As Cantigas de D. Joan García de Guilhade e Estudos Dispersos 978-85-228-0452-8

Neste terceiro número da coleção Estande Medieval, os trabalhos de Oskar Nobiling, que se achavam dispersos em revistas

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As Cantigas de D. Joan García de Guilhade e Estudos Dispersos
 978-85-228-0452-8

Table of contents :
CAPA......Page 1
SUMÁRIO......Page 7
APRESENTAÇÃO - UMA RARIDADE NA ESTANTE MEDIEVAL......Page 9
INTRODUÇÃO......Page 11
CADERNO FOTOGRÁFICO......Page 23
APÊNDICE......Page 30
BIBLIOGRAFIA DE OSKAR NOBILING......Page 36
LÍRICA MEDIEVAL GALEGO-PORTUGUESA......Page 38
AS CANTIGAS DE D. JOAN GARCIA DE GUILHADE, TROVADOR DO SÉCULO XIII......Page 39
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA MAIS ANTIGA POESIA PORTUGUESA......Page 144
UMA CANÇÃO DE D. DENIS......Page 159
A CERCA DA INTERPRETAÇÃO DO CANCIONEIRO DE D. DENIS......Page 162
ACERCA DO TEXTO E DA INTERPRETAÇÃO DO CANCIONEIRO DA AJUDA......Page 169
A EDIÇÃO DO CANCIONEIRO DA AJUDA, DE CAROLINA MICHAËLIS DE VASCONCELOS......Page 215
TEXTOS ARCAICOS......Page 253
LÍNGUA PORTUGUESA......Page 258
AS VOGAIS NASAIS EM PORTUGUÊS......Page 259
ALBANÊS E PORTUGUÊS*......Page 283
EMENDAS E ADITAMENTOS À SECÇÃO PORTUGUESA DO LATEINISCH-ROMANISCHES WÖRTERBUCH DE KÖRTING......Page 304
PORTUGUÊS DO BRASIL DEIXE EU VER......Page 359
BRASILEIRISMOS E CRIOULISMOS*......Page 361
FRASES FEITAS......Page 365
LITERATURA POPULAR......Page 379
COLETÂNEA DE CANÇÕES BRASILEIRAS......Page 380
QUADRAS DO ESTADO BRASILEIRO DE SÃO PAULO......Page 446
UMA PÁGINA DE HISTÓRIA DE LITERATURA POPULAR (FOLCLORE)......Page 459
ESTUDOS SOBRE O ROMANCEIRO POPULAR, DE CAROLINA MICHAËLIS DE VASCONCELOS......Page 467

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AS CANTIGAS DE D. JOAN GARCIA DE GUILHADE E ESTUDOS DISPERSOS

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OSKAR N OBILING

AS CANTIGAS DE D. JOAN GARCIA DE GUILHADE E ESTUDOS DISPERSOS Edição preparada por Yara Frateschi Vieira

Niterói/RJ 2007

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Copyright © 2007 by Editora da Universidade Federal Fluminense Direitos desta edição reservados à EdUFF – Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 – anexo – sobreloja – Icaraí – CEP 24220-900 – Niterói, RJ – Brasil Tel.: (21) 2629-5287 – Fax: (21) 2629-5288 – http://www.uff.br/eduff – E-mail: [email protected]

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.

Normalização e edição do texto: Yara Frateschi Vieira Revisão: Yara Frateschi Vieira Tradução de “As Vogais Nasais em Português”: Dinah Maria Isensee Callou e Maria Helena Duarte Marques Tradução dos demais artigos em alemão: Markus Lasch Revisão da tradução: Yara Frateschi Vieira Edição do Manuscrito Coletânea de canções brasileiras: Paulo Roberto Sodré Digitalização dos textos em português: Paulo Roberto Sodré Capa: Isabel Carballo Editoração eletrônica: Selma Consoli – MTb 28.839 Supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo

Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte – CIP O???

Oskar Nobiling As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos / Oskar Nobiling. Yara Frateschi Vieira (Organização, introdução e notas). Niterói : EdUFF, 2007. 488 p. ; 23 cm. (Estante Medieval 2) Inclui bibliografia. ISBN ISBN 978-85-228-0452-8

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Roberto de Souza Salles Vice-Reitor: Emmanuel Paiva de Andrade Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Humberto Fernandes Machado Núcleo de Estudos Galegos da UFF: Maria do Amparo Tavares Maleval e Fernando Ozorio Rodrigues (Diretores) Diretor da EdUFF: Mauro Romero Leal Passos Diretor da Divisão de Editoração e Produção: Ricardo Borges Diretora da Divisão de Desenvolvimento e Mercado: Luciene Pereira de Moraes Assessora de Comunicação e Eventos: Ana Paula Campos

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Coleção Estante Medieval Direção: Fernando Ozorio Rodrigues (UFF) Maria Amparo Tavares Maleval (UFF/UERJ) Conselho Consultivo Ângela Vaz Leão (PUC-Minas) Célia Marques Telles (UFBA) Evanildo Cavalcante Bechara (UERJ/UFF/ABL) Gladis Massini-Cagliari (UNESP) Hilário Franco Júnior (USP) José Rivair de Macedo (UFRGS) Leila Rodrigues da Silva (UFRJ) Lênia Márcia de Medeiros Mongelli (USP) Luís Alberto de Boni (PUC-RS) Mário Jorge da Motta Bastos (UFF) Massaud Moisés (USP) Vânia Leite Fróes (UFF) Yara Frateschi Vieira (UNICAMP)

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S UMÁRIO APRESENTAÇÃO Uma Raridade na Estante Medieval - Maria do Amparo Tavares Maleval ................. 7 INTRODUÇÃO - Yara Frateschi Vieira ............................................................................ 9 CADERNO FOTOGRÁFICO ............................................................................................ 21 APÊNDICE - Correspondência de Oskar Nobiling com José Leite de Vasconcelos ........................................................................................................... 29 Bibliografia de Oskar Nobiling ............................................................................... 35 LÍRICA MEDIEVAL GALEGO-PORTUGUESA As cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade, Trovador do Século XIII ............ 39 Introdução ao Estudo da mais Antiga Poesia Portuguesa ................................ 145 Uma Canção de D. Denis ....................................................................................... 161 Acerca da Interpretação do Cancioneiro de D. Denis ...................................... 165 Acerca do Texto e da Interpretação do Cancioneiro da Ajuda ....................... 173 A Edição do Cancioneiro da Ajuda, de Carolina Michaëlis de Vasconcelos ......................................................................................................... 219 Textos Arcaicos ........................................................................................................... 257

LÍNGUA PORTUGUESA As Vogais Nasais em Português ............................................................................ 265 Albanês e Português ................................................................................................ 289 Emendas e Aditamentos à Secção Portuguesa do Lateinisch-romanisches Wörterbuch de Körting ........................................................................................ 311

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Português do Brasil deixe eu ver .............................................................................. 367 Brasileirismos e Crioulismos ................................................................................. 369 Frases Feitas ................................................................................................................ 373 IV. LITERATURA POPULAR Coletânea de Canções Brasileiras .......................................................................... 389 Quadras do Estado Brasileiro de São Paulo ....................................................... 455 Uma Página de História de Literatura Popular ................................................... 469 Estudos sobre o Romanceiro Popular, de Carolina Michaëlis de Vasconcelos .................................................................................................... 477

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Introdução

A PRESENTAÇÃO UMA R ARIDADE

ESTANTE M EDIEVAL

NA

Maria do Amparo Tavares Maleval

A coleção Estante medieval da EdUFF se honra sobremaneira com a publicação desse seu segundo título, contendo os dispersos de Oskar Nobiling diligentemente reunidos por Yara Frateschi Vieira, pesquisadora insigne que tantos trabalhos de monta vem tornando acessíveis aos leitores interessados na Idade Média. Nascido em Hamburgo, 1865, jovem ainda Nobiling veio para o Brasil (1889), naturalizando-se brasileiro em 1894. Aqui, dedicar-se-ia ao magistério em São Paulo, bem como a pesquisas que, ao lado do seu interesse pela lírica medieval galego-portuguesa, demonstravam o grande apreço que dedicava à nossa cultura, recolhendo “da boca do povo” muitos dos nossos cantares tradicionais e elaborando estudos sobre o português brasileiro, entre outros. De há muito que os filólogos e medievalistas ansiavam por uma reedição de As cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade, tese de doutoramento defendida em Bonn, 1907. Não só pela importância desse trovador, um dos mais fecundos e originais dos cancioneiros medievais galego-portugueses, autor de 54 cantigas distribuídas entre as espécies ou gêneros de amor, de amigo, de escárnio e/ou maldizer, introdutor do motivo dos “olhos verdes” na nossa lírica... Mas sobretudo pela qualidade da edição crítica realizada por Nobiling, que se tornou entre nós um pioneiro e paradigma da crítica textual dos antigos cancioneiros, seguido e reverenciado por filólogos como Celso Cunha, Segismundo Spina, Leodegário Azevedo Filho e outros. A edição criteriosa (embora considerada não definitiva por Nobiling, por lhe faltarem alguns textos à colação) das poesias de Guilhade já seria suficiente para aplaudirmos com entusiasmo a inclusão da sua publicação 7

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em nossa Estante. Mas Yara Frateschi Vieira foi além: reuniu os demais textos dispersos de Nobiling, providenciando a tradução dos que haviam sido publicados em alemão. Com isto, apresenta-nos uma valiosíssima recolha de estudos que nos permitem delinear o perfil do grande pesquisador, dedicado ao estudo e fixação de textos da nossa lírica ancestral, à apreciação das suas edições então realizadas por Carolina Michaëlis de Vaconcelos (Cancioneiro da Ajuda) e Henry Lang (Cancioneiro de D. Denis); como também, repetimos, à recolha das cantigas tradicionais do nosso folclore e à história e dialetologia da língua portuguesa, ao estudo do português brasileiro. A presente edição ainda contém Introdução, da lavra da organizadora, com importantes informações sobre o autor e sua trajetória, além do Apêndice com correspondências, caderno fotográfico e bibliografia. E na orelha, Evanildo Cavalcante Bechara a prestigia com o seu precioso aval. Portanto, comemorando os cem anos transcorridos desde a publicação de As cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade por Oskar Nobiling, Yara Frateschi Vieira enriquece a Estante medieval com a organização desta obra, que sem dúvida fará a nossa Estante visitada e respeitada por leitores de escol. À admirável e incansável intelectual muito agradecemos, bem como à Xunta de Galicia, que nos permite a publicação de obras valiosas como a que ora temos a satisfação de apresentar, através de convênios de cooperação com a UFF e a UERJ, visando à divulgação da língua, da literatura, da cultura galega.

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Introdução

I NTRODUÇÃO Yara Frateschi Vieira

Portugal e Brasil receberam, na segunda metade do século XIX, dois grandes presentes1 vindos da Alemanha, naquela altura berço e germinadouro das novas idéias e novos métodos filológicos: por circunstâncias até mesmo semelhantes, Carolina Michaëlis passou a viver em Portugal e Oskar Nobiling, treze anos depois, no Brasil. Ambos deslocaram-se para outro país por motivos familiares: Carolina, por seu casamento com Joaquim de Vasconcelos, e Nobiling, ao que tudo indica, por incentivo da sua irmã mais velha, Magda, que se casara com um teuto-brasileiro residente em São Paulo2. Não é muito o que sabemos da sua vida. Nasceu em Hamburgo, aos 30 de março de 1865. Terá vindo para o Brasil em 1889 (a data de 15 de novembro referir-se-á provavelmente à sua saída da Europa3). Mas deve ter feito os estudos de romanística ainda na Alemanha, pois sai dali já com 24

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Numa frase que se tornou célebre e de maneira muito mais enfática, Menéndez y Pelayo chamava Carolina Michaëlis “el hada benéfica que Alemania envió a Porto para ilustrar gloriosamente las letras peninsulares” (apud Ricardo Jorge, “D. Carolina Michaëlis”, Academia de Ciências de Lisboa, Boletim de Segunda Classe 5 (1911-1912) p. 302d) Colhi essa informação dos dados que gentilmente me enviou da Alemanha o Dr. Gerhard Nobiling. Por ser ele, como se autodenomina, “o genealogista da família”, elaborou uma crônica familiar, abrangendo o ramo que veio para o Brasil. Segundo as suas anotações, a filha mais velha de Theodor Nobiling (1815-1889), Magdalena, casou-se à volta de 1884 com Heinrich Franklin Schaumann, farmacêutico filho de alemão, nascido em Campinas, fundador e proprietário da tradicional botica O Veado d’Ouro (uma das principais artérias paulistanas, por sinal, traz hoje o seu nome). O casamento de Magda teria sido o estímulo para que todos os irmãos, progressivamente, viessem para o Brasil, onde se instalaram e criaram família, permanecendo muitos descendentes ainda hoje no país, principalmente em São Paulo e na região do litoral paulista. O mais novo dos irmãos, Johannes Theodor Nobiling, nascido em 1877 e vindo para o Brasil em 1897, tornou-se aqui conhecido como Hans Nobiling, um dos introdutores do futebol no país e fundador do Esporte Clube Germânia, mais tarde denominado Esporte Clube Pinheiros. Existe hoje uma rua em São Paulo com o seu nome e no Clube Pinheiros criou-se o Centro Pró Memória Hans Nobiling – infelizmente, uma visita ao local comprovou-se infrutífera, pois toda a documentação ali existente refere-se apenas ao irmão caçula... Informações menos detalhadas podem ser também encontradas na publicação Famílias Brasileiras de Origem Germânica. Vol. VI. São Paulo: Instituto Hans Staden, 1975, pp. 192-194. Essa data encontra-se nas notas do Dr. Gerhard Nobiling.

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anos; e suponho que terá aprendido o português antes de vir para São Paulo. O seu dom para línguas é, aliás, comentado por muitas testemunhas que o conheceram. Nas notas genealógicas de G. Nobiling, consta que falava 13 línguas, entre as quais o albanês! Mas essa observação terá nascido provavelmente do fato de ele ter escrito um estudo, no qual comparava o português e o albanês. Na verdade, ao lermos os artigos que publicou em português e as suas notas manuscritas ou cartas, ficamos deveras impressionados com o seu português impecável, ainda que bastante formal e menos vivaz que o de Carolina Michaëlis. Depois de estar alguns anos em São Paulo, solicitou a naturalização, que lhe foi concedida pelo governo brasileiro em 18944: o pedido de cidadania deve ter sido motivado pela oportunidade de vir a ser nomeado professor (lente catedrático) de língua e literatura alemã do recém-fundado “Ginásio de Estado”, o que efetivamente ocorreu em 1895. Em 1901, casa-se, no Consulado Alemão de Santos, com Erna Philippine Fenchel, nascida em Bremen em 1877. A sua primeira filha, Ilse, nasce em São Paulo, em 1902; a segunda, porém, Hedwig, nasce em Bremen, em 1903, assim como o terceiro, Ernst (1907); o quarto, Walter, nasce em 1909 em São Paulo. Como a família da sua mulher era de Bremen, podemos perguntar-nos se somente ela teria viajado à Alemanha para dar à luz; mas consideradas as duras condições das longas viagens de navio, parece mais provável que tenha sido acompanhada pelo marido, que precisaria certamente licenciar-se das suas obrigações docentes no Ginásio de Estado, pelo menos por alguns meses. O nascimento do terceiro filho, em 15 de abril de 1907, quase coincide com a defesa da sua tese de doutorado junto à Universidade de Bonn, no dia 18 de julho daquele mesmo ano5. Embora o título que consta na folha de rosto do exemplar da tese na Biblioteca da Universidade de Bonn seja Die Lieder des Trobadors D. Joan Garcia de Guilhade (13. Jahrhundert), induzindo-nos a pensar que ele teria escrito a tese em alemão, traduzindo-a depois para o português, para publicá-la na forma em que a conhecemos, na verdade apenas a folha de rosto e o curriculum vitae na última página estão 4

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Cópia da concessão, datada de 22 de setembro de 1894, consta do Arquivo do Instituto MartiusStaden. É interessante observar que o nome é aí grafado com –k: Oskar. Os portugueses, como tendiam a aportuguesar todos os nomes, grafavam Oscar. O próprio Oskar, nas cartas e textos publicados, assinava O. Nobiling, de modo que não sabemos qual a sua grafia preferida. Decidimos manter o nome como aparece no documento oficial e como se tornou tradição grafá-lo no Brasil: Oskar. Ivo Castro informa que foi ali aluno de Wendelin Foerster: NOBILING (Oskar), in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas da Língua Portuguesa. Vol. 3. Lisboa: Verbo, 1999, col. 1134.

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Introdução

escritos em alemão, sendo o texto já redigido em português6. Penso que podemos aceitar, então, que a tese foi apresentada à banca examinadora em português. Não sabemos em que língua terá decorrido a discussão nem a constituição da banca ... A preparação e redação do trabalho fez-se, porém, em São Paulo, com todas as dificuldades que Nobiling não se cansou de expor, em diversas ocasiões. No próprio Prefácio, datado de março de 1907, diz: Não pude, na terra em que empreendi o presente trabalho, utilizar-me de todos os subsídios científicos que me ofereceriam as bibliotecas da Alemanha ou da França. Entre as obras que sinto não ter consultado, ocupam um lugar insigne os estudos que o Dr. F. Hanssen, lente do Instituto Pedagógico de Santiago de Chile, publicou relativamente à história da métrica hispano-portuguesa7.

No minucioso e virulento estudo crítico do livro de João Ribeiro, publicado pela primeira vez em O Estado de S. Paulo de 22 de abril de 1908, assim abre o seu arrazoado, alegando como possível “concessão” às faltas encontradas no livro a dificuldade de se escrever no Brasil: Reconheçamos que é bem difícil escrever, nesta terra e sobre assuntos filológicos, um livro de valor, sem redizer o que já foi dito por outros e sem deixar de aproveitar os resultados das pesquisas feitas por tantos sábios que em países tão diversos se dedicam à lingüística neo-latina. A grande maioria das obras científicas que se ocupam dos múltiplos problemas referentes à história, não só das línguas românicas, mas do próprio idioma português, e particularmente todas as obras de maior erudição, tarde ou nunca aparecem no Brasil. As livrarias as ignoram, as bibliotecas públicas não as possuem. Quem conhece entre nós os trabalhos que publicaram e publicam os Monaci e de Lollis na Itália, os Cornu e Meyer-Lübke nos países de língua alemã, Jeanroy na França, H. Lang nos Estados Unidos?8

Nas cartas e nos bilhetes enviados por Nobiling a José Leite de Vasconcelos, o tema quase constante é a falta de recursos bibliográficos e a conse-

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Informação dada pela Sra. Cornelia Hoermann, da Biblioteca da Universidade de Bonn. Ela confirmou-me por e-mail que a biblioteca possui 2 exemplares: um deles está fora de lugar e portanto não pôde ser consultado; existe, contudo, uma cópia em microficha que ela fez o favor de consultar, verificando que estava em português. Cf. F. Jensen, Nobiling, Oskar. In G. Tavani e G. Lanciani, Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993, p. 475. (Vid. foto da folha de rosto adiante) Cf. As cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade, trovador do século XIII. Vid. adiante pp. 39-143. Frases Feitas. Vid. adiante: pp. 373-386.

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qüente solicitação ao filólogo português para que lhe envie os seus trabalhos ou o informe do que se publica “lá fora” sobre um determinado assunto9. Uma lacuna que também registra na Introdução às Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade é não ter podido consultar os códices, baseando as suas lições nas edições então disponíveis: de Monaci, Molteni e Carolina Michaëlis. Na verdade, ele não é o único a queixar-se dessa dificuldade: Carolina Michaëlis, em 1904, não deixara de lançar uma farpa a Monaci, aludindo ao fato de “haver adquirido ha annos o precioso thesouro [CB] e de não o facultar mais aos que desejariam vê-lo”; e acrescentava em nota: “Em 1894 Monaci ainda extrahiu manu propria as variantes do CD, em favor de um joven professor americano. Depois facultou-o a Cesare de Lollis”10. É, aliás, através da correspondência entre Carolina Michaëlis e José Leite de Vasconcelos que ficamos sabendo que em 1911 ou 12, quando, já doente, foi para a Europa, Nobiling tinha a intenção de ir a Roma e não sair de lá enquanto não conseguisse ver os apógrafos italianos: Ouvi dizer que V. E. [J.L. Vasconcelos] esteve em Roma? Claro que desejo saber se viu Monaci e os Cancioneiros?! Sabe, se Oskar Nobiling realizou o seu plano de não sair da cidade eterna, sem ter conseguido esse seu fim?11

E a respeito dessa última viagem também Sílvio de Almeida comenta: “... e causa-me pena o lembrar que, com a doença que o levou à Europa, ele também cegamente levava os mais largos planos de estudos na biblioteca do Vaticano...”12 Não sabemos se teria conseguido, antes de dirigir-se à Alemanha, ver por fim os tão desejados códices: morreu no dia 19 de setembro de 1912,

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Cf. no Apêndice os itens 1, 2, 3, 5, 6, 7 e 8. Cancioneiro da Ajuda. Edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Reimpressão da ed. de Halle (1904), acrescentada de um prefácio de Ivo Castro e do glossário das cantigas (Revista Lusitana, XXIII). Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1990, vol. II, p. 50 e nota 1 da mesma página. Bilhete s.d. [22600 na numeração do Epistolário de José Leite de Vasconcelos, Suplemento no. 1, O Arqueólogo Português. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 1999, pp. 258-260]. C. Michaëlis, porém, aí agradece a Leite de Vasconcelos “o carinhoso artigo no Boletim, a que deu o título de Preambulo”, que é facilmente identificável: trata-se do artigo publicado no Boletim de Segunda Classe, V (julho 1911) pp. 246-297. O volume foi publicado em 1912, mas é possível que ela o tenha visto antes da impressão. Podemos então datar o bilhete de fins de 1911 ou princípio de 1912. (Agradeço ao Museu a autorização para fotografar os documentos e a Ivo Castro, que generosamente os fotografou.) “Oscar Nobiling”, publicado pela primeira vez em O Estado de S. Paulo, 30 de setembro de 1912; republicado na Revista Lusitana, XV (1912) pp. 366-368; e no Jornal de Filologia, I: 2 (1953) pp. 157-159.

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no Eppendorfer Krankenhaus, em Hamburgo, acometido de uma doença que o levou em plena maturidade, aos 47 anos13. *** Infelizmente, porém, o país não estava de fato preparado para poder beneficiar-se do presente que recebera. Ao contrário de Portugal, que reconheceu o valor de Carolina Michaëlis, oferecendo-lhe mesmo uma cátedra na Universidade, apesar de ser mulher, o Brasil nem sequer contava ainda com uma universidade propriamente dita, apenas com faculdades de formação profissional: a primeira instituição universitária a funcionar plenamente é a Universidade de São Paulo, criada em 193414. Não admira assim que os seus trabalhos tenham tido repercussão imediata muito maior no Exterior. E temos de considerar que a sua vida pública, digamos assim, na arena filológica, durou apenas 9 anos: de 1902 a 1911. Em carta sem data, Nobiling relata a Leite de Vasconcelos que fora convidado para exercer a função de rédacteur da Société Internationale de Dialectologie Romane, encarregando-se do domínio da língua portuguesa fora da Europa15. Levanta a hipótese de que Leite de Vasconcelos teria tido algum papel na indicação do seu nome: se isso é verdade, pode-se supor que o convite terá sido feito entre 1902 e 1906-7, uma vez que já em 1902 publicara o artigo “Uma canção de D. Denis” na Revista Lusitana, que a crítica à edição de Lang do Cancioneiro de D. Denis saiu na Zeitschrift für romanische Philologie de 1903, e uma parte dos seus comentários à edição do Cancioneiro da Ajuda por Carolina Michaëlis, na revista Romanische Forschungen de 1907. Silveira Bueno informa que logo depois do doutoramento foi chamado a fazer parte do corpo docente da Universidade de Freiburg16. Ignoro em que fundava tal afirmação: é possível que Nobiling tivesse sido convidado para ocupar uma cátedra em Freiburg, mas se isso aconteceu, não aceitou o convite, pois no histórico do Departamento de Línguas e Literaturas Românicas daquela universidade, o seu nome não consta como professor17. Correspon-

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Segundo as notas do Dr. Gerhard Nobiling. Vid. Fernando de Azevedo, A cultura do Brasil. Introdução ao estudo da cultura no Brasil. 4ª. ed. rev. e aum. São Paulo: Melhoramentos, 1964, pp. 562-679. Vid. carta 1, s.d., no Apêndice. Silveira Bueno, “Prof. Oscar Nobiling”, in Jornal de Filologia, I: 2 (out. a dez. 1953), p. 156. http://www.romanistik.uni-freiburg.de/geschichte/ (9.10.2007). Nas anotações de G. Nobiling não há menção desse fato, o que seria natural, se Nobiling tivesse ocupado uma posição docente numa universidade alemã.

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dendo-se com os filólogos da época18, mantinha-se a par do que se publicava fora, solicitando aos autores que lhe enviassem as suas obras quando não podia adquiri-las, e pedindo a quem considerava autoridade no assunto que revisse os seus trabalhos: numa carta a Leite de Vasconcelos, Carolina Michaëlis menciona que “...a Oskar Nobiling rev[iu] um manuscrito sobre cantigas de Alf[onso] X”19. Qual a opinião que extraiu dessa leitura, expressa-a na “Explicação Prévia” anteposta ao Glossário do Cancioneiro da Ajuda, ao mencionar as críticas que a sua edição recebera de outros estudiosos: Dois estudos, estrictamente filológicos, vieram da América. Um muito benévolo, cheio de observações criticas, era obra do malogrado professor de São Paulo (do Brasil), Oskar Nobiling, publicador consciencioso das Cantigas de João de Guilhade, e autor de numerosos estudos, o melhor dos quais sôbre Alfonso o Sábio, como poeta, ficou infelizmente por acabar, quando faleceu em 191220. (itálicos meus)

Leite de Vasconcelos refere-se também a um trabalho sobre a língua do Testamento de Afonso II, que Nobiling lhe oferecera para publicar na Revista Lusitana; como ele lhe respondesse que estava no momento organizando o volume das Lições de Filologia, onde reimprimia e analisava aquele Testamento, Nobiling declarou-se disposto a esperar que saísse o livro, para então decidir se lhe restaria algo que observar21. O filólogo português ignorava se o trabalho fora ou não concluído, pois logo em seguida sobrevieram a doença e a morte de Nobiling22. Na esperança de poder localizar esses textos, entrei em contacto com descendentes da família tanto em São Paulo como na Alemanha; tinha a esperan-

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É ainda Silveira Bueno que o informa: “Correspondeu-se com os maiores representantes da filologia portuguesa, da literatura, aqui e em Portugal, bem como se fez amigo das maiores notabilidades que, naqueles dias, pontificavam na Alemanha e na França”. (Op. cit., p. 153) Infelizmente, da correspondência que Nobiling certamente trocou com filólogos, só pude recuperar, por enquanto, a que foi enviada a José Leite de Vasconcelos. Certamente escreveu a Carolina Michaëlis, que em bilhete sem data, relata a Leite de Vasconcelos que Nobiling saíra do Brasil no “dia 5” (de que mês? de 1911?) no vapor “Petrópolis” e que queria encontrar-se com Braamcamp Freire. Como no mesmo bilhete ela agradece a Leite de Vasconcelos as felicitações, muito provavelmente pela sua nomeação para a Universidade (publicada em 22 de junho de 1911), supomos que a correspondência seja de logo depois dessa data. Cf. doc. 22610 – bilhete postal s.d. [1911?] do Epistolário, op. cit. Carta datada do Porto, 30 de novembro de 1911. (Doc. 22736, do Epistolário, op. cit.) Glossário, Cancioneiro da Ajuda, op. cit., vol. I, pp. vi-vii. Vid. carta e bilhete postal, nos. 4 e 5, no Apêndice, datados de 1909. Cf. item 16 da bibliografia elaborada por J. L. de Vasconcelos, na Revista Lusitana, XV (1912) pp. 369-70.

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ça de que se pudessem encontrar na Biblioteca do Instituto Martius-Staden, onde está o manuscrito da Coletânea de canções brasileiras e onde também se guarda o exemplar de trabalho das Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade, com as suas notas manuscritas. Infelizmente, ninguém soube dar notícia de eventuais trabalhos perdidos. Silveira Bueno, na matéria que lhe dedica no Jornal de Filologia, baseando-se em conversas com a viúva de Nobiling, falecida em São Paulo em 16 de março de 1953, informa que a guerra de 1914 teria destroçado completamente a sua biblioteca e os seus bens, e que a família, tendo perdido quase tudo, regressara a São Paulo23. No necrológio de Erna, publicado no jornal alemão de S. Paulo, fala-se bastante do marido, mencionando-se o seu dom para línguas (“penetrara no espírito da língua portuguesa melhor do que qualquer brasileiro nato”) e algumas das suas obras, entre as quais “tradução para o alemão de obras poéticas portuguesas e brasileiras”. Esse último dado é, provavelmente, errôneo, pois não há notícia de traduções poéticas que teria feito para o alemão (a não ser que as tenha publicado em jornais ou revistas alemãs de que não consta registro)24. Que o trabalho de Nobiling passava quase desconhecido nos círculos intelectuais brasileiros da época, declara-o um seu colega, também docente no Ginásio do Estado, ao escrever o seu elogio fúnebre: Aqui no Brasil houve por muito tempo, mesmo entre os estudiosos, o mais completo desconhecimento do seu valor; e Sílvio Romero, que com ele só tardiamente se correspondeu, chegou a perguntar-me certo dia: “Mas ... como foi que você descobriu o Nobiling?” E a pergunta justamente assinala a modéstia daquele que honrava a sua cadeira do Ginásio de S. Paulo, do mesmo modo por que podia glorificar uma qualquer universidade da Europa25.

Sílvio Romero podia, certamente, não conhecer Nobiling; mas este, já em 1895-1897, ao coligir “da boca do povo” canções populares, anotava ao lado de algumas delas o número das composições correspondentes, registradas no estudo de Romero sobre os cantos populares do Brasil. 23

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Silveira Bueno, op. cit., pp. 153-156. Numa Nota final, Silveira Bueno agradece “ao Dr. Giglio Pecoraro o auxílio que prestou ao Jornal de Filologia, conseguindo a fotografia e as notas da introdução em diversas ocasiões que teve de conversar com a família de Oscar Nobiling ainda residente nesta capital de S. Paulo”. Não me ficou claro se o Dr. Giglio Pecoraro escreveu o texto ou forneceu notas para que Silveira Bueno o escrevesse. O necrológio, publicado em Deutsche Nachrichten, 19.3.1953, está arquivado na Biblioteca do Instituto Martius-Staden. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, de 30.9.1912 e reproduzido na Revista Lusitana, XV (1912), pp. 366-369.

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Na verdade, como já se mencionou acima, teremos de esperar até depois da década de 30 do século XX, momento em que começam a funcionar regularmente as instituições de ensino superior no Brasil, para que o trabalho de Nobiling pudesse ser resgatado do esquecimento e produzir frutos. O seu primeiro herdeiro direto é, assim, a edição d’O Cancioneiro de Paay Gômez Charinho, de Celso Cunha, apresentada como tese de concurso “para provimento da cadeira de Literatura Portuguesa da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil”26. Elsa Gonçalves, que preparou a reedição dos três trabalhos de Cunha dedicados aos “trovadores do mar”, não deixa de sublinhar essa filiação direta, ao perguntar: “Será necessário lembrar que, em 1945, as únicas edições verdadeiramente críticas de trovadores galego-portugueses eram a de Don Denis, por Henry R. Lang (1894) e a de Joan Garcia de Guilhade, por Oskar Nobiling(1907)?”27 E o próprio Cunha coloca sob a égide de Nobiling a tese a ser defendida, selecionando da edição de Guilhade, para primeira epígrafe do seu texto, as seguintes palavras: ... já será tempo de reunirmos em edições completas as obras dos mais importantes dentre os trovadores, a fim de se poderem estudar as feições comuns dêsse primeiro período da literatura portuguêsa bem como as individuais que caracterizam os seus vultos mais eminentes. (Oskar Nobiling, As cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade, Erlangen, 1907, pág. V)28

É ainda seguindo a mesma linha de trabalho defendida em 1907 por Nobiling que, em 1974, começa a ser publicada a Coleção Oskar Nobiling, dirigida por Leodegário de Azevedo Filho. O primeiro volume da coleção, segundo o Plano publicado, seria exatamente a edição das cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade, por Maximiano de Carvalho e Silva. Na verdade, só se publicaram dois volumes dos dez inicialmente previstos: As cantigas de Pero Meogo, por Leodegário de Azevedo Filho, e As cantigas de Pero Mafaldo, por Segismundo Spina29. Ao apresentar a coleção e justificar o nome para ela escolhido, o seu diretor inclui uma bio-bibliografia de O. Nobiling, que se inicia com o reconhecimento do seu valor para o trabalho de 26

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Conforme se lê no facsímile da folha de rosto da tese, reproduzido em Celso Cunha, Cancioneiros dos Trovadores do Mar, edição preparada por Elsa Gonçalves. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1999, p. 33. Ibid., p. 32. Ibid., p. 35. As cantigas de Pero Meogo (estabelecimento crítico dos textos, análise literária, glossário e reprodução facsimilar dos manuscritos). Por Leodegário A. de Azevedo Filho. Rio de Janeiro: Edicções Gernasa e Artes Gráficas Ltda., 1974; Segismundo Spina, As cantigas de Pero Mafaldo. Edição crítica. Rio-Fortaleza, Tempo Brasileiro/Universidade Federal do Ceará, 1983.

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edição de textos medievais no país: “No Brasil, sem levar em conta os trabalhos anteriores, todos de menor importância, quem deu início à publicação científica de textos da lírica medieval galego-portuguesa foi o professor Oskar Nobiling (Hamburgo, 1865 – Bonn [sic], 1912)30. O mesmo Professor Azevedo Filho, quando diretor da Academia Brasileira de Filologia, criou a Medalha Oskar Nobiling, que, durante a realização do VIII Congresso Brasileiro de Língua e Literatura, foi conferida a cem especialistas brasileiros e estrangeiros, “por relevantes serviços prestados à causa do ensino da Lingüística, da Filologia e da Literatura”31. Não faltaram, inclusive, projetos de reedição da obra de Nobiling. Serafim da Silva Neto iniciou a tradução de alguns dos artigos escritos em alemão, dedicados a aspectos de lingüística portuguesa, pensando reuni-los num volume. Por razões que ignoro, desistiu desse projeto, cedendo as traduções já feitas à Revista Filológica, que chegou a republicar apenas o estudo “Brasileirismos e Crioulismos”32. O artigo sobre as vogais nasais do Português, traduzido por Dinah Maria Isensee Callou e Maria Helena Duarte Marques, foi publicado pela revista Littera, em 197433. Cem anos depois da publicação das Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade, é mais do que tempo, portanto, de que esses esforços anteriores, malogrados certamente por circunstâncias exteriores à vontade dos seus autores, sejam levados a cabo e de que esses trabalhos se coloquem finalmente à disposição de um público mais amplo, inclusive os estudantes universitários, que poderão consultá-los reunidos num único conjunto e vertidos para o vernáculo, no caso dos que foram escritos em alemão. Com esse objetivo em mente, atualizou-se a ortografia dos textos originalmente publicados em português, excetuando-se, porém, os nomes dos trovadores, que conservam a grafia empregada por Nobiling. A organização do volume procurou refletir os três campos de interesse de Nobiling: naturalmente, o maior número de trabalhos ocupa-se de temas ligados à lírica medieval galego-portuguesa, sobressaindo entre eles a 30

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As cantigas de Pero Meogo, op. cit., p. 11. Na verdade, como já foi dito, Nobiling morreu em Hamburgo. A indicação de Bonn, porém, encontra-se em algumas das suas biografias. 8º. Congresso Brasileiro de Língua e Literatura (de 19 a 23 de julho de 1976). Homenagem a Oskar Nobiling. Rio de Janeiro: Edições Gernasa, 1977, p. 9. “Brasileirismos e Crioulismos”, in Revista Filológica 7 (junho de 1941) pp. 63-67. Esse artigo, aliás, foi publicado na Revue de Dialectologie Romane em português. É curioso observar que, na Nota “Res et Verba”, que antecede o artigo, elencam-se os artigos que Serafim da Silva Neto se incumbira de traduzir para português; entre eles, o segundo é descrito como “Relações entre línguas européias e americanas (do al.)” (ibid., p. 63). Desconheço a existência desse artigo, que não consta de nenhuma das bibliografias que pude consultar. Republicado aqui, pp. 265-288.

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edição de Joan Garcia de Guilhade, mas merecendo atenção especial do leitor também as minuciosas resenhas críticas que Nobiling escreveu sobre a edição do Cancioneiro de D. Denis, de Henry R. Lang, e sobre a edição do Cancioneiro da Ajuda de Carolina Michaëlis, todas elas cheias de reparos e sugestões que revelam um conhecimento íntimo dos textos, da bibliografia crítica e de aspectos do estado da língua pertinentes à versificação trovadoresca, como a questão da elisão e do hiato. Já referimos anteriormente como Carolina Michaëlis reagiu favoravelmente às críticas vindas do professor de São Paulo, incluindo mesmo algumas delas no Glossário do Cancioneiro da Ajuda. Dos trabalhos sobre a língua portuguesa, merecem destaque, por incidirem especialmente sobre o português brasileiro, o estudo sobre as vogais nasais, o artigo sobre brasileirismos e crioulismos, bem como a construção brasileira “deixe eu ver”; e as minuciosas emendas e aditamentos à secção portuguesa do Dicionário Latino-Românico de Körting34. Chama a atenção ainda o ácido estudo crítico sobre um livro de João Ribeiro, onde o filólogo, em geral muito comedido nos julgamentos, mas espicaçado por críticas que considerava infundadas, não hesita em mostrar que o autor daquele livro, além de ignorante e pretensioso, é também um plagiário. Recém chegado ao Brasil, Nobiling pôs-se imediatamente a campo, em busca de cantigas ou bailados dramáticos tradicionais, ainda vivos no Estado de São Paulo. Dessa forma, já por volta de 1895-1897, registrara a sua recolha num caderno de 32 páginas; pelo menos é o que resta da Coletânea de canções brasileiras, manuscrito conservado no Instituto MartiusStaden, de São Paulo: a maneira abrupta como termina a fala de Bico Branco de Novais, e algumas remissões do próprio Nobiling a páginas posteriores à de número 32, levantam a hipótese de o caderno estar incompleto. No entanto, já em 1953, quando Helmut Heinke transcreveu as notas estenográficas do manuscrito, em duas páginas datilografadas colocadas em apêndice, o caderno terminava na pág. 32. Algumas dessas cantigas foram aproveitadas para a redação do artigo “Quadras do Estado brasileiro de S. Paulo”, publicado em 1904. O seu interesse pela literatura popular revela-se também num artigo bastante curioso sobre as possíveis vias de transmissão do conto “João mais Maria”, publicado no Almanaque Garnier, em 1907. Naturalmente, esses trabalhos de cunho etnográfico, que completava com a descrição das peculiaridades lingüísticas cuidadosamente anotadas, não deixaram de cha-

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Carolina Michaëlis recomendava-os aos seus estudantes. Cf. Lições de Filologia Portuguesa. Segundo as preleções feitas aos cursos de 1911/12 e de 1912/13. Seguida das Lições Práticas de Português Arcaico. Lisboa: Martins Fontes, s.d., p. 280.

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mar a atenção de José Leite de Vasconcelos, que numa página solta escreve: “O. Nobiling – estudo de um conto no Almanaque Garnier 1907 – Não o posso obter [....] não o tem35”, e solicita-os a Nobiling, como depreendemos da resposta deste, em bilhete datado de 6 de janeiro de 190836. Naturalmente, não deve surpreender a variedade dos temas tratados na obra de Nobiling: a crítica textual, a literatura medieval galego-portuguesa, a história e a dialetologia do português e a literatura e a cultura popular. Ele formara-se dentro do espírito da filologia alemã de raízes românticas, magistralmente sintetizado por Carolina Michaëlis nas preleções dirigidas aos seus alunos e depois publicadas em volume: Depois do que deixei dito é quási supérfluo assentar ainda em resumo que para mim filologia portuguesa é o estudo científico, histórico e comparado da língua nacional em tôda a sua amplitude, não só quanto à gramática (fonética, morfologia, sintaxe) e quanto à etimologia, semasiologia, etc., mas também como órgão da literatura e como manifestação nacional37.

Assim, entrelaça-se, na busca de um conhecimento que faça justiça à complexidade dos seus objetos, o estudo da língua, de uma perspectiva científica e comparatista que especialistas contemporâneos também chamaram “glotologia”38, ao da literatura medieval, atento aos problemas específicos do estabelecimento do texto, mas também sensível ao que poderíamos chamar o mysterium da poesia39; e ainda, dentro dessa visão ontológica da literatura, o empenho em resgatar “o profundo sentimento poético, a força de imaginação e a arte narrativa que não raro transparecem nas obras da literatura popular”40, que a revolução industrial ameaçava de extinção e a imaginação romântica associava aos fundamentos da identidade nacional. ***

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Doc. 16247A, Epistolário de J. L. de Vasconcelos, op. cit. Vid. Apêndice, item 2. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Lições de Filologia Portuguesa, op. cit., p. 156. Cf. a exposição dessas tendências no contexto português, na obra citada de Carolina Michaëlis, p. 146 ss. Cf., a respeito dessa concepção da literatura na filologia alemã romântica, R. Howard Bloch, “New Philology and Old French”, in Speculum 65 (1990) 38-39. “Uma página de história de literatura popular”: vid. adiante pp. 469-476.

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A realização deste volume deve muito a muitas pessoas e instituições. Em primeiro lugar, como ainda poderia repetir, infelizmente, as palavras centenárias com que Nobiling se queixava da pobreza das bibliotecas brasileiras, tive de recorrer a amigos que me ajudaram a obter alguns dos trabalhos publicados em revistas alemãs. Devo especial agradecimento a Maria Ana Ramos, que se desdobrou para localizar e enviar-me várias dessas cópias; a Isabel Morán Cabanas e a Mercedes Brea, que me remeteram cópias obtidas da Biblioteca da Universidade de Santiago de Compostela e do Centro de Investigacións Linguísticas e Literarias “Ramón Piñeiro”. Ao Instituto Martius-Staden, de São Paulo, em especial a Verônica Yamaguchi, devo as fotografias da Coletânea de Canções Brasileiras e do exemplar de trabalho das Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade, com as anotações do punho de Nobiling, bem como fotografias e documentos do seu acervo. Ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, agradeço que permitissem fotografar o artigo “Uma página de história de literatura popular”, no Almanaque Garnier, e a Márcio Coelho Muniz e Paulo Roberto Sodré, que o fotografassem. A Lívia Cristina Coito, do Museu Nacional de Arqueologia, de Lisboa, devo o pronto envio das fotografias dos documentos referentes à correspondência de Nobiling com José Leite de Vasconcelos. Para os dados biográficos, foram especialmente úteis as informações que me remeteu da Alemanha Gerhard Nobiling, ao qual fui encaminhada pela atenção de Rainer Nobiling, da Universidade de Heidelberg. A Cornelia Hoermann, da Biblioteca da Universidade de Bonn, agradeço ter conferido, por mim, o exemplar da tese de doutoramento ali depositado. A digitalização dos textos publicados em português, tarefa que exigia atenção meticulosa, bem como familiaridade com o assunto, foi realizada graças à competência e ao cuidado de Paulo Roberto Sodré, que também se incumbiu da edição do manuscrito da Coletânea de Canções Brasileiras. A Markus Lasch, que traduziu os trabalhos publicados em alemão, o agradecimento por ter mantido um cordial diálogo comigo, na revisão dos textos. A Evanildo Bechara, que muito graciosamente aceitou redigir a orelha para o livro; a Lênia Márcia de Medeiros Mongelli; Berta Waldman; Célia Marques Telles; Mariña Arbor Aldea; Isabel Carballo; e de modo especial, a Maria do Amparo Tavares Maleval e Fernando Ozorio Rodrigues, diretores da Coleção “Estante Medieval”, que acolheram com entusiasmo a publicação do volume na coleção, contribuindo com valiosas sugestões e resolvendo as dificuldades de caráter prático que se foram apresentando – a todos agradeço terem colaborado para que esse livro se realizasse da melhor forma possível. 20

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C ADERNO F OTOGRÁFICO

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1. Fotografia de Oskar Nobiling [Biblioteca do Instituto Martius-Staden].

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2. Página da publicação Die brasilianischen Nobilings. Hundert Jahr-Feier der deutschen Familie Nobiling in Brasilien, por Leo A. Schoof e Sabine Schoof. [Enviada pelo Dr. Gerhard Nobiling] 24

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3. Folha de rosto da tese de doutoramento de Oskar Nobiling, Die Lieder des Trobadors D. Joan Garcia de Guilhade (13. Jahrhundert), defendida na Universidade de Bonn, aos 18 de julho de 1907. [Foto enviada pelo Dr. Gerhard Nobiling] 25

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4. Página do exemplar de trabalho de O. Nobiling de As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade, trovador do século XIII, com anotações do seu punho. [Biblioteca do Instituto Martius-Staden]

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5. Página do manuscrito de Nobiling: Coletânea de canções brasileiras, com as suas anotações. [Biblioteca do Instituto Martius-Staden]

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6. Cartão postal com vista da Rua de S. Bento, São Paulo, datado de 20 de junho de 1910, enviado a José Leite de Vasconcelos. [Epistolário de José Leite de Vasconcelos, Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa]

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APÊNDICE Correspondência de Oskar Nobiling com José Leite de Vasconcelos

1 - Carta, s.d. [2 folhas, escritas frente e verso, faltando pedaços na parte superior] (16254)1 Exmo. Senhor, Recebi, do secretario da Sociét[é In]ternationale de Dialectologie Romane2, um convite para exercer as funcções de rédacteur, relativamente ao dominio da lingua portugueza fóra da Europa: convite que acceitei. Acrescenta o Dr. Schädel que foi V. Exa. quem propoz que se separasse esse dominio do de Portugal, confiando-o a um redactor especial; e julgo não errar, se presumo que tambem devo a V. Exa., ao menos em parte, o ter-se escolhido o meu nome para esta incumbencia honrosa. E, emquanto agradeço sinceramente essa prova de sua consideração, muito valiosa para mim, permittirme-á que recorra ao seu auxílio para desempenhar-me da tarefa // [difíc]il de organizar os estudos dialectologi[cos n]o campo vastissimo que me ficará con[fiado]. Tarefa, aliás, que me será tão grata – pois espero me ponha em contacto com collaboradores altamente estimaveis – quanto proveitosa – pois me é indispensavel o conhecimento dessa collaboração para os meus proprios estudos dialectologicos poderem dar o fruto que desejo. Mas V. Exa. mal póde formar uma idéia da escassez dos recursos de que dispõe quem se dedica aqui a estes e outros estudos de glottologia portugueza. Os livros e revistas que se publicam sobre taes assumptos em Portugal ou outros paizes, só por rara felicidade é se alguma vez apparecem aqui no commercio. O que eu possuo é pouco: alem de sua Esquisse // d’une Dialectologie (1901), Map[pa d]ial[ectolo]gico (1897), Dialecto Mirandez

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Indica-se a numeração que cada documento tem no Epistolário de José Leite de Vasconcelos. Cf. O Arqueólogo Português, Suplemento, no. 1, Lisboa, 1999, item 2419 – NOBILING, O. Vêm em itálico as palavras que no manuscrito estão grifada.

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(1882) e [Flores] Mirandezas (1884) e a Pronuncia normal [portu]guesa de Gonçálves Viana (1892) somente uma pequena Collecção de Vocabulos usado[s] no Rio Grande do Sul (1856), Kreolische Studien de Schuchardt (II-IX, 188391), a Giria Portugueza por Alberto Bessa (1901) e os vols. VI a VIII da Revista Lusitana (e ainda estes incompletos, graças ao meu livreiro de Lisboa, que me tem remettido bem irregularmente os fasciculos). Nestes volumes encontro o Dialecto Indo-port. de Goa, por S. R. Dalgado, O Guineense por Marques de Barros e Malaio e Português por Fokker e G. Viana. O que venho pedir à fineza de V. Exa. é, pois, o seguinte: os titulos de todas as obras que, alem das citadas, se publicaram // [sobre dialectos] port., e os endereços dos dialecto[logos] de merito que estudam os fallares das pos[se]sões port. da Asia e Africa. Muito me penhorará, fornecendo-me quantas informações tiver à sua disposição; e mais grato ainda lhe ficaria, se pudesse fazer-me remetter, quer directamente quer por intermedio do secretario da Société, quaesquer obras que interessem o meu campo de estudos. Nenhuma desejaria mais possuir do que os proprios trabalhos de V. Exa. e os estudos de Adolfo Coelho relativo aos dialectos crioulos. Conte V. Exa. com minha gratidão pelos preciosos auxilios que me queira prestar, e disponha dos serviços de seu admirador e atto. amigo O. Nobiling A respeito da Rev. Lusitana peço-lhe uma informação. Não será devido a um erro typogra// [continua na margem superior desta pág., a que faltam pedaços] o preço de R$ 6000 fortes, [...] da Rev. Para as assignaturas [...] deverá ser 600 [...] No v. da folha, na margem superior das 2 págs. há também 3 linhas escritas de um lado e 2 do outro, a que faltam pedaços: [...] da de ouro do Brasil (= cêrca de [...] que o facto de ser qua-[...] Brasil [d]eve ser attribuido àquelle preço marcad[...] desejaria que muitos [...]

2 - Verso de bilhete postal. (o verso das 2 folhas de 16247-1 contém anotações de JLV, que não se transcrevem, dada a dificuldade da leitura) (16247 – 2 + A – B 3) 3

16247 – 1 + A – B - Rosto de bilhete postal endereçado a José Leite de Vasconcelos, Biblioteca Nacional, Lisboa, datado de 6.1.1908 (saída do Brasil) e 23.I. 1908 (chegada a Lisboa). Acompanham duas páginas com anotações de J. Leite de Vasconcelos.

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São Paulo, 6. I. 1908 Avenida Br. Luiz Antonio, 12 Exmo. Sr.,

Agradeço os dois bilhetes postaes que ultimamente recebi de V. Exa. e a gentileza das referencias a minha pessoa e trabalhos. Agradeço igualmente o folheto “Uma chronica de 1404”, que me enviou para a Allemanha. Sinto muito que não me sobre, para enviar-lh’o, nenhum exemplar das Vierzeilen, tendo, por descuido do editor, recebido pouquíssimas separatas, nem tampouco do estudo sobre um conto do Brasil, publicado no Almanaque Garnier de 1907. São estes, de facto, os unicos trabalhos meus scientíficos de alguma importancia que faltam na collecção de V. Exa. Com muito gosto accederei ao seu convite de enviar uma contribuição para a Rev. Lus., se bem que não possa fazê-lo já, pois estou escrevendo mais uns artigos sobre o CA, que vão ser publicados no Archiv que foi de Herrig. Esperando ter, algum dia, o prazer de conhecer pessoalmente a V. Exa., sou seu adm.or e amo., O. Nobiling

3 - Verso de bilhete postal4 (16248- 2)

S. Paulo, 3. VIII. 1908 Rua Taguá, 2 Exmo. Sr.

Agradeço penhorado os artigos que V. Exa. teve a bondade de remetter-me, e sobretudo os Textos Archaicos, de que darei notícia crítica no “Estado de S. Paulo”, logo que os tiver lido com a devida attenção. As suas contribuições ao Jahresbericht me serão de muita utilidade. 4

16248 – 1 – Rosto de bilhete postal, endereçado a José Leite de Vasconcelos, Biblioteca Nacional, Lisboa. A data no carimbo lê-se 4 AGO [1908].

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Por hoje limito-me a estas rápidas palavras, pedindo a V. Exa. disponha de seu admirador e atto. amo. O. Nobiling

4 – Carta (16249) São Paulo, 1.XI.09 Rua Taguá, 2 Exmo. Sr., Desejando eu muito acceder ao seu pedido de um artigo para a Revista Lusitana, venho perguntar se V. Exa. acceitaria um estudo que estou escrevendo sobre a língua do Testamento de D. Affonso II (impresso no vol. VIII da R. Lus.). O artigo será de um pouco mais de 16 pag. impressas, e peço-lhe a fineza de me dizer tambem quando ele poderá sair ahi, pois estou também cogitando de mandá-lo para alguma revista da Allemanha. O fim do trabalho é averiguar, quanto possível, o estado phonetico e morphologico a que tinha chegado a lingua port. naquella época, comparando-o com o idioma classico dos trovadores contemporaneos. Esperando a sua resposta, sou de V. Exa. adm.or e am.o att.o O. Nobiling

5 - Bilhete postal (16250) S. Paulo, 14.XII.09 Rua Taguá 2 Exmo. Sr. Agradeço a sua carta de 16 do mez pass., cujos assumptos me interessam muito. Claro está que adiarei a publicação do meu art. até apparecer a 32

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Apêndice

nova edição do texto, a qual resultando do cotejo com o ms., será naturalmente uma base mais solida para semelhante estudo. Então verei tambem se depois dos commentarios de V. Exa. me ficará alguma coisa para dizer. Se assim for, pedirei a V. Exa. que receba os meus additamentos na R. Lus. Poderá V. Exa. enviar-me o seu Dialecto brasileiro? Será grande favor, pois só o conheço pela crítica de Ad. Coelho. Termino exprimindo-lhe os meus melhores desejos para o anno novo e subscrevendo-me de V. Exa. adm.or e am.o att.o O. Nobiling

6 – Bilhete postal (16251) S. Paulo, 1.II.10 Rua Taguá, 2 Exmo. Sr., Agradeço a sua amável carta de 1. I, e com muito prazer receberei o Dial. brasil. que me promette, assim como qualquer outra obra sua que me queira enviar. Possuo a Esquisse d’une dialectologie, Gil Vicente e a linguagem pop. (1902), Uma chronica de 1404, O dial. mirandez (1882), Flores mirandezas (1884), Mappa dialectol. do continente port. (1897), e o que appareceu na Rev. Lus. do VI vol. em diante. Não publicará V. Exa. breve algum artigo na Revue ou no Bulletin de Dialect. Rom.? É pena que o portuguez seja até agora tão pouco contemplado nestes periodicos que me parecem merecedores de todo o apoio. Creia-me V. Exa. seu am.o att.o e admor. O. Nobiling

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7 - Cartão postal com vista da Rua de S. Bento, São Paulo (16252) Exmo. Sr.

20.VI.10

Agradeço muito a magnífica collecção de obras suas, e espero com impaciencia o estudo sobre a linguagem do Test. de Aff. II. – O meu endereço daqui em diante será: Rua Maranhão, 40. S. Paulo. Saudações do adm.or e am.o obr.o O. Nobiling

8 - Bilhete postal (162535) S. Paulo, 29.X.10 Rua Maranhão, 40

Exmo. Sr. e Amigo, Acabando eu agora a leitura e estudo das suas interessantíssimas “Contribuições para a dialectologia port.”, vi que o folheto intitulado “Sur le dialecte portugais de Macao” não é senão a introducção de um trabalho que V. Exa. (se comprehendi bem) pretendia offerecer ao Congresso dos Orientalistas. Se este trabalho existe impresso, muito lhe agradeceria a sua remessa; senão, não poderia V. Exa. dá-lo à Revue de Dialectologie para ser impresso quanto antes? Peço encarecidamente me envie o manuscripto, quer para publicação quer emprestado, compromettendo-me eu nesse caso a devolvê-lo em breve. Seu admor e am.o obr.o O. Nobiling

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16253 + A contém o rosto do bilhete postal e parte de uma cinta de papel que terá envolvido impressos, enviados por Nobiling a Leite de Vasconcelos.

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade, Trovador do Século XIII

DE

B IBLIOGRAFIA O SKAR N OBILING

Sammlung brasilianischer Lieder (Manuskript). 32 Seiten, um 1895-97. Mit Umschrift (von Hellmuth Heinke) der stenographischen Bemerkungen. Primeiro Livro de Alemão. São Paulo, 1901. “Uma canção de D. Denis”. Revista Lusitana, 7 (1902) 65-67. “Die Nasalvokale im Portugiesischen”. Die neueren Sprachen, 11: 3 (1903) 129153. [Tradução: “As vogais nasais em Português I”. Trad. de Dinah Maria Isensee Callou e Maria Helena Duarte Marques. Littera, Ano 4: 12 (1974) 80-109. “Albanês e português”. Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa, 21ª. Série, 7 (julho 1903) 297-303; 21ª. Série, 9 (setembro 1903) 325-335. “Zur Interpretation des Dionysischen Liederbuchs”. Zeitschrift für romanische Philologie, 27 (1903) 186-192. “Vierzeilen aus dem brasilianischen Staate S. Paulo”. Romanische Forschungen, 16 (1904) 137-150. “Zu Text und Interpretation des “Cancioneiro da Ajuda”. Romanische Forschungen, 23 (1907) 339-385. As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade, Trovador do seculo XIII. Edição critica, com Notas e Introducção. These para o Doutorado da Universidade de Bonn (Faculdade de Philosophia), apresentada por Oskar Nobiling, Lente cathedratico do Gymnasio da Capital do Estado de S. Paulo (Brasil). Erlangen: K.B. Hof- und Univ.-Buchdruckerei von Junge & Sohn, 1907, 82 p. [Também em: Romanische Forschungen, 25 (1908) 641-719] “Uma página de história da literatura popular”. Almanaque Brasileiro Garnier, Rio de Janeiro, 5 (1907) 232-236. 35

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“Introducção ao estudo da mais antiga poesia portugueza”. Revista da Sociedade Scientifica de São Paulo, 2: 11-12 (1907) 153-158; 3: 1-2 (1908) 1-9. “Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Cancioneiro da Ajuda. Edição critica e commentada. Bd. I und II. Halle 1904. xxviii, 94 und 1001 S”. Archiv für das Studium der neueren Sprachen und Literaturen, 121 (1908) 197-208; “Conclusão”, 122 (1909) 193-206. “Frazes Feitas”. O Estado de S. Paulo, 22 abril 1908. [Também em: Castro Lopes, Artigos Philologicos. Collectanea Postuma. Publicada por seu filho, Domingos de Castro Lopes. Rio de Janeiro: Typ. do Instituto Profissional, 1910, 467-482. – Análise crítica do livro de João Ribeiro, Frazes Feitas. Estudo conjectural de locuções, ditados e proverbios. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1908] LENZ E BROSSEAU, Primeiro Livro de Inglês. Contendo livro de leitura, gramática e vocabulário. Adaptado ao ensino do Inglês nas escolas e ginásios do Brasil pelo Dr. O. Nobiling. São Paulo: Melhoramentos, 1908. [6ª ed., 1945] “Berichtigungen und Zusätze zum portugiesischen Teil von Körtings Lateinischromanischem Wörterbuch. Archiv für das Studium der neueren Sprachen und Literaturen, 124 (1910) 332-345; 125 (1910) 154-157 e 393-397; 126 (1911) 424432; 127: 1-2 (1911) 181-188; 127: 3-4 (1911) 371-377. “Bras.-port. deixe eu vêr”. Revue de Dialectologie Romane, Bruxelles, 2 (1910) 102103. “Brasileirismos e crioulismos”. Revue de Dialectologie Romane, Bruxelles, 3 (1911) 189-192. [Rep. Revista Filológica, Rio de Janeiro, 7 (junho 1941) 63-67] “Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Estudos sobre o romanceiro peninsular: Romances velhos em Portugal. Publicados en la Revista Cultura Española”. Madrid, 1907-1908. Archiv für das Studium der neueren Sprachen und Literaturen, 126 (1911) 261-269. Textos Archaicos, ... pelo Dr. J. Leite de Vasconcellos. – (2ª. ed., Lisboa, Livraria Classica Editora, 1908). Revista Lusitana 15 (1912) 361-365. [Seguida da “Necrologia”, por Sílvio de Almeida, publicada n’O Estado de São Paulo, 30 setembro 1912, e da lista de publicações de O.N. organizada por J. Leite de Vasconcelos.]

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Bibliografia de Oskar Nobiling

L ÍRICA M EDIEVAL G ALEGO - PORTUGUESA

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AS C ANTIGAS DE D. JOAN GARCIA DE GUILHADE , T ROVADOR DO S ÉCULO XIII *

PREFÁCIO

Estando hoje acessível aos estudiosos todo o cabedal da poesia dos antigos trovadores portugueses, quer – graças aos sábios italianos Monaci e Molteni – em primorosas edições diplomáticas, quer – é ao Cancioneiro da Ajuda de D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos que me refiro – numa edição crítica e comentada do mais alto valor científico, já será tempo de reunirmos em edições completas as obras dos mais importantes dentre os trovadores, a fim de se poderem estudar as feições comuns desse primeiro período da literatura portuguesa bem como as individuais que caracterizam os seus vultos mais eminentes. Pode-se afirmar desde já que, apesar do convencionalismo e uniformidade essencial que reinam na língua, no estilo e na poética dos trovadores, entre eles se destacam individualidades bem caracterizadas, e cujos traços distintivos transparecem tanto mais quanto as poesias têm mais o cunho nacional, afastando-se dos tipos e modelos provençais. Hoje nenhum conhecedor poderia atribuir, assim como o fizeram Diez e F. A. de Varnhagen, a um único poeta as obras de mais de trinta trovadores distintos, quais são os autores das cantigas contidas no Cancioneiro da Ajuda. Devemos à elevada competência de H. Lang a edição completa do mais fecundo dos trovadores, el-rei D. Denis. De todos os mais – postas à margem as cantigas sacras de D. Afonso o Sábio – não há quem, pelo número das suas composições até hoje conservadas, e que abrangem todos *

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Edição crítica com notas e introdução. Erlangen: K. B. Hof-/Univ. Buchdruckerei von Junge & Sohn, 1907.

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os gêneros mais notáveis, pela originalidade, por nenhum outro excedida, de sua índole poética, pelo interesse e variedade dos seus assuntos, mereça mais ser estudado que D. Joan Garcia de Guilhade, de cujas obras publico aqui a primeira edição completa. Quanto à sua biografia, veja-se o pouco que foi possível averiguar dela, no Cancioneiro da Ajuda de D. Carolina Michaëlis, v. II, p. 407 a 415, onde se encontra também uma apreciação e ligeiro comentário da sua obra literária. Baste relembrar aqui que Joan de Guilhade foi, segundo parece, um pequeno fidalgo originário da Galiza (onde há várias localidades Guilhade), o qual, em meados do século XIII, andou por terras de Portugal e Espanha, ostentando sua habilidade no exercício das armas e na arte de trovar. A presente edição ainda não pode ser definitiva. Para isso seria indispensável possuirmos, além da colação dos códices existentes em Roma, a edição completa e literalmente exata dos documentos públicos escritos em língua portuguesa durante os séculos XIII e XIV. Só então é que se poderia escrever a história da ortografia do antigo português, da qual colheríamos preciosas informações acerca de sua pronúncia. É apenas a título de ensaio que tentei resolver algumas das questões relativas a ambas e, baseado nestas soluções, uniformizar certas grafias por demais vacilantes dos códices manuscritos. O texto das cantigas vai acompanhado de um comentário duplo: o crítico (assinalado com o número I) e o explicativo (designado com II). Estes bem como o texto que ofereço baseiam-se no estudo que fiz do conteúdo inteiro dos três grandes Cancioneiros líricos da Biblioteca Vaticana, de Colocci-Brancuti e da Ajuda e, em segunda linha, no das Cantigas de S. Maria de D. Afonso o Sábio, que se distinguem dos outros Cancioneiros por particularidades notáveis no vocabulário, na gramática e na versificação. Não ocultei as minhas próprias dúvidas e hesitações. Já que não existe nem um dicionário nem uma gramática da língua dos trovadores, esse mais antigo idioma literário da Península, às vezes me vi obrigado a dar explicações lexicológicas ou gramaticais que se podem encontrar dispersas, quer no D. Denis de Lang, quer na pequena, mas substanciosa monografia que, para o Grundriss de Gröber, Cornu escreveu sobre a Língua Portuguesa, ou mesmo no livro de Diez sobre a Primeira Poesia palaciana de Portugal. Dispensei-me, aliás, de citar autoridades ou passos comprobativos, sempre que as provas das minhas asserções ocorrem facilmente a todos os conhecedores dos antigos Cancioneiros. O Índice alfabético com que remata este volume não deixará de prestar serviços, se bem que ele não possa substituir um glossário completo. Este, ao meu ver, será publicado com mais proveito no fim das edições de todo esse grupo de trovadores cujas poesias contêm testemunhos de 40

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relações diretas ou indiretas com Guilhade: grupo interessantíssimo, ao qual se liga também o monarca castelhano, predecessor e modelo, na proteção outorgada às Musas, de seu neto, el-rei D. Denis. Não pude, na terra em que empreendi o presente trabalho, utilizar-me de todos os subsídios científicos que me ofereceriam as bibliotecas da Alemanha ou da França. Entre as obras que sinto não ter consultado, ocupam um lugar insigne os estudos que o Dr. F. Hanssen, lente do Instituto Pedagógico de Santiago do Chile, publicou relativamente à história da métrica hispano-portuguesa.

S. Paulo (Brasil), Março de 1907.

LISTA DAS PRINCIPAIS OBRAS CONSULTADAS COM AS ABREVIATURAS USADAS A

Cancioneiro da Ajuda. Edição crítica e comentada por Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Halle a. S. 1904. v. I (citam-se as cantigas).

A II

A mesma obra. V. II (citam-se as páginas).

B

Il canzoniere portoghese Colocci-Brancuti pubblicato nelle parti che completano il codice Vaticano 4803 da Enrico Molteni. Halle a. S. 1880 (a numeração das cantigas é a do editor).

