Como Viver Ou uma Biografia de Montaigne Em uma Pergunta e Vinte Tentativas de Resposta 9788539004423

Como ter um bom relacionamento com as pessoas, como lidar com a violência, como se adaptar à perda de um ente querido? E

339 31 3MB

Portuguese Pages 491

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD FILE

Polecaj historie

Como Viver Ou uma Biografia de Montaigne Em uma Pergunta e Vinte Tentativas de Resposta
 9788539004423

Table of contents :
OdinRights
Folha de rosto
Créditos
Sumário
P. Como viver?
Michel de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta
1. P. Como viver? R. Não se preocupe com a morte
Por um fio
2. P. Como viver? R. Preste atenção
Começando a escrever
O fluxo da consciência
3. P. Como viver? R. Trate de nascer
Micheau
A experiência
4. P. Como viver? R. Leia muito, esqueça quase tudo que lê e raciocine com lentidão
Lendo
Montaigne, lento e esquecido
O jovem Montaigne em tempos conturbados
5. P. Como viver? R. Sobreviva ao amor e às perdas
La Boétie: amor e tirania
La Boétie: morte e luto
6. P. Como viver? R. Recorra a pequenos truques
Os pequenos truques e a arte de viver
Montaigne escravizado
7. P. Como viver? R. Questione tudo
Só sei que nada sei, e nem disto estou certo
Animais e demônios
Uma prodigiosa máquina de sedução
8. P. Como viver? R. Tenha um compartimento privado nos fundos da loja
Entregar-se com metade do traseiro
Responsabilidades práticas
9. P. Como viver? R. Seja sociável: viva com os outros
Uma sabedoria alegre e comunicativa
Abertura, compaixão e crueldade
10. P. Como viver? R. Desperte do sono do hábito
Tudo depende do ponto de vista
Selvagens nobres
11. P. Como viver? R. Viva com temperança
Elevando e baixando a temperatura
12. P. Como viver? R. Preserve sua humanidade
Terror
Herói
13 P. Como viver? R. Faça algo que ninguém nunca tenha feito
Best-seller Barroco
14. P. Como viver? R. Conheça o mundo
Viagens
15. P. Como viver? R. Faça um bom trabalho, mas nem tão bom assim
Prefeito
Objeções morais
Missões e assassinatos
16. P. Como viver? R. Filosofe só por acaso
Quinze ingleses e um irlandês
17. P. Como viver? R. Reflita sobre tudo; não se arrependa de nada
Je ne regrette rien
18. P. Como viver? R. Abra mão do controle
Filha e discípula
Guerras editoriais
Montaigne remixado e embabuinado
19. P. Como viver? R. Seja comum e imperfeito
Seja comum
Seja imperfeito
20. P. Como viver? R. Deixe a vida responder por si mesma
Não é o fim
Cronologia
Agradecimentos
Notas
Fontes

Citation preview

DADOS DE ODINRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

Sobre nós: O eLivros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: eLivros.

Como posso contribuir? Você pode ajudar contribuindo de várias maneiras, enviando livros para gente postar Envie um livro ;) Ou ainda podendo ajudar financeiramente a pagar custo de servidores e obras que compramos para postar, faça uma doação aqui :) "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e

poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

eLivros

.love

Converted by ePubtoPDF

SARAH BAKEWELL

Tradução Clóvis Marques

Copyright © Sarah Bakewell, 2010 Todos os direitos desta edição reservados à Editora Objetiva Ltda., rua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro — RJ — CEP: 22241-090 Tel.: (21) 2199-7824 — Fax: (21) 2199-7825 www.objetiva.com.br Título original How to Live or A Life of Montaigne in One Question and Twenty Attempts at an Answer Capa Sabine Dowek Revisão Tamara Sender Lilia Zanetti Ana Julia Cury Coordenação de e-book Marcelo Xavier Conversão para e-book Freitas Bastos

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ B142c Bakewell, Sarah Como viver ou Uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta [recurso eletrônico] / Sarah Bakewell ; tradução Clóvis Marques. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2013. recurso digital Tradução de: How to live or A life of Montaigne in one question and twenty attempts at an answer Formato: ePub Requisitos de acesso: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web 384p. ISBN 978-85-390-0442-3 (recurso eletrônico)

1. Montaigne, Michel de, 1533-1592. 2. Montaigne, Michel de, 1533-1592 Filosofia. 3. Escritores franceses - Séc. XVI - Biografia 4. Livros eletrônicos. I. Título. 12-8798.                                                        CDD: 928.4                                                        CDU: 929:821.133.1

Sumário Capa Folha de rosto Créditos P. Como viver? Michel de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta 1. P. Como viver? R. Não se preocupe com a morte Por um fio 2. P. Como viver? R. Preste atenção Começando a escrever O fluxo da consciência 3. P. Como viver? R. Trate de nascer Micheau A experiência 4. P. Como viver? R. Leia muito, esqueça quase tudo que lê e raciocine com lentidão Lendo Montaigne, lento e esquecido O jovem Montaigne em tempos conturbados 5. P. Como viver? R. Sobreviva ao amor e às perdas La Boétie: amor e tirania La Boétie: morte e luto 6. P. Como viver? R. Recorra a pequenos truques Os pequenos truques e a arte de viver Montaigne escravizado 7. P. Como viver? R. Questione tudo Só sei que nada sei, e nem disto estou certo Animais e demônios Uma prodigiosa máquina de sedução

8. P. Como viver? R. Tenha um compartimento privado nos fundos da loja Entregar-se com metade do traseiro Responsabilidades práticas 9. P. Como viver? R. Seja sociável: viva com os outros Uma sabedoria alegre e comunicativa Abertura, compaixão e crueldade 10. P. Como viver? R. Desperte do sono do hábito Tudo depende do ponto de vista Selvagens nobres 11. P. Como viver? R. Viva com temperança Elevando e baixando a temperatura 12. P. Como viver? R. Preserve sua humanidade Terror Herói 13 P. Como viver? R. Faça algo que ninguém nunca tenha feito Best-seller Barroco 14. P. Como viver? R. Conheça o mundo Viagens 15. P. Como viver? R. Faça um bom trabalho, mas nem tão bom assim Prefeito Objeções morais Missões e assassinatos 16. P. Como viver? R. Filosofe só por acaso Quinze ingleses e um irlandês 17. P. Como viver? R. Reflita sobre tudo; não se arrependa de nada Je ne regrette rien 18. P. Como viver? R. Abra mão do controle Filha e discípula Guerras editoriais

Montaigne remixado e embabuinado 19. P. Como viver? R. Seja comum e imperfeito Seja comum Seja imperfeito 20. P. Como viver? R. Deixe a vida responder por si mesma Não é o fim Cronologia Agradecimentos Notas Fontes

Para Simo

P. Como viver? MICHEL DE MONTAIGNE EM UMA PERGUNTA E VINTE TENTATIVAS DE RESPOSTA

O

século XXI está cheio de pessoas cheias de si. Meia hora de percurso pelo oceano on-line de blogs, tweets, tubes, spaces, faces, páginas e pods nos defronta com milhares de indivíduos fascinados pela própria personalidade e clamando por atenção. Eles falam de si mesmos, escrevem diários, conversam e postam fotografias de tudo que fazem. Desinibidamente extrovertidos, também olham para dentro de si mesmos como nunca antes. À medida que mergulham em sua experiência pessoal, blogueiros e internautas se comunicam com os outros seres humanos, num verdadeiro festival do ego. Alguns otimistas tentaram transformar esse encontro global de mentes na base para uma nova abordagem das relações internacionais. O historiador Theodore Zeldin criou um site chamado “The Oxford Muse” (A Musa de Oxford), estimulando as pessoas a montar pequenos autorretratos em palavras que descrevessem sua vida cotidiana e as coisas que aprenderam. O resultado é posto on-line, à disposição da leitura e das reações dos outros. Para Zeldin, a autorrevelação compartilhada é a melhor maneira de desenvolver a confiança e a cooperação no planeta, substituindo os estereótipos nacionais por pessoas de carne e osso. A grande aventura da nossa época, diz ele, é “descobrir quem habita o mundo, um indivíduo de cada vez”. Assim, “Oxford Muse” está cheio de relatos ou entrevistas pessoais, com títulos tais como estes:

Por que um russo instruído trabalha como faxineiro em Oxford Por que ser um cabeleireiro satisfaz a necessidade de perfeição Como descobrir que você não é quem pensava ser escrevendo um autorretrato O que é possível descobrir se você não bebe ou dança O que dizemos a mais ao escrever sobre nós mesmos, em relação ao que dizemos em conversa Como ter sucesso e ser preguiçoso ao mesmo tempo Como um chef de cozinha manifesta sua bondade Descrevendo o que os torna diferentes de qualquer outra pessoa, os internautas revelam aquilo que compartilham com todo mundo: a experiência de ser humano. Esta ideia — escrever a nosso próprio respeito para criar um espelho no qual outras pessoas reconheçam a própria humanidade — não existiu sempre. Teve de ser inventada. E, ao contrário de muitas invenções culturais, pode ser atribuída a um único indivíduo: Michel Eyquem de Montaigne, um nobre, viticultor e funcionário público que viveu na região do Périgord, no sudoeste da França, de 1533 a 1592. Montaigne lançou a ideia simplesmente pondo-a em prática. Ao contrário da maioria dos memorialistas de sua época, ele não escrevia para deixar registrados seus grandes feitos e suas conquistas. Nem se limitava a botar no papel um simples e direto testemunho dos acontecimentos históricos, embora pudesse tê-lo feito: ele sobreviveu a uma guerra civil religiosa que quase destruiu seu país ao longo das décadas nas quais incubou e escreveu seu livro. Membro de uma geração privada do idealismo esperançoso vivenciado pelos contemporâneos de seu pai,

se adaptou aos horrores da vida pública voltando a atenção para a vida privada. Fez frente à desordem, geriu sua propriedade, cuidou de ações judiciais como magistrado e administrou Bordeaux, revelando-se o mais tranquilo governante de sua história. O tempo todo, escrevia textos independentes e exploratórios, aos quais dava títulos simples: Da amizade Dos canibais Do hábito de usar roupas Como choramos e rimos pela mesma coisa Dos nomes Dos cheiros Da crueldade Dos polegares Como nossa mente cria obstáculos para si mesma Da diversão Das carruagens Da experiência No total, Montaigne escreveu 107 ensaios como esses. Alguns se estendem por uma página ou duas; outros são muito mais longos, de tal maneira que a maioria das edições recentes da coleção completa tem mais de mil páginas. Eles raramente se propõem a explicar ou ensinar alguma coisa. Montaigne se apresenta como alguém que anotava o que quer que lhe passasse pela cabeça quando lançava mão da pena, capturando encontros e estados de espírito à medida que se apresentavam. Valia-se dessas experiências para fazer perguntas a si mesmo, tratando sobretudo daquela grande questão que o fascinava, assim como a muitos de seus contemporâneos. E ela pode ser resumida em duas palavras simples: “Como viver?”

Não se trata da mesma questão desta outra pergunta de caráter ético: “Como se deve viver?” Montaigne se interessava pelos dilemas morais, mas estava menos preocupado com o que as pessoas deviam fazer do que com aquilo que efetivamente faziam. Ele queria saber como viver bem a vida — ou seja, como levar uma vida correta e honrada, mas também plenamente humana, satisfatória e frutífera. A questão levou-o ao mesmo tempo a escrever e a ler, pois se sentia curioso a respeito de todas as vidas humanas, do passado e do presente. Estava sempre se perguntando sobre as emoções e motivações por trás do que as pessoas faziam. E, como era ele próprio o exemplo mais à mão de um ser humano cuidando da vida, fazia-se também muitas perguntas sobre si mesmo. Esta pergunta tão realista e direta — “Como viver?” — ramificou-se numa infinidade de outras perguntas pragmáticas. Como qualquer outra pessoa, Montaigne deparava com as grandes perplexidades da existência: como enfrentar o medo da morte, como superar a perda de um filho ou de um amigo querido, como aceitar os fracassos, como aproveitar ao máximo cada momento, para não desperdiçar a vida. Mas também havia enigmas menores. Como evitar entrar numa discussão sem sentido com a mulher ou um criado? Como tranquilizar um amigo que se julga atingido pelo feitiço de uma bruxa? Como animar um vizinho entregue às lágrimas? Como proteger a própria casa? Qual a melhor estratégia se você for rendido por assaltantes armados que parecem hesitar entre matá-lo e sequestrá-lo para cobrança de resgate? Se você ouvir a professora de sua filha ensinando-lhe algo que considera errado, seria correto intervir? Como lidar com bullying? O que dizer ao seu cão se ele quiser sair para brincar, embora você prefira ficar na escrivaninha escrevendo seu livro?

Em vez de dar respostas abstratas, Montaigne nos diz o que ele fazia nesses casos e como se sentia ao fazê-lo. E fornece todos os detalhes de que precisamos para termos uma ideia realista, às vezes até mais do que precisamos. Sem qualquer motivo aparente, conta-nos que a única fruta que aprecia é o melão, que prefere fazer sexo deitado a fazer em pé, que não sabe cantar e que gosta da companhia de pessoas animadas, muitas vezes deixando-se levar pelo entusiasmo de um debate bem-humorado. Mas também descreve sensações mais difíceis de apreender em palavras, e mesmo de serem trazidas à consciência: como é sentir-se preguiçoso, corajoso ou indeciso; ou entregar-se a um momento de vaidade, ou ainda tentar livrar-se de um medo obsessivo. Escreve até sobre a pura e simples sensação de estar vivo. Explorando fenômenos dessa natureza ao longo de vinte anos, Montaigne estava sempre se questionando e acabou construindo um retrato de si mesmo: um autorretrato em constante movimento, tão vívido que praticamente salta da página e se senta ao nosso lado para ler em nossa companhia. Ele é capaz de dizer coisas surpreendentes: muita coisa mudou desde o nascimento de Montaigne, há quase meio milênio, e nem todos os costumes e crenças podem ser reconhecidos nos dias atuais. Mas ler Montaigne é vivenciar uma série de choques de familiaridade, que simplesmente pulverizam os séculos entre ele e o leitor do século XXI. Os leitores continuam a se ver nele, exatamente como os visitantes de “Oxford Muse” se veem, ou veem aspectos de si mesmos, na história do russo instruído que trabalha como faxineiro ou no relato sobre como é não gostar de dançar. O jornalista Bernard Levin escreveu em 1991 para o jornal The Times, em artigo sobre o assunto: “Duvido que

qualquer leitor de Montaigne deixe de botar o livro de lado em algum momento para se perguntar, com incredulidade: ‘Como é que ele sabia tudo isso a meu respeito?’” A resposta, naturalmente, é que ele o sabe porque sabe a respeito de si mesmo. Por sua vez, as pessoas o entendem porque também já sabem “tudo isso” sobre a própria experiência. No século XVII, Blaise Pascal, um dos mais obsessivos leitores de Montaigne, escreveu: “Não é em Montaigne, mas em mim mesmo, que encontro tudo que ali vejo.” A romancista Virginia Woolf imaginou as pessoas desfilando diante do autorretrato de Montaigne como visitantes de uma galeria de arte. À medida que as pessoas vão passando, param em frente ao retrato e se debruçam para enxergar melhor através dos reflexos no vidro. “Há invariavelmente uma multidão diante do retrato, contemplando-o em profundidade, vendo os próprios rostos nele refletidos, enxergando sempre melhor com o passar do tempo, mas sem nunca conseguir dizer exatamente o que está vendo.” O rosto do retrato e dos observadores se fundem num só. É assim, segundo Woolf, que as pessoas reagem umas às outras de maneira geral: Ao nos encararmos nos ônibus e nos trens subterrâneos, estamos nos olhando no espelho (...) E no futuro os romancistas vão-se dar conta cada vez mais da importância desses reflexos, pois é claro que não existe apenas um reflexo, mas uma quantidade quase infinita; essas profundezas é que eles haverão de explorar, esses fantasmas é que haverão de perseguir. Montaigne foi o primeiro escritor a criar uma literatura que funcionava deliberadamente dessa maneira e a fazê-lo

recorrendo à abundância de material de sua própria vida, e não à pura filosofia ou à pura invenção. Ele foi o mais humano dos escritores, e também o mais sociável. Se tivesse vivido na era da vasta comunicação em rede, ficaria perplexo com o alcance a que chegou essa sociabilidade: não apenas dezenas ou centenas de pessoas numa galeria, mas milhões vendo-se refletidas de diferentes ângulos. O efeito disso, tanto na época de Montaigne como na nossa, pode ser inebriante. Um de seus admiradores no século XVI, Tabourot des Accords, afirmou que qualquer um que lesse Os ensaios se sentiria como se o tivesse escrito. Mais de 250 anos depois, o ensaísta Ralph Waldo Emerson disse a mesma coisa praticamente com as mesmas palavras. “Parecia que eu próprio tinha escrito o livro, numa vida anterior.” “Me apropriei dele de tal maneira”, escreveu no século XX o romancista André Gide, “que parecemos ser a mesma pessoa”. E Stefan Zweig, um escritor austríaco que se suicidaria após ter sido forçado a se exilar durante a Segunda Guerra Mundial, encontrou em Montaigne seu único verdadeiro amigo: “Eis aí um ‘você’ no qual se reflete o meu ‘eu’; é aí que são abolidas todas as distâncias.” A página impressa se desmancha diante de nossos olhos; surge na sala, em seu lugar, um ser humano vivo. “Quatrocentos anos desaparecem como fumaça.” Os compradores entusiastas da livraria on-line Amazon.com reagem ainda hoje da mesma maneira. Um deles considera que Os ensaios “não é exatamente um livro, mas um companheiro para a vida toda”, e outro prevê que ele será “o melhor amigo que você já teve”. Um leitor que mantém seu exemplar sempre na mesinha de cabeceira lamenta que ele seja grande demais (na versão completa) para ser carregado dia e noite. “Temos aqui leitura para a vida inteira”, diz ainda outro: “Considerando-se que é um

clássico de tanta importância histórica, ele parece ter sido escrito ontem, embora se tivesse efetivamente sido escrito ontem, a essa altura já estaria em todas as páginas da revista Hello!.” Tudo isto acontece porque Os ensaios não tem nenhum grande significado, não defende nenhuma tese nem sustenta qualquer argumento. O livro não tem um projeto ou objetivos direcionados aos leitores: cabe a você fazer dele o que quiser. Montaigne deixa-se fluir em suas impressões e observações, sem se preocupar se disse uma coisa em determinada página e o contrário na página seguinte, ou mesmo na frase seguinte. Poderia ter adotado como lema estes versos de Walt Whitman: Estou me contradizendo? Pois bem, eu me contradigo, (Sou grande, contenho multidões.) A cada par de frases ocorre-lhe uma nova maneira de encarar as coisas, e ele muda de direção. Mesmo quando suas ideias se mostram mais irracionais e sonhadoras, ele as segue no texto. “Não posso manter meu tema parado”, diz. “Ele vai em frente perplexo e cambaleante, com uma embriaguez natural.” Qualquer um tem a liberdade de acompanhá-lo até onde parecer desejável, deixando que ele vagueie por aí sozinho se não for o caso. Mais cedo ou mais tarde, os caminhos voltarão a se cruzar. Tendo criado um novo gênero com essa maneira de escrever, Montaigne inventou os essais, termo que criou para designá-lo. Hoje, a palavra “ensaio”, ou essay em inglês, se reveste de uma conotação maçante. Lembra a muitas pessoas os exercícios obrigatórios na escola ou no colégio, que testavam o conhecimento adquirido nas leituras propostas: a reexposição dos argumentos de outros

autores com uma introdução tediosa e uma conclusão simplista, enfiadas em cada extremidade do texto como dois garfos numa espiga de milho. Dissertações dessa natureza existiam na época de Montaigne, mas não essais. Em francês, essayer significa simplesmente tentar. Ensaiar alguma coisa é testá-la ou prová-la, fazer a experiência. Um montaignista do século XVII definiu o ato como atirar com uma pistola para ver se ela acerta o alvo ou montar um cavalo para sentir se ele se deixa levar. De maneira geral, o que Montaigne constatou foi que a pistola atirava em todas as direções e o cavalo galopava fora de controle, o que no entanto não o incomodava. Ele ficava encantado de ver seu trabalho fluindo de forma tão imprevisível. Ele pode não ter planejado ser o centro de uma revolução literária, mas retrospectivamente sabia o que havia feito. “É em todo o mundo o único livro do gênero”, escreveu, “um livro de estrutura excêntrica e bravia”. Ou, como parecia mais o caso, sem qualquer estrutura. Os ensaios não foi escrito numa ordem clara, do início ao fim. Cresceu por lenta incrustação, como um recife de corais, entre 1572 e 1592. A única coisa que por fim o deteve foi a morte de Montaigne. Vendo as coisas de outra maneira, podemos dizer que nunca foi detido. Ele continuou a crescer, não por uma escrita interminável, mas pela interminável leitura. Do primeiro vizinho ou amigo que percorreu algumas páginas do original na mesa de Montaigne no século XVI ao derradeiro ser humano (ou qualquer outra entidade consciente) que vier a extraí-lo dos bancos de memória de uma futura biblioteca virtual, um novo Os ensaios é gerado a cada nova leitura. Os leitores abordam os textos de sua perspectiva pessoal, aportando sua própria experiência de vida. Ao mesmo tempo, essas experiências são moldadas

por amplas tendências, que aparecem e se esvaem em suave disposição. Quem quer que lance um olhar sobre esses 430 anos da leitura de Montaigne pode acompanhar a formação e dissolução dessas tendências como nuvens no céu, ou multidões numa plataforma ferroviária entre a chegada e a partida dos trens. Cada modo de leitura parece natural em seu momento; até que chega um novo estilo e o antigo se vai, às vezes tornando-se tão ultrapassado que praticamente só pode ser compreendido pelos historiadores. Os ensaios, portanto, é muito mais que um livro. É uma conversa multicentenária entre Montaigne e todos aqueles que o conheceram: uma conversa que se vai modificando ao longo da história, embora quase sempre veja seu reinício naquela mesma pergunta perplexa: “Como é que ele sabia tudo isso a meu respeito?” Sobretudo, continua sendo um encontro entre duas pessoas, o escritor e o leitor. Mas uma conversa paralela também transcorre entre os leitores: conscientemente ou não, cada geração aborda Montaigne com expectativas decorrentes de seus contemporâneos e antecessores. E a história prossegue, o cenário fica mais povoado. Deixa de ser um jantar íntimo para se transformar num grande e animado banquete, tendo Montaigne como involuntário mestre de cerimônias. Este livro é sobre Montaigne, o homem e o escritor. É também sobre Montaigne, a interminável festa — esse acúmulo de conversas particulares e compartilhadas ao longo de 430 anos. O percurso será estranho e acidentado, pois o livro de Montaigne não deslizou suave pelo tempo como um seixo no riacho, que se torna cada vez mais aerodinâmico e polido conforme segue seu caminho. Ele foi tropeçando sem direção preestabelecida, juntando detritos, às vezes esbarrando em protuberâncias incômodas. Minha história também se deixa levar pela corrente. Ela segue

“perplexa e cambaleante”, com frequentes mudanças de direção. Inicialmente, mantém-se mais próxima do homem: a vida de Montaigne, sua personalidade e sua carreira literária. Mais adiante, ramifica-se ainda mais em histórias sobre seu livro e seus leitores, chegando a algumas bem recentes. Por ser um livro escrito no século XXI, está inevitavelmente permeado por um Montaigne do século XXI. Como dizia um dos seus provérbios preferidos, não temos como escapar de nossa perspectiva: só podemos andar com as próprias pernas e sentar no próprio traseiro. Grande parte das pessoas que procuram contato com Os ensaios quer extrair alguma coisa dele. Podem estar em busca de entretenimento, esclarecimento, compreensão histórica ou algo mais pessoal. A um amigo que se perguntava de que maneira abordar Montaigne, o romancista Gustave Flaubert recomendou: Não o leia como as crianças, por divertimento, nem como os ambiciosos, para se instruir. Não, leia-o para viver. Impressionada com a recomendação de Flaubert, valhome da pergunta renascentista “Como viver?” como guia para abrir caminho no emaranhado da vida e da posteridade de Montaigne. A pergunta é sempre a mesma ao longo do livro, mas os capítulos assumem a forma de vinte diferentes respostas — cabendo imaginar que cada uma delas poderia ter sido dada pelo próprio Montaigne. Na realidade, ele costumava responder às perguntas com uma enxurrada de novas perguntas e uma profusão de anedotas, que não raro apontavam em diferentes direções e levavam a conclusões contraditórias. As perguntas e histórias eram as suas respostas, ou novas maneiras de pôr a pergunta à prova.

Da mesma forma, cada uma das vinte possíveis respostas neste livro assumirá uma forma anedótica: um episódio ou tema da vida de Montaigne ou da vida de seus leitores. Não haverá soluções claras, mas esses vinte “ensaios” de resposta nos permitirão dar uma olhada em pedacinhos da longa conversa, desfrutando da companhia do próprio Montaigne — o mais afável dos interlocutores e anfitriões.

1. P. Como viver? R. Não se preocupe com a morte POR UM FIO

M

se sentiu tão à vontade em reuniões sociais. De vez em quando, na juventude, enquanto os amigos dançavam, riam e bebiam, ele se sentava à parte, com uma nuvenzinha em cima da cabeça. Os amigos mal o reconheciam nessas ocasiões: estavam mais acostumados a vê-lo flertando com as mulheres ou debatendo animadamente uma nova ideia que lhe tivesse ocorrido. Ficavam se perguntando se ele havia se ofendido com alguma coisa que tivessem dito. Na verdade, como confessaria mais tarde em seu Os ensaios, quando mergulhava nesse estado de espírito ele mal se dava conta do que acontecia ao redor. Em meio a toda aquela alegria, ele estava pensando em alguma assustadora história real que ouvira recentemente — talvez a história de um rapaz que, queixando-se de uma leve febre depois de deixar uma festa semelhante dias atrás, morrera antes até de os demais festeiros terem se recuperado da ressaca. Se a morte podia pregar peças assim, então ele próprio, Montaigne, estaria a qualquer momento a um passo do vazio absoluto. Ele passou a ter tanto medo de perder a vida que já não era mais capaz de desfrutá-la. Na faixa dos 20 anos, Montaigne foi acometido dessa obsessão mórbida porque passara muito tempo lendo os filósofos clássicos. A morte era um tema de que os antigos nunca se cansavam. Cícero resumiu primorosamente seu ponto de vista: “Filosofar é aprender a morrer.” O próprio ONTAIGNE NEM SEMPRE

Montaigne usaria um dia esse pensamento calamitoso como título de um capítulo. Mas, se começaram com um excesso de filosofia numa idade impressionável, seus problemas não acabaram com a idade. Na faixa dos 30, quando se poderia esperar que Montaigne evoluísse para uma perspectiva mais equilibrada, seus sentimentos com relação à opressiva proximidade da morte tornaram-se mais fortes do que nunca, e ainda mais pessoais. Deixando de ser uma abstração, a morte transformou-se em realidade e começou a ceifar as vidas de praticamente todos que ele amava, chegando mais perto dele próprio. Quando tinha 30 anos, em 1563, seu melhor amigo, Étienne de La Boétie, morreu vitimado pela praga. Em 1568, seu pai morreu, provavelmente por complicações de uma crise de pedra nos rins. Na primavera do ano seguinte, Montaigne perdeu o irmão menor, Arnaud de Saint-Martin, num estranho acidente desportivo. Nessa época, ele próprio acabara de se casar, e o primeiro filho desse casamento viveria apenas dois meses, morrendo em agosto de 1570. Montaigne perderia quatro outros filhos: num total de seis, um único sobreviveu até a idade adulta. Esta série de lutos tornou menos nebulosa a ameaça da morte, mas ela ainda não era propriamente tranquilizadora. Seus temores continuavam fortes como nunca. A perda mais dolorosa foi aparentemente a de La Boétie: Montaigne o amava mais que a qualquer outra pessoa. Mas a mais chocante deve ter sido a do irmão Arnaud. Com apenas 27 anos, Arnaud foi atingido na cabeça por uma bola quando jogava uma espécie de tênis da época, o jeu de paume. O golpe não pode ter sido tão forte, e não se evidenciou nenhum efeito imediato, mas cinco ou seis horas depois ele perdeu a consciência e morreu, presumivelmente de um coágulo ou hemorragia. Ninguém poderia esperar

que uma simples pancada na cabeça extirpasse a vida de um homem saudável. Não fazia o menor sentido, e a história parecia ainda mais ameaçadora, de um ponto de vista pessoal, que a do rapaz que morrera de febre. “Com exemplos tão frequentes e comuns passando diante de nossos olhos”, escreveu Montaigne a respeito de Arnaud, “como poderíamos nos livrar da ideia da morte e do pensamento de que a qualquer momento ela pode nos agarrar pela garganta?” Livrar-se desse pensamento não era possível, e ele sequer o desejava. Ele ainda estava sob a influência dos seus filósofos. “Tenhamos a morte em mente com mais frequência que qualquer outra coisa”, escreveu, num dos primeiros ensaios sobre o tema: A cada momento tratemos de retratá-la em nossa imaginação sob todos os seus aspectos. Ante o tropeço de um cavalo, a queda de uma telha, a mais leve picada de alfinete, prontamente cuidemos de ponderar isto: Muito bem, e se fosse a própria morte? Se repassarmos com frequência as imagens de nossa morte, diziam seus sábios favoritos, os estoicos, ela jamais nos apanhará de surpresa. Sabendo-nos bem preparados, temos liberdade para viver sem medo. Mas Montaigne constatou exatamente o contrário. Quanto mais intensamente imaginava os acidentes que poderiam se abater sobre ele e seus amigos, menos calmo se sentia. Ainda que conseguisse, por um breve momento, aceitar a ideia abstratamente, nunca se mostrava capaz de suportá-la nos detalhes. Seu espírito era tomado por visões de ferimentos e febres; ou então de pessoas chorando no seu leito de morte, e talvez do “toque de uma mão bem conhecida” repousando-lhe na fronte para dizer adeus. Imaginava o

mundo se fechando sobre o buraco onde ele se encontrava: seus pertences eram reunidos, as roupas, distribuídas entre amigos e criados. Esses pensamentos não o libertavam, serviam apenas para aprisioná-lo. Felizmente, essa pressão não durou muito. À altura de seus 40 e 50 anos, Montaigne liberou-se para a serenidade e a despreocupação. Pôde escrever seus ensaios mais fluidos e apaixonados pela vida, praticamente não mais evidenciando sinais de seu anterior estado de espírito mórbido. Só sabemos que ele existiu um dia porque dele nos fala o seu livro. Agora ele se recusava a se preocupar com o que quer que fosse. A morte não passa de alguns maus momentos no fim da vida, escreveu, em uma de suas últimas anotações; não vale a pena desperdiçar angústia com ela. Até então a figura mais sombria de seu próprio círculo de relações, ele se transformou no mais despreocupado dos homens de meia-idade e também num mestre da arte de bem viver. A cura foi encontrada numa jornada ao coração do problema: um dramático encontro pessoal com a morte, seguido de uma prolongada crise de meia-idade, que o levou a escrever seu Os ensaios. O grande encontro entre Montaigne e a morte aconteceu em algum dia de 1569 ou do início de 1570 — não há certeza quanto ao momento exato — quando ele estava ao ar livre fazendo uma das atividades que habitualmente dissipavam suas angústias e lhe davam uma sensação de liberdade: andando a cavalo. Na época, ele tinha aproximadamente 36 anos e sentia que precisava fugir de muita coisa. Desde a morte do pai, repousava em seus ombros a total responsabilidade pelo castelo e pela propriedade da família na Dordonha. Eram terras de grande beleza, numa região coberta — tanto na época como hoje — por vinhedos, colinas, aldeias e

extensões florestais. Para Montaigne, contudo, elas representavam o fardo do dever. Na propriedade, havia sempre alguém a puxá-lo pelo braço, querendo alguma coisa ou criticando algo que tivesse feito. Ele era o seigneur: tudo de alguma forma dependia dele. Felizmente, não costumava ser difícil encontrar alguma desculpa para estar em outro lugar. Desde os 24 anos, Montaigne trabalhava como magistrado em Bordeaux, a capital da região, a cerca de 48 quilômetros de distância — de modo que sempre havia um motivo para ir até lá. E também havia os distantes vinhedos da própria propriedade dos Montaigne, espalhados em terrenos esparsos num raio de quilômetros pelo campo, e muito úteis como pretexto para visitas caso ele assim quisesse. Ele também visitava eventualmente os vizinhos de outros castelos da região: era importante manter boas relações. Todas essas tarefas representavam excelentes justificativas para uma cavalgada pelos bosques num dia ensolarado. Pelos caminhos da floresta, os pensamentos de Montaigne podiam vagar quanto ele quisesse, embora mesmo nessas incursões ele fosse invariavelmente acompanhado por criados e conhecidos. No século XVI, raramente as pessoas andavam sozinhas. Mas ele podia esporear o cavalo para se afastar de uma conversa tediosa ou então distanciar apenas a mente para sonhar de olhos abertos, contemplando a cintilação da luz na copa das árvores. Seria mesmo verdade, podia perguntar-se então, que o sêmen de um homem provinha da medula espinhal, como dizia Platão? Que um peixe rêmora podia ser tão forte que conseguisse reter um navio simplesmente mordendo a popa e sugando? E o que pensar do estranho acidente que presenciara em casa dias antes, quando seu gato ficou olhando fixamente para uma árvore, até que dela caísse um

pássaro, morto, bem entre suas patas? Que poder tinha aquele animal? Essas especulações deixavam Montaigne tão absorto que ele às vezes se esquecia de prestar atenção no caminho e no que faziam seus companheiros. Nessa ocasião, ele avançava calmamente pelo bosque com um grupo de cavaleiros, todos ou quase todos seus empregados, a cerca de 5 ou 6 quilômetros do castelo. Era um percurso tranquilo, sem qualquer expectativa de problemas, de modo que ele escolhera um cavalo manso, sem muita força. E usava roupas comuns: calças curtas, camisa, gibão, provavelmente uma capa. Trazia a espada na cintura — um nobre nunca ia a lugar algum sem ela —, porém não usava armadura ou qualquer outra proteção especial. Mas o fato é que sempre havia riscos fora das muralhas da cidade ou do castelo: era comum a ação de assaltantes, e naquele momento a França estava numa espécie de limbo do império da lei, entre duas guerras civis. O campo era percorrido por grupos de soldados desempregados, que procuravam pilhagens que os compensassem pela perda de salário nesse interlúdio de paz. Apesar de suas angústias a respeito da morte, Montaigne costumava manter-se calmo frente a esses riscos específicos. Não se acovardava diante de qualquer estranho suspeito, como os demais, nem se apavorava ao menor ruído na floresta. Mas a tensão do momento deve tê-lo afetado de alguma maneira, pois o fato é que, ao ser atingido por trás por um objeto pesado, sua primeira impressão foi de ter sido atacado deliberadamente. Parecia um tiro de arcabuz, a arma de fogo da época, semelhante a um fuzil. Ele nem teve tempo de se perguntar por que alguém haveria de atirar nele. Aquilo o havia atingido “como um raio”: seu cavalo foi derrubado e ele próprio se viu

arremessado longe. Bateu com força no solo, a metros de distância, e perdeu instantaneamente a consciência. Lá estava o cavalo, derrubado e aturdido, e eu a dez ou doze passos de distância, inconsciente, estirado de costas, o rosto todo escoriado e esfolado, a espada que trazia na mão a mais de dez passos, o cinturão em pedaços, sem mais movimentos ou sensações que um lenho. A ideia do arcabuz lhe ocorreu mais tarde; na verdade, não houve intervenção de qualquer arma. O que aconteceu foi que um dos criados de Montaigne, sujeito musculoso que vinha atrás dele em um potente cavalo, o havia aguilhoado em rápido galope pelo caminho — “para mostrar sua audácia e passar à frente dos companheiros”, como resumiria Montaigne. De alguma forma ele não percebeu a presença de Montaigne no caminho, ou então calculou mal a largura da trilha, julgando que poderia passar. Em vez disso, “projetou-se como um colosso sobre o homenzinho e o cavalinho”. Os demais cavaleiros se detiveram, consternados. Os criados de Montaigne apearam de seus cavalos e tentaram reanimá-lo, mas ele se manteve inconsciente. Eles então o ergueram e, com dificuldade, começaram a carregar seu corpo inerte em direção ao castelo. No caminho, Montaigne recobrou consciência. Sua primeira impressão foi de ter sido atingido na cabeça (e a perda da consciência é um indicativo de que estava certo), mas ele também começou a tossir, como se tivesse recebido um golpe no peito. Vendo que respirava com dificuldade, seus homens trataram de botá-lo numa posição mais ereta, fazendo o possível para transportá-lo nesse ângulo improvável. Em várias oportunidades, ele cuspiu sangue coagulado. Era um

sintoma alarmante, mas a tosse e o vômito o ajudavam a manter-se desperto. Ao se aproximarem do castelo, ele foi aos poucos recobrando as faculdades, mas continuava se sentindo como se estivesse resvalando para a morte, e não voltando à vida. A visão continuava turva; ele mal distinguia a luz. Recuperando a consciência do corpo, o que ele via, contudo, não era nada animador, pois suas roupas estavam sujas com o sangue que vinha vomitando. Ele mal teve tempo de se perguntar sobre o arcabuz e mergulhou de novo num estado de semi-inconsciência. Nos momentos que se seguiram, segundo relato posterior de testemunhas, Montaigne mostrou-se agitado. Rasgou seu gibão com as unhas, como se quisesse livrar-se de um peso. “Eu sentia o estômago oprimido com o sangue coagulado; minhas mãos se dirigiam a ele por vontade própria, como costumam fazer quando sentimos coceira, contra nossa própria vontade.” Parecia que ele queria rasgar o próprio corpo, ou talvez afastá-lo de si mesmo, para que seu espírito pudesse partir. Durante todo esse tempo, no entanto, ele se sentia interiormente tranquilo: Parecia que a vida pendia dos meus lábios por um fio; fechei os olhos, querendo, ao que me parecia, ajudar a soltá-la, e senti prazer em ficar cada vez mais lânguido e me entregar. Essa ideia apenas flutuava na superfície da minha alma, delicada e frágil como todo o resto, mas na verdade não só livre de qualquer aflição como misturada àquela doce sensação que experimentamos ao nos deixar deslizar para o sono. Os criados continuaram a carregá-lo para casa, nesse estado de languidez interna e agitação externa. A família percebeu a comoção e saiu correndo até ele — “com os

gritos e as exclamações habituais em casos como esses”, comentaria ele mais tarde. Todos perguntavam o que havia acontecido. Montaigne conseguiu dar respostas, mas não respostas coerentes. Viu sua mulher abrindo caminho com dificuldade pela trilha irregular e pensou na possibilidade de instruir seus homens a lhe dar um cavalo. Caberia supor que tudo isto partia de uma “alma bem desperta”, escreveu ele. Mas “o fato é que eu não estava ali em absoluto”. Ele viajara para muito longe. “Eram pensamentos sem sentido, nas nuvens, suscitados por sensações dos olhos e dos ouvidos; eles não vinham do meu interior” — chez moy, expressão que em geral significa “em casa”. Seus gestos e suas palavras eram de certa forma gerados só pelo corpo. “A contribuição da alma vinha em sonho, tocada muito de leve, apenas lambida e salpicada, por assim dizer, pela suave impressão dos sentidos.” Aparentemente, Montaigne e a vida estavam para se separar sem pesar ou despedidas formais, como dois convidados bêbados que deixassem uma festa tontos demais para se despedir. Seu estado de confusão persistiu depois de ser transportado para o interior do castelo. Ele continuava sentindo como se estivesse elevado num tapete mágico, e não sendo carregado nos braços dos criados. Não sentia dores nem o alarmava a visão de toda aquela agitação ao seu redor. Sentia apenas preguiça e fraqueza. Os criados o depositaram na cama; e lá ficou ele, perfeitamente feliz, sem um único pensamento na cabeça, à parte a sensação de prazer no repouso. “Eu sentia uma infinita doçura naquele repouso, pois tinha sido terrivelmente sacudido por aqueles pobres coitados, que fizeram o possível para me carregar nos braços por um caminho longo e muito acidentado.” Ele recusou qualquer remédio, certo de que

estava destinado a simplesmente se esvair. Seria “uma morte muito feliz”. Essa experiência foi muito além das fantasias anteriores de Montaigne sobre a morte. Foi uma viagem real pelo território da morte: ele se esgueirou até bem pertinho e a tocou com os lábios. Pôde até sentir o seu gosto, como uma pessoa experimentando um sabor desconhecido. Foi um ensaio de morte: um exercício, ou exercitation, a palavra por ele escolhida quando escreveu sobre a experiência. Mais tarde, ele ficaria muito tempo repassando as sensações em sua mente, tratando de reconstruí-las com o máximo de precisão possível, para aprender com elas. O destino lhe havia proporcionado a perfeita oportunidade de testar o consenso filosófico a respeito da morte. Mas era difícil certificar-se de que havia encontrado a resposta certa. Os estoicos certamente olhariam seus resultados com desconfiança. Sob certos aspectos a lição estava correta: através daquela exercitation, ele aprendera a não temer a própria não existência. A morte podia ter uma cara amistosa, exatamente como prometiam os filósofos. Montaigne olhara bem no seu rosto — mas não o fixara com lucidez, como deveria fazer um pensador racional. Em vez de avançar de olhos abertos, comportando-se como um soldado, ele havia flutuado em direção à morte praticamente sem pensamentos conscientes, seduzido por ela. Ao morrer, dava-se conta ele, não deparamos em absoluto com a morte, pois já nos fomos antes que ela chegue. Morremos da mesma maneira que adormecemos: simplesmente vamos nos distanciando. Se alguém tentar nos trazer de volta, ouvimos sua voz “nas fímbrias da alma”. A vida fica presa por um fio, pendurada, como disse ele próprio, na

ponta dos lábios. Morrer não é um ato para o qual possamos nos preparar. É um devaneio sem sentido. A partir desse momento, ao ler a respeito da morte, Montaigne se interessava menos pelo fim exemplar dos grandes filósofos e mais pelo das pessoas comuns, especialmente aquelas cuja morte tivesse ocorrido num estado de “debilitação e estupor”. Em seus ensaios mais maduros, ele escreveu com admiração sobre homens como Petrônio e Tiguilino, romanos que morreram cercados de gracejos, música e conversas do dia a dia, simplesmente deixando que a morte tomasse conta deles suavemente, em meio às comemorações. Em vez de transformar uma festa numa cena de morte, como fizera o jovem Montaigne em sua imaginação, eles transformavam suas cenas de morte em festas. Ele gostava particularmente da história de Marcelino, que se esquivou de uma dolorosa morte por doença recorrendo a um suave método de eutanásia. Depois de jejuar por vários dias, Marcelino deitou-se numa banheira de água muito quente. Com certeza já muito enfraquecido pela doença, ele viu seu último sopro de vida simplesmente ser evaporado pelo banho. Lentamente foi perdendo a consciência e faleceu. E à medida que se ia, langorosamente murmurava aos amigos sobre o prazer que sentia. Cabe supor que haja prazer numa morte como a de Marcelino. Mas Montaigne descobrira algo mais surpreendente: que era capaz de desfrutar das mesmas deliciosas sensações flutuantes com o corpo em aparente convulsão, revirando-se numa agitação que aos demais parecia tormento. Esta descoberta de Montaigne ia de encontro aos seus modelos clássicos; e também punha em questão o ideal cristão dominante em sua época. Para os cristãos, nosso

último pensamento deve ser a grave entrega da alma a Deus, e não uma deliciosa sensação de “Aaaaah...”. Na experiência pessoal de Montaigne, aparentemente não houve lugar para pensar em Deus. Nem lhe ocorreu, ao que tudo indica, que morrer embriagado e cercado de prostitutas pudesse pôr em risco uma vida cristã no além. Ele estava mais interessado na constatação puramente secular de que a psicologia humana e a natureza de maneira geral eram os melhores amigos de um moribundo. E agora lhe parecia que as únicas pessoas capazes de morrer da maneira corajosa que se poderia esperar dos filósofos eram exatamente aquelas sem qualquer conhecimento de filosofia: os camponeses incultos, em suas propriedades e aldeias. “Eu nunca vi um dos meus vizinhos camponeses especulando a respeito do semblante e da atitude com que deveria passar sua última hora”, escreveu ele — embora não tivesse necessariamente como saber se eles assim o fizessem. A natureza cuidava deles. Ensinavaos a não pensar na morte, exceto quando estivessem morrendo, e, mesmo então, muito pouco. Os filósofos encontram dificuldade para deixar o mundo porque tentam manter o controle. O pensamento “Filosofar é aprender a morrer”, portanto, é posto abaixo. A filosofia mais parecia uma maneira de ensinar as pessoas a desaprender a capacidade natural de que todo camponês era dotado de nascença. Nesse episódio, apesar de disposto a se deixar ir, Montaigne não morreu. Recuperou-se e, desde então, passou a viver de forma um pouco diferente. Com esse ensaio de morte, aprendeu uma lição filosófica decididamente nada filosófica, que resumiu deste jeito bem casual:

Se você não souber como morrer, não se preocupe; a Natureza lhe dirá na hora o que fazer, completa e adequadamente. Ela executará perfeitamente este trabalho para você; não ocupe sua cabeça com isto. “Não se preocupe com a morte” transformou-se em sua resposta mais fundamental e libertadora à pergunta sobre como viver. Ela possibilitava exatamente isto: viver. Mas a vida é mais difícil que a morte; em lugar de uma entrega passiva, ela requer atenção e gestão. E também pode ser mais dolorosa. O agradável resvalar de Montaigne nos braços do esquecimento não durou muito. Ao recobrar plenamente a consciência, passadas duas ou três horas, ele se viu acometido de dores, com os membros “golpeados e escoriados”. Passou mal durante várias noites, e houve sequelas. “Ainda sinto os efeitos da pancada causada por aquela colisão”, escreveu pelo menos três anos depois. A memória demorou mais a voltar que as sensações físicas, embora ele passasse vários dias tentando reconstruir o incidente, interrogando testemunhas. Nada disso adiantou muito, até que o incidente lhe retornou à memória de um só golpe, com um choque semelhante ao de ser atingido por um relâmpago — uma repetição do “raio” do impacto original. O retorno à vida foi tão violento quanto o acidente: sacudidelas, impactos, clarões e trovões. A vida se projetou nele com forte ímpeto, ao passo que a morte fora algo leve e superficial. A partir de então, ele tentou transpor um pouco da delicadeza e da leveza da morte para a vida. “Pontos ruins” podem ser encontrados em toda parte, escreveria ele, num de seus últimos ensaios. É melhor “deslizar por este mundo com alguma leveza e pela superfície”. Com essa descoberta da necessidade de fluir e deixar-se ir, ele perdeu boa parte

do medo, ao mesmo tempo adquirindo uma nova consciência de que a vida, ao passar pelo seu corpo — a sua vida pessoal, de Michel de Montaigne —, era um interessantíssimo tema de investigação. Ele passaria a prestar atenção às sensações e experiências, não pelo que poderiam representar ou pelas lições filosóficas que pudessem conter, mas para efetivamente senti-las. Ele se deixaria levar. Era para ele uma nova disciplina, que se apoderou de sua rotina cotidiana e — através dos seus escritos — conferiulhe uma espécie de imortalidade. Assim foi que, mais ou menos pelo meio da vida, Montaigne perdeu o rumo e renasceu.

2. P. Como viver? R. Preste atenção COMEÇANDO A ESCREVER

O

acidente de equitação, que alterou significativamente a perspectiva de Montaigne, durou apenas alguns momentos em si mesmo, mas é possível desdobrá-lo em três partes e espraiá-lo ao longo de vários anos. Temos, inicialmente, Montaigne estirado no solo, agarrando a barriga com uma sensação de euforia. Passamos então ao Montaigne das semanas e dos meses que se seguiram, refletindo sobre a experiência e tentando conciliá-la com suas leituras filosóficas. Finalmente, vemos Montaigne alguns anos depois, sentando-se para escrever sobre o incidente — e também sobre uma infinidade de outras coisas. A primeira cena poderia ter acontecido a qualquer um; a segunda, a qualquer jovem sensível e instruído do Renascimento. A última delas é que torna Montaigne único. A ligação não é simples: ele não se sentou na cama e imediatamente começou a escrever sobre o acidente. Deu início a Os ensaios um par de anos depois, por volta de 1572, e ainda assim escreveu outros capítulos antes de abordar o que trata da perda de consciência. Quando efetivamente chegou a ele, contudo, a experiência o levou a tentar um novo tipo de escrita, que praticamente não havia sido explorada por outros escritores: a recriação de uma sequência de sensações tal como de fato experimentadas internamente, seguindo-as momento a momento. E parece haver uma ligação cronológica entre o acidente e outra virada importante em sua vida, que lhe abriu caminho para

a literatura: a decisão de deixar o emprego de magistrado em Bordeaux. Até então, Montaigne mantinha duas vidas paralelas: uma urbana e política, a outra rural e gerencial. Embora viesse administrando a propriedade rural desde a morte do pai, em 1568, ele continuara a trabalhar em Bordeaux. No início de 1570, todavia, pôs à venda sua magistratura. Havia outras razões, além do acidente: sua candidatura a um cargo na câmara alta do tribunal acabara de ser rejeitada, provavelmente por interferência de inimigos políticos. Teria sido mais natural recorrer da decisão ou lutar contra ela; em vez disso, ele preferiu aposentar-se. Talvez o tenha feito por raiva ou desilusão. Ou quem sabe seu encontro com a morte, associado à perda do irmão, o fez pensar de maneira diferente sobre o jeito como gostaria de viver sua vida. Antes de tomar esta decisão, Montaigne dedicara 13 anos de trabalho ao parlement de Bordeaux. Estava com 37 anos — talvez na meia-idade, segundo os padrões da época, mas ainda não estava velho. Mesmo assim se considerava em processo de aposentadoria, deixando o movimento central da vida para dar início a uma nova existência, mais reflexiva. Ao completar 38 anos, marcou essa decisão — quase um ano depois de efetivamente tomá-la — mandando pintar uma inscrição latina na parede de uma antecâmara de sua biblioteca: No ano de Cristo de 1571, aos trinta e oito anos de idade, no último dia de fevereiro, aniversário de seu nascimento, Michel de Montaigne, há muito cansado da servidão do tribunal e dos empregos públicos, apesar de ainda íntegro, retirou-se para o seio das Virgens cultas [as Musas], onde, calmamente e livre de toda preocupação, passará o pouco que resta de sua vida,

da qual mais da metade já decorreu. Se o destino permitir, ele concluirá esta morada, este doce refúgio ancestral; e o dedicou a sua liberdade, tranquilidade e lazer. Dali em diante, Montaigne viveria para si mesmo, e não para o cumprimento do dever. Ele pode ter subestimado o trabalho necessário para cuidar da propriedade, e ainda não fazia qualquer menção à redação de ensaios. Falava apenas de “calma e liberdade”. Mas já havia concluído vários projetos literários menores. Com alguma relutância, traduzira uma obra teológica a pedido do pai e posteriormente editara uma coleção de manuscritos deixados por Étienne de La Boétie, acrescentando dedicatórias e uma carta de próprio punho relatando os últimos dias do amigo. Nesses anos ao redor de 1570, suas incursões pela literatura conviviam com outras experiências: a série de lutos e seu próprio contato com a morte, o desejo de se afastar da política em Bordeaux e o anseio por uma vida de tranquilidade — e isto não era tudo, pois sua mulher estava grávida do primeiro filho. A expectativa de uma nova vida se encontrava com a sombra da morte; juntas, elas o atraíram para uma nova maneira de ser. A mudança de orientação de Montaigne ao se aproximar dos 40 anos tem sido comparada às mais famosas crises existenciais da literatura: as de Dom Quixote, que abandonou sua rotina para se entregar à busca de aventuras cavaleirescas, e a de Dante, que se perdeu “pelo meio do caminho da vida”. Os passos de Montaigne pelo emaranhado bravio desse período da vida e sua descoberta do caminho para sair dele deixaram pegadas — marcas de um homem que vacilava, tropeçava e seguia em frente:

Junho de 1568 — Montaigne conclui a tradução do texto teológico. Seu pai morre; ele herda a propriedade Primavera de 1569 — Seu irmão morre no acidente desportivo 1569 — Sua carreira marca passo em Bordeaux 1569 ou início de 1570 — Ele quase morre Outono de 1569 — Sua mulher engravida Início de 1570 — Ele decide aposentar-se Verão de 1570 — Aposenta-se Junho de 1570 — Nasce o primeiro filho Agosto de 1570 — Morre o primeiro filho 1570 — Edita as obras de La Boétie Fevereiro de 1571 — Faz a inscrição de aniversário na parede da biblioteca 1572 — Começa a escrever Os ensaios Comprometendo-se com uma nova vida que esperava ser contemplativa, Montaigne empenhou-se intensamente em prepará-la exatamente da maneira como queria. Depois de se aposentar, escolheu uma das duas torres dos ângulos de seu castelo para servir de retiro e centro de operações; a outra torre foi reservada para sua mulher. Juntamente com o prédio principal do complexo e as muralhas de ligação, essas duas torres angulares enfeixavam um simples pátio quadrado, localizado em meio a campos e florestas. A construção principal original não existe mais. Pegou fogo em 1885, tendo sido erguida uma cópia em seu lugar. Por sorte, contudo, o fogo não atingiu a torre de Montaigne, que se mantém praticamente inalterada e pode ser visitada. Percorrendo-a, não é difícil entender por que ele a apreciava tanto. De fora, ela parece deliciosamente rechonchuda para uma torre de quatro andares, com paredes espessas como as de um castelo de areia. Fora concebida originalmente

para prestar defesa, mas o pai de Montaigne a adaptou para finalidades mais pacíficas. Ele transformou o andar térreo numa capela e providenciou uma escada interna em espiral. O piso acima da capela tornou-se o quarto de Montaigne. Com frequência ele dormia ali, em vez de voltar para o prédio principal. Ao lado da escada acima desse compartimento abriu-se um nicho para um banheiro. E acima dele — logo abaixo do sótão, com seu “enorme sino”, que repicava ensurdecedoramente para anunciar a passagem das horas — ficava o reduto favorito de Montaigne: sua biblioteca. Subindo hoje as escadas — sua pedra desgastada por séculos de uso —, podemos entrar na biblioteca e caminhar por ela num círculo estreito, contemplando da janela o pátio interno e a paisagem, exatamente como Montaigne fazia. A vista não devia ser muito diferente na época, mas o compartimento, sim. Atualmente de uma alva nudez, com o piso de pedra exposto, ele teria na época um tapete, provavelmente de bambu. Nas paredes haveria pinturas murais, ainda frescas. No inverno, o fogo era aceso na maior parte dos compartimentos, mas não na biblioteca principal, que não possuía lareira. Nos dias frios, Montaigne acomodava-se na antecâmara ao lado, mais acolhedora, pois esta dispunha de uma lareira. A principal característica da sala da biblioteca quando ocupada por Montaigne era sua bela coleção de livros, acomodada em cinco fileiras numa elegante estante de prateleiras recurvadas. A curva era necessária por causa da forma circular da torre e deve ter representado um belo desafio para o carpinteiro. Contemplando as prateleiras, Montaigne distinguia satisfeito, de um só relance, todos os seus livros. No momento em que se transferiu para a biblioteca, possuía cerca de mil volumes, muitos herdados

do amigo La Boétie, outros comprados por ele mesmo. Era uma coleção substancial, e Montaigne efetivamente lia seus livros. Hoje, eles estão dispersos; as prateleiras também se foram. Por toda a sala encontravam-se também as outras coleções de Montaigne: objetos de valor histórico, relíquias de família, artefatos da América do Sul. A respeito dos antepassados, ele escreveu: “Guardo seus manuscritos, seu selo, seu breviário e uma espada muito peculiar que eles usavam, e não expulsei do meu estúdio algumas bengalas que meu pai costumava trazer na mão.” A coleção de objetos sul-americanos formou-se a partir de presentes de viajantes; dela faziam parte joias, espadas de madeira e bengalas ritualísticas usadas em danças. A biblioteca de Montaigne não era apenas um depósito ou lugar de trabalho. Era um salão de maravilhas, assemelhando-se a uma versão quinhentista da última residência de Sigmund Freud, em Hampstead, Londres: um verdadeiro tesouro de livros, documentos, estatuetas, quadros, vasos, amuletos e curiosidades etnográficas, destinado a estimular tanto a imaginação quanto o intelecto. A biblioteca também destacou Montaigne como homem da moda. A tendência desse tipo de refúgio se vinha espalhando lentamente pela França, depois de se manifestar na Itália no século anterior. Os homens abastados enchiam seus gabinetes de livros e estantes, para poder usá-los como refúgio, a pretexto de trabalhar. Montaigne levou a preocupação com a fuga ainda mais longe, distanciando completamente sua biblioteca do resto da casa. Ela era ao mesmo tempo mirante e caverna, ou, para usar uma expressão de que gostava, uma arrièreboutique, um “quarto no fundo da loja”. Ele podia levar convidados sempre que quisesse — e levava com

frequência —, mas não era obrigado a fazê-lo. E adorava aquele lugar. “Infeliz o homem, em minha opinião, que não tem na própria casa um lugar para ficar sozinho, agradar a si mesmo na intimidade, esconder-se!” Como a biblioteca representava a própria liberdade, não surpreende que Montaigne a decorasse e isolasse ritualisticamente. Na antecâmara, juntamente com a inscrição celebrando sua aposentadoria, mandou pintar murais do teto ao chão. Eles hoje estão completamente esmaecidos, mas, pelo que ainda se pode ver, representavam grandes batalhas: Vênus lamentando a morte de Adônis, um barbudo Netuno, navios numa tempestade e cenas da vida bucólica — sempre evocações do mundo clássico. Na sala principal, mandou pintar citações nas vigas do teto, quase sempre clássicas também. Neste caso igualmente se tratava de uma moda, embora fosse do gosto de uma minoria. O humanista italiano Marsilio Ficino mandou inscrever citações nas paredes de sua mansão na Toscana, e mais tarde, na região de Bordeaux, o barão de Montesquieu faria o mesmo, em declarada homenagem a Montaigne. Com o passar dos anos, também ficaram esmaecidas as citações nas vigas do teto, mas elas seriam posteriormente reconstituídas e tornadas mais uma vez legíveis, e hoje, caminhando pelo ambiente, podemos ouvir as vozes que sussurram do alto: Solum certum nihil esse certi Et homine nihil miserius aut superbius Só uma coisa é certa: que nada é certo E nada é mais desprezível e arrogante que o homem. (Plínio, o Velho)

ΚΡΙΝΕΙ ΤΙΣ ΑΥΤΟΝ ΠΩΠΟΤ ΑΝΘΡΩΠΟΝ ΜΕΓΑΝ ΟΝ ΕΞΑΛΕΙΦΕΙ ΠΡΟΦΑΣΙΣ Η ΤΥΧΟΥΣ’ ΟΛΟΝ Como pode você considerar-se um grande homem, se é capaz de ser completamente destruído pelo primeiro acidente? (Eurípedes) ΕΝ ΤΩ ΦΡΟΝΕΙΝ ΓΑΡ ΜΗΔΕΝ ΗΔΙΣΤΟΣ ΒΙΟΣ ΤΟ ΜΗ ΦΡΟΝΕΙΝ ΓΑΡ ΚΑΡΤ’ ΑΝΩΔΥΝΟΝ ΚΑΚΟΝ Não há vida mais bela que a de um homem despreocupado; A despreocupação é um mal verdadeiramente indolor. (Sófocles) As vigas constituem um vívido lembrete da decisão de Montaigne de deixar a vida pública para mergulhar numa existência mais meditativa — uma vida a ser vivida, literalmente, sob o signo da filosofia, e não da política. Essa mudança de esfera também era recomendada pelos antigos. O grande estoico Sêneca reiteradamente exortava seus conterrâneos romanos a se retirar da vida ativa para “se encontrarem”, como poderíamos dizer hoje. No Renascimento, assim como na Roma antiga, isto fazia parte de uma vida bem-gerida. O indivíduo tinha seu período de atividade cívica, em seguida se retirava, para descobrir o real significado da vida e dar início ao longo processo de preparação para a morte. Montaigne viria a fazer reservas quanto à segunda parte desse processo, mas não resta dúvida do seu interesse em contemplar a vida. Escreveu ele: “Devemos nos desvencilhar de todos os vínculos que nos prendem aos outros; tratemos de conquistar de nós mesmos a força de viver realmente sozinhos e de viver dessa maneira confortavelmente.” Ao recomendar a saída de cena, Sêneca também advertira para seus perigos. Num diálogo intitulado “Da

tranquilidade da mente”, ele escreveu que a ociosidade e o isolamento podiam trazer à tona as consequências de se ter levado uma vida equivocada, consequências que as pessoas geralmente tratavam de evitar mantendo-se ocupadas — ou seja, continuando a levar uma vida equivocada. Entre os sintomas podiam estar insatisfação, autodesprezo, medo, indecisão, letargia e melancolia. Abrir mão do trabalho pode desvendar males espirituais, especialmente se a pessoa adquire o hábito de ler livros demais — ou, pior ainda, de expor livros por mera ostentação e se vangloriar pelo arranjo. No início da década de 1570, quando se deu essa mudança de valores, Montaigne parece ter passado exatamente pela crise existencial para a qual Sêneca advertia. Ele tinha trabalho, mas em menor quantidade do que estava acostumado. A inatividade provocava estranhos pensamentos e um “estado de ânimo melancólico”, que era incomum à sua personalidade. Bastou que se aposentasse, disse ele, e sua mente começou a galopar como um cavalo desembestado — uma comparação procedente, considerando-se o que havia acontecido pouco tempo antes. Sua mente foi tomada por asneiras, exatamente como terras devolutas são tomadas por ervas daninhas. Em outra imagem vívida — ele adorava recursos dessa natureza —, Montaigne comparou a mente desocupada ao útero sem fertilização de uma mulher, o qual, segundo versões correntes na época, só dá à luz pedaços disformes de carne, em vez de bebês. E, numa comparação tomada de empréstimo a Virgílio, ele dizia que seus pensamentos se assemelhavam às figuras que dançam no teto quando a luz solar se reflete na superfície de um jarro d’água. Assim como essas luzes e sombras dançam no teto, também a mente desocupada gira de maneira imprevisível, gerando

divagações sem sentido nem propósito. Ela gera fantasies ou reveries — palavras que antes tinham conotações menos positivas que hoje em dia, sugerindo ideias enganosas e delírio em vez de uma simples divagação. Seu “reverie” por sua vez deu a Montaigne outra ideia absurda: escrever. Ele também o considerou um sonho, que no entanto continha a promessa de uma solução. Vendo sua mente tão cheia de “quimeras e monstros fantásticos, um após o outro, sem ordem nem sentido”, ele decidiu registrar tudo por escrito, não com o objetivo direto de dominá-los, mas para examinar tranquilamente sua estranheza. Assim foi que lançou mão da pena: nascia o primeiro Os ensaios. Sêneca teria aprovado. Se você ficar deprimido ou entediado ao se aposentar, recomendava ele, trate simplesmente de olhar ao seu redor e se  interessar pela diversidade e pelo esplendor das coisas. A salvação está em dar toda a atenção à natureza. Montaigne tentou fazê-lo, mas considerou que “natureza” significava basicamente o fenômeno natural mais próximo: ele próprio. Começou então a observar e questionar sua experiência pessoal, escrevendo sobre o que constatava. Inicialmente, isto significou sobretudo seguir seus entusiasmos pessoais, especialmente histórias de suas leituras: contos de Ovídio, histórias de César e Tácito, fragmentos biográficos de Plutarco e conselhos de Sêneca e Sócrates sobre o bem viver. Passou em seguida a anotar histórias ouvidas dos amigos, incidentes da vida cotidiana na propriedade, casos que haviam ficado em sua memória dos anos de atuação na justiça e na política e curiosidades que tinha presenciado em suas viagens (até então limitadas). Foi o seu modesto começo; mais tarde, os materiais por ele utilizados se ampliaram, passando a incluir praticamente cada nuance de emoções e pensamentos

algum dia experimentados, e especialmente sua estranha jornada para dentro e para fora da inconsciência. A ideia de publicar esses textos pode ter-lhe passado pela cabeça muito cedo, embora ele alegasse o contrário, afirmando que escrevia apenas para a família e os amigos. Talvez até ele tenha começado com a intenção de escrever um livro comum: uma coletânea de citações e histórias dispostas tematicamente, do tipo que fazia sucesso entre os cavalheiros da época. Neste caso, ele não teria levado muito tempo para ir além, possivelmente sob a influência do único escritor que apreciava mais que Sêneca: Plutarco. Plutarco ganhara fama no primeiro século antes de Cristo com espirituosas e sucintas biografias de figuras históricas, e também escrevia breves textos chamados Moralia, traduzidos para o francês no ano em que Montaigne começou a redigir seu Os ensaios. Reuniam pensamentos e anedotas em torno de questões que variavam de “Podem os animais ser considerados inteligentes?” a “Como alcançar a paz de espírito?”. Sobre esta última questão, a recomendação de Plutarco era a mesma de Sêneca: concentre-se naquilo que está presente à sua frente, prestando-lhe toda a atenção. À medida que avançava a década de 1570 e Montaigne se adaptava a sua nova vida após a crise, prestar atenção tornou-se seu passatempo favorito. Seu ano de maior produção literária foi 1572, quando deu início à maioria dos ensaios do Livro I e a alguns do Livro II. O resto viria em 1573 e 1574. Mas muito tempo se passaria até que ele se sentisse pronto para publicar; talvez apenas porque não lhe tivesse ocorrido a possibilidade, ou quem sabe porque tivesse levado muitos anos para ficar satisfeito com o que havia escrito. Passou-se uma década entre o momento em que se aposentou em 1570 e o dia em que, depois de

completar 47 anos, em 1º de março de 1580, ele assinou e datou o prefácio da primeira edição de Os ensaios, tornando-se famoso da noite para o dia. A escrita permitira a Montaigne superar sua crise dos “sonhos loucos”; agora, ela o ensinava a observar o mundo mais de perto, incutindo-lhe cada vez mais o hábito de descrever com precisão as sensações íntimas e o convívio social. Ele citou Plínio a respeito da ideia de prestar atenção a esses fragmentos fugidios: “Cada homem é uma boa educação para si mesmo, desde que tenha a capacidade de se observar de perto.” Enquanto o homem Montaigne cuidava da vida cotidiana em sua propriedade, o escritor Montaigne caminhava atrás dele, observando e tomando notas. Quando finalmente veio a escrever sobre o seu acidente de equitação, portanto, ele o fez não só para lançar fora o que ainda restava do seu medo da morte, como se sacudisse a areia dos sapatos, mas também para aprimorar suas técnicas de observação, chegando a um nível que jamais tentara anteriormente. Assim como, nos dias que se seguiram ao acidente, fizera os criados contarem repetidamente o que acontecera, também devia, no momento da escrita, ter repassado mentalmente o episódio, revivendo aquelas sensações de flutuação, a impressão de que seu fôlego ou seu espírito pendia do limiar do corpo, além da dor experimentada ao voltar a si. Ele o “processou”, como diriam os psicólogos hoje, através da literatura. Ao fazê-lo, reconstituiu a experiência tal como efetivamente era, e não como os filósofos diziam que deveria ser. Esse seu novo hobby nada tinha de fácil. Montaigne gostava de fingir que havia reunido Os Ensaios

distraidamente, mas de vez em quando esquecia a pose e reconhecia o enorme trabalho que lhe havia dado: É uma tarefa espinhosa, mais do que pode parecer, seguir um movimento incerto como o de nossa mente, penetrar as profundezas opacas de seus mais íntimos refolhos, distinguir e imobilizar as inúmeras oscilações que a agitam. Montaigne pode ter celebrado a beleza dessa capacidade de deslizar com leveza pela superfície da vida; na verdade, ele efetivamente aperfeiçoaria essa arte à medida que envelhecia. Ao mesmo tempo, como escritor, desenvolvia a arte de explorar as profundezas. “Eu medito sobre qualquer satisfação”, escreveu. “Não passo simplesmente por ela, trato de sondá-la.” Ele estava tão decidido a explorar até mesmo um fenômeno normalmente fugidio por definição — o sono — que pedia a um criado havia muito doente que o despertasse regularmente no meio da noite, na esperança de capturar um vislumbre do próprio inconsciente, no momento em que lhe escapava. Montaigne queria vagar, mas também queria ligar-se à realidade para dela extrair cada grão de experiência. O ato de escrever tornava possíveis as duas coisas. Mesmo se perdendo em devaneios, ele secretamente prendia seus ganchos em tudo que acontecia, de maneira a poder recapturar os acontecimentos quando quisesse. Aprender a morrer era aprender a entregar; aprender a viver era aprender a se aferrar. O FLUXO DA CONSCIÊNCIA

Na verdade, por mais que se tente, não é possível resgatar plenamente uma experiência. Como dizia o antigo filósofo

Heráclito em frase que ficou famosa, não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Ainda que voltemos ao mesmo ponto à margem, as águas que passam a cada momento são sempre diferentes. Da mesma forma, é impossível ver o mundo exatamente como há meia hora, assim como é impossível vê-lo do ponto de vista de outra pessoa ao seu lado. A mente está sempre fluindo, num incessante “fluxo da consciência” — expressão cunhada pelo psicólogo William James em 1890, embora se tornasse mais conhecida graças a alguns romancistas. Montaigne estava entre os muitos autores que citavam Heráclito e refletia sobre a maneira como somos levados por nossos pensamentos, “ora suavemente, ora violentamente, segundo estejam as águas agitadas ou calmas (...) a cada dia uma nova fantasia, e os nossos humores mudam com as alterações do tempo”. Não surpreende que a mente seja assim, já que até mesmo no mundo físico, aparentemente sólido, impera incessantemente uma suave agitação. Contemplando a paisagem ao redor de sua casa, Montaigne era capaz de imaginá-la fervendo e arfando como um mingau na panela. O rio que por ali passava, o Dordonha, esculpia as margens como um carpinteiro cinzelando sulcos na madeira. Ele ficara maravilhado com a mobilidade das dunas de Médoc, perto das quais vivia um dos seus irmãos: elas perambulavam pelo território, devorando-o. Se pudéssemos ver o mundo a uma velocidade diferente, pensava ele, assim é que veríamos tudo, como “uma perpétua multiplicação e vicissitude das formas”. A matéria existia numa incessante branloire, palavra derivada da quinhentista dança camponesa branle, significando algo parecido com agitação ou sacudidela. O mundo era uma grande oscilação cósmica, uma trepidação.

Outros escritores do século XVI compartilhavam esse fascínio de Montaigne pelo instável. O que o distinguia era o instinto de que o observador é tão pouco digno de confiança quanto o observado. Os dois tipos de movimento interagem como variáveis numa complexa equação matemática, resultando disso que não podemos encontrar um ponto seguro a partir do qual medir as coisas. Tentar entender o mundo é como tentar agarrar uma nuvem de gás ou um líquido, usando mãos que são por sua vez feitas de gás ou água, de tal maneira que se dissolvem quando os enfeixamos. É por isto que o livro de Montaigne flui: ele acompanha o fluxo de consciência do autor sem tentar interrompê-lo ou contê-lo. Uma página de Os ensaios costuma ser uma sucessão de meandros, reviravoltas e divergências. Precisamos deixar-nos levar, torcendo para não capotar toda vez que uma mudança de direção nos tirar o equilíbrio. No capítulo “Dos aleijados”, por exemplo, Montaigne começa de maneira bastante convencional, repetindo uma suposição sobre as mulheres mancas: seria mais prazeroso fazer sexo com elas. Por que seria?, pergunta-se ele. Será que é pelo fato de seus movimentos serem irregulares? Talvez, mas ele acrescenta: “Acabo de saber que, de todas as filosofias, a antiga resolveu a questão.” Aristóteles afirma que suas vaginas são mais musculosas por receberem a nutrição de que as pernas são privadas. Montaigne registra esta ideia mas volta atrás e introduz uma dúvida: “A essa altura, o que não podemos transformar em objeto da razão?” Essas teorias não costumam merecer crédito. Na verdade, ele acaba revelando que fez a experiência pessoalmente, acessando uma perspectiva muito diferente: a pergunta pouco significa, pois a imaginação pode nos levar a acreditar que estamos vivenciando um prazer maior,

estejamos “realmente” ou não. No fim das contas, a estranheza da mente humana é a única certeza que podemos ter — uma conclusão extraordinária, aparentemente sem qualquer relação com o tema de que ele originalmente tratava. Outro ensaio, “Que nossa felicidade não deve ser julgada até depois da nossa morte”, começa citando um chavão encontrado numa obra de Sólon: Nenhum homem pode ser considerado feliz até morrer. Montaigne imediatamente se desvia para um pensamento mais interessante: talvez nossa opinião sobre o fato de um homem ter sido feliz ou não tenha mais a ver com a forma como ele morre. Um homem que morre bem tende a ser lembrado como alguém que também viveu bem. Depois de dar exemplos neste sentido, Montaigne volta mais uma vez a mudar de direção. Na verdade, uma pessoa que tenha tido uma boa vida pode morrer de maneira muito ruim, e vice-versa. Na própria época de Montaigne, três dos mais infames indivíduos do seu conhecimento tinham desfrutado de lindas mortes, “compostas à perfeição”. A essa altura, o capítulo já se transformou numa longa perambulação com três guinadas, e Montaigne parece preparar-se para concluir dizendo que, de qualquer forma, espera que sua morte transcorra bem. Mas bem no fim ele observa que, com o desejo de que “transcorra bem”, espera que ela seja “tranquila e insensível” — o que não seria propriamente a ideia mais habitual de uma morte admirável. E com isto o texto chega abruptamente ao fim, no exato momento em que o leitor começa a se perguntar se isto significa que Montaigne viveu bem ou não. Desse modo, o pensamento de Montaigne consiste essencialmente numa série de percepções de que a vida não é tão simples quanto ele imaginava.

Se minha mente pudesse firmar-se com solidez, eu não escreveria ensaios, e sim tomaria decisões; mas ela está sempre aprendendo e experimentando. Em certa medida, as mudanças de direção são explicadas por essa atitude questionadora, mas também pelo fato de ele ter escrito o livro ao longo de vinte anos. As ideias de uma pessoa mudam muito ao longo de duas décadas, especialmente se ela passar todo esse tempo viajando, lendo, conversando com pessoas interessantes e praticando política e diplomacia em alto nível. Revisando redações anteriores de Os ensaios repetidas vezes, ele acrescentava novos elementos, à medida que lhe ocorriam, sem se preocupar em encaixotá-los em uma coerência artificial. Num espaço de poucas linhas, podemos encontrar o jovem Montaigne e um velho com o pé na cova, para retornar em seguida ao prefeito de meia-idade assoberbado de responsabilidades. Vamos ouvi-lo se queixar de impotência; pouco depois, podemos vê-lo jovem e vigoroso, “impertinentemente genital” em seus desejos. Ele é impetuoso e franco; mostra-se cuidadoso; fascinado por outras pessoas; farto da maioria delas. Seus pensamentos são expostos tal como vêm. Ele nos faz sentir a passagem do tempo em seu mundo interior. “Eu não retrato o ser”, escreveu, “retrato a passagem. Mas não a passagem de uma época a outra (…), e sim de um dia a outro, de um minuto ao seguinte”. Entre os leitores que ficaram fascinados com a maneira como Montaigne descrevia o fluxo de sua experiência, esteve uma das grandes pioneiras da ficção exploratória do “fluxo de consciência” no início do século XX, Virginia Woolf. Seu propósito na arte era mergulhar no rio mental e deixarse ir aonde ele a conduzisse. Seus romances perscrutavam

o mundo dos personagens “de minuto a minuto”. Às vezes ela deixava um canal aberto para outra sintonia, transferindo o ponto de vista como um microfone de um indivíduo para outro, mas o fluxo em si mesmo nunca cessava, até o fim de cada livro. Ela identificou em Montaigne o primeiro escritor a tentar alguma coisa do gênero, embora apenas com o seu “fluxo” individual. Ela também o considerava o primeiro a dar tanta atenção ao simples sentimento de estar vivo. “Observar, observar perpetuamente” era o seu lema, dizia ela — e o que ele observava era, acima de tudo, esse rio da vida passando por sua existência. Montaigne foi o primeiro a escrever dessa maneira, mas não o primeiro a tentar viver com plena atenção ao momento presente. Esta era uma das regras recomendadas pelos filósofos clássicos. A vida é aquilo que acontece enquanto estamos fazendo outros planos, diziam eles; a filosofia, portanto, tem de estar constantemente reorientando a atenção para onde ela deve estar: aqui. Ela desempenha um papel semelhante ao dos pássaros estorninhos no romance Ilha, de Aldous Huxley, treinados para voar o dia inteiro cantando “Atenção! Atenção!” e “Aqui e agora!”. Como dizia Sêneca, a vida não faz qualquer pausa para nos lembrar que está indo embora. Só você mesmo pode manter isto em mente: Não causará nenhuma comoção lembrá-lo de sua rapidez, mas trate de deslizar suavemente (...) Qual pode ser o resultado? Você se preocupa, enquanto a vida passa. Enquanto isso, a morte vai chegar, e você não pode escolher se deve ou não mostrar-se disponível a ela.

Se não formos capazes de capturar e apreender a vida, ela escapará entre nossos dedos. Mas, se a capturarmos, ela de qualquer maneira haverá de escapar. Devemos, portanto, segui-la — e “precisamos beber depressa, como se de um fluxo rápido que não estará sempre passando”. O truque consiste em manter uma espécie de espanto ingênuo diante de cada instante da experiência — mas, como viria a aprender Montaigne, uma das melhores técnicas para fazê-lo é escrever sobre tudo. O simples ato de descrever um objeto sobre sua mesa ou a vista da sua janela abre os seus olhos para a maravilha que são essas coisas comuns. Olhar para o nosso interior é abrir um universo ainda mais fantástico. O filósofo Maurice MerleauPonty considerava Montaigne um escritor que pôs “uma consciência espantada consigo mesma no cerne da existência humana”. Mais recentemente, o crítico Colin Burrow observou que o espanto e a outra grande qualidade de Montaigne, a fluidez, consistem precisamente no que a filosofia deveria ser, mas raramente tem sido, na tradição ocidental. À medida que Montaigne envelhecia, não diminuía seu desejo de prestar essa atenção espantada à vida; pelo contrário, aumentava. Ao fim do longo processo de redação de Os ensaios, ele quase levara o truque à perfeição. Sabendo que a vida que lhe restava não poderia ser muito longa, disse: “Tento aumentar o seu peso, tento conter a velocidade do seu voo com a rapidez com que a agarro (...) Quanto mais breve minha posse da vida, mais profunda e plena devo torná-la.” Ele descobriu uma espécie de técnica de meditação ambulante: Quando caminho sozinho no belo pomar, se meus pensamentos se desviam por algum tempo por

incidentes irrelevantes, eu tento nos outros momentos trazê-los de volta à caminhada, ao pomar, à doçura dessa solidão, a mim. Em momentos assim, ele parecia alcançar uma disciplina quase zen, uma capacidade de simplesmente ser. Quando eu danço, danço; quando eu durmo, durmo. Parece tão simples, dito assim, mas nada poderia ser mais difícil. Por isto é que os mestres zen passam uma vida inteira, ou várias vidas, aprendendo. E mesmo assim, a dar crédito aos relatos da tradição, eles só o conseguem depois de serem golpeados pelo mestre com uma vara — a keisaku, usada para lembrar aos que meditam que devem manter a atenção plenamente concentrada. Montaigne o conseguiu depois de uma única vida, relativamente breve, em parte porque passou boa parcela dessa vida fazendo anotações no papel, com uma vara minúscula. Ao escrever sobre sua experiência como se ele próprio fosse um rio, Montaigne deu início a uma tradição literária de atenta observação íntima, hoje tão familiar que fica difícil lembrar que se trata mesmo de uma tradição. A vida simplesmente parece ser assim, e observar o jogo dos estados íntimos é a missão do escritor. Mas essa não era uma ideia disseminada antes de Montaigne, e sua maneira particularmente inquieta e formalmente livre de fazê-lo era desconhecida. Ao inventá-la, arriscando uma segunda resposta à pergunta sobre como viver — “prestar atenção” —, Montaigne transcendeu sua crise e conseguiu inclusive revertê-la em benefício próprio. Tanto “Não se preocupe com a morte” quanto “Preste atenção” eram respostas para uma perda de rumo que pode acontecer no meio da vida: surgiam da experiência de um

homem que já vivera o suficiente para ter cometido erros e conhecido frustrações. Mas também assinalavam um início, propiciando o nascimento de um novo eu voltado para a redação de ensaios.

3. P. Como viver? R. Trate de nascer MICHEAU

O

eu anterior de Montaigne, o que não escrevia ensaios e simplesmente vivia e respirava como todo mundo, começara de maneira mais simples. Chegou a este mundo no dia 28 de fevereiro de 1533 — o mesmo ano em que a futura rainha Elizabeth I da Inglaterra nasceu. Seu nascimento ocorreu entre onze horas e meio-dia, no mesmo castelo da família que seria sua residência por toda a vida. Ele foi batizado de Michel, mas, pelo menos para o pai, seria sempre Micheau. O apelido aparece até em documentos formais, como o testamento do pai, quando o menino já se havia transformado num homem. Em seu Os ensaios, Montaigne escreveu ter sido carregado no ventre da mãe durante onze meses. Era uma afirmação estranha, pois se sabia perfeitamente que semelhante prodígio não seria possível na natureza. Uma mente mais perversa certamente tiraria sem hesitar conclusões indelicadas. Em Gargântua, de Rabelais, o gigante que dá título ao livro também passa onze meses no útero da mãe. “Parece estranho?”, pergunta Rabelais, respondendo ele próprio com uma série de relatos sarcásticos, segundo os quais advogados espertos conseguem comprovar até a legitimidade de uma criança cujo suposto pai tinha morrido onze meses antes do nascimento. “Graças a essas sábias leis, nossas virtuosas viúvas podem, durante dois meses após a morte do marido, entregar-se livremente às brincadeiras mais ousadas no escuro, com os tornozelos acima da cabeça e o coração

feliz.” Montaigne lera Rabelais e provavelmente pensara nas piadas óbvias, mas não pareceu se preocupar com elas. Nenhuma outra dúvida sobre paternidade é lançada nas demais páginas de Os ensaios. Montaigne chega a refletir sobre a força das características genéticas em sua família, descrevendo traços que havia recebido do bisavô, do avô e do pai, incluindo uma serena honestidade e uma propensão a pedras nos rins. Aparentemente se considerava muito parecido com o pai. Montaigne sentia-se à vontade para falar de honestidade e problemas de saúde hereditários. No entanto, mostrava-se mais discreto quanto a outros aspectos da herança genética, pois não descendia da velha aristocracia, e sim, em ambos os lados da família, de várias gerações de comerciantes que haviam ascendido socialmente. Chegou até a inventar que na propriedade dos Montaigne havia nascido “a maioria” de seus antepassados, o que era uma redonda mentira: seu pai fora o primeiro a nascer ali. É bem verdade que a propriedade já era da família havia mais tempo. Fora comprada em 1477 por seu bisavô Ramon Eyquem, ao fim de uma longa e bem-sucedida vida de busca por sucesso material, negociando vinhos, peixes e pastéis-dos-tintureiros — a planta da qual é extraída a tintura de anil, produto de grande importância econômica na região. Grimon, o filho de Ramon, pouco contribuiu com melhorias para a propriedade, à parte abrir um caminho margeado por cedros e carvalhos até a igreja local. Mas aumentou ainda mais a riqueza dos Eyquem e deu início a outra tradição familiar, envolvendo-se na política de Bordeaux. A certa altura, deixou de comerciar e passou a viver “nobremente”, o que representava um passo importante. Ser nobre não era um je ne sais quoi em matéria de classe e estilo: era uma questão técnica,

consistindo a regra principal em que você e seus descendentes não se envolvessem com práticas comerciais nem pagassem impostos por pelo menos três gerações. Pierre, o filho de Grimon, também passou ao largo do comércio, de modo que a nobreza foi conferida pela primeira vez à geração número três: do próprio Michel Eyquem de Montaigne. A essa altura, ironicamente, seu pai, Pierre, transformara a propriedade, que deixou de ser a mera extensão de terras que era até então para se tornar um bem-sucedido empreendimento comercial. O castelo tornou-se sede de um grande negócio viticultor, fabricando dezenas de milhares de litros de vinho por ano. E continua a fazê-lo até hoje. A prática era perfeitamente permitida: era possível ganhar quanto dinheiro quisesse vendendo produtos da própria terra, sem que isto fosse considerado comércio. A história dos Eyquem exemplifica o grau de mobilidade que então era possível, pelo menos em direção à parte mais alta da escala social. Os novos nobres às vezes tinham dificuldade de granjear pleno respeito, mas isto se aplicava sobretudo à chamada “nobreza togada”, elevada a essa posição pela prestação de serviços políticos e civis, e não à “nobreza da espada”, designada com base nas propriedades, como acontecera com a família de Montaigne, e orgulhosa do papel militar que consequentemente teria de  desempenhar. Os camponeses, enquanto isto, ficavam basicamente onde sempre haviam estado: na base. Sua vida ainda era dominada pelo seigneur local — no caso, o chefe da família Eyquem. Ele era proprietário de suas casas, dava-lhes emprego e cobrava aluguel pelo uso do espremedor de vinhas e do forno de pão. Ao chegar sua vez, Montaigne provavelmente continuou sendo para eles um típico seigneur, por mais que louvasse a sabedoria dos

camponeses em seu Os ensaios — livro que dificilmente algum trabalhador agrícola de suas propriedades terá um dia lido. O registro sobre o nascimento de Montaigne no livro da família informa que ele nasceu “in confiniis Burdigalensium et Petragorensium”: na região entre Bordeaux e o Périgord. O que era significativo, pois Bordeaux era predominantemente católica, ao passo que o Périgord era dominado por seguidores da nova religião, reformada ou protestante. A família Eyquem precisava manter boas relações com ambos os lados de uma divergência que haveria de dividir a Europa em duas ao longo da vida de Montaigne, e também muito além dela. A Reforma ainda era notícia recente: seu início costuma ser datado de 1517, ano em que Martinho Lutero escreveu um tratado condenando a tradição católica das vendas de absolvições terrenas, ou “indulgências”, tendo supostamente afixado o texto à porta da igreja de Wittenberg em atitude desafiadora. Alcançando ampla circulação, o tratado desencadeou uma grande rebelião contra a Igreja. O papa reagiu inicialmente descartando Lutero como um “alemão bêbado”, para em seguida excomungá-lo. Os poderes seculares do Sacro Império Romano declararam Lutero um fora da lei com a cabeça a prêmio, transformando-o, assim, num herói popular. Com o passar do tempo, quase toda a Europa ficaria dividida em dois campos: os que se mantinham leais à Igreja e os que apoiavam a rebelião de Lutero. Essa divisão nunca teve contornos geográficos ou ideológicos claros. A Europa se desintegrou como um bolo esfarelado, e não como uma maçã cortada ao meio por uma faca. Praticamente todos os países foram afetados, mas poucos foram os que tomaram decididamente um caminho ou outro. Em muitos lugares,

especialmente na França, as linhas de cisão passavam por aldeias e até famílias, e não entre diferentes territórios. Na região onde vivia Montaigne, a Guyenne (também conhecida como Aquitânia), era efetivamente possível constatar um padrão: grosso modo, o campo ia numa direção e a capital, na outra. A tensão era agravada pela impressão geral, já disseminada na região antes da Reforma, de que a Aquitânia não fazia parte da França. Tinha sua língua própria e poucos vínculos históricos com o norte do país. Durante muito tempo, fora território inglês. Os ingleses só foram expulsos em 1451, por invasores franceses vistos como raptores estrangeiros que não mereciam confiança. A população se sentia nostálgica dos velhos tempos, não porque sentisse falta dos ingleses, mas por detestar os franceses do norte. Eram frequentes as rebeliões. As autoridades ergueram três enormes fortalezas para guardar a cidade: o Château Trompette, o Fort du Hâ e o Fort Louis. Todas eram detestadas, e todas deixaram de existir. Sempre que possível, Bordeaux estabelecia relações diplomáticas com qualquer um que não fizesse parte de seus conquistadores. Na época de Montaigne, a região foi muito influenciada pela corte protestante de Navarra, sediada em Béarn, na fronteira meridional com a Espanha. Também mantinha vínculos com a Inglaterra, que importou o gosto de Bordeaux pelos vinhos. Uma frota comercial inglesa regularmente aportava ali para se abastecer — o que era excelente para os fornecedores locais, entre eles os Eyquem, a família de Montaigne. À medida que a propriedade adquiria maior importância, “Montaigne” veio a sobrepujar o nome mais antigo de Eyquem, que tinha e continua tendo uma conotação nitidamente regional. Uma parte da família ainda hoje é

lembrada por sua lendária propriedade vinícola: o Château d’Yquem. Apesar de uma preferência pelo local e o particular na maioria das coisas, Montaigne tornou-se o primeiro a passar por cima disto, ficando conhecido pelo nome francês mais genérico de suas origens. Tal atitude tem sido motivo de críticas de seus biógrafos, mas ele apenas dava continuidade a uma iniciativa já tomada por seu pai, que se identificava como “de Montaigne” ao assinar documentos. Enquanto o pai deixava de fora essa parte extra quando queria ser breve, Montaigne tendia a extirpar o “Eyquem”. Se Michel Eyquem de Montaigne, produto de uma meteórica ascensão social, abordou rapidamente a procedência mercantil do pai em Os ensaios, pode ter sido para se assegurar de que o livro tivesse penetração nas esferas nobres ociosas; ou talvez, simplesmente, por não se preocupar muito com a questão. O pai provavelmente evitava entretê-lo com histórias sobre as origens da família; é possível que Montaigne mal tivesse consciência delas ao crescer. E não resta dúvida de que havia também uma ponta de vaidade: era um dos muitos pecadilhos alegremente reconhecidos por Montaigne, que acrescentava: Se os outros se examinassem com atenção, como eu faço, haveriam de se descobrir, como eu, cheios de futilidade e estupidez. Eu não poderia me livrar disto sem me livrar de mim mesmo. Estamos todos mergulhados nisto, uns tanto quanto outros; mas os que têm consciência se saem um pouco melhor — embora não dê para ter certeza. Esse remate final — “embora não dê para ter certeza” — é puro Montaigne. Podemos imaginar que era acrescentado,

em pensamento, a praticamente tudo que ele escreveu. Toda a sua filosofia está contida nesse parágrafo. Sim, diz ele, somos todos uns tolos, mas não podemos ser de outra maneira, de modo que é melhor relaxar e aceitar tal condição. Se as atividades do pai pareciam nebulosas, um segredo mais grave aparentemente pairava sobre a família da mãe, Antoinette de Louppes de Villeneuve. Seus antepassados eram comerciantes; eram também imigrantes espanhóis, o que, no contexto da época, parece indicar que fossem refugiados judeus. Como tantos outros, converteram-se ao cristianismo sob pressão, emigrando em consequência da perseguição aos judeus na península no fim do século XV. Montaigne talvez não se tenha dado conta de que tinha origem judaica, se é que efetivamente a tinha. Demonstrava escasso interesse pelo tema, mencionando os judeus só ocasionalmente em Os ensaios, em geral de maneira neutra ou solidária, mas nunca de uma forma indicativa de que se sentisse pessoalmente envolvido. Viajando mais tarde pela Itália, ele visitou sinagogas e presenciou uma circuncisão, mas o fez com a mesma curiosidade que evidenciava por tudo mais que cruzava seu caminho: serviços religiosos protestantes, execuções, bordéis, fontes com efeitos especiais, jardins de pedras e mobília exótica. Também demonstrava um sardônico ceticismo frente à “conversão” de certos refugiados recentes — o que fazia sentido, considerando-se que não era uma escolha voluntária. Se, como especulam alguns, isto representava uma sutil cutucada na família da mãe, não seria de estranhar. Em sua vida política, ele enfrentou constantes dificuldades da parte de certos parentes dela em Bordeaux. Parece até ter tido problemas para se entender com a própria Antoinette.

A mãe de Montaigne tinha indubitavelmente um temperamento forte, mas as convenções a reduziam à impotência e à frustração. Casou-se jovem, como costumavam fazer as mulheres, e provavelmente não teve muita escolha na questão. Pierre Eyquem era bem mais velho que ela: na certidão de casamento, datada de 15 de janeiro de 1529, sua idade consta como 33 anos, ao passo que ela é apenas “maior de idade”. Isto podia significar qualquer coisa entre 12 e 25 anos; como ela viria a ter o derradeiro filho do casal mais de trinta anos depois do casamento, devia estar mais perto dos 12 que dos 25. Dois filhos nasceram antes de Michel, mas nenhum dos dois sobreviveu. É muito provável que ela ainda fosse uma adolescente ao trazê-lo ao mundo, mas a essa altura já estava casada havia quatro anos. Se ainda havia na noiva algo de infantil ou recatado, logo isto mudaria. Documentos remanescentes de variados períodos de sua vida pintam o retrato de uma pessoa voluntariosa, obstinada e capaz. Em seu primeiro testamento, de 1561, seu marido confiava a ela a missão de gerir a casa, e não ao filho mais velho, embora mais tarde tal indicação fosse alterada. Em 1561, ou Pierre Eyquem não depositava muita fé em Micheau (então com quase 28 anos) ou tinha a mulher em conta excepcionalmente alta — o que não deixa de causar espécie, numa época em que as mulheres mal eram consideradas capazes de pensamento racional. O segundo testamento, de 22 de setembro de 1567, evidenciava maior confiança no filho, mas a essa altura Pierre sentia necessidade de se valer do documento para ordenar à mulher que amasse os filhos e dizer a eles que a honrassem e respeitassem. Aparentemente ele temia que ela e o filho mais velho não convivessem de forma

amistosa, pois ordenou a Montaigne que encontrasse acomodações para ela em outro lugar, se o convívio na propriedade da família se revelasse inviável. Antoinette acabou vivendo com ele e sua família durante muito tempo após a morte do marido — até aproximadamente 1587 —, mas sem muita convivência. Outro documento legal firmado por mãe e filho em 31 de agosto de 1568 estabelecia o direito de Antoinette a “todo respeito, honra e serviço filiais”, além de criados para atendê-la e a uma centena de livres tournois por ano para os gastos correntes. Ela, por sua vez, teve de reconhecer que cabiam a ele “o domínio e o governo” do castelo e da propriedade. O contrato dava a entender que Antoinette não se considerava bem-assistida, ao passo que Montaigne queria acabar com suas intromissões. As coisas se agravaram. Em seu próprio testamento, redigido a 19 de abril de 1597 — cinco anos após a morte do filho, já que sobreviveu a ele —, Antoinette declarava não desejar ser enterrada na propriedade, e praticamente excluiu da herança a filha única de Montaigne, Léonor. Queixou-se de que seu dote de casamento devia ter sido usado para a aquisição de mais propriedades, o que não fora feito, e acrescentou: “Trabalhei durante um período de quarenta anos na casa de Montaigne com meu marido, de tal maneira que, com meu trabalho, cuidados e gestão, a dita casa foi muito valorizada, melhorada e ampliada.” Seu filho Montaigne desfrutou durante toda a vida desses benefícios, assim como Léonor, que já estava “rica e opulenta” o suficiente, de nada mais precisando. Finalmente, Antoinette observava estar “numa idade fácil de despistar”; tinha provavelmente em torno de 80 anos, e ao que parece temia que o testamento fosse contestado sob alegação de senilidade.

Lendo-se as frequentes confissões de indolência e inépcia encontradas no livro de Montaigne, é fácil entender por que Antoinette considerava que a propriedade não fora devidamente cuidada quando estava sob o comando dele. Ele achava as questões práticas um tédio e as evitava tanto quanto possível. É mais surpreendente que ela fizesse a mesma queixa na direção do marido, Pierre, pois não é dessa forma, em absoluto, que ele é retratado em Os ensaios. Montaigne faz com que o pai pareça um verdadeiro dínamo, dedicado aos deveres e sempre trabalhando em melhoras na propriedade — incansável e intervencionista até demais. Pierre Eyquem de Montaigne era um homem do século XV — mas por pouco, já que nasceu a 29 de setembro de 1495. Tudo nele proclamava sua distância do mundo do filho. Seguindo uma tradição da nobreza, ele se tornou soldado profissional, tendo sido o primeiro da família a fazê-lo. Michel não o seguiu nisto: como membro da nobreza, era obrigado a carregar uma espada, mas não há indicações em Os ensaios de que a desembainhasse com frequência. Um contemporâneo seu, Brantôme, deixou registrado que Montaigne “arrastava” a espada pela cidade e lhe sugeriu que se limitasse a carregar uma pena. Sarcasmos assim não caberiam no caso de Pierre, que agarrou a primeira oportunidade de se alistar nas guerras francesas na Itália. Tropas francesas vinham regularmente atacando e conquistando estados na península desde 1494, e continuariam a fazê-lo até 1559, quando o Tratado de Paz de Câteau Cambrésis pôs fim às invasões francesas, abrindo caminho para a verdadeira catástrofe do país no século XVI: as guerras civis. As aventuras italianas eram menos danosas, mas dispendiosas e quase sempre sem sentido, além de traumáticas para os envolvidos. Pierre entrou em

combate por volta de 1518. À parte um breve intervalo no ano seguinte, permaneceu longe de casa até o início de 1529, quando retornou para se casar. A guerra no século XVI era um circo de horrores, menos uma questão de glamour no campo de batalha do que de hipotermia, febre, fome, doenças e infecções por cortes de espada ou feridas de armas de fogo, para as quais não havia tratamentos muito eficazes. Acima de tudo, havia cercos, pelos quais se impunha a fome indiferentemente a civis e soldados, até a rendição. Pierre pode ter participado dos cercos de Milão e Pavia em 1522, e talvez também do desastroso assédio de Pavia em 1525, que terminou com o massacre de uma grande quantidade de soldados franceses e o aprisionamento do rei da França. Anos mais tarde, Pierre contemplaria a família com relatos apavorantes de suas experiências na guerra, com direito a histórias de populações de aldeias inteiras que, famintas e sem chance de escapar, cometiam suicídio em massa. Pode estar aí a explicação do fato de Montaigne, crescendo, ter dado preferência à pena em vez da espada. As guerras italianas podem não ter sido nada edificantes sob certos aspectos, mas, no sentido literal de oferecer educação, foram altamente benéficas para os franceses. Entre um cerco e outro, os franceses tomavam contato com ideias estimulantes nos terrenos da ciência, da política, da filosofia, da pedagogia e das últimas tendências da moda. A essa altura, já se passara o tempo do alto Renascimento italiano, mas a Itália continuava sendo, de longe, a civilização mais avançada da Europa. Os soldados franceses aprendiam novas maneiras de pensar sobre praticamente tudo, e quando voltavam para casa levavam suas descobertas. Pierre certamente fazia parte dessa geração de nobres franceses italianizados, influenciados pelas

viagens e por seu próprio rei carismático e modernizador, Francisco I. Sucessores de Francisco deixaram de lado seu ideal renascentista, e durante as guerras civis praticamente todo mundo perdeu a fé no futuro — mas na juventude de Pierre essa desilusão ainda estava muito distante. Os ideais ainda eram novos o bastante para empolgar. À parte talvez o porte mais militar, Pierre tinha o mesmo aspecto físico do filho. Montaigne o descreve como “um homem baixo, cheio de vigor e de estatura ereta e bemproporcionada”, com “um rosto atraente, tendendo para o moreno”. Ostentava boa condição física e tratava de preservá-la. Gostava de exercitar os bíceps valendo-se de canos cheios de chumbo, e usava sapatos de solado chumbado para treinar a corrida e o salto. Este último era um de seus especiais talentos. “Com seus saltos, ele deixou alguns pequenos milagres na memória das pessoas”, escreveu Montaigne. “Pude vê-lo já depois dos sessenta anos deixando-nos envergonhados em matéria de agilidade, saltando para a sela do cavalo com sua túnica de pele, fazendo um rodopio sobre a mesa com o polegar, praticamente nunca subindo para seu quarto sem pular dois ou três degraus de cada vez.” Pierre apresentava ainda outras belas qualidades, todas elas mais características da sua geração que da geração de Montaigne. Era um homem sério; preocupava-se com a própria aparência e o modo como se vestia e se mostrava “consciencioso e escrupuloso” em tudo que fazia. Por seus talentos esportivos e maneiras galantes, fazia sucesso entre as mulheres: Montaigne o considerava “muito bem-dotado para as atenções com as damas, tanto por natureza quanto por arte”. Era provavelmente para divertir companhias femininas que ele saltava sobre as mesas. Quanto às escapadas sexuais, Pierre não era claro com o filho. Por um

lado, relatava histórias “de notáveis intimidades, especialmente de sua parte, com mulheres respeitáveis, isentas de qualquer suspeita”. Por outro, “jurava solenemente que casara virgem”. Montaigne não parecia muito convencido da alegação de virgindade, observando apenas que “no entanto, ele participara por muito tempo das guerras italianas”. Depois de retornar da Itália e se casar, Pierre iniciou uma carreira política em Bordeaux. Foi eleito juiz e preboste em 1530, subprefeito em 1537 e finalmente prefeito em 1554. Foi um período de dificuldades na cidade: a criação de um imposto local sobre o sal levou a um motim em 1548, e como punição a “França” suspendeu muitos direitos legais de Bordeaux. Como prefeito, Pierre fez o que estava ao seu alcance para recuperar a prosperidade da cidade, mas os privilégios só voltaram aos poucos. A tensão acabou comprometendo sua saúde. Assim como suas histórias sobre as atrocidades da guerra podem ter contribuído para afastar Montaigne da vida militar, assim também a visão do cansaço de Pierre o estimularia a manter certa distância da função quando ele, por sua vez, também foi feito prefeito de Bordeaux, cerca de trinta anos depois. Pierre tinha ideias brilhantes, entre elas a de uma espécie de eBay do século XVI, com a proposta de que cada cidade e aldeia tivesse um lugar onde qualquer um pudesse anunciar o que quisesse: “Quero vender pérolas; quero comprar pérolas. Fulano de Tal precisa de companhia para ir a Paris; Sicrano procura criado com tais especificações; Beltrano quer um mestre; alguém mais, um trabalhador; este homem, isso, aquele outro, aquilo.” Parece interessante, mas, não se sabe por quê, o plano não deu certo.

Outra boa ideia de Pierre foi manter um diário em que registrava tudo que acontecia na propriedade: idas e vindas dos criados, dados financeiros e agrícolas de toda espécie. Ele estimulou o filho a fazer o mesmo. Montaigne começou, movido por boas intenções após a morte de Pierre, mas não persistiu: existe apenas um fragmento remanescente. “Sou mesmo um tolo por tê-lo negligenciado”, escreveu em Os ensaios. Mas ele conseguiu dar continuidade a outro registro iniciado pelo pai, usando um calendário impresso intitulado Ephemeris, do escritor alemão Michel Beuther. Deste dispomos praticamente na íntegra, à parte algumas folhas, estando cheio de anotações de Montaigne e outros membros da família. Cada data do ano tem sua própria página, associando um resumo impresso de acontecimentos históricos a uma área em branco para os comentários a serem adicionados ano a ano. Montaigne usou o seu Beuther para registrar nascimentos, viagens e visitas notáveis ao longo da vida. Manteve-se fiel ao registro, mas com certa tendência a errar nas datas, nas idades e em outras informações carentes de precisão. Não obstante as queixas da mulher, Pierre aparentemente adorava o trabalho duro, particularmente o que dedicava às melhorias da propriedade. Talvez o que a irritasse fosse sua preferência por investir nesses aperfeiçoamentos e não na compra de novas propriedades, além do hábito de não levar as coisas até o fim. O fato de Pierre ter abandonado a ideia do balcão de anúncios pode ter sido mais característico do seu comportamento do que parece. À morte de Pierre, Montaigne herdou muitas tarefas deixadas pela metade na propriedade, sentindo-se no dever de levá-las a termo, o que no fim nunca chegou a fazer. Trabalho que está parado ainda na organização do canteiro de obras é bem irritante: talvez a inércia fosse a maneira

encontrada por Montaigne para lidar com isto, assim como a exasperação era a de Antoinette. Certas iniciativas sem conclusão podem ter sido um indício de que a energia de Pierre estava em declínio, pois a partir dos 66 anos ele foi acometido de debilitantes ataques de pedras nos rins. Nos últimos anos de vida, Montaigne com frequência o viu se contorcendo de dores. Ele jamais esqueceria o choque que foi presenciar o primeiro desses ataques, que atingiu Pierre inesperadamente, deixando-o inconsciente de tanta dor. Ao desmaiar, ele caiu nos braços do filho. Foi provavelmente um episódio semelhante, ou complicações decorrentes de um deles, que finalmente o levou à morte. Ele morreu em 18 de junho de 1568, aos 74 anos. A essa altura, Pierre tinha substituído seu primeiro testamento, tão implicitamente crítico da capacidade do filho, por outro, que atribuía a Montaigne a missão de cuidar dos irmãos menores e fazer para eles as vezes do pai. “Ele deve tomar o meu lugar e me representar diante deles”, escreveu. Montaigne efetivamente tomou o lugar do pai, e nem sempre achou fácil ocupá-lo. Em Os ensaios, ele aparece como uma espécie de negativo de Pierre. Um elogio ao pai muitas vezes vem seguido da afirmação de que ele próprio seria completamente diferente. Depois de relatar como Pierre gostava de promover melhorias na propriedade, Montaigne nos apresenta uma imagem quase comicamente exagerada de sua própria falta de habilidade ou mesmo interesse nesse tipo de coisa. Qualquer trabalho que fizesse, “rematando algum canto numa velha parede e consertando uma edificação malfeita”, seria antes em homenagem a Pierre do que para sua própria satisfação, explicava. Como viria a advertir o filósofo novecentista Friedrich Nietzsche,

“não se deve tentar superar o próprio pai em matéria de diligência, para não ficar doente”. De maneira geral, Montaigne efetivamente não tentou, preservando assim a própria sanidade. Por mais inadequado que se sentisse nas habilidades práticas da vida, ele sabia da vantagem que levava em matéria de literatura e cultura. A limitação do conhecimento livresco de Pierre se contrapunha a seu amor pelos livros. Na visão de Montaigne, o fato de o pai transformar os livros em objeto de culto era bem característico de sua geração: ele se empenhava em fazer contato com os autores, “recebendo-os em casa como seres sagrados” e “bebendo seus ditos e sentenças como se fossem oráculos”. Mas não demonstrava grande compreensão crítica. Tudo bem, parece dizer Montaigne, Pierre podia ser capaz de rodopiar sobre uma mesa com seu másculo polegar, mas em questões intelectuais era uma negação. Adorava os livros sem entendê-los. Seu filho tentaria sempre fazer o contrário. Montaigne estava certo ao considerar que se tratava de uma característica dos contemporâneos de Pierre. Os nobres franceses do início do século XVI apreciavam tudo que fosse brilhante e italianizante, procurando se distanciar da atitude ostentada por seus antecessores de desafiadora repulsa à erudição. O que Montaigne se esqueceu de observar foi que ele próprio não era menos típico da sua época ao rejeitar o fetiche dos livros. Os pais cobriam os filhos de literatura e história, faziam-nos desenvolver o pensamento crítico e os ensinavam a girar em torno das filosofias clássicas como bolas de malabarismo. E os filhos só sabiam agradecer descartando tudo isso como coisas sem valor e assumindo uma atitude de superioridade. Alguns chegaram a tentar reviver a antiga tradição anti-

intelectual, como se fosse uma radicalização nunca antes imaginada. Havia desencanto e amargura na geração de Montaigne, assim como uma nova e rebelde criatividade. Se eles se mostravam descrentes, não é difícil entender por quê: tinham de assistir aos ideais que guiaram sua educação serem transformados em uma piada de mau gosto. A Reforma, exaltada inicialmente por certos pensadores como uma lufada de ar fresco benéfica até para a própria Igreja, transformou-se numa guerra, ameaçando levar a sociedade civilizada à ruína. Os princípios renascentistas da beleza, do equilíbrio, da clareza e da inteligência dissolveram-se em violência, crueldade e em uma teologia extremista. O meio século em que viveu Montaigne foi tão desastroso para a França que ela precisaria de outro meio século para se recuperar — e sob certos aspectos nunca se recuperou, pois a turbulência do fim do século XVI impediu a França de construir um grande império no Novo Mundo, como os da Inglaterra e da Espanha, e fez com que se mantivesse voltada sobre si mesma. Na época da morte de Montaigne, a França estava em situação economicamente frágil, devastada pelas doenças, a fome e a desordem. Não surpreende, assim, que os jovens nobres da sua geração se tornassem misantropos de requintada cultura. Montaigne trazia em si um pouco dessa tendência antiintelectual. Ele cresceu acreditando que a única esperança para a humanidade estava na simplicidade e na ignorância dos camponeses. Eram eles os verdadeiros filósofos do mundo moderno, herdeiros de sábios clássicos como Sêneca e Sócrates. Só eles sabiam viver, precisamente porque não sabiam muito a respeito de mais nada. Foi a esse ponto que ele retornou ao culto da ignorância: uma verdadeira bofetada no rosto de Pierre.

