As Lutas de Classes na U. R. S. S. — 3.º período, 1930-1941 — Os Dominados [1]

Portuguese of edition of the first volume of Bettelheim's Class Struggles in the USSR: Third Period

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As Lutas de Classes na U. R. S. S. — 3.º período, 1930-1941 — Os Dominados [1]

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EMP. CULTURAIS

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Obra n. 4207 Título:

AS LUTAS DE CLASSES NA U. R. S. S. 3. ~ PERIODO 193().1941 - OS DOMINADOS

Autor:

Charles Bettelheim

Colecção «Estudos e Documentos» Preço: Data

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~0->, acabando por conduzir a uma expropriação radical dos produtores directos. Nos tomos I e u da presente obra ainda não chegara a esta conclusão. Considerava que não fora senão progressivamente, através de uma série de «escorregadelas» e de «rupturas», que a União Soviética se encontrara metida na via do que eu chamava um «capitalismo de Estado» e que essas «escorregadelas» e essas «rupturas» resultavam, antes de tudo, de «circunstâncias históricas», da necessidade de enfrentar dificuldades que o Partido Bolchevique não conseguia ultrapassar de outro modo. Penso hoje -devido à repetição do mesmo tipo de desenvolvimento em todos os países em que um partido dirigente tomou o bolchevismo como guia da sua acção- que se deve atribuir um papel histórico decisivo a certas concepções do bolchevismo •: «missão histórica do proletariado» e do seu Partido; um partido funcionando como lugar imaginário da produção da verdade teórica e política; um socialismo que não é -segundo Lenine- senão «O monopólio capitalista de Estado ao serviço do povo inteiro» 10 • 'É certo que a formação ideológica bolchevique é complexa e contraditória e que se podem opor outros textos àqueles que conferem à revolução o objectivo do «salariado de Estado generalizado», mas o que finalmente prevalecerá é a assimilação do socialismo a um capitalismo de Estado. Desde Outubro de 1917, tais concepções contribuem para orientar as transformações económicas e sociais na via de uma «revolução capitalista». No entanto, até 1929, esta > dessa Revolução se refere a aspirações e a discurso, que esse aspecto se situa ao nível da representação e da ideologia. No entanto, este aspecto «socialistm> de Outubro teve- e ainda tem- consideráveis efeitos históricos. O mito da U. R. S. S., «país do socialismo>>, tende a sobreviver ainda hoje, a despeito do facto de a economia desse país conhecer uma separação particularmente radical entre os trabalhadores e os seus meios de produção, a manutenção e a extensão do salariado e uma submissão rigorosa da produção às imposições da acumulação da mais-valia, o que corresponde a uma forma extrema de capitalismo e leva a uma política militarista e expansionista. Se esta realidade está longe de ser universalmente conhecida, isto não se deve somente à força do mito fundador, mas a razões complexas e contraditórias. Assim, numerosos militantes «quereiiD> que o socialismo seja realizado algures e atribuem, portanto, à U. R. S. S. um socialismo imaginário. Inversamente, para os partidários do capitalismo «ocidental>> e para os adversários de toda a alteração social a identificação da U. R. S. S. com a «revolução» é de grande comodidade: sugere que toda a tentativa de emancipação social radical conduziria inevitavelmente à ditadura de um partido único, ao reino do arbitrário e de políticas repressivas destinadas a preservar os privilégios de uma minoria particularmente pouco inteligente e arrogante. No entanto, para além da acção do mito fundador de Outubro, da ignorância das realidades soviéticas ou da simples má-fé, a recusa de reconhecer o carácter capitalista da U. R. S. S. é devida também, muito frequentemente, a uma representação simplista e descritiva do capitalismo. Para quem adere a esta representação, o desenvolvimento capitalista só pode efectuar-se segundo uma «via normal», cujo «modelo» seria representado pela Inglaterra e pelos Estados Unidos. E, aliás, o que postula a vu!gata marxista, embora aos olhos de Lenine a chegada normal a esse desenvolvimento haja sido a da Alemanha e o pretenso «capitalismo organizado» que este país conheceu no fim da Primeira Guerra Mundial. As análises históricas e críticas concretas levam a ver as coisas de outra maneira, a reconhecer que não existem senão vias específicas de desenvolvimento das relações de produção e das 26

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forças produtivas capitalistas, que não existe apenas uma via inglesa e americana de desenvolvimento capitalista, mas também vias francesas, japonesas, russas, etc. Na realidade histórica, o capitalismo nunca tem senão formas de existência específica. Tal como existe uma multiplicidade de «pré-capitalismos», existe uma multiplicidade de «capitalismos». Estes últimos apenas têm de comum certas invariantes, tais como a produção de mais-valia, o salariado, a acumulação pela acumulação e as leis de funcionamento e de reprodução que daqui resultam. Forçoso é verificar que essas invariantes se encontram na formação social soviética e que a Revolução de Outubro, longe de pôr em causa as suas condições de existência, levou, pelo contrário, a reforçá-las. Esta Revolução pôde aparecer como «socialista» devido à ilusão política segundo a qual um poder estatal poderia «destruir» as relações de exploração. A «decomposição» da «antiga ordem social>> foi particularmente espectacular na Rússia dos anos de 1918 a 1920 e depois na dos anos de 1928 a 1931. Os indivíduos que até então ocupavam um lugar nos processos de produção e de reprodução ou na cena política são efectivamente eliminados em massa. Mas as transformações que daí resultam não fazem mais do que perturbar as relações sociais de dominação e exploração; não as fazem desaparecer. Isto foi mascarado pela eliminação dos antigos detentores do poder político e económico e pela instauração de um poder executivo fortemente centralizado, cujos representantes se exprimiam em termos radicais, o que deu a ilusão de que se fizera «tábua rasa do passado>> e se edificara uma ordem social inteiramente nova 11 • A insurreição de Outubro apresentou-se sob a forma ilusória de uma revolução socialista, quando, afinal, tinha aberto caminho a uma revolução capitalista de tipo específico. Outubro está, assim, na origem do que se pode chamar a grande ilusão do século X X 12 •

11 Os tomos 1 e n da presente obra, embora começando a libertar-se dessa ilusão, ainda estão por ela marcados. " Com estes dois últimos tomos, consagrados ao 3." período (19301941), acaba o nosso inquérito sobre as lutas de classes na U. R. S. S. Depois de 1941, com efeito, os fundamentos do sistema estaliniano são definitivamente lançados; ainda perduram largamente na U. R. S. S. de hoje. O período kruchtcheviano mereceria ser tratado na sua especificidade e não poderia ser reduzido nem a um simples episódio nem a um parêntese.

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.~~.''"""~-",l;if4> e uma citação deste texto no livro, de S. Grosskopf, L'Alliance ouvriere et paysanne en U. R. S. S. (1921-1928), Paris, Maspero, 1976, p. 393], mas «inquieta» os dirigentes soviéticos. Est. Doe. - 207 - 3

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estas peripécias trágicas são devidas a uma empresa insensata que arruína para muito tempo a agricultura soviética e que precipita, de maneira absurda, a U. R. S. S. numa história «cheia de barulho e de furor». Para seguir correctamente esta história, temos de remontar aos anos de 1928-1929 ".

SEOÇÃO I

Os anos de 1928-1929 Devido à política seguida em matéria de preços agrícolas e de fornecimento de produtos industriais aos camponeses (designadamente dos produtos de que estes careciam para desenvolver a sua produção), o ano de 1927 termina com um fiasco na colecta de cereais pelo Estado (e pelas cooperativas oficiais). A direcção do Partido decide -no início de 1928 - tomar «medidas de urgência», consideradas como as únicas praticáveis 11 • Em virtude destas medidas, os camponeses devem entregar ao Estado os cereais que detêm e estes ser-lhe-ão pagos a um preço oficial muito baixo. Em caso de recusa manifestada pelos camponeses, as autoridades recorrem às «medidas excepcionais>>'", que lhes permitem, em particular, aplicar o artigo 107. do Código Penal (da R. S. F. S. R.), isto é, proceder à requisição das disponibilidades camponesas, que são então confiscadas. Estes confiscos realizam-se com a ajuda de numerosos funcionários e de «brigadas operárias» vindas das cidades. Em princípio, estas medidas de constrangimento não são aplicáveis senão aos kulaks; de facto, aplicam-se a todos os camponeses, principalmente aos camponeses médios, que detêm a maior parte dos cereais. Estas medidas são postas em prática brutalmente, sobretudo a partir da Primavera de 1928, quando a penúria começa a fazer-se sentir seriamente. Desde logo, os camponeses pobres, que haviam mais ou menos apoiado as medi0

" Uma análise relativamente pormenorizada de que se passa então nos campos soviéticos foi apresentada no tomo II, da presente obra. O leitor poderá utilizá-la. Aqui não retemos senão os aspectos que põem em relevo a maneira como as forças sociais exteriores à aldeia (forças presentes no partido dirigente) utilizaram as contradições internas do campesinato, tendo em vista submeter este a novas relações de exploração. " Pravda, 11 de Março de 1928. " Cf. t. II da presente obra. 34

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das excepcionais durante os meses de Inverno, mostram-se-lhes hostis, a tal ponto que, no fim da Primavera, a quase totalidade dos camponeses se manifesta contra a política seguida para com a aldeia. Nos meados de Junho de 1928, M. I. Froumkine escreve, numa carta dirigida ao C. C.: «A aldeia, com excepção de uma pequena parte do campesinato pobre, está contra nós.» 13 O descontentamento faz-se sentir também nas cidades. A União Soviética conhece então a mais grave crise social e política após a insurreição de Cronstadt 14 • Em Julho, o C. C. decide revogar as «medidas excepcionaiS)), cujo carácter «temporáriO)) sublinha, e condena as aplicações que ocasionaram «violações da legalidade revolucionária)), perquisições ilegais, arbitrariedades administrativas, etc. '". No entanto, alguns meses mais tarde, perante os resultados «insuficientes)) da colecta, recorre-se de novo às «medidas excepcionaiS)) e ao constrangimento do campesinato. Aos camponeses são impostas quotas de entrega. Se não conseguem satisfazê-las, as autoridades infligem-lhes pesadas multas, sendo até muitas vezes expropriados e expulsos da aldeia. Assim, desde o Inverno de 1928-1929, assiste-se a uma «deskulakizaçãm) parcial; como aquela que se lhe seguirá, esta não atinge apenas camponeses ricos, mas também camponeses médios, e estas medidas implicam um abandono, de facto, da N. E. P.; são ressentidas como uma ofensiva contra o campesinato e destroem todos os sentimentos de simpatia que a aldeia poderia manifestar pelo poder.

SECÇÃO II

O retorno às entregas obrigatórias e a primeira vaga de colectivização (1929-1930) 1. O ataque frontal contra o campeslnato durante a colheita de 1929

Ao mesmo tempo que fixava objectivos relativamente ambiciosos mas aparentemente realizáveis ao desenvolvimento dos kalkhozes e dos sovkhozes, a XVI Conferência do Partido (23-29 de Abril de 1929) procura tranquilizar os camponeses pobres e 13

Citado por R. Lorenz, em Sozialgeschichte der Sowjetunion (1917-

1945), Francoforte, Suhrkamp, 1976, p. 173. 14

Cf. ibid., p. 174. " Cf. K. P. S. S. (1953), t. n, pp. 391 e segs., sobretudo p. 395.

