Como fazer teologia : hermenêutica teológica
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Table of contents :
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
I. DA TEOLOGIA COMO HERMENÊUTICA
1. Do saber à interpretação
2. A hermenêutica em processo
3. Dogmática ou hermenêutica
4. A liberdade hermenêutica do teólogo
II. O TESTEMUNHO INTERPRETATIVO DA FÉ
5. A ressurreição de Cristo como testemunho interpretativo
6. A hermenêutica atéia do título Filho do Homem em Ernst Bloch
7. Do Deus do teísmo ao Deus crucificado
8. "Pai" como nome próprio de Deus
9. Explosão da história e senhoria de Cristo
III - A PRÁTICA DOS CRISTÃOS REINTERPRETA O CRISTIANISMO
10. O testemunho da fé numa cultura não-cristã
11. A função ideológica da secularização
12. O cristianismo como via
13. Por uma interpretação cristã dos direitos do homem
14. A reinterpretação da missão da Igreja
NOTA BIBLIOGRÁFICA

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Claude Geffré

Como Fazer Teologia Hoje hermenêutica teológica



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. EP

Coleção TEOLOGIA HOJE Skalom: Paz! Novas perspectivas do sacramento da reconciliaçlJo, B. Haering Medicina e manipulação, B. Haering Moral e evangelização hoje, B. Haering O presente crítico da Igreja, R. M. Roxo A /g,eja e seus modelos, A. Dulles A linguagem teológica - Como /alar de Deus hoje?, B. Mondin Antropologia teológica, B. Mondin Os grandes teólogos do século XX - 110I. 1: Os teólogos católicos, B. Mondin Os grandes teólogos do século XX - vol. 2: Os teólogos protestantes e ortodoxos, B. Mondin O culto a Maria lw/e, Diversos Teologia da Revelação, René Latourelle, sj Teologia, ciência da salvação, René Latourelle, sj A., novas eclesiologias, B. Mondin Jesus de Nazaré, história de Deus, Dew da histdria, Bruno Forte O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré - 3 vols., Juan Luís Segundo Novos caminhos da moral, Marciano Vidal Ensaio de ética sexual, Jaime Snoek A doutrina tradicional da Providência, implicações sociopollticas, Roque Frangiotti Vida e reflexão - Contributo da Teologia da Libertação ao pensamento teológico, VV. AA. O sacramento do amor, Paulo Evdokimov Por uma Igreja mais humana, Edward Schillebeeckx Como fazer teologia hoje, Claude Geffré

Claude Geffré

COMO FAZER TEOLOGIA HOJE Hermenêutica teológica

Edições Paulinas

Titulo original Le chrlstlanlame au risque de l'lnterprétatlon © Les 1:dltlons du Cerf, Paris, 1983 Tradução Ben&nl Lemo• Revisão Edson Graclndo

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) lnternaclonnl (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

G265c

Geffré, Claude. Como fazer teologia hoje; hermenêutica teológica/ Claude Geffré; (tradução Benôni Lemos; revisão bdson Gra­ cinda). - São Paulo: Ed. Paulinas, 1989. (Coleção teologia hoje) Bibliografia. ISBN 85-05-00951-7

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1 . Hermenêutica - Aspectos religiosos - Cristianis­ mo 2. Teologia - Metodologia 3. Teologia - Século 20 1. Título. II. Título: Hermenêutica teológica. Ili. Série: Teologia hoje. CDD-2J0 018 -220 601 -230.0904 fndices para catálogo sistemático:

1. 2. 3. 4. 5.

Hennenêutica bíblica 220. 601 Metodologia: Teologia dogmática cristã 230 018 Século 20: Teologia dogmática cristã 230 0904 Teologia: Século 20: Cristianismo 230 0904 Teologia dogmática cristã: Metodologia 230.018

8) EDIÇÕES PAULINA$ TELEX 111) 39464 iPSSP BRl Rua Dr. Pinto FerrH, 183 04117 SÃO PAULO - SP ENO. TELEGR.: PAULINOS

Com aprovação eclesiástica

©

EDIÇÕES PAULINAS - SÃO PAULO - 1989 ISBN U-05,00851•7

INTRODUÇÃO "O que me interessa é 'a interpretação' enquanto dá à palavra uma vida que ultrapassa o instante e o lugar nos quais ela foi pronunciada ou transcrita. O termo 'interpretação' reúne todas as nuanças adequa­ das." George Steiner ( Apres Babel, p. 3 7) Quando publiquei Un nouvel âge de la théologie, em 1972, um de meus críticos terminou sua recensão, saudando meu livro como uma nova idade da Apologética... Havia nisso uma dose de ironia, já que eu me empenhava justa­ mente em mostrar os impasses de certa apologl!tica, quer use ela argumentos racionais exteriores à fé, quer trilhe os caminhos de pesquisa existencial, partindo da análise das implicações da subjetividade humana. Quanto ao mais, nada tenho contra a apologética. A teologia cristã, em sua longa hist6ria, não cessou de exercer função defensiva. Mas por que deve o teólogo ser considerado suspeito de apologética, no sentido pejorativo, toda vez que se esforça simplesmente por mostrar a pertinência do Ministério cristão para a inte­ ligência e a prática do homem de hoje? Para evitar se­ melhante caricatura do t_rnbalho teol6giço, ter-me-ia sido ne­ cessário, talvez, medir a distância que separa a apologética, no sentido clássico, da teologia fundamental, que eu já defi­ nia então como "hermenêutica da Palavra de Deus e da exis­ tência humana". Agora, anos depois, insisto e assino, se assim me posso exprimir. Apresentando estes ensaios de hermenêutica teo­ lógica sob o título de "O cristianismo sob o risco da inter• pretação ", 1 peço antes de tudo a atenção para a ambiva­ lência do termo "risco". Evidentemente o risco da inter­ pretação - nunca devemos esquecê-lo - é o risco da de1 O Autor aqui etitá se referindo ao título original, em frands: Le christianisme au risque de l'interprltation. (N. do E.)

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formaçio, da distorção e do próprio erro. Mas, quando se trata do cristianismo, é também o risco puro e simples da E,. A intenção deste livro é fazer com que se compreenda melhor que a fé só é fiel ao seu impulso e ao que lhe i dado crer se levar a uma interpretação criativa do cris­ tianismo. O risco de, por falta de audácia e lucidez, só trans­ mitir um passado morto não é menos grave do que o do erro. Não ignoro o processo moderno feito contra a herme­ nbtica, sobretudo no contexto cultural francês ( d. cap. 2). Mas, sem fazer da hermenêutica um cavalo de Tr6ia que ponha abaixo todos os obstáculos no caminho da compreen110 teológica, insisto em que a teologia é, do começo ao fim, empreendimento hermenêutico. Não se trata somente de constatar que, desde o começo da Igreja, a teologia não deixou de reinterpretar o Antigo Testamento à luz do Novo e que não deixou de reinterpretar a mensagem cristã em função das sucessivas mudanças culturais ( mostram-no os trabalhos históricos de Henri de Lubac). Trata-se, tam· bém, de tomar a sério a hermenêutica como dimensão intrín­ seca do conhecimento, enquanto moderno, e de tirar disso todas as conseqüências para a teologia como inteligência da fé. Que todo ato de conhecimento é ato de interpretação, sabemo-lo melhor depois que emergiu, no século XIX, a nova "consciência histórica", e depois que, graças ao mé­ todo analítico e à crítica das ideologias, estamos mais pre­ venidos contra as ilusões e os preconceitos inerentes a todo ato de conhecimento pretensamente objetivo. Isso é tão certo que hoje em dia se aceita definir o próprio conhecimento científico como conhecimento interpretativo, e que a distin­ ção cLissica ( d. Dilthey) entre as ciências da natureza sob o signo do explicar e as ciências humanas sob o signo do compreender perdeu muito de sua pertinência. Assim, a que­ rela, em nome do estruturalismo, contra a hermenêutica co­ mo método de leitura dos textos, sob pretexto de que ela seria, por natureza, prisioneira de compreensão metafísica das relações do sinal e do significado, parece-me debate menor em relação ao que está em jogo nesse novo paradig-

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ma representado pela teologia compreendida como herme­ nêutica. E, além disso, a possibilidade de leitura estrutural das Escrituras, como também da tradição cristã, viria con­ firmar o destino fatalmente hermenêutico da teologia nos tempos modernos. Com teólogos como Edward Schillebeeckx e David Tra­ cy, que são também colegas e amigos, compreendo cada vez mais a função presente da teologia como correlação crítica e mútua entre a interpretação da tradição cristã e a interpre­ tação de nossa experiência humana contemporânea.2 Seja qual for a diversidade dos temas abordados nesta obra, o método pressuposto é sempre este, mesmo quando tal não for expli­ citado. Insisto em que não posso reler a tradição cristã fazendo abstração do que, sem dificuldade, chamo de estados de consciência do homem contemporâneo. Mas significa tam­ bém que não posso interpretar nosso mundo atual da expe­ riência, com toda a sua ambigüidade, sem ser habitado pelo mundo da experiência cristã. Nós pertencemos à linguagem muito mais do que a possuímos, como pertencemos à histó­ ria muito mais do que a dominamos. Como poderia o teó­ logo decifrar a experiência do homem contemporâneo, sem estar informado pelos efeitos conscientes ou inconscientes de séculos de tradição judaico-cristã? Esse processo de interação mútua, no qual não posso dissociar minha interpretação dos textos da tradição cristã de minha experiência atual, conduz necessariamente ao risco de interpretação criativa da men­ sagem cristã. Conheço bem o abuso moderno do termo "cria­ tividade", que pode disfarçar a incapacidade de explorar as r:quezas do passado. Mas quando falo de interpretação cria­ tiva, não se trata de interpretação arbitrária que pretendesse surgir ex nihilo. Trata-se muito mais de retomada, sem re­ petição, da mensagem cristã, que só é fiel a si mesma à medida que gera novas figuras históricas na forma de es2 Um resumo do método henneneutico de E. Schillebeeckx pode ser encontrado na edição francesa, apresentada por J. Doré, de seu pequeno livro Expbience humaine et foi en /ésus-Christ, Cerf, Paris, 1981. Quanto a D. Tracy, cf. Blessed Rage for Order, Seabucy Presa, Nova lorque, 197S, e The analogical lmagination, Cro6S Road, Nova Iorque, 1981.

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crituras ou de práticas inéditas. Para reconhecermos o ca­ ráter criativo de qualquer interpretação, devemos demis­ tificar a ilusão de sentido que estaria atrás do texto ( na consciência de seu autor, na reconstituição de seu contexto sócio-histórico ou na sua primeira recepção) ou mesmo no próprio texto. O sentido deve ser procurado muito mais no "na frente" que está no ponto de encontro do horizonte do texto com o nosso horizonte de compreensão. Essa interação do texto e do intérprete nos remete à imagem que se tornou clássica em hermenêutica depois de Gadamer, a da conversação. Mas embora Gadamer seja o primeiro a reivindicar, contra as pretensões à objetividade pura do Iluminismo, :1 importância da tradição, na qual se inscreve todo intérprete, o modelo da conversação ainda pode evocar a ilusão de transparência entre o texto e o intérprete. Hoje essa hermenêutica ideal deve ser substituí­ da por uma hermenêutica da suspeita, que se interroga de maneira crítica sobre os pressupostos conscientes ou não de nossa pré-compreensão como também sobre as condições de produção dos textos a interpretar. Voltando ao exemplo da conversação, é próprio do método analítico justamente ma­ nifestar os sentidos latentes, reprimidos, paradoxais do dis­ curso que se instaura entre o analisado e o analisante. E o que já é verdade do relacionamento interpessoal é-o, ainda mais, da comunicação social. Isso significa que a hermenêu­ tica teológica, em sua releitura dos textos do passado a serviço de melhor inteligência da identidade cristã, não pode ignorar essa ascese da lucidez para a qual nos convidam as teorias críticas modernas, tenham elas sua origem na psica­ nálise, na crítica marxista das ideologias ou nas diferentes formas do método genealógico, na esteira de Nietzsche e de M. Foucault ( cf. cap. 3). Devemos acrescentar que, embora reconheçamos, com Gadamer, que o conjunto do processo de interpretação se orienta para a compreensão, concedemos que o grande mé­ rito de Paul Ricoeur é o de ter chamado nossa atenção para a importância do texto, para a sua estrutura objetiva, para a sua organização interna e para as suas condições de pro­ dução. A interpretação correta será feita numa interação vi-

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va com o mundo da compreensão do intérprete, mas o sen­ tido estará sempre no prolongamento da coisa do texto submetido aos mais rigorosos processos de explicação da análise literária ou estrutural. Por isso, longe de concluir pelo impasse da hermenêutica enquanto esforço para com­ preender, ele se compraz em constatar que a explicação já se tornou o caminho da compreensão ( cf. cap. 2, sobre o deslocamento da hermenêutica sob o choque do estruturalis­ mo). Seria sumamente proveitoso para o teólogo-hermencu­ ta se ele aceitasse a ascese inevitável imposta pela objetivi­ dade do texto. Em sua preocupação de atualizar a mensa­ gem cristã para hoje, não foi ele muitas vezes tentado a extrair muito depressa "mensagens" deste ou daquele texto, que resistem, apesar de tudo, a semelhante recuperação? Essas reflexões deveriam ser suficientes para tranqüi­ lizar aqueles que me objetarem que, batendo-me pelo risco de interpretação criativa, menosprezo a tradição da Igreja. É muito mais, porque a tradição nos precede e resiste a nós que nunca terminamos de tirar dela algo de novo e de discernir o contingente do único essencial. Longe de se oporem, criatividade e lucidez crítica são as melhores alia­ das no processo complexo da reinterpretação do cristianis­ mo. Somente a distância histórica nos permite assinalar as sedimentações sucessivas que cobriram o teor original da mensagem a transmitir. E só uma suspeita metódica é que pode nos ajudar a discernir as cumplicidades entre as ima­ gens próprias da fé e a doença infantil do desejo ou uma vontade secreta de domínio. Os maiores espirituais não fi­ zeram sempre questão de praticar a regra do discernimento dos espíritos? ... Mas, se a preocupação com uma interpretação criativa nos expõe ao risco do arbítrio, a obsessão com a lucidez não nos expõe ao risco do reducionísmo? Conheço bem esse gênero de aporia. Como saber se o "crível disponível" de uma época ainda não se tornou a norma do que deve ser crido? Evidentemente é mais tranqüilizador refluir para o "bem comum" dos fiéis e apelar para o "escândalo dos fra­ cos". Mas, como mostra a história do pensamento cristão, o medo é sempre mau conselheiro, e não querer olhar de

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frente os resultados incontestáveis da crítica prepara dias amargos. Se estamos convencidos da juventude permanente do Evangelho, por que fingirmos ignorar os novos estados de consciêacia da humanidade contemporânea? Como digo adiante ( ca p. 1 O ) , a situação histórica do "crer " não permite que nos detenhamos numa fé ingênua. Ou melhor, devemos falar da "ingenuidade segunda" de fé que passou pela prova crítica. E no círculo sempre recomeçado do "crer" e do "compreender", tenho a convicção íntima de que a lucidez crítica não compromete em nada a espontaneidade propria­ mente teologal da fé. Nisso tenho o sentimento de ser rigo­ rosamente fiel à lição de meu antigo mestre da leitura de santo Tomás de Aquino, o pe. Chenu, que repetia constan­ temente que a fé não suprime o regime humano do espírito. O plano da presente obra não exige longos comentários. A mim ele se impôs rapidamente. Faço votos que ele seja claro também para meus leitores. A primeira parte, mais metodológica, pertence à teologia fundamental ou ainda ao que denominamos epistemologia teológica. Procuro ressituar historicamente a instância hermenêutica da teologia e tirar disso as conseqüências para a redistribuição do trabalho teo­ lógico. Há mais de um século o problema hermenêutico não cessa de se pôr em termos novos. Acima das modas sucessi­ vas do estruturalismo francês, o teólogo responsável não pode permanecer numa soberba ignorância do deslocamento verifi­ cado na hermenêutica moderna sob o choque provocador, mas finalmente benéfico, dos novos métodos de leitura dos textos. Em outro capítulo ( 3), esforço-me por caracterizar o modelo de escritura teológica de tipo hermenêutico, em sua dJerença com o modelo clássico de escritura de tipo dogmá­ tico. Ouso esperar ficará claro que, julgando certo dogma­ tismo, não contesto em nada os direitos e a validade per­ manente da teologia dogmática. O último capítulo ( 4) lem­ bra a vocação própria do teólogo, que é uma espécie de "mediador" entre o ensinamento magisterial da Igreja e a vivência irredutível do povo cristão. O pensamento contemporâneo é acusado muitas vezes de se atolar nos debates metodológicos das questões preli­ minares. Nem a teologia escapa desse perigo de formalismo.

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E no entanto ela é concernida do começo ao fim pela coisa do texto ou ainda pelo mundo ao qual remetem as Escrituras judaico-cristãs, a saber, a irrupção inaudita do amor gratuito de Deus pelo homem. Não hesitei, por isso, em reunir na segunda parte alguns ensaios de escritura mais fácil, todos concernentes às realidades mais fundamentais da revelação cristã. Desde o tempo da Igreja nascente a linguagem da fé já era e é sempre interpretativa. Mostro-o a propósito do que constitui o cerne da pregação apostólica, a saber, a res­ surreição de Cristo ( cap. 5). Em seguida, em contraste com o que pode ser hermenêutica atéia moderna do cristianismo, como a de E. Bloch ( cap. 6) , interrogo-me sobre as condi­ ções .de reinterpretação do discurso sobre o Deus de Jesus que tome a sério as aporias fundamentais do teísmo tradicio­ nal para o regime moderno do espírito ( caps. 7 e 8). En­ fim, a consciência aguda da não-necessidade de Deus numa história entregue a si mesma nos força a reinterpretar em termos novos o sentido da senhoria de Cristo sobre a histó­ ria. Proponho então, modestamente, alguns pontos de refe­ rência entre as diversas tendências da teologia da história ( cap. 9). A hermenêutica teológica, em seu cuidado por atualizar a Palavra de Deus para hoje, não se contenta com produzir novos comentários. À força de freqüentar um texto que é a testemunha privilegiada da Palavra atuante de Deus, o teó­ logo tem a vocação exigente de exercer, isto é, de propor práticas significantes para a Igreja. Mas isso ainda é pouco. A própria prática dos cristãos é lugar teológico que oferece dados ao teólogo em sua reinterpretação criativa da fé. Sob a ação do Espírito, que nunca lhe falta, a comunidade cristã toda tem competência para interpretar os "sinais dos tempos" e para criar outras figuras históricas da plenitude insondável do mistério de Cristo. Todos os temas abordados na terceira parte têm relação com a prática concreta das Igrejas consideradas perante con­ dições históricas, sociais e culturais novas. Antes mesmo de acabarmos de tirar todas as conseqüências da revisão de algumas teses teológicas elaboradas em outra época da fé, a prática dos cristãos já está reinterpretando o cristianismo.

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Isto vale para a transmissão da fé em cultura atéia ou in­ dissociável de uma grande religião não-cristã ( cap. 10). Vale também para as tentativas de reinterpretação não-reli­ giosa do cristianismo num mundo secular ( cap. 11). Vale para a retomada do tema clássico da imitação de Cristo à luz de nossa nova inteligência das relações entre a ortodoxia e a ortopraxia ( cap. 12 ). Vale para a conquista onerosa, fora da Igreja e na Igreja, do direito à liberdade religiosa ( cap. 13). Vale enfim para a nova consciência missionária da Igreja, quando ela deve dialogar com as grandes religiões não-cristãs e contribuir para a promoção dos direitos do homem ( cap. 14). Na terceira parte, a questão que se põe é sempre a da identidade cristã em face a reinterpretações do cristianismo, sejam elas éticas e políticas, sejam sacralizantes. Defini acima o trabalho teol6gico como o estabele­ cimento de correlação crítica entre a tradição cristã e a expe­ riência humana contemporânea. A respeito dessa experiência complexa insisti principalmente em nossa nova "consciência histórica", com todas as suas exigências críticas. Mas, para prevenir a censura de intelectualismo hipercrítico, gostaria de deixar claro que, para mim, assumir o risco de inter­ pretação do cristianismo é também reinterpretar sem cessar a boa nova da salvação à luz da contra-experiência do sofri­ mento maciço e global da humanidade contemporânea. Embora revistos, corrigidos e, às vezes, inteiramente refundidos, a maior parte dos textos reunidos neste volume já foram objeto de debates ou publicações nesses últimos dez anos. 3 Não me desagrada verificar que, com exceção dos lugares de passagem obrigat6rios do ensinamento teológico, a minha reflexão foi muitas vezes estimulada por perguntas ocasionais. Apesar de sua diversidade, essas perguntas não foram fortuitas. Constato, por exemplo, que, depois de ter sido forçado a tomar em consideração, entre tantas outras, as diversas formas do ateísmo ocidental, fui levado cada vez mais a refletir na coexistência do cristianismo e das grandes religiões não-cristãs, como também sobre a ressurgência de um neopaganismo. No fim deste segundo milênio o pensaJ Vejo nota bibliográfica no fim do volume.

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rnento cristão deve não só superar o desafio da indiferença religiosa, mas também -- acima da alternativa do teísmo e do ateísmo - prestar a maior atenção na permanência do que alguns saúd ..m como o "gênio do paganismo". Minha última palavra será para exprimir minha grati­ dão a todos, conhecidos ou desconhecidos, que me ajudaram tanto por suas perguntas quanto por suas respostas. Estou convencido de que a partitura francesa, apesar de sua rela­ tiva discrição, produz um som inimitável na polifonia teo­ lógica da Igreja de nosso tempo. Fevereiro de 1983.

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PRIMEIRA PARTE

DA TEOLOGIA COMO HERMEN:aUTICA

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DO SABER A INTERPRETAÇÃO

Escolhendo este título, quero tentar caracterizar o des­ locamento que se realizou na teologia de uns vinte anos para cá, isto é, a passagem da teologia como saber constituído para a teologia como interpretação plural ou ainda a passa­ gem da teologia dogmática para a teologia como hermenêu­ tica. Sei que para alguns o termo "interpretação" se tornou .termo tabu e que, se quisenr.os falar hoje do deslocamento da teologia, devemos falar do deslocamento mais radical provocado pela crise da hermenêutica. Mas os próximos ca­ pítulos se ocuparão justamente de perguntar se os novos modos de leitura da Escritura e do Dogma tornam caduca a função hermenêutica da teologia como atualização do sentido da mensagem cristã.

I. AS CAUSAS DO DESLOCAMENTO ATUAL DA TEOLOGIA

Para tentar compreender o deslocamento em curso da teologia, lembrarei somente o aprofundamento teológico da noção de revelação e a história recente do problema herme­ nêutico. No tocante à revelação., farei simplesmente três obser­ vações.1 1 Para desenvolvimentos mais amplos, remetemos ao nosso estudo: "Esquisse d'une Théologie de la révélation", in P. Ricoeur, E. Levinns ... La Révélation, Fac. Univers. Saint-Louis, Bruxelas, 1977, pp. 171-205.

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1. Hoje temos consciência mais viva de que a Palavra de Deus não se identifica nem com a letra da Escritura, nem com a letra dos enunciados dogmáticos. Dogma e Escri­ tura são testemunhos parciais da plenitude do Evangelho, que é de ordem escatológica. 2. A revelação não é a comunicação, a partir do alto, de um saber fixado vez por todas. Ela designa, ao mesmo tem­ po, a ação de Deus na história e a experiência de fé do Povo de Deus, que se traduz em expressão interpretativa dessa ação. Em outras palavras, o que chamamos Escritura já é interpretação. E a resposta da fé pertence ao pr6prio conteúdo da revelação. 3. A revelação atinge sua plenitude, seu sentido e sua atualidade somente na fé que a acolhe. Por isso a revelação, enquanto Palavra de Deus numa paiavra humana ou vestígio de Deus na história, não se sujeita a método científico, hlstórico-crítico. A fé, em seu aspecto cognitivo, é sempre conhecimento interpretativo marcado pelas condições his­ tóricas de uma época. E a teologia, enquanto discurso in­ terpretativo, não é somente a expressão diferente de um conteúdo de fé sempre idêntico, que escaparia à historicidade. Ela é também a interpretação atualizante do próprio conteú­ do da fé. Depois dessas breves elucidações, podemos dizer que compreender a teologia como hermenêutica é tomar a sério a historicidade de toda verdade, inclusive da verdade reve­ lada, e tomar a sério também a historicidade do homem como sujeito interpretante. Longe de querer apagar o caráter contingente da verdade, à maneira da antiga metafísica, o pen­ samento moderno diria, antes, que a historicidade é a con­ dição de toda restauração do sentido. A teologia contempo­ rânea procura tirar todas as conseqüências dessa intuição. Parece-me, assim, que reflexão mais lúcida sobre a re­ velação nos leva a compreender que a teologia é sempre ati­ vidade hermenêutica, pelo menos no sentido em que ela é interpretação da significação atual do acontecimento Jesus Cristo a partir das diversas linguagens da fé suscitadas por 18

ele, sem que nenhuma delas possa ser absolutizada, nem mesmo a do Novo Testamento. Com efeito, Jesus é senhor de todos os tempos, e nós devemos repetir o que foi mani­ festado em Jesus de Nazaré com referência à nossa experiên­ cia do homem e do mundo. O deslocamento da teologia operado pela passagem do saber para a interpretação está também ligado à hist6ria re­ cente do problema hermenêutico. Não é o caso de expor de novo essa hist6ria, de Dilthey a Gadamer .2 Seja-me sufi­ ciente reter dois aspectos que concernem diretamente aos deslocamentos atuais da teologia: de um lado, a contestação do saber hist6rico no sentido do historicismo e, do outro, a contestação do saber especulativo.

A. A contestação do saber histórico Vimos o impacto do método histórico na teologia. Seja o que for que se diga da crise modernista, a introdução dos métodos históricos, num primeiro tempo, foi libertadora em relação a uma escolástica completamente desligada das fon­ tes históricas da fé. Mas, num segundo tempo, a exegese científica e a história científica das origens cristãs contribuí­ ram para cavar o fosso entre a história e o dogma, entre a verdade dos exegetas e a verdade dos teólogos.3 O pressuposto implícito dos exegetas é de que a ver­ dade do cristianismo está contida num texto, a Bíblia, e de que ela pode ser reconstituída por métodos científicos. A exegese é o lugar de passagem obrigatório para chegar a esta verdade, que é identificada com o conteúdo de texto passado. Segue�se disto certo desconhecimento da experiên­ cia atual de comunidade cristã e a atenuação de um ques2 Remeto, com prioridade, ao estudo de P. Ricoeur, "La tâche de l'herméncutique", in ExegeBis, Dclachaux et Niestlé, Ncuchàntcl, 1975, pp. 1/9200. l A esse respeito podem ser consultados, com proveito, R. Re­ foulé, "L'exég�e en question", in Le Supplément 111, 1974;-pp. 391-423, e a obra coletiva: Crise du biblisme, chance de la Bible, epi, Paris, 1974.

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tionarr.ento propriamente teológico sobre o sentido desses textos para hoje. · É mérito da hermenêutica filosófica, depois de Dilthey, ter posto em discussão as pretensões do saber histórico no sentido do positivismo e ter mostrado que não pode haver re:::onstituição do passado sem interpretação viva condiciona­ da pela minha situação presente. Desde Karl Barth, a teologia é hermenêutica que se esforça por fazer falar a Palavra de Deus para hoje. Tam­ bém Bultmann, apesar de censurar Barth por dar pouca importância ao estudo crítico dos textos, reage contra a con­ cepção positivista da história, que pretenderia chegar a co­ nheciment� exato do passado à maneira das ciências exatas. O conhecimento existencial, isto é, um conhecimento inter­ pretativo inseparável da auto-interpretação do sujeito, é o único conhecimento histórico autêntico, à diferença do co­ nhecimento objetivante do historicismo. 4 Mas hoje, depois dos trabalhos de Gadamer5 e Pannen­ berg,6 sabemos melhor que a própria contestação do histo­ ricismo pela hermenêutica existencial é prisioneira da pro­ blemática kantiana, que separa a ordem dos fatos ( objeto das ciências da exper;ência) da ordem do sentido ou do valor ( objeto de uma ética e de uma metafísica) . A teologia protestante, para escapar aos desvios do historicismo, en­ careceu a autoridade sobrenatural da Palavra de Deus, sem recorrer ao critério da história. Chega-se, assim, a uma dis­ tinção ruinosa entre a tarefa do exegeta-historiador e a do hermeneuta-teólogo. O primeiro procura o sentido do even­ to a partir de seu contexto histórico. O segundo se esforça por atualizar o sentido do evento passado para nós hoje. Contra hermenêutica psicologizante, que compreende o texto como expressão da vida subjetiva do autor, a nova herme4 Entre os escr:tos de Bultmann, veja principalmente Histoire et EschalO/ogie, trad. franc., Delachaux et Niestlé, NeuchAtel, 1959. Sobre o significado da distinção H1.s:oire-Geschichte, cf. nosso estudo: "Kérygme et histoire chez Rudolf Bultmann n , in Rev. Se. Phil. Thlol.

49, 1965, pp. 809-639. 5 Para primeiro contato, veja H.-0. Gadamer, Le problême de la conscíence historique, Lovaina, 1963. 6 Cf. sobretudo: "Hermeneutik und Universalgeschichte". in Grund­ Jragen sy:stematlscher Theologie, Gõttingen, 1967, pp. 91-122.

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nêutica procura o sentido do texto respeitando sua alteri­ dade histórica. B. A contestação do saber especulativo A contestação do saber histórico no sentido do histori­ cismo abalou, pois, a segurança da teologia de tipo funda­ mentalista, que pretenderia chegar diretamente à Palavra de Deus pela escuta literal da palavra das Escrituras. Mas, de modo mais geral, não se pode falar de passagem do saber à interpretação e de abalo do dogmatismo, sem se mencio­ nar a contestação do saber especulativo na filosofia contem­ porânea. 1. A nova ontologia de Heid�gger, que se esforça por restaurar o pensamento do ser, desconstruiu a antiga onto­ teologia, que dera à teologia seus fundamentos conceptuais. Esta teologia metafísica pode ter tido êxito excepcional. Mas não podemos mais teologizar tão impunemente segundo o modo de pensar metafísico. E não podemos mais, sem ser­ mos coniventes, identificar o teol6gico que vem propriamente do Deus de Jesus com o teol6gico de natureza e de nível pu­ ramente ontológicos. Por outro lado, a filosofia renunciou à sua pretensão de "saber absoluto", e a teologia cristã deve tirar as conseqüências, para a sua racionalidade, de tudo o que separa filosofia hermenêutica de filosofia do saber. 2. Em segundo lugar, a pretensão de certa teologia de ser a sistematização perfeita e universal da mensagem cristã vai diretamente de encontro à crítica moderna da ideologia, que se assinala justamente por sua vontade de totalização não-dialética, por seu desprezo pela complexidade histórica e por sua obstinação contra o real. Nós somos todos marca­ dos pela suspeita nietzschiana em relação à verdade.7 A ver­ dade em si mesma não é "perspectivista ", mas nós devemos 7 Será proveitoso consultar a obra clássica de J. Granier, Le pro­ bleme de la vérité dans la philosophie de Nietzsche, Seuil, Paris, 1966.

Veja também P. Gisel, "Penpec:tivisme nietzsc:héen et disc:ours théologi­ que u , in Concilium 165, 1981, pp. 121-ll. 21

aceitar atingi-la somente em certa perspectiva. Todo discurso é, portanto, provisório, relativo. Ele não é saber, mas lin­ guagem interpretativa, relativa à perspectiva do que o pro­ duz. A verdade é plural porque a própria realidade é multi­ forme. Esta consciência mais aguda não leva necessariamente à destruição de uma fé verdadeiramente dogmática, no sen­ tido cristão do termo. Mas nos torna mais circunspectos em relação a uma teologia dogmática que se apresentasse como a única interpretação autêntica da mensagem cristã. A me­ dida que toma consciência de estar sempre em situação hermenêutica, a teologia se apresenta mais modesta e mais interrogativa. 3. Acrescento, enfim, que o deslocamento atual da teo­ logia, que caracterizo como urna passagem do saber à inter­ pretação, é conseqüência do deslocamento das estruturas de credibilidade do homem moderno. Quero dizer que as con­ dições históricas da fé e, portanto, do discurso teológico mudaram profundamente. O que já estava latente no tempo da crise modernista, mas que explode hoje em pleno dia, é o conflito entre a autoridade da fé e a autoridade da razão no debate dos homens. Se muitos discursos eclesiásticos se tornaram insignificantes para bom número de nossos con­ temporâneos, não é somente por causa da indiferença reli­ giosa ou do relaxamento dos costumes, mas por causa de um sentimento mais vivo do divórcio entre a fé cristã e os novos estados de consciência da humanidade. A autonomia da consciência é dado inelutável de nossa modernidade. Por isso a pretensão de um saber teológico à infalibilidade, em nome de uma autoridade, a de um magistério ou mesmo a de Deus, é recusada. O conteúdo de verdade de um ensi­ namento não é aceito em virtude da autoridade de quem o profere, mas em virtude de seu título para ser crido. Teolo­ gias "autoritárias", como as teologias da Palavra de Deus no sentido barthiano ou teologias católicas como a da Escola Romana, não correspondem mais ao regime moderno do espírito.8 Como em outras épocas de sua história, a teologia 8 Sobre as teologias "autoritárias", remetemos ao nosso capítulo: "La Théologie dogmatique à l'âge hennéneutique", in Un nouvel 4ge de la thlologie ("Cogitatio fidei" 68), Cerf, Paris, 1972.

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moderna não pode renunciar a mediatizar as relações entre a razão e a fé. Penso, neste sentido, numa teologia herme­ nêutica como a de Pannenberg, que procura reagir contra o sobrenaturalismo das teologias da Palavra para enraizar a credibilidade da mensagem cristã em seus eventos funda­ dores.

II. CONSEQÜÊNCIAS DA ORIENTAÇÃO HERMENE.UTICA DA TEOLOGIA PARA A PRATICA TEOLOGICA

Gostaria agora de assinalar alguns deslocamentos ve­ rificados na prática teológica. Embora todos esses aspectos estejam estreitamente interligados, distinguirei sucessiva­ mente um tratamento novo dos lugares tradicionais, que são a Escritura e a Tradição, uma articulação nova entre a Escritura e o Dogma, um deslocamento do ato teológico e a emergência de lugares novos, que modificam a função dos lugares tradicionais da teologia.

A. Um tratamento novo dos lugares tradicionais A atitude dos teólogos em relação a esses lugares que são a Escritura e a Tradição mudou. Quero dizer que elas são objetos textuais mais no sentido de referência do que de "autoridades". Quando se trata da Escritura, ela não é considerada, em primeiro luga�, como um dado, no sentido de conteúdo de verdade do qual basta apropriar-se. Ela é testemunho que remete a eventos históricos-:, Trata-se, por­ tanto, de interpretação crente irremediavelmente histórica, isto é, relativa. Numa perspectiva estrutural, diríamos que não existe verdade do texto. A leitura é que produz signifi­ cações diversas. Mas o teólogo recebe o texto de uma comu­ nidade, a Igreja. E é porque esta comunidade está em con­ tinuidade com a comunidade primitiva, que produziu esse texto, que ele não pode fazê-lo dizer qualquer coisa. J;; esta

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continuidade que é a condição de possibilidade da tradição. Assim, a leitura crente da Escritura é sempre hermenêutica no sentido em que hoje interpretamos o texto dentro da mesma tradição na qual ele foi escrito. Pode-se, por isso, falar de continuidade de sentido ligada à continuidade histó­ rica, embora o evento Jesus Cristo suscite sempre, em fun­ ção de minha situação histórica, uma interpretação e uma expressão diferentes. A referência à origem do sentido, a do evento fundador, é essencial. Mas a transmissão da mensagem não é a repetição de um saber constituído uma vez por to­ das, mas a atualização sempre nova do que foi manifestado em Jesus. Por isso uma teologia viva é sempre atividade hermenêutica. B. Uma articulação nova entre a Escritura e o Dogma Considerar a teologia corno hermenêutica é repor em causa a distinção entre o dado e o construído, estudada na teologia tradicional, e ultrapassar a oposição entre uma teo­ logia dita positiva e uma teologia dita especulativa, que há mais de três séculos compromete a unidade do saber teoló­ gico .9 De fato, essa distinção consagrava o divórcio entre a razão e a história no trabalho teológico e o triunfo de uma escolástica separada de suas fontes bíblicas. O positivismo histórico e o racionalismo teológico têm a mesma origem, a saber, o desconhecimento de verdadeira compreensão her­ menêutica do passado. Nós já o sugerimos: esse desconhe­ cimento é herança da distinção kantiana entre o conhecimen­ to dos fatos e a procura do sentido. A teologia dita positiva se limitava a registrar documentos do passado. Isso feito, a teologia especulativa podia entregar-se ao seu trabalho de construção teórica, como se pudéssemos contentar-nos com distinção ingênua entre um dado cujo sentido pudéssemos ler, pondo entre parênteses nossa compreensão de hoje, e

e

9 ainda em função dessa distinção que Y. Congar compreende a relação entre a teologia positiva e a teologia especulativa, em La foi et la théologie, Desclée, Paris, 1962.

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uma construção que tivesse apenas relação distante com esse dado. Sabemos que não podemos fazer o inventário das fontes da fé, sem nos darmos a todo um trabalho de in­ terpretação. Essa ultrapassagem da distinção entre o dado e o cons­ truído nos leva a um deslocamento das diversas funções da teologia. Abandonamos a divisão tripartida da teologia dogmática da Contra-reforma: exposição da doutrina da Igre­ ja, prova dessa doutrina tirada da Escritura e da Tradição, e aprofundamento especulativo.10 O teólogo não faz mais apelo à Escritura para simplesmente justificar ou confirmar o ensinamento do magistério, como se fazia na teologia ca­ tólica até as vésperas do Vaticano II. E antes a nossa leitura atual da Escritura que nos conduz a urna reinterpretação dos enunciados dogmáticos, levando em conta a situação de questão e de resposta que foi ocasião de sua formulação. A linguagem dogmática é a expressão de tomada de cons­ ciência pela Igreja do que ela vive em dado momento. Do mesmo modo · que não podemos identificar a Igreja e o reino de Deus, não podemos também falar de identidade pura e simples da linguagem dogmática da fé e da Palavra de Deus. Evitando identificar seja a Escritura, seja o Dogma com a Palavra de Deus, compreendemos sua complementari­ dade na apropriação progressiva das riquezas do mistério de Cristo pela Igreja. Concretamente, a função hermenêutica da teologia é medida pela artirulação redproca das confis­ sões de fé dogmáticas e da Escritura. Lemos a Escritura a partir deste horizonte formado pela tradição da Igreja. Foi este o método privilegiado da dogmática católica. Mas de­ vemos fazer também a operação inversa, isto é, entregar­ mo-nos a uma releitura da Escritura a partir de nosso ho­ rizonte histórico, a fim de discernirmos o que é visado por tal definição dogmática do que depende da mentalidade e das representações espontâneas de uma época ( d., abaixo, cap. 4 ). 10 Sobre a origem dessa divisão tripartida da· dogmática, remete­ mos a W. Kesper, Renouveau de la méthode tMologique, trad. íranc., Cerf, Paris, 1968.

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C. O deslocamento do ato teológico como "intellectus fidei" De tudo o que precede segue-se que o ato teológico como intellectus lidei se deslocou. Quero dizer que não podemos mais identificar o intellectus lidei com um ato da razão especulativa que se mova segundo o esquema do su­ jeito e do objeto e que procure explicar o que nos é dado compreender na revelação, a partir de certo número de ra­ zões metafísicas. O intellectus lidei pode ser comparado a um "compreender hermenêutico", ou seja, é diferente do simples ato de conhecimento, um modo de ser no qual a compreensão do passado é inseparável de uma interpretação de si mesmo.11 Isso me parece muito importante, mas com a condição de que não se permaneça no psicologismo da herme­ nêutica existencial. Como o mostrou Gadamer, compreender nunca é comportamento subjetivo em relação a um "objeto" dado. "O compreender deve ser considerado menos como ação da subjetividade do que como inserção no processo de transmissão no qual o passado e o presente se mediatizam constantemente. "12 Assim podemos dizer que o objeto imediato do trabalho teológico não é "objeto", no sentido de conjunto de pro­ posições, cuja inteligibilidade procuro, mas o conjunto dos textos compreendidos no campo da hermenêutica aberto pela revelação. Procuro deixar desdobrar-se o ser novo da Bíblia e de suas releituras eclesiais sobre a base de minha relação viva com Cristo, senhor da história. Para que esse ser novo do texto seja revelante para mim, devo vencer a distância cultural que me separa do texto ressituado em sua produção histórica. Mas, ao mesmo tempo, não devo anular a alteri­ dade do texto, porque é justamente essa distância que é criadora de possibilidades novas de sentido em função de 11 Referimo-nos evidentemente· ao verstehen de Heidegger, para o qual •compreender" não é um ato do conhecimento noético, mas existencial. (Cf. Sein und Zeit, § 31). 12 H.-G. Gadamer, Vérité et méthode, trad. franc., Seuil, Paris, 1976, p. 130.

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minha situação presente de leitor. A teologia é, pois, movi­ mento sem fim de interpretação no qual a novidade das questões postas ao texto comporta necessariamente o risco de respostas imprevisíveis.

D. A emergência de lugares novos A teologia do Vaticano II não usava mais como medium de elaboração os conceitos da filosofia escolástica. Mas, se ela usava os conceitos relacionais da filosofia existencial ou o vocabulário e os resultados das ciências humanas, co­ mo a sociologia e a psicologia, era sempre com o desejo secreto de reconstituir um discurso totalizante sobre o mun­ do e sobre o homem sob a influência do simbolismo cristão. Hoje compreendemos melhor que não se trata simplesmente de substituir a filosofia cristã por esses lugares novos que são as ciências humanas ( conceito, aliás, vaporoso), sem mudar profundamente nossa maneira de teologizar. Esses lu­ gares são menos lugares novos do que racionalidades novas, aproximações diferentes da realidade individual e coletiva.13 A teologia enquanto hermenêutica deve levar em conta, em sua interpretação da mensagem cristã, seja ela evangélica seja dogmática, a análise crítica das condições de produção de toda linguagem. Antes de incorporar a si temas novos, deve ela, portanto, interrogar-se sobre a relação com sua própria linguagem. Ela não pode mais contentar-se com ser discurso espontâneo e auto-afirmativo. A partir de análise sociopolítica, ela deve discernir a função ideológica que seu discurso pode exercer. Deve também entregar-se a uma lei­ tura sociológica das diversas mensagens eclesiais, levando em consideração uma análise rigorosa das estruturas de comuni­ cação e de produção das mensagens na sociedade. Ela pode ainda interrogar-se, num novo esforço, sobre a função sim­ bólica da linguagem bíblica ou dogmática a partir das téc13 Sobre a originalidade desses processos científicos e a evanes­ cência de um objeto religioso como objeto específico das "ciências da religião", pode ser lido, sempre com proveito, o artigo de M. de Certeau, "La rupture instauratríce... ", in Esprít, junho de 1971, pp. 1177-214.

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nicas da análise psicanalítica. Enfim, a análise estrutural obri­ ga o teólogo a nunca refletir sobre os enunciados, fazendo abstração de seu ato de enunciação. Tudo isso nos mostra que o famoso diálogo da teologia com as ciências humanas pressupõe sempre, em primeiro lugar, um debate epistemo­ lógico.14 A teologia deve fazer tudo por melhor inteligência do crer cristão. Mas, mesmo preservando sua originalidade irredutível, ela não pode constituir um saber em ruptura com as novas aproximações científicas da realidade, aproxi­ mações que são menos saberes totalizantes do que empreen­ dimentos de verificação e de produção da racionalidade. Eu desejaria, por fim, assinalar que a passagem da teologia como saber para a teologia como interpretação é inseparável da emergência de um lugar novo, a saber, a prática cristã, como lugar de produção do sentido da men­ sagem cristã e, ao mesmo tempo, como lugar de verificação dessa mensagem/ Podemos definir a teologia como herme­ nêutica atualizante da Palavra de Deus:"Mas não pode haver interpretação teórica da ·Escritura que faça abstração da prática atual dos cristãos. A teologia não é saber constituído anterior à práxis da fé e da caridade dos cristãos. Ela é o lugar e o instrumento da interpretação da Escritura;' A prá­ tica eclesial é diferente de simples condicionamento novo de mensagem sempre idêntica: ela tem papel estruturante na elaboração da mensagem. Esta importância dada à prá­ tica como lugar teológico traz mais do que simples deslo­ camento da teologia. Trata-se de verdadeira reviravolta, cujas conseqüências ainda não avaliamos, particularmente no que se refere ao pluralismo insuperável da teologia. A teologia enquanto teologia da práxis não pode- contentar-se com in­ terpretar de outro modo a mensagem cristã. Ela é criadora de novas possibilidades de existência. Mas, evidentemente, devemos falar de relação dialética entre a Escritura e tal prática significante. Se a Escritura pudesse justificar não importa qual prática cristã, ela seria propriamente insignifi­ cante. A teologia da práxis assume o risco de antecipar o futuro. Ela não é somente a interpretação atualizante do 14 A este respeito, cf. o livro recente de J .-P. Deconchy, Orthodoxie religieuse et sciences humaines, Mouton, Paris e La Haye, 1980.

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que está atrás dela. Ela é prática da esperança, que tem por lugar o não-lugar, e não o ser passado. Tentei, pois, caracterizar o deslocamento atual da teo­ logia como passagem do saber à interpretação. Aceito definir a teologia como interpretação atualizante da Palavra de Deus. Malgrado o sucesso das novas teorias de leitura, creio ainda na possibilidade de leitura hermenêutica dos textos que são para nós portadores da mensagem cristã. Muitos exegetas reconhecem que hoje é necessário fazer apelo à complemen­ taridade do método estrutural e do método histórico. Não vejo por que não seria possível, em teologia dogmática, fazer apelo a vários tipos de leitura. Ou então damos mais valor às ideologias que acompanham essas diferentes leitu­ ras do que aos serviços próprios que esses diversos mé­ todos podem prestar à teologia enquanto inteligência da fé. A teologia como serviço da Igreja é responsável por uma mensagem, e o estudo do autofuncionamento dos textos que lhe são confiados deve estar a serviço da comunicação dessa mensagem. Sei que para alguns a leitura hermenêutica de um texto está incorrigivelmente ligada ao modo de pen­ sar metafísico e que este modo de pensar está ultrapassado. Mas tratar-se-ia de precisar de qual "metafísica" se quer falar. Como se vera no capítulo seguinte, não penso que pos­ samos deter-nos numa aproximação puramente estrutural da linguagem bíblica para pormos o problema teológico ela re­ velação em e por palavras humanas. Assim corremos o risco de permanecer fechados nos textos e de não poder mais dar a devida atenção à condição de possibilidade de revelação, isto é, de sentido dado, e não simplesmente reconstm!do. A linguagem é mais do que sistema de sinais, ela é o evento de uma palavra. Devo interrogar-me, por isso, sobre a in­ tencionalidade significante que está na origem da lingu agem. Isso depende de aproximação fenomenol6gica da linguagem. O sentido só existe no encontro da consciência com a rea­ lidade. Mas essa aproximação da lin gu agem não é suficiente. O reconhecimento do nível ontológico da linguagem como onJophania, como manifestação do ser, é o pressuposto ne­ cessário da revelação e de uma teologia da Palavra de Deus.

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A HERMEN!UTICA EM PROCESSO

Há mais de um decênio tornou-se corrente considerar a teologia como hermenêutica da Palavra de Deus. Com isso procurava-se designar a passagem de uma teologia "dogmá­ tica", no sentido autoritário do termo, para uma teologia "interpretativa", que é consciente da historicidade de toda verdade - mesmo revelada - e de todo conhecimento mesmo teológico. Essa passagem de um saber constituído, seguro de si mesmo, para uma interpretação plural era o eco, na teologia, da contestação das pretensões do saber histórico no sentido do historicismo como também das pre­ tensões ao saber absoluto do saber especulativo. Alguns teó­ logos, tanto católicos como protestantes, se esforçaram por tirar as conseqüências da fenomenologia hermenêutica de Heidegger, quando este nos diz que todo conhecimento do ser ( e, portanto, de Deus) só pode ser compreend;do atra­ vés da elucidação do ser que se põe a questão do ser, a saber, o homem. Assim, a teologia é, inseparavelmente, her­ menêutica da Palavra de Deus e hermenêutica da existência humana. A teologia se torna hermenêutica à medida que compreende . que toda afirmação sobre Deus implica uma afirmação sobre o homem. Em outras palavras, o teólogo não se contenta com procurar a intelig:bilidade em si dos enunciados escriturís­ ticos ou dogmáticos. Ele procura extrair o sentido para hoje. Nisso está toda a distância entre um compreender especula­ tivo e um compreender hermenêutico. Ora, essa teologia hermenêutica se acha hoje cada vez mais contestada. Desejo falar não tanto dos que, em nome de uma teologia da história ou de uma teologia política,

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denunciam a teologia hermenêutica como pura teologia da palavra que se contenta com propor nova interpretação teórica do cristianismo. Eles insistem com razão que a práxis histórica dos homens - e, portanto, também a prática his­ tórica da Igreja - deve intervir a título de elemento cons­ titutivo na interpretação atualizante do cristianismo. Mas se­ ria relativamente fácil rr:ostrar que a teologia hermenêutica bem compreendida não pode fazer apelo à prática como ele­ mento determinante da compreensão hermenêutica e como objetivo terminal do movimento de interpretação. Sendo a revelação judaico-cristã inseparavelmente evento histórico e palavra suscitada por esse evento, é necessário ultrapassar a falsa oposição entre teologia da palavra e teologia da his­ hist6ria. Falando da contestação da teologia como hermenêutica, tenho em vista algo muito mais radical. Trata-se, antes de tudo, do processo instaurado contra a hermenêutica como método de leitura de um texto: nisso está todo o debate atual, dentro da exegese contemporânea, entre uma aproxi­ mação hermenêutica e uma aproximação estrutural da Escri­ tura. Trata-se, em seguida, mas de modo mais geral, da contestação radical do movimento de pensamento próprio da hermenêutica, do mesmo que está no princípio de toda compreensão teológica, ainda quando a teologia não era compreendida como hermenêutica, a saber, da subida para um inteligível permanente sob o reflexo do sensível ou além da contingência dos eventos históricos. No fundo, tra­ ta-se sempre de encontrar a inteligibilidade do ser sob o sensível ou de restaurar continuidade de sentido acima de distância cultural ou histórica. Com isso a hermenêutica per­ maneceria congenitalmente l;gada ao movimento de pensa­ mento da metafísica. Ela é; portanto, rejeitada por todos aqueles que fazem hoje o processo do logocentrismo e se empenham na demolição da metafísica. A hermenêutica deve ceder o lugar à gramatologia, para usarmos o título de uma obra do pensador mais radical dessa mudança cultural, Derrida. Hoje, na França, é de bom-tom, mesmo em ambientes teológicos, falar da crise da hermenêutica. Pessoalmente, pen-

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so que se formos até o fim no questionamento radical da hermenêutica, o exercício do ato teológico se tornará im­ possível. Devo confessar que os ensaios teológicos que que­ rem tomar distanciamento radical em relação à hermenêuti­ ca, para adotar uma aproximação estrutural - não s6 como método de leitura dos textos, mas também como horizonte de pensamento - não me convenceram? No presente capítulo, eu queria começar por lembrar quais são os traços maiores da crise da hermenêutica. Tra­ tar-se-á, em seguida, de perguntar a qual deslocamento da hermenêutica leva uma tomada a sério dos novos métodos de leitura dos textos. Poderemos então procurar precisar algu mas conseqüências, para a prática da teologia, de uma hermenêutica que aceitou deixar-se questionar por todo o movimento de pensamento contemporâneo sob o signo da recusa do logocentrismo. Como se pode adivinhar, continuo a defender a possibilidade de uma teologia hermenêutica e tenho muitas vezes o sentimento de que muitas críticas atuais procedem de desconhecimento da evolução presente da her­ menêutica.

1. A CRISE DA HERMENtUTICA

Fazer balanço completo da crise atual da hermenêutica é tarefa impossível, uma vez que ela coincide com a crise do próprio pensamento ocidental. Referindo-me ao contexto francês, insistirei aqui principalmente na crítica da herme­ nêutica como método de leitura de um texto e na contes­ tação mais radical de todo projeto hermenêutico enquanto expressão do pensamento metafísico. Mas, antes, evocarei muito rapidamente a contestaçao alemã da hermenêutica em nome da " teoria cd tica das ideologias" . 1 1 Refiro-me aqui ao debate, na Alemanha, entre H.-G. Gadamer e J. Habennas. Para tomar conhecimento desse debate, leia-se o livro publicado sob o título: Hermeneutik und ldeo/ogie krítik, Suhrkamp, Frankfurt, 1971.

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A. A hermenêutica e a crítica das ideologias Sabemos q_ue a hermenêutica filosófica de Gadamer quer ser mais do que metodologia das ciências da interpretação. Ela não tem só alcance epistemológico e não se contenta com nos dizer o que fazer para compreender. Ela tem ainda alcance ontológico e se atribui a tarefa de enunciar as con­ dições de possibilidade de toda compreensão efetiva. Seguindo Heidegger, ele se esforça, portanto, por ela­ borar uma teoria verdadeiramente filososófica do compreender hermenêutico como estrutura de nosso ser-no-mundo, e não como origem de um saber no sentido epistemológico. Com esse objetivo, Gadamer reabilita o conceito de tradição, que fora completamente desacreditado pela Aufklarung. Não exis­ te compreensão efetiva sem consentimento numa tradição que nos constitui. É justamente neste ponto que Habermas contesta o projeto hermenêutico de Gadamer. Enquanto o mérito permanente da Aufklarung foi o de nos ter tornado atentos às exigências da reflexão crítica, que é correlativa da autonomia e da emancipação do homem moderno, Ga­ damer expulsa essa instância crítica do campo hermenêutico. O seu empreendimento é, pois, suspeito à medida que vai dar num imperialismo não-criticado da tradição. Quanto a Habermas, ele traça uma teoria geral da co­ municação inter-subjetiva, dominada pelo conceito de "crí­ tica das ideologias ". E se empenha, de modo particular, em mostrar que devemos renunciar vez por todas ao pseudo-ideal do conhecimento desinteressado. Não podemos mais, como no tempo de Marx, contentar-nos com denunciar a ideologia como superestrutura metafísica e religiosa. É a própria ciên­ cia que se tornou ideologia dominante. A primeira vista, a crítica das ideologias não faz outra coisa que a hermenêutica quando ela denuncia o falso abso­ luto da ciência e sua pretensão ilusória ao saber desinteres­ sado. Mas Habermas pensa que, apesar das aparências, a 2 Cf. J. Greisch, K. Neufeld, C. Theobald, La crise contemporaine. Du modernisme à la crise des herméneutiques, Beauchesne, Paris, 1973, p. 144. Recomendo vivamente o balanço da crise da hermenêutica apre­ sl!ntado por J. Greisch nesse volume coletivo, ao qual devo muito. 2 • Como fau:r teol01la hoje

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hermenêutica de Gadamcr, justamente por causa de sua con­ fiança cega na tradição, ainda tem uma concepção idealista do conhecimento humano. Ela privilegia certa transparência da relação inter-humana e é incapaz de desmascarar as re­ lações de força e mesmo de violência inscritas na tradição que nos carrega, as quais obliteram toda comunicação hu­ mana. Malgrado sua pretensão ao universal, a hermenêutica de Gadamer fracassa ao fornecer critério para o discerni­ mento das consciências falsa e autêntica. Ela deve ser supe­ rada pela crítica das ideologias, que queira poder pôr à pro­ va todos os tipos de diálogo humano à luz de exigência · de comunicação universal finalmente sem violência e sem temor.

B. A leitura contra a interpretação Enquanto toda aproximação hermenêutica de um texto pressupõ� a possibilidade de descobrir o .sentido oriirinário, oculto, sob a letra, as novas teorias de leitu.ra. particular­ mente a análise estrutural nao postulam nenhuma teoria de duplo sentido e se aplicam unicamente às estruturas internas do texto. Não se trata de, numa perspectiva histórica, pôr-se a questão do sentido ao qual reenvia uma multiplicidade de sinais, textuais ou não. Como diz Roland Barthes, "a desin­ tegração do sinal parece ser a grande questão da moderni­ dade". Desde que Saussure estabeleceu que o sentido jorra da articulação dos sinais em sistemas significantes, a questão não é mais a da continuidade de sentido além de separações textuais ou históricas, mas a da produção do sentido e de se:.i funcionamento no interior de um texto fechado e orga­ nizado como um sistema de significação. Como funciona o texto para produzir certos efeitos de sentido? O conceito de "produção" substitui o de u compreensão", como o de "ves­ tígio" ou de "arquivo" substitui o de "sinal". Se deixarmos o plano da lingüística para explicitarmos a ideologia que a acompanha, achar-nos-emos na presença de uma contestação radical da hermenêutica, à medida que esta postula urna continuidade de sentido e a primazia do sujeito que decifra a inteligibilidade de aventura única e

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sempre idêntica além da materialidade dos contextos tex­ tuais ou históricos. O estruturalismo não define a si mesmo como sistema filosófico. Mas, representando um sistema de pensamento�original, ele se vê em ruptura com o humanis­ mo filosófico, definido pela primazia do sujeito. "O evento de verdade mais importante de nosso tempo é o descentra­ mento do homem em relação a toda falsa subjetividade cen­ tral. " 3 Essa ideologia anti-humanista se encontra no neomar­ xismo de L. Althusser, no neofreudismo de J. Lacan, no neopositivismo de C. Lévi-Strauss e na arqueologia do saber de M. Foucault. Em todo caso, do ponto de vista da lin­ güística moderna, o homem, corno sujeito da linguagem, de­ saparece em proveito de uma região muda, a das estruturas e a dos sinais dispersos que não reenviam a uma significa­ ção global do mundo e do homem. Trata-se de estudar a lin­ guagem como sistema de sinais, e não como sinal ou expres­ são de um pensamento. Os termos têm sentido pela relação com os outros termos da frase, mas não por relação com uma realidade exterior. É necessário tomar a sério o jogo lateral dos significantes, sem postular um significado último. D:zemos que a linguagem como palavra, como manifestação de sentido e como evento de um encontro é absorvida pela linguagem como sistema. "Ela fala antes que eu fale", para usarmos o termo muito citado de Lacan. Como bem o mostrou J.-P. Osier, o processo instaurado contra a hermenêutica não data de hoje. As novas teorias de leitura do texto bíblico levam em consideração o desloca­ mento de terreno operado por Marx e, antes dele, por Es­ pinosa. Devemos, com efeito, escolher. Ou somos herdeiros de Espinosa, ou o somos de Feuerbach. Este último, ao se aplicar a uma interpretação atéia do cristianismo, não aban­ donou o terreno tradicional da hermenêutica. Tratava-se sem­ pre de descobrir uma essência inteligível sob mutações cul­ turais, particularmente a do advento do ateísmo moderno. "O deslocamento exemplar operado por Espinosa é uma 'mu­ dança de terreno'. Espinosa não foi para a caixa do ponto, atrás do cenário; ele foi para outro lugar, em outro. Esse 3 A. Vergote, Jnterprétation du langage religieux, Seuil,

1974, p. 16.

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'em outro lugar', impossível de ser encontrado ao nível do texto religioso literal ou simbólico, é o conhecimento do segundo gênero, que, more geometrico, procede dedutiva­ mente por definição, isto é, pela explicação causa], uma vez que definir e expor a causa necessária são uma s6 e mesma coisa, pelo menos no nível da ciência. O produto desse deslo­ camento é a consideração da religião ou de sua manifes­ tação num texto como constituindo um efeito ... '"4 "Espi­ nosa tem descendência à medida que iniciou uma teoria de leitura como condição e possibilidade de toda leitura. Com ele o te.xto se torna efeito, e também o sentido do texto. Conhecer o que se lê é, pois, produzir o conceito teórico dos mecanismos que dão tal ou tal texto, tal ou tal sentido, contra-sentido, não-sentido. Em outras palavras, Espinosa subordinou toda 'compreensão' ou recolhimento do sentido a uma teoria prévia do conhecimento dos 'efeitos-compreen­ são' ou 'recolhimento', ou, se se preferir, Espinosa reduziu a hermenêutica ao plano de 'efeito hermenêutico', o que tira a esta úlúma todo privilégio de conhecimento. "5 Devemos agora explicitar as conseqüências da análise. es­ trutural especialmente no que concerne ao questionameato de certo tipo de exegese bíblica tradicional. 1. Se levarmos a sério a reviravolta copernicana ope­rada pela lingüística desde Saussure, devemos pôr em causa a idéia de uma verdade do texto ou de um sentido literal a descobrir, o que era o postulado implícito da exegese histórico-crítica. "Se cada elemento da linguagem enquanto unidade constitutiva, não é distinguível dos outros pelo que ele representa ou designa, o sentido não será constituído pela relação extrínseca do sinal com a realidade, pela etiqueta que o termo, por exemplo, coloca sobre a coisa. Ele será produzido pela relação interna constituinte que esse termo mantém com todos os outros termos do vocabulário. "6 Con4 J.-P. O&icr, prefácio à tradução francesa de L'Essence du chris­ de L. Fcucrbach, Maspcro, Paris, 1968, pp. 10-1. 5 ld., ibid., p. 17. 6 L. Marin, "La dissolution de l'homme dans les sciences humai­nes: p. 33. linguistiquc et sujet aignifiant", in Concilium 86, 1973, mod�le

tlanisme,

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trariamente a uma concepção substancialista da linguagem, segundo a qual a linguagem é reservatório de sinais, através dos quais um leitor vai decifrar um sentido, é necessário compreender a linguagem como totalização das diferenças, produzindo o sentido por oposições. Não existe um sentido do texto que baste restituir. O sentido não está "antes" do texto, nem " por baixo" do texto. Assim, ler não é decifrar um sentido antecedente, mas produzir um sentido, deixan­ do-se governar pela cadeia dos significantes. Como diz A. Delzant, "o sentido só pode ser a circulação ordenada dos significantes, o jogo dJerencial das oposições, pelos quais se inscrevem tanto um autor textual como um leitor textual" .7 Vê-se bem a distância entre semelhante teoria de lei­ tura e o positivismo latente de certa exegese tradicional, que identificava a verdade com o conteúdo do texto. Isso, por outro lado, permitiu aos exegetas exercer às vezes certo terrorismo, como se a interpretação autêntica do cristianis­ mo hoje dependesse estreitamente do sentido literal dos tex­ tos extraídos pela exegese. Ao contrário, uma leitura estru­ tural do texto bíblico pode ser libertadora à medida que, em lugar de nos obrigar à repetição de um sentido já presente nele, ela se torna pré-texto com uma pluralidade de leituras e com comunicação com outros. "Não tenho uma verdade do texto, mas ele me desaloja e me desloca: exílio ou êxtase, graças ao texto, mas sem que eu fale o que o texto diz. " 8 Deveríamos insistir aqui na noção de "permissão": o que o texto permite e o que não permite, à medida que não o identificamos com uma plenitude de verdade imediata­ mente transparente. E é legitimo dizer o mesmo da pre­ sença de Cristo, como evento fundador, para a história presente dos cristãos. "Uma quenose da presença produz uma escritura plural e comunitária. " 9 7 A. Dclzant, La communication de Dieu. Par-delà utilé et inutile. Essai théologique sur l'ordre symbolique ("Cogitatio Fidei" 92), Ccrf, Paris, p. 65. 8 M. de Ccrtcau, in Crise du biblísme, chance de la Bible, tpi, Paris, 1973, p 46. 9 !d., "La rupturc instauratricc n , in Esprit, junho de 1971, p. 1201.

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2. Outra conseqüência da leitura de tipo estrutural, em sua diferença com a pesquisa interpretativa da hermenêutica, é que é inútil procurar voltar, partindo do texto como jogo diferencial de significantes, a um querer dizer do autor e mesmo a um significado último. Se o sentido é um efeito dos significantes no sistema fechado de um texto, eviden-temente é ilusório procurar um querer dizer do autor, em tal contexto sociocultural, mediante tal forma literária. Também aqui estamos em completa ruptura com a ambição do método histórico-crítico em exegese. O privilégio dado ao ponto de vista sincrônico nos leva a relativizar a noção de autor no sentido de intencionalidade ou de voz atrás do texto. Como dizíamos acima, a propósito do estruturalismo em geral, o homem como sujeito e intencionalidade significante é posto de laro. "Ele não aparece aí como sujeito doador de sentido, mas como o lugar de produção e de manifestação do sentido..." 10. A tomada em consideração do texto como objeto textual põe em causa a ideologia de uma origem a procurar do lado de um autor proprietário do sentido, como também a de uma finalidade, do lado de um leitor que deve apropriar-se do sentido. É necessário, portanto, pôr entre parênteses as idéias de autor, de mensagem e de destinatário, colocar-se simplesmente dentro da imanência do texto e assinalar suas leis de funcionamento. Mais radicalmente, a análise estrutural dos textos aplicada à leitura da Bíblia Põe em causa o pressuposto de aproximação hermenêutica, a saber, a remitência a um significado último e, conseqüentemente, a um autor divino. Estamos sempre no nível do jogo dos significantes, e então a distinção entre significante e o significado perde a sua pertinência. Devemos abandonar o postulado da hermenêutica, a saber, o de duplo sentido, um sentido originário por meio de um sentido primeiro. Na concepção tradicional da hermenêutica, o material significante de um símbolo remete sempre a um significado último. É neste sentido que P. Ricoeur pode dizer que "o símbolo faz pensar". Mas para aquele que adota uma po10 L. Marin, art. citado, p. 37.

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s1çao estrutural, é confundir a ordem simbólica com o fun­ clonamento da representação imaginária, que pretende :ucan­ çar a realidade a partir da e numa imagem. De fato, para termos acesso à verdadeira ordem simbólica, devell'.OS pôr em causa a prioridade do significado. O simbólico nfo remete a uma plenitude de sentido. Ele não faz pensar ... , mas permi­ te a vinda do sujeito e o encontro com outros. "O simbólico remete, portanto, à sociedade e à aliança que ela implica, à comunicação que nela se forma. "11 Enquanto a leitura her­ menêutica do símbolo exigia a prioridade do significado, hoje preferimos dizer que, na ordem simbólica, "o s i gnificado está sempre em posição de significante".12 Nem Deus pode ser identificado com o significado último. Ele deve ser con­ siderado corno um significante que remete a outros signifi­ cantes laterais. 3. Há um terceiro ponto que merece ser sublinhado e que é carregado de conseqüências no que diz respeito à nos­ sa prática da Escritura, a saber, o fechamento dos textos. Esse privilégio dado ao ponto de vista sincrônico contesta diretamente o pressuposto implícito de toda compreensão hermenêutica, a saber, que a tradição é o horizonte necessá­ rio de nossa compreensão do passado. Contrariamente ao método histórico, que procura compreender um texto a par­ tir de sua gênese e de suas releituras atualizantes na tra­ dição, é necessário permanecer dentro do texto e produzir seu sentido, deixando-se guiar pelo jogo diferencial dos sig­ nificantes. Enquanto para a hermenêutica tradicional, espe­ cialmente depois de Gadamer, a distância histórica, longe de ser obstáculo, é o meio mais seguro de compreensão do passado, aqui ela se torna o lugar de um pasmo irredutível, de uma "disseminação" radical, como diria J. Derrida. Se queremos interpretar o cristianismo em termos de tradição, devemos dar prioridade às rupturas sobre a continuidade, às diferenças sobre a semelhança, às alteridades sobre a iden­ tidade. O texto da Escritura não somente dá ocasião a uma 11 G. Lafon, Esquisses pour un christianisme ("Cogitatio Fidei u

96), Cerf, Paris, 1979, p. 64.

12 G. Lafon, ib:d., p. 68.

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pluralidade de interpretações, mas é pretexto para interpre­ tações inovadoras, que criam, a cada vez, uma diferença. É vão postular um sentido único e definitivo da Escritura, que bastasse recolher e repetir ao longo dos séculos. "O sen­ tido ainda não está presente nela, nem no acesso ao sentido, mas é o seu excesso, dado gratuitamente, desde que se renuncie à sua presença e à sua percepção; o trabalho do sentido é esta renúncia, a marcha para a terra prometida, o caminho, o método. "13 E se é necessário renunciar à presença de uma continui­ dade de sentido que subsist-a além dos desvios culturais e das rupturas históricas, é necessário também descartar a pre­ tensão de poder retraduzir um sentido idêntico em lingua­ gens diferentes. Isso seria deter-se numa concepção insufi­ ciente da linguagem e conservar urna separação ilusória entre os significantes e o significado. Não podemos pretender di­ zer a mesma coisa com palavras diferentes. As palavras só têm sentido pela ligação com outras palavras, segundo re­ lações laterais. E esse jogo diferencial varia de acordo com o contexto textual ou histórico. Somos sempre reenviados à linguagem como sistema fechado. Mudando-se as regras do jogo, modifica-se a produção do sentido. O sentido não é an­ terior ou transcendente ao sistema dos significantes que o constitui. Adivinha-se que nessa perspectiva sincrônica seremos levados a uma prática radicalmente nova da Escritura. O célebre problema, sempre irritante para a consciência cristã, da conciliação entre a novidade criativa e a fidelidade será posto com toda a sua agudeza. De fato, uma vez que não existe uma verdade da Escritura que possa fornecer-nos um critério seguro para a interpretação da mensagem cristã para hoje, compreende-se o uso privilegiado que é feito do re­ curso à prática significante do cristão ou à ortopraxia.14 13 A. Delzant, op. cit., p. 69. 14 Sobre este ponto veja o artigo de F. Refoulé, "L'exég�se en question", in Le Supplément 111, 1974, pp. 411-4.