Bluteau

Vocabulario portuguez e latino... pelo padre D. Raphael Bluteau. Coimbra e Lisboa, 1712-1728.

Canc. Gall.

Cancioneiro gallego-castelhano… collected and edited by Henry R. Lang. I. New York, 1902.

Cancioneiro português da Vaticana. Edição crítica restituída por Teófilo Braga. Lisboa, 1878. 41

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CD

Das Liederbuch des Königs Denis von Portugal. Herausgegeben von Henry R. Lang. Halle a. S., 1894.

CM

Cantigas de Santa Maria de Don Alfonso el Sabio. Las publica la Real Academia Española. Madrid, 1889 (citam-se as cantigas e, da p. 565 em diante, as páginas).

Coelho

Diccionario etymologico da língua portugueza. Lisboa: P. Plantier-editor.

Cortesão

Subsídios para um diccionário completo da língua portuguêsa, por A. A. Cortesão. Coimbra, 1900-1901.

Diez

Etymologisches Wörterbuch der romanischen Sprachen. 4. Ausg. Bonn, 1878.

Diez

Grammatik der romanischen Sprachen. 5. Aufl. Bonn, 1882.

Elucid. ou Elucidario Elucidario das palavras, termos, e frases, que em Portugal antiguamente se usárão... por Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo. Lisboa, 1798-1799. Gonçalves Viana Apostilas aos dicionários portugueses. t. I (A-H). Lisboa, 1906. Grundriss

Grundriss der romanischen Philologie... herausgegeben von Gustav Gröber. Strassburg, 1888-1901. Lateinisch-romanisches Wörterbuch. Paderborn, 1891.

Körting KuHp

Über die erste portugiesische Kunst- und Hofpoesie von Friedrich Diez. Bonn, 1863.

Lanchetas

Gramática y vocabulario de las obras de Gonzalo de Berceo. Madrid, 1900.

Meyer-Lübke

Grammatik der romanischen Sprachen. Leipzig, 18901894. 42

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Nobiling

“Die Nasalvokale im Portugiesischen”, em Die Neueren Sprachen, v. XI, f. 3, junho 1903.

Nobiling

“Zu Text und Interpretation des Cancioneiro da Ajuda”, em Romanische Forschungen, Erlangen, v. XXIII, 1906.

Randglossen

Randglossen zum altportugiesischen Liederbuch. Von Carolina Michaëlis de Vasconcelos, em ZfRPh, passim, do v. XX, f. 2 (= Randglosse I; neste artigo citam-se as páginas da separata) ao v. XXX (1896-1906).

V

Il canzoniere portoghese della Biblioteca Vaticana messo a stampa da Ernesto Monaci. Halle a. S., 1875 (a numeração das cantigas é a do editor).

ZfRPh

Zeitschrift für romanische Philologie, herausgegeben von Dr. Gustav Gröber. v. XX a XXX (1896-1906).

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I NTRODUÇÃO

A. OS TEXTOS A maior parte das cantigas de D. Joan Garcia do Guilhade nos são conservadas tanto pelo códice da Vaticana como pelo Cancioneiro Colocci-Brancuti: são as que nesta edição têm os n. 1 a 8, 14 a 42, 46, 47, 49 a 53, e os primeiros versos de 48. Uma delas, o n. 2, existe até em duas versões, bastante divergentes, no Cancioneiro da Vaticana. A sua última parte, assim como os n. 3 a 8 se encontram, além disso, no Cancioneiro da Ajuda; e é este o único que conserva os nossos n. 9 a 13. O resto, isto é, as cantigas que aqui vão sob os n. 43 a 45 e a maior parte de 48, só se conservaram no Cancioneiro Colocci-Brancuti. Uma, finalmente, que o Cancioneiro da Vaticana atribui a Estevan Fayan, é, segundo C. Michaëlis1, atribuída a Guilhade pelo Cancioneiro Colocci-Brancuti; e, visto se tratar duma cantiga que não traz nenhum cunho individual, confesso que não sei decidir a questão, pelo que a coloquei no Apêndice, sob o n. 54. Já existem em edições críticas – sem contar as hoje antiquadas2 – as seguintes dentre as cantigas de Joan de Guilhade: os nossos n. 2 a 13 no A 228 a 239, os n. 1, 14 e 54 no Apêndice dessa edição (A 454 a 456), os n. 37 e 38 no II volume da mesma obra (“Investigações bibliográficas,

1

2

A II, p. 408, nota 1. O Canc. da Aj. não contém esta cantiga. O Índice de Colocci aponta, no lugar correspondente, 11 cantigas de Guilhade (417-27), às quais corresponderiam V 28 a 38, ficando assim excluído o n. 39, que é o da cantiga controversa; porém este argumento não é decisivo, pois a numeração do V aí é errada, e, se descontarmos os n. 38, que é repetição do 29, e 32, que continua o 31, não obtemos mais de 10 cantigas com o número 39, e 9 sem ele. Entre elas o Cancioneiro portuguez da Vaticana. Edição crítica restituída por Teófilo Braga, da qual todos os estudiosos da antiga língua e literatura ainda hoje têm de recorrer à edição de Monaci. É que faltavam a T. Braga, quando empreendeu essa obra, os conhecimentos indispensáveis do idioma e da arte métrica dos trovadores. Quem se quiser convencer da verdade desta asserção – aliás reconhecida pelos competentes – compare, por exemplo, o texto que ele dá dos n. 25 ou 34 da presente edição.

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biográficas e histórico-literárias”, p. 645-47), finalmente os n. 43, 45 e 46 nas Randglossen, ZfRPh, v. XX, 2, p. 12, e v. XXV, p. 166 e 147∗ (à p. 145 do mesmo vol. já se acha impresso, pela primeira vez, o nosso n. 14∗). A editora de todas estas cantigas, D. Carolina Michaëlis, que além disso imprimiu bastantes passos soltos de outras – sobretudo no A II, p. 411 a 414 –, é justamente considerada como primeira autoridade nessa matéria: claro é que tirei grande proveito das suas publicações, e espero que não me censurem de temerário, se cá e lá discordei de sua opinião. Não se me tendo oferecido a oportunidade de ver os códices, não pude tomar por base de meu texto senão o que vai impresso nas edições de Monaci (V), Molteni (B) e C. Michaëlis (A); assinalei cuidadosamente as variantes dos manuscritos que se depreendem delas – excetuando meras divergências gráficas, de que darei conta às pp. 49 a 53 – e aquelas emendas dos editores que me mereceram reparo. Monaci, nas notas de sua edição diplomática, já emendou vários dos erros numerosos que cometeram os copistas italianos, ignorantes do idioma português: designei estas emendas pela abreviatura “Mon” e por “Mich” as lições que C. Michaëlis introduziu no texto, distinguindo por algarismos (“Mich1”, “Mich2”) as divergências das duas edições que ela deu da cantiga 14. A primeira secção dos nossos textos abrange as cantigas (ou cantares) d’amor. Assim chamavam os trovadores àquelas poesias em que o poeta falava em seu próprio nome, exprimindo os sentimentos que lhe inspirava a mulher amada, a senhor; compreendiam, porém, sob a mesma denominação também os diálogos amorosos quando (como no n. 4) era o poeta quem falava em primeiro lugar3. São quase sempre sentimentos de mágoa, queixas e modestas súplicas que se manifestam nas cantigas d’amor; o nosso poeta, todavia, sai às vezes do estilo tradicional pelo tom de alegria ou confiança em que fala (n. 1 e 8). O código de cortesia, importado do sul da França, vedava revelar quem era o objeto desses lamentos e suspiros; mas Guilhade infringe as leis convencionais, cometendo indiscrições que não têm desculpa a não ser a loucura da paixão (n. 3 e 12). E há uma entre as suas cantigas d’amor que é literalmente sem igual: é a 14ª, que principia como uma verdadeira cantiga de maldizer, assumindo um tom mais terno a partir do verso 11. Quanto aos personagens aí mencionados veja-se o que

*

* 3

Cf. Vieira, Y. F. et al., Glosas Marginais ao Cancioneiro Medieval Português de Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Coimbra, Santiago de Compostela, Campinas, 2004, p. 42, 155, 129. (NE). Ibid., p. 126. (NE) Veja-se o tratado fragmentário de poética conservado no começo do Canc. Col.-Branc. (B, p. 3, 1. 2-12): o trecho está transcrito no CD, p. xiii.

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foi averiguado por C. Michaëlis, na ZfRPh, v. XX, 2, p. 52∗. Também é nos seus doutos comentários (A, p. 447 e 923) que o leitor verá que o nosso n. 3 foi traduzido em versos alemães por Diez, KuHp, p. 90, e por Storck; que o estribilho do n. 2 é repetido (ainda que alterado) na cantiga B 361, cujo autor é el-rei D. Afonso de Castela e de Leão; e que há afinidade entre o n. 7 e a cantiga B 403, de Gil Perez Conde. Transparecem aí relações de amizade e dependência cujo estudo mais detido fica reservado para o futuro. Agreguei a esta seção o n. 15, que no Canc. da Vaticana está, por engano, entre as cantigas d’amigo: desse modo, o número de cantares d’amor que possuímos de Guilhade se eleva a 15, ou, se contarmos o n. 54, de autor incerto, a 16. Quando se tratava de cantar um amor correspondido, os trovadores costumavam recorrer a outro gênero de poesias: são as cantigas d’amigo, assim chamadas, naturalmente, porque na primeira estrofe se encontra sempre a palavra amigo (isto é, namorado). Nestas cantigas, quem fala é a dama; ou antes, é o trovador que assume o papel dela4, falando em seu nome. Apressava-se ele a torná-las públicas, cantando-as ou fazendo-as cantar nos paços e cortes; e facilmente compreendemos a satisfação que muitas vezes a dama devia colher de ouvir tais cantigas, sabendo só ela (o segredo de) quem as inspirava∗. Somos informados sobre o modo pelo qual nasciam e se divulgavam essas∗ cantigas por dois exemplos do gênero, que, por causa de sua importância, vêm publicados no Apêndice, sob os n. 55 e 56. Nos cantares d’amigo, tampouco como nos de amor, não aparece o nome da dama; alguns poetas, porém, e entre eles Guilhade, gostam de inserir neles seu próprio nome (n. 16, 19, 21, 26, 30, 34, 36). Possuímos 21 cantigas d’amigo de Joan de Guilhade. A este gênero pertencem também os diálogos entre amantes, sempre que é a dama quem primeiro toma a palavra5, e os diálogos entre esta e a mãe ou amigas, de que temos um exemplo no n. 34. É nas cantigas d’amigo que Guilhade revela toda a sua originalidade: ostenta uma vaidade ingênua (n. 20, 21, 27) e logo

* 4

*

* 5

Cf. Vieira, Y. F. et al., Glosas Marginais... op. cit., p. 115. (NE) Parece ser este o primeiro sentido da locução enfingir-se d’ela, que se lê, v. g., V 616, 3 e 9; 778, 2; 882, 2: geralmente ela pode traduzir-se por “gabar-se de provas de amor” e não implica de modo algum a idéia de presunção mentirosa, como se verifica no nosso n. 55 e no V 1125. O trecho “Apressava-se ele... inspirava” foi acrescentado por Nobiling na margem superior do seu exemplar de trabalho, que se encontra hoje na Biblioteca do Instituto Martius-Staden. Daqui para a frente indicaremos tais anotações por “An. Nob.” (NE) An. Nob.: “o modo ... essas” substitui a seqüência riscada: “a origem de tais”. (NE) Cf. mais acima, nota 3.

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depois trata sua própria pessoa e seu amor com fina ironia ou franco desprezo (n. 25, 26, 29, 30, 32, 34, 36); dá vida e individualidade às donzelas que falam nas suas cantigas, emprestando-lhes ora uma melancolia humilde, ou altiva e desdenhosa (n. 22, 23, 17), ora um otimismo encantador (n. 18), ora uma ternura meiga (n. 16, 23), ora um espírito folgazão (n. 25, 29), uma virtude esquiva ou ingênua (n. 19, 21, 31). Na cantiga 35ª, assim como eu a entendo, a bela que diz de si mesma que parece ben e ama prez e parecer, zomba das outras, que perderam seus servidores desde que os trovadores van pera mal, enquanto que ela confiadamente espera seu tempo, certa de que virá aquele que fará valer o amor. Nas 2 tenções que possuímos de Guilhade, é ele próprio o agressor, e o agredido o jogral Lourenço, que, conforme se conclui da segunda delas (n. 38), estava ao seu serviço, cantando e acompanhando as suas cantigas e recebendo, a troco disso, o sustento. Impossível é dizer hoje se eram justificadas as queixas que aí trocam o amo e o criado. A censura que Guilhade dirige ao jogral (v. 750) por fazer mal sua parte da tenção, referese, como observa C. Michaëlis6, à infração da regra que prescrevia a correspondência das rimas (vid. mais adiante, pp. 56-61.) Cantigas d’ escarnho são, segundo se exprime o antigo tratado de 7 poética , aquelas que os trobadores fazen querendo dizer mal a alguen en elas, e dizen-lh’o per palavras cubertas, que ajan dous entendimentos, pera lhe-lo non entenderen ligeyramente; as cantigas de maldizer, pelo contrário, são aquelas que fazen os trobadores [dizendo mal] descubertamente en elas en craras palavras a quen queren dizer mal, e non aver[án] outro entendimento se non aquel que queren dizer chãamente. Convém observar, entretanto, que a distinção entre estes dois gêneros de composições satíricas muitas vezes é bem difícil de fazer, pelo que preferi não me afastar da ordem em que as cantigas aqui impressas se sucedem nos códices, a não ser para reunir em grupos as cantigas que dizem respeito aos mesmos personagens ou à mesma classe de personagens. Assim comecei pelas sátiras dirigidas contra jograis, entre os quais o Lourenço das tenções ocupa o primeiro lugar; seguem-se as cantigas que escarnecem duns fidalgos; e remata o cancioneiro de Joan de Guilhade com as invectivas contra o belo sexo que formam o mais vivo contraste com as galanterias dos cantares d’amor. Da grosseira indecência e imoralidade de que fazem alardo as cantigas de escárnio e maldizer da época não faltam exemplos nas de

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A II, p. 646, nota 2. B, p. 3, 1. 14-19 e 33-36.

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Guilhade. Tais são os n. 41 e 42, que se dirigem ao jogral Martinho e sua mulher, os n. 47 e 488, que presumo referirem-se igualmente a idênticos personagens, os n. 51, 52 e 53. O cavalo de que fala a cantiga 49ª também tem, sem dúvida, sentido obsceno; de outra parte, o vocábulo obsceno da cantiga 52ª não significa aí, ao meu ver, senão “roubar”∗. O n. 43 pertence a um grupo de cantigas de diversos autores, do qual D. Carolina Michaëlis tratou num artigo importante, “Der Ammenstreit”9. Ela descobriu os laços que unem todos esses documentos interessantes, e indicou as lacunas que existem nesta série de poesias conexas. Poucas palavras bastarão aqui para elucidar a nossa cantiga. Embora o autor dirija a palavra ao jogral Lourenço, já acima mencionado, seu verdadeiro adversário é D. Joan Soarez Cõelho, o protagonista de todo esse grupo de escaramuças poéticas. Este fidalgo10 tinha censurado as tenções de Guilhade e exaltado a arte do jogral acima da dele (v. 854-56)11. Guilhade, en bon tacticien, defende-se tomando a ofensiva, e zomba do rico-homem por ter prestado homenagem a uma “ama” e entretido relações com tecedeiras. Possuímos duas cantigas d’amor de Joan Soarez (A 166 e 171; art. cit., p. 4 e 8), nas quais este professa ser vassalo de uma mulher a quem “ouve chamar ama por aí”12, e uma tenção (V 786; art. cit., p. 9) em que o mesmo fidalgo declara que viu damas nobres tecer cintas e criar (o que pode significar “amamentar”) formosas meninas. E há outras cantigas (B 384 e V 1092; art. cit., p. 6 e 11) em que vários autores ridicularizam o trovador por ter cantado amas e tecedeiras. É, pois, a este coro que o nosso poeta une sua voz na cantiga 43ª. As cantigas que escarnecem de fidalgos escassos (n. 44 a 46) explicam-se por si sós. A última delas se refere a um decreto real que regulava a despesa feita pelos ricos-homens na mesa e vestuário: decreto hoje perdido, mas que C. Michaëlis13 julga ter sido promulgado em 1258, pelo rei de Portugal. Naturalmente esta lei suntuária determinava o máximo das 8

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C. Michaëlis engana-se (A II, p. 410), quando julga descobrir nesta cantiga “confissões de Guilhade sobre o mau-preço da própria mulher”. * [.....] V 1036, 20. An. Nob. (NE) Randglosse, I, na ZfRPh, XX, 2. (Cf. Vieira, Y. F. et al., Glosas Marginais ... op. cit., pp. 28-108). (NE) Encontra-se sua biografia no A II, p. 364-82. Só se Guilhade de propósito inverteu a verdade, as suas palavras se podem referir à tenção (V 1022) em que Joan Soarez acomete a Lourenço, afirmando que suas tenções são tão imperfeitas que o verdadeiro autor não pode ser outro que Joan de Guilhade. Cf. o art. cit., p. 14-15. – Ignoro se a censura de Joan Soarez alude a um dos nossos n. 37 e 38 ou a outra tenção trocada entre Guilhade e seu jogral e hoje perdida. Atal vej’ eu aquí “ama” chamada.

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despesas lícitas; mas o poeta interpreta-a como se ela prescrevesse um mínimo14.

B. GRAFIA E PRONÚNCIA A ortografia dos Cancioneiros, que pela relativa uniformidade se distingue bastante da anarquia gráfica dos documentos públicos daquela época, segue princípios fonéticos, se bem que em certas palavras se faça notar a influência da forma latina. Tais grafias não-fonéticas são, ao meu ver, bona, que se encontra freqüentes vezes ao lado de boa, boa, e boa, bem como et e a sigla 7, como escrevem de preferência certas cantigas e grupos de cantigas (v. g. V 455-58, 467 e 468, 470-72, 556, 593, 707 e 708 etc.), enquanto que as mais só empregam a forma e15. Raro é o emprego de consoantes duplas que não sirvam, como servem rr e ss, para denotar a pronúncia. A que mais freqüentemente se encontra geminada é ff, quer por sua semelhança com o , quer por motivos da pronúncia latina vigente nos primeiros séculos da Idade Média16. Assim se lê, v. g., soffr’ e soffri (A 239, 8 = v. 262), enffengia (V 354, 5 = v. 494). Nestes casos e em outros, tratei apenas de regularizar as grafias dos códices, tornar fácil a leitura e evitar ambigüidades. Não empreguei geminações fora de rr e ss; eliminei as raras letras mudas, como o h de ha e he (que escrevo á17 e é), ou um e de seerá (v. 329) quando a medida do verso exige a pronúncia será; adotei o lh e nh dos códices italianos, em vez do ll18 e nn do Canc. da Ajuda e das Cantigas de S. Maria, e igualmente as grafias mh, bh, vh (antigamente uh), pelas quais aqueles códices substituem com vantagem as grafias mi, bi, ui [= vi∗] dos outros, sempre que o i não forma sílaba. Assim distingo o monossílabo mha (pronuncie-se miá) do dissílabo mia (ambos < lat. mea) e escrevo Segobha (v. 246; pronuncie-se Segôbia). Resolvi as abreviaturas e siglas, e separei as palavras, guiando-

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A II, p. 414-15, e Randglosse III. (Cf. Glosas Marginais... op. cit., pp. 133-156. NE) C. Michaëlis é de opinião um tanto diferente: cf. A II, p. 665. Se a consoante final do lat. et estivesse, ainda que esporadicamente, conservada na pronúncia do português antigo, a grafia et (7) se encontraria sobretudo antes de palavras que começam por vogal; mas de semelhante praxe não há vestígio. A ortografia anglo-saxônica conserva um estado evolutivo do latim, em que o f simples entre vogais tinha o som de v (cf. o port. proveito < profectum). Não há ambigüidade nisso, pois a contração à de a a ainda não era usada. A respeito da grafia nullo, que pode ser latina ou castelhana, veja-se a nota ao v. 106. [= vi] – An. Nob. (NE).

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me geralmente pelo uso moderno e empregando largamente o apóstrofo e o traço de união. Escrevi, v. g., pe-lo (= per lo), po-lo (= por lo), de-lo (= des lo), mh-amor (dissílabo, = mi amor). Pelo contrário, fui parco no emprego de acentos, exceto quando se tratava de distinguir vocábulos de pronúncia diferente, como de e dé (v. 325)19, ou notar a acentuação dos vocábulos agudos acabados por vogal ou s20. A fim de ser coerente, e porque não são raras na língua antiga as palavras terminadas por i átono (como dixi, ouvi < habui), acentuei o i, como as mais vogais, em vocábulos agudos (v. g. aquí, oí < audivi). Nos vocábulos terminados por n (vid. mais abaixo) julguei dispensável o emprego do acento, a não ser para indicar pronúncia diversa de palavras parecidas, como o futuro (v. g. preguntarán) e o plusquamperfeito (preguntáran). Como não emprego os acentos para marcar a pronúncia aberta ou fechada do e e o (exceto para distinguir homógrafos), cumpre-me dizer aqui algumas palavras sobre duas diferenças importantes que, como o demonstram as rimas dos Cancioneiros, distinguem a pronúncia antiga da moderna. 1°. Os comparativos mayor, menor (ou meor), melhor, peyor (ou peor), bem como arredor e derredor rimam sempre com a terminação -ôr, e nunca com o vocábulo cór (= coração): segue-se daí que o o daquelas palavras era fechado, o que condiz perfeitamente com o ô latino e o o castelhano das palavras correspondentes. 2°. Conquanto ao ditongo éu do português moderno correspondesse na língua antiga o dissílabo é-o (v. g. céu < cé-o), o ditongo éu existia em eu, meu(s), teu(s), seu(s), na 3ª sing. perf. deu, em Deus, judeu(s) e outros substantivos e adjetivos cujo e corresponde a um e ou ae latino, bem como em alguns vocábulos tirados do provençal, v. g. greu (= pesado, penoso) e ben-lheu ou ben-leu (= talvez). Estas palavras não rimam nunca com a desinência -eu da 3ª sing. perf. dos verbos em -er (desinência que corresponde à latina -evit). Pronunciava-se, portanto, com ê esta última desinência, assim como o vocábulo sandeu21, que só rima com ela. Quanto

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Onde não há certeza de ser diferente a pronúncia, não quis diferenciar a forma escrita. Por isso não distingui (como o faz C. Michaëlis) en (< inde) e en (< in). Palavras que, em virtude de seu emprego sintático, têm pouco ou nenhum acento tônico, são pero (cf. v. 51) e pera (= para). Quanto a atá, veja-se a nota ao v. 536. Nenhum dos que se ocuparam até hoje da etimologia problemática deste vocábulo atendeu à qualidade de seu e, que o afasta tanto de Deus como dos adjetivos meu e judeu, apesar do fem. sandia, análogo a mia e judia.

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ao ditongo ey, as rimas não estabelecem distinções, quer seu e provenha de um e, e ou a latino: pois rima rey (< regem) com sey (< sapio), e dereyto (franc. droit) com leyto (franc. lit) e feyto (franc. fait). O ditongo ou, finalmente, parece que tinha o o ainda aberto: veja-se a nota ao v. 1085. Um sinal que introduzi no texto, seguindo o exemplo das edições de obras poéticas em antigo alemão, é o ponto colocado debaixo daquelas vogais finais ou iniciais que, ao encontrarem-se com outras, não contam na medida do verso. Na maioria dos casos, os códices suprimem tais vogais, o que indiquei pelo apóstrofo; como, todavia, o não contar uma vogal no verso não implique necessariamente sua elisão na pronúncia (podendo também dar-se a crase ou fusão numa só sílaba das duas vogais que se encontram), recorri ao expediente mencionado para distinguir esses casos de elisão ou sinalefa dos não menos freqüentes de hiato. Quanto ao valor e emprego das letras, tenho de observar mais o seguinte. Distingui o v do u, e o j do i. O g, antes de e e i, tinha seguramente o mesmo valor que o j, e achamos escrito, nos códices, trager ou traier, oie ou oge: grafias que eu tratei de regularizar, bem como o emprego do c, ç e z. Já está esboçado nos códices, porém não se tinha ainda bem fixado o uso moderno de escrever sempre z no fim da palavra, ao passo que no princípio e meio dela z designa o som sonoro, c ou ç o som surdo: lemos, se bem que excepcionalmente, lanzar (v. 515), crexe (v. 534), zafou (v. 589), donçela (v. 606) etc. Nestas e outras palavras semelhantes generalizei as grafias mais comuns dos códices, e nos casos duvidosos guiei-me pela pronúncia moderna, dando conta, na lista das variantes, de todas estas alterações da grafia manuscrita (exceto em casos como vencedes por vençedes, v. 514)22. Não ocorre ainda a confusão de z ou c com s (ss). – O y se usava com o valor de um i, e de preferência depois de uma das letras a, e, o, u, como em mayor, ey, oya, guysa. Restringindo ainda mais seu uso, aproveitei-me da letra para estabelecer uma distinção fonética: empreguei sempre y para designar o i que, depois de vogal, não faz sílaba. Escrevi, pois, mayor, ey, porém oia e guisa. Deste modo, torna-se dispensável o uso do trema em palavras como oia, oir e oirey; e se, ao mesmo tempo, a ortografia do português antigo se aproxima da castelhana, não há nisso, por certo, desvantagem. – Em lugar da desinência átona os escrevia-se às vezes us, e

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Subsistem algumas dúvidas relativamente a arriçar (v. 979) e ao fazo, fazades dos códices (v. 499 e 1100), que talvez traduzam a pronúncia, influenciada por fazes e fazedes. (An. Nob.: v. 979, por 1019; e 1140 por 1100. NE)

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muito a miúdo a sigla 923: eu generalizei a grafia os em todas as palavras assim terminadas, incluindo os pronomes átonos vos e nos24. A nasalidade das vogais indica-se nos Cancioneiros pelo til sobreposto, ou um m ou n colocados depois da vogal. Não há distinção entre estas notações, exceto quando a vogal nasal é seguida por outra vogal, sendo então de regra o uso do til, o qual, porém, muitas vezes não está no lugar próprio, ou se omite inteiramente (cf. as grafias já citadas boa, boa, e boa). Nesse caso, não se emprega nunca m, e é raro n; porém depois de i se encontra freqüentemente escrito nh, v. g. no sufixo -inho, ao lado de -io, em minha, ou mia (cf. v. 221). Igual emprego do nh ocorre em unha, que se lê ao lado de ua e ua. Não é possível que todas estas vacilações traduzam pronúncias diversas correntes no tempo dos trovadores; uniformizei, por isso, a notação das vogais nasais, escolhendo, entre as grafias dos códices, aquelas que, sem destoarem dos hábitos ortográficos modernos, parecem melhor responder à pronúncia antiga25, e notando, na lista das variantes, a lição do códice, sempre que me afastei dela. No meio da palavra, antes de vogal, usei sempre do til, quando a etimologia prova que existiu outrora vogal nasal. Esta praxe apóia-se nas rimas dos Cancioneiros26, pois nunca rimam as terminações dissílabas* -ãa(s), -ães, -ão(s), -ea, -ees, -eo, -ias, i o (s), -õa(s), -ões, -õo com -aa(s), -aes, -ao(s), -ea, -ees, -eo, -ias, -io(s), -oa(s), -oes, -oo; e as raríssimas rimas de -eas com -eas (CM 357, 4; 385, 8), de -een com -een (CM 340, 10), de -ia com -ia (V 751; CM 221), de -u)a com -ua (v. 1076∗), de -u)u com -uu (V 1000; 1150; 1151) não destoam das outras rimas imperfeitas que cá e lá ocorrem nas Cantigas de S. Maria

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Casos excepcionais são os seguintes: V 1100, 5 (= v. 1073) p9 = pós (< posuit); 1083, 14 p9 = pos (< post); 941, 12 ap9; 963, 9 e 1083, 2 dep9) (1083, 4 de pus; 1083,13 en pus). Sobre a distinção gráfica entre estes e vós e nós, entre mi, ti, si e mí, tí, sí veja-se meu artigo “Zu Text und Interpretation des Canc. da Ajuda”, em Romanische Forschungen, v. XXIII, p. 342-44. (Vid. o artigo aqui publicado, “Acerca do texto e da interpretação do Cancioneiro da Ajuda”, pp. 176-178. NE) Minha opinião sobre a evolução histórica das vogais nasais acha-se exposta e largamente fundamentada no artigo “Die Nasalvokale im Portugiesischen”, em Die Neueren Sprachen, XI, 3, pp. 129-153. (Vid. aqui: “As vogais nasais em português”, pp. 265-288. NE) Cf. também “Zu Text und Interpret. des Canc. da Aj.”, pp. 341-342. (Vid. aqui “Acerca do texto e da interpretação ...”, op. cit., pp. 175-176. NE) Muitas destas terminações são hoje monossílabas; a medição dos versos, porém, demonstra que não o eram naquele tempo esses grupos de vogais, que vieram a ser contíguas em português, mas em latim estavam separadas por uma consoante, n, l ou outra. Todavia, nos tempos mais antigos da língua portuguesa já eram monossílabos vou < va(d)o, vays < va(d)is, vay < va(d)it, os perf. vi (< vidi) etc., dey < (dedi) etc. e os grupos de vogais já contíguas em latim, como em meu, fuy (An. Nob.). (NE) An. Nob., em vez de 1111. (NE)

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e em cantares de escárnio e maldizer27. Posso amparar-me igualmente com as rimas dos Cancioneiros, se, divergindo das grafias manuscritas, porém de acordo com a etimologia, imprimo viide (= vinde, v. 620) e mãefestar (v. 952): pois teedes (= tendes) rima com a desinência -êdes (V 1068, 6; 1175, 17; B 131, 16; 401, 27; 423, 1), e bõaça (= bonança) com palavras em -aça (V 1004, 5), embora os copistas escrevam teendes e boança. – No interior da palavra, antes de consoante, empreguei m ou n, de conformidade com o uso moderno; mas no fim da palavra usei sempre do n, para evitar a grafia am, que, quando é final, hoje se pronuncia como ão. Antes de um traço de união, faço uso do til, v. g. em nõ-no (= não o); se)-na (= sem a, v. 290), e-no (= no, v. 149). As grafias mais comuns dos códices são nono, sena etc.; mas encontram-se a miúdo outras, v. g. quen no, nonno, cõ no, razoãno, se no (V 316, 4; 1038, 4; 1133, 2; 1038, 20; 856, 2). Quanto à nasalidade da vogal que precede o n em todos estes exemplos e outros semelhantes, ela está fora de dúvida: sirva de prova V 253, 6-7, onde ben rima com que-, ao qual se segue no no verso seguinte; e se V 922 te-no rima com pequeno, é que também no interior da palavra era nasal a vogal que precedia uma consoante nasal, provam-no grafias tais como Johane, da)no, te)nho, do)na (V 917, 3; 919, 10; 925, 19; 1071, 4).

C. METRIFICAÇÃO Não são poucos os problemas que a história da arte métrica hispanoportuguesa nos dá para resolver, sobretudo no que concerne às origens da poesia peninsular. O seu primeiro período, que é a época dos trovadores, está visivelmente sob a ação de influências que se combatem: a da métrica provençal, que tanto se faz sentir no fragmentário tratado de poética conservado no Canc. Colocci-Brancuti, e a duma arte lírica popular da Península, cujos documentos mais preciosos são os cantos paralelísticos28 com suas rimas de preferência graves. Hoje ainda é impossível discriminar exatamente os efeitos dessas influências diversas: o trabalho a fazer pareceme ser por enquanto puramente estatístico. O axioma de que parto é a perfeita regularidade da versificação nas obras dos trovadores. O rigor na contagem das sílabas; os mil artifícios 27

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As assonâncias das cantigas paralelísticas não distinguem entre as vogais nasais e as outras. Ao meu ver, este gênero tradicional de cantigas é originário de uma época ou região que desconhecia as vogais nasais. Vejam-se os exemplos no A II, p. 928-29, e no CD os n. 89 a 94, 113 e 116. Cf. também sobre estes e outros pontos da antiga arte métrica C. Michaëlis no Grundriss, II, 2, p. 195-199.

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métricos; a perfeição das rimas, maior então do que hoje; a própria monotonia destas rimas incessantemente repetidas, monotonia sem dúvida intencional e particularmente notável nas cantigas d’amor: tudo demonstra o poder de uma tradição bem estabelecida e que confirmam as freqüentes alusões à observação ou transgressão das regras da arte (cf. v. 750 e 854).

1. OS VERSOS Não existindo até agora uma terminologia isenta de ambigüidade, designo aqui uniformemente todos os versos pelo número de sílabas rigorosamente contadas, incluindo, nos versos graves, a que se segue à última tônica. Chamo, por exemplo, hendecassílabo grave ao v. 105: a bõa dona por que eu trobava; decassílabo agudo ao v. 106: e que non dava nulha ren por mí; e decassílabo grave ao v. 496: El disse ja que por mí trobava. Esta denominação está de acordo com a praxe geral dos trovadores, que ocasionalmente substituem um verso da segunda espécie por um verso da terceira29. Assim vemos o nosso poeta empregar, nos versos 1° e 4° do n. 36, um octossílabo agudo em lugar do octossílabo grave das outras estrofes, e, no verso 5° da mesma cantiga, um decassílabo agudo em vez dum decassílabo grave. É muito instrutiva, a esse respeito, a cantiga V 1007, na qual alternam hendecassílabos graves com decassílabos, sendo estes últimos agudos nos versos 2º e 3° da primeira estrofe e 5° e 6° das outras duas, porém graves nos versos 5º e 6° da primeira e 2° e 3° das mais. Muito mais rara é nos Cancioneiros a troca de um octossílabo agudo por um eneassílabo grave, ou de um decassílabo agudo por um hendecassílabo grave. Joan de Guilhade, sim, oferece dois exemplos desta última irregularidade: são os v. 410 e 411, onde os decassílabos ocupam o lugar de hendecassílabos, e os v. 603 e 604, onde se verifica a troca inversa. Contudo, não é impossível que os culpados sejam aí os copistas, pois era fácil evitar a irregularidade substituindo, no primeiro caso, falou e queyxou por falara e queyxara, e no segundo, fezesse e desse por fezer e der. Eis a lista dos versos diferentes empregados nas cantigas aqui impressas, na ordem de sua freqüência:

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A respeito desta particularidade da antiga métrica portuguesa leia-se o artigo de Mussafia nos Sitzungsberichte der Wiener Akademie der Wissenschaften, Philosophisch-historische Klasse, v. 123, secção X.

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1º. o decassílabo agudo, verso de 10 sílabas, com acento fixo na 10ª e, na grande maioria dos casos, com outro acento na 4ª e cesura30, embora fraca, depois da 4ª ou 5ª; 2°. o octossílabo agudo, verso de 8 sílabas, com acento fixo na 8ª, recaindo, na quase metade dos casos, outro acento na 4ª; 3°. o octossílabo grave, verso de 8 sílabas, com acento fixo na 7ª e outro, na metade dos casos, na 4ª; 4°. o hendecassílabo grave, verso de 11 sílabas, com acento fixo na 10ª e, na grande maioria dos casos, com outro acento na 4ª e cesura depois da 4ª ou 5ª; Nota. Parecem ser de estrutura especial os hendecassílabos graves da cantiga 28, acentuados na 10ª e na 3ª ou 4ª sílaba e com cesura fixa depois da 4ª, ficando assim divididos em duas partes, a última das quais é de 7 sílabas como os versos com que estes hendecassílabos alternam e rimam. 5°. o decassílabo grave, verso de 10 sílabas, com acento fixo na 9ª e, na grande maioria dos casos, com outro acento na 4ª e cesura depois da 4ª ou 5ª; 6°. o hendecassílabo agudo, verso de 11 sílabas, com acentos fixos na 5ª e na 11ª e com cesura bem distinta depois da 6ª ou, mais raramente, a 5ª; Nota. São de estrutura diferente os hendecassílabos do estribilho da cantiga 26, pois têm acentos nas sílabas 3ª, 6ª, 9ª e 11ª. Os do estribilho da cantiga 16, se é que são hendecassílabos, têm acentos na 4ª, 8ª e 11ª e cesura depois da 4ª; parece, porém, mais provável que sejam decassílabos agudos: veja-se minha nota no comentário crítico. 7°. o heptassílabo agudo, verso de 7 sílabas, com acento fixo na 7ª e outro, as mais das vezes, na 2ª ou 3ª; 8°. o heptassílabo grave, verso de 7 sílabas, com acento fixo na 6ª e outro na 3ª ou 4ª. Só existem em dois exemplos os seguintes versos: 9°. o pentassílabo grave, verso de 5 sílabas, com acento na 4ª; 10°. o tetrassílabo agudo, verso de 4 sílabas, com acento na 4ª; 11°. o trissílabo agudo, verso de 3 sílabas, com acento na 3ª. Não se encontram senão em um exemplo só: 12°. o dodecassílabo grave, verso de 12 sílabas, com acentos nas sílabas 2ª, 5ª, 8ª e 11ª;

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Sirvo-me deste termo da métrica latina para designar aqui uma pausa no interior do verso.

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13°. o hexassílabo agudo, verso de 6 sílabas, com acento na 6ª. Destes versos, servem por si sós para formar estrofes: o decassílabo agudo (n. 9, 13, 15, 18, 29, 32, 33, 35, 37 a 39, 46 [, 54]31), os octossílabos agudo (n. 1 a 5, 7, 8, 17, 25, 40, 47, 48) e grave (n. 19, 20, 22, 24, 45: nesta última cantiga foi precisa uma emenda no verso 3° para obter a regularidade métrica), o hendecassílabo agudo (n. 14) e o grave (n. 21, se sanarmos a irregularidade dos v. 410 e 411, segundo ficou indicado na p. 54). Na cantiga 16 temos hendecassílabos graves e um estribilho de hendecassílabos agudos, salvo no caso de emenda, sendo então estes últimos reduzidos a decassílabos. O estribilho tem versos diferentes do resto da estrofe nas cantigas seguintes: n. 27, octossílabos agudos + decassílabos graves; n. 30, 41 e 34, octossílabos graves + um trissílabo ou um tetrassílabo agudos, ou tetrassílabos entremeados de um trissílabo; n. 23, 50 e 11, decassílabos agudos + decassílabos graves, ou hendecassílabos graves; n. 26 e 42, decassílabos graves + hendecassílabos agudos (da estrutura especial mencionada em nota), ou um hexassílabo agudo; n. 44, hendecassílabos graves + um dodecassílabo grave; n. 49, heptassílabos agudos + pentassílabos graves (eliminei por emenda as irregularidades que havia no estribilho). De versos diferentes usados no corpo da estrofe há os seguintes exemplos: n. 36, quatro octossílabos e um decassílabo do corpo da estrofe combinam-se com um decassílabo e um octossílabo do estribilho, sendo agudos os versos do estribilho, e graves os da estrofe, exceto os versos 1°, 4° e 5° da primeira estrofe; [n. 56, octossílabos graves são entremeados de heptassílabos agudos, e a estrofe remata com um estribilho formado de heptassílabos agudos;] n. 6, [n. 55] e n. 10, 12, 31 (onde convém emendar os v. 603 e 604, segundo ficou indicado na p. 54), 43 e 51 a 53, decassílabos agudos diferentemente entremeados de hendecassílabos graves; n. 28, hendecassílabos graves de estrutura especial alternam com heptassílabos graves.

2. AS ESTROFES Chamavam-se cantigas de mestria (meestria, maestria) as que não tinham estribilho, e, segundo parece, eram tidas em mais alto apreço

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Os exemplos incluídos em [] são de cantigas que não pertencem a Guilhade, ou cujo autor é incerto.

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pelos juízes da arte do que as cantigas de refran. Nos cantares de cunho popular não falta nunca o refran ou estribilho. Dava-se o nome de finda (fi)inda, fi)ida) a uma espécie de epílogo que se segue à última estrofe, tendo um número de versos sempre menor que ela e repetindo, as mais das vezes, rimas da última, ou de várias estrofes, ou de todas. Eis aqui a lista das estrofes diferentes. I. Estrofes sem estribilho. a) de 5 versos: 1ª. 11 aù 11 bù 11 bù 11 aù 11 aù 32). N. 21: 3 estrofes33; rimas ia ou (? ou ara?), isse isa, ade õas. b) de 6 versos: 2ª. 11 aù 10 b 11 aù 10 b 10 b 11 aù com finda 10 b 11 aù. N. 6: 3 estrofes; rimas ava í. 3ª 11 a 11 b 11 a 11 b 11 c 11 c. N. 14: 3 estrofes; rimas ar ey ar, on êr êr, á êr en. Como se vê, c = a na primeira estrofe, c = b na segunda; na terceira, c apresenta rima idêntica (alguen: alguen), contanto que não haja erro de copista. c) de 7 versos: 4ª. 8 a 8 b 8 b 8 a 8 c 8 c 8 a. N. 5, 40 e 47: 3 estrofes; rimas (5) í éus êr, éu en ey, ey on ar, (40) ir ar en, ir ar en, ôr êr on, (47) í on ér, á en í, éu ôr az. N. 17: 3 estrofes com finda 8 c2 8 c2 8 a334), rimas á en êr, í ey on, ér éus en. N. 48: 3 estrofes com finda 8 d 8 d 8 a1; rimas al en í, ar en ôr, ar êr ôr, on. O primeiro e o último verso de cada estrofe têm rima idêntica. 5ª. 10 a 10 b 10 b 10 a 10 c 10 c 10 a. N. 46: 3 estrofes; rimas êr ey an, ér êr ar, ês ar ós. N. 35: 3 estrofes com finda 10 b1 10 b1 10 a3 (= a1); rimas êr on ôr, ôr al ér, êr ar en. N. 39: 3 estrofes com finda 10 b2 10 b2 10 32

33 34

Os algarismos designam o número de sílabas de cada verso, as letras iguais as rimas – menos o x, que nota falta de rima –, os acentos denotam versos graves, as letras maiúsculas o estribilho. (Nobiling usa asteriscos sobre as letras para denotar versos graves; substituímos pelo acento, dada a impossibilidade de sobrepor asterisco a caracteres. NE) Na lª estrofe 11 aù 10 b 10 b 11 aù 11 aù, se não emendarmos os v. 410 e 411. c2 = rima c da 2ª estrofe, a3 = rima a da 3ª estrofe.

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c1 (= b1); rimas ar (:al35) on êr, ir í ar, on ôr ey. A tenção n. 37: 4 estrofes e 2 findas, pertencendo alternadamente uma estrofe ou uma finda a cada um dos dois poetas. Segundo as regras, deveria haver rigorosa correspondência entre as rimas de cada duas estrofes; mas o interlocutor de Guilhade dispensa-se de observar esta regra quanto à rima c. Assim também, a finda de Guilhade segue o esquema 10 c3 10 c3 10 a3 (= a4), a de seu interlocutor, porém, o seguinte: 10 d 10 d 10 a3. As rimas da tenção são ôr ar ey ~ ôr ar êr, ar êr ey ~ ar êr é, ey ar ~ on ar. 6ª. 10 a 10 b 10 b 10 a 10 c 10 c 10 b. A tenção n. 38: 4 estrofes com a correspondência regular das rimas e 2 findas 10 c4 (= c3) 10 c4 10 b4 (= b3); rimas ar êr í, á ér ey. 7ª. 11 aù 10 b 10 b 11 aù 10 c 10 c 11 aù. Sempre 3 estrofes. Com finda 10 c3 10 c3 11 aù3: n. 10 e 43; rimas (10) ésse êr í – v. 1 e 7 têm rima idêntica –, ia en ôr, ia ôr êr, (43) adas êr í, adas ey êr, adas í ey. Com finda 10 b1 10 b1 11 aù3: n. 3136 e 51; rimas (31) ándan en ey, igo al ésse (? ou ér?), ida ér ôr – a sempre rima idêntica –, (51) êdes on êr, êdes ar on, êdes í ér. Com finda 10 c1 (= b2) 10 c1 11 aù3: n. 53; rimas êdes ér ar, eyra ar êr, ua (: ua)37 in an. Com finda 10 d 10 d 11 aù3 (= aù2= aù1): n. 12 e 52; rimas (12) ia êr en, ia êr en, ia êr êr, ar, (52) ia on êu, ia ar êz, ia ar ôr, en. II. Estrofes com estribilho. a) O estribilho consta de um só verso, que não rima. a) 2 versos + estribilho: 8ª. 8 aù 8 aù 4 B. N. 41: 3 estrofes: rimas ousa, endo, êdes; estribilho ér. 9ª. 10 aù 10 aù 6 B. N. 42: 3 estrofes; rimas ia, ejo, ente; al.

b) 3 versos + estribilho: 10ª. 11 aù 11 aù 11 aù 12 BÙ. N. 44: 3 estrofes; rimas ia, igo, ão; outo.

35

36 37

Entre as raras rimas imperfeitas dos Cancioneiros, a rima ar: al é a mais comum. Veja-se mais abaixo, nota 39. Na 2ª estrofe 11 aù 10 b 10 b 11 aù 11 cù 11 cù 11 aù, se não emendarmos os v. 603 e 604. Rima imperfeita: veja-se mais abaixo, nota 39.

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g) 4 versos + estribilho: 11ª. 8 aù 8 bù 8 bù 8 aù 8 CÙ*. N. 45: 3 estrofes; rimas ia ome, asso ando, eyto, ôso; ávan. d) 5 versos + estribilho. O fato de ser repetido o verso do estribilho com ligeira variação (n. 34) ou sem ela (n. 7) não altera essencialmente a estrutura da estrofe. 12ª. 8 a 8 b 8 b 8 a 8 a 8 C. N. 7: 3 estrofes com finda 8 a3 8 a3; rimas êr en, ey é, ar í; éu. 13ª. 8 aù 8 bù 8 bù 8 aù 8 aù 4 C. N. 34: 3 estrofes; rimas udo igo, ado ia, ade endo; á. 14ª. 8 aù 8 bù 8 bù 8 aù 8 aù 3 C. N. 30: 3 estrofes com finda 8 d Ù 3 C 8 d Ù 3 C; rimas igo éstes, ôres émos, ia ura, ôda; ou. b) O estribilho consta de 2 versos finais, que rimam entre si.

a) 4 versos + estribilho: [15ª. 8 aù 7 b 8 aù 7 b 7 C 7 C. N. 56: 3 estrofes: rimas igo êr; eyto en, ito ey; êz. As rimas aù e C são idênticas]. 16ª. 8 aù 8 bù 8 aù 8 bù 8 CÙ 8 CÙ. N. 22: 3 estrofes; rimas oyta ada, oyta ejo, oyta ilha; igo. A rima aù é idêntica em todas as estrofes. 17ª. 8 xù 8 bù 8 xù 8 bù 8 CÙ 8CÙ. N. 24: 2 estrofes; rimas igo, ado; êmos. A rima CÙ é idêntica. 18ª. 8 a 8 b 8 b 8 a 8 C 8 C. N. 2: 4 estrofes; rimas an êr, ey é, êr en, al í; í; a rima C é idêntica. N. 3 e 25: 3 estrofes; rimas (3) ar ey, á on, êr á; í, (25) ôr en, êr í, ér í; on. N. 1: 3 estrofes com finda 8 C 8 C; rimas éus on: ey en; ôr ar; í; a rima C é idêntica. 19ª. 8 a 8 b 8 b 8 a 8 CÙ 8 CÙ. N. 23: 3 estrofes; rimas en ou, on ey, éus êr; ia.

*

An. Nob.: CÙ em vez de BÙ. (NE)

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20ª. 8 aù 8 bù 8 bù 8 aù 8 CÙ 8 CÙ. N. 19 e 20: 3 estrofes: rimas (19) igo ano, ouca aça, ade iga; eyto, (20) igo inta, êdes õas, ousa ades; inga. 21ª. 8 a 8 b 8 b 8 a 10 CÙ 10 CÙ. N. 27: 4 estrofes; rimas êr en, í ar, ey é, ou ar; ôda. 22ª. 10 a 10 b 10 b 10 a 10 C 10 C. N. 15, 32, 33 [, 54]: 3 estrofes; rimas (15) êr en, ar í, êu on; ou, (32) í ar, ôr êr, an ôr; ey, (33) ar on, í on, éu en; êz [(54) ey en, ar al, é í; êr]. N. 9, 13, 18 e 29: 3 estrofes com finda 10 C 10 C; rimas (9) á en, í ôr, on ar; êr, (13) ey éus, êr í, ôr al; on, (18) ar êz, an on, êr ér; en, (29) í en, ar is, á ôr; êr. O n. 9 tem a rima a idêntica, em cada estrofe, 9 e 18 repetem a palavra final do último verso, 13 a do primeiro verso do estribilho no primeiro verso da finda. 23ª. 10 a 10 b 10 b 10 a 11 CÙ 11 CÙ. N. 11: 3 estrofes; rimas an ôr, êr on, en éus; êen. A rima CÙ é idêntica. 24ª. 11 aù 7 bù 11 bù 7 aù 11 CÙ 7 CÙ. N. 28: 3 estrofes; rimas igo éra, ia ado, ido ando; isse. 25ª. 11 aù 11 bù 11 bù 11 aù 11 C 11 C ou antes, talvez38, 10 C 10 C. N. 16: 3 estrofes; rimas igo ado, ia eyro, ade ado; en. A rima C é idêntica.

b) 5 versos + estribilho: 26a. 8 a 8 b 8 b 8 a 8 a 8 C 8 C. N. 4 e 8: 3 estrofes; rimas (4) êr en, êz í, on ey; ôr, (8) ôr ey, ir éus, en on; êr. 27a. 8 aù (a) 8 bù 8 bù 8 aù (a) 10 aù (a) 10 C 8 C. N. 36: 3 estrofes; rimas ar igo, udo ade, ésse ia; an. [c) O estribilho consta de 2 versos, que rimam com versos anteriores, sofrendo variações quando varia a rima: 4 versos + estribilho. 28a. 10 a 10 b 10 b 11 cù 10 A 11 CÙ. N. 55: 3 estrofes; rimas on í igo, ôr êz igo, en êr igo.] d) O estribilho consta de 2 versos, um dos quais se acha intercalado entre os outros versos da estrofe: 3 versos + 1° estribilho + 1 verso + 2° estribilho. 38

Veja-se meu comentário crítico.

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29ª. 7 a 7 a 7 a 5 BÙ 7 a 5 BÙ. N. 49: 3 estrofes; rimas êu, ou, ar (: al); éva (: érva)39. 30a. 10 a 10 a 10 a 10 BÙ 10 a 10 BÙ. N. 50: 3 estrofes; rimas ar, on, ey; ia. 31a. 10 aù 10 aù 10 aù 11 B 10 aù 11 B. N. 26: 3 estrofes; rimas ia, ava, ando; í.

3. LIGAÇÃO DAS ESTROFES ENTRE SI Os trovadores dispunham de muitos expedientes para ligar entre si as estrofes de uma cantiga, auxiliando assim a memória de quem a recitasse ou cantasse. Dentre estes expedientes, as rimas ocupam um lugar proeminente e serão sós estudadas aqui: quanto às cantigas atafiidas (cujas estrofes são todas sintaticamente unidas atá a f iida = até o fim), ao dobre (ou repetição da mesma palavra em lugares determinados de uma estrofe ou de todas)40 e sua variedade, o mordobre41, de que fala o antigo tratado de poética no título 4º, cap. 3, 5 e 6, será preciso juntar materiais mais amplos antes que se possa entrar em seu estudo. No emprego das rimas para ligar as estrofes distinguimos os casos seguintes. I. Rimas iguais nos lugares correspondentes de todas as estrofes. a) Todas as rimas da 1ª estrofe se repetem nas outras (“estrofes eqüiconsoantes”). N. 6: a, b, c iguais nas 3 estrofes e a finda. b) Duas rimas são repetidas. N. 12: a, b iguais nas 3 estrofes e a finda; c, igual nas 2 primeiras, varia na 3ª e na finda (veja-se mais adiante, sob II, b).

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40

41

Temos aqui dois exemplos dessas rimas imperfeitas que cá e lá ocorrem nas cantigas de escárnio e maldizer. Cf. nota 35, 37, e 42. Dobre parece ser substantivo verbal derivado de dobrar (= redobrar). O leitor encontra um exemplo no n. 5, nos primeiros dois versos de cada estrofe. Não sei se é esta a lição verdadeira. O termo se encontra em três* lugares: B, p. 5, 1. 155, está Moz dob~; 1. 158, mor dobe, l. 195, mosdobr*. A segunda parte da palavra composta deve ser dobre; mas a primeira? Ao mór moderno corresponde moor na língua dos trovadores, e o nome não quadra bem com a significação do termo, que é “repetição da mesma palavra, variando a forma”. Encontra-se um exemplo deste artifício no n. 5, no último verso (ou nos últimos dois) de cada estrofe, e outro no n. 6, no último verso de cada estrofe e nos dois da finda. No 1° exemplo joga-se com o verbo veer, no 2° com os verbos dar, andar, aver e buscar. (*An. Nob.: “três” por “dois” e “l. 195, mosdobr”. NE)

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c) Uma rima é repetida.

a) N. 22, com estribilho: a igual nas 3 estrofes, b varia. b) N. 43: a igual nas 3 estrofes e a finda, b1 = c2, c1 = b3, b2 = c3. g) N. 48: a igual nas 3 estrofes e a finda (porém com rima imperfeita, ar: al42), b1 = b2, c2 = c3, o resto varia. d) N. 51: a igual nas 3 estrofes e a finda, b1 = c2, o resto varia. e) N. 52: a igual nas 3 estrofes e a finda, b2 = b3, o resto varia. II. Rimas iguais nos lugares correspondentes de cada par de estrofes. a) É o que se nota, em primeiro lugar, nas tenções, cujas estrofes eram compostas alternadamente por um dos dois contendentes.

a) Em regra geral, a correspondência é completa entre as rimas de cada duas estrofes, e findas se as houver. N. 38: a, b, c são iguais respectivamente na 1ª e 2ª estrofes, assim como na 3ª, 4ª e as 2 findas. b) Excepcionalmente, só duas rimas se correspondem, variando a terceira. N. 37: a, b iguais na lª e 2ª estrofes, assim como na 3ª, a 4ª e as 2 findas; além disso, c1 = c3, b1 = a3, c2 = b3. b) Em muitas cantigas dos Cancioneiros, sendo ímpar o número das estrofes, a última está isolada, formando as outras um, ou mais pares de estrofes ligadas pelas rimas. Não me parece improvável que haja nisto imitação de cantos populares alternativos e rematados pelo canto do coro inteiro. Há os casos seguintes (um caso semelhante já o encontramos mais acima, sob I, b):

a) Todas as rimas são iguais, respectivamente, num par de estrofes, variando na 3ª. N. 40: a, b, c iguais. 42

Veja-se nota 39.

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b) Só uma rima é repetida. N. 33, com estribilho: b1 = b2; a, c e todas as rimas da 3ª estrofe variam. A palavra razon se repete na rima. III. Rimas repetidas sem regra fixa. Muitas vezes, é impossível distinguir aqui o que é intencional do que é devido ao acaso. Vários exemplos já foram citados sob I, c, b; g; d; e; II, a, b. Outros são: N. 10: b1 = c3, a2 = a3, c2 = b3; N. 2, com estribilho: b1 = a3, C = b4; N. 35: a1 = a3, c1 = a2; N. 46: a1 = b2, c2 = b3; N 5: c2 = a3; N. 17: b1 = c3; N. 32, com estribilho: a2 = b3; N. 47: a1 = c2; N. 53: c1 = b2. IV. Rimas semelhantes, sem serem iguais. Está fora de dúvida que a semelhança das rimas era um artifício conscientemente empregado pelos trovadores para ligar as estrofes: sirva de prova a cantiga V 1194, onde, nos lugares correspondentes de cada par de estrofes, encontramos as rimas êr en ar e ôr on ir. Todavia, é difícil estabelecer aí normas fixas e, mais ainda que no último caso mencionado, eliminar o que é devido ao simples acaso, o qual devia fazer um papel importante, pois é limitado nas cantigas d’amor o número das rimas, predominando grandemente entre elas as rimas agudas.

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Citarei apenas alguns exemplos em que se torna manifesta a intenção consciente do poeta. N. 40: às rimas ir ar en das 2 primeiras estrofes correspondem ôr êr on na 3ª. N. 25, com estribilho: a rima a é em ôr na lª estrofe, em êr na 2ª, em ér na 3ª. N. 11, com estribilho: as rimas são em an, on, en, ôr, êr (e éus). N. 35: as rimas são em êr, ôr, ér, ar, al, en, on. N. 53: as rimas b e c são em ér e ar na 1ª, em ar e êr na 2ª estrofe, a 3ª difere (cf. mais acima, sob II, b). N 48: as rimas são em en, on, ar (al), êr, ôr (e í). N. 32, com estribilho: há rimas em ar, êr e ôr.

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CANTIGAS DE D. JOAN GARCIA DE GUILHADE CANTIGAS D’ AMOR 1 Quexey-m’ eu d’ estes olhos meus; mays ora (se Deus mi perdon!) quero-lhis ben de coraçon, e des oy mays quer’ amar Deus; ca mi mostrou quen oj’ eu vi: ay! que parecer oj’ eu vi!

5

5

Sempre m’ eu d’ amor queyxarey, ca sempre mi d’ ele mal ven; mays os meus olhos quer’ eu ben, e ja sempre Deus amarey; ca mi mostrou quen oj’ eu vi: ay! que parecer oj’ eu vi!

10

10

E muy gran queyxum’ ey d’ amor, ca sempre mi coyta sol dar; mays os meus olhos quer’ amar, e quer’ amar Nostro Senhor; ca mi mostrou quen oj’ eu vi: ay! que parecer oj’ eu vi!

15

15

E, se cedo non vir quen vi, cedo morrerey por quen vi.

20

20

I. V 28. – 1 Quexeumouuz destes olli9 meus; Mich. Queixum’ òuvi dos olhos meus. Parece-me certo que Quexeumouuz é devido ao engano do copista italiano que tinha diante de si Quexeymeuus; mas, visto Quexeyme-vos d’estes olhos meus dar uma sílaba demais e vos ser palavra desnecessária para o sentido, presumo que a lição primária foi Quexeymeu, um traço qualquer que por acaso se achava atrás do u, podendo ser 65

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interpretado como a sigla 9 por algum copista – 3 coraçon Mich.] cora con – 7 qõrearey. O copista leu r em vez de i, e e em vez de x, exatamente como V 25, 16; 282, 1; 603, 9 – 9 e 15 os Mich.] e9 – 10 ðs – 11-12 Cami está no fim da linha anterior; o resto do estribilho falta – 17-18 cami mo no fim da linha anterior; o resto do estribilho falta – 20 morrerey Mon.] mouerey. II. 2. mi (< mihi), forma átona com função de dativo, veio depois a ser substituída pela outra forma átona me (< me), que nos Cancioneiros já começa a cumular as funções de acusativo e dativo; cf. v. 21; 100; 173; 198; 231; 259; 301; 395; 1125. O subj. pres. perdon, bem como pês, empar e outros, estão de acordo com as leis fonéticas; os modernos perdôe, pese, ampare são devidos à analogia de verbos cujo radical não terminou em n, s ou r. Formas analógicas já se encontram nos Cancioneiros: pese V 585, 1; ouse V 479, 7; melhore B 37, 28; e assim também faze (< facit) V 1136, 6 e praze (< placet) A 161, 12; B 322, 2 e 5. 4. des oy mays ou oy mays = daqui em diante. Des < de ex; o moderno desde contém, pois, duas vezes a preposição de. Oy < hodie em posição antetônica; é raro oje mays: v. 344. 8. ele é menos usado que el (forma esta que se desenvolveu provavelmente em posição antetônica); cf. v. 202. 9. Querer ben pode reger objeto indireto (é o primitivo) ou direto (seguindo então a analogia de amar). Cf. v. 127; 331; 933; 946. Querer mal, igualmente: cf. v. 945. 10. ja serve para reforçar sempre e, também, nunca. Cf. v. 100; 202; 225. 13. aver tem todas as acepções do moderno ter. 14. sol < solet; a forma analógica sóe não se encontra ainda nos Cancioneiros. coyta (< cocta) = pesar, aflição, dor, é uma das palavras mais usadas nos Cancioneiros. Daí coytar, donde coytado. Cf. v. 163. 16. nostro se usa sempre em Nostro Senhor; em quaisquer outras expressões usa-se nosso como hoje.

2 Que muytos me preguntarán, quando m’ ora viren morrer, por que moyr’! e quer’ eu dizer quanto x’ ende poys saberán: 66

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5

moyr’ eu, porque non vej’ aquí a dona que non vej’ aquí.

25

E preguntar-m’an, eu o sey, da dona que diga qual é, e juro-vos per bõa fé que nunca lhis eu mays direy: moyr’ eu, porque non vej’ aquí a dona que non vej’ aquí.

10

30

E dirán-mi que parecer viron aquí donas muy ben, e direy-vo-lhis eu por en quanto m’ ora oistes dizer: moyr’ eu, porque non vej’ aquí a dona que non vej’ aquí.

15

35

E non digu’ eu das outras mal nen ben, nen sol non falo i; mays, poys vejo que moyr’ assí, digu’ est’, e nunca direy al: moyr’ eu, porque non vej’ aquí a dona que non vej’ aquí.

20

40

I. V 29 (= a), V 38 (= b) e v. 15 a 24 A 228. – 1 falta em a – 2-6 b dispõe estes versos em quatro linhas, terminando a 1ª em por qõ, a 2ª em qõntoxende, a 3ª em por qõ no ueia – 2 a moirer, b morer – 3 b moyro e qõ rora – 4 a quanto rende – b saleran – 9 a boa, b boa – 10 b nu calhis er9 – 11 a moiren – b ueia / qi – 12 falta em a – 13-18 estão distribuídos em b por quatro linhas: termina a 1ª em aq (< em vez de aqi), a 2ª em di reyuolhis, a 3ª em moyreu – 14 aquí] a ad – ben] b bam – 15 a edireyuolhes, A e direivo’-lhes – 16 a qõ comora, A quanto mi-or(a) – b dis’ – 18 falta em a – 1924 estão distribuídos em b por quatro linhas: a 1ª termina em bem, a 2ª em ueio, a 3ª em estonum – 20 A falo i, a fali, b faly – 21 poys] b pois qõ – 22 b digo estonum / ea – 23-24 a moyreu pr qõ no fim da linha precedente; o resto do estribilho falta – 24 falta em b. II. 21-23 = Quantos me perguntarão... porque é que morro! 23. moyr’. O presente deste verbo se conjuga assim: moyro, morres, morre, morremos, morredes, morren; moyra, moyras, moyra, moyramos, moyrades, moyran. 67

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

24. x’, xi, xe, s’, si, se são as formas do “dativus commodi”, mais ou menos pleonástico, do reflexivo da 3ª pessoa. As da 1ª são mi, me, m’, mh-; nos, e as da 2ª, ti, te, t’, chi, che, ch’; vos. Cf. v. 51; 132; 188; 231; 269; 339; 395; 770; 1049; 1102. ende (< inde) e en (forma primitivamente antetônica) se empregam indiferentemente antes de consoante; antes de vogal, a única forma parece ser end’; significam “de lá, disso, dele, dela, deles, delas”, e referem-se tanto a pessoas como a coisas. Cf. v. 35 e 66; 421. 33. parecer ben = ter um exterior bonito; o parecer (v. 6) = o exterior, semblante. 35. vo(s) é dativo ético. por en (por end’, por ende) = por isso. 36. oistes. Parece que antigamente o radical deste verbo não era ouv- senão quando tinha acento tônico: ouves, ouve, porém oir. Assim também loar (< laudare), porém louvo, louvas. Cf. v. 120; 324; 353; 730; 731; 759; 808; 857; 858; 1030; 1037; 1039. 40. sol é o advérbio de soo (= só). Ambos < solum, sendo sol provavelmente a forma antetônica. Sol non = nem sequer, absolutamente não. i (< ibi) tem todas as acepções do y francês. 42. est’ = esto. Ao lado de esto, aquesto, esso, aquelo, todo são muito raras as formas isto (V 1041, 12, rima com Antecristo), aquisto (A 210, 4), tudo (v. 711; 812). al (< alid, = outra coisa), muito usado nos Cancioneiros.

3 Amigos, non poss’ eu negar a gran coyta que d’ amor ey, ca me vejo sandeu andar, e con sandece o direy: os olhos verdes que eu vi me fazen ora andar assí.

5

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50

Pero quen quer x’ entenderá aquestes olhos quaes son, e d’ est’ alguen se queyxará:

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mays eu ja quer moyra quer non: os olhos verdes que eu vi me fazen ora andar assí.

55

Pero non devia a perder ome que ja o sen non á de con sandece ren dizer, e con sandece digu’ eu ja: os olhos verdes que eu vi me fazen ora andar assí.

