Carta a uma Nação Cristã 1002154704

Poucos anos atrás, seria um ato de enorme coragem declarar-se ateu e afirmar que as crenças religiosas não passam de ilu

173 32 540KB

Portuguese Pages 76

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD FILE

Polecaj historie

Carta a uma Nação Cristã
 1002154704

Table of contents :
OdinRights
Folha de Rosto
Nota ao leitor
Carta a uma nação cristã
A Sabedoria da Bíblia
A Verdadeira Moralidade
Fazendo o Bem em Nome de Deus
Os Ateus São Maus?
Quem Coloca a Bondade no Bom Livro?e
A Bondade Divina
O Poder da Profecia
O Choque entre Ciência e Religião
Os Fatos da Vida
Religião, Violência e o Futuro da Civilização
Conclusão
Dez livros que recomendo

Citation preview

DADOS DE ODINRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

Sobre nós: O eLivros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: eLivros.

Como posso contribuir? Você pode ajudar contribuindo de várias maneiras, enviando livros para gente postar Envie um livro ;) Ou ainda podendo ajudar financeiramente a pagar custo de servidores e obras que compramos para postar, faça uma doação aqui :) "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

eLivros

.love

Converted by ePubtoPDF

  Carta a uma Nação Cristã   Sam Harris  

Título original LETTER TO A CHRISTIAN NATION Tradução Isa Mara Lando Capa Rita da Costa Aguiar

Prefácio Richard Dawkins Sam Harris não é amigo de divagações sem rumo. Ele escreve diretamente para o seu leitor cristão, chamando-o de “você”, e lhe dá a honra de levar a sério as crenças que “você” defende: “[...] se um de nós está certo, o outro está errado [...] Com o decorrer do tempo, um dos dois lados vai realmente vencer essa discussão, e o outro lado realmente sairá derrotado”. Mas você não precisa (como posso atestar pessoalmente) se encaixar no perfil desse “você” para desfrutar este maravilhoso livrinho. Cada palavra sai zunindo como uma elegante flecha, desferida de uma corda tensionada ao máximo, e voa veloz, traçando um gracioso arco e atingindo o alvo bem no centro, para grande satisfação do leitor. Se você faz parte do alvo, desafio-o a ler este livro. Será um teste saudável para a sua fé. Se você conseguir sobreviver à barragem da argumentação de Sam Harris, poderá enfrentar o mundo inteiro com equanimidade. Mas perdoeme se duvido: Harris nunca erra o alvo, nem em uma única frase, e é por isso que este livro tão breve tem um poder devastador tão desproporcional. Se você já compartilha das dúvidas de Harris, e minhas, acerca da fé religiosa e não faz parte desse alvo, este livro lhe dará armas poderosas para argumentar contra o outro lado. Ou talvez você seja cristão, mas não faça parte do alvo. Este livro reconhece que existem cristãos que adotam, segundo eles próprios creem, uma visão mais nuançada: “I...] os cristãos liberais e moderados nem sempre vão reconhecer a si mesmos nesse ‘cristão’ a quem me dirijo. Mas com certeza reconhecerão muitos de seus vizinhos — e mais de 150 milhões de americanos”. E este é o ponto principal. Foi a ameaça desses 150 milhões que motivou este livro. Se as crenças religiosas que você

adota são tão vagas e nebulosas que até as flechadas mais certeiras ricocheteiam sem ser notadas, Harris não está escrevendo diretamente para você. Mesmo assim, você deveria se preocupar com essa situação de emergência que tanto preocupa a ele — e também a mim. Enquanto eu, como educador científico, fico desalentado ao constatar que 50% da população americana acredita que o mundo tem 6 mil anos de idade (o equivalente a acreditar que a distancia entre Nova York e San Francisco é menor que um campo de críquete), Sam Harris se preocupa com outras crenças desses mesmos 50%: Portanto, não é exagero dizer que, se Londres, Sydney ou Nova York de repente virassem uma grande bola de fogo, uma porcentagem significativa da população americana veria um lado auspicioso na nuvem em forma de cogumelo que se seguiria. Para essas pessoas, seria o sinal de que a melhor coisa que jamais vai acontecer no mundo está prestes a acontecer: a volta de Jesus Cristo. Deveria ser óbvio e evidente que crenças desse tipo pouco ajudam a humanidade a criar para si mesma um futuro duradouro seja na esfera social, econômica, ambiental ou geopolítica. Imagine as consequências se algum componente significativo do governo americano realmente acreditasse que o mundo está prestes a acabar, e que o fim do mundo será glorioso. O fato de que quase a metade da população americana acredita nisso, puramente com base em um dogma religioso, deve ser considerado uma emergência moral e intelectual. A nação cristã para quem o livro foi originalmente escrito é, naturalmente, os Estados Unidos. Mas seria descaso e loucura se descartássemos a questão como se fosse apenas um problema americano. Os Estados Unidos ao menos são protegidos por uma esclarecida separação, colocada por Jefferson, entre Igreja e Estado. Já na Grã-Bretanha a

religião faz parte, historicamente, do nosso establishment oficial; neste momento a liderança política do nosso país, a mais piedosa desde Gladstone, está decidida a apoiar as “escolas religiosas” E não são apenas as escolas cristãs tradicionais, note-se, pois nosso governo, açulado por um herdeiro ao trono que deseja ser conhecido como “Defensor da Fé” tem simpatia ativa pelas outras “comunidades de fé” que vão balindo “nós também”, ansiosas para obter uma doutrinação religiosa para seus filhos subsidiada pelo Estado. Seria possível conceber uma fórmula educacional mais capaz de gerar dissensão e discórdia? E, o mais importante, a única superpotência mundial da atualidade está perto de ser dominada por eleitores que acreditam que o universo inteiro começou depois da domesticação do cão. Acreditam também que serão pessoalmente "arrebatados" para as alturas celestiais ainda durante seu tempo de vida, fato que será seguido por um Armagedom muito bem-vindo como arauto do Segundo Advento de Cristo. Mesmo aqui do outro lado do Atlântico, a expressão de Sam Harris, “emergência moral e intelectual”, já começa a parecer até moderada. Comecei dizendo que Sam Harris não é amigo de divagações sem rumo. Um dos seus argumentos é que nenhum de nós pode se dar a esse luxo. Carta a uma nação cristã vai perturbar você. Seja para incentivá-lo a uma ação defensiva ou ofensiva, este livro com certeza vai exercer uma mudança em você, de alguma maneira. Leia, nem que seja a última coisa que vá fazer na vida. E com a esperança de que não seja a última.

Nota ao leitor Desde a publicação do meu primeiro livro, The end of faith: Religion, terror, and the future of reason [O fim da fé: religião, terror e o futuro da razão], milhares de pessoas já me escreveram para dizer que estou errado em não acreditar em Deus. As mensagens mais hostis vêm de cristãos. É uma ironia, pois os cristãos em geral imaginam que nenhuma religião transmite tão bem como a sua as virtudes do amor e do perdão. A verdade é que muitos que afirmam ter sido transformados pelo amor de Cristo são intolerantes à crítica — de uma intolerância profunda, até assassina. Podemos atribuir isso à natureza humana, mas é claro que tal ódio recebe considerável apoio da Bíblia. E como eu sei disso? Entre os meus correspondentes, os mais mentalmente perturbados sempre citam capítulos e versículos bíblicos. Embora se destine a pessoas de todas as religiões, este livro foi escrito sob a forma de uma carta aos cristãos dos Estados Unidos. Nele, respondo a muitos dos argumentos que os cristãos conservadores apresentam em defesa de suas crenças religiosas. Assim, o "cristão" a quem me dirijo ao longo do texto é um cristão em um sentido limitado da palavra. Uma pessoa assim acredita, pelo menos, que a Bíblia é a palavra de Deus, escrita por inspiração divina, e que apenas os que acreditam na divindade de Jesus Cristo terão a salvação depois da morte. Dezenas de pesquisas de opinião, realizadas de maneira científica, sugerem que mais da metade da população americana acredita nesses postulados.{1} É claro que essas crenças metafísicas não se limitam a nenhuma nacionalidade e a nenhuma denominação especial do cristianismo. Os cristãos conservadores de todos os países e de todas as seitas —

católicos, protestantes de linhas majoritárias, evangélicos, batistas, pentecostais, testemunhas de jeová e assim por diante — estão todos igualmente implicados na minha argumentação. Embora nenhum outro país desenvolvido se iguale aos Estados Unidos em termos de religiosidade, hoje todos os países precisam conviver com as consequências de tudo em que meus compatriotas americanos acreditam. Como é bem sabido, atualmente as crenças dos cristãos conservadores exercem uma influência extraordinária sobre o discurso público neste país — em nossos tribunais, nossas escolas e em todas as esferas do governo. Se o propósito mais amplo do meu trabalho é dar munição aos secularistas de todas as sociedades contra seus opositores, cada vez mais fervorosos, em Carta a uma nação cristã me propus especificamente a demolir as pretensões intelectuais e morais do cristianismo em suas formas mais ardorosas. Assim, os cristãos liberais e moderados nem sempre vão reconhecer a si mesmos nesse “cristão” a quem me dirijo. Mas com certeza reconhecerão muitos de seus vizinhos — e mais de 150 milhões de americanos. Não tenho dúvida de que muitos cristãos que vivem fora dos Estados Unidos se sentirão tão perturbados como eu por essas bizarras convicções da direita cristã. É minha esperança, porém, que eles também comecem a perceber que o respeito que concedem às crenças religiosas em geral acaba por dar abrigo a extremistas de todas as religiões. Embora a maioria dos crentes não arremesse aviões contra edifícios, nem organize sua vida com base nas profecias apocalípticas, poucos questionam a legitimidade de criar e educar um filho de forma que ele acredite que é cristão, muçulmano ou judeu. Assim, até as religiões mais progressistas dão seu apoio tático para as divisões religiosas do nosso mundo. Contudo, em Carta a uma nação cristã me dirijo à cristandade em seu aspecto mais desagregador, destrutivo e retrógrado. Nesse aspecto, tanto

liberais e moderados como não-crentes podem reconhecer uma causa em comum. Segundo uma pesquisa recente da Gallup, apenas 12% dos americanos acreditam que a vida na Terra evoluiu através de um processo natural, sem a interferência de uma divindade. Para 31%, a evolução foi “guiada por Deus”.{2} Se a nossa visão do mundo fosse submetida a um plebiscito, os conceitos de “design inteligente” derrotariam a ciência da biologia por quase três votos a um. E isso é perturbador, pois a natureza não apresenta nenhuma prova convincente da existência de um "designer inteligente" e apresenta incontáveis exemplos de “design não-inteligente”. Mas a atual polêmica sobre o chamado “design inteligente” não deve nos impedir de perceber as verdadeiras dimensões da confusão e ignorância dos americanos religiosos no alvorecer do século XXI. A mesma pesquisa da Gallup revelou que 53% dos americanos são, na verdade, criacionistas. Isso significa que, apesar de um século inteiro de descobertas científicas que atestam como é antiga a vida na Terra, e mais antigo ainda o nosso planeta, mais da metade da população americana acredita que o cosmos inteiro foi criado há 6 mil anos. Diga-se de passagem que mil anos antes disso os sumérios já tinham inventado a cola. Os que têm o poder de eleger presidentes, deputados e senadores — e muitos dos que são eleitos — acreditam que os dinossauros sobreviveram aos pares na arca de Noé, que a luz de galáxias distantes foi criada a caminho da Terra e que os primeiros membros da nossa espécie foram modelados a partir do barro e do hálito divino, em um jardim com uma cobra falante, pela mão de um Deus invisível. Entre os países desenvolvidos, os Estados Unidos estão sozinhos ao adotar essas convicções. De fato, tenho a dolorosa consciência de que meu país hoje parece, como em nenhum outro momento da sua história, um gigante belicoso, desengonçado e mentalmente obtuso. Qualquer

pessoa que se preocupe com o destino da civilização faria bem em reconhecer que a combinação de um grande poder com uma grande estupidez é simplesmente aterrorizaste, até para os amigos. A verdade, porém, é que muitos de meus compatriotas talvez não se preocupem com o destino da civilização. Nada menos que 44% da população americana está convencida de que Jesus vai voltar para julgar os vivos e os mortos, em algum momento dos próximos cinquenta anos. E, segundo a interpretação mais comum da profecia bíblica, Jesus só vai voltar depois que as coisas derem errado — terrivelmente errado — aqui na Terra. Portanto, não é exagero dizer que se Londres, Sydney ou Nova York de repente virassem uma grande bola de fogo, uma porcentagem significativa da população americana veria um lado auspicioso na nuvem em forma de cogumelo que se seguiria. Para essas pessoas, seria o sinal de que a melhor coisa que jamais vai acontecer no mundo está prestes a acontecer: a volta de Jesus Cristo. Deveria ser óbvio e evidente que crenças desse tipo pouco ajudam a humanidade a criar para si mesma um futuro duradouro — seja na esfera social, econômica, ambiental ou geopolítica. Imagine as consequências se algum componente significativo do governo americano realmente acreditasse que o mundo está prestes a acabar e que o fim do mundo será glorioso. O fato de que quase a metade da população americana acredita nisso, puramente com base em um dogma religioso, deve ser considerado uma emergência moral e intelectual. O livro que você agora vai ler é minha resposta a essa situação de emergência. Meu sincero desejo é que para você ele seja útil. Sam Harris 1º de novembro de 2006 Nova York

Carta a uma nação cristã Você acredita que a Bíblia é a palavra de Deus, que Jesus é o filho de Deus e que apenas aqueles que têm fé em Jesus alcançarão a salvação após a morte. Como cristão, você acredita nessas afirmações não porque elas o fazem sentirse bem, mas porque crê que são verdadeiras. Antes de apontar alguns problemas que essas crenças apresentam, eu gostaria de reconhecer que há muitos pontos em que concordo com você. Nós concordamos, por exemplo, que se um de nós está certo, o outro está errado. Ou a Bíblia é a palavra de Deus, ou não é. Ou Jesus oferece à humanidade o único verdadeiro caminho para a salvação (João 14, 6), ou não oferece. Concordamos que ser um bom cristão é acreditar que todas as outras religiões estão erradas, e profundamente erradas. Se o cristianismo está correto, e eu persistir na minha descrença, devo esperar que um dia sofrerei os tormentos do inferno. Pior ainda, já convenci outras pessoas, muitas delas próximas a mim, a rejeitar a própria ideia da existência de Deus. Elas também padecerão no “fogo eterno” (Mateus 25, 41). Se a doutrina básica do cristianismo está correta, então desperdicei a minha vida da pior maneira que se possa conceber. Eu reconheço isso, sem restrição alguma. O fato de que a minha rejeição do cristianismo, pública e contínua, não me preocupa nem um pouco já demonstra o quanto considero inadequadas as suas razões para ser cristão. É claro que há cristãos que não concordam nem comigo, nem com você. Há cristãos que veem outras religiões como caminhos igualmente válidos para a salvação. Há cristãos que não têm medo do inferno e que não acreditam na ressurreição física de Jesus. Esses cristãos costumam se definir como “religiosos liberais” ou “religiosos moderados”.