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C. Hermenêutica e gramatologia Tentamos ver em que as novas teorias de leitura, par­ t icularmente a análise est rutural dos textos, contestam dire­ tamente a hermenêutica como processo de interpretação li­ gado a duplo sentido, como acesso ao sentido por meio de outro sentido. Isso renova nossa prát ica da Escritura. Mas, em exegese. podemos considerar a análise estrutural como método que vem completar o método histórico-crítico. Não existe necessariament e incompatibilidade absoluta entre es­ tes dois tnétodos. O mesmo não se dá se considerarmos as ideologias subjacent es a eles. Neste caso, devemos falar de incompatibilidade radical e até de luta de morte. Jacques Derrida deu sua forma mais extrema ao processo movido à hermenêutica como movimento de pensamento. "Gramato­ logia ou hermenêutica": trata-se de alternativa sem possibi­ lidade de compromisso. Para ele, a crise da hermenêutica se torna a crise de todo o pensamento ocidental. E, ao mesmo tempo, o movimento de pensamento designado pelo nome de gramatologia representa a contestação mais radical possí­ vel de toda a teologia hermenêutica. "O encontro entre a hermenêutica e a gramatologia deve tomar necessariamente a forma de luta de morte, de enfrentamento que exclui de início toda possibilidade de reconciliação ou de mediação. " 15 1. Podemos, numa primeira aproximação, reduzir a oposição entre hermenêutica e gramatologia à oposição entre a escritura e a palavra Mas com a condição de não ficarmos no mve1 11ngüístico. Privilegiando a escritura, a gramatologia quer ser demolição radical da metafísica, à medida que esta se situa na linha do logocentrismo. O privilégio con­ cedido à voz, à phone, é metafísica. E é inseparável de uma metafísica da presença, que postula uma plenitude de senti­ do, um significado transcendental, anterior a todo significan­ te. A escritura não é mais do que a expressão do evento da linguagem, pela qual o homem toma o mundo presente a si mesmo. 15

J.

Gre:sch, in La crise contemporaine..., cit .• p. 157.

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2. O projeto da grama-tologia consiste em conduzir 'até às últimas conseqüências a demolição da metafísica como ontoteologia, efetuada por Heidegger. Ora, o horizonte de pensamento do projeto hermenêutico permanece inelutavel­ mente sob o signo da ontoteologia enquanto pensamento do Ser como presença, identidade, pertinência, origem. Derrida quer, mais radicalmente do que Heidegger, ultrapassar a ontoteologia na direção de um pensamento da diferença. "Enquanto a diferença remete, em última instância, aos con­ ceitos de produção e de economia, que marca predominância irredutível da espacialidade, a hermenêutica permanece sob o signo do sentido que se manifesta. "16 Poder-se-ia objetar que também a hermenêutica de Gadamer quer se inscrever no movimento de pensamento instaurado por Heidegger. Mas Derrida pensa que não só Gadamer como também o próprio Heidegger não foram até o fim nas implicações do destino historial do pensamento do ser e do fechamento da metafísica. 3. Embora pense que o estruturalismo ainda continua prisioneiro da metafísica, uma vez que privilegia demasiada­ mente a fonética, Derrida fornece a este a justificação teó­ rica, quando define a linguagem como "jogo formal das di­ ferenças". A gramatologia deve ser entendida como destrui­ ção do sinal em proveito do vestígio, que designa justamente o jogo das diferenças. "O vestígio é, com efeito, a origem absoluta do sentido em geral, o que significa mais uma vez que não existe origem absoluta do sentido em ge�·al. "17 Co­ mo vimos acima, é a relação significante-significado, o pró­ prio postulado de toda a hermenêutica, que desmorona. O sentido só pode jorrar da oposição dos significantes. E não devemos hesitar em dizer que todo significado já está na posição de significante. "Que o significado seja originária e essencialmente ( e não só para um espírito finito e criado) vestígio, que ele iá esteja sempre na posição de significante é a proposição aparentemente sem problemas na qual a me16 ld., ibid., pp. 165-6. 17 J. Dcrrida, De la grammatologie, td. de Minuit, Paris, 1967, p. 95.

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tafísica do logos, da presença e da consciência deve refletir a escritura como sua morte e sua fonte. "18 Uma vez que compreendemos a linguagem como organização de tipo signi­ ficado-si gn ificante, concedemos a prioridade ao significado co­ mo plenitude de sentido e não escapamos ao logocentrismo como destino do pensamento ocidental. "Toda vez que afir­ mamos que o significado não é redutível ao significante, da­ mos o sentido do ser como identidade, pertinência, origem. "19 Restaria perguntar se a tradição hermenêutica está tão fatalmente ligada ao destino da metafísica enquanto ontoteo­ logia como o diz J. Derrida. O que é certo, em todo caso, é que uma hermenêutica pressupõe necessariamente uma filosofia do sentido. Ora, o movimento de pensamento ra­ dicalizado por Derrida significa o desmoronamento da filo­ sofia do sentido, seja ela clássica, isto é, metafísica, seja mo­ derna, isto é, husserliana ou mesmo heideggerian 20 Conclmndo essa muito breve evocação do conflito ir­ redutível que separa esses dois horizontes de pensamento, a gramatologia, de um lado, e a hermenêutica, do outro, seria conveniente sublinhar o alcance destruidor para todo projeto teológico de um pensamento da diferença no sentido de Derrida. A questão é muito diferente de um conflito de método no que concerne à aproximação do texto bíblico. Trata-se simplesmente do problema da verdddt: e, portanto, da compreensão teológica, e de nada mais. A este respeito poderíamos tentar comparação entre a crise modernista e a crise da hermenêutica, precisando logo que esta última contesta ainda mais radicalmente os funda­ mentos do discurso teológico. A crise modernista nasceu da impossibilidade de recon­ ciliar a nova prática científica da história com uma com­ preensão teológica do dogma cristão. Hoje a crise da her­ menêutica é o sintoma do fosso cada vez maior que separa 18 ld, ibid., p. 108. 19 F. Wahl, in Qu'est-ce que le struc:uralisme?, Seuil, Paris, 1968, p. 413. 20 A respeito da discussão sobre o conflito entre a hermenêutica e a• gramatologia, pode ser lida com proveito a obra de J. Greisch, Herm�neutique et grammatologie, Editions du CNRS, Paris, 1977.

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uma compreensão teológica do mistério cristão de uma apro­ ximação do fato cristão segundo a prática das ciências hu­ manas e da história. A nossa situação atual s6 faz acuar mais a ruptura epistemológica, já manifesta no tempo do modernismo, entre "entendimento ci entífico", "razão espe­ culativa" e "experiência teologal". Vimos a importância do conceito de "produção" tanto do ponto de vista lingüístico como do ponto de vista do estruturalismo ideológico. Ele é revelador de uma situação e de uma prática científica to­ talmente diferente da do modernismo. Empenhan:o-nos no estudo das "condições de produção" socioculturais, psicoló­ gicas e econômicas do objeto religioso. Mas ele, enquanto verdade e sentido a decifrar, desvanece. "Durante a crise modernista, era a especificidade cristã, a 'ephapax', que de­ saparecia em proveito de experiência em si inefável e supra­ hist6rica. Na 'crise hermenêutica' 'é o objeto religioso como um todo que perde seu lugar. Quando a análise não visa mais à verdade do discurso ou de um símbolo religioso, mas aos mecanismos de sua produção, os quais, segundo a prática científica escolhida, pertencem a um sistema socio­ lógico, psicológico ou outro, o símbolo ou o fenômeno reli­ g'.oso não pode mais continuar sendo objeto privilegiado; e1.e se reduz a um único ponto num campo relacional, que daí por diante tem outros centros de referência. "21

II. O DESLOCAMENTO ATUAL DA HERMENtUTICA

A. O destino da hermenêutica teológica Procurei reconstituir alguns aspectos da crise da herme­ nêutica. Na sua forma mais radical, a da gramatologia de Derrida, a contestação do horizonte de pensamento, que é indissociável do projeto hermenêutico, nos leva a nos inter-

J.

21 C. Theobald, • L'ent�e de l'histolre dans l'univers religieux et théologique au moment de la crise modemiste n , in La crise contem­ poraine ..., cit., pp. 74-5.

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rogarmos seriamente sobre as possibilidades do discurso teo­ lógico. A crise da hermenêutica não é, aliás, a crise da pró­ pria teologia? Como dissemos, a crise da hermenêutica não é só crise de linguagem, mas também de pensamento. Não vejo, por isso, atualmente, como seria possível negociar uma espécie de compromisso entre a gramatologia e a teologia. Estamos diante de alternativa que impede todo esforço de conciliação. Devemos, por isso, aceitar viver no desconforto de crise cujas conseqüências ainda não avaliamos. Não creio, todavia, que toda hermenêutica teológica esteja voltada ao fracasso, já por causa da irredutibilidade da hermenêutica teológica à hermenêutica geral. Não penso, particularmente, que o pro­ cesso movido contra a ontoteologia torne definitivamente caduco todo projeto hermenêutico. Esse processo não data de hoje. E, desde Heidegger, a teologia hermenêutica tem procurado tomar a sério as conseqüências da mudança da metafísica, empenhando-se cada vez mais em não confundir o "teológico" que vem da tradição ontoteológica ocidental com o "teológico" que vem da tradição judaico-cristã. Vejo bem o benefício enorme que a nossa prática da Escritura pode tirar da análise estrutural dos textos. A ascese da análise estrutural tem o mérito incontestável de nos pôr ao abrigo das fantasias subjetivas, psicológicas e apologéti­ cas na interpretação de um texto, tentação à qual a exegese cristã tradicional muitas vezes sucumbiu. Mas dificilmente vemos como o teólogo possa permanecer no ponto de vista do lingüista em sua concepção da linguagem. Como vimos, o lingüista considera a linguagem exclusiyamente como sis­tema diferencial de sinais e não como palavra, como inten­cionalidade significante, como mensagem dirigida a um des­tinatário. Dizemos que o lingüista faz abstração da função fenomenológica da linguagem como mediação. Esta mediação é, contudo, o verdadeiro evento de palavra: eu tu - e aquele do qual eles falam. Quem diz "mensagem" diz al­guém que fala ou escreve e alguém que ouve ou lê. Em outras palavras, o teólogo não pode deixar de con­sid erar a linguagem do ponto de vista semântico. A lingua­gem não procede só de análise estrutural, mas também de

fenomenologia na qual é apanhada novamente a intencio­ nalidade significante que preside o discurso. Na própria li­ nha da lingüística saussuriana sabemos que devemos distin­ guir a lingüística da "língua", e esta do " discurso ". Na pri­ meira, a unidade de base é o sinal; na segunda, a frase. Uma coisa é considerar a palavra como "diferença" num sis­ tema de oposições; outra é considerá-la como função na frase enquanto unidade significante do discurso. Devemos até acrescentar, parece-me, que o teólogo não pode contentar-se com aproximação fenomenológica da lin­ guagem. É próprio de hermenêutica teológica que se es­ força por não ligar seu destino histórico ao da ontoteologia justamente recolher a lição do segundo Heideeger, quando ele nos fala da linguagem como modalidade do ser, como ontophania. Antes de ser palavra dirigida a alguém, a lin­ guagem é dizer, é palavra como manifestação do ser. Deve­ mos ouvir o dizer da linguagem antes de exercermos nossa responsabilidade de sujeito falante.22 Eu seria mesmo tentado a pensar que esse nível onto­ lógico do dizer como manifestação do ser é o pressuposto necessário de uma hermenêutica da linguagem da revelação. É porque já sou capaz de discernir a manifestação do ser em toda linguagem, particularmente na lin gu agem poética, que sou capaz de acolher a Palavra de Deus como manifes­ tação "inaudita" do ser. A hermenêutica cristã terá por ta­ refa justamente procurar o sentido das palavras-chave da lin­ guagem da revelação em função da palavra "Deus", que diz mais· do que a palavra "ser", especialmente se a palavra "Deus" estiver compreendida em sua relação privilegiada com a simbólica da Cruz. Em todo caso, não vejo como possamos permanecer ao nível da análise estrutural para manifestarmos a inteligência 22 Referimo-nos principalmente ao texto inédito de M. Heidegger traduzido para o francês sob o título: "Quelques indications sur des points de vue principaux du colloque théologique consacré au 'Probl�me d'une pensée et d'un langage non objectivisants dans la théologie d'au­ jourd'hui' n, in Archives de Philosophie 32, 1969, pp. 397-415. Teste­ munha-o este questionamento: "F. o homem esse ser que tem a Jingua• gem em sua posse? ou é a linguagem que 'tem' o homem, à medida que ele pertence à linguagem, a qual lhe abre o mundo e, com isso, ao mesmo tempo, a sua morada no mundo?", ibid., p. 409.

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das palavras-chave da linguagem bíblica. Para mim,. a. leitura cristã da Escritura será sempre hermenêutica, pelo menos no sentido de que interpretamos o texto dentro da mesma tradição em que ele foi escrito. Pode haver nela uma plura­ lidade de interpretações em função de situações históricas diferentes. Mas a tradição viva, cujo sujeito é a comunidade interpretante, circunscreve um campo hermenêutico que ex­ clui as interpretações aberrantes ou arbitrárias. Não pode­ mos, portanto, sacrificar o ponto de vista diacrônico ao ponto de vista sincrônico para chegarmos a um fechamento absoluto e a uma descontinuidade radical. O evento-funda­ dor, Jesus, que está irremediavelmente passado, "permite" certa continuidade do sentido, que é inseparável da tradição histórica dos que vivem de seu espírito.

B. O deslocamento da hermenêutica segundo Paul Ricoeur Feitas essas observações prévias, sinto-me mais livre para afirmar que o destino da hermenêutica não pode mais ser o mesmo depois desse evento cultural representado pelo estruturalismo, tanto como método de leitura quanto como ideologia. Em sua forma menos radical, a crise da herme­ nêutica é, pelo menos, a crise de uma hermenêutica românti­ ca e psicologizantc O deslocamento atual da hermenêutica participa do movimento do pensamento moderno no que ele tem de mais significativo e que pode ser caracterizado como "descentração do homem" em relação a uma falsa subjetivi­ dade, ou como "desistência da consciência". Aqueles para os quais o termo "hermenêutica" se tornou tabu deveriam lembrar-se disso e não se entregar muito depressa à crítica de uma hermenêutica sempre incorrigivelmente sob o signo do primado do sujeito, seja ele metafísico, seja transcen­ dental. Paul Ricoeur é boa testemunha desse deslocamento de uma hermenêutica que dá toda a sua importância ao objeto textual e que não se concentra imediatamente no momento da apropriação subjetiva do texto. Permito-me, por isso, fazer referência aos seus trabalhos hermenêuticos recentes, para

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tentar expor rapidamente os aspectos mais significativos do deslocamento em curso.23

1. A situação da oposição entre "explicar" e "compreender" Para compreendermos a posição mais recente da her­ menêutica, devemos notar bem que ela se mantêm reservada tanto diante da hermenêutica romântica e psicologizante - que, depois de Schleiermacher e Dilthey ( ainda em Ga­ damer), privilegia a idéia de afinidade, de conaturalidade entre o leitor de um texto e seu autor - como diante do estruturalismo, que visa antes de tudo à objetivação do texto, seja qual for o alcance de sua mensagem para alguém. A ambição da hermenêutica romântica era, a prop6sito de um texto determinado, "compreender seu autor melhor do que ele se compreendeu". Como diz Ricoeur, "o objeto da hermenêutica é incessantemente deportado do texto, de seu sentido e de sua referência para a vivência expressa ne­ le" .24 Ricoeur, ao contrário, procura recolher a lição de Hei­ degger, quando ele "despsicologi.za" o "compreender histó­ rico" para o mundanizar. A compreensão como existencial não visa mais a um ato do conhecimento noético, ela designa um "poder ser". Minha "situação" em relação ao mundo pre­ cede meu conhecimento do mundo como objeto. E, assim, compreender um texto é desdobrar a possibilidade de ser indicada pelo texto. Ricoeur não quer mais ligar o destino da hermenêutica à "noção puramente psicológica de transferên­ cia a outrem e desdobrar o texto, não mais voltado para seu autor, mas para um sentido imanente e para a espfrie de mundo que ele abre e descobre" .25 Ele chega, assim, parado­ x:almente, a uma das exigências fundamentais do estrutura23 Além do prefácio à tradução francesa de Jésus, de R. Bultmann, Seuil, Paris, 1968, refiro me especialmente aos seguintes trabalhos: "La tAche de l'herméneutique; La fonction herméneutique de la distan­ ciation; HeTméneutique philosophique et herméneutique biblique", in Exegesis, Delachaux et Niestlé, NeuchAtel, 1975, pp. 179-228; "Hermé­ neutique de l'id:e de rév�lation", in P Ricoeur, E. Levinaa, E. Hau­ lotte, E. Comélis, C. Geffré, La Révélation, Publication des Facultés Universitaires Saint-Louis, Bruxelas, 1977; "Nommer Dieu", in ttudes théologiflues et religieuses 52, 1977, pp. 489-508. 24 P. Ricoeur, Exegesis, clt., p. 189. 25 Id., ibid., p. 190.

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lismo, quando este quer promover um tipo de leitura que renuncie a �lcançar um querer dizer do autor, para ater-se à objetividade do texto e encontrar suas condições de pro­ dução. O que o leitor tem diante de si não é o autor, mas a coisa do texto, para falarmos como Gadamer. Em outras palavras, Ricoeur procura ultrapassar o dile­ ma entre a distância, ligada à objetividade do texto, e a proximidade ou a pertinência, ligada à compreensão histórica. Ele se esforça, por isso, para escapar à alternativa que ainda está presente no próprio título da grande obra de Gadamer: verdade e método, isto é, de um lado, a compreensão, liga­ da a uma pertinência comum, e, do outro, o método, que evoca a idé�a de distância, implicada na preocupação de ob­ jetividade das ciências do homem. Apesar do sentido conec­ tivo da preposição "e", pode-se pensar que o título de Ga­ damer exprime uma alternativa e que, de fato, sacrifica uma teoria epistemológica da interpretação à hermenêutica, no sentido ontológico. Ricoeur faz um esforço desesperado para conciliar os dois. De um lado, dá razão ao estruturalismo, ao aceitar pas­ nar pela Jonga via dos métodos exegéticos, a fim de estal,e­ lecer a objetividade do texto. Mas, do outro, resiste à des­ construção do sentido praticada pelo estruturalismo. Ele não renuncia, com efeito, à compreensão hermenêutica, isto é, finalmente, à procura da verdade. Mas, para ele, o texto co­ mo obra é que mediatiza a verdade a compreender. Mais [>recisamente, é a noção de mundo do texto ( equivalente, para ele, da "coisa do texto" de Gadamer ) que lhe permite mediatizar a relação entre a distância e a pertinência. Ela é para ele o paradigma da distância na comunicação. "A objeti­ vação do discurso na obra e o caráter estrutural da com­ posição, ao que se acrescenta o distanciamento pela escritura, nos obrigam a pormos inteiramente em questão a oposição, recebida de Dilthey, entre 'compreender' e 'explicar'. Uma nova época da hermenêutica foi aberta pelo sucesso da análise estrutural; daqui para frente a explicação é o caminho obri­ gatório da compreensão. "26 26 ld., ibid., p. 209.

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2. A mediação do texto Em Ricoeur a noção de "mundo do texto" decorre di­ retamente de sua compreensão da linguagem como dialética do sentido, dialética à qual ele voltou muitas vezes, espe­ cialmente em seu diálogo com o estruturalismo.27 Ela é in­ separável de decisão epistemológica, a de privilegiar o dis­ curso em sua diferença da linguagem, para retomarmos a distinção saussutiana entre a linguagem como língua e a lin­ guagem como palavra. Evento de palavra só existe no nível do discurso. Este último remete, com efeito, a um locutor e a um destinatário e é sempre mensagem a respeito de al guma coisa. Assim, enquanto a análise estrutural permanece na imanência do tex­ to como jogo diferencial de significantes que não remete a uma referência, o discurso, para Ricoeur, faz advir "um mundo ". E o que faz a originalidade do discurso é a su­ peração do evento fugidio da palavra em sua significação que permanece. Essa superação, que ainda está latente no ní­ vel da palavra viva, manifesta-se quando o discurso se torna escritura, especialmente quando esta toma a forma de ver­ dadeira obra, de obra literária. A obra assegura a função de mediação prática entre a palavra e o sentido. :É próprio do estilo justamente inscrever o evento fugidio da intencionali­ dade do autor na obra. Daí para frente o texto tem vida própria, independente da intenção do autor. Ele poderá ser lido em contexto diferente do de sua produção e suscitar múltiplas leituras. Assim, o próprio fenômeno da escritura chama a objetivação e, portanto, o distanciamento como condição da compreensão. Graças à noção de "mundo do texto", Ricoeur mantém distância de uma hermenêutica tra­ dicional que acredita poder colher um sentido objetivo do texto, encontrando o querer dizer do autor. Mas ele guarda distância também do estruturalismo, para o qual o sentido a compreender são as estruturas do texto e o mecanismo de 27 Veja particularmente: "La structure, le mot et l'événement", in Le conflit des interp:étations, Seuil, Paris, 1969, pp. 80-97, e "l!.véne­ ment ct sens", in Révélation et Histoire, conferência editada por E. Castelli, Aubier, Paris, 1971, pp. 15-34.

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seu funcionamento. O texto guarda a sua pretensão de dizer alguma coisa sobre a realidade. Ele exprime um certo "mun­ do". "Com efeito, o que deve ser interpretado num texto é uma proposição de mundo, de um mundo que eu possa habitar para projetar nele um de meus possíveis mais pró­ prios... É o que eu chamo de mundo do texto, o mundo próprio desse texto único. " 28 Devemos, por isso, rejeitar a alternativa de uma hermenêutica polarizada na compreensão da intenção do autor, e de um método estrutural polarizado na explicação da estrutura do texto. "A alternativa da inten­ ção ou da estrutura é vã. Porque a referência ao texto - o que chamo a coisa do texto ou o mundo do texto - não é nem uma nem outra. Intenção e estrutura designam o sen­ tido; o mundo do texto designa a referência do discurso, não o que é dito, mas aquilo sobre que ele é dito. A coisa do texto é o objeto da hermenêutica. E a coisa do texto é o mundo que o texto desdobra diante de si. " 29 Essa idéia de "desdobramento do mundo diante do tex­ to" só tem sentido com referência à lingu agem poética, que Ricoeur privilegia em relação à função simplesmente descri­ tiva da linguagem cotidiana. O discurso poético ( que não deve ser confundido com a poesia em sua diferença da prosa) tem uma função revelante num sentido não religioso. "Mi­ nha convicção mais profuda é de que a linguagem poética é a única a nos indicar uma pertinência a uma ordem de coisas que precede nossa capacidade de opormos a nós es­ sas coisas como objetos que se oponham a um suieito. " 3 Note-se o sabor tipicamente heideggeriano dessa confidência. De fato, essa insistência na dimensão poética da lingu agem remete ao segundo Heidegger, para o qual a lin guagem é o dizer do ser do mundo, antes de ser o instrumento da co­ municação inter-humana. Ricoeur reivindicou sempre uma reflexão sobre a linguagem que ultrapasse o ponto de vista do lingüista e do fenomenólogo, para desembocar numa ver­ dadeira ontologia da linguagem. E em seu belo texto sobre "a hermenêutica da idéia de revelação", começa a elaborar a tarefa que atribuía a toda teologia da Palavra de Deus

º

28 P. Ricoeur, Exegesis cit., p. 213.

29 •tterméneutique de l'idée de révélation", art. cit., pp. 38-9. 30 Id • ibid., pp . .39-40.

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depois de Bultmann, a saber, o longo caminho da "reivindi­ cação do dizer pelo ser" .31 3. A apropriação do texto e a com preensão de si Insistimos na objetivação do texto, em sua autonomia em relação ao autor e em seu papel de mediação em relação à compreensão. Agora devemos tirar disso todas as conse­ qüências no que diz respeito à apropriação subjetiva do texto pelo leitor. O tema da apropriação (Aneignung) é constante cm hermenêutica. A hermenêutica existencial de Bultmann foi, com razão, censurada de sacrificar a objetividade do texto a compreender à historicidade da decisão. Nesse sentido a sua hermenêutica vai diretamente de encontro à crítica das teorias estruturalistas atuais de leitura. Dizemos que estas conservam, da linguagem, o aspecto "língua", enquanto Bultmann concentra toda a sua atenção na lingm1gem como "evento da palavra". Como vimos, o propósito de Ricoeur - propósito impensável sem o estruturalismo - é ultrapas­ sar a oposição entre o distanciamento e a compreensão, ou melhor, fazer do distanciamento o caminho da compreensão. Não se trata mais de compreender o texto tornando-se con­ temporâneo da intenção do autor. Mas enquanto em seus escritos anteriores ( cf. o prefácio ao Jésus de Bultmann) Ricoeur ainda falava da objetividade do sentido, como se houvesse, para ser apropriada, uma "verdade-através-do-tex­ to ", a{ ele usa seu conceito de "mundo do texto". "Aquilo de que, finalmente, me aproprio é uma proposição do mundo, e ela não está atrás do texto, como o estaria uma intenção oculta, mas diante dele, como o que a obra desdobra, des­ cobre, revela. Desde então, compreender é compreender-se diante do texto. "32 Em Ricoeur, desde a Symbolique du mal, essa ruptura decidida com a hermenêutica romântica sob o signo do pri­ mado da subjetividade é coerente com sua preocupação cons­ tante de denunciar "a enfermidade constitucional do cogito lt Cf. o prefácio ao /ésus de R. Bultmann, p. 28. 32 P. Ricoeur, Exegesis, cit., p. 214.

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cartesiano". Como ele se distancia cada vez mais da tra­ dição especulativa e da ontoteologia, do mesmo modo ele contesta sempre mais as ilusões da consciência imediata de si. O homem só se compreende se aceitar seguir o longo desvio dos diversos sinais de humanidade depositados nas objetivações da cultura. O "mundo do texto", diante do qual o homem recebe um ser mais vasto, é estreitamente correlativo de uma desistência da consciência. Por isso a hermenêutica filosófica de Ricoeur pensa poder fazer justiça não somente às críticas marxista e freudiana das ilusões da consciência, mas também à crítica das ideologias de Habcr­ mas. Assim, Ricoeur renuncia à pretensão da consciência de ser autofundadora e de estar na origem do sentido, para vol­ tar à lingu agem no que ela tem de mais originário. Mas quanto mais as pesquisas estruturais o levaram a tomar cada vez mais a sério a objetividade do texto, tanto mais con­ tinua ele a se opor ao estruturalismo quando este pretende abolir a referência do texto em benefício unicamente de seu sentido, compreendido como jogo de relações puramente in­ terno ao texto. "A tese hermenêutica diametralmente oposta à tese estruturalista - não ao método e às pesquisas estru­ turais - é que a diferença entre a palavra e a escritura não poderia abolir a função fundamental do discurso ( o qual engloba duas variantes: a oral e a escrita). O discurso con­ siste em que alguém diz al gu ma coisa a algu ém sobre alguma coisa. Sobre alguma coisa: eis a inalienável função referencial do discurso. "33

III. AS IMPLICAÇÕES TEOLóGICAS DO DESLOCAMENTO ATUAL DA HERMENeUTICA

Apesar da contestação radical da hermenêutica pelo mé­ todo de análise estrutural e principalmente pela ideologia estruturalista, eu já disse por que ainda acreditava no futuro 33 ld., HNommer Dieu", art. cit., p. 493.

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de uma teologia hermenêutica. Não penso, de fato, que ela esteja ligada de modo fatal e necessário ao destino da meta­ física. Creio, ao contrário, que a crise atual da metafísica, como pensamento da identidade, e das filosofias do sujeito, como autofundação da consciência, abre novas possibilidades à hermenêutica. Essa renúncia ao duplo absoluto, o da especulação on­ toteológica e o da reflexão transcendental, nos convida a to­ mar realmente a sério a modalidade própria da linguagem como linguagem originária . .t: a grande lição da hermenêutica geral de Ricoeur, cujas reivindicações mais significativas ten­ tamos resumir. Mas é evidente que semelhante deslocamento seria impensável sem a crise de um pensamento sob o signo do primado do sujeito e do logos. O destino da teologia her­ menêutica será necessariamente condicionado pela moderni­ dade como pensamento da diferença e da alteridade. Ela ainda está à procura de seu caminho a partir de dupla re­ jeição: a da hermenêutica romântica, que postula uma har­ monia ideal entre o leitor de hoje e o autor do passado, e a do historicismo, que - em sua forma moderna - continua a identificar os fatos do passàdo com a verdade. Concluindo, eu gostaria somente de destacar algumas implicações teológicas do deslocamento atual da hermenêutica. Seria necessário - idealmente - mostrar como a teologia pode satisfazer algumas exigências do estruturalismo, mesmo conservando sua identidade própria.

A. O objeto da teologia como objeto textual Em função da dialética do explicar e do compreender, própria de toda hermenêutica, dissemos, contra hermenêu­ tica osicologizante, que não era necessário telescopar a etapa de objetivação do texto em proveito da decisão existencial em face do texto. O objeto da teologia não é nem uma palavra originária, plena de sentido, da qual o texto seria apenas o eco, nem um evento histórico em sua faticidade, mas um texto como ato de interpretação histórica e como nova estruturação do mundo. "(A Escritura) não contém

a

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uma 'Palavra' oferecida à reinterpretação, mas sistemas de interpretaçãçi que 'fazem palavra' ".34 A idéia de "mundo do texto" nos permite atender a uma leitura estrutural quando esta renuncia a procurar um sentido ou uma verdade já presentes sob o texto ( cf. o fundamentalismo bíblico). Mas, ao mesmo tempo, mante­ mos uma compreensão hermenêutica, porque o texto reme­ te a algo diferente dele, a um tipo de mundo que tem alcance revelante para mim. A teologia é sempre hermenêutica no sentido em que vive de uma anterioridade, a saber, a história do cristianismo. Mas, ao mesmo tempo, ela está sem­ pre em devir, porque não pode identificar a verdade do cris­ tianismo com um momento passado da tradição ( nem mes­ mo com o corpus neotestamentário), nem com o presente da fé atual. Existe uma homologia fundamental entre os enunciados bíblicos e seu contexto sociocultural, de um lado, e o discurso da fé a produzir hoje em sua relação com nossa situação cultural, do outro. Todo o problema de uma teologia hermenêutica depois da "crise dos hermeneutas" consiste em conciliar uma "prio­ ridade histórica" com uma "primazia teológica", para usar­ mos as palavras de Pierre Gisel em seu ensaio sobre o pro­ grama teológico de Ernst Kasemann. Essa hermenêutica es­ tá se despedindo definitivamente do historicismo: em teolo­ gia cristã, partimos de um evento histórico fundador, mas nos entregamos a uma leitura teológica desse evento. Por isso não estamos necessariamente condenados, como pensam os incondicionais do estruturalismo, a uma teologia de tipo metafísico, que é obcecada pela questão da origem. Não co­ nhecemos história que não viva de uma origem, mas não conhecemos também origem que não seja dita do seio da história e como interpretação dessa história.35 O intellectus fidei da teologia terá necessariamente a estrutura do "com­ preender hermenêutico", à medida que o teólogo tratar 34 G. Crespy, "L'écriture de l'écriture", in Parole et dogmatique, hommage d /ean Bosc, citado por P. Gisel, Vériti et Histoire. La théologle dans la moderniti, Ernst Kasemann, Beauchesne, Paris, 1977, p. 169.

35 Cf. P. Gisel, op. cit., p. 627.

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a história do cr1st1anismo como texto e, ao mesmo tempo, tratar o texto como história, a história das interpretações. No fundo, seria necessário elaborar nova epistemologia teo­ lógica que respondesse às exigências do modelo "genealogia" que pode ser descoberto em Nietzsche. A importância dada ao texto e ao mundo do texto traz conseqüências importantes para o trabalho teológico. Menciono apenas algumas . .1. O objeto imediato do trabalho teológico não é uma série de proposições cuja inteligibilidade procuro, mas o con­ junto dos textos compreendidos no campo hermenêutico aberto pela revelação. Assim, o intellectus fidei é algo di­ ferente de um ato da razão especulativa que se mova segun­ do o esquema do sujeito e do objeto. Ele pode ser comparado com um "compreender hermenêutico" (cf., acima, p. 26). 2. A teologia, em seu esforço para designar Deus, deve respeitar a estrutura originária da linguagem da revelação e não reduzi-la imediatamente a conteúdo proposicional. A estrutura da confissão de fé está estreitamente ligada à es­ trutura da linguagem na qual ela se exprime. Por isso não posso, por exemplo, tratar as diversas formas da confissão de fé no Deus de Israel ( escritos narrativos, proféticos, le­ gislativos, sapienciais etc.) como simples gêneros literários. A designação de Deus é polifônica,36 e é seguindo a particula­ ridade própria de cada enunciado bíblico ( inseparável de seu ato de enunciação) que posso elaborar uma teologia diver­ sificada do nome de Deus. 3. Uma teologia hermenêutica que se aplique à "coisa" do texto, em vez de procurar o sentido querido pelo autor sagrado, que, por sua vez, reenvia ao autor divino, nos leva a p8r em questão uma teologia da revelação identificada praticamente com a inspiração compreendida como insufla­ ção do sentido por um autor divino. A idéia de uma voz atrás da voz, de uma escrituta sob ditado nos é sugerida pela modalidade própria da revelação profética. Mas devemos considerar seriamente as outras formas originárias da revela­ ção no corpus bíblico. Esses textos são "revelação" para 36 P. Ricoeur, "Nommer Dicu•, art. cit., p. 497.

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n6s porque desdobram um "ser novo" diante de n6s e não, em primeiro lugar, porque teriam sido escritos sob o ditado de Deus.37 4. Contrariamente à concepção bastante imaginativa da inspiração como voz (divina) atrás da voz, devemos subli­ nhar mais o nexo entre a inspiração e a fé da comunidade confessante. Devemos partir do nexo entre a Escritura e a Igreja primitiva para esclarecermos o problema geral da inspiração. Segundo a sugestão da Karl Rahner, podemos continuar a falar de Deus como "autor da Escritura" no sentido em que ele é o autor da fé da Igreja primitiva, o reunidor dessa comunidade, cuja fé encontra sua expressão e sua objetivação na Escritura.38 O deslocamento atual da hermenêutica nos ajuda, por­ tanto, a renovar a teologia da revelação. O texto bíblico é revelação religiosa para n6s porque em si mesmo, em sua fatura textual, ele já tem alcance revelante, como todo texto poético que ultrapasse a função simplesmente descritiva da linguagem cotidiana. Diante desse "ser novo", desdobrado pelo texto, o pr6prio homem recebe um "ser novo", isto é, um alargamento de seu ser puramente natural. Essa atualiza­ ção de um possível próprio do homem pode verificar-se em todo texto poético. Mas, no caso do texto bíblico, a apro­ priação do texto coincide não só com uma nova compreen­ são de si, mas também com uma nova possibilidade de exis­ tência e com a vontade de fazer existir um mundo novo. Em outros termos, não há revelação, no sentido rigoroso, sem conversão pessoal e inauguração de uma nova prática ética e social. B. Tradição e produção: a teologia como genealogia Uma teologia hermenêutica que toma como categoria central o "mundo do texto" não fará uso da tradição como 37 Cf. id., "Herméneutique de l'idéc de révélation•, art. clt., especialmente p. 32. 38 C. Geffré, Esquisse d'une tMologie de la révélation, cit., pp. 185s.

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história das interpretações do texto. Já o dissemos: a teologia cristã vive sempre de uma precedência. Mas, se nos guardar­ mos de identificar o texto da Escritura com a verdade ori­ ginária, ou ainda a Escritura com o Evangelho ( no sentido luterano), teremos uma concepção menos estática da tra­ dição. Quem diz tradição não diz simplesmente transmis­ são de um dado válido em todos os tempos. Tradição e pro­ dução não se opõem. A aplicação ou a apropriação do "mun­ do do texto" leva não s6 a produções novas na ordem da linguagem, mas também a práticas novas. A hermenêutica tradicional postulava sempre uma har­ monia preestabelecida, uma identidade fundadora, uma "fu­ são dos horizontes". A nova hermenêutica toma em consi­ deração a materialidade textual do texto fundador e sua his­ tória radical, sendo, por isso, criativa. Devemos aceitar vi­ ver no regime da diferença. Se considero o texto em sua autonomia de obra textual, não se trata de ouvir uma pala­ vra originária da qual o texto não seria mais que o eco, não se trata de me tornar contemporâneo do querer dizer de um autor passado, não se trata de atingir um além evi­ dente do texto. É o próprio fechamento do texto que é a condição de retomada criativa. "O texto não é tanto o teste­ munho segundo de uma origem radicá! (anterior) como o advento, em tempo e em lugar determinados, de configuração específica, de uma estruturação do mundo. "39 A teologia vive necessariamente de uma origem, o even­ to Jesus Cristo como evento fundador. Mas o Novo Testa­ mento como testemunho desse evento não é texto que nos entregue imediatamente seu sentido completo e definitivo. Consideramos esse texto como "ato de interpretação", e a distância que nos separa dele - longe de ser obstáculo é a condição de um novo ato de interpretação para nós hoje. Existe analogia entre o Novo Testamento e a função que ele exercia na Igreja primitiva, de um lado, e a produção de um novo texto hoje e a função que ele exerce no presente da sociedade e da cultura. "A teologia teria como tarefa hoje menos a inteligência de uma Palavra pronunciada anti39 P. Gisel,

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op. cit.,

p. 147.

gamente do que a 'nova produção' de um texto, de uma prática, de uma instituição ... "40 Podemos, assim, compreen­ der melhor a dialética de continuidade e de ruptura, cons­ titutiva da tradição cristã. "Voltando-nos para a origem, não voltamos para o que ela foi no fato e no mundo concreto em que ela se efetuou, porque o que encontramos aí é um ato que deve retomar-se de maneira sempre criativa, e não repetir-se da maneira literal. "41 Assim, guardamos distância de uma hermenêutica que pretendesse reconstituir o sentido originário de um evento passado, tornando-se contemporânea, ou retraduzir sentido idêntico numa pluralidade de linguagens. Agir como herme­ neuta é criar interpretações novas e até produzir novas figuras históricas do cristianismo em outros tempos e em outros luga­ res. Tal prática hermenêutica é correlativa de concepção da verdade que não se identifica nem com uma plenitude de ser na origem, nem com uma figura histórica. A verdade está, antes, sob o si gn o do devir. Ela é advir permanente, o sentido mesmo da verdade bíblica como realidade de or­ dem escatológica. O cristianismo é tradição porque vive de uma origem primeira que é dado. Mas, ao mesmo tempo, ele é necessa­ riamente sempre produção, porque essa origem só pode ser redita historicamente e numa interpretação criativa. Com­ parou-se, com razão, a teologia com a genealogia no sen­ tido de Nietzsche, porque a sua tarefa consistirá sempre em dizer juntamente a origem e a história. Explicar-nos-emos mais longamente a este respeito no capítulo seguinte. C. Hermenêutica e teologia política Insistimos principalmente na contestação da hermenêu­ tica pelo estruturalismo - seja como método, seja como ideologia. Mas, numa exposição sobre a crise da hermenêu40 Id .. ibid., p. 164. 41 M. Bellet, in "Crise du biblisme, chance de la Bible n , p. 195, cit. por F. Refoulé, "L'exég�se en question n , in Le Supplément 111, 1974, p. 413.

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tica, convém lembrar que a hermenêutica encontra pela fren­ te também a crítica das diversas teologias políticas. Podemos até caracterizar o movimento da teologia protestante, há mais de vinte anos, como uma passagem das teologias da palavra para as teologias da história e para as teologias políticas. Costuma-se censurar as primeiras de serem apenas uma nova interpretação teórica do cristianismo e de não con­ duzirem a uma transformação efetiva do mundo e da histó­ ria sob. a ação do reino de Deus, que vem. Outros já mos­ traram que essa oposição entre teologia da palavra e teologia da história era falsa alternativa. Mas é interessante mostrar em que sentido a nova orientação da hermenêutica, centrada no "mundo do texto", não permite deter-se numa pura in­ terpretação textual, na ordem da linguagem. Ela conduz ne­ cessariamente a uma reinterpretação prática, a um fazer. Devemos lembrar aqui o que dizíamos, com Ricoeur, sobre a dimensão poética da linguagem bíblica. Como poé­ tica. a linguagem bíblica não é somente celebração do Nome de Deus, mas também a recriação de um mundo novo. A compreensão hermenêutica da linguagem bíblica tem como objeto o mundo novo ao qual o texto reenvia. E a compreen­ são se completa com uma nova compreensão de si perante o texto. Mas compreender-se diante do texto é não se en­ tregar a uma compreensão puramente intelectual do texto, é tomar real uma nova possibilidade de existência e fazer existir um mundo novo. O compreender hermenêutico desá­ gua, portanto, numa prática social e numa prática política. "Penso, pois, que uma hermenêutica que toma por cate­ goria central o 'mundo do texto' não corre mais o risco de privilegiar a relação dialogal entre o autor e o leitor, nem a decisão pessoal em face do texto. A amplitude do mundo do texto requer amplitude igu al do lado da aplicação, a qual será tanto práxis política como trabalho de pensamento e de linguagem. "42 Não existe, portanto, teologia hermenêutica sem prá­ tica. O que distingue teologia de ideologia é justamente que aquela conduz a práticas significantes. Um dos traços mar42 P. Ricoeur, "Nommer Dieu n , art. cit., p. 508.

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cantes da nova hermenêutica, que acentua a compreensão do texto do Novo Testamento como ato de interpretação da comunidade primitiva, consiste em não poder separar, no ato de interpretação hoje, a interpretação da linguagem da fé e a interpretação da existência cristã. A teologia não repete uma verdade original. Ela "faz" a verdade, no sentido joa­ nino. Nessa hermenêutica criativa. a prática não é SOIT'ente o campo de aplicação de uma verdade cristã já constituída uma vez por todas. A prática significante dos cristãos intervém como momento constitutivo na própria vinda da verdade. A linguagem teológica não é linguagem poética como a linguagem bíblica. Ela é linguagem especulativa que não tem, portanto, pelo simples fato de sua estrutura de lin­ guagem, alcance "revelante". Mas podemos comparar a teo­ logia com "poética", no sentido em que ela é a teoria de um "fazer". A teologia diz sempre, numa diferença histó­ rica, a verdade que lhe é confiada. Essa situação histórica nova leva-a a um ato de interpretação que é a instauração permanente de um poema da fé tanto na ordem da confissão como na da prática.

CONCLUSÃO

Tentei considerar com toda a seriedade a contestação da hermenêutica por toda uma corrente de pensamento con­ temporâneo que quer pôr termo à tirania do logos. Mas, em vez de concluir pelo insucesso de toda teologia herme­ nêutica, prefiro pedir somente que sejamos muito atentos à_s conseqüências do deslocamento inevitável da hermenêu­ tica provocado pelo choque do estruturalismo. Alguns me censurarão, sem dúvida, de ter-me entrega­ do a uma operação que se parece muito com recuperação. Responderei somente, e isso será a minha conclusão, que não podemos ignorar o destino da hermenêutica geral, mas que não podemos também subordinar o futuro da teologia ao destino da hermenêutica. A teologia cristã é, com efeito, ir-

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redutível a qualquer outra experiência hermenêutica. Ela quer ser a teoria de experiência absolutamente original. Co­ mo caracterizar essa experiéncia hermenêutica original? Di­ rei, com uma palavra, que justamente quando a teologia se faz prática de um texto e quer ser a teorização da prática suscitada por esse texto, ela é vencida pela "coisa" do texto, a saber, por uma Alteridade que faz malograr todo discurso da objetivação. Retomarei aqui uma afirmação recente de Gadamer: "Não existe teoria hermenêutica que não seja dependente da prática hermenêutica. " 43 É essa dependência que constitui o que ele chama "situação hermenêutica". Pois bem, dize­ moc; que antes de resolvermos, de um ponto de vista teórico, o debate estruturalismo ou hermenêutica, devemos tomar cm consideração a situação hermenêutica própria da teologia l:rÍStã.

43 H.-G. Gadamer, "Herméneutique et théologie", in 51, 1977, p. 396.

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Rev. Se. Rel.

3 DOGMÁTICA OU HERMEN!UTICA?

Há não muito tempo falava-se do conflito entre os dog­ máticos e os exegetas. Devemos falar agora do conflito entre os dogmáticos e os hermeneutas? Isso não tem muito sen­ tido, porque a hermenêutica não �e tornou uma nova dis­ ciplina dentro do saber teol6gico. :É toda a teologia dogmáti­ ca que tende a se compreender como hermenêutica da Pa­ lavra de Deus. Mas é incontestável que os termos "dogmáti­ ca" e "hermenêutica" se tornaram, na prática concreta dos teólogos. indício de duas tendências diferentes. Devemos mesmo falar de dois paradigmas do trabalho teológico. E não é errôneo dizer que uma revolução epistemológica os separa. A teologia dogmática como apresentação sistemática das verdades cristãs não perdeu nada de sua legitimidade nem de sua atualidade. Mas o termo "dogmática" tende a desig­ nar o uso "dogmatista" da teologia, isto é, a pretensão de apresentar as verdades da fé de maneira autoritária, como garantidas unicamente pela autoridade do magistério ou da Bíblia, sem nenhuma preocupação com a verificação crítica concernente à verdade testemunhada pela Igreja. Preocupan­ do-se exclusivamente com a transmissão escruoulosa dos tra­ dita e não refletindo no que está implicado na traditio, como ato de transmissão, a teologia se condena fatalmente à repetição. O termo "hermenêutica" evoca movimento de pensamento teológico que, pondo em relação viva o passado e o presente, expõe-se ao risco de interpretação nova do cristianismo para hoje. Esta instância hermenêutica da teolo­ gia nos leva a uma concepção não-autoritária da autoridade,

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a uma concepção não-tradicional da tradição e a uma noção plural da verdade cristã. Mas como se assistiu, no catolicismo, até o Vaticano II, a uma inflação dogmática da teologia, deveríamos falar hoje de inflação hermenêutica? A questão merece ser colo­ cada, e a contestação recente da hermenêutica como método de leitura pelo estruturalismo não muda em nada essa orien­ tação profunda da teologia moderna. Contrariamente à epis­ temologia antiga, o domínio da verdade e o do sentido não se recobrem necessariamente. E alguns se perguntam seria­ mente se a teologia ainda tem poder de afirmação e de de­ cisão na ordem da verdade. Será que o trabalho do teólogo não se esgota na manifestação do sentido, ou melhor, dos múltiplos sentidos das diversas linguagens da fé? Não estaria o campo da teologia cristã entregue ao conflito das inter­ pretações, e não se toma a hermenêutica muitas vezes a solução miraculosa para harmonizar as afirmações diferentes da Escritura e do dogma ou as descontinuidades muito evi­ dentes da tradição dogmática e teológica? Penso que o melhor meio de responder a essas objeções é refletir sobre as causas dessa passagem da dogmática para a hermenêutica. Gostaria justamente de mostrar que a com­ preensão moderna da -teologia como hermenêutica nos ajuda a valorizar a originalidade da verdade cristã. Na primeira parte esforçar-me-ei por caracterizar a pas­ sagem do modelo dogmático para o modelo hermenêutico de escritura teológica. Em seguida, interrogar-me-ei sobre o alcance histórico e teológico dessa mudança. Enfim, na ter­ ceira parte, perguntar-nos-emos qual é o estatuto da verdade cristã numa teologia compreendida como hermenêutica. 1. A PASSAGEM DO MODELO DOGMÁTICO PARA O MODELO HERMENeUTICO

Poderíamos descrever a teologia como fenômeno de es­ critura. De fato, como no caso de toda escritura, trata-se sempre de "reescritura". Em cada época de sua história, a

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teologia se atribui a tarefa de tornar mais inteligível e mais falante a linguagem já constituída da revelação. Essa lingua­ gem é privilegiada e normativa para toda a fé da Igreja. Mas não podemos contentar-nos com repeti-la passivamente. Ela deve ser, sem cessar, reatualizada de maneira viva, em função de situação histórica nova e em diálogo com os re­ cursos inéditos de dada cultura. A teologia é, pois, "rees­ critura" a partir de escrituras anteriores, não somente da Escritura-fonte dos dois testamentos, mas também das no­ vas escrituras suscitadas por ela ao longo da vida da Igreja. Desde suas origens, a teologia cristã conheceu vários modelos de escritura: Os Padres da Igreja, ao comentar a Escritura, praticaram a alegoria; a teologia medieval forjou o modelo da teologia-ciência no sentido de Aristóteles; a Reforma privilegiou o comentário da Escritura contra os re­ cursos dialéticos da escolástica. Mas o que mais nos interes­ sa aqui é o modelo dogmático que dominou toda a teologia católica do Concílio de Trento ao Vaticano II. Não me deterei longamente na descrição do modelo dogmático. Podemos recorrer à sua apresentação feita por Marc Michel em seu pequeno livro Vaies nouvelles pour la théologie. 1 Contento-me com recordar alguns pontos essen­ ciais. A teologia segundo o modelo dogmático dos manuais clássicos usados nos seminários procedia em três tempos. Primeiro, o enunciado de uma tese de fé. Depois vinha a explicação, na qual se aduziam as decisões oficiais do ma­ gistério, particularmente as do Concílio de Trento. Por fim, a prova, citando-se a Escritura, os Padres e algun s teólogos. Concluindo, rejeitavam-se as teses opostas, especialmente as da Reforma. O que deve ser logo assinalado é que o ponto de partida do trabalho teológico, o enunciado inicial que fazia o papel de princípio primeiro, era sempre o ensinamento atual do magistério. Ele desempenhava, portanto, o papel de princí­ pio hermenêutico exclusivo, fazendo uma seleção entre as escrituras anteriores, quer se tratasse do Novo Testamento: 1 M. Michel, Voies nouvelles pour la théologie ("Dossiers Libres•), Cerf, Paris, 1980, pp. 5569; especialmente o cap. III: "L'Effacement du modêle dogmatique". l • Como fazer teologia hoJo

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quer dos textos patrísticos e das diversas teologias do pas-• sado. E permitia proceder à exclusão das opiniões contrárias. Assim a teologia dogmática se definia como um co­ mentário fiel do dogma, isto é, do que a Igreja sempre com­ preendera e ensinara; e a Escritura entrava apenas a título de prova do que já estava estabelecido. Enquanto em santo Tomás as proposições externas à fé, as dos concílios, dos teólogos e dos bispos são verdadeiras somente quando ex­ pressão da verdade divina no livre evento de sua revelação, aí as proposições de fé, das quais procede o raciocínio teol6gico, funcionam com a evidência dos primeiros princípios e a sua verdade depende unicamente da autoridade do magis­ tério.2 Estamos, portanto, diante de sistema autoritário, no qual a autoridade do magistério praticamente substituía a autoridade da Escritura. Compreende-se que, nessa perspec­ úva, uma das maiores preocupações dessa teologia "autori­ tária" fosse demonstrar o desenvolvimento contínuo entre a Escritura, os Padres e o ensinamento atual do magistério. As célebres teorias sobre o desenvolvimento homogêneo do dogma procedem dessa preocupação apologética. 3 A respeito desse modelo "dogmático" de teologia, outros assinalaram antes de mim a importância da instituição hierár­ quica na produção da verdade. A teologia era o reflexo fiel da Igreja-instituição, compreendida segundo a distinção en­ tre Igreja docente e Igreja discente, distinção ainda desco­ nhecida na idade clássica da teologia medieval. � claro que a teologia só pode preencher sua função dentro de um campo 2 Essa distância entre a perspectiva de santo Tomás e a da teologia da Contra-Reforma foi muito bem sublinhada por P. Eicher em Theologie. Eine Einfüh.·ung in das Studium, Munique, 1980, especial­ mente pp. 99-103 e pp. 178-83; Y. Congar, de seu lado, voltou muitas vezes a esssa evolução de teologia católica, em virtude da qual o papel da autoridade do magistério como regra próxima e imediata da fé au­ mentou cada vez mais (cf. seu artigo recente: "Les régulation de la foi", in Le Supplément 133, 1980, pp. 260-81). Ele assinala, por exemplo, a importãncia da substituição, no Vaticano I, da fórmula tomista do mo• tivo formal da fé. "Veritas prima", pela "Auctoritas Dei revelantis", p. 268, n. 19; cf. P. Eicher, op. cit., p. 89. 3 Cf, a este respeito, o diagnóstico lúcido de J.-P. Jossua em �lmmutabilité, progres ou struturations multiples des doctrines chré­ tiennes", in Rev. Se. Phil, Théol. 52, 1968, pp. 173-200.

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social. Mas a questão é saber se a função da teologia consiste somente em reproduzir, legitimando-o, o ensinamento ofi­ cial da instância hierárquica como instância da ortodoxia ou se ela tem também, por vocação, uma função crítica e mes­ mo profética em relação àqueles que detêm o poder de defi­ nir e interpretar. Em outros termos, o perigo para uma teologia segundo o modelo "dogmático" é que a relação com a verdade da mensagem seja determinada pela relação com a instituição hierárquica. Nesse caso a teologia corre o risco de se de­ gradar em ideologia a serviço do poder dominante na Igreja. Como acontece em toda sociedade religiosa, a autoridade hierárquica muitas vezes é tentada a pedir à teologia que reproduza o discurso que legitima o monopólio que ela detém como única intérprete autêntica, rejeitando como marginais ou desviantes os discursos inovadores.4 Como é previsível, essa dependência estreita da teologia em relação à Igreja-ins­ tituição consagra também um tipo de relação entre a Igreja e a sociedade em geral. Tratar-se-á essencialmente de atitude defensiva, como o mostra muito bem o anátema lançado con­ tra as idéias modernas pelo Syllabus de Pio IX. 5 No máximo, tratar-se-á de atitude apologética quando o dogma católico for contestado pelos resultados das ciências da natureza e das ciências históricas. Em todo caso, esse modelo "dogmáti­ co" de escritura teológica, habitualmente designada como "teologia da Contra-Reforma", manteve-se até as vésperas do Vaticano II. Hoje, isto é, cerca de vinte anos depois, assistimos a uma deslocação e a uma explosão desse sistema de "teologia 4 A propósito desse "jogo institucional", veja a obra coletiva dirigida por M. Michel, Pouvoir et vérité ("Cogitatio Fidei" 113), Cerf, Paris, 1981. Pode-se consultar também a obra já clássica de P. Le­ gendre, L'amour du censeur, essai sur l'ordre dogmatique, Seuil, Paris, 1974. Recomendamos ainda duas obras ·sociol6gicas muito sugestivas: G. Defois, "Discours religieux et pouvoir social", in Arch. de Sociolo­ gie des Religions 32, 1971, pp. 85-106, e J. Seguy, "Le conflit théolo­ gique", in Le Supplément 133, 1980, pp. 223-42. 5 A propósito do ateísmo, P. Ladriere mostrou que entre a con­ denação de Pio IX e a abertura do Vaticano II não houve de�envol­ vimento harmonioso, mas ruptura: "L'esprit de mensonge dans le dis­ cours théologique", in Le Supplément 139, 1981, pp. 509-29.

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dogmática", que podemos caracterizar como fechado e auto­ ritário. Em função de al guns condicionamentos hist6ricos e culturais, que estudaremos mais adiante, o modelo "dogmá­ tico" de escritura teol6gica cedeu lugar a um modelo de escritura que podemos chamar de "hermenêutico". Dizer que a teologia contemporânea se compreende como hermenêutica não significa que ela se tornou adogmática, mas que, antes de tudo, ela toma a sério a historicidade de toda verdade, mesmo que seja a verdade revelada, como também a histo­ ricidade do homem enquanto sujeito interpretante, e que ela se esforça por atualizar para hoje o sentido da mensa­ gem cristã. Já insisti nessa instância hermenêutica de toda teologia cristã.6 Contento-me aqui com resumir, em algumas proposições, os traços mais característicos dessa escritura teol6gica segundo o modelo "hermenêutico". 1. O ponto de partida da teologia como hermenêutica não é um conjunto de proposições imutáveis de fé, mas a pluralidade das escrituras compreendidas dentro do campo hermenêutico aberto pelo evento Jesus Cristo. A primeira escritura, enquanto colocação por escrito do testemunho pres­ tado ao evento Cristo, é, também ela, ato de interpretação da primeira comunidade cristã. Em função de situação histó­ rica nova, essa primeira escritura suscitou novas escrituras como atos de interpretação que testemunham inseparavel­ mente, sob a ação do Espírito, a experiência cristã funda­ mental e uma nova experiência hist6rica da Igreja. A teologia como hermenêutica é, pois, sempre fenômeno de reescritura a partir de escrituras anteriores. Podemos defini-la como um novo ato de interpretação do evento Cristo na base de correlação crítica entre a experiência cristã fundamental, tes­ temunhada pela tradição, e a experiência humana de hoje.7 6 Veja, acima, cap. 1; veja também: "La révélation hier et au­ jourd'hui. De l'�criture à la prédication ou les actualisations de Ja Parole de Dieu", in Révélation de Dieu et langage des hommens ("Co­ gitatio Fidei" 63), Cerf, Paris, 1962, pp. 95-121; Um nouvel âge de la tliéologie ("Cogitatio Fidei" 68), Cerf, Paris, 1972, pp. 43 66. 7 Este principio hermenêutico é aplicado na cristologia de E. Schillebeeckx, Jesus. Die Geschichte von einem Lebenden, Herder, Friburgo, 1975. Um bom resumo do método teológico de E. Schille­ beeckx se encontra na edição francesa de Expérience humaine et foi en /ésus Christ, Cerf, Paris, 1981.

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2. O intellectus fidei da teologia enquanto hermenêuti­ ca não é ato da razão especulativa no sentido clássico do pensamento metafísico. Ele pode ser identificado com um "compreender histórico", sendo aí a compreensão do passa­ do inseparável de interpretação de si e de atualização criativa voltada para o futuro. A escritura teol6gica, segundo o mo­ delo "hermenêutico", é anamnese, no sentido em que é sempre precedida pelo evento fundador, mas é também pro­ fecia, no sentido em que só pode atualizar o evento fundador como evento contemporâneo, produzindo um novo texto e novas figuras históricas. Assim, a teologia, como dimensão constitutiva da tradição, é necessariamente fidelidade cria­ tiva. 3. Contrariamente ao método clássico da teologia dog­ mática, a teologia segundo o modelo hermenêutico não se contenta com expor e explicar os dogmas imutáveis da fé católica, mostrando seu acordo com a Escritura, com os Padres e com a tradição teológica. Muito mais: ela procura manifestar a significação sempre atual da Palavra de Deus, em sua forma escriturística, dogmática ou teológica, em fun­ ção das novas experiências históricas da Igreja e do homem de hoje. Ela ignora, por isso, uma diferença fundamental entre uma teologia dita positiva, que faria o inventário his­ tórico do "dado de fé", e uma teologia dita especulativa, que daria a explicação radical desse dado. Ela trata sempre com "objetos textuais", procurando decifrar seu sentido para hoje e procedendo, a partir deles, a uma nova escritura. 4. A teologia enquanto hermenêutica se alimenta de uma circum-incessão incessante entre a Escritura e a Tradi­ ção, que continuam sendo os lugares privilegiados de toda teologia. Ela procura uma nova inteligência da mensagem cristã, respeitando o círculo hermenêutico entre a Escritura e o Dogma, que, tanto um como o outro, dão testemunho à plenitude da Palavra de Deus, embora a Escritura seja a autoridade última (norma normans non normata) em relação às novas escrituras que ela suscitou na Igreja. A teologia dogmática saída da Contra-Reforma lia a Escritura antes de tudo a partir das explicações ulteriores da tradição dog-

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mática. A teologia segundo o modelo "hermenêutico" não teme aplicar-se a uma reinterpretação dos enunciados dogmá­ ticos a partir de melhor conhecimento da situação histórica que foi a ocasião de sua formulação e à luz de nossa leitura atual da Escritura, isto é, de leitura que tome em conside­ ração os resultados irrecusáveis da exegese moderna. II. O ALCANCE HISTORICO E TEOLOGICO DA EXCLUSÃO DO MODELO DOGMATICO

Poderíamos escrever longamente sobre os diversos fa­ tores que levaram à substituição do modelo "dogmático" pelo modelo "hermenêutico" de escritura teológica. Não te­ nho a intenção de me entregar aqui a uma pesquisa histórica detalhada. Gostaria apenas de assinalar alguns fatores mais decisivo�. Distinguirei fatores de ordem histórica, de ordem epistemológica e de ordem psicológica. Mas o que nos in­ teressa em cada caso é o alcance teológico dessa mudança. Com efeito, o que está em causa é a concepção da verdade. E longe de a orientação hermenêutica da teologia contem­ porânea comprometer o futuro da teologia dogmática como exposição sistemática das verdades cristãs, mostraremos que ela está a serviço de melhor reconhecimento da originalidade própria da verdade em teologia. A. A explosão da ideologia unitária do sistema dogmático O primeiro abalo da teologia católica enquanto sistema fechado e autoritário foi provocado pela irrupção dos méto­ dos históricos no saber eclesiástico. Essa ocasião foi a crise modernista. Embora a autoridade hierárquica tenha prati­ camente desconhecido a pertinência das questões postas pelo modernismo, é incontestável que a auto-suficiência dos dog­ máticos ficou arranhada. 8 Resultou disso o que se chamou de sistema da "dupla verdade": a verdade dos exegetas e 8 Dentre, os muitos trabalhos sobre o modernismo, citemos so­ mente a tese recente de R. Virgoulay, 8/ondel et le modernisme, Cerf, Paris, 1980; no fim do volume encontra-se abundante bibliografia.

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dos historiadores das origens cristas, de um lado, e a ver­ dade dos dogmáticos, do outro. Se é verdade que não se pode identificar a verdade do 'cristianismo com a reconsti­ tuição dos fatos históricos - foi o erro do historicismo - é verdade também que não se pode aceitar a ruptura, realizada por certa teologia escolástica, entre os enunciados dogmáti­ cos e seus fundamentos escriturísticos e históricos - é o �rro ele certo raâonalismo teológico. Na aurora dos tempos modernos, a Igreja se pensou como sociedade exclusiva, segundo o modelo de ideologia unitária. A teologia dogmática de tipo monolítico era coe­ rente com sua relação defensiva com a sociedade moderna. Ao mesmo tempo ela recusava, fora dela, o pluralismo ideo­ lógico e cultural das sociedades liberais do Ocidente, con­ denava o pluralismo doutrinal dentro dela e definia regras de ortodoxia cada vez mais rigorosas. E se precisarmos que, até o Vaticano II, todos os professores de teologia tinham a obrigação de ensinar o que se denomina tomismo, vemos que dentro da Igreja católica a questão do pluralismo teoló­ gico nem se punha: A teologia segundo o modelo "dogmático" ou ainda a teologia escolástica, qualificada de "barroca", era prisioneira da problemática racionalista do século XVIII e, como vi­ mos, tendia a edificar um sistema no qual a autoridade do magistério se revestiria de autoridade praticamente maior do que a da Escritura. Pela primeira vez na história da teo­ logia, em reação contra o princípio escriturístico da Reforma, a Bíblia era apenas a fonte da revelação, e não era mais a forma primeira da fé na revelação judaico-cristã. Em sua forma racionalista, a teologia escolástica tendia a se tornar sistema de proposições capazes de deduzir todos os con­ teúdos de fé a partir dos prindpios críveis. E o que me parece decisivo no debate "dogmática ou hermenêutica" é que a alma dessa construção teológica não é mais a verdade do que deve ser crido, mas a certeza de que Deus disse isto ou aquilo, certeza que recebeu a garantia da autoridade do magistério. 9 9 Essa concepção do trabalho teológico, que caracteriza a teologia escolástica em sua forma racionalista, foi muito bem discernida por

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Hoje, principalmente depois do Vaticano II, a Igreja aceitou dialogar com um mundo que é caracterizado por pluralidade de opções em favor de tal ou tal sistema de va­ lores ou de ideologias. Ela deve, além disso, enfrentar uma situação histórica na qual os cristãos têm consciência muito mais radical sobre o relativismo da civilização ocidental e do próprio cristianismo como religião histórica. Assistimos, portanto, a uma transformação considerável do trabalho teo­ lógico e de seus métodos. Em primeiro lugar, os teólogos devem levar em conta um pluralismo filosófico insuperável, no sentido de que ne• nhum "sistema" pode pretender totalizar todas as fontes da experiência humana. Devemos acrescentar que a filosofia não é mais o único interlocutor da teologia. Os teólogos não podem mais estudar o fato cristão ignorando os resultados das diversas ciências humanas da religião. E a maneira de teologizar é forçosamente interpelada pelas novas racionali• dades que estão em ação nessas diversas disciplinas. Isso significa que existem lugares novos de produção teológica - não só os campos novos do saber em nossa modernidade ocidental, mas também os recursos das outras culturas.10 Assim, o antigo edifício de uma teologia escolar, que pretendia a universalidade para toda a Igreja, está ruindo. A teologia de tipo hermenêutico é necessariamente plural, porque quer ser inseparavelmente hermenêutica da Palavra de Deus e hermenêutica da experiência histórica dos homens. É em função dessa circularidade entre a leitura crente dos textos fundadores, que testemunham a experiência cristã ori­ ginária, e a existência cristã de hoje, que pode nascer uma interpretação nova da mensagem cristã. Ora, essa existência cristã é cultural, social e politicamente condicionada pela si­ tuação histórica de cada I greja. Constatamos, hoje, portanto, P. Eicher, op. cit., pp. 179-80: "Nicht mchr dic Wahrheit des Geglaubten, sandern die Gewissheit dass Got dics oder jenes gesagt babe, wird zur treibenden Frage des Systemdenkens, das zu seiner Sichcrung nun ein unerschütterliches Fundament der theologischen KonstI'TJction braucht. .. • 10 Sobre esses lugares novos da teologia, que não devem ser confundidos com os lugares teológicos no sentido habitual, remeto às minhas conclusões na conferência publicada sob o título: Le dépla­ cement de la théologie, Beauchesne, Paris, 1977, pp. 171-8.

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um pluralismo teológico "qualitativamente novo", como diz Karl Rahner .11 Ele não tem nada a ver com a pluralidade das "escolas teológicas" no sentido antigo, pluralidade que se situava ainda dentro de um mesmo campo cultural e de urna s6 civilização. Neste final do século XX, quando sabemos melhor que o futuro do cristianismo não se coloca mais principalmente no Ocidente, o pluralismo teológico é o destino histórico da Igreja.12 Já conhecemos as teologias latino-americanas da libertação. Conhecemos também as teologias africanas e asiá­ ticas, ainda balbuciantes. Contrariamente aos espíritos des­ confiados, que pensam que estamos no caminho de relati­ vismo perigoso e que a unidade da fé está ameaçada, devemos compreender que esse pluralismo das teologias e mesmo das confissões de fé é expressão e exigência da verdadeira catoli­ cidade da Igreja. Mas, evidentemente, isso convida a teolo­ gia a fazer um novo esforço para repensar o estatuto da verdade cristã, que não pode ser identificado com um saber dogmático constituído uma vez por todas. B. Uma nova epistemologia teológica

A passagem de uma teologia segundo o modelo "dog­ mático" para uma teologia segundo o modelo "hermenêu­ tico" levanta um problema temível no que concerne ao es­ tatuto da verdade em teologia. Tentarei aqui apenas ofere­ cer alguns pontos de referência num domínio ainda muito mal explorado. A contestação da verdade como

« adaequatio"

Não partirei do horizonte das teorias analíticas do neo­ positivismo lógico.13 Podemos distinguir as teorias criterio11 K. Rahner, "Le pluralisme en théologie et l'unité du credo de l'�glise", in Concilium 46, 1969, p. 95. 12 Nós nos esforçamos por deduzir o alcance histórico do plura­ lismo teológico na Igreja de hoje, em nosso estudo: Pluralité des théo­ logies et unité de la foi, na nova Jnitiation pratique à la théologie, Cerf, Paris, 1982, t. I, pp. 117-42. 13 Para introdução a essas diversas teorias remeto à obra pre-

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lógicas: quais são os critérios que permitem identificar um enunciado verdadeiro? E as teorias verificat6rias: quais são os processos de verificação para saber se um enunciado é verdadeiro? Podemos dizer que todas essas teorias têm por quadro o problema do enunciado e de seu fundamento. Em função do contexto de nossa teologia européia, prefiro par­ tir de Heidegger, que põe em questão justamente o nexo entre problema da verdade e enunciado. Ele procura descons­ truir esse nexo, tirando daí um horizonte mais originário ( existencial, primeiro Heidegger) ou fazendo uma escalada para uma história originária da verdade e do ser ( segundo Heidegger) .14 O "compreender" histórico, no sentido de Heidegger, tem importância decisiva para a nossa compreensão teológi­ ca dos enunciados de fé.15 Ele nos convida, particularmente, a pormos em causa nosso hábito de fazer do juízo ( como adaequatio rei et intellectus) o lugar exclusivo da verdade teológica. Sabemos que Heidegger quis ultrapassar a herme­ nêutica individualista e romântica de Dilthey, mostrando que é a nossa própria existência, enquanto perpétuo pro­ jeto de si, que deve ser entendida como interpretação com­ preensiva. Em seus últimos escritos ele insistiu no fato de que essa modalidade de existência interpretante é dom da linguagem e, por ela, dom da história do próprio ser. A linguagem nos interpreta, e é nela que a verdade nos advém. Em seguida, Gadamer faz da tradição o lugar da interpretação. Esta é o produto da diferença entre dois ter­ mos históricos, já significantes por si mesmos, o passado e o presente. Assim, o conhecimento do passado não é recons­ tituição arbitrária: ele é a compreensão do que nos agarrou. Hoje, sob o choque das ciências humanas e do estruturalisciosa de J .-F. Malherbe, tpistémologies anglo-saxonnes, P .U.F, Namur, 1981. 14 Veja particularmente O. Põggeler, La pensle de Martin Hei­ degger, Aubier, Paris, 1967, pp. 124-36 e 366-82. 15 Sobre a importância da compreensão hermenêutica da verdade para os ensaios contemporâneos de teologia sistemática, pode ser lido com proveito D. Tracy, The analogical Imagínation. Christian theology and the culture o/ pluralism, Nôva Iorque, 1981, sobretudo o cap. III; •The Classic", pp. 99-153.

