Capitalismo Dependente e Politização

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IVAN COTRIM

CAPITAUSMO DEPENDENTE ... EPOllTICIZACAO I

São Paulo, 2015

Fernando Henrique Cardoso: capitalismo dependente e politicização Ivan Cotrim

Editor Sebastião Haroldo de Freitas Corrêa Porto

Coordenação editorial Silvana Pereira de Oliveira Projeto gráfico Otávio Silva Capa

Priscila Justina I Pi Laboratório Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cotrim, Ivan Fernando Henrique Cardoso: capitalismo dependente e politicização / Ivan Cotrim. -São Paulo: Porto de Idéias, 2015. Bibliografia I. Brasil - Política e governo 2. Brasil Condições econômicas 3. Brasil - Condições sociais 4. Capitalismo 5. Cardoso, Fernando Henrique, 1931- 6. Dependência 7. Desenvolvimento econômico I. Título. 15-07908

À Lívia Cotrim, a força de seu amoroso companheirismo. CDD-338.9

Índices para catálogo sistemático: I. Capitalismo dependente: Economia 338.9 2. Dependência econômica 338.9 EDITORA PORTO DE IDÉIAS LTDA. Rua Perdões, 101 - Aclimação SilO Paulo - SP - 01529.030 FOlle ( li) 3884-38 14 www.portodeideias.com.br

À memória de minha mãe, Maria Aparecida Cotrim.

" Para bem compreender esse reducionismo regressIvo, é preciso levar em conta que é constitutivo da teoria da dependência o olhar representativo que desintegra a unidade humano-societária concretamente existente; golpe de vista que desfaz o sensível para "refazê-lo" a partir de tiposideais, oferecendo, em lugar do ser-precisamente-assim das coisas o rearranjo subjetivo dos fenômenos pulverizados." José Chasin

Sumário Introdução_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

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Capítulo I Escravismo e capitalismo: Estado burguês e patrimonialismo_ Tradicionalismo e debilidade da burguesia nacional

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Capítulo II Industrialização e dependência: substituição de importações __ 98 Dependência e industrialização seletiva 110 O novo caráter da dependência: industrialização restritiva_ _ 144

Capítulo III O conceito de populismo: impugnação da análise concreta dos governos Vargas e Goulart 164

Capítulo IV A modernização do Estado pela ditadura militar: modernização conservadora 191 Modernização e exclusão social 248

Capítulo V As polêmicas sobre a dependência_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _.272

ConcIusão _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _.313 Referências, _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _.349

Nota do Autor

Introdução I

As obras de Fernando Henrique Cardoso utilizadas neste trabalho são citadas conforme as abreviações a seguir:

AD - Autoritarismo e Democratização CEBM - Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional DDAL - Dependência e Desenvolvimento na América Latina DDD - As Desventuras da Dialética da Dependência EIDEB - Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil MPB - O Modelo Politico Brasileiro MSAL - Mudança Social na América Latina PDSD - Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes Após a citação da abreviatura da obra, segue-se o número da página em que se encontra o trecho mencionado. Exemplo: (DDAL, p. 65).

A construção teórica do capitalismo dependente no Brasil, por Fernando Henrique Cardoso, resulta de sua reflexão sobre os debates entre as várias perspectivas e vertentes políticas que desde finais da década de 1950 e inícios de 1960 procuravam compreender a realidade brasileira daquele período para traduzila teoricamente na busca de uma trajetória mais congruente com sua especificidade. Esse quadro é tão mais complexo quanto se tem em conta que o Brasil vinha processando mudanças em todos os planos, além de sofrer influência das amplas transformações externas que afetavam o tecido políticoeconômico internacional e nacional. Fenômenos fundamentais que despontam internacionalmente após a Segunda Guerra Mundial como: o avanço do imperialismo e a expansão do capital financeiro, modificando as tendências nacionalistas dos países periféricos; a estratégia política da Guerra Fria dividindo esses mesmos países em alinhados e não alinhados; as alterações nas perspectivas políticas da esquerda (Partidos Comunistas) com a morte de Stalin em 1953 e as revelações antistalinistas; as contradições socioeconômicas dos países pós-revolucionários postas a público; tudo isso recolocou a necessidade de verificar novos caminhos políticos alternativos para ações transformadoras perspectivadas principalmente pelos grupos que se colocavam politicamente à esquerda. Exatamente nesse momento em que as transformações sociais emersas no pós-guerra estão postas a caminho e em que se colocam no trilho perspectivas críticas que afetam tanto o plano internacional das ações liberais imperialistas, de um lado, quanto do socialismo real, de outro, é que a retomada do pensamento de Marx veio novamente à baila. 9