Do ponto de vista deles, tanto você como eu não compreendemos corretamente o que significa ser uma pessoa de fé. Existe, pelo que eles nos garantem, um vasto e belo território entre o ateísmo e o fundamentalismo religioso que muitas gerações de cristãos ponderados já exploraram discretamente. Segundo os liberais e os moderados, a fé se baseia não só no mistério e no significado, mas também na comunidade e no amor. As pessoas elaboram a religião a partir de todo o tecido de suas vidas, e não apenas de suas crenças. Já escrevi em outros textos sobre os problemas que vejo no liberalismo religioso e na moderação religiosa. Aqui só precisamos observar que o problema é mais simples e, ao mesmo tempo, mais urgente do que os liberais e moderados costumam reconhecer. Ou a Bíblia é apenas um livro comum, escrito por mortais, ou não é. Ou Cristo era divino, ou não era. Se a Bíblia é um livro comum, e Cristo era um homem comum, então a doutrina básica do cristianismo é falsa. Se a Bíblia é um livro comum, e Cristo era um homem comum, então a história da teologia cristã é a história de homens estudiosos dissecando uma ilusão coletiva. E se os princípios básicos do cristianismo são verdadeiros, então há surpresas extremamente desagradáveis à espera de descrentes como, eu. Isso você compreende. Pelo menos a metade da população americana compreende. Assim, sejamos honestos: com o decorrer do tempo, um dos dois lados vai realmente vencer essa discussão, e o outro lado realmente sairá derrotado. Pense nisto: cada muçulmano devoto tem as mesmas razões para ser muçulmano que você tem para ser cristão. E, no entanto, você não acha essas razões convincentes. O Corão declara repetidas vezes ser a palavra perfeita do criador do universo. Os muçulmanos acreditam nisso tão piamente quanto você acredita na definição da Bíblia sobre ela própria. Há uma vasta literatura relatando a vida de Maomé que, do ponto de vista do islã, prova que ele foi o

mais recente dos profetas de Deus. Maomé também garantiu aos seus seguidores que Jesus não era divino (Corão 5, 71-75; 19, 30-38), e que qualquer pessoa que pense diferente passará a eternidade no inferno. Os muçulmanos estão certos de que a opinião de Maomé a respeito desse assunto, assim como de todos os outros, é infalível. E por que você não perde o sono pensando se deve ou não se converter ao islamismo? Você é capaz de provar que Alá não é o único e verdadeiro Deus? Você é capaz de provar que o arcanjo Gabriel não visitou Maomé em sua caverna? Claro que não. Mas você não precisa provar nada disso para rejeitar as crenças muçulmanas, considerando-as absurdas. Recai sobre os muçulmanos o ônus da prova de que suas crenças acerca de Deus e de Maomé são válidas. E até agora eles não fizeram isso. Eles não podem fazer isso. As afirmações feitas por eles acerca da realidade simplesmente são impossíveis de ser comprovadas. E isso é perfeitamente claro e óbvio para qualquer um que não tenha se anestesiado com o dogma do islã. A verdade é que você sabe exatamente como é ser ateu, em relação às crenças dos muçulmanos. Pois não é óbvio que os muçulmanos estão enganando a si mesmos? Não é óbvio que qualquer um que considere o Corão a palavra perfeita do criador do universo não leu o livro de maneira crítica? Não é óbvio que a doutrina do islã representa uma barreira praticamente perfeita para a investigação honesta? Sim, tudo isso é óbvio. Compreenda, então, que a maneira como você vê o islamismo é exatamente a mesma como os muçulmanos devotos veem o cristianismo. E é dessa maneira que eu vejo todas as religiões.

A Sabedoria da Bíblia Você acredita que o cristianismo é uma fonte inigualável de bondade humana. Você acredita que Jesus ensinou as virtudes do amor, da compaixão e do altruísmo melhor do que qualquer outro mestre que já viveu. Você acredita que a Bíblia é o livro mais profundo jamais escrito, e que seu conteúdo suportou tão bem o teste do tempo que só pode ter sido escrito por inspirarão divina. Todas essas crenças são falsas. As questões morais são questões de felicidade e sofrimento. É por isso que eu e você não temos obrigações morais em relação às pedras. Até onde nossas ações podem afetar a experiência de outras criaturas, de maneira positiva ou negativa, as questões de moral se aplicam. A ideia de que a Bíblia é o guia perfeito para a moralidade é simplesmente espantosa em vista do conteúdo do livro. Não há dúvida de que o conselho de Deus para os pais é direto e claro: sempre que os filhos saem da linha, devemos bater neles com uma vara ( Provérbios 13, 24; 20,30; e 23,13-14). Se eles tiverem a pouca-vergonha de nos responder com insolência, devemos matá-los (Êxodo 21,15, Levítico 20, 9, Deuteronômio 21,18-21, Marcos 7, 9-13, Mateus 15, 4-7) Também devemos apedrejar pessoas até a morte por heresia, adultério, homossexualismo, por trabalhar no sábado, adorar imagens, praticar feitiçaria e mais uma ampla variedade de crimes imaginários. Eis aqui apenas um exemplo da sabedoria eterna de Deus: Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu amor, ou teu amigo que amas como à tua própria alma te incitar em segredo, dizendo: “Vamos e sirvamos a outros deuses” [...] não concordarás com ele, nem o ouvirás; não o olharás

com piedade, não o pouparás, nem o esconderás, mas, certamente, o matarás. A tua mão será a primeira contra ele, para o matar, e depois a mão de todo o povo. Apedreja-lo-á até que morra, pois te procurou apartar do SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão [...]. Quando em alguma das tuas cidades que o SENHOR, teu Deus, te dá, para ali habitares, ouvires dizer que homens malignos saíram do meio de ti e incitaram os moradores da sua cidade, dizendo: “Vamos e sirvamos a outros deuses” que não conheceste, então, inquirirás, investigarás e, com diligência, perguntarás; e eis que, se for verdade e certo que tal abominação se cometeu no meio de ti, então, certamente, ferirás a fio de espada os moradores daquela cidade, destruindo-a completamente e tudo o que nela houver, até os animais. Deuteronômio 13, 6, 8 15 Muitos cristãos acreditam que Jesus acabou com toda essa barbárie, nos termos mais claros imagináveis, e pregou uma doutrina de puro amor e tolerância. Mas não foi assim. Em vários pontos do Novo Testamento se pode ler que Jesus confirmou integralmente a lei do Velho Testamento. Porque em verdade vos digo até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus. Mateus 5, 18-20

Os apóstolos repetiram várias vezes esse tema (por exemplo, veja 2 Timóteo 3, 16-17). É verdade, claro, que Jesus disse coisas profundas sobre o amor, a caridade e o perdão. A Regra de Ouro{a} é realmente um preceito moral maravilhoso. Mas numerosos mestres já deram essa mesma orientação séculos antes de Jesus (Zoroastro, Buda, Confucio, Epicteto...), incontáveis escrituras discutem a importância do amor que transcende o próprio eu de maneira mais articulada do que a Bíblia, sem serem maculadas pelas obscenas celebrações de violência que encontramos em abundância tanto no Velho como no Novo Testamento. Se você acha que o cristianismo é a expressão mais direta e pura de amor e compaixão que o mundo já viu, é porque não conhece bem as outras religiões. Veja, por exemplo, o jainismo. Essa religião prega a doutrina da absoluta não-violência. É verdade que os jainistas acreditam em muitas coisas improváveis acerca do universo; mas não do tipo de coisas que acenderam as fogueiras da inquisição. Você provavelmente pensa que a Inquisição foi uma perversão do “verdadeiro” espírito do cristianismo. Talvez tenha sido. O problema, porém, é que os ensinamentos da Bíblia são tão confusos e contraditórios que foi possível para os cristãos queimar alegremente os heréticos nas fogueiras, durante cinco longos séculos. Inclusive foi possível para os mais venerados patriarcas da Igreja, como santo Agostinho e são Tomás de Aquino, concluir que os heréticos deviam ser torturados (santo Agostinho){3} ou mortos logo de uma vez (santo Tomás de Aquino).{4} Martinho Lutero e João Calvino defendiam o assassinato em massa de heréticos, apóstatas, judeus e feiticeiras.{5} Naturalmente, você é livre para interpretar a Bíblia de outra maneira — mas não é espantoso que você tenha conseguido discernir os verdadeiros ensinamentos do cristianismo, enquanto os mais influentes pensadores na história da religião cristã falharam nesse ponto? É claro que

muitos cristãos acreditam que uma pessoa inofensiva como Martin Luther King Jr. é o melhor exemplo da religião cristã. Mas isso apresenta um sério problema, pois a doutrina do jainismo é, objetivamente, uma orientarão melhor do que a doutrina do cristianismo para quem deseja ser como Martin Luther King Jr. Não há dúvida de que King se considerava um cristão devoto, mas ele assumiu seu compromisso com a não-violência basicamente a partir dos escritos de Mohandas K. Gandhi. Em 1959, King até viajou para a Índia a fim de aprender os princípios do protesto social nãoviolento diretamente com os discípulos de Gandhi. E com quem Gandhi, um hinduísta, aprendeu a doutrina da nãoviolência? Com os jainistas. Se você acredita que Jesus ensinou apenas a Regra de Ouro e o amor ao próximo, deve reler o Novo Testamento. Preste atenção especial à moralidade que ficará em evidência quando Jesus voltar à terra, deixando um rastro de nuvens de glória: Se, de fato, é justo para com Deus que ele dê em paga tribulação aos que vos atribulam [...] quando do céu se manifestar o Senhor Jesus com os anjos do seu poder, em chama de fogo, tomando vingança contra os que não conhecem a Deus e contra os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu poder. 2 Tessalonicenses I, 6-9 Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam. João 15, 6

Se levarmos em conta a metade das afirmações de Jesus, podemos facilmente justificar as ações de são Francisco de Assis ou Martin Luther King Jr. Levando em conta a outra metade, podemos justificar a Inquisição. Qualquer pessoa que acredite que a Bíblia oferece a melhor orientação possível em assuntos de moralidade tem ideias muito estranhas — ou sobre orientação, ou sobre moralidade. Ao avaliar a sabedoria moral da Bíblia, é útil considerar questões morais que já foram resolvidas para satisfação geral. Considere a questão da escravidão. Hoje, o mundo civilizado inteiro concorda que escravidão é uma abominação. Que instrução moral recebemos do Deus de Abraão a esse respeito? Consulte a Bíblia e você descobrirá que o criador do universo espera, claramente, que nós tenhamos escravos: Quanto aos escravos ou escravas que tiverdes, virão das nações ao vosso derredor; delas comprareis escravos e escravas. Também os comprareis dos filhos dos forasteiros que peregrinam entre vós, deles e das suas famílias que estiverem convosco, que nasceram na vossa terra; e vos serão por possessão. Deixá-losei por herança para vossos filhos depois de vós, para os haverem como possessão; perpetuamente os fareis servir, mas sobre vossos irmãos, os filhos de Israel, não vos assenhoreareis com tirania, um sobre os outros. Levítico 25, 44-46 A Bíblia também deixa claro que todo homem tem liberdade de vender sua filha como escrava sexual — apesar de que nesse caso se aplicam certas restrições sutis: Se um homem vender sua filha para ser escrava, esta não lhe sairá como saem os escravos. Se ela não agradar ao seu senhor, que se comprometeu a

desposá-la, ele terá de permitir-lhe o resgate; não poderá vendê-la a um povo estranho, pois será isso deslealdade para com ela. Mas, se a casar com seu filho, trata-la-á como se tratam as filhas. Se ele der ao filho outra mulher, não diminuirá o mantimento da primeira, nem os seus vestidos, nem os seus direitos conjugais. Se não lhe fizer estas três coisas, ela sairá sem retribuição, nem pagamento em dinheiro. Êxodo 21, 7-11 A única verdadeira restrição que Deus aconselha acerca da escravidão é que não devemos bater nos nossos escravos tão severamente a ponto de ferir seus olhos ou seus dentes (Êxodo 21, 26-27). Nem é preciso dizer que esse não é o tipo de orientação moral que conseguiu abolir a escravidão nos Estados Unidos. Em nenhum ponto do Novo Testamento Jesus faz objeção à prática da escravidão. São Paulo até exorta os escravos a servirem bem aos seus senhores — e especialmente bem aos seus senhores cristãos: Quanto a vós outros, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne com temor e tremor, na sinceridade do vosso coração, como a Cristo [...] servindo de boa vontade, como ao Senhor, e não como a homens. Efésios 6, 5-7 Todos os servos que estão debaixo de jugo considerem dignos de toda honra os próprios senhores, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados. Também os que têm senhores fiéis não os tratem com desrespeito, porque são irmãos; pelo contrário, trabalhem ainda mais, pois eles, que partilham do seu bom serviço, são crentes e

amados. Ensina e recomenda estas coisas. Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem mania por questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação, difamações, suspeitas malignas […] 1 Timóteo 6,1-4 Deve ficar bem claro a partir dessas passagens que, embora os abolicionistas do século XIX estivessem moralmente certos, estavam do lado perdedor da discussão teológica. Como disse o reverendo Richard Fuller em 1845, “Aquilo que Deus autorizou no Velho Testamento, e permitiu no Novo, não pode ser pecado”.{6} Aqui o bondoso reverendo pisava em terreno firme. Não há nada na teologia cristã que busque remediar as espantosas deficiências da Bíblia acerca dessa questão moral, talvez a maior — e a mais fácil — que nossa sociedade já teve de enfrentar. Em resposta, cristãos como você muitas vezes notam que também os abolicionistas obtiveram na Bíblia uma considerável inspiração. Claro que sim. Há milênios as pessoas escolhem a dedo determinadas passagens bíblicas para justificar cada um de seus impulsos, sejam morais ou não. Isso não significa, porém, que aceitar a Bíblia como a palavra de Deus seja a melhor maneira de descobrir que sequestrar e escravizar milhões de homens, mulheres e crianças inocentes é moralmente errado. Com certeza não é a melhor maneira de chegar a essa conclusão, em vista do que a Bíblia realmente diz sobre esse assunto. O fato de que alguns abolicionistas usaram certos trechos bíblicos para repudiar outros trechos não indica que a Bíblia seja um bom guia para a moralidade. Tampouco sugere que os seres humanos precisam consultar um livro para resolver questões morais desse tipo. No momento em que uma

pessoa reconhecer que escravos são seres humanos como ela própria, com a mesma capacidade de sentir o sofrimento e a felicidade, ela compreenderá que, obviamente, é crueldade possuí-los e tratá-los como se fossem equipamentos agrícolas. É notavelmente fácil para qualquer pessoa chegar a essa brilhante conclusão — e, contudo, ela teve de ser difundida a ponta de baioneta em todo o Sul dos Estados Unidos, entre os cristãos mais piedosos que este país já conheceu. Os Dez Mandamentos também merecem alguma reflexão nesse contexto, pois, ao que parece, a maioria dos americanos acredita que eles são indispensáveis, tanto do ponto de vista moral como do legal.{7} É verdade que a Constituição americana não contém nem uma única menção a Deus e que foi amplamente condenada, na época de sua elaborarão, por ser um documento não-religioso. Mesmo assim, muitos cristãos acreditam que nosso país foi fundado sobre “princípios judaico-cristãos”. É estranho, mas os Dez Mandamentos muitas vezes são citados como prova incontestável desse fato. Se a relevância desses mandamentos para a história dos Estados Unidos é questionável, nossa reverência por eles não é acidental. Afinal, essa é a única passagem bíblica tão profunda que o criador do universo sentiu necessidade de escrever fisicamente, ele próprio, gravando os mandamentos na pedra. Sendo assim, poderíamos esperar que estas fossem as frases mais grandiosas jamais escritas, sobre qualquer assunto, qualquer idioma. Aqui estão eles. Prepare-se... 1. Não terás outros deuses diante de mim. 2. Não farás para ti imagens esculpidas. 3. Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão. 4. Lembra-te do dia de sábado para santificá-lo. 5. Honra teu pai e tua mãe. 6. Não matarás. 7. Não cometerás adultério.