15

60

I. V 30 e A 229. – 1 V Amigo – 3 V sauden – 4 e 16 V sandice – 8 V aqsios – 12 e 18 faltam em V – 14 V homõ pode ser home ou homen – non] V o – 15 V sandico. II. 46. gran, forma antetônica de grande, usada sempre antes de substantivo que começa por consoante: antes de vogal, é grand’. São igualmente formas antetônicas usadas sempre antes do substantivo, de mao: mal; de bõo: bon. As exceções são poucas: grande antes do substantivo V 208, 4; 668, 1 e 2043); B 52, 10; A 161, 26; mao V 366, 4; B 213, 2 e 5; 383, 2; A 38, 7; bõo V 708, 4. O caso é diferente na frase interjecional mao pecado! (o mais usado é mal pecado!) B 386, 4, porque aqui mao pode ter função predicativa, bem como em mao seu grado, v. 664. 48. sandece e sandice se encontram nos Canc.; porém só a primeira destas formas é atestada pelas rimas (: rafece e dece, merece e outros verbos semelhantes); cf. V 724, 1; 1025, 22; B 389, 17, onde os códices escrevem sandice. O mesmo sufixo é atestado pelas rimas em velhece V 1025, 20, mancebece CM 389, 1 e granadece CM 288, 4. 51. pero (< per hoc) é conjunção adversativa (= entretanto, apesar de que), ao passo que por en (cf. v. 35) ainda não tem este valor. 54. ja quer moyra quer non é oração independente (= não importa que morra ou não). Cf. V 18, 5 quer me queyrades se non ben quer mal; 444, 6 quer lhi pes quer lhi praza; 717, 11 quer se queyxe quer non. Hoje semelhantes frases só podem funcionar como cláusulas incidentes.

43

Estas duas cantigas apresentam, na metrificação e linguagem, certa semelhança que as afasta das mais cantigas d’amor. A primeira está entre os cantares de D. Denis (= CD LXXVI): erradamente, ao meu ver; cf. o que escrevi na ZfRPh., v. XXVII, p. 190. (Neste volume, “Acerca da interpretação do Cancioneiro de D. Denis, p. 169. NE)

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57. perder = ser prejudicado. 58. sen = bom senso, juízo. É provável que os trovadores tirassem esta palavra germânica do provençal ou antigo francês. 59. = por dizer alguma coisa na loucura.

4 “Senhor, veedes-me morrer desejando o vosso ben, e vós non dades por en ren, nen vos queredes en doer!” ““Meu amigu’, en quant’ eu viver, nunca vos eu farey amor per que faça o meu peyor.””

5

65

“Mha senhor, por Deus que vos fez, que me non leyxedes assí morrer, e vós faredes i gran mesura con muy bon prez.” ““Direy-vo-lo, amig’, outra vez: nunca vos eu farey amor per que faça o meu peyor.””

10

15

“Mha senhor, (que Deus vos perdon!) nembre-vos quant’ afan levey por vós, ca por vós morrerey, e forçad’ esse coraçon!” ““Meu amig’, ar direy que non: nunca vos eu farey amor per que faça o men peyor.””

20

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I. V 31-32 e A 230. – 1 V mouer – 3 V ren por en, lição igualmente aceitável – 4 V ne uu9 – 5 V amigneu quodeu – 7 A peor – 8 Aqui começa em V o n. 32, encimado pelo nome Joham Guilhade. – V ðs – 9 A lexedes – 10 A vus – i] V asy – 12 A Direi-vo’-l’ – V amiga ouc~ – Depois deste verso, V repete, em lugar dos v. 6 e 7, a linha meu amiguen quaten (i. e quateu) uiu’ e, no fim do v. 19, / meu amj; A comete o mesmo erro, repetindo o verso 5, porém só na 2ª estrofe – 15 V ðs – 16 V nebree9 – 17 V ea – V mrrerey – V efforcadese coracõ, o que pode também estar por e efforçad’ e. c. ou e eÏsforçad’ e. c. 70

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Introdução ao Estudo da mais Antiga Poesia Portuguesa·

II. 63. veedes é trissílabo, quando tem força de indicativo. É, porém, muito usado vêdes com valor de imperativo; cf. v. 199. Do mesmo modo se distingue vês (v. 749) de vees. Das outras formas deste verbo (com exceção do perfeito e tempos derivados dele) não sofrem sinérese, nos Canc. líricos, senão o futuro e o condicional, sendo igualmente usados veerey e verey, veeria e veria. Cf. v. 96; 104; 136; 193; 290. 64. ben – benevolência, favor, mercê; e = beleza, perfeição (v. 104). 69. = que seja em meu dano. O meu é substantivado (= meus negócios, minha situação). Cf. V 330, 8 falar no vosso; 426, 19 perderedes no vosso; 836, 2 catar (= olhar) ao vosso; B 54, 27 po-lo vosso (= por vossa causa); A 158, 21 po-lo meu. 70. por Deus = conjuro-vos por Deus; per (ou par) Deus = juro por Deus; cf. v. 29; 86; 375. Os sentidos de per (= francês par) e por (= francês pour) não se confundiram ainda na língua dos trovadores. senhor fem. A forma analógica senhora ainda é muito rara nos Canc.; é atestada pelas rimas V 137, 24 (: agora); 668, 944 (: fóra); 26, 23 (: Çamora). 73. fazer mesura = fazer prova de moderação, cortesia; prez = fama, reputação, honra: parece palavra de origem provençal. muy (forma antetônica) só se encontra antes de adjetivos, advérbios e particípios, ou palavras que fazem a função de adjetivos ou advérbios (cf. v. 809). 78. memorare > nembrar > lembrar; a construção impessoal deste verbo é a mais usada nos Canc. 80. forçar = vencer, subjugar; cf. B 332, 18 mha coyta forçou o sen. Se esse pudesse ser = meu, melhor sentido daria esforçar (= dar força, confiança a; cf. CM 1, 7 esforçada por Deus; V 820, 13 en voss’ amor vos esforçades). 81. ar = outra vez, ainda, mais, também, por outra parte; cf. v. 89; 90; 171; 173; 277; 356; 511; 517; 555; 855; 933; 1062; 1094.

5 U m’ eu partí d’ u m’ eu partí, logu’ eu partí aquestes meus olhos de veer, e, par Deus, quanto ben avia perdí;

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Veja-se nota 43.

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ca meu ben tod’ era eÏn veer, e mays vos ar quero dizer: pero vejo, nunca ar vi.

90

Ca non vej’ eu, pero vej’ eu: quanto vej’ eu non mi val ren; ca perdí o lume por en, porque non vej’ a quen mi deu esta coyta que oj’ eu ey, que ja mays nunca veerey, se non vir o parecer seu.

10

15

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Ca ja ceguey, quando ceguey, de pran ceguey eu logu’ enton, e ja Deus nunca me perdon, se ben vejo, nen se ben ey; pero, se me Deus ajudar e me cedo quiser tornar u eu ben vi, ben veerey.

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100

I. V 33 e A 231. – 1 U m’eu A] V Quandeu – 5 era en V] A era (por ventura era, i. e. era’ n?) – 8 V epo – 9 e 11 A me – 10 V eu – 11 V por qõ negaqõ mi de – 14 o A] V e – 17 V ðs – 19 V ðs quidar. II. 84. u (< ubi) = onde, e = quando. partir-se = apartar-se, separar-se; partir (v. 85) = apartar, privar. As acepções primitivas do vocábulo são “repartir” e “apartar”. A construção intransitiva de partir resultou da reflexiva; nos Canc. há dois exemplos daquela nas cantigas de D. Afonso X: B 361, 31-32 per ren (= de nenhum modo) partir de vos muyt’ amar non posso; CM 206, 6 poy-lo viron partir de preegar. 88. ca (< quia em posição átona) = porque. 92. val, a forma normal, pelas leis fonéticas, é a única que se encontra nos Canc. 99. de pran – claramente, seguramente, por certo; é raro a pran (V 941, 14; 1140, 6), que tem o mesmo sentido. O fato de se usar também de chão neste sentido e existir o substantivo pran sinônimo de chão (CM 236, 6; cf. 344, 3) faz supor que pran fosse tirado do plan provençal. 101 e 104. Joga-se aqui com a dupla significação de ben, advérbio e substantivo. 103. tornar = fazer voltar. 72

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6 A bõa dona por que eu trobava, e que non dava nulha ren por mí, pero s’ ela de mí ren non pagava, sofrendo coyta sempre a serví; e ora ja por ela ’nsandecí, e dá por mí ben quanto x’ ante dava.

5

E, pero x’ ela con bon prez estava e con [tan] bon parecer qual lh’ eu vi e lhi sempre con meu trobar pesava, trobey eu tant’ e tanto a serví que ja por ela lum’ e sen perdí, e anda-x’ ela por qual x’ ant’ andava:

10

Por de bon prez, e muyto se prezava, e dereyt’ é de sempr’ andar assí; ca, se lh’ alguen na mha coyta falava, sol non oia nen tornava i; pero por coyta grande que sofrí oy mays ey d’ ela quant’ aver cuydava:

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115

120

Sandec’ e morte, que busquey sempr’ i, e seu amor mi deu quant’ eu buscava!

20

I. V 34 e A 232. – 1 V Aboa – 3 A min – 5 V el enandeci – 6 V quantante – 7 bon falta em V – 8 Em ambos os códices falta uma sílaba. Mich. introduziu mui; eu prefiro tan, lendo qual lh’ eu por qlheu (V) do mesmo verso; cf. v. 598 e qua lheu V 987, 18; malhi = mal lhi V 637, 5; 11; 16; alhy = al lhi V 1015, 5 – 9 A lhe – 12 V ql antadaua – 13 V pgaua (i. e., talvez, preçava) – 14 V edeyte de semp adar – 17 por A] V q – 18 A coidava – 19 V Sandice morte – 20 A me. II. 105. O pronome relativo que se refere a uma palavra antecedente, quer seja nome de coisa ou de pessoa, é sempre que, ainda mesmo depois de preposição; quen só se usa sem antecedente: cf. v. 5. 106. nulha ren = nenhuma coisa. Nulho (< nullum) é forma castelhana; a normal seria nulo, que talvez se oculte debaixo da grafia nullo, bastante usada nos códices italianos.

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mí (e min, igualmente atestado pelas rimas; cf. v. 1068) é a forma tônica do caso oblíquo deste pronome, usada não só depois de preposições, mas também como objeto direto e depois de conjunções de comparação, e mais em casos excepcionais, como v. 577 ou B 116, 3 que o façamos mí e vós jograr. Para a 2ª pessoa tí, cf. V 1035, 12 di-me tí que trobas. 107. pagar-se de = ter prazer, gostar de. 113. pesa mi con = desagrada-me, sinto pesar por. Pesa-mi de, v. 315. Desde o tempo da Renascença, que substituiu o trobador pelo poeta, o verbo trobar não tem mais equivalente na língua. 116. andar por = valer, ser considerado como. 120. tornar = virar-se, voltar-se. 123-4. buscar = merecer, ser causa de (em alemão “sich etw. zuziehen”).

7 Amigos, quevo-vos dizer a muy gran coyta ’n que me ten ua dona que quero ben, e que me faz ensandecer; e, catando po-la veer, assí and’ eu, assí and’ eu, assí and’ eu, assí and’ eu.

5

125

130

E ja m’ eu conselho non sey, ca ja o meu adubad’ é, e sey muy ben, per bõa fe, que ja sempr’ assí andarey: catando se a veerey, assí and’ eu, assí and’ eu, assí and’ eu, assí and’ eu.

10

15

135

E ja eu non posso chorar, ca ja chorand’ ensandecí, e faz-mh-amor andar assí como me veedes andar: catando per cada logar, assí and’ eu, assí and’ eu, assí and’ eu, assí and’ eu.

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E ja o non posso negar: alguen me faz assí andar.

I. V 35 e A 233. – 2 a falta em V – 3 V hunha – 7 V repete este verso mais duas vezes, mas a última destas linhas está cancelada – 8 V ia eu – 10 V boa – 11 V senp y (i. e., talvez, sempre sí) – 14 e 21 faltam em V. II. 129. = e olhando para vê-la. Os casos de se unirem lo, la, los, las (quer sejam artigos ou pronomes) à palavra precedente são muito mais freqüentes que hoje: cf. v. 149; 290; 302; 235; 361; 394; 426; 510; 526; 555; 670; 736; 756; 766; 781; 799; 825; 927; 1101. Raro é o conservaremse lo, la etc. depois de palavras terminadas por r ou s sem a assimilação destes últimos sons; porém cf. v. 222. Finalmente, já há muitos exemplos da generalização analógica (hoje triunfante) de o, a, os, as depois de palavras terminadas por consoantes: cf. v. 15; 97; 171; 239; 257; 432; 562; 741. 133. o meu substantivado, como v. 69. C. Michaëlis traduz: “a minha sorte está decidida”. 141. mh e m’ são as formas que toma me ou mi (cf. v. 2) antes de vogal. 147. alguen usado com referência à senhor amada, como no v. 53 e a miúdo.

8 Quantos an gran coyta d’ amor e-no mundo, qual oj’ eu ey, querrian morrer, eu o sey, e averian en sabor; mays, mentr’ eu vós vir, mha senhor, sempre m’ eu querria viver e atender e atender.

5

Pero ja non posso guarir, ca ja cegan os olhos meus por vós, e non mi val i Deus nen vós; mays, por vos non mentir, en quant’ eu vós, mha senhor, vir, sempre m’ eu querria viver e atender e atender.

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E tenho que fazen mal sen, quantos d’ amor coytados son, de querer sa morte, se non ouveron nunca d’ amor ben, com’ eu faç’; e, senhor, por en sempre m’ eu querria viver e atender e atender.

20

165

I. V 36 e A 234. – 2 V eno – 3 V moirer – 6 V queiria – 10 A me – V ðs – 13 V senpimeu qiria – 14 e 21 faltam em V – 16 V qta – cuycad9 – V 20 qiria. II. 148. an < ha(be)nt, como van (v. 685) < va(du)nt. 149. e-no < en lo < in (il)lum. A forma com aférese – no – já se encontra também; cf. v. 119; 182; 337. 150. querria é, nos Canc., a forma normal do condicional, como querrey (v. 594) do futuro, de querer: cf. terrey, v. 422. 152. vós e nós são, como mí e tí, muito usados na função de objeto direto sem preposição. Cf. v. 106. 154. atender = esperar. 155. guarir = estar são, viver em estado de saúde. 162. = E julgo que dão prova de pouco juízo; cf. v. 58 e 73.

9 Gran sazon á que eu morrera já por mha senhor, desejando seu ben; mays ar direy-vos o que me deten que non per moyr’, e direy-vo-lo ja: falan-me d’ ela, e ar vou-a veer, [e] ja quant’ esto me faz ja viver.

5

E esta coyta ’n que eu viv’ assí, nunca en parte soube mha senhor; e vou vivend’ a gran pesar d’ amor, e direy ja por quanto viv’ assí: falan-me d’ ela Ï, e ar vou-a veer, [e] ja quant’ esto me faz ja viver.

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Non viv’ eu ja se per aquesto non: ouç’ eu as gentes no seu ben falar; e ven amor logo por me matar, e non guaresco se per esto non: falan-me d’ ela Ï, e ar vou-a veer, [e] ja quant’ esto me faz ja viver.

15

185

E viverey, mentre podér viver; ca poys por ela me Ï ey [eu] a morrer.

20

I. A 235. – 5 Ou d’ ela, e Ï ar? – 6, 12 e 18 Mich. fazia, o que me parece inaceitável. Evidentemente, as letras do códice podem ser interpretadas de um e outro modo; e a conjunção e, que introduzi, parece-me que melhora a frase – 20 me ei a. II. 169. sazon = espaço de tempo. 172. per advérbio de reforço (= inteiramente, muito), sempre colocado antes do verbo. Geralmente vem precedido de um adjetivo ou advérbio, que é a palavra propriamente reforçada por per: v. 258; 1104. 174. ja quanto = um pouco, algum tanto. Assim também ja que = alguma coisa, ja quando = alguma vez (V 598, 18; 829, 12; CM 206, 7; 281, 15), ja u = -em algum lugar (V 1095, 1). 176. saber parte de = ser informado de; cf. a locução moderna dar parte. 184. O presente dos verbos incoativos se conjuga assim: guaresco, guareces, guarece...; guaresca, guarescas, guaresca... Encontram-se grafias analógicas (ou arcaicas?) como guaresces. 188. poys = depois. Os pronomes átonos me, mi, te, ti, se, si, lhe, lhi não formam sílaba antes de vogal (as exceções são raríssimas). Quando sua vogal final não se elide, ela perde o caráter silábico ou se funde completamente com a consoante: daí as formas mh (cf. v. 141) para a lª pessoa, ch’ para a 2ª, x’ (cf. v. 24) para o reflexivo da 3ª. As últimas duas parece que geraram as formas silábicas che, chi e xe, xi; cf. v. 785; 339; 1009.

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10 Se m’ ora Deus gran ben fazer quisesse, non m’ avia mays de tant’ a fazer: leyxar’-m’ aquí, u m’ ora ’stou, viver; e do seu ben nunca m’ el outro desse! Ca ja sempr’ eu veeria d’ aquí aquelas casas u mha senhor vi, e catá-la[s], ben quanto m’ eu quisesse.

5

D’ aquí vej’ eu Barcelos e Faria, e vej’ as casas u ja vi alguen, per bõa fe, que me nunca fez ben! Vedes por que: porque x’ o non queria. E, pero sey que me matará amor, en quant’ eu fosse d’ aquí morador nunca eu ja d’ el morte temeria.

10

15

Par Deus Senhor, viçoso viveria e en gran ben, e en muy gran sabor veê-las casas u vi mha senhor, e catar alá quant’ eu cataria! Mentr’ eu d’ aquesto ouvess’ o poder, d’ aquelas casas que vejo veer, nunca en ja os olhos partiria!

20

E esso pouco que ey de viver vivê-lo-ia a muy gran prazer; ca mha senhor nunca mh-o saberia.

190

195

200

205

210

I. A 236. – 7 catá’la me parece lição tão pouco admissível como catara-la (que aliás seria um espanholismo) no v. 18. Aqui (v. 7) caberia também a emenda catar lá – 8 Obedecendo a uma sugestão de Diez (KuHp, p. 71-72), inverti a ordem das estrofes 2ª e 3ª – 22 esse. II. 190. mays de = mais que. 195. catá-las: o infinitivo catar está ligado por e ao condicional veeria (C. Michaëlis, por isso, imprime veer ia). O auxiliar habebam, aglutinado ao infinitivo, ainda não se tornara completamente flexão, de modo que podia ficar subentendido depois de catá-las. Cf. v. 203-6, e para a mesma construção do futuro V 658, 9-10 direy e non estar. 78

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210. esso (e não esse) pouco é a forma usada nos Canc. Cf. v. 255.

11 Estes meus olhos nunca perderán, senhor, gran coyta, mentr’ eu vivo fôr; e direy-vos, fremosa mha senhor, d’ estes meus olhos a coyta que an: choran e cegan, quand’ alguen non veen, e ora cegan por alguen que veen.

5

Guisado teen de nunca perder meus olhos coyta e meu coraçon, e estas coytas, senhor, mias son: mays los meus olhos, por alguen veer, choran e cegan, quand’ alguen non veen, e ora cegan por alguen que veen.

10

E nunca ja poderey aver ben, poys que amor ja non quer nen quer Deus; mays os cativos d’ estes olhos meus morrerán sempre por veer alguen: choran e cegan, quand’ alguen non veen, e ora cegan por alguen que veen.

15

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220

225

230

I. A 237. – 9 Não estará viciado este verso? – minhas – 10 per (haverá pr no códice?) II. 217. veen é dissílabo (vê-en); cf. v. 63. Assim também teen (v. 219), tees (v. 724). 219-20. O sujeito é meus olhos e meu coraçon = é o destino de..., está dito que... 221. mias. O lat. mea deu mia (que rima com dia, folia, queria etc. V 402, 8) e, com assimilação do i à consoante nasal, mia (rima com o sufixo latino -ina, V 1137, 8; 1150, 5). Estas são as formas tônicas; a antetônica, e quase a única usada antes do substantivo, é mha; cf. v. 70. 227. cativo = infeliz.

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12 Cuydou-s’ amor que logo me faria per sa coyta o sen que ey perder; e pero nunca o podo fazer, mays aprendeu outra sabedoria: quer-me matar muy cedo por alguen, e aquesto pód’ el fazer muy ben, ca mha senhor esto quer toda via.

5

E ten-s’ amor que demandey folia en demandar o que non poss’ aver; e aquesto non poss’ eu escolher, ca logo m’ eu en[d’] al escolheria: escolheria, mentr’ ouvesse sen, de nunca ja morrer por nulha ren; ca esta morte non é jograria.

10

15

Ay! que de coyta levey en Faria! E vin aquí a Segobha morrer, ca non vej’ i quen soia veer meu pouqu’ e pouqu’ e por esso guaria. Mays, poys que ja non posso guarecer, a por que moyro vos quero dizer: diz alguen: “Est’ é filha de Maria.”

20

235

240

245

250

E o que sempre neguey en trobar, ora o dix’! E pes a quen pesar, poys que alguen acabou sa perfia.

I. A 238. – 11 én al – 18 m’eu (porém meu no v. II, p. 412) – 21 Est’ é] Ou Éste? II. 232. sa forma antetônica de sua. Cf. v. 164. 233. podo é raro por pôde. Cf. quiso, v. 637; disso, v. 880. 238. folia = loucura. 241. end’ al; cf. v. 24. 245. que de coyta levey – quanta dor sofri. 248. meu pouqu’ e pouqu’: compare-se V 333, 12-14 Porque tan muyto tarda d’ esta vez, seu pouqu’ e pouco se vay perdendo con migo. 80

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248-49. guarir e guarecer = salvar a vida. 251. Ao lado de é, que já se vai generalizando, encontram-se nos Canc. est, antes de palavras que começam por vogal, e éste, antes de consoante. Esta última forma é freqüente nas CM. Cf. v. 357. 253. dix’, dixi e dixe se encontram ao lado de disse (1ª pessoa). Cf. v. 258; 456. 254. perfia = empenho; acabar sa perfia = alcançar seu fim.

13 Esso muy pouco que oj’ eu faley con mha senhor, gradecí-o a Deus, e gran prazer viron os olhos meus! Mays do que dixe gran pavor per ey; ca me tremi’ assí o coraçon que non sey se lh’ o dixe [ou] se non.

5

Tan gran sabor ouv’ eu de lhe dizer a muy gran coyta que sofr’ e sofrí por ela! Mays tan mal dia nací, se lh’ o oj’ eu ben non fiz entender! Ca me tremi’ assí o coraçon que non sey se lh’ o dixe ou se non.

10

260

265

Ca nunca eu faley con mha senhor se non muy pouc’ oj’; e direy-vos al: non sey se me lh’ o dixe ben, se mal. Mays do que dix¹ estou a gran pavor; ca me tremi’ assí o coraçon que non sey se lh’ o dixe ou se non.

15

255

270

E a quen muyto trem’ o coraçon, nunca ben pód’ acabar sa razon.

20

I. A 239. – 6 ou Mich.; o metro exige a emenda; mas não será melhor introduzir ben em vez de ou? II. 258. gran pavor per ey = tenho pavor muito grande.

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261. sabor = vontade, desejo. 263. tan mal dia nací = sou bem infeliz. 274. razon = assunto de que se fala, discurso.

14 Deus! como se fôron perder e matar muy bõas donzelas, quaes vos direy: foy Dordia Gil e [ar] foy Guiomar, que prenderon ordin; mays, se foss’ eu rey, eu as mandaria por en[de] queymar, porque fôron mund’ e prez desemparar.

5

Non metedes mentes en qual perdiçon fezeron no mund’ e se fôron perder? Com’ outras arlotas viven na raçon (?) por muyto de ben que poderon fazer! Mays eu por alguen ja mort’ ey de prender que non vej’, e moyro por alguen veer.

10

Outra [bõa] dona que pe-lo reyno á, de bon prez e ricaÏ [e] de bon parecer, se mh-a Deus amostra, gran ben mi fará; ca nunca prazer verey se-na veer. Que farey, coytado? Moyro por alguen que non vej’, e moyro por veer alguen (?).

15

275

280

285

290

I. V 37. – 2 mui bõas Mich.] uiui boas – 3 Oordia gil, Mich.1, Dordia Giles; eu prefiro suprir a sílaba que falta, introduzindo ar – 5 poren, Mich. por én a – 8 fezeron no Mich.] fezon no – 9 comout~s arllotas uiue na raco; a lição acima e o ponto de interrogação são de Mich. – 10 poderon fazer Mich.] podom faz (por pod’om faz’) – 13 Ouc~ doa q pelo Beyno a; a emenda é de Mich. – 14 e acrescentado por Mich.1 – 18 alguen] Por ventura al ren? II. 278. prender = tomar. 280. desemparar = desamparar, abandonar. 281. meter mentes en = reparar em, atender a.

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283. arlota aqui = vagabunda, vadia. Nas CM (vid. o Glossário) arloton = impostor, arlotia = impostura. 290. se-na < sen la < sine (il)la.

15 Vi oj’ eu donas muy ben parecer e de muy bon prez e de muy bon sen, e muyt’ amigas son de todo ben; mays d’ ua moça vos quero dizer: de parecer venceu quantas achou i a moça que x’ agora chegou.

5

Cuydava-m’ eu que non avian par de parecer as donas que eu vi, atan ben me parecian alí; mays, po[y]-la moça filhou seu logar, de parecer venceu quantas achou i a moça que x’ agora chegou.

10

Que feramente as todas venceu a mocelia en pouca sazon! De parecer todas vençudas (?) son; mays, poy-la moça alí pareceu, de parecer venceu quanta[s] achou i a moça que x’ agora chegou.

15

295

300

305

310

I. V 351. – 4 dunha – 6 i a] hir ha, talvez por huha, isto é, ua – 9 e 10 estão escritos numa só linha – 10 loguar – 12 falta – 14 eamoçelinha – 15 ueçudas não forma sentido com o que se segue: proponho substituí-lo por muy bõas – 16 alí] hi, faltando assim uma sílaba ao verso – 18 falta. II. 295. muyt’ sempre se usa em lugar de muy (cf. v. 73) antes de vogal. 296. mays: a forma mas para a conjunção adversativa ainda é rara nos Canc. 301. atan = tan. Assim temos atanto = tanto, atal = tal, assí = sí, alá = lá. Cf. v. 206; 1006.

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302. poy(s) = depois que, quando. filhar = tomar. 305. feramente = grandemente, muito.

CANTIGAS D’ AMIGO. 16 Treydes todas, ay amigas! con migo veer un ome muyt’ enamorado, que aquí jaz cabo nós mal chagado e, pero á muytas coytas con sigo, non quer morrer, por non pesar d’ el [a] a Ïlguen que lh’ amor á; mays el muyt’ ama alguen.

5

Ja x’ ora el das chagas morreria, se non foss’ o grand’ amor verdadeyro. Preçade sempr’ amor de cavaleyro; ca el de pran sobr’ aquesto perfia: non quer morrer, por non pesar d’ el a a Ïlguen que lh’ amor á; mays el muyt’ ama alguen.

10

Lealmente Ï ama Joan de Guilhade, e de nós todas lhi seja loado, e Deus lhi dé da por que o faz grado! Ca el de pran con muy gran lealdade non quer morrer, por non pesar d’ el a a Ïlguen que lh’ amor á; mays el muyt’ ama alguen.

15

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325

I. V 343. – Os primeiros dois versos estão distribuídos por três linhas, acabando a 1ª com amigas, a 2ª com home – 1 comigo – 2 muytona morado. A falta de separação das palavras, as regras sintáticas e fonológicas, a freqüência da troca de o por e: tudo fala em favor da emenda – 3 jaz Mon.] iam – chegado: compare-se v. 7 – 4 á] oya. Para ficar certa a medida do verso, poder-se-ia também ler e, pero oj’ á muytas coytas sigo; mas é raro no V escrever-se y por j – 5 quer] auer, porém v. 11 e 17 qr, palavra com que terminam a 2ª e a 3ª estrofe, faltando o resto do estribilho. Neste 84

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estribilho não quis afastar-me do códice, de cuja praxe não destoa a supressão de um a que não conta como sílaba, em a alguen. Não me parece, todavia, impecável o ritmo do último verso: el ama muyt’ alguen seria preferível. É digno de nota que obteríamos, no estribilho, dois decassílabos irrepreensíveis, suprimindo unicamente o d’ el do primeiro verso e lendo ama alguen no segundo – 9 prç ade – cauatro – 15 eðs. II. 311. Treydes ou treyde (CD 1929) = ide, vinde; sing. trey (CM 325, 9) = vai, vem. Vid. CD, no Glossário, s. v. trager, e os aditamentos de C. Michaëlis na ZfRPh XIX, p. 600; para o sentido, vid. mais V 751, 7; CM 216, 4; 278, 4. O étimo latino será *tracite (cf. trazer < *tracere), *tragite (cf. o antigo trager < *tragere) ou trahite? e para o singular *trac (cf. o antigo di < dic) ou trahe? Treydes tem valor de imperativo como vedes (cf. v. 63). 312. muyt’: veja-se v. 295. 313. cabo = junto a, perto de. Com igual sentido usa-se cabo de: v. 1023. chagar = ferir; porém ferir = bater, dar pancada a: cf. v. 819. 319. preçar é derivado de preço; porém prezar < pretiare. 320. perfiar = empenhar-se, teimar. 324. loado parece ser substantivo, = louvor. 325. dé < det; a 2ª pessoa des deu regularmente dês. O moderno dê deve ser devido à analogia de dês (a 1ª pessoa dê é certamente analógica). Dé (3ª pess.) rima com é e fé V 479, 10; 541, 14; 1036, 16; CM 177, 1. D. Denis, porém, já rima dê com quê (< quid): CD 1642 e 2250 (o verso V 452, 12, que deve rimar com dé ou dê, está deteriorado). grado = graças, recompensa.

17 Por Deus! amigas, que será, poys [que] o mundo non é ren nen quer amig’ a senhor ben? E este mundo que é ja, poys i amor non á poder? Que presta seu bon parecer nen seu bon talh’ a que-no á?

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Vedes por que o dig’ assí: porque non á no mundo rey que viss’ o talho que eu ey, que xe non morresse por mí (si quer meus olhos verdes son), e meu amig’ agora non me viu, e passou per aquí!

10

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340

Mays dona que amig’ ouver des oje mays (crea per Deus!) non s’ esforc’ e-[n]os olhos seus; ca des oy mays non lh’ é mester: ca ja meus olhos viu alguen e meu bon talh’, e ora ven e vay-se tanto que s’ ir quer!

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345

E, poys que non á de valer bon talho nen bon parecer, parescamos ja como quer.

350

I. V 344. – 1 serra, erro por seera – 2 poys está no fim da 1ª linha – 5 Monaci hesita se se deve ler amor ou amar – 7 talhaqueno – 11 mî – 16 ðs – 17 setorçe os. A emenda acima parece-me preferível a s’ esforcen os ou s’ estorçan os – 18 oy] oie; o e, que viciaria o verso, é devido provavelmente ao oie do v. 16 – 24 parecamus. II. 329. O infinitivo seer, que é quase sempre dissílabo nos Canc. líricos (cf. v. 829), se torna monossílabo no futuro e condicional. Cf. v. 447. 335. talho = talhe, feição do corpo. 340. si quer ou se quer = apesar de que, ainda que. A não ser nesta locução, é muito rara a forma si para a conjunção se. 345. esforçar-se = ter confiança: cf. v. 80. 346. é mester = é de proveito. 349. tanto que = quando, sempre que.

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18 Quer’ eu, amigas, o mundo loar, por quanto ben mi Nostro Senhor fez: fez-me fremosa e de muy bon prez, ar faz-mi meu amigo muyt’ amar. Aqueste mundo x’ est a melhor ren, das que Deus fez, a quen el i faz ben.

5

O paraiso bõo x’ é de pran, ca o fez Deus, e non digu’ eu de non; may-los amigos que no mundo son [e] amiga[s], muyt’ ambos lezer an: aqueste mundo x’ est a melhor ren, das que Deus fez, a quen el i faz ben.

10

Querria-m’ eu o parais’ aver, des que morresse, ben come quen quer; mays, poy-la dona seu amig’ oer e con el póde no mundo viver, aqueste mundo x’ est a melhor ren, das que Deus fez, a quen el i faz ben.

15

355

360

365

370

[E] quen aquesto non tever por ben, [ja] nunca lhi Deus dé en ele ren!

20

I. V 345. – 2 mi] ou m’i? – 7 boo – 8 e 20 ðs – 11-12 aqueste mudo (o resto do estribilho falta) – 13 Queiria – 14 moirese – 17 aquete mudo. (falta o resto do estribilho) – 19 tener – 20 Ou nunca [ja]? II. 356. mi é objeto indireto de faz amar; meu amigo, objeto direto de amar. Cf. v. 416; 554; 693; 773-74; 906. 359. bõo, dissílabo, é a forma tônica, da qual resultou a moderna bom. A antetônica – bon; cf. v. 73 – seria hoje bão, como non > não. 360. digo de non = digo que não. 362. lezer = descanso, tranqüilidade, contentamento. Cf. o Glossário das CM. 366. come = como. 367. oer (isto é, o-ér), em lugar de ouver, é forma bastante rara. Cf. meu artigo “Zu Text und Interpret. des Canc. da Aj.”, p. 373, n. 1*. *

Neste volume, “Para o texto e a interpretação do Cancioneiro da Ajuda”, p. 205, n. 47. (NE)

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371. tever: = as grafias tiver, estiver, fizer, puder (por podér), puser e outras semelhantes são posteriores aos Canc. Cf. v. 533; 572; 778.

19 Sanhud’ and[ad]es, amigo, porque non faço meu dano vosqu’, e per fe sen engano ora vos jur’ e vos digo ca nunca ja esse [preyto] mig’, amigo, será feyto.

5

375

De pran non sõo tan louca que ja esse preyto faça; mays dou-vos esta baraça, guardad’ a cint’ e a touca; ca nunca ja esse preyto mig’, amigo, será feyto.

10

380*

Ay don Joan de Guilhade! sempre vos eu fuy amiga, e queredes que vos diga? En outro preyto falade; ca nunca ja esse preyto mig’, amigo, será feyto.

15

385

390

I. V 346. – 4 jur’] par – 6 está na mesma linha com o verso precedente – 7 son. Esta forma, muito mais rara que sõo, estaria em desacordo com a medida do verso – 8, 16 e 17 p’yto – 11 preyto e o resto do estribilho faltam – 14 amigo – 18 falta. II. 375. vosco (< *voscum, em vez de vobiscum) se encontra ao lado de con vosco. Assim também nosco e con nosco, migo (mego B 10, 18) e con migo (con mego B 13, 4; 365, 3), tigo e con tigo, sigo e con sigo. Cf. v. 311; 378; 429; 583; 738. 377. preyto = tratado, ajuste, compromisso, assunto, conversa. Vid. no Glossário das CM. *

An. Nob.: corrige o número do verso, impresso por erro 375. (NE)

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379. O lat. sum > son (> mod. dial. são). Daí, com o acréscimo analógico do -o da 1ª sing. ind. pres., o dissílabo sõo. 381. baraça era um laço (prova-o o exemplo citado por Cortesão, no Aditamento, p. 16) ou uma corda; cf. C. Michaëlis, Randglosse I, p. 67*.

20 Amigas, o meu amigo dizedes que faz enfinta en cas del rey da mha cinta; e vede-lo que vos digo: mando-me-lh’ eu que s’ enfinga da mha cinta e x’ a cinga.

5

395

De pran todas vós sabedes que lhi dey eu de mhas dõas e que mh-as dá el muy bõas: mays, d’ esso que mi dizedes, mando-me-lh’ eu que s’ enfinga da mha cinta e x’ a cinga.

10

400

Se s’ el enfinge (ca x’ ousa), eu direy-vos que façades: ja mays nunca mh-o digades; e direy-vos ua cousa: mando-me-lh’ eu que s’ enfinga da mha cinta e x’ a cinga.

15

405

I. V 347. – Os versos 2 a 4 acham-se escritos em duas linhas, a primeira das quais acaba com rey – 6 e 18 exacinta – 8 doas – 9 boas – 11 mandome (falta o resto do estribilho) – 14 edireyu9, que se repete exatamente assim duas linhas adiante, parece ser devido aqui a um engano. A lição dos v. 13 e 14 não me satisfaz ainda – 16 hua. II. 392. faz enfinta = gaba-se (cf. V 1025, 26). Tem o mesmo sentido enfinge-se: v. 395; 403; 494. O infinitivo é enfingir, enfengir, enfinger ou enfenger. Cf. ainda C. Michaëlis, Randglosse I, p. 71*, e mais acima, n. 4.

* *

Cf. Glosas Marginais..., op. cit., p. 100. (NE) Vid. Glosas Marginais..., op .cit., p. 104. (NE)

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395 e 396. enfinga e cinga: as formas modernas finja cinja são analógicas. Inversamente, no verbo erguer (ant. erger < *eriger e) generalizouse o som g (gu) pela influência das formas ergo, erga, ergas etc. 398. dõa (= dádiva; o singular se encontra, por exemplo, CM 267, 4) < dona, plural de donum. Nos Canc. líricos, o vocábulo designa sempre as prendas de amor; cf. C. Michaëlis, Randglosse I, p. 71*. 404. = eu vos direi o que deveis fazer.

21

5

Vistes, mhas donas: quando noutro dia o meu amigo con migo falou, foy muy queyxos’, e, pero se queyxou, dey-lh’ eu enton a cinta que tragia; mays el demanda-m’ [or’] outra folia.

10

E vistes (que nunca Ï amiga tal visse!): por s’ ir queyxar, mhas donas, tan sen guisa, fez-mi tirar a corda da camisa, e dey-lh’ eu d’ ela ben quanta m’ el disse; mays el demanda-mh-al, que non pedisse!

15

Sempr’ averá don Joan de Guilhade, mentr’ el quiser, amigas, das mhas dõas (ca ja m’ end’ el muytas deu e muy bõas); des i terrey-lhi sempre lealdade; mays el demanda-m’ outra torpidade.

410

415

420

I. V 348. – 2 comigo – 3 Talvez seja melhor emendar: queyxoso, e, poys ou queyxos’, e, porque – 5 moutra tolya – 6 E uistes q nuc a q nuc a tal uites. A repetição de q nuc a e de uistes só pode ser devida a engano: a rima exige visse, e de q nuc a para amiga, a emenda é leve – 8 O fez mi do códice quererá dizer fez mí? – 10 qno ferise. Sem mudar nada, teríamos que- no ferisse! o que não me parece admissível. Se lêssemos que lh’ oferisse, cumpriria trocar também demanda por demandou – 11 Sempu era, se não estivesse escrito numa só palavra, também poderia ler-se Sempre verá – guilhadi – 12 amigas das mhas donas forma uma linha à parte – 13 me del – boas. *

Ibid.

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II. 409. noutro, bem como num, neste, nesse, naquele, parece que são formas devidas à analogia de no (cf. v. 149). 412. trager = trazer; cf. v. 311. 413. demandar = pedir. 415. ir queyxar = ir queixando, queixar, é construção muito freqüente. sen guisa = fora de propósito, injustamente. Tem o mesmo sentido desaguisado ou desguisado. Cf. v. 852. 417. quanta concorda com ela: cf. pouca de sazon V 605, 9; B 426, 10; a mays da vinha V 905, 5; B 416, 7; muyta de maa ventura V 1050, 4. 422. des i = além disso. terrey e terria são o futuro e o condicional de tee r (tenere habeo > tenrey > terrey). V 540, 15 tee rey é um exemplo da recomposição destes tempos, à qual, na língua moderna, só escaparam os verbos dizer, fazer e trazer. 423. outra torpidade = outra coisa, que é uma torpidade; cf. Canc. Gall., p. 182 (nota ao v. 401).

22 Amigas, tamanha coyta nunca sofrí, poys foy nada; e direy-vo-la gran coyta con que eu sejo coytada: amigas, ten meu amigo amiga na terra sigo.

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425

Nunca vós vejades coyta, amiga[s], qual m’ oj’ eu vejo; e direy-vos a mha coyta con que eu coytada sejo: amigas, ten meu amigo amiga na terra sigo.

10

430

435

Sej’ eu morrendo con coyta, tamanha coyta me filha; e direy mha coyta e coyta que tragu’ e que maravilha: amigas, ten meu amigo amiga na terra sigo.

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I. V 349. – 1 e 2 estão escritos numa só linha – 3 e 4 estão escritos numa só linha – 6 sigo (?)] amigo. Os olhos do copista desviaram-se provavelmente para a linha anterior – 11 ten] ete. Comparem-se os v. 5 e 17. Ou seria esta a forma primitiva do estribilho: amiga Ï, este meu amigo / amiga na terraÏ á migo (migo = além de mim)? Nesse caso, conservar-se-ia a lição do códice no v. 8, e ler-se-ia amiga também no v. 1° – 12 e 18 faltam – 13 moirendo – 15 e demha. II. 425. foy nada, 1ª sing. perf. de nacer; é o lat. fui nata. A 1ª pessoa foy se encontra numa minoria de casos ao lado de fuy: as rimas comprobativas faltam (só a 3ª pessoa foy rima com oy CM 28, 13). Cf. v. 641; 894. 427. sejo (< sedeo) = sõo (v. 379) e estou.

23 Par Deus, amigas, ja me non quer ben o meu amigo, poys ora ficou onde m’ eu vin, e outra o mandou; e direy-vos, amigas, ua ren: se m’ el quisesse como soia, ja ‘goraÏ, amigas, migo seria.

5

E ja cobrad[o] é seu coraçon [de me querer muy gran ben, eu o sey,] poys el ficou u lh’ a mha cinta dey, e, mas amigas, (se Deus mi perdon!) se m’ el quisesse como soia, ja ‘goraÏ, amigas, migo seria.

10

Fez-m’ el chorar muyto dos olhos meus con gran pesar que m’ oje fez prender; quand’ eu dixi :Ï “Outro m’ oÏ [o]uvira dizer!” Ay mhas amigas, se mi valha Deus! se m’ el quisesse como soia, ja ‘goraÏ, amigas, migo seria.

15

445

450

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I. V 350. – 4 hunha – 8 Minha restituição do verso que falta no códice é conjectural – 10 e 16 ðs – 11 com9 – 12 falta – 13 chorar – 14 p’nder – 15 quad eu dixi outro mo uuyra dizer. Com leve emenda, poderemos 92

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ler também: Quant’ eu dixi Ï outro m’ ouvira dizer! – 17 soia e o resto do estribilho faltam. II. 444. onde (< unde; cf. ende, v. 24) = de onde, de que, de quem; refere-se a pessoas e coisas. 448. é cobrado de = está curado, restabelecido, livre de (cf. CD, v. 2322). 451. mas, por mhas, assim como ma por mha, são formas raras. 456. Não é impossível que a forma moderna ouvira (em vez de oira; cf. v. 36) fosse introduzida no texto por um copista. Vid. v. 891 e 995. O emprego deste tempo para exprimir um desejo é tão comum como o do subj. imperf.: cf. v. 414; 418.

24 Amigas, que Deus vos valha! quando veer meu amigo, falade sempr’ uas outras, en quant’ el falar con migo; ca muytas cousas diremos que ante vós non diremos.

5

460

465

Sey eu que por falar migo chegará el muy coytado, e vós ide-vos chegando lá todas per ess’ estrado; ca muytas cousas diremos que ante vós non diremos.

10

470

I. V 352. – 1 u9 (q) – 2 ueher – 3 semprunhas – 4 comigo – 12 falta. II. 461. veér: a 1ª sing. perf. vin (v. 444), a 3ª veo (rima com seo < sinum, cheo e alheo V 923, 18; 1143, 1) e o latim provam que, na língua antiga, também o e átono de formas como a presente era nasal, ainda que os códices não marquem essa nasalidade. Provavelmente, ela se perdeu mais cedo nas sílabas átonas; porém quando? Ulteriormente, veér deu viér. Cf. v. 540; 700. 93

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462. uas outras, pronome recíproco. 467. coytado por = aflito por, com saudade de, desejoso de.

25 Morr’ o meu amigo d’ amor, e eu non vo-lh’ o creo ben, e el mi diz logo por en ca verrá morrer u eu fôr; e a mí praz de coraçon por veer se morre, se non.

5

475

Enviou-m’ el assí dizer: ten el por mesura de mí que o leyxe morrer aquí e o veja, quando morrer; e a mí praz de coraçon por veer se morre, se non.

10

480

Mays nunca ja crea molher que por ela morren assí (ca nunca eu ess’ e tal vi), e el moyra, se lhi prouguer; e a mí praz de coraçon por veer se morre, se non.

15

485

I. V 353. – 5 e a mí] cami (ca também nos v. 11 e 17). Lendo-se ca mi, faltaria uma sílaba ao verso; ca a mi não formaria sentido nas estrofes 1ª e 2ª – 6 moire – 8 q el premesura demi. A alteração do texto não é tão grande como parece: q acha-se bastantes vezes escrito por tr, daí te podiase bem confundir com q; pre será devido a ter o copista mal interpretado a abreviatura de por; mí é aqui exigido pela rima, pelo que também introduzi essa mesma forma nos v. 11 e 17, onde o códice igualmente tem mi – 9 leixase; cf. veja no v. 10 – 11-12 cami praz. (o resto do estribilho falta) – 17-18 cami pz. (o resto do estribilho falta). II. 473. vo(s) é dativo ético. A queda do s ou r finais antes de lhe ou lhes é mais rara do que antes de lo, la etc. (cf. v. 129). 475. O futuro e o condicional de viir (= vir) são verrey e verria (cf. terrey, v. 422). Vid. v. 546. Assim também de aviir: averrey (v. 784). 94

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476. praz mi por veer = agrada-me ver, gosto de ver. 487. prouguér (< *placuerit), subj. fut. de prazer; o perf. é prougue (v. 1011).

26 Disse,Ï amigas, don J[o]an Garcia que, por mi non pesar, non morria. Mal baratou, porque o dizia, ca por esto [o] faço morrer por mí; e vistes vós o que s’ enfengia: demo lev’ o conselho que á de sí!

5

El disse ja que por mí trobava, ar enmentou-me, quando lidava. Seu dano fez que se non calava, ca por esto o faço morrer por mí; sabedes vós o que se gabava: demo lev’ o conselho que á de sí!

10

El andou por mí muyto trobando e, quant’ avia, por mí o dando e nas lides me ja enmentando, e por esto o faço morrer por mí, pero se muyto Ï andava gabando: demo lev’ o conselho que á de sí!

15

490

495

500

505

I. V 354. – 1 Disey. Deveremos, por ventura, ler Diss’, ay amigas, don Jan Garcia? Veja-se v. 586 – 4 eto fa o – 8 en me toume – 10 fazo – 12 que á de sí falta – 12 e 18 conselho] oselho. Confundiu-se a sigla 9 com o – 13 El andou Mon.] C landou – 15 en metando. II. 492. baratar mal = fazer maus negócios, tratar mal de seus interesses. 495. demo leve..., perífrase muito usada para designar uma quantidade mínima: = não sabe nada aconselhar-se a si, não tem nenhum juízo. 497. enmentar = mencionar; lidar = pelejar, lide (v. 504) = peleja. 95

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27 Fostes, amig’, oje vencer na voda en bafordar ben todo-los outros, e praz-m’ en; ar direy-vos outro prazer: alevad’ o parecer da voda; per bõa fe, eu mh-alevo toda.

5

510

E, poy-los vencedes assí, nunca devian a lançar vosc’, amigo, nen bafordar; ar falemos logo de mí: alevad’ o parecer da voda; per bõa fe, eu mh-alevo toda.

10

515

E muyto mi praz do que sey, que vosso bon prez verdad’ é, meu amigo,Ï e, per bõa fe, outro gran prazer vos direy: alevad’ o parecer da voda; per bõa fe, eu mh-alevo toda.

15

520

525

A toda-las donas pesou, quando me viron sigo esta Ïr, e punharon de s’ afeytar; mays praza-vos de como Ï eu vou: alevad’ o parecer da voda; per bõa fe, eu mh-alevo toda.

20

530

I. V 355. – 2 e 3 estão escritos numa linha só – 2 en Mon.] eu – 6 boa – mha leuo – 7 poylus – 8 lanzar – 10 loguo – 11 e 12 aleua do pare (o resto do estribilho falta) – 14 p’z – 15 boa – 17 e 18 aleua do pa. (o resto do estribilho falta) – 20 viron] ui co – 22 eu (?)] en – 23 e 24 aleua (o resto falta). II. 508. Fostes vencer = vencestes: cf. v. 415. 509. voda (a grafia moderna boda é baseada na pronúncia do Norte de Portugal e em etimologias errôneas: cf. Bluteau, Elucidario, e ainda Cortesão, Ad.) parece ter aqui o sentido mais geral de “festa, jogos festivais”. bafordar = jogar da lança (cf. Elucid., s. v. Bafordar e Bufurdio). 96

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510. praz mi de = agrada-me; cf. v. 476 e pesa mi de, v. 315. 512. alevar ou levar (v. 1014) = levantar; parecer = semblante, rosto. 528. punhar (< pugnare) de = tratar de, esforçar-se por. afeytar = enfeitar.

28 Chus mi tarda, mhas donas, meu amigo que el migo posera, e crece-m’ end’ ua coyta tan fera que non ey o cor migo, e jurey ja que, atá que o visse, que nunca ren dormisse.

5

Quand’ el ouv’ a fazer a romaria, pôs-m’ un dia talhado que veesse, e non ven, mal pecado! Oje se compre Ï o dia, e jurey ja que, atá que o visse, que nunca ren dormisse.

10

540

Aquel dia que foy de mí partido, el mi jurou chorando que verria, e pôs-mi praz’ e quando: já o praz’ é saido, e jurey ja que, atá que o visse, que nunca ren dormisse.

15

535

545

I. V 356. – 1 e 2 estão numa só linha, bem como 3 e 4 – 3 ecreze mendunha – 5 e jurey] cuirey – 6 ren Mon.] ten – 7 romaria Mon.] tomaria – 9 que veesse e (?)] quyse está no fim da linha precedente. O erro do copista se explicaria por terminar um dos versos do estribilho em visse. Mas seria igualmente admissível a emenda que o visse, e – 10 oiese co p’o dia está no fim da linha precedente – 11 cuirey ia q ata (o resto do estribilho falta) – 15 querria está no fim da linha precedente – epoysmi pze – 17 cuirey ia ata. (o resto falta).

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II. 532. chus, por mais, é raro nos Canc. 533. poséra = tinha combinado, fixado. 534. crece = nasce; crecer se conjuga como guarecer (v. 184). 535. cór = conhecimento de si. Daí acordar-se = tornar a si V 432, 4; acordado = com conhecimento de si CM 83, 11; desacordado = sem sentidos V 489, 10. 536-37. jurar que com o subj.: é construção muito comum. atá (= até): é assim que se deve acentuar, pois se encontra também ta, por ex. V 901, 14 e 21, e atá rima com ja e alá CM 203, 5. 538. aver a = ter de. 539. = combinou comigo, indicou-me um dia certo. 540. mal pecado = por desgraça. Cf. v. 46. 541. comprir = encher, cumprir, vencer-se. 544. foy partido = se partiu. Cf. foy nada, v. 425.

29 Cada que ven o meu amig’ aquí, diz-m’, ay amigas! que perd’ o [seu] sen por mí, e diz que morre por meu ben; mays eu ben cuydo que non est assí; ca nunca lh’ eu vejo morte prender, ne-no ar vejo nunca ensandecer. Ï

5

El chora muyto Ï e filha-s’ a jurar que é sandeu e quer-me fazer fis que por mí morr’, e, poys morrer non quis, muy ben sey eu que á ele vagar: ca nunca lh’ eu vejo morte prender, ne-no ar vejo nunca ensandecer. Ï

10

Ora vejamos o que nos dirá, poys veer viv’ e poys sandeu non for! Ar direy-lh’ eu: “Non morrestes d’ amor!” Mays ben se quite de meu preyto ja: ca nunca lh’ eu vejo morte prender, ne-no ar vejo nunca ensandecer. Ï

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E ja mays nunca mi fará creer que por mí morre, ergo se morrer.

20

I. V 357. – 3 pormi está no fim da linha precedente – 6 ne no – 12 falta – 13 ueia mus – 14 ueher – 17 ca nuncalhi ueio morte pder; cf. os v. 5 e 11 – 18 falta. II. 550. cada que = cada vez que. 556. filhar-se a = pôr-se a. 557. fazer fis = convencer; fis = convencido, certo: palavra tirada do antigo francês ou provençal. 559. á vagar = não tem pressa. 565. quitar-se = tirar-se, livrar-se. O sentido da frase será “evite minha conversa”? ou “defenda-se de minha censura”? 569. ergo = exceto.

30 Per bõa fe, meu amigo, muy ben sey eu que m’ ouvestes grand’ amor e estevestes muy gran sazon ben con migo; mays vede-lo que vos digo: ja çafou!

5

570

575

Os grandes nossos amores, que mí e vós sempr’ ouvemos, nunca lhi cima fezemos como Brancafrol e Flores; mays tempo de jogadores ja çafou!

10

580

Ja eu faley en folia con vosqu’ [e] en gran cordura, e en sen e en loucura, quanto durava o dia; mays esto, Joan Garcia, ja çafou!

15

585

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E d’ essa folia toda 20

ja çafou! Ja çafo[u] de pan de voda, ja çafou!

590

I. V 358. – Os versos 1 a 5 estão distribuídos por 4 linhas, acabando a 1ª com mui be, a 2ª com grandamor, e a 3ª com bem – 1 boa – 3 esteuedes – 4 comigo – 7 uos9 – 10 coma – 17 esto, Joan Garcia] esta hi don Jam g’çia. Ou poderemos ler est’, ay don Jan Garcia? Veja-se v. 490 – 19 Ou Ed essa? – 20 zafou – 21 çafode. Talvez çafou o? II. 575. çafar (grafia moderna safar, esp. zafar) aqui = acabar. 577. mí e vós na função de sujeito: vid. v. 106. 578. lhi plural, como V 685, 24; B 14, 28. Porém lhis v. 593. fazer cima a = dar fim a: cf. V 1142, 10 dar cima a = levar a cabo; CM 264, 8 dar maa cima = dar mau fim. 579. Brancafrol e Flores, amantes célebres mencionados também por D. Denis: cf. CD, nota relativa ao v. 699, e A II, p. 413. 588. A respeito da forma problemática ed (= e), veja-se meu artigo “Zu Text und Interpret. des Canc. da Aj.”, p. 374*.

31 Estas donzelas que aquí demandan os seus amigos que lhis façan ben, querrey, amigas, saber ua ren: que [é] aquelo que lh’ e[le]s demandan? Ca un amigo que eu sempr’ amey pediu-mi cinta, e já lh’ a er dey; mays eles cuydo que al lhis demandan.

5

O meu seria perdudo con migo por sempr’, amigas, se mi pediss’ al; mays pedir cinta non é nulho mal, e por aquesto non se perdeu migo;

10

*

Neste volume, “Para o texto e a interpretação...”, p. 207.

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mays, se m’ el outra demanda fezesse, Deus me cofonda, se lh’ eu cinta desse! e perder-s’ia ja sempre [con] migo. 15

May-la donzela que muyt’ á servida o seu amigo, (esto lh’ é mester) dé-lhi sa cinta, se lhi dar quiser, se entender que a muyto. á servida; mays, se x’ el quer outro preyto mayor, maldita seja quen lh’ amiga for e quen se d’ el tever por [ben] servida!

20

E de tal preyto, non sey end’ eu ren; mays, se o ela por amigo ten, non lhi trag’ el lealdade comprida.

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610

615

I. V 359. – 1 A estrofe ganharia em clareza, se lêssemos As (ou Das) donzelas a que. Porém esta consideração não me parece suficiente para mudarmos o texto – 3 hunha – 4 Também se pode emendar assim: que [será] aquelo que lhes demandan – 6 erdey – 7 alhis; cf. v. 112 – 8 comigo – 10 nulho (?)] nulha – 13 ðs – 14 Também se pode suprir a sílaba que falta ao verso, lendo e perder-s’ia [el] – 15 donçela – ’uido – 20 maldica – 21 Ou e quen se d’ ele tever por servida? – 22 p’yto – 24 9p’ida. II. 594. querrey saber se diz em lugar de quero saber, para indicar que a ação expressa pelo infinitivo saber pertence ao futuro. Esta atração do tempo é bastante comum nos Canc. 595. lh’ plural, como nas formas lh’o (V 538, 10; 627, 4; B 335, 13) e lh’a (B 200, 28; 252, 18), ainda hoje usuais. Cf. v. 578. 597. ér = ar: cf. v. 81. 606. á servida: é de regra a concordância do particípio passado com o objeto direto; cf. v. 609. 615. trager = ter, guardar. comprido = perfeito.

32 Fez meu amigo gran pesar a mí, e, pero m’ el fez tamanho pesar, 101

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fezestes-me-lh’, amigas, perdõar, e chegou oj’, e dixi-lh’ eu assí: “Viide ja, ca ja vos perdõey; mays pero nunca vos ja ben querrey.”

5

Perdõey-lh’ eu, mays non ja con sabor que [eu] ouvesse de lhi ben fazer; e el quis oj’ os seus olhos merger, e dixi-lh’ eu: “Olhos de traedor, viide ja, ca ja vos perdõey; mays pero nunca vos ja ben querrey.”

10

Este perdon foy de guisa, de pran, que ja mays nunca mig’ ouvess’ amor, e non ousava viir con pavor; e dixi-lh’ eu: “Ay cabeça de can! viide ja, ca ja vos perdõey; mays pero nunca vos ja ben querrey.”

15

620

625

630

I. V 360. – 3 perdoar – 5 minde – perdoey – 7 Perdoey – 8 eu antes de ou podia ser omitido facilmente – 11 minde – pdoey – 12 falta – 14 nucamigouue nsamor – 15 uijr. Podia-se ler também ousav’ a viir – 17 uijde – pdoei. – 18 falta. II. 620. vií de < veí de < venite, como vií r (v. 630) < veí r < venire; vií de deu depois vi i de  > vinde, ao passo que vií r, com perda da nasalação, > vir. 621. pero = nem por isso. Em locuções como a presente é que pero (bem como o moderno porém) adquiriu sua força adversativa. 624. merger = levantar: cf. C. Michaëlis na ZfRPh XXV, p. 673*, e V 1047, 5; CM 38, 11; merjudo = levantado, CM 31, 5; 47, 4; V 1039, 20 (o códice tem merpago). Porém merger = submergir CM 142, 8; 366, 9; 371, 8.

33 Fez meu amigo,Ï amigas, seu cantar, per bõa fe, en muy bõa razon

*

635

Cf. Glosas Marginais..., op. cit., p. 256. (NE)

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e sen enfinta, e fez-lhi bon son; e ua dona lh’ o quiso filhar; mays sey eu ben por quen s’ o cantar fez, e o cantar ja valriaÏ ua vez.

5

Tanto que lh’ eu este cantar oí, logo lh’ eu foy na cima da razon por que foy feyt’, e ben sey por que non; e ia dona o quer pera sí; mays sey eu ben por quen s’ o cantar fez, e o cantar ja valriaÏ ua vez.

10

E-no cantar muy ben entendí eu como foy feyt’, e entendí por quen (?), e o cantar é guardado muy ben: e ia [dona] o teve por seu; mays sey eu ben por quen s’ o cantar fez, e o cantar ja valriaÏ ua vez.

15

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645

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I. V 361. – 2 boa – boa raçon – 4 hunha – 6 ual rria hunha – 8 çuna da raço – 9 pr que – po’ q no – 10 hua – 12 falta – 13 E no – 14 como foy feyte be como po’ be – 15 egrdado – 16 hua o reue – 17 may soy eu. (o resto do estribilho falta). II. 635 e 636. razon é o texto ou assunto, son a melodia da cantiga. 636. enfinta parece ser aqui = fingimento. Cf. CD, no Glossário. 637. quiso 3ª sing. perf., forma menos usada que quis. 639. valrey e valria, futuro e condicional de valer. Formas recompostas (cf. v. 422) se encontram V 655, 3: valeredes; B 26, 15: valerá. 641. foy na cima de, aqui evidentemente = descobri, compreendi. Cf. v. 578.

34 “Foy-s’ ora d’ aquí sanhud[o], amiga, o voss’ amigo.” ““Amiga, perdud’ é migo, e, pero migu’ é perdudo,

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5

o traedor conhoçudo acá verrá, cá verrá, acá verrá.”” “Amiga, desemparado era de vós e morria.” ““Sodes, amiga, sandia: non foy en[d’ el] muy coytado; mays ele, mao seu grado, acá verrá,

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cá verrá, acá verrá.”” “Amiga, con lealdade, dizen que anda morrendo.” ““Vó-lo andades dizendo, amiga, est’ é verdade; may-lo que chufan Guilhade acá verrá, cá verrá, acá verrá.””

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670

675

I. V 369. – O copista, por engano, dividiu a 2ª estrofe, bem como a 3ª, em duas, repetindo depois da 3ª linha o princípio do estribilho: aca uerra. na 2ª estrofe, e aca. na 3ª – 1 e 2 anhuda / miga – 4 migoie (em vez de migue ou migo e, isto é migoÏ é) – 6 aea – 7 ea – 8 aea – 9 deenpado – 10 emorrera – 11 amiga] miuga – 12 foy end’ el] fogeu. Ou foy ele? – 1416 e 22-24 aca uerra. ca uerra. numa só linha; o resto falta – 21 gaylhade. II. 662. sodes (> sois) deve a origem à analogia de somos. É, provavelmente, transformação de sedes, que se encontra (V 306, 8; 433, 9; 472, 15; 689, 21 e 24; B 436, 1) ao lado de seedes (< sedetis) V 1190, 2. A 1ª plur. semos só V 1149, 5*. 672. chufar = chamar (injuriosamente).

*

An. Nob.: semos [...] sedes [...] Trás-os-Montes (Chaves); ‘a forma semos é vulgar no país”: Leite de Vasc.[oncelos], Rev. Lus. III, p. 60. (NE)

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35 Ay amigas! perdud’ an conhocer quantos trobadores no reyno son de Portugal: ja non an coraçon de dizer ben que soian dizer [de vós] e sol non falan en amor, e al fazen, de que m’ ar é peor: non queren ja loar bon parecer.

5

680

Eles, amigas, perderon sabor de vos veeren; ar direy-vos al: os trobadores ja van pera mal; non á i tal que ja servha senhor nen [que] sol trobe por ua molher: maldita sej’ a que nunca disser a quen non troba que é trobador!

10

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Mays, amigas, conselho á d’ aver dona que prez e parecer amar: atender temp[o] e non se queyxar e leyxar ja a vó-lo tempo perder; ca ben cuyd’ eu que cedo verrá a lÏ guen que se paga da que parece ben, e veeredes ced’ amor valer.

20

690

695

E os que ja desemparados son de vos servir, sabud’ é quaes son: leyxe-os Deus maa mor[te] prender!

I. V 370. – 2 quantus trohadores – 5 de vós não são palavras rigorosamente indispensáveis; mas explicar-se-ia que elas caíssem no princípio da linha, começando a seguinte por e, e as duas precedentes por de – 8 pede4 – 11 q’ – 12 hua – 13 maldita seja Mon.] maldica sela – 23 deuo – quaes son Mon.] q es sou – 24 ðs. II. 676. conhocer = conhecimento, entendimento. 678. coraçon = vontade. 679. ben: é muito comum a falta do artigo antes de um substantivo determinado por cláusula relativa.

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681. de que m’ é peor = que eu lastimo mais. 686. á i = há. servha (< serviat) é a forma normal, nos Canc., do subj. pres. de servir. 690. conselho = remédio. 697. son desemparados de = estão livres de, renunciaram a.

36 Veestes, amigas, rogar que fale con meu amigo e que o avenha migo, mays quero-m’ eu d’ ele quitar; ca, se con el algua ren falar, quant’ eu falar con cabeça de can, logo o todos saberán.

5

700

705

Cabeça de can perdudo é, poys non á lealdad’ e con outra fala Ï en Guilhade, e traedor conhuçudo; e por est’, amigas, [sey que] tudo quant’ eu falar con cabeça de can, logo o todos saberán.

10

15

710

E, se lh’ eu mhas dõas desse, amigas, como soia, a todo-lo el diria e al, quanto m’ el dissesse, e fala, se a con el fezesse: quant’ eu falar con cabeça de can, logo o todos saberán.

20

715

720

h

I. V 371. – 1 Vee tes – 5 algunha – 7 todas; veja-se v. 17 – 9 epoys – 10 out~ – 11 cohuçudi – 12 etamiga estudo. Se fosse lícito inverter a ordem de algumas linhas, obteríamos uma lição melhor dos v. 8 a 12: E, poys non á lealdade / cabeça de can perdudo / e traedor conhuçudo, / con outra falaÏ en Guilhade; / e por est’, amiga[s, fis] estade: – 13 co ca. (o resto do estribilho falta) – 15 doas – 18 eal quantou el. Ou leremos e quant’ eu ou el? – 20-21 quanteu falar. (o resto do estribilho falta).

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II. 705. cabeça de can: cf. v. 631. 710. conhuçudo por conhoçudo; a mesma assimilação vocálica se encontra em outras palavras: fremusura V 668, 18; B 232bis, 10; curdura V 690, 1; acustumado V 1094, 1. 711. tudo: vid. v. 42.

T ENÇÕES 37 “Lourenço jograr, ás muy gran sabor de citolares, ar queres cantar, des i ar filhas-te log’ a trobar e tees-t’ ora ja por trobador; e por tod’ esto ua ren ti direy: Deus me cofonda, se oj’ eu i sey d’ estes mesteres qual fazes melhor!”

5

““Joan Garcia, sõo sabedor de meus mesteres sempre deantar, e vós andades por mh-os desloar: pero non sodes tan desloador que con verdade possades dizer que meus mesteres non sey ben fazer, mays vós non sodes i conhocedor.””

10

15

“Lourenço, vejo-t’ agora queyxar: po-la verdade que quero dizer metes-me ja por de mal conhocer; mays eu non quero tigo pelejar, e teus mesteres conhocer-t’os-ey, e dos mesteres verdade direy: ess’ e[s] que foy con os lobos arar!”