Mas nada pode acontecer exatamente da mesma forma uma segunda vez. E ninguém podia ser menos parecido com os nobres medievais do que Montaigne, com seus ensaios e experimentações, e o remate de tudo que  escrevia com codas ambivalentes. Seu jeito de acrescentar “embora não tenha certeza”, implícita ou explicitamente, a quase todos os pensamentos que lhe ocorriam o distancia, e muito, da maneira antiga. No fim das contas, os ideais do pai sobreviveram nele, mas em forma mutante: abrandados, ensombrecidos e totalmente desprovidos de qualquer certeza. A EXPERIÊNCIA

É possível que essa disposição para questionar as certezas e os preconceitos fosse um traço de família. Em meio às disputas religiosas, os Eyquem eram conhecidos — “famosos”, dizia Montaigne — por sua liberdade em relação às desarmonias sectárias. Mantiveram-se em sua maioria católicos, mas vários deles se converteram ao protestantismo, o que surpreendentemente gerou muito pouco incômodo. Quando um jovem Eyquem protestante deu sinais de extremismo, La Boétie, o amigo de Montaigne, recomendou-lhe mudar de ideia, “por respeito à boa reputação que a família à qual pertence adquiriu por contínuo acordo — uma família que me é cara como qualquer outra família do mundo: meu Deus, que família! Da qual nunca partiu qualquer ato de que não fosse capaz um homem digno”. Esse clã admirável também era muito grande. Montaigne tinha sete irmãos e irmãs, sem contar os dois que nasceram e morreram antes dele, tornado-o o mais velho. A diferença de idade em relação aos outros irmãos era considerável,

podendo parecer até uma divisão de gerações, pois Montaigne já tinha 27 anos quando nasceu seu irmão menor, Bertrand. Até onde se sabe, nenhum dos irmãos menores recebeu tanta atenção ou uma educação tão excepcional quanto o pequeno Micheau. As irmãs provavelmente tiveram uma educação feminina normal, o que significa praticamente nenhuma. E mesmo os outros irmãos foram tratados de maneira mais convencional, até onde se sabe. O único rebento bem documentado da família é Michel de Montaigne — que não foi apenas educado: tornou-se objeto de uma experiência pedagógica praticamente inédita. O caráter inusitado desse tratamento manifestou-se logo depois do nascimento, quando Micheau foi instalado na casa de uma família modesta numa aldeia próxima. Ter uma ama de leite camponesa era perfeitamente normal, mas o pai de Montaigne queria que ele também absorvesse dos plebeus uma compreensão do seu modo de vida, para ser capaz de se entender, quando crescesse, com as pessoas que mais precisavam da ajuda de um seigneur. Assim, em vez de trazer uma ama para cuidar do bebê, ele enviou o bebê à ama, deixando-o lá até ser desmamado. Até mesmo no batismo Pierre convocou “pessoas da classe mais baixa” para segurar a criança na pia batismal. Desde o início, Montaigne teve a sensação de ser um camponês entre camponeses e ao mesmo tempo muito especial e diferente. Essa mistura de sentimentos seria experimentada pelo resto da vida. Ele se sentia comum, mas sabia que o próprio fato de se dar conta disso o tornava incomum. O plano de convivência na aldeia apresentava uma desvantagem da qual é improvável que Pierre se tenha dado conta. Vivendo com estranhos, é difícil que Micheau tenha conseguido se “conectar” (como diríamos hoje) com

os pais de sangue. Em certo sentido, isto poderia se aplicar a qualquer bebê criado por uma ama de leite, mas o fato é que a maioria costuma ter contato com as mães no resto do tempo. Não foi, aparentemente, o caso de Montaigne. Se as ideias dos séculos XX e XXI têm alguma validade (e talvez não tenham: a questão da criação de laços imediatos entre a mãe e o filho pode ser uma moda tão passageira quanto a das amas de leite), essa privação nos cruciais primeiros meses de vida pode ter afetado para sempre a relação de Montaigne com a mãe. Segundo sua própria avaliação, contudo, o esquema funcionou magnificamente, e ele recomendava aos leitores que, sempre que possível, fizessem o mesmo. Que os seus filhos “sejam formados pelo destino segundo as leis das pessoas comuns e da natureza”, dizia ele. Qualquer que tenha sido a idade na qual ele retornou ao castelo — talvez com um ano ou dois —, o fato é que a separação da família adotiva deve ter sido muito abrupta, pois o segundo elemento de sua educação experimental haveria de se revelar totalmente incompatível com o primeiro. De volta ao lar, o camponezinho Micheau seria agora criado como um falante nativo de latim. Até então, a língua com que se havia familiarizado no lar adotivo fora o dialeto local do Périgord. Se já tinha idade para se alimentar com a comida daqueles que o recebiam, seus ouvidos também podiam adaptar-se à língua deles, embora ele ainda fosse pequeno demais para falá-la. Pois agora teria de trocá-la pelo latim, passando ao largo da língua em que um dia viria a escrever: o francês. Era um plano surpreendente até mesmo de se conceber, quanto mais de se pôr em prática, e apresentava uma dificuldade prática. O próprio Pierre tinha conhecimentos mínimos de latim; sua mulher e os criados, nenhum. E, de maneira

geral, já era impossível a essa altura encontrar pessoas fluentes em latim. Como foi que Pierre pensou que conseguiria tornar Montaigne fluente na língua de Cícero e Virgílio? A solução que encontrou dividia-se em duas partes. O primeiro passo consistia em contratar um tutor que, embora não o tivesse como língua mãe, falasse um latim quase impecável. Pierre encontrou um alemão conhecido como dr. Horst, cuja principal qualificação era ter um bom domínio do latim, embora quase não falasse francês, muito menos o dialeto do Périgord, de tal maneira que ele e o pequeno Micheau só tinham uma forma de se comunicar. Assim, desde a mais tenra idade — “antes que a minha língua começasse a se soltar”, como diria Montaigne —, o dr. Horst, ou (em latim) Horstanus, tornou-se a pessoa mais importante para ele. O segundo passo era proibir todas as pessoas da casa de se dirigir a Micheau em qualquer língua viva. Se quisessem dizer ao menino que tomasse o desjejum, teriam de fazê-lo usando o imperativo latino e as adequadas declinações. Todos passaram então a aprender alguma coisa, inclusive o próprio Pierre, que tratou de tirar do baú seus conhecimentos escolares. Desse modo, como escreveria Montaigne, todos se beneficiaram. Assim foi que meu pai e minha mãe aprenderam latim o suficiente para entendê-lo, capacitando-se a usá-lo quando necessário, da mesma forma que os criados mais ligados ao meu atendimento. De maneira geral, de tal modo nos latinizamos que a coisa se espraiou em todas as direções pelas aldeias, onde subsistem vários nomes latinos de artesãos e ferramentas, que se firmaram pelo uso constante. Quanto a mim, só depois

dos seis anos o francês ou o dialeto do Périgord deixaria de ser algo tão ininteligível quanto o árabe. Desse modo, “sem meios artificiais, sem um livro, sem gramática nem regras, sem chicote nem lágrimas”, Montaigne aprendeu um latim tão bom quanto o falado pelo tutor, e com uma fluência mais natural que a que estaria ao alcance de Horst. Em posteriores contatos com outros professores, eles haveriam de elogiá-lo por um latim ao mesmo tempo tecnicamente perfeito e pragmático. Por que o teria feito Pierre? Este é um daqueles momentos em que a defasagem de meio milênio entre nós e o nosso tema subitamente se abre num precipício aos nossos pés. Quase todo mundo hoje em dia acharia um absurdo separar os pais de um filho por causa de uma língua morta. No Renascimento, todavia, considerava-se que o objetivo a alcançar justificava o sacrifício. O domínio de um latim belo e gramaticamente correto era a meta mais alta de uma educação humanista: ele abria as portas do mundo antigo — considerado a fonte de toda a sabedoria humana — e também de boa parte da cultura moderna, já que a maioria dos eruditos continuava escrevendo em latim. Representava também o início de uma bela carreira: o latim era essencial no direito e no serviço público. A língua representava um atributo de valor quase mágico para qualquer um que a falasse. Quem falava bem devia ser capaz de pensar bem. Pierre queria atribuir ao filho a maior vantagem possível: um elo ao mesmo tempo com o paraíso perdido da antiguidade e com o sucesso pessoal no futuro. A maneira como Pierre quis que Montaigne aprendesse o latim também exemplificava os ideais da época. Em sua maioria, os meninos aprendiam latim com muito esforço na escola, mas não era o que acontecia entre os romanos: eles

falavam latim com a mesma naturalidade com que respiravam. Por precisarem aprender a língua artificialmente é que os modernos não podiam se equiparar aos antigos em sabedoria ou grandeza d’alma — ou pelo menos era o que rezava a teoria. A experiência estava longe de ser cruel, pelo menos sob os aspectos mais óbvios. As novas teorias educacionais enfatizavam não só a necessidade de que o ensino fosse prazeroso, mas também que a única motivação necessária para as crianças era seu desejo inato de aprender. Quando já estava um pouco mais crescido, Montaigne também aprenderia grego nesse mesmo espírito de diversão. “Nós jogávamos nossas conjugações para lá e para cá”, recordaria, “como quem aprende aritmética e geometria com jogos como de damas e de xadrez”. Seu grego não se fixou: ele reconheceria mais tarde que tinha pouco conhecimento da língua. De maneira geral, todavia, essa abordagem hedonista da educação efetivamente funcionou para ele. Tendo-se orientado no início da vida apenas por sua própria curiosidade, ele se tornou um adulto de espírito independente, seguindo em tudo o próprio caminho, em vez de se curvar ao dever e à disciplina — um resultado de alcance talvez ainda maior que o buscado pelo pai. Esse princípio da naturalidade também regulava outros aspectos do início da vida de Montaigne. Considerava-se que “o tenro cérebro das crianças pode ser perturbado se elas forem acordadas de manhã com um susto”, de modo que Pierre todo dia tratava de tirar o filho da cama como quem encantasse uma cobra, ao som plangente de um alaúde ou algum outro instrumento musical. Os castigos corporais eram praticamente desconhecidos para ele; em toda a infância, só duas vezes foi golpeado com uma vara e,

ainda assim, com grande moderação. Era uma educação de “sabedoria e tato”. Pierre tirava suas ideias de seus queridos amigos eruditos, e talvez também de pessoas que encontrara na Itália, embora o principal ideólogo ao qual possamos atribuir essa abordagem fosse um holandês, Erasmo de Roterdã, que escrevera sobre temas educacionais durante sua permanência na Itália, duas décadas antes. Montaigne escreveu que o esquema se originara no empenho do pai de proceder a “todas as investigações de que um homem é capaz, entre homens de saber e entendimento”. De forma bem característica, tratando-se de Pierre, era uma concepção ao mesmo tempo erudita e caprichosa. Ela certamente trazia a marca do pai, e não de Antoinette, e seria muito interessante saber o que ela pensava do projeto. Se o período de amamentação de Montaigne entre os camponeses já o havia afastado dela, essa etapa de sua educação aumentava ainda mais a distância. Eles agora viviam sob o mesmo teto, mas do ponto de vista linguístico e cultural era como se estivessem em planetas diferentes. É improvável que  ela se tenha tornado fluente em latim, embora Montaigne afirme que ela aprendeu um pouco por causa dele. Segundo ele, o preparo de Pierre tampouco passou de um nível rudimentar. Se a experiência foi efetivamente tão rigorosa quanto dá a entender o seu relato (o que é uma grande incógnita), os pais só podiam se comunicar com o filho de maneira pomposa e distante. Nem mesmo Horst seria capaz de lhe falar de forma plenamente espontânea, por mais profundo que fosse o seu conhecimento. A tal “naturalidade” ia por água abaixo. Cabe suspeitar — e esperar — que as regras fossem desrespeitadas de vez em quando. Mas Montaigne não faz

qualquer menção nesse sentido. E aparentemente considera que a experiência foi um grande êxito. Em termos de transformá-lo num autêntico latinista, o empreendimento deu frutos nesses primeiros anos, mas as sementes não germinaram muito além. No fim das contas, com a falta de prática, ele acabou num nível equivalente ao de qualquer outro jovem nobre de boa formação. Mas a língua latina estava profundamente assentada nele. Décadas depois, quando o pai desmaiou de dor numa crise de pedra nos rins, Montaigne soltou uma exclamação em latim ao ampará-lo nos braços. Mais duradouros foram os efeitos da educação de Montaigne em sua personalidade. Como costuma acontecer com tantas experiências dos primeiros anos de vida, ela o beneficiou exatamente nas mesmas áreas em que o prejudicou, destacando-o do ambiente doméstico e do mundo contemporâneo. Isto lhe proporcionou um espírito independente, mas pode tê-lo inclinado a certo desapego nos relacionamentos. Direcionou-o para grandes expectativas, já que ele cresceu na companhia dos maiores escritores da antiguidade, e não apenas dos franceses provincianos da vizinhança. Mas ao mesmo tempo lhe tirou certas ambições mais convencionais, levando-o a questionar tudo a que os outros aspiravam. O jovem Montaigne era diferente. Não precisava competir; mal precisava se esforçar. Cresceu tolhido por alguns dos mais estranhos limites jamais impostos a uma criança, e ao mesmo tempo desfrutava de liberdade quase ilimitada. Era um mundo em si mesmo. No fim, ele desenvolveu bom domínio do francês, mas não no estilo contido e imaculado que os séculos posteriores gostavam de ver cultivado por seus escritores. Escrevia de maneira idiossincrática, e houve quem o acusasse de

parecer um rústico indisciplinado. Seja como for, escolheu como sua língua o francês, e não o latim. Em Os ensaios, explica este fato de maneira estranha. Não se podia esperar que o francês perdurasse tanto quanto as línguas clássicas, dizia; seus escritos, assim, estavam condenados à efemeridade, e ele poderia escrever da maneira como bem quisesse, sem se preocupar com sua reputação. O fato de a língua francesa não estar congelada numa rígida perfeição parecia-lhe atraente, em princípio: se ela tinha defeitos, haveria menos pressão para que fosse usada de maneira impecável. Montaigne não costumava gostar de esquemas idealistas, mas neste caso aprovou a experiência do pai. Quando veio por sua vez a escrever sobre temas de educação, suas ideias pareciam uma versão mais moderada das ideias de Pierre — que eram radicais demais para efetivamente interessar a outra pessoa. O escritor montaignesco contemporâneo Tabourot des Accords chegou a sugerir que um grupo de cavalheiros juntasse recursos para criar os filhos numa espécie de comuna latina, já que era muito difícil fazê-lo isoladamente, mas não temos notícia de que isto se tenha concretizado. Aspectos menos estranhos dessa educação quinhentista “centrada na criança” foram surgindo ao longo dos anos, até o momento presente. No século XVIII, Jean-Jacques Rousseau transformou num verdadeiro culto a educação infantil em ambiente natural, tomando algumas de suas ideias de empréstimo a Montaigne, especialmente do ensaio atipicamente prescritivo que ele escreveu sobre educação. Ele não podia deixar de ser prescritivo, pois o ensaio “Da educação” foi de certa maneira encomendado por uma vizinha, Diane de Foix, condessa de Gurson, que estava grávida e queria que Montaigne opinasse sobre a melhor

forma de introduzir seu filho à vida (presumindo que fosse um menino). As recomendações de Montaigne demonstram o quanto estava satisfeito com suas experiências de infância. Para começar, dizia, ela teria de conter seus instintos maternos e convidar um estranho a desempenhar o papel de mentor do filho: os pais estão por demais presos às emoções. Não conseguem se eximir da preocupação com a possibilidade de que o filho apanhe um resfriado na chuva, caia do cavalo ou se corte na esgrima. Um tutor pode ser mais firme. Por outro lado, não deve haver espaço para a crueldade. O aprendizado deve ser prazeroso, e as crianças precisam crescer imaginando a sabedoria com um sorriso, não com expressão assustadora ou carrancuda. Montaigne critica duramente os métodos brutais da maioria das escolas. “Fora com a violência e a coação!” Se alguém entra numa escola durante as aulas, diz ele, “ouve apenas gritos, seja das crianças torturadas ou dos professores transidos de raiva”. Tudo isto serve apenas para alienar as crianças do aprendizado pelo resto de suas vidas. Muitas vezes, nem é preciso usar livros. Qualquer um aprende a dançar, dançando; a tocar alaúde, tocando alaúde. O mesmo se aplica ao pensamento e até à vida. Toda experiência pode ser uma oportunidade de aprender: “a travessura de um pajem, o comentário errôneo de um criado, uma observação à mesa”. A criança deve aprender a questionar tudo, a “passar tudo por um crivo, sem nada alojar na mente por simples autoridade e confiança”. Viajar é útil, assim como socializar, pois desse modo a criança aprende a ser aberta aos outros e a se adaptar a qualquer um com quem venha a conviver. As excentricidades devem ser descartadas desde cedo, pois dificultam o convívio com os outros. “Vi homens fugirem com mais horror do cheiro das maçãs que do fogo de arcabuzes, outros se assustarem

com um camundongo, e outros ainda vomitarem à simples visão de um creme ou à queda de um colchão de plumas.” Tudo isto impede bons relacionamentos e o bem viver. E pode ser evitado, pois os jovens são maleáveis. Ou pelo menos o são até certo ponto. Montaigne logo muda de discurso. O que quer que façamos, diz, não podemos realmente mudar as disposições inatas. Podemos orientá-las ou treiná-las, mas não nos livrar delas. Em outro ensaio, escreveu ele: “Não existe ninguém que, se ouvir a si mesmo, deixe de descobrir em si um padrão que lhe é próprio, um padrão dominante, que milita contra a educação.” Pierre, até onde se imagina, tinha uma visão menos fatalista da natureza humana, pois considerava que o pequeno Micheau efetivamente podia ser moldado, e que valia a pena fazer a experiência. Com sua habitual atitude confiante, ele tratou de moldar e desenvolver o filho exatamente como moldava e desenvolvia sua propriedade. Infelizmente, tal como acontecera com outros projetos, Pierre deixou a tarefa por concluir, ou pelo menos era o que acreditava Montaigne. Por volta dos 6 anos de idade, o menino foi repentinamente removido de sua estufa nada convencional e mandado para a escola, como qualquer outra criança. Pelo resto da vida, ele permaneceu convencido de que isso acontecera por culpa sua, de que sua teimosia — seu “padrão dominante” — houvesse levado o pai a desistir. Ou quem sabe Pierre tivesse apenas cedido às convenções, agora que seus conselheiros iniciais já não estavam por perto. Parece mais provável que Pierre desde sempre tivesse pretendido enviar Micheau à escola a certa altura. Sem compreender o plano, Montaigne via nisso uma crítica a si mesmo que provavelmente não existia. Toda essa progressão em diferentes etapas, da família camponesa à

escola, passando pelos estudos de latim, configurava uma espécie de receita para produzir o perfeito cavalheiro, de espírito independente mas capaz de se adaptar à sociedade quando necessário. Assim foi que, em 1539, Montaigne juntou-se a outros meninos de sua idade no Collège de Guyenne, em Bordeaux. Lá ele estudaria durante uma década, até pelo menos 1548, e em certa medida se adaptaria, mas inicialmente foi um severo choque para o seu sistema pessoal. Para começar, ele tinha de se habituar à vida urbana, depois da liberdade da vida de menino no campo. Bordeaux ficava a mais de 60 quilômetros de sua casa, num percurso de várias horas, mesmo em montaria rápida. A viagem era tornada ainda mais demorada pela necessidade de atravessar o Dordonha: uma barca recolhia passageiros em vinhedos e suaves colinas verdejantes, deixando-os no coração do bairro comercial de Bordeaux — um mundo muito diferente. Murada e claustrofóbica, amontoada ao redor do rio, a Bordeaux do século XVI nada tinha a ver com a cidade de hoje. Suas velhas ruas foram varridas do mapa nos séculos XVIII e XIX, sendo substituídas por bulevares e grandes prédios de contornos suaves que hoje lhe conferem um ar ligeiramente abstrato. Na época de Montaigne, ela não tinha nada de suave. Era uma cidade populosa, com cerca de 25 mil habitantes, e muito agitada. Pelo rio passava intensa navegação. Às suas margens havia equipamentos para descarga, sobretudo de vinho, além de uma forte mistura aromática de peixe em conserva, sal e madeira. O clima mudava ao se chegar ao Collège de Guyenne, fundado numa região tranquila da cidade, distante do centro comercial, e cercado de olmos. Era um excelente colégio, embora Montaigne falasse mal a respeito. Seu

currículo e seus métodos parecem formidáveis à sensibilidade moderna. Tudo girava em torno do estudo maquinal do latim, a única matéria em que Montaigne desfrutava de vantagem tão grande que os professores provavelmente ficaram encantados. Tanto os professores quanto os alunos deviam conversar em latim. Tal como na casa de Montaigne, a comunicação verbal na escola era canhestra e pomposa — mas a semelhança parava por aí. Nela não havia música suave; tampouco havia qualquer ênfase no prazer e, o que era mais chocante, ninguém partia do princípio de que o pequeno Micheau era o centro do universo. Pelo contrário, ele agora tinha de se adaptar aos demais. As aulas começavam bem cedo pela manhã, com a minuciosa análise de exemplos literários, geralmente de escritores como Cícero, com muito poucas chances de atender ao gosto de leitores jovens. À tarde, eles tinham aulas de gramática, sem a utilização de exemplos. À noite, havia leitura coletiva de textos, com análises ditadas pelo professor, devendo ser decoradas pelos meninos e recitadas caso fossem solicitados a fazê-lo. Inicialmente, o domínio do latim rapidamente fez com que Montaigne fosse promovido a classes adiantadas para sua faixa etária. Mas a má influência de seus colegas menos privilegiados foi aos poucos minando seu fácil domínio da língua, de tal maneira que — segundo afirmaria — deixou a escola sabendo menos que ao chegar. Na verdade, a filosofia do Collège era relativamente ousada e aberta, e Montaigne se divertia mais com certos aspectos da vida escolar do que estaria disposto a admitir. Nas turmas de alunos mais velhos, havia competições em matéria de oratória e argumentação, tudo, naturalmente, em latim, dando-se menos importância ao que era dito do

que à maneira de dizê-lo. A partir delas, Montaigne desenvolveu habilidades retóricas e uma capacidade de pensamento crítico de que se valeria por toda a vida. Também foi provavelmente nelas que ele entrou em contato pela primeira vez com a ideia de recorrer a “cadernos de lugares-comuns”, para a anotação de trechos escolhidos na leitura, estabelecendo entre eles uma justaposição criativa. Mais tarde, na adolescência, Montaigne estudou matérias mais interessantes, entre elas filosofia — infelizmente, não do tipo de que gostava, tratando da questão de como viver, mas sobretudo lógica e metafísica aristotélicas. Também havia momentos mais leves. Um novo professor, MarcAntoine Muret, escrevia e dirigia peças; Montaigne foi o protagonista de uma delas. Revelou então um talento natural para o palco, evidenciando (segundo escreveu) uma inesperada “segurança da expressão e flexibilidade da voz e do gesto”. Tudo isto ocorreu num período difícil para o Collège. Em 1547, o diretor, o progressista André Gouvéa, foi obrigado a se afastar pelas facções políticas conservadoras. Partiu para Portugal, levando os melhores professores. No ano seguinte, revoltas se sucederam até mesmo em Bordeaux: eram as rebeliões contra o imposto do sal, que tanto trabalho dariam ao pai de Montaigne durante seu mandato como prefeito. O sudoeste do país era tradicionalmente isento desse imposto. Agora, de uma hora para outra, o novo rei, Henrique II, tentava impô-lo, com resultados incendiários. Multidões de revoltosos se formaram para protestar, e durante cinco dias, de 17 a 22 de agosto de 1548, percorreram as ruas tocando fogo nas residências de cobradores de impostos. Havia quem atacasse as casas de qualquer um que parecesse rico, até que a desordem ameaçou se transformar numa generalizada revolta

camponesa. Alguns cobradores de impostos foram mortos, tendo seus corpos arrastados pelas ruas e cobertos de sal, para deixar bem clara a mensagem. Num dos incidentes mais graves, Tristan de Moneins, comandante da cidade — e portanto representante do rei —, foi linchado. Ele havia se fechado na sólida fortaleza real da cidade, o Château Trompette, mas uma multidão se formou em frente, desafiando-o a sair. Talvez pensando que fosse conquistar o respeito da turba ao enfrentá-la, ele se arriscou, mas equivocadamente. Foi espancado até a morte. Na época com 15 anos, Montaigne estava nas ruas, pois o Collège suspendera as aulas nesse período de violência. Ele assistiu ao linchamento de Moneins, cena de que nunca se esqueceria. Ela suscitou em seu espírito, talvez pela primeira vez, uma questão que permearia seu Os ensaios sob diferentes formas: a de saber se seria melhor conquistar o respeito de um inimigo com uma atitude de aberto desafio ou colocar-se à sua mercê, na esperança de conquistá-lo pela submissão ou por um apelo ao que houvesse de melhor nele. Nesse caso, Montaigne considerou que Moneins fracassou por não saber ao certo o que estava fazendo. Tendo decidido enfrentar a turba, ele perdeu a autoconfiança e se comportou com deferência, mandando uma mensagem ambígua. Também subestimou a psicologia distorcida da multidão. Uma vez mergulhada no frenesi, ela só pode ser aplacada ou reprimida; não se pode esperar que mostre sentimentos humanos comuns de empatia. Moneins aparentemente não o sabia, esperando encontrar os mesmos sentimentos de camaradagem que poderia esperar de um indivíduo. Não se pode negar que demonstrou coragem ao enfrentar desarmado um “mar de furiosos”. Mas sua única esperança

então seria manter até o fim a atitude de desafio. Ele devia ter bebido da taça até o fim, sem abandonar seu papel; ao passo que o que lhe aconteceu foi que, tendo visto o perigo de perto, perdeu o sangue-frio e mais uma vez mudou a atitude aplacada e de lisonja que havia assumido, mostrando-se assustado e deixando transparecer surpresa e arrependimento na voz e no olhar. Tentando esconder-se, ele inflamou a multidão, que se abateu sobre ele. A chocante visão da morte de Moneins, e certamente de outras cenas perturbadoras ao longo daquela semana, muito ensinou a Montaigne sobre a complexidade psicológica do conflito e a dificuldade de se comportar bem nas crises. Nesse caso, a violência acabou sendo aplacada, graças sobretudo à ação do futuro sogro de Montaigne, Geoffrey de La Chassaigne, que negociou uma trégua. Mas a cidade seria severamente punida por permitir semelhante desobediência. Dez mil homens das tropas reais foram mandados até lá em outubro, sob o comando do condestável de Montmorency; oficialmente, o título “condestável” significava apenas “chefe dos estábulos reais”, mas sua função detinha enorme poder. As tropas permaneceram na cidade durante mais de três meses, e Montmorency impôs um reinado de terror. Ele instigava seus homens a saquear e matar, como uma força de ocupação num país estrangeiro. Todo aquele que fosse identificado como participante da sublevação era esquartejado ou queimado. Tudo foi feito para humilhar Bordeaux física, financeira e moralmente. A cidade perdeu a autonomia administrativa; sua artilharia e sua pólvora foram confiscadas; seu parlement foi dissolvido, e por algum tempo ela seria governada por magistrados de outras

partes da França. Também teve de pagar pelos custos de sua própria ocupação. E, quando o corpo de Moneins foi exumado para sepultamento na catedral, os dirigentes locais foram obrigados a se ajoelhar em frente à residência de Montmorency para implorar perdão pelo homicídio. Os privilégios foram gradualmente restabelecidos, graças em parte ao empenho do pai de Montaigne, como prefeito de Bordeaux, no sentido de fazer com que a cidade caísse novamente nas graças do rei. Incrivelmente, a rebelião alcançou seu objetivo, a longo prazo. Irritado com a revolta, Henrique II decidiu suspender a cobrança do imposto sobre o sal. Mas o preço que tiveram de pagar por isso fora alto. Mal passou esse drama, e a cidade foi atingida pela praga, em 1549. Não foi um surto longo nem de grandes proporções, mas bastou para que todos passassem a examinar sua própria pele nervosamente, temendo qualquer tosse mais próxima. O surto também obrigou o Collège a fechar novamente por um período — mas dessa vez Montaigne provavelmente já seguira em frente. Ele deixou a escola em algum momento por volta de 1548, pronto para dar início à nova fase de sua jovem vida. Segue-se então, até 1557, um longo período no qual não há certeza sobre o que ele fazia. Pode ser que tenha retornado à propriedade. Pode ter sido mandado para uma academia, uma espécie de colégio de aperfeiçoamento no qual os rapazes aprendiam as nobres artes da equitação, do duelo, da caça, da heráldica, do canto e da dança. (Neste caso, Montaigne só terá se empenhado nas aulas de equitação: era a única dessas práticas na qual ele mais tarde se diria perito.) Em determinado momento, ele também deve ter estudado Direito. Chegou à idade adulta com tudo de que precisava para se tornar um bem-sucedido jovem seigneur, e, apesar do desprazer pela experiência,

munido de um útil conjunto de habilidades e vivências adquirido na escola. Entre elas destacava-se uma descoberta que teria encantado o pai: a dos livros e dos mundos que lhe descortinavam — mundos que iam muito além dos vinhedos de Guyenne e do tédio de um internato do século XVI.

4. P. Como viver? R. Leia muito, esqueça quase tudo que lê e raciocine com lentidão LENDO

O

atento estudo gramatical de Cícero e Horácio quase matou no nascedouro o interesse de Montaigne pela literatura. Mas alguns dos professores da escola ajudaram a mantê-lo vivo, sobretudo eximindo-se de confiscar livros mais interessantes das mãos do menino, quando o apanhavam lendo-os, e talvez até tratando de lhe encaminhar alguns outros — fazendo-o com a devida discrição, para que ele pudesse desfrutar dessas leituras sem deixar de se sentir um rebelde. Um texto não recomendado que Montaigne descobriu por conta própria aos 7 ou 8 anos, e que mudou sua vida, foi Metamorfoses de Ovídio. Essa caótica cornucópia de histórias sobre transformações milagrosas entre antigos deuses e mortais era o que havia no Renascimento de mais próximo de uma coletânea de contos de fada. Cheia de horrores e maravilhas, como os contos de Grimm ou Andersen, e muito diferente dos textos escolares, era o tipo de leitura capaz de capturar a imaginação de um menino no século XVI, deixando-o de olhos arregalados e agarrando com avidez o seu volume. Em Ovídio, as pessoas mudam. Transformam-se em árvores, animais, estrelas, corpos aquáticos ou vozes desencarnadas. Trocam de sexo, tornam-se lobisomens. Uma mulher chamada Scylla entra num lago envenenado e vê seus próprios membros se transformarem em monstros

de formas caninas dos quais não pode se livrar, pois os monstros são ela mesma. O caçador Actéon transforma-se num veado, sendo caçado por seus próprios cães de caça. Ícaro voa tão alto que é queimado pelo sol. Um rei e uma rainha são transformados em duas montanhas. A ninfa Sálmacis mergulha num lago em que o belo Hermafroditos se banha e o envolve como uma lula agarrando sua presa, até que sua carne se dissolve na dele e os dois se tornam uma só pessoa, metade macho, metade fêmea. Uma vez despertado o gosto por esse tipo de coisa, Montaigne passou a percorrer outros livros igualmente cheios de boas histórias: a Eneida, de Virgílio, e depois Terêncio, Plauto e várias comédias italianas modernas. Desafiando as práticas escolares, ele aprendeu a associar a leitura ao prazer. Foi a única coisa positiva que extraiu do período lá passado. (“Mas apesar de tudo isso”, acrescenta Montaigne, “ainda era a escola”.) Muitas de suas primeiras descobertas haveriam de acompanhá-lo pelo resto da vida. Embora o impacto inicial de Metamorfoses acabasse por ceder, ele encheu Os ensaios de histórias tiradas delas e viria a emular o estilo de Ovídio, passando de um tema a outro sem qualquer introdução nem ordem aparente. Virgílio também continuou sendo um de seus autores favoritos, embora o Montaigne da maturidade se sentisse no direito de considerar que certos trechos da Eneida poderiam ser “um pouco melhorados”. Como gostava de saber o que as pessoas realmente faziam, e não o que alguém imaginasse que elas podiam fazer, a preferência de Montaigne logo se transferiu dos poetas para os historiadores e biógrafos. Era nas histórias da vida real, dizia, que se podia encontrar a natureza humana em toda a sua complexidade. Tomava-se conhecimento, assim, da “diversidade e verdade” de um

homem, bem como da “variedade das maneiras como ele se forma e dos acidentes que o ameaçam”. Entre os historiadores, gostava sobretudo de Tácito, comentando certa vez que acabara de ler sua História de cabo a rabo, sem interrupção. Ele apreciava a maneira como Tácito tratava dos acontecimentos da vida pública do ponto de vista dos “comportamentos e tendências particulares”, tendo-o marcado em especial o fato de o historiador ter vivido um período “estranho e extremo”, exatamente como ele. Na verdade, escreveu, referindo-se a Tácito, “muitas vezes se poderia dizer que somos nós que ele descreve”. No caso dos biógrafos, Montaigne gostava dos que iam além dos acontecimentos exteriores de uma vida, tentando reconstituir o mundo interior de uma pessoa com base nesses dados. Nesse sentido, ninguém superava seu escritor favorito: o biógrafo grego Plutarco, que viveu aproximadamente entre 46 e 120 d.C. e que, em seu vasto volume Vidas, apresentava narrativas sobre gregos e romanos notáveis em pares temáticos. Plutarco representava para Montaigne o que Montaigne representaria para muitos leitores de épocas posteriores: um modelo a ser seguido, um verdadeiro baú de tesouro repleto de ideias, citações e anedotas a serem saqueadas. “Ele é tão universal e tão pleno que a todo momento, por mais excêntrico que seja o tema escolhido, consegue se imiscuir no nosso trabalho.” A verdade desta última afirmação é inegável: várias seções de Os ensaios são decalques de Plutarco, praticamente inalterados. Ninguém considerava que se tratasse de plágio: esse tipo de imitação dos grandes autores era na época considerado uma excelente prática. Além disso, Montaigne cuidava de alterar sutilmente o que tomava de empréstimo, no mínimo

estabelecendo um contexto diferente e tratando de cercá-lo de ambivalências. Ele gostava da maneira como Plutarco compunha seus textos salpicando-os de imagens, conversas, pessoas, animais e objetos de todos os tipos, em vez de tentar dispor friamente abstrações e argumentos. Sua escrita está cheia de coisas, assinalava Montaigne. Quando quer nos dizer que o segredo de viver bem consiste em extrair o melhor de qualquer situação, Plutarco conta a história de um homem que atirou uma pedra em seu cão, errou o alvo, atingiu a sogra e exclamou: “Pensando bem, isso não é nada mau!” Ou então, querendo nos mostrar que tendemos a esquecer as boas coisas da vida, obcecados com as ruins, escreve sobre as moscas que pousam num espelho e deslizam na superfície lisa, incapazes de se fixar até que deparam com uma área mais áspera. Plutarco não se preocupa com conclusões, mas lança sementes das quais podem brotar mundos inteiros de investigação. Aponta as direções que podemos tomar, se quisermos; mas não nos conduz, cabendo a nós segui-lo ou não. Montaigne também gostava da forte emanação da personalidade de Plutarco que podia ser sentida em sua obra: “Creio conhecê-lo até na própria alma.” Era isto que Montaigne buscava num livro, exatamente o que seus leitores mais tarde buscariam nos seus: a sensação de fazer contato com alguém através dos séculos. Lendo Plutarco, ele se esquecia da defasagem cronológica que os separava — muito maior que a defasagem entre Montaigne e nós. Não importa, escreveu, se uma pessoa que amamos está morta há 1.500 anos ou, como seu pai na época, há 18. Ambas estão igualmente distantes; ambas estão igualmente próximas.

Essa aproximação entre os autores favoritos e o próprio pai diz muito da maneira como Montaigne lia: ele encarava os livros como se fossem pessoas, recebendo-os em sua família. O menino rebelde que lia Ovídio chegaria um dia a reunir uma biblioteca de aproximadamente mil volumes: um bom tamanho, mas não uma acumulação sem critério. Alguns livros foram herdados de seu amigo La Boétie; outros foram adquiridos por ele mesmo. Montaigne colecionava sem se preocupar com qualquer sistematização nem levar em conta a beleza das encadernações ou a raridade dos volumes. Jamais seria capaz de repetir o erro do pai, que tinha os livros ou seus autores como objetos de fetiche. Não poderíamos imaginá-lo beijando os volumes como se fossem relíquias sagradas, como costumavam fazer, segundo se diz, Erasmo e o poeta Petrarca, ou vestindo suas melhores roupas para lê-los, como Maquiavel, que escreveu: “Dispo-me de minhas roupas sujas e suadas do dia a dia de trabalho e visto túnicas cortesãs e palacianas, e nessa indumentária mais compenetrada entro nos palácios dos antigos e sou por eles recebido.” Montaigne teria achado isto ridículo. Preferia entender-se com os antigos em tom de camaradagem, chegando às vezes a provocá-los, como nos trechos em que zomba de Cícero por sua pretensão ou dá a entender que Virgílio podia ter-se esforçado mais. Esforço era precisamente o que ele alegava nunca precisar fazer, fosse lendo ou escrevendo. “Vou percorrendo um livro aqui, outro ali”, escreveu, “sem ordem nem plano, a partir de fragmentos desconexos”. Podia mostrar-se decididamente contrariado se achasse que alguém podia suspeitá-lo de diligente erudição. Certa vez, percebendo-se escrever que os livros oferecem consolo, tratou rapidamente de acrescentar: “Na verdade, praticamente não faço deles mais uso do que aqueles que nem os

conhecem.” E foi capaz de começar assim uma frase: “Nós, que pouco contato temos com os livros...” Sua regra básica em matéria de leitura foi sempre aquela que aprendera com Ovídio: buscar o prazer. “Se encontro dificuldades na leitura”, escreveu, “não as fico remoendo; simplesmente as deixo estar. Nada faço sem alegria”. Na verdade, ele às vezes trabalhava duro, mas só quando achava que o trabalho valia a pena. Chegaram até nós anotações manuscritas de Montaigne em alguns livros de sua coleção, particularmente um exemplar de Da natureza das coisas, de Lucrécio — com toda a evidência, um texto que mereceu sua detida atenção. Idiossincrático e intelectualmente ousado, é precisamente o tipo de livro que poderíamos imaginar absorvendo tanto Montaigne. Definir-se como um preguiçoso, percorrendo algumas páginas para em seguida descartar o livro com um bocejo, era algo que convinha a Montaigne. Estava de acordo com o clima de diletantismo que queria evocar em seus textos. Como evidencia o exemplar de Lucrécio, contudo, a verdade devia ser mais complexa. Mas não resta dúvida de que efetivamente deixava de lado o que lhe causasse tédio: afinal, assim é que havia sido educado. Pierre ensinou-lhe que tudo devia ser tratado com “delicadeza e liberdade, sem pressão nem rigorismo”. Montaigne transformou a recomendação num princípio de vida. MONTAIGNE, LENTO E ESQUECIDO

Sempre que folheava as páginas de um livro, Montaigne rapidamente esquecia o que havia lido, segundo afirmava. “A memória é uma ferramenta maravilhosamente útil, e sem ela o julgamento encontra dificuldade em seu trabalho”,

escreveu, para em seguida acrescentar: “Sou totalmente desprovido dela.” Nenhum homem tem menos o que dizer sobre a memória. Pois praticamente não identifico traços dela em mim e não creio que haja no mundo alguma mais monstruosamente deficiente. Ele reconhecia que se tratava de um inconveniente. Era desagradável deixar escapar as ideias mais interessantes simplesmente porque lhe ocorriam quando estava cavalgando, sem a possibilidade de anotá-las. Também seria interessante poder lembrar-se melhor dos sonhos. Citando Terêncio, ele escrevia: “Estou cheio de rachaduras, vazando por todos os lados.” Montaigne costumava sair em defesa dos que enfrentavam problemas de memória. Sentia “indignação” e “um ressentimento pessoal” ao ler, por exemplo, sobre Lincestes, obrigado a discursar perante todo um exército para se desculpar pela acusação de ter conspirado contra Alexandre, o Grande. Lincestes memorizou uma fala, mas ao tentar proferi-la lembrou-se apenas de algumas palavras, ficando confuso e esquecendo o resto. Enquanto gaguejava e se perdia em evasivas, um grupo próximo de soldados perdeu a paciência e o atravessou com suas lanças. Eles interpretaram seu tartamudeio como sinal de culpa. “O raciocínio certamente fazia sentido!”, exclamou Montaigne. O episódio servia apenas para provar que, sob pressão, é provável que uma memória sobrecarregada se assuste com a própria carga como um cavalo em pânico, deixando tudo desabar. Mesmo que não fosse uma questão de vida ou morte, decorar um discurso não era necessariamente uma boa ideia. Uma fala espontânea geralmente é mais agradável de

se ouvir. Quando tinha de falar em público, Montaigne tentava mostrar-se relaxado, recorrendo a “gestos espontâneos e impremeditados, como que suscitados pela ocasião”. Cuidava especialmente de não anunciar uma sequência de itens (“Vou agora tratar de seis possíveis abordagens...”), pois seria ao mesmo tempo tedioso e arriscado: havia a probabilidade de esquecer algum ou passar do número estabelecido. Às vezes a própria importância ou interesse em determinada informação bastava para expulsá-la de sua mente. Certa vez, tendo a sorte de encontrar um grupo de indígenas tupinambás trazidos do Brasil por colonizadores franceses, ele prestou muita atenção às respostas quando lhes foi perguntado o que achavam da França. Eles responderam com três observações, todas fascinantes — porém, no momento de reproduzir a conversa em seu Os ensaios, Montaigne lembrou-se de apenas duas. Mas houve lapsos mais graves. Em carta publicada sobre a morte de La Boétie — o homem que mais amou na vida —, ele confessava que podia ter esquecido algumas das últimas ações e palavras de despedida do amigo. O fato de Montaigne admitir essas falhas ia frontalmente de encontro ao ideal renascentista da oratória e da retórica, segundo o qual ser capaz de pensar bem era o mesmo que ser capaz de falar bem, e falar bem dependia da lembrança do fluxo lógico, associada a citações e exemplos brilhantes para adorná-lo. Os apreciadores da arte da memória, a ars memoriae, aprendiam técnicas para encadear horas de retórica, chegando a transformá-las num verdadeiro programa de autoaperfeiçoamento filosófico. Isto não despertava qualquer interesse em Montaigne. Desde o início, certos leitores se recusavam a acreditar que a memória dele fosse tão ruim quanto dizia. Isto o

irritava de tal maneira que ele se queixou a respeito em Os ensaios. Mas os incrédulos continuavam assinalando, por exemplo, que ele aparentemente não tinha dificuldade para se lembrar de citações colhidas em suas leituras, tão numerosas em Os ensaios, como a de estar-se sentindo como um pote cheio de vazamentos. Ou bem seu vazamento não era tão grande quanto dizia, ou então ele era menos preguiçoso, pois, se não se lembrava das citações, devia tê-las anotado. Certas pessoas começaram a ficar indignadas com o assunto. Um quase contemporâneo seu, o poeta Dominique Baudier, declarou que as queixas de Montaigne sobre sua memória lhe causavam “náusea e riso” — uma reação sem dúvida radical. O filósofo seiscentista Malebranche achava que Montaigne estava mentindo, acusação muito séria contra um escritor que sempre deu tanta importância à própria honestidade. Mas a acusação de alguma forma procedia. Montaigne certamente se lembrava mais do que queria admitir. Não é incomum alguém achar que a memória o deixou na mão: faz parte da imperfeição própria à condição humana. Uma memória indisciplinada também é exatamente o que se poderia esperar da criação sem pressões de Montaigne e de sua aversão a se obrigar ao que quer que fosse. Sua aparente modéstia nessa questão também pode ser traduzida como uma forma sutil de se atribuir virtudes que considerava mais importantes. Uma delas, ironicamente, era a honestidade. Como dizia o velho ditado, más lembranças fazem maus mentirosos. Se Montaigne era esquecido demais para guardar as histórias na cabeça, tinha de contar a verdade. Além disso, a falta de memória fazia com que mantivesse seus discursos breves e suas anedotas, concisas, já que não conseguiria lembrar se fossem longas, e isto lhe permitia exercitar o bom-senso. As

pessoas de boa memória têm a mente abarrotada, mas seu cérebro felizmente era tão vazio que não interpunha obstáculos ao bom-senso. Finalmente, ele esquecia com facilidade qualquer afronta, e assim não se via assoberbado por ressentimentos. Em suma, ele se apresentava como alguém que flutuava pelo mundo num colchão de benevolente esvaziamento. A esfera em que a memória de Montaigne efetivamente funcionava bem, se ele quisesse, era a reconstituição de experiências pessoais como o acidente de equitação. Em vez de resumi-las em anedotas lineares e superficiais, ele era capaz de resgatar os sentimentos íntimos — não perfeitamente, pois o fluxo heraclitiano o estava sempre conduzindo, mas com muita precisão. O psicólogo oitocentista Dugald Stewart especulava que a falta de controle de Montaigne sobre a memória permitia-lhe sair-se melhor em tarefas similares. Montaigne sintonizava com o tipo de memória “involuntária” que um dia deixaria Proust fascinado: aqueles laivos do passado que inesperadamente irrompem no presente, talvez em reação a um gosto ou cheiro há muito esquecido. Esses momentos só parecem possíveis se estiverem cercados de um oceano de esquecimento, além de um estado de espírito propício e de suficiente tempo de lazer. Montaigne certamente não gostava de fazer nada com tensão e insistência. “Tenho de solicitá-la de maneira relaxada”, escreveu, referindo-se à memória. “Ela me atende ao seu próprio tempo, e não ao meu.” Qualquer tentativa de resgatar algo de imediato servia apenas para mergulhar ainda mais na sombra o que buscava. Em sentido inverso, observava ele, bastava tentar conscientemente esquecer um incidente para que ele se fixasse na memória.

“Tudo aquilo que faço com naturalidade e facilidade”, escreveu, “já não posso fazer se me decido a fazê-lo por estrita determinação”. A autorização para que a memória seguisse o próprio caminho fazia parte de sua filosofia de permitir que a natureza governasse seus atos. Na infância, o resultado disso foi que ele muitas vezes parecia preguiçoso e imprestável, e sob muitos aspectos provavelmente o era. Não obstante os frequentes esforços do pai no sentido de motivá-lo, escreveu, ele se revelava “tão indolente, relaxado e pesado que eles não conseguiam me livrar da preguiça, nem mesmo para brincar”. Em sua própria avaliação, ele não era apenas preguiçoso, mas lento de entendimento. Sua inteligência não era capaz de penetrar a mais leve nuvem: “Não existe sutileza tão transparente que não me deixe aturdido. Dos jogos em que a mente tem um papel a desempenhar — xadrez, cartas e outros —, compreendo apenas os mais simples rudimentos.” Ele sofria de “compreensão vagarosa”, “imaginação fraca” e “lentidão mental”, tendências que não eram aliviadas por sua falta de memória. Todas as suas faculdades se embotavam ao mesmo tempo, num leve ronco: ele faz com que seu cérebro pareça um chá das cinco em que todos os convidados fossem o ratinho sonolento de Alice no país das maravilhas. Também neste caso, contudo, havia vantagens. Uma vez tendo ele entendido alguma coisa, era para valer. Mesmo se referindo à infância, dizia ele: “O que eu via, via bem.” Além disso, ele usava deliberadamente essa relativa inércia para ocultar “ideias ousadas” e opiniões independentes. Sua aparente modéstia o autorizava a dizer-se imbuído de algo mais importante que a agilidade mental: a perspicácia. Montaigne seria uma boa referência para o moderno Movimento Devagar, que, originado no fim no século XX,

aos poucos se foi disseminando e se transformou quase num culto. Como Montaigne, seus seguidores fazem da lentidão uma espécie de princípio moral. Seu texto fundador é o romance The Discovery of Slowness (A descoberta da lentidão), de Sten Nadolny, que conta a vida do explorador do Ártico John Franklin, cujo ritmo natural de vida e pensamento é descrito como o de um velho preguiçoso depois de uma longa massagem e de um cachimbo de ópio. Na infância, Franklin é alvo de zombaria, mas ao chegar ao extremo Norte ele encontra o ambiente perfeitamente adequado a seu temperamento: um lugar onde todo mundo faz as coisas calmamente, onde pouco acontece e onde é importante parar para pensar antes de se precipitar na ação. Muito depois de publicado na Alemanha em 1983, The Discovery of Slowness continuava nas listas de best-sellers, sendo propagandeado até como um manual alternativo de administração. Enquanto isso, surgia na Itália um desdobramento culinário do Movimento Devagar, o slow food, que teve origem como protesto contra as filiais do McDonald’s em Roma e acabou se transformando em toda uma filosofia do bem viver. Montaigne teria entendido tudo isto perfeitamente. Para ele, a lentidão era o caminho para a sabedoria, para um espírito de moderação que servia de anteparo aos excessos e ao fanatismo que dominavam a França na época. Felizmente ele se sentia imune a ambos, isento da tendência a se deixar levar pelos entusiasmos aos quais os outros pareciam propensos. “Estou quase sempre no devido lugar, como os corpos pesados e inertes”, escreveu. Uma vez bem-assentado, era fácil para ele resistir à intimidação, pois a natureza o havia feito “incapaz de se submeter à força e à violência”.

Como quase sempre acontece com Montaigne, temos aí apenas parte da história. Na juventude, ele podia, sim, perder as estribeiras, e era um homem inquieto, afirmando em Os ensaios: “Não sei qual dos dois, minha mente ou meu corpo, tem encontrado mais dificuldade para se manter num mesmo lugar.” Talvez ele só se fizesse de preguiçoso quando convinha. “Esqueça quase tudo que aprendeu” e “Seja mentalmente lento” viriam a ser duas das melhores respostas de Montaigne à pergunta sobre como melhor viver. Graças a elas, ele se sentia livre para pensar com sabedoria, e não com loquacidade e precipitação; elas lhe permitiam esquivar-se às ideias fanáticas e às tolas ilusões em que as outras pessoas se viam apanhadas; e também lhe permitiam seguir seus pensamentos aonde quer que o levassem — que era o que ele realmente queria fazer. A lentidão mental e o esquecimento podiam ser cultivados, mas Montaigne considerava haver tido a sorte de tê-los inatos. Sua tendência para fazer as coisas do seu jeito próprio tornou-se evidente desde cedo, vindo acompanhada de um surpreendente grau de autoconfiança. “Lembro-me de que, desde a mais tenra idade, as pessoas observavam em mim uma postura corporal indefinível e certos gestos que davam conta de um orgulho vão e estúpido”, escreveu. A vaidade era superficial: ele não estava profundamente impregnado dela, apenas levemente “salpicado”. Mas o espírito de independência o mantinha sereno. Sempre preparado para dizer o que pensava, o jovem Montaigne também estava preparado para fazer os outros esperarem pelo que tinha a dizer. O JOVEM MONTAIGNE EM TEMPOS CONTURBADOS

Os ares de impassível superioridade de Montaigne eram mais difíceis de sustentar por causa de sua baixa estatura física, algo de que se queixava constantemente. Era diferente para as mulheres, escreveu ele. Outras formas de boa apresentação podiam compensá-lo. No caso dos homens, a estatura era “a única beleza”, e era precisamente a qualidade que lhe faltava. Onde reside a pequenez, nem a amplitude ou o contorno da fronte, nem a clareza ou a suavidade dos olhos, nem a forma regular no nariz, o pequeno tamanho dos ouvidos e da boca, a regularidade e o branco dos dentes, a macia espessura de uma barba tão morena como a casca de um castanheiro, o cabelo encaracolado, o contorno conveniente da cabeça, a frescura da cor, uma agradável expressão facial, um corpo inodoro ou a justa proporção dos membros podem tornar formoso um homem. Nem os empregados de Montaigne eram mais baixos que ele, e quando viajava ou visitava a corte real com um séquito de criados ficava muito contrariado ao lhe perguntarem: “Onde está o senhor Montaigne?” Mas não havia muito o que fazer, à parte estar montado sempre que possível — seu truque favorito. Uma visita à torre de Montaigne parece indicar que ele dizia a verdade: os portais têm apenas em torno de um metro e meio de altura. Na época, a altura média das pessoas era menor, e as portas foram construídas antes que Montaigne lá vivesse, mas parece evidente que ele não batia com a cabeça com suficiente frequência para se preocupar em elevar os portais. Naturalmente, seria difícil dizer se o fator decisivo, aqui, foi sua autoproclamada pequenez ou sua autoproclamada preguiça.

Ele podia ser baixinho, mas nos informa que tinha uma constituição forte e sólida, movimentando-se com elegância e não raro levando consigo uma bengala, na qual se apoiava “com certa afetação”. Mais para o fim da vida, adotou o hábito do pai de se vestir com austeridade em preto e branco, porém na juventude seguia a moda e se trajava com desembaraço e estilo, com “uma capa usada como se fosse um xale, o capuz sobre o ombro, meias altas negligentemente largadas”. O retrato mais vívido do jovem Montaigne que chegou até nós pode ser encontrado num poema que Étienne de La Boétie, seu amigo ligeiramente mais velho, lhe dedicou. Nele, vemos o que havia de perturbador em Montaigne e também o que o tornava atraente. La Boétie o achava brilhante e altamente promissor, mas correndo o risco de desperdiçar o próprio talento. Precisava ser orientado por um mentor mais tranquilo e sábio — papel ao qual La Boétie se adequava —, mas tinha uma teimosa tendência a rejeitar essa orientação quando lhe era oferecida. Mostrava-se por demais suscetível a belas jovens e muito satisfeito de si. “Minha casa proporciona amplas riquezas, e minha idade, amplos poderes”, diz Montaigne de maneira autocomplacente no poema de La Boétie. “E com efeito uma doce jovem está sorrindo para mim.” La Boétie o compara a um belo Alcebíades, aquinhoado pela sorte, ou um Hércules, capaz de feitos heroicos mas excessivamente hesitante diante das encruzilhadas morais. Seus maiores encantos eram também seus maiores defeitos. Quando esse poema foi escrito, Montaigne deixara muito para trás seus dias de escola, fazendo já uma carreira no parlement de Bordeaux. Tendo desaparecido do escrutínio biográfico durante alguns anos depois de concluir os

estudos no Collège, ele voltou a aparecer na cidade como jovem magistrado. Para isto, deve ter estudado Direito. É improvável que o tenha feito em Bordeaux; as maiores probabilidades são Paris e Toulouse. Talvez ele tenha morado nas duas. Certas observações em Os ensaios deixam claro que ele conhecia bem Toulouse, e também tinha muito a dizer sobre Paris. Conta-nos que a cidade havia conquistado seu coração desde a infância — referindo-se na verdade a qualquer etapa da juventude, até aproximadamente os 25 anos. “Eu a amo com ternura”, afirma, “até nas manchas e verrugas”. Paris era o único lugar em que ele não se importava de se sentir francês, esquecendo seu orgulho local de gascão. Era uma grande cidade sob todos os aspectos: “Grande na população, grande na excelência da localização, mas acima de tudo grande e incomparável na variedade e diversidade das boas coisas da vida.” Onde quer que Montaigne tenha feito sua formação, o fato é que ela cumpriu seu papel, permitindo-lhe deslanchar na carreira jurídica e política que desde o início pode ter sido imaginada para ele. Os estudos levaram 13 anos, período que costuma ser encolhido nas biografias, pois é irregularmente documentado, mas que abrange anos muito importantes, começando pouco antes de Montaigne completar 24 anos e indo até seu trigésimo sétimo ano de vida. Quando se retirou para a vida no campo, cultivando vinhas e escrevendo em sua torre, ele já acumulara toda uma experiência no serviço público, o que ainda era recente em seu espírito ao redigir os primeiros ensaios. No momento de escrever os mais tardios, ele já assumira responsabilidades ainda mais pesadas. O primeiro cargo de Montaigne não foi em Bordeaux, mas numa cidadezinha próxima, Périgueux, a nordeste da

propriedade da família. Seu tribunal fora fundado recentemente, em 1554, e seria abolido pouco depois, em 1557. Seu principal objetivo fora levantar dinheiro, pois os organismos públicos estavam sempre de caixa vazio. A abolição ocorreu porque o parlement de Bordeaux, mais poderoso, levantou objeção à existência de outro em Périgueux, e mais enfaticamente ainda ao fato de seus funcionários serem mais bem-remunerados. Montaigne foi para Périgueux no fim de 1556, e o tribunal sobreviveu apenas o suficiente para dar início à sua carreira. No fim das contas, porém, contribuiu para acelerar sua carreira política em Bordeaux, pois, ao ser fechado o tribunal de Périgueux, muitos funcionários foram transferidos para lá. Entre eles estava Montaigne: seu nome aparece na lista. Eles não foram propriamente recebidos de braços abertos, mas os magistrados de Bordeaux não tinham alternativa. Trataram de se vingar dificultando ao máximo a vida dos que vinham de Périgueux, destinandolhes um espaço apertado para trabalhar e privando-os dos serviços dos oficiais de justiça. O ressentimento é compreensível: os transferidos de Périgueux continuavam recebendo salários mais altos. Eles seriam afinal reduzidos em agosto de 1561, o que por sua vez deixou insatisfeito o contingente de Périgueux. Embora ainda estivesse no início da carreira, aos 28 anos Montaigne foi escolhido para interpor seu recurso no tribunal. Seu discurso nessa ocasião, reproduzido nos registros de Bordeaux, assinala sua primeira aparição. Ele certamente terá se valido de seus recém-desenvolvidos recursos de oratória pública — na base da espontaneidade e da improvisação —, mas não funcionou. A decisão do parlement foi contrária aos demandantes, e seus salários acabaram sendo reduzidos.

Apesar das desarmonias da política administrativa, a vida no parlement  de Bordeaux devia ser mais interessante que em Périgueux. Seu parlement era um dos oito principais da França, além de um dos mais poderosos, mesmo com o restabelecimento apenas parcial dos privilégios. Tinha a seu cargo a maior parte das leis locais e da administração cívica, podendo vetar decretos reais e opor objeções formais ao rei sempre que ele editava uma lei que não fosse do seu agrado — o que acontecia com frequência nesses tempos conturbados. Inicialmente, a vida cotidiana de Montaigne envolvia mais o direito do que a política. Trabalhava sobretudo para a Chambre des Enquêtes, o tribunal de investigações, onde sua tarefa consistia em avaliar os casos civis complexos demais para serem resolvidos imediatamente pelos juízes do tribunal principal, a Grand’ Chambre. Ele examinava os detalhes, tratava de resumi-los e entregava uma interpretação escrita aos conselheiros. Não cabia a ele julgar, apenas resumir os elementos em jogo de maneira inteligente e clara, expondo o ponto de vista de cada uma das partes. Terá sido aí, talvez, que começou a desenvolver sua sensibilidade para a multiplicidade de perspectivas em cada situação humana, algo que percorre Os ensaios como uma artéria. Descrito assim, o direito do século XVI parece um trabalho interessante de ser buscado, mas o fato é que era obstruído por excesso de detalhes. Os argumentos legais deviam basear-se em fontes escritas, enquadradas em categorias predeterminadas. Os fatos relativos a cada caso eram muitas vezes secundários em relação aos códigos, estatutos, costumes documentados, textos de jurisprudência e acima de tudo comentários e anotações — volumes e volumes deles. Até mesmo os casos mais simples

requeriam análise de uma verborragia aparentemente sem fim, em geral por parte de um assoberbado iniciante como Montaigne. Eram os comentários que ele mais detestava, como detestava qualquer literatura de segunda categoria: É mais trabalhoso interpretar as interpretações do que interpretar as coisas, e existem mais livros sobre os livros do que sobre qualquer outro tema: nada mais fazemos senão redigir anotações uns sobre os outros. Rabelais tinha satirizado a montanha de documentos que se acumulava em cada caso jurídico: seu personagem, o juiz Cabresto de Ganso, passava horas lendo e ponderando para no fim das contas tomar suas decisões jogando dados, método que considerava tão adequado quanto qualquer outro. Muitos autores também criticavam a generalizada corrupção entre os advogados. De maneira geral, a justiça era considerada tão injusta que, como se queixava Montaigne, as pessoas comuns tratavam de evitá-la, em vez de recorrer a ela. Ele relatava um incidente local no qual um grupo de camponeses encontrara um homem apunhalado e sangrando no caminho. Ele implorou que lhe dessem água e o ajudassem a se levantar, mas eles saíram correndo, temendo ser acusados do ataque caso o tocassem. Montaigne foi incumbido de lhes falar depois que foram localizados. “Que poderia dizer-lhes?”, escreveu. Eles tinham motivos para ficar com medo. Em outro caso por ele mencionado, um bando de assassinos confessou um homicídio pelo qual alguém já havia sido julgado e estava para ser executado. Caberia esperar que a execução fosse suspensa? Não, decidiu o tribunal: a anulação de um julgamento poderia representar um perigoso precedente.

Montaigne não era o único a defender uma reforma do sistema jurídico no século XVI. Muitas de suas críticas faziam eco às que eram feitas na mesma época pelo sábio chanceler da França, Michel de L’Hôpital, numa campanha que resultou em efetivos aperfeiçoamentos. Mas Montaigne também arrolava argumentos mais originais e de maior alcance. Para ele, o maior problema do sistema jurídico era não levar em consideração uma realidade fundamental da condição humana: as pessoas são falíveis. Esperava-se sempre um veredito final, e no entanto, por definição, muitas vezes era impossível alcançar uma decisão com um mínimo grau de certeza. As provas muitas vezes eram falhas ou inadequadas, e, para complicar as coisas, os juízes cometiam erros pessoais. Nenhum juiz poderia sinceramente considerar perfeitas todas as suas decisões: eles seguiam mais as próprias inclinações que as provas, e não raro a boa ou má digestão do almoço também influenciava. Era algo natural e portanto inevitável, mas pelo menos um juiz mais sábio podia adquirir consciência da própria falibilidade e levá-la em consideração. Podia aprender a ir mais devagar, tomando cuidado com as reações iniciais e examinando mais atentamente as coisas. A única coisa boa no sistema jurídico era o fato de tornar tão óbvias as falhas humanas: uma boa lição filosófica. Se os advogados estavam sujeitos a errar, o mesmo se podia dizer das leis que produziam, já que eram concebidas por seres humanos. Também este era um fato que só podia ser reconhecido e acomodado, mas não alterado. Esse desvio na direção do autoquestionamento, da autoconsciência e do reconhecimento da imperfeição tornou-se uma marca do pensamento de Montaigne em todas as esferas, e não apenas no direito. Não parece

absurdo localizar sua centelha inicial naqueles primeiros anos de experiência em Bordeaux. Fora do tribunal, o trabalho de Montaigne se desenrolava em outro campo de atividades calculado para deixar claro a qualquer um como as questões humanas são limitadas e falíveis: a política. Ele costumava ser mandado em missões a outras cidades, entre elas, em várias ocasiões, Paris, que ficava a aproximadamente uma semana de viagem, devendo entrar em contato com o parlement da capital e às vezes com a corte real. Esta, em particular, era um verdadeiro curso sobre a natureza humana. A primeira corte com a qual Montaigne teve contato foi a de Henrique II. Deve ter encontrado o rei pessoalmente, pois se queixou de que Henrique “nunca chamava pelo nome certo um cavalheiro dessa parte da Gasconha” — presumivelmente ele mesmo, numa época em que ainda usava o nome regional de Eyquem. Henrique II nada tinha a ver com seu brilhante pai Francisco I, a quem sucedera no trono em 1547. Carecia da percepção política de Francisco e recorria com frequência aos assessores, entre eles uma amante já avançada em idade, Diane de Poitiers, e uma esposa poderosa, Catarina de Médici. A fraqueza de Henrique II foi em parte responsável pelos problemas posteriores da França, pois as facções rivais perceberam a oportunidade e começaram uma luta pelo poder que haveria de dominar o país durante décadas. A disputa estava centrada em três famílias: os Guise, os Montmorency e os Bourbon. Suas ambições particulares compunham uma venenosa mistura com as tensões religiosas que já se agravavam na França, assim como em boa parte da Europa. Em questões religiosas, Henrique II era mais repressor que Francisco, que só se decidira a reprimir a heresia depois de uma agressiva campanha de propaganda dos

protestantes em 1534. O líder reformista francês João Calvino fugiu para Genebra, estabelecendo ali uma espécie de quartel-general revolucionário no exílio. O calvinismo, e não o mais moderado luteranismo do início da Reforma, é que se tornou então a principal forma de protestantismo na França. Ele representava uma efetiva ameaça à autoridade real e da Igreja. O calvinismo é hoje uma religião minoritária, mas sua ideologia guarda impressionante força. Ela tem como ponto de partida um princípio conhecido como “absoluta depravação”, segundo o qual os seres humanos não têm virtudes próprias, dependendo da graça de Deus para tudo, inclusive a própria salvação e até a decisão de converter-se ao calvinismo. A responsabilidade pessoal não tem grande importância, pois tudo é predeterminado, não sendo possível qualquer negociação. A única atitude possível diante de tal Deus é a completa submissão. Em troca, Deus concede a Seus seguidores uma força invencível: o indivíduo abre mão da vontade pessoal mas vem a ser escorado por todo o peso do universo de Deus. Isto não significa que pode cruzar os braços e se omitir. Enquanto os luteranos tendem a se manter distantes das questões do mundo, vivendo em função da consciência pessoal na esfera privada, os calvinistas devem engajar-se na política, trabalhando pela manifestação da vontade de Deus na Terra. No século XVI, assim, os calvinistas se formavam numa academia especial na Suíça, sendo então enviados à França de posse de argumentos e publicações proibidas para converter os nativos e desestabilizar o Estado. A certa altura da década de 1550, a designação “huguenote” passou a ser associada aos seguidores de Calvino, tanto na França quanto fora dela. A palavra provavelmente derivava de um ramo anterior de reformistas eLivross, os

“Eidgenossen” ou “confederados”. E ficou: os protestantes franceses assim se designavam, e o mesmo faziam seus inimigos em relação a eles. Inicialmente, a Igreja Católica reagira à ameaça protestante tentando reformar-se. Assim foi que Montaigne cresceu numa igreja mergulhada no exame de consciência e no autoquestionamento, atividades que as instituições religiosas não costumam abraçar com grande fervor. Enquanto se dava esse processo, contudo, forças mais militantes ganharam terreno. A ordem jesuíta, fundada por Ignacio López de Loyola em 1534, preparou-se para uma batalha de ideias contra o inimigo. Um movimento mais agressivo e menos intelectual surgiu na França na década de 1550, sendo genericamente conhecido pelo nome de “Ligas”. Seu objetivo não era vencer os heréticos com argumentos sofisticados, mas varrê-los da face da Terra à força. Eles e os calvinistas se enfrentavam sem a mais leve sombra de trégua no coração, autênticas imagens espelhadas do fanatismo. Os seguidores das Ligas se opunham a qualquer rei francês que manifestasse a mais leve tolerância em relação ao protestantismo; e essa oposição foi-se tornando mais forte com o passar das décadas. Henrique II deixava-se facilmente influenciar pelas pressões das Ligas, por isso introduziu severas leis contra a heresia e até uma nova câmara no parlement de Paris, para julgar crimes religiosos. A partir de julho de 1557, blasfemar contra os santos, publicar livros proibidos e pregar ilegalmente eram crimes passíveis de pena de morte. Entre uma e outra medida dessa natureza, todavia, Henrique mudava de estratégia e tentava aplacar as sensibilidades huguenotes, permitindo o culto protestante de forma limitada em certas áreas ou reduzindo novamente as

penalidades contra a heresia. Toda vez que o fazia, o lobby católico protestava, e ele voltava a investir na repressão. Assim, ia e vinha sem satisfazer ninguém. Nesse período, a França enfrentava outros problemas, entre eles uma inflação descontrolada que afetava sobretudo os pobres e beneficiava a aristocracia fundiária, a qual recebia aluguéis mais altos e com isto comprava cada vez mais propriedades — como aconteceu com várias gerações da família de Montaigne. Nas classes menos afortunadas, a crise econômica alimentava o extremismo. A humanidade atraíra toda essa miséria para o mundo com seus pecados e, portanto, precisava aplacar Deus seguindo a única verdadeira Igreja. Mas qual seria a verdadeira Igreja? Desse quadro de inquietação religiosa, econômica e política é que surgiriam as guerras civis, que dominaram a vida na França pela maior parte do resto do século, de 1562, quando Montaigne tinha 29 anos, a 1598, bem depois de sua morte. Antes da década de 1560, as aventuras militares na Itália e em outros países haviam permitido que a França liberasse suas tensões. Em abril de 1559, contudo, o tratado de Câteau Cambrésis pôs fim a várias dessas guerras externas de um só golpe. Acabando com os derivativos e enchendo o país de antigos soldados desempregados, em plena depressão econômica, a paz quase imediatamente provocou a deflagração de uma guerra muito pior. Os primeiros maus presságios ocorreram durante torneios de luta realizados para comemorar dois casamentos dinásticos ligados ao tratado de paz. O rei, que adorava esses torneios, teve um papel de destaque. Numa das justas, um adversário acidentalmente arrancou sua viseira com um pedaço de lança partida. Lascas de madeira feriram

o rosto do rei logo acima de um dos olhos. Ele foi socorrido e, depois de vários dias de cama, parecia recuperar-se, mas uma das lascas havia atingido o cérebro. No quarto dia, ele foi acometido de febre e em 10 de julho de 1559 viria a morrer. Os protestantes interpretaram a morte como uma maneira encontrada por Deus para dizer que Henrique II errara ao reprimir sua religião. Mas a morte de Henrique haveria de agravar, e não melhorar, as coisas para eles. Pelo trono passariam sucessivamente três de seus filhos: Francisco II, Carlos IX e Henrique III. Os dois primeiros eram menores, subindo ao trono respectivamente aos 15 e 10 anos de idade. Todos se mostraram fracos e dominados pela mãe, Catarina de Médici, e todos revelaram inépcia no trato do conflito religioso. Francisco II morreu de tuberculose logo depois, em 1560. Foi sucedido por Carlos IX, que reinaria até 1574. Nos primeiros anos, sua mãe governava como regente. Ela tentou encontrar um equilíbrio entre as facções religiosas e políticas, mas não teve muito êxito. Desse modo, a situação no início da década de 1560, durante a qual Montaigne fez sua carreira em Bordeaux, era marcada por uma coroa fraca, ganâncias rivais, dificuldades econômicas e crescentes tensões religiosas. Em dezembro de 1560, num discurso que traduzia o sentimento então generalizado, o chanceler Michel de L’Hôpital declarou: “É absurdo esperar paz, tranquilidade e amizade entre pessoas de convicções religiosas diferentes.” Apesar de desejado, seria um ideal inalcançável. O único caminho para a unidade política era a unidade religiosa. Como observou um teólogo espanhol, nenhuma república poderia ser bem governada se “todos tivessem o seu Deus como o único Deus verdadeiro (...) considerando cegos ou iludidos os outros indivíduos”. A maioria dos católicos consideraria isto

óbvio demais para merecer atenção. Até os protestantes tendiam a impor a unidade sempre que assumiam a direção de um Estado. Un roi, une foi, une loi, dizia o ditado: um rei, uma fé, uma lei. O ódio a qualquer um que ousasse sugerir uma alternativa intermediária era praticamente a única coisa com que todos os demais estavam de acordo. L’Hôpital e seus aliados não promoveram a tolerância ou a “diversidade”, em nenhum sentido moderno. Mas ele considerou melhor atrair de volta as ovelhas desgarradas tornando a Igreja Católica mais interessante, em vez de tentar se impor com ameaças. Sob sua influência, as leis contra a heresia foram de certa forma abrandadas no início da década de 1560. Um decreto de janeiro de 1562 autorizava aos protestantes o culto aberto fora das cidades, e em caráter privado no interior de suas muralhas. Tal como acontecera em anteriores tentativas de negociação, ninguém ficou satisfeito. Os católicos se sentiram traídos, enquanto os protestantes eram estimulados a se sentir no direito de exigir mais. Meses antes, o embaixador de Veneza escrevera sobre um “grande medo” que se disseminara pelo reino; pois agora ele se transformava numa sensação de iminente desastre. O gatilho foi disparado em 1º de março de 1562 na cidadezinha de Vassy, ou Wassy, na região da Champanhe, no nordeste. Quinhentos protestantes se reuniram para o culto num celeiro da cidade, o que era ilegal, pois essas assembleias só eram autorizadas fora das muralhas. O duque de Guise, líder católico radical, passava pela região com um grupo de soldados e foi informado da reunião. Marchou então em direção ao celeiro. Segundo relatos dos sobreviventes, ele permitiu que seus homens atacassem o celeiro aos gritos de “Matem todos!”.

A congregação de huguenotes reagiu: havia muito eles esperavam enfrentar problemas e estavam preparados para se defender. Forçaram os soldados a bater em retirada, entrincheiraram-se por trás da porta do celeiro e subiram por andaimes até o telhado para atirar nos homens de Guise pedras que haviam sido estocadas ali, em caso de necessidade. Os soldados dispararam seus arcabuzes e conseguiram entrar de novo no celeiro. Os protestantes agora fugiam para salvar suas vidas; muitos caíram do telhado ou foram abatidos a tiros na fuga. Cerca de trinta deles morreram, e mais de cem ficaram feridos. As consequências foram dramáticas. O líder protestante nacional, Luís I de Bourbon, príncipe de Condé, exortou os protestantes a se revoltarem para escapar de novos ataques. Muitos tomaram armas e, em reação, católicos fizeram o mesmo, sendo ambos os lados movidos antes pelo medo do que pelo ódio. Agindo em nome de Carlos IX, então com 9 anos, Catarina de Médici determinou uma investigação sobre os acontecimentos de Vassy, mas a coisa esmoreceu, como costuma acontecer com investigações do poder público, e àquela altura já era tarde demais. Líderes de ambos os lados convergiram para Paris com multidões de seguidores. Ao entrar na cidade, o duque de Guise cruzou com uma procissão de protestantes liderada por Condé, e os dois trocaram friamente um cumprimento com o copo da espada. Um observador, um advogado e amigo de Montaigne chamado Étienne Pasquier, comentou numa carta que depois do massacre de Vassy só se falava de guerra. “Se me fosse permitido analisar esses acontecimentos, eu lhe diria que foi o início de uma tragédia.” E ele estava certo. Os crescentes confrontos entre os dois lados transformaram-se em verdadeiras batalhas, que por sua vez evoluíram para a

primeira das guerras civis francesas. Ela foi selvagem mas breve, terminando no ano seguinte, quando o duque de Guise foi abatido a tiros, deixando os católicos temporariamente sem um líder e relutantemente dispostos a assinar um tratado. Mas ninguém tinha a sensação de uma resolução, e nenhum dos lados estava satisfeito. Uma segunda guerra seria desencadeada em 30 de setembro de 1567 por outro massacre, desta vez de protestantes sobre católicos, em Nîmes. As guerras costumam ser referidas no plural, mas também faz sentido encará-las como uma única guerra prolongada com interregnos de paz. Montaigne e seus contemporâneos muitas vezes se referiam às lutas que irrompiam como “distúrbios”. O consenso é de que elas foram oito, e pode ser interessante enumerá-las aqui, para entender até que ponto a vida de Montaigne foi condicionada pela guerra: Primeiro Distúrbio (1562-63). Começou com o massacre de protestantes em Vasy e viu seu fim com a Paz de Amboise. Segundo Distúrbio (1567-68). Começou com um massacre de católicos em Nîmes e viu seu fim com a Paz de Longjumeau. Terceiro Distúrbio (1568-70). Começou com novas leis contra os protestantes e viu seu fim com a Paz de SaintGermain. Quarto Distúrbio (1572-73). Começou com os massacres de protestantes no Dia de São Bartolomeu em Paris e outras cidades, e viu seu fim com a Paz de La Rochelle. Quinto Distúrbio (1574-76). Começou com combates em Poitou e Saintonge, e viu seu fim com a “Paz de Monsieur”.

Sexto Distúrbio (1576-77). Começou com leis antiprotestantes nos Estados Gerais de Blois e viu seu fim com a Paz de Poitiers. Sétimo Distúrbio (1579-80). Começou com a captura de La Fère, na Normandia, pelos protestantes, e viu seu fim com a Paz de Fleix. Oitavo Distúrbio (1585-98). De longe a mais prolongada e pior: começou com agitação das Ligas e viu seu fim com o Tratado de Vervins e o Edito de Nantes. Cada um deles seguia o padrão estabelecido pela primeira e a segunda guerras. Um período de paz era interrompido por um repentino massacre ou provocação. Seguiam-se batalhas, cercos e desgraça generalizada, até que o surgimento de sinais de fraqueza de um dos lados levava a um tratado de paz. Todos ficavam insatisfeitos, mas o acordo prevalecia até uma nova provocação — e assim o padrão ia se repetindo. Nem mesmo o último tratado agradou a todos. Pelo menos três facções se envolviam nos distúrbios, movidas pelo desejo de obter influência sobre o trono. Eram guerras de religião, como as que fermentavam em outros países da Europa no mesmo período, mas não deixavam de ser também guerras políticas. As guerras civis haviam sido possibilitadas, para começo de conversa, pelo fim de um conflito externo, e o início de outro acabaria por encerrá-las, depois que Henrique IV declarou guerra à Espanha em 1595. O efeito benéfico dessa decisão foi perfeitamente compreendido na época. Durante o último “distúrbio”, Montaigne observou que muitos desejavam algo assim. A violência precisava ser drenada, como o pus de uma infecção. Mas ele não estava tão certo da ética desse método: “Não creio que Deus

aprovasse uma iniciativa tão injusta quanto ferir e provocar briga com outros por nossa própria conveniência.” Mas era o que a França precisava e o que afinal conseguiu de Henrique IV, o primeiro rei inteligente que subia ao trono em muitos anos. Mas isto ainda estava muito distante na década de 1560, quando ninguém imaginava que o horror pudesse prolongarse tanto. Os anos de Montaigne no parlement abarcaram os três primeiros distúrbios; mesmo nos períodos de paz, havia muita tensão política. Ao terminar a terceira guerra, ele já tivera sua cota e estava para se retirar da vida pública. Até então, sua posição em Bordeaux o situava bem no centro dos acontecimentos, numa comunidade particularmente complexa. Bordeaux era uma cidade católica, mas cercada de territórios protestantes e com uma importante minoria protestante, que não hesitava em se entregar à profanação de imagens e outros atos de agressividade. Num confronto particularmente violento, na noite de 26 de junho de 1562 — meses depois do massacre de Vassy —, uma multidão de protestantes atacou na cidade o Château Trompette, bastião do poder governamental. A rebelião foi debelada, mas, como acontecera nas revoltas do imposto sobre o sal, a punição revelou-se pior que o crime. Para dar uma lição numa cidade que parecia incapaz de gerir os próprios negócios, o rei enviou um novo comandante militar chamado Blaise Monluc, ordenando-lhe que “pacificasse” a conturbada região. Monluc entendeu que “pacificação” significava “massacre generalizado”. Começou por enforcar grande número de protestantes sem julgamento ou mandar esquartejá-los. Depois de uma batalha na aldeia de Terraube, mandou matar e jogar tantos habitantes no poço que dava para tocar o alto da pilha com as mãos. Escrevendo suas

memórias anos depois, ele se recordaria de um líder rebelde que pessoalmente lhe implorou misericórdia depois de ser capturado por seus soldados. Monluc reagiu agarrando-o pelo pescoço e o atirando contra uma cruz de pedra com tanta violência que a pedra se partiu e o homem morreu. “Se não tivesse agido assim”, escreveria ele, “teria sido alvo de zombaria”. Em outro incidente, um capitão protestante que tinha servido sob as ordens de Monluc na Itália, muitos anos antes, esperava que o velho camarada lhe poupasse a vida em nome dos bons tempos. Pelo contrário, Monluc fez questão de mandar matá-lo imediatamente, explicando que o fez porque sabia que ele era corajoso: jamais deixaria de ser um inimigo perigoso. Era o tipo de cena que com frequência apareceria nos ensaios de Montaigne: uma pessoa pede misericórdia e a outra decide ou não concedêla. Montaigne ficava fascinado com a complexidade moral envolvida na questão. Mas que complexidade moral?, teria perguntado Monluc. Matar era invariavelmente a solução correta: “Um homem enforcado surte mais efeito que cem mortos em combate.” Tantas execuções eram levadas a cabo na região que começou a haver escassez de peças para a forca, passando os carpinteiros a receber mais encomendas de patíbulos, rodas para esquartejamento e estacas para fogueiras. Quando já não havia mais patíbulos, Monluc começou a usar árvores, vangloriando-se de que o roteiro de suas viagens por Guyenne podia ser traçado, retrospectivamente, pelos corpos pendurados à beira das estradas. Ao chegar ao fim sua missão, diria ele, nada se mexia em toda a região. Os sobreviventes guardavam silêncio. Montaigne conheceu Monluc, embora principalmente mais tarde, e interessou-se mais por sua personalidade do que por seus feitos na vida pública — especialmente suas

carências como pai e o arrependimento que o atormentaria depois de perder um filho, morto na flor da juventude. Monluc confessou a Montaigne que só tarde demais se dera conta de que sempre tinha tratado o menino com frieza, embora na realidade o amasse muito. Isto se devia em parte ao fato de ter seguido uma lastimável prática na educação dos filhos, a de adotar uma atitude de frieza emocional no trato com eles. “O pobre menino só via em mim um semblante de reprovação e desdém”, diria Monluc. “Eu me forçava e me torturava para manter essa máscara absurda.” A menção da máscara faz sentido, pois em 1571 — mais ou menos na época em que Montaigne se retirou da vida pública — Monluc foi desfigurado por um tiro de arcabuz. Pelo resto da vida, ele não sairia de casa sem cobrir o rosto para esconder as cicatrizes. Podemos imaginar o efeito desconcertante de uma máscara por cima das feições inexpressivas, semelhantes a uma máscara, de um homem cruel em cujos olhos poucas pessoas tinham coragem de olhar. Ao longo da conturbada década de 1560, Montaigne ia com frequência a Paris resolver questões do parlement e aparentemente se manteve longe de casa por boa parte de 1562 e do início de 1563, embora aparecesse de volta em Bordeaux quase com a mesma facilidade de um moderno motorista de carro ou um passageiro de trem. Ele certamente estava na região em agosto de 1563, quando morreu seu amigo Étienne de La Boétie. E devia estar em Bordeaux em dezembro de 1563, pois nessa ocasião aconteceu um estranho incidente, que configura o registro mais digno de nota de Montaigne nos arquivos da cidade. No mês anterior, um extremista católico chamado François de Péruse d’Escars lançara um desafio direto ao presidente do parlement, o moderado Jacques-Benoît de

Lagebâton, entrando na câmara e acusando-o de ter usurpado o governo. Lagebâton conseguiu calá-lo, mas d’Escars voltou a lançar seu desafio no mês seguinte, e em resposta Lagebâton apresentou uma relação dos membros do tribunal que considerava estarem em conluio com d’Escars, provavelmente atuando para ele mediante pagamento. Surpreendentemente, entre esses nomes estavam o de Montaigne e o do recém-falecido Étienne de La Boétie. Caberia esperar que os dois estivessem firmemente do lado de Lagebâton: La Boétie trabalhara para o chanceler L’Hôpital, de quem Lagebâton era um seguidor, e Montaigne também se mostrou admirador dessa facção em seu Os ensaios. Por outro lado, d’Escars era amigo da família, e La Boétie estivera em sua casa ao contrair a doença que acabaria por matá-lo. Isto parecia suspeito, e é possível que Montaigne tivesse sido objeto de investigação por associação. Os acusados tinham direito de se defender perante o parlement, o que dava a Montaigne a oportunidade de voltar a se valer de sua habilidade retórica. De todos, foi ele o orador que causou mais impressão. “Ele se expressou com toda a vivacidade de seu temperamento”, afirma a anotação no registro. Concluiu seu discurso afirmando “que denunciava todo o Tribunal” e se retirou agitado. O tribunal o convocou de volta, exigindo que explicasse o que quisera dizer. Ele respondeu que não era inimigo de Lagebâton, que era amigo dele e de toda a sua família. Mas — e dava para sentir que viria um “mas” — sabia que os acusados tradicionalmente eram autorizados a contraargumentar as alegações do acusador e, portanto, queria se valer desse direito. Com isto, voltou a deixar todos intrigados, mas o que queria dizer era que Lagebâton é que podia ser acusado de comportamento impróprio. Montaigne

não deu mais explicações. Pressionado a retirar o comentário, ele o fez, e a coisa ficou por aí. As acusações aparentemente não deram em nada sério, acabando por ser esquecidas. O incidente parece ainda hoje enigmático, mas certamente nos mostra um Montaigne diferente do autor controlado e distante de Os ensaios ou da imagem pintada por ele próprio de sua juventude, sempre a cair de sono sobre os livros. Temos aqui um homem conhecido por sua “vivacidade” e dado a entrar e sair precipitadamente dos salões, fazendo acusações que não podia comprovar e enunciando absurdos tão delirantes que ninguém podia saber ao certo o que queria dizer. Em Os ensaios, Montaigne reconhece que, “por meu temperamento, estou sujeito a súbitas explosões que, apesar de moderadas e leves, muitas vezes prejudicam meus negócios”. Esta última parte da declaração nos leva a ficar imaginando se ele comprometeu sua carreira no parlement com suas afirmações descontroladas, se não nesta oportunidade, talvez em outras. Ainda mais surpreendente que conhecer o lado exaltado do jovem Montaigne é vê-lo de braços com os fanáticos e extremistas. Suas ligações políticas eram complicadas: nem sempre é fácil deduzir como ele poderia se posicionar em determinado tema. Mas esse caso pode ter tido mais a ver com lealdades pessoais do que com convicções. Sua família tinha ligações de ambos os lados do espectro político, e ele precisava estar sempre em bons termos com todas elas. É possível que a tensão desse conflito o tenha desestabilizado. A acusação também era um insulto — para ele próprio e, em caráter ainda mais grave, para La Boétie, que já não podia mais se defender. Lagebâton punha em dúvida a honra do homem mais honrado que Montaigne

conhecera: a pessoa que provavelmente mais amara na vida, e que acabara de perder. Parece compreensível uma reação de raiva incontrolável. A lentidão e o esquecimento eram boas respostas para a pergunta sobre como viver. Serviam muito bem de camuflagem e davam espaço para a manifestação de avaliações mais ponderadas. Mas certas experiências da vida suscitavam mais paixão, pedindo um tipo diferente de respostas.

5. P. Como viver? R. Sobreviva ao amor e às perdas LA BOÉTIE: AMOR E TIRANIA

M

ontaigne tinha vinte e poucos anos quando conheceu Étienne de La Boétie. Ambos trabalhavam no parlement de Bordeaux e já haviam ouvido falar bastante um do outro. La Boétie teria de Montaigne a imagem de um jovem precoce e articulado. Montaigne ouvira falar de La Boétie como o promissor autor de um polêmico manuscrito que circulava na região, intitulado De la Servitude volontaire (“Da servidão voluntária”). Leu-o pela primeira vez no fim da década de 1550, e mais tarde escreveria sobre sua gratidão a ele, já que o texto o levou a conhecer o autor. Começava então uma grande amizade, “tão inteira e perfeita que você dificilmente lerá sobre outra semelhante (...) São tantas as coincidências necessárias para construir uma amizade assim que se pode considerar muito se o destino consegue fazê-lo uma vez em espaço de três séculos”. Embora os dois jovens se sentissem curiosos a respeito um do outro, por algum motivo demoraram muito tempo para se conhecer. No fim das contas, o encontro se deu por acaso. Os dois participavam de um banquete na cidade; começaram a conversar e se viram “tão interessados um pelo outro, se entendendo tão bem, tão próximos” que imediatamente se tornaram grandes amigos. Tiveram apenas seis anos, sendo que ficaram separados cerca de um terço deles, pois às vezes ambos iam trabalhar em outras cidades. Mas esse curto período foi suficiente para

mantê-los tão unidos como se tivessem uma vida inteira de experiências compartilhadas. Lendo a respeito de Montaigne e La Boétie, muitas vezes ficamos com a impressão de que o segundo era muito mais velho e sábio. Na realidade, La Boétie tinha apenas alguns anos mais que Montaigne. Não era particularmente vivaz nem bonito, mas ficamos com a impressão de que era um homem inteligente e afetuoso, com certo ar de seriedade. Ao contrário de Montaigne, já estava casado quando se conheceram, ocupando uma posição mais alta no parlement. Já era conhecido pelos colegas como escritor e funcionário público, ao passo que Montaigne até então escrevera apenas relatórios jurídicos. La Boétie atraía atenção e inspirava respeito. Se disséssemos aos conhecidos de ambos em Bordeaux no início da década de 1560 que hoje ele é lembrado sobretudo por ser amigo de Montaigne, e não o contrário, eles provavelmente não acreditariam. O ar de maturidade de La Boétie podia decorrer em parte do fato de ter ficado órfão em tenra idade. Ele nasceu em 1º de novembro de 1530 na cidade comercial de Sarlat, a cerca de 120 quilômetros da propriedade de Montaigne, numa bela e alta construção ricamente ornamentada que ainda hoje está de pé. A casa fora construída cinco anos antes pelo pai de La Boétie, outro pai hiperativo, que viria a morrer quando o filho tinha 10 anos. Sua mãe também morreu, e assim La Boétie ficou sozinho. Um tio com o mesmo nome de Étienne de La Boétie tomou-o aos seus cuidados e aparentemente deu ao menino uma educação segundo as tendências humanistas da época, ainda que fosse menos radical que a de Montaigne. Como Montaigne, La Boétie estudou Direito. Por volta de 1554, casou-se com Marguerite de Carle, uma viúva com

duas crianças (uma das quais viria a se casar com o irmão menor de Montaigne, Thomas de Beauregard). Em maio do mesmo ano — dois anos antes de Montaigne se transferir para Périgueux —, La Boétie assumiu um cargo no parlement de Bordeaux. Ele era provavelmente um dos funcionários de Bordeaux que, ao verem os colegas de Périgueux chegarem e receberem um salário melhor, os fixaram com um olhar de reprovação. La Boétie fez uma excelente carreira no parlement de Bordeaux. À parte as estranhas acusações de 1563, era de maneira geral o tipo do sujeito que inspira confiança. Recebia missões delicadas e com frequência era destacado como negociador — como aconteceria mais tarde com Montaigne. A essa altura, La Boétie provavelmente era considerado mais confiável. Tinha o necessário ar de sobriedade e uma melhor atitude em matéria de trabalho duro e cumprimento do dever. As diferenças eram significativas, mas os dois se encaixaram como peças de um quebra-cabeça. Eles compartilhavam coisas importantes: pensamento sutil, paixão por literatura e filosofia e determinação de levar uma boa vida, como os escritores clássicos e os heróis militares que admiravam desde a infância. Tudo isto os aproximava, destacando-os dos colegas de criação menos imaginosa. La Boétie é conhecido hoje sobretudo através do olhar de Montaigne, o Montaigne das décadas de 1570 e 1580, lembrando-se do amigo perdido com saudade e pesar. Com isto, criou-se uma espécie de bruma nostálgica através da qual podemos apenas tentar discernir o verdadeiro La Boétie. No que diz respeito ao Montaigne visto por La Boétie, dispomos de uma imagem mais clara, pois La Boétie escreveu um soneto deixando bem claro o que considerava ser necessário a Montaigne para que se aperfeiçoasse. Em

vez de um Montaigne perfeito congelado na memória, o soneto captura um Montaigne vivo, em processo de transição. E de modo algum parece claro que esse personagem cheio de falhas conseguirá um dia vencer na vida, especialmente se continuar desperdiçando sua energia em festas e flertes com belas mulheres. Embora La Boétie se dirija a Montaigne como um tio em atitude de afetuosa desaprovação, seu poema vem permeado de emoções menos familiares: “Você se ligou a mim, Montaigne, ao mesmo tempo pela força da natureza e pela virtude, que é o doce atrativo do amor.” Montaigne escreve no mesmo diapasão em Os ensaios, dizendo que a amizade apoderou-se de sua vontade e “a levou a mergulhar e se perder na dele”, da mesma forma como se apoderou da vontade de La Boétie e “a levou a mergulhar e se perder na minha”. Esse tipo de linguagem não era incomum. O Renascimento foi um período em que, embora qualquer ideia de homossexualidade fosse encarada com horror, os homens normalmente se escreviam como adolescentes apaixonados. Geralmente, estavam menos apaixonados uns pelos outros do que por um elevado ideal de amizade, absorvido da literatura grega e da latina. Esse tipo de ligação entre dois jovens bem-nascidos era o auge da filosofia: eles estudavam juntos, estavam constantemente na atenção um do outro e se apoiavam no aperfeiçoamento da arte de viver. Tanto Montaigne quanto La Boétie eram fascinados por esse modelo, e provavelmente estavam à espreita de uma oportunidade quando se conheceram. O pouco tempo que passaram juntos poupou-os de desilusões. Em seu soneto, La Boétie manifestava a esperança de que seus nomes ficassem lado a lado por toda a eternidade, como os de outros “amigos famosos” ao longo da história. E foi atendido.

Aparentemente eles encaravam sua amizade em analogia com um modelo clássico específico: o do filósofo Sócrates e seu bem-apessoado jovem amigo Alcebíades — ao qual La Boétie abertamente comparava Montaigne em seu soneto. Montaigne, por sua vez, identificava elementos socráticos em La Boétie: sua sabedoria, mas também uma qualidade mais surpreendente, sua feiura. Sócrates ficou famoso pela falta de atributos físicos, e Montaigne refere significativamente, em La Boétie, uma “feiura que vestia uma alma muito bonita”. Isso faz eco à comparação feita por Alcebíades no Simpósio, de Platão, entre Sócrates e as figurinhas “Silenus” popularmente usadas como caixas para guardar joias e outros objetos preciosos. Como Sócrates, elas apresentavam exteriormente faces e imagens grotescas, mas por dentro guardavam tesouros. Montaigne e La Boétie aparentemente gostavam desses papéis, divertindo-se em desempenhá-los. Montaigne, pelo menos, se divertia. Imbuído da própria dignidade filosófica, La Boétie provavelmente teria evitado dar sinais nesse sentido se o achasse ofensivo. O feio Sócrates rechaçou os avanços do belo Alcebíades, segundo Platão, mas não resta dúvida de que sua relação era sensual, com um componente de flerte. Caberia dizer o mesmo de Montaigne e La Boétie? Poucos hoje acreditam que eles tivessem uma relação declaradamente sexual, embora a ideia tenha tido seus adeptos. Mas a intensidade da linguagem por eles usada causa impressão, não apenas no soneto de La Boétie, mas nos trechos em que Montaigne descreve sua amizade como um mistério transcendente, ou um grande roldão de amor que os arrebatou. Seu apego à moderação em todas as coisas não o socorre quando se trata de La Boétie, como tampouco seu amor à independência. Escreve ele: “Nossas almas se misturam e

combinam tão completamente que apagam a costura que as une, e não mais podem encontrá-la.” As próprias palavras parecem recusar-se a obedecer, como escreveria ele numa anotação à margem: Se me obrigarem a dizer por que o amava, sinto que é algo que não pode ser expresso, exceto pela resposta: Porque era ele, porque era eu. No Renascimento, como no período clássico, esperava-se que as amizades fossem escolhidas à luz clara e racional do dia. Por isso é que tinham valor filosófico. A referência de Montaigne ao amor que “não pode ser expresso” não se encaixa nesse padrão. E de fato ele admite: “Nossa amizade não tem outro modelo senão ela própria, podendo ser comparada apenas a ela mesma.” Se existe alguma referência, ela parece encontrar-se mais uma vez no Simpósio, no qual Alcebíades se vê igualmente perturbado pelo carisma de Sócrates, dizendo: “Muitas vezes eu gostaria que ele desaparecesse da face da Terra, mas sei que se isto acontecesse minha dor em muito superaria meu alívio. Na verdade, eu simplesmente não sei o que fazer quanto a ele.” Em seu soneto, La Boétie não expressa tanta perplexidade quanto Montaigne; sua emoção não era amplificada pela dor da lembrança, como no caso de Montaigne. Referências equivalentes à perda da razão e ao magnetismo pessoal também podem ser encontradas em La Boétie, mas não no soneto ou sequer nos medíocres poemas de amor por ele endereçados a mulheres. Elas se manifestam, por incrível que pareça, no tratado de política escrito na juventude — aquele mesmo que era lido com tanta avidez em Bordeaux quando Montaigne ouviu falar dele pela primeira vez.

La Boétie aparentemente era muito jovem ao escrever esse tratado, Da servidão voluntária. Segundo Montaigne, contava apenas 16 anos, tendo-o redigido como exercício estudantil — “um tema comum, reciclado em mil lugares nos livros”. É possível que Montaigne estivesse deliberadamente minimizando a seriedade do trabalho, pois era polêmico e ele não queria comprometer a reputação de La Boétie nem enfrentar problemas por mencioná-lo. Ainda que não fosse um trabalho de fundo tão juvenil quanto Montaigne queria fazer parecer, o fato é que evidenciava um talento precoce: um escritor chamou La Boétie de o Rimbaud da sociologia política. O tema de Da servidão voluntária é a facilidade com que os tiranos têm dominado as massas através da história, muito embora seu poder evaporasse instantaneamente se tais massas retirassem seu apoio. Não há necessidade de revolução: basta que o povo pare de cooperar e de escorar o poder do tirano com exércitos de escravos e bajuladores. Mas isso quase nunca acontece, nem mesmo àqueles que maltratam seus súditos de maneira monstruosa. Quanto mais eles submetem o povo à fome e ao abandono, mais o povo parece amá-los. Os romanos prantearam Nero quando morreu, não obstante os abusos que cometia. O mesmo aconteceu à morte de Júlio César — que, para variar, não era admirado por La Boétie. (Montaigne fazia reservas semelhantes.) Tínhamos, neste caso, um imperador “que aboliu as leis e a liberdade, um personagem no qual nada havia, ao que me parece, de valor”, e que no entanto era adorado além de toda medida. O mistério do domínio tirânico é tão profundo quanto o do próprio amor. La Boétie considera que os tiranos de alguma forma hipnotizam seu povo — embora o termo ainda não tivesse sido inventado. Para dizer de outra forma, o povo se

apaixona por ele. Entrega sua vontade à dele. É um terrível espetáculo ver “um milhão de homens servindo deploravelmente com o pescoço preso à canga, não submetidos por uma força maior, mas de alguma forma (ao que parece) encantados e seduzidos pela simples menção do nome de alguém cujo poder não deviam temer, já que ele está sozinho, e cujas qualidades não deveriam amar, já que se mostra selvagem e desumano em relação a eles”. Mas os homens não conseguem despertar do sonho. La Boétie faz com que a coisa quase fique parecendo bruxaria. Se ocorresse em escala menor, alguém provavelmente seria queimado na fogueira, mas o feitiço não é questionado quando se apodera de uma sociedade inteira. A análise do poder político feita por La Boétie aproxima-se muito do clima de mistério apresentado por Montaigne em relação ao próprio La Boétie: “Porque era ele, porque era eu.” A possibilidade de que o carisma de um tirano atue como uma espécie de encantamento ou poção amorosa ficou evidente através de uma série de autocratas da nossa história recente. Quando se perguntou a um dos homens de confiança do ditador ugandense Idi Amin, numa entrevista, por que amara seu líder com tanta lealdade, ele respondeu de uma forma que parece Montaigne falando de La Boétie, ou Alcebíades, de Sócrates: É o amor, essa coisa chamada amor: podemos encontrar até um homem que ama uma mulher de um olho só. Se lhe perguntarmos por que ama essa mulher feia, você acha que ele dirá? O segredo por trás disso fica entre os dois. O que me fez amá-lo e também o que o fez me amar. A tirania gera um drama de submissão e dominação, semelhante às tensas cenas de confronto em batalha que

são frequentemente descritas por Montaigne. A massa confia com facilidade, o que serve apenas para estimular o tirano a privá-la de tudo — até da vida, quando a mobiliza em guerra para lutar por ele. Algo nos seres humanos os compele a um “profundo esquecimento da liberdade”. De alto a baixo, todos do sistema ficam paralisados por essa servidão voluntária e pela força do hábito, pois muitas vezes não conheceram nada diferente. E, no entanto, precisam apenas despertar e negar sua colaboração. Quando alguns poucos indivíduos efetivamente rompem os grilhões, acrescenta La Boétie, é muitas vezes porque seus olhos foram abertos pelo estudo da história. Tomando conhecimento de tiranias semelhantes no passado, eles identificam o padrão em sua própria sociedade. Em vez de aceitar as condições em que nasceram, aperfeiçoam a arte de se esquivar delas e enxergar tudo de um ângulo diferente — recurso que Montaigne transformaria em seu modo característico de pensar e escrever em Os ensaios. Infelizmente, esses espíritos livres em geral são muito poucos para de fato promoverem mudanças. Eles não atuam em conjunto, vivendo “sozinhos em suas fantasias”. Entende-se por que motivo Montaigne, tendo lido Da servidão voluntária, ficou tão interessado em conhecer seu autor. É uma obra ousada; concordasse Montaigne com ela ou não, deve ter ficado impressionado. Suas reflexões sobre a força do hábito, um tema-chave de seu Os ensaios, e a ideia de que a leitura de historiadores e biógrafos pode levar à liberdade certamente encontravam ressonância nele. E o mesmo se pode dizer da pura e simples audácia intelectual do livro e de sua capacidade de pensar, por assim dizer, pelos desvãos. La Boétie provavelmente não via no seu tratado um brado revolucionário. Fez com que circulasse em alguns poucos

exemplares e talvez sequer tivesse a intenção de publicá-lo. Se o fizesse, seu objetivo seria exortar a elite governamental a adotar um comportamento mais responsável, e não levar as classes inferiores a se mobilizar para assumir o controle. Teria ficado horrorizado, assim, se visse o que veio a ser feito de sua obra. Pouco mais de uma década depois de sua morte, Da servidão voluntária voltou a circular como panfleto protestante radical, rebatizado de Contr’un (Contra um) para surtir maior efeito e inserido no contexto  de uma convocação à rebelião contra o monarca francês. O texto foi reproduzido numa série de publicações protestantes, inicialmente na anônima Reveillematin des François et de leurs voisins (1574) e depois em várias edições das Mémoires de l’estat de France sous Charles IX (1577) de Simon Goulart. Era um gesto incendiário e recebeu uma resposta incendiária. O parlement de Bordeaux mandou queimar a segunda edição de Goulart em público, em 7 de maio de 1579, dois dias antes de Montaigne conseguir o privilégio oficial para a primeira edição de seu Os ensaios. Não surpreende, assim, que ele enfatizasse o fato de a obra de La Boétie ser uma experiência de juventude, não representando ameaça para quem quer que fosse. Era o início de uma longa e movimentada vida póstera para Da servidão voluntária. Ainda hoje o livro às vezes é publicado como forma de convocação às armas ou pelo menos à resistência moral. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi publicado nos Estados Unidos com o título AntiDictator, acrescido de notas chamando a atenção para temas como “A conciliação de nada serve” e “Por que os Führers fazem discursos”. Mais tarde, grupos anarquistas e libertários se apoderaram do texto, publicando edições com prefácios e comentários de teor radical. A história póstuma

de La Boétie como herói do anarquismo é uma das grandes exceções à regra segundo a qual ele só é lembrado como amigo de Montaigne. O que os anarquistas e libertários mais admiram é o seu conceito gandhiano de que, para se livrar da tirania, uma sociedade precisa apenas recusar-se tranquilamente a cooperar. Podemos ler num prefácio moderno que La Boétie inspirou uma “revolução anônima e de baixa visibilidade de um homem só” — certamente a mais pura forma imaginável de revolução. O “voluntarismo” invoca La Boétie em apoio a sua tese de que toda atividade política deve ser evitada, inclusive a votação democrática, por conferir ao Estado uma falsa legitimidade. Alguns militantes do início do movimento voluntarista se opunham ao sufrágio feminino, alegando que, se os homens não deviam votar, tampouco deviam as mulheres. O lado de “tranquila recusa” da política preconizada em Da servidão voluntária exercia evidente atração sobre Montaigne. Ele concordava em que o mais importante para enfrentar os abusos políticos era preservar a própria liberdade mental — o que podia significar eximir-se da vida pública, em vez de se envolver nela. Em sua insistência no distanciamento de qualquer colaboração e na preservação da própria integridade, Da servidão voluntária quase poderia ser um dos Ensaios de Montaigne, escrito talvez numa fase inicial, quando ele ainda era polêmico e não havia aperfeiçoado a arte de se sentar em todos os lados da cerca ao mesmo tempo. Tal como Ralph Waldo Emerson lendo Os ensaios séculos depois, Montaigne bem poderia ter exclamado, a respeito de Da servidão voluntária: “Parecia que eu mesmo tinha escrito o livro, com tal sinceridade ele dialogava com minhas ideias e minha experiência.”

