História da Filosofia do Direito
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Giorgio del Vecchio - Historia da Filosofia do Direito (2010) - SC

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GIORGIO DEL VECCHIO

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HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Tradução e Notas de João Baptista da Silva

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~ Belo Horizonte - 2010

Catalogação na Fonte da Biblioteca da Faculdade de Direito da UFMG e ISBN Departamento Nacional do Livro

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DeI Vecchio, Giorgio, 1878 História da filosofia do direito I Giorgio DeI Vecchio ; tradução de João Baptista da Silva. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2006. p. 284.

Prefácio do autor

ISBN: 85-88466-33-3 1. Direito - Filosofia - História 2. Direito comparado 1. Silva, João Baptista da, trad. lI. Título CDU: 340.12(091) COORDENAÇÃO Dilson Machado de Lima

REVISÃO Maria de Lourdes Costa Queiroz - Tucha

EDITORA Editora Líder Rua Loreto, 25 - São Gabriel CEP: 31.980-550 - Belo Horizonte - Minas Gerais Tel./Fax: (31) 3447-0375 [email protected]

Na falta de uma ampla e completa história da Filosofia do direito (falta que se sente não só em nossa literatura, mas também na estrangeira, não obstante a grande variedade de monografias), foi-me proposto, faz tempo, publicar, em edição separada, esta exposição resumida, que corresponde à parte histórica das Lições, do mesmo autor, na sétima edição que vem à luz ao mesmo tempo. É óbvio que um livro de tão pequenas dimensões, como este, não poderia preencher toda aquela enorme lacuna. Todavia (segundo observação do editor e de não poucos estudiosos), este compêndio poderá servir para integrar os cursos de Filosofia do direito, que contêm apenas uma exposição sistemática da matéria, e também para oferecer esboço e subsídio aos cultores de outros ramos mais ou menos afins do saber, que desejariam, todavia, conhecer as principais tendências do pensamento antigo e moderno sobre os problemas do direito e do Estado. I

Copyright @ Dilson Machado de Lima Júnior - 2010 Licença editorial para Livraria Líder e Editora Ltda. Todos os direitos reservados.

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A exposição histórica vem acompanhada, freqüentemente, de observações e apreciações críticas que, todavia, não prejudicam, segundo a visão do autor, a maior objetividade possível e a exação nas referências das várias doutrinas. Mas a história do pensamento filosófico, e especialmente do pensamento filosófico-jurídico, não pode ser mera série de dados; deve, sim, ser um

Impresso no Brasil Printed in BraziJ I

A publicação da parte histórica das Lições em volume separado ocorre já em algumas edições estrangeiras (por exemplo, na espanhola de 1930).

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repensamento deles. Por essa mesma razão, o propósito deste livro será plenamente atingido somente se o leitor quiser retirar deles significado por suas próprias reflexões e juízos.

Sumário

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INTRODUÇÃO... ................................................................. 11 A FILOSOFIA GREGA ....................................................... 13 Os primórdios... ............................................................... .13 Os sofistas ...................................................................... ..14 Sócrates ........................................................................... .16 Platão ........................................................ " ....................... "..........................19

Aristóteles ....................................................................... .23 A escola estóica ............................................................... .30 A escola epicuréia ........................................................... .32 Os juristas romanos .......................................................... 34 O CRISTIANISMO E A FILOSOFIA DO DIREITO NA IDADE MÉDIA .................................................................... .41

A Patrística ...................................................................... 4 3 A Escolástica ................................................................... .45 Os escritores gibelinos e a doutrina contratualística ....... 49 O Renascimento .............................................................. .57 A FILOSOFIA DO DIREITO NA IDADE MODERNA ..... 61 Maquiavel e Bodin .......................................................... .61 Grócio e outros escritores de seu tempo .......................... 65 Hobbes.............................................................................. 75 Espinosa ........................................................................... 79 Pufendorf ....................... ..., .............. ............. , ............. ...81 Locke e outros escritores ingleses .................................... 84 Leibniz, Thomasius e Wolf ................................................89

Vico e Montesquieu......................................................... 96 Rousseau e a Revolução Francesa ................................. 103 Kant........ """"""""'" ......................................................... ... ........ ..1 09 Fichte e a escola do direito racional .............................. 125 O historicismo ............................................................. ..131 O historicismo filosófico, ou idealismo objetivo (Schelling, Hegel) ......................................................... .132 O historicismo político, ou a Filosofia da Restauração .138 O historicismo jurídico, ou a escola histórica do direito 141 VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA IT ÁLIA, NOS TEMPOS RECENTES ............................. 149 1. Da época de Vico a 1870 ............................................... 149 2. De 1870 até aos nossos dias ........................................... 168 VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA FRANÇA, NA BÉLGICA, ETC., NOS TEMPOS RECENTES (SÉCULOS XIX-XX).................................. .197 VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA INGLATERRA E NOS ESTADOS UNIDOS, NOS TEMPOS RECENTES ..................................................... .209 VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA ALEMANHA, NA ÁUSTRIA E NA SUíÇA, NOS TEMPOS RECENTES .............................................................. .229 VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA ESPANHA, EM PORTUGAL, NA AMÉRICA LATINA, NA ROMÊNIA, NA HUNGRIA, NA GRÉCIA, NA HOLANDA, NA ESCANDINÁ VIA, ETC .............................. 243 VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NOS PAÍSES ESLAVOS (POLÔNIA, RÚSSIA, CHECOSLOV ÁQUIA, ruGOSLÁ VIA, BULGÁRIA) ........... 269

"Compreender que há outros pontos de vista é o início da sabedoria." Campbell

INTRODUÇÃO É vantajoso conhecer a história de toda ciência. Mas a importância do conhecimento histórico revela-se espécialmente nas disciplinas filosóficas, tanto que, nestas, não se entende o presente sem o passado; o passado revive no presente. Os problemas filo- . sóficos hoje discutidos são, no fundo, os mesmos que se apresentaram, ainda que apenas em forma embrionária, aos pensadores da antiguidade. O exame dos sistemas filosóficos oferece-nos como uma série de. experimentos lógicos, nos quais podemos logo ver a quais conclusões se chega partindo de certas premissas, e delas podemos tirar partido na direção de um mais perfeito sistema, evitando-lhe os erros já cometidos e tirando proveito dos progressos atingidos. A história da Filosofia é ainda um meio de estudo e de pes - quisa que nos ajuda grandemente em nosso trabalho; oferece-nos um acumulado de observações, de raciocínios, de distinções, que será impossível a um único indivíduo reunir, como seria impossível a todo artífice inventar, ele próprio, ex novo, todos os instrumentos de sua arte. A história da Filosofia do direito, especificamente, nos mostra, antes de tudo, que em todo tempo se meditou sobre o problema do direito e da justiça, o qual, em verdade, não foi artificiosamente inventado, mas corresponde a uma necessidade natural e constante do espírito humano. Todavia, a Filosofia do direito, em sua origem, não se apresenta autônoma, mas mesclada à Teologia, à Moral, à Política; sóaos poucos se operou a distinção.

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Nos primeiros tempos a confusão é completa. Aparece-nos de modo característico no Oriente, em cujos livros sacros são tratados em conjunto a cosmogonia, a moral e os elementos de várias outras ciências, teóricas e práticas. Neles domina o espírito dogmático; o direito é concebido como um comando da divindade e como superior ao poder humano, e, por isso, não como objeto de discussão ou de conhecimento, mas apenas de fé. Assim, as leis positivas consideram-se indiscutíveis, e inquestionável o poder existente, como expressão da divindade. Nesse estágio próprio dos povos orientais, o espírito crítico não tinha ainda despertado. Deve-se, todavia, recordar que alguns desses povos, especialmente os hebreus, os chineses e os indianos, deram valiosos contributos aos estudos filosóficos, sobretudo no que concerne à Moral.

FILOSOFIA GREGA Os primórdios A Grécia é a terra clássica da Filosofia, que assume nela um desenvolvimento próprio. Em um primeiro momento, a mente grega não se envolveu, porém, com problemas éticos e muito menos jurídicos, mas considerou apenas a natureza física. Assim, a Escola Jônica, a mais antiga (VI século a.c.), tentou a explicação dos fenômenos do mundo sensível reduzindo-os a certos tipos. Essa Escola, à qual pertenceram, dentre outros, Tales, Anaximandro, Anaximene, Heráclito, Empédocles (o qual formulou a teoria dos quatro elementos: água, ar, fogo e terra), não teve, porém, importância para o nosso estudo. Outra Escola quase contemporânea da Jônica, a Eleática, representada por Xenofonte, Parmênides, Zenão, de Eléa, e Melisso, de Samo, tentou o mesmo problema, de modo mais profundo do que aquela, no ponto em que, elevando-se a um conceito metafísico, sustenta que o ser é uno, imutável, eterno. Para ela há uma só distinção: o que é e o que não é; em seguida, negação, pois, do conceito de movimento e de vir-a-ser, que seria uma ilusão dos sentidos. Não seria possível um nascer, um morrer, um vir-a-ser.

Maior nexo com a nossa disciplina teria uma outra Escola - a Pitagórica. Conhecemos Pitágoras imperfeitamente, seja quanto à sua vida, seja quanto à sua doutrina. Nascido em Samo, em 582 a.c., transferiu-se para a Itália Meridional, para Crotona, onde fundou uma seleta sociedade de adeptos da doutrina que professava. To

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davia, esse aristocrático sodalício, de caráter moral e religioso, sujeito a uma forte disciplina, durou pouco tempo porque, tendo surgido dissidência política, teve de refugiar-se em Metaponto, onde morreu por volta de 500 a.c. Parece que Pitágoras não escreveu. Seu ensinamento foi apenas oral. Suas teorias nos são conhecidas, em parte, por fragmentos de seus discípulos e, em parte, pelas contestações de Aristóteles. Especialmente importante é o escrito de Filolau, seguidor de Pitágoras e contemporâneo de Sócrates, com o título DEpt qJvcrEú)A FILOSOFIA DO DIREITO

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É fácil observar que, sendo identificado o direito natural com a potência e a necessidade física, tal identificação equivale à pura e simples negação daquele direito. A total elisão dos valores jurídicos, a ausência de todo critério e de toda regra de agir, tem como conseqüência a redução do ser humano ao conceito de necessidade universal. Para reencontrar o princípio da vontade jurídica, Espinosa deve supor que em certo ponto ocorra a cessação do status naturalis, pelo acordo recíproco entre os homens de agir ex solo rationis dictamine (= "pelo só ditame da razão"). Essa transição (do estado da natureza para o estado jurídico) ocorreu pela força da causa fundamental do ânimo humano, que é a conservação de si mesmo (Conatus proprium esse conservandi = "ser próprio do instinto de conservar-se"). Para obviar o perigo nascente do uso ilimitado da força de cada um, os homens concordaram em viver apenas de acordo com a razão, respeitando-se reciprocamente, e deram, assim, origem ao Estado, ou seja, a um poder unitário, árbitro dos direitos de todos. Mas pode-se perguntar: qual será o valor de tal acordo e como poderá ele constituir uma obrigação, se os homens estão sempre determinados pela natureza a agir como agem, de acordo sempre com o seu maior interesse? Essa dificuldade foi divisada por Espinosa, que cria superáIa subordinando o valor do hipotético pacto à vantagem que cada um tenha visto nele; admitiu, também, depois, explicitatmente, o direito que cada um teria de rompê-Io sempre que isso lhe parecesse útil. Tal reserva, se salva a lógica do sistema, retira, porém, do suposto acordo toda a sua consistência, tomando-o mais que caduco, irrisório. Retirada a validade objetiva do pacto, cai, também, o edifício jurídico que deveria fundar-se sobre ele, e o direito reduz-se, 80

então, a relações de mero fato, a estipula5:ões arbitrárias, delimitadas tão-só pela força de cada um. Segundo suas premissas, Espinosa sustenta que o Estado domina os cidadãos porque é mais forte, e a sua autoridade só é legítima enquanto tem força para fazer-se valer. Disso deduz Espinosa uma conseqüência importante: o Estado não pode impor limites à cbnsciência, ao pensamento, e isso, não por impossibilidade jurídica ou racional, mas material, porque o pensamento é, de sua natureza, incoercível; tem-se, então, liberdade, pela impossibilidade de violá-Ia. Esta fundamentação da liberdade de pensamento é insuficiente (embora tenha importância histórica como tentativa). Basta observar que, se aquela liberdade fosse materialmente inviolável, a sua reivindicação contra as seculares opressões teria sido supérflua. Se o pensamento não é atingível em si mesmo, podese, contudo, compeli-Io em suas manifestações, no seu substrato de ordem física, e na própria vida do sujeito pensante. Em todo caso, Espinosa tem o mérito de ter insistido sobre os limites naturais do poder do Estado, preparando a distinção entre moral e direito, que devia ser afirmada pouco depois por Thomasius.

Pufendorf Saímos, agora, do âmbito dos sistemas que identificam em um mesmo conceito o direito e a força. Entre aqueles que, contra as doutrinas de Hobbes e de Espinosa, mantinham o princípio da sociabilidade do homem, é de ser lembrado Samuel Pufendorf, alemão (1632/1694), professor, em 1661, em Heidelberg (onde foi instituída por ele a prirneira cadeira de direito natural e das gentes), de lá, na Universidade sueca de Lund. .......