20

““Joan Garcia, no vosso trobar acharedes muyto que correger, e leyxade mí que sey ben fazer estes mesteres que fuy começar. Ca no vosso trobar sey-m’ eu com’ é: i á de correger, per bõa fe, mays que nos meus, en que m’ ides travar.””

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“Ves, Lourenç[o], ora m’ assanharey, poys mal i entenças, e ti farey o citolon na cabeça quebrar!”

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““Joan Garcia, (se Deus mi perdon!) muy gran verdade digu’ eu na tençon, e vós fazed’ o que vos semelhar.””

I. V 1104. – 1 e 15 Lourenzo – 4 eteetora – 5 hunha – 7 mesteres Mich.] maetres – 8, 22 e 32 g’çia – 8 soo – 13 está escrito em duas linhas, acabando a 1ª com met’es – 21 ese q foy, devido provavelmente à inadvertência de um copista a quem parecia errado eses que foy. Mich. leu ess’é que foi – 25 comezar – 27 boa – 28 t’uar – 29 Ves lourezora. Hesito entre a lição acima, adotada por Mich., e Ves Lourenç’, ora [ti] – 30 ti] todo; Mich.: te. Poderíamos conservar todo, cancelando a letra i depois de mal e lendo t’o no princípio da linha seguinte – 31 cabe ca – 32 des. II. 721. jograr (< jocularem, provavelmente por intermédio do provençal) era “o vilão que cantava e poetava”; segrér (v. 788), “o escudeiro que cavalgava de côrte em côrte, aceitando paga da sua arte” (C. Michaëlis; cf. A II, p. 454, nota 2ª)∗. 722. citolar = tocar a cítola (espécie de guitarra: cf. A II, p. 640). 725. ti (< tibi), forma átona com função de dativo; cf. mi v. 2. 729. deantar (os mesteres): com o mesmo sentido usam-se levar a deante B 441, 27, e avantar V 576, 10; 882, 3. 735. vejo-te queyxar, em vez de vejo-te queyxar-te: sendo o mesmo pronome pessoal objeto de um verbo e um infinitivo regido por este, não se põe nunca duas vezes. – Veer é aqui sinônimo de oir, o que não é raro: cf. CD, v. 1309 e 1418 (onde Lang, apesar de a medida o vedar, trocou vi por oí). 736. po-la = por la, ao passo que pe-la = per la (cf. v. 70). Encontra-se também pa-la = par la B 380, 15, pa-lo CM 108, 2; p. 569, 7. 737. meter por = considerar como.

*

An. Nob.: Depois de “segrer”, Nob. riscou “< prov. segrier”. E acrescentou a nota ao pé da página: “Presumo que este último termo procede de um vocábulo prov. *segler ou *seglier, o qual, derivado de segle (< saeculum), designaria originariamente o trovador mundano e distinto do clericus. Este vocábulo prov. deve ter caído cedo em desuso, pois o termo segrier usado por Giraut Riquier foi manifestamente tirado do port[uguês]”. (NE)

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741. ir arar con os lobos, locução proverbial que, segundo parece, quer dizer “agir tolamente, fazer o que nunca pode dar bom resultado”. Tem sentido semelhante semear o sal V 502, 7; 620, 22. 748. travar en = criticar, atacar. 750. entençar = fazer tençon. 751. citolon, aumentativo de cítola: vid. v. 722. 754. semelhar = parecer.

38 “Muyto te vejo, Lourenço, queyxar, po-la cevada e po-lo bever, que t’ o non mando dar a teu prazer; mays eu t’ o quero fazer melhorar: poys que t’ agora citolar oí e cantar, mando que t’ o den assí ben como o tu sabes merecer.”

5

““Joan Garcia, se vos en pesar de que me queyx[e] en vosso poder, o melhor que podedes i fazer: non mi mandedes a cevada dar mal ne-no vio, que mi non dan i tan ben com[o m’] eu sempre merecí; ca vos seria grave de fazer.””

10

15

“Lourenço, a min grave non será de te pagar tanto que mi quiser: poys ante mí fezisti teu mester, muy ben entendo e ben vejo ja como te pagu’, e logo. Ï o mandarey pagar a [un] gran vilão que ey, se un bon pao na mão tever.”

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““Joan Garcia, tal paga. Ï achará en vós o jograr, quand’ a vós veer; mays outra que[rrá quen] mester fezer qual m’ eu entendo, e muy ben fará que panos ou algo merecerey; e vossa paga be-na leyxarey, e pagad’ [end’] outro jograr qual quer!””

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“Poys, Lourenço, cala-t’ e calar-m’ey, e toda via tigo mh-averrey, e do meu filha quanto chi m’ eu der!”

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““Joan Garcia, non vos filharey algo, e muy ben vos citolarey, [e cantarey ben com’ outro segrer].””

I. V 1105. – 1 e 29 lourenzo – 6 ecantar está no fim da linha anterior – 8, 22 e 32 g’çia – en Mich.] eu – 9-10 A lição acima é de Mich.; V tem qixen e melh9. Poderíamos ler também de que me queyx’, é en vosso poder / o melhor etc. – 12 neno uinho – 13 comeu sempr; Mich. com’eu o sempre – 15 Lourenzo – 17 Mich. coloca a vírgula depois de muy ben, o que não está de acordo com o fim da estrofe – 20 un Mich. – uilao – 21 mao – 23 ueher – 24-25 mays out~ qm  et’ fezer / q meu entenda mui be fara; Mich. mais outren a quen meu mester fezer, / que me entenda, mui ben me fará (o que só me parece aceitável se substituirmos quen, me entenda e mui por que, m’ entenda e muito). Proponho ainda esta outra emenda: mays outr’ a que eu meu mester fezer / entenderá (e muy ben i fará) – 27 bena – 28 epagadoutro; Mich. e pagad’a outro. Explica-se facilmente a omissão de ed depois de ad – 30 mho au’ey, o que não satisfaz nem o sentido nem a medida do verso – 33 algue – 34 e conhoco mui be trobar / am far don lourenzo chufar; Mich. e conhosco-me mui ben a trobar. / “A mofar, Don Lourenç’, e a chufar”. Parece-me mais provável que tenhamos aí dois octossílabos45, pertencentes a outra cantiga hoje perdida, e que vieram a substituir o verso final da nossa. As regras métricas pedem um decassílabo que rime em ér; se não fosse vedada a repetição da mesma palavra na rima, poderíamos ler: e conhosco muy ben o meu mester. II. 756. cevada e bever, isto é, pão e vinho (v. 766); cf. A II, p. 641. 765-68. Parece que o verdadeiro sentido deve ser: “Não me mandeis dar nem pão nem vinho, pois vos seria difícil dar-me quanto mereço”. Grave = difícil se encontra também v. 1104. 773. pagu’ = pague. O emprego do subjuntivo como no v. 404.

45

Sua forma primitiva será e conhosco muy ben trobar / e mofar, Lourenç’, e chufar? ou, por ventura, e con vosco meu bon trobar / me faz don Lourenço chufar? Na primeira hipótese, estes versos poderiam ser de Guilhade; na segunda, pertenceriam ao próprio Lourenço.

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779-80. fará (o sujeito é qual) que = este meu mester fará com que. panos ou algo = roupa ou dinheiro. 784. toda via = sempre. 785. filha é imperativo. 788. outro é empregado como no v. 423.

CANTIGAS D’ ESCARNHO E DE MALDIZER

39 Lourenço, poys te quitas de rascar e desemparas o teu citolon, rogo-te que nunca digas meu son, e ja mays nunca mi farás pesar; ca per trobar queres ja guarecer, e farás-m’ ora desejos perder do trobador que trobou do Vincal (?).

5

Ora cuyd’ eu [a] cobrar o dormir, que perdí sempr’, e cada que te vi rascar no cep’ e tanger, non dormí; mays, poy-lo queres ja de tí partir, poys guarecer [ja queres] per trobar, Lourenço, nunca irás a logar u tu non faças as gentes riir.

10

15

E ves, Lourenço, (se Deus mi perdon!) poys que mi tolhes do cepo pavor e do rascar, farey-t’ eu sempr’ amor, e tenho que farey muy gran razon; e direy-ti qual amor t’ eu farey: ja mays nunca teu cantar oirey que eu non rija muy de coraçon.

20

Ca ves, Lourenço, muyto mal prendí de teu rascar e do cep’ e de tí; mays, poys t’ en quitas, tudo ti perdon.

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I. V 1106. – 1 Lourenzo – 5 laguarecer – 7 do uincal – 8 trobar e dormir – 10 eno dormir está no princípio da linha seguinte – 11 ptir – 12 guarezer; minha restituição do texto é conjectural – 13 e 22 lourenzo – 15 E eues – ðs – 16 çepe – 17 ede cantar; cf. 20 – 22 apndy – 23 iacar. II. 789 e 798. rascar no cepo, expressão desdenhosa por tanger a cítola. 793. guarecer per = manter-se com, viver de. 795. Alude-se aqui, evidentemente, a um personagem notório como mau trovador. Suponho ser o Vincal nome geográfico, que se derivaria naturalmente do lat. vinca (donde avenca; cf. vengar e menguar ao lado de vingar e minguar). 796. cuydar (= crer) rege infinitivo com a preposição a ou sem ela. cobrar = recuperar. 809. rija (< rideam) está de acordo com veja e seja; mas não se encontra, que eu saiba, em nenhum outro lugar. 812. perdon: a forma normal, na língua dos Canc., para a 1ª sing. ind. pr. de perdõar devia ser perdõo (< perdono; a moderna perdôo é analógica), donde proviria perdon, quer por contração (cf. o moderno bom < bõo) ou por analogia de son, existente ao lado de sõo (v. 379).

40 Ora quer Lourenço guarir, poys que se quita de rascar, e ja guarria ,Ï a meu cuydar, se ora Ï ouvesse que vestir; [may-las gentes non lhi dan ren,] e ja nulh’ ome non se ten por devedor de o ferir.

5

815

E, se se quisesse partir, como se partiu do rascar, d’ un pouco que á de trobar, poderia muy ben sair de todo por se quitar en oj’, e nõ-no ferrán por en os que o non queren oir.

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E seria conhocedor de seu trobar, por non fazer os outros errados seer, e el guarria muy melhor sen trobar e sen citolon, poys perdeu a voz e o son, por que o ferian peyor.

20

830

I. V 1107. – 1 lourenzo – 3 e ia guariria – 5 falta; minha restituição é puramente conjectural – 6 nullome – 7 por está no fim da linha anterior – 13 ou no no – 18 melhor. II. 813. guarir aqui, segundo parece, = viver sossegadamente. 815 e 825. Futuro de guarir e ferir: guarrey e ferrey; condicional: guarria e ferria. Formas recompostas (cf. v. 422): guarirá V 829, 18; ferirá B 399, 19. 818-19. O sentido deve ser: “todos se julgam com o direito de dar pancada nele”. 833. por que = por cuja causa.

41 Martin jograr, que gran cousa! Ja sempre con vosco pousa vossa molher!

835

Ve[e]des-m’ andar morrendo, e vós jazedes fodendo vossa molher!

5

Do meu mal non vos doedes, e moyr’ eu, e vós fodedes vossa molher!

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I. V 1101. II. 837. Veedes: cf. v. 63. 113

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42 Martin jograr, ay dona Maria! jeyta-se vosco ja cada dia, e lazero-m’ eu mal.

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And’ eu morrend’ e morrendo sejo, e el ten sempr’ o cono sobejo, e lazero-m’ eu mal.

5

Da mha lazeyra pouco se sente: fod’ el bon con[o] e jaz caente, e lazero-m’ eu mal.

850

I. V 1102. II. 844. jeytar (também v. 1038) = deytar, que nos Canc. já é a palavra mais usada. 845. lazerar = padecer, sofrer pena; lazeyra (v. 849) = sofrimento, miséria. 850. caente (< calentem) > queente > quente. B 378, 1 caentura = febre (= esp. calentura).

43 Par Deus, Lourenço, muy desaguisadas novas oí agor’ aquí dizer: mhas tenções quiseran desfazer e que ar fossen per tí amparadas. Joan Soarez foy; e di-lh’ assí: que louv’ eu donas, mays nunca per mí, mentr’ eu viver, serán amas loadas.

5

E, se eu fosse Ï u fôron escançadas aquestas novas de que ti faley, Lourenço (gran verdade ti direy), toda-las novas fôran acaladas. Mays min e tí poss’ eu ben defender: ca nunca eu donas mandey tecer, nen lhis trobey nunca po-las maladas.

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Cordas e cintas muytas ey eu dadas, Lourenç’, a donas, e elas a mí; mays pero nunca con donas tecí, nen trobey nunca por amas onradas. Aas que me criaron, dar-lhis-ey sempr’ en que vivan e vestí-las-ey. e serán donas de mí sempr’ amadas.

20

Lourenço, di-lhe que sempre trobey por bõas donas e sempr’ estranhey os que trobavan por amas mamadas.

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I. B 374. – 1 e 10 Lourenco – 3 desfazer Mich.] deffazer – 4 e 6 p (Mich. leu erradamente por) – 8 fo4 (Mich. leu foran) – 12 Mays a mi eati; Mich. a mi e a ti, sobrando ainda assim uma sílaba ao verso – 14 polos – 15 e Mich.] o – 16 Lourenca – mi – 18 oniradas – 19 Mays q me criaro Mich. As que me criarem. II. 856. di (< dic), imperat. de dizer. 857. dona corresponde ao médio alto alemão frouwe (= dama nobre). 859 e 862. fôron (< fue  runt) é perfeito; fôran (< fure nt) é plusquamperfeito, tendo aqui valor de condicional. Essas formas são ainda distintas na língua dos trovadores, se bem que os copistas as confundam às vezes. 859. escançar aqui, evidentemente, = dar saída a, divulgar. O vocábulo liga-se a escançon, escanção (cf. Elucid. e Bluteau). É a opinião de C. Michaëlis. 862. acalar, evidentemente, = fazer calar, reduzir ao silêncio (assim C. Michaëlis). Daí foi derivado, segundo toda a probabilidade, o verbo acalentar (= puellum in sinu consopire Bluteau). 865. malada = criada: veja-se C. Michaëlis, Randgl. I, p. 70*. 869. Sobre amas onradas e os privilégios (honras) que se concediam às amas dos filhos de ricos-homens, vejam-se Elucid., s. v. Amadigo, e C. Michaëlis, Randgl. I, p. 22-24*.

* *

Cf. Glosas Marginais..., op. cit., pp. 103-104. (NE) Ibid., pp. 53 ss. (NE)

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871. sempr’ en que = enquanto. 872. A posição do sujeito donas dá ênfase a esta palavra e força adversativa à conjunção e: = mas a quem amarei sempre, são damas nobres.

44 Don Foan disse que partir queria quanto lhi deron e o que avia; e dixi-lh’ eu, que o ben conhocia: “Castanhas eyxidas e velhas per souto!” 5

E disso-m’ el, quando falava migo: ““Ajudar quero senhor e amigo.”” E dixi-lh’ eu: “Ess’ é o verv’ antigo: castanhas eyxidas e velhas per souto!” E disso-m’ el: ““Estender quer’ eu mão, e quer’ andar ja custos’ e loução.”” E dixi-lh’ eu: “Esso, ay don Foão – castanhas eyxidas e velhas per souto!”

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I. B 375. – 8 Castanhas saydas (o resto do estribilho falta) – 9 mao – 10 loucao – 11 foao – 12 Castanhas faydas (o resto falta). II. 877. foan e foão (v. 886) = fulano. Sobre o erro cometido por alguns editores, que vêem nessa palavra o nome Joan, vid. A II, p. 395, n. 2; p. 562, n. 2. partir: cf. V 784, 1 Partir quer migo mha madr’ oj’ aquí / quant’ á no mundo. 879. eyxidas (< exitas), sinônimo de saidas, que, provavelmente por engano, o veio a substituir na repetição do estribilho: suponho que ambos estes termos querem dizer “extraviadas”. O sentido da locução proverbial é evidentemente: haveres de nenhum valor∗. 880. disso 3ª sing.; é menos usado que disse.

*

An. Nob.: [...] R. Lus., I, p. 72 [...]: Cast. saídas, e velhas ao souto, – Leite de Vasconcelos [...] Roças, conc. de Vieira (Minho): Soutaije acabada, velhas ao souto. (NE)

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882. vervo = provérbio. 885. custoso = gastador, generoso.

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Vi eu estar noutro dia infanções Ï con un ricome, posfaçandoÏ a quen mal come; e dix’ eu, que os ouvia: “Cada casa favas lavan.”

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Posfaçavan d’ un escasso, [e] foy-os eu ascuytando; eles fôron posfaçando, e dixi-m’ eu pass’ e passo(?): “Cada casa favas lavan.”

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Posfaçavan d’ encolheyto e de vil e de spantoso e en sa terra lixoso: e dix’ eu enton dereyto: “Cada casa favas lavan.”

I. B 376 – 2 Infanções no fim da linha anterior – 3 pofacado (no fim da linha anterior) De quen. Lendo-se assim, sobra uma sílaba – 8 pofacado – 9 pass’ e passo Mich.] pasen paso – 10 Cada casa (o resto do estribilho falta) – 11 Posfacaua – 13 tira – 14 dizeu – 15 Cada (o resto falta). II. 889. ricome = rico-homem. 890. posfaçar = fazer maus conceitos, falar mal; não é raro o termo nos Canc. (cf. ainda Canc. Gall., no glossário). O substantivo posfaço (= má fama, mau conceito) se encontra CM 64, 8 (o glossário tem posfaz, em vez de posfaç’). 892. Bluteau, s. v. Fava, cita o adágio: “Em cada casa comem favas, e na nossa às caldeiradas”, cujo sentido não se afasta muito do nosso. 896. passo = devagar, é termo comum; mas não conheço exemplo de pass’ e passo. 117

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898. encolheyto = encolhido: colheyto < collectum, influenciado por colher < *colligere.

46 Par Deus, infançon, queredes perder a terra, poys non temedes el rey! Ca ja britades seu degred’, e sey que lh’ o faremos muy cedo saber: ca vos mandaron a capa, de pran, trager dous anos, e provar-vos-an que vo-la viron tres anos trager.

5

E provar-vos-á das carnes quen quer que duas carnes vos mandan comer, e non queredes mays d’ ua cozer: e no degredo non á ja mester nen ja da capa non ey a falar: ca ben tres anos a vimos andar no vosso col’ e de vossa molher.

10

15

E fará el rey côrte este mes, e mandarán vós, infançon, chamar, e vós querredes a capa levar, e provarán-vos, pero que vos pês, da vossa capa Ï e vosso gardacós – en cas del rey vos provaremos nós que an quatr’ anos e passa per tres.

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I. V 1103. – 1 Deus Mich.] den – infanzon – 3 britades Mich.] birtades – 6, 7 e 13 anos Mich.] au9 – 10 uos dunha: parece-me que o sentido exige a emenda mays por vós – 11 eno degido. A lição acima só forma sentido, se subentendermos falar depois de mester. Mas talvez seja melhor emendar: e o degredo – 14 de vossa Mich.] deuesa – 16 e mandarán Mich.] emadam – infanzo – 19 e vosso Mich.] edo uoso – 20 en cas Mich.] emas – 21 p (Mich. leu por). II. 903-4. perder a terra = ser desterrado.

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905. britar seu degredo = violar seu decreto. A palavra degredo (< decretum) restringiu singularmente a sua significação, quando, mais tarde, assumiu o sentido de desterro. 920. pero que = ainda que. pês: vid. perdon, v. 2. 921. gardacós ou guardacós = “vestia, roupinhas, ou casaca, que apertava o corpo, e o guardava” (Elucid., onde se veja o artigo inteiro). A forma dupla indica origem estrangeira: presumo que de uma palavra provençal guarda-cors.

47 Nunca [a]tan gran torto vi com’ eu prendo d’ un infançon, e, quantos e-na terra son, todo-lo teen por assí: o infançon, cada que quer, vay-se deytar con sa molher e nulha ren non dá por mí.

5

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930

E ja me nunca temerá, ca sempre me tev’ en desden; des i ar quer sa molher ben, e ja sempr’ i filhos fará; se quer tres filhos que fiz i filha-os todos pera sí: o demo lev’ o que m’ en dá!

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935

En tan gran coyta vivo Ï oj’ eu que non poderia mayor: vay-se deytar con mha senhor e diz do leyto que é seu, e deyta-s’ a dormir en paz, des i, se filh’ ou filha faz, nõ-no quer outorgar por meu.

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940

I. V 1108. – 2 e 5 infanzon – 3 ena – 4 teen – 7 mi – 10 sa] asa, i. e, a sa, com o que sobraria uma sílaba – 21 nono.

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II. 924. torto = injustiça. 935. se quer = até mesmo. Com igual sentido si quer v. 1014. Cf. v. 340. 939. que non poderia mayor, locução corrente, = a maior possível.

48 A don Foan quer’ eu gran mal, e quer’ a sa molher gran ben; gran sazon á que m’ est’ aven, e nunca i ja farey al; ca, des quand’ eu sa molher vi, se pudi, sempre a serví e sempr’ a ele busquey mal.

5

945

950

Quero-me ja mãefestar, e pesará muyt’ [a] alguen; mays, se quer que moyra por en, dizer quer’ eu do mao mal e ben da que muy bõa for, qual non á [no] mundo melhor: quero-[me] ja mãefestar.

10

15

955

De parecer e de falar e de bõas manhas aver ela, nõ-na póde vencer dona no mund’, a meu cuydar; ca ela fez Nostro Senhor, e el fez o demo mayor, e o demo o faz falar.

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E, poys ambos ataes son como Ï eu tenho no coraçon, os julgu’ aquel que pód’ e val.

I. V 1110. (v. 1 a 5) e B 373. – 1 V faam, B foam – 8 e 14 maenfestar – 9 muytalgue – 12 boa – 13 no a – 15 falar] saber; cf. as rimas nas outras estrofes – 16 boas – 17 nona – 19 ela – 23 no.

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II. 947. aven = acontece: inf. aviir; cond. averria (v. 1039). 950. pudi (< potui), muito usado ao lado de pude. 951. buscar = causar, tratar de fazer. 952. mãefestar (= confessar), tetrassílabo, < manifestare. 954. se quer que = ainda que. 960. manha = arte, faculdade, prenda. 963 e 964. El (ou ele), ela, eles, elas são freqüentemente usados na função de objeto sem preposição; são, porém, sempre enfáticos neste caso. E nisso difere o português antigo da atual linguagem familiar e popular do Brasil, onde se diz “conheço ele” com o mesmo sentido que tem em Portugal “conheço-o”. 968. aquel que pód’ e val, perífrase bastante usada do nome de Deus: cf. CD, no glossário, s. v. poder. Aquel, muito mais usado nos Canc., que aquele, parece ser originariamente forma antetônica; cf. el (v. 8).

49 Un cavalo non comeu á sex meses nen s’ergeu; mays proug’ a Deus que choveu, creceu a erva, e per cabo s’ i paceu e ja se leva.

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Seu dono non lhi buscou cevada ne-no ferrou; may-lo bon tempo tornou, creceu a erva, e paceu e arriçou e ja se leva.

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Seu dono non lhi quis dar cevada ne-no ferrar; mays cabo d’ un lamaçal creceu a erva: foy pacer e arriçar e ja se leva.

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I. V 1098. – 2 Será sex grafia latina por seis? – 4 e crezeu (sobra uma sílaba) – 8 e 14 neno – 10 e creçeu – 15 Deveremos mudar lamaçal para lamaçar? Veja-se n. 39 – 17 epaçeu e arrizou passou, por engano dum copista, da 2ª estrofe para esta. Minha restauração é conjectural. II. 973. per cabo = por fim. 979. arriçar (ou arrizar?) = adquirir força, vigor. Cf. arriçar – dar vigor a, instigar V 994, 8; arrizado = vigoroso, robusto V 980, 3; B 383, 14; 439, 3 e 15; CM 31, 6; 88, 5; 205, 4; 312, 3; enriçado = instigado, açulado? ou = vigoroso? V 1002, 25; riçado – robusto, Canc. Gall., v. 422. No século XVII arriçar (vid. Bluteau) é sinônimo de eriçar; hoje, segundo Cortesão, arriçar-se, na linguagem popular, =: namorar, galantear. 983. lamaçar seria forma admissível, pois a troca do sufixo -al por -ar seria motivada pelo l inicial; porém não conheço outro exemplo dessa forma, e a rima ar: al se encontra também v. 789-92-95 e v. 952-55-58.

50 Ay dona fea! fostes-vos queyxar [por]que vos nunca louv’ en meu trobar mays ora quero fazer um cantar en que vos loarey toda via; e vedes como vos quero loar: dona fea, velha e sandia!

5

[Ay] dona fea! se Deus mi perdon! [e] poys avedes tan gran coraçon que vos eu loe en esta razon, vos quero ja loar toda via; e vedes qual será a loaçon: dona fea, velha e sandia!

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Dona fea, nunca vos eu loey en meu trobar, pero muyto trobey: mays ora ja un bon cantar farey en que vos loarey toda via; e direy-vos como vos loarey: dona fea, velha e sandia!

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I. V 1097. – Os versos 2, 7 e 8 andam falhos de uma sílaba, que facilmente pode ser suprida no princípio de todos eles. Quem não quiser seguir esta norma, poderá ler louve em vez de louv’, assí em vez de se, e atan em vez de tan – 2 trobar] cantar: veja-se v. 14 – 7 ðs – 8 corazo – 9 Ou antes lo[uv]e? – 10 fea] sea. II. 994. Quanto ao emprego de e depois de exclamações, cf. CD, nota ao v. 653. 995. Talvez loe (em vez de louve; cf. v. 36) fosse forma estranha à língua dos trovadores, sendo introduzida nos textos pelos copistas. Ao menos, não é crível que o mesmo poeta tenha dito, ora loe ora louve (v. 988). Veja-se v. 456.

51 Elvira Lopez, que mal vos sabedes vós guardar sempre d’ aqueste peon que pousa vosqu’ e á [gran] coraçon de jazer vosqu’, e vós non lh’ entendedes! Ey muy gran medo de xi vos colher algur senlheyra, e, se vos foder, o engano nunca lh’ o provaredes.

5

O peon sabe sempr’ u vós jazedes, e non vos sabedes d’ele guardar, si quer põedes [en] cada logar vossa maeta e quanto tragedes; e dized’ ora (se Deus vos perdon!): se de noyte vos foder o peon, contra qual parte o demandaredes?

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Direy-vos ora como ficaredes d’ este peon que tragedes assí vosco, pousand[o] aquí e alí: ey-vos (?) ja quanto que ar dormiredes, e o peon, se coraçon ouver de foder, foder-vos-á, se quiser, e nunca d’ el o voss’ [ar] averedes.

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Ca vós diredes: “Fodeu-m’ o peon”; e el dirá: ““Bõa dona, eu non!”” – e u las provas que lh’ ende daredes? 123

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I. V 1099. – 3 Ou vosco e á coraçon? – jazer] pousar – Ou lh’ o’ntendedes? – 10 poedes cada. Ou leremos põedes cabo do? – 11 maera – 12 ðs – 18 euo (por eiu9?) – 21 uosaueredes – 23 boa – 24 e hulas puas q lhi daredes. II. 1010 senlheyro (= só) < singularium. Parece que o grupo latino -ngl- deu no português antigo -lh-, ficando nasal a vogal precedente, e que só depois, assimilando-se a esta, o lh se transformou em nh. Assim temos hoje senhos (< singulos), unha (< ungula); porém CM 294, 4 e 5 lemos senlhos (grafado senllos), e B 338, 5 unha rima com espulha46). 1014. põer e mãer (< mane  re) são, dentre os verbos das conjugações 2ª e 3ª, os únicos de origem popular, além de teer e viir, cujo radical terminava primitivamente por vogal + n. Mãer (V 1176, 5; B 115, 12; manho V 771, 1; 887, 5; man < manet V 771, 13; B 442, 3; maséstes V 1049, 4; masésse V 771, 5; marrá B 442, 6; marredes V 982, 18) caiu depois em desuso: põer seguiu muito naturalmente a analogia de ter e vir. Assim, por analogia de tenho temos, transformou-se ponho põemos em ponho pomos; e por analogia de temos tendes tende ter tendo e de vimos vindes vinde vir vindo, as formas põedes põede põer põendo foram substituídas por pondes ponde pôr pondo. 1015. maeta corresponde ao esp. maleta. 1022. ey-vos (= eis-vos) não se encontra, que eu saiba, nos Canc. líricos, porém sim nas CM 238, 5; e ey-m’ acá CM 147, 4 e na rubrica desta cantiga (onde há a variante aquey-m’ acá). 1028. u las (< ubi (il)las) parece indicar que, na época da queda do l entre vogais, se pronunciava ainda uv las. Cf. v. 129.

52 Elvira Lopez aquí noutro dia (se Deus mi valha!) prendeu un cajon: deytou na casa sigo un peon, e ua maeta Ï e quanto tragia pôs cabo de sí e adormeceu, e o peon levantou-s’ e fodeu, e nunca Ï ar soube contra u siia.

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Assim está escrito duas vezes (v. 6 e 12). Parece ser sinônimo do moderno espinha (= pústula). Virá do lat. spinula, influenciado por pungere?

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Ante lh’ eu dixi que mal sen fazia que se non queria d’ ele guardar: sigo na casa o ia jeytar, e dixi-lh’ eu quanto lh’ end’ averria; ca vos direy do peon como fez: abriu a portaÏ e fodeu ua vez, [e] nunca soube d’ el sabedoria.

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Mal se guardou e perdeu quant’ avia, ca se non soub’ a cativa guardar: leyxó-o sigo na casa Ï albergar, e o peon fez [como] que dormia, e levantou-s’ o peon traedor e, como x’ era de mal sabedor, fodeu-a tost’ e foy logo sa via.

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E o peon viron en Santaren, e non se guarda nen dá por en ren; mays lev’ o demo quant[o] en tragia!

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I. V 1100. – 4 eua – 5 p9 – 7 siia] sua – 8 sen] seu – 9 dela – 13 hua – 14 Ou [e] nunc’ a[r]? – 17 leixoo – 18 como que (?)] q – 23 eno se auada. II. 1030. cajon (= acidente) se encontra ao lado de ocajon: cf. CD, nota ao v. 347. O gênero masculino se explicará por ter sido desligado desta última palavra (< occasionem) o o inicial, erradamente interpretado como artigo. 1035. contra u = em que direção, onde; contra tem freqüentemente significação local (= junto a, para, para com; cf. CD, os passos citados no Glossário). siía (< seía < sedebat) = estava. 1036. fazer mal sen = agir com pouco juízo. 1038. ia jeytar (c. v. 844) – deitava. 1045. A pronúncia leyxó-o, em lugar de leyxou-o, é atestada pelas rimas (negó-o: doo B 276, 21; lançó-os: filhó-os: avoos CM 214, 8). Não é provável que doo (esp. duelo) e avoos (esp. abuelos) jamais se tenham pronunciado com o primeiro o fechado; e quanto a soo (< solum), que rima com doo (V 290, 8; 515, 8, etc.), da pronúncia moderna só parece resultar 125

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que a antiga já foi sóo. Aliás, o ditongo ou (< lat. au) deve ter tido a princípio o aberto. 1049. toste é sinônimo de cedo e, certamente, é de origem francesa ou provençal.

53 Dona Ï Ouroana, pois ja besta Ï avedes, outro conselh’ ar avedes mester: vós sodes muy fraquelia molher e ja mays cavalgar non poderedes; mays, cada que quiserdes cavalgar, mandade sempr[e] a besta chegar a un caralho de que cavalguedes.

5

E, cada que vós andardes senlheyra, se vo-la besta mal selada Ï andar, guardade-a de xi vos derramar, ca pe-la besta sodes soldadeyra; e, par Deus, grave vos [per] foy d’ aver; e punhade-[a] sempr’ en guarecer, ca en talho sodes de peydeyra.

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E non moredes [vós] muyto na rua: este conselho filhade de min; ca perderedes logu’ i o rocin, e non faredes i vós prol nen ua; e, mentr’ ouverdes a besta, de pran, cada u fordes todos vos farán onra d’ outra puta fududancua.

1070

E, se ficardes en besta muar, eu vos conselho sempre a ficar ant’ en muacho novo ca en mua.

1075

I. V 1109. – 3 fra quelinha – 4 se ia – podedes (por pod’ edes) – 9 enselada, com o que sobra uma sílaba – 11 pla (por pla) – sol daderra – 12 eparðs – 15 Ou [vos] moredes? –18 uosa pl ne hua – 21 pura – 22 muar – 24 ante co muacho – mua. 126

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II. 1055. fraquelia: cf. mocelia, v. 306. 1063. soldadeyra = prostituta. 1065. punhar en = tratar de, esforçar-se por: cf. v. 528. guarecer = guardar, conservar. 1066. talho = costume? ou = fama? peydeyra (< peditum + -ariam) é trissílabo nos Canc.; aqui, porém, parece ter quatro sílabas [peideyra ou peedeyra?): cf. o trissílabo traedor (< traditorem). 1070. fazer prol = tirar proveito; prol, subst. fem., é palavra bastante usada. 1076. ante = antes. mua e muacho (= macho) são vocábulos genuinamente portugueses; o moderno vocábulo mula veio da Espanha. Das grafias do códice muar, muacho e mua, poder-se-ia concluir que o u destas palavras, por assimilação ao m, era nasal (como o i de min); ainda assim, porém, subsistiria a imperfeição da rima nos v. 1067 e 1073.

A PÊNDICE C ANTIGA D’ AMOR ATRIBUÍD A A JOAN DE GUILHADE E A ESTEV AN FAY AN TRIBUÍDA STEVAN AYAN 54 A mha senhor ja lh’ eu muyto neguey o muy gran mal que me por ela ven e o pesar, e non baratey ben; e des oy mays ja lh’ o non negarey: ante lhi quer’ a mha senhor dizer o por que posso guarir ou morrer.

5

Neguey-lh’ o muyto ,Ï e nunca lhi falar ousey na coyta que sofr’ e no mal per ela; e, se me cedo non val,s eu ja oy mays lh’ o [non] posso negar: ante lhi quer’ a mha senhor dizer o por que posso guarir ou morrer.

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Eu lhe neguey sempre, per bõa fe, a gran coyta que por ela sofrí, e eu morrerey por en des aquí, se lh’ o negar; mays, poys que assí é, ante lhi quer’ a mha senhor dizer o por que posso guarir ou morrer.

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I. V 39. – 1 Araha – muyro: erros ja emendados por Monaci – 6, 12 e 18 por] Ou antes per? – 8 ouem na; Mich. ous’ ena. O tempo presente não tem cabimento aqui: cf. o estribilho – coyta Mon.] corta – 9 ella – 10 Mich. [non] lh’ o; porém explica-se mais facilmente a omissão de no depois de lho – 11-12 dutelhe qro (o resto do estribilho falta) – 13 boa – 14 sofri Mon., colhi Mich.] coi. Um c escrito por s encontra-se também V 41, 14 [candm por sandeu), numa cantiga de Estevan Fayan, e V 511, 24 (coyry por sofrí), em uma de D. Estevan Perez Froyan, que C. Michaëlis supõe ser o mesmo personagem. Poderia bem provir esse erro das peculiaridades gráficas do cancioneiro parcial, cujo conteúdo entrou na grande compilação do códice da Vaticana, e, nesse caso, nos autorizaria a concluir que as cantigas 39, 41 e 511 do V pertencem ao mesmo autor – 17-18 ante lhe qro. (o resto falta). II. 1082. o por que = por que razão, o per que = por que meio. Cf. v. 70.

C ANTIGA D’ AMIGO DE JOAN BAVECA 55 Amigo, sey que á muy gran sazon que trobastes sempre d’ amor por mí, e ora vejo que vos travan i; mays nunca Deus aja parte con migo, se vos eu des aquí non dou razon per que façades cantigas d’ amigo!

5

E, poys vos eles teen por melhor de vos enfengir de quen vos non fez ben, poys naceu, nunca nen ua vez, e por en des aquí vos [jur’ e] digo

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que eu vos quero dar razon d’ amor per que façades cantigas d’ amigo. E sabe Deus que d’ esto nulha ren vos non cuydava eu ora fazer; mays, poys vos cuydan o trobar tolher, ora vedes o poder que an sigo: ca de tal guisa vos farey eu ben per que façades cantigas d’ amigo.

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I. V 830. – 4 ala – comigo – 6 fazades – 7 teen – 8 enfengir Mon.] enfongir – 9 ne hua – 12 per q fazades. (o resto do estribilho falta) – 13 ðs – 16 vedes (?)] uerey não me parece fazer sentido – 18 per q fazades cati. (o resto falta.) II. 1101-3. = E poys que eles vos prezam mais por vos gabardes dos favores daquela que nunca vos fez bem desde que nasceu. 1104. e introduz a oração principal depois de várias subordinadas, como V 895, 14.

C ANTIGA D’ AMIGO DE PEDR’ AMIGO DE SEVILHA

56 Un cantar novo d’ amigo querrey agoraÏ aprender, que fez ora meu amigo; e cuydo logu’ entender, no cantar que diz que fez por mí, se o por min fez.

5

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Un cantar d’ amig’ á feyto; e, se mh-o disser alguen dereyto comoÏ el é feyto, cuydo Ï eu entender muy ben, no cantar que diz que fez por mí, se o por min fez.

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O cantar éste muy dito, pero que o eu non sey; mays, poys mh-o ouveren dito, cuyd’ eu que entenderey, no cantar que diz que fez por mí, se o por min fez.

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I. V 819. – 9 deyto – 10 cuydo o eu – 11-12 no cantar q diz (o resto do estribilho falta) – 15 ouuero – 16 entendey – 17-18 no cantar q diz q fez p mi (o resto falta). II. 1118. se o por min fez é cláusula objetiva, dependente de entender. 1125. éste muy dito = é muito recitado.

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ÍNDICE ALFABÉTICO DAS NOTAS E DE OUTROS VOCÁBULOS E FORMAS QUE MERECEM MENÇÃO

Os algarismos referem-se aos versos ou às Notas relativas a estes versos.

á i 686. acalar 862. acordar 535. adjetivo possessivo substantivado. 69. 133. adjetivos de quantidade concordam com seu complemento restritivo regido por de 417. adubar = arranjar, dispor 133. afeytar 528. al 42. alá = lá 206. 301. alevar 512. alguen 147. algur = algures 1010. amostrar 289. an 148. 1110. andar por 116. ante adv. 1076. aquel 968. aquel que pód’ e val 968. aquelo 42. aqueste 52. aquesto 42. 181. 371. ar 81. arlota 283. arriçar (arrizar?) 979. ascuytando = escutando 894. 131

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assí 41. 301. atá 536. atal, atan, atanto 301. atender 154. avantar 729. aven 947. aver 13. aver a com inf. 538. 914. averrey 475. 947. aviir 475. 947. bafordar 509. baraça 381. baratar 492. ben subst. 64. bever 756. bon, bõo 46. 359. Brancafrol 579. britar 905. buscar 123. 951. 975. ca 88. ca = que 377. 475. cabo (per c.) 973. cabo, cabo de 313. cada que 550. caente, caentura 850. çafar 575. cajon 1030. carne = prato de carne 910. cas (en c. de) 393. 922. catar = olhar 129. cativo 227. cedo = logo, breve 906. cevada 756. chagar 313. 132

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che, chi, ch’ 24. 188. chufar 672. chus 532. cima 578. 641. cinga 396. citola, citolar 722. citolon 751. cobrado de 448. cobrar 796. cofonder 604. colo = pescoço, cerviz 916. come 366. como quer = de qualquer modo, como quer que seja 352. comprido 615. comprir 541. conhocedor 734. 827. conhocer 676. conhoçudo 656. conhuçudo 710. conselhar = aconselhar 1075. conselho 690. contra 1035. cor 535. coraçon 678. correger 743. coyta, coytar, coytado 14. coytado por 467. crecer 534. creer 568. 1ª sg. ind. pr. creo 473. subj. pr. crea 344. 484. custoso 885. cuydar 796. a meu cuydar = ao meu ver 815. dar (non d. nulha ren por = não fazer caso de) 930. dativo ético 35. 473. dativus commodi 24. 133

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de antes do inf. exprime a causa 1102. dé, dê 325. deantar 729. degredo 905. demanda = pedido 603. demandar = pedir 238. 413. demo leve 495. dereyto 118. 901. derramar = desmontar 1062. des 4. des i 422. desacordado 535. desaguisado 415. desejo expresso pelo plusqpf. ou subj. impf. 456. desemparado de 697. desemparar 280. desguisado 415. devedor (non se ten por d. de) 819. di 856. dia (mal dia nací) 263, disso 880. dixe, dixi, dix’ 253. dizer de non 360. dõa 398. doer-se de 66. dona 857. doo 1045. e depois de exclamações 994. e introduz a oração principal depois de várias subordinadas 1104. ed 588. el 8. empar 2. en, ende, end’ 24. en que 871. 134

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encolheyto 898. enfenger, enfengir, enfinger, enfingir 392. enfinga 395. enfinta 392. 636. enmentar 497. e-no 149. enriçado 979. entençar 750. er 597. era = estava 88. ergo 569. errado (seer e. = errar) 829. escançar 859. esforçar 80. esforçar-se 345. esso 42. 210. est, éste 251. 1125. estevestes 371. esto 42. ey-vos 1022. eyxido 879. fazer que com indic. 779. fea = feia 987. feramente 305. ferir 313. 815. ferirá 815. fero = forte, grande 534. ferrey, ferria 815. fezer 371. fezisti 771. filhar 302. filhar-se a 556. fis 557. Flores 579. foan, foão 877. 135

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folia 238. fôr = estiver 214. 475. fôran 859. forçar 80. fôron 859. fosse = estivesse 859. foy 1ª sg. 425. fraquel)a 1055. fremoso 215. fududancua < fududa ’n cuu, com flexão do fem. 1073. gardacós 921. gentes 802. gradecer 256. grado 325. gran, grande, grand’ 46. grave 768. guardar alg. de fazer alg. c. 1062. guarecer 184. 248. 793. 1065. guarir 155. 248. 813. 815. guarirá 815. guarrey, guarria 815. guisa 415. de guisa = de maneira 628. guisar 219. i 40. 422. infinitivo coordenado a um futuro ou condicional 195. ir arar con os lobos 741. ir com inf. 415. 508. 1038. ja 10. ja mays nunca 405. ja quando, ja quanto, ja que, ja u 174. ja quer... quer 54. jeytar 844. 1038. 136

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jograr 721. jograria 244. la, las 129. 1028. lamaçal 983. lançar = golpear com a lança 515. lazerar, lazeyra 845. levar 512. leyxar 71. leyxó-o 1045. lezer 362. lhe, lhi, lh’ 113. 188. lhi, lh’ plur. 578. 595. lhis = lhes 3. lidar, lide 497. lo, los, 129. loaçon 997. loado 324. loar 36. loe 995. ma, mas 451. mãefestar 952. mãer (sua conjugação) 1014. maeta 1015. mal, mao 46. m. pecado 46. 540. malada 865. manha 960. mays conjunção 296. mays de 190. me, m’ 2. 24. 141. 188. mego 375. mentes (meter m. en) 281. mentre = enquanto 152. 137

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merger, merjudo 624. mester (é m.) 346. (aver m.) 913. 1054. mester = ofício, profissão 727. mesura 73. meter por 737. meu pouqu’ e pouco 248. mh- 24. 141. 188. mha 70. 221. mi, m’ 2. 24, 141. 188. mí, min 106. mí sujeito 577. mia, mia 221. migo 375. mocelia 1055. moyra, moyro 23. mua, muacho, muar 1076. muy, muyt’ 73. 295. 1125. ’n = en 126. nado 425. nembrar 78. no 149. 409. nos pron. pess. 24. nós 152. nosco 375. nostro 16. noutro 409. nulho 106. objetos direto e indireto regidos por fazer, mandar,leyxar ou veer com infin. 356. ocajon 1030. oer 367. oir 36. ome 58. 138

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onde 444. onrada (ama o.) 869. ora = agora 50. ordin 278. outorgar 944. outro 423. 788. ouvir 456. oy mays 4. pacer 979. pacer-se 973. pagar-se de 107. pan de voda 590. par prepos. 70. pa-la, pa-lo 736. parecer 33. 512. parecer = aparecer 308. parte (saber p. de) 176. particípio passado concorda com o objeto direto 606. partir 84. 544. 877. passo adv. 896. peor (é-mi p. de) 681. per adv. 172. per prepos. 70. 1082. pe-la 736. pera = para 643. perder 57. perder a terra 903. perder-se con 602, perdudo con 599. perdon 1ª sg. ind. pr. 812. perdon subj. pr. 2. perfia 254. perfiar 320. pero 51. 621. pero que 920. pês 2. 920. pesa-mi con ou de 113. peydeyra 1066. podér 371. podo 233. põer (sua conjugação) 1014. 139

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por 70. 1082. exprime o destino 638. po-la 736. por en, por ende, por end’ 35. por que 833. pôs 539. posera 371. 533. posfaçar, posfaço 890. poys 24. 188. 302. pran 99. praz-mi de 510. praz-mi por 476. praza 529. praz(o) e quando 546. preçar 319. preguntar 21. prender 278. prender pesar 455. preyto 377. prez 73. prol 1070. pronome pessoal objeto dum verbo e dum infin. regido por este 735. pronomes pessoais: formas tônicas na função de objeto sem prepos. 106. 152. 963. prougue, prouguer 487. pudi 950. punhar de 528. punhar en 1065. que de 245. que non poderia mayor 939. que, quen pron. rel. 105. querer ben, mal 9. querrey, querria 150. querrey = quero 594. 1114. quiso 637. quitar-se 565. rascar no cepo 789. razon 274. 635. 1099. fazer razon = ter razão, fazer bem 806. 140

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ren = coisa 357. = nada 59. 65. ricome 889. riir 802. rija 809. sa 232. sabedoria = novas 1042. sabor 151. 261. sabudo 698. saido 879. é saido = está passado, passou 547. sandece, sandice 48. sazon 169. se, s’ 24. 188. se quer 340. 935. se quer que 954. sedes, seedes 662. seer 329. segrer 721. sejo 427. semear o sal 741. semelhar 754. semos 662. sen subst. 58. 162. 1036. se-na 290. senhor fem. 70. senlheyro 1010. serey, seria 329. seria = estaria 447. servha 686. si, s’ 24. 188. si quer 340. si adv. 301. sigo 375. siia 1035. sodes 662. soia = costumava 446. sol adv. 40. 141

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sol 3ª sg. ind. pr. 14. soldadeyra 1063. son = estão 677. 926. son subst. 936. son, sõo 379. soo 40. 1045. spantoso = espantoso, hediondo 889. subjuntivo depois de jurar que 536. subjuntivo na oração interrogativa dependente 404. 773. supressão do artigo antes de substantivo determinado por cláusula relativa 679. tá 536. talhado 539. talho 335. 1066. tanto que 349. = desde que, quando 640. te, t’ 24. 188. 725. teen, tees 217. teer = julgar 162. 238. teer por ben = aprovar 371. teerey 422. tençon 753. terrey, terria 422. tever 371. ti, t’ 24. 188. 725. tí 106. tigo 375. todo 42. tolher = tirar 804. tornar 103. 120. torto 924. toste 1049. traedor 625. 1047. trager 412. 615. = trajar, usar 908. travar = atacar, repreender 1097. travar en 748. 142

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trey, treyde, treydes 311. tudo 711. u 84. 1028. 1035. ias outras 462. vagar 559. val 3ª sg. ind. pr. 92. valerá, valeredes 639. valrey, valria 639. van 148. vedes, veedes 63. veen 217. veer 63. 86. 735. veer 461. veeren 684. veerey, veeria 63. veo 461. verey, veria 63. verrey, verria 475. vervo 882. ves 63. via (ir sa v.) 1049. toda via = sempre, de todos os modos 237. 784. viide 620. viir 475. 620. vin 461. Vincal 795. voda 509. 590. vo-lhe 473. vos 24. 35. vós 152. vosco 375. xe, xi, x’ 24. 188.

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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA MAIS ANTIGA P OESIA P ORTUGUESA * Enquanto que na Alemanha, França, Inglaterra, Itália, enfim em quase todos os países cultos o estudo das origens da língua e literatura pátria considera-se assunto de grande interesse e suma gravidade, os países de língua portuguesa se descuidam quase completamente deste ramo das ciências históricas, destinado a investigar os germes da psyche, do pensamento nacional. A própria Espanha, que, tão decaída do que era nos séculos 16 e 17, não pode competir hoje, em atividade científica, sequer com a pequena Dinamarca, esforça-se por não deixar cair no olvido o seu glorioso passado, premiando as obras de mais merecimento relativas aos primitivos documentos da literatura1 e fazendo imprimir a expensas do governo as produções literárias mais venerandas, tais como, por exemplo, as cantigas de S. Maria do monarca castelhano D. Afonso o Sábio2. Portugal, porém, deixou à iniciativa particular a publicação do mais antigo monumento de sua literatura, e devemo-la à dedicação incansável e competência sem igual de D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos3; e não fosse esta ilustre filóloga, não fossem Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos4, Epifânio Dias5, Gonçalves Viana6 e poucos mais, as pesquisas metódicas no campo da história da língua e literatura portuguesa estariam inteiramente abandonadas aos sá*

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Revista da Sociedade Scientifica de São Paulo, São Paulo, II, 11-12 (Nov.-Dez. 1907), pp. 153158; cont. III, 1-2 (1908), pp. 1-9. Por ex. Lanchetas, Gramática y vocabulario de las obras de Gonzalo Berceo. Madrid, 1900. Cantigas de Santa Maria de Don Alfonso el Sabio. Las publica la Real Academia Española. 2 v. Madrid, 1889. Merece menção, a propósito desta edição, (vid. p. 31 da Introdução, nota 1) o fato que em 1872 o imperador do Brasil, D. Pedro II, ofereceu-se a contribuir, por sua parte, à publicação, alegando com razão que esse cancioneiro, escrito no idioma ocidental da Península, em galego-português, pertencia por igual à glória histórica de Castela, de Portugal e do Brasil. A Real Academia Espanhola, contudo, não quis aceitar a oferta de seu sócio honorário. Cancioneiro da Ajuda. Edição crítica e comentada. 2 v. Halle a. S., 1904. Editor da Revista Lusitana, impressa em Lisboa, na antiga casa Bertrand. Autor da muito boa edição crítica das Obras de Cristóvão Falcão. Porto, 1893. Autor, entre outras obras, das Apostilas aos dicionários portugueses. 2 t. Lisboa, 1906.

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bios do estrangeiro, da Alemanha, França, Itália e Estados Unidos. Do Brasil... é melhor não falar; pois são pouquíssimos os que se dedicam aqui séria e conscienciosamente a semelhantes estudos, e, não existindo nenhuma faculdade de letras, o nosso país nem sequer possui um catedrático de língua e literatura portuguesa, a não ser em estabelecimentos de ensino secundário, em cuja esfera não cabem as investigações filológicas. E todavia, não faltam entre nós os que se interessam pela evolução histórica da língua que falamos ou pelas fases antigas da sua literatura. Faltam, sim, os subsídios para estudar tanto estas como aquela, de tal modo que os estudiosos se vêm obrigados a haurir as informações em fontes tão turvas como é a “edição crítica restituída” do Cancioneiro da Vaticana por Teófilo Braga: edição que foi prematura quando apareceu (em 1878) e é completamente antiquada hoje. Nem todos podem recorrer à volumosa edição acima citada do Cancioneiro da Ajuda, a que faltam ainda as notas gramaticais e lexicológicas reservadas para um terceiro volume, nem tampouco as edições diplomáticas dos dois grandes códices escritos na Itália7. Julgo, pois, prestar um serviço aos que desejarem iniciar-se no estudo da primitiva literatura de Portugal, editando aqui, como amostra da poesia lírica de meados do século 13, uma cantiga acompanhada de notas explicativas e relativas à história da língua e das formas poéticas. Esta poesia foi extraída de meu livro As cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade. Edição crítica, com notas e introdução8, sendo, porém, de acordo com o fim que me proponho, a anotação mais abundante aqui. O que ofereço aos leitores é um espécime de um gênero de canções que a teoria poética daquele tempo chamava “cantigas de amigo”, certamente porque na primeira estrofe quase infalivelmente aparece a palavra amigo, que era sinônima de namorado. O que caracteriza este gênero é o introduzir o poeta na cantiga uma donzela que dirige a palavra ou ao amante ou à mãe, a uma ou mais amigas, ou finalmente exprime num monólogo os seus sentimentos, geralmente ternos e humildes, e rebeldes somente quando a mãe se obstina a manter a filha apaixonada no caminho da virtude. Nas cantigas de Guilhade, entretanto, que foi talvez o mais original dentre os trovadores galego-portugueses, essas mocinhas falam, às vezes, [n]um tom bem diferente, quer zombador e desdenhoso, quer confiado

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Il Canzoniere portoghese della Biblioteca Vaticana messo a stampa da Ernesto Monaci. Halle a. S., 1875. – Il Canzoniere portoghese Colocci-Braucuti pubblicato nelle parte che completano il codice Vaticano 4803 da Enrico Molteni. Halle a. S., 1880. Impresso em Erlangen, por Junge & Sohn, 1907; em consignação na Livraria Alves, no Rio e em S. Paulo. A cantiga tem aí o n. 30.

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e altivo. Na amostra seguinte, como se verá, a dama despede o seu amante em termos tão francos quanto decisivos. As formas métricas, na maioria das obras poéticas daquela época, eram regularíssimas, sendo rigorosa a contagem das sílabas e vedadas as rimas imperfeitas, v. g. entre as vogais abertas e as fechadas. A língua, se bem que diferente da nossa, o é menos que o francês do século 13, comparado com o que hoje se fala. Do “sincretismo” de que alguns, enganados por edições imperfeitíssimas e sem atenderem às leis de evolução lingüística, tacham o antigo idioma, não se descobre vestígio na língua muito disciplinada dos trovadores galego-portugueses, que, se por alguma coisa, peca por demasiadamente convencional.

CANTIGA DE D. JOAN GARCIA DE GUILHADE Per bõa fé, meu amigo, muy ben sey eu que m’ ouvestes grand’ amor e estevestes muy gran sazon ben con migo; mays vêde-lo que vos digo: já çafou!

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Os grandes nossos amores, que mí e vós sempr’ ouvemos, nunca lhi cima fezemos como Brancafrol e Flores; mays tempo de jogadores já çafou! Já eu faley en folia con vosqu’ e en gran cordura, e en sen e en loucura, quanto durava o dia; mays esto, Joan Garcia, já çafou! E d’ essa folia toda já çafou! Já çafou de pan de voda, já çafou!

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NOTAS 1. per (do lat. per) e por (do lat. pro) confundiram-se nas épocas subseqüentes, prevalecendo por, ao passo que das formas contraídas pelo, pela (de per lo, per la) e polo, pola (de por lo, por la) foram as primeiras que, generalizando-se, fizeram cair em desuso as últimas. Nos antigos Cancioneiros subsiste a distinção que ainda hoje se nota entre as preposições francesas par e pour. bõa: a nasalidade do õ é devida ao n (do lat. bona), o qual, desde os tempos mais antigos da língua portuguesa, tinha caído entre vogais. Só mais tarde perdeu-se a nasalidade, pronunciando-se doravante bôa, assim como area (lat. arena), chea (lat. plena) – ambos com e nasal – se tornaram arêa, chêa e depois arêia, chêia. Nos Cancioneiros, estas palavras não rimavam ainda, como rimam hoje, com fea (lat. foeda) ou correa (lat. corrigia), o que dá testemunho do rigor das rimas, como as rimas, por sua parte, espalham luz sobre a pronúncia. 2 e 4. muy era a forma do advérbio muyto empregada exclusivamente e sempre antes de adjetivos ou advérbios que comecem por consoante (antes de vogal, usava-se muyt’). A apócope deve ser devida a ter o vocábulo nesta posição um acento tônico mais fraco que a palavra seguinte (posição antetônica). ouvestes: o verbo aver (= haver) tinha todas as acepções que tem hoje ter. Cf. v. 8. 3, 4 e 14. grand’ e gran eram as formas antetônicas de grande, regularmente usadas quando este adjetivo precedia o substantivo: a primeira antes de vogal, a segunda antes de consoante. De gran, a evolução fonética fez mais tarde grão, que se conservou em grão-mestre, porém no tempo de Camões era de uso mais extenso. estevestes: estivestes, bem como estivesse, estivera etc. são formas mais modernas. sazon (cf. o francês saison) = época, tempo; subsiste no moderno sezão, sezões. con migo e con vosco (v. 14) eram originariamente pleonasmos, pois os simples migo e vosco, que igualmente se encontram nos Cancioneiros, correspondem ao lat. mecum e vobiscum, influenciadas estas formas por mihi e vos. 5, 11 e 17. mays: vê-se que a pronúncia mais, que no Brasil se dá à conjunção adversativa mas, é antiga. vêde-lo está por vêdes lo, igualmente usado nos Cancioneiros; vêdes tem sentido de imperativo. Hoje diríamos vedes (ou vede) o que, pois 148

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semelhantes formas de ênclise não se usam senão com o pronome pessoal. Talvez não seja escusado repetir aqui que as grafias vêdel-o, esperamol-os etc. dão uma idéia tão falsa da pronúncia como da evolução histórica. 6. çafar tem aqui o sentido de acabar. A grafia antiga é com ç, de acordo com o castelhano zafar; modernamente foi substituído por s o ç no princípio das palavras. O verbo çafar parece derivado do adjetivo çafo, e este de uma forma dialetal do francês sauf, a mesma de que provém o inglês safe. Não é rara a substituição de s por ç nos vocábulos que na Idade Média da França imigraram para a Península Ibérica: o port. quiçá ou quiçay (ambas estas formas são dos Cancioneiros), o esp. quizá explicam-se pela frase francesa qui sait? e a provençal qui sab? ou uma das suas variantes dialetais. 7. A colocação das palavras, que antigamente era mais livre do que hoje, dá aqui uma ênfase especial a grandes e amores. 8. mí e vós é sujeito da oração; mí (do lat. mihi) é forma mais antiga que mim, e a mais usada nos Cancioneiros. 9. lhi está por lhis ou lhes, que também se encontram nos Cancioneiros. cima = fim. fezemos: a forma fizemos é mais moderna: cf. estevestes v. 3. 10. Brancafrol (ou Brancafror, Brancaflor) e Flores são os heróis de um tema novelístico muito espalhado na Idade Média e modelos dum amor constante em todas as circunstâncias da vida. 11. tempo: falta o artigo, porque sua função, que é a de determinar, é preenchida aqui pelo complemento de jogadores; tempo de jogadores, é o tempo de brincar. 15. sen = bom senso, juízo. A palavra existe também no antigo francês e provençal e tira a origem de um vocábulo germânico que no alemão de hoje é Sinn. 17. esto é a forma antiga (o i breve do lat. istud devia regularmente produzir ê); isto é mais moderno e muitíssimo raro ainda nos Cancioneiros. Joan tornou-se João pela mesma evolução fonética que de gran fez grão (cf. a nota aos v. 3 e 4) e de pan (lat. panem, v. 21) pão. 21. voda (do lat. vota, plural de votum), originariamente “votos matrimoniais”, daí “festas do casamento”. Se escrevemos hoje boda, é que prevaleceu nesta palavra a pronúncia do norte de Portugal, que confunde o b e o v. A expressão pão de boda devia ser proverbial, pois Bluteau9 menciona um adágio “Ainda agora comem o pão da boda”. 9

Vocabulário português e latino (Coimbra e Lisboa, 1712-28), t. II, p. 139.

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Imprimo hoje10 para os estudiosos da antiga língua e literatura vernácula, duas cantigas de escárnio cujo autor, o trovador do século XIII já nosso conhecido, ironiza aí a pobreza e mesquinharia de seus companheiros de classe, os fidalgos peninsulares. São extraídas do livro já citado11, e faço-as seguir de um comentário destinado a aplainar todas as dificuldades que possam oferecer ao entendimento a linguagem antiquada, a forma métrica e as alusões do texto.

1 Don Foan disse que partir queria quanto lhi déron e o que avia; e díxi-lh’ eu, que o ben conhocia: “Castanhas eyxidas e velhas per souto!” 5

E disso-m’ el, quando falava migo: “Ajudar quero senhor e amigo.” E díxi-lh’ eu: “Ess’ é o verv’ antigo: castanhas saídas e velhas per souto!”

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E disso-m’ el: “Estender quer’ eu mão, e quer’ andar já custos’ e loução.” E díxi-lh’ eu: “Esso, ay don Foão – castanhas saídas e velhas per souto!”

Veja-se essa Revista, 1907, n. 11-12, pp. 153-8. (O artigo publica-se aqui sem o corte da edição inicial. NE) As cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade, por Oskar Nobiling. Erlangen, 1907, pp. 62-3. (Vid., neste volume, pp. 116-117)

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NOTAS 1. ƒoan corresponde ao espanhol antigo fulan, e foão (v. 11) ao esp. moderno fulano, que mais tarde veio a substituir no português as formas vernáculas. Todas essas formas, e mais a do dialeto sardo, fulanu, derivam do árabe fôlan12. partir = repartir. Com o mesmo sentido se emprega a palavra num lindo contar d’amigo [sic] do Cancioneiro da Vaticana13, que começa assim: Partir quer migo mha madr’ oj’ aquí quant’ á no mundo. Uma donzela consulta aí graciosamente seu amigo sobre qual das duas partes ela deve escolher: se todos os haveres que a mãe pode dar ou só ele, o amante; e finalmente responde em seu próprio nome que escolhe o amante. 2. déron (do lat. déderunt – e não do clássico dedérunt – ) e déran (do lat. dederant), o perfeito e o mais-que-perfeito, ainda se distinguiam na língua dos trovadores. – lhi se encontra ao lado de lhe.

avia = tinha: veja-se meu artigo anterior*, nota ao v. 2. 3. díxi = lat. dixi; a 3ª sing. é disse ( = lat. dixit) ou disso (v. 5 e 9; = lat. popular dixuit: cf. cinco, de cinque, de quinque). conhocer = lat. cognoscere; o moderno conhecer é devido à analogia dos numerosíssimos verbos em ecer. 4. O estribilho da cantiga é um verso de doze sílabas e quatro acentos, cujo sentido exige uma explicação. Como já ficou dito (art. ant., nota ao v. 1), per equivale à preposição francesa par: parece, pois, claro que se fala de castanhas velhas espalhadas pelo souto, isto é, o castanhal, o que evidentemente era uma expressão proverbial para indicar haveres de nenhum valor. Compreendemos assim a sátira cruel com que Guilhade moteja da prodigalidade fingida de Dom Fulano. Quanto à significação de eyxidas, deve ser a mesma que a de saídas, que (talvez por engano) veio a substituir aquele termo na repetição do estribilho: donde se segue que a palavra deriva do lat. exitas, e, ao meu ver, significa as castanhas que escaparam da colheita por se terem extraviado. 5. el, muito mais usado nos Cancioneiros do que ele, formou-se, muito provavelmente, por apócope em posição antetônica, isto é, imediatamente antes do verbo. Porém generalizou-se na língua dos trovadores a primeira forma, como a segunda no português moderno: indício de que o 12 13 *

Diez, Etymologisches Wörterbuch der romanischen Sprachen. Bonn, 1878, p. 452. Il Canzoniere portoghese della Bibl. Vat. messo a stampa da E. Monaci. Halle a. S., 1880, n. 784. Refere-se à nota ao v. 2 da cantiga de amigo anterior. (NE)

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idioma literário de hoje não descende diretamente do da Idade Média, mas formou-se novamente, e com elementos em parte novos, no tempo da Renascença. migo: ver o art. ant., nota ao v. 4. 6. senhor pode ser masculino ou feminino: a senhor significa sempre, na linguagem da época, a dama adorada e cantada. 7. vervo (palavra popular, do lat. verbum) = provérbio, adágio. 9-11. A terminação ão era dissílaba (pronuncie-se ã-o, com o acento tônico na primeira vogal), como prova um sem-número de versos dos Cancioneiros. Todas as rimas desta cantiga, bem como da seguinte, são graves, o que constitui uma das suas feições populares. Nas “cantigas de mestria” (o primor da arte de então) predominam consideravelmente as rimas agudas. 10. custoso = gastador, generoso. 11. êsso, forma antiga de isso; compare-se o art. ant., nota ao v. 17.

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Vi eu estar noutro dia infanções con un ricome, posfaçando a quen mal come; e dix’ eu, que os ouvia: “Cada casa favas lávan.”

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Posfaçávan d’un escasso, e foy-os eu ascuytando; eles fôron posfaçando, e díxi-m’ eu pass’ e passo: “Cada casa favas lávan.”

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Posfaçávan d’encolheyto e de vil e de spantoso e en sa terra lixoso: e dix’ eu enton dereyto: “Cada casa favas lávan.”

