Autobiografia - Minha vida e minhas experiências com a Verdade 9788583863168

A autobiografia de Gandhi, publicada em uma série de artigos na década de 1920, e que conta suas memórias até 1921. Form

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Autobiografia - Minha vida e minhas experiências com a Verdade
 9788583863168

Table of contents :
Prefácio
APRESENTAÇÃO
1. NASCIMENTO
2. INFÂNCIA
3. CASAMENTO DE CRIANÇAS
4. BRINCANDO DE MARIDO
5. O COLÉGIO
6. A TRAGÉDIA
7. A TRAGÉDIA (Continuação)
8. FURTO E EXPIAÇÃO
9. MORTE DE MEU PAI E DUPLA VERGONHA PARA MIM
10. UM VISLUMBRE DE RELIGIÃO
11. PREPARAÇÃO DA PARTIDA PARA A INGLATERRA
12. EXCLUÍDO DA CASTA
13. ENFIM, LONDRES!
14. UMA ESCOLHA
15. BANCANDO O CAVALHEIRO
16. MUDANÇAS
17. EXPERIÊNCIAS ALIMENTARES
18. A TIMIDEZ
19. O CÂNCER DA MENTIRA
20. ENCONTRO COM A RELIGIÃO
21. NIRBAL KE BAL RAM
22. NÂRÂYAN HEMCHANDRA
23. A EXPOSIÇÃO DE 1890
24. ADVOGADO... E DEPOIS?
25. SABER NÃO É PODER
PARTE II
1. RÂYCHANDBHÂI
2. COMEÇANDO A VIDA
3. PRIMEIRA CAUSA
4. PRIMEIRO GOLPE
5. RUMO A ÁFRICA DO SUL
6. CHEGADA A NATAL
7. EXPERIÊNCIAS
8. A CAMINHO DE PRETÓRIA
9. OUTRAS DESVENTURAS
10. PRIMEIRO DIA EM PRETÓRIA
11. CONTATOS CRISTÃOS
12. À PROCURA DE CONTATO COM OS INDIANOS
13. O QUE CUSTA SER UM “COOLIE”
14. PREPARATIVOS PARA O PROCESSO
15. FERMENTO RELIGIOSO
16. O HOMEM PÕE, DEUS DISPÕE
17. INSTALO-ME EM NATAL
18. A PORTAGEM
19. O CONGRESSO DOS INDIANOS DE NATAL
20. BÂLÂSUNDARAM
21. O IMPOSTO DE TRÊS LIBRAS
22. ESTUDO COMPARATIVO DE RELIGIÕES
23. CUIDANDO DO LAR
24. O RETORNO À CASA
25. NA ÍNDIA
26. DUAS PAIXÕES
27. A REUNIÃO DE BOMBAIM
28. POONA E MADRAS
29. “VOLTE LOGO”
PARTE III
1. PRENÚNCIOS DE TEMPESTADE
2. A TEMPESTADE
3. A PROVAÇÃO
4. A BONANÇA DEPOIS DA TEMPESTADE
5. PEDAGOGIA
6. A VONTADE DE SERVIR
7. BRAHMACHARYA (I)
8. BRAHMACHARYA (II)
9. UMA VIDA SIMPLES
10. A GUERRA DOS BÔERES
11. REFORMA SANITÁRIA E LUTA CONTRA A FOME
12. DE VOLTA À Índia
13. NA ÁREA DO CONGRESSO
14. AUXILIAR DE ESCRITÓRIO
15. O CONGRESSO
16. O DARBÂR DE LORDE CURZON
17. UM MÊS COM GOKHALE (I)
18. UM MÊS COM GOKKALE (II)
19. UM MÊS COM GOKHALE (III)
20. EM BENARES
21. É EM BOMBAIM?
22. A PROVAÇÃO DA FÉ
23. DE VOLTA A ÁFRICA DO SUL
PARTE IV
1. QUE É DOS ATOS PRATICADOS?
2. AUTOCRATAS ASIÁTICOS
3. O GOSTO AMARGO DO INSULTO
4. O ESPÍRITO DE SACRIFÍCIO
5. OS EFEITOS DA INTROSPECÇÃO
6. SACRIFÍCIO AO VEGETARIANISMO
7. EXPERIÊNCIAS DE CURA PELA TERRA E ÁGUA
8. UMA ADVERTÊNCIA
9. NAS GARRAS DOS PODEROSOS
10. UMA SAGRADA LEMBRANÇA
11. CONTATOS EUROPEUS
12. CONTATOS EUROPEUS (continuação)
13. “INDIAN OPINION”
14. ZONAS RESERVADAS OU “GHETTOS”?
15. A PESTE NEGRA (I)
16. A PESTE NEGRA (II)
17. UM BAIRRO EM CHAMAS
18. A MAGIA DE UM LIVRO
19. A COLÔNIA DE PHOENIX
20. PRIMEIRA NOITE
21. POLAK ATIRA-SE NA ÁGUA
22. AQUELE QUE DEUS PROTEGE...
23. RÁPIDA VISITA À FAMÍLIA
24. A “REVOLTA” DOS ZULUS
25. BUSCAS NO FUNDO DO CORAÇÃO
26 NASCIMENTO DO SATYÂGRAHA
27. OUTRAS EXPERIÊNCIAS DIETÉTICAS
28. CORAJOSA KASTURBÂI
29. SATYÂGRAHA DOMÉSTICO
30. RUMO AO AUTOCONTROLE
31. O JEJUM
32. COMO PROFESSOR
33. A FORMAÇÃO LITERÁRIA
34. A FORMAÇÃO ESPIRITUAL
35. O JOIO E O TRIGO
36. O JEJUM COMO PENITÊNCIA
37. AO ENCONTRO DE GOKHALE
38. MEU PAPEL DURANTE A GUERRA
39. DILEMA ESPIRITUAL
40. SATYÂGRAHA EM MINIATURA
41. O ESPÍRITO DE CARIDADE DE GOKHALE
42. TRATAMENTO DE PLEURISIA
43. REGRESSO À CASA
44. LEMBRANÇAS DA ADVOCACIA
45. UMA “DESONESTIDADE”?
46. DE CLIENTES A PARCEIROS DE TRABALHO
47. COMO FOI SALVO UM CLIENTE
PARTE V
1. A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA
2. COM GOKHALE, EM POONA
3. FOI UMA AMEAÇA?
4. SHÂNTINIKETAN
5. A MISÉRIA DOS PASSAGEIROS DE 3ª CLASSE
6. CANDIDATURA
7. KUMBH MELÂ
8. LAKSHMAN JHULA
9. FUNDAÇÃO DO ÂSHRAM
10. O FERRO NA BIGORNA
11. A IMIGRAÇÃO CONTRATADA
12. A MANCHA DE ÍNDIGO
12. BRAVO BIHÂR!
14. FACE A FACE COM O AHIMSÂ
15. ACUSAÇÃO RETIRADA
16. MÉTODOS DE TRABALHO
17. COMPANHEIROS
18. PENETRANDO NAS ALDEIAS
19. QUANDO O GOVERNADOR É BOM
20. CONTATOS COM O PROLETARIADO
21. BREVE OLHADELA NO ÂSHRAM
22. O JEJUM
23. O SATYÂGRAHA DE KHERA
24. “O LADRÃO DE CEBOLAS”
25. FIM DO SATYÂGRAHA DE KHERA
26. A PAIXÃO DA UNIDADE
27. A CAMPANHA DO RECRUTAMENTO
28. NO LIMIAR DA MORTE
29. DILEMA: A LEI ROWLATT
30. EXTRAORDINÁRIO ESPETÁCULO!...
31. SEMANA MEMORÁVEL! - I
32. QUE SEMANA! (II)
33. UM ERRO GRANDE COMO A MONTANHA
34. “NAVAJIVAN” E “A JOVEM ÍNDIA”
35. NO PANJÂB
36. O CALIFADO EM TROCA DA PROTEÇÃO DAS VACAS?
37. O CONGRESSO DE AMRITSAR
38. INICIAÇÃO AO CONGRESSO
39. O NASCIMENTO DE KHÂDI
40. FINALMENTE ENCONTRADA!
41. UM DIÁLOGO INSTRUTIVO
42. A CORRENTE DE NÃO COOPERAÇÃO
43. EM NÂGPUR
- ADEUS AO LEITOR
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Mohandas K. Gandhi MINHAS EXPERIÊNCIAS COM A VERDADE Autobiografia 2a edição

Isbn: 9788583863168 LeBooks.com.br

Prefácio Prezado Leitor Mahatma Gandhi inspirou inúmeras gerações, causando um impacto significativo na vida das pessoas até os dias de hoje. As palavras de Gandhi tocam o coração e a sua espiritualidade, simplicidade. filosofia da não violência são um legado único. Poucas figuras da nossa história nos encorajaram a viver em paz e de acordo com a verdade como fez Gandhi. Neste ebook singular o leitor poderá conhecer não somente o pensamento, mas também a história de vida deste extraordinário e inspirador ser humano, contada por ele próprio: o Mahatma Gandhi. Uma excelente leitura. LeBooks Editora

Pensamentos: “De uma forma suave, você pode sacudir o mundo.” “A força não provém da capacidade física e sim de uma vontade indomável.” “Felicidade é quando o que você pensa, o que você diz e o que você faz estão em harmonia. “

Mohandas Karamchand Gandhi

APRESENTAÇÃO

Mohandas Karamchand Gandhi, mais conhecido como Mahatma Gandhi (1869-1948) foi um líder pacifista indiano que inspirou o mundo. Principal personalidade da independência da Índia, então colônia britânica. Ganhou destaque na luta contra os ingleses por meio de seu projeto de não violência. Além de sua luta pela independência da índia, também ficou conhecido por seus pensamentos e sua filosofia. Recorria a jejuns, marchas e à desobediência civil, ou seja, estimulava o não pagamento dos impostos e o boicote aos produtos ingleses. As rivalidades entre hindus e muçulmanos retardaram o processo de independência. Com o início da Segunda Guerra Mundial, Gandhi voltou a lutar pela retirada imediata dos britânicos do seu país. Só em 1947 os ingleses reconheceram a independência da Índia.

Infância e formação Mahatma Gandhi nasceu em Porbandar na Índia, no dia 2 de outubro de 1869. Seu nome verdadeiro era Mohandas Karamchand Gandhi. Sua família pertencia à casta dos comerciantes, conhecida por vaisia. Foi criado sob a crença no deus hindu Vishnu, que tem como preceito a não violência. Como era costume, Gandhi teve um casamento arranjado aos 13 anos de idade. Nessa época, a Índia estava sob o domínio britânico. Foi para Londres estudar Direito e em 1891 voltou ao seu país para exercer a profissão. Em 1893, Mahatma Gandhi foi morar na África do Sul, à época também colônia britânica, onde sentiu pessoalmente os efeitos da discriminação contra os hindus. Em 1893, iniciou a política de resistência passiva em protesto contra os maus tratos sofridos pela população hindu. Em 1894, fundou uma seção do Partido do Congresso indiano, destinada a lutar pelos direitos de seu povo. Em 1904, Gandhi começou a editar o jornal “Opinião Indiana”. Nessa época, além dos textos religiosos hindus, leu os Evangelhos, o Corão, e as obras de Ruskin. Tolstoi e Henry David, quando descobriu as bases da desobediência civil. Em 1908 escreveu “Autonomia Indiana”, em que ele coloca em discussão os valores da civilização ocidental. Em 1914 retornou ao seu país e começou a difundir suas ideias. A independência da Índia Terminada a Primeira Guerra Mundial, a burguesia na Índia, desenvolveu forte movimento nacionalista, formando o Partido do Congresso Nacional Indiano, tendo como líderes Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nahru. O programa pregava: a independência total da Índia, uma confederação democrática, a igualdade política para todas as raças, religiões e classes, as reformas socioeconômicas e administrativas e a modernização do Estado. Mahatma Gandhi destacou-se como principal personagem da luta pela independência indiana. Recorria a marchas e a desobediência civil, incentivando o não pagamento de impostos e o boicote aos produtos ingleses. Embora usassem a violência na repressão ao movimento nacionalista da Índia, os ingleses evitavam o confronto

aberto. Em 1922 uma greve contra o aumento de impostos reúne uma multidão que queima um posto policial e Gandhi é detido, julgado e condenado a seis anos de prisão. Libertado em 1924, Gandhi abandonou por alguns anos a atividade política ostensiva. Em 1930, organizou e liderou a célebre marcha para o mar, quando milhares de pessoas andam mais de 320 quilômetros, de Ahmedhabad a Dandi, para protestar contra os impostos sobre o sal. As rivalidades que existiam entre hindus e muçulmanos, que tinham como representante Mohammed Ali Jinnah e que defendia a criação de um Estado muçulmano, retardaram o processo de independência. Em 1932, sua greve de fome chama a atenção do mundo inteiro. Com o início da Segunda Guerra Mundial, Gandhi volta à luta pela retirada imediata dos britânicos do seu país. Em 1942, foi preso novamente. Por fim, em 1947 os ingleses reconheceram a independência da Índia, contudo mantendo seus interesses econômicos. Território dividido Logo após a independência, Gandhi procurou evitar a luta entre hindus e muçulmanos, mas seus esforços de nada adiantaram. Em Calcutá, as lutas deixaram um saldo de 6 mil mortos. Por fim, o governo decidiu aprovar a divisão da Índia, por critérios religiosos, em duas nações independentes – a Índia, de maioria hindu, governada pelo primeiro ministro Nehru, e o Paquistão, com maioria muçulmana. Essa divisão gerou violenta migração de hindus e muçulmanos em direção opostas da fronteira, que resultou em sérios conflitos. Gandhi foi obrigado a aceitar a divisão do país o que atraiu o ódio dos nacionalistas. Um ano após conquistar a independência, Gandhi foi assassinado a tiros por um hindu, quando se encontrava em Nova Délhi, capital indiana. Segundo a tradição, seu corpo foi incinerado e suas cinzas foram jogadas no Rio Ganges, local sagrado para os hindus. Mahatma Gandhi morreu em Nova Délhi, Índia, no dia 30 de janeiro de 1948. O Pensamento e legado de Gandhi

A atividade política de Mahatma Ghandi (grande alma) esteve sempre ligada ao seu pensamento filosófico da não violência, o único caminho para a conquista da igualdade. Opor violência a violência só aumenta o mal. Para ele, a libertação da alma humana, em relação à servidão terrestre, só pode ser alcançada através de uma disciplina diária, uma rigorosa meditação, jejuns e orações que conduz a um completo domínio dos sentidos. Gandhi é considerado uma importante referência histórica para os movimentos pacifistas ocorridos no mundo. Os estudiosos da obra de Mahatma Gandhi dizem que o seu pensamento era tremendamente multifacetado e que a sua filosofia pode parecer bastante complexa, de modo que seriam necessários vários volumes para tentar descrevê-la. No entanto, para facilitar o caminho para todos aqueles que desejam se aprofundar no seu trabalho, alguns estudiosos dividiram a filosofia de Gandhi em quatro pilares: a não-violência, Sarvodaya (budismo socialmente comprometido), o Satyagraha (a força da alma) e a busca da verdade. São quatro áreas bem definidas, mas vinculadas entre si: as ideias religiosas se harmonizam com os seus ideais sociais. Na sua filosofia existe um propósito claro, uma esperança contida: encorajar a humanidade a confiar em si mesma, para nos convencer de que somos capazes de criar mudanças positivas na nossa sociedade, alcançando também um desenvolvimento moral mais elevado.

GHANDI Sumário 1. NASCIMENTO 2. INFÂNCIA 3. CASAMENTO DE CRIANÇAS 4. BRINCANDO DE MARIDO 5. O COLÉGIO 6. A TRAGÉDIA 7. A TRAGÉDIA (Continuação) 8. FURTO E EXPIAÇÃO 9. MORTE DE MEU PAI E DUPLA VERGONHA PARA MIM 10. UM VISLUMBRE DE RELIGIÃO 11. PREPARAÇÃO DA PARTIDA PARA A INGLATERRA 12. EXCLUÍDO DA CASTA 13. ENFIM, LONDRES! 14. UMA ESCOLHA 15. BANCANDO O CAVALHEIRO 16. MUDANÇAS 17. EXPERIÊNCIAS ALIMENTARES 18. A TIMIDEZ 19. O CÂNCER DA MENTIRA 20. ENCONTRO COM A RELIGIÃO 21. NIRBAL KE BAL RAM 22. NÂRÂYAN HEMCHANDRA 23. A EXPOSIÇÃO DE 1890 24. ADVOGADO... E DEPOIS? 25. SABER NÃO É PODER

PARTE II 1. RÂYCHANDBHÂI 2. COMEÇANDO A VIDA 3. PRIMEIRA CAUSA 4. PRIMEIRO GOLPE 5. RUMO A ÁFRICA DO SUL 6. CHEGADA A NATAL 7. EXPERIÊNCIAS 8. A CAMINHO DE PRETÓRIA

9. OUTRAS DESVENTURAS 10. PRIMEIRO DIA EM PRETÓRIA 11. CONTATOS CRISTÃOS 12. À PROCURA DE CONTATO COM OS INDIANOS 13. O QUE CUSTA SER UM “COOLIE” 14. PREPARATIVOS PARA O PROCESSO 15. FERMENTO RELIGIOSO 16. O HOMEM PÕE, DEUS DISPÕE 17. INSTALO-ME EM NATAL 18. A PORTAGEM 19. O CONGRESSO DOS INDIANOS DE NATAL 20. BÂLÂSUNDARAM 21. O IMPOSTO DE TRÊS LIBRAS 22. ESTUDO COMPARATIVO DE RELIGIÕES 23. CUIDANDO DO LAR 24. O RETORNO À CASA 25. NA ÍNDIA 26. DUAS PAIXÕES 27. A REUNIÃO DE BOMBAIM 28. POONA E MADRAS 29. “VOLTE LOGO”

PARTE III 1. PRENÚNCIOS DE TEMPESTADE 2. A TEMPESTADE 3. A PROVAÇÃO 4. A BONANÇA DEPOIS DA TEMPESTADE 5. PEDAGOGIA 6. A VONTADE DE SERVIR 7. BRAHMACHARYA (I) 8. BRAHMACHARYA (II) 9. UMA VIDA SIMPLES 10. A GUERRA DOS BÔERES 11. REFORMA SANITÁRIA E LUTA CONTRA A FOME 12. DE VOLTA À Índia 13. NA ÁREA DO CONGRESSO 14. AUXILIAR DE ESCRITÓRIO 15. O CONGRESSO

16. O DARBÂR DE LORDE CURZON 17. UM MÊS COM GOKHALE (I) 18. UM MÊS COM GOKKALE (II) 19. UM MÊS COM GOKHALE (III) 20. EM BENARES 21. É EM BOMBAIM? 22. A PROVAÇÃO DA FÉ 23. DE VOLTA A ÁFRICA DO SUL

PARTE IV 1. QUE É DOS ATOS PRATICADOS? 2. AUTOCRATAS ASIÁTICOS 3. O GOSTO AMARGO DO INSULTO 4. O ESPÍRITO DE SACRIFÍCIO 5. OS EFEITOS DA INTROSPECÇÃO 6. SACRIFÍCIO AO VEGETARIANISMO 7. EXPERIÊNCIAS DE CURA PELA TERRA E ÁGUA 8. UMA ADVERTÊNCIA 9. NAS GARRAS DOS PODEROSOS 10. UMA SAGRADA LEMBRANÇA 11. CONTATOS EUROPEUS 12. CONTATOS EUROPEUS (continuação) 13. “INDIAN OPINION” 14. ZONAS RESERVADAS OU “GHETTOS”? 15. A PESTE NEGRA (I) 16. A PESTE NEGRA (II) 17. UM BAIRRO EM CHAMAS 18. A MAGIA DE UM LIVRO 19. A COLÔNIA DE PHOENIX 20. PRIMEIRA NOITE 21. POLAK ATIRA-SE NA ÁGUA 22. AQUELE QUE DEUS PROTEGE... 23. RÁPIDA VISITA À FAMÍLIA 24. A “REVOLTA” DOS ZULUS 25. BUSCAS NO FUNDO DO CORAÇÃO 26 NASCIMENTO DO SATYÂGRAHA 27. OUTRAS EXPERIÊNCIAS DIETÉTICAS 28. CORAJOSA KASTURBÂI

29. SATYÂGRAHA DOMÉSTICO 30. RUMO AO AUTOCONTROLE 31. O JEJUM 32. COMO PROFESSOR 33. A FORMAÇÃO LITERÁRIA 34. A FORMAÇÃO ESPIRITUAL 35. O JOIO E O TRIGO 36. O JEJUM COMO PENITÊNCIA 37. AO ENCONTRO DE GOKHALE 38. MEU PAPEL DURANTE A GUERRA 39. DILEMA ESPIRITUAL 40. SATYÂGRAHA EM MINIATURA 41. O ESPÍRITO DE CARIDADE DE GOKHALE 42. TRATAMENTO DE PLEURISIA 43. REGRESSO À CASA 44. LEMBRANÇAS DA ADVOCACIA 45. UMA “DESONESTIDADE”? 46. DE CLIENTES A PARCEIROS DE TRABALHO 47. COMO FOI SALVO UM CLIENTE

PARTE V 1. A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA 2. COM GOKHALE, EM POONA 3. FOI UMA AMEAÇA? 4. SHÂNTINIKETAN 5. A MISÉRIA DOS PASSAGEIROS DE 3ª CLASSE 6. CANDIDATURA 7. KUMBH MELÂ 8. LAKSHMAN JHULA 9. FUNDAÇÃO DO ÂSHRAM 10. O FERRO NA BIGORNA 11. A IMIGRAÇÃO CONTRATADA 12. A MANCHA DE ÍNDIGO 12. BRAVO BIHÂR! 14. FACE A FACE COM O AHIMSÂ 15. ACUSAÇÃO RETIRADA 16. MÉTODOS DE TRABALHO 17. COMPANHEIROS

18. PENETRANDO NAS ALDEIAS 19. QUANDO O GOVERNADOR É BOM 20. CONTATOS COM O PROLETARIADO 21. BREVE OLHADELA NO ÂSHRAM 22. O JEJUM 23. O SATYÂGRAHA DE KHERA 24. “O LADRÃO DE CEBOLAS” 25. FIM DO SATYÂGRAHA DE KHERA 26. A PAIXÃO DA UNIDADE 27. A CAMPANHA DO RECRUTAMENTO 28. NO LIMIAR DA MORTE 29. DILEMA: A LEI ROWLATT 30. EXTRAORDINÁRIO ESPETÁCULO!... 31. SEMANA MEMORÁVEL! - I 32. QUE SEMANA! (II) 33. UM ERRO GRANDE COMO A MONTANHA 34. “NAVAJIVAN” E “A JOVEM ÍNDIA” 35. NO PANJÂB 36. O CALIFADO EM TROCA DA PROTEÇÃO DAS VACAS? 37. O CONGRESSO DE AMRITSAR 38. INICIAÇÃO AO CONGRESSO 39. O NASCIMENTO DE KHÂDI 40. FINALMENTE ENCONTRADA! 41. UM DIÁLOGO INSTRUTIVO 42. A CORRENTE DE NÃO COOPERAÇÃO 43. EM NÂGPUR — ADEUS AO LEITOR Conheça a coleção Grandes Clássicos da LeBooks

1. NASCIMENTO Os Gandhi são da casta Baniya1. Parece que eram, originariamente, merceeiros. Mas durante três gerações, a partir de meu avô, deram Primeiros-Ministros a vários Estados do Kâthiyâvâr2. Uttamchand Gandhi — aliás Ota Gandhi —, meu avô, devia ser homem de princípios. Intrigas políticas forçaram-no a deixar Porbandar3, onde era Diwan4, a fim de procurar refúgio em Junâgarh5. Cumprimentou o Navâb6 com a mão esquerda. Como alguém lhe observasse essa aparente falta de cortesia e lhe perguntasse a razão, respondeu nos seguintes termos: “A minha direita já está ligada por juramento a Porbandar”. Viúvo da primeira mulher, casou-se Ota Gandhi de novo. Tinha quatro filhos do primeiro matrimônio; teve dois da sua segunda esposa. Não creio que, durante toda a minha infância, haja eu percebido ou sabido que os filhos de Ota Gandhi não eram todos do mesmo casamento. O quinto desses seis irmãos era Karamchand Gandhi — aliás Kaba Gandhi; e o sexto, Tulsidâs Gandhi. Ambos foram, sucessivamente, Primeiros-Ministros de Porbandar. Kaba Gandhi era meu pai. Era membro do tribunal rajastânico7. É, atualmente, uma instituição desaparecida, mas, naquele tempo, muito influente, no que dizia respeito à solução de disputas entre chefes e homens do seu clã. Foi algum tempo Primeiro-Ministro em Râjkot8, depois em Bânkâner. Quando morreu, recebia uma pensão do Estado de Râjkot. Kaba Gandhi casou-se quatro vezes sucessivas, havendo-lhe roubado a morte todas as mulheres. Dos dois primeiros casamentos teve duas filhas. A sua última esposa, Putlibâa, deu-lhe uma filha e três filhos, dos quais era eu o mais moço. Meu pai amava o seu clã; era homem de fé, bravo e generoso, mas colérico. Talvez fosse mesmo, de um certo modo, inclinado aos prazeres da carne, pois quando se casou pela quarta vez já havia ultrapassado os quarenta. Mas era íntegro, tinha-se feito uma

merecida reputação de estrita imparcialidade, tanto no seio da família quanto fora. A sua lealdade pelo Estado era bem conhecida. Tendo o assistente de um agente político se referido em termos insultuosos ao seu chefe, o Thâkor Sâhib9, de Râjkot, ele revidou a ofensa. Furioso, o agente exigiu que Kaba Gandhi se retratasse. Recusou-se a fazê-lo e foi, em consequência, detido por algumas horas. Entretanto, diante da atitude inabalável de Kaba Gandhi, o agente ordenou que o libertassem. Meu pai não teve jamais o gosto de entesourar dinheiro e deixounos muito poucos bens. Toda a sua educação fora apenas fruto da experiência. Na melhor das hipóteses, poderia dizer-se que a sua instrução atingia o quinto grau, em gujrate. Ignorava, completamente, a história e a geografia. Mas a sua rica experiência de negócios práticos permitialhe, em compensação, resolver facilmente os problemas mais complexos e dirigir centenas de homens. A sua formação religiosa era mínima; mas possuía aquela espécie de cultura religiosa que as frequentes visitas aos templos e a audição familiar de sermões tornam facilmente acessível a tantos hindus. No fim da vida, a instâncias de um douto brâmane, amigo da família, começou a ler a Gitâ10 e recitava-lhe os versetos em voz alta, todos os dias, à hora da prece. De minha mãe, a memória conserva sobretudo a impressão de uma santa. Era profundamente religiosa. Jamais tomara as suas refeições sem antes fazer as preces cotidianas. Não deixava de ir todos os dias ao Haveli11 — o templo vixnuíta12. Tão longe quanto remontam as minhas lembranças, não me recordo de que ela faltasse alguma vez ao Châturmâs13. A sua escolha tendia para as promessas mais difíceis, e ela observava-as inflexivelmente. A doença jamais lhe servia de pretexto para eximir-se do seu cumprimento. Lembro-me de uma vez em que caiu doente, durante a observância do voto de Chandrâyana14, não permitindo que seu estado de saúde fosse motivo de interrupção dessa observância. Dois ou três jejuns consecutivos nada significavam para ela. Uma só refeição por dia, durante os Châturmâs, era-lhe fato habitual. Não contente com isso, chegou a jejuar dia sim, dia não, durante os Châturmâs. Certa

ocasião fez voto de não se alimentar durante todo o tempo em que o sol estivesse ausente. Nessa época, nós, as crianças, passávamos os dias com a cabeça erguida, a espreitar o sol, esperando que ele aparecesse para anunciá-lo à nossa mãe. Todos sabem que no apogeu da estação das chuvas acontece, frequentemente, que o sol não condescende em aparecer. E lembro-me de certos dias em que, diante de sua súbita aparição, corríamos a anunciar-lhe a nova. Ela vinha fora, a fim de verificar com os próprios olhos, mas, entrementes, o sol esquivo já fugira, privando-a da sua alimentação. “Não importa’’, — dizia alegremente — “Deus não quer que eu coma hoje”. E voltava às suas ocupações. Minha mãe tinha um sólido bom senso. Estava a par de todos os negócios de Estado e as damas da Corte tinham em alta conta a sua inteligência. Muitas vezes eu acompanhava-a, beneficiando-me do privilégio da infância; e lembro-me ainda de muitas discussões animadas, entre ela e a mãe de Thâkor Sâhib, que era viúva. Esses são os pais a quem devo a vida. Nasci em Porbandar — conhecido também pelo nome de Sudâmâpuri15 — no dia 2 de outubro de 1869. Foi em Porbandar que se passou a minha infância. Recordo-me de que me mandaram à escola. Sofri ao lidar com as tábuas de multiplicação. A minha única lembrança dessa época é a de ter aprendido, em companhia de outros meninos, a chamar nosso mestre de toda a espécie de nomes16 — o que dá fortemente a entender que a minha inteligência devia ser tardia, e bruta a minha memória. 2. INFÂNCIA EU devia ter cerca de sete anos quando meu pai foi de Porbandar para Râjkot, onde ingressou no tribunal rajastânico. Mandaram-me à escola primária, e recordo-me perfeitamente dessa época, bem como dos nomes e dos traços particulares dos mestres que me ensinaram. Do mesmo modo que em Porbandar, nada de importante assinala os meus estudos naquela cidade. Só podia ser um aluno medíocre. Dessa escola passei para uma outra, situada fora da cidade; e depois para o liceu, quando já contava doze anos. Não

me lembro de haver mentido, durante esse período, nem aos mestres nem aos colegas. Era muito tímido e evitava toda companhia. Os meus únicos companheiros eram os livros e as lições. Chegava pontualmente à aula; voltava correndo para casa, logo que a aula terminava. Isto era para mim um hábito de todos os dias. E, se voltava correndo, literalmente, era porque não podia suportar o fato de falar com qualquer pessoa. Ia ao ponto de temer que zombassem de mim. Há um incidente, ocorrido no exame que fiz durante o meu primeiro ano de liceu, que merece ser relatado. Mr. Giles, o inspetor, em viagem, viera visitar-nos. Para experimentar a nossa ortografia, ele ditou-nos cinco palavras, entre as quais: “bouilloire”. Cometi um erro. O professor tentou vir em meu socorro, fazendo-me sinal com a ponta do sapato; mas eu recusei-me a entendê-lo. Não podia conceber que ele desejasse ver-me copiar a palavra da ardósia do meu vizinho; acreditava que o professor estava lá para impedir-nos de copiar. Disso resultou que todos os meninos, exceto eu, não cometeram nenhum erro. Apenas eu tinha sido estúpido. Mais tarde o professor tentou convencer-me da minha estupidez, porém em vão. Jamais pude aprender a arte de “copiar”. Não obstante, esse incidente em nada diminuiu o meu respeito por aquele professor. Por natureza, eu não tinha olhos para as faltas dos meus maiores. Em seguida, descobri muitas outras fraquezas do mesmo mestre; mas a minha estima por ele não foi afetada. Por que eu aprendera a executar as ordens dos mais velhos e não a julgar os seus atos. Dois outros incidentes, que remontam à mesma época, ficaram para sempre gravados na minha memória. Eu detestava, em regra, toda a leitura alheia aos meus livros de estudo. Se fazia os meus deveres, era porque devia fazê-los e porque não me agradava ser repreendido pelo professor, nem enganá-lo. Fazia-os, pois, mas com o espírito ausente. E se encontrava dificuldade em fazê-los bem, não podia cogitar, naturalmente, em leituras suplementares. Entretanto, um dia, não sei como, os meus olhos viram um livro que meu pai havia comprado. Kra o Shravana Pitribhakti Nâtaka17 — peça sobre o devotamento de Shravana para com seus pais. Li esse livro com um interesse apaixonado.

Pouco mais ou menos na mesma época, apareceu na cidade uma “troupe” de teatro ambulante. Um dos quadros que me mostraram representava Shravana carregando às costas, com a ajuda de cintos, seus pais cegos, no caminho da peregrinação. A imagem que me ficou e o livro marcaram-me o espírito de modo indelével. “Vê tu um exemplo a seguir”, disse a mim mesmo. A dolorosa lamentação dos pais, diante da morte de Shravana, vive ainda na minha memória. A doce melopeia me comoveu profundamente e eu tocava-a no acordeão que meu pai me havia comprado. Incidente semelhante liga-se a uma outra peça. Mais ou menos na mesma época, obtive de meu pai permissão para ir assistir ao espetáculo que uma companhia dramática dava. A peça em questão — Harischandra18 — conquistou-me o coração. Não me cansava de vê-la. Mas quantas vezes me permitiram assistir a ela? Ela devia contagiar-me e eu devia representá-la Deus sabe quantas vezes. “Por que todo o mundo não é também leal e fiel como Harischandra?” — perguntava a mim mesmo dia e noite. Perseguir a verdade e suportar todas as provas que Harischandra suportou tal foi o grande ideal que essa peça me inspirou. Acreditava na história de Harischandra literalmente. Ao pensar nela, chorava frequentemente. O bom senso me diz hoje que Harischandra não podia ter sido jamais um personagem histórico. E, contudo, ele e Shravana são para mim realidades vivas, e estou certo de que a leitura dessas peças ainda me fará nascer a mesma emoção de outrora. 3. CASAMENTO DE CRIANÇAS Gostaria de não ter que escrever este capítulo; mas sei que me será necessário esvaziar mais de uma taça amarga deste gênero, durante a minha narração. E não poderei proceder de outro modo, se sou, como o pretendo, um fiel zelador da Verdade. Eis pois aqui o meu penoso dever: ser forçado a relatar o meu casamento, com a idade de treze anos. Quando vejo ao meu redor os meninos dessa idade, que confiaram aos meus cuidados, e medito sobre o meu

próprio casamento, sinto-me inclinado a apiedar-me de mim e a felicitá-los por haverem escapado à minha sorte. Não encontro um só argumento moral em favor de casamentos tão ridiculamente precoces. Que o leitor não se equivoque. Trata-se de casamento e não de esposais. Pois, no Kâthiyâvâr, existem dois ritos bem distintos: esposais e casamento. Os esposais são, da parte dos progenitores, uma promessa preliminar de unir pelo casamento as duas crianças, menino e menina e essa promessa não é inviolável. A morte do moço não implica na viuvez da moça. Trata-se de um acordo que só obriga aos pais, e ao qual as crianças ficam alheias. Muitas vezes, mesmo, dele não têm conhecimento. Prometeram-me em casamento três vezes — e eu de nada soube. Contaram-me que duas meninas a mim destinadas haviam morrido sucessivamente; donde concluo que me fizeram noivo três vezes. Lembro-me vagamente, no entanto, de que o terceiro dos meus esposais se verificou no meu sétimo ano de vida. Mas não tenho nenhuma lembrança de haver sido informado do acontecimento. E no presente capítulo é do meu casamento que falo — do qual me recordo muito claramente. Devem lembrar-se de que éramos três irmãos. O primeiro já estava casado. A família decidiu casar ao mesmo tempo meu segundo irmão, três anos mais velho, um primo, um ano mais velho talvez, e a mim próprio. Fazendo assim, não era em nossa felicidade que eles pensavam e ainda menos nos nossos desejos. Era, para a família, uma simples questão de comodidade e de economia. Entre os hindus não há coisa mais simples que o casamento. Os pais dos jovens casados muitas vezes arruínam-se com os festejos. Dissipam os seus bens e malbaratam o seu tempo. Passam-se meses em preparativos — confecções de roupas, de ornamentos, cálculo do orçamento das comidas. Porfiam em ultrapassar um ao outro em quantidade e em iguarias. As mulheres, tenham ou não boa voz, cantam até enrouquecer, até mesmo ficarem doentes, sem consideração pela tranquilidade dos vizinhos. Esses, por sua vez, aceitam pacificamente todo esse tumulto e agitação, toda a acumulação de lixo e imundícies que constituem os restos dos festins, sabendo que virá o dia em que se conduzirão de igual modo.

Seria melhor, pensara a família, livrar-se de uma só vez de todos esses aborrecimentos. Menores despesas, mais brilho19. Pois os gastos seriam mais liberais se fossem feitos uma só vez em lugar de três. Meu pai e meu tio estavam ambos idosos e nós éramos os últimos filhos que tinham para casar. É provável que desejassem proporcionar a si mesmos uma última oportunidade de se divertir. Todas essas considerações fizeram com que se optasse por um tríplice casamento — em face do que, como disse, gastaram meses em preparativos. Esses preparativos foram, para nós, o único sinal do acontecimento futuro. Pessoalmente, não creio ter visto no fato outra coisa senão a perspectiva de belas roupas, tamborins, procissões nupciais, banquetes suntuosos e uma pequena companheira de brinquedos — nova e desconhecida. O desejo carnal apareceu mais tarde. Proponho-me lançar aqui um véu sobre a minha vergonha, exceto no que se refere a uns poucos detalhes que merecem ser notados; voltarei a eles adiante, muito embora poucos tenham a ver com a ideia central que conservo no espírito ao escrever esta narração. Desse modo, pois, meu irmão e eu fomos levados de Râjkot a Por-bandar. O prelúdio do drama final comporta bem alguns detalhes divertidos — principalmente o fato de nos haverem untado o corpo todo com pasta de açafrão —, mas devo deixá-los de lado. Meu pai, embora fosse Diwan, não era menos servidor do Estado; gozava, por isso, dos favores de Thâkor Sâhib. Esse não o deixou partir senão no último minuto. Ao fazê-lo, recomendou para meu pai cavalos especiais que deveriam reduzir em dois dias a duração do trajeto. A sorte, porém, havia decidido de outro modo. Porbandar fica cerca de duzentos quilômetros de Râjkot — cinco dias em carruagem ordinária. Meu pai cobriu a distância em três dias, mas a diligência tombou na terceira etapa e ele ficou gravemente ferido. Chegou coberto de ataduras. O acontecimento próximo perdeu, tanto para ele como para nós, a metade do interesse mas era preciso celebrar a cerimônia. Como transferir a data marcada? A verdade é que, entregue à minha alegria pueril e à diversão do casamento, esqueci a dor que me haviam causado os ferimentos de meu pai. Eu era um filho devotado. Não manifestava, porém, devotamento

menor pelas paixões que dominam a carne. Ainda tinha que aprender que não existe ventura nem prazer que se não deva sacrificar ao serviço devotado dos pais. Entretanto, como para punir-me dos meus apetites carnais, verificou-se um incidente que, depois, jamais deixou de atormentar o meu pensamento e do qual farei mais adiante o relato. Nishkoulânand20 canta. tyag na take re vairâg binâ, kariye kôti upâyjt. A renúncia não subsiste sem o desprendimento, Dez milhões de subterfúgios serão tentados. Sempre que canto este hino, ou que o ouço, aquele amargo e infeliz incidente invade a minha memória e enche-me de vergonha. Meu pai fez boa figura, apesar dos ferimentos, e nada perdeu do casamento. Mesmo hoje, revejo em pensamento, como se lá estivesse, os diferentes lugares que ocupou à medida que se desenrolava a cerimônia. Estava longe de pensar, então, que um dia haveria de criticá-lo severamente por me haver casado tão jovem. Todos aqueles dias me pareceram perfeitos, decentes, agradáveis. Eu próprio estava muito impaciente por me casar. E como todos os atos de meu pai me pareciam, então, acima de qualquer censura, a cena ficou gravada na minha memória. Mesmo hoje não encontro dificuldade em evocá-la. Revejo-me sentado sobre o estrado nupcial, cumprindo o rito de Saptapadi21, e, marido e mulher, recentemente unidos, nos estendíamos mutuamente um pedaço de Kansâr22, açucarado... Depois, estreando na vida em comum... Oh! Aquela primeira noite! — duas crianças inocentes lançandose de cabeça, sem o saberem, no oceano da vida... A mulher de meu irmão havia-me informado, cuidadosamente, acerca da atitude que eu deveria tomar naquela primeira noite. Não sei quem havia instruído a minha mulher; jamais lhe perguntei e nenhum desejo tenho de fazê-lo agora. O leitor pode ficar certo de que estávamos muito intimidados para sustentar a conversa íntima. Demasiado tímidos, decerto... Como falar à minha esposa? E que lhe dizer?... Os conselhos não podiam conduzir-me tão longe. Mas não há realmente necessidade de conselhos em tal assunto: o nascimento não está tão distante

assim que as suas impressões não sejam assaz fortes para tornar supérfluos todos os conselhos. Pouco a pouco começamos a travar conhecimento e a conversar livremente. Tínhamos a mesma idade. Mas não me foi necessário muito tempo para resolver afirmar a minha autoridade de marido. 4. BRINCANDO DE MARIDO A época de meu casamento vendia-se, correntemente, por uma paice ou uma paie23, (esqueci o preço exato), pequenas brochuras que tratavam do amor conjugal, de economia, de casamentos de crianças e de outros temas análogos. Sempre que me caía nas mãos uma dessas brochuras, eu a lia da primeira à última linha e tinha o hábito de esquecer o que me desagradava, bem como o de aplicar e pôr em prática aquilo que me agradava. A inalterável fidelidade do marido pela mulher, inculcada nesses textos como um dever do homem, ficaria impressa para sempre no meu coração. Por outro lado, eu tinha a paixão inata da verdade: enganar minha mulher estava, pois, fora de cogitação. Afinal, havia muito poucas oportunidades para que eu fosse infiel, em idade tão tenra. Mas essa lição de fidelidade teve também um efeito desastroso. “Se estou determinado a ser fiel à minha mulher, ela deve tomar a mesma determinação em relação a mim” — pensei eu. E essa ideia fez de mim um marido ciumento. O dever que lhe cabia transformouse facilmente em direito, para mim, de exigir imperiosamente que ela me fosse fiel; e se era preciso fazer uma tal exigência, tinha que zelar tenazmente pelo meu direito. Não tinha o menor motivo para suspeitar da fidelidade de minha mulher; mas o ciúme não necessita de motivos. Forçosamente, devia permanecer perpetuamente atento a suas ações e gestos; não podia ir a parte alguma sem a minha permissão. Isso foi uma fonte de amargas disputas entre nós. Esse constrangimento redundava virtualmente para ela numa espécie de reclusão! E Kasturbâi não era mulher para suportar esse gênero de coisas. Constituía um ponto de honra, para ela, o sair quando e para onde lhe aprouvesse. Quanto mais eu a cerceava, mais afirmava ela a sua liberdade e mais eu me irritava. A recusa de nos dirigirmos a

palavra tornou-se assim moeda corrente entre as duas crianças que éramos. Não creio que fosse com inteira inocência que Kasturbâi tomava essas liberdades em face do constrangimento que eu lhe impunha. De que modo uma jovem, direita e sem astúcia, podia suportar que a impedissem de ir ao tempo ou de visitar as suas amigas? Se eu tinha o direito de lhe impor restrições, não se dava o mesmo com ela? Tudo isso me parece evidente hoje, mas naquela época eu tinha que afirmar a minha autoridade de marido! Não imagine o leitor, porém, que a nossa vida foi apenas amargura sem trégua. Pois minha severidade tinha por fundamento o amor. Queria fazer de minha mulher uma esposa ideal. A minha ambição era fazê-la levar uma vida pura, aprender o que eu havia aprendido, identificara sua vida e o seu pensamento com os meus. Não sei se Kasturbâi alimentava a mesma ambição. Ela era iletrada. A sua natureza conduzia-a para a simplicidade, para a independência, para a perseverança e, ao menos comigo, para a reticência, fila não experimentava a menor impaciência pela sua ignorância e não me recordo de que os meus estudos a houvesse algum dia incitado a lançar-se em aventura semelhante. O que me levou a imaginar que a minha ambição era puramente unilateral. A minha paixão concentrava-se toda sobre uma só mulher e eu queria ser correspondido do mesmo modo. Contudo, mesmo que não houvesse reciprocidade, a nossa vida não podia ser inteiramente infeliz; quanto mais não fosse, ao menos uma das partes contratantes era efetivamente amorosa. Devo dizer que, pelo menos com relação à minha mulher, eu era muito sensual. Mesmo em aula, pensava constantemente nela; e a ideia de reencontrá-la ao fim do dia não cessava de me espicaçar. A separação era-me intolerável. Acontecia-me frequentemente conservá-la acordada, tarde da noite, para escutar a minha ociosa tagarelice. Se, paralelamente a essa paixão carnal, eu não tivesse um agudo senso do dever, haveria dissipado a minha saúde a ponto de me expor à morte prematura, ou a arrastar uma existência lamentável, penosa para os outros e para mim próprio. Mas as tarefas fixadas deviam ser executadas todas as manhãs, e mentir a quem quer que fosse estava fora de cogitações. Foi essa última circunstância que me salvou de mais de uma queda no abismo.

Disse que Kasturbâi era iletrada. Eu desejava extremamente ensinar-lhe, mas o amor carnal não me deixava tempo. O ensinamento devia ser feito contra a sua vontade e, o que é mais, à noite. Por que, em presença dos mais velhos, eu não ousava encontrá-la nem falar-lhe; o Kâthiyâvâr tinha então e tem hoje, numa certa medida, seu pardah24 (20), bem particular, inútil e bárbaro. As condições não eram, portanto, favoráveis. E devo reconhecer que a maior parte dos meus esforços por instruir Kasturbâi, durante a nossa juventude, foram vãos. Quando despertei do sono da sensualidade, já me havia lançado na vida pública e não me restavam mais afazeres. Não obtive, com ela, melhores resultados, ao recorrer a professores particulares. Resultou daí que Kasturbâi, hoje, dificilmente lê ou escreve o gujrate mais simples. Estou certo de que, se o meu amor por ela não fosse absolutamente contaminado de desejo, ela seria agora mulher cheia de ciência; por que eu haveria podido, então, vencer a sua aversão ao estudo. Sei que ao puro amor nada é impossível. Fiz alusão a uma circunstância particular que me salvou mais ou menos do desastre do amor carnal. Há uma outra que merece ser referida. Numerosos exemplos me têm convencido de que Deus acaba sempre por salvar aqueles cuja intenção permanece pura. Paralelamente ao cruel costume do casamento de crianças, a sociedade hindu observa um outro, que, até certo ponto, atenua os males decorrentes do primeiro. Os pais não permitem que os jovens casais fiquem muito tempo juntos25. A mulher-criança passa mais da metade do tempo com seu pai. Assim aconteceu conosco. Melhor dito: durante os cinco primeiros anos da nossa vida conjugal (dos treze aos dezoito anos), tivemos, certamente, um pelo outro e ao todo, apenas três anos de vida em comum. Mal passávamos seis meses juntos, minha mulher era chamada para perto de seus pais. Esse gênero de convocação era muito mal recebido na época; mas nos garantia a saúde aos dois. Aos dezoito anos parti para a Inglaterra; o que significou uma longa e salutar separação. Mesmo depois do meu regresso da Inglaterra, raramente passamos mais de seis meses juntos. Pois eu tinha que ir e voltar frequentemente de Râjkot a Bombaim. Depois fui chamado à África do Sul e a partida encontrou-me razoavelmente libertado dos apetites carnais.

