…

apreciação’, ‘íntima convicção’ e expressões similares, autênticos sinônimos de arbítrio, subjetivismo e manipulação semântica por não assegurarem nenhuma racionalidade na valorização da prova, implicarem falsa motivação da decisão tomada e impedirem, assim, o controle por parte da sociedade, do jurisdicionado e da instância superior.42

Dito de outra maneira, as garantias enunciadas são necessárias, mas não suficientes para proporcionar um processo justo. É preciso enfrentar os novos desafios que uma concepção principiológica do direito traz consigo, aprimorando as garantias, sem abrir mão delas. Meu desiderato era comentar algumas das proposições do projeto menos pelo valor técnico-processual que elas possuem por si próprias e mais pelo que transmitem enquanto tendência já introjetada no estudo e nos estudantes do direito processual – que continuam a ser quem se dedica à docência desta ciência jurídica –, porém pouco questionada e discutida. São opiniões da primeira hora, o que não quer dizer que sejam irrefletidas. Quer dizer simplesmente que são passíveis de aprimoramento, após maiores estudos, reflexões e diálogos.

Referências BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Projeto de lei da Câmara nº 8.046, de 2010: Código de Processo Civil. Brasília: Câmara dos Deputados, 2010. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. _______ . Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão Temporária da Reforma do Código de Processo Civil (Relator Senador Valter Pereira). Parecer nº 1.624, de 2010: sobre o Projeto de Lei do Senado nº 166, de 2010, que dispõe sobre a reforma do Código de Processo Civil, e proposições anexadas. Brasília: Senado Federal, 2010. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. _______ . Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Código de Processo Civil: anteprojeto. Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010. Disponível em: < http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf>. Último acesso: 15/06/2012. 42. Idem, ibidem, p. 162. 157

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL _______ . Congresso Nacional. Senado Federal. Senador José Sarney (proveniente dos trabalhos da Comissão de Juristas, instituída pelo Ato nº 379, de 2009, do Presidente do Senado Federal). Projeto de lei do Senado nº 166, de 2010: dispõe sobre a reforma do Código de Processo Civil. Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010. Disponível em: . Último acesso: 15/06/2012. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores?. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (trad.). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, reimpressão, 1999. _______ ; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Ellen Gracie Northfleet (trad.). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, reimpressão, 2002. CARVALHO, Milton Paulo de. Sobre o Projeto de Código de Processo Civil. In: _______ ; CASTRO, Daniel Penteado de. (orgs.). Direito Processual Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2011, v. 2, p. 167-195. GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Flexibilização procedimental: razoabilidade ou excesso de poder do juiz? In: ROSSI, Fernando et al. (coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 689-697. GRECO, Leonardo. Breves comentários aos primeiros 51 artigos do Projeto de novo Código de Processo Civil (Projeto de Lei do Senado 166/2010). Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Rio de Janeiro: Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ, ano 4, v. VI, p. 93-115, jul.-dez. 2010. Disponível em: < http://www.redp.com.br/arquivos/redp. 6a_edicao.pdf>. Último acesso: 15/06/2012. _______ . Estudos de direito processual. Campos dos Goytacazes: Ed. Faculdade de Direito de Campos, 2005. GUEDES, Cintia Regina. A estabilização da demanda no direito processual civil. In: FUX, Luiz (coord.). O novo processo civil brasileiro (direito em expectativa): reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 231-296. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1997. RAMOS, Glauco Gumerato. Poderes do juiz: ativismo (= autoritarismo) ou garantismo (= liberdade) no Projeto do Novo CPC. In: ROSSI, Fernando et al. (coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 705-711.

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Atos atípicos na informatização e necessidade de inserção do processo eletrônico no futuro CPC Delton R.S. Meirelles* J o s é C a r l o s d e A r a ú j o A l m e i d a F i l h o **

Introdução. 1. A teoria dos atos processuais e a informatização judicial. Os atos atípicos. 1.1. Os atos informáticos e o novo sujeito processual. 2. Regulamentação por lei estadual? 3. Necessária inserção da informatização judicial no futuro CPC. 4. Considerações finais. Referências.

Introdução m dos desafios das reformas legislativas processuais é conciliar tradição/cultura jurídica com a realidade social contemporânea e as exigências de uma sociedade em constante mutação. E, no atual cenário pós-moderno em que a interdisciplinaridade e o intercâmbio das instituições judiciárias com a economia e a tecnologia, o direito processual eletrônico se torna um dos campos mais sensíveis para se identificar conflitos entre situações arraigadas e a expectativa pelas mudanças. Neste contexto, o presente artigo analisa o problema dos atos processuais eletrônicos que não foram devidamente regulamentados pela Lei nº 11.419/2006, verificando se a solução técnica mais adequada

U

* Coordenador de Graduação (Faculdade de Direito/UFF). Professor Adjunto do Departamento de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense (SPP/UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF). Pesquisador do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (Lafep/UFF). Doutor em Direito (UERJ). ** Professor de Direito Processual Civil na Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho. Doutorando em Direito pela Universidad de Buenos Aires. Membro do Instituto Brasileiro dos Advogados e pesquisador no Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (Lafep), da UFF. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico. 159

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seria a edição de Leis Estaduais específicas (mais sensíveis às peculiaridades locais) ou sua inserção no Projeto de Código de Processo Civil, atualmente tramitando no Congresso Nacional. A Lei nº 11.419/2006, apesar de trazer em si os ideais do Pacto Republicano II, bem como uma ideia tangível para que se proceda ao ideal da razoável duração do processo, de acordo com a Emenda Constitucional 45/2004, não se encontra aperfeiçoada e contém uma série de deficiências em sua redação que culminam com a atipicidade de atos processuais. Cuida-se de problemática relevante, já que importa verificar se esta atipicidade, de alguma forma, pode invalidar ou nulificar o ato processual. Para a análise do texto e a fim de se alcançar o pretendido, é preciso afirmar que a ideia de atipicidade dos atos processuais está longe do apego ao formalismo. Mas chama a atenção para que o legislador fique atento a termos nada ortodoxos, inseridos a seu bel-prazer e que podem gerar, dentro de uma teoria geral, interpretações equivocadas. Por outro lado, o futuro CPC não se preocupou, em um primeiro momento, com o processo eletrônico (ou procedimento, como preferimos). Ao contrário, como se observa das notas taquigráficas do Senado, ainda há uma enorme confusão no que tange ao procedimento.1 Propusemo-nos a analisar os atos atípicos, previstos na Lei nº 11.419/2006, neste trabalho. E uma questão que se apresenta importante para o debate é: será que estamos diante de um novo sujeito do processo? Ou, será que a informatização insere em nosso sistema processual os atos processuais praticados pelo sistema? A uma primeira vista parece-nos que sim. Os atos processuais, que, antes, eram realizados pelos auxiliares da justiça, a partir do advento da Lei nº 11.419/2006, podem ser praticados pelo sistema informático e independem de movimentação cartorária. Desta forma, passamos a acreditar que há, sim, um novo sujeito do processo: o sistema. Mas, como admitir que este novo sujeito do processo possa ser sancionado? A resposta ainda não se apresenta de pronto e a legislação processual deveria estar preocupada com esta nova prática dos atos processuais. Ao deixar de lado a informatização judicial do processo, quando da redação do PLS 166/2010, o sistema processual que está por vir falhou. Mas, na Câmara dos Deputados, houve uma maior preocupação dos membros da Comissão do Novo CPC, a fim de inserir um capítulo próprio para a informatização, incluindo-se, ainda, a principiologia do sistema processual moderno, modificado a partir das novas tecnologias inseridas no processo. 1. http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/notas_taquigraficas.asp. 160

8 – Atos atípicos na informatização e necessidade de inserção do processo…

O Deputado Sérgio Barradas, ao apresentar relatório de suas atividades,2 deixou expressa a preocupação com a informatização, especialmente no que tange ao princípio da publicidade. No texto, destinado à prática dos atos processuais, relata do Deputado que (...) as diretrizes mínimas a serem observadas na disciplina do processamento eletrônico devem emanar da lei processual, para evitar a inobservância de garantias fundamentais do processo e prerrogativas das partes e dos advogados. Acolhe-se a sugestão encaminhada pelos professores Paulo Cézar Pinheiro Carneiro e Leonardo Greco.

Em matéria de informatização, a Câmara foi mais ousada e adentrou em temas que a Comissão de Juristas do Senado preferiu não enfrentar. A informatização judicial, diversamente do que se possa admitir, não traz um estudo de termos informáticos ou se apresenta tão dissociada da realidade com a qual já conviemos. Traz, por outro lado, uma discussão acerca de princípios – alguns novos, alguns aos quais se pretende a relativização e amplia princípios já consagrados como o da oralidade. Quanto aos atos atípicos, trazemos como exemplo o art. 10 da Lei nº 11.419/2006. O termo distribuição ali inserido é de total falta de técnica legislativa. E assim se afirma porque o advogado não distribui a inicial. O que o legislador pretendeu – e assim devemos pensar a fim de eliminar os erros contidos no texto legal – foi admitir a formação do processo com o protocolo eletrônico, dispensando-se a intervenção cartorária. Mas, está longe de ser distribuição. Desta forma, pretendemos que a academia seja, efetivamente, prestigiada, a fim de se imprimir mais técnica jurídica ao texto legislativo. Ainda que haja afirmação de a informatização ter nascido no seio do Poder Judiciário, 3 é momento de a academia participar do processo legislativo e consertar os erros havidos na Lei nº 11.419/2006. Ao menos, reduzir os atos atípicos, ou começar a trabalhar com uma nova teoria geral dos atos processuais praticados por meios eletrônicos. Um novo CPC se apresenta e é imperiosa a inserção do processo (ou procedimento) eletrônico em seu contexto. 2. Encaminhado por e-mail que está em nosso poder. 3. Cf. Sérgio Tejada, In: Apresentação de José Carlos de Araújo Almeida. Processo Eletrônico e Teoria Geral do Processo Eletrônico. A Informatização Judicial no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. 161

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

1. A teoria dos atos processuais e a informatização judicial. Os atos atípicos Quando tratamos de uma teoria geral dos atos processuais, não podemos dispensar a conceituação clássica, até mesmo para podermos avançar em matéria de ato processual praticado por meio da informática. O ato processual tem por objetivo adquirir, extinguir ou modificar direitos processuais. Seguindo a linha de pensamento de Francesco Carnelutti, como bem ressalta Jônatas Luiz Moreira de Paula4 “(...) o ato processual é espécie de ato jurídico e é praticado em razão de uma relação processual. A processualidade do ato não se deve ao seu cumprimento no processo, mas por criar efeitos no processo”. E, a partir da informatização do processo, os atos processuais passam a ter uma nova conceituação, uma vez que o próprio sistema automatizado os praticará, sem intervenção cartorária ou atos dos auxiliares da justiça. E é exatamente quanto a este ponto específico que passamos a tratar de uma nova sistemática do processo. Mais: quando admitimos que um quarto sujeito do processo possa ser identificado, os atos processuais passam a ter contornos diversos. Nos termos da Lei nº 11.419/2006, a partir do momento em que se tem a possibilidade de prática dos atos por meios informáticos, este quarto sujeito que pratica os atos é o sistema informático de cada Tribunal, que, por sua vez, possui diversos contornos dependendo da regulamentação do órgão do Poder Judiciário (art. 18 da Lei nº 11.419/2006). Diferentemente do ato jurídico, o ato processual gerará efeitos endoprocessuais. E se é certo que gera efeitos no processo, passamos a tratar de questão mais complexa, porque o sistema passará a produzir atos processuais que são próprios dos auxiliares da justiça, especialmente os de documentação. Reafirma-se, desta forma, a ideia de termos atos atípicos inseridos na Lei nº 11.419/2006. E assim insistimos porque, até a presente data, os atos são divididos em atos do juiz, atos dos auxiliares da justiça e atos das partes. Relativamente aos atos dos auxiliares da justiça, temos os de documentação e movimentação. Analisando, contudo, o art. 10 da Lei nº 11.419/2006, passamos a admitir atos praticados pelo sistema, e, via de consequência, a atipicidade na sua produção:

4. Jônatas Luiz Moreira de Paula. Teoria Geral do Processo. 2002. 162

8 – Atos atípicos na informatização e necessidade de inserção do processo…

Art. 10. A distribuição da petição inicial e a juntada da contestação, dos recursos e das petições em geral, todos em formato digital, nos autos de processo eletrônico, podem ser feitas diretamente pelos advogados públicos e privados, sem necessidade da intervenção do cartório ou secretaria judicial, situação em que a autuação deverá se dar de forma automática, fornecendo-se recibo eletrônico de protocolo.

Analisando o art. 10 da Lei nº 11.419/2006, passamos a identificar um dos atos atípicos, como, por exemplo, a distribuição da petição inicial que pode ser feita diretamente pelos advogados públicos e privados. O texto legislativo apresenta-se equivocado e dissociado, porque, em verdade, e ao que tudo indica, o legislador pretendeu trabalhar com formação do processo, mas esqueceu-se da regra contida no art. 263 do CPC.5 O legislador ao tratar da formação do processo na informatização judicial atribui ao advogado a distribuição da petição inicial. E, por certo, não compete ao advogado a distribuição. Em se tratando de juízo único, por sua vez, sequer há que se cogitar de distribuição, mas de registro. Parece-nos, assim, que a ideia de inserir o termo distribuição referiu-se à denominação vulgar do ato de protocolo. Um questionamento, contudo, se apresenta importante: diante da atipicidade do ato, estaríamos diante de nulidade absoluta? Ou, por outro viés, estaríamos, efetivamente, diante de ato inexistente? A pergunta será positiva se os sistemas informáticos, que passam a figurar como um novo sujeito do processo, permitirem, efetivamente, a prática de tais atos pelo advogado. Claro que em matéria de distribuição, admitindo-se que a mesma possa ser realizada pelo advogado, há, inclusive, a possibilidade de violação do princípio do juiz natural, bem como a regra do art. 251 do CPC. E nos apresenta tão clara a atipicidade do referido ato, contido no art. 10 da Lei 11.419/2006, que o próprio art. 256 do CPC assevera que “a distribuição poderá ser fiscalizada pela parte ou por seu procurador.” Ou seja, a distribuição é ato exclusivo do Poder Judiciário, que, por sua vez, poderá ser fiscalizado pelo advogado ou pela parte. Mas, jamais, poderá a parte ou o advogado distribuir a petição inicial.

5. Art. 263. Considera-se proposta a ação, tanto que a petição inicial seja despachada pelo juiz, ou simplesmente distribuída, onde houver mais de uma vara. A propositura da ação, todavia, só produz, quanto ao réu, os efeitos mencionados no art. 219 depois que for validamente citado. 163

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Como se vê, trata-se de ato processual de registro e movimentação, cujo sujeito do processo a praticá-lo é o auxiliar. Denota-se o grave erro legislativo. No entanto, os atos processuais de registro e movimentação não perdem a sua natureza, como tal, por serem automatizados. Contudo, deixarão de ser considerados atos dos auxiliares da justiça e passarão a ser considerados atos eletrônicos. Não muda a forma do ato, mas o seu agente. O que também não significa dizer que os serventuários perderão sua importância neste novo cenário que se apresenta. Analisaremos, com o fim de alavancar a teoria da atipicidade dos atos processuais praticados por meios eletrônicos, a penhora online. Trata-se, efetivamente, de penhora? E, em sendo penhora, poderia a mesma ser realizada por outro sujeito, que não o auxiliar da justiça? As perguntas se apresentam porque temos uma nova ideia de atos processuais, sujeitos do processo e a atribuição de cada um destes sujeitos no processo. A penhora online não é penhora e tampouco poderia ser realizada pelo magistrado. Em verdade, penhora é ato de execução, cujo sujeito do processo a praticá-lo é o auxiliar da justiça. Desta forma, temos atipicidade e sujeito diverso. O art. 143, I, do CPC é claro ao afirmar que a penhora é ato do oficial de justiça, ao passo em que os atos dos juízes encontram-se dispostos no art. 162 e não se vislumbra a possibilidade de efetivar o ato penhora. Sem adentrar na discussão se o bloqueio e posterior convolação em depósito judicial, praticado pelo sistema informatizado do Banco Central, o Bacen Jud, é penhora, precisamos analisar se este ato, efetivamente, pode ser praticado pelo magistrado. A nossa resposta, de início, é pela impossibilidade, até mesmo diante da regra contida no art. 655-A, do CPC: Art. 655-A. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exequente, requisitará à autoridade supervisora do sistema bancário, preferencialmente por meio eletrônico, informações sobre a existência de ativos em nome do executado, podendo no mesmo ato determinar sua indisponibilidade, até o valor indicado na execução. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006). § 1o As informações limitar-se-ão à existência ou não de depósito ou aplicação até o valor indicado na execução. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).

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8 – Atos atípicos na informatização e necessidade de inserção do processo…

§ 2o Compete ao executado comprovar que as quantias depositadas em conta corrente referem-se à hipótese do inciso IV do caput do art. 649 desta Lei ou que estão revestidas de outra forma de impenhorabilidade. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006). § 3o Na penhora de percentual do faturamento da empresa executada, será nomeado depositário, com a atribuição de submeter à aprovação judicial a forma de efetivação da constrição, bem como de prestar contas mensalmente, entregando ao exequente as quantias recebidas, a fim de serem imputadas no pagamento da dívida. (Incluído pela Lei n º 11.382, de 2006). § 4o Quando se tratar de execução contra partido político, o juiz, a requerimento do exequente, requisitará à autoridade supervisora do sistema bancário, nos termos do que estabelece o caput deste artigo, informações sobre a existência de ativos tão somente em nome do órgão partidário que tenha contraído a dívida executada ou que tenha dado causa a violação de direito ou ao dano, ao qual cabe exclusivamente a responsabilidade pelos atos praticados, de acordo com o disposto no art. 15-A da Lei no 9.096, de 19 de setembro de 1995. (Incluído pela Lei nº 11.694, de 2008).

Da análise do artigo, verifica-se que compete ao juiz, a requerimento da parte, requisitar informações, e, ainda, que os possíveis valores não se encontram amparados pela impenhorabilidade. Na prática, o sistema Bacen Jud procede, de imediato, ao bloqueio em conta corrente do executado, sem sequer atentar para a regra contida no artigo em questão. Atípico, pois, é o ato do magistrado que penhora – ou bloqueia – o valor, especialmente quando não se procede à análise de se tratar ou não de bem impenhorável. Mas, por outro lado, poderá o juiz, por força do referido dispositivo, “no mesmo ato determinar sua indisponibilidade, até o valor indicado na execução”. Contudo, estamos diante de um ato de execução que é próprio do auxiliar da justiça, porque a indisponibilidade do bem se convolará em penhora. E esta penhora está sendo realizada pelo magistrado.

1.1. Os atos informáticos e o novo sujeito processual No que tange à forma, os atos processuais continuarão sendo de distribuição, registro e movimentação. Segundo Leonardo Greco, 6 6. Leonardo Greco. Instituições de Processo Civil. 2010. v. I. 165

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (...) o escrivão é quem forma os autos do processo, isto é, o volume do processo. Ele ainda é responsável, ao receber a petição inicial, por dar-lhe uma capa e nela lançar todos os dados do processo; carimbar, numerar e rubricar todas as folhas do processo; promover a juntada de todos os atos que forem praticados, através dos termos de juntada, de conclusão, de vista etc.

Ainda que a Lei nº 11.419/2006 tenha inserido a informatização plena no sistema processual e o PLS nº 166/2010 preveja a prática de atos por meios eletrônicos, não se alterou, de forma alguma, o art. 1417 do CPC, replicado pelo art. 131 do PLS nº 166/2010 8 e mantido na Câmara pelo PL nº 8.046/2010. No entanto, não é esta a redação imposta pelo art. 10 da Lei nº 11.419/2006, como vimos, e parece-nos haver a criação de um escrivão virtual. Também não podemos conceber desta forma, sob pena de inexistência de responsabilidade pela prática dos atos de documentação. Ao analisarmos, por sua vez, o art. 14 do CPC, percebemos que todos os sujeitos do processo são passíveis de sanções. Quando analisamos a atipicidade dos atos processuais a partir da análise sistêmica da Lei nº 11.419/2006, passamos, então, a conviver com o quarto sujeito do processo, ou, o sistema. E quando estamos diante de atos atípicos, praticados por meio eletrônico, ou adotamos integralmente o princípio da instrumentalidade das formas, ou passamos para uma teoria de atos inexistentes. 7. Art. 141. Incumbe ao escrivão: I – redigir, em forma legal, os ofícios, mandados, cartas precatórias e mais atos que pertencem ao seu ofício; 8. (....) II – executar as ordens judiciais, promovendo citações e intimações, bem como praticando todos os demais atos, que lhe forem atribuídos pelas normas de organização judiciária; III – comparecer às audiências, ou, não podendo fazê-lo, designar para substituí-lo escrevente juramentado, de preferência datilógrafo ou taquígrafo; IV – ter, sob sua guarda e responsabilidade, os autos, não permitindo que saiam de cartório, exceto: a) quando tenham de subir à conclusão do juiz; b) com vista aos procuradores, ao Ministério Público ou à Fazenda Pública; c) quando devam ser remetidos ao contador ou ao partidor; d) quando, modificando-se a competência, forem transferidos a outro juízo; V – dar, independentemente de despacho, certidão de qualquer ato ou termo do processo, observado o disposto no art. 155. Art. 131. Incumbe ao escrivão: I – redigir, em forma legal, os ofícios, os mandados, as cartas precatórias e mais atos que pertencem ao seu ofício; II – executar as ordens judiciais, promover citações e intimações, bem como praticar todos os demais atos que lhe forem atribuídos pelas normas de organização judiciária; III – comparecer às audiências ou, não podendo fazê-lo, designar para substituí-lo escrevente juramentado; IV – ter, sob sua guarda e responsabilidade, os autos, não permitindo que saiam do cartório, exceto: a) quando tenham de subir à conclusão do juiz; b) com vista aos procuradores, à Defensoria Pública, ao Ministério Público ou à Fazenda Pública; c) quando devam ser remetidos ao contador ou ao partidor; d) quando, modificando-se a competência, forem transferidos a outro juízo; V – dar, independentemente de despacho, certidão de qualquer ato ou termo do processo, observadas as disposições referentes a segredo de justiça; VI – praticar, de ofício, os atos meramente ordinatórios. 166

8 – Atos atípicos na informatização e necessidade de inserção do processo…

Inicialmente, cabe-nos a análise clássica dos sujeitos do processo:   

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Estamos, ou não, diante de um novo sujeito? E, se estamos diante de um novo sujeito, podemos, ainda assim, aplicar a teoria da instrumentalidade das formas? Sim. Parece-nos que à primeira vista, diante de tudo quanto analisado até o presente momento, há um novo sujeito processual. Indefinido, ainda, mas praticando atos que passam a gerar efeitos. Esse novo sujeito do processo, adotando-se, neste momento, a terminologia de sistema, não se encontra adstrito a qualquer das modalidades de prática dos atos processuais pelos sujeitos do processo. Mas é sujeito que recebe o protocolo da petição inicial, registra, distribui e autua. Mesmo assim, será que ainda podemos adotar o princípio da instrumentalidade das formas? Ou estaríamos diante de atos inexistentes praticados no processo? O Prof. Cândido Rangel Dinamarco, 9 seguindo as linhas do pensamento de Liebman, adota a tese da deformalização do processo, por entender que, apesar da norma inserida no art. 154 do CPC (que consagra o princípio da instrumentalidade das formas), nosso processo seja extremamente formal.

9.   Cândido Rangel Dinamarco. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 2000. v.I. 167

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A teoria do Professor Dinamarco encontra resistência em José Carlos Barbosa Moreira,10 quando afirma que a técnica processual é imprescindível. Ao escrevermos sobre o pedido no sistema do common law e o princípio da adstrição,11 inserimos o pensamento do Professor José Carlos Barbosa Moreira, desta forma: (...) Contudo, esta desformalização encontra grande oposição em alguns processualistas, dentre eles no Prof. José Carlos Barbosa Moreira, cf. A Justiça no Limiar do Novo Século, recebida por meio eletrônico, que afirma: e, por maior relevância que possam assumir outros meios de solução de conflitos, seria perigoso apostar muito na perspectiva de um desvio de fluxo suficiente para aliviar de modo considerável a pressão sobre os congestionados canais judiciários. Somem-se a isso fatores como a crescente complexidade da vida econômica e social, o incremento dos contactos e das relações internacionais, a multiplicação de litígios com feição nova e desafiadora, a fazer aguda a exigência de especialização e de emprego de instrumentos diversos dos que nos são familiares, e ficará evidente que não há como fugir à necessidade de mudanças sem correr o risco de empurrar para níveis explosivos a crise atual, em certos ângulos já tão assustadora.

A desformalização pregada por Dinamarco e criticada por Barbosa Moreira tem seu ápice na informatização. Não nos parece dissociada da ideia de deformalização a prática de atos processuais por um sujeito, denominado sistema (informático), que produz efeitos. E, é claro, a partir do momento em que houver qualquer falha na prestação da tutela, por ato do sistema (informático), não haverá a quem responsabilizar. Deformalizado está o processo, com a informatização. E, sem dúvida, ainda que fosse interessante, a fim de provocar maior atenção do legislador, não se deveria adotar a instrumentalidade das formas quando o ato fosse praticado por este novo sujeito. Por outro lado, se atingida a finalidade, não haveria o porquê de se anular o ato, ainda que, a uma primeira vista, trata-se de ato inexistente.

10.   José Carlos Barbosa Moreira. A Justiça no Limiar do Novo Século. In conferência pronunciada em 22/10/1992, em São Paulo, no Congresso de Direito do Trabalho, promovido pela Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região. Cedido o texto pelo autor, também disponível na Revista Forense, 319:69/75. 11. José Carlos de Araújo Almeida Filho. O pedido no sistema do common law e o princípio da adstrição. In Revista de Processo. Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). 2005. 168

8 – Atos atípicos na informatização e necessidade de inserção do processo…

Por outro lado, ao admitirmos que a Lei nº 11.419/2006 é procedimental, caberia aos Estados a sua regulamentação?

2. Regulamentação por lei estadual? Vista a necessidade de se estabelecer um marco regulatório para os atuais atos processuais eletrônicos atípicos, passa-se primeiro ao problema da competência legislativa para normatizá-los. A história jurídico-processual brasileira é marcada pelo centralismo legislativo, excepcionada pela experiência federativa da República Velha, em que a primeira Constituição republicana limitava a competência legislativa exclusiva do Congresso Nacional ao direito processual da Justiça Federal (art. 34, 23º), permitindo aos Estados instituir seus próprios códigos processuais. Desde a ascensão de Vargas até os dias atuais presencia-se um sistema jurídico estabelecido pela União, a despeito das peculiaridades regionais de uma nação continental como a nossa.12 Mesmo a atual Constituição Federal, instituída num ambiente mais aberto a experiências locais, não alterou demasiadamente o quadro tradicionalmente estabelecido: rechaçou a Justiça municipal (presente nos debates constituintes) e manteve a competência legislativa da União para legislar sobre direito processual (art. 20, I). Entretanto, admitiu a competência legislativa concorrente dos Estados para “procedimentos em matéria processual” (art. 24, XI) e “criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas” (art. 24, X). Distinguir processo de procedimento, no plano conceitual, aparentemente não traz tantas dificuldades. Em linhas gerais, tem-se o processo como a relação jurídica (conjunto de atos e vínculos gerados pelos diversos sujeitos que dele participam) e o procedimento como a forma de seu exercício.13 Entretanto, nas vezes em que o Supremo Tribunal Federal foi provocado a se manifestar sobre a constitucionalidade de algumas leis estaduais sobre o tema, posicionou-se no sentido da federalização, por entender serem normas processuais:

12. Há autores que defendem a centralização legislativa argumentando sobre a importância de que “todos os cidadãos, residentes ou pessoas de outras nacionalidades ou domicílios, saibam, em qualquer Estado em que estiverem e no Município em que se encontrarem, qual a disciplina legal correspondente” (Celso Ribeiro Bastos. Ives Gandra Martins. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 1998, v.3, t.I, p. 246-248). 13. Entre outros, Leonardo Greco. Instituições de Processo Civil. 2010. p. 254. 169

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 1. A exigência de depósito recursal prévio aos recursos do Juizado Especial Cível, criada pelo art. 7º da Lei Estadual (AL) nº 6.816/07, constitui requisito de admissibilidade do recurso, tema próprio de Direito Processual Civil e não de “procedimentos em matéria processual” (art. 24, inciso XI, CF). STF – Plenário – ADI 4161 MC/AL; Rel. Min. Menezes Direito; j. 29/10/2008. Info nº 526. Mostra-se insubsistente, sob o ângulo constitucional, norma local que implique criação de recurso. Esta ocorre no âmbito da competência para legislar sobre direito processual, não estando abrangida pela competência concorrente do inciso XI do artigo 24 da Constituição Federal. STF – AI nº 210068/SC; Rel. Min. Marco Aurélio; Segunda Turma; j. 28/08/1998. Competência legislativa. Procedimento e processo. Criação de recurso. Juizados especiais. Descabe confundir a competência concorrente da União, dos Estados e Distrito Federal para legislar sobre procedimento em matéria processual – artigo 24, inciso XI – com a privativa para legislar sobre direito processual, prevista no artigo 22, inciso I, ambos da Constituição Federal. Os Estados não têm competência para a criação de recurso, como é o de embargos de divergência contra decisão de turma recursal. STF – AI-AgR nº 253518/SC; Rel. Marco Aurélio; Segunda Turma; j. 09/05/2000. 2. Lei estadual que dispõe sobre atos de Juiz, direcionando sua atuação em face de situações específicas, tem natureza processual e não meramente procedimental. 3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente. STF – Plenário – ADIn nº 2257/SP; Rel. Min. Eros Grau, j. 06/04/2005. 3. Invade a competência da União norma estadual que disciplina matéria referente ao valor que deva ser dado a uma causa, tema especificamente inserido no campo do Direito Processual. Ação direta de inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente. STF – Plenário – ADIn nº 2655/ MT; Rel. Min. Ellen Gracie; j. 09/10/2003. 1. O quanto respeite ao valor da causa consubstancia matéria de direito processual, adstrita à lei federal, nos termos do disposto no artigo 22, inciso I, da Constituição do Brasil. STF – Plenário- ADIn nº 2052/MT; Rel. Min. Eros Grau; 06/04/2005. (grifos nossos)

Assim, enquanto não se firmar jurisprudência mais favorável à estadualização, cada vem mais se prejudica sua devida interpretação. Com isso, merece ser transcrita a crítica de Leonardo Greco: 170

8 – Atos atípicos na informatização e necessidade de inserção do processo…

(...) a Constituição de 1988 esboçou uma tentativa de flexibilizar os procedimentos processuais, ao incluir na competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal a ‘criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas’ e os procedimentos em matéria processual (art. 24, incisos X e XI). Quanto aos juizados especiais, a legislação federal, quase exaustiva, tem sido complementada por leis estaduais. Mas quanto aos procedimentos em matéria processual o dispositivo constitucional caiu no vazio, porque qualquer inovação procedimental vai necessariamente afetar direitos subjetivos processuais, que seriam da competência legislativa privativa da União. Ademais, os códigos de processo foram redigidos na vigência de Constituições que não previam essa flexibilização e, assim, são exaustivos quanto aos procedimentos processuais. Estou convencido de que não só a flexibilização dos ritos, mas especialmente a descentralização de muitos atos processuais das mãos do juiz para outros sujeitos (auxiliares da Justiça e advogados) e o avanço tecnológico seriam grandemente favorecidos pela transferência da competência legislativa em matéria processual das regras de competência privativa da União (artigo 22) para as da competência concorrente (artigo 24).14

Mas permanece a questão: uma lei estadual que regulamentasse o processo eletrônico em âmbito local padeceria de inconstitucionalidade formal? Por outro lado, como se distinguem a prática de atos eletrônicos como atividade administrativa, procedimento ou sistema de garantias (acesso à Justiça, tutela efetiva, publicidade etc.)? Ao analisarmos a pretensão inserida no Pacote Republicano, quanto à informatização judicial no Brasil, observamos que o art. 1º do Projeto de Lei nº 5.828/2001, não tratava, como se imagina, de processo eletrônico, mas de procedimentos eletrônicos: Capítulo I Da Informatização do Processo Judicial Art. 1º O uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais será admitido nos termos desta Lei. § 1º Aplica-se o disposto nesta Lei, indistintamente, aos processos civil, penal e trabalhista, bem como aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição. 14. Leonardo Greco. A Reforma do Poder Judiciário e o Acesso à Justiça. p. 596/597. 171

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL § 2º Para o disposto nesta Lei, considera-se: I – meio eletrônico qualquer forma de armazenamento ou tráfego de documentos e arquivos digitais; II – transmissão eletrônica toda forma de comunicação à distância com a utilização de redes de comunicação, preferencialmente a rede mundial de computadores; III – assinatura eletrônica as seguintes formas de identificação inequívoca do signatário: a) assinatura digital baseada em certificado digital emitido por Autoridade Certificadora credenciada, na forma de lei específica; b) mediante cadastro de usuário junto ao Poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos respectivos.

Assim, no Brasil não se está diante de processo eletrônico, mas de verdadeiro procedimento eletrônico. E a distinção é substancial, porque neste caso há o grave e sério problema de repartirmos o processo através da legislação concorrente entre os Estados, permitindo-se que cada um, na prática, legislasse sobre processo, porque os conceitos se misturam e se mesclam. A posição do Professor Leonardo Greco, em debates havidos pela internet, diverge, já que o mesmo entende que processo e procedimento se encontram intimamente ligados, não havendo mais a necessidade de discutirem-se os conceitos.

3. Necessária inserção da informatização judicial no futuro CPC De toda a análise procedida neste texto, passados seis anos desde a promulgação da Lei nº 11.419/2006, admitimos necessária a inserção, com maior amplitude, da informatização no futuro CPC. Aprimorar, e, mesmo, consertar os erros legislativos contidos na norma. Avançar em matéria de informatização e admitir não ser possível os sistemas serem um novo sujeito no processo. A prática tem-se apresentado diversa da norma. O art. 10 contém atos flagrantemente atípicos, não praticados pelo sistema, mas que são manuseados pelos servidores. E não apenas mais os auxiliares da justiça, como os técnicos da informação. A tecnologia da informação é uma realidade e o momento para inserção de atos processuais por meios eletrônicos no futuro CPC apresenta-se de extrema importância.

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8 – Atos atípicos na informatização e necessidade de inserção do processo…

O futuro CPC insere, todavia, mais um auxiliar da justiça, ou seja, os assessores. Antes, prática já usual, mas não normatizada, os assessores passarão a realizar atividades próprias dos magistrados, como podemos visualizar no relatório do Deputado Sérgio Barradas. Há, assim, a proposta de criação do assessor judicial que passa a ser uma novidade em nosso sistema.15 Mas, ainda, em matéria de informatização, convivemos com a atipicidade dos atos processuais, quando, diante do momento histórico, poder-se-ia tratar do tema com mais especificidade. Estamos, portanto, diante de uma sistemática que envolve o novo sujeito do processo, o qual pratica atos e não se encontra adstrito aos demais sujeitos do processo e tampouco passível de qualquer sanção administrativa ou processual. O PL nº 8.046/2010 pode – e entendemos que deve – dispensar capítulo próprio ao processo judicial eletrônico, sob pena de emergir um novo CPC, já em uma fase em que senão todos, mas quase todos os tribunais não desejam mais a utilização do papel. A resistência encontrada no Senado, na redação do PLS nº 166/2010, deveria ser superada, agora, em sua redação pela Câmara dos Deputados, que, inclusive, apresentou-se mais democrática no que tange às audiências públicas. Há o risco de um futuro Código de Processo Civil ser promulgado em um novo cenário, diverso do modelo atual, porque a maioria dos tribunais sequer adota o modelo tradicional do processo, todo em papel. A informatização tem sido aplicada diariamente e o Poder Judiciário vem, paulatinamente, aprimorando seus magistrados.

15. Do assessor judicial Art. O juiz poderá ser auxiliado por um ou mais assessores judiciais, notadamente: I – na elaboração de minutas de decisões ou votos; II – na pesquisa de legislação, doutrina e jurisprudência necessárias à elaboração de seus pronunciamentos; III – na preparação de agendas de julgamento e outros serviços a serem realizados. § 1º O assessor judicial poderá, mediante delegação do juiz, proferir despachos. § 2 º Lei específica disciplinará a criação e o provimento desses cargos, podendo ainda atribuir ao assessor judicial outras competências compatíveis com sua função. “Justificativa. A necessidade de produção de decisões em larga escala, muitas vezes em processos repetitivos, levou à consagração, na prática forense, da figura do assessor judicial. O juiz passou a ser, em grande medida, o gestor de uma equipe, formada pelos integrantes do gabinete e da secretaria. Daí a necessidade de se regular a figura, já consagrada na prática forense, do assessor judicial, a quem cabe assessorar o juiz na elaboração de minutas de decisões e votos, na realização de pesquisas e na preparação de agendas e outros serviços. O assessor deve, também, ser autorizado, por delegação do juiz, a proferir despachos. A criação e o provimento desses cargos, porém, deve ficar a cargo de leis específicas, muitas delas a serem elaboradas pelos Estados, que poderão também atribuir a esses assessores outras competências, desde que compatíveis com a função que exercem. Acolhe-se proposta de Lúcio Delfino e Eduardo José da Fonseca Costa.” 173

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O futuro CPC, por sua vez, eliminaria enormes distorções, como, por exemplo, a modificação do rito do Juizado Especial no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. E, quanto a este ponto, insistimos, novamente, na revogação do art. 18 da Lei nº 11.419/2006. O TJERJ, por meio do Ato Executivo TJ nº 5.877/2010, ao dispor sobre a instalação do Juizado Especial Cível, modifica o rito da Lei nº 9.099/1995, ao afirmar: Art. 11. Uma vez cadastrada no sistema, a parte só poderá apresentar petições e documentos pelo sistema eletrônico. Parágrafo único. Na hipótese prevista no caput, a contestação e documentos destinados às audiências serão apresentados eletronicamente até o horário de sua realização, vedado o recebimento destes em papel, ressalvado o disposto no § 5º do art. 11 da Lei nº 11.419/06.

Ou seja, impede-se à parte que se apresente na audiência com documentos em papel. Impede-se, por exemplo, acaso a parte compareça e formule acordo, com atos constitutivos da empresa demandada, o exercício de um seu direito. E, por via reversa, impede, mesmo, a possibilidade de acordo, que é uma das bases do sistema dos Juizados, porque a defesa deverá ser apresentada antes mesmo da audiência. Em troca da celeridade, princípios processuais estão sendo demolidos com a ideia da informatização judicial regulamentada pelos órgãos do Poder Judiciário. E a redação do art. 18, cuja análise merece o destaque da norma, é de toda prejudicial: “Art. 18. Os órgãos do Poder Judiciário regulamentarão esta Lei, no que couber, no âmbito de suas respectivas competências.” A atipicidade da Lei nº 11.419/2006, ao contribuir para a existência de total atipicidade, provoca, ainda, outra discussão, diante da análise do art. 92 da Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário: I – o Supremo Tribunal Federal; I-A – o Conselho Nacional de Justiça; (incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) II – o Superior Tribunal de Justiça; III – os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; IV – os Tribunais e Juízes do Trabalho;

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8 – Atos atípicos na informatização e necessidade de inserção do processo…

V – os Tribunais e Juízes Eleitorais; VI – os Tribunais e Juízes Militares; VII – os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.

A questão que nos causa maior preocupação, a exigir uma reformulação do processo eletrônico com o futuro CPC, diz respeito à possibilidade que a norma facultou de os próprios juízes regulamentarem a Lei. São os juízes órgão do Poder Judiciário. Premente se apresenta a reformulação da informatização judicial e o momento é agora, com a reforma plena do CPC. Podemos, então, pensar, efetivamente, em um novo modelo, inclusive com a possibilidade de em matéria de informatização, permitir aos Estados que legislem. Claro, contudo, que esta competência não poderia ultrapassar os limites do CPC, bem como não poderia restringir as garantias processuais. A legislação estadual poderia eliminar as distorções do que se resolveu denominar Torre de Babel Eletrônica.

4. Considerações finais Com o fim de eliminar distorções, especialmente no que tange à possibilidade de regulamentação pelos órgãos do Poder Judiciário, bem assim a discussão entre processo e procedimento, e, ainda, eliminarem-se os atos atípicos, o momento parece-nos oportuno. A Lei nº 11.419/2006 é um grande avanço em nosso sistema processual, e, quanto a este dado, parece-nos indubitável. Contudo, estamos passando por uma fase em que há diversos sistemas trabalhando em nosso país, e cada Tribunal regulamentando a norma sem uma preocupação maior com o todo. No caso específico do TJERJ, o que observamos é uma regulamentação que afeta ao próprio procedimento. A técnica legislativa, como já tratamos por diversas vezes, não foi precisa, e admitir que o advogado possa distribuir a petição inicial (art. 10 da Lei nº 11.419/2006) nada mais é, sabemos, que o ato de protocolo da peça. Contudo, não deixa de ser atípico o ato pela redação imposta. A timidez relativa no que se refere à informatização, na tramitação de um novo CPC, poderá culminar com um sistema processual pensado e estruturado para uma realidade construída no papel, ao passo que a grande maioria dos tribunais sequer admite peticionamento físico, adotando-se, exclusivamente, a informatização. 175

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Delinear regras de procedimento, no CPC, com uma dinâmica processual, eliminando-se os erros da Lei nº 11.419/2006, é a garantia de um código que não necessitará de reformas por construções jurisprudenciais. Nossas reformas processuais caminharam de acordo com a jurisprudência pátria e ocasionaram uma série de mudanças legislativas. Mal se conseguia implementar uma reforma, nova norma se apresentava para corrigir os erros da reforma anterior. O momento, contudo, não é para um código passível de diversas reformas, mas um CPC moderno, atento às transformações do cotidiano, especialmente em matéria de informatização. Idealizar um agravo de instrumento, que deixaria de possuir a denominação de instrumento, é medida que deve ser analisada pelo legislador. Com a informatização, não se tem necessidade de formar instrumento para o agravo. Quando muito, um agravo por hipertexto, indicando-se o link para acesso das peças processuais necessárias ao conhecimento do órgão julgador. A timidez legislativa deve ser, neste momento, superada. A academia deve, como também insistimos, ser mais valorizada. Os centros de pesquisa estão trabalhando em prol de um processo eletrônico, com qualidade e mais segurança (jurídica). A estruturação do futuro CPC eliminará, admitimos, discussões acerca da natureza da informatização, se processo ou procedimento. Por outro lado, eliminando-se a discussão, impedir-se-ia a tentativa de normas concorrentes (art. 24, I, da CR/1988), como já ocorrera com a videoconferência no Estado de São Paulo, antes da reforma do CPP. Ou seja, se estamos diante de procedimento e com o fim de impedir uma afronta à tripartição dos Poderes, o legislativo estadual poderia instituir normas procedimentais, mas, como já dito, em matéria administrativa, com o fim de eliminarem-se os grandes problemas que enfrentamos. A cada nova administração de um TJ, novas regulamentações. Estabilizar e pacificar o andamento administrativo em termos de informatização impediria o constante desgaste vivenciado pelos advogados e pelas partes, além, claro, da insegurança de se depararem com Juizados totalmente eletrônicos, que têm causado diversos prejuízos e são várias as decisões decretando a revelia, violando-se, assim, o devido processo legal. Mas é certo, também, que não se pode revogar a Lei nº 11.419/2006, porque a mesma continuará sendo aplicada aos processos penal e do trabalho. Devemos, ainda, eliminar este novo sujeito do processo, que pratica atos processuais. O sujeito que entendemos ser o sistema não poderá praticar 176

8 – Atos atípicos na informatização e necessidade de inserção do processo…

atos processuais, sob pena de inexistência de sancionamento processual ou administrativo em caso de falha. E admitimos que este sujeito praticando atos, possa causar problemas quando os sistemas de informatização forem afetados por qualquer tipo de pane. Determinados atos devem continuar sendo realizados pelos auxiliares da justiça, como ocorre, por exemplo, no Superior Tribunal de Justiça, já que o registro, a autuação e a distribuição não ocorrem como a Lei nº 11.419/2006 prevê, mas continuam os atos a serem realizados pelos auxiliares da justiça. Eis, assim, uma grande e nova oportunidade para a regulação de uma norma inovadora, mas com problemas legislativos e de aplicação prática que podem comprometer todo o futuro da informatização. Que a pesquisa não termine por aqui e que os avanços em matéria de prática dos atos processuais por meios eletrônicos sejam cada vez mais debatidos academicamente.

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O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL _______ ; _______ . Juizados especiais: entre a legalidade e a legitimidade – análise prospectiva dos juizados especiais da Comarca de Niterói, 1997-2005. Revista Direito GV, v. 12, p. 371-397, 2010. MOREIRA, José Carlos Barbosa. A Justiça no Limiar do Novo Século. Conferência pronunciada em 22/10/1992, em São Paulo, no Congresso de Direito do Trabalho, promovido pela Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região. Cedido o texto pelo autor, também disponível na Revista Forense 319:69/75. _______ . O Novo Processo Civil Brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. _______ . Temas de Direito Processual. Sétima Série. São Paulo: Saraiva, 2001. PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Manole, 2002. WAMBIER, Luiz Rodrigues (coord.). Curso Avançado de Processo Civil. 5. ed. São Paulo: RT, 2002. v. I. _______ . Sentença Civil. Liquidação e Cumprimento. São Paulo: RT, 2006. _______; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves Comentários à 2ª Fase da Reforma do Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2002. _______ ; _______ ; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves Comentários à Nova Sistemática Processual Civil – 2. São Paulo: RT, 2006.

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A proposta legislativa de permuta de documentos entre as partes F l á v i o L ui z Yar s h e ll *

Introdução. 1. As partes como destinatárias da prova em fase preliminar. 2. Insuficiência da permuta tal concebida: proposta de aproveitamento de mecanismos já previstos pela legislação brasileira (inclusive no Projeto de novo Código de Processo Civil). Referências.

Introdução

O

presente trabalho tem por objeto tema de que nos propusemos a tratar no Congresso sobre “Garantias Fundamentais do Processo Civil e Novo Código de Processo Civil”, promovido pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em outubro de 2102. Ainda que eventualmente não haja estrita coincidência entre o conteúdo deste artigo e o da exposição, o que se pretende aqui é registrar o que nos parece sejam os principais pontos relativos à proposta legislativa contida no Projeto de Código Comercial, que trata da permuta de documentos entre partes. Um tema processual dentro de um Código de direito material. Trata-se da regra segundo a qual, em medida preparatória ou incidental, poderá ser requerida a “permuta de documento” (art. 656, caput e § 1º). Segundo o texto projetado, cada parte tem o ônus de entregar à outra, mediante protocolo, “a totalidade dos documentos que possuir, em qualquer suporte, referentes ao litígio descrito no pedido”; com * Professor Titular de Direito Processual da Faculdade de Direito da USP. Advogado em São Paulo e em Brasília.

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exceção dos documentos em que advogado seja emissor ou destinatário no exercício da profissão. E mais importante: propõe-se que “as partes só poderão, no processo judicial já em curso ou no que vier a ser ajuizado por qualquer delas, produzir prova documental usando documento que tiver sido entregue à parte adversa, ou desta recebido”. Tal proposta não encontra precedente no direito brasileiro. Pela relevante novidade que representa, é de se imaginar que a norma venha a causar reações. Assim, justamente para que não se perca, na interpretação e aplicação da norma, o que de melhor ali se contém, é que é importante refletir o máximo possível sobre os termos de implantação de mecanismo como esse, que em alguma medida, adiante-se, lembra as técnicas de produção de prova preliminar dos ordenamentos do common law. É trabalho de dimensões limitadas e fruto de reflexões ainda inacabadas, que talvez possa servir de estímulo a outras mais abalizadas.1

1. As partes como destinatárias da prova em fase preliminar Entre nós – seja no plano teórico, seja nas projeções de ordem prática – domina o pensamento segundo o qual prova é, antes de tudo, um assunto do juiz e, apenas secundariamente, das partes. A assertiva pode parecer exagerada, mas não é. Com efeito, apregoa-se reiteradamente que o destinatário da prova no processo é o juiz; que a finalidade da prova é formar o convencimento do magistrado; que a descoberta da verdade – conquanto não seja propriamente um escopo do processo – corresponde ao interesse público porque ela é instrumento para edição de decisões justas; que as regras de distribuição do ônus da prova não são voltadas à respectiva produção, mas que são apenas regras de julgamento, no caso de falta de elementos suficientes à 1. Além disso, o tema também foi tratado em outros trabalhos, aos quais convém fazer referência dada a identidade – em muitas partes de forma deliberadamente literal – do conteúdo. A sucessão dos estudos a respeito do mesmo tema procura aprimorar as respectivas reflexões. Além disso, a difusão do mesmo conteúdo em canais diferentes pode amplificar o debate, altamente desejável nesta fase de processo legislativo. Certamente, após a participação no evento acima mencionado, outros aspectos poderão ser acrescentados ou revistos, de sorte a ensejar, talvez, uma nova e atualizada versão do trabalho. Finalmente, a justificativa deve vir acompanhada da observação de que o convite para o presente trabalho não impôs condição de ineditismo, que, de qualquer modo, é em parte uma nota aqui presente. Assim, confiram-se: (i) artigo publicado no jornal Valor Econômico, edição de 27/10/2011 (“Um novo processo empresarial em debate”), em coautoria com Guilherme Setoguti; (ii) artigo encartado em obra coletiva, coordenada pelo autor e pelo mesmo Guilherme Setoguti, ainda no prelo e, portanto, inédito quando da confecção deste trabalho.

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9 – A proposta legislativa de permuta de documentos entre as partes

reconstituição dos fatos relevantes (daí se falar em ônus objetivo da prova); e que o juiz, por tudo isso, é dotado de poderes de instrução, que não ficam limitados pela iniciativa das partes. Não se pode dizer que tudo isso seja propriamente incorreto. Essas assertivas estão fundadas – talvez de forma demasiadamente exacerbada – na premissa de que o processo é instrumento, antes de tudo, a serviço do Estado. Não obstante, visão como essa, porque tende a ser unilateral, apresenta riscos. Centrar-se a prova na figura do juiz pode dar ensejo, por exemplo, a desvirtuamentos, como restrições indevidas do direito à prova: sob o pretexto de que o convencimento do juiz já está formado, limita-se a atividade das partes, como se, a partir de um dado momento, a prova não pudesse mais interferir na convicção – à semelhança de um jogo que, a julgar pelo placar, é terminado antes do tempo regulamentar garantido aos disputantes. Tal postura pode também levar a distorções como aquela que se materializa em inexistente ou em inadequada motivação, traduzida por expressões como “a partir da farta prova dos autos, convenci-me desta ou daquela tese”... Afinal, o juiz é o destinatário da prova... Sem dúvida, quando se pensa na solução a ser adjudicada pelo Estado, ao término da atividade probatória das partes, não há dúvida de que a prova deve ser apreciada pelo juiz, nos limites da regra de persuasão racional. Contudo, antes disso, é certo que a prova não desempenha apenas o tradicional papel de formar o convencimento do juiz, mas atua de forma relevante na formação do convencimento dos interessados relativamente a suas chances de êxito em futuro processo (quer para demandar, quer para resistir a uma dada pretensão). Assim, a ausência de elementos probatórios preliminares, se não impede, dificulta essa avaliação das partes; avaliação que, se houvesse, poderia inclusive levar a soluções obtidas por elas próprias, com mais rápida e eficaz eliminação da controvérsia e consequente pacificação social.2 É nesse contexto – embora não exclusivamente – que estão inseridos os mecanismos de instrução preliminar conhecidos nos ordenamentos de common law. Conforme já tivemos oportunidade de relatar em sede doutrinária, 3 é na Inglaterra que se divisa a origem da discovery, entendida inicialmente como 2. Cf. o nosso: Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova. 2009, passim. 3. Mais uma vez, reportamo-nos à obra citada na nota precedente. As observações que seguem no texto (relativamente a dados dos sistemas de common Law), em algumas partes de forma literal, reproduzem o que foi exposto ali, especialmente nas p. 72 e seguintes.