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médios, que continuam a ser considerados como a figura central dos campos. A Conferência reitera a condenação das «violações da legalidade socialista»'". No entanto, na véspera da colheita do Verão de 1929, a despeito de todas as promessas anteriores, o governo fixa entregas obrigatórias análogas às do «comunismo de guerra». As autoridades locais avaliam, elas próprias, os «excedentes de cereais» da aldeia e fixam as «normas de entrega» de cada exploração: trata-se de forçar os camponeses a cumprir os «planos de entregas locais». Considerando o nível em que a maior parte das normas são fixadas, trata-se de confiscar à maioria dos camponeses o produto do seu trabalho, ou seja, de uma pilhagem selvagem do campesinato. Comissões especiais «controlam» a realização dos planos de entrega. Aos sovietes de aldeia (praticamente controlados pelo Partido) é atribuído o direito de impor pesadas multas e de modificar a repartição das entregas obrigatórias; a fim de reduzir o fardo insuportável que estas entregas sobre eles fazem recair, os camponeses pobres conseguem que as quotas impostas aos camponeses ricos e remediados sejam acrescidas. Estas quotas atingem níveis tais que se torna impossível satisfazê-las. Os camponeses deste modo tributados são obrigados a vender não só o seu gado e o seu equipamento mas também os utensílios domésticos e mesmo os edifícios de exploração e de habitação, a fim de comprarem (ilegalmente) no mercado os cereais que devem entregar ao Estado. Muitos camponeses são condenados a desaparecer ou forçados a reduzir as suas sementeiras e a liquidar parte do seu capital de exploração, morto ou vivo. Só em 1929, o número de cavalos baixa em 2,6 milhões e o de bovinos em 7,6 milhões de cabeças. Esta expropriação de uma parte do campesinato exigiu uma vasta mobilização dos aparelhos do Partido e do Estado, o recurso a meios militares e policiais, e fez recuar as superfícies semeadas em 1929, assim como o número de cabeças de gado ". A vontade do poder, desejoso de se apropriar do máximo de produtos agrícolas e de enfraquecer o campesinato, sobrepõe-se, assim, à preocupação de desenvolver seriamente (e mesmo de mantê-lo) o nível das forças produtivas da agricultura. Os objectivos de luta da nova classe exploradora urbana têm mais peso do que as considerações económicas ou de «aliança» com o campesinato. 16

Cf. K. P. S. S. (1953), t. II, pp. 455 e segs. Iou A. Mochkov, Zernovdfa Problema v gody Splochnoi Kollektivizatsii (1929-1932 g. g.), Moscovo, 1961, pp. 61 e segs.; R. Beermann, «The grain problem and anti-speculation laws», Soviet Studies, n." 19, 1967-1968, pp. 126-128; e R. Lorenz, op. cit., pp. 175-176. 17

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_,,~--. Por exemplo, simples rixas camponesas são qualificadas pelos tribunais como «actos de terrorismo» e assimiladas a actividades «Contra-revolucionárias», podendo acarretar a pena capital 00 • ,:É assim que, no ralon do gigantesco kolkhoz que tem o nome de Gigant, de 1200 fogos «deskulakizados» em 1930, 400 são depois oficialmente reconhecidos como fogos de serednyaki (camponeses médios); numa aldeia ucraniana, perto de 85 1% de fogos «deskulakizados>> (e geralmente condenados à deportação) são em seguida reclassificados como serednyaki. Em princípio, esses deportados, se tiverem sobrevivido, são autorizados a regressar à sua aldeia; na realidade, tal autorização fica muitas vezes sem efeito. Os inquéritos mostram que no início de 1930, em numerosos casos, foram «deskulakizados» serednyaki sob pretextos fúteis: porque tinham vendido uma vaca, ou mesmo feno, alguns meses antes 51 • No início de 1930, a repressão anticamponesa é tão ampla que os caminhos-de-ferro são sobrecarregados com os comboios de deportados, muitos dos quais morrem no caminho; os camponeses chamam a estes comboios os «comboios da morte». Neles se empilham famílias inteiras e, muitas vezes, mulheres e crianças cujos maridos e pais foram executados como «contra-revolucionários». O número de comboios de deportados é tão grande que constitui, reconhece-se oficialmente, «um fardo que está acima das forças do Estado» ' 2 • O B. P. decide, então, contingentar os "' Cf. M. Lewin, «L' État et les classes sociales en U. R. S. S., 19291933», Actes de la recherche en sciences sociales, Fevereiro de 1976, pp. 26-27, que cita, designadamente, Sudebnaia Praktica, n." 7, 1931. " Cf. o artigo, de Angarov, «Les Soviets ruraux et la !iquidation des kou1aks comme classe», Bolchevik, n." 6, 1930. " Syrtsov, Bolchevik, n." 5, 1930, p. 54.

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meios de transporte atribuídos às diferentes regiões com esta finalidade". A publicação do artigo de Estaline de 2 de Março de 1930 não modificou a sorte de centenas de milhares de camponeses expropriados; continuam encerrados em campos provisórios, onde muitos perecem. As expropriações e deportações que acompanham a retomada da «colectivização» no Inverno de 1930-1931 sucedem-se, portanto, praticamente sem interrupção, à deportação dos expropriados do Inverno de 1929-1930. Dai decorre o desfile interminável dos «comboios da morte», a respeito dos quais A. L. Strong escrevia em 1930: Numerosas vezes, no decurso da Primavera e do Verão, vi esses comboios em movimento ao longo das vias férreas: um espectáculo doloroso de homens, mulheres e crianças desenraizados ••. V. Serge testemunha também esta repressão e os seus efeitos (que prosseguem muito para além de 1930 e 1931): Em inteiros comboios, os camponeses deportados partiam para o glacial Norte, para as florestas, estepes e deserto, população desprovida de tudo; e os velhos «rebentavam» no caminho, enterravam-se os recém-nascidos em taludes, semeavam-se em todas as solidões pequenas cruzes de ramos e madeira branca. Populações que arrastavam em carroças todos os seus pobres haveres lançavam-se sobre as fronteiras da Polónia, da Roménia, da China, que atravessavam -não por inteiro, certamente-, apesar das metralhadoras '". O facto de se ter tomado kolkhoziano não coloca o camponês ao abrigo da deportação como «kulak». Não somente pode sempre o seu «passado>> ser interpretado e dar lugar a condenação mas também a sua atitude presente pode ser o «sinal» de que permanece «pró-kulak». Vive, portanto, sob a constante ameaça de uma condenação. Tais condenações não faltam, tal como as que punem o «não-respeitO>> da «propriedade colectiva». " Cf. M. Lewin, La Paysannerie ... , cit., p. 447. " Cf. A. L. Strong, The Soviet Conquer Wheat, Nova Iorque, H. Holt, 1931, p. 88. " Victor Serge, Mémoires d'un révolutionnaire, Paris, Le Seuil, reed. «Points-Histoire», 1979. Est. Doe. - 207 - 4

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Na realidade, as exigências crescentes do Estado, no que con· cerne às quantidades de cereais a colectar e a desconfiança da maior parte dos quadros do Partido e da sua direcção relativamente aos camponeses fazem que as autoridades persigam os kolkhozianos (dergaiout kolkhoznikov), segundo a expressão utilizada em Julho de 1931 pelo comissário da Agricultura lakovlev. Protesta este contra o que chama «a massa das actividades antikolkhozianas», declarando que os membros dos kolkhozes se tornaram «um objecto de arbitrariedade pura» (polnyi pro'izvo{) ••. Os protestos de alguns dirigentes (que serão «depurados» mais tarde) para nada servem. A brutalidade e o arbítrio prosseguem; quanto aos kolkhozianos, «cooperam» cada vez menos, na medida em que ressentem a pretensa «colectivização» como uma «estatização» ou uma «expropriação»"'. São também pronunciadas condenações por aquilo que é qualificado de «actos de negligência». O C. C. convida a que sejam sancionados sem «nenhuma indulgência»". A noção de «negligência>> é das mais extensivas, visando mesmo o que as autoridades classificam de «indolência irresponsável», assimilada a «sabotagem». Ora, uma parte dessa pretensa «sabotagem» não é mais do que a recusa dos kolkhozianos a submeterem-se a directivas insensatas emanadas das autoridades, que se substituem aos kolkhozianos para decidir onde e quando semear, dando ordens absurdas, como a de «semear sobre a neve» («para ganhar tempo»!) ••. As razões que levam a prender e deportar os camponeses e a exercer uma repressão de massas são, portanto, múltiplas. Os números oficiais minimizam a amplitude daquelas medidas. É assim que, na história do Partido, editada em 1962, se admite que teria havido um pouco mais de 240 000 famílias deportadas •o, ou ., Cf. A. Ia Iakovlev, Vaprosy Organizatsii Sotsialistitcheskogo Selskogo Khoziaistva, Moscovo, 1933, p. 184, citado por M. Lewin em «L'État et les classes sociales ... », art. cit., p. 12, n.' 19. " A expressão «okazionivanie krestian» é mesmo utilizada por um delegado camponês no XVI Congresso dos Sovietes; explica ele que isso quer dizer «privar os camponeses dos resultados do seu trabalho». Cf. Chestoi Sezd Sovetov e cf. M. Lewin, La Paysannerie ... , cit., p. 12, n.' 18. " Cf. P. S., n.' 5, 1933, p. 62 . ., Estalme, com efetto, declarara que os kolkhozianos não tinham experiência e que era necessário decidir sem eles, ou mesmo contra a sua opinião. Foi assim que Kirov pôde dar a ordem de «semear sohre a neve» e depois prender os que se recusaram a fazê-lo (cf. S. Krasilov, Sergei Mironovitch Kirov, Moscovo, 1964, pp. 146-147 e 176, citado por M. Lewin, em La Paysannene ... , cit .. p. 13, n." 23 e 24). •• Istoriia K. P. S. S., Moscovo, 2.' ed., 1962, p. 143.

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seja, mais de 1 200 000 pessoas 01 , mas este número só abrange o período de 1930 a fins de 1932 e as regiões de «colectivização completa». As medidas de novo aplicadas a partir dos fins de 1930 são em parte análogas às que haviam sido tomadas um pouco mais cedo (prisões, deportações, etc.), mas são aplicadas com acrescido vigor. Em nome da «deskulakização», recomeça-se a condenar e a deportar não só verdadeiros camponeses ricos mas também qualquer camponês, desde que suspeito ou acusado (frequentemente devido a denúncias não verificadas) de simpatia «pró-kulak» e qualificado de «podkulatchnik» ••. A «colectivização em massa» é imposta assim, sancionando-se duramente toda a reticência perante ela. A deportação é a sanção mais corrente; mas, quando demasiados camponeses protestam, a O. G. P. U. (que está autorizada a executar sem julgamento) fuzila alguns no local «para acalmar os espíritos»."'· Os arquivos da região de Smolensk contêm numerosos relatórios que dão ideia da amplitude e da brutalidade da repressão, bem como do meio que ela suscita, não só nos campos mas também nas cidades. Com efeito, muitos operários continuam a ter as suas famílias na aldeia. O medo é tal que a passividade se expande: enquanto outrora eram necessários dois milicianos para acompanhar um homem preso, em 1931 basta um único miliciano para escoltar um grupo de prisioneiros. Para muitos, a prisão quase parece um alívio, em comparação com a angustiada espera. São presas famílias inteiras, incluindo crianças "'. Certos pais preferem mesmo «acabar» com os seus jovens filhos a vê-los assim morrer"". Desenvolve-se uma verdadeira guerra anticamponesa que culmina em 1932-1934, quando a combinação de más colheitas, de requisições maciças de cereais e da redução ao mínimo das quantidades de grão reenviadas para as aldeias, onde há falta de víveres, condena milhões de camponeses à morte pela fome ou a subalimentação. A manutenção, a qualquer preço, de requisições maciças de produtos alimentares pelos organismos do Estado encarregados da colecta e a recusa de socorrer as regiões atingidas 61 Estimativa de M. Lewin, La Paysannerie ... , c1t., p. 449. " Literalmente «subkulak»; cf. t. II da presente obra. " Cf. A. Ciliga, Dix ans au pays du mensonge déconcertant, Paris, Champ Libre, 1977, p. 106. " Cf. documentos registados como V. K. P. 159 nos arquivos de Smolensk, cits. por M. Faisod, op. cit., pp. 279-380. •• Ver, designadamente, a este propósito, A. Ciliga, op. cit., p 213.