Os estudos do pensamento de Marx são postos em evidência nesse momento por meio dos Seminários de O Capital, propostos por iniciativa de José Arthur Giannotti aos colegas professores da Universidade de São Paulo (USP) e/ou estudiosos do tema. As discussões travadas nesse contexto vão exercer influência na formação teórico-ideológica de Cardoso, que toma contato efetivo com essa literatura com vistas a apreender a forma como a obra do filósofo alemão vinha sendo tratada na Europa, em particular na França, na expectativa de que novos desdobramentos e compreensões pudessem nascer dessa nova leitura. Giannotti propõe esse retomo a Marx ao voltar da Europa, em 1958, onde manteve contato com grupos e seminários ligados às atividades intelectuais de Claude Leffort, de Socialisme ou Barbarie, situação na qual a releitura de Marx vinha sendo estimulada. Aqui, sua empreitada definiu-se pela leitura de O Capital, atividade intelectual que ficou conhecida por Seminários de O Capital. É importante aduzir que a seleção da produção de maturidade de Marx nos Seminários resvalou em outra abordagem e perspectiva que vinha sendo intemalizada no Brasil, oriunda esta das análises althusserianas, que privilegiavam exatamente a leitura do mais conhecido trabalho de maturidade de Marx, isolando-o, por meio desse procedimento, da parte inicial da produção teórica do filósofo alemão, parte essa que expressa a essência original e originária de seu pensamento. Ao mesmo tempo, foi sendo construída a justificativa althusseriana de que sua produção juvenil não tinha fundamento cientí fico, pois se tratava de mani festação puramente ideológica, daí poder desvinculá-Ia daquela do Marx maduro, na qual supostamente se efetivava sua cientificidade. Com essa afirmação obtusa, Althusser fez notar que sua concepção de ideologia apresentava tal conotação depreciativa que resultava, quando da abordagem marxiana, no esvaziamento do conteúdo

determinativo do pensamento do filósofo. Tal trajetória intelectual, oriunda de concepção fortemente equivocada, permeou parte do pensamento de esquerda que, afastando aquela produção originária, impedia a abordagem ontológica necessária para a compreensão do quadro categorial exposto por Marx e o reduzia a simples referencial metodológico. À semelhança do que se pôs com a vertente teórica althusseriana, embora não convergente com a totalidade de seu conteúdo e extensão, as determinações intelectuais que se instalaram a partir dos Seminários passaram a focar a obra de maturidade do pensador alemão conc luindo igualmente que esta não convergia teoricamente com a de juventude. Assim, o trabalho de José Arthur Giannotti (1960) tomava-se referência exemplar na explicitação da cisão entre a produção do Marx da maturidade e a do jovem Marx, cisão essa que repete a de Althusser, pela quebra da unidade ontológica marxiana, além de empurrar as formulações do filósofo alemão para o campo da lógica geral (gnosioepistêmico), ao qual ele nunca pertencera. Giannotti observa que

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Nosso primeiro projeto compreendia um balanço geral da dialética marxista e foi somente no curso do nosso estudo, quando nos convencemos da radical oposição epistemológica entre os textos de juventude e de maturidade, que nos decidimos analisar a dialética primitiva, preparando o terreno para um livro posterior. De outra forma, se juntássemos num mesmo escrito a discussão dos dois procedimentos, a todo o momento, deveríamos recorrer a universos diferentes do discurso, criando uma confusão indecifrável. (GIANNOTTI, 1984, p. 10)