8. Não roubarás. 9. Não apresentarás falso testemunho contra o teu próximo. 10. Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a sua mulher, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo. Desses preceitos (Êxodo 20, 2-17), os primeiros quatro não tem nada a ver com a moral. Tal como são expressos, proíbem a prática de qualquer religião que não seja a judaico-cristã (como o hinduísmo), a maior parte da arte religiosa, o uso de expressões com a palavra “Deus” e a execução de todo e qualquer trabalho corriqueiro durante o sábado — tudo isso sob pena de morte. Podemos nos perguntar até que ponto esses preceitos são vitais para a manutenção da civilização. Os mandamentos de 5 a 9 de fato tratam da moral, embora não se saiba quantas pessoas já honraram seus pais ou se abstiveram de cometer assassinato, adultério, roubo ou perjúrio por causa desses preceitos. Admoestações desse tipo são encontradas em praticamente todas as culturas, em toda a história humana registrada. Não há nada de especialmente incisivo na maneira como são apresentadas na Bíblia. Existem razões biológicas óbvias pelas quais as pessoas tendem a tratar bem seus pais, e a fazer mau juízo dos assassinos, adúlteros, ladrões e mentirosos. É um fato científico que emoções morais — tais como o senso de justiça ou o horror à crueldade — precedem qualquer contato com as escrituras. De fato, estudos sobre o comportamento dos primatas revelam que essas emoções (em alguma forma) precedem a existência da própria humanidade. Todos os primatas, nossos primos, demonstram parcialidade para com sua própria família ou tribo, e de modo geral não toleram o assassinato e o roubo. Também não gostam, de modo geral, de trapaça nem de traição sexual. Os chimpanzés, em especial, demonstram

muitas das complexas preocupações sociais que esperaríamos ver em nossos parentes mais próximos no mundo natural. Assim, parece bastante improvável que o americano médio receba a instrução moral necessária ao ver esses preceitos inscritos no mármore sempre que entra em um tribunal. E o que devemos pensar do fato de que, ao encerrar seu tratado, o criador do nosso universo não conseguiu pensar em nenhuma preocupação humana mais premente e duradoura do que cobiçar escravos e animais domésticos? Se formos levar a sério o Deus da Bíblia, devemos admitir que Ele nunca nos dá a liberdade para seguir os mandamentos dos quais gostamos e negligenciar os demais. Ele tampouco nos diz que podemos relaxar nas penalidades que Ele impôs por desrespeitá-los. Se você acha que seria impossível melhorar os Dez Mandamentos como afirmação de moralidade, você realmente deveria fazer um favor a si mesmo e ler as escrituras de algumas religiões. Mais uma vez, não precisamos ir mais longe do que os jainistas; Mahavira, o patriarca jainista, superou a moralidade da Bíblia como uma única frase: “Não ferir, abusar, oprimir, escravizar, insultar, atormentar, torturar ou matar nenhuma criatura ou ser vivo”. imagine como o nosso mundo poderia ser diferente se a Bíblia contivesse essa frase como preceito central. Os cristãos abusaram, oprimiram, escravizaram, insultaram, atormentaram, torturaram e mataram pessoas em nome de Deus durante séculos, com base em uma leitura teologicamente defensável da Bíblia. É impossível se comportar dessa maneira aderindo aos princípios do jainismo. Como, então, você pode argumentar que a Bíblia oferece a expressão mais clara de moralidade que o mundo já viu?

A Verdadeira Moralidade Você acredita que, se a Bíblia não for aceita como a palavra de Deus, não pode haver um padrão universal de moralidade. Mas podemos facilmente pensar em fontes objetivas de ordem moral que não requerem a existência de um Deus legislador. Para que haja verdades morais objetivas que valha a pena conhecer, é necessário que haja apenas maneiras melhores e piores de buscar a felicidade neste mundo. Se existem leis psicológicas que governam o bem-estar humano, conhecer essas leis nos proporcionaria uma base duradoura para uma moralidade objetiva. É verdade que não temos nada que se assemelhe a uma compreensão final e científica da moralidade  humana; mas parece seguro dizer que estuprar e matar nosso próximo não estão entre seus elementos básicos. Tudo na experiência humana sugere que o amor conduz à felicidade mais do que o ódio. Essa é uma afirmação objetiva acerca da mente humana, da dinâmica das relações sociais e da ordem moral do nosso mundo. Sem dúvida é possível dizer que alguém como Hitler estava errado em termos morais, sem ser preciso nos referirmos às escrituras. Se sentir amor pelos outros é, com certeza, uma das maiores fontes da nossa própria felicidade, também acarreta uma preocuparão profunda pela felicidade e pelo sofrimento daqueles que amamos. Assim, nossa própria busca de felicidade nos dá um motivo fundamental para o auto-sacrifício e a abnegação. Não há dúvida de que existem ocasiões em que fazer enormes sacrifícios pelo bem dos outros é essencial para o nosso próprio bem-estar mais profundo. Não é necessário acreditar em nada, sem provas convincentes, para que as pessoas formem vínculos desse tipo. Em vários pontos dos evangelhos, Jesus nos diz

claramente que o amor pode transformar a vida humana. Para assimilar esses ensinamentos em nosso coração, não precisamos acreditar que ele nasceu de uma virgem, ou que ele voltará para a terra como um super-herói. Um dos efeitos mais perniciosos da religião é que ela tende a divorciar a moral da realidade do sofrimento dos seres humanos e dos animais. A religião permite que as pessoas imaginem que suas preocupações são morais quando não são — isto é, quando elas não têm nada a ver com o sofrimento ou com o alívio do sofrimento. De fato, a religião permite que as pessoas imaginem que suas preocupações são morais quando, na verdade, são altamente imorais — isto é, quando insistir nessas preocupações inflige um sofrimento atroz e necessário em seres humanos inocentes. Isso explica por que cristãos como você gastam mais energia “moral” fazendo oposição ao aborto do que lutando contra o genocídio. Explica porque você está mais preocupado com os embriões humanos do que com a possibilidade de salvar vidas, oferecida pela pesquisa com células-tronco. E explica por que você é capaz de pregar contra o uso da camisinha na África subsaariana, enquanto milhões de pessoas morrem de AIDS nessa região a cada ano. Você acredita que as suas preocupações religiosas a respeito de sexo, tão imensas e tão cansativas, têm algo a ver com a moralidade. E, contudo, seus esforços para reprimir o comportamento sexual de adultos que agem por livre e espontânea vontade — e até para desencorajar seus próprios filhos e filhas fazerem sexo antes do casamento — quase nunca se destinam ao alívio do sofrimento humano. Ao que parece, aliviar o sofrimento está bem lá embaixo na sua lista de prioridades. Pelo visto, a sua principal preocupação é que o criador do universo ficará ofendido com algo que as pessoas fazem quando estão nuas. E essa sua mentalidade pudica contribui, diariamente, para o excesso de infelicidade humana.

Considere, por exemplo, o papilomavírus humano (HPV, na sigla em inglês). O HPV é hoje a doença sexualmente transmissível mais comum nos Estados Unidos. Esse vírus infecta mais da metade da populacho americana, causando a morte de quase 5 mil mulheres a cada ano, de câncer cervical. O Centro para Controle de Doenças (Center for Disease Control — CDC) estima que mais de 200 mil mulheres morrem anualmente dessa doença no mundo inteiro. Hoje temos uma vacina para o HPV que parece ser segura e eficiente. A vacina produziu uma imunidade de 100% nas 6 mil mulheres que a receberam como parte de um teste clínico.{8} Contudo, os conservadores cristãos no governo americano opõem resistência ao programa de vacinação, alegando que o HPV é um impedimento valioso contra o sexo antes do casamento. Esses homens e mulheres piedosos desejam preservar o câncer cervical como incentivo para a abstinência sexual, embora ele tire a vida de milhares de mulheres a cada ano. Não há nada de errado em incentivar os adolescentes a se abster de sexo. Mas nós já sabemos, fora de qualquer dúvida, que apenas ensinar a abstinência não é uma boa maneira de reduzir a gravidez na adolescência nem a disseminação de doenças sexualmente transmissíveis. Na verdade, os adolescentes que só recebem lições de abstinência têm menos probabilidades de usar métodos anticoncepcionais quando fazem sexo — como muitos deles vão fazer, inevitavelmente. Um estudo descobriu que as “promessas de virgindade” promovidas pelo governo americano adiam o ato sexual por dezoito meses, em média — e que, durante esse período, esses adolescentes virgens têm mais probabilidade do que os demais de fazer sexo oral e anal.{9} Os adolescentes americanos fazem sexo tanto quanto os adolescentes do resto do mundo desenvolvido; mas as jovens americanas têm quatro a cinco vezes mais probabilidade de engravidar, dar à luz ou fazer aborto. Os jovens americanos também têm muito mais probabilidade de ser infectados pelo HIV e outras doenças sexualmente

transmissíveis. O índice de gonorreia entre adolescentes americanos é setenta vezes maior do que entre os adolescentes da Holanda e da Franca.{10} O fato de que 30% de nossos programas de educação sexual ensinam apenas a abstinência (a um custo anual de mais de 200 milhões de dólares) com certeza tem algo a ver com isso. O problema é que cristãos como você não estão preocupados com a gravidez adolescente e a disseminarão de doenças. Isto é, você não está preocupado com o sofrimento causado pelo sexo; você está preocupado com o sexo. E, como se este fato precisasse ainda mais de comprovação, o evangélico Reginald Finger, membro do Comitê Consultor de Práticas de Imunização do CDC, anunciou recentemente que pensa em se opor a uma vacina contra o HIV — condenando, assim, milhões de homens e mulheres a morrer de AIDS a cada ano, desnecessariamente —, já que tal vacina incentivaria o sexo antes do casamento, por torná-lo menos arriscado.{11} Este é um dos muitos aspectos em que suas crenças religiosas se tornam genuinamente letais. Seus escrúpulos acerca da pesquisa com células-tronco são igualmente obscenos. Aqui estão os fatos: a pesquisa com células tronco é um dos avanços mais promissores da medicina no último século. Pode oferecer avanços revolucionários no tratamento de todas as doenças e processos perniciosos que atingem o ser humano — pela simples razão de que as células-tronco dos embriões podem se transformar em qualquer tecido do corpo humano. Essa pesquisa também pode ser essencial para a nossa compreensão do câncer e de uma vasta gama de doenças do desenvolvimento. Em vista de tais fatos, é quase impossível exagerar as perspectivas promissoras dessa pesquisa. É verdade, claro, que a pesquisa com célulastronco embrionárias acarreta a destruição de embriões humanos de três dias de idade. É com isso que você se preocupa.

Vejamos os detalhes. Um embrião humano é um agrupamento de 150 células chamado blastocisto. Existem, para efeito de comparação, mais de 100 mil células no cérebro de uma mosca. Os embriões humanos que são destruídos nas pesquisas com células-tronco não têm cérebro, nem sequer neurônios. Assim, não há razão para acreditar que eles possam sentir qualquer tipo de sofrimento com a sua destruição, de maneira alguma. Nesse contexto, vale lembrar que, quando ocorre a morte cerebral, atualmente julgamos aceitável extrair os órgãos da pessoa (desde que ela os tenha doado para esse fim) e enterrá-la. Se é aceitável tratar uma pessoa cujo cérebro morreu como algo menos que um ser humano, deveria ser aceitável tratar do mesmo modo um blastocisto. Se você está preocupado com o sofrimento que ocorre neste universo, matar uma mosca deveria lhe apresentar dificuldades morais maiores do que matar um blastocisto humano. Talvez você ache que a diferença crucial entre uma mosca e um blastocisto humano está no potencial deste último de tornar se um ser humano plenamente desenvolvido. Mas, em vista dos nossos recentes avanços em engenharia genética, quase toda célula do corpo humano é um ser humano em potencial. Cada vez que você coça o nariz, já cometeu um holocausto de seres humanos em potencial. Isso é um fato. O argumento que fala do potencial das células não leva a absolutamente nada. Mas vamos admitir, por enquanto, que cada embrião humano de três dias de idade tenha uma alma merecedora da nossa preocupação moral. Os embriões nesse estágio por vezes se dividem, tornando-se duas pessoas separadas (gêmeos idênticos). Será que nesse caso uma só alma se dividiu em duas? Por outro lado, às vezes dois embriões se fundem em um único indivíduo, chamado “quimera” Talvez você, ou alguém que você conhece, tenha se desenvolvido dessa maneira. Não há dúvida de que em algum lugar,

neste momento, há teólogos se esforçando para decidir o que acontece com a alma humana em um caso assim. Será que já não é hora de reconhecermos que essa aritmética de almas não faz nenhum sentido? A ideia ingênua de que existem almas em uma placa de Petri é intelectualmente impossível de defender. É também moralmente indefensável, considerando-se que ela está obstruindo pesquisas entre as mais promissoras da história da medicina. As suas crenças a respeito da alma humana estão, neste exato momento, prolongando o sofrimento atroz de dezenas de milhões de seres humanos. Você acredita que “a vida começa no momento da concepção”. Você acredita que existem almas em cada um desses blastocistos e que os interesses de uma alma — digamos, a alma de uma menininha com queimaduras em 75% do corpo — não podem predominar sobre os interesses de outra alma, mesmo que essa alma viva dentro de um tubo de ensaio. Considerando todas as concessões que já fizemos para acomodar a irracionalidade baseada na fé no nosso discurso público, muitos afirmam — inclusive defensores da pesquisa com células-tronco — que a posição que você adota nesse assunto tem certo grau de legitimidade moral. Mas não tem. Sua resistência à pesquisa com células-tronco embrionárias é, na melhor das hipóteses, mal informada. Na verdade, não existe nenhuma razão moral para a má vontade do governo federal americano em financiar esse trabalho. Nós deveríamos investir recursos imensos em pesquisas com células-tronco, e deveríamos fazê-lo imediatamente. Mas, por causa das crenças de cristãos como você a respeito de almas, não estamos fazendo isso. Na verdade, vários estados americanos já tornaram essa pesquisa ilegal.{12} Em Dacota do Sul, por exemplo, quem fizer experiências com blastocistos se arrisca a passar anos na prisão.{13} A verdade moral aqui é óbvia: qualquer pessoa que creia que os interesses de um blastocisto podem prevalecer sobre

os interesses de uma criança com urna lesão na espinha dorsal está com seu senso moral cegado pela metafísica religiosa. O vínculo entre a religião e a “moral” — tão proclamado e tão poucas vezes demonstrado — fica aqui totalmente desmascarado, tal como acontece sempre que o dogma religioso prevalece sobre o raciocínio moral e a compaixão genuína.