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pela penúria explicam-se em parte por uma política de exportação de cereais (destinada a permitir a compra de equipamentos ao estrangeiro) e pela prioridade assegurada ao aprovisionamento das cidades. Os esposos 'Webb, grandes admiradores da «colectivizaçãm> realizada em tais condições, «justificam» as «condenações à morte pela fome» escrevendo: [... ] Os kolkhozes que deliberadamente não semearam nem trabalharam os seus campos não receberam nenhum auxílio quando se encontraram sem pão, a fim de não encorajar a insubordinação, e, nos casos mais graves, aldeias inteiras foram libertas da fome porque as arrancavam a tempo da sua terra natal; [transportando os famintos] para regiões recuadas, [evitava-se que a sua presença exercesse uma] acção desmoralizadora 66 •

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Admite-se que a repressão possa ensinar «honestidade» aos kolkhozianos. Assim, um membro do C. C., Chaboldoev, declara na XVII Conferência do Partido (30 de Janeiro-4 de Fevereiro de 1932) que eles «não são suficientemente honestos perante os interesses do Estado» 67 • Para ensinar os kolkhozianos a serem «honestos», o C. C. concita a castigar «sem indulgência» a recusa de entregar os cereais ••. A campanha pró-colecta torna-se uma prova de força ou, como diz Kaganovitch, «a pedra-de-toque da nossa força ou da nossa fraqueza, da força e da fraqueza dos nossos inimigos». Toda a «indulgência» dos quadros de base para com os camponeses (por exemplo a «indulgência» que podem revelar os quadros que pedem uma redução das entregas impostas aos camponeses atingidos pela fome) é considerada como uma «ajuda trazida ao inimigo» e é sancionada como tal. Para poder «castigar» os camponeses é necessário desenvolver ainda mais o aparelho repressivo, elaborar novas leis ou alargar a interpretação das que estão em vigor. •• Cf. Sidney e Béatrice Webb, Le communisme est-il une nouvelle civilisation?. segundo a tradução russa aparecida em Moscovo em 1957, cit. por Maksudov, em «Pertes subies par la population de l'U. R. S. S., 1918-1958>>, Cahiers du monde russe et soviétique, Julho-Setembro de 1977, pp. 223-265 (citação a p. 232). "' Cf. Semnadtsataia Konferentsiia V. K. P., (b), Moscovo, 1932, p. 208, cit. por M. Lewin, em «Society and the Stalinist State in the period of the five years Plans», Social History, Maio, 1976, p. 163. •• Cf. P. S., n." 5, 1933, cit. segundo M. Lewin, em «Society and the Stalinist State ... », op. cit., p. 164.

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É assim que se promulga a lei de 7 de Agosto de 1932 (a que os camponeses chamam lei do 7 /8), que alarga o arsenal repressivo. Permite por exemplo, condenar a dez anos de deportação os esfomeados' que tenham apanhado espigas. Dezenas de ~lhares de camponeses, incluindo crianças, são deportados em virtude desta lei. Estas condenações vão acrescentar-se às medidas arbitrá~ias decididas localmente por diferentes comissões. Juntam-se, assim, às condenações cada vez mais numerosas pronunciadas por aplicação do artigo 58." do Código Penal da R. S. F. S. R. Interpretando este artigo de forma extensiva, os tribunais imputam as más colheitas, o estado lamentável do material agrícola, etc., a «prejudicadores», que são presos, deportados ou encerrados em campos. A duração das penas pode ser de dez ou mais anos ••. O carácter de guerra anticamponesa da fome de 1932-1934 surge igualmente através de uma troca de cartas entre Estaline e o escritor soviético Cholokhov. Em 16 de Abril de 1933, este último escreve a Estaline para protestar contra actos revoltantes de que os camponeses são vítimas, e que ele acredita (ou finge acreditar) serem «excessos locais», que levam os camponeses à privação de cereais e a prisões em massa, incluindo membros do Partido 70 • Na sua resposta (publicada somente trinta anos mais tarde), Estaline admite que possam ter sido cometidos excessos, mas afirma que a sua importância é pequena, porque, diz ele 71 :

[... ] Os honrados cultivadores da vossa região, e não somente da vossa região, dedicaram-se à sabotagem e estavam resolvidos a deixar os operários e o Exército Vermelho sem grão. O facto de a sabotagem ser silenciosa e aparentemente sem violência (não havia derramamento de ., O texto deste artigo 58. • figura no Código Penal da R. S. F. S. R. promulgado em 1926. Está redigido por forma tão vaga que permite uma interpretação extremamente extensiva, como se póde venficar no decurso dos anos 30. Ver texto do artigo 58." em R. Conquest, The Great Terror, Londres, Macmillan, 1968, pp. 557 e segs. (trad. La Grande Terreur, Paris, Stock, 1970). No livro de A. Soljenitsyne, L'Archipe/ du Goulag, Paris, Le Seuil, 1974, t. I, pp. 48 e segs., são dados exemplos da interpretação extensiva deste texto, designadamente segundo a obra publicada, sob a orientação de Vychinski, com o titulo Ot Tiourem k Vospitatelnym Outchrejdeniiam, Moscovo, 1934. 70 Encontrar-se-ão extractos desta carta em V. P. Danilov, Otcherki lstorii Kollektivizatsii Se/skogo Khoziaistva v S. R., cit., p. 55. 71 Cf. Pravda, 10 de Março de 1963, e também a obra acimà citada de Danilov, p. 56.

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Í;·"'J"'""' .yr.'P às mais terríveis experiências da guerra contra a Alemanha nazi". Próximo do fim de 1933, a «pressão)) exercida sobre o campesinato parece abrandar um pouco, mas sem acarretar a anulação das medidas. Em 1934, a repressão continua a flagelar os camponeses soviéticos, incluindo os kolkhozianos. O número das vítimas camponesas desta repressão é de impossível avaliação exacta. Mas podem ser retidas ordens de grandeza. É assim que o demógrafo soviético Urlanis, utilizando estatísticas oficiais do segundo Plano Quinquenal, é levado a admitir que em 1933 teriam perecido muitos milhões de pessoas 74 • A subida brutal da mortalidade em 1932-1934 deve-se, simultaneamente, à fome dos camponeses que ficaram nas suas regiões de origem e à sobremortalidade que atinge as populações deportadas para os campos de concentração ou para regiões inóspitas (populações que são então essencialmente rurais). Estima-se geralmente (para o período que cobre o fim do primeiro Plano Quinquenal e o início do segundo Plano) em cerca de dez milhões o número de camponeses deportados ". Estes números não podem " Existem sintomas de outros protestos além do de Cholokhov, por exemplo um de R. Terekhov, secretário do C. C. do Partido da Ucrânia, que descreve a situação dramática dos campos da sua República. Estaline, a quem se dirigiu, chama-lhe «inventor de fábulas» (cf. Pravàa, 26 de Maio de 1946). Escritores e testemunhas oculares descreveram a situação de aldeias desertas, com «casas de janelas tapadas com tábuas, material abandonado nos campos» (Memórias, inéditas, de A. E. Kosterine, cit. por R. Medvedev, Le Stalinisme, Paris, Le Seuil, 1972, p. 143). " Cf. Winston Churchill, The Second World War, vol. rv, Londres, pp. 447-448. As palavras trocadas são as seguintes: - Os sofrimentos e a tensão desta guerra foram para vós tão grandes como durante a aplicação da política das explorações colectivas? -Oh. não, essa política foi uma luta assustadora [ ... ]. - [ ... ] Lidáveis com milhões de pessoas modestas. -Dez milhões [ ... ], foi horrível e durou quatro anos. " Cf. B. C. Urlanis, Volny i Narodonasselenie Evropy, Moscovo, 1960, e a contribuição do mesmo autor à publicação Nasselenie i Narodnoe Blagosostoianie, Moscovo, 1968, cits. por Maksudov, art. cit., p. 250. " Cf. M. Lewin, La Paysannerie ... , cit., p. 450.

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ser acrescentados aos precedentes, porque uma parte daqueles que morrem na deportação estão sem dúvida incluídos no número de vítimas indicado implicitamente por Urlanis, pelo menos até 1933; depois de 1934, um número considerável (impossível de avaliar) de camponeses deportados morre devido às privações. A «lógica» profunda do processo histórico que acaba de ser descrito a traços largos é uma lógica de classe, a de uma revolução capitalista que destruiu até à raiz as aquisições da revolução camponesa de 1917. Os seus agentes são os quadros do Partido e do aparelho de Estado. O triunfo da revolução capitalista exige que os camponeses que trabalham como pequenos produtores independentes sejam aniquilados. Tal como Marx já escrevia a propósito da chamada «acumulação primitiva» (que se limita a repetir-se aqui, como se repetiu nos países coloniais, quando as burguesias imperialistas ali procederam à expropriação dos aldeões e ao «desenvolvimento do capitalismo»): A sua aniquilação, a transformação dos meios de produção individuais e esparsos em meios de produção socialmente concentrados, da propriedade anã do grande número em propriedade colossal de alguns, a expropriação da grande massa popular da sua terra, do seu solo, dos seus géneros alimentícios e dos seus instrumentos de trabalho, esta expropriação assustadora e difícil da grande massa popular, eis a pré-história do capital. Ela engloba toda uma série de métodos violentos 76 • A expropriação dos camponeses que ocorre na U. R. S. S. no decurso dos anos 30, nada tem, evidentemente, a ver, a despeito dos discursos sobre a «construção do socialismo», com aquilo a que Marx chamava «a negação da propriedade capitalista privada», que, segundo ele, deve restabelecer não a propriedade privada, mas sim a propriedade individual, fundada sobre as aquisições da era capitalista: a cooperação e a posse comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho 77 •

78 Cf. K. Marx, Das Kapita/, liv. r, cap. xxrv, § 7 (p. 802 da edição de 1933 do Instituto Marx-Engels-Lenine, Verlag für Litteratur und Politik, Viena). As passagens sublinhadas figuram no texto. A tradução francesa do t.77nr das E. S., p. 204, está incompleta. K. Marx, Das Kapital, liv. r, cit., p. 803. (As passagens sublinhadas fazem parte do texto.)

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CAPíTULO II A AGRICULTURA «SOCIALISTA» NO DECURSO DOS ANOS 30

Segundo a descrição oficial, a agricultura soviética no fim dos anos 30 compreende essencialmente três tipos de unidades de produção «socialistas»'": os sovkho;;es (ou explorações do Estado) as S. M. T. {estações de máquinas e tractores) e os kolkho;;es (ou «explorações colectivas>>). Às duas primeiras formas de actividade agrícola é atribuído carácter «superior» ao dos kolkho;;es, porque dependem directamente do Estado". Esta classificação pouco nos diz acerca das relações sociais reais em que estão inseridos os produtores directos. Todavia, permite distinguir entre os assalariados dos sovkho;;es e das S. M. T. -que conhecem uma situação análoga à dos operários da indústria (de que falamos na segunda parte deste volume)- e os kolkhozianos. A situação destes últimos requer urna análise específica que leva a que se fale de um sistema kolkhoziano e que se oponha a realidade deste à ficção do discurso oficial. Ê necessário começar por clarificar esta oposição, antes de proceder a uma análise mais pormenorizada dos efeitos económicos da «socializaçãm> da agricultura e das suas consequências sobre as relações de classe.

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SEOÇÃO I

O «kolkhoz» como ficção e como realidade

O discurso oficial reproduz indefinidamente a imagem de um certo «kolkho;;-ficção», ficção que se desenvolve no domínio da política, do jurídico e do económico, sem falar da arte (do cinema e do romance, conforme as normas do «realismo socialista»).

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" Cf. Manuel d'Économie politique, editado pela Academia das Ciências da U. R. S. S., Paris, E. S., 1950, 388-389. " A repartição da população rura entre estas diferentes formas de actividade agrícola foi indicada anteriormente (cf. supra).