Antes de sua apropriação pelos propagandistas huguenotes, ele realmente pretendera integrá-lo ao próprio Os ensaios, naturalmente com o devido crédito a La Boétie. Haveria de inseri-lo após o capítulo sobre a amizade, aquele em que mais apaixonadamente escreve sobre os próprios sentimentos. A ideia, ao que parecia, era incluir a obra como uma espécie de estrela convidada ou atração principal, destacada pelos capítulos circundantes como um quadro em sua moldura. Na época da entrega do livro ao editor, contudo, a situação mudara. Da servidão voluntária era visto já então como um panfleto revolucionário: em vez de ser considerada uma homenagem à genialidade do amigo, como pretendia Montaigne, a atitude pareceria uma provocação. De modo que ele desistiu, mas deixou sua breve introdução, como um toco assinalando o lugar da amputação. Escreveu ele: “Como constatei que esta obra veio a ser trazida à luz, com más intenções, por aqueles que tentam perturbar ou mudar a situação de nosso governo, sem se preocupar se poderão aperfeiçoá-lo, e como além disso imiscuíram algumas de suas maquinações nessa obra, mudei de ideia quanto a sua inclusão aqui.” Foi provavelmente nessa altura que ele acrescentou seu comentário sobre o caráter juvenil e experimental da obra. Feito isto, ele também mudou de ideia a outro respeito. Não queria fazer com que La Boétie parecesse insincero. Assim foi que acrescentou uma nota dizendo que, naturalmente, La Boétie devia acreditar no que estava escrevendo: não era o tipo de homem capaz de falar sem convicção. Montaigne chegou a afirmar que o amigo teria preferido nascer em Veneza — uma república — a nascer na cidadezinha de Sarlat, ou seja, no Estado francês. Mas espere: isto fazia com que La Boétie ficasse mais uma vez

parecendo um rebelde! Uma nova reversão era necessária: “Mas ele tinha outra máxima impressa de maneira soberana na alma, a de obedecer e submeter-se religiosamente às leis sob as quais nascera.” No fim das contas, Montaigne parece ter-se metido numa bela trapalhada por causa do panfleto de La Boétie. Quase podemos vê-lo rabiscando todas essas ressalvas na última hora num canto do escritório da gráfica, com o manuscrito retirado ainda preso debaixo do braço. Considerando-se que Da servidão voluntária estava àquela altura sendo queimado em Bordeaux, já era corajoso da parte de Montaigne simplesmente mencionar a obra, quanto mais justificá-la. Como sempre contraditório, ele agia com prudência ao suspender a publicação, mas demonstrava coragem ao defendê-la. Além disso, ao explicar de que maneira La Boétie viera a escrevê-la, Montaigne na verdade revelava a identidade do autor. Ela provavelmente já era conhecida, mas nenhuma das publicações protestantes fora tão longe. Tomada a decisão de não incluí-la, Montaigne escreveu: “Em substituição a essa obra tão séria, incluirei outra, gerada na mesma estação de sua vida, mais alegre e vigorosa.” Era uma coletânea de poemas de La Boétie: não os que escrevera para si mesmo, mas um conjunto de 29 sonetos dedicados a uma jovem não identificada. Alguns anos depois, contudo, Montaigne voltou a mudar de ideia e também os removeu. No fim das contas, permaneceram apenas sua introdução e a dedicatória, além de uma breve nota: “Estes versos podem ser encontrados em outro lugar.” Um capítulo inteiro, o número 29 do Livro I, transformou-se em dupla eliminação: um buraco ou toco de contornos irregulares, que Montaigne deliberadamente se recusou a disfarçar. Ele chegou a chamar a atenção para suas bordas

desiguais. Era uma opção estranha, que não deixou de suscitar muita especulação. Estaria Montaigne simplesmente acrescentando e subtraindo materiais às pressas, sem se preocupar em dar acabamento ao resultado, ou tentava alertar-nos para algo? Uma teoria radical entrou e saiu de circulação algumas vezes nos últimos anos. Como já observamos, Da servidão voluntária tem características tão próprias de Montaigne que quase poderia ter sido escrito por ele. O livro fala de hábitos, natureza, perspectivas e amizade — quatro temas que reverberam ao longo de Os ensaios. Valoriza a liberdade interna como caminho para a resistência política: uma posição tipicamente montaigniana. E está cheio de exemplos da história clássica, tal como em Os ensaios. Ele tem o jeito de um Ensaio. É persuasivo, divertido e dado a digressões. O autor frequentemente sai por alguma tangente — por exemplo, derivando por uma discussão sobre o grupo Plêiade de poetas quinhentistas — para em seguida voltar aos trilhos com uma observação como “Mas, retornando ao nosso tema, do qual praticamente me perdi”, ou “Mas, retornando do ponto em que, não sei como, perdi o fio da minha discussão...”. Essa divertida aparência de desorganização não parece habitual na prática literária de um jovem, mas permeia de vida e espontaneidade o texto. O autor nos fala como se estivéssemos tomando juntos uma taça de vinho ou o tivéssemos encontrado por acaso numa esquina de Bordeaux. Surge, então, a desconfiança: seria na verdade Montaigne, e não La Boétie, o autor de Da servidão voluntária? Mas deve ter sido mesmo La Boétie, vem, então, a resposta: cópias do manuscrito estavam em circulação em Bordeaux. Ainda assim, nenhuma das cópias remanescentes é um manuscrito de La Boétie — foram todas feitas por

outros —, e a única fonte de que dispomos sobre a história da circulação em Bordeaux é o próprio Montaigne. É também ele que identifica o autor como La Boétie, e é ele que se refere à obra como um trabalho estudantil. Quem sabe esse Rimbaud adolescente fosse, na verdade, o indivíduo temperamental dado a entrar e sair às pressas das câmaras do parlement, e não o La Boétie de precoce sensatez. Ou quem sabe não se tratava em absoluto de um trabalho juvenil, o que explicaria certas referências anacrônicas no texto. Talvez até, como sugerem certos entusiásticos adeptos da teoria da conspiração, Montaigne tivesse escrito o texto muito mais tarde, inserindo os anacronismos para dar aos leitores inteligentes uma pista do logro. O primeiro a tentar atribuir Da servidão voluntária a Montaigne, em 1906, foi o montaignista independente Arthur-Antoine Armaingaud, acostumado a lançar ideias chocantes e cruzar os braços para ver o circo pegar fogo. Na época, quase ninguém concordou com ele, e são poucos hoje os que concordam, mas sua hipótese conquistou a adesão de uma nova geração de independentes, notadamente Daniel Martin e David Lewis Schaefer. Este último quer identificar em Montaigne um fundo revolucionário, como fazia Armaingaud, ao passo que Daniel Martin tende a abordar o livro como uma espécie de jogo cifrado de palavras cruzadas, cheio de pistas a serem seguidas. “Eliminar Da servidão voluntária de Os ensaios seria como retirar a flauta de uma orquestra sinfônica”, escreve ele. A ideia de Montaigne escrevendo um panfleto radical e protoanarquista, desencadeando uma tempestade de poeira com informações falsas e salpicando pistas para serem identificadas apenas pelos mais perceptivos, é interessante

em diferentes níveis. Como qualquer teoria da conspiração, ela proporciona a emoção das peças que se encaixam, tornando Montaigne glamoroso: um revolucionário solitário e um mestre da intriga. Encontramos eventualmente em Os ensaios indícios de que Montaigne era capaz de trapacear quando queria. Certa vez, ele se valeu de um truque bem complicado para ajudar um amigo que sofria de impotência e se considerava vítima de algum feitiço. Em vez de tentar fazê-lo entender a situação, Montaigne deu-lhe uma túnica e uma moeda de aparência mágica, com a representação de “figuras celestiais”. Disse-lhe então que realizasse uma série de rituais com a medalha sempre que estivesse para ter relações sexuais, primeiro depositando-a sobre os rins, depois prendendo-a à cintura e por fim deitando-se com a parceira e estendendo a túnica sobre ambos. O truque deu certo. Montaigne sentiu-se um pouco culpado, embora o tivesse feito pelo bem do amigo. Mas o episódio mostra que ele era capaz de uma trapaça se achasse que a situação o pedia, ou se a psicologia do caso o fascinasse de alguma forma. No geral, contudo, esse tipo de brincadeira era raro no seu caso, e ele preferia dar ênfase à própria honestidade e abertura em todas as questões, assim como a sua falta de talento para enigmas e quebra-cabeças. Isto tudo podia fazer parte do jogo. Mas, se ele realmente fosse um trapaceiro de mão cheia, teríamos de pôr em dúvida quase tudo que diz no livro — uma perspectiva vertiginosa. Existem ainda outras implicações inquietantes. Se Da servidão voluntária não foi escrito por La Boétie, então ele não era o homem descrito por Montaigne em Os ensaios. Ele efetivamente existia, mas sem traços claros: um código para a engenhosidade de Montaigne. E, se não era

excepcionalmente dotado — se não era o tipo de homem capaz de escrever a Servidão —, por que Montaigne o amava tanto? Ele deve ter tido motivos para um sentimento tão forte, e aparentemente não se tratava dos belos olhos e da boa aparência de La Boétie, a menos que estivesse mentindo sobre isto também. Se levarmos a sério a história de amor entre os dois, a teoria conspiratória torna-se praticamente inimaginável. Para Montaigne, atribuir a Servidão a La Boétie para encobrir a própria autoria seria brincar com a memória do amigo — que com toda a evidência respeitava quase ao ponto da idolatria. É surpreendente que ele tenha revelado a autoria de La Boétie no caso de uma obra que era queimada em praça pública em Bordeaux, mas se o autor não era La Boétie, seria muito mais que surpreendente; seria uma rematada traição, quase um ato de ódio. Nos escritos de Montaigne, nada encontramos a respeito de La Boétie (inclusive nos comentários feitos num diário de viagem que não se destinava a publicação) que sugerisse tais sentimentos. A intensidade dessa afeição recíproca também fornece uma explicação convincente para a grande semelhança entre os estilos dos dois escritores. Montaigne e La Boétie compartilhavam tudo, fundiam-se um no outro, não como um escritor se funde com seu pseudônimo, mas como dois escritores desenvolvem suas ideias em parceria — muitas vezes discutindo ou discordando, mas constantemente absorvendo. Ao longo dos poucos anos de convivência, Montaigne e La Boétie deviam conversar da manhã à noite: sobre hábitos, sobre a necessidade de rejeitar ideias prontas e de alterar os pontos de vista, sobre tirania e liberdade pessoal. Inicialmente, as ideias de La Boétie seriam articuladas com mais clareza; mais tarde, é provável que

Montaigne o superasse, desenvolvendo ideias sobre costumes e perspectivas em direções não imaginadas por La Boétie. Tudo isto acabaria incluído em Os ensaios, que se transformaria num monumento a La Boétie sob vários aspectos. As duas mentes de tal maneira se imbricavam que nem com as melhores ferramentas críticas do mundo seria possível apartá-las. Nenhum dos dois tinha motivos para pensar que não poderiam prosseguir assim por décadas, tornando-se cada vez mais bem-sucedidos e festejados em sua Atenas moderna. Mas o jovem Sócrates estava para ser chamado de volta a casa, devendo abandonar o banquete. LA BOÉTIE: MORTE E LUTO

Tudo começou na segunda-feira, 9 de agosto de 1563. La Boétie passara o dia ao ar livre na propriedade de François de Péruse d’Escars, o homem que se rebelara contra Lagebâton no parlement de Bordeaux. Nessa noite, La Boétie deveria jantar com Montaigne, mas quando estava para deixar a residência de d’Escars foi acometido de dores estomacais e diarreia. Mandou então uma mensagem ao amigo falando de sua indisposição: não poderia, Montaigne, então, vir ao seu encontro? Montaigne o fez. Tudo que sabemos do que se seguiu procede de um relato mais tarde escrito por Montaigne em forma de carta ao pai, e que ele viria a publicar. Chegando à residência de d’Escars, Montaigne encontrou o amigo sentindo dores. La Boétie disse-lhe ter contraído um resfriado depois de passar todo o dia ao ar livre, mas a coisa parecia mais grave. Os dois podiam já ter pensado na possibilidade de contrair a peste, que então se disseminava pela região e em Bordeaux, assim como em Agenais, que La

Boétie visitara recentemente a trabalho. Se La Boétie já não tivesse contraído a peste, corria agora esse risco, debilitado como estava. Montaigne aconselhou-o a se transferir para uma região menos infectada e se hospedar com a irmã e o cunhado, os Lestonnac. Mas La Boétie não se sentia bem para viajar. Na realidade, já era tarde: com quase toda a certeza ele já fora acometido da peste. Montaigne partiu, mas na manhã seguinte a mulher de La Boétie mandou chamá-lo, dizendo que o marido estava piorando. Montaigne retornou e, a pedido de La Boétie, passou a noite lá: “Com mais afeto e insistência que em qualquer outra ocasião, ele pediu que eu ficasse em sua companhia o mais que pudesse. Isto me tocou muito.” Ele ficou também na noite seguinte. O estado de La Boétie continuou piorando. No sábado, ele reconheceu que sua doença era contagiosa e desagradável — dando a entender que percebera se tratar da peste. Ele voltou a pedir que Montaigne ficasse, mas apenas por breves períodos, para se expor menos a riscos. Montaigne não atendeu a este último pedido. “Não voltei a deixá-lo”, escreveu. No domingo, La Boétie ficou profundamente debilitado e começou a sofrer alucinações. Passada a crise, ele disse “que parecia ter ficado muito confuso e nada via senão uma densa nuvem e uma espessa neblina em que tudo era caótico e desordenado”. Montaigne tratou de tranquilizá-lo: “A morte não guarda nada pior que isto, meu irmão”, ao que La Boétie retrucou que, de fato, nada podia ser pior que aquilo. A partir desse momento, confessaria a Montaigne, ele perdeu a esperança de se curar. La Boétie decidiu organizar suas coisas, pedindo a Montaigne que cuidasse da mulher e do tio se se deixassem abater pela dor. Quando La Boétie se declarou pronto, Montaigne convocou a família ao quarto. Eles “compuseram

os rostos como podiam” e se sentaram ao redor da cama. La Boétie disse-lhes o que pretendia deixar em testamento, especificando que o essencial de sua biblioteca iria para Montaigne. Em seguida, mandou chamar um padre. La Boétie com tal empenho se recompusera para as disposições do leito de morte que Montaigne chegou a ter um momento de esperança, mas, uma vez passado o esforço, o estado do amigo voltou a se deteriorar. Algumas horas depois, ainda à cabeceira de La Boétie, Montaigne disse-lhe que “ruborizava de vergonha” ao vê-lo demonstrando mais coragem diante da morte do que ele próprio se sentia capaz de reunir para presenciá-la. Prometeu lembrar-se de seu exemplo quando chegasse o seu momento. Sim, fez La Boétie, era uma boa ideia. Ele lembrou a Montaigne as muitas conversas esclarecedoras que já haviam tido sobre tais questões. Aquela experiência, dizia, era “o verdadeiro objeto de nossos estudos e da filosofia”. Tomando a mão de Montaigne, ele lhe garantiu que fizera na vida muitas coisas mais dolorosas e difíceis. “E no fim das contas”, prosseguiu, “eu estava preparado para isto havia muito tempo e sabia minha lição de cor”. Como Montaigne àquela altura, ele seguira o conselho dos antigos e ensaiara bem a própria morte. Afinal, continuou, ainda fazendo eco ao que diziam os sábios, vivera de maneira saudável e feliz por bastante tempo. Não havia lugar para arrependimento. Pois não chegara a uma bela idade? “Eu estava para completar trinta e três anos”, disse. “Deus concedeu-me a graça de ter tido até agora toda uma vida de saúde e felicidade. Diante da inconstância do que é humano, não poderia mesmo durar mais.” A velhice teria significado apenas sofrimento, podendo torná-lo mesquinho; melhor era evitá-la. Montaigne parecia perturbado; La

Boétie lembrou-lhe que devia ser forte. “Mas, meu irmão, está querendo me amedrontar? Se eu sentisse medo, quem mais, senão você, deveria afastá-lo de mim?” La Boétie encontrava a perfeita morte do estoico, cheio de coragem e sabedoria racional. Montaigne devia fazer sua parte: ajudar o amigo a manter esta coragem e agir como testemunha, registrando os detalhes para que outros aprendessem com a experiência. Talvez, ao fazê-lo, tenha dourado ligeiramente a realidade, para fazer La Boétie parecer mais nobre e corajoso do que efetivamente era. Mas talvez não; em La Boétie o sentimento das virtudes clássicas era tão profundo que ele pode de fato ter-se mostrado capaz de emular seus heróis filosóficos praticamente até o fim. Como escreveria Montaigne, “sua mente fora moldada pelo padrão de outras eras que não esta”. Mas o próprio Montaigne era agora outro homem, e, à medida que avança o seu relato, mais e mais transparece do seu verdadeiro eu: seu ceticismo, sua sensibilidade para os detalhes embaraçosos e sua determinação de contar as coisas tal como eram. Encontramos até momentos de irreverência. Escrevendo sobre as falas de despedida de La Boétie mais tarde naquele mesmo dia, ele comenta: “O quarto foi tomado por gemidos e lágrimas, sem no entanto interromper o andamento de suas falas, que estavam um pouco longas.” Na manhã seguinte, segunda-feira, La Boétie perdia a consciência e a recobrava sucessivas vezes, sendo reanimado com vinagre e vinho a cada vez. Censurou então Montaigne: “Não está vendo que a partir de agora toda ajuda que me der serve apenas para prolongar meu sofrimento?” Depois de um desses desfalecimentos, ele perdeu temporariamente a visão. A choradeira dos que o

cercavam, sem que conseguisse vê-los, o deixou horrorizado. “Meu Deus, quem é que me atormenta assim? Por que me tiram desse grande e agradável repouso em que me encontro? Deixem-me em paz, eu imploro.” Um gole de vinho restaurou suas faculdades, mas ele se estava indo. “Suas extremidades e mesmo o rosto estavam gelados, com um suor mortífero que escorria pelo corpo; e já não se podia sentir qualquer sinal de batimento do pulso.” Na terça-feira ele recebeu a extrema-unção, pedindo ao padre, ao tio e a Montaigne que rezassem por ele. Duas ou três vezes soltou gritos, dizendo a certa altura: “Muito bem! Muito bem! Que ela venha quando quiser, estou esperando, firme e forte.” À noite, “restando apenas a aparência e a sombra de um homem”, ele voltou a ter alucinações, desta vez com visões que, em seu relato a Montaigne, eram “maravilhosas, infinitas e inefáveis”. Ele tentou reconfortar a mulher, dizendo que tinha uma história a contar-lhe. “Mas estou indo”, disse. Em seguida, vendo o seu alarme, corrigiu-se: “Estou indo dormir.” Ela deixou o quarto. La Boétie disse a Montaigne: “Meu irmão, fique perto de mim, por favor.” Ainda havia muitas outras pessoas por perto; Montaigne refere-se a elas como “toda a companhia”. No Renascimento, ninguém fazia nada sozinho, muito menos morrer. Ao que parece, a mulher de La Boétie foi a única pessoa dispensada. Agora o moribundo se agitava, contorcendo-se violentamente na cama. E começou a fazer pedidos estranhos. Escreve Montaigne: Ele começou a me pedir repetidas vezes, com extremo afeto, que lhe desse um lugar, de tal maneira que temi

estivesse abalado o seu discernimento. Mesmo quando protestei com toda a delicadeza que ele estava se deixando levar pela doença e que não eram aquelas as palavras de um homem em seu perfeito juízo, ele não cedeu, inicialmente, repetindo com ênfase ainda maior: “Meu irmão, meu irmão, você está me recusando um lugar?” Isto até que me forçasse a convencê-lo pela razão e dizer-lhe que, como estava respirando e falando e tinha um corpo, também tinha consequentemente o seu lugar. “É verdade, é verdade”, respondeu-me ele, “eu tenho, mas não é aquele de que preciso; e, no fim, não me resta um ser”. Seria difícil saber responder a tais palavras. Montaigne tentou reconfortá-lo: “Deus lhe dará muito breve um ser melhor”, disse. “Ah, se eu já estivesse lá!”, fez La Boétie. “Estou há três dias tentando partir.” Nas três horas seguintes ele gritaria com frequência, escreveu Montaigne, “simplesmente para saber se eu estava perto dele”. E ele sempre estava. Depois de começar de maneira convencional, a essa altura o relato de Montaigne tornou-se ao mesmo tempo comovente e lúgubre. Ele parece registrar o que realmente estava sendo dito e feito, independentemente do significado filosófico. O próprio La Boétie já estava além da imitação de modelos. Dizendo precisar de um lugar, ele parecia estar falando quase sem consciência, como Montaigne faria alguns anos depois, enfurecido e se contorcendo no próprio gibão. Pelas duas horas da manhã ele conseguiu repousar, o que parecia um bom sinal. Montaigne saiu do quarto para comunicá-lo à mulher de La Boétie. Os dois ficaram

satisfeitos com aquele progresso. Mas uma hora depois, aproximadamente, quando Montaigne retornou ao quarto, La Boétie mostrou-se agitado de novo. Disse uma ou duas vezes o nome de Montaigne. Deu então um único suspiro e parou de respirar. La Boétie estava morto — “aproximadamente às três horas da manhã da quarta-feira, 18 de agosto de 1563, depois de viver 32 anos, 9 meses e 17 dias”, segundo o registro de Montaigne. Era, portanto, a proximidade da morte — provavelmente o primeiro encontro tão íntimo de Montaigne com a morte de alguém que amava tão profundamente. A realidade física era chocante, especialmente considerando-se que decorria de uma doença tão assustadora, embora Montaigne nada diga de algum temor pessoal de infecção. Entre os pensamentos que lhe devem ter passado pela cabeça está o que voltaria a lhe ocorrer à luz de sua própria experiência: a esperança de que a morte fosse tranquila para aquele que a enfrentava, por menos que, do exterior, assim parecesse. Ele e La Boétie haviam discutido a questão certa vez: Montaigne achava que isto podia ser verdade e La Boétie discordava. Pois agora Montaigne devia desejar ardentemente que tivesse razão. Seria melhor pensar que La Boétie sentira apenas bem-aventurança enquanto seu corpo suava e lutava. Mais tarde, quando Montaigne veio a escrever sobre sua própria experiência de perda da consciência, quase podemos vê-lo retomando a velha discussão e perguntando ao amigo: “Viu só, você não sofreu, não é mesmo?”, na esperança de que La Boétie respondesse: “Não.” Embora ele sublimasse seu pesar na literatura, a dor de Montaigne foi devastadora e parecia aumentar com o tempo. Depois da morte de La Boétie, tudo ficou “uma sombria e escura noite”. Viajando pela Itália quase 18 anos

depois, ele anotaria em seu diário íntimo: “Esta manhã, escrevendo a Monsieur d’Ossat, fui acometido de pensamentos tão dolosos sobre Monsieur de La Boétie, e por tanto tempo fiquei nesse estado de ânimo, sem me recuperar, que isto me fez um grande mal.” Ele também escreveu, em Os ensaios, sobre seu desejo de um autêntico companheiro na Itália — alguém cuja maneira de ser se harmonizasse com a sua e que gostasse de fazer as mesmas coisas. “Tenho sentido enorme falta de um homem assim nas minhas viagens.” Nenhum prazer tem sabor para mim sem comunicação. Nem uma só ideia alegre me ocorre sem que eu fique aborrecido por tê-la produzido sozinho, sem ter para quem oferecê-la. Ele nunca descartou a possibilidade de encontrar alguém para assumir o lugar de La Boétie. Era uma recomendação de Sêneca: um homem sábio deve ser tão capaz de fazer novos amigos que possa substituir um antigo sem perder o ritmo. Às vezes, em Os ensaios, Montaigne parece estar acenando a eventuais candidatos: ele manifesta a esperança de que o livro agrade a “algum homem de valor” que venha ao seu encontro. Mas na realidade não achava que alguém pudesse substituir o original. Mostrava-se sempre desencantado: Não é uma tolice da minha parte sentir-me fora de sintonia com mil pessoas das quais me aproxima o acaso, sem as quais não posso viver, para no entanto aferrar-me a (...) um fantástico desejo de algo que não posso recapturar?

Sempre que Montaigne se mostra distante ou desligado das outras pessoas, como às vezes acontece, devemos nos lembrar de La Boétie. As  pessoas, escreve ele, não devem ser “unidas e coladas a nós tão fortemente que não se possam desvincular sem rasgar nossa pele e também um pouco da nossa carne”. São palavras de um homem que sabe perfeitamente como é sentir-se esfolado assim. Enquanto o amigo ainda era vivo, aparentemente havia momentos em que Montaigne se rebelava contra essa influência benéfica de La Boétie, mas já agora não restavam traços disto. Com o anteparo de segurança da morte de La Boétie, Montaigne podia render-se a ele sem reservas — e podia fazer o que La Boétie lhe implorara que fizesse: darlhe um lugar. Para começar, integrou muitos dos livros de La Boétie à sua biblioteca, abrindo espaço para o amigo entre os seus bens mais preciosos. Depois, escreveu sobre a morte de La Boétie, resgatando o máximo que conseguiu lembrar do testamento do jovem filósofo à posteridade. Preparou para publicação uma pilha de originais de La Boétie. Finalmente, ao se aposentar  da vida pública, fez do amigo o espíritoguia de sua nova carreira. Ao lado da inscrição principal sobre a própria aposentadoria, ele acrescentou outra na parede da biblioteca: ela está hoje em dia desgastada, sendo de difícil decifração, mas aparentemente dedica todo o seu futuro “trabalho estudioso” à memória de La Boétie, “o mais doce, querido e íntimo amigo” que o século XVI podia ter produzido. La Boétie acompanharia todas as atividades de Montaigne em sua biblioteca: seria o seu anjo da guarda literário. Com sua morte, La Boétie deixava de ser um companheiro real e imperfeito de Montaigne, transformando-se numa entidade ideal sob seu controle. Era

já agora não tanto uma pessoa, mas uma espécie de técnica filosófica. Sêneca recomendava aos seguidores que usassem os amigos dessa maneira. No contato com um homem admirável, dizia, o indivíduo deve visualizá-lo como um público sempre presente, para estar constantemente verificando seus padrões mais elevados. Em vez de viver para nós mesmos, escreveu, devemos viver para os outros — e, acima de tudo, para um amigo escolhido. Montaigne dispunha-se a experimentar qualquer truque nessa direção, desde que trouxesse consolo. Numa das dedicatórias aos livros póstumos de La Boétie, escreveria ele: “Ele continua presente em mim, tão inteiro e tão vivo, que não posso acreditar que esteja tão irrevogavelmente enterrado ou tão totalmente afastado de nossa comunicação.” Permitir que La Boétie continuasse vivo dentro dele era uma maneira de cumprir o desejo do amigo no leito de morte, ao mesmo tempo aliviando a própria solidão. Enquanto isso, recorria a técnicas de distração e diversão para enfrentar o choque imediato da perda. Acima de tudo, ele descobria os benefícios terapêuticos da escrita. Oferecendo a narrativa da morte e a despedida de La Boétie ao mundo em forma escrita, se permitia reviver a cena, para poder seguir em frente. Ele nunca superou completamente a perda de La Boétie, mas aprendeu a estar no mundo sem ele, e, com isto, a mudar a própria vida. O ato de escrever sobre La Boétie acabaria por levá-lo a escrever seu Os ensaios: o melhor truque filosófico de todos.

6. P. Como viver? R. Recorra a pequenos truques OS PEQUENOS TRUQUES E A ARTE DE VIVER

M

ontaigne costumava demonstrar desdém pelos filósofos acadêmicos, sendo avesso a seu pedantismo e a suas abstrações. Mas evidenciava perene fascínio por outra tradição filosófica, a das grandes escolas pragmáticas que exploravam questões como a maneira de enfrentar a morte de um amigo, desenvolver a coragem, agir com correção em situações moralmente delicadas ou aproveitar o melhor possível a vida. Eram as filosofias para as quais se voltava em épocas de dor ou medo, e também para orientação no lidar com problemas menores do dia a dia. Os três sistemas de pensamento mais conhecidos dessa tendência eram o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo: as filosofias conhecidas como helenísticas, por terem sua origem na era em que o pensamento e a cultura gregos se espraiaram até Roma e outras regiões mediterrâneas, a partir do terceiro século a.C. Havia diferenças de detalhe, mas elas estavam tão próximas no essencial que quase sempre parecia difícil distingui-las. Como todo mundo, Montaigne as misturava e combinava de acordo com suas necessidades. Todas essas escolas tinham o mesmo objetivo: alcançar um modo de vida conhecido na língua grega como eudaimonia, termo que costuma ser traduzido como “felicidade”, “alegria” ou “desabrochar humano”. Isto queria dizer viver bem em todos os sentidos: desenvolver-se,

desfrutar a vida, ser uma boa pessoa. Elas também consideravam que o melhor caminho para a eudaimonia era a ataraxia, que poderia ser traduzida como “imperturbabilidade” ou “estar livre de ansiedade”. Ataraxia significa equilíbrio: a arte de manter o prumo, sem exultar quando as coisas vão bem nem mergulhar no desespero quando vão mal. Alcançar esse estado é exercer controle sobre as emoções, para não ser golpeado e arrastado por elas como um osso disputado por uma matilha de cães. Foi sobre a questão de como alcançar essa tranquilidade que os filósofos começaram a discordar. Cada um deles tinha uma concepção diferente, por exemplo, do quanto deveríamos ceder ao mundo real. A comunidade epicurista original, fundada por Epicuro no século IV a.C., pregava o afastamento da família, para que os seguidores vivessem como membros de um culto num “jardim” particular. Os céticos preferiam continuar mergulhados no alvoroço da vida comum, mas assumindo uma atitude mental radicalmente diferente. Os estoicos se posicionavam mais ou menos entre as duas opiniões. Os dois autores estoicos mais conhecidos, Sêneca e Epíteto, escreviam para leitores da elite romana profundamente envolvidos nas questões de seu tempo e sem possibilidade de se isolar em jardins, mas desejosos de encontrar oásis de tranquilidade e autodomínio onde quer que fosse possível. Os estoicos e os epicuristas também compartilhavam boa parte de suas respectivas teorias. Consideravam que a capacidade de desfrutar a vida pode ser comprometida por duas grandes fraquezas: falta de controle das emoções e tendência a dar muito pouca atenção ao presente. Se essas duas questões fossem resolvidas — controlar e prestar atenção —, a maioria dos problemas se resolveria sozinho. O fator de complicação é que as duas coisas são quase

impossíveis de se fazer. Revelam-se tão difíceis que não podem ser enfrentadas diretamente. É necessário abordálas de ângulos laterais, tratando de se induzir habilmente a alcançá-las. Em função disso, os pensadores estoicos e epicuristas dedicavam-se com afinco a conceber técnicas e experiências mentais. Por exemplo: imagine que hoje seja o último dia da sua vida. Você está preparado para enfrentar a morte? Imagine até que este exato momento – agora! — é o último momento da sua existência. Como você se sente? Tem arrependimentos? Existem coisas que gostaria de ter feito de outra forma? Está realmente vivo neste momento ou se vê consumido pelo pânico, a recusa, o remorso? Esta experiência abre seus olhos para aquilo que é importante para você, lembrando que o tempo está constantemente escorrendo pelos seus dedos. Certos estoicos chegavam a interpretar este “último momento” com cenário e participação de um elenco de apoio. Sêneca escreveu sobre um homem saudável chamado Pacúvio, que diariamente promovia para si mesmo um funeral com todos os detalhes, terminando com um banquete após o qual era levado da mesa para a cama num esquife, enquanto convidados e criados cantavam “Ele viveu sua vida, ele viveu sua vida”. Você pode obter o mesmo efeito de maneira mais simples e barata, apenas mantendo no espírito a ideia do próprio fim e prestando-lhe toda a atenção. O autor epicurista Lucrécio sugeria que nos imaginássemos no momento da morte, contemplando duas possibilidades. Ou vivemos bem, e neste caso podemos prosseguir satisfeitos, como um convidado que deixa a festa bem-alimentado. Ou não foi este o caso, e então não faz diferença que estejamos perdendo a vida, já que não sabíamos o que fazer com ela de qualquer forma. Pode não

ser de grande reconforto no leito de morte, mas se pensarmos a respeito no meio da vida, teremos ajuda para mudar de perspectiva. Essas mudanças de atitude são o objetivo de muitas dessas experiências mentais. Se você perdeu alguém ou algo precioso, pode tentar atribuir-lhe um valor diferente imaginando que não chegou a conhecer essa pessoa ou a ter o objeto. Como poderia sentir falta de algo que nunca teve? Um ponto de vista diferente gera uma emoção diferente. Plutarco sugeriu essa tática em uma carta à mulher após a morte da filha de dois anos, aconselhando-a a pensar na época em que a menina ainda não nascera e fingir que voltavam a viver esses dias. Não sabemos se lhe serviu de consolo, mas pelo menos proporcionou-lhe algo em que se concentrar, em vez de ficar nadando num oceano uniforme de dor. Montaigne e La Boétie conheciam bem essa carta, pois La Boétie a traduzira para o francês e Montaigne editou a tradução para publicação. É possível que ela viesse ao espírito de Montaigne toda vez que morria um de seus filhos, assim como no momento da perda de La Boétie. A amizade tivera duração tão breve que não seria difícil recordar um período anterior a ela e resgatar a despreocupação dos tempos pré-La Boétie. Esses truques da imaginação podem ser usados tanto em situações mundanas quando nas mais extremas; funcionam até frente a sentimentos mais brandos de tédio ou depressão. Se você se sente cansado de tudo que possui, sugere Plutarco, finja que perdeu todas essas coisas e sente desesperadamente a sua falta. Seja o objeto um prato predileto, um amigo, uma amante ou a sorte de viver numa época de paz com boa saúde, o exercício faz com que magicamente o valorizemos. O princípio é o mesmo quando

ficamos pensando na morte: defrontando-nos com a ideia de perder algo agora, damo-nos conta do seu valor. A chave disso tudo é cultivar a plena atenção: prosoche, outra expressão grega fundamental. A atenção plena é o truque por trás de muitos outros truques. É um chamado a cuidar do mundo interior – e com isto também do mundo exterior, pois as emoções descontroladas toldam a realidade assim como as lágrimas obstruem a vista. Aquele que clareia a visão e vive plenamente consciente do mundo tal como se apresenta, diz Sêneca, nunca se sentirá entediado com a vida. Além disso, a pessoa que não passa pelo mundo sonambulicamente tem liberdade para reagir adequadamente às situações, sem hesitação — como se respondessem a perguntas feitas à queima-roupa, na formulação de Epíteto. Um ataque violento, uma briga, a perda de um amigo: são exigências com que a vida nos defronta, semelhante a um professor tentando nos apanhar distraídos na aula. Até mesmo um momento de tédio representa uma pergunta desse tipo. O que quer que aconteça, por mais imprevisto que seja, devemos estar em condições de reagir de maneira precisa e adequada. Por isto é que, para Montaigne, aprender a viver “adequadamente” (à propos) é a “grande e gloriosa obra-prima” da vida humana. Os estoicos e os epicuristas tratavam de alcançar essa meta sobretudo pelo treino e a meditação. Como um jogador de tênis praticando gestos e jogadas durante horas, eles se valiam do treinamento para talhar fulcros de hábito, pelos quais a mente poderia correr com a naturalidade da água no leito do rio. É uma forma de auto-hipnose. O grande imperador romano Marco Aurélio, adepto do estoicismo, mantinha cadernos de anotações para articular as

mudanças de perspectiva que quisesse inculcar em si mesmo: Como é bom, quando temos carne assada ou alimentos assim diante de nós, trazer à mente que se trata do corpo morto de um peixe, ou o corpo morto de um pássaro ou porco; e também que o vinho de Falerno não passa de sumo de uvas, e que a sua túnica de debrum vermelho é simplesmente pelo de carneiro embebido em sangue de moluscos! E nas relações sexuais, que não passam de fricção de uma membrana e emissão de um jorro de fluido. Em outras ocasiões, ele se imaginava alçando voo até o céu, para olhar para baixo e constatar a insignificância das preocupações humanas vistas dessa distância. Sêneca também o fazia: “Contemple mentalmente a vasta extensão do abismo do tempo e aprecie o universo; em seguida, contraste nossa assim chamada vida humana com o infinito.” Outra prática dos estoicos consistia em visualizar o tempo dando voltas sobre si mesmo, pela eternidade. Sócrates assim nasceria de novo e ensinaria em Atenas, exatamente como da primeira vez; cada borboleta bateria as asas da mesma maneira; cada nuvem passaria na mesma velocidade. Você mesmo voltaria a viver, tendo os mesmos pensamentos e emoções que antes, sempre e sempre, sem fim. Esta ideia aparentemente aterrorizante trazia conforto, pois — exatamente como outras ideias — reduzia a menores proporções os problemas passageiros do indivíduo. Ao mesmo tempo, como tudo que ele tivesse feito voltaria para assombrá-lo, tudo importava. Nada era descartado, nada podia ser esquecido. Meditar a respeito nos obrigava a prestar mais atenção à maneira como conduzíamos a vida

cotidiana. Apresentava um desafio, mas também levava a uma espécie de aceitação, que os estoicos chamavam de amor fati, ou amor ao destino. Escrevia o estoico Epíteto: Não queira que tudo que acontece aconteça da maneira como deseja, mas deseje que tudo aconteça como efetivamente acontece, e terá uma vida serena. Devemos ser capazes de aceitar tudo tal como é, de bom grado, sem ceder ao vão desejo de alterar as coisas. Montaigne aparentemente achava fácil este truque, que lhe era natural. “Se eu tivesse de viver de novo”, escreveu, animadamente, “voltaria a viver como vivi”. Mas a maioria das pessoas precisava treinar, e aí é que entravam os exercícios mentais. Sêneca tinha um truque radical para o exercício do amor fati. Ele sofria de asma, quase chegando a sufocar durante os ataques. Muitas vezes achava que podia estar para morrer, mas aprendeu a se valer de cada um desses ataques como uma oportunidade filosófica. Embora a garganta se cerrasse e os pulmões arfassem em busca de ar, ele tentava acolher o que lhe acontecia, dizendo “sim”. Eu quero isto, pensava; e, se necessário, aceito morrer disto. Quando o ataque cedia, ele se sentia mais forte, pois enfrentara e derrotara o medo. Os estoicos gostavam particularmente desses impiedosos treinos mentais das coisas mais temidas. Os epicuristas tendiam mais a desviar a vista das coisas terríveis, para se concentrar no que fosse positivo. Um estoico comporta-se como alguém que tencione os músculos da barriga, convidando um oponente a esmurrá-los. Um epicurista prefere abster-se de tal convite, simplesmente saindo do caminho quando acontecem coisas adversas. Se os estoicos

são boxeadores, os epicuristas estão mais próximos dos praticantes das artes marciais orientais. Na maioria das situações, Montaigne se identificava mais com a abordagem dos epicuristas e levava suas ideias ainda mais longe. Ele dizia invejar os malucos, pois sempre estavam mentalmente em algum outro lugar — numa forma extremada desse desvio de foco epicurista. Que importava se a visão do mundo de um maluco fosse distorcida, desde que ele fosse feliz? Montaigne contava à sua maneira relatos clássicos como o de Licas, que levava normalmente a vida e mantinha um trabalho de forma bem-sucedida apesar de acreditar que tudo que via e presenciava acontecia num palco, como uma montagem teatral. Curado dessa ilusão por um médico, Licas ficou tão infeliz que o processou por privá-lo do prazer de viver. Da mesma forma, um homem chamado Trasilau alimentava a crença de que todo navio que entrava ou saía do porto de Pireu, onde morava, transportava cargas maravilhosas exclusivamente para ele. Sentia-se permanentemente feliz, pois se rejubilava a cada chegada de um navio ao porto com segurança, sem se preocupar com o fato de as cargas nunca aparecerem em sua casa. Infelizmente, seu irmão Crito tratou da ilusão e tudo se acabou. Nem todo mundo pode se valer da insanidade, mas todos podem facilitar a própria vida abaixando um pouco o feixe de luz da razão. No caso da mágoa, em particular, Montaigne descobriu que não tinha como se recuperar simplesmente tentando se convencer de que deveria. Até tentou recorrer a certos truques estoicos, e não tinha medo de centrar a atenção na morte de La Boétie para escrever seu relato a respeito. Mas na maioria dos casos achava melhor desviar a atenção para algo completamente diferente:

Um pensamento doloroso se apodera de mim; acho mais fácil mudá-lo que subjugá-lo. Trato de substituí-lo pelo seu contrário, ou, se não for possível, sempre outro diferente. A variação sempre consola, dissolve e dissipa. Quando não posso combater, trato de escapar; e na fuga eu me esquivo, cheio de truques. Ele se valia da mesma técnica para ajudar os outros. Certa vez, tentando consolar uma mulher que efetivamente sofria (ao contrário de outras viúvas, dá ele a entender) pela morte do marido, ele contemplou inicialmente os métodos filosóficos mais habituais: lembrando-lhe que nada se pode ganhar com lamentações ou tentando convencê-la de que ela podia até nem ter conhecido o marido. Mas acabou optando por um truque diferente, “muito suavemente tratando de desviar, pouco a pouco, nossa conversa para temas próximos, e em seguida mais remotos”. Inicialmente, a viúva não parecia prestar muita atenção, mas os outros temas acabaram por capturar seu interesse. Desse modo, sem que ela se desse conta do que acontecia, escreveu ele, “eu imperceptivelmente a afastei desse pensamento doloroso, mantendo-a de bom ânimo e perfeitamente apaziguada enquanto me mantive a seu lado”. Ele reconhecia que o procedimento não permitira ir às raízes da dor, mas lhe facultara superar uma crise imediata, presumivelmente dando tempo para o início de uma recuperação natural. Parte disso derivava das leituras epicuristas de Montaigne, parte, de uma experiência pessoal acumulada a duras penas. “Fui certa vez atingido por uma dor assoberbante”, escreveu ele, com toda a evidência pensando em La Boétie. Ela poderia tê-lo destruído, se se tivesse escorado apenas em sua força racional para superá-

la. Em vez disso, entendendo que precisava de “um violento esforço para desviar a atenção”, ele conseguiu desenvolver uma atração por alguém. Montaigne não identifica a pessoa, e o episódio parece não ter tido maior significado, mas serviu para dar um destino a suas emoções. Truques semelhantes podiam funcionar com outra emoção indesejável, a raiva: Montaigne conseguiu certa vez curar um “jovem príncipe”, provavelmente Henrique de Navarra (o futuro Henrique IV), de uma perigosa paixão pela vingança. Ele não convenceu o príncipe em sentido contrário nem o aconselhou a dar a outra face ou lembrou as trágicas consequências que poderiam decorrer. Nem sequer mencionou os objetos da raiva ou da vingança: Deixei a paixão em paz e cuidei de fazê-lo apreciar a beleza de uma imagem oposta, a honra, a aprovação e a boa vontade que ele poderia adquirir com clemência e bondade. Tratei de desviá-lo para a ambição. É assim que se faz. Em épocas posteriores da vida, Montaigne valeu-se do truque de desviar a atenção para enfrentar seu próprio medo de envelhecer e morrer. Os anos o arrastavam na direção da morte; ele nada podia fazer, mas não precisava encarar a coisa de frente. Pelo contrário, voltou-se na direção oposta, acalmando-se com o prazer da contemplação da própria juventude e infância. Desse modo, explicava, conseguiu “suavemente contornar e desviar meu olhar desse céu nebuloso e tempestuoso que tenho à frente”. Ele de tal maneira se tornou um conhecedor das técnicas de diversão que até passou a admirar as manipulações políticas, desde que não fossem usadas em apoio da tirania. Um episódio que apreciava era aquele em que Zaleuco,

príncipe dos lócrios na Grécia antiga, reduziu o excesso de gastos no reino. Determinou que qualquer mulher poderia ser atendida por várias criadas, mas só quando estivesse bêbada, e que poderia usar quantas joias de ouro e vestidos bordados quisesse, se estivesse trabalhando como prostituta. Um homem poderia usar anéis de ouro se fosse cafetão. Deu certo: as joias de ouro e a criadagem numerosa desapareceram da noite para o dia, mas ninguém se rebelou, pois ninguém achou que tivesse sido forçado a nada. De sua própria experiência de aproximação com a morte, Montaigne aprenderia que o melhor antídoto para o medo era confiar na natureza; “Não ocupe sua cabeça com isto.” Com a perda de La Boétie, ele já descobrira que era esta a melhor maneira de enfrentar a dor. A natureza tem seus próprios ritmos. A distração funciona precisamente porque vai ao encontro daquilo de que são feitos os seres humanos: “Nossos pensamentos estão sempre em algum outro lugar.” Para nós, é perfeitamente natural perder o foco, esquivar-se tanto das dores quanto dos prazeres, “mal chegando a roçar-lhes a crosta”. Precisamos apenas nos permitir ser como somos. Montaigne selecionava em suas leituras estoicas e epicuristas o que lhe convinha, assim como seus leitores sempre haveriam de extrair de Os ensaios aquilo de que precisavam, sem se preocupar com o resto. No caso de seus contemporâneos, isto significava apegar-se aos trechos mais estoicos e epicuristas de sua obra. Eles interpretavam seu livro como um manual do bem viver, saudando nele um filósofo ao velho estilo, capaz de se ombrear com os fundadores. Seu amigo Étienne Pasquier chamou-o de “um outro Sêneca em nossa língua”. Outro amigo e colega de Bordeaux, Florimond de Raemond, exaltaria a coragem de

Montaigne frente aos tormentos da vida, recomendando aos leitores que se voltassem para ele em busca de sabedoria, especialmente quanto à melhor maneira de enfrentar a morte. Num soneto publicado em edição de 1595 do livro de Montaigne, Claude Expilly elogiava o autor, definindo-o como um “estoico magnânimo”, e comentava calorosamente o estilo viril de sua escrita, sua intrepidez e sua capacidade de infundir força à mais fraca das almas. Os “corajosos ensaios” de Montaigne serão louvados pelos séculos dos séculos, escrevia Expilly, pois — como os antigos — ele ensina às pessoas a falar bem, viver bem e morrer bem. Temos aqui a primeira indicação das transformações por que passaria Montaigne no espírito dos leitores ao longo dos séculos, à medida que cada geração o adotava como fonte de esclarecimento e sabedoria. Cada grupo de leitores encontrava nele mais ou menos o que esperava encontrar, e em muitos casos o que eles próprios depositavam na obra. O primeiro público de Montaigne foi o do alto Renascimento, cheio de neoestoicos e neoepicuristas fascinados pela questão de como viver bem e como alcançar a eudaimonia frente ao sofrimento. Eles o tomaram como um dos seus, transformando-o num best-seller. Desse modo, lançavam as bases de sua fama póstera como filósofo pragmático e guia na arte de viver. MONTAIGNE ESCRAVIZADO

O truque de Montaigne de absorver La Boétie em si mesmo, como se fosse um fantasma ou alguém que secretamente compartilhasse tudo que fazia, talvez parecesse ir de encontro a seu plano de se distrair da dor. Mas à sua maneira era efetivamente uma forma de diversão,

desviando-o dos pensamentos de perda para uma nova forma de conceber sua vida presente. Abriu-se uma fenda entre seu ponto de vista e aquele que imaginava seria adotado por La Boétie, de tal maneira que, a qualquer instante, ele podia passar de um a outro. Terá talvez surgido daí a ideia de que, como escreveu em outro momento, “somos, não sei como, duplos em nós mesmos”. O próprio Montaigne observou que talvez não tivesse escrito Os ensaios se não houvesse aberto esse espaço em si mesmo. Se tivesse “alguém com quem conversar”, escreveu, talvez tivesse publicado apenas cartas, uma forma literária mais convencional. Em vez disso, precisou desenvolver interiormente seu diálogo com La Boétie. O crítico moderno Anthony Wilden comparou essa manobra à dialética senhor/escravo na filosofia de G. W. F. Hegel: La Boétie tornou-se o senhor imaginário de Montaigne, ordenando-lhe que trabalhasse, enquanto Montaigne se transformou no escravo dócil que sustentava a ambos com o trabalho da escrita. Era uma forma de “servidão voluntária”. Dela nasceu Os ensaios, quase como um subproduto do truque adotado por Montaigne para enfrentar a dor e a solidão. A morte de La Boétie certamente impôs a Montaigne uma escravidão literária mais terra a terra, na forma de uma pilha de manuscritos inéditos. Eles não eram particularmente incomuns ou originais, à exceção de Da servidão voluntária (presumindo-se que fosse de fato obra de La Boétie), mas mereciam melhor destino que o acúmulo de poeira. Fosse porque La Boétie lhe pedira ou por iniciativa própria, Montaigne transformava-se em editor póstumo do amigo — um trabalho exigente, que deu impulso a sua própria carreira literária.

Surpreendentemente, considerando-se seu temperamento disciplinado, os manuscritos de La Boétie estavam ao que parece completamente desordenados. Numa das dedicatórias da publicação, Montaigne diz ter “diligentemente reunido tudo que estivesse completo entre seus cadernos de anotações e papéis espalhados aqui e ali”. Era uma tarefa formidável, mas ele encontrou muitas coisas dignas de publicação, entre elas os sonetos de La Boétie. Havia também traduções de textos clássicos, como a carta de Plutarco à mulher consolando-a da morte do filho e a primeira tradução francesa jamais feita do Oeconomicus de Xenofonte, um tratado sobre a arte da boa gestão de terras e propriedades — tema relevante para Montaigne, que estava para abrir mão de sua carreira em Bordeaux. Tendo organizado os manuscritos, Montaigne acompanhou a impressão de uma coletânea. Viajou então a Paris para entrar em contato com os editores e promover a publicação. Para cada um dos textos de La Boétie, ele prestava homenagem a um patrono, elaborando polidas e obsequiosas dedicatórias a pessoas influentes como Michel de L’Hôpital e vários notáveis de Bordeaux — assim como sua própria mulher, no caso da carta de Plutarco. Por mais convencional que fosse o gênero da “epístola de dedicatória”, as que saíram da sua pena eram vivazes e cheias de personalidade. Ele também acresceu o livro de um texto de caráter ainda mais pessoal: seu relato da morte de La Boétie. Todo esse empenho confirma a impressão de que ele estabelecera uma parceria literária com a memória de La Boétie, e de que os dois podiam contemplar um grande futuro juntos. A experiência muito ensinou a Montaigne a respeito do mundo editorial e do que os parisienses da moda gostavam de ler, informações que haveriam de se revelar úteis.

O relato da morte de La Boétie foi publicado em forma de uma carta ao pai de Montaigne: uma estranha escolha. É possível que Pierre o tivesse exortado a escrevê-la. Ele certamente já o fizera antes. Por volta de 1567, incumbira o filho de uma missão literária das mais desafiadoras, que também contribuíra para transformá-lo num escritor. Esta anterior solicitação parece ter representado uma tentativa de Pierre de livrar o filho de uma constante tendência à ociosidade; era mais um daqueles “truques” impingidos em benefício da vítima. Mesmo já entrado na casa dos trinta, Montaigne ainda tinha algo de um adolescente ressentido. Estava insatisfeito com a carreira de magistrado, nada interessado na vida de cortesão, torcendo o nariz para o direito e indiferente à gestão e à ampliação da propriedade. Além disso, não obstante seu interesse pela literatura, não dava sinais de se empenhar muito em escrever. É possível que Pierre, dando-se conta de que não viveria muito mais, tenha sentido que Montaigne precisava preparar-se para as responsabilidades de que logo seria investido. Estava na hora de enfrentar um desafio. Micheau queria escrever: muito bem, que escreva! Pierre entregou-lhe um volume de 500 páginas in folio escrito por um teólogo catalão mais de um século antes, num latim inflado, e disse: “Meu filho, por favor me traduza isto para o francês quando tiver um tempinho.” Teria sido uma boa maneira de afastar Montaigne dos cometimentos literários pelo resto da vida; e talvez fosse mesmo o que Pierre tentava fazer. Por sorte, contudo, o livro não era apenas longo e tedioso. Também apregoava um tipo de teologia detestado por Montaigne, o que o tirou da letargia. Mais que o trabalho nos originais de La Boétie, mais talvez até que a elaboração da carta descrevendo os últimos momentos do amigo, a tradução solicitada pelo pai

acendeu a fagulha que um dia arderia plenamente em Os ensaios. O livro intitulava-se Theologia naturalis, sive liber creaturarum (Teologia natural, ou livro das criaturas). O autor, Raymond Sebond, o havia escrito em 1436, mas ele só seria publicado em 1484, ainda assim muito antes da época de Montaigne e Pierre. Fora dado a Pierre por um dos amigos livrescos que gostava de cultivar, mas o latim era difícil demais para ele, de modo que o volume ficou relegado numa pilha de papéis. Anos depois, examinando a pilha, algo no livro, talvez sua espessa e resistente inescrutabilidade, trouxe-lhe à mente o filho meio desencaminhado. A decisão de Pierre de deixá-lo de lado quando deixou e, mais tarde, tirá-lo do esquecimento pode ter tido a ver com o fato de o livro inicialmente ter sido condenado pela Igreja, para depois voltar a cair em suas graças. Theologia naturalis foi incluído no Índex de livros proibidos em 1558 mas retirado em 1564, pois preconizava um tipo de teologia “racional” a cujo respeito a Igreja vivia mudando de ideia. O debate centrava-se na alegação de que as verdades religiosas podiam ser comprovadas por argumentos racionais ou pelo exame de provas encontradas na natureza. Sebond considerava que esta comprovação era possível, o que o situava em posição diametralmente oposta à de Montaigne e, por certo período, à da Igreja. Montaigne tendia mais para uma posição conhecida como fideísmo, que não depositava qualquer expectativa na razão ou no esforço humano, negando que os homens pudessem alcançar o conhecimento de verdades religiosas senão pela fé. Montaigne talvez não tivesse tanta necessidade de fé, mas sentia profunda aversão à pretensão humana — e o resultado era o mesmo.

Assim foi que Montaigne se viu diante da tarefa de traduzir 500 páginas de argumentação teológica destinada a comprovar uma afirmação de que discordava. “Foi uma ocupação muito estranha e nova para mim”, escreveu. Em Os ensaios, ele tentou fazer parecer que tinha abordado a tarefa com desprendimento. “Como na época eu estava por acaso desocupado”, disse, “e incapaz de desobedecer a qualquer ordem do melhor pai que jamais existiu, tratei de me desempenhar da melhor maneira possível”. Mas deve ter sido um projeto e tanto, demandando um ano ou mais para sua conclusão. É provável que ele próprio se tenha surpreendido com o resultado alcançado. O trabalho o estimulou como a areia a uma ostra. Enquanto escrevia, devia pensar o tempo todo: “Mas... mas...” e mesmo “Não! Não!”. Sentiu-se forçado a questionar as próprias ideias. Ainda que naquele momento não questionasse o texto profundamente, ele certamente o fez quando veio a ser convidado alguns anos depois (provavelmente por Marguerite de Valois, a irmã do rei, mulher do protestante Henrique de Navarra) a escrever um ensaio em defesa do livro — ou seja, a defender uma obra que considerava indefensável. Este viria a ser seu “Apologia de Raymond Sebond”, o décimo segundo capítulo do Livro II de Os ensaios. Trata-se, de longe, do texto mais longo do livro, quase absurdamente desproporcional em relação ao resto. Na edição de 1580, os outros 93 capítulos têm em média nove páginas e meia, enquanto a “Apologia” ocupa 248. Estilisticamente, contudo, ele se encaixa perfeitamente. Encanta o leitor e entretece complexos padrões de digressão, tal como os demais capítulos, conferindo peso a Os ensaios sob vários aspectos. Sem ele, o livro teria exercido menos influência nos séculos

posteriores. Teria sido menos detestado, por alguns, mas também menos lido. “Apologia” significa “defesa”; e de fato o ensaio começa como uma defesa de Sebond. Mas persiste nesta linha por aproximadamente meia página, desviando-se para algo muito diferente: algo muito mais parecido com um ataque. Como diria mais tarde o crítico Louis Cons, ele apoia Sebond “como a corda dá apoio ao enforcado”. Como, então, chamar o texto de “apologia”? O truque de Montaigne é simples. Ele alega estar defendendo Sebond dos que tentaram atacá-lo recorrendo a argumentos racionais. E o faz demonstrando que os argumentos racionais, em geral, são falíveis, pois não se pode confiar na própria razão humana. Assim, ele defende um racionalista frente a outros racionalistas, sustentando que qualquer coisa que se baseie apenas na razão não tem valor. A defesa de Montaigne solapa os inimigos de Sebond, é bem verdade, mas solapa ainda mais fatalmente o próprio Sebond. E disto ele teria, é claro, perfeita consciência. Não obstante a extensão e a complexidade, o ensaio é invariavelmente interessante. Isto porque Montaigne adota uma técnica de Plutarco, construindo sua argumentação pelo acúmulo de estudos de caso. Histórias e fatos se derramam a cada parágrafo feito flores de uma cornucópia. Praticamente cada história constitui um exemplo e uma ilustração da inutilidade da razão humana, da debilidade dos poderes humanos e do grau de tolice e ilusão de cada um — incluindo dele mesmo, Montaigne, como reconhece alegremente. Muitos exemplos derivam do próprio Plutarco. Mas a força propulsora por trás dessa “Apologia” nada apologética não é de Plutarco — ou não é apenas sua. Ela provém da terceira

das grandes filosofias helenísticas, a mais estranha delas: o ceticismo pirrônico.

7. P. Como viver? R. Questione tudo SÓ SEI QUE NADA SEI, E NEM DISTO ESTOU CERTO

A

o lado do estoicismo e do epicurismo, o ceticismo parece um elemento discrepante. Os outros dois parecem caminhos óbvios em direção à tranquilidade e ao “desabrochar humano”, ensinando a cada um como se preparar para as dificuldades da vida, a prestar atenção, desenvolver bons hábitos de pensamento e praticar truques terapêuticos em si mesmo. O ceticismo já parece algo mais limitado. Um cético é considerado alguém que está sempre em busca de provas, duvidando de tudo em que as outras pessoas acreditam à primeira vista. Parece que estão envolvidas apenas questões ligadas ao conhecimento, e não a questão de saber como viver. No Renascimento, contudo, e no mundo clássico em que o ceticismo surgiu, juntamente com as outras filosofias pragmáticas, ele era encarado de maneira diferente. Como as outras, o ceticismo redundava numa forma de terapia. Era, pelo menos, o que se poderia dizer do ceticismo pirrônico, originado pelo filósofo grego Pirro, que morreu aproximadamente em 275 a.C., e posteriormente desenvolvido com maior rigor por Sexto Empírico no segundo século da nossa era. (O ceticismo “dogmático” ou “acadêmico”, o outro tipo dessa filosofia, teve menor alcance.) Podemos ter uma ideia do estranho efeito do pirronismo sobre as pessoas pela reação de Henri Estienne, quase contemporâneo de Montaigne e primeiro tradutor francês de Sexto Empírico, ao ter contato com as Hypotyposes de Sexto. Trabalhando certo dia em sua biblioteca, mas sentindo-se doente e cansado para levar

adiante as tarefas habituais, ele encontrou um exemplar ao remexer numa velha caixa de manuscritos. Mal começou a ler e se viu rindo tão desabridamente que esqueceu o cansaço e recobrou a energia intelectual. Outro estudioso da época, Gentian Hervet, teve uma experiência semelhante. Também deparou com Sexto por acaso, na biblioteca de seu patrão, e viu abrir-se a sua frente todo um mundo de leveza e prazer. A obra não servia tanto para instruir ou convencer os leitores, mas para fazê-los sorrir. Um leitor moderno que percorresse as Hypotyposes talvez se perguntasse o que havia ali de tão divertido. O livro realmente contém alguns exemplos curiosos, como tantas vezes acontece em livros de filosofia, mas não parece assim tão engraçado. Não fica claro por que teria curado Estienne e Hervet de seu tédio — ou por que teve tanto impacto em Montaigne, que o consideraria o perfeito antídoto para Raymond Sebond e suas ideias solenes e pomposas sobre a importância humana. A chave do truque é a revelação de que nada na vida precisa ser levado a sério. O pirronismo nem sequer se leva a sério. O ceticismo dogmático comum declara a impossibilidade do conhecimento, resumindo-se na observação de Sócrates: “Só sei que nada sei.” O ceticismo pirrônico começa deste ponto, mas então acrescenta: “E nem mesmo disto estou certo.” Tendo afirmado seu único princípio filosófico, ele dá a volta num círculo e se autodevora, deixando para trás apenas uma baforada de absurdo. Assim é que os pirrônicos encaram os problemas que a vida lhes venha a apresentar recorrendo a uma única palavra que resume esta manobra: em grego, epokhe, que significa “suspensão do julgamento”. Ou, numa versão diferente exposta em francês pelo próprio Montaigne, je

soutiens: “Eu retenho.” Essa frase vence qualquer inimigo, desmonta-o de tal maneira que ele se desintegra em átomos diante de nossos olhos. Isto parece tão pouco animador quanto o conceito estoico ou epicurista de “indiferença”. Mas, assim como as outras ideias helenísticas, funciona, e é o que importa. A epokhe funciona quase como os intrigantes koans do zen-budismo: conceitos lacônicos e enigmáticos ou perguntas sem resposta como “Qual é o som de uma mão aplaudindo?”. Inicialmente, esses enunciados causam apenas perplexidade. Mais adiante, abrem caminho para uma sabedoria que tudo abarca. Esta semelhança entre o pirronismo e o zen-budismo talvez não seja acidental: Pirro visitou a Pérsia e a Índia com Alexandre, o Grande, interessando-se pela filosofia oriental — não pelo zenbudismo, que ainda não existia, mas por certos precursores. O truque da epokhe nos faz rir e nos sentir melhor porque nos liberta da necessidade de encontrar uma resposta clara para tudo. Para usar um exemplo de Alan Bailey, historiador do ceticismo, se alguém afirma que o número de grãos de areia no Saara é par, exigindo sua opinião a respeito, sua resposta mais natural poderia ser: “Não tenho uma resposta” ou “Como poderia saber?”. Ou então, se quiser parecer mais filosófico: “Mantenho meu julgamento em suspenso” – epokhe. Se outra pessoa disser: “Besteira! É claro que o número de grãos de areia no Saara é ímpar”, você ainda assim diria epokhe, no mesmo tom inalterável. Na verdade, você responde com a afirmação impassível que o próprio Sexto citou como definição de epokhe: Não sei dizer qual das coisas propostas eu deveria considerar convincente e qual não deveria considerar convincente.

Ou então: No momento não me sinto inclinado a postular dogmaticamente nem a rejeitar qualquer dos elementos contemplados nesta investigação. Ou ainda: A toda explicação por mim examinada que pretenda estabelecer alguma coisa dogmaticamente, parece-me que se opõe outra explicação pretendendo estabelecer algo dogmaticamente equivalente à anterior em capacidade persuasória ou na falta dela. Esta última formulação, em especial, deveria ser memorizada, por sua utilidade no sentido de calar qualquer um que venha com alegações absurdas sobre o Saara ou o que quer que seja. Ao enunciá-la, sentimos uma espécie de calma mental se apoderar de nós. Não temos como saber a resposta e percebemos que isto não importa, de modo que a ausência de comprometimento não causa angústia. Para um pirrônico, isto se aplica mesmo quando as questões são mais complexas. Estaria certo mentir para alguém para fazê-lo sentir-se melhor? Epokhe. Meu gato é mais bonito que o seu? Eu sou mais bondoso que você? O amor traz a felicidade? Existem guerras justas? Epokhe. E assim por diante. Um autêntico pirrônico mantém o julgamento suspenso mesmo diante de perguntas que para as pessoas comuns deveriam ter uma resposta óbvia. As galinhas botam ovos? As outras pessoas realmente existem? Estou olhando neste momento para uma xícara de café? É epokhe o tempo todo. Os pirrônicos não o faziam para se desestabilizar profundamente, atirando-se num vórtice paranoide de

dúvidas, mas para alcançar um estado de relaxamento frente a tudo. Era o caminho que haviam encontrado para a ataraxia — meta por eles compartilhada com os estoicos e os epicuristas — e, portanto, para a alegria e o desabrochar humano. A vantagem mais óbvia é que os pirrônicos não precisavam preocupar-se com o erro. Se levam a melhor numa discussão, eles mostram que estão certos. Se saem perdendo, isto prova apenas que estavam certos ao duvidar do próprio conhecimento. Isto os torna ao mesmo tempo muito tranquilos e muito teimosos. Eles gostam de sustentar pontos de vista impopulares, por puro divertimento. Escreveu Montaigne: Se alguém afirma que a neve é negra, eles sustentam, em sentido inverso, que é branca. Se alguém disser que não é uma coisa nem outra, cabe a eles sustentar que ela é ambas as coisas. Se você diz, com certo discernimento, que nada sabe a respeito, eles retrucarão que sabe. Sim, e se você lhes afirmar, num axioma taxativo, que está em dúvida a respeito, eles insistirão em argumentar que não é verdade, ou que você não tem como avaliar e provar que está em dúvida. A essa altura, eles provavelmente terão sido calados com um murro no nariz, mas nem assim se incomodam, pois não os perturba a ideia de alguém irritado com eles, nem tampouco se deixam abater mais que o necessário pela dor física. Quem pode afirmar que a dor é pior que o prazer? E se um caco de osso penetrar em seu cérebro e matá-los, e daí? Acaso é melhor viver que morrer? “Salve, sossego cético!”, escreveu o poeta irlandês Thomas Moore, muito depois de Montaigne:

Deixadas para trás as ondas do erro, Como é doce tocar enfim seu porto seguro, E suavemente ondulando na dúvida, Sorrir dos ventos fortes que lá fora guerreiam! Tão imenso era esse sossego que podia apartar totalmente os céticos das pessoas comuns — muito embora, ao contrário dos epicuristas em seu Jardim, eles preferissem continuar envolvidos no mundo real. Corriam histórias extraordinárias sobre o próprio Pirro. Ele era considerado tão indiferente e tranquilo que não reagia a nada. Caminhando, não mudava de rumo nem mesmo diante de precipícios ou carroças que se aproximavam, de modo que os amigos tinham de estar constantemente intervindo para salvá-lo. E, como recordaria Montaigne, “quando começava a dizer algo, nunca deixava de ir até o fim, ainda que aquele com quem falava se tivesse afastado”, pois não queria deixar-se apartar da realidade interna pelas alterações externas. Mas outros relatos deixam transparecer que nem mesmo Pirro era capaz de se manter todo o tempo em perfeita indiferença. Um amigo o surpreendeu “em exaltada altercação” com a irmã, acusando-o de trair os próprios princípios. “Mas como? Acaso deve esta tola servir também de prova das minhas próprias regras?”, retrucou Pirro. Em outra ocasião, sendo visto a se defender de um cão enfurecido, ele reconheceu: “É muito difícil despir completamente o homem.” Montaigne adorava os dois tipos de histórias: as que mostravam Pirro radicalmente distante dos comportamentos normais e também aquelas em que parecia simplesmente humano. E, como autêntico cético, ele tentava suspender o julgamento a respeito de todas

elas. Considerava mais provável, todavia, que Pirro fosse um homem comum como ele mesmo, apenas tentando enxergar com clareza e não deixar de dar às coisas seu devido valor. Ele não queria se transformar numa pedra ou num pedaço de tronco; queria tornar-se um homem vivo, pensante, dotado de razão, desfrutando dos prazeres e confortos da natureza, valendo-se de todas as suas faculdades corporais e espirituais. Segundo Montaigne, Pirro abria mão apenas da pretensão da qual a maioria das pessoas era refém: a de “arregimentar, manipular e fixar a verdade”. Era o que verdadeiramente interessava a Montaigne na tradição cética: não tanto a abordagem radical do empenho de evitar a dor e o sofrimento (neste sentido, ele preferia os estoicos e os epicuristas, que pareciam sintonizados mais de perto com a vida real), mas o desejo de encarar tudo de maneira transitória e questionadora. Era o que ele mesmo sempre tentara fazer. Para manter sempre em mente essa meta, mandou cunhar em 1576 uma série de medalhas, com a inscrição da palavra mágica de Sexto, epokhe (grafada erradamente como epekho), ao lado de suas armas e do símbolo da balança. As balanças são outro símbolo pirrônico, destinado a lembrá-lo sempre de manter o equilíbrio e pesar bem as coisas, em vez de apenas aceitálas. As imagens por ele usadas eram incomuns, mas o mesmo não se pode dizer da ideia de inscrever coisas tão pessoais em medalhas ou jetons: era uma moda da época, funcionando ao mesmo tempo como lembrete e sinal de pertencimento ou identidade. Se Montaigne fosse um jovem

do início do século XXI, e não do século XVI, provavelmente o teria feito em forma de tatuagem. Se a medalha realmente se destinava a lembrar-lhe seus próprios princípios, funcionou: o ceticismo o guiava no trabalho, na vida doméstica e na escrita. Os ensaios está impregnado dele: suas páginas estão cheias de vocábulos e expressões como “talvez”, “em certa medida”, “eu acho”, “parece-me” e assim por diante — formulações que, no dizer do próprio Montaigne, “abrandam e moderam a dureza de nossas afirmações”, exemplificando o que o crítico Hugo Friedrich chamava de sua filosofia da “modéstia”. Não se trata de floreios supérfluos, mas do próprio pensamento de Montaigne, em seu estado mais puro. Ele não se cansava desse tipo de pensamento, ou de estontear a própria mente contemplando os milhões de vidas vividas ao longo da história e a impossibilidade de saber a verdade a seu respeito. “Ainda que tudo que a nós chegou por relatos do passado fosse verdadeiro e conhecido por alguém, seria menos que nada em comparação com o que é desconhecido.” Quão insignificante é o conhecimento até mesmo da pessoa mais curiosa, refletia ele, e como é assombroso, em comparação, o mundo. Para citar Hugo Friedrich novamente, Montaigne tinha uma “profunda necessidade de se surpreender com o que é único, o que não pode ser classificado, o misterioso”. E de tudo que era misterioso, nada o espantava mais que ele mesmo, o mais insondável dos fenômenos. Incontáveis vezes, ele se apanhou mudando de opinião de um polo ao outro, ou pulando de uma emoção a outra em questão de segundos. Minha base é tão instável e insegura, acho-a tão vacilante e pronta a resvalar, e minha visão é tão

falível, que de estômago vazio sinto-me um outro homem que depois de uma refeição. Se minha saúde me sorri, assim como o brilho de um belo dia, sou um excelente sujeito; se um grão de milho me machuca o dedo do pé, mostro-me mal-humorado, desagradável e inabordável. Nem mesmo suas percepções mais simples merecem confiança. Quando ele está com febre ou tomou um remédio, tudo tem um sabor diferente ou se apresenta com outras cores. Um mero resfriado basta para toldar a mente; a demência viria um dia a tirá-la completamente de esquadro. O próprio Sócrates podia ser transformado num perfeito idiota por um derrame ou alguma lesão cerebral, e se fosse mordido por um cão raivoso começaria a dizer absurdos. A saliva do cão podia tornar “toda a filosofia, se ela fosse encarnada, doida varrida”. E é precisamente esta a questão: para Montaigne, a filosofia é encarnada. Ela vive em seres humanos individuais e falíveis, estando portanto permeada de incerteza. “Os filósofos, ao que me parece, praticamente nunca abordavam esse ângulo.” E o que dizer das percepções das diferentes espécies? Acertadamente, Montaigne supõe (como fizera Sexto antes dele) que outros animais enxergam as cores de forma diferente dos seres humanos. Seremos talvez nós, e não eles, que as vemos “erradamente”. Não temos como saber quais são efetivamente as cores. Os animais têm faculdades que em nós são débeis ou inexistentes, e talvez algumas delas sejam essenciais para o pleno entendimento do mundo. “Formamos uma verdade através da cooperação e orientação de nossos cinco sentidos; mas talvez precisemos da convergência de oito ou dez sentidos, com suas

contribuições, para percebê-la com certeza e em sua essência.” Esta observação aparentemente casual na verdade postula uma ideia chocante: que é possível que nossa própria natureza nos impeça de ver as coisas como elas são. A perspectiva de um ser humano talvez não seja meramente tendente a erros eventuais, mas limitada por definição, exatamente como em geral (e de forma arrogante) presumimos ser a inteligência de um cão. Só alguém com excepcional capacidade de escapar ao próprio ponto de vista imediato poderia alimentar semelhante ideia, e era precisamente este o talento de Montaigne: saber esquivar-se à visão pessoal para dar uma olhada em si mesmo com uma pirrônica suspensão de julgamento. Nem mesmo os criadores do ceticismo foram tão longe. Duvidavam de tudo ao seu redor, mas geralmente não levavam em conta quanto estavam implicados no mais recôndito de suas almas nessa incerteza geral. Montaigne o fazia o tempo todo: Nós, e nosso julgamento, e todas as coisas mortais estão incessantemente fluindo e girando. Desse modo, nada certo se pode estabelecer sobre uma coisa em detrimento de outra, estando o que julga e o que é julgado em contínuo movimento e mudança. Pode parecer um beco sem saída, vedando toda possibilidade de conhecer o que quer que seja, já que nada pode ser avaliado em relação a nada, mas também pode ser uma abertura para uma nova maneira de viver. Torna tudo mais complicado e mais interessante: o mundo se transforma numa vasta paisagem multidimensional em que cada ponto de vista deve ser levado em consideração.

Precisamos apenas lembrar este fato, para nos “tornarmos sábios a nossas próprias custas”, no dizer de Montaigne. Mesmo para ele, a disciplina da atenção exigia constante esforço: “Realmente devemos empenhar nossa alma no esforço de tomar consciência de nossa própria falibilidade.” Seu Os ensaios ajudava. Ao escrevê-lo, ele se posicionava como um rato de laboratório e ao mesmo tempo se contemplava de lápis e papel na mão. Cada esquisitice constatada o enchia de júbilo. Ele sentia prazer até nos lapsos de memória, pois serviam para lembrá-lo de suas falhas, livrando-o do erro de insistir em que estava sempre certo. Havia apenas uma exceção a essa regra de “tudo questionar”: ele fazia questão de deixar claro que considerava sua fé religiosa acima de qualquer dúvida. Aceitava os dogmas da Igreja Católica, e ponto final. Isto pode surpreender os leitores modernos. Hoje, o ceticismo e a religião institucionalizada são em geral considerados em polos opostos, representando esta última a fé e a autoridade, enquanto o primeiro se alia à ciência e à razão. Na época de Montaigne, as linhas divisórias eram traçadas de outra maneira. Em seu sentido moderno, a ciência ainda não existia, e a razão humana só raramente era considerada algo que se impusesse por si mesmo, sem o respaldo de Deus. A ideia de que a mente humana fosse capaz de descobrir algo por si mesma era exatamente a idea a cujo respeito os céticos podiam mostrar-se mais céticos. E a Igreja dava então primazia à fé sobre a “teologia racional”, de modo que naturalmente via no pirronismo um aliado. Atacando a arrogância humana, o ceticismo pirrônico mostrava-se particularmente útil frente à “inovação” do protestantismo, que dava prioridade ao raciocínio individual e à consciência sobre o dogma.

Assim foi que, durante várias décadas, o catolicismo abraçou o pirronismo, corroborando livros como a tradução de Sexto por Henri Estienne e Os ensaios de Montaigne como antídotos valiosos à heresia. Montaigne ajudou com seus ataques à arrogância racional, e também com as muitas outras declarações abertas de fideísmo espalhadas por sua obra. A religião, escreveu, deve chegar a nós vinda de Deus, por meio de uma “infusão extraordinária”, e não mediante nossos próprios esforços. Deus entra com o saquinho de chá, e nós com a água e a xícara. E, se não recebermos diretamente a infusão, basta confiar na Igreja, que é uma espécie de samovar autorizado, cheio de uma fé pré-fermentada. Montaigne deixava claro reconhecer o direito da Igreja de governá-lo em questões religiosas, chegando mesmo a policiar seus pensamentos. Numa época em que as pessoas corriam atrás de novidades, escreveu, o princípio da obediência cega o salvara muitas vezes: Caso contrário, eu não conseguiria me impedir de estar constantemente rolando daqui para ali. Assim foi que, pela graça de Deus, mantive-me intacto, sem agitação ou perturbação da consciência, nas antigas crenças da nossa religião, em meio a tantas seitas e divisões geradas por nosso século. É difícil dizer se as perturbações que ele tinha em mente eram espirituais, ou se estava pensando mais no inconveniente de ser chamado de herético e ver seus livros queimados. O fideísmo podia ser um bom pretexto para os secretamente descrentes. Tendo rendido preito a Deus e se imunizado contra acusações de irreligiosidade, o indivíduo podia teoricamente mostrar-se tão secular quanto quisesse. Que acusação poderia ser feita contra alguém que preconizava a submissão a Deus e à doutrina da Igreja em

cada detalhe? Na verdade, a Igreja acabou por se dar conta do perigo, e no século seguinte lançara descrédito sobre o fideísmo. Àquela altura, no entanto, quem quisesse tomar esse rumo podia fazê-lo impunemente. Estaria Montaigne nessa categoria? É verdade que ele dava poucos sinais de real interesse pela religião. Os ensaios nada tinha a dizer sobre a maioria das ideias cristãs: ele parece indiferente aos temas do sacrifício, do arrependimento ou da salvação, e não demonstra medo do Inferno nem anseio pelo Céu. A ideia de que existem bruxas e demônios em ação no mundo merece menos atenção que a de que existem gatos hipnotizando pássaros para que caiam das árvores. Quando cisma a respeito da morte, Montaigne parece esquecer que supostamente acredita na vida após a morte. Diz coisas assim: “Mergulho de cabeça, estupidamente, na morte (...) como se fosse um abismo silencioso e escuro que me engole de um só golpe e me subjuga num instante com um sono pesado, livre de sentimentos e dor.” Os teólogos do século seguinte ficavam horrorizados com essa imagem da ausência de Deus. Outro tema pelo qual Montaigne não demonstra interesse é Jesus Cristo. Ele escreve sobre a morte digna de Sócrates e Catão de Útica, mas não se lembra de mencionar a crucificação. O mistério sagrado da redenção o deixa indiferente. Ele se preocupa muito mais com a moralidade secular, envolvendo questões de compaixão e crueldade. Como resumiu o crítico moderno David Quint, Montaigne provavelmente interpretaria a mensagem de Cristo crucificado à humanidade como “Não crucifiquem as pessoas”. Por outro lado, é improvável que Montaigne fosse um ateu de carteirinha. No século XVI, praticamente ninguém o era. E não seria surpreendente descobri-lo genuinamente

atraído pelo fideísmo. Ele combinava ao mesmo tempo com sua filosofia cética e seu temperamento pessoal, pois não obstante seu amor à independência ele muitas vezes preferia abrir mão do controle, especialmente de coisas que não o interessassem muito. Além disso, o que quer que realmente pensasse do Deus de elevação do fideísmo, era muito maior sobre ele a atração do que está aqui embaixo. Seja como for, o resultado é que ele levou a vida sem enfrentar problemas sérios com a Igreja: um feito e tanto para um homem que escrevia com tanta liberdade, vivendo na fronteira entre terras católicas e protestantes e ocupando cargos públicos numa época de guerras religiosas. No período da década de 1580 em que viajou pela Itália, funcionários da Inquisição chegaram a examinar Os ensaios, fazendo uma lista de pequenas objeções. Uma delas dizia respeito ao uso da palavra “Fortuna”, em vez da expressão oficial “Providência”. (Providência vem de Deus, abrindo espaço para o livre-arbítrio; Fortuna se refere a algo além do nosso controle.) Outras centravam-se no fato de ele citar poetas heréticos, tentar desculpar o imperador apóstata Juliano, considerar cruel qualquer coisa mais severa que uma simples execução e recomendar que as crianças fossem criadas com liberdade e naturalidade. Mas a Inquisição não se preocupou com sua visão da morte, suas reservas quanto aos processos por bruxaria ou muito menos seu ceticismo. Na verdade, foi o ceticismo de Os ensaios que lhe conferiu tanto sucesso na primeira publicação, juntamente com o estoicismo e o epicurismo nele evidenciados. Ele despertava o interesse de leitores refletidos e independentes, mas também dos religiosos mais ortodoxos. Agradava a homens como Florimond de Raemond, colega de Montaigne em Bordeaux, católico zeloso que em seus

escritos tinha como tema favorito a iminente chegada do Anticristo e o advento do Apocalipse. Raemond recomendava que as pessoas lessem Montaigne para se fortalecer contra a heresia, louvando em especial a “bela Apologia”, por sua abundância de relatos demonstrando como sabemos pouco deste mundo. Tomou emprestadas várias dessas histórias num capítulo de sua obra L’Antichrist, intitulado “Coisas estranhas cujas razões desconhecemos”. Por que um elefante enfurecido se acalma ao dar com uma ovelha?, perguntava. Por que um touro indomável torna-se dócil ao ser amarrado a uma figueira? E como exatamente uma rêmora prende pelas garras o casco de um navio ao mar? Raemond mostra-se tão amável e demonstra tão vívido espanto ante as maravilhas da natureza que precisamos nos beliscar para lembrar que ele acreditava na iminência do fim do mundo. O fideísmo suscitava com efeito aproximações muito estranhas: extremistas e moderados seculares se juntavam no desejo de se assombrar com a própria ignorância. Desse modo, o Montaigne da fase inicial era adotado pelos ortodoxos como um devoto e sábio cético, um novo Pirro e também um novo Sêneca: o autor de um livro ao mesmo tempo consolador e de aprimoramento moral. Parece surpreendente, assim, que no fim do século seguinte fosse evitado com horror, sendo Os ensaios incluído no Índex de livros proibidos, para nele permanecer por quase 180 anos. O problema começou com a discussão de um tema que poderia parecer de menor importância: os animais. ANIMAIS E DEMÔNIOS

O truque favorito de Montaigne para solapar a vaidade humana era contar histórias de animais como as que tanto intrigavam Florimon de Raemond — muitas extraídas de Plutarco. Ele as apreciava porque eram divertidas, mas tinham um propósito sério. Os contos sobre a inteligência e a sensibilidade dos animais demonstravam não só que as capacidades humanas estavam longe de ser excepcionais, mas, principalmente, que os animais fazem muitas coisas melhor que nós. Os animais podem mostrar-se muito aptos, por exemplo, à ação cooperativa. Os bois, os porcos e outros animais formam grupos para se defender. Quando um peixepapagaio é fisgado por um pescador, outro vem mastigar a linha do anzol para libertá-lo. Ou então, quando um deles é apanhado na rede, outros projetam a cauda pela rede para que ele a agarre com os dentes e seja puxado para fora. Até mesmo espécies diferentes colaboram dessa maneira, como o peixe-piloto que guia a baleia ou o pássaro que palita os dentes do crocodilo. O atum demonstra uma sofisticada compreensão da astronomia: ao chegar o solstício de inverno, o cardume inteiro para exatamente onde se encontra na água e lá permanece até o seguinte equinócio de primavera. Esses peixes também têm conhecimentos de geometria e aritmética, pois já se observou que formam conjuntamente um cubo perfeito de seis lados iguais. Em termos morais, os animais se revelam pelo menos tão nobres quanto os seres humanos. Em matéria de arrependimento, quem pode superar o elefante, que ficou tão mortificado por ter matado seu guardião num acesso de fúria que se deixou morrer de fome? E que dizer da fêmea do alcião, ou martim-pescador, que fielmente carrega o companheiro ferido nos ombros, se necessário pelo resto da

vida? Esses amorosos pássaros também mostram gosto pela tecnologia: usam espinhas de peixe para construir uma estrutura que serve ao mesmo tempo de ninho e embarcação, cuidando até de testar a eventual existência de fendas com vazamento perto da praia, antes de lançá-la em mar aberto. Os animais nos superam nos mais diversos tipos de capacidades. Os seres humanos mudam de cor, mas de forma descontrolada: ficamos ruborizados quando envergonhados e pálidos quando assustados. Com isto, ficamos no mesmo nível que os camaleões, que também mudam ao sabor do acaso, mas muito aquém do polvo, capaz de misturar suas cores como e quando quiser. Nós e os camaleões só podemos contemplar com admiração o poderoso polvo — um verdadeiro choque para a vaidade humana. Apesar de tudo isto, nós, seres humanos, continuamos nos considerando diferentes de todas as demais criaturas, mais parecidos com deuses que com camaleões ou peixespapagaio. Nunca nos ocorre emparelhar-nos entre os animais ou nos colocarmos em seu lugar. Mal paramos para nos perguntar se eles acaso têm uma mente. Para Montaigne, contudo, basta observar um cão sonhando para perceber que deve ter um mundo interior, exatamente como o nosso. Uma pessoa sonhando sobre Roma ou Paris evoca interiormente uma Roma ou uma Paris insubstancial; da mesma forma, um cão sonhando com uma lebre certamente vê uma lebre desencarnada correndo em seu sonho. É o que podemos perceber pela agitação de suas patas: uma lebre está correndo à sua frente em algum lugar, embora “uma lebre sem pele nem ossos”. Exatamente como nós, os animais inventam fantasmas para povoar seu mundo interior.

As histórias de animais contadas por Montaigne pareceram ao mesmo tempo deliciosas e inócuas aos primeiros leitores. No mínimo, eram moralmente úteis, mostrando que os seres humanos são criaturas modestas que não podem esperar domínio ou compreensão de muita coisa nesse mundo de Deus. Entretanto, à medida que o século XVI passava à história e o XVII avançava, as pessoas foram ficando cada vez mais incomodadas com esta autoimagem de seres menos refinados ou capazes que um polvo. Parecia algo degradante, mais que um simples convite à humildade. Na década de 1660, a “Apologia”, onde se encontra a maioria desses histórias de animais, já não era encarada como um tesouro de sabedoria edificante. Mais ficava parecendo um estudo de caso de tudo aquilo que dera errado com a moral do século anterior. A fácil aceitação, em Montaigne, da falibilidade humana e de nosso lado animalesco era já agora algo a combater — quase um truque do próprio Diabo. Bem característica dessa nova atitude foi a denúncia feita do púlpito, em 1668, pelo bispo Jacques-Bénigne Bossuet. Segundo ele, Montaigne prefere os animais aos homens, seus instintos a nossa razão, sua natureza simples, inocente e direta (...) a nossos refinamentos e malícias. Mas diga-me, sutil filósofo, que se ri com tanta inteligência do homem, por se imaginar algo [mais que um animal], acaso considera como se nada significasse conhecer Deus? O tom desafiador era novidade, assim como o sentimento de que era preciso defender a dignidade humana de um inimigo “sutil”. O século XVII já não veria em Montaigne um sábio, enxergando nele um impostor subversivo. Suas histórias sobre animais e a desmistificação da pretensão

humana revelaram-se particularmente irritantes para dois dos maiores escritores da época: René Descartes e Blaise Pascal. Os dois não tinham a menor simpatia recíproca, o que torna tanto mais digno de nota o fato de terem convergido na desaprovação de Montaigne. René Descartes, o maior filósofo do início da era moderna, interessava-se pelos animais sobretudo como um contraste frente aos seres humanos. Os homens têm uma mente consciente e imaterial; são capazes de refletir sobre a própria experiência e dizer “eu penso”. Já os animais, não. Para Descartes, assim, eles carecem de alma, não passando de máquinas. São programados para andar, correr, dormir, bocejar, espirrar, caçar, rugir, coçar-se, construir ninhos, criar os filhotes, comer e defecar, mas fazem tudo isso como um mecanismo de autômato que tivesse suas engrenagens ativadas para se locomover ruidosamente pelo chão. Para Descartes, um cão não tem perspectiva nem real experiência. Não cria uma lebre em seu mundo interior para sair correndo atrás dela pelos campos. Pode fungar e retorcer as patas quanto quiser, que Descartes jamais verá aí mais que contrações musculares e excitação dos nervos, desencadeadas por operações igualmente mecânicas do cérebro. Descartes não seria capaz de trocar olhares com um animal. Montaigne, sim, e efetivamente o faz. Num trecho que ficou famoso, ele cismava: “Quando brinco com minha gata, quem poderia dizer se não sou eu um passatempo para ela mais do que ela para mim?” E acrescentava, em outra versão do texto: “Nós nos divertimos com macaquices recíprocas. Se tenho a possibilidade de começar ou recusar, ela também a tem.” Ele assume o ponto de vista da gata em relação a ele próprio com a mesma naturalidade com que assume o seu em relação a ela.

A pequena interação de Montaigne com a gata é um dos momentos mais encantadores de Os ensaios, além de importante. Traduz sua convicção de que todos os seres compartilham o mesmo mundo, embora cada criatura tenha uma maneira própria de percebê-lo. “Todo Montaigne está contido nesse comentário fortuito”, comentou um crítico. A gata de Montaigne ficou tão famosa que inspirou um artigo cheio de erudição, além de constar com verbete próprio no Dictionnaire de Montaigne, de Philippe Desan. Todo o talento de Montaigne para pular de uma perspectiva a outra vem a primeiro plano quando ele escreve sobre os animais. Achamos difícil entendê-los, diz ele, mas eles também devem considerar difícil entendernos. “Essa falha que compromete a comunicação entre eles e nós, por que seria de responsabilidade apenas deles, e não também nossa?” Temos uma compreensão medíocre do que eles querem dizer; e também eles quanto a nós, mais ou menos no mesmo grau. Eles nos lisonjeiam, nos ameaçam e imploram, e nós a eles. Montaigne não é capaz de olhar para sua gata sem vê-la devolvendo o olhar e imaginar-se enquanto olha para ela. É esse tipo de interação entre indivíduos que têm defeitos e são mutuamente conscientes de espécies diferentes que jamais aconteceria com Descartes, que ficava incomodado com essa noção, assim como outros tantos em seu século. No caso de Descartes, o problema estava no fato de toda a sua estrutura filosófica exigir um ponto de absoluta certeza, por ele encontrado numa consciência clara e sem qualquer comprometimento. Não poderia haver lugar, aqui, para as ambiguidades com que Montaigne costumava tornar vagas as fronteiras das coisas, como em suas

reflexões sobre um Sócrates enlouquecido ou furioso ou os sentidos superiores de um cão. As complicações que deleitavam Montaigne alarmavam Descartes. Ironicamente, entretanto, sua busca desse ponto de absoluta certeza decorria em grande medida de sua compreensão da dúvida pirrônica, tal como transmitida basicamente por Montaigne, o mais eminente pensador pirrônico do mundo moderno. A solução de Descartes ocorreu-lhe em novembro de 1619, quando, passado um período de viagens e observação da diversidade dos costumes humanos, ele se fechou num gabinete na Alemanha e, aquecido pelo lenho de um fogão, passou um dia inteiro pensando. Começou com o pressuposto cético de que nada é real e todas as suas convicções anteriores eram falsas. Avançou então lentamente, em passos cautelosos, “como um homem que caminha sozinho no escuro”, substituindo essas falsas crenças por outras, logicamente justificáveis. Era um progresso puramente mental: enquanto ele dava um passo após o outro, seu corpo permanecia junto ao fogo, onde podemos imaginá-lo contemplando as brasas durante horas a fio. A imagem de Descartes diante do fogão, quem sabe na posição recurvada do “Pensador” de Rodin, contrasta flagrantemente com a de Montaigne caminhando para cima e para baixo, apanhando livros nas prateleiras, distraindose, expondo ideias esquisitas aos criados para puxá-las pela própria memória e tendo suas melhores ideias em animadas discussões em jantares com vizinhos ou lendo no bosque. Mesmo em seu “retiro”, Montaigne costumava pensar num ambiente de grande vibração, povoado de objetos, livros, animais e pessoas. Descartes precisava da imobilidade do retraimento. Ao pé do fogão, Descartes gradualmente desfiava os elos de seu raciocínio, considerando cada um deles firmemente

preso ao anterior. Sua primeira descoberta foi sua própria existência: Penso, logo existo. Dessa base bem segura ele veio a estabelecer, valendose apenas da  dedução, que Deus devia existir, que sua própria ideia “clara e distinta” da existência de Deus devia proceder de Deus e, portanto, que tudo mais a cujo respeito tivesse uma ideia clara e distinta também devia ser verdadeiro. Ele exporia este último ponto com audácia ainda maior numa obra intitulada Meditações, na qual escreveu que “tudo aquilo que percebo clara e distintamente não pode deixar de ser verdadeiro” — certamente uma das afirmações mais espantosas de toda a filosofia, tão distante quanto possível da maneira de Montaigne de fazer as coisas. E no entanto procedia isto do ramo de ceticismo favorito de Montaigne, aquele que duvidava de tudo, até de si mesmo, plantando um enorme ponto de interrogação no coração da filosofia europeia. A cadeia de raciocínio supostamente infalível de Descartes pode parecer absurda, mas faz mais sentido no contexto das ideias do século anterior, às quais queria escapar. Tratava-se, acima de tudo, das duas grandes tradições transmitidas a sua geração por Montaigne: o ceticismo, que tudo desmantelava, e o fideísmo, que voltava a integrar tudo com base na fé. Descartes não queria acabar neste ponto. Ele podia ser tudo, menos um fideísta. De certa maneira, contudo, foi precisamente o que aconteceu: era uma tradição da qual era difícil esquivar-se. A verdadeira inovação de Descartes foi a força de seu desejo por certeza. Novo também era, de maneira geral, seu extremismo. Tentando livrar-se do ceticismo, ele o levou

a extremos até então inconcebíveis, como alguém que esticasse um pedaço de chiclete preso à sola do sapato. Estava fora de questão ficar flutuando indefinidamente na dúvida, como num “mar de especulações”. A incerteza não podia ser um meio de vida, como acontecia com Montaigne e os primeiros pirrônicos. Para Descartes, era uma etapa de crise. Dá para perceber sua desorientação quando ele escreve, em Meditações: A Meditação de ontem encheu minha mente de tantas dúvidas que já não tenho como esquecê-las (...) Não consigo fincar os pés com força no solo nem nadar para me manter na superfície. Era aí que o século XVII realmente se distinguia do mundo de Montaigne: na descoberta de que havia algo de pesadelo no ceticismo. Nessa “Meditação de ontem”, Descartes — sempre muito habilidoso para expor ideias por vívidas metáforas — chegara a personificar suas incertezas numa figura realmente horrorosa: Vou supor, assim, que não existe um Deus verdadeiro, que é a fonte soberana da verdade, mas um demônio do mal, tão astuto e enganoso quanto poderoso, que se valeu de todos os seus artifícios para me enganar. Suporei que o céu, o ar, a terra, as cores, as formas, os sons e as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e logros por ele usados para me enganar. Irei me imaginar alguém que não tem mãos, olhos, carne, sangue ou sentidos, mas que erradamente acredita ter todas essas coisas. Os demônios ainda pareciam reais e assustadores na época de Descartes, exatamente como na de Montaigne.

Havia quem achasse que enchiam o mundo de nuvens, como microrganismos poluentes; juntamente com seu mestre, Satã, podiam gerar ilusões no ar ou amarrar os raios de luz ou os próprios filamentos do nosso cérebro para nos levar a enxergar feras e monstros. A ideia de que tal espírito pudesse nos enganar sistematicamente quanto à natureza do mundo físico — e de nós mesmos — era suficiente para enlouquecer qualquer um. A única coisa pior seria a possibilidade de que o próprio Deus fosse esse enganador, algo que Descartes chegou a dar a entender de passagem, e logo retirou. De forma talvez estranha para alguém que preconizava o império da razão pura, jurando inimizade aos truques da imaginação, Descartes valia-se de todos os expedientes romanescos ao seu alcance para jogar com as emoções dos leitores. Como a maioria dos escritores de horror, contudo, tinha impulsos basicamente conservadores. O demônio ameaça a ordem das coisas, mas vem a ser derrotado e a normalidade é restabelecida em bases mais sólidas — só que não é bem assim. Na ficção de horror, o monstro muitas vezes ameaça voltar no fim, não realmente derrotado, mas apenas à espera de uma nova oportunidade. Descartes não queria saber de continuações. Considerava ter tapado para sempre o abismo, mas não era verdade: seu final feliz quase instantaneamente desmoronou. Uma maneira prática de escapar a toda essa confusão seria finalmente encontrada, não através do desafio extremista de Descartes, mas por um acordo pragmático que tem muito mais em comum com o espírito montaignesco. Em vez de buscar a certeza absoluta, a ciência moderna admite teoricamente um elemento de dúvida, ao mesmo tempo em que, na prática, todos seguem em frente no empenho de conhecer o mundo, comparando

observações a hipóteses, com base em códigos de prática previamente acertados. Vivemos como se não existisse um abismo. Como Montaigne se adaptando à própria falibilidade, nós aceitamos o mundo tal como se apresenta, apenas reconhecendo formalmente a possibilidade de que nada seja sólido. O demônio fica à espreita nos bastidores, mas a vida segue em frente. A história de horror de Descartes foi o que sobreveio quando o pirronismo de Montaigne chegou a uma mente mais angustiada e dividida que qualquer uma gerada no século XVI. Montaigne não deixava de ter seus momentos de angústia existencial: podia escrever coisas como “nós somos, não sei por quê, duplos em nós mesmos” ou “não temos comunicação com o ser”. Mas a sensação de Descartes de estar-se afogando na dúvida o deixaria intrigado. Hoje, muitas pessoas talvez achassem mais fácil entender o terror de Descartes que o singular reconforto encontrado no ceticismo por Montaigne e os primeiros pirrônicos. A ideia de que existe um vazio por baixo de tudo que experimentamos já não parece assim tão facilmente consoladora. Nossa experiência desse vazio decorre em grande medida da contestadora leitura de Montaigne feita por Descartes. Uma parte nos chegou também do outro grande discípulo e antagonista de Montaigne no século XVI, um homem ainda mais incomodado com as implicações do pirronismo. Estamos falando de Blaise Pascal, filósofo, místico e outro grande escritor de horror. UMA PRODIGIOSA MÁQUINA DE SEDUÇÃO

A obra pela qual Pascal é mais lembrado, Pensées (“Pensamentos”), não pretendia aterrorizar ninguém, senão ele mesmo: era uma coletânea de anotações desordenadas para um tratado teológico mais sistemático que ele acabou nunca conseguindo escrever. Se tivesse concluído essa obra, ela provavelmente seria menos interessante. Em lugar disso, ele nos deixou um dos textos mais misteriosos da literatura, uma efusão apaixonada escrita em grande medida para fazer frente à perigosa força que ele enxergava em Os ensaios de Montaigne. Blaise Pascal nasceu em Clermont-Ferrand em 1623. Ainda menino, mostrou um talento precoce para a matemática e a invenção, chegando a conceber uma primitiva máquina de calcular. Aos 31 anos, hospedado na abadia de Port-Royal-des-Champs, teve uma experiência reveladora que tentou descrever num pedaço de papel sob a inscrição FOGO: Certeza. Certeza. Sentimento, Alegria, Paz. Deus de Jesus Cristo. Deum meum et Deum vostrum. Esquecimento do mundo e de tudo exceto Deus. Ele só pode ser encontrado pelos caminhos ensinados no Evangelho. Grandeza da alma humana. Justo Pai, o mundo não O conhece, mas eu O conheço. Alegria, Alegria, Alegria, lágrimas de alegria. Essa epifania mudou sua vida. Ele costurou à roupa o pedaço de papel, para levá-lo consigo a toda parte, e a partir de então dedicou todo o seu tempo a escritos teológicos e às anotações que se tornariam seu Pensées. Mas não dispôs de muito tempo para esse trabalho. Aos 39 anos, morreu de uma hemorragia cerebral.

Pascal quase nada tinha em comum com Descartes, à parte a obsessão com o ceticismo. Arrebatadoramente místico, não apreciava a confiança depositada por Descartes na razão, lastimando a ascendência do que chamava de “espírito de geometria” sobre a filosofia. Essa aversão à racionalidade deveria no mínimo conduzi-lo, isto sim, na direção de Montaigne — e foi o que aconteceu, pois ele estava constantemente lendo Os ensaios. Mas ele também ficava tão perturbado com a tradição pirrônica, tal como transmitida por Montaigne, que mal conseguia percorrer uma página da “Apologia” sem correr ao seu caderno de anotações para verter violentas ideias a respeito. Pascal elegeu em Montaigne “o grande adversário”, para tomar de empréstimo uma frase empregada pelo poeta T. S. Eliot para se referir à relação entre os dois. É um tipo de linguagem habitualmente reservada ao próprio Satã, mas a alusão procede, pois Montaigne era para Pascal tormento, sedução e tentação. Pascal temia o ceticismo pirrônico por estar convencido, ao contrário dos leitores do século XVI, de que representava uma ameaça à fé religiosa. A essa altura, a dúvida já não era considerada amiga da Igreja; era coisa do Diabo, devendo ser combatida. E aí residia o problema, pois, como todos sempre souberam, era praticamente impossível combater o ceticismo pirrônico. Qualquer tentativa de enfrentá-lo servia apenas para reforçar sua tese de que tudo estava sujeito a discussão, ao passo que a atitude de neutralidade confirmava o ponto de vista de que valia a pena manter em suspenso os julgamentos. Num texto breve geralmente integrado a Pensées, dando conta de uma conversa com Isaac Le Maître de Sacy, diretor da abadia de Port-Royal, Pascal assim resume o argumento pirrônico de Montaigne, ou a falta dele:

Tudo ele submete a uma dúvida universal, e essa dúvida é tão generalizada que se deixa levar por si mesma; ou seja, ele duvida de que duvide, e, pondo em dúvida até mesmo esta última afirmação, sua incerteza dá voltas sem descanso num círculo interminável. Ele contradiz ao mesmo tempo os que sustentam que tudo é incerteza e aqueles para os quais não é assim, pois não quer afirmar absolutamente nada. Montaigne está “tão convenientemente instalado nessa dúvida universal que se fortalece igualmente no sucesso e na derrota”. Dá para perceber a frustração: como seria possível combater semelhante adversário? Mas é preciso. Trata-se de um dever moral, caso contrário a dúvida arrastará tudo de roldão, como uma enchente: o mundo, tal como o conhecemos, a dignidade humana, nossa sanidade e nosso sentido de Deus. Observaria ainda T. S. Eliot: Dentre todos os autores, Montaigne é um dos menos destrutíveis. Seria mais fácil dissipar uma névoa atirando granadas de mão. Pois Montaigne é uma bruma, um gás, um fluido e insidioso elemento. Ele não raciocina, ele insinua, seduz e influencia, ou então, quando raciocina, devemos estar preparados para o fato de ter em mente algum outro desígnio sobre nós, que não o de nos convencer com sua argumentação. Como não tinha como lutar contra Montaigne, Pascal não conseguia parar de lê-lo — ou de escrever a seu respeito. Combatia Os ensaios tão de perto que não conseguia encontrar ângulo para um golpe certeiro. Se La Boétie pairava sobre as páginas de Montaigne como seu amigo invisível, Montaigne pairava sobre os textos de Pascal como

seu inimigo e coautor sempre presente. Ao mesmo tempo, Pascal sabia que o verdadeiro drama transcorria em sua própria alma. Reconhecia ele: “Não é em Montaigne, mas em mim mesmo, que encontro tudo que ali vejo.” Ele também poderia ter lançado um olhar a seu caderno de anotações e dito “Não foi em mim mesmo, mas em Montaigne, que encontrei tudo que aqui vejo”, pois costumava transcrever uma grande quantidade de material quase palavra por palavra. Montaigne: Como choramos e rimos pela mesma coisa. Pascal: Portanto, choramos e rimos da mesma coisa. Montaigne: Eles querem sair de si mesmos e escapar do homem. É loucura: em vez de se transformar em anjos, transformam-se em feras. Pascal: O homem não é anjo nem fera, e infelizmente quem quer agir como anjo age como fera. Montaigne: Ponha-se um filósofo numa jaula de fino fio de arame em malha larga e pendure-a no alto das torres de Notre Dame de Paris: ele ponderará com lógica irretocável que é impossível cair, e no entanto (a menos que esteja acostumado a limpar chaminés) não conseguirá impedir que a visão desta altura extrema o aterrorize e paralise (...) Estenda-se entre as duas torres uma viga larga o suficiente para caminhar sobre ela: nenhuma sabedoria filosófica será firme o suficiente para nos dar coragem de andar por ela como faríamos se estivesse no solo. Pascal: Se pusermos o maior filósofo do mundo numa prancha mais larga que o necessário, mas com um precipício por baixo, por mais firmemente que o

convença sua razão de que estaria seguro, sua imaginação levará a melhor. Em seu livro O cânone ocidental, Harold Bloom considera Pensées “um caso grave de indigestão” no que diz respeito a Montaigne. Mas Pascal, ao copiar Montaigne, também o alterava. Mesmo usando as palavras de Montaigne, expunha-as a uma luz diferente. Como o personagem Pierre Menard, de Jorge Luis Borges, escrevendo no século XX um romance que vem a ser idêntico ao Dom Quixote, Pascal escrevia as mesmas palavras numa época diferente e com um temperamento diferente, assim criando algo novo. É a diferença emocional que importa. Montaigne e Pascal tinham percepções parecidas dos aspectos menos lisonjeiros da natureza humana, no reino do “humano, humano demais” onde vicejam o egoísmo, a indolência, a mesquinhez, o orgulho e tantas outras fraquezas. Mas Montaigne as contemplava com indulgência e humor; em Pascal, elas inspiravam um horror maior até que o jamais alcançado por Descartes. Para Pascal, a falibilidade é insuportável em si mesma: “Temos em tão alta conta a alma humana que não suportamos imaginar que essa ideia esteja errada e assim ter de privar-nos dessa estima por ela. A felicidade humana repousa nessa estima.” Para Montaigne, as fraquezas humanas são não apenas suportáveis, como chegam a ser quase motivo de comemoração. Pascal considerava que as limitações não deviam ser aceitas; toda a filosofia de Montaigne gira em torno da visão contrária. Mesmo quando Montaigne escreve algo como “parece-me que nunca podemos ser tão desprezados quanto merecemos” — o tipo de coisa que Pascal diz o tempo todo —, ele o faz em ânimo

alegre, acrescentando que quase sempre somos antes tolos que perversos. Pascal está sempre num extremo ou noutro, mergulhado em desespero ou arrebatado em euforia. Seu texto pode ser emocionante como uma perseguição em alta velocidade, projetando-nos em espaços infinitos de escala desproporcional. Ele contempla o vazio do universo ou a insignificância de seu próprio corpo, dizendo: “Quem quer que assim olhe para si ficará aterrorizado consigo mesmo.” Da mesma forma que Descartes levantava o cobertor do conforto mental pirrônico — a dúvida universal —, encontrando monstros por debaixo, Pascal também o faz com um dos truques preferidos dos estoicos e epicuristas: a viagem pelo espaço imaginário e a ideia da pequenez humana. E segue esse pensamento até um lugar de terror: Contemplando nossa cegueira e desgraça, observando todo o universo silencioso e a humanidade sem luz entregue a si mesma, perdida nesse canto do universo sem saber quem nos botou aqui, o que viemos realizar, o que será de nós quando morrermos, incapazes de todo conhecimento, fico apavorado, como alguém levado durante o sono a uma aterrorizante ilha deserta e que desperta sem saber o que aconteceu e sem meios de fugir. A leitura é emocionante, mas passadas algumas páginas começamos a sentir falta de uma dose do humanismo mais sereno de Montaigne. Pascal nos quer sempre conscientes das coisas últimas: os infinitos espaços vazios, Deus, a morte. Mas poucos de nós somos capazes de cultivar por muito tempo pensamentos assim. Nossa atenção se desvia, a mente retorna a questões concretas e pessoais. Pascal ficava furioso com isto: “Em que pensa o mundo? Nunca a

este respeito! Mas em dançar, tocar alaúde, cantar, escrever versos, tocar o sino (...).” Montaigne também gostava de levantar questões importantes, mas preferia explorar a vida através das leituras, dos animais domésticos, dos incidentes que presenciava em suas viagens ou dos problemas de um vizinho com os filhos. Pascal escrevia: “Sensibilidade humana para as coisas pequenas e insensibilidade para as coisas maiores: sinal de uma estranha confusão.” Montaigne teria dito exatamente o contrário. Cerca de um século depois, Voltaire, que decididamente não gostava de Pascal, escreveu: “Arrisco-me a defender a humanidade frente a esse sublime misantropo.” Percorreu então 57 citações de Pensées, desmontando cada uma delas. “De minha parte”, observava, quando vejo Paris ou Londres, não encontro motivo para cair nesse desespero de que fala Pascal. Vejo uma cidade que nem de longe se parece com uma ilha deserta, mas populosa, rica, policiada, onde os homens se mostram tão felizes quanto permite a natureza. Que homem sensato se disporia a se enforcar por não saber como encarar Deus frente a frente? (...) Por que nos fazer sentir enojados de nosso próprio ser? Nossa existência não é tão miserável quanto somos levados a crer. Encarar o mundo como uma cela de prisão e todos os homens como criminosos é uma ideia de fanático. Isto levava Voltaire a sair em defesa do “grande adversário” de Pascal: Que esplêndida ideia a de Montaigne, de se retratar sem artifícios, como fez! Pois estava assim retratando a

própria natureza humana. E que projeto medíocre (...) o de Pascal, de tentar desdenhar de Montaigne! Voltaire sentia-se muito mais em casa com um credo como o de Montaigne, tal como o encontramos no último capítulo de Os ensaios: Aceito de todo coração e com gratidão o que a natureza fez por mim, e estou satisfeito comigo mesmo e orgulhoso disto. Ofendemos o grande Doador ao recusar sua dádiva, anulando-a e desfigurando-a. Essa tranquila aceitação da vida como se apresenta e da própria individualidade como é enfurecia ainda mais Pascal que o próprio ceticismo pirrônico. As duas coisas vão de par. Montaigne põe tudo em dúvida, mas deliberadamente reafirma o que é familiar, incerto e comum — pois aí está tudo que temos. Seu ceticismo o leva a celebrar a imperfeição: exatamente aquilo de que Pascal, tanto quanto Descartes, queria escapar, sem êxito. Para Montaigne, seria óbvia a explicação dessa impossibilidade. Ninguém pode elevar-se acima da humanidade: por mais alto que possamos subir, levamos essa humanidade conosco. No fim do derradeiro volume, na versão final, ele escreveu: É uma absoluta perfeição, quase divina, saber como desfrutar adequadamente do nosso ser. Buscamos outras condições porque não entendemos o uso das nossas próprias, e saímos de nós mesmos porque não sabemos como é lá dentro. Mas de nada vale subir em pernas de pau, pois ainda nelas temos de continuar andando com as próprias pernas. E no trono mais alto do mundo ainda estaremos sentados no próprio traseiro.