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mo, a nova hermenêutica estará muito mais atenta às con­ dições sociais, psicológicas e lingüísticas da compreensão. De modo particular, ela tomará muito a sério a objetividade do texto em suas condições de produção. Com isso, ela reata com o "explicar" pr6prio das ciências da natureza. Mas, como vimos no capítulo precedente, num autor como Paul Ricoeur, a hermenêutica não renuncia à compreensão do texto e, portanto, à pesquisa da verdade. Já citamos esta constatação: "Está aberta uma nova época da hermenêutica pelo sucesso da análise estrutural; daqui para frente a expli­ cação é o caminho obrigat6rio da compreensão. "16 Uma compreensão hermenêutica da verdade na linha de Heidegger nos convida a mantermos distância tanto da con­ cepção metafísica da verdade, pr6pria da teologia dogmática clássica, quanto da concepção da verdade pressuposta pelo historicismo. Comum a essas duas concepções, que afinal são herdeiras da problemática racionalista da Aufklarung, é a idéia de correspondência, de adequação entre sujeito e objeto, tendo por base uma relação imediata na origem, seja ela identificada com uma plenitude de ser, como no pensa­ mento metafisico, seja com um fato hist6rico passado, como no caso do historicismo. O conhecimento metafísico da verdade em uso na teo­ logia dogmática desconhece a historicidade radical de toda verdade, inclusive da verdade revelada. A tradição é enten­ dida então como um tesouro, como o depósito de certo número de verdades intangíveis que deve unicamente ser transmitido. O pressuposto implícito do historicismo é que a verdade do cristianismo está contida num texto da Bíblia que pode ser reconstituído por métodos científicos. Trate-se de textos ou de fatos, o historicismo acredita poder estabe­ lecer relação imediata com uma origem que ele identifica com a verdade. Bultmann, Karl Barth e a teologia dialética fizeram grande esforço para escapar ao impasse do historicis­ mo, substituindo um termo histórico pensado como origem por um termo teológico. 16 P. Ricocur, "La fontion herméneutique de la distanciation", in

Exegesis, Delachaux & NiestJé, Neuchâtel, 1975, p. 209.

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Hoje um autor como Kasemann reage contra Bultmann, dando toda a sua importância ao histórico. Mas ele se preo­ cupa muito, também. com manter a pertinência teológica do Jesus histórico.1 i Tendo o Jesus histórico suscitado uma pluralidade de testemunhos, não se pode identificar a ver­ dade do cristianismo com a figura histórica de Jesus. Como Gadamer se esforça por superar a ruptura kantiana entre os fatos e o sentido, assim Kasemann procura ultrapassar a oposição entre o extrinsecismo teol6gico e o historicismo. Podemos dizer que na época moderna a pesquisa mais fe. cunda em teologia fundamental diz respeito às relações entre a verdade e a hist6ria. Guardamos distância de relação me­ tafísica com a verdade, que está sempre sob o signo da ló­ gica da mesma coisa, de coincidência imediata com a origem e que anula toda descontinuidade, diferença e pluralidade. Trata-se de estabelecer entre a história e a verdade uma relação que aceite plenamente estar sob o signo da des­ continuidade, da diferença e da alteridade. Estaremos então em condições de pensar a tradição não como reprodução de passado morto, mas como produção sempre nova. Pierre Gisel, comentador da obra de Kasemann, propõe designar essa nova epistemologia como uma "genealogia", em refe­ rência ao pensamento de Nietzsche.

Uma relação genealógica com a verdade Começarei com esta citação de Gisel: "Todo discurso reenvia a um ato de interpretar, a uma avaliação do mundo, a uma entrada singular na humanidade. É nesse sentido que, depois de Nietzsche, fala-se em genealogia. Para lá da alter­ nativa historicismo-metafísica, chama-se conjunto à origem e à história, porque ignora-se toda história que não viva de uma origem e que não seja dita do seio da história e co­ mo interpretação dessa hist6ria. "18 Assim, é necessário es­ tabelecer uma relação genealógica entre o passado e o preJ 7 Pierre Gisel, em sua obra sobre Kiisemann, procura justamente desdobrar todas as conseqüências dessa dupla pertinência. P. Gisel, Vérité et histoire. La théologie dans la modernitt!: Ernst Kasemann, Beauchesne, Paris, 1977. 18 P. Gisel, op. cit., p. 627.

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sente. Só podemos dizer a significação da origem na vontade presente de nos apoderarmos do passado como origem. Di­ zer que a teologia é "genealogia" é dizer que ela é total­ mente histórica e que é no ato de interpretar o cristianismo no presente que ela pode também dizer o sentido das ori­ gens cristãs. Para Nietzsche, o acesso à verdade é sempre um parto doloroso, apesar de todos os disfarces. Ele nos previne con­ tra as ilusões do dogmatismo especulativo e do historicis­ mo. A este respeito ele é o verdadeiro iniciador de nossa modernidade crítica, que não é somente de natureza episte­ mológica, no sentido da crítica kantiana, mas também de estilo "genealógico". Trata-se de desmontar os mecanismos sutis que estão na origem de nossas certezas, e de perguntar de onde elas vêm. Particularmente, demistificaremos a ilu­ são que consiste em identificar a origem com uma plenitude de sentido. A origem só diz seu sentido no presente. Mas o "martelo da análise genealógica" não nos con­ dena necessariamente ao silêncio ou à sucessão indefinida das interpretações. A relação genealógica do passado com o presente é o lugar de produção da verdade; e a teologia cristã como discurso histórico deve reter a lição desse método.19 No ato de dizer o mundo atual, a teologia cristã pode dizer o sentido das origens cristãs. Em outros ter­ mos, os enunciados teológicos sobre o cristianismo são in­ dissociáveis de um ato presente de enunciação na situação presente da Igreja. A verdadeira tradição cristã é sempre interpretação criativa que procede de confrontação viva en­ tre o discurso passado da primeira comunidade cristã e o discurso presente da Igreja informada por sua prática con­ creta. Já insistimos na idéia de "testemunho", para caracteri­ zarmos a Escritura. Enquanto testemunho prestado ao evento 19 Sobre o método genealógico em Nietzsche, veja J. Granier,

Nietzsche ("Que sais-je?"), PUF, Paris, 1982, pp. 66-9. Sobre a fecun­

d:dade desse método "genealógico" para o trabalho teológico de hoje, leiam se as interessantes observações de P.-M. Beaude, L'accomplisse­ ment des Ecritures ("Cogitatio Fidei" 104), Cerf, Paris, 1980, pp. 292-5.

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Cristo, o Novo Testamento não é texto que nos entregue imediatamente seu sentido completo e definitivo. Devemos compreender esse texto como um "ato de interpretação" para nós hoje. Segundo Pierre Gisel, devemos tirar todas as conseqüências da analogia entre o Novo Testamento ( e a função que ele exercia na Igreja primitiva) e entre a pro­ dução de um novo texto hoje ( e a função que ele exerce no presente da sociedade e da cultura). A teologia entendida como escritura hermenêutica tem por tarefa criar novas in­ terpretações do cristianismo e favorecer práticas cristãs sig­ nificantes em função da situação concreta da Igreja, em con­ formidade com os tempos e os lugares. Essa maneira de conceber a teologia é evidentemente correlativa de concepção da verdade que, como já o dissemos, não se identifica bem com uma plenitude de ser na origem, nem com uma figura histórica particular. A verdade está, antes, sob o signo de futuro permanente. É este o sentido da verdade bíblica co­ mo realidade de ordem escatológica.20

A patologia da verdade dogmática Tentei elucidar alguns fatores históricos e epistemoló­ gicos que contribuíram para a exclusão do modelo "dogmá­ tico" de escritura teológica. Gostaria ainda de lembrar rapi­ damente fatores de ordem psicológica. Quero falar da "pa­ tologia da verdade" que certa teologia dogmática trai quando passa para o dogmatismo. Como a teologia moral pode levar ao legalismo, tam­ bém a dogmática pode conduzir ao dogmatismo. Por quê? Hoje estamos mais atentos sobre as fontes inconscientes que podem inclinar toda religião para o dogmatismo. Seja na ordem doutrinal, ritual, seja institucional, a religião conhece a tentação de hipostasiar formas contingentes e de conferir o selo de eterno a tal ou tal de suas figuras históricas. a mesma estratégia habitual dos poderes religiosos insti­ tuídos quando as formas tradicionais da religião se vêem contestadas pelos novos estados de consciência da humani-

t

20 A este respeito, veja a obra clássica de I. de la Potterie, ªLa V6rité dana Jean", in Analecta Biblica 73-74, 2 vols., Roma, 1976.

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dade. Sem irmãos, como alguns, ao ponto de falar em caráter fascista de toda linguagem, é certo que há uma violência do discurso de verdade, que, por natureza, é discurso de totali­zação, que se torna senhor do passado e do futuro e que tende a se tornar discurso totalitário. 21 O discurso dogmático da Igreja não escapou a essa tentação, sobretudo quando fez apelo aos recursos do saber especulativo. Pode-se perguntar, com efeito, se a mola se­ creta do pensamento ontoteol6gico, subjacente nos discursos dogmatizantes, não é a nostalgia de origem identificada, com a plenitude do ser e da verdade. O mundo se define pela contingência, o homem pela falta. Far-se-á então da idéia de Deus o lugar metafísico que totaliza todas as significações do mundo, que reconcilia todas as oposições, que anula to­ das as diferenças. O deus do projeto especulativo não seria então mais que a projeção da megalomania do desejo do homem, que não consente em sua finitude. Na realidade, como o sublinha com muita razão A. Vergote, "Deus, se é verdadeiramente Deus, só pode entrar no reino da verdade como significante que abre o campo da manifestação, não como aquele que fecha o poder de significância com uma resposta última. Se ele tem sentido, deve ser enquanto re­ presenta um superpoder de dar sentido. "22 Existe, portanto, cumplicidade entre o desejo do saber absoluto, inerente ao pensamento metafísico, e a tendência da fé cristã a dogmatizar. Especialmente a partir do século XVIII, a noção de verdade usada na teologia enquanto ciên­ cia da fé era a da lógica das proposições, que repousa no princípio de não-contradição. O termo "dogma", que nor­ malmente reenvia ao evento da verdade divina que sobrevém à história, torna-se de fato indicador de verdade infalível, garantida pelo magistério da Igreja. Mais tarde, quando foi proclamado o dogma da infalibilidade pontifícia, ele com muita _r�ãp pôde ser caracterizado como a ideologia própria 21 Cf. J. Greisch, "Le pouvoir des signes, les insignes du pouvoir", in Le Pouvoir, Beauchesne, Paris, 1978, pp. 175-205, especialmente pp. 180-1. 22 A. Vergote, lnterprltation du langage religieux, Seuil, Paris, 1974, p. 52.

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dessa figura histórica Jo cristianismo que foi o catolicismo intransigente. É pe,.mitido ver no encarecimento da iHfali­ bilidade a express;i.o típica da patologia da verdade católica.23 Nessa perspectiva, a fé cristã, enquanto adesão a uma ver­ dade que "advém" gratuitamente, não se confunde incons­ cientemente com a necessidade arcaica de uma certeza infaH­ vel? É necessário certamente analisar esses componentes ps{­ quicos da consciência religiosa, se se quiser ir até às raízes secretas do dogmatismo enquanto fundamentalismo. E a in­ tolerância de alguns crentes, em relação ao pluralismo teo­ lógico ou a qualquer tentativa de reformulação da fé cristã, não é sinal de insegurança fundamental diante de qualquer coisa que atinja sistema fechado de verdades dogmáticas imutáveis?

III. A VER DADE DA TEOLOGIA COMO LINGUAGEM INTERPRETATIVA

Todo o meu esforço neste capítulo consiste em mos­ trar que, quando não funciona mais segundo o modelo "dog­ mático", a teologia não renuncia, por isso, a trabalhar pela verdade. Creio mesmo poder dizer que a teologia entendida como hermenêutica respeita mais a originalidade da verdade que nos foi confiada na revelação cristã. É o que eu gostaria de sugerir na primeira parte. A teologia pode ser definida como o esforço para tornar mais inteligível e mais significante para hoje a linguagem já constituída da revelação. Essa linguagem já é interpretativa. A teologia como nova linguagem interpretativa apóia-se nela para explicar as significações do mistério cristão em fun­ ção do presente da Igreja e da sociedade. A teologia é, por­ tanto, um caminho sempre inacabado para uma verdade mais plena. A linguagem teológica é necessariamente inter­ pretativa à medida que visa . à realidade do mistério de 23 Cf. J. Hoffmann, "L'infaillibilité pontificale: forrnulation d'un dogme ou genêse d'une idéologie" in Travaux du CERTT, Pouvoir et vérité ("Cogitatio Fidei" 108}, Cerf, Paris, 1981, pp. 209-29.

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Deus a partir de significantes inadequados. E é próprio da teologia especulativa justamente transgredir os primeiros significantes da linguagem da revelação graças aos novos significantes que lhe são oferecidos por certo estado da cul­ tura filosófica e cientffica.24 O erro do dogmatismo consiste em reduzir os significantes da revelação às suas expressões conceptuais. A teologia como hermenêutica não renuncia a uma lógica rigorosa das verdades de fé, mas tem consciência do limite constitutivo de sua linguagem em relação a um ideal de sistematização conceptual. A linguagem teológica tem seus critérios próprios de verdade. Por definição, esses critérios não podem ser de ordem empírica, uma vez que a teologia tem por objeto uma realidade invisível. A teologia tem como ponto de partida, contudo, uma objetividade his­ tórica: os eventos fundadores do cristianismo. Por isso um dos critérios de verificação do trabalho teológico consiste justamente em confrontar as novas expressões da fé com a linguagem inicial da revelação referente a esses eventos fun­ dadores e com as diversas linguagens interpretativas que se encontram na tradição. 25 A teologia enquanto nova escritura, na base de confron­ tação incessante entre escrituras anteriores, é dirigida pela natureza da verdade pela qual ela é responsável. É neces­ sário, portanto, procurar caracterizar os traços próprios des­ sa verdade pela qual a teologia é responsável. Apresentarei três. A. A verdade da teologia é da ordem do testemunho O objeto do conhecimento teológico não é um con­ junto de verdades conceptuais, mas um mistério, o ato mes­ mo pelo qual Deus se deu a conhecer aos homens. Dessa verdade divina em ato de automanifestação, Jesus é a teste­ munha insuperável. O testemunho de Jesus se traduziu em 24 A este respeito, vej11 L. Ladri�re, •L11 théologie et le langage de l'interprét11tion", in Rev. Théol. de Louvain 1, 1970, pp. 241-67. 25 Sobre ess11 criteriologi11 teol6glc11, pode-se ler nosso artigo: "Théologie", in Encyclopaedia Universalis, vol. XV, Paris, 1973, pp. 1087-91.

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enunciados de fé; sobre eles trabalha o teólogo. Mas ele não pode separar esses enunciados do evento de sua enunciação. Assim, a verdade cristã é uma verdade que acontece apenas no evento sempre atual de sua enunciação e que é toda vol­ tada para uma plenitude de manifestação de ordem escato­ lógica. A verdade no sentido bíblico pôde ser aproximada, com razão, da essência da verdade como a compreende Hei­ degger.26 Ele fala de uma verdade originária, situada aquém do julgamento e que não é senão a eclosão do sentido. Isso significa que toda verdade é correlativa de uma não-verdade ligada ao estado de velamento originário. Também a ver­ dade da qual se ocupa a teologia se ressente sempre de seu estado de velamento originário. Ela não pode, portanto, ser reduzida às verdades objetivas, das quais trata o saber teó­ rico. Isso significa que não há conhecimento teológico da verdade de fé sem participação ativa na verdade mesma de Deus em ato de vinda. A linguagem teológica pode ser es­ peculativa, mas nem por isso ela deixa de ser linguagem de engajamento, linguagem auto-implicativa. Ela depende do tes­ temunho, uma vez que não se refere a verdades verificáveis e que o sujeito ctente está totalmente implicado em seu ato de enunciação. Assim, a verdade invocada pelo teólogo é uma verdade celebrada, confessada. Ela pode ser aproximada das verdades da razão no sentido de Kant. Essas verdades não têm a evidência objetiva de uma verdade científica ou de uma verdade filosófica. Mas não são verdades arbitrárias, porque correspondem aos fins necessários do homem: elas se impõem em nome de evidência interior.27 26 Dentre outros trabalhos citados: H. Schlier, "Méditations sur la notion johannique de vérité", in Essais sur le Nouveau Testament, Cerf, Paris, 1968, pp. 317-24; W. Kasper, Dogme et Evangile, Caster­ man, Toumai, 1967, pp. 55-101; H. Ou, "Was ist sistematische Theo­ logie?", in Der spiire Heidegger und die Theologie, "Neuland in der Theologie", Bd 1, Zurique, 1964, pp. 95-133; C. Geffré, "Le probleme théologique de l'objectivité de Dieu", in J. Colette e outros, Proces de l'obiectivité de Dieu ("Cogitatio Fidei" 41, Cerf. Paris, 1969, pp. 24l·ó3: B. Dupuv, "L'infaillíbilité selon Hans Küng", in Eglise infailli­ ble ou intemporelle? Recherches et Débats, DDB, Paris, 1973, pp. 33-40. 27 Sobre a originalidade da verdade no registro de uma filosofia do testemunho, veja P. Ricoeur, "L'herméneutique du témoignage•·, in Le Témoignage (Encontro Castelli), Aubier, Paris, 1972, pp. 35-61.

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A teologia é, pois, precedida de uma verdade que ela conhece por testemunho, ex auditu, e à qual ela, por sua vez, dá testemunho. Ela reconhece que é obrigada por uma verdade da qual não dispõe. A linguagem teológica, por mais especulativa que seja, deve ressentir-se dessa passividade primeira. Dizemos que a linguagem teológica como celebra­ ção da verdade que veio em Jesus Cristo tem necessaria­ mente uma dimensão doxológica. Mas, ao mesmo tempo, a linguagem teológica terá sempre um alcance prático, porque testemunha uma verdade que não cessa de advir ao coração do mundo e que tende a se encarnar em figuras hlstóricas novas. Assim, embora a linguagem teológica, como lingua­ gem especulativa, não tenha mais o valor evocativo e suges­ tivo da linguagem bíblica, ela continua sendo radicalmente uma linguagem poética no sentido em que é a teoria de um fazer. Ela deve desaguar em novas práticas significantes na Igreja e na sociedade. Nesse sentido, a teologia terá nor­ malmente uma responsabilidade social e política.28 Ela exerce função de ;ulgamento em relação às práticas do mundo. B. A verdade da teologia é radicalmente histórica

Se desde o começo a verdade cristã é da ordem do testemunho, testemunho que se tornou Escritura, isso signi­ fica que não há imediaticidade da verdade que veio em Jesus. Quem diz testemunho diz distância, espessura humana, in­ terpretação. O mesmo vale para esses novos testemunhos que são as teologias ao longo da hlstória da Igreja. A teologia 28 Cf. P. Ricoeur, "Nommer Dieu n, in Etudes Tliéologiques et Re­ ligieuses 52, 1977, pp. 505-8. Poderíamos lembrar aqui o sentido ético da transcendência segundo E. Levinas, que remete à veritas redarguens,

a "verdade· que acusa", de santo Agostinho: "Não assume a transcen• dência um sentido eventualmente mais antigo e, em todo caso, diferente do que lhe vem da diferença ontológica? Ele significa, em minha res­ ponsabilidade pelo outro, à primeira vista, meu próximo ou meu irmão ... Responsabilidade que nenhuma experiência, nenhum aparecer, nenhum saber vem fundar; responsabilidade sem culpabilidade, mas na qual, diante do rosto, eu me vejo exposto a uma acusação que o álibi de minha alteridade não poderia anular" (E. Levinas, "De la signifiance du sens", in Heidegger et la question de Dieu, Grasset, Paris, 1980, p. 240).

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nã:o pode, portanto, pensar num acesso imediato à verdade como se esta coincidisse com a Palavra de Deus em estado puro, ou coro um evento histórico no começo. A teologia como hermenêutica só atinge a verdade dos enunciados de fé numa perspectiva histórica. Sob pretexto de que as verdades de fé são absolutas, certa teologia cometeu o erro de esquecer-se de que a posse dessas verdades pelo espírito humano é sempre histórica e, portanto, relativa. Os enunciados de fé são verdadeiros hoje como ontem, mas a sua compreensão correta depende do poder de significação do espírito num momento histórico dado. Por outro lado, a verdade de um enunciado é deter­ minada pela situação histórica de questão e resposta que esteve na origem da formulação desse enunciado. O conhecimento teológico, como conhecimento interpre­ tativo, participa da historicidade radical dessa situação de questão e resposta. Trate-se de artigo de fé ou de definição dogmática, a sua compreensão correta supõe que se tenha criado a adequada "situação hermenêutica", que é determi­ nada pelo jogo da questão e da resposta.29 B evidente, por exemplo, que uma definição dogmática é uma resposta que só pode ser compreendida com referência à questão histórica que a provocou. Não existem afirmações dogmáticas em es­ tado puro que não façam referência a uma situação coricreta da Igreja, geralmente uma situação de crise, e que não se­ jam marcadas pelo sistema de representações de uma época. Graças a todo um trabalho crítico, o teólogo pode discernir o conteúdo permanente de verdade de uma definição dog­ mática e, depois, a sua função concreta de resposta em face a um erro determinado. Essa definição dogmática não se torna falsa ou perempta numa situação eclesial diferente. Mas ela pode revestir-se de sentido novo, em relação ao seu sentido original, em face de tal urgência eclesial e pode exercer fun­ ção diferente na economia geral de fé, contanto que a ver­ dade de fé sobre a qual ela insistia seja objeto de posse tran­ qüila e não de contestação. 29 Essa condição essencial de compreensão correta foi lembrada com vigor por E. Schillebeeclqt, em seu artigo: "Le probleme de l'in-

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Tudo isso nos ajuda a compreender qual é a relação de uma teologia hermenêutica com a verdade. Essa relação é indissociável da relação mútua entre o evento fundador e a situação atual da comunidade cristã, sobre a qual já insisti várias vezes. Devemos renunciar à ilusão de uma verdade­ adesão ou de uma verdade-adequação, que suporia um ob­ jeto imutável e um sujeito conhecente invariante. Desde que Deus se deu a conhecer aos homens, o elemento interpreta­ tivo da comunidade cristã pertence ao conteúdo da verdade de fé. A verdade cristã não é, portanto, núcleo invariante que se transmitiria de século em século na forma de dep6sito fixo. Ela é um advir permanente, entregue ao risco da histó­ ria e da liberdade interpretativa da Igreja sob a moção do Espírito. É notoriamente insuficiente falar, hoje, a propósito do conteúdo da fé, de relação entre núcleo invariante e re­ gistro cultural variável. Devemos guardar-nos da ilusão de invariante semântico que subsistisse além de todas as con­ tingências da expressão.30 Seria deter-se em concepção pura­ mente veicular e instrumental da linguagem. É necessário falar de relação de relações. De acordo com as situações his­ t6ricas diferentes da Igreja, dá-se a produção de uma relação nova entre a mensagem cristã e a novidade da relação semân­ tica. A responsabilidade do teólogo consiste em mostrar a continuidade descontínua de tradição cristã, que é criativa de figuras históricas novas em resposta ao acontecimento per­ manente da verdade originária, que se revelou em Jesus Cristo.

C. A verdade da teologia como expressão do consenso eclesial Em função do que precede, resulta que a experiência cristã da verdade não se identifica com um conhecimento faillibilité ministérlelle. Réflexions théologiques", in Concilium 83, 1973, pp. 83-102, especialmente pp. 88-93. 30 Esse perigo foi lucidamente denunciado por J. Gabus, cf. Criti­ que du discours théologique, Delachaux & Niestlé, NeuchAtel, 1977, p. 323.

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puramente especulativo. A verdade de fé é caminho a se­ guir, permanente advir, itinerário em comum. Ela nasce do testemunho e está sempre encarnada, em confronto com a situação concreta do mundo e da Igreja, sem que se possa separá-la de seus lugares de vinda. Devemos então falar de uma verdade plural em teolo­ gia, sem o risco de interpretações indefinidas? Aparece fi­ nalmente a objeção de todos aqueles que não aceitam a ex­ clusão da teologia dogmática em proveito da hermenêutica. � possível sair do dilema irritante: ou o · dogmatismo mo­ nolítico ou o arbítrio das interpretações múltiplas? Respondo que é verdade que a interpretação não é úni­ ca porque há muitas possibilidades de ler um mesmo texto, e que é impossível sacralizar a verdade de um texto. Mas é verdade também que não existe a possibilidade de infinitas interpretações. Essa possibilidade se inscreve em campo her­ menêutico determinado por uma comunidade de interpre­ tação.31 O progresso na v�rdade se faz mediante reconheci­ mento mútuo de vários sujeitos, que testemunham uma ver­ dade sempre inacessível. A este respeito o teólogo poderia tirar proveito da recente teoria de J. Habermas, a Konsen­ sus-theorie: a verdade é o resultado de processo intersubje­ tivo de consenso. O problema não é chegar a um consenso, custe o que custar, mas chegar a um consenso sem violência, a uma situação de comunicação ideal, sem fator de violência e de poder, para que a comunicação não seja perturbada. A verdade não depende do saber imediato, mas de processo argumentativo intersubjetivo. Para o teólogo, o campo hermenêutico, o espaço da verdade, é a Igreja como sujeito adequado da fé. Podemos, sem dúvida, repetir com Paulo VI que "a fé não é plura­ lista". Mas devemos entendê-lo bem. Se considerarmos a fé em sua tradução numa linguagem ( e ela não existe em es­ tado puro, fora desse regime de ·encarnação), poderíamos falar também de unidade multiforme da fé no tempo e no espaço. Para superarmos o conflito possível entre as exigên31 Cf. P. Ricoeur, conclusão do encontro: nExégêsc ct herméneu­ tiquc", Scuil, Paris, 1971, p. 295.

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cias da unidade e o direito a legítimo pluralismo no conheci­ mento interpretativo da verdade, devemos voltar sempre à experiência de toda a Igreja, designada comumente como con­ sensus fidelium. Poderíamos falar de faro inerente à experiên­ cia fundamental da primeira comunidade cristã e às expe­ riências históricas ulteriores da Igreja. A despeito das rup­ turas históricas, o que garante a identidade do "eu" da Igreja é inseparavelmente a permanência do dom do Espí­ rito de verdade (Jo 14,26) e a identidade da experiência crente, que tem sua expressão não só nas confissões de fé, mas também na prece litúrgica da Igreja e no serviço do Evangelho das bem-aventuranças. Sei que é muito fácil invocar a Igreja como lugar her­

men€utico, para decidir sobre o verdadeiro e o falso em

teologia. Somos sempre colocados na obrigação de fornecer critérios infalíveis. Mas já demistifiquei a ilusão de crer que dispomos de critério estático infalível, seja no sentido de enunciados escriturísticos ou dogmáticos, seja no da decisão de magistério infalível. Direi simplesmente que a norma do julgamento teológico conforme à verdade que nos foi confia­ da na revelação deve ser procurada a partir da correlação recíproca entre a experiência fundamental do Novo Tes­ tamento e a experiência coletiva da Igreja, marcada pelos novos estados de consciência da humanidade. Dogmática ou hermenêutica? Sob aparência cândida, a questão é pérfida: ela diz respeito ao estatuto da verdade na teologia. Chegados ao termo deste capítulo, parece-me possível formular as três conclusões seguintes. 1. A teologia entendida como hermenêutica não é adog­ mática. Quero dizer que, se ela contesta o uso dogmatista de certa teologia escolástica, não pretende pôr em causa a legitimidade da teologia dogmática enquanto exposição rigo­ rosa das verdades da fé. À medida que devemos renunciar ao mito de teologia universal, cada teologia particular está na obrigação de ser radicalmente cristã, isto é, deve mani­ festar o sim e o não ao Evangelho e levar a um julgamento pronunciado sobre o mundo.

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2. A teologia entendida como hermenêutica nos ajuda a respeitar a originalidade da verdade da revelação cristã, que é da ordem do testemunho e que não cessa de advir no presente da Igreja. Ela nos convida, particularmente, a não reduzirmos os significantes da revelação às suas expres­ sões conceptuais e a não identificarmos pura e simplesmente a razão teológica com a razão especulativa. 3. Por fim, a teologia hermenêutica corresponde a uma situação histórica da I greja, na qual a defesa da verdade que nos foi confiada na revelação não está ligada à exis­ tência de uma teologia dogmática autoritária, que preten­ deria o universal. Para lá do dogmatismo e da explosão anárquica, somos convidados a repensar como poderá ser uma unidade plural da verdade cristã que não comprometa a unanimidade na fé.

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A LIBERDADE HERMEmUTICA DO TEÓLOGO

O teólogo é responsável diante de Deus e dos homens pela Palavra de Deus no seio dessa comunidade que é a Igreja, convocada e instituída por esta mesma Palavra de Deus. Antes de tentar uma reflexão sobre a função da teo­ logia na conjuntura presente da Igreja de João Paulo II, gostaria de fazer duas observações. 1. Visto que a Palavra de Deus se cumpriu uma vez por todas em Jesus, o Cristo, o ato teológico é atravessado por tensão irredutível entre uma fé transmitida historica­ mente pelas primeiras testemunhas e a necessidade sempre nova de compreender e atualizar a fé para hoje. Numa pala­ vra, a teologia é sempre inseparavelmente anamnese e pro­ fecia. Modestamente, mas sem cessar, o teólogo se sente responsável pela esperança universal que surgiu no mundo com a vinda de Cristo. Por isso ele é responsável não só diante da comunidade dos crentes, mas também diante de todo homem. 2. A responsabilidade pela atualização da boa nova do Evangelho é de toda a comunidade dos crentes, que rece­ beram, todos, algum carisma de verdade. Mas a Igreja é um todo orgânico no qual podem-se distinguir diversas fun­ ções e diversos ministérios. No que concerne ao serviço da fé apostólica, distinguem-se tradicionalmente o magistério pas­ toral dos bispos e o magistério científico dos teólogos. O ministério dos bispos consiste em transmitir a fé apostólica e em velar pela sua pureza e plenitude. O mi-

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nistério do teólogo consiste em refletir sobre a fé para dar-lhe elaboração científica, usando para isso os instrumentos crí­ ticos da história, da filosofia e das ciências humanas e em função dos novos questionamentos apresentados pela situação histórica da Igreja e do mundo. Deveria existir interação redproca e até complementa­ ridade entre essas duas funções. Na verdade, o que se cons­ tata muitas vezes é conflito.1 Fugindo à polêmica, seria necessário voltar atrás e re­ fletir sobre as causas desse conflito. Não proviria ele de compreensão diferente do que é chamado "depósito da fé" e "regulação da fé"? Isso porque cada vez se pressupõe con­ cepção diferente da linguagem e da verdade.

1. A FUNÇÃO PRóPRIA DA TEOLOGIA

Antes de apresentar minha v1sao pessoal do serviço teológico na Igreja, desejaria lembrar algumas concepções insuficientes da teologia. Mencionarei três dentre elas. 1. Ontem principalmente, mas ainda hoje, alguns são tentados a entender a teologia como prolongamento do ma­ gistério.2 A tarefa da teologia consistiria essencialmente em transmitir e explicar o ensinamento do magistério, elaboran­ do-o e justificando-o cientificamente. A teologia seria então simples auxiliar do magistério. Parece que muitas vezes é esse o caso da teologia da Cúria Romana. Isso pode levá-la 1 Entre

os casos mais recentes de conflito, basta lembrar os

aflaires "Pohier n , "Küng n e "Schillebeeckx". Da imensa literatura

suscitada por esses conflitos citarei apenas o estudo irônico de Y. Congar: "Les régulations de la foi", in Le Supplément 133, 1980, pp. 260-81. 2 E a tentação do modelo de teologia dogmática Contra-Reforma, que apresentamos no capítulo precedente. Em sua bela meditação sobre a "situação eucarística da teologia", J -L. Marion não escapa com­ pletamente a esse perigo quando faz do ministério do teólogo parti­ cipação no carisma do bispo, cf. Dieu sans l'être, Fayard. Paris, 1982, cap. V: "Ou site eucharistique de la théologie", pp. 196-222.

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a exercer função ideológica, a de legitimar junto aos fiéis as tomadas de posição do magistério tanto na ordem doutrinal como na disciplinar. Não se pode atribuir semelhante tarefa ao conjunto dos teólogos, enraizados que estão em suas I gre­ jas locais, com seus respectivos problemas. 2. Outros, ao contrário, são levados a fazer da teologia a tematização da vivência de uma comunidade particular ou mesmo de uma Igreja local. A teologia se enraíza sempre numa prática concreta. Mas pode degenerar em ideologia - ideologia de um grupo de pressão dentro da Igreja - se não permanecer em diálogo com as outras interpretações do cristianismo no tempo e no espaço. Sem dúvida, na Igreja de hoje uma teologia universal se tornou impossível. Mas toda teologia deve tender a manifestar a universalidade da fé cristã.3 3. Por fim, é muito freqüente a permanência numa concepção insuficiente da teologia entendida como tradução da doutrina oficial da Igreja numa linguagem mais adaptada. Ouve-se muitas vezes que a tarefa do teólogo consiste em "renovar a linguagem da fé". f: uma fórmula muito ambígua, porque pode ser entendida como simples rejuve­ nescimento ou mudança de linguagem gasta. Ora, o proble­ ma não é só de tradução, adaptação ou acréscimos novos em relação a um núcleo doutrinal, que permaneceria imutável. Em função dos novos estados de consciência da huma­ nidade, o teólogo é testemunha de interrogação fundamental que se refere ao próprio coração da fé. Segundo a expressão do P. Labarríere, trata-se de pesquisa centrípeta e não cen­ trífuga. Por outro lado, os crentes da base não se enganam a este respeito: as suas dificuldades não procedem só da lin­ guagem tradicional da fé, mas também do conteúdo da fé. Por isso, seria fazer mau juízo dos teólogos considerá-los 3 Chegou-se a ver certo "provincialismo teológico" em teologias particulares como a "teologia da libertação", a "teologia negra", a "teologia feminista". Sob o título: "Théologies différentes, responsa­ bílité commune: Babel ou la Pentecôte?", a revista Concilium (1984) procurou mostrar que o pluralismo teológico não deve levar a um estilhaçamento da teologia.

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responsáveis pela perturbação ou pela inquietação dos sim­ ples fiéis. Eles estão, ao contrário, à escuta dos fiéis para tentar fazer análise crítica de seu mal-estar e arriscar reinter­ pretação nova da linguagem da fé. Crer que se pode retraduzir numa linguagem nova ver­ dades tradicionais, sem proceder a uma reinterpretação des­ sas verdades, é permanecer numa concepção insuficiente da verdade e da linguagem. De um lado, é esquecer a his­ toricidade radical de toda verdade, mesmo quando se trata da verdade revelada. Do outro, é permanecer numa con­ cepção instrumental da lin guagem como se ela fosse apenas o instrumento neutro de pensamento todo-poderoso e imu­ tável e como se a invariância do sentido estivesse sempre garantida, fossem quais fossem suas expressões verbais. Em contraste com essa concepção insuficiente, proporei definir a teologia como reinterpretação criativa da mensagem cristã. O ponto de partida do trabalho teológico será sempre o que se chama "dado revelado" ou ainda o "depósito da fé", isto é, o que foi transmitido desde os Apóstolos. Mas, de fato, esse depósito da fé é o testemunho suscitado pelo evento Jesus Cristo, testemunho que se tornou Escritura. Em outros termos, na revelação, não podemos separar a ação salvífica de Deus, que se cumpriu no evento Jesus, e a experiência crente da primeira comunidade cristã, que é sempre um conhecimento interpretativo. Isso si gnifica que a teologia trabalha sobre um texto que é, também ele, "ato de interpretação". Isso significa ainda que, na primeira comunidade cris­ tã, a teologia, enquanto discurso interpretativo, foi contem­ porânea da fé. Quero dizer que a teologia não é somente reflexão ulterior sobre a fé e seu conteúdo, mas que tam­ bém intervém no próprio conteúdo da fé. Isso deve aju­ dar-nos a demistificar a idéia de um conteúdo de fé que fosse invariante subjacente a traduções teológicas múltiplas e variáveis. A revelação e a fé ( inclusive o dogma) são tão radicalmente históricas quanto a teologia. Assim, como mostramos no capítulo 2, o objeto ime­ diato da teologia não é uma palavra originária, cheia de sen-

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tido, da qual o texto das Escrituras seria apenas o eco, nem um evento histórico em sua faticidade bruta. É um texto como ato de interpretação histórica. E a distância que nos separa desse texto é a condição da teologia como novo ato de interpretação para nós hoje. Existe, pois, homologia ou relação de relações entre o Novo Testamento e sua efeti­ vidade prática na Igreja primitiva, de um lado, e a produção de um texto novo hoje e seu caráter operativo para a vida presente da Igreja, do outro. Tal prática da teologia como retomada criativa é correlativa de uma concepção da ver­ dade entendida não como saber, mas como desvelamento pro­ gressivo, tendido para plenitude de ordem escatológica. A verdade do Evangelho é um advir permanente, medido pela distância entre o Cristo ontem e o Cristo amanhã. O depósito da fé sobre o qual trabalha o teólogo com­ preende não só a Escritura, mas também a Tradição, não no sentido de segunda fonte, mas no da Escritura como é compreendida pela Igreja ( cf. Dei Verbum 6, 24). Trata-se essencialmente da tradição dogmática como texto produzido pela Igreja a partir de escrituras anteriores em circunstâncias determinadas. A teologia como retomada criativa deverá entregar-se a uma reinterpretação das verdades dogmáticas à luz de nos­ sas novas leituras da Escritura. Graças aos recursos da crítica histórica, ela procurará discernir o que pertence à fé apos­ tólica do que depende da mentalidade e das representações espontâneas de uma época. O grande princípio metodológico que deve ser usado é o da pergunta e resposta. 4 A resposta, constituída por um dogma como tomada de consciência do conteúdo da fé da I greja em dado momento, só pode ser compreendida junto com a questão histórica que a provo­ cou.5 4 Sobre esse jogo da pergunta e da resposta, veja sobretudo o importante artigo de E. Schillebeeckx: "Le probl�me de l'infaillibilité ministérielle", in Concilium 83, 1973, pp. 83-102. 5 A esse respeito, veja a maneira pela qual B. Sesboué compreende a resposta que constituiu o dogma de Calcedõnia, comparando, com Gadamer, a hermenêutica teoló1ica com a hermenêutica jurídica. Esse dogma é decreto de aplicação da mensagem fundadora a uma situação concreta da Igreja: ele é ato de interpretação e também ato de juris-

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Mas é possível que a simples reinterpretação da res­ posta num contexto novo como o nosso não seja suficiente. Não devemos então afastar a eventualidade de reformulação do dogma. A repetição pura e simples das fórmulas dogmá­ ticas pode gerar contra-sensos e confusões, se os termos e os conceitos filosóficos assumidos pelo dogma têm hoje outra significação. Devemos aceitar mudança na formulação justamente para sermos fiéis ao valor permanente de uma afirmação de fé. E quando sabemos o quanto as fórmulas dogmáticas dependem de elaboração teológica particular, é permitido perguntar-nos se o magistério ainda pode deter­ minar a fé mediante definições dogmáticas no momento em que a Igreja deve conformar-se com pluralismo teoló­ gico insuperável. Os responsáveis eclesiais devem pensar se­ riamente nessa questão, uma vez que no fim deste segundo milênio a Igreja tem o dever urgente de atualizar a mensagem cristã em outras culturas, diferentes da cultura ocidental. A história da tradição nos atesta, contudo, que divergências na expressão podem salvaguardar a unanimidade na fé. Por que, por exemplo, não seria possível hoje o que foi possível em 433, quando do ato de união de Cririlo de Alexandria, reconhecendo a diferença das fórmulas cristológicas que opu­ nham Alexandria e Antioquia? Em conclusão de tudo isso, direi que a reinterpretação do dogma não consiste em declarar que o que era verdade ontem tornou-se falso hoje, mas em ressituar um dogma particular no conjunto da fé e em compreender que ele pode exercer, hoje, função diferente da que exerceu quando formulado. A este respeito, devemos ter na maior conside­ ração o principio da "hierarquia das verdades", revalorizado pelo Vaticano II.6 Assim, no diálogo com as outras confis­ sões cristãs, não deveríamos pôr em plano de igualdade o prudência Cf. B. Sesboué, "Le procts contemporain de Chalcedoine", in RSR 65/1, 1977, pp. 45-80; veja tambtm a obra recente do mesmo autor, Jésus-Christ dans la tradition de l'Eglise (" Jésus et Jésus-Christ" 77), Desclée, Paris, 1982, pp. 1467. 6 Veja o comentário (com bibliografia completa) desse princípio, enunciado no decreto sobre o ecumenismo, de Y. Congar, Diversités et communion ("Cogitatio Fidei n 112), Cerf, Paris, 1982, pp. 184-97.

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dogma de Éfeso sobre a maternidade divina e os dogmas mariais recentes da imaculada conceição e da assunção. Acrescento, enfim, que a tomada a sério da historici­ dade radical das fórmulas dogmáticas pode ajudar-nos a com­ preender a dialética de continuidade e de ruptura, constitu­ tiva da tradição cristã. A verdadeira tradição não é repro­ dução mecânica, mas sempre produção nova. O cristianismo não é desdobramento linear de uma história já contida em germe em sua origem. E sabemos que a idéia de desenvol­ vimento homogêneo tem sabor fortemente apologético.7

II. O SENTIDO DE REGRA DE FI:. NA IGREJA Desde a origem do cristianismo hist6rico, encontramo­ nos diante de pluralidade de confissões de fé. Sabemos que o próprio Novo Testamento contém várias teologias que não podem ser reduzidas a uma unidade doutrinal simples.8 Exis­ tiu, portanto, um processo contínuo de gênese dessas confis­ sões dentro da Escritura, na época das primeiras expressões eclesiais p6s-apostólicas e até os desenvolvimentos dogmáti­ cos ulteriores - e isso sob a pressão de condicionamentos históricos novos. Hoje, se não nos princípios, pelo menos na prática acei­ tou-se um pluralismo teológico de fato, em conseqüência da explosão da cultura. Independentemente da permanência da divisão das Igrejas cristãs, é necessário mesmo falar de plu­ ralismo legítimo das confissões de fé, à medida que as Igre­ jas locais estão enraizadas em experiências históricas, cul­ turais e sociopolíticas irredutíveis. Por isso, só pode causar inquietação constatar que o magistério se situa muito e-x­ clusivamente na linha tradicional da I greja do Ocidente, quando o futuro da fé cristã se joga cada vez mais em ou­ tros continentes. 7 Cf. J .-P. Jossua, art. cit., acima, cap. 3, nota 3. 8 E. Kasemann mostrou que é impossível reduzir a uma unidade formal as eclesiologias diferentes do Novo Testamento, cf. Y. Congar, op. cít., pp. 19s.

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Em todo caso, a questão de uma regra de fé se põe com muita urgência. Em relação a esta questão podemos encon­ trar duas atitudes extremas. Uns apelam para a pretensão absoluta do cristianismo à universalidade e, graças à autoridade formal de um poder central, esforçam-se por promover uma uniformidade da dou­ trina e da prática cristã. Mas trata-se de falsa universalidade abstrata, com o risco de ortodoxia verbal que não atinge a vivência irredutível de cada fiel. Sem excluir o perigo de l\ confissão de fé, em vez de ser expressão espontânea do povo de Deus, tornar-se instrumento de poder nas mãos dos res­ ponsáveis hierárquicos. Outros, à força de respeitarem todas as opiniões e tole­ rar todas as práticas cristãs, chegam a um "cristianismo ex­ plodido". Isso compromete a identidade do que nos foi trans­ mitido pelos Apóstolos. Além disso, também a visibilidade social do cristianismo no mundo fica ameaçada. Não podemos, portanto, seguir a economia de uma rt!­ gra de fé. Haverá necessariamente uma parte de regula­ mentação social da linguagem da fé. E, dentro da Igreja, é necessário aceitar certa tensão entre as exigências de autenti­ cidade de minha fé pessoal: "Que importância tem para mim uma linguagem que não é verdadeira para mim?", e as exi­ gências de minha comunhão com todos aqueles que se dizem de Cristo: "Que importância tem para mim uma verdade que me separa de meus irmãos? " 9 Distingu irei a seguir o sentido histórico da expressão regula lidei, as instâncias da regulação da fé na Igreja e os critérios da verdadeira regra de fé. A. A expressão "regula fidei" Encontramos a expressão "regra da verdade" pela pri­ meira vez em santo Irineu. Nos primeiros séculos da Igreja, a expressão regula lidei não designava um ato da Igreja do9 Cf. M. de Certeau, "Y a-t-il un langage de l'unité? De quelques conditions préalables•. in Concilium 51, 1970, pp. 72-89.

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cente no sentido de norma diferente da doutrina recebida dos Apóstolos e entregue à Igreja. Mas, em virtude de evolução histórica, que o P. Congar descreve em sua obra sobre a Tradição, 10 manifestou-se a tendência de distinguir cada vez mais entre tradição passiva, isto é, o conteúdo da fé, e tradição ativa, isto é, o magis­ tério que propõe esse conteúdo. De fato, o magistério, em sua função normativa, tomou-se a regra próxima da fé. Com isso foi indevidamente aumentado o poder da autoridade eclesiástica, que enuncia a fé, quando a única regra da fé de toda a Igreja não é uma autoridade criada, mas o próprio Deus, Deus como Verdade primeira, para falarmos com santo Tomás. Nessa linha esquece-se muitas vezes que a verdade do Evangelho como objeto de fé não é só corpus doutrinal, verdade-coisa, mas verdade dinâmica, verdade adveniente, verdade praticada no sentido de são João. Trata-se de ver­ dade visada e jamais possuída. Dizemos que o caráter ines­ gotável da mensagem cristã se enraíza na distância entre a Palavra de Deus consignada na Escritura e o Evangelho co­ mo plenitude escatológica. Ele é, ao mesmo tempo, memória e promessa. Desde as origens, sabemos que o capital de ver­ dade evangélica da prática eclesial ultrapassa o conteúdo ex­ plícito das confissões de fé. E como não existe identidade entre a Igreja e o reino de Deus, também não existe identi­ dade entre a confissão de fé dogmática e a Palavra de Deus. B. As instâncias da regulação da fé

Devemos discernir três instâncias: a do povo dos cren­ tes, a dos pastores e a da comunidade dos teólogos. E o bom uso da regulação supõe a interação das três. 1. O povo dos crentes A indefectibilidade, isto é, a permanência na verdade, é uma promessa feita por Cristo a toda a Igreja, Povo de Deus. E a infalibilidade ministerial, a dos responsáveis hie10 Cf. La Tradition et les traditions, I. Essai historique, Fayard, Paris, pp. 233-57 e notas, pp. 279-91. 4 . Como fazer tcoloala hoje

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rárquicos, é apenas a expressão dessa indefectibilidade de toda a Igreja. Seja o que for dos erros, dos desvios e da imbricação incxtricável do que é reformável e do que é irreformável, a Igreja está sob o si gno da epiclese permanente do Espírito. E: necessário, pois, tomar a sério o sensus fidei de todos os fiéis e falar de "auto-regulação" de todo o povo dos crentes como organismo vivo em sua procura da verdade toda. "Dis­ cerni tudo e ficai com o que é bom" ( 1 Ts 5 ,21 ) : é reco­ mendação que se dirige a todos os cristãos. A importância desse sensus fidei foi claramente sublinhada, especialmente na Lumen gentium: "O conjunto. dos fiéis, ungidos que são pela unção do Santo, não pode enganar-se no ato de fé. E manifesta esta sua peculiar propriedade mediante o senso sobrenatural da fé de todo o povo ... " ( LG II, 12 ) .11 Encontram-se na história da Igreja vários exemplos des­ sa vigilancia na fé do conjunto do Povo de Deus. Assim, durante a controvérsia ariana, a confissão de fé foi preser­ vada não pelo episcopado, mas pela fé de toda a comuni­ dade cristã. E mesmo hoje, a não-recepção ativa pelos cren­ tes da base de ensinamento ou de lei promulgada pelos res­ ponsáveis oficiais tem valor de sinal. Não basta condenar como ilegal uma práxis eclesial nova. A história nos ensina que uma prática inicialmente em conflito com a ordem ecle­ sial oficial pode tornar-se com o tempo a prática dominante da Igreja e acabar por receber a sanção oficial da autoridade. E: preciso, por isso, confiar na vitalidade evangélica do povo cristão e considerar que muitas vezes as "renovações" mais conformes à condição exodal do Povo de Deus vêm de baixo e não de cima. No domínio litúrgico, por exemplo, não san­ cionou o Concílio Vaticano II iniciativas vindas, em grande parte, da base? 2. Os pastores

t a instância de regulação na qual pensamos mais es­ pontaneamente. O corpo dos bispos em comunhão com o 11 Entre outros trabalhos sobre o sensus fdelium. recomendamos de modo muito especial o estudo de J .-M. R. Tillard, •te sensus fidc-

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bispo de Roma continua a nussao confiada aos Apóstolos de transmitir a mensagem de Jesus. f: numa convicção de fé que aceitamos o papel do magistério pastoral do papa e dos bispos de decidirem, em caso de conflito ou de pertur­ bação da legitimidade de uma nova interpretação da confis­ são de fé ou de uma nova confissão de fé. Contento-me com lembrar aqui algumas das condições mais comumente admitidas, que favorecem o bom exercício dessa regulação do magistério. 1. O magistério está submetido à Palavra de Deus, isto é, ao testemunho da Escritura relida na fé da Igreja, mas levando em consideração os resultados irrecusáveis da exe­ gese critica. 2. O magistério está a serviço da comunidade eclesial e de seu testemunho. Isso significa que ele não pode usar a confissão de fé como instrumento de poder. Ele deve, ao contrário, estar à escuta do sensus fidei, que se exprime de maneira variada em toda a Igreja. Em outras palavras, a aceitação pelo conjunto do Povo de Deus do ensinamento dos responsáveis hierárquicos é critério certo de verificação de sua credibilidade e de sua força de persuasão. 3. O magistério - especialmente quando se exprime mediante essa instância de regulação que é a Congregação da Fé - deve exprimir-se para toda a comunidade eclesial em nome da fé apostólica, e não em nome de uma teologia particular, mesmo que fosse a da Cúria Romana. 4. O magistério tem autoridade sobre a interpretação da fé proposta pelos teólogos, mas deve ter na maior consi­ deração a pesquisa teológica em seu esforço, para exprimir de maneira cientificamente responsável o sensus fidei dos crentes e para reinterpretar a confissão de fé em função das interrogações mais radicais de nosso tempo.12 lium, réflexlon théologique�, in foi populaire, foi savante, Cerf, Paris, 1976, pp. 9-40. 12 Devemos reconhecer que até 11.s vésperas do Vaticano II assisti­ mos não só a uma supervalorização do magistério, mas também a certa confusão entre a função dogmática e a função teológica na Igreja. Isso era inevitável, uma vez que o clima da Contra-Reforma,

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3. A comunidade dos teólogos

Já falei do trabalho teológico como reinterpretação cria­ tiva. Aqui desejaria apenas insistir no papel orgânico dos teólogos no processo complexo da regulação da fé. Distin­ guirei uma função pastoral dos teólogos e uma função cien­ tífica. 1. Os teólogos exercem função de mediação entre o ma­ gistério e os fiéis, e isso em dois sentidos. De um lado, eles dão expressão refletida à vitalidade evangélica da comunidade cristã, em solidariedade com a vida e as questões de todos os homens. Com isso eles podem ajudar o magistério em sua tarefa, sensibilizando-o para as necessidades reais dos fiéis e para os deslocamentos da cultura. Do outro lado, eles se esforçam por explicar e interpretar o ensinamento oficial da Igreja, para que ele chegue realmente, e não apenas ver­ balmente, à inteligência e ao coração dos fiéis. 2. O teólogo deve ter espaço de liberdade para se entre­ gar a pesquisa exigente, sem outra preliminar que não seja o amor à verdade e a certeza de que o mistério de Cristo supera todos os enunciados que a Igreja possa emitir sobre ele. Ele se sente mais particularmente responsável pelo fu. turo da fé cristã perante a instância crítica da razão humana. Isso significa que ele deve levar em conta não só o escânda­ lo dos fracos, mas também o escândalo dos fortes. Significa também que ele deve não só criticar as heresias progressistas, mas também denunciar as heresias conservadoras. Para isso, em nome da seriedade de sua pesquisa, ele não pode deixar de manifestar a distância que pode haver entre uma doutrina oficial e a confissão de fé cristã no que ela tem de mais autêntico. Concretamente, o teólogo exercerá discernimento críti­ co a respeito dos enunciados tradicionais da fé, com a con­ vicção de que não há nada irreversível em matéria de fora chamada teologia barroca, tendeu a edificar um sistema no qual o magistério se revestia praticamente de uma autoridade maior do que a d11 própria Escritura. Depois do Vaticano II, distinguem-se mais claramente a função de regulação do magistério e a função cien­ tifica da pesquisa teológica.

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mulação. Ele aprenderá, particularmente, a distinguir a ver­ dade de uma formulação dogmática, em resposta ao contex­ to histórico que lhe deu origem ( aqui, a certa altura, a autoridade responsável é a eclesial), da verdade da afirmação de fé enunciada nesta e por esta formulação ( aqui a autori­ dade responsável é a Palavra de Deus ) . É necessária uma sã criteriologia para que não se atribuam o mesmo valor e a mesma autoridade a todos os atos magisteriais. Nesse trabalho arriscado, mas responsável, o teólogo de­ ve poder caminhar longamente e tem direito ao erro. Mas deve poder beneficiar-se da regulação e da crítica construtiva da comunidade dos teólogos, antes de ser freado prematura­ mente em sua pesquisa pelas medidas disciplinares de uma congregação romana.

C. A questão dos critérios Tudo o que tentei dizer até agora tende a mostrar que não basta afirmar a autoridade jurídica de um magistério para que fique assegurada a regulação da fé na Igreja. De­ ve-se falar, preferivelmente, de auto-regulação de toda a Igre­ ja, enquanto corpo vivo, no qual cada um é chamado a to­ car a sua partitura. A regra de fé é o objeto mesmo da fé, o Mistério de Cristo enquanto capaz de suscitar figuras his­ tóricas sempre novas na ordem da confissão e na ordem da prática. Mas, em caso de conflito, em caso de pluralidade irre­ dutível de interpretações, qual será o critério para julgar o que é conforme à fé da Igreja e o que não é? Em relação a uma nova formulação da fé, não se pode contentar-se com apelar para a letra da Escritura. Não se pode também apelar para uma espécie de invariante quími­ camente pura, que seria o conteúdo mínimo da fé cristã na forma de enunciado imutável e irreformável através de to­ dos os séculos. Certamente o critério deverá ser sempre pro­ curado em função do que está no centro da confissão cristã, Jesus, o Cristo, a sua vida e a sua pregação. Mas isso ainda é muito geral.

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O verdadeiro critério será sempre não norma estática e exterior, mas critério dinâmico, a saber, uma relação pro­ porcional entre várias idéias-força que constituem a subs­ tlncia do cristianismo e que se referem a Cristo como ao seu centro. Finalmente a verificação, e, portanto, o julgamento, per­ tence a toda a comunidade eclesial como comunidade confes­ sante e como comunidade interpretante em sua escuta sem­ pre nova da Palavra de Deus. Há discernimento próprio da fé vivida em relação à fé confessada. A liberdade de inter­ pretação não é indefinida. � permitido acrescentar que ela é medida não por conteúdo proposicional intangível, a ser transmitido mecanicamente de século em século, mas pela permanência da relação religiosa do homem com Deus inaugu­ rada em Jesus, cuja identidade através de todos os tempos da Igreja é assegurada pelo Espírito Santo. Se, em caso de necessidade, o magistério tiver de intervir, ele o fará como servo da totalidade da fé da Igreja, da fé católica no sentido de sua universalidade no tempo e no espaço. Tratar-se-á sem­ pre de procurar o que é essencial à fé apostólica. Id quod requiritur et id quod sufficit: esse princípio de base do tra­ balho ecumênico na pesquisa de fórmula de união entre as diversas confissões cristãs deve ser aplicado também na co­ munidade eclesial católica, com a condição de não ser enten­ dido em sentido quantitativo. Falei, no começo, da fidelidade criativa do teólogo. A teologia é sempre tradição, no sentido que é precedida por uma origem que é dada, o evento Jesus Cristo, cujo sentido nenhum enunciado esgota. Mas ela é sempre, também, pro­ dução de linguagem inédita, porque essa origem ela só pode redizê-la historicamente e segundo uma interpretação criativa.

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SEGUNDA PARTE

O TESTEMUNHO INTERPRETATIVO DA FÉ

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A RESSURREIÇÃO DE CRISTO COMO TESTEMUNHO INTERPRETATIVO

O testemunho é, sem dúvida, a possibilidade mais ir­ redutível do discurso humano. Em si mesmo, ele é "processo de interpretação" como encontro criativo do evento e do sentido, da experiência e da linguagem. É no discurso do testemunho que aparece melhor o nexo inextricável entre a realidade e a linguagem do qual nos fala a nova hermenêu­ tica. Um acontecimento que não entra para tradição de lin­ guagem e, portanto, para sucessão de testemunhos torna-se logo acontecimento insignificante e até cessa de ser aconteci­ mento histórico. Segundo a palavra de Enrice Castelli, "um fato não interpretado não testemunha". O testemunho como possibilidade original do discurso humano testemunha a irredutibilidade dos acontecimentos históricos a fatos brutos e a irredutibilidade da palavra à linguagem como sistema. O testemunho é sempre evento de palavra: ele é o dizer de alguém a alguém. Uma reflexão sobre o testemunho nos obriga a superar o positivismo das palavras como também o positivismo dos fatos, porque o testemunho se situa justamente na articulação viva da palavra e do evento. E diante de um estruturalismo que quereria permanecer no " positivismo dos sinais", o testemunho, co­ mo possibilidade original do discurso humano, é o mais pr6prio para nos fazer pressentir o mistério da linguagem en­ quanto promoção do "dizer" por livre decisão. O testemunho remete sempre à liberdade da testemu­ nha, à sua intenção significante e, portanto, a um destinatá­ rio. Quando o homem não habita mais a linguagem como sinal do ser e de Deus, a palavra como testemunho, isto é,

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como interpelação da consciência humana, guarda mais do que nunca sua urgência. O testemunho contesta todos os cesarismos, a começar pelo "cesarismo da ciência". Os cére­ bros eletrônicos podem, melhor do que a mem6ria humana, fornecer informação sempre mais copiosa e sempre mais se­ gura. Mas não podem testemunhar. E quando, segundo al­ guns, devemos lamentar cada vez mais certa normalidade na ordem do saber e na ordem ética, poderia bem acontecer de o testemunho - especialmente quando ele é a expressão de comunidade humana - se tornar a fonte de nova objeti­ vidade, para lá do dilema tipicamente moderno de "objeti­ vidade alienante" ou de "subjetividade inconsistente". Essas poucas palavras sobre o testemunho como possibilidade original do discurso humano nos c0nvidam a refletir sobre a estrutura do testemunho enquanto ele depen­ de indissociavelmente da fé pessoal e do saber. O teste­ munho é inseparavelmente atestação hist6rica e "evento de palavra". Eu gostaria de mostrar isso a prop6sito do teste­ munho dado à ressurreição de Cristo. Trata-se, sem dúvida, de caso limite. Mas é também caso privilegiado para enten­ der a atividade interpretante em ação no testemunho. Fazer a hermenêutica do testemunho é fazer a interpretação da interpretação em ato. E é a propósito do testemunho dado aos eventos fundadores do cristianismo que vemos o melhor possível Os limites do positivismo histórico como hermenêuti­ ca psicologizante. Antes de estudar as relações da experiên­ cia e da linguagem como elementos constitutivos do teste­ munho da ressurreição, gostaria de colher a lição proporcio­ nada pelo estudo das origens do termo "testemunha".

1. NA ORIGEM DO TERMO "TESTEMUNHA"

A. "Testemunha" na linguagem corrente Não é inútil lembrar que o termo "testemunha" (már­ tys) foi usado inicialmente na linguagem judiciária. Teste106

munha num processo era ( como ainda é) aquele que podia fornecer uma informação de primeira mão sobre aconteci­ mentos nos quais estivera implicado ou aos quais assistira pessoalmente. Nesses casos o testemunho se funda numa ex­ periência imediata: digna de fé é somente a testemunha ocular e auricular. Mas encontramos no grego clássico outro uso do termo testemunha e de seus derivados.1 Ele não pertence mais à área jurídica, mas à esfera da ética. A testemunha não é mais aquele que testemunha acontecimentos reais apoiado numa experiência imediata, mas aquele que se faz porta-voz de uma opinião pessoal ou de verdades das quais está convenci­ do. Em outras palavras, o testemunho não é mais a expres­ são de saber experimental, mas de fé. Mas, a despeito dessa divergência de sentido ( testemu­ nho sobre acontecimentos - testemunho prestado a uma verdade), existe parentesco profundo que justifica essa passa­ gem da ordem objetiva do processo para a esfera da ética, a saber, a convicção íntima e irrecusável como fonte do teste­ munho e o engajamento da testemunha em sua palavra. Aquele que testemunha uma verdade não testemunha em no­ me da evidência constrangente de um fato empírico; ele fala em nome de uma certeza interior que, para ele, tem força de evidência. O testemunho é a expressão pública de uma palavra interior irrecusável. Por isso, aquele que testemunha uma verdade na ordem dos valores e do agir humano está pronto a sacrificar a liberdade de viver à liberdade de falar. A linguagem corrente sabe por instinto que não 'ie dá teste­ munho a verdades científicas. Testemunham-se somente ver­ dades ou valores pelos quais a testemunha está pronta a mor­ rer. Nisso está a diferença entre o informante e a testemunha. Os computadores podem suprir a linguagem da informação, nunca a palavra da testemunha. A originalidade do testemunho referente a julgamentos de valor nos sugere que ele não é redutível ao puro teste­ munho subietivo em oposição ao testemunho obietívo, que 1 Sobre o uso do tenno "testemunha" no grego não bíblico, veja o artigo de Strathmann in Kittel, Theol. Wort. IV, 478-84.

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se retere a acontecimentos ou situações verificáveis. Na ver­ dade, a liberdade da testemunha está sempre engajada, mas ela não testemunha até à morte para comunicar simples con­ vicção pessoal: seria obstinação ou fanatismo. Ela testemu­ nha para celebrar uma ordem objetiva de verdade. Começa­ mos a pressentir o estatuto epistemológico original do tes­ temunho, quando se trata do testemunho de um "crente". Existe estatuto misto, objetivamente insuficiente e subjeti­ vamente suficiente, que pode ser aproximado do estatuto misto dos postulados da razão prática de Kant. Na ordem do saber teórico, a fé-crença tem a fragilidade do provável. Mas, na ordem prática, a fé racional corresponde à ordem objetiva dos fins necessários do agir humano. Se a verdade honrada pelo testemunho nasce no domínio dos fins necessá­ rios na ordem do agir, compreende-se que o testemunho não seja redutível ao arbítrio de subjetividade. Ele é a expressão de normatividade, a das verdades práticas, que escapa à per­ cepção do saber puramente teórico. Dizemos que o campo do testemunho corresponde à questão de Kant: "Que me é permitido esperar? " Apesar da força de convicção comum aos dois tipos de testemunho, o testemunho compreendido como testemunho da fé-crença na ordem do valor tenderá cada vez mais, na linguagem corrente, a perder seu enraizamento no primeiro sentido do termo testemunha, aquele que ele tem na lingua­ gem jurídica. Ora justamente na linguagem do Novo Testa­ mento os dois sentidos do termo testemunha distinguidos até aqui estão associados de modo original: ao mesmo tempo, a testemunha ocular de acontecimentos num processo e a testemunha na ordem dos valores. Trata-se do testemunho de um "crente". Mas aí "crente" remete não à fé filosófica, mas à fé positiva fundada em revelação histórica. B. "Testemunha" na linguagem do Novo Testamento ! principalmente em são Lucas que o termo testemunha designa de modo indissociável aquele que foi testemunha de acontecimentos históricos da vida de Jesus, particularmente 108

de sua ressurreição, e aquele que testemunha esses mesmos acontecimentos na fé.2 Embora em Lucas a idéia de teste­ munha esteja ligada ao testemunho dado a acontecimentos históricos, ela é alargada: trata-se sempre de testemunho de crentes. A ressurreição é acontecimento real, mas não se si­ tua no mesmo plano que os outros acontecimentos da vida histórica de Jesus. Ela não pode ser atestada unicamente com base no testemunho de testemunhas oculares, devendo ser atingida na fé, e é então que ela se torna objeto de testemunho. É notável, na teologia de Lucas, que somente os Doze sejam testemunhas da ressurreição (At 1,22;2.32;4,33;10, 40), quando houve número maior de testemuhas oculares das aparições. O testemunho da ressurreição é limitado ao pequeno círculo dos Doze porque "conhecer" a ressurreição é conhecer na fé. Dar testemunho à ressurreição não consiste em transmitir informação neutra sobre acontecimento histó­ rico, mas em identificar, e, portanto, em interpretar na fé, esse acontecimento como salutar por excelência. E se a qua­ lidade de apóstolos é limitada ao grupo dos Doze é porque o testemunho da ressurreição é o objetivo do ministério apostólico. O testemunho apostólico exige da testemunha não só que ela seja uma testemunha direta digna de fé, mas também que dê sua adesão na fé ao Evangelho como men­ sagem de salvação. Esse testemunho apostólico foi a fonte de todos os outros testemunhos na Igreja. O conhecimento cristão da ressurreição será sempre conhecimento apostólico, "sobre o fundamento dos Apóstolos" ( Ef 2 ,2 O ) , isto é, uma participação no conhecimento dos Apóstolos. Em são João, o verbo "testemunhar" (martyrein) con­ serva seu sentido primitivo, o da linguagem judiciária, e, por isso, é necessário que a testemunha tenha visto e ouvido (Jo 1,34;3,11.32;19,35; l}o 1,2;4,14) o que testemunha.3 Mas esse primeiro sentido é constantemente ultrapassado 2 Cf. Strathmann, Mártys no Novo Testamento, op. cit., pp. 492-510. 3 Sobre são João, além do artigo de Strathrnann, consultamos E. Neuhiiuslcr, "Zeugnis", in Lex. f. theo/. u. Kirche, col. 1361-62, e N. Brox, "Témoignage-, in ErJcyc/opédie de la foi 4, Ed. du Cerf, Paris, 1967, pp. 285-94.