5. O COLÉGIO Já disse que frequentava o liceu na época do meu casamento. Os meus dois irmãos e eu estávamos na mesma escola; o mais velho em classe bem superior, e o outro, que se havia casado ao mesmo tempo que eu, na classe abaixo da minha. A nós dois o casamento fizera perder, definitivamente, um ano. O resultado foi ainda pior para a meu irmão: renunciou por completo aos estudos. Deus sabe quantos jovens sofrem a mesma sorte desastrosa! É só na sociedade hindu que veem os estudos e o casamento ir assim de par em par. Quanto a mim, prossegui os meus estudos. No liceu não me considerava como um câncer. Sempre gozei da afeição dos meus mestres. Era costume enviar aos pais, anualmente, certificados de progresso e de conduta. Nunca os tive maus. Na verdade, recebi mesmo prêmios, ao passar o segundo grau. No quinto e no sexto ano, obtive bolsas de quatro e de dez rupias, respectivamente — sucesso que devi mais à sorte que a meu mérito. Por que nem todos podiam concorrer às bolsas? elas eram reservadas aos melhores alunos provenientes da Divisão Administrativa de Sorath26, no Kâthiyâvâr. E, naquele tempo, não podia haver muitos alunos provenientes daquela Divisão, numa classe de quarenta a cinquenta crianças. Pessoalmente, não me recordo de haver tido em grande estima a minha capacidade. Ficava sempre espantado ao obter prêmios e bolsas. Mas exercia uma vigilância ciumenta sobre a minha conduta. O menor acidente fazia com que me viessem lágrimas aos olhos. Se eu merecia, ou parecia merecer aos olhos do mestre, ser repreendido, isto me era intolerável. Lembro-me de haver recebido uma vez um castigo corporal. Afetou menos o castigo que o fato de o haverem considerado merecido. Chorei miseravelmente. Era então aluno do primeiro ou segundo grau. Verificou-se um incidente análogo quando estava no sétimo ano. Dorâbji Edalji Gimi27 era então diretor. Era popular entre os alunos por ser homem de disciplina, de método e bom professor. Com ele, a ginástica e o “cricket” tornaram-se obrigatórios para as classes superiores. Eu detestava tanto uma como o outro. Jamais havia participado

de algum exercício esportivo, “cricket” ou “football’, antes que os tornassem obrigatórios. Era em parte por timidez que me conservava arredio; o que, vejo-o bem hoje, era um erro. Alimentava então a falsa ideia de que a ginástica nada tinha em comum com a educação. Sei agora que a cultura física deve ter, nos programas, o mesmo lugar que a formação do espírito. Que me seja permitido dizer, portanto, de passagem, que não fiz muito mal em me abster desses exercícios. É que eu havia lido nos livros o benefício que resulta idas longas caminhadas ao ar livre; o conselho agradara-me e adquiri o hábito do passeio, hábito que para sempre conservei. É a essas caminhadas que devo uma constituição bastante sólida. Se não gostava da ginástica era porque tinha o vivo desejo de velar de perto pela saúde e o bem-estar de meu pai. Assim que a aula terminava, corria para casa e punha-me ao seu serviço. A ginástica obrigatória contrariava esse devotamento. Pedi ao Sr. Gimi que me dispensasse dela, a fim de ficar livre para ocupar-me de meu pai. Recusou-se a ouvir-me. Ora, aconteceu que um sábado, dia em que não tínhamos aula pela manhã, devia eu sair de casa para a escola, para a ginástica, às quatro horas da tarde. Não tinha relógio e o céu nublado enganou-me. Quando cheguei, todos os outros haviam partido. Na aula seguinte o Sr. Gimi, consultando o caderno de presença, encontrou o meu nome na lista dos ausentes. Perguntoume o motivo; respondi-lhe o que me havia sucedido. Recusou-se a acreditar e ordenou-me que pagasse uma multa de um ou dois anás (esqueci o montante exato). Acusavam-me de mentira! Fiquei profundamente sentido. Como provar a minha inocência? De nenhum meio dispunha para fazê-lo. Chorei, no cúmulo da angústia. Percebi que a verdade não podia estar separada da prudência. Esse exemplo de negligência na escola foi o primeiro e o último que me permiti. Lembro-me vagamente de que acabei por conseguir que me relevassem a multa. A dispensa da ginástica foi, bem entendido, concedida depois que meu pai, pessoalmente, escreveu ao diretor, dizendo-lhe que tinha necessidade de mim em casa, depois da aula. Mas, se não me causou dano o haver negligenciado a ginástica, expio até agora outra negligência. Ignoro onde fui descobrir a ideia de

que uma boa letra não é elemento essencial de educação. Mas o fato é que a conservei até à minha permanência na Inglaterra. Desde que, mais tarde, na África do Sul, observei a esplêndida letra dos homens da lei e dos jovens nascidos e educados naquele país, tive vergonha de mim e arrependi-me dessa negligência. Compreendi que uma letra má deve ser considerada como um sinal de educação imperfeita. Esforcei-me, em seguida, por melhorar a minha, mas era demasiado tarde. Jamais pude reparar essa negligência na minha juventude. Que o meu exemplo seja uma advertência aos jovens dos dois sexos: que eles compreendam que uma boa grafia é elemento essencial de uma boa educação. Sou hoje da opinião de que devia ensinar-se às crianças a arte do desenho antes da caligrafia. Que a criança recorra à observação para aprender as suas letras, como faz para discernir os objetos — flores, pássaros etc.; e que ela não aprenda a escrever senão quando souber desenhar as coisas. Terá então uma letra bem formada. Duas outras lembranças da minha vida escolar merecem menção. O meu casamento fizera-me perder um ano, e meu professor quis compensar esse atraso fazendo-me pular uma classe — privilégio reservado de ordinário aos alunos zelosos. Fiquei, pois, apenas seis meses no terceiro ano e passei para o quarto, depois dos exames que precediam as férias do verão. A partir do quarto ano, o inglês tornava-se a língua obrigatória, na qual se fazia a maior parte do curso. Encontrei-me completamente embaraçado. A geometria era uma novidade e não era particularmente o meu forte; o emprego do inglês não me facilitava as coisas. O professor era mestre excelente, mas eu não conseguia segui-lo. Frequentemente perdia a coragem e pensava em voltar para o terceiro ano, com o sentimento de que acumular um programa duplo num só ano era demasiado ambicioso. Apenas o descrédito recairia tanto sobre o meu mestre quanto sobre mim: contando com a minha aplicação, o professor não recomendara que me fizessem pular um ano? Assim, o temor desse duplo descrédito fez-me permanecer fiel no meu posto. Quando, entretanto, não sem grandes esforços, cheguei a décima terceira proposição de Euclides, a extrema simplicidade dessa matéria foi-me subitamente revelada. Matéria que exigia apenas o exercício puro e simples da razão não podia ser difícil. Depois, a geometria jamais deixou de me

parecer fácil e de me interessar. O sânscrito, porém, mostrou-se mais árduo. Em geometria nada havia para decorar. No sânscrito era, parecia-me, exatamente o contrário. Essa matéria era também estudada no quarto ano. Com a minha entrada no sexto ano, perdi a coragem. O professor era “duro”, inexorável, desejoso, segundo eu pensava, de atormentar os seus alunos. Kxistia uma espécie de rivalidade entre os professores de sânscrito e de persa. O professor de persa era indulgente. Os alunos diziam entre si que persa era muito fácil e o professor excelente e cheio de considerações por eles. A “facilidade” tentou-me e eu tomei lugar um dia nos bancos da classe de persa. O professor de sânscrito melindrou-se. Chamou-me e disse: — Como podes esquecer que és filho de um pai Vaishanova28? Não queres aprender a língua da tua religião? Se encontras dificuldades, por que não me procuras? Tento ensinar o sânscrito do melhor modo que posso. À medida que progredires, descobrirás coisas de um interesse apaixonante. Não te devias desencorajar. Volta a seguir o curso de sânscrito. Tanta bondade envergonhou-me. Impossível não tomar em consideração a afeição do meu mestre. Hoje não posso lembrar-me senão com gratidão de Krishnashankar Pandya29. Por que, se eu não houvesse aprendido o pouco de sânscrito que então me ensinou, dificilmente poderia interessar-me pelos nossos livros sagrados. De fato, lamento vivamente não haver podido estudar melhor essa língua, compreendendo, depois, que todos os jovens hindus, moços e moças, deviam ter dela um sólido conhecimento. A minha opinião, hoje, é que, em todos os programas de ensino superior, nas Índias, devia haver um lugar para o hindi, para o sânscrito, o persa, o árabe e o inglês, ao lado, bem entendido, da língua materna. Uma tal lista não deve espantar ninguém. Se o nosso sistema de educação fosse mais rigoroso, se os alunos fossem libertados da carga que constitui o emprego de uma língua estrangeira no ensino que lhes dão, estou certo de que o estudo de todos esses idiomas, longe de ser uma penitência, seria um perfeito prazer. O conhecimento científico de uma só língua basta para tornar o das outras comparativamente fácil. Na realidade, o hindi, o gujrate e o sânscrito podem passar por

uma só e mesma língua, assim como o persa e o árabe. Se bem que o persa pertença à família ariana e o árabe à semítica, existe uma estreita ligação de parentesco entre essas duas línguas, que, tanto uma como a outra, devem o seu pleno desenvolvimento ao arrojo do Islame. Jamais considerei o urdu como língua diferente: pelo fato de haver adotado a gramática hindi e porque o seu vocabulário está cheio de árabe e persa. Quem deseja aprender bem o urdu deve começar pelo persa e o árabe; como, para bem aprender o gujrate, o hindi, o bengali ou o marata é preciso começar pelo sânscrito30. 6. A TRAGÉDIA Entre os meus raros amigos de liceu, dois houve que, em épocas diferentes, mereceram talvez o nome de íntimos. Uma dessas amizades foi de breve duração, embora, de minha parte, jamais a tenha traído. Foi meu amigo quem me traiu, porque a outro me liguei. Considero esse último laço como unia tragédia na minha vida. Foi tenaz e eu o atei com o espírito de reforma. Esse companheiro fora, a princípio, amigo do meu irmão mais velho, do qual era colega de classe. Eu conhecia as suas fraquezas), mas considerava-o um amigo fiel. Minha mãe, meu irmão mais velho e minha mulher preveniram-me contra a sua má companhia. Eu era demasiado altivo para tomar em consideração a advertência de minha mulher. Mas não ousava ir de encontro à opinião de minha mãe e de meu irmão mais velho. Não obstante, argumentava com eles: “Sei que tem as fraquezas de que falam, mas vocês ignoram suas virtudes. Ele não pode desviar-me para o mau caminho a minha ligação tem por finalidade reformá-lo, porque estou certo de que, se reformar a sua conduta, se tornará um homem esplêndido. Suplicolhes que não se inquietem a meu respeito”. Não creio que isso lhes satisfizesse, mas aceitaram as minhas explicações e deixaram-me agir pela minha cabeça. Depois, vi que estava enganado em meus cálculos. Um reformador não pode permitir-se estreita intimidade com a criatura que procura transformar. A verdadeira amizade consiste numa identidade de almas que é difícil de encontrar-se neste mundo. É apenas, entre naturezas

semelhantes que pode formar-se a amizade perfeitamente digna desse nome e durável. Dois amigos reagem um sobre o outro. Seguese que a amizade deixa pouco lugar para a reforma. Sou da opinião de que convém evitar toda a intimidade exclusiva; pois aceitamos mais facilmente o vício do que a virtude. E quem deseja a amizade de Deus deve permanecer só ou ter o mundo inteiro por amigo. Talvez esteja enganado, porém os meus esforços por cultivar a intimidade na amizade conduziram, na prática, somente a fracassos. Uma vaga de “reforma” inundava Râjkot na época em que travei conhecimento com esse amigo. Ensinou-me que muitos dos nossos mestres comiam carne em segredo e bebiam vinho31. Designou-me também diversas personalidades de Râjkot que, dizia, pertenciam ao mesmo grupo, do qual faziam parte, igualmente, liceanos, a crer-se nele. Fiquei surpreendido e penalizado. Pergunte-lhe qual a razão que assim os fazia proceder, e sua explicação foi a seguinte: — Somos um povo fraco, porque não comemos carne. Se os ingleses podem governar-nos é porque são carnívoros. Sabes como sou resistente e como corro bem. É porque sou carnívoro. Os carnívoros não têm furúnculos nem tumores se lhes acontece tê-los, curam-se rapidamente. Os nossos mestres, que, como certas pessoas distintas, comem carne, não são idiotas. Conhecem as virtudes desse alimento. Deves agir do mesmo modo. Basta apenas tentar. Experimenta e vê por ti mesmo a força que ganharás. Todo esse arrazoado em favor ida alimentação carnal não foi objeto de uma única sessão. Sintetiza a substância de uma longa e laboriosa argumentação com a qual ele se esforçava por convencerme, de quando em quando. Meu irmão mais velho já se havia rendido. Sustentava, pois, a argumentação do meu amigo. Eu tinha, certamente, ao lado deles, um aspecto débil. Ambos eram muito mais resistentes, mais fortes fisicamente, mais audaciosos. Deixei-me encantar pelas façanhas desse amigo. Podia correr muito e com extraordinária rapidez. O salto em altura e em comprimento não tinha segredos para ele. Podia suportar os mais rudes castigos corporais. Frequentemente expunha a meus olhos as suas façanhas e, como se fica sempre deslumbrado ao ver os outros possuírem qualidades que não se tem, fiquei deslumbrado com os sucessos do meu amigo. Do

que resultou um vivo desejo de assemelhar-me a ele. Eu mal podia saltar ou correr. Por que não me tornar tão forte quanto ele? Ademais, eu era poltrão. Vivia sempre assaltado pelo medo aos ladrões, aos fantasmas, às serpentes. Não ousava pôr o pé na rua, à noite. A escuridão aterrorizava-me. Era-me quase impossível dormir no escuro: imaginava fantasmas saindo de um canto, ladrões de um outro, e serpentes de um terceiro. Parecia-me insuportável dormir sem luz no quarto. De que modo confessar os meus receios à minha mulher que repousava a meu lado? Ela ultrapassara a infância e encontrava-se no limiar da adolescência... Sabia-se mais corajosa que eu, e tinha vergonha. O medo das serpentes, dos fantasmas, eralhe desconhecido. Podia ir, não importa aonde, no escuro. O meu amigo estava a par de todas essas fraquezas: ele, dizia-me, podia segurar serpentes vivas com as mãos, desafiar os ladrões e não acreditava em fantasmas. Tudo isso, bem entendido, porque era carnívoro. Uma cópia do poeta gujrate Narmand32 estava em moda entre nós, liceanos — cópia que dizia: Vêde o inglês, como é forte E subjuga o indiano mesquinho; Se não fosse um grande carnívoro Não teria tanta altivez. Tudo isto não tardou em produzir os seus efeitos. Fui vencido. A ideia de que era bom comer carne e de que eu adquiriria força e audácia cresceu em mim, bem como a convicção de que, se o país inteiro seguisse esse regime, o inglês não seria mais o patrão. Com o que, combinamos um dia para começar a experiência. Era preciso realizá-la em segredo. Os Gandhi eram vixnuítas. Meus pais, principalmente, estavam enraizados em sua fé. Iam regularmente ao Haveli. A minha família tinha mesmo os seus templos particulares. O jainismo33 era poderoso no Gujrate e a sua influência se fazia sentir em todos os lugares e em todas as ocasiões. A oposição ao regime carnal, o horror que inspirava, no Gujrate, entre jainos e vixnuítas, não apareciam com tanta força em nenhuma parte, fosse nas Índias, fosse em qualquer outro país do mundo. E eu nascera, fora criado, no

meio dessas tradições. Nutria uma extrema devoção por meus pais. Sabia que, no dia em que viessem a saber que eu havia tocado em carne, o escândalo seria fatal. Por outro lado, o meu amor à verdade exagerava ainda mais os meus escrúpulos. Não posso dizer que ignorava então, que me seria necessário enganar os meus pais, se começasse a comer carne. Mas o meu espírito estava todo cheio do desejo de “reforma”. Não se tratava de satisfazer o meu paladar. Não achava que a carne tivesse particularmente bom gosto. Desejava tornar-me forte e audacioso; queria a mesma coisa para os meus compatriotas, a fim de que pudéssemos vencer os ingleses e libertar a Índia. A palavra Svarâj34 era-me ainda desconhecida. Mas sabia o que significava a liberdade. O meu furor de “reforma” cegava-me. E, cercando-me de segredo, convenci-me de que o simples fato de esconder o meu ato a meus pais não era um golpe na verdade. 7. A TRAGÉDIA (Continuação) Veio afinal o famoso dia. É-me difícil descrever, exatamente, o meu estado de espírito. Havia, de um lado, o meu zelo de “reforma” e a novidade de um passo capital na vida. De outro lado, a vergonha de esconder-me como um ladrão para uma tal empresa. Não sei dizer qual dos dois era o mais forte. Partimos à procura de um recanto solitário, à beira do rio, e foi lá que vi, pela primeira vez, a carne. Havia também pão. Nenhum desses alimentos me entusiasmou. A carne de cabra era dura como couro; não pude mesmo engoli-la. Tive náuseas e fui forçado a renunciar a comê-la. Depois disso, passei uma noite espantosa. Um pesadelo horrível me assaltou. Cada vez que adormecia, parecia-me que uma cabra viva se punha a gemer em mim e eu acordava sobressaltado, cheio de remorsos. Mas, então, dizia a mim próprio que comer carne era um dever e isso me restituía a tranquilidade. O meu amigo não era homem para renunciar facilmente. Resolveu preparar toda a espécie de pratos delicados que levassem carne e apresentá-los de modo agradável. Para comer, não foi mais o recanto escondido à beira do rio que procuramos, mas um grande estabelecimento — salão de refeições, mesas e cadeiras — com o

qual o meu amigo se havia entendido, assegurando-se da cumplicidade do cozinheiro-chefe. A isca foi boa. Venci a minha aversão pelo pão, reneguei a minha piedade pelas cabras e tornei-me apreciador dos pratos à base de carne, senão da própria carne. Isso durou cerca de um ano. Mas esses prazeres carnívoros não ultrapassaram meia dúzia de festins: o estabelecimento não estava disponível todos os dias e, evidentemente, não era fácil nos entregarmos frequentemente a saborosos, mas caros preparativos culinários. Eu não tinha com que cobrir as despesas dessa “reforma”. Era o meu amigo quem procurava, sempre, os fundos necessários. Ignorava onde os achava. Mas nunca estava desprevenido, pois havia decidido fazer de mim um carnívoro. Isso não impedia que os seus próprios recursos fossem limitados daí a necessidade de longos intervalos entre os nossos banquetes. Sempre que se apresentava a ocasião de entregar-me a essas suntuosidades sub-reptícias, não jantava em casa. Minha mãe chamava-me naturalmente para jantar e queria saber as razões da minha recusa, "estou sem apetite hoje” — dizia-lhe eu —, “estou com o estômago desarranjado.” Não era sem remorsos que inventava esses pretextos. Sabia que estava a mentir, e à minha mãe. Sabia também que, se minha mãe e meu pai viessem a saber que me tornara carnívoro, ficariam transtornados. E isso despedaçava-me o coração. Em consequência, disse a mim mesmo: “Embora seja essencial comer carne e, também, fazer campanha por uma “reforma” do regime alimentar do país, enganar os pais e mentir-lhes é, contudo, mais grave do que não comer carne. Assim, enquanto eles estiverem vivos, não devo comer carne. Quando já não existirem e for livre, comerei abertamente. Mas, até lá, devo abster-me”. Comuniquei essa decisão ao meu amigo e, depois, nunca mais loquei em carne. Meus pais jamais souberam que dois de seus filhos se haviam tornado carnívoros. Foi o mais puro desejo de não mentir a meus pais que me levou a abjurar a carne. Mas não abjurei, por isso, a companhia do meu amigo. O meu ardente desejo de “reformá-lo” resultará num desastre e, durante todo o tempo, esse fato me escapara.

Essa mesma associação acabou por levar-me a trair minha mulher; e a minha saúde sustentou-se apenas por um fio. O meu amigo levou-me, uma vez, a uma casa de tolerância. Fez-me transpor o umbral, munido de todas as instruções necessárias. Tudo havia sido antecipadamente arranjado. Até o dinheiro já havia sido pago. O resto dependia apenas de mim. Entrei, pois, naquela casa; mas Deus, em Sua infinita misericórdia, protegeu-me contra mim mesmo. Fui quase ferido de cegueira e de mutismo naquele antro do vício. Senteime no leito, perto da mulher; a minha língua, porém, imobilizou-se. A mulher, naturalmente, perdeu a paciência e mostrou-me a porta, cobrindo-me de injúrias e de insultos. No momento, tive a sensação de haver sido ofendido em minha virilidade e, de vergonha, desejei que a terra me engolisse. Mas, depois, agradeci a Deus por me haver salvado. Lembro-me de quatro incidentes semelhantes em minha vida e, na maioria deles, devo a saúde mais à boa sorte do que a um esforço de minha parte. Do estrito ponto de vista da ética, tais casos só podem ser considerados como desfalecimentos morais: o desejo carnal lá estava, e esse valia o ato. Mas, do ponto de vista corrente, todo aquele que escapa à consumação física do pecado é tido por salvo. Eu me salvei somente nesse sentido. Há ações das quais escapar é uma bênção, tanto para o sujeito como para os que o cercam. O homem, desde que lhe volta a consciência do bem, dá graças à misericórdia divina que lhe permitiu evadir-se. Se sabemos que o homem sucumbe frequentemente à tentação, seja qual for a resistência que ofereça, sabemos também que a Providência intercede frequentemente e o salva a despeito dele mesmo. De que modo tudo isso se produz? Até que limites o homem é livre e até que limites é apenas fruto das circunstâncias? Até onde vai o papel do livre arbítrio e onde é que o destino entra em cena?... Mistério e mistério eterno. Mas voltemos à nossa narração... Mesmo esse incidente não logrou abrir-me os olhos para o caráter pernicioso da minha ligação. Tive que sorver mais de uma taça amarga, antes que o meu próprio amigo se encarregasse de abrir-me os olhos, fazendo diante de mim a demonstração dos erros que eu não esperava da sua parte. Mas cada coisa a seu tempo, pois que progredimos cronologicamente. Há uma coisa, contudo, da qual devo falar desde já, porque

pertence ao mesmo período. Uma das razões das minhas disputas com a minha mulher era, sem dúvida, as minhas relações com esse amigo. Eu era ao mesmo tempo um marido ciumento e devotado; o meu amigo atiçava o fogo, avivando as minhas suspeitas sobre a minha mulher. Jamais poderia haver duvidado de sua veracidade; Nunca pude perdoar-me as violências de que me tornei culpado, atormentando, frequentemente, minha mulher por atos que ele me havia inspirado. Talvez não exista outra mulher como a hindu para suportar esse gênero de provação; eis por que sempre olhei a mulher como uma encarnação da paciência nas provações. Um criado de quem se suspeita injustamente tem a liberdade de deixar o seu lugar; um filho, no mesmo caso, de abandonar o teto paterno; um amigo, de pôr fim à amizade. A esposa, se suspeita do seu marido, calar-se-á. Se é o marido quem dela suspeita, está perdida. Para onde poderá ir? A mulher hindu não pode pedir o divórcio aos tribunais. A lei não lhe oferece nenhum recurso. E jamais esquecerei, nunca me perdoarei o fato de haver conduzido minha mulher a tanto desespero. Só consegui extirpar de mim o câncer da dúvida, depois que compreendi o Ahimsâ35 em todo o seu conteúdo. Apareceu-me, então, em sua glória o Brahmacharya36 e compreendi que a mulher não é a escrava do marido, mas sua companheira e seu sustentáculo, a associada que tem parte igual nas alegrias e nas penas — tão livre, quanto o marido, de escolher o seu próprio caminho. Cada vez que penso naqueles dias sombrios de dúvida e de suspeita, a minha loucura, a crueldade do meu desejo enche-me de desgosto e deploro a cegueira da minha devoção por aquele amigo. 8. FURTO E EXPIAÇÃO Resta-me relatar certas fraquezas que se situam antes e durante aquele período em que comi carne — de um lado e do outro do meu casamento no tempo. Com um dos meus parentes, tomei gosto pelo fumo. Não que fumar nos parecesse bom, ou que o odor do cigarro nos arrebatasse além da medida. Simplesmente, pensávamos experimentar uma espécie de prazer ao exalar nuvens de fumaça. Meu tio era fumante e

o vê-lo incitava-nos a imitá-lo. Mas não tínhamos dinheiro. Começamos, pois, por apanhar as pontas de cigarro que meu tio deitava fora. Acontecia, porém, que nem sempre as encontrávamos e que elas não constituíam material muito generoso. Pusemo-nos então a furtar os criados, subtraindo algum dinheiro miúdo dos seus bolsos, a fim de comprar cigarros indianos. Mas esconder os cigarros é que era o problema. Naturalmente, não podíamos fumar na presença dos mais velhos. De qualquer modo, os níqueis roubados permitiam que nos aprovisionássemos durante algumas semanas. Entrementes, ouvidos dizer que a haste de uma certa planta37 era porosa e que se podia fumá-la como se faz com o cigarro. Procuramo-la e eis-nos fumando esse novo produto. Mas isso estava longe de satisfazer-nos. A necessidade de independência rugia em nós. Nada poder fazer sem a permissão dos mais velhos... — era intolerável! Finalmente, por puro e simples desgosto, decidimos suicidar-nos! Mas como fazê-lo? Onde obter o veneno? A semente de Dhatura, diziam, era um veneno eficaz. Tomamos pois o caminho da floresta, em busca dessas sementes, das quais fizemos provisão. A tarde pareceu-nos a hora propícia. Fomos ao Kedârji Mandir38, alimentamos com manteiga derretida a lâmpada do culto, recebemos o darshan39, e depois procuramos um canto retirado. Mas faltou-nos a coragem. Se a morte não fosse instantânea? E de que serviria matar-nos? Não seria melhor resignarmo-nos à falta de independência? Não tomamos mais do que duas ou três sementes, sem ousar engolir o resto. Lutamos ambos, rebelados ante a ideia de morrer. Decidimos ir ao Râmji Mandir para reencontrar a tranquilidade de espírito e afastar o pensamento de suicídio. Inteirei-me de que era mais fácil resolver do que cometer o suicídio. E, desde então, sempre que me falam de alguém que ameaça matar-se, já não me impressiono, para não dizer que isso me deixa perfeitamente frio. O pensamento de suicídio teve, afinal, por resultado, fazer com que renunciássemos ao hábito de fumar as pontas de cigarro e de furtar os níqueis dos domésticos para conseguir fumo.

Nunca, depois que atingi a idade adulta, tive desejo de fumar; e sempre considerei esse hábito como bárbaro, repugnante e nocivo. Jamais compreendi por que o mundo inteiro está possuído de tal sofreguidão pelo fumo. Não posso suportar viajar num compartimento atulhado de fumantes. Sinto-me imediatamente sufocado. Não obstante, infinitamente mais grave do que esse furto, foi o de que me tornei culpado pouco mais tarde. A subtração dos níqueis situa-se nos meus doze ou treze anos, talvez mesmo antes. Tinha quinze, quando cometi o outro. Desta vez foi um pedaço de ouro que furtei do bracelete de meu irmão comedor de carne. Esse último tinha contraído uma dívida de cerca de vinte e cinco rupias. Usava no braço um bracelete de ouro maciço. Era facílimo arrancar-lhe um pequeno pedaço. Por minha fé, foi o que fiz; e a dívida foi liquidada. Mas esse gesto não tardou em pesar-me atrozmente. Tomei a resolução de jamais furtar. Decidi, também, tudo confessar a meu pai. Mas não ousava fazê-lo de viva voz. Não que me contivesse o medo de apanhar. Não. Não tenho lembrança de que meu pai batesse, alguma vez, em qualquer de nós. Eu temia a mágoa que iria causar-lhe. Mas senti que me era preciso correr o risco e que somente uma confissão completa poderia purificar-me. Finalmente, resolvi escrever a minha confissão para submetê-la a meu pai e pedir o seu perdão. Escrevi-a num pedaço de papel e entreguei-lhe pessoalmente. Nela não confessava somente a minha falta; reclamava um castigo apropriado e terminava suplicando-lhe que não e castigasse a si mesmo para expiação de minha ofensa. Igualmente, jurava nunca mais roubar. Eu tremia ao estender a meu pai essa confissão. Ele sofria então de uma fístula e guardava o leito, que era uma prancha nua ide madeira. Estendi-lhe o meu escrito e sentei-me na outra extremidade da prancha. Leu o papel sem perder uma linha e as lágrimas brilharam, deslizando sobre as suas faces e molhando a folha. Fechou os olhos, um instante, para refletir depois, rasgou o pedaço de papel. Ele haviase sentado para ler. Deitou-se de novo. Eu também chorava. Podia ver que ele sofria atrozmente. Fosse eu pintor e ainda hoje me seria fácil fixar toda a cena, tão viva ela permanece no meu espírito.

Essas lágrimas de dor e de amor purificaram o meu coração, lavando-o do pecado. É preciso haver experimentado amor semelhante para conhecer-lhe a exata qualidade. Como diz o cântico40: Aquele que é traspassado pelos dardos de Râm, Conhece-lhes o poder. Isso foi para mim um curso prático de Ahimsâ. Naquele momento, vi apenas o amor de um pai; mas, hoje, sei que era o Ahimsâ em toda a sua pureza. Quando o Ahimsâ abarca assim todas as coisas, nada existe que ele toque sem transformar. O seu poder é ilimitado. Essa espécie de sublime perdão não era natural em meu pai. Eu esperava a sua cólera, palavras duras; vê-lo esmurrar a cabeça. E encontrei-o extraordinariamente calmo — graças, estou convencido, à minha confissão absoluta. A confissão sem reservas, unida à promessa de jamais cometer o pecado, desde que feita a quem tenha o direito de recebê-la, é o modo mais puro de arrependimento. Sei que a minha confissão deu a meu pai a certeza do meu arrependimento e a sua afeição por mim aumentou desmesuradamente. 9. MORTE DE MEU PAI E DUPLA VERGONHA PARA MIM O período de que se trata aqui ocupa o meu décimo sexto ano de vida. Meu pai, já o vimos, estava acamado e sofria de uma fístula. Minha mãe, um velho criado fiel e eu éramos os seus principais acompanhantes. Eu preenchia os deveres de enfermeiro, quer dizer, substancialmente, que lhe pensava a ferida, administrava a poção e preparava os remédios que se deviam fazer em casa. Todas as tardes fazia-lhe massagens nas pernas e só me retirava quando ele mo pedisse ou quando estivesse adormecido. Cumpria essa missão com amor. Não me lembro de havê-la negligenciado alguma vez. Todo o tempo que me sobrava, depois de haver cumprido os deveres cotidianos, eu o partilhava entre a escola e os cuidados com meu pai. Somente saía para passear, à tarde, quando ele mo permitia, ou quando não sofresse.

Nessa mesma época, também, minha mulher esperava criança — circunstância que, para mim (como hoje me parece), significava uma dupla vergonha. De um lado, eu deveria haver-me imposto mais reserva, pois que ainda era estudante. Em seguida, o desejo carnal arrebatava-me do que eu considerava um dever: o estudo; e do que me era um dever maior ainda: a devoção por meus pais, pois que, do mesmo modo, desde criança, eu havia escolhido Shravan por ideal. Todas as tardes, enquanto as minhas mãos se afanavam, fazendo massagens nas pernas de meu pai, o meu espírito adejava pelo quatro — e, o que é mais, num momento em que a religião, a ciência médica e o bom senso reunidos deviam interditar-me as relações sexuais. Ficava sempre contente de ser dispensado de meu serviço e, mal me havia inclinado diante de meu pai, apressava-me em chegar ao quarto de dormir. Meu pai, entretanto, piorava dia a dia. Os médicos aiurvédicos41 haviam experimentado todos os seus unguentos; os hakims, os seus emplastros; os curandeiros, os seus remédios caseiros. Um cirurgião inglês tinha também usado a sua habilidade. Em desespero de causa, havia recomendado a operação. Mas o médico da família opôs-se. Não era partidário de uma intervenção cirúrgica numa idade tão avançada. Ele era competente, muito conhecido; a sua opinião pesou. Renunciou-se à operação e os diversos remédios comprados para esse fim de nada serviram. Eu tinha a impressão de que, se o médico permitisse a operação, a ferida se haveria fechado sem sofrimento. O cirurgião que devia praticá-la era também muito conhecido em Bombaim. Mas Deus havia decidido de outra maneira. Quando a morte é iminente, quem poderá pensar no verdadeiro remédio? Meu pai voltou de Bombaim, conduzindo toda uma farmácia, agora já inútil. Desesperara de viver mais tempo. Enfraquecia dia a dia. Era preciso suplicar-lhe que satisfizesse, sem se levantar, as suas necessidades naturais. Mas, até o fim, ele nada quis ouvir e insistiu sempre por se impor o duro esforço de levantar-se. As regras vixnuítas sobre a limpeza exterior são inexoráveis. Uma tal limpeza é, sem a menor dúvida, essencial: mas a ciência médica ido Ocidente ensinou-nos que todos os cuidados higiênicos, inclusive o banho, podem ser feitos no leito, sem que a mais estrita limpeza por isso sofra, e sem receio de desconforto para o paciente,

permanecendo o leito imaculado. Esse gênero de limpeza parece-me perfeitamente de acordo com o vixnuísmo. Mas a insistência de meu pai em querer deixar o leito maravilhou-me, então, e suscitou a minha admiração. Sobreveio a horrível noite. Meu tio encontrava-se em Râjkot. Recordo-me vagamente de que ele chegou apressado daquela cidade, ao receber a notícia de que meu pai estava pior. Tinham um pelo outro profundo apego. Meu tio passou o dia inteiro sentado à cabeceira de meu pai e insistiu em dormir no seu quarto, depois de nos ter enviado a todos para a cama. Ninguém pensara que a noite de que falo pudesse ser fatal, embora, naturalmente, o perigo estivesse presente aos nossos olhos. Eram dez ou onze horas e meia da noite. Eu dispunha-me a fazer as massagens em meu pai. Meu tio ofereceu-se para substituir-me. Aceitei sem fazer-me rogar e fui para o meu quarto de dormir. Minha mulher, a pobre, dormia profundamente. Mas que direito tinha ela de dormir, quando eu estava presente? Acordei-a. Ao cabo de cinco ou seis minutos, entretanto, o criado veio bater à minha porta. Sobressaltei-me, cheio de medo. — Levante-se — disse ele. — O pai está muito mal. Eu sabia muito bem que ele estava mal e compreendi, então, que significava aquele “muito mal” nesse momento. Pulei da cama. — Que houve? Diga! — O pai não é mais. Então tudo estava acabado! Nada me restava fazer senão torcer as mãos. Compreendi que, se a paixão bestial não me houvesse cegado, a tortura de ter ficado longe de meu pai, em seus últimos momentos, ter-me-ia sido poupada. A morte o teria encontrado em meus braços, enquanto eu ainda lhe fizesse as massagens. Mas não — fora o meu tio quem tivera esse privilégio. Tão profunda era a sua devoção pelo seu irmão mais velho, que a ele fora concedida a honra de, prestar-lhe os últimos serviços! Meu pai havia tido o pressentimento do que se aproximava. Com um gesto, pedira pena e papel e escrevera: “Esteja pronto para os últimos ritos”. Depois arrancara de seu braço o amuleto, arrancara também o seu colar de ouro e de tulasi42 e lançara os para longe de si. No instante seguinte, não era mais.

A vergonha, de que falei num capítulo precedente, foi a de ter cedido ao desejo carnal até naquela hora crítica em que meu pai estava à morte e que exigia os meus vigilantes préstimos. É esta uma mancha que nunca pude apagar nem esquecer; e eu sempre pensara que a minha devoção por meus pais fosse sem limites (ao ponto de estar disposto a dar, não importa o quê, por ela), mas não se apresentaria diminuída nem seria apanhada em falta, se meu espírito não se tivesse ao mesmo tempo abandonado às garras do desejo. Sempre me considerei, pois, um marido carregado de desejo carnal, embora fiel. Foi-me preciso muito tempo para libertar-me das cadeias do desejo e, antes de vencê-las, tive que passar por inúmeras provas. Antes de fechar este capítulo da minha dupla vergonha, seja-me permitido dizer aqui que a pobre criança magra, que minha mulher pôs no mundo, não viveu sãmente três ou quatro dias. Poder-se-ia esperar outra coisa? Que o meu exemplo seja uma advertência a todas as famílias. 10. UM VISLUMBRE DE RELIGIÃO Desde os seis ou sete até aos dezesseis anos de idade, eu ia à escola, onde me ensinavam toda a espécie de coisas, exceto religião. Devo dizer que nada fiz por obter dos professores o que eles me teriam dado sem esforço; contudo, não deixava de recolher, aqui e acolá, em torno de mim, as migalhas. Quando digo “religião”, entendo-a em seu sentido mais amplo — o da realização ou do conhecimento de si mesmo. Vixnuíta de nascimento, tinha que ir frequentemente ao Haveli, mas nunca lhe senti a atração. Não gostei nunca dos europeus nem da pompa. O ruído de que certas práticas imorais nele ocorriam chegou também aos meus ouvidos. Acabei por desinteressar-me totalmente. O Haveli nada podia, pois, dar-me. Mas o que nele não pude encontrar, minha ama forneceu-me — velha e fiel criada da qual nunca esqueci a afeição. Já disse que tinha medo de fantasmas e de espíritos. Rambhâ (este era o nome de minha ama) sugeriu-me que corrigisse esse medo pela repetição do Râm-nâm43. Eu tinha mais fé nela do que em seu remédio e, desde

tenra idade, pus-me a seguir o seu conselho para curar-me do medo. E isto, bem entendido, durou pouco tempo; mas a boa semente semeada no terreno da minha infância não o foi em vão. Creio que, à semente assim lançada por aquela brava mulher, devo o fato de que o Râm-nâm sempre foi para mim um remédio infalível. Justamente na mesma época, ou pouco antes, um meu primo, devoto fiel do Râmayâna, conseguiu que nos ensinassem o Rim Rakshâ44, a mim e ao meu segundo irmão. Aprendemo-lo de cor, assumindo a obrigação de recitá-lo todas as manhãs, depois do banho. Respeitamos esse hábito durante toda a nossa permanência em Porbandar. Apenas chegados a Râjkot, esquecemo-lo. Não acreditava muito nele. Se me entregava a essas recitações, era em parte pelo gosto de dizer o Râm Rakshâ com a pronúncia correta. Mas o que me deixou uma impressão forte foi a leitura do Râmayâna diante de meu pai. Durante uma parte da sua enfermidade, meu pai viveu em Porbandar e, todas as tardes, ouvia o Râmayâna, que lhe era lido por um grande fiel de Râm, Lâdhâ Mahârâj de Bileshvar. Dizia-se dele que se curara da lepra, não com remédios, mas por aplicações, nas partes enfermas, de folhas de bilvâ45, jogadas fora depois de terem servido de oferenda à imagem de Mahadev, no templo de Bileshvar46, bem como pela repetição regular do Râm-nâm. A fé, dizia-se, e somente a fé o tinha curado. E é um fato que, ao começar as suas sessões de leitura do Râmayâna, o corpo de Lâdhâ Mahârâj estava inteiramente livre da lepra. Tinha uma voz melodiosa. Cantava os Dohas (coplas) e os Chopais (quadras) e, comentandoas, deixava-se arrastar pelo seu discurso, arrastando ao mesmo tempo os ouvintes. Eu devia ter treze anos nessa época, mas lembrome ainda da embriaguez em que me mergulhavam essas leituras. Elas constituíram a base de minha profunda devoção pelo Râmayâna. Hoje, considero o Râmayâna de Tulsidas47 como o maior livro de toda a literatura sagrada. Alguns meses mais tarde instalamo-nos em Râjkot. Aí, mais leituras do Râmayâna. Mas o hábito era o de ler o Bhâgavat cada dia de Ekâdashi48. Acontecia-me assistir a essas leituras; mas à recitação faltava alma. Hoje, compreendi que o Bhâgavat49 é um livro capaz de

despertar o fervor religioso. Tomei um interesse apaixonado pela sua leitura em gujrate. Mas, desde que, durante o meu jejum de vinte e um dias, ouvi o Pandit Madan Mohan Mâlavíya50 ler alguns fragmentos no original, desejei tê-lo ouvido na minha infância e pela boca de um tão grande devoto, para que me fosse dado apreciá-lo numa idade mais tenra. As impressões que formamos nessa idade enterram as suas raízes no próprio coração da natureza humana, e constitui para mim um pesar eterno o de não ter tido a ventura de ouvir a leitura de um número maior de livros desse gênero, naquela época de minha vida. Em Râjkot, pois, adquiri certas noções fundamentais de tolerância para com todos os ramos do hinduísmo e religiões irmãs. Porque meu pai e minha mãe tinham por hábito frequentar não só o Haveli como também os templos de Xiva e Rama e de a eles levarnos ou mandar-nos, desde pequenos. Os monges jainos51 visitavam também, frequentemente, meu pai e se desviavam mesmo de seu caminho para aceitar o convite de comer à nossa mesa — embora fôssemos não jainos. Entretinham-se com meu pai tanto sobre religião como sobre' assuntos seculares. Meu pai tinha, ademais, amigos muçulmanos e pârsis que lhe falavam da sua religião. Ele sempre os ouvia respeitosamente, e, na maioria das vezes, com interesse. Os cuidados que eu lhe dispensava permitiam-me assistir frequentemente a essas conversações. Tais elementos diversos concorreram para inculcar-me uma ampla tolerância religiosa. Apenas o cristianismo constituía exceção, na época. Experimentei por ele, então, antipatia. E isso, por uma razão. Naquele tempo, viam-se com frequência missionários cristãos, postados num canto de rua próxima do liceu, perorar, cobrindo de injúrias os hindus e os seus deuses. Eu não podia suportá-los. Não me detive, decerto, mais de uma vez para ouvi-los, mas foi o bastante para dissuadir-me de renovar a experiência. Pouco mais ou menos na mesma época, ouvi falar de um hindu muito conhecido que se convertera ao cristianismo. A cidade inteira estava cheia de anedotas e de fábulas sobre o seu batismo: ele tivera que comer carne de boi, beber álcool, bem como mudar de roupas, e depois pusera-se a passear em trajes europeus, inclusive chapéu. Esses detalhes mexeram-me com os

nervos. Seguramente, disse-me eu, uma religião que nos obriga a comer carne de boi, beber álcool, e mudar de vestes, não merece esse nome. Contava-se também que o neófito começara a injuriar a fé dos seus antepassados, os seus costumes e o seu país. Desse conjunto de coisas nasceu-me repugnância pelo cristianismo. Mas o fato de haver aprendido a tolerar as outras religiões não significava que a minha fé por Deus fosse, menos viva. Por essa época, o acaso me fez topar com o Manusmriti52, entre os livros de meu pai. A história da criação e outros detalhes semelhantes não me impressionaram e, ao contrário, quase me levaram ao ateísmo. Tinha um primo (ele vive ainda) cuja inteligência eu muito estimava. Foi a ele que confiei as minhas dúvidas. Mas não as pôde dissipar. Afastou-me com estas palavras: “Ao crescer, serás capaz de achar por ti mesmo a resposta às tuas dívidas. Não se devem agitar tais questões em tua idade”. Fiquei reduzido ao silêncio, mas não reconfortado. Os capítulos do Manusmriti referentes à alimentação e a outras coisas semelhantes pareciam-me ir de encontro às práticas cotidianas. Este último ponto, como as minhas dúvidas, recebeu a mesma resposta... “Com o desenvolvimento da inteligência e as leituras, acabarei por compreender melhor”, disse-me eu. O Manusmriti, em todo o caso, não me ensinou o Ahimsâ. Já contei a minha experiência de comedor de carne. O Manusmriti parecia falar em seu favor53. Eu tinha também o sentimento de que era perfeitamente moral matar as serpentes, os percevejos e seus iguais. Lembro-me de haver, naquela idade, matado percevejos e outros parasitas, considerando que isto era um dever. Mas há uma coisa que se enraizou fortemente em mim: a convicção de que a moral é o fundamento de tudo e de que a verdade é a substância de toda a moral. A verdade tornou-se para mim o único objetivo. Ela adquiriu, dia a dia, um lugar sempre maior, e a sua significação nunca cessou de ampliar-se para mim. Há em gujrate uma sextina de moralidade54, que, do mesmo modo, se gravou profundamente no meu espírito e no meu coração. O preceito que exprime — fazer o bem pelo mal — tornou-se meu princípio diretor. E a tal ponto me apaixonei por ele, que constituiu a causa de mais de uma de minhas experiências.

Eis os versos (para mim) admiráveis: Se recebeste água, dá um bom jantar; Por uma inclinação de cabeça, faze uma reverência solícita; Pelo valor de um punhado de erva, dá um escudo de ouro; A quem te salvou a vida, dá a tua em sua infelicidade; Por uma boa ação, conta dez; em espírito, em palavras e em ato, Aquele que faz o bem pelo mal é como se tivesse conquistado o mundo. 11. PREPARAÇÃO DA PARTIDA PARA A INGLATERRA Passei em meus exames de fim de curso, em 1887. Eram então feitos em dois centros: Ahmedâbâd e Bombaim. A pobreza que reinava em todo o país impelia naturalmente os estudantes do Kâthiyâvâr a preferir o menos distante e o menos caro. De igual modo, a pobreza de minha família ditou-me uma escolha análoga. Esta foi a ocasião para a minha primeira viagem de Râjkot e Ahmedâbâd, que eu fiz sem companhia. Minha família queria ver-me continuar os estudos na universidade, depois dos exames. Em Bhâvnagar55 havia uma universidade, à semelhança de Bombaim; era menos custosa e decidi entrar nela e inscrever-me no Colégio de Sâmaldâs56. Foi o que fiz. Mas senti-me completamente oprimido, não por culpa dos professores. Os do Colégio passavam por ser de primeira ordem. Mas eu era extraordinariamente inculto. No fim do primeiro trimestre voltei para casa. Tínhamos em Mâvji Dave, brâmane erudito e de espírito agudo, um velho amigo e conselheiro da família, que a morte de meu pai não afastara de nós. Aconteceu que veio ver-nos durante as minhas férias. No decorrer das suas conversas com minha mãe e meu irmão mais velho, indagou dos meus estudos. Sabendo que eu estava no Colégio de Sâmaldâs, disse: — Os tempos mudaram. Nenhum de vocês pode almejar a suceder ao gaddi57 de seu pai sem ter recebido a educação necessária. Têm aqui um rapaz que continua os seus estudos. É com

ele que devem contar para conservar o gaddi. Ser-lhe-ão necessários quatro ou cinco anos para tirar o seu B.A.58 que, na melhor das hipóteses, lhe dará direito a um posto de umas sessenta rupias59, e não a um divânat. Se fizer o seu Direito como meu filho, precisará de mais tempo ainda, e, daqui até lá, um exército de homens de lei aspirará ao posto de divân. Pessoalmente, preferiria que o enviassem à Inglaterra. Meu filho Kevalrâm afirma que é muito fácil tornar-se advogado. O seu voltará dentro de três anos, e a despesa não excederá a quatro ou cinco mil rupias60. Pense no advogado que acaba, justamente, de voltar da Inglaterra. Repare um pouco nessa circunstância. Basta-lhe pedir o divanato, que o obterá. Não acho demais aconselhar-lhe a que envie Mohandâs para a Inglaterra neste mesmo ano. Kevalrâm tem lá numerosos amigos: dar-lhe-á cartas de recomendação e Mohandâs não encontrará nenhuma dificuldade. Joshiji61 (era assim que chamávamos o nosso velho amigo) voltou-se para mim com a mais perfeita segurança e perguntou-me: — Que prefere você: ir para a Inglaterra ou estudar aqui? Nada poderia encontrar melhor acolhimento de minha parte. Os meus estudos eram árduos: eu não progredia. Agarrei-me, pois, à ideia e declarei que quanto mais cedo melhor. Passar rapidamente nos exames era um negócio simples. Não poderiam mandar-me estudar Medicina? Meu irmão interrompeu-me: — A ideia nunca agradou ao pai. Era em ti que ele pensava, quando dizia que não compete a nós, vixnuítas, metermo-nos a dissecar cadáveres. Era ao foro que ele te destinava. Joshiji emendou: — Eu não sou contra a profissão médica, como o era Gandhiji. Os nossos sâstras62 não se opõem. Mas um diploma de médico não fará de ti um divân, e eu quero que sejas divân ou coisa melhor, se possível. Não existe outra maneira, para ti, de ajudar uma família tão grande a viver. Os tempos evoluem depressa e são cada vez mais duros. O mais prudente é, pois, fazer-te advogado. E voltando-se para minha mãe: — É preciso que eu parta agora. Peço-lhe que reflita bem no que eu disse. Na minha próxima visita, espero que me comuniquem que

se preparam para enviá-lo à Inglaterra. E não deixe de informar-me se lhe posso ser útil em alguma coisa. Joshiji foi-se e eu comecei a construir castelos na Espanha. Meu irmão mais velho estava muito perplexo e inquieto. Onde encontrar os meios necessários para a minha viagem? E podia-se, realmente, confiar num jovem para viver sozinho no estrangeiro? Minha mãe torturava-se, não sabendo que resolver. Não lhe agradava a ideia de separar-se de mim. Encarou o assunto do seguinte modo, tentando diferir a coisa: — Teu tio — disse-me ela — é agora o mais velho da família. É a ele que se deve consultar primeiro. Se ele consentir, tomaremos em consideração o assunto. Meu irmão pensou outra coisa. Declarou-me: — Nós temos alguns direitos no Estado de Porbandar. O administrador é Mr. Lely. Ele tem a nossa família em alta estima e nosso tio goza das suas boas graças. Não é impossível que, com a sua recomendação, obtenhas um auxílio do Estado para os teus estudos na Inglaterra. A ideia agradou-me e preparei-me para partir para Porbandar. Naquele tempo não existia a estrada de ferro. A viagem era coisa de cinco dias, em carro de bois. Já disse que eu era medroso. Mas, naquele momento, a minha poltronice evaporou-se e cedeu ao desejo de ir para a Inglaterra, que se havia apossado inteiramente de mim. Aluguei um carro de bois até Dhorâji63; em Dhorâji tomei um camelo para chegar um dia mais cedo a Porbandar. Essa foi a minha primeira viagem em dorso de camelo. Cheguei finalmente, inclinei-me diante de meu tio e contei-lhe tudo. Ele refletiu longamente e disse: — Não estou seguro de que uma permanência na Inglaterra seja possível sem prejuízo para a tua religião. Tudo o que se diz leva-me a duvidá-lo. Quando encontro os nossos grandes advogados, não vejo diferença entre seu modo de vida e o dos europeus. Não têm escrúpulos quanto à alimentação. Trazem sempre um cigarro nos lábios. No modo de vestir, ostentam o mesmo impudor que os ingleses. Tudo isto está em contradição com as tradições da família. Breve deverei partir em peregrinação e não me restam muitos anos de vida. Às portas da morte, como ousarei eu permitir que vás para a

Inglaterra, atravessando os mares? Mas não quero ser um obstáculo em teu caminho. O que importa, verdadeiramente, é a autorização de tua mãe. Se ela concorda, Deus te abençoe! Dize-lhe que não me oponho. Minha bênção te acompanhará. — É tudo o que esperava de vós — respondi-lhe. — Tentarei conquistar a aquiescência de minha mãe a essa ideia. Mas não podereis ter a bondade de recomendar-me a Mr. Lely? — Como o poderia? — disse-me ele. — Contudo, é um bom homem. Pede-lhe uma entrevista, invocando o nosso parentesco. Ele a concederá e talvez te ajude. Não sei ao certo por que meu tio não me deu a carta de recomendação. Parece-me que hesitou em contribuir, diretamente, para a minha partida para a Inglaterra, na qual via um ato irreligioso. Escrevi a Mr. Lely, que me autorizou a ir vê-lo em sua residência. Recebeu-me, subindo a escadaria, e disse-me brevemente: — Comece por tirar o seu B. A., depois volte para ver-me. Não há necessidade de auxílio, por enquanto — e desapareceu nos degraus superiores. Eu preparara-me laboriosamente, para essa entrevista. Tinha decorado cuidadosamente algumas frases; inclinara-me até ao chão e o saudara com as mãos juntas. Tudo isso para nada! Pensei nas joias de minha mulher. Pensei no meu irmão mais velho, em quem tinha absoluta confiança. Era generoso ao extremo e adorava-me como a um filho. De Porbandar voltei a Râjkot e narrei tudo o que se havia passado. Consultei Toshiji, que, naturalmente, me aconselhou a não hesitar em endividar-me, se fosse preciso. Decidi vender as joias de minha mulher; isso daria duas ou três mil rupias. Meu irmão prometeu arranjar dinheiro, de um modo ou de outro. Minha mãe, entretanto, não estava sempre de acordo. Tinha começado uma sindicância minuciosa. Aqui, haviam-lhe dito que a Inglaterra era a perdição dos jovens; acolá, que eles tomavam gosto pela carne; além, que não podiam viver sem álcool... — Que fazer diante de tudo isso? — perguntava-me ela. — Recusa-se a confiar em mim? — respondia-lhe eu. — Não lhe mentirei. Juro que não tocarei em nenhuma dessas coisas. Se existisse um tal perigo, Joshiji deixar-me-ia partir?

— Posso confiar em ti — dizia-me ela. — Mas é tão longe... Não sei onde estou nem que fazer. Vou perguntar a Becharji Svâmi. Becharji Svâmi64, Modh Baniva de origem, tornara-se monge jaino. Era outro conselheiro da família, como Joshiji. Veio em meu auxílio: — Vou fazer com que esse menino pronuncie solenemente os três votos — disse ele. — Depois do que, poderá permitir-lhe que parta. Fêz-me prestar juramento e fiz voto de não tocar nem em vinho, nem em mulher, nem em carne. Isto feito, minha mãe deu-me a sua autorização. Houve, no liceu, uma cerimônia de adeus em minha honra. Era coisa pouco comum ver um jovem de Râjkot partir para a Inglaterra. Eu redigira algumas palavras de agradecimento. Sofri todas as dificuldades do mundo para balbuciá-las. Lembro-me ainda da vertigem e do tremor que se apossaram de minha carcaça, desde o momento em que me levantei para lê-las. Munido da bênção dos meus maiores, pus-me a caminho para Bombaim. Era a minha primeira viagem de Râjkot a Bombaim. Meu irmão acompanhava-me. Mas há grande distância entre a taça e os lábios. E várias dificuldades me aguardavam em Bombaim. 12. EXCLUÍDO DA CASTA Com a autorização e a bênção de minha mãe, parti, transbordando de alegria, para Bombaim, deixando, atrás de mim, minha mulher e um bebê de alguns meses. Mas, à minha chegada naquela cidade, os amigos preveniram meu irmão de que o Oceano Indico era agitado em junho e julho65 e que, sendo a minha primeira viagem, não devia permitir-me embarcar antes de novembro. Um outro contou que um vapor acabava precisamente de soçobrar na tempestade. Meu irmão ficou inquieto e recusou-se a assumir o risco de uma partida imediata. Deixando-me com um amigo, em Bombaim, regressou a Râjkot para retomar o seu posto. Confiou o dinheiro da minha viagem à guarda de um cunhado e recomendou a diversos amigos que me ajudassem de acordo com as minhas necessidades.