Fazendo o Bem em Nome de Deus O que dizer de todas as coisas boas que são feitas em nome de Deus? É inegável que muitas pessoas de fé fazem sacrifícios heroicos para aliviar o sofrimento de outros seres humanos. Mas será que é necessário acreditar em qualquer coisa, sem ter provas suficientes, para agir dessa maneira? Se a compaixão realmente dependesse do dogmatismo religioso, como explicar o trabalho de médicos nãoreligiosos que atuam no mundo em desenvolvimento, nas regiões mais destroçadas pelas guerras? Há muitos médicos motivados simplesmente pelo desejo de aliviar o sofrimento humano, sem nenhum pensamento acerca de Deus. Não há dúvida de que missionários cristãos também são movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento humano; mas eles abordam essa tarefa carregando o pesado fardo de uma mitologia perigosa e causadora de desavenças. Os missionários no mundo em desenvolvimento desperdiçam muito tempo e dinheiro (sem falar na boa vontade dos nãocristãos) fazendo proselitismo com os necessitados; eles divulgam informações inexatas a respeito de métodos anticoncepcionais e doenças sexualmente transmissíveis, e se recusam a divulgar informações precisas. Se é verdade que os missionários fazem muitas coisas nobres, com grandes riscos para si mesmos, o fato é que seu dogmatismo dissemina a ignorância e a morte. Em contraste, voluntários de organizações seculares, como a Médicos Sem Fronteiras, não desperdiçam tempo algum falando com as pessoas sobre o nascimento virginal de Jesus. Tampouco dizem à população da África subsaariana — onde quase 4 milhões de pessoas morrem de AIDS a cada ano — que é pecado usar camisinha. Sabe-se de casos em que missionários cristãos pregaram que usar preservativo é

pecado, em localidades onde não há nenhuma outra informação acerca do assunto. Esse tipo de crença é genocida.{b} Também podemos nos perguntar, de passagem, o que é mais moral: ajudar as pessoas puramente pela preocuparão com o sofrimento delas, ou ajudá-las porque você acha que o criador do universo vai recompensá-lo por isso? Madre Teresa de Calcutá é um exemplo perfeito da maneira como uma boa pessoa, impelida a ajudar os outros, pode ter sua intuição moral perturbada pela fé religiosa. Christopher Hitchens expressa isso com sua característica franqueza: [Madre Teresa] não era a amiga dos pobres. Era amiga da pobreza. Ela afirmou que o sofrimento era um presente de Deus. Passou toda a sua vida se opondo à única cura conhecida para a pobreza, que é dar poder e emancipação às mulheres, para que elas saiam de uma situação de animais domésticos com reprodução compulsória.{14} Embora em essência eu concorde com Hitchens nesse ponto, não se pode negar que madre Teresa foi uma grande força pela compaixão. Sem dúvida foi motivada pelo sofrimento humano, e fez muita coisa para despertar outras pessoas para a realidade desse sofrimento. O problema, porém, é que a sua compaixão foi canalizada para o seu estreito dogmatismo religioso. Em seu discurso ao aceitar o prêmio Nobel, ela disse: O principal destruidor da paz é o aborto [...]. Muitas pessoas se preocupam muitíssimo com as crianças da índia, com as crianças da África, onde um grande número morre, talvez de desnutrição, de fome e assim por diante, mas milhões estão morrendo, deliberadamente, pela vontade de suas mães. E é esse o maior destruidor da paz hoje em dia. Pois, se uma mãe é capaz de matar o próprio filho, o que

impede que eu mate você e você me mate? Não há nenhum impedimento.{15} Como diagnóstico dos problemas do mundo, essas observações estão espantosamente equivocadas. Como afirmações de moral, não são melhores. A compaixão de madre Teresa estava muito mal calibrada, se matar um feto no primeiro trimestre a perturbava mais do que todo o sofrimento que ela testemunhou nesta Terra. É verdade que o aborto é uma feia realidade, e todos nós devemos ter esperança de que surjam avanços nos métodos anticoncepcionais, reduzindo a necessidade dessa prática; mesmo assim, é razoável duvidar de que a maioria dos fetos abortados sofra com sua destruição, em qualquer nível que seja. Contudo, essa dúvida não seria razoável quando se trata dos milhões de homens, mulheres e crianças que suportam os tormentos da guerra, da fome, da tortura política ou da doença mental. Neste exato momento, milhões de seres sensíveis à dor estão  sofrendo aflições físicas e mentais inimagináveis, em circunstancias em que não se vê em parte alguma a compaixão divina, e a compaixão humana é com bastante frequência prejudicada por ideias ridículas a respeito do pecado e da salvação. Se você se preocupa com o sofrimento humano, o aborto deveria ficar bem no fim da sua lista de preocupações. Enquanto o aborto continua sendo uma questão ridiculamente polêmica nos Estados Unidos, a posição “moral” da Igreja nesse assunto está hoje plenamente — e horrivelmente — encarnada em El Salvador. Nesse país, o aborto é hoje ilegal sob quaisquer circunstâncias. Não há exceções para o estupro ou o incesto. No momento em que uma mulher chega a um hospital com o útero perfurado, indicando que fez um aborto caseiro em algum beco, ela é algemada à cama do hospital e seu corpo é tratado como uma cena de crime. Médicos forenses chegam para examinar seu útero. Há mulheres hoje cumprindo penas de trinta anos de prisão pelo crime de interromper sua

gravidez.{16} Imagine tal cenário em um país que também estigmatiza o uso de anticoncepcionais e os vê como um pecado contra Deus. E, contudo, é exatamente esse tipo de política que adoraríamos se concordássemos com Madre Teresa em sua avaliação do sofrimento humano. De fato, o arcebispo de San Salvador fez uma campanha ativa nesse sentido. Ele foi auxiliado em seus esforços pelo papa João Paulo II, que declarou, em uma visita à Cidade do México em 1999, que “a Igreja precisa proclamar o evangelho da vida, e falar com força profética contra a cultura da morte. Possa o continente da esperança ser também o continente da vida!”. É claro que a posição da igreja a respeito do aborto não leva em conta os detalhes da biologia, assim como não leva em conta a realidade do sofrimento humano. Já foi estimado que 50% de todas as concepções humanas terminam em aborto espontâneo, em geral sem que a mulher sequer perceba que estava grávida. Na verdade, 20% de todos os casos de gravidez reconhecidos terminam em aborto espontâneo.{17} Existe aqui uma verdade óbvia e gritante: se Deus existe, ele é o mais prolífico de todos os praticantes de abortos.

Os Ateus São Maus? Se você tem razão ao acreditar que a fé religiosa oferece a única base real para a moralidade, então os ateus deveriam ser menos morais do que as pessoas de fé. Na verdade, os ateus deveriam ser totalmente imorais. Será que são mesmo? Será que os membros das organizações de ateus nos Estados Unidos cometem crimes violentos em proporção maior que a média? Será que os membros da Academia Nacional de Ciências, dos quais 93% não aceitam a ideia de Deus, mentem, enganam e roubam deslavadamente? Podemos estar razoavelmente seguros de que esses grupos se comportam pelo menos tão bem quanto a população em geral. E, contudo, os ateus são a minoria mais vilipendiada dos Estados Unidos. As pesquisas de opinião indicam que ser ateu é um impedimento perfeito para se candidatar a qualquer alto posto no nosso país (enquanto ser negro, muçulmano ou homossexual não é). Recentemente, multidões com milhares de pessoas se reuniram em todo o mundo muçulmano — queimando embaixadas europeias, fazendo ameaças, tomando reféns, até matando pessoas — em protesto contra doze caricaturas representando o profeta Maomé, publicadas em um jornal dinamarquês. Quando será que ocorreu o último levante dos ateus? Será que existe algum jornal neste planeta que hesitaria em publicar caricaturas sobre o ateísmo, temendo que seus editores fossem sequestrados ou assassinados em represália? Cristãos como você invariavelmente declaram que monstros como Adolf Hitler, Josef Stálin, Mao Tse-tung, Pol Pot e Kim Il Sung surgem do ventre do ateísmo. É verdade que tais homens por vezes são inimigos da religião organizada, mas nunca são muito racionais.{c} De fato, os pronunciamentos

públicos desses homens muitas vezes são totalmente delirantes, nos assuntos mais variados: raça, economia, identidade nacional, a marcha da história, os perigos morais do intelectualismo. O problema desses tiranos não é que eles rejeitam o dogma da religião, e sim que adotam outros mitos destruidores da vida. A maioria se torna o centro de um culto da personalidade quase religioso, que exige o uso contínuo da propaganda para se manter. Há uma diferença entre a propaganda e a disseminação honesta de informações que nós (em geral) esperamos de uma democracia liberal. Tiranos que organizam genocídios, ou que reinam alegremente enquanto seu povo morre de fome, também costumam ser homens profundamente idiossincráticos, e não defensores da razão. Kim Il Sung, por exemplo, exigia que suas camas, em suas diversas residências, fossem situadas exatamente a quinhentos metros acima do nível do mar. Seus acolchoados tinham de ser feitos com a penugem mais macia que se possa imaginar. E qual é a penugem mais macia que se possa imaginar? Segundo consta, ela vem do papo do pardal. Era necessário matar 700 mil pardais para encher um único acolchoado. Em vista da profundidade de suas preocupações esotéricas, podemos nos perguntar até que ponto Kim Il Sung era um homem movido pela razão. Veja o Holocausto: o antissemitismo que construiu os campos de morte dos nazistas foi herança direta do cristianismo medieval. Durante séculos os europeus cristãos tinham considerado os judeus a pior espécie de heréticos, e atribuído todos os males da sociedade à sua contínua presença entre os fiéis. Embora o ódio aos judeus na Alemanha se expressasse de maneira sobretudo secular, suas raízes eram religiosas, e a demonização explicitamente religiosa dos judeus da Europa foi contínua durante esse período. O próprio Vaticano perpetuou a calúnia de sangue em seus jornais até 1914.{d} E tanto a igreja católica como a protestante têm um passado vergonhoso de cumplicidade com O genocídio nazista.{18}

Auschwitz, os gulags soviéticos e os campos de morte do Camboja não são exemplos do que acontece quando as pessoas se tornam demasiado adeptas da razão. Ao contrário, esses horrores atestam os perigos do dogmatismo político e racial. Já é hora de cristãos como você pararem de fingir que uma rejeição racional da sua fé acarreta a adoção cega do ateísmo como dogma. Não é necessário aceitar nada sem ter provas suficientes para concluir que o nascimento virginal de Jesus é uma ideia absurda. O problema da religião — assim como do nazismo, do stalinismo ou de qualquer outra mitologia totalitária — é o problema do dogma em si. Não conheço nenhuma sociedade na história humana que jamais tenha sofrido porque seu povo passou a ansiar por provas concretas para suas crenças fundamentais. Embora você acredite que acabar com a religião é um objetivo impossível, é importante perceber que ele já foi alcançado por boa parte do mundo desenvolvido. Noruega, Islândia, Austrália, Canadá, Suécia, Suíça, Bélgica, Japão, Holanda, Dinamarca e o Reino Unido estão entre as sociedades menos religiosas da Terra. De acordo com o Relatório do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (2005), essas sociedades também são as mais saudáveis, segundo os indicadores de expectativa de vida, alfabetização, renda per capita, nível educacional, igualdade entre os sexos, taxa de homicídios e mortalidade infantil.{19} Até onde há um problema de crime na Europa ocidental ele é, sobretudo, produto da imigração. Na França, por exemplo, 70% dos detentos nas prisões são muçulmanos. Os muçulmanos da Europa ocidental em geral não são ateus. Inversamente, os cinquenta países que ocupam os lugares mais baixos, segundo o índice de desenvolvimento humano das Nações Unidas, são inabalavelmente religiosos. Outras análises pintam o mesmo quadro: os Estados Unidos é o único país, entre as democracias ricas, com alto nível de adesão à religião; e também o que mais sofre com altos

índices de homicídio, aborto, gravidez adolescente, doenças sexualmente transmissíveis e mortalidade infantil. A mesma comparação é verdadeira dentro do próprio país: os estados do Sul e do Meio-Oeste, caracterizados pelos mais altos níveis de literatismo religioso, são especialmente atingidos pelas disfunções sociais, segundo os indicadores acima, ao passo que os estados relativamente seculares do Nordeste do país têm uma situação semelhante à europeia.{20} Embora nos Estados Unidos a filiação a um partido político não seja um indicador perfeito de religiosidade, não é segredo que os estados “vermelhos” [republicanos] são vermelhos sobretudo devido à influência política {21} avassaladora dos cristãos conservadores. Se existisse uma forte correlação entre o conservadorismo cristão e a saúde da sociedade, poderíamos ver algum sinal disso nesses estados. Mas não vemos. Das 25 cidades americanas com os mais baixos índices de crimes violentos, 62% ficam em estados “azuis” [democratas] e 38% em estados “vermelhos”. Das 25 cidades mais perigosas, 76% ficam em estados vermelhos e 24% em estados azuis.{22} Aliás, três das cinco cidades mais perigosas dos Estados Unidos ficam no piedoso estado do Texas.{23} Os doze estados com os mais altos índices de assaltos a residências são vermelhos. Dos 29 estados com os mais altos índices de roubo, 24 são vermelhos. Dos 22 estados com os mais altos índices de assassinatos, dezessete são vermelhos.{24} É claro que correlações desse tipo não esclarecem questões de causalidade — a crença em Deus talvez leve à disfunção social; ou a disfunção social talvez estimule a crença em Deus; cada um desses fatores pode estimular o outro; ou talvez ambos derivem de algum fator nocivo mais profundo. Contudo, deixando de lado a questão de causa e efeito, essas estatísticas provam que o ateísmo é compatível com as aspirações básicas de uma sociedade civil; e também provam, de maneira conclusiva, que a crença generalizada em Deus não garante a saúde de uma sociedade.

Os países com altos níveis de ateísmo também são os mais caridosos, em termos da porcentagem de sua riqueza que dedicam a programas internos de bem estar social e ajuda aos países pobres.{25} A duvidosa relação entre os valores cristãos e a crença literal na Bíblia cristã é desmentida por outros índices de igualdade social. Considere a proporção entre a remuneração dos executivos de mais alto escalão e o salário médio pago aos funcionários das mesmas empresas: na Grã-Bretanha, é de 24:1; na Franca, 15:1; na Suécia, 13:1; e nos Estados Unidos, onde 80% da populacho espera ser chamada diante de Deus no Dia do Juízo Final, é de 475:1.{26} Pelo visto, parece que muitos camelos esperam passar com facilidade pelo buraco de uma agulha.