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É um dos mais célebres escritores da escola do direito natural; todavia, não se pode dizer que lhe tenha levado uma contribuição de grande originalidade. Suas obras: Elementajurisprudentiae universalis (1660), De jure naturae et gentium (1672), De officio hominis et civis (1673), das quais a primeira constitui uma introdução, a segunda um completo sistema, e a terceira, um compêndio do mesmo, não modificando substancialmente os princípios antes neles estabelecidos, mas representando, de ceto modo, a fusão das teorias de Grócio e de Hobbes. O homem é levado a associar-se por instinto social (analogia com Grócio), mas esse instinto é considerado como derivação do interesse (analogia com Hobbes). O fim do Estado é a pax et securitas communis (= "a paz e a segurança comum") Pufendorf desenvolve longamente a teoria do estado da na tureza (isto é, anterior à convivência política), no qual todos os homens eram livres e iguais. Todavia, não havendo nenhuma garantia para seus direitos, estando expostos a vexames, deviam submeterse a um soberano, constituir o Estado. Também aqui se encontra a mesma confusão no conceito de estado da natureza, pelo qual se entende: a) uma sociedade, um período histórico anterior àquele da existência do Estado; b) uma idéia do que seria a condição do homem sem o Estado. No primeiro sentido, tem-se uma narração histórica insustentável; no segundo, um princípio hipotético, racional. Ainda nesse segundo significado, a idéia do estado da natureza pode ser acolhi da como expediente dialético porque nos permite clarear as razões que tomam necessário o ordenamento social. Mas todos os escritores jusnaturalistas (entre eles Pufendort) oscilam entre os dois diferentes significados, e isso toma falhas e facilmente refutáveis suas doutrinas, não obstante a parte de verdade que encerram.

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Os jusnaturalistas seguem um método ambíguo, e porisso imperfeito: dão forma de narrativa histórica aos postulados ideais, e não ousam afirmar esses postulados sem buscar alguma comparação histórica. Também eles são semi-idealistas, e, podemos dizer ainda, pseudohistóricos. Com Pufendorf a Escola do direito natural apresenta-se em forma típica, com um dos sistemas mais completos e elaborados. Pufendorf antes de tudo confirma a distinção entre o direito e a teologia; além disso, distingue o direito natural do direito positivo, estabelecendo uma clara antítese entre eles. O primeiro tem a supremacia: existe antes do Estado, conserva sempre o seu império; e o direito positivo deve com ele conformar-se. O direito natural oferece as normas diretivas da legislação. Pufendorf distingue, ainda (coerentemente, aliás), os direitos congênitos, dos direitos adquiridos. Aqueles são próprios do homem isolado, antes de tomar-se "sócio", isto é, antes de pertencer a alguma associação; estes são os direitos que se agregam ao homem enquanto partilha uma sociedade (a fanu1ia, o Estado). Nessa concepção, é característica a prevalência ajustada dos direitos sobre os deveres. Esse caráter é comum a toda escola do direito natural (até todo o século XVIII). Como dissemos, Pufendorf não mostra muita originalidade no seu sistema, e alguém fez dele um juízo severo (Leibnitz, por exemplo, disse: Vir parum jurisconsultus et minime philosophus (= "homem que era pouco jurisconsulto e minimamente filósofo"). Pufendorf é, porém, claro e distendido em suas deduções; e foi lido também por seu ecletismo, e dominou nas escolas, por muito tempo. Acham-se de certo modo resumidas, em suas obras, quase todas as doutrinas que constituem o patrimônio da escola do direito natural.

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Locke e outros escritores ingleses

uma resposta ao humanista francês Claudio Saumaise (Salmasio), que tinha defendido o Rei Carlos I, condenado à morte e decapitado em 1649, depois de longas lutas com o Parlamento (Defensio regia pro Carolo I, 1649). Milton sustenta a liberdade de consci ência e a liberdade de imprensa, e justifica a morte do tirano. A polêmica entre os dois escritores desenvolve-se ainda com sucessivas réplicas. Algernon Sidney (1621/1683) é autor dos Discorsi sul governo, publicados em 1698, alguns anos após a sua morte, ocorrida no patíbulo. Nesses discursos ele defende a soberania popular, e refuta Filmer, que tinha sustentado, no Patriarcha, a tese segundo a qual o poder político derivaria de Adão, isto é, teria sua origem no poder paterno, e teria sido transmitido ao rei por herança. Essa absurda tese foi depois refutada também por Locke, e a ela referiu-se ironicamente Rousseau no princípio do Contrat social. Sidney merece ser recordado, também como pensador e mártir de suas idéias, também como um dos inspiradores de Rousseau. João Locke (1632/1704), que personifica de modo conspícuo a tendência democrática e liberal oposta à absolutista de Hobbes, é o escritor mais importante, pois nele se direciona ao senso racional toda a doutrina do estado de natureza e do contrato social. Locke difere de Hobbes no espírito e nas conclusões. Se Hobbes tinha-se valido das hipóteses do estado de natureza e do conseqüente pacto social, para fundamentar o absolutismo do Príncipe, Locke vale-se das mesmas hipóteses para demonstrar os limites jurídicos do poder soberano. Com os seus Dois tratados sobre o governo (Two treatises of government, 1690), Locke retoma a revolução inglesa, como mais tarde Rousseau, com seus escritos análogos, anuncia e prepara a Revolução Francesa. Locke tem grande importância também na Filosofia geral, especialmente por intermédio da teoria do conhecimento, que ele tratou, por primeiro, propositadamente.

Na Inglaterra, especialmente até o fim do século XVI e durante todo o seguinte, apareceram manifestações importantes do pensamento político. Tais manifestações não tiveram, porém, em geral, caráter puramente especulativo, mas objetivos determinados, com referência às condições e aos problemas do tempo. Das disputas teológicas traça a origem o tratado Ofthe laws of ecclesiastical polity, de Ricardo Hooker (1554/1600), cujos primeiros livros foram publicados em tomo de 1594. Nessa obra, Hooker procura definir as relações entre o Estado e a Igreja, atribuindo ao Rei da Inglaterra o poder supremo em matéria eclesiástica. Para chegar a essa conclusão, parte de uma análise das leis em geral, análise conduzida com método escolástico, mas onde afIoram, todavia, idéias modernas. Assim, afirma que pela lei natural, conforme a vontade divina, o poder político funda-se no consenso de toda a sociedade, porque nenhum homem tem, pela natureza, o poder de comandar uma multidão de homens; se falta o consenso, o poder é ilegítimo. Esta referência contratualística foi depois retomada e desenvolvida por Locke. No século XVII, aconteceu a grande revolução inglesa (1688), pela qual se afirmaram e se consolidaram os direitos do povo e do Parlamento perante a Coroa. Deste modo, vem-se formando, por meio de múltiplas lutas, aquela constituição política, que serviu depois de modelo às da Europa continental. Os estudos dos autores ingleses desse tempo foram geralmente conexos com o movimento histórico, talvez inspirados por eles, talvez inspiradores deles. Hobbes, do qual falamos, representa a tendência absolutística; do mesmo modo Roberto Filmer (1610/1688), autor do Patriarcha (1680). Milton, Sydney e Locke representam, ao contrário, a corrente liberal. João Milton (1608/1674), escritor político, além de poeta, é autor da Pro populo anglicano defensio (1651). Esse escrito é

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No Ensaio sobre o intelecto humano (Essay conceming human understanding, 1690), sustenta que o conhecimento advém da sensação e da reflexão (elaboração dos dados sensitivos): estes seriam os dois únicos poderes cognoscitivos (Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu (= "Nada existe no intelecto que não esteja antes no sentido"). A teoria de Locke opõe-se especialmente à doutrina das idéias congênitas. Em suas obras políticas, Locke dá uma justificativa teórica do que se vinha realizando então na Inglaterra. Contra o ensinamento de Hobbes, sustenta, antes de tudo, que o homem é naturalmente sociável, não existe estado de natureza sem sociedade; ao contrário, para o homem o estado de natureza é exatamente a sociedade. Aquele estado de bellum omnium contra omnes (= "guerra de todos contra todos"), que Hobbes tinha fantasiado, é contrário à realidade. No estado de natureza, qual concebido por Locke, o homem temjá certos direitos, por exemplo, o direito à liberdade pessoal e o direito ao trabalho, conseqüentemente à propriedade (que para Locke funda-se, precisamente, no trabalho). O que falta é a autoridade que possa garantir estes direitos. Para assegurar-se tal garantia, isto é, para organizarse politicamente, os indivíduos devem renunciar a uma parte dos seus direitos naturais, consentir em certas limitações; a isso chega por meio de contrato. Mas aquele que é investido da autoridade pública não pode valer-se dela ao seu alvedrio, porque a própria autoridade lhe é confiada para a tutela dos direitos de cada um. Se dela abusa, viola o contrato, e o povo retoma, ipso facto, a sua soberania originária. O vínculo de obediência dos súditos é, em suma, subordinado à observância do contrato social por parte dos govemantes. O espírito da teoria contratualística de Locke (como, depois, da teoria de Rousseau) está seguro no conceito de reciprocidade ou bilateralidade da obrigação política. 86

O Estado, para Locke, não é, pois, uma negação, mas uma reafirmação, sob certos limites, da liberdade natural, que encontra nele a sua garantia. Os indivíduos sacrificam apenas aquele tanto de direito e de liberdade, que toma possível a formação do Estado como órgão superior de tutela. Assim, embora para Locke o contrato social seja ainda apresentado como um fato ou evento histórico, esse fato é, por assim dizer, racionalizado. Aparentemente, o método não difere daquele de Grócio e de Hobbes: para demonstrar que a atividade do Estado deve informar-se de certos princípios, não se deixa de fundamentálos na pura razão, mas se quer descobri -los no momento de origem do Estado, e apresentá-los como resultado dessa origem. O problema da formação histórica do Estado confunde-se, assim, com aquele do ideal que o Estado deve buscar. A concepção, que tem em Locke um dos seus maiores representantes e que já muito antes (como vimos) tinha começado a fazer-se valer, manifesta de modo típico o esforço para elevar o fato à dignidade de princípio, ou, mais propriamente, de dar forma de evento empírico ao que é exigido pela razão. Com certeza, o contrato social é descrito por Locke como um fato; porém, como o mais racional dos fatos. Os homens não se supõem ignorantes ao se reunirem sob um regime político para certa necessidade exterior que os aflija, nem as diferenças e os perigos do estado de natureza são imaginados tais que cheguem a tolher a sua possibilidade de detectar condições ou de fixar limites à autoridade, à qual se submetem. A submissão ao poder público não é, então, incondicionada, e suas condições são representadas precisamente por aquelas exigências fundamentais, para cuja satisfação todo indivíduo entrou em regime de convivência política. As próprias exigências permanecem, porém os fundamentos irremovíveis desse regime. O atribuir ao consenso dos cidadãos a instituição do poder público abre espaço, antes de tudo, à tese de que aquela mesma

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vontade, por intermédio da qual foi uma vez instituído tal poder, conserve um predomínio sobre este, e possa, em qualquer tempo, revogá-Io ou modificar-lhe o ordenamento. A vontade popular afirma-se, assim, como soberana em geral, e a legitimidade de um governo é medida pelo consenso popular. De outro lado, a hipótese de que os indivíduos tenham fundado o Estado com um ato de vontade, para buscar nele certos fins determinados, serve de argumento para sustentar que o poder público esteja ligado ao cumprimento desses fins, e não possa exercitar-se além ou contra eles. A hipótese do contrato social assume, assim, caráter de norma ideal. O Estado não é mais mera expressão de poder, de arbítrio, mas deve, necessariamente, por sua natureza, estar voltado para garantir os direitos individuais. Locke tem o mérito de ter determinado a sua doutrina também nas questões particulares, isto é, de ter construído um verdadeiro sistema constitucional. Ele traça a doutrina da divisão dos poderes, que depois será reelaborada por Montesquieu, e expõe os direitos do povo como unidade e dos cidadãos como indivíduos. É o maior precursor de Rousseau, o qual declarou expressamente que Locke tinha tratado do contrato social "segundo os seus próprios princípios". Assim, aquela direção, que se tinha iniciado com Marsílio de Pádua e com os monarcômacos, a cujo respeito as doutrinas de Hobbes e dos outros absolutistas representam em parte um desvio, encontra sua síntese e explicação racional em João Locke. Recordemos, ainda, que Locke fez-se propugnador da tolerância religiosa, derivando tal conceito da separação entre o Estado e a Igreja. De menor importância para a Filosofia do direito é a obra, sob outros pontos assaz relevante, de David Hume (1711/1776), que teve, como veremos, certa influência sobre o pensamento de Kan t.

Dentre seus escritos recordemos: A treatise on human nature (1739/1740); o terceiro livro dessa obra foi relaborado mais tarde com o título: Enquiry conceming the principIes ofmorals, 1751); Essays moral, political and literary (1741/1742). As teorias de Hume denotam certa inclinação para o ceticismo, sem incorrer, porém, nos extremos dessa doutrina, e se distinguem pela fineza de certas análises. A seu ver, ajustiça não deriva de um sentimento originário, mas da reflexão e da estimativa de sua utilidade. Todavia, Hume rejeita as doutrinas de Hobbes e admite que a sociedade tem um fundamento natural na alma humana. Às doutrinas de Hume opõe-se especialmente a chamada escola escocesa, que teve por mentor Tomás Reid (1710/1796: Inquiry into the human mind on the principIes of common sense, 1764, etc.). Assinale-se que escocês era também Hume. Essa escola sustenta o valor da verdade atestada pela consciência comum (principIes of common sense), tanto no campo teórico quanto no campo ético. Pode-se notar que tal atitude corresponde, no máximo, àquela manifestada por Cícero contra os céticos do seu tempo. A escola escocesa recebeu, porém, subsídios de notável amplitude, também por obra de outros pensadores, como D. Steward, J. Mackintosch, etc.6

Leibniz, Tomásio e Wolff Leibniz - Com Goffredo Guilherme Leibniz (1646/1716) pode-se dizer que tem início o florescimento da filosofia alemã. Leibniz foi um pensador vigoroso, que aplicou sua vasta inteligência a todos os problemas da Filosofia. Porque se referiu à teoria do 6

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Mencionaremos, mais adiante, alguns escritores ingleses também desse período, em relação a temas particulares, além daqueles da época seguinte.