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Para este discurso, o kolkhoz é o resultado de uma politica de «adesão voluntária» dos camponeses, que, com a «ajuda» do Estado, entram espontaneamente e em massa na via da agricultura colectiva. Resulta daqui o nascimento de «cooperativas socia'listas» sob a forma jurídica de arte[ (uma das formas tradicionais russas de cooperação na produção), que tem à sua disposição, colec· tivamente, «OS instrumentos agrícolas, o gado, as sementes, as forragens destinadas ao gado colectivo, as instalações indispensáveis à boa marcha da economia colectiva» 80 • A sua gestão é assegurada pela assembleia geral dos kolkhozianos, ao passo que a administração central é confiada a um presidente eleito e controlado por essa mesma assembleia geral. Para as principais operações culturais, os kolkhozes recebem o concurso das S. M. T., que concentram o grosso das ferramentas agrícolas. Os rendimentos obtidos pelos kolkhozianos a titulo de «exploração colectiva» dependem unicamente do seu trabalho 81 • A partir de 1937, o Partido, a imprensa, os filmes soviéticos, etc., proclamam a «vitória estrondosa do socialismo» na agricultura e a melhoria das colheitas em terras amplamente dotadas de tractores e máquinas agrícolas R2, a tal ponto que os trabalhadores dos campos conhecem uma prosperidade sem precedentes. A realidade é totalmente diferente e muito mais complexa. Sabemos já o que se passa com a adesão «voluntária» dos camponeses ao kolkhoz e com a repressão que sobre eles se abateu no decurso da colectivização e depois, a fim de submetê-los à «disciplina» exigida pelo sistema No entanto, para apreender a realidade da agricultura «socialista», é necessário dizer algumas palavras sobre os efeitos económicos da «transformação socialista» dos campos, das incidências desta sobre as condições de existência das massas rurais, das relações sociais internas do kolkhoz e da subordinação deste às exigências da acumulação estatal. Só depois de feito este exame se poderá tentar caracterizar o «sistema kolkhoziano» e o papel que ele desempenha no conjunto das relações económicas e sociais que se desenvolvem no decurso dos anos 30.

" Cf. Manuel d'Économie Politique, cit., p. 392. lbid., pp. 394-395. " Ver, por exemplo, a descrição da situação da agricultura soviética em 1937, em Histoire du parti communiste (bolchevik) de l'U, R. S. S., Paris, B. E., 1939, pp. 316-317. 81

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CHARLES BETTELHEIM

SECÇÃO II

Os efeitos económicos da «socialização» da agricultura

Os efeitos económicos da «socialização» da agricultura podem ser apreendidos a diversos níveis. Aqui reteremos essencialmente os dados relativos à produção e às punções exercidas sobre a agricultura (as quais foram tornadas possíveis pelas novas estruturas agrárias) e os relativos às condições de existência dos kolkhozianos, que representam doravante a grande massa dos trabalhadores dos campos. 1. A crise da produção agricola e da criação de gado

A transformação das estruturas agrárias não ocasionou o amplo desenvolvimento das colheitas e da criação de gado que o Partido esperava. Pelo contrário, foi acompanhada, globalmente, por uma crise da produção agrícola. Esta crise -que não termina nos anos 30 mas se prolonga muito para além deles- não afecta igualmente as diferentes produções da agricultura (algumas delas, particularmente favorecidas, até lhe escapam), mas atinge os seus ramos essenciais, em primeiro lugar o mais importante de todos: a produção de cereais. Dado o papel essencial desta última, daremos algumas indicações concernentes à sua evolução no decurso dos anos 30 83 ; estas indicações referem-se a todas as formas de agricultura, «socializadas» ou não ••. Em 1930 (ano em que as sementeiras ocorreram quando abrandara a «pressão» pró-colectivização), a colheita bruta de cereais " Nas páginas que seguem, considerar-se-ão essencialmente números expressos em unidades flsicas, que são mais «fiáveis~ do que as avaliações em preços. Apoiar-nos-emos, sobretudo, em estatísticas recentes. Com efeito, estas mostram que certas estatísticas de antes da guerra dissimulavam em parte a profundidade da catástrofe que a «colectivização por cima~ fez sofrer à produção agrfcola. No entanto, mesmo as estatísticas recentes, quando expressas em «valor» (isto é, em «preços» pretensamente constantes), continuam a dtssimular tal profundidade. .. Quanto mais o tempo passa, mats a crise agrícola é a da agricultura «socializada» propriamente dita. Assim, em 1940, os kolkhozes e os sovkhozes dispõem, respectivamente, de 81,3 'o/o e de 8,8% das terras semeadas, que se elevam então a 150,4 milhões de hectares, contra 113 milhões em 1928 (cf. N. Kh . ... 1958 g., pp. 386-387 e 396, e Sotsialistitcheskoe Stroitelstvo S. S. S. R., Moscovo, 1936, p. 278).

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eleva-se a 77,1 milhões de toneladas ••. A partir desta data, a colheita desaba de maneira quase contínua até meados dos anos 30. A pior colheita é a de 1936. Pode elaborar-se o quadro seguinte: Produção de cereais (Em milhões de toneladas)

1930 1936 1937 1938 1939

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77,1 56,1 87 67,1 67,3

Portanto, a «colectivização por cima», que devia proporcionar um «salto em frente» à produção cerealífera da U. R. S. S., não permitiu, de modo nenhum, obter os resultados desejados. Pelo contrário. Para as outras culturas alimentares, a evolução da situação é um pouco menos má, mas está longe de compensar a crise cerealífera. As produções animais conhecem também um profundo declinio. O índice representativo destas produções (base 100 em 1913) atingira 137 em 1928 e 129 em 1929, mas desce a 65 em 1933 e somente atinge 120 e 114 em 1938 e 1940, respectivamente". O recuo das produções animais é, antes de mais, a consequên-



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" Este número é o que reteve M. Lewin, em «Taking grain: Soviet policies of agricultura! procurement before the Wan>, contribuição à obra Essays in Honour o/ E. H. Carr, S. Abransky (ed.), Londres, Macmillan, 1974, p. 307. Trata-se de uma avaliação mínima: o número mais vezes citado é, com efeito, o de 83,5 milhões de toneladas . ,.. Estes números correspondem às fontes seguintes: para 1930 e 1939 ver a nota precedente; para 1936, as estatísticas soviéticas sobre a colheita de cereais são extremamente confusas. Dissimulam uma situação catastrófica. O número de 56,1 milhões de toneladas corresponde a uma avaliação optimista. 'É calculado pela diferença entre a produção média oficialmente anunciada para 1933 a 1937, ou seja, 72,9 milhões de toneladas (cf. Selskoel Khoziaistvo S. S. S. R., Moscovo, 1960, p. 196), e as produções dos anos de !933, 1934, !935 e 1937 (cf. A. Nove, An Economic History ... , cit., p. 239). Para 1937 a 1939, cf. M. A. Vyltsan «Kolkhoznyi Stroi Nakanounye Velikoi: Otetchestvennoi Voiny», lstoriia S. S. S. R., Janeiro-Fevereiro de 1962, p. 43. Segundo esta mesma fonte, a colheita de 1940 (ou seja, 76,2 milhões de toneladas) ainda não atingiu os 77,1 milhões de toneladas de 1930. " N. Kh . ... , 1958 g., p. 350.

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cia do abate maciço de gado a que procede a quase totalidade dos camponeses entre 1928 e 1930, já que a colecta e a «colectivização por cima>> são sentidas como uma verdadeira expropriação. A destruição do gado prossegue até 1933. Citando apenas a evolução do número de cabeças de gado grosso (bovino), este desce de 70,5 milhões em 1928 para 52,5 milhões em 1930. Atinge um mínimo em 1933 (38,4 milhões), para voltar a subir fracamente em 1934 (42,4 milhões)". Em 1938, o número ainda não passa de 50,9 milhões ••, muito inferior ao de 1928, que só se reencontrará muito depois da guerra. A situação não é melhor para os outros animais. A redução do número de bovinos implica uma baixa das forças de tracção animal, que é muito mais grave porque o número de cavalos também decai muito, passando de 33,8 milhões de cabeças em 1928 a 17 milhões ou 18 milhões no fim dos anos 30 ••. A baixa do capital vivo repercute-se desfavoravelmente sobre as quantidades de adubos naturais de que a agricultura dispõe. O recuo do capital vivo é compensado, assaz rapidamente, pelo esforço de investimento em meios de produção de origem industrial, que substituem o que foi destruído. Assim, a partir de 1935, as forças de tracção da agricultura ultrapassam ligeiramente, graças à mecanização, as que estavam disponíveis em 1928 •t, e a progressão continua após 1935. Este aumento dos factores materiais de produção postos à disposição dos campos não impede que a crise agrícola se prolongue na segunda metade dos anos 30. Em definitivo, o factor decisivo desta crise é o factor humano: a resistência camponesa à «colectivização)) e à colecta forçada, a revolta contra relações de produção e imposições que as mas· sas camponesas não aceitam. Traduz-se esta revolta, designadamente, pela tendência para trabalhar relativamente pouco as

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" Cf. Sotsia/istitcheskoe Stroitelstvo S. S. S. R., cit., pp. 342-343. Outras fontes dão 33,5 milhões de cabeças em 1933 (cf. Oukreplenie Materialno-Tekhnitcheskoi Bazi Kolkho;;nogo Stroia vo V torai Piatiletki 1933-1937 g., Moscovo, 1959, p. 26). " Cf. Selskoe Kho;;iaistvo S. S. S. R., cit., pp. 263-264. " Cf. Ch. Bettelheim, L'Economie soviétique, Paris, Sirey, 1950, p. 87 em que estão indicadas as fontes soviéticas de antes da guerra. el I. E. Zelenii, no artigo intitulado «Kolkhozy i Selskoe Khoziaistvo S. S. S. R. v 1933-1935 gg.», lstorilà S. S. S. R., n." 5, 1964, p. 6, nota 19, estima que a agricultura soviética dispõe em 1928 de uma força de tracção que se eleva a 11,68 milhões de cavalos-vapor e a 12,56 milhões em 1935 (contando apenas os cavalos de trabalho e convencionando que 1 tractor = 2 cavalos).

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terras «colectivas» e para executar com negligência as tarefas impostas 92 • Esta resistência, a princípio activa e depois sobretudo passiva, é acompanhada por uma baixa do nível de vida nos campos. Os efeitos da resistência são agravados pelo enfraquecimento físico do campesinato, que está subalimentado, entregue à fome, e ao qual são retirados à força milhões de homens na força da idade, quer vão trabalhar «voluntariamente» na indústria, na esperança de obter melhor rendimento, quer sejam deportados para regiões inóspitas, ou, a maior parte das vezes, utilizados na indústria da madeira, nas minas e nos grandes estaleiros. Em Março de 1931, no VI Congresso dos Sovietes, Iakovlev descreve o comportamento dos kolkhozianos, tal como tem sido frequentemente observado; segundo ele, os kolkhozianos levantam-se tarde, às 8 horas da manhã, mesmo nos períodos de ponta, depois conversam com os vizinhos, sem se apressar; no momento em que estão prestes a partir para o campo chega a hora do pequeno-almoço camponês. Durante as horas de actividade, o trabalho é executado com negligência, a lavoura é feita à pressa e deixa o solo em mau estado; a sementeira é também feita de qualquer forma; durante a ceifa, o cereal é tão mal carregado que cai das carroças e fica misturado com a palha 93 • A resistência perturba fundamentalmente o funcionamento da agricultura «colectiva». Explica que os investimentos efectuados pelo Estado com vista a aumentar a produção agrícola tenham conduzido a resultados mínimos. A gravidade da crise da agricultura e da pecuária consecutiva à «colectivização por cima» não permite concluir que esta tivesse sido «errada», porque tal conclusão passa ao lado da lógica de classe que levou à colectivização. Com efeito, do ponto de vista do poder, descobriu-se que a > "". É, portanto, relativamente aos kolkhozianos, ao mesmo tempo juiz e parte, como podia sê-lo o senhor feudal . ., Cf. o artigo de Sofrochkine e Tchouvikov, «0 normakh vyrabotki v kolkhozakh», in Sotsialistitcheskoe Selskoe Khoziaistvo, n. • 4, 1940. "' Cf. H. Wronski, Rémunération ... , cit., pp. 28 e segs. e 32 e segs. m K. Marx, Le Capital, E. S., t. n, p. 227. ""' A partir dos anos 60, a situação de «excepção» em que os kolkhozianos se achavam desde os anos 30 dá mot1vo a comentários críticos mais ou menos oficiais. Com efeito, ela é geradora de conflitos, prejudiciais à produção. Por isso se encontram nas publicações daqueles anos numerosos artigos consagrados a esta situação de excepção (cf., por exemplo, o artigo de Antipov, «Kolkhoznoe pro1zvodstvo 1 demokratiia», in Sov. Gos. i Pravo, n." 3, 1967, um artigo de I. V. Pavlov no n." 2, 1966, da mesma revista e outras referências em K. E. Wãdekin, Führungs-