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NOTAS 2. infanções: parece que a primeira sílaba dessa palavra não conta neste verso, porque se unia ao a final do verso precedente. É um caso de sinalefa que nos pode surpreender, pois prejudica o efeito da rima; mas se o não admitirmos, sobra uma sílaba, visto que a terminação ões é dissílaba como ão. Convém observar, todavia, que também no v. 3, para obter o número certo de sílabas, foi preciso mudar a preposição de do códice para a. infanções e ricome (= rico-homem): na hierarquia feudal da Península, aos ricos-homens seguiam-se os infanções, e a estes os cavaleiros. Cf. Bluteau14 e Viterbo15, que estão de acordo em considerar os infanções como equivalentes aos fidalgos, e os ricos-homens aos condes e marqueses dos tempos modernos. – O singular de infanções era infançon; pois ao plural em ões correspondia sempre um singular em on, assim como ao plural em ães (antigamente dissílabo) um singular em an (cães – can), e ao plural em ãos um singular em ão (mãos – mão). Não foi senão no século 15 que as três terminações on, an e ão se confundiram numa só, que então passou a escrever-se ora am, ora ão. 3. posfaçar = falar mal de alguém; não é raro o termo nos Cancioneiros. 5. Também nesta cantiga o estribilho é constituído por um provérbio, cuja forma mais desenvolvida se encontra em Bluteau16: “Em cada casa comem favas, e na nossa às caldeiradas” – e no Dom Quixote17: “En otras casas cuecen habas, y en la mía á calderadas”. O sentido do provérbio se descobre claramente neste último passo; pois Sancho Pança, conversando aí com o escudeiro do Cavaleiro do Bosque, o qual, segundo conta, tem um amo doido, responde que o seu o é tanto como o outro. Podemos, pois, interpretar assim o adágio em questão: Em minha (nossa) casa as coisas não se passam melhor do que na dos outros. Convém lembrar que em grande parte da Europa as favas são tidas em conta de um alimento soez, mais próprio para os porcos do que para os homens. Quanto ao nosso estribilho, vê todo homem de bom senso que o pensamento aí é o mesmo, visto que não se lavam as favas senão para a gente comer. A forma peculiar que aqui tomou o provérbio obedece, sem dúvida, ao intuito de obter a assonância

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16 17

Vocabulario port. e lat. Coimbra – Lisboa, 1712-28. S. v. Infançam. Elucidario das palavras, termos e frases, que em Portugal antiguamente se usárão. Lisboa 179899. S. v. Infançom. Obra cit., s. v. Fava. IIª parte, cap. 13.

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perfeita de todas as palavras, sendo a a única vogal empregada, exatamente como no conhecido adágio “Cá e lá más fadas há”.

7. foy = fui; a forma mais usada já então era fuy. ascuytar (do lat. a(u)scultare) é a forma antiga de escutar, como asconder (de abscondere) a de esconder, e fruita a de fruta. 8. fôron: veja-se a 1ª cantiga*, nota ao v. 2. 9. passo = devagar, é termo comum; mas não conheço outro exemplo de pass’ e passo, que, aliás, é conjectura de Carolina Michaëlis de Vasconcelos: o texto tem passen passo. 11. encolheyto = encolhido: colheyto deriva do lat. collectum, que em português daria coleito, porém foi influenciado por colher (de colligére, que no latim da Península Ibérica substituiu colligere). 12. spantoso ou espantoso aqui = repulsivo, que causa horror ou repugnância. 13. e en conta como duas sílabas: o hiato é muitíssimo comum nos Cancioneiros, e é a regra depois dos monossílabos e e que (cf. v. 4). Foi a influência da poesia italiana que, desde Sá de Miranda, fez gradualmente desaparecer o hiato dos versos portugueses. 14. enton (das palavras lat. in + tum), hoje então: cf. a nota ao v. 2.

A DIT AMENTO DITAMENTO Será este o lugar próprio para defender-me de uma agressão imprevista com que me honrou o Sr. João Ribeiro em seu livro Frases feitas18. Este insigne plagiário19 pretende ter achado (p. 253-56, p. 259 e p. 280-81) um grande número de erros no meu livro As cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade. Erros haverá, sem dúvida; mas muito me admiraria, se os descobrisse o Sr. Ribeiro, cujos estudos da antiga poesia trovadoresca não passam dum rápido folhear de algumas publicações científicas e leitura de certo número de cantigas, que não compreendeu bem. É fácil provar o que digo, tomando por exemplo as estranhas opiniões por ele emitidas (Frases

* 18 19

Neste caso a segunda. (NE) Rio de Janeiro, 1908. Minha crítica do livro, documentada em todas as suas partes, os curiosos encontrarão no Estado de S. Paulo de 22 de abril de 1908. (Aqui publicada às pp. 373-386. NE)

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feitas, p. 255, nota 1) sobre a enigmática palavra ergo: enigmática, porque difere completamente, pelo sentido, do seu homônimo latino, não se podendo dizer, por isso, se ela de fato deriva deste ou não. O Sr. Ribeiro, encontrando o vocábulo nas suas leituras em vários lugares e não sabendo o que significa, em vez de confrontar todos esses passos e daí tirar uma conclusão, acha mais cômodo conjecturar, para cada um dos lugares, uma acepção qualquer, que parece mais ou menos convir aí. Claro está que, por este método, de meia dúzia de passos diferentes resultarão meia dúzia de significados; e com efeito, o Sr. Ribeiro chega a este surpreendente resultado – que a palavra em questão significa “mesmo”, “pois”, “ainda quando” e “se por conseguinte”! – E agora, leia o Sr. Ribeiro todas as cantigas que nos estão conservadas dos tempos antigos (é verdade que são alguns milhares; porém... quem se mete em coisas da ciência não se pode furtar ao trabalho); e diga-me, dentre os muitos lugares em que aparecem ergo e suas variantes, quantos são os que não se explicam pelo significado “exceto”, que eu dou ao vocábulo. Mas do mesmo quilate são todas as objeções deste pretenso sábio. Ignorando a significação dos termos antigos, ignorando as diferenças que separam a antiga metrificação da de hoje, afirma (e note-se bem, sem prova alguma!) que isto e aquilo e aqueloutro é errado; e quando se digna dizer-nos qual é a interpretação verdadeira, diz necedades. Na nota da p. 255 traduz de pran por “de súbito”. Que é impossível essa tradução, eu poderia prová-lo por muitas citações; porém limitome a tirá-las dum livro que ele deveria ter lido, pois o critica. No Cancioneiro de D. Denis20 leio eu: (v. 75-76) de pram Deus nom vos perdoará a mha morte = seguramente Deus não vos perdoará minha morte; (v. 1027-28) tant’ afam que par de morte m’ é de pram = tanta mágoa que para mim deveras é igual à morte; (v. 2614) sõo certo de pram = estou certo deveras. A tradução “de súbito” seria absurda em todos estes lugares; a minha não somente serve aqui, mas igualmente nos passos citados pelo próprio Sr. Ribeiro (p. 257) em apoio de sua opinião. Tornar, segundo ele, quer dizer “responder”, unicamente porque o verbo hoje pode ter esta significação. Nenhum exemplo dela, porém, se pode citar dos Cancioneiros medievais, e a minha interpretação (tornava i = virava-se, voltava-se para aí) não só se adapta muito bem ao contexto, mas está de perfeito acordo com a origem da palavra, pois, sendo ela derivada do latim tornus (“o torno”), devia primitivamente significar “virar”

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Henry R. Lang, Das Liederbuch des Königs Denis von Portugal. Halle a S., 1894.

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ou “virar-se”. E em Viterbo21 poderia o Sr. Ribeiro ter aprendido (se o único fim com que se serve dos livros antigos e bons não fosse o plágio) que tornar era efetivamente empregado no sentido de “voltar-se”. O substantivo parte interpretei-o por “informação”: sentido que a palavra sem dúvida alguma tinha, e se conservou até hoje na locução dar parte. O Sr. Ribeiro acompanha esta interpretação com o seguinte comentário enigmático e redigido num português de preparatoriano mal preparado: “mas só pessoal se se opõe-se a mandado”; e acrescenta ainda uma frase que ele supõe ser alemã: “weisse nicht den kleinsten Teil.” – Esperemos que ele nos diga o que tudo isso quer dizer. O verbo guarir pode significar tanto “salvar a (sua) vida” – foi assim que eu o traduzi – como “ficar bom” – é a tradução do nosso homem. Mas que no passo de que se trata só cabe a minha interpretação, vê-se pelo contexto, que vou traduzir (v. 246-48): “Vim aqui a Segóvia para morrer; pois não vejo aqui a quem costumava ver de quando em quando e assim conservava a vida (guaria)”. É evidente que o poeta quer dizer que a única coisa que o faz viver (e não: ficar bom) é a vista do objeto de seu amor. Eu traduzi tan mal día nací por “sou bem infeliz”, o Sr. Ribeiro por “maldito o dia em que nasci”. A minha tradução é livre, a dele é errada. Pois o poeta não profere aí maldição nenhuma; mal dia equivale a “dia mau, dia infausto”, e “nasci num dia infausto”, é frase muitíssimo comum nos Cancioneiros, e que tomara inteiramente o sentido de “sou homem infeliz”. Se o Sr. Ribeiro de fato o ignora, deve ter lido bem poucas das antigas cantigas de amor. O que mais há nesta mesma nota da p. 255 é ridículo demais para merecer um exame sério. Escapando-lhe completamente o sentido da cantiga 20ª, acha que no estribilho22 “convinha traduzir e por mas ou se é capaz que”. Agora, cite-me ele, em todos os sete séculos da literatura portuguesa, um só exemplo em que e signifique “se é capaz que”! – Admira-se que cobrado possa significar “curado”. Não se admiraria, se soubesse que cobrar vem do lat. recuperare, com perda do prefixo re, e que do mesmo deriva o francês recouvrer, que outrora tinha também o sentido de “cu21 22

Obra cit., v. II, p. 384. A fim de fazer parecer maior o número de meus “erros”, o Sr. Ribeiro serve-se da pequena esperteza de citar três vezes este estribilho (“396, 402, 408”), de mencionar duas vezes a minha interpretação do v. 429 e a restituição do v. 449 – tudo na mesma nota – e de terminar por umas frases “e muitos outros lugares” e “que está longe de ser o único”, que não enganarão a muitos leitores. Segue-se ainda uma pérfida alusão a Teófilo Braga, cuja competência em matéria de língua e versificação dos trovadores é contestada por mim e H. Lang (e, repito, por todos os entendidos). Mas o próprio Sr. Ribeiro, apesar de altamente reprovar esta nossa ousadia, segue sempre, nas suas citações, a minha edição de Guilhade e a de D. Denis feita por Lang, reconhecendo assim implicitamente a superioridade destas edições sobre o Cancioneiro da Vaticana “restituído” por Teófilo Braga!

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rar-se, restabelecer-se”, conservado até hoje pelo verbo inglês recover. – E como é que se pode tomar a sério a tradução de praz-mi por veer = “duvido ver”? Nós outros, que descobrimos alguma diferença entre prazer e dúvida, preferiremos traduzir: “apraz-me ver, agrada-me ver, gosto de ver”. Quanto ao emprego da preposição por para introduzir um infinito que parece ter função de sujeito (com relação ao verbo praz), compare-se o seguinte exemplo do Cancioneiro da Vaticana23: Mal sen é por desasperar ome = tolice é desesperar o homem. Porém, o que há de mais divertido, é que, segundo o Sr. Ribeiro, eu erro o metro quando imprimo um verso – errado ao seu ver – tal qual se encontra no códice. Pois censure por isso os antigos poetas... que provavelmente lhe responderiam (pois os homens da Idade Média eram pouco urbanos) com uns versos citados e deturpados (!) por ele mesmo (p. 259):

Ben tanto sabes tu que é trobar ben quanto sab’ o asno de leer.

O fato é que o próprio Sr. Ribeiro claudica lastimosamente no metro, infringindo as leis tanto antigas como modernas da versificação. O primeiro dos versos citados, desfigurou-o assim:

Ben tanto sabes tu de trobar –

e atribui (p. 39 das Frases feitas) a Diogo Bernardes o seguinte decassílabo:

Cuidando ser outro mor a boca abriu.

Ora, ninguém acreditará que o mavioso poeta do Lima seja capaz de semelhante verso; foi, portanto, o poeta João Ribeiro que o deturpou, e suponho que dizia assim: Crendo ser outro mor, a boca abriu.

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Obra cit., n. 537, v. 12-13.

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Não falo dos passos de meu livro que o meu crítico repreende sem corrigi-los, nem da desatinada lembrança (p. 259, nota 1) de substituir, em dois lugares, o verbo arriçar, que está no códice e forma sentido perfeito, por arrifar (esquece-se ele de nos dizer se também em todos os outros lugares dos Cancioneiros aquele verbo deve ser substituído). Mas preciso dizer algumas palavras sobre a censura que me dirige o mais metódico dos sábios por ser eu ora pródigo de interpretações desnecessárias, ora parco demais nas minhas notas explicativas. Diz ele na p. 255 (e podem os leitores avaliar por aí a sua veracidade) que “gasto tempo em explicar que desde vem de de-ex-de e que sôdes é sois e vobiscum é vosso e outras trivialidades”. A verdade é que expliquei (nas notas aos v. 4 e 662) as formas antigas des – que muitos por certo não compreenderão – e sodes – de que não conheço nenhuma explicação satisfatória anterior à minha –, e naturalmente não podia deixar de mencionar as formas modernas que correspondem àquelas. E quanto a vosco, disse, bem ao contrário do que afirma o Sr. Ribeiro, que NÃO vem da forma clássica vobiscum, senão de outra hipotética voscum, que substituiu aquela. A primeira parte de sua censura é portanto, para o dizer redondamente, uma mentira. E quanto à segunda parte, convém saber que minha edição de Guilhade é uma Tese de Doutorado, aliás aceita e elogiada pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Bonn. Não podia eu estender-me nela sobre muitos pontos que explico nos presentes artigos, pois escrevia para leitores e juízes entendidos na matéria. Já se vê que não contava com o Sr. Ribeiro, o qual, naquelas mesmas cantigas de que eu dissera na Introdução (p. 5) “que se explicam por si sós”, acha tudo muito obscuro. Mas a culpa não é minha: vê-lo-ão os leitores pelo seguinte exemplo da sua perspicácia. Ao v. 795 das Cantigas: do trobador que trobou do Vincal, (isto é, do trovador que fez versos do Vincal, cantou o Vincal) acrescentara eu um pequeno comentário, que começa assim: “Alude-se aqui, evidentemente, a um personagem notório como mau trovador”. Ora, todo homem medianamente inteligente compreende esta frase; porém o Sr. Ribeiro24 quer que na minha opinião o nome do mau trovador seja Vincal. E, como conti-

24

Frases feitas, p. 280-81.

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nuo aí mesmo: “Suponho ser o Vincal nome geográfico”, descobre ele uma contradição nestas minhas palavras! Eis aí o meu crítico pintado ao natural. A única coisa que verdadeiramente me incomoda em sua crítica é o louvor que ele me dispensa no fim desse mesmo parágrafo: desde que li aí que “fiz bem em conservar a lição paleográfica” acima citada, confesso que já não tenho nenhuma confiança nela.

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UMA CANÇÃO

DE

D. D ENIS *

Na excelente edição que o Sr. Henrique Lang* nos deu do cancioneiro de D. Denis1, a canção LIV, p. 49, tem a forma seguinte:

Assi me traz coitado e aficad’amor, e tam atormentado, que se nostro senhor a ma senhor nom met’em cor que se de mi doa d’amor, nunca averei prazer e sabor. Ca viv’ em tal cuidado come quem sofredor é de mal aficado que nom póde maior, se mi nom val a que em forte ponto vi; ca ja da morte ei mui gram prazer e nenhum pavor. E faço mui guisado, pois sõo servidor da que mi nom dá grado, querendo-lh’eu melhor ca mim nem al; porem, entom conort’ eu nom ei ja se nom da mort’, ende sõo desejador.

* * 1

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“Uma canção de D. Denis”, in Revista Lusitana, Lisboa, v. VII, fasc. 1 (1902), pp. 65-67. O nome de Henry Roseman Lang está aportuguesado na RL. (NE) Das Liederbuch des Königs Denis von Portugal. Halle a. S.: Max Niemeyer, 1894.

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O que chama a atenção, nessa lição do texto, é que nos últimos versos de cada estrofe foi preciso intercalar uma, ou mais sílabas (assinaladas por tipos itálicos) para satisfazer as exigências, quer do metro, quer do sentido, e que, apesar das palavras assim introduzidas pelo editor, não desapareceram de todo as dificuldades em nenhuma das estrofes. Quanto ao sentido, não se compreende, na 1ª estrofe, a construção da frase “que se de mi* doa d’amor”, sendo igualmente inadmissível a hipótese de ter o verbo doer-se dois complementos, de mi e d’amor, e a outra de ser de mi complemento de d’amor. Na 3ª estrofe, a palavra entom, introduzida para rimar com nom, não somente é supérflua, mas prejudica o sentido. Quanto ao metro, o último verso da 3ª estrofe, se bem que tenha dez sílabas, é evidentemente de estrutura diferente dos decassílabos correspondentes das outras estrofes; e o penúltimo verso da 2ª tem uma sílaba de menos, como se verifica ao compará-lo com o verso precedente. Entretanto, o próprio manuscrito da Biblioteca Vaticana indica o remédio para sanar este último defeito do metro, pois divide os versos do modo seguinte: se mi nom val a que em for-te ponto vi; ca ja da mort’ei prazer* e nenhum pavor.

Ora, se admitirmos esta espécie de enjambement2, obteremos, sem emenda alguma, a não ser a troca facílima dum c por t, o seguinte texto, que parece irrepreensível a todos os respeitos: Assi me trax coitado e aficad’ amor, e tam atormentado, que se nostro senhor a ma senhor nom met’ em cor que se de mi doa, da mort’ averei prazer e sabor. Ca viv’ em tal cuidado, come quem sofredor é de mal aficado * * 2

Falta “mi”, por evidente lapso, no texto da RL. (NE) “Prazar”, por óbvia gralha, na RL. (NE) Exemplos semelhantes se encontram nos trovadores provençais e em D. Afonso o Sábio; vide 1. c., introdução, p. cxxvi, e o passo de Diez, aí mencionado.

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Uma Canção de D. Denis

que nom póde maior, se mi nom val a que em forte ponto vi; ca ja da mort’ ei prazer e nenhum pavor. E faço mui guisado, pois sõo servidor da que mi nom dá grado, querendo-lh’ eu melhor ca mim nem al; porem conort’ eu nom ei ja se nom da mort’, ende sõo desejador.

Nota ao artigo precedente Revendo as provas deste artigo, reparo que a correção apresentada pelo Sr. Nobiling já o tinha sido pela Sra. D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, a quem, nestes assuntos, nada escapa. A correção proposta pela mesma senhora saiu publicada na Zeitschrift für roman. Philologie, XIX, 525. Aí melhora ela também, e com razão, o último verso da poesia, substituindoo por t’e ende sõo desejador. Com efeito o poeta, falando da morte, onde ele encontrará o único conforto de seus males, acrescenta: e ende sõo desejador, “e bem a desejo eu”. No antepenúltimo verso da mesma estrofe, a Sra. D. Carolina escreve por-ém em vez de porem.

J[osé] L[eite] de V[asconcelos]

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ACERCA DA I NTERPRETAÇÃO DO CANCIONEIRO DE D. DENIS *1 v. 26-28: porque a vós farei maior mingua que fez Nostro Senhor de vassal’ a senhor prender.

O glossário de Lang interpreta vassal’ como vassala; a nota na p. 114, porém, fala de uma “transferência da expressão feudal vassalo para a relação do homem para com Deus”. As duas explicações são irreconciliáveis e não compreendo como Lang interpreta a passagem. A Sra. Vasconcelos (op. cit., p. 540) explica-a assim: “Tu, senhora, matas-me sem dúvida, mas a minha morte não te servirá; ao contrário sentirás a minha falta. Farte-ei mais falta do que Cristo a nós, por ter tomado outra vassala como senhora”. Porém, 1) é de admirar que D. Denis fale aqui de repente – a única vez em suas cantigas de amor – como rei e chame uma dama de sua vassala; 2) parece-me que uma maneira de falar como aquela acima seria hiperbolicamente blasfema; 3) mas antes de tudo, como se casaria o pensamento de que o poeta quer morrer por causa de seu amor com aquele outro, segundo o qual ele já contraiu outra relação amorosa? Eu traduzo assim: “(Não me quero arrepender de minha morte;) pois causarei maior míngua a vós do que Deus jamais fez um senhor sentir por seu vassalo”. Faço, portanto, a senhor dependente de fez prender, e de vassal’, isto é, vassalo, do termo mingua, a ser complementado ou no caso representado por que. Ou seja, tratar-se-ia de uma transferência da expressão feudal vassalo não para a relação do homem para com Deus, mas do amante para com a sua senhora amada. *

1

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“Zur Interpretation des Dionysischen Liederbuchs”. In Zeitschrift für romanische Philologie, 27 (1903) pp. 186-192. Das Liederbuch des Königs Denis von Portugal, editado por Henry R. Lang. Halle a.S. 1894. – Cf. também a detalhada resenha crítica da Sra. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, in Zeitschrift für romanische Philologie XIX, pp. 514-41 e 578-615.

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v. 811-813: tenho que mi fariades gram bem de mi dizerdes quanto mal mi vem por vós, se vos est’ é loor ou prez.

Recomenda-se colocar vírgula depois de dizerdes para não deixar dúvida quanto ao sentido, que é: “far-me-íeis um grande favor, se me dissésseis, se todo o mal, que de vós me provém, vos traz louvor e glória”. v. 1039-1040: mais que gram coit’ á de sofrer quem é coitado pecador!

Antes e depois o poeta fala de si mesmo na primeira pessoa; por isso a forma de falar aqui é estranha. Porém, sem mudar uma letra, podemos ler: mais que gram coita de sofrer que m’é, coitado pecador! Essa lição é corroborada pelo mhe, isto é, mh é, do Cancioneiro Colocci Brancuti. v. 1289-1294: se mi contra vós valvesse Deus que vos fez, e quisesse do mal que mi vós fazedes mi fezessedes enmenda; e vedes, senhor, quejenda que vos viss’, e vos prouguesse. Eu colocaria dois pontos depois de quejenda e traduziria toda a passagem assim: “Se Deus que vos criou me acudisse contra vós e fizesse com que vós me compensásseis pelo mal feito, – vede, senhora, qual (recompensa eu demandaria): que eu vos visse e que isso vos agradasse”. A conjunção e abre então, como de costume, a segunda parte da oração. Mas também se poderiam colocar vários pontos depois de enmenda e conceber o antecedente como oração que expressa uma condição insatisfeita ou, o que é mais ou menos a mesma coisa, um desejo.

Segunda estrofe da cantiga LXXII, de três estrofes, v. 1473-1479:

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Acerca da Interpretação do Cancioneiro de D. Denis

Ca o bem, senhor, nom poss’ eu saber, se nom por vós, por que eu o mal sei; desi o mal nom o posso perder se per vós nom; e poi-lo bem nom sei, quered’ora, senhor, vel por Deus ja, que em vós pos quanto bem no mund’a, que o bem sabha, pois que [o] nom sei.

Aqui a forma paralelística da estrofe exige que, no final do v. 1476, se substitua sei por ei, e, no final do v. 1479, o nom do manuscrito (na edição de Lang o nom), que tampouco satisfaz o número de sílabas, por o mal. Pois às rimas que é bem : rem : que é bem e mal sofri : mi : mal sofri das duas outras estrofes correspondem agora também nesta estrofe o mal sei : ei : o mal sei. Além disso, emenda-se a estrofe também quanto ao conteúdo, já que as repetições se restringem aos lugares onde a métrica as demanda. A cantiga LXXVI, que na forma transmitida pelos cancioneiros da Vaticana e Colocci Brancuti parecia irremediavelmente corrompida, foi reconstituída pelos esforços de Lang e da Sra. Vasconcelos (op. cit., pp. 527-528) a tal ponto que seu sentido se mostra inteiramente claro no total e a forma, ainda duvidosa apenas em alguns trechos. Como a sua transmissão é muito mais defeituosa do que a de todas as outras cantigas dionisinas e na medida em que ela não aparece no mesmo lugar em ambos os códices, fica claro que remonta a uma fonte diversa das demais. Nesta cantiga, o copista da Vaticana leu com especial freqüência o i e o r, que se lhe assemelha, como s: assim a linha112 (v. 1554) traz deses aria por desejaria, a linha14 (v. 1557) deseyto por dereyto, a linha 26 (v. 1567) sia por seria, a linha 27 in susa por minha, onde o primeiro s aparece no lugar de i, o segundo no de h (ou também de i?). Por isso, também, na linha 13 (v. 1556), deve certamente ler-se hi viinha, ao invés de hi bishua: o b é um descuido por v; ao tiinha, proposto por Lang e aprovado pela Sra. Vasconcelos, seria mais difícil chegar e o sentido não exige essa emenda, desde que se leia viinh’a. – Na linha 3 (v. 1547) está muy et o. Lang lê mui entom, que é lingüística e logicamente inadmissível, enquanto a Sra. Vasconcelos interpreta a passagem como muito bem – uma modificação tanto mais forçada que tampouco me parece estar de acordo com o uso antigo da língua: Denis pelo menos usa, neste sentido, como advérbio aumentativo antes de adjetivo ou advérbio, apenas mui, se seguido de consoante, e muit’, em caso de vogal. Poderíamos emendar muy eto para 2

A numeração das linhas segue a do texto de Lang.

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muy certo; o mais provável é porém que se trate simplesmente de grafia errada por muyto. A sílaba faltante do verso, poderíamos talvez recuperá-la da linha seguinte onde há, no respectivo lugar, um ra a totalmente desprovido de sentido (uera a por ue): desse poderíamos obter acima muyto já. Pois parece que, de uma maneira geral, se deslocaram diversas vezes letras de uma linha a outra. Assim explica-se, no final da linha 18 (v. 1562), o amoor, sem sentido, pelo amor que está no final da linha seguinte: leia-se, para aquele, moor que cabe melhor no verso do que o o moor do Cancioneiro Colocci Brancuti, cuja primeira letra se deve provavelmente apenas ao o imediatamente precedente. Assim explica-se também o hi no começo da linha 13 (v. 1556), que por sentido e metro caberia muito melhor no início da linha 14: hi faria dereito = “eu faria bem”. O gallar da hi, na linha 21 (v. 1562) é, como observa a Sra. Vasconcelos, certamente o mesmo que o gallardam do Cancioneiro Colocci Brancuti, e ambos estão por galardom. Como a sílaba de rima está portanto assegurada, não pode ser tão difícil de encontrar, para o lugar do from na linha 16 (v. 1560), a palavra trissilábica exigida pelo metro, quer dizer, encontrar, em meio ao vocabulário completo dos poetas dos cancioneiros antigos, uma palavra trissilábica que termine em –om e que signifique algo como “sem vergonha”, sem que se tenha que recorrer ao um desfrom, proposto pela Sra. Vasconcelos, ou um semfrom, que aparentemente não são atestados em outro lugar. – De maneira que obtemos – com elisão de algumas vogais finais sobressalentes – a seguinte versão do texto: Pero muito amo, muito nom desejo aver da que amo e quero gram bem, porque eu conheço muito ja (ou mui certo?) e vejo que de aver muito a mim nom me vem tam grande folgança que maior nom seja o seu dano d’el’, e quem tal bem deseja o bem de sa dama em mui pouco tem.

1545

1550

1555

Mais, o que nom é seer poderia, se fosse assi qu’a ela veesse bem do meu bem, eu desejaria aver o maior que aver podesse; ca pois a nos ambos viinh’ a proveito tal bem desejad’, i faria dereito, e sandeu seria quem o nom fezesse.

1560

E quem d’ outra guisa tal bem desejar nom é namorado, mais é [um desfrom??] que sempre trabalh’ i per cedo cobrar, 168

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Acerca da Interpretação do Cancioneiro de D. Denis

da que nom serviu, moor galardom; e de tal amor amo mais de cento, e nom amo ua de que me contento de seer servidor de bom coraçom.

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Que pois me eu cham’ e sõo servidor, gram treiçom seria, se minha senhor por meu bem ouvesse mal ou semrazom. E quantos bem amam, assi o dirám.

Os versos (diferentemente daqueles da cantiga CXXVII que apresenta exclusivamente versos masculinos, cuja última sílaba tônica é a 11ª., e da cantiga CXXVIII que tem só versos femininos, cuja última sílaba tônica é a 10ª.) consistem de dois hemistíquios com uma 5ª. sílaba tônica que ainda pode ser seguida por uma sílaba átona3; os dois hemistíquios podem sobrepor-se parcialmente na medida em que a vogal inicial do segundo hemistíquio pode substituir a vogal final átona elidida do primeiro. No caso, não contará na segunda metade do verso: vide v. 1550, 1557, 1560. Irregular é apenas o primeiro hemistíquio do v. 1554, que se torna regular, porém, se lemos pelo, ao invés de do; treiçom, no v. 1567 é bissílabo, pois apenas (antigo) ai monossílabo torna-se ei, e seer, nos v. 1552 e 1565, também será lido como monossilábico. O infinitivo seer, como tal, podia, se paroxítono, virar ser, assim como seerei e seeria já se tornaram constantemente serei e seria no uso de D. Denis. É verdade contudo que o infinitivo é em todos os outros lugares do cancioneiro, sem sombra de dúvida, bissílabo. Mas e se a cantiga – hipótese perfeitamente possível dada a forma de transmissão – estivesse sem razão entre as do rei? Como locuções não dionisinas encontro as seguintes: v. 1545 muito amo (o o de muito nunca conta antes de vogais, salvo nos casos em que se segue uma cesura forte, como no v. 2273); v. 1548 de aver (o e de de aver é sempre elidido, salvo em locuções como de a veer); v. 1551 dama (= senhor f.); v. 1566 me eu (normalmente m’eu); v. 1567 treiçom (por traïçom). É de notar que nenhuma das divergências da língua do rei indica necessariamente uma data mais recente de composição – com exceção da rima estranha no verso final, dirám : semrazom : coraçom : galardom. Ou será que este verso final, que não é exigido nem pelo sentido, nem pela métrica, teria sido acrescen-

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Isso seria um traço de métrica hispânica, em oposição à métrica provençal, que encontrou sua expressão na poética do Cancioneiro Colocci Brancuti e seu comentário competente no artigo sobre métrica do português antigo de Mussafia, publicado in Sitzungsberichte der Wiener Akademie der Wissenschaften, philosophisch-historische Klasse, Bd. CXXXIII, Abt. X.

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tado posteriormente pelo mesmo copista que escreveu também galardam por galardom? Difícil é também a cantiga C cuja obscuridade provém aparentemente – como na cantiga LXXIV – do fato de se aludir, no diálogo entre a amada e o poeta, a acontecimentos precedentes. Na minha opinião, a conversa toda gira em torno das palavras meu mal e vosso que aparecem na primeira estrofe. Ali o poeta responde à pergunta “meu amigo, quereis partir?”: “sim, minha senhora, pois não posso fazer outra coisa; pois isso (isto é, se eu fizesse outra coisa) seria o meu mal e o vosso”. Ao invés disso, ele prefere arcar sozinho com a infelicidade, partindo. Na segunda estrofe, a dama pergunta como ela passaria então e ele responde: “bem, minha senhora boa e de apreço”. Depois leio, no v. 2044, meu ao invés de m’eu e completo o sujeito o mal: “e se o mal desta vez for meu, o vosso decerto passará”. A última linha desta estrofe vejo, de acordo com a Sra. Vasconcelos (p. 529 s.), como sendo o começo da resposta e leio, com modificação ínfima do texto transmitido: v. 2048-2049: Mais pois é voss’ ua vez ja, amigu’, eu sem vos morrerei

= “Mas como agora é vosso o mal (isto é, já que partis), eu sem vós, meu amigo, morrerei”. Ou será que teríamos de colocar um ponto de interrogação depois de ja? “Mas é então realmente vosso mal? Meu amigo, sem vós morrerei”. Depois fala de novo o poeta e o próximo verso consta assim no Cancioneiro da Vaticana: nono q  r raŸ s esso senhor; aqui nono é aparentemente grafia reduplicada de no ou non; assim obtemos: nom querrá Deus esso, senhor.

É verdade que a Sra. Vasconcelos lê aqui queira (p. 530), mas o manuscrito e o futuro que se segue na frase seguinte indicam querrá. O poeta diz: “Deus não quererá isso; quer dizer, se, onde vós estais, eu não estiver, serei eu quem morrerá; mas antes quero ver a minha infelicidade (o meu passar) do que arriscar a vossa (do voss’ aventurar)”. A próxima linha, a última da estrofe e tautologicamente atrasada se for o poeta que a fala, talvez ficasse melhor deslocada, assim como a última da estrofe precedente, para a réplica da dama; porém a fala teria então de começar com e, ao invés de ca. E não poderíamos, analogamente, já atribuir os dois últimos versos da primeira estrofe à dama? A cantiga ganharia então a seguinte forma: 170

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«Amigo, queredes-vus ir?» – ««Si, mha senhor, ca nom poss’ al fazer, ca seria meu mal e vosso; por end’ a partir mi convem d’ aqueste logar.»» – «Mais que gram coita d’endurar mi4 será, pois me sem vos vir!

2035

2040

2045

Amigu’, e de mim que será?» – ««Bem, senhor bõa e de prez; e pois meu fôr d’ aquesta vez, o vosso mui bem (se) passará; mais morte m’ é de m’ alongar de vos e ir-m’ alhur morar.»» – «Mais pois é voss’ ua* vez ja? Amigu’, eu sem vos morrerei.» – ««Nom querrá Deus esso, senhor; mais pois u vos fôrdes nom fôr, o que morrerá, eu serei; mais quer’ eu ant’ o meu passar c’ assi do voss’ aventurar.»» – «E eu sem vos de morrer ei.

2050

2055

Queredes-mh, amigo, matar?» – ««Nom, mha senhor, mais por guardar vos, mato mi que mh o busquei.»» s’ é que dev’ a Nostro Senhor.

v. 2072:

Por s’ é, que não faz sentido, deve ser lido, de acordo com o Cancioneiro Colocci Brancuti, fé: “pela fidelidade que devo a Deus”. v. 2331-2332: De morrerdes por mi nom vos dev’ eu bom grado poer, ca esto fará quem quer – Aqui tem de se suprimido o poer que estorva sentido e metro. A sua existência deve-se provavelmente ao quer que está no final do verso.

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*

Lang edita, aparentemente de acordo com o Cancioneiro da Vaticana, me, mas o mi do Cancioneiro Colocci Brancuti é preferível. Na cantiga falta o a de ua; cf. porém o mesmo verso anteriormente editado. (NE)

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ACERCA DO TEXTO E DA INTERPRETAÇÃO DO CANCIONEIRO DA AJUDA* Todos os que se dedicam à investigação da lírica trovadoresca hispânica evocarão dois nomes com especial gratidão: Ernesto Monaci e Carolina Michaëlis de Vasconcelos. O primeiro foi quem possibilitou de um modo geral o estudo aprofundado da lírica trovadoresca em português antigo, quando tornou acessível, há um quarto de século atrás, o conteúdo dos cancioneiros guardados na Itália – de longe a maior parte dos monumentos conservados – através de edições diplomáticas1 até hoje de inestimável valor. A Dr.ª Vasconcelos ofereceu-nos agora a primeira edição verdadeiramente crítica do terceiro Cancioneiro manuscrito, guardado em Portugal, o menor, mas o mais antigo dos existentes, numa obra em dois volumes2, de suma importância, que contém muito mais do que o seu título indica e responde a uma grande quantidade de perguntas ligadas às obras dos trovadores portugueses, à sua língua, à pessoa dos poetas, à data de composição etc.; abre, por outro lado, um vasto campo a investigações futuras e dará trabalho a muitos colaboradores, ainda por muitos anos. Parece-me que a melhor maneira de demonstrar a gratidão pela dádiva recebida é colaborar nesse trabalho e contribuir com o meu quinhão para o conhecimento desta importantíssima época de língua e literatura. Farei a seguir uma série de sugestões de mudança e comentários para o texto das 310 cantigas do manuscrito português bem como das 157 dos manuscritos italianos, que a Sra. Vasconcelos editou, prefaciou e proveu com comentário crítico-métrico e tradução, no primeiro volume de sua obra. Basear-me-ei, contudo, em boa parte, nas investigações e nos resultados que devemos à editora do Cancioneiro da Ajuda. *

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“Zu Text und Interpretation des ‘Cancioneiro da Ajuda’.” In Romanische Forschungen, 23 (1907) pp. 339-385. Il canzoniere portoghese della Biblioteca Vaticana, da Ernesto Monaci. Halle a. S.: Max Niemeyer, 1875. (= CV.) Il canzoniere portoghese Colocci-Brancuti, da Enrico Molteni (impressão organizada por Monaci). Halle a. S.: Max Niemeyer, 1880. (= CB.) Cancioneiro da Ajuda. Edição critica e commentada por Carolina Michaëlis de Vasconcellos. I e II. Halle a. S.: Max Niemeyer, 1904. (=CA.)

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Os princípios ortográficos adotados na edição das cantigas são, em conseqüência do longo espaço de tempo decorrido na impressão, não de todo uniformes, e abstenho-me aqui de uma crítica3 tanto mais que só se chegaria a uma ortografia conseqüente por meios mais ou menos forçados. Que a grafia do manuscrito da Ajuda de forma alguma reproduz de maneira exata a pronúncia dos poetas, deduz-se já, por exemplo, da quantidade de emprego da forma mais recente min, onde a rima exige mi, ou dos não raros casos em que o copista empregou elisão mesmo que a métrica exigisse hiato e o uso dos trovadores o admitisse ou prescrevesse. Nos casos em que metro e rima não nos instruem, como decidir se formas como mas ao lado de mais, louvar ao lado de loar, oemos ao lado de ouvemos, amigus ao lado de amigos, cuitado ao lado de coitado, coidar ao lado de cuidar, milhor ao lado de melhor etc. tinham na língua dos trovadores validade ou até prevalência? Essa língua tinha sem dúvida em parte as suas regras convencionais, como não podia deixar de ser no caso de um dialeto originalmente local que se tinha tornado a língua da lírica para a maior parte da península; com efeito observa-se nitidamente que, nas cantigas propriamente de amor, lingua e métrica obedecem a regras mais rígidas do que nas cantigas de escárnio e de maldizer. Destaco dois pontos que evidenciam a insegurança referente ao nosso conhecimento da língua dos trovadores e que, até onde vejo, ainda não foram bem percebidos. Encontramos em CA v. 9402, negô-o (em vez de negou-o) na rima com soo ( pt. moderno rédea. 355

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8042. – C. Michaëlis de Vasconcelos deriva esp. retoñar, retoño, certamente com razão, de otoño ‘outono’: vide Rev. Lus. XI, caderno 1-2. 8078) *riga ... pt. rega, regra, prescrição. – Para supor uma tal palavra portuguesa não basta a única ocorrência em Viterbo onde rega é provavelmente grafia errada por regoa ou regra. O pt. moderno rega ‘irrigação’ (Moraes) é derivado de regar < rigare, um verbo espanhol e português que falta em 8081. Dele derivaram também o esp. riego ‘irrigação’ e, caso se trate da mesma palavra, o pt. rêgo ‘vala irrigadora, sarjeta, sulco’. Não é pois necessário supor uma palavra latina *rigus. 8080) rigidus . – Falta o pt. rijo (CM rijo, rigio e rejo). 8091) ri ngo ... pt. renhir. – Provavelmente empréstimo do espanhol. Em contrapartida são autóctones ranger, ringir. 8093) *riparia ... pt. ribeira, veira. – Ao invés do último, 1. beira. 8121. – Muito mais usual do que roca é em português rocha, de que foi derivado rochedo, como penedo do pt. antigo pena: cf. 7170. 8149. – Ao esp. rozar corresponde o pt. roçar, razão pela qual não se pode supor derivação a partir de *rosare ou rositãre, mais provável é – vid. 8231a – ru t i a re ou, seguindo Coelho, *ru pt i a re, isso se a transformação semântica fosse plausível. 8175) rubeus. – Acrescento: pt. ruivo. 8237) al. sabel ... no pt. a palavra falta. – De forma alguma; dizse sabre. 8241) sabucus, sambucus. – Curiosamente faltam justamente os nomes populares da planta em espanhol e português: sabugo, de onde o mais usual sabugueiro. Certo, a evolução regular portuguesa seria savugo; porém, não tomando em consideração que os dialetos do Norte não diferenciam entre b e v e que no caso do nome de uma planta cultivada nunca se pode ter certeza se ele não migrou de uma província a outra, existe a possibilidade de haver existido *sambugo ao lado de *savugo, e sabugo seria então o resultado de uma mistura das duas palavras. 8255. – Ao invés do pt. Sesulo, 1. século. 8257. – A palavra portuguesa sêda significa tanto ‘a substância filamentosa que constitui o casulo do bicho-da-seda, respectivamente o tecido feito desta substância’, quanto ‘cerda’. 8277 e 8292. – O correto em português não é salar, mas salgar. 8306. – O pt. sàdío, cuja pronúncia pressupõe um antigo saadío, foi desde há muito derivado de sanativo. 8309) sãlvia ... pt. saiva. – Ao invés disso, 1. salva. 356

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8320. – A derivação do esp. sandío, pt. sandeu de sa nct(u)s deus é impossível, já que o pt. antigo sandeu tinha um e fechado, como o comprovam as rimas dos mais antigos cancioneiros; Deus, ao contrário, pronunciava-se com e aberto. 8398. – Em espanhol cascabel, mas em português cascavel. 8410) sca lprum ... pt. escopro. – Corresponde melhor ao étimo latino o escouparo encontrado em Gândavo (contemporâneo de Camões), História da Província Santa Cruz, cap. VI26. Sendo assim, o estoupero de Viterbo, que Diez não cita de maneira absolutamente correta, é muito provavelmente apenas uma leitura errada por escoupero. 8424) sca ra baeus ... pt. escaravelha. – Ao invés disso, 1. escaravelho. 8487 e 8488. – As palavras portuguesas scintila e scintilar (não sei por que é que Körting menciona as grafias cintila e sintillar) são eruditas. Paralelamente as palavras populares espanholas difundiram-se também para o português, sendo escritas centelha e centelhar. 8490. – O esp. pt. sisa (em Coelho escrito ciza) designa um imposto, e este imposto, ainda que não seja em todo lugar o mesmo, é sempre um imposto bem determinado. Segundo Viterbo, a contribuição foi introduzida pelo Rei Sancho em Castela, no ano de 1295, e estendida então a Portugal. Não erraremos se procurarmos a origem dessa medida financeira na França e, com isso, a origem da palavra no fr. assise: vid. a palavra em Diez p. 510 e Sisa, ibid., p. 487. A queda do a explica-se facilmente pelo artigo francês. 8522) scriba, -am e lat. tardio -anem ... esp. pt. escribano. – Antes, pt. escrivão, pt. antigo (CM CCCLXXV, 7) escrivan, por isso ainda hoje o plural escrivães. Essas formas, assim como o esp. escribán, indicam scribanem como fonte. 8554) secretus – de modo algum sobrevive em português apenas na forma erudita; pois ao lado do adjetivo secréto existe o substantivo segrêdo, de onde segredar. 8555) secta ... pt. secta. – Pouco usual, ao invés disso seita. 8559) secundus – em espanhol e português segundo, não segondo. 8570) sedes ... pt. sé, sede biscopal (palavra erudita). – Pode ser tão pouco erudito quanto fé < *fee < fide. De maneira diferente mercê < mercee < mercede, o que se explica pelo fato de que a contração vocálica ocorreu nessa palavra mais tarde.

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Revista do Instituto Histórico Brasileiro XXI, p. 398.

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8571a . – Costumes de copistas do espanhol antigo não deveriam necessariamente ser transpostos para este dicionário. Esp. antigo seyia (< sedilia) terá de ser lido sem dúvida seíja. 8598) *semitarius . – Acrescento: pt. sendeiro < pt. antigo seendeiro (CV). 8658. – O esp. pt. tarde (a tradução como ‘Abend’ é inexata, o correto é ‘Nachmittag’) nada mais é do que o advérbio tarde substantivado. Esse significado adverbial falta também em 9379. 8666. – Deveria ter sido mencionado o pt. servidão < servidõe < *servidúe < servitudine. 8703) signum ... pt. senha. – Acrescento: sina (uma palavra erudita precoce) ‘destino determinado (escrito nas estrelas)’, antigamente também ‘bandeira’. 8704) silentium  – não é apenas erudito em toda a parte; pois existe em português antigo seenço, na Visão de Túndalo (manuscrito do século XV): Rev. Lus. III, p. 116. 8716) simila – aparentemente conservado na palavra popular portuguesa sêmea. 8719) simplex ... pt. simple. – Ao invés disso, 1. esp. simple, pt. simples. Se Körting encontra dificuldade conceitual na derivação de Cornu, do esp. sencillo de *singellus, basta saber que a palavra espanhola tem o mesmo significado que o pt. singélo para dirimir todas as dúvidas. Da mesma forma também tem de ser emendado 8730. 8732 e 8733. – O verbo português correto é soluçar, o deverbal soluço. 8744) Sirena (sirena, non serena App. Probi). – A forma do latim vulgar sobrevive no pt. sereia. Portanto o esp. serena (ao lado de sirena) também será palavra popular. 8755. – O esp. pt. sítio (assim, não sitîo) não pode ser deverbal de sitiar, mas este é derivado daquele; o primeiro então adotou do segundo o significado de ‘cerco’. A origem do substantivo ainda parece ser duvidosa. 8780) antigo alto alemão skërnôn ... pt. escarnir, e, ligado a este, o substantivo escarnho. – As formas mais usuais são agora escarnecer e escárnio. 8783. – Uma palavra usual para a coluna vertebral em português evidentemente não é spina – que é latim –, mas espinha (dorsal). 8839) ár. sokkar ... pt. azúcar. – Melhor, assúcar; a grafia mais antiga é açucar. 8843) solatium  ... esp. solaz. – A palavra é comum também no português antigo; é um empréstimo do provençal e significa originalmente 358

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‘passatempo, entretenimento, divertimento’. Interessante é também o nome de um gênero de cantiga soláo, que aparentemente vem do catalão. 8853a) solitarius. – Também pt. solteiro, -a. 8863) solum. – Um derivado popular é o pt. soalho, também assoalho e, provavelmente por contração, sôlho. A serem diferenciados, os também autóctones soalho ‘lugar ensolarado’ de sol (completar em 8840), e soalha ‘chapa metálica do pandeiro’. (Acrescente-se a 8875, = esp. sonaja, não soneja, como ali está.) 8865) solus ... pt. só, soa. – O feminino também é só: soa é português antigo. 8866) solvo. – Acrescente-se o particípio esp. suelto, pt. sôlto e, ligado a estes, os verbos esp. pt. soltar, por neologismo. 8874) somnus. – O esp. sueño não deveria aparecer entre parênteses, pois é < somnu, assim como dueño < dom(i)nu. 8879) sono ... pt. sonar. – Antes, soar. 8995. – As palavras espanholas esquilar ‘tosquiar’, trasquilar ‘cortar o cabelo (de maneira desordenada)’ não podem ser separadas do português antigo trasquiar, trosquiar (CM CXLVII; CV 977), de que o pt. moderno tosquiar é evolução. Derivar esse último de *tonsicare, como acontece em 9583, não procede de maneira alguma: isso resultaria em *tosgar ou *tonsegar. Parece-me possível que a raiz squil- remonte à raiz germânica sker-, como se aventa nesse mesmo número, ou então a ex+ kei/rein. 9003. – O pt. estabelidade é uma variante pouco usual, meramente ortográfica, de estabilidade. 9013. – Ao invés de esp. pt. estaco, 1. estaca. 9034. – Ao invés de esp. pt. estato, 1. estado. 9056) stimulus ... pt. antigo estim-o. – Não conheço nada parecido. 9080. – O esp. pt. estrago concebe-se naturalmente como deverbal de estragar e este derivado de *stragare, respectivamente strages. 9084. – O fertilizante diz-se em português corretamente estrume, não estruma. 9146) sub ... pt. sob. – Essa palavra com sua pronúncia de hoje sôbe é renovação erudita da palavra popular do português antigo so. 9148) *suba go, -are ... esp. sobar, ‘amassar’; pt. sovar. – A derivação de Diez parece pouco fidedigna a Körting porque ele a entendeu mal: Diez não deriva o verbo esp. pt. de *subagare, mas de *subagere. Essa derivação é tão plausível como a de far de facere. 9195) substo, -are. – Körting reproduz o artigo de Diez sobre o it. sostare etc.; porém, suprime a suposição de Diez, de forma alguma 359

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improvável, de que o esp. pt. susto – de onde o verbo asustar, assustar – pertence à mesma família. 9201. – Ao invés do pt. subtiliçar, 1. subtilizar. 9219. – Também em português sacudir. 9220. – O fr. saccade (substantivo, de onde saccader) tem toda a aparência de ser empréstimo do espanhol ou português. De fato, terá sido primeiro uma expressão da equitação = ‘puxada de rédea’, cf. Blut. s.v.: ‘Sacada. Termo de manejo. (No instante que o cavallo entrar a galope, & que ande na lição com a cara levantada, &c. dandolhe alguas Sacadas acima. Galvão, Tratado do Gineta, p. 43.)’ Que sacada pertence à mesma família que sacar não há dúvida: cf. ainda pt. sacadéla ‘o puxar da linha de pescar’. 9223. – O esp. pt. chupar, que Körting agrupa estranhamente a *suctiare, é provavelmente neologismo onomatopéico. 9228) anglo-saxão sud. – Ao invés disso, 1. sûð, e acrescento: esp. sur, pt. sul, que por sua vez podem sim ser empréstimos do francês, como quer Diez. 9237) sufflo. – Aqui menciona-se ao lado do pt. soprar = esp. soplar também o pt. assobiar. Este (a forma mais antiga é provavelmente assoviar), porém, tem significado diferente e pertence à mesma familia que 8682 sibilare. Certo, assoviar mostra – parecido com, mas de maneira diferente que o fr. siffler – influência de sufflare, e inversamente em soplar-soprar a oclusiva pode se ter desenvolvido da fricativa f, sob influência de sibilare. Porém, pode-se tratar também de onomatopéia. 9258) summa ... pt. summa. – Mais usual é soma; ao qual se liga somar. 9261) sumo. – A esta família pertence com alguma probabilidade também o esp. pt. sumir, de onde os substantivos pt. sumiço e sumidouro (= esp. sumidero). Se compararmos a isso, como já o fez Diez, o verbo provençal mencionado em 8882 sompsir, somsir, sumpsir, sumsir = ‘afundar, afogar’ e seus derivados, poderíamos supor um particípio *sumpsus como radical. 9268) supero – desenvolveu uma vida rica em solo ibérico: existem muitos derivados do esp. pt. sobrar ‘exceder, restar’: esp. pt. sobra; sobrado ‘piso superior’; além disso, de um *sobrança a ser pressuposto: esp. sobrancero ‘excedente’, pt. sobranceiro ‘excelente, altivo’ sobrancería ‘altivez’, sobrancear ‘tratar de cima para baixo’. Talvez estas palavras tenham influenciado a formação da palavra sobrancelha, mencionada em 9265, cuja forma mais antiga era sobrencelha (CM). 9270) supinus. – Conservado como palavra popular no pt. antigo sobinho: ‘Demanda do Santo Graal’ se lleixou caer sobinho (Rev. Lus. VI, p. 342). 360

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9275) *supplio. – Acrescento: pt. suprir. 9284) surrideo. – Acrescento: pt. sorrir. 9292) suspendo ... esp. sospender. – Antes, suspender; também em português. 9312) symphonia ... pt. sanfonha. – Ao lado dessa palavra, que parece ser antiquada, hoje sanfona. 9319) ta banus ... pt. tabão. – Mais usual e correto tavão. 9330. – Ao esp. ataud corresponde o pt. ataúde. 9333) taeda ... pt. tea. – Melhor teia. 9349) ta lentum. – Ao invés do pt. talentão (que é aumentativo), 1. talento. 9400) ár. ‘tassah ... pt. taza. Ao invés disso, 1. taça. 9401. – O avô do avô é em português tataravô∗. 9421) tela ... pt. tela. – É empréstimo, a palavra popular é teia, por exemplo em ‘teia de aranha’. No significado de ‘meninge’ tea já aparece em CM CCCLXXXV, 4. 9437. – O pt. tenaz é, o que não fica claro em Körting, 1) adjetivo = ‘resistente, pertinaz’; 2) substantivo feminino = ‘alicate’. 9444) tener ... pt. terno. – Essa palavra significa ‘carinhoso, amoroso’ e poderia facilmente ser empréstimo do espanhol; paralelamente existe tenro = ‘macio, mole, de pouca idade’. Significados correspondentes têm os substantivos abstratos ternura (também terneza, mas não terneça como está escrito em 9447) e tenrura. Também terneira ‘vitela’ (mencionado em 9445; paralelamente tenreira: vide Moraes) virá do espanhol. 9448) tenor. – Deveria ter sido mencionado pt. teor, ‘texto’, ‘conteúdo’. 9481) terribilis ... pt. terrible. – Ao invés disso, 1. terrível, mais antigo também terribil. 9488) *tertiolus ... pt. trecó. – Antes, treçó ou terçó. 9489) tertius . – Manteve-se no pt. têrço, têrça parte, terça-feira. 9532. – Ao esp. trozo corresponde o pt. trôço. 9533. – Diez duvidou com razão se Viterbo estava certo ao traduzir o pt. antigo zevro, zevra como ‘boi, vaca, vitela’. De fato não significa nem ‘vaca’ nem ‘cabeça de gado’, mas é o mesmo que o pt. moderno zêbra. A

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O correspondente a “tataravô” em alemão seria “Ururgrossvater”, em vez de “Urgrossvater”, como põe Nobiling. (NE)

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zebra foi aparentemente na época dos mouros um animal doméstico em Portugal, o que Viterbo já não sabia mais. 9547) tina. – No português existem (a explicação de Körting não é clara) tina, tinalha ‘vaso, vasilha’, que não são evoluções fonéticas regulares. Regular é o pt. antigo tinha (Viterbo); e talha ‘jarro’ é talvez < *tãalha < *tanacla < *tinac(u)la, como o tanha (Rev. Lus. III, p. 329) < *tãlha < *tãalha que se usa em Valpaços, Trás-os-Montes. Cf. Cornu-Gröbers Gr.2 I, p. 1009. 9574) tollo ... pt. tolherse (de membros), tornar-se paralítico. – Escreve-se tolher-se. Tolher, porém, tem uso bem mais amplo; seu significado básico é ‘tirar’, e sua forma é influenciada por colher < *colligere, por isso também o particípio do português antigo tolheito. 9588) tono ... pt. antigo tronar ... (pt. moderno troar, tronejar = *tronicare). – O pt. antigo tronar é provavelmente apenas grafia inexata por trõar, de onde pt. moderno troar; tronejar não existe, será descuido por trovejar que Diez quer derivar de troar, mas que certamente pertence à família de trovão. Acontece que para o último se diz ainda hoje dialetalmente no Alentejo torvão (Rev. Lus. X, 245), e no português antigo (CM) chama-se o mesmo fenômeno da natureza de torvon: tem de ser derivado de turbo, *-onem; *tronare talvez tenha tido influência sobre o significado. 9591) tonsorius ... pt. (tosadersa), tixera. – O que vem a ser o primeiro, não sei; o segundo deve-se a uma gralha que já havia aparecido em Diez. O instrumento para cortar chama-se em espanhol tijera, que antigamente se escrevia tixera, em português é tesoira, tesoura. 9594) tonus ... esp. pt. tono. – Paralelamente esp. ton, pt. tom. No português, essa é a evolução popular, < pt. antigo tõo (em Cortesão, s.v. Toar). 9603. – Ao invés do pt. torneo escreve-se hoje torneio. 9616. – O pt. tócha poderia remontar a torc(u)la, como o it. tòrchio a torc(u)lum. 9632. – O esp. pt. atoar ‘rebocar’ é primeiro derivado de pt. toa ‘cabo de reboque’, e só este pode ser derivado do ingl. tow. 9634. – Prefiro deixar com Diez o esp. pt. tojo sem explicação, a derivá-lo com Baist de toxicum, de onde a palavra portuguesa não pode vir de forma alguma: que ela não tenha por ventura entrado apenas recentemente nesta língua, deduz-se de Bluteau e Viterbo. 9650) tractus ... esp. pt. trato. – É ao contrário deverbal de tratar e pertence portanto a 9648. Em contrapartida, tractus manteve-se no esp. trecho ‘espaço de caminho e temporal’ que passou ao português. 9655) traduco ... pt. traducir. – Ao invés disso, 1. traduzir. No mesmo grupo do esp. antigo trocir (se a etimologia estiver correta ou não) 362

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tem de ser colocado o pt. antigo trocir (CM) = ‘engolir’, ou seja, com o mesmo significado que o pt. moderno tragar (cf. 9666). 9700) trecenti – manteve-se como palavra popular também no pt. trezentos, esp. trecientos (ao lado do neologismo trescientos). 9792. – O pronome pessoal da 2ª. pessoa do plural em português é vós (tônico) e vos (átono). 9816) german. *turba. – Acrescento: esp. turba, pt. turfa. 9818) turbidus ... esp. turbio. – Acrescento: pt. turvo. Derivados são os verbos: esp. turbiar, enturbiar, pt. turvar (diferente de torvar < turbare). Cf. também Cornu em Gröbers Gr.2 I, p. 934. 9854) ubi. – Acrescento: pt. antigo u = ‘onde, quando’. 9927. – Ao invés do pt. uso, 1. usado. 9952) vacuus. – Acrescento: esp. vaco, pt. vago. 9963) vagina . – Pertence a esta família provavelmente também o pt. vagem < *vagine. 9983) vanitas. – Acrescento: pt. vaidade < pt. antigo vãidade (CM). 10005) varius . – Acrescento: pt. antigo veiro ‘colorido’. 10008) vascellum. – Além do mencionado pt. baixel ‘navio’ também baixéla ‘louça’: ambas dificilmente palavras autóctones. 10026) vellus. – Acrescento: pt. vélo ‘tosão’, que tem de ser cortado em 10182. 10047) *ventana. – Acrescento: pt. venta < ventã (F.M. Pinto I, p. 294) = ‘narina’. 10064. – Ao invés de esp. pt. Verbene, 1. verbena. 10066) verbum. – No uso popular conservado pelo pt. antigo vervo ‘provérbio’. 10067) vere, (re)vera. – Já que verus falta estranhamente neste dicionário, seja mencionado aqui que também na Península Ibérica a palavra não foi completamente extinta; restos são esp. pt. veras (em de veras e outros), vera-cruz. 10078) vermis, -em e *-inem. – A existência de *verminem é indicada também pelo pt. antigo vermen, plural vermee s (CM). 10103) verto ... esp. pt. vertir. – O esp. pt. verter ‘entornar’ ao que parece é palavra popular; -vertir é certamente empréstimo, em esp. pt. divertir, esp. convertir, invertir, para os quais pt. converter, inverter. 10113) vespa. – O pt. vêspa e o esp. avispa indicam, assim como aparentemente o reto-românico vespia, um lat. *vespia.

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10114) vespera ... esp. vísperas, pt. vesperas. – Em ambas as línguas existe também o singular com o significado de ‘tarde, dia que antecede aquele de que se trata’. 10119. – Ao invés de catalão esp. pt. vettir, 1. vestir. 10124) veto. – Também em português vedar. 10130) vexo. – Körting deixa-se enganar pela grafia, se ele considera o pt. vexar (x = []) mais erudito do que o esp. vejar. 10144. – Ao invés do pt. Convizinhanza, 1. (con)vizinhança. 10156. – Diez tem evidentemente razão quando acredita que o it. vedetta se tenha formado a partir de veletta, pois stare alle vedette = stare alle velette. A palavra é no italiano aparentemente formada com apoio em vedere e terá sua origem, como outras expressões guerreiras, no espanhol. O esp. veleta não pode, na medida em que é derivado de vela, significar originalmente ‘cata-vento’, mas sim ‘sentinela’. 10184) vimen. – Acrescento: pt. vime. 10187) vinciculum. – Acrescento: pt. vencelho, também vincelho, vincilho ‘vime ou palha para amarrar videiras ou feixes’ etc. 10216 – 10217. – Körting cita: uiridis, non uirdis App. Probi. Mas se o antigo ortoépico julgava necessária essa observação, então é muito provável que em seu tempo o povo tivesse formado, ao lado de virdis, também virdia, virdium, virdibus, e é isso também o que Diez acha, sem que por isso se pudesse falar em mudança de acento. A partir de *virdia formou-se o pt. vêrsa; a melhor grafia é vêrça (assim já CM LXXXVIII, 3). Verza é grafia antiga inexata, assim como o veiza que aparece em Viterbo, Suplemento, e que certamente é leitura errada de verza. O it. verdeggiare, fr. verdoyer etc. obviamente não indicam *viridiare, mas * vir(i)didiare. 10221) virilia. – Dessa palavra vem, sem dúvida alguma, o esp. verija, mencionado por Körting, além disso o pt. virilha com o mesmo significado, mais antigo verilha (CM). Brilhas ‘coxas’, mencionado de acordo com C. Michaëlis, é aparentemente apenas uma variante. 10231. – Em esp. e pt. não é vísita – isso seria um deverbal formado de maneira incorreta –, mas visíta. 10259) vitrum. – O pt. vidro, assim como o esp. vidrio (isso é o usual, não vedro), < *vitriu, vitreu. 10261. – Também em português fita. 10277) vocalis. – Acrescento: pt. vogal que, como consoante e as respectivas palavras francesas, tem toda a aparência de palavra popular. 10279. – O pt. bosear (bousear desconheço) é certamente nada mais do que vozear, e este é o derivado português de voz. 364

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10287) volo. – Volar não é português. 10295) voluntas – seria nas línguas românicas apenas palavra erudita. Tendo em vista o pt. vontade < voontade e a locução bem usual ter vontade é permitido ter dúvidas a respeito dessa afirmação. 10310) votum. – Em português, afora bôda ‘casamento’, também bôdo ‘banquete’. 10356) germânico warjan ... pt. moderno guarecer. – A palavra é principalmente do português antigo e caiu hoje quase em desuso. 10359. – Não em relação ao substantivo guarda, mas a guardia se deveria dizer que a palavra falta em português: guarda é muito usual e já occorre no português antigo (CM CXLVI, 2), ainda que com gênero feminino, com o significado de ‘guardião, vigia’. A marta é em espanhol garduña, não jarduña. 10377) alto alemão antigo wërento ... esp. pt. garants. – Ao invés disso, 1. garante. A palavra é, assim como garantir, empréstimo do francês. 10334. – O pt. galardão, pt. ant. galardon e gualardon, de onde é derivado o verbo galardoar (não galadoar!), pt. antigo g(u)alardõar, terá de ser considerado empréstimo do provençal, assim como as respectivas formas espanholas. Que também nesse caso as formas com u não são meras variantes gráficas, deduz-se do judeu-espanhol օulaðrón, օulðronár. (Subak, Zeitschrift für romanische Philologie XXX, p. 159). 10389. – Em pt. ao lado de guirnalda também guirlanda e mais usual grinalda. 10440. – Ao esp. garzo corresponde o pt. garço. 10446) *zelosus – e 10447) zelus. – O português com sua diferenciação entre c surdo e z sonoro mostra mais claramente a relação das palavras daí derivadas do que o espanhol. Antigas palavras autóctones são: esp. celo, pt. cio e o plural esp. celos, pt. antigo ceos (CV 821), do qual o derivado pt. moderno ciúme; além disso, esp. celoso, pt. cioso, ciumento; finalmente esp. recelar (por que razão Körting supõe aqui apoio no lat. celare?), pt. recear, com o deverbal esp. recelo, pt. receio (grafia mais antiga receo). Erudito porém: esp. celo, pt. zêlo; esp. celoso, pt. zeloso; esp. celar, pt. zelar. As formas paralelas com z são no espanhol meras variantes gráficas. Vê-se por este exemplo quão importante é, muitas vezes, para o entendimento da história da língua espanhola, justamente o português.

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PORTUGUÊS

DO

BRASIL

DEIXE EU VER *

Assim se diz popularmente no Brasil por deixe-me ver ou deixe-me ver a mim; e dessas ou de parecidas locuções alguns estudiosos tiraram a conclusão de que o português brasileiro tenha apagado por completo, à maneira de um dialeto crioulo, a distinção sintática entre as diferentes formas dos pronomes pessoais. Porém, pode-se referir a confusão, ou melhor, substituição dessas formas a tipos bem específicos, dos quais quero diferenciar inicialmente três: 1. A locução acima tem sua origem no pensamento de que eu enquanto sujeito pertence a ver. 2. Na razão inversa, as expressões extremamente usuais do tipo ele trouxe [‘trosi1] umas laranjas para mim comer originam-se na convicção de que mim é regido pela preposição para. 3. Há uma forte tendência na evolução lingüística do português, tendência esta apenas mais avançada no Brasil do que em Portugal, de restringir de uma forma geral o uso dos pronomes átonos ligados proclítica ou encliticamente ao verbo. Compare-se neste sentido o português com o francês e não se duvidará da correção desta observação. Frases francesas como tout le monde l’a vu (l’ = o) ou donne-les-moi, em que os pronomes pessoais são indispensáveis, não têm, traduzidas para o português coloquial do Brasil, outra forma senão toda a gente viu e me dá ou dá para mim. A ligação de dois pronomes átonos ao mesmo verbo – como por exemplo m’o, lh’os, no-la etc. – aparentemente tornou-se em todos os lugares completamente estranha à linguagem coloquial brasileira. Liga-se também a isso o fato de que no Brasil – mas não em Portugal – os pronomes pessoais o, a, os, as tenham, na língua popular, caído de forma

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“Bras.-port. deixe eu vêr”, in Revue de Dialectologie Romane, 2 (1910) pp. 102-103. A minha transcrição fonética é a da Association Phonétique. Com [r] designa-se o som de r com apenas uma vibração da língua. Sobre vogais mudas, vid. abaixo. Todas as vogais tônicas são semilongas em português.