Essa nova concepção intelectual estará na base da incipiente trajetóri a intelectual da analítica paulista institucionalizada, anos depois, no Centro Brasileiro de Pesquisa (Cebrap) e será também a que se oficializará como perspectiva analítica no campo da filosofia uspiana. Essa designação de analítica paulista foi apresentada por J. Chasin 1 visando identificar a usina geradora de concepções que, oriundas da academia, edificaram uma teoria marxista adstringida, estiolada em seu núcleo mais consistente, repita-se, o ontológico. De maneira que é esse o padrão teórico-ideológico que encontramos nos alicerces intelectuais de Cardoso e que permeará, irrefutavehnente, os conteúdos ideológicos com os quais ele se lançou em pugnas políticas e em sua produção teórica acadêmica. Não há como desconhecer ou ignorar que Cardoso notabilizou-se como um brilhante intelectual marxista nos meios acadêmicos e políticos, principalmente depois da instalação da ditadura militar. Ele nunca se pronunciou contrário a essa designação, pois, com ela, nutriu-se de prestígio entre os I. A esse respeito. diz Chasin: "Genninada, segundo seus próprios mentores, a partirdo agora afamado Sem inário sobre O Capital, que os mesmos levaram a efeito em fins dos anos cinquenta, a analftica paulista se afirmou, desde o princípio e daí por diante, como uma modalidade epistêmica de aproximação e apropriação seleti va da obra marxiana de maturidade. Isso compreendeu, peJa mesma via, a exclusão praticamente completa dos textos de Marx dos anos quarenta, sob o entendim en to de que eram caudatárias da antropo logia feuerbachiana. Por efeito, foram ignoradas as críticas ontológicas. a primeira das quais voltada à política, com as quais foi instaurado e teve continuidade a elaboração do corpus teórico marxiano. Operações redutoras que perfilaram uma versão do marxi smo circunscrito à condição de lógica ou método analítico e de ciência do capitalismo, para a qual ficou irremediavelmente perdido o centro nervoso do pensamento marxiano, - a problemática, real e idealmente inalienável, da emancipação humana ou do trabalho, na

qual e somente pela qual a própria questão da prática radical ou críticorevolucionária encontra seu té/os, identificando na universalidade da trama das atividades sociais seu território próprio e resolutivo, em distinção à finitude da política, meio circunscrito dos atos negativos nos processos reais

de transfonnação" (CHASI N, 1999. p. 11).

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marxi stas independentemente de estes se aperceberem ou não da abstrata conexão existente entre a produção intelectual de Cardoso e o ideário marxiano. Certamente não se encontra em sua obra, quando cita Marx, outra formulação que não revele um Marx teoricamente esvaecido, dado o enclausuramento acadêmico, um Marx adstringido, com uma teoria deformada, esvaziada de seu verdadeiro sentido e, portanto, impotente como perspectiva revolucionária. Concretamente, a atividade teórico-ideológica de Cardoso colocou-o numa oposição às concepções do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que se punha como porta-voz de outra abordagem de Marx, oriunda esta de uma leitura stalinista que havia igualmente dissipado o núcl eo ontológico deste, pela via de uma concepção de históri a etapista, resultando num congelamento das possibilidades revolucionárias no Brasil. Basta recordar as pugnas ideológicas travadas pelo partido na direção impositiva de que a realidade histórica brasileira comportava, por seu atraso, restos feudais que deveriam ser superados, antes de se programar uma ação pró-socialista. De forma que a primeira etapa a ser vencida pelos revolucionários era a de instauração de uma revolução burguesa, com vistas à complementação do capitalismo no Brasil. C laro que isso implicava subsumir as forças do trabalho às do capita l, coisa que não era, nem de longe, tratada pelos pensadores do partido. Embora com origens políticas distintas, as concepções serão convergentes em termos das deformidades resultantes, seja a produzida na academia, seja aquela produzida pelo partido. Vemos, entretanto, que Cardoso veio discordando das propostas do PCB e buscou incorporar à produção acadêmica as análises sobre a realidade bras il eira, visando definir o tipo de capitalismo que aqui se instalara, já no período escravista colonial. Sua tese de doutorado Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional (CEBM) inaugurou, com essa trajetória 13