Como acontece com o pirronismo, é impossível derrubar o argumento do “traseiro”, mas a Pascal ainda assim parecia necessária uma refutação, pois ele representava um perigo moral. Em Montaigne, o princípio predominante da “conveniência e calma”, como o definia Pascal, era pernicioso. Algo que preocupava Pascal, deixando-o numa raiva impotente, como se Montaigne desfrutasse de alguma vantagem que não estaria ao seu alcance. Um padrão equivalente de indignação pode ser percebido na reação de outro leitor desse período, o filósofo Nicolas Malebranche. Racionalista, mais próximo de Descartes que de Pascal, ele no entanto, como este, desaprovava Montaigne tanto por sua atitude genérica de indiferença quanto pelo acolhimento da dúvida. Malebranche reconhecia que o livro de Montaigne era um constante sucesso — mas tinha de ser mesmo, observa, amargo. Montaigne conta histórias interessantes e apela para a imaginação do leitor, e as pessoas gostam disso. “Suas ideias são falsas mas belas; sua expressão, irregular ou audaciosa, mas agradável.” Contudo, ler Montaigne pelo prazer da leitura é particularmente perigoso. Enquanto você flutua nesse banho de conforto sensual, Montaigne está induzindo sua razão ao sono e enchendo-o com seu veneno. “A mente não pode sentir-se satisfeita com a leitura de um autor sem adotar suas opiniões, ou pelo menos receber delas uma coloração que, misturada a suas próprias ideias, as torna confusas e obscuras.” Ou seja, o prazer da leitura corrompe as “ideias claras e distintas” de Descartes. Montaigne não argumenta nem tenta convencer; não precisa fazê-lo, pois é capaz de seduzir. Malebranche traça o perfil de uma figura quase diabólica. Montaigne nos engana, como o demônio de Descartes, atraindo-nos para a dúvida e a negligência espiritual.

Essas sinistras imagens teriam vida longa. Em 1866, o estudioso de literatura Guillaume Guizot ainda se referia a Montaigne como o grande “sedutor” entre os escritores franceses. T. S. Eliot o via da mesma forma. E a crítica moderna Gisèle Mathieu-Castellani refere-se a Os ensaios como “uma prodigiosa máquina de sedução”. Montaigne enfeitiça por sua despreocupação, seu tom de divagação informal e a pose de que não se importa com o leitor — truques destinados a nos atrair e se apoderar de nós. Expostos a semelhante máquina, os leitores modernos não raro apreciam essa possibilidade de relaxar, como Barbarella, e desfrutam. Já no século XVII os leitores se sentiam algo ameaçados, pois estavam em jogo questões sérias ligadas à razão e à religião. Mesmo nesse período, contudo, Montaigne também era apreciado pelo prazer que proporcionava. Vários leitores saíram de peito aberto em sua defesa. Em seu Caractères, o aforista Jean de La Bruyère ponderou que Malebranche não entendera Montaigne por ser demasiado intelectual e incapaz de “apreciar pensamentos que surgem naturalmente”. Essa fluida naturalidade, associada à dúvida cética, transformaria Montaigne no herói de uma nova classe de pensadores: a vaga confederação de intelectuais e rebeldes conhecidos como libertins. Em inglês, “libertino” evoca figuras de má reputação ao estilo Casanova, mas eles não eram apenas isto (como tampouco Casanova). Embora certos libertins efetivamente buscassem a liberdade sexual, queriam também a liberdade filosófica: o direito de pensar como bem entendessem, em termos políticos, religiosos ou quaisquer outros. O ceticismo era um caminho natural para essa liberdade interna e externa.

O grupo era variado, abarcando desde o grande filósofo Pierre Gassendi até estudiosos menos graves como François La Mothe le Vayer e escritores imaginativos como Cyrano de Bergerac, na época mais conhecido por seu romance de ficção científica sobre uma viagem à Lua. (Seu papel numa história mais conhecida, em torno de seu protuberante nariz, viria mais tarde.) A primeira editora de Montaigne, Marie de Gournay, talvez fosse secretamente uma libertine, juntamente com muitos de seus amigos. Outro deles era Jean de La Fontaine, autor de fábulas ao estilo de Plutarco sobre a inteligência e a estupidez dos animais. Ele conseguiu evitar críticas adotando um tom moderado, mas ainda assim elas representavam um desafio à dignidade humana. Sua premissa era a mesma de Montaigne: os animais e os seres humanos são feitos de igual estofo. O libertinismo foi um movimento minoritário mas de influência desproporcional, pois dos libertins decorreria no século seguinte a filosofia do Iluminismo. Eles conferiram a Montaigne uma nova imagem, perigosa mas positiva, que acabaria pegando. Também abarcavam homens de sociedade menos radicais, como La Bruyère e La Rochefoucauld, cuja obra Máximas reunia breves observações montaignescas sobre a natureza humana: Somos às vezes tão diferentes de nós mesmos quanto dos outros. A maneira mais certa de se enganar é considerar-se mais esperto que os outros. O acaso e o capricho governam o mundo. E por sinal uma das máximas de La Rochefoucauld constituía um perfeito comentário sobre as dificuldades do

próprio Montaigne com o século XVII: Com frequência indispomos os outros ao julgar-nos incapazes de fazê-lo. De forma semelhante ao caso de Montaigne, boa parte do que os libertins e os aforistas tinham a dizer girava em torno da questão do bem viver. Os libertins valorizavam qualidades como o bel esprit, que poderíamos traduzir como “boa disposição”, mas foi melhor definido por outro autor da época como “alegre, vivaz, cheio de entusiasmo, o mesmo que se evidencia em Os ensaios de Montaigne”. Aspiravam igualmente à honnêteté, a “honestidade”, uma vida de moralidade mas também de “boa conversação” e “boa companhia”, segundo o dicionário da Academia Francesa de 1694. Um homem como Pascal sequer imaginaria viver assim, pois significaria deixar-se desviar pelos negócios deste mundo, em vez de manter os olhos fixos nas coisas últimas. Ficamos imaginando Pascal a contemplar os  espaços infinitos do universo, mergulhado em terror místico e bemaventurança, assim como Descartes contemplava com igual intensidade as brasas no fogão. Em ambos os casos, temos o silêncio e um olhar fixo, olhos arregalados de espanto, profunda cogitação, alarme e horror. Os libertins e os companheiros do bel esprit não ficavam de olhar fixo. Longe disso! Eles sequer sonhariam em fixar o que quer que fosse, lá em cima ou lá em baixo no universo, com olhos esbugalhados de coruja. Preferiam observar as questões humanas de esguelha, com os olhos semicerrados, vendo-as tal como se apresentavam — e a começar por eles próprios. Esses olhos mal abertos percebiam mais da vida que Descartes com suas “ideias claras e distintas” ou Pascal com seus êxtases espirituais. Como observaria Friedrich

Nietzsche séculos depois, boa parte das observações mais válidas sobre o comportamento e a psicologia humanos — e portanto, também, sobre a filosofia — “foi inicialmente detectada e exposta nos círculos sociais capazes de qualquer sacrifício, não pelo conhecimento científico, mas por um coquetismo perspicaz”. Nietzsche se deleitava com a ironia desse fenômeno porque detestava os filósofos profissionais. Para ele, os sistemas abstratos não tinham valia; o importante era a autoconsciência crítica: a capacidade de investigar as próprias motivações e ainda assim aceitar-se do seu próprio jeito. Por isso tanto apreciava os aforistas La Rochefoucauld e La Bruyère, assim como seu antepassado Montaigne. Considerava Montaigne “a mais livre e poderosa das almas”, acrescentando: “O fato de este homem ter escrito aumentou verdadeiramente a alegria de viver neste planeta.” Montaigne aparentemente conseguiu dar um jeito de viver como Nietzsche gostaria: sem miúdos ressentimentos ou arrependimentos, aceitando as coisas que aconteciam sem vontade de mudá-las. O distraído comentário do ensaísta de que “Se tivesse de viver de novo, viveria do mesmo jeito” exemplificava tudo que Nietzsche passara a vida tentando alcançar. Montaigne não só o alcançou como escreveu a respeito de maneira despreocupada, como se não fosse nada especial. Como Montaigne, Nietzsche ao mesmo tempo questionava tudo e tentava aceitar tudo. As coisas que, em Montaigne, mais indispunham Pascal — a dúvida sem fim, a “tranquilidade cética”, o equilíbrio, a disposição de aceitar as imperfeições — eram o mesmo que sempre haveria de atrair essa outra tradição tão diferente, abarcando dos libertins a Nietzsche e mais além, até muitos de seus maiores admiradores da atualidade.

Infelizmente, no século XVII, os detratores de Montaigne revelaram-se mais fortes que seus entusiastas, especialmente depois de se organizarem para lançar uma campanha de repressão. Em 1662, um ano depois da morte de Pascal, seus antigos companheiros Pierre Nicole e Antoine Arnauld lançaram um ataque contra Montaigne em seu grande sucesso editorial Logique du Port-Royal. Na segunda edição, em 1666, eles pregaram abertamente a inclusão de Os ensaios no Índex de livros proibidos da Igreja Católica, por ser um perigoso texto de irreligião. O apelo seria atendido dez anos depois: Os ensaios foi incluído no Índex em 28 de janeiro de 1676. Montaigne era condenado, em grande parte também por associação, pois a essa altura era a leitura favorita de um bando nada recomendável de almofadinhas, espertalhões, ateus, céticos e dissolutos. Tinha início um dramático declínio na reputação de Montaigne na França. Desde a publicação em 1580 até 1669, novas edições de Os ensaios vinham a público a cada dois ou três anos, paralelamente a adaptações populares feitas por editores que chamavam a atenção para os trechos de fundo mais pirrônico. Depois da proibição, a situação mudou. Em sua versão integral, a obra já não podia ser publicada ou vendida em países católicos; nenhum editor francês seria capaz de relançá-lo. Durante anos, só podia ser encontrada em edições censuradas ou estrangeiras, estas não raro em francês, para atender em contrabando aos leitores nacionais não conformistas. Montaigne observou uma vez que certos livros “tornamse mais vendáveis e públicos ao serem proibidos”. Em certa medida, foi o que lhe aconteceu: a proibição de seu livro na França conferiu-lhe uma aura irresistível. No século seguinte, aumentou ainda mais seus atrativos para os

filósofos rebeldes do Iluminismo e até mesmo para revolucionários políticos. Globalmente, contudo, a censura antes fez mal que bem às vendas póstumas, confinando Montaigne a um público limitado na França, ao passo que em outros países ele continuava atraindo uma gama mais ampla de interesses — tanto rebeldes quanto pilares da comunidade. Surpreendentemente, Os ensaios permaneceria no Índex por quase duzentos anos, até 27 de maio de 1854. Foi um longo exílio, indo além do autêntico frisson de alarme provocado pelo livro no fim do século XVII. A observação de Pascal de que “Não é em Montaigne, mas em mim mesmo, que encontro tudo que ali vejo” poderia ser adotada como mantra ao longo de toda a história que se segue. Os séculos avançam; cada novo leitor se vê refletido em Os ensaios, enriquecendo seus possíveis significados. No caso de Descartes, o que ele encontrou foram duas figuras de pesadelo da sua própria psique: um demônio resistente à lógica e um animal capaz de pensar. Ele recuava diante de ambos. Pascal e Malebranche enxergavam a possibilidade de serem seduzidos num leito de comodidade cética e igualmente fugiam horrorizados. Os libertins, vendo as mesmíssimas coisas, reagiam com um sorriso divertido e um alçar de sobrancelhas. Eles também se reconheciam em Montaigne. Seu descendente muito mais tardio, Nietzsche, faria o mesmo e igualmente devolveria Montaigne a sua pátria filosófica: o coração das três grandes filosofias helenísticas, com sua investigação da pergunta de como viver.

8. P. Como viver? R. Tenha um compartimento privado nos fundos da loja ENTREGAR-SE COM METADE DO TRASEIRO

D

e volta à década de 1560, o Montaigne de carne e osso ainda enfrentava a mesma pergunta. Valia-se das três tradições filosóficas helenísticas para levar a vida e se recuperar da perda de La Boétie. Conseguiu fundir seu ceticismo com a lealdade aos dogmas católicos — uma combinação que ninguém questionava. Concluiu seu primeiro grande projeto literário, a tradução de Raymond Sebond, e trabalhou nas dedicatórias do livro de La Boétie e na carta que publicou relatando a morte do amigo. Outra mudança ocorreria nesse período: ele se casou, tornando-se um chefe de família. Montaigne parece ter exercido atração sobre as mulheres. Pelo menos em parte ela seria de natureza física: ele faz comentários irônicos sobre as mulheres que dizem amar os homens apenas pelo intelecto. “Nunca pude constatar que por nossa beleza intelectual, por mais sábia e madura que fosse, as mulheres se dispusessem a conceder favores a um corpo resvalando ainda que só um pouco para o declínio.” Mas é provável que sua inteligência, seu senso de humor, sua personalidade afável e até sua tendência a se deixar arrebatar pelas ideias e a falar alto contribuíssem para o encanto pessoal. E talvez também o ar de inacessibilidade emocional em que banhava depois da morte de La Boétie, e que configurava um desafio. Na realidade, quando ele gostava de alguém, essa indiferença desaparecia: “Eu faço investidas e me atiro com tanta avidez que dificilmente

deixo de me agarrar a algo e de causar impressão onde quer que eu pouse.” Montaigne gostava de sexo e o praticou muito ao longo da vida. Só na meia-idade mais avançada é que seu desempenho e seu desejo declinaram, assim como a atração que exercia — fatos todos eles lastimados em seu derradeiro Os ensaios. É deprimente ser rejeitado, dizia ele, mas pior ainda é ser aceito por piedade. E ele detestava sentir-se importuno para alguém que não o quisesse. “Abomino a ideia de um corpo sendo meu sem afeto.” Seria como fazer amor com um cadáver, como na história do “egípcio frenético todo fogoso com a carcaça de uma mulher morta que ele cuidava de embalsamar e cobrir com a mortalha”. Uma relação sexual deve ter reciprocidade. “Na verdade, nesse deleite, o prazer que dou estimula mais docemente minha imaginação que aquele que sinto.” Mas ele era realista no que dizia respeito ao entusiasmo provocado em suas amantes. Às vezes a mulher não está realmente presente de coração: “Às vezes elas se entregam só com metade do traseiro.” Ou quem sabe não está fantasiando sobre alguém mais: “E se ela comer o seu pão com o molho de uma imaginação mais agradável?” Montaigne sabia que as mulheres geralmente sabem mais de sexo do que supõem os homens, e que na verdade sua imaginação as leva a esperar mais do que recebem. “No lugar das partes reais, elas colocam, pelo desejo e a expectativa, outras três vezes maiores.” Ele reprovava a irresponsabilidade dos grafites: “Os danos que não são causados por essas enormes imagens espalhadas pelos meninos nos corredores e escadas dos palácios! Por causa delas, as mulheres adquirem um cruel desprezo por nossa capacidade natural.” Poderíamos concluir que Montaigne tivesse um pênis pequeno? Sim, de fato, pois ele

confessaria mais adiante no mesmo ensaio que a natureza o tratara “cruel e injustamente”, acrescentando uma citação clássica: “Mesmo as matronas — e o sabem muito bem — Olham com reserva um homem de membro pequeno.” Ele não se envergonhava de revelar essas coisas: “Nossa vida é em parte loucura, em parte sabedoria. Aquele que só escreve sobre ela com reverência e de acordo com as regras deixa de fora mais da metade.” Também lhe parecia injusto que os poetas tivessem mais licença simplesmente por escreverem em versos. E citava dois exemplos contemporâneos: “Posso morrer se sua fenda for mais que uma linha fininha.” — Théodore de Bèze “Um instrumento amigo a trata bem e satisfaz.” — SaintGelais Em meio às variadas aventuras de seu instrumento amigo, contudo, Montaigne também fez o que deviam fazer os nobres diligentes, especialmente os herdeiros de grandes propriedades: casou-se. O nome dela era Françoise de La Chassaigne, de uma família muito respeitada em Bordeaux. O casamento, ocorrido em 23 de setembro de 1565, teria sido arranjado entre as duas famílias — o que era uma tradição, e até mesmo as idades dos esposos estavam mais ou menos na faixa estabelecida pelo costume. Montaigne observou que sua idade (33, diz ele, embora tivesse 32) estava próxima do ideal recomendado por Aristóteles, que acreditava ser 35 (sendo na realidade 37). Se ele ainda era ligeiramente

jovem, sua mulher era um pouco mais velha que o habitual: nascera a 13 de dezembro de 1544, tendo portanto pouco menos de 21 anos ao se casar. Com essa idade, ainda tinha pela frente muitos anos para a procriação. Infelizmente, os filhos seriam sobretudo motivo de decepção e dor para o casal. E, apesar de ser mais de dez anos mais velho que a mulher, Montaigne parece ter feito muito decididamente o que fazem tantos homens: casou-se com a mãe. E a escolha não o faria particularmente feliz. Ele não menciona Françoise com frequência em Os ensaios; e, quando o faz, ela fica parecendo Antoinette, só que mais escandalosa. “As esposas sempre têm tendência a discordar dos maridos”, escreveu. “Agarram com as duas mãos o menor pretexto para contrariá-los.” É provável que ele tivesse Françoise em mente tanto aqui quanto em outra passagem, escrevendo que não fazia sentido enfurecer-se inutilmente com os criados: Eu advirto (...) minha família a não ficar com raiva à toa e cuidar para que suas reprimendas cheguem à pessoa de que se queixam, pois geralmente já estão gritando antes de estar em sua presença e continuam a gritar por muito tempo depois que ela se foi (...) Ninguém é assim punido ou afetado, exceto aqueles que tiverem de suportar o alarido de suas vozes. Quase dá para ver Montaigne tapando os ouvidos com as mãos e se refugiando em sua torre. Entre seus muitos motivos de admiração do filósofo Sócrates estava o fato de ele ter aperfeiçoado a arte de viver com uma mulher agressiva. Montaigne considerava esse fato uma tribulação quase tão grande quanto a sofrida por Sócrates nas mãos do parlamento ateniense, que o condenou à morte por ingestão de cicuta. Ele esperava

emular a política de tolerância e humor adotada por Sócrates, e gostava da resposta que deu a Alcebíades quando este lhe perguntou como enfrentava esse tipo de implicância. A gente se acostuma, disse Sócrates, exatamente como os vizinhos de um moinho se habituam ao som da roda girando. Montaigne também gostava da maneira como Sócrates transformou a experiência num “truque” filosófico para o próprio aperfeiçoamento espiritual, valendo-se do temperamento difícil da mulher para praticar a arte de suportar adversidades. Além de vigorosa, Françoise era resistente. Sobreviveria a ele por quase 35 anos, morrendo em 7 de março de 1627 com 82 anos. Sobreviveu igualmente aos filhos, inclusive à única que chegou à idade adulta. A mãe de Montaigne também sobreviveu a ele. Quase ficamos com a impressão de que todos ali contribuíram para levá-lo cedo ao túmulo. Parte das melhores informações de que dispomos sobre o temperamento de Françoise datam de sua velhice, muito depois da morte de Montaigne. A essa altura, ela se tornara extremamente devota. O segundo marido de sua filha, Charles de Gamaches, relatou que ela jejuava às sextasfeiras e por metade da Quaresma, mesmo aos 77 anos. Mantinha intensa correspondência com um conselheiro espiritual, Dom Marc-Antoine de Saint-Bernard: várias cartas chegaram até nós. Ele a presenteava com laranjas e limões; ela lhe mandava marmelada e feno. Ela costumava escrever-lhe a respeito de suas preocupações monetárias e questões legais. Na última carta, mostra-se aliviada com um acerto de negócios: “Com isto deu-me Deus meios de sustentar esta casa do meu falecido marido e dos meus filhos.” O tom é às vezes apaixonado: “Realmente não sei se não preferiria morrer a saber que estais para partir.” Por outro lado, ela temia pelo bem-estar do conselheiro se ele

viajasse ao seu encontro: “Preferiria morrer a vê-lo na estrada com um tempo tão ruim.” Na juventude, ela seria provavelmente menos preocupada, mas sua ansiedade com relação a assuntos monetários e jurídicos pode ter sido uma constante. Na pior das hipóteses, arriscaríamos dizer que ela se preocupava mais que Montaigne com questões práticas. O que não parecia difícil: era o caso de praticamente qualquer um, se considerarmos seus relatos verdadeiros. Françoise e o marido costumavam passar o dia em partes separadas do castelo. Montaigne ia para sua torre e ela, para a sua, na outra extremidade da muralha: a “Tour de Madame”. (Depois de ser transformada num pombal no início do século XIX, a torre desabou, não mais existindo hoje.) Com isto, o corpo principal do prédio ficava sendo o domínio da mãe de Montaigne, que lá permaneceu pela maior parte do casamento do filho, até aproximadamente 1587. Aparentemente as torres foram convertidas em refúgios para que o jovem casal pudesse se separar um do outro e também dela. Em seus escritos, Montaigne cala-se sobre a presença da mãe na vida de ambos; quando menciona o jogo de cartas com a família às noites, não dá qualquer indicação de que Vovó participasse. Essa imagem de uma família dispersa pela propriedade não deixa de ser triste. Mas certamente haveria dias de clima mais leve, e de qualquer maneira nenhuma parte da propriedade devia parecer solitária ou vazia. Sempre havia gente por perto: criados, empregados, convidados com seus acompanhantes, às vezes crianças. O próprio Montaigne não ficava cismando em sua torre como um conde de Gormenghost: gostava de caminhar ao ar livre. “Meus pensamentos caem no sono quando os deixo sentados. Minha mente não se move se as pernas não a deslocarem.”

E a separação nos estilos de vida masculino e feminino era normal. Esperava-se mesmo que marido e mulher tivessem seus mundos à parte; instalações novas ou modernizadas muitas vezes eram concebidas com essa finalidade. Em 1452, Leon Battista Alberti recomendava em seu De re aedificatoria (Da construção): “Marido e mulher devem ter quartos separados, não só para assegurar que ele não seja perturbado por ela, quando estiver doente ou para dar à luz, como também para permitir a ambos, mesmo no verão, uma noite ininterrupta de sono.” As únicas diferenças na residência dos Montaigne eram a separação dos respectivos “quartos” pela galeria externa e o fato de ele também usar sua torre como local de trabalho. Teria sido um bom casamento, pelos padrões da época? Certos observadores vieram a considerá-lo desastroso; outros, um casamento típico da época e até mesmo bom. No balanço final, não parece ter sido uma relação terrível, apenas ligeiramente insatisfatória. Seria provavelmente mais bem resumida, como sugeria Donald Frame, biógrafo de Montaigne, com esta observação encontrada em Os ensaios: “Aquele que supuser, vendo-me olhar às vezes friamente, às vezes amorosamente para minha mulher, que qualquer dos dois olhares é fingimento será um tolo.” Um afeto sincero pode ser depreendido da decisão de Montaigne de dedicar uma de suas primeiras publicações a Françoise: a carta de Plutarco à mulher após a morte do filho, na tradução de La Boétie. Dedicatórias à esposa não eram bem-vistas, podendo ser consideradas inadequadas ou grosseiras. Montaigne comenta, desafiador: “Que digam o que quiserem (...) Você e eu, minha mulher, vivamos ao velho estilo francês.” Sua dedicatória é vazada num tom caloroso, e ele chega a dizer: “Ninguém tenho, creio eu, que

me seja mais íntimo que você”, o que a posiciona num nível próximo de La Boétie. O afeto que ele acaso sentisse por Françoise provavelmente terá surgido depois do casamento, e não antes. Ele entrara no casamento como um prisioneiro recebendo as algemas sem opor resistência. “Por minha livre e espontânea vontade, eu me teria esquivado de desposar a própria Sabedoria, se me quisesse. Mas seja lá o que dissermos, o costume e a prática da vida comum nos vão levando.” Ele não se importava realmente que esse tipo de coisa fosse providenciado em seu nome, considerando muitas vezes os outros mais dotados de sensatez. Mas precisou ser convencido, pois se encontrava numa disposição “despreparada e contrária”. Se pudesse escolher, não seria em absoluto do tipo casamenteiro. “Homens de humores oscilantes como eu, que detestam qualquer tipo de liame ou obrigação, não se adaptam muito a isto.” Mais tarde, ele tiraria o melhor proveito da situação, chegando a se esforçar por se manter fiel — com mais êxito do que esperava, segundo diria. Tornou-se de certa forma satisfeito, como descobriria ser muitas vezes possível em situações que qualquer um tenderia a evitar. “Pois não só as coisas inconvenientes, mas absolutamente tudo, por mais feio, odioso ou repugnante, pode tornar-se aceitável em determinadas condições ou circunstâncias.” Felizmente, Françoise nem de longe poderia ser considerada feia ou repugnante. Montaigne parece tê-la achado bastante atraente — ou pelo menos é o que diria seu amigo Florimond de Raemond em nota à margem num exemplar de Os ensaios. O problema estava mais no princípio de estar obrigado a fazer sexo regularmente com alguém, pois Montaigne nunca gostou de se sentir preso. Cumpria com relutância seu dever conjugal, “com um

traseiro só”, como diria ele próprio, fazendo o necessário para gerar filhos. Também isto colhemos na nota marginal de Florimond de Raemond, aqui reproduzida na íntegra: Muitas vezes ouvi o autor dizer que, embora se tivesse casado cheio de amor, ardor e juventude com sua belíssima e adorável mulher, jamais se relacionara com ela senão com o respeito à honra requerido no leito conjugal, nada vendo além de suas mãos e o rosto descobertos, nem sequer seu seio, embora no convívio com outras mulheres fosse extremamente travesso e imoral. Parecerá espantoso a um leitor moderno, mas na época era perfeitamente convencional. Um marido se comportando com a esposa como amante apaixonado seria considerado algo moralmente errado, pois poderia transformá-la numa ninfomaníaca. O adequado para um casamento era a relação sexual mínima, sem qualquer efusão. Num ensaio quase totalmente dedicado ao sexo, Montaigne remete à sabedoria de Aristóteles: “Um homem (...) deve tocar a esposa com prudência e moderação, para não arrancá-la dos limites da razão com prazeres causados por carícias demasiado lascivas.” Os médicos também advertiam que o excesso de prazer podia causar a coagulação do esperma no corpo da mulher, incapacitandoa para a concepção. Era melhor que o marido proporcionasse êxtase em outros leitos, onde não importassem eventuais danos. “Os reis da Pérsia”, relata Montaigne, “convidavam as esposas a se juntar a eles em seus banquetes; mas quando começavam a esquentar para valer com o vinho e precisavam dar livre curso à sensualidade, mandavam-nas de volta a seus aposentos”.

Tratavam então de mandar vir mulheres mais indicadas para a situação. A Igreja se alinhava, nisso, com Aristóteles, os médicos e os reis da Pérsia. Os manuais dos confessores da época mostram que um marido que se entregasse a práticas pecaminosas com a esposa merecia penitência mais severa que se fizesse a mesma coisa com outra mulher. Corrompendo os sentidos de sua mulher, ele punha em risco sua alma eterna, traindo sua responsabilidade para com ela. Se uma mulher casada tivesse de adquirir hábitos licenciosos, seria melhor que o fizesse com alguém livre de tais deveres. E de qualquer forma, como observaria Montaigne, a maioria das mulheres parecia mesmo preferir essa alternativa. Montaigne revela-se sardônico na questão das mulheres, mas também pode se mostrar convencional. Ao contrário de certos contemporâneos, contudo, ele não parecia considerar as esposas meros animais reprodutores. Seu casamento ideal seria um autêntico encontro de mentes, e não só de corpos; seria até mais completo que uma amizade ideal. A dificuldade estava em que, ao contrário da amizade, o casamento não era livremente escolhido, permanecendo na esfera da obrigação e da coerção. Além disso, era difícil encontrar uma mulher capaz de uma relação elevada, pois em sua maioria elas careciam de capacidade intelectual e de uma qualidade que ele designava como “firmeza”. A opinião de Montaigne sobre a flacidez espiritual das mulheres pode ser por sua vez desalentadora. George Sand confessou que se sentiu “ferida no coração” por essa opinião, tanto mais por considerar Montaigne inspirador sob outros aspectos. Mas devemos ter em mente como era a maioria das mulheres no século XVI. Eram lamentavelmente incultas, não raro analfabetas e com pouca experiência do

mundo. Algumas poucas famílias nobres contratavam tutores para as filhas, mas quase sempre para ensinar ornamentos insignificantes, como na época vitoriana: italiano, música e alguma aritmética para a gestão da casa. A educação clássica, o único tipo considerado valioso, brilhava quase sempre pela ausência. As poucas mulheres verdadeiramente cultas do século XVI eram exceções muito raras, como Margarida de Navarra, autora de uma coletânea de contos conhecida como Heptameron, ou a poetisa Louise Labé, que (presumindo-se que realmente tenha existido, não sendo o pseudônimo de um grupo de poetas do sexo masculino, como dá a entender recente hipótese) exortava as outras mulheres a “elevar a mente um pouco acima dos carretéis e da roca de fiar”. A França efetivamente contou um movimento feminista no século XVI. Ele representava um dos lados da “querelle des femmes”, uma polêmica na moda entre os intelectuais que esgrimiam argumentos contra e a favor das mulheres: seriam elas, de maneira geral, algo bom? Os favoráveis pareciam fazer mais sucesso que os contrários, mas um debate tão condescendente pouca diferença fazia para a vida das mulheres. Montaigne frequentemente é tachado de antifeminista, mas se tivesse participado dessa querelle provavelmente se teria posicionado do lado das mulheres. Ele escreveu, por exemplo: “As mulheres não estão erradas em absoluto quando rejeitam as regras da vida introduzidas no mundo, na medida em que foram estabelecidas pelos homens sem a participação delas.” E acreditava que, por natureza, “machos e fêmeas provêm do mesmo molde”. Tinha plena consciência da duplicidade de critérios usados para julgar o comportamento sexual masculino e o feminino. Apesar do que dizia Aristóteles, Montaigne desconfiava de que as

mulheres tinham as mesmas paixões e necessidades que os homens, e no entanto eram muito mais severamente condenadas quando se entregavam a tais impulsos. Seu hábito de mudar de perspectiva também deixava evidente para ele que sua visão das mulheres não podia deixar de ser tão imparcial e falível quanto a visão das mulheres sobre os homens. Seu sentimento na questão pode ser resumido nesta observação: “Somos em quase todas as coisas juízes injustos de seus atos, como elas dos nossos.” Em vista dessa injustiça, não surpreende que ele tenha decidido que a melhor política em casa seria ausentar-se da esfera feminina o máximo possível. Ele as deixava desfrutar de uma domesticidade própria, enquanto ele desfrutava da sua. Num ensaio sobre a solidão, escreveu: Devemos ter esposa, filhos, bens e acima de tudo saúde, se pudermos; mas não devemos nos apegar a tudo isto de tal maneira que nossa felicidade disso dependa. Devemos reservar nos fundos da loja um compartimento só para nós, inteiramente livre, para nele estabelecer nossa verdadeira liberdade e nosso reduto principal de solidão. Ali, a conversa habitual deve ser entre nós e nós mesmos, e tão particular que nenhuma associação ou comunicação exterior nela encontre lugar; ali, devemos falar e rir como se esposa não tivéssemos, nem filhos, nem posses, nem séquito, nem criados, de tal maneira que, chegado o momento de perdê-los, não será novidade para nós viver sem eles. A referência ao “compartimento nos fundos da loja” — a arrière boutique — aparece com frequência nos livros sobre Montaigne, mas raramente no devido contexto. Ele não se refere a um desligamento egoísta e introvertido da vida de

família, mas à necessidade de se proteger da dor que seria causada por sua perda. Montaigne buscava o isolamento e a retirada para não se ferir demais, mas ao fazê-lo também descobriu que essa retirada  o ajudava a estabelecer sua “verdadeira liberdade”, o espaço de que precisava para pensar e olhar para dentro. Ele certamente tinha seus motivos para desenvolver o distanciamento estoico. Depois de perder sucessivamente o amigo, o pai e o irmão, Montaigne viria a perder quase todos os filhos – na verdade, todas as filhas. Ele registrou a triste sequência de nascimentos e mortes em seu diário, as Ephemeris de Beuther: 28 de junho de 1570: Thoinette. Montaigne escreveu: “É o primeiro filho do meu casamento”, mas acrescentou posteriormente: “E morreu dois meses depois.” 9 de setembro de 1571: Nascimento de Léonor — a única que sobreviveu. 5 de julho de 1573: Filha sem nome. “Viveu apenas sete semanas.” 27 de dezembro de 1574: Filha sem nome. “Morreu cerca de três meses depois, sendo batizada às pressas em vista das circunstâncias.” 16 de maio de 1577: Filha sem nome; morreu com um mês. 21 de fevereiro de 1583: “Tivemos outra filha, chamada Marie, batizada pelo senhor de Jaurillac, conselheiro do parlement, por seu tio e minha filha Léonor. Morreu dias depois.” Montaigne escreveu ter perdido a maioria dos filhos “sem dor, ou pelo menos sem aflição”, pois eram muito pequenos. As pessoas realmente tentavam não se apegar demais aos filhos na primeira idade, pois era grande a

probabilidade de que morressem, mas Montaigne parecia excepcionalmente habilidoso para esse distanciamento. Ele reconhecia tratar-se de um desgosto que não o atingia profundamente. Chegou a escrever, em meado da década de 1570, que perdera “dois ou três filhos”, como se não tivesse certeza do número, embora pudesse tratar-se na verdade de seu hábito de se mostrar vago em matéria numérica. É bem parecido com seu jeito de estabelecer o momento de seu acidente de equitação, que segundo ele ocorreu “durante nossa terceira guerra civil, ou na segunda (não lembro exatamente qual)”. Na dedicatória à esposa na tradução de Plutarco, ele se equivoca ainda mais espetacularmente nos detalhes, escrevendo que sua primeira filha morrera “no segundo ano de vida”, embora tivesse morrido com dois meses. Provavelmente se tratava antes de um ato falho no momento da redação que de um erro de memória. Mas será mesmo? Com Montaigne, ficamos com a sensação de que tudo é possível. Havia na vida outras desgraças que ele sabia incapazes de incomodá-lo tanto quanto deveriam: Constato outros motivos comuns de aflição que dificilmente eu sentiria se me adviessem, e tenho desprezado, ao me ocorrerem, alguns que costumam apresentar no mundo tão terrível aspecto que eu não ousaria ostentar minha indiferença a eles diante da maioria das pessoas sem enrubescer. Ficamos nos perguntando se ele contemplava aqui a possível morte da mulher, ou talvez da mãe. Em ambos os casos, ele não teve tal sorte. Ou talvez estivesse pensando na morte do pai, ou se perguntando o que aconteceria se seu castelo fosse saqueado durante as guerras, ou se ele tivesse as mãos queimadas. Aparentemente, qualquer coisa

que não fosse a morte de La Boétie parecia-lhe tolerável: fora a única coisa que o fizera perder o equilíbrio, levando-o a evitar apegar-se tanto outra vez. Na realidade, é provável que seu desapego fosse menos radical do que queria dar a entender. Suas anotações sobre a morte das filhas são diretas mas pungentes. E havia em Os ensaios ocasiões em que ele se mostrava eloquente sobre a dor de um pai, e não apenas a sua. Seu ensaio sobre a tristeza, escrito em meado da década de 1570, quando já perdera vários filhos, trata de episódios de luto paterno na literatura. Ele também escreveu com sentimento sobre a história de Níobe, que chorou tanto depois de perder sete filhos e sete filhas que se transformou numa cachoeira de pedra — “representando a perplexidade sombria, cega e surda que nos estupidifica quando somos avassalados por acidentes que ultrapassam nossa capacidade de resistência”. Fosse essa sensação causada ou não pela perda dos filhos, Montaigne certamente sabia como era experimentá-la. Montaigne falhou quanto à principal responsabilidade de um nobre, que era ter um filho homem para garantir a sucessão. Mas teve uma filha saudável, Léonor, a quem se afeiçoou à medida que foi crescendo. Nascida em 1571, ela deve ter sido concebida não muito depois de ele ter-se aposentado da vida pública. O que a tornava filha de sua crise da meia-idade e de seu renascimento espiritual, quem sabe conferindo a ela uma dose extra de força vital. Única sobrevivente, ela morreria em 1616, tendo-se casado duas vezes e trazido ao mundo duas filhas. Durante seu crescimento, o pai a deixou entregue basicamente à esfera feminina da casa, como se esperava que fizesse. “O governo das mulheres tem uma forma misteriosa de proceder; devemos deixar que elas o façam”,

escreveu, num tom que sugere alguém saindo na ponta dos pés de um lugar onde não deveria estar. Certa vez, tendo ouvido algo que não considerou conveniente para Léonor, ele se eximiu de intervir, sabendo que seria descartado com escárnio se o fizesse. Ela estava lendo um livro em voz alta para sua tutora; a palavra fouteau apareceu no texto — significava faia, um tipo de árvore, mas parecia foutre, que significa foder. A menina nada percebeu, mas a tutora, embaraçada, fez que se calasse. Montaigne considerou que era um equívoco: “Nem a companhia de vinte lacaios durante seis meses seria capaz de incutir em sua imaginação a compreensão e o uso e todas as consequências daquelas terríveis sílabas com a mesma eficácia daquela velha mulher com sua reprimenda e sua proibição.” Mas ele nada disse. Ele dizia que Léonor apresentava aspecto mais jovem que sua idade, mesmo já tendo idade para se casar. Ela tinha “uma compleição acanhada, pequena e frágil”. Ele considerava que a responsabilidade era de sua mulher, que se excedera no isolamento da menina. Mas Montaigne também concordou em dar a Léonor uma formação tranquila e agradável como a que tivera: escreveu que decidira com a mulher que ela só fosse punida com palavras severas, quando necessário, e mesmo assim “muito delicadas”. Embora ele escrevesse que pouco se envolvia na criação dos filhos, encontramos em outras passagens de Os ensaios uma encantadora visão de Montaigne en famille, participando de brincadeiras e até de jogos de azar envolvendo pequenas somas: “Eu dou as cartas e fico de olho na pontuação, seja por alguns centavos ou duplos dobrões.” E eles também se divertiam com charadas verbais. “Estivemos há pouco jogando em casa um jogo

para ver quem descobria a maior quantidade de coisas que se encontram nos extremos”, como por exemplo a palavra “sire”, ao mesmo tempo título do rei e forma de tratamento de comerciantes humildes, ou “dames”, para mulheres da mais alta e também da mais baixa extração. Não temos aqui um Montaigne frio e distante, que despreza as mulheres e ignora as crianças, mas um homem de família, dando o melhor de si no papel do patriarca cordial numa casa cheia de mulheres que quase sempre só o veem com exasperação. RESPONSABILIDADES PRÁTICAS

Em certa medida, Montaigne merecia essa reação, pois se reconhecia inútil na casa. Preferia entregar sua gestão à mulher, que, como sua mãe, se mostrava dotada para essas coisas. Ele gostava da disposição de Françoise de assumir essas responsabilidades quando ele se afastava nas viagens ou a trabalho; e provavelmente também apreciaria que ela pudesse fazê-lo quando estava presente. Sua incapacidade nesse terreno era um dos motivos principais do prazer que costumava sentir ao se afastar. “É horrível estar num lugar onde tudo que vemos nos envolve e preocupa”, escreveu. Cuidar da propriedade devia ter seu lado oneroso. “Há sempre alguma coisa que dá errado”, queixava-se ele. A principal atividade a gerir era a produção de vinho, que saía da propriedade às dezenas de milhares de litros anualmente. Nem todos os anos eram bons. A inclemência do tempo destruiu as colheitas em 1572, 1573 e 1574 — os anos em que Montaigne escreveu seus primeiros ensaios. Outro período ruim ocorreu em 1586, quando as imediações foram invadidas por soldados, causando devastação. Montaigne conseguiu recuperar algumas perdas usando sua

influência no parlement de Bordeaux para vender o que restava do vinho, o que deixa claro que era capaz de enfrentar as dificuldades quando necessário. Mas sua pouca visão do negócio pode ser depreendida do comentário de que até já bem tarde na vida não sabia o que significava “fermentar o vinho”. Montaigne fazia o que tinha de fazer, mas confessava que não gostava, tratando, portanto, de se restringir ao mínimo indispensável. Por isto é que não se empenhou em ampliar a propriedade ou promover melhorias. Pierre empreendera projetos dessa natureza pelo puro prazer e desafio, mas era um homem muito diferente. Era o tipo do sujeito que hoje em dia se manteria ocupado com tarefas individuais, provavelmente deixando-as pela metade. Se é um perfil bastante conhecido, o mesmo se pode dizer de Montaigne, cujos lemas certamente seriam “Tudo pelo sossego” e “Se está quebrado, deixa ficar”. Quando efetivamente sentia necessidade de fazer algo, ele se entregava com energia. “Eu enfrento bem o trabalho duro; mas só se o abordo por livre e espontânea vontade, e na medida em que for movido pelo desejo.” Ele detestava ser obrigado a fazer coisas que o entediassem. Em 18 anos de gestão da propriedade, escreveu, jamais fora capaz de examinar uma escritura ou esquadrinhar devidamente um contrato. Ele se sentia uma massa de inaptidões e relutâncias: Não sei calcular, seja com contadores ou com uma pena; a maioria de nossas moedas, não conheço; nem sei a diferença entre um grão e outro, seja no solo ou no celeiro, a menos que seja óbvia, e mal posso distinguir entre repolhos e alfaces em minha horta. Sequer identifico os nomes dos principais utensílios

domésticos ou os mais elementares princípios da agricultura, bem conhecidos das crianças. Sei ainda menos das artes mecânicas, do comércio e das mercadorias, da diversidade e natureza dos frutos, vinhos e alimentos, ou sobre como treinar um pássaro ou tratar de um cavalo ou de um cão. E, para tornar completa minha vergonha, não faz um mês fui surpreendido na ignorância de que se usa fermento para fazer o pão. Montaigne percorre no mesmo espírito seu catecismo negativo de falhas e carências ao listar a relação de coisas de que não dispunham os “canibais” do Brasil: criados, magistrados, contratos e propriedade privada, mas também mentiras, pobreza, traição, inveja e cobiça. Podia ser uma bênção carecer de certas coisas. Não que Montaigne não quisesse aprender. Em princípio, ele aprovava todo conhecimento prático, admirando as coisas concretas e específicas. Mas nada podia fazer quanto ao próprio desinteresse, e qualquer sensação de obrigação o tornava ainda mais resistente. A explicação disto remontava em parte aos suaves combates da infância: “Como nunca até hoje me foi imposto senhor nem governador, eu sempre fui até onde me agradava, e no meu próprio ritmo. O que me tornou fraco e imprestável no serviço dos outros, sem valia para ninguém senão a mim mesmo.” Este trecho revela algumas de suas verdadeiras motivações: era a sua vida que ele queria viver. O fato de ser carente de espírito prático o deixava livre. “Extremamente indolente, extremamente independente, fosse por natureza ou por arte”: assim ele resumia seu temperamento. Deixava-se governar apenas pela “liberdade e a preguiça”.

Ele sabia que havia um preço a pagar, além de ser desancado pela mulher. As pessoas muitas vezes tiravam vantagem de sua ignorância. Mas lhe parecia preferível perder dinheiro eventualmente do que perder tempo correndo atrás de cada centavo e vigiando os menores movimentos dos criados. De qualquer maneira, outras pessoas também se deixavam enganar, por mais que tentassem evitá-lo. Seu exemplo favorito de insensatez era um vizinho, o poderoso Germain-Gaston de Foix, marquês de Trans, que na velhice se transformou num avaro tirano doméstico. A família e os criados o deixavam vociferar o quanto quisesse, tratando de se adaptar às magras rações de alimentos mas ao mesmo tempo se servindo à vontade pelas suas costas. “Todo mundo se refestela pelos cantos da casa, apostando, gastando e contando histórias sobre sua inútil raiva e esperteza.” Apesar disso, acrescentava Montaigne depois de pensar melhor, não tinha importância, pois o velho estava convencido de deter um poder absoluto na casa, sentindo-se com isto tão feliz quanto uma pessoa como ele poderia ser. “Nada me custa caro, senão a preocupação e os aborrecimentos”, escrevia Montaigne: “Quero apenas tornar-me indiferente e tranquilo.” Podemos imaginar a pressão arterial de Pascal subindo à leitura disto. O que Montaigne dizia mais querer na velhice era um genro que lhe tirasse qualquer responsabilidade. Na verdade, se viesse a ser manipulado e tratado com condescendência por um estranho, seu gosto da independência provavelmente se insurgiria — e de fato ele acrescenta a esta observação sobre o genro uma enxurrada de comentários inversos: Eu evito submeter-me a qualquer tipo de obrigação.

Tento não ter necessidade explícita de ninguém (...) É lastimável e arriscado depender de outra pessoa. Adquiri um ódio mortal a ser obrigado por outra ou para outra pessoa que não eu mesmo. Ele não tinha em mente a gestão da casa ao escrever isso: o tema são seus compromissos, mais tarde, com o novo rei da França, Henrique IV, que aparentemente o queria às suas ordens. Montaigne haveria de resistir com uma determinação beirando a insolência — exatamente sua atitude em relação a exigências mais domésticas. A preguiça respondia por apenas metade de sua autoimagem, sendo a outra a liberdade. Ele chegava a ter fantasias em que se transformava em Hípias de Élis, filósofo sofista grego do século V a.C., que desenvolveu a capacidade da autossuficiência, aprendendo a cozinhar, barbear-se e fazer os próprios sapatos e roupas — tudo de que precisava. Era uma boa ideia. Mas ainda assim: um Montaigne autossuficiente, costurando o próprio gibão com agulha e linha, cultivando o jardim, assando o pão, curtindo o couro de suas botas? Até ele mesmo acharia difícil imaginar cenas do tipo. Como sempre, ele deixou o tema banhar em contradições e num espírito de negociação. Se seus protestos de incompetência não bastavam para eximi-lo de determinada responsabilidade, ele botava a mão na massa, e talvez mais conscienciosamente do que gostaria de admitir. Nietzsche escreveu sobre certas “pessoas de espírito livre” que ficam perfeitamente satisfeitas “com uma posição acanhada ou uma situação material que atenda estritamente a suas necessidades; pois tratam de viver de tal maneira que uma grande alteração nas condições econômicas ou mesmo uma revolução nas estruturas

políticas não arruíne simultaneamente sua vida”. Acrescenta que uma pessoa assim tende a ter “relações cautelosas e efêmeras”. Isto se parece tanto com o esquema doméstico de Montaigne que quase nos perguntamos se Nietzsche não o tinha em mente, especialmente por acrescentar que essa pessoa “deve confiar em que o gênio da justiça diga algo em favor de seu discípulo e protegido, caso seja acusado de carência amorosa”. No caso de Montaigne, a acusação era pronunciada antes de tudo por ele mesmo. Outros o tomaram como estímulo a repeti-la desde então, em tom duro, sem o senso de ironia do próprio Montaigne ou de Nietzsche. Mas nada nos escritos ou no temperamento de Montaigne era tão direto assim. Por mais que ele nos tente convencer de que é frio e distante, outras imagens se nos afiguram: Montaigne levantando-se de um salto no parlement para mergulhar no debate, Montaigne em profunda e apaixonada conversa com La Boétie, até mesmo Montaigne apostando centavos no jogo com a mulher e a filha ao pé da lareira. Certas respostas suas à questão de como viver são de fato gélidas: cuide do que é seu, preserve sua identidade, afaste-se dos problemas e mantenha um compartimento nos fundos da loja. Mas outra quase poderia ser considerada o exato oposto. Estamos falando de...

9. P. Como viver? R. Seja sociável: viva com os outros UMA SABEDORIA ALEGRE E COMUNICATIVA

temperamentos secretos, recolhidos e “E xistem introspectivos”, escreve Montaigne. Mas o seu não é nenhum desses. Meu padrão essencial é tendente à comunicação e à revelação. Situo-me em campo aberto e à vista de todos, nascido para o convívio e a amizade. Ele adora se misturar. A conversação é algo que aprecia mais que qualquer outro prazer. De tal maneira precisa dela que preferiria perder a visão que a audição ou a fala, pois conversar é melhor que ler livros. E não precisa ser uma conversa séria: o que ele mais valoriza é “a troca vívida e penetrante que a disposição favorável e a familiaridade facultam aos amigos, brincando e gracejando com entusiasmo e argúcia”. Qualquer conversa é boa, desde que amistosa e de bom ânimo. Essas boas disposições sociais deviam ser estimuladas nas crianças desde a mais tenra idade, para extraí-las de seu mundinho fechado. “Um maravilhoso fulgor pode ser propiciado ao julgamento humano pelo conhecimento dos homens. Estamos todos debruçados e concentrados sobre nós mesmos, e nossa visão se reduz ao comprimento do nosso nariz.” Montaigne adorava o debate aberto. “Nenhuma afirmação me espanta, nenhuma crença me ofende, por mais oposta que seja às minhas próprias.” Ele gostava de ser refutado, pois isto dava lugar a conversas mais interessantes e o

ajudava a pensar — algo que preferia fazer por interação, e não na contemplação do fogo, como Descartes. Seu amigo Florimond de Raemond considerava sua conversa “a mais doce e rica de inspiração”. Mas, quando não estava em estado de doçura ou se deixava arrebatar pelo tema de uma discussão, Montaigne podia ser vociferante. Apaixonado, mostrava-se imprudente e estimulava os outros a fazer o mesmo. A liberdade de expressão era lei em sua casa. Na propriedade dos Montaigne, dizia, não havia lugar para “estar sempre atendendo e acompanhando alguém aqui e ali, ou outros preceitos incômodos de nosso código de boas maneiras (ah, que hábito servil e fastidioso!)”. Cada um se comportava como bem quisesse, e qualquer convidado que também ansiasse pela solidão podia ficar na sua pelo tempo que quisesse, sem ofender a ninguém. Além de descartar os procedimentos convencionais da etiqueta, Montaigne desencorajava a tediosa conversa fiada. As performances solo muito cheias de si também o aborreciam. Certos amigos seus eram capazes de manter um grupo extasiado por horas com suas anedotas, mas Montaigne preferia uma troca mais natural. Em jantares solenes fora de casa, onde a conversa ficava na esfera das convenções, sua atenção se perdia; quando alguém subitamente se dirigia a ele, Montaigne costumava fazer comentários inadequados, “indignos de uma criança”. Era algo que lamentava, pois a conversa fluente em situações triviais era valiosa, abrindo caminho para relacionamentos mais profundos e noites mais agradáveis, nas quais se podia brincar e rir à vontade. Para Montaigne, “a tranquilidade e a afabilidade” não eram apenas talentos úteis, mas fatores essenciais do bem viver. Ele tentava cultivar “uma sabedoria alegre e sociável” — formulação que evoca a famosa definição da filosofia, em

Nietzsche, como “gaia” ou “alegre” ciência. Como os libertins, Nietzsche concordava com Montaigne em que o importante era uma compreensão compassiva e sociável, embora o próprio Nietzsche a achasse difícil. Seus relacionamentos muitas vezes eram traumáticos. Mas numa tocante passagem de um de seus primeiros livros, Humano, demasiado humano, ele escreveu: Entre as coisas pequenas mas infinitamente abundantes e portanto muito eficazes às quais a ciência devia dar mais atenção que às coisas grandes e raras está a boa vontade [Wohlwollen]. Refiro-me às expressões de uma disposição amistosa nas interações, àquele sorriso do olhar, ao aperto de mãos, à naturalidade que geralmente envolve quase todos os atos humanos. Todo professor, todo funcionário inclui esse ingrediente naquilo que considera ser do seu dever. É a contínua manifestação de nossa humanidade, seus raios de luz, por assim dizer, nos quais tudo prospera (...) A boa índole, a cordialidade e a generosidade de coração (...) têm contribuído muito mais para a cultura que as expressões muito mais reputadas desse impulso, chamadas compaixão, caridade e abnegação. Para Montaigne, quase sempre, a disposição amistosa era algo fácil. O que o favorecia, pois ele precisava muito dela, fosse em casa ou na vida profissional. Ele devia relacionarse bem com os colegas em Bordeaux; mais tarde, precisaria em suas atividades seduzir diplomatas, reis e temíveis guerreiros. Muitas vezes teve de estabelecer algum entendimento com adversários enceguecidos pelo fanatismo religioso. Em torno da propriedade também era importante a socialização com os vizinhos — nem sempre

era fácil. Volta e meia eles aparecem em Os ensaios, não raro envolvidos em histórias movimentadas: o avaro marquês de Trans, cuja família, os de Foix, era muito poderosa na região; um certo Jean de Lusignan, que se esgotava na organização de festas excessivas para os filhos adultos; François de La Rochefoucauld, que considerava nojento assoar o nariz num lenço, preferindo usar apenas os dedos. Certas representantes da nobreza da região mereceram dedicatórias em capítulos específicos: Diane de Foix, condessa de Gurson; Marguerite de Gramond; e Mme. d’Estissac, cujo filho viajaria mais tarde à Itália com Montaigne. Montaigne se aproximou sobretudo da mulher que se tornaria amante de Henrique de Navarra (mais tarde Henrique IV): Diane d’Andouins, condessa de Guiche e de Gramont, mais conhecida como “Corisande”, nome de uma personagem de um de seus romances de cavalaria preferidos. Para acompanhar tais amigos, Montaigne tinha de participar de muitos entretenimentos da moda de que secretamente não gostava. Ao receber convidados, ele podia promover uma caçada a veados, por mais que se sentisse avesso à prática. Tinha mais sucesso quando se tratava de evitar os torneios de luta, que considerava letais e sem sentido. Também tentava escapulir dos divertimentos de salão da época, entre eles torneios de poesia, jogos de cartas e adivinhações de rébus — talvez porque, como admitia ele próprio, não se saísse bem em nenhum. Sua casa costumava ser visitada por artistas itinerantes: acrobatas, dançarinos, treinadores de cães amestrados e “monstros” humanos, que tentavam desesperadamente ganhar a vida percorrendo o país. Montaigne os tolerava, mas não se deixava impressionar por exibições fantásticas como as de um homem que à distância arremessava grãos

de milhete pelo buraco de uma agulha. Interessava-se mais por novidades que tivessem algum significado, como o grupo de indígenas tupinambás que encontrou em Rouen. E percorria distâncias consideráveis para investigar informações sobre nascimentos anômalos, como o de uma criança que nasceu tendo presa ao torso uma parte sem cabeça de outra criança. Visitou um pastor hermafrodita em Médoc e foi ao encontro de um homem sem braços que conseguia carregar e disparar uma pistola, enfiar a linha numa agulha, costurar, escrever, pentear o cabelo e jogar cartas com os pés. Como o arremessador de milhete, este outro também sobrevivia se exibindo, mas Montaigne o achou muito mais interessante. As pessoas falavam de “monstros”, escreveu, mas esses indivíduos não iam de encontro à natureza, apenas aos hábitos. Em matéria de real excentricidade, não podia haver dúvida quanto ao que sobressaía, para Montaigne: Não encontrei neste mundo mais evidente monstruosidade ou milagre que eu mesmo. Acostumamo-nos a qualquer coisa estranha com o uso e o tempo; mas, quanto mais convivo comigo mesmo e me conheço, mais me espanta minha deformidade e menos eu me compreendo. A propriedade, assim, era uma movimentada encruzilhada, atravessada por ondas de gente em todas as direções. O clima era mais o de uma aldeia que de uma residência privada. Mesmo quando se retirava em sua torre para escrever, Montaigne raramente trabalhava sozinho ou em silêncio. Havia sempre gente falando e trabalhando ao seu redor; em frente à janela, cavalos eram conduzidos do estábulo e de volta a ele, enquanto galinhas cacarejavam e cães latiam. Na temporada de produção de vinho, o retinir

das prensas estava sempre no ar. Mesmo no auge das guerras, Montaigne mantinha sua propriedade mais aberta para o mundo que os outros — uma decisão rara em tempos tão difíceis. Sob certos aspectos, o mundo de Montaigne tornou-se um universo fechado sobre si mesmo, com seus valores próprios e certo clima de liberdade. Mas ele nunca o transformou numa fortaleza. Fazia questão de dar as boasvindas a quem quer que chegasse ao seu portão, embora soubesse dos riscos e reconhecesse que isto significava ir-se deitar sem saber se seria assassinado durante o sono por algum vagabundo ou soldado sem rumo. Mas o princípio era incontornável. Ao escrever “situo-me em campo aberto e à vista de todos”, Montaigne não se referia apenas a conversas triviais: queria dizer que pretendia manter-se em comunicação livre e sincera com outros seres humanos — mesmo aqueles que podiam parecer determinados a matálo. ABERTURA, COMPAIXÃO E CRUELDADE

Segundo Giovanni Botero, um escritor italiano de temas políticos que viveu na França na década de 1580, o interior francês nessa época estava tão cheio de ladrões e assassinos que toda casa era obrigada a manter “vigias nos vinhedos e hortas; portões, trancas, ferrolhos e cães de guarda”. Ao que parece, Botero não visitou a propriedade de Montaigne, na qual o único encarregado da defesa era um homem por ele descrito como “um porteiro de antigos modos e hábitos, que serve não tanto para defender meu portão, mas para conferir-lhe mais propriedade e elegância”.

Montaigne vivia assim porque estava decidido a resistir à intimidação e não queria tornar-se seu próprio carcereiro. Mas, paradoxalmente, também acreditava que sua abertura lhe proporcionava mais segurança. As residências fortemente guardadas da região eram muito mais atacadas que a sua. Para explicar o fenômeno, ele citava Sêneca: “Lugares trancados atraem o ladrão. O assaltante passa sem se deter pelo que está aberto.” As trancas faziam com que um lugar ficasse parecendo valioso, e não havia a menor grandeza em roubar uma residência na qual o ladrão recebesse as boas-vindas de um porteiro idoso. Além disso, as regras habituais da fortificação não se aplicam propriamente numa guerra civil: “Seu criado pode estar nas fileiras que você teme.” Não se pode montar barricadas no portão para fazer frente a uma ameaça que já está no interior; é muito melhor conquistar o inimigo comportandose com generosidade e honradez. Os acontecimentos aparentemente davam razão a Montaigne. Certa vez, ele hospedou uma companhia de soldados, mas se deu conta de que tramavam tirar vantagem de sua hospitalidade para tomar o castelo. Eles desistiram do plano, contudo, e o líder explicou a Montaigne o motivo: ficara “desarmado” ao ver “o rosto e a sinceridade” do anfitrião. Também no mundo exterior a abertura de Montaigne o protegia da violência. Numa ocasião, viajando por uma floresta em perigosa região rural, ele foi atacado por quinze ou vinte mascarados, seguidos por um bando de arqueiros montados — uma impressionante investida, aparentemente planejada com antecipação. Eles o conduziram a uma área mais densa da floresta, saquearam seus pertences, apoderaram-se de seus baús de viagem e do cofre de dinheiro e começaram a discutir como partilhar seus cavalos

e outros equipamentos. Para piorar, tiveram a ideia de fazêlo refém a fim de obter mais ganhos, mas não conseguiam decidir o valor do resgate a ser cobrado. Montaigne ouviu-os debater a questão e se deu conta de que provavelmente estabeleceriam um valor excessivamente alto, o que significaria sua morte, se ninguém pudesse pagar. Não mais aguentando, ele os interrompeu. Declarou então que já tinham em seu poder tudo que conseguiriam. O resgate poderia ter o valor que fosse, não faria a menor diferença: não veriam a cor do dinheiro. Era uma maneira arriscada de enfrentar a situação, mas depois disso o comportamento dos bandidos mudou dramaticamente. Fecharam-se novamente em mais discussões, e então o chefe foi em direção de Montaigne com um ar quase amistoso. Tirou a máscara — um gesto significativo, pois os dois podiam agora encarar-se frente a frente, como seres humanos — e disse que tinham decidido soltá-lo. Chegaram a devolver alguns de seus pertences, inclusive o cofre. O chefe explicou, como escreveria Montaigne mais tarde, que “eu devia minha liberdade a meu rosto e à liberdade e firmeza da minha fala”. Ele foi salvo por seu ar de naturalidade e sinceridade, combinado à coragem de enfrentar a agressão. Era o tipo de confronto que podia acontecer a qualquer momento, a qualquer pessoa, e Montaigne muitas vezes se perguntava quanto à melhor maneira de lidar com isto. Seria mais indicado enfrentar diretamente o inimigo e desafiá-lo ou buscar sua complacência mostrando submissão? Invocar a misericórdia do agressor e esperar que fosse levado por seu sentimento humanitário a poupálo? Ou seria isto loucura? O problema é que cada resposta contém seus riscos. A ousadia pode impressionar o outro, mas também enfurecêlo. A submissão pode inspirar piedade, mas tem igual

probabilidade de suscitar o desprezo do inimigo, de tal maneira que venha a descartá-lo sem maior preocupação do que se esmagasse um inseto. Quanto a apelar a seu senso humanitário, como saber se efetivamente dispõe dele? Tais questões não eram de mais fácil solução no violento século XVI do que num antigo campo de batalha mediterrâneo ou num beco de uma cidade moderna, frente a um assaltante. São questões perenes, e Montaigne não enxergava nenhuma resposta satisfatória. Mas nunca se cansou de explorá-las. Reiteradas vezes, em Os ensaios, ele relata cenas envolvendo dois indivíduos em confronto, um deles derrotado e obrigado a implorar pela própria vida ou mostrar-se desafiador, o outro convidado a mostrar compaixão ou negá-la. Num desses episódios, relatado no primeiro ensaio do livro, Skanderbeg, um herói militar albanês quatrocentista, estava a ponto de matar um de seus próprios soldados, num acesso de fúria. O sujeito implorava misericórdia, mas Skanderbeg não se deixava abalar. Em desespero, o soldado desembainhou a espada e partiu para a luta — o que impressionou Skanderbeg de tal maneira que sua raiva se evaporou e ele libertou o homem. Em outra história, temos Edward, príncipe de Gales, que percorria uma cidade francesa derrotada dando a torto e a direito ordens de assassinatos em massa de cidadãos. Deteve-se apenas quando deu com três homens acuados mas resistindo. Tomado de admiração, poupou suas vidas, comentando em seguida que os demais habitantes também podiam ser poupados. Esses relatos dão a entender que a melhor política é a atitude de desafio. Mas o mesmo ensaio examina incidentes que tiveram um outro desenlace. Ao atacar a cidade de

Gaza, Alexandre, o Grande, deu com o comandante inimigo Betis “sozinho, abandonado por seus homens, a armadura despedaçada, coberto de sangue e ferimentos e ainda resistindo”. Como Edward, Alexandre foi tomado de admiração, mas apenas por um momento. Continuando Betis a opor-lhe resistência, encarando-o de forma insolente, Alexandre perdeu a paciência. Perfurando seus calcanhares, arrastou-o preso a uma carroça até morrer. O comandante derrotado fora longe demais, ainda por cima frente ao adversário errado. Outras histórias mostram com a mesma clareza os riscos da submissão. Montaigne recordava com nitidez o caso de Tristan de Moneins, o comandante militar linchado numa rua de Bordeaux ao se apresentar muito timidamente aos revoltosos contra o imposto do sal em 1548. Quando alguém demonstra fraqueza e dispara no outro uma espécie de instinto de caça, tudo está perdido. E raramente haverá alguma esperança se o confronto se der com um autêntico caçador. Montaigne era obcecado com a imagem de um veado acuado depois de horas de perseguição, exausto e sem saída nem alternativa senão entregar-se aos caçadores, “implorando misericórdia com as lágrimas”. Esse tipo de misericórdia nunca se materializa. Por mais que Montaigne encenasse confrontos mentalmente, todos pareciam apontar para diferentes interpretações e respostas. Por isso mesmo é que o fascinavam. Em cada caso a parte derrotada deve tomar uma decisão, mas também o indivíduo vitorioso, pois as coisas podem dar muito errado para ele se não avaliar corretamente a situação. Se poupar alguém que venha a interpretar sua generosidade como fraqueza, ele também pode ser morto. Se se mostrar duro demais, provocará rebelião e vingança.

O cristianismo parece oferecer uma resposta simples: o vitorioso deve sempre mostrar compaixão e a vítima deve sempre dar a outra face. Mas não se pode esperar que no mundo real as coisas funcionem assim — e tampouco podia esperá-lo a maioria dos cristãos nessa época de violentas guerras religiosas. Montaigne não se preocupava muito com teologia: mergulhado em suas leituras clássicas parecia, como sempre, esquecer o ponto de vista cristão. Para ele, de qualquer maneira, as verdadeiras dificuldades eram antes psicológicas que morais. Ou então, se fossem morais, seria no sentido mais amplo da expressão usado na filosofia clássica, na qual não significava seguir preceitos, mas saber tomar decisões justas e inteligentes na vida real. No cômputo geral, a visão de Montaigne era de que tanto a vítima quanto o vitorioso deviam tomar o caminho que significasse depositar a máxima confiança no outro — vale dizer, como bons cristãos, a parte derrotada devia pedir misericórdia e a vitoriosa, concedê-la. Mas os dois haveriam de fazê-lo corajosamente, de “peito aberto”, livres de qualquer submissão ou medo. A atitude de ambos os lados devia caracterizar-se por uma “pura e límpida confiança”. Montaigne encontraria sua situação ideal na cena ocorrida na praça Tiananmen, em Pequim, em 1989, quando os tanques chegaram para reprimir uma manifestação de protesto. Um homem, que de forma incompatível com a situação portava uma sacola de compras, posicionou-se tranquilo e imóvel diante deles; em vista disso, o condutor do primeiro tanque deteve-se. Se o sujeito tentasse se proteger ou fugir, ou então, inversamente, se esbravejasse e brandisse os punhos, teria sido mais fácil para o condutor matá-lo. Em vez disso, a “pura e límpida confiança” do manifestante ocasionou uma disposição semelhante do oponente.

A coisa não funcionaria com um veado, numa situação em que o sentimento de fraternidade é bloqueado pela relação caça-caçador; talvez não funcionasse tampouco entre uma bruxa perseguida e um torturador, confronto em que se interpõem elementos de fanatismo e obediência ao desempenho de papéis. A guerra também desorganiza a psicologia habitual, assim como o faz a histeria das multidões. Embora a cena na praça Tiananmen fosse violenta, ela se deu em tempo de paz, ao passo que uma batalha cria um estado mental alterado. No mundo clássico, e em certa medida na época de Montaigne, era considerado normal que um soldado não fosse capaz de se conter durante uma batalha. Ele estaria tomado de furor: um frenesi arrebatadoramente destemido no qual não se deve nem se poderia esperar qualquer manifestação de moderação ou compaixão. Montaigne ficava perplexo com o furor, como diante da maioria dos estados extremos. Não gostava, por exemplo, da maneira como Júlio César supostamente insuflava seus soldados à selvageria, antes de uma batalha, com falas assim: Quando as armas trovejam, sentimentos piedosos Não deves, ainda diante dos pais, abrigar; Seus veneráveis rostos com o aço haverás de retalhar. Dentre todos os guerreiros famosos, Montaigne admirava sobretudo o general Epaminondas, conhecido em Tebas por sua capacidade de manter o furor sob controle. Certa vez, em plena batalha, “terrível de sangue e ferro”, Epaminondas se viu frente a frente com um conhecido que o hospedara um  dia. Virou-se e não o matou. Pode parecer

banal, mas teoricamente um soldado não deveria ser capaz de deliberar tal contenção, como não o faria um tubarão em fúria instintiva para se alimentar. Epaminondas revelou-se “no comando da própria guerra”, na formulação de Montaigne; fez com que a batalha “acolhesse a curva da benignidade” no auge do êxtase. Montaigne desconfiava de que a tradição do furor fosse usada apenas como desculpa. “Cuidemos de privar as naturezas perversas, sanguinárias e traiçoeiras desse pretexto da razão.” A brutalidade já era suficientemente ruim em si mesma: brutalidade com a desculpa de um estado mental elevado era pior ainda. Acima de tudo, ele lastimava o fanatismo religioso dos que acreditavam que Deus exigia violência tão extrema e irracional como prova de devoção. A crueldade deixava Montaigne enojado: era mais forte que ele. Ele a detestava cruelmente, escreveu, frisando o paradoxo. Sua aversão era instintiva, tão parte integrante dele quanto a abertura estampada em seu rosto. Por isso não suportava caçar. Até a visão de uma galinha tendo o pescoço torcido ou de uma lebre capturada por cães o horrorizava. A mesma capacidade de trocar de perspectiva que lhe permitia adotar o ponto de vista de seu gato impedia que visse uma lebre sendo estraçalhada sem sentir a experiência nas próprias tripas. Se não era capaz de suportar a visão de uma lebre em sofrimento, muito menos poderia ele tolerar as torturas e execuções judiciais comuns em sua época. “Nem mesmo as execuções da lei, por razoáveis que sejam, posso presenciar com o olhar firme.” Em sua carreira, podia caber-lhe ordenar punições assim, mas ele se recusava. “Sou tão melindroso quando se trata de machucar que nem mesmo a bem da razão poderia fazê-lo. E quando as circunstâncias me

impuseram a condenação de criminosos, mostrei-me aquém dos reclamos da justiça.” Ele não era o único escritor de sua época a se opor à caça ou à tortura. O que põe Montaigne à parte era o motivo: sua relação visceral com os outros. Quando falou com os indígenas brasileiros em Rouen, ficou impressionado com a maneira como se referiam aos homens como metades uns dos outros, figurando a imagem de franceses se empanturrando enquanto suas “outras metades” morriam de fome à sua porta. Para Montaigne, todos os seres humanos compartilham algum elemento do seu ser, assim como todos os demais seres vivos. “É sempre a mesma e única natureza que segue seu curso.” Mesmo que os animais não nos fossem tão familiares, ainda assim teríamos para com eles um dever de fraternidade, simplesmente por estarem vivos. Existe certo respeito e um dever genérico da humanidade que nos liga não só aos animais, que têm vida e sentimento, mas até às plantas e árvores. Temos um dever de justiça para com os homens, e de compaixão e bondade para com outras criaturas capazes de recebê-lo. Existe alguma relação entre elas e nós, e um compromisso recíproco. Esse compromisso vigora não só nos contatos de vida ou morte como também nos mais triviais. Devemos aos demais seres todos esses incontáveis pequenos gestos de bondade e empatia que Nietzsche chamava de “boa vontade”. Depois do trecho citado acima, Montaigne acrescentava esta observação a respeito de seu cão: Não receio admitir que meu temperamento é de tal maneira brando, infantil, que não posso recusar ao

meu cão as brincadeiras a que me convida ou que me pede fora de hora. Ele cede ao cão porque é capaz em sua imaginação de assumir o ponto de vista do animal, sentindo o seu desespero por livrar-se do tédio e obter a atenção do amigo humano. Em Pascal, isto era motivo de zombaria: segundo ele, Montaigne monta seu cavalo como se não acreditasse que tivesse o direito de fazê-lo, perguntando-se se “o animal, pelo contrário, é que não deveria estar fazendo uso dele”. Pois ele estava certo, e se isto muito indispunha Pascal, teria encantado Nietzsche, cujo definitivo colapso mental teria começado (em versão não comprovada) no momento em que passou os braços no pescoço de um cavalo numa rua de Turim e começou a chorar. Entre os leitores menos emotivos, um dos que ficaram particularmente tocados pelas observações de Montaigne a respeito da crueldade foi o marido de Virginia Woolf, Leonard Woolf. Em suas memórias, ele via no ensaio “Da crueldade”, de Montaigne, um texto muito mais importante do que geralmente se considerava. Montaigne, escreveu ele, era “a primeira pessoa no mundo a manifestar esse intenso horror pessoal à crueldade. Era também o primeiro homem completamente moderno”. As duas coisas estavam relacionadas: a modernidade de Montaigne residia precisamente na “intensa consciência e no apaixonado interesse pela própria individualidade e a de todos os outros seres humanos” — e dos não humanos também. Até um porco ou um camundongo tem, como diz Woolf, o sentimento de ser um “eu”. Era precisamente o que Descartes negava tão incansavelmente, mas Woolf chegou a esta convicção por experiência pessoal, e não por raciocínio cartesiano. Lembrava-se de ter sido instruído, na

infância, a afogar alguns filhotes de cachorro recémnascidos que ninguém queria — sem dúvida uma missão surpreendente para uma criança. Fez o que lhe mandaram, mas ficou mais perturbado do que imaginava. Anos depois, escreveria: Observados sem muita atenção, os filhotes recémnascidos são pequenos objetos ou coisas, cegos, contorcidos, indiferenciados. Pus um deles no balde d’água e imediatamente aconteceu uma coisa extraordinária, terrível. Aquela coisa cega e amorfa começou a lutar desesperadamente pela vida, debatendo-se, movendo as patas na água. Percebi de repente que se tratava de um indivíduo, que, como eu, ele era um “eu”, que em seu balde d’água vivenciava o que eu teria vivenciado e lutava contra a morte, como eu faria se estivesse me afogando no oceano infinito. Era, achava eu, como ainda acho, uma coisa terrível e bárbara afogar aquele “eu” num balde d’água. Woolf lembrou-se do incidente na idade adulta ao ler Montaigne. Aplicou então a mesma percepção à esfera política, refletindo particularmente sobre suas recordações da década de 1930, quando o mundo parecia a ponto de mergulhar numa barbárie em que não havia espaço para esse pequeno eu individual. Em escala global, nenhuma criatura pode ter tanta importância, escreveu, mas de outra perspectiva esses “eus” são a única coisa importante. E só uma política que os reconheça representa alguma esperança para o futuro. Escrevendo sobre a consciência, o psicólogo William James teve uma reação instintiva semelhante. Nada entendemos da experiência de um cão, do “êxtase dos ossos debaixo das sebes, dos cheiros de árvores ou postes”.

Eles nada entendem da nossa, quando por exemplo nos veem contemplando interminavelmente as páginas de um livro. Mas os dois estados de consciência compartilham certa qualidade: o “deleite”, a “vibração” que se dá quando estamos completamente absortos no que fazemos. Essa vibração nos deveria levar a reconhecer as semelhanças que partilhamos mesmo quando os objetos de nosso interesse são diferentes. E esse reconhecimento, por sua vez, conduziria à bondade. Esquecer essa semelhança é o pior erro político, e também o pior do ponto de vista pessoal e moral. Na visão de William James, como na de Leonard Woolf e de Montaigne, não vivemos emparedados em nossas perspectivas separadas, como Descartes em seu quarto. Vivemos na porosidade sociável. Podemos esquivar-nos de nossa mente, ainda que por alguns momentos, para ocupar o ponto de vista de outro ser. Esta capacidade é o verdadeiro significado de “ser sociável”, que vem a ser a resposta deste capítulo à questão de como viver, além da maior esperança em se tratando de civilização.

10. P. Como viver? R. Desperte do sono do hábito TUDO DEPENDE DO PONTO DE VISTA

A

arte de enxergar as coisas da perspectiva de outra pessoa ou de um animal pode ser instintiva em alguns, mas também pode ser cultivada. É o que os romancistas fazem o tempo todo. Enquanto Leonard Woolf elaborava sua filosofia política, sua mulher, Virginia, escrevia em seu diário: Lembro-me de estar deitada junto a uma depressão do terreno, esperando L[eonard] chegar & colher cogumelos, & vi uma lebre vermelha correndo & pensei de repente “É a vida na Terra”. Eu parecia estar vendo como tudo era telúrico, & eu mesma sendo um tipo mais avançado de lebre; como se fosse vista por um visitante da Lua. Esse momento fantástico, quase alucinatório, deu a Woolf a sensação de como ela e a lebre seriam vistas por alguém que não as olhasse com os olhos embotados pelo hábito. Permitiu-lhe des-familiarizar o familiar — um truque mental parecido com os utilizados pelos filósofos helenísticos quando se imaginavam contemplando a vida humana das estrelas. Como tantos desses truques, ele funciona ajudando a pessoa a prestar a devida atenção. O hábito torna tudo insípido, induz ao sono. Adotar uma perspectiva diferente é uma maneira de despertar de novo. Montaigne adorava esse truque e o utilizava constantemente em seus textos.

Seu procedimento favorito consistia simplesmente em percorrer listas de costumes completamente diferentes de todas as partes do mundo, maravilhando-se com seu caráter estranho e aleatório. Seus ensaios “Do costume” e “Dos costumes antigos” falam de países onde as mulheres urinam de pé e os homens, agachados, onde as crianças são amamentadas até os 12 anos, onde é considerado fatal amamentar um bebê no primeiro dia, onde o cabelo cresce do lado direito do corpo mas é completamente raspado do lado esquerdo, onde se deve matar o próprio pai quando chega a certa idade, onde as pessoas esfregam as costas com uma esponja na ponta de uma vara e onde o cabelo é usado longo na frente e curto atrás, e não o contrário. As listas semelhantes encontradas em “Apologia” vão desde os peruanos que alongam as orelhas até os orientais que escurecem os dentes por considerar deselegantes os dentes brancos. Cada cultura, adotando esses costumes, considera-se como o padrão. Para alguém que viva num país onde os dentes são enegrecidos, parece óbvio que apenas esses dentes possam ser considerados belos. O conhecimento da diversidade nos ajuda a nos libertar disto, ainda que por breves momentos de visão ampliada. “Este vasto mundo”, escreve Montaigne, “é o espelho no qual devemos nos contemplar para nos reconhecer do devido ângulo”. Depois de percorrer uma dessas listas, encaramos de outra maneira nossa própria existência. Nossos olhos se abrem para a verdade de que nossos costumes não são menos esquisitos que os de qualquer outro povo ou pessoa. Parte do interesse de Montaigne por essas mudanças de perspectiva remontava à observação do espanto dos visitantes tupinambás em Rouen. Olhar para eles enquanto observavam os franceses foi um autêntico despertar, como

o de Virginia Woolf na colina. O encontro estimulou em Montaigne um interesse pelo Novo Mundo que o acompanharia pelo resto da vida — todo um hemisfério desconhecido dos europeus até algumas décadas antes do seu nascimento, e ainda tão surpreendente que mal parecia real. Quando Montaigne nasceu, a maioria dos europeus já aceitava a ideia de que as Américas realmente existiam, não sendo mera fantasia. Havia quem tivesse adquirido o hábito de comer pimenta e chocolate, e uns poucos até fumavam tabaco. O cultivo da batata tivera início, embora sua forma vagamente testicular ainda levasse muita gente a pensar que servisse apenas como afrodisíaco. Ao retornar, os viajantes contavam histórias de canibalismo e sacrifícios humanos, ou de fortunas fabulosas em ouro e prata. À medida que a vida na Europa se tornava mais difícil, muitos contemplavam a hipótese de emigrar, e as colônias brotavam como cogumelos no litoral oriental americano. Tratava-se na maioria dos casos de espanhóis, mas os franceses também tentaram a sorte. Na juventude de Montaigne, a França parecia em condições de prosperar na nova aventura colonial. Tinha uma grande esquadra e dispunha de portos internacionais bem-equipados como ponto de partida — destacando-se entre eles Bordeaux. Várias expedições francesas foram empreendidas em meado do século, mas uma a uma foram encontrando dificuldades. Os colonizadores franceses tinham uma curiosa tendência para sabotar as próprias iniciativas através de conflitos religiosos, que importaram para a América. A primeira colônia francesa no Brasil, fundada por Nicolas Durand de Villegaignon na década de 1550, perto do lugar onde fica atualmente a cidade do Rio de Janeiro, foi de tal maneira comprometida pela divisão entre católicos e

protestantes que não resistiu a uma invasão dos portugueses. Na década de 1560, uma colônia predominantemente protestante na Flórida sucumbiu aos espanhóis. A essa altura, uma guerra civil irrompera no território francês, tornando-se difícil conseguir dinheiro e logística para grandes viagens. A França perdeu o lugar na primeira grande bonança além-mar, aquela mesma que fez a fortuna da Inglaterra e da Espanha. Quando veio afinal a se recuperar e tentar novamente, era tarde demais para recobrar a vantagem por completo. Como tantos em sua geração, Montaigne sentia verdadeiro fascínio por tudo que dissesse respeito às Américas, paralelamente a uma certa descrença em relação às conquistas coloniais. Valorizava suas lembranças da conversa com os tupinambás — que tinham chegado à França numa das embarcações de Villegaignon — e colecionava recordações para sua estante de curiosidades na torre: “exemplares de suas camas, cordas, espadas de madeira e braceletes que usam durante os combates, além de grandes bastões, abertos numa das extremidades, com cujo som marcam o ritmo em suas danças”. Boa parte disso provavelmente fora obtida por um empregado que vivera durante certo tempo na colônia de Villegaignon. O mesmo indivíduo apresentou Montaigne a marinheiros e comerciantes que alimentariam ainda mais sua curiosidade. Era ele próprio “um sujeito simples e rude”, mas Montaigne considerava que por isto mesmo seria uma excelente testemunha, não se sentindo tentado a enfeitar ou interpretar em demasia o que relatava. Além dessas conversas, Montaigne lia tudo que chegasse a suas mãos sobre a matéria. Em sua biblioteca havia traduções da Historia de las Indias de López de Gómara e da Brevisima relación de la destruccion de las Indias, de

Bartolomé de Las Casas, além de originais franceses mais recentes, particularmente dois relatos concorrentes da colônia de Villegaignon, pelo protestante Jean de Léry e o católico André Thevet. Dentre os dois, ele dava acentuada preferência à Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil (1578), de Léry, que observava a sociedade tupinambá com simpatia e precisão. Como se poderia esperar de um puritano protestante, Léry admirava a preferência dos tupinambás pela nudez, em vez de se adornarem com golas altas e adereços chamativos, como faziam os franceses. Observou que muito poucos dentre os mais idosos tinham cabelos brancos, suspeitando que assim fosse por não se consumirem em “desconfiança, avareza, disputas e litígios”. E tinha em alta conta sua coragem na guerra. Os tupinambás travavam batalhas sangrentas com esplêndidas espadas, mas somente por questões de honra, nunca por espírito de conquista ou cobiça. Esses combates costumavam terminar num banquete em que o prato principal eram os prisioneiros. O próprio Léry compareceu a um deles: nessa noite, foi despertado em sua choupana por um homem que brandia junto a sua cama um pé humano torrado, em atitude aparentemente ameaçadora. Deu então um salto, assustado, para alegria da turba. Mais tarde, foilhe explicado que o homem estava apenas sendo um generoso anfitrião ao lhe oferecer um pedaço. A confiança de Léry em seus amigos foi restabelecida. Sentia-se mais seguro entre eles, segundo dizia, do que em casa, “entre franceses desleais e degenerados”. E de fato ele haveria de presenciar cenas não menos pavorosas nas guerras civis francesas, quando ficou retido na cidade de Sancerre, no alto de uma colina, durante um cerco de inverno no fim de 1572, vendo os aldeãos comerem carne humana para sobreviver.

Montaigne leu Léry com avidez e, ao relatar seu contato com os tupinambás, em “Dos canibais”, estabeleceu igualmente comparações com a França, sem esquecer as devidas implicações quanto à presunção europeia de superioridade. Num capítulo posterior, “Das carruagens”, também observou que os dourados jardins e palácios dos incas e dos astecas deixavam na sombra seus equivalentes europeus. Mas a simplicidade dos tupinambás interessava Montaigne muito mais. Ele os descrevia com uma lista de negativas desejáveis: Trata-se de uma nação (...) em que não existe qualquer tráfico, nem conhecimento das letras, nem ciência dos números, nem nome para designar um magistrado ou a superioridade política, nem hábito de servidão, riqueza ou pobreza, contratos, heranças, partilhas, ocupações que não sejam tranquilas, preocupação com relações que não sejam comuns, nem roupas, agricultura, metais, uso do vinho ou do trigo. Até palavras que signifiquem mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, desdém, perdão — nunca ouviram falar. Esse tipo de “enumeração negativa” era um conhecido recurso de retórica na literatura clássica, antecedendo em muito o contato com o Novo Mundo. Aparece até nos textos cuneiformes sumerianos, de 4 mil anos atrás: Houve um tempo em que não havia cobras, não havia escorpiões, Não havia hienas, não havia leões, Não havia cães ferozes, nem lobos, Não havia medo, nem terror, O homem não tinha rivais.

Era perfeitamente natural que voltasse a aparecer nos textos renascentistas sobre o Novo Mundo. A tradição teria prosseguimento: no século XIX, Herman Melville descreveu o vale de Typee, nas ilhas Marquesas, como um lugar sem “execuções hipotecárias, protesto de títulos, contas a pagar, dívidas de honra (...) nem parentes pobres (...) viúvas desvalidas (...) ou mendigos; nem prisões para devedores; nem nababos em Typee; ou, em poucas palavras — sem dinheiro!”. A ideia era que as pessoas podiam ser mais felizes levando uma vida desimpedida e próxima da natureza, como Adão e Eva no Jardim do Éden. Os estoicos tinham explorado muito essa fantasia da “Época de Ouro”: Sêneca imaginava um mundo em que não se acumulavam bens, as armas não eram usadas para a violência e os rios não eram poluídos por canos de esgoto. Sem casas, as pessoas até dormiam melhor, pois não eram despertadas com um susto no meio da noite pelo ranger das madeiras. Montaigne entendia a atração dessa fantasia e a compartilhava. Como as frutas silvestres, escreveu, os selvagens preservam plenamente suas qualidades naturais. Por isso é que se mostravam capazes de tanta coragem, pois seu comportamento na guerra não era comprometido pela ganância. Até os rituais canibalescos dos tupinambás, longe de serem degradantes, mostravam o melhor dos povos primitivos. As vítimas evidenciavam uma coragem espantosa na espera de seu fim e chegavam a desafiar seus captores com provocações. Montaigne ficou impressionado com uma canção em que um prisioneiro com os dias contados desafia os inimigos a ir em frente e comê-lo à saciedade. Ao fazê-lo, canta o prisioneiro, lembrem-se de que estão comendo seus próprios pais e avós. Eu os comi no passado, de modo que será sua própria carne que estarão saboreando! Temos aqui mais uma daquelas cenas

arquetípicas de confronto: o derrotado não tem saída mas demonstra uma estoica firmeza frente ao inimigo. É disso, depreende-se, que os seres humanos seriam invariavelmente capazes se seguissem sua verdadeira natureza. A canção do prisioneiro é uma das duas “canções do canibal” que encontramos em Os ensaios de Montaigne. A outra, também procedente dos tupinambás, é uma canção de amor que ele pode ter ouvido em Rouen em 1562, pois louva sua sonoridade, descrevendo o tupinambá como “uma língua amena, de som agradável, evocando o grego em suas terminações”. Em sua própria tradução em prosa, diz a canção: Víbora, fica; fica aqui, víbora, para que do padrão das tuas cores minha irmã extraia o modelo e a artesania de um rico cinturão que eu possa dar ao meu amor; para que assim a tua beleza e o teu padrão sejam para sempre preferidos aos das outras serpentes. Montaigne apreciava a elegância simples dessa canção, em contraste com os versos europeus por demais elaborados de sua época. Em outro ensaio, ele escreveu que esse tipo de “poesia puramente natural” — do qual faziam parte as vilanelas tradicionais de sua Guyenne natal, assim como as canções trazidas do Novo Mundo — rivalizava com os poemas mais requintados encontrados nos livros. Nem mesmo os poetas clássicos tinham como competir. A “canção de amor canibal” de Montaigne teria uma vida surpreendentemente prolongada, independente do resto de Os ensaios. Chateaubriand a usou em suas Mémoires d’outre tombe, nas quais uma atraente rapariga norteamericana entoa algo semelhante. Ela migraria em seguida para a Alemanha, onde ressurgiu na forma de um Lied no

século XVIII — num país que, fora isso, pouco se interessou inicialmente por Montaigne. Juntamente com certas observações elogiosas sobre os fogões alemães, as duas canções canibalescas foram os únicos fragmentos da produção montaignesca a terem alguma repercussão nessa parte do mundo até a época de Nietzsche. “Víbora, fica” foi traduzida por alguns dos maiores poetas românticos alemães: Ewald Christian von Kleist, Johann Gottfried Herder e até o grande Johann Wolfgang von Goethe — que compôs uma Libeslied eines Amerikanischen Wilden (“Canção de amor de um selvagem americano”) e uma Todeslied eines Gefangenen (“Canção de morte de um prisioneiro”). Os românticos alemães tinham especial queda por canções sobre amor e morte, e portanto não surpreende que tanto se interessassem pelas transcrições de Montaigne. O que causa espécie é que se apegassem ao texto, ignorando praticamente tudo mais — mas é afinal o que os leitores costumam fazer, em maior ou menor grau. Como Léry, Montaigne podia ser acusado de romantizar os povos do Novo Mundo. Mas estava por demais ciente das complexidades da psicologia humana para realmente pretender varrer boa parte dela para viver como um fruto silvestre. Reconhecia igualmente que as culturas americanas podiam ser tão estúpidas e cruéis quanto as europeias. Como a crueldade era o vício que mais deplorava, não deixa de ser significativo que não tenha tentado fechar os olhos ao seu papel nas religiões do Novo Mundo, algumas delas realmente sanguinolentas. “Eles queimam as vítimas vivas, tirando-as da fogueira meio assadas, para arrancar-lhes as entranhas. Outras, inclusive mulheres, são esfoladas vivas, e com suas peles ensanguentadas eles vestem e fantasiam outras pessoas.”

Ele descrevia essas atrocidades mas assinalava que pareciam excessivas sobretudo porque os europeus não as conheciam. Práticas não menos terríveis eram aceitas bem mais perto de casa, em virtude da força do hábito. “Não lamento que tomemos nota do bárbaro horror de tais atos”, escreveu, a respeito dos sacrifícios praticados no Novo Mundo, “mas lamento profundamente que, julgando com razão esses erros, tão cegos fiquemos ante os nossos próprios”. Montaigne queria que os leitores abrissem os olhos e vissem. Os povos da América do Sul não eram fascinantes apenas em si mesmos. Constituíam um espelho ideal, no qual Montaigne e seus compatriotas podiam “reconhecer-se de um ângulo adequado”, despertando-os de seu sonho presunçoso. SELVAGENS NOBRES

Os leitores alemães do século XVIII podem não ter encontrado grande interesse em Montaigne, à parte seus Volkslieder, mas uma nova geração de leitores franceses que o redescobriam nesse mesmo período demonstrou mais curiosidade por seus canibais e espelhos do que ele mesmo poderia imaginar. Foram estimulados nesse sentido por uma bela edição publicada em 1724. Os ensaios continuava proibido na França — uma proibição que já vigorava havia cinquenta anos —, mas agora o país começava a receber uma torrente de textos de Montaigne contrabandeados da Inglaterra, onde o eLivros protestante francês Pierre Coste organizara uma edição para o novo século. Coste enfatizava deliberadamente o aspecto subversivo de Montaigne, não interferindo no texto, mas adicionando toda uma parafernália, particularmente Da servidão voluntária, de La

Boétie, reproduzido na íntegra na edição de 1727. Era a primeira publicação de Da servidão voluntária desde o lançamento dos panfletos protestantes no século XVI, e com certeza a primeira vez em que surgia acoplado a Os ensaios. O livro alterava Montaigne por associação, conferindo-lhe uma aura de rebeldia política e pessoal, fazendo-o aparecer como o tipo de escritor cuja tranquila filosofia podia ocultar significados mais turbulentos. Coste contribuiu para criar uma versão de Montaigne ainda hoje disseminada: um radical secreto, que se encobre sob um véu de discrição. Em particular, sua edição fez com que Montaigne ficasse parecendo um philosophe livre-pensador do Iluminismo que nascera dois séculos adiantado. Os leitores do século XVIII se identificavam com ele, como acontece tantas vezes, e os espantava que ele tivesse esperado tanto tempo para encontrar a geração efetivamente capaz de entendê-lo. Essa nova classe de leitores “esclarecidos” reagia com paixão ao retrato do corajoso tupinambá por ele pintado. Os estoicos canibais de Montaigne se enquadravam à perfeição numa nova figura de fantasia: o selvagem nobre, criatura de impossível perfeição que associava a simplicidade primitiva ao heroísmo clássico, tornando-se verdadeiro objeto de culto. Os seguidores do culto adotavam o ponto de vista de Montaigne segundo o qual os canibais tinham seu próprio senso de honradez e constituíam um espelho da civilização europeia. Mas deixavam escapar a compreensão, também encontrada em Montaigne, de que os “selvagens” eram tão falhos, cruéis e bárbaros quanto qualquer outro povo. Entre os escritores que se apoderaram com deleite dos tupinambás de Montaigne estava Denis Diderot, filósofo que ficou famoso por sua contribuição à monumental compilação de conhecimentos da época, a Encylopédie,

assim como por incontáveis romances e diálogos filosóficos. Diderot leu Montaigne no início de sua carreira, gostou e honrou-o com a citação de Os ensaios em seus escritos — geralmente, mas nem sempre, dando-lhe o devido crédito. Em seu breve Supplément au voyage de Bougainville, de 1796, Diderot escreveu entusiasticamente sobre os povos do Pacífico Sul, então recentemente descobertos pelos europeus e sendo portanto os equivalentes, no seu século, dos indígenas americanos da época de Montaigne. Como os tupinambás, os ilhéus do Pacífico pareciam levar uma vida simples, quase em estado de graça. Os aspectos menos palatáveis de sua cultura eram fáceis de ignorar, pois a Europa pouco sabia deles. Isso deixava espaço suficiente para invenções, notadamente a de que os ilhéus desfrutavam de uma sexualidade hedonista com qualquer um, a qualquer momento. No Supplément, Diderot botava na boca de um de seus personagens taitianos a recomendação aos europeus de que apenas obedecessem à natureza para ser felizes, não havendo qualquer outra lei a seguir. Era o que seus compatriotas queriam ouvir. O nobre selvagem foi conduzido a um patamar ainda mais elevado por Jean-Jacques Rousseau, outro escritor influenciado por Montaigne (dispomos ainda hoje de seu exemplar anotado de Os ensaios). Ao contrário de Diderot, Rousseau considerava a sociedade primitiva tão perfeita que não podia de fato existir em parte alguma do mundo, nem mesmo no Pacífico. Ela funcionava apenas como um contraste ideal à balbúrdia em que se haviam transformado as sociedades existentes. Toda civilização era por definição corrompida. Em seu Discurso sobre a origem da desigualdade, Rousseau imagina como poderia ter sido o homem sem as cadeias da civilização. “Eu vejo um animal (...) saciando a

fome debaixo de um carvalho, matando a sede no regato mais próximo, fazendo o próprio pão ao pé da mesma árvore que lhe proporcionou o alimento.” Esse homem natural extrai da natureza tudo de que precisa. Ela não o mima, mas ele não precisa ser mimado. As condições muito duras encontradas desde a infância o tornaram resistente às doenças, e ele é suficientemente forte para afugentar desarmado os animais selvagens. Não dispõe de machados, mas se vale dos músculos para quebrar galhos pesados. Não tem estilingues ou armas de fogo, mas arremessa pedras com força suficiente para derrubar qualquer presa. Não carece de cavalos, pois corre com a mesma velocidade deles. Só quando a civilização torna o homem “sociável e um escravo” é que ele perde sua virilidade, aprendendo a ser fraco e a temer tudo ao seu redor. Aprende também a se desesperar: ninguém jamais ouviu falar de um “selvagem livre” se suicidando, diz Rousseau. Ele perde até a natural tendência a se mostrar compassivo. Se alguém cortar a garganta de uma pessoa debaixo da janela de um filósofo, é provável que este tape os ouvidos com as mãos, fingindo não ouvir; um selvagem jamais faria isso. Um homem natural não deixaria de ouvir a voz interna que o leva a se identificar com os semelhantes — uma voz que se parece muito com a que leva Montaigne a sentir empatia por qualquer ser humano em sofrimento. Se invertermos a cronologia para imaginar Montaigne lendo Rousseau em sua poltrona, não deixa de ser intrigante imaginar até onde ele conseguiria prosseguir sem deixar de lado o livro. Na parte inicial deste trecho, ele poderia ficar encantado, sentindo-se em perfeita harmonia com o autor. Alguns parágrafos adiante, já começaria a hesitar e franzir o cenho. “Não sei, não...”, poderia murmurar, à medida que a retórica de Rousseau ganhasse

corpo. Montaigne precisaria fazer uma pausa para examinála de ângulos diferentes. Será que a sociedade realmente nos torna insensíveis?, perguntaria. Não vivemos melhor quando acompanhados? O homem realmente nasce livre? Já não começa cheio de fraquezas e imperfeições? Sociabilidade e escravidão andam de mãos dadas? E, por sinal, será que alguém seria realmente capaz de atirar uma pedra com tanta força que pudesse matar à distância, sem um estilingue? Rousseau nunca se detém ou muda de direção. Deixa-se levar, arrastando consigo muitos leitores; tornou-se por sinal o autor mais popular da época. A leitura de algumas páginas de Rousseau nos faz sentir a grande diferença em relação a Montaigne, mesmo quando este parece ter sido uma fonte de suas ideias. Montaigne é salvo de arroubos de fantasia primitivista por sua tendência a tomar certa distância do que diz, no próprio momento em que o diz. Seu “mas não sei, não” sempre se manifesta. Além disso, seu objetivo genérico é diferente do de Rousseau. Ele não está preocupado em mostrar que a civilização moderna é corrompida, mas que todas as perspectivas humanas sobre o mundo são corrompidas e parciais por natureza. Isto se aplica aos visitantes tupinambás mirando perplexos os franceses em Rouen, assim como a Léry ou Thevet no Brasil. A única esperança de deixar para trás a névoa das interpretações equivocadas está em permanecer atento a sua existência: vale dizer, caminhar às próprias custas na direção da sabedoria. Mas mesmo esta não deixa de ser uma solução imperfeita. Jamais poderemos escapar totalmente a nossas limitações. Autores como Diderot e Rousseau não se sentiam atraídos apenas pelo “canibal” Montaigne, mas por todas as passagens em que ele escrevia sobre os modos de vida

simples e naturais. O livro de Rousseau no qual mais se evidenciam elementos de Os ensaios é Émile, romance pedagógico de enorme sucesso que mudou a vida de toda uma geração de crianças educadas no rigor da moda, ao preconizar uma criação “natural”. Pais e tutores deviam educar as crianças com brandura, propunha ele, permitindo que conhecessem o mundo seguindo a própria curiosidade mas cercando-as de oportunidades de viagem, conversação e experiência. Ao mesmo tempo, elas também deviam ser habituadas, como pequenos estoicos, a um rigoroso condicionamento físico. Esta orientação já se encontrava no ensaio de Montaigne sobre a educação, embora Rousseau só eventualmente mencione o antecessor em seu livro, em geral para criticá-lo. Ele volta a insultar Montaigne no início de sua autobiografia, as Confissões — obra que pode ser considerada em certa medida inspirada no projeto montaignesco de autorretrato. Em seu prefácio original (omitido em muitas edições posteriores), Rousseau trata de descartar essas acusações, dizendo: “Situo Montaigne em posição de destaque entre os dissimuladores que pretendem enganar dizendo a verdade. Ele se apresenta com defeitos, mas só se atribui defeitos adoráveis.” Se Montaigne iludia o leitor, então não é ele, mas Rousseau, a primeira pessoa na história a escrever um relato franco e completo sobre si mesmo. O que permite a Rousseau dizer, a respeito de seu próprio livro: “É este o único retrato de um homem que existe e provavelmente existirá exatamente de acordo com a natureza e pintado em toda a sua verdade.” As duas obras efetivamente diferem, e não só por serem as Confissões uma narrativa, reconstituindo a vida do autor da infância em diante, em vez de capturar tudo de uma só vez, como Os ensaios. Há também uma diferença de

propósito. Rousseau escreveu o livro por se considerar tão excepcional, fosse na genialidade ou às vezes até na perversidade, que era preciso apreender tão rara combinação de fatores antes que se perdesse para o mundo. Eu conheço os homens. Não sou feito como nenhum que até hoje tenha conhecido; arrisco-me a crer que não fui feito como qualquer outro que exista (...) Quanto a saber se a Natureza acertou ou errou ao quebrar o molde em que fui feito, é algo que ninguém poderá avaliar antes de me ler. Montaigne, em contraste, se via como um homem perfeitamente comum sob todos os aspectos, exceto pelo hábito nada comum de anotar as coisas. Ele “representa a forma inteira da condição humana”, como todos nós, inclinando-se assim a se apresentar como espelho para os outros — o mesmo papel que atribui aos tupinambás. É esta a tese central de Os ensaios. Se ninguém pudesse reconhecer-se nele, por que haveria alguém de lê-lo? Alguns contemporâneos observaram estranhas semelhanças entre Rousseau e Montaigne. Rousseau foi abertamente acusado de plágio: um panfleto assinado por Dom Joseph Cajot, com o contundente título de Os plágios de Rousseau em matéria de educação, opinava que a única diferença estava no fato de Montaigne se deixar arrebatar menos que Rousseau e mostrar-se mais conciso — certamente a única vez em que esta última qualidade foi jamais atribuída a Montaigne. Outro crítico, Nicolas Bricaire de la Dixmerie, inventou um diálogo no qual Rousseau reconhece ter copiado ideias de Montaigne, mas argumentando que nada tinham em comum porque ele

escreve “por inspiração”, ao passo que Montaigne escreveria “friamente”. Rousseau viveu numa época em que o arrebatamento, a inspiração e o ardor eram admirados. Significavam, precisamente, que o sujeito estava em contato com a “Natureza”, não se reduzindo a mero escravo das exigências da civilização. Era selvagem e sincero, estava na onda canibal. Os leitores setecentistas que seguiam Montaigne em sua admiração dos tupinambás e em seus escritos sobre a natureza evoluíam gradualmente para um pleno romantismo — tendência que dominaria os últimos anos do século XVIII e os primeiros do seguinte. E Montaigne nunca mais seria o mesmo depois que os românticos se apropriaram dele. Desde sua formulação inicial em forma de uma resposta ligeiramente rebelde e aberta à pergunta sobre como bem viver, o “Desperte do sono do hábito” foi-se gradualmente transformando em algo muito mais incendiário e até revolucionário. Depois do romantismo, já não seria fácil ver em Montaigne uma tranquila e digna fonte de sabedoria helenística. Dali em diante, os leitores estariam sempre tentando aquecê-lo de alguma forma. Ele passaria a ter, para sempre, um lado selvagem.