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providência para obter o interrogatório da parte contrária e o depósito de documentos relevantes para a controvérsia. Mais adiante, surgiu o dever das partes de depositar o rol dos documentos relevantes para a decisão; dever que, inicialmente determinado pelo juiz a requerimento da parte, passou a ser automático; não apenas os documentos relevantes para a demonstração dos fatos alegados no processo, mas aqueles que pudessem reforçar a posição própria e enfraquecer a do adversário. Mais recentemente, o processo civil inglês conheceu o Civil Procedure Act de 1997 e as Civil Procedure Rules de 1998. As mudanças se deveram ao reconhecimento dos elevados custos, do tempo excessivamente longo, da complexidade e do caráter “adversarial” do mecanismo na forma até então vigorante. Operou-se transferência do controle das controvérsias das partes (e respectivos advogados) para o juiz, portador do caseflow management (“CFM”) – ou simplesmente case management – e responsável pela direção da fase de pretrial. Às partes remanesceu a atribuição do dever de colaboração não apenas com o magistrado, mas também entre si: dever de fornecer informações antes da causa, de colaborar para composição da controvérsia e de contribuir para o rápido desenvolvimento do processo. O dever de revelação, ademais, deixou de ser automático e passou a resultar de decisão do juiz, no exercício do já referido case management, havendo possibilidade, em controvérsias de maiores proporções, de se alargar a providência para uma extra disclosure, abrangente de documentos apenas indiretamente relevantes ou dos quais possam resultar fatos novos. A disclosure pode também alcançar terceiro, sempre sob o controle do juiz, sujeita a ordem de apresentação, mediante comprovação da relevância dos documentos e necessidade da comunicação para se prover de forma justa. O sistema estadunidense conheceu inicialmente o bill of discovery que, no processo at law, permitia à parte obter o depósito de documentos relevantes e a oitiva do adversário antes do trial. A partir de 1848, com a edição do Código do estado de New York – adotado por inúmeros outros estados – e eliminada a distinção entre equity e common law mediante introdução de normas uniformes para todo o processo civil, afirmou-se progressivamente a discovery, tendo por objeto a comunicação de documentos relevantes, e a deposition, entendida aí como antecipada produção da prova testemunhal. A edição das Federal Rules of Civil Procedure, em 1938, representou a consagração da discovery, objeto de seu Título V e vista como relevante procedimento em condições de oferecer maiores oportunidades de aumentar a eficiência da administração da justiça. Ainda que o instituto tenha 182

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chegado à década de 1970 com problemas e dando ensejo a abusos – que levaram a modificações legislativas, em certa medida restritivas, mas que, a rigor, podem ser vistas mais propriamente como ajustes para fazer do instituto um instrumento eficaz e menos sujeito a distorções – o mecanismo subsiste. Voltando a atenção para a realidade brasileira, a referência a tais institutos não significa exaltá-los. Não é caso, naturalmente, de importar, de forma aparentemente desavisada, institutos concebidos em contextos econômicos, sociais e culturais diversos; pelos quais não raramente os ordenamentos de origem romano-germânica costumam inclusive ter aversão. Mas, pensando em termos conceituais e no aproveitamento de mecanismos que possam aprimorar o exercício da jurisdição, é louvável – no âmbito de direitos patrimoniais disponíveis, entre iguais – alargar ou qualificar o ônus de alegação que compete às partes, para reconhecer que elas têm igualmente o encargo de, tanto quanto possível, conhecer e dar a conhecer os fatos que servem de fundamento – quer para a demanda, quer para a defesa – e os correspondentes elementos de prova. É nesse contexto que está inserida a proposta legislativa. Seu êxito depende da aceitação de que ela enfatiza a perspectiva das partes em relação à prova; que, portanto, não gira mais em torno da figura do juiz, apenas. Ela qualifica o ônus de apresentação de documentos, vinculando-o ao ônus de alegação das partes. Isso, contudo, não pode simplesmente conviver com a visão segundo a qual o juiz pode e deve, para além da atividade das partes, buscar a suposta verdade real como fundamento para justiça no caso concreto. Entre iguais, sendo o direito disponível, é correto esperar que o êxito da parte resulte do grau de seu empenho no processo. Assim, de nada adiantará a qualificação do ônus das partes pela lei se, depois, as consequências estabelecidas para a falta da respectiva observância puderem ser supridas pelo exercício dos poderes de instrução do juiz (CPC, art. 130), a pretexto de buscar a verdade real e de fazer justiça. É preciso entender e aceitar que a justiça, nesse caso, reside na atribuição do encargo e que a atuação oficial – a exemplo do que ocorre nos casos em que a lei estabelece presunções – viria a frustrar o objetivo colimado pelo Legislador. Não se trata de implantar um modelo liberal. Trata-se de reconhecer que, no campo que o Projeto pretende regular, aquele mecanismo pode efetivamente contribuir para a eliminação de controvérsias. Mas, se prevalecer, nessa seara, a visão estatizante, então a proposta está fadada ao total desprestígio e insucesso. 183

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2. Insuficiência da permuta tal concebida: proposta de aproveitamento de mecanismos já previstos pela legislação brasileira (inclusive no Projeto de novo Código de Processo Civil) Dado o caráter consideravelmente inovador da alteração que se quer introduzir, talvez mais prudente fosse tentar aproveitar e aperfeiçoar os mecanismos probatórios já conhecidos na realidade brasileira para, então, chegar aos mesmos escopos idealizados pelo Projeto. Sendo assim, na esteira do que tem preconizado a doutrina e do que foi encampado pelo Projeto de Código de Processo Civil que tramita perante o Congresso Nacional, conviria que a regulamentação contida no Código Comercial previsse a possibilidade da medida de produção antecipada de prova de forma desvinculada da alegação do perigo da demora. Conforme já tivemos oportunidade de ponderar,4 o entendimento que ainda se pode qualificar de majoritário é o de que a antecipação da prova somente se justifica diante do perigo da demora, isto é, do risco de perda da prova se for necessário aguardar o momento próprio para produção. De forma coerente, embora não se admita discussão sobre o mérito da causa no bojo de processos instaurados com tal finalidade, admitem doutrina e jurisprudência que ali se discuta não apenas a legitimidade das partes, mas bem assim o interesse de agir; que, de volta ao início, só se justificaria diante do “justo receio” – para empregar a dicção do inciso II do art. 847 do CPC vigente – de que ao tempo da prova seu objeto já não mais exista. De forma categórica, o art. 849 do mesmo diploma estatui que “Havendo fundado receio de que venha a se tornar impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação, é admissível o exame pericial”. O Projeto, de forma salutar, consagra o que já era preconizado por parte da doutrina e da jurisprudência: desvincular a antecipação da prova do requisito do perigo da demora. Com efeito, embora a hipótese de perigo seja reeditada pelo inciso I do art. 271 do Projeto, o dispositivo autoriza a antecipação em dois outros casos. O primeiro é aquele em que a prova a ser produzida “seja suscetível de viabilizar a tentativa de conciliação”; o segundo ocorre quando “o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação”.

4. Refiro-me a artigo sobre o tema, encartado no periódico Carta Forense, n. 91, dez./2010. As considerações apresentadas reproduzem parcialmente o quanto ali expendido, inclusive de forma literal.

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As hipóteses vislumbradas pelo Projeto – que, de resto, estão previstas em outros ordenamentos, como o francês e o alemão – consideram não apenas o escopo jurídico da jurisdição, mas especialmente seu escopo social; que se traduz especialmente na busca da pacificação social pela eliminação da controvérsia. A inovação, sob esse ângulo, permite que as partes possam obter de elementos que norteiem uma avaliação sobre as chances de êxito em um dado processo. Assim, os elementos de prova colhidos antecipadamente podem e devem servir de ferramenta para a obtenção de soluções não adjudicadas de conflitos. Nesse particular, terão maior responsabilidade os advogados na orientação de seus constituintes. Assim, é justo esperar do sistema, na medida em que se abre à antecipação da prova com maior largueza, que seja tanto mais severo no julgamento do mérito desfavorável a quem insiste em pretensão desvinculada da evidência resultante do material colhido de forma antecipada. De nossa parte, pensamos que viria bem a calhar a previsão de cabimento de tal medida, tendo por objeto interrogatório da parte, inquirição de testemunhas e exame pericial. Embora no âmbito societário a prova documental tenda a ser realmente a mais relevante, não se deve descartar a pertinência dos demais meios, em particular a prova pericial, que inclusive pode ter por objeto a escrituração contábil, tendo, portanto, contornos até mais amplos e continentes do que a prova documental. De forma um tanto diversa do que está no Projeto e inspirado na experiência alemã e francesa, entendemos que a regra poderia ser a de que a antecipação da prova é admissível sempre que houver motivo legítimo ou que isso seja útil para impedir ou findar controvérsia, independentemente do fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência do processo. Na essência, contudo, a ideia é a mesma e está garantida no Projeto. No tocante à prova documental (que é justamente o objeto da inovadora proposta contida no Projeto), uma alternativa seria a de se aproveitar instituto já conhecido e, portanto, regular o assunto sob a óptica da exibição de documento. Dir-se-á que se trata de questão meramente terminológica. Em alguma medida é isso mesmo. Contudo, há também um problema de conteúdo. A permuta de documentos inicialmente idealizada, sem embargo de seu acerto, é insuficiente: primeiro, porque ela não considera os documentos que a parte possa deter e que certamente não exibirá porque de alguma forma a desfavorecem; segundo, porque é preciso considerar a hipótese,

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conquanto excepcional, em que a prova documental corre o risco de perda ou de destruição. Assim, uma proposta a debater poderia ser a seguinte: positiva-se o cabimento da medida de exibição, com caráter preparatório ou incidental, que poderá ter por objeto documento próprio ou comum. Sobre esse segundo, de sorte a superar eventual controvérsia surgida na doutrina, há que se explicitar que o documento comum é abrangente de vínculo mantido entre o requerente e o requerido, ou entre qualquer um deles e terceira pessoa. Na regulamentação da exibição assim proposta, há que se positivar a regra de que é ônus do requerente mencionar com precisão os fatos que se relacionam com o documento pretendido. Convém, a todo custo, fugir das distorções vivenciadas nos sistemas de common Law, em que a providência preliminar de instrução pode desembocar em buscas que extrapolam o verdadeiro objeto do litígio, em fenômeno lá designado como fishing expedition. A ideia da permuta, naturalmente, deve permanecer. Contudo, uma forma de discipliná-la seria a de estabelecer que o requerente da exibição, como condição para que obtenha a providência no confronto da parte contrária, desde logo coloque à disposição os documentos dos quais ela própria dispõe. Teria a demanda, assim, uma espécie de caráter dúplice. Talvez se pudesse impor o ônus de que tais documentos viessem desde logo com a inicial. Contudo, do ponto de vista operacional – convém pensar na escrituração de uma empresa – pode ser desnecessariamente gravoso. Então, o fundamental é que tais documentos sejam, ao menos num primeiro momento, listados e, sem dúvida, colocados à disposição da parte adversária, com a determinação de seu conteúdo exato, ainda que em momento subsequente ao da demanda inicial (dado que o ônus estabelecido pela lei é contundente e não pode incidir sobre objeto genérico). De qualquer forma, dificuldades operacionais à parte (que talvez possam ser resolvidas em cada caso concreto), uma ideia seria a de estabelecer regra segundo a qual a petição inicial será necessariamente instruída com todos os documentos em poder do requerente e que sejam relacionados com os fatos narrados na inicial. Daí em diante, aproveitar-se-ia, em essência, a disciplina hoje vigente para a exibição. É preciso dar ao requerido oportunidade de exibir o documento ou apresentar recusa fundamentada em prazo compatível com a extensão do material. Alguma flexibilidade – a exemplo do que ocorre no caso de resposta na ação rescisória – conviria ser estabelecida. Por exemplo, poderia se dar ao juiz a prerrogativa de fixar o prazo, com um limite 186

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máximo. Mas, também é preciso dar ao réu a oportunidade de ter acesso aos documentos apresentados pelo autor da demanda, completando-se o mecanismo dúplice acima mencionado, com a possibilidade de o requerido indicar, ele próprio, outros documentos em poder da parte adversária e cuja exibição almeja. Ainda na esteira do aproveitamento das regras vigentes, seria adequado disciplinar as razões para eventual recusa. Uma proposta é seguir o modelo segundo o qual o juiz não admitirá recusa (i) se o requerido tiver obrigação legal de exibir; (ii) se o requerido, em qualquer outra oportunidade, aludiu ao documento com o intuito de constituir prova; ou se (iii) o documento, por seu conteúdo, for comum às partes. Além disso, e ainda sem inovar em relação ao que já vigora, é caso de reafirmar-se a regra segundo a qual, sem prejuízo das consequências quanto às omissões da parte na exibição que faça voluntariamente, presumem-se verdadeiros os fatos que, por meio do documento, a parte pretendia provar se o requerido não efetuar a exibição ou se sua recusa não for admitida pelo juiz. Daí então seria possível chegar à inovadora proposta do Projeto, mas com redação quiçá diversa, justamente para que não se frustre o objetivo por ele colimado. Uma alternativa a ser debatida pode ser: “Haverá preclusão para as partes e para o juiz relativamente aos documentos que requerente e requerido eventualmente deixarem de exibir na inicial e na resposta, os quais não poderão ser invocados nem considerados no julgamento da controvérsia, em qualquer processo que a tenha por objeto, entre as mesmas partes”. Conviria também já adiantar que não haverá tal preclusão quando se tratar de documento novo, assim entendido aquele relativo a fato superveniente ou aquele cuja existência a parte ignorava – de forma análoga ao que ocorre no caso de ação rescisória (justamente para evitá-la). Também convém disciplinar a exibição de documento em poder de terceiro, com a ênfase para a oportunidade de defesa. Ainda que, nesse caso, o destinatário não seja o protagonista do litígio “principal”, ele pode ter razões fundadas para não exibir o documento e isso precisa ser submetido ao crivo do devido processo legal. Naturalmente, se a medida for preparatória, convém positivar que serão litisconsortes necessários todos aqueles que deverão figurar no processo principal. À semelhança do que já ocorre, se o terceiro, sem justo motivo, se recusar a efetuar a exibição, o juiz lhe ordenará que proceda ao respectivo depósito e, em caso de descumprimento, será determinada busca e apreensão, sem 187

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prejuízo da fixação de multa diária e da responsabilidade por crime de desobediência. Também é preciso definir os casos em que a parte e o terceiro podem se escusar de exibir em juízo o documento. Mais uma vez, convém aproveitar o que já vigora, atentando-se, no que for cabível, para o disposto no art. 363 do vigente Código de Processo Civil. Finalmente, é preciso considerar a eventualidade de caber medida de busca e apreensão de documento quando houver fundada razão para colheita de elementos de convicção e fundado receio de extravio ou perda. Mais uma vez, e até com maior rigor, há que se exigir que o requerente delimite o objeto do pedido e que dê razões justificativas da ciência de estar o documento no lugar designado. Daí em diante, será preciso seguir todas as cautelas hoje já previstas, quer pelo Código de Processo Civil, quer pelo de Processo Penal.

Referências YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009. ______ . A produção antecipada de prova no Projeto de Código de Processo Civil (I). Carta Forense, n. 91, dez./2010. YARSHELL, Flávio Luiz; SETOGUTI, Guilherme. Um novo processo empresarial em debate. Valor Econômico, edição de 27/10/2011.

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A resolução da dúvida sobre os fatos na história do Direito Probatório Carlos Augusto Silva

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Introdução. 1. Ordálios. 2. Prova legal. 3. Júri. 4. Livre apreciação da prova. 5. Considerações finais. Referências.

Introdução1

A

prova dos fatos no processo judicial encarna tema central na resolução das contendas cíveis e criminais, ao longo dos tempos, nos países do civil law e do common law. Nesse sentido, avulta a importância do estudo acerca dos diversos modelos de resolução da dúvida sobre os fatos. Este breve relato histórico inicia pelos ordálios, que constituem modelo irracional de resolução da dúvida sobre os fatos, passando pelo seu substituto, o da prova legal. Ato contínuo, no common law, ocorre a substituição da prova legal pelo julgamento pelo júri; no civil law, verifica-se o nascimento do modelo da livre apreciação da prova. Abre-se, assim, espaço para a discussão acerca do quão livre constitui o modelo da livre apreciação da prova no civil law, em comparação com o direito probatório de tradição do common law.

* Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Doutor em Direito. 1. Nota do Autor: as citações em língua estrangeira, ao longo do texto, receberam a tradução livre do autor. 189

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1. Ordálios Os ordálios constituíam um modelo de prova que apelava ao sobrenatural para a verificação dos fatos. A disseminação dos ordálios refletia o grau de desenvolvimento científico e cultural das sociedades da época.2 O historiador Henry Charles Lea, em 1866, publicou Superstition and Force, considerado o principal texto em língua inglesa acerca das relações entre os aspectos culturais, religiosos e os procedimentos legais na Europa medieval.3 O pesquisador norte-americano bem sintetiza a ideia subjacente ao desenvolvimento dos ordálios: “O chamado julgamento de Deus, pelo qual os homens, combalidos pela dúvida, foram tentados, em todas as épocas, a livrarem-se da responsabilidade clamando pela assistência divina”.4 Henry Lea demonstrou, em sua magistral obra, que a exaltação aos ordálios esteve presente em diversos povos ao longo da história. Contudo, para os fins deste estudo, cingir-se-á a análise dos ordálios ao período europeu medieval. Robert Bartlett 5 divide a história dos ordálios medievais em duas fases: a anterior e a posterior ao ano 800. O período mais remoto prolongou-se do ano 500, época dos primeiros registros de julgamentos por ordálios, até o ano 800. Dessa época, embora escassas as fontes históricas, pode-se constatar que o único ordálio utilizado foi o do caldeirão, ou seja, o da água quente.6 2. “Na história da prova, a interação da cultura geral com as ideias legais pode ser observada mais claramente. Esse é um campo que pertence à história da psicologia, bem como do direito. Demonstra a verdadeira posição do direito no contexto geral da civilização: não como uma técnica marginal, obscura, de interesse restrito a especialistas, mas parte e parcela da cultura de qualquer dado período e um dos seus mais importantes elementos. A história dos modos de prova, realmente, lança luz sobre o pensamento legal e a organização judiciária, mas também ilumina a mentalidade, a atitude, na direção do supernatural e de outros aspectos da psicologia, das pessoas comuns – uma fonte muito preciosa, realmente, para aqueles séculos remotos em que a informação é difícil de obter” (R. C. Van Caenegem. The Birth of the English Common Law. 1988. p. 62). 3. A referida obra foi republicada em três volumes: The Ordeal. 1973; Torture. 1973; The Duel and the Oath. 1974. 4. Henry Charles Lea. The Ordeal. 1973. p. 4. 5. Robert Bartlett. Trial by Fire and Water: the medieval judicial ordeal. 1986. p. 4. 6. “No sexto, sétimo e maior parte do oitavo século, não há referências a nenhum outro tipo de ordálio. O procedimento envolvido, no qual um objeto, geralmente uma pedra ou uma argola, tinha de ser retirada de um caldeirão efervescente, é vivamente descrito em De Gloria martyrum, de Gregory of Tours: ‘o fogo era aceso, o caldeirão era posto em cima, fervendo intensamente. Uma pequena argola era jogada na água quente’. O acusado ‘arregaçava a roupa do seu braço e mergulhava a mão direita no caldeirão... o fogo ardia e, na fervura, não era fácil para ele agarrar a pequena argola, mas ao final ele a trazia à tona” (Robert Bartlett. Trial by Fire and Water: the medieval judicial ordeal 1986. p. 4). 190

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Ao redor do ano 800, emergem novas modalidades de ordálios. Um dos ordálios mais utilizados, nesse período, foi o da cruz, uma espécie de ordálio bilateral em que os dois contendores permaneciam com as suas armas estendidas no formato de cruz até que um fraquejasse.7 Espécie menos utilizada foi o ordálio de caminhar sobre as pontas quentes do arado.8 Do mesmo período, verifica-se a existência do ordálio da água fria e do ferro quente.9 Os ordálios constituíam meio irracional de produção de prova. Na impossibilidade de verificar os fatos pretéritos, evocava-se intervenção divina para decidir-se entre as versões apresentadas. O papel de julgador cabia a Deus, que manifestava sua vontade por meio dos ordálios, à medida que interferiria no resultado. A legitimidade da prova advinha da crença na manifestação divina.10 Nesse tipo de produção probatória, não há espaço para pensar em standards de prova.11 Os standards configuram elemento indissociável de qualquer processo decisório em que reina incerteza sobre fatos. No caso dos ordálios, o decisor é Deus, cujo standard aplicado, por razões óbvias, escapa ao controle de qualquer sistema jurídico. Configura-se, aqui, um modelo de produção de prova em que não há motivo para se estabelecer standards de decisão.12 No século XIII, a participação de clérigos nos ordálios restou vedada por meio do IV Concílio de Latrão, de 1215. Assim, como a leitura dos sinais que 7. Ibidem, p. 9. 8. Ibidem, p. 10. 9. Ibidem, p. 10-11. Para uma descrição e história dos ordálios, consultar: H. Goitein. Primitive Ordeal and Modern Law. 1980. p. 53-79; James Heath. Torture and English Law: an administrative and legal history from the Plantagenets to the Stuarts. 1982; Henry Ansgar Kelly. Inquisitions and Other Trial Procedures in the Medieval West. 2001; Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Do Formalismo no Processo Civil. 1997. p. 14-16; Gerhard Walter. Libre Apreciación de la Prueba. 1985. p. 48-50. 10. Cf. Juan Montero Aroca. La Prueba en el Proceso Civil. 2005. p. 549-550. 11. “O direito norte-americano exige três standards de convencimento para as decisões judiciais: 1) beyond a reasonable doubt (além de uma dúvida razoável), para os casos criminais; 2) clear and convincing evidence (prova clara e convincente), para os casos cíveis não patrimoniais, nos casos de perda do poder familiar, internação compulsória, perda de nacionalidade, deportação, fraude e para afastar a presunção de que os bens adquiridos durante ou na dissolução do casamento não integram o patrimônio comum do casal; 3) preponderance of the evidence (preponderância da prova), para os casos cíveis em geral” (Carlos Augusto Silva. Standards Probatórios como Medida de Confiabilidade da Decisão Judicial no Brasil: Uma Análise Empírica. In Ana Luisa Celina Coutinho et alii (coord.). Direito, Cidadania e Desenvolvimento. 2012. p. 95). 12. “Na época primitiva, quando os únicos meios de prova eram o juramento, o duelo e o juízo de Deus, não se pode falar de uma apreciação da prova, nem sequer de um procedimento probatório” (Gerhard Walter. Libre Apreciación de la Prueba. 1985. p. 66). 191

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seriam emitidos por Deus, nesses julgamentos, era efetivada por sacerdotes, os julgamentos de Deus tornaram-se impraticáveis. A interpretação mais singela para a proibição dos ordálios pela Igreja seria a de que estaria superada a crença na validade dessa espécie de julgamento. Em sentido contrário, Sanjeev Anand13 sustenta que duas foram as razões que fomentaram a decisão tomada no referido Concílio, conduzido pelo Papa Inocêncio III. Primeiramente, nos séculos XIII e XIV, as autoridades letradas passaram a exercer relevante influência no seio da Igreja. Assim, esses intelectuais concederam impulso ao questionamento acerca da falta de embasamento sólido dos ordálios no direito romano, no antigo direito canônico e nas escrituras bíblicas. Em segundo lugar, os ordálios constituíam uma maneira de desafiar Deus, porque expressavam um método criado pelo homem para forçar a manifestação divina. No direito continental, os ordálios foram substituídos pelo sistema da prova legal; e, no common law, pelo sistema do júri, conforme se verá adiante.

2. Prova Legal O abandono dos ordálios, no século XIII, por meio do IV Concílio de Latrão, de 1215, fez com que uma nova racionalidade jurídico-política dominasse o campo do direito probatório.14 Nos países de direito continental, o arranjo institucional engendrado foi o julgamento por juízes.15 13. Sanjeev Anand. The Origins, Early History and Evolution of the English Criminal Trial Jury. 2005, p. 410. 14. Cf. John H. Langbein. Torture and the Law of Proof. 1976. p. 6-8. Com referência bibliográfica sobre o tema: Carlos Augusto Silva. O Processo Civil como Estratégia de Poder: reflexo da judicialização da política no Brasil. 2004. p. 15. 15. “Havia regras e métodos de prova detalhados por civilistas e canonistas. O erudito procedimento romano-canônico deles, criado na segunda metade do século XII e no século XIII, conquistou os tribunais continentais, e talhou o respectivo procedimento civil e criminal. O seu principal elemento foi o juiz singular ou o corpo de juízes, que decidia, ao mesmo tempo, sobre questões de fato e questões de direito, guiava a investigação, conduzia interrogatórios pessoalmente ou por meio de comissários e dava o julgamento final. No campo da prova, observamos o uso de testemunhas, confissões, oitivas secretas e tortura” (Caenegem, op. cit., p. 70-71). “A abolição dos ordálios pôde ocorrer somente quando alternativas foram visualizadas. A alternativa romano-canônica, o nascente Inquisitionprozess (acusação oficial e julgamento racional), mirou-se na oficialização em andamento e na racionalização do governo e da vida pública” (John H. Langbein. Prosecuting Crime in the Renaissance: England, Germany, France. 1974. p. 135). “Na metade do século XVI, os principais sistemas legais continentais exibem 192

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John H. Langbein aduz que a pergunta dirigida ao juiz pelos homens da época seria: “Você, que é meramente outro mortal como eu, quem é você para ocupar a posição de julgar-me?”.16 O acatamento das decisões judiciais sedimentou-se com o surgimento dos Estados nacionais, a partir da construção do pensamento jurídico-político de legitimação dos atos estatais.17 Nesse contexto, John H. Langbein afirma que a resposta a ser dada pelo juiz à pergunta anteriormente formulada seria: “Eu, o juiz, ocupo a posição de julgar-lhe, porque eu tenho o poder para tal. O meu poder emana do Estado, que seleciona, emprega e controla-me”.18 Contudo, na vigência do século XIII, essa ideia de legitimidade ainda não prosperava. A construção jurídica arquitetada para legitimar as decisões do juiz sobre os fatos baseou-se, então, no sistema da prova legal. Os homens da época não aceitariam submeter-se a decisões sobre as quais pairassem dúvidas acerca dos fatos revelados. Não seria tolerável conceder ao juiz – simples mortal – o poder de decidir em caso de dúvida. A exclusão da dúvida sobre a decisão judicial adveio de um sistema probatório em que ao juiz descabia a tarefa de valoração, mas tão somente de verificar a ocorrência da prova previamente estabelecida.19 A prova legal, inicialmente, correspondeu à desconfiança do titular do poder frente aos juízes. Posteriormente, representou uma garantia do cidadão contra o arbítrio dos juízes.20

um leque de características comuns de procedimento criminal. Esses traços compartilham uma associação comum com o protótipo romano-canônico, cujas linhas gerais maturaram nos tribunais da Igreja até o fim do século XIII. Levam o nome de Inquisitionsprozess da dominante doutrina alemã”. (John H. Langbein. Prosecuting Crime in the Renaissance: England, Germany, France. 1974. p. 129). 16. Idem. Torture and the Law of Proof. 1976. p. 6 17. Acerca do tema: Carlos Augusto Silva. O Processo... p. 49-71. 18. Langbein, Torture... p. 6. 19. “O sistema da prova legal foi a resposta. A sua ênfase foi maciçamente sobre a eliminação da discricionariedade judicial e, por isso, veda ao juiz o poder de condenar com base em prova indiciária. Prova indiciária depende, para a sua eficácia, da persuasão subjetiva do julgador, o juiz. Ele tem de estabelecer uma inferência de culpado a partir da prova indireta. Em contraste, o sistema da prova legal alicerça-se no critério objetivo de prova. O juiz, que a administra, é um autômato. Ele condena um criminoso com base no depoimento de duas testemunhas oculares, prova que está na famosa frase ‘clara como a luz do dia’. Não deve haver dúvida sobre a culpa nesse caso. Da mesma forma, quando o acusado admite a própria culpa, não deve haver dúvida (mesmo sob o antigo sistema probatório, a confissão constituía dispensa de prova. Se o culpado admitisse a sua culpa, as autoridades não iriam perder o tempo delas e o de Deus indagando pela confirmação por ordálio).” (Ibidem, p. 6-7). 20. Cf. Juan Montero Aroca, op. cit., p. 551. 193

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A culpa era estabelecida com duas testemunhas oculares ou com a confissão do réu. Essas duas modalidades constituíam a chamada prova inteira. O depoimento de apenas uma testemunha perfazia meia prova, que permitia a tortura com o fim de obter-se a confissão. Ao juiz, cabia aplicar o standard matematicamente predeterminado. O rígido standard mirava o critério objetivo da prova, subtraindo do julgador a valoração sobre os elementos fáticos. A verdade seria formatada por meio desse standard, justificador da legitimidade, antes, extraída dos ordálios. John H. Langbein advoga a tese de que o fim da tortura na Europa continental deu-se em decorrência da derrocada do sistema da prova legal.21 A tortura subsistiu no direito continental em virtude da necessidade da prova inteira – quando não atingida, clamava pela tortura. Na Inglaterra, a tortura não foi amplamente difundida porque nesse país não vigorou o sistema da prova legal, conforme análise a ser adiante efetuada. Alessandro Giuliani 22 relaciona a tortura à lógica do sistema da prova legal, que exigia a verdade absoluta. Na busca incessante por essa verdade, a tortura estaria justificada. Não obstante a tentativa de retirar do juiz qualquer poder de valoração sobre os fatos, sabe-se que tal intento não passa incólume a falhas. Sempre que couber ao julgador a tarefa de aplicar o texto legal, haverá interpretação e, consequentemente, margem a alguma espécie de liberdade na criação da norma a ser aplicada ao caso concreto.23 21. “A tese deste livro é que o direito probatório romano-canônico perdeu a sua força, não no século XIX, mas no XVII. Um novo sistema de prova, que foi de fato livre avaliação da prova, embora não descrito como tal, foi desenvolvido na ciência jurídica e na prática legal dos séculos XVI e XVII, e confirmado na legislação dos séculos XVII e XVIII. Esse novo sistema de prova desenvolveu-se ao longo do sistema romano-canônico. O direito probatório romano-canônico sobreviveu na forma, mas no século XVII perdeu o monopólio. Após isso, os standards do direito romano-canônico continuaram sendo obedecidos nos casos fáceis, casos onde havia confissão voluntária ou onde havia duas testemunhas oculares. Mas, para casos onde não havia nenhuma dessas provas, os standards romano-canônicos não mais deveriam ser obedecidos. Isso quer dizer, apenas nos casos onde havia sido previamente necessário usar tortura, agora se tornou possível punir o acusado sem contemplar os standards probatórios que conduziam à tortura”. (Torture and the Law of Proof. 1976. p. 11-12.) “Outro ponto que enfatiza a conexão entre tortura e o direito romano-canônico pertence à própria Europa: a tortura não era permitida nos casos de crimes de menor potencial ofensivo, delicta levia. A prova legal pertencia somente aos casos de crimes capitais. Delicta levia eram regulados pelo o que hoje seria chamado freie Beweiswürdigung or l’intime conviction, ou seja, a persuasão subjetiva do juiz” (Torture..., p. 9-10). “O que aconteceu foi nada menos que uma revolução no direito da prova. Encoberto sob vários rótulos enganosos, um sistema de livre avaliação judicial da prova alcançou validade subsidiária. Esse desenvolvimento liberou o direito da Europa da sua dependência da tortura. A tortura pôde ser abolida no século XVIII porque o direito da prova não mais a requeria” (ibidem, p. 12). 22. Alessandro Giuliani. Il Concetto di Prova: contributo alla logica giuridica. 1971. p. 185. 23. Sobre o assunto: Saul A. Kripke. Wittgenstein on Rules and Private Language: an elementary exposition. 1982. Acerca da distinção entre texto e norma: Humberto Ávila. Teoria dos 194

10 – A resolução da dúvida sobre os fatos na história do Direito Probatório

A ausência de valoração probatória pelo juiz, na prova legal, deve ser interpretada com temperamento. Ao juiz estaria imposta uma valoração negativa: não poderia condenar o réu sem a existência de duas testemunhas, mas estaria livre de impor condenação caso não se convencesse da credibilidade de ambos os testemunhos.24 No sistema anterior – o dos ordálios – não havia standards a serem aplicados. No sistema da prova legal, o standard – revelador da verdade – busca, ao menos em tese, objetividade. Não se admitia um sistema jurídico em que as decisões fossem baseadas em probabilidades, e não em certeza.

3. Júri Na Inglaterra, a resposta ao fim dos ordálios desaguou no julgamento pelo júri. Algumas considerações acerca do júri no common law tornam-se necessárias, pois o desenvolvimento de standards de prova surgiu a partir da necessidade dos juízes de instruírem os jurados sobre o grau de convencimento exigido para decidir. Conforme explicado anteriormente, a falta de legitimidade dos juízes para decidir sobre os fatos foi suprida, no direito continental, pelo sistema da prova legal. Na Inglaterra, a legitimidade advinha diretamente do povo que, por meio dos jurados, exercia o juízo de fato: Em vários países outro sistema emergiu. Ele rompeu com as velhas provas irracionais e confiou no conhecimento humano, na perspicácia e no tirocínio, mas se baseou em uma perspectiva diferente, funcionando entre diversas linhas. Fazemos referência, é claro, ao sistema do júri e a todas as suas variações. Aqui, o julgamento foi baseado em dois distintos corpos, os juízes que o conduziam e finalmente pronunciavam o julgamento, e os membros do júri que pronunciavam o veredicto acerca da questão crucial de certo ou errado, culpado ou inocente. A voz da vizinhança, a “verdade da terra”, era ouvida sob a condução dos juízes, mas era imposta sobre eles. Era tão impositivo, de fato, como foram os ordálios. A vox populi havia simplesmente tomado o lugar da final e incrustável vox Dei. O júri podia Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2003. p. 22-23. Apesar de o sistema da prova legal estar baseado em regras preestabelecidas acerca da valoração da prova, o suscitado sistema derivou mais fortemente de construção doutrinária do que legislativa (Cf. Michele Taruffo. La Prova dei Fatti Giuridici: nozioni generali. 1992. p. 362). 24. Cf. Mirjan R. Damaška. Evidence Law Adrift. 1997. p. 19-20. 195

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ouvir a prova e decidir sobre o seu conhecimento privado dos fatos. Mais tarde, desenvolveu-se um júri de julgamento, decidindo meramente sobre a prova apresentada perante ele.25

O sistema do júri era dividido em dois: o de acusação e o de julgamento. O júri de acusação desenvolveu-se antes de 1215 e a sua função era determinar o envio, ou não, da pessoa ao julgamento por ordálio. A deliberação desse júri versava mais a respeito do caráter da pessoa do que sobre eventual material probatório existente.26 No século XV, estabelece-se claramente o conhecimento dos jurados advindo das testemunhas, e não mais do seu conhecimento privado quanto aos fatos. Em 1563, o comparecimento das testemunhas tornou-se compulsório e tipificou-se o crime de falso testemunho. Com a importância cada vez maior da prova testemunhal, emerge a necessidade de disciplinar a avaliação dos depoimentos prestados. O conceito de credibilidade – oriundo do direito continental e do direito canônico – transborda para o common law. A função dos jurados passa a receber contornos, cada vez mais salientes, de avaliação da prova apresentada em juízo. A partir desse momento, recai sobre os juízes a atribuição de instruir os jurados sobre a apreciação do material probatório, forçando a consecução de standards de prova. Os jurados deveriam decidir a partir dos fatos postos ao seu conhecimento perante o júri. O conhecimento sobre esses fatos advinha de segunda mão, por meio de testemunhos. A dúvida que naturalmente brotava nas mentes dos jurados dizia respeito à existência ou não dos fatos alegados. No julgamento dos ordálios, não havia dúvida a ser solucionada. No sistema da prova legal, o standard exigido dissipava a dúvida. No julgamento do júri, a dúvida existia e não era eliminada por nenhuma exigência de prova definida previamente. Incialmente, os jurados eram instruídos a condenar se estivessem certos da culpa do réu. As ideias filosóficas posteriores, principalmente sob a influência de John Locke, indicavam a impossibilidade de alcançar-se a verdade dos fatos por meio das percepções próprias do homem. A verdade ficaria restrita ao domínio da matemática e da lógica. Restava, assim, a formação de 25. R. C. Van. Caenegem. The Birth of the English Common Law. 1988. p. 70-71. 26. O histórico do desenvolvimento do júri e dos standards de prova foram extraídos de: Barbara J. Shapiro. Beyond reasonable doubt and probable cause: historical perspectives on the Anglo-American law of evidence. 1991. p. 3-41. 196

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um juízo próximo da verdade, chamado de verdade moral, para diferenciar da verdade matemática. Os juízes passaram a instruir os jurados a decidir com base na verdade moral, que redundou no standard além da dúvida razoável, que não exige certeza – por ser inalcançável – mas convencimento próximo da certeza.

4. Livre apreciação da prova A resposta ao sistema da prova legal – do direito continental – deu-se por meio do princípio da livre apreciação da prova.27 Na esteira da análise anterior, verificou-se que a tortura, rebenta do sistema da prova legal, perdeu utilidade a partir do domínio da livre apreciação da prova, que não mais exigia a confissão, na falta de duas testemunhas. As novas concepções filosóficas e políticas, aliadas ao desenvolvimento econômico, fomentaram, no século XVIII, a formatação do sistema da livre apreciação da prova na Europa continental, especialmente, na França. O decreto da Assembleia Constituinte francesa de 8 e 9 de outubro de 1789, ao reformar a Ordenança Criminal de 1670, de índole inquisitiva, impôs a publicidade e defesa do acusado. Em 1791, o decreto de 16-19 de setembro, instituiu o júri popular, aboliu a prova legal e consagrou o princípio do livre convencimento do juiz.28 A livre apreciação da prova deve obedecer a critérios racionais para que possa legitimar-se. O julgador deve alicerçar o seu convencimento com base na prova produzida, e não em critérios meramente subjetivos.29 O sistema da livre apreciação estabelece, para o direito romano-germânico, o que significou para o common law a instituição do júri, em termos de controle do convencimento judicial. 27. “A livre convicção é, em suma, um princípio metodológico (negativo) que consiste simplesmente no rechaço das provas legais como suficientes para determinar a decisão e que constitui uma autêntica garantia epistemológica e – no âmbito penal – também, derivadamente, uma garantia de liberdade” (Marina Gáscon Abellán. Los Hechos en el Derecho: bases argumentales de la prueba. 1999. p. 158). Acerca da história e do significado da livre apreciação: Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Do Formalismo no Processo Civil. 1997. p. 81-82, 156-164; Massimo Nobili. Il Principio del Libero Convincimento del Giudice. 1974; Michele Taruffo. La Prova dei Fatti Giuridici: nozioni generali. 1992. p. 361-377; Gerhard Walter. Libre Apreciación de la Prueba. 1985. 28. Apud Luigi Ferrajoli. Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale. 1997. p. 115. 29. “Um homem racional é aquele que faz o uso apropriado da razão; e isso implica, entre outras coisas, que ele corretamente avalia a força da prova. Em muitos casos, o resultado será que ele é capaz de justificar suas asserções por citar outras proposições que as sustentam” (A. J. Ayer. Probability and Evidence. 1972. p. 3). 197

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A livre apreciação, ao não liberar o julgador das amarras da motivação, exige o estabelecimento de regras de tomada de decisão. O julgador é livre para formar seu convencimento quanto aos fatos no que tange ao valor atribuído a cada elemento de prova. Partindo do pressuposto de que o juiz, na livre apreciação, ao libertar-se dos grilhões impostos pela prova legal, que oferecia a certeza do acerto da decisão, decidirá com base em probabilidade. Assim, o juiz desobriga-se de considerar provado fato que não tenha alcançado o grau de probabilidade necessário. Contudo, a livre apreciação, por si só, não estabelece o grau de probabilidade a ser seguido pelo julgador. O convencimento do julgador será inexoravelmente pautado por standards de prova. O julgador somente pode afirmar estar convencido acerca da ocorrência dos fatos alegados de acordo com algum standard. Do júri do common law, emergiu a necessidade de instruir os jurados sobre o grau de convencimento necessário para condenar o réu. De maneira inversa, no sistema da livre apreciação do direito romano-germânico, o controle dos graus de convencimento aplicados pelos juízes e jurados não recebeu a mesma adesão. O debate atual dos standards de prova no direito romano-germânico resgata a discussão de um maior controle do convencimento judicial no contexto do sistema da livre apreciação.30

5. Considerações finais A livre apreciação da prova configura slogan de múltiplos significados e diversas interpretações.31

30. “Descartada a confiança na obtenção de algum tipo de ‘verdade absoluta’ no processo, mas descartada também a concepção da valoração da prova como atividade subjetiva e/ou essencialmente irracional – por incompatível com o objeto de um modelo cognoscitivista –, a valoração da prova haverá de conceber-se como uma atividade racional consistente na eleição da hipótese mais provável entre as diversas reconstruções possíveis dos fatos. Por isso, o objetivo dos modelos de valoração haverá de prover esquemas racionais para determinar o grau de probabilidade de tais hipóteses. Muito simplesmente, os esquemas de valoração racional são necessariamente esquemas probabilísticos” (Marina Gascón Abellán. Los Hechos en el Derecho: bases argumentales de la prueba. 1999. p. 161). 31. Sobre o tema: Massimo Nobili. Il Principio del Libero Convincimento del Giudice. 1974. p. 14-17. 198

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O controle do juízo de fato sobre os jurados, no common law, resulta na adoção de standards de prova pertinentes ao grau de convencimento exigido para a condenação do réu, nos casos cíveis e criminais. 32 Por sua vez, nos países do civil law, reina a carência de modelos de controle do grau de convencimento necessário em relação aos fatos probandos para o juízo condenatório. Urge que os doutrinadores do civil law elaborem modelos de controle do livre convencimento na esteira de estudos empíricos que demonstrem o diagnóstico atual do grau de convencimento sobre os fatos exigidos na prática forense desses países. 33

Referências ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do Formalismo no Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1997. ANAND, Sanjeev. The Origins, Early History and Evolution of the English Criminal Trial Jury. The Alberta Law Review, n. 43, p. 410, Oct. 2005. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. AYER, A. J. Probability and Evidence. New York: Columbia University, 1972. BARTLETT, Robert. Trial by Fire and Water: the medieval judicial ordeal. New York: Oxford University, 1986. CAENEGEM, R. C. Van. The Birth of the English Common Law. 2. ed. New York: Cambridge University, 1988.