intelectual, as análises políticas do Brasil que irão se reproduzir na academia. Aproximando-se acanhadamente de alguns ângulos da concepção pradiana, na medida em que considera, desde esse momento histórico, que no Brasil havia se objetivado uma economia capitalista de base colonial, não deixa margem para a existência de qualquer resto feudal no Brasil. Entretanto, sem nenhum vínculo, seja com a academia de raiz social-democrática, seja com o partido de raiz stalinista, a presença de Marx nos círculos políticos e intelectuais havia sido inserida por Caio Prado Júnior, com uma compreensão intelectual inconfundível sobre o atraso socioeconômico brasileiro e perspectiva revolucionária para sua superação. Desde a Aliança Nacional Libertadora (ANL), Caio Prado esgrimira politicamente com as teses do PCB ancorado em Marx com uma consistência adequada e inovadora. Seu foco de análise volta-se para a determinação daparticularforma do capitalismo brasileiro, resgatando o caráter colonial de nossa história e os resultados negativos para a formação e constituição de sua população, das massas trabalhadoras, segregadas política e economicamente pelos setores do capital interno e externo. Nisto consistia, também, sua forte compatibilidade com o pensamento de Marx quando de sua análise sobre o atTaso alemão, e na propositura de engajamento nas lutas sociais pautado na perspectiva do trabalho. Vale registrar que em 1966 Caio Prado publicara A revolução brasileira, arrematando, com essa obra, as críticas às teses do PCB que haviam mantido e intensificado equívocos originários daquele partido. A produção intelectual pradiana mostrou-se revolucionária, como registram suas obras desde a ANL, bem como os artigos da Revista Brasiliense, que contemplaram as análises da realidade socioeconômica com o rigor científico que esta exigia. Caio Prado permaneceu fora dos muros da academia, enquanto esta foi incorporando Marx pelo status teórico gnosioepistêmico, esvaziado de seu conteúdo

ontológico e compatível com os lineamentos analíticos elaborados naquela instituição. Sumariamente, a teorização de Caio Prado, a partir desse momento, só foi assimiladaformalmente. O resgate de Marx pela academia foi conduzindo as teses pradianas ao esquecimento. Cardoso, então, imprime esse novo procedimento teóricometodológico adquirido na academia, envolvendo o pensamento econômico de Marx nas concepções políticas weberianas. Com isso ele aprofunda o reducionismo a que fora submetido o pensamento do autor de O Capital, subtraído que foi em sua consistência intelectual originária. Em CEBM, Cardoso afirma assimilar as concepções do Marx da maturidade para tratar do quadro econômico colonial e, ao evidenciar a formação do sistema de poder que domina a colônia, ele se apropria do conceito de patrimonialismo, oriundo da constelação teórica weberiana, negligenciando cabalmente o fato de que tal conciliação de concepções excludentes e inequivalentes impediam a obtenção, pelo ecletismo que daí resulta, de uma íntegra reprodução intelectual. Ao importar o conceito de patrimonialismo da obra de Weber e colá-lo sobre a história brasileira, inicialmente na colonial, depois na fase imperial e posteriormente no período nacionalistaindustrial, Cardoso desfazia os nexos postos pela história, já que a base determinativa, a esfera econômica, fora afastada da sociabilidade, que passava a ser analisada apenas do ângulo da política. Dessa forma, o conceito de patrimonialismo "caiu como uma luva" por desligar economia e política, permitindo que ele conduzisse sua análise ao sabor de um aleatório jogo de forças políticas que em última instância residia na vontade política. Com isto ele apertava laços teórico-ideológicos com Weber, relegando o plano econômico a um mero fator entre os demais fatores d~ composição social, destacando o núcleo de ação política como determinante.

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Enquanto o PCB supunha que para uma autonomização capitalista no Brasil fosse suficiente o afastamento das forças econômicas imperialistas (por meio de uma extemporânea revolução burguesa) e dos supostos restos feudais aqui existentes, para Cardoso, ao contrário, a presença do capital imperialista nos beneficiava: pelo associacionismo empreendido por Juscelino Kubitschek (JK) e pela ruptura com o nacionalismo de Jango. Mais do que isso, segundo Cardoso, desde o período de transição (1850-1930), o capital externo já operava em áreas onde o capital nacional não podia, por sua inconsistência, colocar-se e, portanto, desde o pós-Segunda Guerra Mundial, o capital imperialista exercia certa complementaridade no desenvolvimento do capitalismo brasileiro, pois "a acumulação de capital nas economias dependentes não se completa" (MSAL, p. 71) por si só. Ainda que a compreensão de Cardoso sobre o capitalismo no Brasil conduzisse a mostrar uma impossibilidade de autonomia econômica, seu equívoco foi o de supor a possibilidade de lima autonomia do político. Certamente esse encaminhamento teórico é suficientemente esclarecedor para que se perceba a necessidade de Cardoso em apropriar-se das concepções weberianas, que contemplam essa posição determinativa dos planos social e político sobre o econômico, pois, se o país não se completava economicamente, todo o esforço para garantir uma autonomia nacional deveria ser feito no político. Armava-se, em sua argumentação, uma postura poli/icista, que reduz ia a totalidade social à determinação do político, posição teórica tão degenerativa quanto aquela pela qual o PCB se pautava tendo no econômico a plena determinação histórica da realidade brasileira, subordinando-se com isso ao economicismo. Ambas as concepções políticas deixam patenteada uma ruptura e desfiguração da história, uma perda de sua total idade. 16