11. P. Como viver? R. Viva com temperança ELEVANDO E BAIXANDO A TEMPERATURA

S

ob muitos aspectos, os leitores do fim do século XVIII e início do século XIX tinham facilidade de gostar do Montaigne que inventavam para uso próprio. Além de apreciar seu enaltecimento dos americanos, eles se identificavam com o espírito aberto que tinha a seu próprio respeito, sua disposição de explorar as contradições de seu temperamento, sua indiferença às convenções e o desejo de romper com hábitos fossilizados. Gostavam do interesse que demonstrava pela psicologia, especialmente a percepção da coexistência de diferentes impulsos numa mesma mente. Além disso — e representavam a primeira geração de leitores a se sentir dessa maneira em número expressivo —, gostavam do seu estilo, em toda a sua exuberante desordem. Eles aprovavam a maneira como aparentemente liberava o que quer que lhe viesse ao espírito a qualquer momento, sem se preocupar em arranjar as ideias de forma ordeira. Os leitores da era romântica apreciavam particularmente os sentimentos intensos de Montaigne a respeito de La Boétie, por se tratar de sua única manifestação de emoções fortes. O fim trágico da história de amor, com a morte de La Boétie, a tornava ainda mais bela. A resposta simples de Montaigne à pergunta sobre por que se amavam — “Porque era ele, porque era eu” — transformou-se em frase feita, denotando o mistério transcendente contido em toda forma de atração humana.

Em sua autobiografia, a escritora romântica George Sand conta que na juventude ficou obcecada com Montaigne e La Boétie, representando um autêntico protótipo da ligação espiritual que ela ansiava encontrar — e de fato encontraria, mais tarde, com amigos escritores como Flaubert e Balzac. O poeta Alphonse de Lamartine tinha um sentimento parecido. Escreveu ele a respeito de Montaigne, numa carta: “Tudo que nele admiro é a amizade por La Boétie.” Ele já se valera da frase de Montaigne para descrever seus próprios sentimentos numa carta anterior ao mesmo amigo: “Porque é você, porque sou eu.” E adotou o próprio Montaigne como companheiro, escrevendo sobre “o amigo Montaigne: sim, amigo”. O teor intenso ou ardoroso dessas novas reações a Montaigne também se reflete no aumento, nessa época, das peregrinações à sua torre. Os visitantes eram atraídos à propriedade de Montaigne pela curiosidade, mas uma vez lá pareciam perder o controle sobre as emoções, entrando em transes meditativos, sentindo a presença de Montaigne ao seu redor. Não raro sentiam como se tivessem se transformado nele por alguns momentos. Muito pouco disso se havia manifestado nos séculos anteriores. Os descendentes de Montaigne viveram na propriedade até 1811, e durante quase todo esse tempo ninguém interferiu em suas vidas, fosse quando transformavam o andar térreo da torre em depósito de batatas ou o quarto do primeiro andar ora em canil, ora em galinheiro. Isto só mudaria quando o filete dos primeiros visitantes românticos se transformou num fluxo regular, até que as batatas e galinhas finalmente deram lugar a uma recriação organizada do ambiente de trabalho de Montaigne.

Tudo isto parecia óbvio aos românticos. Naturalmente, se alguém se interessava pelos escritos de Montaigne, apreciaria estar lá pessoalmente, contemplando de sua janela a paisagem que ele via diariamente ou se aproximando do lugar onde se sentava para escrever, e quase chegando a ver suas palavras aparecerem fantasmagoricamente. Ignorando a algazarra que certamente teria lugar no pátio lá embaixo, e provavelmente também no quarto dele, o visitante podia imaginar a torre como uma cela monástica habitada por um Montaigne ermitão. “Apressemo-nos a atravessar a soleira”, escreveu um dos primeiros visitantes, Charles Compan, referindo-se à biblioteca da torre: Se o seu coração bater como o meu com uma emoção indescritível; se a lembrança de um grande homem inspirá-lo essa profunda veneração que não podemos recusar aos benfeitores da humanidade — entre. A tradição da peregrinação prolongou-se além da era propriamente romântica. Ao escrever sobre sua visita à torre em 1862, o marquês de Gaillon resumiu a dor da separação em linguagem amorosa: Mas finalmente devemos deixar esta biblioteca, este compartimento, esta querida torre. Adeus, Montaigne!, pois deixar este lugar é me separar de você. O problema, em todos esses desmaios apaixonados nos braços de Montaigne, sempre foi o próprio Montaigne. Fantasiar dessa maneira a seu respeito é alienar-se do seu jeito de fazer as coisas. Deixar de lado as partes de Os ensaios que interferem na interpretação de cada um já pode ser considerado uma atividade imemorial, mas os ardorosos

românticos enfrentavam mais dificuldades que a maioria. Eles estavam constantemente deparando com coisas assim: Não tenho grande experiência nessas agitações ardorosas, sendo como sou de temperamento indolente e moroso. Gosto de pessoas de natureza temperada e moderada. Meus excessos não me levam muito longe. Nada há de extremo ou estranho neles. As vidas mais belas, em minha opinião, são as que se adaptam ao padrão humano comum, com ordem, mas sem milagre nem excentricidade. O poeta Alphonse de Lamartine era um desses leitores frustrados. Ao travar conhecimento com Montaigne, passou a idolatrá-lo, mantendo sempre um exemplar de Os ensaios no bolso ou na mesa, para lançar mão dele sempre que sentisse necessidade. Mas viria mais adiante a se voltar contra seu ídolo com igual veemência, decidindo então que Montaigne nada sabia dos verdadeiros sofrimentos da vida. Explicou a um correspondente que só fora capaz de amar Os ensaios na juventude — vale dizer, cerca de nove meses antes, quando começou a se derramar em admiração pelo livro em suas cartas. Agora, com 21 anos, já pudera amadurecer na dor, achando Montaigne por demais frio e comedido. Talvez, imaginava, pudesse retornar a ele muitos anos depois, na velhice, quando seu coração tivesse sido ressecado por mais sofrimento ainda. No momento, a moderação do ensaísta o deixava decididamente doente. George Sand também escreveu que “não era discípula de Montaigne” quando ele entrava em sua “indiferença” estoica ou cética — em seu equilíbrio ou ataraxia, meta já

então fora de moda. Ela amara sua amizade com La Boétie, único indício de calor humano, mas não era o bastante, e ela se cansou dele. O pior obstáculo para os leitores românticos era um trecho em que Montaigne relatava sua visita ao famoso poeta Torquato Tasso em Ferrara, durante sua viagem pela Itália em 1580. A obra mais festejada de Tasso, o poema épico Gerusalemme liberata, tivera enorme êxito ao ser publicada naquele mesmo ano, mas o poeta perdera o juízo, sendo confinado num asilo de loucos, onde passou a viver em condições terríveis, cercado de lunáticos. Passando por Ferrara, Montaigne foi vê-lo e ficou horrorizado. Sentiu compaixão, mas desconfiava de que Tasso fora levado àquela condição por passar tempo demais entregue a estados de êxtase poético. O resplendor de sua inspiração o privara da razão: ele se deixara “cegar pela luz”. A visão do gênio reduzido ao idiotismo entristeceu Montaigne. Pior ainda, irritou-o. Que desperdício, destruir-se dessa maneira! Ele sabia que era necessário entregar-se ao frenesi de tal maneira para escrever poesia, mas qual o sentido de um certo “frenesi” que eliminava a possibilidade de voltar a escrever? “O arqueiro que atira além do alvo erra tanto quanto o que não consegue alcançá-lo.” Contemplando dois escritores tão diferentes quanto Montaigne e Tasso e admirando ambos, os românticos acompanhavam Montaigne na convicção de que Tasso desencaminhara a própria mente com a poesia. E entendiam a tristeza de Montaigne com o fato. O que não entendiam nem perdoavam era sua irritação. Os românticos eram adeptos da genialidade que cega; eram adeptos da melancolia; eram adeptos de formas intensas de identificação imaginativa. Mas não queriam saber de irritação.

Montaigne obviamente não é “um poeta”, bradou um desses leitores, Philarète Chasles. Jules Lefèvre-Deumier lamentava a “indiferença estoica” de Montaigne ante o sofrimento de outros homens — o que parece uma leitura equivocada do trecho sobre Tasso. O verdadeiro problema era que os românticos tomavam partido. Identificavam-se com Tasso nesse episódio, e não com Montaigne, que representava o mundo incompreensível com o qual sempre se achavam defrontados. Como poderia Nietzsche ter alertado a Montaigne, A moderação acha-se bela; não percebe que aos olhos do imoderado pode parecer escura e sóbria, e portanto feia. Nesse caso, na verdade, Montaigne é que fazia o papel do rebelde. Fazendo o elogio da moderação e do equilíbrio e pondo em dúvida o valor dos excessos poéticos, ele ia de encontro à tendência não só do romantismo, mas de sua própria época. Os leitores do Renascimento fetichizavam os estados extremos: o êxtase era o único em que se podia escrever poesia, assim como seria a única maneira de lutar numa batalha ou se apaixonar. Nos três casos, Montaigne aparentemente dispunha de um termostato interno que o desligava automaticamente quando a temperatura ultrapassava certo ponto. Por isso é que admirava tanto Epaminondas, o único guerreiro clássico que mantinha a cabeça fria no fragor do combate, por isso dava mais valor à amizade que à paixão. “Os humores transcendentais me assustam”, dizia. As qualidades que valorizava eram a curiosidade, a sociabilidade, a bondade, a fraternidade, a adaptabilidade, a reflexão inteligente, a capacidade de enxergar as coisas do ponto de vista de um outro e a “boa

vontade” — nenhuma delas compatível com a fornalha ardente da inspiração. Montaigne chegava a afirmar que a verdadeira grandeza de alma é encontrada “na mediocridade” — uma observação chocante e mesmo, paradoxalmente, extremada. Os modernos foram de tal maneira treinados a considerar a mediocridade como uma condição limitada e empobrecedora que fica difícil saber o que pensar quando ele diz algo assim. Estaria mais uma vez jogando com o leitor, como suspeitam que faça quando diz ter memória fraca e intelecto lento? Talvez o esteja, em certa medida, mas também parece estar falando sério. Montaigne não confia em ambições divinas; para ele, aqueles que tentam alçar-se acima do que é humano conseguem apenas cair no subumano. Como Tasso, tentam transcender os limites, mas em vez disso perdem suas faculdades humanas normais. Ser verdadeiramente humano significa comportar-se não só de maneira comum, mas ordenada, palavra definida no Oxford English Dictionary como “organizada, regulada; ordeira, regular, moderada”. Significa viver adequadamente, ou à propos, de modo a avaliar as coisas pelo exato valor e comportar-se de maneira apropriada a cada situação. Por isso é que, no dizer de Montaigne, viver adequadamente é “nossa grande e gloriosa obra-prima” — uma linguagem pomposa, mas empregada aqui para descrever uma qualidade que pode ser tudo menos pomposa. Para Montaigne, a mediocridade não significa um embotamento causado pela falta de uma boa reflexão, ou pela falta de imaginação que impede de enxergar além do próprio ponto de vista. Significa aceitar que se é igual a todos e que se carrega a forma da condição humana em sua totalidade. Não poderia haver algo mais distante de

Rousseau e seu sentimento de se destacar de toda a humanidade. Para Montaigne: Não há nada tão belo e legítimo quanto ser um homem de forma boa e adequada, nem conhecimento tão difícil de adquirir quanto o conhecimento de como viver esta vida bem e com naturalidade; e a mais bárbara de nossas doenças é desprezar o nosso ser. Mas ele sabia, apesar de tudo, que a natureza humana nem sempre se amolda a essa sabedoria. Ao lado do desejo de ser feliz, de alcançar a paz emocional e estar no pleno domínio das próprias faculdades, alguma coisa compele periodicamente as pessoas a destruir as próprias conquistas. É o que Freud chamava de princípio de thanatos: a pulsão para a morte e o caos. Ela foi descrita assim, no século XX, pela escritora Rebecca West: Só em parte somos sãos: só uma parte nossa ama o prazer e um dia mais prolongado de felicidade, só uma parte quer viver até noventa anos e mais e morrer em paz, numa casa que construímos e que abrigará os que vierem depois de nós. Nossa outra metade é quase louca. Prefere o desagradável ao agradável, ama a dor e seu sombrio desespero noturno e quer morrer numa catástrofe que mandará a vida de volta ao começo, nada deixando de nossa casa, senão os alicerces calcinados. Tanto West como Freud viveram a experiência da guerra, assim como Montaigne: ele dificilmente teria como ignorar esse lado da humanidade. Seus textos sobre a moderação e a mediocridade devem ser lidos tendo em mente as guerras civis francesas, nas quais o extremismo transcendental

ocasionou crueldades subumanas em escala esmagadora. O terceiro “distúrbio” terminou em agosto de 1570, seguindose dois anos de paz durante os quais Montaigne viveu em sua propriedade e começou a trabalhar em Os ensaios. Muito antes que concluísse a obra, no entanto, a paz chegou ao fim de maneira repentina e chocante, com um acontecimento que não poderia deixar qualquer margem a dúvida quanto ao aspecto sombrio da natureza humana.

12. P. Como viver? R. Preserve sua humanidade TERROR

C

omo acontecera com acordos de paz anteriores, o Tratado de Saint-Germain firmado em 1570 desagradou a todos. Os protestantes, sempre querendo mais, achavam que os termos não iam longe o suficiente, pois lhes concediam liberdade limitada de culto. Os católicos consideravam que iam longe demais: estavam preocupados com a possibilidade de que os protestantes tomassem qualquer concessão como um estímulo. Eles temiam que os protestantes pressionassem por uma revolução contra o monarca católico legítimo e dessem início a uma nova guerra. Estavam certos quanto à ocorrência de outra guerra, mas errados quanto aos responsáveis por ela. As tensões continuaram aumentando e atingiram o auge durante as comemorações organizadas em Paris, em agosto de 1572, para o casamento dinástico da católica Marguerite de Valois com o protestante Henrique de Navarra. Os líderes das três principais facções chegaram à cerimônia em disposição sombria: o rei católico moderado Carlos IX, o almirante Gaspard de Coligny, chefe protestante radical, e o duque de Guise, extremista católico. Cada uma das facções temia a outra. Pregadores inflamados elevavam ainda mais a temperatura emocional entre os parisienses, exortando-os a se rebelar para impedir o casamento e varrer do mapa os dirigentes heréticos enquanto era tempo.

O casamento foi celebrado a 18 de agosto, seguindo-se quatro dias de comemorações oficiais. Muitos certamente deram um suspiro de alívio quando elas terminaram. Mas no fim da última noite, a 22 de agosto de 1572, alguém deu um tiro de arcabuz no dirigente protestante Coligny, que deixava a pé o palácio do Louvre de volta a sua casa, e feriu-o num braço. A notícia do incidente espalhou-se pela cidade. Na manhã seguinte, hordas de huguenotes acorreram à casa de Coligny, jurando vingança. Muitos acreditavam (como ainda acredita a maioria dos historiadores) que o próprio rei estava por trás da tentativa de assassinato, com a cumplicidade de sua mãe, Catarina de Médici — com o objetivo de sufocar no nascedouro qualquer possível rebelião protestante, eliminando seu líder. Se a conclusão for verdadeira, então Carlos cometeu um erro de cálculo. O atentado enfureceu os protestantes. E o mais arriscado era o fato de deixar os católicos temerosos. Esperando que os protestantes se rebelassem em reação ao acontecido, eles uniram forças pela cidade e se prepararam para se defender. O rei também se sentiu intimidado e deve ter raciocinado que um líder rebelde morto seria menos perigoso que ferido. Aparentemente seguindo ordens suas, uma guarda real invadiu a casa de Coligny e concluiu o trabalho malfeito, matando o ferido em sua cama. Era o início da manhã de domingo, 24 de agosto: Dia de São Bartolomeu. Os assassinos decapitaram Coligny e despacharam a cabeça para o palácio real; ela viria a ser embalsamada e enviada a Roma, para ser admirada pelo papa. O resto do corpo foi atirado pela janela e desabou na rua, onde uma multidão de católicos o incendiou e arrastou pelo bairro. O

corpo se desmembrou enquanto pegava fogo, mas partes foram ostentadas e ainda mais mutiladas por dias seguidos. A comoção na casa de Coligny causou pânico ainda maior entre os católicos como também entre os protestantes de Paris. Bandos de católicos acorreram às ruas, capturando e matando qualquer um que fosse identificado como protestante e invadindo residências de protestantes — nas quais muitos dormiam tranquilamente, sem a menor ideia do que ocorria pela cidade. A multidão os arrastava para fora, cortava-lhes a garganta ou os esquartejava, para em seguida queimar os corpos ou atirá-los no rio. A violência atraía multidões cada vez maiores, insuflando novas atrocidades. Para mencionar apenas um dos incidentes registrados, um homem chamado Mathurin Lussault foi morto ao cometer o erro de atender à porta de sua casa; seu filho desceu, atraído pelo barulho, e também foi esfaqueado. A mulher de Lussault, Françoise, tentou fugir pulando da janela do primeiro andar para o pátio do vizinho, mas quebrou ambas as pernas. O vizinho a ajudou, mas os atacantes irromperam no lugar e a arrastaram para a rua pelos cabelos. Cortaram-lhe as mãos para roubar os braceletes e a empalaram; mais tarde, jogariam o corpo no rio. Mastigadas por cães, as mãos ainda podiam ser vistas em frente ao prédio vários dias depois. Cenas semelhantes ocorriam por toda a cidade, e tantos corpos foram atirados no Sena que se dizia que suas águas ficaram vermelhas de sangue. O que quer que Carlos pretendesse com a tentativa inicial de assassinato — se é que realmente foi o mandante —, dificilmente era essa sua intenção. Resolveu então ordenar aos soldados que reprimissem a violência, mas era tarde demais. A matança prosseguiu por quase uma semana em diferentes bairros de Paris, disseminando-se pelo resto da

França. Só em Paris, o massacre, que ficaria para sempre conhecido pelo nome de São Bartolomeu, causou a morte de pelo menos 5 mil pessoas. No fim, cerca de 10 mil haviam sido mortas em todo o país. As cidades eram engolfadas na violência como barcos de pesca num tornado: Orléans, Lyon, Rouen, Toulouse, Bordeaux e incontáveis cidades menores. Foi um furor do tipo que Montaigne detestava até mesmo num campo de batalha tradicional, só que nesse caso as vítimas eram civis. De modo geral, eram civis também os assassinos; só em poucos lugares houve envolvimento de soldados ou oficiais. Bordeaux foi um deles. Nada aconteceu na cidade até 3 de outubro, mas, quando os incidentes de violência tiveram início, foram aparentemente organizados e aprovados pelo prefeito, o fanático católico Charles de Montferrand, que fez uma lista formal de alvos a serem atacados. Na maioria dos casos, o derramamento de sangue ocorria de maneira mais caótica, pelas mãos de pessoas que normalmente se comportariam como cidadãos pacatos. Em Orléans, a multidão fazia paradas nas tabernas entre uma matança e outra para comemorar, “acompanhada de cantos, alaúdes e violões”, segundo um historiador. Certos grupos eram formados sobretudo por mulheres ou crianças. Os católicos interpretavam a presença destas como sinal de que o próprio Deus era favorável aos massacres, pois levara até mesmo inocentes a se envolver. De maneira geral, muitos achavam que, pelo fato de extrapolarem qualquer escala humana habitual, as matanças deviam ter aprovação divina. Não resultavam de decisões humanas, sendo mensagens de Deus para a humanidade, presságios de caos cósmico assim como uma colheita destruída ou a passagem de um cometa pelo céu. Uma medalha cunhada em Roma para comemorar os massacres mostrava os huguenotes

sendo abatidos, não por outros mortais, mas por um anjo armado e irradiando ira sagrada. O novo papa, Gregório XIII, parece ter ficado satisfeito com os acontecimentos na França. Além da medalha, encomendou a Giorgio Vasari a pintura de afrescos comemorativos na Sala Regia do Vaticano. O rei da França também participou de procissões de ação de graças e mandou cunhar duas medalhas, uma delas representando-o como Hércules em combate contra a Hidra; na outra, ele aparecia em seu trono cercado de cadáveres despidos e segurando uma folha de palmeira, para simbolizar a vitória. Tendo os huguenotes recobrado forças e mobilizado exércitos para reagir, a guerra estourou de novo. Ela teria prosseguimento ao longo da década de 1570, com pausas apenas eventuais. Os acontecimentos de São Bartolomeu representavam uma linha divisória: depois deles, as guerras tornaram-se mais anárquicas e de fundo mais fanático. Além das batalhas habituais, muito sofrimento seria causado por bandos descontrolados de soldados, mesmo em supostos interlúdios de paz, quando não tinham comando nem salário. Os camponeses às vezes fugiam, preferindo levar uma vida selvagem na floresta a esperar nas cidades para serem atacados e às vezes até torturados pelo simples prazer de torturar. Era o estado natural a todo vapor. Em 1579, um advogado do interior, Jean La Rouvière, escreveu ao rei implorando ajuda para os pobres camponeses de sua região — “homens miseráveis, martirizados e abandonados” que extraíam da terra o sustento que conseguiam, depois de perder tudo que tinham. Entre os horrores a que tinha assistido ou de que ouvira falar estavam relatos sobre homens

enterrados vivos em montes de estrume, atirados em poços e valas e deixados à morte, uivando como cães; tinham sido presos em caixas sem ar para respirar, emparedados em torres sem alimentos e enforcados em árvores nas profundezas de montanhas e florestas; tinham sido estirados em frente a fogueiras, com os pés tostados em gordura; suas mulheres tinham sido estupradas, e as grávidas eram obrigadas a abortar; seus filhos haviam sido sequestrados para cobrança de resgate ou mesmo assados vivos diante dos pais. As guerras eram alimentadas pelo fanatismo religioso, mas os sofrimentos nelas causados geravam por sua vez novas invenções apocalípticas. Católicos e protestantes consideravam que os acontecimentos chegavam a um ponto além do qual não mais poderia haver uma história normal, pois restaria apenas um confronto final entre Deus e o Diabo. Por isso os católicos comemoravam com tanto entusiasmo os massacres de São Bartolomeu: viam-nos como uma autêntica vitória sobre o mal, além de uma maneira de reconduzir incontáveis indivíduos equivocados à verdadeira Igreja, antes que fosse tarde demais para salvarem suas almas. Era algo de extrema importância, pois o tempo urgia. No Juízo Final, Cristo voltaria, o mundo seria destruído e cada um teria de justificar os próprios atos perante Deus. Em tal transe não haveria negociações, nenhuma consideração sobre o ponto de vista do outro nem muito menos entendimento recíproco entre fés religiosas rivais. Montaigne, com seu elogio da vida comum e da mediocridade, vendia uma ideia que não poderia encontrar mercado num mundo à beira do abismo.

Sinais da iminência desse Apocalipse não faltavam. Uma série de epidemias de fome, colheitas perdidas e invernos enregelantes nas décadas de 1570 e 1580 parecia indicar que Deus privava o mundo do Seu calor. Surtos de varíola, tifo e coqueluche varriam o país, além da pior de todas as doenças: a peste. Parecia que os quatro Cavaleiros do Apocalipse estavam à solta: epidemias, guerra, fome e morte. Um lobisomem percorria o país, gêmeos siameses nasciam em Paris e uma nova estrela — a chamada estrela nova — explodiu no céu. Mesmo quem não fosse dado ao extremismo religioso tinha a sensação de que tudo se precipitava para um fim inominável. A editora de Montaigne, Marie de Gournay, evocaria mais tarde a França de sua juventude como um país de tal forma entregue ao caos “que ficávamos esperando a ruína final, e não o restabelecimento do Estado”. Havia quem achasse que o fim estava mesmo muito próximo: em 1573, o linguista e teólogo Guillaume Postel escreveu numa carta que “dentro de oito dias a população será dizimada”. O Diabo também sabia que seu tempo de influência na Terra estava chegando ao fim e assim enviou exércitos de demônios para conquistar as derradeiras almas vulneráveis. E eram de fato exércitos: em seu De praestigis daemonum (1564), Jean Wier calculara que pelo menos 7.409.127 demônios atuavam em nome de Lúcifer, sob a supervisão de 79 príncipes-demônios. A seu lado havia bruxas: o dramático aumento de casos de feitiçaria depois da década de 1560 representava mais uma prova de que o Apocalipse se aproximava. Assim que eram identificadas, os tribunais mandavam queimá-las, mas o Diabo tratava de substituí-las com rapidez ainda maior. O demonologista contemporâneo Jean Bodin sustentava que, em condições de crise como essas, os padrões de

comprovação deviam ser menos exigentes. A feitiçaria era algo tão sério e de tão difícil detecção pelos métodos habituais de investigação que a sociedade não podia dar-se ao luxo de se aferrar muito a “rigor legal e procedimentos normais”. Os comentários públicos podiam ser considerados “quase infalíveis”: se numa aldeia todos estivessem dizendo que determinada mulher era uma feiticeira, era o bastante para justificar sua tortura. Técnicas medievais foram resgatadas especificamente para esses casos, entre elas “banhar” as suspeitas para ver se flutuavam e queimá-las com ferros em brasa. O número de  feiticeiras condenadas continuava crescendo à medida que os padrões de comprovação se tornavam mais frouxos, e esse aumento era mais uma prova de que a crise era real e impunha novas atualizações da legislação. Como se pode constatar reiteradamente através da história, não há nada mais eficaz para acabar com ressalvas jurídicas tradicionais do que a dupla alegação de que um crime é inusitadamente ameaçador e de que os responsáveis por ele têm excepcional poder de resistência. Tudo era aceito sem praticamente um murmúrio, exceto da parte de alguns poucos escritores como Montaigne, que assinalavam que a tortura de nada servia para chegar à verdade, pois a vítima dirá qualquer coisa para evitar a dor — e que, além disso, seria “apostar muito alto em conjeturas” mandar torrar alguém vivo com base nelas. Um acontecimento grave para o qual advertiam os teólogos era a iminente chegada do Anticristo. Os sinais seriam abundantes nos anos subsequentes: em 1853, uma velha deu à luz num país africano uma criança com dentes de gato, que anunciou, com voz de adulto, ser o Messias. Simultaneamente, na Babilônia, uma montanha se abriu, revelando uma coluna enterrada, na qual se lia a inscrição

em hebraico: “Chegou a hora da minha natividade.” O principal especialista francês nessas histórias de Anticristo era o sucessor de Montaigne no parlement de Bordeaux, Florimond de Raemond, outro entusiástico matador de feiticeiras. Sua obra L’Antichrist analisava os presságios celestes, a destruição de vegetações e colheitas, os movimentos populacionais e os casos de atrocidade e canibalismo cometidos nas guerras, mostrando como tudo isso comprovava que o Diabo estava a caminho. Aderir em tais circunstâncias a atos de violência coletiva era mostrar a Deus que se estava com ele. Fossem católicos ou protestantes, os extremistas cultuavam esse ardor sagrado, que redundava na total doação de si a Deus e na rejeição das coisas mundanas. Todo aquele que continuasse dando atenção às questões cotidianas numa época assim caía sob suspeita de fraqueza moral, na melhor das hipóteses, ou, na pior, de pacto com o Diabo. Na verdade, contudo, muitos seguiam em frente com suas ocupações e faziam o possível para ficar longe da agitação, mantendo-se fiéis à normalidade que, para Montaigne, era a essência da sabedoria. Ainda que nele acreditassem, o iminente confronto de Satã com Deus não os interessava mais que os escândalos e a diplomacia da corte real. Muitos protestantes discretamente abriram mão de sua fé depois de 1572, ou pelo menos trataram de ocultá-la, implicitamente admitindo que consideravam a vida neste mundo mais importante que sua crença no outro. Mas uma minoria foi para o extremo oposto. Radicalizados além de toda medida, pregavam guerra total contra o catolicismo e a morte do rei — o “tirano” responsável pela morte de Coligny e de todas as outras vítimas. Foi nesse contexto que Da servidão voluntária, de La Boétie, veio a ser resgatado de uma hora para outra e publicado por

radicais huguenotes, que o reinventaram como forma de propaganda de uma causa que o próprio La Boétie jamais apoiaria. No fim, o regicídio haveria de se revelar desnecessário. Carlos IX morreu de causas naturais um ano e meio depois, em 30 de maio de 1574. Subiu ao trono outro filho de Catarina de Médici, Henrique III, que se revelou ainda mais impopular. Nem os católicos gostavam dele. Ao longo da década de 1570, foi aumentando o apoio aos extremistas católicos conhecidos como ligueurs, os liguistas, que nos anos seguintes causariam quase tantos problemas à monarquia quanto os huguenotes, sob a liderança do poderoso e ambicioso duque de Guise. Daí em diante, as guerras francesas envolveriam três facções, ficando a monarquia muitas vezes na posição mais vulnerável. Henrique tentou eventualmente assumir a liderança das Ligas, para neutralizar sua ameaça, mas elas o rejeitaram e muitas vezes o retrataram como um agente satânico disfarçado. Talvez ele fosse por demais moderado para as Ligas, mas Henrique III era um extremista sob outros aspectos, não mostrando qualquer compreensão quanto à moderação preconizada por Montaigne. Este, que o encontrou várias vezes, não o apreciava muito. Por um lado, Henrique cercava-se de dândis na corte, transformando-a num reduto de corrupção, luxo e absurdas exigências de etiqueta. Dançava toda noite e na juventude usava túnicas e gibões de seda de amoreira, com braceletes de corais e capas cortadas em tiras. Lançou a moda de camisas com quatro mangas, duas para uso e duas atiradas para trás, como asas. Outras afetações suas eram consideradas ainda mais estranhas: à mesa, usava garfos, em vez de facas e dedos, usava roupas de dormir à noite e de vez em quando lavava

os cabelos. Por outro lado, Henrique também gostava de manifestações exageradas de misticismo e penitência. Quanto mais perplexo ficava com os problemas enfrentados pelo reino, com mais frequência participava de procissões de autoflagelação, percorrendo as ruas descalço, entoando salmos e se açoitando. Para Montaigne, a ideia de que a solução da crise política estivesse na oração e nos exercícios espirituais radicais não fazia sentido. Ele se esquivava dessas procissões e não acreditava em cometas, tempestades de granizo, pássaros monstruosos ou qualquer outro sinal de chegada do fim dos tempos. Observava que aqueles que faziam previsões a partir desses fenômenos geralmente se mantinham vagos, podendo em seguida dizerem-se certos independentemente do que acontecesse. Os relatos sobre feitiçaria tendiam a parecer a Montaigne efeitos da imaginação humana, e não de atividade satânica. Em geral, ele preferia se ater ao seu lema: “Suspendo qualquer julgamento.” Seu ceticismo atraiu algumas críticas: dois contemporâneos de Bordeaux, Martin-Antoine del Rio e Pierre de Lancre, advertiram-no que era teologicamente perigoso explicar acontecimentos apocalípticos em termos de imaginação humana, pois desviava a atenção da ameaça real. No fim das contas, Montaigne não chegou a levantar suspeitas mais sérias, mas efetivamente arriscou a própria reputação ao se pronunciar contra a tortura e os julgamentos de bruxaria. Seu nome já estava associado no espírito de muitos a uma categoria de pensadores conhecidos pelos inimigos como politiques, que se distinguiam pela convicção de que os problemas do reino nada tinham a ver com o Anticristo ou o Fim dos Tempos, pois eram puramente políticos. Eles deduziram que a solução também deveria ser política — donde a designação

por que ficaram conhecidos. Teoricamente, eles apoiavam o rei, considerando que a esperança do país estava na unidade sob a liderança de um monarca legítimo, embora sua maioria secretamente esperasse que um rei mais inspirador e capaz de unir do que Henrique III fosse chegar em algum momento. Mesmo mantendo a lealdade, procuravam encontrar algum terreno comum entre as outras facções, na esperança de pôr fim às guerras e lançar as bases do futuro da França. Infelizmente, o único terreno comum que realmente aproximava os extremistas católicos dos extremistas protestantes era o ódio aos politiques. A própria designação era uma acusação de ateísmo. Tratava-se de homens preocupados exclusivamente com soluções políticas, indiferentes à situação da própria alma. Eram mascarados, impostores, como o próprio Satã. “Ele veste a pele de um cordeiro”, escreveu um contemporâneo, descrevendo um politique típico, “mas é um lobo furioso”. Ao contrário dos autênticos protestantes, eles tentavam se passar por algo que não eram, e, sendo inteligentes e intelectualizados, não podiam usar a desculpa de que eram vítimas inocentes dos logros do Diabo. A vinculação de Montaigne aos politiques representava para ele um bom motivo para enfatizar sua abertura e franqueza, assim como sua ortodoxia católica (muito embora, é claro, a alegação de franqueza seja precisamente o que faria um lobo em pele de cordeiro). Os liguistas acusavam os politiques de deslealdade, mas os politiques por sua vez acusavam os liguistas de se entregarem a suas paixões e perderem o juízo. Era muito estranho, refletia Montaigne, que o cristianismo levasse com tanta frequência a excessos de violência e, portanto, à destruição e à dor:

Nosso ardor opera maravilhas quando aliado a nossa tendência para o ódio, a crueldade, a ambição, a avareza, a maledicência, a rebelião. Indo contra a corrente, em direção à bondade, à benignidade, à moderação, a menos que por milagre ela faça morada em uma natureza rara, não será capaz de caminhar nem voar. “Não há hostilidade que supere a hostilidade cristã”, chegou ele a escrever a certa altura. Em vez da figura do fanático cristão de olhos em brasa, ele preferia contemplar a do sábio estoico: uma pessoa que se comporta com moralidade, tempera as próprias emoções, pratica o bomsenso e sabe viver. Havia de fato muito da filosofia estoica no pensamento e na ação dos politiques. Eles não pregavam a revolução ou o regicídio, mas recomendavam a aceitação da vida como ela é, com base no princípio estoico do amor fati, ou amor ao destino. Também preconizavam o senso estoico da continuidade: a convicção de que o mundo provavelmente continuaria avançando em ciclos de decadência e rejuvenescimento, em vez de acelerar numa precipitação unidirecional para o Fim. Enquanto os partidos religiosos imaginavam os exércitos do Armagedom se mobilizando no céu, os politiques desconfiavam que, mais cedo ou mais tarde, tudo se acalmaria e as pessoas recuperariam o bomsenso. Em épocas milenaristas, eram eles os únicos a sistematicamente mudar de perspectiva e pensar à frente do seu tempo, projetando-se numa época em que os “distúrbios” se teriam tornado história — e planejando a maneira de construir esse futuro. O lado estoico de Montaigne levou-o a minimizar a importância das guerras num grau surpreendente nos seus

escritos. Os biógrafos invariavelmente dão grande destaque a sua experiência da guerra, e por bons motivos: ela de fato afetou profundamente sua vida. Certos críticos basearam toda a sua leitura de Montaigne nas guerras. No entanto, depois de percorrer uma dessas interpretações, a leitura de Os ensaios pode vir como uma surpresa, pois vemos Montaigne dizendo coisas como “Fico impressionado ao constatar como nossas guerras são brandas e comedidas” ou “Será de espantar se daqui a cem anos as pessoas lembrarem que em nossa época houve guerras civis na França”. A vivência do presente nos leva a presumir que as coisas sejam piores do que realmente são, diz ele, pois não conseguimos fugir à perspectiva local: Todo aquele que contemplar, como numa pintura, o quadro geral de nossa mãe Natureza em toda a sua majestade; todo aquele que ler tão universal e constante variedade em seu semblante; todo aquele que lá se vir, e não apenas a si mesmo, mas a todo um reino, como um pontinho assinalado com o mais leve pincel; só esse homem é capaz de avaliar as coisas em suas devidas proporções. Montaigne lembrava aos contemporâneos a velha lição dos estoicos: evitar sentir-se tragado por uma situação difícil, tentar imaginar o seu mundo de diferentes ângulos ou em diferentes escalas de significado. Era o que faziam os antigos quando contemplavam seus problemas do alto, como que a uma comoção numa colônia de formigas. Os astrólogos agora advertem para “grandes e iminentes alterações e mutações”, escreve Montaigne, mas esquecem o simples fato de que, por pior que estejam as coisas, o essencial da vida segue imperturbável. “Não perco esta esperança”, acrescentava ele, brandamente.

Devemos reconhecer que Montaigne teve sorte. As guerras arruinaram suas colheitas, fizeram-no temer ser assassinado na cama e o forçaram a participar de atividades políticas que preferiria evitar. Haveriam de gerar-lhe problemas ainda mais graves na década de 1580, quando a guerra entrou em sua derradeira e mais desesperada fase. Mas ninguém poderia alegar que ele saiu seriamente marcado por essas experiências, e se algum dia chegou a empunhar armas, nada diz a respeito em Os ensaios. Em suma, ele teve uma boa guerra. O que na maioria dos casos não seria suficiente para que alguém se eximisse de queixas. E Montaigne estava certo. A vida realmente seguia em frente. Os massacres de São Bartolomeu, por terríveis que fossem, deram lugar a anos de sofrimentos individuais, sem prenunciar nenhum fim do mundo. O Anticristo não apareceu. As gerações se sucederam, até que chegou um momento em que, como previra Montaigne, muitas pessoas tinham apenas uma vaga ideia de que as guerras do seu século tivessem afinal ocorrido. Em certa medida, isto aconteceu em decorrência do trabalho empreendido por ele e seus colegas politiques no sentido de restabelecer a sensatez. Simulando tranquilidade e comodidade, Montaigne contribuiu mais para salvar seu país que seus exaltados contemporâneos. Parte de sua obra era puramente política, mas sua maior contribuição consistiu simplesmente em manter-se de fora e escrever Os ensaios. O que o torna um herói aos olhos de muitos. HERÓI

Os que exaltaram Montaigne nesse papel costumam apresentá-lo como um tipo de herói incomum: aquele que

resiste a qualquer pretensão de heroísmo. São poucos os que o reverenciam por grandes feitos públicos, embora ele efetivamente tenha realizado coisas notáveis mais para o fim da vida. Com maior frequência ele é admirado pela teimosa insistência em preservar a normalidade em circunstâncias extraordinárias, e por sua recusa de aceitar qualquer negociação quanto à própria independência. A esta luz ele era visto por muitos de seus contemporâneos: o grande pensador político estoico Justus Lipsius disse-lhe que continuasse escrevendo porque as pessoas precisavam seguir seu exemplo. Muito depois de o estoico Montaigne do século XVI ter sido esquecido, leitores de épocas conturbadas continuariam a ver nele um modelo. Em seu Os ensaios podia ser encontrada toda uma sabedoria pragmática sobre questões como a melhor maneira de encarar atos de intimidação ou como conciliar exigências conflitantes de abertura e segurança. Ele também oferecia algo mais nebuloso: um senso de como sobreviver a catástrofes públicas sem perder o respeito próprio. Da mesma forma que se podia pedir clemência a um inimigo sem rodeios e sem se comprometer, ou defender uma propriedade optando por deixá-la sem defesa, era possível também atravessar uma guerra desumana permanecendo humano. Esta mensagem de Montaigne exerceria particular atração sobre os leitores do século XX que vivenciaram guerras ou ditaduras fascistas ou comunistas. Nesses períodos, poderia parecer que as estruturas da sociedade civilizada entraram em colapso e que nada mais voltaria a ser como antes. Montaigne estava mais tranquilizador que nunca ao se mostrar pouco ou nada identificado com este sentimento — quando lembrava aos leitores que, no fim, a normalidade se restabelece e as perspectivas voltam a mudar.

Dentre os muitos leitores que reagiram a esse aspecto de Os ensaios, um pode falar por todos: o escritor judeu austríaco Stefan Zweig, que, em seu exílio forçado na América do Sul durante a Segunda Guerra Mundial, se distraía e acalmava escrevendo um longo ensaio de fundo pessoal sobre Montaigne — seu herói não heroico. Ele admitiria que, ao ler pela primeira vez Os ensaios na juventude, na Viena da virada do século, o livro não lhe causou impressão especial. Como Lamartine e Sand, achouo por demais desprovido de paixão. Faltava-lhe “aquela corrente elétrica de alma a alma”; ele não encontrava ali o que pudesse ser pessoalmente relevante para ele. “Que interesse poderia haver para um jovem de 20 anos nas digressões sem rumo de um Sieur de Montaigne sobre a ‘Cerimônia de audiência dos reis’ ou em suas ‘Considerações sobre Cícero’?” Mesmo quando Montaigne se voltava para temas que deveriam ter mais apelo, como sexo e política, sua “sabedoria suave e moderada” e seu sentimento de que era mais sábio não se envolver muito no mundo indispunham Zweig. “É da natureza da juventude não querer ouvir recomendações de brandura ou ceticismo. Qualquer dúvida parece-lhe uma limitação.” Os jovens anseiam por crenças, querem ser estimulados. Além disso, em 1900 a liberdade individual não parecia propriamente ameaçada. “Tudo aquilo já não se tornara algo óbvio havia muito tempo, garantido pela lei e os costumes a uma humanidade havia muito liberta da tirania e da servidão?” A geração de Zweig — que nasceu em 1881 — partia do princípio de que a prosperidade e a liberdade individual continuariam se expandindo. Por que as coisas haveriam de retroceder? Ninguém considerava que a civilização corresse perigo; ninguém precisava recolher-se à identidade privada para preservar a liberdade espiritual.

“Montaigne parecia inutilmente arrastar correntes que havia muito considerávamos rompidas.” Como se sabe, é claro, a história mostraria que a geração de Zweig estava errada. Assim como o próprio Montaigne chegara na idade adulta a um mundo cheio de esperança para em seguida vê-lo degenerar, assim também Zweig nasceu no mais ditoso país e no mais afortunado dos séculos, mas viu tudo desmoronar ao seu redor. As correntes voltariam a ser forjadas, mais fortes e pesadas do que nunca. Zweig sobreviveu à Primeira Guerra Mundial, mas em seguida veio a ascensão de Hitler. Ele fugiu da Áustria e se viu forçado a vagar durante anos como refugiado, inicialmente na Grã-Bretanha, depois nos Estados Unidos e finalmente no Brasil. O exílio tornou-o “indefeso como uma mosca, desamparado como uma lesma”, como diria em sua autobiografia. Ele se sentia um condenado esperando pela execução em sua cela, e cada vez menos capaz de se envolver com o mundo de seus anfitriões. Manteve a sanidade mental mergulhando no trabalho. No exílio, escreveu uma biografia de Balzac, uma série de novelas e contos, uma autobiografia e finalmente o ensaio sobre Montaigne — tudo sem acesso a fontes ou anotações, já que estava apartado de seus bens. Jamais alcançaria a atitude de desprendimento de Montaigne, mas sua situação também era muito pior: Não me sinto em casa em lugar algum e em toda parte sou um estranho, na melhor das hipóteses um convidado. A Europa, pátria de escolha do meu coração, perdeu-se para mim, já que se dilacerou de forma suicida uma segunda vez, numa guerra de irmão contra irmão. Contra a vontade tenho assistido à mais

terrível derrota da razão e ao mais selvagem triunfo da brutalidade na crônica das eras. Ao chegar ao Brasil em 1941, ele já estava muito distanciado de qualquer ideia de uma pátria e, embora fosse grato ao país por acolhê-lo, teve dificuldade de sustentar a esperança. Dando com um exemplar de Os ensaios na casa onde se hospedou, ele voltou a lê-los e constatou que a obra se transformara em outra completamente irreconhecível. Aquele livro que outrora lhe parecera muito contido e irrelevante agora lhe falava em tom direto e íntimo, como se tivesse sido escrito exclusivamente para ele, ou talvez para sua geração. Imediatamente lhe veio a ideia de escrever sobre Montaigne. Em carta a um amigo, escreveu: “A semelhança de sua época e condição com a nossa é espantosa. Não estou escrevendo uma biografia; proponho-me simplesmente a apresentar como exemplo sua luta pela liberdade interior.” No ensaio propriamente dito, ele reconhecia: “Nessa fraternidade de destino, Montaigne tornou-se para mim o indispensável socorro, confidente e amigo.” No fim, seu ensaio sobre Montaigne acabou se revelando uma espécie de biografia, mas de caráter altamente pessoal, sem constrangimento de ressaltar as semelhanças entre a experiência de Montaigne e a sua própria. Numa época como a da Segunda Guerra Mundial, e também durante as guerras civis francesas, escreve Zweig, a vida das pessoas comuns é sacrificada no altar das obsessões do fanatismo, de modo que a questão, para qualquer pessoa íntegra, não é tanto saber “Como posso sobreviver?”, mas “Como permanecer plenamente humano?”. E a questão se coloca de muitas formas: Como preservar meu verdadeiro

eu? Como garantir que eu não vá mais longe do que considero correto em palavras ou atos? Como evitar a perda da minha própria alma? E acima de tudo: Como me manter livre? No sentido habitual da expressão, Montaigne não era nenhum combatente da liberdade, e Zweig o reconhece. “Ele não se sai com as invectivas exaltadas e a verve cativante de um Schiller ou um Lorde Byron, nem com a agressividade de um Voltaire.” Suas constantes afirmações de que é um preguiçoso, displicente e irresponsável conferem-lhe um ar de anti-herói, mas não se trata na verdade de defeitos. São essenciais na luta pela preservação de seu eu particular, tal como se apresenta. Zweig sabia que a Montaigne não agradavam as pregações, mas ainda assim extraiu de Os ensaios uma série de regras gerais. Não as relacionou com esse espírito, mas as parafraseou de maneira a transformá-las em oito mandamentos — que também poderiam ser chamados de oito liberdades: Seja isento de vaidade e orgulho. Seja isento de crença, descrença, convicções e partidos. Seja isento de hábitos. Seja isento de ambição e cobiça. Seja isento de família e vizinhança. Seja isento de fanatismo. Seja isento de destino: seja senhor da sua própria vida. Seja isento de morte: a vida depende da vontade dos outros, mas a morte, da nossa própria vontade. Zweig fazia a seleção de um Montaigne dos mais estoicos, retornando assim a uma maneira quinhentista de lê-lo. No fim das contas, a liberdade que Zweig tinha em mais alta conta era a última da lista e vinha diretamente de Sêneca. Tendo entrado em depressão, Zweig optou pela

derradeira forma de emigração interna: suicidou-se com a droga Veronal em 23 de fevereiro de 1942; sua mulher decidiu morrer com ele. Em sua mensagem de despedida, Zweig expressava gratidão ao Brasil, “esta terra maravilhosa” que o recebera tão hospitaleiramente, e concluía: “Saúdo os meus amigos! Que eles possam ver a aurora depois da longa noite! Eu, por demais impaciente, parto antes.” Parecia — e era assim que Zweig via a questão — que o verdadeiro valor de Montaigne só podia ser enxergado quando se era levado para perto desse ponto extremo. Era preciso atingir um estado em que a única coisa que restasse defender fosse um desnudo “eu”: a simples existência. Só alguém que tenha vivido numa época que ameace sua vida e essa substância valiosa, a liberdade individual, por meio de guerra, poder e ideologias tirânicas — só essa pessoa sabe quanta coragem, quanta honestidade e determinação são necessárias para preservar o eu interior numa tal época de insanidade em massa. Ele teria concordado com Leonard Woolf, quando dizia que a visão de “eus” interligados sustentada por Montaigne era a essência da civilização. Era a base sobre a qual um futuro poderia ser construído, uma vez superado o terror e terminada a guerra — embora Zweig não conseguisse esperar até lá. Caberia perguntar se a visão de integridade individual e esperança política adotada por Montaigne teria hoje a mesma autoridade moral. Certamente há quem pense assim. Livros foram escritos para apresentar Montaigne como um herói para o século XXI: o jornalista francês Joseph Macé-Scaron sustenta, especificamente, que Montaigne

deveria ser adotado como antídoto às novas guerras religiosas. Outros podem considerar que a última coisa de que precisamos hoje é alguém que nos estimule a relaxar e nos retirar em nossos mundos privados. As pessoas já passam tempo o bastante isoladas, em detrimento das responsabilidades cívicas. Os que tomam Montaigne como herói ou como um companheiro compassivo argumentariam que ele não preconizava uma abordagem “faça-o-que-lhe-aprouver” em matéria de deveres sociais. Pelo contrário, sustentava que a solução para um mundo completamente fora dos eixos era que cada um tratasse de se colocar nos eixos: aprender “como viver”, começando pela arte de manter os pés no chão. Pode-se realmente encontrar uma mensagem de inatividade, indolência e desmotivação em Montaigne, e provavelmente também uma justificação para nada fazer quando a tirania assume as rédeas, em vez de resistir a ela. Mas muitas passagens de Os ensaios parecem sugerir, pelo contrário, que devemos nos comprometer com o futuro; especificamente, que não devemos dar as costas ao mundo histórico concreto para ficar sonhando com o paraíso e a transcendência religiosa. Montaigne fornece todos os estímulos de que poderíamos precisar para respeitar os outros, para nos eximir de matar a pretexto de agradar a Deus e resistir à compulsão que periodicamente leva os seres humanos a destruir tudo ao seu redor e “mandar a vida de volta ao começo”. Como dizia Flaubert a seus amigos, “Leiam Montaigne (...) Ele os acalmará.” Mas, como também acrescentava: “Leiam-no para viver.”

13 P. Como viver? R. Faça algo que ninguém nunca tenha feito BEST-SELLER BARROCO

A

o longo da década de 1570, com seus episódios alternados de guerra e paz, Montaigne foi tocando sua vida, assim como seu livro. Passou boa parte da década escrevendo e retrabalhando os primeiros ensaios, até que os publicou em 1580 pela gráfica do editor Simon Millanges, de Bordeaux. A escolha de Millanges era interessante. Ele se estabelecera na cidade havia poucos anos — mais ou menos na mesma época em que Montaigne começara a escrever. Montaigne não teria dificuldade de aceitação entre os editores parisienses: já tratara com eles antes e o valor de uma obra como Os ensaios não lhes teria passado despercebido. Mesmo em sua primeira edição, era uma obra ímpar, que no entanto se encaixava facilmente nos gêneros já consagrados das miscelâneas clássicas e dos livros de lugares-comuns. Ele apresentava essa perfeita combinação comercial: impressionante originalidade e fácil classificação. Mas Montaigne fez questão de optar pelo editor local, fosse por um relacionamento pessoal ou por fidelidade à Gasconha. Esta primeira versão do livro de Montaigne era muito diferente daquela que hoje conhecemos. Enchia apenas dois volumes razoavelmente pequenos, e, embora a “Apologia” já parecesse desproporcional, a maioria dos capítulos era relativamente simples. Não raro oscilavam entre dois pontos de vista opostos, mas não se espraiavam como turbulentos

rios caudalosos nem se abriam em deltas, como posteriores ensaios. Alguns até se prendiam à defesa de um aparente ponto de vista. Mas já vinham permeados da personalidade curiosa, questionadora e inquieta de Montaigne, com frequência explorando enigmas e idiossincrasias do comportamento humano. Os leitores da época sabiam reconhecer qualidade quando a viam, e a obra logo encontrou um público entusiástico. A primeira edição de Millanges provavelmente era pequena, talvez em torno de quinhentos ou seiscentos exemplares, e logo se esgotou. Dois anos depois ele lançou uma nova edição com algumas modificações. Cinco anos mais tarde, em 1587, esta edição foi revista e novamente publicada, em Paris, por Jean Richer. Mas desde o início da década de 1580 o livro havia se transformado na leitura da moda da nobreza francesa. Em 1584, o bibliógrafo La Croix du Maine considerou Montaigne o único autor contemporâneo digno de se ombrear com os antigos — apenas quatro anos depois de sua publicação por uma modesta gráfica de Bordeaux. O próprio Montaigne escreveu que Os ensaios havia tido um desempenho melhor do que ele esperava, transformando-se numa espécie de livro de salão, popular entre as damas: “Uma peça do mobiliário, um artigo para a sala de estar.” Entre os admiradores da obra estava o próprio Henrique III. Ao visitar Paris no fim de 1580, Montaigne ofereceu um exemplar ao rei, seguindo uma prática tradicional. Henrique disse-lhe que tinha gostado do livro, ao que Montaigne teria respondido: “Meu Senhor, então Vossa Majestade também gosta de mim” — pois, como sempre afirmou, ele e o livro eram um só. Isto, na verdade, deveria ter representado um obstáculo para o sucesso. Escrevendo tão abertamente sobre suas

observações cotidianas e sua vida interior, Montaigne quebrava um tabu. Não se esperava que alguém registrasse a si mesmo num livro, apenas aos seus grandes feitos, se é que os tinha realizado. As poucas autobiografias até então escritas no Renascimento, como Vita sua, de Benvenuto Cellini, e De vita propria, de Girolamo Cardano, haviam ficado inéditas em grande parte por esse motivo. Santo Agostinho escrevera sobre si mesmo, mas como um exercício espiritual e com a finalidade de documentar sua busca por Deus, não de comemorar as maravilhas de ser Agostinho. Montaigne efetivamente comemorava o fato de ser Montaigne. Certos leitores ficavam incomodados: o erudito clássico Joseph Justus Scaliger ficou particularmente contrariado com a revelação feita por Montaigne, na edição de 1588, de que preferia o vinho branco ao tinto. (Na verdade, Scaliger procedia aqui a uma simplificação. Montaigne nos diz que mudou sua preferência do tinto para o branco, depois novamente para o tinto, para acabar voltando ao branco.) Outro estudioso, Pierre Dupuy, perguntava: “Quem diabos está preocupado em saber do que ele gostava?” Naturalmente, Pascal e Malebranche também ficaram incomodados: Malebranche falava de “insolência” e Pascal achava que alguém devia ter dito a Montaigne que parasse. Apenas com o advento do Romantismo essa abertura de Montaigne a seu próprio respeito veio a ser não só apreciada, mas plenamente abraçada. Ela encantava em especial os leitores do outro lado do canal da Mancha. O crítico inglês Mark Pattison escreveu em 1856 que o suposto egocentrismo de Montaigne fazia com que ele ganhasse tanta vivacidade em suas páginas quanto um personagem em um romance. E Bayle St. John observou que os

autênticos “apreciadores de Montaigne” adoravam sua “tagarelice” inconsequente, pois ela conferia realismo ao personagem, permitindo que os leitores se identificassem com ele. O crítico escocês John Sterling comparava o estilo de Montaigne ao escrever sobre si mesmo com a tradição mais socialmente aceita das memórias de personalidades públicas, preocupadas apenas com o tedioso “tumulto barulhento” dos acontecimentos externos. Montaigne nos oferecia “o homem em si mesmo”, o “cerne” de sua pessoa. Em Os ensaios, “o interior é o que fica mais claro”. Mesmo na versão de 1580, Montaigne mostrava-se fascinado por seu mundo interior: não foi num tardio capítulo mais aventuroso, mas já na primeira edição, que ele escreveu: Volto meu olhar para dentro, fixo-o ali e o mantenho ocupado. Todo mundo olha para a frente; de minha parte, olho para o meu interior; preocupo-me apenas comigo mesmo; estou constantemente a me observar, avalio-me, experimento-me (...) rolo dentro de mim mesmo. A imagem tem uma intensidade física: podemos ver Montaigne se contorcendo como um cãozinho na grama. Quando não está rolando, ele se recolhe: “Eu recolho o olhar para dentro” seria uma tradução mais literal da primeira frase desse trecho: je replie ma veue au dedans. Ele parece estar constantemente se voltando sobre si mesmo, se aprofundando cada vez mais, atravessando camada após camada. O resultado é uma espécie de panejamento barroco, movimentado e turbulento. Não surpreende que por vezes Montaigne tenha sido caracterizado como o primeiro escritor do período barroco, embora o tenha antecedido; em termos menos anacrônicos, também foi

qualificado como um autor maneirista. A arte maneirista, que floresceu pouco antes do barroco, era ainda mais elaborada e anárquica, comportando ilusões de ótica, deformações, confusões e toda sorte de ângulos esdrúxulos, numa violenta rejeição aos ideais clássicos de equilíbrio e proporção que haviam dominado o Renascimento. Referindo-se a seu Os ensaios como “grotescos” e “corpos monstruosos (...) sem forma definida, ordem, sequência ou proporção que não fosse acidental”, Montaigne parece a própria encarnação do maneirismo. De acordo com os princípios clássicos expostos por Horácio, não se deveria sequer mencionar monstros numa obra de arte, pois representam falhas e deformações, mas é justamente a um deles que Montaigne compara o seu livro. Montaigne, o conservador político, revelou-se desde o início um revolucionário literário, escrevendo de maneira única e permitindo à pena seguir os ritmos naturais da conversa, e não uma linha formal de construção. Ele omitia conexões, saltava passos do raciocínio e deixava seu material depositar-se em blocos sólidos, coupé ou “talhados” como bifes recém-cortados. “Não enxergo nada em sua totalidade”, escreveu: Dos cem membros e faces que cada coisa possui, tomo apenas um, às vezes apenas para lambê-lo, às vezes para roçar a superfície, às vezes para espremê-lo até os ossos. Trato de perfurá-lo, não com amplitude, mas com o máximo de profundidade possível. E quase sempre gosto de tomá-los de um ponto de vista inabitual. Esta última parte era inquestionavelmente verdadeira. Já em seus primeiros capítulos ele patina por caminhos oblíquos, tendência que se torna ainda mais radical nos

ensaios da década de 1580. “Das carruagens” começa falando de autores, envereda brevemente pelos espirros e chega ao tema declarado das carruagens duas páginas adiante — para quase imediatamente sair correndo de novo e passar o resto do tempo tratando do Novo Mundo. “Da fisionomia” aborda o tema da fisionomia por meio de uma repentina observação a respeito da feiura de Sócrates, quando já ficaram para trás 22 páginas de um ensaio que (na tradução inglesa de Donald Frame) comporta apenas 28. O escritor inglês Thackeray brincou que Montaigne poderia ter dado a qualquer de seus ensaios o título de outro, ou que poderia ter intitulado um deles “Da lua” e outro “Do queijo fresco”: pouca diferença faria. Montaigne reconhecia que seus títulos não tinham uma ligação mais óbvia com o conteúdo — “não raro só o denotam por algum indício”. Mas também observou que, se o título parece aleatório e o rumo de sua lógica, perdido, “algumas palavras a respeito sempre poderão ser encontradas em algum canto, o que invariavelmente será suficiente”. As “palavras num canto” muitas vezes encobrem seus temas mais interessantes. Ele as posiciona exatamente nas partes do texto que parecem romper o fluxo de maneira mais destrutiva, turvando as águas e fazendo com que seja impossível seguir seus argumentos. Os ensaios de Montaigne se apresentava inicialmente como uma obra das mais convencionais: um ramo de flores colhidas no jardim dos grandes autores clássicos, junto a considerações sobre diplomacia e ética nos campos de batalha. Uma vez abertas, contudo, suas páginas se metamorfoseavam como uma criatura de Ovídio numa aberração sustentada por um único elemento: o rosto de Montaigne. Dificilmente seria possível desafiar as convenções mais categoricamente. O livro não só era

monstruoso como apresentava como único ponto de unidade exatamente aquilo que deveria modestamente desaparecer como pano de fundo. Montaigne representa o maciço cerne gravitacional da obra; um cerne que vai se tornando mais forte à medida que o livro evolui por suas variantes, mesmo depois de ser intensamente sobrecarregado de novos membros, ornamentos, bagagens e desordenadas partes do corpo. A década de 1570 foi a primeira grande década de Montaigne em termos de produção escrita, mas a de 1580 seria o seu grande período como autor. Nos dez anos subsequentes, Os ensaios dobrou de tamanho, fazendo com que Montaigne deixasse de ser uma nulidade para se transformar numa estrela. Ao mesmo tempo, a década de 1580 o retirou de sua tranquila posição na Guyenne rural e o levou a fazer uma longa viagem por Suíça, Alemanha e Itália, já como uma festejada celebridade, e o fez prefeito de Bordeaux. Solidificou sua estatura como personalidade pública e literária. E também arruinou sua saúde, exauriulhe as forças e o transformou num homem digno de lembrança.

14. P. Como viver? R. Conheça o mundo VIAGENS

O

sucesso da primeira edição de Os ensaios em 1580 deve ter mudado em Montaigne a maneira de encarar a vida. A consagração o tirou de sua rotina e talvez lhe tenha dado a sensação de que chegara o momento de voltar a se envolver com as coisas do mundo. Embora ele não fale muito a respeito em Os ensaios, pode ter-lhe ocorrido então que uma interessante carreira diplomática se descortinava, e que a melhor maneira de iniciá-la seria com o estabelecimento de contatos internacionais. Ele também estava ansioso por se distanciar das limitações domésticas da propriedade, que podiam ser entregues nas mãos perfeitamente capazes de sua mulher. Montaigne sempre quisera viajar, para descobrir “a perene variedade das formas de nossa natureza”. Ainda menino, ele sentia uma “sincera curiosidade” em relação ao mundo — fosse em relação a “um prédio, uma fonte, um homem, um antigo campo de batalha, o lugar onde César ou Carlos Magno morreram”: tudo, enfim. Pois agora se imaginava seguindo os passos de seus heróis clássicos e, ao mesmo tempo, explorando toda a variedade do mundo atual, no qual podia “polir e lustrar” o cérebro no contato com estranhos. Havia ainda outro motivo, nem tão glamoroso, para viajar. Montaigne herdara do pai certa tendência à formação de pedras nos rins. Tendo visto Pierre literalmente desmaiar de dor, ele temia essa doença mais que qualquer outra. Chegando agora aos quarenta e poucos anos, ele teve

oportunidade de descobrir por si próprio como era esse tipo de tortura. A formação de pedras nos rins se deve ao acúmulo de cálcio e outros minerais no sistema, criando caroços e cristais que bloqueiam o fluxo da urina. Muitas vezes eles se fragmentam em cacos pontudos e irregulares. Sejam inteiros ou fragmentados, eles precisam seguir o seu curso, e nesse processo causam uma sensação que poderia ser comparada à de ser retalhado por dentro. Também provocam um mal-estar generalizado na região dos rins, dores lancinantes no abdômen e na região lombar e às vezes náusea e febre. Mesmo depois de serem expelidos, o problema não acaba, pois eles muitas vezes voltam a se manifestar ao longo da vida. Na época de Montaigne, representavam risco de vida, fosse pelo simples bloqueio ou por causarem infecção. Hoje em dia, as pedras podem ser esfaceladas com ondas sonoras, para facilitar a passagem, mas na época de Montaigne podia-se apenas esperar que esses ferrões, esferas, carrapichos e agulhas encontrassem o caminho da saída por si mesmos. Ele tentava expulsá-los prendendo a urina pelo máximo tempo suportável, para aumentar a pressão; era em si mesmo um procedimento doloroso e perigoso, mas às vezes funcionava. E também experimentava outros remédios, embora em geral não confiasse na medicina. Certa vez, ingeriu “terebintina veneziana, que dizem provir das montanhas do Tirol, duas doses grandes numa colher de prata, com adição de uma ou duas gotas de um xarope, para melhorar o gosto”. O único efeito foi fazer com que sua urina ficasse com cheiro de violetas perfumadas. O sangue de um bode alimentado com ervas especiais e vinho também seria supostamente eficaz. Montaigne experimentou, criando o bode em sua

propriedade, mas deixou a ideia de lado ao encontrar nos órgãos do animal, depois de abatido, cálculos muito semelhantes. Não conseguia entender de que maneira um sistema urinário problemático poderia curar outro. O remédio mais comum para pedras nos rins era o uso de águas de spas e banhos termais. Montaigne também fez a tentativa: pelo menos era um método natural, sem probabilidade de lhe fazer algum mal. Os spas muitas vezes eram localizados em lugares atraentes, e a companhia era interessante. Ele experimentou alguns deles na França no fim da década de 1570; a doença voltava a se manifestar após cada visita, mas ele se dispunha a tentar novamente. Aí estava, assim, mais um motivo para viajar, pois os balneários da Suíça e da Itália eram famosos. E a vantagem deste motivo era que podia ser facilmente justificado junto à mulher e aos amigos. Assim foi que, no verão de 1580, o afamado escritor de 47 anos deixou seus vinhedos e botou o pé na estrada para curar-se da sua enfermidade e conhecer o mundo, ou pelo menos áreas seletas do mundo europeu. A viagem o manteria afastado até novembro de 1581: dezessete meses. Ele começou percorrendo regiões da França, aparentemente a negócios e talvez recolhendo instruções para missões políticas durante a jornada. Foi nessa ocasião que teve sua audiência com Henrique III, oferecendo-lhe o seu Os ensaios. Em seguida, rumou para leste e atravessou a fronteira para terras alemãs, tomando depois a direção dos Alpes e da Suíça e finalmente chegando à Itália. Fosse por vontade sua, a viagem teria sido mais longa e ele poderia ir para qualquer lugar. A certa altura, pensou em ir até a Polônia. Mas se contentou com o destino mais habitual de Roma — importante lugar de peregrinação para qualquer bom católico e qualquer intelectual do Renascimento.

Montaigne não podia se dar ao luxo de viajar sozinho, obedecendo apenas a seus desejos pessoais. Ele era um nobre importante e devia sustentar um pesado séquito de criados, conhecidos e agregados, do qual tentava escapar sempre que possível. Do grupo faziam parte quatro jovens que vinham pela experiência educativa. Um deles era seu irmão menor, Bertrand de Mattecoulon, que tinha apenas 20 anos; os demais eram o jovem marido de uma de suas irmãs e o filho adolescente de um vizinho, acompanhado de um amigo. À medida que a viagem prosseguia, todos eles se apartariam em diferentes direções. O mais malfadado foi Mattecoulon, que ficou em Roma estudando esgrima e matou um homem num duelo; Montaigne teve de tirá-lo da prisão. Viajar era em si mesmo um esporte radical na época, não muito menos perigoso que os duelos. As estradas das rotas mais frequentadas de peregrinação podiam ser boas, mas as demais eram precárias. A qualquer momento podia ser o caso de mudar de rota, à notícia de uma peste adiante ou de bandos de salteadores. Certa vez Montaigne alterou seu percurso em direção a Roma diante de um aviso de assaltos à mão armada no caminho que pretendia tomar. Havia quem contratasse uma escolta ou viajasse em comboios. Montaigne já estava num grupo grande, o que ajudava, mas por isso mesmo também podia atrair muita atenção. Havia outros aborrecimentos. Era necessário subornar funcionários, especialmente na Itália, conhecida pela corrupção e pelos excessos burocráticos. Por toda a Europa, os portões das cidades eram fortemente guardados; o viajante tinha de apresentar passaportes, autorizações de viagem e bagagem e declarações devidamente certificadas de que não passara recentemente por alguma região atingida pela peste. Os postos de controle nas cidades

costumavam emitir passes para hospedagem em determinado hotel, cujo proprietário tinha de apor também sua assinatura. Devia ser como viajar pelos países comunistas no auge da Guerra Fria, só que com riscos e criminalidade ainda maiores. E havia, ainda, as dificuldades da viagem propriamente dita. Ela era feita quase sempre a cavalo. Também se podia recorrer a uma carruagem, mas neste caso os assentos eram mais duros que as selas. Montaigne certamente preferia cavalgar: comprava e vendia cavalos no caminho ou os alugava para breves percursos. O transporte fluvial era outra opção, mas Montaigne o evitava por sofrer de enjoo. Quase sempre a viagem a cavalo lhe proporcionava a liberdade por que tanto ansiava; surpreendentemente, uma sela também lhe parecia o lugar mais confortável para estar durante uma crise de pedra nos rins. O que ele mais gostava nessas viagens era da sensação de seguir no fluxo. Montaigne sempre evitava planos prefixados. “Se à direita a coisa parece feia, eu tomo a esquerda; quando não estou em condições de montar o meu cavalo, paro.” Ele viajava exatamente como lia e escrevia: seguindo o convite do prazer. Leonard Woolf, percorrendo a Europa com a mulher mais de três séculos depois, relataria que ela também viajava como uma baleia esquadrinhando o oceano em busca de plâncton, cultivando  uma “vigilância passiva” que lhe proporcionava uma estranha mistura de “euforia e relaxamento”. Montaigne era igual. Tratava-se de uma extensão do seu prazer cotidiano de “se deixar levar tranquilamente pela ondulação dos céus”, como diria suntuosamente, mas com o prazer adicional decorrente da visão das coisas como se fossem sempre novas, contempladas com toda a atenção, como faria uma criança.

Ele não gostava de planejar, mas tampouco gostava de perder oportunidades. Seu secretário, acompanhando-o e (por algum tempo) mantendo o seu diário, observou que as pessoas do grupo se queixavam do hábito de Montaigne de se desviar do caminho sempre que ouvia falar de atrações extras que o interessavam. Mas Montaigne responderia que era impossível desviar-se do caminho, pois não havia um caminho. O único plano com que sempre se comprometera fora o de viajar por lugares desconhecidos. Desde que não repetisse um caminho, ele estava seguindo seu plano à risca. A única limitação em sua energia era que ele não gostava de começar muito cedo. “Minha preguiça de levantar da cama dá aos meus criados tempo para se alimentar à vontade antes de começarmos.” O que convinha aos seus hábitos, pois ele sempre tinha dificuldade de entrar no ritmo pela manhã. No geral, contudo, ele se esforçava por largar seus hábitos durante as viagens. Ao contrário de tantos viajantes, ele dava preferência aos pratos locais e se fazia servir no estilo local. A certa altura da viagem, lamentou não ter trazido o cozinheiro — não porque sentisse falta da comida de casa, mas porque gostaria que ele aprendesse novas receitas estrangeiras. Montaigne ficava envergonhado ao ver outros franceses tomados de alegria quando encontravam algum compatriota no estrangeiro. Eles se abraçavam, juntavamse em grupos ruidosos e passavam noites inteiras se queixando da barbárie dos nativos. Esses eram os poucos que chegavam a se dar conta de que os habitantes locais faziam as coisas de maneira diferente. Outros conseguiam viajar tão “protegidos e envoltos numa prudência taciturna e incomunicável, defendendo-se do contágio de um ambiente estranho”, que nem se davam conta de nada. No

diário, o secretário observava como o próprio Montaigne ia longe demais na direção oposta, derramando-se em elogios exagerados ao país onde estivessem, sem nunca jamais ter uma palavra boa a dizer sobre os compatriotas. “Na verdade, havia em seu julgamento um pouco de raiva, um certo desprezo por seu país”, escreveu o secretário, acrescentando a especulação de que a aversão de Montaigne a tudo que fosse francês decorria de “considerações de outra ordem” — talvez uma referência às guerras. Sua capacidade de adaptação se estendia às línguas. Na Itália, ele falava italiano e até redigia seu diário nessa língua, dispensando já agora o secretário. Imitando o camaleão, ou o polvo, tentava passar despercebido sempre que possível — ou de um jeito que para ele parecesse despercebido. Em Augsburgo, escreveu o secretário, “Monsieur de Montaigne, não se sabe por quê, quis que nosso grupo se dispersasse e caminhou sozinho o dia inteiro pela cidade”. Não funcionou. Sentado num banco da igreja de Augsburgo num ar gelado, Montaigne sentiu seu nariz escorrer e distraidamente lançou mão de um lenço. Mas os habitantes da região não usavam lenço, de modo que ele se traiu. Haveria algum mau cheiro?, perguntavam-se os moradores. Ou será que ele estava com medo de pegar alguma coisa? De qualquer maneira, eles já tinham entendido que se tratava de um estrangeiro: sua indumentária não o deixava mentir. Montaigne achava isso irritante. Para variar, “ele cometia o erro que mais tentava evitar, o de se fazer notar por algum maneirismo que o distinguisse daqueles que o viam”. As igrejas desempenharam papel importante na viagem de Montaigne, não porque fosse dado a orações, mas por sua curiosidade a respeito das práticas. Ele observou as

igrejas protestantes da Alemanha com o mesmo interesse dedicado às católicas da Itália. Em Augsburgo, assistiu ao batizado de uma criança. Ao sair (tendo visto desmascarada sua identidade de estrangeiro), fez muitas perguntas sobre o ritual. Na Itália, visitou sinagogas e “conversou muito sobre as cerimônias”. Também assistiu a uma circuncisão judaica, numa residência particular. Acontecimentos inusitados e narrativas humanas de toda espécie despertavam seu interesse. Nas primeiras etapas da viagem, em Plombières-les-Bains, na Lorena, conheceu um soldado com metade da barba branca e uma sobrancelha branca: o sujeito disse-lhe que as duas haviam mudado de cor de um dia para outro, à morte do irmão, por ele ter chorado durante horas com uma das mãos cobrindo metade do rosto. Perto dali, em Vitry-le-François, ele foi entretido com histórias sobre sete ou oito meninas da região que tinham “conspirado” para se vestir e viver como homens. Uma delas casou-se com uma mulher e viveu com ela durante vários meses — “para sua satisfação, segundo dizem” —, até que alguém denunciou o caso às autoridades e ela foi enforcada. Outra história nessa mesma região dizia respeito a um homem chamado Germain que fora mulher até os 22 anos, quando um conjunto de “instrumentos viris” pulou para fora certo dia quando saltava um obstáculo. Surgiu então na cidade uma canção popular advertindo as moças a não abrirem muito as pernas ao saltarem, para não se verem na mesma contingência. Montaigne ficava fascinado com as diferenças dos hábitos alimentares — sempre um motivo óbvio de comparações culturais para qualquer viajante. Na Suíça, as taças eram servidas de vinho à distância, com um vaso de bico longo, e depois de comer carne todos atiravam os pratos em uma cesta no meio da mesa. As pessoas usavam facas para

comer, “praticamente nunca punham as mãos no prato” e se valiam de minúsculos guardanapos de cerca de trinta centímetros quadrados, apesar da preferência que tinham por sopas e molhos bem lambuzados. Coisas ainda mais estranhas o aguardavam nos quartos da Suíça: “As camas são tão altas que é preciso chegar a elas por escadas; e quase sempre têm pequenas camas debaixo das grandes.” Tudo atraía a atenção de Montaigne ou de seu secretário, que escrevia obedecendo a suas orientações. Numa hospedaria em Lindau, uma parede inteira da sala de jantar era ocupada por uma gaiola cheia de pássaros, com corredores e arames para permitir-lhes saltar de uma extremidade da sala à outra. Em Augsburgo, deram com um grupo conduzindo dois avestruzes pela coleira para presentear o duque da Saxônia. Nessa cidade, Montaigne também notou que “eles tiram a poeira dos objetos de vidro com fios de cabelo presos à ponta de um bastão”. E ele ficou intrigado com os múltiplos portões controlados à distância na cidade, que isolavam câmaras alternadamente, como comportas num canal, para impedir a invasão de agressores. Por toda parte, eles visitavam fontes modernas e jardins aquáticos, muito bons para horas seguidas de entretenimento sádico. Nos jardins da família Fugger, na Alemanha, ocultavam-se numa passarela de madeira, entre dois lagos de peixinhos, canos de metal programados para borrifar damas e cavalheiros que passassem distraídos. No mesmo jardim, era possível apertar um botão para atirar um jato d’água no rosto de quem viesse contemplar determinada fonte. Um aviso em latim dizia: “Você buscava divertimentos triviais; pois aqui estão; desfrute.” Aparentemente, foi o que fez o grupo de Montaigne.

A grande arte já não parecia impressioná-lo tanto, ou pelo menos ele pouco se manifesta a respeito, só eventualmente comentando obras como “as belíssimas e esplêndidas estátuas de Michelangelo” em Florença. Os ensaios também contém poucas referências às artes visuais. Ele encheu sua torre de afrescos, de modo que devia ter algum gosto pela pintura, mas não parece ter-se sentido muito inclinado a escrever sobre ela — muito embora a tinta mal tivesse secado ainda nas tantas obras de arte renascentista que percorriam toda a Itália. Esta omissão seria alvo de crítica, mais tarde, da parte de certos leitores do diário, especialmente os românticos, que foram seu primeiro público, pois o manuscrito só seria encontrado num baú do castelo em 1772. Os leitores se atiraram com entusiasmo sobre a descoberta, mas acabaram decepcionados. Além de uma melhor apreciação da arte, os leitores do século XVIII também teriam gostado de devaneios sublimes sobre a beleza dos Alpes e meditações melancólicas sobre as ruínas de Roma. Em vez disso, o que tinham era um registro dos bloqueios urinários de Montaigne, alternando-se com detalhes muito bemobservados, estimulantes mas nada sublimes sobre as hospedarias, a comida, a tecnologia, os hábitos e costumes sociais de cada parada. Os leitores não ficavam tão emocionados de saber, pelo secretário, que “a água que Monsieur de Montaigne bebeu na terça-feira provocou três evacuações” e que, dois dias depois, outra dose das águas de um spa surtiu efeito “tanto pela frente quanto por trás”. Nem exultavam propriamente quando o próprio Montaigne, assumindo a redação do diário, informava que havia vertido uma pedra “grande e longa como um pinhão, mas com a espessura de um feijão numa das extremidades e apresentando, para dizer a verdade, exatamente a forma de

um pênis”. A única coisa que os leitores suíços e alemães, pelo menos, podiam apreciar era o fato de o diário também estar cheio de elogios a suas terras, especialmente aos bem-projetados fogões da Suíça. A recepção algo morna da obra por parte dos primeiros leitores parece ter dado o tom para o que viria depois: o diário sempre foi considerado o primo pobre de Os ensaios. E no entanto é uma leitura mais interessante que tantos livros de viagem pomposos do romantismo, precisamente por se apegar aos detalhes. Tem camas menores debaixo das maiores, molhos suíços que lambuzam, gaiolas do tamanho de uma sala, circuncisões, mudanças de sexo e avestruzes: que mais poderíamos desejar? Outra característica interessante do diário é que nos proporciona um retrato de Montaigne traçado por um observador externo, seu secretário — retrato que por sinal se revela notavelmente coerente com o Montaigne autorreflexivo de Os ensaios. O leitor vê Montaigne se esforçando por descartar todo e qualquer tipo de preconceito nacional, exatamente como poderíamos esperar dele. Ele parece entusiástico e cheio de curiosidade, mas às vezes também egoísta, arrastando seus relutantes acompanhantes a lugares que não viam sentido em visitar. Há também uma ou outra indicação de que ele abusava das evasivas e da prolixidade nos discursos formais, não obstante seu desinteresse por eles (ou quem sabe justamente por causa disso). Em Basileia, onde Montaigne teve de aguentar “um longo discurso de boas-vindas” no jantar, o secretário escreve que ele deu uma igualmente “longa resposta”. E, em Schaffhausen, Montaigne foi presenteado com vinho — “não sem vários discursos cerimoniosos de ambos os lados”.

A demanda dos poderes oratórios de Montaigne já não foi tão grande na Itália, aonde chegaram em 28 de outubro de 1580. Mas, quanto mais eles se aproximavam do país, mais ele se questionava se efetivamente queria visitá-lo. Era sem dúvida o grande destino, o centro da cultura europeia: Veneza e Roma o haviam atraído a vida inteira. Mas agora ele se dava conta de que preferia lugares menos conhecidos. Se a vontade de Montaigne tivesse prevalecido, observava o secretário ao se aproximarem dos Alpes, o grupo poderia ter-se desviado para a Polônia ou a Grécia, talvez apenas para prolongar a viagem. No entanto, enfrentou resistência e acabou por concordar em tomar o rumo da Itália, como todo mundo. E logo se recompôs. “Eu nunca o vi menos cansado ou se queixando menos das dores”, escrevia agora o secretário, “pois estava com a mente completamente voltada para o que encontrava, fosse no caminho ou na hospedagem, e a todo momento se mostrava tão ansioso por conversar com estranhos que tenho para mim que isto desviou sua mente da enfermidade”. Veneza, uma das primeiras paradas importantes na Itália, confirmou seus temores quanto aos destinos turísticos muito procurados. No dizer do secretário, ele achou a cidade ligeiramente menos maravilhosa do que se dizia. Mas nem por isto deixou de explorá-la com menos gana, alugando uma gôndola e se aproximando das pessoas interessantes que encontrava. Ele se deixou conquistar pela estranha geografia de Veneza, sua população cosmopolita e seu governo como república independente. A cidade parecia envolta numa espécie de magia política particular de que outros lugares careciam, envolvendo-se em conflitos só quando tinha algo a ganhar e mantendo dentro de suas fronteiras um governo justo. Montaigne também ficou

impressionado com a vida de dignidade e luxo das cortesãs da cidade, abertamente mantidas pelos nobres e respeitadas por todos. Conheceu uma das mais famosas, Veronica Franco, que havia sobrevivido recentemente a um julgamento pela Inquisição e publicara um livro de correspondência, as Lettere familiari e diversi¸ por ela oferecido pessoalmente a Montaigne. Depois de Veneza, o grupo passou por Ferrara, onde Montaigne esteve com Tasso, depois Bologna, onde assistiram a uma demonstração de esgrima, e Florença, onde visitaram jardins cheios de efeitos, com assentos que esguichavam água no traseiro de quem os usasse. Em outro jardim, o grupo “teve a experiência muito divertida” de ser aspergido com água saída de “uma quantidade infinita de buracos minúsculos”, projetando uma emanação tão fina que era quase uma neblina. Eles então prosseguiram, aproximando-se cada vez mais de Roma. Na véspera da chegada à cidade, em 3 de novembro de 1580, Montaigne estava tão empolgado que, pela primeira vez, fez todo mundo acordar três horas antes do alvorecer para percorrer os últimos quilômetros restantes. A estrada nas proximidades da cidade não era muito promissora, cheia de calombos, fendas e buracos, mas à medida que avançavam divisaram as primeiras ruínas e então, finalmente, a grande cidade. A emoção murchou um pouco com a espera para passar pela burocracia nos portões: a bagagem foi vasculhada “até os menores itens”. Os funcionários passaram um tempo exagerado examinando os livros de Montaigne. Roma era o domínio do próprio papa: os crimes do pensamento eram levados a sério ali. Eles confiscaram um breviário, simplesmente por ter sido publicado em Paris, e não em Roma, e algumas obras teológicas católicas selecionadas

por Montaigne na Alemanha. Ele se deu por feliz de não estar carregando nada mais comprometedor. Não estando preparado para uma inspeção tão rigorosa, bem que poderia trazer consigo livros heréticos, pois, como observava o secretário, era mesmo de “temperamento curioso”. Confiscado para exame também foi um exemplar de seu Os ensaios. Só lhe seria devolvido em março, quatro meses depois, com anotações sugerindo correções. A palavra “sorte” foi assinalada em vários lugares, juntamente com outras miudezas. Mas um representante da Igreja lhe diria posteriormente que as objeções não eram graves, e que haviam sido feitas por um frade que sequer era particularmente competente. “Pareceu-me tê-los deixado bem satisfeitos comigo”, escreveu Montaigne no diário. Ele tratou de ignorar as sugestões. Certos autores deram grande ênfase ao desafio lançado por Montaigne à Inquisição, mas ele não precisava ser nenhum Galileu para firmar posição. Seja como for, esses episódios não eram um bom começo para Montaigne em Roma, e ele sentiu que havia na cidade um clima de intolerância. Mas ela também era cosmopolita. Ser romano era ser cidadão do mundo, exatamente o que Montaigne pretendia ser. Assim foi que ele pleiteou a cidadania romana, honra que lhe seria concedida pelo fim dos quatro meses e meio que passou na cidade. Ficou tão satisfeito que transcreveu a íntegra do documento num capítulo de Os ensaios sobre a vaidade. Deu-se conta de que “vaidade” era a categoria indicada no caso, mas não se importou. “Em todo caso, tive muito prazer em obtê-la.” Roma era tão vasta e variada que as possibilidades não pareciam ter limite. Montaigne pôde ouvir sermões e debates ecológicos. Visitou a biblioteca do Vaticano e, tendo

acesso a áreas vedadas até ao embaixador da França, viu preciosos exemplares manuscritos de obras de seus heróis Sêneca e Plutarco. Assistiu a uma circuncisão, visitou jardins e vinhedos e conversou com prostitutas. Tentou descobrir seus segredos profissionais, mas ficou sabendo apenas que cobravam caro até para conversar, o que possivelmente seria, em si, um desses segredos. Além das prostitutas, Montaigne também teve uma audiência com o papa, o então octogenário Gregório XIII. O secretário descreveu o ritual em detalhes. Primeiro Montaigne e um dos jovens que o acompanhavam na viagem entraram no salão onde se encontrava o papa e se ajoelharam para receber uma primeira bênção. Esgueirando-se de lado ao longo da parede, dirigiram-se afinal para ele; a meio caminho, detiveram-se para uma segunda bênção. Por fim, ajoelharam-se num tapete de veludo aos pés do papa, tendo ao lado o embaixador francês, que os apresentava. O embaixador também se ajoelhou e suspendeu a túnica do papa para mostrar seu pé direito, calçando uma sapatilha vermelha com uma cruz branca. Os dois visitantes inclinaram-se para a frente e beijaram o pé; Montaigne observou que o papa levantou ligeiramente os dedos para facilitar o beijo. Depois desse momento quase erótico, o embaixador voltou a cobrir o pé do papa e levantou-se para pronunciar um discurso sobre os visitantes. O papa os abençoou e disse algumas palavras, exortando Montaigne a persistir em sua devoção à Igreja. Levantou-se, então, para dispensá-los; eles voltaram pelo caminho percorrido, sem dar-lhe as costas e detendo-se duas vezes para receber ajoelhados mais bênçãos. Finalmente, atravessaram a porta, e a performance estava encerrada. Montaigne faria o secretário anotar, mais tarde, que o papa falava com sotaque de Bolonha — “o pior dialeto

da Itália”. Era “um velho muito bonito, de estatura mediana, saudável e vigoroso, para sua idade, sem gota, cólica nem problemas digestivos” — muito diferente do pobre Montaigne e com uma espécie de semelhança de família com o próprio Deus. Ele parecia “de temperamento brando, sem muita paixão pelas coisas do mundo”, o que vem a ser muito semelhante ou muito diferente de Deus, dependendo do ponto de vista. Brando ou não, era o mesmo papa que mandara cunhar moedas e encomendara pinturas para comemorar o massacre de São Bartolomeu. Não havia como esquecer que Roma era a cidade do papa. Montaigne o viu com frequência, presidindo cerimônias e participando de procissões. Na Semana Santa, viu milhares de pessoas chegando à praça São Pedro, carregando tochas e se flagelando com cordas, em certos casos com apenas 12 ou 13 anos de idade. Eram acompanhadas por homens carregando vinho, que era levado à boca e cuspido nas extremidades dos açoites para umedecer as cordas e separá-las quando ficavam impregnadas de sangue coagulado. “Trata-se de um enigma que ainda não entendo bem”, escreveu Montaigne. Os penitentes ficavam terrivelmente machucados, mas não pareciam sentir dor nem levar muito a sério o que faziam. Bebiam também muito vinho e cumpriam o ritual “com tal desprendimento que os vemos conversar sobre outras questões, rir, gritar nas ruas, correr e pular”. Ele deduziu então, com razão, que a maioria o fazia por dinheiro: haviam sido pagos por fiéis ricos para se submeterem em seu nome à penitência. O que o deixou ainda mais perplexo: “Por que é que o fazem os contratantes, se tudo não passa de uma farsa?” Montaigne também assistiu a um exorcismo. O homem possuído, que quase parecia em estado de coma, foi

segurado de cabeça para baixo no altar enquanto o padre lhe dava murros, batia-lhe no rosto e gritava com ele. Em outra ocasião, ele viu um homem sendo enforcado: um famoso assaltante e bandido chamado Catena, entre cujas vítimas estavam dois monges capuchinhos. Aparentemente ele prometera salvar-lhes a vida se renegassem Deus; foi o que eles fizeram, incorrendo no risco de perder a alma na eternidade, mas Catena ainda assim os matou. De todas as reviravoltas até então presenciadas por Montaigne nesse tipo de cena que tanto o fascinava — o indivíduo vencido que implora misericórdia, o vencedor que decide ou não concedê-la —, foi esta provavelmente a mais desagradável. Pelo menos o próprio Catena enfrentava a morte de peito aberto. Não emitiu um único som ao ser conduzido à forca; seu corpo foi então esquartejado com espadas. A multidão agitou-se mais com a violência contra o corpo morto, uivando a cada golpe de espada, do que com a própria execução: outro fenômeno que intrigou Montaigne, que considerava a crueldade com um ser vivo mais perturbadora que qualquer coisa que pudesse ser feita a um cadáver. Todas estas eram as maravilhas da Roma moderna, mas não era por motivos assim que vinha à cidade a maioria dos turistas de inclinações humanistas no século XVI. Eles vinham para se impregnar da aura dos antigos, e ninguém seria mais suscetível a essa aura do que Montaigne, que quase poderia ser considerado um nativo. O latim, afinal, fora sua primeira língua: Roma era sua pátria. A cidade clássica chamava a atenção ao redor, embora quase sempre Montaigne e o seu secretário não caminhassem propriamente sobre os passos dos romanos, mas muito acima deles. Tanta terra e entulho se havia acumulado ao longo dos séculos que o solo se elevara

vários metros: o que restava dos prédios antigos estava soterrado, como botas na lama. Montaigne se maravilhava à ideia de que podia estar muitas vezes no alto de muralhas antigas, o que só ficava evidente em lugares onde algum trecho fosse revelado pela erosão da chuva ou os sulcos cavados pelas rodas. “Muitas vezes tem acontecido”, escreveu ele, com um estremecimento de regozijo, “que os escavadores, depois de se aprofundar muito no solo, mal alcançavam o alto de uma enorme coluna, que ainda se alongava para baixo”. Já não é nem de longe o caso hoje em dia. As escavações desde então permitiram expor integralmente a maioria das ruínas, e algumas foram reconstituídas. Atualmente, o Arco de Severo se ergue orgulhoso; na época de Montaigne, viase apenas a parte superior. O Coliseu era então uma carcaça de pedra coberta de mato. Construções medievais e do início da era moderna também tinham sido erguidas por toda parte, sobre ruínas ou utilizando velhos materiais reciclados. Lajes de pedra eram reposicionadas constantemente em nível mais alto, para remendar muralhas ou erguer barracos. Certas áreas haviam sido completamente liberadas para abrir espaço a projetos triunfalistas como a nova igreja de São Pedro. A história de Roma não se acumulava em camadas nítidas: tinha sido repetidas vezes embaralhada e reagrupada, como ao influxo de terremotos. O resultado de tudo isto era interessante, mas dava uma impressão da Roma antiga mais ou menos equivalente à que ovos mexidos podem dar de um ovo recém-posto. Na verdade, a Roma moderna se constituíra num processo semelhante ao utilizado por Montaigne para escrever seu Os ensaios. Constantemente acrescentando citações e alusões, ele reciclava suas leituras clássicas exatamente como os

romanos reciclavam a pedra. A semelhança parece ter-lhe ocorrido, e certa vez ele se referiu ao livro como uma construção feita com ruínas de Sêneca e Plutarco. Na cidade, como em seu livro, ele considerava a imperfeição e a bricolagem criativa preferíveis a uma ordem estéril, e a contemplação do resultado lhe dava prazer. O processo também requeria certo esforço mental, que proporcionava ainda maior satisfação. A experiência romana daí resultante era fruto sobretudo da imaginação. O visitante quase poderia ter ficado em casa — quase, pois ainda havia algo insubstituível no fato de estar ali presente. Essa sensação de estranheza quase alucinatória acomete com frequência os visitantes de Roma, em certa medida porque tudo ali já é familiar à imaginação muito antes de ser visto. Duzentos anos depois, Goethe consideraria a experiência ao mesmo tempo esfuziante e perturbadora. “Os sonhos de minha juventude se realizaram”, escreveu ele ao chegar. “As primeiras gravuras de que me recordo — meu pai pendurava vistas de Roma na sala — posso agora ver na realidade, e tudo aquilo que há tanto tempo conheço através de pinturas, desenhos, esboços, gravuras, moldes de gesso e maquetes de cortiça está reunido diante de mim.” Algo semelhante aconteceu a Freud em Atenas, quando viu a Acrópole. “Quer dizer então que tudo isto existe, exatamente como aprendemos na escola!”, exclamou ele, quase imediatamente seguindo-se a convicção: “O que estou vendo aqui não é real.” Montaigne também estranhou a confluência da versão interna com a externa, escrevendo sobre “a Roma e a Paris que tenho na alma”, e que eram “sem tamanho nem lugar, sem pedra, sem gesso, sem madeira”. Eram imagens oníricas que ele comparava à lebre ilusória perseguida por seu cão.

Roma proporcionaria a Goethe uma paz quase mística: “Sinto-me agora num estado de clareza e calma de tal ordem que havia muito tempo não sentia.” Montaigne também o sentia; apesar das frustrações turísticas, a Itália de maneira geral exercia esse efeito sobre ele. “Desfrutei de um estado de espírito tranquilo”, escreveria pouco depois, em Lucca. Mas acrescentava: “Senti falta de apenas uma coisa, de uma companhia que me agradasse, estando forçado a desfrutar dessas belas coisas sozinho e sem comunicação.” Finalmente deixando Roma no dia 19 de abril de 1581, Montaigne atravessou os Apeninos e tomou o rumo do grande centro de peregrinação de Loreto, juntando-se à multidão que seguia em procissão com estandartes e crucifixos. Na igreja local, deixou imagens votivas, para si mesmo e para a mulher e a filha. Prosseguiu então pelo litoral do Adriático e retornou pelas montanhas na direção de um spa em La Villa, onde permaneceria por mais de um mês, no contato com as águas. Como se esperava de um nobre em visita, organizou festas para os habitantes e convidados, com direito a uma dança “para as camponesas” da qual participou, “para não parecer por demais reservado”. Depois de uma passagem por Florença e Lucca, retornou a La Villa, ali permanecendo no auge do verão, de 14 de agosto a 12 de setembro de 1581. A dor casusada pelas pedras andava terrível, e ele também foi acometido de dor de dente, de um peso na cabeça e de incômodos nos olhos. Desconfiava que a culpa fosse das águas, que devastavam a sua metade superior embora aliviassem a inferior, se é que efetivamente o faziam. “Comecei a achar esses banhos desagradáveis.” E então, inesperadamente, ele foi convocado. Montaigne, que afirmava querer apenas levar uma vida tranquila, tendo

a chance de dar vazão a sua “curiosidade sincera” Europa afora, recebeu de muitos longe um convite que não podia recusar.

15. P. Como viver? R. Faça um bom trabalho, mas nem tão bom assim PREFEITO

A

carta chegou às mãos de Montaigne nos banhos termais de La Villa, com todo o peso de uma autoridade distante. Assinada por todos os juízes de Bordeaux — os seis homens que governavam a cidade, juntamente com o prefeito —, ela o informava de que fora eleito, em sua ausência, prefeito da cidade. Devia retornar imediatamente para cumprir com seu dever. Não deixava de ser lisonjeiro, mas, segundo Montaigne, era a última coisa que desejaria ouvir. As responsabilidades seriam mais pesadas que as de um magistrado. Ele perderia a liberdade no emprego do próprio tempo; haveria discursos e cerimônias — exatamente aquelas coisas que menos apreciara em seu percurso pela Itália. Teria de se valer de sua habilidade diplomática, pois o exercício da função de prefeito significaria lidar com as diferentes facções religiosas e políticas da cidade, servindo de elemento de ligação entre Bordeaux e um rei impopular. Significava, também, que teria de abreviar sua viagem. Por desiludido que estivesse com a vida no spa, ele não sentia a menor vontade de voltar para casa. A essa altura, já estava afastado havia 15 meses — um período longo, mas não o suficiente para deixá-lo satisfeito. Parece então ter tentado ganhar algumas semanas. Ele não se recusou a atender à convocação dos juízes, mas tampouco saiu correndo de volta ao seu encontro. Inicialmente, retornou a Roma, em ritmo tranquilo, detendo-se em Lucca algum

tempo e experimentando algumas outras águas termais no caminho. Ficamos imaginando por que voltou a Roma, pois significava andar para trás mais de trezentos quilômetros. Talvez esperasse aconselhar-se com alguém sobre uma maneira de se livrar da missão. Nesse caso, a resposta terá sido desencorajadora. Chegando a Roma em 1º de outubro, ele encontrou uma segunda carta dos juízes de Bordeaux, desta vez em tom mais peremptório. Ele era agora “urgentemente solicitado” a retornar. Na edição seguinte de Os ensaios, ele enfatizaria que não buscara essa nomeação e tentara incansavelmente evitá-la. “Eu pedi para ser eximido”, escreveu — mas a resposta foi que isto não fazia diferença, pois estava envolvida uma “ordem do rei”. O rei chegou inclusive a lhe escrever uma carta pessoal, destinada a lhe ser entregue no exterior, embora Montaigne só a tenha recebido ao retornar a sua propriedade: Monsieur de Montaigne, como tenho em grande estima sua fidelidade e ardorosa devoção ao meu serviço, foi para mim um prazer ser informado de que foi eleito prefeito da minha cidade de Bordeaux; e achei essa eleição muito conveniente e a confirmei, e o fiz tanto mais de bom grado por ter sido ela efetuada sem intriga e na sua distante ausência. E nessa oportunidade minha intenção é, e nesse sentido estabeleço e ordeno muito expressamente, que sem demora nem desculpa retorne assim que receber esta carta e assuma o cumprimento dos deveres e serviços da sua responsabilidade, às quais foi tão legitimamente chamado. E estará fazendo algo que me será muito agradável, sendo que o contrário muito me desagradaria.

Parecia quase uma punição por se mostrar tão pouco investido de ambição política — presumindo-se que a relutância de Montaigne fosse sincera. Sua falta de pressa em voltar para casa certamente não indica ambição de poder. Com toda a calma, ele foi serpenteando na direção da França via Lucca, Siena, Piacenza, Pávia, Milão e Turim, levando aproximadamente seis semanas na jornada. Ao entrar em território francês, deixou o italiano para trás e voltou a redigir o diário em francês, e ao finalmente chegar a sua propriedade registrou o acontecimento com uma nota em que também indicava que sua viagem havia durado “17 meses e oito dias” — num raro caso de correção numérica em seus escritos. Em seu diário Beuther, ele também fez uma anotação com a data de 30 de novembro: “Cheguei à minha casa.” Apresentou-se então aos funcionários de Bordeaux, obediente e pronto para o cumprimento do dever. Montaigne seria o prefeito da cidade durante quatro anos, de 1581 a 1585. O trabalho exigia muito, mas não era totalmente ingrato. Era acompanhado de honrarias e acessórios de toda espécie: ele tinha seu gabinete próprio, uma guarda especial, túnica e colar do cargo e lugar de honra em funções públicas. Só lhe faltava um salário. Mas não podia ser considerado apenas uma figura decorativa. Juntamente com os juízes, era chamado a escolher e designar outros funcionários municipais, decidir sobre as leis cívicas e julgar casos judiciais — tarefa que Montaigne considerava particularmente árdua, levando-se em conta seus padrões de exigência em matéria de comprovação dos fatos. Acima de tudo, ele tinha de entrar no jogo político, tomando cuidado. Devia falar em nome de Bordeaux perante as autoridades reais, e, em sentido inverso,

transmitir a política real aos juízes e outros notáveis da cidade, muitos dos quais mostravam resistência. O prefeito anterior, Arnaud de Gontault, barão de Biron, tinha indisposto muita gente, de modo que uma das primeiras tarefas de Montaigne foi apagar o incêndio. Biron governara com rigor, mas de maneira irresponsável, permitindo a fermentação do ressentimento entre diferentes facções e alienando Henrique de Navarra, o poderoso príncipe dos domínios próximos de Béarn — uma pessoa com a qual era importante manter boas relações. O próprio Henrique III se ofendera com a evidente simpatia de Biron pelos liguistas católicos, que continuavam em rebelião contra a autoridade real. Examinando-se o caso de Biron, fica evidente por que a cidade escolheu Montaigne para sucedê-lo: teria assim um novo prefeito conhecido por sua moderação e habilidade diplomática, exatamente as qualidades que faltavam ao anterior. Em particular, embora estivesse ligado aos desprezados politiques, Montaigne sabia lidar com todo mundo. Era conhecido como alguém capaz de ouvir atentamente todos os lados, pautado por este princípio pirroniano: dar ouvido a todos sem confiar a mente a ninguém, ao mesmo tempo tratando de preservar a própria integridade. Auspiciosamente, os anos da gestão de Montaigne também foram, tecnicamente, anos de paz. As guerras foram suspensas entre 1580 e 1585, período que cobria os anos de viagem de Montaigne e também sua permanência no cargo. Mas não era uma paz fácil, e, como de hábito, todos estavam insatisfeitos com a limitada tolerância ao culto protestante. Bordeaux era uma cidade dividida: a minoria protestante representava cerca de um sétimo da população e ela estava cercada de terras protestantes, mas também contava com uma forte facção liguista. Mesmo nas

melhores condições, era difícil administrá-la. E as melhores condições não eram as que prevaleciam, embora tampouco se pudesse dizer que eram as piores, como se apressaria a assinalar o próprio Montaigne. Ele também tinha a responsabilidade de manter a paz e a lealdade para com o comandante militar do rei na região, um homem chamado Jacques de Goyon, conde de Matignon. Diplomata experiente, oito anos mais velho que Montaigne, Matignon talvez tenha evocado para ele a figura de La Boétie. Os dois não se tornaram amigos íntimos, mas se deram bem. Ambos tinham talento para lidar cuidadosamente com extremistas, e eram homens de princípios. Durante os massacres de São Bartolomeu, Matignon se destacara como um dos poucos funcionários empenhados em proteger os huguenotes nas áreas sob sua responsabilidade, Saint-Lô e Alençon. Firme e tranquilo, era a personalidade certa para a situação em Guyenne naquele momento. E o mesmo quanto a Montaigne, embora lhe faltassem duas qualidades essenciais: experiência e entusiasmo. Montaigne preocupava-se em prevenir qualquer expectativa de que pudesse ser uma cópia do pai, capaz de arruinar a própria saúde no trabalho. Lembrava-se de Pierre esgotado pelas viagens de negócios, “a alma cruelmente agitada por essa turbulência pública, esquecendo-se dos doces ares do lar”. Seu próprio entusiasmo pelas viagens diminuía, agora que,  como acontecera com o pai, devia fazê-las por obrigação. Mas não tinha como evitá-las, e de fato fez várias viagens a Paris, particularmente em agosto de 1582, quando foi à capital para finalmente recuperar os privilégios perdidos por Bordeaux na já distante rebelião contra o imposto do sal. Pelo fim do segundo mandato, sua gestão tornou-se ainda mais peripatética: a documentação

mostra sua presença em Mont-de-Marsan, Pau, Bergerac, Fleix e Nérac. Ele também fazia regularmente o percurso entre Bordeaux e seu castelo, onde, felizmente, podia executar boa parte do trabalho. Na propriedade, igualmente podia levar adiante seus projetos pessoais, e a segunda edição corrigida de Os ensaios foi publicada em 1582, o ano seguinte ao da sua posse na prefeitura. Embora não se dedicasse propriamente à função como um emprego de tempo integral, Montaigne deve ter-se saído bem no primeiro mandato, pois seria reeleito em 1º de agosto de 1583. E não podia deixar de se orgulhar disso, pois não era comum a reeleição. “Foi o que aconteceu no meu caso, e havia acontecido apenas duas vezes antes.” A reeleição enfrentou oposição, particularmente de um rival que queria o cargo: Jacques d’Escars, sieur de Merville, governador na cidade do Fort du Hâ. Montaigne não cedeu a suas pressões, o que indica que se sentia mais atraído pelo cargo do que afirmava inicialmente. É possível que ele tenha mudado de ideia ao constatar a própria aptidão para a função política. Juntamente com Matignon, ele era responsável agora pela comunicação entre os representantes do rei, os rebeldes liguistas de Bordeaux e o protestante Henrique de Navarra, que detinha mais poder que nunca na região. Cada vez mais, no segundo mandato, Montaigne fazia as vezes de intermediário. Estabeleceu relações particularmente boas com os representantes do rei e o campo de Navarra. Os liguistas se mostravam mais difíceis, já que rejeitavam qualquer acordo com quem quer que fosse e ainda pareciam decididos a afastar Montaigne do cargo e assumir o controle de Bordeaux. A rebelião mais dramática partiu do barão de Vaillac, governador liguista, na cidade, do Château Trompette. Em

abril de 1585, Matignon e Montaigne souberam que ele planejava um golpe político na cidade. Devem ter debatido a melhor maneira de lidar com a ameaça: enfrentando-a agressivamente ou tentando dialogar para convencer Vaillac. Era mais uma vez uma daquelas cenas canhestras. Neste caso, eles decidiram que a melhor reação seria uma oposição corajosa, associada à disposição de mostrar clemência. Presumivelmente com a colaboração ativa de Montaigne, Matignon convidou Vaillac e seus homens ao parlement e mandou bloquear as saídas assim que os conspiradores entraram. Matignon ofereceu então a Vaillac duas alternativas: a prisão, com uma provável sentença de morte, ou a abdicação de seus direitos até mesmo sobre a fortaleza de Trompette, deixando Bordeaux definitivamente. Vaillac optou pela segunda. Partiu para o exílio, mas mal havia ultrapassado as muralhas da cidade e já começou a organizar forças da Liga, como se preparasse um ataque. Era sempre este o risco de mostrar clemência ao inimigo. Seguiram-se vários dias de angústia. Em 22 de maio de 1585, Montaigne escreveu a Matignon, dizendo que ele e outros funcionários da cidade estavam vigiando os portões, sabendo que havia mobilização de homens do lado de fora. Cinco dias depois, escrevia que Vaillac ainda estava na região. Diariamente eram dados cinquenta alarmes urgentes. Tenho andado todas as noites a circular pela cidade armado ou fora dela, no porto, e antes do seu aviso já montara guarda lá uma noite, à notícia de uma embarcação que devia passar transportando homens armados. Nada vimos. No fim, não houve ataque. É possível que, vendo os preparativos para a defesa, Vaillac tenha tratado de safar-

se, mostrando que a combinação de agressividade e compreensão de Montaigne e Matignon afinal surtia efeito. Seja como for, a crise passou. Mas a mobilização de guerra na região teve prosseguimento, assim como por toda a França, e a Liga continuou oferecendo resistência às tentativas de Montaigne de abrir um campo intermediário. O trabalho de Montaigne nessa época era admirado por muitos dos que o conheciam. O magistrado e historiador Jacques-Auguste de Thou escreveu que havia “aprendido muitas coisas com Michel de Montaigne, homem de espírito livre e avesso a facções, que (...) tinha um grande e firme conhecimento das nossas questões, e especialmente da sua Guyenne”. O político Philippe Duplessis-Mornay louvava a calma de Montaigne, considerando-o uma pessoa que não provocava problemas nem se deixava provocar. Como costumava acontecer sempre que algum contemporâneo registrava impressões a respeito de Montaigne, a descrição combina extraordinariamente com a visão que ele tinha de si mesmo. Ele escreveu que seus mandatos foram caracterizados quase sempre pela “ordem” e uma “suave e discreta tranquilidade”. Tinha inimigos, mas também muito bons amigos. E a solução da crise em torno de Vaillac parece indicar que era capaz de agir com decisão quando necessário, a menos que toda essa determinação tenha partido de Matignon. Havia aparentemente quem achasse que Montaigne era por demais desmotivado e complacente, pois a esse respeito transparece certa atitude defensiva em Os ensaios, nos quais Montaigne reconhece que foi acusado de demonstrar “esmorecimento no empenho”. Para alguns, ele parecia um típico politique, alguém que recusasse envolvimento em qualquer direção. Era com toda a evidência um fato, e Montaigne o reconhecia fatalmente; a

diferença estava em não ser considerada uma boa coisa pelos seus adversários. Para modernos estoicos e céticos como ele, não era em absoluto mau. O estoicismo estimulava um distanciamento sábio, ao passo que os céticos por princípio se mantinham em atitude de contenção. A política de Montaigne derivava de sua filosofia. As pessoas se queixam, escreveu ele, de que seus mandatos como prefeito não deixaram muitas lembranças. “Esta é muito boa! Eles me acusam de inércia numa época em que quase todo mundo era condenado por fazer demais.” Tendo a “inovação” (vale dizer, o protestantismo) causado tanta balbúrdia, certamente teria sido recomendável manter uma cidade por tanto tempo sem acontecimentos especiais. E Montaigne havia muito aprendera que boa parte do que passava por um apaixonado envolvimento com a coisa pública era na verdade mera exibição. As pessoas se envolvem porque querem parecer coerentes ou promover seus interesses particulares, ou simplesmente manter-se ocupadas para não pensar na vida. Um dos problemas de Montaigne era mostrar-se tão sincero em suas escolhas. Outras pessoas, muito menos conscienciosas que ele, eram elogiadas porque fingiam entusiasmo e engajamento. Montaigne avisou aos superiores que não esperassem isto dele: daria a Bordeaux o que lhe impunha o dever, nem mais nem menos, sem qualquer encenação. Montaigne assemelha-se notavelmente, aqui, a outra grande figura sincera da literatura renascentista: Cordélia, a filha do Rei Lear de Shakespeare, que se recusa a derramamentos insinceros sobre seu amor ao pai, como fazem as gananciosas irmãs, para conseguir seus favores. Como ela, Montaigne mostra-se sincero, com isto parecendo

rude e indiferente. Cordélia poderia ter dito sobre si mesma, como Montaigne: Odeio mortalmente parecer um lisonjeador, e assim caio naturalmente numa maneira de falar seca, direta e contundente (...) Eu mais respeito aqueles aos quais menos demonstro respeito (...) Entrego-me com parcimônia e orgulho àqueles aos quais pertenço. E menos me ofereço àqueles aos quais mais me dei; parece-me que eles deviam ler meus sentimentos no meu coração, e ver que o que minhas palavras expressam não faz justiça ao meu pensamento. Parece uma atitude de rebeldia, mas nisto Montaigne e Cordélia não destoavam realmente do seu mundo no alto Renascimento. As virtudes da sinceridade e da naturalidade eram muito admiradas. Por outro lado, valorizando a franqueza, Montaigne convenientemente se distanciava da acusação constantemente feita aos politiques: a de que eram mascarados de língua melíflua nos quais não se podia confiar. Vez por outra, em Os ensaios, Montaigne pode parecer o pior dos politiques, equívoco, excessivamente sofisticado, secular e esquivo. Não era mau que de vez em quando se mostrasse contundente. Além disso, pelo mesmo efeito invertido que fazia com que a ausência de cadeados nas portas contribuísse para a segurança, a sinceridade sem rodeios de Montaigne revelou-se um extraordinário talento diplomático. Abriu mais portas que os tortuosos engodos de seus colegas. Mesmo no trato com os príncipes mais poderosos — e talvez especialmente nesses casos —, ele olhava direto nos olhos. “Digo-lhes francamente quais são meus limites.” Essa franqueza levava os outros a se abrirem também; servia, escreveu, para atrair sinceridade, como o vinho e o amor.