32. Sobre os standards de prova no common law, por todos: Alex Stein. Foundations of Evidence Law. 2005; Larry Laudan. Truth, Error, and Criminal Law: an essay in legal epistemology. 2006. 33. Celeuma interessante ocorreu entre dois doutrinadores representantes do common law e do civil law a respeito dos standards de prova aplicados no mundo romano-germânico. Kevin Clermont e Emily Sherwin, professores de processo civil da Cornell University, defendiam que, no civil law, aplicar-se-ia, tanto nos casos cíveis quanto nos casos criminais, o mesmo standard, ou seja, o beyond a reasonable doubt (Kevin M. Clermont; Emily Sherwin. A Comparative View of Standards of Proof. American Journal of Comparative Law, n. 50, p. 243-275, spring 2002). Em sentido contrário, Michele Taruffo, professor de processo civil da Università di Pavia, clamava pela distinção de standards, nos casos cíveis e criminais, nos países da Europa continental (Michele Taruffo. Rethinkg the Standards of Proof. American Journal of Comparative Law, n. 51, p. 659-677, Summer 2003). Uma discussão dos standards de prova no Brasil pode ser aferida nas seguintes doutrinas: Danilo Knijnki. A Prova nos Juízos Cível, Penal e Tributário. 2007; Danilo Knijnik. Os ‘standards’ do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. Rio de Janeiro, Revista Forense, v. 353, p. 15-52, 2001; Carlos Augusto Silva. Standards Probatórios como Medida de Confiabilidade da Decisão Judicial no Brasil: Uma Análise Empírica. In: Ana Luisa Celina Coutinho et alii (coord.). Direito, Cidadania e Desenvolvimento. 2012. p. 95-105. 199

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10 – A resolução da dúvida sobre os fatos na história do Direito Probatório

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Ainda sobre a distinção entre Tutela Antecipada e Tutela Cautelar Fredie Didier Junior * P a u l a S a r n o B r a g a ** R a f a e l A l e x a n d r i a d e O l i v e i r a ***

1. A tutela definitiva: satisfativa e cautelar. 2. A tutela provisória (sumária e precária). Antecipação dos efeitos da tutela definitiva. 3. Tutela cautelar e tutela antecipada. 4. Considerações finais. Referências

1. A tutela definitiva: satisfativa e cautelar tutela jurisdicional oferecida pelo estado-juiz pode ser definitiva ou provisória. A tutela definitiva é aquela obtida com base em cognição exauriente, com profundo debate acerca objeto do processo, garantindo-se o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. É predisposta a produzir resultados imutáveis, cristalizados pela coisa julgada material. Prestigia, sobretudo, o valor segurança jurídica. A tutela definitiva pode ser satisfativa ou não. A tutela definitiva satisfativa é aquela que visa certificar e/ou efetivar o direito material discutido. Predispõe-se à satisfação de um

A

* Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia. Mestre (UFBA), Doutor (PUC/SP) Livre-docente (USP) e Pós-doutorado (Universidade de Lisboa). Professor-coordenador da Faculdade Baiana de Direito. Advogado e consultor jurídico. ** Professora de Direito Processual Civil da Faculdade Baiana de Direito e da Universidade Federal da Bahia. Mestre (UFBA). Doutoranda (UFBA). Advogada. *** Mestre (UFBA). Procurador do Município do Salvador/BA. Advogado. 203

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direito material com a entrega do bem da vida almejado. É a chamada por alguns de tutela padrão.1 Podem-se citar dois diferentes tipos de tutela definitiva satisfativa: a tutela de certificação de direitos (declaratória, constitutiva e condenatória)2 e a tutela de efetivação (realização dos direitos, tutela executiva, em sentido amplo).3 Mas as atividades processuais necessárias para a obtenção de uma tutela satisfativa são lentas e demoradas, gerando delongas processuais que colocam em risco o resultado útil e proveitoso do processo e a própria realização do direito afirmado. Daí a necessidade de criação de uma tutela definitiva não satisfativa, de cunho assecuratório, para conservar o direito afirmado e, com isso, neutralizar os efeitos maléficos do tempo: a tutela cautelar. A tutela cautelar não visa à satisfação de um direito (ressalvado, obviamente, o próprio direito à cautela), mas, sim, a assegurar a sua futura satisfação, protegendo-o. Particulariza-se e distingue-se das demais modalidades de tutela definitiva por ser instrumental e temporária. É instrumental por ser meio de preservação de uma situação jurídica material ativa (objeto de outro processo) e do resultado útil e eficaz da tutela definitiva satisfativa (de certificação e/ou efetivação). É o instrumento de proteção de outro instrumento (a tutela jurisdicional satisfativa), por isso comumente adjetivada como “instrumental ao quadrado”. Por exemplo: o bloqueio de valores do devedor inadimplente é instrumento assecuratório do direito de crédito do credor. A tutela cautelar não tem um fim em si mesma, pois serve a uma outra tutela (cognitiva ou executiva), de modo a garantir-lhe a efetividade e a utilidade (art. 796, CPC). É, ainda, temporária, por ter sua eficácia limitada no tempo. Sua vida dura o tempo necessário para a preservação a que se propõe. Mas, cumprida sua função acautelatória, perde a eficácia. Tende a extinguir-se com a 1. A este respeito, conferir Teori Albino Zavascki. Antecipação de Tutela. 1999, p. 18-21. 2. As tutelas de certificação de direitos a uma prestação, em regra, já são imediatamente seguidas da tutela de efetivação da prestação. Por isso se diz que a tutela condenatória conjuga certificação e efetivação – e em alguns casos, a própria tutela declaratória. 3. Sobre as tutelas satisfativas, leciona José Roberto dos Santos Bedaque (Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização). 2001, p. 109.): “Destinam-se a resolver as crises de direito material, os litígios trazidos ao processo pelas partes, a fim de restabelecer o ordenamento jurídico e a paz social. Tais tutelas proporcionam a plena e definitiva satisfação do direito, declarando-se e atuando-o praticamente”. 204

11 – Ainda sobre a distinção entre Tutela Antecipada e Tutela Cautelar

obtenção (ou não) da tutela satisfativa definitiva – isto é, com a resolução da causa em que se discute e/ou se efetiva o direito acautelado (exemplo: satisfeito o direito de crédito, perde a eficácia a cautela de bloqueio de valores do devedor insolvente). Mas essa temporariedade não exclui sua definitividade. Já dissemos e repetimos, a decisão cautelar concede uma tutela definitiva, dada com cognição exauriente de seu objeto (pedido de segurança, fundado no perigo da demora e na plausibilidade do direito acautelado) e apta a tornar-se imutável. Temporários são seus efeitos fáticos, práticos, afinal a cautela perde sua eficácia quando reconhecido e satisfeito o direito acautelado (ou quando esse não for reconhecido),4 mas a decisão que a concedeu, ainda assim, permanece imutável, inalterável em seu dispositivo. Em suma, a decisão é definitiva, mas seus efeitos são temporários. Com base em reflexões de Ovídio Baptista da Silva,5 é possível fazer uma boa distinção entre o provisório e o temporário. O provisório é sempre preordenado a ser “trocado” pelo definitivo que goza de mesma natureza – exemplo: “flat” provisório em que se instala o casal a ser substituído pela habitação definitiva (apartamento de edifício em construção). Já o temporário é definitivo, nada virá em seu lugar (de mesma natureza), mas seus efeitos são limitados no tempo, e predispostos à cessação – ex.: andaimes colocados para a pintura do edifício em que residirá o casal lá ficarão o tempo necessário para conclusão do serviço (e feito o serviço, de lá sairão, mas nada o substituirá). Assim, a tutela cautelar não é provisória, pois nada virá em seu lugar da mesma natureza – é ela a tutela assecuratória definitiva e inalterável daquele bem da vida. Mas seus efeitos têm duração limitada e, cedo ou tarde, cessarão. E, assim, por ser definitiva, a decisão cautelar não pode ser considerada provisória (ou precária). Não é uma decisão provisória a ser, posteriormente, substituída por uma definitiva – que a confirme, modifique ou revogue. Ela já é, em si, a decisão final, definitiva, para a questão. Uma vez proferida, a decisão cautelar não é suscetível de ser modificada ou revogada a qualquer tempo. Preclusas as vias recursais, o seu dispositivo não poderá ser alterado, nem mesmo pela superveniência de fatos novos 4. Embora existam, como cediço, formas anômalas de perda de eficácia da cautelar: a) por desistência da ação cautelar (CPC 267 VIII); b) por falta de ajuizamento da ação principal (CPC 808 I), depois da efetivação da medida cautelar; c) por falta de execução da medida deferida (CPC 808 II); d) por declaração da extinção do processo principal, com ou sem julgamento de mérito (CPC 808 III). 5. Processo cautelar. 2006, p. 86 et seq. 205

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– como dá a entender o art. 807, CPC, quando lido por clássicos doutrinadores.6 A modificação do substrato fático pode ensejar uma nova demanda cautelar (com nova causa de pedir), a ser decidida por nova sentença, o que não interfere na coisa julgada (cautelar) formada na ação anterior. A demanda cautelar, como todo ato de postulação, possui um objeto, um mérito, composto por pedido (de segurança) e causa de pedir (fumaça do bom direito e perigo da demora). E para quem defende que o mérito de toda postulação é uma lide, que seja: a lide cautelar configurar-se-ia por uma pretensão de conservação do direito afirmado alvo de resistência da parte adversa. Na cautelar, há cognição exauriente (suficiente, profunda o bastante) do seu mérito, do seu objeto. A cognição do direito material acautelado é que é sumária – bastando que se revele plausível para o julgador (como exige a fumaça do bom direito). Por exemplo, para deferir-se a cautela de bloqueio de valores do devedor inadimplente, é necessário que o julgador examine, de forma exauriente, o preenchimento dos pressupostos legais (fumaça do bom direito acautelado e o perigo da demora) do pedido de segurança, mas basta uma cognição superficial para que conclua ser provável o direito de crédito assegurado. Assim, se há decisão cautelar de mérito, com cognição exauriente, e não mais sujeita a recurso, há coisa julgada cautelar. É como afirma Calmon de Passos, sobre tema tão polêmico:7 6. É o caso de Humberto Theodoro Júnior, ao afirmar que: “provisoriedade é de essência da tutela cautelar, de sorte que, a qualquer tempo, mesmo depois da sentença que formalmente encerra o processo de prevenção, sempre é possível ao juiz, em nova relação processual, rever a medida já deferida, quer para modificá-la, quer para revogá-la (Código de Processo Civil, art. 807)”. O mestre mineiro ressalva, tão somente, o caso do art. 810 do CPC, quando o juiz, no bojo da cautelar, acolhe exceção de prescrição ou decadência. (Curso de Direito Processual Civil. 2000, v. II, p. 377/378). Similar é o posicionamento de Galeno Lacerda que traz, porém, maior número de exceções. Afirma que a tese só se aplica às cautelares “preventivas” e, não, às “repressivas” – por exemplo, atentado e incidente de falsidade –, pois, nestas últimas, haveria “definitividade” – vez que o juiz se inclina sobre os fatos do litígio para restituí-los ao estado anterior (Comentários ao Código de Processo civil. 1993, v. 8, t. 1, p. 227/228). 7. Vide Galeno Lacerda. Comentários ao Código de Processo civil, v. 8, t. 1, cit., p. 277 et seq.; Humberto Theodoro Jr. Curso de Direito Processual Civil, v. 2, cit., p. 377 et seq. Ovídio Baptista da Silva, a despeito de repudiar os argumentos expendidos por outros autores para justificar a inexistência de coisa julgada cautelar – como a ausência de sentença de mérito ou a provisoriedade de sua decisão –, segue-os em sua conclusão. O autor defende que a sentença cautelar não transita em julgado, mas por outras razões; entende que isso “decorre da ausência de qualquer declaração sobre relações jurídicas que possam ser controvertidas na demanda cautelar. O juiz, ao decidir a causa, limita-se à simples plausibilidade da relação jurídica de que o autor se afirma titular e à existência de uma situação de fato de perigo. Ora, como se sabe, o juízo sobre os fatos jamais adquire selo de indiscutibilidade, pois sobre eles não se estende a coisa julgada (art. 469, CPC) (...) o juiz de futura demanda, ao reapreciar a mesma causa e decidir de modo 206

11 – Ainda sobre a distinção entre Tutela Antecipada e Tutela Cautelar

Ouso dizer, e que me perdoem o atrevimento, que as decisões de mérito, em ação cautelar, são insuscetíveis de modificação, se não houve alteração na situação de fato — situação de perigo, que a determinou, ou se modificação não houver na situação do direito no tocante à plausibilidade da tutela favorável ao autor da medida. Só a mudança de um desses elementos constitutivos da causa de pedir autoriza a modificação. E se indeferida a medida, só nova situação de perigo, ou alterações nas condições anteriormente indicadas para fundamento do pedido, ou pedido de medida diversa da anterior, pode legitimar a postulação de nova cautelar. Essa imutabilidade pode não ser batizada com o nome de coisa julgada, mas que é imutabilidade astreinte é. E temos dito.8

Pois bem. Feitos os devidos esclarecimentos, ratifica-se que a tutela definitiva pode ser satisfativa (cognitiva ou executiva) ou não satisfativa (cautelar) – mas sempre será exauriente e predisposta à coisa julgada. Eis uma síntese do quanto exposto:



 

       

         

       

Mas a entrega de todo tipo de tutela definitiva – ainda que não satisfativa (cautelar) – pode demorar mais do que o esperado, colocando em risco sua efetividade. Trata-se de um dos males do tempo do processo. Também no intuito de abrandar os efeitos perniciosos das delongas processuais, o legislador instituiu um novo tipo de tutela jurisdicional diferenciada (ao lado da cautelar): a tutela provisória, em si mais agressiva e incisiva, já que permite o gozo antecipado e imediato dos efeitos próprios da tutela definitiva pretendida (seja satisfativa, seja cautelar). É a tutela antecipada – que confere a pronta satisfação/cautela da situação jurídica ativa que se busca reconhecer/efetivar/proteger em juízo.

diverso, nunca poderia agredir uma declaração sentencial contida no primeiro julgamento, pois a primeira sentença, por definição, nada declarou a respeito de qualquer relação jurídica” (Processo cautelar, cit., p. 185). 8. José Joaquim Calmon de Passos. Comentários ao Código de Processo Civil. 1984, p. 237. 207

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2. A tutela provisória (sumária e precária). Antecipação dos efeitos da tutela definitiva A tutela provisória é aquela que dá eficácia imediata à tutela definitiva (satisfativa ou cautelar), permitindo sua pronta fruição. E, por ser provisória, será necessariamente substituída por uma tutela definitiva – que a confirme, revogue ou modifique. É marcada por duas características essenciais: a sumariedade da cognição e a precariedade. Identifica-se por ser fundada em uma cognição sumária, em uma análise superficial do objeto da causa, que conduz o magistrado a um juízo de probabilidade. Particulariza-se, ainda, por sua precariedade, já que pode ser revogada ou modificada a qualquer tempo. Mas a revogação ou modificação de uma tutela deste viés só pode dar-se em razão de uma alteração do estado de fato ou do estado de prova – quando, na fase de instrução, restem evidenciados fatos que não correspondam àqueles que autorizaram a concessão da tutela.9 E, por ser assim sumária e precária, a tutela provisória é inapta a tornar-se indiscutível pela coisa julgada material. A tutela provisória é a tutela antecipada; é aquela que antecipa os efeitos da tutela definitiva, isto é, a satisfação ou a cautela do direito afirmado, o que se pode esquematizar da seguinte forma:

 

  

    

             

  

   

Parece simples a sistematização dos diferentes tipos de tutela existentes (definitivas e provisórias). Mas a doutrina do processo tem uma dificuldade muito grande de distinguir, com precisão, a tutela antecipada (provisória) e a tutela cautelar (definitiva). É o que ora se enfrenta. 9. “Com efeito, concedida a tutela à base de cognição sumária, é viável ocorrer que, com o desenrolar da instrução (...), resulte demonstrado que não é verdadeira a situação fática invocada para o deferimento da medida, que o risco de dano nunca existiu, que a aparência, à base da qual o juiz tomou sua decisão, não correspondia à realidade. Em tais casos, embora não tenha havido propriamente mudança no estado de fato, mas apenas mudança no estado da prova do fato, a medida poderá ser revogada ou modificada. E aqui reside o argumento básico para sustentar a inexistência de coisa julgada nesta espécie de tutela”. (Teori Albino Zavascki. Antecipação de Tutela. p. 35-36). É o que diz Zavascki, embora enquadre, o autor, a tutela cautelar como modalidade de tutela provisória – considerando-a sumária e precária. 208

11 – Ainda sobre a distinção entre Tutela Antecipada e Tutela Cautelar

3. Tutela cautelar e tutela antecipada A entrega da tutela-padrão (definitiva satisfativa) dificilmente se dá com a rapidez esperada. Entre o momento em que é solicitada e aquele em que é obtida, transcorre considerável lapso de tempo.10 E isso pode gerar consequências práticas indesejáveis: (i) de um lado, dificulta a fruição e a disposição do direito reclamado enquanto pendente o processo, colocando-o sob o risco de dano irreparável ou de difícil reparação; exemplos: necessidade de alimentos, realização de uma intervenção médica de emergência etc.; (ii) de outro, no curso do processo, é possível que ocorram eventos que coloquem em risco a futura realização do direito já certificado; exemplo: se o réu se desfaz dos únicos bens que poderiam responder por uma eventual condenação. Em tais casos, para que não fique comprometida a efetividade da tutela definitiva satisfativa (padrão), percebeu-se a necessidade de criação de mecanismos de preservação dos direitos contra os males do tempo. “A grande luta do processualista moderno é contra o tempo”, afirma a conhecida doutrina.11 Assim, ao lado da tutela-padrão (satisfativa definitiva), criaram-se tutelas jurisdicionais diferenciadas, urgentes e acautelatórias dos direitos. Uma delas é a tutela cautelar, que preserva os efeitos úteis da tutela definitiva satisfativa. A outra é a tutela antecipada, que antecipa os efeitos próprios da tutela definitiva satisfativa (ou não satisfativa; isto é, da própria cautelar). Ou seja, a cautelar garante a futura eficácia da tutela definitiva (satisfativa) e a antecipada confere eficácia imediata à tutela definitiva (satisfativa ou cautelar). Muitos confundem a tutela antecipada (provisória) com a tutela cautelar (definitiva). Possuem pontos em comum, é verdade, mas não deixam de ser substancialmente distintas. Rigorosamente, possuem naturezas jurídicas distintas: uma, a tutela antecipada, é uma técnica processual; a outra, a tutela cautelar, é uma 10. “(...) o tempo decorrido entre o pedido e a concessão da tutela satisfativa, em qualquer de suas modalidades, pode não ser compatível com a urgência de determinadas situações, que requerem soluções imediatas, sem o quê ficará comprometida a satisfação do direito”. (José Roberto dos Santos Bedaque. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização). 2001, p. 113). 11. José Roberto dos Santos Bedaque. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização). 2001, p. 115. 209

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espécie de tutela jurisdicional, resultado prático que se pode alcançar pelo processo. A dificuldade na distinção das figuras certamente decorre disso: possuindo diferentes naturezas, não deveriam ser confrontadas. É o mesmo que tentar distinguir um determinado prato (bolo de laranja ou pato no tucupi, por exemplo) com o tipo de forno que o preparou (a lenha ou a gás, por exemplo). Feita essa ressalva, podemos ir adiante. Normalmente, coloca-se como característica comum a essas tutelas diferenciadas (cautelar e antecipada) o pressuposto do perigo (a urgência), mas nem sempre isso acontece, como é o caso da tutela antecipada fundada no inciso II do art. 273 do CPC (tutela antecipada punitiva),12 que dispensa o pressuposto do “perigo”. No entanto, há quem entenda que sempre há o pressuposto da urgência, compreendida, aqui, em sentido amplo. Diz-se que a tutela é urgente quando se estiver diante de uma situação fática de risco ou embaraço à efetividade do direito, o que se dá: (i) quando há risco de dano ao direito; (ii) quando há risco de ineficácia da efetivação do direito; (iii) quando o réu, abusando do seu direito de defesa ou lançando mão de estratégias protelatórias, põe obstáculos ao andamento do processo, comprometendo o oferecimento da tutela jurisdicional.13 Além disso, confunde-se, por vezes, cautelaridade com urgência. As medidas de urgência visam evitar ou minimizar os efeitos do perigo. Mas não se confundem com tutela cautelar, esta última modalidade da primeira. Tutela de urgência é gênero do qual a cautelar é espécie. Com efeito, a tutela de urgência visa evitar ou minorar os efeitos de lesão a direito, tendo por pressuposto negativo a sua consumação. Como sempre se vinculou a tutela cautelar ao perigo, até inconscientemente os autores, quando houvesse risco, identificavam a medida judicial pertinente a coibi-lo como se cautelar fosse. O perigo não é pressuposto exclusivo das medidas cautelares, embora seja característica inerente a todas elas. O perigo pode ser pressuposto da tutela antecipada, por exemplo. Ambas identificam-se por ter uma mesma finalidade, que é abrandar os males do tempo e garantir a efetividade da jurisdição (os efeitos da tutela). Servem para redistribuir, em homenagem ao princípio da igualdade, o ônus do tempo do processo (se é inexorável que o processo demore, é preciso que

12. Daniel Amorim Assumpção Neves. Tutela Antecipada Sancionatória. Revista Dialética de Direito Processual. 2006, p. 18-19. 13. Teori Albino Zavascki. Antecipação de Tutela. 1999, cit., p. 27. 210

11 – Ainda sobre a distinção entre Tutela Antecipada e Tutela Cautelar

o peso do tempo seja repartido entre as partes, e não somente o demandante arque com ele), conforme célebre imagem de Luiz Guilherme Marinoni. Mas elas se distinguem por sua estabilidade – provisoriedade ou definitividade.14 A tutela antecipada é decisão provisória (sumária e precária) que antecipa os efeitos da tutela definitiva (satisfativa ou não) – permite o seu gozo imediato. E a tutela cautelar é decisão definitiva (exauriente, malgrado com eficácia temporária) que garante os futuros efeitos da tutela definitiva satisfativa. Nesse contexto, nota distintiva é a temporariedade ou não de seus efeitos. A tutela cautelar, malgrado definitiva, tem eficácia temporária. Já a tutela antecipada, embora provisória, pode ter seus efeitos perenizados se satisfativa e confirmada por tutela definitiva.15 Nítida é, ainda, a diferente função por elas exercida: (a) a tutela antecipada dá eficácia imediata à tutela definitiva (satisfativa ou não) – por isso, há antecipada-satisfativa e antecipada-cautelar; (b) a cautelar assegura a futura eficácia da tutela definitiva satisfativa. Assim, enquanto a tutela antecipada pode ser satisfativa (art. 273 do CPC, p. ex.) ou não satisfativa (cautelar, art. 804 do CPC, p. ex.) – ou seja, atributiva ou conservativa de bem da vida –, a tutela cautelar é sempre não-satisfativa, conservativa, assecuratória. Sob essa perspectiva, somente a tutela antecipada pode ser satisfativa e atributiva, quando antecipa provisoriamente a satisfação de uma pretensão cognitiva e/ou executiva, atribuindo bem da vida. Já a tutela cautelar é sempre não satisfativa e conservativa, pois se limita a assegurar a futura satisfação de uma pretensão cognitiva ou executiva, conservando bem da 14. Daniel Mitidiero acrescenta outra característica à tutela antecipada: a interinalidade. E esclarece que: “Interinalidade, aqui, não vai utilizada como um sinônimo de provisoriedade, modo como vai empregada normalmente pela doutrina em geral, embora essa seja uma das acepções possíveis do termo. Ao registrarmos que a antecipação de tutela satisfativa, em nosso direito positivo, é interinal, queremos referir que a mesma é tomada em determinada fase do procedimento, não tendo autonomia processual. Vale dizer: concedida ou não a antecipação de tutela, prosseguirá o processo até final julgamento”. (Daniel Francisco Mitidiero. Comentários ao Código de Processo Civil. 2006, p. 68). 15. “(...) a cautelar é medida habilitada a ter sempre duração limitada no tempo, não sendo sucedida por outra de mesmo conteúdo ou natureza (isto é, por outra medida de garantia), razão pela qual a situação fática por ela criada será necessariamente desfeita ao término de sua vigência; já a antecipatória pode ter seus efeitos perpetuados no tempo, pois destinada a ser sucedida por outra de conteúdo semelhante, a sentença final de procedência, cujo advento consolidará de modo definitivo a situação fática decorrente da antecipação”. (Teori Albino Zavascki. Antecipação da tutela, cit., p. 57.) Note que essa última lição só é correta nos casos de tutela antecipada satisfativa (não cautelar). 211

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vida16 -17, embora possa ser tutelada antecipadamente. Há tutela antecipada cautelar ou não cautelar. Muito mais comum, porém, é o confronto que se faz entre tutela antecipada satisfativa (atributiva) e tutela cautelar – ignorando-se a existência da tutela antecipada cautelar. Daí a menção ao célebre pensamento de Pontes de Miranda, de que a tutela antecipada (atributiva, ressalvamos) efetiva/ satisfaz para assegurar, já a tutela cautelar assegura para efetivar/satisfazer.18 Trata-se de lição excelente para distinguir a tutela antecipada satisfativa da tutela cautelar. Uma imagem talvez ajude:19 se duas pessoas brigam por um pedaço de carne, e uma delas pede ao magistrado que o ponha na geladeira, para que o vencedor possa usufruir do alimento ao final do processo, é requerer uma providência cautelar (assegura para efetivar no futuro); se o pedido for para a extração de um “bife”, para propiciar alimentação imediata, estar-se-á diante de uma tutela antecipada atributiva. Perceber a diferença “essencial” entre a técnica da tutela antecipada e a tutela cautelar, espécie de tutela jurisdicional, é muito importante. Não obstante, o legislador pode exigir para a concessão da tutela antecipada satisfativa, como normalmente o faz, pressupostos mais rigorosos do que os previstos para a concessão da tutela cautelar. Como adiante será visto, enquanto para a tutela cautelar exige-se simples verossimilhança do 16. Traçando essa distinção, Luiz Guilherme Marinoni, assevera que “a tutela cautelar tem por fim assegurar a viabilidade da realização de um direito, não podendo realizá-lo. A tutela que satisfaz um direito, ainda que fundada em juízo de aparência, é ‘satisfativa sumária’. A prestação jurisdicional satisfativa sumária, pois, nada tem a ver com a tutela cautelar. A tutela que satisfaz, por estar além do assegurar, realiza a missão que é completamente distinta da cautelar”. (A antecipação da tutela. 2004, p. 124). 17. José Roberto dos Santos Bedaque, malgrado espose opinião diversa, informa que “há quem identifique no gênero tutela de urgência duas espécies distintas: a cautelar e a antecipatória, ambas destinadas a evitar que o tempo comprometa o resultado da tutela jurisdicional. (...) Distinguem-se, todavia, pelo caráter satisfativo de uma, inexistente na outra. As medidas cautelares exerceriam em nosso sistema apenas a função de assegurar a utilidade do pronunciamento futuro, mas não antecipar seus efeitos materiais, ou seja, aqueles pretendidos pela parte no plano substancial. A diferença fundamental entre ambas residiria, pois, nesse aspecto provisoriamente satisfativo do próprio direito material cuja tutela é pleiteada de forma definitiva, ausente na cautelar e inerente na antecipação”. (José Roberto dos Santos Bedaque. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização). 2001, p. 27.) 18. “No fundo, todos confundiam a antecipação ou adiantamento da execução (que normalmente viria após a sentença de cognição completa), tal como ocorre nas ações executivas de títulos extrajudiciais, notadamente no art. 585, II [475-O, CPC], e a asseguração da prestação, essa mesma só peculiar a algumas ações cautelares, pois é ausente qualquer ‘execução’ nas ações de produção antecipada da prova e na maioria das ações de exibição” (Comentários ao Código de Processo Civil. 2003, t. 12, p. 3-4, texto entre colchetes acrescentado). Sobre o tema, ainda, Ovídio Baptista da Silva. Do Processo Cautelar. 2006, p. 42-67. 19. Faça-se o registro: essa imagem é criação de Pedro Caymmi, professor da Faculdade Rui Barbosa (BA), quando aluno de graduação de um dos autores deste volume, em setembro de 1998. 212

11 – Ainda sobre a distinção entre Tutela Antecipada e Tutela Cautelar

direito acautelado (fumus boni iuris), para a tutela antecipada (atributiva) reclama-se verossimilhança fundada em prova inequívoca do direito a ser satisfeito antecipadamente – pressupondo-se, pois, cognição mais profunda, pautada em prova segura. Essa distinção, porém, é fraca, pois varia conforme os humores do legislador (não se trata de um critério teórico para a distinção das figuras): dependerá sempre do exame do direito positivo. É possível, por exemplo, que se admita tutela antecipada satisfativa após o preenchimento de pressupostos bem singelos, como é o caso da tutela antecipada possessória (art. 928 do CPC), que dispensa a demonstração do perigo.20 Para sintetizar o confronto, um quadro comparativo da tutela antecipada e da tutela cautelar: TRAÇO DISTINTIVO

TUTELA ANTECIPADA

TUTELA CAUTELAR

Função

– Dá eficácia imediata à tutela definitiva (satisfativa ou não) – É atributiva (satisfativa) ou conservativa (cautelar)

– Assegura futura eficácia de tutela definitiva (satisfativa) – É uma tutela definitiva não satisfativa (com efeitos antecipáveis) – É sempre conservativa

Natureza

– Técnica processual

– Tipo de tutela jurisdicional

Pressupostos (verossimilhança)

– Normalmente mais rigorosos (quando for atributiva): prova inequívoca da verossimilhança do direito

– Normalmente mais singelos (por ser conservativa): simples verossimilhança do direito acautelado

Pressupostos (urgência)

– Pode pressupor urgência ou não

– Sempre pressupõe urgência

Estabilidade

– Provisória (a ser confirmada) – Precária

– Definitiva – Predisposta à imutabilidade

Cognição

– Sumária

– Exauriente – Sumária é a cognição do direito acautelado

Temporariedade (eficácia)

– Temporária (se conservativa ou se atributiva revogada) ou – Perpétua (se atributiva e confirmada)

– Temporária

20. Adroaldo Furtado Fabrício dá importante explicação da razão de ser da maior profundidade da cognição exigida em tutela antecipada (atributiva), digna de nota literal: “Em sede de cautelar, certamente se faz algum exame dessa pretensão, mas com fito único de apurar se ela é plausível (presença do fumus boni iuris) e se a demora inerente à atividade processual pode pôr em risco o seu resultado prático (periculum in mora). Não assim na hipótese de antecipação de tutela: aí, o sopeso da probabilidade do sucesso da postulação ‘principal’ (e única) se faz para outorgar desde logo ao postulante o bem da vida que, a não ser assim, só lhe poderia ser atribuído pela sentença final”. (Adroaldo Furtado Fabrício. Breves notas sobre provimentos antecipatórios, cautelares e liminares. In: Estudos de Direito Processual em Memória de Luiz Machado Guimarães. José Carlos Barbosa Moreira (coord.). 1999, p. 27-28.) 213

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Traçadas as diferenças e semelhanças entre os dois tipos de tutela (antecipada e cautelar), é possível inseri-las, da seguinte forma, em uma sistematização das tutelas jurisdicionais:    

    

      



      



    

  

    

        

   

4. Considerações finais A expressão tutela jurisdicional é polissêmica. Os doutrinadores atribuem-lhe três diferentes sentidos: (i) por vezes falam em tutela jurisdicional para referir-se ao procedimento jurisdicional de investigação do direito cuja proteção se busca em juízo (tutela como sinônimo de procedimento); (ii) às vezes utilizam a expressão para designar a decisão jurisdicional que aprecia este direito substancial deduzido (tutela como sinônimo de decisão); (iii) outros, por sua vez, a ela se referem como o resultado jurídico-substancial almejado, a atuação do direito material com a entrega do bem da vida em si (tutela como sinônimo de resultado ou tutela jurisdicional em sentido estrito).21 A tutela enquanto resultado pode ser, como se viu, satisfativa (certificação/efetivação de um direito) ou assecuratória (preservação de um direito). O estudo da tutela jurisdicional sob a ótica do resultado a ser buscado é importante porque as técnicas processuais devem ser utilizadas no sentido de mais bem tutelar as situações jurídicas discutidas. De nada adianta o legislador lançar mão de procedimentos, decisões e meios executivos adequados, ou conferir ao magistrado liberdade para a adaptação do procedimento 21. “(...) a tutela jurisdicional pressupõe a afirmação de uma situação material, pressupõe também seja a mesma objeto de investigação judicial, culminando com o reconhecimento da alegada situação jurídica material pelo pronunciamento judicial que decide a causa, proporcionando, assim, que o processo alcance seu intuito, que é a atuação do direito material”. (Rafael Da Cãs Maffini. Tutela Jurisdicional: um ponto de convergência entre o Direito e o processo. Revista de Direito Processual Civil. 1999, p. 725). 214

11 – Ainda sobre a distinção entre Tutela Antecipada e Tutela Cautelar

ou para utilização desses meios executivos, se o seu manejo não tiver por objetivo conferir maior proteção ao direito material vindicado no processo. Fundamental, pois, entender que tipo de tutela jurisdicional (resultado) se está buscando para que se saiba qual a técnica processual que permitirá a sua consecução. É, basicamente, sob esta última perspectiva (como resultado) que se estuda a tutela jurisdicional neste trabalho. A verdade é que a tutela cautelar é, ao lado das tutelas de execução e certificação, uma das três modalidades de tutela jurisdicional definitiva. E a tutela antecipada é uma técnica que permite a antecipação provisória dos efeitos de uma tutela definitiva (qualquer uma das três, inclusive cautelar). Talvez esse seja o primeiro motivo de tanta confusão. A técnica processual de antecipação dos efeitos da tutela é mais antiga do que se pensa. Há muito existe previsão de uma “tutela antecipada cautelar” (art. 804 do CPC). A partir de 1994, generalizou-se a possibilidade de “tutela antecipada satisfativa” (de certificação e efetivação), por força do art. 273 e do § 3º do art. 461 do CPC. Com isso, muitos se concentraram na inovadora previsão da tutela antecipada satisfativa e esqueceram da antiga tutela antecipada cautelar (conservativa). Daí ser comum o equívoco de se dizer que a tutela antecipada é sempre satisfativa e só a cautelar é assecuratória. Outro problema é que a tutela definitiva “cautelar” tem pressuposto que, por vezes (mas nem sempre), é utilizado como pressuposto para a tutela antecipada: perigo da demora. Ambas visam abrandar os males do tempo, para que não inviabilize a realização do direito material. Por isso, muitos as colocam sob o mesmo rótulo de “tutelas de urgência”, sem diferençá-las. Mas a existência de distinção entre tutela cautelar e tutela antecipada é reconhecida pela doutrina majoritária – com variações entre os critérios distintivos.22-23-24 22. José Roberto dos Santos Bedaque, embora reconheça destoar da maioria, adota pensamento diverso. Entende que cautelar seria gênero, do qual a tutela antecipada seria espécie: “(...) a antecipação dos efeitos da tutela final não se revela incompatível com a natureza cautelar da medida judicial. A aceitação dessa premissa está diretamente vinculada à maneira pela qual se determina o tipo de relacionamento entre antecipação e tutela final. Inserir o provimento antecipatório na categoria da tutela cautelar implica a necessidade de adequar tal finalidade e o conteúdo satisfativo à estrutura dessa modalidade de tutela jurisdicional. É imperioso que o escopo antecipatório da tutela cautelar não contrarie sua configuração estrutural e legal (...). Antes de mais nada, convém fixar o significado da expressão antecipatório. Se a considerarmos em sentido bem amplo, toda tutela cautelar, mesmo as conservativas, tem certo conteúdo antecipatório. O arresto, por exemplo, antecipa possível penhora a ser determinada na execução”. Mais adiante, esclarece o autor que a tutela antecipada teria natureza cautelar, porquanto: “Não obstante satisfativas, não perdem o nexo de instrumentalidade com a tutela final, esta, sim, destinada a solucionar definitivamente a questão 215

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Viu-se, enfim, que a tutela antecipada pode ser cautelar ou satisfativa. E que se trata, em verdade, de técnica de antecipação provisória dos efeitos finais de uma tutela definitiva, seja ela satisfativa (certificação/efetivação), seja ela cautelar.

Referências ASSIS, Carlos Augusto de. A antecipação da tutela. São Paulo: Malheiros, 2001. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização). 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. BUENO, Cassio Scarpinella. Tutela Antecipada. São Paulo: Saraiva, 2004. CARNEIRO, Athos Gusmão. Da antecipação de tutela. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2008. v. 2. FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. “Breves notas sobre provimentos antecipatórios, cautelares e liminares”. Estudos de Direito Processual em Memória de Luiz Machado Guimarães. José Carlos Barbosa Moreira (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 1999. GUERRA, Marcelo Lima. Estudos sobre o Processo Cautelar. São Paulo: Malheiros, 1997. LACERDA, Galeno. Comentários ao Código de Processo Civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, v. 8, t. 1.

de direito material. Por isso, são cautelares” (José Roberto dos Santos Bedaque. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização), p. 127 e 134). 23. Ainda defendendo a natureza cautelar da tutela antecipada, quando concedida com base em situação de perigo, tem-se Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Alcance e Natureza da Tutela Antecipatória. Revista de Processo. 1996, p. 15; Antonio Cláudio da Costa Machado. Observações sobre a natureza cautelar da tutela antecipatória do art. 273, I, do CPC. Reforma do Código de Processo Civil. Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord.). 1996, p. 216-219). Marcelo Lima Guerra registra que, a seu ver, na hipótese do art. 273, I, CPC, a antecipação de tutela é prestação de tutela cautelar, pois “tem função idêntica a de todas as medidas cautelares, a saber, a garantia do resultado útil (efetividade) da decisão final”. (Estudos sobre o Processo Cautelar. 1997, p. 98). 24. Há fundamento para essa identificação entre as tutelas antecipada e cautelar. É que no direito estrangeiro não se distinguem, ambas são inseridas na rubrica comum da tutela cautelar, não raro seguindo o mesmo regime processual. Lá, o que mais importa, é conter o perigo da demora (Humberto Theodoro Jr., As liminares e tutela de urgência. Inovações sobre o Direito Processual Civil: Tutelas de Urgência. José Manoel Arruda Alvim Netto e Eduardo Arruda Alvim (coord.). 2003, p. 267). Athos Gusmão Carneiro faz um interessante painel de direito comparado. Da antecipação de tutela, cit., p. 13-15. A aproximação seria razoável partindo-se da premissa de que ambas são fundadas em urgência. Mas isso pode não acontecer com a tutela antecipada satisfativa, como visto, fato que, por isso, impede que se adote essa premissa neste trabalho. 216

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LOPES, João Batista. Tutela Antecipada no Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2001. MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. NEVES, Daniel Amorim Assumpção Neves. “Tutela Antecipada Sancionatória”. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: Dialética, 2006. MACHADO, Antonio Cláudio Costa. Observações sobre a natureza cautelar da tutela antecipatória do art. 273, I, do CPC. Reforma do Código de Processo Civil. Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord.). São Paulo: Saraiva, 1996. MAFFINI, Rafael Da Cãs. “Tutela Jurisdicional: um ponto de convergência entre o Direito e o processo”. Revista de Direito Processual Civil. Curitiba, Gênesis, 1999, ano 4, n. 14. MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2006. Tomo III. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. “Alcance e Natureza da Tutela Antecipatória”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 1996. PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 1984, v. 10. SILVA, Ovídio Baptista de. Processo cautelar. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2000. v. II. ______ . “As liminares e tutela de urgência”. Inovações sobre o Direito Processual Civil: Tutelas de Urgência. José Manoel Arruda Alvim Netto e Eduardo Arruda Alvim (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2003. VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais – uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2006. ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de Tutela. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

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O futuro dos procedimentos no Novo Código de Processo Civil J. E . C ar reir a A l v im*

Introdução. 1. Ineficiência do aparelhamento judicial. 2. Futuro Código de Processo Civil. 3. Processo e procedimento. 4. Considerações finais. Referências.

Introdução

Q

uando eu fazia o curso de Direito, no longínquo ano de 1964, quando as instituições nacionais eram postas sob a tutela das armas, já ouvia da boca dos operadores do direito que a justiça brasileira estava longe de ser a justiça dos nossos sonhos e das nossas necessidades. Nessa época, vigia o Código de Processo Civil de 1939, com o qual cheguei a conviver já no pleno exercício da advocacia, até 01/01/1974, quando entrou em vigor a Lei 5.869, de 11/01/1973, instituindo o então novo Código de Processo Civil. Esta transmutação de um Código para outro passou para a operosa classe dos operadores do direito a impressão de que estávamos diante de uma “nova Justiça”, mais comprometida com os modernos princípios da celeridade e da efetividade processuais. Já calejados com a aplicação do Código de 1973, a impressão que ficou dele foi de que a justiça conseguira, sob as novas normas, tornar-se tão ou mais lenta ainda do que fora no passado, pois o jurisdicionado tinha sempre a certeza do dia em que “entrava na justiça”, mas nunca a noção “de quando sairia dela”. * Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. 219

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Passadas mais de duas décadas da vigência do Código de 1973, começou este, a partir de 1994, a ser “remendado” aqui e ali, buscando alcançar o que até então já se mostrava ser uma “miragem”, pois a Justiça continuava tão lenta quanto antes, e os anseios dos jurisdicionados tão inalcançáveis quanto no passado. Aliás, nessa empreitada, de reformar o Código de 1973, mediante inúmeras minirreformas, conseguimos fazer o impossível, que foi transformar o Código de Processo Civil numa autêntica “Consolidação de Leis Processuais Civis”, para não dizer uma verdadeira “colcha de retalhos”; e, contraditoriamente, não conseguíramos, até então, transformar a nossa vetusta Consolidação das Leis do Trabalho (de 1943) num “Código de Direito e Processo do Trabalho”. E o pior é que, no frigir dos ovos, “continua tudo como dantes no quartel do Abrantes”,1 com uma justiça tão ineficiente quanto inviável, inclusive com os juizados especiais tão entulhados, nas médias e grandes comarcas, que estão a exigir a criação de juizados especialíssimos, porque, atualmente, a única diferença entre os juizados e a justiça comum é que aqueles são gratuitos, na inferior instância, enquanto esta já se mostra inacessível no nascedouro. Costumo dizer que o maior obstáculo ao “acesso à justiça” é ela própria, porque uma grande maioria de jurisdicionados não tem condições de arcar com o adiantamento das custas processuais exigidas para o ingresso em juízo, e a assistência judiciária é outra miragem, tão distante de quem precisa dela, que não cumpre a sua função institucional, deixando o necessitado na mão. Apesar de todo esse passado de ilusões, miragens e decepções, estamos no limiar de mais uma, que será provocada pelo futuro Código de Processo Civil, que, originário do Senado Federal, na versão do Projeto de Lei nº 166/2010, tramita na Câmara dos Deputados, na versão dada pelo Projeto de Lei nº 8.046/2010, que tenta passar a sensação de que, a partir dele, a justiça brasileira será mais rápida e operosa. 1. Para quem não sabe, essa frase surgiu no início do século XIX, com a invasão de Napoleão Bonaparte à Península Ibérica. Portugal fora tomado pelas forças francesas, porque havia demorado a obedecer ao Bloqueio Continental, imposto por Napoleão, que obrigava o fechamento dos portos a qualquer navio inglês. Em 1807, uma das primeiras cidades a ser invadida pelo general Jean Androche Junot, braço direito de Napoleão, foi Abrantes, a 152 quilômetros de Lisboa, na margem do rio Tejo. Lá instalou seu quartel-general e, meses depois, se fez nomear duque d’Abrantes. O general encontrou o país praticamente sem governo, já que o príncipe regente dom João VI e toda a Corte portuguesa haviam fugido para o Brasil. Durante a invasão, ninguém em Portugal ousou se opor ao duque. A tranquilidade com que ele se mantinha no poder provocou o dito irônico. A quem perguntasse como iam as coisas, a resposta era sempre a mesma: “Está tudo como dantes no quartel de Abrantes”. Até hoje se usa a frase para indicar que nada mudou. 220

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Este é, com certeza, o grande equívoco das reformas processuais em andamento, porque não são os Códigos os responsáveis pela lerdeza e inoperância da Justiça, mas a própria estrutura do aparelho judiciário nacional, que, de tão arcaico, já não consegue suportar o peso das demandas. Se, para tornar a justiça mais célere e mais efetiva, bastassem boas leis, teríamos a melhor justiça do mundo, porque os nossos Códigos, tanto de direito material quanto processual, são uma compilação do que de melhor se supõe existir no mundo globalizado.

1. Ineficiência do aparelhamento judicial Na minha época de estudante de Direito, não cheguei a fazer um curso de “Direito Processual Civil”, porque a grade curricular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais continha uma disciplina inteiramente desconhecida nas atuais Faculdades de Direito, tanto públicas quanto privadas, denominada “Direito Judiciário Civil”. Embora do ponto de vista didático, o conteúdo do Direito Judiciário Civil fosse coincidente em grande parte com o do Direito Processual Civil, apresentavam diferenças essenciais, porque, enquanto este era centrado basicamente nas instituições processuais, aquele trazia uma visão do organismo judiciário brasileiro, fazendo jus à sua denominação de Direito “Judiciário” Civil. Desde, no entanto, que a doutrina voltou sua atenção para o aspecto processual do fenômeno judiciário, a identificação dos problemas do aparelho encarregado da distribuição da Justiça passou para o segundo plano, e são pouquíssimos, para não dizer inexistentes, os estudos tendentes a detectar os pontos de estrangulamento da máquina judiciária, que só não consegue ser mais lenta do que ela própria. As universidades, que congregam a elite intelectual do país, são tão indiferentes quanto a doutrina, na busca de soluções efetivas para os problemas da justiça brasileira, talvez, acreditando na ilusão de que a promulgação de um novo Código de Processo Civil fará dela uma instituição mais confiável do que tem sido. Aliás, as universidades têm se mostrado incapazes de valorizar até mesmos os próprios diplomas que expedem, o que abriu espaço a que a Ordem dos Advogados do Brasil, na esfera jurídica, ocupasse o lugar do Ministério da Educação, na fiscalização das faculdades de direito, para, mediante um “Exame de Ordem”, dizer quem tem e quem não tem condições de ser “advogado”, quem pode e quem não pode ingressar no mercado de trabalho. 221

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Essa dificuldade em enfrentar o problema em termos estruturais, reformando a própria máquina judiciária, em vez de modificar apenas o seu combustível, que são as normas processuais, tem-nos levado a importar mecanismos de agilização dos processos que pouco ou nada têm a ver com o nosso sistema processual (Civil Law), como os institutos da “súmula vinculante” (no STF), do “incidente de demandas repetitivas” e do “julgamento de recursos repetitivos”, já consagrados pelas minirreformas processuais ao Código de 1973, e mantidos pelo projeto do futuro Código de Processo Civil. Não tendo os reformadores do futuro Código conseguido fórmula capaz de agilizar a justiça nos tribunais, facilmente encontrável na modernização da máquina judiciária, em todos os níveis (estadual, federal e nacional), com o aumento do número de seus integrantes (juízes, desembargadores e ministros), a solução encontrada foi a de reprisar os meios de obstaculizar os recursos ou criar mecanismos impeditivos de sua subida aos órgãos superiores, com apoio no princípio da segurança jurídica. Aliás, o grande mal que padecemos na esfera jurídica, é que o juiz (lato sensu) trata a justiça brasileira como se fosse “propriedade sua”, sendo comuníssimo na conversa entre juízes ouvir a referência à “minha vara”, “meu tribunal”, “meus processos”, tendo eu conhecido um juiz que, ao se referir aos processos penais em curso na vara de que era o titular, falava em “meus réus”, para aludir aos que eram por ele julgados rapidamente. Nem as soluções buscadas pelos tribunais, com o apoio do Legislativo, para tornar a justiça mais rápida (súmula vinculante, incidente de demandas repetitivas, julgamento de recursos repetitivos), serão suficientes para fazer dela uma instituição acreditável, e torná-la realmente operante, como esperamos que ela seja, porque, se considerarmos apenas os Tribunais de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (com 180 desembargadores), do Estado de Minas Gerais (com 140 desembargadores) e do Estado de São Paulo (com 360 desembargadores), num total de 680 desembargadores, é humanamente impossível que apenas 11 ministros do STF e 33 ministros do STJ, mesmo com a ajuda de inúmeros assessores, sejam capazes de reexaminar, em grau de recurso (extraordinário e especial), as decisões (acórdãos e decisões monocráticas) apenas daquelas cortes estaduais de Justiça. Considero um despropósito que, sendo o Brasil uma federação de Estados, tenha a União quatro justiças – Justiça Federal, Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral e Justiça Militar –, quando poderia ter uma única justiça (Justiça 222

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da União), com varas, turmas e seções especializadas para o julgamento das matérias que fazem delas verdadeiras justiças especiais. Se a Justiça da União fosse unificada, com especialização por varas (na inferior instância) ou por turmas e seções (nas instâncias superiores), a economia com despesas e mordomias seria de tal ordem que seria possível aparelhar suficientemente toda ela para o desempenho da sua missão constitucional. Enquanto tivermos a justiça estruturada nos moldes atuais, a reforma do Código de Processo Civil será apenas um paliativo, acenando com mais uma miragem, de que alguma coisa mudará no cenário jurídico deste país, quando, na verdade, o que teremos será uma Justiça tão ineficiente como temos tido até hoje. Há também um pano de fundo em toda essa problemática, que é o fato de a administração pública, direta e indireta, em todas as esferas de poder (federal, estadual e municipal), utilizar-se da justiça para “empurrar o direito dos seus jurisdicionados com a barriga”, fazendo dela um “amortecedor” para o descumprimento de suas obrigações, sendo tamanho o volume dessa dívida, que, se resolver ela cumprir espontaneamente as suas obrigações, extrajudicialmente, ela simplesmente “quebra”. A administração pública brasileira é a responsável pelo maior número de demandas que emperram a justiça, especialmente nos tribunais, premiada com a remessa de ofício, uma modalidade de recurso obrigatório manejado pelo juiz, mesmo quando não manifeste interesse expresso em recorrer. Como também a administração pública tem a consciência de que, na justiça brasileira, “todos sabem o dia em que entram, mas, nunca, o dia em que saem”, empurra todos aqueles que pretendam algum direito contra ela, por esse único caminho, em que são necessárias pelo menos três gerações de demandantes: uma para ajuizar a ação, outra para executar a sentença e outra para receber o que é devido. Quando tivermos no país uma justiça realmente rápida e eficaz, a primeira vítima dela será, sem dúvida, o poder público, razão por que não tem este o menor interesse em que ela seja o que, demagogicamente, apregoa, embora procure passar essa impressão, pois tem ciência de que, com a simples reforma do Código de Processo Civil, não sairemos do lugar em termos de eficiência e operosidade.

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2. Futuro Código de Processo Civil 2 O Código de Processo Civil que resultará o Projeto de Lei nº 8.046/2010, ora em tramitação na Câmara dos Deputados, será o terceiro em pouco mais de cinquenta anos (os outros são de 1939 e 1973), mas nada se fez para se alterar a estrutura do aparelhamento judiciário, encarregado de aplicá-lo; exceção feita apenas aos juizados especiais, estaduais e federais, criados em 1995 e 2001, respectivamente, mas que já se mostram inviáveis, a ponto de se estar a exigir os juizados especialíssimos para ajudar a “dar conta do seu recado”. No Rio de Janeiro, por exemplo, há juizados estaduais marcando audiências de conciliação para meses depois do ajuizamento da ação, e as de instrução e julgamento para outros meses adiante, contrariando o próprio espírito dessa modalidade de justiça, que deveria ser célere, em função da qualificação dos seus jurisdicionados. O estatuto processual em gestação na Câmara dos Deputados se apoia no falso pressuposto de que, a partir dele, a justiça brasileira será menos lenta do que é, e que a jurisdição será prestada com mais eficiência do que tem sido até agora. O equívoco desse raciocínio está em acreditar que o mal da justiça está no Código de Processo Civil, e que os procedimentos são os responsáveis pela morosidade que afeta a prestação jurisdicional, necessitada de uma injeção de ânimo para cumprir a sua missão constitucional, de resolver os conflitos, pacificando a sociedade. Melhor sistema resulta da Constituição (art. 24, XI), 3 que outorga aos Estados e ao Distrito Federal o poder para legislar, em concorrência com a União, sobre “procedimentos em matéria processual”, o que permitiria encontrar fórmulas capazes de corrigir as diversidades sociais, culturais e políticas do Estado brasileiro. Assim, considero um despropósito um Código exigir, para fins de penhora de bens, com arrombamento de portas, a presença de dois oficiais de justiça (art. 802, § 1º do futuro Código)4 quando, 2. Vide a propósito o meu Manual do Novo Código de Processo Civil, em cinco volumes, editado pela Juruá, onde focalizo o futuro Código nas duas versões apresentadas pelo projeto originário do Senado (PL 166/10) e pelo em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 8.046/10). 3. Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XI – procedimentos em matéria processual; (...) 4. Art. 802. Se o devedor fechar as portas da casa a fim de obstar a penhora dos bens, o oficial de justiça comunicará o fato ao juiz, solicitando-lhe ordem de arrombamento. § 1º Deferido o pedido, dois oficiais de justiça cumprirão o mandado, arrombando cômodos e móveis em que se presuma estarem os bens, e lavrarão de tudo auto circunstanciado, que será assinado por duas testemunhas presentes à diligência. (...) 224

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na grande maioria das comarcas brasileiras cada vara conta, quando muito, com apenas um desses serventuários. Mesmo quando a iniciativa de reformar o Código de Processo Civil parte do Congresso Nacional, com um Projeto de Lei nº 166/2010, originário do Senado, transmutado no Projeto de Lei nº 8.046/2010, na Câmara dos Deputados, perceberam os representantes do povo (deputados) e dos Estados (senadores), que a geografia social, cultural e política do País, está a exigir que os procedimentos sejam ajustados à realidade nacional; realidade esta que os juristas que se incumbiram dessa missão não conseguiram alcançar. No passado, anteriormente á unificação levada a efeito pelo Código de Processo Civil de 1939, tivemos Códigos distintos para cada Estado federado, mas que, em vez de atender às realidades regionais, preferiam inspirar-se nos modelos europeus, para se mostrarem evoluídos e sintonizados com as grandes conquistas do então moderno direito processual. O atual Código de Processo Civil nada muda em termos de celeridade processual, pois não mexe – e nem poderia mexer – na estrutura da máquina judiciária, onde se instalaram as ferrugens que emperram o funcionamento da justiça, a bem de uma prestação jurisdicional no mínimo “razoável”, num tempo igualmente razoável. A estrutura do futuro Código, que já nasce velha para a realidade nacional, introduz, no Livro I, uma “Parte geral”, que teria sido desnecessária, na medida em que trata apenas do processo civil, e não de outros processos (trabalhista, tributário, arbitral), como acontece com ordenamentos jurídicos estrangeiros, onde, com habitualidade e por tradição, buscamos inspiração, a exigir normas gerais antes de disciplinar os respectivos processos em particular. No livro II, o futuro Código disciplina o Processo de Conhecimento; no Livro III, o Processo de Execução; no Livro IV, os Processos nos Tribunais e os Meios de Impugnação das Decisões Judiciais (que não poderiam ser outras), e no Livro V, as Disposições Finais e Transitórias. Com razão, o Código projetado sincretiza o processo cautelar no próprio processo de conhecimento, ideia que já venho divulgando no campo doutrinário há muitos anos, para evitar a repetição inútil de processos, na medida em que as tutelas cautelares, muitas vezes, não passam de simples “intimações”, que podem ser tomadas nos autos do processo principal, de forma incidente, sem gerar complicações. Outra orientação do futuro Código é a supressão do procedimento sumário, que nunca cumpriu entre nós o seu objetivo, de proporcionar, de forma concentrada, a resolução dos conflitos num menor prazo do que o obtido pelo 225

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rito ordinário; mesmo porque, em razão do “engastalhamento” da máquina judiciária, o procedimento “sumário” conseguia ser tão ou mais “ordinário” do que o próprio procedimento ordinário. Em resumo: os procedimentos consagrados pelo novo Código de Processo Civil ficam restringidos ao “procedimento comum” e alguns “procedimentos especiais” (contenciosos), no processo de conhecimento, aos “procedimentos de execução” e aos “recursos e meios de impugnação”, aplicando-se, subsidiariamente, a todos os procedimentos, no que não houver incompatibilidade, as regras do procedimento comum; além de disciplinar alguns “procedimentos especiais” (não contenciosos), que apesar de não exigirem verdadeiro processo, vêm contemplados no processo de conhecimento.

3. Processo e procedimento O futuro Código de Processo Civil (PL nº 8.046/2010) mais não faz do que sincretizar o “processo cautelar” do Código de 1973 no Processo de Conhecimento, aproveitando-se das minirreformas processuais levadas a efeito a partir de 1994, onde já se permite ao autor pedir, e ao juiz deferir, a título de antecipação de tutela, providência de natureza cautelar, quando presentes os respectivos pressupostos, em caráter incidental do processo ajuizado (art. 273, § 7º).5 A linguagem do retrocitado preceito não é das melhores, mesmo porque o que se ajuíza não é o processo, mas a ação, e que, uma vez ajuizada, enseja a formação da relação processual chamada “processo”, o qual se desenvolve mediante um iter procedimental, a que se chama “procedimento”. O processo nada mais é do que a relação processual que se forma entre os sujeitos principais (autor, juiz e réu), sendo que o primeiro vértice dessa relação triangular (ou angular, para outros) é formado pelo regular exercício do direito de ação (autor e juiz) sendo o segundo vértice constituído pelo direito de resposta (juiz e réu), sendo a sua base piramidal a relação recíproca entre as partes litigantes (autor e réu). O procedimento, por seu turno, mais não é do que a forma por que se movimenta o processo, ou seja, a sequência em que são praticados os atos processuais, para que seja alcançado o seu escopo, que é a “justa composição da lide”, entendida como a “resolução da lide de acordo com a lei”. 5. Art. 273 (...) § 7o Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado. 226

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Portanto, todo processo segue determinado procedimento, mas a recíproca não é verdadeira, porque nem todo procedimento pressupõe necessariamente um processo, como acontece, por exemplo, na jurisdição não contenciosa, na linguagem do futuro Código, em que inexiste relação jurídica processual. Em doutrina, para se visualizar essa distinção, costumo comparar o processo com uma “viagem” e o procedimento com o “itinerário” perseguido para se realizar a viagem; o que, noutros termos, coincide com a observação feita por João Mendes Júnior,6 dizendo que o processo é “uma direção no movimento”, enquanto o procedimento é “o modo de mover e a forma como é movido o ato”. Assim, na fisionomia do futuro Código ter-se-á um processo de conhecimento (arts. 302 a 696), um processo de execução (arts. 697 a 846) e um processo recursal ou impugnativo (arts. 847 a 960), com seus respectivos procedimentos, em função da natureza da controvérsia (rectius, lide) a ser composta pela providência jurisdicional; além das “Disposições gerais” (arts. 1º a 301) e das “Disposições finais e transitórias” (arts. 961 a 970).

