Arte & Fato. A Nova Psicanálise: Da Arte Total à Clínica Geral [2a. Edição]
 9788587727381

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MD Magno

Arte&Fato A Nova Psicanálise Da Arte Total à Clínica Geral 2ª Edição

O direito de impressão é pessoal e intransferível.

MD Magno

ARTE&FATO A NOVA PSICANÁLISE DA ARTE TOTAL À CLÍNICA GERAL

Seminário 1990 2ª Edição

editora

é uma editora da

Presidente Rosane Araujo Diretor Aristides Alonso Copyright 2005 © MD Magno Preparação do texto Potiguara Mendes da Silveira Jr. Nelma Medeiros Editoração Eletrônica e Produção Gráfica Editado por Rosane Araujo Aristides Alonso

M176a Magno, M. D., 1938Arte e fato : a nova psicanálise : da arte total à clínica geral : seminário 1990 / M. D. Magno ; preparação do texto por Potiguara Mendes da Silveira Jr., Nelma Medeiros. – 2. ed. – Rio de Janeiro : Novamente, 2009. 528 p. ; 16 x 23 cm. ISBN – 978-85-87727-38-1 1. Psicanálise – Discursos, ensaios, conferências. I. Silveira Júnior, Potiguara Mendes da. II. Medeiros, Nelma. III. Título. CDD- 150.195 Direitos de edição reservados à: Rua Sericita, 391 - Jacarepaguá 22763-260 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Telefax: (55 21) 2445-3177 www.novamente.org.br

Sumário

I INTRODUÇÃO 1. L’ INCONSCIENT EST STRUCTURÉ COMME ON L’ ENGAGE Questão psicanalítica no mundo contemporâneo – Exigência de revisão do estatuto do conhecimento – Nova Psicanálise: simplificação num único esquema – Artificialização é condição de Clínica Geral – Campo agonístico de sustentação de conhecimento. 13

2. HABEAS CORPUS Contribuição da etologia para entendimento da constituição da espécie humana – Heterossoma como extrapolação da constituição binária da espécie (autossoma e etossoma) – Apresentação de outros conceitos etológicos – Consideração psicanalítica do problema da especificidade da espécie humana. 39

3. AIMÉE SÉLAMOR Importância de Marcel Duchamp para a Nova Psicanálise – Descrição do Étand donnés la chute d’eaux et le gaz d’éclairage – Construção de indiferenciação em Marcel Duchamp – Precedência da obra de Marcel Duchamp sobre Jacques Lacan – Estatuto do impossível

em Freud e seu comparecimento em Marcel Duchamp. 63

4. COMO UMA ONDA NO-NADA Necessidade de unificação do campo psicanalítico – Ampliação do conceito de pulsão – Construção do Pleroma: vetor desejante de impossível extinção; Haver deseja nãoHaver; movimento de indiferenciação e Revirão do Haver; estatuto do Nada. 85

5. KAOSMOS: VERBUM Princípio de Catoptria no Pleroma ou Haver como processo de simetrização – Implosão e expansão do Haver como compatibilização entre psicanálise e cosmologia – Produção de diferença no Haver – Motu perpetuo do Haver. 111

6. VERBUM: KAOSMOS Estados do Haver: Real, Simbólico e Imaginário – Função fálica do Haver – Gradientes da função fálica: gozo-fálico, gozo-do-outro e gozo-do-sentido – Lógica ternária do Haver e Princípio Antrópico. 129

7. FALO OU KALO Considerações topológicas da lógica ternária – Plano projetivo como superfície de indiferença absoluta – Extração da banda de Moebius a partir do plano projetivo – Binariedade ou bilateralidade a partir do corte sobre a banda de Moebius – Topologia do sujeito – Significante é a estruturalidade do Haver. 153

8. VIRGO OU VIRGA Exame da tese freudiana e lacaniana do Falo – Proposição do Revirão como estrutura mínima da espécie humana – Função de avessamento do significante:

halo significante – Perguntas e repostas sobre pregnância etológica e funcionamento do Revirão na espécie. 173

9. OS QUATRO SEXOS DO HAVER Apresentação da lógica da sexuação de Lacan e sua crítica – Função fálica: Haver desejo de não-Haver – Quatro sexos do Haver: masculino (gozo-fálico), feminino (gozodo-outro), falanjo (gozo-do-sentido) e morte. 197

10. FALANJO OU KALANJO Lugar terceiro do falanjo e gozo-do-sentido – Distinção entre ordem gnômica e sujeito – Para sujeito Lei é fundação de metáfora – Clínica Geral como consideração do impossível e do proibido. 219

11. OS ESTILOS POSSÍVEIS Equivalência entre patologia e estilística fundamentais a partir dos quatro sexos – Apresentação da estilística: classicismo, barroco e maneiro – Consideração da anamorfose como elemento maneiro n’Os Embaixadores de Holbein – Comentário sobre quarto sexo em Reinhardt e Rothko. 239

12. MAIS ALÉM DO SIM E DO NÃO Questões sobre a estrutura do Pleroma – Níveis de exposição da subjetividade: enunciação, enunciado e denúncia – Hiperdeterminação é regime de determinação do sujeito da denúncia – Afirmação do desejo para além de sim e não. 261

13. APO-ÉTICA DO SINGULAR Articulação entre sujeito da denúncia e formulação freudiana Wo Es war, soll Ich

werden – Ética da psicanálise é referência a indiferenciação – Duplo vetor da ascese para o sujeito. 281

II O LIMITE:

!

DE ZERO A INFINITO, ETC. 289

14. NÃO DOPAI (PARA QUE NÃO SEJAIS DOPADOS) Introdução ao problema da Lei a partir da noção de limite – Primeiro tempo lógico da castração: zero (axiomatização da Lei) – Segundo tempo lógico da castração: infinito (metaforização de zero) – Terceiro tempo lógico da castração: finitude provisória (sintoma) – Nome do Pai é limite infinito – Perguntas e respostas sobre limite. 295

15. NOSOLOGIA GERAL Patologia: inscrição dos quatro sexos na lógica da castração – Proposição de nosologia – Psicose: foraclusão do limite – Neurose: inclusão de limite – Morfose: reclusão do limite – Falanjo: eclosão de limite – Questões sobre perversidade. 317

16. L’INCONSCIENT EST STRUCTURÉ COMME UN LYNCHAGE Relação da LEI com seus processos legais – Fundamento de enunciado legal é passagem de impossível a proibido – Estatuto perverso do enunciado legal – Indiferenciação é a política do analista. 337

17. FORACLUSÃO 1 Inscrição de limite para o sujeito – Não inscrição de limite (foraclusão) para o sujeito –

Vertentes da psicose: paranóia e esquizofrenia. 353

18. FORACLUSÃO 2 Investigação acerca do Recalque Originário – Relação da psicose com recalque originário – Dinâmica do retorno do recalcado na psicose – Comparecimento da massa sígnica e seus deslizamentos na psicose – Primazia da competência de reviramento na espécie humana. 367

19. POLTERGEIST Entendimento do fenômeno poltergeist na instituição psicanalítica – Duas maneiras de expulsão nas instituições psicanalíticas – Psicanálise como a experiência política do mundo por vir. 385

20. RECLUSAO 1 Reclusão do limite produz legiferação – Dupla face da morfose: perversidade e fobia – Influências do sintoma morfótico na história do movimento psicanalítico. 397

21. RECLUSÃO 2 Considerações sobre metáfora em psicanálise – Processo de metaforização na morfose – Distinção entre perversão e perversidade – Relações da morfose com o universal – Possibilidade de cura na morfose. 411

22. INCLUSÃO 1 Neurose como redução do limite e sua cristalização – Estratégias contra emergência de sujeito: rivalidade obsessiva e destituição histérica. 427

23. INCLUSÃO 2 Operação analítica tem como referência ascese ao sujeito – Sintomas da nova neurose – Atuação das estratégias de rivalização e destituição na universidade e nas instituições psicanalíticas. 441

24. ECLOSÃO 1 (ARTE TOTAL) Eclosão do sujeito: suspensão das oposições e retorno com transformação – Cura como Arte Total – Função do operador psicanalítico é produzir eclosão do sujeito – Questões sobre o operador psicanalítico. 455

25. ECLOSÃO 2 (CLÍNICA GERAL) Exame da formulação lacaniana da ética do bem dizer – Leitura do mito de Prometeu Acorrentado de Ésquilo – Ato prometéico como metáfora de Clínica Geral – Perversidade social a partir das figuras mitológicas de Prometeu e Zeus. 465

26. DA ARTE DE FORÇAR A BARRA Percurso da análise: do indiscernível à decisão – Apresentação de poema de MD Magno. 481

ANEXOS SOBRE A PSICOSE 487

AS PROSPERIDADES DA “INOCÊNCIA” OU O POP PARTIU PARA PQP 507

ENSINO DE MD MAGNO 523

L’inconscient est structuré comme on l’engage

I

INTRODUÇÃO

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1 L’INCONSCIENT EST STRUCTURÉ COMME ON L’ENGAGE L’inconscient est structuré comme un langage. LACAN Drive your cart and your plow Over the bones of the dead. BLAKE Estamos de volta com nosso Seminário que se insere na cadeia iniciada em 1975. A importância de sua transferência para a Universidade (Uerj) se deve a dois motivos. Primeiro, porque o que haja de produção teórica a partir da experiência clínica da psicanálise, exige de certa forma, uma divulgação no nível do ambiente onde se maneja – mal ou bem – o saber produzido. Como a estrutura deste Seminário é no sentido de produção e não puramente de provisão ou transmissão do já sabido, é louvável que a Universidade assuma esse tipo de função. Segundo, na medida em que a própria palavra Universidade, apesar do peso do discurso universitário em sua propriedade estrutural, deveria englobar todas as possibilidades de produção de saber – o que não acontece com muita facilidade neste país, a não ser que o discurso já esteja sobremaneira pojado de vocação universitária. Acho que quando não se tem esse tipo de percurso dentro da Universidade, perde-se em diversidade e em produção.