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geral em desuso, sendo substituídos – exceto o o neutro – por ele, ela, eles, elas, pospostos ao verbo. Trata-se sem dúvida de uma ulterior evolução moderna no sentido analítico e imediatamente não tem nada que ver com o uso de el (ele), ela, eles, elas como objeto direto já no português antigo. Pois no português antigo estas formas só se usavam no lugar de o, a, os, as, quando eram tônicas, da mesma maneira que no caso se usava mi (mim) para me e ti para te2. A semelhança aparente entre o uso do português antigo e o do português do Brasil moderno baseia-se apenas no fato de se haver tornado hábito, no português moderno, aplicar o caso oblíquo tônico do pronome pessoal exclusivamente depois de preposições, de maneira que se tem de dizer, caso se queira ressaltar o pronome obliquo, ao invés de viu-me, viu-me a mim, sendo que viu mim, antes também usual, caiu em desuso, e com ele evidentemente, pelo menos em Portugal, viu ele. A locução mencionada no título tem entretanto ainda um outro interesse, isto é, no que diz respeito à sua pronúncia. Esta é na cidade de São Paulo [’deeu’ve]; negros e caipiras (a população rural inculta) emudecem o [] final•. Recentemente reparei, porém, quando ouvi esse complexo fônico repetidas vezes, que o meu ouvido não o podia de modo algum diferenciar de [’deu’ve] – isto é, deixe-o ver. A razão é que em português as vogais átonas freqüentemente perdem o seu som parcial ou integralmente, depois de [], como em geral depois de fricativas e plosivas surdas. Isso acontece agora aqui, desde que não haja ênfase alguma na palavra eu. O [e], que originalmente superava a segunda componente do ditongo, o [u], em intensidade fônica, torna-se uma simples aspirada, com a boca na posição de um [e]. Essa aspirada, depois de um [] com quase a mesma posição bucal, não pode mais ser distinguida pelo ouvido e sim apenas pela análise mental de um mero glide ou som de transição3. A decisão, neste e em muitos outros casos, se um som de transição é concebido como um som autônomo, depende exclusivamente de fatores psicológicos: o falante tem evidentemente consciência de distinguir entre deixe eu ver e deixe-o ver, ainda que não faça nenhuma distinção na articulação.

2

* 3

Cf. por exemplo Lang, Liederbuch des Königs Denis (Halle 1894), v. 1370 e as minhas Cantigas de Guilhade (Erlangen 1907) v. 963-965. No original alemão “anlautendes [r]” é evidente lapso para “auslautendes [r]” (NE). Da mesma maneira, também na palavra alemã Raschheit, é para o ouvido via de regra indiferente se o [h] é pronunciado ou não.

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Português do Brasil deixe eu ver

B RASILEIRISMOS

E

C RIOULISMOS *

Sempre pareceu-me estranha a facilidade com que até os mais prudentes dentre os glotólogos admitem, e às vezes afirmam, que tal língua ou dialeto experimentou a influência de tal idioma estrangeiro, dispensando-se de demonstrar esta tese, que por si só não é nada evidente. Com efeito, meditemos um instante sobre quantas circunstâncias precisam concorrer para que um modo de expressão estranho a um povo se torne popular entre ele. Não basta para isso que uns indivíduos, ou mesmo uma classe inteira de indivíduos, apaixonados pelo que vem de fora, se apoderem da novidade: a massa da população, graças ao espírito de conservação, ao misoneísmo que a caracteriza em toda a parte, repudia o que não está de acordo com a índole da sua linguagem. Excetua-se o caso de ser introduzida de terra estranha uma coisa nova, que precisa de nova terminologia: é assim que vimos espalhar-se pelo Brasil o jogo do football com sua caterva de termos ingleses, e que no período da Renascença a multidão de idéias novas que necessitavam ser expressas abria o caminho à larga influência que então exerceu o latim sobre o léxico e a sintaxe de quase todas as línguas da Europa. Nesses casos é a necessidade que atua; mas, a não ser ela, que motivos tão poderosos podem levar um povo a renunciar aos meios de expressão que lhe são habituais, para adotar o que ofende os ouvidos de toda a gente quando aparece pela primeira vez? Eu pelo menos não creio que, porque nas cidades do Brasil os que imitam os imitadores dos ingleses (que são os franceses) falam hoje em “Ideal Club”, “Internacional Store” e “Paris Teatro”, os caipiras, isto é os campônios, brasileiros cheguem a substituir o “Governo Federal” pelo “Federal Governo” ou a “cana de açúcar” pela ‘açúcar cana”. E todavia, não há nada mais comum do que ouvir dizer que tal locução ou tal sintaxe que era desconhecida, ou é reputada ser desconheci*

“Brasileirismos e Crioulismos”, in Revue de Dialectologie Romane, Bruxelas, III (1911), pp.189192. (Este artigo foi republicado por Serafim Silva Neto na Revista Filológica, 7 (junho 1941) pp. 64-67. NE)

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da, aos autores portugueses dos séculos 16 e 17, foi devida a um galicismo, sendo o único argumento alegado o fato que essa locução ou sintaxe é também usual em francês. Argumento que por si só não vale nada, pois sabemos que os traços gerais da evolução de idiomas afins são em grande parte idênticos, porque são hereditários, – sem falarmos de certas tendências comuns a todas as línguas humanas, quer de selvagens quer de povos civilizados. Seja-me lícito mostrar em um exemplo a falácia da argumentação que, de uma semelhança à primeira vista surpreendente entre duas línguas, conclui que uma delas deve ter influído na outra. É sabido que o vocábulo caráter não conserva, na formação do plural, o acento tônico na mesma sílaba, fazendo caractéres; ora, quando atendermos a que em alemão se dá a mesmíssima irregularidade, sendo o singular Charákter e o plural Charaktére, parece intuitivo que a analogia dos fenômenos só se explica, se há entre eles a relação de causa e efeito. Contudo é certo que essa anomalia morfológica nasceu em ambas as línguas sem mútua dependência, visto que o singular e o plural conservaram meramente a acentuação latina, tendo-se os dois números introduzido isoladamente, e talvez em épocas diversas, nas línguas modernas, o que igualmente se infere dos seus significados, que não coincidem de todo no singular e no plural. Outro exemplo: vemos que tanto no português do Brasil como no crioulo da Guiné portuguesa1 o verbo impessoal há (no sentido de existe) foi substituído por tem. Concluiremos daí que uma particularidade das línguas africanas motivou esta substituição em uma e outra terra? Isso seria contrário à boa lógica, quando sabemos que esta nova evolução semasiológica do verbo latino TENERE (= ter) é a conseqüência coerente da anterior que registra a história das línguas portuguesa e castelhana. Com efeito, este verbo foi substituindo pouco a pouco o verbo HABERE (haver) em todas as suas acepções, as primitivas e as secundárias: primeiro como verbo transitivo, depois como auxiliar e finalmente como verbo impessoal. A primeira fase desta evolução já fora atingida na época dos mais antigos trovadores, à segunda não chegou ainda o espanhol literário, e a terceira só a observamos nos dialetos modernos: o que não admira, pois os dialetos sempre antecipam a evolução natural da língua comum e literária, assim como eles por sua vez são precedidos na evolução pela linguagem individual e infantil.

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Vide M. Marques de Barros, R[evista] L[usitana], VI, p. 310, § 108 e 109.

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Brasileirismos e Crioulismos

Sejamos pois circunspectos, e pesemos bem as probabilidades, antes de interpretarmos tal fenômeno particular ao dialeto brasileiro como feição de linguagem crioula, isto é, dum português imperfeitamente aprendido pelos índios ou africanos. Não admira que neste dialeto não faltem os traços aparentemente crioulos, pois a tendência geral de toda a evolução morfológica das línguas indo-germânicas, que é fazerem elas prevalecer cada vez mais o caráter analítico sobre o sintético, é igualmente uma das forças mais ativas na formação de dialetos crioulos. Ousarei até afirmar que em qualquer uma das nossas línguas flexivas todo o “erro de gramática” tem o seu análogo exato num fenômeno lingüístico de um dos falares crioulos. Estas reflexões me foram sugeridas por certos passos de um excelente livro há pouco publicado, as Palestras filológicas de A. R. Gonçalves Viana2. É uma coleção de artigos, pela maior parte já anteriormente publicados em diversos periódicos, e que, graças ao raro critério e profundo saber do autor, representam valiosas contribuições para a solução de variados e complexos problemas lexicológicos, sintáticos e outros. Porém, dito isso, devo confessar que nem sempre concordo com as opiniões por ele emitidas, assim como, particularmente, num capítulo (1. c., pp. 131135) que trata da colocação dos pronomes pessoais no português do Brasil: problema contestadíssimo, e que mais que tudo separa os escritores das duas nacionalidades. Gonçalves Viana subordina a três categorias os casos em que, neste ponto, o falar brasileiro diverge do de Portugal: “1°. Deslocação do pronome sujeito de orações interrogativas: – Quando ele veio? em vez de – Quando veio ele? 2°. Anteposição do pronome regime em orações enunciativas: – Me diga, me diz, em lugar de – Diga-me, diz-me. 3°. Posposição do pronome regime em orações de relativo: – O homem que viu-me, por – Homem que me viu.” “Essas construções sintáticas”, continua o autor, “não são nem foram nunca portuguesas; são crioulas, como crioulas são também as mais das particularidades de pronúncia brasileira que das de Portugal se afastam”. “É assunto que merece detido estudo”, diz ele próprio; e quer-me parecer que semelhante estudo não lhe dará plenamente razão. Quanto à sua classificação, convém observar que a primeira das três categorias não abrange somente os casos de colocação dos pronomes, sendo também usual no Brasil dizer-se, com um substantivo sujeito: – Quando o homem veio aqui? em lugar de – Quando veio aqui o homem? O segundo caso é certa2

Lisboa: A.M. Teixeira, 1910.

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mente característico do falar brasileiro, que não evita o emprego de um pronome pessoal átono no começo do discurso; mas o terceiro caso é apenas um exemplo da liberdade maior de que gozam os brasileiros na construção da frase, visto que O homem que me viu não é menos usual do que O homem que viu-me. E, seja dito de passagem, é sobretudo por esta liberdade que pugnam aqueles escritores brasileiros que se opõem à legislação dos gramáticos de Portugal, o que parece-me ninguém deveria levar-lhes a mal. Porém voltemos ao nosso assunto principal. Será verdade que as mencionadas particularidades da sintaxe brasileira são outros tantos crioulismos? Eu creio que não, e parece-me até que o próprio Gonçalves Viana refuta essa opinião quando diz (p. 132 e seg.): “Algumas dessas particularidades de sintaxe encontram-se em outras línguas, longe de influência crioula”. Cita construções italianas e esclavônicas, e lembra que também o português de Portugal, à falta de pronome ou advérbio interrogativo, antepõe regularmente o sujeito ao verbo na frase interrogativa. Ora, isso não foi sempre assim: no português medieval prevalecia ainda a posposição do sujeito em tais casos. Eu cito uns exemplos dos séculos 14 e 15, que tiro da excelente Crestomatia arcaica de J. J. Nunes3: És tu rei Ramiro? – Non sabedes vos que non a4 omen que tanto saiba de adevinhar como eu? Se hoje tais construções são menos usadas, revela-se nisso a conhecida tendência de fixar a ordem dos membros da oração e caracterizar o sujeito pelo lugar que ocupa antes do verbo. A mesma tendência verifica-se no francês moderno Comment votre pére va-t-il? – e o falar brasileiro que substituiu a frase Como está seu pai? por Como seu pai está?, obedeceu ainda à mesma tendência. Se esta tendência é crioula, crioula será quase toda a evolução sintática dos modernos idiomas indo-germânicos.

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Lisboa: Ferreira & Oliveira, 1906, p. 67 e p. 94. = há.

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FRASES FEITAS* (RIBEIRO, João. Frases feitas. Estudo conjectural de locuções, ditados e provérbios. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1908)

Neste livro há coisa boa e coisa nova; porém, infelizmente, o que há de novo não é bom... e o que há de bom não é novo. G. E. Lessing.

Reconheçamos que é bem difícil escrever, nesta terra e sobre assuntos filológicos, um livro de valor, sem redizer o que já foi dito por outros e sem deixar de aproveitar os resultados das pesquisas feitas por tantos sábios que em países tão diversos se dedicam à lingüística neolatina. A grande maioria das obras científicas que se ocupam dos múltiplos problemas referentes à história, não só das línguas românicas, mas do próprio idioma português, e particularmente todas as obras de maior erudição, tarde ou nunca aparecem no Brasil. As livrarias as ignoram, as bibliotecas públicas não as possuem. Quem conhece entre nós todos os trabalhos que publicaram e publicam os Monaci e de Lollis na Itália, os Cornu e Meyer-Lübke nos países de língua alemã, Jeanroy na França, H. Lang nos Estados Unidos? E poderia citar muitos mais. Pois até em Portugal e em língua portuguesa têm-se publicado obras de raro valor que parece são desconhecidas por aqui. Bem poucos saberão que a fonética ou fisiologia dos sons (ciência jovem, porém importantíssima para a compreensão da evolução lingüística) não produziu até hoje

*

Frases feitas. Estudo conjectural de locuções, ditados e provérbios, de João Ribeiro. In [Antônio de] Castro Lopes, Artigos philologicos. Rio de Janeiro: Instituto Profissional, 1910, pp. 467-482. (Coletânea Póstuma). [Resenha originalmente publicada em O Estado de São Paulo, de 22 de abril de 1908].

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muitos trabalhos mais preciosos do que a Pronúncia normal portuguesa por Gonçalves Viana1. Ninguém entre nós pode avaliar o quanto a Leite de Vasconcelos deve a dialetologia portuguesa (outro ramo da lingüística cujo conhecimento é indispensável a quem pretende compreender a história da língua). E quantos conhecem os oito volumes da Revista Lusitana, único órgão científico de filologia portuguesa?2 Privado de tantos subsídios, reduzido aos limitados recursos de sua própria biblioteca, é dificílima a tarefa do consciencioso investigador da história do idioma português. Seus estudos sempre ficarão imperfeitos e deficientes; sabe-o sobejamente quem escreve estas linhas; pois se veria completamente impossibilitado de acompanhar os progressos da ciência a que se dedica há bastantes anos, se não se correspondesse com vários dentre os sábios lingüistas que gozam de mais autoridade na Europa, e se alguns deles não o obsequiassem com a remessa regular de suas obras3. Todas essas dificuldades, porém, não justificam um livro tal como as Frases feitas do Sr. João Ribeiro. O autor chama “conjectural” o seu estudo; e com efeito, das idéias aí emitidas as que lhe são próprias não têm melhor desculpa que a de serem simples conjecturas. Mas que proveito poderá tirar delas a ciência da linguagem? Só o que se demonstrou, o que se sabe, constitui o cabedal de uma ciência; e se ela não pode dispensar as hipóteses, estas serão de nenhum valor, se não forem comprovadas por novos fatos e pela luz que espalhem sobre eles: porém uma aglomeração de meras conjecturas, expostas sem ordem e sem método, nunca merece o nome de trabalho científico. E ainda bem, se o único defeito do livro fosse o valor problemático que ele tem para o progresso da ciência. Há outra objeção muito mais grave. O Sr. Ribeiro aproveita, para seu estudo, um grande número de obras, e boas obras, antigas e modernas; mas como é que as aproveita? Para o dizer em poucas palavras: dá como suas as verdades descobertas por outros, e só os cita quando julga poder refutá-los. Quem o ler sem comparar as fontes em que hauriu, deve formar uma idéia elevada, se não do seu critério, ao menos de seu saber; e não é nada fácil seguir-lhe os rastos para fazer essa comparação, pois, ainda quando o Sr. Ribeiro julga oportuna uma citação, não costuma indicar claramente o lugar onde se pode procurá-la. E nenhuma advertência preliminar nos indica o quanto o autor deve a seus antecessores: ao contrário,

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Lisboa: Imprensa Nacional, 1892. Lisboa, na Antiga Casa Bertrand. Aproveito esta ocasião para agradecer publicamente à Sra. D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos e ao Sr. Aniceto Gonçalves Viana, a cuja amizade devo a maior parte das suas publicações.

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no estranho “Aviso a tempo”, que serve de prólogo, lemos estas palavras: “Os materiais deste livro representam talvez a primeira contribuição conjectural e imperfeita para o estudo da fraseologia portuguesa”. Ora – salvo se isso quer dizer que, dentre as contribuições para o estudo da fraseologia portuguesa, esta é a primeira conjectural e imperfeita – o autor aí claramente reclama um mérito de originalidade, que temos o direito de não admitir sem exame prévio. É sabido que Molière dizia, com relação aos assuntos de suas comédias: “Je prends mon bien où je le trouve”. Parece que o nosso autor, em suas incursões no campo da ciência, pretende usurpar os privilégios do poeta, apropriando-se o que não lhe pertence; e (assim como se têm escrito livros sobre as fontes do Decameron de Boccaccio) obriga o seu crítico a pacientes investigações acerca das fontes da ciência do Sr. João Ribeiro. Dei-me a esse trabalho, cujos resultados exponho aqui aos olhos e julgamento do público, habilitando-o assim a formar um juízo adequado desta nova obra. Confessarei aos leitores que tenho um motivo pessoal para escrever a presente crítica. É verdade que já há meses me perguntara eu se não prestaria um serviço público destruindo a autoridade de que injustamente goza com muitos este fabricante de livros pseudopedagógicos e pseudocientíficos; pouco inclinado, porém, por índole, a abater ídolos, renunciara ao projeto, quando vi a nota (a p. 255 das Frases feitas), em que o autor fulmina, numas vinte linhas esmagadoras, um livro meu recentemente publicado. Resolvi então reagir. Porém não se assuste o leitor: não tenciono falar aqui de mim nem de meus livros; nem urge mesmo defender-me dessa agressão, pois posso, ao contrário, esperar tranqüilamente as provas que naturalmente se seguirão em outro livro às asserções gratuitamente lançadas aí. Agora só responderei submetendo a uma crítica imparcial e fundamentada o livro que serve de título ao meu artigo. Não faço questão que os leitores me considerem um sábio: o que quero (e estou certo de consegui-lo) é convencer a quem me ler até o fim de que o autor das Frases feitas é um plagiário, e mau plagiário. Para isso não é necessário examinarmos a obra toda. Muito antes de se nos esgotar a matéria, estaria seguramente esgotada tanto a minha paciência como a dos leitores. Bastará mostrar, em alguns exemplos bem frisantes, o que constitui a verdadeira originalidade do autor: o singular processo de que se serve para explorar o trabalho alheio, e a lógica mais singular com que refuta ou simplesmente contradiz, sem alegar razões e quiçá sem compreendê-los, os mestres tais como Diez e Gonçalves Viana. Escolherei os assuntos de mais interesse, e não me cingirei à ordem observada pelo autor, que de fato é nenhuma; pois não só agrupa ao acaso os artiguetes que 375

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tratam das diversas frases ou vocábulos, mas acrescenta, num “Suplemento” mais confuso ainda, uns pós-escritos, que não raro invalidam as opiniões e argumentos expostos na primeira parte do livro. Pois entremos na obra. Logo no princípio do livro (p. 10-11) encontramos um artigo sobre a palavra ramerrão, e diz o autor: “Atribui-se também à prosódia de simples letras r-a-m=ram a origem do vocábulo ramerrão. A menção mais antiga que conheço de ramerrão está nas Enfermidades da língua registrada como palavra4 que ‘se deve emudecer’. Não creio, pois, que seja anterior ao século de seiscentos”. Paremos um instante. O leitor ingênuo naturalmente suporá, pelo que precede, que as Enfermidades da língua foram publicadas no século de seiscentos. Entretanto em outro lugar do presente livro (no qual tudo está em desordem, a disposição das matérias, o pensamento e a lógica), a p. 212, nota 1, vemos que aquela obra de Manuel J. de Paiva foi impressa em 1759. Como é, então, que o Sr. Ribeiro se baseia nela para concluir que o vocábulo ramerrão não é anterior ao século de seiscentos? É um enigma; porque, se a expressão pôde viver um século na boca do povo sem aparecer na literatura, podia viver dois ou três. Mas deixemos continuar o autor. Suspeito que esta forma não é devida à soletração das sílabas em ram (que aliás não são muito freqüentes no discurso) para significar, o que de fato significa ramerrão: coisa trivial repetida e corriqueira, habilidade comum, ao alcance de todos.

Suspeito eu que tudo o que lá está foi tirado de algum outro autor, que o Sr. Ribeiro não compreendeu, e que assim se explicam os disparates que acabamos de ler. O Sr. Ribeiro afirma que a sílaba ram não é muito freqüente no discurso; e insiste, pois logo adiante fala outra vez da “sílaba pouco freqüente – ram”. E o sem-número de formas verbais tais como param, pararam, correram, partiram, etc.? Todavia, a pouca freqüência dessa sílaba é o único argumento alegado pelo nosso autor contra os que atribuem ao hábito da soletração a origem do vocábulo! Continua o Sr. Ribeiro: “Julga Gonçalves Viana que ram-ram é a mesma palavra indiana registrada no glossário de Yule e Burnell; mas essa identidade é fortuita”. – Acaso estranho, por certo, o que mereceria uma explicação. Mas debalde a pediremos ao autor, que continua: “E não há texto português dos escritores 4

“A menção está registrada como palavra”: assim se exprime quem publicou não sei quantas gramáticas do português!

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que trataram da Índia, que abone a expressão”. – É crível que o Sr. Ribeiro tenha lido todos os escritores portugueses que trataram da Índia? O vago das suas palavras faz supor que também esta asserção é devida a alguma fonte inominada. Agora o autor passa a dar sua própria opinião: “A meu ver, o ramarrão ou ram-ram que se pronuncia rame-rame” (outro enigma: onde é que se encontra esta estranha pronúncia?) “é apenas uma leve corruptela da locução rama a rama, isto é, pela rama, ou de modo rudimentar. Os versos do Pranto de Maria Parda dão uma das formas e sentidos da locução: Que quando era o trão e o tramo Andava eu de ramo em ramo Não quero deste, mas deste

“Aqui de ramo em ramo quer dizer de venda em venda, ou taverna, ou casa. E isto é que é o ram-e-ram, e equivale ao trivial de varejo”. Confesso que não compreendo: nem de qual das locuções citadas o autor quer derivar ramerrão, nem como dos significados “de modo rudimentar” e “de venda em venda” se pode chegar ao sentido primitivo do substantivo ramerrão5. Mas o que sei, é que nunca uma locução perfeitamente portuguesa e transparente como de ramo em ramo se poderia ter transformado no vocábulo ininteligível ramerrão. Porém não nos ocupa tanto aqui a origem do vocábulo como a das afirmações do Sr. Ribeiro. E são as seguintes, que até aqui ficaram sem explicação: ser rara a sílaba ram – ser o vocábulo de que falamos desconhecido dos antigos escritores que trataram da Índia – ser ram-ram uma variação de ramerrão, a qual se pronuncia rame-rame. E tudo isto, e mais a menção da palavra ramo, que provavelmente inspirou ao Sr. Ribeiro a etimologia por ele proposta, encontramo-lo no livro recente de Gonçalves Viana, que é uma contribuição verdadeiramente valiosa, não só aos dicionários como ainda à fraseologia portuguesa. Aí6 lemos, no interessante e instrutivo artigo que é dedicado ao vocábulo ramerrão: Que há uma repetição de som, percebe-o toda a gente; mas que ela seja devida ao hábito da soletração é o que certissimamente parecerá singu-

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Este sentido, segundo Adolfo Coelho (Dicionário manual etimológico, p. 1.019), é ruído monótono e consecutivo e segundo Gonçalves Viana (Apostilas aos dicionários portugueses. Lisboa, 1906, II, p. 37), “repetição fastiosa” [sic]. Obra cit., pp. 338-39.

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lar, visto que os vocábulos começados pela sílaba ram se limitam a ram e seus derivados, e a pouquíssimos mais, todos os quais raras vezes se lerão em cartilhas, e sempre se soletraram ra-mo, e não ram-o. No Glossário, a todos os respeitos interessante e completo, de Yule e Burnell7, vemos uma inscrição Ram-Ram definida nos termos seguintes: ‘... a saudação mais usual entre dois índios que se encontram no caminho; invocação à divindade’. Seguem-se-lhes três abonações, a mais antiga das quais é de 1673, não sendo nenhuma de escritor português antigo, o que prova ser a expressão moderna cá, tanto mais, que ainda não figura no Vocabulário de Bluteau. É pois certo que tal expressão a trouxemos da nossa Índia, em tempos posteriores ao do nosso predomínio lá, por isso que, se já estivesse divulgada na Índia portuguesa nos séculos XVI e XVII, provavelmente dela teriam feito menção os nossos escritores, os eruditos autores do Glossário teriam aduzido abonação portuguesa, como fizeram cautamente em toda sua notabilíssima obra.

Traduz em seguida Gonçalves Viana a última das três abonações mencionadas, que é a relação de um viajante que, encontrando em Londres, no aviário do Palácio de Cristal, um papagaio verde triste e doente, reanimou-o e fê-lo saltar de júbilo, saudando-o à indiana com o Ram-Ram. E aventa a engenhosa hipótese: Seria um papagaio da Índia, trazido para Portugal por alguém, vindo de lá, quem nos transmitisse esta expressiva palavra? – A análise dela é a seguinte: o nome Rama, que se aplica à divindade, e o do herói mítico, personagem principal do poema Ramáiana, é pronunciado rám nas línguas vernáculas, com supressão da vogal breve final, e quando na pausa, a terminação am é proferida como ã; deste modo, na boca de um índio Ráma-Ráma soa como ramrã, de que se fez em português ramerrão.

Os leitores – a quem peço desculpa por ter de citar extensa e freqüentemente a João Ribeiro – de certo me agradecerão esta última e longa citação, que com tanta lucidez expõe e resolve o problema, e a que seguramente nenhum homem de bom senso acharia nada a acrescentar. O Sr. João Ribeiro, este sim, tira do contexto algumas das idéias mal compreendidas, trunca-as, embrulha-as, aproveita ou rejeita-as a seu bel prazer, e põe como remate uma das suas “conjecturas” sem pé nem cabeça: e eis o que chama

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O consciencioso autor dá aqui, como sempre, o título da obra citada, por extenso, com o lugar e ano em que se imprimiu, e a página onde se pode procurar a citação. E nisto não faz mais do que seguir uma praxe há muito estabelecida para todos os livros científicos.

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uma “contribuição ao estudo da fraseologia portuguesa”! Mas compreendem agora os leitores porque ele, que deve ao livro de Gonçalves Viana todas as suas melhores idéias, não dá o título deste livro, ou o dá tão incompletamente8 que, onde não é conhecida a obra, essa indicação não pode servir de nada? Passemos a examinar o artigo (pp. 16-19) que trata da locução dar às de Vila Diogo. O método de que aqui se serve o autor pode-se resumir nas palavras pescar em águas turvas; ver-se-á que ele atrapalha o que era claro e tenta tirar, da confusão assim produzida, a pérola da verdade. Não admira que a tentativa gorasse. Começa ele dizendo: “Dar ou tomar as de Vila Diogo é a locução usual”. Seria bem estranho, se assim fosse: pois dar e tomar exprimem evidentemente idéias contrárias. Mas a contradição desaparece, se distinguirmos o que o Sr. Ribeiro confundiu; “tomar” as (em espanhol las), porém “dar às de Vila Diogo”. Note-se que esta última forma da frase é usada em Portugal, onde as e às (contração de a as) se distinguem perfeitamente na pronúncia. Mais adiante lemos: “Em todas estas expressões uma vez estudada na sua história entende-se a palavra por brevidade oculta – calças –; tomou as calças de V. Diogo e quer dizer: fugir precipitadamente”. O autor se esquece de nos dizer que quem estudou essas expressões na sua história foi Gonçalves Viana9, a quem ele nem sequer nomeia em todo este artigo. Continua: “A frase é antiga na península porque já aparece na Celestina, a primeira obra do teatro de Espanha: – Apercíbete a la primera voz que oyeres tomar calzas de Villa Diego”. – O exemplo tirado da Celestina, que é o mais antigo de quantos se encontram, acha-se mais completo em Gonçalves Viana: o Sr. Ribeiro apenas modernizou-lhe um tanto a ortografia e acrescentou de seu o predicado de “primeira obra do teatro de Espanha” que deu àquela tragicomédia: o que é um erro, primeiro porque ela não foi escrita para ser representada, e depois porque existiam outras obras dramáticas em língua espanhola, muito mais antigas, como, por exemplo, o Misterio de los Reyes Magos, do século XIII, um fragmento do qual se conservou até hoje. Depois de afirmar enfaticamente que a frase em questão “nunca pôde ser explicada” (até estas palavras são tiradas de Gonçalves Viana, que,

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É só na p. 28, e outra vez a p. 138 e 209, que lemos Gonçalves Viana, nas suas Apostilas (“magníficas” as chama o autor uma vez, num momento de gratidão: e de fato, que seria do seu livro, sem o de G. Viana?). Obra cit., II, p. 540-42. Leia-se aí o artigo, que espalha luz sobre muitos pontos obscuros e, se ainda deixa margem para alguma dúvida, merece a mais séria meditação.

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entretanto, se exprime com mais modéstia, “nunca foi analisada, que eu saiba”, e, em seguida, dá uma explicação bem melhor que a que vamos ler), o nosso autor continua: “Para entender convenientemente, é de mister notar que calças tinha outrora sentido diferente e mais etimológico, (como está em Viterbo) e correspondia a vestes e cobertura inferior, ao que chamamos hoje meias e sapatos ou botas”. Segue-se, em abono disso, um passo do Auto dos Cantarinhos10: “Sofrei estas calças, filho, sem sapatos”. O Sr. Ribeiro julga, portanto, que calças significava outrora o conjunto das meias e sapatos, e que, por conseguinte, por “calças sem sapatos” se devem entender as meias sós. Retifiquemos o erro; e, visto que a história de um artigo importante do nosso vestuário não deixa de ter seu interesse geral, peço vênia para ser um pouco mais extenso. É evidente que as calças eram primitivamente a cobertura dos pés, pois o vocábulo deriva do latino calx (= calcanhar); e a primitiva significação se descobre ainda hoje nas palavras descalço, calçar e calçado11. Para se compreender a translação de sentido, convém saber que, durante grande parte da Idade Média, a população rude dos campos usava dumas vestimentas, originariamente feitas de couro, que cobriam pés, pernas e quadris; eram estas as calças, nome que, quando essa vestimenta se dividiu em duas partes, ficou reservado à parte superior, sendo a inferior as botas e as meias. A língua francesa traz os vestígios inequívocos desta evolução do vestuário: no tempo de Molière as calças se denominavam haut-de-chausses (isto é, o alto das calças), e ainda hoje as meias são les bas, o que é abreviação de bas-dechausses. Entretanto, nos últimos séculos da Idade Média o vocábulo calça tinha ainda outro significado. Não o aprendemos tanto em Viterbo, acima mencionado12, que é pouco claro aqui, como no Vocabulário de Bluteau13, onde se lê que calças antigamente eram “umas bandas com que se rodeavam o tornozelo e a barriga da perna”. É o sentido que chausses também tinha no

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O Sr. Ribeiro acrescenta aqui, aparentemente para o leitor poder verificar a citação, o número 494, mas que adianta isso, quando não sabemos se é o verso ou a p. 494, nem qual a edição utilizada? O Sr. Ribeiro dá os últimos dois exemplos, porém em ordem inversa, apesar de ser manifesto que de calçar foi derivado calçado, isto é, a coisa calçada. Procure-se o lugar no seu Elucidario, Lisboa, 1798, v. I, p. 226. Aí calça se define por meia, calçado das pernas, e cita-se um exemplo, do ano de 1458, em que se conta como duas mulheres, em traje de homens, deram a uma velha, com uma calça, tantas calçadas (golpes) “de que segundo fama morreu”. Vocabulário port. e lat. Coimbra e Lisboa, 1712-28, v. II, p. 51.

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antigo francês14, e caussas em provençal15: era a cobertura das canelas16, e este sentido parece convir perfeitamente ao verso citado do Auto dos Cantarinhos. Depois destes preliminares, em que acompanhamos o Sr. Ribeiro, ouçamos a sua explicação, – se explicação se pode chamar o que confunde numa maranha inextricável as coisas e termos mais heterogêneos. “Deixar as calças era e foi sinônimo de morrer”, diz ele sem alegar prova desta afirmação; apenas cita umas locuções francesas e italianas que, segundo ele, são sinônimas daquela portuguesa. E continua: “Ainda em português, no Brasil pelo menos, deixar ou esticar as botas (e esticar as canelas) tem o mesmo sentido de morrer”. – Então deixar as botas, esticar as botas e esticar as canelas, é tudo o mesmo? Esticar as botas e esticar as canelas são expressões análogas, e compreende-se que elas se empreguem no sentido de morrer; mas deixar as botas é coisa muito diversa, e se de fato esta locução existe, claro é que não seria menos acertado o modismo que substituísse aí botas por qualquer outro artigo do vestuário – calças no sentido moderno, por exemplo, – ou mesmo por qualquer objeto de nossa propriedade que não nos possa acompanhar ao outro mundo, porque deixar as botas nesse caso não é mais que um modo mais ou menos jocoso de dizer deixar os bens terrestres. E agora, peço aos leitores apreciem o seguinte silogismo: “Para indicar o sentido contrário a morrer que é o de escapar e salvar-se (se sauver) que o mesmo é que fugir, empregou-se em vez de deixar a oposta frase tomar as calças ou levá-las”. O contrário de morrer é manifestamente nascer, e se alguma língua exprimisse este último sentido pela frase tomar as calças, seria estranho, sem dúvida, porém não seria de todo absurdo. Mas que alguém se lembrasse de exprimir a idéia de escapar à morte por tomar as calças, unicamente porque deixar as calças significa morrer, – só se for num momento de alienação mental. Deixar os bens terrestres é morrer; mas quem é que diria tomar os bens terrestres no sentido de escapar? E, se o dissesse, quem o entenderia? Levar as calças no sentido de fugir, isto sim, se compreende; mas, apesar da afirmação do Sr. Ribeiro, levar não é o mesmo que tomar, nem fugir correndo o mesmo que escapar à morte. Desta vez, porém, o nosso autor aduz provas, – e que provas! A primeira é a frase de La Fontaine tirer ses grègues, que significa fugir. Ignora 14 15 16

Bartsch, Chrestomathie de l’ancien français. Leipzig, 1880, col. 83, v. 39. Bartsch, Chrestomathie provençale, Elberfeld, 1880, col. 51, v. 44. Por isso Bluteau dá a tradução latina tibialia (de tibia = canela).

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o Sr. Ribeiro que a tradução literal é puxar, isto é, ajeitar as calças (no sentido moderno), – operação que certamente pode ser útil a quem se prepara a correr. Outras provas – e estas de todo incompreensíveis – são o solecismo português Pernas, para que te quero? e o adágio Dar de pé que tempo é. E finalmente, para ainda mais esclarecer a questão, compulsa o autor a antiga Lex Salica, em virtude da qual os que faziam cessão dos bens deviam retirarse saltando sobre a cerca, tirado o cinto e descalços. E conclui daí que tirar as calças é idêntico a abandonar ou fugir17. Assim, correndo os olhos mais uma vez sobre todo este artigo, vemos que tirar, levar, tomar, e dar as calças são, segundo o autor, todas expressões sinônimas. Mas o que se colhe de tudo isso? Não será preciso lembrar ao leitor atento que, se houvesse alguma coisa de aceitável nas idéias do Sr. Ribeiro, isso apenas explicaria a frase tomar as suas (próprias) calças, porém nunca tomar as de Vila Diogo, e muito menos dar às de V. Diogo. O autor, que não descobre nenhuma contradição nestas formas diversas, recorre ao fácil expediente do supor “qualquer antiga anedota”: anedota de que nem ele nem outro algum nada sabe. Vejamos agora um curioso exemplo da ingenuidade com que o autor contradiz, em matéria que está inteiramente fora de sua competência, os sábios de reconhecida autoridade. Trata-se da afamada edição que Carolina Michaëlis de Vasconcelos deu do venerando Cancioneiro da Ajuda; e diz ele (p. 20, em nota): Presumo não é boa a leitura que fez a insigne Carolina Michaëlis: Pois que eu morrer, filhará Enton o seu queix’ e dirá Eu sõo Guiomar Affonso. Canc. da Ajuda, I, n. 143 Quanto a mim, preferiria ler o soqueixo como está na ed. paleográfica do Canc. Brancuti, 250.

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Tão curta é a memória do autor, que, em apoio desta explicação observa que “a morte é uma cessão forçada”, esquecendo-se completamente do que dissera pouco antes – que fugir é o contrário da morte.

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Eis a opinião do nosso filólogo dilettanti. A razão por que Carolina Michaëlis preferiu a lição do códice da Ajuda à do Cancioneiro Brancuti, ignora-a ele evidentemente (e não poderia ignorá-la, se tivesse o hábito de ler as obras que cita, em vez de folheá-las). É que o códice lisbonense é muito mais antigo e correto do que os dois apógrafos de Roma (o Cancioneiro Brancuti e o da Vaticana), devidos ambos a escreventes italianos. Exige, portanto, o simples bom senso que não se abandone, sem justo motivo, o texto do códice da Ajuda para adotar outro, em nada melhor, dos códices de Roma. E quais são os argumentos em que se funda o Sr. Ribeiro para substituir as palavras seu queixo por soqueixo? Parece incrível; mas o único que ele alega é que existia antigamente o vocábulo soqueixo. E o que significava o tal vocábulo? Segundo ele próprio, queixo ou barba. Examinemos, à luz desta interpretação, o trecho citado. Filhar quer dizer tomar, pegar: será, pois, na sua barba que pegará a Sra. D. Guiomar Afonso, na opinião do Sr. João Ribeiro? Deve ser; pois, se o sentido aí fosse queixo, que motivo poderíamos ter para preferir à lição do códice quase contemporâneo dos próprios poetas o termo sinônimo de um manuscrito muito mais moderno e crivado de erros? Assim se torna ridículo quem pretende emendar o texto dos antigos cancioneiros sem estudo sério da matéria – e, o que é pior, sem saber a significação das palavras que pretende introduzir nesse texto. Pois soqueixo não quer dizer nem queixo nem barba, o que o Sr. Ribeiro poderia ter aprendido no Cancioneiro da Vaticana, ou mesmo no vocabulário de Bluteau, – livro que ele cita, mas quem sabe se o viu? Viu, sem dúvida alguma, e soube aproveitar o Elucidário de Viterbo. No fim da longa dissertação sobre a frase nem chus18 nem bus (pp. 26-28), ele menciona o fato de já ter dito Viterbo que bus significa beijo; mas tudo o que há de bom nesse artigo de mais de duas páginas, pode-se resumir nas seguintes indicações que eu tiro do Elucidário19. Aí bus explica-se assim: “beijo, ósculo, sinal de reverência, amor honesto, e cortesia... A isto alude o adágio: Foi-se sem chus, nem bus, isto é, nem coisa alguma disse, nem o mais leve sinal de cortesia fez”. E chus, Viterbo interpreta-o por mais, citando, em abono deste vocábulo, documentos de 1290 e 1305. Daí, sem dúvida, a asserção gratuita e improvável do Sr. Ribeiro – que a frase nem chus nem bus “já se encontra nos mais arcaicos documentos em prosa”. Ele continua: “e nos cancioneiros medievais”. O que

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Restabeleço a verdadeira grafia do vocábulo. A de que usa o autor – chuz – disfarça a origem da palavra sem vantagem nenhuma; não é nem fonética nem etimológica e, portanto, sob todos os aspectos é má. V. I, p. 217 e p. 273.

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afirma é falso, senão cite um exemplo de qualquer cancioneiro anterior ao de Resende (ano de 1516). Examinemos agora o que o nosso autor acrescenta de seu à explicação de Viterbo, além da etimologia de chus (do lat. plus), que se lê em qualquer dicionário etimológico, o de Adolfo Coelho, por exemplo, e além de alguns exemplos e do emprego de chus, de bus e buz, fáceis de juntar, mas que precisariam muito de ser interpretados, não são senão disparates. Diz ele da frase que lhe serve de epígrafe: “Também tem a forma chuz nem muz, e é esta (?) prosódia a que aparece na locução sinônima: não tuge nem muge. Aqui muge está por buje ou buz.” – Não está, por certo; pois tuge e muge têm a função de formas verbais, o que chus e bus evidentemente não são. Continua: “No francês há a mesma (!) forma bouge com o mesmo (!) sentido e também como a nossa, só usada com a negativa”20. – Que relação pode haver entre muge e a palavra francesa bouge, pois esta é uma forma do verbo bouger, cujo sentido não se afasta muito do de bulir, e cuja origem não se revela na sua forma provençal bolegar? Bulir provém do lat. bulire, e é por isso que Diez21 deriva bouger e boulegar de uma palavra latina bullicare, hipotética sim, porém de formação impecável. Mas o Sr. Ribeiro, sem tomar o trabalho de refutar o juízo do maior dos etimologistas, diz em tom decisivo (e nunca se disse maior absurdo): “A origem deve ser comum para bouge, buz e muz e muge e não pode ser senão derivados mediatos22 de basium e bucca”. Parece que em etimologia tudo é possível: debalde trabalharam Diez e outros grandes glotólogos, pois ainda há lingüistas que ignoram que a evolução fonética segue certas e determinadas leis e que para observá-la não se pode dispensar um estudo sério e um método seguro. Mas releia-se atentamente a sentença há pouco citada. Compreende-a o leitor? Julgará, sem dúvida que, se aqueles vocábulos “não podem ser

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O Sr. Ribeiro tem o prurido de mostrar erudição, citando vocábulos e trechos de línguas que conhece imperfeitamente. Não pode citar de memória cinco palavras de alemão sem cometer erros de conjugação e declinação (p. 255, I. 24; p. 256, I. 33); no latim, confunde qui e cui, p. 23); como exemplo de provérbios que “se reconhecem espanhóis pela deficiência da rima” p. 272, cita: Depois de peixe, mau é o leite, – como se as palavras espanholas pez e leche dessem melhor rima que as portuguesas! Dos erros ortográficos nem falo. Cita até o árabe (p. 52), de que certamente não sabe muito, pois copia servilmente uma transcrição estrangeira, que, sem chave, é pior que hieróglifos. Etymologisches Wörterbuh der romanischen Sprachen. Bonn, 1878, p. 530. O Sr. Ribeiro deveria conhecer o livro, pois o cita bastantes vezes. “A origem não pode ser senão derivados”: não sou eu, – é o gramático João Ribeiro que se exprime assim!

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senão derivados de basium” (que deu beijo), isto exclui a hipótese de procederem de bucca (= “boca”) e vice-versa. Pois ilude-se. Segundo a extraordinária teoria do nosso lingüista, um vocábulo português não provém de um só vocábulo latino; tem, para assim dizer, pai e mãe, e o beijo e a boca geraram o filhinho (que já pelo pouco volume mostra sê-lo) – o novo vocábulo buz. Parece que a isso é que ele chama “etimologia popular”, da qual dá uma definição em linguagem mística ou antes mistificadora, na. p. 72. Porém não nos deixemos mistificar. As idéias do autor são tão confusas, as suas opiniões tão pouco assentadas, que as contradições não se podem encobrir com estes e semelhantes subterfúgios. Na p. 69 lemos: “Não tuge nem muge... são formas verbais de tossir e mugir e já tiveram explicação quando tratamos do ditado – nem chuz nem buz”. Tiveram, sim, e com esta nova já são três explicações: todas três contraditórias, e nenhuma boa. Mas parece que basta. Vêem os leitores que não seria difícil refutar o autor com seus próprios argumentos: mas o que aprenderíamos com isto? Seria sempre o mesmo: o que há de bom não é novo, e o que há de novo não é bom. Se em uma dezena de páginas (que mais não examinei aqui) pude assinalar tantos plágios e erros, bem grosso seria decerto o volume que encheria com o exame crítico das 289 páginas das Frases feitas. Por hoje, termino: quis esclarecer o público, e espero que o consegui. ***

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Correspondência entre Oskar Nobiling e Domingos de Castro Lopes Carta de Oskar Nobiling* S. Paulo, 2. VI. 08. Rua Taguá, 2. Exmo. Sr. Domingos de Castro Lopes.

Só ontem retirei do correio a carta tão longa quanto interessante com que me honrou V., datada de 24 do mês pass.*; e agradeço penhorado tanto as amáveis referências à minha pessoa como as informações valiosas, que me comprovam plenamente a opinião que já tinha formado do caráter do João Ribeiro. Quanto a suas freqüentes alusões às Origens de anexins, nunca duvidei, apesar de não ter visto esse livro, que ele fosse sumamente injusto para com o finado pai de V.: tão visível era a animosidade com que o tratava. Aliás, longe de mim a idéia de querer vedar à imaginação o papel que pode fazer, ornando com flores aqueles mesmos terrenos explorados em trabalho penoso pela severa ciência. Se for necessário, voltarei ao assunto do meu artigo; espero, porém, que não o será, visto que J. Ribeiro não quis replicar pelas colunas do Estado de S. Paulo. Resta-me apenas responder às censuras – bem fúteis, na verdade – que se lêem nas Frases feitas relativamente à minha Tese de Doutorando, As cantigas de Guilhade. Esta resposta acha-se na Revista Scientifica de S. Paulo, e logo que sair o número, tomarei a liberdade de enviar um exemplar a V. Verá assim V. que não foi por fugir à discussão que deixei de tratar numa folha diária questões de cunho exclusivamente científico. Regozijando-me com V. de que pude, pela minha crítica, prestar um serviço à memória de um finado escritor de mérito, sou seu am°. at°. e obrigadíssimo. O. Nobiling

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Carta ao Exmo. Sr. Domingos de Castro Lopes. In [Antônio de] Castro Lopes, Artigos philologicos. Rio de Janeiro: Instituto Profissional, 1910, pp. 465-466. (Coletânea Póstuma). Esta carta, em que Domingos de Castro Lopes manifesta a Oskar Nobiling o agradecimento pela “desforra” que representava a sua crítica ao livro Frases Feitas, publicada no jornal O Estado de São Paulo, da “súcia de desaforos com que [João Ribeiro] honr[ara] ao [seu] progenitor [o Dr. Castro Lopes]”, está também publicada na mesma obra, pp. 459-465. (NE)

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Frases Feitas

L ITERATURA P OPULAR

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COLETÂNEA

DE

C ANÇÕES B RASILEIRAS *

CANÇÕES POPULARES BRASILEIRAS, COLIGIDAS DA BOCA DO POVO De Joaquim Gregório [1 a]1 (Negro, idade cerca de 30 anos, residente em Espírito Santo do Pinhal. Junho 1895) Que é da chave do baú2 Que te dei para guardar? ‘Tá no fundo do baú; Se quiser, vá lá buscar. _____ Tenho dinheiro em prata – quizumba –, Para gastar co’ as mulata; Tenho dinheiro em ouro – quizumba – Para gastar co’ as crioula; Tenho dinheiro em cobre...



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1 2

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Sammlung brasilianischer Lieder (Manuskript). 32 Seiten um 1895-97. Umschrift von Hellmuth Heinke der stenographischen Bemerkungen. (Coletânea de canções brasileiras (manuscrito). 32 páginas. 1895-97. Transcrição das anotações estenográficas por Hellmuth Heinke.) O manuscrito encontra-se no Instituto Martius-Staden, em São Paulo. As cantigas estão copiadas em duas colunas por folha, o que se indica por 1a, 1b etc. (NE) No ms. está “bahú”. Na transcrição das quadras, atualizou-se a ortografia; mantiveram-se contudo as grafias que Nobiling emprega para indicar a pronúncia. (NE)

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De Carlo Bergamini (Italiano, idade cerca de 25 anos, residente no mesmo lugar. Junho 1895) Cana verde, cana verde Foi o diabo que inventou. Mas o diabo foi p’ra o inferno, Cana verde aqui 3 ficou. _____

Tenho raiva do caipora Que tem medo de soldado Co’ a garrucha de Laporte E co’ o refe pendurado. _____ Mulatinha que veio de Campina E (cá?) trouxe café para vender E de venda comprou de vancê Ó mulatinha redai quero ver. _____ [1 b]

No navilho do papai Um bichinho me mordeu; Eu não sei que bicho era E que tanto me doeu. Menina, que bicho era?... Era cascavel?... Cascavel também não era,... Era um bicho muito feio, Muito feio e muito mau, E quando ficava zangado, Ficava mais duro que um pau. Ele não tinha nem braço nem perna, E nem asa para voar; Era tudo coberto de pele, Muito amigo do brincar. 3

Os parênteses e colchetes com dúvidas, emendas ou variações, nas próprias quadras, são de Nobiling. Entre >, indica-se o que se encontra nas entrelinhas. As notas, a menos que de outra forma assinaladas, são as que Nobiling acrescentou ao texto, em forma estenográfica ou não. (NE).

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Menina, traga aqui meus óculo, Que eu quero visitá a ferida... Papaizinho, não me pega, Papaizinho do meu coração; Que a dor que estou sofrendo Não merece compaixão. _____ Eu pinchei um limão doce Numa moça na janela; O limão caiu por dentro, E eu caí em braço dela4. Ela me xingou de louco, Mas louco ficou por ela, Esta minha sorte é boa, E também a sorte é bela5. _____

[2 a]

Meu amor é um diamante, Nem assim não digo bem: Diamante tem seu preço, Meu amor preço não tem. _____ Minha terra, minha terra, Ela lá e eu aqui... E quem for p’ra minha terra, Me faça uma caridade: – ai –: Diga lá p’ra meu benzinho Que quasi morro de saudade – ai. _____ Ó serando, serandinho, Vamo nós serandear, Vamo dar a meia volta, Volta e meia vamo dar.

4

5

Vid. [Romero], Cantos, I, 238, 249; II 69. (Nobiling refere, em anotações acrescentadas ao manuscrito, algumas das cantigas à coletânea do Sílvio Romero. A edição utilizada por ele é provavelmente a mesma que citou nas “Quadras do Estado brasileiro de São Paulo”, nota 1: Cantos populares do Brasil, coligidos pelo Dr. Sílvio Romero. Lisboa, 1883, 2 v. NE). Romero, Cantos, I, 238, 249; II, 69.

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Vamo dar a volta e meia, Cavaleiro, troca par!6 [2 b]

1. Meu amor é pequenino, Do tamanho de um vintém; E (? mas?) por ser assim pequeno Não barganho com ninguém7. Ó serando, etc. 2. Fui no campo apanhar flor, Todo o campo escureceu, Apanhei uma rosa branca, Era triste como eu. Ó serando, etc., etc. _____ Eu pinchei um negro em água, Gambeteou virou no ar. Eu encontrei com negro velho, E me pediu onde agora vou morar.

 De Henrique Florence (julho 95) Cara de velha Não tem que olhar; Cabeça de bagre8 Não tem que chupar.

 De José Alves da Rocha (Mestiço, cerca de 30 anos, residente em Espírito Santo do Pinhal. Julho 95). Vou fazer o meu relógio De uma lasquinha de queijo, 6 7 8

Romero, Cantos, I, 248. Romero, Cantos, II, 35 [...] 54, 802. (Um peixe)

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[3 a]

Para marcar os minuto Da hora que não lhe vejo9. _____ Quem me dera eu te enxergar Trinta dia em cada mês, Em cada semana seis dia, Em todos minuto uma vez. _____ A moça sendo bonita E não sendo constante É arreparada. A moça sendo feia E sendo constante É consederada. _____ Mandei ler a minha sina Para vê que vem contando E felicidade para amor de longe Que amor de perto estão me judeando. _____ Quando vim lá da cidade, Vi uma moça intimadeira, Co’o vestido à moda, Riquefoque10 nas cadeira. Calçadinha, vestidinha, De botina ringideira, Forte moça entusiasmada, Que danada matadeira! _____

[3 b]

Você era quem dizia, Eu era quem duvidava

9 10

Romero, Cantos, II, 54. (Quadril) [H. Heinke parece ter tido dificuldade para interpretar a notação, pois transcreveu-a como “Huefte, Huete oder Huette”; obviamente, a primeira hipótese é a adequada, pois trata-se de “cadeira” no sentido de “quadril”, como o próprio Nobiling explica nas “Quadras do Estado brasileiro de São Paulo”, cantiga II.] (NE)

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Daqueles prazer que tinha, Quando nóis dois se ajuntava11. Daqueles prazer que tinha, Quando nóis dois se ajuntava, Agora vivo chorando: Aquele tempo eu não chorava. Agora vivo chorando: Aquele tempo eu não chorava. Eu sempre é que te dezia Que o bom tempo se acabava. Naquele cordão de serra, Naquela outra de lá, Avistei a Serra Negra Donde meu bem foi morar12. _____ Eu me chamo José Alves, Sobrenome de Vicente; Quem não amar este nome, Tem de morrer de repente. _____ Eu cheguei na sua casa, Você de mim se escondeu, Aquilo que nóis conversemo 13 Nem resposta vóis me deu.

[ 4 a]

Eu deitei em vossos braços, Logo o dia amanheceu; Cádele o meu botão de rosa, O cravo da Índia é seu.

As que seguem, o J[osé] A[lves] anotou-mas ele mesmo. Dizer-me com que cura [Uma] saudade de muito tempo. 11 12

13

Romero, Cantos, II, 8. (Assim cantava ele ao som da viola no cateretê = dança; quando mais tarde ele me ditou, disse ao invés da última linha: [Adonde a Marica foi morar.]) (Cf. p. 21) (As remissões são de Nobiling e referem-se às páginas do manuscrito, aqui indicadas entre [ ]. NE)

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Cura com dois abraços E um beijo no mesmope . _____ Atravessei o mar a nado14 Por cima de uma pinguela, Arriscando a minha vida Por causa de uma [moça] donzela. _____ Cadel teu pente de ouro Para pentear teu cacheado; No canto de teu peito Trago meu amor guardado. _____ Eu quero viver solteiro P’ra nunca ser enganado; Antes morrer duma vez Que uma mulher danada. _____ [4 b]

Eu tenho meu cravo chita Metido nas flores preta; Quem tem seu amor bonito, Não falta quem me entremeta. _____ Cravo roxo de lorido Não agrava o seu bem; Quando agrava, não carece; Quando carece, não tem.15 _____ Vós de lá, eu de cá, Passa um ribeirão no meio; Vós de lá dá um suspiro, Eu de cá suspiro e meio.16 _____

14 15 16

(Cf. p. 19) Romero, Cantos, I, 219, 280. (Excerto, p. 20)

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Vim tomar amor ao longe Por ser a linha mais forte; Rebentou a linha ao meio: Triste de quem não tem sorte.17 _____ Cigarro de papel Fumo verde não fumega; Aonde tem moça bonita, Meu coração não sossega.18 _____ Toda a vida eu desejei Um corpinho como o seu; Vou fazer todos os jeitos Deste corpinho semeu (ser meu?). _____ Meu amor ‘stá mal comigo19; Coitadinho, tem razão; Mete a faca no meu peito, Despica teu coração.20 _____

[5 a]

Candieiro de dois lumes Não se a fim no sobrado, (Um) amor que não é firme Merece laço dobrado. _____ Pus (um) cravo na janela Para meu amor cheirar; (Mas) meu amor foi ingrato, Deixou o cravo secar.21 _____ Eu entrei na horta, fui plantar o alecrim;

17 18 19 20 21

Romero, Cantos, II, 84. Romero, Cantos, II, 25. (Cf. p. 49, 51.) Romero, Cantos, II, 13. (Cf. p. 46). Romero, Cantos, I, 193.

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O alecrim nasceu p’ra as moças, As moças nasceu p’ra mim. _____ Esta noite chorei tanto, Quatro lenços ensopei, Molhei a manga da camisa, Ainda disse que não chorei. As lagoas já secaram [A]donde os pombos vão beber. Tomai amor comigo, Que não há de se arrepender.22 _____ Quando eu da [minha] terra saí23, Não foi p’ra tomar amores, Que na (em?) minha terra eu deixei Um belo jardim de flores. _____

[5 b]

Moça que está na janela, Dê cá a mão, quero subir; Eu sou muito vergonhoso, P’ra a porta não posso ir. _____ Você era quem dizia Que a saudade matava Forte dor no meu peito Que até eu suspirava. _____ Você era quem dizia Que era firme no amar, Tendo tão belos carinhos, Coração de me enganar. _____ Os galos já estão cantando, Os passarinhos também. 22 23

Romero, Cantos, II, 114 [e] I, 241. (Cf. p. 50).

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Fizeste tão pouco caso do que te pedi, meu bem.24 _____ Os galos já estão cantando No retiro adonde eu moro; Quando me aperta a saudade, Saio no terreiro e choro. _____ [6 a]

[Eu] vou fazer o meu barquinho Da raiz do fedegoso, P’ra tirar o meu benzinho Do meio dos invejoso.25 _____ Dois amor quando se encontra, Causa susto e causa gosto; Treme a mão, palpita o peito, Foge o semblante do rosto.26 _____ Alerta, pombinha branca! Que tem caçador na terra, Com espingarda de ouro; [A]donde faz ponto, não erra.27 _____ Na asa de um passarinho Vai um cravo avoando; Vai gozar da companhia De quem anda suspirando. _____ Vejo mar e vejo terra, [E] vejo a praia descoberta. O amor vai um e vem outro, Não palavra mais certa.28 _____ 24 25 26 27 28

Romero, Cantos, I, 264; II, 11. Romero, Cantos, II, 32 [e] 41. Romero, Cantos, I, 217. Romero, Cantos, II, 86. Romero, Cantos, II, 55.

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Fui no rio apanhar água, Enxerguei a areia do fundo. Quem tem amor, tem trabalho Por toda parte do mundo.29 _____ [6 b]

Menina, estes teus olhos São confeito não se vende, São bala com que me atira, Corrente com que me prende.30 _____ Menina, estes teus olhos São lanceta de sangrar; Para todos vós dá vida, Só a mim quer me matar.31 _____ Desde da hora que te vi Em pregue (Empreguei?) os meus cuidado; Nunca mais pude dormir Meu soninho assossegado. _____ A moça que eu quero bem Tem uma falta de dente, A falinha maciosa, Carinho que mata a gente. _____ Vejo mar, não vejo terra, Vejo espada a reluzir, Vejo Marica na guerra, Mas não posso lhe acudir.32 _____ Com pena peguei na pena, Com pena p’ra lhe escrever;

29 30 31 32

(Cf. p. 48). (Cf. p. 43). Romero, Cantos, I, 244; II, 72. (Excerto, p. 19) Romero, Cantos, I, 266; II, 18.

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Com pena deixei da pena, Somente para lhe ver.33 _____ [7 a]

O meu peito está fechado A está em Lisboa O meu peito não se abre Sem ser por coisa boa.34 _____ Campo verde asserena, Retiro dos passarinhos; Eu também vivo aretirado Tão longe de meu benzinho.

 De Kohfall (dezembro de 95) Eu sou baixo, mas meu peito Fica bem alto do chão; Entretanto é teu pezinho Que me pisa o coração.

 De Höpfner (dezembro de 95)

33 34

Pergunto à solidão Porque sou infeliz assim; Pergunto a essa ingrata Se já se esqueceu de mim.

(4?)

Envio as minhas saudades Do meio da solidão A essa que tanto adoro De todo o meu coração.

(3?)

Romero, Cantos, I, 238. (cf. p. 44) Romero, Cantos, I, 262.

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No meio da solidão, Sozinho, sem mais ninguém, Envio as minhas saudades A essa a quem quero bem.

(2?)

No meio da solidão Os encantos também há, Ouvindo os ternos trinos Do canto do sabiá.

(1?)

[7 b]

 De Couto de Magalhães O Selvagem, II, 79-81.35 Quanta laranja miúda, Quanta florinha no chão! Quanto sangue derramado Por causa dessa paixão! (Pará) Pinheiro, dá-me uma pinha; Roseira, dá-me um botão; Morena, dá-me um abraço, Que eu te dou meu coração. (S. Paulo) O bicho pediu sertão; O peixe pediu fundura; O homem pediu riqueza, A mulher a formosura. (Cuiabá)36

 Do Diário Popular (São Paulo, 1896) Olhei-te uma vez, olhaste; Sorri-te depois, sorriste; 35

36

Magalhães, José Vieira Couto de, O selvagem. Rio de Janeiro: Typographia da Reforma, 1876. (NE) Romero, Cantos, I, 282-283. (Refere-se à seqüência das três quadras. NE)

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Falei-te de amor, coraste; Pedi-te um beijo, fugiste. [8 a]

Dizia o amor: – erraste; Dizia o dever: – resiste. Olhaste depois, olhei; Sorriste depois, sorri; Disseste-me o que? Não sei. Dizia o amor: – ganhei; Dizia o dever: – perdi.

 Couto de Magalhães “O Selvagem”, II, 143 s. Cançoneta em bom guarani moderno, muito popular entre o povo de Assunção e Corrientes; canta-se ao som da viola (maraca como eles chamam); rima e metro são espanhóis.

Ejo mi remaen. Maenran p’ ico? Ejo tenon. Aju ma n’ ico. Eguapí napeÏ. .. Maenran p’ ico? EguapeÏ tenon. Aguapí ma n’ ico. Ehenon napeÏ. Maenran p’ ico? Enhenon tenon. Anhenon ma n’ ico. Xe nhuan napeÏ. Maenran p’ ico? Xe nhuan tenon. Xe nhuan ma n’ ico.

[8 b]

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Epuan napeÏ. Maenran p’ ico? Epuan tenon. Apuan ma n’ ico. Te rehoÏ napeÏ. Maenran p’ ico? Te rehoÏ tenon. Ahá ma n’ ico.

“O paulista, o mineiro, o rio-grandense de hoje cantam nas toadas em que cantaram os selvagens de há quinhentos anos atrás, e em que ainda hoje cantam as que vagam pelas campinas do interior”. O selv., II, 14[?].

 De Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil, pp. 75-88.37

Versos, cantados na província da Bahia, na véspera do Dia de Reis. Um grupo de jovens moços e moças, com música, caminha para diante de uma casa e canta38:

Ó de casa, nobre gente, Escutai e ouvireis, Lá das bandas do Oriente São chegados os três Reis. [9 a]

Do letargo em que caístes Acordai, nobres senhores, Vinde ouvir notícias belas Que vos trazem os pastores.

37

38

Morais Filho, José Alexandre Melo. Festas e tradições populares do Brasil. Rio de Janeiro: Fauchon, 1901. (NE) As marcações e descrições, inseridas nos textos de Morais Filho, e que no manuscrito estão em alemão e em notação estenográfica, são indicadas por itálico. (NE)

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Nesta noite tão ditosa É bom que vós não durmais, Porque tão alta ventura Não é justo que percais. Vinde ouvir simples cantigas De grosseiros camponeses, Das aldeias conduzindo Cordeiros e mansas rezes. As serranas enfeitadas De prazeres vêm saltando; Os mancebos e os velhinhos, Todos, todos vêm chegando. Ó senhor dono da casa, Quer que lhe diga quem é? É um cravo de amaranto Com sua açucena ao pé. Senhora dona da casa, Mande entrar, faça favor, Que dos céus estão caindo Pinguinhos d’água de flor. Inda bem, Há de vir! Que somos de longe, Queremos nos ir... Depois de entrarem, continuam a cantar diante do presépio: Bravo, bravo, bravo! Hoje é quem brilha, O Verbo Humanado Deus de maravilha. _____

[9 b]

De Os Mouros, apresentado popularmente na Noite de Reis em Bahia, Pernambuco, Alagoas, na praça em frente à igreja (representa uma batalha naval entre turcos e mouros).

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Piloto:

Entrega-te, rei mouro, A essa nossa religião, Aqui dentro desta nau Há um padre capelão.

Rei mouro:

Entregar-me não pretendo, Em meio de tanta gente; Eu sou filho da Turquia, Tenho fama de valente.

Os dois esgrimem, o rei mouro é derrotado e joga-se aos pés do outro. Rei m.:

Mande-me chamar um padre, Que quero me confessar; Esta ferida é mortal, Dela não posso escapar.

Aparece o padre e o mouro ajoelha diante dele. R. m.:

Senhor padre, me confesso, Que sou filho do pecado; Eu sou como chamechuga, Quando pego estou pegado. Ele finge desmaiar e cai.

Contra-Mestre:

Vinde cá, Laurindo, Vai depressa na botica, Traga lá a medicina E vê bem como se aplica.

Depois de outras cenas vem o fim: Piloto:

Ó nau-fragata, ó nau-fragata, Eu vou te perguntar Se este brejeirinho Sabe comandar...

Todos:

Gentes, que terra é aquela, Terra de tanta alegria? É o Largo de Bonfim, Vamos adorar Maria. _____

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[10 a]

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Bumba meu boi, auto de caráter grotesco, em 2 cenas, popular entre o povo simples e – na maioria das vezes dentro de casa – representado em Bahia, Alagoas, Piauí, Ceará, na Noite de Reis. A distribuição da peça é a seguinte: o Boi, o Tio Mateus, a Tia Catarina, o Surjão, o Doutor, o Padre, o Vaqueiro e o Amo; na Bahia e Alagoas acrescem o Secretário de Sala, o Rei e Figuras que dançam, jogam espada e fazem de Coro. O rei, o Secretário de Sala e as Figuras envergam capa e calção, trazem na cabeça coroa e capacetes prateados, meneiam espadas de pau, tocando, três ou quatro, violas e raramente outros instrumentos. O Boi é um arcabouço feito de lâminas de pinho, coberto com uma colcha de chita, implantada no pescoço curto e um tanto triangular a cabeça pintada, com os competentes chifres. Essa armação é levada às costas de um indivíduo, que, deixando-a cair, esconde-se debaixo, durante a representação. O grupo vem para diante da porta da casa e canta: Aqui estou em vossa porta Com figura de raposa, Eu não venho pedir nada, Mas o dar é grande cousa. Senhora dona da casa, Bote azeite na candeia; Me perdoe a confiança De mandar na casa aèia. Abri a porta, Se quereis abrir, Que somos de longe, Queremos nos ir. Eles entram com exceção de Mateus, Boi e Vaqueiro. Secretário de Sala (Dança e canta):

Oi! da prata e do ouro Se faz o metal! Oi! a sala dos Reis É p’ra nós festejar!