O tempo parecia-me interminável em Bombaim. Eu sonhava sem cessar com a minha partida para a Inglaterra. Entrementes, as pessoas da minha casta manifestavam viva agitação em torno dessa partida. Até então, nenhum Modh Baniya tinha ido para a Inglaterra; a minha audácia merecia um chamado à ordem! Foi convocada uma assembleia geral da casta e notificaramme a comparecer. Fui. Não sei como logrei reunir, bruscamente, toda a minha coragem; mas nada pôde reter-me e, sem a menor hesitação, apresentei-me diante da assembleia. O Sheth66 – o chefe da comunidade – era um dos meus parentes distantes e estivera em excelentes termos com meu pai. Acolheu-me do seguinte modo. — Aos olhos de nossa casta o teu projeto de permanência na Inglaterra é contrário às conveniências. A nossa religião proíbe as viagens ao estrangeiro67. Disseram-nos também que e impossível lá viver sem ofender a religião. É forçado a comer e a beber com os europeus. Ao que repliquei: — Não creio que seja de todo contrário à nossa religião ir para a Inglaterra. A minha intenção é a de lá prosseguir os meus estudos. E já prometi solenemente a minha mãe abster-me das três coisas que mais temeis. Estou certo de que esse voto me salvaguardara. — Mas nós te dizemos — retorquiu o Sheth — que lá é absolutamente impossível conservar a nossa fé. Sabes quais eram as minhas relações com teu pai e devias seguir o meu conselho. — Sei quais eram essas relações — disse eu, e vos considero como um mais velho da família. Mas nada posso. Não me é possível modificar a decisão de ir para a Inglaterra. O amigo e conselheiro de meu pai, que é um doutor brâmane, não tem objeções a essa viagem, e minha mãe e meu irmão concederam-me também sua autorização. — Não tomas em consideração as ordens de tua casta. — Nada posso. Creio que a casta nada tem a ver com este assunto. Essas palavras puseram o Sheth fora de si. Injuriou-me. Permaneci insensível, sentado. Ele, então, pronunciou a sua sentença: — Este jovem será tratado como um paria a partir deste dia. Quem quer que o ajude ou vá dizer-lhe adeus ao cais, incorrera em

multa de uma rupia e quatro anás. Essa sentença não me afetou e despedi-me do Sheth. Mas perguntei-me de que modo meu irmão tomaria a coisa. Felizmente ele não se abalou e escreveu-me, assegurando que eu tinha a sua permissão para partir, apesar da sentença do Sheth. Este incidente, porém, aumentou ainda mais o meu grande desejo de embarcar Que aconteceria, se eles conseguissem obter que se fizesse pressão sobre meu irmão? E se sobreviesse um imprevisto? Enquanto eu assim me inquietava, atormentado pela minha sorte, falaram-me de um vakil68 de Junâgah69 que devia embarcar em 4 de setembro para a Inglaterra, onde era admitido no foro. Fui procurar os amigos aos cuidados dos quais meu irmão me havia confiado. Foram também da opinião de que eu não devia perder a oportunidade de viajar em semelhante companhia. Não havia tempo a perder. Solicitei por telegrama a autorização de meu irmão. Ele deua. Pedi ao meu cunhado que me entregasse o dinheiro. Mas, aludindo à sentença do Sheth declarou-me que não podia expor-se a ser excluído da nossa casta. Apelei então para um amigo da família, ao qual pedi que me adiantasse o montante necessário para a viagem e demais despesas, encarregando meu irmão de reembolsá-lo. Esse amigo não teve apenas a bondade de atender ao meu pedido, encorajou-me vivamente. Fiquei-lhe extremamente reconhecido. Uma parte do dinheiro serviu-me também para comprar a passagem. Depois foi preciso equipar-me para a travessia. Descobri um outro amigo que tinha experiência no assunto. Procurou-me com roupas e diversas outras coisas. Entre essas roupas, algumas me agradaram; outras desagradaram-me profundamente. A gravata, que depois me pareceu deliciosa de usar, fez-me horror então. O paletó curto pareceu-me indecente. Mas esse desagrado nada era em comparação com o desejo de ir para a Inglaterra, que impregnava tudo. Provisões, tinha mais do que precisava para a travessia. Os meus amigos fizeram reservar para mim um leito na cabina de Tryambakrâi Mazmudâr, o vakil de Junagarb, ao qual, igualmente, me recomendaram. Era um homem de idade madura e experiente. Eu não era mais que um rapazote de dezoito anos, sem prática do mundo. Mazmudâr disse aos meus amigos que não se preocupassem a meu respeito.

Deixei Bombaim no dia 4 de setembro de 1888. 13. ENFIM, LONDRES! Não tive enjoo no mar. Mas à medida que os dias passavam, o nervosismo invadia-me. Ficava intimidado até para falar ao steward. O uso do inglês não me era familiar e, exceto Mazmudâr, todos os outros passageiros eram ingleses. Não cheguei a dirigir-lhes a palavra, tamanha era a minha dificuldade, quase sempre, em seguir as suas observações quando tomavam a iniciativa da conversação. E, depois quando eu compreendia, era incapaz de responder. Tinha que construir cada uma das frases na cabeça, antes de poder enunciá-las. Ignorava por completo o emprego do garfo e da faca e não tinha coragem de perguntar quais eram, no cardápio, os pratos sem carne. Nunca fazia, portanto, as minhas refeições no salão e comia sempre na cabina, alimentando-me essencialmente de doces e de frutas que havia levado. Mazmdâr não tinha dificuldade e misturava-se com todo mundo. Passeava livremente no convés, enquanto eu passava os dias escondido na cabina, não me aventurando a ir lá, a não ser quando não houvesse quase ninguém. Mazmudâr insistia, continuamente, para que eu juntasse aos passageiros e conversasse livremente com eles. Dizia-me que um advogado deve ter a língua bem solta e contava-me as suas experiências de homem de lei. Aconselhava-me a aproveitar as menores oportunidades de falar inglês e a rir-me dos meus erros, que eram absolutamente inevitáveis numa língua estrangeira. Mas nada podia incitar-me a vencer a minha timidez. Um passageiro inglês, dirigindo-se bondosamente a mim, obrigou-me à conversação. Era mais velho do que eu. Perguntou-me o que fazia, o que comia, para onde ia, por que era tímido etc. Aconselhou-me também a fazer as refeições no salão. Zombou da minha teimosia em renegar a carne, disse-me amigavelmente, durante a travessia do Mar Vermelho: — Tudo isso está muito bem até agora, mas deve reconsiderar a sua decisão no Golfo de Biscaia. Faz tanto frio na Inglaterra que e literalmente impossível deixar de comer carne para viver. — Mas disseram-me que muitas pessoas vivem perfeitamente

nesse país sem comer carne — tornei-lhe eu. — Esteja certo de que se trata de um grande equívoco — respondeu-me. — Ninguém, que eu saiba, vive nesse país sem comer carne. Eu vou tomar álcool, não o convido a imitar-me, bem o vê. Mas, verdadeiramente, em minha opinião, devia comer carne; não se pode dispensá-la para viver. Penetramos no Golfo de Biscaia sem que eu sentisse a menor necessidade de carne ou de álcool. Tinham-me aconselhado a obter certificados que atestassem estar eu impedido de tocar em carne, e pedi ao meu amigo inglês que me fornecesse um. Ele o fez com prazer. Guardei preciosamente esse atestado durante algum tempo. Mas, desde que percebi, mais tarde, que se podia obter tal espécie de certificado apesar de comer carne, o testemunho perdeu para mim todo o encanto. Se não se confiava na minha palavra, de que valiam os certificados? Chegamos, entretanto, a Southampton. Era, segundo creio, sábado. No navio eu usara um terno negro, reservando, especialmente, para o desembarque um de flanela branca que meus amigos me tinham comprado. Havia pensado que as roupas brancas eram mais adequadas para o momento de descer a terra. E foi, pois, trajado de flanela branca que pus o pé em solo inglês. Setembro chegava ao fim e percebi que eu era o único vestido dessa maneira. Entreguei aos cuidados de um agente de Grindlay & Cia. toda a minha pequena bagagem, inclusive as chaves, tendo visto inúmeras pessoas fazer o mesmo e acreditando-me obrigado a imitá-las. Tinha quatro cartas de apresentação: para o Dr. P. J. Mehta, Sjt. Dalpatrâm Shoukla, o Príncipe Ranjitsinghji e Dâdâbhâi Naoroji70. Um passageiro tinha-nos aconselhado, a bordo, que fôssemos para o Hotel Vitória, em Londres. Foi para lá então que seguimos, Sjt. Mazmudâr e eu. Por ser o único vestido de branco, já me sentia coberto de vergonha. Mas quando, no hotel, me declararam que só recebería as minhas bagagens no dia seguinte, que era domingo, atingi a exasperação. O dr. Mehta, a quem eu tinha telegrafado de Southampton, foi ver-me na mesma tarde, pelas oito horas. Acolheu-me calorosamente. O meu terno de flanela branca fê-lo sorrir. No decorrer da conversação, apoderei-me, distraidamente, de seu

chapéu alto, acariciei-o em sentido contrário e ericei a seda. O dr. Mehta lançou-me um olhar desprovido de amenidade, que me deteve logo. Mas o mal estava feito. Esse incidente foi-me uma advertência para o futuro. Constituiu a minha primeira lição de etiqueta europeia e o dr. Mehta encarregou-se de iniciar-me, detalhadamente, e não sem humor. — Não toque em nada que pertença a outro — disse-me ele. — Não proceda como nas Índias: não faça perguntas às pessoas que encontra pela primeira vez. Modere o seu tom de voz. Não diga “Senhor” a cada momento, dirigindo-se a qualquer um; só os criados e os subordinados falam dessa maneira aos patrões ou aos seus superiores etc. etc. Disse-me, também, que era extremamente custoso viver em hotel e recomendou-me que me alojasse em casas particulares. Decidimos esperar a segunda-feira para tratar deste último problema. Sjt. Mazmudâr e eu achamos o hotel muito fatigante e complicado, além de dispendioso. Entretanto, um Sindhi71 que, embarcado em Malta, fizera a travessia conosco e travara amizade com Sjt. Mazmudâr, ofereceu-se para arranjar-nos quartos. Aceitamos e, segunda-feira, já de posse das nossas bagagens, liquidamos a conta do hotel para nos instalarmos nos aposentos que o amável Sindhi nos havia conseguido. Lembro-me do montante da minha conta do hotel: três libras. Fiquei escandalizado. Sem contar que, a despeito dessa soma astronômica, eu estava quase morto de fome porque nada me havia agradado. Quando não gostava de um prato, pedia outro, mas de qualquer modo tinha que pagar os dois. O fato é que, durante todo esse tempo, vivi das provisões que levara de Bombaim. Mesmo na nova instalação, não me senti à vontade. Pensava sem cessar na minha casa, na minha terra. Estava cheio da terna lembrança de minha mãe. À noite, as lágrimas rolavam sobre a minha face e toda a sorte de cenas da vida familiar me tornavam impossível conciliar o sono. Não tinha ninguém com quem partilhar a minha tristeza. E, mesmo se tivesse, para quê? Não conhecia remédio para a minha pena. Tudo me era estranho — as pessoas, as maneiras, as, próprias casas. Eu era um perfeito noviço em matéria de etiqueta; inglesa e tinha que me manter numa perpétua vigilância. Ajunte-se; a

isso a complicação do meu voto de vegetariano. E os pratos em; que podia tocar eram sem gosto. Achei-me então preso entre Caribde e Cila. Não podia suportar a Inglaterra, mas era preciso não pensar em voltar às Índias. Viera, tinha que ficar três anos agora, dizia-me a voz interior. 14. UMA ESCOLHA Segunda-feira o dr. Mehta apresentou-se no Hotel Vitória, pensando encontrar-me. Disseram-lhe que tínhamos partido e, munido do endereço, foi ver-me em nossa nova instalação. Por pura tolice eu apanhara a tinta a bordo. Para a toalete e para o banho empregava-se a água do mar, na qual o sabão não é solúvel. Mas eu servia-me de sabão, achando que o seu emprego era um índice de civilização. O que teve por resultado não o de me limpar a pele, mas o de torná-la ensebada. Daí a tinta. Quando mostrei esse mal ao dr. Mehta, ele recomendou-me o ácido acético. Lembro-me ainda da queimadura do ácido e das lágrimas que me subiram aos olhos. O dr. Mehta inspecionou a minha instalação, quarto e mobiliário, e sacudiu a cabeça com ar desaprovador. — Isto não serve — disse ele. — Se vimos para a Inglaterra, não é tanto para fazer os nossos estudos como para adquirir a experiência da vida inglesa e dos costumes indianos. Para conseguilo, é preciso que você viva no seio de uma família. Mas, antes, creio que seria melhor um período de aprendizagem com N... Conduzi-lo-ei junto a ele. Aceitei essa sugestão com reconhecimento e mudei-me pela segunda; vez para instalar-me com o amigo do dr. Mehta, que era homem; cheio de bondade e de atenções. Tratou-me como seu próprio irmão, iniciou-me nos hábitos e costumes ingleses e familiarizou-me com o uso da língua. A minha alimentação, contudo, suscitava um problema cada vez mais sério. Não consegui achar a meu gosto os legumes cozidos sem tempero e sem condimentos. A nossa hospedeira era curta de ideias no que me dizia respeito. Servia-nos flocos de aveia pela manhã e isso enchia, assaz bem, o estômago; mas ao almoço e ao jantar eu sempre morria de fome. O amigo em questão procurava, continuamente, fazer-me comer carne

mas eu invocava, regularmente, o meu, voto e depois não respondi mais. Ao almoço como ao jantar, servia-nos espinafre, pão e doces. Eu era bom comedor e o meu estômago não se fartava facilmente; mas tinha vergonha de reclamar mais de duas ou três fatias de pão, com medo de ser incorreto. Por outro lado, não nos davam leite nem ao almoço nem ao jantar. Um dia, meu amigo, já incomodado com essa situação, disse-me: — Se você fosse meu irmão, há muito o teria mandado de volta, com suas bagagens. Que vale um voto pronunciado diante de uma mãe iletrada e ignorante das condições de vida que o esperavam aqui? É um voto sem valor. A lei não lhe concederá nenhum. Não renegar esse juramento é pura superstição. E creia-me; a sua teimosia não será de nenhum proveito aqui. Você confessa que gostou de comer carne, comeu-a em circunstância em que era perfeitamente, inútil; e, numa, situação em que é absolutamente essencial, nada quer ouvir a esse respeito. É lamentável! Mas eu permaneci inflexível. Dia após dia esse amigo retomava a discussão, mas eu opunhalhe um “não” permanente72. Mais ele discutia, mais a minha obstinação aumentava. Orava cotidianamente a Deus para que me concedesse a Sua proteção, e Ele ma concedia. Não que eu tivesse alguma noção de Deus. Era a fé que agia — a semente lançada pela minha boa ama Rambhâ que germinava. Um dia, o meu amigo começou a ler-me A Teoria do Útil, de Bentham73! O meu espírito logo se estafou. A linguagem era muito difícil; eu não compreendia. Pôs-se então a explicar-me o texto, eu disse-lhe: — Peço-lhe que me desculpe. Essas coisas abstrusas ultrapassam o meu entendimento. Admito que é necessário comer carne. Mas não posso renegar o voto que pronunciei. Para mim isso não se discute. Estou certo de não poder sustentar vantajosamente a discussão. Mas suplico-lhe que se limite a considerar-me um imbecil ou um obstinado sem esperança. Aprecio a sua afeição e sei que me quer fazer bem. Mas nada posso. Um voto é um voto e não se renega. O meu amigo olhou-me com espanto. Fechou o livro e disse-me: — Muito bem. Não insistirei mais no assunto.

Fiquei contente. Ele jamais retomou a discussão. Mas nem por isso deixou de demonstrar menos cuidados para comigo. Ele fumava e bebia. Nunca, entretanto, me convidou a fazer o mesmo. Na verdade, dizia-me que me abstivesse tanto de um como de outro. A sua única angústia era ver-me enfraquecer, por falta de carne, e não adaptar-me à vida inglesa. Eis como, durante um mês, se passou a minha aprendizagem. A casa em que estava alojado esse amigo situava-se em Richmond e lhe era impossível ir a Londres mais de uma ou duas vezes por semana. O dr. Mehta e Sjt. Dalpatrâm Shukla decidiram então que era preciso instalar-me numa família. Sjt. Shukla acabou por descobrir um Anglo-Indiano, que morava em West Kensington, e arranjou-me um lugar em sua casa. A hospedeira era viúva. Preveni-a acerca do meu voto. A velha senhora prometeu ocupar-se convenientemente de mim e eu instalei-me na sua residência. Mas, mesmo lá, quase morria de fome. Escrevera para casa pedindo que me mandassem doces e outras provisões que pudesse comer; mas ainda nada tinha recebido. Tudo me parecia insípido. Cotidianamente, a velha senhora me perguntava se gostava do que comia. Mas que podia ela fazer? Eu persistia na minha timidez e não ousava reclamar mais do que me davam. Ela tinha duas filhas que insistiam em servir-me uma ou duas fatias suplementares de pão. Mas elas não duvidavam de que seria necessário um pão inteiro para satisfazer-me. Não obstante, acabei por encontrar o meu rumo. Não tinha ainda começado os estudos regulares. Havia, porém, iniciado a leitura de jornais, graças a Sjt. Shukla. Nunca havia lido jornais, nas Índias. Em Londres, à força de os ler regularmente, acabei por cultivar-lhes o gosto. Percorria sem falta o Daily News, o Daily Telegraph e a Pall Mall Gazette, o que mal tomava uma hora e me deixava, portanto, muito tempo. Comecei a passear ao acaso. Lancei-me à procura de um restaurante vegetariano. A minha hospedeira dissera-me que havia possibilidades de descobrir um no centro da cidade. Caminhava, pois, alegremente, cobrindo uns quinze ou vinte quilômetros todos os dias, para encalhar, regularmente, num pequeno restaurante onde me atulhava de pão, sem chegar a fartar-me. No decurso dessas peregrinações, o acaso fez-me cair num restaurante vegetariano, na Rua Farringdon. Essa descoberta encheu-me de uma

alegria comparável àquela da criança que vê, enfim, realizado o seu sonho mais caro. Antes de entrar, reparei perto da porta numa vitrina onde estavam expostos livros à venda; entre outros, a Argumentação pelo Vegetarianismo, de Salt74, que comprei por um shilling. Depois do que penetrei, sem demora, na sala do restaurante. Foi a primeira refeição que fiz com prazer depois da minha chegada à Inglaterra. Deus me socorrera. Li do princípio ao fim o livro de Salt, que me impressionou vivamente. Posso dizer que data dessa época a decisão de fazer-me vegetariano. Bendisse o dia em que pronunciara o meu voto diante de minha mãe. Em nenhum instante deixar de abster-me de tocar em carne, em benefício da verdade e do meu voto; mas isso não me havia impedido de desejar ao mesmo tempo que todos os hindus fossem carnívoros, e havia aspirado a tornar-me eu mesmo, um dia, livremente, abertamente, bem como recrutar adeptos. Desta vez, portanto, a minha escolha estava feita: optava pelo vegetarianismo e a sua propagação tornou-se para mim, desde então, uma missão. 15. BANCANDO O CAVALHEIRO A minha fé no vegetarianismo aumentava dia a dia. O livro de Salt aguçara-me o gosto dos estudos dietéticos. Lancei-me em busca de todos os livros que se podiam encontrar sobre o vegetarianismo, e devorei-os. Uma dessas obras — a Ética da Alimentação, de Howard Williams — consistia num “estudo biográfico da literatura, tendo em vista a dietética humana, desde os tempos mais recuados até o período atual”. Procurava-se provar que todos os filósofos e profetas, de Pitágoras e de Jesus até aos dos nossos dias, eram vegetarianos. Outro livro sedutor: Pelo Regime Perfeito, da Dra. Anna Kingsford. Igualmente, os escritos do Dr. Allinson sobre a saúde e a higiene foram-me de grande auxílio: ele fazia-se o advogado de um sistema de curas fundado na prescrição de regimes apropriados aos pacientes. Vegetariano ele próprio, prescrevia aos seus doentes também um regime estritamente vegetariano. O efeito de toda essa literatura foi que as experiências de dietética assumiram lugar importante na minha vida. O cuidado da minha saúde foi a princípio a

razão principal dessas experiências Em seguida, a religião tornou-se o motivo supremo. Entrementes, o meu amigo continuava a atormentar-se por minha causa. A sua afeição por mim levava-o a pensar que, se eu persistisse nas objeções ao uso da carne, não apenas a minha constituição se enfraqueceria, mas eu seria também um homem insignificante, porque me sentiria sempre deslocado no meio da sociedade inglesa. Quando soube que eu começara a interessar-me pelas obras sobre o vegetarianismo, receou que esses estudos semeassem a desordem na minha cabeça; teve medo de ver-me dissipar a vida em toda a sorte de experiências, esquecer o trabalho e tornar-me uma espécie de lunático. Fez, portanto, um último esforço para modificarme. Convidou-me um dia a ir ao teatro. Antes, devíamos ambos jantar no restaurante Holborn — verdadeiro palácio a meus olhos, o primeiro grande restaurante em que punha os pés depois que saíra do Hotel Vitória. A minha experiência nesse hotel não constituíra experiência proveitosa, porque eu não estava então de posse de todos os meus sentidos. O meu amigo projetara levar-me a esse restaurante, evidentemente com a ideia de que a modéstia me impediria de fazer qualquer pergunta. E foi no meio de uma assembleia muito imponente, que nos sentamos ambos a uma mesa só para nós. A refeição começou por uma sopa. Eu bem me interroguei sobre o que entraria na sua composição, mas não ousei perguntar ao meu amigo. Chamei, pois, o garçom. O meu amigo surpreendeu a manobra e perguntou-me, severamente, por cima da mesa, o que havia. Com muita hesitação, declarei-lhe que desejava saber se aquela sopa era de carne ou não. — Você é muito grosseiro para sair com uma companhia honesta! — exclamou ele num tom de voz apaixonado. — Se não é capaz de comportar-se bem, fará melhor em não ficar. Vá comer noutro restaurante e espere-me lá fora. Essa solução agradou-me e saí prontamente. Havia perto um restaurante vegetariano, mas estava fechado. Fiquei, pois, sem comer naquela noite. Acompanhei o amigo ao teatro, sem que ele fizesse a menor alusão ao escândalo. Da minha parte, bem

entendido, eu nada tinha a dizer. Essa foi a nossa última disputa amigável. O incidente não teve repercussão nenhuma sobre as nossas relações. Eu via a afeição que estava na origem de seus esforços, conhecia-lhe o valor, e o meu respeito por ele era tanto maior pelo fato de diferirmos em nossas maneiras de agir e de pensar. Decidi tranquilizá-lo, jurar-lhe que não seria mais grosseiro e esforçar-me por me policiar, bem como compensar o meu vegetarianismo aplicando-me em aperfeiçoar-me no plano da cortesia e do mundanismo. E com essa intenção empreendi uma tarefa sobrehumana: transformar-se num gentleman. As roupas que trazia, cortadas à moda de Bombaim, não convinham, pensei eu, aos costumes ingleses, e comprei novas nos magazines do Exército e da Marinha. Permitir-me também o luxo de um chapéu alto, forrado, de dezenove shillings — preço exorbitante na época. Não contente com isso, gastei dez libras encomendando um terno na Rua Bond, coração da elegância londrina, e fiz com que o meu bom e generoso irmão me enviasse uma corrente de relógio dupla e de ouro. A correção não admitia o uso de gravata com laço feito; aprendi a arte de fazer eu próprio o laço das minhas gravatas. Nas Índias o espelho era um luxo reservado aos dias em que o barbeiro da família vinha barbear-me. Em Londres eu perdia, todos os dias, dez minutos diante de um grande espelho, a atar a gravata e fazer o risco segundo as regras da moda. Os meus cabelos estavam longe de ser dóceis, e todas as manhãs, escova na mão, tinha que travar um combate regular para forçá-los a assentar. Cada vez que punha ou tirava o chapéu, a minha mão automaticamente, subia à cabeça para restabelecer a ordem na cabeleira — sem contar as ocasiões em que, com frequência, tinha de repetir essa manobra civilizada, quando sentado em boa companhia. Como se isso não bastasse para dar-me a tonalidade ad hoc, a minha atenção deteve-se sobre outras minúcias, aparentemente próprias para a fabricação de um gentleman. Disseram-me que era necessário tomar lições de dança, de francês e de dicção. O francês não era apenas o idioma dos nossos vizinhos franceses; era a língua franca do Continente no qual eu tinha grande desejo de viajar. Resolvi seguir as lições de um curso de dança e desembolsei de

um golpe três libras de honorários para um trimestre. Em três semanas, recebi cerca de meia dúzia de lições, mas sem conseguir nada que assemelhasse a movimentos rítmicos. Não podia acompanhar o piano; era-me impossível observar a cadência. Que fazer? O eremita da fábula conserva um gato para espantar os ratos, depois arranja uma vaca para que o gato tenha leite, depois um homem para cuidar da vaca etc. etc. As minhas ambições iam aumentando como a família do eremita. Convenci-me de que era preciso aprender a tocar violão para habituar o ouvido à música europeia. Investi, pois, três libras na aquisição de um violão e uma outra fração de capital em lições. Pus-me à procura de um terceiro professor para ensinar-me dicção e paguei-lhe um guinéu. Aconselhou-me por manual o Método Corrente de Dicção, de Bell, que comprei. E comecei por um discurso de Pitt. Mas o livro de Mr. Bell não tardou a tocar a alvorada75 para mim, e realmente acordei. A minha vida toda não se passará na Inglaterra, disse eu. Então para que tomar lições de dicção? E de que modo a dança chegará a fazer de mim um gentleman? O violão? — nada impede que eu aprenda a tocá-lo nas Índias. Eu era um estudante; o meu dever consistia em prosseguir os meus estudos. Devia qualificar-me para entrar no foro. Se a minha natureza concorresse para transformar-me num gentleman, tanto melhor! Caso contrário, era preciso renunciar a essa ambição. Inteiramente absorvido por essas reflexões e outras semelhantes, dei-lhes livre curso numa carta endereçada ao professor de dicção, pedindo-lhe que me desculpasse para o futuro. Tinha recebido apenas duas ou três lições. Escrevi carta análoga ao professor de dança e fiz uma visita pessoal ao de violão para pedir-lhe que dispusesse do meu instrumento por qualquer preço. Era uma mulher; acolheu-me amigavelmente, o que me impeliu a contar-lhe dei que modo eu havia percebido que tinha tomado um falso caminho. Ela encorajou-me na minha determinação de operar uma transformação radical. Essa perturbação durou, provavelmente, cerca de três meses. Durante anos conservei o cuidado minucioso das vestimentas. Mas, a partir daquele momento, tornei-me estudante.

16. MUDANÇAS Que ninguém vá imaginar que as minhas experiências, no domínio da dança e quejandos, tenham sido o indício, em minha vida, de uma fase de complacência para comigo mesmo. O leitor, certamente, observou que, mesmo então, eu não perdi a cabeça. Esse período de enfatuação beneficiou-se, sem contestação, de tréguas devidas a uma soma de introspecção da minha parte. Eu contabilizava até os cêntimos das minhas despesas e calculava-as com o maior cuidado. O menor detalhe, passagens de ônibus ou selos de correio figuravam nas minhas contas, e todas as tardes, antes de dormir, fazia o meu balanço. Esse hábito nunca mais me deixou e sei que a esse fato, pois tive que manejar fundos públicos que se elevavam a laks76, devo o ter aplicado as regras da mais estrita economia na sua utilização e pude apresentar, em vez de passivos que fizessem estremecer, um saldo excedente em relação a todas as despesas efetuadas. Que todos os jovens recolham aqui a semente e considerem um ponto de honra manter a contabilidade exata de tudo o que entra no seu bolso e dele sai. Como eu, estarão certos de ganhar no fim das contas. Essa estreita vigilância sobre o meu modo de vida fez ressaltar, a meus olhos, a necessidade de praticar economia. Resolvi, pois, reduzir as minhas despesas à metade. As minhas contas acusavam gastos demasiados no capítulo dos transportes. Igualmente, o fato de viver em família significava o pagamento regular de uma conta semanal e implicava também a obrigação cortês de convidar, de tempos a tempos, tal ou tal membro da família a jantar na cidade, ou de acompanhá-los em suas saídas. Disso resultavam pesadas despesas de transporte — principalmente se a pessoa que eu acompanhava era uma dama, o costume exigia que o homem pagasse todos os gastos. Jantar na cidade significava também uma despesa suplementar: não se deduziam da conta semanal as refeições que eu não fazia em casa. Parecia-me que tudo isso podia oferecer ocasião para economias, bem como vedar o buraco feito na minha bolsa por um falso sentimento das conveniências. Resolvi, pois, alugar um aposento, em vez de viver com uma

família, assim como mudar de casa segundo as obrigações de meu trabalho, aproveitando essas mudanças para enriquecer a bagagem de minha experiência. Escolhi um alojamento que me permitia chegar a pé em meia hora de marcha; desse modo poupava as despesas de transporte. Até então sempre tomara um meio de condução todas as vezes que me deslocava e precisava arranjar tempo para passear. A minha nova instalação aliava passeios a economias; poupava os gastos de transporte e concedi-me doze ou quinze quilômetros de caminhada todos os dias, Foi sobretudo graças a esse hábito de longas marchas que cheguei a evitar quase inteiramente a enfermidade durante a minha permanência na Inglaterra, e que o meu corpo se fortificou sensivelmente. Eis-me, pois, locatário de um apartamento: sala e quarto de dormir. Era a segunda fase. A terceira ainda estava por vir. Essas mudanças reduziram-me as despesas à metade. Mas que uso fazer do meu tempo? Sabia que os exames de Direito não exigiam muitos estudos e não experimentava, pois, nenhum sentimento de urgência. A minha fraqueza no inglês era uma preocupação perpétua. As palavras de Mr. Lely (que se tornaria Sir Frederic Lely): “Comece por tirar o seu B. A., depois volte a ver-me”, ressoavam-me sempre na cabeça. O que é preciso, dizia eu, não é somente ascender ao foro, é também conquistar título em Letras. Informei-me sobre Oxford e Cambridge, sobre Os seus programas universitários; consultei alguns amigos e percebi que, se a minha escolha recaísse sobre um ou outro desses colégios, daí resultaria um recrudescimento de despesas e uma prolongação da permanência na Inglaterra, para os quais não estava preparado. Um amigo sugeriu-me que, se eu verdadeiramente insistia em concederme a satisfação de passar num exame difícil, me apresentasse aos exames de fim de curso em Londres. Isso significava boa soma de esforços sérios e largo complemento ao meu estoque de cultura geral, sem que a despesa suplementar fosse digna desse nome. Acolhi com prazer a sugestão. Mas o programa aterrorizou-me. O latim e uma língua moderna eram obrigatórios! Como aprender latim? O amigo em questão, entretanto, lançou-se numa ardente argumentação em favor dessa matéria. “O latim presta grandes serviços aos homens da lei. O seu conhecimento é muito útil para a

compreensão dos textos jurídicos. Uma das provas escritas de Direito Romano é inteiramente em latim. Por outro lado, sabendo latim, você terá um domínio muito maior da língua inglesa.” Esses argumentos pesaram e decidi aprender o latim, por mais difícil que fosse. Já havia começado o francês; seria ele a minha língua moderna. Inscrevi-me num curso particular onde se preparava para o exame em questão. Havia uma sessão cada seis meses. Eu tinha apenas cinco meses à minha disposição. Era uma tarefa quase impossível. Mas o aspirante a gentleman resolvera transformar-se em estudante sério. Enchi quase todos os minutos do meu tempo. Mas nem a minha inteligência nem a minha memória prometiam o sucesso naquele prazo, não só em latim e em francês, como também nas outras matérias. Afinal, o latim esgotoume. Esse fracasso me magoou, mas não perdi a coragem. Tinha tomado gosto pelo latim; percebera também que o meu francês nada perderia com um novo esforço; e, em ciências, mudaria de tema. A química que a princípio escolhera, não oferecia nenhum atrativo, em virtude da ausência absoluta de trabalhos práticos — embora devesse apaixonar-me. Nas Índias, ela fazia parte das matérias obrigatórias, e foi esta a razão da minha primeira escolha, no tempo da preparação do exame londrino. Na segunda vez, substituí a química pelo estudo do calor e da luz, que tinha reputação de fácil — reputação que efetivamente comprovei. Ao mesmo tempo que me preparava uma segunda vez, esforçava-me por simplificar ainda mais a vida. Sentia que o meu modo de viver ultrapassava ainda os modestos meios da minha família. A ideia de meu irmão, cheio de dificuldades, e que respondia generosamente aos constantes pedidos de auxílio financeiro, magoava-me bastante. Em torno de mim, a maior parte dos que gastavam de oito a quinze libras por mês beneficiava-se de bolsas de estudos. Eu tinha sob os olhos exemplos de modos de vida infinitamente mais simples. O acaso fizera-me encontrar bom número de estudantes pobres que viviam mais humildemente que eu. Um deles habitava o quarteirão dos casebres; o seu quarto custava-lhe dois shillings por semana; alimentava-se de cacau e de pão à razão de dois pences por refeição, que tomava numa loja de degustação Lockart — as menos caras que havia.

Eu estava longe de pensar em imitá-lo; mas tinha o sentimento de poder, seguramente, contentar-me com uma peça, em lugar de duas, e de poder preparar eu mesmo algumas das minhas refeições. Assim economizaria quatro ou cinco libras por mês. Encontrei também livros que tratavam da simplicidade de vida. Renunciei ao meu apartamento, instalei-me numa única peça, adquiri um fogareiro e pus-me a fazer eu mesmo a minha primeira refeição. Não me custava então mais de vinte minutos, pois me contentava em preparar flocos de aveia e em ferver água para o cacau. Almoçava na cidade e jantava em casa, pão e cacau. Cheguei assim a viver com um shilling e três pences por dia. Foi também um período de trabalho intenso. Essa vida simples fazia-me ganhar muito tempo. Passei nos meus exames. Que o leitor não creia que esse modo de vida me tornara a existência penosa e sombria. Ao contrário, essa mudança trouxe a harmonia entre a minha vida interior e a social. Ademais, adaptava-se melhor aos meios de minha família. A minha vida ganhou, seguramente, em verdade e a minha alma conheceu uma alegria sem limites. 17. EXPERIÊNCIAS ALIMENTARES À medida que estudava e escrutava mais atentamente, a necessidade de modificar-me, em profundeza e em superfície, impunha-se-me cada vez mais. Desde que reformei inteiramente as finanças e o meu modo de vida — ou mesmo antes disso — procurei mudar de regime alimentar. Percebi que os autores que tratavam do vegetarianismo tinham examinado muito minuciosamente o problema, abordando-o sob o ângulo da religião, da ciência, da prática e da medicina. Do ponto de vista da ética, haviam chegado à conclusão de que a supremacia do homem sobre as espécies animais inferiores não implicava que a humanidade considerasse estes últimos como presas, mas que o tipo mais evoluído protegia o inferior, e que havia auxílio mútuo entre eles, assim como de homem para homem. Tinham feito ressaltar também essa verdade, a saber, que o homem não come por prazer, mas para viver. Alguns dentre eles, em consequência, propunham e efetivamente praticavam a recusa de

tocar não somente em carne, mas também em ovos e leite. Do ponto de vista científico, alguns haviam concluído que a estrutura do corpo humano provava que o homem não tinha sido feito para a alimentação cozida, mas era um animal frugífero; que não fora feito para consumir senão o leite materno, e que, possuindo dentes, devia entregar-se à alimentação sólida. Do ponto de vista médico, esses autores propunham que se abolissem todas as especiarias, todos os condimentos. Referindo-se a argumentos práticos e de economia, demonstraram que o regime vegetariano era o menos dispendioso de todos. Esse conjunto de considerações teve o seu efeito sobre mim e travei conhecimento com vegetarianos desses diferentes tipos nos restaurantes do regime que eu frequentava. Existia na Inglaterra uma Sociedade Vegetariana, que publicava o seu boletim semanal. Torneime assinante desse boletim, inscrevi-me na Sociedade e não tardei a surpreender-me membro do Comitê Executivo. Aí entrei em contato com os que eram considerados pilares do vegetarianismo e lancei-me em experiências pessoais de dietética. Deixei de consumir doces e condimentos que recebera de casa. Tendo mudado de direção o progresso do meu espírito, a minha paixão pelos temperos esgotou-se por si mesma. Adorava agora os espinafres cozidos que me haviam parecido insípidos em Richmond, cozinhados sem condimentos. Muitas outras experiências semelhantes ensinaram-me que a verdadeira sede do paladar não é a língua, mas o espírito. Bem entendido, o argumento econômico estava sempre diante dos meus olhos. Havia, naquele tempo, um grupo que considerava nocivos o chá e o café, e preferia o cacau. Convencido como estava de que não se devia consumir senão os artigos necessários ao sustento do corpo, abandonei o chá e o café, de modo geral, e os substituí pelo cacau. Os restaurantes que eu frequentava ofereciam dois tipos de menu: um, que se destinava a uma categoria de pessoas abastadas, apresentava variedade de pratos quase ilimitada; escolhia-se o que se queria, à la carte77, por um preço que variava de um a dois shillings por pessoa. O outro consistia numa refeição de três pratos e uma fatia de pão, por seis pences. Em meus dias de rígida frugalidade, eu

costumava optar por este último gênero de menu. Paralelamente à experiência principal, fiz uma quantidade de outras, menos importantes, como, por exemplo, a de me abster de toda a alimentação que contivesse amido, durante certo tempo; de viver unicamente de pão e de frutas, num outro momento; e, uma vez, de contentar-me com queijo, leite e ovos. Esta última experiência merecer ser notada, não chegou a durar mesmo quinze dias. O reformador que advogava o regime que excluía os amidos fizera o elogio dos ovos e sustentara que estes nada tinham em comum com a carne. Parecia-lhe que não fazia mal a nenhuma criatura viva consumir ovos. Deixei-me convencer por essa argumentação e comi-os, a despeito do meu voto. Mas esse desfalecimento foi efêmero. Eu não tinha que meter-me a interpretar o voto à minha maneira. A interpretação de minha mãe, que recebera o juramento, devia bastar. E eu sabia que os ovos estavam compreendidos em sua definição da carne. Desde que medi o verdadeiro conteúdo do meu voto, renunciei aos ovos e, ao mesmo tempo, à experiência. Esse modo de ver repousa sobre um argumento sutil, mas sólido, que vale a pena notar. Na Inglaterra, encontrei três definições de carne. Segundo a primeira, só tinha direito a esse nome a carne dos pássaros e a dos animais. Os vegetarianos que a aceitavam abjuravam a carne dos pássaros e dos animais, mas comiam peixe, para não falar em ovos. De acordo com a segunda definição, a palavra carne aplicava-se à carne de toda criatura viva; não se pensava, pois, em tocar em peixe, mas os ovos eram permitidos. A terceira definição englobava não somente a carne de toda criatura viva, mas igualmente os seus frutos — consequentemente o leite e os ovos. Se eu me ativesse à primeira, poderia comer tanto os ovos como o peixe. Mas estava convencido de que a definição adotada por minha mãe era a que eu devia observar. Se, portanto, quisesse cumprir o voto que tinha pronunciado, devia renunciar aos ovos. Renunciei a eles. Foi uma dura privação, pois que a mais simples indagação provava que, mesmo nos restaurantes vegetarianos, os ovos entravam na feitura de muitos pratos. O que significava que, salvo nos casos em que eu sabia de que se tratava, tinha de decidir-me,

não sem constrangimento, a perguntar se tal ou qual prato continha ovo — porque numerosos pudins e bolos não estavam isentos dele. Mas, se a revelação do que era meu dever me impunha essas dificuldades, simplificava também a minha alimentação. Simplificação que, por sua vez, me causava muitos aborrecimentos, pois tive de renunciar a diversas iguarias pelas quais tomara gosto. Essas dificuldades foram passageiras: a estreita observância de meu voto proporcionou-me delícias interiores evidentemente mais sãs, mais sutis e mais duradouras. A verdadeira prova, porém, ainda estava por vir. Referia-se à outra parte do meu juramento. Mas “que mal pode suceder a quem Deus protege78?” Algumas observações sobre a interpretação dos votos e dos compromissos talvez não fiquem deslocadas aqui. A maneira de interpretar um juramento tem sido sempre objeto de lutas e de disputas contínuas no mundo inteiro. Por mais explícito que seja o compromisso, as pessoas lhe torcerão e lhe deformarão a letra para adaptá-lo a seus fins. E isto, seja qual for a classe social a que pertençam: ricos ou pobres, príncipes ou plebeus. O egoísmo os cega e, pela viela de compromissos ambíguos, elas abusam de si mesmas e querem abusar do mundo e de Deus. Existe uma regra de ouro, que é a de que nos devemos ater à interpretação que lealmente deu, da promessa, a pessoa que a recebeu. Outra regra: em caso de alternativa na interpretação, deve-se optar pelo espírito da parte mais fraca. Negar essas duas regras é lançar-se no combate estéril e iníquo, cujas raízes mergulham no engano e na deslealdade. Todo aquele que não tem outro fim senão o de buscar a verdade, nenhum prejuízo terá em ater-se à regra de ouro, e nenhuma necessidade tem de mendigar a opinião dos doutores. O sentido que minha mãe dera à palavra carne era, segundo a regra de ouro, o único verdadeiro para mim e dispensava o que uma experiência mais ampla, o orgulho ou um melhor conhecimento das coisas houvesse podido ensinar-me. Eu realizei as minhas experiências na Inglaterra, segundo o duplo ponto de vista da economia e da higiene. O aspecto religioso da questão só foi levado em conta quando me transferi para a África do Sul, onde me lancei em experiências contínuas e árduas, cujo relato

virá a seu tempo. Mas tudo isso existia em potência, desde a época da minha permanência na Inglaterra. O entusiasmo do neófito pela fé que acaba de abraçar é maior do que o da pessoa que nasceu na mesma religião. O vegetarianismo representava então, para os ingleses, um culto inédito. E igualmente para mim: como já tivemos oportunidade de ver, eu era, ao chegar, um carnívoro convencido, e a minha conversão intelectual ao vegetarianismo devia vir mais tarde. Cheio do zelo dos novos convertidos, decidi criar um clube vegetariano no bairro em que vivia — Baywater. Convidei Sir Edwin Arnold79, que morava lá, a assumir a vice-presidência. A presidência coube ao dr. Oldfield, redator-chefe do Vegetariano. Eu próprio assumi a secretaria. O clube prosperou algum tempo, mas extinguiu-se ao cabo de poucos meses, porque, fiel ao costume de mudar-me, periodicamente, deixei o bairro. Não obstante, essa breve e modesta experiência instruiu-me, de modo ligeiro, sobre a organização e a direção de uma instituição. 18. A TIMIDEZ Fui escolhido para fazer parte do Comitê Executivo da Sociedade Vegetariana, considerei ponto de honra assistir a todas as sessões. Mas era incapaz de abrir a boca. O dr. Oldfield disse-me um dia: — Quando me fala pessoalmente, o Senhor é perfeito. Mas por que nunca descerra os lábios nas reuniões do Comitê? O Senhor é um verdadeiro zangão. A analogia pareceu-me justa. A abelha não cessa de se atarefar; o zangão é um completo desocupado. E não deixava de ser um tanto curioso que, enquanto os outros davam a sua opinião no decurso das sessões, me vissem permanecer mudo na minha cadeira. Não que eu não fosse tentado a tomar a palavra; mas sentia-me perdido e não sabia como exprimir-me. Todos os outros membros da organização pareciam-me infinitamente mais sábios do que eu. Ademais, acontecia frequentemente que, no momento preciso em que eu lograva reunir a coragem necessária, abordavam um assunto novo... Foi assim durante muito tempo. Entrementes, surgiu um grave problema. Achei que estava errado

em abster-me e senti que seria covardia votar sem explicar-me. O presidente da Sociedade era Mr. Hills, proprietário das Forjas do Tâmisa. Era um puritano. Para subsistir, a Sociedade dependia praticamente, pode-se dizer, dos seus subsídios. Uma boa parte dos membros do Comitê eram mais ou menos seus protegidos. O dr. Allinson, renomado nos meios vegetarianos, era também membro do Comitê. Partidário entusiástico do movimento, então recente, em favor do controle da natalidade, pregava-lhe os métodos entre as classes trabalhadoras. Mas Mr. Hills achava que esses métodos atacavam as próprias raízes da moral. Acreditava que a Sociedade Vegetariana tinha por objeto não somente a reforma dietética, mas também a reforma dos costumes, e que um homem com maneiras de ver antipuritanas, como o Dr. Allinson, não podia ser tolerado por mais tempo no seio da associação. Foi apresentada, pois, moção pedindo a sua exclusão. O caso apaixonou-me. Eu considerava perigosa a opinião do dr. Allinson sobre os métodos artificiais de controle dos nascimentos; estava convencido de que Mr. Mills, na qualidade de puritano, tinha o direito de se opor a ele. Tinha também em alta estima Mr. Hills e a sua generosidade. Mas eu considerava que era contrário a toda a decência excluir qualquer dos membros de uma associação vegetariana sob o simples pretexto de que não olhava a moral puritana como uma das finalidades dessa associação. Mrs. Hills, ao reclamar a exclusão dos antipuritanos, expressava um ponto de vista estritamente pessoal, que nada tinha a ver com o objetivo declarado da associação — a saber: a atividade militante em favor do vegetarianismo, e não de um sistema qualquer de moral. Eu era, pois, da opinião de que qualquer vegetariano tinha o direito de fazer parte da Sociedade, independentemente de seu ponto de vista sobre qualquer outro problema moral. Não era eu o único a pensar assim, no Comitê. Mas sentia que constituía meu dever pessoal exprimir eu próprio esta opinião. O problema era: de que modo? Não tinha coragem de tomar a palavra; resolvi, pois, lançar as minhas ideias no papel. Fui à reunião com o documento no bolso. Tanto quanto me lembro, não me senti capaz de lê-lo, e o presidente o fez ler por um outro. O dr. Allinson saiu derrotado. Assim, na minha primeira batalha dessa espécie, encontrei-me situado no campo dos vencidos. Mas consolou-me o

pensamento de que a causa era justa. Creio recordar-me de que, depois desse incidente, pedi demissão do Comitê. Durante toda a minha permanência na Inglaterra, a timidez não me deixou. Mesmo em visita mundana, a presença de meia dúzia de pessoas ou mais fulminava-me de mutismo. Lembro-me de uma vez em que fora a Ventnor80 em companhia de M. Mazmudâr. Éramos hóspedes de uma família de vegetarianos. Mr. Howard, autor de Ética da Alimentação, tinha ido também para essa cidade à beira-mar. Tendo-o encontrado, convidou-nos a fazer uso da palavra numa reunião de propaganda em favor do vegetarianismo. Eu já sabia que o fato de ler um discurso não era considerado incorreto. Sabia que muitos recorriam a esse processo por uma questão de brevidade e de lógica. Não se podia pensar em que eu me lançasse a uma improvisação. Redigi, por conseguinte, o meu discurso. Levantei-me para lê-lo. Foi incapaz: tudo se confundia diante dos meus olhos, eu tremia. Contudo, a minha oração mal cobria uma folha de papel de tamanho grande. M. Mazmudâr teve que encarregar-se dela. Quanto a ele, pronunciou uma excelente alocução que foi muito aplaudida. Senti-me envergonhado e a minha impotência encheu-me de tristeza. Tentei uma última vez usar da palavra em público, na Inglaterra, na véspera do meu regresso ao país natal. Desta vez ainda, só consegui cobrir-me de ridículo. Convidara os meus amigos vegetarianos para jantar naquele mesmo restaurante Holbourn do qual falei. “Uma refeição vegetariana”, pensei, “pode, é óbvio, ser feita num restaurante vegetariano. Mas por que não fazê-la também num restaurante não vegetariano?” E entendi-me com a direção do restaurante Holbourn para preparar um menu estritamente vegetariano. Os meus amigos vegetarianos acolheram essa novidade com exclamações de alegria. Todos os jantares são pretextos de manifestações de júbilo; mas foi o Ocidente que fez desse gênero de manifestação uma verdadeira arte. Os jantares transformam-se em solenidades de grande brilho, com música e discursos. E até a minha pequena reunião não se fez sem um certo decoro. Não faltariam também os discursos. Quando chegou a minha vez, levantei-me para tomar a palavra. Tinha meditado, com uma prudência meticulosa, uma oração de algumas frases. Mas fui incapaz de passar da

primeira. Tinha lido em certo livro que Addison, pronunciando o seu primeiro discurso na Câmara dos Comuns, repetira três vezes: “Eu concebo...”, depois parara por completo; então um pérfido levantou-se para dizer: “Este cavalheiro concebeu três vezes, mas nós ainda não vimos os frutos”. Havia-me proposto fazer uma alocução humorística, partindo precisamente dessa anedota. Agi em consequência e logo me atolei. A memória fugiu-me por completo e, esforçando-me por fazer humor, cobri-me de ridículo: “Agradeço-lhes, senhores, terem tido a bondade de aceitar o meu convite”, disse eu abruptamente e tornei a sentar-me. Foi somente na África do Sul que sobrepujei a timidez, sem jamais, contudo, libertar-me completamente dela. Sempre me foi impossível improvisar e tenho hesitado todas as vezes que devo afrontar um auditório desconhecido; tenho, regularmente, evitado tomar a palavra, sempre que posso. Mesmo atualmente, não me creio nem capaz, nem desejoso, de falar nessa espécie de reuniões em que, entre amigos, se tagarela sem objeto. Devo dizer que, afora o ridículo a que me expunha de quando em quando, essa timidez natural nunca me trouxe desvantagens. Muito ao contrário, parece-me claramente que só me trouxe vantagens. A minha palavra hesitante, que a princípio me causou um grande aborrecimento, tornou-se-me fonte de prazer. O seu maior benefício foi o de ensinar-me a economia de palavras. Adquiri, naturalmente, o hábito de sintetizar o meu pensamento. E posso hoje afirmar o seguinte: que raramente escapa um desatino da minha pena ou da minha língua. Não me lembro de ter sido alguma vez forçado a lamentar uma palavra ou um escrito. Isso me poupou muitas desgraças e perda de tempo. A experiência ensinou-me que o silêncio tem a sua parte na disciplina espiritual de todos aqueles que se votaram à verdade. A tendência a forçar, a recalcar ou modificar a verdade, conscientemente ou não, é uma fraqueza natural do homem; e o silêncio é necessário, se temos que sobrepujar essa fraqueza. O orador lacônico raramente pronunciará uma palavra vã; cada um dos seus vocábulos será medido. Tantas são as pessoas ansiosas por falar! Não há um presidente de reunião que não seja acossado por oradores que pedem a palavra. E cada um que a recebe, excede

geralmente o tempo fixado, reclama prorrogação e continua a falar sem autorização. Toda essa tagarelice dificilmente pode prestar um serviço útil ao mundo. Resulta num total desperdício de tempo! Na realidade, a minha timidez foi para mim uma égide, um escudo. Permitiu que eu me desenvolvesse. Ajudou-me a discernir a verdade. 19. O CÂNCER DA MENTIRA Havia relativamente poucos estudantes indianos na Inglaterra, há quarenta anos. O seu hábito era o de passar por celibatários, mesmo quando fossem casados. Liceanos e estudantes de universidade são todos celibatários, na Inglaterra, e os estudos são considerados incompatíveis com o casamento. Era essa também a tradição entre nós, nos bons tempos de outrora: o estudante era então invariavelmente um brahmachari81. Mas hoje temos o casamento de crianças — coisa praticamente desconhecida na Inglaterra. Daí o sentimento de vergonha que experimentavam os moços indianos, neste último país, de confessar que eram casados. A isso acrescente-se uma outra razão para dissimular — a saber, que, caso o fato se tornasse conhecido, seria impossível ao moço sair ou flertar com as moças da família da qual era hóspede. Essa espécie de flerte era mais ou menos inocente. Os próprios pais o encorajavam; e esse tipo de associação entre jovens dos dois sexos é — quem sabe? — talvez uma necessidade num país em que todo moço deve escolher a sua companheira. Se, portanto, os jovens indianos chegando à Inglaterra se dão a essa espécie de relações (perfeitamente naturais para os moços ingleses), o resultado tem fortes probabilidades de ser desastroso — a experiência muitas vezes o provou. Percebi que os nossos jovens sucumbiam à tentação e escolhiam uma vida de mentira por amor a ligações que, se eram inocentes para os jovens ingleses, no seu caso eram indesejáveis. Eu também cedi ao contágio. Não hesitei em fazer-me passar por solteiro, embora casado e pai de um filho. Mas essa hipocrisia não me trouxe felicidade. Somente a reserva e o retraimento impediram-me de perder pé e afundar. Eu não era conservador e as moças achavam que não valia a pena tagarelar ou sair comigo.