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Tive a sorte, num certo momento da minha vida, de trabalhar numa Universidade nova, fundada justamente a partir da “revolução” de maio de 68, a Universidade de Vincennes, onde, como sabem, por essa ocasião, havia grande ebulição de pensamento. Eu achava muito chique, muito honroso, lá estar dando aula numa sala do departamento de Lacan e, bem em frente, Gilles Deleuze dar seu Seminário, embora estivesse em outra facção. E tantos nomes de criadores do pensamento da época estarem metidos lá dentro num processo não-curricular, simplesmente de produção de saber, de teorização, de reflexão sobre o mundo. Estamos aqui, então, acolhidos por uma Faculdade de Educação, felizmente por seu Departamento de Artes. Não é por esta razão que este Seminário se chama Arte&Fato. Vocês que o acompanham sabem que ele tem motivos exteriores a isso para se chamar assim. Ser uma Faculdade de Educação me parece interessante na medida em que, embora estejamos cercados do sintoma mais pesado nessa região, a educação tem vertentes diversas e pelo menos duas que podem até parecer contraditórias, mas que são da maior importância, pois se conjugam perfeitamente com os interesses da psicanálise. Ao que pese o discurso produzido por alguns autores, mesmo psicanalistas ditos lacanianos, quero conceber que é necessária a vertente ensino, instrução, sintomatização, digamos mesmo que iniciatória dos processos educativos. Existe outra vertente que é a angústia dos educadores no sentido de tentar promover certa coisa que não sabem determinar o que seja mas que tentam descobrir de alguma maneira. Algo da ordem do processo educativo e que costumo brincar dizendo que os livros de pedagogia, mentirosamente, começam dizendo que educação é “o pleno desenvolvimento das potencialidades do educando” – mas, na verdade, o discurso universitário simplesmente não suportaria isto. Entretanto, se houvesse uma atividade pedagógica no sentido mais amplo, ela o suportaria muito bem. O que a psicanálise tenta promover, produzir, não é senão o ideal da pedagogia que esta não consegue atingir por estar cerceada pelo discurso da iniciação do saber e pelo discurso da imposição da transmissão.

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No fundo de todo educador, o que se vê é a frustração enorme de não ter uma ferramenta adequada no sentido de ampliar o alvo que pretende, mas que não sabe como fazer direito – e que eu diria que é a psicanálise como ideal do pedagogo. Isto ao contrário, por exemplo, do que está no livro de Cathérine Millot, Freud Anti-Pedagogo, que quer mostrar incompatibilidade radical entre psicanálise e educação. Erradamente a meu ver, toma o discurso universitário tal como equacionado por Lacan como sendo o discurso pedagógico. Fico com Freud que coloca que a psicanálise é um processo educativo. Digo mais: a psicanálise é o ideal da pedagogia quando esta não sabe dizer o que pretende. Acho, pois, que estamos bem inseridos e espero que isto venha a frutificar pelo menos como provocação de diálogo. *

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Dada a sua seriação, este Seminário – que, na verdade, é work in progress, que não pára, que sofre transmutações e está aberto a qualquer pessoa que queira acompanhá-lo – não é um curso de iniciação. Portanto, aqueles que começam a freqüentá-lo agora têm que pegar o bonde andando... Ainda há pouco, estava numa reunião de assuntos curriculares aqui na Universidade. Fico perplexo de as pessoas pensarem que são capazes de fundar um currículo que tenha começo, meio e fim, e, nesse intento de colocar tudo lá dentro, acabam compondo o “samba do crioulo doido”. Como se as articulações centrais se dessem nos papéis, nas avaliações curriculares... Elas se dão é na massa cinzenta: o script é em Outro lugar. Não há, pois, quem, na face do planeta, comece qualquer contato com alguma alteridade formada sintomaticamente em processos de estabilização de saber, de estudo, etc., que não pegue o bonde andando. O pedagogismo impotente, histericista, com que costumamos nos deparar, dá a impressão de que gostaria de, quando nasce uma criança, parar o mundo e começar de novo para a criança fazer o seu currículo. De repente, parar e voltar do começo, pois só assim a criança poderá aprender...

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Criança não aprende nada, criança se apropria. O sentido da aprendizagem em nossa espécie é o de apropriação, por via simbólica. Mais vale, na organização de um currículo, situar pontos quentes de participação intensiva do que nos preocuparmos com seriações. É o caso, por exemplo, deste Seminário: quem nele entrar poderá ser pego em seu roldão e, de repente, estar falando minha língua... Não há vestibular para falante. As crianças nascem e, de repente, começam a falar sem terem feito nenhum curso específico porque, estruturalmente, isso é compatível: desde que se entre no processo, a coisa começa a funcionar. Gostaria também de chamar atenção dos incautos para meu estilo. Os que estão acostumados sabem que, embora tenha um interesse bastante acentuado na produção teórica como precisão do que estou elaborando, insurjo-me radicalmente contra qualquer discriminação enunciativa. Isto porque os processos expressivos para darem conta de conceitos, quanto mais rigorosos forem, exigem que, na enunciação, não se tenha a menor limitação. Qualquer um que leu meus Seminários publicados sabe que minha tentativa de expressão conceitual varia do mais baixo calão à mais refinada linguagem científica, do “palavrão” ao conceito puro. Freqüentemente, o que se vê é que o jargão específico de determinada área é no sentido de coibir a possibilidade de efetiva expressão do que se está conceituando. É preciso lembrar, pois, que se fala uma língua, a qual não é sozinha, há outras, com todos os processos de mistura e intromistura em seu seio. E há que lançar mão do processo retórico, no sentido mais amplo do termo, para que se possam coalescer determinadas concepções. Então, aqueles que esperarem de mim um discurso universitário bem comportado, que não esperem, pois estou mais interessado na produção pensante do que no ritual universitário. Mesmo porque o processo deste Seminário, como sabem, eu o pratico de maneira como que de analisando, ou seja, trata-se de ataque histérico. É o lugar onde tenho o direito de exercer a minha histeria. Isto no sentido de correr atrás de algo no sentimento da impotência e, portanto, na livre associação, no tropeço, de maneira que, no momento, seja o processo de articulação do pen-

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samento que se quer estabelecer. Tenho certas idéias, certas concepções a partir de estudo, etc., mas é no momento do Seminário, com a motivação retórica que disso participa, a motivação da minha atitude retórica, que vou elaborando e, muitas vezes, justamente nesse percurso histérico, é que me acontece determinada articulação. *

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Estamos entrando numa nova década. Já comentei sobejamente que, felizmente, estamos num momento em que a nova década inaugura mais do que uma década: inaugura mesmo uma era nova. E não é porque se resolveu marcar a data de 1990 para isto acontecer. Simplesmente aconteceu, está acontecendo, vem já talvez há décadas se elaborando na sintomática mundial. Não é preciso demonstrar isto, pois todos sabem, está nos jornais. As ideologias caem, os sistemas fundamentados ideologicamente se corrompem, certas produções políticas delirantes se dão conta de que a realidade ultrapassa esse delírio e o submete com mais vigor do que certos tratamentos psiquiátricos, psicológicos e mesmo psicanalíticos. E as coisas vão se arrumando em função da movimentação dos processos postos em exercício. Mesmo em termos de Brasil está aí a evidência: todos estão perplexos por não esperarem o óbvio. E no seio de tudo isto, no que nos interessa especificamente, que é a questão psicanalítica, não podemos deixar de estar na conseqüência desses processos do mundo, os quais também freqüentaram o campo freudiano, com toda evidência. É claro que a vontade de domínio de determinada área do saber faz freqüentemente surgir uma reação extraordinária. Isto porque o que se aprendeu parece ser uma propriedade tão cara, tão importante, tão difícil de ser conseguida, que se estabelece como sendo o saber definitivo a respeito de certas questões. Aconteceu assim em seguida ao falecimento de Freud, quando a psicanálise virou aquele gueto horroroso dos ditos “freudianos”. Freud não tem a menor responsabilidade sobre isso. Ele não foi estúpido, pois simplesmente

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caminhava o tempo todo aonde podia caminhar, com todas as mazelas (dele e do seu tempo) sintomáticas que carregava. Outros apareceram nesse intervalo, até chegar um chamado Jacques Lacan que, pelo menos, fez um rebu enorme e ganhou de certo modo algumas batalhas no sentido da transformação de tudo isso. Mas ele também, que não parava, não estacionava senão sobre o seu próprio vôo, acaba tendo um fim. E o que vai produzindo pelo caminho, vai-se estabelecendo como saber adquirido e, outra vez, consumou-se essa idiotice que a gente chama de lacaniana. O lacanismo já se tornou tão idiota quanto o foi o freudismo depois da morte de Freud. Portanto, não estou aqui para contestar Freud e Lacan, e sim para aplaudi-los e retomar esses vôos. O que significa justamente não me assentar sobre seus achados, mas tentar fazer a experiência que fizeram, e não a de discípulos mal-acabados e conformados com o saberzinho do seu fichário. Tem sido esta, durante esses anos, a minha prática. Fala-se hoje de uma “crise” na psicanálise. Se há, é da ordem da que estou colocando. Mas há crise e hipócrise, hipocrisia, falta de crítica, na medida em que se quer defender pontos assentados ao invés de continuar na reflexão, na retomada das questões cruciais da psicanálise no que diz respeito a oportunidades do momento do mundo. Isto porque se quer restar esteado sobre determinados achados da reflexão psicanalítica, e certamente isso vira o que chamam de crise. Os analistas estão é perdidos, perdidos nos seus achados: se achassem menos, talvez caminhassem melhor em estado de vôo. Não é por menos que, dentro da minha ordem absolutamente artificialista, estou chamando este Seminário de Arte&Fato, e ouso dizer: A Nova Psicanálise: da Arte Total à Clínica Geral. Quem o acompanha, vê que tem razão de ser. Uma vez que mudamos de local e estamos recebendo outro tipo de público, farei, de início, um esboço geral do estado atual da teoria que venho praticando. Em seguida, retomamos o percurso. *