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conhecimento, de foi antagonista de Locke, e contra a sua doutrina escreveu (em francês) os Nouveaux essais sur l' entendement humain (1704). Locke tinha combatido, como vimos, a doutrina das idéias inatas, afirmando que o conhecimento existe só por meio da sensação e em seguida, funda-se na experiência. Leibniz não aceita o princípio Nihil est in intellectu, quod non fuerit in sensu, e sustenta contra o sensismo a existência de atitudes originais do intelecto; chega, porém, à fórmula "Exclua, salvo o próprio intelecto" (Excipe: nisi ipse intellectus), o qual tem suas formas próprias, onde brotam certas idéias (as verdades necessárias), que não poderiam derivar da experiência. Em sua obra principal, a Monadologia, Leibniz tenta uma contemplação cosmológica e afIrma a harmonia preestabelecida do universo. Em tudo isso há uma razão, e tudo é bom (o mundo existente é "o melhor dos mundos possíveis", o que, como observado por um pessimista, não prova ainda que ele seja bom). Em outro lugar propõe-se a resolver vários problemas que derivam de seus princípios fIlosófIcos. Por exemplo, na Teodicéia, examina como se possa conciliar a presença de um ser divino, onipotente e benéfico, com os males e as dores da vida; tenta, também, a justifIcação da divindade. Deixando de ocupar-nos desses problemas e da obra de Leibniz, que pertence à FilosofIa geral, apenas nos ateremos àquela parte que se refere à nossa matéria. Leibniz foi também jurista e escreveu sobre a jurisprudência um pequeno livro, em idade ainda muito jovem, visando ampliarlhe o campo e a melhorar-lhe o método (Nova methodus discendae docendaeque jurisprudentiae (= "Novo método de aprender e de ensinar a jurisprudência", 1667). Nessa obra, Leibniz propõe, entre outras, uma pesquisa do direito comparado, recolhendo as leis de todos os povos da terra. Além disso, tentou (cf. o prefácio do Codex juris gentium diplomaticus, 1693) uma classifIcação da FilosofIa prática, ou seja,

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das normas do agir, onde se inclina mais a alargar o campo do direito, que a restringí-Io. A moral é considerada quase como um direito mais amplo. Leibniz distingue três graus do bem, consoante o bem diga respeito a Deus, à humanidade ou ao Estado. O primeiro grau constitui a probitas ou a pie tas; o segundo, a aequitas, e o terceiro, o jus ou o jus strictum. Evocando conceitos aristotélicos, Leibniz denomina essas divisões de mundo ético:justitia universalis,justitia distributiva ejustitia commutativa. A isso corresponderiam, ainda, respectivamente, os três preceitos do Direito romano (Honeste vivere, suum cuique tribuere, neminem laedere = "Viver honestamente, dar a cada um o que é seu, e não lesar a ninguém"). Em toda essa grandiosa doutrina se busca, porém embalde, uma nítida distinção do direito, da Moral, e da Teologia; antes, renova-se entre esses termos uma confusão, que outros autores (por exemplo Pufendorf, contra o qual Leibniz polemiza) tinham já tentado superar. Em outra parte, o direito é defInido por Leibniz como potentia moralis, em contraposição ao dever, defInido como necessitas moralis. É, porém, notável que Leibniz reconheça que o direito (em sentido estrito) seja concebível, anunciando, assim, um conceito, que deveria assumir, depois, grande relevo.

Tomásio - O mérito de ter tentado o problema da distinção entre o

direito e a moral com propósitos sistemáticos pertence a Cristiano Tomásio (1655/1728), mesmo que os elementos da sua doutrina possam encontrar-se em escritores anteriores, por exem~ pIo, em Marsílio de Pádua, e até, em parte, em Aristóteles. Tomásio tem importância notável na história da cultura, como representante do Iluminismo (Aufkliirung), isto é, daquele movimento que tendia a divulgar a ciência, com o objetivo de que o povo dela tirasse proveito, e a sociedade tirasse proveito da libertação dos preconceitos.

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Tomásio levou a Filosofia a fins práticos segundo o espírito do Iluminismo (Aufkliirung). Em seus escritos e em suas lições (nas quais a língua alemã substituiu a latina, até então predominante) combateu o método escolástico silogístico, aplicou-se em separar a ciência, da Teologia, e defendeu a liberdade da ciência com tal ardor, ao ponto de semear inimizades e perseguições, e de deixar sua cidade natal, Lipsia, e refugiar-se em Halle, onde ajudou a fundar a Universidade, na qual foi mestre. De início, na sua obra lnstitutiones jurisprudentiae divinae (1688), seguiu as idéias de Pufendorf. Em 1705, publicou outra obra, Fundamenta juris naturae et gentium, onde o problema da separação do direito, da moral, é diretamente atacado e tratado com critérios rigorosos. O objetivo de Tomásio era principalmente político: propunhase traçar os limites da autoridade legítima do Estado, reivindicando a liberdade de consciência individual, arbitrariamente violada pela coerção jurídica. Combateu a tortura, os processos contra as bruxas e os heréticos, propugnou pela liberdade religiosa e de consciência, e a este propósito conduziu seus ensinamentos; quis dar uma demonstração científica dos ideais pelos quais lutava na prática, e assim esclarecer que existem campos nos quais a ingerência do Estado não pode ter lugar. Tomásio distingue as normas do agir e as ciências correspondentes em três espécies: a Ética, a Política, a Jurisprudência. Essas três disciplinas têm, todas, embora distintas, um fim único, a felicidade ifacienda esse quae vitam hominum reddunt et maxime diuturnam et felicissimam, et vitanda quae vitam reddunt infelicem et mortem accelerant (= "devem ser feitas aquelas coisas que tomam, ao máximo, a vida dos homens constante e felicíssima, e devem ser evitadas as que a tornam infeliz, e apressam a morte"). Nisso, como se vê, Tomásio não tem idéias muito elevadas nem originais. Mais importante, porém, é a repartição das normas

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tendentes a esse último fim. A ética tem por princípio o honestum; a política, o decorum; o direito, o justum. O preceito fundamental do honestum, e mesmo da ética, é: Quod vis, ut alii sibi faciant, tute tibi fácies, isto é, "Farás tu mesmo a ti o que queres que os outros façam a si". Então, deve-se querer não como indivíduo, mas como se fosse outro homem. É um processo de generalização e de purificação da vontade (como uma forma antecipada e um pouco grosseira do imperativo categórico de Kant). O preceito do decoro é: "Faze aos outros aquilo que queres que os outros façam a ti"(Quod vis ut alii tibifaciant, tu ipsisfacies); é um preceito prático de conveniência ou utilidade. Enfim, o justo (justum) exprime-se com a máxima (já enunciada nos textos bíblicos, e também de Confúcio) : Não fazer aos outros o que não querias fosse feito a ti. Conceito negativo. Enquanto a moral e a política querem se favorecer, operar positivamente, o direito prescreveria apenas: não prejudicar. Não obstante a tricotomia, a antítese principal é aquela estabelecida entre a ética (ou moral) e o direito. O pensamento de Tomásio é, em substância, este: a ética referese exclusivamente à consciência do sujeito, tende a procurar a paz interna. O direito, ao contrário, regula as relações com os outros, em seguida estabelece um regime de coexistência e tem como princípio fundamental a obrigação de não ofender aos outros. Por isso Tomásio traz como conseqüência que os deveres morais referem-se somente à intenção, ao foro interno; enquanto o direitopois que tende à paz externa - concerne apenas à exterioridade das ações iforum extemum), visando impedir os conflitos que podem nascer da convivência. Daí seguiria, ainda segundo Tomásio, que os deveres jurídicos podem fazer-se valer com a força. Tudo quanto se desenvolve no âmbito da consciência é incoercível, porque ninguém pode usar violência em si mesmo. Não existem também deveres jurídicos para si, nem com res peito a ações internas. Nesse campo domina só a legislação moral.

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Portanto, o Estado, que é o órgão do direito, não pode penetrar nas consciências nem impor alguma crença determinada. Ao contrário, os deveres jurídicos são coercíveis, porque a coerção é possível com respeito aos outros, quando se trate de ações externas. Tomásio chama deveres perfeitos os jurídicos; imperfeitos os morais, porque não coercíveis. Temos, portanto, nesses elementos, quase todos os caracteres diferenciais do direito e da moral, como foram depois expostos por outros escritores (Kant não fez a não ser repeti-Ios, em substância). Isso, porém, não significa que tais princípios, como formulados por Tomásio, sejam em tudo exatos. Não cremos aceitável, antes de tudo, a distinção absoluta en tre as ações internas e as externas, porque todas as ações são a um mesmo tempo internas e externas, isto é, têm um elemento psíquico e um físico. Não se pode, porém, admitir que as ações internas sejam reguladas apenas pela moral e as externas, tão-só pelo direito. O que é verdade é que o direito e a moral são, ambos, normas universais, que compreendem todas as ações. Assim, a moral começa a considerar o momento interno da ação, mas termina considerando também o seu momento externo. O direito, ao contrário, desenvolve-se, primeiramente, no aspecto físico ou externo das ações, mas depois remonta à intenção, ao momento psíquico ou interno, o qual tem, todavia, grande importância no campo do direito (o direito não é um ordenamento puramente mecânico das ações). É real o princípio da coercibilidade do direito; mas isso se deduz por outra via, partindo do conceito da bilateralidade, que é essencial ao direito. Nem é próprio chamar os deveres morais imperfeitos porque incoercíveis; a coercibilidade é só uma forma de sanção Plli'iicular do direito. Mas também os deveres morais têm uma sanção - a da consciência e da opinião pública - e são, por isso, perfeitos por si mesmos.

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Wolff - Cristiano Wolff (Wolf, Wolfius; 1679/1754) é o mais célebre dos discípulos de Leibniz. Escreveu numerosos volumes de caráter enciclopédico, desenvolvendo e vulgarizando a Filosofia do mestre, que mantém, na Alemanha, o predomínio, até a chegada da crítica de Kant, que iniciou uma nova era. Wolff escreveu, dentre outros, uma obra em oito volumes, Jus naturae methodo scientifica pertractatum (= "Direito natural tratado pelo método científico", 1740/1748), que é um dos mais vastos e complexos sistemas da nossa disciplina. Nele predomina, porém, o caráter escolástico e dogmático, contra o qual devia voltar-se a crítica kantiana. O princípio fundamental da Filosofia prática (isto é da moral e do direito) é para Wolf a idéia do perfeccionismo: o homem tem o dever de aperfeiçoar-se e de promover o aperfeiçoamento dos outros. E esse dever é também um direito. Acolhendo os princípios de Leibniz (que entendia o direito como potencia moralis e o dever como necessitas moralis), Wolff afirma que o direito não ésenão a faculdade de cumprir o próprio dever; enquanto o direito permite, a moral, ao contrário, ordena. O direito é lex permissiva; a moral é lex praeceptiva. Mas essa doutrina oferece flanco à crítica, porque tende a confundir dever moral e dever jurídico; muitas coisas são permitidas pelo direito, as quais a moral veta. Não se pode, por isso, fazer coincidir o lícito jurídico com a obrigação moral. De outra parte, o direito tem também natureza imperativa, e não simplesmente permissiva. A verdadeira distinção entre o direito e a moral foi negligenciada por Wolff, como já tinha sido já por Leibniz. No seu amplo tratado, Wolff segue, de resto, as doutrinas tradicionais da Filosofia do direito: a sociabilidade do homem, o contrato social, etc. Distingüe entre direitos inatos (do estado natural) e direitos hipotéticos ou adquiridos (do estado sodal). Os direitos inatos correspondem aos deveres universais, que o homem tem em razão da sua própria natureza.

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É característica de Wolff o abuso da dialética e do método racional. Com esse método (continuo ratiocinationis filo = "sempre com a tessitura do raciocínio"*). Wolff presume deduzir a priori também os dados empíricos, ou seja, aqueles conhecimentos que podemos recolher da observação dos fatos, da experiência. Chega, portanto, um pouco tarde uma reação contra o racionalismo, que, com mais justiça, deveria ter-se dirigido contra os abusos ou as deficiências do mesmo.7

guns escritores, dois sobretudo, antecipam, em certo modo, a visão desse problema: Vico e Montesquieu. Giovanni Baptista Vico, napolitano (1668/1744), escreveu várias obras, dentre as quais especialmente importantes são: um tratado latino, De universi juris uno principio et fine uno (1720), e Principi di una scienza nuova intorno alia comune natura delie nazioni (1725; outras duas edições di versas dessa obra capital vêm publicadas em 1730 e 1744, a última saiu poucos meses depois da morte do autor). A mente de Vico é vasta e genial, mas o seu tratado é muito confuso. Em meio a tesouros de doutrina, a grandes e profundas verdades, existem também muitos erros, devidos, em parte, aos escassos conhecimentos históricos de seu tempo. O intento fundamental de Vico é a conciliação da Filosofia com a Filologia (esta palavra ele a usa em sentido especial, não como doutrina meramente literária, mas como ciência dos fatos humanos, que compreende todos os produtos históricos, todos os documentos da cultura de qualquer gênero). A Filologia é a ciência do fato; a Filosofia é a ciência do vero, do eterno, do racional, do que não muda, do não contingente. Entre essas duas direções do pensamento, Vico quer demonstrar que existe uma necessária correlação; reprova em seus predecessores terem cultivado a Filosofia e negligenciado a Filologia, isto é, terem-se ocupado mais do abstrato do que do concreto, mais da idéia do que do fato (assim, nos escritores do direito natural ele critica a ausência de senso histórico). Para Vico a conciliação dos dois termos (verum etfactum convertuntur) é possível porque a mente humana está na raiz das duas atividades, ou seja, produz a teoria, tende ao vero filosófico, enquanto produz também o vero histórico (o direito natural, diz ele, é uma idéia humana, e é também um fato humano). Ela apresenta o seguinte princípio ou degnità (axioma) como base de toda a sua ciência nova: "Este mundo civil foi certamente feito pelos homens,

Vico e Montesquieu Como vimos, os escritores até agora examinados discutem principalmente o problema do fundamento racional do direito. Eles negligenciam, todavia, o problema histórico, genético; não se ocupam do direito como fenômeno histórico e positivo, mas apenas como idéia e princípio especulativo; consideram o que o direito deve ser, de preferência, ao que é. O problema histórico toma-se predominante só no início do século XIX e o acompanha ainda uma revolução em todas as doutrinas da Filosofia do direito. No fim do século XVIII, porém, al * N. T. - Assim como na tessitura se vai de maneira lenta e contínua até chegar ao objeto tecido, de maneira igualmente lenta e contínua labora o raciocínio, até que se chegue ao pensamento, à idéia. 7 Em razão do caráter sumário desta exposição histórica, deixamos de nos deter a respeito autores de menor importância, especialmente os numerosos jusnaturalistas que nos séculos XVII e XVIII se ativeram, mais ou menos estritamente, às doutrinas de Grócio, de Pufendorf, etc. Entre eles (além de Barbeyrac, que já tivemos ocasião de mencionar), recordemos, por exemplo, Burlamaqui (nascido em Genebra em 1694 e morto em 1748), de família oriunda da Itália (Burlamachi ou Burlamacchi, de Lucca), emigrada em razão de confrontos religiosos. Suas obras (Principes de droit naturel. 1747; Principes du droit politique, 1751, etc.) tiveram numerosas edições, quase todas póstumas, também em italiano e em outras línguas. Lembramos ainda a obra do alemão J. G. Heineccius (1681/1741), Elementajuris naturae et gentium (= Elementos de direito natural e das gentes, 5. ed., 1735, 1768, que teve, também, várias versões italianas).