Quem Coloca a Bondade no Bom Livro?{e} Mesmo que a crença em Deus exercesse um efeito positivo confiável sobre o comportamento humano, isso não seria motivo para acreditar em Deus. Uma pessoa só pode crer em Deus se acreditar que Deus realmente existe. Mesmo que o ateísmo levasse diretamente ao caos moral, isso não indicaria que a doutrina do cristianismo é verdadeira. O islã poderia ser verdadeiro, nesse caso. Ou, talvez, todas as religiões poderiam agir como placebos. Como descrição do universo poderiam ser totalmente falsas, mas, mesmo assim, úteis. Contudo, as provas indicam que as religiões são não apenas falsas como também perigosas. Quando você fala nas boas consequências que as suas crenças exercem sobre a moral humana, está seguindo o exemplo dos religiosos liberais e moderados. Em vez de dizer que acreditam em Deus porque determinadas profecias bíblicas se realizaram, ou porque os milagres narrados nos evangelhos são convincentes, os liberais e moderados costumam falar nas boas consequências de se acreditar, tal como eles acreditam. Esses crentes muitas vezes dizem que acreditam em Deus porque isso “dá sentido às suas vidas”. Quando um tsunami matou centenas de milhares de pessoas no dia seguinte ao Natal de 2004, muitos cristãos conservadores viram nessa catástrofe uma prova da ira divina. Aparentemente, Deus estava enviando mais uma mensagem em código sobre os males do aborto, da idolatria e do homossexualismo. Embora eu considere essa interpretação dos acontecimentos absolutamente repugnante, ela tem, pelo menos, a virtude de ser razoável quando se assume um dado conjunto de hipóteses básicas. Os liberais e moderados, por outro lado, se recusam a tirar

qualquer conclusão que seja a respeito de Deus a partir das obras dele. Deus permanece um mistério absoluto, uma mera fonte de consolo que é compatível com todos os males, até os mais devastadores. Logo após o tsunami na Ásia, liberais e moderados admoestaram uns aos outros para que procurassem Deus “não no poder que moveu a onda, mas sim na resposta que a humanidade deu à onda”. {27} Creio que podemos concordar, provavelmente, que é a benevolência humana — e não a divina — que fica à mostra a cada vez que os corpos inchados mortos são trazidos do mar para serem enterrados. Se em um único dia mais de 100 mil crianças foram arrancadas dos braços de suas mães e afogadas com total displicência, a teologia liberal deve ser vista bem claramente, tal como ela é: a mais pura falsidade que um mortal possa conceber. A teologia da ira tem muito mais mérito intelectual. Se Deus existe e tem um interesse nos assuntos dos seres humanos, sua vontade não é inescrutável. Aqui a única coisa inescrutável é que tantos homens e mulheres, que em outros aspectos são racionais, conseguem negar o horror implacável desses acontecimentos e julgar que esse é o ápice da sabedoria moral. Assim como a maioria dos cristãos, você acredita que simples mortais como nós não podem rejeitar a moralidade da Bíblia. Não podemos dizer, por exemplo, que Deus estava errado quando afogou a maior parte da humanidade no dilúvio narrado no Gênesis, pois isso é apenas a maneira como as coisas parecem ser, a partir do nosso limitado ponto de vista. E, contudo, você se acha com capacidade de julgar que Jesus é o Filho de Deus, que a Regra de Ouro é o ápice da sabedoria moral e que a Bíblia não está transbordando de mentiras. Você usa a sua própria intuição moral para autenticar a sabedoria da Bíblia — e no entanto, no momento seguinte você afirma que nós, seres humanos, não podemos, de forma alguma, confiar na nossa própria intuição para nos guiar corretamente no mundo; em vez disso, temos de depender das prescrições da Bíblia. Ou seja,

você usa a sua própria intuição moral para concluir que a Bíblia é a garantia apropriada da sua intuição moral. Suas intuições continuam sendo primárias, e o seu raciocínio é circular. Nós decidimos o que é bom no “Bom Livro”. Lemos a Regra de Ouro e achamos que ela desfila, de maneira brilhante, muitos de nossos impulsos éticos. E, em seguida, encontramos mais um dos ensinamentos de Deus sobre a moral: se um homem descobrir, em sua noite de núpcias, que sua noiva não é virgem, ele deve levá-la até a soleira da porta do pai dela e apedrejá-la até a morte (Deuteronômio 22,13-21). Se somos civilizados, rejeitaremos isso como o ato mais lunático e mais vil que se possa imaginar. Mas para isso precisamos exercer nossa própria intuição moral. Acreditar que a Bíblia é a palavra de Deus não nos ajuda de maneira alguma. A escolha que temos pela frente é simples: podemos ter uma conversa do século XXI acerca da moral e do bem-estar humano — uma conversa na qual recorremos a todas as descobertas científicas e argumentos filosóficos acumulados nos últimos 2 mil anos de discurso humano — ou então podemos nos confinar a uma conversa do século I, tal como preservada na Bíblia. Por que alguém haveria de querer adotar a segunda opção?

A Bondade Divina Em algum lugar do mundo, um homem acaba de sequestrar uma garotinha. Logo mais ele vai estuprá-la, torturá-la e matá-la. Se uma atrocidade desse tipo não está ocorrendo neste exato momento, vai ocorrer dentro de poucas horas, ou no máximo de alguns dias. É essa certeza que podemos obter a partir das leis estatísticas que governam a vida de 6 bilhões de seres humanos. Essas mesmas estatísticas também sugerem que os pais dessa garotinha acreditam — tal como você acredita — que um Deus todo-poderoso e cheio de amor infinito está velando por eles e pela sua família. Eles estão certos ao acreditar nisso? É bom que eles acreditem nisso? Não. O ateísmo em sua totalidade está contido nessa resposta. O ateísmo não é uma filosofia; não é sequer uma visão do mundo; é simplesmente o reconhecimento do óbvio. Na verdade, ateísmo é um termo que nem deveria existir. Ninguém precisa se identificar como “não-astrólogo” ou “não-alquimista”. Não temos palavras para definir pessoas que duvidam de que Elvis Presley continua vivo, ou de que alienígenas atravessaram a galáxia só para incomodar fazendeiros e seu gado. O ateísmo nada mais é do que os ruídos que pessoas razoáveis fazem diante de crenças religiosas não justificadas. Um ateu é simplesmente uma pessoa que acredita que os 260 milhões de americanos (87% da população) que afirmam “nunca duvidar da existência de Deus” deveriam ser obrigados a apresentar as provas da existência dele — e, aliás, também da benevolência desse Deus, em vista da implacável destruição de seres humanos inocentes que testemunhamos neste mundo todos os dias. Um ateu é uma

pessoa que acredita que o assassinato de uma única menininha — mesmo que ocorra uma vez em 1 milhão de anos — lança dúvidas sobre a ideia da existência de um Deus benevolente. As provas de que Deus não protege a humanidade estão por toda parte. A cidade de Nova Orleans, por exemplo, foi recentemente destruída por um furacão. Mais de mil pessoas morreram; dezenas de milhares perderam tudo o que tinham; e quase 1 milhão se tornaram refugiadas. Podemos dizer com bastante segurança que quase todas as pessoas que moravam em Nova Orleans no momento em que o furacão Katrina as atingiu acreditavam, como você, em um Deus onipotente, onisciente e misericordioso. Mas o que estava Deus fazendo enquanto o Katrina devastava a cidade? Com certeza Ele ouviu as orações daqueles homens e mulheres idosos que fugiram da enchente buscando segurança no sótão de suas asas, e ali lentamente se afogaram. Eram gente de fé. Eram boas pessoas, que tinham orado durante toda a vida. Será que você tem coragem de reconhecer o óbvio? Essa pobre gente morreu falando com um amigo imaginário. É claro que houve numerosos alertas de que uma tempestade “de proporções bíblicas” atingiria Nova Orleans, e a resposta humana ao desastre que se seguiu foi de uma ineficiência trágica. Mas foi ineficiente apenas à luz da ciência. A religião não ofereceu absolutamente nenhuma base para uma ação. Os alertas que foram dados previamente, traçando a trajetória do Katrina, foram arrancados da muda Natureza por meio de cálculos meteorológicos e imagens de satélite. Deus não contou seus planos para ninguém. Se os moradores de Nova Orleans se contentassem em confiar na benevolência divina, não ficariam sabendo que um furacão assassino viria atacá-los, até sentirem as primeiras rajadas de vento no rosto. E, contudo, como não deve ser surpresa para você, uma pesquisa feita pelo The Washington Post descobriu que 80%

dos sobreviventes do Katrina afirmam que esse acontecimento só serviu para fortalecer sua fé em Deus. Enquanto o furacão Katrina devorava Nova Orleans, quase mil peregrinos xiitas foram pisoteados e mortos em uma ponte no Iraque. Esses peregrinos tinham uma fé poderosa no Deus do Corão. Suas vidas eram organizadas em torno do fato indiscutível da existência desse Deus; as mulheres usavam véus diante dele; os homens regularmente assassinavam uns aos outros devido a interpretações divergentes da palavra dele. Seria notável se um único sobrevivente dessa tragédia tivesse perdido a fé. O mais provável é que os sobreviventes imaginem que foram poupados pela graça divina. Já é hora de reconhecermos o ilimitado narcisismo e autoengano desses que foram salvos. Já é hora de reconhecermos que é uma verdadeira desgraça que os sobreviventes de uma catástrofe acreditem que foram poupados por um Deus amoroso, enquanto esse mesmo Deus afogava bebês em seus berços. Quando parar de revestir a realidade do sofrimento do mundo com fantasias religiosas, você sentirá até os ossos como a vida é preciosa — e que é uma grande infelicidade que milhões de seres humanos sofram tanto quando sua felicidade é abruptamente cortada, das maneiras mais horríveis, sem nenhum bom motivo. É de se pensar quão vasta e gratuita teria de ser uma catástrofe para abalar a fé das pessoas. O Holocausto não obteve esse efeito. Tampouco o genocídio em Ruanda — mesmo contando entre os assassinos padres católicos brandindo suas machadinhas. No século XX, nada menos que 500 milhões de pessoas morreram de varíola, em boa parte crianças. Os caminhos de Deus são, de fato, inescrutáveis. Parece que qualquer fato, por mais infeliz que seja, pode ser considerado compatível com a fé religiosa.

É

É claro que pessoas de todas as religiões sempre garantem umas às outras que Deus não é responsável pelo sofrimento humano. Mas, então, como compreender a afirmação de que Deus é, ao mesmo tempo, onisciente e onipotente? Esse é o problema antiquíssimo da teodiceia,{f} é claro, e devemos considerá-lo solucionado. Se Deus existe, ou Ele não pode fazer nada para impedir as mais terríveis calamidades, ou então Ele não tem interesse nisso. Portanto, ou Deus é impotente, ou então é mau. Você pode agora ser tentado a executar a seguinte pirueta: Deus não pode ser julgado pelos critérios humanos de moral. Mas já vimos que os critérios humanos de moral são exatamente aqueles que você utiliza para afirmar a bondade de Deus. E qualquer Deus que se preocupe com coisas tão triviais como o casamento gay, ou o nome pelo qual Ele deve ser chamado nas orações, não é tão inescrutável assim. Existe outra possibilidade, claro, que é ao mesmo tempo a mais razoável e a menos odiosa: o Deus bíblico é uma ficção, tal como Zeus e milhares de outros deuses mortos que maioria dos seres humanos mentalmente sãos hoje ignora. Você consegue provar que Zeus não existe? Claro que não. E, contudo, imagine se nós vivêssemos em uma sociedade em que as pessoas gastassem dezenas de bilhões de dólares de sua renda pessoal a cada ano a fim de propiciar os deuses no monte Olimpo, em que o governo gastasse outros bilhões tirados dos impostos dos cidadãos para sustentar instituições dedicadas a esses deuses, em que outros incontáveis bilhões em subsídios fiscais fossem doados para templos pagãos, em que as autoridades eleitas se esforçassem ao máximo para impedir pesquisas médicas por respeito à Ilíada e à Odisseia, e em que cada debate sobre políticas públicas fosse subvertido para satisfazer os caprichos de antigos autores que até escreviam bem, mas não conheciam o suficiente sobre a realidade nem para separar seus excrementos de sua comida. Isso seria uma aplicação horrivelmente equivocada dos nossos recursos materiais, morais e intelectuais. E, contudo, é exatamente É

essa a sociedade em que estamos vivendo. É este o mundo tristemente irracional que você e seus companheiros cristãos trabalham incansavelmente para criar. É terrível pensar que todos nós morremos e perdemos tudo que amamos; é duplamente terrível que tantos seres humanos sofram desnecessariamente enquanto estão vivos. O fato de que uma parte tão grande desse sofrimento pode ser atribuída diretamente à religião — aos ódios religiosos, às guerras religiosas, aos tabus religiosos, aos desvios religiosos de recursos escassos — é o que torna a crítica honesta da fé religiosa uma necessidade moral e intelectual. Infelizmente, expressar essa crítica coloca o não-crente nas margens da sociedade. Só por estar em contato com a realidade, ele parece vergonhosamente fora de contato com a vida fantasiosa de seus vizinhos.