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numa concepção original do testemunho, na qual o " saber" da testemunha vem da fé no testemunho de Jesus e não de experiSncia sensível. Só Jesus é a testemunha fiel por exce­ lSncia ( Ap 1,5; 3, 14). Ele veio ao mundo para dar teste­ munho à verdade (Jo 18,37). E ele pode ser testemunha verdadeira porque ele é aquele que sabe ( 5 ,32). Ele teste­ munha o que viu e ouviu junto do Pai (3, 11.32). E se, daí para frente, os homens são capazes de transmitir o testemu­ nho recebido é porque, também eles, sabem na fé. Segundo a compreensão joanina, não existe testemunho sem testemunho ocular, mas, em suma, as testemunhas ocula• res testemunham "coisas do céu". Por isso o seu testemunho só pode ser recebido na fé, que não julga "conforme a carne" ( 8,15). Uma vez que o testemunho se refere a uma reve­ lação, a garantia da autenticidade do testemunho é somente a autoridade da testemunha: Jesus reivindica o testemunho do Pai, os disdpulos reivindicam o testemunho de Jesus. Assi.m, enquanto em Lucas a autenticidade do testemunho repousa numa garantia de ordem hist6rica - a das testemu­ nhas da ressurreição -, para João, o testemunho remete à própria testemunha e à sua veracidade. Devemos aceitar o testemunho relativo à revelação porque as testemunhas são dignas de fé. E somente a fé dá essa certeza. Sem dúvida, a teologia joanina do testemunho não rompe o nexo entre a fé e a história. Mas ela não procura apoiar a fé no mis­ tério do Verbo encarnado sobre o testemunho histórico pres­ tado ao evento da ressurreição. Não se preocupa ela, antes de tudo, com mostrar que a fé tem seu fundamento próprio na "revelação do Pai" e não na "carne e no sangue"? E é precisamente o quarto evangelho que privilegia a fé sem vi­ são cm relação à de Tomé, que quis ver para crer (Jo 20,29). No termo dessas breves observações sobre o sentido do termo testemunha, constatamos que o sentido de teste­ munha na linguagem jurídica, isto é, de quem atesta a exis­ tência de fato empírico, tende a se distanciar sempre mais - pelo menos na linguagem corrente - do sentido de tes­ temunha na linguagem ética ou religiosa. Ora, como o mostra o estudo do vocabulário do Novo Testamento, na linguagem cristã os dois sentidos do termo

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testemunha estão associados de maneira inextricável. Gosta­ ria agora de estudar o testemunho da ressurreição como a expressão de experiência única, na qual a atestação de um acontecimento é indissociável da reinterpretação crente. Não se trata de reeditar debate tipicamente apologético sobre as relações entre certeza histórica e fé sobrenatural no ato de fé. O que me interessa é refletir no testemunho como caso exemplar do encontro da realidade com a lingu agem. A res­ surreição de Cristo é evento real que se produziu e evento da linguagem da fé, "evento de palavra" (Wortgeschehen). Ela é, sem dúvida, irredutível a qualquer outro evento his­ tórico, mas nos ajuda a assinalar o que está em jogo na estrutura de todo testemunho quando ele se refere a aconte­ cimento histórico. Testemunhar é fazer a experiência ime­ diata de um evento reviver na palavra; mas, diferente de simples repetição, é sempre "reprodução" original do acon­ tecimento.

li. EXPERI�NCIA E LINGUAGEM NO TESTEMUNHO DA RESSURREIÇÃO

A. As linguagens da fé pascal O melhor meio para o discernimento dos elementos comprometidos na estrutura do testemunho prestado à res­ surreição de Cristo seria fazer rigorosa análise da linguagem do Novo Testamento no que se refere a Jesus ressuscitado. Este trabalho já foi feito por outros.4 Aqui queremos somen­ te reunir as conclusões que concernem mais diretamente ao nosso propósito. Se considerarmos todos os textos do Novo Testamento sobre a ressurreição, poderemos distinguir dois tipos de lin4 Apoiamo-nos aqui especialmente nos dois trabalhos exegéticos clássicos na língua francesa: X. Léon-Dufour, Résurrection de /ésus et message pascal, Seuil, Paris, 1971, e J. Delorme, "La résurrection de Jésus dans le langage du Nouveau Testament ª , in Le Langage de la foi dans l'Scriture et dans le monde actuel, Cerf, Paris, 1971, pp. 101-82.

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guagem: ao lado da linguagem do testemunho ou da confis­ são de fé, existem textos narrativos, textos históric0s e interpretações teológicas. Mas podemos ater-nos a dois gê­ neros literários fundamentais, o testemunho e a narração, por exemplo, o testemunho de Paulo na primeira carta aos Coríntios e as narrações evangélicas sobre a descoberta do túmulo vazio e sobre as aparições.5 Na primeira carta aos Coríntios, Paulo se faz porta-voz da tradição relativa às aparições: "Apareceu a Cefas, e de­ pois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez ( a maioria dos quais ainda vive, enquanto alguns já adormeceram). Posteriormente, apareceu a Tiago, e, depois, a todos os Apóstolos. Em último lugar, apareceu também a mim como a um abortivo... " ( 1 Cor 15 .5-8 ) . Mas essa narração objetiva das aparições faz parte de discurso que pertence ao gênero testemunho. As aparições são objeto do credo que ele transmite aos coríntios: cf., por exemplo, o v. 11: "Eis o que pregamos. Eis também o que acreditas­ tes", e os vv. 14-15: "E, se Cristo não ressuscitou... acon­ tece mesmo que somos falsas testemunhas de Deus." E, in­ versamente, as narrações evangélicas apessoais sobre as apari­ ções são expressão de experiência pessoal imediata e de rein­ terpretação crente dessa experiência. "Segundo a evolução dos discursos no Novo Testamento, a aparição não pôde por muito tempo ser objeto de narração autobiográfica. Muito cedo ela foi integrada na narração apessoal. " 6 Vemos, pois, que não devemos urgir a distinção entre "testemunhos" e "narrações" nos enunciados sobre a ressur­ reição de Cristo. O mais interessante para nós é, antes, cons­ tatar que na estrutura de todo discurso sobre a ressurreição de Jesus verifica-se uma relação do tipo da do pregador com o fiel. Em outras palavras, a testemunha está sempre im­ plicada no que diz e é sempre visado um destinatário, no qual ela quer despertar a fé. Isso é evidente nos discursos de Pedro e de Paulo referidos nos Atos. Mas poderíamos verificar o mesmo também no discurso narrativo do prólogo dos Atos ( At 1,1-3). 5 Cf. X. Léon-Dufour, op. cit., p. 258. 6 J. Delorme, op. cit., p. 157.

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Assim, a preocupação de chegar à historicidade da res­ surreição, a partir dos textos mais descritivos e mais nar­ rativos do Novo Testamento, não deve nunca fazer esquecer que esses textos são objeto de pregação dirigida aos judeus e aos gregos: são o evangelho proposto à fé. Para usarmos distinção familiar aos lingüistas, eles não são enunciados constativos, mas enunciados performativos. E quando se trata das breves confissões de fé primitivas: "Í verdade! o Senhor ressuscitou" ( Lc 24,34 ) , "elas mais anunciam do que enun­ ciam a fé" .7 "Elas não se apresentam como descritivas, não fornecem informações. Elas mediatizam uma adesão a Deus e a Jesus." 8 Com o auxílio das análises de Austin, J. De­ lorme estudou a força "ilocucionária" dos verbos gregos usa­ dos por são Paulo para proclamar a fé pascal. 9 Segue-se daí que se trata de um tipo de discurso no qual o interlocutor é convidado a tomar decisão pessoal. A linguagem não é ins­ trumento neutro de comunicação de informação. E mesmo quando usa o registro da narração, o discurso de Paulo sobre Cristo ressuscitado não se apresenta como enunciado consta­ tivo, mas se aproxima de enunciado performativo. Devemos acrescentar que o poder de Deus que se ma­ nifestou na ressurreição de Cristo é o mesmo que depois se manifestou na pregação apostólica: esta é "uma demons­ tração de espírito e poder" (lCor 2,4). Assim, o próprio testemunho é "evento de palavra" em continuidade com o evento da ressurreição na origem do testemunho. Os dois "eventos" são manifestações do poder de Deus. E é ainda o poder de Deus que está em ação na adesão do crente ao testemunho do Apóstolo. Trate-se do testemunho das pri­ meiras testemunhas, da pregação apostólica ou da confissão :' de fé dos crentes, estamos na presença de expressões dife­ rentes de experiência comum, na qual a atestação histórica, a fé e o poder do Espírito estão implicados de maneira in­ dissociável. A análise da linguagem da ressurreição é, pois, instrutiva quanto à natureza do testemunho dado a Cristo ressus7 Id, ibid., p. 164. 8 ld., ibid., p. 177. 9 Id., ib:d., pp. 159s.

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citado e quanto à natureza elo evento da r�ssurreição. Não se trata de verificação empíric& ou de relação de acontecimentos, como pode ser feito por uma testemunha num processo. Na origem do testemunho existe a experi!ncia de alguma coisa nova, de acontecimento exterior à testemunha, do qual ela não tem a iniciativa. O melhor meio para se manter fiel aos textos é falar de "visão objetiva", cf. At 13: "Ainda a eles ( os Apóstolos) Jesus se apresentou vivo depois de sua paixão, com muitas provas incontestáveis: durante quarenta dias apareceu-lhes e lhes falou do que concerne ao reino de Deus." Mas essa experiência originária está envolta em ex­ periência de fé que reconhece o Senhor ressuscitado no Je­ sus que se mostra vivo. Por isso o testemunho, enquanto constatação do evento, se transmuda imediatamente em "con­ fissão de fé", que tem por finalidade despertar a fé naquele ao qual é dirigida. O estado dos textos sugere que a dimensão empírica do evento que é testemunhado é somente um dos componen­ tes de evento que transcende a ordem dos eventos históricos comuns. 10 Em outras palavras, a ressurreição de Cristo é dife­ rente de fato bruto. Ela é evento interpretado que só pode ser atingido a partir da linguagem da fé pascal. O evento real que se produziu é sempre refratado num "evento de palavra". Gostaria agora de mostrar como a pluralidade das linguagens da fé pascal nos ajuda a precisar a relação ori­ ginal entre experiência histórica e linguagem no testemunho da ressurreição. B. Experiência histórica e linguagem A nova hermenêutica toma consciência da necessidade de vencer duas distâncias: a distância entre o passado do 10 Um bom resumo das pesquisas sobre a historicidade da res­ surreição e das diversas tomadas de posição a respeito dela encontra-se no artigo de A. Gesché, "La résurrection de Jésus", in Revue TMolo-· gique de Louvain 21, 1971, pp. 257-306, especialmente pp. 265-72; para balanço crítico da controvérsia atual sobre a historicidade da ressurreição de Cristo, pode-se consultar também o estudo recente de P. Grelot, ªLa résurrcction de Jésus et l'histoire. Historicité et histo­ rialité", ln Les Quatre Fleuves 15-16, 1982, pp. 145-79.

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texto e o presente de nossa cultura, e a distância entre o texto e os acontecimentos aos quais ele remete. Em outras palavras, a Escritura é menos dado inspirado diretamente por Deus do que testemunho, cujo sentido devemos decifrar, situando-o na tradição. Os protestantes foram, pois, levados a pôr em questão a autoridade "autônoma" da Escritura. Co­ mo observa Pannenberg, ... para Lutero, o sentido literal da Escritura ainda é idêntico ao seu conteúdo histórico. Para nós, ao contrário, os dois são separados: Não podemos mais fazer a imagem de Jesus e a sua história, apresentada pelos diferentes autores neotestamentários, equivaler à origem real dos eventos. "11 Não podemos, portanto, fazer os diversos testemunhos da fé pascal equivaler à origem real dos eventos. E, como vimos, esses testemunhos são menos da ordem do discurso do que do anúncio: eles são palavra falante e não palavra falada ou escrita. Eles testemunham eventos reais, as apari­ ções. Mas esses eventos não são relatados como fatos brutos: süo acontecimentos interpretados. Isso já é verdade da his­ tória em geral, na qual não posso dissociar a prática, a ativi­ dade interpretante, do objeto, os acontecimentos relatados. Escrever a história é sempre "produzir" de outro modo os mesmo acontecimentos.12 "A.história nunca se torna um con­ junto a partir de fatos brutos. Enquanto história de homens, ela está sempre misturada com a compreensão, com a espe­ rança e com a memória. A transformação da compreensão une os acontecimentos da história. História e compreensão não se deixam dissociar nos dados primitivos de uma história. nIJ 11 W. Pannenberg, •me Kriae des Sshriftprinzips", in Grundfragen

systematíscher Theologie, Gõttingen, 1967, p. 15.

12 Remetemos ao artigo de M. de Certeau, cujo titulo já é suges­ tivo: "Faire de l'Histoire. Problemes de méthodes et probl�mes de sens", in Rech. Se. Rei., 1970, 481-520. 13 W. Pannenberg, "Dogmatische Thesen zur Lehre von der Offen­ barung" in 01/enbarung ais Geschichte, Gõttíngen, 1965, p. 112. Para melhor desfazer a ilusão do •positivismo histórico", citarei com prazer estas linhas de J. Granier, parafraseando a denúncia do realismo positivista feita por Nietzsche: • ... O 'espfrito de moleza' espreita. E eis que ele nos interpela sob os trecos de um advogado do realismo positivista. Que nos aconselha ele? Que nos contentemos com os 'fatos', adotando atitude de estrita objetividade, a fim de que a realidade se mostre como �. sem nenhum acréscimo de· afetividade, de cobiça ou

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O nexo indissociável entre experrencia histórica e lin­ guagem da interpretação se torna ainda mais impressionante se considerarmos os testemunhos históricos de que dispomos sobre o alguma coisa que se passou durante os "cinqüenta dias" entre a morte de Cristo e o nascimento da Igreja. Dizemos há muito tempo que se é verdade que a ressurreição de Cristo é evento real novo em relação à cruz de Jesus, isso não impede que ela seja evento irredutível aos fatos brutos da história universal, aqueles que entram numa pes­ quisa histórica. Ela é, com efeito, o ato, inacessível a teste­ munhas diretas, pelo qual Deus glorificou Jesus de Nazaré, que fora colocado no sepulcro. Mas dizemos também que o evento transcendente da ressurreição comporta uma dimen­ são histórica, o vestígio concreto deixado por ele na história dos homens, a saber, as aparições, o sepulcro vazio, a pre­ gação pascal dos Apóstolos. Ora, chegando a esse ponto, a reflexão teológica sobre a ressurreição, preocupada unica­ mente com estabelecer a historicidade das aparições, muitas vezes faz como se fosse possível chegar aos "fatos históricos" fora da interpretação crente das primeiras testemunhas. As aparições são inseparavelmente eventos reais e "eventos de linguagem". Podemos falar das aparições como de sinais históricos da ressurreição. Mas elas são precisamente sinais e não provas demonstrativas. Non sunt probationes, sed signa: já dizia Tomás de Aquino. Enquanto têm dimensão empírica, as apa­ rições são objeto de experiência sensível. Mas enquanto são sinais de outra coisa, elas deixam inteira a liberdade da tesde interesse ... Conselho de mfope! Porque, retruca Nietzsche, é ter vista curta pensar alguém que apreende fatos brutos, a realidade como ela é, quando confia no dado imediato. A realidade imediata é uma ilu­ são; é porque o olho é muito fraco que alguém imagina ter diante de si fatos, quando para olhar agudo existem apenas interpretações! O percebido já é um mundo arranjado, simplificado, esquematizado, mundo cujo sentido exprime nossa própria atividade criativa" (J. Gra­ nier, "La pensée nietzschéenne du chaos" in Rev. de Méthaph. et de Mora/e 1971, p. 132). Sobre a ambigüidade da expressão "fato histó­ rico" e a necessidade de superar .a "positividade" da problemática antiga da história, aconselhamos vivamente a leitura de A. Vanel, "L'impact des méthodes historiques en théologie du XVle au XXe siêcle", in Le Déplacement de la théologie, Beauchesne, Paris, 1977, especialmente pp. 26s.

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ternunha. "Elas são um apelo à fé, e não às constatações empíricas. " 14 No que concerne à relação entre experiência histórica e linguagem da fé, a lição mais sugestiva dos recentes tra­ balhos exegéticos consiste em nos tornar atentos à diversi­ dade das linguagens que tentam exprimir o mistério da res­ surreição. Estamos diante de experiência única, e a plurali­ dade dos vocabulários trai o caráter indizível da experiência. Não há fé pascal sem testemunhas e, portanto, sem lin gua­ gem, Mas a fé pascal não é redutível a alguma de suas lin­ guagens. Dentre as diversas lin guagens do mistério pascal, foi a fórmula mais antiga, "Deus ressuscitou Jesus dentre os mor­ tos", que se impôs na linguagem tradicional da Igreja. Ape-, sar de suas imperfeições, a linguagem da ressurreição conti-\ nua privilegiada. É a "linguagem de referência", pela quali devem medir-se todas as interpretações, diz-nos X. Léon� Dufour . 15 Mas não devemos negligenciar as outras lingua­ gens do Novo Testamento, as da vida e da exaltação, que têm por função justamente corrigir e completar o vocabulário da ressurreição.

Escrevendo para gregos, hostis à idéia de ressurreição, Lucas e Paulo privilegiaram o vocabulário da vida. Eles procuram afirmar ao mesmo tempo a realidade e a novidade da vida do Ressuscitado ( falam de vida "eterna" de Cris­ to ou designam-no como "o primogênito dentre os mortos" ) . Mas, trate-se da linguagem da ressurreição ou da linguagem da vida, é sempre grande o perigo de manter-se numa re­ presentação imaginária do retomo de Cristo à vida anterior. Por isso o vocabulário da exaltação tem por função subli­ nhar o caráter escatológico da ressurreição de Cristo. Essa nova interpretação da realidade da ressurreição nos ajuda a compreender a distância entre o milagre da ressurreição co­ mo retorno de um cadáver à vida e o mistério da ressur­ reição como exaltação à direita de Deus e entrada na glória. 14 A. Jaubert, "Christ est resauscité", in Qui est Jisus-Christ? ("Recherches et Débats•), DDB, Paris, 1968, p. 121. 15 X. Léon-Dufour, op. cit., p. 277.

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Somos então convidado·s a ultrapassar todas as armadilhas da imaginação e a concebermos, para lá do plano deste mun­ do, outra vida e outro corpo. A fé pascal pode confessar, simplesmente: "Jesus é Senhor." Com isso ela diz de outro modo tudo o que está na fórmula primitiva: "Deus ressusci­ tou Jesus dentre os mortos." Essa pluralidade das expressões pascais nos confirma o que dizíamos sobre a estrutura do testemunho como experiên­ cia histórica e como evento de linguagem. Sem a experiência de fenômeno real não haveria testemunho da ressurreição. Mas essa experiência "histórica" está envolta em experiência de fé que toma expressões diferentes à medida que a expe­ riência ultrapassa as possibilidades de uma única linguagem. A liberdade hermenêutica das expressões da fé pascal testemunha a dimensão trans-hist6rica da ressurreição. Co­ m, a ressurreiç~o, enquanto evento escatológico, não é re­ dutívd ao seu componente histórico, do mesmo modo o testemunho da ressurreição é a passagem, para a palavra, de experiência na qual a fé interpretante é mais importante do que a constatação empírica. Assim, quando se diz que a nossa fé na ressurreição de Cristo repousa no testemunho histórico dos Apóstolos, testemunhas das aparições, ela se refere menos ao caráter de evento dos fatos narrados do que à pessoa mesma de Jesus ressuscitado, que se revela através· desses fatos. Conhecemos esses fatos somente pelo testemunho de homens que também eram crentes, as "teste­ munhas anteriormente designadas" ( At 10,41). Em outras palavras, a fé traz em si mesma seu testemunho, embora ela se apóie em testemunho que procede da pesquisa his­ tórica. O estudo das diversas linguagens da fé pascal nos per­ mitiu, pois, pôr em relevo, no testemunho, o nexo inextri­ cável entre experiência e interpretação. Mas é pouco dizer que não devemos dissociar experiência e interpretação. É pouco também dizer que o testemunho é reflexo de experiência úni­ ca, na qual o evento e o sentido se misturam. Devemos subli­ nhar mais o caráter inaugurador do testemunho em relação ao próprio evento, que, tornando-se "evento de palavra", é promovido a nova existência. E, à diferença do que pensaria

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um pos1t1v1smo hist6rico estreito, é quando deixamos a his­ tória empírica que encontramos, de fato, a história humana real como tradição. C. O testemunho como "evento de palavra" Conhecemos a palavra de Bultmann: "Jesus ressuscitou no querigma." Se essa f6rmula implica a negação da historici­ dade da ressurreição, ela é inaceitável. Mas ela assume sen­ tido muito profundo se procura fazer-nos compreender que a ressurreição de Jesus entrou na história não s6 pelas apa­ rições como fatos empíricos, mas também no e através do testemunho da fé dos Ap6stolos. No próprio querigma existe uma realização da ressurreição. Todo evento histórico tem com que suscita'r uma palavra, um testemunho... E é quando o evento real se torna "evento de palavra" que ele pertence verdadeiramente à hist6ria humana, que nunca terminou de atualizar seu sentido. Isso é mais verdadeiro do evento Cristo do que de qual­ quer outro. "A historicidade de um acontecimento depende menos de sua densidade 'fatual', de sua materialidade bruta, do que de sua aptidão para entrar num discurso no qual uma comunidade humana poderá reconhecer ( mas também rever, refazer) sua história. "16 Um fato ou uma experiência que não suscita testemunho é sem interesse ou mesmo ine­ xistente. A história s6 recolhe acontecimentos nomeados, in­ terpretados, ressituados por uma palavra numa tradição, isto é, numa rede de significações. "A palavra pela qual faço chegar à linguagem uma situação dada é, de fato, a inaugu­ ração humana do acontecimento e, nesse sentido, também a sua constituição, sejam quais forem a sua consistência e a sua realidade. "17 Testemunhar é, pois, fazer vir à palavra um aconteci­ mento que se produziu realmente, mas não é relatar pura e 16 J. Molngt, •certitude historique et foi" in Rech. Se. Rei., 1970, p. 572. 17 A. Guché, art. cit., p. 287.

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simplesmente o acontecimento: é promovê-lo a existência nova. Com efeito, não podemos dissociar o acontecimento do sentido novo que ele assume no testemunho. O teste­ munho é, por excelência, "acontecimento de palavra"; por isso eu disse no começo que o testemunho como possibili­ dade do discurso manifesta o melhor possfvel a irredutibi­ lidade da palavra à linguagem corno sistema. Como mostra Paul Ricoeur em seu estudo: Evenement et sens, é na lin­ güística da palavra que verificamos a articulação viva do evento e do sentido.18 O testemunho depende de lingüística do discurso ou da mensagem, e não de lingüística da língua ou do código. Mas é a escritura que nos manifesta claramente o que se passa já no testemunho como palavra imediata sobre o acontecimento. Existe superação do acontecimento enquanto fugidio no seu sentido enquanto durável. Tornando-se escri­ tura, o primeiro testemunho dos Apóstolos pertence de ma­ neira durável à história humana e abre possibilidades de atualização sempre nova na ordem do sentido como na or­ dem do agir. "A carreira do texto, da{ para frente, escapa ao horizonte finito da vivência de seu autor. O que o texto diz importa agora mais do que o que o autor quis dizer, e a exegese aplica seus processos no perímetro de sentido que rompeu suas amarras com a psicologia de seu autor.19 Esse desligamento do sentido em relação ao evento fa. tual se verifica já no testemunho como proclamação do evento. No caso da ressurreição, isso significa que s6 atin­ gimos a ressurreição de Cristo nos testemunhos sobre ela, nas confissões de fé. Em outras palavras, n6s a atingimos não em suas condições espácio-temporais, mas enquanto ela se tornou "evento de linguagem". Um dos exemplos do ca­ ráter instaurador da linguagem pascal é a sua intenção es­ catológica: os Apóstolos identificaram Cristo ressuscitado co­ mo salvador e juiz escatológico.1'1 O testemunho humano é 18 Cf. P. Ricoeur, "Evénement et sens", in Révélation et Histoire (Encontro Castelli, 5-11 de janeiro de 1971), Aubier, Paris, 1971, pp. 15-34. 19 P. Ricoeur, op. cit., p. 19. 20 Cf. A. Gesché, art. cit., pp. 302-3. A. Gesché mostra com muito acerto, na terceira parte de seu artigo, que a e,scatologia nos

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diferente da fotografia ou da estenografia do que se passou. Fazendo o acontecimento vir à palavra, ele o recria e lhe dá existência nova. Daí por diante o evento, enquanto procla­ mado, terá vida própria, sem que seja possível dissociar o evento em sua faticidade de sua compreensão pela teste­ munha. O que acabamos de dizer já vale para qualquer acon­ tecimento promovido à dignidade de "fato histórico" no conjunto de narração histórica. Está certo dizer que o his­ toriador "produz" os fatos. Mas no caso da ressurreição, o evento do qual é dado testemunho não é promovido a nova existência pelo simples fato de a testemunha ter liberdade interpretativa. A sua confissão e, portanto, a sua interpre­ tação são obra da fé e do Espírito de Deus. Como dissemos antes, o mesmo poder de Deus que agiu na ressurreição de Cristo enquanto evento histórico agiu também no testemu­ nho prestado ao evento, isto é, na ressurreição confessada, na ressurreição tornada "evento de palavra". Não basta, por isso, dizer que não atingimos a ressurreição fora dos testemunhos dos crentes sobre ela. Devemos dizer que o lugar próprio da ressurreição é menos a história cm seus dados empíricos do que a linguagem da fé pascal enquanto linguagem da primeira comunidade cristã. Somente aqueles que não compreendem nada do forte entrelaçamento da realidade com a linguagem é que podem concluir que a ressurreição de Cristo não passa de produto da fé das primeiras testemunhas. f:, antes, porque a ressur- .· reição escapa à faticidade de prodígio físico, cujas testemu­ nhas nos teriam transmitido reportagem escrupulosa, e por­ que ela se torna o "dizer" de toda uma comunidade crente que ela entra para a verdadeira historicidade. Os testemu­ nhos da ressurreição remetem para o evento histórico que os suscitou. Mas eles reenviam também, de maneira indis­ sociável, à tradição de uma comunidade confessante, da qual eles são o vestígio histórico. E é por pertencermos à mesma tradição de fé que podemos chegar à pessoa do Ressuscitado através desses diversos testemunhos. fornece o verdadeiro lugar de inteligibilidade teológica do mistério da ressurreição.

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Para terminar, gostaria agora de situar brevemente o testemunho dado à ressurreição pelos crentes de hoje, do ponto de vista da relação entre experiência e linguagem.

III. O TESTEMUNHO DOS CRENTES HOJE

O testemunho é sempre a interpretação de uma expe­ riência particular. No testemunho apostólico da ressurreição constatamos a interação constante entre uma experiência inesperada, o fato das aparições, e uma fé despertada pelas palavras de Jesus e pelo conhecimento da Escritura e de suas promessas escatológicas. E todo o sentido de nossa pes­ quisa foi o de mostrar que não é fácil dissociar, no teste­ munho, experiência e linguagem. A experiência é identifi­ cada numa linguagem que já é uma interpretação do "que se passou". Por isso o testemunho é diferente da pura tra­ dução verbal da experiência viva. Ele recria de certa forma a experiência da qual alguém quer ser testemunha. Qual é hoje nosso testemunho como encontro original de uma ex­ periência e de uma linguagem? Veremos que devemos subli­ nhar tanto a novidade como a continuidade de nossa situação em relação aos Apóstolos. 1. O- testemunho apostólico é testemunho na fé, mas é também testemunho de primeira mão, sem intermediário. Os Apóstolos são as testemunhas diretas do que Jesus disse ou fez desde seu batismo por João Batista até sua ascensão. Eles são particularmente as testemunhas oculares de sua morte e de sua ressurreição (At 1,22). E é porque eles viram que eles não podem não falar (At 4,20). Esse conhe­ cimento "segundo a carne" é privilégio exclusivo dos Após­ tolos, e esse seu privilégio, esse seu carisma apostólico não é transmissível. Desse ponto de vista, os crentes que vierem depois deles serão sempre testemunhas por procuração, por­ que não viram o que os Apóstolos viram. Os fiéis sabem simplesmente que os Apóstolos o viram, e o seu próprio testemunho só pode ser a transmissão do que receberam. 122

Por isso, eles, por sua vez, s6 podem ser chamados teste­ munhas à estrita medida que a sua palavra estiver em con­ tinuidade viva com o testemunho dessas primeiras e únicas testemunhas que são os Apóstolos. 2. Dito isso, não devemos esquecer agora aquilo de que tratava toda a nossa pesquisa, a saber, que o testemunho dos Apóstolos não é relato de eventos, mas o "evento de palavra" que resulta inseparavelmente da experiência de fe­ nômeno real e de interpretação crente. Eles não são teste­ munhas neutras, mas crentes. Do ponto de vista da relação entre a fé no mistério de Cristo glorificado e os sinais his­ tóricos que abonam esta fé, a fé dos Apóstolos não é diferen­ te da nossa. Eles foram testemunhas oculares das aparições, mas o reconhecimento de Cristo como Senhor da glória é obra do Espírito. Em outras palavras, o seu ver não é cons­ titutivo de sua fé. Também para nós, o nosso saber fun­ dado no testemunho histórico dos que viram, os Apóstolos, não é constitutivo de nossa fé no Ressuscitado. Assim, trate-se da fé dos Apóstolos ou da nossa, ela traz em si mesma seu testemunho, apesar de ela se apoiar em sinais históricos, o fato das aparições, no caso dos Após­ tolos, a realidade histórica de seu testemunho, no nosso caso. Como dissemos acima, o mesmo poder de Deus que se ma­ nifestou na ressurreição de Cristo age também na pregação dos Apóstolos e no testemunho dos crentes hoje. Em vir­ tude do testemunho interior do Espírito, cada crente é es­ tabelecido na contemporaneidade com o que sucedeu nos "cinqüenta dias" dos quais fala a Escritura. A fé dos Após­ tolos não se refere à faticidade dos acontecimentos em sua dimensão fenomenal, mas aos acontecimentos como sinais da salvação escatológica sobrevinda em Cristo. Do mesmo modo, a nossa fé não se refere à materialidade das narra­ ções evangélicas como processo verbal do "que se passou", mas ao testemunho apostólico como boa nova da salvação advinda. O crente que se apóia no testemunho apostólico decidiu-se pelo testemunho a Jesus e se toma também tes­ temunha. Apesar de não ter conhecido Jesus "segundo a carne", devemos dizer que ele é testemunha "ocular" no

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sentido de são João. Com efeito, ele testemunha o que para ele se tornou evidência.� 1 Na origem do testemunho dado hoje à ressurreição, existe, como no caso dos Apóstolos, o nexo indissociável de experiência pessoal e de interpretação na fé. Existe encontro pessoal com Jesus de Nazaré através dos testemunhos his­ tóricos do Evangelho, através dos sinais eclesiais de sua presença, através dos sinais de seu amor. Então, à luz da fé e da tradição viva da Igreja, ele é reconhecido e identifi­ cado como o Ressuscitado. E esse reconhecimento leva a proclamar a boa nova da salvação, isto é, a presença sempre atual do Ressuscitado: "Acreditei, por isto falei" ( 2Cor 4, 13). O testemunho dos crentes na Igreja se apóia ao mes­ mo tempo nos eventos fundadores da comunidade cristã e nos testemunhos apostólicos sobre esses acontecimentos. A leitura crente desses acontecimentos hoje se inscreve na pró­ pria tradição que foi constitutiva dos testemunhos. 3. O testemunho do crente hoje não é, pois, a simples expressão de experiência pessoal. Ele se inscreve numa tra­ dição viva de interpretação, a da Igreja como comunidade confessante através dos séculos. Não existe, contudo, teste­ munho, no sentido rigoroso, sem novo ato de interpretação e, pois, sem certa inventividade de linguagem. Já constata­ mos essa pesquisa de uma nova linguagem, que testemunha uma experiência muito rica no plano dos testemunhos apos­ tólicos. São Paulo, por exemplo, ao responder às objeções dos coríntios, não se contentou com repetir as fórmulas pri­ mitivas que recebera, mas falou do corpo de Cristo ressus­ citado como de um "corpo celeste" que vem do alto ( lCor 15,35-38). Não posso dar testemunho sem a mediação de minha existência e, portanto, sem a vontade de tornar meu o conteúdo da fé pascal em minha linguagem. É esse o único 21 Citaremos estas linhas características de H. Urs von Balthasar: • Que mesmo na presença das aparições do Ressuscitado se tenha sempre falado de fé é a prova clara de que a fé na ressurreição, a fé dos que não viram corporalmente o �essuscitado, mas crêem em virtude do testemunho apostólico, não consiste em ter por verdadeira simples verossimilhança, mas consiste no dom de amor da própria pessoa e das próprias evidências à Pessoa divina, que encerra e tem em si mesma o centro de gravidade de toda evidência" (H. Urs von Balthasar, La Claire et la Croix, Aubier, Paris, 1965, p. 170).

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meio de retraduzir a mensagem pascal numa linguagem que possa despertar nossos contemporâneos para a fé. A lingua­ gem da ressurreição será sempre "a linguagem de referência", porque é a da Igreja há séculos. Mas, se ela precisou ser completada, reinterpretada por outras linguagens desde os tempos apostólicos, ela o deve ser ainda mais hoje, quando é necessário testemunhar Cristo ressuscitado num mundo pós­ cristão, estranho à linguagem bíblica. Não é possível dizer aqui como traduzir o testemunho da fé pascal em linguagem contemporânea, sem trair o sen­ tido que ela sempre teve na tradição da Igreja. Lembrarei apenas que o testemunho dado à ressurreição do Senhor nun­ ca é redutível à experiência que um crente tem dela. O tes­ temunho só é vivo se exprime o modo pelo qual verifiquei em minha própria existência a presença e a energia de Cristó ressuscitado. Mas o testemunho dado à ressurreição deve ser também expressão da fé e da unidade da Igreja. A releitura e a reinterpretação das fórmulas da fé pascal se realizam sempre dentro de uma comunidade de interpretação em con­ tinuidade com a primeira comunidade de fé, da qual jorra­ ram os testemunhos apostólicos. No termo dessa pesquisa sobre o testemunho da ressur­ reição como experiência e como linguagem, podemos dizer pelo menos que a única linguagem ao mesmo tempo ade­ quada à experiência das primeiras testemunhas e conforme ao que o homem de hoje espera é a. linguagem da esperança. E, então, testemunhar a atualidade do mistério pascal não é só repetir a antiga confissão de fé dos primeiros cristãos, "Cristo ressuscitou! ", mas também provocar na vida pessoal, na sociedade dos homens e na história antecipações signifi­ cativas do futuro prometido em Jesus. Ao começar eu disse que o testemunho dado aos valores da existência humana responde à questão: "Que me é per­ mitido esperar?" Isso significa que todo testemunho é inter­ pretação prática de futuro entrevisto. E então parece que to­ do testemunho humano aponta obscuramente para a verda­ de do testemunho pascal. No deserto das linguagens fecha­ das e sem palavras, a função do testemunho humano consiste em manter a história aberta para alguma coisa sempre nova e imprevisfvel. 125

6 A HERMENÊUTICA ATÉIA DO TÍTULO FILHO DO HOMEM EM ERNST BLOCH

L'Essence du christianisme de Feuerbach já foi apontada muitas vezes como exemplo de "hermenêutica atéia" do cris­ tianismo. Em contraste com os ensaios de hermenêutica teo­ lógica apresentados na presente obra, gostaria de me deter num exemplo particularmente significativo de hermenêutica atéia moderna. Para isso escolho a interpretação dada a "Fi­ lho do Homem" por Ernst Bloch em Atheismus im Chris­

tentum.

A exegese de "Filho do Homem" está no capítulo V de Atheismus im Christentutn, que tem por título: Aut Caesar aut Christus, 1 e que continua o capítulo IV, consa­ grado ao êxodo na representação de Javé, isto é, à "des­ teocratização" (Enttheocratisierung). Bloch se alonga nesse capítulo, mostrando que o título "Filho do Homem", isto é, a união do homem com Deus, designa o ponto de chegada do tema messiânico do êxodo, que percorre toda a Bíblia. O êxodo dos judeus se torna o êxodo do próprio Deus, e a figura do Filho do Homem conduz esse êxodo, isto é, essa saída de Deus para fora de si mesmo, para seu termo. Antes de abordar a exegese de Ernst Bloch nesse capi­ tulo V, desejaria tentar resumir o que caracteriza a origina­ lidade de seu programa hermenêurico. 1. Trata-se de uma hermenêutica atéia a serviço de secularização radical. Mas, à diferença de Feuerbach, não se 1 E. Bloch, L'Athéisme dans le christianisme, trad. franc., Galli­ mard, Paris, 1978. Todas as citações sem outra referência remetem a esta edição.

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trata de restituir ao homem o que é atribuído ilusoriamente a Deus, mas de conservar Deus como utopia concreta do movimento de autotranscendência do homem. Não se trata, portanto, de transposição antropológica da teologia. O ho­ mem não toma o lugar de Deus. Ele é um possível real por vir. 2. Trata-se de hermenêutica subversiva. Devemos en­ tender com isso que, em relação à dialética "religião-políti­ ca ", Bloch não se entrega a uma redução trivial do religioso ao político, mas a uma crítica da religião pela própria reli­ gião. Í uma hermenêutica que subverte a religião à medida que a seculariza. Mas, de fato, essa secularização tem por fim mostrar a dimensão irredutível da religião. Com efei­ to, longe de liqüidar a religião, trata-se de manter o po­ der prático da religião como dialética da esperança. Nesse sentido é mais correto falar de crítica do político-religioso pela religião do que de redução do religioso ao político. Em todo caso, para Bloch, parece que a religião constitui um irredutível que não é, como para Hegel, ultrapassável no conceito. ; 3. Pode-se definir a hermenêutica de Bloch como pro­ grama mais de desteocratização do que de demitização. Co­ mo toda hermenêutica, também a de Bloch procura o claro e o manifesto sob o oculto e o obscuro. Mas a opacidade da .!fscritura não vem somente de seu revestimento mitológico e de nossa distância histórica. Ela é também espelho da opacidade da condição presente do homem. Mas ela pro­ cede principalmente do processo de teocratização inerente à própria Escritura até à vinda de Cristo. Bloch se aplica, en­ tão, a uma releitura do texto bíblico à luz de um êxodo desteocratizado e da promessa de nova terra, inaugurada por Cristo. Ele abre caminho através da opacidade do texto com o desígnio de reconstituir a revolta que habita o texto, re­ volta que foi ocultada não só pelas releituras eclesiais do Evangelho, mas também no processo de colocar por escrito a mensagem de Cristo. Assim, é legítimo falar de uso subversivo da herme­ nêutica tradicional, e isso em dois sentidos. De um lado, 127

em lugar de procurar além do sentido literal um sentido divino, ele procura um sentido secular, a saber, uma reali­ dade humana: o homem como possibilidade real. Nisso ele é fiel à utopia marxista do humano, que se exprime pela naturalização do homem e pela humanização da natureza.2 Do outro lado, ele procura reconstituir o movimento de sub­ versão, interno à Escritura e constantemente encoberto ou edulcorado na própria Escritura pela lógica teocrática da do­ minação. Compreende-se melhor agora o sentido da afirmação paradoxal de Bloch, que se tornou célebre: "Somente um verdadeiro cristão é que pode ser um bom ateu; somente um verdadeiro ateu é que pode ser um bom cristão." Em outras palavras, somente um bom cristão é que pode ser um bom ateu porque é o cristão que conduz a seu termo o movimento de desteocratização; e somente um verdadeiro ateu é que pode ser um bom cristão porque é o ateu que trabalha para o advento do reino já instaurado em Cristo, a saber, o reino do homem. A exegese do título "Filho do Homem" é difícil de ser resumida. � um texto cheio de idas e vindas e digressões, e o caráter ofegante de sua escrita é um eco do ribombo do texto que ele comenta. Mesmo com o risco de simplificar, creio possível reduzir a exegese do título "Filho do Homem" em Bloch a três temas, embora eles sejam inseparáveis.

I. A INVESTIDURA DE JAVt POR JESUS OU O tXODO DE DEUS

Parece que a exegese blochiana dos textos do Novo Tes­ tamento é comandada por duas idéias. De um lado, Jesus, como Filho do Homem, é o sinal da vinda de Deus ao ho­ mem . .É o tema do êxodo, da utopia religiosa por excelência, da abertura para o desconhecido. 2 Veja, a este respeito, o estudo de G. Raulet, "Utopie-Discours pratique", que apresenta a obra coletiva, publicada sob o título: Utopie, marxisme selon Ernst Bloch, Payot, Paris, 1976, pp. 9-53.

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Do outro lado, Jesus é o sinal do inacabamento do homem. Em outras palavras, o Deus do homem atual é o homo absconditus do futuro ( ontologia histórica). Não se trata de chegar a uma humanização de Deus, que não pas­ saria de secularização insípida à la Feuerbach, ou de pro­ meteísmo. Trata-se de transformar dialeticamente o cristia­ nismo como religião cultua! em religião utópica, na qual Deus será a realidade do homem oculto, a qual só pode ser realizada e manifestada pela transformação da realidade pre­ sente. Com isso, Bloch exegeta quer simplesmente ser fiel à dimensão escatológica do Novo Testamento. O tema da investidura de Javé por Jesus volta cons­ tantemente. A vinda de Jesus coincide com o fim do teocra­ tismo político-religioso de Israel. Foi essa subversão do teo­ cratismo que levou Jesus à morte. Mas, de fato, a vinda do Filho do Homem estava na linha do messianismo esca­ tológico judaico. O êxodo dos judeus se torna o êxodo de Deus mesmo. Jesus foi até o fim na religião do Deus do êxodo: "Esse Messias filho do homem não se fazia tam­ bém passar por alguém que lutasse para manter ou restabe­ lecer, com zelo todo romântico, o reino de Davi como ele era, com seu Deus-Senhor. Não, ele se afirmava completa­ mente êxodo, um novo êxodo, escatológico e revolucionário em toda a sua extensão: vinda de Deus ao homem" ( p. 171). Contrariamente à opinião mais difundida sobre o mes­ sianismo transcendente de Jesus, Bloch pensa que Jesus ti­ nha plena consciência de ser o Messias esperado pelos ju­ deus, isto é, "um Messias que ralizaria a promessa de sal­ vação política e religiosa, pondo fim à miséria concreta, abrin­ do uma era de felicidade concreta" ( p. 164 ) . Essa insis­ tência no realismo políúco do messianismo de Jesus é o único meio de ser fiel à sua dimensão escatológica. Foram os teóloogs liberais e anti-semitas, como Renan, Wellhausen e Harnack, que traíram a escatologia do Novo Testamento, pondo o acento na espera de um reino interior e puramente ético. De fato, "desde sua origem, a autenticidade do Evan­ gelho implicava seu sentido real e revolucionário" ( p. 165 ) . Em apoio de sua tese, Bloch interpreta de maneira mui­ to pessoal algumas passagens clássicas do Novo Testamento. 129

Por exemplo, na narração das tentações, no capítulo IV, pa­ rece-lhe claro que Jesus teria tido o sentimento de sucumbir ao demônio, dizendo-se "Filho de Deus". Do mesmo modo, não se compreenderia a necessidade do segredo messiânico em são Marcos, se Jesus não quisesse ser o Messias espera­ do pelos judeus. Ele seria designado somente como um ho­ mem bom, um pastor e, no máximo, como sucessor dos an­ tigos profetas. O grito de Jesus em sua agonia: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" não é grito de deses­ pero, devido ao sentimento de ser abandonado por Deus. J:! a expressão da angústia de quem vê escapar-lhe a reali­ zação concreta de sua obra. Foi o único momento em que lhe faltou a fé em relação à segurança que ele tinha de ser aquele que abriria o caminho para Sião, já bem próxima (d.p.163). E quando Jesus diz que seu jugo é suave e seu peso leve, não se trata do jugo da Cruz, mas do anúncio da vinda do Messias-Rei entronizado. Finalmente, a boa nova do Evangelho é o anúncio de felicidade social e política que nada mais poderá abafar (d. p. 164 ). O texto seguinte re­ sume com muita precisão a prática hermenêutica de Bloch a serviço da secularização: "Subjetivamente, Jesus se consi­ derava, pois, sem reserva, como o Messias do qual falava a tradição; objetivamente, ele era quem menos pensava em se refugiar numa interioridade que não se manifestasse, em lan­ çar raízes na espera de um reino dos céus transcendente; ao contrário, a salvação era Canaã. Era o cumprimento do que fora profetizado aos antepassados, mas sem a sua fragilidade, a sua trivialidade, os seus fracassos, um Canaã realizado em sua quintessência ... Já havia muita interioridade na espera do Messias, e céu mais que suficiente na fé no além: a terra é que precisava do Salvador e do Evangelho" ( p. 164). Como veremos adiante, o título "Filho do Homem", que é criação de Jesus e não de seus discípulos, sublinha ao mesmo tempo o realismo político do messianismo de Jesus e o fim do teocratismo. Com efeito, a tese principal de Bloch, nesse capítulo, é a de que o título "Filho do Homem" é escatológico, ao passo que o título ulterior, Kyrios Christos, depende do culto. 130

Atribuindo a si o título "Filho do Homem", Jesus pro­ nunciou o nome de êxodo desconhecido dos judeus até o presente e que atingia todas as representações de Deus usa­ das pelos que dispunham do poder religioso. Ele pôs termo à falsa hip6stase de um Deus criador. "Quanto ao evange­ lho segundo são João, se ele faz o escatológico retroceder para trás do protol6gico e da luz do começo, que é a do seu prólogo, é unicamente para fazer desse logos o alfa de mundo diferente do da criação já existente e para fazê-lo surgir com Cristo, no fim, como prólogo de novo mundo. O verdadeiro criador é Cristo Logos, gerando nova cria­ tura ... " ( cf. p. 202). Para Bloch, o título misterioso "Filho do Homem" é a chave da desteocratização: ele significa a reinvestidura, num humanum ainda enigmático, de todos os tesouros que foram confiscados pela hip6stase de um Pai celeste. A fór­ mula bíblica: Deus homo factus est é a última expressão do êxodo bíblico, que é "êxodo fora de Javé. Nem se deve mais falar em antiteocratismo, mas em ateocratismo ou em 'cristocentrismo sem resto' " ( cf. § 31 ) . E ele vê no ca­ pítulo 17 de são João a chave da homoousia, isto é, não da divindade de Cristo, mas de sua igualdade com Deus. O an­ tigo "dia de Javé", aquele que devia vir no fim do tem­ pos, se apresenta no quarto evangelho como parusia de Cristo, do Filho do Homem existindo sem Javé, A-Kyrios e A-Theos ao mesmo tempo. Bloch pensa que, assim, funda­ mentou exegeticamente o ateísmo radical que professava no Le principe espérance: "A verdade do ideal de Deus é a uto­ pia do reino, e esta pressupõe justamente que nenhum Deus more nos céus, já que, afinal, nenhum lá se encontra e ja­ mais se encontrou" (Das Prin:âp Hoffnung, 1959, p. 1514, citado na p. 204). Para apoiar sua tese, Bloch se empenha numa releitura muito particular do processo de Jesus. Se os sumos sacerdo­ tes condenaram Jesus, não foi porque tivesse ele blasfema­ do, pretendendo ser o Messias, isto é, o Filho de Deus, mas porque ele ameaçava a teocracia clerical e a religião institu­ cional, estabelecida desde Esdras e Neemias. Jesus era consi131

derado perigoso porque seu reino, o do Filho do Homem, era muito diferente do reino teocrático de Javé. Jesus foi crucificado porque era visto como subversivo precisamente por ser "a figura exemplar de oütro mundo, sem opressão e sem Deus Senhor" (p. 170).

II. O ADVENTO DO REINO DE DEUS COMO REINO TERRESTRE

A intenção de Bloch é reagir contra interpretação do cristianismo entendido como o ponto de saída de evasão consoladora, para interpretá-lo como perspectiva aberta para o inacabado, para o novo. A luz de sua exegese do título misterioso de "Filho do Homem", pode-se resumir sua interpretação dos textos do Novo Testamento concernentes ao reino como se segue: 1. O que é primeiro no Evangelho não é o amor, mas o anúncio do reino. 2. O reino de Deus não é um reino interior ou um reino no além, mas o advento de um reino de liberdade sobre a terra. 3. O reino de Deus se realiza sobre a terra, mas, como reino escatológico, ele ainda não foi entregue, porque se realiza somente em estado de germe. A. O primordial

é

o Reino e não o amor

Bloch insiste na imediaticidade quiliástica da referência ao reino dos céus. Deve-se interpretar o alcance ético do reino a partir de sua espera escatológica, e não o inverso. As pa­ lavras de Jesus são carregadas de espera apocalíptica, e foi o cristianismo posterior, em parte sob a influência de Paulo, que esvaziou a mensagem evangélica de sua palavra subver­ siva. A palavra de Marcos: "Cumpriu-se o tempo e o reino

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de Deus está próximo" significa que Jesus nunca deu à sua missão um sentido edulcorado e exterior ao mundo. A pregação de Jesus é mais dura do que a de todos os profetas que o precederam. Jesus vomita os tfüios. E Bloch cita com satisfação a palavra de Jesus em Mateus 10, 3 4: "Não vim trazer a paz, mas a espada", ou a de João 12,48: "Quem me rejeita e não acolhe minhas palavras tem seu juiz: a palavra que proferi é que o julgará no último dia." Mas como interpretar, então, as palavras de Jesus no sermão da montanha sobre a não-violência e o amor aos inimigos? Bloch as interpreta sempre à luz da iminência do reino, que vem, e isso num contexto apocalíptico. Conten­ to-me com citar um texto bastante claro a esse respeito. "A velha, muito velha terra é tomada pelo kairos dessa urgência, e é esse, por outro lado, o motivo pelo qual parece que o reino, já tão próximo, não requer mais a menor vio­ lência. O Jesus do sermão da montanha está totalmente nes­ se espírito, uma vez que, atrás de cada uma das bem-aven­ turanças em defesa da não-violência, ele deixa entrever logo (M t 5,3-1 O ) a iminência, daí para frente, do reino dos céus. Isso significa que não se trata ou não se trata somente de recompensa popular, mas que o 'porquê' que precede e fundamenta o 'deles é o reino dos céus' significa mais pro­ fundamente que toda violência, toda tentativa de expulsar os vendilhões de um templo, que, de qualquer modo, ruirá, é declarada supérflua num tempo cujo tempo enfim chegou. É verdade que a revolução violenta, que eleva os humildes e humilha os poderosos, se verifica totalmente no âmbito da natureza num Jesus apocalíptico e substitui, de certa forma, pela arma superior de catástrofe cósmica, uma revolta leva­ da a efeito pelos homens" (pp. 168-9). Existe, pois, anterioridade do anúncio do reino que vem em relação ao conteúdo ético da mensagem de Jesus. Nem por isso Bloch nega esteja o amor no centro da men­ sagem de Jesus, mas ele deve ser interpretado à luz de advento próximo. Foi justamente isso que não fez o cristia­ nismo histórico, que tornou inofensiva a mensagem de Cris­ to e fez dela um encorajamento à resignação diante da in133

justiça. O amor, no sentido do ágape, é um amor aos ho­ mens que não tem precedente. Ele põe abaixo todas as for­ mas de agressão. Mas, na pregação de Jesus, ele tem lugar somente à luz de advento já próximo. B. O advento de um reino de liberdade sobre a terra A partir do tema do "Filho do Homem" que se veste de Javé, já insistimos no realismo carnal e político do reino anunciado por Jesus. É interessante ver qual é a exe­ gese de Bloch para os textos do Novo Testamento que têm o sentido de reino interior ou de reino que não é deste mundo. Ele pensa, com efeito, que, há dois mil anos, esses textos vêm sendo explorados indevidamente num sentido espiritualista, para mostrar o quanto o cristianismo é ino­ fensivo. Em Lc 17,21, Jesus nunca quis dizer: "O reino de Deus está em vós", com referência à interioridade. A tra­ dução exata é: "O reino de Deus está no meio de vós." Jesus se dirige não aos disdpulos, mas aos fariseus. Ele res­ ponde, assim, à cilada da pergunta deles sobre quando viria o reino. A sua resposta significa: "O reino está próximo também no espaço, ele está aqui na comunidade dos que o reconhecem" ( p. 166). Também a famosa resposta de Jesus a Pilatos: "Meu reino não é deste mundo" não tem o signi­ ficado que se quis dar-lhe. Bloch pensa que esta palavra atri­ buída por são João a Jesus diante de Pilatos não é histórica. Ela denota influência paulina. João pensa na pobreza das primeiras comunidades cristãs e prepara para elas um meio para se defenderem diante das autoridades romanas. Trata-se de tema judiciário e apologético. "É contrário à coragem e até mesmo à dignidade de Cristo que ele tenha pronunciado diante de Pilatos essa palavra derrotista, que ele se tenha apresentado como um sonhador e excêntrico diante de seu juiz romano, que ele tenha dado aos romanos o espetáculo de uma pessoa inofensiva e quase cômica" ( p. 16 7) . E. Bloch acrescenta que essa passagem de são João não salvou nenhum cristão de Nero, mas serviu como apologia aos senhores do

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mundo. Serviu para tirar toda a força às aspirações terrestres do cristianismo. A oposição entre este mundo e o outro não tem, pois, o sentido que a espiritualidade cristã lhe dá há vinte séculos. Trata-se de tensão escatológica entre este mundo, isto é, o eon presente, e o outro mundo, isto é, "o eon futuro, e, melhor, o de uma idade futura do mundo, em oposição ao mundo existente". Bloch conhece evidentemente o logion de Mt 22,21: "Devolvei, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus." Mas não se deve tirar dele uma lição moral sobre o desinteresse em relação ao mundo. Essa palavra de Jesus tem, antes de tudo, sentido escatol6gico. � justamente por­ que o reino está próximo que se pode tratar César com in­ diferença. Contrariamente ao que Lutero pensou poder de­ duzir desse logion, com referência à doutrina dos dois rei­ nos, ele não tem nenhum sentido dualista. Não se deve ver nele dupla compatibilidade, que conduz, aliás, aos piores compromissos. O texto que se segue resume muito bem a concepção de Bloch sobre a atitude evangélica em relação ao mundo: "O mundo imperial é insignificante e, apesar de seu esplendor, é tão insípido como pernoitar num hotel, tendo que partir no dia seguinte de madrugada. Para Jesus, o que conta, antes de tudo, é esse conselho autenticamente quilias­ ta: distribuir os bens próprios aos pobres e, assim, subtrair-se não só subjetivamente mas também objetivamente aos inte­ resses reunidos em torno de César, interesses desprezíveis e condenados a curta duração. Nessa perspectiva, o Evangelho não tem nada de social, e, à primeira vista, nem é moral. Ele é o evangelho da redenção escatológica" ( p. 172). C. O reino de Deus se realiza somente em estado de germe Seria necessário comentar aqui as páginas bastante di­ fíceis do § 29, intitulado: Até a grandeza do Filho do Ho­ mem desaparece. O reino é "pequeno". Bloch se opõe ao mesmo tempo ao mito pagão e antropomórfico do homem makanthropos como encarnação do reino futuro e ao tema

U.5

hegeliano de urna reconciliação do Espírito absoluto com o homem como espírito finito. Poder-se-ia dizer que, segundo a visão blochiana, o rei­ no coincide com a fermentação que habita todo homem. Jesus como Filho do Homem é a figura histórica dessa aber­ tura. Mas é uma abertura para o desconhecido, para o an­ thropos agnostos. "]� o desconhecido, a proximidade do des­ conhecido que falta a todas as manifestações religiosas, clás­ sicas ou neoclássicas do antropomorfismo; falta-lhes a dimen­ são aberta do anthropos agnostos" ( p. 192). E o que ele reprova no humanismo de Hegel é a re­ dução do divino a uma medida humana. Porque, se é ver­ dade que o ser-para-si está salvo da alienação religiosa, ele se coisifica na história. O humanum de Hegel desaparece no Estado. No fundo, Bloch, para lá do humanismo ateu, quer conservar Deus como utopia concreta do tornar-se ho­ mem do homem, tornar-se que nunca termina e nunca se manifesta. É essa a contribuição do cristianismo, a qual se resume na fi gu ra do Filho do Homem. Trata-se de reino sem Deus e sem transcendência, mas o Filho do Homem designa a ação de transcender toda reificação do homem. Para mostrarmos tudo o que separa o ateísmo religioso de Bloch da insipidez do humanismo ateu, citaremos ainda o texto que se segue: "O humanismo do classicismo recai, mesmo na esfera religiosa, aquém de Jó, aquém da idéia do Filho do Homem e da descoberta de que um homem pode ser melhor, de que ele pode ser, mais do que seu Deus, o centro de todas as coisas. Uma religião na qual o Filho do Homem não é senão beleza e medida significa sempre, com efeito, como em Hegel, a 'consciência da reconciliação do homem com Deus'. Uma religião na qual o reino está em ebulição jamais reduz o divino a medidas humanas; ela não tende ao equilíbrio da reconciliação; ao contrário, o Filho do Homem e seu reino são humanos sem serem já dados" (pp. 192-3). Isso nos confirma que a figura do "Filho do Homem" é chave decisiva para compreender a hermenêutica atéia do cristianismo de Bloch. Não se trata de contentar-se com a transformação da teologia representada pelo humanismo ateu.

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Trata-se de manter, sob forma atéia, na imagem do Filho do Homem, o que transparecia do Deus do êxodo. O homem presente aberto para possibilidades inéditas, é o homo abs­ conditus, que ainda não foi manifestado. "A imagem do Filho do homem é das mais incompletas e ainda não traz em si a solução de seu mistério" ( p. 19 3). Assim, depois do desaparecimento do Deus teocrático do Antigo Testamento, o mistério continua. Mas esse mis­ tério é o enigma do homem, do qual o Filho do Homem é a fi gu ra histórica. E este enigma do homem coincide com a vinda do reino. O Messias como Filho do Homem não en­ cerra a história, mas a abre. Ele é a chave do ainda-não-ser como possibilidade histórica.3

III. A MUDANÇA DIALf.TICA DO TITULO CULTUAL DE FILHO DE DEUS PARA O TITULO ESCATOLóGICO DE FILHO DO HOMEM A imitação de Bousset, Bloch pensa ser possível esta­ belecer separação absoluta entre o titulo escatológico de "Fi­ lho do Homem", que seria criação própria de Jesus e de uso constante na comunidade palestina primitiva, e os ti­ tulas de Kyrios e Filho de Deus, que o substituíram pouco a pouco no cristianismo helenístico, tentado a prestar culto a Cristo como a uma nova divindade. O título de Kyrios, que é sempre tentado a retomar seu sentido pagão, como o de Pantocrator, tende pouco a pouco. a escamotear o titulo de Filho do Homem, o qual, entre­ tanto, desde a Igreja primitiva até Thomas Münzer, está sempre do lado dos pobres e dos que se revoltam. "So­ mente o que no futuro é próprio da autoridade da instituição eclesiástica pertenceu e continua a pertencer ao Kyrios, mas não aquele que, no espírito da comunidade primitiva e do J Cf. E. Braun, "Possibilité et non-encore-être. L'ontologie traditio­ nelle et l'ontologie du non-encore-être de Bloch•, in Utopie, marxisme selon Ernst Bloch, pp. 155-69.

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Filho do Homem, tinha só valor de futuro: a vinda do 'melhor eon', o que constitui desde então para a cristandade a pedra de tropeço de sua imagem do Senhor Jesus, quando não coisa pior, e que ela tenta constantemente escamotear hipocritamente" ( p. 199). Bloch não deixou de observar que a hipótese da ori­ gem puramente palestina do título de Filho do Homem é contradita pelo evangelho de João, que, embora escrito mais tarde, faz uso privilegiado desse título. Sobre isso ele não se explica. No parágrafo 31, intitulado: "Um cristocentris­ mo sem resto", ele vê justamente nele uma confirmação do antiteocratismo fundamental da mensagem de Jesus. � o evangelho de João que nos mostra com clareza a homoousia de Jesus, isto é, a sua i gualdade com Deus. Se ainda se encontra uma teodicéia em são João, isto é, se Jesus atribui ao Pai qualidades que são só suas, é pura aparência. Com efeito, Jesus diz só de si mesmo, de sua primeira vinda co­ mo Logos, que ele é a luz e a vida. Todos os versículos ( caps. 15-17) sobre o mundo que não conheceu nem o Pai e nem o Filho concernem a um Deus ainda desconhecido não só dos pagãos, mas também dos próprios judeus. Pelo menos poder-se-ia admitir que o título de Kyrios, que pertence à pregação pós-pascal, fosse posto diretamente em ligação com a ressurreição de Cristo... Mas, para Bloch, a ressurreição é somente produto da imaginação dos discí­ pulos, que não se consolavam da morte de Jesus. São Paulo é o grande responsável pelo mito da morte e ressurreição, que nos remete aos mistérios pagãos naturistas mais arcaicos. A idéia de sacrifício voluntário é criação de Paulo. Ela está em relação dialética com a ressurreição e era necessária para a pregação missionária dirigida aos pagãos. Se Jesus é o Mes­ sias esperado, não o é apesar da Cruz, mas por causa dela. Assim, não é investindo-se do velho teocratismo de Javé que o Filho do Homem se revela como o Messias, mas mor­ rendo na cruz. A aproximação entre o Messias e a figura do Servo que sofre, do Segundo Isaías - que, não obstante, parece feita pelo próprio Jesus -, é sem valor para Bloch. Ele pensa que a profecia de Isaías 53 se refere a Israel, e não ao Messias. 138

Foi o Apóstolo dos pagãos, com seu espírito de contabi­ lista, que combinou o mito pagão da morte e ressurreição anuais de um deus com a lógica jurídica da dívida a pagar ao deus Moloc mediante o derramamento do sangue de ví­ tima inocente. Numa perspectiva apologética, dever-se-ia ino­ centar Deus Pai de ter entregue seu filho inocente. Se Jesus se sacrificou voluntariamente para pagar a dívida, foi por causa da culpabilidade do homem. Essa idéia não é inteira­ mente de Paulo. "As suas últimas raízes estão num solo não só profundamente sangüinário como também totalmente ar­ caico: ela provém do antigo sacrifício humano, evitado já há muito tempo - mesmo antes de Moloc! Com isso ela se revela essencialmente contrária ao cristianismo" ( p. 209). Bloch revela profundo parentesco, desde são Paulo até Lutero, entre o tema da pretensa paciência da cruz e o da obediência incondicional à autoridade, em benefício dos que detêm o poder nas Igrejas. Graças ao mito do cordeiro sa­ crificado, "a subversão que habita a Bíblia se vê definitiva­ mente interrompida" (p. 211 ). Encontramos uma vez mais o objetivo maior da hermenêutica blochiana: trata-se, em contraste com a paciência do Crucificado, de restabelecer a efervescência revolucionária, a c6lera e a revolta que habi­ tam o texto bíblico. Entretanto, para sermos plenamente justos em relação à posição de Bloch, devemos notar que, se é verdade que, para ele, a esperança na ressurreição jamais ajudou algum oprimido a sair de sua miséria, ainda assim ele saúda em são Paulo um "tribuno do humano, porque se dirigiu con� tra a mais impiedosa das antiutopias deste mundo heterô­ nomo em que vivemos, a morte" (p. 212).

IV. VALOR DA EXEGESE DO TITULO DE •FILHO DO HOMEM" SEGUNDO E. BLOCH

Tentei mostrar que a exegese do título de "Filho do Homem" feita por Bloch ilustra perfeitamente o movimento de sua hermenêutica como programa de desteocratização.

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Seria interessante, sem dúvida, confrontar sua hermenêutica atéia com os resultados da exegese científica contemporânea. A obra Atheismus im Christentum data de 1968, e Bloch conhece bem os trabalhos dos grandes exegetas modernos: Schweitzer, Bultmann, von Rad, Kasemann, Jeremias, Stauffer, Wellhausen. Devemos observar, todavia, que, do ponto de vista das origens cristãs, ele privilegia autores co­ mo Bousset e Bauer, cujas conclusões já estão muito ultra­ passadas. Não podendo entregar-me seriamente a esse trabalho de confrontação, que seria objeto de nova exposição, con­ tentar-me-ei com fazer quatro breves considerações, apoian­ do-me principalmente nas conclusões de J. Jeremias em sua teologia do Novo Testamento.4 1. O título de "Filho do Homem" se encontra oitenta e três vezes nos evangelhos, sessenta e nove vezes nos sinó­ ticos e treze vezes no evangelho de João. É incontestável e nesse ponto devemos dar razão a Bloch - que a aplicação do título de "Filho do Homem" a Cristo vem de antiga tradição de origem palestina. É a retomada do Filho do pri­ meiro homem celeste de Daniel 7, que pertence ao judaísmo tardio pós-exílico, embora seja encontrado também na anti­ guidade iraniana. É um fato que a Igreja de expressão grega evitou o título de "Filho do Homem". Ele não se encontra em nenhum formulário de fé da cristandade primitiva. São Paulo devia conhecer a expressão "Filho do Ho­ mem", embora nunca a use. Pode-se até pensar que a sua tipologia "Adão-Cristo", totalmente desconhecida tanto do judaísmo antigo quanto do helenismo pré-cristão, tenha­ lhe sido inspirada pela aplicação do título de Filho do Ho­ mem a Cristo. Se, apesar disso, ele evitou esse título em sua pregação aos gentios, foi, sem dúvida, para prevenir o perigo 4 J. Jeremias, Teologia do Novo Testamento, Ed. Paulinas, São Paulo. Além de Jeremias, consultamos também: C. H. Dodd, L'lnter­ prétation du quatrieme ivangile, trad. franc., Cerf, Paris, 1975; H. E. Tõdt., Der Menschensohn in der synoptischen Ueberlie/erung, Gerd Mohn, Gütersloh, 1959; J. M. van Cangh, "Le Fils de l'homme dans la tradition synoptique", in Revue Thlologique de Louvain 1, 1970, pp. 411-9.

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de ver os cristãos gregos de nascimento se equivocarem so­ bre ele, considerando-o como indicação de descendência. 2. A exegese contemporânea é cada vez mais unânime em fazer esse título remontar a Jesus mesmo. E aqui deve­ mos ainda dar razão a Bloch. Um indício disso é fornecido pelo fato de Jesus falar de si mesmo corno "Filho do Ho­ mem" sempre na terceira pessoa. Isso não teria sentido, se esse título fosse criação dos discípulos. Para eles, a identi­ ficação de Jesus com o Filho do Homem era evidente. Por outro lado, os exegetas observam que em nenhum logion sobre o Filho do Homem se fala ao mesmo tempo da res­ ·surreição e da parusia. A distinção entre ressurreição e pa­ rusia vem, com efeito, da cristologia pós-pascal. Assim, a au­ sência de distinção entre ressurreição e parusia corresponde a emprego pré-pascal da fórmula "Filho do Homem" . . Sem dúvida, alguém poderá admirar-se de a primeira co­ munidade cristã nunca ter empre8ado essa fórmula em seus símbolos de fé, ao passo que a transmitiu nos verba Christi e mesmo na tradição sinótica. Isso prova, pelo menos, que esse título, enquanto remontava a Jesus mesmo, era sagrado e que rúnguém se teria permitido eliminá-lo.5 3. Parece bem estabelecido hoje que a origem da noção de "Filho do Homem" não deve ser procurada nos mitos do homem primordial, correnies na Mesopotâmia, na Pérsia, na fodia e na gnose. A idéü(de uFilho do Homem" remete à apocalíptica do judaísmo antigo, particularmente de Daniel 7,1-14. Mas a oposição radical que Bloch estabelece entre o tí­ tulo escatológico de Filho do Homem e o título cultua! de Filho de Deus é cxegeticamente insustentável. Os testemu­ nhos mais antigos concernentes à vinda do Filho do Homem e à sua manifestação tendem a mostrar que ela se dará na forma de elevação para Deus. O título de Filho de Deus e o de Kyrios convêm, pois, perfeitamente à epifania do Filho do Homem no último dia. Em outras palavras, mes­ mo que a idéia de glorificação do Filho do Homem possa 5 J. Jeremias, op. cit., p. 333. 141

ter evoluído à luz da experiência pascal, ela já se encontra em germe na revelação do Filho do Homem segundo Daniel 7. O Messias esperado terá, portanto, a dignidade e os atri­ butos de rei. Mas, contrariamente ao que Bloch afirma, a espera messiânica não tem nada a ver com as esperanças nacionalistas de Israel. O judaísmo conheceu duas esperas messiânicas: a esperança nacional do herói guerreiro da raça de Davi e a esperança do bar'enasha, o Filho do Homem que seria a "luz das nações". Referindo-se explicitamente à es­ pera do bar'enasha, Jesus rejeitava, pois, a esperança de um Messias político. O título de Filho do Homem exprimia jus­ tamente a universalidade de seu poder: ele é o salvador do mundo inteiro6 ( Mt 25 ,31-46). Por outro lado, o fato de Jesus falar de si mesmo como Filho do Homem sempre na terceira pessoa sugere que ele distinguia entre seu estado presente e seu estado de exaltação, quando seria elevado à condição de "Filho do Homem". 4. Como vimos acima, Bloch considera a idéia de sa­ crifício voluntário uma criação tardia de são Paulo. Ora, parece indubitável que Jesus previu e anunciou a sua paixão e morte ( cf. os três anúncios da paixão cm Me 8,31 ; 9 ,31 ; 1O,33 ) e que foi ele quem fez a aproximação entre o Filho do Homem e o Servo sofredor de !safas 53. Pelo menos, no célebre texto de Me 1O,45 e de Lc 22,24-27, vê-se cla­ ramente que Jesus se apresenta tomo o modelo do serviço, sob o aspecto do sacrifício de sua vida, com referência a Isaías 53. "O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos." Seja o que for da autenticidade desse versículo, é incontestá­ vel que ele provém de uma tradição palestina antiga ( em Marcos), na qual a idéia do poder expiatório da morte era muito corrente. Não se trata, pois, de posterior criação dog­ mática de Paulo. Se Jesus tinha consciência de ser o envia­ do de Deus e se contava com morte violenta; é muito normal que ele interpretasse a sua própria morte em termos de ser­ viço e de expiação e que tenha visto o sentido de sua morte na predição de Isaías 5 3. 6 J. Jeremias, op. cit., p. 343. 142

CONCLUSÃO 1. A hermenêutica atéia do Novo Testamento de Ernst Bloch é estimulante desafio em relação a uma compreensão abastardada do cristianismo segundo a qual o ensinamento de Jesus não seria mais do que uma mensagem inofensiva ou ... um platonismo para o povo. Bloch certamente ajudou a teologia cristã a redescobrir a dimensão escatológica do cristianismo e a dissociar o Deus da tradição bíblica do Deus do teísmo .7 A diferença de um Deus concebido como hipóstase de um eterno presente, pode-se dizer que o futuro é a determinação ontológica mais própria de Deus. Bíblica­ mente o ser de Deus é idêntico ao seu reino. É somente na realização de seu reino que Deus é Deus, e essa realização de seu reino é determinada pelo futuro. Em outras palavras, a questão do Ens perfectissimum está ultrapassada e deu lugar ao problema mais utópico, o do fim. Neste sentido, é verdade dizer que "só um ateu pode ser um bom'fristão".