4. Considerações finais Na linguagem da Exposição de Motivos do futuro Código: Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correta realização, no mundo empírico, por meio do processo.

Espera-se que essa ilusão, relativamente ao direito material, que herdamos do sistema processual de 1939, e que conseguiu sobreviver no sistema de 1973, não se perpetue no sistema projetado, porque, sem uma reforma profunda na estrutura da organização judiciária brasileira, com a criação de mais varas, na inferior instância, e de turmas ou seções em todos os 6. João Mendes Júnior. Direito Judiciário Brasileiro. 1960, p. 243. 227

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tribunais, estaduais, federais e superiores, continuaremos “iludidos”, quanto aos nossos direitos, sabendo “o dia em que entramos na Justiça, mas nunca o dia em que sairemos dela”. Como afirma a própria Exposição de Motivos que acompanha o Código projetado, se, por um lado, “Não há fórmulas mágicas”, por outro, os remédios introduzidos pelas recentes reformas processuais, mantidas pelo que será o futuro estatuto processual, como a “súmula vinculante”, o “incidente de demandas repetitivas” e o “julgamento de recursos repetitivos”, em breve serão ineficazes para combater o mal de que padece a Justiça brasileira, consistente numa paralisia quase crônica dos seus órgãos, já próxima de uma paralisia do organismo judiciário como um todo.

Referências ALVIM, José Eduardo Carreira. Manual do Novo Código de Processo Civil. Curitiba: Juruá, 2012, 5 v. MENDES JÚNIOR, João. Direito Judiciário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1960.

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Da extinção do procedimento sumário e da obrigatoriedade do procedimento dos Juizados Especiais Cíveis Marcia Cr is tina X avier de S ouz a*

Introdução. 1. Do Procedimento Sumário. 2. Da opção do autor para escolher entre o procedimento sumário e rito dos Juizados Especiais Cíveis. 3. Da obrigatoriedade dos Juizados Especiais Cíveis e da extinção do procedimento sumário. 4. Algumas alterações necessárias no rito dos Juizados Especiais Cíveis para assimilação efetiva das causas que seguem o procedimento sumário. 4.1. Do valor da causa. 4.2. Da capacidade de ser parte e da capacidade de estar em juízo. 4.3. Da intervenção de terceiros. 4.4. Das provas. 5. Das causas que seguem o procedimento sumário mas que não são adequadas ao procedimento dos Juizados Especiais Cíveis. 6. Considerações finais. Referências

Introdução procedimento sumário, atualmente o procedimento mais célere e concentrado do processo de conhecimento, não está previsto no PLS 166/2010 (Projeto do Novo Código de Processo Civil), que somente contempla o procedimento comum (atual ordinário) e os procedimentos especiais. Uma das propostas do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil é a da obrigatoriedade dos Juizados Especiais Cíveis, o que leva a crer que as causas que atualmente são propostas perante a justiça comum, seguindo o procedimento sumário, passarão a seguir o procedimento da justiça especial. Contudo, apesar de não ser nova a pretensão de tornar obrigatório o rito dos Juizados Especiais (objeto de diversos projetos de alteração da Lei nº 9.099/1995), esta pura e simples alteração da lei pode significar

O

* Professora de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e do Mestrado em Direito da UCP. Mestre e Doutora em Direito pela Universidade Gama Filho. 229

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um descumprimento do princípio do acesso à justiça, na medida em que as diferenças entre os dois processos não desaparecerão com as alterações legislativas até agora propostas. Este trabalho visa a fazer uma breve análise das causas que, à escolha do autor, podem ser resolvidas observando-se o procedimento sumário ou o procedimento sumaríssimo dos Juizados Especiais Cíveis, e quais seriam os óbices para o processo, caso haja extinção do procedimento sumário e obrigatoriedade do procedimento dos Juizados Especiais.

1. Do Procedimento Sumário Desde a época do Direito Romano existiam procedimentos diferenciados do procedimento ordinário, mais breves, apesar de plena e exauriente cognição. Como nos dá notícia Calmon de Passos, o procedimento sumário existiu no direito canônico, nas Ordenações, esteve presente no Regulamento nº 737, de 1850, e em alguns Códigos de Processo Civil estaduais, como o da Bahia, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul, do Ceará, de São Paulo e de Sergipe.1 O Código de Processo Civil de 1939, contudo, não previu a existência de um procedimento sumário, que somente foi restabelecido pela atual lei processual civil (arts. 275 a 281, da Lei nº 5.869/1973). A doutrina afirma que a razão da criação do procedimento sumaríssimo se deveu à obediência aos ditames da Emenda Constitucional nº 01/1969, que o previa. Tal entendimento, contudo, é negado por Leonardo Greco, para quem “A criação desse procedimento tinha nítido intuito político de causar impacto favorável na opinião pública em relação à elaboração de uma nova codificação processual, através da adoção de um procedimento rápido que facilitaria o acesso à justiça de muitos cidadãos”.2 O procedimento, originariamente denominado sumaríssimo, foi renomeado como sumário por força da Lei nº 9.245/1995, uma das que procedeu às grandes reformas do código de processo e que se iniciaram em 1994. A referida lei, além de alterar a denominação do procedimento (de sumaríssimo para sumário), também introduziu alterações no rito, como a diminuição de

1. J. J. Calmon de Passos. Comentários ao Código de Processo Civil. 1991, v. III, p. 17-18. 2. Leonardo Greco. Instituições de Processo Civil. 2010, v. II, p. 431. 230

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causas que deveriam obedecê-lo; modificou a forma de elaboração da petição inicial; introduziu uma audiência preliminar de conciliação, entre outras. A criação dos Juizados Especiais Cíveis, pela Lei nº 9.099/1995, com competência para as mesmas causas que poderiam seguir o procedimento sumário, foi tida como uma possibilidade de esvaziamento deste, por ser um procedimento gratuito, célere, com eventual dispensa de patrocínio por advogados, além de ser opcional para o autor. 3

2. Da opção do autor para escolher entre o procedimento sumário e rito dos Juizados Especiais Cíveis Com a promulgação da Lei nº 9.099/1995 (que instituiu os Juizados Especiais Cíveis), grande foi a discussão sobre a faculdade de o autor poder escolher entre ajuizar as causas perante a justiça especializada ou perante a justiça comum, utilizando-se o procedimento sumário. Esta discussão foi fruto de dois fatores: (1) a Lei nº 7.244/1984 (que instituiu os Juizados de Pequenas Causas, antecedentes dos Juizados Especiais Cíveis e que foi posteriormente revogada pela Lei nº 9.099/1995), era expressa em considerar o procedimento previsto para os Juizados de Pequenas Causas como de escolha do autor (art. 1º), enquanto tal dispositivo não foi reproduzido na lei revogadora; (2) a norma que determina o procedimento é cogente, não tendo qualquer das partes poder ou faculdade sobre ele. Contudo, apesar de acirradas discussões sobre o tema,4 prevaleceu a tese da faculdade em favor do autor, a fim de que se pudesse ampliar o acesso à justiça àqueles que dela sempre foram alijados e levando em consideração a diminuição de diversas garantias fundamentais do processo no rito especial dos Juizados Especiais (por exemplo, dispensa eventual de advogados, 3. Cassio Scarpinella Bueno chega a afirmar que tal esvaziamento “só pode ser entendido como legítima decorrência da opção política que, desde a Constituição Federal, fez o legislador mais recente.” Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. 2007, v. 2, t. I, p. 415. 4. Entendo ser faculdade do autor a escolha dos procedimentos: Cândido Rangel Dinamarco. Instituições de Direito Processual Civil. 2003, v. III, p. 775. Joel Dias Figueira Júnior; Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Comentários à lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, 1996, p. 79. Araken de Assis. Procedimento Sumário. 1996, p. 36/37. Em sentido contrário, ver, por todos, Horácio Wanderlei Rodrigues (Lei nº 9.099/95: a obrigatoriedade da competência e do rito. In: Revista da Ajuris, 1996, p. 186). Luis Felipe Salomão (Inconstitucionalidade da opção do autor para ingressar nos Juizados Especiais. In: Revista dos Tribunais, 1997, p. 73). E, como há previsão constitucional para a criação dos Juizados, sua competência é absoluta, não importando se em relação à matéria ou ao valor, pois esta é determinada pela menor complexidade das causas, conforme o art. 98, inc. I, da Constituição Federal (Antônio César Bochenek. Competência cível da justiça federal e dos juizados especiais cíveis. 2004, p. 207). 231

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proibição de qualquer intervenção de terceiros, não permissão para produção de prova técnica, drástica redução das modalidades de impugnação das decisões judiciais etc.). Entretanto, como bem observado por alguns dos doutrinadores que negavam a facultatividade do rito, a opção é apenas do autor, visto que o réu não a tem e, eventualmente, poderia ser prejudicado pela falta das garantias do processo que o autor optou por não ter.5 Destarte, para as causas cujo valor não exceda a 40 (quarenta) salários mínimos e para aquelas enumeradas no inciso II, do art. 275, do Código de Processo Civil, pode o autor optar entre fazer uso do procedimento sumário ou do procedimento sumaríssimo. No dizer de Cândido Rangel Dinamarco, A indisponibilidade do procedimento tem sua razão de ser na ordem pública, mas não se pode tolher a cada um a liberdade de optar ou deixar de optar por uma tutela jurisdicional diferenciada, que é coisa diferente: não se pode impor ao demandante uma espécie processual que, se de um lado lhe oferece vantagens, de outro impõe restrições cognitivas que talvez não lhe convenham. O demandante é o único árbitro dessa conveniência.6

Contudo, tal opção não é tão abrangente como a princípio pode parecer. A justiça especial dos Juizados tem limitações profundas e que não dizem respeito apenas a questões procedimentais.

3. Da obrigatoriedade dos Juizados Especiais Cíveis e da extinção do procedimento sumário Praticamente desde a entrada em vigor da Lei nº 9.099/1995 há uma grande tendência em tornar seu processo obrigatório para as partes. Diversos projetos de lei nesse sentido tramitam ou tramitaram no Congresso Nacional e este posicionamento se fortaleceu com o advento das Leis nº 10.259/2001 e nº 12.153/2009, que instituíram os Juizados Especiais Federais e os Juizados da Fazenda Pública, respectivamente. Ambas as leis determinam a obrigatoriedade de observância de seus processos e ritos nas causas de sua competência7 o que, em termos práticos, 5. Estas garantias são bem explicadas por Leonardo Greco, em seu trabalho, Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In: Estudos de Direito Processual. 6. Cândido Rangel Dinamarco. Instituições de Direito Processual Civil. 2003, v. III, p. 775. 7. Lei nº 10.259/2001, art. 3º, § 3º: No foro onde estiver instalada Vara do Juizado Especial, a sua competência é absoluta. E Lei nº 12.153/2009, art. 2º, § 4º: No foro onde estiver instalado Juizado Especial da Fazenda Pública, a sua competência é absoluta. 232

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significa que a Justiça Federal e as Varas de Fazenda Pública só são competentes para todas as causas que tenham como partes rés a União, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios e os Munícipios e suas respectivas autarquias, fundações e empresas públicas, desde que limitado o valor da causa a 60 (sessenta) vezes o salário mínimo nacional e que não se compreendam entre aquelas expressamente proibidas de serem propostas perante os Juizados. Neste diapasão, na fase anterior à elaboração da redação dos dispositivos, uma das decisões acerca das proposições temáticas tomada pela Comissão de juristas encarregada de elaborar o Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, presidida pelo Ministro Luiz Fux, foi a de “Estabelecer a competência absoluta dos Juizados Especiais”. Em que pese a questão da competência dos Juizados Especiais não ser tema afeto ao Código de Processo Civil, provável consequência dessa tomada de posição foi a extinção do procedimento sumário do Anteprojeto (o que foi mantido no Projeto aprovado no Senado Federal e que atualmente está em discussão na Câmara dos Deputados). Pelo Projeto do Novo Código de Processo Civil (PLS nº 166/2010) teremos dois grupos de procedimento: um comum (atual ordinário) e os procedimentos especiais. Em nenhum deles se encontra o rol de causas que atualmente seguem o procedimento sumário. O Anteprojeto é mais omisso que o Projeto, pois sequer faz menção a causas do atual Código. O Projeto, por seu turno, apenas deixa claro que “As regras do Código de Processo Civil revogado relativas ao procedimento sumário e aos procedimentos especiais não mantidos por este Código serão aplicadas aos processos ajuizados até o início da vigência deste Código, desde que não tenham, ainda, sido sentenciados” (art. 1.000, § 1º). Em um primeiro momento, poder-se-ia pensar que tais causas serão ajuizadas observando-se o procedimento comum, que ganhará características que o assemelharão ao procedimento sumário e ao procedimento dos Juizados Especiais (rol de testemunhas na petição inicial, diminuição das hipóteses de intervenções de terceiros, audiência preliminar de mediação ou conciliação, concentração das respostas do réu na contestação, fim das ações incidentais, diminuição das possibilidades de recursos, entre outras alterações). Entretanto, salvo melhor juízo, parece mais adequado entender-se que a opção é a da manutenção das causas nos Juizados Especiais. A uma, porque não parece razoável entender-se que as causas previstas no inciso II do art. 275 passariam a seguir um procedimento ordinário (ainda que denominado de comum) e que, apesar de tender a alcançar uma maior celeridade prevista 233

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no NCPC, ainda é o procedimento mais longo e complexo do direito processual civil brasileiro. A duas, porque quando o Projeto quis que as causas de procedimentos revogados seguissem o procedimento comum, fê-lo expressamente, como se observa na redação dos §§ 3º e 4º, do art. 1.000.8 Naturalmente, para que eventuais dúvidas sejam prevenidas, o ideal é que se altere a redação do inciso II, do art. 3º, da Lei nº 9.099/1995, especificando quais causas correrão sob o procedimento especial (e, se elas obedecerão ou não a algum valor máximo).

4. Algumas alterações necessárias no rito dos Juizados Especiais Cíveis para assimilação efetiva das causas que seguem o procedimento sumário Tornar o processo e o procedimento dos Juizados Especiais obrigatórios e, principalmente, utilizá-los em substituição ao procedimento sumário não se resolverá apenas com a extinção deste último. Substanciais alterações deverão ser feitas na Lei nº 9.099/1995 para que, efetivamente, as causas elencadas no inciso II do art. 275, do atual Código de Processo Civil, possam ser julgadas perante a justiça especial. Optamos por fazer uma breve análise de algumas das mais importantes alterações, tendo consciência de que este trabalho não tem pretensão de exaurir o tema.

4.1. Do valor da causa A Lei nº 9.099/1995 é a única que tem limite fixado em 40 (quarenta) vezes o maior salário mínimo nacional, ao contrário da maioria das normas em que o patamar alcança 60 (sessenta) vezes o salário mínimo, incluindo aí os atuais procedimentos sumários cível e trabalhista. 9 -10 8. Art. 1.000, § 3º. Os procedimentos mencionados no art. 1.218 do Código revogado e ainda não incorporados por lei submetem-se ao procedimento comum previsto neste Código. E § 4º As remissões a disposições do Código de Processo Civil revogado, existentes em outras leis, passam a referir-se às que lhes são correspondentes neste Código. 9. Em verdade, até mesmo no atual processo de conhecimento (em suas diversas fases) e no processo de execução se verifica que o valor de 60 (sessenta) vezes o maior salário mínimo nacional é tomado como padrão para se identificar pequenas causas que dispensam procedimentos mais elaborados. Ver, por exemplo, a dispensa do reexame necessário sempre que a causa tiver valor não excedente ao aqui referido (art. 475, § 2º); a dispensa de caução na execução provisória (art. 475-O, § 2º, inciso I) e a dispensa de publicação de editais quando os bens penhorados alcançarem o dito valor (art. 686, § 3º). 10. O Projeto do Novo Código de Processo Civil foi mais parcimonioso com relação a limitar procedimentos em função do valor da causa. Mantém a regra com relação à dispensa de editais na execução (art. 838, § 4º), mas quanto ao cumprimento provisório de sentença (atualmente execução provisória) não elenca entre as hipóteses de dispensa de caução o reduzido valor a ser 234

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Então, para fins de sistematização, a uniformização do valor para as causas de menor complexidade cível se impõe. É incompreensível que ainda se mantenha um valor em desconformidade com os outros procedimentos e que já se tornou, sob certo aspecto, um padrão.

4.2. Da capacidade de ser parte e da capacidade de estar em juízo O Código de Processo Civil permite que qualquer pessoa, física ou jurídica, possa figurar no polo ativo ou passivo de uma demanda, ainda que não tenha personalidade jurídica (ver art. 12) e tal capacidade é estendida inclusive às chamadas pessoas formais e aos entes despersonalizados. Também a capacidade para estar em juízo é plena, desde que os incapazes sejam assistidos ou representados por quem de direito (arts. 7º e 8º, do Código de Processo Civil, c/c arts. 3º e 4º, do Código Civil). Os Juizados Especiais Cíveis, por seu turno, foram concebidos para ser, nas palavras de Cândido Rangel Dinamarco, a “justiça do cidadão”, entendido este como a pessoa física capaz. Permitir que pessoas jurídicas figurassem no polo ativo da demanda poderia levá-los a se tornar “balcão de cobrança” em face das pessoas naturais, o que deveria ser evitado. No processo dos Juizados Especiais Cíveis, portanto, não podem ser partes o incapaz, o preso, as pessoas jurídicas de direito público, as empresas públicas da União, a massa falida e o insolvente civil (art. 8º, caput, da Lei nº 9.099/1995). 4.2.1. Como a finalidade dos Juizados Especiais é a obtenção de soluções de conflitos por meio da conciliação ou da transação, incapazes não poderiam ser aceitos por não poderem dispor de seus direitos. Entretanto, nas demandas propostas perante os Juizados Especiais Federais e os da Fazenda Pública, há o entendimento de que incapazes podem ser autores (apesar de a finalidade destes ser também a da obtenção de soluções conciliatórias ou por meio da transação),11 notadamente porque a grande maioria das causas versa sobre direito previdenciário. Para tanto, atuarão representados ou assistidos por quem de direito e a intervenção do Ministério Público se fará obrigatória.

executado (art. 506). Interessante é o substancial aumento no valor da sentença que condena a Fazenda Pública e que será objeto do duplo grau de jurisdição (atual reexame necessário): mil salários mínimos para a União, quinhentos para os Estados e o Distrito Federal e cem salários para os Municípios (art. 483, § 2º). 11. Tanto é assim que os procuradores públicos têm a permissão de dispor dos direitos da Fazenda Pública (art. 10, parágrafo único, da Lei nº 10.259/2001 e 8º da Lei nº 12.153/2009). 235

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Com a obrigatoriedade do processo dos Juizados Especiais, não permitir que incapazes sejam partes é violação do princípio da isonomia, justamente perante pessoas que mais necessitam de proteção. Uma solução a ser adotada pode ser a alteração do § 2º, do art. 8º, da Lei nº 9.099/1995, que permite que as pessoas físicas relativamente incapazes possam ser autoras nos Juizados Especiais, independentemente de representação (e, dizem alguns doutrinadores, sem que haja necessidade de intervenção do Ministério Público, em que pese a redação do art. 11).12 4.2.2. O preso não tem liberdade de ir e vir e, como a presença física nas audiências dos Juizados Especiais é obrigatória, preferiu-se simplesmente proibir sua participação nos feitos,13 independentemente da espécie de prisão. Aqui a violação do princípio do acesso à justiça fica mais gritante pois, ao não limitar a proibição de atuação a certos presos, acaba-se impedindo que aqueles que cumprem pena em regime semiaberto, por exemplo, sejam eventualmente impedidos de procurar uma solução mais célere e simples para os seus litígios.14 Manter-se tal proibição, significará compelir pessoas necessitadas a procurar a justiça comum, mais cara, lenta e complexa, para resolver questões simples. 4.2.3. As pessoas jurídicas de direito público e as empresas públicas da União, proibidas de atuar nos Juizados Especiais Cíveis, têm, desde o ano de 2001, órgãos especializados onde podem ser demandadas (Juizados Especiais Federais e Juizados Especiais da Fazenda Pública).

4.2.4. A massa falida e o insolvente civil estão proibidos de atuar nos Juizados Especiais Cíveis devido à existência de juízo funcionalmente competente para conhecer de todas as ações que digam respeito a quaisquer bens, interesses e negócios do falido (art. 76 da Lei nº 11.101/2005), bem como devido 12. O referido dispositivo legal concede capacidade processual às pessoas de idades compreendidas entre os 18 e os 21 anos o que correspondia, sob a égide do Código Civil de 1916, aos relativamente incapazes. Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, e passando a maioridade a se iniciar aos 18 anos, o entendimento majoritário é no sentido de que nenhum incapaz pode ser autor. Entretanto, observando-se a ratio legis, tal entendimento deve ser revisto, notadamente em face da extinção do procedimento sumário. 13. Art. 20. Não comparecendo o demandado à sessão de conciliação ou à audiência de instrução e julgamento, reputar-se-ão verdadeiros os fatos alegados no pedido inicial, salvo se o contrário resultar da convicção do Juiz. Art. 51. Extingue-se o processo, além dos casos previstos em lei: I – quando o autor deixar de comparecer a qualquer das audiências do processo (...). 14. José Eduardo Carreira Alvim. Juizados Especiais Federais. 2002, p. 74. 236

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à indisponibilidade de seus bens (em que pesem críticas contrárias a essa escolha do legislador em relação ao insolvente15 e que perderão seu sentido, com a não previsão do Processo de Execução por Quantia Certa Contra Devedor Insolvente no PLS nº 166/2010). 4.2.5. Para estas pessoas, elencadas no caput do art. 8º, da Lei nº 9.099/1995, então, nunca houve qualquer possibilidade de escolha: suas demandas obrigatoriamente sempre tiveram que ser levadas para a justiça comum e o processo deveria seguir o procedimento sumário. Também esta sempre foi a realidade das pessoas jurídicas, até a promulgação da Lei nº 9.841/1999, conhecida como o Estatuto da Microempresa. Como meio de fomentar suas atividades, entre outros benefícios, permitiu-se que as microempresas pudessem figurar no polo ativo dos Juizados Especiais Cíveis (art. 38). Com a revogação dessa lei pela Lei Complementar nº 123/2006, além da microempresa, também as empresas de pequeno porte foram autorizadas a litigar como autoras nos Juizados Especiais Cíveis (art. 74). Tanto na Lei nº 10.259/2001 (Lei dos Juizados Especiais Federais), quanto na Lei nº 12.153/2009 (Lei dos Juizados Especiais da Fazenda Pública) não houve necessidade de alteração, uma vez que originariamente já previam a possibilidade de micro e pequenas empresas serem autoras (arts. 6º, inciso I e 5º, inciso I, respectivamente). Por fim, em 2009, a Lei nº 12.126 alterou a redação do § 1º, do art. 8º, da Lei nº 9.099/1995, passando a permitir que as pessoas jurídicas qualificadas como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, nos termos da Lei nº 9.790, de 23/03/1999, e as sociedades de crédito ao microempreendedor, nos termos do art. 1º da Lei nº 10.194, de 14/02/2001. Apesar do considerável aumento da lista de pessoas legitimadas a serem autoras nos Juizados Especiais Cíveis, ainda estão proibidas as pessoas jurídicas de médio ou grande porte. Para elas, se não alterada a redação do art. 8º, da Lei nº 9.099/1995, restará apenas a via da justiça comum para solucionar os mesmos litígios que as demais pessoas resolverão através do procedimento especial. Como tais pessoas têm maiores possibilidades de acesso à justiça, não se vislumbra qualquer quebra do princípio da isonomia em não lhes permitir serem autoras na justiça comum.

15. Araken de Assis. Manual da Execução, 2007, p. 853. 237

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Mais preocupante se torna a questão referente aos condomínios e ao espólio. Uma vez que não se enquadram no elenco taxativo de pessoas legitimadas a atuarem no polo ativo dos Juizados Especiais (quaisquer que sejam eles), sofrem forte resistência por parte da doutrina e dos tribunais. Em outro trabalho, já se criticou tal proibição, não só tendo em consideração a competência dos Juizados Especiais para julgar causas que somente poderiam ser promovidas pelo condomínio (art. 275, inciso II, alínea b, do Código de Processo Civil, c/c art. 3º, inciso III, da Lei nº 9.099/1995), mas também porque estar-se-ia diante de uma violação dos princípios da isonomia e do acesso à justiça. Injustificável que se permita que pessoas jurídicas de direito privado, com fins lucrativos, possam ser autoras nos Juizados Especiais, enquanto duas pessoas formais, sem fins lucrativos, e que basicamente têm por finalidade a administração conjunta de patrimônios, estejam alijadas de resolverem seus litígios de forma célere, gratuita e informal, apenas porque se obedece a uma interpretação literal do texto legal.16 Com a extinção do procedimento sumário, a disparidade se torna mais gritante. Atualmente, os condomínios ainda mantêm a possibilidade de utilizarem esse rito mais concentrado, uma vez que, apesar de opiniões favoráveis, em regra os tribunais não aceitam condomínios como autores nos Juizados Especiais.17 Sem o procedimento sumário, ter-se-ão pessoas jurídicas de direito privado (com ou sem fins lucrativos) atuando nos Juizados e pessoas formais sem fins lucrativos utilizando-se do procedimento comum, para causas de menor complexidade cível. Outro ponto de extrema importância diz respeito à permissão de a parte, pessoa física, não comparecer à sessão de conciliação e se fazer representar por outra com poderes especiais para transigir. Atualmente tal representação é possível no procedimento ordinário (art. 331, caput), no procedimento sumário (art. 277, § 2º) e nos Juizados Especiais Federais (art. 10 da Lei nº 10.259/2001), omissa a Lei nº 12.153/2009. O Projeto do Novo Código de Processo Civil, ao criar a audiência de conciliação, após o ajuizamento da demanda e antes da resposta do réu (nos mesmos moldes do rito dos Juizados Especiais), também contempla essa possibilidade (art. 323, § 8º). 16. Marcia Cristina Xavier de Souza. Juizados Especiais Fazendários. 2010, p. 96. 17. Esta assertiva pode ser corroborada com uma rápida pesquisa nas páginas da Internet dos tribunais de justiça do país. O Fonaje, em seu enunciado nº 09, permite aos condomínios serem autores nos Juizados Especiais, mas não tem força vinculante. Então, o que se verifica na prática forense é a predominância da proibição. Ver, por exemplo, o Enunciado 4.3 do X Encontro de Juízes de Juizados Especiais Cíveis e Turmas Recursais do Estado do Rio de Janeiro. 238

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Porém, no rito da Lei nº 9.099/1995 não existe tal possibilidade, o que dificulta em muito o acesso à justiça de pessoas com dificuldades de locomoção, entre outras. Na hipótese de se tornar obrigatório o rito dos Juizados Especiais e que este venha a ser utilizado para todas as causas que atualmente seguem o procedimento sumário, mister se faz que seja permitido às partes não comparecerem pessoalmente. De novo, viola-se o princípio da isonomia, tendo em vista que as pessoas jurídicas têm a possibilidade de se fazerem representar por prepostos que sequer as integram (ver art. 9º, § 4º, da Lei nº 9.099/1995) e aqueles para quem foram criados os Juizados (pessoas físicas capazes, ou o cidadão, nos dizeres de Cândido Rangel Dinamarco) são alijados de tal prerrogativa.

4.3. Da intervenção de terceiros As intervenções de terceiros não são plenamente aceitas no procedimento sumário (segundo o art. 280, do Código de Processo Civil, somente são cabíveis a assistência, o recurso de terceiro prejudicado e a intervenção fundada em contrato de seguro). Já o art. 10, da Lei nº 9.099/1995, proíbe qualquer forma de intervenção, ao contrário do art. 14, § 7º, da Lei nº 10.259/2001 (que permite a intervenção do amicus curiae no procedimento de uniformização de jurisprudência perante os Juizados Especiais Federais). Como já foi analisado alhures, não havia uma razão específica para a proibição de intervenção de terceiros no procedimento sumário, enquanto nos Juizados Especiais Cíveis se justifica pela necessidade de manter-se a celeridade e a simplicidade do procedimento,18 ainda que significasse quebra da isonomia. Contudo, esta violação do princípio da igualdade das partes se justifica na medida em que as causas ajuizadas perante os procedimentos sob análise, pela sua maior simplicidade (do ponto de vista do direito material), não deveriam necessitar de atos processuais mais complexos para se alcançar um resultado satisfatório. Isso se justifica mais acentuadamente quando estas intervenções de terceiro levam à discussão de outra relação material, como ocorre na oposição ou na denunciação da lide. Esta, aliás, parece ser a razão de ter o Projeto do Novo Código de Processo Civil extinguido todas as ações incidentais, incluindo aí, por óbvio, tais intervenções.19 A extinção da nomeação à autoria 18. Marcia Cristina Xavier de Souza. Juizados Especiais Fazendários, 2010, p. 103 e Humberto Theodoro Jr., Curso de Direito Processual Civil, 2012, p. 436. 19. Quanto à denunciação da lide, não havia previsão no Anteprojeto, que havia aumentado as hipóteses de chamamento ao processo para incluir aquelas que originariamente eram de 239

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também se resolve com a determinação de que o autor deve substituir a parte ilegítima, caso o réu se defenda e prove sua ilegitimidade e não apenas em situações que envolvam detentores de coisas alheias (art. 328). Quanto à assistência, sua proibição se refere à possibilidade de perda da simplicidade e da celeridade com eventual impugnação à intervenção. Também discussões sobre os limites de atuação do assistente simples poderiam tornar o procedimento especial mais complexo do que o aceitável. Porém, no que tange à manutenção da intervenção fundada em contrato de seguro (espécie de denunciação da lide criada pela experiência forense para permitir a intervenção de seguradora principalmente em causas que versem sobre ressarcimento por danos causados em acidentes de veículos terrestres – art. 275, inc. II, alínea d, do Código de Processo Civil), vislumbra-se real utilidade na sua manutenção. Principalmente, levando-se em consideração a finalidade do instituto, que é liberar o réu do pagamento da dívida, que será arcada pela seguradora, contratualmente responsável pelo ressarcimento dos danos. E, em ações promovidas perante os Juizados Especiais, notadamente quando o réu é pessoa física, a certeza de recebimento pela seguradora apresenta-se como uma rápida e eficaz solução do litígio a favor do autor (e sem prejudicar o réu). Quanto ao recurso de terceiro prejudicado, em que pese a notória finalidade de evitar outra demanda para discutir eventual prejuízo de terceiro sofrido em processo alheio, não se coaduna com os princípios da simplicidade e da informalidade dos Juizados Especiais (art. 2º da Lei nº 9.099/1995). Com relação à intervenção do amicus curiae, diversas questões ainda estão por merecer maiores esclarecimentos, mas alguns pontos podem ser aqui levantados. Tal figura é aceita no procedimento de uniformização de jurisprudência perante os Juizados Especiais Federais (art. 14, § 7º, da Lei nº 10.259/2001), sendo que o dispositivo correspondente na Lei nº 12.153/2009 foi vetado (art. 18, § 4º). Como o art. 47, da Lei nº 9.099/1995, foi vetado, sequer existe o instituto da uniformização de jurisprudência perante este órgão da justiça estadual.20 denunciação (art. 330, sob a denominação de chamamento em garantia). Entretanto, no Senado Federal, a denunciação retorna como forma autônoma de intervenção, agora denominada denunciação em garantia (arts. 314 a 318), deixando a dúvida sobre o procedimento sob o qual se desenvolverá, uma vez que são utilizados os termos “citação” e “ação de denunciação”, demonstrando que talvez ainda vá subsistir alguma ação incidente no Novo Código de Processo Civil. 20. Por tal motivo, o Superior Tribunal de Justiça tem permitido a utilização do instituto da reclamação, “destinada a dirimir divergência entre acórdão prolatado por juízes de Turma Recursal dos Juizados Especiais estaduais e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme dispõe a Resolução nº 12/2009-STJ”, enquanto não criada a Turma de Jurisprudência. 240

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A possibilidade de intervenção do amicus curiae, nas causas simples e/ ou de pequeno valor dos Juizados, comprometeria em muito a celeridade e a simplicidade do rito, razão pela qual se justifica a sua não permissão.

4.4. Das provas Em regra, todas as provas são admitidas para se apurar os fatos alegados nas causas que correm perante o rito especial dos Juizados. Contudo, a menor complexidade das questões ali discutidas impõe que apenas provas cujos procedimentos se adequem à sua sistemática devem ser ali produzidas. Destarte, tanto no procedimento sumário quanto nos Juizados Especiais Federais e nos da Fazenda Pública há a previsão da produção de prova pericial,21 o que não é possível na sistemática da Lei nº 9.099/1995.22 Isto se dá porque, apesar de menos complexas, a maioria das causas levadas aos Juizados Públicos dizem respeito a questões previdenciárias que necessitam, por óbvio, da produção de prova pericial. Assim, nos Juizados Especiais Cíveis, propugna-se por uma menor complexidade também no campo probatório. Porém, tal afirmação é contraditada pelo próprio rol de causas que tanto podem seguir o rito sumário quanto o especial. Notadamente quando envolvem ressarcimentos de danos, haverá eventual necessidade de produção técnica. Quando o litígio versa sobre ressarcimento por danos em imóveis urbanos ou rústicos, por exemplo, difícil a prova do dano sem um profissional técnico. Ainda que se possa argumentar que é possível a prova documental preconstituída, não se pode negar ao autor (e ao réu) a possibilidade de ter um laudo preparado por profissional técnico isento, nomeado pelo juiz, ainda que o resultado deva ser apresentado em prazo mais reduzido do que no procedimento comum (atual ordinário). Uma pequena alteração procedimental poderia servir como solução do problema, permitindo-se o requerimento de produção pericial na sessão de conciliação, apresentado o laudo na audiência de instrução e julgamento subsequente. Em verdade, se fosse mantida a disposição do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, que previa a possibilidade de o juiz flexibilizar o procedimento, poder-se-ia, por analogia, aplicá-la aos Juizados Especiais.23 21. Art. 12, da Lei nº 10.259/2001 e art. 10, da Lei nº 12.153/2009. 22. O art. 35, da Lei nº 9.099/1995, não permite a produção de prova pericial nos moldes tradicionais e complexos do Código de Processo Civil (arts. 420 e seguintes). Destarte, tem-se entendido que existe a possibilidade de perícia informal nos Juizados Especiais Cíveis. 23. Art. 107. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...) V – adequar as fases e os atos processuais às especificações do conflito, de modo a conferir 241

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Os arts. 107, inciso V, e 151, § 1º, do Anteprojeto permitiriam ao juiz adaptar o procedimento conforme as necessidades do caso concreto. Esta previsão vinha ao encontro da tendência de alguns ordenamentos jurídico-processuais europeus, de matiz romano-germânico, de adotar a “contratualização” do procedimento. Consiste tal técnica em definir-se o procedimento a ser adotado na causa concreta, a partir de um acordo entre as partes e o juiz, quando ficariam definidas datas e atos a serem observados, inclusive com previsão de término do processo. Com isso, todos os sujeitos do processo teriam em mãos um calendário processual, previamente acordado entre todos e que somente poderia ser mudado com igual acordo, ou mediante força maior. Também aqui há um esforço em fazer o Poder Judiciário transitar entre outras áreas do conhecimento humano, como a administração e a economia, por exemplo.24 Como a nova ideia não foi bem aceita quando das diversas audiências feitas pela Comissão pelo país para discutir os dispositivos, acabou-se optando por não mantê-la na lei.

5. Das causas que seguem o procedimento sumário mas que não são adequadas ao procedimento dos Juizados Especiais Cíveis O art. 275, inciso II, alínea h, do Código de Processo Civil dispõe que causas previstas em leis extravagantes também devam observar o procedimento sumário, quando assim for determinado. Algumas dessas leis são anteriores à alteração da denominação do procedimento (1994, ainda que tenham sido alteradas posteriormente). Apesar da previsão do art. 3º, inciso II, da Lei nº 9.099/1995, nem todas as causas elencadas no referido dispositivo do Código de Processo Civil podem ser levadas para julgamento nos Juizados Especiais Cíveis. Sem querer esgotar o tema, e considerando eventual necessidade de “ordinarização” do procedimento, apresentamos uma pequena exposição dos motivos de tal impossibilidade. maior efetividade à tutela do bem jurídico, respeitando sempre o contraditório e a ampla defesa. Art. 151, § 1º Quando o procedimento ou os atos a serem realizados se revelarem inadequados às peculiaridades da causa, deverá o juiz, ouvidas as partes e observados o contraditório e a ampla defesa, promover o necessário ajuste. 24. Ver, por todos, Érico Andrade. As novas perspectivas do gerenciamento e da ‘contratualização’ do processo. In: Revista de Processo, 2011, p. 176-192. E, em sentido contrário, apesar de ser obra bem anterior, José Carlos Barbosa Moreira. O neoprivatismo no processo civil. In: Revista de Processo, 2005, p. 9-21. 242

13 – Da extinção do procedimento sumário e da obrigatoriedade…

5.1. Causas de arrendamento rural e de parceria agrícola – no dizer de Calmon de Passos, “causas de arrendamento rural são os litígios entre proprietários e arrendatários rurais que tenham por objeto ou decorram da duração do contrato, sua validade, existência ou inexistência; da interpretação de suas condições; da sua rescindibilidade etc.”.25 O arrendamento rural e a parceria agrícola são regidos pela Lei nº 4.504/1964 (Estatuto da Terra), pela Lei nº 4.947/1966 e pelo Decreto nº 59.566/1966 (art. 3º). São causas de complexidade acima da permitida nos Juizados Especiais Cíveis. 5.2. Revogação de doação – as causas de revogação de doação, previstas no art. 555, do Código Civil, são a ingratidão do donatário e a inexecução do encargo. Tais situações são complexas demais para se adequarem ao concentrado rito dos Juizados Especiais.26 5.3. Adjudicações compulsórias para obtenção de escritura de compra e venda de terrenos, que o compromitente-vendedor se recusou a outorgar ao compromissário-comprador (art. 16, caput, do Decreto-Lei nº 58/1937, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei nº 6.014/1973). 5.4. Retificações de grafia de registro de pessoas naturais (art. 110, § 3º, da Lei nº 6.015/1973, com a redação dada pela Lei nº 12.100/2009) – é procedimento administrativo que não envolve questões patrimoniais. 5.5. Ação de discriminação de terras devolutas da União (art. 20 da Lei 6.383/1976) – o art. 20 especifica que o procedimento é o do Código de Processo Civil. E, ainda que ultrapassado tal obstáculo, há que se considerar que, por ser a União a legitimada ativa, sequer pode ser promovida a demanda perante os Juizados Especiais Federais. 5.6. Ação de usucapião especial rural ou urbano (art. 5º, caput, da Lei nº 6.969/1981 e art. 14, da Lei nº 10.257/2001).

25. J. J. Calmon de Passos. Comentários ao Código de Processo Civil. 1991, v. III, p. 107. 26. Ver, por exemplo, as hipóteses de ingratidão, previstas no art. 557, do Código Civil: donatário que atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; que comete ofensa física contra ele; que o injuriou gravemente ou o caluniou; que recusou alimentos ao doador necessitado, quando podia ministrá-los. 243

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5.7. Ação revisional de aluguel (art. 68, caput, da Lei nº 8.245/1991, com a redação que lhe deu a Lei nº. 12.112/2009). 5.8. Litígios e medidas cautelares relativos a acidentes de trabalho (art. 129, inciso II, da Lei nº 8.213/1991). A dúvida está em definir sob qual procedimento estas causas serão promovidas,27 uma vez que não podem seguir o procedimento especial dos Juizados. Também nos parece sem sentido “ordinarizar” (rectius: adotar o futuro procedimento comum, atualmente ordinário) os procedimentos para causas que, apesar de contarem com alguma complexidade, foram criadas (ou adaptadas) para serem resolvidas em um procedimento com predominância da oralidade e da celeridade. De novo, então, nos voltamos para a solução que o Senado Federal não acatou, qual seja, a da flexibilização do procedimento que seria muito útil nestes casos supracitados.

6. Considerações finais O Brasil está vivendo uma avalanche de alterações legislativas concomitantemente. Algumas delas são mais do que bem-vindas, dado que as relações sociais são mais dinâmicas do que o legislador e o mundo tem vivido vertiginosas mudanças de menos de 30 anos para cá. Uma dessas mudanças advém das novas tecnologias, que nos permitem tomar contato com realidades e culturas diferentes das nossas no mesmo instante em que os fatos ocorrem. Entretanto, dois fatores há que se considerar antes de acolher em nosso direito experiências alienígenas: primeiro, há que se considerar nossas tradições e cultura; até que ponto as experiências de outros ordenamentos jurídicos, ainda que da mesma tradição romano-germânica que a nossa, se adequam à nossa realidade; segundo, há que se dar tempo para avaliar a efetividade de alterações anteriores, antes de se proceder a novas. Assim é que, por exemplo, enquanto em alguns países, os Juizados Especiais, em regra, não permitem que pessoas jurídicas sejam autoras, 27. Joel Dias Figueira Jr. inclui no rol algumas ações por responsabilidade civil envolvendo aeronaves (art. 255, da Lei nº 7565/1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica) e as ações que envolvam representante comercial autônomo e representado (art. 39, da Lei nº 8.420/1992, que alterou a Lei nº 4.886/1965). Da Competência nos Juizados Especiais Cíveis. 1996, p. 66. 244

13 – Da extinção do procedimento sumário e da obrigatoriedade…

no Brasil se verificou a necessidade de alterar tal garantia, como forma de incentivar a realização de negócios pelas micro e pequenas empresas. Outro aspecto a considerar é a estrutura do nosso Poder Judiciário. É notório que os Juizados Especiais estão superlotados de demandas para as quais não consegue dar solução em tempo inferior, muitas das vezes, ao do próprio procedimento ordinário. Daí que, se os Juizados absorverem todas as demandas sem opção do autor, haverá, talvez, um colapso no Judiciário. Aparentemente, contudo, esta é a tendência, desde o início introduzida nos Juizados Especiais Públicos. Entretanto, antes de implantá-la nos Juizados Estaduais, mister se faz que se analisem os óbices e as consequências desta escolha legislativa e política, antes de implementá-la, sob pena de, ao invés de ampliar o acesso à justiça, retornar-se aos tempos da litigiosidade contida, de que nos falava Kazuo Watanabe.28 Por outro lado, a tendência é a de exigir-se uma atuação cada vez mais ativa do juiz na condução do processo,29 sem deixar de lado o incremento da participação das partes não só na solução do litígio levado ao Poder Judiciário, mas também no próprio procedimento. Diante de tantas contradições e pontos de choque, espera-se do legislador que não atue de forma açodada, mas também não deixe de considerar a celeridade e não fira as garantias fundamentais do processo, insculpidas ou não na Constituição Federal.

Referências ALVIM, José Eduardo Carreira. Juizados Especiais Federais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. ANDRADE, Érico. As novas perspectivas do gerenciamento e da ‘contratualização’ do processo. In: Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 193, v. 36, p. 167-200, 2011. ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. ______. Procedimento Sumário. São Paulo: Malheiros, 1996.

28. Kazuo Watanabe. Filosofia e características básicas do Juizado Especial de Pequenas Causas. In: Watanabe (coord.). Juizado Especial de Pequenas Causas (Lei 7.244, de 7 de novembro de 1984). São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985. p. 1-7 (referência sobre litigiosidade contida às págs. 2). 29. Gustavo Quintanilha Telles de Menezes. A atuação do juiz na direção do processo. 2011, p. 194-215. 245

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BOCHENEK, Antônio César. Competência cível da justiça federal e dos juizados especiais cíveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2, t. I. CARNEIRO, Athos Gusmão. Do Rito Sumário na Reforma do CPC: Lei nº 9.245, de 26/12/1995. São Paulo: Saraiva, 1996. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. v. III. FIGUEIRA JR., Joel Dias. Da competência nos Juizados Especiais Cíveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. ______ ; LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Comentários à lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In: Estudos de Direito Processual. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2005. ______ . Instituições de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. II. MENEZES, Gustavo Quintanilha Telles de. A atuação do juiz na direção do processo. In: FUX, Luiz (coord.). O Novo Processo Civil Brasileiro (direito em expectativa): reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O neoprivatismo no processo civil. In: Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 122, v. 30, p. 9-21, 2005. PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. v. III. RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Lei nº 9.099/95: a obrigatoriedade da competência e do rito. In: Revista da Ajuris. Porto Alegre: Ajuris, v. 67, p. 186-193, jul. 1996. SALOMÃO, Luis Felipe. Inconstitucionalidade da opção do autor para ingressar nos Juizados Especiais. In: Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 746, p. 73-77, dez. 1997. SOUZA, Marcia Cristina Xavier de. Juizados Especiais Fazendários. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 44. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. v. III. WATANABE, K. Filosofia e características básicas do Juizado Especial de Pequenas Causas. In: WATANABE, K. (coord.). Juizado Especial de Pequenas Causas (Lei 7.244, de 7 de novembro de 1984). São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985. p. 1-7 (referência sobre litigiosidade contida às págs. 2). 246

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Desconsideração da coisa julgada material

Alexandre Freitas Câmara

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Introdução. 1. O dogma da coisa julgada. 2. A sentença inconstitucional transitada em julgado. 3. O dilema: desconsiderar ou não a coisa julgada? 4. Mecanismos processuais para rediscutir a coisa julgada. 5. Propostas de lege ferenda. 6. Considerações finais. Referências.

Introdução ema que vem suscitando controvérsias na moderna doutrina do direito processual civil brasileiro é o da “relativização” (que prefiro chamar de “desconsideração”) da coisa julgada material. Vários autores se pronunciaram sobre o tema, uns contra, outros a favor de tal “relativização”. O ponto, aliás, chegou à jurisprudência, existindo algumas decisões – inclusive do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal – que admitiram que se rediscutisse matéria que já estava coberta pela autoridade de coisa julgada material. Esta exposição se propõe a apresentar algumas considerações sobre o ponto, analisando-se a matéria não só à luz do direito vigente, mas também apresentando propostas de lege ferenda. Um ponto, porém, deve ficar claro desde logo: nesta exposição buscar-se-á pôr em confronto dois valores de grande importância para qualquer sistema processual, a segurança (representada pela coisa julgada material) e a justiça (que servirá de fundamento para as propostas de desconsideração da coisa julgada). Este confronto de valores,

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* Desembargador no TJRJ, oriundo do Quinto Constitucional da Advocacia. Professor de direito processual civil da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – Emerj. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da International Association of Procedural Law. 247

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registre-se desde logo, não é de fácil solução. Afinal de contas, o processo é instrumento de acesso à justiça, mas não há justiça sem segurança jurídica. É o equilíbrio entre esses valores que permitirá a busca de uma solução adequada para este problema. Consiste a exposição em analisar-se o dogma da coisa julgada (ou seja, o modo como a coisa julgada sempre foi vista: algo absolutamente intocável). Em seguida, examinar-se-á o problema das sentenças inconstitucionais transitadas em julgado, objeto principal das propostas de desconsideração. Examinados estes temas, poder-se-á passar ao trato do dilema: afinal, deve ou não ser admitida a desconsideração da coisa julgada material? Ultrapassada esta questão, será preciso examinar quais são os mecanismos processuais existentes, no direito vigente, capazes de permitir que se suscite novamente a matéria já decidida por sentença alcançada pela autoridade de coisa julgada nos casos em que se admita a desconsideração. Por fim, apresentar-se-ão propostas de lege ferenda para um mais adequado trato da matéria no direito objetivo. Traçados os rumos da exposição, a ela se pode, enfim, passar.