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porém seus princípios devem ser encontrados em nossa própria mente humana". Nossa mente é um reflexo da inteligência transcendente e, ao mesmo tempo, imanente no mundo, que Vico chama de "Providência". O desenvolvimento das vicissitudes humanas tem também caráter necessário, prefixado, e um significado ideal, além de real. As verdades eternas, que a razão vem descobrindo, são atuadas necessariamente pela humanidade no seu curso histórico. Segue daí que, para Vico, não pode existir radical contraste entre direito natural e direito positivo. Esses termos designam só os dois aspectos de uma mesma realidade. No direito Vico distingue exatamente dois elementos, que chama o vero e o certo; o vero é o elemento racional; o certo, o elemento positivo, que corresponde à autoridade. A natureza humana compreende, segundo Vico, três faculdades: um conhecer (nosse), um querer (velle), um poder (posse). O homem é "um nosse, um velle, um posse finito que tende ao infinito". Como existe uma mente individual, assim há uma "mente comum das nações". Vico encontra um paralelismo constante entre o desenvolvimento da mente humana e as vicissitudes comuns das nações. Apanha, com síntese extraordinariamente vasta, apesar de, às vezes, confusa, todos os elementos da vida dos povos, nas linguagens, nas leis, nas religiões, nas artes, no comércio; quer compor uma história psicológica da humanidade e lança o olhar, embora de muito fugazmente e sem ordem rigorosa, em todo lugar e em todo tempo; descobre, ou crê descobrir leis históricas, e as afirma com segurança, agarrando-se a suas intuições, muito maravilhosas, mas não raro falazes. Na verdade, nele prejudica o exagerado sistematismo, isto é, o intento de comprimir em leis fixas, em sistema rígido, fatos diversos. Suas interpretações dos documentos históricos são, por isso, de serem acolhidas com muita cautela. A preocupação constante de conciliar a história com a idéia, o fato com a razão, leva a sínteses, aqui e ali, inexatas por sua própria rigidez.

Assim, ele nega, por exemplo, a transmissibilidade histórica do direito, em obséquio ao princípio da uniformidade do espírito humano. Esse princípio deve, a seu aviso, ser suficiente para explicar todas as semelhanças das leis e dos costumes. Vico exclui, portanto, toda recepção, e nega, dentre outros, que os romanos tenham derivado dos gregos os preceitos jurídicos das Doze Tábuas. Nisso, provavelmente, ele teve razão, ao menos em parte, pois a influência grega sobre a lei das Doze Tábuas, se em verdade não é mera legenda, foi, certamente, assaz limitada. 8 Mas, prescindindo dessa questão particular, observamos que a transmissibilidade ou comunicabilidade do direito historicamente sempre se verificou em certa medida. Isto não retira o valor do princípio da uniformidade do espírito, antes o reforça, enquanto o fato mesmo da transmissibilidade supõe necessariamente certa igualdade fundamental do espírito humano. Se esta faltasse, os institutos de um povo não poderiam valer fora dele, nem aplicar-se a outro povo. Considerando a história como um movimento cíclico, que se realiza em um sentido uniforme, Vico chega a conceber a teoria, tornada famosa, dos "cursos e recursos" da Humanidade, segundo a qual existem três espécies de idades: a divina, a heróica e a humana, às quais correspondem as formas políticas da teocracia, da aristocracia e da democracia. Elas retomam periodicamente, e é necessário que a humanidade passe sucessivamente por essas três fases. Vico robustece essa sua concepção com uma ampla coleção de analogias e confrontos históricos, aproxima toda a história moderna da antiga, vê no princípio da Idade Média uma idade divina, no feudalismo uma nova idade heróica (a vassalagem corresponderia, por exemplo, à clientela romana), etc.

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Cf. sobre esta ainda discutida questão VOLTERRA, E. Diritto romano e diritti orientali, 1937, p. 175 et seq.; BALOGH, E. Cicero and the greek law. In: FERRINI, C. Scritti in onore de C. Ferrini. Milano, 1948, v. m, p. 2 et seq.

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rosa de análises em tomo das leis, dos costumes, dos ordenamentos políticos e sociais, para demonstrar as razões e os motivos que os determinaram. Passa, em seguida, a uma resenha, junto aos mais diversos povos (entre eles alguns orientais, por exemplo, os chineses) e vários campos da legislação, e faz observações de muita delicadeza, atribuindo grande importância, na gênese do direito, aos fatores naturais, especialmente ao clima. Busca descobrir a formação natural do direito, observar como isso surge na vida social e como deva adaptar-se às condições do ambiente. O mérito maior de sua obra está no ter largamente usado o método histórico. Mas a maior nomeada lhe vem do fato de referir-se a doutrinas políticas. Montesquieu distingue três formas de governo: República, Monarquia e Despotismo. (Como se vê, esta repartição não corresponde à de Aristóteles; o Despotismo, como forma degenerada, devia ser posto à parte, segundo o conceito aristotélico.) A cada uma de tais formas de governo Montesquieu atribui um princípio particular, que é como a sua força motriz, a saber, respectivamente: virtude, honra, temor. A República tem por pressuposto a dedicação dos cidadãos ao bem público, isto é, à virtude, e se distingue em democracia e aristocracia, segundo que o povo inteiro, ou uma parte dele, tem o poder soberano. A Monarquia tem por fundamento ou propulsor psicológico o amor pelas distinções e privilégios, que Montesquieu chama honra. O Despotismo funda-se na força e tem, por isso, como sustentáculo o temor que ela incute. Essa partição, um tanto artificiosa, parece admirável e dá lugar a discussões tanto múltiplas quanto inúteis. Entanto, a maior celebridade do Esprit des [ais derivou da teoria da divisão dos poderes. Tratando da Constituição inglesa, Montesquieu teve a oportunidade de destacar que na Inglaterra existia verdadeiramente um regime de liberdade política (que era o ideal das nações, em espe

É claro que essa teoria dos cursos e recursos concilia-se mal com a idéia do progresso e se inspira em uma espécie de fatalismo, que não atende nem as exigências da razão prática (pelas quais todo povo, como todo homem, é o artífice da sua sorte), nem aos dados da observação histórica conduzida objetivamente. Contudo, a obra de Vico tem alto valor pelo desenho que oferece de uma grandiosa Filosofia da história humana, sob bases principalmente psicológicas. Contém também numerosas antecipações de doutrinas modernas. Os sociólogos indicam mesmo Vico como seu precursor, enquanto a ciência nova, divinizada por ele, seria exatamente a Sociologia. Mas em verdade é glorificar muito a hodierna Sociologia empírica considerar Vico um seu predecessor; ele foi, sobretudo, um filósofo do espírito.

*** Carlos de Montesquieu (1689/1755) é um escritor comparável, sob certo aspecto, ao nosso Vico, por representar, em verdade, uma antecipação do método histórico, em antítese ao dedutivo então predominante. Sua obra, De [' esprit des [ais (1748), conquistou rapidamente grande nomeada, quiçá maior que a Ciência nova de Vico, apesar de não ser maior que esta no mérito. Entre esses dois escritores existe, todavia, uma diferença notável. Montesquieu é mais exato na consideração dos particulares, mais elegante, mas menos profundo nos princípios do que Vico. Montesquieu é mais analítico; Vico, mais sintético. A obra de Montesquieu é quase fragmentária, sem um vasto desenho orgânico. Ele parte do princípio de que as leis são "as relações necessárias que derivam da natureza das coisas". Porém, em geral, não trata dessas relações, mas desce firme ao exame de cada lei e de cada instituição, tentando uma explicação delas sob base de fatos e circunstâncias particulares. Estuda as instituições jurídicas dos vários povos como produtos históricos e difunde-se em uma série nume

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te a função de aplicá-Ia e de fazê-Ia executar, o que seria um perigo para a liberdade dos cidadãos. Em que pesem suas inexatidões, a doutrina de Montesquieu tem, pois, o mérito de ter chamado a atenção para um princípio que se tomou fundamental para as constituições modernas. Montesquieu traçou, depois, um quadro completo da monarquia constitucional, contribuindo muitíssimo para tomar populares no continente europeu as idéias inglesas nessa matéria. Por isso, ele foi chamado "o pai do constitucionalismo". Segundo o exemplo inglês, Montesquieu sustenta que o Poder Legislativo deve estar entregue aos representantes do povo e a uma assembléia de nobres; ao contrário, o Poder Executivo, a um monarca inviolável, mas cercado de ministros responsáveis.

daI da França, então nas vésperas da revolução). Ele se colocou o problema a respeito de que dependeria essa liberdade, quais seriam as condições e os fatores que a tinham tomado possível, e entendeu que o segredo estava no princípio da divisão dos poderes. E enuncia, então, a máxima: "Para que não se possa abusar do poder, é preciso que o poder contenha o poder". É preciso, portanto, que os poderes do Estado sejam organizados de tal modo a frei aremse mutuamente; que exista um sistema de freios recíprocos (sistema dito também de pesos e contrapesos). Distingue, portanto, três poderes do Estado: Legislativo, Executivo e Judiciário; e sustenta que esses poderes devem estar divididos, independentes um do outro, e confiados a pessoas diversas, exatamente como acontece na constituição inglesa, considerada modelo. É de notar-se, porém, que a análise da Constituição inglesa, feita por Montesquieu, não é inteiramente exata. Inexato é, também, como Montesquieu entendeu a divisão dos poderes. Antes de tudo, não é possível uma divisão rígida, que seria inconciliável com a unidade da soberania. Em verdade, e a bem dizer, não se trata de diversos poderes, mas de diversos órgãos, que devem ser distintos segundo suas respectivas funções, e, mesmo assim, não no modelo absoluto entendido por Montesquieu. O princípio impropriamente dito da divisão dos poderes contém, porém, em si, uma verdade, de resto não nova (Locke e atéAristóteles tinham acenado para ela). Devemos entender a teoria assim: das três funções (legislativa, executiva ou administrativa e judiciária), com as quais se manifesta a vontade do Estado, as duas últimas devem estar subordinadas à primeira, que tem importância maior, como expressão direta da soberania. Porém, deve ser instituída uma tal distribuição das funções que tome possível fazer valer a lei, por meio dos órgãos judiciários, mesmo contra os atos eventualmente ilegítimos do governo, que exercita a função executiva ou administrativa. O princípio da "divisão dos poderes" tende, sobretudo, a fazer com que ao órgão que estabelece a lei não compita igualmen

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Rousseau e a Revolução Francesa Se Montesquieu tem importância notável na história do pensamento político do século XVIII, como liame das idéias inglesas no continente, mais importante ainda é J ean-J acques Rousseau, de Genebra (1712/1778), que deu forma clara e racional a tudo o que se agitava confusamente na consciência pública daquele século. Seu pensamento e seu engenho fizeram que representasse de modo típico a sua época; fez-se intérprete, como nenhum outro, das necessidades ideais de seu tempo. Seus caracteres peculiares foram de uma profunda sensibilidade, um entusiasmo permanente pelos ideais de justiça (um "ódio soberano contra a injustiça", como ele escreveu) e, em geral, uma consciência vivíssima do dissídio entre o ser e o dever ser, uma espécie de nostalgia daquilo que cada homem deveria ser, e a diferença do que é. Em todos os seus escritos, em estilo apaixonado, Rousseau revela um anseio vigoroso pelo estado de natureza perdido, uma aspiração inexaurível por um destino superior da humanidade, à

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qual os fatos não correspondem. Sua obra tem mesmo o caráter de um aposto lado. A atividade de Rousseau desenvolve-se em diversos campos; por exemplo, também na Pedagogia, com o Emílio (Émile), uma de suas maiores obras, que tende a reformar os sistemas de educação das crianças, de conformidade com a idéia de retomar à natureza, de abandonar tudo o que é falso, fictício, etc. Vamos restringir nossas considerações às obras que concemem à Filosofia do direito, especialmente ao Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (Discours sur I' origine et les fondements de I 'inégalité parmi les hommes, 1753), e ao Contrato social (Contract social, 1762), obras que se interligam e se completam. A primeira pretende ser uma história (em grande parte conjectural) do gênero humano e desenvolve a tese de que os homens teriam sido, originariamente, livres e iguais, vivendo com extrema simplicidade, nos bosques, apenas segundo os ditames da natureza (no chamado "estado de natureza"). Nessa primeira fase, o homem não tinha sido ainda deteriorado pela degeneração da civilização; era bom, uma vez que o homem nasce bom, como tudo o que vem da natureza; e era feliz. Como aconteceu que esse estado de felicidade acabou por ser perdido? Rousseau procede, aqui, por hipóteses: chega a examinar a origem da civilização, que para ele é um desvio, uma corrupção do estado de natureza. Alguns homens mais fortes impuseram-se aos outros. "Aquele que por primeiro fechou um campo e disse: 'este é meu' foi o primeiro ator da infelicidade humana". À propriedade privada agregou-se a dominação política; e assim, pelo domínio de certas paixões, um regime artificial de desigualdades pôs os homens em uma relação de dependência recíproca, contrária aos princípios naturais do seu existir. Determinou-se, em suma, uma antinomia profunda entre a constituição natural do homem e a sua condição social.