A poltronaria ia, comigo, de par com a reserva. Era costume, nas famílias como a que eu fora visitar, em Ventnor, que a moça da casa levasse os pensionistas a passeio. A jovem filha da casa levou-me, pois, um dia, às singulares colinas que circundam Ventnor. Sou bom caminhante, mas a minha companheira andava ainda mais depressa, zombando de mim e tagarelando sem cessar. À sua conversa eu respondia de quando em quando, num sopro, por “sim” ou “não”; quando muito, por um: “Sim, é bonito!” Ela possuía asas e eu só pensava na volta. Atingimos assim o cimo de uma colina. A descida era outro bom pedaço. A despeito dos seus sapatos de salto alto, essa petulante jovem, pessoa de vinte e cinco anos, desceu a encosta até embaixo, como se nada fosse, enquanto eu me debatia vergonhosamente. Chegada ao sopé, parou para sorrir-me, encorajarme e oferecer para vir rebocar-me. Como podia eu ser tão medroso! Com as maiores dificuldades, arrastando-me por vezes, cheguei, não sei como, a atingir o chão. Ela gritou-me: “Bravo!”, rindo de todo o coração, envergonhando-me ainda mais. Mas eu não podia sair indene de todas essas aventuras; pois Deus queria extirpar de mim o câncer da mentira. Fui certa vez a Brighton82, outra praia da espécie de Ventnor. Fora antes da visita que fiz a esta última cidade. Travei conhecimento, no hotel, com uma viúva idosa e de fortuna modesta. Era no primeiro ano de minha chegada. O menu estava inteiramente redigido em francês e eu nada compreendi. Partilhava da mesa dessa velha senhora. Ela reconheceu em mim um estrangeiro e notou o meu embaraço. Veio logo em meu auxílio. — O Senhor tem o ar de quem não é daqui e de não saber que fazer — disse-me ela. Eu estava ocupado em decifrar o menu e preparava-me para certificar-me da composição dos pratos, com o garçom, quando a senhora interveio desse modo. Agradeci-lhe e, explicando o meu embaraço, disse-lhe que estava confuso e não conseguia saber quais eram os pratos vegetarianos, pois não compreendia o francês. — Permita-me que o auxilie — disse-me ela. — Vou explicar-lhe o menu e mostrar-lhe o que pode comer. Cheio de gratidão, aceitei o seu auxílio. Esta foi a origem das relações que, com o tempo, se transformaram numa amizade

duradoura mesmo depois da minha partida da Inglaterra. A senhora em questão deu-me o seu endereço, em Londres, e convidou-me insistentemente que fosse jantar com ela aos domingos. Além mesmo dos domingos, convidava-me frequentemente, ajudando-me a vencer a timidez, apresentando-me a moças e misturando-me aos seus divertimentos. Uma jovem, que vivia com ela, era principalmente destinada a esse gênero de função. E muitas vezes deixavam-nos sozinhos. Comecei a achar isso muito desconcertante. Eu era incapaz de alimentar uma conversação e muito menos de arriscar galanterias. Mas a jovem em questão pôs-me no bom caminho. Pouco a pouco eu me iniciei; com o tempo, pus-me a esperar, impacientemente, o domingo e a tomar gosto pelas conversas com essa jovem amiga. E a velha cada vez estendia mais um pouco a sua teia. Ela interessava-se pelos nossos encontros. Talvez tivesse as suas ideias a nosso respeito. Eu não sabia como escapar. “Se ao menos tivesse confessado a essa senhora que sou casado!”, pensava eu. “Ela não teria pensado em nos noivar. Contudo, nunca é tarde para corrigir um equívoco. Confessando a verdade, talvez eu me poupe outras complicações. Robustecido por essas reflexões, escrevi-lhe uma carta mais ou menos nesse sentido: “Depois do nosso encontro em Brighton, a senhora só teve bondades para comigo. Cuidou de mim como de um filho. Pensou também que eu devia casar-me e, com esta ideia, apresentou-me às moças. Antes de deixar as coisas irem mais longe, devo confessarlhe que sou indigno da sua afeição. Deveria ter-lhe dito, desde a minha primeira visita, que sou casado. Sei que os estudantes do meu país dissimulam, na Inglaterra, o seu casamento; fiz o mesmo. Percebo hoje que errei. Devo ainda acrescentar que me casei muito criança e que tenho um filho. Lamento profundamente tê-la conservado durante tanto tempo na ignorância destes fatos. Mas sinto-me feliz por me haver Deus concedido hoje a coragem de fazer falar a verdade. Perdoar-me-á? Asseguro-lhe que não tomei nenhuma liberdade contrária às leis da honestidade com a jovem que teve a bondade de me apresentar. Conhecia meus limites. Mas a senhora, ignorando o

meu casamento, desejou naturalmente noivar-nos. Se desejo por um fim a essa situação, e preciso que lhe confesse a verdade. “No caso de, ao receber esta carta, ter a senhora o sentimento de que fui indigno da sua hospitalidade, creia que não ficarei ressentido. As suas bondades e a sua solicitude impõem-me uma dívida eterna de gratidão. Se, depois disso, a senhora não me fechar a sua porta, mas continuar a considerar-me digno de sua hospitalidade (e farei tudo que estiver em meu poder para merecê-la), sentir-me-ei, naturalmente, muito feliz e considerarei tal fato como novo testemunho da sua bondade”. O leitor, decerto, percebe que não pude escrever esta carta de uma só vez. Nela tive que trabalhar numerosas vezes. Mas ela removeu o calcanhar que me esmagava, oprimindo-me. Quase pela volta do correio, recebi uma resposta que dizia pouco mais ou menos: Tenho em mãos sua franca missiva. Causou-nos alegria, a todas duas, e muito rimos ao lê-la. A mentira de que se acusa é perdoável. Mas teve razão em revelar-nos a verdadeira situação. Meu convite permanecerá sempre de pé e o esperamos sem falta no próximo domingo, na certeza de que nos fará a narração completa de seu casamento de criança e de que teremos o prazer de rir às suas custas. Tenho necessidade de dizer-lhe que esse incidente em nada afetará nossa amizade?” Foi assim que me curei do câncer que é a mentira, e jamais hesitei, depois, em falar de meu casamento todas as vezes que fosse necessário. 20. ENCONTRO COM A RELIGIÃO Nos fins do meu segundo ano de permanência na Inglaterra, o acaso fez-me encontrar dois teosofistas, irmãos e solteiros ambos. Falaram-me da Gitâ83. Dispunham-se a lê-la na tradução de Sir Edwin Arnold — O Canto Celeste — e convidaram-me a estudá-la com eles no original. Fiquei envergonhado, pois não havia lido esse divino poema nem em sânscrito nem em gujrate. Fui obrigado a confessarlhes que não conhecia a Gitâ, mas disse-lhes que me sentiria feliz em lê-la com eles, e que, embora tivesse fracos conhecimentos de sânscrito, esperava contudo poder compreender o original numa

medida suficiente para adverti-los nos trechos em que a tradução traísse o sentido. Iniciei, assim, essa leitura com eles. “Se o homem detém a sua atenção sobre os objetos dos sentidos, nasce-lhe a atração por eles. Da atração surge o desejo; do desejo forma-se a cólera. Da cólera nasce o desvio; do desvio, a confusão do pensamento; Da confusão do pensamento, a ruína da razão; da ruína da razão ele morre”84. Esses versos do segundo capítulo causaram-me profunda impressão e ressoam sempre em meus ouvidos. O livro abalou-me; pareceu-me de um valor imensurável. Essa impressão continuou a crescer em mim, desde então, e o resultado é que considero hoje essa obra como o livro, por excelência, de iniciação ao conhecimento da Verdade. Nele encontrei um auxílio inestimável, nas horas de abatimento. Li quase todas as traduções feitas em inglês; considero a de Sir Edwin Arnold a melhor. Reproduziu fielmente o texto; contudo, ao lêla, não se acreditaria tratar-se de uma tradução. Embora tenha lido a Gitâ em companhia daqueles dois amigos, não posso pretender que a tivesse verdadeiramente estudado então. Foi somente depois de alguns anos que dela fiz minha leitura cotidiana. Esses dois irmãos recomendaram-me também A Luz da Ásia85, de Sir Edwin Arnold, o qual eu só conhecia até então como O autor do Canto Celeste. Li essa outra obra com mais interesse ainda que a Bhagavadgitâ. Tendo começado, foi-me impossível largá-la. Levaramme eles um dia à Loja Blavatsky e apresentaram-me à sra. Blavatsky86 e à sra. Besant. Esta acabava justamente de aderir à Sociedade Teosófica e eu acompanhava com vivo interesse a controvérsia provocada pela sua conversão. Os meus amigos aconselharam-me a inscrever-me nessa sociedade, mas recusei polidamente. — Tenho apenas um magro conhecimento da minha própria religião — disse-lhes eu. — Não desejo pertencer a nenhuma seita religiosa. Lembro-me de ter lido, a instâncias deles, a Chave da Teosofia,

da sra. Blavatsky. Esta leitura estimulou em mim o desejo de familiarizar-me com as obras sobre o hinduísmo, e libertou-me da noção ilusória, difundida pelos missionários, de que o hinduísmo era apenas um amontoado de superstições87 Na mesma época, travei conhecimento com um excelente cristão de Manchester, numa pensão de família vegetariana. Ele falou-me do cristianismo. Transmiti-lhe as minhas recordações de Râjkot. Ficou penalizado com a minha narração. — Sou vegetariano — disse-me ele. — Não bebo. Muitos cristãos, decerto, entregam-se à carne e à bebida. Mas a Escritura não preconiza que se seja carnívoro, nem que se toque em álcool. Eu lhe peço, leia a Bíblia. Aceitei o conselho e ele me deu um exemplar da Bíblia. Creio recordar-me que ele próprio a vendia e que eu lhe comprei uma edição com mapas, paralelos e outros complementos úteis. Atirei-me a essa leitura, mas não pude chegar ao fim do Antigo Testamento. Li o Livro da Gênese; os capítulos seguintes davam-me invariavelmente sono. Mal unicamente para poder dizer que tinha lido a Bíblia, fiz laboriosamente leitura dos outros livros, fatigando-me bastante, sem o menor interesse e sem nada compreender. O Livro dos Números desagradou-me profundamente. Mas o Novo Testamento produziu-me impressão muito diversa — principalmente o Sermão da Montanha, que me foi direto ao coração. Comparei-o com a Gitâ. Os versículos: “E eu vos digo para não resistirdes àquele que vos maltrata; pelo contrário, se alguém vos bater na face direita, oferecei-lhe ainda a outra. Se alguém quiser discutir convosco para tomar-vos a vossa veste, dai-lhe também o vosso manto”, me satisfizeram além de toda medida, e me recordaram o “Pela água, dá uma boa refeição...” de Shâmal Bhatt88. A minha jovem inteligência esforçou-se por unir num só ensinamento a Gitâ, A Luz da Ásia e o Sermão da Montanha. A ideia de que a renúncia era a forma suprema de toda a religião exercia um grande atrativo sobre mim. Essa leitura aguçou-me o apetite e deu-me o desejo de estudar a vida de outros mestres em religião. Um amigo recomendou-me Os Heróis, e o Culto dos Heróis, de Carlyle. Li o capítulo sobre o herói considerado como profeta, e aprendi assim a conhecer a grandeza, a

bravura e a austeridade de vida do profeta. Não pude, momentaneamente, levar mais adiante esse primeiro encontro com a religião; a preparação dos meus exames deixava-me muito pouco tempo além do estudo do meu programa. Mas tomei boa nota do fato de que me era necessário ler mais livros religiosos e familiarizar-me com as religiões mais importantes. E de que modo evitar que eu aprendesse o ateísmo também? Não havia um só indiano, em Londres, que não tivesse ouvido falar de Bradlaugh89 e do seu ateísmo, como se dizia. Li não sei que livro a esse respeito; esqueci-lhe o título. Produziu-me alguma impressão: eu já havia atravessado o “Saara” do ateísmo. A sra. Besant, que então estava de sentinela, desviara-se do ateísmo para chegar ao deísmo, e esse fato reforçou também a minha aversão pelo ateísmo. Eu lera o seu livro: “Como me tornei Teosofista”90. Foi por essa época que morreu Bradlaugh. Foi enterrado no cemitério de Woking. Assisti às cerimônias, como, bem o creio, todos os indianos que residiam em Londres. Alguns clergymen tinham vindo também prestar-lhe as últimas homenagens. Voltando do enterro, foi preciso esperar o trem na estação. Na multidão, um campeão do ateísmo dirigiu-se a um dos clergymen: — Então, cavalheiro, acredita na existência de Deus? — Perfeitamente — respondeu o bravo homem (e sua voz era baixa). — Concorda também que a circunferência da Terra é de quarenta mil quilômetros, não é? — tornou o ateu, com um sorriso cheio de segurança. — Decerto. — Diga-me, pois, eu lhe peço, qual é a dimensão do seu Deus e onde pode estar ele? — Mas, qualquer um de nós pode sabê-lo: está no coração de nós ambos. — Vamos, vamos, não sou criança! — retrucou o campeão, lançando-nos um olhar triunfante. O clergymen ficou humildemente em silêncio. Esse diálogo confirmou ainda mais o meu preconceito desfavorável em relação ao ateísmo.

21. NIRBAL KE BAL RAM91 (É a força do fraco, Râm) Esse ligeiro aceno de cabeça que fiz, de passagem, ao hinduísmo e a outras religiões do mundo, como a velhos conhecidos, não podia bastar — não deveria duvidá-lo — para salvar-me das minhas atribulações. Do que lhe é um sustentáculo, no decurso de suas provações, o homem não tem a menor indicação no momento — a fortiori, o menor conhecimento. Incréu, atribuirá a sua salvação à sorte. Crente, dirá que Deus o salvou, e concluirá (é seu direito), que, por trás do seu estado de graça interior, achava-se a sua aplicação constante ao estudo da religião ou à disciplina espiritual. Mas quando soa a hora da libertação, é incapaz de dizer se a causa da sua saúde é a disciplina espiritual ou outra coisa. Quem, pois, tendo-se orgulhado de sua força espiritual, não a viu rebaixar-se de repente até ao pó? O conhecimento da religião (considerado como distinto da experiência da religião) parece, quando soa a hora da provação, nonada de palha ao vento. Foi na Inglaterra que descobri pela primeira vez a vaidade do conhecimento religioso puro e simples. A que devo o ter sido salvo, anteriormente, não o saberia dizer; era muito jovem então. Tinha vinte anos e o casamento e a paternidade haviam-me, de certo modo, amadurecido. No decorrer de meu último ano de permanência na Inglaterra, se tenho boa memória — em 1890 —, realizou-se, em Portsmouth, um Congresso Vegetariano para o qual fui convidado, juntamente com um dos meus amigos indianos. Portsmouth é um porto marítimo com uma considerável população de marinheiros, e lá se encontram numerosas casas onde vivem mulheres de má reputação — mulheres que, sem serem exatamente prostitutas, não têm, contudo, muitos escrúpulos nos seus costumes. Alojaram-nos numa dessas casas. O Comitê de Recepção — é necessário dizê-lo? — ignorava tal estado de coisas. Numa cidade como Portsmouth, teria sido difícil distinguir os lugares honestos dos que ofereciam perigos para viajantes de passagem como nós. À noite, depois da sessão do Congresso, recolhemo-nos ao

nosso alojamento. Terminado o jantar, tomamos lugar em torno de uma mesa para jogar uma partida de bridge, e a nossa hospedeira reuniu-se a nós, como é costume na Inglaterra, mesmo nas casas honestas. Muito naturalmente, os jogadores se deixaram levar a inocentes galanterias. Mas, neste caso, o meu companheiro e a nossa hospedeira procederam de tal modo que ultrapassaram os limites da decência. Eu ignorava que o meu amigo fosse um adepto dessa arte. A emulação instigou-me e procedi como eles. No instante preciso em que eu ia transgredir o limite, esquecendo as cartas e o jogo, Deus, pela boca de meu bravo companheiro, transmitiu-me uma feliz advertência: “Que demônio o mordeu, meu rapaz? Deixe disso, e depressa!” Todo envergonhado, aceitei sem mugir a admoestação, agradecendo interiormente a meu amigo. Lembrando-me do voto que pronunciara diante de minha mãe, levantei-me e saí precipitadamente. Cheguei ao meu quarto rangendo os dentes, tremendo, o coração pulsando rápido, como a presa que houvesse escapado ao caçador. Este incidente permanece em minha memória como a primeira ocasião em que, diante de outra mulher que não minha esposa, senti nascer em mim o desejo. Não dormi durante a noite, assaltado por toda a espécie de pensamentos. Seria preciso deixar a casa? Fugir daquele lugar? Onde estava eu? Que me aconteceria, se viesse a perder a cabeça? Decidi agir para o futuro com grande prudência; não fugir de casa mas procurar por todos os modos deixar Portsmouth. O Congresso não devia durar mais de dois dias, e lembro-me de haver saído de Portsmouth no dia seguinte, à tarde, deixando o meu companheiro prolongar a sua permanência. Eu ignorava então a essência da religião ou de Deus, e a Sua maneira de agir sobre nós. Compreendia apenas vagamente que Deus me havia salvo naquela circunstância. E sempre que surgiu uma provação, foi Ele quem me salvou. Sei que a expressão: “Deus me salvou”, tem hoje para mim uma significação mais profunda; contudo, tenho o sentimento de não haver ainda apreendido a sua significação total. Só o enriquecimento de experiência pode ajudar-me

a melhor compreendê-la. Mas em todas as provações — de ordem espiritual, como advogado, como responsável por instituições, bem como metido em política — posso dizer que Deus me salvou. Quando toda a esperança está perdida, “quando falha o auxílio e foge o socorro”, percebo que, de um modo ou de outro, aquele sustentáculo acorre, sem que eu saiba de onde. Súplicas, adoração, prece, não são superstições; são atos mais reais do que comer, beber, sentar-se ou caminhar. Não é exagero dizer que são a única realidade e que tudo o mais é irreal. Essa adoração, essa prece não são arroubos de eloquência, não são vã homenagem dos lábios. Elas brotam do coração. Se atingimos aquela pureza de coração em que ele fica “vazio de tudo, exceto de amor”; se sabemos extrair das cordas uma justa harmonia, o seu “frêmito torna-se música e se perde, invisível”. A prece não exige discurso. É independente em si de todo o esforço dos sentidos. Estou absolutamente certo de que é um meio infalível de purificar o coração das paixões. Mas deve aliar-se à suprema humildade. 22. NÂRÂYAN HEMCHANDRA Durante essa época, Nârâyan Hemchandra92 desembarcou na Inglaterra. A sua reputação de escritor era-me familiar. Encontramonos em casa de Miss Manning, da Associação Nacional Indiana. Miss Manning sabia muito bem da minha impotência em manter conversa com pessoas sociáveis. Quando ia a sua casa, sentava-me e não abria, em geral, a boca, salvo para responder aos que me falavam. Apresentou-me a Nârâyan Hemchandra. Ele não sabia inglês. Estava vestido bizarramente — calças grosseiras, paletó pardo à moda parsi, todo amarrotado e sujo, sem gravata nem colarinho, gorro de lã com pompom. Usava barba. Era de pequena estatura e franzino. O seu rosto redondo era todo marcado de bexigas; o seu nariz, nem fino nem chato. Não parava de torcer as barbas com a mão. Um personagem tão estranho e tão curiosamente vestido não podia passar despercebido num círculo mundano.

— Tenho ouvido falar muito do Senhor — disse-lhe eu. — Li também parte da sua obra. Ficarei encantado se tiver a bondade de ir visitar-me. Nârâyan Hemchandra tinha a voz quase rouca. Sorriu e respondeu-me: — Sem dúvida. Onde mora? — Rua Store. — Então somos vizinhos. Quero aprender o inglês. Quer ensinarme? — Serei feliz em ensinar-lhe dentro dos limites da minha capacidade, e farei o que puder. Se preferir, irei a sua casa. — Não, não. Eu é que irei à sua. E levarei um livro de exercícios de versão. Marcamos encontro. Em pouco tempo tornamo-nos íntimos. Nârâyan Hemchandra ignorava os menores rudimentos de gramática. Para ele, “cavalo” era verbo e “correr” substantivo. Não me faltam recordações divertidas a esse respeito93. Mas ele estava decidido a não se deixar deter por tão pouco. A minha magra bagagem de gramática era incapaz de impressioná-lo. Estou certo de que jamais considerou a ignorância da gramática como um motivo de vergonha. Com perfeita displicência, dizia-me ele: — Nunca estive na escola, como você. Nunca senti necessidade de saber gramática para exprimir as minhas ideias. Diga-me, sabe bengali? Eu sei. Percorri a Bengala. É a mim que o mundo, que fala gujrate, deve o conhecimento da obra de Maharshi Debendranâth Tagore. E meu desejo é traduzir para o gujrate os tesouros de muitas outras línguas. E quer saber? As minhas traduções nunca são literais. Contentome sempre em traduzir o espírito. Outros, mais sábios, serão capazes de fazer melhor, mais tarde. Sem ter estudado gramática, conheço o marata, o hindi, o bengali e repare que já começo a saber o inglês. O que preciso é um vocabulário abundante. E acredita talvez que a minha ambição para aí? Para a frente! Quero ir à França, aprender o francês. Disseram-me que há uma vasta literatura nessa língua. Irei também à Alemanha, se for possível, e lá aprenderei o alemão...

E falava, falava assim sem parar. As suas ambições de linguista e de viajante não tinham limites. — Irá à América, também? — Certamente. Como posso voltar às Índias sem ter visto o Novo Mundo? — Mas onde arranjará dinheiro? — Dinheiro? Para quê? Não sou um peralta como você. O mínimo de alimento e o mínimo de roupas me basta. E o pouco que ganho de meus livros e de meus amigos dá amplamente. Viajo sempre de terceira. Para ir à América também, viajarei na coberta. Tinha uma simplicidade muito particular que ia de par com a sua franqueza. De orgulho não havia nele o menor traço, exceto, bem entendido, uma consideração um tanto excessiva pelo seu próprio talento de escritor. Víamo-nos todos os dias. Havia entre nós considerável semelhança de pensamento e de ação. Éramos ambos vegetarianos. Quase sempre fazíamos juntos as nossas refeições. Foi na época em que eu vivia com dezessete shillings por semana e cuidava da minha cozinha. Às vezes ia visitá-lo; outras vezes era ele que vinha ver-me. Eu cozinhava à inglesa. Ele só gostava da cozinha indiana. Não podia dispensar o dâl94. Eu fazia sopa de cenouras etc. Ele apiedava-se do meu gosto. Um dia, não sei como, desencavou mung, fê-lo cozinhar e trouxe-mo. Deliciei-me. Seguiu-se um sistema de trocas entre nós. Eu levava-lhe as iguarias que preparava, ele vinha ver-me com as suas. O nome do Cardeal Manning95 andava então em todas as bocas. A greve dos trabalhadores das docas terminara mais cedo do que se pensava, graças aos esforços de John Burns e do Cardeal. Relatei a Nârâyan Hemchandra a homenagem que Disraeli prestara à simplicidade desse personagem. — Nesse caso, é preciso que eu veja esse sábio — disse-me ele. — É uma grande personalidade. Como o conseguirá você? — Como? Vejamos... pedindo a você que lhe escreva em meu nome. Diga-lhe que sou escritor, que desejo felicitá-lo pessoalmente pela sua obra humanitária. Diga-lhe também que terei necessidade de você como intérprete, pois não sei inglês. Escrevi uma carta nesse sentido. Dois ou três dias mais tarde, um cartão do Cardeal Manning marcava-nos um encontro. Fomos

juntos, pois, ver o Cardeal. Eu vestira-me como costumava quando ia fazer uma visita. Nârâyan Hemchandra nada mudara em sua figura — o mesmo paletó, as mesmas calças. Tentei rir dele. Mas foi ele quem zombou de mim: — Vocês, os civilizados, não passam de uns fracos. Um grande homem não repara na aparência das pessoas. É o coração que ele examina. Entramos na residência do Cardeal. Mal nos havíamos sentado, quando um velho senhor, alto, magro, entrou e nos apertou a mão. Nârâyan Hemchandra saudou-o nestes termos: — Não desejo roubar o seu tempo. Muito tenho ouvido falar a seu respeito e pensei que era meu dever vir agradecer-lhe todo o bom trabalho que tem feito em favor dos grevistas. Tenho por hábito visitar os sábios deste mundo e esta é a razão pela qual lhe vim causar este incômodo. Foi assim, pelo menos, que traduzi o que ele disse em gujrate. — Sinto-me feliz com a vossa visita. Espero que vossa permanência em Londres não vos decepcione e que traveis relações com as pessoas daqui. Deus vos abençoe. E com estas palavras o Cardeal levantou-se e despediu-nos. Certo dia, Nârâyan Hemchandra visitou-me vestido com uma camisa e um dhoti96. A dona da casa abriu a porta e correu para junto de mim, aterrorizada — era uma nova dona que não conhecia Nârâyan Hemchandra. Disse-me: — Está aí uma espécie de louco que deseja vê-lo. Fui até à porta e, com grande surpresa, percebi que era Nârâyan Hemchandra. Fiquei escandalizado. Ele, porém, tinha o mesmo ar sorridente. — As crianças não correram atrás de você, na rua? — Correram, mas não lhes dei atenção e deixaram-me em paz. Depois de passar alguns meses em Londres, partiu para Paris. Atirou-se ao francês e começou a tradução de livros escritos nessa língua. Eu sabia francês suficiente para rever as suas traduções. Submeteu-as, pois, ao meu julgamento. Ele não traduzia, reproduzia a substância. Finalmente, pôs em execução o seu projeto de viagem a América. Teve enormes dificuldades para conseguir uma passagem

na coberta. Durante a sua permanência nos Estados Unidos foi perseguido por “trajar indecentemente”, quando saiu, um dia, em camisa e dhoti. Parece-me que, depois, deixaram de persegui-lo. 23. A EXPOSIÇÃO DE 1890 Realizou-se, em Paris, em 1890, uma grande Exposição97. Eu havia lido o relato dos seus longos e laboriosos preparativos e tinha vivo desejo de ver Paris. Pensei, pois, que o melhor seria dar dois golpes com uma só pedra e ir àquela cidade nessa ocasião. Entre outras atrações particulares, a Exposição contava com a Torre Eiffel, inteiramente construída de ferro e de uma altura de cerca de mil pés. Naturalmente este não era o único detalhe interessante, mas era o principal, porquanto até então nunca se imaginara que uma construção desse porte pudesse manter-se de pé. Tinham-me falado de um restaurante vegetariano em Paris. Reservei quarto na cidade. Fiquei lá sete dias. Arranjei as coisas de modo a gastar muito pouco dinheiro — tanto na viagem como na visita à cidade. Esta última fi-la eu, invariavelmente, a pé, com o auxílio de um mapa de Paris, bem como de um plano e de um guia da Exposição — suficientes para possibilitar o reconhecimento das artérias principais e dos lugares mais interessantes. Da Exposição nenhuma recordação conservei, salvo a impressão de uma manifestação ampla e variada. Lembro-me bem da Torre Eiffel, pois subi nela duas ou três vezes. Havia um restaurante na primeira plataforma e, pelo único prazer de dizer que havia comido nessa altitude, lá gastei sete shillings. As velhas igrejas de Paris ficaram-me gravadas na memória. Não se pode esquecer a sua tranquila grandeza. A espantosa arquitetura de Notre-Dame, a complexidade de sua decoração interior, unida à beleza das esculturas, impõem-se à lembrança. Diante desse espetáculo, tive o sentimento de que os que tinham consagrado milhões a tão divinas catedrais só podiam ter o coração cheio de amor por Deus. Havia lido muitas coisas sobre a moda e a frivolidade parisienses. Todas as ruas corroboravam a veracidade daqueles testemunhos;

mas as igrejas mantinham-se sensivelmente à parte desse espetáculo. Bastava penetrar nelas para esquecer, imediatamente, o alarido e a agitação do mundo exterior. O comportamento era influenciado: o fato de passar ao lado de uma criatura ajoelhada diante da estátua da Virgem impunha dignidade e respeito. O sentimento que experimentei então (de que tantas genuflexões e preces não podiam ser superstição pura e simples) continuou a crescer em mim: essas almas devotas ajoelhadas diante da Virgem, sua adoração não podia dirigir-se somente à imagem de mármore. Elas ardiam de uma piedade sincera. Não adoravam a pedra, mas a divindade da qual era símbolo. Creio bem que senti então que essa adoração, longe de diminuir a glória de Deus, contribuía para a sua grandeza. Devo acrescentar uma palavra a propósito da Torre Eiffel. Não sei qual é hoje a sua utilidade. Mas ouvi, então, vilipendiá-la, bem como elevá-la às nuvens. Lembro-me de que Tolstoi era o principal dos seus detratores. A crer-se nele, a Torre era um monumento de loucura, não de sabedoria humana. O fumo, pretendia ele, era, de todos os tóxicos, o pior, pois quem a ele se entregava sentia-se tentado a ultrapassar em audácia, no crime, o ébrio: o álcool tornava o homem louco, mas o fumo obscurecia o intelecto e conduzia-o diretamente aos castelos de Espanha. A Torre era invenção de um intoxicado dessa espécie. A arte está ausente da Torre Eiffel. De nenhum modo se pode dizer que ela contribuísse para a real beleza da Exposição. As pessoas amontoavam-se para vê-la e para fazer-lhe a ascensão, atraídas pela novidade e pelo caráter único das suas dimensões. Era o brinquedo da Exposição. Na medida em que em nós subsiste a criança, sofremos a atração dos brinquedos; e a Torre era uma excelente prova de que todos nós somos crianças a quem os brinquedos seduzem. Este era, pode-se dizer, o fim a que se destinava a Torre Eiffel. 24. ADVOGADO... E DEPOIS? Nada disse até aqui sobre a minha permanência na Inglaterra a

saber: a minha admissão no foro. É tempo de passar rapidamente a esse ponto. Antes de ser solenemente admitido ao foro, o estudante deve preencher duas condições: — “fazer o estágio”, o qual comporta doze inscrições trimestrais (o equivalente de três anos mais ou menos); e passar nos exames. Fazer o estágio significava comer — assistir a um mínimo de seis jantares sobre vinte e quatro por trimestre. Comer não significava participar, verdadeiramente, do jantar, mas estar presente a hora fixada e permanecer no seu lugar durante toda a refeição. Compreende-se que, de ordinário, todo mundo devorava a excelente carne e bebia os vinhos escolhidos que o despenseiro da universidade fornecia. O jantar custava de dois shillings e seis a três shillings e seis, isto e, de duas a três rupias, preço que passava por módico, pois, jantando no hotel, devia-se pagar a mesma soma somente pelo vinho. Para nós, indianos, é um fenômeno surpreendente (salvo se somos “civilizados) que o preço da bebida possa exceder o da alimentação. A primeira revelação que tive disso escandalizou-me profundamente e perguntava-me como se podia ter coragem de dissipar tanto dinheiro em bebida. Depois, compreendi. Em geral eu nada comia nessas refeições, porque só podia tocar no pão, nas batatas cozidas e nas couves, coisas que não comia no começo, porque não gostava. E, quando comecei a apreciá-las, tive, ao mesmo tempo, a coragem de reclamar outros pratos. A refeição preparada para os conselheiros era geralmente melhor que a dos estudantes. Com um estudante parse, vegetariano também, pedi, no interesse do vegetarianismo, que tivéssemos direito aos pratos vegetarianos que eram servidos aos conselheiros. Esse direito foi-nos concedido e frutas e legumes da mesa dos conselheiros tornaram-se acessíveis a nós. Cabiam-nos duas garrafas de vinho em cada grupo de quatro; como eu não bebesse, era muito disputado para completar o grupo, cada trio repartindo entre si a minha parte. Sem contar a “grande noite” que havia em cada trimestre, na qual se servia um suplemento de champagne, além de porto e xerez. Nessa ocasião insistiam,

especialmente, sobre a necessidade da minha presença e todos corriam atrás de mim. Jamais compreendi, não só no momento como depois, em que nos qualificavam, esses jantares, superiormente para o foro Outrora só um pequeno grupo de estudantes assistia, de ordinário, a essas refeições o que lhes permitia conversar com os conselheiros; igualmente, podia-se naquele tempo fazer discursos. Tudo isso concorria para dar aos estudantes o hábito da sociabilidade e ao mesmo tempo uma espécie de verniz e refinamento; os seus talentos oratórios lá encontravam também um ambiente adequado. No meu tempo isso não era possível: os conselheiros sentavamse em mesas separadas. Essa instituição havia pouco a pouco perdido toda a significação; mas o conservantismo inglês nem por isso deixava de mantê-la. O curso era fácil: os advogados eram conhecidos sob o nome humorístico de defensores da boa carne”. Todos sabiam que os exames eram quase sem valor. Havia dois, no meu tempo: — Direito Romano e Direito Costumeiro. Existiam manuais oficiais cujo uso era recomendado para a preparação dos exames (os quais podiam ser feitos muitas vezes); mas quase ninguém abria esses livros. Conheci mais de um estudante aprovado em Direito Romano depois de ter percorrido apenas algumas notas sobre o assunto durante uma quinzena de dias; ao passo que outros passavam no exame de Direito Costumeiro ao cabo de dois ou três meses de preparação fragmentária e superficial. O exame escrito era fácil; os examinadores, liberais. A percentagem de aprovados em Direito Romano era correntemente de 95 a 99% a de exames finais, de 75%, senão mais. Havia, pois, um risco muito pequeno de ser reprovado; ademais, não havia apenas um, mas quatro exames por ano. Tudo isso não criava problemas. Eu sentia que era meu dever ler todos os manuais. Considerava desonestidade não fazê-lo. Gastei muito dinheiro para comprá-los. Decidi estudar Direito Romano no texto latino. Os conhecimentos que adquirira dessa língua prestaram-me grande serviço. E todo esse trabalho foi-me útil mais tarde, na África do Sul, onde a lei corrente

era uma mistura de Direito Romano e Direito Costumeiro Holandês. A leitura de Justiniano ajudou-me muito a compreender a lei sulafricana. Foram-me precisos nove meses de duro trabalho para chegar ao cabo do Direito Consuetudinário inglês. O enorme, mas interessante volume de Broom sobre o assunto, tomou-me muito tempo. A Equidade, de Snell, era cheia de interesse, mas um pouco difícil de compreender. O Grande Processo, de White e Tudor, que era lei em certos casos, pareceu-me interessante e muito instrutivo. Li também sem entediar-me a Propriedade Real, de Williams e Edward, bem como a Propriedade Pessoal de Goodeve. O livro de Williams lê-se como um romance. A única obra que me recordo de ter lido, depois de meu regresso às Índias, com o mesmo interesse apaixonado, foi a Lei Hindu, de Mayne98. Mas não é este o momento de falar de livros de direito indiano. Passei nos meus exames, fui admitido ao foro em 10 de junho de 1891, inscrito nos registros da Corte de Apelação no dia 11. E no dia 12 embarcava de volta. Mas, apesar de tantos estudos, experimentava um incurável sentimento de impotência e de medo. Não me sentia de nenhum modo qualificado para praticar o Direito. Vale mais reservar a esses sentimentos um capítulo especial. 25. SABER NÃO É PODER Era fácil ser admitido ao foro, mas difícil praticar. Eu conhecia o Direito, mas ignorava a prática. Lera com interesse as “Máximas Legais”, mas não sabia o que fazer na minha profissão. Sk utere tuo ut alicnum nos laedas (Usa de tua propriedade de modo a não trazeres prejuízo à propriedade alheia), dizia uma dessas máximas. Mas quanto a saber como aplicá-la em benefício dos meus clientes... eu estava embaraçado. Lera o que se dizia dos grandes processos que ali eram referidos, mas não havia neles matéria que me assegurasse sobre a sua aplicação prática nos quadros da lei. Em seguida, eu tudo ignorava do Direito Indiano. Não tinha a menor ideia do que era a Lei para os hindus e para os maometanos. Não tinha mesmo aprendido a redigir uma petição, e sentia-me

completamente perdido. Ouvira falar dos rugidos leoninos de Sir Pherozeshâh Mehta diante dos tribunais, e perguntava-me de que modo ele se arranjara para cultivar esse talento na Inglaterra. Estava fora de dúvida, para mim, que jamais chegaria a esse nível de sagacidade profissional; porém, o que é mais, tinha sérias dúvidas sobre a minha capacidade de ganhar a vida exercendo a profissão. Essa dúvida e essa angústia já me assaltavam quando estudava o Direito. Confiei o meu embaraço a certos amigos. Um deles sugeriume que pedisse a opinião de Dâdâbhâi Naoroji. Disse antes que, ao embarcar para a Inglaterra, tinha uma carta de recomendação para ele. Só a usei muito depois. Achava que não tinha o direito de incomodar tão grande personalidade para uma simples entrevista. Sempre que anunciavam que ele iria falar, eu estava presente a um canto da sala, escutava-o e depois partia com os olhos e os ouvidos repletos. Para assegurar-se um contato mais estreito com os estudantes, ele fundara uma associação. Eu assistia as reuniões e regozijava-me com a sua solicitude pelos estudantes, bem como com o respeito com que estes últimos o cercavam Ao fim de certo tempo, reuni coragem bastante para entregar-lhe a minha carta de apresentação. Disse-me: — Venha conversar comigo quando quiser. Mas nunca aproveitei esse oferecimento, com a ideia de que faria mal incomodá-lo sem uma necessidade premente. Foi por isso que, naquela época, não ousei ouvir o meu amigo e submeter os meus embaraços, de acordo com o seu conselho, a Dâdâbhâi! Não me lembro se foi o meu amigo ou algum outro quem me recomendou que fosse ver Mr. Frederick Pincutt. Era um conservador, mas tinha pelos estudantes indianos uma afeição pura e desinteressada. Numerosos estudantes lhe pediam conselhos; quanto a mim, solicitei-lhe uma entrevista, ele concedeuma. Jamais esquecerei esse encontro. Acolheu-me como a um amigo. Afastou rindo o meu pessimismo. — Crê — disse-me ele, — que é necessário que todo mundo seja um Pherozeshâh Mehta? Os Pherozeshâh e os Badruddin são exceções. Tenha certeza disso: o homem de lei comum não tem

necessidade de talentos excepcionais. Uma boa média de honestidade e de zelo ativo basta para ganhar a vida. Nem todas as causas são complicadas. Vejamos, deixe-me ver um pouco até onde vão os seus conhecimentos gerais. Quando ele percebeu a magreza de minha bagagem, ficou, bem o vi, bastante decepcionado. Mas depressa se refez. A sua fisionomia logo se iluminou com um sorriso amável e radiante: — Compreendo as suas preocupações. Os seus conhecimentos gerais são parcos. Você ignora tudo do mundo e conhecê-lo é, para um vakil, a condição sine qua non. Ignora até a história de seu país. Um vakil deve conhecer a natureza humana. Deve saber decifrar os caracteres nas faces das pessoas. E é dever de todo indiano conhecer a história da Índia99. Isso nada tem a ver com a prática do Direito, mas são os conhecimentos que você deve possuir. Vejo que nem mesmo leu o livro de Kayer e Malleson sobre a Revolta de 1857100. Trate de comprá-lo e leia igualmente dois outros livros, que lhe explicarão a natureza humana. (Eram os livros de Lavater e de Shemmelpennick sobre a fisiognomonia.) Senti um vivo reconhecimento por esse venerável amigo. Em sua presença todas as minhas angústias se desvaneceram. Mal, porém, o havia deixado, os meus tormentos recomeçaram. “Conhecer o homem pela fisionomia” — o problema perseguia-me enquanto me dirigia para casa, pensando nas duas obras que ele me indicara. No dia seguinte, comprei O livro de Lavater. O livreiro não tinha o Shemmelpennick. Li o de Lavater e achei-o mais difícil que A Equidade, de Snell, e muito menos interessante. Li atentamente o que ali se dizia de Shakespeare, mas isso nada me inspirou, e se eu percorresse as ruas de Londres não teria o dom de descobrir os numerosos Shakespeare em liberdade. O livro de Lavater nada acrescentou aos meus conhecimentos. Os conselhos de Mr. Pincutt não me serviram de grande coisa no momento; mas a sua amabilidade foi-me útil. A sua fisionomia aberta e sorridente permaneceu na minha lembrança, e admiti espontaneamente com ele que a sagacidade, a memória e o talento de um Pherozeshâh Mehta não eram absolutamente necessários para o sucesso de um advogado; a honestidade e o zelo ativo bastavam. E como eu não era mal aquinhoado nesse terreno, senti-

me um pouco tranquilizado. Não cheguei a ler os volumes de Kaye e Malleson durante a minha permanência na Inglaterra, mas jurara fazê-lo na primeira ocasião, o que consegui na África do Sul. E foi assim que, com um ligeiro bafejo de esperança, mesclandose ao meu desespero, cheguei a Bombaim, a bordo do vapor “Assam”. Havia muitas vagas no porto e foi um barco que me levou ao cais.

PARTE II 1. RÂYCHANDBHÂI Disse, no capítulo precedente, que havia fortes vagas quando entramos no porto de Bombaim. É um fenômeno que nada tem de incomum, em junho e julho, no Golfo da Arábia. A partir de Aden, o mar está continuamente agitado. Quase toda a gente estava enjoada; somente eu me sentia em excelente forma; passava o tempo na coberta a olhar os vagalhões do mar enraivecido, todo alegre por receber os seus borrifos. Pela manhã, na primeira refeição, não éramos mais de dois ou três, e mantínhamos o nosso prato de flocos de aveia solidamente preso entre os joelhos, de medo que a papa não tomasse o lugar do prato. A tempestade, que reinava lá fora, simbolizava a meus olhos a borrasca que bramia em mim. Mas, se uma me encontrava imperturbável, creio poder dizer que o mesmo acontecia com a outra. Havia aborrecimentos com a gente da casta, que seria necessário enfrentar. Já fiz alusão ao sentimento de impotência que tinha à ideia de me estrear na minha profissão. E depois, reformador na alma, atormentava-me, perguntando qual seria a melhor maneira de empreender certas reformas. Mas o destino reservava-me mais surpresas ainda do que eu esperava. Meu irmão mais velho viera esperar-me ao cais. Ele já havia travado conhecimento com o dr. Mehta e com o seu irmão mais velho. Como o dr. Mehta insistisse que eu fosse para sua casa, foi para lá que seguimos. Assim, os laços que se tinham formado entre nós, na Inglaterra, prolongaram-se às Índias. O tempo estreitou-os mais, transformando-os numa amizade permanente entre as nossas duas famílias. Eu morria de desejo de ver minha mãe. Ignorava que ela não existisse para abrir-me os seus braços neste mundo. Soube então dessa triste nova e entreguei-me às abluções rituais. Meu irmão escondera-me a sua morte, que sobreveio quando eu ainda estava na

Inglaterra. Quisera poupar-me esse golpe em terra estrangeira. A notícia desse desaparecimento foi um choque atroz para mim. Mas não é preciso que me estenda sobre o assunto. A minha dor foi ainda maior que por ocasião da morte de meu pai. Quase todas as minhas esperanças mais caras estavam anuladas. Lembro-me, contudo, de não me haver abandonado a nenhuma manifestação desordenada de sofrimento. Cheguei mesmo a conter as lágrimas e integrei-me no curso da vida como se nada tivesse acontecido. O dr. Mehta apresentou-me a diversos amigos, entre outros a seu irmão, Shri Revâshankar Jagjivan, com o qual fiz relações que se transformaram em amizade por toda a vida. Mas há um encontro que preciso mencionar particularmente aqui — o do poeta Râychan101 (ou Râjchandra), genro de um irmão mais velho do dr. Mehta, e um dos sócios da joalheria comercialmente conhecida sob o nome de Revâshankar Jagjivan. Não tinha mais que vinte e cinco anos, então; mas esse primeiro encontro convenceu-me de que era homem de muito caráter e grande erudição. Tinha também a reputação de ser um Shatâvadhâni102 (aquele que tem a faculdade de lembrar-se ou de acompanhar cem coisas ao mesmo tempo), e o dr. Mehta aconselhou-me a verificar por mim mesmo certos aspectos prodigiosos da sua memória. Esvaziei o meu vocabulário em todas as línguas modernas que conhecia, e pedi ao poeta que repetisse essas palavras. Ele o fez, pela ordem precisa em que eu as havia citado. Invejei-lhe esse talento, sem, contudo, sentir-lhe o encanto. O verdadeiro encantamento deveria vir mais tarde: do seu vasto conhecimento das “Escrituras”103, da pureza absoluta do seu caráter e da sua paixão ardente pelo aperfeiçoamento do ser. Percebi depois que ele só vivia para essa paixão. Em seus lábios, como no fundo de seu coração, cantavam sempre esses versos de Muktânand104: Quando eu vir Hari aparecer-me em meus risos e meus jogos, Então acreditarei que a minha vida atingiu o seu fim. É ele, o Senhor, que é o fio Da vida de Muktânand105. A atividade comercial de Râychandbhâi elevava-se a centenas de milhares de rupias. Era um conhecedor de pérolas e de diamantes. Em negócios, os problemas mais complexos eram brinquedo para

ele. Mas a sua vida gravitava em tórno de algo completamente diferente. O eixo sobre O qual girava era o desejo apaixonado de ver Deus face a face. Entre outros objetos, sobre a sua mesa de trabalho, achavam-se invariavelmente um livro religioso e o seu diário íntimo. Terminados os negócios, abria os dois. Uma boa parte da obra que publicou é a reprodução desse diário íntimo. Esse homem que, mal terminava uma conversa de negócios relativos a operações consideráveis, tomava da pena para abordai os segredos mais íntimos da alma, não podia, decerto, passar por um comerciante; era um verdadeiro pesquisador da Verdade. E não foi uma ou duas, mas inúmeras vezes, que o vi assim, preocupado com Deus, em plena atividade comercial. Jamais o surpreendi perdendo o equilíbrio. Não havia entre nós nenhuma relação comercial, nenhuma associação de caráter egoísta, fosse qual fosse; e, contudo, não podíamos estar mais intimamente unidos. Eu era então apenas um advogado sem causas, não obstante, todas as vezes que ia vê-lo, falava sobre um grave assunto de religião. Eu por certo ainda tateava nessa época; não podia pretender que me interessava seriamente pelas discussões religiosas, mas nem por isso achava a sua conversação menos apaixonante. Depois, encontrei mais de um chefe religioso, mais de um mestre em religião. Fiz o que pude para conhecer os principais cabeças de diversas crenças, e devo dizer que nenhum me causou tão forte impressão como Râychandbhâh. As suas palavras iam-me direito ao coração. A sua inteligência forçava-me a um respeito tão grande quando sentia pelo seu zelo moral; e no fundo do meu ser tinha a certeza de que ele nunca me conduziria, voluntariamente, ao mau caminho e que sempre me confiaria a intimidade do seu pensamento. Também foi ele o meu refúgio nos momentos de confusão espiritual. E, contudo, a despeito da minha estima por ele, não cheguei a conceder-lhe, no meu coração, o título real de Guru106. A coroa ficou sem titular e a minha busca continua. Tenho fé na ideia hindu do Guru e na importância deste último quanto ao aperfeiçoamento espiritual do ser. Creio que há uma grande parte de verdade na ideia doutrinária de que não se pode, sem Guru atingir o verdadeiro conhecimento. A imperfeição do mestre é talvez tolerável quando se trata do século; não o é do domínio do

espírito. Só o jnâni107 perfeito merece a coroa de Guru. Segue-se, pois, uma luta perpetua para chegar à perfeição, pois só então se merece o Guru Que o homem lute eternamente nesse sentido, é justo e bom para ele e traz em si a sua recompensa. O resto está entre as mãos de Deus.’ Assim, embora eu não tivesse podido conceder a Râychandbhâi a coroa de Guru, veremos como, em muitas ocasiões, ele foi meu guia e meu sustentáculo. Três modernos marcaram com um sulco profundo a minha vida e fizeram o meu encantamento: Râychandbhâi, pelo seu contato vivo; Tolstoi108, pelo seu livro O Reino de Deus está em vós; e Ruskin, com o seu Até o Último. Mas voltarei ao assunto em tempo oportuno. 2. COMEÇANDO A VIDA Meu irmão mais velho alimentava grandes esperanças a meu respeito. Estava animado de um profundo desejo de riqueza, de renome, de celebridade. Tinha um grande coração; a sua generosidade tocava as raias da fraqueza. Tudo isso, aliado a uma natureza simples, havia-lhe atraído muitos amigos, graças aos quais contava encher-me de causas. Havia também presumido que eu teria uma clientela inesgotável e, nessa expectativa, deixara-se levar a um nível de vida que onerava pesadamente a casa. Tinha, por outro lado, posto mãos à obra para preparar o campo para a minha carreira. A tempestade desencadeada no seio da casta, em virtude de minha partida para o estrangeiro, não se tinha aplacado e estava incubada. A casta havia-se dividido em dois campos — um dos quais me acolhera quando regressei, enquanto o outro se encarniçava em manter-me afastado. Para agradar ao primeiro, meu irmão levou-me a Nâsik109, antes da nossa ida para Râjkot, banhou-me no rio sagrado, e, quando chegamos a Râjkot, ofereceu um banquete de casta. Isto não me agradou. Mas meu irmão nutria por mim uma ternura ilimitada, que só tinha igual a minha devoção por ele. Fiz, pois, automaticamente o que ele queria, aceitando a sua vontade como lei. Os aborrecimentos que suscitou a minha reintegração no seio da casta acharam-se assim virtualmente dissipados.

Nunca fiz o menor esforço para ser admitido de novo no seio do grupo que me havia rejeitado. E jamais, mesmo mentalmente, considerei com rigor a atitude dos chefes desse pequeno clã. Alguns dentre eles me consideravam com desprazer; eu evitava escrupulosamente ferir os seus sentimentos. Respeitava inteiramente as regras da casta em matéria de excomunhão. Segundo essas regras, nenhum membro de minha família, inclusive meu sogro e minha sogra, e até mesmo minha irmã e meu cunhado, tinham o direito de receber-me; e eu recusava beber mesmo um gole de água em casa deles. Estavam todos prontos a infringir em segredo a proibição; mas era contrário à minha natureza fazer às ocultas o que não queria fazer em público. O resultado dessa conduta escrupulosa foi que nunca tive aborrecimentos com a minha casta — que digo eu! Só tenho recebido provas de afeição e de generosidade da grande maioria do clã que me considera sempre como excomungado. Têm-me por esse lado auxiliado mesmo em minha obra, sem jamais esperar de mim o menor gesto em favor da casta. Estou convencido de que todos esses bons resultados tiveram por causa a minha não resistência. Se eu tivesse cabalado para obter a reintegração, tentado dividir a casta em outros clãs, provocado os chefes, eles teriam, certamente, reagido, e ao invés de lograr escapar à tempestade, ter-me-ia achado, ao voltar da Inglaterra, envolvido num redemoinho de intrigas e talvez eu resvalasse para a dissimulação. As relações com minha mulher estavam ainda longe do que eu desejava. A minha permanência em Inglaterra não me tinha curado do ciúme. Persistia em mostrar-me mesquinho e suspeitoso até nas menores coisas; daí resultou que os meus desejos mais caros ficaram insatisfeitos. Tinha decidido que minha mulher devia aprender a ler e a escrever e que eu a ajudaria nos seus estudos; mas os meus apetites carnais intervinham inoportunamente, e eu impunha-lhe o sofrimento das minhas próprias faltas. Cheguei mesmo, um dia, a mandá-la a seu pai, e somente lhe abri a porta depois de a tornar terrivelmente infeliz. Mais tarde compreendi que tudo isso era apenas loucura da minha parte. Projetara reformar a educação das crianças. Meu irmão tinha filhos, e o meu, que eu deixara em casa quando partira para a

Inglaterra, era agora um garoto de quase quatro anos. Desejava ensinar a esses pequenos o exercício físico a fim de enrijecê-los, bem como servir-lhes, pessoalmente, de guia. Meu irmão apoiou-me nisso, e fui mais ou menos bem sucedido nos meus esforços. Adorava a companhia das crianças e o hábito de brincar e divertir-me com elas nunca me deixou. Depois dessa época, pensei que daria um excelente pedagogo. A necessidade de “reformar” o regime alimentar da família impunha-se. O chá e o café já haviam sido introduzidos na casa. Meu irmão achara conveniente preparar uma espécie de atmosfera inglesa, na expectativa da minha volta. Para esse fim, a baixela e outros objetos, até então reservados para as grandes ocasiões, tornaram-se de uso corrente. As minhas “reformas” tiveram por efeito completar a cena. Introduzi os flocos de aveia. Ao cacau coube substituir o chá e o café, mas, na verdade, foi acrescentado a estes últimos. Botinas e sapatos adquiriram direitos de cidade. Completei a europeização com a vinda do meu guarda-roupa londrino. Desse modo, as despesas aumentavam. Cada dia via aparecer uma novidade. Tínhamos amarrado um elefante branco à nossa porta; o problema era arranjar-lhe forragem. Procurar conseguir-me uma clientela em Râjkot era correr atrás do ridículo. Eu não tinha sequer os conhecimentos de um vakil em título, e ia reclamar honorários dez vezes mais elevados! Não acharia um cliente tão estúpido que recorresse aos meus serviços. Por outro lado, a suporse que essa avis rara existia, ia eu à arrogância e à desonestidade ajuntar a ignorância e aumentar de tal maneira a minha dívida para com o mundo? Alguns amigos aconselharam-me a ir passar algum tempo em Bombaim para adquirir experiência na Corte Alta, estudar o Direito Indiano e tentar conseguir algumas causas para defender. Ouvi-os e parti para aquela cidade. Em Bombaim, instalei-me e tomei um cozinheiro cuja incompetência só era comparável à minha. Era um brâmane. Eu não o tratava como criado, mas como membro da casa. Inundava-se de água, mas nunca se lavava. Seu dhoti era imundo, bem como seu fio sagrado110, e não conhecia uma única palavra dos textos divinos. Mas como arranjar cozinheiro melhor?