O Poder da Profecia Costuma-se dizer que é razoável acreditar que a Bíblia é a palavra de Deus porque muitos acontecimentos narrados no Novo Testamento confirmam profecias do Velho Testamento. Mas faça esta pergunta a você mesmo: que dificuldade teriam os autores dos evangelhos em narrar a vida de Jesus de modo a fazê-la conformar-se às profecias do Velho Testamento? Não estaria dentro do poder de qualquer mortal escrever um livro que confirmasse as previsões de um livro anterior? E, de fato, sabemos com base nas evidências textuais que foi isso que fizeram os autores dos evangelhos.{28} Os autores dos livros de Lucas e de Mateus, por exemplo, declaram que Maria concebeu virgem, adorando a versão grega de Isaías 7,14. Contudo, o texto hebraico de Isaías usa a palavra “almá”, que significa simplesmente “uma jovem” sem nenhuma implicação de virgindade. Parece praticamente certo que o dogma do nascimento virginal, e boa parte da consequente ansiedade no mundo cristão a respeito do sexo, é produto de uma tradução errada do texto hebraico. Outro golpe contra a doutrina do nascimento virginal é que os outros dois evangelistas não ouviram falar a respeito. Tanto Marcos como João parecem constrangidos com as acusações da ilegitimidade de Jesus, mas nunca mencionam sua origem milagrosa. São Paulo afirma que Jesus “nasceu da semente de Davi, de acordo com a carne” e “foi nascido de mulher”, sem nenhuma referência à virgindade de Maria. Os evangelistas também cometeram outros erros em suas referências ao Velho Testamento. Mateus 27, 9-10, por exemplo, alega cumprir uma afirmação que atribui a Jeremias. Na verdade, essa afirmarão aparece em Zacarias

11,12-13. Os evangelhos também contradizem uns aos outros muitas vezes.{29} João nos diz que Jesus foi crucificado na véspera da ceia de Páscoa; Marcos diz que foi no dia seguinte. À luz de tais discrepâncias, como é possível que você acredite que a Bíblia é perfeita em todas as suas partes? O que você acha dos muçulmanos, mórmons e sikhs, que também ignoram contradições semelhantes em seus respectivos livros sagrados? Esses fiéis também dizem coisas como “O Espírito Santo só tem olhos para a substância e não é limitado pelas palavras” (Martinho Lutero). Será que isso torna você minimamente mais predisposto a aceitar as escrituras dessas outras religiões como a palavra perfeita do criador do universo? Os cristãos costumam afirmar que a Bíblia prevê eventos históricos futuros. Por exemplo, Deuteronômio 28, 64 diz: “O SENHOR vos espalhará entre todos os povos, de uma até a outra extremidade da terra”. Jesus diz, em Lucas 19, 43-44: “Pois sobre ti virão dias em que os teus inimigos te cercarão de trincheiras e, por todos os lados, te apertarão o cerco; e te arrasarão e aos teus filhos dentro de ti; não deixarão em ti pedra sobre pedra porque não reconheceste a oportunidade da tua visitação”. Segundo os cristãos, temos de acreditar que essas afirmações preveem a história subsequente dos judeus de uma maneira tão espantosa, tão específica, que só pode admitir uma explicação sobrenatural. Mas imagine como seria específica e impressionante uma obra de profecia, se fosse realmente produto da onisciência. Se a Bíblia fosse um livro assim, ela faria previsões perfeitamente exatas sobre os acontecimentos humanos. Poderíamos esperar que ela contivesse uma passagem tal como: “Na segunda metade do século XX, a humanidade vai desenvolver um sistema de computadores interligados globalmente — cujos princípios estabeleci no Levítico — e esse sistema será chamado internet”. A Bíblia não contém nada desse tipos Na verdade, ela não contém nem uma

única frase que não pudesse ser escrita por um homem ou mulher que vivesse no século I. Isso deveria perturbar você. Um livro escrito por um ser onisciente poderia conter, por exemplo, um capítulo sobre matemática que, depois de 2 mil anos de uso contínuo, ainda seria a mais rica fonte de sabedoria matemática que a humanidade já viu. Em vez disso, não há na Bíblia nenhuma discussão formal da matemática, e ela contém alguns erros matemáticos. Em dois lugares, por exemplo, o Bom Livro afirma que a proporção entre a circunferência de um círculo e o seu diâmetro é de 3:1 (1 Reis 7, 23-26 e 2 Crônicas 4, 2-5). Como aproximação da constante π (pi), não é nada impressionante. A expansão decimal de π vai até o infinito — 3,1415926535... —, e os computadores modernos hoje nos permitem calculá-la até qualquer grau de exatidão que possamos desejar. Mas tanto os egípcios como os babilônios aproximaram π em algumas casas decimais vários séculos antes que os livros mais antigos da Bíblia fossem escritos. A Bíblia nos oferece uma aproximação extremamente rudimentar, mesmo pelos padrões da Antiguidade. Como já podemos imaginar, os fiéis encontraram maneiras de racionalizar tudo isso; mas essas racionalizações não conseguem esconder as óbvias deficiências da Bíblia como fonte de conhecimentos matemáticos. É absolutamente verdadeiro dizer que se o matemático grego Arquimedes tivesse escrito as passagens relativas ao π em 1 Reis e 2 Crônicas, o texto apresentaria muito mais provas da “onisciência” do autor. Por que a Bíblia não diz nada sobre a eletricidade, ou sobre o DNA, ou sobre a verdadeira idade e extensão do universo? E o que dizer de uma cura para o câncer? Quando compreendermos plenamente a biologia do câncer, esses fatos serão facilmente resumidos em algumas páginas de texto. Por que essas páginas, ou algo remotamente parecido, não se encontram na Bíblia? Pessoas boas e piedosas estão neste exato momento morrendo de câncer,

sofrendo horrivelmente, e muitas delas são crianças. A Bíblia é um livro muito grande. Deus teve espaço suficiente para nos instruir em detalhes sobre a maneira de manter escravos e de sacrificar diversos animais. Para alguém que está fora da fé cristã, é espantoso como um livro pode ter um conteúdo tão trivial e, mesmo assim, ser considerado produto da onisciência.

O Choque entre Ciência e Religião Embora hoje seja uma necessidade moral para os cientistas falar honestamente sobre o conflito entre ciência e religião, até a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos declarou que esse conflito é ilusório: Na raiz do aparente conflito entre algumas religiões e a evolução está uma compreensão equivocada da diferença crítica entre o modo de conhecimento religioso e o científico. As religiões e a ciência respondem a perguntas diferentes sobre o mundo. Se existe um propósito no universo ou um propósito para a existência humana, essas não são perguntas para a ciência. O modo de conhecimento religioso e o científico representaram, e continuarão a representar, papéis significativos na história humana [...]. A ciência é uma maneira de conhecer o mundo natural. Ela se limita a explicar o mundo natural através de causas naturais. A ciência não pode dizer nada acerca do sobrenatural. Se Deus existe ou não é uma questão sobre a qual a ciência é neutra.{30} Esta afirmação é espantosa por sua falta de sinceridade. É claro que os cientistas vivem com um perpétuo medo de perder as verbas públicas, de modo que a Academia Nacional de Ciências talvez tenha expressado apenas seu puro terror da ira dos contribuintes. A verdade, porém, é que o conflito entre religião e ciência é inevitável. O sucesso da ciência muitas vezes vem às expensas do dogma religioso; a manutenção do dogma religioso sempre vem às expensas da ciência. Nossas religiões não se limitam simplesmente a falar sobre “o propósito da existência humana”. Tal como a ciência, cada religião faz afirmações específicas sobre o mundo. Essas afirmações alegam tratar

de fatos — o criador do universo pode ouvir (e ocasionalmente atender) suas preces; a alma entra no zigoto no momento da concepção; quem não acredita nas coisas certas a respeito de Deus vai passar por sofrimentos terríveis depois da morte. Essas afirmações estão intrinsecamente em conflito com as afirmações da ciência, pois são feitas a partir de provas terrivelmente insatisfatórias. No sentido mais amplo, a “ciência” (do latim scire, “saber”) representa os nossos melhores esforços para saber o que é verdade sobre o nosso mundo. Aqui não precisamos distinguir entre ciências "exatas" e "humanas", ou entre a ciência e um ramo das humanidades como a história. É um fato histórico, por exemplo, que os japoneses bombardearam Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941. Em consequência, este fato faz parte da visão de mundo adotada pela racionalidade científica. Em vista das abundantes provas que atestam tal fato, qualquer um que acredite que ele aconteceu em alguma outra data, ou que na verdade foram os egípcios que lançaram as bombas, precisaria dar muitas explicações. O cerne da ciência não são as experiências controladas, nem os modelos matemáticos; é a honestidade intelectual. Já é hora de reconhecermos uma característica básica do discurso humano: quando se considera a verdade de uma afirmação, ou a pessoa está empenhada em avaliar honestamente as provas e os argumentos lógicos, ou não está. A religião é a única área da nossa vida na qual as pessoas imaginam que se aplica algum outro padrão de integridade intelectual. Considere as recentes deliberações da igreja católica romana sobre a doutrina do limbo. Trinta teólogos de alto escalão do mundo todo se reuniram recentemente no Vaticano para discutir a questão do que acontece aos bebés que morrem sem ter passado pelo sagrado rito do batismo. Desde a Idade Média, os católicos acreditam que esses bebes vão para um estado de limbo, onde desfrutam para

todo o sempre do que são Tomás de Aquino denominou “felicidade natural”. Tal noção contrastava com as opiniões de santo Agostinho, que acreditava que essas infelizes almas infantis passariam a eternidade no inferno. Apesar de o limbo não ter nenhum fundamento real na escritura, e de nunca ter sido uma doutrina oficial da Igreja, há séculos vem sendo uma parte importante da tradição católica. Em 1905, o papa Pio X endossou-a plenamente: “As crianças que morrem sem batismo vão para o limbo, onde não desfrutam da presença de Deus, mas também não sofrem”. Agora as grandes mentes da Igreja se reuniram para reconsiderar o assunto. É possível conceber algum projeto que seja intelectualmente mais infeliz e inútil do que este? Imagine como devem ser essas deliberações. Será que existe a menor possibilidade de que alguém apresente provas indicando qual o destino eterno das crianças não balizadas após a morte? Como pode uma pessoa instruída julgar tal debate se não como uma hilária, aterrorizante e exorbitante perda de tempo? Quando se considera o fato de que essa mesma instituição produz e abriga um exército de elite de molestadores de crianças, todo esse empreendimento começa a exalar uma aura realmente diabólica de energia humana desperdiçada. O conflito entre ciência e religião pode reduzir-se a um simples fato da cognição e do discurso humano: ou uma pessoa tem bons motivos para acreditar naquilo que acredita, ou não tem. Se houvesse boas razões para acreditar que Jesus nasceu de uma mulher virgem, ou que Maomé voou para o céu em um cavalo alado, essas crenças necessariamente fariam parte da nossa descrição racional do universo. Todos reconhecem que confiar na "fé" para decidir sobre questões específicas de fatos históricos é ridículo — isto é, até que a conversa se volte para a origem de livros como a Bíblia e o Corão, a ressurreição de Jesus, as conversas de Maomé com o arcanjo Gabriel ou qualquer

outro dogma religioso. Já é hora de reconhecermos que a "fé" não é nada mais do que a licença que as pessoas religiosas dão umas às outras para continuar acreditando, quando não há razões para acreditar Embora acreditar firmemente em algo, sem ter provas, seja considerado um sinal de loucura ou estupidez em qualquer outra área de nossa vida, a fé em Deus continua mantendo imenso prestígio na nossa sociedade. A religião é a única área do nosso discurso na qual se considera nobre fingir ter certeza — certeza acerca de coisas das quais nenhum ser humano pode ter certeza. É significativo que essa aura de nobreza alcance apenas aquelas religiões que continuam tendo muitos adeptos. Qualquer pessoa que for surpreendida adorando Poseidon, mesmo no meio do oceano, será considerada insana.{g}

Os Fatos da Vida Todas as formas complexas de vida na Terra se desenvolveram a partir de formas de vida mais simples, ao longo de bilhões de anos. Este é um fato que não admite mais disputas inteligentes. Se você duvida de que o ser humano evoluiu a partir de espécies anteriores, também pode duvidar de que o Sol é uma estrela. É verdade que o Sol não parece uma estrela, mas nós sabemos que ele é uma estrela que, por acaso, está relativamente perto da Terra. Imagine como você ficaria envergonhado se sua fé religiosa dependesse da hipótese de que o Sol não é, de forma alguma, uma estrela. Imagine milhões de cristãos nos Estados Unidos gastando centenas de milhões de dólares a cada ano para combater os astrônomos e astrofísicos descrentes acerca deste ponto. Imagine como eles trabalhariam com fervor para conseguir que suas ideias acerca do Sol — ideias sem nenhum fundamento — fossem ensinadas nas escolas do nosso país. Pois é exatamente essa a situação em que você está agora no que se refere à evolução. Os cristãos que duvidam da Verdade da evolução costumam dizer coisas como “A evolução é apenas uma teoria, não um fato”. Tal afirmação revela uma séria falta de compreensão sobre a maneira como o termo “teoria” é usado no discurso científico. Na ciência, os fatos devem ser explicados com referência a outros fatos. Esses modelos explicativos mais amplos são “teorias” As teorias fazem previsões e podem, em princípio, ser testadas. A expressão “teoria da evolução” não sugere, de maneira nenhuma, que a evolução não é um fato. Pode-se falar na “teoria da origem microbiana das doenças” ou na “teoria da gravidade” sem lançar dúvidas sobre a doença ou a gravidade como fatos da natureza.

Também vale notar que é possível obter um doutorado em qualquer ramo da ciência com a única finalidade de fazer um uso cínico da linguagem científica, no esforço de racionalizar as gritantes deficiências da Bíblia. Parece que um punhado de cristãos já fez isso; alguns até conseguiram diplomas de universidades de prestígio. Sem dúvida, outros seguirão seus passos. Embora essas pessoas sejam, tecnicamente, “cientistas”, não estão se portando como cientistas. Elas simplesmente não estão empenhadas em uma pesquisa honesta sobre a natureza do universo. E as suas afirmações acerca de Deus e das falhas do darwinismo não significam, em absoluto, que haja uma polêmica científica legítima acerca da evolução. Em 2005 foi realizada uma pesquisa em 34 países, que mediu a porcentagem de adultos que aceitam a evolução. Os Estados Unidos ficaram na posição número 33, logo acima da Turquia. Enquanto isso, os estudantes secundaristas nos Estados Unidos se classificam abaixo dos estudantes de todos os países europeus e asiáticos em testes de compreensão de matemática e ciências.{31} Esses dados são inequívocos: estamos construindo uma civilização da ignorância. Eis aqui o que sabemos. Sabemos que o universo é muito mais antigo do que a Bíblia sugere. Sabemos que todos os organismos complexos que há na Terra, inclusive nós mesmos, evoluíram a partir de organismo, mais antigos ao longo de bilhões de anos. As provas são absolutamente esmagadoras. Não existe nenhuma dúvida de que a diversidade da vida que vemos ao nosso redor é a expressão de um código genético escrito na molécula do DNA, que o DNA passa por mutações aleatórias, e que algumas mutações aumentam as chances de um organismo sobreviver e se reproduzir num dado ambiente. Esse processo de mutação e seleção natural permitiu que populações isoladas de indivíduos se reproduzissem e, ao longo de vastas extensões de tempo, formassem novas espécies. Não há dúvida alguma de que os seres humanos evoluíram desta maneira a partir de ancestrais não-

humanos. Sabemos, a partir de evidências genéticas, que compartilhamos um ancestral comum com os símios e os macacos, e que esse ancestral, por sua vez, tinha um ancestral em comum com os morcegos e os lêmures voadores. Existe uma árvore da vida extremamente ramificada, cuja forma e caráter básicos são hoje muito bem compreendidos. Assim, não há nenhuma razão para acreditar que cada espécie foi criada em sua forma atual. De que modo começou o processo da evolução continua sendo um mistério, mas isso não indica, de forma alguma, que provavelmente existe alguma divindade à espreita por trás de tudo isso. Qualquer leitura honesta do relato bíblico da criarão sugere que Deus criou todos os animais e plantas tais como nós os vemos agora. Não há dúvida alguma de que a Bíblia está errada acerca disso. Muitos cristãos que desejam lançar dúvidas sobre a verdade da evolução agora defendem algo chamado "Design Inteligente" (DI), ou "Projeto Inteligente". O problema do DI é que ele não passa de um programa de defesa de ideias políticas e religiosas, disfarçado de ciência. Uma vez que a crença no Deus bíblico não encontra nenhuma sustentarão na nossa crescente compreensão científica do mundo, os teóricos do DI invariavelmente escoram suas afirmações nas áreas onde há ignorância científica. A argumentação a favor do DI prossegue em muitas frentes ao mesmo tempo. Tal como incontáveis teístas que vieram antes, os adeptos do DI costumam argumentar que o próprio fato de que o universo existe prova a existência de Deus. Esse argumento se desenvolve mais ou menos assim: tudo o que existe tem uma causa; o espaço e o tempo existem; portanto, o espaço e o tempo devem ter sido causados por alguma coisa que fica fora do espaço e do tempo; e a única coisa que transcende o espaço e o tempo, e, contudo, mantém o poder de criar, é Deus. Muitos cristãos como você acham esse argumento convincente. No entanto, mesmo que concordemos com as afirmações