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[10 b]

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Coro:

Oi! a sala dos Reis É p’ra nós festejar!

Rei (Senta na cadeira):

Ó meu secretário de sala!

Secr.:

Sou humilde para atender ao vosso chamado.

Rei:

É preciso ver se não se acha aqui no nosso reinado uma peça para alegrar o coração desta gente, que está piau-piau, como a mandioca lavada em 9 águas.

Secr.:

Vossa.. vôla!...

(Dança e canta): Moça que está na janela.. [11 a] Coro:

Olha bamba, bambira!

Secr.:

Namorando o que não viu...

Coro:

Olha bamba, bambirá!

S.:

Olha a querem maltratar...

C.:

Olha bamba, bambirá!

S.:

Olha o filho que não parece...

C.:

Olha bamba, bambirá!

S.:

Ó meu S. Benedito, Que do mar vieste...

C.:

Lê, lê, lê!...

S.:

A canoa virou Lá no fundo do mar,

C.:

O diabo da negra Não soube remar.

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Agora esgrime o Rei com o Secr. e as Figuras entre si, enquanto Tio Mateus se apodera à socapa da cadeira do rei. Secr.:

Olha fogo, olha guerra;

Coro:

Fogos em terra;

S.:

Olha fogo no mar;

C.:

É p’ra nos guerrear;

S.:

Fogo faz o Secretário;

C.:

Fogos em terra;

S.:

Olha fogo em nosso Rei;

C.:

Fogos em terra;

S.:

Olha fogo nas Figuras,

C.:

Fogos em terra... Depois do término desta cena o Secr. manda Mateus buscar o Boi; este o faz, grita: Eh!... vem cá, Estrela!

S.:

Está aí o boi, Mateus?

[11 b]

Mat.:

Sim, meu Sinhô.

S.:

Quem me empresta um vintém, Que amanhã dou dois, P’ra comprar uma fita E laçar o meu boi? O Vaqueiro conduz o Bumba meu Boi para dentro; este obedece às suas ordens.

Vaq.:

Ora, entra, Airoso, Ora, faz cortesia!

Coro:

Eh! bumba!

V.:

Ora, ao dono da casa E à senhora também... 408

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C.:

Eh! bumba!

V.:

Ora, estrova bonito; Ora, dá uma pontada...

C.:

Eh! bumba!

V.:

Ora, aqui no Mateus, Ora, brinca bonito!

C.:

Eh! bumba! Enquanto o boi dança, recebe um golpe de Mateus, dá uma cambalhota e estrebucha com as pernas.

V.:

O meu boi morreu, Quem matou foi Mateus.

C.:

Eh! bumba!

M.:

Não, senhor, quem matou foi o dono da casa.

V.:

Senhor dono da casa, Me pague o meu boi.

C.:

Eh! bumba!

V.:

Vá chamar o doutor.

C.:

Eh! bumba! [12 a] Mateus chama o médico, que examina o paciente, declara o caso grave, (?)39e faz Mateus dar-lhe uma viola. Ele toca, Mateus dança, enquanto as Figuras recolhem dinheiro num pano. Depois de muito tocar e dançar, Mateus e um garoto ajudam (?) o boi, que se levanta; todos saem com o canto: Oi! da prata e do ouro Se faz o metal!

39

Os pontos de interrogação nas notas estenográficas são de H. Heinke: indicam que ele teve dificuldade para interpretar alguma notação (NE).

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Oi! a vésp’ra de reis É p’ra nós festejar.

 Do Dr. Löfgren. (Recolhido em Iguape – mais tarde ele disse Ubatuba; recebido em 1896.) A maré bate na praia, O vento, na fortaleza; Assim batem as saudades No coração de Teresa. _____ Quando o gato enjeita a sopa E a moça o casamento, Ou (É que?) a sopa tem pimenta E a moça outros intentos. _____ Solteirinha, não te cases, Goza tua boa vida; Eu já vi uma casada Chorando de arrependida.40 _____ Depois d’um amor querer, Um coração se agradar, Nem todo o poder do mundo Faz um amor se apertar.41 _____ O alecrim virou a folha Com a viração do mar, Eu também virei as costas A quem não me soube amar. _____

[12 b]

A folha da malva amarga Não é p’ra ninguém beber,

40 41

Romero, Cantos, II, 81. Romero, Cantos, II, 115.

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Coletânea de Canções Brasileiras

O segredo de meu peito Não é p’ra ninguém saber. Dentro de meu peito trago Um cantinho reservado; Não se vende, não se dá, Para vós vive guardado.42 _____ Lá de trás daquele morro Vi um tucano voando; Com o bico foi escrevendo: Adeus, amor, até quando? Uma ausência faz sentir, Faz chorar, faz padecer, Mas não faz um peito firme Do seu amante esquecer. _____ Lá vai o sol entrando Por um canudo de prata, Vai ferindo, vai matando, Só não mata aquela ingrata. _____ Alecrim verde cheiroso, Não sejais enganador; Todo o amante que é firme Não engana o seu amor. _____ [13 a]

Meu coração é doce, O teu é mais azedinho; Juntai o meu com o vosso P’ra fazer um guisadinho. _____ Saudades que de ti tenho Não posso mandar dizer; Te contarei algum dia, Quando juntinho nos ver.43 _____ 42 43

Romero, Cantos, II, 105. Romero, Cantos, II, 7.

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Mal de amores não tem cura, Mal de amores cura tem; A cura do mal de amores É deixar de querer bem. _____ Amor de perto é querido, De longe mais estimado; De perto me causa pena, De longe pena e cuidado. _____ A mulher e a galinha Não se deixa passear. A galinha o bicho come, A mulher dá que falar.44 _____ Os coqueiros estão de luto, As árvores de sentimento; Eu não sei quem foi a causa Desse nosso apartamento. _____ Lenço branco é apartamento, Eu que digo é porque sei; Apartada já eu vivo Dum lenço branco que dei.45 _____ [13 b]

A senhora mãe da noiva Saia fora da cozinha, Venha ver a sua filha Como está tão bonitinha.46 _____ Lá vai o barquinho a vela Correndo da viração,

44 45 46

Romero, Cantos, II, 10. (Vid. p. 18). Vid. também excerto. (Vid. p. 21)

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Meu benzinho vai na proa, Forte dor de coração.

 Continuação de [José Alexandre] Melo Morais Filho Festas, pp. 89-100. Procissão de São Benedito no Lagarto (Sergipe) No 1º de janeiro, o mastro sagrado ao santo, que ainda estava de pé do ano passado, untado de sebo e com frutas penduradas na frente (?), dadas àquele que o escalou, foi retirado e carregado em volta da igreja, enquanto os congos (negros) cantavam: Meu S. Benedito É santo de preto; Ele bebe garapa, Ele ronca no peito!... Refrão das Taieiras: Indéré, ré, ré, Ai! Jesus de Nazaré!... No dia 6 de janeiro a grande procissão. Nela o quadro de Santo Antônio, além disso o de São Benedito; 3 negras vestidas de rainhas, ao seu lado 2 fileiras de congos que com espadas de ferro lutavam pela coroa da rainha do meio (Rainha Perpétua) e cantavam: Fogos em terra, Fogos no mar, Que nossa rainha Nos há de ajudar!... Além disso, Nossa Senhora do Rosário, depois as Taieiras, ricamente enfeitadas com roupas, turbantes e correntes de ouro. Uma delas cantava: Uma: Virgem do Rosário, Senhora do mundo, Dê-me um coco d’água, Senão vou ao fundo!...

[14 a]

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Coro: Indéré, ré, ré, Ai! Jesus de Nazaré!... Uma: Meu S. Benedito Não tem mais coroa, Tem uma toalha Vinda de Lisboa... Coro: Indéré, etc. Uma: Virgem do Rosário, Senhora do norte, Dê-me um coco d’água, Senão vou ao pote. Coro: Indéré, etc. _____

Véspera de S. João no Rio Lenda popular, pp. 104-5

Vou contar-vos, meus netinhos, uma história do princípio do mundo. Um dia, Nossa Senhora, que trazia a Nosso Senhor J[esus] Cr[isto], foi visitar a sua prima S. Isabel, que também trazia em seu bendito seio a S. João Batista. Apenas as 2 sagradas primas se avistaram, o divino Bat[ista], que não tardava a nascer, se ajoelhara em adoração a Jesus. S. Isabel, que isto sentira, não tardou em comunicar o milagre à Virgem, que, exultando, perguntou-lhe: – “Que sinal [14 b] me dareis, quando nascer vosso filho?” – “Mandarei plantar nesta montanha um mastro com uma boneca e acender em torno uma grande fogueira”; respondeu-lhe. E de feito: na véspera de S. João, a Mãe de Deus, vendo de sua morada uma fumacinha, labaredas e o mastro, partiu, indo visitar S. Isabel. Desde então é que se festeja o santo com mastros e fogueiras. – Meses depois, quando S. Isabel cantava, ninando o seu bendito filho, este lhe perguntou: – “Minha mãe, quando é o meu dia?” – “Dorme, meu filhinho, dorme; logo que ele for, eu te direi”. E S. João dormiu. Acordando, porém, na noite de S. Pedro, e ouvindo foguetes e vendo fogueiras acesas, insistiu: – “Minha mãe, quando é o meu dia?” – “O teu dia já passou”; acudiu-lhe ela. – “Ora, minha mãe, porque não me disse, que eu queria ir brincar na terra?” 414

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... S. Isabel teve razão, meus netinhos; se S. João descesse do céu, o mundo se arrasaria em fogo! –

Durante a festa os escravos cantam em volta da fogueira (pp. 107-108): [15 a]

Lá vai amor, lá se vai! O amor lá se vai! Pelas paredes arriba Ninguém vai! Onde vai, lavadeira? – Vou lavar. E eu vou aprender A nadar. Este João é um? – Será ou não. Tatu no mato Com seu gibão, Um pé calçado, Outro no chão. ‘Stava na praia escrevendo Quando o vapor atirou, Foi os olhos mais bonitos Que as ondas do mar levou. Lá vai amor, lá se vai! O amor lá se vai! Pelas paredes arriba Ninguém vai!

Um oráculo (p. 108) Um velho torto e pançudo, De nariz de palmo e meio, Há de ser o seu consorte Mui breve, segundo creio Homens jovens saltam por cima da fogueira e gritam: 415

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Acorda, João!... Resposta (cantada):

[15 b]

S. João ‘stá dormindo, Não acordo, não! Dê-lhe cravos e rosas E manjericão.

O 2 de julho (Bahia) (pp. 119-120) Em homenagem à expulsão dos portugueses sob o comando do general M[adeira] pelos brasileiros comandados por L[abatut] celebrava-se todos os anos uma festa, na qual o povo cantava: Labatut jurou a Pedro, Quando lhe beijou a mão, Botar fora da Bahia Esta maldita nação. Embora da Europa venham Batalhões aos mil e mil, Nossos braços, nossos peitos São muralhas do Brasil. _____ O Paulo, Ruivo e Madeira, Todos três numa janela, Esfolando um pé de burro, Supondo ser de vitela... Irra! Irra!... Só o Paulo foi quem pôde Tirar do burro a caveira, Para mandar de merenda Ao seu general Madeira. Irra! Irra!... Paulo, Ruivo e Madeira Foram fazer caruru; O Paulo deu a farinha, Ruivo mexeu o angu. Irra! Irra!... 416

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[16 a]

O Madeira queria Se coroar! Botou uma sorte, Saiu-lhe um azar!

À procissão pertencia também um carro de bagagem com alimentos. Vai o carro da bagagem Carregado de ananás, A mulher que não tem homem Vive sempre dando ais... _____

Entrudo (Bahia) (pp. 129-130) As vendedoras de laranjinhas cantavam: Aí vai, aí vai Laranjinhas de primô; Compre, iaiá, laranjinhas, Para entrudá seu amô. É de iaiá, é de ioiô, Quem qué entrudá seu amô!...

As vendedoras de sonhos cantavam: Sonhos, iaiá, está sonhos Feitos por mão de sinhá, Vem comprá a uma negra, P’ra sinhá não se zangá. Com suas mãos delicadas Bateu ovos e farinha; Compre, ioiô, esses sonhos, Foi feitos por sinhazinha. É de iaiá, é de ioiô, Quem qué sonhá com seu amô!... _____

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Quem entruda seu amô, É sinal de intimidade; Iaiá, entruda a ioiô, Para lhe ter amizade.

[16 b]

É de iaiá, é de ioiô, Quem qué entrudá seu amô... _____

Festa da Penha no Rio (pp. 150-152) (Festejado principalmente por portugueses) Canto na procissão: Ó minha caninha berde, O meu santo de pedrão, Por amor de uma menina Fui cair no alçapão. Cana berde salteada, Salteada é mais bonita, P’ra cantar a cana berde Não se quer folhos de chita. Fui-me ao Porto, fui-me ao Minho, De caminho para Braga, Dizei-me, minha menina, Que queres qu’eu de lá traga. _____ Chama-rita de meu peito, Quem quer bem tem outro jeito... _____ Eu tomara me encontrá Com Manué Passarinho!... Que quero cortar-lhe as asas, Tocar-lhe fogo no ninhos... _____ Vou-me embora, vou-me embora, Como se foi a baleia, 418

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Levo penas de dexá Marocas na terra aeia. _____ Dizes que viva Lamego, Viva também Lameguinho, E viva a terra do Porto Onde se bebe o bom vinho...

[17 a]

 Do Dr. Löfgren (Recolhido na costa do Estado de São Paulo, recebido em 1896.) Eu venho de dá e toma, Eu vou para toma e dá; Nunca vi dê cá sem toma, Nem toma lá sem dê cá.47 _____ Meu bem, não fuja de mim, Repare bem quem sou eu; Eu sou aquele benzinho Por quem você já morreu. _____ Meu coração é fechado Como a flor da mangabeira; Ninguém conhece o segredo Desta flor, desta trigueira.48 _____ Não te vás para tão longe, Menina do meu pensar, Que um cego de amor não pode De tão longe te enxergar. Se para longe eu vou, É que vou atrás d’alguém,

47 48

Romero, Cantos, II, 80. Romero, Cantos, I, 262.

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Vou seguindo a minha sombra, Vou nos braços de meu bem. _____ Caiam flores uma por uma, Seque o rio, acabe o mar, Qu’eu não hei de te esquecer Nem deixar de te amar. _____ [17 b]

Como corre sobre a água A pena do bem-te-vi, Vão minhas horas correndo, Morena, por amor de ti. _____ Eu passei na tua porta, Pus a mão na fechadura, Eu falei, tu (não?) falastes, Coração de pedra dura.49 _____ A mais segura montanha Pode o tempo derrubar, Mas seu nome no meu peito Nunca há de se acabar. _____ Alecrim da beira d’água Pode estar quarenta dias, Um amor fora do outro Não pode estar nem um dia.50 _____ Alecrim verde cheira, Ele creio (?) cheira mais; Mulher que se fia em homem Anda sempre dando ais. _____

49 50

Romero, Cantos, II, 4-9; II 88. Romero, Cantos, I, 275.

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Dei um nó na fita verde, Dei-lhe a fita de presente; Você fala e não repara Que estamos diante de gente.51 _____ Meu benzinho, diga, diga, Por sua (...) confesse, Quem é aquele amorzinho Por quem você tanto padece. _____ As convivências do mundo São amparo da pobreza: Enquanto um pobre convive, Não se lembra da riqueza.52 _____

[18 a]

A ausência tem uma filha, Chamada a amarga saudade; (Eu?) sustento mãe e filha Bem contra minha vontade. _____ A vila do Caracol É vila de muita fama; Ajuntaram três caboclos P’ra cortar a orelha do Gama. _____ Sois bonita, sois bem feita Em todo o jeito que dais, Não sei como não floresce O chão em que (vós?) pisais.53 _____ Menina, quando me virdes Trazer semblante triste, Fincai os olhos no chão, Fazei que nunca me vistes. _____ 51 52 53

Romero, Cantos, I, 240. (Vid. p. 22) Romero, Cantos, I, 278.

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Lenço branco não se dá, Digo esta porque sei; Lenço branco, apartamento, Um lenço branco que dei.54 _____ A perdiz anda no campo, Despenicando os cepinhos; Eu também despenicava Da tua boca um beijinho. _____ Eu vim do mar lá fora, Eu vim do mar da Bahia, Vim corrido de Ana Desposado de Maria. _____ [18 b]

Passarinho preso canta Em vez de preso chorar; Como é (está?) preso sem culpa, Canta pelo aliviar. _____ Galinha, se tu soubesses Quanto custa um bem-querer, Galinha, tu não cantavas Em horas de amanhecer.55 _____ Vós pensais de me enganar Com vossos belos carinhos; Eu não sou figo maduro, Roído de passarinhos. _____ As ervas do monte choram Dão soluços, dão gemidos; Assim também faço eu, Neste deserto metido. _____ 54 55

(Vid. extrato p. 13) Romero, Cantos, II, 8.

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Coletânea de Canções Brasileiras

Você diz que não me quer: Diga a razão porque; Você diz que eu sou pobre: Que riqueza tem você?56 _____ Estava no meu cantinho, Não mexia com ninguém; Você mesmo mexeu comigo, Agora me queira bem.57 _____ Ingrata de ti, meu bem, Como poderia estar? De (O?) dia levo tão triste, De (A?) noite levo a chorar.58 _____ A perdiz pia no campo, Comendo seu capinzinho; Quem tem amor anda magro, Quem não tem anda gordinho. _____ [19 a]

Meti a (minha?) mão na vossa E vós a vossa na minha, Ficou uma cousa justa Como a faca na bainha. _____ Eu jurei, você jurou, Jurei, jurastes, juramos; Eu quebrei, você quebrou, Quebrei, quebrastes, quebramos.59 _____ Amanhã me vou embora Para o Rio de Janeiro,

56 57 58 59

Romero, Cantos, II, 81. Romero, Cantos, II, 15. Romero, Cantos, II, 111, 2[?]. Romero, Cantos, II, 65.

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Vou buscar o meu cravo chita Que fugiu do meu canteiro.60 _____ Atravessei o mar a nado Com a vela branca acesa61; No mar não achei fundura, Em ti não achei firmeza.62 _____ Papagaio, periquito, Saracura, sabiá; Agora chegou o tempo, Esta moça se quer casar.63 _____ Há três dias que não como, Há quatro que não almoço; Quando me lembro dos teus carinhos, Quero comer, (mas?) não posso. _____ Você me chama de feio, De nariz esborrachado; Mas que diria, se você visse A cara do meu cunhado!64

Recolhido em Franca: Quem tem pinheiro, tem pinhas; Quem tem pinhas, tem pinhões; Quem tem amores, tem zelos; Quem tem zelos, tem paixões.65 _____ [19 b]

Quem tem amores, não dorme, Nem conversa com ninguém;

60 61 62 63 64 65

Romero, Cantos, II, 45, 52. (Vid. p. 4). Romero, Cantos, I, 260. Romero, Cantos, II, 63. Romero, Cantos, II, 101 (38). Romero, Cantos, I, 257.

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Se dorme, perde o sentido; Se conversa, não quer bem. _____ Eu vi teu rasto na areia E pus-me a considerar: Que mimo tem teu corpo, Se teu rasto me fez chorar!66 _____ Quem quer bem, não tem vergonha, Nem se lhe dá má fama; Quem tem juízo, bem pode Desculpar a quem bem ama.67 _____ Minha cama é cançanção (cansaço?), Meu travesseiro é cuandu, Meu rosário é cascavel, Meu cobertor é canguçu. _____

Colhido em São Luís de Paraitinga. Mecê diz que sabe sabe, Tem outros que sabem mais, Tem outros que tiram pomba Do laço que mecê faz. _____ Além (Alecrim?) da beira d’água, Minha flor de cai-cai, Quem me dera que tu fosses Já a nora de meu pai! _____ Ai morena, esses teus olhos São lamentos (lancetas?) de sangrar; Que a todos prometem vida, Só a mim quer me matar.68 _____ 66 67 68

Romero, Cantos, II, 95 (38). Romero, Cantos, I, 241. (Vid. p. 6)

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Eu plantei o roxo n’água, O encarnado na areia; O amor que não é firme Em qualquer cousa varseia. _____

[20 a]

Minha gente, venham ver, Prima Chica o que fez; Trazia dois enganados, Comigo faziam três. _____ Meu coração é de vidro, Feito de mil travessões; Com qualquer cousa se quebra, Não atura ingratidões. _____

Recolhido em Itapetininga: Quem me ouvir estar cantando, Pensará que estou alegre; Meu coração está tinto Como tinta com que se escreve.69 _____ O’ aves da minha terra, Passai por aqui e levai-me (a levar-me?), Que as aves da terra alheia Não fazem senão matar-me. _____ A cachaça é minha prima, E o vinho é meu irmão; Não há (...?)70, não há festa Em que meus parentes não vão.71 _____

69 70 71

Romero, Cantos, II, 93. O espaço em branco e a interrogação são de Nobiling. (NE) Romero, Cantos, II, 13.

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Coletânea de Canções Brasileiras

Abaixa-te, Serra Negra, Quero ver Mogi Mirim, Quero ver se aquela ingrata Ainda alembra-se de mim. _____ Eu de cá, mecê de lá, Passa o ribeirão no meio, Mecê um suspiro solta, Eu solto suspiro e meio.72 _____ [20 b]

Sobrancelhas como as tuas, Ninguém há que possa tê-las; São duas fitinhas negras Prendendo duas estrelas.73 _____ Menina, quando te fores, Me escreva lá do caminho, Se não tiveres papel, Nas asas dum passarinho.74 _____ Quero lá que me digam Qual é maior padecer: Se ver morta a prenda amada, Se vê-la em outro poder? _____ Catete deu-me na roça, Toda a roça me comeu. Quem quiser que plante roça! Catete quero ser eu. _____

72 73

74

(Vid. p. 4) Há um conjunto de anotações ao redor dessa quadra. Acima da estrofe lê-se: “São duas fitinhas pretas, nelas cintilam duas estrelas grandes (são duas fitinhas de veludo...) (Das fitinhas pretas são duas...) (Veja duas fitinhas pretas que se agitam..., Ter já [?] duas fitinhas pretas...)”; ao lado: “sobrancelhas como as tuas, amor, ninguém mais pode ter” (NE). Romero, Cantos, I, 235.

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Nem toda árvore dá fruta, Nem toda erva dá flor, Nem toda moça bonita Pode dar constante amor. _____ Lá vai uma ave avoando Com as penas que Deus lhe deu; Contando pena por pena, Mais penas padeço eu.75 _____

Recolhido em Sorocaba. Façamos a paz, meu bem, Como foi da outra vez: Quem quer bem, sempre perdoa Uma, duas, até três.76 [21 a]

Eu não quero fazer a paz, Como foi da outra vez: Quem quer bem, não ofende Nenhuma, quanto mais três.77 _____ Pinheiro, dá-me uma pinha; Roseira, dá-me um botão; Morena, dá-me um abraço, Que te dou meu coração.78 _____

Balada, anotada em Faxina. O casamento sepulcro. Moço fidalgo da corte Se encantou da Dª Branca; 75 76

77

78

Romero, Cantos, II, 27. “Venha, amada, façamos as pazes, e toda ira seja esquecida: quem ama de verdade perdoa ao seu amor de bom grado uma vez, duas vezes e também três” . “Não quero fazer as pazes contigo, a minha ira ainda não passou: Quem ama de verdade não magoa o seu amor nem uma única vez e muito menos três”. Romero, Cantos, I, 282.

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Coletânea de Canções Brasileiras

Mas a moça foge aos amores, Seus males não se estanca. Já tem véu, já tem grinalda, Tem sapatos de cetim Da cor que tem a neblina E as asas do Querubim. Ouve o canto da mãe d’água Por entre lábios de coral E da harpa de fios d’ouro Sobre concha de cristal. “Vem a mim, [oh] filha querida, Vem findar as tuas dores; Eu tenho ricos palácios P’ra guardar os teus amores.” Em casa todos procuram: Dª Branca onde estará? O noivo já no seu carro Na porta da casa está. [21 b]

Pobre pai, os teus rigores Vão mudar-se em fundas mágoas: Da tua filha só (te?) resta O véu branco sobre as águas.

 De Melo Morais Fº79 Província do Rio. Versos cantados aos recém casados que voltam da igreja: Tirana, minha tirana, Tirana de lá de baixo, Você vai cortar bananas, Queira me trazer um cacho.

79

Morais Filho, [Festas], pp. 9-15. (NE)

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Tirana, minha tirana, Ai! Tirana de Irajá! Aquilo que nós falamos80 Tomara que fosse já. Cantado à mãe da noiva durante a sua ausência: Ó senhora mãe da noiva, Saia fora da cozinha, Venha ver a sua filha Como está tão bonitinha.81 À mesa:

Estes franguinhos assados Foram bem recheadinhos, São presentes para os noivos Que fizeram os padrinhos. _____ Taplan... taplan... zabumba, Bravo a vida militar: Defender as moças belas E depois rir e folgar. O soldado que é valente, Passa a vida a batalhar; O soldado que é mofino, Passa a vida a namorar.

[22 a]

Hip!... hip!... urra!... _____ Este peru que aqui está Ontem morreu empapado; Eu aviso ao senhor noivo Que o coma com cuidado. _____

80 81

(Cf. p. 4) (Vid. p. 13)

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Coletânea de Canções Brasileiras

Da leitoa que aqui está Desconfiem, tenham medo; O trinchador que a trinchar Olhe que lhe morde o dedo. _____ Azeitonas bem curtidas Têm um singular sabor; Só me lembro dos amigos Quando bebo este licor. Hip!... hip!... urra!... _____ Sinhá noiva e sinhô noivo, Deus lhe dê um bom estado: Que d’aqui a nove meses Haja um rico batizado. Ao levantar da mesa: Gato amarrado Dá para miar, A boa champanha Dá para dançar. Este é o gato Que matou o rato Que roeu a corda Que amarrava a bota... Bota vinho! Bota! Vira, vira, vira!...

[22 b]

Hip!... hip!... urra!... Para a dança: Sinhô noivo, dê-me um doce, Sinhá noiva manda dar; Pois pela noite adiante Sinhá noiva pagará. Dança o fado, minha gente, Que uma noite não é nada; 431

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Se eu não for dormir agora, Dormirei de madrugada. _____ O fado veio no mundo Para amparo da pobreza; Quando me vejo num fado, Não me importo com a riqueza.82 A viola pela prima, A prima pelo bordão, O homem pela palavra Leva a mulher pela mão. _____

Província do Rio, pp. 46-5383 Cantado durante a coleta de Pentecostes pelas bandeiras que deambulam pelo campo. Dai esmolas ao Divino Com prazer e alegria, Reparai que esta bandeira É da vossa freguesia. _____ Ó senhor dono da casa, Recebei esta bandeira, Faça favor de entregá-la A quem tem por companheira – Nisso ambos beijam a bandeira com a pomba, envolta pelos raios de sol. [23 a]

A bandeira aqui chegou Um favor quer merecer: Uma xícara de café Para os foliões beber. _____

82 83

(Vid. p. 17, 18) Morais Filho, Festas. (NE)

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Coletânea de Canções Brasileiras

O Divino entra contente Nas casas mais pobrezinhas; Toda a esmola ele recebe: Frangos, perus e galinhas. O Divino é muito rico, Tem brasões e tem riqueza, Mas quer fazer sua festa Com esmolas da pobreza. Canta-se ao Espírito Santo: O Divino Espírito Santo É um grande folião, Amigo de muita carne, Muito vinho e muito pão. Meu Divino Espírito Santo, Divino e celestial, Vós na terra sois pombinha, No céu pessoa real. Canto da oferta de presentes: Todo o homem que é casado Deve ter seu pau no canto, Para benzer a mulher Quando estiver de quebranto. _____

Baile das Quatro Partes do Mundo (Drama natalino, representado na província da Bahia, pp. 66-69)84 Europa Uma moça jovem inclina-se diante do presépio, dança e canta: Eu venho adorar contente Ao Menino Deus nascido, Sacrificar o meu peito Aos seus amores rendido. 84

[23 b]

Morais Filho, Festas. (NE)

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Loa (é declamado): Europa toda vos rende As grandezas que em si tem, Pois só a vós reconhece Ser um Deus e Sumo Bem. África Como senhora do universo Vos tributo humilhação, As potências de minh’alma De todo o meu coração. Loa: África, terror do mundo, Soberba e vangloriosa, Para adorar ao Messias É humilde, é amorosa. América Com profunda adoração Adorar venho ao Messias, Filho do Eterno Padre E da bendita Maria. Loa: As belas preciosidades Que em si a América cria, Todos vos entrego, Senhor, Com grandeza e bizarria. Ásia Com humilde reverência Os pés te venho beijar, A minh’alma e o meu corpo Nas tuas mãos entregar.

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Coletânea de Canções Brasileiras

Loa:

[24 a]

Ásia fiel te oferece Todos os seus cabedais, E maior oferta faria Se possuísse inda mais. As 4 partes do mundo brigam pela preferência, até que entre no meio: O Tempo (Débil, com casaco cinza longo, com uma foice) Canta: Naquele ponto escondido Estive ouvindo o vosso enfado, Ásia tem muita razão No seu falar apressado. Eur[opa], América e África Quem és tu, meu velho honrado, Que tanto a Ásia defendes? Tempo Sou o tempo estragador. Creio que agora me entendes. Tempo O que for de vosso gosto Sujeito à vossa vontade; Pronto estamos, haja pois União e amizade. Todos Agora formemos baile Das Quatro Partes do Mundo. Tempo [24 b]

Eu alacaiando a ele Serei o Tempo jucundo. 435

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Todos Com prazer, com alegria, Todos com voz sonora, Tributem hinos a Jesus E à Virgem Nossa Senhora. O Tempo (Canta) Eu, como o Tempo que sou, Me prostro mais reverente, Pois nasceste neste mundo Para salvação da gente. Todos (Cantam e dançam) Reconheço a vós Um Deus das alturas, Senhor do universo E das criaturas. _____

Baile da Lavadeira (Outro drama natalino, pp. 70-71)85 1ª Lavadeira (Canta). Antes que o sol saia Hei de madrugar, Nas margens do rio Onde eu vou lavar. Final: Pastores e lavadeiras (Cantam). A barra do dia Já vem clareando... Que belo Menino Na lapa chorando.

 85

Morais Filho, Festas. (NE)

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Coletânea de Canções Brasileiras

De Vergueiros em Sorocaba (1897) Atira-se a rede, Pesca-se o bem; Tenha paciência Que o peixe vem. _____ Viva o cravo, viva a rosa, Viva a flor de Alexandria; Viva todos nós [que] aqui [estamos] E mais vossa senhoria. _____ Dizem que o cigarro tira As mágoas do coração; Pitado, o cigarro acaba, E as mágoas nunca se vão.86 _____ Batuque (Laerm) na cozinha Sinhá não quer, Foguinho do fogão Queimou meu pé.87 _____ Vinde cá, minha bem-feita, Corpo de linha torcida, Vinde sentar no meu colo, Mas não seja aborrecida. _____ O anu é bicho preto, Que tem o bico rombudo; Isso vem da geração dos negros pretos serem beiçudo.88 _____

86 87 88

Romero, Cantos, II, 36. (Cf. p. 27) (Cf. p. 28). Romero, Cantos, II, 37.

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[25 a]

As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Pus os cachorros no mato E fui esperar no campo; Saiu um veado vermelho Com a ponta do rabo branco. _____ Minha mãe é uma coruja [velha] Que mora num toco de pau; Meu pai é um corvo velho, Tocador de berimbau (Maultrommel)!89 _____ [25 b]

Passarinho do coqueiro, Dá-me novas do meu bem: Se está vivo ou se está morto, E se ainda me quer bem.90 _____ Ao pé daquele morro Tem um pé de carrapicho; Primeiro bota a cangalha E depois bota o rabicho. _____ Na beira do rio Tem um maço de colher; Se quer saber segredos, Puxe a boca de mulher.91 _____ Em cima daquela serra Tem um sino sem badalo; Estou com dor de cabeça De ensinar este cavalo. _____ Em cima daquela serra Tem um sino sem badalo;

89 90 91

Romero, Cantos, II, 62. [...] Romero, Cantos, I, 203; II, 59. [...] Romero, Cantos, I, 173.

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Coletânea de Canções Brasileiras

A mulher matou o marido, Pensando que era cavalo.92 _____ Tenho uma pedrinha, Que atirei na pedraria; Deu no cravo, deu na rosa, Deu na moça que eu queria.93 _____ A camisa de meu mano Eu não lavo com sabão, Lavo com um raminho verde Do meu coração.94 _____ No alto daquele morro Tem um pé de girassol; Amanhã por estas horas Meu benzinho fica só. _____ [26 a]

Mecê disse que não há olhos Mais bonitos que os seus; Meta a mão na consciência E olhe bem para estes meus. _____ Mecê me chamou de feia, Eu não sou tão feia assim, Foi depois que mecê veio Que pegou a feiúra em mim.95 _____ Fui andando por um caminho, O capim cortou meu pé; Amarrei com fita verde Do cabelinho de José. _____ 92 93 94 95

Romero, Cantos, I, 173. Romero, Cantos, II, 88. Romero, Cantos, I, 247. (Cf. p. 53) Romero, Cantos, II, 101.

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

A perdiz pia no campo, Comendo seu capinzinho; Quem tem amor anda magro, Quem não tem anda gordinho. _____ Essa noite dormi fora, Me esqueci do cobertor; Bateu o vento na roseira, Me cobriu cheio de flor.96 _____ Nestes tempos de agora Não se compra mais feijão, Guarda todo o seu dinheiro P’ra comprar saia-balão. _____ Atirei um limão verde Por cima da samambaia, Deu no papo de uma velha Que estava juntando palha.97 _____ Eu vi teu rasto na areia, E pus-me a considerar: Debaixo do dedo grande Quantos bichos não terá!98 _____ [26 b]

Quando me aperta a mão, Não aperte o meu dedinho; Eu não quero que ninguém saiba Deste nosso brinquedinho. _____ O Lopes comeu pimenta, Pensando que não ardia; Agora está padecendo Embaixo da terra fria. _____ 96 97 98

(Cf. p. 52) Romero, Cantos, I, 237. Romero, Cantos, II, 64, 95.

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Coletânea de Canções Brasileiras

Duas coisas neste mundo O meu coração não quer: É piolho de galinha E ciúmes de mulher. _____ Bebendo cachaça, Comendo feijão, A vida se passa Com satisfação. _____ Papai e mamãe, Venham ver vovó, Comendo cana Com um dente só. _____ No Rio de Janeiro Tem muita gente rica, Doutores de cartola E com luvas de pelica.

 Da Sra. Müller, em Santos (1896) Nesta rua tem um bosque Que se chama solidão, Dentro dele mora um anjo Que roubou meu coração. Se esta rua fosse minha, Eu mandava ladrilhar Com pedrinhas de diamante Para meu amor passar.99

 99

Romero, Cantos, I, 246.

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

De George Florence (1896)

[27 a]

Os olhos de minha Aninha São pretos cor de carvão; Cada vez que olha p’ra a gente Mais se acende a paixão.

 De Gonçalves da Silva em Avaré (1897) Ai, que ribeirão tão fundo! Quem nele pode passá? Quem tem amor d’outro lado, Como lá pode chegá?100 _____ Capim fino rasteirinho, Coberto de serração; Sinto não ver aquela A quem dei meu coração. _____ Dois corações quando se apartam, Qual deles mais pena tem: Se o que vai para voltar, Se o que espera por quem vem? _____ O fogo, quando se apaga, Na cinza deixa o calor; O amor, quando se acaba, No coração deixa a dor.101



100 101

(Cf. p. 34) Romero, Cantos, I, 235; II, 90.

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Coletânea de Canções Brasileiras

Do Dr. Löfgren (Recebido em 1897) De Goiás (Araguaia) Mecê é isqueiro de prata Com isca de argodão; Eu sou cigarro macaio, Pito velho de ‘lamão (Alemão). _____ [27 b]

Lá no mato tem um pau Que se chama sapucaia; Não te quero para serra, Só te quero para cangalha. _____ Lá vem a lua nascendo, Redonda como um botão; Quem tem seu amor defronte Tem grande consolação.102 Lá vem o sol subindo Nas costas de um macaco; Quem tem seu amor ausente Suspira e toma tabaco.103 _____ O anel de pedra verde Foi batizados104 em Roma; Amor de mulher casada Nem por desgraça se toma. _____ De S. Sebastião do Litoral. Trepei no fogão, Queimei meu pé; Batuque na cozinha Sinhá não qué.105 _____ 102 103 104 105

Romero, Cantos, I, 204. Romero, Cantos, II, 54, 60. (Cf. p. 39) Sic. (NE) (Cf. p. 25)

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Plantei um pé de cravo Em cima dum formigueiro; Não se pode ter amor, Aonde tem gente arengueiro. _____ Senhora dona da casa, Não arrepare eu cantar baixinho; Vinha vindo de viagem, Fiquei rouco no caminho.

[28 a]

Senhora dona da casa, Não arrepare eu dançá de pé no chão; Vinha vindo de viagem, Não sabia da função. _____ Triste de quem tem Seu amor do rio para lá; Deita na cama, não dorme Só de tanto imaginá. _____ O vapor subiu a serra, Dando volta de Gavá, Chegou no campo de Caldas, Fez o povo se admirá. _____ Já vendi o meu cavalo, Só falta vendê os arreio, Para ver se assim acaba Este maldito passeio. Vou embora para o ermo No mais deserto sertão, Para ver se assim acaba Uma certa ingratidão. _____ Tratei um casamento Com a fia (filha) do fazendeiro; Casando, sou respeitado, Sou rico, tenho dinheiro. 444

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Coletânea de Canções Brasileiras

[28 b]

O fazendeiro se quebrou-se, O casamento deu em nada; A casar com moça pobre, Antes ser um camarada. _____ Anu, pássaro preto, Passarinho do bico rombudo, Foi sinal que Deus deixou Tudo negro sê beiçudo.106 _____As Cantigas de D. Joan Amanhã faz quinze dias Que meu amor se embarcou, Naquele carro de ferro No vapor do chiadô. _____ Seu cabelo é bonito, Parece um jardim de flô, Mariquinhas tão formosa, Olhos pretos matadô. _____ Passarinho araguari, Quero entrar em vosso bando; Quero ir para Coritiba, Quero ser coritibano. _____ Menina, se tu é uva, Da uva se faz o vinho; Teus braços serão gaiola, E serei teu passarinho. Da uva se faz o vinho, Da canela o alicor; Primeiro se agrada as moças Para depois tomá amor.

 106

(Cf. p. 25). Romero, Cantos, II, 37.

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De Vergueiros em Sorocaba (1897) O padre Manuel João Foi dizer missa em Belém; Em vez de dizer: Oremos, Disse: Ai! Marucas, meu bem.107 _____ Eu vou para minha terra Segunda-feira que vem; Todas as moças choraram, Que nem meu bem. _____ Quando vim da minha terra, Trouxe plantas e plantinhas; Eu me chamo Chico Doce Na morada das mocinhas. _____ Cachorrinho está latindo Lá na porta do chiqueiro (Schweinestall): Cala a boca, cachorrinho, Não seja mexeriqueiro. _____ Tenho um cachorrinho, Chamado Totó, Ele é maiadinho (pintadinho) De uma banda só. _____ Eu pito p’ra disfarçar As mágoas do coração; Nas fumaças que o vento leva As mágoas também se vão. _____ Cravo branco na janela É sinal de casamento; Arretire o cravo branco, Que inda não chegou meu tempo. _____ 107

(Cf. p. 35). Romero, Cantos, I, 68.

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[29 a]

Coletânea de Canções Brasileiras

[29 b]

Minha gente, venham ver Que acontece na cozinha: O tição brigou com a pedra, [E] quebrou a nossa panelinha. _____ Menina, levante a saia, Não deixe a renda arrastar; Que a renda custa dinheiro, Dinheiro custa a ganhar.

 Do Dr. Barbosa Rodrigues108 De Minas

Marimbondo pequenino Fez casa, não acabou; Ai!... Ai!... Ai!... aqui na perna Marimbondo me ferrou.

 Coligido por Erasmo Carvalho Braga Décima gaúcha (...?) De Vila do Tibagi, Paraná, 30 jan. 98 De Pedro da Cruz Machado.

No dia em que a saudade Me tinha posto em hastilha, Mandei buscar a tropilha De colorado,

108

Rodrigues, Barbosa. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio. Rio, 1890. v. 14 [1886-1887]. (NE)

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Na mangueira109 encurralado; Um deles mandei pegar E para o pátio puxar Mui ligeiro. Chamei um piá110 pelo terrero, Dando gritos [mui] feios [Diciendo que me trouxesse Meus arreios] prateado No tempo em que yo me vestia [30 a] Co’os meus lindos caramenguás111 Me tornava um rapaz Afacerado.112 Quando yo me vi montado No lindo pingo vermelho, Estralei (com o) meu reio De enchiqueirar113. E me pus como um loco, Galopando poco a poco, Os terreiro fui deixando E cada vez me avizinhando, Do povo114. No teu mimoso pescueço Logo depois que chegar, Pretendo dependurar As bolas. Mas tudo isso são mariolas, Havemos jogar las manilhas115,

109 110 111 112

113 114 115

= Terreno cercado ou murado para receber os animais. = Menino. Caramenguás ou caraminguás = miudezas, enfeites pequenos. Inserido à margem. (An. Nob.) Havia uma estrofe anterior que foi riscada e logo em seguida foi copiada esta, com a anotação. (NE) = recolher em chiqueiro. = povoação. = o jogo da bisca (?).

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Depois que forem enriconadas (?) As tropilhas. Logo yo vi minha madre Assientada na janela; Felizmente com ela Não tem ninguém. [30 b]

Sempre supus que meu bem Me havéra de ser leal. Eh! qu’una china116, amigo, Como ela não há igual. _____

A moçada da Coxilha (Recitada por José de Campos, velho tropeiro, Arraial do Embaú, Paraná, 18 jan. 98) A moçada117 da Coxilha Já trazem por benefício A bruta bola e maneia118, No laço fazem exercício. Brilhante sorte que fazem É darem um feio tombo, Botando tão longes lhefos119, Um pelas aspas, outros pelo fio do lombo. Dão pialo de cocharra120 Da terra levanta o pó; Faz outra reborqueada121 Que não faz um perigo. Um semblante mui airoso, Correndo pela coxilha,

116 117 118

119 120 121

Falta nota. Nobiling tê-la-ia esquecido? (NE) Coletivo de moços, muito usado no sul. Bruta = grande, pesada; maneia = peça de couro para prender juntas as mãos dos animais enquanto pastam soltos. = tiro de laço. p. d. c. = golpe de laço nas mãos dos animais, que os lança por terra. = giro de laço sobre a cabeça do laçador.

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Expedindo longes lhefos Em quatro ou cinco rodilhas122. Se chegam a rodar123, Saem correndo em pé; Os que estão presentes já dizem: “Caramba, que é de valor”; Não se lhe dá que seja mais parador124. [31 a]

Lenço atado no pescoço, As pontas p’ra trás caído, Para assim namorar Nas moça mais presumido125. E vivem de peão pelas estâncias Para assim ganhar dinheiro, Para assim namorar Na filha dos estancieiro. E vejo tal ou qual Passearem de chapeado126. Não julgo se é deles Ou se é de emprestado. O modo deles trajar, Um modo mui indecente, Tirador127 na cintura, Suas esporar de corrente. Fazem do rebenque compasso, E da chilena, partida. Quando chegam a se juntar, Qual deles mais presumido. E vivem pelas corridas, Bebem água de lagoa128,

122 123 124 125 126 127 128

= círculo formado pelo laço preso na mão do laçador. = cair o cavalo no galope. = o cavaleiro que cai sempre, no rodar o cavalo. = presunçoso. = arreios chapeados de prata. = avental de couro. a. d. l. = bebida ordinária.

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Coletânea de Canções Brasileiras

E dizem que é boa bebida, Ainda trazem por galardão. Comem seu assado gordo, Tomam mate chimarrão129 Duvidam disso que eu digo (?) Pois podem duvidar; Por qualquer parte que eu ando Ainda posso les130 mostrar.

Broco, Pintado, Bico Branco de Novais [31 b] (Recitado por Pedro da Cruz Machado, Vila do Tibagi, Paraná, 24 jan. 98.) Fala Bico Branco de Novais: Antes que dê princípio Ao que tenho padecido, Parece-me ser de acerto Dizer onde fui nascido. Eu nasci numa fazenda Onde a seca muito cocha131, A qual, se não me engano, É a tapera do Rocha. Na era cinqüenta e cinco, Na ribeira do passado, Aos onze do mês de outubro, Me lembro que fui pegado. Logo, em conclusão, E com as diligências precisas, Uns me queimavam a coxa, Outros me punham divisas. Com o laço nas aspas Ataram-me num mourão; Me foram entre pernas E me fizeram capação. 129 130 131

= mate amargo, tomado na cuia. = modo comum de pronunciar o pron. lhes. = apertar.

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Logo que me vi solto, saí dali tão ofendido, que nunca mais eles souberam onde eu estava metido. Certo Broco graduado, Vendo-me ao longe correr, Procurou a minha sombra Para nós ambos viver. [32 a]

Vindo com ele o Pintado, Morador no Riachão, Com quem o tal Broco tinha Uma perfeita união, Retiremo-nos das estradas E entremos pelo sertão, Com distância de três léguas Da mais perta povoação. Logo demos em uma campina; Oh! que lindo capetingal! Capim branco de raiz, Pasto bom sem igual. Vivemos p’r’ali ocultados Por sete anos ou oito, Té que se descobriu A nossa malhada em coito. Cerca-se a malhada em coito Com vinte cachorros valentes; Quando queríamos correr, À curva iam-nos co’os dentes. Abaixo a cabeça em terra, Levando o rajado novo, Furo-lhe barriga e tripas, E dei noutro chamado Ovo. À Celsa, cadela grande, E de tanta estimação, Dei-lhe um coice no espinhaço Em paga da acuação. 452

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Nisto corre o Pintado Para o cerro do Chapéu, E lá foi a ser acuado No mais alto cerinéu. [32 b]

Durante essa acuação, De que não podíamos nos defender, O Broco se retirou; Era presumido no correr. As valentes perneiras Também a mim me gabavam Que, quando corria pelos campos, Só os pelos me enxergavam. Com a acuação dos cachorros O Broco se atropelou, E o valente Cardoso Sempre o laço lhe botou. [Depois] tocaram-nos p’ra o curral Cantando de alegria: “Andai, andai, meus boizinhos, Acabou-se a valentia.” Fizeram coisas conosco, De doer no coração, Puseram-nos paus nos chifres, Como quem reza estação. Puseram-nos as cordas, Nos ataram num mourão, Para seguir as estradas Da vila de S. João. Lá serra acima Tenho um filho em cativeiro, Que anda de canga e brochas, Servindo de um ruim carreiro. Quero que me chamem O amigo Manuel Monteiro, E que traga consigo Pena, papel e tinteiro. 453

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E mais duas pessoas Com o amigo padre Ribeiro Para minhas testimunhas E meu testamenteiro.

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Coletânea de Canções Brasileiras

QUADRAS

E STADO B RASILEIRO SÃO P AULO *

DO

DE

O que foi publicado até o presente das canções populares brasileiras se restringe, que eu saiba, basicamente ao material contido na coletânea de Sílvio Romero 1, onde as diferentes partes do país são representadas de maneira desigual. O estado mais fortemente presente é – graças ao compatriota alemão Karl v. Koseritz – o Rio Grande do Sul, seguido de um dos estados do Norte, precisamente o menor de todos, Sergipe, a terra natal do editor. Cada um destes dois estados contribuiu com quase um terço do existente. Além disso, apenas Rio de Janeiro, Ceará e Pernambuco forneceram contribuições significativas. Da Bahia, de Alagoas e do Maranhão existe pouco, dos outros doze estados quase nada ou nada. Porém, dentre aqueles estados cujos tesouros de canções populares são mais ou menos conhecidos de nenhum se deveria prescindir menos do que de São Paulo. Pois este estado forma em mais de um aspecto o elo entre o Norte e o Sul do país e foi, até boa parte do século XVIII, o foco do qual a colonização do Centro e do Sul do Brasil partia, principalmente, e a partir do qual foram povoados nomeadamente os estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Por esse fato, adquire na questão da origem e da disseminação da poesia popular brasileira uma importância destacada; se pudéssemos por exemplo comprovar que nele a canção popular tem, e teve, apenas representação fraca, então teríamos que procurar o elo entre o Norte e o Sul, ricos em canções, necessariamente na colonização portuguesa e supor, até que se provasse o contrário, em relação a todas as estrofes que se encontram em ambas as regiões, que teriam imigrado de Portugal.

*

1

“Vierzeilen aus dem brasilianischen Staate S. Paulo”, in Romanische Forschungen 16 (1904) pp. 137-150. Cantos populares do Brasil, coligidos pelo Dr. Sílvio Romero. Lisboa, 1883. 2 vol. – Cito segundo esta edição; a segunda, Rio de Janeiro 1897, acrescenta algo, mas omite muito mais e suprime a menção das fontes, nos casos em que o editor não publica a partir das próprias recolhas.

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As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e Estudos Dispersos

Possuo, agora, uma coleção de canções populares oriundas de São Paulo, em sua grande maioria quadras, sendo que por vezes duas ou várias se juntam para formar poemas curtos; publico aqui uma fração do montante, por um lado como prova da uniformidade e da unidade espacial da lírica popular brasileira, por outro, porque as canções se prestam de forma ideal para servir de base a uma investigação do português aqui falado. Essa quadras originam-se do Norte do Estado, do município de Espírito Santo do Pinhal, não longe da fronteira do Estado de Minas Gerais. Foramme em parte – número I-VI – ditadas pelo trabalhador rural José Alves da Rocha, um mestiço de cerca de 30 anos, e em parte – número VII-XXXVIII – anotadas por seu próprio punho. Apenas algumas poucas ouvi cantadas por ele próprio, o que é especialmente lastimável, na medida em que estes guardiães de canções populares de tradição antiga só podem confiar completamente em sua memória quando cantam. Assim, o meu informante, na hora de ditar, colocou em IV,4, no lugar do por ele mesmo cantado Donde meu bem foi morar, o verso que absolutamente não se ajusta ao metro Adonde a Marica foi morar. Será portanto lícito emendar o texto em todos os lugares onde o metro o exige e a emenda for mais ou menos evidente. Tais modificações, indiquei-as abaixo do texto e só as incorporei em casos onde o texto estava evidentemente corrompido (sempre mencionando, mesmo então, a lição original abaixo do texto). Acréscimos no texto estão sempre assinalados com parênteses, aquilo que na minha opinião deveria ser suprimido indica-se com colchetes. Pela forma, estas estrofes são inteiramente de patrimônio tradicional; no que diz respeito ao conteúdo, em boa parte. São cantadas pela população rural, os caipiras, que via de regra são analfabetos, no verdadeiramente popular cateretê2 ou em outras danças acompanhadas de viola, isto é, guitarra, e muitas delas reencontram-se, com maior ou menor variação, em lugares do Brasil muitas vezes bem distantes. Nestes casos, acrescentei para comparação os versos respectivos, via de regra extraídos de Sílvio Romero, abaixo do texto. A linguagem na qual ouvi recitar essas canções não foi uniforme, mas sim aproximada, ora mais ora menos, à linguagem escrita. Já por isso abro mão de apresentá-la em escrita fonética. Utilizo ao contrário geralmente a ortografia usual, suprimindo, porém, as letras que são totalmente

2

A dança parece ser de origem indígena: pelo menos K. von den Steinen descreve uma semelhante em Unter den Naturvölkern Zentralbrasiliens, p. 112. As melodias das canções também são classificadas pelos especialistas como sendo indígenas. Algumas, bastante características, encontram-se na primeira edição de Romero, algumas outras eu mesmo possuo.

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Quadras do Estado Brasileiro de São Paulo

supérfluas para a pronúncia local (escrevo por exemplo consoantes duplas apenas em caso de ss e rr, uso no lugar de ou sempre ô etc.) e indicando sempre a qualidade dos sons e e o tônicos e não nasalizados. De resto reproduzo a pronúncia de meu informante e – nos números VII–XXXVIII – a sua ortografia, se esta corresponde exatamente à sua pronúncia, indicando, porém, abaixo do texto também quaisquer outros erros ortográficos que permitam de alguma forma tirar conclusões a respeito da pronúncia. Teria sido fácil uniformizar a grafia; contudo, qual das muitas maneiras de falar que aqui são usuais nas diferentes classes sociais deveria ter escolhido, uma vez que se escalonam sem fronteiras fixas da linguagem coloquial dos acadêmicos até o português dos negros, que já apresenta alguns traços de um dialeto crioulo? Assim preferi preservar nessas canções o caráter original de um dialeto popular misto, cujos traços pequenos servirão em parte como corroboração, em parte como complementação do esboço a seguir, no qual resumo as características principais do português falado no estado de São Paulo3. * * * Ao vocalismo faltam inteiramente – ao que parece no Brasil inteiro – as vogais médias (mixed) dos diferentes dialetos de Portugal e das ilhas. As vogais tônicas são sempre semi-longas; são elas: i (escrito i, y), e (escrito ê) e (escrito é), a (entre o francês a e a, escrito a, á),  (escrito ó), o (escrito ô, ou), u (escrito u, ú), e as nasais), i, e, ã, õ, u que correspondem às respectivas vogais orais, com exceção do õ ao qual corresponde uma vogal oral que tende a . A nasalização das vogais expressa-se ou pelo til (~) ou por subseqüentes m, n, nh, e também em casos em que conservam seu valor fônico inteiro, o que acontece antes de vogais, bem como antes de p e b, onde se pronuncia sempre m, antes de t e d, onde se pronuncia sempre n, e antes de k e g, onde se pronuncia ŋ (mas escreve-se n). Antes de m, n ou ñ (escrito nh) intervocálicos a nasalização é mais fraca; isso nota-se mais nitidamente no caso do a, mas faz com que também nesta posição não se distingam e e e, o e : nós démos, nós tivémos só são pronunciados com e aberto por pessoas que estudaram a gramática; se não, pronunciam-se na linguagem familiar dos cultos: nz ´demùs, ns tì´vemùs. Fumo, pena e

3

Uma investigação fonética aprofundada do dialeto local espero fornecê-la em outro momento; para o de Portugal, especialmente de Lisboa, falado pela classe culta, temos a excelente apresentação: A. R. Gonçalves Viana, Exposição da Pronúncia Normal Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1892.

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penna, tinha, tempo, donde, manga pronunciam-se: ´fumù, ´pena, ´tiña, ´tempù, ´dõndì, ´mãŋga. Se a vogal nasal não vem antes dos fonemas m, n, ŋ ou ñ, segue-se-lhe sempre uma fricativa nasal que varia conforme a vogal: depois de i, e ela aparece como , depois de ã como , depois de õ, u como w (mais exatamente como  com arredondamento labial). Essas fricativas nasais são, ao que me parece, o que se chamou de ressonância nasal; seus sons fricativos são, por causa da dupla saída que a expiração toma, fracos: especialmente , a velar sem arredondamento labial, onde a abertura é a maior, tem mais de vogal do que de consoante. – Vim, quem, lenço, dança, bom, um pronunciam-se portanto: vi, ke, ´lesù, ´dãsa, bõw, uw. Na sílaba átona, as vogais nasais são as mesmas, só que a nasalização, antes de m, n, ñ intervocálicos, é quase imperceptível: eŋga´nar (escrito enganar), kãn´tãndù (cantando), põm´biña (pombinha), ive´zozù (invejoso), ešer´gar (enxergar), lã’seta (lanceta), dõw’zela (donzela). Das vogais orais o a permanece inalterado na sílaba átona (ou seja, não tem o mesmo som que em Portugal e por isso também a e á se pronunciam da mesma forma na sílaba átona); em contrapartida, i, e, e e, por um lado, e u, o e , por outro, tendem a coincidir, e tanto mais quanto mais popular for a linguagem. e e ɔ pretônicos encontram-se na linguagem coloquial, mesmo das pessoas cultas, apenas em palavras como pe´ziñù (escrito pèzinho) e s´mentì (sòmente), em que o sentimento da derivação da raiz assegura um acento secundário (eu escrevo então è, ò); além disso permanecem, antes de e r em final de sílaba, i distinto de e e u de o; nas demais ocorrências, se a distinção não é mantida artificialmente pela escrita, as vogais anteriores são em posição átona geralmente substituídas por ì (um i aberto ou “amplo”), as posteriores por ù (um u aberto). Estes dois valores fônicos parecem ser os predominantes no Brasil todo; mas no Estado de São Paulo o timbre da vogal átona – nomeadamente se esta é e ou i – é muitas vezes assimilado ao da vogal tônica. Por isso grafias populares como mérése (por merece), rebeirão, alicrim, ritiro, minina e também ivejo (por e vejo), molher (que aliás corresponde à forma do português antigo), vergunhozo, descuberta, asucegado. A mesma confusão acontece também no caso das vogais nasais, de maneira que nomeadamente os prefixos in- e en- têm na linguagem popular a mesma pronúncia. Compare-se a grafia mim ganna (isto é, miŋga´na) para me enganar. Antes de vogal, e e i átonos têm o som de j, o e u = w. Assim pronuncia-se pen´tjar  4 (escrito pentear), ka’sjadù (cacheado) e também em caso de palavras que formam unidade gramatical ´djorù (de ouro). 4

Com r designamos o r com apenas uma vibração da língua, vid. pp. 460-461.

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Vogais postônicas são, nomeadamente depois de oclusivas e fricativas, normalmente apenas sussurradas ou aspiradas, na linguagem vulgar não raro suprimidas quase por completo. Por isso grafias como mor por moro, janél, por janela, até mesmo ver por verde, boni por bonita. Os ditongos são todos decrescentes. São os seguintes: iù (escrito iu), eì (ei), eù (eu), eì (éi), eù (éu, éo), aì (ai, ae), aù (au, áu, ao), ɔì (ói, oe), oì (oi), ui (ui, ue). Alguns deles também ocorrem nasalizados, o que se indica com m, n ou nh depois do ditongo; além disso ´muintù (escrito muito; mui é apenas literário). Aqueles que de costume se chamam ditongos nasais, grafados ãe, ão (postônico am), õe, na realidade são pronunciados , ãw (w =  com arredondamento labial) e õ. Geral é a supressão do i em ditongos, escritos ai e ei, antes de š e z (em palavras como caixa, deixar, beijo, queijo que eu escrevo por isso caxa, dexar, bêjo, quêjo). A linguagem popular simplifica eì em geral, exceto antes de vogal ou s, para e. Por isso as grafias candiero, deche (por deixei). Em posição átona, outros ditongos também são simplificados pelo povo: por isso grafias como sodade por saudade e o por ao. Antes de s em final de palavra, todas as vogais tônicas, exceto o i, tornam-se, na linguagem popular e muitas vezes também na linguagem coloquial, ditongos pelo acréscimo de um ì. Por isso as grafias veiz, nóis, faiz (isto é, veìs, nìs, faìs) por vez, nós, faz. Quase geral é a pronúncia maìs (a forma do português antigo) por mas. As consoantes são: p b, t d, k g; m, n, ñ, ŋ; l, (um l apicoalveolar, pronunciado com a retração da raiz da língua em direção ao véu palatino, bastante parecido ao l inglês), ; r (o assim chamado r forte, um r formado com vibrações múltiplas da língua), r (com apenas uma vibração da língua, o assim chamado r brando); w, f v, s z, š z, j; w, , . No que concerne à sua grafia, as seguintes observações serão suficientes. Consoantes duplas têm o mesmo som que as respectivas simples com exceção de rr e ss entre vogais. Os sons de k e g representam-se, antes das letras e, i, y, por qu e gu; se não, qu e gu têm o som de kw e gw (deixo de lado as palavras eruditas). O som de m encontra-se apenas antes de vogais e de p ou b, o som de n apenas antes de vogais e de t ou d, o som de ŋ (escrito n) apenas antes de k ou g; nas demais ocorrências as letras m e n designam, afora a nasalização da vogal precedente, as fricativas nasais acima descritas w, , , também representadas pelo til. Alguns exemplos: ra´zãw (escrito razão) se´karãw (secaram), mã (mãe), po (põe e põem), ir´mã (irmã). Os sons ñ (escrito nh) e (lh) encontram-se apenas antes de vogais; é o som do l em final de sílaba e passa à vogal anterior um timbre mais baixo; w e j – ambos com pouco som fricativo – são os sons de um u (o) e 459

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i (e) átono antes de vogal, por exemplo em ´agwa (escrito água), ´mejù (meio), pen´tjar. O som s é expresso por s – exceto entre vogais, onde ocorre um ss no lugar –, por c – apenas antes de e, i, y –, por ç e, em final de palavra, também por z; o som de z é expresso por z e, entre vogais ou entre vogal e consoante sonora, também por s. As letras s e z em final de palavra são tratadas, quando seguidas imediatamente por outra palavra, como no interior de palavra: têm som de s antes de sons surdos, de z antes de sonoros. Ou seja: fa´zer, ´rza, ´mezmù, ´dezdì (escrito desde), ùz mì´nutùs, seìz ´di:as, ves (escrito vez), vis´tidù, as´šãmas. A pronúncia š, respectivamente z, para s ou z em final de sílaba ocorre apenas entre os cultos e dá provas da intenção literária do falante; no Rio de Janeiro ela é um pouco mais freqüente, ainda que de forma alguma geral, e deve-se aí seguramente à antiga influência da corte. O som z é representado por  (antes de e, i, y) e j, o som š por ch e x (em palavras de origem erudita x representa também s e ks; o prefixo ex- tem o som de ìs antes de sons surdos e de ìz antes de sonoros). Para o ch escrito ter-se-ia mantido, segundo testemunhos fidedignos, em parte a antiga pronúncia tš ou então uma pronúncia parecida; porém, eu nunca a ouvi e também a grafia de meu informante, que usa ch e x sem distinção, dela não dá nenhum indício. No que concerne aos dois sons de r5, ocorre para o r forte propriamente dito (escrito entre vogais rr e no começo de sílaba e palavras r) não raramente a vibrante uvular R e ainda mais freqüentemente a fricativa velar-uvular ∗; o r brando (escrito r; não ocorre em começo de palavra e em começo de sílaba apenas entre vogais), com efeito, permanece sempre alveolar, mas em final de sílaba é formado apenas de forma frouxa, de maneira que freqüentemente desce a uma fricativa fraca, parecida ao r do Sul da Inglaterra. O consonantismo da linguagem familiar estaria com isso caracterizado em suas linhas principais; a linguagem vulgar apresenta além disso ainda uma série de traços particulares. Primeiro, e r em final de sílaba coincidem6 aqui em boa parte no som de um r pouco enérgico, mas não fricativo; em final de palavra freqüentemente cai por completo. Por isso as grafias sorteiro por solteiro, farta por falta, parpita por palpita e inversa-

5

* 6

Remeto a R. Lenz, «Chilenische Studien I», in: Phonetische Studien, vol. VI, p. 279 ss.,– não apenas porque aí se encontra a melhor descrição dos dois sons de r do espanhol (e do português) que eu conheço, mas também por causa da analogia dos destinos desses sons no Chile e no Brasil. O R invertido que Nobiling usa é também virado para a esquerda. (NE) Cf. Lenz, op. cit., p. 289 ss.

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mente mal por mar, além de morá, cherá, secá, qué, sê, bebê, dormi por morar, cheirar, secar, quer, ser, beber, dormir. A antiga transição de l, depois de consoante, para r também ocorre: cf. prantar por plantar. Além disso, o foi substituído na linguagem popular de ponta a ponta por j, um fenômeno que também é largamente disseminado nas Américas Central e do Sul hispânicas. Mas o traço mais característico talvez seja que o s (e z) em final de sílabas átonas está em vias de desaparecer. As palavras mais usuais já perderam o seu s na linguagem vulgar: está pronuncia-se ta, a partícula átona mesmo = mêm(ù). Em outras ocorrências a tendência para a clareza opõe-se ao desaparecimento, e por este conflito explicam-se alguns fenômenos contraditórios. Por um lado, o s do plural é acrescentado apenas à primeira de duas ou mais palavras que formam unidade gramatical. Por isso diz-se os minutos = ùz mì´nutù, nas cadeiras = nas ka´dera, e mesmo daqueles prazeres = da´kelìs pra´zer, dois amores = ´doiz a´mor. Por outro lado, acrescenta-se à segunda pessoa do pretérito perfeito do indicativo, na medida em que ela ainda esteja em uso na linguagem popular, em analogia com as outras segundas pessoas do singular, um s: por tu me viste diz-se ´tu mì ‘vistìs. Assim, as transformações fônicas também tiveram influência nas formas gramaticais. Na conjugação, misturam-se em geral as formas da segunda pessoa singular e plural, e o tratamento de vós, introduzido pela República nas relações oficiais, é utilizado apenas por poucos de maneira absolutamente correta. A forma mais usual de tratamento no Brasil todo é porém, na relação mais familiar, a terceira pessoa com você (a mais reduzida forma do antigo vossa mercê, de que permaneceram apenas as duas sílabas tônicas), plural vocês, combinada na relação mais formal com o senhor. Popular é também a mistura de formas verbais da terceira pessoa com pronomes da segunda pessoa, como vós, te, teu – assim ´viz mì ´deù (por vós me déstes), ´viz ´da (por vós dais) – assim como a primeira pessoa do plural do pretérito perfeito indicativo da conjugação em -a, em -emù(s), que tem sua origem na analogia com dei – démos (pronuncia-se ´demùs ou  ù). Por isso kõwv er´ sem  ù (por conversamos). Já ao português dos negros ´dem com sua gramática simplificada pertence porém o uso das formas da terceira pessoa do singular também para o plural e para a primeira pessoa. Para esse fenômeno encontram-se igualmente exemplos nas quadras que seguem:  n´tava (por nós dois nos ajuntávamos), ´tiña (por tínhamos), nìz ´dois sj azu az ´mosa na´seù (por as moças nasceram). ——————————————

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I.