Quanto às dificuldades políticas de estar entre duas facções, eram muito caracteristicamente minimizadas por Montaigne. Não é realmente difícil avançar quando se está entre dois grupos hostis, escreveu ele; basta comportar-se com moderada afeição em relação a ambos, para que nenhum dos dois julgue controlá-lo. Não se deve esperar muito deles, nem tampouco oferecer demais. Poderíamos resumir a política de Montaigne dizendo que se deve fazer um bom trabalho, mas nem tão bom assim. Seguindo esta regra, ele evitou problemas e se manteve radicalmente humano. Fez apenas o que era seu dever e, com isto, ao contrário de quase todo mundo, efetivamente o cumpriu. Ele se deu conta de que nem todo mundo entendia sua maneira de se comportar. Mas sua atitude realmente não gerou problemas com os contemporâneos, mas com a posteridade. A escolha de Cordélia é justificada na própria peça: não resta dúvida quanto a seu autêntico amor pelo pai. Montaigne, em compensação, desde então sofre de problemas de imagem ligados ao cargo de prefeito. Ele sabia dos riscos de escrever com excessiva modéstia, em Os ensaios, sobre seus atos: “No fim das contas, não se pode escrever sobre si mesmo sem algum dano. A autocondenação sempre recebe crédito, e o autolouvor, descrédito.” Talvez a velha regra contrária a escrever sobre si mesmo fizesse lá algum sentido. OBJEÇÕES MORAIS

O conceito algo limitado de Montaigne a respeito do próprio dever ficou mais evidente em junho de 1585, quando se abateu sobre Bordeaux uma onda de calor, rapidamente seguida de um surto de peste, combinação particularmente destrutiva. A epidemia se prolongou até dezembro, e nesses

poucos meses mais de 14 mil pessoas morreram na cidade, quase um terço da população. Foram vitimadas mais pessoas que nos massacres de São Bartolomeu em todo o país, e no entanto, como costuma acontecer com epidemias ocorridas em tempo de guerra, poucos traços ela deixou na memória histórica. Seja como for, as pestes eram comuns. Os surtos eram tão frequentes no século XVI que fica fácil esquecer como eram catastróficos, a cada vez, para aqueles que tinham a infelicidade de serem neles apanhados. Como de hábito, ao começarem a circular por Bordeaux, naquele ano, os primeiros boatos sobre uma peste, todos que podiam trataram de fugir. Praticamente ninguém ficou por escolha deliberada, embora alguns poucos funcionários permanecessem em seus cargos. A maioria dos ligados ao parlement partiu, inclusive quatro dos seis juízes. Em 30 de junho, Matignon escrevia ao rei: “A peste está se espraiando de tal maneira na cidade que ninguém que tenha condições de viver em outro lugar se eximiu de abandoná-la.” Isto foi ainda nas primeiras etapas. Um mês depois, Matignon dizia a Montaigne que “todos os habitantes abandonaram a cidade; refiro-me aos que poderiam remediar de alguma maneira a situação; pois quanto às pessoas comuns que ficaram, estão morrendo como moscas”. Matignon aparentemente permaneceu, mas Montaigne nem mesmo se encontrava na cidade. Estava em casa quando a peste começou, preparando-se para comparecer a uma cerimônia de transferência de cargo: seu mandato como prefeito terminara e ele seria sucedido pelo próprio Matignon. O dia 1º de agosto de 1585 era seu último no cargo, de modo que ao ser escrita em 30 de julho a carta de Matignon, ainda restavam dois dias a Montaigne. Sua única missão nesses dois dias era aparentemente comparecer à cerimônia de eleição de Matignon. Nas condições do

momento, contudo, praticamente ninguém compareceria à cerimônia, se é que de fato teve lugar. Montaigne precisava agora decidir se devia ou não ir a Bordeaux para a transmissão do cargo. Sua propriedade não fora afetada pela doença; se ele fosse a Bordeaux nesse momento, entraria numa zona atingida pela peste por uma questão meramente formal. Qual era, de fato, o imperativo do dever? Incerto quanto ao que devia fazer, ele viajou até Libourne, mais perto da cidade mas ainda fora da área de risco. De lá, escreveu aos poucos juízes que permaneciam na cidade, pedindo que o aconselhassem. “Não pouparei minha vida nem o que quer que seja”, escreveu. Mas acrescentava: “Deixo ao seu critério julgar se o serviço que posso prestar-lhes com a minha presença na vindoura eleição justifica que me arrisque a entrar na cidade, tendose em conta a situação em que se encontra.” Enquanto isso, ele esperaria no castelo de Feuillas, em frente à cidade, do outro lado do rio. De Feuillas, voltou a escrever no dia seguinte, reiterando a pergunta: que é que lhe recomendavam? A resposta dos juízes, se houve — e se de fato algum deles ainda se encontrava na cidade —, não chegou até nós. A única certeza é o resultado: Montaigne não foi a Bordeaux. Aparentemente, lhe disseram que não fosse ou não responderam. Alguém devia estar trabalhando no parlement, pois mais ou menos nessa época entrou em vigor um novo decreto: ninguém poderia entrar na cidade. Se Montaigne tivesse insistido em ir, estaria infringindo essa ordem. Parece evidente que ele resolveu a questão seguindo a consciência e voltou a sua propriedade. A essa altura, aqueles dois dias já haviam transcorrido, e ele não era mais o prefeito. Em vez de terminar com uma cerimônia

gratificante e discursos de agradecimento, o mandato simplesmente se extinguira em meio à confusão. Ninguém no século de Montaigne parece ter criticado duramente sua decisão. O problema começou de fato 270 anos depois, no século XIX, quando alguns antiquários descobriram as cartas a respeito do episódio no Arquivo Municipal de Bordeaux e as publicaram, expondo Montaigne ao julgamento de um mundo muito diferente — um mundo de ideias completamente opostas sobre heroísmo e abnegação. O pesquisador responsável pela descoberta, Arnaud Detcheverry, comentou que as cartas de Montaigne ostentavam sua conhecida tendência para o “epicurismo impassível”, o que deu o tom para os comentários de outros críticos. Um de seus primeiros biógrafos, Alphonse Grün, considerou que Montaigne demonstrara falta de coragem ao ficar do lado seguro do rio. Num seminário sobre o livro de Grün, Léon Feugère disse que Montaigne “teve a infelicidade de esquecer o próprio dever na mais grave situação”. Para ele, o episódio desacreditava Os ensaios como um todo. Se o autor do livro falhava num tal momento, como se poderia dar crédito ao que ele dizia sobre a melhor maneira de viver? O incidente expunha a mais profunda falha filosófica de Os ensaios: sua “absoluta ausência de decisão”. Outros autores concordariam. O cronista Jules Lecomte descartou Montaigne e toda a sua filosofia com uma única palavra: “Covarde!” O que todos eles pareciam considerar intolerável não era apenas uma eventual falta de coragem pessoal — afinal, Montaigne permanecera uma  semana à cabeceira de um homem morrendo de peste —, mas o fato de não ter cumprido seu dever público. Os frios cálculos e as indagações escritas de Montaigne pareciam odiosas a uma

geração cujo novo rigor moral preservava um remanescente perfume de romantismo. Este inspirava-lhe o sentimento de que se devia estar disposto a qualquer sacrifício, por mais que carecesse de sentido. Os princípios da própria geração, por sua vez, alimentavam o desejo de que Montaigne se sacrificasse em nome do trabalho. A origem do problema, tal como no século XVII, era certa aversão ao seu ceticismo. Aos leitores do século XIX ele incomodava de uma maneira experimentada por poucos desde Pascal. Eles não se importavam com o fato de Montaigne pôr em dúvida os fatos, mas não gostavam que aplicasse o ceticismo à vida cotidiana, ostentando um distanciamento emocional em relação aos padrões aceitos. O epokhe do cético, o “Eu retenho”, parecia revelar certa deslealdade em sua natureza. Parecia o grande bicho-papão da nova era: o niilismo. No fim do século XIX, niilismo significava ausência de Deus, de significado e de objetivos. A expressão podia ser usada quando se queria falar na verdade de ateísmo, mas insinuava algo ainda pior: o abandono de todo padrão moral. No fim, “niilista” tornou-se praticamente sinônimo de “terrorista”. Os niilistas eram homens sem Deus, que atiravam bombas e pregavam a destruição da ordem social vigente. Eram uma espécie de ala revolucionária do partido dos céticos, ou talvez céticos desencaminhados. Se assumissem o poder, nada seria preservado e nada poderia ser dado como certo. Diante disso, os defensores com que Montaigne ainda podia contar subitamente se defrontavam com a urgente tarefa de provar não só que ele agira de maneira razoável durante o surto de peste como também que não era afinal um grande cético. Era, isto sim, um moralista conservador e um bom cristão. Um crítico influente, Émile Faguet,

escreveu uma série de artigos para demonstrar o papel insignificante do ceticismo em Os ensaios. Outro, Edme Champion, considerava possível detectar certos elementos de ceticismo, mas não daquele ceticismo destrutivo que “negava” ou “aniquilava” tudo. O debate ganhou maior significado porque, por coincidência, Os ensaios acabava de ser retirado do Índex na França. A decisão foi tomada em 1854, apenas um ano ou dois depois da descoberta da primeira carta sobre a peste, embora não certamente em consequência disto. Era uma decisão que havia muito deveria ter sido tomada. Apesar da condenação da Igreja, Montaigne a essa altura já fazia parte do cânone na França, tendo-se tornado objeto de uma nova indústria de pesquisas literárias e biográficas. O fim da proibição deu mais relevo a seu perfil, abrindo caminho para a ampliação do espectro de leitores, ao mesmo tempo em que intensificava a questão de sua aceitabilidade moral. E para muitos ele voltou a ser aquilo que fora para Pascal e Malebranche: um trapaceiro que fazia mal à alma. Guillaume Guizot, que em 1866 chamou Montaigne de um grande “sedutor”, fez o que estava ao seu alcance para armar os leitores contra essa sedução. Tendo outrora cedido ao feitiço de Montaigne, ele escrevia agora para ajudar as vítimas a se desenredarem de sua teia, como antigo seguidor de uma seita que dedicasse o resto da vida a ajudar incautos a escapar dela. Ele relacionava então os riscos apresentados por Montaigne, cada um deles associado a um defeito de caráter específico. Montaigne não tinha força de vontade. Era egocêntrico. Não era tão cristão quanto alegava ser. Esquivava-se à vida pública por motivos puramente egoístas, para passar mais tempo em contemplação — que

nem sequer era uma contemplação religiosa, o que seria compreensível. Quando essa introspecção evidenciava defeitos, ele não tentava corrigi-los; aceitava-se tal como era. Era ateu e irresponsável. Não é o tipo de escritor de que precisamos: “Ele não nos transformará nos homens que nosso tempo requer.” O historiador Jules Michelet, um dos críticos mais duros que Montaigne jamais teve, considerava que tudo isso podia ser atribuído ao fato de o escritor ter tido uma educação demasiado livre, destinada a gerar uma ideia meramente “fraca e negativa” do ser humano, no lugar de um herói ou de um bom cidadão. Aquelas cenas de despertar ao som de música plangente em sua infância explicavam muita coisa. Michelet apresentava o Montaigne adulto como um inválido que se isolava em sua torre para “observar a si mesmo sonhando” — consequência inevitável de uma formação decadente e indisciplinada. Na Inglaterra, o teólogo Richard William Church concluía um estudo que, sob outros aspectos, transparecia admiração, opinando que Montaigne tinha uma ideia por demais assoberbante “da nulidade do homem, da pequenez de seus maiores planos e da vacuidade de suas maiores realizações” — indicações perfeitamente claras de niilismo. Isto lhe impossibilitava acreditar “na ideia do dever, no desejo do bem, no pensamento da imortalidade”. De maneira geral, ele demonstrava “indolência e falta de tônus moral”. Uma questão moral menos grave também inquietava os leitores novecentistas de Montaigne: sua abertura em matéria sexual. (Ou pelo menos hoje em dia ela nos parece menos grave.) Não era uma completa novidade, mas algo que agora se tornava fundamental na questão da sua autoridade como escritor. Mesmo em gerações anteriores, sua conversa sobre traseiros, fendas e instrumentos

eventualmente incomodara. Lorde Halifax, a quem foi dedicada uma tradução inglesa no século XVII, observava: “Não posso aceitar que, depois de discorrer sobre a vida exemplar de um homem santo, ele imediatamente passe a falar, como fala, de cornudos e partes pudendas e outras coisas dessa natureza (...) Gostaria que tivesse deixado essas coisas de fora, que as damas não precisassem enrubescer quando Os ensaios é encontrado em suas bibliotecas.” Esta última parte parece irônica, pois Montaigne ironizara que as partes mais ousadas do seu volume final serviriam para tirar o livro das bibliotecas e levá-lo para os boudoirs das senhoras, onde ele preferia mesmo estar. Uma solução para o rubor feminino era o lançamento de edições expurgadas, uma alternativa que se popularizou no século XIX. Havia muito se faziam edições abreviadas de Os ensaios, mas o objetivo em geral era reorganizar o material para mais facilmente localizar aqui e ali pílulas de sabedoria. Pois agora o sentimento era de que Montaigne também precisava sofrer intervenções por motivos de gosto e moral. Uma das mais características dessas edições esterilizadas foi publicada na Inglaterra em 1800, preparada para o público feminino por uma editora que se apresentava como “Honoria”. Seu Os ensaios, selecionado de Montaigne com um esboço da vida do Autor valeu-se da tradução inglesa da época, feita por Charles Cotton, e a picotou para apresentar o perfeito Montaigne para o século que começava, expurgado de tudo que fosse perturbador ou embaraçoso. “Se este Os ensaios se tornar adequado ao exame do meu próprio sexo pela separação do joio e do trigo”, escreve Honoria, “estarei plenamente recompensada”. Ela não se detém no fato de que, para tal, devesse examinar

atentamente as “alusões grosseiras e indelicadas”. E não se exime de socorrer Montaigne com algumas técnicas básicas de redação. “Ele também se mostra tão frequentemente desconexo em seus temas e oscilante em suas opiniões que nem sempre se entende o que quer dizer.” Honoria o ajuda a se fazer mais claro, acrescentando notas de rodapé, às vezes para repreendê-lo (por exemplo, por não mencionar os massacres do Dia de São Bartolomeu), outras, para advertir os leitores a não tentarem pôr em prática em casa suas ideias mais perigosas. Especialmente, acordar as crianças com música suave constitui “uma forma de educação excêntrica” que “de modo algum é aqui mencionada como método recomendável”. Seu prefácio traça o perfil de um Montaigne insuportavelmente sério e respeitável. “Ele queria que sua filosofia não fosse mera especulação, pois desejava pautar não só a própria velhice, mas a vida inteira, por seus preceitos.” Ela dá ênfase a seu conformismo político e chama a atenção para os “muitos excelentes sentimentos religiosos espalhados por seu Os ensaios”. Hoje em dia, esse tipo de coisa dificilmente provocaria uma corrida às livrarias. Mas Honoria estava sintonizada com o mercado do século que se abria e contribuiu para gerar a imagem de um pensativo e carrancudo Montaigne de gola engomada. Naturalmente, muitos leitores novecentistas continuavam gostando da versão subversiva, individualista e libertária de Montaigne. Mas o esforço de Honoria e outros contribuiria para torná-lo cada vez mais aceitável para leitores dos mais diversos tipos, todos eles em busca de um Montaigne inventado por eles mesmos. Tal esforço tornou possível a leitura de Montaigne não só no boudoir, no romântico cume de uma montanha ou na biblioteca de um homem do mundo, mas também num jardim num dia de verão, onde

era possível encontrar uma jovem e inocente senhora de delicados preceitos morais percorrendo Montaigne num inoitavo censurado. E se ela quisesse ter acesso também aos trechos proibidos, a qualquer momento poderia aventurarse pela biblioteca do pai. MISSÕES E ASSASSINATOS

Montaigne de fato é muitas vezes chocante, mas nem sempre nos lugares onde se poderia esperar algum choque. Ele pode incomodar o leitor sobretudo quando mais conciliador parece, por exemplo ao dizer tranquilamente: “Não sei se seria decoroso admitir o pouco custo que teve para a paz e a tranquilidade da minha vida passar mais de metade dela em meio à ruína do meu país.” Levamos alguns momentos para nos dar conta de como é inabitual que alguém escreva sobre a vida nesses termos, em qualquer período da história. Poderíamos descartar observações assim se de fato ele se tivesse mantido sempre passivo e calmo. Mas na década de 1580 Montaigne ficaria cada vez mais assoberbado por responsabilidades relacionadas à guerra que — por mais que as subestime em seu livro — certamente cobraram um preço em matéria de paz de espírito. O país estivera oficialmente em paz durante seu mandato como prefeito, mas no momento em que ele voltou a se retirar em sua propriedade as Ligas católicas faziam o que estava ao seu alcance para provocar outra guerra. A essa altura, o conflito já era tão político quanto religioso. A maior incógnita política era saber quem sucederia Henrique III no trono da França. A linha sucessória não era clara, pois ele não tinha filhos nem um parente próximo. A monarquia

estava disponível num momento de extrema instabilidade nacional: uma combinação nada boa. A maioria dos protestantes e alguns católicos davam preferência a Henrique de Navarra, o príncipe protestante de Béarn que tanta influência exercia na região de Bordeaux e tecnicamente podia ser considerado o primeiro na linha de sucessão real — mas que, para muitos, devia ser descartado, por sua religião. Seu principal rival era seu tio Carlos, o cardeal de Bourbon, cuja pretensão era apoiada pelos liguistas e seu poderoso líder, Henrique, o duque de Guise. Enquanto isso, o rei continuava perfeitamente vivo, mostrando-se incerto quanto ao sucessor que devia endossar. A fase seguinte da guerra ficaria conhecida como Guerra dos Três Henriques, pois girava alucinadamente em torno dessa trinca composta por Henrique III, Henrique de Navarra e Henrique de Guise. Os politiques, entre eles o próprio Montaigne, estavam em princípio comprometidos com o apoio ao rei, independente do que fizesse. Como sucessor, contudo, a maioria preferia Henrique de Navarra, o que contribuiu para atrair para eles um ódio ainda maior das Ligas. Os extremistas católicos consideravam que era a mesma coisa levar ao trono o Diabo em pessoa ou um rei protestante. Como prefeito, Montaigne fizera tentativas de promover um entendimento entre os dois partidos. Fosse politicamente, como prefeito de uma cidade católica próxima do território de Navarra, ou pessoalmente, como bom diplomata, ele estava bem-posicionado para isto. Periodicamente se encontrava com Navarra e o entretinha, tendo feito amizade com sua influente amante, Diane d’Andouins, ou “Corisande”. Em dezembro de 1584, Navarra hospedou-se por alguns dias na propriedade de Montaigne, num momento em que o próprio rei tentava convencê-lo a

renegar o protestantismo para subir ao trono. Navarra recusou-se. Parecia, assim, que uma das poucas esperanças para a França estaria em convencer Navarra a reconsiderar essa recusa — e foi precisamente o que Montaigne tentou fazer. Em caráter pessoal, a visita foi bem-sucedida. Navarra confiava em Montaigne, preferindo ser atendido pelos criados dele, e não pelos seus próprios, e comendo sem que os alimentos fossem submetidos ao habitual teste para detectar algum veneno. Montaigne registrou tudo isso em seu diário Beuther: 19 de dezembro de 1584. O rei de Navarra veio ver-me em Montaigne, onde nunca estivera, e aqui ficou por dois dias, servido pelos meus homens, sem qualquer dos seus empregados. Não quis saber de prova de alimentos nem de pratos cobertos, e dormiu na minha cama. Era uma grande responsabilidade, e, além do mais, convidados desse calibre esperavam ser tratados como reis. Montaigne organizou uma caçada: “Mandei soltar um veado na floresta, o que o ocupou numa caçada por dois dias.” Os entretenimentos correram bem (embora não, provavelmente, do ponto de vista do veado), mas o mesmo não se pode dizer do projeto diplomático. Uma carta de Montaigne a Matignon um mês depois indica que ele ainda se empenhava no mesmo sentido. Enquanto isso, Henrique III era pressionado pelos liguistas — agora extremamente poderosos, especialmente em Paris — a propor leis antiprotestantes que afastassem Navarra definitivamente do trono. Sentindo que não contava com apoio em sua própria cidade, Henrique III cedeu e, em outubro de 1585,

baixou decreto dando aos huguenotes três meses para renegar sua fé ou partir para o exílio. Se era uma tentativa de evitar a guerra, teve o efeito contrário. Navarra convocou seus seguidores a se rebelarem e resistir a esse novo ato de opressão. Henrique III promulgou novas leis antiprotestantes na primavera seguinte, alienando ainda mais Navarra. A mãe do rei, Catarina de Médici, percorreu o país, tentando, como Montaigne, alcançar um acordo de última hora com Navarra, mas igualmente fracassou. Entrava-se agora em guerra declarada. Seria a última delas, mas também, de longe, a mais longa e mortífera. Durou até 1598, o que significou que Montaigne não voltaria a ver a paz, pois morreu em 1592. Mais que nunca, nesse “distúrbio”, os piores sofrimentos foram infligidos em nível local, de maneira caótica, por bandos de soldados sem qualquer controle e gangues de refugiados famintos que percorriam o interior, além da fome e da peste. Montaigne estava numa posição arriscada, ameaçado não só pela anarquia no interior, mas por seus antigos inimigos de Bordeaux. Ele aparentemente tinha amigos protestantes demais para um bom católico; sabia-se que havia hospedado Navarra e que tinha um irmão combatendo nas forças deste. No dizer dele próprio, era um guelfo para os gibelinos e um gibelino para os guelfos — alusão às duas facções que por séculos dividiram a Itália. “Não havia acusações formais, pois nada havia a que se pudessem agarrar”, escreveu ele, porém “suspeitas veladas” sempre pairam no ar. Mas ele continuou deixando sua propriedade sem uma guarda pessoal, apegando-se a seu princípio de abertura e transparência. Em julho de 1586, um exército liguista de 20 mil homens montou cerco a Castillon, na

Dordonha, a cerca de 8 quilômetros; os combates ultrapassaram as fronteiras da propriedade de Montaigne. Parte desse exército acampou em suas terras. Os soldados saquearam suas colheitas e roubaram seus colonos. Nessa época, Montaigne tentava retomar o trabalho em seu livro, dando início a um terceiro volume e fazendo acréscimos em capítulos já escritos. Foi exatamente então que, como escreveu, “uma carga pesada de nossos distúrbios se abateu sobre mim com todo o seu peso por vários meses. Eu tinha, por um lado, o inimigo à minha porta, e por outro, os saqueadores, inimigos ainda piores (...) e experimentava todo tipo de dano militar de uma vez só”. No fim de agosto, a peste se abateu sobre o exército sitiante, disseminando-se pela população local e infestando a propriedade de Montaigne. Mais uma vez, ele se via na contingência de decidir o que fazer frente à ameaça da peste. Uma concepção primária do heroísmo poderia determinar que ele permanecesse junto aos seus colonos para sofrer e, se necessário, morrer com eles, levando a própria família. Como anteriormente, contudo, a realidade da situação era mais complexa. Quem quer que pudesse evitar permanecer numa zona afetada pela peste certamente o faria. Muito poucos camponeses tinham essa possibilidade, mas ela estava ao alcance de Montaigne, que, assim, partiu. Ele interrompeu o trabalho no ensaio que escrevia então, “Da fisionomia”, e caiu na estrada com a família. Poderíamos dizer que ele assim abandonava os colonos. A situação deles já devia ser muito difícil antes de sua partida, pois ele escreveu em Os ensaios ter visto gente cavando o próprio túmulo para nele se deitar à espera da morte. Se já tinham chegado a esse ponto, não havia mais o que fazer. Montaigne certamente levou consigo seus criados pessoais,

mas não poderia se responsabilizar por toda a comunidade de trabalhadores agrícolas. Ao verem sua família se preparando para a partida, eles devem ter sentido que eram entregues à própria morte: provavelmente o que deviam mesmo esperar de seus supostos protetores nobres. Estranhamente, em contraste com as duras críticas a ele endereçadas quando abandonou Bordeaux, praticamente não se tomou conhecimento de censuras a Montaigne a esse respeito. Mas o fato é que, também neste caso, seria difícil imaginar como ele poderia ter agido de outra forma, e afinal de contas tinha responsabilidade para com sua família. Já agora transformados em sem-tetos errantes, eles seriam forçados a se manter longe durante seis meses, até serem informados em março de 1587 de que passara o surto da peste. Não era fácil encontrar hospitalidade durante seis meses. Montaigne tinha antigos colegas da época de dedicação à vida pública, e tanto ele quanto sua mulher tinham ligações familiares. Pois foram obrigados a recorrer a todas elas. Mas eram poucos os que podiam acomodar toda a família e acompanhantes, e, dentre os que tinham condições de fazê-lo, a maioria via com horror os refugiados da peste. Escreveu Montaigne: “Eu, que sou tão hospitaleiro, tive grande dificuldade para encontrar refúgio para minha família: uma família sem rumo, causa de medo para os amigos e para si mesma, e também de horror onde quer que tentasse acomodar-se, devendo trocar de morada toda vez que alguém do grupo começasse a sentir alguma dor na pontinha do dedo.” Nesses meses sem ponto fixo, Montaigne também retomou suas atividades políticas. Seria talvez, em certos casos, o preço a pagar pela acolhida. Ele desempenhava um papel cada vez mais importante nas tentativas dos

politiques e outros de solucionar a crise e garantir o futuro da França. O abandono da função pública em 1570 lhe conferira certo espaço para pensar na vida; desta vez, era diferente. Os anos posteriores aos mandatos como prefeito o haviam conduzido cada vez mais alto na pirâmide do poder, até esferas onde o ar era rarefeito e a queda podia ser perigosa. Ele lidava com alguns dos mais eminentes protagonistas da época: primeiro, com Henrique de Navarra, e já agora com Catarina de Médici, mãe do conturbado rei. Catarina de Médici sempre se pautou pela convicção de que, podendo-se sentar para conversar, os problemas seriam resolvidos. Mais que ninguém, ela deu de si para tornar isso possível, tendo encontrado em Montaigne um aliado natural nesse sentido. Convocou-o a pelo menos um de uma série de encontros que teve com Navarra no castelo de Saint-Brice, perto de Cognac, entre dezembro de 1586 e o início de março de 1587. Montaigne compareceu acompanhado da mulher, tendo o casal recebido durante sua permanência no castelo uma ajuda de custo para despesas de viagem e roupas. Os dois tinham, assim, onde ficar, mas a pressão deve ter sido intensa. Catarina esperava obter um acordo formal nesses encontros; infelizmente, como tantas vezes já acontecera, revelou-se que conversar não era o suficiente. A peste cedeu no Périgord nesse período, e assim Montaigne retornou com a família, encontrando o castelo intacto, mas os campos e vinhedos devastados. Ele voltou a trabalhar no ensaio a que se dedicava ao partir, tomando da pena e concluindo a observação sobre a pesada carga de distúrbios. Mas seu envolvimento político não diminuiu. Nesse outono, ele se encontrou com Corisande e mais tarde, separadamente, com Navarra, que visitou o castelo em outubro. Aparentemente, Montaigne o exortou a buscar um

acordo com o rei. Ao se encontrar com Navarra, Corisande tentou convencê-lo no mesmo sentido. Ela e Montaigne parecem ter montado juntos essa estratégia: um ataque por duas frentes. Navarra começava a dar sinais de ceder. No início de 1588, Montaigne voltou a se encontrar com Navarra; pouco depois, este o enviou numa missão altamente secreta ao rei, em Paris. De uma hora para outra, todos em Paris pareciam falar dessa missão e de seu misterioso herói, de modo que ela deve ter sido importante. O escritor protestante Philippe Duplessis-Mornay tratava do assunto em carta à mulher. Sir Edward Stafford, o embaixador inglês na França, referia-se a “Montigny” em seus relatórios, considerando-o “um cavalheiro muito sábio do rei de Navarra” e acrescentando mais adiante que “todos os criados do rei de Navarra aqui ficaram enciumados com sua chegada”. O cortejo de Navarra deve ter-se sentido fora de esquadro: lá estava Montaigne numa missão do seu próprio chefe, mas ninguém lhes dizia o que estava acontecendo. O embaixador espanhol, Dom Bernardino de Mendoza, escreveu ao seu rei, Filipe II, que os homens de Navarra em Paris “não sabem o motivo da sua vinda” e “desconfiam de que ele está numa missão secreta”. Dias depois, em 28 de fevereiro, também fez menção à suposta influência de Montaigne sobre Corisande, acrescentando que Montaigne era “considerado um homem compreensivo, embora algo confuso”. Stafford também mencionava a ligação com Corisande. Montaigne, dizia, era o “grande favorito” dela; e era igualmente “um homem muito suficiente”, o que na linguagem da época significava muito capaz. Parece que Montaigne e Corisande tinham conseguido convencer Navarra a chegar a um acerto, talvez um acordo preliminar no sentido de abrir mão do

protestantismo se necessário, e que Montaigne lá se encontrava para transmitir essa mensagem ao rei. Dada a delicadeza da situação, tanto os liguistas quanto os seguidores protestantes de Navarra tinham todos os motivos para tentar impedir que Montaigne chegasse a Paris. Na verdade, essa missão de reconciliação e moderação pareceu desagradar a quase todo mundo. Até o embaixador inglês a temia, pois a Inglaterra queria manter sua influência sobre Navarra e não desejava que ele voltasse a se converter ao catolicismo. Os únicos que podiam estar satisfeito eram o rei, Catarina de Médici e alguns poucos politiques, sempre esperançosos de uma França unida no futuro. Não surpreende, assim, que a viagem de Montaigne não tenha transcorrido facilmente. Pouco depois de partir, percorrendo a floresta de Villebois, a sudeste de Angoulême, seu séquito caiu numa emboscada, sendo atacado por assaltantes armados. Não foi este o incidente em que ele veio a ser libertado por causa da franqueza de sua expressão facial: este fora, com toda a certeza, um ataque mais aleatório. Dessa vez, o motivo era político — ou era isto, pelo menos, o que ele acreditava. Escrevendo posteriormente a Matignon a esse respeito, Montaigne dizia suspeitar que os atacantes fossem liguistas tentando impedir qualquer acordo entre seus dois inimigos. Ameaçado de violência em plena floresta, ele foi obrigado a entregar seu dinheiro, as roupas finas de seus baús (destinadas provavelmente ao seu comparecimento à corte real) e seus documentos, entre os quais certamente estariam documentos secretos da base de Navarra. Felizmente, os atacantes não o mataram. Tendo sobrevivido, cabe supor que ele tenha entregado a mensagem. Mais uma vez, no entanto, apesar dos riscos incorridos por Montaigne,

apesar de toda a agitação por ele causada, não se chegou a um acordo. E as coisas estavam para piorar. Os problemas começaram quando o duque de Guise, ainda o mais perigoso dos inimigos do rei, chegou à capital em maio de 1588, pouco depois de Montaigne. Henrique III banira Guise da cidade, de modo que se tratava de um desafio aberto à autoridade real, mas o duque sabia que contava com o apoio dos parlamentares rebeldes de Paris. O rei deveria ter mandado detê-lo, mas nada fez, nem mesmo quando Guise foi procurá-lo pessoalmente. O novo papa, Sisto V, teria comentado mais tarde a respeito desse encontro: “Guise foi um tolo precipitado ao se colocar assim nas mãos de um rei que estava insultando; e o rei foi um covarde ao deixá-lo partir impune.” Era mais um daqueles equilíbrios delicados: no caso, uma parte mais forte precisava decidir até que ponto levar um desafio, enquanto a parte mais fraca tinha de resolver se inclinava a cabeça ou oferecia resistência. Henrique III tomaria três vezes seguidas a decisão errada. Para começar, nada fez, quando devia ter feito algo. Em seguida, para compensar, teve uma reação exagerada. Na noite de 11 de maio, mobilizou tropas reais por toda a cidade, como se estivesse se preparando para uma batalha e possivelmente até um massacre dos seguidores de Guise. Alarmadas e enfurecidas, multidões de liguistas bloquearam as ruas, prontas para se defender. Esse dia ficaria conhecido como o “Dia das Barricadas”. Henrique III cometeu então seu terceiro erro. Em pânico, bateu em retirada, evidenciando aquela exata combinação de fraqueza e exagero que Montaigne considerava desastrosa, especialmente no trato com uma multidão. O rei tentou convencer Guise a acalmar seus seguidores; o duque então percorreu as ruas a cavalo, supostamente para

atender ao pedido, mas na verdade insuflando ainda mais a multidão. Seguiram-se violentos motins. “Eu nunca vi tão furioso descontrole da população”, escreveria Étienne Pasquier, amigo de Montaigne, numa carta. Parecia um novo dia de São Bartolomeu, mas houve menos mortos e dessa vez havia uma meta específica, rapidamente alcançada. Ao terminar o dia seguinte, relatava Pasquier, “tudo ficara tão calmo de novo que se poderia dizer que não passara de um sonho”. Mas não fora um sonho: Paris acordava para uma nova realidade. O rei fugira da cidade. Esquivando-se de maneira tão discreta que praticamente ninguém se deu conta, ele partira para Chartres, deixando Paris nas mãos de Guise. Tendo abandonado sua cidade sem lutar, Henrique III era agora um rei no exílio. Tinha praticamente abdicado, embora seus seguidores ainda o considerassem seu monarca. Guise ordenou-lhe que aceitasse o cardeal de Bourbon como sucessor, e Henrique não teve alternativa senão concordar. Não faltava quem se dispusesse a lhe indicar como sobreviera semelhante catástrofe. Ele perdera uma oportunidade única de se livrar de Guise, fosse detendo-o ou simplesmente mandando matá-lo. Montaigne, sempre um leal monarquista, juntou-se ao rei em Chartres; mais tarde, quando Henrique transferiu-se para Rouen, Montaigne também o acompanhou. O que não surpreende: a alternativa teria sido permanecer com os liguistas em Paris ou sair completamente de cena, voltando para casa. Ele não fez nenhuma das duas coisas, mas acabaria se separando do rei e voltando a Paris em julho de 1588. Na época, estava doente, acometido de gota ou reumatismo — um ataque tão grave que ele ficou de cama durante parte de sua estada.

Ele com certeza esperava ser deixado em paz na capital, pois provavelmente não fizera nada mais subversivo que se encontrar com seus editores, tendo recentemente concluído seu derradeiro volume. Mas Paris não era o melhor lugar para quem quer que estivesse ligado ao rei. Certa tarde, estando ainda Montaigne de cama e se sentindo muito mal, homens armados vieram detê-lo por ordem da Liga. O motivo pode ter sido vingança por um recente incidente em Rouen, quando Henrique III ordenara a detenção de um liguista em circunstâncias semelhantes: era esta pelo menos a teoria de Montaigne, tal como registrou em seu diário Beuther. Montando seu próprio cavalo, ele foi conduzido à Bastilha e encarcerado. Em Os ensaios, Montaigne escrevera sobre seu horror ao cativeiro: Nenhuma prisão jamais me viu, nem mesmo em visita. A imaginação torna a visão de qualquer delas, mesmo de fora, desagradável a mim. É tão grande o meu anseio de liberdade que se alguém me proibisse o acesso a algum recanto das Índias, eu viveria com um nítido desconforto. Ser jogado numa masmorra da Bastilha, especialmente estando doente, foi um choque. Mas Montaigne tinha razões para acreditar que não permaneceria ali por muito tempo — e foi o que aconteceu. Passadas cinco horas, Catarina de Médici veio em seu socorro. Ela também estava em Paris a essa altura, na expectativa, como sempre, de resolver a crise botando todo mundo para conversar, a começar por Guise, com quem se encontrava ao receber a notícia da detenção de Montaigne. Ela imediatamente pediu a Guise que providenciasse sua libertação. Com evidente relutância, ele o fez.

As ordens de Guise foram dadas ao comandante da Bastilha, mas nem mesmo isto foi suficiente de início. O comandante exigiu confirmação da parte do prévôt des marchands, Michel Marteau, sieur de La Chapelle, que por sua vez enviou seu consentimento através de outro homem poderoso, Nicolas de Neufville, seigneur de Villeroy. No fim das contas, desse modo, foi necessária a intervenção de quatro indivíduos poderosos para libertar Montaigne. Sua interpretação dos fatos foi que teria sido “libertado por uma generosidade inédita” e só depois de “muita insistência” da parte de Catarina de Médici. Ela provavelmente gostava dele; o duque de Guise provavelmente não gostava, mas até ele era capaz de ver que Montaigne merecia consideração especial. Depois disso, Montaigne permaneceu em Paris por pouco tempo. A dor nas articulações cedeu, mas logo depois ele seria acometido  de outra doença. Foi provavelmente uma crise de pedra nos rins, problema de que ele ainda sofria com frequência, e que tantas vezes temera pudesse matálo. Nessa oportunidade, foi o que quase aconteceu. Seu amigo Pierre de Brach relataria o episódio alguns anos mais tarde, em carta de alto teor estoico a Justus Lipsius: Quando estávamos em Paris havia alguns anos, e os médicos perdiam toda esperança por sua vida enquanto ele só desejava a morte, eu o vi, quando a morte o olhou bem de perto no rosto, afastá-la bem para longe com seu desprezo pelo medo que ela traz. Quantos belos argumentos para satisfazer os ouvidos, que belos ensinamentos para tornar sábia a alma, que decidida firmeza de uma coragem capaz de tranquilizar os mais medrosos pôde aquele homem então demonstrar! Eu nunca ouvi alguém se expressar

melhor ou mostrar-se mais decidido a fazer o que os filósofos disseram a respeito, sem que a fraqueza do corpo abatesse o vigor da alma. O relato de Brach é convencional, mas parece indicar que Montaigne em certa medida aceitara a própria mortalidade, desde a época de seu acidente de equitação. Ele passara por muita coisa desde então, e as crises de pedra nos rins o haviam forçado a periodicamente encarar a morte de perto. Estes também eram confrontos em campo de batalha. A morte acabaria saindo vencedora, mas por enquanto Montaigne lhe fazia frente. Ainda convalescente, Montaigne visitou uma amiga que conhecera em Paris no ano anterior: Marie de Gournay, leitora entusiástica de sua obra, que o convidou a se hospedar no castelo de sua família na Picardia. Era uma bem-vinda oportunidade de repouso. Enquanto isso, saíra a nova edição de Os ensaios, e ele já pensava em novos acréscimos, talvez à luz de suas experiências recentes. Começou então a adicionar notas a seu exemplar recémsaído da gráfica, às vezes sozinho, outras, com a ajuda de Gournay e outros. Uma vez plenamente restabelecido, por volta de novembro desse ano, Montaigne seguiu para Blois, onde o rei participava, com Guise, de uma reunião da assembleia legislativa nacional conhecida como Estados Gerais. O objetivo seria supostamente a ampliação das negociações, mas Henrique III fora além. Um rei sem reino, ele estava desesperado. E passara seis meses sendo lembrado por seus conselheiros de que tudo poderia ter sido diferente se tivesse descartado Guise quando teve a oportunidade. Pois agora, acompanhado de Guise no castelo de Blois, Henrique dispunha novamente da oportunidade e decidiu

corrigir o próprio erro. No dia 23 de dezembro, convidou o duque a seus aposentos particulares para uma conversa. Guise aceitou o convite, embora seus conselheiros o advertissem do perigo. Ao entrar nos aposentos reais ao lado do quarto de Henrique III, vários guardas reais saltaram de esconderijos, fecharam a porta atrás dele e o apunhalaram mortalmente. Mais uma vez, e agora para escândalo até mesmo de seus seguidores, o rei fora de um extremo ao outro, ignorando a zona intermediária de judiciosa moderação favorecida por Montaigne. Embora Montaigne se tivesse deslocado para Blois a fim de juntar-se ao séquito do rei, não há qualquer indicação de que tivesse conhecimento da conspiração assassina. Nos dias que antecederam o incidente, ele estava na verdade se divertindo, restabelecendo contato com velhos amigos como Jacques-Auguste de Thou e Étienne Pasquier — muito embora este tivesse o hábito irritante de arrastar Montaigne a seu quarto para apontar erros estilísticos na mais recente edição de Os ensaios. Montaigne ouvia polidamente e ignorava tudo que Pasquier dizia, exatamente como fizera com os homens da Inquisição. Emocionalmente mais volúvel que Montaigne, Pasquier mergulhou em profunda depressão ao tomar conhecimento do assassinato de Guise. “Oh, terrível espetáculo!”, escreveu a um amigo. “Há muito venho alimentando em mim humores melancólicos, que devo agora vomitar no seu colo. Temo estar testemunhando o fim da nossa república (...) o rei perderá a coroa ou então verá o seu reino virado de ponta-cabeça.” Montaigne não era dado a esse tipo de dramaticidade, mas também deve ter ficado chocado. O pior de tudo, para um politique, era o fato de esse assassinato frio e inoportuno lançar sérias dúvidas sobre a

estatura moral do rei, visto pelos politiques como o foco de suas esperanças de estabilidade. Henrique III provavelmente pensou que um ato radical acabaria com seus problemas, mais ou menos como Carlos IX pouco antes dos massacres de São Bartolomeu. Mas a morte de Guise serviu na verdade para radicalizar ainda mais os liguistas, e Henrique III foi declarado um tirano por um movimento revolucionário que acabava de surgir em Paris, o Conselho dos Quarenta. A Sorbonne perguntou ao papa se seria teologicamente justificável matar um rei que havia renunciado à própria legitimidade. O papa respondeu que não, mas os pregadores e advogados liguistas argumentaram que qualquer pessoa que se sentisse imbuída desse sentimento e atendendo a um chamado de Deus poderia fazê-lo. A palavra “tirano” estava no ar, mas, ao contrário de La Boétie em Da servidão voluntária, esses pregadores não exortavam à resistência passiva nem a uma pacífica discordância. Haviam simplesmente baixado um decreto de morte. Se Henrique era o agente do Diabo na Terra, como proclamava uma verdadeira torrente de publicações de propaganda, matá-lo seria um dever sagrado. A agitação em Paris em 1589 permeava todas as esferas da vida. O cronista protestante Pierre L’Estoile falava de uma cidade enlouquecida: Pois hoje, assaltar o vizinho, massacrar os parentes mais próximos, roubar dos altares, profanar as igrejas, estuprar mulheres e meninas, espoliar todo mundo é a prática habitual de um membro de liga e a marca infalível de um católico devoto; ter invariavelmente a religião e a missa nos lábios, mas o ateísmo e o roubo no coração, e o homicídio e o sangue nas mãos.

De todo lado vinham sinais e presságios; até Jacques Auguste de Thou, o amigo geralmente sensato de Montaigne, viu uma cobra de duas cabeças sair de um monte de lenha, enxergando aí um mau agouro. Quando já parecia que a situação não poderia piorar, Catarina de Médici morreu, em 5 de janeiro de 1589. Com a morte da mãe, Henrique III estava sozinho, protegido do ódio que o cercava apenas pelas tropas mal-remuneradas e os politiques que se sentiam obrigados a ficar a seu lado por uma questão de princípio. Como sempre, foram os politiques que atraíram a desconfiança de todos. E também não ajudou que alguém como Montaigne, num tom distante e contido, ponderasse que praticamente já não era possível distinguir entre a Liga e os huguenotes radicais: Essa questão tão grave de saber se seria legítimo rebelar-se um súdito e tomar armas contra seu príncipe em defesa da religião — é bom lembrar na boca de quem a resposta afirmativa constituía ainda no ano passado o esteio de uma das facções, e a negativa, o esteio de qual outra delas; e perceber agora de onde vêm a voz e a norma de ambos os lados, e se as armas fazem menos ruído por esta causa do que por aquela. Quanto à ideia do assassinato sagrado, como poderia alguém imaginar que matar um rei conduz ao céu? Como poderia vir a salvação da “maneira mais exata que temos de alcançar com certeza a danação”? Em dado momento dessa época, Montaigne perdeu o que ainda lhe restava de gosto pela política. Ele deixou Blois mais ou menos no início de 1589. No fim de janeiro, estava de volta a sua propriedade e sua biblioteca. E dali se manteve ativo, sempre em contato com Matignon — que continuava no

comando militar da região, além de ser o novo prefeito de Bordeaux —, mas aparentemente descartou a partir de então qualquer possibilidade de viagens para fins diplomáticos. Ironicamente, pouco depois de ter desistido, Henrique III e Navarra finalmente chegaram ao tão esperado rapprochement. Uniram forças e se prepararam para sitiar a capital no verão de 1589. Mas este foi mais um dos erros do rei. Os liguistas da cidade deram-se conta de que, reunindo-se os exércitos nos campos além dos seus portões, Henrique III estava ao seu alcance. Um jovem frade dominicano chamado Jacques Clément recebeu ordens de Deus para agir. Alegando trazer uma mensagem secreta de seguidores da cidade, ele chegou ao campo em 1º de agosto e foi levado à presença do rei, sentado naquele momento na latrina — um jeito perfeitamente comum, na época, de os monarcas receberem visitantes. Clément sacou de um punhal e conseguiu apunhalar o rei no abdômen pouco antes de ser morto pelos guardas. Durante várias horas, Henrique sangrou lentamente, até morrer. Um de seus últimos atos foi confirmar Navarra como sucessor, embora reiterando a condição de que ele voltasse ao seio da Igreja Católica. A notícia da morte do rei foi recebida com júbilo em Paris. Em Roma, até o papa Sisto V elogiou o ato de Clément. Navarra finalmente concordou em voltar ao catolicismo. Inicialmente, alguns católicos ainda se recusaram a reconhecê-lo, especialmente membros do parlement de Paris, insistindo em que seu rei era o Bourbon. Durante algum tempo, houve duas realidades, dependendo do lado em que se encontrava cada um. Aos poucos, no entanto, com paciência, Navarra acabou levando a melhor. Ele se tornou o rei incontestável da França, com o nome de Henrique IV: o monarca que acabaria encontrando uma

maneira de pôr fim às guerras civis e impor a unidade, essencialmente pela simples força de sua personalidade. Era o rei que os politiques sempre haviam desejado. Como sempre tivera um relacionamento amistoso com Navarra, Montaigne mais uma vez seria levado a assumir um papel semioficial como conselheiro de Henrique IV — e um conselheiro incrivelmente franco, como se haveria de constatar. Montaigne escreveu a Henrique oferecendo seus serviços, como exigia a etiqueta; Henrique respondeu em 30 de novembro de 1589 convocando-o a Tours, sede provisória de sua corte. Ou bem a carta demorou a chegar ou Montaigne a deixou repousar sobre a lareira por um bom tempo, pois sua resposta é datada de 18 de janeiro de 1590 — tarde demais para obedecer à ordem. O juramento de aliança ia muito bem, teoricamente, mas Montaigne estava decidido a não viajar, especialmente porque sua saúde andava pior que nunca. Ele explicou ao rei que, infelizmente, a carta demorara a chegar; reiterou seus cumprimentos e disse que esperava vê-lo cercado de ainda maior apoio. Essa parte da carta era perfeitamente convencional, mas Montaigne acrescentava uma recomendação mais franca. Sempre se dirigindo a ele com toda a deferência formal, ele dizia ao novo rei que deveria ter-se mostrado menos indulgente, recentemente, com os soldados de seu exército. Precisava impor sua autoridade mas ao mesmo tempo ganhar terreno com “clemência e magnanimidade”, que constituem meios mais seguros de conquistar as pessoas do que as ameaças. O rei deve ser forte mas também deve mostrar confiança nas pessoas e ser antes amado que temido. Ele escreveu outra carta em 2 de setembro, depois de ter Henrique mais uma vez proposto uma viagem a Montaigne,

dessa vez para ir ao encontro de Matignon. Ofereceu-se para pagar as despesas, mas, de novo, Montaigne esperou tranquilamente que se passassem seis semanas para responder, alegando que acabara de receber a carta. Na verdade, ele já escrevera três vezes a Matignon, propondose, segundo dizia, a visitá-lo, mas não obtivera resposta. Talvez, sugeria Montaigne, Matignon o quisesse poupar dos perigos e da demora de uma viagem, considerando “a demora e os riscos das estradas”. A indireta parece clara: Henrique IV devia dar mostra da mesma consideração. Montaigne também se ressentiu da oferta de dinheiro. Eu jamais recebi qualquer espécie de presente da liberalidade dos reis, como tampouco a solicitei nem mereci; nem obtive pagamento pelas medidas que tomei a seu serviço, das quais Vossa Majestade tem conhecimento até certo ponto. O que eu fiz por vossos antecessores farei com disposição ainda maior por vós. Sou, meu Senhor, tão rico quanto poderia desejar. Quando tiver esgotado os recursos da minha bolsa com Vossa Majestade em Paris, me atreverei a dizer-vos. Parece uma maneira incrivelmente direta de falar a um rei — mas Montaigne estava envelhecendo e doente (acometido de febre na época), e já tinha com o rei suficiente convívio para falar-lhe abertamente. Em Os ensaios, ele escreveu: “Vejo os nossos reis simplesmente com uma afeição leal e cívica, que não é movida nem removida por interesses particulares (...) É o que me faz andar por toda parte de cabeça erguida, o rosto e o coração abertos.” A carta a Henrique IV mostra que se podia acreditar em sua palavra. De fato, ele se revela nas duas cartas exatamente como se mostra em Os ensaios: franco,

sem se deixar impressionar pelo poder e decidido a preservar a própria liberdade. Montaigne pode ter detectado os primeiros sinais de algo que viria a tornar-se uma característica do reinado de Henrique IV: a tendência do rei a se erigir em objeto de culto. Ele era forte, o que vinha a ser uma necessidade do país, depois de uma série de reis fracos e autoindulgentes, mas carecia de sutileza. Discursos breves e ação rápida e decisiva, era este o seu estilo. Se Henrique III se lavava com regularidade e usava garfos para comer, ele se mostrava sujo, como devia ser um autêntico homem, e segundo se dizia cheirava mal como carne estragada. Tinha carisma. Montaigne gostava da ideia de um rei forte, mas não queria saber de nenhuma mística. Em Os ensaios, escreve a respeito de Henrique IV em tom de ponderada aprovação, e não de maquinal devoção; reservas equivalentes podem ser encontradas em suas cartas. E esta batalha ele acabaria vencendo, pois jamais viajaria ao encontro de Henrique IV. No início de 1595, quando já era tarde demais para que Montaigne tivesse conhecimento, Henrique IV conseguiu dar início a uma guerra contra um inimigo externo, a Espanha, com isto começando a drenar as energias das guerras civis, que finalmente chegaram ao fim em 1598. A França começou a construir uma verdadeira identidade coletiva, embora ainda frágil e centrada essencialmente na pessoa de Henrique. Muitos se mostravam ardorosamente leais a ele, mas outros o detestavam com igual ardor. Ele também viria a ser assassinado, apunhalado em 1610 pelo fanático católico François Ravaillac. Entre suas contribuições para a história está o Edito de Nantes proclamado em 13 de abril de 1592, garantindo a liberdade de consciência e certa liberdade de culto às duas facções religiosas. Ao contrário de anteriores tratados

buscando a conciliação, este funcionou, por algum tempo. Até então o país mais afetado pelas divergências religiosas, a França tornou-se a primeira nação da Europa ocidental a reconhecer formalmente duas formas diferentes de cristianismo. Em discurso pronunciado no parlement em 7 de fevereiro de 1599, Henrique deixou claro que o edito não decorria do desejo de agradar, como acontecera com iniciativas anteriores, e não devia ser tomado como licença para gerar problemas. “Sufocarei no nascedouro toda facção e toda pregação sediciosa; e mandarei decapitar todo aquele que as estimular.” Imposto tão decididamente, com essa confiança afirmativa que Montaigne apreciava, o Edito de Nantes durou quase um século, até 1685, quando sua revogação gerou uma onda de refugiados huguenotes em direção à Inglaterra e a outros países. Entre eles estavam muitos leitores de Montaigne, como Pierre Coste, cuja edição clandestina de Os ensaios acabaria sendo introduzida na França através do canal da Mancha e levaria a imagem de um novo e revolucionário Montaigne a seus conturbados compatriotas.

16. P. Como viver? R. Filosofe só por acaso QUINZE INGLESES E UM IRLANDÊS

E

stranhamente, ao longo do século que levaria à nova imagem de marca de Montaigne formulada por Coste em 1724 — um período difícil para Os ensaios na França —, os ingleses nunca deixaram de admirá-lo. Eles foram os primeiros fora da França a adotar Montaigne, e viriam a considerá-lo praticamente um dos seus. Alguma coisa na mentalidade inglesa os colocava em sintonia; e dali por diante eles continuariam a vibrar harmoniosamente nessa mesma sintonia, parecendo indiferentes às mudanças intelectuais que ocorriam em outros quadrantes. Vale a pena interromper por um momento a história da “sobrevida” de Montaigne (que transcorre paralelamente à história de sua vida, e estava aqui suspensa no século XIX, desde o capítulo passado) para dar uma rápida olhada em vários séculos de sua recepção crítica do outro lado do canal da Mancha — para onde ele parece nunca ter pensado viajar, e onde ficaria muito surpreso de se ver acolhido como refugiado, especialmente por se tratar de um país protestante. A religião era um dos motivos pelos quais muitos leitores ingleses, a partir do fim do século XVII, se sentiam tão livres para desfrutar de Montaigne. Os protestantes ingleses não se preocuparam quando a Igreja pôs seu livro no Índex. Tal fato servia inclusive para que usufruíssem da agradável sensação de levar a melhor sobre os católicos e, melhor ainda, sobre os franceses. Estes podiam ser considerados um povo incapaz de reconhecer seus melhores escritores, principalmente depois que a Academia Francesa começou a

impor rigorosos padrões de elegância clássica na literatura. Um escritor “livre e insubordinado” (como se considerava Montaigne) não tinha lugar na nova estética francesa, mas a língua inglesa o recebia de braços abertos, como um filho pródigo. Exuberante e anárquica morada de Chaucer e Shakespeare, o inglês parecia a linguagem certa para um autor assim. Lorde Halifax, a quem foi dedicada uma das edições seiscentistas de Os ensaios, observou que traduzir Montaigne “é não só uma valiosa aquisição para nós, mas uma justa censura da impertinência crítica desses escribas franceses que se deram ao trabalho de inventar pequenas reservas e objeções para diminuir a reputação desse grande homem, feito pela natureza grande demais para se confinar à exatidão de um estilo estudado”. E o ensaísta William Hazlitt conseguiu introduzir Montaigne, além de Rabelais, num texto intitulado “Sobre antigos escritores e oradores ingleses”. Assim justificou ele essa inclusão: “Mas estes consideramos em grande medida ingleses, ou como aquilo para onde se inclinava o velho temperamento francês, antes de ser corrompido por cortes e academias de crítica.” Se apreciavam o estilo de Os ensaios, os leitores ingleses ficavam ainda mais encantados com seu conteúdo. A preferência de Montaigne pelos detalhes, em detrimento das abstrações, os atraía; e o mesmo acontecia com sua desconfiança em relação aos eruditos, sua preferência pela moderação e o bem-estar e seu desejo de privacidade — o “compartimento nos fundos da loja”. Por outro lado, os ingleses também tinham o gosto pelas viagens e pelo exotismo, exatamente como Montaigne. Ele podia dar mostra de inesperados surtos de radicalismo no meio do mais tranquilo conservadorismo, e o mesmo se podia dizer deles. E, no fundo, o que ele gostava mesmo era de ficar

observando seu gato brincar perto da lareira — exatamente como os ingleses. E havia também sua filosofia, se é que lhe podemos dar este nome. Os ingleses não eram filósofos natos; não gostavam de especular sobre o ser, a verdade e o cosmo. Ao pegar um livro para ler, queriam anedotas, temperamentos estranhos, comentários espirituosos e um toque de fantasia. Como diria Virginia Woolf a propósito de Sir Thomas Browne, um dos muitos autores ingleses que escreviam numa veia montaigniana, “a mente inglesa inclina-se naturalmente a se sentir à vontade e encontrar prazer nos humores e caprichos mais informais”. Por isto é que William Hazlitt louvava Montaigne em termos capazes de interessar uma nação não necessariamente filosófica: Ao tomar da pena, ele não posava de filósofo, sabichão, orador ou moralista, mas se tornava tudo isso simplesmente por ousar dizer-nos o que passava por sua mente, em sua nua simplicidade e força. Numa das raras ocasiões em que Montaigne referiu-se a si mesmo como filósofo, foi para dizer que aconteceu apenas por acaso: ele era um “filósofo não premeditado e acidental”. Passava tantas páginas vagando pelos próprios pensamentos que não podia deixar de acabar tropeçando aqui e ali em alguma grande teoria clássica. A filosofia empírica do melhor estilo de vida a adotar o interessava, mas era algo diferente. Globalmente, tudo isto se aplicava aos ingleses. Boa parte de seu sucesso na Inglaterra, contudo, pode ter sido uma questão de feliz coincidência, e não necessariamente de profunda afinidade, como convém a um homem acidental. Os ensaios pôde contar desde o início

com um excelente tradutor inglês, um homem chamado John Florio — o que fez toda a diferença. O fato de Florio ter sido o primeiro a chamar a atenção para o inglês oculto em Montaigne é tanto mais notável por ele ser um itinerante multicultural de sensibilidade nada inglesa. Ele costuma ser considerado italiano, embora sua mãe fosse inglesa e ele tivesse nascido em Londres em 1553, sendo portanto mais inglês que qualquer outra coisa. Mas seu pai era o italiano Michele Agnolo Florio, professor de línguas e escritor que havia se transferido para a Inglaterra como refugiado protestante muitos anos antes. Quando a católica Maria Tudor subiu ao trono, a família Florio voltou ao exílio percorrendo a Europa, o que levou o jovem John a aprender tantas línguas. De volta à Inglaterra na idade adulta, ele fez nome ensinando francês e italiano e publicando uma série de manuais de conversação, além de um bem-sucedido dicionário inglês-italiano. Florio traduziu Os ensaios a pedido de uma rica mecenas, a condessa de Bedford, que também o aproximou de uma série de amigos e colaboradores que o ajudaram a identificar citações e promover o livro. Florio retribuiu a ajuda com elaboradas dedicatórias, em certos casos tão rebuscadas que os homenageados mal conseguiam entendê-las. Em sua epístola à condessa de Bedford, podemos ler: Aqui atributos vão de acordo com seus deméritos; donde, para o desenvolvimento de uma carreira duradoura, uma área livre e extensa deve me ser convidativa, e meu espírito ardente me incitaria, não fosse eu seguro por sua mão doce e dominante (quem já sentiu esse desejo, que muito cedo excede aquilo que imaginamos de nós mesmos, passa a se considerar

aquilo que em verdade não é) ou não deveria eu prejudicar sua garantida vantagem por meio de um desvelar precoce, Quando o seu valor estiver em deliberação. Este trecho é bem típico do que acontecia quando Florio tinha rédea solta. Como Montaigne, ele escrevia emitindo pensamentos cada vez mais complexos, como uma aranha que emite fios de seda. Mas, enquanto Montaigne sempre vai adiante, Florio se enrola sobre si mesmo e remastiga suas sentenças em espirais cada vez mais apertadas, até que o significado desaparece no colapso da sintaxe. A verdadeira magia acontece quando os dois escritores se encontram. A natureza terrena de Montaigne mantém sob controle os emaranhados de Florio, enquanto Florio proporciona a Montaigne certa qualidade elizabetana inglesa, além de uma leitura muito divertida. Quando Montaigne escreve: “Nossos alemães, afogados em vinho” (nos Allemans, noyez dans le vin), Florio traduz “nossos soldados alemães fanfarrões, quando estão com a cara enfiada nos canecos, bêbados como ratos”. Uma frase que o tradutor moderno Donald Frame reproduz tranquilamente como “lobisomens, duendes e quimeras” será encontrada no universo de Florio como “Larvas, Duendes, Monstrengos e outros Bichos e Quimeras” — como se estivéssemos lendo Sonho de uma noite de verão. Shakespeare e Florio se conheciam, e Shakespeare foi um dos primeiros leitores da tradução de Os ensaios. Pode até ter lido partes do manuscrito antes de ser enviado para a gráfica: é possível discernir certos indícios de Montaigne em Hamlet, que é anterior à edição de Florio. Uma peça muito posterior, A tempestade, contém um trecho tão próximo de Florio que não pode haver dúvida de que ele leu a tradução.

Fazendo o elogio de sua visão de uma sociedade perfeita no estado natural, o Gonzalo de Shakespeare afirma: Não, na república faria tudo pelos seus contrários, pois não admitiria espécie alguma de comércio; de magistrados, nada, nem mesmo o nome. O estudo ficaria ignorado de todo. Suprimiria, de vez, ricos e pobres e os serviços; contratos, sucessões, questões de terra, demarcações, cuidados da lavoura, plantação de vinhedos, nada, nada. Nenhum uso, também, de óleo e de vinho, trigo e metal. Ocupação, nenhuma. Todos os homens, ociosos, todos.1 O que é notavelmente parecido com o que Montaigne diz a respeito dos tupinambás, na tradução de Florio: É uma nação (...) que não tinha qualquer tipo de comércio, nem conhecimento das letras, nem inteligência dos números, nem  nome de magistrado, nem de superioridade política; nenhum uso para serviços ou riqueza ou pobreza; nada de contratos, nem sucessões, nem partilhas, nem ocupação alguma, mas só ociosidade; nenhum cuidado com parentesco, mas tudo em comum, sem adornos, mas natural, sem fertilização das terras, nem uso do vinho, do milho ou de têmpera. Desde que esse paralelismo óbvio foi estabelecido por Edward Capell no fim do século XVIII, a caça a indícios de influência em outras peças de Shakespeare tornou-se uma espécie de esporte popular. A mais promissora certamente é Hamlet, pois seu herói muitas vezes se parece com um  Montaigne tendo de enfrentar um dilema dramático num palco. Quando Montaigne escreve “Nós somos, não sei

como, duplos em nós mesmos” ou descreve a si mesmo com a incoerente torrente de adjetivos “tímido, insolente; casto, lascivo; tagarela, taciturno; duro, delicado; inteligente, estúpido; grosseiro, afável; mentiroso, verdadeiro; cultivado, ignorante, liberal, sovina e pródigo”, podia estar dizendo um monólogo da peça. Ele também observa que aquele que pensa demais sobre as circunstâncias e consequências de determinado ato fica impedido de fazer o que quer que seja — um belo resumo do principal problema da vida de Hamlet. As semelhanças podem derivar simplesmente do fato de os dois escritores estarem sintonizados com o clima do seu mundo no alto Renascimento, com toda a sua confusão e indecisão. Montaigne e Shakespeare foram ambos considerados os primeiros autênticos escritores modernos, capturando esse sentimento tipicamente moderno de não saber ao certo a que lugar pertencemos, quem somos e o que devemos fazer. O estudioso shakespeariano J. M. Robertson considerava que toda literatura desde esses dois autores podia ser interpretada como uma elaboração do seu tema comum: a descoberta da consciência dividida. O paralelismo não pode ser levado muito longe. Para começo de conversa, Shakespeare era um dramaturgo, e não um ensaísta. Ele pode dividir suas contradições com os personagens e pô-los em conflito no palco; Montaigne não pode deixar de conter em si mesmo todas as contradições. Outra diferença é que Montaigne não reina sozinho sobre o cânone literário em sua terra, como acontece com Shakespeare na Inglaterra. Desse modo, suscitou menos inveja, e nenhum iconoclasta veio tentar derrubá-lo de seu pedestal, alegando que ele não escreveu Os ensaios, como tantas vezes aconteceu com Shakespeare.

Ou quase nenhum. Entre as poucas exceções encontra-se um dos principais “anti-Stratfordianos” (autores que lançavam dúvidas sobre Shakespeare) do século XIX, Ignatius Donnelly. No fim de uma vasta obra sustentando que Francis Bacon foi quem escreveu as peças de Shakespeare, Donnelly acrescenta capítulos adicionais tentando provar que Bacon também escreveu Os ensaios de Montaigne, além da Anatomia da melancolia de Robert Burton e de toda a obra de Christopher Marlowe. Ele encontra pistas ao longo de Os ensaios, como uma passagem em que Montaigne escreve: “Quem quer que seja capaz de curar uma criança de uma pertinaz aversão ao pão, ao bacon ou ao alho a estará curando de todo tipo de fragilidade.” O nome Francis aparece várias vezes no texto, supostamente na forma francesa François e geralmente denotando o rei francês Francisco I. Mas não importa: tratase também de uma pista. Para fechar a questão, Donnelly menciona a descoberta feita por uma certa sra. Pott, que chamou sua atenção para a frequente menção, nas peças de Shakespeare, de montanhas, ou Mountaines. Como Bacon é que escreveu Shakespeare, qualquer referência a Montaigne nas peças tende a indicar que ele também escreveu Os ensaios. “Alguém seria capaz de acreditar que tudo isso não passa de mero acidente?”, pergunta Donnelly. Ele próprio se confessa perplexo com certos trechos de Os ensaios que parecem cheios dessas pistas, mas são de mais difícil interpretação, notadamente a história de uma jovem que batia nos próprios seios brancos depois do assassinato do irmão. Donnelly desiste: Quem é essa jovem? Nada mais encontramos a seu respeito no texto. E terão sido acaso os seios brancos que assassinaram seu irmão? (...) E de onde foi

disparada a bala? Acaso foram os seios brancos? Nada disto faz sentido (...) E existem centenas de trechos assim. O fato de Os ensaios ter sido escrito em francês podia representar um problema — mas não para Donnelly. Sua explicação é que Bacon queria publicar um livro de opiniões céticas e nada ortodoxas do ponto de vista religioso, mas não ousava fazê-lo na Inglaterra, de modo que deu um jeito de publicá-lo como se fosse uma tradução. Por força da sorte, o irmão de Francis Bacon, Anthony, estava na França na época e conhecia Montaigne. Ele convenceu Montaigne a emprestar seu nome à farsa, enquanto alguém mais convencia Florio a desempenhar o papel do tradutor. Desse modo, Bacon escreveu o livro; Montaigne o assinou; e Florio presumivelmente o traduziu — mas do inglês para o francês. “Montaigne” era de fato um inglês, de uma forma mais literal que Lorde Halifax ou William Hazlitt jamais sonhariam. Um dos aspectos dessa história efetivamente se fundamenta em fatos: Anthony Bacon realmente conhecia Montaigne e o visitou duas vezes, a primeira no início da década de 1580 e novamente em 1590. Ele poderia facilmente ter levado um exemplar de Os ensaios para o irmão, o que significa que Francis podia tê-lo lido (em francês) antes de publicar sua própria coleção de Os ensaios em 1597. Isto explicaria algo que sempre causou perplexidade: como foi que Bacon e Montaigne se saíram com o mesmo título em intervalo de apenas poucos anos? Cabe dizer, contudo, que o título é praticamente o único ponto semelhante. Todas as qualidades que podem ser consideradas “inglesas” em Montaigne estão fragorosamente ausentes em seu colega inglês. Bacon

escrevia com maior rigor intelectual que Montaigne. Era mais incisivo, mais filosófico e muito mais tedioso. Ao tratar de temas como a leitura ou as viagens, ele dava ordens. Isto é o que você deve ler, aquilo é o que se deve buscar numa viagem. Quando um tema comportava subdivisões, ele não se eximia de fazê-lo, anunciando os subtópicos antecipadamente para em seguida enveredar por cada um deles até chegar ao fim. Se há uma coisa de que podemos estar certos com Montaigne é que ele jamais faria algo assim. Uma vez tomada a iniciativa por Florio e Bacon, surgiram inúmeros livros ingleses com a palavra Ensaios no título. Alguns se inspiravam abertamente no Montaigne de Florio, outros, em Bacon, mas em quase todos os casos era em Montaigne que iam buscar seu estilo de pensar e escrever. Muito poucos ensaios ingleses posteriores ao início do século XVII podiam ser considerados investidas filosoficamente rigorosas por temas importantes; quase todos representavam devaneios agradáveis sobre nada em particular. Típicas dessa tendência eram as obras de William Cornwallis, que leu Florio numa das primeiras versões manuscritas e publicou sequências de Essayes em 1600, 1601, 1616 e 1617, explorando temas como “Do sono”, “Da insatisfação”, “Do fantástico”, “Das tabernas” e “Da observação e uso das coisas”. Mesmo aqueles que não faziam uso do título não raro escreviam de uma forma tipicamente digressiva e pessoal. Enquanto a literatura francesa tornava-se cada vez mais aprumada e formal, a Inglaterra produzia excêntricos como Robert Burton, que se referia ao próprio estilo, em seu vasto tratado Anatomia da melancolia, como capaz de correr “como um spaniel desembestado latindo a cada pássaro que vê”. Ainda mais estranho era Sir Thomas Browne, que

produziu investigações ensaísticas sobre a medicina, a jardinagem, os métodos de sepultamento, as bibliotecas imaginárias e muito mais, num retorcido estilo barroco tão diferente (mesmo do de Florio) que imediatamente reconhecemos uma frase de sua autoria. No auge dessa fase altamente estranha da recepção de Montaigne na Inglaterra, apareceu um novo tradutor para equilibrar um pouco as coisas: Charles Cotton, cuja nova versão foi publicada em 1685 e 1686, não muito depois de ter Os ensaios entrado para o Índex na França. Cotton era mais preciso que Florio e aproximou de Os ensaios uma nova geração de leitores ingleses. Surpreendentemente, o responsável por essa tradução mais contida tinha um temperamento mais instável e diletante que Florio. Cotton fez fama em sua época sobretudo como autor de poemas burlescos escatológicos. Ele certa vez referiu-se a si mesmo com um “bobalhão do norte”, tendo como ocupação preferida beber cerveja na taberna a noite inteira para em seguida recolher-se a sua biblioteca e Escrever epístolas libertinas e às vezes traduzir Velhas Histórias de Banheira, da Guyen[n]e e da Provença, E terçar armas com velhos espadachins da França. Após sua morte, a reputação póstuma de Charles Cotton passou por transformações tão estranhas quanto as de Montaigne ou Shakespeare, embora em menor escala. O século XIX considerava ofensivos seus versos cômicos, admirando-o por uma lírica poesia da natureza que seus contemporâneos haviam ignorado. Mais tarde, também ela seria esquecida. Cotton seria festejado por um capítulo sobre a pesca da truta que escreveu para O pescador

completo de Isaac Walton — por sua vez uma empreitada altamente montaigniana. Hoje, esta relíquia está praticamente esquecida — exceto entre os pescadores de trutas — e ele é lembrado sobretudo por sua tradução de Montaigne. A tradução de Cotton foi a referência durante mais de dois séculos, levando Montaigne a novas gerações de escritores menos barrocos, mais preocupados em apreender as realidades psicológicas da vida cotidiana do que em desfiar fios de fantasia. O poeta Alexander Pope anotou em seu exemplar da tradução de Cotton: “Este é (em minha Opinião) o melhor Livro de Informação sobre os Costumes até hoje escrito; Este Autor diz apenas o que cada um sente no Coração.” Um artigo publicado na revista literária Spectator louvava o hábito de Montaigne de introduzir experiências e qualidades pessoais no livro, prática que podia ser considerada autocomplacente, mas não deixava de entreter. Como observou o crítico francês Charles Dédéyan, os ingleses aceitavam de bom grado que um autor falasse de si mesmo, desde que o fizesse de maneira agradável. Dali para a frente, não faltariam ensaístas ingleses fazendo exatamente isso. Pertenciam todos ao que o crítico Walter Pater chamou de “a verdadeira família de Montaigne”: eles evidenciavam “essa intimidade, essa moderna subjetividade que pode ser considerada o elemento montaignesco na literatura”. Entre eles estava o popular ensaísta Leigh Hunt, que encheu seu exemplar de Os ensaios de sublinhados e anotações à margem — não raro das mais tolas. Quando Montaigne conta que viu um menino sem mãos mas capaz de carregar uma espada pesada e estalar o chicote tão bem quanto qualquer carroceiro da França, Hunt anota meticulosamente à

margem: “Com os braços, claro. Mas ainda assim é surpreendente.” Um admirador intelectualmente mais dotado era William Hazlitt, aquele mesmo que louvava Montaigne por não posar de filósofo. Sua opinião daquilo que constitui um bom ensaísta exemplifica o que os ingleses agora tendiam a buscar em Montaigne. Esses escritores, diz Hazlitt, colecionam curiosidades da vida humana exatamente como os entusiastas da história natural colecionam conchas, fósseis ou escaravelhos em seus passeios pela floresta ou à beira-mar. Apreendem as coisas como realmente são, e não como deveriam ser. Montaigne era o melhor de todos porque permitia que tudo fosse como era, inclusive ele próprio, e sabia como olhar as coisas. Para Hazlitt, um ensaio ideal faz anotações sobre nossos trajes, nosso ar, nossa aparência, nossos pensamentos, palavras e atos; mostra-nos o que somos e o que não somos; representa diante de nós todo o jogo da vida humana, e, fazendo-nos espectadores esclarecidos de suas cenas multicores, permite (se possível) que nos tornemos agentes passavelmente razoáveis naquela em que devemos desempenhar um papel. Em outras palavras, o ensaio é o gênero que — mais que qualquer romance ou biografia — nos ajuda a descobrir como viver. O filho de Hazlitt, também chamado William Hazlitt, editaria a tradução de Cotton juntamente com cartas de Montaigne, seu diário de viagem pela Itália e uma breve biografia, tudo isto reunido nas Obras completas em 1842. Esta haveria de tornar-se nos anos subsequentes a edição standard na Grã-Bretanha; ela seria mais uma vez revista

pelo seu filho em 1877. Assim foi que os dois Hazlitt marcaram o Montaigne inglês de maneira ainda mais duradoura que Florio. Esse novo Montaigne era apreciado sobretudo por essas virtudes hazlittianas: a atenção para os fatos da vida cotidiana, tal como se apresentavam, e a capacidade de escrever a respeito de maneira agradável, sem formalismos literários. Essa tradição teve prosseguimento entre o século XIX e o XX, e tudo indica que avançará pelo século XXI. Todas as épocas produziram novos montaignianos ingleses; a tradição continua hoje em dia através dos incontáveis ensaístas efêmeros e colunistas de fim de semana nos jornais, os quais, conscientemente ou não, mantêm vivo o “elemento montaignesco na literatura”. Dentre os herdeiros de Montaigne do outro lado do canal da Mancha, a última palavra deve ficar com um angloirlandês: Laurence Sterne, autor no século XVIII de Tristram Shandy. Seu grande romance, se assim pode ser classificado, é uma exagerada divagação montaignesca, com várias referências explícitas ao antecessor francês e cheia de brincadeiras, paradoxos e digressões. Dedicatórias e prólogos, que normalmente estariam no início, surgem por toda parte, na ordem errada. O “Prefácio do Autor” será encontrado no Volume 3, Capítulo 20. A certa altura, deparamos com uma página em branco, para que os leitores possam traçar o retrato de um personagem, de acordo com sua própria imaginação. Em outra página, temos uma série de diagramas lineares resumindo os padrões de digressão do livro até ali. O livro parece constantemente a ponto de se dissolver. O enredo que acaso tivesse sido prometido no início se evapora; as rupturas e desvios da narrativa tomam conta. “Pois não prometi ao mundo um capítulo sobre os laços?”,

reflete Sterne a certa altura; “dois capítulos sobre a extremidade certa e a errada de uma mulher? um capítulo sobre bigodes? um capítulo sobre desejos? — um capítulo dos narizes? — Não, o que fiz foi isto: — um capítulo sobre o recato do meu tio Toby: para não falar de um capítulo sobre os capítulos, que deverei concluir antes de me deitar.” É como se fosse um Montaigne em alta velocidade. Mas é claro, afirma Sterne, que nenhum relato que realmente preste atenção ao mundo tal como é poderia ser diferente. Ele não poderia ir direto do ponto de partida ao destino. A vida é complicada; não existe apenas um caminho a seguir. Poderia um historiador direcionar sua história como um tropeiro direciona sua mula — direto em frente?; — por exemplo, partindo de Roma em direção a Loretto, sem jamais voltar a cabeça para a direita ou para a esquerda?, — ele poderia arriscar-se a prognosticar uma hora antes o momento em que sua jornada chegaria ao fim; — mas a coisa é, moralmente falando, impossível: Pois, se ele é um homem minimamente dotado de espírito, terá cinquenta desvios de uma linha reta a observar. Como Montaigne em sua viagem pela Itália, Sterne não pode ser acusado de se desviar do caminho, pois seu caminho é feito de digressões. Sua rota está, por definição, em qualquer direção que ele venha a tomar. Tristram Shandy deu início a uma tradição irlandesa que chegaria a sua manifestação extrema com o Finnegans Wake de James Joyce, romance que se espraia por ramificações e fluxos de associação ao longo de centenas de páginas, até que, no fim, faz uma pirueta sobre si mesmo: a última frase inconclusa se engancha com a frase

inconclusa que dera início ao livro. O que pareceria arrumadinho demais para Sterne ou Montaigne, que evitavam conclusões muito claras. Para eles, escrever e viver eram duas coisas que deviam simplesmente fluir, ainda que isto significasse perder-se cada vez mais em digressões sem jamais chegar a uma conclusão. Sterne e Montaigne estão constantemente se envolvendo com um mundo que sempre gera mais coisas sobre as quais escrever — por que, então, parar? Isto faz deles filósofos acidentais, naturalistas numa pesquisa de campo da alma humana, sem mapas nem planos, sem ter a menor ideia sobre onde vão parar ou sobre o que poderão fazer quando lá chegarem. 1 Tradução em prosa de Carlos Alberto Nunes, editora Martin Claret. (N. do T.)

17. P. Como viver? R. Reflita sobre tudo; não se arrependa de nada JE NE REGRETTE RIEN

C

ertos escritores limitam-se a escrever seus livros. Outros parecem modelá-los na argila ou construí-los por acúmulo. James Joyce estava entre estes: seu Finnegans Wake evoluiu por uma série de esboços e edições, até que as sentenças perfeitamente normais da primeira versão — Quem foi o primeiro a explodir? transformaram-se em estranhos mutantes — Quiangque foi o primo que a arrombou?2 Montaigne não brincava com as palavras como Joyce, mas efetivamente agia por revisitação, elaboração e acréscimo. Embora retomasse constantemente o trabalho, raramente parecia sentir a necessidade de apagar alguma coisa — queria apenas adicionar sempre mais. A ideia do arrependimento lhe era estranha no ato de escrever, exatamente como na vida, na qual se mantinha firmemente ligado ao amor fati: a alegre aceitação do que quer que aconteça. Isto ia de encontro às doutrinas do cristianismo, que insistiam em que devemos estar constantemente nos arrependendo dos pecados passados, para manter o quadro limpo e ter a oportunidade de recomeçar. Montaigne sabia que certas coisas feitas no passado já não faziam sentido para ele, mas se limitava a presumir que era então uma

pessoa diferente, e ficava por isso mesmo. As anteriores manifestações do seu eu eram tão diversas quanto um grupo de pessoas numa festa. Assim como não lhe passaria pela cabeça julgar um grupo de conhecidos reunidos, tendo todos eles seus motivos e pontos de vista para explicar o que haviam feito, assim também ele não desejaria julgar anteriores versões de Montaigne. “Somos todos uma colcha de retalhos”, escreveu, “tão sem forma e tão diversa em sua composição que cada pedacinho, cada momento joga seu próprio jogo”. Não havia um ponto de vista genérico a partir do qual fosse possível olhar para trás e erigir o único Montaigne coerente que ele gostaria de ter sido. Como ele não tentava apagar da vida seus eus anteriores, tampouco haveria motivos para que o fizesse em seu livro. Os ensaios havia crescido junto com ele durante vinte anos; era o que era, e ele pretendia deixá-lo assim. Essa recusa do arrependimento não o impediu de reler o livro, contudo, frequentemente fazendo acréscimos. Ele jamais chegou ao momento em que poderia descansar a pena e anunciar: “Agora, eu, Montaigne, disse tudo que queria dizer. Pude preservar-me no papel.” Enquanto vivesse, teria de continuar escrevendo. O processo poderia ter continuado sem fim: Quem não terá percebido que tomei um caminho pelo qual seguirei, sem me deter nem me esforçar, enquanto houver tinta e papel neste mundo? A única coisa que o deteve no fim das contas foi a morte. Como escreveu Virginia Woolf, Os ensaios foi interrompido porque chegou “não ao seu fim, mas a uma suspensão em plena corrida”. Esse empenho continuado pode ter sido resultante em parte do estímulo dos editores. As primeiras edições

venderam tão bem que parecia evidente a existência de um mercado para novas edições, maiores e melhores. E Montaigne tinha muita coisa a acrescentar em 1588, depois do seu grande périplo e das experiências como prefeito. Ele escreveu ainda mais nos anos subsequentes, quando lhe devem ter ocorrido novas ideias, após as perturbadoras experiências na corte do rei refugiado: não necessariamente ideias relacionadas às questões da atualidade francesa, mas à moderação, ao critério, às imperfeições do mundo e muitos outros dentre seus temas favoritos. Na página de rosto da edição de 1588, publicada pela prestigiosa editora parisiense de Abel L’Angelier, e não por seu editor anterior em Bordeaux, a obra era apresentada como “ampliada por um terceiro livro e por seiscentos acréscimos aos dois primeiros”. O que está essencialmente correto, apesar de minimizar o real alcance dos acréscimos: Os ensaios de 1588 tinha quase o dobro do tamanho da versão de 1580. O Livro III adicionava 13 longos capítulos, e, quanto aos ensaios dos dois primeiros livros, praticamente nenhum ficava inalterado. O novo Montaigne de 1588, que chegou ao conhecimento do mundo no momento em que o verdadeiro Montaigne acompanhava Henrique III e planejava sua recuperação com a amiga recente Marie de Gournay na Picardia, impressionava pelo novo grau de confiança. Como convinha a alguém que rejeitava a ideia de desfazer os próprios pecados, ele não se mostrava arrependido do caráter digressivo e pessoal do livro. Nem hesitava em fazer exigências a qualquer um que entrasse em seu mundo. “É o leitor desatento que se perde no meu tema, e não eu”, escrevia agora, comentando a própria tendência a divagar. Para trás ficara qualquer pretensão de estar escrevendo para a família e os amigos: ele sabia do que dispunha e

zombava de qualquer ideia de diluição, ocultação ou simplificação para atender às convenções. Mas apesar disso uma forma mais íntima de hesitação autoral ainda se manifestava. Ele não podia lançar mão do livro sem mergulhar em confusão criativa. “De minha parte, não sou capaz de julgar o valor de qualquer outro livro com menos clareza do que o meu próprio; e situo Os ensaios ora embaixo, ora lá em cima, de maneira muito incoerente e incerta.” A cada vez que lia suas próprias palavras, ele era assaltado por essa combinação de sentimentos — sendo então tomado por novos pensamentos, de modo que lá vinha de novo a pena a escrever. Como devia esperar o editor, Os ensaios de 1588 encontrou um mercado ávido, embora certos leitores que haviam devorado a edição de 1580 como um compêndio de sabedoria estoica ficassem perplexos com o que encontravam agora. Vozes discordantes começaram a ser ouvidas. Montaigne acaso não se tornava um pouco digressivo demais, um pouco pessoal demais? Não nos estaria contando detalhes em excesso sobre seus hábitos cotidianos? Haveria afinal alguma relação entre os títulos de seus  capítulos e o material que continham? Seriam realmente necessárias as revelações sobre sua vida sexual? E não teria ele perdido, como sugerira seu amigo Pasquier no encontro em Blois, o domínio da própria língua? Será que se dava conta de que seu texto estava cheio de palavras estranhas, neologismos e gasconismos coloquiais? Quaisquer que fossem as incertezas de Montaigne, nada disso o afetava muito. Se essas críticas o levavam a rever alguma coisa, era em geral para tornar o texto ainda mais digressivo, pessoal e exuberante do ponto de vista estilístico. Nos quatro anos de vida que ainda lhe restariam após a publicação da edição de 1588 de Os ensaios, ele

seguiu na mesma direção, acrescentando folha após folha, dobra após dobra. Tendo-se espalhado livremente na edição de 1588, ele agora galopava à rédea solta. Não mais acrescentou capítulos, mas inseriu cerca de mil novas passagens, algumas delas tão extensas que poderiam ter constituído um ensaio inteiro na primeira edição. O livro, que já tinha quase o dobro do tamanho original, era acrescido de mais um terço. Ainda assim, Montaigne achava que podia apenas insinuar algumas coisas, não dispondo de tempo nem de inclinação para discuti-las a fundo. “Para incluir mais coisas, vou acumulando apenas o cabeçalho dos temas. Se tivesse de escrever mais sobre suas consequências, haveria de multiplicar muitas vezes este volume.” Como dissera a respeito de Plutarco, “ele se limita a apontar com o dedo para onde devemos seguir, se quisermos”. A única regra é a verdade, e o único caminho, a digressão. Na folha de rosto de um dos exemplares nos quais trabalhava, Montaigne escreveu em latim “viresque acquirit eundo”, uma citação de Virgílio: “Ganha força à medida que avança.” Podia ser uma referência ao êxito comercial do livro, ou, mais provavelmente, uma descrição da maneira como recolhia material como uma bola de neve descendo a encosta. Até mesmo Montaigne aparentemente temia estar perdendo o controle da obra. Ao dar ao amigo Antoine Loisel um exemplar da edição de 1588, ele pediu-lhe na dedicatória que lhe dissesse o que pensava a respeito — “pois temo estar piorando à medida que avanço”. É bem verdade que Os ensaios começavam a chegar ao limite da compreensão. Podemos às vezes discernir o esqueleto da primeira edição através desse emaranhado, especialmente nas edições modernas que identificam com pequenas letras as três etapas: A para se referir à edição de

1580, B para a de 1588 e C para tudo que viria depois. O efeito pode se parecer com o vislumbre dos contornos de um templo de pedra khmer em meio a uma massa de folhagens tropicais. Ficamos nos perguntando como seria uma eventual camada “D”. Se Montaigne tivesse vivido mais trinta anos, será que teria continuado a adicionar textos ao livro até que se tornasse praticamente impossível de ler, como o pintor da Obra-prima desconhecida, de Balzac, que transforma seu quadro numa verdadeira bagunça negra sem significado claro? Ou teria sabido exatamente quando parar? Não temos como responder, mas há indicações de que, ao morrer, ele não achava que esse limite tivesse chegado. Seus derradeiros anos de trabalho resultaram em pelo menos mais um exemplar densamente anotado, que viria a se tornar — depois de passar pelas mãos de seu editor póstumo — o alicerce de praticamente todos os posteriores Os ensaios de Montaigne. Esse editor era ninguém menos que aquela exótica jovem que entrara em sua vida em Paris no momento em que ele concluía a edição de 1588: Marie de Gournay. 2 Tradução de Augusto e Haroldo de Campos, editora Perspectiva (N. do T.)

18. P. Como viver? R. Abra mão do controle FILHA E DISCÍPULA

M

arie Le Jars de Gournay, a primeira grande editora e divulgadora de Montaigne — como São Paulo para Jesus, ou Lênin para Marx —, era uma mulher extremamente entusiástica e emotiva, o que ela não deixou de evidenciar desinibidamente para Montaigne no primeiro encontro que eles tiveram em Paris. Ela se tornaria de longe a mulher mais importante da sua vida, mais até que sua mulher, sua mãe e sua filha, a formidável trinca do lar de Montaigne. Como elas, sobreviveria a ele — o que não surpreende, em seu caso, sabendo-se que tinha 32 anos menos que ele. Os dois se conheceram quando Montaigne tinha 55 e ela, 23. A vida de Marie de Gournay começou, em 1565, com muitas semelhanças com a de Montaigne e duas diferenças cruciais: ela era mulher e tinha menos dinheiro. Sua família de nobres provincianos vivia parte do tempo em Paris e parte no castelo e propriedade de Gournay-sur-Aronde, na Picardia, comprados pelo pai em 1568. Na idade adulta, Marie adotou como sobrenome o nome da propriedade. Esse direito costumava ser reservado aos filhos do sexo masculino, mas já era bem característico dela que ignorasse a regra. Ela sempre se mostraria decidida a exigir mais da vida do que lhe parecia reservado pelo sexo e a posição social. Em 1577, seu pai morreu. Foi um sério golpe para ela e um verdadeiro desastre para a família. Sem os rendimentos

e a gestão assegurados por ele, a vida de todos eles desmoronou. Morar em Paris era ainda mais dispendioso que na Picardia, de modo que a família abriu mão quase completamente da vida na cidade. Em 1580, Marie estava confinada a um universo provinciano. Ele não lhe convinha muito, mas — já agora uma teimosa adolescente — ela fez o que estava ao seu alcance para se educar, usando os livros da biblioteca da família. Lendo obras latinas paralelamente às respectivas traduções francesas, proporcionou a si mesma a melhor formação clássica possível. O resultado disso foi um conhecimento desigual, assistemático, mas de profunda motivação. Montaigne poderia ter aprovado uma educação tão anárquica — teoricamente. Na prática, não podemos imaginá-lo satisfeito com o que estava ao alcance de Marie de Gournay, e que também haveria de deixá-lo menos confiante em si mesmo. Montaigne podia mostrar-se despreocupado a respeito da questão do aprendizado e sardônico quanto à admiração do pai pelos livros. Gournay se orgulhava de suas conquistas porque tivera de lutar por elas, e era muito fácil deixá-la na defensiva. Muitas vezes ela achava que era alvo de zombaria. Sim, dizia, claro que as pessoas achavam engraçado conhecer uma mulher se passando por culta sem escolarização formal, pois sozinha aprendera mecanicamente o latim, cotejando traduções com os originais, e por isso não ousava falar a língua, por medo de dar um passo em falso — uma mulher cultivada que não é capaz de garantir inequivocamente a métrica de um verso latino; uma mulher cultivada sem saber grego, hebraico, sem a capacidade de fazer comentários eruditos sobre os autores.

Por toda a vida Gournay haveria de mostrar-se indignada e insatisfeita. Em sua Peinture de moeurs, um autorretrato em versos, ela se apresentava como um emaranhado de intelecto e emoção, incapaz de ocultar seus sentimentos — o que transparece em seus escritos. A mesma combinação aparece no que ela nos relata sobre seus primeiros encontros com Montaigne, inicialmente por escrito e depois em pessoa. Nos últimos anos da adolescência, aparentemente por acaso, ela deu com uma edição de Os ensaios. A experiência a abalou tanto que sua mãe pensou que ela perdera a razão, e já estava a ponto de lhe administrar heléboro, um tratamento tradicional para loucura — ou pelo menos é o que afirma Gournay, talvez exagerando um pouco para maior efeito. Gournay sentia ter encontrado o seu outro eu em Montaigne, a única pessoa com a qual tinha verdadeira afinidade e a única que a entendia. Era a mesma experiência que tiveram tantos leitores de Montaigne ao longo dos anos: Como é que ele sabia tudo isso a meu respeito? (Bernard Levin) Parece que ele é o meu próprio eu. (André Gide) Eis aqui um “você” no qual se reflete o meu “eu”; eis onde se abole toda distância. (Stefan Zweig) Gournay ansiava por conhecer Montaigne pessoalmente, mas, ao tentar se informar, recebeu de volta o boato de que ele estava morto. Alguns anos depois, em 1588, encontrando-se em Paris com a mãe, ficou sabendo que ele ainda vivia. E não só isto, mas todo mundo falava dele, pois era o momento de sua missão secreta entre Navarra e o rei. No auge desse drama, Marie de Gournay ousou enviar a

Montaigne um convite para visitar sua família: um gesto nada ortodoxo para uma jovem de sua posição, dirigindo-se a um homem mais velho e de classe hierarquicamente superior, de quem todo mundo falava na ocasião. Certamente encantado com tanta audácia, e, como sempre, incapaz de resistir à lisonja de uma jovem, Montaigne aceitou o convite e foi ao seu encontro no dia seguinte. Pelo relato de Marie de Gournay, o encontro deve ter tido um caráter de intimidade emocional, embora não provavelmente física, pois ao fim ele propôs muito castamente que ela se tornasse sua filha adotiva — oferta que ela não hesitou em agarrar. Ela não diz mais nada, de modo que só podemos imaginar a conversa que levou a isto. Teria ela demonstrado excessivo entusiasmo quanto a um sentimento de “afinidade” com ele? Teria contado a história do heléboro? Seria bem de acordo com seu temperamento que ela derramasse tudo sobre ele numa torrente desconexa. Num acréscimo tardio a Os ensaios, Montaigne relata um estranho episódio que aparentemente ocorreu num dos encontros posteriores entre os dois. Ele viu uma jovem — e os comentários acrescentados deixam claro que se tratava de Gournay —, preocupada em demonstrar o ardor de suas promessas, e também sua lealdade, ferir-se, com o estilete que trazia nos cabelos, quatro ou cinco vezes com vigorosos golpes no braço, o que rasgou sua pele e a fez sangrar bastante. Fosse ou não o primeiro encontro marcado por essa intensidade que chega à automutilação, cabe ao menos suspeitar que foi Marie de Gournay quem efetivamente tenha conduzido a conversa. A proposta de um relacionamento do tipo pai-filha partiu mais provavelmente

dela que dele. É possível até que ele tenha tentado tirar vantagem, sexualmente, do entusiasmo da moça, sendo então convencido a aceitar afinal a relação adotiva. Desde o início da leitura de Os ensaios, Gournay sentira que os dois pertenciam espiritualmente à mesma família; pois agora a coisa se tornava oficial. Montaigne substituiria o pai que ela havia perdido, e ela por sua vez seria bem-recebida no pequeno círculo de mulheres que ele não entendia direito. Ainda que ele tenha concordado em fazer o papel do père d’alliance só para agradá-la, o fato é que não tratou de descartá-la em seguida. O convite de Marie para que se hospedasse com ela e sua mãe no interior da Picardia representava para ele uma excelente oportunidade de se recuperar da doença, distante das exigências políticas parisienses e de qualquer probabilidade de ser novamente detido. Também lhe dava oportunidade de trabalhar. Ele e a nova filha abraçaram quase imediatamente a tarefa de proceder a revisões na edição de 1588 de Os ensaios. O que a deve ter deixado empolgada: sua fantasia nunca foi envolver Montaigne numa manta e cuidar dele tranquilamente na velhice. Ela queria que ele escrevesse, para poder ser sua aprendiz. E sua presença provavelmente contribuiu para que isto acontecesse: o fato de ter ao lado alguém tão entusiástico estimularia Montaigne a retornar a Os ensaios quase imediatamente depois da publicação, dando prosseguimento à tarefa mesmo depois de deixar a Picardia. Estava assim dado o tom para seus últimos anos de trabalho. Em troca, Marie de Gournay jamais poderia ser acusada de minimizar sua alliance. Ao escrever o prefácio da edição póstuma de Os ensaios, ela assinou como filha adotiva de Montaigne, referindo-se a ele como o homem “que tanto me honra chamar de Pai”. E acrescentava: “Não posso, Leitor,

usar outro nome para ele, pois não sou eu mesma senão na medida em que sou sua filha.” Em outra obra de sua própria lavra, ela escreveu: Na verdade, se a alguém surpreende que, embora não sejamos pai e filha senão no nome, a boa vontade que nos une transcenda na verdade a de autênticos pais e filhos — o primeiro e mais íntimo de todos os vínculos naturais —, que essa pessoa tente um dia acolher a virtude dentro de si e ir ao encontro dela em um outro alguém; e então dificilmente se espantará que ela tenha mais força e poder de harmonizar as almas que a própria natureza. Resta imaginar o que a verdadeira filha de Montaigne, Léonor, pensava dessa pretensão de transcender os vínculos biológicos de família. Ela estaria no direito de se sentir incomodada, mas aparentemente não foi o que aconteceu. Ela e Marie de Gournay viriam a se tornar boas amigas anos depois, e Gournay a chamava de “irmã”, como seria de se esperar, já que tinham o mesmo pai. Quando Marie de Gournay falava de “transcender”, provavelmente pensava na intensidade de sua comunhão com Montaigne, e não em tratar uma rival com desdém. A única pessoa com quem aparentemente se sentia competindo era La Boétie, havia muito morto, com o qual não hesitava em se comparar. Sua dedicatória terminava com uma citação de um verso de La Boétie: “E não temo que nossos descendentes relutem em arrolar nossos nomes entre os que ficaram conhecidos pela amizade, se pelo menos as deusas do destino assim quiserem.” E no prefácio de Os ensaios ela escreveu: “Ele foi meu por apenas quatro anos, não mais do que foi seu La Boétie.”

O mesmo trecho também contém uma observação estranha e talvez reveladora sobre Montaigne: “Quando ele me elogiava, eu o possuía.” E com toda a evidência ele a elogiava. A edição de Os ensaios preparada por ela inclui algumas linhas nas quais Montaigne se refere a ela como sua querida fille d’alliance, por ele amada com mais do que um amor paterno (o que quer que isto signifique) e valorizada em seu retiro como parte do seu próprio ser. Prossegue ele: Ela é a única pessoa em quem ainda penso neste mundo. Se a promessa da juventude tem algum significado, sua alma será capaz um dia das melhores coisas, entre outras coisas perfeitas nesse tipo mais sagrado de amizade que, segundo lemos, seu sexo ainda não foi capaz de alcançar. A sinceridade e a firmeza de seu caráter já são suficientes, e sua afeição, muito mais que superabundante, é de tal ordem, em suma, que nada deixa a desejar, a não ser que sua apreensão quanto ao meu fim, tendo em vista meus cinquenta e cinco anos quando a conheci, não a atormente de maneira tão cruel. Finalmente, ele fala calorosamente de sua ponderada avaliação de Os ensaios — “ela, uma mulher, e nesta idade, tão jovem, e sozinha em seu distrito” — e da “notável avidez com que me amava e queria minha amizade”. Essas frases caíram sob suspeita ao longo dos anos, pois aparecem apenas na edição de Gournay, e não na versão alternativa e com anotações pessoais do último Os ensaios de Montaigne, conhecida como “Exemplar de Bordeaux”. É natural que se imagine que ela poderia tê-las inventado. O tom parece mais Gournay que Montaigne, e, curiosamente, ela própria apagou trechos dessa passagem numa edição

posterior. Por outro lado, o Exemplar de Bordeaux contém traços de adesivo no local onde ocorrem essas linhas, juntamente com uma pequena cruz manuscrita por Montaigne — o símbolo de que costumava se valer para indicar uma inserção. Uma tira colada pode ter caído numa das ocasiões em que o exemplar foi reencadernado nos séculos XVII e XVIII. Seja autêntico ou não o trecho, não parece haver motivos para duvidar da afeição de Montaigne pela discípula, com estiletes, heléboros e tudo mais. Passado o primeiro ano, todavia, e vindo o aumento do trabalho na Picardia, os dois mantiveram contato apenas por carta. Em abril de 1593, Gournay disse a outro amigo literário, Justus Lipsius, que havia quase cinco anos não se encontrava com Montaigne. Mas eles se correspondiam regularmente, pois na época dessa carta a Lipsius ela se dizia preocupada porque Montaigne não escrevia havia seis meses. E tinha mesmo motivos para se preocupar: Montaigne morrera nesse intervalo, e uma derradeira mensagem a ela enviada através de um dos seus irmãos não chegara ao destino. Lipsius teve de dar-lhe a notícia em sua resposta. Tratou de fazê-lo delicadamente, acrescentando: “Como aquele a quem chamava de seu pai não mais está neste mundo, aceite-me como seu irmão.” Chocada, ela respondeu: “Meu senhor, assim como há quem não reconheça hoje meu rosto, temo que não reconheça meu estilo, tão radicalmente me mudou a perda do meu pai. Eu era sua filha, e sou seu túmulo; era seu segundo ser, sou suas cinzas.” A essa altura, ela também vivia tempos difíceis sob outros aspectos. Sua mãe morreu em 1591 e Marie herdou grandes dívidas da família, além da responsabilidade pelos irmãos menores. Decidida a não aceitar um casamento sem amor, por dinheiro, empenhou-se em viver exclusivamente do que

escrevia — uma opção difícil e quase inédita para uma mulher. Pelo resto da vida, escreveria sobre qualquer tema que considerasse vendável — análises de poemas e estilo, feminismo, polêmicas religiosas, a história de sua vida —, valendo-se de todos os contatos literários a que pudesse recorrer. Justus Lipsius foi um dos escritores para os quais se voltou em busca de ajuda para promover seu trabalho. Mas nenhum deles seria mais importante que o mentor ao qual seu nome estaria sempre ligado: Montaigne. O hábil uso da reputação dele permitiu-lhe um primeiro passo importante em 1594, quando publicou um romance intitulado Le Proumenoir de Monsieur de Montaigne (O passeio do Sr. de Montaigne). O conteúdo nada tinha a ver com ele, à parte o fato de — como escreveu ela na epístola dedicatória — ter sido inspirado por uma história que ela lhe havia contado certo dia, quando caminhavam pelo jardim de sua família. Na verdade, a exótica narrativa do Proumenoir foi praticamente toda roubada do livro de outro autor. Teve grande sucesso, abrindo caminho para o livro que efetivamente deu início à carreira de Gournay: sua grande e definitiva edição de Os ensaios, publicada em 1595. A ideia de transformá-la em editora e executora literária de Montaigne aparentemente surgiu apenas após sua morte, quando a viúva e a filha encontraram entre os papéis dele um dos seus exemplares anotados da edição de 1588. Enviaram-no então a Gournay em Paris, para publicação. Talvez quisessem apenas que ela o encaminhasse a uma gráfica, mas ela interpretou a coisa como uma importante encomenda editorial, pondo mãos à obra. A tarefa haveria de se revelar gigantesca, tão árdua que continua intimidando editores mais experientes e bem-preparados que ela. Ainda hoje, ninguém chega a uma conclusão a

respeito, tantas são as variantes, tão complexo é o texto e tão grande é o trabalho de identificar todas as referências e alusões de Montaigne. Mas o fato é que Gournay realizou o trabalho de maneira brilhante. Talvez tenha cedido a uma tentação ao acrescentar aquelas estranhas linhas a seu próprio respeito, ou quem sabe eram realmente autênticas, mas globalmente ela se mostrou mais preocupada com a precisão que a maioria dos editores da época. Exemplares ainda hoje existentes da primeira impressão do livro mostram que ela continuou fazendo correções de última hora a tinta quando as páginas já saíam da gráfica, assim como depois da publicação — numa clara indicação do seu cuidado. A partir de então, ela seria menos uma filha de Montaigne que uma mãe adotiva de seu Os ensaios. “Tendo perdido o pai”, escreveu, “Os ensaios precisa de proteção”. Ela editou o livro mas também se tornou sua divulgadora, defendendoo, promovendo-o e — nessa primeira edição — dotando-o de um longo e combativo prefácio empenhado em rebater antecipadamente qualquer pretensão de crítica. Seus argumentos eram quase sempre racionais e bemestruturados, mas ela os temperava com muita emoção. Frente aos que consideravam vulgar ou impuro o estilo de Montaigne, ela escrevia: “Quando o defendo dessas acusações, sou toda desprezo.” E no caso da alegação de que ele escrevia desorganizadamente: “Não se pode tratar de grandes questões com inteligência pequena (...) Não temos aqui o conhecimento elementar de um aprendiz, mas o Corão dos mestres, a quintessência da filosofia.” E tampouco se mostrava ela satisfeita quando as pessoas elogiavam Os ensaios sem muita convicção. “Quem quer que diga de Cipião que é um capitão nobre e de Sócrates que é um homem sábio lhes estará fazendo mais injustiça

que alguém que nada diz deles.” Não se pode escrever em tom moderado sobre Montaigne: “A excelência supera todo limite.” (O que contradiz a ideia de moderação expressa por Montaigne.) Temos de nos deixar “arrebatar”, como aconteceu com ela. Por outro lado, devemos ser capazes de explicar por que fomos arrebatados, comparando-o ponto a ponto com os antigos e mostrando exatamente em que se equipara a eles e onde se mostra superior. Os ensaios sempre representou para Gournay o teste ideal de inteligência. Depois de perguntar a alguém o que achava do livro, ela deduzia o que podia pensar da pessoa. Diderot faria num século posterior observação quase idêntica a respeito de Montaigne: “Seu livro é a pedra de toque de uma mente equilibrada. Se alguém não é capaz de apreciálo, podemos estar certos de que tem alguma deficiência do coração ou do entendimento.” Mas Marie de Gournay tinha o direito de esperar muito dos leitores, pois ela própria era uma excelente leitora de Montaigne. Apesar dos seus excessos, tinha uma fina percepção dos motivos pelos quais Os ensaios se encaixava perfeitamente entre os clássicos. Numa época em que muitos insistiam em considerar o livro apenas uma coleção de ditos estoicos — uma interpretação válida, dentro dos seus limites —, ela o admirava por razões menos habituais: o estilo, a estrutura errante, a disposição de tudo revelar. Foi em certa medida o sentimento, em Gournay, de que as pessoas ao seu redor não estavam entendendo nada que acabou gerando o perene mito de um Montaigne que nascera na época errada, um escritor que teve de esperar para ver o seu valor reconhecido pelos leitores. De um autor que se tornara muito popular sem praticamente se esforçar para isso, ela transformou Montaigne num gênio incompreendido.