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Discurso termina com uma viva pintura dos males e

das injustiças que afligem os homens, isso não sem um particular aceno para as condições políticas daquele tempo. O Contrato social prossegue essa ordem de pensamentos, e começa onde o Discurso sobre a desigualdade termina. O Discurso tinha sido todo ele uma nostalgia do estado de natureza. No Contrato social, Rousseau busca a solução do problema prático. Reconhece que um retomo puro e simples ao estado de natureza, depois de atingido o estado de civilização, é impossível, "da mesma forma que não é dado a um velho retomar àjuventude". A sociedade política deve aceitar-se como um fato iITevogável. Rousseau mesmo não preconiza o retomo ao estado primitivo "de natureza", mas busca um equilíbrio, um substitutivo do retomo. Em substância - observa ele -, o que constituía a felicidade primitiva era o gozo da liberdade e da igualdade. O que importa é, pois, encontrar um modo para restituir ao homem seI vagem o gozo desses direitos naturais, para modelar, com base neles, a Constituição política. Para essa finalidade, ele recorre à idéia do contrato social, seguida ao seu tempo. Para Rousseau, porém, o contrato social deve ter um conteúdo preciso e determinado. Deve oferecer exatamente a solução do problema. Os termos dessa solução são assim enunciados por Rousseau: Trouver une forme d'association, qui defende et protege de toute Ia force commune Ia personne et les biens de chaque associé, et par laquelle chacun, s 'unissans à tous, n' obéisse, pourtant qu' à lui même et reste aussi libre, qu ' auparavant (= "Encontrar uma forma de associação, que defenda e proteja de toda força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pelá qual cada um, unindo-se a todos, obedeça, assim, a si mesmo, e permaneça livre daí por diante" ). O contrato social representa, segundo Rousseau, a forma ideal de garantia, na qual a inserção em um corpo político não des

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trói a liberdade de cada um. Por isso o conteúdo do contrato é determinado a priori; não é qualquer coisa de contingente (como, por exemplo, para Grócio), mas pode significar apenas, e necessariamente, a consagração política dos direitos de liberdade e de igualdade próprios do homem no estado de natureza. Portanto, o contrato não se refere à gênese histórica do Estado, nem pretende representar a estrutura real dos Estados existentes. Se fosse assim, compreenderia menos o escopo essencial da obra, que é precisamente contrapor à realidade um ideal. Rousseau bem sabia que um contrato social, como ele o descrevera,jamais aconteceria; que, ao contrário, os fatos observados contrastavam com ele; mas, por isso mesmo, ele escrevera o Contrato social. Com o Contrato, quis afirmar categoricamente uma necessidade racional: indicar como a ordemjurídica deve ser constituída, por que devem ser conservados socialmente íntegros os direitos que o homem já possui da natureza. Para Rousseau, o contrato social é, em suma, um postulado da razão, uma verdade não histórica, mas normativa e reguladora. O erro de muitos escritores precedentes, que tinham considerado o contrato social como um fato acontecido, estava bem afastado da mente de Rousseau. Ele pretende ditar leis justas ifoederis aequas leges

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mas, ao contrário, o Estado deve-se supor originado do contrato para que aqueles direitos fundamentais sejam nele reconhecidos. O ponto de vista empírico é assim superado: o contrato social não é mais um fato, nem depende do arbítrio de qualquer um; mas é o resultado necessário de termos dados objetivamente e fixados pela natureza das coisas; é a interferência ideal dos direitos conaturais do indivíduo. Assim, a máxima do contrato tem para Rousseau um significado eminentemente regulativo, ou seja, deontológico: é o tipo universal da Constituição política, que a razão revela como conforme à substância do homem, e serve por isso como critério para avaliar as Constituições existentes. Para Rousseau, o contrato social deve ser concebido do seguinte modo: é necessário que os indivíduos, em determinado momento, confiram os seus direitos ao Estado, o qual depois os retoma a todos, mudado o nome (não serão mais direitos naturais, mas direitos civis). Desse modo, concluindo todos igualmente o ato, nenhum será privilegiado; é assegurada, assim a igualdade. De outro lado, cada um conserva a sua liberdade, porque o indivíduo toma-se súdito unicamente com respeito ao Estado, que é a síntese das liberdades individuais. Por essa espécie de novação, ou transformação dos direitos naturais em civis, os cidadãos têm assegurados pelo Estado aqueles direitos que já possuíam por natureza. Rousseau não entende, pois, que pelo contrato social exista uma real alienação da liberdade individual. Esta liberdade, di-Io expressamente, é inalienável, porque constitui a natureza humana mesma, e o homem não pode renunciar à sua natureza. (Um contrato pelo qual o homem se privasse da liberdade seria nulo.) O contrato social representa apenas o procedimento dialético pelo qual os direitos individuais convergem no Estado e por ele de novo voltam reforçados e reconsagrados. O efeito é exatamente que todos os homens se tornam livres e iguais como

"leis equitativas de aliança"), movido pelo

Contrato social, depois de ter declarado explicitamente que as leis vigentes (positivas) eram injustas. Não se pode, pois, cometer maior erro do que interpretar o Contrato social como um fato histórico, ou criticá-Io como se fosse tal. O direito natural de liberdade e de igualdade constitui o ponto de partida e a base da construção política de Rousseau. O Estado existe somente para a atuação desse princípio; portanto, somente quando o seu ordenamento se conforma com isso, ele é um verdadeiro Estado, ou seja, natural e racionalmente legítimo. Porque a liberdade e a igualdade devem ser conhecidas no Estado, não se segue que o Estado tenha tido origem no contrato;

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no estado de natureza, enquanto seus direitos adquirem uma garantia tuteladora, que faltava naquele estado. Os indivíduos são súditos unicamente da vontade geral, que eles mesmos concorrem a formar. Para Rousseau, a lei não é outra coisa que não a expressão da vontade geral; não é, pois, um ato de comando arbitrário. Nenhum comando é legítimo se não se funda sobre a lei, isto é, sobre a vontade geraL Nesta vontade geral consiste a verdadeira soberania, que não pode, portanto, atentar para um indivíduo, ou para uma corporação particular, mas sempre e necessariamente para o povo enquanto constitui um Estado. Posto assim o princípio da soberania popular, Rousseau aferrava-se tanto no seu rigorismo que não admitia nem mesmo uma representação do povo, mas queria o exercício direto da soberania. (Esta sua concepção tem uma certa analogia com o que se pratica hoje, por meio do referendum, na terra de Rousseau, em Isvizzera.) A soberania é inalienável, imprescritível e indivisível. Se o próprio governo, ou poder executivo, é afeto a determinados órgãos ou indivíduos, a soberania conserva sempre a sua sede no povo, que pode, a qualquer momento, revocá-Ia a si. Sob tais princípios fundou-se o programa da Revolução Francesa, no qual teriam alguma influência as doutrinas de Montesquieu e de outros. Mas idéias de Rousseau tiveram maior eficácia, pois naquela época tudo concorria para a valorização das teorias do direito natural, de que Rousseau era o último e o mais eloqüente intérprete. Aquelas idéias, com algumas modificações, transformaramse em sistema positivo com as Declarações dos direitos do homem e do cidadão que, aprovadas em 1789, figuraram como preâmbulo da Constituição de 1791 e, depois, com algumas alterações, das outras Constituições francesas que se seguiram àquela. Em parte, os princípios das Declarações foram acolhidos também no nosso Estatuto de 1848 (que teve como fontes próximas as Cartas constitucionais da França e da 108 Bélgica, para onde aqueles

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princípios, com certas adaptações, tinham sido transferidos), e daí na nova Constituição da República italiana. A eles é preciso voltar para encontrar a origem histórica das modernas Constituições. Advirta-se que a idéia de uma Declaração de direitos não era nova. Já havia precedentes na Inglaterra, especialmente no bill of rights de 1688, com o qual se punham as bases das garantias constitucionais perante o poder da Coroa. Em seguida, nas colônias inglesas da América do Norte, com os bills of rights pelos quais (no ano de 1774 e nos seguintes) as próprias colônias reivindicaram seus direitos ante a mãe pátria, para se tomarem independentes. É fora de dúvida que esses precedentes legislativos influenciaram na Declaração dos direitos na França. Com efeito, eram ali bem conhecidas as lutas pela independência da América, nas quais alguns franceses tinham tomado parte com La Fayette; e eram também conhecidos, em especial dos membros da Constituinte, os bills of rights. Mas isso não retira a importância da Declaração dos direitos franceses, na qual, mais que nos bills de tipo inglês, se têm formalizações gerais, referentes não só a determinado povo, mas a toda a humanidade. De resto, e em última apálise, tanto a Declaração francesa como os bills ingleses e americanos têm uma fonte comum: os bills; são o reflexo das teorias da escola do direito natural. A Declaração francesa pode ser considerada uma derivação extrínseca dos bills americanos, mas intrínseca das teorias de Rousseau. Note-se que Rousseau precede de muito também os bills americanos (1774) com o Contrato social, que é de 1762, e teve, na formação daqueles, alguma influência, pelo menos indireta, juntamente com Locke e outros autores da escola do direito natural.

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Na ordem especulativa, Emmanuel Kant (1724/1804) fez qualquer coisa de semelhante ao que, na ordem política, tinha feito Rousseau. O sujeito, reconhecido como o princípio na ordem po

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lítica, é também reconhecido como o princípio na ordem do conhecimento; e Kant representa, exatamente, como veremos, essa conquista especulativa. Na Filosofia do direito, Kant não foi grande inovador. Apenas percorreu e clareou, com método rigoroso, o antigo procedimento da escola do direito natural. Na verdade, aquela escola tinha afirmado um justo princípio, isto é, que a base do direito está no homem. Mas tinha dado (ao menos aparentemente) um significado histórico àquilo que era, ao contrário, um princípio racional; tinha representado como processo empírico aquilo que era um processo ideológico. A escola do direito natural gerou também quase uma mitologia, que ofereceu, depois, matéria à zombaria. Mas a idéia de partir do homem para chegar ao Estado, entendendo este como síntese dos direitos fundados na natureza humana, tem uma razão profunda; nem foi ela, jamais, em verdade, refutada, nem mesmo da parte daqueles que criam demolir o contrato social com argumentos históricos. Na Filosofia do direito, Kant tem o mérito de ter removido aquela confusão entre o histórico e o racional, afirmando o valor puramente racional (relativo) dos princípios do direito natural. De resto, já em Locke e em Rousseau, bem que de forma a recordar o antigo equívoco, vive latente essa concepção. Kant o afirma explicitamente, e concebe o contrato social como pura idéia que exprime o fundamento jurídico do Estado, o seu arquétipo racional, não um fato realmente acontecido. Costuma-se exprimir essa correção de método dizendo que com Kant termina a escola do direito natural (Naturrecht) e começa a escola do direito racional (Vernunftrecht). O direito natural tornase direito racional. Mas não é necessário recordar que Kant não fez outra coisa que cumprir um processo de correção metodológica, já iniciado havia muito, e fora quase complementado na obra de Rousseau. Se não é o fundador da Filosofia moderna (que remonta a Descartes e a Bacon), Kant é, certamente, o seu renovador.

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Com Kant tem início, na Filosofia, um novo período, e para ele convergem as diversas correntes filosóficas como o idealismo, o empirismo, o positivismo, enquanto buscam nele as próprias premissas e os germes do seu ulterior desenvolvimento. Ele é, sem dúvida, o maior filósofo de nossa era e, talvez, de todos os tempos. Toda a sua existência foi dedicada unicamente ao pensamento. Em sua vida, que se passou por inteiro na nativa Konigsberg, seguiu Kant uma rígida disciplina, dedicado exclusivamente à meditação e à Filosofia; compôs um sistema vastíssimo e profundo, tratando de todos os mais difíceis problemas. A sua importância vai muito além dos limites da nossa disciplina. Assim, como já acena mos, Kant foi mais inovador na Filosofia teórica e, em especial, na Gnoseologia, do que na Filosofia do direito. Suas obras principais são: Crítica da razão pura (1781), Fundações da meta física dos constumes (1785), Crítica da razão prática (1788), Crítica do juízo (1790). Além disso, e especiamente importantes para a nossa matéria, os escritos Sobre a paz perpétua (1795) e Pincípios metafísicos da doutrina do direito (1797). Na Filosofia teórica, Kant répresenta um novo rumo, o criticismo, que se distingue tanto do dogmatismo quanto do ceticismo, e supera a ambos. Kant havia crescido, primeiramente, sob a influência da escola racionalística wolfiana, isto é, de uma Filosofia dogmática, com uma fé cega no poder da razão, da qual tudo cria poder extrair deduti vamente, pela reflexão (continuo ratiocinationis filo). Julgava conhecer todo esse racionalismo dogmático e raciocinava sobre a alma, sobre o mundo, sobre Deus, sem preocuparse com os limites da razão humana. Daí suas afirmações: "A alma éimortal, o mundo é infinito", etc., afirmações não demonstradas, mas aceitas como tais. Depois de ter seguido por certo tempo essa Filosofia, foi abalado em sua fé pela tendência empírica manifestada na Inglaterra e na Escócia, especialmente pela Filosofia cético-empírica de D.