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Os trabalhadores das explorações «colectivas» não podem contestar junto dos tribunais a avaliação, pelos órgãos de direcção do kolkhoz, da maneira como cumpriram as suas normas de trabalho; os tribunais não podem intervir senão para intimar a direçção do kolkhoz a pagar ao kolkhoziano uma soma que lhe seja devida em virtude de uma decisão já tomada por aquela'". A situação de discriminação em que estão colocados os kolkhozianos comporta numerosos outros aspectos: não podem estar sindicalizados (porque não são assalariados), não têm direito à segurança social (pela mesma razão), não recebem qualquer auxílio do Estado para o seu alojamento, são obrigados a diversas corveias (para a conservação das estradas, por exemplo) que não afectam outros cidadãos, os preços das mercadorias vendidas nos kolkhozes são superiores aos da cidade, etc.; finalmente, e sobretudo, não têm direito a um salário fixo, porque o rendimento que lhes é distribuído pelo kolkhoz é um «saldo», o que «resta para distribuir» depois de o «kolkhoz» ter afectado os seus recursos a todas as espécies de aplicações impostas pelo Estado, a começar pelas punções e entregas obrigatórias que a este cabem com toda a prioridade. · Por outro lado (sempre sem poderem recorrer aos tribunais), os kolkhozianos podem ver-se sujeitos à aplicação de multas pela direcção do kolkhoz e ao pagamento de «indemnizações» por danos que teriam causado e cujo montante é, aliás, avaliado pela própria direcção do kolkhoz 130 • Em suma, o montante insignificante da «remuneração» que cabe ao kolkhoziano pelo seu trabalho na «exploração colectiva» e o carácter incerto desta «remuneração» têm como consequência que esse trabalho constitui, de facto, um trabalho forçado, análogo à corveia da antiga barchtchina, outrora devida ao senhor. É, aliás, significativo que haja sido necessário fixar aos kolkhozianos um número determinado de dias de trabalho obrigatório a fornecer à economia «colectiva», porquanto a maior parte efectua de má vontade o seu trabalho no seio do kolkhoz e prefere consagrar-se à sua «economia familiar», facto de que os dirigentes se queixam frequentemente 139• kra/te ... , cit., pp. 58-59). Estes comentários crfticos do passado preparam e acompanham a reforma parcial do sistema kolkhoziano empreendida por Kruchtchev e prosseguida por Brejnev. "' Cf. Spravotchnik Boukhgaltera Kolkhoza, 2." ed., Moscovo, 1964, p. 719. "' Cf. K. E. Wãdekin, Führungskrafte ... , cit., pp. 60-61. "' Cf., por exemplo, os relatórios sobre a agricultura aos XVII e XVIII Congressos do Partido. Est. Doe. - 207 -

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Em Janeiro de 1934, por ocasião do XII Congresso do Partido, Andreev (encarregado dos problemas agrícolas no C. C.) reconhece que numerosos kolkhozianos se recusam a trabalhar regularmente nas «terras colectivas». Esta recusa dá lugar, a princípio, a sanções pronunciadas pelos presidentes dos kolkhozes. Em Maio e Novembro de 1939 são tomadas pelo governo disposições regulamentares para impor em termos mais estritos uma «obrigação de trabalho» aos kolkhozianos. O número anual mínimo de dias de trabalho obrigatório é então fixado em 60 a 100 140 • Em 1942, este número mínimo é fixado em 100 a ISO dias (portaria de 17 de Abril de 1942). B) UMA QUASE-SERVIDÃO DE ESTADO

No seu conjunto, a massa dos produtores imediatos inseridos na «economia colectiva» encontra-se numa situação que deles faz como que servos do Estado, sujeitos a corveias, submetidos às decisões arbitrárias daqueles que dirigem os kolkhozes e não podendo senão excepcionalmente apelar para os órgãos judiciários. Além disso, é-lhes interdito, na prática, abandonar o seu kolkhoz. De facto, eles estão ligados a este como o camponês da Idade Média o estava à gleba e o servo à terra do senhor. A interdição imposta aos kolkhozianos de sair do kolkhoz, a não ser quando a tal autorizados (o que acontecia também aos servos), faz retornar o camponês russo não só a antes de Outubro mas mesmo a antes da reforma de Stolypine (que anulou o regime de excepção ao qual os camponeses estavam submetidos) 141 e, o que é pior, aos tempos anteriures à lei de 19 de Fevereiro/3 de Março de 1861, que, com múltiplos prazos e restrições, emancipava os camponeses da servidão, tornava-os «livres» e subtraía-os ao direito de polícia e justiça dos senhores. Este passo atrás não resulta de nenhuma lei, mas sim dos estatutos dos kolkhozes, que não permitem ao kolkhoziano abandonar de forma duradoura o seu domicílio e o seu lugar de trabalho, salvo se obtiver autorização do kolkhoz, isto é, na realidade, da direcção do «kolkhov>. "' Cf. Pravda, 28 de Maio de 1939, Izvestia, 15 de Novembro de 1939, e lnformations sociafes, B. I. T., vol. 71, p. 128. "' Trata-se do ukaze de 5/18 de Outubro de 1906, que não deve ser confundido com o de 9/22 de Novembro de 1906, que visava tranformar a propriedade camponesa colectiva em propriedade camponesa individual. Esse ukaze incidia sobre o mir e apostava nos «camponeses fortes», com que pretendta formar uma classe de kulaks, ao mesmo tempo que desviava as atenções das terras da nobreza.

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Os estatutos dos kolkhozes indicam, é certo, que o kolkhoziano «pode abandonar o kolkhoz», mas, como não precisam em que condições pode ser exercido este «direito», tudo depende, na prática, da «boa vontade» das autoridades kolkhozianas, do juízo que elas formem sobre os efeitos de uma eventual saída, da simpatia ou da antipatia que os dirigentes do kolkhoz sintam para com o pretendente, dos «apoios» de que este pode beneficiar junto das autoridades «superiores» e dos usos locais (sempre revogáveis). A necessidade de obter autorização para poder abandonar o kolkhoz mantém-se até aos anos 70. No dizer dos camponeses soviéticos, esta autorização (que permite obter o passaporte interior a partir de 1932) é correntemente designada pela expressão «carta de emancipação», que era, na época da servidão, o nome do documento entregue aos camponeses pelo senhor que os emancipava. Ê característico que o estatuto-tipo do kolkhoz insista apenas nas formalidades de exclusão do kolkhoz e nada precise -como se compreende- a respeito do «direito de saída» 142 • Os autores soviéticos que estudaram estas questões mostram que, mesmo quando uma kolkhoziana se casa com um citadino, deve obter da direcção do kolkhoz um «direito de partin> "'. Do mesmo modo, um kolkhoziano cuja filha se casou na cidade não pode ir instalar-se junto dela se não for autorizado. Em geral, as autorizações de saída não são concedidas (mas não se trata de um «direito») se o kolkhoziano não tiver obtido um contrato de outra empresa e um alojamento 144• Um kolkhoziano pode eventualmente fugir do kolkhoz, do qual é então excluído. Perde a sua casa, e a sua exclusão é registada nos seus papéis, o que o coloca numa situação precária e perigosa. Na linguagem popular diz-se que obteve um «bilhete de lobo»: já não é nem kolkhoziano, nem operário, nem empregado, é considerado >, mas sim de um quintal que eleva os seus rendimentos em alguns rublos por mês 160• Estes números confirmam que em 1940 a economia colectiva dos «kolkhozes» é incapaz de assegurar aos seus membros um mínimo vital: as «remunerações» distribuídas não permitem assegurar a reprodução da força de trabalho dos kolkhozianos e da

"' ln Sotsialndia Struktura ... , cit., p. 114, quadro 22. O autor figura entre os investigadores soviéticos que publicaram os estudos mais meticulosos sobre os problemas do campesinato e da agricultura (cf. o artigo, de Yves Perret-Gentil, «L'évolution de la sociologia rurale en U. R. S. S.», in Mondes en développement, n.' 22, 1978, pp. 424 e segs.). "" A. Arutiunian, ibid. 160 É de notar que o ano de 1940 é menos favorável aos kolkhozianos que o ano de 1937, durante o qual, segundo as estatí~ticas oficiais, um fogo kolkhoziano teria percebtdo 376 rublos por ano e 17 quintais de grão (cf. Sotsialistitcheskoe Norodnoe Khoziaistvo v 1933-1940 gg., Moscovo, 1963, p. 388, e I. Zelinin, lstoritcheskie Zapiski, n.' 76, p. 59, cits. por A. Nove, An Economic History ... , cit, pp. 244-245.

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sua família; daí a necessidade absoluta da cultura das «courelas individuais», da criação animal familiar e do recurso às vendas no «mercado livre». Encontra-se aqui a explicação das causas e dos efeitos da resistência camponesa à «colectivização», tal como esta se realizou. Pode dizer-se que a maioria dos kolkhozianos de 1940 nada mais pode comprar, nem sequer objectos industriais que se poderiam considerar «correntes>>. Para disto nos convencermos, basta citar o preço a retalho de alguns objectos de consumo de origem industrial (trata-se de preços de 1939 -entre parêntesis recordam-se os preços de 1928, quando disponíveis): o metro de tecido de algodão vale de 2,07 a 2,73 rublos (0,34); o metro de tecido de lã, cerca de !50 rublos (11,35); um par de botas de couro para homem, 42 a 90 rublos (10,8) 161 • Em resumo, a «Colectivização» provocou uma forte baixa das principais produções agrícolas e um desmoronamento do nível de vida dos trabalhadores dos campos. Não se conclua, porém, que a «colectivização» haja sido um fracasso total, já que a sua finalidade real não era a de melhorar as condições de existência das massas camponesas, mas sim a de criar condições para a sua exploração ao máximo, a fim de assegurar uma rápida expansão da indústria de Estado, e tal objectivo foi globalmente atingido. É necessário, porém, que a «árvore» deste rendimento médio não nos esconda a «floresta» das desigualdades de rendimentos, que se verificam tanto entre kolkhozes como no interior de cada kolkhoz. 2.

As desigualdades de rendimento entre «kolkhozes»

A análise pormenorizada das desigualdades de rendimento entre kolkhozes exigiria muito tempo e seria, aliás, difícil de levar correctamente a cabo, perante o estado actual da documentação disponível. Limitar-nos-emos, portanto, a referir que a situação de várias dezenas de milhares de kolkhozes é tal, no fim dos anos 30, que eles não podem distribuir aos seus membros nenhum rendimento monetário sob a forma de troudodni ou que aquele que distribuem é muito inferior ao valor médio. Assim, em 1939, 15 700 «kolkhozes>> suportaram tais encargos que não puderam pagar aos seus membros nenhum rendimento monetário e outros

101 Cf. A. N. Malafeev, Istoriia Tsenoobrazovaniia v S. S. S. R., quadro 16, p. 403.

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46 000 só puderam pagar, no máximo, 0,2 rublos por «dia-trabalho» 162• 3.