— Vejamos, Ravishankar (era seu nome) — dizia-lhe eu: — compreendo que, a rigor, você não saiba cozinhar, mas devia conhecer o seu sandhya111 (assim se chamam as devoções cotidianas) etc. — O meu sandhya, Senhor! A charrua é que é o nosso sandhya, e a pá, o nosso rito cotidiano. Veja a espécie de brâmane que sou. Evidentemente, se não vivesse da sua caridade, restar-me-ia sempre a agricultura. Que fazer senão tomar a meu cuidado a educação de Ravishankar? Não me faltava tempo. Comecei a fazer eu próprio, parte dos serviços de cozinha e procurei introduzir as minhas experiências inglesas de vegetarianismo. Adquiri um fogareiro e tomei com Ravishankar a direção da cozinha. À mesa pouco me importava com distinções entre patrão e criado; acontecia que Ravishankar também zombava disso; fazíamos, pois, alegremente, as nossas refeições juntos. Só havia uma nuvem: Ravishankar jurara persistir na sua sujeira, e essa teimosia, da sua falta de asseio, estendia-se até aos alimentos. Foi-me impossível ficar mais de quatro a cinco meses em Bombaim: nenhuma entrada vinha equilibrar a soma sempre crescente das despesas. Tais foram as minhas estreias na vida. Achei que a profissão de advogado era um mau negócio — uma soma ínfima de conhecimentos e uma grande conversa fiada. Estava esmagado pelo sentimento das minhas responsabilidades. 3. PRIMEIRA CAUSA Durante essa permanência em Bombaim, atirei-me, por um lado ao estudo do Direito Indiano, e, por outro, à experiência alimentar das quais o meu amigo Virchand Ghandi participou. Quanto a meu irmão, fazia tudo para arranjar-me clientes. O estudo da lei indiana112 aborreceu-me furiosamente. Embaracei-me decididamente com o Código de Processo Civil. Fiz melhores relações com a Lei das Provas. Virchand Ghandi preparava os seus exames de solicitador e contava-me toda a espécie de

anedotas sobre bacharéis e vakils. “— Todo o talento de Sir Pherozeshâh” — dizia-me ele —, “reside em seu profundo conhecimento do Código. Conhece de cor a Lei das Provas e todos os casos que se referem à trigésima segunda seção. Quanto a Badruddin Tayabji, as suas extraordinárias qualidades de argumentador fazer dele o terror dos juízes”. As histórias que me contava, sobre gigantes dessa espécie, imobilizavam-me os braços e as pernas. — Não é raro que um advogado — acrescentava ele — vegete durante cinco ou seis anos. É por isso que quero tornar-me solicitador. Considere-se feliz se conseguir voar com as suas próprias asas daqui a três anos. Via constantemente aumentar as despesas. Ter na porta uma placa de advogado, enquanto atrás dessa mesma porta eu ainda me preparava para a profissão, era coisa que não podia admitir. Seguiase daí que me era impossível consagrar-me exclusivamente a meus estudos. Havia-me tomado de certa ternura pela Lei das Provas e lia com vivo interesse a Lei Hindu, de Mayne; mas não tinha coragem de encarregar-me de uma causa. Estava desarmado a um ponto inconcebível — desorientado como a jovem esposa que acaba de transpor o umbral da casa de seu sogro. Foi por essa época que me encarreguei da causa de um certo Mamibâi. Era uma “causa pequena”. — Você devia dar uma comissão ao rábula — haviam-me prevenido. Recusei energicamente. — Mas afinal, mesmo um grande advogado da corte de apelação como X..., que faz as suas três ou quatro mil rupias por mês, dá essa espécie de comissão! — Não tenho necessidade de imitá-lo — repliquei. — Trezentas rupias por mês me bastam. Meu pai não ganhava mais do que isso. — Mas essas coisas eram boas no passado! A vida em Bombaim é terrivelmente mais cara do que outrora. É preciso ver as coisas como homem de negócios. Permaneci inabalável. Não dei comissão e fui, apesar de tudo, encarregado de defender Mamibâi. O caso não oferecia dificuldade. Fixei os meus honorários em trinta rupias. Os debates não durariam

verdadeiramente mais de um dia. Era a minha estreia no Correcional. Na qualidade de defensor, cabia-me submeter as testemunhas do queixoso a um contra interrogatório. Levantei-me, mas o coração faltou-me. A cabeça obscureceu-se-me e tive a impressão de que toda a sala era uma vertigem. Impossível imaginar a menor pergunta. O juiz deve ter rido e o espetáculo, sem nenhuma dúvida, deve ter alegrado os vakis. Mas eu estava mesmo incapaz de ver o que quer que fosse. Tornei a sentar-me e disse ao solicitador que valia mais recorrer aos serviços de Patel e reembolsar os meus honorários. Mr. Patel aceitou, efetivamente, a causa, embolsando cinquenta e uma rupias. Foi naturalmente brinquedo de criança para ele Deixei precipitadamente o tribunal, não sabendo se o meu cliente havia ganho ou perdido o processo. Eu estava devorado pela vergonha e decidi não me encarregar de mais nenhuma causa, enquanto não tivesse a coragem de assumir todas as responsabilidades. De fato, só recomecei a advogar na África do Sul. A minha decisão nada tinha de virtuosa. A necessidade fez a virtude, na ocorrência. Ninguém seria tão estúpido ao ponto de confiar-me uma causa, com a garantia única de perder o processo! Não obstante, Bombaim fez o milagre de conceder-me ainda uma causa para defender. Desta vez, tratava-se de redigir uma petição. Um pobre muçulmano tivera a sua terra confiscada em Porbandar. Veio a mim como ao digno filho de um digno pai. A sua causa não parecia destinada ao sucesso, mas consenti em redigir a petição, competindo-lhe as despesas de impressão. Li o meu texto a amigos. Eles o aprovaram, o que, numa certa medida, me tranquilizou e me provou que eu sabia o bastante para redigir um memorial (e isto era exato na realidade). Teria podido conseguir uma clientela, com a condição de redigir petições gratuitamente. Mas isso não levaria grãos ao moinho. Pensei então em arranjar um lugar de professor. Sabia bem o inglês e gostaria de ensinar essa língua a futuros bacharéis. Desse modo, poderia fazer face a uma parte, ao menos, das minhas despesas. Li um anúncio de jornal: “Precisa-se de professor de inglês para uma hora de aula por dia. Salário: setenta e cinco rupias”. O anúncio provinha de um liceu muito conhecido. Apresentei a minha

candidatura: convocaram-me. Estava de excelente humor quando fui ao liceu. Mas, quando o diretor percebeu que eu não tinha os diplomas universitários, lamentou ter de declinar do meu oferecimento. Mas passei nos exames em Londres, com o latim como segunda língua. Não digo que não, mas nós queremos um diplomado. Nada havia a fazer. Torci as mãos com desespero. Meu irmão também estava muito inquieto. Chegamos ambos à conclusão de que era inútil ficar mais tempo em Bombaim. Instalar-me-ia em Râjkot, onde meu irmão, pequeno advogado também, me daria um pouco de trabalho, encarregando-me de redigir petições e memoriais. Em seguida, como já houvesse despesas de casa em Râjkot, a supressão das de Bombaim significava grossas economias. A proposta de meu irmão agradou-me. E foi assim que fechei a minha banca, em Bombaim, depois de uma permanência de seis meses. Durante essa época, adquirira o hábito de ir todos os dias à Corte de Apelação, mas não posso dizer que lá houvesse aprendido alguma coisa. Os meus conhecimentos não eram muito grandes para isso. Muitas vezes, incapaz de seguir os debates, eu adormecia. Outras vezes, faziam-me companhia, aliviando a minha vergonha. Ao cabo de algum tempo, terminei por não ter o menor pudor, achando que ficava até bem dormir na Alta Corte. Se a geração atual conta, também, com advogados sem causas, no mesmo caso que eu em Bombaim, há um pequeno princípio prático que gostaria de lhes recomendar. Eu morava em Girgâon113 e, contudo, raramente acontecia tomar uma carruagem ou bonde. Tinha por norma ir a pé à Corte de Apelação, o que me fazia perder uns quarenta e cinco bons minutos. E, bem entendido, voltava, invariavelmente, do mesmo modo. O forte calor e o sol já não me incomodavam, à força de enfrentá-los. Fiz assim economias bastante substanciais, e enquanto muitos dos meus amigos caiam, frequentemente, doentes, não me lembro de o ter estado uma única vez durante esse tempo. Mesmo quando comecei a ganhar dinheiro, continuei com o hábito de ir a pé para o escritório e voltar de igual modo, e disso tenho colhido sempre benefícios.

4. PRIMEIRO GOLPE Desiludido, deixei Bombaim e fui para Râjkot, onde abri escritório. Prosperava moderadamente. A redação de petições e memoriais rendia-me em média trezentas rupias por mês. Devia esse trabalho mais às recomendações do que ao meu talento pessoal, pois o sócio de meu irmão tinha uma clientela sólida. Todas as ações que, realmente, ou a seu ver, apresentavam certa importância, ele entregava-as a grandes advogados. Cabia-me a redação de petições em nome dos clientes pobres. Devo confessar ter sido, desta vez, forçado a transigir com o meu princípio de não dar comissão, que tão escrupulosamente havia observado em Bombaim. Preveniram-me de que as condições não eram as mesmas nas duas cidades: enquanto em Bombaim as comissões cabiam aos rábulas, aqui era aos vakils, que traziam as causas, e numa e noutra cidade todos os advogados, sem exceção, descontavam dos seus honorários uma percentagem para esse fim. Meu irmão usou um argumento que, para mim, era irrefutável. — Como podes ver — disse-me ele — sou sócio de outro vakil. Estou forçosamente disposto a transferir-te todos os nossos negócios que te for possível tratar; e se recusas dar uma comissão ao meu sócio, colocar-me-ás numa situação embaraçosa. Tendo um escritório comum, tu e eu, os teus honorários cairão em nossa bolsa e receberei automaticamente a minha parte. Mas o meu sócio? Se ele der a mesma causa a outro advogado, terá a certeza de receber a sua comissão... Esta argumentação convenceu-me e compreendi que, se queria exercer a profissão de advogado, não me era possível levar mais longe os meus princípios nesse caso particular. Tal foi a desculpa que invoquei para mim, ou, para falar com toda a rudeza, tal foi a mentira que impingi a mim mesmo. Acrescentarei, contudo, que não me lembro de haver dado comissão em nenhum outro caso. Se eu começava, então, a unir os dois extremos, foi também por essa época que recebi o primeiro choque da minha vida. Sabia, por ouvi dizer, o que podia significar um funcionário britânico; mas até aqui nunca me havia encontrado face a face com um desses personagens.

Meu irmão havia sido secretário e conselheiro do falecido Rânâ Sâhib de Porbandar antes que este subisse ao gaddi114; e estava suspensa sobre a sua cabeça, naquela ocasião, a acusação de haver dado maus conselhos quando ocupava aquele cargo. O caso chegara até o agente político, que tinha prevenção contra meu irmão. Ora, eu conhecera esse funcionário na Inglaterra, e pode-se dizer que fora muito amável para comigo. Meu irmão achou que eu devia valer-me dessa amizade para dizer uma palavra em seu favor e tentar dissipar as prevenções do agente político. A ideia não me agradou. Eu não devia, a meu ver, procurar tirar partido de um simples conhecimento de passagem, que tinha feito em Inglaterra. Se meu irmão era culpado, de que serviria a minha recomendação? Se era inocente, bastava-lhe apresentar uma petição em termos, e, confiante na sua inocência, esperar de pé firme o resultado. Meu irmão não achou o conselho a seu gosto. Não tens a mínima ideia do que é o Kâthiyâvâr — disse-me ele — e falta-te aprender a conhecer o mundo. Aqui só valem as relações. És meu irmão e não te fica bem esquivar-te do teu dever, uma vez que, evidentemente, nada te impede de dizer uma palavra em meu favor a um funcionário que conheces. Não podia recusar. Contra a vontade, fui, pois, ver o funcionário. Sabia que nada me autorizava a dar esse passo e tinha plena consciência de estar-me diminuindo perante mim mesmo. Mas solicitei uma audiência, que obtive. Recordei ao funcionário as relações que havíamos travado, mas percebi logo que o Kâthiyâvâr não era a Inglaterra, e um funcionário em férias era muito diferente de um funcionário em exercício. O agente político consentiu em recordarse das nossas relações, mas as minhas palavras não tiveram, aparentemente, outro efeito senão o de enrijar. — “Espero que não tenha vindo ver-me para abusar das nossas vagas relações?”, parecia significar a sua rigidez, e supus ler essas palavras na sua testa. Nem por isso deixei de expor o assunto. O sahib perdeu a paciência e disse. — Seu irmão é um intrigante. Basta. Não tenho tempo. Se seu irmão tem alguma coisa a dizer, que faça um requerimento por via hierárquica. A resposta, em si, era suficiente; talvez fosse merecida. Mas o

egoísmo é cego e eu continuei a minha história. O sâhib levantou-se: — Isto basta. Tenha a bondade de retirar-se. — Mas, eu lhe peço, ouça-me até o final — disse eu. De repente, tornou-se ainda mais furioso. Chamou o peão115 e ordenou-lhe que me acompanhasse à porta. Hesitei em sair quando o peão entrou, mas este segurou-me pelas espáduas e empurrou-me para fora da sala. O sâhib foi-se; o peão, também. Eu parti confuso e espumando de raiva. No mesmo instante redigi e expedi um bilhete no qual diz a, em resumo: “O Senhor insultou-me. Fez-me maltratar pelo seu peão. Peça-me desculpas ou serei forçado a processá-lo”. A resposta não se fez esperar. Foi seu savâr116 quem ma trouxe. “O senhor conduziu-se de modo grosseiro. Pedi-lhe que saísse, recusou Não me restava outra coisa senão ordenar a meu peão que o acompanhasse. Ele pediu-lhe que saísse do meu gabinete e o senhor não se moveu. Empregou, então, a força necessária para levá-lo até a porta. Pode processar-me à vontade”. Com esta resposta no bolso, entrei, todo aturdido, e contei a meu irmão o que se havia passado. Ele entristeceu-se, mas não sabia que fazer para consolar-me. Consultou os seus amigos vakils, pois eu ignorava o caminho a seguir para mover uma ação contra o sâhib. O acaso fez com que Sir Pherozeshâh Mehta se encontrasse, em Râjkot, na ocasião vindo de Bombaim para tratar não sei de que processo. Mas como poderia um jovem advogado ir vê-lo? Fiz chegar as suas mãos o dossiê do meu caso, por intermédio do vakil que apelara para os seus serviços, e pedi-lhe que me desse a sua opinião. — Diga a Gandhi — respondeu — que esta é a espécie de experiência comum pela qual deve passar mais de um vakil e mais de um advogado. Ele chegou da Inglaterra, recém-afiado e com o sangue quente. Não conhece os funcionários britânicos. Se deseja ganhar a vida e não ter muitas dificuldades aqui, que rasgue a carta e engula o insulto. Não haverá vantagem em processar o sâhib; pelo contrário é provável que se arruíne. Diga-lhe que ainda lhe falta aprender a conhecer a vida. Achei o conselho amargo como um veneno, mas fui obrigado a engoli-lo. Engoli também o insulto, mas não sem proveito. “Nunca

mais me colocarei numa falsa posição semelhante”, pensei. “Nunca mais procurarei explorar a amizade dessa maneira”. E não voltei a acusar-me de haver infringido esta resolução. O choque que recebera transformou o curso da minha vida. 5. RUMO A ÁFRICA DO SUL Incontestavelmente, eu fizera mal em ir ver aquele funcionário. Mas a sua impaciência, a sua arrogância e a sua cólera não estavam em proporção com o meu erro. A minha atitude não justificava que me tivesse posto na rua. Cinco minutos seria o máximo de tempo que eu tomaria àquele homem. Simplesmente, ele achara intolerável o próprio fato de que eu lhe dirigisse a palavra. Poderia ter pedido, polidamente, que me retirasse, mas estava desmesuradamente embriagado pelo seu poder. Mais tarde, verifiquei que a paciência não era uma das suas virtudes. Tinha o hábito de insultar os visitantes. O menor detalhe que lhe desagradasse punha invariavelmente o sâhib fora de si. Ora, a natureza do meu trabalho forçava-me a gravitar na órbita da sua jurisprudência. Resignar-me a conquistar os seus favores? Não, era mais do que eu podia. Não desejava fazer-lhe a corte. Na verdade’ tendo-o ameaçado com um processo, desagradava-me, soberanamente’ conservar-me em silêncio. Entretanto, comecei a ver um pouco mais claro nas mesquinharias políticas do país. O Kâthiyâvâr, aglomeração de pequenos Estados, pululava, naturalmente, de políticos. Baixas intrigas entre Estados, lutas entre funcionários pelo poder eram moeda corrente e cotidiana. Os príncipes estavam perpetuamente à mercê do próximo, perpetuamente dispostos a ouvir os sicofantas. O peão do sâhib tinha também, inevitavelmente, direito às bajulações; quanto ao saritedâr117 do mesmo sâhib, era mais poderoso do que seu amo, do qual era o olho, o ouvido e o intérprete. O saritedâr fazia a lei, e as suas rendas tinham reputação, solidamente estabelecida, de ser superiores às do sâhib. Talvez exagerassem, mas era uma verdade que ele vivia muito acima dos seus meios oficiais. Parecia-me existir uma atmosfera envenenada e eu perguntava-

me de que modo sair dela, intacto. Estava atrozmente deprimido e o meu irmão percebera isso. Tínhamos ambos o mesmo sentimento: o único meio de libertar-me desse meio de intrigas seria conseguir um lugar estável. Mas somente a intriga poderia conseguir-me um posto governamental ou um lugar de juiz. E a minha discussão com o sâhib118 impedia-me de trabalhar. Porbandar estava então sob controle administrativo e eu encontrei-me a trabalhar em démarches que visavam obter mais autoridade para o príncipe. Tive assim que entrar em contato com o administrador, a propósito do vighoti119 (ou arrecadação) esmagador que exigiam dos Mer120. Achei o administrador, embora fosse indiano, muito mais arrogante do que o sâhib. Era um homem capaz, mas os raiyts121 não pareciam ganhar grande coisa com tanta habilidade. Consegui obter uma ligeira ampliação dos poderes do Râma122, mas, redução de impostos para os Mer, nada ou quase nada. O seu caso — fiquei perplexo — nem sequer foi estudado cuidadosamente. Assim, até nessa missão, só achei matéria para relativo desapontamento. Achava que não faziam justiça aos meus clientes, mas faltavam-me os meios para obter melhor resultado. Quando muito, eu teria podido apelar para o agente político ou para o governador: ambos recusariam atender o meu apelo sob o pretexto de que “não se metiam nesse assunto”. Se houvesse a menor norma, o menor regulamento para inspirar tais decisões, já seria alguma coisa. Mas era o simples humor do sâhib que fazia a lei. Eu estava exasperado. Entrementes, uma firma de Meman123, de Porbandar, escreveu a meu irmão fazendo-lhe a seguinte oferta: “Temos uma questão na África do Sul. Somos uma grande firma e temos um importante processo em andamento. Reclamamos quarenta mil libras. A questão arrasta-se há muito tempo. Contratamos os melhores vakils e os melhores advogados. Enviando seu irmão para lá, prestar-nos-ia um serviço e igualmente a ele. Será mais capaz de instruir os nossos atos. E isto lhe dará ocasião de visitar uma outra parte do mundo e fazer novas relações”. Meu irmão discutiu essa oferta comigo. Eu não compreendia

muito bem se devia contentar-me em instruir as resoluções deles ou me seria preciso comparecer diante do tribunal. Mas a proposta tentava-me. Meu irmão apresentou-me ao falecido Sheth124 Abdul Kaim Jhaveri, um dos sócios da firma em apreço: Dâdâ Abdula & Cia. — A questão não oferecerá dificuldades — assegurou-me o Sheth. — Contamos com amigos entre os europeus importantes e que o Senhor conhecerá. Poderá ser-nos útil no trabalho do escritório da firma. Uma boa parte da nossa correspondência é em inglês e sua ajuda será bem-vinda. Naturalmente, o Senhor será hóspede da firma e livre, pois de qualquer despesa. — Por quanto tempo terão necessidade dos meus serviços? — perguntei eu. — E quais serão os meus honorários? — Nós contratamo-lo por um ano. Terá direito à viagem de ida e volta, em primeira classe, e a cento e cinco libras, livres de quaisquer despesas. Não pretendiam que eu fosse para lá na qualidade de advogado, mas como empregado da firma. Mas eu queria deixar a Índia por qualquer preço. Acrescente-se a isto a tentação de ver outro país e adquirir nova experiência. Ademais, poderia enviar as cento e cinco libras a meu irmão e pagar assim a minha parte das despesas de casa. Sem discutir, concluí o contrato e preparei-me para partir para a África do Sul. 6. CHEGADA A NATAL A partida para a África do Sul não me causou a mesma impressão de despedaçamento como o meu embarque para a Inglaterra. Minha mãe já não existia. Eu conhecia um pouco melhor o mundo: sabia o que era viajar para o estrangeiro; as idas e voltas entre Râjkot e Bombaim já nada tinham de extraordinário. Desta vez, a minha única pena era a de separar-me de minha esposa. Nascera-me um segundo filho, após o meu regresso da Inglaterra. Se não se podia dizer ainda que nosso amor estava desembaraçado de toda sensualidade, ganhava, contudo, pouco a pouco, em pureza. Quase não havíamos tido vida em comum, depois

da minha volta da Europa; mas como eu resolvera educá-la, medíocre professor que fosse, e auxiliá-la a fazer certas reformas, sentíamos ambos a necessidade de estar mais próximos um do outro — fosse embora apenas para continuar as nossas reformas. Mas a atração da África do Sul tornava mais tolerável essa separação. — Estamos certos de que estaremos juntos dentro de um ano disse-lhe eu como consolação, quando parti de Râjkot para Bombaim. Em Bombaim, o agente de Dâdâ Abdula & Cia. devia reservar-me lugar a bordo de um navio. Mas não sobrara um só beliche. Contudo, se eu não embarcasse, imediatamente, ficaria bloqueado em Bombaim. — Fizemos todo o possível — disse-me o agente — para conseguir-lhe uma passagem de primeira classe. Mas nada se pode fazer... a menos que aceite viajar na coberta. Conseguiremos então que o senhor faça suas refeições com os passageiros da primeira classe. Era o bom tempo em que eu só viajava de primeira. E como podia um advogado contentar-se com uma passagem no convés! Eu não quis saber de nada. Ademais, suspeitava da sinceridade do agente, recusando-me a crer na impossibilidade de arranjar um lugar de primeira. Com o seu consentimento, tratei de procurar eu mesmo um beliche. Subi a bordo do vapor e fui ter com o capitão. Ele declarou-me muito francamente: — É raro haver tal afluência. Mas o governador-geral de Moçambique fretou este navio e todos os lugares estão reservados. — O Senhor não tem nem um cantinho? — perguntei-lhe. Examinou-me dos pés à cabeça e sorriu: — Só vejo um meio — respondeu. — Há um beliche livre na minha cabina; de modo geral, os passageiros não têm direito a ele; mas estou disposto a cedê-lo ao senhor. Agradeci-lhe e encarreguei o agente de comprar a passagem E, em abril de 1893 embarquei para a África do Sul, cheio de ardor e decidido a tentar a minha oportunidade. A primeira escala era em Lamu, aonde chegamos cerca de treze dias mais tarde. Entrementes, o capitão e eu nos tornáramos bons amigos. Ele adorava jogar xadrez; mas, sendo um perfeito noviço, procurava um parceiro mais fraco do que ele. Convidou-me, pois. Eu

ouvira muito falar de xadrez, mas nunca jogara. Os jogadores costumavam dizer que nele se achava um campo vasto para exercício da inteligência. O capitão ofereceu-se para ensinar-me e considerou-me bom aluno em virtude da minha paciência sem limites. Eu perdia sempre, mas ele redobrava de zelo a cada um de meus fracassos. Quanto a mim, o jogo agradou-me; mas esse prazer não ultrapassou a duração da travessia — do mesmo modo que a minha ciência do jogo não foi além da arte de mover os peões segundo as regras. Em Lamu125, o navio ancorou por três ou quatro horas, e desci a terra para visitar a cidade. O capitão também descera, mas advertiume de que o porto era traiçoeiro e que eu devia voltar a tempo. Era um pequeno porto. Fui até ao correio e fiquei satisfeito de ver indianos atrás dos guichês; conversei um momento com eles. A vista dos africanos, igualmente, incitou-me a familiarizar-me com o seu modo de vida, que me interessou vivamente. Isto me tomou algum tempo. Outros passageiros do convés, com os quais me havia ligado, tinham também descido a terra com a intenção de preparar uma refeição e saboreá-la em paz. Encontrei-os quando regressavam para bordo e tomei lugar entre eles numa pequena embarcação. A maré estava alta e a embarcação sobrecarregada. A correnteza era tão violenta que a casca de noz não chegava a manter-se ao nível da escada talhada; mal havia tocado na escada e esta logo submergira. A sirene do vapor já tinha dado o primeiro sinal de partida. Eu angustiei-me. Da vigia o capitão contemplava a nossa triste situação. Deu ordem para que retardassem cinco minutos a partida. Perto do navio, achava-se uma outra embarcação que um amigo alugara para mim por duas rupias. Do barco sobrecarregado, passei para o outro. Já haviam retirado a escada. Foi preciso que me içassem para bordo por meio de uma corda e imediatamente, o navio deixou o porto, abandonando os outros passageiros. Apreciei, então, no seu justo valor, a advertência do capitão. Depois de Lamu, as duas escalas seguintes foram Mombaça e Zanzibar. Neste último porto a demora foi mais longa — oito ou dez dias. Em seguida mudamos de navio. O capitão gostava de mim; mas esta afeição tomou um aspecto

pouco desejável. Convidou-me, juntamente com um amigo inglês, para uma pequena expedição e embarcamos os três na sua lancha para ir a terra. Eu não tinha a menor ideia do objeto dessa expedição. E o capitão estava longe de duvidar da minha ignorância nessa espécie de negócio. Um vago cicerone levou-nos a uma casa onde havia negras. Cada um de nós foi conduzido a um quarto. Quanto a mim, contentei-me em ficar lá, mudo de vergonha. Deus sabe o que a pobre criatura pensou de mim. Quando o capitão me chamou, saí tal como havia entrado. Ele adivinhou a minha inocência. O sentimento de terrível vergonha que experimentei a princípio acabou por se desvanecer, porque não podia pensar sem horror nesse incidente; e agradeci a Deus por não ter sentido a menor emoção à vista daquela mulher. A minha fraqueza só me inspirava desgosto e eu só tinha piedade pela falta de coragem que me fizera concordar em entrar naquele quarto. Era a terceira prova dessa ordem na minha vida. Mais de um jovem, na sua primeira inocência, se deixou levar ao pecado por um sentimento errôneo de vergonha. Se saí indene da prova, não posso vangloriar-me disso. Glória seria recusar entrar. É a Deus em Sua misericórdia, e somente a Deus, que devo render graças pela minha saúde. Esse incidente aumentou ainda mais a minha fé Nele e ensinou-me, numa certa medida, a afastar toda a falsa vergonha. Como devêssemos ficar uma semana em Zanzibar, tomei um quarto na cidade e consegui observar coisas interessantes, explorando as vizinhanças. Só o Malabar126 pode dar ideia da vegetação luxuriante de Zanzibar. Fiquei de boca aberta diante do porte das árvores e do tamanho dos frutos. Fizemos ainda escala em Moçambique e chegamos a Natal pelo fim do mês de maio. 7. EXPERIÊNCIAS O PORTO de Natal é Durban, que também se chama Porto Natal e onde Abdulla Sheth me esperava. Enquanto o navio atracava e eu olhava as pessoas subirem a bordo para receber os amigos, observei que não tinham muita consideração para com os indianos. A espécie

de arrogância que manifestavam para com Abdulla Sheth os que o conheciam forçou a minha atenção e chocou-me vivamente. Abdulla Sheth estava habituado. Quando me olhavam, não era sem uma certa curiosidade. Os meus trajes distinguiam-me dos outros indianos. Eu vestia casaca e turbante, à maneira do pagri127 de Bengala. Abdulla Sheth conduziu-me à sede da firma e mostrou-me o aposento que me haviam especialmente reservado, ao lado do seu. Não chegamos a compreender-nos. Leu os documentos que seu irmão me havia encarregado de entregar-lhe e pareceu mais ou menos perdido. Achava que seu irmão lhe tinha mandado um elefante branco. A maneira como eu estava vestido, o meu modo de vida, recordavam-lhe os gostos dispendiosos dos europeus. Não tinham, no momento, uma tarefa particular para confiar-me. O processo seguia o seu andamento no Transvaal. Enviar-me imediatamente para lá não tinha sentido. E até que ponto podia ele confiar na minha capacidade e na minha honestidade? Ele não estaria em Pretória para supervisionar-me. Mas os defensores lá estavam, e quem lhe dizia que aquelas pessoas não conseguiriam fazer indevidamente pressão sobre mim? Mas, se não me confiassem qualquer trabalho relativo à questão em apreço, que podiam dar-me para fazer? Qualquer outra ocupação seria muito mais bem executada pelos empregados ordinários da casa. Aos empregados podia-se fazer voltar a razão, se se desviassem. Mas a mim? Poderiam fazer o mesmo, se não me conduzisse direito? Se, pois, não podiam utilizarme no processo, só restava deixar-me sem fazer nada. Abdulla Sheth era, praticamente, iletrado, mas havia acumulado grande experiência. Tinha o espírito agudo e sabia-o. À força de usálo, aprendera inglês suficiente para defender-se numa conversação comum, o que lhe bastava para tratar de todos os seus negócios, fosse para entender-se com diretores de banco e comerciantes europeus, ou para explicar um dossiê a seus conselheiros. Os indianos tinham-no em alta consideração. A sua firma era, se não a maior, ao menos uma das maiores casas indianas. Todas essas qualidades não lhe anulavam o único defeito — era desconfiado por natureza. Tinha orgulho da sua religião e adorava dissertar sobre a filosofia do islame. Não sabia árabe, mas conhecia muito bem, apesar de

tudo, o Corão e a literatura islâmica em geral. Tinha em reserva uma quantidade de citações e de exemplos, sempre prontos para o uso. A sua convivência permitiu-me adquirir um conhecimento prático, assaz grande, do islame. Depois que nossa intimidade se estreitou, tivemos longas discussões sobre assuntos religiosos correntes. No segundo ou terceiro dia da minha chegada, levou-me ao tribunal de Durban, aproveitou a ocasião para apresentar-me a diversas pessoas e fez-me sentar ao lado de seu procurador. O magistrado olhou-me atentamente e acabou por pedir-me que tirasse o turbante. Recusei fazê-lo e saí do tribunal. Assim, mesmo lá, era preciso lutar. Abdulla Sheth explicou-me por que certos indianos se viam obrigados a tirar o turbante. Os que se vestiam à maneira muçulmana, disse-me ele, tinham o direito de conservar o turbante; mas os outros, regra geral, deviam tirá-lo ao penetrar no tribunal. Devo abordar aqui certos detalhes para tornar compreensível essa sutileza. Esses dois ou três dias permitiram-me perceber que os indianos estavam divididos em grupos distintos. Havia os comerciantes muçulmanos, que se davam o nome de “árabes”, depois os empregados hindus e ainda os empregados parses. Para serem levados a sério, os empregados hindus deviam misturar-se aos “árabes”. Os seus colegas parses davam-se o nome de “persas”. Essas três categorias entretinham certas relações sociais. Mas o grupo muito mais importante era aquele dos trabalhadores livres ou sob contrato, tâmuls, telugus128 e indianos do norte. Os trabalhadores sob contrato eram os que vinham para Natal depois de haver assinado um compromisso por cinco anos — daí o darem-lhe o nome de girmitiyas (de girmit, corruptela da palavra inglesa “agreement”: acordo). As três outras classes só tinham com esta última relações comerciais. Os ingleses denominavam os que dela faziam parte “coolies”129; e como a maioria dos indianos pertencesse à categoria dos trabalhadores manuais, todos os indianos eram “coolies”, ou ainda “sâmis”, sendo “sâmi” um sufixo tâmul ligado a inúmeros nomes próprios e que outra coisa não é senão o sânscrito Svâmi (mestre). Isto fazia com que sempre que um indiano se sentisse ofendido por ser chamado sâmi não deixasse de, caso tivesse um pouco de espírito, retribuir o cumprimento: “pode chamar-me sâmi, mas

esquece decerto que sâmi significa mestre; e será que sou mestre?” Alguns ingleses irritavam-se com esse gênero de resposta, outro se encolerizavam, praguejavam e insultavam o indiano e, tendo oportunidade, chegavam à agressão; por que sâmi, para eles, só podia ter sentido pejorativo. Dar a essa palavra o significado de “mestre” era ofendê-los! Foi em virtude disso que me consideraram um “advogado-coolie”. Os comerciantes eram “comerciantes-coolies”! Esqueciam assim o sentido primitivo da palavra “coolie”, que se tornava a maneira corrente para designar não importa que indiano. Os mercadores muçulmanos por sua vez, manifestavam o seu menosprezo declarando: “nós não somos coolies, somos árabes”, ou ainda: “somos mercadores”; e os ingleses, quando eram corteses, pediamlhes desculpas. Em tais condições, o uso do turbante tornava-se uma questão de primeira importância. Ver-se constrangido a tirar o turbante de indiano equivalia a engolir uma afronta. Concluí, então, que mais valia dizer adeus ao turbante indiano e adotar o chapéu inglês, esquivando-me assim a insultos e a controvérsias desagradáveis. Mas Abdulla Sheth não foi dessa opinião: — O menor gesto nesse sentido — disse-me ele — terá o mais deplorável efeito. Comprometerá os que não querem renunciar ao seu turbante indiano. E depois o turbante assenta-lhe bem. O chapéu inglês dar-lhe-á o ar de um garçom de café. A sabedoria prática, o patriotismo e também um pouco de estreiteza de espírito ditaram-lhe essa opinião. A sabedoria era evidente; e se não fosse patriota, não teria insistido de tal modo sobre a história do turbante; mas a alusão desprimorosa ao garçom de café traía uma espécie de estreiteza. Havia três categorias de trabalhadores indianos sob contrato: os hindus, os muçulmanos e os cristãos. Estes últimos eram os descendentes de trabalhadores sob contrato que se haviam convertido ao cristianismo. Já em 1893 eram muito numerosos. Vestiam-se à inglesa e a maioria deles ganhava a vida como garçons de hotel. Era a estes que Abdulla Sheth, criticando o chapéu inglês, fazia alusão. Considerava-se humilhante servir como garçom de hotel. E essa opinião ainda hoje persiste entre muita gente.

De um modo geral, o ponto de vista de Abdulla Sheth agradoume. Escrevi à imprensa sobre o incidente que relatei, para assumir a defesa do uso do turbante no recinto do tribunal. A questão foi vivamente debatida nos jornais, que me apresentaram sob a feição de um “visitante indesejável”. E o incidente valeu-me uma publicidade inesperada na África do Sul, alguns dias depois de minha chegada. Uns apoiavam-me, outros atacavam, violentamente, a minha temeridade. Durante a minha permanência na África do Sul, nunca me separei, por assim dizer, do meu turbante. Quando e por que renunciei a usar qualquer coisa na cabeça, nesse país, é o que veremos mais tarde. 8. A CAMINHO DE PRETÓRIA NÃO tardei a entrar em contato com os indianos cristãos que viviam em Durban. O intérprete do tribunal, Mr. Paul, era católico. Travei conhecimento com ele e igualmente com Mr. Subhân Godfrey, então professor contratado pela Missão Protestante e pai de Mr. James Godfrey, que, na qualidade de membro da Delegação SulAfricana, visitou as Índias em 1924. Encontrei também, na mesma época, o falecido Adamji Miyâkhân. Todos esses amigos, que até então somente se avistavam para tratar de negócios, deviam, finalmente, consolidar os seus laços de intimidade, como veremos adiante. Enquanto eu assim alargava o círculo de minhas relações, a firma recebeu carta do seu assistente jurídico, avisando-a que se preparasse para o processo e pedindo que Abdulla Sheth fosse pessoalmente a Pretória ou para lá mandasse um representante. Abdulla Sheth mostrou-me a carta e perguntou se eu estava pronto para seguir para Pretória: — Só poderei responder-lhe depois de me explicar o negócio — disse-lhe eu. — No momento ignoro por completo o que deverei fazer naquela cidade. Perante isso, pediu aos seus empregados que me pusessem ao corrente de tudo.

Mal abrira o dossiê, convenci-me de que devia começar pelo ABC do assunto. Durante os poucos dias que passara em Zanzibar, fora ao tribunal para observar o seu funcionamento. Um advogado parse interrogava uma testemunha e fazia-lhe toda a espécie de perguntas relativas ao deve e haver e à escrita contábil. Tudo isto era hebreu para mim. Nem na escola nem durante a minha estada na Inglaterra aprendera contabilidade. E o negócio para o qual tinha vindo à África do Sul girava, essencialmente, em torno de cifras. Só um perito poderia desbastá-lo e explicá-lo. O empregado, encarregado de instruir-me, não parava de falar em débito e crédito e eu sentia-me cada vez mais perdido. Ignorava o que pudesse ser uma “P. Note”. Não consegui encontrar a palavra no dicionário. Confessei a minha ignorância ao empregado, o qual me ensinou que “P. Note” significava “Promissory Note”. Comprei um tratado de contabilidade e pus-me a estudar. Adquiri um pouco mais de segurança. Compreendi o negócio. Percebi que Abdulla Sheth, que não sabia contabilidade, chegava a resolver rapidamente as questões mais complexas nesse domínio graças à extensão dos seus conhecimentos práticos. Declarei-lhe que estava pronto para partir para Pretória. — E onde espera ficar? — perguntou-me ele. — Onde o Senhor quiser. — Nesse caso, vou escrever ao nosso advogado. Ele tomará todas as providências para alojá-lo. Mandarei também uma palavra aos amigos memans130, que tenho naquela cidade, mas prefiro aconselhar-lhe a não ficar com eles. Os nossos adversários têm muitas relações em Pretória. Se um dos seus membros chegar a ler nossa correspondência privada, isso poderá causar-nos muitos prejuízos. Quanto mais evitar toda familiaridade com eles, melhor será para nós. — Instalar-me-ei com quem seu advogado me indicar ou, então, completamente só. Peço-lhe que não se inquiete. Ninguém saberá do que tiver que ficar apenas entre nós. Mas nem por isso deixarei de travar relações com as pessoas da parte contrária. Gostarei de tornarme amigo deles. Procurarei, se for possível, resolver o caso amigavelmente. Apesar de tudo, Tayeb Sheth é seu parente. O Sheth Tayeb Hâji Khân Mohammed era, com efeito, parente

próximo de Abdulla Sheth. A minha alusão à probabilidade de uma solução amigável sobressaltou um pouco o Sheth, notei-o bem. Eu estava em Durban havia seis ou sete dias e já nos conhecíamos e nos compreendíamos. Eu deixara de ser um “elefante branco”. — Be...em percebo — disse-me ele. — Ninguém deseja uma solução amigável. Nós somos todos parentes, é certo, e não se poderá negar que nos conhecemos perfeitamente. Tayeb Sheth não é homem de admitir, facilmente, essa espécie de acordo. À menor imprudência da nossa parte, ele nos extorquirá toda a espécie de coisas, para, ao cabo, se apoderar de tudo. Peço-lhe, pois, que reflita duas vezes antes de empreender o que quer que seja. — Nada receie a esse respeito — respondi-lhe. — Não tenho necessidade de falar do negócio a Tayeb Sheth ou a qualquer outra pessoa. A minha única ideia é a de sugerir-lhe um acordo, o que significará uma grande economia de complicações jurídicas. Deixei, portanto, Durban, sete ou oito dias depois de lá ter chegado. Reservaram-me um lugar na primeira classe. Era costume pagar-se um acréscimo de cinco shillings, caso se quisesse usar cobertas. Abdulla Sheth insistiu para que eu as usasse; mas, por teimosia e amor-próprio, bem como com a intenção de economizar cinco shillings, recusei. Ele, no entanto, advertiu-me: — Ouça, nós aqui não estamos nas Índias. Graças a Deus não são os meios que nos faltam. Peço-lhe que não se prive de nada que lhe for necessário. Agradeci e supliquei-lhe que não se preocupasse. O trem chegou a Maritzburg, capital de Natal, por volta das nove horas da noite. Era nessa estação que forneciam, habitualmente, as cobertas. Um agente da estrada de ferro veio perguntar-me se eu as desejava. — Não — respondi-lhe — tenho o necessário e ele foi-se. Apareceu, em seguida, um passageiro que me examinou de alto a baixo. Viu que eu era um “homem de cor” e isto o incomodou. Saiu e voltou com um ou dois funcionários. Eles nada disseram. Mas outro funcionário aproximou-se de mim e disse: — Siga-me, o seu lugar é na segunda. — Mas eu tenho bilhete de primeira classe.

— Pouco importa — replicou o homem. — Já lhe disse que o seu lugar é na segunda. — E eu digo-lhe que em Durban deixaram-me entrar para este compartimento; ninguém me fará sair daqui. — Pois eu lhe digo que farei — tornou o empregado. — Saia desse compartimento, se não quiser que chame a polícia para tirá-lo à força. — Então chame a polícia. Recuso-me a sair pela minha própria vontade. Veio o agente de polícia. Tomou-me pelo braço e expulsou-me. Levaram também as minhas bagagens. Recusei entrar noutro vagão e o trem partiu sem mim. Fui sentar-me na sala de espera, conservando comigo a maleta e deixando as demais bagagens na plataforma. Os empregados da companhia encarregaram-se delas. Era inverno e o inverno é terrivelmente frio nas regiões elevadas da África do Sul. A altitude de Maritzburg é grande; o frio cortava. O meu sobretudo ficara com as bagagens, mas eu não ousava reclamálo, com medo de ser novamente insultado. Fiquei, pois, sentado, a tiritar. A sala de espera era iluminada. Cerca da meia-noite entrou um viajante, talvez ele quisesse conversar, mas eu estava sem disposição para satisfazer-lhe. Qual era o meu dever? — pensava. Devia lutar para defender os meus direitos? Devia voltar para a minha terra? Continuar a viagem até Pretória, ignorando as ofensas, depois regressar às Índias, terminado o processo? Voltar, precipitadamente, para as Índias sem cumprir as minhas obrigações, seria pusilanimidade. O tratamento injusto que me infligiam era apenas superficial, puro sintoma do mal mais profundo, alimentado pelo preconceito racial. Seria preciso tentar, se possível, extirpar o mal, resignado a sofrer injustiças durante o percurso, e não me arvorar em reformador dos erros senão na medida em que fosse necessário à supressão do preconceito racial. Decidi, por conseguinte, tomar o primeiro trem que aparecesse para Pretória. Na manhã do dia seguinte, enviei um longo telegrama ao diretorgeral da Companhia, ao mesmo tempo que informava Abdulla Sheth do incidente. Este foi imediatamente ver o diretor-geral, que deu

razão à atitude dos seus empregados, mas esclareceu que já havia transmitido instruções ao chefe da estação a fim de que eu concluísse a viagem sem qualquer outro incidente. Abdulla Sheth avisou por telegrama os comerciantes indianos de Maritzburg e diversos amigos em outros lugares, pedindo-lhes que me fossem ver e se ocupassem de mim. Os comerciantes vieram ver-me na estação e tentaram consolar-me, contando-me os seus próprios infortúnios e explicandome que era muito comum o que se passara comigo. Disseram-me, também, que os indianos que viajavam em primeira ou segunda classe já esperavam que os empregados da estrada e os passageiros brancos lhes causassem aborrecimentos. Passei o dia ouvindo a narrativa das suas desgraças. O trem da tarde chegou. Haviam-me reservado um leito. Desta vez aluguei, em Maritzburg, as cobertas que havia recusado em Durban. O trem conduzia-me para Charlestown. 9. OUTRAS DESVENTURAS O TREM entrou na estação de Charlestown de manhã. Naquele tempo, Charlestown não era ligada a Johannesburg por estrada de ferro. Havia apenas uma diligência que chegava em Standerton à noite. Eu tinha meu bilhete para a diligência, ainda válido apesar da minha demora de um dia em Maritzburg; ademais, Abdulla Sheth telegrafara ao agente da diligência em Charlestown. Mas o agente procurava qualquer pretexto para desembaraçar-se de mim e, quando percebeu que eu era um estrangeiro, declarou-me: — O seu bilhete já não tem valor. Dei-lhe a resposta que merecia. A ideia que lhe ditara essas palavras não se baseava na falta de lugar, era bem outra coisa. Os passageiros acomodavam-se no interior do veículo, mas como me consideravam um “coolie” e como eu tinha aparência de estrangeiro, convinha, segundo o “chefe” (era assim que chamavam o branco responsável pelo veículo), não me misturar com os passageiros europeus. Havia assentos de cada lado da diligência. A regra era que o chefe se instalasse num deles. Mas nesse dia ele acomodou-se no interior do veículo e cedeu-me o seu lugar. Era uma injustiça e uma afronta, eu sabia-o, mas achei preferível nada dizer. Não podia

obrigá-los a admitir-me no interior e, se protestasse, a diligência partiria sem mim: teria perdido outro dia e Deus sabe o que me teria acontecido no dia seguinte. Assim, contendo a indignação, instaleime, prudentemente, ao lado do postilhão. Cerca de três horas depois a diligência chegou a Pardekoph. Então o “chefe” exprimiu o desejo de sentar-se no meu lugar — estava com vontade de fumar e talvez de tomar um pouco de ar. Pedindo, pois, ao postilhão um velho pedaço sujo de lona, estendeu-o no estribo e, voltando-se para mim, disse: — Senta-te ali, sâmi131, quero ficar ao lado do postilhão. A afronta ultrapassara todos os limites. Tremendo de medo e de cólera, respondi-lhe: — Foi o senhor quem me indicou esse assento, quando eu deveria sentar-me no interior do carro. Não relevei o insulto. Mas agora, que está com vontade de sentar-se aqui fora para fumar, quer que me instale a seus pés. Não o farei, mas posso sentar-me lá dentro. Enquanto eu, bem ou mal, articulava este discurso, ele pulou sobre mim e aplicou-me diversas bofetadas com toda a força. Segurou-me pelo braço e tentou arrancar-me do lugar, mas eu agarrei-me ao encosto de cobre do assento do postilhão, decidido a não deixar arrastar-me, embora arrebentasse as mãos. Os passageiros assistiam ao espetáculo: o homem injuriando-me, puxando-me, golpeando-me, e eu sem reagir. Ele era vigoroso, eu, fraco. Alguns dos passageiros acabaram por apiedar-se e por gritar: — Vamos, deixe-o! Não lhe bata mais! Ele não está errado. Tem toda razão. Se não pode ficar onde está, que venha sentar-se conosco... — Não faltava mais nada! — exclamou o outro. Mas ele pareceu perder um pouco de sua segurança e deixou de bater-me. Largou o meu braço, lançou-me ainda alguns insultos; depois, pedindo ao empregado hotentote, que estava sentado do outro lado do postilhão, que se pusesse no estribo, ocupou o assento livre. Os passageiros retornaram os seus lugares, um golpe de chicote estalou e a diligência partiu bamboleando. O meu coração batia furiosamente e eu perguntava-me se chegaria vivo ao meu destino. O

homem lançava-me de quando em quando um olhar irritado. Apontando-me com o índex, rosnou: — Espera que, quando chegarmos a Standerton, te mostrarei quem sou... Não tugi nem mugi, incapaz de falar e pedindo a Deus que viesse em meu socorro. Era noite quando chegamos a Standerton e deixei escapar um suspiro de alívio à vista de fisionomias indianas. Mal saltei, esses amigos disseram-me: — Viemos recebê-lo e vamos conduzi-lo à loja de Isâ Sheth. Recebemos um telegrama de Dâdâ Abdulla. Muito contente, fui com eles ao estabelecimento do Sheth Isâ Hâji Sumar. O Sheth e os seus empregados rodearam-me. Contei-lhes toda a minha aventura. O relato comoveu-os e eles consolaram-me, narrando-me, por sua vez, suas tristes aventuras. Eu estava resolvido a informar o agente da Companhia de Diligências a respeito do acontecido. Escrevi-lhe, pois, contando quanto me sucedera, e chamando a sua atenção sobre as ameaças feitas pelo empregado. Pedi-lhe, também, que me assegurasse um lugar no interior do veículo, com os outros passageiros, quando, na manhã do dia seguinte, partíssemos. O agente respondeu-me neste sentido: “À saída de Standerton a diligência é maior e o pessoal não é o mesmo. O homem de quem se queixa não estará aqui amanhã e o Senhor terá um lugar com os outros viajantes”. Senti-me um pouco mais aliviado. Naturalmente, não tinha intenção de iniciar um processo contra o homem que me agredira, e a coisa ficou assim mesmo. Na manhã do dia seguinte, o empregado de Isâ Sheth acompanhou-me até à diligência. Deram-me um bom lugar e na tarde do mesmo dia estava eu em Johannesburg, são e salvo. Standerton é uma pequena povoação e Johannesburg, uma grande cidade. Aqui, também, um telegrama de Abdulla Sheth haviame precedido, dando-me o nome e o endereço da firma de Mohammed Kâsim Kamruddin. Um empregado da firma viera esperar-me, porém eu não o vi nem ele me conheceu. Resolvi procurar um hotel. Conhecia muitos de nome. Tomei um fiacre e pedi ao cocheiro que me conduzisse ao Grande Hotel Nacional. Avistei-me

com o gerente e pedi-lhe um quarto. Examinou-me por um instante e depois disse-me, polidamente: — Lamento muito, mas não há vaga — indicando-me que podia sair. Solicitei então ao cocheiro que me conduzisse ao estabelecimento de Mohammed Kâsim Kamruddin. Lá encontrei Abdul Gani Sheth, que me esperava e que me acolheu cordialmente. Riu com vontade quando lhe contei a minha aventura no hotel. — Por que diabo achou que o receberíam no hotel? — inquiriu ele. — E por que não? — perguntei-lhe. — Após alguns dias de permanência aqui não terá dificuldade em compreender — retrucou-me. — Só mesmo nós é que podemos viver num país como este. Por que somente nós somos capazes, para ganhar dinheiro, de suportar afrontas sem reagir. Eis tudo! E começou a narrar as injustiças que os indianos sofriam na África do Sul. (Aliás, conheceremos melhor o Sheth Abdul Gani no decorrer deste relato.) — Este país não foi feito para homens da sua espécie. Ouça: amanhã deverá seguir para Pretória. Não poderá, de maneira alguma, viajar a não ser em terceira classe. As condições de vida são piores no Transvaal do que em Natal. Aqui nunca se vende bilhete de primeira ou de segunda a um indiano. — É porque faltou tenacidade aos esforços de vocês. — Nós protestamos, oficialmente, mas devo confessar-lhe que a nossa gente, por sua vez, não tem grande vontade, em geral, de viajar em primeira ou segunda. Mandei buscar um regulamento da estrada de ferro e estudei-o. Nele encontrei uma saída plausível. O vocabulário das antigas leis do Transvaal carecia de exatidão e de precisão; esse defeito era ainda mais pronunciado no regulamento da estrada de ferro. Disse ao Sheth: — Desejo viajar em primeira classe; se isto me for impossível, preferirei ir de carro a Pretória, não é distante mais de sessenta quilômetros. O Sheth Abdul Gani chamou-me a atenção sobre o desperdício de tempo e de dinheiro que isto representaria, mas concordou comigo

quanto ao projeto de viajar de primeira. Consequentemente, mandamos um recado ao chefe da estação. Nele mencionei a minha qualidade de advogado e o fato de que viajava sempre de primeira. Declarei, também, que tinha necessidade de chegar a Pretória o mais depressa possível; que, não podendo uma resposta escrita chegar a tempo, eu iria procurá-lo pessoalmente na estação e estava certo de poder contar com o meu bilhete de primeira classe. Bem entendido, eu tinha as minhas intenções ocultas ao dizer que iria pessoalmente receber a resposta. Sabia que, se o chefe da estação me respondesse por escrito, seria certamente para dizer “não” — tendo em vista, principalmente, a opinião que ele devia ter de um advogado “coolie”. Eu apresentar-me-ia, pois, impecavelmente vestido à inglesa, falar-lhe-ia e talvez o levasse a vender-me um bilhete de primeira. Parti para a estação, engravatado e de sobre casaca, coloquei um soberano diante do guichê e pedi um bilhete de primeira. — É seu este recado? — indagou ele. — Sim, é meu. Ficar-lhe-ei muito grato se me vender o bilhete. É preciso que eu chegue hoje a Pretória. Ele sorriu e, num impulso de piedade, disse-me: — Não nasci no Transvaal. Sou holandês. Compreendo os seus sentimentos e o Senhor tem toda a minha simpatia. Vou vender-lhe o seu bilhete, mas com uma condição: se o fiscal o convidar a passar para a terceira classe, o Senhor não me envolverá nesse negócio. Quer dizer: o Senhor não processará a Companhia. Desejo-lhe uma viagem sem incidentes e vejo que estou tratando com um “gentleman”. E com isto redigiu o meu bilhete. Agradeci-lhe e assegurei-lhe que a sua condição seria satisfeita. O Sheth Abdul Gani veio despedir-se de mim na plataforma. O incidente causara-lhe uma surpresa agradável. Não obstante, fez-me esta advertência: — Oxalá chegue tranquilamente a Pretória! Receio muito que o fiscal não o deixe terminar a viagem na primeira classe; e, mesmo que ele não o incomode, os passageiros se encarregarão de fazê-lo. Instalei-me num compartimento de primeira. O trem partiu. Em Germinston o fiscal passou. Furioso por encontrar-me em tal lugar, fez-me com o dedo sinal para que passasse para a terceira. Mostrei-

lhe o meu bilhete de primeira. — Não importa — disse ele. — Apanhe as suas bagagens e... para a terceira! Estava sozinho no compartimento, com um inglês. Este censurou asperamente o fiscal: — Que significa esta história e por que está o Senhor importunando o cavalheiro? Não vê que ele tem um bilhete de primeira? Quanto a mim, não tenho nenhuma objeção a fazer contra a sua presença. — E voltando-se para mim: — Nada o impede de instalar-se à vontade e de permanecer onde está. O fiscal murmurou: — Se lhe agrada viajar com um “coolie”, a mim isso pouco importa — e afastou-se. Cerca das oito horas da noite, o trem entrou na estação de Pretória. 10. PRIMEIRO DIA EM PRETÓRIA EU contava que o advogado de Dâdâ Abdulla mandasse alguém esperar-me à estação de Pretória. Sabia que não haveria indianos para receber-me, pois eu prometera não me instalar em casa de nenhum compatriota. Mas o advogado não enviara pessoa alguma. Compreendi, em seguida, que, tendo chegado num domingo, não seria possível, sem inconveniente, mandar alguém esperar-me. Não sabia que fazer, perguntava-me aonde ir, receoso de que os hotéis não me quisessem. Em 1893, a estação de Pretória nada tinha de comum com a de 1914. Era somente iluminada. Os viajantes, raros. Deixei que todos saíssem na minha frente, com a ideia de estender o meu bilhete ao fiscal e pedir-lhe, quando ele estivesse mais ou menos livre, que me indicasse um pequeno hotel ou qualquer coisa no gênero, para onde pudesse dirigir-me; caso contrário, passaria a noite na estação. Devo reconhecer que nada me custava tanto como pedir esse favor, tamanho era o meu receio de ser injuriado. A estação ficou inteiramente vazia de viajantes. Entreguei o bilhete ao fiscal e pedi-lhe a informação. Ele respondeu-me cortesmente, mas compreendi que não me podia ser de grande

auxílio. Entretanto, um negro americano, que se achava perto, imiscuiu-se na conversa. — Vejo — disse-me ele — que o Senhor é estrangeiro aqui e não tem amigos. Se quiser acompanhar-me, posso conduzi-lo a um pequeno hotel; o dono é americano, conheço-o muito bem, e creio que o receberá. Tinha as minhas dúvidas sobre o oferecimento, mas agradeci-lhe e aceitei o convite. Levou-me ao Johnston Family Hotel. Chamou Mr. Johnston à parte, para dizer-lhe uma palavra, e o homem consentisse em alojar-me por aquela noite, com a condição de que eu jantasse no quarto. — Juro-lhe que não tenho preconceitos raciais — disse-me ele. — Mas tenho uma clientela exclusivamente europeia e, se permitir que o Senhor jante na sala de refeições, os hóspedes poderão ofender-se e mesmo abandonar o hotel. — Obrigado — respondi-lhe —, é apenas para esta noite. Já estou mais ou menos familiarizado com os costumes daqui e compreendo a posição delicada em que o Senhor se encontra. Pouco me importa que me sirvam o jantar no quarto. Espero poder instalarme de outro modo, amanhã. Fui conduzido a um quarto onde me sentei e fiquei a sonhar, inteiramente só, à espera do jantar. O hotel não tinha muitos clientes e supus que o garçom não tardaria a subir. Mas em seu lugar foi Mr. Johnston em pessoa que apareceu. — Estou envergonhado — disse-me ele, — de lhe haver pedido para jantar no quarto. Já falei com os meus hóspedes, para saber se faziam objeção a que o Senhor jantasse no restaurante. Responderam-me que não e que lhes era indiferente que o Senhor ficasse aqui o tempo que quisesse. Dê-me pois o prazer de descer ao restaurante, se o deseja, e permaneça no hotel o tempo que quiser. Agradeci-lhe mais uma vez, desci ao restaurante e jantei com muita satisfação. Na manhã seguinte, procurei o advogado, Mr. A. W. Baker. Abdulla Sheth falara-me minuciosamente dele e a cordialidade do seu acolhimento não me surpreendeu. Recebeu-me calorosamente e, com bondade, pediu-me informações a meu respeito, as quais lhe forneci sem reserva.