2. O Filho do Homem é a chave do inacabamento do homem tendido para realização desconhecida dele. Finalmen­ te o reino de Deus não é senão a vinda progressiva do reino terrestre como reino da liberdade, coincidindo com uma hu­ manização da natureza e com uma naturalização do homem. A questão que permanece é a de saber em que se funda a irredutibilidade do Novo em relação a tudo o que foi e que é. Se o futuro já está presente nas potencialidades e nas latências dos processos da natureza ou ainda nos desejos e nas esperanças do homem, então ele não é o Novo em sua irredutibilidade e em sua indisponibilidade. Em outras pa­ lavras, para fundamentar o primado ontológico do futuro em relação a toda realidade, não seria necessário pôr a "ex­ terioridade" do que designamos bíblicamente como reino de Deus? 3. Com a figura do Filho do Homem, Bloch subverte a hipóstase do Deus que foi e que é. Mas faz ele mais do 7 Sobre isso pode-se ler com proveito Ch. Duquoc, "Un athéisme biblique·, in Lum,ire et Vie 156, 1982, pp. 69-81.

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que substituí-la por nova hipóstase, a do futuro? Em outras palavras, o Deus "na frente" é uma verdadeira alternativa em relação ao Deus "além"? Para Bloch, Deus é a expressão da esperança jamais satisfeita do homem. Ele censura o cris­ tianismo justamente por querer trazer uma resposta a essa espera, por encher o vazio ontológico que define o homem, no fundo por matar a esperança por meio da fé. Mais precisamente, essa obsessão pelo cumprimento não viria do fatô de Bloch ainda conceber o futuro em sentido grego, como o oposto dialético do passado, quando o futuro no sentido bíblico deve ser entendido como vinda, advento, parusia? 8 O Deus que vem como Deus da promessa introduz uma ruptura na imanência da natureza e da história, mas não elimina a esperança, ele a funda. Bloch professa o ateís­ mo em relação a um Deus hipostasiado por amor a Deus e ao seu reino, não sendo Deus senão a realidade do homem oculto como utopia do homem presente. A sua hermenêu­ tica atéia da religião consiste em conservar Deus como fator de transcendência. Mas quer compreendamos a história co­ mo degradação em relação a uma origem, quer como acesso nunca terminado a uma origem ainda não realizada, con­ tinuaremos sempre no círculo da imanência ou da totalidade. Pode haver saída diferente da de um Novum que seja a exterioridade de um Outro criando em mim uma responsa­ bilidade infinita? ( cf. Levinas). Crítica da religião e crítica pela religião, tal é o projeto original dessa hermenêutica a serviço da secularização. Bloch quer subverter o cristianismo como religião cultuai pelo mes­ sianismo. Mas não subverte ele o pró2rio messianismo ju­ daico, substituindo a dialética de promessa e de cumprimen­ to por totalidade sempre visada, mas nunca acabada?

8 Sobre isso, veja as distinções de J. Moltmann in Théologie de l'esptfrance, trad franc., Cerf ( M Cogitatio Fidei" n. 50), Paris, 1970;

veja também A. Dumas, •Ernst Bloch et la théologie de l'espérance de Jürgen Moltmann", in Utopie, marxisme selon Ernst Bloch, pp. 222,38.

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7

DO DEUS DO TE1SMO AO DEUS CRUCIFICADO

Hoje, ou Deus é desconhecido, não sendo mais possível que a questão de Deus seja posta historicamente, não im­ porta por quem e em quais circunstâncias; ou Deus é muito conhecido: quero dizer que os nomes divinos do teísmo clás­ sico são usados, o que levou muitos crentes a guardar si­ lêncio sobre Deus. Enquanto muitos, não-crentes e até crentes, fazem a experiência da ausência de Deus ou sentem dolorosamente o contraste entre a injustiça do mundo e a existência de um Deus que é Onipotência e Amor, é certo que a confissão de Deus não pode contentar-se com ser repetição morta. Deveríamos partir para a reconquista do nome perdido de Deus. Não podemos, sob o pretexto de respeitar o nome inefável de Deus, deixar de invocá-lo, de chamá-lo pelo seu nome. Como assegurar a presença de Deus entre os homens, se não pudermos mais chamá-lo pelo seu nome? Mas, para isso, não basta transmitir uma confissão recebida por reve­ lação. Também Deus recebe dos homens um nome de ba­ tismo, segW1do as épocas. 1 A designação de Deus é tarefa criativa. Devemos aceitar sem cessar o risco de dizer o nome de Deus para que ele apareça como sempre novo, vivo, atual. Deus tem uma história na consciência do homem. E a his­ tória dos nomes divinos é a história das imagens de Deus. 1 Deixo consignada aqui esta feliz expressão de Andr6 Dumas: "Eu diria, portanto, que hoje Deus espera receber de nós seu nome de batismo, nome que tanto lhe convenha quanto nos fale, nome aceito e agradável junto de Deus e junto do homem u , in "Dieu, pourquol, cumment?", Bulletin du Centre Protestant d'Studes, junho de 1973, p. 17.

Seria fácil, sem dúvida, mostrar que essas i�agens foram produzidas em ligação com interesses bem determinados. A tarefa da teologia consiste justamente em criticar essas imagens diferentes de Deus e em procu�ar os nomes menos impróprios, nomes que sejam ao mesmo tempo a expres­ são do que Deus nos disse de si mesmo e da situação his­ tórica do homem diante dele. Trata-se de saber se ainda somos capazes de dizer Deus, de denominar o Deus único e pessoal - tanto perante a crítica atéia moderna corno perante o imanentismo secreto da renovação religiosa contemporânea. Ao lado dessa urgên­ cia, nosso ecumenismo cristão parece bem estreito. Existem razões para considerarmos seriamente uma complementari­ dade das três grandes religiões monoteístas no que concerne ao futuro da denominação de Deus. As três grandes reli­ giões saídas de Abraão podem ensinar, umas às outras, a não invocarem o nome de Deus em vão. Nas páginas que se seguem começaremos avaliando a situação da teologia recente, caracterizada pela contestação filosófica e política do Deus do teísmo. Em seguida tomare­ mos conhecimento das pesquisas relativas a um "teísmo crítico" e procuraremos dizer quais são os nomes privilegia­ dos de Deus que correspondem à espera do homem mo­ derno.

1. A SITUAÇÃO DO DISCURSO SOBRE DEUS HOJE

No cristianismo, a teologia dos nomes divinos depende essencialmente do papel de Jesus na qualificação da imagem privilegiada de Deus. Podemos dizer que essa teologia oscila entre duas orientações: Deus compreendido em continuidade com o Absoluto do pensamento filosófico e das grandes re­ ligiões, ou Deus compreendido a partir de sua manifestação em Jesus de Nazaré. Poderíamos quase falar de combate en­ tre Jesus e Deus.2 O destino histórico do cristianismo é 2 Cf. C. Duquoc, "La figure trinitaire du Dieu Jésus", in Lumi�re et Vie 128, maio-junho de 1976, p. 68.

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justamente o de estar·exposto a duas tentações: a de com­ prometer a identidade irredutível do Deus de Jesus, sacrifi­ cando-a ao Deus do teísmo, e a de tomar tão a sério a ma­ nifestação de Deus em Jesus que o estatuto da transcendência pessoal de Deus se torne incerto e o diálogo com as outras grandes religiões monoteístas se torne problemático. Tra­ ta-se, na verdade, de falso dilema. Mas não basta mostrá-la teoricamente para eliminar essa dualidade de interesses, es­ sa hesitação, essa claudicação, testemunhadas pela prática e pefa linguagem dos cristãos. Quanto a isso, o movimento teológico recente da "morte de Deus" é um bom revelador dessa oposição entre Deus e Jesus. Paradoxalmente, o resultado positivo dessa teologia foi o de dar origem a uma terceira via, além do teísmo me­ tafísico e do ;esuísmo. A teologia cristã conhece particular­ mente uma renovação cristológica notável, que se esforça por conciliar as exigências de uma teologia trinitária com as de uma teologia da Cruz.3 As teologias seculares e as teologias da morte de Deus são resultado de duas contestações, a do Deus da metafísica e a da função social de Deus. Devemos considerar essas contestações mais de perto. Elas coincidem com a crítica de certo número de imagens de Deus e, portanto, de nomes divinos que não são propriedade exclusiva do Deus dos cristãos. O imperialismo da figura de Jesus em muitos meios cristãos contemporâneos pode ser interpretado como reação contra uma época que estava sob o signo do teísmo, isto é, de um Deus considerado como "quase evidente" e cujo rosto era pouco diferente do que ele podia ter na forma comum da crença em Deus. A. A contestação do Deus da metafísica Essa contac;tação deve ser compreendida a partir da mu­ dança de nossa conjuntura cultural, isto é, de nossa nova 3 Evidentemente penso principalmente na obra de J. Moltmann,

Le Dieu crucifié c•cogitatio Fidei• 80), Cerf, Paris, 1974, mas citarei também H. Urs von Balthasar, •Le mystêre pascal", in Mysterium Saiu-

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imagem do mundo e do homem, e a partir da crise da lin­ guagem filosófica sobre Deus. A mudança de nossa imagem do homem e do mundo

A linguagem tradicional sobre Deus, isto é, a linguagem do teísmo, estava ligada a uma visão do mundo como cos­ mo estabelecido e hierarquizado, dependente de um Deus causa primeira e fundamento absoluto. O homem ocupava seu lugar nesse universo hierarquizado. Hoje a imagem do mundo não é mais a de um cosmo determinado uma vez por todas. O mundo se define sobretu­ do como história, como devir, como campo ilimitado da ação humana. Ele remete em primeiro lugar à liberdade transfor­ madora do homem, e não a um princípio transcendente, causa explicativa do mundo. A imagem dominante não é mais, portanto, a de um Deus todo-poderoso e imutável, predeter­ minando marcha do mundo. É a de uma história da qual o homem é o produtor e o responsável. Adivinha-se a im­ portância dessa substituição da natureza pela história no que se refere à denominação de Deus. Essa idéia de autogênese do homem parece dificilmente conciliável com a de um Deus todo-poderoso e providente. Enquanto o homem não era ele mesmo, enquanto ele alie­ nava sua substância no Absoluto, Deus exercia certo núme­ ro de funções em sua vida e no mundo. É necessário aceitar um estatuto de inutilidade de Deus no mundo moderno. Deus recua à medida que o poder do homem se entende.4 tis, Cerf, Paris, 1972, pp. 9-274; S. Breton, Le Verbe et la Croix, Desclée, Paris, 1981; E. Jüngel, Dieu mystêre du monde, trad. franc. (''Cogitatio Fidei" 116 e 117), Cerf, Paris, 1983. 4 Seria interessante expor a história da si:cularização da idéia teo­ lógica de criação, que tende, na época moderna, a definir a essência do homem que gera a si mesmo. Veja, a esse respeito, A. Ganoc­ ry, Homme créateur, Deus créateur ("Cogitatio Fidei" 98), Cerf. Pa­ ris, 1970, que segue o tema da criação de Hegel, Marx, Nietzsche e Sartre. Num contexto totalmente outro, o da filosofia de A. N. Whithead, a Process Theology americana (cf. especialmente J. Cobb e S. Ogden) nasceu da vontade de superar as dificuldades fundamentais do teísmo tradicional para um pensamento crítico moderno. Para in-

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A nossa visão moderna do homem nos convida, por­ tanto, a abandonarmos a imagem de um Deus providencialis­ ta, que interviria miraculosamente em sua criação para re­ tocá-la ou que agiria diretamente no curso da história para suscitar algum acontecimento feliz ou infeliz como recom­ pensa ou castigo da ação dos homens. Foi justamente para superar essa imagem de Deus, uti­ lidade suprema do homem, que a teologia moderna, seguindo Karl Barth, acentuou a distância entre o Deus da religião e o Deus da fé. O Deus das religiões ou o Deus cósmico da natureza é um Deus que responde muito bem às necessidades do homem. Ele corresponde a um estado de infância da hu­ manidade: é o Deus hipótese de trabalho, o Deus que dá sen­ tido, o Deus que consola e dá boa consciência, o Deus que protege e abona os nossos empreendimentos humanos. O Deus de Abraão, de Isaac e de Jac6, o Deus da his­ tória é o Deus todo Outro, que cria a questão da salvação no homem, o Deus cuja· resposta ultrapassa completamente a expectativa humana. É um Deus procurado por causa de si mesmo, não um Deus "disponível", adaptado pelo homem às suas necessidades. Estamos à procura de um nome que evoque Deus como mistério de gratuidade. A crise da linguagem filosófica sobre Deus

Assim, a nossa imagem do homem e do mundo mudou muito para que nos contentemos com imagem de Deus ligada a outra fase da cultura. De fato, alguns nomes divinos não habitam mais a consciência religiosa espontânea do homem moderno. Mas, se quisermos ir até às raízes das dificuldades da linguagem teológica tradicional, devemos mencionar a crise da linguagem filosófica sobre Deus ou, mais precisamente, a crise dos fundamentos metafísicos da teologia. trodução, em francês, à Process Theology pode-se ler com proveito o estudo de A. Gounelle, "Le Dynarnisme créateur de Dieu. Essai sur la théologie du Proccss", in Et. Théol. Rei., Cahiers hors série, Mont• pellier, 1981.

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Sabemos, desde Kant, que o pensamento metafísico so­ bre Deus recebeu um golpe mortal: a vida do entendimento está denunciada como ilusão transcendental. Deus só é aces­ sível como postulado da razão prática, isto é, no plano das exigências éticas. Na teologia católica, esse acontecimento considerável permaneceu por muito tempo disfarçado, em parte graças à renovação moderna do tomismo. Mas hoje, o sucesso de um "Jesus-centrismo" coincide com o abalo do Deus todo-po­ deroso e imutável do teísmo metafísico. De seu lado, a teo­ logia protestante vinha procurando há muito tempo, depois de Kant, construir um discurso sobre Deus.5 Graças a Heidegger e à sua crítica da ontoteologia, sa­ bemos melhor que essa morte do Deus da metafísica está inscrita no próprio destino da metafísica desde sua origem. Com efeito, o mesmo movimento da metafísica que faz de Deus o fundamento absoluto do existente, mata-o. Nessa teologia invertida que é o humanismo ateu, o homem substi­ tuiu Deus como ser supremo, e, em Nietzsche, conseguimos a morte de Deus pela vontade de poder.6 Um dos resultados da atual crise da metafísica é o de inaugurar nova época "historial" para a teologia cristã, época na qual não é mais possível confundir o "teológico" vindo propriamente de Deus com o "teológico" de natureza pro­ priamente ontológica.7 Assim, a teologia cristã é convidada a ousar ser ela mesma e a não sacrificar os nomes de Deus, 5 Veja especialmente A. Dumas, "La critique de l'objectivité de Dieu dans Ia théologie protestante", in Nommer Dieu ("Cogitatio Fi­ dei" 100), Cerf, Paris, 1980, pp. 115-37. Juízo nuançado sobre a contes• tação atual do Deus da tradição ontoteológica pode ser encontrado em P. Vignaux, "Dieu contesté, Dieu incontestable", in Les Quatre Fleuves 6, 1976, pp. 64-77. 6 Sobre esse destino da metafísica como ontoteologia e sobre suas conseqüências para a teologia cristã, permitimo-nos remeter para traba­ lhos anteriores: C. Geffré, "Le problême théologique de l'objectivité de Dieu", in Proces de l'obiectivité de Dieu ("Cogitatio Fidei" 41), Cerf, Paris, 1969, pp. 241-63; e "Sens et non-sens d'une théologie non mé­ taphysique", in Nouvel dge de la théologie c•cogitatio Fideí" 68), Cerf, Paris. s/d, pp. 67-81. 7 Sobre o alcance dessa distinção, preciosas observações de G. Granel encontram-se em vários estudos sobre Heidegger, reunidos no volume Traditionis traditio, Gallimard, Paris. 1972.

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que lhe são confiados pela revelação divina, aos imperati­ vos do teísmo metafísico. Como o mostra com vigor uma obra recente, o Deus conceptual da ontoteologia poderia bem ser apenas um ídolo, isto é, a colocação do divino à disposição do homem numa aparência chamada deus; po­ deria ser, portanto, o desconhecimento de sua distância ab­ soluta.8 Pode-se criticar sem fim a aliança histórica entre o pensamento grego e a revelação judaico-cristã, mas não se pode negar que a idéia de ser supremo, que tem sua expres­ são mais perfeita na figura da causa sui, pertence à essência da metafísica. "É por isso, aliás, que o ser supremo, e com ele uma constituição ontoteológica, está onde Deus, enquan­ to cristão, desaparece." "A causa sui vale como teológica s6 na ontoteologia, na qual ela domina a função divina e a usa no momento mesmo em que a respeita. Os caracteres de ídolo convêm igualmente a um 'Deus' que serve de funda­ mento, mas que também recebe um fundamento; que enun­ cia supremamente o Ser dos seres.em geral e, nesse sentido, envia-lhes uma imagem fiel daquilo pelo que eles são, e do que eles são; que fica distante da ontologia comum somente quando dentro de uma conciliação (Austrag) que preserve de de uma familiaridade fundamental. Produzido por e para a ontoteologia, esse 'Deus' se ordena para ela como o ídolo para a cidade ( a não ser que o jogo político do ídolo remeta inversamente à ontoteologia). Com a única diferença de que, aqui, o ídolo permanece conceptual: ele não somente não oferece mais nenhuma feição na qual o divino nos olhe e se dê a ser desfigurado. "9 8 Pensamos no livro de J .-L. Marion, cujo título é todo um pro­ grama, L'Idole et la distance, Grasset, Paris, 1977. Para o nosso pro­ pósito aqui, ver particularmente o § 2: "Le 'Dieu' de l'onto-théologie n , pp. 27s. Em seu novo livro, Dieu sans l'2tre, Fayard, Paris, 1982, J.-L. Marion radicaliza ainda mais seu pensamento, procurando libertar a teologia não só da idolatria da metafísica, no sentido de Heidegger, como também da idolatria d:> pensamento do Ser enquanto tal. Deus pode dar-se a pensar sem idolatria somente a partir de si mesmo. 9 J .-L. Marion, L'ldole et la distance, pp. 34-5. O autor cita af, com toda a naturalidade, o célebre texto de Heidegger em Identitãt und Difjerenz: "Esse Deus, o homem não pode nem orar a ele, nem oferecer- lhe alguma coisa, nem, diante dele, cair de joelhos, por res• peito, nem tocar música ou dançar. Em conformidade com isso, o

1.51

Certamente pode-se encarecer que nos maiores ( um To­ más de Aquino) a teologia metafísica dos teólogos cristãos soube evitar o comprometimento do Deus da revelação pelo ídolo ontoteológico. Mas mesmo que seja verdade que ele tem uma percepção muito viva do além conceptual de Deus identificado com o Ser absoluto. de sua Alteridade irredutí­ vel, parece difícil afirmar que Tomás de Aquino escape ao destino da metafísica ocidental, isto é, pelo menos ao mo­ vimento dela como tentativa de explicação da realidade a partir de fundamento supremo. Como sugeri em outro lugar, 10 a teoria dos nomes di­ vinos de santo Tomás ( a célebre questão XIII...), embora seja um modelo de epistemologia teológica, mostra os limi­ tes de uma teologia enquanto ciência rigorosa de Deus. As­ siste-se, com efeito, a uma redução rigorosa dos atributos bíblicos de Deus, especialmente quando expressos na for­ ma verbal ( verbos de ação), à atualidade pura do ser. Isso conduz a dificuldades temíveis quando se trata de conside­ rar com seriedade as ações "históricas" de Deus ( criação - encarnação - dívinização). E a distinção entre "nomes próprios" e "nomes metafóricos" comporta o risco de deixar perder-se a força sugestiva dos grandes sfmbolos bíblicos, que são reduzidos ao papel de metáforas dotadas de simples função pedagógica. Em todo caso, a teologia dos nomes divinos expiicita as conseqüências da opção audaciosa de santo Tomás inter­ pretando o Deus da revelação em termos de ser e identifican­ do-o com o Fundamento dos seres. Em sua vontade de ex­ plicação, a teologia-ciência explica o Deus de Abraão, de Isaac e de Jac6 a partir de alguma coisa anterior, de expe­ riência humana do divino, a saber, da idéia de Deus con­ cebido como Ser absoluto. O critério hermenêutico para saber qual nome, bíblico ou não, convém propriamente a pensamento a-teu (sottlose, no sentido paulino), que deve abandonar o Deus dos filósofos, o Deus causa sui, está talvez mais próximo do Deus divino. O que significa somente: isso está mais livremente aberto a ele do que quereria acreditar a ontoteologia." (Trad. franc. in Questions 1, Gall,mard, 1968, p. 306.) 10 Veja C. Geffrt, art. "Dieu•, in Encyclopaedia Universalis, vol. 5, Paris, 1969, pp. 576-80.

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Deus será a sua conversibilidade com Deus concebido como Ser Primeiro. :É. certo que o Deus revelado é o Deus criador e que pode ser interpretado como o Deus Fundamento da ontoteologia. Mas uma teologia cristã dos nomes divinos deve ainda mostrar-nos o que a santidade e o amor divinos, revelados em Jesus, trazem de espedfico para as proprieda­ des transcendentais do ser, transpostas para Deus. Era necessário lembrar essa crítica do Deus da onto­ teologia para compreender a crise do teísmo na teologia con­ temporânea. Concretamente ela coincide com o processo fei­ to à teologia objetivante e com o sucesso das teologias existenciais. Mas, compreende-se melhor hoje que esta úl­ tima corrente, que se recusa a invocar Deus de outro modo que não seja por um "tu" indizível, pode ser a expressão de um triunfo da subjetividade do homem e, por isso, de uma humanização de Deus. Quando o existencialismo teoló­ gico (cf. Bultmann) não ousa objetivar Deus, para preser­ var seu caráter indizível, não reduz ele Deus ao sentido que ele tem para o homem? 11 O destino da teologia cristã seria então verificar a palavra profética de Feuerbach: "Deus é um termo cujo único sentido é o homem." E, contraria­ mente a certas interpretações um pouco curtas do ateísmo nietzscheano, pode-se compreender o grito "Deus está mor­ to!" como uma recusa ao Deus-ídolo metafísico. A morte de Deus, para Nietzsche, é a morte do Deus moral e ideal, a morte de um conceito de Deus que o humaniza e não res­ peita a necessidade distância entre o homem e ele.

B. A contestação ela função social

de

Deus

A contestação do Deus do teísmo não tem s6 causas filos6ficas, mas também causas sociais e políticas. Sejam quais forem suas orientações diferentes, as teologias secula­ res e as teologias ditas "da morte de Deus" concordam em sua recusa ao Deus metafísico e em sua adesão a Jesus. O Deus todo-poderoso e imutável, o Deus metafísico e mesmo 11 Cf. nosso estudo citado acima, "Le probl�me théologique de l'objectivité de Dieu", pp. 251-2.

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o sbrbolo da Patemidade divina. aparecem como a garantia ideológica de uma ordem social conservadora, à qual se opõe o movimento moderno de emancipação. Parece one os nomes tradicionais dados a Deus, onipotência, imutabilidade, eternidade, legitimam e sacralizam um tipo de instituição eclesial que testemunhava a ordem metafísica do mundo e exercia um poder efetivo sobre as sociedades civis. Hoje. graças à crítica marxista das ideologias, conhe­ cemos melhor a função ideológica aue a teolop,ia pode exer­ cer em dado momento histórico. Não existe discurso teoló­ gko desinteressado. Não é preciso ser marxista para tomar a sério a idéia de que a história das imagens sobre Deus e, portanto, dos nomes divinos, tem ligação com a história da produção, isto é, com o desenvolvimento da base material de uma sociedade.12 Existe uma correlação permanente entre as condições de existência histórica de uma sociedade e as representações de si mesma que ela se dá. Essa "visão do mundo" não é um simples reflexo das estruturas socioeco­ nômicas. Ela tem uma função de justificação e de legitima­ ção de um grupo ( a classe dominante) dentro da sociedade. � nesse momento que a "visão do mundo" degenera em ideologia. 13 A teologia degenera em ideologia cada vez que passa a ser um sistema de justificação e de legitimação social e procura impor, em nome da "pura fidelidade ao Evangelho", tal ou tal opção social ou política, quando, na verdade, ela defende os interesses de um grupo dominante, seja na so­ ciedade Igreja, seja na sociedade à qual a Igreja está ligada. Quem pode negar que em sua longa história o discurso cristão sobre Deus procurou justificar a injustiça social rei­ nante e fornecer aos homens a ilusão de uma compensação 12 Cí. A. Fierro, "Histoire de Dieu", in Lumi�re et Vie 128, 1976, pp. 79-99. 13 Em vez de citar a imensa literatura consagrada à teoria das ideologias, remetemos somente a duas obras que põem muito bem o problema das relações entre fé cristã e ideolog:a: C. Wackenheim, Christianisme sans idéologie, Gallimard, Paris, 1974, e S. Breton, Théorie des idéologies, Desclée, 1976. Veja, entretanto, nossa reserva sobre a posição de Wackenheim in Le Supp/ément 116, 1976, pp. 125-8.

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pela injustiça que eles sofriam? Uma das funções sociais mais importantes do teísmo consiste em explicar as desigu aldades de poder e de privilégio na sociedade. Essa função essen­ cial da teologia, sob o signo do teísmo metafísico, consistia aos olhos, por exemplo, dos novos teólogos da libertação, em justificar a ordem social existente e em manter certa or­ dem institucional particular. 14 Na época moderna, certo discurso sobre Deus como jus­ tificativa das desigualdades sociais desapareceu. Para muitas pessoas, nem a submissão à vontade paterna de Deus, nem mesmo a esperança mediatizada pela presença de Cristo, nem a espera de um eschaton realizado por Deus são capazes de aliviar a dor humana. A hist6ria e a ação do homem na história tornaram-se os instrumentos essenciais, graças aos quais o homem deve procurar integrar o sofrimento e o mal. Somos, pois, convidados a falar sobre Deus depois de Marx, isto é, um discurso que escape à crítica marxista da religião como ideologia. É incontestável que certa teologia tradicional pôde servir de aval ideológico para tal ou tal estado da sociedade. E hoje algumas teologias recentes ( sob a influência do existencialismo, do personalismo, do método transcendental) trataram demais a dimensão social do cris­ tianismo como um aspecto acidental. É próprio das novas teologias políticas ou das teologias da libertação tomar a sério a eficácia histórica do cristianismo e propor a imagem de um Deus Senhor da história que não faça concorrência com a ação transformadora do homem. 15 O discurso sobre Deus não pode servir para sacralizar ou manter uma visão determinista e fatalista da história que acarrete uma acei­ tação teórica e prática de suas deficiências e contradições. 14 Como introdução à problemática das teologias da libertação recomendamos vivamente a leitura do número especial da revista Con­ cilium 96: "Praxis de libération et foi chrétienne•. 1974. 15 Parece me que é desconhecer o alcance eclesiológico da opção preferencial pelos pobres nas Igrejas do Terceiro Mundo ver, como H. de Lubac, nas "teologias da libertação s apenas um novo avatar do joaquinismo: cf. La Posiérité spirituelle de Joachim de Flore, t. II. "De Saint-Simon à nos jours" ("Culture et Vérité), Lethielleux, Namur, 1981.

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li. À PROCURA DO NOME PROPRIO DE DEUS

Seja em nome da crise da metafísica compreendida co­ mo ontoteologia, seja em nome da contestação da função social que o Deus do teísmo exerceu durante muito tempo no Ocidente, tentamos até aqui conhecer as dimensões da crise do discurso tradicional sobre Deus. Mas se alguém se contentasse com substituir o teísmo da antiga teologia por um "Jesus-centrismo", deveria con­ siderar que assim chegaria rapidamente a um impasse no que concerne ao futuro do cristianismo. Hoje cada vez mais se toma consciência disso. O sim a Jesus e o não a Deus, que estão se tornando moda para algu ns cristãos, comprome­ te a universalidade do cristianismo, tornam mais difícil o diá­ logo com as grandes relig'.ões não-cristãs e desencorajam os agnósticos que estão à procura de Deus. Contrariamente ao que às vezes se escreve, não é Deus como tal que cria difi­ culdades a muitos crentes de hoje, é o caráter escandalosa­ mente lústórico do cristianismo, o fato de Deus ter ligado sua sorte à de um judeu do século I. Deve-se rejeitar o Deus-ídolo do pensamento conceptual. Mas substituir Deus por Jesus é fazer também de Jesus um ídolo. Devemos, ao contrário, ser fiéis ao movimento do No­ vo Testamento, no qual constatamos que é impossível co­ nhecer Jesus fora de sua relação ao Pai, como é impossível conhecer Deus fora de Jesus. Uma das funções essenciais do ministério de Jesus foi justamente a de libertar os ho­ mens das falsas imagens de Deus, para reensinar-lhes o ver­ dadeiro nome de Deus. 16 Cristo não é somente o modelo da existência humana, ele não é somente aquele que define um 16 "Tenho a impressão de que um 'Jesus-centrismo' exclusivo negligenc:a esse trabalho essencial de reconquistar o nome de Deus faoncado sobre os. deuses fabricados pelas nossas necessidades. Esse 'Jesus-centrismo' comete, assim, o erro de se separar dos ouLros deuses possível. Também ele se torna então uma especialização hermética. Se Jesus não tem relação com Deus, por que acrescentar lhe esse nome ao mesmo tempo próprio e universal, Cristo?" (A. Dumas, "Dieu, pourquoi, comment?", citado acima, nota 1). E no mesmo sentido essas linhas de G. Morei: "Mas a qual cristão o que é o coração do cristia­ nismo, o Deus trinitário, diz realmente alguma coisa? Ora, não se pode esquecer que para Cristo a vida só teve sentido por uma relação

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novo tipo de existência com os outros; ele é também o Reve­ lador de Deus. A vida de Jesus foi, ao mesmo tempo e inse­ paravelmente, uma "orthopraxis ", isto é, uma práxis con­ duzida conforme ao reino de Deus, e uma "celebração" da soberania de Deus_17 Jesus nos liberta de uma imagem opres­ s i va de Deus justamente para nos revelar o verdadeiro sen­ tido da paternidade e da soberania de Deus. E é porque Jesus se identifica com a causa de Deus, que é também a causa do homem, que ele é rejeitado pelos homens. Em sua agonia Jesus nos comunica seu segredo: sua união privile­ g Iada com Deus. Em compensação, na ressurreição manifes­ ta-se o engajamento permanente de Deus em relação a Jesus. Assim, é o mistério da cruz e da ressurreição que revela a relação privilegiada do Pai e do Filho. Com isso já está colocada a questão do Deus de Jesus como mistério trini­ tário. Depois da crise do teísmo metafísico, a teologia cristã do mistério de Deus se encontra, portanto, em face a tarefa nova. Ela é convidada a respeitar mais seriamente a origina­ lidade do Deus de Jesus. Tratar-se-ia de elaborar o que se pode designar como "teísmo crístico ". Não é possível, com efeito, contentar-se com repetir materialmente o dado bíblico sem nenhuma retomada especulativa. Se queremos chamar a Deus com um nome que ressoe em nossa cultura, a teolo­ gia, hoje como ontem, não pode renunciar a articular as exigências da fé e da razão. Antigamente era o Deus da Bí­ blia que criava dificuldades para o teólogo especulativo, hoje é o discurso racional da teologia natural. Seria preciso conservar o objetivo da teologia especulativa, mas aprovei­ tando também outros recursos conceptuais. constante, intensa, com o Pai e que por 'esta razão ele se apresentou como 'passagem'" ("L'enjeu de la crise religieuse", in Rech. Se. Rei. 63, 1975, p, 32). 17 Mencionemos esta formulação perfeitamente equilibrada de E. Schillebeeckx: "O Deus de Jesus é verdadeiramente Deus, e não se identifica com uma função de humanização ou de libertação humana, mas, definitivamente, ele não deixa de ser um Deus que se preocupa com o homem. Por isso toda a vida de Jesus foi uma 'celebração' da soberania de Deus e, ao mesmo tempo, uma orthopraxis, isto é, uma práxis conduzida em conformidade (orthos) com o reino de Deus" ("Le 'Dieu de Jésus' et le 'Jésus de Dieu" ", in Concilium 93, 1974, p. 103).

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Proponho simplesmente duas vias de pesquisa que po­ dem ajudar-nos a pensar o nome próprio do Deus de Jesus. A. Cristo como universal concreto Do ponto de vista da razão teológica, seria o caso de iniciar um movimento de pensamento que apreenda a ver­ dade revelada a partir de seu lugar oróprio, em vez de pro­ curar justHicar o nome oculto de Deus a partir de funda­ mento prévio, seja ele Deus entendido como Ser absoluto ou o homem em sua autocompreensão. Trata-se-ia de não partir mais do homem racional com sua vontade de repre­ sentação em face de Deus, mas do homem definido como acolhimento, como abertura. Então o próprio Deus deveria ser pensado, de preferência, como Evento e Advento, como Apelo sempre novo, como Exigência incondicional.18 Como há um lugar próprio no qual se revela a verdade do ser, do mesmo modo há um lugar próprio no qual a verdade originária de I'-eus se deixa apreender. Esse lugar é Cristo em sua proximidade do Pai. Assim, além da redução cosmológica e da redução antropológica do cristianismo, a única via é uma "teologia teológica" que parta da confissão de que "Deus é amor", revelada no evento Cristo. No Verbo encarnado a verdade abriu o caminho que leva a ela: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. "19 Em nosso desejo de designar Deus hoje, estamos ex­ postos a dois perigos. Ou nos contentamos com um concei­ to metafísico de um Deus além do mundo, fora da reali­ dade, Deus esse que é estranho ao que os homens vivem. Ou, no desejo de atingir melhor o homem, não ousamos mais falar de Deus e guardamos do cristianismo s6 sua di­ mensão ética de serviço aos homens. E se ainda falamos de Deus, é um discurso antropológico, isto é, um discurso indireto sobre o homem. 18 Para aprofundar o que aqui apenas sugerimos, remetemos de novo AO nosso estudo "Le probl�me théologique de l'objectivité de Dieu•, in op. cit., pp. 255s. 19 Cf. H. Urs von Balthasar, L'Amour seul est digne de foi ("Foi Vivante"), Aubíer, Paris, 1966.

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De fato, só um realismo cristológico é que nos permite conjurar, ao mesmo tempo, o perigo do pensamento metafí­ sico, isto é, o de um Deus fora da realidade, e a tentação do antropocentrismo moderno, isto é, a da dissolução de Deus na re�Hdade do mundo tornado maior.10 Diante da crítica atéia de um Deus além do mundo e da crítica da religião como alienação do homem, devemos procurar conciliar a realidade de Deus e a realidade do ho­ mem, esforçando-nos por pensar Cristo como universal con­ creto. Se formos até o fim no realismo da encarnação corno tornar-se-homem de Deus e como tornar-se-Deus do homem, deveríamos poder compreender como a realidade de Deus se mostra como realidade do homem e inversamente. Desde que Deus se fez homem em Jesus, Deus e a realidade estão misteriosamente unidos - sem estarem identificados - no ser de Cristo. Falar a Deus sem falar do real é que seria alienação, porque é impossível falar do real em sua pro­ fundeza sem falar a Deus. Deus nos revelou seu nome em Cristo. Mas o cumpri­ mento da revelação em Cristo é palavra muito plena para poder ser conceituada de maneira satisfatória. A diferença dos ídolos conceptuais do teísmo, Cristo é o ícone do Deus invisível, aquele que o torna presente justamente porque respeita a sua distância. Podemos compreender Cristo ícone de Deus com o vestígio concreto da diferença entre o misté­ rio irredutível de Deus e sua presença entre os homens. Como universal concreto, Cristo é o lugar no qual se arti­ culam misteriosamente a diferença entre Deus velado e Deus revelado, entre a revelação como sentido universal e como evento histórico particular, entre Deus e o homem. Podemos dizer que o discurso teológico só evita cair na idolatria se não apagar a diferença entre o que lhe é dado pensar na revelação e o que lhe permanece sempre oculto. Com efeito, a verdade revelada surge a partir do lugar onde o que se dá e o que se reserva permanecem 20 Trata-se da "teologia da realidade", que A. Dumas tentou des­ crever em seu comentário à obra teológica de D. Bonhoeffer, Une théologie de la réalité: Dietrich Bonhoeffer, Labor et Fides, Genebra, 1968.

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indissociavelmente unidos. Encontramos aqui o movimento da teologia negativa e de seu jogo de afirmações e negações a serviço do respeito ao Deus escondido. B. Uma transcendência que reconcilia a imutabilidade de Deus e o devir A originalidade do Deus da revelação judaico-cristã é a de revelar-se numa história, na contingência, no concreto. Devemos procurar pensar a relação entre o Logos eterno e o evento particular Jesus Cristo. E isso será sempre escân­ dalo para a razão. Essa revelação histórica, que torna Deus tão próximo do homem, é também a que traz mais difi­ culdade aos nossos contemporâneos. Como pretender que o cristianismo, enquanto religião histórica, tenha o monopó­ lio da verdadeira relação com o Absoluto? E, sobretudo, corno fazer a salvação de todos os homens depender desse evento particular, contingente, que é Jesus Cristo?�' E, no entanto, não é escamoteando a particularidade histórica de Jesus que teremos alguma possibilidade de asse­ gurar sua universalidade. Ele não é manifestação privilegiada do Absoluto na história. Ele é o próprio Absoluto tornado histórico. � impossível deduzir o tornar-se-homem de Deus a partir de uma idéia a priori de Deus como Absoluto. De­ vemos aceitar o escândalo da encarnação na incondicionali­ dade da fé. Se dizemos, com Urs von Balthasar, que Jesus é a "figura" de Deus como Amor absoluto, é enquanto o evento Jesus qualifica intrinsecamente o Ser de Deus e, por­ tanto, o nome próprio de Deus como Amor. O pensamento cristão sempre teve muita dificuldade em tomar a sério a positividade do mistério cristão. Assim, a teologia metafísica, quando procura justificar os mistérios da criação e da encarnação, isto é, os atos mais livres de Deus, preocupa-se sobretudo com salvaguardar a transcendên­ cia de Deus, identificando-o com a imutabilidade do Ser ah21 E este tipo de aporia que tentamos enfrentar em "La contin­ gence historique du christianisme comme scandale de la foi", in la Vie Spirituelle, nov.-dez. de 1973, pp. 791-9.

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soluto. Ela insiste, por isso, na impassibilidade de Deus, que, como Ato puro, não é afetado por essas obras con­ tingentes que são a criação e a encarnação. Podemos, por­ tanto, perguntar, com razão, se, nesta perspetiva, ela justifica realmente a encarnação como mistério da kenose de Deus. No sé:ulo XVIII, o racionalismo da Aufklarung não fez senão acusar essa incapacidade de pensar especulativa­ mente a particularidade histórica de Jesus como universal concreto. Basta pensar na influência de Wolff em teologia. Ora, justamente a teologia que procura pensar especulativa­ mente o Deus da Bíblia, o Deus de Jesus, deve tomar em consideração a ruptura introduzida por Hegel no pensamen­ to do histórico.u Pode-se afirmar que Hegel ajuda os teólogos cristãos a "suportar" especulativamente a idéia de um Deus encar­ nado. Para ele, com efeito, a universalidade verdadeira só existe em concreto. O universal deve encarnar-se, e é só então que ele é realme;ite. É conhecido o célebre axioma: "Tudo o que é racional é real, e tudo o que é real é racio­ nal." Em outras palavras, é quando o verdadeiro racional é efetivo que ele é também plenamente racional. Assim, depois de Hegel, sabemos melhor que o con­ creto, o histórico, o positivo, o contingente não são neces­ sariamente rebeldes à inteligibilidade e à universalidade. Ele é justamente o filósofo da reconciliação. Como teólogos cristãos, deveríamos, portanto, ser capazes de pensar o nome próprio do Deus histórico, sem nos impressionarmos dema­ siadamente com o "fosso horrível" entre o universal e o histórico do qual falava Lessing. Sem nos refugiarmos numa pura teologia bíblica, teríamos uma alternativa em relação a uma teologia natural que se mostra incapaz de valorizar o universal concreto, isto é, de articular a historicidade e a 22 Cf. A. Gesché, "Le Dieu de la Bible et la théologie spéculative", in Epliem. Theol. Lov. 51, 1975, pp. 5-34, especialmente pp. 26s. E conhecida a pergunta de Karl Barth: "Por que Hegel não foi para o mundo protestante o que Tomás de Aquino foi para o mundo cató• lico?• E a esse tipo de pergunta que W. Pannenberg tenta dar uma resposta em seu importante estudo: • La signification du christianisme dans la philosophie de Hegel•, in Arcliives de Pliilosophie 33, 1970, pp. 775-86.

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inteligibilidade, a contingência e a racionalidade. O fato cris­ tão faz pensar. Não sendo especulativo, ele não reclama um puro sacrifício da inteligência. A religião mais histórica é também a mais penetrada de racionalidade. Um teólogo como Karl Rahner esforçou-se por repen­ sar o mistério da encarnação, escapando à lógica da identi­ dade da filosofia aristotélico-tomista. A transcendência do Deus de Jesus se manifesta no fato de ele ultrapassar a opo­ sição que, numa metafísica do ser, pomos entre a imutabili­ dade e o tornar-se. É próprio de Deus, poderíamos dizer, tomar-se outro permanecendo Deus. � privilégio só de Deus o constituir ele mesmo o que o diferencia dele.u A propó­ sito da encarnação não devemos ter receio de falar do "tor­ nar-se-homem" de Deus. Isso, ao mesmo tempo, nos escla­ rece sobre o mistério da criação o homem. A criação do homem só tem sentido como possibilidade de Deus de existir cm outro. Neste sentido, é correto entender, com Rahner, a antropologia como uma "cristologia deficiente". O desígnio de Deus, já atuante na criação, consiste em pôr outros ele-mesmo em relação com ele e associá-los aos intercâmbios do Pai e do Filho no Espírito. A criação pre­ para e torna possível a encarnação como possibilidade para Deus de existir em outro. Se renunciarmos ao impasse do teísmo metafísico, isto é, se deixarmos de fazer esforço desesperado para conciliarmos os atos livres do Deus cria­ dor e salvador com a Eterna presença do Ato puro, pode­ remos dizer que o Amor leva Deus a se aniquilar, e isso 23 Reconhecemos aqui o audacioso esforço especulativo de K. Rahner em sua interpretação da definição de Calcedônia, cf. "Problé­ mcs actuals de christologie n , in E.crits théologiques, t. 1, DDB, Paris, 1959, especialmente pp. 148 61. "Assim, Deus permanece 'em si', 'imu­ tável', quando vem verdadeiramente para o que ele constitui como sendo ao mesmo tempo unido a ele e diferente dele", ib;d., p. 157; em nota, ele acrescenta: "(A ontologia) deve conceder que Deus, permanecendo imutável em si, pode existir em outro e que essas duas afirmações são verdadeira e realmente a realidac;le do mesmo Deus enquanto tal." De seu lud,. E. Jüngel vê na questão da relação entre Deus e o pereclvel (die Vergiinglichkeit) a aporia fundamental do pensamento sobre Deus na modernidade. E é indo até o fim numa reflexão sobre a humanidade do Deus crucificado que ele procura uma solução. Cf. Dieu mystere du monde ("Cogitatio Fidei n 116 e 117), Cerf, Paris, 1983.

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desde a cnaçao. Segundo a expressão ousada de Rahner, "Deus se comunica à sua criação de tal sorte ... que se ani­ quila e se torna criatura" .�4 Não devemos mais separar criação e encarnação. A encarnação do Verbo de Deus numa reali­ dade distinta de sua essência é o ato supremo da criação divina, e isso já corresponde a uma "expropriação" de Deus. Mesmo fazendo apelo aos recursos da filosofia moderna, não nos afastamos do programa teol6gico da grande tradi­ ção cristã, a dos Padres da Igreja, quando eles nos dizem que a economia é o único lugar da teologia, isto é, do conhecimento e da denominação de Deus. A questão não é: "podemos conhecer Deus em Jesus? ", como se já tivéssemos idéia prévia de D�us; mas: "qual é o Deus que conhecemos em Jesus?" O próprio termo Deus s6 pode ser entendido a partir da particularidade da história de Jesus: o Deus de Jesus é o Deus de Israel. E é enquanto Jesus é este homem particular, morto e ressuscitado, que ele tem uma unidade privilegiada com o Deus de Israel, que ele chama seu Pai.15 Unidade tal que ele é mais que a manifestação privilegiada de Deus entre os homens. Ele é o Filho de Deus consubstan­ cial ao Pai no sentido que a Igreja do Concílio de Calde­ dônia precisou. Contemplando a relação humana de Jesus com o Deus de Israel, estamos no caminho para descobrir o mistério da filiação divina e podemos situar-nos em verdade diante de Deus e invocá-lo com o seu nome, isto é, reconhecer-nos "filhos" e dizer-lhe "Pai". É enquanto Jesus é este homem que identificou sua vontade com a de Deus e que se fez obediente até à morte que ele é o Filho de Deus. É en­ quanto Filho que ele é Deus. Somos então introduzidos na intimidade do mistério de Deus como mistério de paterni­ dade e filiação.

24 K. Rahner, Mission et Grtlce, t. 1., Mame, Paris, 1962, p. 76. 25 Ponto sobre o qual insiste muito particularme11te W. PAl'len­ ª berg em sua cristologia, Esquisse d'une christologie ("Cogitatio Fidei 62). Cerf, Paris, 1971.

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III. DEUS COMO BOA NOVA PARA O HOMEM DE HOJE

Esforcei-me por soletrar o nome próprio do Deus de Jesus. Como não podemos, porém, defini-lo, mas somente nomeá-lo, temos necessidade de recorrer a vários nomes para invocá-lo. Além de no falso dilema entre Jesus e Deus, in­ sistimos em sua transcendência. Mas precisando que se trata da transcendência do amor, não da dn Ser absoluto. Isso significa que em si mesmo de é essencialmente mistério de comunicação. Ele ultrapassa a antinomia entre a pessoa iso­ lada e o amor suprapessoal. Por isso nós o invocamos se­ gundo a simbólica do Pai, do Filho e do Espírito.:?6 O mis­ tério da Trindade não deve ser confundido com um triteísmo. Confessamos assim o mistério suprapessoal de Deus, em con­ formidade com a nossa prática da relação com o Deus único. Não basta, porém, repetir a confissão oficial da fé da Igreja. É necessário designar a Deus de tal forma que venha à consciência do homem como boa nova. A designação de Deus obedece a uma dialética complexa. De um lado, se não o denominarmos mais, também não asseguraremos mais sua presença entre os homens. Do outro, se nos voltarmos para um dogmatismo impenitente, não respeitaremos mais sua distância, e a sua presença poderá tornar-se insuportá­ vel. Deus deve ser reconhecido também como o Outro, o Ausente, aquele que falta, a falha, o vesdgio ...27 26 Cf. C. Duquoc, •La figure trinitairc du Dieu de J6sus•, in Lumi�re et Vie 121!, pp. 73s; e Vieu différent, Cerf, Paris, 1977. 27 Estamos prontos a aceitar por nossa conta esse diagnóstico cruel de G. Morei: • ...Cada um se perguntará se a reação atual de ateísmo ou de agnosticismo não tem por motivação, pelo menos cm parte, certa aversão diante do positivismo religioso. A acumulação de representações nesse domínio não deixa, aliás, de ter relação com o mesmo fenômeno na esfera econômica: aqui e lá afirma-se a mes­ ma necessidade de ter a todo custo à disposição, de ter garantias, de pôr 'em depósito'. Voltando à teologia, notemos a contradição do mesmo indivíduo, que, de um lado, em referência ao discurso filosó­ fico (de resto, clássico), confessa· não saber nada sobre Deus e, do outro, compensa casa maravilhosa pobreza com uma inflação de con• ceitas, previamente dissecados, senão de imagens. Deus pode ser com­ plexo, mas certamente não 6 complicado. O Deus cristão envelhe.ceu terrivelmente e muito mal no Ocidente." ( N Les vertus de la nuit�, in "L'Eglise: l'épreuve du vide", Autrement 2, 1975, p. 82.)

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Designar Deus como boa nova para os homens, isto é, não como um. Deus justiceiro e repressivo, mas como um Deus amor e libertador, é a responsabilidade histórica das três grandes religiões monoteístas neste final de século. Convém falar cm monoteismo, e não em teísmo. Não é só o ateísmo que devemos enfrentar. Como antigamente no monoteísmo bíblico, temos de recorrer a um Deus único contra os ídolos de hoje, contra o que é vivido como abso­ luto, quer seja o dinheiro, o poder, o Estado, quer seja a li­ berdade individual... Como vimos, o próprio Jesus pode ser transformado em ídolo, em fetiche! Terminando, gostaria de lembrar dois nomes divinos que me parecem em particular consonância com a expecta­ tiva do homem de hoje. Temos necessidade de invocar a Deus como o antidestino e como aquele que é solidário. Ele é, ao mesmo tempo, Aquele-que-vem e Aquele-que-está­ conosco.

A. Deus, o antidestino Invocar a Deus como antidestino é sublinhar a origina­ lidade do Deus bíblico em relação aos deuses pagãos. En­ quanto os deuses pagãos impunham ao homem o fardo de uma fatalidade insuperável, a revelação do Deus bíblico coin­ cide com a boa nova de libertação dessas falsas fatalidades. Deus deve ser chamado, esperado, como aquele que desfataliza a história em geral e a nossa história pessoal. Como nos convida o marxismo, devemos rejeitar as preten­ sas fatalidades da história em nome do poder criador da liberdade humana. Ora, um certo Deus do teísmo parece fazer o jogo dos determinismos mais estáticos do mundo. E a crença num Deus providência, que previu tudo anteci­ padamente, parece contradizer a idéia de novidade no plano da história. Nesse caso, a história não passaria do desenro­ lar de cenário previamente escrito. Mas, se temos o senso do Deus bíblico e do Deus de Jesus, podemos dizer que a história não escapa a Deus, sem fazermos de Deus um superagente que faça concorrência

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com a ação humana. A criação não deve ser entendida como uma coisa em tudo acabada. Ela é o campo das possibili­ dades do homem como co-criador em nome de Deus; é este o sentido da história humana. O desígnio criador de Deus é que o homem e toda a criação tenham sucesso. Deve-se até dizer que· a liberdade humana é o lugar da ação divina no mundo. Por isso a responsabilidade humana é tão grande. Segundo a originalidade da história no sentido bíblico, a verdadeira dialética não é a do presente e do eterno, mas a do presente e do futuro.18 Deus não se define como o eterno presente, como o lugar das idéias ou dos valores dos quais o mundo e a história seriam apenas manifestações, mas como o Deus do futuro, o Deus da promessa. � este o nome revelado a Moisés: "Serei quem serei", e não "serei como sempre fui". � correto, pois, chegar ao ponto de dizer que em Deus há mais novidade do que imutabilidade já definida vez por todas. Se a verdadeira categoria da história não é o passado, mas o futuro, a história é aberta, voltada para um Deus na frente, que surge do futuro.19 Não basta falar de Deus em termos de futuro imprevisível. Deve-se falar do futuro de Desus mesmo. Com efeito, se tomamos a sério o evento Cristo como vinda de Deus para a história humana, devemos dizer que o futuro de Deus e o futuro do homem são inseparáveis. Não estando acabado o devir da humani­ dade, podemos dizer que o futuro de Deus permanece aberto. Parece-me, em todo caso, que desi gnar Deus é, para o homem, um modo de escapar à dura lei da repetição da mesma coisa, à opressão de destino inelutável, cujo signifi­ cante mais trágico é a morte humana. Por isso, o nosso Deus é o Deus da esperança, o Deus da promessa, o Deus sempre novo, que se dá a conhecer nos acontecimentos 28 Sabemos o quanto

J.

Moltmann, em sua Théolosle de l'espé­ quase demasiadamente sistemático, essa oposição entre a história no sentido bíblico e a história no sentido grego: Théologie de l'espérance (�Cogitatio Fidei" 50), Cerf-Mame, Paris, 1970 (cf. ed. bras : Teologia da esperança, Loyola, São Paulo, 1971). 29 Cf. W, Pannenberg, "Der Gott der Hoffnung", in Grundifragen systematischer Tlieologie, Gottingen, 1967, pp. 387-98. rance, sublinhou, de modo

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imprevisíveis. A prova por excelência de que Deus é libcr.. tador é a ressurreição de Jesus. E a energia da ressurreição como antidestino, como vitória sobre a morte e sobre todas as formas de negatividade, está agindo na história. A fé em Deus coincide com a necessidade de pôr uma alteridade ou uma "exterioridade" em relação à intolerável clausura da úna­ nência histórica. Por .isso não podemos contentar-nos com nenhuma religião da totalidade, seja a do homem, a do pro­ gresso, a do futuro, seja mesmo a de um panteísmo. É essa "exterioridade" que fundamenta nossa responsabilidade in­ finita em relação a outro, cujo rosto é a epifania de Deus ( cf. E. Levinas). Deus é, pois, aquele que desfataliza a história. Ele é outro nome da liberdade e da graça em nossa vida. Nós es­ tamos todos sob a lei, estamos todos sujeitos a leis econô­ micas e sociais, somos todos necessariamente para a morte. Toda a questão consiste em saber se o homem se define somente pelo que pertence ao "disponível" para ele ou tam­ bém por uma abertura misteriosa, irredudvel às estruturas so­ ciais, econômicas e políticas que o determinam necessariamen­ te. A senha do humanismo ateu era: "É necessário suprimir Deus para que o homem exista." Talvez estejamos começando a verificar a urgência de um novo humanismo que redescu­ bra essa verdade muito antiga: "É necessário que Deus vi­ va para que o homem exista." "Dize-me qual é teu Deus, _e te direi o que é o homem para ti." Ou, como diz Moltmann: "Deus é a crítica do homem. "30 � B. Um Deus solidário O Deus que vem, o Deus "antidestino" é também o Deus conosco, o Deus solidário. E seria necessário mostrar que o Deus de Jesus é o Deus solidário porque é o Deus crucificado. Encontramos aqui a objeção fundamental contra a exis­ tência de Deus: o poder do mal em todas as suas formas 30 Cf. J. Moltmann, L'homme. Essai d'anthropologie chrétienne, Cerf-Mame, Paria, 1974, p. 123.

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na condição humana. O processo movido contra Deus por não cessa em nossa história contemporânea. Apraz-me citar observação colhida num artigo já antigo: "Diante do escandaloso sofrimento do inocente, chame-se ele Jó, morra no Calvário ou em Auschwitz, o simples teísmo se torna definitivamente ridículo. "31 E Moltmann escreve em seu li­ vro Le Dieu crucifié: "No fundo, a questão da história do mundo é a questão da justiça. E essa questão deságua na transcendência. A questão de saber se Deus existe ou não é questão especulativa em face do grito dos que são assas­ sbados e dos que foram para a câmara de gás. "32 Ou ainda: "Em si, a questão da existência de Deus é ninharia diante da questão de sua justiça no mundo. "33 Perante a questão lancinante do mal, sentimos com a maior vivacidade o impasse de todas as teodicéias. Não se responde ao injustificável simplesmente recorrendo à confis­ são de Deus como todo-poderoso, sábio e bom ... Somos convidados, ao contrário, a reinterpretar a oni­ potência de Deus a partir da última manifestação do nome de Deus na Cruz de Cristo. E aqui merece reter nossa aten­ ção a audaciosa tentativa de Bonhoeffer. Ele muda o esque­ ma de Feuerbach segundo o qual o homem se esvazia de si mesmo num absoluto ilusório que é Deus, mostrando que na revelação bíblica Deus não se enriquece a expensas do homem. O homem não é esgotado pela fé bíblica; muito ao contrário, Deus morre para que o homem viva. É a religião em geral que remete o homem à onipotênica de Deus. A Bíblia remete o homem à fraqueza e ao sofrimento de Deus. Devemos chegar ao ponto de falar, com o P. Varillon, da humildade de Deus34 diante de sua criação, como se Deus fosse impotente diante do desencadeamento das forças do mal. Deus não nega o mal, mas se encarrega dele livremente, faz-se solidário em Cristo para àboli-lo. Veus é o antimal



31 P. Watte, "Job à Auschwitz", in Rev. Théol. de Louvain 4, 1973, p. 189, citado por A. Gesché, "Retrouver Dieu", in La Foi et /e Temps 6, 1976, p. 139. 32 J. Moltmann, Le Dieu cruciJié {"Cogitatio Fidei" 80), Cerf, Paris, 1974, p. 199. 33 J. Moltmann, op. cit., p. 252. 34 F. Varillon, L'Humilité de Dieu, Centurion, Paris, 1974.

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e não deixa ao mal a última palavra. Mas ele quer ter neces­ sidade dos homens. Como diz Nabert, "a vida de Deus é confiada a nós". Essa humildade de Deus é a marca de seu amor, não sendo, portanto, contraditória de sua onipotência. Ela é, antes, a manifestação orivilegiada de sua glória, diria Lutero. Somos então convidados a participar, seguindo a Cristo e com ele, do combate de Deus contra o pode,r do mal. Os deuses pagãos são "poderes"; o Deus de .Tesus é fraco e sofre. No nome blasfematório de "Deus crucificado" o que nos é mostrado, antes de toda teologia da redenção, é a solidariedade de Deus com o injustificável por exce­ lência, a saber, com o inocente que sofre. Conviria encerrar essa reflexão sobre o nome próprio de Deus lembrando a linguagem da Cruz (logos staurou), da qual nos fala são Paulo na primeira carta aos Coríntios, em 1,18. A linguagem da Cruz, que é loucura para os ho­ mens, na verdade é poder e sabedoria de Deus. 35 A nota dis­ tintiva de uma teologia cristã dos nomes divinos vem da maneira pela qual ela considera a linguagem da Cruz. Existe uma "condenação à morte" da linguagem sobre Deus que vem do contraste doloroso entre a ausência de Deus e a presença do mal no mundo. Devemos "praticar" Deus, em vez de discorrer sobre ele. :É justamente aquele que vive silenciosamente o serviço aos homens como forma privile­ giada de nosso culto a Deus que saberá invocá-lo com os nomes que lhe convêm. A morte de Cristo, ao condenar todo discurso carnal sobre um Deus demasiadamente familiar, restitui-nos o uso duma palavra segundo o Espírito sobre o Deus único, que é, ao mesmo tempo, o Deus três vezes san­ to e o Deus próximo.

35 "O Logos da Cruz é bem um logos, um dito; mas esse dito desconcerta de tal forma nossos pensamentos que só pode ser lou­ cura; e é enquanto loucura que ele é poder de Deus.• l'al é, parece, o teor mais provável da proposição paulina. Cf. S. Brenton, le Verbe et la Croix, Desclée, Paris, 1981, p. 103.

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8 "PAI" COMO NOME PRÓPRIO DE DEUS

A célebre oposição entre o Deus dos filósofos e·o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó se tornou quase trivial. O processo de helenização do cristianismo não data de hoje. Mas depois que Heidegger denunciou a contaminação recí­ proca do conceito de ser e do conceito de Deus no discurso ontoteológico, a teologia cristã se encontra diante de situação nova. Quero dizer que não podemos contentar-nos tom per­ petuar o debate sobre o conflito entre a teologia natural e a teologia dialética. Em filosofia como em teologia a paisa­ gem mudou. E necessário ver que a crise da metafísica não levou necessariamente ao positivismo lógico. Um autor co­ mo E. Levinas, por exemplo, propõe uma alternativa à do­ minação exclusiva do logos grego, procurando um "espaço de transcendência" na relação ética a outrem. E a crise da teologia metafísica não foi dar necessariamente num funda­ mentalismo bíblico. Em função da crise do teísmo, a teolo­ gia contemporânea se caracterizà por uma "concentração cris­ tológica". Mas nem por isso ela renuncia a pensar o ser de Deus. Ao contrário, ela procura pensá-lo mostrando o nexo indissociável entre a teologia trinitária e a cruz de Jesus. A teologia tradicional atribui a si a tarefa de harmoni­ zar o Deus dos filósofos com o Deus da Bíblia. Mas com muita freqüência correu o. risco de comprometer a originali­ dade do Deus que se revela em Jesus. Inversamente, entre­ tanto, é verdade que não se pode dissociar completamente

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o Deus da razão do Deus da fé, como procurou fazer a teologia dialética na linha de Pascal e K.ierkegaard. O Deus que se revela na história é também o fundamento de todo ser criado. O Deus atingido pela razão não é um outro Deus, mesmo que se trate de um Deus diferente. Alguns, como Hans Küng. propõem efetuar uma Aufhebung do Deus dos filósofos ao Deus da Bíblia.1 Mas como entender isso? Seja qual for a seriedade da negação nessa assunção dialéti­ ca, não é ainda consentir numa "reconciliação" cheia de am­ bigüidades? Prefiro a via já decidida de E. Jüngel, para o qual a renúncia ao Deus dos filósofos não nos dispensa, de forma alguma, do dever de pensar o ser de Deus.2 A tarefa histórica da teologia consiste mesmo em elaborar a idéia cristã de Deus de maneira ainda mais rigorosa do que a idéia de Deus da filosofia. Assim, tomar conhecimento do desmoro­ namento do conhecimento metafísico de Deus não nos leva de forma alguma a substituir o pensar Deus por um crer e, finalmente, por um agir. Trata-se de pensar o que cremos a partir da revelação. Para chegarmos a verdadeiro conceito cristão de Deus deveríamos ver, particularmente, em que medida é possível pensar, ao mesmo tempo, Deus e o transi­ tório-perecível (die Vergãnglichkeit). 3 Justamente disso é in­ capaz o pensamento metafísico, porque ele não pode ter um conhecimento positivo do que passa e morre. É nesse contexto cultural e teol6gico que devemos en­ tender o sentido desse novo capítulo sobre Deus Pai. Seria necessária longa explicação para tratarmos com a seriedade que convém o problema da aplicação do nome "Pai" ao Deus dos cristãos em sua diferença com o Deus dos filóso­ fos. Depois de lembrar brevemente a revelação bíblica do Deus Pai, contentar-me-ei com sugerir duas pistas de pes­ quisa. Procuraremos mostrar, cada vez, que o nome "Pai" t H. Küng, Dieu existe-t-il? (Existiert Gott?), Seuil, Paris, 1981. p. 770. 2 ª Abschled vom 'Gott des Philosophen' ist also alles andere ais Abschied von der Pflicht, Gott zu denken": E. Jüngel, Gott ais Geheimnis der We/t, Tubinga, 1977, p. 269. 3 Cf. E. Jüngel, op. cil., p. 270.

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é o mais adequado para manifestar a novidade do Deus de Jesus, não só em relação ao Deus dos gregos, mas também em relação ao Deus dos judeus. Não é essa a intenção con­ fessada de Paulo quando opõe às razões procuradas pelos gregos e aos sinais pedidos pelos judeus a linguagem da Cruz como última palavra na qual Deus se dá a conhecer?

I. A REVELAÇÃO B1BLICA DO DEUS PAI

1. Convém notar, inicialmente, que seria abusivo pro­ curar no nome "Pai" o traço característico do Deus de Is­ rael em sua diferença do Deus-princípio do pensamento gre­ go ( trate-se do Bem de Platão, do primeiro Motor de Aris­ tóteles, ou do Um de Ploti.no ) . O Deus de Israel é o Deus pessoal por excelência, o Deus vivo, ao mesmo tempo todo outro e todo próximo. Mas o que surpreende é a hesitação do pensamento bíblico em designar Deus como Pai, quando essa designação era corrente e mesmo banal no Oriente antigo. À diferença dos mitos pagãos sobre a genealogia dos deuses, a paternidade de Deus no sentido bíblico é totalmente dissociada da idéia de geração ( cf. o sentido inteiramente específico do verbo bara para designar o ato criador) . Deus é designado como Pai em relação coin um ato de eleição, que é também indissociável de sua intervenção his­ tórica em favor de seu povo. Deus é o pai de Israel, não o pai dos homens. "A novidade radical é que a eleição de Israel como primogênito manifestou-se num ato histórico, a saída do Egito. O fato de a paternidade de Deus ter sido posta, assim, em relação com urna ação histórica modifica profundamente a noção de pai. "4 Nas narrações contidas na teologia das tradições históricas ( cf. von Rad), o Deus de Israel é mais herói libertador, um actante, do que Pai. Essa reserva dos hebreus a respeito· da figura do pai e sua con4 J. Jeremias, Abba, fésus et son Pere, trad. franc., Seuil, Paris, 1972, p. 11. 172

cepção absolutamente transsexual da paternidade divina nos convida, pois, a não carregarmos esse símbolo de traços uni­ camente masculinos, em conformidade com al gu mas exigên­ cias atuais, que reagem, com razão, contra representações muito exclusivamente masculinas ou mesmo paternalistas de Deus. Segundo a intuição de Paul Ricoeur, é necessário atin­ gir o "grau zero" na fi gu ra do pai para poder ousar in­ vocar Deus como "Pai". 5 � um movimento que se inicia com os profetas ( Oséias, Jeremias, o Terceiro Isaías). Mas então Deus Pai não é mais somente o antepassado, a figu ra da origem, mas o pai de uma nova criação, de uma nova aliança. Mais ainda, é numa espécie de lin gu agem indireta que Deus é invocado como pai: "Eu dizia·: V6s me chama­ reis 'meu pai', e não vos afastareis de mim" {Jr 3,19). Deus é o pai que perdoa as infidelidades de seu povo Israel. E para evitar a identificação da fi gu ra do pai com a de geni­ tor ou de dominador, ela é completada em Oséias por outra fi gu ra de parentesco, a do esposo. 2. O Novo Testamento não cessa de pôr nos lábios de Jesus o termo "Pai" ( setenta vezes ... ). Não cabe aqui um reestudo deste ponto.6 O que merece ser destacado é o nexo entre a insistência de Jesus na paternidade de Deus e a pregação sobre o reino que vem ( cf. os pedidos do pai-nosso). Jesus não anuncia um Deus diferente do da Alian­ ça. Mas, à diferença de João Batista, estende a paternida­ de misericordiosa de Deus aos pecadores e aos ímpios. Deus é o pai dos desgarrados ( cf. a parábola do filho pródigo). Há uma evolução em relação ao Deus de Israel, à medida que Deus é o Deus da graça antes de ser o Deus da lei. O pertencer ao povo eleito não garante a salvação, mas sim 5 Cf. P. Ricoeur, "La Paternité:

du fantasme ao symboJe•, in

Le Conflit des interprétations. Essais d'herméneutique, Seuil, Paris, 1969,

p. 476. 6 Além dos estudos clássicos de J. Jeremias e W. Marchei (Dieu Pere dans /e Nouveau Testament, Cerf, Paris, 1966, remeto de modo especial às páginas de E. Schillebeeckx sobre a experiência do Deus Pai por Jesus: Jesus: Die Geschichte von einem Lebenden, Baslléia­ Viena, 1975, pp. 227-40 (cf. a abundante bibliografia sobre o assunto na p. 227).

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o pertencer ao reino que vem. E como é necessário entrar nele como criança, o nome privilegiado com o quJl ;;e deve invocar a Deus será o de Pai. Por outro lado, é em função da proximidade escatológica do reino que vem, que devem ser interpretados todos os textos do Evangelho que nos fa. Iam da providência paterna de Deus, que faz o sol levan• tar-se e a chuva cair sobre bons e maus e que cuida dos pássaros do céu e das flores do campo. Isso já é suficiente para nos mostrar a distância entre uma concepção metafísica do Deus providência e a revelação judaico-cristã do Deus Pai. Segundo a observação de W. Pannenberg, não podemos opor a linguagem sapiencial de Jesus à sua linguagem escatológica. "A proximidade escatológica do reino de Deus descobre a proximidade de Deus em relação ao homem e a todas as criaturas em geral, revelando assim o destino 'natural' da existência humana. " 7 3. O movimento que vai da designação à invocação, que já observamos nos profetas, tem seu acabamento na oração de Jesus: Abba. Como mostrou Jeremias, essa expres­ são aramaica absolutamente insólita em toda a literatura ju­ daica paralela não exprime só a obediência filial de Jesus em sua relação com Deus, mas é também "a expressão de uma relação única com Deus" .8 Essa comunhão única entre Jesus e seu Pai é atestada pelo célebre logíon de Mt 11,27 ( "ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho"), de cuja autenticidade não temos razão para duvidar. Se levarmos em conta, além disso, a distinção muito clara estabelecida por Jesus entre "meu Pai" e "vosso Pai", reservado aos discípulos (Mt 5,45;6,1;7,ll; Lc 12,.32), podemos afirmar que, em Jesus, Deus se revelou como Pai de um Filho único. Estamos, então, na presença de uma etapa radicalmente nova na revelação do nome de Deus como Pai. Os homens são filhos à medida que partici­ pam da relação única de Jesus com seu Pai. A revelação da paternidade de Deus aos homens é indissociável da revela7 gitatio 8 1974,

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W. Pannenberg, füquisse d'une christologie, trad. franc. ("Co­ Fidei" 62), Cerf, Paris, 1971, p. 293. A. Vergote, lnterprétation du langage religieux, Seuil, Paris, p. 125.