básicas desse argumento (cada uma das quais exige muito mais discussão do que os teóricos do DI reconhecem), a conclusão final não se segue logicamente. Quem pode dizer que a única coisa capaz de fazer surgir o espaço e o tempo é um ser supremo? Mesmo que aceitássemos que o nosso universo simplesmente tinha de ser projetado por um “projetista”, isso não indicaria que esse projetista é o Deus bíblico, nem que Ele aprova o cristianismo. Se nosso universo foi criado por um projeto inteligente, talvez ele esteja sendo executado como uma simulação em um supercomputador alienígena. Ou talvez seja obra de um Deus malvado, ou ainda de dois deuses malvados, jogando cabo-de-guerra em um cosmos ainda maior. Como muitos críticos da religião já notaram, a noção de um criador coloca um problema imediato de regressão infinita. Se Deus criou o universo, o que criou Deus? Dizer que Deus, por definição, não foi criado, é simplesmente esquivar-se da questão. Qualquer ser capaz de criar um mundo complexo deve ser, ele próprio, muito complexo. Como o biólogo Richard Dawkins já observou repetidas vezes, o único processo natural conhecido que já conseguiu produzir um ser capaz de projetar coisas é a evolução. A verdade é que ninguém sabe como ou por que o universo começou a existir. Nem sequer é claro se podemos falar com coerência sobre a criação do universo, já que tal fato só pode ser concebido com referência ao tempo, e aqui estamos falando sobre o nascimento do próprio espaçotempo.{h} Qualquer pessoa dotada de honestidade intelectual vai reconhecer que não sabe por que o universo existe. Os cientistas, é claro, reconhecem prontamente sua ignorância sobre esse ponto. Não é o que fazem os crentes religiosos. Uma das monumentais ironias do discurso religioso aparece na frequência com que as pessoas de fé elogiam a si mesmas por sua humildade, ao mesmo tempo que condenam os cientistas e outros não-crentes por sua arrogância intelectual. Na verdade, não existe uma visão do

mundo mais repreensível em sua arrogância do que a visão de um crente religioso: o criador do universo se interessa por mim, me aprova, me ama e vai me recompensar depois da minha morte. Minhas crenças atuais, vindas das escrituras, continuarão sendo a melhor expressão da verdade até o fim do mundo; todos os quê discordam de mim passarão a eternidade no inferno... Um cristão médio, numa igreja média, ouvindo um sermão dominical médio, chega a um nível de arrogância simplesmente inimaginável no discurso científico — mesmo considerando que houve alguns cientistas extremamente arrogantes. Mais de 99% das espécies que já caminharam, voaram ou se arrastaram sobre este planeta hoje estão extintas. Só esse fato já exclui o design inteligente. Quando olhamos o mundo natural, vemos uma complexidade extraordinária, mas não vemos um design perfeito ou mais vantajoso. O que vemos são redundâncias, regressões e complicações desnecessárias; vemos ineficiências espantosas, que resultam em sofrimento e morte. Vemos aves que não voam e cobras que têm pélvis. Vemos espécies de peixes, salamandras e crustáceos que têm olhos não-funcionais, porque continuaram a evoluir na escuridão durante milhões de anos. Vemos baleias que produzem dentes durante o desenvolvimento fetal, mas os reabsorvem na idade adulta. Tais características do nosso mundo são totalmente misteriosas se Deus criou todas as espécies de vida na terra de maneira “inteligente”; nenhuma delas nos deixa perplexos à luz da evolução. Conta-se que o biólogo J. B. S. Haldane disse que, se existe um Deus, “Ele tem uma predileção extraordinária pelos besouros”. Seria de se esperar que uma observação tão devastadora já tivesse encerrado o argumento do criacionismo para todo o sempre. Mas a verdade é que, embora haja cerca de 350 mil espécies conhecidas de besouros, parece que Deus tem uma predileção ainda maior pelos vírus. Os biólogos avaliam que existem pelo menos

dez cepas de vírus para cada espécie animal da Terra. Muitos vírus são benignos claro, e alguns vírus antigos talvez tenham desempenhado um papel importante no surgimento de organismos complexos. Só que os vírus usam organismos como eu e você como seus órgãos reprodutivos. Muitos deles invadem nossas células para destruí-las e, nesse processo, nos destroem — de maneira horrível, implacável e sem tréguas. Vírus como o HIV, assim como um amplo espectro de bactérias nocivas, podem ser vistos em seu processo de evolução bem debaixo do nosso nariz, desenvolvendo resistência às drogas antivirais e antibióticos, para prejuízo de todos nós. A evolução prevê e explica esse fenômeno; já o livro do Gênesis, não. Como você pode imaginar que a fé religiosa oferece a melhor explicação dessas realidades, ou que estas indicam algum propósito mais profundo e misericordioso de um ser onisciente? Nosso próprio corpo é testemunha dos caprichos e incompetências do criador. Na nossa fase de embriões, produzimos cauda, guelras e toda uma pelagem semelhante à dos macacos. Felizmente, a maioria de nós perde esses encantadores acessórios antes de nascer. Essa bizarra sequência morfológica é facilmente interpretada em termos evolucionários e genéticos; se somos produto do design inteligente, é um mistério total. Outro exemplo: os homens têm um canal urinário que corre diretamente através da próstata, e essa glândula tende a inchar durante toda a vida. Assim a maioria dos homens com mais de sessenta anos pode atestar que pelo menos um design, nesta verdejante terra de Deus deixa muito a desejar. A pélvis da mulher também não foi projetada com tanta inteligência como poderia ter sido para facilitar o milagre do nascimento. Assim, a cada ano centenas de milhares de mulheres sofrem com um trabalho de parto prolongado e difícil, resultando causando uma ruptura conhecida como fístula obstétrica. No mundo em desenvolvimento, as vítimas dessa doença passam a sofrer de incontinência

urinária, e com frequência são abandonadas pelo marido e expulsas de sua comunidade. O Fundo Populacional das Nações Unidas avalia que mais de 2 milhões de mulheres sofrem de fístula nos nossos dias.{i} Os exemplos de design não-inteligente na natureza são tão numerosos que se poderia escrever um livro inteiro apenas fazendo uma lista deles. Vou me permitir citar apenas mais um exemplo. O aparelho respiratório e o aparelho digestivo do ser humano se encontram na faringe, onde compartilham uma pequena parte das suas tubulações. Só nos Estados Unidos, esse design “inteligente” manda dezenas de milhares de crianças para o pronto-socorro todos os anos. Centenas morrem asfixiadas ao engasgar, e muitas outras sofrem danos cerebrais irreparáveis. Isso serve para qual finalidade misericordiosa? É claro que podemos imaginar um propósito misericordioso: talvez os pais dessas crianças precisem aprender uma lição; ou quem sabe Deus preparou uma recompensa especial no céu para cada criança que morre asfixiada com uma tampinha de garrafa. O problema, porém, é que essas explicações imaginárias são compatíveis com qualquer estado em que o mundo se encontre. Qual horrenda tragédia um poderia ser racionalizada dessa forma? E por que você se inclinaria a pensar assim? De que modo essa linha de pensamento é moral?

Religião, Violência e o Futuro da Civilização Bilhões de pessoas acreditam, como você, que o criador do universo escreveu (ou ditou) um dos nossos livros. Infelizmente, há muitos livros que alegam ter autoria divina, e fazem afirmações incompatíveis entre si acerca de como nós todos devemos viver. Doutrinas religiosas rivais fragmentaram o nosso mundo em comunidades morais separadas, e essas divisões se tornaram uma causa incessante de conflitos humanos. Em resposta a essa situação, muitas pessoas sensatas defendem algo chamado tolerância religiosa. Não há dúvida de que a tolerância religiosa é melhor do que a guerra religiosa, mas ela não deixa de ter seus problemas. Nosso medo de provocar o ódio religioso nos faz relutar, e assim, deixamos de criticar ideias que são cada vez mais mal adaptadas à realidade e obviamente ridículas. Esse medo também nos obriga a mentir para nós mesmos — repetidas vezes e nos níveis mais elevados do discurso — sobre a compatibilidade entre a fé religiosa e a racionalidade científica. Nossas certezas religiosas, todas rivais umas das outras, estão impedindo o surgimento de uma civilização global viável. A fé religiosa — a fé na existência de um Deus que se importa com o nome pelo qual é chamado, a fé que proclama que Jesus está voltando para a Terra, ou que os mártires muçulmanos vão direro para o Paraíso — está do lado de uma guerra de ideias, hoje em plena escalada. A religião agrava e exacerba os conflitos humanos muito mais do que o tribalismo, o racismo ou a política jamais poderiam fazer. É uma das formas de pensamento que dividem as pessoas entre os de dentro e os de fora do

grupo; mas é a única que coloca essa diferença em termos de recompensa eterna ou punição eterna. Uma das patologias duradouras da cultura humana é a tendência a criar os filhos ensinando-os a temer e demonizar outros seres humanos com base na fé religiosa. Em consequência, a fé inspira a violência de duas maneiras, pelo menos. Primeiro, as pessoas muitas vezes matam outros seres humanos porque acreditam que o criador do universo deseja que elas façam isso. O terrorismo islâmico é um exemplo recente desse tipo de comportamento. Segundo, pessoas em número muito maior ainda entram em conflito umas com as outras porque definem sua comunidade moral com base em sua filiação religiosa: os muçulmanos tomam partido de outros muçulmanos, os protestantes de outros protestantes, os católicos de outros católicos. Esses conflitos nem sempre são explicitamente religiosos. Mas o sectarismo, a intolerância e o ódio que separam uma comunidade da outra muitas vezes são produto de suas identidades religiosas. Assim, muitos conflitos que parecem motivados apenas por preocupações territoriais são profundamente enraizados na religião. Vemos exemplos recentes nas lutas que hoje atormentam a Palestina (judeus contra muçulmanos), os Bálcãs (sérvios ortodoxos contra croatas católicos; sérvios ortodoxos contra muçulmanos bósnios e albaneses), Irlanda do Norte (protestantes contra católicos), Caxemira (muçulmanos contra hindus), Sudão (muçulmanos contra cristãos e animistas),{j} Nigéria (muçulmanos contra cristãos), Etiópia e Eritreia (muçulmanos contra cristãos), Costa do Marfim (muçulmanos contra cristãos), Sri Lanka (cingaleses budistas contra tameis hinduístas), Filipinas (muçulmanos contra cristãos), Irã e Iraque (muçulmanos xiitas contra muçulmanos sunitas) e o Cáucaso (russos ortodoxos contra muçulmanos chechenos; muçulmanos do Azerbaidjão contra armênios católicos e armênios ortodoxos). E, contudo, embora as divisões religiosas do nosso mundo sejam claras e evidentes, muitos continuam imaginando

que os conflitos religiosos são sempre causados pela falta de instrução, pela pobreza ou pela política. A maioria dos não-crentes, liberais e moderados parece não acreditar que realmente existem pessoas que sacrificam sua vida, ou a vida dos outros, devido às suas crenças religiosas. Eles não sabem qual é a sensação de ter certeza da existência do Paraíso; assim, não conseguem acreditar que alguém de fato tenha certeza da existência do Paraíso. Vale a pena lembrar que os sequestradores dos aviões de 11 de Setembro de 2001 eram homens de classe média e educação universitária, que não tinham nenhuma experiência de opressão política. Contudo, passavam um tempo enorme em sua mesquita, falando sobre a depravação dos infiéis e sobre os prazeres que aguardam os mártires no Paraíso. Quantos arquitetos e engenheiros ainda precisam se chocar contra edifícios a seiscentos quilômetros por hora até que reconhecemos, para nós mesmos, que a violência da jihad não é apenas questão de educação, pobreza ou política? A verdade, a espantosa verdade, é a seguinte: em pleno ano de 2006, uma pessoa pode ter recursos intelectuais e materiais suficientes para construir uma bomba nuclear, e mesmo assim continuar acreditando que vai ganhar 72 virgens como prêmio no Paraíso. Aqui no Ocidente os secularistas, liberais e moderados estão demorando muito para compreender esse fato. A causa da sua confusão é simples: eles não sabem o que é acreditar, realmente, em Deus. Vamos considerar brevemente aonde as nossas certezas religiosas divergentes estão nos levando, em uma escala global. A Terra hoje abriga cerca de 1,4 bilhão de muçulmanos, muitos dos quais acreditam que algum dia eu e você vamos ou nos converter ao islamismo, ou viver subjugados a um califado muçulmano, ou então ser condenados à morte pela nossa descrença. O islã é hoje a religião que mais cresce na Europa. A taxa de natalidade dos muçulmanos europeus é três vezes maior do que a de seus vizinhos não-muçulmanos. Se continuarem as

tendências atuais, a França será um pais de maioria muçulmana dentro de 25 anos — isso, se a imigração parasse amanhã. Em toda a Europa, muitas comunidades muçulmanas se mostram pouco inclinadas a adquirir os valores seculares e cívicos dos países que as recebem; e, contudo, elas exploram esses valores ao máximo, exigindo tolerância para a sua misoginia, seu antissemitismo e o ódio religioso constantemente pregado em suas mesquitas. Casamentos forçados, assassinatos em nome da honra, estupros coletivos realizados como punição e um ódio homicida aos homossexuais hoje são realidades de uma Europa que em outros aspectos é secular, por obra e graça do islã.{k} A mentalidade “politicamente correta” e o medo do racismo fazem com que muitos europeus relutem em se opor aos aterrorizantes princípios religiosos dos extremistas em seu meio. Com poucas exceções, as únicas figuras públicas que tiveram a coragem de falar honestamente sobre a ameaça que o islã hoje apresenta para a sociedade europeia parecem ser fascistas. Isso não é um bom prenúncio para o futuro da civilização. A ideia de que o islã é uma "religião de paz que foi dominada por extremistas" é uma fantasia — e agora uma fantasia especialmente perigosa. Não é claro, de modo algum, de que forma devemos agir em nosso diálogo com o mundo muçulmano, mas tentar iludir a nós mesmos com eufemismos não é a resposta. Hoje é um truísmo nos círculos de política externa que uma verdadeira reforma do mundo muçulmano não pode ser imposta de fora. Mas é importante reconhecer por que isso é assim — isso é assim porque muitos muçulmanos estão totalmente ensandecidos pela sua fé religiosa. Os muçulmanos tendem a encarar as questões de política pública e conflitos globais em termos da sua filiação ao islã. E os muçulmanos que não enxergam o mundo nesses termos se arriscam a ser tachados de apóstatas e assassinados por outros muçulmanos.