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Desta forma, sua poslçao aparece como diametralmente oposta à da esquerda pecebista daquele período, pois, enquanto aqueles se mantinham inflexíveis na adesão economicis/a (anti-imperialista, nacionalista), Cardoso inclinava-se irremediavelmente à posição contrária, em defesa do capital externo tendo na política de Estado a força de atração e controle desse capital, subordinando-se acentuadamente ao politicismo . Numa formulação sintética, porém extremamente precisa de Chasin, temos que: FHC, no repúdio InCISIVO ao economic ismo, não dispondo, no entanto, de critérios ontológicos, acaba substituindo a falaciosa ordem determinativa daquele por outra igualmente arbitrária. Ao primado unilateral e mecânico da economia reduzida ajator, própria do economicismo, que mutila a integridade e a dinâmica do todo, FHC não contrapõe de modo corretivo o reconhecimento do complexo da produção e reprodução da base material da existência humana, tal como marxianamente concebido, mas,

conservando a noção de economia como fator, até mesmo por seu peso estrutural, postula uma nova ordem das determinações entre as instâncias do social, da política e da economia. Já pelo viés sociológico é induzido à cortante di stinção entre o plano social e o econômico, sem precisar o que possa ser entendido por cada um deles na pretendida desconsideração metódica do outro, mas é esta separação de faces ontológicas indissociáveis que permite, operativamente, o encadeamento de uma ordenação aleatória ou de suficiente indeterminabilidade para queo político possa, na armação discursiva, aparecer como determinação de última instância, ou seja,

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decisiva em qualquer ordem explicativa, do que redunda o politicismo. (CHASIN, 1999, p. 17)

11 O capitalismo dependente de Cardoso, que emergiu como construto tipológico, de fundo teórico weberiano, expandiu-se conceitualmente alcançando um destacado papel temático no tratamento teórico do capitalismo brasileiro. As referências à incontemporaneidade do capitalismo brasileiro, seu atraso, colocou-se, após a produção teórica de Cardoso, sob a rubrica da dependência. Essa noção oriunda das formulações teóricas de Cardoso sofreu uma única crítica em seus fundamentos nas controvérsias que teve com Ruy Mauro Marini, na década de 1970. O termo dependência seguiu sendo utilizado sem que seus usuários travassem enfrentamento direto com as condições sociais e econômicas brasileiras na busca por identificação de sua fonte geradora. Surge em 1986 um artigo de David Lehmann que põe em revista a produção de Cardoso, embora não aprofunde sua crítica teórica, como fez Marini. Lehmann inicia destacando o percurso político que o autor empreendera na luta pela democratização do país e aponta para uma característica da literatura de Cardoso que ele trata por marxismo ec/ético, referindo-se à concepção que congrega de Marx a Sartre e mesmo clássicos da sociologia como Talcott Parsons. Em sua análise, ele aponta para algo que supõe centralizar as contradições na obra de Cardoso. Trata-se do destaque e sobreposição do campo político ao social e econômico revelado em Dependência e Desenvolvimento na América Latina (DDAL). O Estado é colocado em evidência frente à economia (dependente) e aos movimentos sociais. Observe-se, entretanto, que a dependência é tratada por Lehmann como sendo 18