1. O dogma da coisa julgada Durante muitos séculos a coisa julgada material foi tida como algo absolutamente intocável. Um verdadeiro dogma, insuscetível da qualquer discussão. Houve, na mais clássica doutrina, quem afirmasse textualmente que “a sentença que passa em julgado é havida por verdade”.1 Também a doutrina clássica europeia se manifestava neste sentido, como se pode ver na obra de Mattirolo: “a autoridade de coisa julgada se funda sobre o princípio res iudicata pro veritate habetur”.2 Chegou-se a dizer, com grande dose de exagero, que a coisa julgada seria capaz de transformar o preto em branco (res iudicata nigrum albium facit).3 Essas ideias, embora hoje completamente abandonadas, devem servir de ponto de partida para qualquer exposição sobre a autoridade de coisa julgada nos dias de hoje. A coisa julgada era vista como um instrumento de pacificação social. Ainda que equivocada a sentença, a partir de um certo momento deveria ela 1. Joaquim Ignácio de Ramalho. Praxe brasileira. 1869, p. 349. 2. Luigi Mattirolo. Trattato di diritto giudiziario civile italiano. 1905, v. V, p. 14. 3. Como se lê em obra clássica de direito processual civil, “é famoso o dístico de Scassia: ‘a coisa julgada faz do branco preto; origina e cria as coisas; transforma o quadrado em redondo; altera os laços de sangue e transforma o falso em verdadeiro’” (Eduardo Juan Couture. Fundamentos do direito processual civil. 1946, p. 329). 248

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ser considerada imutável e indiscutível, sob pena de se eternizar o conflito.4 Isto levou importante processualista italiano a afirmar que “em linha abstrata não se pode dizer que exista uma sentença injusta, e porque o sucumbente não a impugna, tal sentença passa em julgado e tem plena eficácia”.5 E isto se disse porque a injustiça da sentença era vista apenas como o motivo que levaria o sucumbente a recorrer e, por conseguinte, se ninguém interpusesse recurso contra o pronunciamento judicial dever-se-ia considerá-lo justo. Do mesmo modo, esgotados os recursos, e transitando em julgado a sentença, esta visão do fenômeno levaria à negação da injustiça da sentença. Poderse-ia mesmo dizer que, para os que tinham tal concepção da coisa julgada, o problema da sentença injusta seria um falso problema, pelo menos após a formação da autoridade de coisa julgada. Mais modernamente tais ideias foram superadas. Isto não significou, porém, qualquer abrandamento da autoridade de coisa julgada. Afirmada a justificativa sociopolítica de sua existência, a coisa julgada seria capaz de tornar imutável e indiscutível o que ficou decidido pela sentença (empregado o termo aqui lato sensu, englobando-se também os acórdãos) contra a qual não mais se admitisse qualquer recurso. E isto se confirma pelas definições de coisa julgada que podem ser encontradas em obras de autorizadíssimos processualistas modernos. Assim, por exemplo, ensina Chiovenda que a coisa julgada é “a afirmação indiscutível, e obrigatória para os juízes de todos os futuros processos, duma vontade concreta de lei, que reconhece ou desconhece um bem da vida a uma das partes”.6 Já para Liebman, indubitavelmente o principal estudioso da matéria, a coisa julgada é (...) a imutabilidade do comando emergente de uma sentença. Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato.7

4. Lê-se em Enrico Tullio Liebman, Eficácia e autoridade da sentença. 1984, p. 39, que o instituto da coisa julgada se justifica “por meio de considerações práticas e de utilidade social”. 5. Sergio Costa. Manuale di diritto processuale civile. 1980, p. 379. 6. Giuseppe Chiovenda. Instituições de direito processual civil. 1969, v. 1, p. 374. 7. Liebman, Eficácia…, cit., p. 54. 249

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Mesmo nas obras italianas mais recentes as definições encontradas não se afastam do que até aqui se apresentou. Veja-se, por exemplo, o que ensina Verde, para quem a coisa julgada é um “novo comando (aos futuros juízes e/ou às partes), concretização do comando contido na lei, acertamento”.8 Para Monteleone (...) a incontestabilidade do acertamento jurisdicional é, precisamente, aquilo que se quer exprimir com o conceito de coisa julgada, res iudicata: quando o direito é declarado (ius dicere), as controvérsias e as contestações são anuladas, ficando então estabelecido qual das pretensões em conflito é fundada e tem dignidade jurídica, ou seja, quem tem razão ou não. 9

Não se pense que as definições até aqui apresentadas sejam uma exclusividade italiana. Também em outras plagas a coisa julgada tem sido vista da mesma maneira. Na mais autorizada doutrina alemã também se define a coisa julgada material seguindo-se a mesma linha, como se pode ver na obra de Goldschmidt, para quem (...) a significação da força material de coisa julgada reside em seus efeitos de constatação, de tal modo que o juiz está ligado, em todo processo futuro que se promova, à decisão contida na sentença. Isto se expressa com a fórmula segundo a qual ‘o que se reconhece com força material de coisa julgada (firme), não pode controverter-se de novo (com êxito, entenda-se), e o que se desestima com força material de coisa julgada, não se pode voltar (com êxito) a fazer valer.10

E, mais modernamente, afirmou Lent que (...) a coisa julgada torna obrigatório para as partes o conteúdo da decisão, fazendo precluir para elas a possibilidade de obter sua modificação ou invalidação. É de todo inútil contestar depois o quanto tenha sido acertado ou reconhecido na sentença, assim como afirmar o quanto tenha sido negado; os juízes dos sucessivos processos são vinculados pelo provimento precedente e não podem dele se afastar. A obrigatoriedade da decisão para as partes é, em suma, garantida por um vínculo que grava os processos futuros.11 8. Giovanni Verde. Il nuovo processo di cognizione. 1995, p. 225. 9. Girolamo Monteleone. Diritto processuale civile. 1995, v.2. p. 201. 10. James Goldschmidt. Derecho procesal civil. 1936, p. 387. 11. Friedrich Lent, Diritto processuale civile tedesco. 1962, p. 239. 250

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Também entre os mais modernos processualistas latino-americanos as ideias até aqui apresentadas se difundiram. Assim, por exemplo, para Gozaíni, “a coisa julgada significa dar definitividade à sentença, impedindo que uma mesma situação seja mais uma vez provocada”.12 Na doutrina brasileira tem-se seguido a mesma linha de pensamento a respeito do conceito de coisa julgada. Para Moacyr Amaral Santos, por exemplo, “proferida a sentença e preclusos os prazos para recursos, a sentença se torna imutável (primeiro degrau – coisa julgada formal); e, em consequência, tornam-se imutáveis os seus efeitos (segundo degrau – coisa julgada material)”.13 Já para José Frederico Marques “a coisa julgada é qualidade dos efeitos do julgamento final de um litígio; isto é, a imutabilidade que adquire a prestação jurisdicional do Estado, quando entregue definitivamente”.14 E para Humberto Theodoro Júnior a coisa julgada é “qualidade da sentença, assumida em determinado momento processual. Não é efeito da sentença mas a qualidade dela representada pela ‘imutabilidade’ do julgado e de seus efeitos”.15 Em obra mais recente, ensina Dinamarco que uma vez esgotadas as possibilidades de impugnação de uma sentença a mesma se torna estável, imune a ataques posteriores, implantando-se, assim, uma situação de segurança entre as partes. E conclui: “essa estabilidade e imunização, quando encarada em sentido amplo, chama-se coisa julgada e atinge, conforme o caso, somente a sentença como ato processual ou ela própria e também os seus efeitos”.16 Do quanto até aqui foi exposto, facilmente se verifica que a coisa julgada sempre foi vista como um imperativo de segurança, razão pela qual não poderia – salvo situações excepcionais, expressamente previstas em lei, e que no direito brasileiro correspondem às hipóteses de rescindibilidade – ser revisto o que ficou decidido em sentença firme. Sobre o ponto, merece referência ensinamento de Couture: Certo é que na sistemática do direito a necessidade de certeza é imperiosa; toda a matéria do controle da sentença não é outra coisa, como procuramos demonstrar, senão uma luta entre as exigências da verdade e as exigências da certeza. Uma maneira de não existir do direito seria a de não se saber 12. 13. 14. 15. 16.

Osvaldo Alfredo Gozaíni. Teoría general del derecho procesal. 1996, p. 265. Moacyr Amaral Santos. Primeiras linhas de direito processual civil. 1983, v.3, p. 43. José Frederico Marques. Manual de direito processual civil. 1987, v.3, p. 235. Humberto Theodoro Júnior. Curso de direito processual civil. 2003, v.I, p. 475. Cândido Rangel Dinamarco. Instituições de direito processual civil. 2001, v.III, p. 296. 251

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL nunca em que consiste. Entretanto, a verdade é que, ainda assim, a necessidade de certeza deve ceder, em determinadas condições, ante a necessidade de que triunfe a verdade. A coisa julgada não é de razão natural. Antes, a razão natural pareceria aconselhar o contrário: que o escrúpulo de verdade fosse mais forte que o escrúpulo de certeza; e que sempre, em face de uma nova prova, ou de um fato novo fundamental e antes desconhecido, se pudesse percorrer de novo o caminho já andado, a fim de restabelecer o império da justiça.17

E, mais adiante, conclui o príncipe dos processualistas latino-americanos: “A coisa julgada é, em resumo, uma exigência política e não propriamente jurídica; não é de razão natural, mas sim de exigência prática”.18 A coisa julgada sempre foi, pois, vista como uma espécie de dogma incontestável. Uma vez esgotadas as possibilidades de impugnação da sentença, seu conteúdo se tornaria imutável e indiscutível, não como razão de justiça, mas como um imperativo político, destinado a estabilizar as relações jurídicas, conferindo-lhes segurança. Deste modo, ainda que o resultado do processo não correspondesse ao que seria correto conforme o direito, ou seja, ainda que fosse errada e injusta a sentença, seu conteúdo se tornaria imutável e indiscutível, impondo-se o resultado do processo coercitivamente, e se tornando impossível qualquer nova discussão a respeito do que já fora definitivamente julgado. A questão que se põe diante da moderna teoria do direito processual é a reavaliação do instituto da coisa julgada. Afinal, até que ponto pode valer a pena considerar-se imutável e indiscutível uma sentença errada? Pois é precisamente este o ponto a ser enfrentado.

2. A sentença inconstitucional transitada em julgado Entre os mais graves casos de sentenças erradas estão, indubitavelmente, aqueles em que o conteúdo da sentença ofende a Constituição da República. Isto porque, como notório, a inconstitucionalidade é o mais grave vício que pode acometer um ato jurídico. Por essa razão, a sentença inconstitucional transitada em julgado merecerá, aqui, tratamento separado.

17. Couture, Fundamentos…, cit., p. 329-330. 18. Idem, p. 332. 252

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É preciso dizer, antes de tudo, que o tema da inconstitucionalidade das decisões judiciais ainda é de trato raro na doutrina.19 O tema, porém, vem chamando a atenção de eméritos juristas modernos,20 assim como já chamara a atenção de juristas mais antigos.21 Historicamente se construíram sistemas de controle da constitucionalidade de leis e outros atos normativos. É inegável, porém, que uma decisão judicial pode contrariar um comando constitucional.22 À guisa de exemplos, valho-me aqui de alguns dos apresentados por José Augusto Delgado. São, pois, inconstitucionais as seguintes sentenças: a) a sentença expedida sem que o demandado tenha sido citado com as garantias exigidas pela lei processual; b) a ofensiva à soberania estatal; c) a violadora dos princípios guardadores da dignidade humana; d) a provocadora de anulação dos valores sociais e da livre iniciativa; e) a que estabeleça, em qualquer tipo de relação jurídica, preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; f) a que obrigue alguém a fazer ou deixar de fazer algo de forma contrária à lei; 19. A observação é de Paulo Otero. Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional. 1993, p. 9. 20. No Brasil se destaca obra coletiva coordenada por Carlos Valder do Nascimento. Coisa julgada inconstitucional. 2002, com trabalhos do coordenador e de Cândido Rangel Dinamarco, José Augusto Delgado, Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria. Na doutrina estrangeira, sem sombra de dúvida, merece destaque a obra de Otero, Ensaio…, cit. 21. Eduardo Juan Couture. Revocación de los actos procesales fraudulentos. In Eduardo Juan Couture. Estudios de derecho procesal civil. 1989, tomo III, p. 388-389. Narra Couture, nessa passagem, o caso de um proprietário rural, de sólida fortuna, que teve um filho como fruto de suas relações íntimas com uma pessoa que se encontrava a seu serviço. Buscando fazer desaparecer as consequências jurídicas e econômicas desse fato, conseguiu que a mãe do menor outorgasse mandato a uma pessoa de sua confiança, que aceitou a incumbência de promover a investigação de paternidade. Proposta a demanda, porém, o mandatário não produziu qualquer prova, o que levou a que se julgasse improcedente o pedido. Muitos anos depois, tendo o filho chegado à maioridade, promoveu ele nova demanda de investigação de paternidade, tendo o pai oposto objeção de coisa julgada. Alegou o autor, por sua vez, que a coisa julgada não poderia prevalecer diante da fraude processual. A decisão judicial rechaçou a alegação de coisa julgada, tendo sido definida por Couture como “um modelo de sagacidade na análise da prova”. Interposto recurso, celebrou-se posteriormente uma transação e, nas palavras de Couture, “o assunto perdeu todo o interesse técnico”. Se, por um lado, a transação resolveu o caso concreto, por outro fica o lamento por não se ter permitido ao tribunal ad quem manifestar-se sobre o ponto. 22. Otero, Ensaio…, cit., p. 9. O jurista português ensina, em outra passagem de sua obra, que “um problema central do controlo da validade dos actos jurisdicionais com a Constituição. O problema ganha tanto mais significado quanto assistimos a uma progressiva evolução no sentido de atribuir um maior número de tarefas aos juízes, configurando os tribunais como guardiões da constitucionalidade e da legalidade da actividade de todos os restantes poderes públicos”. (op. cit., p. 32). 253

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g) a que autorize a prática de tortura, tratamento desumano ou degradante de alguém; h) a que julga válido ato praticado sob a forma de anonimato na manifestação de pensamento ou que vede essa livre manifestação; i) a que impeça a liberdade de atuação dos cultos religiosos; j) a que consagra a possibilidade de violação ao direito da intimidade, da vida, da honra e da imagem da pessoa; k) a que abra espaço para a quebra do sigilo da correspondência; l) a que impeça alguém de associar-se ou de permanecer associado; m) a que reduza o salário do trabalhador, salvo o caso de convenção ou de acordo coletivo; n) a que autorize a empresa, por motivos de dificuldades financeiras, a não pagar o 13º salário do trabalhador; o) a que estabeleça distinção entre brasileiros natos e naturalizados, além dos casos previstos na Constituição da República; p) a que proíba a União de executar os serviços de polícia marítima, aeroportuária e fazendária; q) a que autorize alguém a assumir cargo público descumprindo os princípios fixados na Constituição da República e nas leis específicas; r) a que ofenda, nas relações jurídicas de direito administrativo, os princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade e da publicidade; s) a que reconheça vitalício no cargo o juiz com, apenas, um ano de exercício; t) a que, no trato de indenização da propriedade pelo poder público, para qualquer fim, não atenda ao princípio da justa indenização.23 Em todos esses casos, e em muitos outros, a decisão judicial estaria violando a Constituição da República, o que é absolutamente inaceitável. A mera possibilidade de que decisões que afrontam a Constituição sejam proferidas torna necessária a existência, no sistema processual, de um mecanismo de controle de constitucionalidade de tais decisões. Tal sistema é composto, precipuamente, pelo recurso extraordinário (notadamente o fundado na alínea a do art. 102, III, da Constituição da República). Cabível que seja tal recurso, poderá o mesmo ser interposto, o que permitirá ao Supremo Tribunal Federal, no exercício de sua função 23. Estes e outros exemplos podem ser encontrados em José Augusto Delgado. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In Nascimento (coord.), Coisa…, cit., p. 101-103. 254

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precípua de guarda da Constituição, controlar a constitucionalidade de decisões proferidas em única ou última instância por outros órgãos jurisdicionais, corrigindo-as quando eivadas do mais grave dos vícios. Surge o problema, porém, quando a sentença que ofende a Constituição da República transita em julgado. Será a coisa julgada, com sua eficácia sanatória geral, capaz de sanar a inconstitucionalidade contida na sentença? Merece registro, em primeiro lugar, a afirmação de José Augusto Delgado, para quem as sentenças que ofendem a Constituição “nunca terão força de coisa julgada” e poderão, a qualquer tempo, ser desconstituídas “no seu âmago mais consistente que é a garantia da moralidade, da legalidade, do respeito à Constituição e da entrega da justiça”.24 Assim, porém, e data venia, não me parece. A sentença, mesmo a inconstitucional, é alcançada pela autoridade de coisa julgada. Preclusa a faculdade de interpor recurso contra tal sentença, terá a mesma alcançado a auctoritas rei iudicatæ. E, sendo de mérito a sentença, alcançadas serão a coisa julgada formal e a material. A questão posta à consideração dos juristas, a meu sentir, não é a de saber se a sentença inconstitucional transita ou não em julgado, mas a de saber se uma vez transitada ela em julgado poderá seu conteúdo ser revisto em processo posterior. Eis aí, pois, o dilema: desconsiderar ou não a coisa julgada?

3. O dilema: desconsiderar ou não a coisa julgada? Diante dos problemas práticos que podem ser gerados por sentenças injustas ou contrárias ao ordenamento jurídico que tenham alcançado a autoridade de coisa julgada, surge, então, o dilema: deve-se admitir ou não a desconsideração da coisa julgada? Argumentos de peso há, registre-se, em ambos os sentidos, não sendo possível a qualquer processualista nos dias de hoje permanecer indiferente ao tema. Sobre o ponto, merece ser examinada, em primeiro lugar, a tese sustentada pelo emérito professor Leonardo Greco.25 Afirma o preclaro professor titular da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro que “para examinar o conflito entre a coisa julgada e a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, assim como para avaliar se a 24. Delgado, “Efeitos…”, cit., p. 103. 25. Leonardo Greco. Efeitos da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior. In http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/ documentos/texto167.htm, de onde são extraídos todos os trechos citados adiante no texto. 255

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demonstrada vulnerabilidade da coisa julgada é compatível com o Estado Democrático de Direito instituído entre nós a partir da Constituição de 1988, considero necessário assentar uma segunda premissa,26 ou seja, se a coisa julgada é um direito fundamental ou uma garantia de direitos fundamentais e, como tal, se a sua preservação é um valor humanitário que mereça ser preservado em igualdade de condições com todos os demais constitucionalmente assegurados; ou, se ao contrário, é apenas um princípio ou uma regra de caráter técnico processual e de hierarquia infraconstitucional, que, portanto, deva ser preterida ao primado da Constituição e da eficácia concreta dos direitos fundamentais e das demais disposições constitucionais”. Pois a respeito dessa questão afirma Greco que (...) a coisa julgada é uma importante garantia fundamental e, como tal, um verdadeiro direito fundamental, como instrumento indispensável à eficácia concreta do direito à segurança, inscrito como valor e como direito no preâmbulo e no caput do artigo 5º da Constituição de 1988. A segurança não é apenas a proteção da vida, da incolumidade física ou do patrimônio, mas também e principalmente a segurança jurídica.

Afirma Leonardo Greco que “a segurança jurídica é o mínimo de previsibilidade necessária que o Estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, a respeito de quais são as normas de convivência que ele deve observar e com base nas quais pode travar relações jurídicas válidas e eficazes”. Ao exercer a função jurisdicional, atuando a vontade da lei, o Estado revela e impõe às partes (...) a norma que licitamente eles devem respeitar como representativa da vontade do próprio Estado, não sendo lícito a este, depois de tornada imutável e indiscutível essa manifestação de vontade oficial, desfazê-la em prejuízo das relações jurídicas e dos respectivos efeitos travadas e produzidos sob a égide da sua própria decisão.

Por conta disso, afirma Greco que a coisa julgada é “uma garantia essencial do direito fundamental à segurança jurídica”. Cita o renomado autor 26. Anteriormente apresentara Greco uma primeira premissa: a da fragilidade da coisa julgada no direito brasileiro, sujeita a ataque, por meio da “ação rescisória”, em tantos casos que não se pode encontrar, no direito comparado, nenhum ordenamento que se aproxime do sistema aqui vigente a respeito do ponto. 256

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decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos nos casos Brumarescu v. Romênia (julgado em 28/10/1999); Pullar v. Reino Unido (julgado em 10/6/1996); Antonakopoulos, Vortsela e Antonakopolou v. Grécia (julgado em 14/12/1999) e Antonetto v. Itália (julgado em 20/07/2000), todas no sentido de que “a coisa julgada é uma imposição do direito à tutela jurisdicional”. Reconhece, porém, Greco, que a segurança jurídica não é um valor absoluto, razão pela qual afirma que à coisa julgada se sobrepõem a vida e a liberdade do ser humano e, por tal razão, a declaração de inconstitucionalidade deve determinar a anulação de qualquer condenação criminal anterior com base na lei tida como inválida. Afirma, em seguida, Leonardo Greco que nos processos de controle direto da constitucionalidade não há coisa julgada erga omnes. Para ele, “a força vinculante que decorre do controle concentrado corresponde à eficácia do precedente da common law, não tendo autoridade, por si mesma, para sobrepor-se ao ato de vontade do Estado que no julgamento do caso concreto atribuiu o bem disputado a este ou àquele litigante”. Não haveria, pois, coisa julgada posterior a desfazer coisa julgada anterior, “mas dois atos de vontade do Estado com as respectivas eficácias delimitadas pelos respectivos objetos litigiosos”. Como última premissa de seu pensamento, afirma Greco que “o controle da constitucionalidade das leis serve aos direitos fundamentais”, razão pela qual “das decisões sobre a constitucionalidade das leis não podem decorrer violações a direitos fundamentais, pois isso representaria o desvirtuamento da função primordial do próprio controle”. A partir das premissas anteriormente estabelecidas, ensina Leonardo Greco que (...) a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade em controle concentrado de normas pelo Supremo Tribunal Federal não deve ter nenhuma influência sobre anteriores sentenças transitadas em julgado que tenham fundamento em entendimento contrário ao do STF sobre a questão constitucional.

Sendo a segurança jurídica um direito fundamental, leciona Greco, atua ela como limite que não permite a anulação do julgado com fundamento na decisão do STF. O único remédio processual cabível para essa invalidação, segundo o notável processualista, seria a “ação rescisória”, se ainda subsistir o prazo para exercício do direito à rescisão. Greco termina sua exposição 257

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afirmando que, “em síntese, a segurança jurídica, como direito fundamental, assegurada pela coisa julgada, não permite, como regra, a propositura de ação de revisão da coisa julgada como consequência da declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal”. Vê-se, assim, que para Leonardo Greco é inadmissível a desconsideração da coisa julgada, por ser esta uma garantia fundamental, decorrente da garantia de segurança jurídica estabelecida pelo art. 5º da Constituição da República. E Greco não é o único a se manifestar contrariamente à desconsideração da coisa julgada. Também se pronunciou sobre o tema o professor gaúcho Sérgio Gilberto Porto. Para este há de se reconhecer a existência de uma tendência doutrinária e jurisprudencial à “relativização” da coisa julgada, afirmando que para os integrantes de tal tendência seria possível, em certas situações excepcionais, admitir que a coisa julgada seja afastada sem necessidade de prévia rescisão do julgado. Manifesta-se, então, o jurista gaúcho contrário a tal entendimento, sustentando, antes de tudo, a natureza constitucional da garantia da coisa julgada.27 Depois de examinar a tese da relativização, afirma Porto que, (...) maxima venia do entendimento adotado que passou a admitir a relativização da coisa julgada por nova decisão jurisdicional, sem que prévia e necessariamente tenha sido invalidada a sentença anterior transita em julgado, deste ousamos divergir, não no que diz respeito ao conteúdo substancial de tais pronunciamentos, mas na forma por eles propostas, eis que, no sistema brasileiro, longe de dúvida, é possível – sim! – rever a decisão trânsita em julgado, ou seja, superá-la. Todavia, em face de seus naturais efeitos negativos, não pode e não deve o novo juízo tentar mitigá-la simplesmente desconhecendo o accertamento (julgamento) anterior, vez que, sob o ponto de vista jurídico, indispensável a prévia e necessária invalidação deste e tão somente após poderá haver rejulgamento da relação anteriormente normada.28

Propõe, assim, o professor da PUC gaúcha que haja uma modificação do regime da “ação rescisória”, a fim de que se admita, em certas hipóteses excepcionais, que a rescisão se dê em prazo maior ou até mesmo sem que

27. Sérgio Gilberto Porto, “Cidadania processual e relativização da coisa julgada”, in Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, v. 22. Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 5. 28. Idem, p. 11. 258

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o direito à rescisão fique sujeito a qualquer prazo. São palavras do ilustre jurista: Assim, em tempos de reformas processuais, parece oportuno a revisão das hipóteses de cabimento de AR e, quiçá, até mesmo, o exame da vigência do prazo decadencial existente, observando, por derradeiro, que no plano criminal a revisão – irmã siamesa da rescisória – não goza desta limitação, em face da natureza relevante do direito posto em causa e, ao que consta, tal circunstância não gera uma crise social intolerável.29

E conclui: Desta forma, a ampliação das hipóteses de cabimento de demanda de cunho rescisório, a dilação do prazo decadencial para interposição destas e a supressão deste para hipóteses excepcionalíssimas, vez que portadoras de vícios inconvalidáveis, parece ser uma bem temperada fórmula de pacificação jurídica. Portanto, maxima venia, o desafio não é – simplesmente – relativizar de qualquer modo, a qualquer tempo e por qualquer juízo a coisa julgada, em verdadeiro desprestígio aos óbvios motivos que ensejaram sua criação, mas sim prestigiá-la, com um sistema, dentro da ordem jurídica, compatível com a realidade deste início de século.30

Entendimento análogo é sustentado por José Maria Rosa Tesheiner, outro notável processualista gaúcho. 31 Para o mestre, tem-se observado forte tendência, no Brasil, no sentido de mitigar ou “relativizar” a coisa julgada. Chega mesmo Tesheiner a falar em uma tendência, “bem moderna, de desdenhar, senão de eliminar, o instituto da coisa julgada”. Sustenta o autor, então, que o melhor seria, para os casos – relativamente raros – de sentenças “objetivamente desarrazoadas”, abrir-se a possibilidade de sua rescisão a qualquer tempo. E conclui: “O que absolutamente não pode prevalecer é a ideia de que possa qualquer juiz ou tribunal desrespeitar a coisa julgada decorrente de decisão proferida por outro órgão judiciário, de igual ou superior hierarquia, a pretexto de sua nulidade ou erronia”.

29. Idem, p. 12. 30. Idem, p. 13. 31.  José Maria Rosa Tesheiner, “Relativização da coisa julgada”, artigo publicado na internet, in http://www.tex.pro.br/wwwroot/33de020302/relativizacaodacoisajulgada.htm. 259

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Do que até aqui se expôs já se pode notar a existência de duas tendências na moderna doutrina: a que nega a possibilidade de relativização da coisa julgada (Leonardo Greco) e a que afirma a necessidade de se permitir a rescisão, a qualquer tempo, de sentenças transitadas em julgado que sejam “objetivamente desarrazoadas” (Sérgio Gilberto Porto e José Maria Rosa Tesheiner). Nenhuma dessas tendências, porém, tem se revelado dominante. Predomina, mais modernamente, a tendência doutrinária a permitir a relativização da coisa julgada independentemente de prévia desconstituição da sentença firme, em casos excepcionais. É dessa tendência que se passa a tratar. Merece relevo, em primeiro lugar, dentre o que se tem apresentado na doutrina a respeito desta tendência, o sustentado por Cândido Rangel Dinamarco. Firme no entendimento segundo o qual a coisa julgada material seria a imutabilidade dos efeitos da sentença, assim entendidas as consequências produzidas por uma sentença fora do processo, atingindo a vida das pessoas (o que, segundo ele, faz com que as sentenças terminativas não alcancem a coisa julgada material, mas só a formal), sustenta o ilustre processualista de São Paulo que há sentenças que só aparentemente produzem efeitos, pois estes são repelidos por razões superiores, de ordem constitucional. Haveria aí, pois, uma impossibilidade jurídica de que tais efeitos se produzissem, o que impediria a formação da coisa julgada material.32 Diz, então, o professor das Arcadas; “Ora, como a coisa julgada não é em si mesma um efeito e não tem dimensão própria, mas a dimensão dos efeitos substanciais da sentença sobre a qual incida, é natural que ela não se imponha quando os efeitos programados na sentença não tiverem condição de impor-se”.33 Ainda na mesma linha, manifestam-se Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria, assinalando que (...) a coisa julgada não pode suplantar a lei, em tema de inconstitucionalidade, sob pena de transformá-la em um instituto mais elevado e importante que a lei e a própria Constituição. Se a lei não é imune, qualquer que seja o tempo decorrido desde a sua entrada em vigor, aos efeitos negativos da inconstitucionalidade, por que o seria a coisa julgada?34

32. Cândido Rangel Dinamarco. Relativizar a coisa julgada. In Nascimento (coord.), Coisa…, cit., p. 58-59. 33. Idem, p. 59. 34. Humberto Theodoro Júnior; Juliana Cordeiro de Faria. A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. In Nascimento (coord.), Coisa…, cit., p. 133. 260

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Sustentam os ilustres juristas mineiros que a coisa julgada não é uma garantia constitucional, limitando-se a Lei Maior a estabelecer que a res iudicata estaria protegida contra e lei nova, que não poderia retroagir.35 E, a seguir, lecionam os respeitados juristas: Uma decisão que viole diretamente a Constituição, ao contrário do que sustentam alguns, não é inexistente. Não há na hipótese de inconstitucionalidade mera aparência de ato. Sendo desconforme à Constituição o ato existe se reúne condições mínimas de identificabilidade das características de um ato judicial, o que significa dizer, que seja prolatado por um juiz investido de jurisdição, observando aos requisitos formais e processuais mínimos. Não lhe faltando elementos materiais para existir como sentença, o ato judicial existe. Mas, contrapondo-se a exigência absoluta da ordem constitucional, falta-lhe condição para valer, isto é, falta-lhe aptidão ou idoneidade para gerar os efeitos para os quais foi praticado.

E prosseguem: “Assim, embora existente, a exemplo do que se dá com a lei inconstitucional, o ato judicial é nulo”. 36 Afirmam os citados juristas mineiros que “em face da coisa julgada que viole diretamente a Constituição, deve ser reconhecido aos juízes um poder geral de controle incidental da constitucionalidade da coisa julgada”.37 Sendo assim, a inconstitucionalidade da sentença transitada em julgado poderia ser reconhecida por qualquer juízo ou tribunal, até mesmo de ofício, a qualquer tempo. Esta tendência à relativização da coisa julgada, como dito anteriormente, é a que vem prevalecendo na doutrina mais recente, inclusive com reflexos na jurisprudência (como se pode ver, por exemplo, pelo acórdão proferido pelo STJ no recurso especial nº 226.436/PR, de que foi relator o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, onde se afirma expressamente a mitigação da coisa julgada).38 35. Idem, p. 139-140. 36. Idem, p. 148. 37. Idem, p. 154. 38. Da ementa do aludido acórdão pode-se extrair o seguinte trecho, atinente ao tema sub examine: “A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, ‘a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de 261

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Vê-se, do quanto até aqui se expôs que o dilema a que venho me referindo existe e está posto diante da doutrina e da jurisprudência. Afinal, deve-se ou não “relativizar” a coisa julgada? A meu juízo, a “relativização” se impõe. E passo a apresentar as razões que me levam a adotar tal entendimento. Em primeiro lugar, devo dizer que não tenho a menor dúvida em afirmar que a coisa julgada é uma garantia constitucional e, ainda mais do que isso, um direito fundamental. E chego a essa conclusão não só em razão do fato de ser a coisa julgada um corolário da garantia constitucional da segurança jurídica, estabelecida pelo caput do art. 5º da Lei Maior, mas também em razão do disposto no inciso XXXVI do mesmo artigo constitucional. Este dispositivo não tem, a meu sentir, o alcance limitado que a ele se vem atribuindo. Ao afirmar a Constituição que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, não se está apenas assegurando o princípio da irretroatividade das leis. Sustentar isto implica, a meu ver, ler a Constituição à luz da Lei de Introdução ao Código Civil, cujo art. 6º estabelece que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Ora, não se deve ler a Constituição à luz da norma infraconstitucional, mas exatamente o contrário! O texto da Lei de Introdução ao Código Civil conduz, a toda evidência, uma norma destinada a assegurar o princípio da irretroatividade das leis. estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade’”. Merece referência, também, importante decisão do STF (RE 363889/DF; Rel. Min. Dias Toffoli; j. em 02/06/2011), assim ementada: “Recurso extraordinário. Direito processual civil e constitucional. Repercussão geral reconhecida. Ação de investigação de paternidade declarada extinta, com fundamento em coisa julgada, em razão da existência de anterior demanda em que não foi possível a realização de exame de DNA, por ser o autor beneficiário da justiça gratuita e por não ter o estado providenciado a sua realização. Repropositura da ação. Possibilidade, em respeito à prevalência do direito fundamental à busca da identidade genética do ser, como emanação de seu direito de personalidade. 1. É dotada de repercussão geral a matéria atinente à possibilidade da repropositura de ação de investigação de paternidade, quando anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes, foi julgada improcedente, por falta de provas, em razão da parte interessada não dispor de condições econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado não ter custeado a produção dessa prova. 2. Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo. 3. Não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável. 4. Hipótese em que não há disputa de paternidade de cunho biológico, em confronto com outra, de cunho afetivo. Busca-se o reconhecimento de paternidade com relação a pessoa identificada. 5. Recursos extraordinários conhecidos e providos”. 262

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A Constituição da República, contudo, vai muito além disso, e estabelece que o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada estão protegidos contra leis que se destinem a prejudicá-los. Ora, nada há que permita considerar que a retroatividade seja a única forma de se prejudicar tais institutos. É claro que a lei retroativa será inconstitucional sempre que prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada. Será, porém, inconstitucional qualquer lei que prejudique aqueles institutos jurídicos, ainda que sem retroagir. Basta pensar, por exemplo, na Lei nº 9.494/1997, que estabeleceu limites territoriais para a coisa julgada formada em processo de “ação civil pública”, enfraquecendo o alcance da autoridade de coisa julgada. Tal lei, por prejudicar a coisa julgada, é inconstitucional, ainda que não tenha efeitos retroativos. A coisa julgada é, pois, garantia constitucional. Isto, porém, não implica afirmar que a mesma seja absoluta. Nem mesmo as garantias constitucionais são imunes à relativização. E esta relativização, frise-se, pode ser inferida do sistema ou imposta até mesmo por norma infraconstitucional. Em primeiro lugar, infere-se do sistema jurídico vigente a possibilidade de relativização de garantias constitucionais como decorrência da aplicação do princípio da razoabilidade, o qual é consagrado na Constituição através do seu art. 5º, LIV, que trata do devido processo legal. Assim é que diante de um conflito entre valores constitucionais, está o intérprete autorizado a afastar o menos relevante para proteger o mais relevante, o que fará através da ponderação dos interesses em disputa. Em segundo lugar, a norma infraconstitucional pode, por sua própria conta, ponderar tais interesses e estabelecer o modo como essa relativização se dará. É o que acontece, por exemplo, com a relativização do direito, constitucionalmente assegurado, à herança, que é limitado pelas normas infraconstitucionais que tratam da indignidade. É, pois, possível “relativizar” a garantia constitucional da coisa julgada. 39 A questão fundamental, no entanto, é saber quando isto poderá ocorrer. Diga-se, antes de tudo, que não se pode admitir a relativização diante da mera alegação de injustiça da sentença. Pronunciando-se sobre o ponto, manifestou-se um dos mais autorizados processualistas alemães contemporâneos, afirmando que 39. Registre-se, aliás, com Norberto Bobbio, citado por Leonardo Greco (“Eficácia…”, cit.), que no Direito há (ou, pelo menos, deve haver) apenas duas garantias absolutas: o direito de não ser torturado e o direito de não ser escravizado. Acrescento a este rol outra garantia absoluta: a garantia do brasileiro nato de que não será, em hipótese alguma extraditado. 263

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (...) a intangibilidade da declaração transitada em julgado não pode ser aplicada sem excepções. Questiona-se sob que pressupostos pode ser admitida a ofensa do caso julgado. Não é permitida a revogação ou alteração da sentença por simples incorrecção. Senão, bastaria a simples afirmação da incorrecção para impugnar qualquer sentença com trânsito em julgado e, assim, poderia repetir-se, novamente, qualquer processo findo. A parte vencedora no processo (anterior) seria forçada a discutir sempre de novo com a parte contrária e apenas seriam decisivos a obstinação e o poder financeiro, quando a calma chegasse. Desse modo, o caso julgado perderia o seu significado. É mais suportável que uma sentença incorrecta exista e deva aceitar-se, que qualquer sentença possa ser impugnada a todo o momento. Assim, o caso julgado garante que, mesmo no caso concreto, domine a segurança jurídica e desse modo um elemento essencial do Estado de direito e isto significa que um princípio constitucional do GG é realizado.40

Significa isto dizer que não se pode, simplesmente, admitir que a parte vencida venha a juízo alegando que a sentença transitada em julgado está errada, ou é injusta, para que se admita o reexame do que ficou decidido. A se admitir isso, estar-se-ia destruindo o conceito de coisa julgada, eis que a parte vencida sempre poderia fazer ressurgir a discussão sobre a matéria já definitivamente decidida, ficando qualquer juiz autorizado a reapreciar a matéria. Desapareceria, assim, a garantia de segurança e estabilidade representada pela coisa julgada. Por tal razão, entendo que apenas no caso de se ter algum fundamento constitucional é que será possível reapreciar o que ficou decidido por sentença transitada em julgado. Dito de outra maneira, apenas no caso de sentenças inconstitucionais transitadas em julgado será possível relativizar-se a coisa julgada. Isto se dá porque, como já foi dito anteriormente, a inconstitucionalidade é o mais grave vício de que pode padecer um ato jurídico, não sendo possível aceitar a ideia de que o trânsito em julgado de uma sentença que contraria a Constituição seja capaz de sanar tal vício que é, a toda evidência, insanável. Pense-se, por exemplo, em uma sentença que tenha determinado o pagamento de indenização por desapropriação em valor excessivo, muito 40. Othmar Jauernig. Direito processual civil. 2002, p. 335-336. Anote-se que a abreviatura GG, contida no texto citado, significa Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland, ou seja, a Lei Fundamental (Constituição Política) da República Federal Alemã, de 23/0/1949. 264

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superior ao justo (o que decorre, às vezes, até mesmo de conluio entre o interessado e o procurador da Fazenda Pública expropriante, como vez por outra se descobre através do noticiário apresentado pelos meios de comunicação social). Não se admitir a desconsideração da coisa julgada em um caso como este implica aceitar que alguém receba indenização que não é justa, o que contraria o disposto nos arts. 182, § 3º e 184, ambos da Constituição da República. O mesmo se dá no caso da “investigação de paternidade” julgada quando ainda não era possível a realização da perícia conhecida como exame de ADN (ácido desoxirribonucleico). A possibilidade de verificação, com um grau que se aproxima muito da certeza absoluta (ainda que, indubitavelmente, não haja – ressalvado apenas o caso da matemática e de seus teoremas – verdades científicas absolutas), da “paternidade” não pode ser afastada em razão de ter transitado em julgado sentença afirmando ou negando a paternidade sem que tal exame pudesse ter sido realizado. Estabelecer que alguém é “pai” quando isto não corresponde à verdade, ou vice-versa, contraria o mais relevante dos valores constitucionais, o da dignidade humana, sendo inegável que todos têm o direito, decorrente deste valor constitucional, de saber ao certo quem é ou não seu ascendente (ou descendente) biológico.41 É, pois, possível desconsiderar a coisa julgada, afastando-a, sempre que o conteúdo da sentença firme contrariar norma constitucional. Deste modo, não havendo qualquer fundamento constitucional para impugnação da sentença transitada em julgado, será impossível desconsiderar-se a coisa julgada material, podendo esta ser afastada apenas nos casos previstos em lei como geradores de rescindibilidade (art. 485 do Código de Processo Civil), no prazo e pela forma legais. Resta, pois, verificar quais são os mecanismos processuais capazes de permitir que se reabra a discussão sobre o que ficou coberto pela autoridade de coisa julgada apesar da violação da Constituição.

41. Permito-me, aqui, uma observação paralela ao tema da exposição. Falo em ascendência biológica no lugar de paternidade (e ponho, no texto, as palavras paternidade e pai entre aspas) por estar absolutamente convencido de que paternidade é uma relação decorrente do amor, e não da biologia. Aquele que fornece o material genético para a concepção é ascendente biológico mas não é, necessariamente, pai. A sabedoria popular sempre afirmou que “pai é quem cria”. Registro o fato não só por convicção pessoal, mas como manifestação de meu amor por meus filhos Rodrigo e Guilherme, de quem me sinto pai não por causa dos espermatozoides, mas em razão do imenso amor que sinto por eles, e que sei que eles sentem por mim. 265

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4. Mecanismos processuais para rediscutir a coisa julgada O primeiro meio adequado para que se suscite a inconstitucionalidade da sentença transitada em julgado é, indubitavelmente, a “ação rescisória”. Esta poderá ser ajuizada com fundamento no disposto no art. 485, V, do Código de Processo Civil, que permite a rescisão de sentenças transitadas em julgado que violem “literal disposição de lei”. É sabido que este dispositivo não pode ser interpretado literalmente, sendo certo que a rescindibilidade existirá sempre que a sentença transitada em julgado “violar direito em tese”.42 Assim sendo, será possível rescindir-se a sentença inconstitucional transitada em julgado, proferindo-se em seguida um novo julgamento da causa. A “ação rescisória”, porém, é um remédio processual cuja utilização é limitada no tempo. Como notório, o art. 495 do CPC fixa um prazo bienal, de natureza decadencial, para o exercício do direito à rescisão das sentenças transitadas em julgado, tendo tal prazo por termo a quo o momento exato da formação da coisa julgada. É preciso, assim, verificar se outros mecanismos processuais existem que tornem possível rediscutir-se o conteúdo de sentença inconstitucional transitada em julgado. Outro mecanismo processual logo se revela adequado, em razão de expressa previsão de sua utilização para tal fim. Refiro-me aos embargos do executado, na forma do disposto no parágrafo único do art. 741 do Código de Processo Civil e à impugnação ao cumprimento de sentença, nos termos do art. 475-L, § 1º, do CPC. Aludidos dispositivos permitem a alegação, em sede de embargos do executado opostos incidentemente a um processo de execução contra a Fazenda Pública ou em impugnação ao cumprimento de sentença, de inexigibilidade da obrigação representada pelo título executivo, considerando também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal. Os dispositivos a que se acaba de fazer referência, registre-se, têm sido alvo de divergências no que concerne à sua compatibilidade com a Constituição da República, uma vez que permitem a desconsideração da 42. Sobre o ponto, seja-me permitido fazer remissão, inclusive para outras indicações bibliográficas, ao que escrevi alhures: Alexandre Freitas Câmara. Ação rescisória. 2007, p. 77-89. 266

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coisa julgada, o que é inaceitável para alguns juristas.43 Trata-se, porém, de dispositivos que contam com apoio de autorizada doutrina. Basta ver, por exemplo, que seu conteúdo já era sustentado antes mesmo de tais dispositivos serem incorporados ao CPC por Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria, como se pode ver no seguinte excerto da obra dos ilustres juristas: Esse mecanismo de controle pode ser utilizado também no direito brasileiro, porque nas execuções de sentença o art. 741, II, do CPC admite embargos para arguir a ‘inexigibilidade do título’, e sendo nula a coisa julgada inconstitucional, não se pode tê-la como ‘título exigível’ para fins executivos. Com efeito, a exigibilidade pressupõe sempre a certeza jurídica do título, de maneira que não gerando certeza a sentença nula, carecerá ela, ipso facto, de exigibilidade.

E, adiante, afirmam os professores mineiros: “Após a publicação das ideias esposadas no item supra e diversos debates em Seminários, foi, recentemente, editada a Medida Provisória nº 2.180/2001, que tornou regra expressa as sugestões indicadas no item anterior”.44 O disposto no parágrafo único do art. 741 e no § 1º do art. 475-L nada mais é do que decorrência do alcance erga omnes das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em processos de controle direto da constitucionalidade.45 Não se aceitar o afastamento da coisa julgada em casos como os a que aludem o parágrafo único do art. 741 do CPC e o § 1º do art. 475-L do mesmo Código implicaria restringir ilegitimamente o alcance das decisões da Corte Suprema. Basta imaginar o seguinte exemplo: alguém é condenado a pagar certa quantia em dinheiro, tendo a sentença por fundamento o disposto em certa lei. Transitada em julgado esta sentença condenatória, vem o Supremo Tribunal Federal, em processo de controle direto da constitucionalidade, a declarar a inconstitucionalidade daquela mesma lei. Consequência disso é que ninguém terá de pagar a verba a que a mesma se refere. A não desconsideração da coisa julgada formada naquele primeiro processo faria com que todos ficassem livres da obrigação, menos 43. Afirma a inconstitucionalidade da norma, por exemplo, Greco, “Eficácia…”, cit. 44. Theodoro Júnior e Faria, “A coisa julgada…”, cit., p. 154. Posteriormente, tais dispositivos passaram a ter sua redação determinada pela Lei nº 11.232/2005. 45. Sobre este alcance, e seus precisos limites, seja-me consentido referir o que escrevi em outra sede: Alexandre Freitas Câmara. A coisa julgada no controle direto da constitucionalidade. In Daniel Sarmento (org.). O controle de constitucionalidade e a Lei 9.868/99. 2001, passim. 267

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o que ali ficou vencido. Dito de outro modo, a decisão do STF teria alcance que não seria, a rigor, erga omnes, pois alcançaria a toda a sociedade menos ao vencido naquele primeiro processo, que seria a única pessoa a ter de cumprir a obrigação decorrente de lei declarada inconstitucional. Ora, se a decisão do STF é oponível contra todos, também aquele que fora condenado com base na lei inconstitucional fica livre da obrigação, razão pela qual seu pagamento não pode ser exigido. E a defesa do executado se apresenta como meio processual adequado para a alegação de tal inexigibilidade. Registre-se, ainda, o fato de que – por ser a matéria de ordem pública – poderá tal alegação ser feita independentemente do oferecimento dos embargos ou da impugnação, através da “exceção de pré-executividade”. É certo, porém, que tanto os embargos do executado como a impugnação ao cumprimento de sentença ou a “exceção de pré-executividade” só poderão ser usados quando a sentença inconstitucional transitada em julgado tiver natureza condenatória. Além disso, sua utilização pressupõe a inércia do executado, que pode optar por se adiantar ao exequente e, antes mesmo do ajuizamento da execução, querer tomar as medidas judiciais cabíveis para ver reconhecida a inconstitucionalidade do conteúdo da sentença transitada em julgado. Para tais hipóteses, poderá o vencido no processo em que se proferiu a sentença inconstitucional já transitada em julgado valer-se da querella nullitatis.46 Esta é, apesar do nome – que pode induzir ao erro – uma demanda de declaração de ineficácia da sentença transitada em julgado. Como sabido, a coisa julgada possui eficácia sanatória geral, o que significa dizer que uma vez transitada em julgado a sentença convalescem todas as invalidades eventualmente existentes no processo. Desaparecidas as invalidades, porém, pode sobreviver a ineficácia (como se dá, por exemplo, no caso se ter sido proferida a sentença de mérito sem que fossem citados todos os litisconsortes necessários, na forma do que dispõe o art. 47 do CPC). E essa ineficácia poderá ser reconhecida através do ajuizamento de demanda visando à sua declaração. É a querella nullitatis, instituto originário do direito romano e que sobrevive no direito moderno.47 46. Sobre a querella nullitatis ainda não se produziu, no Brasil, trabalho que supere a excelência do ensaio de Adroaldo Furtado Fabrício. Réu revel não citado, ‘querela nullitatis’ e ação rescisória. In Revista de Processo, 1987, v. 48, p. 27 et seq. Merece registro, também, a monografia de Alexander dos Santos Macedo. Da querela nullitatis – sua subsistência no direito brasileiro. 1998. 47. Sobre o ponto, não se pode deixar de lembrar o clássico ensaio de Piero Calamandrei. Sopravvivenza della querela di nullità nel processo civile vigente. In Piero Calamandrei. Opere giuridiche. 1979, v.VIII, p. 515 et seq. Ensina o inolvidável mestre florentino, em lição aplicável 268

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É de se verificar, porém, que em todos os mecanismos processuais até aqui apresentados a questão da inconstitucionalidade da sentença se apresentará como questão principal do processo a ser instaurado. Assim, por exemplo, ajuizada a querella nullitatis a questão principal a ser resolvida será, precisamente, a da inconstitucionalidade da sentença anteriormente proferida e transitada em julgado. Conforme a resolução dada a essa questão será procedente ou improcedente o pedido formulado pelo demandante. Nada impede, porém, que a questão da inconstitucionalidade da sentença transitada em julgado seja suscitada como questão prévia, a ser resolvida incidenter tantum. Pense-se, por exemplo, no caso da “ação de investigação de paternidade” julgada sem realização do exame de ADN. Transitada em julgado a sentença declaratória da “paternidade”, nada impede que, posteriormente, aquele que foi declarado “pai” vá a juízo propor demanda negatória de paternidade, pedindo para que se declare que ele não é o pai do seu suposto filho. Neste caso, a questão da inconstitucionalidade da sentença anterior será apreciada como questão prévia ao mérito.48 Sintetizando: a ineficácia da sentença inconstitucional transitada em julgado poderá ser reconhecida por qualquer meio idôneo, ou seja, por qualquer meio capaz de permitir que essa questão seja suscitada em outro processo, como questão principal ou como questão prévia.

5. Propostas de lege ferenda Do quanto se disse até aqui, torna-se possível afirmar que diante de eventual conflito entre a segurança representada pela coisa julgada e a justiça representada pelo respeito à Constituição, esta última deve prevalecer. Isto, aliás, nada mais é do que aplicação da sábia advertência de Couture: “O direito não é um fim, mas um meio. Na escala dos valores, não aparece o direito. Aparece, no entanto, a justiça, que é um fim em si, e a respeito da qual o direito é tão somente um meio para atingi-la. A luta deve ser, pois, a luta pela justiça”.49 ao direito brasileiro, que “também a verdadeira querela de nulidade, não como adaptação à sentença absolutamente nula da genérica ação declaratória de nulidade (actio nullitatis), mas como específico meio processual para impugnar diante do juízo superior a sentença anulável (querela nullitatis do direito comum) sobrevive in re, senão in nomine, no nosso direito (op. cit., p. 519). 48. Registre-se que isto já vem sendo aceito pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. Confira-se, pois, a nota de rodapé nº 38, e o texto que lhe corresponde. 49. Eduardo Juan Couture. Os mandamentos do advogado. 1987, p. 40. 269

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Há, porém, um problema que não pode deixar de ser enfrentado: o da instabilidade que a desconsideração da coisa julgada pode gerar. O ordenamento jurídico vigente, como demonstrado, permite a desconsideração da coisa julgada por diversos mecanismos, entre os quais alguns que permitirão que uma decisão judicial inconstitucional proferida por um órgão superior seja desconsiderada por órgão inferior. Isto pode gerar uma insegurança prejudicial à pacificação social que é, afinal de contas, o escopo maior da jurisdição. Por isso é que se deve buscar um aperfeiçoamento do sistema, o que leva à apresentação, que passo a fazer, de uma proposta, de lege ferenda, para o aperfeiçoamento do sistema. A meu sentir, deve-se acrescentar um novo inciso ao art. 485 do Código de Processo Civil. Através deste novo dispositivo estabelecer-se-ia que a sentença de mérito transitada em julgado poderia ser rescindida quando ofendesse norma constitucional. Não bastaria, porém, acrescentar este novo inciso ao art. 485 do CPC, mesmo porque a rigor tal dispositivo, sozinho, em nada inovaria, uma vez que – conforme já se viu – a rescisão da sentença inconstitucional já é possível com base no disposto no inciso V daquele artigo. A criação do novo inciso só se justificaria se este fosse a “pedra fundamental” de um novo regime, que para se completar dependeria de outras regras. Assim é que, criado o novo inciso a que me referi, seria preciso acrescentar-se, em seguida, um novo parágrafo ao mesmo art. 485 do CPC. Tal parágrafo estabeleceria que “a sentença de mérito transitada em julgado que ofende a Constituição só deixa de produzir efeitos após rescindida na forma prevista neste Capítulo, permitida a concessão, pelo relator, de medida liminar que suspenda temporariamente seus efeitos se houver o risco de que sua imediata eficácia gere dano grave, de difícil ou impossível reparação, sendo relevante a fundamentação da demanda rescisória”. Deste modo, a “ação rescisória” passaria a ser o único meio adequado para a desconstituição da sentença transitada em julgado que ofende a Constituição da República. Com este modelo que ora se propõe, estar-se-ia alcançando, a meu ver, um ponto de equilíbrio entre os dois valores que entram em conflito diante da sentença inconstitucional transitada em julgado, a segurança e a justiça. Afinal, a se adotar este modelo, a coisa julgada prevaleceria até o julgamento da “ação rescisória”, permitida a suspensão liminar da eficácia da sentença nos casos em que estivessem presentes o periculum in mora e o fumus boni iuris. Para completar o sistema, porém, seria necessário acrescentar-se um parágrafo ao art. 495 do CPC, o qual estabeleceria que “sendo a ‘ação rescisória’ 270

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fundada em violação de norma constitucional o direito à rescisão pode ser exercido a qualquer tempo, não ficando sujeito ao prazo decadencial previsto neste artigo”. Consequência inexorável da adoção do modelo aqui proposto seria a revogação do parágrafo único do art. 741 e do § 1º do art. 475-L do Código de Processo Civil, que se tornariam incompatíveis com as novas regras adotadas. A grande vantagem do modelo que ora se propõe de lege ferenda sobre o que se tem hoje, de lege lata, é que assim se tornaria inviável que um juízo de primeira instância fosse capaz de desconstituir uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, só para figurar um exemplo. A meu sentir uma decisão proferida por um Tribunal e que já tenha alcançado a autoridade de coisa julgada só deve ser passível de desconstituição pelo próprio Tribunal que a proferiu, adotando-se para tanto o regime que no direito brasileiro sempre se aplicou à “ação rescisória”. Não é razoável que um juízo de primeira instância possa, como hoje pode, em embargos do executado ou em impugnação ao cumprimento de sentença, desconstituir até mesmo as decisões do Supremo Tribunal Federal. O modelo proposto se destina, pois, a equilibrar o regime hoje existente, buscando balancear adequadamente segurança jurídica e justiça das decisões. Espera-se, pois, que em futuro não muito distante, seja possível a adoção do modelo aqui proposto, alcançando-se deste modo o tão almejado equilíbrio entre os valores que o ordenamento jurídico deve ser capaz de produzir.