— Como advogado — disse-me ele, — não nos poderá ser útil aqui: já contamos com os melhores serviços no ramo. O negócio de que se trata ameaça não acabar mais e é muito complicado. E não lançarei mão do Senhor senão na medida em que precisarmos de esclarecimentos. Naturalmente as relações com o meu cliente serão facilitadas, sendo que todas as informações úteis, que eu quiser obter dele, submeterei ao Senhor, de hoje em diante. Isto trará uma vantagem incontestável. Ainda não achei onde alojá-lo. Pensei que seria melhor vê-lo, antes de qualquer coisa. Há aqui um terrível preconceito racial e não é fácil encontrar quarto para pessoas como o Senhor. Mas conheço uma pobre mulher cujo marido é padeiro e que, segundo, creio, o aceitará como locatário, o que será, para ela, ao mesmo tempo, um modo de aumentar a sua receita. Vamos vê-la agora mesmo. Levou-me a essa mulher. Falou-lhe de mim, a sós. Ela concordou em receber-me como pensionista mediante trinta e cinco shillings por semana. Mr. Baker não era somente advogado; era, no século, um pregador convicto. Ainda vive, mas abandonou a profissão de advogado para consagrar-se unicamente à sua tarefa de missionário. Tem uma sólida fortuna. Ainda nos correspondemos. Em suas cartas ele repisa sempre o mesmo tema. Afirma que nada existe melhor que o cristianismo, sob muitos pontos de vista, e sustenta que não se poderá encontrar a paz eterna fora de Jesus, único Filho de Deus e Salvador da humanidade. Desde a nossa primeira entrevista, Mr. Baker certificou-se das minhas opiniões religiosas. Eu disse-lhe: — Sou hindu de nascimento. Apesar disso não sei grande coisa sobre o hinduísmo e ainda menos sobre as outras religiões. Na verdade, não sei onde estou nem qual deva ser a minha crença. Tenho a intenção de estudar a fundo a religião de meus pais e, na medida do possível, também as outras crenças. Mr. Baker ficou muito satisfeito com essas palavras. — Sou — disse-me — um dos diretores da Missão Geral na África do Sul. Fiz construir à minha custa uma capela e prego regularmente. Não tenho o menor preconceito racial. Outros me secundam nessa obra; encontramo-nos todos os dias, à uma hora,

para suplicar a Deus que envie a este mundo a paz e a luz. Sentirme-ei feliz se o senhor aceitar em ser um dos nossos. Apresentá-lo-ei a meus amigos, que se alegrarão em conhecê-lo e atrevo-me a acreditar que a companhia deles não lhe desagradará. Além disso, emprestar-lhe-ei algumas obras religiosas, se bem que, naturalmente, o único grande Livro seja a Santa Bíblia, que tomo a liberdade de recomendar-lhe especialmente. Agradeci-lhe e concordei em assistir tão regularmente quanto possível às preces de uma hora. — Conto com o Senhor, amanhã, à uma hora — acrescentou ele. — Iremos orar juntos. E assim nos despedimos um do outro. No momento, eu não tivera tempo de refletir. Voltei ao hotel de Mr. Johnston, paguei a minha conta e transportei as minhas bagagens para o novo alojamento, onde almocei. A senhoria era uma boa mulher. Preparava-me uma refeição vegetariana. Não precisei de muito tempo para sentir-me à vontade no seio da família. Em seguida fui ver o amigo para o qual tinha uma carta de recomendação de Dâdâ Abdulla. Soube por ele de outros detalhes sobre a injustiça do tratamento que sofriam os indianos da África do Sul. Ele queria a todo custo que eu me instalasse em sua casa. Agradeci, mas disse-lhe que já me havia acomodado. Insistiu em que eu não hesitasse em pedir-lhe tudo quanto necessitasse. Anoitecera. Voltei para casa, jantei, subi para o meu quarto e me deitei, refletindo profundamente. Não havia trabalho imediato para mim. Informei a esse respeito Abdulla Sheth. Depois, pus-me a pensar: que podia significar, na realidade, o interesse que Mr. Baker demonstrava por mim? Que ganharia eu com as relações dos seus amigos: Até que ponto deveria lançar-me ao estudo do cristianismo? De que modo poderia encontrar os livros necessários sobre o hinduísmo? E como iria eu compreender o cristianismo e situá-lo em sua verdadeira perspectiva, sem conhecer a fundo a minha própria religião? Uma única conclusão se impunha: entregar-me ao estudo estritamente objetivo de tudo o que se me apresentasse, e deixar que Deus me guiasse. Não procurar abraçar outra fé enquanto não compreendesse inteiramente a minha. E, com estas reflexões, adormeci.

11. CONTATOS CRISTÃOS NO DIA seguinte, à uma hora, comparecí à sessão de orações de Mr. Baker. Lá, apresentaram-me a Miss Harris e a Miss Gabb, a Mr. Coates e a outros. Todos se puseram de joelhos para rezar; fiz o mesmo. Tratava-se de suplicar a Deus diversas coisas, segundo o desejo de cada um. De um modo geral, era para pedir que o dia passasse agradavelmente ou que Deus abrisse a porta dos corações. Desta vez fez-se uma prece suplementar em minha intenção: “Senhor, mostra o caminho ao novo irmão que se encontra entre nós. Concede-lhe. Senhor, a mesma paz que concedeste a nós. Possa Jesus Nosso Senhor salvá-lo como a nós. Fazemos-Te esta súplica em nome de Jesus”. Tais sessões realizavam-se sem acompanhamento de cânticos ou de qualquer música. Todos os dias, após a oração com uma intenção especial, eles se dispersavam: cada um ia almoçar separadamente, pois era aquela a hora de fazê-lo. As preces não demoravam mais que cinco minutos. Miss Harris e Miss Gabb eram duas solteironas de idade avançada. Mr. Coates era um “quaker”. As duas damas viviam juntas; convidaram-me de maneira definitiva a tomar chá com elas, todos os domingos, regularmente. Além dessas reuniões dominicais, eu geralmente mandava a Mr. Coates o meu diário religioso sobre a semana decorrida e discutia com ele as leituras e as impressões que tivera. As damas narravam as suas suaves experiências e falavam da paz que tinham encontrado. Mr. Coates era um homem jovem e forte, convicto e de uma franqueza áurea. Passeávamos juntos e ele conduzia-me à casa de amigos cristãos. À medida que a nossa intimidade aumentava, começou a emprestar-me livros de sua escolha — a minha estante acabou por ficar cheia. Com toda a pureza de coração consenti em lê-los, discutindo-os ao mesmo tempo com ele. Li, assim, um número considerável de livros no decorrer do ano de 1893. Não me lembro de todos os títulos; mas havia o Comentário, do Dr Parker (do Templo da Cidade), as Várias Provas Infalíveis, de Pearson, e a Analogia, de Butler. Certas passagens eram-me

absolutamente incompreensíveis. Outras me agradavam ou me desagradavam. As Várias Provas Infalíveis continham testemunho em favor da religião da Bíblia — tal como o autor a entendia. Este livro deixava-me frio. O Comentário, de Parker, representava bem um estimulante moral, mas de nada podia servir a quem não tivesse fé no essencial da crença cristã. Quanto à Analogia, de Butler, impressionou-me pelo fato de ser tido como livro extremamente profundo e difícil, que não se podia compreender antes de o haver lido quatro ou cinco vezes. O autor pareceu-me ter visado, com o seu livro, à conversão dos ateus ao ateísmo. Os argumentos que nele se encontram, sobre a existência de Deus, não apresentam para mim nenhum caráter de necessidade: eu havia então ultrapassado a fase da descrença; mas os argumentos que visavam provar que Jesus era a única encarnação de Deus, o único mediador entre Deus e o homem, não me causaram a menor impressão. Mr. Coates, porém, não era homem para resignar-se facilmente ao fracasso. Nutria grande afeição por mim. Notando um dia, ao meu pescoço, o colar vixnuíta, de grãos de tulasi132, tomou-o por um sinal de superstição e manifestou o seu pesar: — Essa espécie de superstição não lhe fica bem. Vamos! Permita que eu destrua esse colar. — Absolutamente, não. Foi um presente de minha mãe e é sagrado. — Mas acredita de fato nele? — Ignoro o seu sentido misterioso. Não creio que me sobrevenha alguma desgraça se não o usar. Mas não posso, sem razões suficientes, renunciar a um colar que minha mãe pôs em torno do meu pescoço como sinal de ternura e com a convicção de que me traria felicidade. Quando com o tempo, se tiver gasto e se romper, não procurarei substituí-lo. Mas, sem dúvida, é-me impossível destruílo deliberadamente. Mr. Coates não podia apreciar a minha argumentação em seu justo valor: não tinha nenhum respeito pela minha religião. Esperava, impacientemente, pelo dia em que eu emergiria, afinal, do meu abismo de ignorância. Desejaria persuadir-me, sem consideração pelo que pudesse haver de verdadeiro nas outras religiões, da impossibilidade de encontrar a salvação se não aceitasse o

cristianismo como representando a única verdade; da impossibilidade de purificar-me dos meus pecados, salvo pela interferência de Jesus, e da inutilidade das boas ações. Fez-me conhecer uma quantidade de livros e apresentou-me a uma quantidade de amigos, que ele considerava sólidos cristãos. Foi assim que me introduziu numa família que pertencia à seita cristã dos Irmãos de Plymouth133. Muitos dos contatos que me proporcionou foram realmente de valor. A maior parte dessas pessoas pareceram-me viver no temor de Deus. Mas, durante as minhas relações com a família em questão, um dos Irmãos de Plymouth colocou-me diante de uma espécie de argumento para o qual eu não estava preparado: — O Senhor não pode — disse-me ele, — compreender as belezas da nossa religião. Pelo que diz, deduz-se que o Senhor não deve cessar, em nenhum momento de sua vida, de ruminar os seus pecados e que passa o tempo a repará-los e a expiá-los. Como pode a redenção sair deste turbilhão perpétuo de agitação? É impossível que o Senhor lenha paz. Reconhece que a humanidade é constituída somente por pecadores. Pois bem, considere a perfeição da nossa fé. Todos os nossos esforços, para nos tornarmos melhores e para expiar, são vãos. E, contudo, nela só pode haver a redenção. Como conduzir o fardo do pecado? Um único meio existe: o de lançar todo o peso sobre Jesus. O Filho de Deus é o único que não está marcado pelo estigma original. O seu evangelho diz que os que creem nele terão direito à vida eterna. Veja onde repousa a infinita misericórdia divina. Se cremos na expiação de Jesus, já não ficamos ligados pelos nossos próprios pecados. Que podemos fazer nós senão pecar? A pureza imaculada não é deste mundo. Eis por que Jesus sofreu e expiou, para a redenção de todos os pecados da humanidade. Só quem aceita e compreende a grandeza de sua redenção tem direito à paz eterna. Pense em toda a inquietude da sua vida e compare-a à promessa de paz que é a nossa! Esta argumentação não chegou, absolutamente, a convencer-me. — Se isto é o cristianismo para todos os cristãos, não posso aceitá-lo — repliquei eu humildemente. — Não procuro redimir-me da sequência dos meus pecados. É do pecado em si que desejo ser libertado, ou melhor, da própria ideia de pecado. Enquanto não atingir

esse fim, contentar-me-ei com a minha inquietude. Ao que o Irmão de Plymouth retrucou: — Creia-me, todos os seus esforços são estéreis. Reflita no que lhe disse. E esse Irmão provava, pelos seus atos, a veracidade das suas palavras. Pecava conscientemente e demonstrava-me suficientemente que o pensamento dos seus pecados não o atormentava em absoluto. Contudo, eu já sabia, antes mesmo de ter encontrado esses amigos, que nem todos os cristãos faziam semelhante ideia da expiação. O próprio Mr. Coates vivia no temor de Deus. Era puro de coração e cria que cada um pode purificar-se a si mesmo. As duas damas partilhavam essa crença. Alguns dos livros que passaram pelas minhas mãos estavam cheios de verdadeira piedade. Se bem que a minha última aventura houvesse semeado a inquietação em Mr. Coates, cheguei a tranquilizá-lo, declarando-lhe que a fé extravagante de um Irmão de Plymouth não podia deixar-me prevenido contra o cristianismo. Aliás, para mim, o problema era outro. Dizia respeito à Bíblia e à sua interpretação oficial. 12. À PROCURA DE CONTATO COM OS INDIANOS ANTES de prosseguir a narrativa das minhas relações com os cristãos, devo anotar aqui outras experiências que datam da mesma época. O Sheth Tayeb Hâji Khân Mohammed gozava, em Pretória, de uma posição tão eminente quanto a de Dâdâ Abdulla, em Natal. Não se podia tomar nenhuma iniciativa de ordem pública sem consultá-lo. Encontrei-o logo na primeira semana da minha chegada e comuniquei-lhe a iniciação de travar relações com todos os indianos de Pretória, sem exceção. O meu primeiro cuidado foi o de convocar todos os indianos da cidade para uma reunião, a fim de lhes traçar um quadro da sua condição no Transvaal. A reunião realizou-se na residência do Sheth Hâji Mohammed Hâji Jusab, para quem eu tinha uma carta de apresentação. Lá compareceram sobretudo os mercadores memans,

se bem que houvesse também aqui e ali alguns hindus. Na verdade, o fato é que a população hindu de Pretória era ínfima. O discurso que pronunciei nessa reunião foi, pode-se dizer, a minha primeira manifestação de orador público. O tema, que havia preparado bastante bem, versava sobre a lealdade que se deve observar nos negócios. Sempre ouvira dizer aos comerciantes que a boa-fé era impossível nos negócios. Eu não era dessa opinião; não mudei depois. Mesmo hoje, conheço comerciantes que são meus amigos e que pretendem que a verdade é incompatível com os negócios. Os negócios, dizem eles, referem-se à vida prática, à verdade, à religião. E afirmam que a vida prática é uma coisa e a religião, outra. Acham que a verdade pura não pode ser considerada nos negócios; só podemos dizê-la na medida em que nos é cômoda. Contestei, vigorosamente, essa maneira de ver, no meu discurso, e chamei a atenção dos comerciantes sobre o sentido do seu dever, que era duplo: as suas responsabilidades em face da verdade eram tanto maiores, em país estrangeiro, quanto era pela conduta de um punhado de indianos que se julgava a de milhões de seus compatriotas. Havia verificado que a higiene dos indianos era inexistente em comparação à dos ingleses que os circundavam. Chamei a atenção da assistência sobre esse ponto. Insisti sobre a necessidade de fazer abstração de todas as distinções entre hindus, muçulmanos, parses, cristãos, gujrates, madrasis, panjabis, sindhis, kachchis, surtis etc. Para concluir, propus a criação de uma associação que tivesse por finalidade protestar, oficialmente, junto das autoridades responsáveis, contra as injustiças que sofriam os colonos indianos; e coloquei à disposição dessa associação todo o meu tempo e toda a minha atividade disponíveis. Percebi que havia causado uma impressão considerável sobre o meu auditório. Ao meu discurso seguiu-se um debate. Alguns se prontificaram a fornecer-me os fatos precisos. Senti-me encorajado. Observei que poucos dos assistentes sabiam inglês. Persuadido de que o conhecimento dessa língua seria útil na região, aconselhei aos que tivessem tempo que aprendessem o inglês. Declarei-lhes que, mesmo em idade avançada, podia-se aprender uma língua e citei-lhes

exemplos. Prontifiquei-me também a servir de professor, se organizassem uma classe, ou a dar lições particulares aos que as desejassem. A criação de uma classe não foi decidida, mas três jovens declararam-se dispostos a instruir-se, desde que isto não os perturbasse muito e com a condição de eu ir aos seus domicílios. Dois dentre eles eram muçulmanos — um, barbeiro, o outro, empregado, e o terceiro era um hindu, pequeno lojista. Concordei em fazer o que desejavam. Não tinha a menor apreensão quanto aos meus talentos pedagógicos. Os meus alunos talvez se fatigassem; eu, não. Aconteceu-me por vezes, depois, encontrá-los ocupados com o comércio, quando ia procurá-los. Não perdia a paciência. Nenhum dos três desejava levar muito avante o estudo do inglês; mas pode-se dizer que, ao cabo de cerca de oito meses, dois dentre eles fizeram razoáveis progressos. Dois aprenderam o suficiente para manter a contabilidade e redigir cartas comerciais do tipo comum. A ambição do barbeiro limitava-se a adquirir apenas as noções que lhe eram necessárias para entender-se com os seus clientes. O resultado desse trabalho foi que dois dos meus alunos se viram habilitados a assegurar-se honestos rendimentos. Eu estava satisfeito com o resultado positivo dessa primeira reunião. Ficou decidido promover uma semelhante — se não me falha a memora — todas as semanas; ou talvez todos os meses. Realizaram-se mais ou menos regularmente. Cada uma delas serviu de pretexto à livre troca de ideias. Daí resultou que não houve, em Pretória, quase um indiano que eu não conhecesse ou cujas condições de vida não me fossem familiares. Essa situação, por sua vez, sugeriu-me a ideia de travar conhecimento com o agente consular inglês, em Pretória, Mr. Jacobus de Wet. Ele tinha simpatia pelos indianos, mas muito pouca influência. Concordou, contudo, em ajudar-nos o mais que pudesse e convidou-me a ir vê-lo quando quisesse. Entrei, depois, em contato com as autoridades da estrada de ferro e declarei-lhes que, mesmo nos termos dos seus regulamentos, as exceções que, praticamente, fulminavam os indianos, de incapacidade de viajar, não se podiam justificar. Recebi em resposta uma carta dizendo-me que seriam vendidos bilhetes de primeira e de

segunda aos indianos convenientemente vestidos. Ainda estávamos longe da solução ideal, pois que cabia ao chefe da estação decidir quem estava “convenientemente vestido”. O agente consular britânico mostrou-me certos documentos que diziam respeito a assuntos indianos. Tayeb Sheth, por sua vez, comunicara-me outros análogos. Graças a eles verifiquei com que crueldade se acuavam os indianos, “como bestas selvagens”, no Estado Livre de Orange, para caçá-los. A permanência em Pretória permitiu, em breve, que me entregasse a um estudo aprofundado das condições de vida sociais, econômicas e políticas dos indianos do Transvaal e do Estado Livre de Orange. Não tinha dúvida de que esse estudo me proporcionaria, no futuro, serviços inestimáveis. Pensei em voltar à minha terra pelo fim do ano, ou mesmo mais cedo, se o processo estivesse terminado nessa época. Mas Deus decidiu de modo diferente. 13. O QUE CUSTA SER UM “COOLIE” UM quadro completo da condição dos indianos, no Transvaal e no Estado Livre de Orange, ficaria deslocado aqui. Os que desejarem ter uma ideia minuciosa do assunto, que me permitam sugerir-lhes a leitura da minha História do Satyâgraha na África do Sul134. Entretanto, é necessário traçar aqui um breve esboço. No Estado Livre de Orange, uma lei especial, promulgada em 1888, na verdade mesmo antes, privava os indianos de todos os direitos. Se decidissem instalar-se nesse Estado, só poderiam fazê-lo na qualidade de garçons de hotel ou exercendo profissões igualmente humildes. Os que se punham a comerciar eram expulsos e recebiam como indenização uma quantia ridícula. Eles protestavam, mandavam petições, mas tudo em pura perda. Em 1885 um decreto ainda mais rigoroso fora adotado no Transvaal. Sofreu ligeira modificação em 1886; a lei assim modificada previa que todo o indiano devia pagar um imposto de três libras, à guisa de direito de entrada no Transvaal. Não podia possuir terras fora de certas regiões reservadas aos seus compatriotas; e, na

prática, mesmo esse caso não lhe outorgava qualquer título de propriedade real. Não podia ser eleitor. O todo decorria da legislação especial para os asiáticos, aos quais se aplicava a mesma regra que às pessoas de cor. Em virtude dessa regra, um indiano não tinha o direito de percorrer as ruas públicas nem de sair de casa após as nove horas da noite sem permissão especial. A aplicação deste último artigo era elástica no que concernia aos indianos. Os que passavam por “árabes” ficavam isentos, por medida de favor. Daí resultava, naturalmente, que a isenção dependia da boa vontade da polícia. Pessoalmente tive que sofrer as consequências das duas medidas. À tarde eu costumava passear em companhia de Mr. Coates e era raro que nos recolhêssemos antes da zero hora. E se a polícia me prendesse? Essa perspectiva inquietava Mr. Coates ainda mais do que a mim. A ele competia fornecer salvo-condutos aos seus domésticos negros. Mas a mim, como poderia fazê-lo? Só um patrão tinha o direito de dar permissão ao seu empregado. Se eu houvesse querido um, mesmo que Mr. Coates estivesse disposto a concedermo, não o poderia fazer — seria ilegal e desonesto. Mr. Coates, ou um dos seus amigos, conduziu-me ao procuradorgeral, o Dr. Krause. Acontece que fomos ambos do mesmo colégio de advogados. A circunstância de que eu necessitasse de um salvoconduto para sair depois das nove horas da noite pareceu-lhe ultrapassar todas as medidas. Exprimiu-me toda a sua simpatia. Em lugar de conceder-me permissão, entregou-me uma carta autorizando-me a circular a qualquer hora e com toda a liberdade. Quando saía, levava essa carta sempre comigo. Se nunca me servi dela, foi por puro acaso. O Dr. Krause convidou-me a visitá-lo e pode dizer-se que nos tornamos amigos. Fiz-lhe algumas visitas e foi por seu intermédio que travei conhecimento com o seu irmão, mais célebre que ele, e que estava à testa do Ministério Público em Johannesburg. Durante a guerra dos bôeres fora submetido à corte marcial por haver tramado o assassinato de um oficial inglês e fora condenado a sete anos de prisão. Ademais, o Conselho da Ordem havia-o excluído. Terminadas as hostilidades, libertaram-no, reintegrando-o com todas as honras no seio do fôro do Transvaal, e ele retomou as suas atividades. Essas relações foram-me úteis mais tarde, na vida pública, e

simplificaram grandemente o meu trabalho. Quanto aos efeitos do regulamento sobre o uso das ruas públicas foram muito sérios para mim. Para ir passear no campo, entrava regularmente pela Rua President. É nessa rua que se ergue a residência do Presidente Kruger — edifício muito modesto, sem parque, despretensioso e que não se distinguia das outras casas vizinhas. As casas dos milionários da Pretória eram, em geral, infinitamente mais pretensiosas e cercadas de parques. Na realidade, a simplicidade do Presidente Kruger era proverbial. Apenas a presença de uma esquadra de polícia diante da residência traía o seu caráter oficial. Quase todos os dias passava na calçada, diante da patrulha, sem o menor embaraço e sem qualquer impedimento. De quando em quando acontecia o soldado não ser o mesmo. Certa vez, um desses homens, sem fazer-me qualquer advertência, sem mesmo pedir que eu saísse da calçada, empurrou-me e a pontapés obrigou-me a descer para o meio da rua. Fiquei estupidificado. Antes que lhe pudesse perguntar as razões do seu ato, Mr. Coates, que passava no momento a cavalo, chamou-me e disse: — Assisti a toda a cena, Gandhi — disse-me ele. — Sentir-me-ei feliz em servir de testemunha perante o tribunal, se quiser processar esse indivíduo. Estou indignado por o terem maltratado dessa maneira. — O Senhor não devia estar indignado — retorqui-lhe eu. — Que sabe esse pobre? Para ele todas as pessoas de cor são a mesma coisa. Sem dúvida, trata os negros do mesmo modo como me tratou. Tenho por princípio jamais procurar o tribunal por motivos pessoais. Portanto, não o processarei. — Só mesmo o Senhor! — exclamou Mr. Coates. — Seja como for, pense no assunto. Essa espécie de indivíduo precisa de uma lição. Depois, dirigindo-se ao agente de polícia, censurou-o asperamente. Não pude acompanhar o diálogo, que foi em holandês, sendo o agente um bôer. Mas este último pediu-me desculpas — o que foi perfeitamente inútil, pois eu já havia perdoado. Nunca mais passei por essa rua. O homem seria substituído por outros que, ignorando o incidente, agiriam como ele. Por que motivo ir

atrás -de pontapés, se isso não era necessário? Escolhi, pois, outro itinerário para o meu passeio. O incidente tornou-me ainda mais sensível à sorte dos colonos indianos. Debati com eles a oportunidade de iniciar uma ação legal, para sondar o terreno, se necessário, depois de haver consultado o agente consular britânico sobre a questão desses regulamentos. Foi-me dado assim estudar, de perto, a dura condição dos colonos indianos, não somente pela leitura de relatórios ou pelas narrativas que me faziam, mas graças a experiências pessoais. Deime conta de que a África do Sul não era a espécie de país que convinha a um indiano imbuído do respeito de si mesmo; e a questão dos meios a empregar para remediar esse estado de coisas tornou-se para mim um problema cada vez mais absorvente. Mas o meu cuidado principal era, no momento, dispensar toda a minha atenção ao processo de Dâdâ Abdulla. 14. PREPARATIVOS PARA O PROCESSO ESSE ano de permanência em Pretória foi, para mim, fonte das mais preciosas experiências. Nessa cidade tive ocasião de adquirir uma noção prática dos negócios públicos e de medir as minhas aptidões nesse domínio; foi nessa cidade que o espírito religioso que eu tinha se transformou em força viva; foi nessa cidade, também, que me aperfeiçoei na prática da minha profissão. Foi lá que aprendi o que um jovem advogado aprende de ordinário num gabinete ou num escritório, com o contato dos veteranos; foi lá, ainda, que adquiri confiança nas minhas possibilidades de sucesso na profissão; lá, igualmente, descobri o segredo do êxito. A questão de Dâdâ Abdulla não era pequena: estavam em jogo quarenta mil libras. Fruto de transações comerciais, o processo era um “imbróglio” de questões contábeis. A demanda baseava-se, de uma parte, sobre saques e, da outra, sobre a execução específica de uma promessa de remeter outros saques. A defesa alegava que os saques resultavam de uma extorsão fraudulenta e não apresentavam nenhuma justificação suficiente. O negócio formigava de questões de ato e de direito. As duas partes tinham assegurado os serviços dos melhores

advogados e procuradores, o que me forneceu ocasião magnífica para estudar, de perto, o modo de proceder desses cavalheiros. Haviam-me confiado o preparo, para o procurador, do dossiê do queixoso, bem como a escolha dos fatos favoráveis à causa. Muito me instruiu ver o que o procurador aproveitava do meu trabalho preliminar e o que rejeitava, como, também, ver o uso exato que o conselho fez do dossiê preparado pelo procurador. Logo percebi que os trabalhos de aproximação me proporcionaram um julgamento assaz bom da minha faculdade de compreensão e da minha capacidade de compor um sistema coerente de provas. Tomei o mais vivo interesse por esse processo. Na verdade, mergulhei inteiramente nele. Estudei todo o dossiê que se referia às transações. O meu cliente era homem muito capaz e tinha em mim confiança absoluta, o que facilitava o meu trabalho. Estudei contabilidade, de perto. As minhas aptidões de tradutor fizeram grandes progressos, por ter que traduzir as trocas de cartas, as quais, em sua maioria, estavam redigidas em gujrate. Esmerava-me, como já disse, em interessar-me vivamente pelos contatos de ordem espiritual e religiosa, bem como pelos negócios públicos e consagrar-lhes, regularmente, uma parte do meu tempo, embora não residisse neles, no momento, a minha paixão principal. Esta concentrava-se toda na preparação do processo. O estudo da lei, as pesquisas jurídicas tinham sempre prioridade no emprego do meu tempo, sempre que fosse necessário. Daí resultou que adquiri um conhecimento aprofundado das peças do processo, muito superior ao que tinham as partes interessadas — em virtude de possuir eu, precisamente, os dois dossiês. Lembrava-me do conselho do falecido Mr. Pincutt: “Os fatos constituem os três quartos da lei”, opinião que me confirmou, mais tarde, Mr. Leonard, o famoso advogado da África do Sul, hoje morto. Em certo processo de que me incumbiu, pareceu-me que, embora a justiça estivesse ao lado do meu cliente, a lei parecia ser-lhe contrária. Em desespero de causa, solicitei a ajuda de Mr. Leonard Também ele achou que os fatos eram extremamente favoráveis. — Ghandhi! — exclamou ele, — se alguma coisa eu aprendi, esta é uma delas. Encarregue-se dos fatos do processo, a lei se encarregará de si mesma. Estudemos a fundo os fatos desta questão.

Exortou-me a continuar o estudo do caso e depois ir vê-lo. Um novo exame dos fatos mostrou-nos um aspecto inteiramente novo, ao mesmo tempo que eu caia sobre um caso análogo, que fora anteriormente objeto de um julgamento na África do Sul. Arrebatado, fui ter com Mr. Leonard e pu-lo ao corrente de tudo. — Perfeito — disse-me. — Ganharemos o processo. É preciso, apenas, não perder de vista a personalidade do juiz encarregado da questão. No decorrer dos meus trabalhos preliminares sobre a questão Dâdâ Abdulla, não compreendera inteiramente a importância capital dos latos. Quem diz fatos, diz verdade; e desde que nos apegamos à verdade, a lei, naturalmente, vem em nosso auxílio. Percebi que, no caso Dâdâ Abdulla, os fatos eram muito favoráveis ao meu cliente e a lei pendería inevitavelmente para o seu lado. Mas dei-me, igualmente, conta de que o litígio, se persistíssemos em continuá-lo, causaria a ruína tanto do queixoso como do acusado, que eram parentes e da mesma cidade. Ninguém poderia saber quanto tempo duraria a questão. Por pouco que lhe permitíssemos seguir seu curso perante os tribunais, podia continuar indefinidamente e sem proveito para as duas partes. Tanto um como o outro desejavam, portanto, acabar quanto antes, se fosse possível. Fui ver Tayeb Sheth, a quem supliquei e aconselhei a aceitar uma arbitragem. Recomendei-lhe que ouvisse os seus consultores. Dei-lhe a entender que, caso se pudesse designar um árbitro que merecesse a confiança das duas partes, a questão seria resolvida. Os honorários dos homens da lei acumulavam-se tão depressa que bastariam para devorar toda a fortuna dos seus clientes, mesmo sendo grandes comerciantes como eles. A questão exigia-lhes tão grande atenção que não lhes restava mais tempo para tratar de outras ocupações. Enquanto se esperava, a má vontade iria aumentando de parte a parte. A minha profissão acabava por inspirarme apenas desgosto. Quanto aos homens da lei, os seus conselhos, cada um por seu lado, raspavam o fundo das gavetas, à cata de novas argúcias para sustentar o ponto de vista do cliente; era o “métier”... Notava, também, que a parte vitoriosa não chegaria a reembolsar as suas despesas. O regulamento em vigor, sobre as custas, previa uma importância fixa de despesas para cada parte. As

despesas reais, de pareceres ao cliente, eram, infinitamente, mais elevadas. Tudo isso me era literalmente intolerável: tinha o sentimento de que o meu dever era agir como amigo das duas partes e de reconciliá-las. Empreguei, pois, toda a energia para provocar um compromisso. Tayeb Sheth acabou por concordar. Foi designado um árbitro diante do qual se discutiu a questão. E Dâdâ Abdulla ganhou. Mas eu não estava satisfeito. Se o meu cliente exigisse a execução imediata da sentença arbitrai, Tayeb Sheth ficaria na impossibilidade de reunir a totalidade da soma necessária; e existia uma lei tácita, entre os memans de Porbandar, que viviam na África do Sul, de que a morte era preferível à falência. Tayeb Sheth era incapaz de pagar de uma só vez a totalidade das trinta e sete mil libras, mais as custas. Ele pretendia pagar tudo, até o último cêntimo, e não tinha o menor desejo de ir à falência. Restava um único meio: que Dâdâ Abdulla lhe permitisse saldar a dívida em prestações módicas. Dâdâ Abdulla esteve à altura da situação: aceitou que Tayeb Sheth lhe pagasse, parceladamente, durante um período bastante longo. Tive mais trabalho para conseguir a concessão desse prazo do que tive em convencer os adversários a submeter-se à arbitragem. Mas o resultado restituiu a serenidade aos dois homens e ambos subiram na estima pública. A minha alegria não tinha limites. Havia aprendido o caminho prático da lei. Tinha aprendido a descobrir o lado bom da natureza humana e a encontrar o caminho do coração. Compreendi que a verdadeira missão do homem da lei era lançar uma ponte sobre o abismo que separa os adversários. A lição gravou-se tão profundamente em mim que uma boa parte do meu tempo, durante os vinte anos em que exerci a profissão de advogado, passou em promover, em centenas de casos, acordos amigáveis. E nada perdi com isso — nem mesmo dinheiro, e muito menos ainda, certamente, a minha alma. 15. FERMENTO RELIGIOSO É CHEGADO o momento de retomar a narrativa das minhas experiências com os meus amigos cristãos. Mr. Baker estava cada vez mais inquieto com o meu futuro.

Levou-me ao Convento de Wellington. Os cristãos protestantes organizam assembleias desse gênero, com o intervalo de alguns anos, a fim de esclarecer a sua religião, ou, por outras palavras, para se purificarem. Pode-se ainda dizer que o objetivo é restaurar ou reanimar a fé. Assim era o Convento de Wellington. Presidia-o o reverendo Andrew Murray, célebre eclesiástico da cidade. Mr. Baker imaginara que a atmosfera de exaltação religiosa do Convento, unida ao entusiasmo e ao zelo dos que o frequentavam, me conduziriam, inevitavelmente, a abraçar a fé cristã. Mas ele punha a sua maior esperança na eficácia da oração. Tinha uma fé cega em suas virtudes. Estava firmemente convencido de que Deus não podia deixar de ouvir a prece que, fervorosamente, lhe era dirigida. Costumava citar o exemplo de homens como George Muller, de Bristol, que se socorria unicamente da oração, mesmo para as suas necessidades temporais. Atentamente, eu ouvia as suas palavras sobre a eficácia da prece e assegurava-lhe que nada me impediria de abraçar a fé cristã, se ela despertasse em mim a vocação. Não tinha sequer a sombra de uma hesitação ao dar-lhe esta certeza, porque eu, de há muito, adotara o princípio de ouvir somente a voz interior. Submeter-me a ela era, para mim, uma delícia. Opor-me a ela tornara-se-me difícil e doloroso. Partimos, pois, para Wellington. Para Mr. Baker foi uma rude provação a de ter como companheiro um “homem de cor” como eu. Em muitas ocasiões, e unicamente por minha causa, teve que sofrer diversos dissabores. Tivemos que interromper a viagem num domingo, pois Mr. Baker e os seus amigos não se permitiam viajar no dia do Senhor. Muito embora o dono do hotel concordasse, depois de viva altercação, em ceder-me um quarto, recusou-me, peremptoriamente, o acesso ao restaurante. Mr. Baker não era homem que pudesse ser facilmente vencido. Ele não queria renunciar aos direitos que as leis de hospitalidade paga do hotel me conferiam. Mas pude avaliar a sua mágoa. Em Wellington, também, alojei-me no mesmo hotel que ele. A despeito de todos os seus esforços para dissimular os pequenos dissabores que eu lhe custava, nenhum deles me escapou. O Convento era uma congregação de cristãos convictos. Fiquei encantado com a sua fé. Conheci o reverendo Murray. Pude ver que

eram numerosos os que oravam por mim. Alguns cânticos pareceram-me belos. A reunião durou três dias. A devoção dos que nela tomavam parte mereceu a minha compreensão e a minha estima; mas não vi motivo para mudar de fé ou de religião. Foi-me impossível crer que o simples fato de me converter ao cristianismo me abriria as portas do céu ou da salvação. Quando eu o confessava, francamente, a certos bons amigos cristãos, eles escandalizavam-se. Mas que fazer? Para mim o problema era muito mais profundo. Não podia admitir a ideia de que Deus se encarnava em um único de seus filhos: Jesus; nem tampouco que somente os que criam nele tivessem direito à vida eterna. Se Deus pudesse ter filhos, então todos nós seríamos seus filhos. Se Jesus era igual a Deus, ou o próprio Deus, então devia acontecer o mesmo a todos os homens. A minha razão recusava-se a crer literalmente que Jesus, por sua morte e por seu sangue, resgatara os pecados deste mundo. Metaforicamente podia haver uma parte de verdade nessa afirmação. Por outro lado, segundo o cristianismo, só os seres humanos tinham alma, com exclusão de todas as outras criaturas vivas, para as quais a morte significava a extinção completa; ao passo que eu alimentava crença oposta. Eu podia admitir Jesus como mártir, como personificação do sacrifício, como mestre divino, mas não como o homem mais perfeito que já tivesse nascido. A sua morte na cruz era, para o mundo, um exemplo sublime; mas que se nisso uma virtude misteriosa ou miraculosa, era o que meu podia admitir. Nas vidas piedosas dos cristãos, eu nada não fosse encontrado na vida de homens pertencentes a outras crenças. As suas vidas não eram as únicas que me haviam dado exemplos de reforma idênticos aos que me haviam sido citados, provindos de cristãos. Filosoficamente, nada achava de extraordinário nos princípios cristãos. Do ponto de vista do sacrifício, parecia-me que os hindus ultrapassavam de muito os cristãos. Era-me impossível considerar o cristianismo uma religião perfeita ou a maior de todas as religiões135. Eu comunicava esses escrúpulos de espírito aos meus amigos cristãos sempre que tinha ocasião de fazê-lo, mas as suas respostas não chegavam a satisfazer-me. Se, por outro lado, não podia admitir que o cristianismo fosse

uma religião perfeita ou a maior de todas, não estava também convencido, naquela época, de que se passava coisa diferente com o hinduísmo. Os defeitos deste último apareciam-me de maneira demasiado evidente e chocante. Se lhe era possível aceitar a existência dos intocáveis, tinha que se ver nesse fato a gangrena de um membro ou um tumor maligno. Não chegava a compreender a razão de ser de uma tal multidão de seitas e de castas. E que se pretendia significar quando se falava do Veda como da Palavra inspirada de Deus? Por que Deus não ter ia inspirado igualmente a Bíblia e o Corão? Se meus amigos cristãos faziam o impossível para converter-me à sua fé, meus amigos muçulmanos não se esforçavam menos. Abdulla Sheth não cessara de instigar-me a estudar o islame e, bem entendido, tinha sempre alguma coisa a dizer sobre as suas excelências. Transmiti todos esses problemas, por carta, a Râychandbhâi, ao mesmo tempo que escrevia a outras autoridades religiosas, nas Índias, e recebia as suas respostas. A carta de Râychandbhâi tranquilizou-me um pouco. Ele recomendava-me paciência e um estudo mais aprofundado do hinduísmo. Uma das suas frases dizia em síntese: “Quando me entrego a um exame desapaixonado do assunto, convenço-me de que não há religião que apresente a sutileza e a profundeza do pensamento, a visão da alma, ou a caridade, como o hinduísmo”. Comprei a tradução do Corão, de Sale136 e pus-me a ler. Adquiri também outros livros sobre o islame. Escrevi a meus amigos cristãos da Inglaterra. Um deles apresentou-me, por carta, a Edward Maitland, com quem mantive correspondência contínua. Enviou-me o Caminho Perfeito — livro que escrevera em colaboração com Anna Kingsford. A obra consistia num repúdio da fé cristã corrente. Enviou-me também outro livro: A Nova Interpretação da Bíblia. Tanto um como o outro me agradaram. Pareceram-me ter o ar de corroborar o hinduísmo. O Reino de Deus Está em Vós, de Tolstoi, entusiasmou-me. Dele guardei uma impressão inolvidável137. Diante da independência de pensamento, a profundeza da visão moral e a preocupação de verdade desse livro, todos os que Mr. Coates me tinha dado tornaram-se pálidos, insignificantes.