As desigualdades interiores ao «kolkhoz>>

As desigualdades interkolkhozianas vêm juntar-se as desigualdades interiores a cada kolkhoz. São estas o resultado de uma política cujos principais elementos são os seguintes: a) A distinção entre os trabalhos de execução e os trabalhos de direcção. Os primeiros são exclusivamente «remunerados» com base numa contabilidade em troudodni. Os segundos são remunerados, além disso, com salários fixos e diversos prémios. b) O estabelecimento de uma classificação hierárquica dos trabalhos manuais, dando lugar a uma contabilidade em troudodni. c) A fixação de normas mais ou menos fáceis de atingir. Qualquer acréscimo relativamente à norma dá direito a um acréscimo proporcional de remuneração. Inversamente, no caso de não-realização da norma, a remuneração do kolkhoziano é reduzida. Isto acarreta diferenças de remuneração efectiva da ordem de 6 para 1 entre os trabalhadores manuais mais bem e mais mal pagos. Por exemplo, o primeiro pode ganhar mais de 28 rublos por mês (num kolkhoz médio, cm 1940) e o segundo somente 4,8 rublos. d) Em 1940, as desigualdades de rendimento entre kolkhozes são também acrescidas pelo estabelecimento de prémios a somar ao que é pago a título dos troudodni ' 03 • Estes prémios são pagos aos membros das brigadas (ou das equipas) que «Ultrapassem» o respectivo plano de produção ou de rendimento. São fixados, regra geral, em percentagem sobre aquilo que é produzido acima do plano da brigada: a distribuição destes prémios é, por sua vez, sujeita a diversas regras 104• e) Às desigualdades de remunerações dos trabalhadores manuais, ligadas à classificação das tarefas, à fixação de normas mais ou menos facilmente realizáveis, à natureza das tarefas a que os kolkhozianos de base são afectados pelos chefes de brigada e de equipa ou pelos gestores das explorações pecuárias e às desigualdades devidas aos prémios, vêm acrescentar-se as que decorrem das taxas de remuneração mais elevadas de que beneficiam o "' Cf. A. Nove, An Economic History .. ., cit., p. 246. Indiquemos > caracteriza-se por uma estrutura social fortemente polarizada, por profundas desigualdades económicas e pelas relações de dominação que uma minoria de quadros exerce sobre a massa dos kolkhozianos sobreexplorados e literalmente reduzidos a «pão e laranja». Tais factos, todavia, não devem fazer esquecer que, na estrutura social global, os quadros e os dirigentes dos «kolkhozeS>> se acham, eles próprios, "' A. Arutiunian, obra traduzida, in Archives internationa/es de Socio/ogie, cit., p. 143. ,17.. a. K. E. Wadekin, Führungskrã/te ... , cit., p. 38. ° Cf. M. Lewin, The kolkhoz ... , cit. m Cf. A. Arutiunian, in Archives internationales de sociologie, cit., p. 162.

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no limite mais baixo de um sistema hierárquico complexo, cuja pressão os constrange a levar ao máximo a sobreexploração dos «simples» kolkhozianos. A situação inferior dos quadros das explorações «colectivas» surge nitidamente quando se analisa a subordinação dos kolkhozes às exigências da acumulação e da colecta estatais.

SECÇÃO III

A subordinação dos «kolkhozes» às exigências da acumulação estatal

Como é sabido, o sistema kolkhoziano comporta três elementos: a exploração familiar, o kolkhoz e o conjunto de aparelhos que domina o kolkhoz e que permite ao Estado obter da agricultura um «tributo» regular e tão elevado quanto possível. A principal função do sistema é contribuir para aumentar a acumulação no sector estatal. A subordinação das «explorações colectivas» a um conjunto de aparelhos colocados «acima delas» é tornada necessária devido às obrigações pesadas e contraditórias que recaem sobre os kolkhozes. Assim, devem estes assegurar ao sector estatal os meios materiais exigidos pelo processo de acumulação; por outro lado, devem satisfazer as necessidades em forças de trabalho suplementares que nascem do processo de industrialização. Estas duas exigências entram em contradição quando uma «drenagem» demasiado intensa de forças de trabalho da agricultura para a indústria desorganiza a produção agrícola e compromete o fornecimento ao Estado dos meios materiais necessários à acumulação. Estas contradições e as formas de organização através das quais elas forem «tratadas>> no decurso dos anos 30 são altamente significativas. Cumpre, portanto, examiná-las para apreender o que é o sistema kolkhoziano global. 1. As contradições que afectam a dimensão e a forma do «tributo» e o lugar dos «kolkhozes» no sistema. dos aparelhos de Estado

Desde o início da «colectivizaçãm> que se assiste a uma aguda contradição entre, de um lado, o esforço dos aparelhos de Estado, que procuram maximizar os fornecimentos materiais correntemente feitos ao Estado pelos kolkhozes, e, do outro lado, o esforço visando fazer crescer tais fornecimentos em anos ulteriores. Esta

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contradição manifesta-se concretamente na primeira metade dos anos 30, quando o «tributo» atinge dimensões tais que o nivel de vida dos kolkhozianos baixa de maneira drástica, o que afecta negativamente a produtividade do seu trabalho e até o seu número, ocasionando a baixa das colheitas 172• No início dos anos 30, o Partido dá prioridade à maximização dos fornecimentos correntemente extorquidos aos kolkhozes, com desprezo pelas condições de vida e de produção nas explorações «colectivas». Para impor o respeito por esta prioridade, o sistema kolkhoziano é subordinado, o mais possível, às directivas e planos do Estado, do que resulta a extensão de um '

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tamento camponês representam o «preço)) que o poder e a nova classe dominante tiveram de pagar para conseguir quatro vitórias. A primeira vitória é política: a «colectivização)), sem dúvida, separou o poder político do campesinato, mas o que ela sobretudo fez - e é o que conta- foi quebrar este último económica e politicamente. A «colectivização)) nada deixa subsistir quanto às possibilidades de independência económica dos camponeses. Quebra todas as instituições camponesas tradicionais e as formas de solidariedade que elas permitiam. Na realidade, a «colectivização)) fez surgir um campesinato infinitamente mais «atomizado)) e fraccionado pelas formas capitalistas da divisão do trabalho do que o era o antigo campesinato parcelar. Para o poder e para a nova classe dominante, a eliminação das explorações camponesas «privadas)) (quer se trate das dos camponeses pobres, quer das dos camponeses médios, remediados ou ricos) constitui UmJl grande vitória. Doravante (tendo os nepmen sido também eliminados), a nova classe é a única que dispõe de meios de produção com alguma importância. Dada a ideologia de que é portador o Partido Bolchevique, a qual se enraíza também numa «tradição Ieninista», esta alteração radical das relações de força é «pensada» em termos de «vitória sobre o capitalismo», em nome de uma «teoria genética do capitalismo», que nasceria directa e inevitavelmente da pequena produção 190• A segunda vitória obtida pelo poder e pela nova classe dominante consiste em terem conseguido submeter o campesinato a uma exploração sem precedentes, o que permite realizar um gigante~co esforço de acumulação, essencialmente canalizado para a indústria. Ê certo que isto é obtido à custa de uma profunda baixa do nível de vida das massas camponesas, mas esta consequência '"' Esta teoria é evocada com insistência pelo grupo dirigente do Partido desde que este se decidiu a liquidar a N. E. P. e serve para enumerar formulações que são repetidas ao longo dos anos 30. A partir de Outubro de 1928, Estaline procura cuidadosamente fazer surgir a ideia de que esta teoria se encontra em Lenine. No seu discurso «Contra o perigo da direita~. Estaline chama a atenção para dois textos. Lembra primeiro que, segundo Lenine, a força do capitalismo reside «na força da pequena produção» [que] gera o capitalismo e a burguesia continuamente, dia após dia, hora após hora, espontaneamente e numa escala de massa~ (cf. Lenine, «La maladie infantile du communisme,. (Abril de 1920), in Sotchineniia, t. xxv, Moscovo, 1937, p .173). Lembra a seguir, de outro texto de Lenine: «Enquanto vivermos num país de pequeno campesinato, existe na Rússia uma base mais segura para o capitalismo do que para o comunismo.~ [Cf. Lenine, «Relatório ao VIII Congresso dos Sovietes» (Dezembro de 1920), in Sotchineniia, t. XXVI, Moscovo, 1937, p. 46.] Cit. por J. Estaline, W., t. XI, pp. 236-237, e Q. L., pp. 298-299.

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é tida como despicienda (oficialmente é mesmo ignorada), porque o que conta para a direcção do Partido e para a classe cujos interesses ela serve é colocar sob o seu próprio controlo o máximo de meios de produção. A terceira vitória, aquela que tomou as outras duradouras, consistiu em fazer surgir uma forma económica nova: o sistema kolkhoziano, que permitiu, simultaneamente, expropriar o campesinato e transformar «meios de produção individuais e esparsos em meios de produção socialmente concentrados>>, segundo os métodos próprios da «pré-história do capitah>. Como se viu, o sistema kolkhoziano engloba as explorações familiares, os kolkhozes e o conjunto dos aparelhos que os dirigem e controlam. Constitui um sistema sui generis de exploração da grande massa dos trabalhadores da agricultura. Combina características que são as de uma espécie de «servidão de Estado» (as corveias obrigatórias sobre as terras «colectivas» e a sujeição do camponês à gleba) com relações sociais capitalistas. Estas últimas estão inscritas na forma do processo de trabalho e na extracção de um sobretrabalho destinado essencialmente à acumulação do capital no sector do Estado. A existência de explorações familiares, longe de estar em contradição com as exigências de tal acumulação, permite, pelo contrário, intensificá-la, como acontece em diferentes tipos de capitalismo agrário (por exemplo nas plantações capitalistas da América Latina). O sistema kolkhoziano estabeleceu-se sobre a ruina dos kolkhozes dos anos 20 e das antigas relações comunitárias. Constitui uma forma relativamente estável, como o testemunha o facto de continuar a existir cinquenta anos após a sua formação. As relações sociais capitalistas, cuja reprodução este sistema assegura, permitem que os kolkhm:es se revistam de características cada vez mais próximas das de uma empresa capitalista ordinária: é o que se passa a partir de 1958, quando o kolkhoz passa a poder comprar os seus próprios meios de produção (cessa, então, de depender das S. M. T.} e, mais tarde, quando o kolkhoz pode pagar um salário aos kolkhozianos, mas estas transformações ulteriores de modo nenhum tornam o kolkhoz "; mas é, sobretudo durante grande parte dos anos 30, uma consequência do abaixamento do nível de vida nas cidades, da crise do abastecimento e do alojamento, numa ocasião em que o aborto é livre, do que resulta uma baixa de natalidade que leva o governo soviético a suprimir a liberdade de abortar, em 1936 10 • De qualquer modo, sejam quais forem os números considerados, urna coisa é certa: durante esses anos, milhões de trabalhadores acham-se desenraizados. Devem «estabelecer-se», de boa ou má vontade, a centenas ou a milhares de quilómetros do seu local de origem. Entre esses trabalhadores existem milhões que são obrigados a emigrar para regiões particularmente inóspitas, como o Norte da Rússia e a Sibéria oriental. No entanto, grande parte das migrações para estas últimas regiões têm carácter penal e em pouco contribuem para a urbanização: resultam sobretudo das deportações, de que falaremos no capítulo m desta segunda parte. Voltando às migrações não penais, diremos que a sua extraordinária amplitude se deve principalmente à destruição brutal das antigas relações sociais nos campos e à deterioração das condições de existência na aldeia. É isto que arranca milhões de homens às suas condições de existência e o& leva a ir procurar trabalho longe do seu lugar de nascimento, a «colocar-se ao serviço» de um pnr cesso de industrialização que, aliás, não é, de modo algum, dominado por aqueles que parecem dirigi-lo. Concretamente, estas migrações são sobretudo devidas à maneira como a «colectivização» ocorreu. Viu-se que, no fim dos

' Sabe-se que no inicio da colectivização um grande número de operários abandona as fábricas e as minas (ver, por exemplo, Troud, 15 de Abril de 1930), por temor de verem as suas famílias tratadas como kulaks e privadas de tudo o que lhes pertence: da casa, da courela e até dos mais simples bens, que são confiscados como «propriedade kulak». 10 A partir de 1935, a imprensa lança uma campanha contra os abortos. Nessa altura, sem que a lei haja sido modificada, os hospitais soviéticos deixam de proceder a abortos a simples pedido da mulher grávida. A lei de 27 de Junho de 1936 proíbe o aborto, salvo quando a gravidez põe em perigo a vida ou a saúde da mulher ou se existe perigo de transmissão de uma doença hereditária. São atribuldos subsídios às mães de Beis filhos e mais (cf. N. Timasheff, The Great Retreat, Nova Iorque, 1946, pp. 200 e segs.). O abandono da liberdade de abortar é um dos aspectos da revogação das leis promulgadas a seguir à Revolução. Increve-se num movimento social e politico de conjunto que visa «reforçar a famllia»; no imediato, este abandono é motivado pela catrástrofe demográfica que acompanha a industrialização dos anos 30, catástrofe de que falaremos adiante. Est. Doe. - 207 - 8