nuclearmente econômica. Assim, para ele, a obra de Cardoso' não encerra como objeto apenas a análise da dependência, mas o plano político é o que, principalmente, define sua tematização. Conforme esse autor, o Estado brasileiro a partir de 1964 recebe de Cardoso a designação de Estado burocráticoautoritário e precisará sofrer uma transformação com vista a restaurar a democracia. A luta para atender essa demanda deve ser instaurada no âmbito do próprio Estado, por dentro dessa instituição. O que leva Lehmann a aproximá-lo das tendências social-democráticas europeias. Nessa linba de análise, o autor vai mostrando que Cardoso converte as análises teóricas em teorias políticas, visando à retomada da democracia. Lehmann aproxima Cardoso aos liberais, especialmente empresários que perspectivam em comum a queda dos militares. No caso dos empresários, sua oposição ao governo militar define-se contra a interferência do Estado na economia; mas, a eles, pouco interessam questões como tortura, violência contra os direitos humanos etc. Após 1977, Cardoso articula-se partidariamente ingressando na oposição oficial, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e mais tarde colaborará na formação do Partido dos Trabalhadores (PT). Lehmann arremata sua análise afirmando o fato de que a central idade do pensamento de Cardoso se destinará ao que ele trata por princípio articulador (jogo de forças políticas/correlação de forças), e que por esta via ele passa a supor e propor a possibilidade de resgate democrático

independentemente de qualquer ação revolucionária. Focalizando um ângulo específico da produção de Cardoso em DDAL, Luís Carlos Bresser Pereira (1983) escreve um artigo no qual discorre sobre enfoques político-econômicos de vários autores e linhas analíticas, que se dedicaram ao estudo das tendências do desenvolvimento desde 1930. A obra de Cardoso e Faletto é abordada por Bresser Pereira especialmente no que toca ao novo caráter da dependência, por expressar, segundo

ele, uma posição acentuadamente distinta das encontradas na literatura social e econômica brasileira quando o tema é a relação com os países imperialistas. Cardoso e Faletto posicionavam-se na contramão das soluções oferecidas pelos revolucionários dos países latino-americanos. Bresser Pereira vai expor o conjunto de pensadores revolucionários contra os quais as concepções do novo caráter da dependência surtiram efeito. Segundo ele, André Gunder Frank afirmara que a América Latina, sendo capitalista desde o início de sua organização econômica, esteve submetida ao capitalismo europeu e ao imperialismo que se desenvolveram posteriormente, encontrando nessas relações as raízes do subdesenvolvimento brasileiro. Ao seu lado, Bresser Pereira coloca Ruy Mauro Marini, cuja tese central registra o caráter de superexploração do trabalho como necessária à condução do capitalismo latino-americano e brasi leiro em particular. Esse caráter inseparável da reprodução do capital no Brasil estaria condicionado às relações desiguais de troca entre estes e aqueles, e conformaria nesse intercâmbio a maneira pela qual os países imperialistas se apropriam de parcela significativa da mais-valia aqui produzida. Tal estrutura de intercâmbio internacional levaria à superexploração do trabalho no Brasil, isto é, ao pagamento salarial abaixo do nível de subsistência dos trabalhadores, além da ampliação das jornadas de trabalho e da intensificação no uso da força de trabalho. A manutenção dessas condições exigiria o estabelecimento de recursos opressivos como os golpes militares (que Bresser Pereira trata por autoritarismo). Por fim, instala-se no Brasil uma modalidade de relações internacionais que é o subimperialismo: trata-se da exportação de manufaturados a países mais subdesenvolvidos que este, reproduzindo em condições particulares aquela dimensão criticada inicialmente. Em seguida, Bresser Pereira aproxima aos anteriores o autor Theotônio dos Santos, que observara, sobre o possível