Desse modo, os meus estudos conduziram-me a uma direção que os meus amigos cristãos não haviam previsto. Entretinha correspondência, assaz longa, com Edward Maitland, e as minhas trocas de cartas com Râychandbhâi continuaram até à sua morte. Li alguns livros que cie me enviou, entre outros: Panchikaran, Manirathanamâlâ, Mumukshu Prakaran (Yogavasishtha), Shaddarshana Samuchchay (de Haribhadra Souri) etc.138. Se tomei caminho diferente daquele que os meus amigos cristãos me indicavam, nem por isso deixei de conservar-lhes um reconhecimento eterno pela busca religiosa que despertaram em mim. Ser-me-á para sempre cara a lembrança dos meus contatos com eles. Os anos seguintes, contudo, deviam reservar-me outras relações, igualmente belas e sagradas, e mais numerosas ainda. 16. O HOMEM PÕE, DEUS DISPÕE TERMINADO o processo, nenhuma razão havia para que eu prolongasse a minha permanência em Pretória. Voltei, pois, a Durban e preparei-me para regressar à pátria. Mas Abdulla Sheth não era homem para deixar-me partir sem a cerimônia de adeus. Deu, por conseguinte, em minha honra, uma recepção em Sydenham. Devíamos, em princípio, passar todo o dia naquele lugar. Enquanto folheava os jornais que lá encontrara, topei, por acaso, com um tópico, dissimulado num canto de página, que tinha por título: “O direito de voto dos indianos”. Ali se fazia alusão ao projeto de lei que acabava de ser apresentado à Câmara Legislativa e que visava a privar os indianos do direito de eleger representantes à Assembleia Legislativa de Natal. Eu ignorava tudo desse projeto de lei, como o ignoravam os outros convidados presentes. Falei a esse respeito com Abdulla Sheth. — Que quer que compreendamos desses assuntos? — disse-me ele. — Somos capazes de compreender somente o que interessa ao nosso comércio. Como sabe, todas as empresas que montamos no Estado Livre de Orange foram dissolvidas. Fizemos démarches, inquietamo-nos em vão. Somos iletrados e é como se estivéssemos inseguros. Em geral, só compramos jornais para ver como estão os

preços etc. Que quer que saibamos de legislação? Os juristas europeus são nossos olhos e nossas orelhas. — Mas — respondi-lhe, — não lhes faltam jovens indianos nascidos e educados aqui. Eles não os ajudam? — Eles! — exclamou Abdulla Sheth com desespero. — Eles incomodam-se tanto em dar um passo em nossa direção quanto nós, para dizer-lhe a verdade, em fazer-lhes um sinal de reconhecimento. Eles são cristãos, isto é, controlados pelos homens de igreja, brancos; que, por sua vez, são pessoas do governo. Estas palavras abriram-me os olhos. Senti que cabia a nós reivindicar como nossa essa categoria de seres. Era isso que o cristianismo significava? Essas pessoas haviam deixado de ser indianas por se haverem tornado cristãs? Mas eu estava prestes a regressar à pátria e hesitava em exprimir o meu pensamento sobre o assunto. Contentei-me em dizer a Abdulla Sheth: — Esse projeto de lei, se for adotado, nos tornará a vida extremamente difícil. É o primeiro prego na tampa do caixão. Atinge as próprias raízes da nossa dignidade pessoal. — É possível — tornou Abdulla Sheth. — Vou contar-lhe a origem dessa questão do direito de voto. Nos ignorávamos tudo. Foi Mr. Escombe, um de nossos melhores advogados, que o senhor conhece, quem nos pôs a ideia na cabeça. E veja como. É um famoso lutador, e como o engenheiro do Porto e eles não se dão particularmente bem, teve medo que o engenheiro o vencesse nas eleições. Revelou-nos então o nosso direito, pedimos nossa inclusão nas listas de eleitores e votamos nele. Vê daí que esse direito de voto não tem para nós o valor que lhe está emprestando. Mas nós compreendemo-lo perfeitamente. Diga-nos, pois, qual é a sua opinião a esse respeito? Os outros convidados ouviam atentamente a conversa. Um deles declarou: — Quer que lhe diga o que devia fazer? Cancelar a sua partida nesse navio, ficar mais um mês e nós encetaremos a luta sob a sua direção. Todos os outros se imiscuíram: — Sim, é isso, é isso! Impeça Gandhibhâi de partir, Abdulla

Sheth! O Sheth era sagaz: — Não me compete retê-lo neste momento. Ou melhor: vocês têm tantos direitos quanto eu nesse terreno. Mas estão com a razão. Vamos persuadi-lo todos, em coro, a ficar. Não esqueçam, porém, que ele é advogado. Que se fará sobre seus honorários? A alusão a meus honorários magoou-me e eu intervi. — Não se trata de honorários, Abdulla Sheth. O serviço da comunidade não exige honorários. Se eu ficar, será somente como servidor da comunidade. Depois, como sabe, não tenho a honra de conhecer todos os seus amigos aqui presentes. Mas se acha que eles estão dispostos a contribuir com a sua parte na tarefa, concordo em prolongar a minha permanência por mais um mês. Há, porém, uma dificuldade. Embora não tenha necessidade de pagar-me, uma tarefa como a que pretendemos realizar não pode ser levada a bom termo sem um mínimo de recursos financeiros no começo. Por que é possível que tenhamos de expedir telegramas, imprimir brochuras, empreender um mínimo de viagens, consultar os juristas daqui; e, como ignoro tudo acerca da legislação deste país, posso ter necessidade de livros de direito para estudo. Tudo isso exige dinheiro. E é evidente que um só homem não basta para a tarefa. É preciso que um grande número de outros se ofereçam para ajudá-lo. Ao que o coro de vozes respondeu: — Allah é grande e misericordioso. O dinheiro entrará. Homens, tê-los-á quantos necessitar. Concorde em ficar que tudo o mais irá bem. Desse modo, a recepção de adeus transformou-se, definitivamente, no comitê de trabalho. Propus que se terminasse, rapidamente, o jantar e o resto, e que voltássemos para as nossas casas. Esboçava na cabeça as grandes linhas de um plano de batalha. Anotei os nomes dos que figuravam nas listas eleitorais e decidi prolongar a minha permanência por mais um mês. Eis como Deus lançou os alicerces da vida que eu deveria levar na África do Sul e semeou o grão do qual deveria nascer a luta pela dignidade nacional. 17. INSTALO-ME EM NATAL

O SHETH Hâji Mohammed Hâji Dâdâ passava pelo chefe mais eminente da comunidade indiana de Natal, em 1893. Financeiramente, o Sheth Abdulla Hâji Adam ocupava o primeiro plano, mas os outros e ele mesmo davam sempre o primeiro lugar ao Sheth Hâji Mohammed nas manifestações públicas. Foi, pois, sob a sua presidência que se realizou, na residência de Abdulla Sheth, uma reunião onde se decidiu organizar a oposição ao projeto de lei sobre o direito de voto. Fizeram-se listas de voluntários. Foram enviados convites para assistir à reunião aos indianos originários de Natal, quer dizer, essencialmente aos jovens indianos convertidos ao cristianismo. Mr. Paul, o intérprete do tribunal de Durban, e Mr. Subhân Godfrey, diretor de uma escola da Missão, estavam presentes; e a ele se deveu que se pudesse contar entre a assistência um número honesto de jovens cristãos, os quais se alistaram todos como voluntários. Bem entendido, muitos dos comerciantes da cidade se inscreveram, entre outros, notadamente, os Sheths Daud Mohammed, Mohammed Kâsim Kamruddin, Âdamji Miyahan, A. Kolandavellu Pillai, C. Lachhiam, Rangasâmi Padiâchi e Âmad Jiva139. Lá estava também Prâsi Rustomji. Os empregados eram representados pelos Srs. Mânekji, Joshi, Narsinhrâm e ainda outros, de Dâdâ Abdulla & Cia. e de diversas grandes casas. Todos estavam agradavelmente surpreendidos por encontrar-se integrados numa tarefa comum. Esse apelo à sua colaboração era para eles uma experiência nova. Diante do desastre em que submergira a comunidade, todas as distinções entre os altamente colocados e os humildes, pequenos e grandes, patrões e empregados, hindus, muçulmanos, parses, cristãos, gujrates, madrasis, sindhis etc., tinham sido esquecidas. Todos eram, igualmente, filhos e servidores da mãepátria. O projeto de lei já fora posto, ou devia sê-lo, em segunda votação. Os discursos pronunciados nessa ocasião insistiam no fato de que os indianos não tinham apresentado nenhuma oposição aos rigores do projeto, bastando esta circunstância em si para provar a sua inaptidão ao direito de voto. Expus a situação em nossa reunião. O nosso primeiro cuidado foi expedir um telegrama ao presidente da Assembleia, a fim de pedir-lhe

que adiasse o prosseguimento dos debates. Um telegrama análogo seguiu endereçado ao Primeiro-Ministro, Sir John Robinson, e um outro, ainda, para Mr. Escombe, na sua qualidade de amigo de Dâdâ Abdulla. O presidente da Assembleia apressou-se a responder que a discussão do projeto seria adiada por dois dias. Esta notícia encheunos de alegria. Foi redigido o texto da petição que devíamos apresentar à Assembleia Legislativa. Era preciso compor três exemplares, mais um quarto para fins de divulgação na imprensa. Tratava-se, também, de reunir o maior número possível de assinaturas, e todo esse trabalho devia ser feito numa única noite. Os voluntários que tinham algum conhecimento do inglês, e alguns outros, trabalharam a noite toda. Mr. Arthur, homem idoso, conhecido pela sua bela grafia, copiou o exemplar principal da petição. Outros escreveram o resto dos exemplares, que lhes era ditado por alguém. Desse modo, cinco cópias foram terminadas ao mesmo tempo. Comerciantes voluntários lançaram-se, em seus veículos particulares ou em carros alugados à sua custa, à procura de signatários. Um mínimo de tempo bastou-nos para concluir esse trabalho e mandamos a petição. Os jornais publicaram-na, acompanhada de comentários favoráveis. Causou certa impressão na Assembleia. Foi discutida em sessão. Os partidários do projeto defenderam-se, muito fracamente e sem réplicas, dos argumentos apresentados na petição. Não obstante, o projeto de lei foi aprovado. Nós não tínhamos alimentado ilusões a esse respeito; mas o movimento infundira vida nova à coletividade e os seus membros adquiriram a convicção de que constituíam um todo, uno e indivisível, e que era seu dever continuar a luta, tanto por seus direitos políticos como por seus direitos de comerciantes. O Secretário de Estado, nas Colônias, era então Lorde Ripon. Decidimos enviar-lhe uma petição-monstro. Não era negócio que se pudesse levar a cabo, num dia. Organizamos listas de voluntários e cada um desincumbiu-se, fielmente, da tarefa que lhe fora imposta. Tive muito trabalho para estabelecer o texto desta petição. Li todos os documentos que pude encontrar sobre o assunto. A minha argumentação condensava-se em torno de um princípio e de uma utilidade. Argumentava, para reclamar o direito de voto para os

indianos de Natal, com o fato de que o tínhamos nas Índias. Insistia sobre a utilidade de não o abolir, sendo extremamente reduzida a população indiana capaz de exercê-lo. Em quinze dias reunimos dez mil assinaturas. Recolher essa quantidade de assinaturas, em toda a província, não foi tarefa fácil, sobretudo se considerarmos que os homens que dela se encarregaram eram inteiramente estranhos a esse gênero de trabalho. Foi preciso escolher os voluntários mais competentes, porque se havia decidido que só seriam colhidas as assinaturas dos que compreendessem o significado exato da petição. As cidades estavam espalhadas, muito distantes umas das outras. O trabalho não poderia ser executado, prontamente, se um certo número de pessoas não se entregasse a ele de todo o coração. E foi o que aconteceu. Todos se sentiram entusiasmados com a missão de que foram incumbidos. Entretanto, ao escrever estas linhas, revejo nitidamente as feições do Sheth Daud Mohammed, de Rustomji, de Adamji Miyâkhân e de Âmad Jiva. Foram eles que trouxeram a maior quantidade de assinaturas. Daud Sheth viajou dias inteiros no seu carro. E todo esse trabalho foi executado com um puro sentimento de amor, sem que um só dentre eles reclamasse o dinheiro que havia desembolsado. A casa de Dâdâ Abdulla transformou-se, simultaneamente, em caravançará e em escritório do movimento. Um certo número de amigos instruídos, que lhe ajudavam, e muitos outros, lá faziam as suas refeições. Desse modo, todos os benfeitores da causa fizeram despesas consideráveis. A petição, finalmente, seguiu. Um milheiro de exemplares impressos tinha sido posto em circulação e distribuído. Pela primeira vez, o público indiano adquiria consciência das condições de vida que lhe haviam sido impostas em Natal. Remeti o texto da petição a todos os jornais e a todos os publicistas que conhecia. The Times of Índia, num artigo de fundo sobre o assunto, tomou vigorosamente a defesa das reivindicações indianas. A petição tocou as organizações e os publicistas de diferentes partidos políticos, na Inglaterra. O Times de Londres sustentou as nossas reivindicações e começou a nascer-nos a esperança de ver o projeto de lei interrompido em seu curso. Tornara-se impossível deixar Natal. Os meus amigos indianos

assediavam-me por todos os lados e suplicavam-me, até à importunação, que me instalasse para sempre junto deles. Comuniquei-lhes os problemas que tal resolução criava para mim. Estava firmemente decidido a não viver à custa dos fundos da comunidade. Sentia que me era necessário instalar-me de modo independente, em minha casa. Achava que era preciso, para isso, uma casa de bela aparência situada numa boa vizinhança. Impunhase-me também a ideia de que o único meio que tinha para dar mais crédito à comunidade seria o de levar um trem de vida digno de um advogado. E parecia-me impossível sustentar esse trem de vida com menos de trezentas libras por ano. Decidi, pois, que não podia ficar senão com a garantia de que os membros da comunidade utilizassem os meus serviços jurídicos até atingir aquele número e comuniqueilhes a minha decisão. — Mas — disseram-me eles — nós gostaríamos que recebesse essa importância em troca da obra empreendida. Não nos será difícil reunir o dinheiro. Isto, bem entendido, sem prejuízo dos honorários que nos pedir pelos nossos negócios privados, de que tratará. — Não, não poderia receber dinheiro pela obra — respondi-lhes. — A obra não exige, de minha parte, um exercício considerável de minhas aptidões de advogado. O essencial de minha tarefa é pô-los todos a trabalhar. Como querem que eu seja pago por isso? Sem contar que terei, frequentemente, de fazer apelos de fundos em benefício do movimento, e que, se eu tivesse que contar com vocês para viver, me encontraria em péssima posição para reclamar-lhes grandes recursos financeiros; é o mesmo que dizer que o movimento cairá, definitivamente, em ponto morto. Enfim, gostaria que a comunidade despendesse mais de trezentas libras por ano para alimentar o movimento. — Mas nós já o conhecemos há bastante tempo e temos a certeza de que não nos pedirá nada de que não tenha necessidade. Por outro lado, se é nosso desejo que permaneça conosco, não é normal que seja indenizado por nós? — Vocês falam-me neste momento a linguagem do coração e sob a influência do entusiasmo da hora. Mas quem nos pode assegurar o seu valor eterno? Sou vosso amigo e servidor; nessa qualidade terei que dizer duras verdades, quando se apresentarem as

ocasiões. Deus somente sabe se, depois, ainda me dispensarão o mesmo afeto. Mas o fato é que tenho o dever de recusar qualquer salário em troca da obra. Basta-me que concordem em confiar-me o cuidado de tratar dos vossos negócios no plano jurídico. Mesmo isto, não será fácil para vocês, porque não sou um advogado branco. Como posso ter a certeza de que os tribunais me ouvirão? Que certeza tenho de que serei um bom advogado? Assim, pois, mesmo fazendo-me adiantamentos de honorários, correrão alguns riscos. E devo considerar o fato de que me concederão esses adiantamentos como recompensa do que farei pela obra. O resultado dessa discussão foi que uma vintena de comerciantes me fez adiantamentos de honorários equivalentes a um ano de exercício da minha profissão ao seu serviço. Ademais, Dâdâ Abdulla comprou os móveis de que eu tinha necessidade, em lugar da gratificação que tivera a intenção de dar-me por ocasião da minha partida. Estas são as circunstâncias da minha instalação em Natal. 18. A PORTAGEM UM tribunal tem por símbolo a balança, mantida em equilíbrio pela mão de uma personagem feminina, imparcial e cega, mas sagaz. O destino quis que essa mulher fosse cega, de maneira que seu julgamento pesasse não sobre a aparência das criaturas, mas sobre o seu valor intrínseco. O que não impede que a “Sociedade Jurídica de Natal” tudo faça para convencer a Corte Suprema a agir em contradição com esse princípio e a renegar o seu símbolo. Requeri admissão como advogado à Corte Suprema. A Corte de Apelação de Bombaim havia-me concedido um certificado. Quanto ao certificado inglês, tive que depositá-lo na Corte de Apelação de Bombaim, na ocasião em que me inscrevi. Devia ainda juntar ao meu requerimento dois atestados de boa conduta e costumes; movido pela ideia de que teriam mais peso se fossem assinados por europeus, obtive-os de dois negociantes muito conhecidos, aos quais o Sheth Abdulla me havia apresentado. Era um membro do foro quem deveria encarregar-se da apresentação dos requerimentos; comumente, o procurador-geral tomava a iniciativa de fazê-lo, sem exigir honorários.

Mr. Escombe que, como vimos, era consultor-jurídico de Dâdâ Abdulla & Cia., era o procurador-geral. Fui vê-lo e consentiu, prontamente, em incumbir-se da missão. A Sociedade Jurídica reservou-me a surpresa de mandar-me transmitir por um meirinho a sua oposição ao meu pedido. Uma das objeções invocadas era a de que o original do meu diploma inglês não havia sido juntado ao dossiê. Mas a objeção principal consistia em que, na época em que se redigira o regulamento de admissão de advogados, não se havia sequer previsto que um homem de cor apresentasse a sua candidatura. Natal devia o seu desenvolvimento ao zelo industrial dos europeus e era, pois, necessário que o elemento europeu conservasse a predominância no foro. Se fossem admitidas pessoas de cor, talvez viessem elas, progressivamente, a submergir os europeus e o dique que protegia estes últimos acabaria por espatifar-se. A Sociedade Jurídica contratara os serviços de um jurista de nomeada para defender o seu ponto de vista. Como tivesse relações também com a firma do Sheth Abdulla, mandou-me dizer, por intermédio deste, que fosse vê-lo. Falou-me com a maior franqueza e interrogou-me acerca dos meus antecedentes, que não lhe escondi. — Nada vejo que se possa dizer contra o Senhor — disse ele. — Eu receava, porém, estar a tratar com um aventureiro originário de alguma colônia. E o fato de não ter juntado o original do seu diploma reforçava a suspeita. Já tivemos casos de pessoas que se serviam de diplomas pertencentes a outros. Os certificados de boa conduta e costumes que lhe foram dados por esses europeus não têm nenhum valor a meus olhos. Que sabem essas pessoas a seu respeito? Até que ponto elas, realmente, o conhecem? — Mas — redargui eu — todos aqui me são estranhos. O próprio Sheth Abdulla veio a conhecer-me com a convivência. — E, no entanto, o Senhor afirma que ele é do mesmo país? Se o seu pai foi Primeiro-Ministro desse país, o Sheth Abdulla deve, forçosamente, conhecer a sua família. Se conseguir que ele testemunhe em seu favor, não apresentarei, da minha parte, qualquer outra objeção; sentir-me-ei feliz por fazer saber à Sociedade Jurídica que me é impossível opor-me à sua candidatura. Essa espécie de conversação exasperou-me, porém contive-me.

“Se”, pensava comigo, “tivesse juntado um atestado, de Dâdâ Abdulla, eles o teriam recusado e exigiriam atestados assinados por europeus. E que relação pode existir entre a minha admissão ao foro e o meu nascimento e meus antecedentes? E que importava a minha origem, mesmo que tivesse sido humilde e contivesse algo de repreensível?” Mas conservei o sangue-frio e respondi calmamente: — Se bem que não reconheça à Sociedade Jurídica o direito de exigir todas essas minúcias, estou pronto a fornecer o certificado que o Senhor deseja. O Sheth Abdulla deu-me o atestado, que submeti devidamente ao representante da Sociedade Jurídica. Ele declarou-se satisfeito, mas a Sociedade absteve-se de fazer o mesmo. Opôs-se à minha candidatura diante da Corte Suprema, a qual se recusou a julgá-la procedente, sem mesmo pedir a Mr. Escombe que a refutasse, O presidente da Corte declarou, em substância: — A objeção de que o candidato não anexou o original do seu diploma não tem fundamento. Se ele fez uma declaração falsa, sob juramento, nada impede que seja processado e que o seu nome seja cancelado dos registros do foro, com a condição de que se prove a sua culpabilidade. A lei não faz distinção entre brancos e pessoas de cor. A Corte não tem, por conseguinte, nenhum direito de impedir Mr. Gandhi de se inscrever no foro. Aceitamos a sua inscrição. Pode prestar, imediatamente, juramento de praxe, Mr. Gandhi. Levantei-me e prestei o juramento diante do escrivão. Preenchida a formalidade, o presidente, dirigindo-se a mim, prosseguiu: — É preciso, agora, que retire o seu turbante, Mr. Gandhi. Deve submeter-se ao regulamento da Corte sobre a indumentária dos advogados em exercício. Compreendi que não podia exigir mais. O turbante, que eu havia insistido em conservar no Tribunal do Distrito, retirei-o submissamente em face da ordem da Corte Suprema. Não que eu não pudesse justificar a recusa, se houvesse recusado, mas preferi preservar as minhas forças para combates maiores. Por que usar a minha capacidade de lutador, teimando nessa história do turbante? A minha habilidade merecia mais do que isso. O Sheth Abdulla e outros amigos não ficaram contentes com a minha submissão (ou será preciso dizer, fraqueza?). Acharam que eu

não deveria renunciar ao direito de usar o turbante no exercício da minha profissão junto à Corte. Tentei argumentar, convencê-los da verdade desta máxima: “Em Roma, comporta-te como romano”. — Teria razão em recusar-me a obedecer — expliquei-lhes — se nas Índias um funcionário ou um juiz inglês me ordenasse que tirasse o turbante; mas, desde que vou exercer uma profissão junto à Corte, teria sido de mau aviso, da minha parte, menosprezar um costume em vigor na província de Natal.” Graças a esse argumento e a outros semelhantes, consegui tranquilizar um tanto os meus amigos; mas não creio tê-los convencido inteiramente, na ocasião, do valor desse princípio que estabelece que circunstâncias diferentes impõem, por isso mesmo, diferentes maneiras de ver. E, contudo, durante toda a minha vida, o culto obstinado da verdade ensinou-me a avaliar toda a beleza do compromisso. Os anos posteriores mostraram-me que esse estado de espírito era um fator essencial no Satyâgraha. Muitas vezes isto me valeu perigo de vida e o descontentamento de meus amigos. Mas a verdade tem a dureza do diamante e a delicadeza da flor em botão. A oposição da Sociedade Jurídica proporcionou-me nova publicidade na África do Sul. A maior parte dos jornais condenou os meus opositores e tratou-os de invejosos. Essa publicidade, até certo ponto, simplificou a minha tarefa. 19. O CONGRESSO DOS INDIANOS DE NATAL A EXERCÍCIO da minha profissão de advogado foi e continua a ser para mim uma ocupação secundária. Necessariamente, para justificar a minha permanência em Natal, tive que consagrar-me essencialmente ao serviço da comunidade. O envio da petição sobre o projeto de lei, que previa a anulação do direito de voto, não podia bastar por si mesmo. Se se quisesse impressionar o Secretário de Estado, nas Colônias, era essencial manter a agitação. Parecia bom criar, para esse fim, um organismo permanente. Consultei Sheth Abdulla e outros amigos, e decidimos de comum acordo a criação de uma organização pública de caráter permanente. A procura do nome para o novo organismo deixou-me perplexo e atormentou-me bastante. Era preciso que não se confundisse com

nenhum partido, fosse qual fosse. O nome de “Congresso”, eu sabiao, não estava em odor de santidade aos olhos dos ingleses conservadores; e contudo, o Congresso exprimia, em sua essência, a vida das Índias. Eu quisera torná-lo popular em Natal. Não parecia pusilanimidade hesitar em adotar esse nome? E explicando, claramente, as minhas razões, aconselhei que a nossa organização se chamasse Congresso Indiano de Natal. O que se tornou, efetivamente, uma realidade no dia 22 de maio. A enorme sala de Dâdâ Abdulla estava superlotada naquele dia. O Congresso recebeu a aprovação unânime e entusiástica da assistência. A sua constituição foi tão simples quanto pesada fora a cotização. Devia-se pagar cinco shillings por mês para ter direito de ser membro. Persuadiu-se a classe média a contribuir com o máximo das suas possibilidades. Abdulla Sheth foi o primeiro a assinar a lista, com duas libras por mês, dois outros amigos inscreveram-se com a mesma quantia. Eu achei que, da minha parte, não devia ficar atrás e assinei uma libra por mês, o que, para o meu bolso, era uma importância significativa; mas pensei que estaria em minhas posses, se eu quisesse, pelo menos conciliar os dois extremos. E Deus veio em meu auxílio... Tivemos assim um número ainda considerável de contribuintes de 3 shillings. Ao que foram acrescentados donativos, que aceitamos com gratidão. A experiência provou que nenhuma cotização entrava com um simples apelo. Era impossível ir procurar, muito frequentemente, os membros do Congresso que moravam fora de Durban. O entusiasmo tinha, segundo os momentos, os seus altos e baixos. Até entre os partidários de Durban havia os que era preciso importunar, terrivelmente, antes que eles se decidissem a pagar a sua cota. Eu dirigia a Secretaria e era a mim que incumbia a tarefa de recolher as contribuições. E acabamos por chegar ao ponto em que tive que obrigar o meu empregado a passar o dia inteiro à procura dos contribuintes. Ele esfalfou-se e eu senti que, para remediar esse estado de coisas, era necessário adotar um sistema de contribuição anual e não mensal, e ainda: pagamento exclusivamente adiantado. Convoquei, pois, uma reunião do Congresso. A minha ideia de uma cotização anual, em vez de mensal, e no mínimo de três libras, recebeu de todos um acolhimento favorável. E o trabalho ficou

consideravelmente simplificado. Aprendera, desde o começo, a não contar com empréstimo de dinheiro para realizar uma obra de interesse público. Podia-se confiar nas pessoas e em suas promessas em todos os domínios, salvo em matéria de dinheiro. Jamais encontrei pessoas apressadas em pagar as quantias que se tinham comprometido a subscrever; e os indianos de Natal não eram exceção. Como, em consequência, nada empreendêssemos sem que os fundos necessários estivessem em caixa, o Congresso indiano de Natal nunca teve dívidas. Os meus camaradas de trabalho punham um entusiasmo extraordinário no recrutamento de novos membros. Essa tarefa apaixonava-os e trazia-lhes, ao mesmo tempo, uma experiência preciosa. As pessoas, em grande número, respondiam a esses contatos, entregando imediatamente a sua cota com a maior boa vontade. Nas longínquas cidades do interior, o trabalho era relativamente difícil. As pessoas não compreendiam a natureza da nossa obra. E, contudo, convidavam-nos a ir até às localidades perdidas, onde encontrávamos sempre um grande comerciante que nos oferecia a sua hospitalidade. Certa vez, durante uma dessas viagens, achamo-nos numa posição muito delicada. Contávamos que o nosso hospedeiro subscrevesse seis libras; mas ele recusou-se a dar mais de três. Se tivéssemos aceitado essa quantia, outros teriam seguido o seu exemplo, e toda a nossa coleta ficaria prejudicada. Era noite e já muito tarde; todos nós morríamos de fome. Mas como jantar sem ter antes conseguido a soma que estávamos decididos a obter?... Toda a persuasão resultava inútil. O nosso hospedeiro parecia insensível a tudo. Os outros negociantes da cidade argumentavam com ele e não nos mexemos durante toda a noite, decididos de parte a parte a não ceder um passo. A maior parte dos meus colaboradores estava cheia de raiva, mas continha-se. Finalmente, quando já surgia a aurora, o nosso hospedeiro cedeu, pagou as seis libras e ofereceu-nos um festim. Esta aventura passou-se em Tongaat; mas as repercussões do incidente fizeram-se sentir até Stanger, na costa setentrional, e até Charlestown, no interior. O nosso trabalho de coleta recrudesceu. Mas não se tratava, somente, de recolher fundos. De fato, havia muito tempo que eu aprendera esta regra: que não se devia nunca

ter, em disponibilidade, mais dinheiro do que era necessário. Tínhamos o hábito de reunir-nos uma vez por mês, ou mesmo por semana, quando havia necessidade. Lia-se a ata da sessão precedente, depois se discutia toda a espécie de questões. As pessoas eram noviças na arte dos debates públicos e de eloquência breve e precisa. Todos hesitavam em levantar-se para tomar a palavra. Eu expliquei-lhe as regras comuns a esse gênero de reunião e eles as respeitaram. Verificaram que assim se instruíam e muitos dentre eles, que nunca haviam ousado expressar-se diante de um auditório, não tardaram a acostumar-se a pensar e a falar em público, quando se tratava de assuntos de interesse comum. Sabendo que, numa organização dessa natureza, as pequenas despesas absorvem, por vezes, com o tempo, somas enormes, eu decidira, desde o início, nem mesmo fazer imprimir talões de recibos. Tinha, no meu escritório, uma máquina de duplicar, que me fornecia cópias dos recibos e dos relatórios. Só mandei imprimir essa espécie de material quando a caixa do Congresso ficou abundantemente provida, e o número de membros e o trabalho tinham aumentado. Não há organização em que tais economias não sejam essenciais; e, contudo, sei que, na prática, se está longe de fazê-las. Foi por que pensei que seria bom entrar nos menores detalhes desde o começo de uma organização, a princípio reduzida, mas que iria desenvolverse. As pessoas nunca pediam recibo das quantias que pagavam; mas nós insistíamos sempre em entregar-lhes um. O menor níquel figurava, assim, nas contas, e posso dizer que os nossos registros de contabilidade do ano de 1894 figuram ainda, agora, tais como os transmitimos, nos arquivos do Congresso Indiano de Natal. A boa manutenção dos livros de contabilidade é uma condição sine qua non para qualquer organização. Na falta do que, a organização perde toda a reputação. Sem contabilidade conveniente, não se poderá conservar a pureza primitiva da verdade. Outro aspecto da atividade do Congresso: ele pôs-se ao serviço dos indianos originários da colônia e já instruídos. Sob os seus auspícios, fundou-se a Associação Cultural dos indianos Originários da Colônia. A Associação era, sobretudo, composta de jovens instruídos. Os seus membros pagavam uma cotização “pró-forma”. A

Associação servia-lhes para exporem as suas necessidades, as suas queixas, dar-lhes o gosto de pensar, pô-los em relação com os negociantes indianos, bem como proporcionar-lhes a possibilidade de serem úteis à comunidade. Era uma espécie de sociedade oratória. Os seus membros reuniam-se regularmente e tomavam a palavra ou liam uma exposição sobre este ou aquele assunto. Abriu-se, também, uma pequena biblioteca, ligada à Associação. Terceiro aspecto do Congresso: a propaganda. Ela consistia no esforço de tomar conhecida aos ingleses da África do Sul e da Inglaterra e os indianos do nosso país a verdade sobre a situação em Natal. Com essa ideia, redigi duas brochuras. A primeira intitulava-se: Apelo a Todos os Ingleses da África do Sul; continha uma denúncia, sustentada por provas, das condições gerais de vida dos indianos, em Natal. A outra tinha por título: o Direito de Voto dos Indianos — Apelo à opinião. Enfeixava um breve resumo histórico da questão em Natal, apoiado sobre fatos e cifras. A preparação dessas brochuras custarame muitas penas e estudos, e o resultado esteve na proporção exata do mal que me infligi. Esses dois pequenos livros tiveram uma divulgação considerável. O resultado de toda essa atividade foi o de conquistar para os indianos numerosas simpatias na África do Sul e o de obter o apoio eficaz de todos os partidos das Índias. Graças a ela, também, os indianos da África do Sul viram abrir-se um horizonte bem definido de ação, que os pôs em face das suas responsabilidades. 20. BÂLÂSUNDARAM NÃO há exemplo de um desejo do coração que, sendo puro em sua impaciência, não fosse satisfeito. A minha própria experiência permitiu-me, frequentemente, verificar essa regra. Servir os pobres, eis o que desejou o meu coração e, por esta razão, sempre me encontrei misturado aos pobres e em condição de identificar-me com eles. O Congresso Indiano de Natal contava entre os seus partidários com os indianos originários da colônia e a classe dos empregados; os assalariados não qualificados (trabalhadores sob contrato) estavam ainda fora do seu âmbito. O Congresso não era sempre o seu

Congresso. Não podiam pertencer a ele, contribuindo e tornando-se assim membros da organização. O Congresso só podia assegurar a sua adesão pondo-se a serviço deles. A oportunidade apresentou-se num momento em que nem o Congresso nem eu estávamos verdadeiramente preparados. A minha experiência nesse domínio não remontava a mais de três ou quatro meses e o Congresso, por sua vez, achava-se nos seus primeiros balbucios, quando um tâmul esfarrapado, com o chapéu na mão, dois dentes da frente quebrados e a boca em sangue, se apresentou diante de mim, trêmulo e chorando. O patrão tinha-o agredido brutalmente. O meu empregado, que falava o tâmul, deu-me todas as informações sobre aquele homem. Bâlâsundaram — este era o nome do meu visitante — trabalhava sob contrato por conta de um europeu muito conhecido, residente em Durban. O patrão, furioso contra ele, tinha perdido o sangue-frio e espancara-o brutalmente, partindo-lhe dois dentes. Enviei Bâlâsundaram a um médico. Naquele tempo só havia médicos brancos. Eu queria um atestado sobre a natureza dos ferimentos que Bâlâsundaram recebera. Obtive o atestado em questão e conduzi o ferido perante um magistrado, a quem submeti o seu depoimento sob juramento. A leitura desse documento encheu o magistrado de indignação e fez citar o empregador. Eu estava longe de desejar que o empregador fosse punido. Que_ ria, somente, libertar Bâlâsundaram do contrato com ele. Estudei a lei que regulava o trabalho sob contrato. Todo o trabalhador comum que abandonasse o seu lugar sem aviso prévio, era passível de processo perante o tribunal civil, por parte do seu patrão. Quanto aos trabalhadores contratados, o caso era inteiramente diverso. Nas mesmas circunstâncias, eram passíveis de processo perante os tribunais criminais e de prisão, se fossem condenados. Eis por que Sir William Hunter declarava que o sistema de trabalho contratado não valia mais do que a escravidão. Como o servo ou o escravo, o trabalhador contratado era coisa do patrão. Só dois meios existiam para subtrair Bâlâsundaram ao domínio do patrão: obter do Protetor dos Trabalhadores sob Contrato que anulasse o presente contrato ou que fizesse Bâlâsundaram passar para a dependência de outro patrão; ou, então, obter diretamente do patrão atual que dispensasse o homem das suas obrigações. Fui,

portanto, ver o europeu e disse-lhe: — Não tenho a intenção de processá-lo e de obter uma sanção contra o Senhor. Tem consciência, suponho, da violência e dos maus tratos que infligiu a esse homem. Sustarei qualquer ação se consentir na transferência do contrato. O meu interlocutor apressou-se a aceitar a proposta. Em seguida fui falar ao Protetor. Também ele aceitou que eu assumisse o encargo de encontrar outro empregador. Parti, pois, à procura de um empregador. Era preciso que fosse um europeu, porque nenhum indiano podia utilizar a mão de obra sob contrato. Eu, então, conhecia poucos europeus. Achei um que consentiu, muito amavelmente, em ficar com Bâlâsundaram. Demonstrei-lhe a minha viva gratidão. O magistrado condenou o empregador de Bâlâsundaram e registrou a sua promessa de transferir o contrato. O caso de Bâlâsundaram teve grande repercussão entre todos os trabalhadores sob contrato e não tardei a ser considerado seu amigo Fiquei encantado -com essa ligação entre mim e eles. Breve acorreram em grupos, e no meu escritório realizavam-se desfiles contínuos, o que me permitiu, sobretudo, conhecer os seus sofrimentos e as suas alegrias Os ecos do caso chegaram mesmo até Madras. Os trabalhadores oriundos de diferentes regiões dessa província e que deviam partir para Natal, sob contrato, ouviram falar do assunto pelos seus irmãos já instalados na África do Sul. O incidente em si nada apresentava de extraordinário; mas o fato de que havia um homem em Natal que patrocinava a causa dessas pessoas e trabalhava, publicamente, em seu favor, causou-lhes alegre surpresa e insuflou-lhes esperanças. Disse que Bâlâsundaram entrara no meu escritório com o chapéu na mão Esse detalhe tinha qualquer coisa de singularmente patético — outra prova da humilhação em que nos conservavam. Já relatei a anedota do turbante que tive de tirar. Havia-se imposto a todos os trabalhadores contratados, bem como a todos os estrangeiros de origem indiana, o hábito de tirar o chapéu na presença de um europeu — quer se tratasse de um gorro, de um turbante ou de uma faixa enrolada em torno da cabeça. Nenhum cumprimento, mesmo o

dos braços erguidos, era considerado suficiente. Bâlâsundaram pensara que devia seguir o costume até diante de mim. Era a primeira vez que semelhante coisa me acontecia. Fiquei humilhado e pedi-lhe que tornasse a enrolar a sua faixa. Ele o fez, não sem uma certa hesitação. Mas o fato é que sua fisionomia iluminou-se de alegria. Nunca cheguei a compreender como alguém pode sentir-se honrado ao ver um irmão humano humilhar-se diante dele. 21. O IMPOSTO DE TRÊS LIBRAS O CASO Bâlâsundaram fizera-me travar relações com os indianos sob contrato. Mas o que me impeliu a entregar-me a um estudo aprofundado da sua condição foi a campanha que se desencadeou para submetê-los a um regime de taxação especial e muito pesado. No decurso desse mesmo ano de 1894, o governo de Natal pretendeu exigir dos indianos sob contrato o pagamento de uma taxa anual de vinte e cinco libras. Essa ideia deixou-me boquiaberto de estupor. O assunto foi objeto de debate no Congresso e decidimos desde logo organizar a necessária oposição. Mas é preciso que eu explique antes, brevemente, a gênese dessa taxa. Pelo ano de 1860, os europeus de Natal, percebendo que o cultivo da cana-de-açúcar oferecia vastas perspectivas, sentiram uma súbita necessidade de mão de obra. Sem apelo ao exterior, o cultivo da cana-de-açúcar e a indústria açucareira não eram possíveis, pois os zulus de Natal eram incapazes para esse gênero de trabalho. O governo de Natal entrou, então, em contato com o governo indiano e obteve autorização para recrutar a mão de obra nas Índias. Os trabalhadores recrutados deviam assinar um contrato de trabalho de cinco anos em Natal. Ao expirar o contrato, devia-selhes dar livre escolha de instalar-se no país e gozar plenamente da propriedade da terra que pudessem adquirir. Tal era a isca que se lhes lançava; porque os brancos, naquela época, haviam suposto que o zelo infatigável dos indianos, quando chegassem ao término do contrato, contribuiria para o desenvolvimento da agricultura140. Mas os indianos ultrapassaram toda a expectativa. A produção de

legumes atingiu quantidades consideráveis. Introduziram um certo número de espécies indianas e conseguiram que elas alcançassem melhores preços. Importaram também a manga. E seu espírito empreendedor não se limitou à agricultura. Irromperam no comércio. Compraram terrenos urbanos e muitos deles se elevaram da condição de simples trabalhadores à de proprietários de terras e de imóveis. Vieram das Índias, atrás deles, comerciantes que se instalaram para começar. O falecido Sheth Abubakr Amod141 foi o primeiro desses. Os seus negócios não tardaram a tomar um impulso considerável. Os negociantes brancos alarmaram-se. Se haviam começado por abrirmos braços à mão de obra indiana, não tinham contado com um tal gênio comercial. Como pequenos proprietários agrícolas, os indianos eram toleráveis; mas a sua concorrência comercial era inadmissível. Tal foi o primeiro fermento de hostilidade com relação aos indianos. Outros fatores contribuíram para seu desenvolvimento Os nossos costumes diferentes, a nossa simplicidade, o fato de que nos contentávamos com lucros mínimos, a nossa indiferença pelas normas de higiene e de saúde pública, a preguiça que púnhamos em velar pela ordem e aspecto dos nossos bairros, a maneira por que regateávamos, quando se tratava de consertar as nossas casas — tudo isso, acrescido L diferença de religião, contribuiu para atiçar a chama do ódio. No domínio legislativo, esse antagonismo encontrou um modo de expressão no projeto de lei sobre a supressão do direito de voto e no projeto de taxação dos indianos sob contrato. Fora desse domínio, um sábio trabalho de alfinetadas havia há muito começado. A coisa começou por uma proposta pedindo o repatriamento forçado dos trabalhadores indianos, de maneira que o término do contrato os encontrasse nas Índias. Mas era pouco provável que o governo indiano aceitasse essa ideia. Fez-se, pois, outra proposta, segundo a qual: 1) O trabalhador sob contrato deveria regressar às Índias quando terminasse o seu compromisso, ou então; 2) assinar um novo contrato, cada dois anos, sendo que cada renovação implicaria num aumento; ou

3) em caso de recusa da sua parte; de voltar às Índias ou de renovar o contrato, pagar uma taxa anual de vinte e cinco libras. Uma delegação, composta por Sir Henry Binns e Mr. Mason, foi às Índias com a missão de obter a concordância do governo indiano. Lorde Elgin era, então, vice-rei142. Ele repeliu a taxa de vinte e cinco libras, mas concordou com um imposto de três libras por cabeça. Eu achava naquela época, e continuo a achar, que este foi um grave equívoco da parte do vice-rei. Ao concordar, ele não pensou um instante sequer nos interesses indianos. O seu dever não era, de maneira alguma, fazer o jogo dos europeus de Natal Ao cabo de três ou quatro anos, o trabalhador sob contrato caía, com sua mulher e seus filhos (maiores de dezesseis anos, para os homens, e de treze, para as mulheres) sob o jugo do imposto. Obrigar uma família de quatro pessoas - marido mulher e dois filhos - a pagar uma taxa anual de doze libras, quando a receita média do marido não ia alem de catorze shillings por mês, era atroz, era de uma barbaridade única no mundo. Iniciamos uma campanha feroz contra essa taxa. Se o Congresso Indiano de Natal permanecesse silencioso na questão, é possível que o vice-rei tivesse mesmo aprovado a taxa de vinte e cinco libras. É provável que e a redução de vinte e cinco para tres libras fosse, unicamente, consequência da agitação feita pelo Congresso. Pode ser que o governo das Índias tivesse desaprovado, desde o começo, o imposto de vinte e cinco libras e o tivesse reduzido a três libras sem que a oposição do Congresso tivesse influído sobre ele. Pouco importa; o governo das Índias faltara aos seus deveres de tutor. Encarregado de zelar pela felicidade do povo indiano, o vice-rei jamais poderia ter aprovado esse imposto desumano. O Congresso não podia considerar como um grande sucesso o fato de haver obtido que a taxa fosse reduzida de vinte e cinco a três libras. Continuava a lamentar não ter podido salvaguardar, inteiramente, os interesses dos indianos sob contrato. A abolição dessa taxa foi uma das tarefas a que me dediquei mais tenazmente, porém vinte anos passaram antes que fosse levada a termo. E ainda isto se deve aos esforços, não somente dos indianos de Natal, mas de todos os indianos da África do Sul. A ruptura, da promessa feita a Mr. Gokhale deu ocasião à última campanha, à qual os indianos sob

contrato emprestaram um auxílio sem reservas; alguns deles lá deixaram a sua vida nas fuzilarias de que se lançou mão e mais de dez mil indivíduos suportaram a prisão. A verdade acaba por triunfar. Essa verdade particular tinha como expressão os sofrimentos dos indianos. Mas ela não teria triunfado sem uma fé inquebrantável, sem uma paciência extrema, sem a tenacidade dos esforços. Se a comunidade tivesse abandonado a luta e o Congresso a campanha, para submeter-se à taxa como ao inevitável, o imposto detestado teria continuado a subjugar os indianos sob contrato até à época atual, para eterna vergonha dos indianos da África do Sul 22. ESTUDO COMPARATIVO DE RELIGIÕES SE ME encontrei completamente absorvido pelo serviço da comunidade, a razão profunda foi o meu desejo de aperfeiçoamento do ser. Servir e uma religião; e eu tinha abraçado essa fé, com o sentimento de que servindo e que se podia alcançar Deus. E servir para mim, era servir a Índia, porque a coisa, no meu caso, ia por si mesma, por que fora naturalmente levado a ela. Partira para a África do Sul, a fim de fugir das intrigas do Kâthiyâvâr e ganhar a minha vida. Mas como já o disse, tornei a surpreender-me em busca de Deus e lutando pelo aperfeiçoamento do meu ser. Os meus amigos cristãos aguçaram-me o apetite de conhecimento que se ornara quase insaciável; de nada valia manifestar-lhes a minha vontade de indiferença, recusavam-se a deixar-me em paz. Em Durban foi Mr. Spencer Walton, chefe da Missão Geral da África do Sul quem me desninhou. Acabei por quase fazer parte da sua família. Na origem das nossas relações estavam, naturalmente, os meus contatos com os cristãos de Pretória. Mr. Walton tinha um modo de agir bem seu. Não recordo que ele me convidasse a abraçar a fé cristã. Mas ele expunha a sua vida a meus olhos, como um livro aberto, e permitia-me observar as suas menores ações. A sra. Walton era uma mulher muito terna e cheia de talento. Eu gostava da maneira de ser desse casal. Não nos escapavam as diferenças fundamentais que nos separavam. Poderíamos discuti-las até perder o fôlego, sem chegar a reduzi-las. Não obstante, as

próprias diferenças tornam-se um auxílio entre pessoas tolerantes, caridosas e sinceras. Gostava de Mr. e Mrs. Walton pela sua humildade, perseverança e devotamento ao trabalho; e nós víamonos com muita frequência. Essa amizade forneceu alimento ao interesse que eu tinha peia religião Não me era já possível reservar aos estudos religiosos tantos ócios como em Pretória. Mas tirava bom partido dos menores momentos disponíveis. Continuava a minha correspondência religiosa. Râychandbhâi me guiava. Um amigo enviou-me o livro de Narmadâshankar143: Dharma Vichâr. O prefácio foi-me de grande ajuda, Ouvira falar da vida boêmia que esse poeta havia levado, e a descrição que se encontra no prefácio, da revolução que em sua vida operaram os estudos religiosos, cativou-me. Comecei a apreciar esse livro e li-o atentamente, pouco a pouco. O livro de Max Müller — A Índia e seu Ensinamento para Nós — interessou-me, bem como a tradução dos Upanisad, publicada pela Sociedade de Teosofia. O meu respeito pelo hinduísmo saiu engrandecido dessas leituras, e as belezas dessa religião começaram a impor-se ao meu espírito, sem, contudo, suscitar em mim nenhum preconceito desfavorável contra as outras religiões. Li a Vida de Maomé e de seus Sucessores, de Washington Irving, e o penegírico do profeta de Carlyle escreveu. Essas obras reforçaram a minha estima por Maomé. Li, igualmente, um livro intitulado Os Provérbios de Zaratustra. Adquiri, assim, um conhecimento maior das diferentes religiões. O estudo estimulava-me o gosto da introspecção, ao mesmo tempo em que nutria o hábito de pôr em prática tudo que encontrava e que me seduzia. Foi assim que comecei a praticar certos exercícios de Yoga144 na medida em que a leitura de livros hindus me permitia compreendê-los. Mas não pude ir muito longe e decidi continuar essas práticas quando regressasse às Índias, solicitando o auxílio de um técnico. Desejo este que nunca pude satisfazer. Entreguei-me, também, a um estudo muito atento dos livros de Tolstoi. O Resumo dos Evangelhos, O que é Preciso Fazer145 e outras obras suas causaram-me profunda impressão. Notava, com o tempo, mais e mais as possibilidades infinitas do amor universal. Entrei em contato, na mesma época, com uma outra família de

cristãos. Eu ia à oração, todos os domingos, à capela wesleyiana. Era também, regularmente, convidado para jantar com eles, nesse dia. Os sermões não tinham o ar de carecer de inspiração. A assistência não me pareceu, particularmente, devota. O zelo religioso não era o forte dessa assembleia; tive antes a impressão de espíritos voltados para o século, indo à igreja para distrair-se e por costume rotineiro. Acontecia-me cochilar, por vezes, apesar das minhas intenções. Tinha vergonha, mas o exemplo de alguns dos meus vizinhos, tão culpáveis quanto eu, tornava-me a vergonha mais leve. Não podia continuar assim por muito tempo. Breve renunciei a assistir aos serviços. Os laços que me uniam a essa família, que eu ia ver todos os domingos, romperam-se brutalmente. Posso dizer, de fato, que me notificaram que devia pôr termo às minhas visitas. Eis como foi. A minha anfitriã era mulher simples e boa, mas de espírito um tanto estreito, A discussão girava sempre em torno de assuntos religiosos. Eu estava então em vista de reler a Luz da Ásia, de Arnold. Um dia, lançamo-nos numa comparação entre a vida de Jesus e a de Buda. — Veja a caridade de Gautama! — exclamei eu. — Não se limitava apenas à humanidade; estendia-se a todas as criaturas vivas. Será que o coração não transborda de amor ao pensamento do cordeiro alegremente empoleirado sobre suas espáduas? Esse amor por toda criatura viva não aparece na vida de Jesus. Tal paralelo magoou a boa senhora. Em compreendi os seus sentimentos. Ficamos, pois, por aí e passamos para a sala de jantar. Seu filho, verdadeiro querubim que mal tinha cinco anos, achava-se entre nós. Nunca me sinto tão feliz como em meio das crianças e este menino e eu éramos velhos amigos. Eu zombava do pedaço de carne que estava em seu prato e cantava os louvores da maçã que se achava no meu. Inocentemente, a criança, conquistada pela minha eloquência, pôs-se a acompanhar-me no elogio do fruto. Mas a mãe ficou consternada. Fizeram-no sentir. Mordi a língua e mudei de assunto. Na semana seguinte fui visitá-los como de hábito, mas não sabia, exatamente, i m que pé estavam as nossas relações. Não via nenhuma razão para interromper as minhas visitas, mas não me parecia honesto, muito menos, continuá-las. A boa senhora

encarregou-se de facilitar-me as coisas. — Peço-lhe, Mr. Gandhi — disse-me ela — não o leve a mal se me sinto na obrigação de confessar-lhe que a sua companhia não é das melhores para meu filho. Todos os dias começa com histórias para comer a carne e pede frutas, recordando-me o que disse o Senhor sobre o assunto. Já é demais. Se não comer mais carne, ficará anêmico, se não cair gravemente doente. Como posso eu tolerar semelhante estado de coisas? Doravante o Senhor não deve mais abordar esse gênero de conversa senão conosco, os adultos. O efeito é deplorável sobre as crianças. — Estou desolado, sra. ... — retruquei-lhe eu. — Seus sentimentos são de mãe e eu compreendo-os, pois também tenho filhos. Há um meio muito simples de pôr fim a essa situação desagradável. Ao ver-me comer isto e evitar comer aquilo, o menino fica mais impressionado do que com tudo quanto eu poderia dizer-lhe. O melhor é, pois, que eu interrompa as minhas visitas, o que, certamente, em nada alterará a nossa amizade. — Agradeço-lhe — respondeu a boa mulher, evidentemente muito aliviada. 23. CUIDANDO DO LAR ORGANIZAR uma casa não era novidade para mim. Mas as condições da minha instalação, em Natal, não eram mais as mesmas que em Bombaim ou em Londres. Em Natal, uma parte das minhas despesas era unicamente consagrada ao prestígio. Julgava necessário ter um trem de vida de acordo com a minha posição de advogado indiano e representante de uma comunidade. Aluguei, pois, uma encantadora casinha num quarteirão muito bem visto. Mobiliei-a de maneira conveniente. A mesa era simples, mas como convidasse, com frequência, amigos ingleses e camaradas indianos, a despesa atingia notas muito elevadas. Um bom criado é essencial a toda a casa, mas sempre fui ignorante na arte de ter um criado. Tinha um amigo que me servia de companheiro e de ajuda, e um cozinheiro que se tornara membro da família. Tinha também os empregados do escritório que moravam e comiam comigo.

Creio que me saí antes bem dessa experiência, o que não impediu que ela contivesse a sua parte de amargura costumeira nas coisas da vida. O meu companheiro era hábil e inteligente. Eu supunha-o fiel. Enganei-me nesse ponto. Tomou-se de ciúmes por um empregado que morava na casa e urdiu tão bem a sua teia que acabei por suspeitar do homem. Ao meu empregado, que era um amigo, não faltava caráter. Logo que percebeu que se me tornara suspeito, deixou a casa e o escritório. Fiquei magoado. Tive o sentimento de haver sido talvez injusto a seu respeito e os remorsos não me abandonaram. Entrementes, o cozinheiro teve necessidade de alguns dias de licença e ausentou-se. Era preciso arranjar-lhe um substituto durante essa ausência. Soube, em seguida, que o recém-vindo era um perfeito velhaco. Mas, no momento, mostrara-se com todos os traços de um enviado de Deus. Nos dois ou três dias que se seguiram à sua chegada, percebeu certas irregularidades que se passavam sob o meu teto, sem o meu conhecimento, e resolveu advertir-me. Eu tinha a reputação de ser crédulo, porém honesto e direito. O que ele descobriu escandalizara-o, por isso, ainda mais. Eu tinha o hábito de, diariamente, à uma hora, ir almoçar em casa. Um dia, pelo meio-dia, meu cozinheiro apareceu no escritório, sem fôlego, e disse-me: — Suplico-lhe que venha já. Espera-o uma surpresa. — Vejamos, vejamos; de que se trata? — perguntei-lhe. — É preciso que mo diga. Não posso abandonar assim o escritório, a esta hora, para ir ver o que há. — O Senhor lamentará não vir, não posso dizer-lhe mais. Havia qualquer coisa de suplicante na sua insistência. Voltei, pois, em companhia de um empregado, caminhando o cozinheiro à nossa frente. Ele conduziu-nos diretamente ao sobrado, indicou com o dedo o quarto do meu companheiro: — Basta-lhe abrir a porta e ver por si mesmo... Compreendi tudo de um golpe. Bati à porta. Silêncio. Bati de novo, tão violentamente que quase abalei as paredes. A porta abriuse. Vi, no interior, uma prostituta. Pedi à mulher que saísse de minha casa e nunca mais voltasse. A meu companheiro, disse: — A partir deste momento nada mais existe entre nós. Enganei-

me terrivelmente e cobri-me de ridículo. É assim que retribui a confiança que depositei em você? Em vez de recuperar o bom senso, pôs-se a ameaçar-me com um escândalo. — Nada tenho a esconder — retruquei-lhe eu. — Grite de cima dos telhados o que eu teria podido fazer; mas ordeno-lhe que parta neste instante. Esgotados todos os recursos, em vão, disseram ao empregado que ficara embaixo: — Faça-me o favor de ir prevenir o superintendente da polícia, apresentando-lhe os meus cumprimentos, de que um indivíduo que vive sob o meu teto se conduziu mal. Não tenho nenhum desejo de conservá-lo comigo, mas ele recusa-se a sair. Ficarei muito reconhecido à polícia se ela quiser prestar-me mão forte... Estas palavras mostraram ao nosso homem que eu não brincava. Vergou-se sob o peso da sua falta, pediu-me desculpas, implorou-me que não avisasse a polícia e concordou em mudar-se imediatamente — o que fez. O incidente, sobrevindo nesse momento da minha vida, foi-me salutar advertência. Apareceu-me, claramente, muito tarde, até que ponto eu podia deixar-me enganar por aquele mau caráter. Abrigando-o em minha casa, fizera a escolha de um meio mau, embora o fim fosse bom. Esperava “colher figos de cardos”. Sempre soubera que esse companheiro era de natureza perversa, mas acreditara em sua fidelidade para comigo. Esforçando-me por mudálo, quase contribuíra para a minha perda. Não tomara em nenhuma consideração os avisos que meus amigos, em sua bondade, me davam. A vaidade cegara-me completamente. Sem o meu novo cozinheiro não teria jamais descoberto a verdade. Sofrendo a influência do meu companheiro, ficaria, provavelmente, incapaz de levar a vida de desapego desinteressado que tinha jurado, então, levar. Tinha o dom de conservar-me mergulhado nas trevas e de me desviar. Mas ainda desta vez Deus veio em meu auxílio. As minhas intenções eram puras e por isso fui salvo a despeito dos meus erros. Essa experiência precoce foi-me uma sólida advertência para o futuro.