6. Considerações finais O direito processual moderno é um sistema orientado à construção de resultados justos. A ideologia do processualista contemporâneo, conhecida como processo civil de resultados, leva à necessária revisão de diversos conceitos que pareciam firmemente estabelecidos no panteão dos dogmas jurídicos. Isto se dá porque não é aceitável que, em um momento histórico como o atual, em que tanto se luta por justiça, possamos abrir mão dela em nome de uma segurança que não dá paz de espírito ao julgador nem tranquilidade à sociedade. É preciso, pois, “relativizar” a coisa julgada material, como forma de se manifestar crença na possibilidade de se criar um mundo mais justo. O processo só pode ser aceito como meio de acesso a uma ordem jurídica justa. E é preciso crer na possibilidade de construção dessa ordem jurídica justa para que à mesma se possa chegar. Afinal, como disse – com a costumeira sabedoria – Calamandrei, “para encontrar a justiça, é necessário 271

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ser-lhe fiel. Ela, como todas as divindades, só se manifesta a quem nela crê”.50 Espero, apenas, que esta exposição seja recebida como uma profissão de fé na justiça e na capacidade que os magistrados brasileiros têm de transformá-la em realidade.

Referências CALAMANDREI, Piero. Sopravvivenza della querela di nullità nel processo civile vigente. In CALAMANDREI, Piero. Opere giuridiche. Nápoles: Morano, 1979, v. VIII, p. 515 et seq. ______ . Eles, os juízes, vistos por um advogado. Eduardo Brandão (trad. bras.). São Paulo: Martins Fontes, 1995. CÂMARA, Alexandre Freitas. A coisa julgada no controle direto da constitucionalidade. In Daniel Sarmento (org.). O controle de constitucionalidade e a Lei 9.868/99. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. ______ . Ação rescisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. J. Guimarães Menegale (trad. bras.). 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1969, v. 1. COSTA, Sergio. Manuale di diritto processuale civile. 5. ed. Turim: UTET, 1980. COUTURE, Eduardo Juan. Revocación de los actos procesales fraudulentos. In COUTURE, Eduardo Juan. Estudios de derecho procesal civil. 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1989, tomo III. ______ . Os mandamentos do advogado. Ovídio Baptista da Silva e Carlos Otávio Athayde (trad. bras.). 3. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1987. ______. Fundamentos do direito processual civil. Rubens Gomes de Souza (trad. bras.). São Paulo: Saraiva, 1946. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001, v. III. FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Réu revel não citado, ‘querela nullitatis’ e ação rescisória. Revista de processo, v. 48. São Paulo: RT, 1987, p. 27 et seq. GOLDSCHMIDT, James. Derecho procesal civil. Leonardo Prieto Castro (trad. esp.). Barcelona: Labor, 1936. GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. Teoría general del derecho procesal. Buenos Aires: Ediar, 1996. GRECO, Leonardo. Efeitos da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior. In http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto167.htm. 50. Piero Calamandrei. Eles, os juízes, vistos por um advogado. 1995, p. 4. 272

14 – Desconsideração da coisa julgada material

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Algumas novidades do Sistema Recursal no Novo CPC Celso Anicet Lisboa

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Introdução. 1. Projeto de Lei do Código de Processo Civil, arts. 949 e 966. 1.1. Glossário. 2. Apelação sem efeito suspensivo. 2.1. Efeito suspensivo: regra geral na apelação. 2.2. Pedido de suspensão dos efeitos da sentença apelada. 2.3. O mero protocolo de petição como ato suficiente para impedir os efeitos da sentença. 2.4. Pedido de suspensão dos efeitos de decisão recorrida (I). 2.5. Condição jurídica da sentença pendente de apelação. 2.6. Pedido de suspensão dos efeitos de decisão recorrida (II). 3. Razões ou contrarrazões da apelação como sucedâneo do agravo retido. 3.1. Exclusão do agravo retido do sistema recursal brasileiro.

Introdução

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á muitas novidades no novo CPC em matéria recursal, de modo que comentar todas importaria redigir um texto muito longo, fora dos limites dados a cada expositor. Assim, nos cingiremos a abordar dois pontos: (1) a fisionomia que terá o recurso de apelação; (2) as consequências no sistema recursal da ausência do agravo retido. Para tornar mais prática a exposição, fizemos um pequeno glossário, com expressões usadas em tema recursal, assim como optamos em transcrever os dois artigos mais mencionados no nosso texto, que são os arts. 949 e 966, ambos do PL nº 8.046/2010.

* Professor Assistente de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá. Advogado. 275

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

1. Projeto de Lei do Código de Processo Civil, arts. 949 e 966 Art. 949. Os recursos, salvo disposição legal em sentido diverso, não impedem a eficácia da decisão. § 1º A eficácia da decisão poderá ser suspensa pelo relator se demonstrada a probabilidade de provimento do recurso, ou, sendo relevante a fundamentação, houver risco de dano grave ou difícil reparação, observado o art. 968. § 2º O pedido de efeito suspensivo do recurso será dirigido ao tribunal, em petição autônoma, que terá prioridade na distribuição e tornará prevento o relator. § 3º Quando se tratar de pedido de efeito suspensivo a recurso de apelação, o protocolo da petição a que se refere o § 2º impede a eficácia da sentença até que seja apreciado pelo relator. § 4 º É irrecorrível a decisão do relator que conceder o efeito suspensivo. Art. 966. A apelação será interposta e processada no juízo de primeiro grau; intimado o apelado e decorrido o prazo para resposta, os autos serão remetidos ao tribunal, onde será realizado o juízo de admissibilidade.

1.1. Glossário Dar provimento ao recurso para anular (cassar) a sentença ou anular o processo: denúncia de erro de procedimento feita pelo recorrente e acolhida pelo órgão recursal. O erro pode estar na própria decisão (sentença em sentido amplo) como no processo, contaminando a sentença. Quando o tribunal acolhe a denúncia do recorrente a consequência é a volta dos autos ao órgão de origem para que o erro existente seja corrigido. Se o recorrente – prestigiando o princípio da eventualidade – pede em primeiro lugar que seja julgada a parte do seu recurso referente ao erro de procedimento, e, depois, o erro de julgamento que a seu ver o órgão a quo cometeu, o recurso poderá ter dois julgamentos de mérito: um atinente ao error in procedendo e outro, desde que não seja dado provimento a esta parte, relativo ao error in iudicando. Está errado entender, como costuma ocorrer com frequência nos tribunais, que a primeira questão é preliminar ao mérito do recurso. E tanto isso é verdade que o recorrente poderia restringir sua impugnação ao erro de procedimento cometido pelo órgão emissor da decisão recorrida: em semelhante situação a questão de mérito (do recurso) não será de direito material, mas processual. 276

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Dar provimento ao recurso para reformar a sentença: julgamento proferido pelo tribunal de segunda instância (TJ ou TRF) ou superiores (STF ou STJ) que dá razão ao recorrente quando este aponta erro de julgamento na decisão recorrida. Há substituição desta pela decisão do órgão ad quem (conforme art. 512 CPC/1973 ou art. 962 PL 8.046/2010). Sentença: embora tenha duplo significado, a palavra é muito mais usada em seu sentido estrito (conforme art. 170) do que no sentido lato. Nesta última acepção inclui também os acórdãos. O art. 485 do CPC/1973 dava um bom exemplo de emprego do termo na dupla acepção. O “legislador” atual ao redigir o art. 919, correspondente ao que tratava da ação rescisória no CPC revogando (art. 485) quis separar os dois significados existentes no vocábulo “sentença”, utilizando-se, para tanto, de duas outras expressões: “sentença [de mérito]” e “acórdão de mérito”. Execução da sentença: em sentido lato (lato sensu ou impróprio) contrapõe-se à noção de execução no sentido estrito (stricto sensu ou próprio). Nesta última acepção trata-se da execução (cumprimento da sentença) propriamente dita. Atos judiciais praticados contra o devedor, incluindo a agressão ao seu patrimônio, a fim de fazer com o que foi decidido na sentença, seja (conforme a sintética definição de Carnelutti). No sentido lato não há atos de natureza executiva, mais se assemelhando aos administrativos. Por exemplo, certidão da sentença que decretou o divórcio das partes, a fim de que seja ela registrada no órgão de registro de pessoas naturais.

2. Apelação sem efeito suspensivo 2.1. Efeito suspensivo: regra geral na apelação A novidade do art. 949 (PL 8.046/2010) fica por conta da inversão da regra até agora vigente – a do art. 520, caput, do CPC/1973 –, de acordo com a qual a apelação (sublinhe-se: a apelação) era recebida com efeito suspensivo. Em 1993, José Carlos Barbosa Moreira1 já profetizava o que acontecerá, isto é, de que a regra existente (apelação com efeito suspensivo) transformar-se-ia em exceção, e vice-versa. E de fato essa será a maior modificação no sistema recursal brasileiro dos últimos anos, com repercussão tão intensa que certamente afetará todo o processo civil e até o nosso sistema 1. José Carlos Barbosa Moreira. Comentários ao CPC. Rio de Janeiro: Forense, 1993. v. V, p. 421. 277

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judiciário, mormente no que se refere ao primeiro grau de jurisdição. Quem sabe se agora   – quando o Brasil segue a tendência mundial de valorizar o julgamento de primeiro grau de jurisdição –   não se aproveita a oportunidade para melhorar a qualidade profissional dos nossos juízes de primeira instância, obrigando-os, por exemplo, a frequentar cursos voltados para o ensinamento de Direito Processual Civil, disciplina que, embora de vital importância para quem tem de dirigir um processo civil, está relegada ao segundo plano no contexto do ensino jurídico pátrio. De qualquer modo, a inovação tem mais a ver com o recurso de apelação (mãe de todos os demais). Os outros, ou já não tinham efeito suspensivo por expressa disposição legal (caso do agravo de instrumento, do recurso especial e do recurso extraordinário, conforme art. 497 CPC/1973), ou, se tinham efeito suspensivo, mal se notava o atributo, porque haveria de qualquer modo dificuldade prática de se executar a decisão atacada por eles (caso do agravo interno e dos embargos de declaração). Imaginemos a situação de sentença proferida em processo de anulação de escritura de compra e venda de um apartamento. No regime do CPC atual, se a decisão fosse atacada por apelação, a sentença de anulação porventura decretada pelo juiz não produziria efeitos, de modo que o comprador (réu do processo) ainda seria o dono do imóvel, podendo inclusive vendê-lo caso alguém se dispusesse a comprá-lo. Conforme o novo sistema, o vitorioso autor, mesmo na pendência de apelação interposta pelo réu/adquirente, poderá executar (lato sensu) a sentença de procedência, para o que deverá requerer ao juiz a extração de certidão da sentença a fim de efetuar o registro da nova situação na matrícula do imóvel no RGI. No caso, os efeitos (des)constitutivos da sentença de anulação do contrato produzir-se-ão desde logo independentemente do trânsito em julgado da decisão.

2.2. Pedido de suspensão dos efeitos da sentença apelada Ao apelante derrotado restam duas alternativas para evitar que a execução (não importando se for lato ou stricto sensu) da sentença ocorra, ambas previstas no dispositivo em comentário (art. 949). Primeira, requerer previamente, em petição avulsa, ao futuro relator – antes que a apelação suba – a suspensão dos efeitos da sentença apelada; nessa hipótese, pressupõe-se que já houve a interposição da apelação, mas o recurso está ainda em fase de processamento em primeira instância, que às vezes poderá ser demorado, muito embora a dicção do art. 966 do CPC. A expressão “petição autônoma” deve ser entendida cum granus salis (ou seja, com ressalva), isso 278

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porque é óbvio que somente com uma petição avulsa, desacompanhada de cópias de várias peças dos autos, como, por exemplo, a própria sentença apelada, as razões da apelação e talvez outras peças, como a petição inicial, a contestação etc., o relator (a não ser que tenha poderes sobrenaturais) não estará em condições de entender a causa e se convencer de que a apelação tem chance de ser provida. Portanto, enquanto o processo não for eletrônico, ou estiver tramitando por lugares em que ainda não o é, a petição a que se refere o § 2º do art. 949 não será avulsa, mas a primeira peça do instrumento da apelação, ou seja, estar-se-á criando a apelação por instrumento, tão falada logo no início da vigência do CPC/1973. A segunda alternativa para o apelante é usar as razões da apelação e na própria petição recursal requerer a suspensão dos efeitos da decisão apelada; embora a redação do § 2º não o diga, o pedido de suspensão deverá constar expressamente da petição da apelação, pois o relator não tomará a medida ex officio, com base na mera probabilidade de que ele ou o órgão colegiado irão prover o recurso. Aliás, se for o caso de provimento monocrático do recurso, não tem lugar o incidente de suspensão dos efeitos da sentença apelada, por motivos óbvios.

2.3. O mero protocolo de petição como ato suficiente para impedir os efeitos da sentença A petição contendo pedido de suspensão dos efeitos da sentença só poderá ser protocolada após ou simultaneamente a interposição da apelação; não faria sentido querer-se dar efeito suspensivo a algo que ainda não existe. Portanto, a condição para que o protocolo da petição avulsa impeça a “eficácia da sentença” é que já exista nos autos a apelação. Mas, mesmo em tal hipótese, a suspensão dos efeitos da sentença não é automática, a não ser que o apelante providencie ao mesmo tempo dois protocolos: o da petição avulsa dirigida ao tribunal; e de outra petição dirigida ao juiz responsável pela prolação da sentença, informando sobre o pedido que fez ao tribunal. Caso contrário, o juiz, que é justamente quem mais deve conhecer do ato, não fica dele sabendo. O sistema que será adotado pelo código de dar efeito suspensivo à apelação pela mera protocolização de uma petição, parte do princípio de que o futuro relator terá instantâneo conhecimento com os termos da petição que lhe foi dirigida, o que será possível ocorrer com a generalização do processo eletrônico. A não ser assim, e em comparação com regime anterior – em que em várias situações a apelação não tinha efeito suspensivo, por exemplo, 279

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na ação de alimentos julgada procedente – não seria um disparate falar em retrocesso, na medida em que o mero protocolo da petição avulsa já dá efeito suspensivo à apelação, independentemente do momento em que o relator a receberá. A decisão do relator deferindo o requerimento de concessão de efeitos suspensivo à apelação é irrecorrível, mas a de indeferimento poderá ser impugnada por meio de agravo interno (art. 975).

2.4. Pedido de suspensão dos efeitos de decisão recorrida (I) O caput do art. 949 tem disposição aplicável a qualquer tipo de recurso, não importando se ele visa a atacar decisão prolatada em primeiro ou segundo grau de jurisdição, ou até em instância especial. Os seus dois parágrafos estavam voltados, no anteprojeto, para regulamentar o pedido de suspensão dos efeitos de sentença proferida em primeiro grau de jurisdição, ou seja, da sentença no sentido estrito do vocábulo. Alterou-se a fórmula; dos quatro parágrafos do art. 949 apenas o § 3º trata com exclusividade da apelação.

2.5. Condição jurídica da sentença pendente de apelação Convém tratar da nova condição jurídica da sentença sujeita a recurso. No regime atual, a sentença assim que viesse aos autos e contra ela fosse interposta apelação, não transitaria jamais em julgado, a menos que o recurso não fosse conhecido ou que dela não houvesse desistência (sobre o ponto, José Carlos Barbosa Moreira).2 E tal ocorria porque ou a sentença pendente de recurso conhecido seria substituída pelo julgamento do tribunal (tanto no caso de “confirmação” como no de reforma) ou seria anulada. Qual será a sua condição jurídica quando estiver na dependência de apelação, no futuro sistema? Trata-se de ato jurídico processual que embora possa conter erros de julgamento e/ou de procedimento cometidos pelo juiz é válido e eficaz, desde o seu nascimento (publicação), sujeito, porém, a três condições resolutivas: (a) que a apelação não seja julgada em seu mérito (porque se isso ocorrer haverá necessariamente a sua reforma ou a sua confirmação ou a sua anulação); (b) que não haja protocolo do requerimento de suspensão de seus efeitos; (c) que o relator não lhe tire temporariamente os efeitos.

2. Op. cit., p. 234. 280

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2.6. Pedido de suspensão dos efeitos de decisão recorrida (II) A regra do direito brasileiro quanto aos efeitos dos recursos ainda é a de que eles têm efeito suspensivo, a não ser que a lei disponha de modo contrário (vide art. 497 CPC/1973). Inverter-se-á a fórmula, repita-se. Como, no entanto, no futuro regime, a decisão recorrida poderá trazer à parte danos irreparáveis ou de difícil reparação, ela poderá lançar mão de expediente que existe há muitas décadas no nosso direito, desde, pelo menos, o tempo do CPC/1939 (art. 843, § 2º): a possibilidade de se requerer a quem de direito a suspensão dos efeitos da decisão recorrida. Tal pedido, no futuro CPC, deverá ser feito ao relator do recurso interposto, mesmo que seja ministro do STJ ou STF, nos casos de interposição de recurso especial ou extraordinário, respectivamente. Seria de bom alvitre fazer uma distinção das situações em que o pedido seja feito a juiz de tribunal de segunda instância ou de tribunal superior. Quando se trata de pedido de suspensão de efeitos da sentença, o apelante, conforme já foi dito supra, tem duas alternativas (§§ 1º e 2º do art. 949). Em relação aos demais recursos – nenhum terá efeito suspensivo –, a apelação tem uma vantagem: o mero protocolo da petição autônoma do § 2º já impede a eficácia da sentença recorrida, coisa que não acontecerá, por exemplo, com o recurso especial. Se o pedido de suspensão dos efeitos for também dirigido a tribunal de segunda instância, mas sendo interlocutória a decisão objeto do pedido, a situação será bem diferente, em termos de processamento, do que ocorre com a sentença, em virtude da diversidade de órgão em que se interpõe o recurso contra uma ou outra decisão. O agravo de instrumento, como já é dirigido ao tribunal que o julgará, não necessitará, é certo, da tal petição avulsa. Seria um insuportável bis in idem dirigir o instrumento do agravo ao tribunal (que ali será distribuído imediatamente, conforme o art. 973) e, logo a seguir, fazer o mesmo com uma única petição separada dos autos do processo. Distribuído incontinente o agravo, o relator poderá negar-lhe seguimento (art. 888, III), ou, caso isso não ocorra, atribuir ou não efeito suspensivo, tudo em conformidade ao direito do CPC/1973. A grande inovação do art. 949 reside na expressa previsão de se requerer aos ministros dos tribunais superiores (STJ ou STF) a suspensão dos efeitos do acórdão recorrido. Como funcionará a nova disposição? Na teoria, de maneira muito simples. Na prática, porém, podem-se antever graves inconvenientes procedimentais, de acordo com o exposto abaixo.

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Pense-se no recurso especial. O órgão que recebe a petição recursal é um tribunal de segunda instância, TRFs ou TJs, e a decisão atacada por ele será um acórdão (art. 983, caput, do CPC combinado com o art. 105, III, da Constituição Federal). Diferentemente do que ocorre com o agravo de instrumento, que não tem processamento no órgão responsável pela decisão recorrida, e da apelação que teve sua tramitação enormemente reduzida em primeiro grau de jurisdição (conforme art. 966), o recurso especial (e também o extraordinário) manterá em termos de processamento no tribunal de origem, a mesma disciplina do direito vigente no CPC/1973. Pode-se até fazer uma graduação no que se refere ao processamento do agravo de instrumento, da apelação e do recurso especial, este no tribunal de segunda instância, dizendo-se que no primeiro caso não há processamento algum em primeira instância, no segundo, é mínimo (art. 966) e no terceiro, é máximo. Por esse motivo e quando o caso requerer urgência, o recorrente se socorrerá do incidente previsto no § 2º do art. 949, isto é, enquanto no tribunal a quo ocorre o longo processamento do recurso especial, ele dirigirá eletronicamente ao presidente do STJ a sua petição com o pedido de suspensão dos efeitos do acórdão recorrido. Esse pedido, embora a lei fale que deve ser feito em “petição autônoma”, deverá estar acompanhada da mesma série de peças dos autos a que nos referimos mutatis mutandis ao falar supra da apelação por instrumento. Embora no STJ os autos sejam virtuais (não existem fisicamente), também aqui a fortiori se pode prever a criação das figuras do recurso especial por instrumento eletrônico e do recurso extraordinário idem. E tal situação ocorrerá com mais frequência que a apelação, visto que o tempo de processamento do recurso especial no tribunal de origem é muito maior que o da apelação no juízo de primeiro grau. Protocolizada, portanto, a petição autônoma, o relator poderá desde logo suspender os efeito do acórdão recorrido, informando ao presidente do tribunal de origem a medida que tomou monocraticamente, a fim de ela seja cumprida. Essa medida, no entanto, é provisória e sua eficácia está condicionada, em primeiro lugar, à admissibilidade do recurso especial, tanto no tribunal a quo como no ad quem, e, em segundo lugar, à manutenção dela, a ser decidida pelo ministro na ocasião de examinar o recurso sob sua relatoria. Pode acontecer que, embora o relator defira o pedido avulso feito previamente pelo recorrente, o recurso especial não seja admitido no tribunal inferior. Mesmo nessa hipótese, a decisão do relator ainda não perderá sua eficácia, visto que existe chance de ser provido por ele o agravo de admissão interposto contra a decisão denegatória do recurso especial (art. 996). 282

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Aliter, nos casos em que o relator não proveja o agravo de admissão ou não conheça do recurso especial admitido no tribunal a quo. Em suma, o pedido de suspensão provisória do acórdão recorrido poderá ser reapreciado pelo relator em duas hipóteses: ou quando ele der provimento ao agravo de admissão para determinar a “subida” do recurso especial, ou quando esse recurso for admitido pelo próprio relator. Caso sua decisão seja mantida, ela é irrecorrível (§ 4º do art. 949). Na hipótese contrária, cabe agravo interno (art. 975) cujo julgamento será do órgão fracionário (turma) a que pertence o relator. Como esse último recurso também não tem efeito suspensivo, pois essa é a regra no novo sistema recursal, o acórdão objeto do recurso especial poderá ser executado (lato sensu) provisoriamente.

3. Razões ou contrarrazões da apelação como sucedâneo do agravo retido 3.1. Exclusão do agravo retido do sistema recursal brasileiro Existe certa implicância da justiça brasileira com os recursos cíveis, como se o seu elevado número (em comparação com o existente em outras paragens) fosse o grande responsável pelo crônico emperramento da máquina judiciária. Assim, em algumas das várias reformas procedidas no CPC de 1973, tratou-se de modificar o sistema recursal, quase sempre para dificultar a sua interposição, culminando agora com o PL nº 8.046/2010, que acabará com a carreira do agravo retido e dos embargos infringentes. Motivos outros desse verdadeiro câncer que existe no Estado brasileiro que é um poder judiciário pouco eficiente não foram levados em conta ou não são tocados, como, por exemplo, a enorme quantidade de dias em que não há expediente forense, principalmente depois que se disseminou pelo país afora a prática dos feriadões: “enforca-se” o dia subsequente ao feriado dependendo do dia da semana que ele for comemorado. Não há, dessa maneira, em inúmeras capitais, por exemplo, expediente na sexta-feira seguinte ao feriado de Corpus Christi, que invariavelmente é comemorado em uma quinta-feira de junho. Somando-se sábados, domingos, feriados propriamente ditos, feriadões, Dia do Funcionário Público, Dia da Justiça, Dia do Trabalho, semana do Carnaval, Semana Santa, semana em que no Rio de Janeiro (Capital) comemora-se São Jorge (dia 23 de abril, logo após Tiradentes), o recesso forense chega-se ao seguinte resultado: em 40% dos 365 dias do ano o Fórum fecha suas portas em comarcas e seções judiciárias do nosso Brasil. Além do mais, com o alongamento dos prazos processuais devido à nova 283

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maneira de se contar os dias (art. 186), não será difícil vaticinar que o novo CPC produzirá efeito contrário ao pretendido por seus idealizadores: o tiro sairá pela culatra, sem dúvida alguma, e brevemente haverá a sua reforma e depois a reforma da reforma e assim por diante em movimento contínuo sem nunca cessar, à semelhança do Bolero de Ravel. Uma das inovações trazidas pelo novo CPC é a exclusão do agravo retido do sistema recursal cível, com o que se pretendeu tirar do juiz de primeira instância a atividade de julgar ou, pelo menos, de processar esse recurso. A fim de entender melhor a inovação, faça-se um breve histórico da sua vida. Ele surgiu com esse nomen iuris em 1973, mas figura igual ou, pelo menos, muito parecida existia no CPC de 1939, com o nome de agravo no auto do processo (art. 851). Era de uma simplicidade tão gritante – podia até ser interposto oralmente – que se chegou a discutir se o agravo no auto do processo era mesmo um recurso ou se não passava de um simples protesto da parte prejudicada com a decisão judicial. Trazido ao CPC de 1939 “pela acuidade técnica do exímio processualista Machado Guimarães (conforme dito por Eliézer Rosa)3 tinha como principal missão impedir que inúmeras questões decididas pelo juiz ficassem preclusas. Por exemplo, se ele indeferisse o requerimento de produção de prova feito pela parte, cabia dessa decisão judicial agravo no auto do processo, cujo processamento era a simples remessa de petição fundamentada ao juiz a fim de que a questão do indeferimento da prova fosse examinada pelo tribunal por ocasião do julgamento da eventual apelação interposta contra a sentença. No anteprojeto Buzaid, o agravo no auto do processo, cuja raiz está fincada no antigo processo lusitano, não teve vez. Contudo, por influência de outro insigne processualista (Moniz de Aragão), o anteprojeto foi emendado quando tramitava pelo Congresso Nacional e o recurso foi vivificado, porém, com outra denominação: agravo retido ao invés de agravo no auto do processo. Assim, na versão original do Código Buzaid (o de 1973), contra as decisões interlocutórias (art. 162, § 2º) cabiam dois agravos: o retido e o agravo de instrumento (ou por instrumento, como preferem os puristas). O sistema, em tese, era perfeito para o processo de conhecimento, mormente o de rito ordinário, não se podendo dizer o mesmo quando o rito fosse outro, por exemplo, o sumário ou ainda inúmeros procedimentos especiais.

3. Eliézer Rosa. Dicionário de Processo Civil. p. 49 284

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Explica-se: no procedimento ordinário, bem ou mal, notam-se quatro fases, a saber: a postulatória, a de saneamento, a probatória e a decisória. E sendo, por isso, um procedimento altamente desconcentrado – vale dizer, os atos processuais nele praticados se protraem durante um largo período de tempo –, inúmeras questões incidentes surgem para o juiz decidir antes do pronunciamento final. Exemplos: (a) o réu na contestação argui a incompetência absoluta do juiz; (b) terceiro quer ingressar no processo na qualidade de assistente de uma das partes; (c) o juiz com apoio no parágrafo único do art. 46 (CPC/1973) determina ao autor, sob pena de indeferimento da inicial, a redução no número de litisconsortes: de dez para, no máximo, dois em cada ação; (d) há o indeferimento da oitiva de importante testemunha requerida pelo autor, sob o argumento de que a prova oral é impertinente à solução da lide. Diante dessas e outras questões (ponto duvidoso de fato ou de direito, conforme a sintética definição de Carnelutti) incidentais resolvidas pelo juiz por meio de decisões interlocutórias, o legislador tinha, a rigor, duas alternativas: ou não permitir que delas a parte recorresse de imediato, aguardando a sentença para só então nas razões ou contrarrazões da apelação denunciar os erros que no seu entender o juiz cometeu; ou dar desde logo, isto é, tão logo a decisão fosse proferida, à parte prejudicada pela decisão um recurso, a fim de que o erro apontado fosse também de imediato corrigido. Imagine-se a situação descrita no exemplo d anterior. Privar a parte de recorrer da decisão imediatamente poderia trazer-lhe consequências funestas. E para o Estado o prejuízo se traduziria em desperdício da atividade jurisdicional em caso de provimento da impugnação embutida na apelação dirigida contra a decisão indeferitória da oitiva da testemunha: seria anulado o processo; a audiência realizar-se-ia, com óbvio retardamento na entrega da prestação jurisdicional e todas as mazelas advindas daí, como o desprestígio da Justiça e eternização do litígio, que é tudo que o Estado não quer que aconteça. Melhor, portanto, conceder às partes a possibilidade de recorrer de imediato das decisões sobre as questões surgidas no processo, porque a correção do erro porventura existente seria rápida e, com isso, evitar-se-iam os problemas mencionados. Para atender a essa finalidade imaginou-se o agravo de instrumento, cuja origem remonta ao direito português do século XVI. Nesse recurso, as decisões do Judiciário em primeira instância que não fosse a última eram julgadas em separado pelo tribunal, à medida que delas os litigantes recorressem. Deveria caber apenas contra as que visivelmente trouxessem danos irreparáveis ou de difícil reparação para o recorrente, caso 285

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não fossem corrigidas rapidamente pelo tribunal – ou seja, o recorrente não poderia esperar que a questão decidida pelo juiz fosse examinada pelo órgão ad quem muito tempo depois de proferida, porque que aí talvez a correção do erro a quo não mais adiantasse; Inês já estaria morta, conforme os versos de Camões em Os Lusíadas. No entanto, o CPC de 1973, em sua primeira versão, prodigalizou o uso do agravo de instrumento, que cabia contra toda e qualquer decisão interlocutória, independentemente do dano que ela poderia causar ou não causar. Alternativamente, a parte poderia usar, não o agravo de instrumento – recurso de processamento extremamente complicado e que, dependendo da legislação judiciária de cada estado da federação ou da própria União, poderia sair caro –, mas o agravo retido, que, também cabível contra interlocutórias, tinha um processamento singelo, conforme já se disse supra a respeito do seu antecessor, o agravo no auto do processo. Haveria, portanto, para a parte que quisesse interpor agravo duas alternativas: ou interpunha agravo de instrumento ou retido. É claro que a escolha dependia (ou deveria depender) do caso concreto; em algumas situações, mais aconselhável o agravo retido e em outras, o por instrumento. No primeiro, a decisão recorrida não seria examinada imediatamente pelo órgão ad quem, como seria no caso do agravo de instrumento, porque dependia da interposição da apelação; como o próprio nome dá a entender o recurso ficava retido nos autos (no bojo dos autos) aguardando por uma eventual apelação a ser proposta contra a sentença, quando então caso o agravante não tivesse desistido implícita ou expressamente do agravo ele seria julgado em preliminar àquele recurso. Sua principal finalidade, por isso mesmo, era não deixar que a questão objeto da decisão interlocutória ficasse preclusa. Essa sistemática adotada pelo CPC de 1973 não funcionou na prática forense, razão pela qual em 1995 sofreu a primeira grande reforma. Dois inconvenientes se apresentaram no cotidiano do foro: (1) como o agravo era (e ainda é) um recurso sem efeito suspensivo (art. 497, CPC/1973), as partes quando se sentiam altamente prejudicadas pela decisão interlocutória, e inobstante a redação do art. 558 que permitia em alguns casos a atribuição de efeito suspensivo ao agravo de instrumento, impetravam mandado de segurança, com a função de dar efeito suspensivo ao agravo de instrumento interposto previamente. O outro inconveniente (2) tinha a ver com o processamento do recurso; muito complicado, cheio de ziguezagues, fazendo com que se perdesse muito tempo até que ele, que era interposto em primeira instância, subisse ao órgão ad quem. 286

15 – Algumas novidades do Sistema Recursal no Novo CPC

Para remediar esses inconvenientes, o legislador da Lei nº 9.139/1995, inspirado nas ideias de dois ministros do STJ (Sálvio de Figueiredo Teixeira e Athos Gusmão Carneiro), deu uma roupagem inteiramente diferente ao agravo de instrumento, que dali em diante passou a ser interposto diretamente em segunda instância, com a expressa possibilidade de o agravante requerer ao relator do agravo a concessão de efeito suspensivo ao recurso, além das hipóteses do art. 558. Por outras palavras: o agravo de instrumento passou a vestir as roupas do mandado de segurança contra ato judicial, ferindo de morte, ou quase matando, a utilização anômala desse último remédio. Uma jogada de mestre! Além do mais, a interposição em segunda instância refletiu-se sobre o processamento do recurso, terminando com o insuportável vaivém que existia anteriormente. O legislador, porém, não previu algo que acabou acontecendo na prática: como o agravo de instrumento passou a ser interposto no próprio órgão recursal, uma verdadeira avalanche de recursos soterrou os tribunais de segunda instância. Algo teria de ser feito. (Diga-se que antes da lei de reforma, os órgãos de primeira instância serviam de filtros para os incontáveis agravos que chegavam ao Poder Judiciário, visto que o juiz responsável pela decisão agravada poderia dela retratar-se incontinenti, impedindo dessa maneira que o recurso subisse ao tribunal.) Surgiu então outra lei que deu um primeiro passo na direção de socorrer os tribunais de segunda instância, a de nº 10.352/2001. (O passo seguinte viria com a Lei nº 11.187/2005 e o terceiro passo, com o novo CPC, conforme será visto mais à frente.) Em relação à Lei nº 9.139/1995, houve três alterações introduzidas no agravo, todas elas dificultando a interposição do agravo de instrumento, ou, pelo menos, impedindo que fosse julgado pelo órgão colegiado, em prestígio ao art. 557, que a partir de 1998 passou a dar poderes ao relator para unipessoalmente julgar recursos. Foram estas as alterações: o agravante não poderia mais escolher a modalidade de agravo quando se tratasse de interlocutória proferida em audiência de instrução e julgamento: teria de ser agravo retido, salvo os casos de dano irreparável (art. 523, § 4º); o relator poderia liminarmente negar seguimento ao agravo de instrumento (art. 527, inciso I) e também convertê-lo em agravo retido (art. 527, inciso II). Como, no entanto, o número de agravos de instrumentos não diminuiu, sancionou-se a Lei nº 11.187/2005, cuja disposição principal foi a de impedir que as partes agravassem de instrumento contra decisões interlocutórias, salvo em hipóteses excepcionais mencionadas no caput do art. 522, pois dali em diante (20/01/2006) contra tais decisões caberia agravo retido. Outra 287

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alteração foi a de tornar irrecorríveis as decisões (monocráticas) de relator que negasse seguimento ao agravo de instrumento ou o convertesse em agravo retido (parágrafo único do art. 527). Agora, com o novo CPC, por força do parágrafo único do art. 963, o “legislador” decretará a morte do agravo retido. Será uma boa medida? Entendemos que não, conforme será visto a seguir. De acordo com a relatora do anteprojeto do CPC, “no atual sistema [o anterior a este Código], a cada espirro do juiz cabe um recurso”. Foi baseado nesse entendimento que se podou o agravo retido da árvore dos recursos do novo CPC. É claro que a frase refere-se ao juiz de primeira instância e às decisões (interlocutórias) que ele toma ao longo do processo. No sistema dado pela Lei nº 11.187/2005, cabia em regra agravo retido e excepcionalmente agravo de instrumento (art. 522). Como o agravo retido tinha a função de evitar que as questões decididas pela interlocutória ficassem preclusas, o futuro CPC ao proclamar no parágrafo único do art. 963 exatamente isso, tornou o agravo retido um recurso sem serventia. Esse será o panorama no futuro. A primeira crítica de caráter geral que se deve fazer-lhe é a seguinte: o juiz continuará espirrando intermitentemente – não há como fugir desse destino em um procedimento altamente desconcentrado como é o ordinário. O “legislador” quis, porém, catalogar os espirros em duas espécies: os inofensivos e os malignos. Os primeiros não causam e os segundos causam prejuízo às partes. Assim, devem elas, em relação a estes, procurar de imediato um remédio, pois se assim não o fizerem o quadro se consolidará em definitivo. E o “legislador” do PL nº 8.046/2010 – como se fosse um médico – indica quais os malignos, concedendo agravo de instrumento contra eles. Essa ideia de interlocutórias irrecorríveis funciona muito bem no processo trabalhista e no procedimento que se desenvolve perante os Juizados Especiais Cíveis (sintomaticamente chamado de sumaríssimo), cuja principal característica repousa sobre a oralidade: concentração máxima da causa em uma só audiência, imediação e identidade física do juiz. Tome-se, como exemplo, um processo trabalhista. Como nele se dá um grande valor ao chamado princípio da primazia da realidade (de acordo com o qual as provas orais têm maior peso que as documentais), a audiência de instrução e julgamento é encarada com tal seriedade que chega a surpreender a quem está acostumado a participar ou mesmo a assistir ao ato correspondente na Justiça comum. Exemplo eloquente se tira da advertência que o juiz deve fazer às testemunhas antes do depoimento (sanção penal no caso de falsidade, art. X), jamais esquecida e, mesmo, enfatizada no processo trabalhista, mas um 288

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pouco desprestigiada no processo da Justiça comum. E se isso ocorre naquele processo, a justificativa é simples: dificilmente haverá outra oportunidade para a instrução do processo. Tudo ali será decidido, inclusive a própria causa. Se o juiz decide uma questão preliminar a respeito, por exemplo, da oitiva de uma testemunha, indeferindo o requerimento formulado pela parte, contra tal decisão não cabe recurso, no máximo um simples protesto a ser considerado em segunda instância por ocasião do eventual recurso a ser interposto contra a sentença (lá denominado recurso ordinário). Esse é o regime que se quer transplantado para o processo civil. Ocorre, porém, que, como se viu, a diferença na estrutura de um e de outro é brutal, e o sistema recursal deveria respeitá-la, sob pena de rejeição, conforme o tempo dirá. O parágrafo único do art. 963 do Projeto de Lei contém duas proposições: (a) questões que, a princípio, não ficam “cobertas pela preclusão”; (b) providência a ser tomada pela parte para fazer jus ao benefício. Preclusão, conforme ensina a doutrina, é, quanto ao seu aspecto objetivo, um expediente técnico que se vale o legislador para fazer com que o processo siga seu destino rumo à extinção. Deve ser associada à palavra retrocesso: há preclusão para que não haja retrocesso; ultrapassado um estágio, em regra, não se volta a ele, pois, caso contrário, o ziguezague repercutiria no tempo de entrega da prestação jurisdicional, que deve ser o menor possível, como se reclama modernamente. Existem três espécies de preclusão, estudadas e classificadas por Chiovenda:4 temporal, lógica e consumativa. A mais comum é a primeira. O acontecimento que impede que se volte a etapa já ultrapassada é o tempo. Concede-se, por exemplo, à parte prejudicada por uma decisão um prazo de quinze dias para recorrer. Caso ela assim não o faça, diz-se que houve preclusão temporal, no sentido que aquela situação disciplinada na decisão consolidar-se-á. A preclusão máxima no processo ocorre com o trânsito em julgado da sentença de mérito: coisa julgada material, que só poderá ser desfeita por meio de ação rescisória. (“A coisa julgada é a suma preclusão”, conforme diz Chiovenda.) No caso do dispositivo em comentário, a lei permite que se volte em segunda instância a discutir matéria suscitadas e resolvidas no processo, independentemente da altura em que isso ocorreu em primeira instância. Não há preclusão. Essa é a nova regra. Se, por exemplo, no início do processo o réu arguir o impedimento do juiz e se essa questão for solucionada 4. Chiovenda, Instituições, cit. vol. I, p. 372. 289

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desfavoravelmente às suas pretensões, não há necessidade de interpor agravo contra a decisão, pois tal questão não se cristalizou. A matéria poderá ser reaberta em segunda instância nas razões ou contrarrazões da apelação porventura interposta pela parte contra a sentença proferida pelo juiz tachado de impedido. É lógico que se for dada razão ao denunciante, o processo em quase sua totalidade será anulado, proferindo-se outra sentença pelo juiz substituto legal do impedido (art. 126). A locução “fase cognitiva” do parágrafo único do art. 963 deve ser entendida como a que vai até a sentença do juiz. Após, mas antes que o processo suba ao segundo grau em decorrência da apelação, o juiz resolvia questões por meio de interlocutórias, algumas das quais no regime atual desafiam agravo de instrumento e outras, agravo retido. Não há referência no projeto a tais questões. Imagina-se que tal omissão foi propositada, na medida em que após a sentença, o juiz não praticará ato algum no processo; a apelação, conforme a regra do art. 966, sobe incontinenti com ou sem as contrarrazões do apelado. Aguardemos o final do processo legislativo e fiquemos na expectativa de que o novo CPC com suas novidades possa trazer aos jurisdicionados algo que sempre foi almejado: celeridade e segurança processual.

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Garantismo, contraditório fluido, recursos repetitivos e incidentes de coletivização Sandro Marcelo Kozikoski*

Introdução. 1. Aceleração do tempo e técnicas processuais. 2. Recursos especiais repetitivos e multiplicidade de recursos extraordinários. 3. O ideário da segurança jurídica e os incidentes de coletivização. 4. Os incidentes de coletivização na perspectiva da teoria geral do processo. 5. Os incidentes de coletivização e a proteção das minorias e grupos vulneráveis. 6. Considerações finais. Referências.

Introdução ão há novidade em aceitarmos a ideia de que o modelo de processo civil traçado sob os influxos do Estado Liberal não atende mais os reclamos da sociedade contemporânea.1 Como é de se aceitar, o processo civil focado na ideologia liberal-individualista dos séculos XIX e XX ficou superado no contexto das sociedades de massa. Vale dizer: as demandas intersubjetivas passaram, gradualmente, a ceder espaço para os processos multitudinários, envolvendo a tutela de certos direitos individuais homogêneos. Nada mais natural: afinal, vivemos em uma sociedade policonflitiva, onde afloram interesses ou reivindicações decorrentes de algumas situações comuns, traçados a partir de uma relação jurídica base, capaz de envolver inúmeros cidadãos.

N

* Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. 1. “O desaparecimento do Estado liberal clássico e o surgimento dos Estados sociais fizeram eclodir novos direitos fundamentais, os quais passaram a exigir do Estado, além de um simples não fazer – como acontecia quando se dava ao indivíduo o direito de impedir a agressão estatal sobre a sua esfera privada – ações ou prestações positivas”. (Luiz Guilherme Marinoni. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 2006. v. 1, p. 193). 291

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Por isso, não é difícil concluir que, aos poucos, o sistema processual clássico foi cedendo espaço de forma gradativa para a tutela jurisdicional coletiva. A lei da ação civil pública (Lei nº 7.347/1985) representou um marco dessa abertura e, ainda na década de 90 do século passado, o Código de Defesa do Consumidor contemplou um capítulo próprio para regular as lides transindividuais2 (normas processuais “heterotópicas”). Não há que se olvidar ainda que a Constituição Federal de 1988 veiculou novos perfis de litigiosidade, norteando inclusive a imposição de políticas públicas com vistas à viabilização de certas promessas da modernidade e ainda na difusão de certos direitos fundamentais. 3 Entretanto, apesar do prestígio relativo conferido pelo legislador à tutela coletiva, pode-se observar que a ausência de tratamento legislativo sistematizado para algumas questões processuais relevantes, fez com que os processos coletivos ganhassem um emprego tímido no dia a dia forense. Até por força da pouca familiaridade com certos temas, não raro a jurisprudência nacional criou interpretações conservadoras para institutos relacionados com a projeção dos efeitos territoriais da coisa julgada coletiva4 etc. Além disso, as restrições e óbices impostos em matéria de legitimidade ativa distanciaram as ações coletivas brasileiras das class actions do direito norte-americano.5 Afinal, apesar da importância dispensada à determinabili2. “A análise crítica da tutela coletiva representa desafio, seja em função da natural complexidade do tema proposto, seja por força da recentidade do fenômeno das ações coletivas no Brasil, se se tomar em conta a implementação da Lei da Ação Civil Pública – LACP (Lei nº 7.347/1985) e do Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei nº 8.078/1990), cuja conjugação pode ser considerada como marco fundante de um verdadeiro sistema processual coletivo” (Elton Venturi. Processo civil coletivo: a tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. 2007, p. 17). 3. “A litigiosidade individual, em verdade, não se mostra como a mais preocupante para o sistema de aplicação de direitos em face do fato de que após a Constituição cidadã de 1988, e da assunção efetiva de garantias de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CF/1988) e do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF/1988), o processo se tornou uma garantia do cidadão para viabilizar a obtenção de direitos (fundamentais)” (Dierle Nunes. Paradoxos do sistema jurídico brasileiro: uma abordagem constitucional democrática. In: Direito jurisprudencial. Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). 2012, p. 255). 4. “Não demorou muito, porém, para que se começasse a questionar o poder (competência) de qualquer juízo para proferir decisões que repercutissem não só nos limites territoriais da respectiva comarca ou circunscrição judiciária, mas em diversas delas, abrangendo, por vezes, todo o território de um ou mais Estados ou, por fim, de todo o país. Assim, o próprio STJ, ignorando totalmente os princípios regentes da tutela coletiva e a indivisibilidade ontológica dos direitos metaindividuais, passou a restringir a eficácia das decisões em ações civis públicas, tomando como parâmetro os limites territoriais do exercício da jurisdição, (...)” (Elton Venturini. Op. cit., p. 268). 5. “Para que uma class action seja cabível e a tutela coletiva seja possível, é necessário que exista um grupo (class) uniforme e bem definido. Como vimos, a certificação do grupo (class certification) é o método através do qual ele obtém o reconhecimento jurídico da sua existência. Através da certificação, o juiz define os contornos do grupo, determinando o seu critério de 292

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dade do critério de pertinência dos integrantes do grupo que irá demandar,6 na experiência das class actions americanas, não é raro que esse grupo venha a ter uma composição fluída ou instável, o que lhe confere formatação diversa daquela que é destinada aos processos coletivos presentes na experiência nacional. O fato é que – em função do uso até certo ponto restrito da tutela coletiva no Brasil – notadamente no caso das demandas versando direitos individuais homogêneos,7 tem-se que os processos “repetitivos” continuaram a se fazer presentes no cotidiano jurídico nacional. Aliás, trata-se de fenômeno perfeitamente identificável: petições iniciais “padronizadas”, com causa de pedir semelhante, pedidos idênticos etc. Sensível a essa realidade, pode-se dizer que o legislador ordinário foi criando novas ferramentas e técnicas processuais para julgamento destes processos multitudinários. É possível identificar, nesta linha, a regra do art. 285A do CPC (Lei nº 11.277/2006), responsável por disciplinar o julgamento de demandas repetitivas. O que há de igual nessas demandas multitudinárias não são propriamente os pedidos ou causa de pedir, mas sim a argumentação ou fundamentação jurídica.8 Nesse aspecto, Humberto Theodoro Júnior pertinência e, consequentemente, quais são os seus membros (class definition). Tratando-se de uma ‘questão de fato’, o juiz da causa goza de ampla discricionariedade na delimitação dos contornos do grupo, devendo analisar todos os aspectos relevantes da situação fática. A sua decisão somente será alterada em segundo grau, em caso de abuso ou erro grosseiro” (Antonio Gidi. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. 2007, p. 257). 6. “Não é necessário que o autor informe o número exato ou a identidade de cada um dos membros do grupo. Se o bom senso indica que o grupo existe e que ele pode ser delineado de forma conceitual com um mínimo de precisão, o juiz deve certificar a sua existência. (...) Não é necessário que o grupo seja tão claramente definido de modo que todos os membros possam ser, a qualquer momento, identificados. O importante é que o critério de pertinência ao grupo seja objetivo, claro e inequívoco. O grupo também não precisa estar delineado com precisão no momento da propositura da ação. A indeterminação a priori dos membros não torna o grupo necessariamente indeterminado”. (Antonio Gidi. Op. cit., p. 261). 7. “O não reconhecimento da caracterização de direitos individuais homogêneos decorrentes de relações previdenciárias ou tributárias ou a pura e simples vedação da utilização de ações coletivas para sua tutela (como atualmente dispõe o parágrafo único do art. 1º da LACP, inserido pela Medida Provisória nº 2.180-35/2001) representam duro golpe na efetividade do sistema de tutela coletiva. Praticamente, tal interpretação implica a exclusão da apreciação jurisdicional de milhões de pretensões que, nos exatos termos do art. 81, parágrafo único, III, do CDC, decorrem de origem comum, cuja tutela pela via individual, para além de ser altamente contraproducente – no sentido de abarrotar o Poder Judiciário com inúmeras demandas com idêntico objeto, com o risco de decisões contraditórias –, é altamente desestimulada por força dos conhecidos obstáculos do acesso à justiça” (Elton Venturi. Op. cit., p. 82). 8. “Por aí se percebe que a extensão compreendida na locução casos idênticos não se restringe só ao direito, incluindo também os fatos. A circunstância de exigir-se, quanto a estes, apenas um convencimento formal, como explicitado acima, não obscurece a exata abrangência da norma. E a necessidade de dar destaque a este aparente pormenor está em que o art. 285-A inaugura 293

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

realça que a identidade “que se reclama, para aplicar o art. 285-A, localiza-se no objeto da causa, isto é, na questão (ponto controvertido) presente nas diversas ações seriadas”.9 Aqui nesta vertente, pode-se chamar atenção ainda para a conhecida regra do art. 557 do CPC, para o art. 518, § 1º, do CPC etc. No contexto recursal, torna-se ainda possível listar o mecanismo de averiguação da repercussão geral da questão constitucional, baseada na sistemática de julgamento dos arts. 543-A e 543-B do CPC, e ainda a técnica de julgamento de recursos especiais repetitivos (CPC, art. 543-C), além de outros institutos com finalidades próximas. Para além dos detalhes operacionais ditados pelas referidas regras, o importante é perceber a mudança dos padrões operacionais dos tribunais superiores, frente a essa verdadeira jurisdição da litigiosidade repetitiva.10 Por outro lado, essa litigiosidade repetitiva reflete ainda na exigência de construção de uma nova racionalidade processual, com maior ênfase para a jurisprudência e para os precedentes (em particular, dos Tribunais Superiores). Dito de outra forma, a preocupação com a uniformidade da jurisprudência é pautada, dentre outros fatores, pela construção de convergências no universo das repetições.11 uma possibilidade realmente nova no processo, qual seja o intercâmbio entre demandas diversas para o fim de propiciar decisão. Nessa linha, definir que o intercâmbio se dá no âmbito dos fatos e do direito é deveras importante, mais do que para o fim da improcedência prima facie, para a construção do raciocínio acerca da antecipação da tutela sem o requisito de urgência em demandas repetitivas, (...)” (Ruy Zoch Rodrigues. Ações repetitivas: casos de antecipação de tutela sem o requisito da urgência. 2010, p. 159). 9. Humberto Theodoro Júnior. As novas reformas do código de processo civil. 2007, p. 17. 10. “A Lei nº 11.672, de maio de 2008, inseriu no CPC o art. 543-C, que em última análise prevê o sobrestamento da massa de recursos especiais fundamentados em idêntica questão de direito, isolando alguns deles para serem julgados, nos quais se formará a decisão-padrão para depois ser replicada em todos os demais. Há detalhes operacionais que não vêm ao caso, tanto a respeito de onde e como se dá a suspensão, quanto sobre a forma de replicar a decisão suprarreferida etc. O que importa, aqui, no entanto, é perceber a enorme transformação de padrões operacionais por um Judiciário que procura encontrar caminhos para o enfrentamento de conjuntos litigiosos. Na mesma linha, a Lei nº 11.418, de dezembro de 2006, que inseriu os artigos 543-A e 543-B no CPC, prevendo o sobrestamento de recursos extraordinários dirigidos ao STF, nos quais o requisito da repercussão geral deva ser definido no julgamento de algumas unidades do conjunto de casos ligados por idêntica controvérsia, para depois ser reproduzida em todos os demais, resolvendo, assim, rapidamente, a massa de ações repetitivas” (Ruy Zoch Rodrigues. Op. cit., p. 151). 11. “A uniformização de jurisprudência e, principalmente, a edição das súmulas, foram reações do processo procurando construir convergências no universo das repetições. Quanto ao chamado direito sumular, mediante a publicação de sínteses breves dos consensos acerca de pontos litigiosos recorrentes, com o fim de estabilizar a compreensão do direito não pela exigibilidade própria das normas, mas pela persuasão que a autoridade institucional do órgão judiciário confere. Mas a pressão da repetitividade se intensificou sempre mais, empurrando o sistema para 294

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Logo, é possível concluir que a Lei nº 11.672/2008, ao disciplinar o mecanismo de apreciação e julgamento seletivo de recursos especiais repetitivos, está alinhada com essa tendência de julgamento de “macro-lides”,12 atendendo ainda certo fetiche pela aceleração do tempo de resposta jurisdicional.