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mos o ser somente enquanto ele se nos aparece, vale dizer, como fenômeno (que significa exatamente aparição). Kant distingue as formas (subjetivas) da matéria, do conhecimento. Entre as formas, distingue aquelas que tomam possível a percepção dos sentidos (formas de intuição) e aquelas que tomam pos síveis as operações lógicas, ou seja, os juízos (formas do intelecto). As formas que fazem possível a intuição sensível são o espaço e o tempo, que não são objetos existentes fora de nós, mas apenas condições do pensamento. Com efeito, todos os dados do mundo sensível são finitos: o espaço e o tempo são, ao contrário, infinitos, não derivam da experiência, mas são pressupostos da experiência. Se eles fossem objetos, deveríamos senti-Ios e conhecê-Ios, colocando-os em um outro espaço e outro tempo, o que é absurdo. Além dessas formas de intuição sensível, existem as categorias, ou formas do intelecto. Kant compilou uma tábula dessas categorias, reduzindo-as a quatro espécies (quantidade, qualidade, modo e relação). Cada uma delas compreende três; assim, as categorias seriam doze. A principal entre elas é a da causalidade, a qual, segundo um grande filósofo kantiano, Schopenhauer, é a única verdadeira categoria, a qual toma possível a ciência natural. É verdade que a experiência, por si só, não nos dá o princípio da causalidade, mas isso não impede que ele seja um modo funcional para apreender, colocar e coordenar os dados da experiência. Assim se supera a posição cética de Hume. Kant distingue duas espécies de juízos: analíticos e sintéticos. Os juízos analíticos são aqueles nos quais o predicado pertence ao sujeito, como implicitamente contido no seu conceito; portanto, o predicado não acarreta nada de novo, mas apenas esclarece a noção já dada. Exemplo: todo corpo é extenso. Este é um juízo analítico porque o predicado extenso está já compreendido na noção do sujeito corpo. Nos juízos sintéticos, ao contrário, o predicado está fora do conceito do sujeito, apesar de, no juízo, estar ligado com ele. Exem

Hume, o qual havia levantado fortes dúvidas sobre o valor de nossas idéias racionalistas e, antes de tudo, do princípio da causalidade, que é fundamental para a ciência. Tem esse princípio um valor objetivo? O exame dos fatos nos permite afirmá-Io com certeza? Na realidade a observação externa nos apresenta apenas uma sucessão de fatos, não um liame necessário; mostra que acontece alguma coisa, mas não exclui que poderia também acontecer de modo diverso. A necessidade não pode, portanto, ser extraída dos fatos, ou seja, da experiência (Kant dirá depois que se tal princípio não pode ser extraído dos fatos, pode sê-Io do intelecto). Daqui o ceticismo de Hume, que sacode Kant do seu "sono dogmático" (como ele escreveu), e o impulsiona a procurar e a elaborar um sistema direcionado para superar criticamente tanto o dogmatismo tradicional, como o empirismo cético. Kant propõe-se a indagar as condições e os limites do nosso conhecimento, determinar-lhe a possibilidade e o valor. Não o move nem a fé cega na nossa razão nem o preconceito de que a nossa mente seja passiva diante da experiência e incapaz de chegar à universalidade. Antes de tudo, ele distingue um elemento subjetivo e um elemento objetivo. Todo conhecimento implica uma relação entre um dado objetivo e um sujeito (toda experiência supõe alguém que experimenta). Não se pode dizer que a realidade passe com certe za em nosso espírito, em nossa mente, sem receber alguma marca. A realidade, enquanto conhecida por nós, sofre as modificações e as leis da nossa mente; enquanto apresentada por nós, não se nos apresenta a não ser nas formas da nossa apreensão. O modo de apreensão marca o objeto mesmo conhecido, como a mão à neve que aperta. Da premissa de que todo conhecimento implica a devida relação, segue-se que não se pode falar de uma realidade conhecida em si mesma, fora das formas subjetivas. Em outras palavras, a "coisa em si", o absoluto, o noumeno, é inconcebível. Conhece

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pIo: todo corpo é pesado. Este é um juízo sintético, porque o predicado pesado agrega qualquer coisa que não está compeendida na noção do sujeito corpo. Kant distingue ainda os juízos segundo se completam independentemente da experiência, a saber: por meio do pensamento puro (a priori) ou da experiência (a posteriori). Os juízos a posteriori são sempre sintéticos, isto é, por intermédio da experiência, mostram algo de novo, que não está implícito no sujeito. Os juízos analíticos são sempre a priori (não é necessária a experiência para conhecer o que está inserido em dado conceito). Ora, pergunta-se (e é este o problema capital): podem darse juízos sintéticos a priori? Isto é, pode o intelecto, ele só, por si mesmo, sem a experiência, chegar a conhecimentos novos? Kant responde afmnativamente, mas só mediante noções formais. Assim, a matemática, a geometria, são ciências a priori, que contêm, além de juízos analíticos, também juízos sintéticos. As ciências naturais compreendem apenas noções a priori, ou seja, verdades universais e necessárias. Os elementos subjetivos formais, que não derivam da experiência, mas a precedem e a tomam possível, têm os caracteres da necessidade e da universalidade, enquanto os elementos materiais do conhecimento, que derivam da experiência, têm os caracteres da particularidade e da acidentalidade. Como dissemos, porém, é esta a conclusão mais importante da crítica da razão pura: os elementos formais valem só enquanto se referem a uma experiência possível. O absoluto ou, como diz Kant, o noumeno, não pode ser sujeito de conhecimento. Conhecer qualquer coisa in se é impossível, porque o conhecimento implica sempre uma relação. Nossos juízos não são válidos, cientificamente, se transcendem a possibilidade de alguma experiência. Kant admite, porém, além das formas de intuição sensível e as do intelecto (categorias), os princípios da razão, isto é, as idéias da alma, do mundo e de Deus. Mas essas idéias, apenas tendo na

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ordem dos conhecimentos uma certa função unificadora, não podem chegar ao seu objeto, que permanece ao de lá da experiência possível: são, pois (na linguagem kantiana), princípios regulativos, mas não constitutivos. Sendo assim, em sede puramente teórica ou científica, não estamos em condições de resolver questões como estas: a alma é imortal? O mundo teve um princípio no tempo e terá um fim? Existe uma vontade livre? Existe uma divindade? A todas essas perguntas podemos responder de modo contraditório. Podemos desenvolver com igual razão tanto uma resposta afirmativa quanto uma negativa. Isto porque não é possível o experimento a respeito das idéias metafísicas. Com efeito, Kant passa a demonstrar, para cada um desses problemas, tanto teses quanto antíteses (Exemplo: o mundo tem um princípio no tempo e um limite no espaço; o mundo é infinito seja quanto ao tempo, seja quanto ao espaço), para concluir que não pode existir verdadeiro conhecimento dessas coisas em si, mas apenas dos fenômenos, e que a estes apenas são aplicáveis às categorias do intelecto. O conhecimento é, pois, relativo. Por outro lado, esta afirmação não é, porém, cética, pois Kant sustenta que o conhecimento, nos seus próprios limites, é necessariamente uniforme e perfeitamente válido para todos os seres pensantes. Portanto, também para Kant o homem é a medida de todas as coisas, mas o homem entendido como sujeito de conhecimento, o homem universal. O sofista Protágoras, ao contrário, afirmava que cada homem (indivíduo) é a medida de todas as coisas, o que conduz a negar inteiramente a possibilidade do conhecimento, por substituí-Io pela arbitrária e mutável opinião individual. Vamos agora à parte prática, à Ética em geral, no sistema de Kant. Os homens têm não só faculdade cognitiva, mas também ati Va. Enquanto o conhecimento teórico do absoluto é impossível,

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mediante a prática, o ser subjetivo encontra-se em uma condição melhor e tem uma certeza absoluta que o conhecimento teórico não lhe poderia dar. No mundo prático, estamos como iluminados, temos consciência de um dado a priori, que tem para nós um valor inconcusso, um princípio que não está posto propriamente no conhecimento, que é mais uma revelação do que um conhecimento; éo vislumbre de uma verdade transcendente, que nos ensina imperiosamente o que devemos fazer e o que não devemos fazer. Este princípio é a lei do dever. Assim Kant afIrma o primado da razão prática sobre a teórica. O homem, como ser ativo, está em contacto com o absoluto mais que como ser cognoscitivo. (Não devemos confundir os títulos das obras de Kant, diferentemente abreviados; os títulos completos deveriam ser: Crítica da razão teórica pura, Crítica da razão prática pura. A razão pura, ou seja, independente da experiência, existe, segundo Kant, tanto teórica quanto praticamente.) Na Crítica da razão prática Kant refuta antes de tudo os sistemas de moral fundados sobre a utilidade (eudaimonismo). Nega que a regra suprema do agir seja a propensão para a felicidade, sendo este um elemento variável. Ao contrário, a moral distingue-se radicalmente do útil e do prazer. Se se age por causa do útil, a ação perde o seu caráter moral. A moral é independente, é superior à utilidade. Ela comanda de modo absoluto. É como uma voz sublime que impõe respeito, que aconselha invisivelmente, ainda que se queira fazê-Ia calar, e nos preocupemos em não ouvi-Ia. Ela quer que nossas ações tenham um caráter universal. A isso se reduz a lei moral, que Kant chama "imperativo categórico" e assim formula: "Age de modo que a máxima da tua ação possa valer como princípio de uma legislação universal". Isso signifIca que nossa ação não deve ser movida por impul sos particulares, não deve existir contradição entre a nossa ação individual e aquilo que deve ser possível a todos.

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Este é um princípio puramente formal, não fornece preceitos de ética material, não diz o que se deve fazer, mas como, com quais intenções se deve agir. Ocorre, portanto, em razão desse princípio, que se deve agir com a consciência do dever, de modo que seja possível uma legislação universal conforme a atuação particular. Por exemplo: o furto é logicamente uma contradição, porque com ele se pretende adquirir a propriedade, enquanto ele é a negação da propriedade; daí não poder ser colocado como princípio universal, pois é contrário à lei moral. Lembre-se de que, neste particular, Kant não afirmou nada de verdadeiramente novo: a lei moral por ele formulada não é substancialmente diversa daquela que já se encontra enunciada nos antigos pensadores, especialmente na doutrina cristã ("Não fazer aos outros", etc.). É, porém, muito abstrata e desenvolvida na sua expressão. O próprio Kant, quando se lhe objetou a pouca novidade do seu conceito sobre a lei moral, mostrou-se satisfeito com tal observação, pois lhe teria parecido estranho que se esperasse dele a invenção de uma nova moral, como se ela não devesse ser a mesma em todo tempo e sentida igualmente por todos. A originalidade de Kant está no modo de conceber o valor desse imperativo categórico. "Duas coisas", escreve ele, "enchem a alma de sempre nova admiração e reverência: o céu estrelado sobre mim, e a lei moral em mim". Esta lei, o dever, é a maior certeza que temos. De tudo podemos duvidar, menos disso. Em geral os moralistas antes de Kant tinham posto primeiro o conceito de liberdade, daí o de dever, ou seja, da lei moral, que impõe certo uso da liberdade. Freqüentemente, ainda, os moralistas partiam do postulado da existência de Deus, para fundar sobre ele a lei moral. Kant inverte tudo isso e parte do imperativo categórico, como da primeira certeza. A liberdade não precede o dever, mas é uma conseqüência dele; sem ela o imperativo categórico

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egoísticos, nobres e ignóbeis. Por exemplo, o sentimento da compaixão pode determinar-se para ações que não consideramos imorais; nem o afeto pelos amigos, onde somos levados a beneficiálos, pode ser equiparado a sentimentos baixos ou egoístas. Todavia, esses vários movimentos das ações seriam, todos eles, segundo Kant, reprováveis. A moral exige o superamento de toda afeição sensível, a pura autonomia, ou seja, a determinação segundo a lei universal do dever. A esse respeito característico da moral kantiana não se tem economizado críticas. Recordemos apenas o famoso epigrama do poeta Schiller (o qual era, todavia, sequaz de Kant na Filosofia em geral): "Sirvo de bom grado os amigos, mas, desgraçadamente o faço com interesse, e por isso me punge o remorso de não ser virtuoso" . Pode-se responder brevemente a essa ironia observando que o afeto é um guia mendaz. A amizade deve estar subordinada à justiça, e não se deve favorecer sempre os amigos só por serem amigos. A máxima do dever é mais alta do que todo motivo particular. Kant chegou, porém, a extremos de rigorismo. Ressurgindo um caráter da moral histórica, traçou uma separação absoluta entre o que é dever e o que não o é, ou seja, entre o bem e o mal, sem levar em conta nenhum grau intermédio. Todavia, mesmo admitindo-se a supremacia da lei moral como princípio formal, deve ser possível distinguir as paixões segundo sejam mais ou menos egoístas, e até segundo o seu diverso valor moral (isto mostraram particulannente J. Stuart Mill e outros filósofos ingleses). O outro ramo da ética é o direito. Este, segundo Kant, contempla apenas o aspecto físico do agir, ou seja, considera somente se a ação realizou-se, ou não, prescindindo dos motivos que a tenham determinado. Tal concepção mecânica do direito, de resto não nova (recordem-se as teorias de Thomasius), é, porém, insustentável, pois que o direito não prescinde inteiramente dos motivos. Pode-se observar que se Kant tivesse sido jurista teria compre

se tomar absurdo; então, devemos admiti-Ia como corolário do imperativo. A liberdade é noção metafísica, e não se pode dar dela demonstração teórica (que requereria o conhecimento do absoluto). Portanto, na ordem prática devemos crer-nos livres, porque sem essa crença não se explicaria a consciência do dever. Destarte, a liberdade, que a crítica da razão pura teórica tinha deixado em suspenso, é reafirmada na ordem prática como exigência da nossa conciência moral. Analogamente, como corolário do imperativo, Kant chega a admitir a existência de Deus e a imortalidade da alma, porque a razão exige necessariamente, como afirma Kant, o prêmio ou a pena para as ações. E essas penas e essas recompensas não poderiam atuar sem a existência de Deus e sem uma vida ultraterrena. Mas o fuÍiâamento do sistema permanece sempre o imperativo categórico, que é como um sinal do absoluto vivo no nosso ânimo, incomparavelmente superior a qualquer conhecimento dos fenômenos. Depois de vermos os caracteres gerais da ética kantiana, vejamos suas divisões. Kant estabelece uma antítese clara entre moral e direito, fundando-se sobre a distinção entre os motivos do agir (que Kant chama "ações internas") e o aspecto físico do agir (que Kant chama "ações externas"). Para a Moral, o que importa é apenas o motivo da ação, enquanto o efeito físico dela é de todo indiferente: uma ação é boa quando é realizada com intenção moral, isto é, tem por motivo o respeito da lei moral. O essencial é, pois, agir com a consciência do dever (princípio formal). Conseqüentemente, a mesma ação feita por outro motivo, que não o respeito da lei, é de ser reprovada. É imoral agir por uma paixão, por um impulso, por um sentimento. Como de repente se vê, esta doutrina kantiana tem, pelo menos aparentemente, qualquer coisa de rude, já que não faz nenhuma distinção entre motivos superiores e inferiores, altruísticos e