çiio da filiação única de Jesus. Há paternidade porque há filiação. E há filiacão porque há, pelo dom do Espírito, comunhão com o Filho único. "Eis a prova de que sois real­ mente filhos de Deus: Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba, Pai" ( Gl 4,6).

II. DA ATRIBUIÇÃO A INVOCAÇÃO

Com o que dissemos foi possível descobrir na Bíblia um movimento que vai da designação de Deus como Pai à sua invocação. De modo semelhante podemos constatar uma conquista do nome acima de sua atribuição geral. :É toda a distância entre a apelação geral El, que a Setenta traduz o mais das vezes por Theos e a denominação indizível de Deus como IWHW. Apoiados nesses indícios, podemos refletir em tudo o que separa o discurso filosófico sobre Deus da linguagem religiosa. O pensamento metafísico pode atribuir certo número de nomes a Deus. Mas somente a revelação feita por Deus mesmo de seu nome próprio é que nos per­ mi te invocá-lo como tal. O nome próprio não designa esta ou aquela proprie­ dade, mas a pessoa no que ela tem de irredutível. Na ver­ dade, o nome não significa nada, mas me permite ser identi­ ficado como "eu" e ser reconhecido pelos outros no que tenho de único. Em outras palavras, não há nome próprio fora do intercâmbio dialogal. Como vimos, o nome divino de Pai não pertence de maneira exclusiva ao judeu-cristianismo, à diferença do te­ tragrama, que é privilégio de Israel. Trata-se de representação humana de Deus ( que procede do que Hegel chama de "fé ingênua" ) . Mas desde que cremos que Deus se revelou como Pai, ele instaura o homem como seu interlocutor com o poder de designar com este nome o "tu" indizível de Deus. Invocando Deus como "Pai", não significamos tal ou tal qualidade em Deus, mas exprimimos simbolicamente o reconhecimento recíproco entre o homem e Deus. Devemos mesmo dizer, com A. Vergote, que o nome Pai aplicado a

Deus é coisa diferente do símbolo. O símbolo sempre expri­ me uma superdeterminação de sentido, à medida que é vi­ sado um segundo sentido com base no primeiro. "Ora, o nome paternal de Deus, por mais inesgotável que seja o seu sentido, não pertence ao registro dos conceitos super­ determinados. Chamando a Deus de Pai, no sentido forte do termo, o homem exprime um sentido preciso que não remete mais a um segundo sentido. É que o termo não procede do pensamento significante, mas da palavra reco­ nhecente. " 9 O estatuto do nome de Pai nos confirma que ele per­ tence à linguagem originária sobre Deus em sua diferença da linguagem especulativa da atribuição, filosófica ou teológica, a mesma que comanda enunciados como: Deus é simples, perfeito, bom, imutável, infinito, todo-poderoso etc. Nisso está toda a diferença entre a linguagem religiosa, que é a da invocação, e a linguagem filosófica, que é a da atribuição, que procede por composição intelectual e na qual Deus está em posição de sujeito de certo número de predicados. A reflexão sobre o nome Pai coloca, pois, com agu­ deza, o problema da correlação entre os nomes pessoais do Deus bíblico e os atributos de Deus identificado com o Ser absoluto ou Princípio. "Talvez seja necessário dizer com toda a firmeza possível que o Ser e Deus são diferentes, e que a idolatria ameaça os maiores (Heidegger, mas tam­ bém santo Tomás), desde que pensem em identificá-los. "1 º É, aliás, notável que o nome Pai não se encontre nos tra­ tados clássicos que estudam os nomes divinos. Falar de atributos a propósito de Deus encerra sempre o risco de fazer pensar em propriedades que ele tenha em comum com outras essências ( Karl Barth prefere falar de perfeições, que sublinham melhor a singularidade do ser de Deus) .11 Por isso, Dionísio Areopagita não deixa de corrigir a ina­ dequação dos nomes divinos, levando a sua negação ao ex­ tremo. Por fim, para salvaguardar a superessencialidade de 9 J. Jeremias, op. cit., p. 69. 10 J.-L. Marion, L'Idole et la distance, Grasset, Paris, 1977, pp. 270-1. 11 K. Barth, Dogmatique, trad. franc., II, 1, 2, Labor et Fídes, Genebra, 195_7, p. 69.

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Deus, que desafia todos os nossos conceitos, afirma ele que Deus é inominável. Seja qual for a correção trazida pela via-nef!_ationis, o movimento de pensamento iniciado pelo Pseudo-Dionísio na teologia cristã procede da capacidade do saber humano em sua vontade de dispor do divino num conceito de Deus como Ser supremo. Quando este último assume a figura da Causa sui, pode-se perguntar se o saber humano não com­ pletou a idolatria de Deus. E a substituição do saber me­ tafísico pelo saber transcendental não modifica radicalmente a hybris do conhecimento humano em sua vontade de dispor do divino. É sempre o cogito no princípio da denominação de Deus. Ora, à autodenominação de Deus como Pai cor­ responde em primeiro· lugar a escuta do homem, o consen­ timento em um nome sem nenhuma autofundamentação pré­ via de sentido. É, pois, seriamente permitido perguntar se o teísmo filosófico pode pretender chegar a algo que não se:ja um divino anônimo. O pr6prio K. Rahner não pensa que o saber metafísico possa encontrar o Deus pessoal da fé. Se é possível uma teologia, uma teologia que chegue a uma objetivação de Deus, isso se dará necessariamente sobre a base da comunhão reveladora que Deus faz de seu nome. Em todo caso, uma teologia cristã que tome a sério a autodenominação de Deus como Pai é convidada a pesqui­ sar - além de todos os ídolos conceptuais do divino o que se oferece ao pensamento no Deus divino da reve­ lação. A possibilidade e, ao mesmo tempo, a tarefa de nossa situação hist6rica consiste em medir o que distingue o Deus Pai revelado em Jesus do Deus da ontoteologia. Já citamos acima a palavra de Heidegger a propósito desse Deus: "A esse Deus o homem não pode nem orar nem oferecer sacri­ fício. Diante da Causa sui ele não pode cair de joelhos cheio de temor, nem tocar instrumentos, nem cantar ou dançar." 12

12 M. Heidegger, Identitiil und Di/ferenz, Pfullingen, 1957, p. 70. Cf. acima, cap. 7, nota 9.

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III. O DEUS PAI OU A "VIDA DIFERENCIADA" DE DEUS Do que precede podemos concluir que a paternidade não é conceito filosófico. Ela é da ordem da vinda e do reconhecimento. Não podemos especular sobre o conteúdo da paternidade divina fora do ato de enunciação pelo qual Deus declara sua identidade. Eu desejaria agora continuar minha reflexão sobre a originalidade de Deus Pai em sua diferença com o Deus do teísmo filosófico, mostrando que a escuta do que advém na figura revelada do Pai nos ajuda a demistificarmos as ilu­ sões do projeto especulativo sobre Deus como também do desejo imaginário do Absoluto. Estamos aqui em presença de dois registros diferentes. Mas a psicanálise nos ensina o quanto nosso desejo de plenitude de sentido se enraíza em nossa paixão mais arcaica da origem. Trata-se aqui sim­ plesmente de sugerir que o dogma trinitário nos remete a um Deus diferente daquele do pensamento metafísico e co­ mo que fundamenta a verdade da relação de filiação entre o homem e Deus. A. Um Deus diferente "Deus diferente" é o título de um livro de C. Duquoc, no qual se lê: "A simbólica trinitária exprime que a Rea­ lidade de Deus encerra diferenças, evocadas pelas imagens do Pai, do Filho e do Espírito e tradicionalmente inter­ pretadas em termos de 'pessôas'. " 13 O Deus do saber onto­ teológico é o Deus da identidade, da coincidência consigo me'Smo, da perfeição não afetada por nenhuma alteridade, da auto-suficiência e da contemplação de si mesmo. A viqa do Deus que se revela em Jesus é uma vida diferenciada. Ele é Pai, Filho e Espírito, isto é, ultrapassa não só a contemplação narcisista de si mesmo, mas também o es­ colho do face a face extático. O papel do Espírito consiste em significar e realizar a comunhão diferenciada de Deus 13 C. Duquoc, Dieu différent, Cerf, Paris, 1977, p. 119.

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e sua abertura ao que não é divino. Deus não só é diferente em si mesmo, mas também suscita diferenças. Vê-se assim tudo o que separa a lógica de um saber sobre Deus sob o signo da identidade e uma teologia cristã sob o signo da diferença. No primeiro caso há o perigo de Deus ser apenas a cópia do homem, e então o ateísmo seria uma saída lóg-ka. No segundo, Deus pode tornar-se a abertura liber­ tadora do homem. Uma teologia trinitária sob o signo da diferença nos convida, pois, a conjurarmos os perigos do pensamento me­ tafísico quando ele se contenta com representar Deus co­ mo o inverso do homem. Conhecemos essa lógica do Abso­ luto, que corresponde, aliás, �o sistema de projeção pelo qual o homem procura escapar à suá finitude. Deus é o ideal da perfeição, ao passo que o homem se define pela sua falta; Deus é eterno, ao passo que o homem está sujeito ao tempo; Deus é imutável, ao passo que o homem é mutável; Deus é inalterável, ao passo que o homem é afetado pelo sofrimento etc. Assim, a diferença entre Deus e o homem é pensada unicamente em termos de oposição. E uma cristologia centrada unicamente na união hipostática ainda permanece prisioneira dessa oposição, se não se per­ guntar em que coisa Cristo, enquanto revelador do Pai, põe em causa nossas representações a priori sobre Deus e o homem. Ir até o fim no que está implicado na simbólica trini­ tária é cessar de manter-se numa relação de concorrência entre o homem e Deus. É justamente em face de Deus Pai que se instaura a verdade da relação religiosa do homem com Deus, a qual comporta semelhança e diferença.

B. A semelhança na diferença Vimos acima que o Deus Pai da revelação bíblica não é o ancestral que sustenta a eterna nostalgia do homem. Ele é o Deus da promessa que dirige o homem para um futuro inédito. A vinda de Deus Pai no evento de uma palavra na qual ele se diz na primeira pessoa rompe o círculo ima-

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ginário de retorno à origem. Segundo a fórmula de A. Ver­ gote, não se deve confundir "a conquista do originário com a reconquista da origem" .14 O Deus do teísmo filosófico, enquanto se identifica com a plenitude do ser e do sentido, corresponde ao Deus fantasmático do desejo absoluto do homem. A fé no Deus Pai coincide com um ato de reconheci­ mento mútuo. Mas o preço desse reconhecimento é a conde­ nação à morte do fantasma paternal de Deus e de nosso desejo megalomaníaco de sermos corno Deus. Segundo o programa de Paul Ricoeur, trata-se de pas­ sar "do fantasma para o símbolo do Pai". E a solução da crise edipiana é cheia de ensinamentos para o aprendizado de nossa relação de filiação com referência a Deus. Se a psicanálise tem suas suspeitas quanto à imagem paternal de Deus é porque este último pode vir a ser o lugar ideal para a projeção do desejo arcaico do homem. O crente espera tudo de Deus: a imortalidade, a inocência, o cumprimento de todos os seus desejos na ordem do saber e do amor. Ora, "a análise freudiana do complexo de :edipo nos ensina que o filho atribui ao pai uma vida que não é a que recebeu efetivamente dele, mas a que quereria poder atribuir a si mesmo. "15 Daí o desejo de assassínio do pai ou a submissão até à morte à vontade do pai, que são meios simétricos de apossar-se dos privilégios reservados ao pai. A única saída é renunciar à onipotência infantil do desejo, isto é, renunciar de fato a uma identificação mortal com o pai por um reconhecimento mútuo. "Reconhecer-se existir por um outro, aceitar uma palavra como constitutiva e uma lei como estruturante não é mais viver sob o imperia­ lismo do fantasma, mas na ordem simbólica estruturada pela palavra e pela lei. " 16 A economia do desejo, manifestada pela crise edipiana, vem encontrar-se em nossa relação com Deus. Também aqui a prova decisiva será a passagem do "fantasma paterno" 14 Esta fónnula se encontra no importRnte estudo de A. Vergote, "Passion de )'origine et quête de l'originaire", retomado em Interpréta­ tion du langage religieux, cit., cf. p. 44. 15 J.-M. Pohier, Au nom du Pere. Recherches théologiques et psychanalytiques ("Cogitatio Fidei" 66), Cerf, Paris, 1972, p. 105. 16 C. Duquoc, op. cit., p. 102.

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de Deus para a realidade do Deus Pai reconhecido em sua diferença. Nisso está toda a diferença entre uma identifica­ ção imaginária com Deus e uma identificação que aceita o jogo da diferença e da semelhança. Invocando a Deus como Pai, reconheço que recebo minha existência de um outro, mas, ao mesmo tempo, identifico-me como filho e como homem chamado a trabalhar com outros pelo reino. A nossa "divinização" não é, pois, contraditória de nossa humani­ zação. Tornar-se filho é aprender a respeitar a alteridade do que chamamos "Pai nosso". É irmos até o fim numa con­ cepção não utilitarista de Deus e sermos remetidos da au­ tonomia que nos confere nossa identidade filial para a nossa responsabilidade histórica. Assim, a revelação do Deus Pai subverte o que poderia ser apenas relação de concorrência entre o homem e Deus. Devemos substituir a relação "senhor-escravo" pela relação "paternidade-filiação". A única atitude que corresponde à Palavra do Pai é a do filho adotivo que vive sua seme­ lhança, aceitando sua diferença. O homem aceita não ser Deus, mas recebe de Deus ser semelhante a ele. Devemos renunciar ao velho sonho que o demônio sempre sugere ao homem: "Sereis como deuses" (projeto de identificação ima­ ginária com Deus) . Daí por diante o homem é chamado a realizar a palavra de Jesus: "Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito" ( realidade de uma comunhão no Espírito que não elimina as diferenças).

CONCLUSÃO

As breves observações que precedem têm por fim so­ mente mostrar em que a figura revelada de Deus como "Pai" nos leva a uma revolução em nossas representações espontâneas de Deus e da relação do homem com Deus. Não basta exorcizar os ídolos conceptuais do pensamento metafísico; é necessário também mostrar em que o Deus diferente revelado pela simbólica trinitária escapa à crítica freudiana do "fantasma paterno" de Deus.

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Nem tudo, porém, está dito quando lembramos que a condição filial instaurada em Jesus nos orotege contra a projeção de um pai idealizado que só pode ser um concor-­ rente e um rival do homem. Seria necessário ainda meditar sobre a condição de Tesus como Filho, considerando que na cruz ele fez até o fim a experiência do que significa s�r filho. Inicialmente eu sugeriria que somente uma t;;:1,logia da Cruz é que pode pensar o ser do Deus de Jesus em sua diferença com o Deus dos filósofos e dos sábios. (À..'ll· duo dizendo algumas palavras sobre este ponto. A loucura do Logos da cruz ( lCor 1,18) é a última palavra sobre o Pai de Jesus. Quando Jesus renuncia à presença de um Pai idealizado, fazendo a experiência de seu silêncio e de sua ausência, é Deus mesmo que manifesta sua solidariedade com o sofrimento e a morte do homem. Ele dá então a prova de sua diferença radical do Deus todo­ poderoso e apático da tradição filosófica. Morrendo como "abandonado de Deus" (J. Moltmann), Jesus é "levado à sua realização" como Filho ( Hb 5, 7-9). Mas a palavra de Jesus a Filipe, "quem me viu, viu o Pai" (Jo 14,9), recebe então seu alcance decisivo. Precisamente quando o Filho so­ fre por ser abandonado pelo Pai, o Pai também sofre por abandonar seu Filho bem-amado por amor aos homens.17 Deus renuncia às suas prerrogativas para se apagar na huma­ nidade do crucificado. Pôde-se com razão interpretar a últi­ ma palavra da cruz "como renúncia de Deus a si mesmo" (W. Kasper). A teologia trinitária nos remete a um Deus diferente do Deus simples da ontoteologia. Mas devemos ir até o fim na teologia da cruz, se quisermos fazer brilhar a novidade do Deus Pai de Jesus em relação tanto ao Deus da razão como ao Deus de Israel, mesmo não sendo ele um outro Deus. 17 Cf. J. Moltmann, le Dieu crucifil, trad. franc. "Cogitatio Fidei" 80), Cerf, Paris, 1974, p. 280: "O Pai entrega seu Filho à cruz para tornar-se o Pai entregue, dado", e mais adiante: "Abandonando o Filho, também o Pai se abandona. Entregando o Filho, também o Pai se entrega, não, porém, da mesma maneira."

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Assim, para lá do teísmo e do ateísmo, somos impelidos a tomar a sério a Theologia crucis ( é o sentido de E. Jüngel em Dieu mystere du monde). O ateísmo que caracteriza a nossa modernidade nos obriga a elaborar novo conceito cris­ tão de Deus. O ateísmo enquanto negação do teísmo é um momento crítico da teologia cristã. Uma teologia da Cruz não é só a exigência de nossa. situação histórica de falta de fé. Ela é também capaz de enfrentar a questão temível da justiça de Deus no mundo. O mérito de Hegel e, depois dele, de Bonhoeffer, é o de terem proposto uma interpre­ tação teol6gica do ateísmo, mostrando a origem cristol6gica do discurso moderno sobre "a morte de Deus".

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EXPLOSÃO DA HISTÓRIA E SENHORIA DE CRISTO

Em que sentido se pode falar de uma única história a partir de Jesus como Cristo e como Senhor? Essa questão nos remete a outra: pode-se falar de inteligibilidade da his­ t6ria profana ou deve-se dizer que ela, como tal, é sem significação e que s6 tem sentido em função da hist6ria da salvação? Esse assunto pertence à teologia da hist6ria. Mas quem pretende hoje escrever uma teologia da história? Começaremos caracterizando o contexto sócio-histórico no qual se inscreve uma reflexão cristã sobre a história. Em seguida, esforçar-nos-emos por apresentar al gu ns elemen­ tos de reflexão sobre a relação entre a unidade de Cristo e a unidade da história.

I. O CONTEXTO ATUAL DE REFLEXÃO CRISTÃ SOBRE A HISTORIA

Há dois traços que impressionam imediatamente: de um lado, constatamos crise de confiança no sentido da histó­ ria; do outro, a Igreja tem consciência cada vez mais viva de sua responsabilidade hist6rica perante o mundo e o fu­ turo do homem.

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A. Crise de confiança no sentido da história 1. O homem de nosso tempo tem o sentimento de viver sob o signo de uma história trágica, de uma história dilace­ rada, despedaçada... E o ceticismo atual a respeito das filo­ sofias da história nos fornece sobre isso prova irrecusável. Depois de Hegel, os filósofos se esforçaram por mani­ festar a racionalidade do movimento histórico. A história tem um sentido: ela é a mediação do devir do homem como homem e, portanto, de seu reconhecimento por outrem. É pela mediação da história que o homem atinge sua essên­ cia. Este sentido transcende os múltiplos agires dos homens como o movimento da história ultrapassa todas as ações par­ ticulares. E na perspectiva do materialismo histórico, é pelo trabalho do homem que se passa da "pré-história" para a história. Mas, depois do absurdo das duas guerras mundiais, depois da experiência dos diversos totalitarismos, o pensa­ mento ocidental tornou-se mais crítico no que se refere às reconstruções racionais da história. Toda filosofia da histó­ ria que pretenda decifrar o sentido global da história parece voltada ao fracasso.1 Por isso, prefere-se refugiar-se numa pura analítica da historicidade do Dasein, isto é, do tempo que mede a liberdade humana ( cf. R. Bultmann). Contra Hegel, pensamos que a história não é o lugar automático do desdobramento necessário da verdade. E contra pensadores como Pannenberg, pensamos que a história não é o lugar de antecipação não-problemática da totalidade. Uma análise objetiva da história universal leva, antes, a constatar a pre­ sença recorrente de anomia e de dispersão, de desordem e de explosão. 1 •Pode-se falar de 'desenvolvimento', sem se precisar o que é a raiz, 'o que' se desenvolve (e que não poderia ser simples), e sem pôr em relação uma origem que escapa e um fim que ainda não chegou, uma vez que estamos numa história que continua? Até que ponto e em que nível pode-se postular uma humanidade única, que se constrói no tempo, através das fases sucessivas e progressivas?" Tais são as questões que A. Vanel põe ao projeto de história universal H que tenda a interpretar a totalidade da "história vivida ; cf. "L'impact des m�thodes historiques en théologie du XVIe au XXe siecle", in Le Déplacement de la théologie, Bcauchesne, Paris, 1977, p. 36.

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2. Em segundo lugar, deve-se admitir que o marxismo participa da crise geral das ideologias. Sem dúvida ele ainda

é onipresente como instrumento de análise para a denúncia das taras do status quo de nossas sociedades liberais. Mas o grande acontecimento do último decênio, pelo menos para a intelligentzia francesa, é a crise do marxismo como ideolo­ gia - por causa do fracasso de sua pretensão de realizar historicamente o ideal comunista. Seja o que for de seu pro­ jeto abortado de um eurocomunismo que apela para modelo democrático. em oposição ao modelo stalinista, parece que, por uma espécie de destino fatal, todas as revoluções inspi­ radas pelo marxismo chegam ao totalitarismo e aos gulags ... É preciso dizer que as pretensões do humanismo - trate-se do humanismo marxista ou do humanismo burguês - foram desmentidas pelo destino trágico do homem, de um quarto de século para cá. É preferível falar de niilismo a falar de humanismo ateu.2 3. Enfim, devemos lembrar a crise da ideologia do progresso. Com o início do século XVIII a ideologia do pro­

gresso veio encher o vazio deixado pelo recuo da ideologia cristã. Começou-se a acreditar plenamente na evolução da ciência e da técnica para a solução paulatina de todos os problemas e dificuldades do homem. A Igreja começou discordando da ideologia do progres­ so, mas, aos poucos, os teólogos procuraram reinterpretar o cristianismo em função da idéia de progresso. Podemos citar, por exemplo, a teologia de Teilhard de Chardin, que tende a fazer a ideologia do progresso coincidir com a recapi­ tulação de todas as coisas em Cristo. Devemos citar também as teologias da secularização, que funcionam como ideolo­ gias, isto é, que procuram justificar bíblicamente a seculari­ zação do mundo, a vocação demiúrgica do homem sobre a criação e a idéia de que a transformação do mundo pelo homem trabalha secretamente para o advento do reino de 2 A este respeito, veja o número especial de Concilium, sob o título: "La crise de l'humanisme", n. 86 (1973); cf. também C. Geffré, "La crise de l'humanisme et l'actualité d'une anthropologie chrétienne�, in Humanisme et foi chrétienne (Mélanges de l'Institut Catholique de Paris), Beauchesne, Paris, 1976, pp. 473-82.

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Deus. Essa confiança no progresso ilimitado do homem ainda se encontra em alguns documentos do Concílio, como a Gaudium et spes.

O que se oculta atrás das ideologias do progresso e da secularização é a fé no homem. Ora, esta fé no homem está abalada, e Prometeu, que ia bem, não vai mais tão bem. Acreditava-se nas virtudes ilimitadas da razão, isto é, na felicidade e na fraternidade fundada sobre a razão; acredi­ tava-se no poder ilimitado da ciência e da técnica; a ameaça atômica e as incertezas sobre as conseqüências das manipula­ ções genéticas fazem pesar uma angústia surda sobre o fu­ turo da espécie humana. Acreditava-se dominar a natureza: ela está poluída, e então procura-se reencontrá-la e respei­ tá-la ( cf. a ecologia). Numa palavra, o homem, que é definido só pela efi­ cácia, pela rentabilidade, pelo progresso quantitativo, não satisfaz mais. E milhões de pessoas - especialmente entre os jovens - perderam a razão de viver.

B. A consciência cada vez mais viva da responsabilidade histórica da Igreja em relação ao futuro do homem Essa nova consciência está ligada às incertezas que pe­ sam sobre o futuro do homem à situação dramática de um mundo no qual o fosso entre os países pobres do hemis­ fério Sul e os países ricos do hemisfério Norte não cessa de aprofundar-se. Mas essa nova consciência é também indissociável da virada histórica do Vaticano II no que concerne à atitude da Igreja a respeito da Declaração dos Direitos do Homem. Depois de mais de um século de mal-entendidos trágicos, devidos em parte ao contexto "laicista" da explicitação dos direitos do homem no século XIX, a Igreja católica se tor­ nou, neste último quarto do século XX, a maior campeã dos direitos do homem. Não se deve dizer somente: "Do Syllabus ao diálogo" ,3 mas também: do anátema à adesão 3 Referimo-nos à obra de J .-F. Six, Du Syllabus au dialogue, Seuil, Paris, 1970.

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e à promoção dos direitos do homem. Os direitos do homem ( inclusive o direito à liberdade religiosa) não são somente tolerados pela Igreja. Segundo a palavra de Paulo VI, eles se tornaram uma exigência do Evangelho ( Sínodo de 19.7 4 ) ( cf., abaixo, cap. 13). Afirmar que a defesa e a promoção dos direitos do homem são uma exigência do Evangelho é admitir que é impossível dissociar a evangelização da promoção humana na única missão da Igreja ( cf. a exortação apostólica de Paulo VI: Evangelii nuntiandi).

C. Deslocamento das teologias da história Esse novo contexto sócio-histórico trouxe uma rev1sao das teologias demasiadamente otimistas do trabalho, das rea­ lidades terrestres e da história. A pontarei somente uma dis­ tância maior perante a síntese teilhardiana, um reequilíbrio das teologias políticas e das teologias da libertação e uma crítica da teologia dos sinais dos tempos.

1. O otimismo evolucionista de Teilhard Todas nós somos teilhardianos no que se refere à sua vontade de reconciliar a Igreja e o mundo e à sua ms1s­ tência na unidade da história, história da salvação e história escrita pelos homens. Mas somos todos também p6s-teilhar­ dianos no sentido em que temos consciência muito mais aguda sobre o aspecto trágico da história e dos conflitos de toda sociedade humana. O mal não é somente o "sangue da evo­ lução" ou o "preço do progresso" como conseqüência do inacabamento do mundo.

A maior limitação de Teilhard é a de permanecer numa visão não-dialética da história, isto é, ele não estabelece uma ruptura trágica entre a matéria e o espírito. O mal é recuperado e tornado meio para um fim. Pode-se dizer com J.-B. Metz que Teilhard confunde a teleologia com a escato­ logia, isto é, que ele tende a explicar a história a partir da 188

natureza. 4 Ora. o substrato da hist6ria humana não é a Natureza considerada como simples desenvolvimento ou co­ mo uma esoécie de processo arônimo. A história do ho­ mem é a história de sua liberdade e de sua paixão. Uma filosofia da história que não torne em conside­ ração o sofrimento dos homens dá interpretação não-dialé­ tica da hist6ria, interpretação abstrata da htst6ria polarizada por concepção mítica da emancipação do homem, na qual os conflitos e as catástrofes da liberdade não são levados em conta. A história tende a se identificar com a história dos vencedores, isto é, com uma espécie de darwinismo ins­ pirado no princípio de seleção. Ora, a história concreta do homem nos remete à Alteri­ dade de um Deus libertador, que faz justiça a todos, aos vivos e aos mortos, e não a um Deus evoluidor ( Cristo Omega). 2. O reequilíbrio das teologias políticas e das teologias da libertação

Em primeiro lugar é preciso lembrar que as teologias da secularização e as teologias políticas foram objeto de intensa crítica por parte dos teólogos da libertação. Eles acusam os teólogos europeus de pecarem numa concepção individualista da liberdade como emancipação e de assim fazerem o jogo de certa privatização do cristianismo.5 Che­ ga-se afinal a uma justificação teológica do mundo moderno como mundo profano e fornece-se aval teológico a um tipo de sociedade sob o signo da racionalidade técnica, do cresci­ mento a qualquer preço e do trabalho desumanizante. Mas é necessário mencionar também o reequilfürio da teologia política por Metz ( d. A fé em história e sociedade) e por Moltmann ( cf. Le Dieu crucifié). 4 "O sofrimento põe a contradição entre a natureza e a história, entre a teleologia e a escatologia", J.-B. Metz, A fé em história e sociedade, Edições Paulinas, São Paulo, (1981). 5 Veja parucularmente as contribuições de E. Dussel e J. L. Se­ gundo no número especial de Concilium: Praxis de libération et foi chrétienne. Le témoignage des théologiens latino-américains, n. 96 (1974). 189

Eis alguns perigos inerentes à teologia política, enten­ dida como teologia otimista da história, como podemos re­ sumi-los a partir de J.-B. Matz.6 a. Ela avaliza uma visão finalista da história, isto é, de uma humanidade progredindo sem parar no caminho da reconciliação com a natureza, isto é, ela confunde a teleo­ logia com a escatologia. b. Ela justifica muito depressa um sentido da história como história dos ganhadores, dos vencedores, dos chega­ dos, e não dá nenhum lugar à memória do sofrimento hu­ mano. Em outras palavras, ela corre o risco de abonar cris­ tãmente o tema marxista segundo o qual o "mal-estar" da condição humana deve finalmente ser reabsolvido, graças a certo número da causalidades históricas de ordem socio­ econômica. c. Sem confundir o reino com a libertação política, a teologia política, em sua preocupação de reagir contra a privatização do cristianismo, deixa muito na sombra o fato de que a realização do reino passa pela resposta livre das pessoas ao apelo de Deus. Em outros termos, a história como movimento de humanização não é o sacramento au­ tomático da vinda do reino de Deus. A libertação social e política pode somente criar condições ou espaço para a li­ berdade. d. Do ponto de vista da integridade da mensagem cristã, as teologias políticas têm muita dificuldade em jus­ tificar teologicamente o fato de que a ressurreição passa pelo caminho da paixão. Assiste-se então a essa crise de identidade das teologias cristãs, sublinhada por Moltmann. A medida que a mensagem cristã é inteiramente adaptada às ideologias seculares, seja a da emancipação do homem, no sentido da Aufkliirung, seja a da liberdade revolu­ cionária, no sentido marxista, ela se torna insignificante e cai ao nível "de paráfrase religiosa supérflua dos processos modernos do mundo" (Metz) . 6 Referimo-nos de modo especial ao artigo: "Lá mémoire de la aouffrance, facteur de l'avenir", in Concilium 16, 1972, pp. 9-25; e ao cap. VI de La foi dans l'histoire et dans la société, cit.

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Metz corrige os perigos da teologia política centrada no futuro a construir mediante a importância que dá à noção de memória. memória do sofrimento e memória da paixão de Cristo. Não oode haver visão da história que apague a memória do sofrimento da humanidade. E é a memória perigosa da paixão de Cristo que permite à Igreja exercer seu papel crítico em relação à sociedade.7 A memória da paixão de Cristo inspira uma visão da história na qual se toma a sério a separação entre o homem e a natureza e se dá lugar à história dos sofrimentos huma­ nos. A história dos sofrimentos do homem não é, como numa perspectiva marxista, capítulo da pré-história da li­ berdade. Ela é e continua sendo elemento intrínseco da his­ tória da liberdade. Devemos até dizer que uma das dinâmi­ cas essenciais da história é a memória do sofrimento - ao mesmo tempo como consciência negativa de liberdade por vir e como estimulante de combate a travar para vencer o sofrimento. Finalmente é o Deus da paixão de Jesus que é o sujeito da história universal. A memória da paixão de Cristo é memória subversiva e perigosa porque interpela o poder social e politico dos ricos e dos detentores do poder. Não basta falar de "reserva escatológica". É necessário apoiá-la na memória da paixão de Cristo, a qual contesta todos os sistemas totalitários e todas as ideologias que preconizam emancipação linear, unidimen­ sional do homem. Ela proíbe o nivelamento da dimensão social e política do sofrimento e nos coage a levarmos em conta, numa sociedade planificada, as pessoas sem poder e sem voz. Além disso, a memória cristã da paixão tem cará­ ter antecipador. Ela é a prefiguração de futuro que será dos que sofrem, dos sem-esperança, dos oprimidos e dos inúteis deste mundo. A identidade cristã só pode ser compreendida como um ato de identificação com Cristo crucificado. "Para o 7 "A memória dos sofrimentos de Jesus deve ressoar, no meio do que é considerado 'aceitável' pela nossa sociedade, como uma evocação ao mesmo tempo perigosa e libertadora, e os dogmas da cristologia de­ vem afirmar-se como fórmulas que lembrem coisas bem incômodas", cf. J .-B. Metz, art. cit., p. 18; cf. também o cap. V de La foi dans l'histoire et dans la sociétl: u Le souvenir dangereux de la liberté de J é&w-Christ •.

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crtstao não existe alternativa entre evangelização e humani­ zação. Não existe alternativa entre conversão interior e mu­ dança das relações e das condições de vida. "8 3. Um juízo mais crítico sobre a teologia dos "sinais dos tempos" Do Vaticano II para cá fala-se mui to em "sinais dos tempos" para designar fenômenos que, no plano humano, sociológico e cultural, caracterizam as necessidades e as as­ pirações de uma época. Diz-se que é missão da Igreja discer­ nir os sinais dos tempos. Esses acontecimentos são vistos como uma praeparatio evangelica para o reino, como "pon­ tos de preparação" em relação ao cumprimento último da história, que será "Deus tudo em todos".9 Guardemo-nos de otimismo um tanto ingênuo e subli­ nhemos que a história humana continua profundamente am­ bígua. Devemos evitar cair numa visão muito antropomorfa da ação de Deus na história como se Deus estivesse mais engajado em certos acontecimentos. Notemos, particularmente, que, na tradição bíblica, a expressão "sinais dos tempos" é ambígua.10 Há, de um lado, a tradição do êxodo, na qual os "sinais e prodígios" são presságios positivos da salvação que liberta o homem e res­ gata o mundo. Do outro lado, há a tradição apocalíptica, na qual "os sinais do fim" são presságios negativos do terrí­ vel fim do mundo. A moderna "teologia dos sinais dos tem­ pos" tem a tendência de interpretar os sinais dos tempos num sentido exclusivamente positivo. O verdadeiro sinal dos tempos é Cristo. Ora, a sua vinda, que coincide com a vinda do reino, é um fator de 8 J. Moltmann, Le Dieu crucifié, tred. frene. ("Cogitetio Fidei » 80), Cerf, Paris, 1974, p. 30. 9 M.-D. Chenu, "Les signes des temps. Réflexion théologique", in. L'Eglise dans le monde de ce temps, t. II, Cerf, Paris, 1967, pp. 205-22; cf. também, "Les signes des temps", in Nouv. Rev. Théol. 81, 1965, pp. 29-39; e "lntroduction: signes des temps" in Concilium 25, 1967, pp. 125-32. 10 A este respeito, veja as justas observações de J. Moltrnann em L'Bglise dans la force de l'Esprit, trad. franc. ("Cogitatio Fidei" 102), Cerf, Paris, 1980, pp. 59-74.

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divisão, de conflito. de crise. O mesmo se pode dizer do anúncio do Evangelho pela Igreja hoje. Por outro lado, antes de vermos nos u sinais dos tem­ " pos uma Palavra de Deus, devemos interpretá-los nos pla­ nos humano, sociológico e cultural. Temos, por exemplo, uma leitura, diferente da de Teilhard, de fenômenos como urbanização, socialização, planetarização, progresso técnico. E, de qualquer forma, mesmo que constatemos progressos reais no nfvel da consciência humana ou da humanização do homem, devemos ainda mostrar o nexo entre esses di­ versos fenômenos e a vinda do reino de Deus. Ainda que isso não seja a última palavra sobre o sentido da história feita pelo homem, podemos estabelecer como regra teológica segura que os diversos acontecimentos da história só são "preparações" para o reino se favorecem a abertura das liberdades humanas para a liberdade divina. Finalmente tudo o que se passa no domínio das relações humanas, da econo­ mia, da política, da ciência e da cultura encontra seu sentido último somente em função da relação fundamental entre o homem e Deus.11

II. UNICIDADE DE CRISTO E UNIDADE DA HISTÓRIA

Depois de termos reconstituído a paisagem histórica e teológica na qual nos achamos, podemos arriscar algumas proposições sobre a unidade da história. Compreende-se, em todo caso, por que é temerário ela­ borar uma teologia da história que dissesse de vez o senti­ do teológico da história humana tomada como um todo, como história universal. Podemos quando muito interrogar­ nos sobre a relação entre a história humana com seus fins próprios e a salvação entendida como cumprimento e recat t Embora não aceite que sejam a última palavra a respeito do sentido teológico da história profana, inspiro-me aqui nas reflexões de P. Valadier, que reage sadiamente contra o uso um tanto fácil da expressão "sinais dos tempos", cf. "Signes des temps, signes de Dieu", in Etudes, agosto-setembro de 1971, pp. 261-79.

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pitulação de toda a criação. Trata-se então mais de teologia da responsabilidade histórica dos cristãos do que de teolo­ gia da história propriamente dita. Nesse sentido, tal teologia da história é inseparável de uma teologia da missão, de uma "hermenêutica do envio" ( cf. abaixo, cap. 14). Devemos procurar a sua via entre dois excessos. De um lado temos os defensores da descontinuidade absoluta, chamados "escatologistas"; do outro, os defensores da con­ tinuidade, chamados "encarnacionistas". 1. A primeira tendência é de homens como K. Barth, R. Bultmann, 12 K. Lowith 13 e sobretudo, atualmente, H. Urs von Balthasar.14 Eles estabelecem absoluta descontinuidade entre o devir da história e a vinda do reino, entre a história profana e a história da salvação. Não existe termo de com­ paração entre o desenrolar da história e o reino que vem de Deus. A história corresponde, sem dúvida, a desígnio providencial de Deus, tendo, por isso, um sentido, mas não cabe a n6s decifrar esse sentido. É necessário mesmo ir mais longe: para Balthasar ( e Bouyer,15 ·antes dele) a relação da história com o reino é negativa. Longe de ser o lugar da manifestação de Deus, a história está submetida à vontade de poder do homem. Assim, falar de progresso da história, que por si mesma pre­ parasse misteriosamente o reino de Deus, é dar pouca im­ portância às afirmações da revelação sobre o mundo, que está submetido à lógica do mal. � também dar pouca im­ portância à Cruz enquanto julgamento sobre este mundo. O que é difícil de aceitar em Balthasar é essa separação muito ríg�da entre a história profana e a história da salvação, separação que vai dar numa secularização cada vez maior da história e numa espiritualização da história da salvação, 12 Cf. sobretudo Histoire et Eschatologie, Delachaux et Niestl�. Neuchâtel, 1959. 13 Cf. K. Lõwith, De Hegel à Nietzsche (trad. franc.), Gallimard, Paris, 1969. 14 Cf. sobretudo De l'intégration. Aspects d'une théologie de /'Histoire. DDB, Paris, 1970. 15 Cf. L. Bouyer, "Christianisme et Eschatologie�, in Vie intellec­ tuelle, out. de 1948, pp. 6-38, e •ou en est la théologie du corps mystique?", in Rev. Se. Rei. 22, 1948, pp. 313-33.

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que não é mais do que a história do Espírito de Deus nos corações, independente das flutuações da história. A história passa a ser apenas o "quadro externo" no qual se joga o drama da salvação, sem que a figura como tal da história tenha qualquer relação com o eschaton. E, por uma espécie de "volúpia apocalíptica", parece que, para Balthasar, o pro­ gresso na caridade é inversamente proporcional ao progresso humano na ordem da imanência histórica. Para falarmos como Moltmann em sua Théologíe de l'erpérance, devemos dizer que Balthasar não entende a his­ tó:da historicamente. Ele é prisioneiro de uma perspectiva platônica, segundo a qual a história é uma sucessão de epi­ fani:..s cambiantes e variáveis do eterno presente. 2. A outra tendência provém do que designei como um "otimbmo evolucionista", que é representado por alguns discípulos de Teilhard e por algumas teologias políticas. Ela insiste n:1 continuidade entre o progresso imanente à histó­ ria e a vinda do reino, entre a promoção humana e a sal­ vação cristã. Dizemos que, segundo essa tendência, a relação entre a salvação escatológica e a construção do futuro no tempo histórico é determinada de maneira unívoca como que seguindo uma linha única. E o que chamei atrás de interpretação teleol6gica, e não escatológica, da história e de confusão entre evolução do mundo natural e história das liberdades . 16 A única interpretação adequada do sentido da história é a interpretação escatológica: ela mantém a história aberta para um futuro, e a história se toma instrumento eficaz das promessas de Deus. Em suma, a relação entre o reino de Deus e a história não pode ser enunciada nem na forma de monismo, nem na de dualismo. Não existe solução teológica para exprimir de maneira satisfatória essa relação. Devemos aceitar ficar em suspenso segundo o logion de Lucas: "A vinda do reino de Deus não é observável. Não se poderá dizer: 'Ei-lo aqui! 16 "Não existe mediação teleológica e finalista entre a naturez.a e o homem", afirma J.-B. Metz contra Teilhard, op. cit., p. 127.

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Ei-lo ali', pois eis que o reino de Deus está no meio de vós" (Lc 17,20). Mas, ao mesmo tempo, devemos refletir teologicamente no acabamento escatológico, levando em conta duas certezas que só se podem conciliar dialeticamente: de um lado, a história concreta é, de certa forma, o lugar em que o mun­ do é transformado a tal ponto que toca o mistério de Deus; do outro, o reino de Deus "dirige" a história e ultrapassa de maneira absoluta todas as possibilidades de cumprimento terrestre .17 Parece-me, por isso, mais adequado empenhar-se na elaboração de uma teologia da práxis cristã ou do envio da Igre;a do que na de uma teologia da história propriamente dita. A história humana é essencialmente ambígua. A função de uma teologia da história não é a de especular sobre o sentido que a história teria em si mesma, mas a de impri­ mir-lhe sentido em função do futuro escatológico, o único que a fé conhece. Não se trata somente de interpretar a história, mas também de transformá-la. Nas proposições que se seguem, inspiro-me em Molt­ mann ( especialmente em sua Théologie de l'espérance), em alguns teólogos da libertação (G. Gutiérrez, L. Boff, J. L. Segundo) e em al gu ns documentos dos teólogos do Ter­ ceiro Mundo.18

A. A história feita pelos homens recebe seu sentido último da humanização de Deus em Jesus Cristo O Novo Testamento não nos propõe nenhuma indicação sobre a data do fim do mundo e nenhum meio para a lei17 A esse respeito, sinto-me bem nesta feliz formulação de E. Brauns: • A teologia da história não visa a justificar o devir humano, mas a conservá-lo a distância, em face à eternidade de Deus: ele se torna emer­ gência positiva e contingente, emergência de um mundo em relação à alteridade de Deus criador", d. "Projet et conditions d'une théologie de l'histoire", in Rech. Se. Rei. 70, 1982, pp. 321-42. 18 Refiro-me particularmente aos documentos publicados no fim dos congressos da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Murido: Dar es-Salam (1976), Acra (1977), Colombo (1979), São Paulo (1980).

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tura da sucessão dos acontecimentos. Mas, com a vinda de Cristo, a história entrou em sua fase última e decisiva. Daí para frente ela está sob a senhoria de Cristo, não podendo mais pretender-se autônoma. Devemos concluir disso que existe insuperável dico­ tomia entre história da salvação e história profana? Po­ demos afirmar, por exemplo, que todo o esforço da his­ tória profana por uma humanização maior do homem e por mais justiça no mundo corresponde somente a uma secula­ rização da esperança cristã? Não deveríamos, ao contrário, mostrar em que a se­ cularização, ou melhor, a "mundanização" é conseqüência da pregação do Evangelho, que ensina a considerar o mun­ do e a história não como poder numinoso e como destino cego, mas como tarefa, como o lugar de nossa responsabi­ lidade? A pregação do Evangelho seria o antidestino da história. 1. Tornando-se homem, Deus se comprometeu defini­ tivamente com a história dos homens. A ação de Deus na história não é da ordem do golpe de força miraculoso. Deus se insere na história para conduzir todas as coisas ao seu acabamento. Mas não se trata de acabamento histórico. A morte está vencida, mas na esperança - não na história. Isso significa que o Novo Testamento assume o ponto de vista dos sábios. Não existe escatologia histórica. f: por isso que o Novo Testamento faz sua a tradição apocalíptica ( cf. Kasemann ) . Entretanto, o fato de recusar uma escatologia histórica, isto é, uma libertação e uma reconciliação total do homem com a natureza na história, não leva a tomar vãs as pro­ messas do Antigo Testamento que têm relação com a histó­ ria. No Antigo Testamento a história da salvação se fundava num acontecimento temporal: a saída do Egito ou ainda a volta do exílio. E se se constata uma evolução para uma sal,. vação do coração, a salvação conserva conotação temporal. Ora, o Antigo Testamento não foi abolido pelo Novo. Os autores do Novo Testamento assumiram a realidade tempo-

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ral, terrestre, política do Antigo Testamento. A salvação no sentido do Novo Testamento é inseparavelmente adoção fi­ lial e sucesso da criação. Se é verdade que a salvação diz respeito ao ser pessoal do homem quanto ao seu destino eter­ no, éla continua a interessàr o todo do homem em seu des­ tino coletivo na hist6ria.19 Se separarmos as bem-aventuran­ ças de seu pano de fundo veterotestamentário, elas podem tornar-se evasão platônica ou 6pio social. E se compreender­ mos bem o alcance do discurso sobre o julgamento escato­ l6gico ( Mt 25), constataremos que ele dá como tarefa his­ t6rica aos discípulos de Jesus a reconciliação anunciada pe­ los profetas. Assim, o Novo Testamento cria um espaço livre. Ele liberta o mundo dos deuses e de uma intervenção miraculosa de Deus. Não recusa a dimensão dramática da história, mas essa dimensão dramática não exclui a possibilidade de reali­ zar uma reconciliação ao nível da história. 2. Essa idéia de realização histórica das promessas pro­ féticas tem seu fundamento no mistério da encarnação. Há uma humanização de Deus em Jesus, e o trabalho do Espí­ rito de Deus na história consiste em fazer aparecer tudo o que significa para a humanidade a decisão pela qual Deus se ligou a ela. Em outras palavras, compete à humanidade tornar-se ela mesma, isto é, realizar suas possibilidades. Cristo nos reenvia, assim, à face histórica de Deus, e esta é o homem. A identificação radical que Jesus faz de si mesmo com todo homem e que é sancionada por dois títu­ los bíblicos, Novo Adão e Filho do Homem, ainda não ex­ plicitou todos os seus efeitos. É necessário, pois, tomar a sério o comprometimento de Deus com a história. O "Filho do Homem" de Daniel vinha do céu e tinha uma aparência humana emprestada. Também Cristo virá dos céus no fim 19 "A salvação ( soteria) deve também 5er entendida, no sentido do Antigo Testamento, como o shalom, que não significa só salvação da alma, libertação individual de um mundo mau, consolação apenas de uma consciência na ·provação, m:as também realização de uma espe­ rança escatológica de justiça, de humanização do homem, de socialização da humanidade e de paz em toda a criação", cf. J. Moltmann, Théologie de l'espérance, trad. frene. ("Cogitatio Fidei" 50), Cerf, Paris, s/d, p. 354.

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dos tempos. Mas, historicamente, ele vem como o servo que é homem entre os homens, que se iden.tifica até com os mais pobres e despojados. A aliança de Deus com o ho­ mem é tão radical que o devir da humanidade importa ao seu mistério de homem, porque, identificando-se ele com todos, o desenvolvimento das possibilidades do homem con­ cerne ao seu próprio desenvolvimento. As promessas escatológicas dos profetas do Antigo Tes­ tamento, enquanto anunciavam uma reconciliação no plano da história, são anunciadas de modo original. Trata-se de libertação relativa, já que a morte não está vencida no plano da história. Mas o sentido da ação humana na história é o de desdobrar as possibilidades humanas e fazer a história convergir para seu ponto de atração: a unidade radical da humanidade na origem, retomada num plano superior em Cristo. Assim, todas as possibilidades da história são recolo­ cadas nas mãos do homem, que é aquele pelo qual se cumpre a função histórica querida por Deus. A verdadeira religião não consiste, daqui para frente, somente em cultos e sacri­ fícios, mas também em fazer reinar justiça concreta. A humanização de Deus faz do homem a mediação real da relação com o Absoluto. O "sobrenatural" não deve ser entendido no sentido de entidade separada. Ele se define por uma relação: a relação do homem com o Deus vivo. Dar de comer aos famintos, transformar as estruturas de uma sociedade injusta, construir a paz são atos de conteúdo humano. Mas de fato eles têm uma significação "transcen­ dente", porque objetivamente neles se lê o alcance histórico da humanização de Deus. A humanização de Deus pôs no mundo o alcance obje­ tivamente "sobrenatural'' ou última tarefa humana. Poder­ se-ia dizer que daí para frente não há mais história profana. Depois da encarnação, sabemos que essa história é a media­ ção e a verificação da relação com o Absoluto. Toda a or­ dem cultuai e sacramental cai na insignificância 9.uando a história não é mais pensada como tarefa a cumprir.--º 20 Em nossa opinião, o fundamento radical da positividade da história humana deve ser procurado no mistério da encarnação, mas,

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B. A Igreja é o sacramento da presença do Espírito de Deus em toda a criação e em toda a histórià humana A Igreja como sacramento da salvação, como sinal da reunião de todos os homens em Cristo é outra coisa que a humanidade. Mas de fato ela é o sinal explícito de mistério mais vasto, o da presença gratuita de Deus em toda cria­ tura e em toda a história. O mundo e a Igreja são expres­ sões complementares de um mesmo mistério: a instauração ou a recapitulação de todo homem e de todo o criado em Cristo.11 Isto significa que apesar da ambigüidade das mo­ tivações da liberdade humana, o mundo da criação tende, por suas energias próprias, e mesmo sem o saber, para reali­ zar o desígnio eterno de Deus. Existe uma "tentação de cristandade" mais sutil do que a forma histórica que conhecemos, a saber, a vontade de identificar a Igreja deste mundo com a comunidade es­ catológica dos eleitos no céu. Ela consiste em pensar que as únicas relações possíveis entre a história humana e o reino de Deus passam necessariamente pela Igreja como institui­ ção visível. Somos convidados a ultrapassar um eclesiocentrismo estreito. Não podemos identificar as I grejas· das quais falam os homens com a Igreja que Deus vê. A Igreja terrestre é a figura concreta da experiência que os homens fazem, mes­ mo sem o saberem, da história de Cristo. E em relação à história mais vasta do Espírito, a Igreja é somente um ca­ minho e uma passagem para o reino de Deus. É necessário superar também uma concepção muito es­ treita e muito linear da história da salvação. Todos os ho­ mens recebem do Criador a mesma vocação fundamental, e a como bem o mostrou J>. Gisel, isso pressupõe uma teologia da criação entendida como ruptura originária, em virtude da qual a história é pensada não como a positividade de um já existente real, mas como a positividade de um advir real. Cf. P. Gisel, La Création, Labor et Fides, Genebra, 1980. 21 Inspiramo-nos aqui no artigo antigo, mas decisivo, de E. Schille­ beeckx, "L'l!glise et l'humanité", in Concilium 1. 1965, pp. 57-78.

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humanidade toda está engajada numa história coletiva da qual Deus faz uma lústória de salvação. Cristo é o Verbo que ilumina todo homem que vem a este mundo. Isso sig­ nifica que não podemos ficar numa concepção puramente cronológica da lústória da salvação. O que é primeiro na história sagrada não são Abraão, nem Moisés, nem mesmo Adão. Na ordem ontológica, o que é primeiro é Cristo co­ mo "Novo Adão". E ele que dá sentido à história religiosa pré-cristã da humanidade, como também à sua história pós­ cristã. O que se diz de Cristo, Verbo encarnado. deve ser dito também do Espírito de Cristo ressuscitado. Há uma his­ tória do Espírito que excede o quadro da lústória de Israel e da lúst6ria da Igreja, que ultrapassa também o quadro das grandes religiões do mundo.u Pelo menos na ordem das representações, somos pri­ sioneiros de concepção linear da história da salvação da qual Cristo seria o ponto final em vista de novo começo. E o judeu-cristianismo de certa teologia ocidental poderia fazer­ nos acreditar que a religião cristã é simples alargamento da religião judaica. Seria desejável encontrar-se a concepção on­ tol6gica e não historicista da história, a dos Padres gregos que falam de urna economia do mistério de Deus em Cristo e no Espírito. O "mistério escondido em Deus desde toda a eternidade" provoca a admiração de são Paulo. E como não há mais descendência de Abraão segundo a carne, Paulo pode dizer aos atenienses: "0 Deus que adorais é o mesmo que vos anuncio." Em função desse alargamento, podemos pelo menos re­ ter duas conseqüências: 1. A Igreja como realidade histórica não tem o mono­ pólio dos sinais do reino: a graça é oferecida a todos os homens segundo vias conhecidas de Deus somente. Deus é maior qo que os sinais históricos pelos quais ele manifesta sua presença. 22 Cf. J. Moltmann, L'Eglise dam la force l'Esprit, cit., p. 56. Veja também K. Rahner, "Remarques sur le concept de révélation", in K. Rahner-J. Ratzinger, Révélation et tradition, DDB, Paris, 1972, pp. 15-36, especialmente pp. 24-5.

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2. A salvação do homem individual ou coletivo, isto é, o sucesso da primeira criação, não se realiza somente pelo ministério da Igreja - por sua pregação e por seus meios de graça - mas também pelo trabalho de todo hornem, cristão ou não, orientado para uma cura, para uma liber­ tação, para uma promoção do homem. O movimento da his­ tória profana, quando em conformidade com o desígnio de Deus, por suas energias próprias tende para uma libertação progressiva do homem, para um domínio maior da natureza, para uma reunião de todos os homens numa só familia hu­ mana. Esse movimento da história não pode ser estranho à missão da Igreja e sem significação em relação ao cumpri­ mento escatológico da história. Assim, a história do Espírito é o horizonte englobante da história simplesmente. Sob a ação do Espírito, a história passa para a escatologia, e a escatologia para a história. Se designarmos o Espírito como o "poder do futuro", deve­ mos dizer que o futuro esperado como vitória sobre a morte torna-se histórico não só pelos meios de graça da Igreja, mas também pelas energias próprias da história. Cada vez que há vitória sobre todas as formas da morte, há atuali­ zação das energias de Cristo ressuscitado no tempo da his­ tória.23

C. Há uma "convergência" entre a libertação dos homens e dos povos na história e a vinda do reino Embora o termo "convergência" seja impróprio, ele sig­ nifica que há um vínculo misterioso entre o movimento da história, à medida que ele está a serviço da dignidade do homem como imagem de Deus, e a comunhão bem-aven23 "A espera cristã refere-se a Cristo, que já veio; mas ela espera algo novo, que até o presente ainda não aconteceu: o cum­ primento, em todas as coisas, da justiça prometida de Deus, o cumpri­ mento da ressurreição dos mortos prometida em sua ressurreição e o cumprimento da senhoria do Crucificado sobre todas as coisas, prome­ tida em sua elevação à glória. n Cf. J. Moltmann, Teologia da esperança, Loyola, São Paulo, 1971.

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turada dos homens em Deus, a qual é dom gratuito dado do alto pelo poder recriador de Cristo ressuscitado. Ordem da criação e ordem da salvação não são duas realidades justapostas. Elas estão submetidas de modo igual à senhoria de Cristo. A salvação é o sucesso definitivo da primeira criação ( d. o tema da recapitulação em Efésios) .24 A Igreja como sacramento da salvação, já o vimos, é o sinal visível de mistério mais vasto do que a só comunidade dos res­ gatados, a saber, a presença gratuita de Deus em toda a criação. Ela atualiza a bênção de Deus da aliança com Noé e da aliança com Abraão. Assim, como já o disse no começo desta segunda parte, devemos afirmar, ao mesmo tempo, que a história em si mesma não é o sacramento automático do reino de Deus e que o devir histórico do mundo não é só o quadro ou a "matéria ocasional" ( Chenu) da vida individual e coletiva da graça. Ele tende por suas energias próprias, à medida que está a serviço da promoção do homem, para o cum­ primento do desígnio de Deus para a criação. Os progres­ sos autênticos da consciência humana coletiva, na ordem da humanização, das relações pacíficas entre os homens e da luta pelos direitos dos oprimidos podem constituir "pedras de espera", uma espécie de praeparatio evangelica em re­ lação à realidade última do homem. Como o sublinham os teólogos do Terceiro Mundo reunidos em São Paulo ( 1980), "a realização do reino como desígnio último de Deus para a sua criação é experimentada nos processos históricos da libertação humana". Trabalhar para a transformação do mun­ do e para a promoção do homem não . é ainda construir o reino de Deus. Mas recusar-se a colaborar nesse projeto humano, quando ele é conforme às exigências inelutáveis da vida humana individual e coletiva, seguramente é ir contra o desígmo de Deus. 2J 24 Cf. J. P. J ossua, u L'enjeu de la recherche théologique actuelle sur le salut", in RSPT 54, 1�70, pp. 24-45. 25 Veja a fórmula vigorosa de C. Duquoc: u Afirmar o homem niio é necessariamente afirmar Deus; mas negar o homem é negar Deus", in L'Eglise et le monde, Equipes Enseigna11tes, I? trim., 19641965, p. 81.

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CONCLUSÃO

Ubi Christus, ibi Ecclesia. Terminando, acrescento que a verdadeira Igreja não se encontra somente onde a comuni­ dade está reunida para a escuta da Palavra de Deus e para o memorial do Corpo , do Senhor. Ela está presente tam­ bém na fraternidade com os mais humildes, à medida que eles são presença privilegiada de Cristo. Não devemos isolar uma da outra as duas advertências do Senhor: "quem 1 vos ouve a mim ouve" e ' quem os visita a mim visita". este o sentido do juízo escatológico em Mt 25: "Todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses pe­ queninos, foi a mim que o deixastes de fazer." A presença oculta do juiz do mundo nos menores de nossos irmãos é um julgamento que põe à prova a autenticidade da Igreja e de sua missão. No fim desta reflexão sobre a unidade da história em função da senhoria de Cristo, gostaria de dizer que é necessá­ rio saber manter juntas, dialeticamente e sem contradição, a responsabilidade hist6rica do cristianismo e a sua gratui­

:e

dade absoluta.

Numa situação de crise mundial, a Igreja toma cons­ ciência mais viva de sua responsabilidade em relação à fi­ gura do homem na história. Mas, como o sublinha muitas vezes J.-B. Metz, a originalidade da efetividade cristã vem de que, quando o cristianismo supervaloriza e radicaliza o combate pela justiça, justamente então ele o relativiza. Com efeito, a Igreja deve continuar a ser testemunha de uma esperança além da história. O cristianismo como mistério da salvação ultrapassa sempre sua utilidade social para o ho­ mem. Por isso, mesmo dando seu fundamento radical ao messianismo da história, a mensagem cristã deve continuar a ser anunciada sob o signo da gratuidade. O "fazer me­ mória de Jesus" tem sempre uma dimensão doxológica que tem sua justificação em si mesma.

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TERCEIRA PARTE

A PRÁTICA DOS CRISTÃOS REINTERPRETA O CRISTIANISMO

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O TESTEMUNHO DA FÉ NUMA CULTURA NÃO-CRISTÃ

Quando se ouve falar em "fé" e "cultura", pensa-se logo em relação de conflito. E, no entanto, a chamada cul­ tura ocidental é impensável sem suas raízes judaico-cristãs. Quando se fala em Ocidente, deve-se sempre fazer referência a dois pólos: Roma e a Nova Roma, Bizâncio. De fato, foi só nos séculos IV e V que o termo Ocidente entrou nos textos. Constantinopla não é inseparavelmente romana e gre­ ga, judaica e cristã? Pode-se dizer que a cultura ocidental nasceu da síntese do elemento greco-romano com o ;udaico-cristão. Fora des­ sas duas heranças, não podemos chamar-nos "ocidentais". Temos, de um lado, o que Renan chamava de milagre grego e, do outro, o monoteísmo dos profetas de Israel. A pre­ tensão do Ocidente ao universal tem seu fundamento no logos grego, na linguagem formal da filosofia e das mate­ máticas. Mas o senso de um tempo irreversível, de uma his­ tória que caminha para um termo, vem-nos da herança ju­ daico-cristã. A ciência e o senso da história são os dois tra­ ços que comandam o destino do Ocidente. Mas, como é impossível falar de modelo cultural único, devemos pôr de lado também a idéia de fixidez da cultura. Se aceitamos definir a cultura como o conjunto dos conheci­ mentos e dos comportamentos técnicos, sociais e rituais que caracterizam determinada sociedade, devemos comparar as culturas com os vivos, que crescem e mudam. Quem diz cultura diz necessariamente técnica, arte e linguagem. Ora, como falar da cultura ocidental em geral, sem falar de suas

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crises de crescimento, de suas mudanças de rumo, de suas modernidades sucessivas? Se suspeitamos a existência de conflito entre a fé cristã e a cultura, isso se dá enquanto consideramos a cultura oci­ dental sob o choque da modernidade. Começaremos dizendo a natureza de uma fé crítica sob o choque da modernidade. Em seguida falaremos do encontro do cristianismo com as culturas modeladas pelas grandes religiões não-cristãs. Per­ guntar-nos-emos então quais são as condições para um tes­ temunho profético numa cultura não-cristã.

I. F� QUE PASSOU PELA PROVA CRITICA

A fé será sempre arrancamento em relação às nossas evidências sensíveis, e, enquanto adesão à Palavra de Deus testemunhada pelas Escrituras, ela não muda segundo as épocas. Mas a fé - enquanto enraizada numa subjetividade humana - tem uma história. Como dizia P. Ricoeur, o ob­ jeto da fé não muda... Mas o "crível disponível" do homem muda. O recuo histórico que fazemos em relação a certas re­ presentações do mundo nos obriga a distinguir entre o que pertence à revelação como tal e o que depende do veículo cultural de uma época. Hoje a fé em Deus tornou-se problemática. Ela deve superar a prova crítica que vem da suspeita em relação ao discurso cristão tradicional. Não podemos contentar-nos com uma fé ingênua que não tomou conhecimento da crítica marxista da religião como ideologia, ou da crítica nietzschea­ na do cristianismo como doença do homem sob o signo do ressentimento, ou da crítica freudiana das ilusões da cons­ ciência. Deve-se, então, falar de preferência de uma ingenui­ dade segunda em relação à fé que atravessou a prova crítica. Não é o caso de refazer aqui - depois de tantos ou­ tros - uma exposição detalhada das dificuldades do crer. Gostaria somente de assinalar alguns fatores mais decisivos,

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que põem em questão a linguagem tradicional sobre Deus, tentando superar apenas o ponto de vista da cultura ocidental.

A. As dificuldades do crer inerentes à nossa situação histórica A mudança de nossa imagem do mundo A linguagem da fé da época clássica da teologia ( a da Idade Média) estava estreitamente ligada a uma repre­ sentação do mundo como mundo das naturezas, mundo es­ tável e hierarquizado segundo a escala dos graus do ser. O grau do ser particular que é o homem se integrava per­ feitamente como uma parte no universo hierarquizado. Hoje o mundo se define como hist6ria, como devir, como campo ilimitado da ação humana. Ele remete à li­ berdade criativa do homem, e não a um princípio trans­ cendental, causa primeira explicativa do mundo. O mundo perdeu seu encantamento. Trata-se de um mundo hominiza­ do, que não reenvia mais a Deus. Essa substituição da natu­ reza pela história é de importância fundamental e condiciona necessariamente nossa imagem de Deus ( cf. acima, cap. 7). Vivemos o resultado do que começou na Europa com a Aufklãrung como processo de emancipação do homem. Do século XVIII em diante, o que se sabe não concorda mais com aquilo em que se crê. O homem é a medida do homem, e o mundo dessacralizado não remete mais a Deus, mas ao _poder do homem. A imagem moderna do homem é a de um ser em perpétua criação de si mesmo e do mundo. Essa idéia de autogênese do homem parece dificilmente con­ ciliável com a imagem de um Deus todo-poderoso e provi­ dente. Enquanto o homem não era ele mesmo, enquanto ele alienava a sua substância no absoluto, Deus exercia certo número de funções em sua vida e no mundo. Hoje parece que Deus se tornou inútil... A secularização Não podemos falar de crise de nossas representações religiosas sem nos referirmos ao fenômeno da secularização,

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que afeta a civilização ocidental há quase dois. séculos e que a acompanha por toda parte. Trataremos esse ponto no ca­ pítulo seguinte. Basta-nos dizer aqui que a secularização sig­ nifica que a religião se retira de todos os setores nos quais o homem adquire o conhecimento e, portanto, o domínio das realidades e dos problemas terrestres e humanos. Em con­ seqüência disso, o homem se pergunta para que Deus pode servir, temendo que a religião se oponha ao seu direito à autonomia. Sei que a secularização é fenômeno tipicamente oci­ dental. Mas, seja qual for a vitalidade das culturas e das religiões fora do Ocidente, podemos falar de uma universali­ dade da civilização técnica e de certa imaginação coletiva que gera uma "way of life" secularizada. Sei também que se fala com facilidade de um "retorno de Deus" ao Oci­ dente ( Europa e Estados Unidos). Esse retorno de Deus pode funcionar como resposta ao desencanto produzido pela crise das ideologias e como fenômeno de contracultura cm face a urna civilização industrial sob o signo da rentabilidade, do anonimato e do crescimento a qualquer preço. Mas, que esse "retorno de Deus" não nos iluda sobre a situação de incredulidade do mundo contemporâneo. Pelo menos no que se refere ao Ocidente - Europa e Estados Unidos -, assiste-se a um recuo da fé e da prática religiosa em quase todas as Igrejas cristãs. E ainda que se faça juízo mais nuançado sobre a pre­ tensa irreligião do homem moderno, não se trata de vol­ tar aquém da qítica feita à ilusão da religião por todo o movimento do pensamento moderno. Sobretudo na teologia protestante abusou-se da oposição entre fé e religião. É ver­ dade, porém, que a religião favorece a evasão do homem para um "alhures" que não é a vida real. O Deus da fé bíblica não está onde o homem se inventa deuses - seja da ferti­ lidade, seja da imortalidade. Deus não está no prolonga­ mento das experiências inefâveis que o homem pode co­ nhecer. Ele quer ser reconhecido numa história, em encar­ nações. É sempre a resposta a uma iniciativa de Deus, a um movimento que vai de Deus para o homem. A religião de ontem, como a de hoje, explora sempre essa mâquina de 210

faze r deuses que é a megalomania do desejo humano ou seu gosto pelo inefável. A religião é a vitória do desejo humano. A fé é ven­ cida por um encontro, por uma presença, mesmo quando essa presença fere a espontaneidade do homem. O homem é rapidam_ente religioso, mas lento para crer. Os estados de consciência da humanidade

Quando se fala em crise da fé ou em mal-estar dos cristãos, vem a tentação de fazer julgamento moral sobre a situação. Lamentam-se as desgraças dos tempos, invocando­ se o relaxamento dos costumes, a degradação dos valores morais, a falta de generosidade. Mas é preciso v�r que o mal-estar dos cristãos não provém só do sentimento de um desajuste entre o ideal cristão e o estado dos costumes, mas também à tomada de consciência de um divórcio entre a fé cristã e os estados de consciência da humanidade atual. Enfim, o que está em questão é o conflito entre a autori­ dade da fé e a autoridade da razão no debate sobre o ho­ mem que mencionamos acima ( cf. p. 22) . .-,( Compreende-se, então, o descrédito de certo discurso cristão moralizante que, diante de problemas como o da fome no mundo, o dos conflitos sociais, o da demografia galopante ou como a nova consciência da sexualidade hu­ mana, contenta-se com fazer apelo à oração ou à generosi­ dade dos indivíduos. É preciso aceitar as conseqüências de secularização normal e inevitável, isto é, tomar a sério uma aproximação racional que dependa da economia, do direito internacional e da antropologia em geral. Acrescento que uma fé crítica e adulta deve enfrentar o desafio formidável dirigido ao cristianismo pela situação de injustiça do mundo contemporâneo. Já citei a palavra de J. Moltmann, "a questão em si da existência de Deus é uma ninharia em face da questão de sua justiça no mundo" .1 Para milhões de pessoas, a questão primordial não é a de Deus, mas quem come?, ou mesmo quem morre? "Para o escravo a proximidade do Ser não é o parentesco mais radi1 J. Moltmann,

Le Dieu crucifié,

cit., p. 252. 211

cal; a proximidade de seu próprio corpo e do dos o..:tros vem antes", escreve Umberto Eco .2 Se considerarmos a humanidade em seu conjunto - se­ gundo as grandes paixões coletivas quf' Kant· distinguia, a saber, o ter, isto é, o econômico, o poder, a saber, o político, e o valer, isto é, o cultural -, a situação do mundo con­ temporâneo põe questões urgentes à Igreja. Basta lembrar a explosão demográfica, o saque dos recursos naturais, a separação crescente entre os países pobres e os países ricos, a disseminação da força nuclear. Por isso os teólogos do Terceiro Mundo insistem nas necessárias implicações sociais e políticas da fé cristã. O Evangelho não é neutro, e, graças à radicalidade evangélica de certas comunidades de base das Igrejas do Terceiro Mundo, pode-se falar de uma nova pri­ mavera da Igreja neste final de século XX, à medida que ela faz uma opção decisiva em favor dos pobres. A presença lancinante do mal e da injustiça no mundo nos convida a pôr em causa uma concepção ingênua da revelação bíblica segundo a qual ela conteria todas as res­ postas às questões que o homem pode pôr-se. Como o tes­ temunha o livro de Jó, a Bíblia não é só a história das respostas de Deus às questões essenciais do homem. Ela é também e inseparavelmente a história do questionamento do homem em processo com Deus. Por isso não podemos ido­ latrar a letra da Escritura. Ela é antes o eco do silêncio misterioso de Deus. Sem dúvida, Deus é aquele que dá sentido à existência humana. Mas não se trata de luz que elimine toda obscuridade.3 O relativismo religioso Nesse rápido inventário das dificuldades do crer deve­ mos incluir ainda, como obstáculo à fé, uma consciência mais viva da relatividade do cristianismo como religião histórica. 2 U. Eco, La Structure absente, Paris, 1972, p. 384, citado por G. Morei, "L'enjeu de la crise religieuse", in Rech. Se. Rei. 63, 1975, pp, 11-38. 3 Cf. J, Moingt, "L'écho du silence", in Rech. Se. Rei. 67, 1979, pp. 9-36. 212

Um melhor conhecimento dos milênios que antecederam Cristo e das outras grandes tradições religiosas da humani­ dade nos leva necessariamente a pôr em causa a pretensão do cristianismo de ser a única religião verdadeira e univer­ sal. Como pretender que ele seja para o homem a única mediação do Absoluto? Não seria necessário admitir que todas as religiões são válidas como vias para Deus? E certo fracasso da missão não mostra que a pretensão do cristianis­ mo à universalidade não se verificou historicamente? Essa consciência mais viva da particularidade hist6rica do cristianismo não deve levar-nos ao relativismo e ao ceti­ cismo. Ela nos convida, antes, a um discernimento crítico da originalidade do cristianismo em sua diferença das outras grandes religiões - tanto das religiões monoteístas, como o judaísmo e o islã, quanto das religiões orientais, como o hin­ duísmo e o budismo. Só um melhor conhecimento das ri­ quezas de cada uma das grandes religiões não-cristãs é que pode evitar que caiamos num imperialismo cristão ingênuo, como se o cristianismo histórico tivesse o monopólio de to­ dos os valores positivos nas ordens ética, religiosa e espiri­ tual. Uma coisa é aceitar a particularidade histórica do cris­ tianismo, outra é pôr em dúvida a mediação única de Cristo como encarnação de Deus na história. B. A interpretação como elemento constitutivo da fé crítica

Tentamos discernir alguns elementos essenc1a1s d.a si­ tuação histórica que condiciona a experiência contemporâ­ nea da fé cristã. Se nos interrogarmos sobre a concepção da existência humana vivida hoje, poderemos dizer que ela se caracteriza por dois dados centrais: de um lado, a espera inextirpável de um futuro que humanamente pode ser vivi­ do; do outro, a angústia diante desse futuro, porque a si­ tuação de injustiça na qual vive a imensa maioria dos ho­ mens constitui escândalo e ameaça permanentes para o fu­ turo. !! em função desse horizonte que devemos empenhar-

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nos numa reinterpretação do cristianismo e numa atualização da mensagem cristã para hoje. d: Isso nos leva à compreensão de que não há fé crítica sem o recurso a uma "operação hermenêutica" que parta de uma análise crítica de nosso mundo de experiência hoje, que procure encontrar as estruturas constantes da experiên­ cia fundamental, testemunhada pelo Novo Testamento e pela tradição cristã ulterior, e que, enfim, estabeleça "correlação crítica" entre a tradição da experiência cristã e as nossas experiências de hoje.4 Fé cristã e experiência interpretativa5

Já sublinhamos a historicidade fundamental da fé. Isso significa que a reflexão crítica não é uma segunda etapa, facultativa e reservada a uma elite, em relação à fé. Já no Novo Testamento a teologia é absolutamente contemporânea da fé, isto é, a fé se diz necessariamente numa confrontação incessante com uma cultura. Podemos considerar todo o No­ vo Testamento como ato de interpretação6 do evento Cristo pela Igreja primitiva. E a distância que nos separa dele longe de ser obstáculo - é a condição mesma de novo ato de interpretação para nós hoje. O próprio fechamento do texto é a condição de retomada· criativa. Devemos falar de analogia ou de homologia fundamental entre os enunciados bíblicos e seu meio sociocultural, de um lado, e, do outro, o discurso da fé a ser usado hoje e a nossa situação cultural. Compreender a exigência hermenêutica de todo ato de fé é levar na devida consideração a historicidade da verdade, mesmo quando se trata da verdade revelada, e é tomar na devida consideração a historicidade do homem como sujei­ to interpretante, cujo ato de conhecimento é inseparável de uma interpretação de si mesmo e do mundo. A inter­ pretação é a exigência mesma da fé, à medida que o obje4 A esse respeito, veja os princípios metodológicos enunciados por E. Schillebeeckx em Expéríence humaine et foi en Jésus-Christ, Cerf, Paris, 1981, especialmente pp. 29-64 . . 5 Resumimos aqui o que já expusemos na primeira parte (especial• mente nos caps. 1 e 3). 6 Tomo esta expressão de P. Gisel em Vérité et histoire. La thlologie dans la modernité. Ernst Kiisemann, Beauchesne, Paris, 1977.