1. Aceleração do tempo e técnicas processuais É compreensível que, no mundo contemporâneo, observa-se uma crescente demanda pelas soluções urgentes, seja pelo surgimento de novos direitos, seja pelo anseio de superação da morosidade inata ao trâmite processual. São demandas previsíveis, eis que a pós-modernidade é marcada pelas intensidades aceleradas. No universo da “pressa”, os prazeres da ociosidade são relegados a um segundo plano (a família e a empresa digladiam-se antagonicamente),13 afinal, é preciso fazer “mais, no menor tempo possível”.14 A fuga, a negação e a protelação são as soluções tomadas em um mundo onde ninguém tem mais tempo para ninguém.15 De outro o desenvolvimento de novas alternativas, a ponto de ser possível afirmar, hoje, uma autêntica tendência do processo civil brasileiro no sentido de que a jurisdição da litigiosidade repetitiva seja adaptada aos contornos de seu objeto, tanto aproveitando oportunidades que os conjuntos oferecem, como ajustando o ponto de equilíbrio da relação entre a independência do juiz e o dever de consideração que deve ter pelas posições consolidadas dos tribunais, naqueles termos colocados acima” (Ruy Zoch Rodrigues. Op. cit., p. 148). 12. “A ‘macro-lide’ vem a Juízo em vários processos idênticos, o que deve ser detectado por antecipação pelos tribunais, à observação do que ocorre nos graus inferiores de jurisdição, de modo aos tribunais estarem preparados para elas. São processos multitudinários previsíveis, decorrentes de negócios de bancos, prestadoras de serviços públicos, financiadoras, fornecedoras de serviços de saúde, grandes empresas e, principalmente, o Poder Público. A ‘macro-lide’ é forçosamente uma ‘lide sanzonal’, porque derivada de alguma etapa de ajustamento econômico, político, social ou legislativo do país – como ocorreu nos casos de correção monetária da inflação, bloqueio de ativos patrimoniais em contas bancárias e cadernetas de poupança, financiamentos habitacionais, contratos derivados de telefonia – no criminal, questões atinentes a regime de execução de pena, de admissão de prisão processual, de interpretação de direitos fundamentais, como a aplicação de tratados internacionais em ‘habeas corpus’ e outros casos conhecidos. Detectada a formação de uma ‘macro-lide’, como ‘lide sanzonal’, o sistema deve abrir passagem para o percurso célere das instâncias, mediante o ‘ fast-track’ recursal: algo como abertura de linhas para o trem rápido que precisa passar depressa” (Sidnei Beneti. Reformas de descongestionamento de tribunais. In: Estudos de direito constitucional em homenagem a Cesar Asfor Rocha (teoria da constituição, direitos fundamentais e jurisdição). Paulo Bonavides, Germana Moraes; Roberto Rosas (orgs.). 2009. p. 513). 13. Rosiska Darcy de Oliveira. Reengenharia do tempo. 2003. 14. “Num sistema fundado no princípio proprietário, o homem concreto não existe, o que existe é aquele desprovido de fomes, sonhos, paixões. O sujeito-proprietário não é o homem do tempo presente e da vida presente” (Eroulths Cortiano Junior. Op. cit., p. 131). 15. Ray Bradbury. Fahrenheit 451. 2007, p. 45. 295

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lado, à multiplicidade dos tempos presentes,16 contrapõe-se à consciência onipresente do tempo.17 Neste choque de temporalidades, torna-se recomendável advertir que (...) o fetiche pela velocidade ou a cinese social não transferem ao legislador a capacidade ou o poder de decidir a questão da duração do processo ao arrepio das garantias das partes e da própria jurisdição. Há um limite do indecidível, barreiras pelas quais não é possível ultrapassar (legislar) sem se violar preceito constitucional.18

Aliás, ao discorrer acerca das técnicas de aceleração processual, a partir da experiência italiana, Vittorio Denti sugere que, com o crescimento da economia de base industrial, a urgência passa a ser um reclamo intrínseco à proteção dos direitos, notadamente naqueles setores em que a cognição exauriente pouco acrescenta à resposta jurisdicional (como, por exemplo, no tocante à tutela das pessoas, do meio ambiente, dos consumidores etc.). Tais cenários, de acordo com o autor peninsular, induzem a necessidade de se repensar o quadro dos remédios e técnicas para a tutela jurisdicional das novas gerações de direitos, antes largamente dominados pelo mito de que somente após a coisa julgada far-se-ia possível alterar a realidade concreta.19 Demais disso, outros autores italianos, como é o caso de Mario Casella, chegam até mesmo a visualizar um futuro “dominato della rapidità e dalla provvisorietà dei provvedimenti, appunto, di ‘urgenza’”,20 com ênfase pela celeridade, pela simplicidade e pela ampliação das técnicas sumárias. Ou

16. “Os tempos sociais são múltiplos, ligados entre si de acordo com modalidades complexas. Toda sociedade revela diferenças setoriais no que diz respeito à temporalidade, à presença ativa do tempo e de seus efeitos. Alguns setores podem ser tidos como lentos: o do sagrado, do religioso, que se refere ao passado fundador tentando eternizá-lo, resistir aos ataques da história, manter uma conformidade [...] Muitos setores podem ser considerados os mais rápidos nas sociedades da modernidade: o das ciências e das tecnologias de aplicação, em contínua expansão e detentoras de uma crescente capacidade de afetar o homem em sua própria natureza”. (Georges Balandier. A desordem: elogio do movimento. 1997, p. 68). 17. Norbert Elias. Sobre o tempo. 1998 p. 109. 18. Décio Alonso Gomes. (Des)aceleração processual: abordagens sobre dromologia na busca do tempo razoável do processo penal. 2007, p. 80. 19. Vittorio Denti. La tutela d´urgenza. Atti del XV convegne nazionale (Bari, 4-5 ottobre, 1985). 1986, p. 167. 20. Mario Casella. Il nuovo processo cautelare. In Rivista di diritto processuale, p. 1005-1036, ottobre/dicembre, 1995, p. 1007 (tradução livre: “dominado pela rapidez e pela transitoridade das medidas, precisamente, de urgência). 296

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seja, “il ‘tempo’ è intenso come un bene in sé e per sé, influente in modo decisivo sull’oggetto del diritto”.21 Com efeito, mostrou-se inconsistente a impressão dominante nos séculos XIX e XX, que imaginava que a técnica exauriente do procedimento ordinário revelava-se adequada para a tutela das eventuais pretensões deduzidas em juízo.22 A ideologia abstencionista do Estado liberal23 influenciou a formatação destes dogmas na esfera processual, culminando na exigência da suposta certeza, almejada tão somente a partir da cognição exauriente. A sentença condenatória serviu como um signo dos postulados do Estado liberal: tutela ressarcitória para evitar qualquer sorte de coercibilidade pessoal, alcançada após a certeza emprestada pela cognição exauriente. Deste modo, preservava-se a ideia de transtemporalidade buscada pelo Código Civil napoleônico (de 1804). Assim, a escola historicista – com o mito da codificação – tripudiava sobre o passado e afastava o futuro. Nada mais coerente na perspectiva cientificista que se descortinou naqueles tempos. Ocorre, entretanto, que a aceitação destes postulados é incompatível com os contornos da prestação jurisdicional modelada para o modelo de Estado contemporâneo, notadamente frente às necessidades prestacionais da sociedade pós-moderna. A partir dessas perspectivas, torna-se compreensível a preocupação com as técnicas de aceleração do tempo,24 incluindo-se aqui as suas variações na seara recursal. Contudo, a advertência a ser feita neste sítio é que a razoabilidade temporal deve ser sopesada na perspectiva de um tênue e sutil equilíbrio. Equilíbrio do ciclista, parafraseando Virilio.25 O “ciclista”, a fim 21. Idem, Ibidem (tradução livre: “o ‘tempo’ é compreendido como um bem em si e para si, influente de modo decisivo sobre o objeto do direito”). 22. “O sistema tradicional de tutela dos direitos, estruturado sobre o procedimento ordinário e as sentenças da classificação trinária, é absolutamente incapaz de permitir que os novos direitos sejam absolutamente tutelados. Esse modo de conceber a proteção dos direitos não levou em consideração a necessidade de tutela preventiva, nem obviamente os direitos que atualmente estão a exigir tal modalidade de tutela” (Luiz Guilherme Marinoni. Tutela inibitória. 1998, p. 14). 23. “O Estado liberal elegeu como dogma absoluto a preservação da liberdade humana. O art. 1.142 do Código de Napoleão é expresso a respeito: ‘Toda obrigação de fazer ou não fazer resolve-se em perdas e danos e juros, em caso de descumprimento pelo devedor’. Imunizava-se a vontade humana, sob o dogma e signo de sua incoercibilidade. Alvo de constrangimentos abusivos, no período das monarquias absolutas, agora deveria ser preservada a qualquer custo, não devendo, então, o Estado, de forma alguma, intervir nas relações sociais” (Robson Carlos de Oliveira. O princípio constitucional da razoável duração do processo, explicitado pela EC 45, de 08.12.2004, e sua aplicação à execução civil: necessidade de que poder judiciário através dessa norma-princípio flexibilize as regras jurídicas e passe a aplicá-las, garantindo um efetivo e qualificado acesso à justiça, In: Reforma do judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. Teresa Arruda Alvim Wambier ... [et. al.] (coord.). 2005. p. 668). 24. Vide, neste sentido: Fernando da Fonseca Gajardoni. Técnicas de aceleração do processo. 2003. 25. Paul Virilio. A inércia polar. Dom Quixote (Coleção Ciência Nova). 1993. 297

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de não perder o equilíbrio, não pode andar em “baixa” velocidade. Também a “alta” velocidade lhe é prejudicial. Assim deve ser a reconstrução histórica propiciada pelo processo; numa velocidade compassada, não necessariamente constante ou retilínea, sob pena de violação de garantias processuais. Em suma: os incidentes de coletivização e técnicas de julgamento similares privilegiam a perspectiva do trâmite processual acelerado, razão pela qual se impõe o cotejo dessa situação com as demais garantias processuais constitucionais, incluindo-se aqui a perspectiva diferenciada do contraditório na esfera desses processos repetitivos.

2. Recursos especiais repetitivos e multiplicidade de recursos extraordinários A Lei nº 11.672, de 08/05/2008, regulamentou o processamento dos recursos especiais repetitivos, os quais podem ser identificados na perspectiva da litigiosidade de massa26 e, em certa medida, o tratamento conferido à matéria seguiu os parâmetros que já haviam sido veiculados pela Lei nº 11.418, de 19/12/2006, ao disciplinar as situações envolvendo multiplicidade de recursos extraordinários.27 Oportuno recordar que expediente semelhante já tinha sido contemplado no art. 14 da Lei nº 10.259/2001, ao permitir a uniformização da interpretação da lei federal, quando houver decisões divergentes sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais dos Juizados Federais, que contrariem súmula ou jurisprudência dominante do STJ. 26. “Nos últimos 25 anos, o Brasil passou por um verdadeiro turbilhão de transformações sociais, culturais, políticas e econômicas. O país deixou para trás um longo período de ditadura militar para adquirir as feições de uma democracia, cada vez mais arraigada. A economia foi aberta às importações e ao investimento estrangeiro e inúmeras empresas estatais passaram por um profundo processo de privatização. Verificou-se um significativo crescimento demográfico, com um considerável avanço da complexidade das relações estabelecidas entre os indivíduos. A sociedade passou por um intenso processo de ‘massificação’, exigindo a defesa dos direitos das minorias e dos interesses difusos e coletivos. Como não poderia deixar de ser, essas transformações impactaram extraordinariamente nas estruturas e na realidade vivenciada pelo Poder Judiciário. Era necessário fazer frente a esse novo cenário democrático, de exigência de maior participação da sociedade nas instituições, de maior abertura econômica e de aumento da complexidade das relações sociais. Em uma sociedade massificada e muito mais complexa, a grande gama de relações existentes propicia e estimula um número cada vez maior de conflitos, de natureza vária, que implicam um aumento quantitativo e qualitativo das demandas, já que todos os conflitos, mais cedo ou mais tarde, acabam desembocando no Poder Judiciário”. (Gláucia Mara Coelho. Repercussão geral: da questão constitucional no processo civil brasileiro. 2009, p. 59-60). 27. Com efeito, havendo multiplicidade de recursos extraordinários versando a mesma matéria constitucional, o § 1º do art. 543-B do CPC (Lei nº 11.418/2006) prevê que “caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte”. 298

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Assim, o § 1º do art. 543-C do CPC dispõe que competirá ao “presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça”. Caso não sejam adotadas tais providências pelo tribunal de origem, o relator designado no STJ, “ao identificar que sobre a controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida” (CPC, art. 543-C, § 2º). No âmbito do STJ, a matéria foi complementada pelo advento da Resolução nº 8, de 07/08/2008.28 A técnica de julgamento por amostragem, decorrente do mecanismo de apreciação de recursos especiais repetitivos, insere-se na visão de uma certa funcionarização do Judiciário: É o que se poderia chamar de funcionarização do Judiciário, problema para o qual a comunidade jurídica brasileira precisa estar alerta, para detectar – enquanto é tempo – suas verdadeiras causas e oferecer alternativas para melhorar e agilizar a prestação jurisdicional. Descartado o alvitre de aumentar o número de ministros ou criar novos Tribunais (onera o erário e superdimensiona o Judiciário), o bom senso parece sinalizar no sentido da adoção de medidas, que possibilitem uma triagem razoável no afluxo de recursos excepcionais, dirigidos aos Tribunais da Federação, para o que muito pode contribuir o direito sumular, no âmbito do juízo de admissibilidade (cf. Lei 9.756/98), a par do incremento da jurisdição coletiva e da ampliação do efeito vinculante.29 28. Anote-se, a respeito do fato, a insurgência e objeção de Rogerio Licastro Torres de Mello: “A nosso ver, a Resolução 8 do STJ infringe o texto constitucional (CF, art. 22, I) ao (i) estipular que deverão ser selecionados pelo menos um processo de cada relator do tribunal local para fins de remessas ao STJ (art. 1º, § 1º, da Resolução) e (ii) ao estender a Lei nº 11.672/2008 aos agravos de instrumento interpostos de decisão denegatória de recurso especial, ao passo que a Lei nº 11.672/2008 atine apenas aos recursos especiais em trâmite nos tribunais de origem. Observamos, desde já, que seria até salutar que o mecanismo de julgamento dos recursos especiais repetitivos fosse estendido aos agravos de decisão denegatória de recurso especial, pois se estaria amplificando o objetivo do legislador de reduzir o acúmulo de trabalho no STJ, racionalizando-se as atividades desta Corte. O fato, contudo, é que não reputamos admissível criar, em termos de resolução de tribunal, inovações que não constam da própria lei federal que se pretende regulamentar, dado que isto fere de morte o regime de competências estabelecido na Constituição Federal para legislar sobre direito processual civil”. (Rogerio Licastro Torres de Mello. Recursos especiais repetitivos: problemas de constitucionalidade da Resolução 8/2008, do STJ. Revista de Processo. set./2008, p. 192). 29. Rodolfo de Camargo Mancuso. Op. cit., p. 239. 299

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Por força dessa sistemática, dar-se-á a seleção dos recursos especiais que melhor retratem a questão discutida, 30 à guisa de permitir ao STJ o enfrentamento da controvérsia envolvendo a questão federal comum aos casos repetitivos. Vale ressalvar que, na hipótese de sobrestamento indevido ou ainda havendo alguma particularidade capaz de distinguir o recurso especial “enquadrado” erroneamente como “repetitivo”, poder-se-á cogitar do uso dos mecanismos já consagrados na jurisprudência nacional, à guisa de obter o seu regular processamento. 31 O § 7º do art. 543-C estabelece ainda que (...) publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem: I – terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou II – serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça.

Logo, a regra preconizada pelo inciso II do § 7º, do art. 543-C do CPC, induz, até certo ponto, uma relativização do postulado de que prolatada a decisão, o juiz não mais poderá revê-la (vide, neste sentido, o art. 463 do CPC). Ou seja, o dispositivo mencionado sugere o alinhamento do entendimento local com a tese jurídica que veio a prevalecer perante o Superior Tribunal de Justiça. Deste modo, a competência para o juízo de retratação

30. Luiz Rodrigues Wambier e Rita de Cássia Corrêa Vasconcelos afirmam, neste particular, que “devem ser selecionados os recursos que melhor retratarem a questão discutida, independentemente de as decisões recorridas serem num mesmo sentido. Evidentemente, havendo acórdãos em sentidos opostos, devem ser selecionados recursos representativos em cada um dos sentidos, pois a simples existência de decisões antagônicas no âmbito dos tribunais locais já traduz a diversidade de fundamentos a justificar a análise e julgamento pelo Tribunal Superior. Espera-se, portanto, que sejam encaminhados ao STJ os recursos que permitam, tanto quanto possível, o conhecimento completo da controvérsia estabelecida nas instâncias ordinárias”. (Luiz Rodrigues Wambier; Rita de Cássia Corrêa Vasconcelos. Recursos especiais repetitivos: reflexos das novas regras (Lei nº 11.672/2008 e Resolução 8 do STJ) nos processos coletivos. Revista de Processo. set./2008, p. 33). 31. Com efeito, escrevendo antes do advento da Lei nº 12.322/2010, Luiz Rodrigues Wambier e Rita de Cássia Corrêa Vasconcelos defendiam “a adoção das mesmas soluções para obter o processamento imediato desses recursos, que oscilam na doutrina e na jurisprudência entre uma simples petição, ação cautelar e agravo de instrumento ao Tribunal Superior (considerando-se que aplicar indevidamente o regime de retenção seria tão lesivo quanto negar seguimento aos recursos” (Luiz Rodrigues Wambier; Rita de Cássia Corrêa Vasconcelos. Recursos especiais repetitivos: reflexos das novas regras (Lei nº 11.672/2008 e Resolução 8 do STJ) nos processos coletivos. Op. cit., p. 30). 300

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daí decorrente é do órgão fracionário que proferiu o acórdão recorrido,32 impugnado por recurso especial repetitivo. Uma questão que não foi regulamentada pela Lei nº 11.672/2008 está relacionada com a hipótese da decisão proferida no processo-piloto (ou paradigma) gerar efeitos antes mesmo do seu trânsito em julgado. Em outras palavras: apesar de fixar a tese jurídica, cabe observar que a decisão proferida no processo repetitivo selecionado para julgamento ainda pode suscitar outros recursos, seja na esfera do próprio Superior Tribunal de Justiça ou ainda por meio do desencadeamento de eventual apelo ao Supremo Tribunal Federal.33 Aliás, outro aspecto que pode ser discutido – diante do tratamento ainda incipiente da matéria – diz respeito ao cabimento de outros recursos, pelas demais partes figurantes dos processos sobrestados. Há um interesse residual destas partes em reiterarem certos questionamentos que não tenham sido corretamente explorados no caso paradigma, selecionado para julgamento? E mais: é possível desistir do recurso especial repetitivo selecionado para julgamento? O STJ decidiu, no exame de uma questão de ordem, que o recorrente não pode desistir do processo selecionado para julgamento. 34 Ou seja, havendo recursos especiais com fundamento em idêntica controvérsia, o Tribunal de origem deverá solucionar um ou mais destes processos representativos da controvérsia, escolhido em caráter paradigmático, ficando os demais sobrestados até posterior apreciação do Superior Tribunal de Justiça. Parece evidente, portanto, que há uma verdadeira técnica de julgamento por amostragem, nas palavras de Barbosa Moreira. 32. “A competência para o juízo de retratação é do órgão jurisdicional fracionário dentro dos Tribunais de origem que proferiu a decisão recorrida por meio de recurso especial. Logo, os autos do processo que se encontravam na Presidência (ou Vice-Presidência) dos Tribunais de origem devem ser devolvidos ao juízo a quo”. (Nelson Rodrigues Netto. Análise crítica do julgamento “por atacado” no STJ (Lei 11.672/2008 sobre recursos especiais repetitivos). Revista de Processo. set./2008. p. 242-243). 33. Vide, neste sentido, a decisão proferida no processo “piloto” envolvendo discussão jurídica acerca de expurgos inflacionários, numa macro-lide que envolve diretamente interesses dos bancos e instituições financeiras. O Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), acolhendo parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR), determinou a suspensão (ou sobrestamento) de todos os processos judiciais em tramitação no país, em grau de recurso, que discutem o pagamento de correção monetária dos depósitos em cadernetas de poupança afetados pelos Planos Econômicos Collor I (valores não bloqueados), Bresser e Verão. O tema teve a repercussão geral reconhecida na via dos Recursos Extraordinários 626.307 e 591.797, dos quais Dias Toffoli é relator. Em razão da abrangência da questão, o ministro Dias Toffoli decidiu admitir, na qualidade de amici curiae (ou amigos da Corte), a Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif), a Caixa Econômica Federal (CEF) e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). O mérito dos recursos ainda será apreciado pelo Plenário do Supremo. 34. A Corte Especial do STJ decidiu que é inviável a desistência manifestada pela parte recorrente, nos casos de recurso especial repetitivo, após sua seleção para julgamento (STJ – QO REsp. 1.063.343/RS; Rel. Min. Nancy Andrighi; DJ 04/06/2009). 301

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Como já foi dito, essa verdadeira jurisdição da litigiosidade repetitiva aponta para a construção de uma nova racionalidade processual, com maior ênfase para a jurisprudência e para os precedentes (em particular, dos Tribunais Superiores). É nesse aspecto que os incidentes de coletivização em matéria recursal apontam para a necessidade de repensar o postulado do contraditório clássico.

3. O ideário da segurança jurídica e os incidentes de coletivização O Estado de Direito, assumindo dimensões declarativas, impõe, dentre outros fins autônomos de proteção, a tutela da confiança e da segurança jurídica.35 Busca-se assegurar, assim, a racionalidade da atuação estatal a partir de padrões de justiça e ações preestabelecidos, evitando que os cidadãos fiquem à mercê de um poder arbitrário despido de limites. Segue-se aí, certamente, uma carga implícita de compromisso com a calculabilidade e estabilidade das relações sociais e jurídicas. Não se olvida, assim, que o princípio constitucional da segurança jurídica é corolário necessário da opção estruturante do Estado de Direito (art. 1º, caput, da Constituição da República).36 Com efeito, ao se admitir que o Estado de Direito afirma-se com a defesa de um núcleo de direitos fundamentais, tem-se como consectário lógico a observância de determinadas situações jurídicas consolidadas contra as oscilações políticas e sociais. Firmada a conformação de um princípio geral de segurança jurídica na Constituição de 1988, dedutível do Estado de Direito, torna-se indisputável o reconhecimento de que as relações jurídicas, mormente as estabelecidas entre Poder Público e particulares, devem estar assentadas em determinados parâmetros aceitáveis pelo constitucionalismo contemporâneo, plasmados, dentre outros exemplos, no respeito ao ato jurídico perfeito, na preservação dos direitos adquiridos, na proteção da coisa julgada, na garantia de irretroatividade das normas penais, na irretroatividade e anterioridade da norma tributária, observância do devido processo legal etc. 35. “A dimensão objetiva da segurança jurídica implica considerar, particularmente, a certeza e a previsibilidade, sem olvidar, todavia, que ela opera indissociável reflexo no ânimo subjetivo dos cidadãos, mediante a ideia de proteção da confiança, desenvolvida inicialmente na doutrina e jurisprudência alemãs” (Clèmerson Merlin Clève. Crédito-prêmio de IPI e princípio constitucional da segurança jurídica, In: Crédito-prêmio de IPI: estudos e pareceres. 2005. p. 144). 36. Confira-se, neste sentido, o posicionamento de J.J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional. 1991, p. 384) e de Ingo Wolfgang Sarlet (A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica. In: Constituição e segurança jurídica. Cármen Lúcia Antunes Rocha (coord.). 2004. p. 86). 302

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J. J. Gomes Canotilho, 37 neste particular, salienta que, além das imbricações com o princípio da proteção da confiança, pode-se dizer que as premissas básicas da segurança jurídica se desenvolvem em torno de dois eixos nucleares: (1) estabilidade ou eficácia ex post da segurança jurídica: uma vez adoptadas, na forma e procedimento legalmente exigidos, as decisões estaduais não devem poder ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável que sua alteração se verifique quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes. (2) previsibilidade ou eficácia ex ante do princípio da segurança jurídica que, fundamentalmente, se reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos.

Aceite-se, portanto, que os incidentes de coletivização amoldam-se neste cenário. Trata-se, com efeito, de resguardar a aplicação coerente do direito objetivo, 38 baseada numa certa solução-compromisso de respeitabilidade aos julgados oriundos dos Tribunais Superiores.39 Não há, neste particular, verdadeira novidade. Afinal, a projeção da força normativa da Constituição e de sua unidade hierárquico-normativa já seriam suficientes para justificar o primado de respeitabilidade a certas situações consolidadas, desde que oportunizadas as possibilidades de participação discursiva dos diversos agentes e segmentos que venham a ser afetados pela interpretação da questão jurídica debatida. Há que se identificar, de forma paralela, uma certa tendência contemporânea na maior valorização conferida ao papel desempenhado pela jurisprudência.40 Conforme salientado por Rodolfo de Camargo Mancuso,41 37. J.J. Gomes Canotilho. Op. cit., p. 384. 38. Busca-se combater, assim, “a abominável ‘loteria judiciária’ que tanto incomoda os mais nobres operadores do direito e a sociedade como um todo por afrontar o princípio constitucional que prevê que todos são iguais perante a lei”. (Elizabeth Cristina Campos Martins de Freitas. A aplicação restrita da súmula vinculante em prol da efetividade do direito. In: Revista de processo. jul.-ago./2004, p. 193). 39. “Ademais, cabe aos magistrados outorgar aos precedentes dos tribunais superiores, revestidos da marca de definitividade, o valor e a influência aptos a orientar os órgãos inferiores e não desrespeitar, sem justificação plausível, a função nomofilática àqueles atribuídos pela Constituição Federal” (José Rogério Cruz e Tucci. Precedente judicial como fonte do direito. 2004, p. 277). 40. Confira-se, neste particular: Lênio Luiz Streck. Súmulas no direito brasileiro – eficácia, poder e função. 1998, p. 133 et seq.). 41. Rodolfo de Camargo Mancuso. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 1999, p. 43. 303

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (...) parece-nos que, contemporaneamente, a principal expectativa que o cidadão brasileiro deposita no Judiciário é a do atendimento aos valores certeza-segurança-estabilidade, o que aliás é bem compreensível, se considerarmos o ambiente de instabilidade presente e imprevisibilidade futura que costuma assombrar nossa sociedade civil.

É preciso reconhecer, portanto, que a jurisprudência, além de influenciar, muitas vezes de forma decisiva, (i) a produção legislativa, (ii) a ação administrativa e o (iii) horizonte decisional dos particulares, também pode propiciar outras consequências e implicações com os domínios exigidos pela segurança jurídica, conforme sintetizado por Rodolfo de Camargo Mancuso: 42 a) para as partes, na medida em que possibilita uma certa previsibilidade quanto à solução final do caso, operando assim como fator de segurança e de tratamento judicial isonômico; b) para o Judiciário, porque a jurisprudência sumulada agiliza as decisões, alivia a sobrecarga acarretada pelas demandas repetitivas e assim poupa precioso tempo, que poderá ser empregado no exame de casos mais complexos e singulares; c) para o próprio Direito, em termos de sua eficácia prática e credibilidade social, porque o tratar igualmente as situações análogas é algo imanente a esse ramo do conhecimento humano, certo que o sentimento do justo integra a essência do Direito desde suas origens: jus esta ars boni et aequo.

Em última análise, é compreensível que a jurisprudência possa gerar uma convicção de obrigatoriedade43 que, embora não plenamente vinculativa, conjugada com a boa-fé e confiança dos cidadãos, induz consequências positivas e negativas; mormente em um sistema processual como o brasileiro que convive com institutos como o incidente de uniformização de jurisprudência e ainda com as súmulas originárias (tomadas, aqui, no seu sentido clássico de enunciados da jurisprudência dominante); que confere ainda, ao relator, na esfera dos Tribunais pátrios, os poderes 44 e as prerrogativas 42. Rodolfo de Camargo Mancuso. Op. cit., p. 47. 43. José de Oliveira Ascensão. O direito. Introdução e teoria geral. 1993, p. 303. 44. “Não é preciso fazer muito esforço para se verificar a imensa importância que a jurisprudência assumiu a partir da edição das leis que reformaram o nosso sistema de recursos. Além de ampliar os poderes do relator, a Lei 9.756/98, por exemplo, também ratificou a crescente tendência de valorização aos precedentes jurisprudenciais” (Pedro Miranda Oliveira. A (in)efetividade da súmula vinculantes: a necessidade de medidas paralelas, In: Reforma do 304

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correlatas para a negativa de seguimento ao recurso em dissonância com jurisprudência pacificada,45 e que, similarmente, diante da jurisprudência assentada, autoriza ainda o Poder Público a deixar de interpor recurso ou demanda, relativamente a certas questões já pacificadas.

4. Os incidentes de coletivização na perspectiva da teoria geral do processo Por força do reconhecimento da transcendência das questões jurídicas ventiladas nesses incidentes de coletivização e processos repetitivos, talvez seja possível revisar algumas concepções e legados dos tratadistas clássicos,46 retomando-se, nesse quadrante, a lição de James Goldschmidt, para fins de enquadrar o processo como uma “situação jurídica”,47 e não como uma “relação processual” (como hodiernamente o mesmo é majoritariamente

judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. Teresa Arruda Alvim Wambier ... [et. al.] (coord.). 2005, p. 600). 45. Eduardo de Avelar Lamy anotou que: “Embora os relatores não estejam obrigados a dar provimento ou a negar seguimento a recurso segundo o entendimento dos tribunais superiores ou do próprio tribunal, não há dúvida de que o cotidiano forense costuma aplicar as modificações inseridas no Código de Processo Civil pela Lei nº 9.756/1998, que associou o aumento dos poderes do relator ao respeito dos precedentes jurisprudenciais, consoante os arts. 557, caput, § 1º, 557, § 1º-A, 120, par. ún., 481, par. ún., e 544 § 3º e § 4º, do CPC, dada a necessidade de decidir rapidamente os feitos, segundo interpretação segura e pacífica. A valorização crescente dos precedentes indica a tendência de adoção da súmula vinculante. À medida que os tribunais e os relatores continuam a praticar o sistema até agora implantado, conforme a estrutura judiciária constitucional – especialmente pelas decisões monocráticas permitidas pelo art. 557 do CPC e o efeito vinculante existente nas ações de controle concentrado de constitucionalidade – o amadurecimento do sistema jurídico-político brasileiro indica esta direção. Trata-se de uma constatação”. (Eduardo de Avelar Lamy. Súmula vinculante: um desafio. In: Revista de processo. fev. 2000, p. 118/119). 46. Vide, nesse sentido: R. Ives Braghittoni. Recurso extraordinário: uma análise do acesso do supremo tribunal federal. In: Carlos Alberto Carmona (coord.). Coleção Atlas de Processo Civil. 2007, p. 49. 47. “O conceito de situação jurídica diferencia-se do de relação processual, no qual este não se encontra em relação alguma com o direito material, que constitui o objeto do processo, enquanto aquele designa a situação em que a parte se encontra com respeito ao seu direito material, quando o faz valer processualmente. É errôneo crer, por isso, que o conceito de ‘situação jurídica’ não é diferente do de relação processual, e por isso é impossível admitir que esta se desenvolva até chegar a ser uma ‘situação jurídica’; esta não é uma mera situação da relação processual, senão do direito material que constitui o objeto do processo. Também é equivocado discutir o valor do conceito de ‘situação jurídica’, uma vez que, graças a ele, determina-se não somente o conceito e caracteres dos direitos e ônus processuais, senão que dele emana o conceito de ‘atos de postulação’ e a peculiaridade de sua qualificação como ‘admissíveis’ e ‘fundamentados’, assim como a luz que clareia os conceitos de litisconsórcio especial, de sucessão processual, etc.” (James Goldschmidt. Direito processual civil. Lisa Pary Scarpa (trad.). 2003. p. 23). 305

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concebido).48 Como é de se notar, diversos óbices afastaram a doutrina do processo como situação jurídico-processual;49 porém, não há exagero em afirmar que a complexidade e as particularidades resultantes de um estado de abstrativização do processo permitem compreendê-lo como uma situação jurídica em certos quadrantes de julgamento. Aliás, de acordo com Daniel Mitidiero, as concepções que resultaram na teoria da relação jurídico-processual pressupõem uma estaticidade que não condiz com a dinamicidade do processo e tampouco à temporalidade atual do procedimento.50 Dentro dessas perspectivas, oportuno ainda registrar o trabalho de Ulisses S. Viana, que se propôs ao exame da cláusula da repercussão geral a partir dos parâmetros da teoria de Niklas Luhmann. Assim, o autor desenvolve a ideia de que a repercussão geral da questão constitucional deverá servir de meio de observação dos acoplamentos estruturais entre o fenômeno jurídico e os demais subsistemas sociais. Com base nas categorias das expectativas cognitivas e das expectativas normativas, Ulisses S. Viana trabalha com a temática luhmaniana de que os sistemas normativos podem estabelecer conexões capazes de conduzir a novas programações autorreferenciais,51 com 48. “Tradicionalmente se tem concebido a relação jurídica processual como o vínculo, resultante do exercício do direito de ação, através do qual o Estado-juiz se obriga a dar solução a uma controvérsia jurídica concreta. Trata-se de noção herdada de Bülow, para quem o processo seria uma relação jurídica pública, pois os direitos e obrigações processuais aplicam-se entre funcionários do Estado e os cidadãos, que avançaria gradualmente e se desenvolveria passo a passo, enquanto a relação jurídica privada, que constituiria o objeto de debate judicial, apresentava-se totalmente concluída” (Pedro Henrique Pedrosa Nogueira. Situações jurídicas processuais. In: Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Fredie Didier (org.). 2010, v. 2. p. 765). 49. “Foram diversos os motivos pelos quais a doutrina do processo como situação jurídica processual acabou por não se firmar. Dentre eles, destacam-se os seguintes: (i) essa teoria simplesmente ignora a posição e a função do órgão jurisdicional, uma vez que o juiz não é sujeito de qualquer situação jurídica (todas elas referem-se às partes); (ii) a situação jurídica, tal como configurada por Goldschmidt, não é, na verdade, o processo, mas sim o seu objeto; e (iii) o processo, ou as relações jurídicas que o compõem, não consistem em apenas uma situação jurídica, e sim em um complexo de situações jurídicas interligadas” (Helena Abdo. As situações jurídicas processuais e o processo civil contemporâneo. In: Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Fredie Didier (org.). 2010, v. 2. p. 341-342). 50. Daniel Mitidiero. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. 2005, p. 141. 51. “Coloca-se, desse modo, a repercussão geral no campo das possibilidades cognitivas do sistema do direito, em questões constitucionais. Por meio desse novo procedimento, o sistema parcial do direito adquire novos conhecimentos que serão nele internalizados de modo autorreferencial, os quais servirão para a produção de decisões sistêmicas no controle difuso de constitucionalidade. O que permitirá ao direito evoluir mediante a adequada operacionalização de seus programas condicionais (programas decisórios), com sua maior adaptação aos programas finalísticos dos sistemas funcionais do ambiente social. (...) A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre questão constitucional relevante do ponto de vista econômico, contudo, deverá ser apta a construir cognição (construtivismo jurídico) na autorreferencialidade dos demais subsistemas funcionais, no sentido de potencializar seus efeitos decisórios – eficácia – pela 306

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a consequente possibilidade de repercutirem nos campos da economia, da política, dos subsistemas de ordem social etc., harmonizando e preparando preventivamente eventuais conflitos: É dizer, a repercussão amplia a função de o direito executar operações decisórias que devem ser capazes de produzir internalização autorreferencial pelos sistemas funcionais da sociedade como irritações – estímulos ou perturbações – intersistêmicas referidas a um mesmo evento, observadas pelos sistemas envolvidos. Mesmo evento que represente, em acoplamento estrutural, valor ou valores comuns ou complementares para dois ou mais sistemas parciais da sociedade. Fenômeno que está ligado ao processamento eficaz das irritações sistêmicas causadas por estímulos oriundos do ambiente (Umwelt). Nessa perspectiva, o procedimento da repercussão geral proverá o Supremo Tribunal Federal de instrumento de observação da gênese e da identificação de possíveis acoplamentos estruturais entre os sistemas abarcados pelos rótulos da repercussão geral da questão constitucional do ponto de vista de sua relevância econômica, política, jurídica e social. Deste modo, p. ex., o Supremo Tribunal Federal deverá avaliar juridicamente as possíveis irritações – negativas ou positivas – da decisão do recurso extraordinário objetivado (com repercussão geral) nas estruturas dos demais sistemas funcionais da sociedade. Como, p. ex., os reflexos de suas produções decisórias no âmbito do sistema funcional da economia, ao decidir sobre temas constitucionais com repercussão econômica.52

Portanto, na perspectiva do raciocínio de Ulisses S. Viana, pode-se cogitar que a conexão com as organizações e entidades representativas da sociedade civil (organizada ou não) servirá para conferir legitimidade sistêmica53 às ‘operacionalização’ de acoplamentos estruturais” (Ulisses Schwarz Viana. Repercussão geral sob a ótica da teoria dos sistemas de Niklas Luhman. 2010, p. 126-131). 52. Ulisses Schwarz Viana. Op. cit., p. 166. 53. “Para Luhman, a legitimidade passa a ter uma leitura invertida, ou seja, é o procedimento que passa a ter o condão de ‘educar’ os participantes a aceitar a decisão, a ‘gerar legitimidade’. O sistema precisa inclusive fazer ‘propaganda’ das decisões de forma que a sociedade também seja educada a aceitá-las. Portanto, para Luhman, as pessoas ‘obedecem’ às leis porque o sistema jurídico se especializou em estabilizar expectativas de comportamento” (Giovani Agostini Saavedra. Jurisdição e democracia: uma análise a partir das teorias de Jürgen Habermas, Robert Alexy, Ronald Dworkin e Niklas Luhmann. 2006, p. 60). Contudo, a crítica a ser dirigida a este tipo de compreensão reside no fato de que quando o sistema jurídico passa a ter a função de determinar soluções para os problemas sociais, personificando supostos valores de uma sociedade ou ditando as formas de vida correta, “o sistema jurídico está deixando de ter uma função normal para começar a colonizar o mundo da vida através de um processo de juridificação das relações sociais. Luhmann não percebe esta situação como negativa, nem admite que a sua seja 307

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decisões produzidas pelas Cortes Superiores (em especial, às decisões do STF). Assim, embora não se possa concordar com todas as premissas lançadas pelo interessante trabalho produzido pelo autor, é válido concluir que a interação com os demais subsistemas da sociedade brasileira deve começar pela viabilização dos canais procedimentais adequados, com o envolvimento dos segmentos afetados pela decisão paradigmática ou que venha a ser proferida no julgamento-piloto.

5. Os incidentes de coletivização e a proteção das minorias e grupos vulneráveis Conforme assentado até aqui, no cenário dos incidentes de coletivização, deve restar assegurada a ampla possibilidade de participação dos grupos vulneráveis, minorias, categorias de pessoas e entidades representativas da sociedade civil,54 que venham a guardar pertinência temática com os temas selecionados para julgamento, seja por força da cláusula da repercussão geral no exame do recurso extraordinário, seja no tocante aos recursos especiais repetitivos (CPC, art. 543-C) selecionados para julgamento. Neste particular, as manifestações de amici curiae são absolutamente salutares, contribuindo como instrumento do diálogo que venha a se instaurar nesses incidentes de coletivização.55

uma postura ideológica. Além disso, não percebe a relação intrínseca que existe entre autonomia privada e autonomia pública”. (Giovani Agostini Saavedra. Op. cit., p. 68). 54. A respeito do assunto, oportuno consultar Robério Nunes dos Anjos Filho: “As expressões minorias e grupos vulneráveis não raro são usadas como equivalentes, talvez porque dentre os aspectos de similitude se encontre um de especial significado social, que é a situação de vulnerabilidade, o que leva a classificar todas as coletividades portadoras dessa característica como minorias, ou como grupos vulneráveis. (...) Grupos vulneráveis em sentido amplo, dessa forma, para nós devem constituir um gênero ao qual pertencem, conforme o contexto do Estado, pessoas portadoras de necessidades especiais físicas ou mentais, idosos, mulheres, favelados, crianças, minorias étnicas, religiosas e linguísticas, índios, descendentes de quilombos, ribeirinhos, trabalhadores rurais sem terra, dentre outros. Estas coletividades se dividem em duas espécies, constituindo uma minoria ou um grupo vulnerável estrito senso (ou em sentido estrito). Minorias, nessa ótica, são uma espécie de grupos vulneráveis lato senso, com peculiaridades próprias que as distinguem das demais coletividades vulneráveis, as quais chamaremos grupos vulneráveis em sentido estrito, embora também existam características compartilhadas por ambas as espécies” (Robério Nunes dos Anjos Filho. Minorias e grupos vulneráveis: uma proposta de distinção. In: Direitos humanos: estudos em homenagem ao professor Fábio Konder Comparato. Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux (coord.). Robério Nunes dos Anjos Filho (org.). 2010, p. 414-416). 55. “A figura do amicus curiae apresenta-se como salutar instrumento de democratização processual, que permite um maior diálogo entre juiz e interessados. O contraditório, assim, torna-se mais efetivo e a decisão passa a se revestir de uma maior aceitação social. Permite-se, com a intervenção, o aporte de novos elementos, contribuindo para uma mais adequada verificação 308

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Trata-se, assim, de descortinar o horizonte do debate nesses processos multitudinários ou repetitivos, podendo-se cogitar aí de uma dimensão do princípio da contributividade, como consectário do postulado do contraditório. Afinal, na atualidade, o verdadeiro alcance da garantia do contraditório é definido por duas perspectivas complementares: (i) a cooperação e (ii) a efetiva possibilidade de participação no processo de construção da decisão judicial.56 Sob a perspectiva da colaboração, o princípio do contraditório se traduz na exposição dialógica de razões e argumentos. Afinal, o diálogo judicial, travado nos moldes do método dialético, com as partes e o órgão judicial colaborando para a formação do provimento jurisdicional, (...) revela-se o único instrumento apto a fazer frente a uma realidade marcada por conflitos de valores e pela imprecisão e elasticidade dos conceitos, notas do pós-modernismo, possibilitando uma análise mais completa da causa, atenuando o perigo de opiniões preestabelecidas, bem como a formação de um juízo mais aberto e ponderado.57

Por tais razões, é possível sustentar que a cooperação viabilizada por meio de amicus curiae58 permite a efetivação de um contraditório fluido, diverso do contraditório tradicional, vivenciado nas lides intersubjetivas. Ao se propugnar pela possibilidade de oitiva dos grupos vulneráveis e minorias que venham a acerca da real magnitude da questão constitucional discutida” (Guilherme Beux Nassif Azem. Repercussão geral da questão constitucional no recurso extraordinário. 2009, p. 124). 56. “A cooperação constitui garantia não apenas das partes, mas da própria função jurisdicional, assegurando as primeiras a possibilidade efetiva e plena de sustentarem suas razões e produzirem suas provas, enfim, de colaborarem concretamente na formação da convicção do juiz ao mesmo tempo em que garante a regularidade do processo, a imparcialidade do juiz e a justiça nas decisões” (Henry Gonçalves Lummertz. O princípio do contraditório no processo civil e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: Processo e constituição. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (org.). 2004, p. 56). 57. Henry Gonçalves Lummertz. Op. cit., p. 57. 58. “A nosso ver, a relação entre o ‘princípio da cooperação’ e o amicus curiae mostra sua face mais visível na exata medida em que se reconhece a necessária interação do juiz com as partes – ou com outros sujeitos que possam atuar, de alguma forma, no processo – em busca de melhor aproximação e, portanto, mais completa definição dos temas e matérias que deverão ser necessariamente enfrentados pelo magistrado ao julgar o objeto litigioso. A cooperação no sentido do diálogo, no sentido de troca de informações possíveis e necessárias para melhor decidir, é a própria face do amicus curiae, desde suas origens mais remotas. Assim, em função dessa cooperação, desenvolvimento e atualização do princípio do contraditório, realiza-se, também, a necessidade de as informações úteis para o julgamento da causa serem devidamente levadas ao conhecimento do magistrado, viabilizando, com isso, que ele melhor absorva e, portanto, realize em concreto os valores dispersos pelo próprio Estado e pela sociedade”. (Cassio Scarpinella Bueno. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 2006, p. 56). 309

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ser afetados pelo alcance de uma decisão paradigmática, está se advogando por uma nova concepção de contraditório nesses incidentes de coletivização, permitindo que as vozes afetadas pelo debate descortinado possam se expressar antes da prolatação da decisão-paradigma. Não por outra razão, Cândido Rangel Dinamarco observou que o processo deve ser entendido como um verdadeiro “microcosmos” do Estado Democrático de Direito.59 Nessas condições, trata-se de garantir um ambiente igualitário, capaz de permitir a ampla manifestação dos interesses antagonizados na discussão constitucional,60 ou ainda naqueles processos repetitivos que venham a discutir a tese federal sub judice. É neste particular que o desequilíbrio informacional deve ser evitado, razão pela qual a postura formalística atinente à exigência de demonstração da representatividade dos amici curiae, compassada com a ideia de discricionariedade que venha a pautar a aceitação destes, pode criar um ambiente de favorecimento aos grupos mais organizados da sociedade. A defesa de um ambiente informacional permite ainda refletir sobre a indicação das fontes de custeio das entidades prolatoras do memorial de amicus.61 Deste modo, ainda que se diga que a decisão constitucional possa afetar muitas pessoas, com a impossibilidade material de se coletar todas as opiniões envolvidas, tal fato não deve justificar a ausência de contraditório suficiente para a oxigenação do debate. As limitações materiais ou processuais apregoadas não podem representar um óbice à manifestação das vozes representativas destes grupos vulneráveis, categorias ou classes de pessoas e entidades da sociedade civil. 59. Cândido Rangel Dinamarco. A instrumentalidade do processo. 1994, p. 312. 60. Vide, nesse particular, o que já foi dito no tocante às prerrogativas processuais dos amici curiae e, em particular, no que tange ao pretendido tratamento igualitário que se buscou dispensar no julgamento da ADPF nº 101, em que se discutiu a validade e a constitucionalidade dos atos normativos do Departamento de Operações de Comércio Exterior – Decex, Secretaria de Comércio Exterior – Secex e resoluções do Conama – Conselho Nacional do Meio Ambiente, no tocante à importação de pneus usados. 61. Trata-se, nesse particular, de encampar a experiência da Suprema Corte norte-americana, no tocante à exibição dos requerimentos de transparência, por meio dos quais o amicus deve informar se está sendo apoiado por alguém ou ainda a fonte de custeio financeiro da produção do memorial: “Os requerimentos de transparência incluem: uma declaração dos interesses do memorial, que informará à corte os grupos de interesses e outras entidades representados na manifestação; o amicus deverá informar se a parte que está sendo apoiada autorizou o memorial em sua integralidade ou em parte; por fim, mas não menos importante, o memorial deverá explicitar toda pessoa ou entidade, além dos próprio amici, que apoiaram financeiramente a preparação ou a entrega dos memoriais. Esse item se mostra de fundamental importância à medida que permite à corte a rastreabilidade dos interesses econômicos envolvidos da causa, bem como no ingresso de um terceiro que se diz amigo da corte” (Damares Medina. Amicus curiae: amigo da corte ou amigo da parte? 2010, p. 68-69). 310

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Assim, quer-se retomar a ideia de que o consenso formal62 subjacente às normas e aos direitos aprovados nas instâncias deliberativas pode ser ratificado ou rechaçado no cenário qualificado do debate judicial, onde os expedientes compromissórios poderão ser tensionados e testados. A projeção alcançada pelos julgamentos de processos repetitivos está a recomendar que a investigação da matéria jurídica controvertida e o processo decisório não estejam adstritos ao solitário exame da Corte Superior. É nesse sentido que se pode dizer que o processo envolvendo demandas repetitivas deve ser pautado pelo princípio da colaboração efetiva. O diálogo judicial, nesse diapasão, passa a representar (...) autêntica garantia de democratização do processo, a impedir que o órgão judicial e a aplicação da regra iura novit curia redundem em instrumento de opressão e autoritarismo, servindo às vezes a um mal explicado tecnicismo, com obstrução à efetiva e correta aplicação do direito e à justiça do caso.63