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L’inconscient est structuré comme on l’engage

A seção de hoje se intitula: L’Inconscient est structuré comme on l’engage. Desculpem a brincadeira em francês, mas é simplesmente para fazer trocadilho com a frase de Lacan que definiu o inconsciente durante toda a época de vigência do lacanismo e o define ainda hoje: L’inconscient est structuré comme un langage. No que Lacan, a partir dos dados da sua época, do que estava em vigor no processo reflexivo do estruturalismo lingüístico, antropológico, etc., tenta uma concepção de inconsciente daquele momento emergente, sobretudo na década de 60 e implantado mais definitivamente por ele na década de 70, o que vem mostrar e tentar demonstrar é que o inconsciente se estrutura como uma linguagem. Sendo que jamais ele, como ninguém, foi capaz de dizer o que seja uma linguagem, pois é algo que resta no limbo, ou no mítico. O máximo que conseguiu estabelecer de concreto foi o conceito de língua na sua particularidade sintomática isolada e incapaz de se transformar em outra coisa senão pelo artifício algo falho da chamada tradução. Dizer “é estruturado como uma linguagem” é da ordem do chiste mais interessante. Em não sabendo situar o que possa ser linguagem, quanto mais uma linguagem... Isto data de certa época mais antiga de Lacan, e ele o manteve acabando por deixar esse troço mítico no espaço, chamado linguagem. Como sabem, a partir do meu Seminário de 1983, começo a investir de novos artifícios, que vêm por fim dizer que o Inconsciente é A linguagem na medida em que esta é nada mais nada menos do que o Revirão que lhes apresentei. Daí que fiz a brincadeira: o Inconsciente é estruturado como a gente o engaja. Na medida em que ele é puramente a estrutura absolutamente neutra, indiferente aos processos sintomáticos. Ou seja, aos processos metafóricos que se estatuem em qualquer ordem de significação. Esta neutralidade vai se estruturar como a gente a engaja. Para dizer isto, utilizo-me da frase de William Blake que trouxe como epígrafe: “Conduza tua carroça e teu arado por cima dos ossos dos mortos”. Nunca se fez outra coisa. A homenagem que se pode prestar aos mortos é continuar conduzindo a carroça e o arado por cima de seus ossos. E não, colocá-los no Panthéon – coisa que Lacan proibiu que se

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fizesse com os seus restos imortais –, pois isto acaba estragando a reflexão. É, sim, para pegarmos o arado e passar por cima dos ossos dos antepassados, para ver se daquilo brota algo para outra geração, para outra colheita. Por que o Inconsciente é estruturado como on l’engage? Segundo autores dos mais diversos campos, estamos vivendo uma época que querem de crise radical. Aceito, se isto significar que os produtos apresentados, as faturas teóricas e práticas, justo porque foram trabalhadas, frutificaram, têm mostrado que chegaram a determinado momento de banalização. Retiram-se dali algumas coisas importantes, o processo em si é posto de lado e é preciso um reprocessamento sobre esses dados para a instrumentação de uma sintomática nova que, de novo, venha dar – provisoriamente, como sempre – conta dos acontecimentos. Há muita coisa nova, de 1980 para cá, em todos os campos de saber, que obrigam a retomada da reflexão em nosso campo específico de ciência e arte. Uma das coisas em crise é justamente o que chamam de Epistemologia. Está-se, de novo, perguntando o que é ciência. E antes de se estabelecer o que ela seja, era preciso estabelecer o que seja conhecimento. Como sabemos, há várias epistemologias estudando de época para época, com contestações sérias, como, por exemplo, o caso de Michel Foucault e outros. Mas, sobretudo hoje, a farsa terá que mudar. É claro que não se consegue acabar com a farsa, graças a Deus!, pois que é dela que vivemos. Mas terá que mudar porque certas observações, no campo da ciência, sobretudo, vêm demonstrar o valor político, guerreiro mesmo, das impostações epistemológicas. Cada vez mais nos damos conta da ficcionalidade, da artistificação geral dos processos de criação. Isto, mesmo nos campos que se dizem mais objetivamente científicos. A produção de determinado escopo de conhecimentos, científico que seja, não foi senão esteada no que Freud declarou a respeito da sua teoria: “Tive sucesso onde o paranóico fracassou”. Quer dizer: Um paranóico é capaz de produzir uma ficção delirante tão rigorosa quanto a minha, mas há a questão da credibilidade e da aplicabilidade, ou seja, de convencer grande número de pessoas da eficácia e da significação daquilo.

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Hoje, talvez mesmo por influência da psicanálise, tem-se cada vez mais a noção de que a insensatez não está no que se diga, mas sim naquilo que toca ao adequado da sua aplicação e do seu convencimento no sentido de uma credibilidade. Aí poderíamos dizer que mora a diferença entre a paranóia de Freud e a freudigloss, do paranóico. Pois este não pode se dar à alegria de produzir a sua ficção de modo compatível com a credibilidade que é possível , no seu momento, por estar esteada de certo modo na razão sintomática das formações do Haver, quer dizer, em diálogo perene com isso. *

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Cada vez mais nos damos conta de que a própria noção de realidade é uma secreção: secreta-se a realidade como se secreta suor, lágrimas, etc. O nível de adequação da secreção, da visão de realidade que se tem, a credibilidade, o valor de mercado que terá, é que vai definir a sua decantação como sintoma viável. Esta é a tese de uma epistemologia recente. Qual é o custo de uma realidade? Pelo menos um epistemólogo contemporâneo, Bruno Latour, chega a dizer que a realidade é o conjunto dos enunciados cuja modificação custa caro demais. Existe, por exemplo, na França, um grupo chamado Le Coût Freudien, O Custo Freudiano. Eles se deram conta de que toda e qualquer realidade, produção de realidade, que se coloque para nós, tem um custo. E se conseguiu assentar-se, dentro de um campo agonístico, é porque conseguiu vencer e convencer para ali estar. E no momento em que ali está como sintoma, como agravo pesado, concreto, começa a custar caro demais para ser demovida de seu lugar. É o que eu dizia a respeito do freudismo, do lacanismo. Estas coisas custaram um preço muito alto para se instalar, depois custaram um preço de batalha para convencer, depois que convenceram, convenceram a tantos que todos passaram a ter uma caderneta de poupança psicanalítica. Então, é preciso ter coragem, ser novo mestre, para congelar a caderneta e dizer: – Fica todo

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mundo pobre de novo para começar a pensar. É necessário um ato destes na psicanálise: congelar a caderneta freudo-lacaniana. Todos ficam apenas no cassino de jogar suas fichas freudo-lacanianas, para abarrotar seus consultórios de inflação psicanalítica, que, a rigor, não serve para nada. Aqui e ali, um talento ou outro consegue fazer alguma coisa... Como, de repente, me deparei com certo mestre que, pelo menos, ousa pôr seu pescoço a ser cortado, no sentido de intervir na procrastinação obsessiva de um país, acho que é um bom exemplo. Exemplo este, aliás, que já venho dando há bastante tempo. Não preciso copiar, apenas estou apostando num acontecimento externo... É preciso, como Freud e Lacan pensavam, empobrecer-se do seu saber a cada momento para poder sustentar a psicanálise. Isto no sentido em que ela não é resposta, e sim pergunta; não é solução, e sim questão. Então, embora não tendo todo esse poder, pelo menos no meu foro íntimo e na minha posse da caneta criadora dos processos que posso criar, congelo a caderneta de poupança psicanalítica também. E vamos começar todos da estaca zero a pensar de novo. Em Seminários passados, eu disse que o que quer que se diga, por quem quer que o diga, é da ordem do conhecimento. Isto põe em derrocada toda e qualquer epistemologia que queira gerir o processo do conhecimento pelo que se diga e por quem o diz. A única coisa que é preciso estabelecer é o nível de adequação entre formações do dizer e do Haver, que dê substância, inteligibilidade a esse dizer. Mas o que quer que se diga, por quem quer que o diga, em algum lugar, encontra nível de adequabilidade. Portanto, é preciso receptividade a todo e qualquer dizer. Isto no campo geral do mundo, pois não estou dizendo que determinado teórico tenha que inserir tudo e deixar de se preocupar com as suas coisas, com o seu próprio delírio particular. Não, ele tem que sustentá-lo. Mas em termos de mundo, em termos dessa bobagem chamada Universidade, por exemplo, devia haver receptividade ao que quer que se diga, em qualquer nível, e a procura de adequabilidade, inteligibilidade, para esse dizer. Isto de maneira a não se ter o prejuízo de perder coisas importantes do mundo. Pode-se pôr essas coisas dentro de um computador, do grande