III.

Vô fazêr o meu relógio de uma lasquinha de quêjo, para marcar os minuto da óra que não lhe vêjo.

Você éra quem dizia, eu éra quem duvidava daquêles prazêr que tinha quando nóis dois se ajuntava.

Quem me déra eu te enxergar trinta dia em cada mêz, [em] cada semana seis dia, [em] tôdos minuto uma vêz.

Daquêles prazêr que tinha quando nóis dois se ajuntava; agóra vivo chorando, aquêle tempo eu não chorava. Agóra vivo chorando, aquêle tempo eu não chorava: eu sempre é que te dizia qu a bom tempo se acabava.

II. Quando vim lá da cidade, vi uma môça intimadêra, cum vestido feito á móda, riquefóque nas cadêra.

IV. Naquêle cordão de sérra, naquéla ôtra de lá avistei a Sérra Nêgra donde meu bem foi morá.

Calçadinha, vestidinha, de botina ringidêra, fórte môça entusiasmada: que danada matadêra!

I. Romero II, 54 (Estado do Rio Grande do Sul): Hei de mandar fazer um relogio De um galhinho de poêjo, Para contar os minutos Do tempo que não te vejo. – 4. Lhe, como freqüentemente na linguagem popular, objeto direto. Cf. XXXVII, 4. II. 3. Cum (pronuncia-se kuw) contração popular de com o (pronunciase ko wù). – 4. Riquefóque = um enfeite de fitas ou parecido. – Cadêra, isto é, cadeiras, = traseiro. – 6. Ringidera = rangedeira. III. Rom. II, 8 e 99 (Rio Grande do Sul): Eu era quem te dizia, Tu eras quem duvidavas Que no fim do nosso amor Tu eras quem me deixavas. – 3 e 5. Tinha primeira pessoa do plural. – 4 e 6. Nóis dois se ajuntava = nós dois nos ajuntávamos. IV. 4. Morá por morar.

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V.

IX.

Eu me chamo José Alves, sobrenome de Vicente; quem não amar êste nome tem de morrêr de repente.

Cadêle teu pente de ôro, para pentear teu cacheado? No canto de teu peito Trago meu amôr guardado.

VI.

X.

Eu cheguei na sua casa, você de mim se escondeu; áquilo que nóis conversemo nem respósta vóis me deu.

Eu quéro vivêr solteiro p’ra nunca sêr enganado; antes morrêr duma veiz do que uma mulhér danada.

VII.

XI.

Dizêr-me com que (se)cura [uma] saudade de muinto tempo? Cura(-se) com dois abraço E um bêjo num momento.

Eu tenho meu cravo chita, Metido nas flôres prêta; Quem tem seu amôr bonito, não falta quem se entremêta. XII.

VIII. Atravessei o mar a nado por cima de uma pinguéla, arriscando a minha vida por causo de uma [môça] donzéla.

Vóis de lá, eu de cá, passa um ribeirão no meio; vóis de lá dá um suspiro, eu e de cá suspiro e meio.

VI. 3. Conversemo (o metro exige, ao invés, falemo) primeira pessoa do plural do pretérito perfeito indicativo – Vóis = vós = Deu segunda pessoa do plural. VII. 1. Dizêr-me: como freqüentemente, usa-se o infinitivo ao invés do imperativo. – 4. Num momento: no manuscr. no mesmope. VIII. 1. Rom. I, 260 (Rio de Janeiro) começa uma canção popular: Eu passei o mar a nado. – O mar a nado: manuscr. omal anado. 4. Causo. Na linguagem popular, causa e caso coincidiram nesta forma; cf. XXIV, 3 e XXVII, 2. IX. 1. ka’delì ou kå´delì (formou-se pela generalização analógica de que é dele) popular e largamente difundido por “o que acontece com ...? Onde está ...?” – 2. Manuscr. pentiar e cachiado = cabelo cacheado, de cacho. – 4. Manuscr. gardado. X. 1. Manuscr. sorteiro. – 3. Veiz = vez. – 4. Manuscr. molher. XI. 2. Manuscr. na. – 4. Manuscr. farta quem me. XII. De um depoimento particular (Itapetininga em São Paulo): Eu de cá, mecê de lá, Passa o ribeirão no meio; Mecê um suspiro solta, Eu solto suspiro e meio. – 3. Manuscr. suspirio.

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XVII.

XIII.

Puz (um) cravo na janéla para meu amôr cherá; meu amôr foi (tão) ingrato, dexô o cravo secá.

Vim tomar amôr ao longe por sêr a linha mais fórte; rebentô a linha ao meio: triste de quem não tem sórte.

XVIII.

XIV.

Eu entrei na órta, fui plantar o alecrim; o alecrim naceu p’ra as môça, as môça naceu p’ra mim.

(Em) cigarro de papél fumo vêrde não fuméga; aonde tem môça bonita, meu coração não socéga.

XIX.

XV.

Esta noite chorei tanto, quatro lenço ensopei, molhei a manga da camisa: ainda disse que não chorei!

Tôda vida eu desejei um corpinho como o seu; vô fazêr tôdos os geito dêste corpinho sê meu.

XX.

XVI.

As lagúa já secaram, [a]donde os pombo vão bebê. Tomae amôr comigo, Que não ade se arrependê.

Meu amôr está mal comigo: coitadinho, tem razão; méte a faca no meu peito, despica teu coração!

XIII. Rom. II, 84 (Rio Grande do Sul): Eu tomei amor ao longe, Por ser a linha mais forte; Rebentou-se a linha ao meio, Triste de quem não tem sorte. – 1 e 3. Ao: manuscr. o. XIV. Rom. II, 25 (Rio Grande do Sul): Em cigarrinho de papel Fumo verde não fumega; Onde há moça bonita Meu coração não socega. – 2. Verde: manuscr. ver. – 3. Tem, no Brasil em geral por há. – Bonita: manuscr. boni. XV. 4. Sê por ser. XVI. 1. Rom. II, 13 (Rio Grande do Sul) começa uma quadra: Meu amor está mal comigo. Porém, o verso exige, ao invés de está, a forma popular ’tá. XVII. Rom. I, 193 (Sergipe): Botei o cravo na telha Para Maria cheirar; Maria foi tão ingrata ... Deixou o cravo murchar. – 2. Cherá por cheirar. – 4. Dexô (manuscr. decho) por deixou. XVIII. 2. Manuscr. prantar. – 2 e 3. Manuscr. alicrim. – 3 e 4. Pra (por para) é a forma mais difundida e provavelmente também a mais antiga. De pera, do português antigo, derivou, já que era sempre pretônico, pra, do qual por sua vez derivou a forma mais recente para. – 4. Naceu = 3ª. pessoa do plural. 464

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XIX. 4. O verso exige ainda diz (= e você ainda diz que eu não chorei). XX. Rom. I, 241 (Sergipe): A lagôa já secou Onde os pombos vão beber; Triste coisa é querer bem A quem não sabe agradecer. Aparentemente é esse o final original das primeiras duas linhas. – 1. Lagua é, de acordo com as leis fonéticas, a forma correta. Lagoa, do português escrito, originou-se pela troca de sufixo. – Secaram: manuscr. cecaro. – 3. Leia-se: vem tomar. – 4. Ade se: leia-se se ade (se há de).

XXI.

XXV.

Quando eu da minha térra saí, não foi p’ra tomar amôres; que na minha térra eu dexei um bélo jardim de flôres.

Os galo já estão cantando no retiro adonde eu móro; quando me apérta a saudade, saio no terrêro e chóro.

XXII.

XXVI.

Môça que está na janéla, dê cá a mão, quéro subir; eu sô muinto vergonhôso, para (a) pórta não pósso ir.

[Eu] vô fazêr o meu barquinho da raiz do fedegôso, p’ra tirar o meu bemzinho do mêio dos invejóso.

XXIII.

XXVII.

Você éra quem dizia que éra firme no amar, tendo tão bélos carinho, coração de m’inganá.

Dois amôr, quando se encontra, causa susto e causa gôsto, treme a mão, palpita o peito, fóge o semblante do rôsto.

XXIV.

XXVIII.

Os galo já ’tão cantando, os passarinho tambem: fizéste tão pôco causo do que te pedi, meu bem.

Álérta, pombinha branca, que tem caçadôr na térra, com espingarda de ôro, [a]donde faiz ponto, não érra.

XXI. 2. Manuscr. amor. – 3. Na: leia-se em. – manuscr. dechei. – 4. Manuscr. flore. XXII. 1. Manuscr. janél. – 3. Manuscr. vergunhozo. XXIII. 1. Manuscr. disi. – 2. Manuscr. firmi. – 4. Manuscr. mim ganna por me enganar. XXIV. Rom. I, 264 (Rio de Janeiro): Os gallos estão cantando, Os passarinhos tambem; Já ahi vem o claro dia E aquella ingrata não vem. II, 11 (Rio Grande do Sul): Os gallos já estão cantando E os passarinhos tambem, Ja vem amanhecendo, E aquella ingrata não vem. O sentido das linhas finais no 465

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texto acima será o mesmo que nestas versões aqui citadas. O tema é bastante variado nas poesias populares dos mais diversos países. – 1. Manuscr. cantanno. – 3. Acerca de causo cf. VIII, 4. XXV. 2. Manuscr. ritiro e mór. XXVI. Rom. I, 246 (Sergipe): Mandei fazer um barquinho de pauzinhos de alecrim Para embarcar meu bemzinho Da horta para o jardim. II, 32 (Rio Grande do Sul): Mandei fazer um barquinho Da casca do camarão, Para levar o meu bem De Santos ao Cubatão (ambas as cidades localizam-se em São Paulo). XXVII. Rom. I, 217 (Sergipe): O amor quando se encontra Causa susto e mette gôsto; Sobresalta um coração, Muda o semblante do rosto. II, 114 (Rio Grande do Sul): O amor quando se encontra, Mette sustos e dá gôsto, Sobresalta o coração, Faz fugir a côr do rosto. – 2. Manuscr. casa (duas vezes) cf. VIII, 4. – 3. Manuscr. parpita. XXVIII. Rom. II, 86 (Rio Grande do Sul): Álerta, pombinha branca, Que ha caçador na terra Com espingarda de ouro, Onde faz ponto, não erra. – 3. Manuscr. espingar de horo. – 4. Faiz por faz.

XXIX.

XXXIII.

Na asa de um passarinho vae um cravo avoando, vae gozar da companhia de quem anda suspirando.

Menina, êsses teus ólhos são lancêta de sangrá; para tudo vóis dá vida, só a mim qué me matá.

XXX.

XXXIV.

Vêjo mar e vêjo térra, [e] vêjo a praia descobérta; o amôr vae um e vem ôtro, não ha palavra mais cérta.

Dêsde da óra que te vi empreguê os meus cuidado, nunca mais pude dormi meu soninho assocegado. XXXV.

XXXI.

A môça que eu quéro bem tem uma falta de dente, a falinha maciósa, carinho que mata a gente.

Fui no rio apanhar agua, enxerguei (a) arêia do fundo; quem tem amôr tem trabalho por tôda parte do mundo.

XXXVI.

XXXII.

Vêjo mar, não vêjo térra, vêjo espada a reluzir, vêjo Marica na guérra; mais não pósso lhe acudir.

Menina, êstes teus ólhos são confeito, não se vende, são bala com que me atira, corrente com que me prende.

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XXIX. 2. Avoando por voando. A linguagem popular acrescenta freqüentemente o prefixo a- a verbos. – 3. Manuscr. compania (o ñ perde antes de i o seu som de transição em forma de “j”). XXX. Rom. II, 65 (Rio Grande do Sul): A maré enche e vasa, Deixa a praia descoberta; Vão uns amores, vêm outros, Não se dá cousa mais certa. 99 (Rio Grande do Sul): Enche o rio, vasa a maré, Fica a praia descoberta, Vae-se um amor e vem outro, Não ha cousa mais certa. Com respeito à primeira linha cf. XXXVI. – 1. E vêjo: manuscr. ivejo. – 2. Manuscr. descuberta. XXXI. 2. Manuscr. en chergui. XXXII. Rom. I, 244 (Penedo em Alagoas): Os olhos de Sinhá Anninha São confeitos, não se vendem; São balas com que me atiram, Correntes com que me prendem. II, 72 (Rio Grande do Sul): Menina, esses teus olhos São confeitos, não se vendem; São balas com que me matas, Correntes com que me prendem. – XXXII, 1 e XXXIII, 1 manuscr. minina. XXXIII. Depoimento particular (São Luís do Paraitinga em São Paulo): Ai morena, esses teus olhos São lancetas de sangrar, Que a todos prometem vida, Só a mim quer me matar. – 3. Tudo vóis por todos vós. XXXIV. 2. Manuscr. en pregue e coidado. – 3. Dormi por dormir. – 4. Manuscr. asucegado. XXXV. 2. Manuscr. farta. XXXVI. A primeira linha aparece também em outros lugares como começo; por exemplo Rom I, 266; porém, deve ter sido introduzida aqui posteriormente, cf. Rom. II, 18 (Rio Grande do Sul): Vejo lá naquella banda As espadas reluzir, Vejo meu amor em guerra E não posso lhe acudir. – 4. Mais por mas.

XXXVII. Com pena peguei na pena, com pena p’ra lhe escrevê, com pena dexê da pena, sòmente para lhe vêr.

XXXVIII. O meu peito está fechado, a (chave) está em Lisbôa, o meu peito não se abre sem sê por coisa boa.

XXXVII. Rom. I, 238 (Sergipe) e II, 7 (Rio Grande do Sul): Com pena peguei na penna, Com pena p’ra te escrever; A penna cahiu da mão Com pena de não te ver. – 3. Dexê (manuscr. deche) por deixei. – 4. Lhe, cf. I, 4. XXXVIII. Rom. I, 211 (Sergipe): Meu coração está trancado Com chave de paciencia; Meu coração não se abre Sinão na tua presencia. 262 (Rio de Janeiro): O meu peito está fechado, A chave está em Lisbôa; O meu peito não se abre Se não a vossa pessôa. II, 109 (Rio Grande do Sul): Fechei o meu coração, Mandei a chave a Lisbôa, Não quero mais amar Senão a tua pessôa. – 4. Sem sé: o verso exige a não sê (por ser).

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DE

UMA PÁGINA DE HISTÓRIA LITERATURA POPULAR (FOLCLORE)∗

Compreenderão todos os leitores o quanto é interessante o estudo da literatura chamada popular, anônima ou oral? Não faltam talvez os que olham com certo menosprezo essas produções singelas que constituem o romanceiro, o cancioneiro e a novelística do povo, e que consideram até como contraditório o termo – literatura oral –, desejando reservar o nome de literatura àquelas produções em prosa ou versos que são transmitidas pelas letras. Porém um tal rigor de nomenclatura nos levaria ao absurdo de excluir da literatura grega a Ilíada e a Odisséia; pois é certo que estas epopéias verdadeiramente populares foram conservadas pela tradição oral exclusivamente, sendo cantadas ou recitadas por rapsodos, durante séculos depois da época que as criou. E ninguém que tem estudado o assunto desconhece o profundo sentimento poético, a força de imaginação e a arte narrativa que não raro transparecem nas obras da literatura popular, qualidades essas que têm provocado os entusiásticos encômios de poetas tais como Molière, Goethe e Almeida Garrett. Mas, o que dá um interesse particular ao seu estudo, é que as literaturas populares nos revelam relações de intercurso entre povos, às vezes os mais distantes, das quais não fala nenhum documento escrito. É sabido que os contos mais apreciados pelo povo transmigram de uma terra para outra, conservando, com tenacidade admirável, seus traços gerais através de todas as mudanças de tempo, de espaço e de idioma. Assim, muitos temas novelísticos que se contam hoje em línguas européias, têm sido retraçados até a Índia, onde foram apontados em coleções dos primeiros séculos da era cristã, como o Pantchatantra, e alguns dentre eles incontestavelmente devem a origem às crenças mitológicas de tempos mais primitivos ainda.

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Almanaque Brasileiro Garnier, Rio de Janeiro, n. 5 (1907) pp. 232-236.

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Entre nós, pouco se tem feito até aqui neste gênero de estudos. Na segunda edição dos Contos populares do Brasil, coligidos por Sílvio Romero – que aliás representam a mais preciosa publicação até hoje aparecida no nosso país neste ramo da ciência folclorística – suprimiram-se as notas comparativas com que na primeira edição Teófilo Braga ilustrara os contos brasileiros, assinalando paralelos em outras literaturas: notas estas que, por incompletas que fossem, não deixavam de ser úteis aos estudiosos. Eu tentarei nestas páginas escrever a história de um tema novelístico conhecido pelo povo em várias partes do Brasil, acompanhando-o por uma série de países da América, Europa e África e procurando descobrir-lhe a forma primitiva e o caminho que seguiu ao propagar-se por um terreno que se estende das margens do Nilo até o pé da Cordilheira dos Andes. O 23º conto da coleção de Romero, “João mais Maria”, recolhido no Rio de Janeiro e em Sergipe, é composto de três temas originariamente distintos. O primeiro, já descriminado por Teófilo Braga, é a história dos Meninos perdidos, vulgaríssima em muitos países, tendo fornecido, não há muitos anos, o assunto de uma ópera que agradou muitíssimo na Alemanha, Hänsel und Gretel. A continuação do conto, à qual Braga deu o título A bicha de sete cabeças, deve por sua vez ser considerada como formada pelo sincretismo de dois temas. A lenda do monstro que exige o sacrifício diário de um ente humano, do herói que o mata, merecendo assim a mão da princesa a quem salvou, e do impostor que se apodera dos troféus da vitória, sendo afinal desmascarado, acha-se no nosso conto, e em bastantes contos afins de outros povos, intercalada como episódio em outro tema, que é aquele que nos ocupará aqui. O conto arriba citado narra-o do modo seguinte. Morta a feiticeira, João e Maria ficam morando na casa dela, sob a guarda de três cães ferozes que saíram da cabeça da velha, e que eles amansaram, de conformidade com os conselhos de Nossa Senhora, atirando-lhes três pães. Estes cachorros chamam-se Turco, Leão e Facão (nomes que, segundo se verá mais tarde, são de importância capital), e mostram-se peculiarmente afeiçoados a João, a quem nunca desamparam. Depois de alguns anos Maria namora-se de um homem, e tentam os dois dar cabo de João. Não o podendo conseguir por causa dos cachorros, combinam com Maria pedir ao irmão que a deixe um dia ficar com os três guardas, e, tendo João saído para o serviço, prendem os cachorros com correntes e tapam seus ouvidos com cera. Feito isso, o camarada de Maria vai procurar João para o matar, levando a espingarda carregada. Este, vendo-se perdido, pede o tempo para dar três gritos, ao que o outro responde: “Podes dar cem”. O moço, trepando a uma árvore, grita: “Turco! Leão! Facão!” por três vezes. Ao primeiro grito, os cachorros abalam as 470

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cabeças, ao segundo despedaçam as correntes, e ao terceiro se apresentam diante de João e devoram o seu inimigo. Então, João abandona a irmã que o atraiçoou e vai correr mundo; seguindo-se a história do monstro de sete cabeças. Mas o conto dos três cães protetores não acaba aí; encontraremos a sua seqüência em uma versão que colhi em Sorocaba, e que é corrente no Estado de São Paulo. Nela, os cães chamam-se Rompe-ferro, Rompe-vento e Busca-vida: nomes de significação transparente, com exceção do segundo, que parece deve ser substituído por Corta-vento. Encontro este último nome, ao lado de Rompe-ferro e Ventania, em outra versão, colhida por meu amigo o Dr. Sílvio de Almeida e conhecida tanto em Penedo de Alagoas como em Ibitinga, do Estado de São Paulo, e, ao que parece, também em Minas. Esta versão, que abrange só dois dos temas mencionados, o dos meninos perdidos e o do monstro de sete cabeças (aqui chamado dragão), excluindo o da irmã traiçoeira, remata por um traço significativo: os cachorros, depois de terminada a sua missão, transformam-se em pombinhas e voam! Mas voltemos à versão de Sorocaba, que, por sua vez, suprime o tema do monstro de sete cabeças, concluindo assim: Maria, para se livrar de João que contraria o seu amor, põe no travesseiro dele três alfinetes venenosos, os quais entrando na sua cabeça o matam. Quando sai o féretro, Maria prende os três cachorros num quarto de ferro; mas o Rompe-ferro arromba a porta, os três correm ao cemitério e cavam a terra, abrem o caixão, e cada um deles arranca um alfinete da cabeça de João. Este, então, volta à vida, e Maria bem como seu amante são despedaçados pelos cães. Ainda sob outra forma aparece nosso tema no 30° conto de Romero, colhido em Pernambuco. Aí, João e Maria não são irmãos: é a mãe com o filho que vêm morar numa cidade deserta, cujos habitantes foram devorados por um gigante; este, voltando durante a ausência de João, ganha as boas graças da mulher e conspira com ela para se livrarem do moço. A mãe, fingindo-se de doente, pede ao filho que lhe traga para remédio, primeiro a banha de uma serpente, e depois a de um porco-espinho, tão ferozes ambos que ninguém pode com eles. (O primeiro destes remédios deve curar um mal de olhos, o outro, como se vê no fim do conto, ressuscita até os mortos). O moço mata tanto um como outro dos monstros; passando, porém, em casa de um velho, que é seu anjo da guarda, este troca os remédios milagrosos pela banha de duas galinhas. Vendo a mãe que as feras não deram cabo de João, persuade-o, sempre guiada pelos conselhos do amante, que se deixe enlear – outro Sansão! – com cordas, que ele arrebenta, e novamente com correntes, que não é capaz de arrebentar. Neste momento se apresenta o gigante: e João consente em morrer, contanto que o outro lhe cumpra três pedidos. “Cumprirei 471

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vinte, quanto mais três”: e João lhe pede que não faça uso dos objetos que seu pai deixou – um cavalo, uma espingarda e um facão –; que parta o seu corpo em cinco partes e as ponha dentro de dois jacás no cavalo com a espingarda e o facão. Assim faz o gigante; e o cavalo, com sua carga, vai ter à casa do velho, que restitui a João a vida e a vista com os remédios que guardou, depois do que este se vinga do gigante, poupando a vida da mãe. Qual será a forma primitiva deste conto tão espalhado nas diversas partes do Brasil? Na última versão citada não se explica a importância atribuída aos três objetos deixados pelo pai senão pelo papel que nas outras versões fazem os três animais dotados de poderes mágicos; e segue-se daí que estas, nesse ponto, conservam a feição mais antiga, sendo provavelmente o nome Facão o motivo da metamorfose que transformou dois dos cães em utensílios de caça. Mas este mesmo nome, certamente estranhável num cachorro, não será devido à desfiguração de Falcão, que seria símbolo de rapidez, como Leão é o da força? Corresponderiam, assim, esses dois nomes perfeitamente a Corta-vento e Rompe-ferro: designações estas que, segundo toda a probabilidade, foram introduzidas posteriormente para indicar os papéis milagrosos que os animais desempenham. Estes papéis, todavia, que constituem uma das feições características do conto, deviam pertencer à sua forma primitiva, que, por conseguinte, incluía também a morte e ressurreição do moço. A traição da irmã (ou mãe), motivada pelo ódio de seu amante; as tentativas frustradas de livrar-se do protagonista; o êxito final – ao menos aparente – das ciladas e a salvação por forças sobrenaturais, – são traços comuns às diferentes versões. O que fica obscuro é o motivo da inimizade do amante, assim como a procedência dos três guardas: pois, se é bem compreensível que a imaginação popular faça nascer da cabeça de uma bruxa os cães dotados de poderes mágicos, não pode ser primitivo este traço, que só serve para unir dois temas originalmente distintos. A solução do último desses dois problemas parece se encontrar em um conto araucano do Chile, apontado em língua peuenche pelo Dr. Rodolfo Lenz1 e interessante sob vários aspectos. O conto, que tem por título Los dos perritos (Os dois cachorrinhos), pode, na parte que diz respeito ao nosso tema, ser resumido do seguinte modo. Um indiozinho vive junto com sua irmã maior, quando chega um Cherruve2 que se amanceba com ela. O índio, que costuma pastorear as ovelhas, troca-as um dia, malgrado a oposição da

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Lenz, Rodolfo. Estudios araucanos. Santiago do Chile, 1893-97, pp. 242-249. Os Cherruves são umas entidades da mitologia araucana, que parecem ser personificações da força do fogo, tal como se manifesta nas trovoadas e fenômenos vulcânicos (Lenz, 1893-97, p. 235, nota 4). Seria interessante descobrir-lhes analogias nas crenças supersticiosas dos nossos índios. Nos contos eles fazem as vezes de nossos gigantes, dragões e outros monstros.

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irmã, por dois cachorros mais uma espingarda, oferecidos por um velho. Ela, enraivecida, resolve matá-lo: finge uma doença e pede ao irmão que lhe traga peras para remédio; depois manda o Cherruve atrás dele, fechando numa caixa os cachorros e a espingarda. O índio, ameaçado de morte pelo Cherruve, pede tempo para fazer sua oração, e, descendo da pereira, chama os cachorros: “Norte! Sul!”. Estes acodem e matam o Cherruve, e o índio separa-se da irmã que lhe armou a cilada. Segue-se a história do “Cherruve de sete cabeças”, e o conto remata assim: recebendo a notícia da boa aventura do indiozinho, a irmã vai procurá-lo, trazendo as unhas cortadas de seu amante morto. Esconde-as na cama do irmão, que morre e é enterrado; mas os cachorros o desenterram, procuram as unhas que o feriram, arrancam-nas com os dentes e o fazem voltar à vida. É muito notável a coincidência, em tantas minúcias, entre este conto e os do Brasil. Fica demonstrado por ela que a doença fingida da irmã e a tentativa de assassínio na cama por meio de armas envenenadas são traços que pertencem a uma forma bastante antiga do conto. Não se pode negar também que a versão araucana prima pela unidade do enredo habilmente urdido: a morte do índio é devida ao mesmo inimigo que o persegue desde o princípio, e o ódio da irmã é motivado pela aquisição daqueles mesmos animais que o devem salvar. Mas será realmente este o motivo primordial? A espingarda, que também aqui se menciona sem utilidade alguma, está aí como testemunho de uma versão mais primitiva ainda. Os araucanos domiciliados hoje no Chile ocupavam, em séculos passados, um território muito mais vasto, que compreendia grande parte dos Pampas argentinos; e é, portanto, uma hipótese perfeitamente admissível o ter havido antigamente, entre eles e os tupis-guaranis, relações de convivência e troca de temas novelísticos3. O nosso tema, porém, foi incontestavelmente inportado na América pelos espanhóis e portugueses, visto que no solo da Ibéria ele se encontra ainda hoje em várias versões. Um conto de Cabeceiras de Basto, apontado por Leite de Vasconcelos4, e que combina o tema dos meninos perdidos com o da bicha de sete cabeças, só conserva do nosso dois cães milagrosos, chamados Ares e Vento (comparem-se Cortavento e Ventania na versão de Penedo-Ibitinga). Dois outros contos, recolhidos em Alanje e Montijo, da Estremadura espanhola5, fornecem, combinados, uma versão, segundo parece, vizinha da que serviu de fonte ao conto araucano.

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Entre os contos tupis que se lêem em O selvagem, do General Couto de Magalhães, alguns, como, por exemplo, “A onça e a raposa”, são textualmente idênticos a contos araucanos. Tradições populares de Portugal. Porto, 1882, pp. 274-277. Um resumo encontra-se apud Lenz, obra cit., pp. 329-333.

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No primeiro, os personagens principais são irmãos; no segundo, são mãe e filho. Os três cachorros, no primeiro, chamam-se Ferro (compare-se Rompe-ferro em dois dos contos brasileiros), Chumbo e Aço; no segundo, Sol, Lua e Estrela-d’alva. Da sua aquisição, só fala o segundo: o moço os recebe dum velho, a quem dá em troca três vacas, única riqueza de sua mãe. Esta, que debalde se opôs ao negócio, e vê tudo em casa destroçado pelos recém-vindos, enfurece, e o filho se vai embora seguido de seus cães. Falta, como se vê, o episódio do amante e das ciladas armadas com seu auxílio; mas trá-lo o outro conto, no qual o “gigante” diz a sua querida que peça laranjas ao irmão, e ataca a este quando está em cima da laranjeira. Os cães acodem e o subjugam sem matá-lo. Deveria, portanto, ser ele quem continua a perseguir o moço até o fim; mas esta feição primitiva do conto está obliterada, incumbindo-se desse papel a irmã do negro que fraudulentamente arrogou a si a glória de ter vencido o monstro de sete cabeças. As armas de que ela se serve são três puas de aço, compradas a uma feiticeira, que se põem na cama do jovem; o resto do conto assemelha-se perfeitamente à versão araucana e à brasileira de Sorocaba. No segundo conto espanhol é a mãe que vem visitar o moço e esconde debaixo de seu travesseiro o coração do negro morto; os cães, depois de ressuscitada a vítima, transformam-se em anjos e voam. Basta aproximar este traço, que se encontra, pouco alterado, em duas das versões brasileiras, dos nomes diversos que têm os fiéis guardas, para ficar bem estabelecido o caráter sobrenatural que lhes pertencia primitivamente. Passarei rapidamente sobre dois contos alemães6 que evidentemente derivam do conto peninsular do monstro de sete cabeças, e apenas conservam um ou outro traço do tema que nos está ocupando. No primeiro deles, Die zwei Brüder, dois irmãos, ao despedirem-se do caçador que os criou, recebem dele dois cachorros, duas espingardas e uma faca mágica; e em caminho cada um adquire uma lebre, uma raposa, um lobo, um urso e um leão. Mais tarde um deles, tendo vencido o dragão e salvado a princesa, é assassinado pelo impostor que se apodera dos troféus; mas ressuscita-o o leão por meio de uma raiz maravilhosa, que a lebre foi buscar. O segundo conto, Der gelernte Jäger, nem sequer mereceria menção aqui, se não fosse pelas armas maravilhosas que adquire o protagonista: uma espingarda que nunca erra e uma espada que sempre mata. Nada de mais natural do que estas migrações dos contos populares na Europa, onde os povos confins, desde tempos imemoriais, mantêm rela-

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Grimm, Kinder- und Hausmärcher, n. 60 e 111.

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ções íntimas; porém nada de mais difícil do que dizer, às vezes, qual foi o ponto de partida de tais migrações. Nem se podem retraçar as origens de todos os temas novelísticos até a Índia, nem é admissível que o povo indiano, por prodigiosa que seja a força e originalidade da sua imaginação, fosse o único inventor de quantas novelas, apólogos, lendas ou fábulas correm pelo mundo. As versões alemãs há pouco citadas são por demais alteradas e desenvolvidas para poderem ser as fontes do conto peninsular; mas será mesmo a Península seu país de origem? Está provado que boa parte do folclore ibérico é devida à influência árabe; vejamos, pois, se este povo, cuja predileção pelos contos é quase proverbial, nos fornece uma versão mais primitiva. O 10° dos contos recolhidos por Spitta-Bey no Egito, a “História do rouxinol cantor”7, depois de uma introdução alheia ao tema, continua assim: Um moço e a irmã (parece que também aqui ela é a mais velha dos dois) vão viver no deserto, estabelecendo-se em uma gruta, cujos moradores, trinta e nove ladrões, são assassinados pelo moço. O único sobrevivente, um negro, torna-se seu inimigo implacável, de mãos dadas com a irmã, sua concubina. (Veja-se o começo do conto pernambucano.) O moço, que vai todos os dias caçar as gazelas, encontra, uma vez, dois leões novos, que traz para casa “para servirem de companheiros à irmã”. (Comparem-se o primeiro conto alemão e o nome Leão do conto “João mais Maria”). Para ficar livre do moço, ela, seguindo os conselhos do negro, finge estar doente e pede que o irmão lhe traga as uvas do paraíso, esperando que os animais ferozes o devorem na viagem (versões de Pernambuco, do Chile, de Alanje). Entretanto, ele volta da expedição perigosa e é recebido com muitos carinhos pelos leões. De novo, a irmã o manda buscar a água da vida (versão de Pernambuco); ele parte, montado num burro, e os leões, desta vez, insistem em acompanhá-lo. Ele leva felizmente a cabo esta nova empresa, obtém a mão de uma princesa, curando-a com a água da vida, e, deixando em casa de sua mulher uma bilha do precioso líquido, volta para a gruta com a que lhe resta. Aí os malvados o assassinam, partem o corpo em pedaços, põem estes dentro do alforje nas costas do burro e tocam o burro para o deserto (versão de Pernambuco). Os leões, porém, conduzem o animal até a casa da princesa, que ressuscita o marido com a água da vida (há nisto analogia com o primeiro conto alemão). Este, depois, toma a sua vingança, matando os assassinos bem como seus filhos (compare-se a versão de Pernambuco, que, sob a influência do cristianismo, mitigou sensivelmente a barbaridade desta vingança). Dado o caráter muito primitivo de toda a coleção de Spitta-Bey, na qual nunca aparece arma de fogo; visto o grande número de traços dispersos 7

Spitta-Bey, Guillaume. Contes arabes modernes. Leide-Paris, 1883, pp. 123-136.

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pelas outras versões que se encontram neste conto do Egito: parece-me inegável que aqui temos a forma mais antiga, por ora atingível, das que hoje existem do nosso tema. É claro que os árabes, assim como o importaram na Espanha, o devem ter levado para outros países; não é de estranhar, pois, o encontrarmo-lo, pouco alterado, na Sicília, que esteve durante séculos sob o domínio árabe. Numa das suas versões sicilianas8 a inimiga do jovem príncipe é a própria mãe, na outra é a ama que ele julga ser sua mãe; os remédios que ela o manda buscar são limões, laranjas e o suor da feiticeira Parcemina, que aqui faz as vezes da água da vida e da banha do porco-espinho. Dos animais serviçais só aparece o burro, substituído na outra versão por um cavalo mágico; são ermitões ou fadas os que ressuscitam o morto. Em todos estes, e outros particulares, existe a mais surpreendente analogia com o conto pernambucano. Tentemos agora restituir o conto. Um jovem, acompanhado da mãe (ou irmã mais velha), mora num lugar deserto, cujos antigos moradores todos morreram (ou foram mortos por ele), com exceção de um só, que se incumbe de vingá-los matando o intruso; é auxiliado nisso pela própria mãe, amante do inimigo de seu filho. Ela finge doença a fim de perdê-lo; mas umas forças sobre-humanas o defendem. Afinal os amantes conseguem matá-lo; um animal fiel leva os membros despedaçados. Ressuscitado, ele volta e mata os assassinos. Se quisermos ir mais adiante, entraremos no campo das hipóteses. Mas não parece óbvio que possuímos neste conto o resíduo de um mito astral antiqüíssimo, quer dos indianos ou outro povo indo-europeu, quer do antigo Egito, onde a lenda de Ísis, Osíris, Tifão e Horo oferece analogias muito notáveis? O jovem verão que se estabelece no ermo deixado pelo inverno; o sol que o faz nascer9 e, todavia, parece ser seu maior inimigo, pois com seu ardor destrói os esplendores de que o verão revestiu a terra; os ofuscamentos (ou doenças) do sol, por neblinas ou trovoadas, que anunciam o fim do verão; enfim a sua morte e ressurreição: esta série de fenômenos repetida anualmente explicaria todos os traços principais do conto que temos acompanhado através de tantas terras.

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Gonzenbach, Laura. Sizilianische Märchen. Leipzig, 1870, n. 67 e, sobretudo, n. 26. Em mais de uma língua indo-européia, o sol é do gênero feminino; nas línguas não indo-européias, como a egípcia, não existe gênero gramatical.

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Estudos sobre o Romanceiro Peninsular, de Carolina Michaëlis de Vasconcelos

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ESTUDOS SOBRE O R OMANCEIRO P OPULAR , C AROLINA M ICHAËLIS DE V ASCONCELOS *

Dedicou-se na Alemanha, desde os tempos de Herder e dos primeiros românticos, um vivo e contínuo interesse à poesia dos romanceiros espanhóis, tanto por parte de um público mais abrangente, que aí buscava e achava deleite estético, quanto por parte dos estudiosos, para os quais se abriu nesta área uma quantidade de problemas concernentes à forma e origem da poesia popular e sua relação com os diversos gêneros da poesia artística clássica. Com efeito, há um caminho direto que leva, por exemplo no que diz respeito à forma e ao conteúdo, dos romances ao drama clássico dos espanhóis, pois o metro dos primeiros tem quase o mesmo papel que o verso branco na dramaturgia elisabetana e os seus representantes mais antigos, como Guillén de Castro, incorporaram sem receio parte de romances em suas peças1. Os estudos fundamentais e aprofundados de Ferdinand Wolf sobre a poesia dos romanceiros espanhóis foram recentemente retomados e continuados por Menéndez y Pelayo. Ramón Menéndez Pidal, por sua vez, esforça-se atualmente para dar a necessária centralização a toda esta área de pesquisa e, depois da conclusão das coletâneas organizadas nos mais diversos lugares, um remate. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, a maior conhecedora e a mais escrupulosa investigadora da literatura portuguesa

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“Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Estudos sobre o romanceiro popular: Romances velhos em Portugal. Publicados en la Revista Cultura Española. Madrid, 1907-1909. In Archiv für das Studium der neueren Sprachen und Literaturen, ano 60, vol. 126 (1911) pp. 261-269. Leia-se por exemplo no Handbuch der spanischen Literatur de Lemcke (Leipzig, 1856, III, p. 325 s.) a fala de Jimena, uma parte da fala do Cid (op. cit, p. 343) ou ainda as falas de Doña Urraca e de Don Diego Ordóñez (op. cit. pp. 364 e 373) e reconhecer-se-á sem dificuldade, se não os próprios romances, então pelo menos o seu tom. – Infelizmente não tenho acesso às investigações até agora realizadas sobre esse tema interessante, cito segundo Beer, Spanische Literaturgeschichte, Leipzig 1903, II, p. 41: Menéndez y Pelayo, Antología IX, p. 259 ss.: Romances que se han conservado por medio del teatro. [Aditamento do redator Heinrich Morf: “E. Mérimée cita, na sua edição das Mocedades (Toulouse, 1890) as duas dúzias de romances, p. XCIII, que Guillén de Castro entretece no texto do seu drama.]

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antiga, deu agora para esta obra conjunta uma importante contribuição, com o estudo abrangente e meticuloso mencionado no título acima. A Sra. Dra. Vasconcelos chama o seu estudo sobre os versos de romances que se encontram citados pelos escritores portugueses dos séculos XVI e XVII de “estudos sobre o romanceiro peninsular”; já que é da opinião, como veremos logo a seguir, de que Castela não é o único país de origem dos romances, ainda que o castelhano tenha sido sua língua, sagrada pela tradição e pelo secular exercício. Como o estudo foi publicado em uma revista e a impressão se estendeu por dois anos, sua disposição não está de todo uniforme, na medida em que a uma primeira coletânea de materiais (pp. 25-210)2 se segue uma segunda recolha (pp. 211-284) e só então as conclusões (pp. 285-334). A dificuldade de orientação é entretanto remediada por um sumário no início e vários índices no final da obra. O que ela inclui em seu tema a própria Sra. Vasconcelos resume na introdução (pp. 5-25) da seguinte maneira (p. 10): “Pequenos trechos de romances castelhanos, citados por autores quinhentistas e seiscentistas de Portugal, que os intercalaram como intermezzo musical em peças teatrais, ou os aproveitaram como enfeites, nessas e em outras obras literárias; alusões singelas a assuntos, situações ou protagonistas determinados; arremedos (contrafações = contrahechuras) de alguns romances muito sabidos; trovas e glosas de composições inteiras, ou de fragmentos de romances; paródias burlescas; o emprego proverbial de nomes próprios e de hemistíquios alocutivos; finalmente, algumas anedotas que se ligam a esses romances velhos”. “Encaro essas notas”, prossegue, “como outros tantos documentos do gosto com que os portugueses haviam acolhido, no século XV e em princípios do imediato, não só por causa da música, conquanto a essa caiba seguramente parte muito considerável na sua aceitação, as canções narrativas”.* Em relação à origem da poesia dos romanceiros de um modo geral, a autora admite que, desde os seus “Estudos sobre o romanceiro” (Zeitschrift für romanische Philologie, XVI, pp. 40-89 e 397-421) e sua “História da Literatura Portuguesa”, no Grundriß de Gröber, a sua visão,

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Cito segundo uma separata com paginação própria, cujo envio devo à gentileza da autora. Retomamos aqui a versão original de Carolina Michaëlis, apenas atualizando a ortografia; deixamos de incluir, porém, os trechos que Nobiling saltou na sua tradução. A edição do trabalho de Carolina Michaëlis que utilizamos é Estudos sobre o Romanceiro Peninsular. Romances Velhos em Portugal. 2ª. ed. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1934; mantivemos, porém, a indicação das páginas conforme estão no texto de Nobiling, que cita pela separata da revista Cultura Española, Madrid, 1907-1909). (NE)

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se não se modificou, pelo menos se clareou. Os resultados das pesquisas, especialmente de estudiosos espanhóis, ela mesma resume-os na p. 19 s.: “Os chamados romances primitivos, elaborados no século XV (quando muito, um ou outro será de fins do século XIV), são trechos desligados de cantares jogralescos – como está determinado com exação primorosa quanto aos dos Infantes de Lara e do Bom Conde, e brevemente o será quanto aos do Cid – cada um dos quais equivale a uma das tiradas das gestas, cujo metro, regularizado quanto ao número das sílabas, e cujo modo de rimar repetem. Esses trechos fixaram-se na memória do povo, por serem os mais impressivos e românticos, e ganharam assim vida independente, lucrando em beleza poética e movimento dramático pelo processo de simplificação e encurtamento da colaboração popular...” “É, pois, certo serem os romances primitivos herdeiros diretos e legítimos dos antigos cantares de gesta, como asseverara Milá y Fontanals; mas não herdeiros imediatos. Apontando as sucessivas renovações, que alternam o espírito e a forma dos poemas, é que a crítica preencheu a lacuna enorme que havia na tese dele, entre a maneira heroicamente rude do século XII e o estilo culto e cortês do século XV”. Que a poesia dos romanceiros tem, assim como os antigos cantares de gesta, sua primeira pátria em Castela, a Sra. Vasconcelos admite-o sem mais, e justamente nesse fato ela vê a explicação e a justificativa de sua tese (p. 21), segundo a qual “até fins do século XV a linguagem épica era para todos – espanhóis, galego-portugueses e catalães – a castelhana (e facultativamente continuou a sê-lo nos séculos XVI e XVII), como a linguagem lírica fora até 1350 a galego-portuguesa para portugueses, galegos e espanhóis ... e continuou a sê-lo facultativamente até 1450”. A autoria portuguesa de um ou outro romance, ela deduzira-a antes, entre outras coisas, do fato de que romances populares desse tipo, disseminados em outros lugares, não se encontravam justamente em solo castelhano. Com efeito, ela hoje abdica do argumento, já que foi refutado por pesquisas mais recentes. Mas ainda que o romance de Santa Íria (a santa Irene de que a cidade portuguesa de Santarém tira o nome) continue hoje vivo em Leão e no Uruguai, a Sra. Vasconcelos prossegue, por causa do tema nacionalista português, a reivindicá-lo para um poeta português, e a probabilidade, assim me parece, dá-lhe razão. A divisão que a autora dá a seu registro de citações e alusões provenientes de romances não deixa de ser interessante, já que ela mostra a quantidade e diversidade dos temas neles tratados. É a que segue: 1) Romances relativos à história e à tradição histórica de Espanha; 2) Outros romances históricos; 3) Romances fronteiriços e mouriscos; 4) Romances 479

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de cativos e forçados; 5) Romances do ciclo carolíngio; 6) Romances do ciclo bretônico e de livros de cavalarias; 7) Romances de assunto clássico, ou bíblico; 8) Romances novelescos; 9) Romances líricos; 10) Romances em versos pareados; 11) Romances ainda não identificados. De todos esses temas e grupos provêm os versos de romances conhecidos e correntes para os escritores portugueses. Quão significativos e patéticos estes podem ser por vezes, exemplifica-se logo pelo primeiro grupo mencionado (p. 27). Era no tempo da campanha africana em que o jovem Rei Sebastião buscou a glória e encontrou a morte perto de AlcácerQuebir, morte esta que extinguiu a sua dinastia, a mais gloriosa de Portugal, e que custou ao país a sua independência: um dos participantes desta campanha conta como durante a viagem marítima o músico real Domingos Madeira cantou para o seu senhor um romance do último rei dos godos, cujo verso Ayer fuiste rey de España, (Ontem foste rei de Espanha,

hoy no tienes un castillo hoje não tens um castelo)

parecia com razão aos ouvintes ser de mau agouro. É verdade que a profecia se fez na memória do relator mais clara do que ela realmente era, pois no romance legado pela tradição diz-se em primeira pessoa: Ayer era rey de España, (Ontem fui rei de Espanha,

hoy no lo soy de una villa hoje não o sou de uma vila)

Exemplo de uma alusão chistosa é o verso mencionado em segundo lugar (p. 32): Mensajero eres, amigo, (Já que és apenas mensageiro,

no mereces culpa, no amigo,não mereces culpa, não)

parodiado por Gil Vicente, o Plauto português, da seguinte maneira: Majadero sois, amigo, (Já que sois apenas um parvo,

no mereceis culpa, no amigo, não mereceis culpa, não)

Diga-se apenas de passagem que também aquele hemistíquio, que se nos tornou corrente através de Herder, está entre os versos várias vezes citados e parodiados: 480

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Afuera, afuera, Rodrigo! (Fora, fora, Dom Rodrigo!)

São, na primeira etapa, nada menos do que 120 citações de romances cujos rastros a Sra. Vasconcelos persegue nos monumentos da literatura portuguesa. Não admira que o maior número, isto é, 28, provenha do popular e amplamente disseminado ciclo carolíngio. Os romances líricos, especialmente populares em Portugal, também são fortemente representados, não tanto pela quantidade das passagens citadas (11), mas sim pelas repetições freqüentes das citações. No item 121, menciona-se ainda o fato interessante de que um dos feitos heróicos portugueses, a vitória de Salsete no ano 1547, foi celebrado por um poeta anônimo com um romance cujo começo – em língua portuguesa – é reproduzido pelo historiador Diogo do Couto. Este, porém, não é o único caso em que se comprova um português como sendo autor de um romance. Uma parte mais longa (pp. 133-153) dedica-se ao romance castelhano de Gil Vicente Don Duardos e Flérida, cujo tema é emprestado a um romance de cavalaria e cujo texto a Sra. Vasconcelos restabelece criticamente através de diferentes impressos antigos e da tradição oral – conservou-se mesmo uma versão interessante entre os judeus de Tânger. Um tanto diferente é o caso das trovas sobre a morte de Dona Inês de Castro – ela é a Agnes Bernauer da história portuguesa – que têm como autor um contemporâneo de Gil Vicente, o compilador do Cancioneiro Geral, Garcia de Resende (pp. 69-74): não se trata de romance, mas de um produto artístico lírico-épico, dedicado às damas da corte, que, porém, em seu tom sentimental, tem caráter bastante popular: aliás em geral não existia, no começo do século XVI, a fenda profunda que depois separaria poetas eruditos e populares. A Sra. Vasconcelos até torna provável, seguindo aqui Menéndez y Pelayo, que Resende tenha tomado emprestado alguns versos de seu poema comovente, que se reencontram num romance ainda vivo e em peças espanholas, a um verdadeiro romance antigo. Dado o tema, este poderia então muito bem ter um autor português, mas infelizmente se perdeu. Conservou-se uma adaptação e desfiguração do tema romântico, cuja heroína se chama Doña Isabel de Liar. Enquanto a histórica Dona Inês foi, a exemplo da filha do barbeiro-cirurgião de Augsburgo, morta pelo pai de seu esposo príncipe por motivos político-dinásticos, essa Doña Isabel é vítima do ciúme da esposa legítima de seu amante nobre. Lembra a lenda da bela Rosamund, aquela amante de Henrique II de Inglaterra, que foi transformada em tema de tragédia por Theodor Körner. Sobre uma citação, a 67ª, ainda tenho que me pronunciar em especial. De um dos romances de Durandarte e Belerma, a Sra. Vasconcelos cita o seguinte verso longo (p. 120): 481

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Ojos que nos vieron ir,

nunca nos verán en Francia

e continua: “Isso foi incorporado à Eufrosina” – uma comédia de costumes do século XVI. Para a compreensão, basta extrair um pedaço do trecho citado; ... se vos entendem d’antemão, escandalizam-se e levantamse, como pássaras de tela3, donde ojos que las vieron ir, etc. Vê-se que a citação em castelhano é dada em meio ao texto português, porém, abreviada como costumava acontecer com locuções proverbiais; aparentemente, o sentido do dito é aqui apenas: “partiram para nunca mais”. A Sra. Vasconcelos continua no trecho que nos ocupa: “Antes dois outros poetas já haviam utilizado o ditado lírico, nacionalizando-o”. E cita do famoso autor do Crisfal: Quem me vos levou, senhora, tão longas terras morar? Olhos que vos virom hir, nunca vos verão tornar –

bem como de Duarte Brito E aqui donde partir (o sujeito é “eu”), partindo com gram pesar, Olhos que me viram ir, nunca me verão tornar.

A modificação não se restringe aqui à tradução para o português, e podemos supor que aquilo que se pretendia citar nos dois trechos nem era aquele verso do romance. Por outro lado poderíamos duvidar, no caso da citação abreviada acima, qual teria sido realmente o final a ser completado. – Pois lemos ainda em um suplemento nas p. 214 s.: “Diversas aplicações teve a fórmula Ojos que nos (resp. me) vieron ir, proveniente do romance de Durandarte a Belerma”. Cita-se então o final de um romance popular de Trás-os-Montes do Conde Claros de Montalban (com assonância em á ou rima em ar):

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Numa nota explica-se que tela é uma armadilha de pássaros com três laços.

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Pegara-lhe pela mão Olhos que a viram ir,

pousava-a no cavalgar. não-na viram cá voltar –

com o comentário: “Esta concordância na rima suscita naturalmente a suposição que o provérbio fizesse parte de um romance velho desconhecido em –ar, relativo quer a Gaiferos, quer ao Conde Claros, quer a Durandarte”. Mencionam-se ainda outras duas citações do Cancioneiro Geral que mais uma vez atestam o caráter proverbial da locução pelo fato de a citar apenas pela metade, ou seja, deixando a complementação para o ouvinte – mais ou menos como para um francês bastam as palavras: “Quand on parle du loup...” ou para nós é suficiente a menção dos “belos dias de Aranjuez” para que se entenda. – Um último aditamento encontra-se então na p. 330, nota 3, onde é comunicada a ocorrência do mesmo verso no Poema de Alfonso XI: “Na estrofe 2411 é que se lê Ojos que nos vieron ir, nunca se (?vos) verán tornar. Estou a ver que o original ainda se descobrirá em qualquer cantar de gesta”. Tiro uma conclusão distinta dos fatos aqui relacionados, e talvez a autora também a tivesse tirado, se por ventura houvesse feito as suas descobertas em outra seqüência. Pois é justamente entre a ocorrência mais antiga dos versos proverbiais e a mais moderna que a correspondência textual salta aos olhos4: Si vna destas faser quiere, El mensaje me trayades, E si esto non quisiere, Nunca acá mas vengades. Otro mensaje a desir, Por que me oya de quexar; Ojos que bos vieren yr, Nunca se berán tornar.

E nos Cantos populares do Brasil que Silvio Romero compilou5 encontra-se a quadra popular no Rio Grande do Sul: Adeus, fontes, adeus, rios, Adeus, pedras de lavar; Olhos que me viram ir, Quando me verão voltar?*

4 5 *

Apud Poema de Alfonso Onceno, Florencio Janer (ed.), Madrid 1863, estrofes 2410 s. 1a edição Lisboa 1883, II, p. 87; 2a edição Rio de Janeiro 1897, p. 338. Por motivos óbvios suprimimos a tradução para o alemão que Nobiling dá dos versos (NE).

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As primeiras duas linhas desta quadrinha podem ter sido muitas vezes variadas, as duas últimas aparentemente se conservaram, do século XIV até os dias de hoje, sem quase nenhuma mudança e o verso de que a Sra. Vasconcelos parte não pode ser outra coisa senão uma variação, adaptada em rima e conteúdo para o romance, de uma canção, muito cantada desde dias remotos em Castela e Portugal e aparentemente lírica. Nos suplementos ao material recolhido (pp. 211-284) ainda segue uma série de provas da familiaridade que os portugueses dos séculos XV e XVI tinham com romances e temas de romances. A autora atribui aí alguns romances famosos e precocemente registrados a dois poetas que abrilhantavam as cortes de D. João II e de D. Manuel I, o Afortunado, documentando as suas vidas fartamente e retificando alguns erros anteriores. Um dos dois é D. João Manuel, irmão de leite e amigo de infância de D. Manuel I, filho de um monge carmelita que tinha chegado a bispo e provincial de sua ordem e que mais tarde legitimou os seus filhos. D. João Manuel serviu ao rei português como emissário em várias missões confidenciais e morreu durante uma destas em Castela, por volta de 1499. Tanto a autora como Menéndez y Pelayo reconhecem-lhe espírito e sentido poético a partir de seus poemas contidos no Cancioneiro Geral. O outro é o seu amigo, D. João de Meneses, que se destacou nas batalhas marroquinas da virada do século e também faleceu nesse país no ano de 1514. Atribui-se a ele um romance lírico com o incipit Venid, venid, amadores, quantos en el mundo son!, romance este preservado em um cancioneiro de que até pouco tempo atrás só tínhamos a forma manuscrita e com o nome de autor El Grande Africano6. Ao primeiro, por sua vez, atribui-se um romance lírico-alegórico que começa Gritando va el caballero, publicando su gran mal e que desde 1500 foi diversas vezes impresso, a partir de 1511, com a indicação “de D. Juan Manuel”. Mas não obstante esses dois ainda ficam – ao lado de Gil Vicente, de quem são relacionados ao todo nove romances, parte em espanhol, parte em língua portuguesa – dois nomes famosos que, ao que parece, podemos considerar entre os autores de romances portugueses. Não são outros senão os criadores da poesia pastoral portuguesa em prosa e verso: Bernardim Ribeiro e Cristóvão Falcão7. Sem dúvida com razão considera-se Bernardim Ribeiro como autor do Cantar-Romance de Avalor que se encontra intercalado no famoso romance pastoril em prosa 6 7

Un cancioneiro del siglo XV, Hugo Rennert (ed.), Erlangen 1895. A respeito do último desencadeou-se recentemente uma querela histórico-literária que coloca em dúvida a sua atividade poética. A Sra. Vasconcelos promete (p. 263) pronunciar-se sobre o assunto em outra instância, uma manifestação que, sem dúvida, muitos estarão aguardando ansiosamente.

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Menina e Moça e de que a Sra. Vasconcelos fornece nesta ocasião uma edição crítica, assim como da não menos famosa carta elegíaca que Cristóvão Falcão escreveu do cativeiro para a sua noiva secreta. Que estas edições merecem ainda um agradecimento especial é ocioso dizer. Um outro autor de romances em língua portuguesa, eruditos e, segundo o juízo da Sra. Vasconcelos, um tanto pedestres, é Jorge Ferreira de Vasconcelos († 1563), o poeta da comédia de costumes Eufrosina, mencionada acima, e de outras obras de interesse histórico-cultural. Digno de menção é também o cantor cego da ilha da Madeira, Baltasar Dias, que adaptou para o povo, e por isso em língua portuguesa, uma quantidade de romances castelhanos, dramatizando ainda alguns deles. Prova-se (p. 112) que ele solicitou ao rei, em 1537, a licença para imprimir as suas obras em prosa e verso, já escritas ou ainda a serem concebidas. Um romance sobre o terremoto de 1522, que destruiu uma cidade nos Açores, é aparentemente de data posterior, nomeadamente do açoriano Gaspar Frutuoso, que nasceu precisamente naquele ano. A partir de 1550, há uma quantidade grande de autores portugueses de romances. O capítulo final “Recapitulações e conclusões” (pp. 285-334) resume primeiro o material e tece então as seguintes considerações (p. 287 s.): “O maior número dos meus passos documentais encontra-se nas obras de autores quinhentistas, notáveis pelo seu amor pátrio, seu profundo conhecimento da alma nacional, e vivo interesse por materiais folclóricos em geral. Gil Vicente, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Luís de Camões ocupam os lugares primaciais. Tanto as citações como as intercalações de romances cantados se dão sobretudo no teatro do Plauto português e seus discípulos (...), mas também em trovas de ocasião, e em cartas familiares do Príncipe dos Poetas portugueses. Isto é: em gêneros que espelham a realidade, ora na prosa de todos os dias, ora em versos de medida-velha. Em obras de arte austera, de estilo ítalo-clássico, procuraríamos debalde versos alheios de caráter popular (...) E as pessoas, de cuja boca vemos sair fragmentos de romances? É digno de nota que a gente-povo, a burguesia, e a nobreza parecem haver tido gosto igualmente vivo pelo gênero épico-lírico. Na galeria que constituí, há palacianos e vilões; fidalgos e escudeiros; estudantes da universidade, alfaiates, judeus*, moços de servir, amas de criar, capitães e soldados tanto da África como da Índia. Todos conheciam e empregavam romances (...) ora como desabafo sentimental, ora como divertimento (a

*

Na sua tradução para o alemão, Nobiling, como se não houvesse vírgula, trata “judeus” como adjetivo. (NE)

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fim de não adormecerem no quarto da modorra), às vezes com tenção satírica; outras vezes para levantar o espírito guerreiro dos combatentes”. As citações mais antigas datáveis são do ano de 1483 (p. 291); a Sra. Vasconcelos supõe aproximadamente o ano de 1450 como data de começo da época por ela investigada e distribui os escritores por ela mencionados em três períodos literários: o medieval, chamado de costume “espanhol”, o período ítalo-clássico ou da Renascença e o do estilo barroco ou do domínio espanhol sobre Portugal. “Nesse esboço cronológico”, acrescenta (p. 295 s.), “está o principal elemento novo da minha demonstração. Acerca da voga que o Romanceiro peninsular teve em Portugal na época de Miranda e Camões, e na imediata, nunca lavraram dúvidas, apesar de ninguém se haver ocupado dela com interesse particular (...) Quanto ao heróico período medieval e às varonis e singelas produções épicas e épico-líricas, tratadas de velhas no reinado dos Reis Católicos, ninguém, pelo contrário, reconhecera até agora os seus apagados vestígios na literatura nacional”. De fato, a Sra. Vasconcelos refutou a opinião de Teófilo Braga, segundo a qual não havia na famosa coletânea de Garcia de Resende, o Cancioneiro Geral, vestígio algum de romances populares ou em geral de qualquer tipo de poesia popular, e ela pensa, ao que parece com razão, ter também refutado Menéndez y Pelayo, que havia inferido exatamente dessa opinião de Braga a absoluta nulidade da contribuição dos portugueses ao antigo tesouro épico e de romances, e até a completa falta de talento do povo português para a poesia épica. Em contraposição, ela coloca ao lado dos mais velhos castelhanos e aragoneses mencionados como poetas de romances, cujo número é já consideravelmente grande no Cancionero General espanhol de 1511, os portugueses Dom João Manuel, Dom João de Meneses, Garcia de Resende e Bernardim Ribeiro. No que diz respeito à maneira como os romances castelhanos foram primeiro conhecidos em Portugal, a Sra. Vasconcelos também tem uma opinião diversa da de Teófilo Braga (p. 305 s.): as mais velhas fontes impressas eram segundo ela folhas avulsas, pliegos sueltos, impressas com letras góticas em papel de má qualidade e por isso se perderam cedo. Paralelamente a essas corriam também, antes e depois da invenção da imprensa, cadernos manuscritos; principalmente, porém, e com maior freqüência ocorria a transmissão oral, que tinha a grande vantagem de transmitir ao mesmo tempo texto e melodia. Sobre esse tema a autora discorre largamente; eu, no entanto, apresso-me para o final e apenas ainda menciono as suas considerações sobre o problema lingüístico (p. 311 ss.). Ela resume as suas observações da seguinte maneira:

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“A maioria dos trechos de romance, repetidos por literatos de cá, no período de que trato, trajam à castelhana, corretamente. Muito amiúde a letra é híbrida: castelhano, eivado de lusismos. Só excepcionalmente, talvez na quarta parte dos casos, temos português castiço: traduções ou nacionalizações mais ou menos livres, conforme resulta do confronto. De ambas as formas há exemplos relativamente temporãos. Entre as citações, contidas no Cancioneiro Geral, há diversas que trajam à portuguesa”. “No emprego a sério de trechos puramente castelhanos distingo dois grupos. O primeiro consta de romances cantados, podendo-se supor que a preferência se daria porque letra e som tinham vindo juntos de Castela, como um todo indissolúvel; ou então que a língua castelhana com a sua vocalização sonora e ossatura consonântica mais vigorosa, passava por mais cantabile. O segundo grupo é constituído por trovas centônicas. Os autores queriam que os fragmentos, por eles escolhidos e parafraseados, se distinguissem, e fossem reconhecidos como de proveniência alheia. A tradução fazia-se quando o autor ligava importância superior ao pensamento, de sabor proverbial. (...) O terceiro fenômeno, isto é, o emprego simultâneo ou promíscuo dos dois idiomas, é involuntário (em regra), ou propositado (por exceção)”. Que o verdadeiro solo para o hibridismo lingüístico era o teatro de Gil Vicente e de seus epígonos, expõe-se a seguir (p. 317 ss.). Aqui ainda me seja permitido reproduzir as conclusões da autora em excertos. “O predomínio do idioma castelhano nos romances, é todavia outra coisa do que um dos aspectos do prestígio geral, por ele exercido. Além da influência literária, e superior a ela, há neste ramo a influência popular, direta e constante, da tradição (...) De 1640 para cá o prestígio do centro foi-se perdendo; os sessenta anos de união produziram mesmo certo apartamento político e social, que se refletiu nas relações literárias e artísticas. Os romances tradicionais todavia continuam a conter ressaibos castelhanos, especialmente em Trás-os-Montes, e na Beira Baixa. Isto é, na raia espanhola, onde o contato entre os dois povos é constante”. Isso é detalhado em seguida através de um trecho do Romanceiro Português de Leite de Vasconcelos, ao que se conclui (p. 327): “O romance nasceu em Castela, dos cantares de gesta democratizados por jograis; lá teve o seu mais alto grau de vitalidade, irradiando para todos os lados (...) Mas nem por isso eu diria que tudo quanto há em romances velhos é resto de uma poesia inteira e exclusivamente do centro castelhano, na qual o Norte, o Nordeste, o Oeste e Levante não teve parte alguma’ ... Escrito em castelhano não equivale a obra de um castelhano (...) Escassez de talento épico, sentimento histórico, e gênio inventivo não significa absoluta falta. A existência de romances de arte, escritos em castelhano por autores portugueses, é um 487

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fato. Mesmo que o de D. Duardos e Flerida fosse o único, cuja exportação e popularização estivesse provada, teríamos o direito de supor que entre os anônimos, alguns tenham origem portuguesa”. E certamente ninguém discordará, se a autora diz (p. 332): “À vista dos Lusíadas é impossível negar o talento épico da nação”. A Sra. Vasconcelos tece nesta ocasião uma interessante hipótese acerca do Poema de Alfonso XI, já mencionado acima, uma composição altamente notável que festeja o governo deste rei e herói castelhano, o defensor da última invasão moura, num dialeto híbrido, meio português, meio castelhano. Ela acha que se trata de um poema de um português emigrado que tentava escrever seus versos em castelhano, por ter este idioma como o genuinamente épico. Em todo o caso, parece que temos aqui um testemunho vivo da guerra que os diferentes idiomas travavam, no século XIV, pela honra de servir como língua literária aos povos politicamente separados, mas ainda assim unidos por religião e interesses comuns. Quais então os romances que podem ser atribuídos com maior probabilidade a poetas portugueses, é uma questão sobre a qual a autora só tem suposições. Penso que aqui posso deixá-las de lado, já que não são demonstráveis. Mas não posso me abster de citar as belas palavras finais, com as quais concordo, com absoluta convicção: “Numa nesga da península, aberta, do lado do mar, a todas as influências estrangeiras, e do lado da terra em contato constante com reinos maiores, dos quais se desagregou no século XII, quando o herói nacional já existia [o Cid], Portugal não tem originalidade, nem gênio criador, diverso do que se desenvolveu no magnífico isolamento do centro castelhano. Colaborou todavia em todos os ramos, populares e artísticos, esplendidamente em alguns, tomando a dianteira nas manifestações sentimentais. As duas (ou três) literaturas completam-se mutuamente, e em rigor formam uma só (...) Tal qual o Cancioneiro popular, o Romanceiro é um produto da península inteira. As raízes, os cantares de gesta, e o tronco estão no solo de Castela. Em Portugal há apenas ramificações (alguns dos reflexos, democratizados por jograis). Como flor e fruto, romances novelescos e líricos. Mas como mais alta personificação do gênio épico e lírico da Hispânia, temos Luís de Camões”.

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Ficha técnica Mancha 11 x 21 cm Formato 16 x 23 cm Tipologia Times New Roma 11, Caslon540 BT 20 , SILDoulos IPA 93, VNI-Times, Times PhoneticIPA Papel miolo: Pólen 80 g/m2 capa: supremo 250 g/m2 Número de páginas 488

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