Gournay reconhecia de bom grado estar à sombra de Montaigne: “Não consigo dar um passo, seja escrevendo ou falando, sem me ver seguindo suas pegadas.” Na realidade, sua personalidade transparece com toda a força, não raro de maneiras conflitantes com as dele. Ao exaltar, por exemplo, uma virtude montaigniana como a moderação, ela o faz sem a menor moderação. Preconizando a arte do distanciamento estoico e da tranquila fluidez na vida, recorre a um tom emocional e abrasivo. Isto faz da sua edição uma fascinante luta corporal entre dois escritores, exatamente como acontece entre Montaigne e Florio e mesmo entre Montaigne e La Boétie, nos primeiros projetos de conversa que viriam a se transformar em Os ensaios. Sob muitos aspectos, era esta uma parceria literária do mesmo tipo, só que muito complicada pelo fato de Marie de Gournay ser uma mulher. Incomodava-a o fato de sua parceria nunca ter sido levada tão a sério quanto outras relações dessa natureza — como tampouco ela era levada muito a sério. O ridículo a acompanhou ao longo de toda a vida; ela nunca conseguiu livrar-se dele. Em vez disso, se enfurecia. Parte dessa fúria encontra expressão no Prefácio de Os ensaios: em certos momentos, a autora parece saltar das páginas para agarrar pela gola os leitores do sexo masculino e invectivá-los. “Abençoado és de fato, Leitor, se não pertences a um sexo ao qual está vedada toda posse, ao qual está vedada a liberdade, ao qual foram vedadas todas as virtudes.” Os homens mais presunçosos são ouvidos com respeito, em virtude de sua barba, mas quando ela oferece alguma contribuição todos sorriem de maneira condescendente, como se dissessem: “É uma mulher falando.” Se Montaigne tivesse sido submetido a semelhante tratamento, também poderia ter reagido com um sorriso, mas Gournay não tinha esse dom. Quanto mais

ela dava vazão a sua indignação, mais as pessoas riam. Mas é essa impressão de tensão e angústia que a torna uma escritora interessante. O Prefácio não é apenas a mais antiga introdução dada a público da obra canônica de Montaigne; é também um dos primeiros e mais eloquentes panfletos feministas do mundo. Isto pode parecer estranho, tratando-se de um texto de introdução a Montaigne, que não era lá nenhum grande feminista. Mas o fato é que o feminismo de Gournay estava estreitamente associado ao seu próprio “montaignismo”. Sua convicção de que homens e mulheres eram iguais — sem superioridade de parte a parte, apesar das diferenças de experiência e situação — estava afinada com o relativismo dele. Ela se inspirou na tendência de Montaigne a questionar o senso comum social e saltar daqui para ali entre os diferentes pontos de vista. Para Gournay, se os homens pudessem valer-se da imaginação para ver o mundo tal como o enxergam as mulheres, ainda que por alguns minutos, aprenderiam o suficiente para mudar para sempre o seu comportamento. Mas essa mudança de perspectiva era precisamente aquilo de que eles nunca se mostravam capazes. Pouco depois da publicação, infelizmente, Gournay mudou de ideia a respeito de seu cáustico Prefácio. A essa altura, ela estava hospedada na propriedade de Montaigne, convidada pela viúva, pela mãe e a filha do escritor, que aparentemente a haviam adotado por amizade, lealdade ou simpatia. Da residência delas, ela escreveu a Justus Lipsius em 2 de maio de 1596, dizendo que só escrevera o Prefácio por causa da enorme dor provocada pela morte de Montaigne, e que desejava retirá-lo. O tom excessivo nele adotado, dizia ela agora, resultava de “uma violenta febre da alma”. Pouco depois, enviando exemplares a editores de

Basileia, Estrasburgo e Antuérpia, ela eliminou o Prefácio, substituindo-o por uma nota breve e perfeitamente indiferente de apenas dez linhas. O original ficou no fundo da gaveta de Gournay, reaparecendo alguns de seus trechos em forma diferente numa edição de 1599 do Proumenoir. Mais tarde ainda, ela se arrependeu completamente daquele arrependimento, quem sabe imbuída de um tardio senso montaignesco de desafio: as últimas edições de Os ensaios publicadas em sua vida restabelecem o Prefácio em toda a glória de seus excessos. Todas essas sucessivas edições de Os ensaios, juntamente com uma série de obras de menor importância e não raro mais polêmicas, ajudaram Gournay a atravessar seus anos mais avançados. Mal ou bem, ela fez exatamente o que pretendia: viveu da sua pena. Havia agora retornado a Paris, vivendo num simples sótão com uma criada fiel, Nicole Jamyn. Eventualmente promovia um salon e estabeleceu laços de amizade com alguns dos homens mais interessantes da época, entre eles libertins como François le Poulchre de la Motte-Messemé e François de La Mothe Le Vayer. Muitos suspeitavam que ela própria fosse uma libertine e livre-pensadora em matéria religiosa. Em seu texto autobiográfico Peincture de moeurs, ela de fato escreveu que carecia da profunda fé que gostaria de ter, insinuando, talvez, que fosse completamente descrente. Os livros de Gournay vendiam bem, mas a publicidade que favorecia essas vendas não raro assumia a forma de escândalo ou zombaria em público. Tais reações nunca se voltavam para Os ensaios, pelo menos não enquanto ela ainda estava viva, nem mesmo para seus vários textos feministas. Basicamente, ela era ridicularizada por seu estilo de vida fora do comum ou por suas obras polêmicas e menos importantes. Vez por outra, conseguia algum

relutante respeito. Em 1634, foi ela uma das fundadoras da influente Académie française, mas sobre esse feito projetase a sombra de duas grandes ironias. Uma delas é o fato de, sendo mulher, nunca ter podido participar das reuniões da instituição. A outra é que a Académie esteve associada durante séculos precisamente ao estilo árido e perfeccionista detestado por Gournay. A instituição se eximia de qualquer identificação tanto com as ideias sobre linguagem literária por ela nutridas quanto com seu amado Montaigne. Gournay morreu em 13 de julho de 1645, pouco antes de completar 80 anos. O epitáfio em sua sepultura a descrevia exatamente como seria do seu gosto: uma escritora independente, filha de Montaigne. Como no caso dele, sua reputação póstuma seria distorcida em formas as mais estranhas com as mudanças de pensamento e moda. O estilo exuberante de que ela gostava caiu em desgraça por muito tempo. No século XVIII, escreveria um observador: “Nada poderá equiparar-se ao louvor que ela mereceu em vida, mas já não podemos fazer-lhe esse elogio, e quaisquer que tenham sido seus méritos como pessoa, suas obras não são mais lidas por ninguém, tendo caído num esquecimento do qual jamais voltarão a sair.” A única coisa que continuava vendendo bem era sua edição de Montaigne. Mas isto por sua vez gerava inveja e ciúmes, e os séculos XVIII e XIX começaram a vê-la como uma parasita de Montaigne. Essa interpretação tinha algo de verdadeiro, pois ela de fato valeu-se de Montaigne para sobreviver, mas ignorava que em grande medida ela também o havia promovido e defendido. A absoluta intensidade dessa devoção podia causar suspeitas. No século XX, um editor de Montaigne, Maurice Rat, ainda se referia a ela como “uma solteirona grisalha (...) que

cometeu o erro de viver demais” e cuja “atitude agressiva ou irascível” revelou-se mais prejudicial que benéfica. Até o ponderado estudioso Pierre Villey, que geralmente a defendia, não resistia às vezes a fazer graça, rejeitando sua tentativa de comparar a própria amizade com Montaigne à que o ligava a La Boétie. De maneira geral, a amizade Gournay/Montaigne continuaria sendo julgada por critérios diferentes dos que eram aplicados à amizade Montaigne/La Boétie. Esta última é louvada, desconstruída, teorizada, analisada, erotizada e psicanalisada nos mínimos detalhes. Já a “adoção” de Gournay há muito é tratada com pouco mais que um daqueles sorrisos condescendentes que tanto a irritavam. Nos últimos anos, muita coisa mudou, sobretudo com a ascensão do feminismo, que identifica nela uma pioneira. Seu primeiro grande defensor nos tempos modernos foi um homem, Mario Schiff, que escreveu um estudo biográfico em 1910 e publicou novas edições de suas obras feministas. Desde então, o caminho tem sido sempre ascendente. Marjorie Henry Ilsley concluía sua biografia A Daughter of the Renaissance (Uma filha do Renascimento), de 1963, com um capítulo intitulado “A fortuna em ascensão de Marie de Gournay”; desde então, ela tem subido cada vez mais alto, com a publicação regular de novas biografias e edições críticas, além de ficcionalizações de sua vida. Ainda mais recentemente, mudou também a atitude em relação a sua edição de 1595 de Os ensaios — que caiu em desuso por aproximadamente cem anos, depois de três séculos de domínio incontestado. Após ir ao fundo do poço no século XX, sendo lembrada apenas em algumas notas de rodapé, ela voltou à crista da onda, parecendo oferecer a mesma formidável capacidade de resistência da própria Marie de Gournay.

GUERRAS EDITORIAIS

A rejeição da edição de Gournay tornou-se mais acentuada no exato momento em que sua reputação geral começou a se recuperar. Esse estranho fato tem uma explicação simples. Até então, seu texto não tinha concorrência; não vinha ao caso o que os leitores pensavam da sua personalidade. No fim do século XVIII, contudo, apareceu um texto diferente nos arquivos de Bordeaux: um exemplar da edição de 1588, com cerrada anotação manuscrita do próprio Montaigne e também de secretários e assistentes, entre eles a própria Marie de Gournay. Esse “Exemplar de Bordeaux”, como ficaria conhecido, não atrairia muita atenção até o fim do século XIX, quando os estudiosos começaram a desenvolver o gosto pela análise minuciosa de textos dessa natureza. Ficava evidente então que o Exemplar de Bordeaux e a edição de Gournay de 1595 eram semelhantes grosso modo, mas não nos detalhes. Constatavam-se milhares de diferenças, espalhadas por todo o livro. Destas, cerca de uma centena era de natureza a modificar o sentido, ao passo que algumas poucas eram consideráveis, entre elas o trecho louvando a própria Marie de Gournay. Na verdade, todas as diferenças eram igualmente importantes, pois indicavam que no fim das contas Gournay não fora uma editora tão cuidadosa assim. Mostrara-se na melhor das hipóteses incompetente, e, na pior, fraudulenta. Esta conclusão levou a uma reação anti-Gournay, seguida de uma série de guerras editoriais que se prolongaram pelo início do século XX, tendo sido retomadas hoje, depois de uma trégua. A batalha seguia as regras da guerra clássica, centrada no cerco às praças fortes mais importantes e no acesso aos suprimentos. Exércitos de copistas e editores rivais

atacavam o Exemplar de Bordeaux, trabalhando mais ou menos simultaneamente, espionando uns aos outros e fazendo o possível para impedir o acesso dos concorrentes ao precioso objeto. Cada qual inventava uma técnica própria para a leitura da tinta apagada e para a representação dos diferentes níveis de acréscimos e ampliações, assim como das diferentes mãos. Alguns ficavam tão atolados na metodologia que não conseguiam avançar. Um dos primeiros copistas, Albert Caignieul, escreveu a seus chefes na Biblioteca de Bordeaux explicando por que demorava tanto para produzir algo: A separação das diferentes etapas foi efetuada pela observação e análise de fatos materiais claros (...) Consideramos que essa separação era devidamente efetuada quando se cumpriam duas condições: 1. levar em conta todos os elementos fornecidos pela análise. 2. levar em conta apenas esses elementos. Os resultados demonstraram a eficácia do método (...) Alguns anos depois, frente a nova cobrança — já que ainda não havia o menor sinal de uma transcrição completa —, ele recorreu a nova tática: Tudo que ainda resta fazer já está basicamente preparado e poderá ser concluído em período relativamente breve, o qual, no entanto, seria difícil definir, em vista de problemas especiais que se manifestam repentina e frequentemente. O projeto Caignieul não deu em nada, mas outros chegaram a melhores resultados. No início da década de 1900, três versões diferentes estavam em andamento, uma delas uma “Edição Fototípica” que se limitava a reproduzir

os volumes em fac-símile. As duas outras eram a Edição Municipal, dirigida pelo pretensioso erudito Fortunat Strowski, e a Edição Tipográfica, dirigida pelo não menos dogmático e difícil Arthur-Antoine Armaingaud. Os dois se revezavam na ultrapassagem um do outro, como dois cavalos de corrida muito lentos numa pista longa. Strowski venceu a primeira etapa, publicando seus dois primeiros volumes em 1906 e 1909. Jactou-se então de que nenhuma outra edição seria necessária, convencendo o arquivo de Bordeaux a impor a Armaingaud difíceis condições de trabalho, entre elas temperaturas ambientes de congelar os dedos e a exigência de que todas as páginas fossem lidas através de espessos vidros verdes ou vermelhos, para protegê-las da luz. Armaingaud foi em frente; seu primeiro volume foi publicado em 1912 — embora ele lhe atribuísse a data falsa de 1906, para mandar para a posteridade a mensagem de que viera a lume ao mesmo tempo que o de Strowski. O jogo teve prosseguimento. Durante algum tempo, Armaingaud tomou a frente, mas seus volumes subsequentes ficaram emperrados. Ele também se isolou, com sua tendência a promover opiniões incomuns a respeito de Montaigne, notadamente a ideia de que ele seria o verdadeiro autor de Da servidão voluntária. Tal como Marie de Gournay antes e muitos teóricos literários depois dele, Armaingaud gostava de imaginar que Montaigne comportava níveis secretos de significado, aos quais só ele teria acesso. No sarcástico comentário de um de seus inimigos, “só ele o conhece em profundidade, só ele está a par de seus segredos, só ele pode falar a seu respeito, em seu nome, só ele pode interpretar seu pensamento”. Mas pelo menos Armaingaud mantinha uma produção mínima, ao passo que Strowski se desviou para outros projetos,

deixando de publicar o último volume de sua edição. As autoridades de Bordeaux que o financiavam acabaram incumbindo do trabalho François Gébelin, que editou o derradeiro volume em 1919 — cinquenta anos após o surgimento da ideia inicial. Volumes de comentários e indexação viriam a público em 1921 e 1933, a cargo do arguto montaignista que agora assumia a direção do projeto, Pierre Villey, cujo feito terá sido tanto mais digno de nota por ser ele cego desde os três anos de idade. Ele concluiu a empreitada a tempo das comemorações em Bordeaux do quarto centenário do nascimento de Montaigne em 1933 — para ser esquecido pelos organizadores dos festejos, que não o convidaram. Enquanto isso, Armaingaud também concluía sua versão, de maneira que o mundo finalmente era brindado com duas belas transcrições de Os ensaios. Os dois livros tinham uma característica fundamental em comum: depois de lutar tanto para ter acesso físico ao Exemplar de Bordeaux, os editores estavam decididos a se aferrar a ele, ignorando quase inteiramente a edição de fácil acesso publicada por Marie de Gournay. Também compartilhavam uma tendência altamente antimontaignesca a se considerar fonte da palavra final e incontestável em todas as questões de erudição textual de Os ensaios. Essas duas edições dariam o tom pelo resto do século. A partir de então, a versão de 1595 só seria usada como fonte de eventuais variantes vocabulares, assinaladas em notas de pé de página. E mesmo isto só era feito em casos de diferenças significativas. Caso contrário, as pequenas variantes eram tomadas como indício de insuficiente trabalho editorial da parte de Marie de Gournay e do estado de deturpação do texto de 1595. Presumia-se que Gournay tivesse feito exatamente o que eles haviam feito —

transcrever o Exemplar de Bordeaux —, mas de maneira atabalhoada. Ainda em 1866, todavia, outra explicação fora apresentada por Reinhold Dezeimeris. Gournay podia ter feito um excelente trabalho editorial, dava ele a entender, só que em outro exemplar. Levou algum tempo para que essa ideia se assentasse. Uma vez feito isto, ela atrairia uma quantidade cada vez maior de adeptos, alguns dos quais investigaram detalhadamente a maneira como a troca de exemplares poderia ter ocorrido. Se esta teoria tiver fundamento, a história provavelmente começou com o trabalho que Montaigne fez durante vários anos no Exemplar de Bordeaux, como sempre imaginaram seus adeptos. A certa altura, contudo, ele ficou tão cheio de anotações que praticamente já não podia ser usado. Frustrado com seu estado de confusão, Montaigne mandou fazer um novo exemplar — que não chegou até nós, mas passa aqui a ser chamado de “Cópia”, por conveniência. Ele continuou a fazer acréscimos nesse novo exemplar, em sua maioria de menor importância, pois a essa altura já estava se aproximando do fim da vida. Ao morrer, a Cópia — e não o Exemplar de Bordeaux — foi enviada a Marie de Gournay para que a editasse e publicasse. Isto explicaria o fato de não ter chegado até nós: tanto os manuscritos quanto as edições anteriores anotadas pelos autores costumavam ser destruídos no processo de impressão. Enquanto isso, não utilizado o Exemplar de Bordeaux permanecia intacto. A hipótese tem bases claras, explicando tanto a sobrevivência do Exemplar de Bordeaux quanto suas divergências textuais. Ela vai ao encontro do que sabemos das práticas editoriais de Marie de Gournay: não seria da sua índole atentar minuciosamente para correções de última hora, como é o caso, se parecia tão descuidada com

seu próprio trabalho. Sendo aceita a explicação, as consequências são dramáticas. Significa que a publicação feita por Gournay em 1595, e não o Exemplar de Bordeaux, é que pode ser considerada a mais próxima de uma versão final de Os ensaios, tal como o desejaria Montaigne, e, portanto, que a maior parte dos esforços editoriais do século XX não passa de um equívoco. Naturalmente, esse debate mergulhou o mundo de Montaigne em turbulência, provocando um conflito tão acirrado quanto os de um século atrás. Certos editores inverteram completamente a hierarquia, relegando as variantes do Exemplar de Bordeaux à humilde posição das notas de rodapé por tanto tempo ocupada por Gournay; é o caso, particularmente, da edição Pléiade de 2007, editada por Jean Balsamo, Michel Magnien e Catherine MagnienSimonin. Outros estudiosos continuam favorecendo o Exemplar de Bordeaux, que se impõe particularmente numa edição realizada em 1998 por André Tournon, superando edições anteriores em sua atenção aos mais microscópicos detalhes desse texto. Ela incorpora a pontuação e os sinais do próprio Montaigne, até então atenuados ou modernizados — como se quisesse enfatizar sua proximidade física com o manuscrito de Montaigne e suas intenções. É como se ele ainda estivesse com a pena na mão, pingando tinta. Quando a poeira assentar — presumindo-se que isto aconteça —, um texto de referência será estabelecido para o próximo século. Serão várias as consequências para os leitores de Montaigne. É provável que as novas edições deem preferência a um texto ou outro, em vez de amalgamá-los, já que é hoje tão amplamente reconhecida a importância das variações. Se Gournay levar a melhor, uma página de Montaigne também pode ficar parecendo mais

simples, pois poderia reduzir o desejo da farta distribuição, visualmente perturbadora, das letras “A”, “B” e “C”, indicando diferentes camadas de composição tipográfica. Elas continuariam apresentando interesse, mas o fato é que foram introduzidas por editores que trabalhavam com o Exemplar de Bordeaux, motivados em parte pelo desejo de deixar plenamente visível seu árduo trabalho. A própria Gournay nunca pensou em fazê-lo; como tampouco Montaigne. Também haveria consequências para os leitores não francófonos de Montaigne. Uma nova tradução inglesa seria urgentemente necessária, já que as duas outras, por sinal excelentes, que atualmente dominam o mercado, feitas por Donald Frame e M. A. Screech, são nitidamente produtos da era do Exemplar de Bordeaux. Voltaríamos predominantemente para o texto de base usado por John Florio, Charles Cotton e a dinastia Hazlitt. Seja como for, é improvável que seja este o fim da história. As disputas terão prosseguimento, talvez apenas em torno da distribuição das vírgulas. Seria difícil, a esta altura, manter a arrogante convicção strowskiana da possibilidade de uma edição definitiva perfeita. Na verdade, jamais se poderá dizer que Os ensaios efetivamente está concluído. O homem Montaigne pode ter pendurado as botas e deixado de lado a pena, mas, enquanto leitores e editores discordarem a respeito dos resultados, o autor Montaigne jamais terá de fato lançado o ponto final à página. MONTAIGNE REMIXADO E EMBABUINADO

Montaigne sabia perfeitamente que, a partir do momento em que um livro é publicado, perde-se o controle dele. Outras pessoas poderão fazer o que bem entenderem:

poderão editá-lo das mais estranhas formas ou impor interpretações com as quais jamais sonharíamos. Até um manuscrito inédito pode fugir ao controle, como aconteceu com o livro de La Boétie, Da servidão voluntária. Na época de Montaigne e La Boétie, a ausência de uma lei de direitos autorais e a valorização da cópia como técnica literária davam uma liberdade ainda maior que a que se poderia esperar hoje em dia. Qualquer um que se encantasse com trechos de Os ensaios podia publicá-los separadamente; podia também resumir ou fazer acréscimos ao todo, eliminar seções que desagradassem, estabelecer uma nova ordem ou publicar o livro com outro título. Era possível, por exemplo, pinçar uma dúzia de capítulos e reuni-los num pequeno volume de fácil manuseio, prestando um valioso serviço aos leitores de bíceps insuficientemente fornidos para o tomo integral. Um serviço de simplificação também poderia ser oferecido: defrontando-se com vinte páginas de divagações de Montaigne, um redator decidido como “Honoria” podia reduzi-las a duas páginas que — uma noção nada montaignesca! — aparentemente tratariam do tema anunciado no título. Certos editores se têm mostrado ainda mais intervencionistas. Em vez de retalharem trechos escolhidos aqui e ali, eles arregaçaram as mangas e puseram a mão na massa em Os ensaios, desmembrando-o em pedaços como um frango para transformá-lo numa entidade completamente diferente. Seu principal representante é também o mais antigo e mais famoso: Pierre Charron, contemporâneo e amigo de Montaigne, que produziu um best-seller seiscentista intitulado La Sagesse (A sabedoria). Montaigne provavelmente não se teria reconhecido no livro, mas se trata essencialmente de Os ensaios com outro nome e em formato diferente. Ele tem sido considerado uma

“remontagem”, e também poderia ser chamado de “remixagem”, mas nenhum dos termos deixa explícito o quanto o espírito original foi alterado. Charron inventou um Montaigne isento de detalhes idiossincráticos, citações ou digressões, de asperezas e revelações pessoais de qualquer espécie. Deu aos leitores algo com que pudessem discutir ou concordar, se quisessem: um conjunto de afirmações que já não se eximiam a interpretações nem evaporavam como fumaça. A partir das divagações de Montaigne sobre um tema como a relação dos seres humanos com os animais, ele montou esta clara estrutura: 1. Características comuns aos animais e aos seres humanos 2. Características não compartilhadas por seres humanos e animais. 1. Características vantajosas para os seres humanos 2. Características vantajosas para os animais 1. Gerais 2. Particulares 3. Características de vantagem contestável. Não deixa de ser impressionante — e prosaico, tão prosaico que La Sagesse teve enorme sucesso. Encorajado, Charron condensou ainda mais o livro, publicando uma versão abreviada, o Petit traité de la sagesse. Também neste caso as vendas foram boas: os dois livros tiveram numerosas edições. À medida que avançava o século XVII, aumentava constantemente o número de leitores que encontravam seu Montaigne em forma charronizada, o que em parte explica que pudessem entender e lidar com seu ceticismo pirrônico de maneira tão analítica. (Se Pascal ainda ficava enfurecido com seu estilo evasivo, foi por ter lido o original.) Marie de Gournay, entretanto, não aprovou as iniciativas de Charron.

No Prefácio de sua edição de 1635 de Os ensaios, ela o chamava de “mau copista”, observando que a única coisa que poderia recomendar sua leitura era o fato de ele lembrar ao leitor a genialidade do autêntico Montaigne. Os sucessores de Charron nos séculos XVII e XVIII procederam a remixagens ainda mais profundas de Montaigne, chegando às vezes a remixar o próprio Charron. Enquanto Os ensaios ainda estava no Índex, as remixagens e remontagens representavam a única possibilidade de publicar o livro na França. O mercado foi então inundado com Montaignes muito abreviados e sem o devido crédito autoral, ou com obras de títulos evocando essências purificadas: L’Esprit des Essais de Montaigne (O espírito dos Ensaios de Montaigne) ou Pensées de Montaigne (Pensamentos de Montaigne). Esta última versão era de tal maneira expurgada que o livro se resume a 214 páginas de formato pequeno, introduzidas pela observação “Existem poucos livros tão ruins que nada de bom possa ser encontrado neles, e poucos tão bons que nada contenham de ruim”. A condensação de obras é uma prática imemorial. Ainda hoje prosperam na indústria editorial as reduções de grandes obras, não raro com títulos como “Edição Compacta”. Um representante de um desses empreendimentos na Grã-Bretanha declarou: “Moby Dick deve ter sido leitura difícil em 1850 — em 2007 é praticamente impossível abrir caminho por suas páginas.” Mas o risco de cortar gordura demais em Moby Dick é que acabe não sobrando nada da baleia. Da mesma forma, o “espírito” de Montaigne reside precisamente naqueles trechos que os editores mais se apressam a deixar no chão da sala de montagem: os desvios, os apartes, as mudanças de ideia e seu perene movimento de um pensamento a

outro. Não surpreende, assim, que ele próprio fosse levado a declarar que “qualquer resumo de um bom livro é um resumo burro”. Mas Montaigne também sabia que a leitura sempre envolve algum esforço de seleção. Era o que fazia ele próprio sempre que pegava um livro para ler, e o fazia ainda mais decididamente se acabasse por deixá-lo de lado, entediado. Montaigne só lia o que lhe interessava; seus leitores e editores fazem o mesmo com ele. Toda leitura do livro acaba se transformando num Esprit des Essais de Montaigne, até mesmo as mais eruditas. Na verdade, estas se mostram mais tendentes a isto que qualquer outro tipo de leitura. É impressionante a maneira como os críticos modernos parecem remixar e remodelar um Montaigne que se parece com eles próprios, não só individualmente, mas como espécie. Assim como os românticos descobriam um Montaigne romântico, os moralistas vitorianos encontravam um Montaigne moralista e os ingleses em geral desvendavam um Montaigne inglês, assim também os críticos “desconstrucionistas” ou “pósmodernos” que se multiplicaram no fim do século XX (entrando pelo XXI) deparam satisfeitos exatamente com aquilo que já estavam predispostos a encontrar: um Montaigne desconstrucionista e pós-moderno. Esse tipo de Montaigne tornou-se tão familiar ao olhar crítico contemporâneo que é preciso certo esforço para tomar distância e enxergá-lo pelo que realmente é: um artefato, ou pelo menos um remix criativo. Os pós-modernistas encaram o mundo como um sistema eternamente cambiante de significados, e assim se concentram num Montaigne que fala do mundo como uma branloire dançante, ou que diz que os seres humanos são “diferenciados e ondulantes” e “duplos em nós mesmos”.

Eles consideram impossível o conhecimento objetivo, sentindo-se portanto atraídos pelos textos de Montaigne sobre perspectiva e dúvida. (Este livro é tão suscetível a tais tentações quanto qualquer outro, sendo como é produto do seu tempo.) É algo sedutor, lisonjeiro. Olhamos para nosso exemplar de Os ensaios como a rainha de Branca de Neve e os sete anões se olhando no espelho. Antes mesmo que haja tempo de fazer a pergunta do conto de fadas, o espelho já devolve: “Você é a mais bela de todas.” Encontramos na recente teoria crítica uma característica que a torna inusitadamente sujeita a esse efeito do espelho mágico: sua tendência a falar do texto, e não do autor. Em vez de se perguntar o que Montaigne “realmente” queria dizer ou investigar contextos históricos, os críticos têm investigado basicamente a rede independente de associações e significados na página escrita — e ela pode ser lançada como uma grande rede de pesca, para capturar praticamente qualquer coisa. Esta não é uma característica exclusiva do estrito pós-modernismo. Os recentes críticos psicanalíticos também aplicam suas análises a Os ensaios propriamente dito, e não a Montaigne, o homem. Há inclusive os que tratam o livro como uma entidade que tem seu próprio subconsciente. Assim como um analista pode ler os sonhos de um paciente para chegar ao que está por trás deles, assim também um crítico pode investigar a etimologia, os sons, os lapsos e até os erros tipográficos de um texto para descobrir níveis ocultos de significado. Admite-se que não houve da parte de Montaigne a intenção de incluí-los, mas isto não importa, pois o texto tem suas próprias intenções. Dessa corrente de pensamento derivaram leituras que, à sua maneira, revelam-se tão barrocas e belas quanto os próprios textos de Montaigne. Para destacar um dos

exemplos mais interessantes, “Cidades amamentadas: Montaigne em Paris e Roma”, de Tom Conley, apodera-se de uma simples observação de um dos ensaios de Montaigne, “Da vaidade”: a de que ele soube da existência de Roma antes de tomar conhecimento do Louvre em Paris. “Louvre”, o nome do palácio real da França na época, assemelha-se à palavra francesa louve, “loba”. Para Conley, isto mostra a associação subconsciente do texto com a loba que amamentou os gêmeos fundadores de Roma, Rômulo e Remo. Suas bocas se abriam para sugar; da mesma forma, abrimos nossa perspectiva a respeito de cidades como Roma e Paris ao pensar sobre a maneira como sobreviveram ao longo dos séculos. A boca abre esta perspectiva; a abre, que em francês é l’ouvre. Desse modo, quando Montaigne menciona o Louvre na mesma frase que Roma, seu texto revela uma imagem oculta na qual “os lábios do ensaísta se fecham em torno de um mamilo real”. A imagem da sucção nos leva aos seios, que se multiplicam por toda Roma na forma dos muitos belvederes e cúpulas da cidade. “Bicos erógenos que se elevam no horizonte da cidade são assimilados a uma multiplicidade de pontos de nutrição.” A visão dos lábios de Montaigne torna-se ainda mais estranha: Montaigne suga de cima o bico ereto do templo de Jupiter Optimus Maximus na Colina Saturnina de Roma ao contrair os lábios por baixo dos mamilos da loba fundadora. Tudo isto pode ser encontrado no comentário de Montaigne sobre o Louvre — mas ainda não é tudo. No mesmo ensaio, Montaigne acrescenta: “Tenho trazido mais na cabeça [plus en teste] as capacidades e fortunas de Luculo, Metelo e Cipião que as de qualquer outro homem.”

Por insignificante que possa parecer a afirmação, tester ou teter, em francês, significa “amamentar”. Os três heróis clássicos podem ser visualizados como retratos, talvez incrustados em moedas, que Montaigne leva à boca: “qu’il teste”. Uma grande “sucção e vazão de espaço e tempo” flui, assim, por essas poucas páginas. E temos mais ainda. Montaigne escreve nesse ensaio que ficou “embabuinado” pela história romana — embabouyné significando “encantado” ou “enfeitiçado”, mas também “amamentado”. A palavra francesa torna-se ainda mais sugestiva se for lida como “en bas bou(e) y n(ais)”, significando “lá em baixo na lama eu nasci”. Temos aqui mais uma referência aos dois bebês e à loba, pois eles tiveram de se abaixar em meio à lama do Tibre para mamar nela. Como a lama é mole e marrom, é como se víssemos o Montaigne embabuinado resvalando para “um mundo présimbólico de odor e excremento”. O ensaio de Conley é em si mesmo fascinante, ou embabuinante — e ele não está apenas jogando com palavras, como Rômulo e Remo atirando lama do Tibre para todo lado. Nem pretende dizer que Montaigne “realmente” tivesse a ideia de mamilos na cabeça ao escrever sobre Roma. O objetivo é identificar uma rede de associações, encontrar em algumas poucas palavras aparentemente simples e diretas do texto um significado tão envolvente e revelador quanto um sonho. O resultado oferece uma beleza onírica própria, e não temos por que ficar aborrecidos se ela parece ter pouca relação com Montaigne. Como dizia Montaigne a respeito de Plutarco, cada linha de um texto rico como Os ensaios está cheia de pistas indicando “aonde devemos ir, se quisermos”. Os críticos modernos levam isto muito a sério.

E o tempo todo o verdadeiro paciente no divã do analista — aquele cujos sonhos clamam por uma interpretação — não é o texto de Os ensaios nem a pessoa de Montaigne, mas o crítico. Ao tratar o texto de Montaigne como um manancial de pistas para algo desconhecido e ao mesmo tempo separar essas pistas do contexto original, esses detetives literários submetem-se a um conhecido truque de abertura do subconsciente. É exatamente a mesma técnica usada por uma vidente ao expor folhas de chá numa xícara ou um psicólogo aplicando um teste de Rorschach. Um campo aleatório de pistas é estabelecido, longe de seu contexto convencional, e se vê então o que surge na mente do observador. A resposta, inevitavelmente, será algo pelo menos tão esotérico e extravagante quanto L’Esprit des Essais de Montaigne. Lamentavelmente, para quem aprecia tais coisas, essa tendência da moderna teoria crítica — a derradeira incursão dessa nossa serpenteante turnê pela história da recepção de Montaigne — já parece estar entrando para a história. Uma reação se tem esboçado nos últimos anos, em lenta mudança de ventos. Aumenta sempre mais o número de estudiosos literários que retornam à história. Mais uma vez, eles estudam sobriamente os significados seiscentistas da linguagem de Montaigne e tentam identificar suas intenções e motivações. Parece o fim de uma era — e o início de outra. Que teria feito Montaigne de tudo isto? Ele gostava de seguir as indicações encontradas numa página de Plutarco, mas dizia irritar-se com excessos de interpretação literária. Quanto mais um crítico trabalha num texto, afirmava, menos ele será entendido. “O centésimo revisor o transmite a seu sucessor mais espinhoso e árduo do que se mostrara

ao primeiro.” Qualquer texto pode transformar-se num amontoado de contradições: Veja-se como Platão é manipulado e jogado daqui para ali. Cada indivíduo, jactando-se de aplicá-lo a si mesmo, o empurra para o lado que lhe apraz. Exibemno e o encaixam em todas as novas opiniões aceitas pelo mundo. Viria acaso o dia, perguntava-se Montaigne, em que os intérpretes entrariam em acordo quanto à determinada obra: “Já se disse o suficiente sobre este livro; daqui em diante nada mais haverá a dizer a respeito”? Claro que não; e Montaigne sabia que sua própria obra teria de continuar passando pelo mesmo moinho enquanto tivesse leitores. Estes sempre haveriam de encontrar nele coisas que nunca pretendera dizer. Com isto, tais coisas estariam na realidade sendo criadas. “Um leitor capaz muitas vezes descobre nos escritos de outros homens perfeições além das que foram incluídas ou percebidas pelo autor, conferindo-lhes significados e aspectos mais ricos.” Eu li em Tito Lívio uma centena de coisas que outro homem não leu nele. Plutarco leu nele uma centena além daquelas que eu pude ler, e talvez além do que o autor ali pôs. Ao longo dos séculos, esta interpretação e reinterpretação cria uma longa corrente ligando um escritor aos futuros leitores — que não raro leem uns aos outros, além de lerem o original. Virginia Woolf teve uma bela visão das gerações assim interligadas, da maneira como “as mentes são entretecidas — da maneira como qualquer mente viva é do mesmo exato estofo que as de Platão &

Eurípides (...) É essa mente comum que unifica todo o mundo; & o mundo todo é mente”. Esta capacidade de continuar vivendo através do mundo interior dos leitores em longos períodos históricos é o que torna um livro como Os ensaios um autêntico clássico. Na medida em que renasce de forma distinta em cada mente, ele também une essas mentes. Não é possível exercer a ambição como escritor sem aceitar que outras pessoas venham a fazer o que lhes aprouver com a obra oferecida, alterando-a, se for o caso, a ponto de torná-la irreconhecível. Montaigne aceitava este princípio na arte, tal como na vida. E até sentia prazer nele. As pessoas fazem ideias estranhas a nosso respeito, nos adaptam a seus próprios objetivos. Deixando-se ir com o fluxo e abrindo mão do controle desse processo, podemos desfrutar as vantagens do velho truque helenístico do amor fati: a alegre aceitação do que vier. No caso de Montaigne, o amor fati era uma das respostas à pergunta genérica sobre como viver, e no fim das contas também abriu caminho para sua imortalidade literária. Seu legado revelou-se tanto melhor por ser imperfeito, ambíguo, inadequado e sujeito a distorções. “Deus meu”, poderíamos imaginá-lo exclamando, “que eu possa ser incompreendido!”.

19. P. Como viver? R. Seja comum e imperfeito SEJA COMUM

E

ste livro tem sido em certa medida a história de como Montaigne fluiu através dos tempos por meio de uma espécie de sistema de canais das mentes. As amostras foram colhidas em cada comporta: desde — os primeiros leitores entusiásticos de Montaigne, que louvavam sua sabedoria estoica e sua capacidade de recolher belos pensamentos dos antigos; — homens como Descartes e Pascal, que sentiam por ele aversão e fascínio em igual medida, por seu ceticismo e a eliminação, por ele efetuada, das delimitações entre os seres humanos e outros animais; — os libertins do século XVII, que apreciavam nele o ousado livre-pensador; — filósofos do Iluminismo no século XVIII, igualmente atraídos por seu ceticismo e seu apreço pelas culturas do Novo Mundo; — os românticos, que saudavam um Montaigne “natural”, ao mesmo tempo desejando que ele tivesse mais intensidade; — leitores que tinham suas vidas atormentadas pela guerra e a turbulência política, fazendo de Montaigne um herói e companheiro; — moralistas do fim do século XIX, ruborizados com suas indecências e lastimando sua falta de fibra ética, mas conseguindo reinventá-lo como um respeitável cavalheiro semelhante a eles mesmos;

— ensaístas e filósofos casuais ingleses mergulhados na leitura de seu livro ao longo de cerca de quatrocentos anos; — um filósofo nem tão casual assim, Friedrich Nietzsche, que admirava a leveza de espírito de Montaigne e reinventou para uma nova era seus truques estoicos e epicuristas da arte de viver; — modernistas como Virginia Woolf, que tentaram capturar o sentimento de estar vivo e consciente; — editores, copistas e magos da mixagem, que moldaram Montaigne em diferentes formas; — intérpretes do fim do século XX, que ergueram estruturas extraordinárias com base num punhado de palavras de Montaigne. Ao longo do percurso, houve os que achavam que ele escrevia demais sobre seu próprio sistema urinário, os que consideravam que seu estilo literário podia ser aperfeiçoado e os que o achavam muito informal; e também os que viam nele um sábio, ou um segundo eu tão próximo que não podiam saber ao certo se estavam lendo Os ensaios ou escrevendo-o eles próprios. Muitas dessas leituras díspares eram transmutações das três grandes tradições helenísticas, tal como transmitidas — e alteradas — por Montaigne. O que é perfeitamente natural, pois essas tradições constituíam o alicerce do seu pensamento, e suas linhas de influência perpassavam toda a cultura europeia. Elas dificilmente poderiam ser distinguidas umas das outras, nem mesmo em suas mais remotas origens; na versão modernizada de Montaigne, tornaram-se mais imbricadas que nunca. Elas se mantêm coesas acima de tudo na busca comum da eudaimonia, ou desabrochar humano, e na convicção de que a melhor

maneira de alcançá-la é através da tranquilidade ou equilíbrio: a ataraxia. Esses princípios as mantêm ligadas a Montaigne, e através dele aos leitores pósteros que buscam Os ensaios pela companhia ou por uma sabedoria prática e cotidiana de que possam fazer uso. Os leitores modernos que chegam a Montaigne perguntando o que ele pode fazer por eles estão fazendo a mesma pergunta que ele próprio fazia a Sêneca, Sexto e Lucrécio — a mesmíssima pergunta que eles por sua vez faziam a seus antecessores. É o que significa na verdade a corrente mental descrita por Virginia Woolf: não uma tradição erudita, mas uma série de indivíduos voltados para o interesse próprio e se questionando sobre suas vidas, mas de forma cooperativa. Eles compartilham uma qualidade que pode ser descrita simplesmente como “humanidade”: a experiência de ser um ser pensante e dotado de sentimentos, que deve levar adiante uma vida humana comum — embora Montaigne de bom grado estendesse essa união de mentes a outras espécies também. Por isto é que, para Montaigne, até mesmo a existência mais comum nos diz tudo que precisamos saber: Eu tive uma vida humilde e inglória; mas não importa. É possível vincular toda a filosofia moral a uma vida comum e privada, exatamente como a uma vida mais rica. De fato, uma vida comum e privada é precisamente isto: a vida mais rica que se possa imaginar. SEJA IMPERFEITO

Montaigne enfrentou tantos problemas de saúde em seus últimos anos que parecia passar a metade do tempo no

limiar entre a vida e a morte — aquela mesma zona que havia visitado no frescor da juventude, após o acidente de equitação. Ele ainda não estava velho, mal se aproximando dos 60 anos, mas sabia que suas crises de pedra nos rins podiam matá-lo a qualquer momento, e às vezes era o que desejava, tão horrível era a agonia. Mas nessa época a pedra não o agarrava pela gola como um brutamontes para arrastá-lo até o rosto tirânico da morte. Ela o atraía “com jeito e delicadeza”, deixando-lhe tempo suficiente para pensar entre uma crise e outra. A morte parecia amistosa, exatamente como os estoicos diziam que seria. Pelo menos esse proveito eu tiro da pedra, pois ela concluirá o que eu ainda não pude realizar em mim mesmo, me reconciliando e familiarizando completamente com a morte. A primeira coisa de que ele se tinha dado conta ao perder a consciência era amplamente confirmada agora: a natureza faz tudo por nós, e não precisamos nos preocupar com nada. Ela nos conduz pela mão, escreveu ele, como “num declive suave e praticamente imperceptível, aos pouquinhos”. A rigor, nem precisamos prestar atenção no caminho. Tornando-o doente, a natureza lhe dava aquilo que havia tanto tempo buscava: ataraxia e, portanto, eudaimonia. Os momentos de maior bem-estar que conhecera na vida se haviam manifestado imediatamente depois de uma crise, com a eliminação da pedra. Era um momento de alívio físico, mas também de libertadora leveza espiritual. Existe algo mais doce que essa súbita mudança, no momento em que, de uma dor extrema, eliminando a

pedra, eu me recupero, como se se acendesse a linda luz da saúde, tão livre e pleno (...)? Ele chegou inclusive a descobrir um prazer semelhante em meio às próprias crises. Elas continuavam dolorosas, mas ele aprendeu a desfrutar suas pequenas compensações, entre elas o relance de satisfação que sentia ao ver admiração nos olhos dos outros: É um prazer ouvir alguém dizer a seu respeito: Quanta força, quanta coragem! Eles o veem suando de agonia, vomitando sangue, sofrendo estranhas contrações e convulsões, às vezes derramando enormes lágrimas dos olhos, vertendo uma urina espessa, escura e assustadora ou retendo-a por causa de uma pedra áspera e dura que machuca e esfola cruelmente o canal do pênis; e ao mesmo tempo mantendo a conversa com os circundantes com aparência normal, gracejando com os criados nos intervalos. Só ele sabia a verdade: que era mais fácil gracejar e manter a conversa no auge da dor do que qualquer observador jamais poderia imaginar. Como indicara sua experiência passada de quase morte, a aparência externa de alguém pode não ter qualquer relação com o que se passa em seu mundo interior. Dessa vez, ele realmente estava em terrível agonia, diferentemente do que acontecera nos momentos em que arrancava seu gibão. E, no entanto, havia certa despreocupação em sua alma. A experiência parecia tocá-la apenas de leve. Já estou me acostumando a essa vida de cólicas: encontro nela alimento para o consolo e a esperança.

Ele extraiu uma lição semelhante do envelhecimento de maneira geral. Não que a idade automaticamente trouxesse sabedoria. Pelo contrário, ele achava que os velhos eram mais dados a vaidades e imperfeições que os jovens. Mostravam-se inclinados a “um orgulho tolo e decrépito, a uma tagarelice tediosa, a humores irascíveis e antissociais, à superstição e a uma ridícula preocupação com bens materiais”. Mas era este o ponto, pois na adaptação a esses defeitos é que estava o valor do envelhecimento. A velhice representa uma oportunidade de reconhecer a própria falibilidade de uma forma que geralmente parece difícil na juventude. Constatando o próprio declínio inscrito no corpo e na mente, o indivíduo aceita sua limitação como ser humano. Mas, compreendendo que a idade não nos torna sábios, alcançamos afinal de contas uma certa sabedoria. Aprender a viver, no fim, é aprender a conviver com a imperfeição desse jeito, e até aceitá-la. O nosso ser é cimentado com qualidades doentias (...) Aquele que eliminasse no homem as sementes dessas qualidades destruiria as condições fundamentais de nossa vida. Até mesmo a filosofia precisa mostrar-se “complicada e obscura” antes de poder ser aplicada à vida real. “Não há necessidade de esclarecer as questões tão profunda e sutilmente.” Não há qualquer vantagem em viver como Tasso, cegando-se com o próprio brilho. É melhor ser moderado, modesto e ligeiramente vago. A natureza cuida do resto. Ao longo desses últimos anos, mais tranquilo e amadurecido que nunca, Montaigne continuou trabalhando em Os ensaios. Ficava em casa, mas ainda escrevia cartas, entre elas várias para Henrique IV. E encontrava amigos,

escritores e antigos colegas de Bordeaux e outras partes, entre os quais o irmão de Francis Bacon, Anthony. Sua filha Léonor, já na idade adulta, casou-se com François de la Tour em 27 de maio de 1590, em cerimônia na propriedade de Montaigne. No ano seguinte, Montaigne tornou-se avô, quando Léonor deu à luz uma filha chamada Françoise, no dia 31 de março de 1591. Ele continuava escrevendo, adicionando fantasias e anedotas, assim como seus últimos pensamentos sobre a arte de viver em harmonia com a normalidade e a imperfeição. Ele se apresentava cada vez mais como um homem que aprendera a viver; ou quem sabe era apenas sua habitual despreocupação, alcançando um grau inédito de maestria.

20. P. Como viver? R. Deixe a vida responder por si mesma NÃO É O FIM

M

ontaigne foi acometido de uma crise de pedra nos rins no início de setembro de 1592. Ele já passara por isso muitas vezes, e com toda a probabilidade aceitou a coisa filosoficamente de início. Dessa vez, contudo, como ele sempre soubera poderia acontecer, houve sérias complicações. Em vez de finalmente ser expelida, dando-lhe aquela sensação de alívio e alegria, a pedra ficou onde estava, originando uma infecção. Seu corpo todo começou a inchar. Não demorou, e a inflamação chegou à garganta, gerando um estado conhecido como “cinância”, da palavra grega que designa a correia ou laço usado para estrangular um cão ou qualquer outro animal — o que deixa bem claro como a sensação era desagradável. À medida que esse estado se agravava, a garganta de Montaigne se fechava cada vez mais, até que ele encontrasse enorme dificuldade para respirar. A cinância por sua vez levou a uma amigdalite, uma infecção grave da garganta, ainda hoje considerada potencialmente fatal, se não for tratada. Ela requereria tratamento com antibióticos, que no entanto não existiam na época de Montaigne. Já agora, com a garganta inchada, ele não conseguia falar, mas estava perfeitamente consciente e capaz de se comunicar escrevendo bilhetes. Três dias se passaram após a manifestação da amigdalite. Montaigne sentava-se apoiado na cama, enquanto a família e os criados se reuniam para acompanhá-lo e esperar. O

quarto transformou-se exatamente na superlotada cena de leito de morte muito concorrida que ele sempre quisera evitar. Esses rituais tornavam a morte ainda pior que o necessário: serviam apenas para aterrorizar o moribundo e os que o cercavam. Médicos e sacerdotes debruçando-se sobre a cama; visitantes inconformados; “criados pálidos e chorosos; um quarto escurecido; velas acesas; (...) em suma, tudo ao nosso redor horroriza e assusta” — um cenário muito distante da morte simples e até distraída que ele teria preferido. Mas agora que as coisas se configuravam assim, ele nem tentou afastar aquela gente toda. Quando ficou evidente que não restava esperança de recuperação, ele redigiu seu último testamento e seus desejos finais. Um escritor da região, Bernard Automne, afirmou que nesses últimos dias Montaigne “levantou-se da cama de camisola” e mandou chamar criados e outros beneficiários secundários do seu testamento, para transmitir-lhes pessoalmente o legado. Talvez seja verdade, embora não combine bem com as descrições segundo as quais estava paralisado na cama. Não dispomos de um relato plenamente confiável de suas últimas horas de vida; todos eles são de segunda mão. Mas um deles, pelo menos, pode ser considerado razoavelmente preciso: foi escrito por um velho amigo de Montaigne, Étienne Pasquier, com base no que ouviu de Françoise, que se manteve o tempo todo ao lado do marido. Ao contrário de La Boétie tantos anos antes, Montaigne não quis afastar sua mulher de seu leito de morte. Providenciado o testamento, uma missa foi rezada em seu quarto. Ele quase já não conseguia respirar. Segundo Pasquier, ele se levantou da cama enquanto o padre falava, “num esforço desesperado, com as mãos entrelaçadas”,

para confiar seu espírito a Deus. Era um derradeiro gesto de convenção católica: um breve reconhecimento a Deus na vida desse homem tão alegremente secular. Pouco depois, fechou-se o derradeiro e estreito canal de ar em sua garganta. Ele pode ter sucumbido a um derrame, ou simplesmente sufocou. Cercado pela família, amigos e criados, Michel Eyquem de Montaigne morreu em 13 de setembro de 1592, aos 59 anos de idade. Deve ter sido penoso assistir à morte de Montaigne — a luta para respirar, o esforço desesperado, o horrível inchaço —, e ele parecia estar plenamente consciente do que se passava, outra coisa que esperara poder evitar. Mas talvez não fosse assim tão penoso para ele. No dia do seu acidente de equitação, ele se arrastara vomitando sangue enquanto sua alma flutuava no prazer; o mesmo pode ter acontecido no fim. Ele pode ter sentido apenas a sensação de que sua vida era suavemente desligada dos seus lábios: aquele delicado fio sendo finalmente cortado. Étienne Pasquier e outro amigo, Pierre de Brach, compuseram seus relatos de segunda mão para os contemporâneos, transformando a morte de Montaigne num modelo de estoicismo. Prestavam à sua memória o mesmo serviço que ele havia prestado à de La Boétie. Montaigne tivera uma vida feliz, escrevia Pierre de Brach em carta a Justus Lipsius; e morrera bem, igualmente feliz. Só os que a ele sobreviviam sentiriam dor, para sempre privados de sua agradável companhia. A primeira missão desses sobreviventes era a cerimônia fúnebre, além do pavoroso desmembramento do corpo de Montaigne. Registrava uma anotação na Ephemeris Beuther da família:

Seu coração foi levado para a igreja de Saint Michel, e Françoise de la Chassaigne, madame de Montaigne, sua viúva, mandou o corpo para Bordeaux, para ser enterrado na igreja dos Feuillants, onde mandou construir para ele um túmulo elevado, para isto pagando direitos à igreja. Não era incomum separar partes do corpo para o enterro, embora efetivamente pareça estranho que fosse depositado apenas o coração, e não todo o corpo, na pequena capela construída na propriedade no século XII. Seria, de fato, um tranquilo lugar de repouso: ele estaria ao lado do pai, assim como dos pequenos esqueletos de tantos de seus próprios filhos. Mas os restos dos seus restos foram para a igreja da Ordem dos Feuillants, uma estranha decisão, mais uma vez, e aparentemente distinta da original. O plano inicial consistira em enterrá-lo na catedral de Saint-André em Bordeaux, o que foi autorizado em 15 de dezembro de 1592. Com isto, ele teria ficado perto de membros da família de Françoise, e não da sua própria. Mas ela mudou de ideia, fosse por ser devota dos Feuillants ou por ter sido este o caso dele: Montaigne manifestara admiração por eles em Os ensaios. A decisão certamente era boa para os monges. Em troca de acolher o corpo de Montaigne e rezar missas regularmente por sua alma, eles recebiam uma generosa doação que foi usada para financiar a pintura do interior do prédio. Deram-lhe um esplêndido túmulo, que ainda existe: ele é mostrado deitado em sua armadura de cavaleiro, com as mãos retiradas das luvas para juntar-se em prece. Dos dois lados, epitáfios em grego e latim louvam seu pirronismo cristão, seu respeito às leis e à religião dos antepassados, suas “maneiras suaves”, sua ponderação,

sua honestidade e sua coragem. O texto latino termina de maneira comovente: Françoise de la Chassaigne, desgraçadamente presa de perpétuo luto, ergueu este monumento à memória de seu marido, que justificadamente lamenta. Ele não teve outra esposa; ela não terá tido outro marido. Seu corpo, sem o coração, finalmente foi depositado nesse túmulo a 1º de maio de 1594, um ano e meio depois de sua morte. Ele já tivera de esperar muito tempo pelo repouso eterno — que afinal não seria eterno em absoluto. Cerca de uma década depois, tiveram início obras de ampliação da igreja e mudança de sua estrutura. Com isto, o túmulo de Montaigne teria ficado muito distante do novo altar, o que iria de encontro ao acordo feito com Françoise. Ela processou os Feuillants e venceu: eles foram obrigados a deslocar o túmulo, em 1614, para um local privilegiado na nova capela. Lá ele permaneceu e as décadas se passaram tranquilamente, até a chegada da Revolução Francesa, cerca de nove gerações depois. O novo Estado secular aboliu a ordem dos Feuillants, juntamente com outras ordens religiosas, confiscando suas propriedades, entre elas a igreja e tudo que nela se encontrava. Isto se deu numa época em que Montaigne era considerado um herói do Iluminismo — um philosophe livre-pensador, um homem digno de ser honrado pelo regime revolucionário. Não parecia adequado deixá-lo onde estava. Assim foi que se decidiu, em 1800, que ele fosse desenterrado e novamente sepultado no salão de monumentos do novo grande templo secular de Bordeaux: a Académie des sciences, belleslettres et arts. Os preciosos restos mortais foram retirados e transferidos com grande solenidade para seu novo destino,

acompanhados pela cavalaria e saudados ao longo do caminho por fanfarras de metais. Dois anos e meio mais tarde, um antiquário que examinava os registros da mesma Académie de Bordeaux fez uma descoberta embaraçosa. O corpo transferido não era o de Montaigne. Era o da sobrinha de sua viúva, uma mulher chamada Marie de Brian, que fora sepultada no mesmo túmulo, junto com outros membros da família. Discretamente, desta vez sem cavalaria nem fanfarras, ela foi retirada do salão de monumentos e devolvida à localização original. Montaigne ficou onde sempre estivera, intocado, no túmulo original. O homem a quem tanto desagradavam obras de construção, “inovações” idealistas e qualquer agitação desnecessária fora afinal poupado de perturbações pela Revolução, que passara sobre sua cabeça como uma onda por cima do profundo leito do mar. Em maio de 1871, a igreja foi destruída por um incêndio. O túmulo ficou praticamente ileso, mas permaneceria por quase uma década desprotegido em meio às ruínas. Em dezembro de 1880, foi aberto por funcionários para avaliação do estado da venerada relíquia, constatando-se que a concha de chumbo em torno dos restos de Montaigne se esmigalhara. Os fragmentos foram retirados e um novo caixão de carvalho veio a ser confeccionado para ele. O túmulo restaurado passou então cinco anos alojado temporariamente no Depósito Cartusiano, para afinal ser instalado, em 11 de março de 1886, no saguão de entrada do novo prédio da Universidade de Bordeaux, abrigando as faculdades de teologia, ciências e literatura. Hoje, encontrase no Musée d’Aquitaine em Bordeaux, onde é exibido orgulhosamente. Dificilmente poderia ter havido uma série mais apropriada de aventuras póstumas para alguém tão sintonizado com o

fluxo do mundo e tão consciente da maneira como os esforços humanos podem ser comprometidos pelo erro. Mesmo depois da morte, alguma coisa parecia continuar compelindo Montaigne de volta ao fluxo da vida, em vez deixá-lo congelado numa lembrança perfeita. E seu verdadeiro legado nada tem a ver, em absoluto, com esse túmulo. É na posteridade turbulenta de Os ensaios que ele pode ser encontrado, seu segundo eu em interminável evolução. Eles continuaram vivos, e, para Montaigne, era sempre a vida que importava. Virginia Woolf gostava particularmente de citar este pensamento de seu último ensaio: era o mais próximo que Montaigne havia chegado da melhor ou definitiva resposta à pergunta sobre como viver. A vida deve ser um objetivo em si mesma, uma finalidade em si mesma. Ou bem não se trata de uma resposta em absoluto, ou então é a única resposta possível. Ela tem a mesma qualidade que a resposta dada pelo mestre zen que, diante da pergunta “Que é o esclarecimento?”, deu com um bastão na cabeça daquele que perguntava. O esclarecimento é algo que aprendemos no próprio corpo, assumindo a forma de coisas que nos acontecem. Por isso é que os estoicos, os epicuristas e os céticos ensinavam truques, e não preceitos. Os filósofos podem oferecer apenas essa pancada na cabeça: uma técnica útil, uma aventura do pensamento, ou uma experiência — no caso de Montaigne, a experiência da leitura de Os ensaios. O tema por ele ensinado é simplesmente ele próprio, um exemplo comum de um ser vivo. Embora Os ensaios apresente uma diferente faceta para cada um, tudo, nele, converge nessa mesma figura:

Montaigne. Por isso é que os leitores voltam a ele como a poucos outros do seu século, e mesmo a raros escritores de qualquer época. Os ensaios é o seu ensaio. Testa e dá amostra de uma mente que é um “eu” em si mesma, como todas as mentes o são. Haverá talvez quem questione se ainda existe necessidade de um ensaísta como Montaigne. No mundo desenvolvido do século XXI, as pessoas já são excessivamente individualistas, além de estarem ligadas umas às outras num grau muito além dos sonhos mais delirantes de um cultivador de vinhedos do século XVI. Sua preocupação com o “eu” em todas as coisas pode ficar parecendo um típico caso de pregação para convertidos, ou mesmo de fornecimento de drogas a viciados. Mas Montaigne oferece mais que uma mera indução à autocomplacência. O século XXI teria tudo a ganhar com uma concepção montaigniana da vida, e, nos momentos mais conturbados por que passou até agora, verificou-se quão terrivelmente precisaria de uma política montaigniana. Poderia valer-se da sua moderação, do seu amor à sociabilidade e à cortesia, de sua ausência de julgamento e da sutil compreensão por ele demonstrada dos mecanismos psicológicos envolvidos no confronto e no conflito. Precisa também da sua convicção de que, no mundo real, nenhuma visão do paraíso, nenhum Apocalipse imaginário, nenhuma fantasia perfeccionista pode ser mais importante que a mais minúscula das individualidades. Para Montaigne, é impensável que alguém jamais pudesse “agradar ao céu e à natureza cometendo massacres e homicídios, uma crença universalmente abraçada por todas as religiões”. Acreditar que a vida pudesse exigir coisas assim é esquecer o que é realmente a existência no dia a dia. Significa esquecer que, quando seguramos um filhote sobre um balde d’água ou

observamos uma gata querendo brincar, estamos contemplando uma criatura que nos devolve nosso olhar. Não estão envolvidos princípios abstratos; existem apenas dois indivíduos, face a face, esperando o melhor um do outro. É possível, assim, que parte do crédito pela última resposta de Montaigne deva ser atribuído a sua gata — um indivíduo específico do século XVI, que levou uma vida agradável numa propriedade rural, com um dono carinhoso e sem muita concorrência na disputa por atenção. Foi ela que, querendo brincar com Montaigne num momento impróprio, lembrou-lhe o que significava estar vivo. Os dois olharam um para o outro e, por um breve momento, ele deu o salto sobre a distância que os separava, para se ver pelos olhos dela. De momentos assim — e eles foram incontáveis — é que derivou toda a sua filosofia. Lá estão os dois, portanto, na biblioteca de Montaigne. Atraída pelo ranger de sua pena no papel, a gata ensaia alcançar com a pata o objeto em movimento. Ele olha para ela, talvez momentaneamente irritado com a interrupção. Em seguida, sorri, inclina a pena e desliza a extremidade do penacho pelo papel, para que ela saia correndo atrás. Ela arremete. Com as patas, mancha de tinta as últimas palavras; algumas folhas de papel caem no chão. Os dois podem ficar por ali, suspensos no meio de suas vidas sem que Os ensaios esteja escrito por completo, enquanto nós prosseguimos com as nossas — sem que Os ensaios esteja completamente lido.

Cronologia 1533 fev.)

(28

1539?-48

Nascimento de Montaigne Ele frequenta o Collège de Guyenne, em Bordeaux

Revolta contra o imposto do sal em 1548 (ago.) Bordeaux; Montaigne assiste aos massacres de Moneins 1548-54

Estudos, provavelmente de direito, provavelmente em Paris e/ou Toulouse

1554

Começa a trabalhar na Cour des Aides em Périgueux

1557

Todos os funcionários de transferidos para Bordeaux

1558-59

Montaigne faz amizade com Étienne de La Boétie

1559

O Tratado de Câteau Cambrésis põe fim às guerras externas da França, com consequências desastrosas

1562

Massacres de Vassy: início das guerras civis

Périgueux

são

Em Rouen com Carlos IX, Montaigne encontra três tupinambás brasileiros 1563 ago.)

(18 Morte de La Boétie, tendo Montaigne à cabeceira

1565

(23 Montaigne se casa com Françoise de La

set.)

Chassaigne

1568 jun.)

(18 Morte de Pierre Eyquem: Montaigne herda a propriedade

1569

Montaigne publica sua tradução da Teologia natural de Sebond Seu irmão Arnaud morre num acidente de tênis

1569 início 1570

ou Montaigne quase morre num acidente de de equitação

1570

Retira-se do parlement de Bordeaux Nasce seu primeiro filho, morrendo com dois meses Edita as obras de La Boétie

1571 (fev.)

Montaigne faz sua inscrição de aniversário em sua biblioteca

                  (9 Nasce sua única filha que chegaria à idade set.) adulta, Léonor 1572

Montaigne provavelmente trabalhar em Os ensaios

começa

a

(ago.)

Massacres de São Bartolomeu

1574

Morte de Carlos IX; Henrique III sobe ao trono

1576

Montaigne manda cunhar sua moeda, com escalas e o lema epokhe Acometido da primeira crise de pedra nos rins

1580 (jun.)

Os ensaios, primeira edição

1581 (nov.)

Montaigne viaja pela Suíça, a Alemanha e a Itália

1581 (ago.) Eleito prefeito de Bordeaux 1582

Os ensaios, segunda edição

1583 (ago.) Reeleito prefeito de Bordeaux 1584 (dez.)

Henrique de Navarra propriedade de Montaigne

hospeda-se

na

Peste na propriedade; Montaigne foge 1587

Os ensaios, terceira edição

     (out.)

Henrique de Navarra propriedade de Montaigne

1588

Montaigne vai à missão secreta em Paris, acompanha em seguida a corte de Henrique III. Conhece Marie de Gournay

     (mai.)

Dia das Barricadas; Henrique III foge de Paris

      (jun.)

Os ensaios: a “5ª” edição, muito ampliada (a 4ª, caso tenha existido, não deixou traços)

      (10 jul.)

Montaigne libertado

      (outono)

Recupera-se Gournay

      (dez.)

Henrique III manda assassinar o duque de Guise

1588-92

encarcerado na

Picardia

novamente

na com

Bastilha Marie

na

e de

Montaigne trabalha nos últimos acréscimos a Os ensaios

1589 (ago.)

Assassinato de Henrique III; Henrique IV sobe ao trono, com legitimidade contestada

1592 set.)

Montaigne morre de amigdalite

(13

1595

Edição de Marie de Gournay de Os ensaios, referência por três séculos

1601

Morte da mãe de Montaigne, Antoinette de Louppes de Villeneuve Sai o “remix” de Pierre Charron, La Sagesse

1603

Os ensaios, a primeira tradução inglesa, por John Florio

1616

Morte da filha de Montaigne, Léonor

1627

Morte da viúva de Montaigne, Françoise de La Chassaigne

1637

Discurso do método, de Descartes

1645

Morte de Marie de Gournay

1662

Morte de Blaise Pascal, que deixa anotações posteriormente publicadas como as Pensées Os ensaios no Índex de livros proibidos

1685-86

Tradução inglesa de Os ensaios por Charles Cotton

1724

Os ensaios publicados em francês Inglaterra pelo refugiado Pierre Coste

na

1772

Descoberta do diário de Montaigne num velho baú

de

viagem

O “Exemplar de Bordeaux” de Os ensaios,

com anotações, é recuperado num arquivo e usado para autenticar o diário 1789

Revolução Francesa

1800

As autoridades revolucionárias decidem dar novo sepultamento a Montaigne como herói secular, na Académie de Bordeaux, mas o plano não dá certo

1850

Publicação das cartas de Montaigne sobre a peste, causando consternação

1854

Retirada de Os ensaios do Índex de livros proibidos

1880-86

Reforma e transferência do túmulo de Montaigne para a Universidade de Bordeaux

1906

Publicação do primeiro volume da edição Strowski, com base essencialmente no “Exemplar de Bordeaux”

1912

Publicação do primeiro volume da edição Armaingaud, com base essencialmente no “Exemplar de Bordeaux”

2007

Publicação da nova edição Pléiade, com base essencialmente na edição Gournay de 1595

Agradecimentos Meus cinco anos de “servidão voluntária” a Montaigne foram uma extraordinária meia-década, durante a qual aprendi muito — inclusive sobre a generosidade dos amigos, estudiosos e colegas que me ajudaram de tantas maneiras. Quero agradecer particularmente a Warren Boutcher, Emily Butterworth, Philippe Desan, George Hoffmann, Peter Mack e John O’Brien pelo caloroso estímulo, a generosidade de sua ajuda e sua disposição de dar de seu tempo, de seu conhecimento e de sua experiência. Minha gratidão a Elizabeth Jones pelo fornecimento de fascinante material do seu documentário The Man Who Ate His Archbishop’s Liver, assim como a Francis Couturas do Musée d’art et d’archéologie du Périgord, em Périgueux, Anne-Laure Ranoux do Musée du Louvre, Anne-Sophie Marchetto do Sud-Ouest e Michel Iturria, pela autorização de uso de sua caricatura “Enfin! Une groupie!”. Sou também extremamente grata a John Stafford pela permissão para usar suas fotografias. Recorri intensivamente a bibliotecas, entre elas a Bibliothèque nationale de France, a Bibliothèque municipale de Bordeaux, a British Library e a London Library, e agradeço às equipes de todas elas por sua perícia. Muito apreciada foi a generosidade da Stanford University Press ao autorizar tão prontamente a citação da tradução de Donald Frame. O livro foi concluído com a ajuda de uma subvenção Author’s Foundation da Society of Authors, além de uma Carlyle Membership da London Library; quero aqui expressar minha forte gratidão pelas duas.

Como sempre, muitos agradecimentos a minha agente, Zoë Waldie, da Rogers, Coleridge & White, e a minha editora, Jenny Uglow, assim como a Alison Samuel, Parisa Ebrahimi, Beth Humphries, Sue Amaradivakara e a todo mundo na Chatto & Windus que acreditou no livro e ajudou a lhe dar vida. Pela leitura do manuscrito em diferentes momentos de desorientação, aconselhando-me com sabedoria e me garantindo que tudo corria dentro dos planos por menos provável que parecesse, agradeço a Tündi Haulik, Julie Wheelwright, Jane e Ray Bakewell e Simonetta Ficai-Veltroni — que conviveu com Montaigne por tanto tempo e nunca perdeu a fé nele (nem em mim). Conheci Montaigne quando, cerca de vinte anos atrás, em Budapeste, estava tão desesperada por encontrar algo para ler num trem que me arrisquei numa tradução barata de Os ensaios achada num sebo. Era o único livro em inglês na prateleira, e tive sérias dúvidas de que viesse a gostar da leitura. Não tenho ninguém em particular a quem agradecer pelo rumo então tomado pelas coisas; só ao Acaso e à verdade montaigniana de que as melhores coisas da vida acontecem quando a gente não consegue aquilo que pensa que quer.

Notas Exceto quando especificado em contrário, as referências a textos de Montaigne remetem à tradução de Os ensaios por Donald Frame, The Complete Works, tr. e ed. D. Frame (Londres: Everyman, 2005). Em cada caso a menção de volume e capítulo é seguida do número de página em Frame. Informações completas sobre as obras aqui relacionadas apenas por autor ou com títulos resumidos podem ser encontradas em Fontes. P. Como viver? The Oxford Muse: http://www.oxfordmuse.com. Melão: III:13 1031. Sexo: III:13 1012. Cantar: II:17 591. Debate: II:17 587; III:8 871. Estar vivo: III:13 1036. Levin: The Times (2 dez. 1991), p. 14. Pascal: Pascal, Pensées nº 568, p. 131. “Há invariavelmente uma multidão”: Woolf, V., “Montaigne”, 71. “Ao nos encararmos”: “The Mark on the Wall”, in Woolf, V., A Haunted House: The Complete Shorter Fiction (Londres: Vintage, 2003), 79-80. Tabourot et al.: Étienne Tabourot, sieur des Accords, Quatrième et cinquième livre des touches (Paris: J. Richer, 1588), V: f. 65v. Citado in Boase, Fortunes 78 e Millet 62-3. Emerson 92. Gide, A., Montaigne (Londres & Nova York: Blackamore Press, 1929), 77-8. Zweig, “Montaigne” 17. Leitores da Amazon: http://www.amazon.com/Michel-Montaigne-CompletePenguin-Classics/dp/0140446044. Comentários de tepi, Grant, Klurnz, diastolei e lexo-2x. “Estou me contradizendo?”: Whitman, W., “Song of Myself”, in Leaves of Grass (Brooklyn, 1855), 55. “Não posso manter meu tema parado”: III:2 740. A pistola atirava: Saint-Sernin, J. de, Essais et observations sur les Essais du seigneur de Montaigne (Londres: E. Allde, 1626), f. A6r. “É em todo o mundo o único livro”: II:8 338. No próprio traseiro: III:13 1044. Flaubert: Gustave Flaubert a Mlle Leroyer de Chantepie, 16 de junho de 1857, citado in Frame, Montaigne in France 61. 1. P. Como viver? R. Não se preocupe com a morte Rapaz que morreu de febre: I:20 73. “Filosofar é aprender a morrer”: Cícero, Tusculan Disputations I: XXX, 74. Cícero recolheu a ideia no Phaedo de Platão (67 e). Montaigne a utilizou no título de seu ensaio: I:20. Morte de Arnaud, e “Com exemplos tão frequentes e comuns”: I:20 71. “A cada momento”: I:20 72. Montaigne imaginando a cena de seu leito de morte: III:4 771. A morte como um conjunto de alguns maus momentos: III:12 980.

Equitação: não sabemos com exatidão quando o incidente ocorreu, mas Montaigne afirma que foi durante a segunda ou a terceira das guerras civis, o que significa que se deu entre o outono de 1569 e o início de 1570: II:6 326. Sensação de Montaigne de estar fugindo: III:5 811. Sobre Montaigne e a equitação, ver Balsamo, J., “Cheval”, in Desan, Dictionnaire 162-4. Vinhedos distantes: Marcetteau-Paul 137-41. Especulações de Montaigne: Medula: II:12 507. Rêmora: II:12 417. Gata: I:21 901. O relato do acidente e suas consequências por Montaigne: II:6 326-30. Todas as citações das próximas páginas provêm desse relato, salvo indicação em contrário. “Debilitação e estupor”: III:9 914. Petrônio e Tiguilino: III:9 915. Ambos de Tácito: Petrônio de Annals XIV:19; Tiguilino de Histories I:72. Marcelino: II:13 561-2. A fonte é Sêneca, Letters to Lucilius, Letter 77. Ed. Loeb II:171-3. “Eu nunca vi um dos meus vizinhos camponeses”: III:12 980. “Se você não souber como morrer”: III:12 979. “Golpeados e escoriados”, “ainda sinto os efeitos” e recuperação da memória: II:6 330. “Pontos ruins”: III:10 934. 2. P. Como viver? R. Preste atenção Montaigne se retira: a coisa foi oficializada em 23 de julho de 1570, mas a transferência ao sucessor fora assinada em abril de 1570, de modo que ele deve ter tomado a decisão antes. Ver Frame, Montaigne 114-15. Sobre a rejeição de sua candidatura: ibid., 57-8. Inscrição sobre o fim da atividade política: tradução in Frame, Montaigne 115. A crise de Montaigne na maturidade, em comparação com Dom Quixote e Dante: Auerbach, E., Mimesis, tr. W. A. Trask (Princeton, NJ: Princeton University Press, 2003), 348-9. Sobre o castelo e a torre da propriedade de Montaigne, ver Gardeau e Feytaud; Willett; Hoffmann 8-38; Legros 103-26; e Legros, A., “Tour de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 984-7. “Enorme sino”: I:23 94. Estantes: III:3 763. Herança de La Boétie: III:12 984. “Guardo seus manuscritos”: II:18 612. Coleção sul-americana: I:31 187. Moda das bibliotecas particulares: Hale 397. “Quarto no fundo da loja” e “Infeliz o homem”: III:3 763. Pinturas de murais: Willett 219; Gardeau e Feytaud 47-8. Citações nas vigas do teto: Legros. Sobre outras inscrições semelhantes: Frame, Montaigne 9. Sobre a moda de se retirar: Burke 5. “Devemos nos desvencilhar”: I:39 214. Advertências de Sêneca: Sêneca, “Da tranquilidade da mente”, in Dialogues and Letters 34, 45. “Estado de ânimo melancólico”: II:8 337-8. Cavalo desembestado, reflexos na água e outras imagens: I:8 24-5. Sobre os devaneios: Morrissey, R. J., La Rêverie jusqu’à Rousseau: recherches sur un topos littéraire (Lexington, Ky.: French Forum, 1984), esp. 37-43. O devaneio da escrita: II:8 337-8. “Quimeras e monstros fantásticos”: I:8 25.

A salvação está na plena atenção: Sêneca, Letters to Lucilius, Letter 78, ed. Loeb II:199. Escrever para a família e os amigos: “Ao leitor”, Essays I p. 2. Sobre os livros de lugares-comuns, ver Moss, A., Printed Commonplace-Books and the Structuring of Renaissance Thought (Oxford: Clarendon, 1996). Agradeço a Peter Mack pela sugestão de que Montaigne tenha sido em certa medida inspirado a escrever Os ensaios pela leitura da tradução de Plutarco por Amyot. As datas de redação derivam do estudo de Villey in Les Sources: ver Frame, Montaigne 156. Desde então surgiram discordâncias quanto à datação. “Cada homem é uma boa educação para si mesmo”: II:6 331. A fonte é Plínio, História natural XXII: 24. “É uma tarefa espinhosa”: II:6 331. “Eu medito sobre qualquer satisfação” e ser despertado: III:13 1040. Heráclito, Fragmento 50. Heráclito, The Art and Thought of Heraclitus, tr. e ed. C. H. Kahn (Cambridge: Cambridge Universiry Press, 1979), 53. Fluxo da consciência: James, W., The Principles of Psychology (Nova York: Henry Holt, 1890), I:239. Montaigne citando Heráclito: II:12 554. “Ora suavemente, ora violentamente”: II:1 291. Dunas de areia: I:31 183. “Uma perpétua multiplicação e vicissitude das formas”: III:6 841. Branloire: III:2 740. Ver Rigolot 203. Sobre o fascínio do século XVI com fluxos e metamorfoses: Jeanneret, Perpetuum mobile. Teorias sobre sexo com mulheres aleijadas: III:II 963. A fonte no caso de Aristóteles é Problemata X: 24, 893b. Ver Screech 156-7. “Que nossa felicidade não deve ser julgada até depois da nossa morte”: I:19 646. As fontes no caso de Sólon são Heródoto, Histórias I: 86, e Plutarco, “Vida de Sólon”, in Vidas, LVIII. “Se minha mente pudesse firmar-se com solidez”: III:2 740. “Eu não retrato o ser”: III:2 740. “Observar, observar perpetuamente”: Woolf, V., “Montaigne”, 78. Pássaros estorninhos: Huxley, A., Island (Londres: Chatto & Windus, 1962), 15. “Não causará nenhuma comoção” e “precisamos beber depressa”: Sêneca, “Da brevidade da vida”, in Diálogos e cartas 68-9. “Uma consciência espantada consigo mesma”: Merleau-Ponty 322. Espanto e fluidez: Burrow, C., “Frisks, skips and jumps” (resenha de Michel de Montaigne, de Ann Hartle), London Review of Books 6 nov. 2003. “Tento aumentar o seu peso”: III:13 1040. “Quando caminho sozinho” e “quando eu danço, danço”: III:13 1036. 3. P. Como viver? R. Trate de nascer Seu nascimento: I:20 69, e Montaigne, Le Livre de raison, entrada de 28 fev. Sobre o apelido de Micheau: Frame, Montaigne 38. Onze meses: II:12 507-8. “Parece estranho?”: Gargantua, I:3, in Rabelais, The Complete Works 12-14. Honestidade: II:11 377. Pedras nos rins: II:37 701. A “maioria” dos antepassados: III:9 901. Família e nobreza: Frame, Montaigne 7-8, Lazard 26-9; Supple 28-9. Sobre a família Eyquem: Cocula, A.-M., “Eyquem de Montaigne (famille)”, e Balsamo,

J., “Eyquem de Montaigne (généalogie ascendante)”, in Desan, Dictionnaire 381-3. Sobre o negócio dos vinhedos: Marcetteau-Paul. Nobreza da espada: Supple 27-8. Nascimento “in confiniis Burdigalensium et Petragorensium”: Montaigne, Le Livre de raison, entrada de 28 fev. Contexto em Bordeaux: Lazard 12; Frame, Montaigne 5-6. Importação inglesa de vinhos: Knecht, Rise and Fall 8. A maneira como Pierre assinava documentos: ver por exemplo a entrada sobre o nascimento de Montaigne no livro de registros da família: Montaigne, Le Livre de raison, entrada de 28 fev. Ver Lacouture 32. “Se os outros se examinassem com atenção”: III:9 931. Ascendência judaica: a maioria dos biógrafos partiu do princípio de que a família de sua mãe era judia, com a exceção principal de Roger Trinquet (Trinquet, La Jeunesse de Montaigne). Ver Lazard 41 e Frame, Montaigne 17-20. Montaigne sobre os judeus: I:4 42-3, I:56 282, II:3 311. O casamento dos pais de Montaigne e a idade da mãe: Frame, Montaigne 29. Documentos legais de Antoinette e testamentos de Pierre: Lazard 45, e Frame, Montaigne 24-5. Ela permaneceu até aproximadamente 1587: isto se baseia no fato de que, ao redigir seu próprio testamento em 19 de abril de 1597, ela aparentemente já vivia afastada do castelo havia cerca de dez anos. Documento de 30 ago. 1568, e testamento de Antoinette: ambos traduzidos in Frame, Montaigne 247. A indolência de Montaigne e as melhoras promovidas na casa pelo pai: III:9 8824. Ver também II:17 60l-2. O pai de Montaigne: Balsamo, J., “Eyquem de Montaigne, Pierre”, in Desan, Dictionnaire 383-6. Brantôme: P. de Bourdeilles, seigneur de Brantôme, Oeuvres complètes, ed. L. Lalanne (Paris, 1864-82), V: 92-3. Citado in Desan, P., “Ordre de Saint-Michel”, in Desan, Dictionnaire 734, e Supple 39. As histórias de Pierre: I:14 14. Efeito da Itália sobre os soldados franceses: Lazard 32, 14; Frame, Montaigne 10. Montaigne descrevendo o pai: II:12 300-1. Tensões do período de Pierre como prefeito: III:1O 935. “Quero vender pérolas”: I:35 200. O diário deixado de lado e a Ephemeris de Beuther encontram-se na Bibliothèque municipale de Bordeaux. “Sou mesmo um tolo por tê-lo negligenciado”: I:35 201. Uma edição do Beuther em fac-símile, com transcrições, foi publicada como Montaigne, Le Livre de raison. Ver Desan, P., “Beuther”, in Desan, Dictionnaire 100-5, tratando também do diário abandonado. Entre os erros de datação e numeração de Montaigne estão a idade do irmão Arnaud ao morrer em consequência do acidente de tênis (I:20 71; Frame, Montaigne 33), sua própria idade ao se casar (II:8 342), a data de sua detenção em Paris em 1588, que viria posteriormente a corrigir (Montaigne, Le Livre de raison, entradas de 10 de julho e 20 de julho) e a idade de sua primeira filha ao morrer (dedicatória de Montaigne na tradução da Lettre de consolation de Plutarco feita por La Boétie, 1570).

Tarefas deixadas pelo meio: III:9 882. Montaigne fingindo indiferença: III:10 935. Crises de pedras nos rins em Pierre: II:37 701; III:2 746. Testamentos de Pierre: Frame, Montaigne 14. “Rematando algum canto numa velha parede”: III:9 882. “Não se deve tentar superar o próprio pai”: Nietzsche, The Gay Science 142 (s. 210). Iluminados e oráculos: II:12 387. Os Eyquem, famosos pela harmonia: I:28 166. “Por respeito à boa reputação”: citado por Montaigne em sua carta ao pai, publicada em sua edição de La Boétie, La Mesnagerie [etc.], e in Montaigne, The Complete Works, tr. D. Frame, 1285. Os irmãos de Montaigne: Balsamo, J., “Frères et soeurs de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 419-21. Montaigne convivendo com família de camponeses: III:13 1028; Montaigne tornado extraordinário pelo que tinha de comum: II:17 584. Que os filhos “sejam formados pelo destino”: III:13 1028. Horst: Banderier, G., “Précepteur de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 813. “Meu pai e minha mãe”, “sem meios artificiais” e elogios dos professores: I:26 156-7. Inferioridade dos modernos porque aprendiam o latim por meios artificiais: I:26 156. “Nós jogávamos nossas conjugações”, mas pouco conhecimento, depois, do grego: I:26 157. Ver também II:4 318. Despertar ao som de música: I:26 157. Só duas vezes golpeado com uma vara e “sabedoria e tato”: II:8 341. Erasmo: Erasmo, D., De pueris statim ac liberaliter instituendis declamatio (Basileia: H. Froben, 1529). “Todas as investigações de que um homem é capaz”: I:26 156-7. Declínio por falta de prática: II:17 588; exclamação em latim: III:2 746. O caráter efêmero do francês como fonte de liberdade: III:9 913. Comuna latina: Étienne Tabourot, sieur des Accords, Les Bigarrures (Rouen: J. Bauchu, 1591), Livro IV, ff. 14r-v. Também houve experiências de Robert Estienne and François de La Trémouille. Ver Lazard 57-8. Recomendação de Montaigne em matéria de educação: I:26 135-50. “Não existe ninguém que”: III:2 746. Montaigne culpa o pai por mudar de ideia: I:26 157. Sobre outras possibilidades: Lacouture 19-21. Bordeaux na época de Montaigne: Cocula, A.-M., “Bordeaux”, in Desan, Dictionnaire 123-5. Collège de Guyenne: Hoffmann, G., “Étude & Éducation de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 357-9. Currículo de Elie Vinet, Schola aquitanica (1583). Sobre o regime escolar: Lazard 62-3; Trinquet; Porteau, P., Montaigne et la vie pédagogique de son temps (Paris: Droz, 1935). Montaigne afirma ter esquecido seu latim na escola: I:26 158. Montaigne ator: I:26 159. Gouvéa: Gorris Camos, R., “Gouvéa, André”, in Desan, Dictionnaire 438-40. Revolta contra o imposto sobre o sal: Knecht, Rise and Fall 210-11, 246. Fechamento do Collège: Nakam, Montaigne et son temps 85. Morte de Moneins: I:24 115-16.

Sobre Montmorency, a “pacificação” e a perda dos privilégios de Bordeaux: Knecht, Rise and Fall 246-7, Nakam, Montaigne et son temps 81-2. 4. P. Como viver? R. Leia muito, esqueça quase tudo que lê e raciocine com lentidão Leituras de Montaigne e o fato de não ter sido desestimulado pelo tutor: I:26 158. Quanto às hipóteses sobre a identidade do tutor, ver Hoffmann, G., “Étude & éducation de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 357-9. Descoberta de Ovídio por Montaigne: I:26 158. Sobre Ovídio e Montaigne, ver Rigolot, e McKinley, M., “Ovídioe”, in Desan, Dictionnaire 744-5. Primeiras descobertas de Montaigne e “apesar de tudo isso, ainda era a escola”: I:26 158. Esgotada a emoção proporcionada por Ovídio: II:10 361. Emulação de seu estilo ainda assim: II:35 688-9. Villey encontra 72 referências a Ovídio em Os ensaios: Villey, Les Sources I:205-6. Ver Rigolot 224-6. Virgílio suscetível de ser um pouco melhorado: II:10 362. “Diversidade e verdade” do homem e “variedade das maneiras como ele se forma”: II:10 367. Tácito: III:8 873-4. Montaigne sobre Plutarco: “Ele é tão universal”: III:5 809. Ele é “tão cheio de coisas”: II:10 364. “Pensando bem, isso não é nada mau” e moscas num espelho: Plutarco, “Da tranquilidade mental”, Moralia VI, 467C e 473E, ed. Loeb VI: 183, 219. Plutarco aponta aonde devemos ir se quisermos: I:26 140. “Creio conhecê-lo até na própria alma”: II:31 657. Não importa há quanto tempo uma pessoa amada morreu: III:9 927. Montaigne admirava as duas consagradas traduções francesas de Plutarco por Jacques Amyot: Plutarco, Vies des hommes illustres (Paris: M. de Vascosan, 1559), e Oeuvres morales (Paris: M. de Vascosan, 1572), ambas as tr. por J. Amyot. Ver Guerrier, 0., “Amyot, Jacques”, in Desan, Dictionnaire 33-4. Sobre a biblioteca de Montaigne: Sayce 25-6. A coleção se dispersou após sua morte; desde então têm sido feitas tentativas de reconstituir uma listagem. Ver Villey, Les Sources I:273-83: Desan, P., “Bibliothèque”, in Desan, Dictionnaire 108-11. Petrarca, Erasmo e Maquiavel: Friedrich 42. A carta de Maquiavel é citada in Hale 190. Cícero: II:10 365: Virgílio: II:10 362. “Vou percorrendo um livro aqui, outro ali” e “Na verdade, praticamente não faço deles”: III:3 761-2. “Nós, que pouco contato temos”: III:8 873. “Se encontro dificuldades” II:10 361. Lucrécio: Screech, M. A., Montaigne’s Annotated Copy of Lucretius (Genebra: Droz, 1998). “Delicadeza e liberdade”: I:26 157. “A memória é uma ferramenta maravilhosamente útil”: II:17 598. “Nenhum homem tem”: I:9 25. Desejo de lembrar ideias e sonhos: III:5 811. “Estou cheio de rachaduras”: II:17 600. A fonte é Terêncio, O Eunuco, I:105. Linceste: III:9 893. A fonte é Quintius Curtius Rufus, History of Alexander the Great VII:1 8-9. Montaigne sobre falar em público: III:9 893-4.

Tupinambás: I:31 193. Morte de La Boétie: carta de Montaigne ao pai, em sua edição das obras de La Boétie: La Boétie, La Mesnagerie [etc.], e in Montaigne, The Complete Works, tr. D. Frame, 1276-7. Irritação porque as pessoas não acreditavam nele: I:9 25. Sobre sua capacidade de se lembrar de citações, ver Friedrich 31, 338. Baudier: de um comentário em prosa apenso a seus versos em latim, “À nobre heroína Marie de Gournay”, Baudier, D., Poemata (Leyden, 1607), 359-65. Citado in Millet 1518, e Villey, Montaigne devant la postérité 84-5. Malebranche: Malebranche 187-8. Memória fraca requer honestidade: I:9 26-7: II:17 598. Contribui para a concisão das anedotas: I:9 26. Faculta bom-senso: I:9 25. Previne ressentimentos mesquinhos: I:9 27. Stewart: Stewart, D., Elements of the Philosophy of the Human Mind, in Collected Works, ed. W. Hamilton (Edimburgo: T. Constable, 1854-60), II:3701. “Tenho de solicitá-la de maneira relaxada”: II:17 598. O esforço de lembrança faz esquecer: III:5 811. O empenho de esquecimento faz lembrar: II:12 443. “Tudo aquilo que faço com naturalidade e facilidade”: II:17 599. “Tão indolente, relaxado e pesado”: I:26 157. “Não existe sutileza tão transparente”: II:17 600-1. “Compreensão vagarosa”: I:26 157. Uma vez entendida alguma coisa, era para valer: II:17 600. “O que eu via, via bem”: II:10 31. “Ideias ousadas”: I:26 157. Nadolny, S., Die Entdeckung der Langsamkeit (Munique: Piper, 1983), traduzido por R. Freedman como The Discovery of Slowness (Nova York: Viking, 1987). Sobre o Movimento Devagar, ver http://www.slowmovement.com/. Ver também Honoré, C., In Praise of Slow (Londres: Orion, 2005). Existe um World Institute of Slowness: http://www.theworldinstituteofslowness.com/. “Estou quase sempre no devido lugar”: III:2 746. “Incapaz de se submeter”: I:26 159. “Não sei qual dos dois”: III:13 1034. “Lembro-me de que, desde a mais tenra idade”: II:17 582. Apenas “salpicado”: II:17 584. Sobre “onde reside a pequenez” e Sobre “onde está o senhor?”: III:17 590. Falta de respeito por causa da altura: II:17 589-90. Truque da montaria: III:13 1025. Uma constituição forte e sólida: II:17 590. Levando uma bengala: II:25 633. Vestido de preto e branco: I:36 204. Capa: I:26 155. Poema de La Boétie: é o segundo de dois poemas dedicados a Montaigne e incluídos na edição Montaigne das obras de La Boétie: La Boétie, La Mesnagerie [etc.], ff. 102r-103r (“Ad Belotium et Montanum”) e 103v-105r (“Ad Michaëlem Montanum”). Foram publicados in Montaigne Studies 3, nº 1 (1991) com tradução inglesa de R. D. Cottrell (16-47). Toulouse: Montaigne afirma ter conhecido lá o médico Simon Thomas (I:21 82) e menciona o julgamento de Martin Guerre, embora não diga ter comparecido pessoalmente: III:11 959. Paris: III:9 903. Montaigne magistrado: ver Almqvist, K., “Magistrature”, in Desan, Dictionnaire 619-22. Sobre os primeiros anos no Périgueux e a transferência para

Bordeaux: Frame, Montaigne 46-51, com a tradução, por Frame, do relatório do discurso de Montaigne. O trabalho de Montaigne: chegaram a nós cinco das interpretações de Montaigne. Ver Lazard 89. “É mais trabalhoso”: III:13 996. Juiz Cabresto de Ganso: Tiers livre, caps. 39-44, in Rabelais, The Complete Works. Jogando dados: 457. Casos de injustiça: III:13 998. Montaigne sobre o direito: ver Tournon, A., “Justice and the Law”, in Langer (ed.), Cambridge Companion 96-117, e “Droit”, in Desan, Dictionnaire 284-6. Sobre outros críticos contemporâneos do direito, ver Sutcliffe, F., “Montaigne and the European legal system”, in Cameron (ed.), Montaigne and his Age 39-47. Falibilidade dos juízes: II:12 514. Falibilidade das leis: III:13 1000. Viagens a Paris: sabe-se que Montaigne fez várias entre 1559 e 1561. Ver Lazard 91, 107. Henrique II “nunca chamava pelo nome certo”: I:46 244. Sobre o contexto político e religioso francês nas décadas de 1550 e 1560: ver Holt; Knecht, Rise and Fall e The French Civil Wars; Nakam, Montaigne et son temps. “É absurdo”: Michel de L’Hôpital citado in Knecht, Rise and Fall 338. “Todos tivessem o seu Deus” e “Un roi, une foi, une loi”: Elliott, J. H., Europe Divided 1559-1598 (Londres: Fontana, 1968), 93-4, sendo a primeira uma citação do Compenio y breve relación de la Liga (Bruxelas, 1591) de Pedro Cornejo, f. 6. “Grande medo”: Knecht, Rise and Fall 349. Vassy e o início da guerra: ibid., 3525. Pasquier a M. de Fonssomme, primavera de 1562: Pasquier, E., Lettres historiques 98-100. Citado in Holt 50. “Não creio que Deus”: II:23 628-9. As histórias de Monluc: Monluc 246-72. Encomendas de mais rodas para esquartejamento e estacas: Nakam, Montaigne et son temps 144· Montaigne sobre Monluc: II:8 348. O desafio de d’Escars e a reação de Montaigne: ver Frame, Montaigne 53-5, que também traduz o relatório do discurso de Montaigne, com base em Payen, J.F., Recherches sur Montaigne. Documents inédits, nº 4 (Techener, 1856), 20. Admiração de Montaigne pela facção Lagebâton: II:17 609. “Por meu temperamento, estou sujeito a súbitas explosões”: III:5 824. A resposta é discutida in Frame, Montaigne 52-5. 5. P. Como viver? R. Sobreviva ao amor e às perdas La Boétie: ver Cocula; e Magnien, M., Montaigne Studies II (1999) está voltado essencialmente para La Boétie. “Tão inteira e perfeita”: I:28 165. “Tão interessados um pelo outro”: I:28 169. O poema de La Boétie foi incluído na edição Montaigne das obras de La Boétie: La Boétie, La Mesnagerie [etc.], ff. 103v-105r (“Ad Michaëlem Montanum”). Foi publicado in Montaigne Studies 3, nº 1, (1991), com tradução inglesa de Robert D. Cottrell (16- -47), estando igualmente traduzido in Frame, Montaigne 75.

Vontades mergulhando e se perdendo: I:28 170. Sobre a questão do amor e da amizade, ver Schachrer, M. D., “‘That friendship which possesses the soul’: Montaigne loves La Boétie”, Journal of Homosexuality nº 41 3-4 (200I) 5-21, e Beck, W.J., “Montaigne face à la homosexualité”, BSAM 6e sér. 9-10 (jan-jun 1982), 41-50. Feiura: III:12 986. Ver Desan, P., “Laid-Laideur” in Desan, Dictionnaire 561. Sócrates e Alcibíades: Platão, Simpósio 102 (216a-b). “Nossas almas se misturam”, “Se me obrigarem”, e “Nossa amizade não tem outro modelo”: I:28 169. “Muitas vezes eu gostaria”: Platão, Simpósio 102 (216a-b). Montaigne sobre Da servidão voluntária: I:28 175. O manuscrito original nunca foi localizado, sendo conhecido apenas através de cópias, das quais a de Henri de Mesmes é considerada a mais fidedigna. Constitui a base da maioria das edições modernas, entre elas a tradução inglesa aqui usada, de D. L. Schaefer: La Boétie, “Of Voluntary Servitude” (ver “Fontes”). O Rimbaud da sociologia política: Lacouture 86. Ver Magnien, M., “Discours de la servitude volontaire”, in Desan, Dictionnaire 272-6. Nero e Júlio César: La Boétie, “Of Voluntary Servitude”, 210-11. A tirania, misteriosa como o amor: ibid. 194. “Um milhão de homens servindo deploravelmente”: ibid. 192. “É o amor”: coronel Abdullah Nasur, entrevistado em The Man Who Ate His Archbishop’s Liver, Channel 4 (Reino Unido), 12 de março de 2004. Agradeço a Elizabeth C. Jones por esta citação. “Profundo esquecimento da liberdade” e força do hábito: La Boétie, “Of Voluntary Servitude”, 201. Alguns poucos libertados pelo estudo da história: La Boétie, “Of Voluntary Servitude”, 205-6. Objetivos de La Boétie: ver Smith, 53. “Contr’un”, in Reveille-matin des François (1574) e Goulart, S., Mémoires de l’estat de France sous Charles IX (1577, e 2ª ed. 1579). Também seria incluído numa obra intitulada Vive description de la tyrannie. Ver Magnien, M., “Discours de la servitude volontaire”, in Desan, Dictionnaire 273-4, e Smith, M., introdução a sua edição de La Boétie, De la Servitude volontaire (1987), 24-6. Anti-Dictator: La Boétie, Anti-Dictator, tr. H. Kurz (Nova York: Columbia University Press, 1942). Entre essas edições posteriores está uma publicação da tradução de Kurz sob o título The Politics of Obedience: The Discourse of Voluntary Servitude (Nova York: Free Life Editions, 1975), com introdução do libertário Murray Rothbard, reeditada como The Politics of Obedience and Étiene de La Boétie (Montreal e Nova York & Londres: Black Rose Books, 2007); e The Will to Bondage, ed. W. Flygare, com introdução de James J. Martin (Colorado Springs: Ralph Myles, 1974), associando a edição protestante francesa de 1577 com uma tradução inglesa anônima de 1735. “Revolução anônima e de baixa visibilidade de um homem só”: Martin, James J., introdução a La Boétie, The Will to Bondage, ed. W. Flygare (Colorado Springs: Ralph Myles, 1974), ix.

Oposição ao sufrágio feminino: Spooner, L., “Against woman suffrage”, New Age, 24 fev. 1877. Este e outros textos podem ser encontrados em http://www.voluntaryist.com/. A ideia de que é possível promover uma revolução abstendo-se de votar inspirou um romance do escritor português José Saramago, Ensaio sobre a lucidez (São Paulo: Companhia das Letras, 2004). “Parecia que eu mesmo”: Emerson, 92. Todos os comentários de Montaigne sobre Da servidão voluntária: I:28 175-6. Revelação de Montaigne sobre a autoria: ver Magnien, M., “Discours de la servitude volontaire”, in Desan, Dictionnaire 274-5. “Em substituição a essa obra tão séria”: I:28 176. “Estes versos podem ser encontrados em outro lugar”: I:29 177. Os 29 sonetos, traduzidos para o inglês por R. P. Runyon, encontram-se in Schaefer (ed.), Freedom over Servitude 223-35. Poetas da Plêiade: La Boétie, “Of Voluntary Servitude”, 214. “Mas, retornando ao nosso tema”: ibid. 208. “Mas, retornando do ponto em que”: ibid. 215. Atribuição a Montaigne: Armaingaud, A., “Montaigne et La Boétie”, Revue politique et parlementaire 13 (março de 1906), 499-522 e (maio de 1906), 322-48, posteriormente ampliado em seu Montaigne pamphlétaire: l’enigme du “Contr’Un” (Paris: Hachette, 1910). Schaefer, D. L., “Montaigne and La Boétie” in Schaefer (ed.), Freedom over Servitude 1-30, esp. 9-11; e seu Political Philosophy of Montaigne. Sobre Schaefer, ver Supple, J., “Davis Lewis Schaefer: Armaingaud rides again”, in Cameron e Willett (eds.), Le Visage changeant (25er75). Martin, D., “Montaigne, author of Sobre Voluntary Servitude”, in Schaefer (ed.), Freedom over Servitude 127-88 (flauta: 137). Truque contra a impotência: I:21 83-4. Honestidade de Montaigne: I:9 25-30. Falta de talento para jogos: II:17 600-1. Montaigne sobre La Boétie: Travel Journal, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1207. A carta de Montaigne ao pai foi publicada em sua edição das obras de La Boétie: La Boétie, La Mesnagerie [etc.]; também in The Complete Works, tr. D. Frame, 1276-88, de onde foram extraídas as citações que se seguem. “Sua mente fora moldada”: I:28 176. Discordância entre Montaigne e La Boétie sobre a experiência da morte: II:6 327. “Uma sombria e escura noite”: I:28 174. “Fui acometido”: “Travel Journal”, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1207 (entrada de 11 de maio de 1581). “Tenho sentido enorme falta de um homem assim” e “Nenhum prazer tem sabor”: III:9 917. Sêneca sobre a substituição de amigos: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 9. Ed. Loeb I:45. “Algum homem de valor”: III:9 911. “Não é uma tolice”: III:3 755. “Unidas e coladas”: I:39 216. Inscrição a La Boétie: uma reconstituição hipotética foi incluída na edição Thibaudet das obras de Montaigne (Montaigne, Oeuvres complètes, Paris: Pléiade, 1962). Traduções inglesas in Starobinski, Montaigne in Motion, tr. Goldhammer 311 (n. 32) (usada aqui) e Frame, Montaigne 80. Encontrar um homem admirável: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 12. Ed. Loeb I:63. Viver para os outros e para um amigo: ibid. Carta 48, I:315.

“Ele continua presente em mim”: Montaigne, epístola dedicatória (a Henri de Mesmes) em sua edição das obras de La Boétie. La Boétie, La Mesnagerie [etc.], in The Complete Works, tr. D. Frame, 1291. 6. P. Como viver? R. Recorra a pequenos truques Sobre a combinação das filosofias helenísticas em Montaigne e de maneira geral, ver Hadot. Traduções de eudaimonia e ataraxia: Nussbaum 15, exceto ataraxia como “imperturbabilidade” e estar livre de “ansiedade”, encontrado em Popkin xv. Pacúvio: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 12. Ed. Loeb I:71. As duas possibilidades de Lucrécio, citadas por Montaigne: I:20 78. A fonte é Lucrécio, De rerum natura III: 938-42. Fingir que nunca teve: Plutarco, “Para consolo de sua mulher”, Moralia. Ed. Loeb VII: 610. Fingir que perdeu: Plutarco, “Da tranquilidade mental”, Moralia. Ed. Loeb VI: 469-70. Ver o mundo tal como é: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 78. Ed. Loeb II:199. Perguntas à queima-roupa: Epíteto, Discourses II:16 2-3 e III:8 1-5, citado in Hadot 85. Viver “adequadamente”: III:13 1037. “Como é bom”: Marco Aurélio, Meditations, tr. M. Hammond (Harmondsworth: Penguin, 2006), 47 (VI:13). Alçar voo para o céu: ibid. 120 (XII:24). “Contemple mentalmente”: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 99. Ed. Loeb III: 135. Eterno retorno: Ideia encontrada em Nemésio, De natura hominis XXXVII: 147-8, Platão, Timaeus 39d, e Cícero, De natura deorum II:20. Ver White, Michael J., “Stoic natural philosophy (physics and cosmology)”, in Inwood, B. (ed.), Cambridge Companion to the Stoics (Cambridge: Cambridge University Press, 2003), 124-52, e Barnes, J., “La Doctrine du retour éternel”, in Les Stoïciens et leur logique. Actes du colloque de Chantilly 18-22 septembre 1976 (Paris, 1978), 3-20. A ideia seria desenvolvida por Friedrich Nietzsche: ver por exemplo Nietzsche, The Gay Science, s. 341, e Stambaugh, J., Nietzsche’s Thought of Eternal Return (Washington, DC: Center for Advanced Research in Phenomenology & University Press of America, 1988). “Não queira”: Epíteto, Manual VIII: tal como traduzido e citado in Hadot 136. “Se eu tivesse de viver de novo”: III:2 751-2. Crises de asma de Sêneca: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 54. Ed. Loeb I:3635. Licas e Trasilau: II:12 444. História de Licas extraída de Erasmo, Adágios nº 1981: “In nihil sapiendo iucundissima vita”. História de Trasilau extraída de Aeliano, Various Histories IV: 25. “Um pensamento doloroso”: III:4 770. Consolar a viúva: III:4 765. “Fui certa vez atingido”: III:4 769. “Deixei a paixão em paz”: III:4 769. “Suavemente contornar”: III:5 775. Zaleuco: I:43 239. A fonte é Diodorus Siculus, Bibliotheca historica XII: V: 21. “Não ocupe sua cabeça”: III:12 979. “Nossos pensamentos estão sempre em algum outro lugar” e “mal chegando a roçar-lhes a crosta”: III:4 768.