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tivo da fé não é verdade morta, mas verdade viva, sem­ pre transmitida numa mediação histórica, e que tem neces­ sidade de ser atualizada sem cessar. A fé cristã vive necessariamente de uma origem, o eveQ­ to Cristo como evento fundador. Mas o Novo Testamento, como colocação por escrito do testemunho prestado a esse evento, já é interpretação. É testemunho condicionado por toda a espessura histórica de uma comunidade crente sujeita às suas próprias necessidades de legitimação e de identifi­ cação. O Novo Testamento como testemunho interpretativo só revela seu sentido quando entendido no movimento de uma tradição histórica. Hoje, ter fé crítica e responsável é produzir nova in­ terpretação da mensagem cristã, levando em conta nossa si­ tuação histórica, inscrevendo-nos, todavia, na mesma tradi­ ção que produziu o texto original. Existe analogia entre o Novo Testamento e a função que ele exercia na Igreja primi­ tiva, de um lado, e, do outro, a produção de um texto novo, hoje, e a função que ele exerce na Igreja e na sociedade. Sob a garantia do dom do Espírito e de fé vivida em comu­ nidade, a continuidade não deve ser procurada na repetição mecânica de mensagem doutrinal, mas na analogia entre dois atos de interpretação. A experiência cristã fundamental

A experiência fundamental da salvação oferecida por Deus em Jesus foi colorida diferentemente pelos sinóticos, por são Paulo e por são João, em função dos questionamen­ tos, dos modos de representação, de pensamento e de lingua­ gem do tempo e do meio sociocultural. É Jesus vivendo na história que constitui o começo e que representa a fonte, a norma e o critério do que os pri­ meiros cristãos experimentaram. A tarefa de uma fé crítica consiste em reconstituir essa experiência fundamental, dis­ sociando-a das representações que pertencem a um mundo de experiência ultrapassado. É. possível reduzir essa experiência fundamental a al­ guns elementos essenciais:-

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1. Jesus anuncia um Deus que quer a salvação de todos os homens e de todo o homem. Em outras palavras, o Deus de Jesus não é um Deus diferente do Deus testemunhado pelas diversas religiões da humanidade. E por salvação deve­ mos entender não só a salvação dos vivos em todas as suas dimensões corporais, espirituais e sociais, mas também a sal­ vação dos mortos. 2. O ser humano de Jesus se define por sua relação ao Pai. Mas Jesus nunca dissociou sua relação existencial com o Deus Abba de sua práxis de cura, de libertação e de re­ conciliação em relação aos pobres e aos pequenos de Israel. Por isso anunciar a boa nova do Evangelho não é somente transmitir uma mensagem, mas também tomar manifesta uma experiência de libertação. 3. Por seu mistério de morte e ressurreição, Jesus dá a prova de que a história humana não pode ter seu cumprimen­ to no "sistema" terrestre de nossa história. Mas a fé na ressurreição, longe de ser fuga para o além, remete-nos para a nossa vida presente no mundo, para anteciparmos os efei­ tos libertadores da ressurreição contra todas as formas de morte. Os dois pólos de reinterpretação criativa do cristianismo Hoje não existe pregação viva sem reinterpretação cria­ tiva do cristianismo. Com efeito, não basta "adaptar" uma doutrina tradicional à mentalidade de hoje. Toda procura de nova linguagem da fé implica necessariamente uma reinter­ pretação do conteúdo do qual essa linguagem é portadora. Essa tarefa arriscada de reinterpretação só pode ser feita pela colocação em correlação recíproca da experiência fun­ damental do Novo Testamento e da fé tradicional da Igreja e da experiência humana de hoje. Contento-me com enume­ rar alguns princípios que devem guiar esse trabalho crítico: a. Segundo o Vativano II, a "alma", o c'princípio vital" da teologia deve ser a Escritura. Isso significa que é neces­ sário submeter as hipóteses teológicas - mesmo as mais veneráveis - às conclusões irrefutáveis da exegese histórico216

crítica. Sem dúvida, a fonte e a norma da fé cristã não é o Jesus reconstituído pela ciência histórica, mas o Jesus vivo da história, confessado como Cristo pela primeira comunida­ de cristã. A teologia dogmática deve levar em conta o fato de que hoje a pesquisa histórico-crítica está em condições de nos mostrar a identidade entre o Cristo confessado na fé e o homem Jesus de Nazaré. b. As definições dogmáticas devem ser reinterpretadas à luz de nossa leitura crítica da Sagrada Escritura e em fun­ ção de nossa experiência humana atual. A nossa situação histórica particular é, com efeito, elemento constitutivo de nossa compreensão da mensagem cristã. De outro modo, correríamos o risco de defendermos ortodoxia puramente "verbal" (cf., acima, cap. 4). c. Na apresentação da mensagem cristã, é necessário con­ siderar o princípio da "hierarquia das verdades ,, , frisado pelo Vaticano II. No fim deste segundo milênio, a Igreja tem o dever urgente de atualizar a mensagem cristã para culturas diferentes da cultura ocidental. II. O ENCONTRO DO CRISTIANISMO COM A DIVERSIDADE DAS CULTURAS

Mesmo os que vivem a fé em países da antiga cristan­ dade do Ocidente são atingidos, a um título ou outro, pelo encontro do cristianismo com alguma grande religião não­ cristã. E o problema que se põe é o do choque de duas culturas. Não existe, com efeito, encontro entre duas religiões em estado puro. f: sempre também o enfrentamento entre duas culturas. Não existe mensagem cristã quimicamente pura que já não esteja "traduzida" em alguma cultura. E quando os cristãos são minoritários num dado país, vêem-se diante de pessoas para as quais pertencer a uma cultura é indisso­ ciável do pertencer à religião dominante. O que há de co­ mum à "cultura" e à "religião" é a noção de "herança". 217

Segundo a metáfora de J. Ladriere, uma cultura é um "en­ raizamento" . 7 Ela é um vínculo invisível mas muito estreito que liga um ser humano aos seus predecessores, aos seus contemporâneos e aos seus sucessores. Pertencer a uma cul­ tura é enraizar-se numa tradição particular, é ser convidado a habitar o mundo numa linguagem. Depois de algumas distinções sobre o princípio funda­ mental da inculturação do cristianismo, seremos levados a refletir sobre a originalidade do cristianismo como religião e sobre sua verdadeira universalidade. Poderemos então for­ mular algumas exigências novas do testemunho. A. O princípio fundamental da inculturação8 O sínodo dos bispos de 1977 falava de uma verdadeira encarnação da fé" nas culturas. "A mensagem cristã deve enraizar-se nas culturas humanas, assumi-las e transformá­ las ... A fé cristã deve encarnar-se nas culturas" ( Doe. catho­ lique, t. 7 4 [ 1977] 1 O 18 ) .. . Em vez de aculturação, usa­ mos o termo ínculturação para sublinharmos, num contexto de evangelização, a necessidade de a fé germinar e crescer no seio das culturas. 9 A fé é comparada a uma semente exa­ tamente como a Palavra de Deus nos sinóticos. E a expres­ são "encarnação da fé" nos remete evidentemente ao mis­ tério central do cristianismo como encarnação do Verbo de Deus. Isso significa que a encarnação radical da mensagem cristã numa cultura não compromete sua integridade, do mesu

7 Cf.

J.

Ladriere, Les Enjeux de la rationalité. Le défi de la science

et de la technologie aux cultures, Aubier-Montaigne, Paris, 1977. Para

a história do conceito de cultura, aconselhamos o breve estudo de M. Meslin, "Culture et modernité", in Rev. de l'Institut Catholique de Paris 1, 1982, pp. 75-90. 8 Entre os trabalhos mais recentes sobre o problema da incultu­ raçio, recomendamos principalmente M. Sales, "Christianisme, culture et cultures", in Axes XIIl/1-2, jan. de 1981, pp. 3-40. 9 Sobre a questão do vocabulário, veja I. de la Potterie in Culture et foi. Publication de la Commission biblique, Elle-Di-Ci, Turim, 1981, pp. 327-9. Sobre o confronto entre a Bíblia e as culturas, veja tamb�m a obra recente de P. Beauchamp, Le Récit, la lettre et le corp:r ("Cogitatio Fidei" 114). Cerf, Paris, 1982.

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mo modo que o tornar-se homem de Deus salvaguarda a transcendência de Deus. Quanço tentamos compreender o problema da incul­ turação do cristianismo numa mentalidade diferente, na qual se encbntram inextrkavelmente misturados elementos cultu­ rais e elementos religiosos, devemos pensar segundo uma relação dé ruptura e segundo uma relação de criação. Por ruptura devemos compreender que o anúncio do Evangelho coincide com a irrupção de uma novidade nos modos de pen­ samento, na imaginação e na cultura das pessoas. Por criação sublinhamos o fato de que, malgrado sua novidade. o querig­ ma cristão; para ser entendido, tornou-se fato de cultura, isto �- se depôs nas linguagens e nas psicologias existentes. É em função dessa dialética de continuidade e ruptura que devemos pensar o problema da inculturação. O Evange­ lho deve ser boa nova, apesar de, até certo ponto, tornar-se fato de cultura. Se a evangelização não fizer es�e esforço de inculturação, não existirá evento evangélico. Haverá apenas o "falso· escândalo" de veículo cultural estrangeiro ou ultra­ passàd6. Mas, inversamente, se o .discurso da fé se trans­ fundir' completamente numa cultura particular, ao ponto de perder sua identidade, não haverá também evento evan­ gélico. O Evangelho será sempre sinal de contradição. Mas quando o cristianismo entra em conflito com uma cultura ou com uma grande religião, toda a questão consiste em saber se isso se dá por causa do Evangelho ou por causa da cultura privilegiada à qual ele está historicamente associado. O processo de inculturação obedece a dois movimentos: inculturação do cristianismo e cristianização da cultw-a. Esse fenômeno de cristianização, lento e complexo, comporta dia­ lética de assimilação e dissimilação. De fato, como constata­ mos· a propósito do encontro do cristianismo nascente com o helenismo, pode dar-se uma primeira assimilação ingênua e sincretista, seguida logo de movimento de rejeição, ao qual sucede uma segunda assimilação, mais crítica. E, como já dissemos, o cristianismo não encontra, sobretudo na Africa e na Asia, nenhuma cultura em estado puro, e sim grandes tradições religiosas. Onde é anunciado, o Evangelho desem-

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penha papel de "catalisador cdtico" 1º em relação aos valo­ res éticos, meditativos e ascéticos das outras tradições reli­ giosas. Mas os cristãos devem, ao mesmo tempo, estar pre­ parados para pôr em questão sua maneira de viver o cristia­ nismo, a fim de que não seja ele fator de estrangeiramento em relação à cultura dominante no país em que se encon­ tram. Não se trata de anunciar ou de viver cristianismo di­ ferente, mas de, em conformidade com a catolicidade da Igreja, favorecer as condições de aparecimento de uma outra figura histórica do cristianismo.

B. A originalidade do cristianismo como religião O encontro do cristianismo com uma grande religião nos convida a refletir sobre a originalidade do cristianismo. A esse respeito, a relação entre o cristianismo nascente e o judaísmo tem sempre valor exemplar. Sabemos que a nova aliança inaugurada por Cristo não trouxe imediatamente novo culto, novo sacerdócio e novos templos. E na ordem ética, a _mensagem de Cristo é antes a radicalização do que estava em germe na lei judaica como lei de amor. A novidade radical se resume ao evento Cristo como tal com o que ele acarreta de inédito na relação com Deus e com os outros. Essa novidade se traduz especial­ mente no espírito novo com o qual são assumidos um uni­ verso de pensamento, uma visão do mundo e do homem, um estilo de vida e categorias éticas, que podem ser antigos. Foi a urgência da missão junto aos gentios que provo­ cou discernimento entre os elementos judaicos contingentes e a mensagem evangélica. Os judeus tornados discípulos de Cristo achavam normal fazer-se circuncidar e não comer cer­ tas carnes. Por isso, no começo da Igreja primitiva, a nova religião instaurada por Cristo era designada simplesmente como a "via" (odos). Tratava-se, para eles, de um prolonga­ mento da halakha judaica como conjunto de regras de ordem 10 Tiramos essa expressão de H. Küng, Etre chrétien (trad. franc), Seuil, Paris, 1978, p. 116; essa idéia é retomada por J. Moltmann ín l'Eglise dans la /orce de l'Esprit, cit., pp. 210s.

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moral, social e religiosa. Devemos guardar duas palavras de Cristo: "Não vim abolir, mas cumprir", e: "Não se põe vinho novo em odres velhos" .11 Essa coexistência da retgião judaica e de uma prática cristã seguindo a Cristo nos convida a refletir sobre a origi­ nalidade do cristianismo como retgião. Seríamos tentados a dizer que Cristo não fundou uma nova religião, se por reli­ g:ão entendermos sistema de representações, conjunto de ri­ tos, catálogo de prescrições éticas, programa de práticas so­ ciais. A existência cristã não se define a priori. Ela se acha onde o Espírito de Cristo faz surgir um ser novo de homem individual e coletivo. A questão de um específico cristão é mal colocada. Não há "espécie" cristã. Há somente um "gê­ nero" cristão, dificilmente discernível.12 Dizemos que há uma maneira cristã de ser homem, de amar, de sofrer, de traba­ lhar. E há uma maneira cristã de ser iraquiano, indonésio, turco, africano ou chinês. E como o cristianismo deve encarnar-se em mentalida­ des nas quais os elementos culturais e religiosos· se mistu­ ram de modo indissociável, não basta falar de duas perti­ nências, cristã e cultural. Podemos ir ao ponto de falar de duas pertinências religiosas? Quero dizer que a questão não consiste somente em saber se alguém pode ser integralmente chinês e cristão, árabe e cristão. A questão seria: é possível ser budista e cristão, muçulmano e cristão? Essa questão não é absurda. Em todo caso, ela nos remete a esta questão mais radical: que é mais importante no cristianismo? um conjunto de ritos, de representações, de práticas, que são os elementos estruturalmente comuns a todas as religiões, ou o poder im­ previsível do Evangelho? Não é porque, historicamente, as relações entre o cris­ tianismo e as outras religiões foram vividas em termos de exclusão que essa situação é normativa para o fim do segundo milênio. Já somos testemunhas, na Asia, de casos de "budis­ mo cristão" e de "hinduísmo cristão", que são coisa diferen11 A esse respeito, veja F. Mussner, Traité sur les juifs, tritd. franc. ("Cogitatio hdei� 109), Cerf, Paris, 1981, cap. III. 12 Inspiro-me aqui nas palavras estimulantes de Y. le Gal, Ques­ tions à la théologie chrétienne, Cerf, Paris, 1975, p. 71.

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te de sincretismos preguiçosos. Trata-se de criações originais do Espírito de Jesus. Verificamos) assim, que a relação entre o cristianismo nascente ·e o judaísmo é esclarecedora para a compreensão do encontro do cristianismo contemporâneo com as grandes_ religiões não-cristãs.13 Se lembro essa problemática arriscada de duas perti­ nências religiosas é porque penso que é muito simples, mui­ to triunfalista também, dizer que o cristianismo é fermento que deve operar uma Aufhebung (destruição-assunção) de todas as tradições religiosas. Sem dúvida, o cristianismo exer­ cerá sempre discernimento crítico e purificador em relação a outras religiões. Mas, como já disse, devemos guardar-nos da ilusão de acreditar que é possível estabelecer distinção muito nítida entre valores culturais, que poderiam ser con­ servados, e elementos religiosos, que deveriam ser rejeitados. A Igreja será fiel à sua vocação universal não pela destruição das outras religiões, mas por uma presença cristã que seja o germe e a promessa de realizações históricas novas como um cristianismo árabe, indiano, chinês ... Em outros termos, o cristianismo é infiel à sua condi­ ção exodal quando absolutiza uma realização histórica, isto é, uma produção institucional e doutrinal como estado defi­ nitivo da Igreja de Cristo. O Evangelho exerce função crí­ tica não só em relação a outras religiões, mas também em relação à própria religião cristã. Concretament'e isso significa que, diante do desafio das outras culturas e das outras reli­ giões, a Igreja só pode ser flel � sua catolicidade aceitando uma conversão, isto é, aceitando pôr em causa seu modo de expressão ocidental. C. A particularidade histórica do cristianismo e sua vocação para o universal Muitas vezes houve na Igreja a tentação de concluir pe­ lo caráter absoluto do cristianismo como religião histórica, 13 Cf. nosso estudo: • Pour une théologic à l'heure chinoise . .Évan­ gélisation et culture", in Concilium 146, 1979, pp. 93-106. Cf., também,

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a partir do caráter absoluto do evento Cristo enquanto ma­ nifestação hist6rica do absoluto de Deus. Em virtude do ca­ ráter humano-divino de Cristo, a Igreja hist6rica se pensou, no meio dos homens, no meio de outras relig"ões ou sabedo­ rias, como o grupo portador da verdade absoluta e agiu se­ gundo essa persuasão. Assim, ela organizou sua ação doutrinal, política e so­ cial sob o ângulo do que se pode chamar de "ideologia uni­ tária" ,14 e isso se traduziu em certo triunfalismo da Igreja ou numa unicidade entendida em termos de exclusão ou de inclusão. N6s somos os depositários do "verdadeiro", e esse "verdadeiro" se opõe a todo o resto como a erro. Ou en­ tão somos tentados a dizer que a verdade cristã engloba todos os valores de humanidade, de civilização e de reli­ gião fora do cristianismo. Seria relativamente fácil mostrar que essa pretensão ao universal coincidiu, no cristianismo, com sua relação com uma civilização privilegiada, dominante, a civilização ociden­ tal. Quanto mais a religião cristã era pensada como universal, tanto mais ela se apresentava com todos os atributos do poder e tanto mais era tentada a promover uma unidade entendida em termos de uniformidade. Ota, constato que hoje, graças a melhor conhecimen­ to dos outros mundos, diferentes do mundo ocidental, temos consciência mais viva da particularidade histórica do cristia­ nismo, que não inclui todos os valores que se explicitaram em outras relig:ões ou em outras sabedorias espirituais. Te­ mos, também, consciência mais viva de certo insucesso da missão universal do cristianismo e constatamos que a pre­ tensão ao universal é, antes, contrária à prática histórica de Jesus, porque, revelando-se em Jesus, Deus não absolutizou uma particularidade; ele significou, ao contrário, que nenhu­ ma particularidade histórica é absoluta. Essa aceitação da particularidade histórica do cristiaM. Zago, HL'évangélisation dans le clímat religieux de I'Asie", in Concil,um 134, 1978, pp. 93-106. 14 Tomo esta expressão de C. Duquoc, Dieu dilférent, Cerf, Paris, 1977, p. 126.

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nismo não contradiz nossa fé na universalidade da mediação de Cristo, nem nossa fé na missão universal da Igreja. !! enquanto Universal concreto, isto é, enquanto Deus feito homem, que Jesus é universal. Cremos que Cristo não é uma manifestação entre outras do Absoluto que é Deus. Ele mesmo. é Deus tornado histórico. Mas o que dizemos de Cristo como mediação de Deus não podemos dizer do cris­ tianismo histórico. Por outro lado, a missão universal da Igreja não depende do.caráter absoluto do cristianismo como religião histórica.15 O cristianismo não tem o monopólio da ação salutar de Deus: a.graça é ofer�cida a todos os homens segundo vias conhecidas só de peus. A Igreja, como reali­ dade histórica, não tem o monopóÍio dos sinais do reino; Deus é mais do que os sinàis históricos ' pelos quais ele manifestou sua presença. Essas poucas distinções tê� por finalidade fazer-nos compreender que a verdadeira universalidade do cristianis­ mo não é uma universalidade abstrata, que tenda a impor a todas as Igrejas uma uniformidade formal. Como dizia Paulo VI, "somos pluralistas precisamente porque católicos, isto é, universais". A catolicidade deve incluir pluralismo de con­ fissões e de práticas, sem chegar a uma explosão; "a fé não é pluralista", para retomarmos outra expressão de Paulo VI. Mas, se tomarmos a sério as condições de encarnação da Igreja numa cultura dada, a própria fé deve poder gerar figuras históricas diferenciadas do cristianismo.

Ili. AS CONDIÇOES DE TESTEMUNHO PROFf.TICO

Como veremos adiante, a propósito do "cristianismo co­ mo via" ( cap. 12), o cristianismo é, por essência, religião profética, e também a existência cristã é, por essência, exis­ tência profética: o cristianismo está em "êxodo" permanente. Há, pois, uma exigência interna no .cristianismo para ultra15 Cf. A. Ganoczy, "Prétention à 1'Absolu, justification ou obstacle pour l'évangélisation", in Concilium· 134, 1978, pp. 33-43.

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passar as objetivações históricas que ele pode assumir na or­ dem da linguagem, na ordem institucional e na ordem das práticas. Isso alcança a idéia mestra desta obra, a da fideli­ dade criativa, que implica todo testemunho cristão à me­ dida que ele é dado na história. Procuro somente responder à seguinte questão: quais são as condições de um testemunho profético na Igreja? e por que falar aqui em testemunho profético? A cliliculdade de comunicação da fé pode ser devida ao desencontro entre a linguagem do Novo Testamento e a linguagem dominante em nossa cultura. Pode-se dizer tam­ bém que a dificuldade de comunicação da fé vem do fato de que, à, diferença do que se passava com os contemporâ­ neos de Cristo e dos Apóstolos, quando nós nos dirigimos ao homem moderno, não podemos contar com um pressu­ posto religioso ou com uma espera messiânica. Mas pode­ mos perguntar se o insucesso relativo de nosso testemunho não vem de não ser ele suficientemente um testemunho pro­ fético, isto é, uma palavra criativa de algo novo.

A. O testemunho como vitóri_a da fé O testemunho é necessariamente vitória de nossa fé, de uma fé que passou pela prova de contestação radical, a da cultura atéia do mundo moderno, o que chamo de ateís­ mo pós-cristão. Vivemos num mundo que perdeu sua in­ genuidade. A fé será sempre da ordem da espontaneidacfe, mas a fé responsável por si e pelos outros teve de passar pela prova da crítica para conhecer o que chamei atrás, com Paul Ricoeur, de "ingenuidade segunda". De fato, culturalmente a fé não tem mais o caráter de evidência que pode ter tido nos séculos de cristandade. Poderíamos dizer que a situação de descrença constitui uma espécie de destino histórico per­ mitido por Deus e que esta situação histórica de ausência de Deus acaba condicionando necessariamente a fé dos cristãos e seu testemunho. Dizemos que a ausência de Deus ou o 8 • Como fazer teologia hoje

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sil!ncio de Deus é sentido tão profundamente pelos cristãos como pelos não-crentes. Compreendemos que não se trata de partir em cruzada ou de lariça·r imprecações contra os sem-Deus, mas de parti­ cipar, mesmo como crentes, de certo destino histórico da au­ sência de Deus.16 Isso nos torna mais silenciosos, mais modestos, menos triunfalistas, mais compreensivos da fraqueza dos outros. Há uma fraternidade na fraqueza entre crentes e descrentes. Essa fraternidade na fraqueza não é necessariamente uma demissão da fé e do testemunho, é a aceitação de um destino histórico. Aqui poderíamos retomar as intuições de Bon­ hoeffer. Trata-se de viver como se Deus não existisse, mas - paradoxo para o crente - vivendo isso diante de Deus. 17 A mensagem da fé tornou-se normalmente difícil. Hoje, o que é surpreendente não é a descrença, mas a não-descrença. Não obstante, a mensagem cristã conserva, ao mesmo tempo, toda a sua atualidade. Põe-se então a questão: "Co­ mo comunicar a fé, con:.o testemunhar Jesus diante de pes­ soas indiferentes?" A situação não é mais a da primeira pre­ gação cristã, uma vez que não podemos mais contar com o mesmo a priori reUgioso. Entretanto, o homem é homem e continua apaixonado pela verdade, pela justiça, pelo amor, pela liberdade, e temos a certeza de que existe nele uma abertura possível para o Evangelho. Do ponto de vista da situação mundial, eu dlria que o Evangelho - sem apolo­ gética fácil - nunca foi tão atual como hoje. Ele será sempre da ordem da gratuidade, mas as nossas sociedades modernas descobrem que na mensagem das bem-aventuranças há uma verdade . e que, se ela não for reconhecida de uma maneira ou de outra, levará a humanidade coletivamente a uma for­ ma de suicídio.

16 Cf. G. Morei, "Le3 vertus de !11. nuit", in Autrement 2, 1975, pp. 79-84. 17 Veja, a esse respeito, nosso artigo: "Le destin de la foi chré­ tienne dans un monde d indiíférence", in Concilium, maio de 1983.

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B. O testemunho como ato profético O nosso testemunho não pode ser simplesmente trans­ missão de verdades, a transmissão somente de um saber. Ele deve ser evento profético, epifania de Deus entre os homens. No clima de ceticismo em que nos achamos, alguma quali­ dade de fé num homem normal, competente, integrado na sociedade, é sempre milagre que surpreende, palavra que es­ panta. Na origem do testemunho há uma experiência. Antes de acusarmos a cultura ou a irreligião do homem moderno, devemos perguntar-nos se o nosso testemunho procede des­ sa experiência. Se os Apóstolos foram testemunhas incompa­ ráveis foi porque puderam tocar, contemplar... Se vinte sé­ culos depois somos muitas vezes testemunhas hesitantes é talvez porque não encontramos a pessoa de Jesus, o rosto de Deus. Temos o testemunho histórico dos Apóstolos e os si­ nais da presença de Jesus na Igreja e no mundo, mas isso não basta; é necessário o testemunho interior, atual, do Es­ pírito Santo, que atesta no fundo de nosso coração que Cris­ to está sempre vivo. :É a experiência da fé cristã e do teste­ munho que procede da fé. Em outras palavras, a fé é teste­ munho exterior porque antes ela é testemunho interior do Espírito em nós. Se o testemunho é um evento profético, ele será um testemunho prestado a Jesus. Mas, como todo testemunho profético, ele consistirá também em discernir o ponto de vista de Deus nos acontecimentos do mundo e na vida da­ queles aos quais somos enviados. Isso é conforme à econo­ mia da revelação. A nossa missão consiste em manifestar a atualidade e o poder libertador da palavra de Deus que se tornou irreligioso ao se tornar adulto. C. O testemunho deve ser situado historicamente Quando consideramos a tradição profética no Antigo Testamento, vemos que a palavra profética está sempre si­ tuada historicamente. O profetismo nunca é abstrato: ele tem

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sempre um enraizamento histórico.18 Poderíamos distinguir, no testemunho profético, três pólos: a memória da ação de Deus; - o discernimento da situação presente; - a produção de uma palavra nova, que proceda da sensibilidade histórica para as necessidades do homem, do mundo, da Igreja. O testemunho está sempre, portanto, ligado à partici­ cuhlridade das situações da Igreja no mundo. Uma palavra que quer ser universal se arrisca a ser insignificante. Trata-se sempre de palavra nova, em função de situação nova. Hoje não pode haver testemunho do Evangelho de Cristo sem, ao mesmo tempo, discernimento dos novos estados de cons­ ciência do homem, das questões novas postas pela demogra­ fia e pela forma, qualitativamente diferente, da violência humana na idade atômica, pela tensão Norte-Sul, pela ten­ são entre países ricos e países pobres. O testemunho situado historicamente é isso: reler o Evangelho e fazê-lo falar em função de nossa situação presente. Penso que a tradição cris­ tã deve ser sempre portadora de futuro, do contrário ela não é mais transmissão no Espírito e pode ser "letra que mata", e não "Espírito que vivifica".

D. O testemunho profético não pertence só aos cristãos Poderíamos justificar teologicamente essa afirmação mostrando que as notas de eclesialidade não são somente as notas de pertinência visível à Igreja enquanto reunião dos crentes. Há aqueles que vivem do Espírito de Cristo - sem o saber - e que estão fora das fronteiras da Igreja visível. Em outros termos, os cristãos não têm o monopólio do espírito das bem-aventuranças e nem o monopólio do Es­ pírito de Jesus. Pode haver, por exemplo, testemunhos, ges­ tos, ações, palavras que procedam de ateísmo de cunho ético. 18 Veja, particularmente, o estudo de P. Beauchamp, "La prophétie d'hier", in Lumiêre et Vie 115, 1973, pp. 14-24.

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De semelhante testemunho, que não é simplesmente verbal, mas de uma existência, temos vários exemplos: o dos que estão engajados na Anistia Internacional, o dos dissi­ dentes dos países do Leste, o dos que pertencem a movimen­ tos como "Médicos sem Fronteiras" ou o dos que trabalham no Quarto Mundo etc. Há dois testemunhos proféticos que devemos dar: de um lado, dar novamente razões para viver às pessoas das sociedades industriais e pós-industriais que estão desampa­ radas e à procura de novos messias, de novos guias; de outro, pôr termo ao processo fatal que alarga o fosso entre países ricos e países pobres. Esse testemunho não pertence s6 aos cristãos, porque o Espírito de Cristo é sempre im­ previsível.

E. Os critérios de autenticidade do testemunho e

1. Em primeiro lugar temos a referência ao Evangelho

à prática de Jesus. Numa situação histórica inédita, o tes­

temunho cristão é imprevisível e a imitação de Cristo não é reprodução mecânica. Mas há uma prática de Jesus que deve inspirar todo testemunho. Essa prática de Jesus, esse senso cristão, não dissocia o senso de Deus e o senso do homem. No testemunho cristão existe, hoje, urgência em en­ contrar o essencial: depois do Vaticano II, fala-se em hierar­ quia das verdades. O essencial é o mistério da morte e res­ surreição de Cristo e a prática de Jesus em favor dos ho­ mens. Ora, essa prática se tornaria insignificante, se não fos­ se referida a Deus seu Pai. 2. Não se pode dissociar o testemunho enquanto enun­ ciado do ato de enunciação, do engajamento da testemunha

falando na primeira pessoa e, portanto, da maneira pela qual ela se converteu, antes de propor testemunho como interpe­ lação aos outros.

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Para usarmos uma palavra de Kierkegaard, "há uma reduplicação do testemunho na vida da testemunha". 19 Que significa reduplicar? Significa ser alguém .o que diz; do con­ trário o testemunho. é puramente verbal. É a d;ferença entre a palavra do repetidor e a da testemunha. O testemunho cristão é sempre ·existencial; como dizia ainda Kierkegaard, "em cristianismo deve-se falar de imitador, e não de profes­ sor". Acrescentarei - e isto é importante do ponto de vista de uma teologia do testemunho - que é Deus mesmo a instância diante da qual se testemunha. É um sinal da gra­ tuidade do dom que me é concedido e da gratuidade de meu testemunho junto aos outros. Sou responsável diante de Deus, e não só diante dos outros. Sou julgado, em primeiro lugar, por Deus, e não pelos outros. Como Deus é graça, há sempre uma palavra interior que revela ao coração do ou­ vinte o sentido do meu enunciado, o sentido da minha pa­ lavra. Deus é, pois, a instância diante da qual o teste­ munho é proferido. É nisso que consiste a reduplicação do testemunho como transmissão de um conteúdo para a minha própria vida. Nesse momento a minha vida se torna palavra viva. 3. A palavra da testemunha deve ser amiga do homem.

O testemunho cristão dado ao Evangelho é sempre palavra exigente, interpelante, palavra que põe o homem em questão, que o julga, mas que deve ser sempre libertadora, e não fardo suplementar. Em outras palavras, os bons profetas não são necessariamente profetas da desgraça ou profetas acusa­ dores. Os bons profetas são aqueles que vão ao encontro da esperança do que tem possibilidades que ainda não lhe fo­ ram reveladas: palavra criativa de algo novo. A novidade é a possibilidade de existir inseparavelmen­ te como homem e como cristão. Estamos um pouco cansa­ dos das discussões sobre o "mais cristão ou sobre o específi­ camente cristão". Devemos lembrar aqui o que K. Barth 19 Veja a retomada dessa idéia pelos autores da obra coletiva sobre o tesLemunho: P. Jacquemont, J.-P. Jossua, B. Quelquejeu, Le Temps de la patience, Cerf, Paris, 1976, pp. 131-2.

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dizia da originalidade do cristianismo, que é melhor do que uma religião, ele é a religião da graça. O importante é o espírito novo com o qual assumo determinados valores já existentes, seja eu francês, americano, africano ou chinês. 4. O respeito pela liberdade do outro no testemunho: isto seria objeto de reflexão sobre a relação entre a respon­ sabilidade, a urgência do testemurtho e ?- necessidade do diálogo. Algu ns dizem com amargura que se passou da missão para o diálogo. Eu' diria que passamos de um mau proseli­ tismo para o diálogo. O verdadeiro testemunho não exclui o diálogo. Evidentemente pode-se pôr o problema teórico: como cumprir minha responsabilidade com o Evangelho e, ao mesmo tempo, respeitar a l�berdade do outro? Parece que a lei do diálogo consiste em os intérlocutores se porem reciprocamente em questão na procura hesitante da verdade. Ora, o fundamento de meu testemunho é a certeza de ter descoberto em Jesus a verdade sobre o homem e a his­ tória. Gandhi dizia: "Como pode ser fraterno aquele que acre­ dita ter a verdade?" com efeito, pretensão insustentável impor a outrem a minha verdade como a única, quando sei muito bem que dei minha adesão a essa verdade com liber­ dade, isto é, que a escolhi entre outras. Ela não se impõe, portanto, com a objetividade e a universalidade de uma ver­ dade evidente, científica ou filosófica. Para sairmos deste dilema bastante teórico, responsa­ bilidade ou respeito ao outro, devemos refletir na natureza da fé, no fato de que a fé é sempre, inseparavelmente, dom gratuito de Deus e ato livre. Ou: a fé não é posse definitiva, certeza adquirida vez por todas. Ela participa da insegu­ rança que caracteriza a minha l�berdade. Por outro lado, devemos sublinhar - especialmente em nossa situação cul­ tural - o caráter obscuro da fé. Não só não temos certeza a respeito de nossa própria fé, como também essa fé se refere a verdades obscuras, das quais não temos evidência. Há grande descontinuidade entre· as verdades que partilho com outros, no sentido de algumas evidências, e as verdades que dependem do mundo da fé.

:e,

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Desse ponto de vista, poderíamos, então, falar de si­ multaneidade existencial da fé e da descrença no íntimo do crente. 20 O diálogo começa em nós mesmos, e não s6 com

o outro, o sem-fé. Esse possível sem-fé, em primeiro lugar, somos nc;Ss mesmos, não o outro. Assim, em···todo testemunho há, necessariamente, uma fraternidade entre o crente e o descrente, fraternidade numa pesquisa jamais acabada. A essa altura não sou simplesmente proprietário de uma resposta definitiva, sou também teste­ munha· de uma 'interrogação, de uma verdade que me ultra­ passa, de· um apelo. Se, testemunhando, aceito seriamente as exigências do diálogo, sou eu mesmo, com minha fé, que vou ser submeti­ do a uma purificação radical. Quem sabe descobrirei, assim, que não tenho direito às verdades que testemunho, porque não as ponho em prática. Antes de ser confrontado com a exigência de verdade do meu interlocutor, posso iludir-me sobre a autenticidade de meu testemunho. Inversamente, tomando consciência de minha incoerência, posso eventual­ mente decobrir no outro uma fé oculta sob sua recusa de aceitar o Evangelho. Assim, pode haver no outro uma recusa paradoxal da verdade em contradição com a verdade de sua vida. Do mesmo modo que sou remetido à minha incoerência, isto é, ao fato de que minha fé confessada não coincide com minha fé vivida. Testemunhar o Evangelho, testemunhar a verdade de Cristo é testemunhar verdade que me ultrapassa, e no ato de testemunho posso chegar à minha verdade como o mostra o diálogo de Jesus com a Samaritana. Em outras palavras, o diálogo entre duas pessoas leva ao diálogo consigo mesmo, e nesse diálogo a verdade se celebra, se atesta. Quando o testemunho é dado diante de Deus e desinteressadamente, a sua intenção pode não ser tanto fazer com que o outro seja o que ainda não é - no sentido de conversão -, mas tentar fazê-lo entrar em si mesmo, isto é, revelar sua verdade ou uma possibilidade de existência ainda oculta. 20 Cf. J.-B. Metz, "L'incroyance comme probleme théologique", in Concil,um 6, 1965, pp. 6.5-81.

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Conclusão: As duas grandes formas de testemunho na Igreja O testemunho cristão nunca é individual, ele é prestado como Igreja. Devemos examinar o que o Espírito continua a dizer às Igrejas (d. Ap 2,7). Na Igreja de hoje há duas espécies de testemunho pro­ fético: o de tendência mais sociopolítica e o de tendência mais mística. De um lado, temos o testemunho profético dos cristãos da América Latina e dos países do Leste, dispostos a defen­ der o Evangelho com o sacrifício da própria vida, dispostos também a defender os valores implicados · no Evaneelho, particularmente os direitos fundamentais do homem. É ver­ dade que nesse final do século XX a Igreja de Cristo é uma Igreja profética no sentido em que, em muitos países pobres, não é mais aliada dos poderes constituídos, nem cúmplice de certo status quo. Do outro lado, temos as comunidades carismáticas, que atestam a permanência e o poder do Espírito. Elas dão testemunho da presença do Deus vivo no mundo. É muito lamentável, no cristianismo contemporâneo, que essas duas tendências freqüentemente se excluam mutua­ mente. Penso que é o senso do Deus vivo que preserva o profetismo político de cair em messianismo puramente tem­ por�l. Por outro lado, são os frutos da caridade concreta e realista, os frutos da caridade com os mais pobres de nos­ sos irmãos que atestam a autenticidade cristã das chamadas comunidades carismáticas.

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A FUNÇÃO IDEOLÓGICA DA SECULARIZAÇÃO

Empenhar-se na hermenêutica da secularização é tentar interpretar fenômeno comolexo que caracteriza o mundo co­ mo moderno desde a Aufklãrung, isto é, desde o movimento de emancipação da sociedade ocidental não só da tutela da Igreja, mas também de toda forma relig:osa. ,Quanto maior o acordo entre os historiadores da cul­ tura e- os sociólogos da religião na descrição do fen_ômeno, tanto mais difícil é a sua interpretação. Alguns pura e sim­ plesmente identificam secularização com dessacralizt1fão. Ou­ tros pensam que secularização designa só o processo histórico de recessão do cristianismo na sociedade ocidental e que ela pode muito bem coexistir com a persistência do sagrado no mundo moderno. Essas divergências de interpretação mos­ tram que, quando se trata de "secularização", é muito di­ fícil ficar na simples constatação histórica do fenômeno: es­ tudo científico e interesse ideológico se misturam de modo inextricável. Eu gostaria de veriHcar isso a propósito da "teo­ logia da secularização". Ela é, inseparavelmente, hermenêu­ tica da secularização e hermenêutica do cristianismo. As teologias nasceram sempre do encontro da mensa­ gem cristã com uma nova fase da cultura. A "teologia da secularização" é uma tentativa de reinterpretação do dado cristão à luz da "modernidade" do mundo e do homem, designada com o termo "secularização". A secularização é elevada à dignidade de critério hermenêutico da teologia cristã. Toda a questão consiste em saber se essa famosa "secularização" não se tomou conceito teológico, para não dizermos ideológico, forjado para as necessidades da Igreja 234

ante situação histórica nova. 1! notável, em todo caso, que sejam os teólogos a usarem de modo privilegiado a "se­ curalização" como modelo sociológico de interpretação da realidade histórica. É impossível, portanto, proceder à her­ menêutica da secularização sem refletir nó uso que ·dela fez o pensamento cristão mais recente. Isr;o deve ajudar-nos a discernir o conteúdo ideológico do conceito de secularização. Trata-se também de, caso exemplar, para a -verificação da fun­ ção ideológica da t_eologia em contexto histórico dado. Não posso, depois de tantos outros, reabrir o debate sobre as relaçqes entre teologia e ideologia.• Contento-me com distinguir duas funções da secularização. Em primeiro lugar, a função de justificação e de legitimação. Trata-se, então, de ver que- a teologia da secularização fornece justi­ ficação teórica tanto do devir secular do mundo e do ho­ mem como da mudança em curso no cristianismo. Mas, além da função legitimadora, que pode ser denunciada co­ mo coisificante, a secularização ainda pode ter para o futuro do cristianismo função exploratória e até utópica. Em ou­ tras palavras, a demitização da secularização como ideologia deve coincidir com uma decifração de seu alcance explicativo em relação à transformação da dimensão reliiosa do ho­ mem: Ela tem, particularmente, o mérito de nos mostrar a inadeq uação das categorias de "sagrado" e "profano" para justificarem a situação "religiosa" da humanidade contem­ porânea e o "religioso" especificamente cristão.

1. O VOCABULARIO DA SECULARIZAÇÃO E A FUNÇÃO DA IDEOLOGIA

Antes de nos interrogarmos sobre a função ideológica da secularização, devemos pôr-nós de acordo sobre o termo 1 Remeto somente à obra de S. Breton, Théorie des idéologies, Desclée. Paris, 1976, e à de Ch. Wackenheim, Christianisme sans idéo­ logie, Gallimard, Paris, 1974, bem como ao estudo de P. Ricoeur, •Her­ méneutique et critique dcs idéologies•, in obra coletiva, Démythisarion et idéologie, l!d. Castelli, Aubier, Paris, 1973, pp. 25-61.

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"secularização" e sobre o que caracteriza a função da ideo­ logia. 1. Numa primeira aproximação, designaremos por "se­ cularização" o fenômeno pelo qual as realidades do homem e do mundo tendem a se estabelecer numa autonomia cada vez maior, pondo de lado qualquer referência religiosa. His­ toricamente, o termo "secularização" teve durante muito tempo significado jurídico e 'neutro'. Ele design ava a ope­ ração jurídica pela qual se efetuava a transferência de pro­ priedades e usufrutos de alguns bens da Igreja para instân­ cias do Estado. Quando essas operações foram feitas sem o consentimento da Igreja, sob clima de polêmica e reinvindi­ cações - foi o caso do século XIX -, o termo "seculari­ zação", como também "laicização", serviu para designar de maneira mais geral o processo de emancipação da sociedade moderna em relação à tutela da Igreja. Os grandes setores da vida humana escaparam progressivamente à instituição eclesial: eles pertencem à ordem do racional, do científico e do político. Sem dúvida, o traço mais decisivo desse pro­ cesso de secularização nos tempos modernos é a extensão da racionalidade a todos os setores da realidade. É o "desen­ cantamento" do mundo no sentido de M. Weber. A natureza não encerra mais o sagrado: ela pertence ao domínio do explicado, do objetivável, do "disponível". Paralelamente a esse processo de objetivação, afirma-se cada vez mais a au­ tonomia do homem como dominador deste mundo sem mis­ tério. Vê-se, assim, que se passou naturalmente de um pri­ meiro sentido de "secuhrização ", na acepção de laicização, isto é, de libertação do domínio da I greja, para um segundo sentido, o de dessacralização do mundo e do homem. Há, enfim, uma terceira etapa nessa evolução semântica do ter­ mo "secularização". Ele passou a designar o processo de emancipação do homem moderno como processo de ateísmo. A dependência religiosa em relação a Deus é denunciada co­ mo alienação incompatível com a afirmação da plena autono­ mia do homem, finalmente entregue a si mesmo. Podería­ mos dizer - pelo menos na perspectiva dos humanismos

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ateus que se inspiram em Ft:uerbach - que as religiões his­ tóricas cedem o lugar à religião secular do homem. Essas observações preliminares de vocabulário bastam para nos pôr em guarda contra as confusões que o termo secularização pode favorecer em função dos interesses ideo­ lógicos de quem o usa. Uma coisa é afirmar a autonomia do temporal em face à dominação secular da Igreja, outra é afir­ mar a completa dessacralização do mundo porque "moderno" ou a irreligião total do homem contemporâneo porque "maior". Para melhor discernimento da função ideológica da se­ cularização, distingu irei, com P. Berger, a secularização no sentido objetivo e no sentido subjetivo. 1 No sentido objetivo, entende-se por secularização o processo de libertação da sociedade em relação à autoridade eclesiástica, bem como o retraimento das motivações religiosas nas diversas manifes­ tações da cultura. A secularização é, inseparavelmente, pro­ cesso socioestrutural e fenôrr:eno de civilização. A seculari­ zação no sentido objetivo é inseparável do pluralismo: a religião não tem mais o monopólio como sistema de legiti­ mação social e como sistema de ideação. Mas essa seculari­ zação da sociedade e da cultura traz uma secularização no sentido subjetivo, isto é, uma secularização da consciência. Dizemos que há secularização no sentido de transformação das estruturas de credibilidade da religião. É conseqüência inevitável do pluralismo. O "crível disponível" do homem moderno mudou no sentido de que os conteúdos tradicio­ nais da crença religiosa entram em conflito com os novos estados da consciência ligados à modernidade. Essa crise de credibilidade está necessariamente ligada a processos sociais que podem ser detenrunados empirica­ mente. Mas ela não é simples reflexo deles: a secularização do homem religioso no plano subjetivo tem suas leis pró­ prias. Devemos talar de causalidade reciproca entre o plano sociocultural da secularização e o plano da consciência. Ao 2 P. Berger, La religion dans la conscience modeme, Centurion, Paris, 1971, pp. 175, 203, 237 e passim.

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pluralismo dos sistemas de ideação, que pretendem dar a justificação da realidade, correspondem a dúvida, e o ceti­ cismo da consciência moderna. Podemos divergir quanto ao inventário das causas históricas da secularização. Podemos interpretar diferentemente o fenômeno, e é aí que entram motivações ideológicas poderosas. Mas o que é incontestável é a situação completamente nova criada para o homem mo­ derno pela secularização. "Provavelmente pela primeira vez em toda a história, as legitimações religiosas do mundo per­ deram sua credibilidade não só para alguns intelectuais e para outros indivíduos marginais, mas também para largas camadas de sociedades inteiras. "3 2. Se é verdade que, especialmente na literatura cristã, a secularlzação não é somente "modelo" da sociologia do conhecimento, mas também conceito ideológico, devemos começar por lembrar como se caracteriza geralmente a fun­ ção da ideologia. · - A iáeologia foi definida como a "cristalização teórica de uma forma de falsa consciência". Marx foi o primeiro a denunciar a ideologia como a falsa consciência gerada no homem alienado - sem que ele o perceba - pelas contra­ dições socioeconômicas da sociedade na qual ele vive. No caso da sociedade burguesa, a religião e a metafísica são as ideo­ logias por excelência. Os homens têm necessidade de re­ produzir no imaginário as relações reais que têm entre si. Mas esta "visão do mundo" não é simples reflexo das es­ truturas socioeconômicas. Ela tem função de justificação e legitimação de um grupo ( a classe dominante) na socie­ dade. Marx teve o mérito de analisar o inconsciente social e de mostrar que toda "visão do mundo" ·pode degenerar em ideologia. A ideologia se apresenta como sistema de re­ presentações, de idéias e de valores, com seu rigor próprio, ao passo que seu móvel efetivo se encontra na vontade de satisfazer os interesses de determinado grupo. "Ideologia é complexo de idéias ou de representações que, aos olhos do sujeito, passa por uma interpretação do mundo ou de sua própria situação; que lhe representa a verdade absoluta, 3 P. Berger, op. cit., p. 201.

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mas na forma de ilusão, pela qual ele se justifica, se dissi­ mula e se esquiva de uma forma ou de outra, mas para sua vantagem imediata. "4 Como a ideologia serve aos interesses da classe domi­ nante, ela tende a justificar o status quo social para pre­ servar os privilégios adquiridos. Ela é, pois, essencialmente conservadora, à diferença da utopia, que procura sempre transformar e superar o estado dado de uma sociedade ( cf. a diferença entre "ideologia" e "utopia" em Mannheim). Apesar de sua vontade de apresentar uma imagem do mun­ do totalizante e universal, ela é, pois, parcial. Ela usa a categoria de totalidade, mas não faz dela nenhum uso dialé­ úco para apreender a realidade. Toda ideologia tende, pois, a ser "reificante" e "anti-histórica" .5 Segundo o ponto de vista do marxismo ortodoxo, as ideologias, e particularmente a religião, são explicações subs­ titutivas dos fenômenos que ainda não são compreendidos pela ciência. E desaparecerão por si mesmas quando se chegar a uma compreensão verdadeiramente científica da realidade. Mas um autor como L. Althusser recusa a teoria do fim das ideologias. Para ele a sociedade é totalidade complexa que comporta três estruturas ou instâncias, a econômica, a polí­ tica e a ideológica, que têm entre si relações recíprocas e necessárias. A ideologia é estrutura permanente, que não se­ rá eliminada pela ciência e que exerce uma função necessária em toda sociedade. O que é possível é determinar cientifica­ mente o funcionamento da ideologia. Mas não podemos fa­ zer abstração da ideologia para compreendermos os fenô­ menos econômicos e políticos. Inversamente, seria muito sim­ plista querer explicar uma superestrutura como a religião unicamente a partir do estado das forças produtivas. Se considerarmos agora o caso da teologia, devemos recusar-nos a reduzir a teologia a ideologia e, ao mesmo tem­ po; ter na maior conta a crítica marxista das ideologias. A te::p­ logia, como esforço de teorização do dado cristão, só tem sentido se permanecer sob a ação da fé. Ora, a fé se opõe 4 J. Gabei, "Idéologie", in Encyclopaedia Universalis, vol. VIII, Paris, 1970, p. 719. 5 K. Jaspers, Origine et sens de l'histoire, citado por J. Gabei, art. cit., p. 719.

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à pretensão totalizante da ideologia. Ela é apelo à supe­ ração de situação histórica relativa e da justificação teórica de grupo humano particular. Ela se define como abertura para o futuro, e, embora tome a sério o sofrimento e a incerteza do homem, aprofunda· a sua esperança. Mas, ao mesmo tempo, uma análise de tipo marxista nos ajuda a discernir melhor a função ideológica que a teologia pode exercer em dado momento histórico. A teolo­ gia degenera em ideologia sempre que se torna sistema de justificação e legitimação social e que procura legitimar, em nome da "pura fidelidade ao Evangelho", tal ou tal opção social ou política, quando, na verdade, defende os interesses da classe dominante, seja na sociedade, seja na própria Igre­ ja. O discurso teológico tem sua coerência própria: ele não é o simples reflexo das relações sociais existentes, e seu sentido não se esgota em seu significado social. Mas ele nunca deixa também de ter relação com as esferas do eco­ nômico e do político. Quem pode negar que, em sua longa história, a teologia cristã procurou justificar a injustiça social reinante e dar aos homens a ilusão de compensação pela injustiça que eles sofriam?

II. A SECULARIZAÇÃO COMO PRODUTO HISTÓRICO DA F'E CRISTÃ

Feitas essas elucidações sobre o termo "secularização" e sua função de ideologia, devemos perguntar-nos se, de uns vinte anos para cá, a secularização não funciona, na teologia cristã, como se fosse ideologia. A secularização, que é, primei­ ramente, conceito sociológico, tende, com efeito, em al guns teólogos, a tomar-se conceito teológico. Num primeiro tempo, ante o fenômeno maciço da se­ cularização, as Igrejas se refugiaram numa atitude defensiva e conservadora. Do lado protestante, devemos citar uma teo­ logia como a de Karl Barth, que sublinha os direitos absolu­ tos da Palavra de Deus, seja qual for a mentalidade secular do homem moderno, e que tende a acentuar a separação

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entre Deus e o mundo. Do lado católico, podemos lembrar a condenação do modernismo e do laicismo e as posições intransigentes do magistério com relação a todas as manifes­ tações do fenômeno de secularização, até às vésperas do Va­ ticano II. Mas, depois' da última guerra, viu-se nascerem rapida­ mente, especialmente no âmbito do protestantismo, teolo­ gias que procuravam reinterpretar o cristianismo à luz da secularização como processo histórico. Devemos citar sobre­ tudo F. Gogarten, que - poderíamos dizer - foi o primei­ ro a fazer da secularização critério hermenêutico da fé cristã. Em seguida, teologias da secularização, como a de H. Cox, devem muito às intuições principais de D. Bonhoeffer sobre o "fim da religlão". Achamo-nos, pois, em face de todo um movimento de pensamento teológico que tende a identificar o movimento moderno de "secularização" com o destino his­ tórico do cristianismo. Ele culminou nas teologias radicais da "morte de Deus" como a de T. J. J. Altizer. Na teologia católica, não se encontram, pelo menos no começo, teologias que mereçam verdadeiramente o nome de "teologias da secularização". Trata-se de teologias que, co­ mo as " teologias das realidades terrestres", procuram diá­ logo entre o cristianismo e o mundo moderno e que querem dar justificação teológica às tarefas profanas do homem. Mas o termo "secularização" não tem a mesma sorte que na teologia protestante. Entretanto, essas "teologias das rea­ lidades terrestres" exerceram influência não negligenciável na constituição pastoral Gaudium et spes, que consagra, de certa forma, nova concepção do diálogo entre a Igreja e o mundo. E, !"ecentemente, teól ogos católicos elaboraram " teologias políticas" e "teologias da libertação", que teste­ munham problemática muito mais revolucionária do que as teologias da secularização. Não é o caso de apresentarmos aqui, em detalhes, as diversas teorias elaboradas pelos teólogos da secularização. 6 6 Remeto aqui somente às estudo: F. Gogarten, Destin et Tournai, 1970; D Bonhoeffer, des, Genebra, 1963; H. Cox,

obras mais marcantes que usarei neste

espoir du monde mode. ne, Casterman, Résistance et soumission, Labor et Fi­ La Cité séculiere, Casterman, Tounai,

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Eu gostaria somente, inspirando-me em Gogarten e Bon­ hocffer, de tentar resumir os principais argumentos aore­ sentados como justificação teol6gica da secularização. Esse termo, que procura descrever uma situação histórica, perten­ ce à sociologia do conhecimento. Ora, entre os teóricos da sca.ilarização ele se toma conceito propriam'ente teológico. Passa-se de uma situação de fato para uma situação de di­ reito. A secularização, que é, em primeiro lugar, o resultado de algumas mudanças de ordem socioeconômica, torna-se produto hist6rico da fé cristã. Estamos diante de relação re­ cíproca entre fé e secularização. A secularização é o critério hermenêutico da reinterpretação da mensagem cristã para hoje. Inversamente, a serularização não é mais constatação empírica, mas produto ideológico. A secularização moderna é pensada segundo o modelo antigo do movimento de des­ sacralização e desdivinização operado pela fé bíblica. Num esforço de clareza, creio poder discernir três pres­ supostos teológicos fundamentais na reflexão cristã contem­ porânea sobre a secularização. Em primeiro lugar, temos a originalidade do Deus da fé em relação ao Deus da religião. A secularização é então conceito teológico que designa a dessacralização. Vem, em seguida, a doutrina luterana da justificação. A secularização designa então a autonomia da razão. Por fim, há uma interpretação da kenose de Deus. Por "secularização" entende-se então o mundo maior. A diferença do deus cósmico das religiões pagãs, o Deus de Israel não responde muito bem às necessidades do homem. Ele abençoa a vida, mas não a sacraliza. A reve­ lação do Deus criador foi justamente ponto de partida de racL.cal dessacralização do mundo antigo, que estava cheio de deuses. Por outro lado, o Deus de Israel não era o Deus 1968; T. J. J. Altizer, The Gospel o/ Ch.-istian Atheism, The West­ minster Press, Filadélfia, 1966. Sobre as teologias da secularização, re­ comendo vivamente o estudo de C. Duquoc, Ambiguité des théologies de la sécularisation. Essai critique, Duculol, Gembloux, 1972. Podem ser consultados com proveito: L. Newbigin, Une religion pour un monde séculier, Casterman, Tournai-Paris, 1969; R. Marlé, La Singula:ité chré­ tienne, Casterman, Toumai-Paris, 1970; também a obra coletiva, Les Deux Visages de la théologie de la sécularisation, Casterman, Toumai, 1970; e a também coletiva, Herméneutique de la sécularisation (!dit. Castelli), Aubier, Paris, 1976.

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da imortalidade que o homem inventava diante do absurdo da morte. O problema de Israel não era o de atravessar o abismo terrificante da morte, mas o de poder continuar a celebrar o nome de Deus depois de deixar a terra dos vivos. Enfim, o Deus de Israel não estava encarregado de manter a harmonia do cosmo. O ·seu encargo era menos o de suster o universo do que o de transformá-lo. Ele intervinha na história dos homens e procurava habitar entre eles. Assim, o Deus de Israel não era nem o Deus da fecundidade, nem o Deus da imortalidade, nem o Deus da harmonia do uni­ verso, que são os lugares por excelência da manifestação do divino na história das religiões.; A originalidade da fé bíblica em relação à relig:ão foi justamente a de celebrar o nome de Deus em face a um mun­ do entregue a si mesmo, em lugar de se confundir com as ne:essidades fabricantes do homem para compensar as defi­ ciências de sua v_ida ou responder aos grandes enigmas do universo. A função essencial da rel;gião consiste em dominar a angústia da vida humana diante da insegurança do mundo. A originalidade da fé bíblica, para autores como Barth e Bultmann, consiste em que ela se opõe diretamente à reli­ gião entendida como a vontade do homem de se tornar dono de Deus para acalmar sua angústia. A fé bíblica ao mesn:o tempo em que dessacraliza o mundo - restitui o homem a ele mesmo, à sua autonomia e ao seu poder de dominação sobre o mundo. Há, pois, uma convergência entre o dinamismo da fé bíblica e o processo moderno de secularização. Pode-se dizer que toda a teologia da secularização se desenvolve no horizonte teológico da distinção radical entre fé e religião como teorizada por autores como K. Barth e R. Bultmann, sendo a religião sempre identificada com a pro­ cura da segurança e, portanto, com uma "obra" do homem pecador, e sendo a fé entendida ·como risco, insegurança, entrega total do homem à Palavra de Deus, sem mediação humana. O "fim da religião", tema orquestrado muitas vezes por D. Bonhoeffer, é, portanto, a realização histórica do 7 Cf. A. Dumas, Nommer Dieu c•cogitatio Fidei• 100) Paris, 1980, pp. 88-9.

Cerf,

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que estava contido em germe no dinamismo da fé bíblica. Longe de lamentar o processo inelutável de secularização do mundo moderno, é necessário, portanto, alegrar-se como que com uma nova oportunidade para o futuro do cristia­ nismo. A secularização não é simplesmente fato inelutável, ela é um dever. A fé não é pervertida pela dessacralização, que, muito ao contrário, é uma exigência da fé. Toda a história de Is­ rael pode ser compreendida como luta do profetismo contra os riscos permanentes de degradação da fé em religião e contra a tentação de sacralizar alguma coisa que não fosse o nome de Deus. Por comparação com as religiões pagãs, assiste-se no Antigo Testamento a uma metamorfose das relações do sagrado com o profano. Deus não é o sagrado, mas o "Santo" que faz explodir a oposição entre o sagrado e o profano. No regime da antiga aliança, o sagrado ainda desempenhava, todavia, papel mediador entre o homem e Deus. É só com a encarnação de Deus em Jesus que se pode falar de superação radical da oposição do sagrado ao pro­ fano. O que define a nova aliança é justamente o fato de que todo o sagrado mediador entre o homem e Deus se concentra na pessoa de Jesus. Assim, para teólogos como Gogarten e Bonhoeffer, o fenômeno histórico da secularização, entendido ao mesmo tempo como dessacralização do mundo e como autonomia da razão humana, é o resultado do que se encontra em germe na revelação bíblica, a saber, a desdivinização do mundo por Deus. É um acontecimento considerável na história religiosa da humanidade. Ele transforma radicalmente a relação do homem com o mundo. Em face a este mundo desdivinizado, o homem é totalmente livre para o dominar e transformar. Gogarten gosta de citar, como programa dessa liberdade nova, a palavra de são Paulo: "Tudo é vosso, o mundo, a vida, a morte, as coisas presentes e as futuras" ( lCor 3, 22). Acontece que essa verdade libertadora ficou oculta no cristianismo histórico enquanto a humanidade ainda vivia na fase da religião. Compete, pois, ao pensamento cristão da Idade Moderna, isto é, da fase do fim da religião, dar jus­ tificação teológica à secularização. Como observa perfida-

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mente P. Berger, é bastante estranho ( ou dever-se-ia falar de "ironia da história" ) que historicamente o cristianismo tenha sido seu próprio coveiro.8 É este, no entanto, o caso, se é verdade que a secularização é produto da fé, ao passo que constatan:os, por outro lado, que a secularização minou a credibilidade do cristianismo. Mas teólogos da seculariza­ ção como Gogarten responderiam que é necessário disringir a secularização legítima; isto é, a distinção radical entre Deus e o mundo, da secularização ilegítima, isto é, o fato de o homem não se ver mais como criatura de Deus. Deve-se falar então de secularismo, e ele está prorito a admitir que a se­ cularização contém em germe sua própria perversão. Insisti até aqui na reveíação do Deus todo-outro e na distinção entre fé e religião como pressupostos teológicos da teologia da secularização. Agora devemos precisar que os teólogos da secularização usam também a doutrina luterana da justificação pela fé sem as obras para legitimarem o re­ conhecimento do mundo como profano e a autonomia da razão em relação à fé. Do mesmo modo, a distinção luterana dos dois reinos, o reino de Deus e o do mundo, significa que no reino do mundo Deus submeteu todas as coisas ao poder da razão humana. Lutero se preocupava, em primeiro lugar, com afirmar ·a liberdade real do cristão, que é "livre senhor de todas as coisas e que não está sujeito a ninguém". Mas, de fato, sem o saber, ele abria o caminho para o mundo moderno, isto é, para o reconhecimento da autonomia do mundo e para a distinção entre ordem temporal e ordem espiritual. É precisamente enquanto o homem, pela fé, é livre em relação ao mundo que ele é seu senhor e res­ ponsável por ele. Gogarten identifica o conceito de "mw1do" com os de "lei" e de "obra" no sentido de são Paulo e como eles fo­ ram interpretados na tradição reformadora.9 O pecador é aquele que confia em si mesmo ou em práticas no âmbito do mundo. Nisso ele ainda é homem da lei. O homem novo é 8 Cf. P. Berger, op. cil., p. 206. 9 Cf. Les Deux Visages de la théologie de la sécularisation, cit., p. 32.

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aquele que, como pessoa livre em face do mundo, só confia em Deus. Parece, assim, que nada mediatiza o encontro pes­ soal do homem com Deus. A fé como obediência ao convite de Deus e como abertura para o futuro funda a secularidade do mundo e a livre responsabilidade do homem perante o histórico. "A fé não representa sistema dogmático e meta­ físico a ser aplicado no mundo. Este mundo é profano por­ que só o homem é criador dos valores que entende promover nele. Ele não busca os princípios deste mundo numa reserva celeste. A fé, despojada da dimensão metafísica recebida do mundo grego, funda, por sua abertura para o futuro, o ca­ ráter secular do mundo. " 1 º Secularização é, pois, outra designação da autonomia da razão. Gogarten estabelece corte radical entre Deus e o homem, entre a fé e o mundo, entre a revelação e a história. Mas ele se separa de K. Barth, para o qual a Palavra de Deus nos atinge só na encarnação. Se o mundo, enquanto desdivinizado e secular, é produto da fé, ele pode tomar-se o lugar em que Deus nos fala. Hoje o que caracteriza a modalidade própria da fé cristã é que a questão de Deus só pode ser colocada no horizonte da secularização do mundo e de toda existência humana. A partir do princípio da Reforma, procura-se fazer da secularização uma exigência da própria fé. Rompe-se, então, com o cristianismo histórico, cuja missão foi entendida, du­ rante séculos, como um esforço para "cristianizar" o mun­ do. Mas isso para melhor afirmar a pureza absoluta da fé. Toda tentativa de mediatizar entre a fé e o saber ( teologia clássica), entre a fé e a civilização ( hu.qianismo cristão), entre a fé e a história ( teologia política) chega a uma con­ fusão ilegítima e redunda em "secularizar a fé". Pode-se dizer que, paradoxalmente, a teologia da secularização que procede da Reforma é a fonte de teologia política que re­ cusa toda idéia de causalidade entre os movimentos históri­ cos de libertação humana e a vinda do reino de Deus. Por isso os teólogos da libertação vêem na influência das teses 10 8 assim que C. Duquoc transcreve o pensamento de Gogarten in Ambigulté des théologies de la sécularisation, p. 41.