O cozinheiro fora quase um enviado do céu. Não sabia cozinhar e eu não poderia conservá-lo comigo para fazer esse serviço. Mas nenhuma outra pessoa, além dele, poderia abrir-me os olhos. Não era a primeira vez — soube-o depois — que aquela mulher fora introduzida em minha casa. Ela vinha frequentemente; mas ninguém tivera a coragem desse cozinheiro, pois todos sabiam que cega confiança eu depositava em meu companheiro. Dir-se-ia que o cozinheiro fora enviado com o único objetivo de prestar-me esse serviço; pois me pediu que o deixasse partir naquele momento. — Não posso ficar com o Senhor — disse-me ele. — Pode-se enganá-lo muito facilmente. Este não é lugar para mim. Deixei-o partir. Percebi, entretanto, que o homem que me envenenara contra o empregado não fora outro senão o meu companheiro. Fiz o impossível para tentar reparar a injustiça que havia cometido contra o empregado. E é para mim um remorso eterno o não ter podido jamais convencê-lo inteiramente. Quando a parede racha, não adianta tentar consertá-la — a fenda permanece. 24. O RETORNO À CASA HAVIA três anos que eu estava na África do Sul. Conhecia gente e conheciam-me. Em 1896 pedi autorização para voltar às Índias por seis meses, porque bem via que a minha permanência em Natal estava longe ide chegar ao seu fim. Fizera uma boa clientela e percebia que as pessoas tinham necessidade da minha presença. Decidi, por conseguinte, ir às Índias buscar minha mulher e meus filhos, para voltar e instalar-me ali. Dei-me conta, também, de que, retornando ao meu país, teria talvez a oportunidade de ser, publicamente, útil, incumbindo-me de instruir a opinião pública e interessá-la mais ativamente pela sorte dos indianos da África do Sul. O imposto de três libras era uma chaga permanentemente aberta. Não se podia ter descanso enquanto não fosse abolido. Mas quem se encarregaria do trabalho do Congresso e da Sociedade Cultural na minha ausência? Pensei em dois homens: Âdamji Miyâkhân e Pârsi Rustomji. A classe dos comerciantes estava sempre pronta a cooperar e oferecia-nos voluntários em abundância.

Mas entre os que eram capazes de assumir as funções de secretário, de trabalhar regularmente e que inspiravam também respeito nos meios indianos, os principais eram esses dois homens. Precisava-se, evidentemente, nesse posto de alguém que conhecesse bem o inglês. Recomendei o nome do falecido Âdamji Miyâkhân ao Congresso, que aprovou a sua nomeação para o secretariado. A experiência demonstrou que a escolha fora boa. Âdamji Miyâkhân satisfez a todos, pela sua perseverança, seu espírito de tolerância, sua amabilidade e sua cortesia, e soube mostrar que o posto de secretário não tinha necessidade de ser exercido por um diplomado em Direito ou por uma pessoa educada à inglesa. Em meados do ano de 1896 embarquei a bordo do navio Pongola, que seguia para Calcutá. Levava poucos passageiros. Entre outros, dois funcionários ingleses, com os quais me liguei intimamente. Passava uma hora por dia a jogar xadrez com um deles. O médico de bordo presenteou-me com um manual para aprender sozinho o tâmul146, do qual comecei o estudo. As minhas experiências em Natal haviam-me provado que faria bem em aprender o urdu, para aproximar-me ainda mais dos muçulmanos, e o tâmul, para abordar mais facilmente os indianos de Madras. A instâncias do meu amigo inglês, que estudava o urdu comigo, encontrei um bom munshi que falava a língua, entre os passageiros da coberta, e fizemos progressos muito apreciáveis. O meu funcionário tinha melhor memória que eu: bastava-lhe ver uma palavra que não mais esquecê-la; eu sentia dificuldade em decifrar o alfabeto urdu147. Por muito que me esforçasse, não cheguei a alcançar o meu companheiro. Fiz progressos apreciáveis no tâmul. Não encontrei ninguém para ajudar-me, mas o meu manual fora bem concebido para aprender essa língua sozinho e eu não necessitava de ajudas exteriores. Esperava continuar esses estudos depois da minha chegada às Índias, mas foi-me impossível. A maior parte das minhas leituras, depois de 1893, eu as fiz na prisão na prisão. Aperfeiçoei-me, efetivamente, em tâmul e em urdu, durante as minhas estadas na prisão — nos cárceres sul-africanos em tâmul, e em Yeravda, no urdu. Mas nunca soube falar o tâmul e o pouco que aprendi, à força

de leituras, acaba de se enferrujar, por falta de uso. O grande handicap que representou para mim essa ignorância do tâmul ou do telugu148, é-me sempre sensível. As provas de afeição que me prodigalizaram os dravidianos149 da África do Sul constituem uma das minhas recordações mais caras. Sempre que encontro um amigo tâmul ou telugu, não posso deixar de lembrar-me da fé, da tenacidade e do espírito de total abnegação de tantos dos seus compatriotas da África do Sul. E eram na maioria iletrados, homens ou mulheres, indistintamente. Tais foram as pessoas que conduziram o combate na África do Sul; e os próprios combatentes eram iletrados; foi pelos pobres que se lutou e os pobres assumiram a sua parte na batalha. A minha ignorância da sua língua, aliás, nunca me impediu de ganhar os seus corações simples e honestos. Falavam um mau hindustani ou um mau inglês e nunca fomos prejudicados na nossa obra. Mas eu desejara retribuir a sua afeição aprendendo o tâmul e o telugu. Fiz alguns progressos em tâmul, como já o disse; mas em telugu, que tentei aprender nas Índias, não fui além do alfabeto. Hoje receio bastante não poder aprender mais essas duas línguas e a minha única esperança é que os dravidianos aprendam o hindustani. Os que, dentre eles, não falam inglês, na África do Sul, exprimem-me em hindi150 ou em hindustani, mesmo que seja mediocremente. Há os que, falando inglês, recusam-se a aprender uma ou outra dessas duas línguas — como se o vago conhecimento do inglês devesse impedir o estudo das nossas línguas maternas! Mas estou a afastar-me da minha narração. Acabarei, pois, de relatar minha viagem. É preciso que apresente aos meus leitores o capitão do vapor Pongola. Ligamo-nos com laços de amizade. Esse bravo capitão era um Irmão de Plymouth. As nossas palestras eram mais de ordem espiritual do que náutica. Para ele, moral e religião eram duas coisas distintas. O ensinamento da Bíblia era para ele brinquedo de criança. A beleza desse livro residia na sua simplicidade. Homens, mulheres, crianças, todos — dizia ele comumente — tendo fé em Jesus e em seu sacrifício, podemos estar certos do resgate dos nossos pecados. Eu revivia com ele a lembrança do meu irmão de Plymouth de Pretória. Toda a religião que impõe a menor restrição moral nada valia a seus olhos. O meu

vegetarianismo era a origem de todas as nossas discussões. Por que não comeria eu carne — mesmo de boi? Deus não criara todos os animais inferiores para o deleite do homem — do mesmo modo que, por exemplo, o reino vegetal? E, inevitavelmente, esse gênero de questão conduzia-nos ao debate religioso. Não podíamos convencer-nos mutuamente. Eu não cedia em minha convicção: sinonímia de religião e moral. E o capitão estava absolutamente certo da verdade da sua convicção oposta. Ao cabo de vinte e quatro dias, essa agradável travesisa terminou. Admirando o esplendor do Hugli151, desembarquei em Calcutá. Naquele mesmo dia tomei o trem para Bombaim. 25. NA ÍNDIA O TREM para Bombaim estacionava quarenta e cinco minutos em Allahabad. Resolvi aproveitar a parada para dar uma volta de carro pela cidade. Tinha também necessidade de comprar remédios numa farmácia. O farmacêutico estava semiadormecido; levou um tempo inacreditável para preparar os meus remédios, de tal maneira que, quando cheguei à estação, o trem acabava de partir. O chefe da estação teve a gentileza de retardar a partida por um minuto, por minha causa; depois, não me vendo chegar, deu-se ao trabalho de mandar retirar do comboio as minhas bagagens. Tomei um quarto no hotel Kellner e decidi aproveitar o tempo. Ouvira falar muito do The Pioneer, que era publicado em Allahabad, como sendo um órgão de oposição às aspirações indianas. Creio que Mr. Chesney Júnior era então o redator-chefe. O meu desejo consista em obter a ajuda de todos os partidos; enviei, portanto, um bilhete a Mr. Chesney, explicando-lhe que havia perdido o trem e pedindo-lhe que me marcasse um encontro, de modo que eu pudesse retomar a viagem no dia seguinte. Atendeu-me imediatamente, com o que muito me alegrei, sobretudo depois que percebi que ele me ouvia com atenção e paciência. Prometeu-me publicar no seu jornal tudo quanto eu escrevesse; mas acrescentou que não podia comprometer-se a endossar todas as reivindicações indianas, uma vez que tinha também a obrigação de compreender e avaliar, em seu justo valor, o

ponto de vista dos coloniais. — É suficiente — disse-lhe eu — que consinta em estudar a questão e em discuti-la na sua publicação. Não peço nem desejo mais que estrita justiça, que nos é devida. Passei o resto do dia percorrendo a cidade e admirando a magnificência da confluência dos três rios — a Triveni152 — e a arquitetar os planos do meu trabalho futuro. Essa entrevista inesperada com o redator-chefe do The Pioneer foi o primeiro elo de uma série de incidentes que, inevitavelmente, conduziram ao meu linchamento em Natal. Segui diretamente para Râjkot, sem parar em Bombaim, e comecei, imediatamente, a preparação de um volume sobre a situação na África do Sul. A sua redação e, depois, a sua publicação tomaram-me cerca de um mês. A capa era verde, daí o nome de “Brochura Verde”, que lhe deram depois. Nele levantei um balanço deliberadamente moderado da condição dos indianos na África do Sul. O estilo era menos violento que o das duas brochuras a que aludi anteriormente; por que eu sabia que os fatos, dos quais se ouve falar a distância, têm sempre o ar exagerado. Tiraram-se da brochura dez mil exemplares. Todos os jornais e os chefes de todos os partidos, nas Índias, a receberam. The Pioneer foi o primeiro a comentá-la num editorial. Um resumo do trabalho foi cabografado para Londres, pela Reuter; o escritório londrino da agência, por sua vez, transmitiu o resumo para Natal. Este último cabograma, impresso, representava exatamente um tópico de três linhas. Era uma réplica em miniatura, mas exagerada, do quadro que eu fizera do tratamento dispensado aos indianos de Natal, e não o meu texto. Veremos, adiante, o efeito que esse cabograma teve naquele lugar. Entrementes, todas as publicações mais em vista se estenderam em longos comentários sobre a questão. Assegurar a expedição pelo correio dessas brochuras não era trabalho fácil. Gostar-me-ia bastante dinheiro, se eu tivesse que pagar o papel para fazer os embrulhos etc. Recorri, porém, a um sistema mais simples. Reuni todas as crianças da vizinhança e pedi-lhes que me reservassem duas ou três horas de voluntariado, na parte da manhã, quando não estavam em aula. Concordaram sem dificuldade. Prometi dar-lhes a minha bênção e distribuir entre eles a coleção de

selos usados que eu possuía. Eles acabaram o trabalho com uma rapidez louca. Esta foi a minha primeira experiência de voluntariado dessa espécie. Dois dos meus pequenos amigos de então trabalham hoje comigo. Houve, por essa época, uma epidemia de peste em Bombaim que provocou pânico. Temia-se que a epidemia Se declarasse também em Râjkot. Com a ideia de que eu poderia ser útil ao departamento de higiene, ofereci os meus serviços ao Estado. Aceitaram-nos e nomearam-me para o comitê encarregado de estudar de perto a questão. Insisti muito particularmente sobre a limpeza das latrinas e a comissão decidiu proceder à sua inspeção rua por rua. Os pobres não fizeram nenhuma objeção a esse controle, pelo contrário, executaram os melhoramentos que lhes sugerimos. Mas, quando quisemos visitar as residências de pessoas distintas, certos ricaços chegaram ao ponto de não querer deixar-nos entrar; e quanto a ouvir as nossas sugestões... A experiência provou-nos que as latrinas dos ricos eram as mais sujas. Eram sombrias, fétidas, infestadas de excrementos e de vermes. Os melhoramentos que sugerimos eram muito simples — usar baldes para os excrementos ao invés de entulhar o chão, e demolir a separação entre paredes exteriores e latrinas, de modo que o ar e a luz pudessem penetrar nelas, permitindo que os despejadores de cloacas as limpassem convenientemente. Os ricos levantaram muitas objeções a esta última sugestão, e, na maior parte dos casos, nenhuma importância lhe deram. A comissão devia inspecionar, também, o quarteirão dos intocáveis. Apenas um dos membros declarou-se disposto a acompanhar-me. Aos outros pareceu quase grotesco ir visitar aquele quarteirão e ainda mais inspecionar-lhe as latrinas. Para mim, no entanto, essa tarefa resultou numa agradável surpresa. Era a primeira vez que punha os pés nessa espécie de lugar. Os homens e as mulheres ficaram espantadíssimos ao ver-me. Pedi-lhes que nos deixassem inspecionar as latrinas. — Nós... as latrinas! — exclamaram estupefatos. — Nós fazemos as nossas necessidades ao ar livre. As latrinas são boas para gente importante, como vós. — Nesse caso, têm alguma objeção a que visitemos suas casas?

— perguntei eu. — Seja bem-vindo, Senhor. Pode visitar todos os cantos e recantos de nossas casas. Não são casas, são tocas. Entrei e alegrei-me ao ver que os alojamentos eram tão limpos por dentro como por fora. As entradas firmes, o chão untado de estéreo, como convém153, e os poucos utensílios de cozinha que possuíam brilhavam de asseio. Não era de se temer que a epidemia chegasse àquele quarteirão. Nos bairros ricos encontramos uma latrina que não posso deixar de descrever um pouco minuciosamente. Cada peça, de um modo geral, tinha um buraco de escoamento, que tanto servia para a água como para a urina, o que significa que a casa inteira devia feder ordinariamente. Mas uma das casas tinha um quarto cujo buraco de escoamento servia de urinol e de latrina, que se esvaziava por um tubo que descia até ao pavimento térreo. Era impossível suportar o cheiro espantoso dessa peça. Como podiam os seus ocupantes dormir ali? Deixo à imaginação dos leitores o cuidado de responder a essa pergunta. A comissão foi também inspecionar o Haveli154 vixnuíta. O padre encarregado do Haveli era um grande amigo da minha família. Consentiu em deixar-nos visitar tudo e permitiu que sugeríssemos quantos melhoramentos desejássemos. Havia lá um canto que ele próprio jamais visitara — aquele em que se lançavam os detritos de toda espécie e as folhas que serviam de toalha, no outro lado do muro. Era um lugar onde pululavam corvos e abutres155. Bem entendido, as latrinas eram sujas. Não fiquei muito tempo em Râjkot para verificar quantos dos melhoramentos sugeridos aquele padre realmente executou. Muito me mortificou ver tanta falta de limpeza num lugar santo. Num lugar que passa por sagrado, é preciso empenhar-se em observar escrupulosamente as regras de higiene e de saúde pública. Os autores dos Smritis156 — eu já o sabia na ocasião — acentuaram em primeiro lugar a limpeza, tanto interior quanto exterior. 26. DUAS PAIXÕES

CREIO que jamais encontrei qualquer pessoa que alimentasse em seu coração tanta lealdade pela Constituição Britânica quanto eu. Hoje sei que, na raiz desse sentimento, estava o meu amor pela verdade. Nunca fui capaz de simular lealdade nem qualquer outra virtude. Em todas as reuniões a que assisti, em Natal, tinha-se o costume de cantar o God Save The King. Naquela época, eu considerava meu dever juntar a minha voz à dos companheiros. Não que eu não tivesse consciência das imperfeições da dominação britânica; mas, em seu conjunto, eu a julgava aceitável. Cria, naquele tempo, que a dominação inglesa era, em suma, benéfica para os que a sofriam. O preconceito racial que pudera constatar na África do Sul era, dizia-me eu, o oposto absoluto da tradição inglesa e acreditava estar presenciando um fenômeno puramente passageiro e local. Eu então rivalizava em lealdade com os próprios ingleses. Com aplicação e perseverança, havia aprendido a música do “hino nacional” e entoava-o com os outros, sempre que se apresentava ocasião. Apresentava-me em valer-me da menor oportunidade para exprimir a minha lealdade sem ostentação. Jamais explorei essa lealdade, durante toda a minha vida; manifestava-se sem esperar recompensas. Todos se preparavam para celebrar o Jubileu de Diamantes da Rainha Vitória, por ocasião do meu regresso às Índias. Convidaramme para fazer parte do comitê instituído para esse fim em Râjkot. Aceitei, imaginando, porém, se essas solenidades não teriam sobretudo um caráter de manifestações teatrais. Aí descobri uma parte das patranhas que muito me entristeceram. Cheguei a ater-me, estritamente, ao papel que me fora designado. Havia-se sugerido ao povo, entre outras coisas, que plantasse árvores. Percebi que muitos daqueles que apoiavam essa sugestão faziam-no por espírito de ostentação e para agradar às autoridades. Procurei explicar que se tratava de uma simples sugestão, sem nenhum caráter obrigatório: era preciso executá-la seriamente ou então não fazê-la. Tive a impressão de que as minhas ideias só provocaram zombaria. Lembro-me da seriedade com que eu, pessoalmente, plantei a minha árvore e do amor com que a cuidei e reguei.

Ensinei, igualmente, o hino nacional às crianças da família. Lembro-me de havê-lo ensinado aos estudantes da Escola Normal de Preceptores; mas esquecí se o fiz por ocasião do Jubileu, ou se durante a coroação do Rei Eduardo VII, Imperador das Índias. Mais tarde, o texto do hino começou a mexer-me com os nervos. À medida que a minha concepção do Ahimsâ amadurecia, eu vigiava mais atentamente os meus pensamentos e as minhas palavras. Esses versos do hino: Scatter her enemies, And make them fall; Confound their politics, Frustrate their knavish tricks...157 contrariavam, particularmente, o meu sentimento do Ahimsâ. Comuniquei essa maneira de ver ao Dr. Booth, o qual concordou que não era decente para um convicto do Ahimsâ cantar esses versos. Como presumir que os pretendidos “inimigos” fossem “impostores”? E o simples fato de serem inimigos significava que estivessem, forçosamente, errados? De Deus só podemos implorar justiça. O Dr. Booth retomou por sua conta meus sentimentos e compôs um novo hino para a assembleia dos seus fiéis. Mas voltaremos adiante a tratar do Dr. Booth... Tão enraizado na minha natureza como esse sentimento de lealdade, era o da vocação de cuidar dos doentes. Gostava de tratar das pessoas, quer fossem amigos ou estrangeiros. Enquanto me absorvia, em Râjkot, na redação da minha brochura sobre a África do Sul, tive oportunidade de visitar, rapidamente, Bombaim. A minha intenção era esclarecer a opinião pública das grandes cidades sobre essa questão, organizando reuniões; e Bombaim foi a primeira cidade que escolhi. Procurei em primeiro lugar ver o juiz Rânade158, que me ouviu atentamente e me aconselhou a procurar Sir Pherozeshâh Mehta. O juiz Badrouddin Tayabju, que vi em seguida, deu-me o mesmo conselho. — O juiz Rânade e eu — disse-me ele — poucas indicações úteis podemos dar-lhe. Conhece a nossa posição. Não podemos tomar parte ativa nos negócios públicos; mas pode contar com toda a nossa

simpatia. O homem que pode guiá-lo muito, utilmente, é Sir Pherozeshâh Mehta. Eu tinha decerto, muita vontade de ver Sir Pherozeshâh Mehta; mas o fato de que dois homens de tal idade e experiência me aconselhassem a agir de acordo com a sua orientação, fez-me sentir ainda mais a imensa influência que Sir Pherozeshâh exercia sobre o público. Travei conhecimento com ele em tempo oportuno. O rumor público havia-me familiarizado com os apelidos que lhe davam, e sabia que iria ver o “Leão de Bombaim”, o “Rei sem coroa da Presidência”, Mas o rei não me esmagou com o seu poder. Veio ao meu encontro como um pai cheio de ternura diante de um filho que havia crescido. O nosso reencontro realizou-se em seu escritório de advogado. Ele estava cercado de amigos e discípulos, entre os quais Mr. D. E. Vâccha e Mr. Cama, a quem fui apresentado. Já ouvira falar de Mr. Vâccha. Consideravam-no o braço direito de Sir Pherozeshâh, e Sjt. Virchand Gandhi mo descrevera como um grande estatístico. — É preciso que nos vejamos de novo, Gandhi — disse-me Mr. Vâccha. As apresentações não tomaram mais que dois minutos. Sir Pherozeshâh ouviu-me atentamente. Contei-lhe que havia conversado com os juízes Rânade e Tayabju. — É claro que eu devo ajudá-lo, Gandhi — disse ele. — É preciso que eu promova uma reunião pública nesta Cidade. Voltou-se para o seu secretário, Mr. Mounshi, e disse-lhe que fixasse a data da reunião. O que ele fez. Depois, despediu-se de mim, pedindo-me que voltasse a vê-lo na véspera da reunião. Essa entrevista dissipou todos os meus receios e fui para casa encantado. Durante a minha permanência em Bombaim fui visitar meu cunhado, que vivia na cidade e, doente, guardava o leito. Não era muito rico e minha irmã (sua mulher) não podia ter os cuidados que o estado dele exigia. Ele estava gravemente enfermo. Ofereci-me para levá-lo a Râjkot. Aceitou e levei, pois, comigo, minha irmã e seu marido. A doença prolongou-se além das minhas previsões. Instalei meu cunhado no meu quarto e fiquei à sua cabeceira dia e noite. Era forçado a velar durante uma parte da noite e tinha que ocupar-me dos meus negócios da África do Sul, enquanto cuidava dele. Finalmente, apesar de tudo, o doente sucumbiu; mas foi para mim grande

consolação ter podido cuidar dele até os seus últimos momentos. Essa vocação natural de cuidar dos doentes transformou-se pouco a pouco em paixão, chegando ao ponto de levar-me a negligenciar o meu trabalho, obrigando-me a mobilizar, por vezes, não apenas minha mulher, mas toda a família, para auxiliar-me. Tal espécie de serviço não tem sentido, se não o fazemos com prazer. Se a ele nos entregamos por ostentação ou por temor à opinião pública, o homem atrofia-se e o espírito asfixia. Serviço prestado sem alegria não ajuda a ninguém, muito menos quem o recebe e quem o presta. Mas todos os outros prazeres, qualquer outra ocupação, empalidecem e perdem-se no nada, diante do serviço prestado com espírito de alegria. 27. A REUNIÃO DE BOMBAIM NO MESMO dia que se seguiu à morte de meu cunhado, tive que ir a Bombaim para tomar parte na nossa reunião pública. Mal tive tempo de pensar no meu discurso. Estava esgotado por dias e noites de vigília ansiosa, estava rouco. Nem por isso deixei de partir para Bombaim, entregando-me, inteiramente, nas mãos de Deus. Nunca pensei em redigir o texto da minha exposição. De acordo com as instruções de Sir Pherozeshâh, dirigi-me ao seu escritório, às cinco horas da tarde, véspera da reunião. — Já preparou o seu discurso, Gandhi? — perguntou-me ele. — Não Senhor — respondi-lhe, trêmulo de receio. — Pretendo improvisar. — Isso não serve aqui, em Bombaim. Os jornais trabalharão mal. Se esta reunião deve servir-nos para alguma coisa, é preciso que redija o seu discurso e que ele seja impresso antes do alvorecer de amanhã. Espero que seja capaz de fazê-lo. Tal perspectiva intimidou-me ainda mais; respondi-lhe, porém, que tentaria. — Nesse caso, diga-me a que horas Mr. Mounshi deve ir buscar o manuscrito? — Às onze horas da noite — tornei eu. No dia seguinte, chegando à reunião, compreendi a sabedoria do seu conselho. Realizava-se a reunião no grande salão do Instituto Sir

Cowasji Jehângir. Ouvira dizer que, sempre que Sir Pherozeshâh Mehta tomava a palavra em público, a sala ficava invariavelmente cheia os estudantes, sobretudo, adoravam ouvi-lo e quase não deixavam espaço para as demais pessoas. Era a primeira reunião pública desse gênero, na qual eu tomava parte. Compreendi desde logo que a minha voz não seria ouvida além das primeiras filas. Tremia, quando comecei a ler o meu discurso. Sir Pherozeshâh encorajava-me continuamente, pedindo-me que falasse mais alto, ainda mais alto. Creio que, longe de estimular-me, o seu encorajamento tinha o efeito de fazer-me falar cada vez mais baixo. Meu velho amigo Sjt. Keshavrao Deshpande159 veio em meu socorro. Estendi-lhe as laudas. Ele tinha, exatamente, a voz adequada à ocasião. Mas o auditório recusou-se a escutá-lo. A sala encheu-se de gritos que pediam: “Vâccha!... Vâccha!...” Mr. Vâccha levantou-se então e leu o meu discurso. Isto produziu um resultado mágico: a assistência acalmou-se por completo, ouviu o discurso até o fim, pontilhando-o de aplausos e de exclamações de “é uma vergonha!”. O meu coração regozijou-se. Sir Pherozeshâh gostou muito do discurso. Eu sentia-me no cúmulo da ventura. Essa reunião valeu-me a simpatia ativa de Sjt. Deshpande e de um amigo parse, cujo nome hesito em mencionar, porque ele, atualmente, ocupa um posto muito elevado no governo. Ambos me participaram sua resolução de partir comigo para a África do Sul. Mr. C. M. Cursejti, que era então juiz do tribunal correcional, empenhouse, porém, cm dissuadir o meu amigo parse de realizar o seu projeto; ele pretendia casá-lo. Esse amigo teve que escolher entre o casamento e a partida para a África do Sul — optou pelo primeiro. Mas Pârsi Rustomji resgatou essa falta de palavra — do mesmo modo que todas as nossas irmãs parses, que se devotaram à obra do khâdi160, reparam hoje a atitude da jovem cuja cumplicidade favoreceu esse perjúrio. Foi, pois, de coração que perdoei àquele casal. Sjt. Deshpande, se não foi o objeto de nenhuma tentação matrimonial, nem por isso se viu menos impedido de partir; mas ele se encarrega bastante, hoje, de reparar o esquecimento da sua promessa passada. Voltando para a África do Sul, encontrei em Zanzibar um dos Tayabju. Ele também prometeu que iria ajudar-me, mas nunca o fez. Mr. Abbâs

Tayabju resgata neste momento aquela ofensa. Seja como for, dos três esforços que fiz na ocasião, de levar advogados para a África do Sul, nenhum foi bem sucedido. Tudo isso me traz à memória Mr. Pestonji Pâdshâh. As nossas relações de amizade remontavam à minha permanência na Inglaterra. Conhecera-o num restaurante vegetariano em Londres. Também conhecia de nome seu irmão, Mr. Barjorji Pâdshâh, que passava por um “détraqué”. Nunca o tinha visto; amigos, porém, me haviam dito que era um excêntrico. Por piedade pelos cavalos, recusava-se a tomar carros na cidade; recusava-se, igualmente, a submeter-se a qualquer exame, apesar da sua memória prodigiosa; adquirira grande independência de espírito e era vegetariano, apesar de parse. A reputação de Pestonji não chegava a esse ponto, mas o seu renome de erudito estendia-se até Londres. O nosso denominador comum, entretanto, era o vegetarianismo e não a erudição, na qual eu era incapaz de igualá-lo. Tornei a descobri-lo em Bombaim, onde era protonotário na Corte de Apelação. Na ocasião desse encontro, achei-o muito ocupado em colaborar na elaboração de um dicionário de alto-gujrate. A nenhum de meus amigos eu deixaria de pedir ajuda para a obra empreendida na África do Sul. Mas Pestonji Pâdshâh não se limitou a recusar-me ajuda, aconselhou-me mesmo a não voltar para lá. — É-me impossível ajudá-lo — disse-me ele. — Acredite-me, ademais, que não gosto de vê-lo voltar para a África do Sul. Falta trabalho aqui, porventura? Ouça: veja quanta coisa para fazer, só para a nossa língua. Tenho que inventar termos científicos161. E esse é apenas um dos aspectos da nossa obra. Pense na pobreza desta terra. Não duvido que muitas dificuldades assoberbem os nossos compatriotas da África do Sul, mas não gostaria de ver um homem da sua têmpera sacrificar-se nessa espécie de trabalho. Comecemos por conquistar o direito de governar-nos a nós mesmos aqui, e, então, automaticamente, iremos em socorro dos nossos compatriotas de lá. Sei que não chegarei a convencê-lo, mas recuso-me a encorajar qualquer pessoa da sua têmpera a acompanhá-lo. Essa maneira de ver não me agradou, mas aumentou o meu respeito por Mr. Pestonji Pâdshâh. A sua paixão pelo nosso país e

pela nossa língua materna impressionou-me. O incidente aproximounos ainda mais. Eu podia aceitar o seu ponto de vista; mas, longe de renunciar à obra empreendida na África do Sul, a minha resolução fortificou-se. Um patriota não pode ignorar nenhum aspecto do serviço da pátria. E o texto da Gitâ brilha diante de mim, com toda a sua luz com todo o seu fulgor tenaz: Mais vale cumprir, embora mediocremente, seu próprio dever, Do que assumir, mesmo para cumpri-la com perfeição, A tarefa de outro. Mais vale perecer perseverando no seu dever; Assumir o dever alheio só pode trazer desgraça162. 28. POONA E MADRAS SIR Pherozeshâh tinha-me aberto o caminho. De Bombaim fui, então, para Poona163: achei a opinião dividida em dois clãs. Eu desejava a ajuda das pessoas de todos os matizes. Fui ver em primeiro lugar, Lokamânya Tilak164. — Tem razão em procurar a ajuda de todos os partidos — disseme ele. Não pode haver duas maneiras de encarar a questão da Africa do Sul. Mas precisa encontrar um presidente sem partido Vá ver o professor Bhândâkâr165. Não se tem envolvido em nenhuma atividade pública nestes últimos tempos, mas esse negócio talvez o faça sair do seu retiro. Vá vê-lo e depois venha comunicar-me a sua decisão. O meu desejo é ajudá-lo ao máximo. E, naturalmente, pode contar sempre comigo. Fico à sua inteira disposição. Era o meu primeiro encontro com o Lokamânya, e revelou-me o segredo da sua extraordinária popularidade. Encontrei-me, em seguida, com Gokhale166. Achei-o no parque da Universidade Fergusson. Acolheu-me afetuosamente e as suas maneiras foram-me direto ao coração. Via-o, também a ele, pela primeira vez. Tínhamos, contudo, a aparência de estarmos reatando velhos laços de amizade. Sir Pherozeshâh dera-me a impressão do Himalaia, Lokamânya, do Oceano. Mas Gokhale fez-me pensar no

Ganges. O rio sagrado convida ao frescor do banho. O Himalaia repele a escalada e hesitamos em lançar-nos ao Oceano. Mas o Ganges atrai-nos para o seu seio, é uma alegria flutuar e vogar em suas águas... Gokhale submeteu-me a um interrogatório cerrado, como o professor que sonda o candidato ao exame vestibular. Indicou-me as pessoas que devia procurar e a maneira como devia conduzir-me. Pediu-me permissão para ler o meu discurso, Fez-me visitar a universidade, assegurou-me que ficaria à minha disposição, rogou-me que lhe desse conhecimento do resultado da minha entrevista com o Dr. Bhândârkâr e despediu-me transbordante de alegria. No ponto de vista político, o lugar que Gokhale ocupou em meu coração, quando vivo, e que ocupa ainda hoje, tem permanecido absolutamente ímpar. O Dr. Bhândârkâr recebeu-me com uma cordialidade paternal. Era meio-dia quando me apresentei a ele. O próprio fato de que eu não perdia tempo e podia fazer visitas a semelhante hora, agradou vivamente a esse infatigável sábio e a minha insistência em salientara necessidade de conseguir uma pessoa sem partido para presidir à reunião teve logo a sua aprovação, expressa numa exclamação espontânea. — É isso! É isso! É isso mesmo167!... — Não importa que lhe tenham dito que eu não me envolvo em política — respondeu-me ele depois de me ter ouvido. — Ao Senhor eu não poderei recusar. Tudo fala em favor da sua causa, e o seu zelo é tão admirável que eu não poderia recusar-me a participar da sua reunião. Fêz bem em consultar Tilak e Gokhale. Peço-lhe que lhes diga que me sentirei muito feliz por presidir uma reunião que se realizará sob os auspícios conjugados de dois Sabhas168. Pouco importa a hora da reunião. A sua hora será a minha. Com essas palavras despediu-se, felicitando-me e dando-me a sua bênção. Sem-cerimônia, esse pequeno grupo de homens, trabalhadores, eruditos e desinteressados, de Poona, organizou uma reunião numa salinha sem pretensões; mas eu, quando saí, estava cheio de alegria e ainda mais confiante na minha missão. Madras recebeu, em seguida, a minha visita. E houve então um entusiasmo delirante. O meu discurso estava impresso e eu,

pessoalmente, achei-o demasiado longo. Mas o auditório ouviu-o com toda a atenção. À saída da reunião arrebataram literalmente a “Brochura Verde”. Publiquei uma segunda edição depois de ter revisto o texto. A tiragem era de dez mil exemplares e a edição vendeu-se bem, mas compreendi que havia forçado um pouco a dose: em meu entusiasmo, tinha superestimado a procura. O meu discurso dirigia-se ao público de língua inglesa, e em Madras essa categoria de pessoas não podia consumir sozinha toda a tiragem. O auxílio mais eficaz que encontrei nessa cidade foi o do falecido Sjt. G. Parameshvaran Pillay, redator-chefe do The Madras Standard. Ele entregara-se a um estudo consciencioso da questão e convidavame com frequência a ir vê-lo no seu escritório, dando-me preciosas indicações. Sjt. G. Soubrahmaniam, do The Hindu169, bem como o Dr. Soubrahmaniam, dispensaram-me também a sua simpatia. Mas Sjt. G. Parameshvaran Pillay pôs à minha inteira disposição as colunas do The Madras Standard e não me fiz de rogado para usar o seu oferecimento. A reunião, que se realizou no Grand Hall de Pâchyâppâ170, que eu me lembre, teve a presidência efetiva do Dr. Soubrahmaniam. Os testemunhos de afeto, que a maior parte dos amigos que encontrei me prodigalizaram, e o seu entusiasmo pela causa que eu defendia foram tão vivos que, embora eu tivesse que me exprimir em inglês, me sentia perfeitamente a vontade. Qual e a barreira que o sentimento proveniente do coração não pode romper? 29. “VOLTE LOGO” DE Madras segui depois para Calcutá, onde encontrei graves dificuldades. Não conhecia ninguém nessa cidade. Tomei um quarto no Great Eastern Hotel. Aí travei conhecimento com Mr. Ellerthorpe, representante do The Daily Telegraph. Convidou-me a ir ao Bengal Club, onde residia. Não se recordou, no momento, que o acesso aos salões do clube era interdito aos indianos. Em virtude dessa interdição, levou-me para o seu quarto. Manifestou-me o seu profundo pesar por um preconceito semelhante por parte dos ingleses do local e desculpou-se de não ter podido receber-me no salão.

Eu não podia, bem entendido, deixar de vir ver Surendranâth Banerji, “o ídolo de Bengala”171. Encontrei-o rodeado por um grupo de amigos. — Receio muito que as pessoas daqui não se interessam pela sua tarefa. Como sabe, as dificuldades com que lutamos não são pequenas. Mas é preciso que faça tudo quanto for possível. Deve conquistar as simpatias dos Mahârâjas. Não esqueça, sobretudo, de vir ver os representantes da Associação Indiana. É essencial que veja o Raja Sir Pyarimohan Boukarji e Mahârâja Tagore172. Ambos são de espírito largo e ocupam-se bastante ativamente do bem público. Fui ver esses dois personagens, mas sem resultado. Receberamme friamente e declararam-me que não era cômodo organizar uma reunião pública em Calcutá e, supondo que fosse possível, tudo dependia, praticamente, de Surendranâth Banerji. Eu bem via que os obstáculos se amontoavam no meu caminho. Apresentei-me nos escritórios do The Amrita Bazar Patrika173. O personagem que me recebeu tomou-me por uma espécie de Judeu Errante. Nos escritórios do The Bangdbâsi foi ainda melhor. O redator-chefe fez-me esperar uma hora. Tinha, evidentemente, numerosos visitantes, mas não condescendeu sequer em concederme um olhar depois que os despediu. Quando, após essa longa espera, me aventurei a abordar o assunto, declarou-me ele: — Não vê como estamos assoberbados? Não acabam mais os visitantes da sua espécie. Será melhor ir embora. Não estou disposto a ouvi-lo. Por um momento tive a sensação de estar a receber uma afronta, mas compreendi logo a posição daquele homem. O renome do The Bangdbâsi tinha chegado aos meus ouvidos. Eu vira como os visitantes afluíam aos seus escritórios e que se tratava de pessoas que, todas elas, conheciam mais ou menos o redator-chefe. Matéria para artigos não lhe faltava e a África do Sul não era ainda conhecida naquela época. Por mais sério que seja o sofrimento que o conduz aos olhos de quem o experimenta, o infeliz visitante não será mais do que um indivíduo perdido na multidão de solicitantes que invadem o escritório do redator-chefe, cada um com o seu problema pessoal. Como pode

ele recebê-los a todos? Sem acrescentar que cada um o toma por uma espécie de potentado. Ele é o único a saber que o seu puder não vai muito além da borda da sua escrivaninha. Não me desencorajei, entretanto. Continuei a peregrinação pelos redatores-chefes. Não esquecia, também, de visitar os órgãos angloindianos174. The Statesman e The Englishman notaram a importância do problema. Concedi-lhes longas entrevistas que publicaram integralmente. Mr. Saunders, redator-chefe do The Englishman, adotou-me por completo. Colocou os seus escritórios e o seu jornal à minha disposição. Deu-me mesmo inteira liberdade para modificar a meu gosto o artigo de fundo que escrevera sobre a questão e do qual me enviou as provas antecipadamente. Não exagero ao dizer que grandes laços de amizade nos ligaram. Prometeu conceder-me todo o auxílio que estivesse em seu poder, manteve estritamente a promessa e continuou a corresponder-se comigo até o dia em que caiu gravemente doente. Durante toda a minha vida fui beneficiado por numerosas amizades semelhantes que sempre surgiram do inesperado. O que Mr. Saunders apreciava em mim era a minha abstenção de todo excesso e o meu devotamento à causa da verdade. Submetera-me a um contra interrogatório em regra antes de manifestar um princípio de simpatia pela minha causa; vira que eu não poupara tenacidade nem esforço para colocá-lo diante de uma exposição imparcial da questão (nela compreendido o ponto de vista do homem branco da África do Sul, ao qual eu dei o seu justo valor). A experiência tem-me demonstrado que o meio mais rápido de obter justiça é fazer justiça ao adversário. O auxílio inesperado de Mr. Saunders encorajou-me a pensar que eu talvez chegasse, apesar de tudo, a realizar uma reunião pública em Calcutá, quando recebi, de Durban, o seguinte cabograma: “Reabertura Parlamento em janeiro. Volte depressa”. Dirigi então uma carta à Imprensa, onde explicava o motivo de minha brusca e forçada partida de Calcutá e tomei o trem para Bombaim. Antes de entrar no comboio, telegrafei ao agente da Dâdâ Abdulla & Cia., em Bombaim, a fim de pedir-lhe que me reservasse um lugar no primeiro navio que seguisse para a África do Sul. Dâdâ

Abdulla acabara de adquirir o paquete Courland e insistiu para eu me servir desse navio, oferecendo-se a assegurar-nos travessia gratuita, à minha família e a mim. Aceitei a oferta com reconhecimento e, nos primeiros dias de dezembro, embarquei pela segunda vez com destino à África do Sul — agora com minha mulher e meus dois filhos e com o filho único de minha irmã viúva. Um outro paquete, o Nâdari, levantou âncora ao mesmo tempo que nós, para Durban. Pertencia a uma companhia que tinha por agentes Dâdâ Abdulla & Cia. Os dois navios deviam transportar um total de cerca de oitocentos passageiros — metade dos quais se destinava ao Transvaal.

PARTE III 1. PRENÚNCIOS DE TEMPESTADE ERA a minha primeira grande viagem em companhia de minha mulher e de meus filhos. Tenho, frequentemente, observado, no decorrer deste relato, que, em consequência dos casamentos de crianças entre os hindus da classe média, o marido sabe ler e escrever, ao passo que a mulher permanece quase iletrada. Ficam separados, assim, por um abismo, e o marido deve tornar-se o educador da mulher. Foi-me necessário, pois, meditar nos pormenores das vestes que minha esposa e meus filhos deviam usar, no regime alimentar que deveriam seguir, nas maneiras que melhor conviam ao seu novo ambiente. A evocação de certas lembranças dessa época não deixa de ser divertida. A mulher hindu deve obediência implícita ao marido pela mais alta das religiões. O marido hindu considera-se senhor e dono de sua mulher, que não deve cessar de adulá-lo e de agradar-lhe em tudo. Eu cria, na época de que falo, que, para ter aparência civilizada, devíamos, nos trajes e nas maneiras, aproximar-nos o mais possível do exemplo europeu. Era, pensava eu, o único meio pelo qual podíamos exercer alguma influência, sem a qual ficaríamos impossibilitados de prestar serviços à comunidade. Ajustei, portanto, um estilo de traje para minha mulher e meus filhos. Como admitir que se pudesse adivinhar que eles eram banias 175 do Kâthiyâvâr? Os parses passavam, então, comumente, pelos mais civilizados dos indianos, o que fez com que, não parecendo a moda europeia conveniente de todo, adotássemos o estilo parse. Por outras palavras: minha mulher usava o sari176 parse e os meus dois filhos o paletó e as calças parses. Bem entendido, seguiam-se os sapatos e as meias. Mas minha mulher e as crianças custaram muito a habituar-se. Os sapatos davam-lhes nos pés e as meias se molhavam com a transpiração. Ficavam, frequentemente, com os dedos dos pés em carne viva. Para todas as suas objeções eu tinha

resposta pronta. Entretanto, diz-me um vago sentimento que não foi tanto o meu espírito de persuasão, mas, sim, a minha autoridade pura que conquistou a sua adesão; consentiram em mudar de trajes porque não tinham direito de escolha. E foi de igual modo, senão com repugnância ainda maior, que se resignaram à faca e aos garfos. É provável, aliás, que, após uma longa adaptação a essas novas maneiras, achassem também irritante ter que voltar mais tarde ao antigo estilo de vida. Contudo, parece-me hoje que nos sentimos mais livres e ligeiros agora que estamos desembaraçados das lentejoulas da “civilização”. A bordo do mesmo paquete achavam-se alguns dos nossos parentes e conhecidos. Eu ia vê-los com frequência, bem como a outros passageiros da coberta, pois, como o navio pertencia a amigo do meu cliente, eu tinha liberdade de andar por toda a parte, à vontade. O navio dirigia-se, diretamente, a Natal, sem escalas intermediárias; a travessia, portanto, não devia durar mais que dezoito dias. Mas, como para advertir-nos da verdadeira tempestade que nos esperava em terra, uma borrasca terrível surpreendeu-nos quando estávamos a quatro dias de distância do nosso destino. Dezembro é um mês de monção estival no hemisfério sul e as borrascas, grandes ou pequenas, são fenômeno comum nos mares do Sul, nessa estação. A que nos surpreendeu era tão violenta e durou tanto tempo que os passageiros se alarmaram. Hora solene... Diante do perigo comum, todos os seres tornaram-se em um só. Esqueciam todas as diferenças e pensavam em um só e único Deus — muçulmanos, hindus, cristãos e outros. Alguns faziam promessas disto ou daquilo. O próprio capitão juntava as suas preces às dos passageiros. Ele afirmava-lhes que, embora a tempestade atual ameaçasse a segurança do navio, presenciara outras mais terríveis, e explicava que um barco solidamente construído pode resistir a qualquer tempo. Mas os passageiros continuavam inconsoláveis. A cada instante, ruídos, estalidos anunciadores de brechas e de veios de água invadiam os ouvidos. O navio jogava e oscilava de tal modo que parecia afundar-se de um momento para outro. Ninguém pensava em permanecer na coberta. “Seja feita a vontade de Deus”! — era o grito de todas as bocas. Que eu me lembre, essa triste

situação durou cerca de vinte e quatro horas. Finalmente, o céu ficou claro, o sol mostrou-se e o capitão declarou que a borrasca tinha passado. As fisionomias iluminaram-se de alegria e, ao mesmo tempo que o perigo se afastava, o nome de Deus desvaneceu-se de todas as bocas. Comer, beber, cantar, divertir-se, voltou a ser a ordem do dia. Tendo-se ido o medo da morte, o efêmero acesso de sincera gravidade, na oração, deu lugar à maya177. Havia, naturalmente, o namâz178 e as preces habituais, mas a solenidade dos momentos de terror já não existia. Essa tempestade, contudo, fizera-me entrar em comunhão com os passageiros. Não sentira muito medo, pois já havia experimentado outros assaltos análogos. Não era sujeito ao enjoo. Pude, pois, ir e vir entre os passageiros, levando-lhes conforto e bom humor, comunicando-lhes hora a hora as notícias que o capitão me dava. As amizades que assim formei, ver-se-á depois, foram-me extremamente preciosas. O navio lançou âncora no porto de Durban em 18 ou 19 de dezembro. O Nadari, igualmente. A verdadeira tempestade ainda estava à minha espera. 2. A TEMPESTADE VIMOS que os dois navios lançaram âncora no porto de Durban cerca de 18 ou 9 de dezembro. Nenhum passageiro está autorizado a desembarcar em qualquer porto da África do Sul antes de submeterse a um completo exame médico. Caso se encontre a bordo um passageiro atacado de moléstia contagiosa, o navio fica de quarentena. Como em Bombaim grassava a peste no momento da nossa partida, receávamos ter que passar por uma breve quarentena. Antes da visita, todo o navio deve içar uma bandeira amarela que só é arriada depois que o médico certifica que tudo está bem. Parentes e amigos dos passageiros não são autorizados a subir a bordo senão depois de arriado o pavilhão amarelo. O nosso barco içara, pois, a bandeira amarela, quando o doutor subiu a bordo para fazer a visita. Ordenou uma quarentena de cinco dias porque, segundo a sua opinião, o micróbio da peste levava no

máximo vinte e três dias para incubar. O navio recebeu ordem, por conseguinte, de ficar de quarentena até o decorrer do vigésimo terceiro dia a contar da nossa partida de Bombaim. Mas acontece que, por trás dessa ordem, havia outros motivos além de higiene. A população branca de Durban havia-se movimentado para obter o nosso repatriamento, e essa agitação era um dos motivos da ordem em apreço. Dâdâ Abdulla & Cia. traziam-nos regularmente informados do desenrolar cotidiano dos acontecimentos na cidade. Todos os dias os brancos organizavam reuniões públicas monstras. Proferiam toda espécie de ameaças a Dâdâ Abdulla & Cia., por vezes faziam ofertas engabeladoras: diziam-se prontos a indenizar a Companhia, se os dois navios levantassem âncoras e voltassem. Mas os homens de Dâdâ Abdulla & Cia. não eram desses que se intimidam com ameaças. O Sheth Abdul Karim Hâji Âdam era então sócio e diretor da firma. Estava absolutamente decidido a fazer atracar os navios no cais e desembarcar os passageiros a qualquer preço. Enviava-me todos os dias mensagens pormenorizadas. Felizmente, o falecido Sjt. Mansukhlal Naazar estava, então, em Durban, com a finalidade de receber-me. Capaz, corajoso, era ele quem dirigia a comunidade indiana. O advogado da comunidade, Mr. Laughton, também era igualmente corajoso. Ergueu-se vivamente contra a atitude da população branca e deu conselhos à comunidade, não apenas na qualidade de advogado remunerado, mas como verdadeiro amigo. Assim, Durban tornou-se teatro de um duelo desigual: de um lado um punhado de pobres indianos sustentados por alguns amigos ingleses; e, do outro, a frente dos brancos, fortes pelas suas armas, seu número, sua educação e sua riqueza, e apoiados pelo Estado pois o governo de Natal os apoiava abertamente. Mr. Harry Escombe, o membro mais influente do Gabinete, não se constrangia a tomar parte em suas reuniões públicas. O verdadeiro objetivo da quarentena era, pois, o de constranger os passageiros a regressar às Índias, usando para com eles ou para com a companhia de uma forma de intimidação. Por que agora as ameaças dirigiam-se também a nós: “Se não virarem as costas, podem ficar certos de que os lançaremos ao mar. Mas se consentirem em tomar o caminho de volta, talvez cheguemos até a

reembolsá-los das despesas da travessia”. Quanto a mim, eu não deixava de ir e vir entre os passageiros reconfortando-os. Enviava também mensagens de encorajamento aos passageiros do paquete Nadari. Todos conservavam a calma e a coragem. Organizamos toda a espécie de jogos a bordo para distrair os passageiros. No dia de “Noel”, o capitão ofereceu um jantar aos passageiros da primeira classe, entre os quais minha família e eu éramos os principais. Entre outros discursos pronunciados no fim da refeição, fiz um no qual falei da civilização ocidental. Sabia que o momento não era próprio para discursos sérios, mas que podem fazer. Se participava da festa, o meu coração estava também com aqueles que travavam combate em Durban. Pois o verdadeiro alvo era eu. Acusavam-me duplamente: 1) de me haver comprazido, durante a minha estada nas Índias, em condenar injustamente os brancos de Natal, 2) de ser o responsável pela chegada de dois navios de passageiros, com a intenção expressa de inundar Natal de colonos indianos. Eu tinha consciência das minhas responsabilidades. Sabia que Dâdâ Abdulla & Cia. haviam corrido grandes riscos por minha causa, que a vida dos passageiros estava em perigo, e que, ao arrastar a minha família comigo, expunha-a, por isso mesmo, ao perigo. Mas eu estava inocente. Não atraíra ninguém para Natal. Não reconhecia os passageiros no momento do embarque. Com exceção de dois ou três vagos parentes, ignorava o nome e o endereço de todas as pessoas a bordo — que atingiam algumas centenas. Nem tampouco pronunciara, durante a minha permanência nas Índias, uma só palavra sobre os brancos de Natal que já não tivesse pronunciado na própria cidade. E, para confirmar tudo o que dissera, não me faltavam provas. Deplorei, pois em minha alocução de “Noel”, a civilização da qual os brancos de Natal eram produto, que representavam e da qual se faziam campeões. Pensava, continuamente, nessa civilização — e desta vez, diante do meu pequeno auditório, dei a minha opinião sobre ela. O capitão e os outros amigos dispensaram-me uma atenção paciente e acolheram a minha alocução com o mesmo espírito com que a concebi. Não me consta que o curso da sua vida

tenha sido de qualquer modo afetado, mas tive posteriormente, longas conversas com o capitão e outros oficiais sobre a civilização do Ocidente. Eu dissera que a característica que a distinguia da civilização oriental era que, a primeira se fundava essencialmente na força. Os meus interlocutores puseram-me contra a parede e um deles — o capitão, se não me falha a memória — declarou-me: — Suponhamos que os brancos executem as suas ameaças. Como se traduzira a sua fidelidade ao princípio de não violência? Ao que eu respondi: — Espero em Deus que me dê a coragem e o bom senso de peruar-lhes e para impedir-me de arrastá-los à justiça. Não experimento cólera alguma contra eles. Apenas a sua ignorância e estreiteza de espírito me magoam. Sei que estão sinceramente persuadidos de que