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recenseados pelo serviço central de estatísticas é de 22,9 milhões, quando o plano só previa 15,8 milhões 32 • Como se sabe, o acréscimo da população assalariada é devido à redução do número de camponeses e de kolkhozianos, mas também o é devido à transformação em assalariados de numerosos artesões e nepmen. O enorme crescimento da população assalariada é apresentado pela ideologia oficial soviética como prova do carácter doravante socialista da U. R. S. S. e do reforço da classe operária. Nenhuma destas conclusões é aceitável. Em primeiro lugar, o desenvolvimento do salariado não pode ser identificado com o do «socialismo». A relação salarial é a relação capitalista fundamental; por isso, o acréscimo do número de assalariados mais não fez do que manifestar a vitória da revolução capitalista que se acelera no fim dos anos 20. Quanto à classe operária, não é possível falar do seu «reforço». :É certo que entre os novos assalariados há numerosos operários, mas a proporção dos operários entre os assalariados diminui entre 1928 e 1940, passando de 74,6% a 67,3% ••. Efectivamente, assiste-se a um aumento muito rápido do número dos funcionários, empregados e quadros, isto é, a uma forte «burocratização» da economia e da sociedade. No entanto, quando se fala do reforço ou do enfraquecimento dos operários, dos trabalhadores da indústria, ou, mais geralmente, dos produtores directos, no decurso dos anos 30, a evolução dos efectivos tem apenas importância secundária. O essencial é a transformação das condições de trabalho e de existência da massa dos assalariados, antes de tudo dos operários. Ora, desde o princípio dos anos 30 (e mesmo desde o fim dos anos 20) ", assiste-se a uma verdadeira ofensiva antioperária que corresponde a um aprofundamento das relações capitalistas.

"' Cf. Ch. Bettelheim, La Plani/ication soviétique, cit., p. 306; W. Eason, «Population and labour force», in Soviet Economic Growth, Abram Bergson (ed.), Evanston, Ilinóis, 1953, p. 110; e Lorimer, op. cit,, p. 100. " Calculado segundo N. Kh . ... 1970 g., p. 509. .. Uma das primeiras manifestações da ofensiva antioperária é a adopção da pretensa jornada de sete horas, que corresponde a estabelecer um trabalho fixo em condições particularmente desfavoráveis para os trabalhadores (cf. Jacques Sapir, Organisation du travai!, classe ouvriere, rapports sociaux en V. R. S. S. de 1924 à 1941, tese de 3." ciclo, E. H. E. S. S., Paris, Fevereiro de 1980, p. 238).

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As coisas mudam radicalmente no princípio dos anoo 30. EI!l nome da industrialização e do planeamento económico, são eliminados todos os obstáculos a um domínio praticamente completo dos dirigentes da indústria sobre a contratação e o despedimento. Resulta esta eliminação de uma série de medidas cujos objectivos e modalidades são principalmente definidoo por decisões do Sovnarkom da R. S. F. S. R. de 6 de Setembro de 1930, do Comité Executivo Central e do Sovnarkom da U. R. S. S. de 15 de Dezembro de 1930 e do Comissariado para o Trabalho da U. R. S. S. de 28 de Dezembro de 1930 '". Entre os objectivos oficialmente visadoo figuram a utilização mais «eficaz» possível dos meioo de produção, uma distribuição planeada da mão-de-obra, a «repartição óptima doo efectivos disponíveis entre as empresas industriais, os ramos da indústria e as regiões» e o «Controlo da utilização racional da mão-de-obra nas empresas do sector socializado». Como se vê, trata-se não só de assegurar certa «estabilidade» das forças de trabalho mas também de «dirigir» estas em função das «necessidades» das empresas de Estado, do crescimento económico e da acumulação. As decisões assim adoptadas exprimem uma vontade política, mas a sua aplicação depara com múltiplos obstáculos: existência ·da legislação do trabalho do início dos anos 20, que reconhece aos trabalhadores uma série de direitoo (ora, não é senão a pouco e pouco que esta legislação poderá ser revogada ou sistematicamente violada); resistência dos trabalhadores que, durante anoo sucessivos, «passam» através de todas as regulamentações; má vontade dos dirigentes da empresa, cada um dos quais procura recrutar grande número de trabalhadores a fim de realizar os objectivos do plano de que é responsável; ignorância das «necessidades» reais em mão-de-obra das diferentes indústrias, etc. As medidas tomadas em 1930 fracassam praticamente. O mesmo acontece às tentativas feitas pelos dirigentes de empresas que tentam reduzir a rotação da mão-de-obra levando os trabalhadores a assinar um compromisso de não abandonar a fábrica

,. Cf. Izvestia, 8 de Setembro de 1930 e 17 de Dezembro de 1930, e Izvestia Narkomtrouda, n."' 1-2, 1931, cit. por S. Schwarz, op. cit., pp. 70 e 115 (no decurso destas págmas, refiro-me frequentemente a este autor, que seguiu de perto estes problemas e leu sistematicamente a imprensa da época); cf. também V. K. P. (b) o Pro/soiouzakh, Moscovo, 1939, pp. 50 e segs.

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antes de determinado prazo. Verificando este fracasso, o poder adopta (com a colaboração dos sindicatos) medidas cada vez mais estritas para limitar e depois impedir os trabalhadores de deixar o seu emprego. 1. O desaparecimento progressivo da liberdade para os trabalhadores de celebrar e romper o contrato de trabalho

No início de 1931, o Conselho Central dos Sindicatos reforma as regras da segurança social no propósito de fazer depender o montante dos subsídios de doença e outros benefícios da duração do emprego dos trabalhadores em determinada empresa. Nos anos que seguem, esta regulamentação torna-se cada vez mais severa 37 • Como estas medidas se revelam insuficientes em relação aos objectivos visados pelo governo soviético, este decide, em 27 de Setembro de 1932, reintroduzir o passaporte interior. De futuro, todo o assalariado deve entregar o seu passaporte à empresa que o contrata. Deve este mencionar os sucessivos empregos do interessado. Estabelece-se, assim, um controlo das condições em que cada trabalhador abandonou o seu precedente emprego. Por este decreto, o poder visa também reduzir o crescimento da população urbana num período de crise de abastecimento t: alojamento e ligar os kolk:hozianos à sua aldeia, dado que, como se sabe, a estes não são atribuídos passaportes, salvo em casos excepcionais. Em geral, os kolkhozianos e os camponeses não podem obter senão um certificado provisório que lhes permita realizar trabalho estacionai. Este certificado é válido por um período máximo de três meses e a sua duração só pode ser prolongada a pedido da entidade empregadora 38 • As estatísticas mostram que a partir de 1933 abranda a rotação da mão-de-obra industrial. Em 1935, a duração média de emprego de nm assalariado numa empresa atinge quase catorze meses'", o que, evidentemente, continua a ser ainda limitado. Por isso, nova medida é tomada em 1938. Trata-se da introdução, generalizada a todos os assalariados, do livrete de trabalho 40 • Este livrete é estabelecido pela empresa que recruta nm 37 Cf. artigo de S. Mochov, Voprosy Trouda, Julho de 1931, e S. Schwarz, op. cit., pp. 126 e 390. " Cf. Izvestia, 15 de Janeiro de 1933. " Cf. Annuaire statistique de l'U. R. S. S., Moscovo, 1936, p. 133. " Para os trabalhadores com uma certa qualificação e empregados na indústria e nos transportes, o livrete de trabalho havia sido introduzido desde Fevereiro de 1931 (cf. Z. I., 12 de Fevereiro de 1931). Em virtude de um decreto de 20 de Dezembro de 1938, este livrete passa a ser atribuído a todos os assalariados (cf. Izvestia, 21 de Dezembro de 1938).

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assalariado pela primeira vez. Enquanto dura o contrato de trabalho, a empresa conserva o livrete e nele anota todas as indicações previstas pela lei, designadamente as sanções tomadas contra o trabalhador. O livrete não é entregue ao seu titular senão quando a empresa que o emprega aceitar separar-se dele. Para poder ser admitido noutro local, deverâ o assalariado entregar o seu livrete ao novo empregador, que sem isso não pode contratá-lo. Assim, cada trabalhador encontra-se ligado a uma empresa, e toda a sua vida profissional é conhecida de quem sucessivamente o emprega. Isto é pelo menos a regra, porque, na realidade, um número bastante grande de assalariados conseguiu mudar de emprego apesar da regulamentação. Por isso, e a fim de ligar mais o trabalhador à empresa, outras medidas são tomadas que reforçam as disposições do decreto de 20 de Dezembro de 1938. Trata-se, principalmente, de um decreto de 28 de Dezembro do mesmo ano, cujo preâmbulo precisa que é adoptado para «tornar mais firme a disciplina do trabalho, melhorar a aplicação dos seguros sociais e lutar contra os abusos em todos os domínios» 41 • Este decreto impõe ao assalariado que deseja deixar o seu emprego um pré-aviso de um mês, em vez de seis dias. Mesmo que o pré-aviso seja respeitado, o trabalhador que deixa o seu emprego sem o acordo da direcção da empresa perde todo o direito ao subsídio de segurança social durante os primeiros seis meses no seu novo emprego. A concordância da sua antiga direcção não basta para manter os direitos dos assalariados: estes sofrem uma redução, jâ que, para receber uma indemnização integral, é necessário pertencer há pelo menos seis anos à mesma empresa (e estar sindicalizado). Quanto mais curta for a ligação à empresa, mais reduzidos são os subsídios por doença ••. Como os efeitos destas diversas decisões são julgados insuficientes, um decreto de 26 de Junho de 1940 refunde o direito do trabalhador e reforça as medidas disciplinares. Reintroduz o dia de oito horas e a semana de sete dias ••, interdita explicitamente " Cf. /zvestia, 29 de Dezembro de 1938 . •, Estas medidas voltaram a ser agravadas após a guerra (por um decreto de 9 de Agosto de 1948 (cf. S. Schwarz, op. cit., p. 349), o que mostra não serem devidas especialmente às condições dos anos 30. " Um decreto de Novembro de 1977 introduzira o dia de oito horas, velha reivindicação do Partido Social-Democrata da Rússia (cf K. P. S. S. (1953), t. r, p. 41). Em 1927 fora introduzido o dia de sete horas (em ligação com a generalização do trabalho ligado a um posto). A partir de 1929 assiste-se à extensão da «semana de cinco dias» (quatro de trabalho e um de descanso) ou de seis dias, sendo variável o dia de descanso,

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«aos operários e empregados abandonar voluntariamente a sua empresa» ••. Acha-se, assim, completamente abolido o direito de qualquer assalariado denunciar o contrato de trabalho que o liga a uma empresa, sob condição de respeitar um prazo de pré-aviso ••. O artigo 4. 0 do decreto de 26 de Junho de 1940 prevê que o trabalhador não possa abandonar a empresa senão em casos excepcionais (doença, invalidez, reforma). O artigo S. o estipula as sanções penais (de dois a quatro meses de prisão) que recaem sobre o trabalhador que deixa o seu lugar sem autorização. O abandono do emprego pode ser sancionado, designadamente, por um «trabalho correctivo efectuado na fábrica, sem privação da liberdade» (artigo 20. o do Código Penal). Este trabalho é remunerado com salário inferior ao do trabalho normal e está submetido a uma disciplina mais estrita (as faltas a esta disciplina acarretam a aplicação do regime penitenciário)"'. Na realidade, este «trabalho correctivo» é uma forma de trabalho penal efectuado no local habitual de trabalho. Em Setembro de 1940 decide-se que a duração do «trabalho correctivo» será considerada como interrupção do emprego, o que faz caducar os direitos do assalariado aos seguros sociais. Não recuperará os seus direitos senão depois de ter trabalhado seis meses em regime normal. Nesse intervalo perde todo o direito ao subsídio por doença. A revista soviética dos tribunais publica numerosos artigos defendendo a mais severa interpretação destas decisões". As reticências dos juízes em aplicar estas diversas medidas revelam-se tão grandes que o Praesidium do Soviete Supremo publica uma portaria sobre a «responsabilidade disciplinar dos juízes» que permite sancionar aqueles que não apliquem penas suficientemente severas. Outra portaria, datada de 10 de Agosto de 1940, a fim de que as empresas não parem. O decreto de Junho de 1940 volta à semana de sete dias, dos quais seis de trabalho, o sexto dia a tempo pleno e o dia de repouso fixo. Trata-se de aumentar a duração do trabalho (sem aumento do salãrio correspondente), em contradição com o artigo 119.• da Constituição de 1936 (a qual só em 1947 serã modificada) (cf. Izvestia, 26 de Dezembro de 1947). .. Cf. !:;;vestia, 27 de Junho de 1940. Encontrar-se-à em A Bergson, The Structure of Soviet Wages, Cambridge, Massachusetts, 1954, pp. 235 e segs., a tradução em inglês de largos extractos do decreto de 26 de Junho de 1940 e do de 20 de Outubro de 1940, adiante citado. " Direito que reconhecia o artigo 46. • do Código do Trabalho de 1922. Cf. Kodeks Zakonov o Trude R. S. F. S. R., Moscovo, 1931. .. Cf. S. Schwarz, op. cit., p. 144. " Cf. in Sovietskaia Zakonnost, Outubro e Dezembro de 1940, artigos reclamando uma «disciplina de ferro» nas empresas.