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computador das possibilidades de combinação. Ora, ter havido Freud, Lacan – e dizer estes dois nomes deve não ser esconder tantos outros que passaram aí pelo meio, pois eles apenas ficaram como grandes símbolos –, é uma força de produção de reflexões sobre acontecimentos da realidade disponível, da sintomática que está sob nossos olhos. Isto de maneira a tentar equacionar com o máximo de nitidez, de rigor, de vigor – estamos acostumados a pensar só no rigor, mas é preciso o vigor psicanalítico também – esses fenômenos. A tentativa de equação é de uma elaboração tão longa e tão cheia de detalhes que um sujeito, às vezes, passa grande tempo – anos a fio de um Seminário de Lacan, por exemplo – buscando elaborar determinados conceitos, suas franjas, suas correlações, etc. E a coisa funciona de tal maneira que, se tivéssemos respeito para com esses pensadores, levaríamos às últimas conseqüências o processo que iniciaram. Isto a ponto mesmo de sua longa elaboração não servir para mais do que ser matéria para lixo. Aí está o trágico, senão o belo, da elaboração de um sujeito desses. A longa elaboração de um conceito – o famigerado Nome do Pai, por exemplo, que vamos retomar – é coisa delicada, inteligente, oportuna, reflexiva, etc., mas todo esse percurso, de repente, é destinado a ser jogado no lixo para se ressaltar dali determinado módulo conceitual, que é o que interessa. Isto de modo a ele vir freqüentar o discurso novamente, dando a volta por trás, e de maneira mais limpa dos processos que sofreu para ser trazido à tona. Toda a elaboração freudiana do conceito de Édipo, por exemplo, só serviu para chegar a destacar certo pequeno mecanismo lógico da estrutura psíquica e jogar o Édipo no lixo. Quando não se faz isto, desrespeita-se a vontade, o percurso de produção do autor no sentido de achar esse pequeno elo lógico e eficaz. Fica-se na conversa rebarbativa do longo processo de bateboca, de baboseira, é o caso de dizer, que foi necessário para a criação do conceito. Ou seja, como a mediocridade ambiente não tem o porte do desejo daquele que o lançou, ao invés de promover uma superação do percurso, prefere ficar com suas anedotinhas. Se foi através da observação desse teatrinho –

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papai-mamãe: quer comer a mamãe, o papai, não sei quem, que é da história etológica de qualquer bicho – que Freud conseguiu destacar determinada formação mais abstrata, uma vez ela entendida, é preciso passar-se a aplicá-la agora em nível de banalização. Hoje, por exemplo, qualquer um vai ao supermercado e faz contas: dois e dois quatro... Este já foi um problema enorme para os gênios da pré-história: como contar até dois. Hoje, está banalizado. Mas os psicanalistas ainda não aprenderam como se conta até Édipo e ficam repetindo aquela anedota. Já que Édipo ficou fora de moda – porque foi trabalhado por Freud, se não, não ficava: é o próprio produtor que arranca o troço da mão e o transforma em determinado argumento –, em cima do seu aspecto abstrato, Lacan pôde construir o conceito de Nome do Pai, por exemplo... que já virou uma baboseira outra vez. É insuportável ler os livros que escrevem sobre o nome do pai, o deles. Ao invés de se sacar dali, depois do longo percurso, a dificuldade fabulativa que esteve envolvida no processo desse destacamento, fica-se com a fabulação, com a estorinha, etc., emperrando a continuação do processo reflexivo. Este Seminário, então, continuando a série, insistirá na visada que venho trazendo da artificialização de tudo, inclusive da Natureza, como já mostrei. Retomarei e tentarei, outra vez, resumir o processo de reflexão a partir da simplificação, da unificação e da organização num Esquema único, de toda a teoria psicanalítica. Tentativa de revisão conceitual e de mostrar que vários conceitos se reduzem a pequenas máquinas, que a proliferação conceitual não é tão necessária como se acha. A tentativa é de retirar a psicanálise (não de suas correlações com outros discursos, pois é extremamente necessário, mas) da vocação contemporânea, que me parece um pouco ignorantista, de se acharem “crises” dentro da psicanálise e procurar argumentos em outros saberes para dar conta da psicanálise. Isto não é necessário e é mesmo prejudicial porque desfigura absolutamente o encaminhamento do que foi trazido como psicanálise para o mundo. Mostrar que a psicanálise como qualquer outro artifício é da ordem do conhecimento, é científico sim, justamente porque é artístico. Não posso negar a grande pretensiosidade que existe no processo de

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– aproveitando a maré mundial: quem sabe, dará certo no Brasil – tentar mostrar que é possível uma Nova Psicanálise, na teoria e na prática, que mostre que os processos no mundo são absolutamente artificiosos, artísticos, mesmo os processos de conhecimento. E que, a partir da visão dessa Arte Total no mundo, é possível uma Clínica Geral para além – e não que se desfaça necessariamente dela – da clínica de divã em que a gente vive submergida. Que eficácia tem, no mundo, a presença do analista intervindo nas mais diversas áreas? Quero mesmo acreditar, como alguns autores, que certos movimentos de vanguarda na ciência, na arte, etc., tenham valor de interpretação e de cura superior a intervenções psicanalíticas ao divã. Não estou dizendo de terapia, mas de cura mesmo. Terapia, temos várias. Qualquer pessoa que lida brevemente com a psicanálise deve ter notado a “terapia Collor”. Bastou ele dar um golpe, que amansou a raça toda: os sintomas estão todos em suspenso para ver como se aplicam. Não é perplexidade, mas suspensão sintomática: O mundo mudou, o que é que eu faço? Isto é terapêutico. Para além da terapia, existem intervenções no sentido da cura, da eliminação, da neutralização de determinados processos, e que são capazes de ser levados às mais diversas áreas, como a da Pedagogia de que falamos ainda há pouco. Ao invés de eximir-se, como querem certos autores, a psicanálise pode dizer: – A Educação tem tudo a ver conosco, a aprender com Freud, pois a psicanálise é um processo educativo: o sintoma pedagogês, pedagogístico, se não universitário da Educação transformada em sistema, é que não permite que a Educação se faça. O educador é que fica na frustração de sonhar com algo que não sabe nomear, perdido que está na batalha de ter que se remeter constantemente aos processos iniciatórios... *

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" Pergunta – Por que você está introduzindo a Nova Psicanálise? O que tem ela de diferente da psicanálise tal como concebida por Freud e Lacan? Você não perde por esperar. Mas o que ela tem de novo é justamente

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o sentido de que ela é a mesma. É a velha psicanálise, que não pára de se mover. Não existe discurso puro, santo, inocente. Quando se tem quilometragem no trato do saber, e especificamente no trato do saber psicanalítico e mais ainda no trato da clínica, o que se verifica? Que Lacan tem absolutamente razão em dizer que só se pode definir a psicanálise por sua questão: o que é a psicanálise? Ora, o que perguntei foi isto. Afinal de contas, estudei esse troço todo, fiz análise, trabalho com isso, penso, reflito, faço Seminário, e não sei. Tudo o que disseram – Freud, Lacan, et caterva – está pojado do ficcionismo disponível. Qualquer pessoa com trato longo na psicanálise pode descobrir no seio do pensamento de Freud, como ele, por falta de análise – para quem não falta análise? –, endereçou um pensamento que, levado às suas últimas conseqüências, teria que dar em outro lugar. Por que ele parou ali? Não que tivesse a obrigação de não parar ali. Ele não é de ferro, é gente e já fez demais. Mas isto tem uma seqüência. Os que vêm depois deviam retomar o rigor e o vigor da sua reflexão, e não seus enunciados. Lacan resolveu voltar à letra de Freud. Eu quero não um retorno a Freud, mas sim de Freud, da sintomática de Freud: o retorno do vigor de continuar as questões para além das inibições que ele sofreu, que todos, aliás, sofreram de início. A análise não acaba com isso, mas deixa você dançar melhor aí dentro. As inibições podem ser pessoais, da história, do momento, da disponibilidade científica, cultural, etc. Então, quando digo Nova Psicanálise, estou dizendo que estou fazendo a pergunta “o que é a psicanálise?” e que, outra vez, estou ficcionando: estou fazendo uma nova ficção psicanalítica. Tivemos a ficção freudiana e uma porção de ficções em torno dela. Tivemos a ficção lacaniana e uma porção de ficções em torno dela. Estou tentando reficcionar geral. Não estou dizendo que sou um freudiano no sentido da sua ficção: sou um freudiano no sentido do retorno dele. Não sou um lacaniano no sentido da ficção lacaniana: quero ser lacaniano no sentido do retorno do seu movimento. E estou fazendo – com as armas, com a experiência que tenho, com a retórica que posso manejar – a rearrumação dessa ficção. Isto simplesmente pelo fato de que muita coisa aconteceu e, entre essas coisas, a

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minha própria experiência. Então, me sinto à vontade de querer dizer: O que entendi, em função do que disseram, do que estou vendo, de uma série de disjunções que aconteceram e que exigem resposta, foi isto. Não pensem que Lacan foi o mesmo o tempo todo. Quem estudar com afinco sua obra, verá quantos Lacans foram aparecendo, sucessivos. E se estivesse vivo, se não tivesse o mau hábito que as pessoas têm de desaparecer, ele certamente estaria mudando. Talvez ele dissesse: cheguei à conclusão de que o Lacan está todo errado. Ele poderia dizer isto, eu não, pois seria um absurdo. Eu, cheguei à conclusão de que Lacan é maravilhoso, só que há que continuar. [...] A questão do que é e do que não é psicanalítico tem duas vertentes. Uma, política, de dizer: Esta aqui é a minha patota e aquela não é. Só por isso, disputa de mercado, de prestígio, de nomeações, etc. Outra, que só tem o direito de ousar dizer isto na medida em que elabore constantemente essa diferença. Isto porque, com simplicidade, posso mostrar-lhes que uma série de coisas que Lacan trouxe como distinção da psicanálise, não o são. Mas foi uma boa tentativa, limpou uma área, mas não fazem grande distinção. Moustapha Saphouan, por exemplo, faz um trabalho bem feito, estudado, para mostrar a “crise” na psicanálise, a formação do analista, a distinção entre psicanalítico e não psicanalítico, entre sugestão e interpretação analítica. E o que descobrimos? Que não achou. Mas fez um esforço muito bonito, ajudou à beça. Do ponto de vista do psicanalista, tocar nessa questão é um pedido de distinção. Diferente dessa coisa de briguinha de irmãos para saber quem é que vai herdar a casa do papai. A casa de Lacan, todo mundo sabe que é do genro... [...] Venho falando do mundo como artifício, da recusa de aceitar qualquer distinção natureza/cultura no sentido velho. Tudo é artifício: artifícios espontâneos, ditos naturais, e artifícios industriais, desta espécie. Artifício, com o radical art, que, em última instância, significa articulação. É o que vai me dar a noção de Arte Total no seguinte sentido: o que quer que a espécie humana