desdobramento do subdesenvolvimento na América Latina, uma bifurcação política: socialismo ou fascismo. Bresser Pereira destaca três momentos na teoria de Theotônio para caracterizá-Ia como um todo: a forma histórica tratada por dependência colonial, comercial exportadora, a dependência financeiro-industrial que se consolida no final do século XIX e, por último, a dependência tecnológico-industrial do período do pós-guerra, exercida por empresas multinacionais. Esse último destaque feito por Bresser Pereira serve-lhe para indicar que é daí que Theotônio extrai a noção de um desenvolvimento desigual e combinado, que lhe permite identificar-se com a superexploração do trabalho de Marini. Bresser Pereira aproveita também esse último ponto para rechaçar em conjunto ambos os autores, no que tange à superexploração do trabalho, afirmando que não foi observado por parte desses o fato de que a presença das multinacionais aqui havia diluído essa modalidade de exploração. O autor afirma ainda que Theotônio dos Santos desenvolveu uma concepção sobre as relações internacionais com o imperialismo a partir da internalização das multi nacionais, denominada novo caráter da dependência, concepção que, ao contrário da de Cardoso, acentua os ângulos da subordinação dos países subdesenvolvidos ao imperialismo. Bresser Pereira, contrapondo-se a esses, busca mostrar que a tese da subordinação dos países subdesenvolvidos aos imperialistas não dá conta da realidade socioeconômica por não considerar o padrão de alteração interna dos subdesenvolvidos, ocasionado pela presença das próprias multinacionais, como se observou no período de JK. O capital imperialista passou a requerer um desenvolvimento interno tal que superava a antiga subordinação dos países periféricos. Nisso consistia o verdadeiro novo caráter da dependência. Por outro lado, as tendências revolucionárias da América Latina, em Cuba,

por exemplo, fi zeram com que as burguesias regIOnaIs se precavessem, afastando-se das alianças internas e apertando os laços com os interesses internacionais. Com DDAL se coloca uma armação teórica capaz de enfrentar e contraditar as antigas abordagens que tomavam tal relação identificando imperialismo e estagnação. Lídia Goldenstein (1994) destaca em seu livro o debate que se instala no mesmo período em que se situou Bresser Pereira, período em que se coloca a dependência como teoria. Buscando a raiz dessa noção, ela a encontra no conjunto de análises que surgem na década de 1950 sobre a América Latina, no campo ideológico do marxismo, tendo Paul Baran, Paul Sweezy e Gunder Frank na vanguarda, conjunto esse que tratou da denominada problemática da dependência. Com Gunder Frank, essa concepção se especifica sob a forma dicotomizada de metrópole, como centro desenvolvido, e satélites, como sendo os países que gravitariam em tomo da primeira. Essa relação metrópole/satélite era conduzida desde o período colonial, em que o capitalismo mercantil já estabelecera formas de absorção do excedente dos países periféricos (satélites) pelos centrais (metrópoles), e isso se desdobrava a cada etapa do capitalismo, pois se criara aqui uma elite cujo interesse básico era o de trocar seu excedente por bens de luxo produzidos nos países centrais, e não se detinham na necessidade de reinvestimento local. Gunder Frank denominou essa elite de lumpen burguesia. As críticas a el e dirigidas por estudiosos brasileiros, como Theotônio dos antos, sobre a generalização com que tratava as distintas nações latino-americanas, não eliminaram um lado daquelas posiçôes, que viam na relação centro-periferia uma determinação, nas dinfi mi cas nacionais, vinda de fora, da metrópole. Assim, llS particularidades nacionais permaneceram relativamente cnC(lbCrlHS. E, embora Theotônio dos Santos tivesse se aplicado Il 'ssu crftica, manteve em suas análises o caráter determinante

dos países imperialis.tas sobre os subdesenvolvidos. Goldenstein alinha o pensamento de Theotônio dos Santos, Gunder Frank e Ruy Mauro Marini pelo fato de considerarem ou manterem a posição determinante dos países imperialistas. Quanto a Marini, ela destaca que seu livro Dialética da Dependência sofreu, por parte de José Serra e Fernando Henrique Cardoso, dura crítica, formulada em " As Desventuras da Dialética da Dependência", na qual os autores evidenciaram os defeitos analíticos de toda ordem, além de denunciarem o perigo da prática política desse padrão teórico. Concordando com Bresser Pereira, Lídia Goldenstein observa que em Celso Furtado encontramos o dinamismo econômico determinado de fora para dentro, o que será debatido e contraditado em DDAL de Cardoso e Faletto. Em primeiro lugar, a concepção de dependência desses autores põe em pauta a diversidade e especificidade dos países latino-americanos, o que de imediato reduz as possibilidades de tratamento genérico e/ou universalização de diagnósticos e soluções. E, na medida em que entendem que a estruturação da dependência estabeleceu-se no interior desses países, pois é aí que o nexo entre condições nacionais e imperialismo se objetivou, fica invalidada a bifurcação interno-externo das teses da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e de Furtado. Voltando-se para o pensamento de Cardoso e Faletto, após invalidar a dicotomia cepalina, Goldenstein ressalta a possibilidade de desenvolvimento interno a partir do reinvestimento que os empreendimentos externos, associados com o capital nacional! estatal, acabam por realizar, criando no interior desses países as condições de dinamismo nacional e de desenvolvimento próprio. Mas essa dinâmica não se dá de maneira sistemática, ou seja, a economia nessas condições depende de ordenamento e controle que só podem ser buscados na política, no jogo de poder. De forma que Goldenstein acolhe plenamente as teses