Pasquier a A. M. de Pelgé, 1619, in Pasquier, Choix de lettres 45-6, traduzido in Frame, Montaigne 283. Raemond, Erreur populaire 159. Expilly, C, soneto na edição Goulart dos Essais de Montaigne (1595), e in Poèmes (Paris: A. L’Angelier, 1596), citado in Boase, Fortunes 10. “Somos, não sei como, duplos em nós mesmo”: II:16 570. A ideia de um La Boétie internalizado foi explorada pela primeira vez por Michel Butor in Essais sur les Essais (1968). Montaigne podia ter preferido publicar cartas: I:40 225. Relação senhor/escravo: Wilden, A., “Par divers Moyens on arrive à pareille fin: a reading of Montaigne”, Modern Language Notes 83 (1968), 577-97, esp. 590. “Diligentemente reunido”: epístola dedicatória de Montaigne a La Boétie, “Vers François”, em sua edição das obras de La Boétie: La Boétie, La Mesnagerie [etc.]. A epístola encontra-se in The Complete Works, tr. D. Frame, 1298. Tradução de Sebond: II:12 387-8. O original era Sebond, R. de, Theologia naturalis, sive liber creaturarum (Deventer: R. Pafraet, 1484); traduzido por Montaigne como Sebond, Théologie naturelle (Paris: G. Chaudière, 1569). Sobre Sebond, ver Habert, M., “Sebond, Raimond”, in Desan, Dictionnaire 898-900. “Como na época eu estava por acaso desocupado”: II:12 388. Sobre o tempo levado, ver a epístola dedicatória de Montaigne ao pai, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1289. “Apologia de Raymond Sebond”: II:12 386-556. Marguerite de Valois aparentemente solicitou a Montaigne que a escrevesse em algum momento por volta de 1578-79, depois de ler sua tradução. Ver E. Naya, “Apologie de Raimond Sebond”, in Desan, Dictionnaire 50-4, esp. 51. Sobre esta obra, ver Blum, C. (ed.), Montaigne: Apologie de Raymond Sebond: de la “Theologia” à la “Théologie” (Paris: H. Champion, 1990). “Como a corda”: Cons, L., Anthologle littéraire de la Renaissance française (Nova York: Holt, 1931), 143, traduzido in Frame, Montaigne 170. 7. P. Como viver? R. Questione tudo Estienne: ele faz o relato na introdução a sua edição de Sexto Empírico, Sexti Philosophi Pyrrhoniarum Hypotyposeon libri III, ed. H. Estienne. ([Genebra]: H. Stephanus, 1562), 4-5. O encontro com Hervet é relatado in Popkin 33-4. “Eu retenho”: II:12 454. Sobre o ceticismo pirrônico transmitido a Montaigne e por ele, ver Bailey; Popkin; e Nussbaum. Grãos de areia: Bailey 21-2. Três enunciados da epokhe: Sexto Empírico, Outlines of Scepticism 49-51 (Livro I: 196, 197 e 202 respectivamente). “Se alguém afirma”: II:12 452. Moore, T., Poetical Works, ed. A. D. Godley (Londres: H. Frowde, Oxford University Press, 1910), 278. Histórias sobre Pirro: II:29 647-8. A fonte de todos esses relatos, seja sobre sua indiferença ou a incapacidade de mantê-lo, é Diógenes Laércio, Lives and Opinions of Eminent Philosophers X:52-4. “Ele não queria se transformar numa pedra” e “arregimentar, manipular e fixar a verdade”: II:12 454.

Medalhas ou jetons de Montaigne: um exemplar subsiste em coleção particular. A descrição que delas fez: II:12 477. Ver Demonet, M.-L., A Plaisir: sémiotique et scepticisme chez Montaigne (Orléans: Editions Paradigme, 2002), esp. 3577. “Abrandam e moderam”: III:11 959. Caráter insignificante do conhecimento e assombroso do mundo: III:6 841. “Modéstia” e “profunda necessidade de se surpreender”: Friedrich 132, 130. “Minha base é tão instável”: II:12 516-17. Sobre suas mudanças de opinião: II:12 514. Efeitos da febre, de remédios ou de um resfriado: III:12 515-16. Sócrates delirando: II:2 302 e II:12 500. “Toda a filosofia (...) doida varrida” e “Os filósofos, ao que me parece”: II:12 501. Visão diferente das cores pelos animais: II:12 550. Podemos precisar de oito ou dez sentidos: II:12 541-2. Nossa natureza pode nos impedir de ver as coisas como são: II:12 553. “Nós, e nosso julgamento”: II:12 553. Nos “tornarmos sábios a nossas próprias custas”: II:12 514. “Realmente devemos empenhar nossa alma”: III:13 1034. Sentir prazer nos lapsos de memória: III:13 1002. Sobre a aprovação do ceticismo pirrônico pela Igreja: Popkin 3-6, 34. Uma “infusão extraordinária”: II:12 390. A Igreja tinha o direito de policiar seus pensamentos: I:56 278. “Caso contrário, eu não conseguiria me impedir”: II:12 521. Gatos hipnotizando pássaros: na época de Montaigne, o interesse por esses poderes da “imaginação” não raro coincidia com a descrença em feiticeiras e demônios, pois representava uma explicação alternativa dos fenômenos estranhos. “Mergulho de cabeça”: III:9 902. Este trecho foi criticado in Arnauld, A. e Nicole, P., La Logique ou l’art de penser (Paris: C. Savreux, 1662). Ver Friedrich 287. “Não crucifiquem as pessoas”: Quint 74. Inquisição: “Travel Journal”, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1166. Sobre a providência, ver Poppi, A., “Fate, fortune, providence, and human freedom”, in Schmitt, C. et al. (eds), The Cambridge History if Renaissance Philosopby (Cambridge: Cambridge University Press, 1988), 641-67. Fortificação contra a heresia: Raemond, Erreur populaire 159-60. “Bela Apologia” e “Coisas estranhas cujas razões desconhecemos”: Raemond, L’Antichrist 20-1. Sobre Raemond, ver Magnien-Simonin, C., “Raemond, Florimond de”, in Desan, Dictionnaire 849-50. O peixe-papagaio e outros casos de cooperação: II:12 427-8. Atum matemático: II:12 428. Elefante arrependido: II:12 429. Martim-pescador: II:12 429-30. Polvos e camaleões: II:12 418. “Uma lebre sem pele nem ossos”: II:12 430-1. Bossuet, J.-B., Troisième Sermon pour la fête de tous les saints (1668), citado in Boase, Fortunes 414. Descartes sobre os animais: O Discurso 5 do seu Discurso do método (1637) é dedicado ao tema. Ver Gontier, T., De l’Homme à l’animal: Montaigne et Descartes ou les paradoxes de la philosophie moderne sur la nature des animaux (Paris: Vrin, 1998), e seu “D’un Paradoxe à l’autre: l’intelligence des

bêtes chez Montaigne et les animaux-machines chez Descartes”, in Faye, E. (ed.), Descartes et la Renaissance (Paris: H. Champion, 1999) 87-101. “Quando brinco com minha gata”: II:12 401. “Nós nos divertimos com macaquices recíprocas”: II:12 401n. Este trecho foi incluído na edição póstuma de 1595 e excluído de algumas edições modernas (ver Capítulo 18, acima). “Todo Montaigne”: Lüthy 28. O artigo: Michel, P., “La Chatte de Montaigne, parmi les chats du XVIe siècle”, Bulletin de la Société des Amis de Montaigne 29 (1964), 14-18. O verbete do dicionário: Shannon, L., “Chatte de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 162. “Essa falha” e “Temos uma compreensão medíocre”: II:12 402. A crise de Descartes ao pé do fogão: Descartes, Discurso do método 35-9 (Discurso 2). O argumento de Descartes é apresentado em seu Discurso do método e nas Meditações. “Tudo aquilo que percebo clara e distintamente não pode deixar de ser verdadeiro”: Meditações 148-9 (Meditação 5). “A Meditação de ontem”: Descartes, Meditações 102 (Meditação 2). O demônio do mal: Descartes, Meditações 100 (Meditação 1). Demônios em nuvens e alterando os filamentos do cérebro: Clark 163. Deus enganoso: Descartes, Meditações 98 (Meditação 1). Ver Popkin 187. “Nós somos, não sei por que”: II:16 570. “Não temos comunicação com o ser”: II:12 553. Anotações de Pascal sobre o “FOGO”, datadas de 1654: citado in Coleman, F. X. J., Neither Angel nor Beast (Nova York & Londres: Routledge & Kegan Paul, 1986), 59-60. “Espírito de geometria”: Pascal. B., De l’Esprit geométrique [etc.] (Paris: Flammarion, 1999). “O grande adversário”: Eliot 157. Inutilidade de combater o pirronismo: Pascal, Pensées nº 164, p. 41. “Tudo ele submete a uma dúvida universal” e “tão convenientemente instalado”: Pascal, “Discussão com M. de Sacy”, in Pensées 183-5. “Dentre todos os autores”: Eliot 157. “Não é em Montaigne”: Pascal: Pensées nº 568, p. 131. Montaigne: “Como choramos e rimos”: I:38 208. Pascal: “Portanto, choramos e rimos”: Pascal, Pensées nº 87, p. 22. Montaigne: “Eles querem sair de si mesmos”: III:13 1044. Pascal: “O homem não é anjo nem fera”: Pascal, Pensées nº 557, p. 128. Montaigne: “Ponha-se um filósofo numa jaula”: II:12 546. Pascal: “Se pusermos o maior filósofo do mundo numa prancha”: Pascal, Pensées nº 78, p. 17. “Um caso grave de indigestão”: Bloom, H., The Western Canon (Londres: Papermac, 1996), 150. Borges, J. L., “Pierre Menard, author of the Quixote”, in Fictions (Harmondsworth: Penguin, 1999), 33-43. “Temos em tão alta conta”: Pascal, Pensées nº 30, p. 9. “Parece-me”: I:50 268. “Quem quer que assim olhe para si”: Pascal, Pensées nº 230, pp. 66-7. “Contemplando nossa cegueira”: ibid. nº 229, p. 65. “Em que pensa o mundo?”: Pascal, Pensées nº 513, p. 123. “Sensibilidade humana para as coisas pequenas”: ibid. nº 525, p. 124.

Voltaire: “Sobre as Pensées de Pascal”, em suas Letters On England, tr. L. Tancock (Harmondsworth: Penguin, 1980), Carta 25, 120-45. “Arrisco-me a defender a humanidade”, ibid. 120. “Quando vejo Paris”, ibid. 125. “Que esplêndida ideia”: ibid. 139. “Aceito de todo coração”: III:13 1042. Não podemos nos elevar acima da humanidade: I:12 556. “É uma absoluta perfeição...”: III:13 1044. “Conveniência e calma” e risco moral: Pascal, “Discussão com M. de Sacy”, in Pensées 188 e 191. Malebranche: Malebranche 184-90. “Suas ideias são falsas mas belas”: ibid. 190. “A mente não pode sentir-se satisfeita”: 184. Montaigne o “sedutor”: Guizot, Montaigne: Études et fragments, citado in Tilley 275. A “prodigiosa máquina de sedução”: Mathieu-Castellani, G., Montaigne: l’écriture de l’essai 255. “Pensamentos que surgem naturalmente”: La Bruyère, J. de, Characters, tr. J. Stewart (Harmondsworth: Penguin, 1970). Livro I, nº 44, p. 34 (Tradução de Caractères, 1688). Sobre os libertins, ver Pessel, A., “Libertins – libertinage”, in Desan, Dictionnaire 588-9, e Montaigne Studies 19 (2007), dedicado ao tema. Sobre Marie de Gournay, ver Dotoli, G., “Montaigne et les libertins via Mlle de Gournay”, in Tetel (ed.). Montaigne et Marie de Gournay 105-41, esp. 128-9. Sobre La Fontaine, ver Boase, Fortunes 396-406. La Rochefoucauld: La Rochefoucauld, F. de, Maxims, tr. L. Tancock (Harmondsworth: Penguin, 1959). “Somos às vezes tão diferentes”: ibid. nº 135, p. 51. “A maneira mais certa de se enganar”: ibid. nº 127, p. 50. “O acaso e o capricho”: ibid. nº 435, p. 88. “Com frequência indispomos os outros”: ibid. nº 242, p. 66. Bel esprit: “alegre, vivaz, cheio de entusiasmo” é a definição de Bohours, Entretiens d’Ariste et d’Eugène (1671), 194, citado in Pessel, A., “Libertins – libertinage”, in Desan, Dictionnaire 589. Honnêteté: definição da Académie citada in Villey, Montaigne devant la postérité 339. Ver Magendie, M., La Politesse mondaine et les théories de l’honnêteté, en France, au XVII siècle (Paris: Alcan, 1925). “Um perspicaz coquetismo”: Nietzsche, Human, All Too Human, Aforismo 37, p. 41. “A mais livre e poderosa” e “O fato de este homem ter escrito”: Nietzsche, “Schopenhauer as Educator”, in Untimely Meditations 135. “Se tivesse de viver de novo”: III:2 751-2. Sobre Nietzsche e Montaigne, ver Donellan, B., “Nietzsche and Montaigne”, Colloquia Germanica 19 (1986), 1-20; Williams, W. D., Nietzsche and the French: A Study of the Influence of Nietzsche’s French Reading on his Thought and Writing (Oxford: Blackwell, 1952); Molner, David, “The influence of Montaigne on Nietzsche: a raison d’être in the sun”, Nietzsche Studien 22 (1993), 80-93; Panichi, Nicola, Picta historia: lettura di Montaigne e Nietzsche (Urbino: Quattro Venti, 1995). O ataque de Arnauld e Nicole: Arnauld, A. e Nicole, P., La logique ou l’art de penser (Paris: C. Savreux, 1662), e 2ª ed. (Paris: C. Savreux, 1664). Ver Boase, Fortunes 410-11.

Os livros esgotados são mais fáceis de vender: III:5 781. “Não é em Montaigne”: Pascal, Pensées nº 568, p. 131. 8. P. Como viver? R. Tenha um compartimento privado nos fundos da loja “Nunca pude constatar”: III:5 830. “Eu faço investidas”: III:3 755. Deprimente ser aceito por piedade: III:5 828-9. Não gosta de criar problemas: III:5 800. “Abomino a ideia” e a história do egípcio frenético: III:5 816. “Na verdade, nesse deleite”: III:5 828. “Só com metade do traseiro” e “molho de uma imaginação mais agradável”: III:5 817. “No lugar das partes reais” e “Os danos”: III:5 791. “Mesmo as matronas”: III:5 822. A fonte desta última é Diversorum veterum poetarum in Priapum lusus (Veneza: Aldus, 1517), nº 72(1), f. 15v. e nº 7(4-5), f. 4v., adaptado por Montaigne. “Nossa vida é em parte loucura” e as citações de Bèze e Saint-Gelais: III:5 8223. Bèze, T. de, Poemata (Paris: C. Badius, 1548), f. 54v. Saint-Gelais, “Rondeau sur la dispute des vits par quatre dames”, in Oeuvres poétiques françaises, ed. D. H. Stone (Paris: STFM, 1993), I:276-7. Françoise de La Chassaigne e sua família: Balsamo, J., “La Chassaigne (famille de)” e “La Chassaigne, Françoise de”, in Desan, Dictionnaire 566-8. Sobre Françoise e o casamento: Insdorf, 47-58. Montaigne sobre a idade ideal de Aristóteles: II:8 342. A fonte é Aristóteles, Política VI:16 1335a. Montaigne registrou a data de nascimento de Françoise em seu diário da Ephemeris de Beuther, assim como a de seu casamento: entradas de 13 dez. e 23 set. respectivamente. “As esposas sempre têm tendência”: II:8 347. “Eu advirto (...) minha família”: II:31 660. Sócrates e o moinho d’água: III:13 1010. A fonte é Diógenes Laércio, Vidas e opiniões de filósofos eminentes, II:36. Sócrates valendo-se do temperamento da mulher como prática filosófica: II:11 373. Descrição de Gamaches: Gamaches, C., Le Sensé raisonnant sur les passages de l’Escriture Saincte contre les pretendus réformez (1623), citado in Frame, Montaigne 87. Sua correspondência com Dom Marc-Antoine de Saint-Bernard: Frame, Montaigne 87-8. A torre de Françoise: Gardeau e Feytaud 21. “Meus pensamentos caem no sono”: III:3 763. “Marido e mulher devem ter quartos separados”: Alberti, L. B., On the Art of Building, tr. J. Rykwert, N. Leach e R. Tavernor (Boston, Mass., 1988), 149, citado in Hale 266. “Aquele que supuser”: I:38 210. Sobre opiniões diferentes a respeito do casamento, ver Lazard 146. “Que digam o que quiserem” e “Ninguém tenho, creio eu”: epístola de Montaigne a sua mulher pela tradução da Lettre de consolation de Plutarco por La Boétie, in La Boétie, La Mesnagerie (etc.) e in The Complete Works, tr. D. Frame, 1300. Comentários de Montaigne sobre seu casamento: III:5 783-6.

“Muitas vezes ouvi o autor dizer”: comentários de F. de Raemond em seu exemplar de Os ensaios, citado in Boase, “Montaigne annoté par Florimond de Raemond”, 239, e in Frame, Montaigne 93, de onde foi extraída esta tradução. “Um homem (...) deve tocar a esposa com prudência” e coagulação do esperma: III:5 783. Reis da Pérsia: I:30 179. Sobre essas teorias, ver Kelso, R., Doctrine for the Lady of the Renaissance (Urbana: University of Illinois Press, 1956), 87-9. Melhor que a esposa pratique a licenciosidade com outro: I:30 178. É de qualquer maneira o que as mulheres preferem: III:5 787. Semelhança entre o casamento ideal e a amizade ideal: III:5 785. Mas falta liberdade de escolha, e as mulheres carecem de “firmeza”: I:28 167. “Ferida no coração”: Sand, G., Histoire de ma vie (Paris: M. Lévy, 1856), VIII: 231. Sobre a educação feminina e Louise Labé: Davis, N. Z., “City women and religious change”, in Davis, Society and Culture 72-4. Chegou-se a afirmar que Labé seria pseudônimo de um grupo de poetas do sexo masculino: Huchon, M., Louise Labé: une créature de papier (Genebra: Droz, 2006). “As mulheres não estão erradas”: III:5 787-8. “Machos e fêmeas provêm”: III:5 831. Duplo critério: III:5 789. “Somos em quase todas as coisas juízes injustos”: III:5 819. “Devemos ter esposa, filhos, bens”: I:39 215. Entradas sobre mortes de crianças: Montaigne, Le Livre de raison, entradas de 21 fev., 16 mai., 28 jun., 5 jul., 9 set. e 27 dez. Montaigne sobre a perda dos filhos: I:14 50. Datação de seu acidente de equitação: II:6 326. “No segundo ano”: epístola dedicatória de Montaigne à mulher, pela tradução da Lettre de consolation de Plutarco feita por La Boétie, in La Boétie, La Mesnagerie [etc]. e in The Complete Works, tr. D. Frame, 1300-1. “Constato outros motivos comuns de aflição”: I:14 50. Ensaio sobre a tristeza: I:2 6-9. Data de 1572-74 estabelecida por Donald Frame in sua edição de The Complete Works, p. vii. Níobe: I:2 7. O relato provém de Ovídio, Metamorfoses VI: 304-54 Léonor: ver Balsamo, J., “Léonor de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 575-6. “O governo das mulheres”, o episódio fouteau e a “compleição acanhada” de Léonor: III:5 790. Punição com palavras severas delicadas: II:8 341. “Eu dou as cartas”: I:23 95. O jogo das coisas que se encontram nos extremos: I:54 274. “É horrível”: III:9 882. “Há sempre alguma coisa”: III:9 880. “Fermentar o vinho”: II:17 601. Sobre colheitas ruins, a peste e o uso de sua influência para vender vinho: Hoffmann 9-10. “Eu enfrento bem”: II:17 591. Nunca examinou uma escritura: III:9 884. “Não sei calcular”: II:17 601. Catecismo negativo: cf. I:31 186. Admiração pelo conhecimento prático e específico: III:9 882-3. “Como nunca até hoje me foi imposto senhor nem governador” e “Extremamente indolente, extremamente independente”: II:17 592. “Liberdade e preguiça”: III:9 923. Melhor perder dinheiro que contar cada tostão: II:17 592. Os avaros também são enganados: III:9 884. A história do marquês de Trans: II:8 346. Montaigne não

o cita nominalmente; ele foi identificado por Raemond numa nota marginal. Ver Boase, “Montaigne annoté par Florimond de Raemond”. “Nada me custa caro” e desejo de um genro: III:9 883-4. “Eu evito submeterme”: III:9 897. “Tento não ter necessidade explícita”: III:9 899. “Adquiri um ódio mortal”: III:9 900. Hípias de Élis: III:9 899. O relato é de Platão, Hípias menor 368 b-d, e Cícero, De oratore III:32 127. As “pessoas de espírito livre” de Nietzsche: Nietzsche. Human, All Too Human, Aforisma 291, 173-4. 9. P. Como viver? R. Seja sociável: viva com os outros “Existem temperamentos secretos, recolhidos e introspectivos” e “Meu padrão essencial”: III:3 758. Conversa melhor que livros: I:17 59. “A troca vívida e penetrante”: III:8 871. “Um maravilhoso fulgor”: I:26 140. “Nenhuma afirmação me espanta”: III:8 855. Gosta de ser contestado: III:8 8567. Doce conversa: Raemond, Erreur populaire 159. Nada de “estar sempre atendendo e acompanhando alguém”: III:3 758. Entediado com tagarelice: II:17 587. A atenção vagueia: III:3 754. Mas ele enxerga seu valor: I:13 39. Afabilidade, a arte de bem viver: III:13 1037. “Uma sabedoria alegre e sociável”: III:5 778. Boa vontade: Nietzsche, Human, All Too Human, Aforisma 49, p. 48. Família Foix: ver Balsamo, J., “Foix (famille de)”, in Desan, Dictionnaire 405-8. O homem que dava festas demais: II:8 344. O homem que não usava lenço para se assoar: I:23 96. Florimond de Raemond, contemporâneo de Montaigne, os identificava como Jean de Lusignan e François de La Rochefoucauld respectivamente: ver Boase, “Montaigne annoté par Florimond de Raemond”. Dedicatárias femininas: Diane de Foix, condessa de Gurson (I:26), Marguerite de Gramond (I:29) e Mme d’Estissac (II:8). Ele promoveu uma caçada para Henrique de Navarra em 1584: ver Montaigne, Le Livre de raison, entrada de 19 dez. Sobre as justas: III:8 871. Sobre entretenimentos de salão: I:54 273. Os enigmas provavelmente eram semelhantes aos descritos na coleção Bigarrures, de seu quase contemporâneo Tabourot des Accords: Étienne Tabourot, sieur des Accords, Les Bigarrures (Rouen: J. Bauchu, 1591), [Livro I]. Arremessador de grãos de milhete: I:54 274. Bebê com uma parte sem cabeça de outra criança presa ao torso: II:30 653-4. Pastor hermafrodita: II:30 654. Homem sem braços: I:23 95. Os “monstros” contrariam o hábito, não a natureza: II:30 654. “Não encontrei neste mundo mais evidente monstruosidade”: III:II 958. Negócios da propriedade: ver Hoffmann 14-15. Temendo ser morto durante o sono: III:9 901. Botero: Botero, G., The Reason of State and The Greatest of Cities, tr. R. Peterson e P. J. e D. P. Waley (Londres, 1956), 279, citado in Hale 426. “Um porteiro de antigos modos e hábitos”: II:15 567.

As casas guardadas sofriam mais ataques, com explicação de Sêneca: II:15 5678. A fonte é Sêneca, Lettters to Lucilius, Carta 68. Ed. Loeb II:47. Nenhuma vantagem em assaltar uma casa aberta: II:15 567. “O seu criado pode estar nas fileiras”: II:15 568. Soldados desarmados pela franqueza de Montaigne: III:12 988-90. Ataque na floresta: III:12 990-1. Episódio diferente do assalto por ele sofrido em 1588 a caminho de Paris, igualmente relatado em Os ensaios. Relatos de confronto e submissão: I:1 1-5. O veado: II:11 383. Um crítico, David Quint, considera essa história do veado como uma cena primal revivida através de Os ensaios mas nunca resolvida. Quint 63. Pedir e conceder misericórdia sem submissão nem medo: I:5 20. “Pura e límpida confiança”: I:24 115. “Quando as armas trovejam”: III:1 739. A fonte é Lucan VII:320-2. Epaminondas: II:36 694-6, I:42 229, II:12 415 e (no caso de “no comando da própria guerra”) III:1 738. Ver Vieillard-Baron, J.-L., “Épaminondas”, in Desan, Dictionnaire 330. “Cuidemos de privar”: III:1 739. Cruelmente odiando a crueldade: II:11 379. Ódio a caçadas: II:11 383. Galinha ou lebre: II:11 379. Sobre Montaigne e a crueldade, ver Brahami, F., “Cruauté”, in Desan, Dictionnaire 236-8, e Hallie, P. P., “The ethics of Montaigne’s ‘De la cruauté’”: in La Charité, R. C. (ed.), O un amy! Essays on Montaigne in Honor of Donald M. Frame (Lexington, Ky.: French Forum, 1977), 156-71. “Nem mesmo as execuções da lei”: II:11 380-1. “Sou tão melindroso”: III:12 992. Os franceses e suas outras metades: I:31 193. “É sempre a mesma e única natureza”: 1I:12 416. “Existe certo respeito” e “Não receio admitir”: II:11 385. Pascal, alvo de zombaria de Montaigne: Pascal, “Discussion with M. de Sacy”, in Pensées 188. Leonard Woolf sobre Montaigne e a crueldade, e o afogamento de filhotes: Woolf, L., 17-21. William James: James, W., “On a certain blindness in human beings”, de Talks to Teachers on Psychology (Nova York: Henry Holt, 1912), in The Writings of William James, ed. J. J. McDermott (Chicago: Universiry of Chicago Press, 1977), 629-45. “Deleite e vibração”: 629-31. Esquecê-lo é o pior erro: 644-5. 10. P. Como viver? R. Desperte do sono do hábito “Lembro-me de estar deitada”: Woolf, V., Diary I:190 (entrada de 8 set. 1918). Exemplos de costumes diferentes: I:23 98-9; I:49 263-5; II:12 431-2. “Este vasto mundo”: I:26 141. Batatas das Américas: Hale 173. Perspectivas e aventuras coloniais da França: Knecht, Rise and Fall 287, 297-300 (Brasil), 392-4 (Flórida). Conversa de Montaigne com os tupinambás: I:31193. Sua coleção de objetos das Américas: I:31 187. O criado que conhecia o Brasil e outros aos quais apresentou Montaigne: I:31 182-4.

Leituras de Montaigne: López de Gómara, Historia de las Indias, traduzido para o francês por Martin Fumée em 1568 sob o título Histoire generalle des Indes. Bartolomé de Las Casas, Brevisima relación de la destruccion de las Indias, traduzido para o francês sob o título Tyrannies et cruautés des Espagnols... (1579). Thevet, A., Les Singularitez, e Léry, J. de, Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil (La Rochelle: A Chuppin, 1578). As anedotas de Léry são reproduzidas da moderna tradução inglesa: Léry, History of a Voyage. Idosos sem cabelos brancos: ibid. 56-7. Lutar pela honra: ibid. 112-21. Banquetes canibais: ibid. 122-33. O pé humano: ibid. 163-4. Léry sentindo-se mais seguro: ibid. 169. Canibalismo em Sancerre: Léry, J. de, Histoire mémorable de la ville de Sancerre ([La Rochelle], 1574). Sobre Léry, ver Lestringant, F., Jean de Léry ou l’invention du sauvage, 2ª ed. (Paris: H. Champion, 2005). Incas e astecas: III:6 842. “Trata-se de uma nação”: I:31 186. “Houve um tempo em que não havia cobras”: Kramer, S. N., History Begins at Sumer (Nova York, 1959), 222, citado in Levin 10. Typee: Melville, H., Typee, citado in Levin 68-9. Estoicos: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 90. Ed. Loeb II: 395-431. Sobre os estoicos e o primitivismo, ver Lovejoy, A. O. e Boas. G., A Documentary History of Primitivism and Related Ideas, Vol. I (Baltimore: Johns Hopkins Press, 1934), 106-7. Frutas silvestres: I:31 185. As duas canções dos canibais: I:31 191-2. “Poesia puramente e natural”: I:54 276. Posteridade da canção de amor canibal: Chateaubriand, Mémoires d’outretombe, ed. M. Levaillant e G. Moulinier (Paris: Gallimard, 1964), 247-8 (Livro VII, cap. 9), citado in Lestringant 189. Kleist, Herder e Goethe: ver Langer. U., “Montaigne’s ‘couleuvre’: notes on the reception of the Essais in 18th-century Germany”, Montaigne Studies 7 (1995), 191--202, e Bouillier, La Renommée de Montaigne en Allemaagne 30-1. Sobre Goethe, ver Bouillier, V., “Montaigne et Goethe”, Revue de littérature comparée 5 (1925), 572-93. Sobre os fogões alemães: Moureau, F., “Le Manuscrit du Journal de Voyage: découverte, édition et copies”, in Michel et al. (eds), Montaigne et les Essais 1580-1980, 289-99, esta citação 297. “Eles queimam as vítimas vivas”: I:30 181. “Não lamento”: I:31 189. Coste: Montaigne, Essais, ed. P. Coste (Londres, 1724, e Haia, 1727). Sobre Coste, ver Rumbold, M. E., Traducteur Huguenot: Pierre Coste (Nova York: P. Lang, 1991). Espantado por ter de esperar tanto: por exemplo Nicolas Bricaire de la Dixmerie, Eloge analytique et historique de Michel Montaigne (Amsterdã & Paris: Valleyre l’aîne, 1781), 2. Ver Moureau, F., “Réception de Montaigne (XVIIIe siècle)”, in Desan, Dictionnaire 859. Diderot, D., Supplément au voyage de Bougainville (1796), tradução inglesa de J. Hope Mason e R. Wokler in Diderot, Political Writings (Cambridge: Cambridge University Press, 1992), 31-75. Seguir a natureza para ser feliz: 52-3. Sobre Diderot, ver Schwartz, J., Diderot and Montaigne: the Essais and the Shaping of Diderot’s Humanism (Genebra: Droz, 1966). Sobre Rousseau e Montaigne: ver Fleuret, e Dréano. O exemplar de Os ensaios de Rousseau encontra-se na Biblioteca da Universidade de Cambridge.

Rousseau, Discurso sobre a origem da desigualdade. “Eu vejo um animal”: 26. Condições duras o fortalecem: ibid. 27. A civilização o torna “sociável e um escravo”: ibid. 31. Os selvagens não se matam: ibid. 43. Assassinato debaixo da janela de um filósofo: ibid. 47. Rousseau, Émile. Ver Fleuret 83-121. “Situo Montaigne em posição de destaque”: este prefácio consta da edição Neuchâtel mas não das edições modernas baseadas no manuscrito de Paris. Foi incluído como apêndice na tradução de Angela Scholar: Rousseau, Confessions, 643-9, esta citação 644. “É este o único retrato de um homem”: prefácio da versão de Paris, Rousseau, Confessions 3. “Eu conheço os homens”: Rousseau, Confessions 5· Montaigne “representa a forma inteira da condição humana”: III:2 740. Acusações contemporâneas: Cajot, J., Plagiats de M. J. J. R[ousseau], de Genève, sur l’éducation (Haia, 1766), 125-6. Bricaire de la Dixmerie, N., Eloge analytique et historique de Michel Montaigne (Amsterdã & Paris: Valleyre l’aîne, 1781), 209-76, esta citação 259. 11. P. Como viver? R. Viva com temperança Sobre reações no início do século XIX, especialmente à amizade de Montaigne com La Boétie, ver Frame, Montaigne in France 17-23. Sand: Sand, G., Histoire de ma vie (Paris: M. Lévy, 1856), VIII: 230-1. Lamartine: “Tudo que nele admiro”, “porque é você” e “amigo Montaigne”: Lamartine a Aymon de Virieu, 21 mai. [1811], 26 jul. 1810 e 9 nov. 1809 respectivamente, in Lamartine I:290, I:235, I:178. Sobre visitas à torre, ver Legros. Sobre o estado do castelo antes do século XIX: Willett 221. Compan e Gaillon: citado in Legros 65-75. “Não tenho grande experiência”: II:12 520. “Gosto de pessoas de natureza temperada e moderada”: I:30 177. “Meus excessos não me levam muito longe”: III:2 746. “As vidas mais belas”: III:13 1044. Lamartine volta-se contra Montaigne: Lamartine a Aymon de Virieu, 21 mai. [1811], in Lamartine I:290. Sand “não era discípula de Montaigne”: George Sand a Guillaume Guizot, 12 jul. 1868, in Sand, G., Correspondance (Paris: Garnier, 1964-69), V: 268-9. Sobre Tasso: II:12 441. A poesia pede “frenesi”: II:2 304. Mas “o arqueiro que atira além do alvo”: I:30 178. Não é “um poeta”: Chasles, P., Etudes sur le XVIe siècle en France (Paris: Amyot, 1848), xlix. “Indiferença estoica”: Lefèvre-Deumier, J., Critique littéraire (Paris: Firmin-Didor, 1825-45), 344. Sobre ambos, ver Frame, Montaigne in France 15-16. “A moderação acha-se bela”: Nietzsche, Alvorecer 167 (Livro IV, s. 361). Sobre o êxtase no Renascimento, ver Screech 10. “Os humores transcendentais me assustam”: III:13 1044. Mediocridade: III:2 745. Humano e sub-humano: III:13 1044. Viver adequadamente: III:13 1037. “Não há nada tão belo”: III:13 1039. West, R., Black Lamb and Gray Falcon (Londres: Macmillan, 1941), II:496-7.

12. P. Como viver? R. Preserve sua humanidade Quanto a saber quem estaria por trás do atentado a Coligny, ver Holt 83-5. Sobre os massacres de São Bartolomeu de modo geral, ver Diefendorf, e Sutherland, N. M., The Massacre of Saint Bartholomew and the European Conflict 1559-72 (Londres: Macmillan, 1972). Montaigne nada diz sobre os massacres em Os Ensaios, mas pode ter escrito a respeito em seu diário, a Ephemeris de Beuther — faltam páginas relativas a 24 de agosto e 3 de outubro, as datas dos massacres respectivamente em Paris e Bordeaux. Talvez se arrependesse do que escrevera e tivesse arrancado as páginas, ou então isto teria sido feito por seus descendentes. Ver Nakam, Montaigne et son temps 192. A história dos Lussault é citada in Diefendorf 100-2. Sobre a purificação pelo fogo e a água: Davies, N.Z., “The rites of violence”, in seu livro Society and Culture 152-87, esp. 187. Sobre o número de mortes, ver Holt 94 e Langer, U., “Montaigne’s political and religious context”, in Langer (ed.), Cambridge Companion 14. Os massacres de Bordeaux: Holt 92-4. Canto e alaúdes em Orléans: Holt 93. Interpretação do envolvimento de crianças, escala sobre-humana dos acontecimentos e medalha romana: Crouzet II: 95-8. Medalhas de Carlos IX: Crouzet II: 122-3. Jean La Rouvière: citado in Salmon, J. H. M., “Peasant revolt in Vivarais, 15751580”, in Renaissance and Revolt (Cambridge: Cambridge University Press, 1987), 221-2. Ver Holt 112-14. Apocalipse iminente: ver Cunningham e Grell 19-91, que também analisa cada “cavaleiro”. Lobisomem, gêmeos e nova: Crouzet II: 88-91. “Ruína final”: Gournay, Apology for the Woman Writing [etc.] 138. Postel: Crouzet II: 335. O derradeiro esforço do Diabo: ver Clark 321-6. Wier: Wier, J., De praestigis daemonum (Basileia: J. Oporinus, 1564), citado in Delumeau, 251. Bodin e as feiticeiras: Bodin, J., On the Demon-Mania of Witches, tr. R. A. Scott (Toronto: Centre for Reformation and Renaissance Studies, 1995), tradução de De la Démonomanie des sorciers (Paris: I. Du Puys. 1580), 200 (“rigor legal”) e 198 (comentários públicos “quase infalíveis”). Sobre a reativação de técnicas medievais como afogamento e queimaduras: Clark 590-1. O pânico em torno das feiticeiras mantém-se no auge até aproximadamente 1640, com diferentes picos nos diversos países europeus, causando dezenas de milhares de mortes. Inutilidade da tortura: II:5 322-3. “Pagar um preço muito alto”: III:II 961. Anticristo: História África/Babilônia relatada nas Nouvelles admirables d’un enfant monstre (1587) de Jean de Nury, citado in Crouzet II:370. Raemond: Raemond, L’Antichrist. Ver Magnien-Simonin, C., “Raemond, Florimond de”, in Desan, Dictionnaire 849-50. Ardor sagrado: Crouzet II: 439-44. Entre as publicações protestantes radicais do período estão Francogallia, de Françis Hotman (escrito basicamente em período anterior, mas publicado em 1573 e tendo alcançado grande popularidade em meio aos massacres), Du Droit des magistrats sur leurs subiets (1574), de Théodore de Bèze, e o

Vindiciae contra tyrannos de 1579, por Hubert Languet, embora seja atribuído por certas fontes a Philippe Duplessis-Mornay. Ver Holt 100-1. Os relatos sobre os excessos comportamentais e de indumentária de Henrique III baseiam-se sobretudo em Pierre de L’Estoile, memorialista protestante nem sempre confiável. L’Estoile, P. de, The Paris of Henry of Navarre as vern by Pierre de l’Estoile, ed. N. Lyman Roelker (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1958). Comer com garfo, dormir de camisola, lavar o cabelo: Knecht, Rise and Fall 489. Montaigne sobre as procissões de penitência: I:26 140. Sobre o caráter vago das previsões: I:11 34-5. Caráter imaginário da feitiçaria: III:II 960-1. Riscos da imaginação: Del Rio, M., Disquisitionum magicarum libri sex (1599) e Lancre, P. 212 De l’Incrédulité et mescreance du sortilège (1622), ambos citados in Villey, Montaigne devant la posterité 360, 367-71. Ver Courcelles, D. de, “Martin Del Rio”, e Legros, A., “Lancre, Pierre Rostegui de”, ambos in Desan, Dictionnaire 243-4, 561-2. Politiques: Crouzet II:250-2. “Ele veste a pele de um cordeiro”: Dieudonné, R. de, La Vie et condition des politiques et athéistes de ce temps (Paris: R. Le Fizelier, 1589), 17. Acusações dos politiques contra os liguistas: ver por exemplo Lettre missive aux Parisiens d’un Gentilhomme serviteur du Roy ... (1591), 4-5, citado in Crouzet II:561. Montaigne: “Nosso ardor opera maravilhas” e “Não há hostilidade”: II:12 393-4. Os politiques achavam que tudo se acalmaria: ver por exemplo De la Tranquillité de l’esprit (1588), de Louys Le Caron, L’Irenophile discours de la paix (1594), de Saint-Germain d’Apchon, e La Constance et consolation ès calamitez publiques (1594-5), de Guillaume du Vair. Crouzet II: 555-7. Dentre os críticos que consideram que a experiência de Montaigne é dominada pela guerra destaca-se Frieda Brown: ver Brown, F., Religious and Political Conservatism in the Essais of Montaigne (Genebra: Droz, 1963). Sobre esta questão, ver Coleman, J., “Montaigne and the Wars of Religion”, in Cameron (ed.), Montaigne and his Age 107. Montaigne: “Fico impressionado de constatar” e “Todo aquele que contemplar”: I:26 141. “Será de espantar”:II:16 577. “Não perco esta esperança”: III:9 892. Cartas de Lipsius: Justus Lipsius a Montaigne, 30 Ag. 1588 e 18 Set. 1589, citado in Morford, M. P.O., Stoics and Neostoics: Rubens and the Circle of Lipsius (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1991), 160. Zweig inicialmente indiferente a Os Ensaios: todas essas observações de Zweig, “Montaigne” 8-9. O exílio de Zweig: Zweig, World of Yesterday 430-2. “Não me sinto em casa em lugar algum”: ibid. xviii. “A semelhança de sua época”: Zweig a Jules Romains, 22 Jan. 1942, citado in Bravo Unda, G., “Analogies de la pensée entre Montaigne et Stefan Zweig”, Bulletin de la Société des Amis de Montaigne II, nº 2 (1988), 95-106. “Nessa fraternidade”: Zweig, “Montaigne” 10. A questão para uma pessoa íntegra: Zweig, “Montaigne” 14. “Ele não se sai com as invectivas exaltadas”: ibid. 15. Montaigne empregando seus defeitos: ibid. 76.

Regras extraídas por Zweig: Zweig, “Montaigne” 55-8. Mensagem de suicídio: reproduzida em apêndice a Zweig, World of Yesterday 437. Só restasse a defender um desnudo “eu”: Zweig, “Montaigne” 10. “Só alguém”: ibid. 7. Leonard Woolf: Woolf, L. 18-19. Macé-Scaron: Macé-Scaron 76. Flaubert: Gustave Flaubert a Mlle Leroyer de Chantepie, 16 de junho de 1857, citado in Frame, Montaigne in France 61. 13. P. Como viver? R. Faça algo que ninguém nunca tenha feito Detalhes das primeiras edições de Os Ensaios in “Sources”; ver também Sayce e Maskell. Millanges: ver Hoffmann 66-83. Sobre as duas edições Millanges (1580 e 1582), ver Blum, C., “Dans l’Atelier de Millanges”, in Blum & Tournon (eds), Editer les Essais de Montaigne (79-97). Sobre a tiragem da primeira edição: Desan, P., “Édition de 1580”, in Desan, Dictionnaire 297-300, isto em 300. La Croix du Maine: La Croix du Maine 329. Os Ensaios também aparecia na bibliografia semelhante de Antoine Du Verdier, La Bibliothèque d’Antoine Du Verdier, seigneur de  Vauprivas (Lyon, 1585), artigo sobre “Michel de Montaigne”, 872-81. Os Ensaios se desempenhou melhor do que Montaigne esperava: III:9 895. “Uma peça do mobiliário”: III:5 781. “Meu Senhor, entãoVossa Majestade também gosta de mim”: La Croix du Maine 329. Cf. a referência de Montaigne ao próprio livro como “consubstancal com o autor”: II:18 612. Vinho tinto: Scaliger e Dupuy citados in Villey, Montaigne devant la postérité 73. Do vinho tinto ao branco: III:13 1031. “Insolência”: Malebranche, La recherche de fa vérité (1674), 369, citado in Marchi 48. Pascal: Pascal, Pensées nº 534, p. 127. Pattison: Pattison, M., resenha in Quarterly Review 198 (Set. 1856), 396-415, isto na p. 396. “Tagarelice”: St. John, B., Montaigne the Essayist (Londres: Chapman & Hall, 1858), I: 316-17. “O homem em si mesmo”, o “cerne”: Sterling 323-4. “Volto meu olhar para dentro”: II:17 606. Sobre esta passagem, ver Starobinski 225-6. Ver também Coleman 114-15, que contesta esta tradução. Sobre o caráter barroco ou maneirista de Os Ensaios, ver: Buffum; Butor; Sayce, R. A., “Baroque elements in Montaigne”, French Studies 8 (1954), 1-15; Nakam, G., “Montaigne manieriste”, em seu livro Le dernier Montaigne 195-228; Rigolot, F., “Montaigne’s anti-Mannerist Mannerism”, in Cameron e Willett (eds), Le Visage changeant de Montaigne 207-30. Montaigne: “Grotescos” e “Corpos monstruosos”: I:28 164. Horácio sobre a poesia: Horácio, Ars poetica 1-23. Escrever no ritmo de uma conversa: II:17 587. Ele se refere a seu “langage coupé” nas instruções ao gráfico no exemplar de Bordeaux: ver Sayce 283. “Dos cem membros”: I:50 266. “Das carruagens”: III:6 831-49. Sobre o título deste ensaio, ver Tournon, A., “Fonction et sens d’un titre enigmatique”, Bulletin de la Société des Amis de Montaigne 19-20 (1984), 59--68, e o verbete “Coches”, in Desan, Dictionnaire 175-6. “Da fisionomia”: III:12 964-92.

Thackeray: ver Dédéyan I:288. “Não raro só o denotam por algum indício” e “palavras num canto”: IIl:9 925. Ver McKinley, M. B., Words in a Corner: Studies in Montaigne’s Latin Quotations (Lexington, Ky.: French Forum, 1981). 14. P. Como viver? R. Conheça o mundo “A perene variedade das formas de nossa natureza”: III:9 904. “Sincera curiosidade”: I:26 139. Sentimento da presença de seus heróis clássicos: III:9 928. “Polir e lustrar”: I:26 136. Expulsão das pedras: Diário de Viagem, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1243. O pai, o avô e o bisavô: II:37 702. Terebintina veneziana: Diário de Viagem 1143. O bode: II:37 718-19. Spas: II:37 715-16. Sobre seu percurso e as datas de viagem, ver Diário de Viagem, in The Complete Works, tr. D. Frame. Mattecoulon envolveu-se em duas mortes em duelos. Só foi livrado da prisão por intervenção direta do rei da França. Tudo isto, segundo comentava Montaigne, em obediência a um código de honra que não fazia o menor sentido. II:27 639; Diário de Viagem 1257. Sobre outro jovem que se desgarrou em Pádua, M. de Cazalis, ver Diário de Viagem 1123. Sobre as condições de viagem: Heath, M., “Montaigne and travel”, in Cameron (ed.), Montaigne and his Age 121-32; Hale 145-8. A mudança de rota de Montaigne: Diário de Viagem 1130. A preferência de Montaigne por cavalgar: III:6 833-4. Sobre as viagens fluviais: III:6 834, Diário de Viagem, 1092 e 1116. Sobre os enjoos: Diário de Viagem, 1123. Conforto de uma sela durante um ataque de pedras nos rins: III:6 8334, III:5 811. Seguir com o fluxo: III:9 904-5. “Se à direita a coisa parece feia”: III:9 916. Sobre Virginia Woolf: Woolf, L., Downhill All the Way (Londres: Hogarth, 1968), 1789. “Se deixar levar tranquilamente”: II:17 605. Não havia um caminho: Diário de Viagem, 1115. Levantar tarde: III:9 905; III:13 1024. Dá preferência aos pratos locais e desejaria ter trazido o cozinheiro: Diário de Viagem 1077, 1086-7. Outros viajantes fechados em si mesmos: III:9 9,6-17. “Na verdade, havia em seu julgamento”: Diário de Viagem 1087. Redação do diário em italiano: III:5 807. Seu italiano era bom, embora não perfeito, tendo sido ligeiramente melhorado nas primeiras edições do Diário. Ver Garavini, F., “Montaigne: écrivain italien?” in Blum e Moreau (eds), Études montaignistes 117-29, e Cavallini, C., “Italianismes”, in Desan, Dictionnaire 515-16. Lenço em Augsburgo: Diário de Viagem 1096-7. Batismo: Diário de Viagem, 1094-5. Sinagoga: ibid. 1119. Circuncisão: ibid. 1152-4. Barba e sobrancelha brancas: Diário de Viagem 1063. Travestismo e mudança de sexo: ibid. 1059-60. Hábitos de cama e mesa na Suíça: Diário de Viagem 1072, 1077. Gaiola: Diário de Viagem 1085. Avestruzes: ibid. 1098-9. Espanador de cabelo: ibid. 1096. Portões com controle remoto: ibid. 1099-100. Jardim Fugger: Diário de Viagem 1097-8. Michelangelo: Diário de Viagem 1133.

O Diário de Viagem: ao ser encontrado e publicado, ele foi depositado na biblioteca real e deveria estar atualmente na Bibliothèque nationale, mas desapareceu. Dispomos hoje apenas da versão publicada em 1774, além de um exemplar manuscrito com texto diferente. Ver Moureau, F., “La Copie Leydet du Journal de Voyage”, in Moureau, F. e Bernouilli, R. (eds.), Autour du journal de voyage de Montaigne (Genebra & Paris: Slatkine, 1982), 107-85; e seu “Le manuscrit du Journal de Voyage: découverte, édition et copies”, in Michel et al. (eds), Montaigne et les Essais 1580-1980 289-99; e Rigolot, F., “Journal de voyage”, in Desan, Dictionnaire 533-7. “Três evacuações”: Diário de Viagem 1077. “Tanto pela frente quanto por trás”: ibid. 1078. “Grande e longa como um pinhão”: ibid. 1243. Fogões suíços: ibid. 1078. Sobre o secretário: ver Brush, C. B., “The secretary, again”, Montaigne Studies 5 (1993), 113-38, esp. 136-8. O secretário provavelmente provinha da casa de Montaigne, pois demonstra familiaridade com as aldeias ao redor da propriedade: Diário de Viagem 1089, 1105. Discursos longos: Diário de Viagem 1068-9, 1081. Polônia ou Grécia e “Eu nunca o vi menos cansado”: Diário de Viagem 1115. Veneza: Diário de Viagem 1121-2. Sobre Franco, ver Rigolot, F., “Franco, Veronica”, in Desan, Dictionnaire 418. Ferrara: Diário de Viagem 1128-9. Encontro com Tasso: II:12 441. Esgrima em Bolonha: Diário de Viagem 1129-30. Jardins de truques: ibid. 1132, 1135-6. Chegada a Roma: Diário de Viagem ibid. 1141-3. Funcionários da Inquisição: Diário de Viagem 1166. “Pareceu-me tê-los deixado”: 1178. Roma intolerante mas cosmopolita: Diário de Viagem 1142, 1173. Cidadania romana: Os ensaios II:9 930; Diário de Viagem 1174. Sermões, debates e prostitutas: Diário de Viagem, 1172. Biblioteca do Vaticano: ibid. 1158-60. Circuncisão: ibid. 1152-4. Audiência com o papa: Diário de Viagem 1144-6. Procissão de penitentes: Diário de Viagem 1170-1. Exorcismo: Diário de Viagem 1156. Execução de Catena: ibid. 1148-9; cf. II:11 382 a respeito da violência com cadáveres. Alto das muralhas: Diário de Viagem 1142. Alto das colunas: ibid. 1152. Ruínas de Sêneca e Plutarco: II:32 661. Necessidade de esforço mental: Diário de Viagem 1150-1. Goethe: Goethe, J. W., Italian Journey, tr. W. H. Auden e E. Mayer (Hatmondsworth: Penguin, 1970; repr. 1982): “Os sonhos de minha juventude”: 129 (entrada de 1º nov. 1786); “Sinto-me agora num estado de clareza”: ibid. 136 (entrada de 10 nov. 1786). Freud: Freud, S., “A disturbance of memory on the Acropolis”, in Works, tr. e ed. J. Strachey (Londres: Hogarth, 1953-74), 22 (1964), 239-48, esta citação em 241. “A Roma e a Paris que tenho na alma”: II:12 430. “Desfrutei de um estado de espírito tranquilo”: Diário de Viagem 1239. Loreto: Diário de Viagem 1184-5. La Villa: ibid. 1210, 1240-6. 15. P. Como viver? R. Faça um bom trabalho, mas nem tão bom assim As duas cartas dos juízes e a viagem a Roma: Diário de Viagem 1246-55.

“Eu me desculpei”: III:10 934. A carta do rei: traduzida in Frame, Montaigne 224. Volta para casa: Diário de Viagem 1270, e Montaigne, Le Livre de raison, entrada de 30 nov. Sobre suas tarefas como prefeito e as dificuldades da época: Lazard 282-3; Lacouture 227-8; Cocula, A.-M., Montaigne, maire de Bordeaux (Bordeaux: Horizon chimérique, 1992). Ouvir a todos sem julgar: III:8 855. Sobre Matignon, ver Cooper, R., “Montaigne dans l’entourage du maréchal de Matignon”, Montaigne Studies 13 (2001), 99-140; e seu “Matignon, Maréchal de” in Desan, Dictionnaire 640-4. Sobre a exaustão de Pierre com as viagens: III:10 935. As viagens de Montaigne como prefeito: Frame, Montaigne 230. Seu trabalho no castelo: Nakam, Montaigne et son temps 311. “Foi o que aconteceu no meu caso”: III:10 934. Sobre sua reeleição, enfrentando oposição: Frame, Montaigne 230. Montaigne como intermediário: Frame, Montaigne 212-4. Rebelião de Vaillac e seu exílio de Bordeaux: Frame, Montaigne 238-40. Cartas de Montaigne a Matignon: 22 e 27 de maio de 1585, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1323-7. Admiração dos contemporâneos: Thou, J.-A. de, Mémoires (1714), e DuplessisMornay a Montaigne, 25 nov. 1583, traduzido in Frame, Montaigne, 229, 233. “Ordem” e “suave e discreta tranquilidade”: III:10 953. “Esmorecimento no empenho” e “Esta é muito boa”: III:10 950. Manter uma cidade sem ocorrências especiais durante a “inovação”: III:10 953. Verdadeira motivação de um aparente engajamento: III:10 951. O que o dever impunha: III:10 954. Shakespeare, W., King Lear (escrito c. 1603-6). “Odeio mortalmente parecer um lisonjeador”: I:40 225-6. “Digo-lhes francamente quais são meus limites”: III:1 731. A franqueza torna as pessoas sinceras, e não ser difícil estar entre duas facções: III:1 730. Nem todo mundo entendia: III:1 731. “No fim das contas”: III:8 854. Matignon a Henrique III, 30 de junho de 1585, e a Montaigne, 30 de julho de 1585, ambas traduzidas in Frame, Montaigne 240. Cartas de Montaigne aos juízes de Bordeaux, 30 e 31 de julho de 1585, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1328-9. Decreto proibindo a entrada na cidade: ver Bonnet, P., “Montaigne et la peste de Bordeaux”, in Blum e Moreau (eds), Études montaignistes 59-67, esta citação p. 64. Crítica da decisão de Montaigne: Detcheverry, Grün, Feugère e Lecomte, todos citados in Bonnet, P., “Montaigne et la peste de Bordeaux”, in Blum e Moreau (eds), Études Montaignistes 59-67, esta citação p. 59-62. As cartas foram inicialmente publicadas in Detcheverry, A., Histoire des Israélites de Bordeaux (Bordeaux: Balzac jeune, 1850). “Eu retenho”: II:12 454. Sobre o niilismo nesse período, ver Gillespie, M. A., Nihilism before Nietzsche (Chicago: University of Chicago Press, 1995). Faguet: seus escritos foram reunidos e prefaciados por A. Compagnon em Faguet, Autour de Montaigne. Champion: Champion, E., Introduction aux Essais de Montaigne (Paris, 1900): ver Compagnon, A., Prefácio a Faguet 16.

Guizot: Guizot, G., Montaigne: études et fragments. “Ele não nos transformará nos homens que nosso tempo requer”: ibid. 269. Guizot trabalhou durante 25 anos numa edição de Os Ensaios e num estudo sobre a vida de Montaigne, sem chegar a concluí-los, mas os fragmentos foram reunidos pelos amigos após sua morte. Michelet: Michelet, Histoire de France (1861) VIII: 429 (ideia “fraca e negativa”) e X: 397-8 (“observar a si mesmo sonhando”). Em ambos os casos, citados in Frame, Montaigne in France 42-3. Church, R. W., “The Essays of Montaigne”, in Oxford Essays contributed by Members of the University. 1857 (Londres: John Parker, 1857), 239-82. “Da nulidade do homem (...) na ideia do dever”: ibid. 265. “indolência e falta de tônus moral”: ibid. 280. Sobre Church, ver Dédéyan I: 295-308. As observações de Halifax são reproduzidas na edição Hazlitt (1842) de Montaigne, The Complete Works xxxv. Edição Honoria: Montaigne, Essays, ed. Honoria (1800) (ver “Fontes”). Era um projeto semelhante ao de Henrietta Maria Bowdler em The Family Shakespeare (1807), que gerou o verbo inglês “bowdlerise”, significando expurgar ou censurar. “Se este Os ensaios se tornar adequado” e “Ele também se mostra tão frequentemente desconexo”: introdução de Honoria, xix. Montaigne criticado por não mencionar o massacre de São Bartolomeu: edição Honoria, 104n. Não acordar as crianças com música: ibid. 157n. Montaigne organizando a própria vida, seu conformismo e seus “muitos excelentes sentimentos religiosos”: introdução de Honoria, xviii. “Não sei se seria decoroso admitir”: III:12 975. A questão sucessória e a preferência dos politiques: Nakam, Montaigne et son temps 329-32. Visita de Henrique de Navarra, inclusive a caça ao veado: Montaigne, Le Livre de raison, entrada relativa a 19 dec., na tradução constante in Frame, Montaigne 235. Ainda empenhado num acordo: Montaigne a Matignon, 18 jan. 1585, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1314-15. “Guelfo para os gibelinos”: III:12 972. “Não havia acusações formais”: III:12 972. Assédio de Castillon: Frame, Montaigne 256. “Uma carga pesada de nossos distúrbios”: III:12 969. Peste: III:12 976. Vendo gente cavando o próprio túmulo: III:12 979. “Eu, que sou tão hospitaleiro”: III:12 976. Sobre a atuação política de Montaigne durante seu período como refugiado e depois dele: Frame, Montaigne 247. O convite a Montaigne e sua mulher e a ajuda de custo são mencionados numa carta de Catarina de Médici a um tesoureiro a 31 dec. 1586: ver Frame, Montaigne 267. Montaigne trabalhando com Corisande: Frame, Montaigne 269-70. A missão de Montaigne e as cartas em que é mencionada: Frame, Montaigne 270-3. Preocupação dos ingleses: ibid. 276. Ataque na floresta: Montaigne a Matignon, 16 fev. [1588?], in The Complete Works, tr. D. Frame, 1330-1. Henrique III e Guise em Paris e o Dia das Barricadas: ver Knecht, Rise and Fall 523-4. O comentário do papa: citado in Neale, J. E., The Age of Catherine de Medici, nova ed. (Londres: Jonathan Cape, 1957), 96.

“Eu nunca vi: Pasquier a Sainte-Marthe, maio de 1588, in Pasquier, Lettres historiques 286-97. Detenção e libertação de Montaigne: Montaigne, Le Livre de raison, entradas de 10 e 20 de julho; esta última traduzida in Frame, Montaigne 281. Como sempre, Montaigne se confundiu nas datas: escreveu o comentário inicialmente na página de 20 de julho, deu-se conta do equívoco e voltou a escrevê-lo na página de 10 de julho. A segunda versão é mais sucinta, fosse por achar tedioso escrever a mesma coisa duas vezes ou porque a revisão favorecesse a concisão. “Nenhuma prisão jamais me viu”: III:13 999-1000. Brach: Pierre de Brach a Justus Lipsius, 4 fev. 1593, traduzido in Frame, Montaigne 282. Sobre Brach, ver Magnien, M., “Brache, Pierre de”, in Desan, Dictionnaire 126-8. Sobre Marie de Gournay, ver Capítulo 18 acima. Os conselhos de Pasquier em matéria de estilo e o desinteresse de Montaigne: Pasquier a A. M. de Pelgé, 1619, in Pasquier, Choix de lettres 45-6, traduzido in Frame, Montaigne 283. “Oh, terrível espetáculo!”: Pasquier, Lettres historiques 286-97. Sobre Étienne Pasquier, ver Magnien, C., “Estienne Pasquier ‘familier’ de Montaigne?”, Montaigne Studies 13 (2001), 277-313. Pregadores exortando a matar o rei: ver por exemplo Boucher, J., De justa Henrici tertii abdicatione (ag. 1589). Ver Holt 132. Uma cidade enlouquecida: L’Estoile e Thou, ambos citados in Nakam, Montaigne et son temps 341-2. “Essa questão tão grave”: II:12 392. “Maneira mais exata que temos”: III:2 971. Cartas de Montaigne a Henrique IV: Montaigne a Henrique IV, 18 jan. [1590?] e 2 set. [1590?], in The Complete Works, tr. D. Frame, 1332-6. “Vejo os nossos reis”: III:1 728. Sobre os hábitos masculinos de Henrique IV: Knecht, Rise and Fall, 559-61. Discurso de Henrique IV em 1599: citado in Knecht, Rise and Fall 545-7. 16. P. Como viver? R. Filosofe só por acaso “Livre e insubordinado”: II:17 587. Halifax: carta incluída na edição original da tradução de Cotton (1685-86) e reproduzida na edição de 1842 de Hazlitt, folha preliminar sem numeração. Hazlitt: Hazlitt, W., “Sobre old English writers and speakers”, Ensaio X in The Plain Speaker (Londres: H. Colburn, 1826), II: 277-307, esta citação 305. “A mente inglesa”: Woolf, V., “Reading”, in Essays, ed. A. McNeillie (Londres: Hogarth, 1986-), III:141-61, esta citação 154. “Ao tomar da pena”: Hazlitt 180. “Filósofo não premeditado e acidental” e explicação do que quis dizer com isto: II:12 496-7. Sobre Florio: Yates, John Florio; Pfister, M., “Inglese italianato - Italiano anglizzato: John Florio”, in Höfele, A. e Koppenfels, W. von (eds), Renaissance Go-Betweens: Cultural Exchange in Early Modern Europe (Berlim & Nova York: Walter de Gruyter, 2005), 31-54. Seus manuais de conversação e o dicionário: Florio, J., Firste Fruites (Londres: T. Woodcock, [1578]), Second Frutes (Londres: T. Woodcock, 1591), e A Worlde of Wordes (Londres: E. Blount,

1598). Sua tradução de Os Ensaios: Montaigne, Essayes (1603): ver detalhes em “Fontes”. “Aqui atributos vão de acordo”: Montaigne, Essayes (1915-21), I: 2. “Nossos alemães, afogados em vinho”: II:2 298. “Nossos soldados alemães fanfarrões”: Montaigne, Essayes (1915-21), II:2 17. “Lobisomens, duendes e quimeras”: I:18 62. “Larvas, duendes, monstrengos e outros bichos”: Montaigne, Essayes (1915-21), I:17 67. O número de capítulo é diferente na tradução de Florio porque ela se baseia num texto diferente, o da edição de Marie de Gournay em 1595. Sobre esta questão, ver Capítulo 18 acima. Fala de Gonzalo: The Tempest II. i.145-52. A semelhança é com um trecho do ensaio “Dos canibais”: Montaigne, Essayes (1915-21), I:30 220. Também aqui a numeração dos capítulos é diferente porque as edições se baseiam em textos diferentes. A semelhança foi constatada por Edward Capell em seu livro Notes and Various Readings to Shakespeare (Londres: H. Hughs, [1775]), II:63. Comparação com Hamlet. “Nós somos, não sei como, duplos em nós mesmos”: II:16 570. “Tímido, insolente; casto: II:1 294. Excesso de pensamento imobiliza: II:20 622. Sobre esta questão, ver Boutcher, W., “Marginal commentaries: the cultural transmission of Montaigne’s Essais in Shakespeare’s England”, in Kapitaniak e Maguin (eds), Shakespeare et Montaigne, 13-27, e seu “‘Learning mingled with Nobilitie’: directions for reading Montaigne’s Essais in their institutional context”, in Cameron e Willett (eds), Le Visage changeant de Montaigne, 337-62, esp. 337-9; e o livro de Peter Mack a ser lançado, Shakespeare, Montaigne and Renaissance Ethical Reading. Muito se tem estudado recentemente sobre a datação de Hamlet; acredita-se hoje que a obra data do fim de 1599 ou do início de 1600, o que gera um problema, se partirmos do princípio de que Shakespeare leu a tradução de Florio. Mas sabemos que havia cópias manuscritas desta em circulação muito antes da data de publicação: contemporâneo de Shakespeare, William Cornwallis dizia em 1599 que elas “passavam de mão em mão”. Tema compartilhado: Robertson, J. M., Montaigne and Shakespeare (Londres: The University Press, 1891), citado in Marchi 193. Clima comum também discutido in Sterling 321-2. Bacon escreveu Montaigne: Donnelly, I., The Great Cryptogram: Francis Bacon’s Cipher in the So-called Shakespeare Plays (Londres: Sampson, Low, Marston, Searle & Rivington, 1888), II: 955-65, 971-4. “Bacon” e “seios brancos”: Donnelly II: 971. “Mountaines”: II: 972-3. “Alguém seria capaz de acreditar que tudo isso não passa de mero acidente?” II: 974. Papel de Anthony Bacon: II:955. Sobre os irmãos Bacon: ver Banderier, G, “Bacon, Anthony”, e Gontier, T, “Bacon, Francis”, in Desan, Dictionnaire 89-90. Francis Bacon efetivamente menciona Montaigne em seus Essays, mas não na primeira edição. Cornwallis: Cornwallis, W., Essayes, ed. D. C. Allen (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1946). Burton: Burton, R., The Anatomy of Melancholy (Nova York: NYRB Classics, 2001), I: 17·

Browne: Browne, Thomas, The Major Works (Harmondsworth: Penguin, 1977). Ver Texte, J., “La Descendance de Montaigne: Sir Thomas Browne”, in Etudes de littérature européenne (Paris: A. Colin, 1898), 51-93. Cotton: Montaigne, Essays, tr. Cotton (1685-86): ver detalhes em “Fontes”. Sobre Cotton, ver Nelson, N., “Montaigne with a Restoration voice: Charles Cotton’s translation of the Essais”, Language and Style 24, nº 2 (1991), 13144; e Hartle, P., “Cotton, Charles”, in Oxford Dictionary of National Biography (http://dx.doi.org/1O.1093/ref:odnb/6410), de onde também foi extraído o poema. Pope: citado in Coleman 167. Spectator: Spectator nº 562 (2 de julho de 1714), citado in Dédéyan I: 28. Fazer de maneira agradável: Dédéyan I: 29. O elemento montaignesco: Pater, W., “Charles Lamb”, in Appreciations (Londres: Macmillan, 1890), 105-23, esta citação em 116-17. Comentário de Leigh Hunt: Montaigne, Complete Works (1842), 41, exemplar da Biblioteca Britânica (C.61.h.5). Este trecho I:22 95 na edição Frame. Hazlitt sobre a redação de ensaios: Hazlitt 178-80. O Montaigne de Cotton revisto por Hazlitt: Montaigne, Complete Works (1842). O Montaigne de Cotton revisto pelos dois Hazlitt: Montaigne, Essays, tr. C. Cotton, ed. W. Hazlitt e W. C. Hazlitt (Londres: Reeves & Turner, 1877). Sobre o negócio da família Hazlitt, ver Dédéyan I: 257-8. Sterne: Sterne, L., Tristram Shandy, ed. I. Campbell Ross (Oxford: Oxford Paperbacks, 1998). Referências a Montaigne: 38, 174, 289-90 (Vol. I cap. 4, Vol. 2 cap. 4, Vol. 4 cap. 15). Os diagramas lineares: 453-4 (Vol. 6, cap. 40). Capítulos prometidos: 281 (Vol. 4, cap. 9). “Poderia um historiador”: 64-5 (Vol. 1, cap. 14). 17. P. Como viver? R. Reflita sobre tudo; não se arrependa de nada Joyce, J. Finnegans Wake: exemplos reproduzidos in Burgess, A., Here Comes Everybody, ed. rev. (Londres: Arena, 1987), 189-90. Montaigne como pessoa diferente no passado: III:2 748-9. “Somos todos uma colcha de retalhos”: II:1 296. “Quem não terá percebido... ?” III:9 876. “Não ao seu fim”: Woolf, V., “Montaigne”, 77. Edição de 1588: Montaigne, Essais, “5ª ed” (1588): ver “Fontes”. “É o leitor desatento”: III:9 925. “De minha parte”: III:8 872. “Para incluir mais coisas”: I:40 224. O dedo que aponta de Plutarco: I:26 140. “Ganha força”: anotado na folha de rosto do “Exemplar de Bordeaux”: Montaigne: Essais. Reproduction en fac-similé. A fonte é Virgílio, Eneida, 4: 169-77. “Temo estar piorando”: Montaigne a A. Loisel, inscrição num exemplar da edição de 1588 de Os Ensaios, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1332. 18. P. Como viver? R. Abra mão do controle Sobre Marie de Gournay: Fogel; Ilsley; Tetel (ed.), Montaigne et Marie de Gournay; Nakam, G., “Marie Le Jars de Gournay, ‘fille d’alliance’ de Montaigne

(1565-1645)”, in Arnould (ed.), Marie de Gournay et l’édition de 1595 des Essais de Montaigne, 11-21. Suas obras reunidas estão em Gournay, Oeuvres complètes (2002). “Uma mulher se passando por culta”: Gournay, Apology for the Woman Writing (versão de 1641), na tradução de Hillman e Quesnel em sua edição de Gournay, Apology for the Woman Writing and Other Works, 107-54, esta citação em 126. Emaranhado de intelecto e emoção: Gournay, Peincture des moeurs, in L’Ombre de la demoiselle de Gournay (1626), citado in Ilsley 129. Heléboro: Gournay, Prefácio (1998) 27. “Como é que ele sabia tudo isso a meu respeito?” Levin: The Times (2 dez. 1991), p. 14. “Parece que ele é o meu próprio eu”: Gide, A., Montaigne (Londres & Nova York: Blackamore Press, 1929), 77-8. “Eis aqui um ‘você’”: Zweig, “Montaigne” 17. Encontro: Gournay, Prefácio (1998) 27. Bodkin: I:14 49. No Exemplar de Bordeaux, ele diz apenas “uma menina”, mas a edição da própria Gournay especifica “uma menina da Picardia” que ele encontrou pouco antes de sua viagem a Blois. Trabalhando juntos na Picardia: na verdade, apenas três dos novos acréscimos têm a caligrafia dela. Montaigne: Essais. Reproduction en fac-similé, ff. 42v., 47r e 290v. Ver Hoffmann, G. e Legros, A., “Sécretaires”, in Desan, Dictionnaire 901-4, esta citação em 901. “O homem que tanto me honra chamar de Pai” e “Não posso, Leitor”: Gournay, Prefácio (1998) 27, 29. “Na verdade, se a alguém surpreende”: Gournay, The Promenade of Monsieur de Montaigne, in Gournay, Apology for the Woman Writing [etc.], 21-67, esta citação em 29. Léonor como irmã de Gournay: Ilsley 34. “E não temo”: Gournay, The Promenade of Monsieur de Montaigne, in Gournay, Apology for the Woman Writing [etc.] 21-67, esta citação em 32. “Ele foi meu por apenas quatro anos” e “Quando ele me elogiava”: Gournay, Prefácio a Os Ensaios 99. “Ela é a única pessoa em quem ainda penso” II:17 610. As suspeitas quanto a este trecho remontam a Arthur-Antoine Armaingaud, que o questionou em discurso publicado no primeiro Bulletin of the Société des Amis de Montaigne em 1913. Ver Keffer 129. Ela o eliminou na edição de 1635 de Os ensaios. Sobre o desaparecimento de tiras coladas, ver por exemplo I:18 63n. e I:21 624n. na edição D. Frame das Obras Completas. Sobre as novas encadernações do Exemplar de Bordeaux, ver Desan, P., “Exemplaire de Bordeaux”, in Desan, Dictionnaire 363-8, esta citação em 366. Cartas a Lipsius: Gournay a Lipsius 25 de abril de 1593 e 2 de maio de 1596, traduzidas in Ilsley 40-1 e 79-80; Lipsius a Gournay, 24 de maio de 1593, publicada in Lipsius, J., Epistolarum selectarum centuria prima ad Belgas (Antuérpia: Moret, 1602), I:15, aqui na tradução de Ilsley 42. O Proumenoir: Gournay, M. de, Le Proumenoir de Monsieur de Montaigne (Paris: A. l’Angelier, 1594), traduzido in Gournay, Apology for the Woman Writing [etc.] 21-67. A origem explicada na epístola: 25. Edição de Gournay: Montaigne, Essais (1595): ver “Fontes”.

Sobre as correções de última hora: Sayce e Maskell 28 (entrada 7A); e Céard, J., “Montaigne et ses lecteurs: l’édition de 1595”, dissertação apresentada em 2002, em debate sobre a edição de 1595, na Bibliothèque nationale, 1-2, http://www.amisdemontaigne.net/cearded1595.pdf. Gournay como protetora: Gournay, Preface to the Essays: “Tendo perdido o pai”: 101. “Quando o defendo”: 43. “Não se pode tratar de grandes questões”: 53. “Quem quer que diga de Cipião”: 79. “A excelência supera todo limite” e “arrebatar”: 81. Avaliar as pessoas pelo que pensam de Os ensaios: 31. Diderot: artigo “Pyrrhonienne” na Encyclopédie, citado in Tilley 269. “Não consigo dar um passo”: Gournay, Preface to the Essays 85. Sobre as contradições entre sua personalidade e a de Montaigne: Bauschatz, C. M., “Imitation, writing, and self-study in Marie de Gournay’s 1595 ‘Preface’ to Montaigne’s Essais’, in Logan, M. R. e Rudnytsky, P. L. (eds.), Contending Kingdoms (Detroit: Wayne State University Press, 1991), 346-64, esta citação em 346. “Abençoado és de fato”: Gournay, Preface to the Essays 35. Mudança de ideia a respeito do Prefácio: Gournay a Lipsius, 2 de maio de 1596, citado in McKinley, M., “An editorial revival: Gournay’s 1617 Preface to the Essais”, Montaigne Studies 7 (1996), 193. O prefácio de dez linhas foi usado em todas as edições do século XVII até 1617, quando a versão mais longa foi restabelecida em formato revisto: Montaigne: Essais, ed. Gournay (Paris: J. Petit-pas, 1617). Entrementes, uma versão diferente fora publicada in Gournay, Le Proumenoir (1599). Falta de fé: Gournay, Peincture des moeurs, in L’Ombre (1626). Ver Ilsley 129. Sobre Gournay como secreta libertine: Dotoli, G., “Montaigne et les libertins via Mlle de Gournay”, in Tetel (ed.), Montaigne et Marie de Gournay 105-41. Sobre a Académie: Ilsley 217-42. Convicções de Gournay sobre estilo: Ilsley 20016, e Hohnes, P. P., “Mill de Gournay’s defence of Baroque imagery”, French Studies 8 (1954), 122-31, esta citação 122-9. Epitáfio de Gournay: citado in Ilsley 262. Sobre as oscilações de sua reputação após sua morte: Ilsley 266-77. “Nada poderá equiparar-se”: Niceron, J.-P., Mémoires pour servir à l’histoire des hommes illustres dans la République des lettres (Paris, 1727-45), XVI:231 (1733), citado in Ilsley 270. Gournay como parasita: a acusação foi feita notadamente por Chapelain, ligado a uma pretendida edição rival aos cuidados de Elzevir: ver Boase, Fortunes 54, e Ilsley 255. “Solteirona grisalha”: Rat, M., introduction a Montaigne, Oeuvres complètes (Paris: Gallimard, 1962), em tradução de R. Hillman in Gournay, Apology for the Woman Writing 18. Villey: Villey, Montaigne devant la postérité 44. Reputação refeita: Schiff, M., La Fille d’alliance de Montaigne, Marie de Gournay (Paris: H. Champion, 1910). Romances baseados em sua vida: Mairal, M., L’Obèle (Paris: Flammarion, 2003), e Diski, J., Apology for the Woman Writing (Londres: Virago, 2008). Entre as novas edições críticas temos a de suas obras completas: Gournay, Oeuvres complètes (2002). As guerras editoriais: ver Keffer, inclusive sua tradução das cartas de Cagnieul: 62-3; e Desan, P., “Cinq siècles de politiques éditoriales des Essais”, in Desan, Montaigne dans tous ses états (121-91).

Strowski se jactando: Compagnon, A., “Les Repentirs de Fortunat Strowski”, in Tetel (ed.), Montaigne et Marie de Gournay 53-77, esta citação em 69. Sobre a datação de Armaingaud: Keffer 18-19. Sua atribuição da Servitude volontaire: Armaingaud, A., Montaigne pamphlétaire (Paris: Hachette, 1910). “Só ele o conhece”: Perceval, E. de, artigo in Bulletin de la Société des Bibliophiles de Guyenne (1936), traduzido in Keffer 163. Sobre Villey: Defaux, G., “Villey, Pierre”, in Desan, Dictionnaire 1023-4. Sobre a cegueira: Villey, P., “Le Travail intellectuel des aveugles”, Revue des deux mondes (1 mars 1909), 420-43. Sobre o fato de não ter sido convidado em 1933: Keffer 21. Dentre as posteriores edições do século XX que deram prioridade ao Exemplar de Bordeaux está a edição Pléiade de A. Thibaudet e M. Rat: Montaigne, Oeuvres complètes (Paris: Gallimard, 1962), usada por D. Frame em sua tradução, e a versão revista da edição Villey: Montaigne, Les Essais, ed. P. Villey e V.-L. Saulnier (Paris: PUF, 1965). Hipótese de Dezeimeris: Dezeimeris, R., Recherche sur la recension du texte posthume des Essais de Montaigne (Bordeaux: Gounouihou, 1866). Investigação da logística e sobre esta teoria de maneira geral: Maskell, D., “Quel est le dernier état authentique des Essais de Montaigne?”, Bibliothèque d’humanisme et Renaissace 40 (1978), 85-103, e seu texto “The evolution of the Essais”, in McFarlane e Maclean (eds.), Montaigne: Essays in Memory of Richard Sayce 13-34; Desan, P., “L’Exemplar et L’Exemplaire de Bordeaux”, in Desan, Montaigne dans tous ses états 69-120; Balsamo, J. e Blum, C., “Édition de 1595”, in Desan, Dictionnaire 306-12; Arnould, J-C. (ed.), Marie de Gournay et l’édition de 1595 des Essais de Montaigne; O’Brien. A nova edição Pléiade e a edição Tournon: ver detalhes em “Fontes”. A. Tournon e J. Céard, representando as duas posições, participaram de um debate na Bibliothèque nationale a 9 fev. 2002, “Les deux visages des Essais” (As duas faces de Os ensaios): ver as duas monografias em http://www.amisdemontaigne.net/visagesessais.htm. Simplificação: Montaigne, Essays, ed. Honoria (1800). Charron: Charron, De la Sagesse. Relações dos seres humanos com os animais: 72-86. Sobre Charron, ver Gontier, E., “Charron, Pierre”, in Desan, Dictionnaire 155-9. “Remontagem”: Bellenger 188. Charron, Petit traité de la sagesse (Paris, 1625). Mau copista: Montaigne, Les Essais, ed. Gournay (Paris: Jean Camusat, 1635). Prefácio, citado in Villey, Montaigne devant la postérité, 162. Essências purificadas: L’Esprit des Essais de Montaigne (Paris: C. de Sercy, 1677). Pensées de Montaigne, propres à former l’esprit et les moeurs (Paris: Anisson, 1700), incluindo “Existem poucos livros tão ruins”: 5. “Moby Dick deve ter sido leitura difícil”: Ben Hoyle, “Publisher makes lite work of the classics”, The Times (14 de abril de 2007). “Qualquer resumo de um bom livro é um resumo burro”: III:8 872. “Diferenciados e ondulantes”: I:15. “Duplos em nós mesmos”: II:16 570. O subconsciente e o exemplo de Conley: Conley. A observação de Montaigne de que soube da existência de Roma antes de ouvir falar do Louvre: III:9 927. “Embabuinado”: III:9 928. Conley remete a Cotgrave, R., A Dictionarie of the French and English Tongues (Londres: A. Islip, 1611): embabouyner

significava “enganar, burlar, achar graça, conduzir a um Paraíso de tolos; mamar em; usar como criança”. “Aonde devemos ir, se quisermos”: I:26 140. “O centésimo revisor”: III:13 995. “Veja-se como Platão é manipulado”: II:12 538. “Já se disse o suficiente sobre este livro”: III:13 995. “Um leitor capaz”: I:24 112. “Eu li em Tito Lívio”: I:26 140. “As mentes são entretecidas”: Woolf, V., A Passionate Apprentice: The Early Journals, ed. M. A. Leaska (Londres: Hogarth, 1900), 178-9. Citado in Lee, H., Virginia Woolf (Londres: Vintage, 1997), 171. 19. P. Como viver? R. Seja comum e imperfeito “Eu tive uma vida humilde e inglória”: III:2 740. “Pelo menos esse proveito”: II:37 698. Também, sobre o fato de se habituar às crises de pedra nos rins e à proximidade da morte: III:13 1019. “Num declive suave e praticamente imperceptível”: I:20 76. Ver também III:13 1020, III:13 1030. “Existe algo mais doce”: III:13 1021. Sentir prazer em plena crise: III:5 775. “É um prazer”: III:13 1019. “Já estou me acostumando”: II:37 697. “Um orgulho tolo e decrépito”: III:2 752. “O nosso ser é cimentado”: III:1 726-7. “Complicada e obscura” e “não há necessidade”: II:20 621-2. As cartas de Montaigne a Henrique IV constam de Montaigne, The Complete Works, tr. D. Frame, 1332-6. Sobre os visitantes que recebia: Frame, Montaigne 303-4. Léonor e seus filhos: esta filha, Françoise, morreu na juventude, mas outra filha de Léonor, num segundo casamento, Marie de Gamaches, viria a herdar a propriedade de Montaigne, a qual seria transmitida na família ao longo de séculos. Frame: Montaigne 303-4. Sobre a família Gamaches: Legros, A., “Gamaches (famille de)”, Desan, Dictionnaire 425-6. 20. P. Como viver? R. Deixe a vida responder por si mesma Este relato da morte de Montaigne baseia-se sobretudo no de Pasquier: Pasquier, Choix de lettres 48-9, citado in Frame, Montaigne 304-6. “Criados pálidos e chorosos”: I:20 81-2. Bernard Automne: Automne, B., Commentaire sur les coustumes générales de la ville de Bourdeaux (Bordeaux: Millanges, 1621), citado in Frame, Montaigne 305. Uma análise das causas exatas da morte de Montaigne, promovida pela Société des Amis de Montaigne em 1996, concluiu que ele pode ter sucumbido a um derrame: Eyquem, A. (et al), “La Mort de Montaigne: ses causes rediscutées par la consultation posthume de médecins spécialistes de notre temps”, Bulletin de la Société des Amis de Montaigne, série 8, nº 4 (julho-dez. 1996), 7-16. O relato de Brach: Pierre de Brach a Justus Lipsius, 4 fev. 1593, citado in Villey, Montaigne devant la posterité 350-1, e Millet 64-6. “Seu coração foi levado”: Montaigne, Le Livre de raison, entrada de 13 set. Sobre seu enterro na igreja, ver Legros, A., “Montaigne, Saint Michel de”, e

Balsamo, J., “Tombeau de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 683-4 e 983-4 respectivamente. Os Feuillants: Balsamo, J., “Tombeau de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 9834. Montaigne sobre os Feuillants: I:37 205. Inscrições no túmulo: citadas in Millet 192-3; traduzidas in Frame, Montaigne 307-8. Aventuras póstumas dos restos mortais de Montaigne: Frame, Montaigne 306-7, e Balsamo, J., “Tombeau de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 983-4. Novo sepultamento na época revolucionária: Nicolaï, A., “L’Odyssée des cendres de Montaigne”, Bulletin de la Societé des Amis de Montaigne, série 2, nº 15 (19452), 31-45. “A vida deve ser um objetivo em si mesma”: III:12 980. Virginia Woolf: em seu diário, ela escreveu: “Cada vez mais eu repito minha própria versão do ‘É a vida que importa’ de Montaigne.” Woolf, V., Diary III:8 (entrada de 8 de abril de 1925). Ela diria praticamente a mesma coisa em duas outras entradas: II:301 (5 de maio de 1924) e IV:176 (2 set. 1933), assim como em seu ensaio sobre Montaigne: Woolf, V., “Montaigne”, in Essays IV: 71-81. Sem mais necessidade de Montaigne? Para uma análise dessa possibilidade no imediato pós-guerra, ver Spencer, T. “Montaigne in America”, The Atlantic 177, nº 3 (março de 1946), 91-7. Não podemos agradar ao céu na Terra cometendo homicídio: I:30 181.

Fontes Obras escritas, traduzidas ou editadas por Montaigne La Boétie, E. de, La Mesnagerie de Xenophon, Les règles de mariage de Plutarque, Lettre de consolation de Plutarque à sa femme. Ed. M. de Montaigne (Paris: F. Morel, 1572 [i.e. 1570]). Montaigne, M. de, Oeuvres complètes. Ed. A. Thibaudet e M. Rat (Paris: Gallimard, 1962). (Antiga edição Pléiade) ____ The Complete Works. Tr. C. Corton, ed. W. Hazlitt (Londres: J. Templeman, 1842). ____ The Complete Works. Tr. e ed. D. Frame (Londres: Everyman, 2005). (Publicação original Palo Alto: Stanford Universiry Press, 1943) ____ Le Livre de raison de Montaigne sur l’Ephemeris historica de Beuther. Ed. J. Marchand (Paris: Compagnie Française des Arts Graphiques, 1948). (Edição em fac-símile do diário de família de Montaigne) ____ Essais (Bordeaux: S. Millanges, 1580). 2ª ed. (Bordeaux: S. Millanges, 1582). 3ª ed. (Paris: J. Richer, 1587). 5ª ed. (Paris: A. L’Angelier, 1588). Uma edição em fac-símile do exemplar de “Bordeaux” anotado desta edição foi publicada sob o título Montaigne: Essais. Reproduction en fac-similé de l’exemplaire de Bordeaux de 1588. Ed. R. Bernouilli (Genebra: Slatkine, 1987). Ed. M. de Gournay (Paris: A. L’ Angelier, 1595). Ed. P. Coste (Londres: J. Tonson & J. W. Watts, 1724). Ed. P. Coste (Haia: P. Gosse & J. Nealme, 1727). Ed. P. Villey e V.-L. Saulnier (Paris: PUF, 1965). Ed. A. Tournon (Paris: Imprimerie nationale, 1988). Ed. J. Balsamo, M. Magnien e C. Magnien-Simonin (Paris: Gallimard, 2007) (Pléiade). ____ Essayes. Tr. J. Florio (Londres: V. Sims for E. Blount, 1603). Tr. J. Florio (Londres: Everyman, 1915-21). ____ Essays. Tr. C. Cotton (Londres: T. Basset, M. Gilliflower, W. Hensman, 168586). Tr. C. Cotton, ed. W. Hazlitt e W. C. Hazlitt (Londres: Reeves & Turner, 1877). ____ Essays, Selected from Montaigne with a Sketch of the Life of the Author. Ed. Honoria (Londres: T. Cadell, W. Davies & E. Harding, 1800). ____ The Complete Essays. Tr. M. A. Screech (Londres: Penguin, 2004). (Publicação original Londres: Allen Lane, 1991) ____ Journal de voyage. Ed. M. de Querlon (Roma & Paris: Le Jay, 1774). Ed. F. Garavini (Paris: Gallimard, 1983). Ed. F. Rigolot (Paris: PUF, 1992). ____ “Travel Journal”, in The Complete Works (ed. D. Frame), 1047-1270.

Sebond, R. de, Théologie naturelle. Tr. M. de Montaigne (Paris: G. Chaudière, 1569). Outras obras Arnould, J.-C. (ed.), Marie de Gournay et l’édition de 1595 des Essais de Montaigne. Actes du colloque (1995) (Paris: H. Champion, 1996). Bailey, A., Sextus Empiricus and Phyrrhonian Scepticism (Oxford: Clarendon Press, 2002). Bellenger, Y., Montaigne: une fête pour l’esprit (Paris: Balland, 1987). Blum, C. e Moreau, F. (eds.), Études montaignistes en hommage à Pierre Michel (Paris: Champion, 1984). Blum, C. e Tournon, A. (eds.), Editer les Essais de Montaigne. Actes du colloque tenu à l’Université Paris IV-Sorbonne les 27 et 28 janvier 1995 (Paris: H. Champion, 1997). Boase, A. M., “Montaigne annotée par Florimond de Raemond”, Revue du XVIe siècle, 15 (1928), 237-278. ____ The Fortunes of Montaigne: A History of the Essays in France, 1580-1669 (Londres: Methuen, 1935). Bouillier, V., La Renommée de Montaigne en Allemagne (Paris: Champion, 1921). Brunschvigg, L., Descartes et Pascal, lecteurs de Montaigne (Neuchâtel: La Baconnière, 1942). Buffum, I., Studies in the Baroque from Montaigne to Rotrou (New Haven: Yale University Press, 1957). Bulletin de la Société des Amis de Montaigne. Burke, P., Montaigne (Oxford: Oxford Paperbacks, 1981). Butor, M., Essais sur les Essais (Paris: Gallimard, 1968). Cameron, K. (ed.), Montaigne and his Age (Exeter: University of Exeter Press, 1981). Cameron, K. e Willett, L. (eds.), Le visage changeant de Montaigne/The Changing Face of Montaigne (Paris: H. Champion, 2003). Charron, P., De la Sagesse livres trois (Bordeaux: S. Millanges, 1601). ____ Of Wisdome: Three Bookes, tr. S. Lennard (Londres: E. Bloum & W. Aspley [s.d. – antes de 1612]). (Também em fac-símile: Amsterdã: Theatrum Orbis Terrarum; Nova York: Da Capo, 1971) Clark, S. Thinking with Demons: The Idea of Witchcraft in Early Modern Europe. Nova ed. (Oxford: Oxford University Press, 1999). Cocula, A.-M., Étienne de La Boétie (Bordeaux: Sud-Ouest, 1995). Coleman, D. G., Montaigne’s Essais (Londres: Allen & Unwin, 1987). Compagnon, A., “Montaigne chez les post-modernes”, Critique, 433-4 (juin-juillet 1983), 522-534. Conley, T., “A suckling of cities: Montaigne in Paris and Rome”, Montaigne Studies, 9 (1997), 167-186. Crouzet, D., Les Guerriers de Dieu (Seyssel: Champ Vallon, 1990). Cunningham, A. e Grell, O. P., The Four Horsemen of the Apocalypse (Cambridge: Cambridge University Press, 2000). Davis, N. Z., Society and Culture in Early Modern France (Londres: Duckworth, 1975).

____ “A Renaissance text to the historian’s eye: the gifts of Montaigne”, Journal of Medieval and Renaissance Studies, 15 (1985), 47-56. Dédéyan, C., Montaigne chez les amis anglo-saxons (Paris: Boivin, 1946). Delumeau, J., La Peur en Occident, XIVe-XVIIIe siècles (Paris: Fayard, 1978). Desan, P., “Montaigne en lopins ou les Essais à pièces décousues”, Modern Philology, 88, nº 4 (1991), 278-291. ____ Montaigne dans tous ses états (Fassano: Schema, 2001). ____ Portraits à l’essai: iconographie de Montaigne (Paris: H. Champion, 2007). ____ (ed.), Dictionnaire de Montaigne (Paris: H. Champion, 2004); nova ed. 2007. Descartes, R., Discourse on Method and The Meditations, tr. F. E. Sutcliffe (Harmondsworth: Penguin, 1998). (Tradução de Discours de la méthode, 1637 e Meditationes de prima philosophia, 1641) Diefendorf, B., Beneath the Cross (Oxford: Oxford University Press, 1991). Dréano, M., La Renommée de Montaigne em France au XVIIIe siècle (Bordeaux: Editions de l’Ouest, 1952). Eliot, T. S., “The Pensées of Pascal”, in Selected Prose (Londres: Faber, 1975). Emerson, R. W., “Montaigne; or, the Skeptic”, in Representative Men (1850), in Collected Works, ed. W. E. Williams e D. E. Wilson, Vol. IV (Cambridge, Mass. & Londres: Belknap Press of Harvard University Press, 1987), 83-105. Faguet, E., Autour de Montaigne (Paris: H. Champion, 1999). Fleuret, C, Rousseau et Montaigne (Paris: A.-G. Nizet, 1980). Fogel, M., Marie de Gournay: itinéraires d’une femme savante (Paris: Fayard, 2004). Frame, D., Montaigne in France, 1812-1852 (Nova York: Columbia University Press, 1940). ____ Montaigne’s Discovery of Man (Nova York: Columbia University Press, 1955). ____ Montaigne: A Biography (Londres: H. Hamilton, 1965). Friedrich, H., Montaigne, tr. D. Eng, ed. P. Desan (Berkeley: University of California Press, 1991). (Tradução do alemão: Montaigne, 1947). Gardeau, L. e Feyraud, J. de, Le Château de Montaigne (Paris: Société des Amis de Montaigne, 1984). Gournay, M. de, Oeuvres complètes, ed. J.-C. Arnould, E. Berriot, C. Blum et al. (Paris: H. Champion, 2002). ____ Apology for the Woman Writing and Other Works, ed. e tr. R. Hillman e C. Quesnel (Chicago & Londres: Chicago University Press, 2002). ____ Le Proumenoir de Monsieur de Montaigne (Paris: A. L’Angelier, 1594). ____ “Préface” (versão de 1595), em sua edição de Montaigne, Essais (Paris: A. L’Angelier, 1595). ____ Preface to the Essays of Michel de Montaigne. By his adoptive daughter, Marie Le Jars de Gournay, tr. e ed. R. Hillman e C. Quesnel, com base na edição de F. Rigolot (Tempe, Arizona: Medieval & Renaissance Texts & Studies, 1998). ____ Égalité des hommes et des femmes (Paris, 1622). ____ Apologie pour celle qui escrit (versão de 1626), e Peincture des moeurs, in L’Ombre de la demoiselle de Gournay (Paris: J. Libert, 1626). ____ Apologie (versão de 1641), in Les advis ou Les présens de la demoiselle de Gournay, 3ª ed. (Paris: T. du Bray, 1641). Gray, F., Le Style de Montaigne (Paris: Nizet, 1958).

Greengrass, M., Governing Passions: Peace and Reform in the French Kingdom, 1576-1585 (Oxford: Oxford University Press, 2007). Guizot, G., Montaigne: études et fragments, ed. M. A. Salles (Paris: Hachette, 1899). Hadot, P., Philosophy as a Way of Life, ed. Arnold I. Davidson, tr. M. Chase (Oxford: Blackwell, 1995). Hale, J., The Civilization of Europe in the Renaissance (Londres: HarperCollins, 1993). Hartle, A., Michel de Montaigne: Accidental Philosopher (Cambridge: Cambridge University Press, 2003). Haydn, H., The Counter Renaissance (Nova York: Scribner, 1950). Hazlitt, W., “On the periodical essayists”. Lecture V in Lectures on the Comic Writers (Londres: Taylor & Hessey, 1819), 177-208. Hoffmann, G., Montaigne’s Career (Oxford: Clarendon Press, 1998). Holt, Mack P., The French Wars of Religion, 2ª ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 1995). Horowitz, M. C., “Marie de Gournay, editor of the Essais of Michel de Montaigne: a case-study in mentor-protegée friendship”, Sixteenth Century Journal, 17 (1986), 271-284. Ilsley, M. H., A Dautghter of the Renaissance: Marie le Jars de Gournay, her Life and Works (Haia: Mouton, 1963). Insdorf, C., Montaigne and Feminism (Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 1977). Jeanneret, M., Perpetuum mobile (Paris: Argô, 2000). ____ Perpetual Motion: Transforming Shapes in the Renaissance from da Vinci to Montaigne, tr. N. Pollet (Baltimore & Londres: Johns Hopkins Universiry Press, 2001). Kapitaniak P. e Maguin, J.-M. (eds.), Shakespeare et Montaigne: vers un nouvel humanisme (Montpellier: Société française Shakespeare, 2004). Keffer, K., A Publication History of the Rival Transcriptions of Montaigne’s “Essays” (Lewiston, NY: E. Mellen, 2001). Knecht, R. J., The French Civil Wars, 1562-1598 (Harlow: Longman, 2000). ____ The Rise and Fall of Renaissance France (Londres: Fontana, 1996); nova ed.: Oxford: Blackwell, 2001. La Boétie, E. de, Mémoire sur la pacification des troubles, ed. M. Smith (Genebra: Droz, 1983). ____ De la Servitude volontaire, ou, Contr’un, ed. M. Smith (Genebra: Droz, 1987). ____ Slaves by Choice, tr. M. Smith (Egham, Surrey: Runnymede Books, 1988). ____ “Of Voluntary Servitude”, tr. D. L. Schaefer, in Schaefer (ed.), Freedom over Servitude: Montaigne, La Boétie, and On Voluntary Servitude (Westport, Conn.: Greenwood Press, 1998), 189-222. Lacouture, J., Montaigne à cheval (Paris: Seuil, 1996). La Croix du Maine, François Grudé, seigneur de, “Messire Michel de Montagne”, in Premier volume de la Bibliothèque du sieur de la Croix-dumaine (Paris: Abel L’Angelier, 1584), 328-330. Lamartine, A., Correspondance, 2e série (1807-29), ed. C. Croisille e M.-R. Morin (Paris: H. Champion, 2004).

Langer, U. (ed.), The Cambridge Companion to Montaigne, (Cambridge: Cambridge Universiry Press, 2005). Lazard, M., Michel de Montaigne (Paris: Fayard, 1992). Legros, A., Essais sur poutres. Peintures et inscriptions chez Montaigne (Paris: K1incksieck, 2000). Léry, J. de, History of a Voyage to the Land of Brazil, tr. J. Wharley (Berkeley: Universiry of California Press, 1990). (Tradução de Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, 1578) Lestringant, F., Cannibals: The Discovery and Representation of the Cannibals from Columbus to Jules Verne, tr. R. Morris (Cambridge: Polity Press, 1997). (Tradução de Le cannibale, 1994) Levin, H., The Myth of the Golden Age in the Renaissance (Londres: Faber, 1970). Lüthy, Herbert, “Montaigne, or The Art of Being Truthful”, in H. Bloom (ed.), Michel de Montaigne (Nova York: Chelsea House, 1987), 11-28. (Publicado originalmente in Encounter, nov. 1953, 33-44) Macé-Scaron, J., Montaigne: notre Nouveau philosophe (Paris: Plon, 2002). Magnien, M., Etienne de la Boétie (Paris: Memini Paris, CNRS Éditions, 1997). Magnien-Simonin, C., Une Vie de Montaigne, ou Le sommaire discours sur la vie de Michel Seigneur de Montaigne (Paris: H. Champion, 1992). Malebranche, N., The Search after Truth, tr. e ed. T. M. Lennon e P. J. Olscamp (Cambridge: Cambridge University Press, 1997). (Tradução de La Recherche de la vérité, 1674) Marcetteau-Paul, A., Montaigne propriétaire foncier: inventaire raisonné du Terrier de Montaigne conservé à la Bibliothèque municipale de Bordeaux (Paris: H. Champion, 1995). Marchi, D., Montaigne among the Moderns (Providence, RI & Oxford: Berghahn Books, 1994). Maskell, D., “Quel est le dernier état authentique des Essais de Montaigne?”, in Bibliothèque d’humanisme et Renaissance, 40 (1978), 85-103. Mathieu-Castellani, G., Montaigne: l’Écriture de l’essai (Paris: PUF, 1988). ____ Montaigne ou la vérité du mensonge (Genebra: Droz, 2000). McFarlane, I. D. e Maclean, Ian (eds.), Montaigne: Essays in Memory of Richard Sayce (Oxford: Clarendon Press, 1982). McGowan, M., Montaigne’s Deceits: The Art of Persuasion in the “Essais” (Londres: University of Londres Press, 1974). Merleau-Ponty, M., “Lecture de Montaigne”, in Éloge de la philosophie et autres essais (Paris: Gallimard, 1960), 321-347. Michel, P. et al. (eds.), Montaigne et les Essais 1580-1980: Actes du Congrès de Bordeaux (Paris: H. Champion; Genebra: Slatkine, 1983). Millet, O., La Première Réception des Essais de Montaigne (1580-1640) (Paris: H. Champion, 1995). Monluc, B. de, The Commentaries of Messire Blaize de Montluc (Londres: A. Clark for H. Brome, 1674). (Tradução de Commentaires, 1592). Montaigne Studies Nakam, G., Montaigne et son temps: les événements et les “Essais” (Paris: Nizet, 1982).

____ Les Essais de Montaigne: mirroir et procès de leur temps (Paris: Nizet, 1984). ____ Le dernier Montaigne (Paris: H. Champion, 2002). Nietzsche, F., Untimely Meditations, tr. R. J. Hollingdale (Cambridge: Cambridge University Press, 1983). (Tradução de Unzeitgemässe Betrachtungen, 1876) ____ Human, All Too Human, tr. M. Faber e S. Lehmann (Londres: Penguin, 1994). (Tradução de Menschliches, allzu menschliches, 1878) ____ Daybreak, tr. R. J. Hollingdale (Cambridge: Cambridge University Press, 1982). (Tradução de Morgenröte, 1881) ____ The Gay Science, tr. W. Kaufman (Nova York: Random House, 1991). (Tradução de Die fröhliche Wissenschaft, 1882) Nussbaum, M. C., The Therapy of Desire (Princeton: Princeton University Press, 1994). O’Brien, J., “Are we reading what Montaigne wrote?”, French Studies, 58 (2004), 527-532. Pascal. B., Pensées and Other Writings, tr. A. e H. Levi (Oxford: Oxford World’s Classics, 1999). Pasquier, E., Choix de lettres, ed. D. Thickett (Genebra: Droz, 1956). ____ Lettres historiques pour les années 1556-1594, ed. D. Thickett (Genebra: Droz, 1966). Platão, Symposium, tr. W. Hamilton (Harmondsworth: Penguin, 1951). Plutarco, Moralia, tr. W. C. Helmbold. Ed. Loeb (Londres: W. Heinemann; Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1936-57). Popkin, R., The History of Scepticism from Erasmus to Spinoza (Berkeley: University of California Press, 1979). Pouilloux, J.-Y., Lire les “Essais” de Montaigne (Paris: Maspero, 1970). Quint, D., Montaigne and the Quality of Mercy: Ethical and Political Themes in the Essais (Princeton: Princeton University Press, 1998). Rabelais, F., The Complete Works, tr. J. Le Clerc (Nova York: The Modern Library, 1944). Raemond, F. de, Erreur populaire de la papesse Jane, 2ª ed. (Bordeaux: S. Millanges, 1594). ____ L’Antichrist (Lyon: Jean Pillehotte, 1597). Rigolot, F., Les Métamorphoses de Montaigne (Paris: PUF, 1988). Rousseau, J.-J., Discourse on the Origin of Inequality, tr. F. Philip, ed. P. Coleman (Oxford: Oxford University Press, 1994). (Tradução de Discours sur l’origine et les fondaments de l’inégalité parmi les hommes, 1755) ____ Émile, tr. Allan Bloom (Londres: Penguin, 1991). (Tradução de Émile, 1762) ____ Confessions, tr. A. Scholar (Oxford: Oxford University Press, 2000). (Tradução de Les Confessions, 1782) Sayce, R. A., The Essays of Montaigne: A Critical Exploration (Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1972). Sayce, R. A. e Maskell, D., A Descriptive Bibliography of Montaigne’s Essais 1580-1700 (Londres: Bibliographical Society & Modern Humanities Research Association, 1983). Schaefer, D. L., The Political Philosophy of Montaigne (Ithaca & Londres: Cornell University Press, 1990).

____ (ed.), Freedom over Servitude: Montaigne, La Boétie, and On Volunrary Servitude (Westport, Conn.: Greenwood Press, 1998). Screech, M. A., Montaigne and Melancholy (Harmondsworth: Penguin, 1991). Sêneca, Ad Luciliun epistulae morales [Cartas a Lucílio], tr. Richard M. Gummere. Ed. Loeb (Cambridge, Mass: Harvard University Press; Londres: W. Heinemann, 1917-25). ____ Dialogues and Letters (Harmondsworth: Penguin, 2005). Sextus Empiricus, Outlines of Scepticism, ed. J. Annas e J. Barnes (Cambridge: Cambridge University Press, 2000). Smith, M. C., Montaigne and Religious Freedom: The Dawn of Pluralism (Genebra: Droz, 1991). Starobinski, J., Montaigne in Motion, tr. A. Goldhammer (Chicago: Chicago University Press, 1985). (Tradução de Montaigne en mouvement, 1982). Srerling, J., “Montaigne and his Essays”, Londres and Westminster Review, 29 (1838), 321-352. Supple, J. J., Arms versus Letters: The Military and Literary Ideals in the “Essais” of Montaigne (Oxford: Clarendon Press, 1984). Tetel, A. (ed.), Montaigne et Marie de Gournay: actes du colloque international de Duke (Paris: H. Champion, 1997). Thevet, A., Les Singularitez de la France antarctique (Paris: Les héritiers de Maurice de la Porte, 1557). Tilley, A., “Montaigne’s interpreters”, in Studies in the French Renaissance (Cambridge: Cambridge University Press, 1922), 259-293. Trinquet, R., La jeunesse de Montaigne (Paris: Nizet, 1972). Villey, P., Les Sources et l’évolution des Essais de Montaigne (Paris: Hachette, 1933). ____ Montaigne devant la posterité (Paris: Boivin, 1935). Willett, L., “Romantic Renaissance in Montaigne’s chapel”, in Yannick Portebois e Nicholas Terpstra (eds.), The Renaissance in the Nineteenth Century - Le XIXe Siècle renaissant (Toronto: Centre for Reformation and Renaissance Studies, 2003), 217-240. Woolf, L., The journey Not the Arrival Matters (Londres: Hogarth, 1969). Woolf, V., The Diary of Virginia Woolf, ed. A. Oliver Bell (Londres: Penguin, 198085). ____ “Montaigne”, in Essays, ed. A. McNeillie (Londres: Hogarth, 1986-), IV: 7181. Yates, F. A., John Florio: The Life of an Italian in Shakespeare’s England (Cambridge: Cambridge University Press, 1934). Zweig, S., The World of Yesterday (Lincoln, Nebr.: University of Nebraska Press, 1943). ____ “Montaigne”, in Europäisches Erbe, ed. R. Friedenthal (Frankfurt am Main: S. Fischer, 1960), 7-81.