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faça, é produção industrial, artifício. Por indústria, ela produz o artifício. Arte Total não é só isso que, em nossa cultura, se chama de arte. Mesmo porque o campo da arte, assim chamada na nossa cultura, extravasou para todos os lados. Hoje, não sei quem está sendo mais artista, se o artista plástico, com uma exposição de objetos numa galeria, ou o físico que faz uma teoria holística a respeito de certa determinação do Universo. A nova era, que não vai esperar o século XXI para chegar, que já está emergindo no bojo mesmo do século XX, é justamente que a convergência de tudo isto faz o processo desabar. O que tem a aparência de crise no mundo contemporâneo, de apatia de pensamento, de arte, de tudo, é que o próprio processamento banalizou as teorias e fez surgir um comportamento completamente novo, onde as fronteiras não estão delimitadas, pelo menos, não pelos processos de traçado de fronteiras que antes existiam. Minha posição é radical, é de não aceitar distinção. Tudo é artifício. O próprio Haver se produz deste mesmo modo. Não esquecendo que há realidade, ou seja, sintomas estabelecidos que se pagaria caro demais para mexer neles. Em minha casa, o sol bate numa certa posição, e tenho vontade de empurrá-lo um pouquinho. Talvez não seja impossível absolutamente, mas modalmente é, pelo menos no momento: é um sintoma caro demais. Quando digo: da Arte Total à Clínica Geral, não é que não haja engrazamento entre as duas, mas a produtividade, o artificialismo humano é que é o gerador de qualquer processo, de qualquer produção. E isto vem antes de qualquer existência de clínica. Não que, dentro do artifício, não existisse a clínica por ele produzida, mas, primeiro, é no sentido da concepção da ficção. Se concebo a Arte Total do artificialismo radical e generalizado, então, a partir disto é que vou pensar a Clínica Geral. A Nova Psicanálise é a ficção que estou apresentando, e que resolvi chamar assim. Terei eu sucesso onde fracassa o paranóico? Terei eu construído um aparelho teórico capaz de englobar as ficções anteriores, re-explicar, mesmo aumentar o escopo e propiciar uma transa mais generalizada, mais aberta e mais precisa? É este tipo de ficção, no confronto com as realidades, e ela mesma como realidade, enriquecedora? Não há outra medida.

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A geometria não-euclidiana, por exemplo, é capaz de englobar a teoria de Euclides, é convincente, operativa. E é uma dica, só isto. Não sei se, amanhã, não aparece um maluco matemático que dirá: – com uma nova geometria, pensando tudo de novo, ultrapasso os limites da geometria pós-euclidiana e proponho esta divisão, de maneira que, numa série de campos em que está bloqueada, possa ser simplificada e operada de outro modo, mais eficaz e ricamente. O que estou, então, chamando de Nova Psicanálise é a tentativa de ficção, em cima de toda uma tradição bem mais tradicional do que se possa imaginar: isto vai à Idade Média, pelo menos. " P – Dentro dessa perspectiva, o traço diferencial entre o que é da ordem da ficção paranóica e da ficção teórica é só o sucesso? Nada além do sucesso. Freud o disse: “Tive sucesso onde o paranóico fracassou”. Se não, Freud seria um Schreber. Sucesso, não estamos falando do Silvio Santos, obviamente. Pode-se ter sucesso pela gracinha que se é: ajuda muito, dá dinheiro, poder... Mas não neste caso. Teoria é a minha visão panorâmica a respeito de alguma coisa. Estamos longe do tempo em que ainda se tentava uma epistemologia do real, um conhecimento dentro do campo do real tal como ele é. Na minha ficção, até acho que é muito mais possível do que se diz nas epistemologias, construir-se discursos extremamente aproximados da realidade. Lacan coloca um gap imenso, e por isso chama de real tanto o sintoma quanto o impossível. Não vejo esse gap tão grande. Às vezes, produzem-se discursos extremamente eficazes diante de uma realidade. O sucesso que se terá aí tem uma gama enorme de condições, entre as quais a credibilidade no nível de autoridade do sujeito, de sua inserção cultural, e de eficácia. Mais sutil do que um nível de comprovação, poderíamos falar em campo de provas, que é o termo que Bruno Latour utiliza e de que gosto: “Vivemos num campo de provas da realidade”, diz ele. É um “campo agonístico”. Ele achou melhor chamar assim do que polêmico. Pólemos é guerra; agonia é o ato da luta. Então, é tomar o campo da ficção, da produção de realidade, como campo agonístico, da luta de se estar na prova da realidade. Que eu saiba, o que se conseguiu produzir até hoje em qualquer área de eficácia mais

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plena de determinadas visões é pontual, pontilhista. O que temos, na verdade, são pequenas explosões aqui e ali de certos momentos de adequabilidade boa. Mas, de modo geral, as teorias são grandes ficções que têm que viver nesse campo de provas, porque são freqüentemente incomprováveis. O sucesso, então, é garantia no campo agonístico. Ninguém vai me dizer que Freud não ganhou essa batalha. Não existe em lugar algum do conhecimento a aceitação de determinada ficção porque ela teve prova. O que existe é que, na agonia do processo, determinadas coisas venceram, às vezes até por razões espúrias. O que não impede que aquele que quer produzir determinado conhecimento tenha que fazer os esforços para aquilo ter sucesso para além do nível de política e convencimento. Mas isto é furado. Quem pensou melhor a psicanálise até hoje? Até segunda ordem, dizem que foi Freud e Lacan. Pelo simples fato de a ficção lacaniana vencer, é preciso perguntar: que ficção outra foi assassinada? Este é um campo agonístico. Tiremos da cabeça o “purismo”, a “inocência” do pensador: pensador não presta, ele simplesmente tem uma ficção e vai fazê-la vencer do jeito que puder. A insistência de Freud, por exemplo, nas evidências etológicas da sexualidade levaram-no a construir um conceito de Falo que fica aquém do seu projeto reflexivo. É pouco demais para ele. Mas ele não tinha como mudar de estratégia. Isto em função da disponibilidade de pensamento do seu momento, da sua estagnação pessoal mal analisada, da sua história pessoal de judeuzinho neurótico, do jogo estratégico que podia fazer com aquilo. Ele estava todo marcado. Então, temos que aplaudir o cara porque, debaixo de tudo isso, ainda conseguiu fazer o que fez. Quantos contemporâneos seus não reclamaram dizendo que não estava fazendo sentido? Mas se aceitasse abrir uma brecha naquele local, sem estratégia adequada, ele poderia fazer ruir todo o edifício. Então, manteve a estratégia de sustentar aquilo de qualquer maneira porque tinha substrato na experiência (não psicanalítica, mas) de mundo. Aquele bando de macaquinhos em progresso, extremamente pressionados por razões etológicas evidentes, corporificados, sintomatizados no corpo, etc., se suspeito que não posso mexer ali por não ter uma ferramenta mais adequada, deixo de lado por en-

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quanto. Assim, sustenta-se o edifício da minha teoria. Menos perdoável é Lacan, que insiste nisto. Ele começa a ser perdoado na medida em que, mesmo tendo partido do conceito de Falo estabelecido etologicamente em Freud, repete o conceito mas vai abstraindo de tal maneira que não é preciso ninguém mais dizer isso de novo. Ele já disse, já abstraiu. Basta levar às últimas conseqüências. Toda e qualquer ficção, teoria, pensamento, etc., que não for conduzida às suas últimas instâncias no vigor do seu processo acaba virando um produto religioso. O odor de religião que paira em torno dos psi é justamente por isso, por não se tornar a refletir sobre as coisas que se produziram. Quem então, vai negar que o complexo de Édipo venceu? Está na novela da televisão. Aquilo, dentro da psicanálise, não serve mais para nada, mas a idéia de complexo de Édipo, o Édipo, isso venceu: é uma ficção cotidiana. Lacan diz mesmo que jamais falou em complexo de Édipo, e sim em metáfora paterna. Ou seja, já limpou a área um pouco. Eu, não quero falar em metáfora paterna. Vamos, pois, tentar abrir a questão... " P – O artista plástico quando faz um quadro, uma escultura, aquilo também é uma ficção. Você vê distinção entre o retorno dessa ficção para a prática tanto no trabalho do psicanalista quanto no do artista? Você quer saber do retorno no sentido geral ou se o artista é terapêutico? Se temos um artista – não esse títere de galeria, mas um artista, vamos fazer de conta que isto existe –, ele foi fundo, com os materiais, com a via que tem, no quê? No processo que tem, que é o de sua subjetividade. De lá, trouxe algo que é necessariamente interpretativo, no sentido da Clínica Geral. Não podemos pensar, pelo fato de existir a psicanálise – e o psicanalista que escolheu determinado campo de batalha, de ação, que pode facilitar e apressar (quando pode) determinado processo num tipo de ação – que isto exclua que esses acontecimentos se dêem em outro lugar. Seria muita pretensão. Por exemplo, leio, como li – não fiz uma tese a respeito porque fiz sobre suas Primeiras Estórias – o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, como um grande tratado de psicanálise. Não estou dizendo que o livro