E, acompanhando Andréa Alves de Almeida, pode-se dizer que o processo substancia o espaço-temporal de argumentação irrestrita, com a ênfase para o contraditório na tarefa da redefinição histórica dos fatos e da “interpretação da norma na construção das decisões estatais pelos destinatários. É o retorno da lei à processualidade jurídica que garante a sua legitimidade normativa”.64 É nesta linha, inclusive, que a teoria neoinstitucionalista do processo defendida por Rosemiro Pereira Leal pretende conciliar o princípio da democracia com a garantia de um espaço discursivo voltado para o contraditório na produção e fiscalização da constitucionalidade e na realização dos direitos fundamentais.65 62. “Disso decorre que proteger os direitos fundamentais sem garantir as identidades culturais diferenciadas não é suficiente para assegurar ao ordenamento jurídico a legitimidade de que ele necessita. Essa legitimidade só se configura quando o sistema proporciona a participação discursiva dos indivíduos no processo de criação e aplicação do direito, de forma a garantir, ao mesmo tempo, os direitos individuais e o reconhecimento das identidades culturais das diversas comunidades sociais” (Roberto Basilone Leite. Hermenêutica constitucional como processo político comunicativo: a crítica de Jürgen Habermas às concepções liberal e comunitarista. In: Justiça e democracia: entre o universalismo e o comunitarismo. Cecília Caballero Lois (org.). 2005, p. 221). 63. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Garantia do contraditório. In: Garantias constitucionais do processo civil. 1999, p. 143. 64. Andréa Alves Almeida. Processualidade jurídica & legitimidade democrática. 2005, p. 136. 65. “A teoria do processo que se institucionalize constitucionalmente pelos princípios jurídicos do contraditório, ampla defesa e isonomia suprime a tensão entre republicanos e liberais à medida que a fiscalidade legitimante do ordenamento jurídico instalador do Estado democrático de direito se processualize pelo direito-de-ação irrestrito, assegurado o contraditório como 311

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Portanto, no instante em que as aspirações se voltam para a consolidação de uma democracia participativa,66 pode-se dizer que o princípio da colaboração servirá para aumentar o coeficiente de legitimidade das decisões dos Tribunais Superiores. E, dessa forma, num ambiente formatado para a discussão qualificada, no qual, presumivelmente, os melhores argumentos passam a vir à tona, a implementação de um contraditório fluido pode contribuir para afastar a multifacetária situação dos processos repetitivos.67 Não por outra razão, examinando o regime da tutela coletiva no direito italiano, em comparação com a experiência tedesca, o prof. Remo Caponi propõe a adoção de uma espécie de “processo modelo”, a partir do qual se pode extrair uma eficácia vinculante que será projetada para além daquele caso: Si trata del processo modello (o campione), in cui viene dedotto in giudizio um diritto individuale da un singolo titolare (o da un’associazione), ma la pronuncia proietta un’efficácia giuridica, in una certa misura vincolante, anche nei confronti delle cause parallele è Il tratto che distingue Il processo modello dalla causa pilota.68

Afinal, (...) torna-se necessário emprestar um novo enfoque à due process clause, consentâneo com um garantismo coletivo, eis que há muito já se percebeu a insatisfatoriedade da proteção eventual e fragmentada dos valores essenciais do ser humano considerado individualmente, por ser incapaz de oportunidade legal de produzir ou não produzir argumentos, bem assim a isonomia como princípio de igualdade, para as partes, do tempo de realização estrutural do procedimento e a ampla defesa como direito ao contraditório em tempo isonômico indistintamente para todos” (Rosemiro Pereira Leal. Teoria processual da decisão jurídica. 2003, p. 180). 66. Sérgio Gilberto Porto; Daniel Ustarroz. Lições de direitos fundamentais no processo civil: o conteúdo processual da constituição federal. 2009, p. 52. 67. Não por outra razão, Mauro Cappelletti observava que os países que sofreram a influência continental europeia estavam fadados, inevitavelmente, a buscar soluções compromissórias para afastar a “caótica incerteza do direito”: “Se queriam chegar a este ou a semelhante resultado, os Países da Europa continental e, em geral, os Países a cuja tradição jurídica é estranho o princípio do stare decisis, deviam, obviamente, operar com instrumentos jurídicos bem diversos daqueles adotados no sistema estadunidense e em outros sistemas de commow law. Tornava-se, em síntese, necessário naqueles Países, ou pelo menos oportuno, encontrar um adequado substituto da Supreme Court norte-americana, isto é, encontrar um órgão judiciário a que se pudesse confiar a função de decidir sobre as questões de constitucionalidade das leis, com eficácia erga omnes e, por isto, de modo tal a evitar aquele perigo de conflitos e de caótica incerteza do direito, de que se falou antes” (Mauro Cappelletti. Op. cit., p. 83). 68. Remo Caponi. Modelli europei di tutela colletiva nel processo civile: esperienze tedesca e italiana a confronto (Extraído de http://unifi.academia.edu/remocaponi/papers/130832/R-Caponi. Consulta em 06/05/2010). 312

16 – Garantismo, contraditório fluido, recursos repetitivos e incidentes de coletivização

imunizá-lo contra a intolerância, as opressões sociais, a carência, a miséria ou a desgraça alheia.69

Desse modo, no que tange ao reconhecimento da repercussão geral da questão constitucional, há que se atentar para a observância deste contraditório fluido, de sorte a se fomentar o ingresso de amici curiae nos processos envolvendo o controle difuso de constitucionalidade.70 E, neste quadrante, a discussão pode ser norteada pela pesquisa empírica formalizada por Damares Medina acerca da possibilidade da figura do amicus curiae influenciar o processo decisional no âmbito do Supremo Tribunal Federal.71 Com efeito, Damares Medina se propôs a responder à seguinte indagação: qual a influência do amicus curiae no processo de tomada de decisão do Supremo Tribunal Federal? Com base na análise quantitativa e qualitativa de dados coletados, a autora concluiu que as evidências empíricas sugerem que o amicus curiae contribui efetivamente para o aumento das (...) alternativas interpretativas ao promover uma abertura procedimental, bem como a pluralização da jurisdição constitucional. De outro turno, os resultados encontrados indicam que a utilização do instrumento também pode acarretar um desequilíbrio informacional, aumentando a distribuição 69. Elton Venturi. Op. cit., p. 151. 70. “Isto porque, mesmo que não exista, com relação à ‘repercussão geral’ (pelo menos do ponto de vista constitucional), previsão para a adoção de efeitos ‘vinculantes’, não há como negar que sua própria função no sistema de acesso recursal ao Supremo Tribunal Federal é fator suficiente para que o maior número de ‘interessados’ possa manifestar-se perante aquela corte em busca da mais adequada definição do que se amolda e daquilo que não se amolda naquela expressão. Trata-se, aqui, de um nítido caso em que, qualquer que seja o entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito da interpretação daqueles conceitos vagos, seus efeitos (mesmo que só os práticos, meramente persuasivos) vão além, necessariamente além, da específica questão julgada, e que poderá, conforme o caso, até mesmo envolver apenas dois litigantes em uma situação que, na visão deles, diz respeito só a eles próprios, um ‘Caio’ de um lado e um ‘Tício’ de outro. Inequivocamente, estamos diante de uma situação em que ‘os’ interesses subjacentes ao caso concreto suplantam – e muito ‘o’ interesse que caracteriza o litígio entre dois sujeitos, travestido de ‘direito’. Não se estará, ao definir o que pode e o que não pode ser entendido como ‘repercussão geral’, decidindo ‘só’ se um dos litigantes – quem quer que sejam eles, frisamos este ponto – tem razão. Estar-se-á discutindo e decidindo quais as condições que, concretamente, devem estar presentes para se alcançar o Supremo Tribunal Federal em quaisquer outros casos similares àqueles. E que deverão, ainda que não haja um ‘efeito vinculante’ para aquela específica decisão, ser observados por todos os demais litigantes, independentemente de quem sejam eles” (Cassio Scarpinella Bueno. Op. cit., p. 627). 71. “Nas situações nas quais o terceiro ingressou apoiando a procedência da ação, o percentual de processos julgados procedentes aumentou. Nos casos em que o terceiro ingressou no processo apoiando a improcedência da ação, o percentual de ações julgadas improcedentes também aumento. Em ambos os casos, o percentual de ações não conhecidas diminuiu. Os resultados dos julgamentos do STF no período pesquisado estabelecem uma robusta relação causal entre o ingresso do amicus curiae e o aumento das chances de êxito do lado por ele apoiado” (Damares Medina. Op. cit., p. 135). 313

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL assimétrica de informações entre as partes envolvidas no processo, favorecendo a uma das partes litigantes.72

Vale dizer: a abertura procedimental propiciada pela ampla aceitação de amicus curiae – com o elastecimento e flexibilização dos critérios da representatividade e da pertinência temática – pode contribuir, em última medida, para a condução da discussão qualificada e, por via de consequência, para o desencadeamento de um modelo de controle difuso equilibrado e consentâneo com a realidade nacional.73 Portanto, a preocupação descortinada com o contraditório fluido decorre do fato de que o amigo da corte pode atuar como (...) mecanismo mitigador ou potencializador da vantagem informacional das partes (ou de apenas uma delas, o lado apoiado). A potencialização da vantagem informacional da parte apoiada pelo amicus curiae pode aumentar a assimetria de informações entre as partes e o juízo (corte), comprometendo o equilíbrio processual fundamental para o processo de tomada de decisão judicial.74

Como já foi dito, o eventual desequilíbrio informacional decorrente da atuação polarizada de amici curiae pode repercutir no processo de tomada de decisões por parte da Corte Superior. Por isso, “como possíveis soluções para minimizar a assimetria de informações provocadas pelo ingresso do amicus, destacam-se a adoção do procedimento eletrônico e das audiências públicas”.75 Ou seja, a técnica da prévia divulgação de informações referentes aos processos repetitivos ou incidentes de coletivização pode servir para amenizar o problema do desequilíbrio informacional, contribuindo para o implemento de um espaço virtual voltado ao debate privilegiado.

6. Considerações finais Ao se admitir que o Estado de Direito afirma-se com a defesa de um núcleo de direitos fundamentais, tem-se como consectário lógico a 72. Damares Medina. Op. cit., p. 22. 73. “Cada amicus curiae admitido em um processo pode significar inúmeros processos a menos, o que também contribuirá para a administração da justiça. Vista por outro ângulo, a questão dialoga com os conflitos decorrentes do crescente ingresso dos amicus curiae nos processos do controle incidental de constitucionalidade, especialmente o recurso extraordinário objetivado pela repercussão geral” (Damares Medina. Op. cit., p. 27). 74. Damares Medina. Op. cit., p. 163. 75. Idem, p. 170. 314

16 – Garantismo, contraditório fluido, recursos repetitivos e incidentes de coletivização

observância de determinadas situações jurídicas consolidadas, preservando-as, assim, das oscilações políticas e sociais. Os postulados decorrentes da segurança jurídica desenvolvem-se em torno de dois eixos fundamentais: a estabilidade e a previsibilidade das situações concretas. Os incidentes de coletivização e processos repetitivos amoldam-se, portanto, neste cenário, buscando certas convergências no universo das repetições, numa certa solução-compromisso de respeitabilidade com as decisões emanadas dos tribunais superiores. Por certo, os incidentes de coletivização e técnicas processuais correlatas não podem ser erigidas à condição de panaceia para as mazelas do Poder Judiciário. Mas, coadunam-se as mesmas com certa tendência de fortalecimento da jurisdição de índole coletiva. Ocorre, entretanto, que a projeção alcançada pelos julgamentos de processos repetitivos está a recomendar que a investigação da matéria jurídica controvertida e o processo decisório não estejam adstritos ao solitário exame da corte superior. Afinal, o eventual desequilíbrio informacional decorrente da atuação polarizada de amici curiae pode repercutir no processo de tomada de decisões por parte da corte superior. Recomenda-se, por conseguinte, a construção de um espaço de discussão privilegiado para viabilizar o contraditório necessário ao amadurecimento de certas teses jurídicas.

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Precedentes: teoria geral e seus reflexos no projeto de Novo Código de Processo Civil Bruno Garcia Redondo

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1. Precedente, ratio decidendi (holding) e obter dictum (dictum). 2. Classificação dos precedentes. 3. Precedente, jurisprudência e súmula. 4. Hard case e clear case. 5. Técnica de confronto, interpretação e aplicação de precedente: distinguishing. 6. Técnicas de superação de precedente: overruling, transformation, overriding, technique of signaling e decisum per incuriam. 7. Common law, civil law e o sistema brasileiro atual. 8. Objetivos do sistema baseado em precedentes. 9. Pressupostos, requisitos e cuidados que devem ser tomados no sistema baseado em precedentes. 10. Projeto de Novo Código de Processo Civil. 11. Projeto de Novo CPC e a busca pela efetividade, isonomia, segurança jurídica e estabilidade das decisões judiciais. 12. Técnicas processuais, previstas no Projeto, relacionadas à utilização de precedentes. Referências.

1. Precedente, ratio decidendi (holding) e obter dictum (dictum)1

C

onsiste o precedente na decisão jurisdicional, tomada em relação a um caso concreto, cujo núcleo é capaz de servir como diretriz para a resolução de demandas semelhantes. Todo precedente é,

* Mestrando em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela PUC/Rio. Pós-Graduado em Advocacia Pública pela ESAP (PGERJ/ Uerj-Ceped). Pós-Graduado em Direito Público e em Direito Privado pela Emerj (TJRJ/ Unesa). Professor de Direito Processual Civil nas seguintes Instituições: na Graduação da PUC-Rio; nos cursos de Pós-Graduação da PUC/Rio, da UFF, da UERJ, da Emerj, da Fesudeperj, da Amperj, da ESA (OAB/RJ), do CEDJ, do Ceped, da Abadi, da EPD e do IMP/MT. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC) e do Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal (IIDP). Secretário-Geral da Comissão de Estudos em Processo Civil da OAB-RJ. Procurador da OAB-RJ. Procurador da UERJ. Advogado. 1. Roteiro escrito de Palestra proferida pelo Autor no Seminário de Direito Processual Civil promovido pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no mês de outubro de 2012. 319

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portanto, uma decisão judicial, mas nem toda decisão pode ser qualificada como um precedente. Como característica fundamental do precedente tem-se o surgimento de uma norma geral construída pelo órgão jurisdicional, a partir de um caso concreto, que passa a servir de diretriz para situações assemelhadas. “Todo precedente é composto de duas partes distintas: a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório”.2 O elemento do precedente que tem caráter obrigatório (vinculante) ou persuasivo é, apenas, a ratio decidendi.3 Ratio decidendi (ou holding) consiste nos fundamentos jurídicos que embasam a decisão, isto é, a operação interpretativa utilizada na decisão, sem a qual o pronunciamento não teria sido prolatado da maneira como o foi. Trata-se da tese jurídica acolhida, no caso concreto, pelo julgador, sendo composta por três elementos: (i) indicação dos fatos relevantes da causa (statement of material facts); (ii) raciocínio lógico-jurídico da decisão (legal reasoning); e (iii) juízo decisório (judgement).4 Como se vê, o magistrado, ao decidir determinada questão, cria duas normas jurídicas: (i) uma, de cunho individual, consistente na solução específica para a controvérsia concreta que lhe foi posta para resolução, única apta a ser alcançada pela coisa julgada material; e (ii) outra, de caráter geral, fruto da interpretação e compreensão dos fatos envolvidos na causa e de sua adequação ao Direito positivo, identificada como a ratio decidendi do precedente. O precedente judicial5 – isto é, a norma extraída, por indução, da ratio decidendi de um caso concreto, capaz de ser generalizada e universalizada –, que tem eficácia vinculante ou persuasiva para os casos subsequentes, encontra-se localizado, essencialmente, na fundamentação do julgado.6

2. José Rogério Cruz e Tucci. Precedente judicial como fonte do direito. 2004, p. 12. 3. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Curso de direito processual civil. 2012. v. 2, p. 385; e Luiz Guilherme Marinoni. Precedentes obrigatórios. 2010, p. 110. 4. José Rogério Cruz e Tucci. Op. cit., p. 175. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 385. 5. “Os ‘precedentes’ são resoluções em que a mesma questão jurídica, sobre a qual há que decidir novamente, foi já resolvida uma vez por um tribunal noutro caso. Vale como precedente, não a resolução do caso concreto para adquirir força jurídica, mas só a resposta dada pelo tribunal, no quadro da fundamentação da sentença a uma questão jurídica que se põe da mesma maneira no caso a resolver agora.” (Karl Larenz. Metodologia da ciência do direito. 1997, p. 611). 6. José Rogério Cruz e Tucci. Op. cit., p. 177; Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 388; e Luiz Guilherme Marinoni. Op. cit., p. 221. 320

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Necessário, portanto, que cada decisão seja prolatada com redobrada cautela, uma vez que o julgador estará, imediatamente, decidindo o caso concreto, mas, mediatamente, fixando a ratio decidendi que poderá servir para a extração de uma norma geral que servirá como precedente para as situações semelhantes.7 A fundamentação de cada decisão judicial passa a conter, assim, não apenas um discurso voltado para o caso concreto (isto é, a solução individual, particular, concreta), mas também um discurso para a ordem jurídica e para a sociedade (fixação da ratio decidendi, tese jurídica do precedente da qual emanará a norma geral e abstrata).8 Em regra, o juiz não precisa identificar, expressamente, qual a ratio decidendi do julgado – com exceção das decisões que julgam o incidente de uniformização de jurisprudência (arts. 476 a 479 do CPC), o incidente de decretação de inconstitucionalidade (arts. 480 a 482 do CPC) e o incidente de julgamento por amostragem de recursos repetitivos (arts. 543-B e 543-C do CPC) – cabendo aos julgadores, nos casos subsequentes, examinarem a decisão anterior para extraírem, do precedente, a norma geral que incidirá ou no caso posterior.9 Obter dictum (no singular, ou obter dicta, no plural, dictum ou, ainda, gratis dicta), por seu turno, consiste no conjunto de argumentos expostos apenas “de passagem” na motivação da decisão, meros juízos acessórios, periféricos, provisórios, secundários, refletindo impressões que não têm influência relevante, substancial nem decisiva para a solução do caso concreto. Obter dictum é, assim, o argumento prescindível para a resolução da controvérsia.10 Ainda que o obter dictum não exerça propriamente a função de precedente, ele não é, de todo, irrelevante para o sistema jurídico, já que pode servir, v.g., para indicar futura orientação do tribunal ou de elemento de persuasão em posterior tentativa de superação do precedente. Também o 7. Evaristo Aragão Santos. Em torno do conceito e da formação do precedente judicial. In: Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). Direito jurisprudencial. 2012, p. 152-153. 8. Daniel Mitidiero. Fundamentação e precedente: dois discursos a partir da decisão judicial. Revista de Processo. 2012, p. 61 et seq. 9. José Rogério Cruz e Tucci. Op. cit., p. 175. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 389. Marcelo Alves Dias de Souza. Do precedente judicial à súmula vinculante. 2007, p. 134. 10. Teresa Arruda Alvim Wambier. Precedentes e evolução do direito. In: Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). Direito jurisprudencial. 2012, p. 44. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 387-388. Luiz Guilherme Marinoni. Op. cit., p. 238, 279-288. Roger Stiefelmann Leal. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. 2006, p. 168-169. Pierluigi Chiassoni. Il fasci discreto dela common law. Appunti sulla “rilevanza” dei precedente giudiziali. In: Mario Bessone; Elisabetta Silvestri; Michele Taruffo (org.). I metodi dela giustizia civile. 2000, p. 09. 321

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voto vencido de um julgamento colegiado caracteriza-se como obter dictum daquele julgamento, sendo relevante para fundamentar eventual recurso subsequente (v.g., embargos infringentes).

2. Classificação dos precedentes Os precedentes são classificados de diversos modos pelos especialistas. Há quem os diferencie, quanto ao seu conteúdo, em precedentes declarativos (que reconhecem e aplicam uma norma previamente existente) e criativos (que, ao mesmo tempo, criam e aplicam uma norma jurídica).11 Quanto à sua eficácia, os precedentes costumam ser divididos em: (i) vinculantes ou obrigatórios (binding precedent, dotado de binding authority, isto é, autoridade vinculante), quando dotados de eficácia vinculante em relação aos julgados que lhes forem posteriores; (ii) obstativos da revisão de decisões, quando aptos a obstar a apreciação de recursos ou da remessa necessária; e (iii) persuasivos (persuasive precedent), não sendo vinculantes nem obrigatórios, servindo apenas de indício de uma solução racional e socialmente adequada, podendo ser livremente seguidos ou inobservados pelo julgador subsequente.12

3. Precedente, jurisprudência e súmula Como visto, consiste o precedente em decisão jurisdicional proferida em um caso concreto cujo núcleo (tese jurídica extraída da ratio decidendi) pode servir de norma geral e diretriz para a resolução de demandas semelhantes. Quando o precedente é reiteradamente aplicado, passando a refletir o posicionamento predominante do tribunal, diz-se que o mesmo se torna jurisprudência. Note-se, assim, que jurisprudência não significa a mera existência de um ou de alguns julgados em determinado sentido, mas sim a orientação reiterada, atual e prevalecente no âmbito de determinado tribunal.13

11. Critério adotado, entre outros, por Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliviera. Op. cit., p. 391-392. Marcelo Alves Dias de Souza. Op. cit., p. 51. 12. Classificação encontrada em José Rogério Cruz e Tucci. Op. cit., p. 13. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 393-395. Luiz Guilherme Marinoni. Op. cit., p. 111-119. Marcelo Alves Dias de Souza. Op. cit., p. 53. 13. Para aprofundamento sobre o tema, Michele Taruffo. Precedente e giurisprudenza. 2007, passim; e Luiz Rodrigues Wambier. Uma proposta em torno do conceito de jurisprudência dominante. Revista de Processo, 2000, p. 72-87. 322

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Súmula,14 por seu turno, consiste no conjunto de enunciados normativos da ratio decidendi da jurisprudência (precedentes reiterados e predominantes no tribunal). Cada enunciado da súmula consagra, assim, um texto, que reflete a norma geral extraída da jurisprudência. Pelo fato de ser expresso por meio de texto escrito, o enunciado da súmula será objeto de interpretação, razão pela qual deve ser preferivelmente redigido em termos precisos e claros, para que não se afaste da ratio decidendi extraída da jurisprudência.15 Tal como os precedentes, as súmulas podem ser classificadas em (i) vinculantes ou obrigatórias, quando dotadas de eficácia vinculante em relação aos julgados que lhes forem posteriores; (ii) obstativas da revisão de decisão, quando aptas a impedir a apreciação de recurso ou da remessa necessária; e (iii) persuasivas, quando de aplicação livre, não vinculante nem obrigatória, servindo somente de indícios para uma solução racional.

4. Hard case e clear case Quando a questão é enfrentada pela primeira vez, há o hard case, situação na qual inexiste precedente a ser analisado, sendo livre a resolução do mérito pelo julgador. A liberdade normativa do juiz, contudo, não significa ausência integral de parâmetros. “O juiz cria: mas tem o dever de fazê-lo de forma harmônica com o sistema”.16 Por seu turno, quando já existe precedente relacionado à situação sob exame, está-se diante de um clear case, cabendo ao julgador aplicá-lo obrigatoriamente, se vinculante, ou levá-lo preferivelmente em consideração, se persuasivo.

5. Técnica de confronto, interpretação e aplicação de precedente: distinguishing Para o confronto, a interpretação e a aplicação do precedente, deve o julgador, primeiramente, verificar se o caso sob exame guarda semelhança (fática e jurídica) com o anteriormente julgado. Somente quando, ao confrontar os elementos objetivos da demanda (causa de pedir e pedido), o magistrado concluir pela aproximação dos mesmos, é que deve ele partir para a segunda 14. No Direito brasileiro, atribui-se a criação da Súmula ao Ministro Nunes Leal, do STF, que, auxiliado por assessores, orientou, em 1963, a edição de uma emenda regimental do STF e a edição dos primeiros 370 Enunciados da Súmula de sua jurisprudência predominante. 15. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 401. 16. Teresa Arruda Alvim Wambier. Op. cit., p. 30. 323

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etapa, consistente na análise da ratio decidendi, isto é, da tese jurídica firmada nas decisões proferidas anteriormente nas causas assemelhadas. Fala-se em distinguishing (ou distinguish) quando há diferença entre o caso concreto em exame e o paradigma anterior, seja porque inexiste coincidência com os fatos que embasaram a ratio decidendi, seja porque, a despeito de eventual aproximação entre eles, há alguma peculiaridade no caso em julgamento que impõe a não aplicação do precedente. Outra acepção do termo distinguishing é a própria técnica (método) de comparação entre o caso concreto e o paradigma.17 Há, assim, tanto o distinguish-método (técnica de comparação entre o precedente e o caso vertente), quanto o distinguish-resultado (resultado desse confronto pelo qual se conclui pela existência de alguma diferença, levando à não aplicação do precedente).18 O distinguish-resultado pode variar dependendo do grau de distinção entre o precedente e o caso concreto posterior. Quando se der à ratio decidendi uma interpretação restritiva, pelo fato de as particularidades do caso concreto impedirem a aplicação ampla da tese jurídica anterior, caso em que o julgador apreciará livremente a questão, tem-se o restrictive distinguishing (inapplicable law, ou, ainda, atividade criadora). Caso se estenda, à situação em exame, a mesma solução conferida ao caso anterior, por considerar-se aplicável aquela tese jurídica a despeito das peculiaridades concretas, tem-se o ampliative distinguishing (ou atividade legislativa).19

6. Técnicas de superação de precedente: overruling, transformation, overriding, technique of signaling e decisum per incuriam Consiste o overruling na técnica pela qual o precedente perde sua força vinculante e é substituído (overruled), revogado expressamente por outro precedente.20 O overruling, em regra, deve ser praticado pelo mesmo tribunal, já que quem fixou o precedente é que deve poder abandoná-lo.21 A superação do precedente pode ocorrer por qualquer motivo, sendo os mais 17. José Rogério Cruz e Tucci. Op. cit., p. 174. 18. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 403. 19. José Rogério Cruz e Tucci. Op. cit., p. 174. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 403. 20. José Rogério Cruz e Tucci. Op. cit., p. 158, 159 e 167. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 403. 21. Leonardo Greco. Novas súmulas do STF e alguns reflexos sobre o mandado de segurança. Revista Dialética de Direito Processual. 2004, p. 46. 324

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frequentes os seguintes: (i) quando o precedente está obsoleto ou desfigurado; (ii) quando é absolutamente injusto, incorreto ou equivocado; (iii) quando se revela inexequível na prática;22 (iv) quando deixa de corresponder aos padrões de congruência social ou passa a negar proposições morais, políticas e de experiência; e (v) quando não tem consistência sistêmica, deixando de guardar coerência com outras decisões ou com novos dispositivos legais.23 Quanto à forma de superação, diz-se que o overruling pode ser expresso ou implícito. Caso a adoção de nova orientação seja expressa, tem-se o express overruling; quando a alteração é empreendida mediante o abandono da posição anterior sem expressa substituição pela subsequente, há o implied overruling (ou transformation).24 Quando à eficácia da alteração, o overruling pode ser retrospectivo, prospectivo ou antecipado, variando conforme a opção que o tribunal adote ao sopesar os princípios da juridicidade, da isonomia, da segurança jurídica e da não surpresa (ou da confiança).25 Quando a anterior orientação (precedente substituído) não pode ser invocada quanto a fatos anteriores à superação e que ainda estejam pendentes de julgamento, tem-se o retrospective overruling, dotado de eficácia ex tunc. Caso a ratio decidendi do precedente substituído permaneça aplicável aos fatos anteriormente ocorridos e aos processos instaurados antes de sua superação, há o prospective orerruling, dotado de eficácia ex nunc. Quando ainda inexiste efetiva superação do precedente pelo tribunal superior, mas o órgão anterior, já verificando uma tendência iminente de superação ou alteração do mesmo, deixa de aplicar o precedente preventivamente, tem-se o anticipatory overruling, que não consiste, a rigor, em revogação antecipada, mas em não aplicação do precedente com base em juízo de probabilidade de sua iminente alteração pelo órgão ad quem.26 22. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 406. Celso de Albuquerque Silva. Op. cit., p. 297. Patrícia Perrone Campos Mello. Precedentes. 2008, p. 237 et seq. 23. Luiz Guilherme Marinoni. Op. cit., p. 390-391. 24. “Mediante a transformation, a Corte nega o conteúdo do precedente, mas deixa de expressar isso formalmente, através do overruling. Ou seja, no overruling a Corte expressamente anuncia a revogação do precedente, enquanto na transformation isso não acontece.” (Luiz Guilherme Marinoni. Op. cit., p. 343). 25. Celso Antônio Bandeira de Mello. Segurança jurídica e mudança de jurisprudência. Revista de Direito do Estado, 2007, p. 335; Tércio Sampaio Ferraz Jr. Irretroatividade e jurisprudência judicial. In: Nelson Nery Jr.; Roque Antonio Carraza; Tércio Sampaio Ferraz Jr. (org.). Efeito ex nunc e as decisões do STJ. São Paulo: Manole, 2007, p. 8-14. Roque Antonio Carraza. Segurança jurídica e eficácia temporal das alterações jurisprudenciais. In: Nelson Nery Jr.; Roque Antonio Carraza; Tércio Sampaio Ferraz Jr. (org.). Efeito ex nunc e as decisões do STJ. 2007, p. 41-55. 26. Teresa Arruda Alvim Wambier. Op. cit., p. 43. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 406. Luiz Guilherme Marinoni. Op. cit., p. 402 e 414-419. 325

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A superação do precedente exige, do magistrado, elevada carga de argumentação jurídica (ônus argumentativo elevado, por meio de decisão com fundamentação adequada, analítica e específica),27 já que se estará deixando de aplicar uma solução que serviu a diversos casos anteriores e semelhantes, circunstância que, a princípio, justificaria a continuidade de sua aplicação. Existe, também, a chamada technique of signaling, que consiste em um meio-termo entre distinguishing e overruling. Por meio dessa técnica, o tribunal não revoga o precedente, nem realiza uma adequada distinção. A corte identifica que o conteúdo do precedente está equivocado ou que deve deixar de subsistir, mas, em nome da segurança jurídica, deixa de revogá-lo naquele momento, vindo apenas a pontar para a sua perda de consistência, sinalizando para a sua provável e futura revogação.28 Há, ainda, o overriding sempre que o tribunal limita o âmbito da incidência do precedente, em razão da superveniência de regra ou princípio legal, ou de entendimento posteriormente formado. Não se trata, assim, de superação total do precedente, mas de mera superação parcial.29 Finalmente, quando o magistrado deixa de aplicar um precedente obrigatório ou uma lei relacionada ao caso, sem que se trate de overruling ou overriding, tem-se a chamada decisão per incuriam, caso em que, para a validade do julgado, é necessário que o julgador demonstre que, ainda que tivesse analisado a lei ou o procedente ignorado, o resultado a que chegaria seria o mesmo que alcançou.30

7. Common law, civil law e o sistema brasileiro atual O sistema do common law compreendia, em seu início, essencialmente os costumes gerais que determinavam o comportamento dos Englishman.31 Séculos depois, passou o common law a fundamentar-se na teoria do stare decisis, 32 pela qual o precedente judicial (isto é, sua ratio decidendi), principalmente aquele advindo de Corte superior, é dotado de eficácia vinculante, 27. Luiz Henrique Volpe Camargo. A força dos precedentes no moderno processo civil brasileiro. In: Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). Direito jurisprudencial. 2012, p. 569. 28. Luiz Guilherme Marinoni. Op. cit., p. 335. 29. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 406. Luiz Guilherme Marinoni. Op. cit., p. 347. Celso de Albuquerque Silva. Op. Cit., p. 297. 30. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 405-405. Marcelo Alves Dias de Souza. Op. cit., p. 146. 31. Teresa Arruda Alvim Wambier. Op. cit., p. 20. Luiz Guilherme Marinoni. Op. cit., p. 33. 32. Expressão extraída da parêmia latina stare decisis et non quieta movere (mantenha-se a decisão e não se moleste o que foi decidido). 326

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não apenas para a própria Corte, como para todos os demais juízos a ela hierarquicamente vinculados e inferiores. Também chamado de doctrine of binding precedente, a vertente mais recente desse sistema teve origem nas primeiras décadas do século XIX na Inglaterra, vindo a ser definitivamente reconhecido em 1898, no caso London Tramways Company v. London County Council, em que a Câmara dos Lordes tratou tanto do efeito autovinculante do precedente, quanto da eficácia vertical do precedente, isto é, sua eficácia vinculante externa a todos os juízos de grau inferior. 33 Reconhecer-se a importância dos precedentes judiciais não significa dizer que o sistema jurídico daquele determinado país necessariamente será integrante da família do common law. Precedentes podem ser levados em consideração por quaisquer dos sistemas (common law ou civil law). A diferença fundamental reside no grau de eficácia de que o precedente desfruta: enquanto no sistema clássico do common law os precedentes são, em regra, vinculantes, no sistema puro do civil law eles são, de modo geral, inobservados ou meramente persuasivos. O Direito brasileiro, classicamente considerado como integrante do sistema do civil law (família romano-germânica), vem atribuindo, paulatinamente, importância cada vez maior aos precedentes judiciais, razão pela qual passou a ser, em verdade, um sistema intermediário ou misto, no meio do caminho entre o civil law e o common law.34 No plano constitucional brasileiro, destaca-se a eficácia vinculante de determinados precedentes, quais sejam, as decisões proferidas no controle abstrato e concentrado de constitucionalidade e a Súmula Vinculante do STF (fruto da Emenda Constitucional 45/2004, que alterou a redação do § 2º do art. 102 e inseriu o art. 103-B na CRFB). Em sede infraconstitucional, ainda que se entenda majoritariamente que as decisões proferidas em processos individuais não tenham eficácia erga omnes nem vinculante, são cada vez mais numerosos os instrumentos que permitem a aceleração do procedimento35 por meio da prolação imediata 33. Origem inglesa apontada pela quase unanimidade da doutrina brasileira. Por todos, José Rogério Cruz e Tucci. Op. cit., p. 158-161. 34. Luiz Guilherme Marinoni. Op. cit., p. 98-101. Eduardo de Albuquerque Parente. Jurisprudência: da divergência à uniformização. 2006, p. 17. Gustavo Santana Nogueira. Jurisprudência vinculante no direito norte-americano e no direito brasileiro. Revista de Processo, 2008, p. 101 et seq. 35. Fábio Victor da Fonte Monnerat. A jurisprudência uniformizada como estratégia de aceleração do procedimento. In Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). Direito jurisprudencial. 2012, p. 341-490. 327

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de decisões, do impedimento e do julgamento de recursos quando existente precedente judicial anterior aplicável ao caso concreto posterior (v.g., arts. 285-A, 518, § 1º, 557, 543-B e 543-C do CPC). Por essa razão, diversos autores vêm reconhecendo, com razão, que a jurisprudência é fonte do Direito Processual Civil brasileiro. 36

8. Objetivos do sistema baseado em precedentes O sistema jurídico que reconhece a importância dos precedentes (sejam eles vinculantes, impeditivos de recursos ou persuasivos), tal como o brasileiro, busca, por meio dessa técnica, assegurar a efetividade de algumas garantias constitucionais, tais como o devido processo legal (soluções iguais sendo aplicadas a processos semelhantes), a isonomia (decisões semelhantes para casos parecidos), a segurança jurídica e a efetividade da tutela jurisdicional. Outros objetivos são igualmente buscados pela observância de precedentes, tais como a não surpresa, a previsibilidade (da orientação jurisdicional a respeito de determinada matéria e da possível alteração de entendimento), a estabilidade, a coerência da ordem jurídica, o desestímulo à litigância, a duração razoável do processo e a maior eficiência do Poder Judiciário.

9. Pressupostos, requisitos e cuidados que devem ser tomados no sistema baseado em precedentes Ainda que a observância de precedentes confira maior efetividade a diversas garantias e princípios, sua utilização inadequada ou exacerbada é capaz de gerar danos e mazelas aos jurisdicionados e ao próprio sistema jurídico. Ressalta-se, primeiramente, a importância fundamental da utilização cuidadosa das técnicas do distinguishing, do overruling e do overriding para a aplicação, afastamento ou superação dos precedentes. Em segundo lugar, deve-se afastar o risco de engessamento dos tribunais, já que o Direito deve acompanhar as mudanças sociais. Essencial, portanto, a previsão e a existência de mecanismos que possam ser utilizados tanto pelos magistrados, quanto pelas partes, capazes de ensejar a revisão ou a superação do precedente. 37 36. Entre tantos, José Rogério Cruz e Tucci. Op. cit., p. 18. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 390-391. Lênio Luiz Streck. Súmulas no direito brasileiro: eficácia, poder e função. 1998, p. 86. José Guilherme de Souza. A criação judicial do direito. 1991, p. 37. 37. José Rogério Cruz e Tucci. Op. cit., p. 180. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit., p. 407. Celso Albuquerque Silva. Op. cit., p. 303. 328

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Em terceiro lugar, deve-se preservar, ainda que de forma moderada e não exacerbada, a diversidade criativa do Poder Judiciário (“criatividade jurisprudencial”, importantíssima para a adequada formação de precedentes judiciais como fonte de direito), que começa a correr o risco de desaparecer no sistema brasileiro vigente, sem nem mesmo ter sido adequadamente percebida e aproveitada.38 Como quarto e derradeiro cuidado que se deve ter na adoção de um sistema de precedentes, ressalta-se o dever dos magistrados de observância, sempre e em todos os casos, das garantias do contraditório e da ampla defesa, bem como da fundamentação adequada (analítica e específica) das decisões judiciais (tanto as que formam os precedentes, quanto as que os aplicam, os afastam, os modificam ou os superam).

10. Projeto de Novo Código de Processo Civil No fim de 2009, o Senado Federal instituiu notável Comissão de Juristas39 encarregada de elaborar Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil, com o objetivo de substituir o Código de 1973 a fim de adequar a legislação processual à realidade da sociedade e das demandas cíveis do século XXI. Após a realização de diversas audiências públicas pelas principais cidades brasileiras — que tiveram por objetivo obter sugestões da sociedade relacionadas ao Direito Processual Civil, ocasião em que, inclusive, fizemos uso da palavra40 — a versão oficial do Anteprojeto elaborado pela Comissão de Juristas veio a ser protocolada no Senado Federal em 08/06/2010, no qual passou a tramitar como o PLS nº 166/2010.

38. Evaristo Aragão Santos. Sobre a importância e os riscos que hoje corre a criatividade jurisprudencial. Revista de Processo. 2010, p. 38 et seq. 39. A Comissão de Juristas encarregada de elaborar o Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil foi instituída em 30/09/2009, por meio do Ato 379/2009 do Presidente do Senado, José Sarney, tendo a seguinte composição: Min. Luiz Fux (Presidente), Teresa Arruda Alvim Wambier (Relatora-Geral), Adroaldo Furtado Fabrício, Benedito Cerezzo Pereira Filho, Bruno Dantas, Elpídio Donizetti, Humberto Theodoro Júnior, Jansen Fialho de Almeida, José Miguel Garcia Medina, José Roberto dos Santos Bedaque, Marcus Vinicius Furtado Coelho e Paulo Cezar Pinheiro Carneiro. 40. Verifique-se especialmente as p. 323 e 325 (que fazem referência à nossa intervenção oral durante a Audiência Pública ocorrida na cidade do Rio de Janeiro) da versão, apresentada ao Senado Federal, do Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil, disponível em: . Acesso em: 18/06/2012. 329

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Em agosto de 2010, durante a tramitação do PLS nº 166/2010 no Senado, foi instituída a Comissão Temporária de Reforma do Código de Processo Civil,41 com a missão de elaborar tanto um Relatório consolidando as propostas constantes de todos os demais Projetos de Lei – que se encontravam em trâmite naquela Casa Legislativa – cujos objetivos fossem promover alterações sobre o Código de Processo Civil de 1973, quanto um Substitutivo ao PLS nº 166/2010 que viesse a adequar o Projeto a essas iniciativas do Legislativo e às propostas da sociedade colhidas em novas Audiências Públicas, realizadas posteriormente ao início da tramitação do Projeto. Em 15/12/2010, foi aprovada no Senado Federal a versão do Substitutivo ao PLS nº 166/2010, que foi remetida à Câmara dos Deputados e ali recebida em 22/12/2010. O Projeto de Novo Código de Processo Civil encontra-se atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados como o PL nº 8.046/2010,42 cujo texto base, na realidade, é o do Substitutivo (do Senado) ao PLS nº 166/2010, sobre o qual está sendo discutido e elaborado o Substitutivo da Câmara. As indicações de artigos que faremos nas seções seguintes referem-se aos dispositivos constantes da versão final do Projeto aprovada pelo Senado Federal em dezembro de 2010 (Substitutivo ao PLS nº 166/2010), texto base atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados (PL nº 8.046/2010).

41. A Comissão Temporária de Reforma do Código de Processo Civil (Requerimento 747/2010, aprovado em 04/08/2010) teve a seguinte composição: Senadores Demóstenes Torres (Presidente), Antonio Carlos Valadares (Vice-Presidente), Valter Pereira (Relator-Geral), Antonio Carlos Júnior (Relator Parcial para Processo Eletrônico), Romeu Tuma (Relator Parcial para Parte Geral), Marconi Perillo (Relator Parcial para Processo de Conhecimento), Almeida Lima (Relator Parcial para Procedimentos Especiais), Antonio Carlos Valadares (Relator Parcial para Cumprimento das Sentenças e Execução) e Acir Gurgacz (Relator Parcial para Recursos), que contou com a assessoria dos juristas Athos Gusmão Carneiro, Cassio Scarpinella Bueno, Dorival Renato Pavan e Luiz Henrique Volpe Camargo, além dos Consultores Legislativos do Senado. 42. Em 31/08/2011, foram eleitos os dirigentes da Comissão Especial da Câmara que analisa o PL 8.046/2010: Deputados Fábio Trad (Presidente), Sérgio Barradas Carneiro (Relator), Miro Teixeira (Vice-Presidente), Vicente Arruda (Vice-Presidente) e Sandra Rosado (Vice-Presidente). Como Sub-Relatores, foram designados os seguintes Deputados: Efraim Filho, Jerônimo Goergen, Arnaldo Faria de Sá, Bonifácio de Andrada e Hugo Leal, cada um responsável por uma parte do Projeto do Novo CPC. Essa Comissão conta com a assessoria de uma Comissão Especial de Juristas, formada por Alexandre Freitas Câmara, Fredie Didier Júnior, José Manoel de Arruda Alvim Netto, Leonardo José Carneiro da Cunha, Luiz Henrique Volpe Camargo, Marcos Destefenni, Paulo Henrique dos Santos Lucon e Sérgio Muritiba. De nossa parte, tivemos a honra de integrar uma das Comissões de Apoio a essa Comissão Especial de Juristas, sendo esse nosso pequeno grupo de estudos composto por André Luís Monteiro, Bruno Garcia Redondo, Eider Avelino Silva e Welder Queiroz dos Santos. 330

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11. Projeto de Novo CPC e a busca pela efetividade, isonomia, segurança jurídica e estabilidade das decisões judiciais O Projeto de Novo Código de Processo Civil busca assegurar diversas garantias constitucionais. Primeiramente, fica clara a preocupação com a efetividade da tutela jurisdicional, realçada, inclusive, no texto de Apresentação do Anteprojeto: É que, aqui e alhures não se calam as vozes contra a morosidade da justiça. O vaticínio tornou-se imediato: “justiça retardada é justiça denegada” e com esse estigma arrastou-se o Poder Judiciário, conduzindo o seu desprestígio a índices alarmantes de insatisfação aos olhos do povo. Esse o desafio da comissão: resgatar a crença no judiciário e tornar realidade a promessa constitucional de uma justiça pronta e célere. Como vencer o volume de ações e recursos gerado por uma litigiosidade desenfreada, máxime num país cujo ideário da nação abre as portas do judiciário para a cidadania ao dispor-se a analisar toda lesão ou ameaça a direito? Como desincumbir-se da prestação da justiça em um prazo razoável diante de um processo prenhe de solenidades e recursos? Como prestar justiça célere numa parte desse mundo de Deus, onde de cada cinco habitantes um litiga judicialmente? (...) O Brasil clama por um processo mais ágil, capaz de dotar o país de um instrumento que possa enfrentar de forma célere, sensível e efetiva, as misérias e as aberrações que passam pela Ponte da Justiça. (...)43

É também evidente a busca pela consagração da isonomia, da segurança jurídica, da não surpresa e da estabilidade (previsibilidade e uniformidade) das decisões judiciais, como se vê em diversos trechos da Exposição de Motivos do Anteprojeto: Por outro lado, haver, indefinidamente, posicionamentos diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da mesma norma jurídica, leva a que jurisdicionados que estejam em situações idênticas, tenham de submeter-se a regras de conduta diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais diversos. Esse fenômeno fragmenta o sistema, gera intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na sociedade. 43. Apresentação do Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil, redigida pelo Ministro Luiz Fux, p. 07-09. Disponível em: . Acesso em: 18/06/2012. 331

O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Prestigiou-se, seguindo-se direção já abertamente seguida pelo ordenamento jurídico brasileiro, expressado na criação da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal (STF) e do regime de julgamento conjunto de recursos especiais e extraordinários repetitivos (que foi mantido e aperfeiçoado) tendência a criar estímulos para que a jurisprudência se uniformize, à luz do que venham a decidir tribunais superiores e até de segundo grau, e se estabilize. Essa é a função e a razão de ser dos tribunais superiores: proferir decisões que moldem o ordenamento jurídico, objetivamente considerado. A função paradigmática que devem desempenhar é inerente ao sistema. Por isso é que esses princípios foram expressamente formulados. (...) Encampou-se, por isso, expressamente princípio no sentido de que, uma vez firmada jurisprudência em certo sentido, esta deve, como norma, ser mantida, salvo se houver relevantes razões recomendando sua alteração. Trata-se, na verdade, de um outro viés do princípio da segurança jurídica, que recomendaria que a jurisprudência, uma vez pacificada ou sumulada, tendesse a ser mais estável. De fato, a alteração do entendimento a respeito de uma tese jurídica ou do sentido de um texto de lei pode levar ao legítimo desejo de que as situações anteriormente decididas, com base no entendimento superado, sejam redecididas à luz da nova compreensão. Isto porque a alteração da jurisprudência, diferentemente da alteração da lei, produz efeitos equivalentes aos ex tunc. Desde que, é claro, não haja regra em sentido inverso. Mas talvez as alterações mais expressivas do sistema processual ligadas ao objetivo de harmonizá-lo com o espírito da Constituição Federal, sejam as que dizem respeito a regras que induzem à uniformidade e à estabilidade da jurisprudência. O novo Código prestigia o princípio da segurança jurídica, obviamente de índole constitucional, pois que se hospeda nas dobras do Estado Democrático de Direito e visa a proteger e a preservar as justas expectativas das pessoas. Todas as normas jurídicas devem tender a dar efetividade às garantias constitucionais, tornando “segura” a vida dos jurisdicionados, de modo a que estes sejam poupados de “surpresas”, podendo sempre prever, em alto grau, as consequências jurídicas de sua conduta. Se, por um lado, o princípio do livre convencimento motivado é garantia de julgamentos independentes e justos, e neste sentido mereceu ser prestigiado pelo novo Código, por outro, compreendido em seu mais estendido alcance, acaba por conduzir a distorções do princípio da legalidade e à própria ideia, antes mencionada, de Estado Democrático de Direito. A dispersão 332

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excessiva da jurisprudência produz intranquilidade social e descrédito do Poder Judiciário. Se todos têm que agir em conformidade com a lei, ter-se-ia, ipso facto, respeitada a isonomia. Essa relação de causalidade, todavia, fica comprometida como decorrência do desvirtuamento da liberdade que tem o juiz de decidir com base em seu entendimento sobre o sentido real da norma. A tendência à diminuição do número de recursos que devem ser apreciados pelos Tribunais de segundo grau e superiores é resultado inexorável da jurisprudência mais uniforme e estável. Proporcionar legislativamente melhores condições para operacionalizar formas de uniformização do entendimento dos Tribunais brasileiros acerca de teses jurídicas é concretizar, na vida da sociedade brasileira, o princípio constitucional da isonomia. Criaram-se figuras, no novo CPC, para evitar a dispersão excessiva da jurisprudência. Com isso, haverá condições de se atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, sem comprometer a qualidade da prestação jurisdicional. (...)44

12. Técnicas processuais, previstas no Projeto, relacionadas à utilização de precedentes Como destacado, o Projeto prevê diversos institutos que podem ser utilizados pelos magistrados para a produção de resultados uniformes em todas as demandas semelhantes. Inicialmente, o art. 307 do Projeto, aprimorando o art. 285-A do CPC/1973, permite a improcedência liminar do pedido quando o pleito do autor contrariar o entendimento dominante no âmbito dos tribunais. Durante o curso de uma demanda, se for identificar controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes, quaisquer dos sujeitos do processo (juiz, relator, partes ou Ministério Público) poderá instaurar, perante qualquer tribunal brasileiro, o incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 930 do Projeto, sem correspondente no Código de 1973).

44. Exposição de Motivos do Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil, redigida pela Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal, p. 17-22. Disponível em: . Acesso em: 18/06/2012. 333

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De acordo com o art. 938 do Projeto, “julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos que versem idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal”. A decisão proferida no incidente de resolução de demandas repetitivas parece ser de observância obrigatória pelos órgãos hierarquicamente vinculados ao tribunal que decidiu a questão, já que, na linha do art. 941 do Projeto, é cabível reclamação para o tribunal competente sempre que inobservada a tese adotada pela decisão do incidente. Interposto recurso de qualquer espécie em qualquer demanda cível, o art. 888 do Projeto, aprimorando o art. 557 do CPC/1973, permite que o relator negue seguimento, negue provimento ou dê provimento monocrático ao mesmo sempre que sua decisão estiver em conformidade com a orientação predominante dos tribunais. Os recursos especial e extraordinário, por seu turno, podem ser julgados na sistemática própria de recursos repetitivos, conforme os procedimentos do § 4º do art. 989 e dos arts. 990 a 995 do Projeto, que aprimoram a sistemática dos arts. 543-B e 543-C do CPC/1973. Mediante seleção de recurso paradigma (representativo da controvérsia) e sobrestamento, nos Tribunais locais, dos demais recursos idênticos, o Tribunal Superior julgará o mérito apenas do recurso representativo selecionado, cuja decisão poderá ser estendida a todos os recursos sobrestados. Finalmente, o art. 882 do Projeto (sem correspondente no Código de 1973) estabelece que os tribunais devam velar pela uniformização e estabilidade da jurisprudência. Caso o tribunal entenda necessária a alteração de sua jurisprudência predominante, o inciso IV do referido dispositivo permite a modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica, mediante decisão com fundamentação adequada e específica (§ 1º do art. 882).45 Trata-se de extensão, ao processo civil em geral, da modulação de efeitos que já vinha positivada para algumas demandas constitucionais (e.g., art. 27 da Lei nº 9.868/1999 e art. 11 da Lei nº 9.882/1999).

45. Como destaca Arruda Alvim, “é perceptível a ênfase conferida ao peso e ao significado social da jurisprudência dos tribunais, mormente sob a perspectiva da realização da isonomia e da segurança jurídica. Isso se dá em todos os níveis, dos Tribunais Superiores aos órgãos de segundo e primeiro grau. O objetivo que informa essas regras é exatamente concretizar melhor os princípios da legalidade e da isonomia, no sentido de que se diz que, se a lei é igual para todos, é importante também que as decisões judiciais que interpretem a lei sejam iguais para todos”. (Arruda Alvim. Manual de direito processual civil. 2011, p. 115). 334

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