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da dependência em Cardoso e Faletto afirmando que é essa a condição de ser no interior dos países subdesenvolvidos e que a condição de aproveitamento da situação para dinamizar o desenvolvimento encontra-se nos sistemas de poder. Além disso, se uma relação desse tipo poderia ter nos tomado reféns da capacidade de importar, o argumento dos autores sobre a internalização do capital externo é suficientemente consistente, pois lhes permite vislumbrar a instalação, aqui, do setor de bens de produção como determinante na transição para uma situação de interdependência. Num curto estudo sobre a presença do marxismo no Brasil especificamente no campo econômico, Guido Mantega (1995) persegue a influência de Marx e de marxistas clássicos como Lenin, Trotsky, Engels, na orientação ideológica das análises sobre a economia deste país. Depois de citar Caio Prado e o PCB como os primeiros a se esforçarem na direção de captar o padrão particular de capitalismo que aqui se colocava, sob a perspectiva marxista, ele destaca o Seminário do Capital, promovido por Giannotti, como uma das fontes mais produtivas dessa influência. Guido Mantega entende a presença do marxismo no Brasil por sua evolução e amadurecimento na aplicação que foi sendo realizada no plano teórico, desde 1920, cuja presença vinha sendo anunciada pelo PCB; essa fase se estende até 1940 e ele a denomina de materialismo primitivo. A segunda fase, que ele trata por materialismo funciona lista, dominará a década de 1950 e estará centrada nos dois proeminentes iniciadores, Caio Prado e PCB, aos quais se juntam Nelson Werneck Sodré, Ignácio Rangel e Celso Furtado. Ao final da década de 1950 e início de 1960 se encerra essa fase, para iniciar outra, que ele denomina de fase materialista dialética, e que é marcada pelo Seminário, contando basicamente com o grupo dele participante. 24

Em linhas gerais, ele traça as discordâncias entre Caio Prado e PCB, que aparecem em A revolução brasileira, daquele autor, para ressaltar alguns aspectos fundamentais da crítica ao PCB, que se apoiava, pelo seu lado, nas formas primitivas de relação de trabalho, como pagamento in natura do trabalho, e outras modalidades supostas, para fundamentar a existência de restos feudais no Brasil. Ao contrário, Caio Prado buscava mostrar os fundamentos da economia colonial aqui instalada pelo capital mercantil, completamente incompatível com as teses que identificavam nosso atraso com formas feudais. Mantega aponta ainda que o conceito de superexploração da mão de obra adotado e utilizado nas análises sobre o capitalismo brasileiro por Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos encontra-se muito próximo das concepções pradianas que refutavam as teses do PCB, que, por sua vez, opunham a burguesia industrial as forças imperialistas. Caio Prado mostra que os investimentos externos sempre favoreceram os empreendedores locais, e essa confluência de interesses definidos por Caio Prado reaparecerá nas teses do capitalismo dependente e associado de Cardoso e Faletto, que exclui a ideia do PCB da existência de uma burguesia nacionalista revolucionária no Brasil. É também Cardoso, conforme Mantega, o primeiro a perceber os equívocos das teses estagnacionistas de Celso Furtado. Cardoso propôs algo contrário a essa posição em DDA L expondo os fundamentos do desenvolvimento a partir da afirmação dos laços que formaram a dependência associativa. Essa nova possibilidade resultava, ao contrário da dependência colonial, da associação entre as burguesias locais e o capital imperialista. Cardoso coloca na raiz das questões econômicas os conflitos políticos e sociais, inaugurando uma análise com base no materialismo dialético, procedimento que, segundo Mantega, ele apreendera no Seminário do Capital.

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