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tenha curado Rosa – não conheci a figura pessoalmente –, nem tampouco que o cara que o leu fique curado. Agora, que leva uma interpretada porreta, leva... se puder escutar. No processo analítico, o que temos é um sujeito acompanhando as ocasiões de escuta do analisando. É um processo que está endereçado para isso, que está modelado, metodologizado, para conseguir o efeito de cura naquela análise. Isto não impede que existam intervenções do mesmo nível nas mais diversas atitudes humanas – que colarão ou não – que ficam mais à deriva. Sabemos, por questões de observação da história, que certos atos artísticos, políticos, deram uma interpretada e reviraram. Lacan, a respeito de uma guerra na Grécia, diz mesmo que o ato de determinado General ter mandado partir a frota do porto, é um ato analítico. Considero da ordem da burrice, da mesquinharia do intelecto, o psicanalista de carteirinha fazer a suposição idiota de que o privilégio do ato analítico é dele. Ele tem a obrigação, e não o privilégio, de freqüentá-lo. Mas, independentemente disto, outros o freqüentam. E, às vezes, melhor. *

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A paranóia descrita na nosologia, entre outras coisas, faz uma grande ficção, chamada delírio, a respeito do mundo. Quem leu Schreber, por exemplo, vê como ele é brilhante. Freud chega a ficar assustado: – Ele pensa igualzinho a mim, há aspectos das teorias dele que são idênticos às minhas! Mas o nível de adequação discursiva aos fenômenos do mundo, de maneira àquilo ser transmissível, operativo, concebível, não é da mesma ordem. Aquela teoria inteira não faz um edifício, não tem a eficácia de construir uma moradia para muitas pessoas. Ora, mas inventar o Complexo de Édipo não é um troço de delirante? Depois, então, que Freud trabalhou em cima e que as descobertas saíram, e que, por isso mesmo, revalorizaram com aplausos a sua idéia, a coisa em si como Complexo de Édipo não é delírio de obsessivo? Não é paranóico, mas obsessivo é. E vira paranóico na mão de outros.

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Alguém que esteve na moda e que tivemos a obrigação de estudar, dar aula, acreditar... (É como Lacan disse: Les non-dupes errent, quem não é pato quebra a cara. Já fui pato de muita gente: hoje em dia sou pato da minha própria bobagem)... um sujeito como Lévi-Strauss, que dedica toda uma vida a demonstrar que a interdição do incesto realmente organiza a sociedade humana e controla a passagem de natureza a cultura: isto é uma grande asneira. Mas foi útil para entendermos outras coisas. Estou dizendo que acho bobagem, mas se ele não passasse e fosse fundo por ali não teríamos condições de achar bobagem. Ele teve sucesso onde o paranóico fracassou. Ele também. [...] No campo das artes plásticas, hoje, está todo mundo perdido. Estabelecer fronteiras é impossível. Mas não vamos confundir o sucesso de mercado com um sucesso mais integral. Não temos saída, pois convivemos com o aspecto de prova no campo e de convencimento, de conveniência. Em última instância, como não se tem nenhum paradigma realmente dado, não existe isto no campo do saber humano, teríamos que ter certeza a respeito da realidade, como se ela falasse diretamente conosco, para julgarmos todos os outros e achar que está tudo errado porque a realidade é tal. O que temos são alguns poucos luminares que inventam uma ficção, absolutamente delirante, cujo escopo fundamental é delirante, mas que, mais ou menos, tem pegas com as formações do Haver e, inclusive, com as formações que estão nas cabeças das pessoas, que contam. Quando Galileu demonstra aquilo e o pessoal quase o manda para a fogueira, ele estava certo ou errado? Ele teve fracasso onde o Papa sucedeu, naquele momento. Mas ele sabia estar num encaminhamento que, do ponto de vista de prova de mundo e de convencimento possível, de processos de convicção por adequações as mais diversas, ia dar ali. Há um mito romântico de que determinado cientista, determinado filósofo, pensou coisas certas e ninguém o compreendeu, mas, um dia, vão reconhecer porque a verdade estava lá. Como? Que bobagem é esta? O que temos é que alguém arriscou o próprio pescoço em ganhar ou perder a vida em torno de uma ficção e que – pela frase que eu

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disse: o quer que se diga é da ordem do conhecimento –, num certo momento, vai haver interesse, um complô, de algumas pessoas que vão querer aquilo porque lhes interessa. Este é o drama em que vivemos. Enquanto Lacan produzia a sua teoria, não sei se algum obscuro, que alguém vai achar daqui a pouco, estava produzindo alguma coisa que, em certo nível, fosse mais interessante. Vamos parar com isso: somos todos interesseiros e interessados. O grande mito que precisa acabar é esse, romântico, de dizer: – Sou honesto, quero a verdade. Que verdade? Qual delas se deseja e quanto custa? Qual é o preço? O que há – e no Seminário da Ética Lacan ainda está por aí – é que se tem determinado desejo, ou seja, determinado sintoma, que se acha mais adequado e se luta para convencer de que é o mais adequado. E, às vezes, por função do momento histórico, dos acontecimentos, ele é mesmo, e as pessoas o compram. " P – Não seria uma questão de cada campo de conhecimento ficcionar o seu campo de provas? Neste sentido, a psicanálise teria que também ficcionar o seu campo de provas. É o que me parece que a psicanálise tem a fazer agora: moldar o campo de prova que talvez seja mostrar a sua adequabilidade a essa cura mais geral que você está chamando de Clínica Geral. O próprio campo de provas é ficcionado por quem o habita, e certamente subvertido por outros que habitam por ali também. Então, não só você ficciona a sua teoria como tem que fazer a ficção do campo de provas. Por exemplo, não existia psicanalista antes de Freud. Ele não só inventou uma prática, teorizou em cima dessa prática, como se esforçou por criar um grande campo agonístico em torno disso, onde ele pudesse pôr à prova. Isto é uma faca de dois gumes, como qualquer faca. Ao mesmo tempo que cria o campo de disseminação, de provação, etc., também cria a patota fechada. Ou seja, fica um elogiando o outro: – Que trabalho maravilhoso que você fez a respeito da histeria nas mulheres que sofrem de pé-esquerdo defeituoso... e aquilo não extravasa o campo. Leiam o livrinho de Catherine Clément, Os Filhos de Freud estão Cansados, que já citei,

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para verem o que ela diz: – Sim, o senhor é psicanalista, escreve bonito... Mas é bonito só. Não chega aos pés de um escritor. Os lacanianos, depois da morte de Lacan, entraram em crise, a qual se demonstra na vontade de divã que têm, de novo. Recolheram-se a seus consultórios e preparam seminários para falar de “estruturas clínicas”... Lacan não fez isto. Ele utilizava aquele laboratório onde efetivava curas para repensar a psicanálise e dizer ao mundo: é o mundo de outro lugar. Freud também fez isto. Para ele, a presença do analista, quando ele há, é de intervir no mundo. Ato analítico não tem dono. O refinamento da operatividade que quero é aquela em que os próprios psicanalistas comecem a intervir no mundo no sentido de sua prática (psicanalítica). O que vemos comumente é “analista social”, que fica chovendo no molhado. Fazem parte tanto da coluna social quanto do social da miséria. A intervenção no mundo, sem outras ideologias políticas, simplesmente em cima dos achados psicanalíticos, é que deve ser urgida. Isto porque ficar na baboseira de uma política que não é psicanalítica, é minimizar a questão como se psicanálise não houvesse. O que se ouve de grossas asneiras com incrível sucesso de marketing, mas sem sucesso diante de uma crítica mais acurada... Quando um psicanalista brasileiro toma um autor medíocre norte-americano, que, da maneira mais abstrusa, faz a leitura daquela porcaria, e que ganha sucesso no Brasil por ter tomado esse autoreco e, de repente, “descoberto” que o narcisismo é a questão, aí a gente morre de rir ou de chorar. " P – O que é o mito em psicanálise? E sua dessacralização? Falando brevemente, eu diria que o mito é uma espécie de coagulação ficcional como resultado dos embates de uma reflexão com determinado problema. Ou seja, é necessariamente de estrutura neurótica. Quando tomamos um neurótico – que é qualquer um de nós, pois não se consegue sair muito desse aparelho –, na verdade, estamos lhe dizendo que, nos seus embates com o mundo, na sua problemática, ele inventou-se um mito. Um mito é a teoria que o neurótico pode ter, num momento dado, com os aparelhos que tem e que terá ou não adequação a tais e quais níveis de emergência de realidade. Quando

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um Lévi-Strauss demonstra, em sua antropologia, que aqueles mitos se organizam dentro de uma estrutura de saber que tem eficácia, pergunto: isto não pode ser científico? Em determinados níveis, o mito funciona. O mito é uma teoria que ainda não encontrou embate com outro discurso, por exemplo, o científico. Grau de relatividade, todo e qualquer discurso tem, o que não nos exime de procurar discursos cada vez mais abrangentes. Por exemplo, um mito instalado em determinada cultura é algo que teve necessidade de surgir como eficácia, como prova de operatividade. Mas, em vez de esta prova continuar a se exercer, às vezes, determinada cultura fica obsessivamente repetindo o mito, ritualizado, de maneira que ele passa a ser operativo naquele nível em que surgiu e não deixa nem mesmo que surjam outras operações. Toda a questão é dinâmica. O “mito freudiano”, pode-se falar assim. Mas é um mito-em-progresso: vai-se diversificando na sua prova. O que se nota na vida das pessoas e dos grupos é que determinado mito, ou seja, determinada ficção operatória, que teve sucesso em determinado momento, se toma pelo real. Ou seja, pela realidade única possível de estar ali situada. Aí, deixa de ser operativo no sentido do desenvolvimento e passa a ser uma doença, pois não deixa as pessoas se mexerem. Ou seja, cria-se uma eficácia e pára-se por aí. É o que acontece em todos os campos, desde o xamã até o cientista. Depois que Einstein, por exemplo, produziu uma teoria do cacete, ela ficou mais cacete do que teoria: não se mexe mais? 20/MAR