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endido de quanta importância é o respeito ao animus em todo ramo do direito; e certamente se teria resguardado de fundar a distinção entre moral e direito sobre aquelas premissas. Se eventualmente o direito deixa certa latitude aos motivos, isso não significa que ele não resguarde, em alguma medida, o elemento psíquico. Nenhuma valorização jurídica de uma ação seria possível sem volver às intenções. É verdade que a moral parte da consideração do motivo para chegar a considerar o aspecto físico; lá onde o direito segue um procedimento inverso; mas, em um e outro caso, trata-se apenas mais de precedência, ou prevalência na consideração, do que de exclusividade. E nesse sentido cremos deva ser retificada a doutrina kantiana. Estabelecido que o direito se ocupa apenas do mundo físico, isto é, do efeito extrínseco do agir, Kant afirma que o direito, à diferença da moral, é essencialmente coercível, pois sob as intenções não se pode exercer violência, e a consciência é uma fortaleza inacessível. O pensar é livre, de sua natureza, enquanto direito e possibilidade de constrição são uma só coisa. Nós nos associamos a estas conclusões, mas a elas chegamos por outras considerações, que se referem essencialmente ao caráter bilateral do direito. (O direito é uma relação que põe frente a frente pelo menos dois sujeitos, lirnitando-Ihes o agir recíproco. Por isso mesmo as fixações jurídicas implicam sempre a possibilidade de se fazerem valer contra um outro.) Portanto, o direito, segundo Kant, se reduz a regular as ações externas dos homens e a tomar possível a sua coexistência. Kant assim o define: "O direito é o complexo das condições pelas quais o arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos outros, segundo uma lei universal de liberdade". Nesta definição (ou "máxima da coexistência") reafirma-se o conceito da liberdade como supremo valor ético. O homem deve ser respeitado na sua liberdade, isto é, não deve ser considerado

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ou tratado como coisa, como instrumento ou meio, mas como fim em si mesmo (Selbstzweck). A liberdade é um direito natural, inato (a distinção entre direitos naturais e direitos adquiridos, feita pelos precedentes escritores do direito natural, foi aceita por Kant). Assim, todos os direitos naturais se compendiam, segundo Kant, no direito de liberdade. Na verdade, a liberdade é o valor supremo que coloca o homem sobre o mundo dos fenômenos. Se o homem fosse apenas um fenômeno, seria determinado, como tudo o que pertence à natureza. Ora, ele pertence, sim, à natureza enquanto tem um aspecto inferior, e é por isso determinado, e pode-se demonstrar que toda ação, como fenômeno, promana, necessariamente, de certas causas. (Nesse sentido, Kant é, com razão, determinista.) Mas, de outra parte, o homem tem em si um modo de de terminar -se superior ao da causalidade natural. A deliberação, por proceder do ser autônomo do sujeito, tem um significado que vai além do mundo dos fenômenos. O homem é livre enquanto determina segundo a lei moral, que é um princípio absoluto, implícito no seu próprio ser. Produzida que seja a ação, ela pertence à ordem dos fenômenos, e como tal aparece determinada. Assim se conciliam a liberdade e o determinismo. Na valorização do direito de liberdade, Kant recebe, de re pente, influência de Rousseau, como se deduz da substância mesma do seu sistema filosófico, e também de uma explícita confissão sua. (Ele escreveu: "Houve um tempo no qual acreditei que o maior valor consistisse na inteligência, e que o escopo supremo da vida fosse o conhecimento. Rousseau me fêz mudar de opinião, e me persuadiu de que existe coisa superior, a liberdade e a moralidade".) Daqui a doutrina kantiana do primado da razão prática sobre a teórica. Também na concepção do Estado a derivação de Rousseau é evidente.

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A teoria do contrato social é aceita expressamente por Kant, que define o Estado como "a reunião de uma multidão de homens sob o comando de leis jurídicas". Mas essa multidão deve ser concebida como associada em virtude de um contrato, pela vontade de todos. Nesse sentido o contrato se transforma em um princípio regulativo, isto é, um fato não histórico, mas um critério para valorizar a legitimidade de um Estado. E não há dúvida de que este fosse o sentido que também Rousseau atribuía à sua teoria. Todavia, Rousseau não foi um técnico da Filosofia, mas um amador, por assim dizer, romântico. No seu desprezo pelas sutilezas escolásticas e pelo tecnicismo dos filósofos de profissão, falou mais pelo sentimento do que pela reflexão sistemática, donde talvez caia em aparente contradição, e não formulou exatamente a sua teoria. O mérito da formulação precisa pertence a Kant. Lendo Rousseau, talvez se possa ter a impressão de estar lendo um conto mitológico. Na verdade, em tempo algum os homens estiveram unidos por contrato, e a sociedade (máxime nas origens) independe de deliberação. Mas Rousseau quer efetivamente exprimir apenas um princípio de valorização, que é: para todo Estado devem-se pressupor o consenso e o acordo livre de seus membros. Tudo isso Kant explica claramente, afastando todo equívoco e afirmando que o Estado deve ser (não foi) constituído segundo a idéia de um contrato social. (O contrato é a base jurídica, o pressu posto ideal do Estado, que se deve organizar como fundado sobre o reconhecimento dos direitos da pessoa, ou seja, como síntese da liberdade humana.) Kant aceita, também, a doutrina dos filósofos constitucionalistas (Locke, Montesquieu, Rousseau) sobre a divisão dos poderes. O Poder Legislativo não deve ser confundido com o Poder Executivo. Aquele diz respeito ao povo (soberania

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Jopular); este, pode ser delegado a órgãos governamentais. Sonente com a divisão dos poderes e com a atribuição do Poder :"egislativo ao povo a Constituição é legítima ou, na expressão (antiana, "republicana" (com esta locução Kant não pretende, aliis, designar uma forma particular de governo). Ainda a respeito da pena, Kant é contrário às doutrinas ~udaimonísticas, que justificam a pena mediante um fim utilitário (para defender a sociedade, ou seja, para educar o delinqüente). Segundo Kant, a pena é um bem em si mesma, como reafirmação eticamente necessária da lei do dever violada (teoria absoluta da penalidade, em confronto com as outras teorias relativas). É ainda importante o breve tratado, publicado por Kant em 1795, intitulado Sobre a paz perpétua, que concerne aos princípios filosóficos do direito internacional. Kant sustenta que a vocação da humanidade é formar um Estado único. O tempo no qual todos os povos se reunirão desse modo é remoto, mas nem por isso se pode negar que a tendência seja nesse sentido, nem duvidar que esse objetivo venha a ser alcançado. Também nesse caso trata-se de um princípio regulativo, isto é, de um critério racional, que serve como ponto de referência para a interpretação da realidade. Kant observa que a formação do direito internacional é, em certo modo, análoga àquela do direito interno do Estado. O Estado atual é o efeito de uma síntese de elementos a um tempo discordantes: os indivíduos se combateram por longo tempo (e nós com maior exatidão histórica diremos, antes, dos indivíduos, os grupos humanos, as gentes, os clãs), até que foi possível a instauração de um poder unitário sobre os elementos isolados, em contraste entre eles. Kant, segundo a terminologia do seu tempo, diz que, como o estado de natureza foi vencido pelos indivíduos, porque o imperativo categórico os obrigou a se associarem em um regime de convivência civil, assim tempo virá em que também os Estados terão 11 0

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cia no governo de outro Estado (princípio da não intervenção), princípio hoje quase universalmente reconhecido.9 Kant levava fé no progresso da humanidade em um tempo em que outros (por exemplo, M. Mendelssohn) sustentavam o contrário: que só o indivíduo, não o gênero humano, pode progredir. A essa opinião Kant opõe um raciocínio característico. Se nós, diz, temos o dever de cooperar para o maior bem da humanidade, devemos acreditar que os nossos esforços não sejam vãos. Destarte, como corolário do nosso dever, devemos aceitar a crença na perfectibilidade do gênero humano. Ao contrário, seria insensato sentirmo-nos ligados a um dever, se não crêssemos na eficácia, ainda que remota, do seu cumprimento.

superado tais condições, eis que também para eles vige o mesmo imperativo. Isso assinalará o fim de toda guerra, da mesma maneira que a formação do Estado assinalou o fim das frenéticas lutas individuais. Em suma, os Estados devem sair do estado de natureza (estado quase pré-jurídico, no qual atualmente se encontram), para seguir o imperativo categórico: "Não deve existir guerra", e constituir, assim, um Estado cosmopolítico. Não se limitou Kant apenas a indicar esse longínquo ideal de unificação jurídica da humanidade, mas quis ainda apontar os meios que poderão acelerar esse atingimento. Enuncia, para tanto, os artigos de uma espécie de tratado internacional, que deve assegurar àhumanidade a paz perpétua. Além dos "artigos definitivos", enuncia ainda alguns "artigos preliminares" ou provisórios desse tratado, ou seja, uma série de máximas dirigi das ao escopo de evitar as contendas internacionais e, quando não seja possível evitá-Ias, de assegurar-Ihes certo caráter jurídico. Por esse lado, Kant une-se àquelas tradições da Filosofia do direito, em especial à obra de Grócio, trazendo, também ele, um notável impulso aos avanços positivos do direito das gentes. Afirma ele, em substância, que também no estado de guerra deve ser mantida a possibilidade da paz; nem aí deve estar ausente a boa-fé. Ainda, devem ser respeitados os tratados (por exemplo, os armistícios). Também, e ainda, não podem ser usados meios de guerra que afetariam a estima recíproca dos beligerantes, como a traição, o assassínio dos chefes adversários por meio de sicários, a difusão de doenças infecciosas, a poluição das águas, etc. E acrescenta que nas relações entre os Estados devem sempre valer certos princípios jurídicos, como, por exemplo, o Estado não pode ser mais considerado uma propriedade, e também não pode ser adquirido por hereditariedade, nem por venda ou permuta; mais: que a nenhum Estado é permitido imiscuir-se com violên

Fichte e a escola do direito racional Kant teve um discípulo direto em Giovanni Amedeo Fichte, que, todavia, no sucessivo desenvolvimento de seu pensamento, distanciou-se notavelmente dos ensinamentos do mestre. Viveu de 1762 a 1814. Na teoria do conhecimento, Kant havia deixado subsistir um grave dualismo, como, de resto, dualística é toda a sua Filosofia. Para Kant, de um lado se é sujeito e, de outro, objeto. O conhecimento é uma relação entre qualquer coisa de subjetivo, isto é, a mente, e qualquer coisa de objetivo, de independente do sujeito, a saber, a coisa em si. Esse dualismo é rejeitado por Fichte, que concebe uma só realidade, a do eu, da mente subjetiva. E, na verdade, o sistema de

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É Oportuno advertir que o princípio da não intervenção não tem propriamente um valor absoluto, mas encontra, ao menos a nosso ver, um limite racional no pressuposto de que os direitos elementares da humanidade sejam tutelados em cada Estado). Isto demonstra que doutrinas dessa espécie não são meros exercícios dialéticos, mas também fatores históricos, que acompanham e regulam o progresso real.