Mas como podemos ter esperança de dialogar racionalmente com o mundo muçulmano se nós mesmos não somos racionais? Não leva a nada simplesmente declarar que "todos nós adoramos o mesmo Deus" Todos nós não adoramos o mesmo Deus, e nada atesta esse fato com tanta eloquência como nossa longa história de derramamento de sangue devido à religião. Mesmo dentro do islã, xiitas e sunitas não conseguem sequer concordar em adorar o mesmo Deus da mesma maneira, e por causa disso matam uns aos outros há séculos. Parece profundamente improvável que consigamos curar as divisões no nosso mundo através do diálogo inter-religioso. Os muçulmanos devotos estão convencidos — tanto quanto você — de que a religião deles é perfeita e que qualquer desvio leva diretamente ao inferno. É fácil, claro, para os representantes das principais religiões se reunirem ocasionalmente e concordarem que deveria haver paz na terra, ou que a compaixão é o fio que une todas as religiões do mundo. Mas não há como escapar do fato de que as crenças religiosas de uma pessoa determinam, de modo único, suas opiniões sobre a utilidade da paz, ou sobre o significado de um termo como "compaixão". Há milhões — talvez centenas de milhões — de muçulmanos que estariam dispostos a morrer para não permitir que a versão de compaixão adorada por você ganhe terreno na península Arábica. Como pode o diálogo inter-religioso, mesmo no nível mais elevado, reconciliar visões de mundo que são fundamentalmente incompatíveis e, por princípio, imunes a revisões? A verdade é que realmente tem muita importância saber no que acreditam bilhões de seres humanos, e por que eles acreditam nisso.

Conclusão Um dos maiores desafios da civilização no século XXI é que os seres humanos aprendam a falar sobre suas preocupações pessoais mais profundas — sobre a ética, a experiência espiritual e a inevitabilidade do sofrimento humano — de maneiras que não sejam flagrantemente irracionais. Precisamos desesperadamente de um discurso público que incentive o pensamento crítico e a honestidade intelectual. Nada obstrui mais esse projeto do que o respeito que concedemos à fé religiosa. Eu seria o primeiro reconhecer que as perspectivas de erradicar a religião na nossa época não parecem boas. Contudo, o mesmo poderia ser dito sobre os esforços para abolir a escravidão no final do século XVIII. Qualquer um que falasse com convicção em erradicar a escravidão nos Estados Unidos no ano de 1775 decerto pareceria estar desperdiçando seu tempo, e também correndo perigo. A analogia não é perfeita, mas é sugestiva. Se algum dia chegarmos a transcender nossa confusão religiosa, lembraremos deste período da história humana com horror e espanto. Como foi possível que as pessoas acreditassem em coisas assim em pleno século XXI? Como foi possível que deixassem suas sociedades se tornarem tão perigosamente fragmentadas por ideias vazias acerca de Deus e do Paraíso? A verdade é que algumas das crenças que você mais acalenta são tão constrangedoras quanto aquelas que enviaram o último navio negreiro para a América no ano de 1859 (o mesmo ano em que Darwin publicou A origem das espécies).

Está bem claro que já é hora de aprendermos a satisfazer nossas necessidades emocionais sem adorar crenças absurdas e ilógicas. Precisamos encontrar maneiras de invocar o poder do ritual e de marcar as transições em cada vida humana que exigem profundidade — o nascimento, o casamento, a morte — sem mentir para nós mesmos a respeito da realidade. Só então o costume de criar nossos filhos para que acreditem que são cristãos, muçulmanos ou judeus será considerado como aquilo que ele realmente é: uma prática obscena e ridícula. E só então teremos chance de curar as fraturas mais profundas e mais perigosas do nosso mundo. Não tenho dúvidas de que sua aceitação de Cristo coincidiu com algumas mudanças muito positivas na sua vida. Talvez você agora ame as outras pessoas de uma maneira que nunca imaginou ser possível. Você pode até experimentar sentimentos de bem-aventurança enquanto reza. Não desejo denegrir nenhuma dessas experiências. Gostaria de observar, porém, que bilhões de outros seres humanos, em todas as épocas e lugares, tiveram experiências semelhantes — mas enquanto pensavam em Krishna, Alá ou Buda, ou enquanto faziam arte ou música, ou contemplavam a beleza da natureza. Não há dúvida de que as pessoas podem passar por experiências profundamente transformadores. E não há dúvida de que elas podem interpretar erradamente essas experiências, e iludir-se mais ainda acerca da natureza da realidade. Você tem razão, é claro, ao acreditar que existe algo mais na vida do que simplesmente compreender a estrutura e o conteúdo do universo. Mas isso não torna mais respeitáveis as afirmações injustificadas (e injustificáveis) acerca dessa estrutura e desse conteúdo. É importante perceber que a distinção entre ciência e religião não implica excluir nossas intuições éticas e nossas experiências espirituais da nossa conversa sobre o mundo; implica sermos honestos sobre o que podemos

sensatamente concluir a partir delas. Há boas razões para acreditar que pessoas como Jesus e Buda não estavam dizendo bobagens quando falaram sobre nossa capacidade, como seres humanos, de transformar nossa vida de maneiras raras e belas. Mas qualquer investigação genuína da ética ou da vida contemplativa exige o mesmo nível de sensatez e autocrítica que anima todo discurso intelectual. Como fenômeno biológico, a religião é produto de processos cognitivos que têm profundas raízes no nosso passado evolucionário. Alguns pesquisadores já especularam que a religião pode ter desempenhado um papel importante ao fazer com que grandes grupos de seres humanos préhistóricos adquirissem uma coesão social. Se isso é verdade, podemos dizer que a religião já serviu a um propósito importante. Isso não indica, porém, que ela sirva a um propósito importante hoje. Afinal, não existe nada mais natural do que o estupro. Mas ninguém haveria de argumentar que o estupro é bom, ou compatível com uma sociedade civilizada, porque talvez tenha dado vantagens evolucionárias aos nossos antepassados. O fato de que a religião pode nos ter servido para alguma função necessária no passado não exclui a possibilidade de que hoje ela seja o maior impedimento para a construção de uma civilizarão global. Esta carta é o produto do fracasso — o fracasso dos numerosos e brilhantes ataques à religião que vieram antes, o fracasso das nossas escolas em anunciar a morte de Deus de um modo que cada nova geração possa compreendê-la, o fracasso da mídia em criticar as abjetas certezas religiosas das nossas figuras públicas, fracassos grandes e pequenos que vêm mantendo quase todas as sociedades deste planeta imersas nas suas confusões mentais acerca de Deus e desprezando todos os que tem confusões diferentes. Não-crentes como eu se postam junto a você, mudos de espanto diante das hordas muçulmanas que gritam slogans pedindo a morte para países inteiros, habitados por pessoas

vivas. Mas também nos postamos mudos de espanto diante de você — pela maneira como você nega a realidade tangível, pelo sofrimento que cria ao servir aos seus mitos religiosos e pelo seu apego a um Deus imaginário. Esta carta foi uma manifestação desse espanto — e, talvez, de um pouquinho de esperança.

Dez livros que recomendo 1. Deus, um delírio, de Richard Dawkins 2. Quebrando o encanto: A religião como fenômeno natural, de Daniel C. Dennett 3. O que Jesus disse? O que Jesus não disse?: Quem mudou a Bíblia e por quê, de Bart D. Ehrman 4. Kingdom coming: The rise of Christian nationalism, de Michelle Goldberg 5. The end of days, de Gershom Gorenberg 6. Freethinkers: A history of American secularism, de Susan Jacoby 7. Ilusões populares e a loucura das massas, de Charles Mackay 8. “Por que não sou cristão” e outros ensaios sobre religião e assuntos correlatos, de Bertrand Russell 9. God, the Devil, and Darwin, de Niall Shanks 10. Atheism: The case against God, de George H. Smith

{1} Não faltam dados de pesquisas de opinião que atestam como é profundo e real o sentimento religioso dos americanos. PEW (www.people-press.org) e Gallup (www.gallup.com) continuam sendo excelentes fontes para essas informações. {2} www.editorandpublisher.com/eandp/news/article_display.jsp? vnu_content_id=1002154704

a Regra de Ouro: versículo do Sermão da Montanha (Mateus 7,12)

“Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas”. Ao mencionar a lei e os profetas, Jesus se refere ao preceito já citado no Velho Testamento “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Levítico 19, 18). (N.T.)

{3} P Johnson, “A history of Christianity” (New York: Simon & Schuster, 1976), pp. 116-7 {4} Suma teológica, artigo 3 da questão 11 da “Secunda Secundae” {5} W. Manchester, “A world lit only by fire: The medieval mind and the Renaissance” (Boston: Little, Brown, 1992), passim. {6} F. G. Wood, “The arrogance of faith” (New York: A. A. Knopf, 1990), p. 59 {7} 72% dos americanos aprovam que se coloquem os Dez Mandamentos em lugares públicos, http://pew forum.org/press/index.php?ReleaseID=32). {8} “Forbidden vaccine”, The New York Times, 30/12/2005 (editorial) {9} M. Goldberg, “Kingdom coming: The rise of Christian nationalism” (New York: W. W. Norton, 2006), p. 137 {10} N. D. Kristof, “Bush’s sex scandal”, The New York Times, 16/2/2005 {11} M. Specter, “Political science”, The New Yorker, 13/3/2006, pp. 58-69 {12} “The states confront stem cells”, The New York Times, 31/3/2006 {13} .

b É difícil acreditar, mas o Vaticano atualmente se opõe ao uso da camisinha,

até para evitar a contaminação por HIV entre marido e mulher. Há rumores de que o papa está reconsiderando essa orientação. O cardeal Javier Lozano Barragán, presidente do Pontifício Conselho para a Pastoral da Saúde anunciou na Rádio Vaticano que seu departamento está “realizando um

estudo científico técnico e moral muito profundo” dessa questão (!). Nem é preciso dizer que se a doutrina da Igreja mudar em consequência dessas piedosas deliberações isso não será sinal de que a fé é sábia e sim de que um de seus dogmas se tornou insustentável. {14} “Mommie dearest”, 20/10/2003, {15}  {16} J. Hitt, “Pro-life nation”, The New York Times Magazine, 9/4/2006. {17} C. P Griebel et al., “Management of spontaneous abortion”, American Family Physician, vol. 72, n° 7 (1/10/2005), pp. 1243-50

c E parece que o ateísmo de Hitler foi seriamente exagerado: “Como cristão,

meu sentimento me mostra meu Senhor e Salvador como um combatente. Mostra-me aquele homem de outrora que sozinho rodeado por apenas alguns seguidores reconheceu o que eram verdadeiramente aqueles judeus e conclamou os homens a lutar contra eles e que pela verdade de Deus!, foi maior não como sofredor mas como lutador. Em amor ilimitado como cristão e como homem leio a passagem que nos conta como o Senhor por fim se levantou em todo o Seu poder e tomou na mão um chicote para expulsar do templo a ninhada de víboras e serpentes. Como foi terrível a sua luta em prol do mundo contra o veneno judaico [...] como cristão, também tenho um dever para com meu próprio povo”. Hitler afirmou isso em um discurso pronunciado em 12 de abril de 1922 (Norman H. Baynes ed. The speeches of Adolf Hitler, April 1922-August 1939 Vol. 1 de 2 pp. 19-20 Oxford University Press 1942).

d A “calúnia de sangue” (em relação aos judeus) consiste na falsa acusação de que judeus matam não-judeus a fim de obter sangue para rituais religiosos. Essa crença continua muito difundida em todo o mundo muçulmano.

{18} J. I. Kertzer, “The modern use of ancient lies”, The New York Times, 9/5/2002. {19} P Zuckerman, “Atheism: Contemporary rates and patterns”, The Cambridge companion to atheism, Michael Martin, ed. (Cambridge, England: Cambridge University Press). {20} G. S. Paul. “Cross-national correlations of quantifiable societal health with popular religiosity and secularism in the prosperous democracies”, Journal of Religion and Society, vol. 7 (2005); R. Gledhill, “Societies worse off 'when they have God on their side'”, The Times (UK), 27/9/2005 {21} . {22} . {23} .

{24} . {25} . {26} .

e Em inglês, costuma-se chamar a Bíblia de “the Good Book” (“o Bom Livro”). (N.T.)

{27} .

f Teodiceia: justificativa da crença na onipotência e na bondade de Deus, diante da existência do mal no mundo. (N.T.)

{28} Veja J. Pelikan, Jesus through the centuries (New York: Harper & Row,1987); A. N. Wilson, Jesus: A life (New York: W. W Norton, 1992); e B. M. Metzger e M. D. Coogan, eds., The Oxford companion to the Bible (Oxford, England: Oxford University Press, 1993), pp. 789-90. {29} Muitas fontes secundárias apontam essas contradições. Um clássico é Self-contradictions of the Bible (1860), de Burr. {30} National Academy of Sciences, Teaching about evolution and the nature of science (1998), p.58; .

g Verdade seja dita, venho recebendo e-mails de protesto de pessoas que

afirmam, aparentemente com toda a sinceridade, acreditar que Poseidon e outros deuses da mitologia grega são reais.

{31} L. Gross, “Scientific illiteracy and the partisan takeover of biology”, PLoS Biol 4(5): el67. DOI 10.1371/journal. Pbio.0040167 (2006);.

h O físico Stephen Hawking por exemplo imagina o espaço-tempo como uma

superfície fechada com quatro dimensões sem começo nem fim (semelhante a superfície de uma esfera).

i A cura da fistula obstétrica é, na verdade, uma simples cirurgia — não a

oração. Embora muitas pessoas de fé pareçam convencidas de que as orações podem curar muitas doenças (apesar do que dizem as melhores pesquisas científicas) é curioso que só se acredita que a oração funciona para doenças e ferimentos que podem terminar depois de determinado período. Ninguém espera seriamente por exemplo que a oração faça crescer de novo um membro amputado. E por que não? As salamandras fazem isso

como procedimento de rotina presumivelmente sem orações. Se é que Deus de fato atende às preces por que Ele não haveria de curar ocasionalmente um amputado merecedor dessa graça? E por que as pessoas de fé não esperam que a oração funcione em casos assim? Há um site muito inteligente que explora este mistério; www.whydoesgodhateamputees.com (Por que Deus Odeia os Amputados).

j Essa longa guerra civil é distinta do genocídio que hoje ocorre no Sudão, na região de Darfur.

k Considera-se que uma mulher “desonra” sua família ao recusar um

casamento arranjado, pedir o divórcio, cometer adultério e até por ser estuprada ou sofrer alguma outra forma de ataque sexual. Mulheres nessas situações com frequência são assassinadas pelo pai, marido ou irmão, às vezes com a colaboração de outras mulheres. O assassinato em nome da honra talvez seja mais bem compreendido como um fenômeno cultural (e não estritamente religioso), e não é exclusivo do mundo muçulmano. Contudo, tal prática encontra considerável apoio no islã, já que essa religião considera explicitamente a mulher como propriedade do homem, e vê o adultério como uma ofensa capital. Em todo o mundo muçulmano uma mulher que denuncia ter sido estuprada corre o risco de ser assassinada como “adúltera”: afinal, ela reconheceu que fez sexo fora do casamento.