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2 HABEAS CORPUS Como prometi, tentarei um resumo dos conceitos que sustentam o desenvolvimento deste Seminário. Nestas primeiras sessões farei, de forma genérica, a apresentação de algumas idéias básicas. Meandros do que será colocado podem ser buscados nos Seminários já publicados. Não me perderei em grandes demonstrações, apresentarei como coisa mais ou menos sabida. *

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O habeas corpus de que pretendo falar um pouco hoje está justamente no impasse fundamental do que chamamos corriqueiramente de hominização, ou seja, a passagem do animal ao humano. Em trabalhos recentes, sobretudo de 1980 para cá, tantos autores têm conseguido conhecer diversos aspectos da humanidade em sua correlação com a animalidade, os quais nos dão indícios bastante sérios de que é preciso reformular uma série de conceitos nas ciências humanas. Tenho me aproveitado disso em minha tentativa de refazer o escopo geral da teoria psicanalítica. Desde Lacan, pelo menos, que certos achados da etologia vêm contribuindo para dar fixação a alguns conceitos na psicanálise. Há, no mínimo, dois grandes conceitos estatuídos sobre achados etológicos. Como sabem, etologia é a ciência do comportamento de seres vivos, preferencialmente animais, no que diz respeito à suspeição de uma programação inata em cada espécie. O

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que não exclui a possibilidade de se estudar, como se estuda e se produzem coisas importantes, o campo que os etólogos querem chamar de Etologia Humana. Já com base em certas observações de Konrad Lorenz – que, na verdade, por sua antiguidade são relativamente incipientes no campo da etologia –, Lacan havia construído o conceito de Estádio do Espelho. É o momento fundamental da constituição da subjetividade e que ele insere numa relação de imprinting, termo da etologia para designar a absorção, por determinado animal, de um estímulo que faz funcionar determinado aparelho já composto em sua biologia. Ou seja, mediante certa imposição configuracional de comportamento, o animal desenvolve a sua própria habilidade já programada. Lacan havia feito, então, uma correlação de imprinting com imagem especular do animal e a passagem deste momento de imprinting com imagem própria do Estádio do Espelho para a relação metaforizante do sujeito com o mundo. Outro conceito fundamental da psicanálise, que, embora não tão especificamente mostrado como no caso do Estádio do Espelho, também está nitidamente assentado sobre questões de valor etológico indiscutível é o conceito de Falo, desde Freud. Em Lacan, então, fica absolutamente explícito um aparelho etológico funcionando. Isto porque ele parte da força gestáltica de certa configuração para assentar como metáfora, no nível que quer chamar de simbólico, a constituição desse significante fundamental, que, do ponto de vista da teoria psicanalítica, é um conceito. Mas, hoje, temos motivos para desconfiar seriamente de que o que há de componência etológica nesta espécie animal desviada, que é a espécie humana, é suficiente para exigir uma série de revisões. A dificuldade de se estabelecer, dentro de uma metodologia científica, o que, na espécie humana, seja etológico, não impede de, na experiência, na prática com a espécie no mundo, vir-se a reconhecer a enorme quantidade de comportamentos humanos que está absolutamente adscrita à determinação etológica encontrada em outros animais. Quero supor que grande parte do que se abordou na dita psicologia humana, e mesmo do que dessa psicologia foi transferido para o campo da

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psicanálise, pode tornar-se cada vez mais evidente como construtos etogrâmicos da espécie, herdados, dados filogeneticamente, de toda sua história de composição e surgimento no seio do mundo, do Universo. Nossa questão é tentar, cada vez mais precisamente, distinguir o que é específico da espécie. Não em termos biológicos ou etológicos, mas o que a abordagem pela via psicanalítica pode trazer como resultante, ainda que baseada nesses aspectos etológicos ou biológicos, que teria deslocado radicalmente a espécie do assentamento animal do qual ela não pode se livrar com facilidade. Coloco, pois, o momento, o lugar, de transposição da espécie do meramente animal para algo que seja extrapolador disso como o habeas corpus que a espécie consegue mediante a sua hominização. Quando nos aproximamos da etologia dos animais superiores, principalmente dos primatas, ficamos perplexos de ver a quantidade de comportamentos, de modos de organização social, inter-individual, etc., que são de uma riqueza enorme, com grande semelhança com esses herdeiros da macacolândia que somos nós. Como canta uma música dos Titãs, intitulada Homem Primata, ainda nos comportamos como os macacos. Há grande semelhança de nossos comportamentos sociais, políticos, econômicos, etc., com os modelitos etológicos que se consegue distinguir entre as espécies próximas. Há certos modelos, certas atividades fundamentais, certos esquemas básicos, que vemos se repetirem em diversas espécies, até nas mais distantes, em espécies de aves, por exemplo. Então, como alguns esquemas parecem ser constantes em todas as espécies, a suposição da etologia é de que existe uma programação, geneticamente dada, filogeneticamente conduzida, uma verdadeira computação de aparelhos de relação com o oîkos, com a ecologia desse animal, os quais aparelhos são suficientes para sua sobrevivência, para suas relações com o mundo exterior: são verdadeiros programas. Há a noção de programa fechado. São programas que funcionam no limite das suas possibilidades adscritas, que não conseguem ter elasticidade suficiente para, por exemplo, promover transformações nas relações ecológicas de modo a que o animal sobreviva a pressões um pouco mais fortes do ambiente.

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Há, pois, entre as espécies vivas, programas extremamente fechados, que significam uma adaptabilidade menor e, portanto, possibilidade maior de perecimento em função das mudanças exteriores. Pensa-se, também, em programa aberto. A coisa está programada não só num nível geneticamente pensado, cromossômico, mas há correlações de aparelhos biológicos, correlações típicas do mundo exterior, que já são de outra ordem. Ou seja, certa riqueza, quem sabe, certa complexidade da programação, permite à espécie uma elasticidade capaz de se apresentar com um programa aberto: mesmo sendo restrita sua programação biológica dada, esse animal tem condições de, digamos, estabelecer combinatórias entre as programações e vir a aprender coisas novas que se apresentam à espécie. Portanto, tendo uma adaptabilidade bastante larga. Confundimo-nos facilmente com o fato de haver aprendizagem e, às vezes, ficamos sonhando com a possibilidade de certa subjetividade nesse animal. Na ordem eletrônica dos computadores, por exemplo, pesquisa-se cada vez mais a possibilidade de programas abertos, nos quais, mesmo sendo inscritos definitivamente, sendo programas articulados e estabelecidos para aquele aparelho, tendo condições de elasticidade na sua própria combinatória interna, vê-se que a abertura que permite aprendizagem, etc., não vem situar nenhuma abertura radical no sentido de se dar alguma subjetividade aí. Ou seja, ficamos espantados com a riqueza da programação, com sua elasticidade, com sua capacidade de acumular pequenos argumentos externos e elaborá-los, mas isto, em termos de aprendizagem, não ultrapassa os limites de combinatória interna de seu próprio esquema. É preciso, pois, verificar o quanto a aparência de posição subjetiva, de inteligência, de articulação, de adaptação da espécie humana não se deve estritamente a possibilidades combinatórias de um aparelho com programação elástica. Isto porque há algo que, nela, ultrapassa radicalmente sua riqueza, sua elasticidade e, já que a biologia ou a fisiologia do cérebro não conseguem fazêlo, trata-se, em nossa experiência, de postular o momento e a construção que se apresentam como um aparelho radicalmente diverso das possibilidades etológicas de outras espécies.

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Em Seminários antigos, coloquei isto como da ordem de corpos superpostos, imbricados, engrazados um no outro. São construtos somáticos que aí estão, dentro da própria biologia, a estabelecer a diferença para com outras espécies. Falei de autossoma, o aparelho carnal que determinada espécie apresenta, sua própria construção tridimensional de organização biológica, etc.; e de etossoma, que é o que os etólogos chamam de etograma. Ou seja, há a constituição biológica materialmente dada de um corpo biológico de uma espécie e, juntamente, há uma inscrição programática e comportamental que é seu etograma de base. Os animais não precisam mais do que estes dois corpos – sua existência autossomática e sua configuração, inscrição, programação etossomática ou etogrâmica – para darem conta dos limites, das possibilidades de sua espécie, das tarefas e dos percalços com que têm que se defrontar. Não têm adaptabilidade para além de suas condições auto e etossomáticas. A pressão ecológica – no sentido geral, e não só no de natureza: indústria também é uma ecologia, é o ambiente onde vivemos, a fumaça, a poeira, etc. –, ultrapassados determinados limites ecossistêmicos, o animal perece, não consegue vencer. Ora, justamente a espécie humana parece apresentar algo mais do que a simplicidade binária de um autossoma e de um etossoma, ou etograma. Embora esteja ainda enfartada, pojada, carregada de inscrições etogramáticas, que lhe permitem uma série de comportamentos, e isto através de toda sua história, parece que outros mecanismos funcionam de tal maneira que essas programações básicas são freqüentemente superadas. A espécie, então, que é de uma fragilidade bem grande do ponto de vista tanto auto quanto etossomático, consegue acrescentar forças de aparelho a sua, digamos, natureza, de maneira a viver mergulhada numa artificialidade tal que sua própria corporeidade extrapola de muito suas eto e autossomática de nascença. Quais são os limites da anatomia humana? Quando se trata do corpo biológico, abrimos livros de anatomia e vemos todas as descrições que costumamos ver, mas, do ponto de