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Fichte pode, por isso, dizer-se do idealismo subjetivo, em contraste com o sistema de Schelling e de Regel, dito do GIORGIO DEL VECCHIO idealismo objetivo, porque apóia, como veremos, sobre outro extremo da antítese. Para Fichte a realidade é o eu, o ser consciente; fora dessa esfera nada pode existir. Observa ele que, se partimos, como fez, por exemplo, Espinosa, do conceito do ser, não poderíamos chegar ao conceito do pensamento, porque há um abismo entre esses termos. Partin do, ao contrário, do conceito de consciência, ou do ser consciente, está, per se, implícito o conceito de ser, onde se deduz que a pri meira noção deve ser a do eu. O eu põe, antes de tudo, a si mesmo, e por isso, no ato mesmo, põe exatamente um não eu, ou seja, contrapõe qualquer coisa a si. Mas este termo de contraposição é sempre gerado pelo eu, do qual é como uma projeção. Enfim, o eu estabelece uma relação entre si e aquilo que é diverso de si, isto é, limita-se a si mesmo, nas suas relações com o não eu. Isso acontece em um duplo sentido: o eu pode considerar-se a si mesmo como determinado pelo mundo externo, e então se põe como ser cognoscente; ou como determinante do mundo externo, e então se põe como ser operante, como sujeito não de conhecimento, mas de ação. Daqui a divisão fichtiana da Filosofia em teórica e prática. É verdadeiramente característico, em todo o procedimento de Fichte, o esforço de deduzir de um só princípio (a autoconsciência) as várias formas da atividade espiritual, as quais, ao contrário, Kant havia simplesmente elencado como se não se tratasse se não de enumerá-Ias. Em outras palavras: Kant distinguia o conhecimento, a von tade, etc., como qualquer coisa separada, sem remontar a um princípio único. Fichte, ao contrário, quer dar ao sistema kantiano uma base unitária, remontando àquilo que, segundo ele, era um tácito pressuposto dele. Diz, por isso, que a Filosofia de seu mestre me lhor se compeende apoiando-a sobre aquele princípio 126 fundamen

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tal, e que só por erro ela admite a existência de uma coisa radicalmente diversa do eu. A coisa em si, segundo Fichte, não éincognoscível, mas é o eu mesmo; a natureza é o limite que o eu dáa si mesmo; é um produto, um campo que o eu se cria para poder ali desenvolver a sua atividade. E isso é o cumprimento extremo do sistema idealístico, no sentido subjetivo. Se não existe a não ser o eu, o eu é livre (não depende de outro, tão só de si mesmo), e por isso qualquer limitação aparente da liberdade é efeito da subjetividade mesma, é uma autolimitação. Assim, as nossas ações aparecem determinadas, com certeza, pelas causas ou motivos, portanto não são livres, donde o temor de vir o livre-arbítrio a ser sacrificado. Mas esta lei de determinação da causa pelo efeito é puramente intelectiva, que o homem impõe a si mesmo, e por isso ela não destrói nem diminui, de nenhum modo, a liberdade. Eis, portanto, a liberdade defendida pela metafísica; e mais, conciliada com o determinismo. Não é inoportuno observar aqui que o caráter geral da Filosofia fichtiana harmoniza-se com o caráter pessoal do autor. Fichte tinha uma natureza entusiástica. Era apaixonado pela liberdade. A sua Filosofia foi a da ação, uma espécie de pragmatismo absoluto, e toda a sua obra tem significado de apostolado, de reivindicação de liberdade em todas as esferas. Entre os primeiros escritos de Fichte, é notável o de 1793, intitulado Contribuição para a retificação dos juízos do público sobre a Revolução Francesa, todo cheio de entusiasmo por aquela revolução, considerada como a proclamação histórica dos direitos naturais do indivíduo. A Revolução Francesa, saudada de início com glória por todos os espíritos liberais da Alemanha e da Europa em geral, perdera muitas simpatias depois que degenerou em excessos sangrentos, especialmente em 1793 (o ano do Terror). Surgiram, então, severas críticas, largamente seguidas. Contra elas opôs-se Fichte, sustentando a legitimidade da Revolução

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O Estado deve representar a vida perfeita e deve bastar-se a si mesmo, ou seja, ter em si todos os elementos necessários e suficientes (é o conceito platônico e aristotélico da autarquia que renasce); deve fazer-se organizador e distribuidor do trabalho, regulador das trocas, constituindo uma barreira diante do exterior, até o ponto de proibir as trocas internacionais. O Estado deve ser fechado não só juridicamente, mas também economicamente; e deve assegurar a cada um a possibilidade de viver com o próprio trabalho. Por esta sua obra, Fichte foi depois incluído entre os precursores do moderno socialismo de Estado. Nos escritos posteriores, Fichte atribui ao Estado, além da função jurídica e econômica, também a função de moralizador e de promotor da cultura. Com isto ele se distancia muito da doutrina kantiana. Notemos, por último, que o pensamento de Fichte teve importância especial também para as condições históricas daquele tempo: concorrer para reerguer o espírito germânico, deprimido pela conquista de Napoleão, em especial com os seus Discursos à nação alemã (1808), onde, porém, o exasperado amor à pátria leva às vezes o filósofo a expressões de cru e tacanho nacionalismo. O ensinamento de Fichte encontra paralelo nas obras de outros pensadores e patriotas, quais, por exemplo, entre os italianos, Gioberti. Houve entre eles quem, como Romagnosi e sobretudo Mazzini, soube desenvolver o seu apostolado em um sentido ainda mais alto e universal, propugnando a um tempo pela ressurreição e pela liberdade de sua pátria e de todas as outras. A escola do direito natural, tornada mais precisamente escola do direito racional sobretudo pela obra de Kant (cf. supra), atingiu com Fichte, na primeira fase de seu pensamento, o mais alto fastígio. Entre os numerosos seguidores dessa escola, devem-se re cordar também, pela eficácia e difusão que tiveram suas obras: F. v. Zeiler (1751/1828); professor em Viena, onde tinha sido discípulo do trentiano C. A. Martini (1726/1800), seguidor de Wolff, e

Francesa, e da revolução em geral, porque todo povo tem o direito de dar-se o governo que corresponda às suas aspirações, e isso também com a violência, quando não seja possível de outra forma. Também ele, nesse ponto, liga-se a Rousseau, e lhe interpretajustamente a teoria do contrato social, considerando este como princípio jurídico ou deontológico, como critério da legitimidade dos governos. Outras obras de Fichte são: Fundamento da doutrina da ciência (1794), Lições sobre a missão do douto (1794) e, especialmente importante para a nossa disciplina, Fundamento do direito da natureza (1796), que é uma exposição sistemática da teoria do direito natural segundo os princípios e os precedentes há pouco indicados. Especialmente manifesta é a influência de Kant. Para Fichte, o imperativo jurídico supremo é: "O eu deve limitar a sua liberdade individual, mediante o conceito da possibilidade da liberdade alheia, com a condição de que os outros façam o mesmo". Não posso reconhecer a mim mesmo uma liberdade sem reconhecê-Ia aos outros. Também aqui, portanto, o fundamento do direito encontrase no princípio da coexistência das liberdades. Nessa obra encontramos também exposto o caráter diferencial entre moral e direito segundo a visão kantiana, mas de modo a acentuar ainda mais a antítese. Ainda nesta obra Fichte trata, de acordo com Kant, de outras matérias fundamentais, como noção do Estado, dos direitos individuais, etc. Porém, em seguida, nota-se um progressivo distanciamento do pensamento de Fichte em relação ao do seu mestre. As primeiras conseqüências importantes dessa evolução aparecem no seu livro O Estado comercial fechado (1800), onde se abandona o conceito do Estado como mera emanação dos direitos individuais, direcionada apenas ao escopo de garantir aqueles direitos, e se lhe atribui além disso uma função econômica.

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autor, ele também, de notáveis escritos de Filosofia do direito; o Direito privado natural, de Zeiller, foi editado muitas vezes também em italiano; l.E Fries (1773/1843), que, apesar de dissentir, em parte de Kant, acatou-lhe, em substância, os princípios; P. 1. A. Feuerbach (1775/1833), conhecido sobretudo como penalista, mas importante também por suas doutrinas filosófico-jurídicas; K. Gros, K. Zachariae, A. Bauer, W Krug, C. Droste-Hülshoff, C. v. Rotteck (1775/1840), a quem devemos um dos mais elaborados tratados da matéria (Lehrbuch des Vernunftrechts und der Staatswissenschaften, 4. v., 1829/1835), etc. À mesma escola pertenceram ainda alguns italianos, como, por exemplo: P. Baroli (1797/1878, professor em Pávia: Direito natural privado e público, 6 v., 1837); G. P. Tolomei (1814/1893, professor em Pádua, Curso elementar de Direito natural ou racional, 2. ed., 1849; 1855, e outras edições sucessivas, 2 v.), etc. e obras que merecem ser estudadas. Ligam-se ainda a essa escola outros notáveis pensadores, como Rosmini e Taparelli (ao qual faremos menção mais adiante), embora tenham eles dado a suas doutrinas fundamento prevalentemente teológico. Todos esses autores sustentam o princípio de que existe um direito ideal antes do direito positivo; o conceito de justo e de injusto é anterior ao Estado, o qual, por isso, não pode fixar-lhes arbitrariamente os limites, mas deve reconhecer e garantir os direitos individuais, presconstituídos pela natureza e demonstrados pela ra zão. Daqui uma espécie de esquematismo lógico e um caráter que, às vezes, pode parecer muito estreitamente individualístico no trato dos problemas sociais. Somente o Fichte "da segunda maneira" modifica tal posição, que permanece, contudo, característica, para escola do direito racional propriamente dito. Seja como for, essa escola tem o mérito de ter mostrado verdades essenciais em tomo do direito, recolhendo e aperfeiçoan

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do os frutos das indagações precedentes e evitando, de outra parte, os erros metodológicos de Grócio e dos primeiros jusnaturalistas. Assim, ela abandonou a mitologia do estado natural, somente recordando a velha fórmula como mera hipótese, com escopo demonstrativo. Deve-se ainda assinalar como mérito dessa mesma escola o zelo por ela desenvolvido no ilustrar, além da idéia do direito em geral, cada um dos institutos do direito privado e público, procurando recolher, à luz da razão, o fundamento intrínseco de cada um deles, para assinalar ainda, precisamente, os defeitos da legislação positiva e promover-lhe a oportuna reforma. A obra da escola foi, na realidade, útil, tendo efetivamente contribuído para os avanços legislativos, em especial na preparação dos Códigos em vários Estados; e mais teria podido ajudar se a ela não se tivesse oposto àescola do historicismo, em suas variadas formas.

o historicismo

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A escola do direito racional foi objeto de fortes críticas da parte de uma diversa tendência de pensamento, que se divide em vários ramos, mas que tem um significado fundamental de oposição ao raciocínio puro e abstrato. Na verdade, os pensadores daquela escola tinham produzido, prevalentemente, com método dedutivo, ex ratiocinatione animi tranquilli (= "pelo racicínio de alma tranquila", como dizia Thomasius). A esse tranqüilo raciocinar acompanhava às vezes certa negligência com o material histórico, um insuficiente exame dos fatos. Daí a reação que se anuncia em nome do resguardo devido àhistória. Com o nome de historicismo designam-se justamente as várias oposições surgidas contra as doutrinas ora expostas e qualificadas como racionalismo. Mas a denominação comum não de verá impedir de distinguir no historicismo três correntes distintas: o historicismo filosófico de Schelling e de Hegel, o historicismo 131

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político dos filósofos da Restauração, que se opõe à Revolução Francesa, e, por fim, o historicismo jurídico, ou escola histórica dos juristas alemães.

o historicismo filosófico ou idealismo objetivo (Schelling, Rege!) o idealismo objetivo é representado pelos sistemas de Schelling e de Regel, muito parecidos entre si. Pode-se dizer que pertence ao de Schelling a idéia fundamental, mas genérica; e ao de Regel, toca o mérito de tê-Ia aperfeiçoado e desenvolvido em um sistema rigoroso e completo. Esta relação entre os dois sistemas é especialmente manifesta no que se refere à nossa matéria, porque Schelling tratou escassamente da Filosofia do direito, enquanto Regellhe dedicou uma de suas maiores obras. Federico Schelling (1775/1854) iniciou muito jovem a sua atividade filosófica. Em 1795 publicou um breve escrito de Filosofia do direito, com o título Nova dedução do direito natural, que é, todavia, mais que outro, um reflexo da doutrina fichteana. Em 1800 publicou o Sistema do idealismo transcendental e, em 1803, as Lições sobre o método do estudo acadêmico, obra notável também porque esclarece as idéias políticas do autor. Vamos traçar uma suma da sua posição especulativa. Até então, o espírito tinha sido considerado como qualquer coisa de subjetivo. A mente, o eu de Kant e de Fichte, eram essencialmente qualquer coisa de pessoal. Com Schelling, o espírito torna-se objetivo, e a sua primeira revelação é a natureza. Isto porque a natureza já não é concebida (como queria Fichte) como qualquer coisa morta, como um limite, mas como um princípio ativo, um todo animado, um espírito que se transforma. E a evolução da natureza afigura-se como uma série incessante de tentativas para produzir o eu. O homem é a meta da natureza, ou

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seja, o olho pelo qual a natureza contempla-se a si mesma. E aqui Schelling se põe a distinguir a natureza corno sujeito e corno objeto. Advirta-se, porém, que a distinção já tinha sido feita pelos escolásticos e por Espinosa, com terminologia própria. De fato, eles falavam de natura naturans e de natura naturata (natureza enquanto produz, e natureza enquanto é produzida). A natureza corno sujeito está em infinita produtividade, que Schelling chama também alma do mundo (Weltseele): ela está a exteriorizar-se primeiro no mundo físico (vegetal, animal) e, depois, no mundo do espírito. Corno existe urna alma do mundo, assim existe, também, urna alma do povo (Volksseele). De início inconsciente ou subconsciente. É essa alma que determina a constituição social e política. Como se vê, acena-se em Schelling, pela primeira vez, para o conceito de espírito popular ou coletivo, que devia depois tornar uma importância notabilíssima, especialmente na escola histórica dos juristas (para a teoria do costume). Dissemos que esse conceito foi apenas acenado; porque, na verdade, ele foi desenvolvido por Regel. Para ambos os pen sadores, o Estado é a mais perfeita criação do espírito. Toda a Filosofia de Schelling (corno de resto a de Regel) ressente-se de certa veneração do Estado e, mais em geral, para com o fato estabelecido. Assim, em seus escritos encontramos, por exemplo, estas fórmulas tão imprecisas quanto dogmáticas: "O Estado é a união do ideal e do real"; "O Estado é a reunião da liberdade e da necessidade", etc. Ao lado do Estado existe ainda um outro organismo, a Igreja. O Estado tem mais de real lá onde a Igreja tem mais de ideal, mas arnbas as organizações possuem um e outro elemento. Schelling aproxima, por essa via, o Estado da Igreja, dando àquele um caráter teológico. Isto, sob o ponto de vista crítico, não se pode considerar como um progresso, porque se retoma, desse modo, a uma confusão de domínios e de competências, já superada e corrigida pela Filosofia política rn precedente.

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possível. E como pelo caráter e pela posição dogmática Hegel contrapõe-se a Kant e a Fichte, assim também pelo seu otimismo diferencia-se dos críticos idealistas (dentre os quais Schopenhauer), geralmente propensos ao pessimismo. Outra peculiaridade da Filosofia de Hegel é o evolucionismo. "Nada existe, tudo se transforma". "A luta é a lei de todas as coisas". Este pensamento tinhajá sido expresso por Erác1ito na antiguidade grega: "Tudo passa" (návT