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prevê que os julgamentos em matéria de legislação penal do trabalho serão efectuados por um juiz único, e não por um colectivo formado por um juiz e dois assessores ••. Estas duas portarias, aliás, violam o artigo 112." da Constituição de 1936, que prevê «a independência dos juízes)) e a constituição colegial de qualquer tribunal estatuindo em matéria penal. Não são, evidentemente, as primeiras violações da Constituição, longe disso, mas é de notar que se inscrevem em textos regulamentares publicados. Estas diversas medidas, tal como outras -que originam um agravamento muito severo da disciplina do trabalho-, são tomadas em tempo de paz, numa época em que o governo e a imprensa afirmam que, graças ao pacto germano-soviético, o perigo de guerra se afastou 49 • Permanecerão, aliás, em vigor ainda durante muitos anos após a guerra, embora caindo paJcialmente em desuso 50 • Quanto às medidas do tempo de guerra propriamente ditas (isto é, de mobilização do trabalho), não aparecem senão em 1941 e 1942 51 e, em princípio, só permanecem em vigor até ao fim das hostilidades. Globalmente, no decurso dos anos 30 e no princípio dos anos 40, assiste-se a uma redução cada vez maior da liberdade dos trabalhadores de celebrar ou romper um contrato de trabalho. Ao mesmo tempo, a legislação do trabalho tende a transformar-se em legislação penal. Ê- assim que se manifestam tentativas que visam «planificar)) directamente o emprego. Entre elas cabe lugar particular às que permitem operar transferências obrigatórias de mão·de-obra e proceder ao «recrutamento organizado)) dos trabalhadores. Na realidade, o poder, ao mesmo tempo que recusa aos assalariados o direito a mudar de emprego, concede às empresas a possibilidade de transferi-los de um emprego para outro. 2. Os despedimentos e transferências obrlgatórtas de uma empresa para outra

A já citada decisão do Comité Executivo Central e do Sovnarkom datada de 15 de Dezembro de 1930 dá plenos poderes aos Comissariados para o Trabalho da U. R. S. S. e das diferentes " Cf. Sovietskáia loustitsia, n." 17-18, 1940, p. 3, e [zvestia, 11 de Agosto de 1940. •• Cf. A. Nove, An Economic History, cit., pp. 260 e segs. " Cf. S. Schwarz, op. cit., pp. 107-173. " Cf., designadamente, [zvestia, 27 de Dezembro de 1941, e Vedomosti Verkhovnogo Sovieta, 5 de Março e 10 de Outubro de 1942 e 23 de Setembro de 1943.

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Repúblicas para «redistribuírem sistematicamente a mão-de-obra no quadro dos planos de produção estabelecidos pelas autoridades competentes». O texto da decisão está, aliás, destinado a aplicar-se essencialmente aos operários qualificados e aos técnicos 02 • Em 1930, com efeito, a mão-de-obra não qualificada ainda se encontra disponível em abundância. O texto de 15 de Dezembro de 1930 e os que se lhe seguem pouco depois"" visam sobretudo reduzir os «excedentes» de mão-de-obra que certas empresas se esforçam por conservar no propósito de ficar mais aptas a realizar os objectivos do seu plano de produção - portanto proceder ao «desengorduramento» dessas empresas ou, como se diz então, à «monda>> dos operários em excesso". Em 1932, o Praesidium do Supremo Tribunal da U. R. S. S. estabelece uma distinção entre, por um lado, os operários e, por outro lado, os especialistas e os técnicos. Os primeiros podem recusar a transferência, sendo então licenciados; os segundos devem aceitá-la, sob pena de eventuais procedimentos penais. Após a dissolução, por decreto de 23 de Junho de 1933, do Comissariado para o Trabalho "', o direito de tomar as medidas previstas nos textos citados passa a caber às direcções das empresas e às direcções principais dos comissariados industriais ou outros a que aquelas estejam subordinadas. São medidas de «desengorduramento» as que continuam sobretudo a ser tomadas nessa época. Opostamente, diversas disposições dos decretos de 26 de Junho de 1940 e 20 de Outubro de 1940 '" preocupam-se mais com a deslocação obrigatória dos assalariados de um local de trabalho para outro. Permitem estas disposições «a transferência forçada de engenheiros, técnicos, contramestres, empregados e operários " Cf. Schwarz, op. cit., p. 155. '" Por exemplo, uma decisão do Narkomtroud da U. R. S. S., datada de 15 de Janeiro de 1931, ou do Narkomtroud da R. S. F. S. R., datada de 23 de Janeiro de 1931 (cf. Izvestia, 18 de Janeiro de 1931, e Izvestia Narkomtrouda, 1931, pp. 137-140). ,. De todos os modos, nessa época, a direcção de uma empresa pode despedir um trabalhador por uma série de motivos, quer a título de san ção, quer por ser «necessário» reduzlf os efectivos (um pré-aviso deve então ser respeitado e uma indemnização por despedimento pode ser paga em certos casos) [cf. Sbornik Zakonodatelnykh Aktov o Troude (mais adiante, Sbornik), Moscovo, 1956, pp. 99 e 103, cit. por R. Conquest, Industrial Workers, cit., pp. 18-19]. O acordo das organizações sindicais da empresa e da localidade é, em principio, necessário. Nas condições dos anos 30, este «acordo», praticamente, é sempre dado. .. As atribuições deste Comissariado são então transferidas, no essencial, para os sindicatos (Cf. Izvestia, 24 de Junho de 1933). ' Cf. supra, e /zvestia, 20 de Outubro de 1940. Est. Doe. - 207 - 9

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qualificados, de uma empresa, administração ou instituição para outra»"'. Estes só podem recusar a transferência em casos excepcionais; fora deles, a recusa é geralmente sancionada penalmente ••. Tais disposições ampliam o campo das migrações forçadas que não têm carácter directamente penal. O mesmo acontece com a criação de «reservas de mão-de-obra>>. 3. A criação das «reservas de mão-de-obra»

A partir do primeiro Plano Quinquenal fazem-se tentativas para instalar um sistema de afectação obrigatória dos jovens trabalhadores a empregos fixados pelos aparelhos de Estado. Assim, uma decisão do Conselho Superior da Economia Nacional (V. S. N. Kh.) datada de 27 de Novembro de 1929 impõe aos jovens que saem das escolas profissionais de empresa (essencialmente filhos de operários) que ocupem durante três anos o emprego que lhes destinou o serviço económico que financiou os seus estudos profissionais. Em 15 de Setembro de 1933, esta decisão é confirmada pelo C. E. C. e pelo Sovnarkom ••. Numerosos indícios -entre eles a necessidade dessa confirmação- sugerem que essas afectações obrigatórias se operam com dificuldade. Esta regulamentação é modificada por um decreto de 2 de Outubro de 1940 que cria um novo organismo, a Direcção-Geral das Reservas de Mão-de-Obra""· Gerindo o conjunto das escolas profissionais, esta Direcção-Geral deve recrutar em cada ano de 800 000 a 1 000 000 de jovens de 14 e 15 anos que passam dois anos nessas escolas. Os que têm 16 e 17 anos frequentam-nas apenas seis meses (não recebem, portanto, uma verdadeira formação profissional, mas somente preparação para um trabalho especializado). À saída da escola, os serviços da Direcção-Geral das Reservas de Mão-de-Obra afectam os antigos alunos e uma empresa industrial ou de transportes, por um período de quatro anos. O decreto de 2 de Outubro especifica que, se não se apresentar um número suficiente de voluntários para essas escolas, o contingente anual será completado com designações obrigatórias. Nos campos são os presidentes dos kolkhozes quem procede a tais

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.., Cf. R. Conquest, Industrial Workers, cit., p. 31. " Estas medidas caíram pouco a pouco em desuso após a guerra. Só em 1956 foram formalmente revogadas (cf. R. Conquest ibid., p. 31). " Cf. Izvestia Narkomtrouda, 1929, p. 787, e S. Schwarz, Les Ouvriers ... , cit., p. 106. ., Cf. Izvestia, 3 de Outubro de 1940, e Revue internationale du travai/, Dezembro de 1940.

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designações (dentro do limite de 2% em cada classe etária). Nas cidades, são os sovietes urbanos. À partida, estas disposições só se aplicam aos rapazes. Por ocasião da entrada da U. R. S. S. na guerra tornam-se extensivas às raparigas. O estabelecimento de um sistema de reservas de mão-de-obra foi, sem dúvida, acelerado pela guerra, mas não deixou de ser mantido após esta, com a criação de um «Ministério das Reservas de Mão-de-Obra». O sistema tem um evidente carácter de classe: não é universal. Assim, os alunos do secundário (8. ano de estudos e posteriores) e os estudantes do ensino superior são dele dispensados. Por outro lado, um outro decreto, igualmente datado de 2 de Outubro de 1940, suprime (em contradição com a Constituição de 1936) a gratuitidade do ensino secundário (do 8.• ao 10: anos de estudos) e do ensino superior. Em consequência, ficam essencialmente isentos do recrutamento pelos serviços de reserva da mão-de-obra os filhos de pais que recebem salários suficientemente elevados para poder pagar estudos secundários ou superiores"'. Estas medidas fazem parte de uma verdadeira ofensiva antioperária. Todavia, não representam senão um dos aspectos de um processo que cada vez mais impede os produtores imediatos de exercer influência directa sobre as condições em que trabalham. Outro aspecto é constituído pela transformação -que em breve examinaremos- das modalidades através das quais são determinados os salários e as normas de trabalho. Semelhante ofensiva não pode, aliás, ser levada a cabo sem que os trabalhadores sejam submetidos a uma repressão severa e sistemática. Traduz-se esta, como se sabe, pela «penalização» do direito do trabalho, pela presença de órgãos policiais nas empresas e pela extensão do trabalho forçado. Todas estas transformações que assim se verificam na situação dos trabalhadores traduzem o efeito crescente, sobre a sorte destes últimos, das exigências do capital e da sua acumulação. Já Marx observava que uma das caracteris0

•• O decreto de 2 de Outubro estipula que somente têm direito a uma bolsa de estudo os estudantes e alunos com a classificação «excelente». Encontrar-se-á uma tradução em inglês do texto deste decreto em A. Bergson, 'The Structure of Soviet Wages, cit., pp. 234 e segs. Em 1940, as propinas escolares variam de 150 a 200 rublos por ano e as universitárias de 300 a 500 rublos. Nessa altura, o salário mensal de um operário da 1.' categoria (a mais mal paga) é da ordem de 100 rublos. Indiquemos que após a morte de Estaline as propinas universitárias foram suprimidas. Nem por isso deixa de acontecer que em 1958 de 60% a 70