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luteranas uma das razões do conservantismo político das teologias políticas ou protestantes.11 Outra doutrina teológica invocada para fornecer uma justificação da "secularlzação" é a da kenose de Deus em Jesus. A secularização designa então o "mundo maior" e a "idade adulta" do homem. Encontramos essa intuição em Bonhoeffer, mas ela recebeu sua formulação máis radical na teologia da "morte de Deus" de T. J. J. Altizer.n O Deus da religião mantém o homem num estado in­ fantil: ele o aliena. Para Bonhoeffer, a impotência do homem religioso é o correlativo exato da onipotência de Deus. O Deus de Jesus quer o homem adulto. A secularização do mundo é conseqüência do desígnio de Deus, que se deixa desalojar do mundo e pregar na cruz para que o homem chegue à idade adulta e seja - nas positividades de sua vida - participante da senhoria de Cristo sobre o mundo. "Eis a diferença decisiva em relação a todas as outras reli­ giões. A religiosidade do homem o reenvia, em sua miséria, ao poder de Deus no mundo, Deus é o deus ex machina. A B�blia o reenvia ao sofrimento e à fraqueza de Deus; somente o Deus que sofre é que pode ajudar. Neste sentido, pode-se dizer que a evolução do mundo para a idade adulta, da qual falamos, fazendo tábula rasa de falsa imagem de Deus, liberta o olhar do homem, dirigindo-o para o Deus da Bíblia, que adquire seu poder e seu lugar no mundo por sua impotência. " 13 Poderíamos caracterizar a atitude de Bonhoeffer como a inversão da inversão da religião efetuada por Feuerbach, que disse: "Para enriquecer Deus, o homem deve empobre­ cer-se; para que Deus seja tudo, o homem não deve ser nada." Bonhoeffer inverte o esquema, dizendo: Deus se e.mi! A respeito desse ponto, cf. J. L. Segundo, u Capitalisme-Socia­ lisme, une croix pour la théologie", in Concilium 96, 1974, especial­ mente pp. 104-5. 12 ,·_ J. Altizer, The Gospel of Christian Atheism, The Westmins­ ter Press, Filadélfia, 1966. 13 D. Bonhoeffer, Résistance et soumission, cit., p. 163. Veja o comentário propriamente tl!Ológico de E. Jüngel sobre esses textos céle­ bres em Dieu mystere du monde, trad. franc. ("Cogitatio Fidei" nn. 116-117), Cerf, Paris, 1983, 1, pp. 86-96.

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pobrece para enriquecer o homem ... Ele reinterpreta, por­ tanto, o mistério da morte de Cristo à luz da secularização e vê uma convergência entre a promoção do homem adulto, libertado da alienação religiosa, e a revelação do Deus fraco e sofredor em Jesus. Quando o homem faz a experiência de sua força e de sua autonomia, ele compreende que é só o Deus fraco e crucificado que pode vir em seu auxílio. Foi preciso esperar o fim da religião para que as funções ilusó­ rias de Deus em relação ao homem fossem demistificadas e para que ele fosse reconhecido em sua transcendência pró­ pria. Finalmente, como, à diferença do que se passou du­ rante séculos, a fé não está hipotecada pela religi.ão, toda a questão consiste em chegar a uma "interpretação não-reli­ giosa dos termos b�blicos", em encontrar um "discurso se­ cular" sobre Deus, em assegurar um "anúncio a-religioso do Evangelho". O programa de cristianismo a-religioso de Bonhoeffer está cheio de intuições muito ricas e permanece na órbita de teologia cristã. Em outro autor, como Altizer, o alcance ideológico do conceito de secularização é tal que não se fala só da fraqueza de Deus, mas também da morte de Deus. A boa nova do Evangelho é a proclamação da morte do Deus todo-poderoso e ciumento do Antigo Testamento. Che­ ga-se a uma jesuologia pura e simples. A onipotência é iden­ tificada com o mal. Se Deus é amor, ele deve cessar de ser Deus. Ele só se resgata pela sua morte. O cristianismo histó­ rico não compreendeu o alcance da morte de Jesus. Ele pro­ longou o poder constrangedor da religião sobre o homem. A idade da secularização total do mundo e do homem inau­ gura finalmente a verdadeira compreensão do mistério pas­ cal. A morte do Deus todo-poderoso é a condição para o aparecimento da verdadeira liberdade e para a autonomia do homem. É nisso que Deus revela seu amor.

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III. A FUNÇÃO IDEOLOGICA DA SECULARIZAÇÃO

Vimos rapidamente alguns dos argumentos teológicos invocados pelos teólogos da secularização. Devemos mostrar agora em que sentido a teologia da secularização funciona à maneira de ideologia e serve aos interesses da Igreja. Ela procura, em primeiro lugar, justificar e legitimar o retraimento histórico do cristianismo nos tempos atuais. Co­ roo toda ideologia, a teologia da secularização negligencia urna pesquisa verdadeiramente histórica sobre as causas da secularização no mundo moderno. Finalmente, ela se obstina contra a realidade, procurando a todo custo uma convergência entre o processo moderno de secularização e o movimento de dessacralização inaugurado pela fé bíblica. A secularização - que é antes de tudo conceito sociológico para designar o fenômeno em virtude do qual as estruturas da socieda­ de tendem a se estabelecer numa autonomia cada vez maior em relação a toda instância religiosa ou eclesial - tende a se tornar conceito ideológico e, portanto, a-histórico. A "secularização" é fenômeno incontestável de civili­ zação. Ela caracteriza a sociedade moderna em sua diferença a uma sociedade sacral ainda sob a dominação da Igreja. Mas como que para justificar teologicamente o fato de a Igreja ter perdido suas posições de poder na sociedade mo­ derna, este estado de fato é absolutizado e se torna estado de direito. É estranho, em todo caso, que o termo "secula­ rização" tenha-se tornado termo privilegiado do vocabulário cristão. Ora, se é evidente que as estruturas da sociedade, como as ciências, as técnicas, a cultura, a filosofia, as ideo­ logias políticas, se tornaram seculares no sentido de que não têm nenhuma regulação religiosa, isso não significa necessa­ riamente que o mundo moderno esteja completamente des­ sacralizado. Muitos observadores atestam, ao contrário, a persistência da religião no mundo contemporâneo e até um retorno do sagrado. 14 Os cristãos que se fazem arautos da 14 Cf. a obra coletiva, Le Retour du sacré, Beauchesne, Paris, 1977, com minhas conclusões, pp. 129-43. Assinalo, além disso, duas ob.-as importantes, que apareceram recentemente, das quais tomei co-

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s�larização não se arriscam a se atrasar de uma geração? E talvez estejam colocados para decifrar os sinais de um retorno do sagrado, porque supõem inconscientemente que a I greja ainda detém o monopólio do sagrado. Crêem, pois, facilmente, que a crise das Igrejas e a crise da prática crente coincidem necessariamente com o caráter irreligioso do ho­ mem moderno, o que não é absolutamente evidente. O fato de muitos de nossos contemporâneos não serem mais cris­ tãos não significa que se tenham tornado irreligiosos e que sejam incapazes de fazer a eÃ-periência do sagrado. Para falarmos em dessacralização, devemos começar por nos entendermos sobre a noção de sagrado. O declínio de sociedade sacral ainda enfeudada na Igreja pode muito bem coincidir com um retorno do sagrado, que é figura hlstórica do espírito. Por isso, em vez de falarmos do en&aqueci­ mento do sagrado, devemos falar de "suas metamorfoses" . 15 O sagrado não se identifica com as objetivações religiosas produzidas por ele nas religiões históricas. A experiência do sagrado é diferente da experiência de Deus. E tem por obje­ to uma região específica do ser que não é identificável com Deus_. Por isso o recuo considerável do sagrado como sagrado objectal não contradiz a permanência do sagrado como ex­ periência subjetiva. E essa experiência leva a uma reinvesti­ dura do sagrado em outros objetos, não mais da natureza, mas da técnica, eventualmente, ou em novos ritos, em novos mitos, em novas festas, em novos deuses no seio de nossas sociedades secularizadas. O certo é que o sagrado moderno é sempre um sagrado pós-cristão. Pode-se pensar que o cé­ lebre "retorno do sagrado", do qual muitos falam hoje, atesta o vazio deixado na consciência moderna pelo Deus judaico­ cristão. nhecimento depois da redação deste texto: J.-P. Simonneau, Sécula­ risaticm et rel1g1ons politiques, Mouton, Paris, 1982, e F.-A. lsambert Le Sens du sac,é. Fête et religion populaire, td. de Minuit, Paris, 1982. 15 Permito-me remeter ao meu estudo: kLe christianisme et les métamorphoses du sacré", in Le Sacré. Etudes et recherches. Atas do Encontro Romano, editadas por E. Castelli, Aubier-Montaigne, Paris, 1974; veja tamb5m minha contribuição ao volume em homenagem ao moas van Kamp, "Sécularisation du christianisme et retour du sacré n , in Savoir, Jaire, espérer. Les limites de la raison, Bruxelas, 1976, t. li, pp. 739-54. 250

Em segundo lugar, a opos1çao entre a fé e a religião, que teve tanto sucesso no pensamento cristão contemporâ­ neo, protestante ou católico, tem alcance estratégico inegável. De um lado, com objetivo apologético, ela permite pôr a fé ao abrigo da contestação radical da religião pelo ateísmo moderno. Do outro, ela fornece jus�ficação ideológica para a indiferença religiosa do homem moderno, afirmando que a relig'.ão não é o pressuposto necessário da fé. Além disso, a fé cristã nunca tem tantas oportunidades de ser verdadei­ ramente ela mesma que possa fazer abstração de todo pres­ suposto religioso. Enfim, muitas vezes a oposição entre a fé e a religião traz aval teológico a toda uma literatura es­ piritual que põe em relevo o contraste entre o "belo risco da fé" e a "secularização pequeno-burguesa da religião" .16 Ora, a tese do fim da religião e da idade adulta tem o ar de afirmação ideológica que não corresponde à situação complexa da humanidade contemporânea. Pode-se perguntar se não se trata de tentativa um tanto desesperada de justifi­ car o insucesso da evangelização cristã na maior parte dos países do hemisfério Norte. Contrariamente, com efeito, ao que anunciavam os pro­ fetas da morte de Deus, parece que a religião retoma a dian­ teira em seu diálogo com a ciência, e isso pela primeira vez desde Darwin. Isso tenderia a provar que, contrariamente ao que afirmavam todos os teólogos da secularização, o sa­ grado, o mítico, o místico, o extático não foram eliminados da condição humana. O homem não vive só de pão ou de conhecimento científico. E longe de ser expressão da miséria do homem, como pensava Marx, esse revival religioso é fenômeno próprio das sociedades ricas do mundo ocidental. Ela não é, também, protesto contra a miséria, mas protesto contra o não-senso das sociedades da abundância, que au­ mentam sem cessar seus meios, enquanto sofrem da ausência crescente de fins. Esse despertar religioso, pelo menos nos Estados Unidos, é uma forma de contracultura, tendo, por­ tanto, alcance social e mesmo político. É interessante notar 16 Cf. R. Bultmann, "Discours de Paul à I'Aréopage ª (trad. franc.), in Le Supplément 114, 1975, pp. 303-13, com um comentário de C. Geffré, ªL'homme modeme face au Dieu inconnu", ibid., pp. 315-21.

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que para muitos jovens de hoje o religioso não é expressão de falta, mas de criatividade, de alegria, de solidariedade com os outros. É certo que a crítica à religião � uma exigência da fé cristã, se por religião entendermo�, 'Seja projeto de autojus­ tificação, seja evasão para fora da vida real. Se a religião não é necessariamente expressão· dá' procura de falsa segu­ rança, mas expressão do desejo do homem e da superação de seu desejo na linha de suas experiências humanas mais positivas na ordem do amor e da criatividade, somos convi­ dados a ultrapassar oposição muito simplista entre a fé e a rertão. Assim, o projeto de cristianismo a-rdigioso no sen­ tido de Bonhoeffer, justamente ao procurar justificar teologi­ camente o processo moderno de secularização, pode compro­ meter os pressupostos antropológicos da fé cristã. A fé se enraíza necessariamente no que se poderia chamar de "sa­ grado original" do homem como mistério de abertura e de comunhão. Sejam quais forem as metamorfoses do sagrado na história, é o homem que é o lugar originário do sagrado. Um cristianismo completamente secularizado, que não vai ao encontro do pressentimento obscuro do sagrado presente no coração de todo homem, pode degradar-se justamente cm ideologia. E não exerce mais atração em todos os nossos contemporâneos que buscam o sagrado. Existe, enfim, um traço paradoxal nas teologias da se­ cularização. Ela.; se pretendem progressistas: rompem com uma teologia qlle procurava legitimar o papel sacralizante da Igreja em rel ação às estruturas da sociedade. Ora, de fato, com toda icteologia, a teologia da secularização, secretamen­ te, faz o jogo das sociedades neoliberais do mundo ocidental, todas sob :> signo da distinção tipicamente burguesa entre o pnvado t. o publico.17 Vimos a importância da teoria luterana dos dois reinos. A teologia da secularização justifica teologicamente a mar­ gim· uzaçao progressiva da Igreja na sociedade, a perda de 17 Essa crítica da liberdade como liberdade de emancipação, no s... .itido das sociedades neoliberais, está subjacente na nova teologia ·.,olftica de J.-B. Metz em La Foi da11s l Eglise et dan.s la société, cit.

).52

sua influência cultural e política e o enfraquecimento das instituições cristãs. A religião cristã corre então o risco de limitar-se à esfera do privado e não exerce mais sua ação pública transformadora nas estruturas da sociedade. Assim, ao mesmo tempo em que avaliza teologicamente um apaga­ mento da Igreja como instituição na sociedade secular con­ temporânea, a teologia da secularização tende a legitimar o ethos humanista das sociedades liberais. "É construção te6ricà, que serve para manter em sua autonomia e em sua emancipação a consciência de nossa sociedade moderna, sua orlentação coletiva. Assim, o seu caráter de adaptação se acha ao mesmo tempo associado a uma sociedade que se funda na autoridade privada do indivíduo situado no sistema econômico e no setor dos lazeres. " 18 No momento em que a teologia da secularização garante domínio intocável, o da fé, de fato ela fornece, embora involuntariamente, um álibi às sociedades neocapitalistas sob o signo do crescimento a qual­ quer preço do máximo rendimento, da racionalidade técnica. A religião cristã tem função de pacificação psicológica. Ela ajuda os indivíduos a resolverem suas angústias, mas não toca nas estruturas do sistema capitalista. Embora sem o sa­ ber, ela se faz cúmplice delas. Não é, pois, de admirar que, apesar de sua aparência progressista, a teologia da secularização se veja hoje contesta­ da pelos promotores da "teologia da revolução" ou da "teo­ logia da libertação". "A teologia da secularização não repete o modelo constantiniano nem o adapta, mas também não o rejeita. Ela corresponde, certamente, ao empreendimento de destruição ideológica e pragmática das teologias e dos com­ portamentos que continuam sob a influência da Igreja pós­ tridentina. Mas, por falta de autocrítica e de crítica das condições de sua emergência na sociedade de hoje, o ethos tematizado pela teologia da secularização não faz senão re­ produzir a mentalidade do modelo constantiniano. " 19 18 Les Deux Visages de la théologie de la sécularisation, cit., p. 146.

19 M. Xhaufílaire, "La théologie apres la théologie de la séculari­ saion", in Les Deux Visages de la théologie de la sécularisation, cit., pp. 89-90.

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De seu lado, os teólogos latino-americanos acusam os teólogos europeus da secularização, e mesmo a teologia polí­ tica de J.-B. Metz, de serem anti-revolucionárias por essên­ cia. Com efeito, sob a influência da doutrina luterana da fé sem as obras, elas relativizam completamente todos os es­ forços de libertação feitos na história em relação ao absoluto escatológico. São teologias abstratas e neutralistas, quando muito reformistas, mas incapazes de justificar, em nome do Evangelho e da preparação, desde este mundo, do reino de Deus definitivo, uma opção política concreta.

IV. A SECULARIZAÇÃO E O FUTURO DO CRISTIANISMO

Fazendo da secularização um "produto" histórico da fé b{blica, os teóricos da secularização desconhecem a origina­ lidade do processo moderno de secularização. Falam dele num nível abstrato e metafísico e negligenciam suas formas concretas, econômicas, políticas e culturais. Finalmente, em­ bora sem o saberem, "produzem" a ideologia da qual a I greja tem necessidade para justificar seu devir, isto é, sua mar­ ginalização crescente. Ao mesmo tempo, avalizam as socie­ dades liberais do mundo ocidental sob o signo da ruptura entre "público" e "privado". Curiosamente, quando eles querem insistir na função social e política do cristianismo, não atingem seu aspecto profético, uma vez que ele não es­ capa à fatalidade histórica de todas as religiões, a saber, a de ser a ideologia justificadora da sociedade estabelecida. Mas sugeri no início que a ideologia da secularização não é necessariamente reificante e a-histórica. É verdade que, por falta de senso dialético, ela absolutiza o presente e não considera a complexidade da realidade histórica. Quando se trata, entretanto, do futuro do cristianismo com relação à mudança religiosa do mundo, pode-se pensar que ela tem função prospectiva e mesmo profética. É do que eu gostaria de falar agora, ao terminar. Não basta, com efeito, contestar as teses da seculari­ zação do mundo e da irreligião do homem moderno por

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causa de seu oportunismo. Pode-se cair numa tão má apolo­ gética, tranqüilizando-se muito depressa com sinais, inevi­ tavelmente ambíguos, de um retorno do sagrado. Esse re­ vi1Jal é sobretudo fenômeno de contracultura, não sendo evi­ dente que ele ofereça oportunidade para o futuro da fé cris­ tã. Em outros tem:os, tomar a pista falsa das teologias da secularização para defender a tese de unsecular man não seria erro simétrico? 2º Uns falam de mudança radical do mundo, de passagem da idade religiosa para a idade irreli­ giosa e adulta do homem. Outros afirmam que nada mudou, ou melhor, que não sabemos decifrar os sinais da persis­ tência da religião.21 Diante dessas afirmações simétricas, que dissimulam mal seu interesse apologético, parece que devemos manter pelo menos duas ordens de certezas. De um lado, devemos tomar viva consciência do destino histórico da questão de Deus. Quero dizer que, contrariamente ao "regime religioso" da humanidade durante milênios, a questão de Deus não é evidente para o homem do final do século XX. Essa questão se tornou totalmente livre, e parece que não pode ser colo­ cada por quem quer que seja nas condições atuais do mun­ do. Por outro lado, não podemos mais retroceder da sus­ peita que nosso pensamento moderno faz pesar sobre a ilu­ são religiosa. Sabemos melhor que a religião sempre explora a máquina de fazer deuses que é a megalomania do desejo humano ou seu gosto pelo inefável. Por isso devemos per­ guntar-nos seriamente se temos interesse em ligar o futuro da fé cristã às ressurgências permanentes do instinto reli­ gioso. Justamente porque se passou algo novo na história da humanidade, devemos considerar com toda a seriedade o al­ cance exploratório e até profético da "secularização". Direi, em primeiro lugar, que as teses contrastantes sobre a secula­ rização e a ressacralização do mundo denotam a inadequa20 F. o perigo ao qual não escapa a obra de A. M. Grceley,

Unsecular Man. The Persistence o/ Re/igion, Schocken Books, Nova

Iorque, 1972. 21 F. o caso, na França, dos livros de sucesso de Maurice Clave! e André Frossard.

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ção da opos1çao "sagrado-profano" para atingir a originali­ dade específica do "religioso-cristão". Em seguida, devemos decifrar, sob a ideologia da secularização, uma verdade pro­ fundamente cristã, da qual começamos apenas a tomar cons­ ciência, a saber, a da mundanidade do mundo como conse­ qüência da encarnação. Pode-se pensar que é porque identificamos demasiada­ mente o "religioso" com o "sagrado", conseqüência de uma primeira crispação entre o "divino" e o "sagrado", que temos muita dificuldade em justificar a originalidade da religião cristã num mundo secular. A reduplicação do mundo pro­ fano em mundo secular é simétrica de distinção muito rígida entre a fé e a religião. 21 Seja qual for, com efeito, o interesse dessa distinção teológica, a fé cristã é, na verdade, variante do fenômeno religioso. Por termos identificado muito depressa o "religioso" com "sacra! arcaico", que é contestado pelo processo moder­ no de secularização, chegamos às conseqüências extremas das teologias da secularização, isto é, a autodestruição do cris­ tianismo. O discurso sobre Deus não é mais do que discurso indireto sobre o homem, e o discurso sobre as realidades do além é apenas uma maneira de compreender as realidades deste mundo. A oposição entre o sagrado e o profano pode explicar adequadamente a economia das outras religiões, mas deixa escapar algo de essencial no que diz respeito à novidade histórica do cristianismo. A verdade procurada na ideologia da secularização é justamente o fato de que, depois da encarnação de Deus em Jesus, a categoria de profano é incapaz de explicar a realidade do mundo desdivinizado, do mesmo modo que a categoria de sagrado é incapaz de expli­ car a realidade teologal da existência cristã. Então, ou chegamos a uma secularização do cristianis­ mo, de modo que ele seja esvaziado de seu mistério para se reduzir a uma ideologia estimulante para a construção de um mundo mais humano; ou sonhamos com uma ressacraliza22 Para primeira abordagem do alcance desta distinção em Barth e Bonhoeffer, pode ser consultado nosso breve estudo: wLa critique de la religion chez Barth e Bonhoeffer", in Parole et Mission 31, 1965, pp. 567-83.

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ção do mundo ou com uma concepção sacra! do cristianismo que não leve em consideração a mudança religiosa em curso. Será motivo de admiração se, historicamente, por causa des­ sa tensão malsã entre sagrado e profano, o cristianismo de­ cepciona tanto aqueles que estão em busca de autêntica ex­ periência do sagrado como os que compreenderam o alcance "revolucionário" do Evangelho para nova existência do ho­ mem? Chegamos, assim, à última observação, motivada por reflexão sobre a função hist6rica da secularização para o fu­ turo do cristianismo. Creio que atrás do conceito teológico de secularização - apesar do abuso que se pode f a7..er dele para justificar a perda de influência da Igreja na sociedade moderna - oculta-se intuição muito profunda sobre a estru­ tura nova do mundo depois da encarnação de Deus em Jesus. É falso fazer da secularização produto histórico da fé dos cristãos. Mas é certo dizer que a mundanidade do mundo é conseqüência da encarnação. E é precisamente por não ter levado até o fim as conseqüências de um realismo cristoló­ gico que a cristandade não permitiu ao mundo ser plenamente ele mesmo e que hoje a má consciência dos cristãos dá lugar a otimismo exagerado quanto às novas oportunidades de­ correntes da secularização para a fé. Segundo a bela expressão de A. Dumas, comentando a cristologia de Bonhoeffer, é necessário tomar a sério "a presença polifônica de Cristo no meio do real". A idéia forç:! que não deve cessar de ser aprofundada é que a aceitação do mundo por Deus implica secularidade positiva do mundo. Quanto mais o mundo, a história, o homem são eles mes­ mos, tanto mais Deus é ele mesmo. Não basta então falar do mundo como profano, em oposição ao mundo sacral da Antiguidade. Não basta também falar de mundo seculari­ zado, no sentido da secularização como processo moderno de autonomia do mundo em relação a toda instância religiosa. Deveríamos falar da nova realidade do mundo estruturado por Cristo. As linhas seguintes, de J. B. Metz, mostram bem a intuição que se oculta sob o conceito teológico de "secula­ rização", ao qual ele prefere o de "mundanidade do mundo": "A mundanidade do mundo aparece sempre como não do-

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minada, não penetrada pela fé e, nesse sentido, sempre pagã e profana. Sem dúvida, o mundo inteiro é agarrado por Cristo; mas não em nós e em nossa situação histórica de crentes, e sim em Deus e no 'sim' que só ele pronunciou sobre o mundo, no mistério impenetrável de seu amor, que é o verdadeiro lugar de convergência da fé e do mundo" .23 Em virtude do realismo da encarnação, devemos aprender a decifrar a realidade de Deus no mais profundo da realidade do mundo. Uma vez que em Jesus realizou-se a união de Deus e da realidade, devemos ser capazes de conjurar, ao mesmo tempo, o perigo do pensamento metafísico e religioso, isto é, de um Deus fora da realidade, e a tentação da se­ cularização moderna, a saber, a dissolução de Deus na reali­ dade do mundo tornado "maior". Ao termo dessas reflexões, podemos concluir que a sig­ nificação histórica da "secularização" não se esgota em sua função ideológica a serviço dos interesses de uma Igreja em período de crise. Ela tem também função utópica em relação à metamorfose do "religioso" realizada pelo cristianismo, da qual ele nunca chega, porém, a ser plenamente a figura histórica.24

21 J.-B. Metz, Pour une théologie du monde, trad. franc. ("Cogitatio Fidei" 57). Cerf, Paris, 1971, p. 54 tcf. trad. port.: Teologia do mundo, Moraes, Lisboa, 1969). 24 Prefiro falar de uma metamorfose do sagrado e do religioso onde R. Girad fala do fim do sagrado, iniciado pelo cristianismo como religião não-sacrifical, cf. Des c:hoses c:achées depuis Ia fondation du monde, Grasset, Paris, 1978. Isso só é possível porque ele se atém a uma concepção muito unívoca de sacrifício e porque vê na violência sacrifical o único impulso do sagrado. Como o atesta a nossa época, constatamos a persistênc:a de sagrado pós-religioso que não se confunde com o sagrado arcaico das religiões e que não é esgotado pela religião de Jesus. Mesmo em nosso mundo ocidental compreende-se cada vez melhor que o ateísmo não é a única alternativa do cristianismo; deve­ mos admitir a possibilidade sempre renascente do paganismo. Cf. M. Augé, Le Génie du paganisme, Gallimard, Paris, 1982.

2.58

12

O CRISTIANISMO COMO VIA

O tema da "via" nos remete naturalmente ao Tao chi­ nês, isto é, ao Livro da via e da virtude de Lao-tse. Embora sem condições de tentar estudo comparativo entre o cristia­ nismo como via e o Tao, permito-me deixar aqui as refle­ xões espontâneas que me foram inspiradas pela leitura do Tao. Creio, com efeito, que elas são de natureza a sublinhar, à primeira vista, a originalidade e a complexidade de rein­ terpretação do cristianismo segundo a metáfora da "via". Numa primeira aproximação, o Tao pode ser compreen­ dido como via moral a ser seguida, como estilo de vida. Tentaríamos, então, uma comparação com o cristianismo en­ quanto prática reta, enquanto ortopraxia. Mas, como bem o mostra o P. Claude Larre em seu recente comentário, o termo Tao des;gna realidade misteriosa cujos harmônicos são muitos. 1 Ele é tão inadequado como o termo Deus para designar o Absoluto. Seu sentido é tanto via do céu como via dos santos. Com efeito, ele lembra a Realidade aquém das aparências e além do srber e da experiência. Na ordem do agir humano, a "via" depende tanto da mística quanto da sabedoria e da ascese. O que me impressiona é que ela circunscreve um domínio intermediário entre o da ver­ dade e o da lei. A "via" é da ordem da vida. Por foso, se quiséssemos equivalente cristão do Tao, creio que devería­ mos falar do cristianismo como reino de Deus. 1 Lao-tse, Tao Te King, Le Livre de la voie et de la vertu, trad. franc. de Claude Larre ( 8 Christus » ), DDB, Paris, 1977.

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F com referência a esta amplitude de sentido do Tao chinês que me proponho refletir sobre o uso privilegiado da metáfora da "via" nos textos judaico-cristãos. A primeira vista é incontestável que, no Novo Testamento ( especial­ mente nos Atos), o termo "via" (odos) designa a via por excelência, a maneira de viver dos discípulos de Cristo. É o caso, por exemplo, de At 9,2, onde se lê que Saulo "foi pedir-lhes cartas ... a fim de poder trazer para Jerusalém, presos, os que lá encontrasse pertencendo ao Caminho, quer homens, quer mulheres". Essa linguagem podia ser com­ preendida pelos primeiros cristãos de origem judaica, aos quais era familiar a halakha judaica enquanto conjunto de regras de comportamento moral, social e religioso. O termo halakha vem de uma raiz que sign ifica "caminhar" .2 Entretanto seria empobrecer muito o tema do cristia­ nismo como via, se a via fosse entendida simplesmente co­ mo "conduta de vida". A imagem da vida ( com todos os termos a ela associados, particularmente o de "caminhada") é chave que nos abre o conhecimento do que há de mais original no cristianismo como sistema religioso. Tentaremos, por isso, reconstituir a amplitude do tema cristão da via. Creio que isso seria, também, boa introdução a diálogo fe­ cundo com o pensamento e a espiritualidade chineses. Uma primeira conclusão, provisória, consistiria em di­ zer que, no cristianismo, o tema da via lembra domínio mais vasto do que o da conduta moral. Mas, ao mesmo tempo, ele é inadequado para exprimir toda a plenitude do mistério cristão. Nisso ele é mais circunscrito do que o Tao chinês, simplesmente porque o cristianismo como sistema religioso dá um lugar essencial à noção de Deus pessoal e à idéia de criação.

2 Cf. C. Perrot, "Halakha juive et moral chrétienne: fonctionne­ ment et référence", in Ecriture et pratique chrétienne ("Lectio Divina" 96), Cerf, Paris, 1978, pp. 35-51.

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I. O CRISTIANISMO COMO RELIGIÃO DO tXODQ3

A. O êxodo como símbolo-chave da religião de Israel O vocabulário da via, como o de caminhada, tem papel essencial na descrição da vida religiosa e moral dos hebreus. O êxodo, a saída do Egito, é a fi gura mais adequada para atingir a essência da religião de Israel como religião de sal­ vação, isto é, como caminhada libertadora com e seguindo Deus, sejam Moisés ou Jesus o guia do povo de Deus. Do ponto de vista da história comparada das religiões, é interessante notar que a religião de Israel pertence ao tipo de religiões nômades, em oposição às religiões míticas e mágicas dos países de civilização agrária. Correlativamente, e à diferença dos deuses agrários, o Deus de Israel é um guia que está em caminho e que caminha com seu povo. Temos conhecimento das conseqüências que um teólogo como J. Moltmann tirou disso em sua teologia da esperança ( cf. em particular o capítulo II: "Promessa e história"). Ele mostra que a religião de Israel é essencialmente religião da promessa, na qual a revelação de Deus está estreitamente ligada ao conteúdo da promessa divina referente ao futuro e não a "aparições" de Deus em lugares sagrados, como era o caso nas religiões epifânicas. Isso implica uma concepção da história muito diferente da das religiões míticas, religiões do eterno retorno. Com Israel começa a experiência propria­ mente histórica do tempo, de um tempo não definido pela repetição do semelhante, mas pela tensão para um futuro ainda em suspenso. "Sob o amparo da promessa, a realidade não é apreendida como cosmo divinamente estabilizado, mas como história na qual é preciso avançar, deixando a estrada para trás, e caminhar na direção de horizontes novos, ainda não visto. "4 E o que é notável é que Israel continuou a J Para esse tema geral do êxodo, remeto ao artigo: ªExode•, in

Vocabulaire de théologie biblique, z, ed., Cerf, Paris, 1970, col. 423-5; veja também J. Guillet, Thêmes bibliques, Aubier, Paris, 1954, cap. I: •Thêmes de l'Exode"; A.-M. Besnard, Par un long chemin vers toi. Le pelerinage chrétien, (•Foi Vivante• 184), Cerf. Paris, 1978. 4 J. Moltmann, Teologia da espe.-ança, Loyola, São Paulo, (1971).

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interpretar as suas outras expcr;ências históricas, como a instalação em Canaã, o ex!lio, os conflitos com outros po­ vos, à luz da experi�cia religiosa decisiva do �xodo como caminhada com Deus através do deserto. Antes de Moltmann, o filósofo E. Bloch sentiu-se en­ tusiasmado por essa fermentação do presente sob a pressão de promessa ainda não cumprida, que ele descobria ao longo da literatura bíblica. Também para ele a religião de Israel é reli gião do êxodo e da esperança. Mas, segundo a her­ menêutica subversiva usada por ele em Atheismus im Chris­ lentum, trata-se de êxodo revolucionário: o êxodo dos ju­ deus se muda no êxodo de Deus mesmo, isto é, na vinda de Deus ao homem, da qual Jesus, o Filho do Homem, é a figura insuperável. 5 No começo dessa reflexão sobre o cristianismo como via, é importante fazermos imediatamente referência ao êxo­ do. Com efeito, todas as relig·ões, todas as sabedorias, todos os sistemas morais recorrem à metáfora da "via" para desig­ nar conduta de seus discípulos. Não se pode falar da religião de Israel e do cristianismo corno "via", sem interpretá-los a partir do acontecimento decisivo do êxodo. Isso significa ultrapassar logo uma acepção puramente moral da via. A via a ser seguida pelos homens é inseparável da via do Senhor como guia, e a via como experiência histórica do êxodo só tem sentido como prefiguração escatológica da caminhada de todos os homens para a consecução do reino de Deus. Quando, atendendo ao chamamento de Deus, Abraão se pôs em caminho ( Gn 12,1-5), sem saber para onde ia (Hb 11, 8), começou a imensa aventura do povo dos crentes cami­ nhando "nas pegadas de Deus". Como o diz magnificamente o autor da epístola aos Hebreus: "Na fé, todos estes morre­ ram, sem ter obtido a realização da promessa, depois de tê-la visto e saudado de longe, e depois de se reconhecerem es­ trangeiros e peregrinos nesta terra. Pois aqueles que assim falam demonstram claramente que estão à procura de uma pátria ... " {Hb 11,13-14). Na verdade, eles estavam à pro­ cura não só de uma pátria, mas também de Alguém, do rosto 5 Cf., acima, cap. S.

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do Senhor. Quando Abraão deixou Ur, na Caldéia, ele o fez porque tinha encontro marcado em outro lugar com o Deus cujo chamamento ouvira. Quando Moisés deixou o Egito, foi para que Deus entrasse em diálogo com seu povo no deserto. Quando Esdras deixou Babilônia, foi porque não suportava mais não poder contemplar a face de seu Deus no templo de Jerusalém. B. A lei como caminho do homem

Quando se estuda o vocabulário da via no Antigo Tes­ tamento, constata-se que o termo hebraico derek designa tanto a via de Deus, ou do Senhor, como a via do homem. Pode-se então fazer um confronto com o Tao, que significa simultaneamente a "via do céu" e a "via dos santos"? Concretamente, a "via do Senhor" evoca a maneira pe­ la qual Deus se pôs em caminho à frente de seu povo para libertá-lo da escravidão do Egito ou do exílio em Babilônia. Os textos bíblicos sobre o tema da "caminhada" são muitos.6 Baste-nos citar o salmo 68,8: "ó Deus, quando saíste à frente do teu povo, avançando pelo deserto, a terra tremeu ... ", e o salmo 99,7: "Falava com eles da coluna de nuvem ... " Essa coluna de nuvem que guiou os hebreus pelo deserto foi identificada com a Sabedoria de Deus pelo livro da Sa­ bedoria: "Aos santos deu a paga de suas penas, guiou-os por caminho maravilhoso: de dia, serviu-lhes de sombra e, à noite, de luz de astros" (Sb 10,17). Mas, de modo mais geral, o termo "via" serve para designar as vias misteriosas do Senhor, isto é, a sua maneira de se conduzir para salvar os homens. Assim, mesmo depois de ter chegado à Terra prometida, Israel devia continuar a andar nas "vias do Senhor". Isso foi possível porque Deus revelara suas vias a Moisés. "Javé, que faz obra de justiça e que faz justiça aos oprimidos, revelou seus desígnios ( suas 6 Encontram-se muitas referências em S. Lyonnet, "Per un in­ contro tra Cristianesimo e Cina: li Cristianesimo presentato come 'Vía' (Tao) o come 'modo di víta' ", Florença, abril de 1978, pro

manuscripto.

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vias) a Moisés, e aos filhos de Israel seus altos feitos." Assim, a lei passa a ser a via obrigatória do homem, porque antes ela é a via de Deus, isto é, a expressão do comporta­ mento de Deus. Aí já encontramos o tema da imitação de Deus. A lei comporta, sem dúvida, preceitos externos, mas eles não são arbitrários: estão a serviço da identificação do agir do homem com o agir de Deus. Obedecer à lei é agir como Deus, isto é, amar como Deus ama. É este o sentido da "circuncisão do coração" ( cf. Dt 10, 16 ) . Seria preciso citar o longo texto de Dt 10,12-19: "E agora, Israel, que é que Javé teu Deus te pede? Apenas que temas a Javé teu Deus, andando em seus caminhos, e o ames, servindo a Javé teu Deus com todo o teu coração e com toda a tua alma... " Em suma, o homem da antiga aliança era livre para es­ colher entre duas vias. De um lado, o caminho da vida ( Pr 2,19): o caminho reto e perfeito, conforme à lei de Deus, que consiste em praticar a justiça ( Pr 8,20), cm ser fiel à verdade ( SI 119,30), em procurar _a paz ( Is 59 ,8). Do outro, o caminho tortuoso, dos insensatos e dos pecadores, que conduz à perdição ( SI 1,6 ) e à morte ( Pr 12,28 ) . Essas duas vias se encontram no Evangelho: de um lado, o caminho estreito, que conduz à vida; do outro, a vida larga, que conduz à morte ( Mt 7 ,13s) .7

C. O cristianismo como novo êxodo .f: claro que para os autores do Novo Testamento a obra redentora de Cristo é considerada como o cumprimento do mistério de salvação prefi gurado pelo êxodo . .f: a reali­ zação do novo êxodo anunciado pelo Segu ndo Isaías depois do exílio em Babilônia. E quando João Batista é identificado com a voz do que clama: "No deserto preparai os caminhos do Senhor" ( M t 3,3), é-o com referência explícita às pro­ fecias de Isaías. Como Moisés era o gu ia de seu povo durante 7 Para completar as referências deste parágrafo, veja o artigo: "Chemin", in Vocabulaire de théologie biblique, cit., col. 159-62.

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a caminhada pelo deserto, Jesus é o novo Moisés que chama os homens para segui-lo no caminho da cruz, que leva ao céu. Não chegaríamos ao Em se quiséssemos enumerar o uso constante, feito pelo Novo Testamento, das imagens do caminho, da subida, da caminhada para chegarmos ao coração do mistério cristão. Viver como discípulo de Cristo é fazer com ele e nele a sua páscoa e o seu êxodo desta terra para o reino dos céus. :Desde que Abraão subiu o monte Moriá para sacrificar Isaac ( Gn 22), pode-se dizer que, na religião de Israel como no cristianismo, a idéia de caminhada, parti­ cularmente a de subida, está associada à idéia de sacrifício. B o sentido de nosso termo moderno: peregrinação. Quando Moisés procurou libertar seu povo do cativeiro do Egito, apresentou essa fuga como peregrinação e disse ao faraó: "Deixa-nos ir pelo caminho de três dias de marcha no de­ serto para sacrificar a Javé, nosso Deus" ( Ex 5 ,3). Também a vida de Jesus deve ser considerada como caminho, como peregrinação que parte de Deus e retorna para Deus. Mas essa volta para Deus coincide com a páscoa, com a subida para Jerusalém, onde ele consumaria seu sa­ crifício na cruz. O anúncio de sua subida para Jerusalém, feito três vezes nos sinóticos, é impressionante. "Estavam no caminho, subindo para Jerusalém. Jesus ia à frente deles. Estavam assustados e acompanhavam-no com medo" ( Me 10.32). O caminho que leva à glória passa necessariamente pela cruz. Mas, à diferença dos sacrifícios da antiga aliança, daí para frente é pelo sangue de Jesus que temos acesso ao verdadeiro santuário. "Sendo assim, irmãos, temos a plena garantia para entrar no Santuário, pelo sangue de Jesus. Nele temos um caminho novo e vivo, que ele mesmo inau­ gurou através do véu, quer dizer: através da sua humani­ dade ... " ( Hb 10, 19 ) . Não é, pois, de surpreender se, para os primeiros ou­ vintes da palavra apostólica, a nova religião, inaugurada por Cristo, é designada simplesmente como a "via" (odos). É o caso no texto dos Atos citado acima, onde o termo "via" designa não tanto os cristãos como a conduta da comunidade dos crentes: At 9,2 ( d., aí, a nota "h" de A Bíblia de Jerusa­ lém, Ed. Paulinas, São Paulo). Deveríamos citar também At

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19,9, onde lemos, a propósito da disputa de Paulo com os judeus da sinagoga de f:feso, que "al guns, porém, empeder­ nidos e incrédulos, falavam mal do Caminho diante da assem­ bléia". Ao fim dessa primeira consideração sobre o tema do êxodo, chegamos, pois, à certeza de que a metáfora da via não é uma metáfora entre outras, mas símbolo-chave que abre para nós o conhecimento do cristianismo como mistério pascal. Reteremos principalmente a idéia revolucionária de tempo, introduzida pelo judeu-cristianismo. À diferença do homem do mundo antigo, submetido à lei do destino, istô é, à repetição do mesmo, os membros do novo povo de Deus antecipam, nas sendas da história, o reino de Deus, que ainda não se manifestou em plenitude. Trata-se, por­ tanto, de comunidade em êxodo que exerce função anti­ destino em relação a toda a família humana, submetida à dura lei do tempo, que passa e que caminha para a morte.

II. CRISTO COMO VIA E A IMITAÇÃO DE CRISTO

Cristo não é somente aquele que sobe a Jerusalém para realizar lá sua passagem deste mundo para o Pai (Jo 13 ,1 ) ; ele é também o Caminho, a Via, a Peregrinação. Os he­ breus andavam na lei do Senhor ( SI 119 ,1) para ir para a vida. Agora os discípulos devem andar em Cristo ( CI 2,6) para realizar seu êxodo definitivo para o Pai. A lei se tornou, pois, pessoa viva. Adivinhamos � conseqüências de seme­ lhante novidade, se quisermos apreciar a originalidade da moral cristã. No fundo, trata-se de ver em que se transfor­ mou a halakha judaica em relação à pessoa de Jesus. É o tema da imitação de Cristo. A. Caminhar seguindo a Cristo É sobretudo são Paulo que usa o verbo peripatein, andar, para exprimir a conduta do cristão no seguimento

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de Cristo. Trata-se de andar no Espírito, que· é a lei nova do cristão ( cf. Gl 5, 16: "Andai sob o impulso do Espírito", e 2Cor 12,18: "Não caminhamos no mesmo Espírito?"). Como diz C. Perrot em seu estudo sobre a halakha judaica e a moral cristã, " agora o cristão não é mais remetido à lei, mas à moral cristã, "agora o cristão não é mais remetido à lei, mas à comunidade do Espírito e a si mesmo enquanto inspirado pelo mesmo Espírito, porque agora o Espírito está no princípio da conduta moral" .8 Ainda existem "manda­ mentos do Senhor". São Paulo ainda faz apelo à autoridade da Escritura, à lei e aos profetas, ainda faz referência a tal ou tal palavra do Senhor. Mas na haJ,afeha cristã o discípulo é remetido à sua própria consciência em solidariedade com uma comunidade que vive do Espírito do Senhor. A norma do comportamento moral não é mais a lei ou esta ou aquela palavra da Escritura, mas o comportamento do Senhor. Co­ nhecemos a aparente suficiência de Paulo, que escandalizou alguns: "Sede meus imitadores, como eu mesmo o sou de Cristo" (lCor 11,1). Estamos, pois, na presença de moral aberta, dinâmica, na qual cada um se acha na obrigação de produzir discurso moral sempre novo, a partir de sua imitação de Cristo. Fi­ nalmente, para o cristão, a "via por excelência" (!Cor 12, 31 ), muito superior aos carismas, é a via da caridade (d. Rm 14, 15: "andai no amor" ) . Ora, a lei do amor não pres­ creve nada de determinado. À pergunta: "que devo fazer?", a resposta do cristão não é ditada antecipadamente. Compete a ele inventar sua própria via, procurando qual é a vontade de Deus nas diferentes situações e discernir o que o serviço ao próximo reclama concretamente hic et nunc.

B. Da imitação à filiação Quem compreende essa interiorização necessária da lei de Cristo (Gl 6,2) corno "lei do Espírito" (Rm 8,2), como "lei da fé" (Rm 3,27) e como lei do amor não corre o 8 C. Perrot, art. cit., p. 48.

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risco de compreender a llilltação de Cristo como a insípida reprodução de modelo ultrapassado. A esse respeito, a ética paulina nos põe a salvo do le­ galismo e do moralismo. É por isso que eu dizia, no começo, que não se pode usar o tema do "cristianismo como via" em sentido estritamente moral. Lutero percebeu perfeitamen­ te as ambigüidades e os perigos do tema da imitação de Cristo para o cristianismo como ª religião da graça". Ele queria que ele estivesse sempre subordinado à justificação pela fé somente. Podemos citar esta bela expressão: "A imitação não produz filhos, mas a filiação produz imitado­ res. " 9 Em seguida, os teólogos da Reforma mantiveram-se sempre reservados a respeito da idéia de imitação. Eles pre­ ferem distinguir entre nachahmen e nachfolgen. O primeiro deve ser entendido no sentido de imitação puramente mo­ ral. O segundo evoca a comunidade de destino, a partilha íntima entre o Senhor e seus discípulos. Em seu livro Le Prix de la Gráce, D. Bonhoeffer sublinha que a Nachfolge é "exatamente o contrário do legalismo" porque ela é a de­ dicação só a Cristo, isto é, "a ruptura total de toda progra­ mática, de toda abstração, de todo legalismo"} º Cristo é, pois, mais do que figura exemplar. Ele é fi­ ra originária ou fundadora. Di2emos que é preciso subs­ gu tituir o tema da imitação pelos da participação e da genea­ logia. "A semelhança entre Cristo e o cristão não deve ser externa, como entre cópia e modelo, mas interior, como en­ tre princípio e efeito. " 11 A idéia de imitação pode ser sufi­ ciente na perspectiva de moral de her6is. No cristianismo, a imitação só pode ser conseqüência da filiação. Para o cris­ tão, seguir a via de Cristo significa levar a vida de filho de Deus segundo o Espírito de Cristo. Em outras palavras, Cristo é mais do que modelo exterior. Ele é lei atuante, que realiza em nós o que nos atrai nele. Dizemos ainda que 9 ln Ep. ad Gaiatas, cd. de 1519, W. A. II, p. 518, citado por F. Refoulé, •Jésus comme référence de l'agir des chrétiens n , in Ecriture et pratique chrétienne, Cerf, Paris, 1978, p. 201. 10 U. Bonhoeffer, Le Prix de la Grâce, Neuchâtel, 1967, pp. 25-6, citado por F. Refoulé, art. cit., p. 203. 11 F. Refoulé, ibid., p. 222.

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Cristo não é somente mestre de sabedoria e que nós não somos apenas discípulos. Cristo é o Filho bem-runado do Pai, e nós somos filhos com ele, co-herdeiros. Contra a ilusão de reprodução marúaca deste ou daquele fato ou gesto da vida de Jesus, é necessário reencontrar a audácia da memória de Cristo no sentido paulino.U Paulo não aceita apelar para a memória de Cristo segundo a carne, à maneira judaico-cristã. Pode causar admiração, por exem­ plo, que Paulo não se refira a nenhum episódio da "vida de Jesus", nem a alguma palavra precisa do Senhor, com e_xceção da referência ao divórcio ( 1 Cor 7, 1 O ) . Ele é lógico c6m o princípio enunciado claramente por ele: "Por isto, doravante a ninguém conhecemos segundo a carne. Mesmo se conhecemos Cristo segundo a carne, agora já não o conhe­ cemos assim" (2Cor 5,16). Que significa isso senão que não devemos apegar-nos de maneira nostálgica ao Jesus passado de antes da Páscoa? Em outros termos, a verdadeira me­ mória de Cristo não é reprodução do que se passou em Jesus de Nazaré. Ela é criação nova do Espírito ·de Cristo ressuscitado, sempre vivo em sua Igreja. Entender a imitação de Cristo no sentido de são Paulo é conceber seguimento tal de Jesus que os cristãos encontrem a resposta certa que o Espírito de Jesus lhes inspirar em função de situações hlstóricas novas. Seguir a Jesus é revestir-se dele ( cf. Rm 13 ) , com todas as conseqüências e com todos os riscos daí decorrentes. O tema da imitação nos confirma, além disso, que uma cristologia autêntica não depende só do saber teó­ rico, mas que se alimenta também do segu imento prático de Jesus.13 Em todo caso, com referência à imitação de Cristo no sentido paulino, podemos concluir que seguir a Jesus não consiste em reproduzir de maneira voluntarista e onerosa um modelo exterior, mas em abandonar-se à vida de filho 12 Cf. C. Perrot, •1•anamnese néo-testamentaire N , in Rev. de

l'lnstitut Catholique de Paris 2, 1982, pp. 21-37. Para retomada mo­

derna, poética e, ao mesmo tempo, rigorosa do tema tradicional da via na espiritualidade cristã, recomendamos vivamente a obra sugestiva de M. Bellet, La Voie, Seuil, Paris, 1982. 13 Cf. J.-8. Metz, Un temps pour les ordres religieux. trad. franc. ( ª Problemes de vie religieuse•), Cerf, Paris, 1981, pp. 32-3.

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que Cristo quer levar em cada um de nós. Seria, todavia, enganar-se sobre a natureza da imitação de Cristo compren­ der a disponibilidade ao impulso do Espírito como ausência de iniciativa. Se imitar a Cristo não é copiar mecanicamente modelo passado, mas ser contemporâneo de Cristo sempre vivo, a via cristã leva a uma criatividade imprevisível na ordem da prática cristã. Trate-se da palavra da Escritura ou da vida de Cristo, elas só podem ser atualizadas hoje mediante interpretação criativa. Nós somos precedidos sempre pelo exemplo de Cristo, que é a referência originária de toda a prática cristã, mas a transmissão desse exemplo é sempre histórica, isto é, está sempre em relação com a prática concreta das pessoas em tal momento da história. O cristão não está, pois, condenado ao ideal impossível de reproduzir o que Cristo fez. Ao con­ trário, ele está entregue à sua consciência, iluminada pelo Espírito, para inventar o que Cristo faria hoje. C. O seguimento de Jesus como vocação para a liberdade Insistindo na dimensão teologal da imitação de Cristo, minha intenção principal foi denunciar os perigos de con­ temporaneidade com modelo passado que nos dispensasse de retomada criativa na primeira pessoa, em nome do Es­ pírito de Jesus. Não conhecemos mais Cristo segundo a carne, isto é, se assim podemos dizer, de maneira passadista. Terminando essas reflexões, deveríamos ainda mostrar que o seguimento de Jesus tem seus riscos, os mesmos que a liberdade de filho de Deus. O fascínio por modelo inimi­ tável é algo mortífero: leva à alienação e à paralisia, com a consciência desesperadora de ser apenas cópia inadequada. Paradoxalmente, direi que a nossa verdadeira liberdade coincide com a morte de nosso desejo de semelhança imagi­ nária com Cristo. Com a imagem fascinante de Cristo a ser imitada dá-se o mesmo que com a projeção da imagem pa­ terna para a onipotência do desejo do menino. É somente renunciando a uma identificação mortal com o pai por meio de conhecimento mútuo que o menino será alguém um dia.

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O tema da imitação de Cristo, por mais sublime que seja, é cheio de ciladas. Ele nos leva a distinguir bem uma identificação imaginária com Cristo de processo de identifi­ cação que aceita o jogo da diferença e da semelhança. Como no amor que tende à identificação mais absoluta, isto é, sem o saber, a uma fusão mortal, o único meio de respeitar a alteridade do outro e de ser reconhecido na identidade própria é aceitar a função instituinte da linguagem. A lin­ guagem é meio não só de comunicação, mas também de tomar consciência do próprio limite, de ser um "eu" para um outro, de existir em função do desejo e do reconheci­ mento de um outro. Crispar-se na identificação com outrem, numa espécie de mimetismo maníaco, é um meio deturpado de recusar os próprios limites; é fechar-se no seu imaginário e não chegar à própria verdade de sujeito dependente do reconhecimento de outrem. Concretamente, isso significa que não há seguimento de Jesus sem escuta de sua palavra, recebida como dom e chamamento, e sem participação na vida de Jesus, que é caminho para o Pai. A palavra de Jesus é palavra de filiação. Nele e por ele, invoco Deus como Pai, e sou reconhecido como filho. Mas nunca termino de tomar-me filho. Tornar-se filho é aprender a respeitar a alteridade do que chamamos "Pai nosso" e viver a própria semelhança com Deus, aceitando a diferença. :É, pois, aceitando a dependência, tomar cons­ ciência da própria identidade filial e ser remetido à própria e insubstituível responsabilidade histórica. O seguimento de Jesus coincide sempre com o chamamento para uma voca­ ção própria na Igreja. Esta vocação tem sempre uma estru­ nua, ao mesmo tempo, mística e política no sentido mais amplo. 14 Mística, porque nunca termino de aprofundar meu "tornar-me filho" em Jesus; política, porque não há segui14 Com efeito, o seguimento de Jesus tem, fundamentalmente, um componente sociopolítico: ele é simultaneamente místico e político ... Poderíamos dizer, sem hesitação, que a teologia do seguimento de Jesus é teologia política. Cf. J .-8. Metz, op. cit., p. 34.

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mento de Jesus fora de contexto histórico e social dado, no qual devo continuar o combate de Cristo contra todas as for­ mas de morte. O problema consiste em não reduzir o seguimento de Jesus a pura interioridade, nem a cumprimento puramente ético. Para isso é necessário tender a reproduzir na própria vida a via de Jesus como "caminho para o Pai". É necessá­ rio, com efeito, ver toda a vida de Jesus como um grande movimento de retorno ao Pai . .f. exatamente isso que é lem­ brado pelo autor da epístola aos Hebreus, aplicando a Jesus a palavra do salmo 39: "Tu não quiseste sacrifício e oferenda. Tu, porém, formaste-me um corpo. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não foram do teu agrado. Por isso eu digo: Eis-me aqui, - no rolo do livro está escrito a meu respeito eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade" (Hb 10,5-7). Como homem, Jesus se definiu por sua obediência à vontade do Pai. E a prova suprema de sua obediência de Filho foi a aceitação da morte. A sua morte não foi so­ mente a conseqüência de seu combate pela justiça, em soli­ dariedade com os mais abandonados. O oferecimento de sua vida exprime também seu movimento de retorno ao Pai. � porque existe pelo Pai e para o Pai que ele dá a sua vida em retribuição, como contradom. Numa troca de amor, o contradom que vai até ao dom da própria vida é a resposta a um amor gratuito que nos precede. A aceitação da morte foi, pois, coisa muito diferente de obediência he­ róica a uma ordem do Pai. Foi a expressão perfeita de seu amor e de seu abandono fJial ao Pai. "Não existe maior amor do que dar a vida pelas pessoas amadas." E, paradoxalmente, aceitar a morte, isto é, o que há de mais desumano, é a última palavra da liberdade.

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III. O CRISTIANISMO COMO ORTOPRAXIA Falar do cristianismo como via é, parece, privilegiar o cristianismo como prática reta, e não como mensagem dou­ trinal, conteúdo dogmático ou saber. Há uma palavra que faz fortuna, desde algum tempo, para designar esta dimen­ são, a saber, ortopraxia. Ela tem a vantagem de sublinhar que não existe ortodoxia cristã que não vá dar numa prática. Mas ela encerra também o risco de procurar muito depressa possível aproximação com outras religiões, pondo-se entre parênteses o conteúdo da fé cristã. Gostaria de lembrar, de um lado, que, em cristianismo, é impossível opor fé e orto­ praxia e, do outro, que o termo ortopraxia designa um traço totalmente próprio da religião cristã, a saber, a prática evan­ gélica, justamente o que a metáfora da via quer evocar.

A. O sentido de "fazer a verdade,, Procurou-se recentemente justificar o primado da or­ topraxia sobre a ortodoxia a partir da fórmula joanina "fa7,et a verdade" (Jo 3 ,21 ) . Houve quem quisesse ver aí o funda­ mento bíblico de uma concepção pragmatista da verdade se­ gundo a qual seria verdadeiro só o que fosse operatório e verificado pela ação. Segundo uma exegese corrente, mas muito banal, a fórmula de são João deve ser entendida da prática moral inspirada pela fé. Mas, como o mostrou I. de Ia Potterie em seu notável estudo, o "fazer a verdade" joanino não designa a ação moral do crente como conse­ qüência da fé, mas a própria gênese da fé. 15 Do contrário, não se compreenderia a segunda parte do versículo de são João: "vem para a luz". Que é vir para a luz senão chegar à fé? Para são João, o "fazer" não designa as obras en­ quanto distintas da fé, como na perspectiva de são Paulo, mas a própria obra da fé. Basta comparar com outro texto paralelo: 6,28-29. Os judeus perguntaram: "Que faremos 15 1. de la Potterie, • 'Faire la vérité': devise de l'orthopraxic ou invitation à la foi?", in Le Supplément 118, 1976, pp. 283-93.

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para trabalhar nas obras de Deus?" Respondeu-lhes Jesus: "A obra de Deus é que creiais naquele que ele enviou." Assim, longe de nos apoiar em são João para opormos a confissão da fé à práxis, devemos dizer que a práxis por excelência, para ele, é a própria obra da fé. Fazer a verdade é vir progressivamente para a fé. Vê-se, pois, que a expres­ são "o cristianismo como via n pode s,er entendida não só de conjunto de preceitos a seguir, mas também do próprio caminho da fé. A este respeito é muito interessante notar, em são João, uma equivalência entre "caminhar" e "crer". Que é crer senão "caminhar na luz" (cf. Jo 12,35-36) e "caminhar na verdade" (2Jo 4 e 3Jo 3-4)? Para são João, como para são Paulo, a via por excelência é a via do amor, mas de amor sempre iluminado pela fé ( cf. a fórmula tão rica de Gl 5 ,6: "a fé agindo pela caridade" ) .

B. O cristianismo se define primeiramente pda prática evangélica Depois de termos denunciado falsa interpretação do "fazer a verdade" joanino, estamos mais livres para afirmar que atrás do termo "ortopraxia" se esconde uma verdade muito profunda, concernente à essência do cristianismo. É certo que, com relação ao conte..xto religioso do mundo greco­ romano, o cristianismo triunfou não como religião da verdade (aletheia) ou do mistério, mas con:.o religião do amor (aga­ pe). � certo que não se pode opor a prática da fé à prática da caridade. Mas é incontestável que o cristianismo se de­ fine primeiramente por prática, a prática evangélica, e não por saber ou por adesão a corpo de verdades. À luz de concepção dialética das relações entre teoria e práxis, entender o cristianismo como via ou como orto­ praxia é compreender que o agir cristão não é simples con­ seqüência ou campo de aplicação de verdade doutrinal já totalmente constituída. É a própria prática cristã, que é não só reveladora, mas também criadora de si gnificações novas quanto ao conteúdo da mensagem cristã. Já dissemos, a pro­ pósito do problema hermenêutico, que agir segundo o Espí274

i:ito de Cristo é não só propor novas interpretações do evento Cúto, mas também produzir novas figuras históricas do cris­ tianismo segundo os lugares e os tempos. Essa concepção da prática cristã é inseparável de noção da verdade que não se identifica nem com urna plenitude do ser na origem, nem com uma figura histórica. A verdade está, antes, sob o si gno de um devir. Ela é advir permanente. :É este o sentido da verdade bíblica como realidade de ordem escatológica. 16 Vimos acima que não é possível opor, em -são João, prática da fé e prática do amor. A própria fé é obra... Mas, justamente, a fé é longo caminhar que compreende várias etapas antes de chegar ao estado adulto, "estatura da pleni­ tude de Cristo" (Ef 4,13). Existe instinto da verdade, fé antes da fé explícita, que nos permite compreender por que a práticà evangélica não é monopólio exclusivo dos que são membros da Igreja e que professam fé explícita em Jesus. Pode suceder que alguém, sem o saber, seja discípulo de Jesus num sistema religioso diferente do cristianismo co­ mo religião histórica. :É difícil, por isso, definir a especifi­ cidade cristã por ortodoxia doutrinal ou mesmo por ortopra­ xia no sentido em que houvesse uma única via cristã certa. � impossível definir a via evangélica a priori. A novidade do comportamento cristão não se mostra necessariamente em seu conteúdo. Ela é, antes, modalidade particular do agir hu­ mano em geral. Mais do que "espécie" cristã, há uma ma­ neira de seguir a Jesus, de praticar as bem-aventuranças. E a resposta cristã é tão imprevisível como o Espírito de Jesus, que não pertence só aos cristãos. Não devemos, por isso, surpreender-nos se muitas vezes recebemos lições do Evan­ gelho, seja de ateus, seja dos que pertencem a outras reli­ giões. "Felizes aqueles que acreditaram sem terem visto", disse Jesus. "Felizes aqueles que viveram do Evangelho sem o saberem", podemos dizer hoje. Alegremo-nos se muitos seguem a vida de Cristo, exercem a sequela Chrísti, antes de aderir ao conteúdo dogmático da fé cristã e mesmo antes de reconhecer explicitamente Jesus como Senhor. Assim, falar do cristianismo como via é sugerir qu� o cristianismo é mais 16 Cf., acima, cap. 3.

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do que religião particular, definida pelos dogmas, por culto, por critérios de pertinência: ele é de todos os que caminham para a luz. CONCLUSÃO

Para darmos conclusão a essas muito breves considera­ ções sobre o cristianismo como via, lembremos a palavra pro­ funda de Kierkegaard, quando ele nos diz que não pode­ mos nunca pretender ser cristãos, mas que devemos sempre nos tornar cristãos. A metáfora da via, como também as comparações neotestamentárias da semente, do germe, do fer­ mento, procura lembrar a realidade, e realidade essencialmen­ te dinâmica, do reino de Deus. Não seria possível fazer apro­ ximação dessas comparações com o vocabulário vitalista e organicista do Tao? Como o reino de Deus, também o Tao, no ponto de partida, é semente quase invisível (cf. cap. 67: "Todos dizem que a minha via é grande, mas de aparência . tr1ste ... " ) Devemos falar, ao mesmo tempo. do devir da existên­ cia cristã individual e do devir da Igreja como povo de Deus. Estamos sempre em caminho para plenitude que ainda não foi manifestada, a do reino de Deus. Em função dessa di­ mensão escatológica, todas as etapas do caminho no segui­ mento de Cristo só podem ser provisórias e a serem ultra­ passadas. Isto vale também da Igreja de Cristo como figura histórica. Há um advir permanente da plenitude do Evan­ gelho como realidade escatológica. Por isso as objetivações dessa plenitude na ordem da verdade, como na ordem do amor, são realizações sempre inadequadas, que suscitam no­ vas interpretações e também novas criações em relação com a prática histórica. Enquanto histórico, o evento Cristo está definitivamente no passado. Mas Cristo está sempre vivo e continua a exercer a sua senhoria sobre toda a história. Além disso, em virtude do dom permanente de seu Espírito, há atualização sempre nova do que foi manifestado nele du­ rante sua existência histórica. Sem referência ao evento fun­ dador que é Jesus, o cristianismo se torna insignificante. 276

Mas, sem criatividade, o cristianismo não é mais via aberta para futuro imprevisível, e já é infiel à sua existência exodal. Seguir a indicação da metáfora da via a propósito do tianismo é compreender que a herança recebida é revela­ is cr de futuro a ser feito. Seria exagero afirmar que, se a dor for fiel a si mesma, a religião cristã só poderá ser a religião do futuro?

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POR UMA INTERPRETAÇÃO CRISTÃ DOS DIREITOS DO HOMEM

Podemos afirmar, sem reticências, que a Igreja católica se tornou, neste último quartel do século XX, a maior cam­ peã dos direitos do homem. Isso vale especialmente para o pontificado de João Paulo II, que, em encíclicas e inúmeros discursos, quando de suas vi agens, fez da defesa do homem e de seus direitos um dos temas principais de seu ensina­ mento. Mas a virada decisiva na evolução do pensamento da Igreja foi iniciada por João XXIII e pelo Concílio Vaticano II. Basta lembrar o acontecimento que foi a encíclica Pacem in terris, que se abre com uma verdadeira carta dos direitos e deveres do homem, ou ainda a célebre Declaração sobre a liberdade religiosa, do Vaticano II, que reconhece solene­ mente a todo homem o direito de escolher livremente a sua religião. Quanto caminho percorrido depois do Syllabus de Pio IX, que condenava, sem apelo, a proposição seguinte: "Todo homem é livre para abraçar e professar a religião que a luz da razão o levar a julgar ser a verdadeira religião" ( Syllabus 15, 1864; Dz 2915) ! No século XIX, os papas não ces­ saram de lançar o anátema contra as liberdades modernas. Elas foram dura conquista da consciência leiga, não s6 con­ tra o Antigo Regime, mas também contra a Igreja. Retomando o título de uma obra de J.-F. Six, é muito pouco escrever: do Syllabus ao diálogo. Deve-se dizer: do anátema à adesão e à promoção dos direitos do homem. Dos direitos do homem não se diz mais que são tolerados pela Igreja, porque eles se tomaram exigência do Evangelho, segundo a afirmação explícita de Paulo Vl em 1974: "A

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promoção dos direitos do homem é exigência do Evangelho e deve ocupar lugar central no ministério da Igreja." A história dessa reviravolta já foi escrita muitas vezes. Aqui eu gostaria apenas de interrogar-me sobre a significação teológica dessa mudança. Mas sei que se há domínio no qual não se pode julgar abstratamente, em nome de princípios teológicos, é o dos direitos do homem. Podemos espantar-nos e mesmo falar em escândalo diante da tentidão com que a I greja tomou consciência das implicações de sua mensagem. Mas, sem querer escusar a Igreja, não podemos esquecer os contextos sócio-históricos terrivelmente complexos nos quais a doutrina dos direitos do homem tomou consistência. Começaremos dando algu ns pontos de referência deci­ sivos no que concerne à história ambígua dos direitos do homem como foi testemunhada pela prática e pela teoria da Igreja católica. Em segu ida, interrogar-nos-emos sobre as relações entre a Carta dos Direitos do Homem e ô con­ teúdo da revelação bíblica. Será a ocasião de nos perguntar­ mos se as três grandes religiões monoteístas não têm respon­ sabilidade histórica urgente com relação à defesa e à pro­ moção dos direitos do homem.

1. HISTORIA AMBfGUA

A mensagem de Jesus é essencialmente mensagem de libertação do homem. Por seu ensinamento e por toda a sua vida, Jesus não cessou de reivindicar a dignidade absoluta do homem, mesmo pecador, diante de Deus e a i gu aldade de todos os homens entre si. Segundo a expressão de são Paulo: "Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus" ( Gl 3 ,28). Se é verdade que devemos pro­ curar o fundamento teológico dos direitos do homem no tema bíblico do "homem imagem de Deus" ( Gn 1,26), é preciso dizer que a pregação de Jesus radicalizou esse ensi­ namento. No centro da pregação de Jesus está a proximi279

dade do reino de Deus, isto é, a salvação total e final do homem. "Ora, isso significa que Deus faz prevalecer no mundo seu reino, seu 'direito divino', tomando partido pelo homem, tomando em suas mãos a causa perdida do homem, para libertar e salvar o homem. " 1 Jesus é o libertador mes­ siânico que, em nome dos direitos de Deus, toma a defesa dos fracos, dos oprimidos e dos pobres. Sabemos, por outro lado, pelas narrações evangélicas, que o engajamento deci­ dido de Jesus em favor dos humildes, dos marginais, dos fora-da-lei, dos publicanos e dos pecadores provocou o es­ cândalo dos justos. Essa atitude subversiva foi até ocasião de seu processo e de sua morte na cruz. Mas como foi vivida concretamente nos vinte séculos de cristianismo esta mensagem de libertação e de defesa dos direitos do homem? Achamo-nos diante de duas correntes que coexistiram e coexistem na Igreja até hoje. Quero d;zer que sempre po­ deremos citar o exemplo de cristãos, de grupos 0�1 de mo­ vimentos que não cessaram de considerar com a devida se­ riedade o ensinamento de Jesus sobre a dignidade sagrada de todos os homens. Mas, por outro lado, seria ainda mais fácil apontar as inúmeras deturpações do ensinamento primi­ tivo do cristianismo, testemunhadas pela prática e mesmo pela teologia da Igreja. Há nisso mistério profundo, que não depende só da fraqueza e do pecado dos homens ou de simples causas conjunturais. :É preferível falar em evo­ lução estrutura/,. Como foi possível que a Igreja, que nor­ malmente deveria ser a pátria da liberdade, se tenha tornado inimiga da liberdade? Distinguiremos, muito esquematica­ mente, três períodos.

A. A aliança da Igreja com o Estado Não devemos subestimar, nos três primeiros séculos da Igreja, a influência da mensagem cristã de libertação em 1 J. Blank, "Le droit de Dieu veut Ia vie de l'homme. Le proble­ me des dro1ts de I·homme