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vista de ação sobre o mundo, a anatomia humana ultrapassa de muito esse autossoma. Nossa roupa, a mesa, a casa, o carro, etc., tudo isso funciona como extensão de nosso corpo. A rigor, então, a anatomia humana envolve tudo o que há ao redor do corpo humano na medida em que a espécie se apropria disso como extensão de sua corporeidade (cf. McLuhan). É de se supor que, para além destas duas razões de sua construção, a espécie possua mais alguma, diferentemente de outras espécies. Postulei – e comecei a tentar, por desenvolvimento, mostrar que isso funciona – que, para além de auto e etossoma, existe outra coisa na espécie que, para rimar com os termos anteriores, chamei heterossoma. Na produção da espécie, alguma coisa se secretou a partir de autossoma e de etossoma, e se instalou materialmente nas suas possibilidades corpóreas um outro aparelho que faz com que ela seja radicalmente diversa das outras; que transforme seu corpo num verdadeiro fóssil biológico: ele já é uma coisa velha, antiga, ultrapassada; e que se construa essa coisa monstruosa da realidade, que é um ser humano metido no conjunto de outros seres humanos com uma anatomia radicalmente diversa e com uma vida absolutamente postiça e artificial. Então, para além de programa fechado e aberto, eu diria que talvez exista outro: um programa neutro, reverso, alguma coisa desta ordem, que permite à espécie comportar-se como vem se comportando. Os etogramas das espécies animais nem por serem apenas binários, duais, deixam de ser ricos. Dentro da linha de combinatória de base dois, com seus computadores digitais, podemos ter grande riqueza de informações, só que não devemos confundir esta riqueza binária e as possibilidades de construtos complexos, com essa outra coisa, diferente, que nossa espécie porta e que, por isso, por mais que construa computadores complicados e toda a maquinaria que constrói, ela ainda acha que não está lá o espírito da coisa, o espírito do homem. Ainda é uma simples máquina meramente complicada. *

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A etologia, considerando a variedade das construções etogrâmicas que as espécies demonstram obedecer, procura certos etogramas fundamentais, de referência para todo o universo ou para a maioria das espécies, digamos, superiores. E chega ao reconhecimento de alguns esquemas básicos que parecem genéricos, de certo nível biológico para cima, pelo menos. Um deles é o chamado esquema espácio-territorial. Observando as espécies sexuadas, por exemplo, num nível de complexidade um pouco maior, vemos funcionar nitidamente este esquema. É aquela do galo dentro do galinheiro. Se há um galo com suas galinhas, que não entre outro, pois a coisa ficará complicada... Mas encontramos isto mesmo em mamíferos superiores e, acredito, até na espécie humana. São comportamentos agonísticos, como chama a etologia, de luta pela sobrevivência, pela existência, que sempre deixam clara a existência de algum esquema com certa zona central, nuclear, certa franja de abrangência de território: os grupos se organizando segundo essa especialidade e fazendo verdadeiros rituais de demonstração da sua dominância de tal modo que, freqüentemente, não é preciso entrarem em lutas violentas, de morte, para o estabelecimento de seu domínio. Basta mostrarem um para o outro seu ritual de dominação, que seu território vai até tal ponto, que, a partir dali, é neutro, para que, diante de um invasor, esta simples atitude fanérica, de exibição de dominação, mostre-lhe que está invadindo território alheio. Cria-se, assim, toda uma idéia de proxemia, que é a teoria das aproximações dentro do espaço nas movimentações animais. Este é um esquema forte e parece existir com muita freqüência nas espécies: a dominância, a descrição de um território próprio, de um espaço-limite, para a sobrevivência da espécie. Outro esquema fundamental é o hierárquico. Dentro da construção espacial que limita, estabelece, o campo de determinado grupo, é preciso esclarecer quem domina, quem manda, quem obedece, quem tem direito a quê. Isto se dá por uma série de construções etogrâmicas de exercício de execuções fanéricas, e mesmo de competência física de luta, de dominar sexualmente

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certa quantidade de fêmeas, no caso do macho. Em certas espécies encontramos uma hierarquia inteiramente construída que vai do animal alfa até o animal ômega. Em dado momento do grupo, o animal alfa manda mesmo, domina a situação, é o rei do espaço: reina sobre os outros animais e isto não se discute, mesmo porque é mais bonito, mais forte, o bom, no sentido, quem sabe, até aproximado da nobreza de Nietzsche. Ele é o belo e o bom. Daí para baixo, há uma série bastante organizada de dominâncias, descendo na escala hierárquica até o animal ômega. Coitadinho, este não tem direito a nada, come os restos, não come ninguém, a não ser um aleijadinho qualquer que o chefão não queira. Em suma, é o que fica com os restos do grupo porque é o menos dotado. Isto não é muito diferente de nossa vida cotidiana, em nossas relações proxêmicas com os espaços por vias não diretamente etológicas, mas que indiretamente se fazem assim na consecução e no estabelecimento de ordem hierárquica dentro do grupo que se apropria de determinado espaço. O reconhecimento de um indivíduo da mesma espécie e grupo tem muito da razão especular que Lacan encontra no reconhecimento da imagem própria, no Estádio do Espelho. Os animais não têm o reconhecimento de imagem própria, mas têm reconhecimento de imagem da mesma espécie, de pequenas diferenças ou até mesmo de espécies diferentes, capazes de conviver dentro de um grau de distanciamento razoável. Tudo isto se dá pela razão especular entre sistemas, entre etogramas que se reconhecem ou não de maneira estritamente computacional. Observou-se na etologia dos mamíferos superiores, e com mais evidência no caso dos primatas, a correlação da sexualidade – a que serve para reproduzir os elementos da espécie – com a composição agonística do sistema hierárquico que vigora dentro de determinado grupo. Parece que de espécie para espécie variam os acordos etogramáticos postos em exercício na constituição dos poderes dentro do grupo. Às vezes, determinados poderes estão na mão das fêmeas, outros, na dos machos, sendo que, de modo geral, num grupo complexo com certa quantidade de machos e fêmeas, a constituição é nitidamente machista.

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Do ponto de vista da biologia, a dominância de determinado grupo se dá com mais nitidez para determinado animal alfa, o qual é um macho que, em condições normais, impera por sua força e, sobretudo, no sentido de que a exibição do seu poder e do seu domínio se dá mais por via de dominância sexual. Ou seja, ele tem direito a todas as fêmeas, sobrando para os outros apenas as que dispensa definitiva ou momentaneamente. Ele é uma espécie de comandante e reprodutor fundamental da maravilha da sua espécie. Mais do que isto, ele está o tempo todo, em suas relações agonísticas com os outros animais, tanto machos quanto fêmeas, na exibição constante de seu poder operatório na sexualidade em função da sua força. Há, pois, uma correlação direta, em termos etológicos, nessa espécie, entre sexualidade, poder, dominação, e hierarquia. Então, em havendo um macho – e porque a biologia os preparou assim dos pontos de vista autossomático e etossomático –, há sempre sua dominância, a qual é mostrada com freqüência: basta alguém agredir seus privilégios, minimamente que seja, para ele exibir esse poder. A maneira mais freqüente de exibição é o que os etólogos chamam apresentação macha (male). Alguns tradutores ou autores de língua portuguesa chamam apresentação masculina. Recuso-me a chamar assim porque o masculino não é isto. Apresentação macha significa que, na aproximação de algum outro macho da espécie, ele exibe os seus poderes e, principalmente, o pênis em ereção. Se o outro animal insiste, ele avança em cima de maneira sexualizada, como se fosse tratar o outro como fêmea. E se o outro insistir mais, ele pode chegar mesmo ao que se chama cópula de fúria, ou seja, enraba o outro na marra. Não é nem para chegar a uma conclusão erótica do processo, ele não vai produzir uma cópula para chegar a um orgasmo, mas simplesmente vai enrabar para mostrar: Você é enrabado, logo o macho aqui sou eu. Na hierarquia, isto passa adiante. Os outros animais, que estão abaixo, lá no seu cantinho e na sua programação, quando chega um outro, fazem o mesmo dali para baixo. É a “teoria militar do penico sem fundo”. O pobrezinho do animal ômega, este, vai ficar atolado até a boca, pois não tem em cima de

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quem fazer essas coisas. Tanto é que, às vezes, por falta de possibilidade de expressão de qualquer dominância, ele desenvolve comportamentos derivados. Ou seja, tem comportamentos em vazio, tem chiliques de exibição para ninguém, faz atos de agressividade sem ser o momento... Ele fica piradinho, pois tem que exercer aquelas inscrições etogrâmicas e não tem as condições. Os animais estabelecem, então, dentro do seu grupo, na sua espécie, essa ameaça fálica, essa ereção de intimidação, que está correlacionada com o seu querer, seu poder, por sua possibilidade de entrar em ereção só para intimidar o outro. Freud mostrou, na espécie humana, o que chamou gesto apotropêico, isto é: não vem que não tem! Dá-se uma banana, mostram-se logo as coisas, o que é nitidamente compatível com essa etologia animal. Por outro lado, no regime de lutas intestinas de poder, existe também o contrário: a apresentação fêmea. Quando um animal poderoso chega perto das fêmeas, elas imediatamente oferecem o que têm de melhor a oferecer para deixar claro que não precisam bancar o machinho porque ele é que o é. Elas dão logo, sem discussão. Ainda neste nível meramente etogrâmico, programático, de harmonia, as coisas se revertem. Quando um macho dominante é acossado por um macho hierarquicamente inferior, ele faz sua exibição fálica, sua apresentação macha. Se o outro reconhece imediatamente que não vale a pena entrar em briga, pois está reconhecido que aquele é o chefe, ele não vai ficar disputando um lugar que já aprendeu que não tem competência para disputar. Ele, então, imita a fêmea e faz uma apresentação fêmea para o outro macho. Ou seja, dá logo porque o chefe é aquele e pronto. Uma vez que o macho inferior oferece, o superior despreza. Isto por razões etogrâmicas. Do mesmo modo, entre as fêmeas, quando há discussões sobre dominância, de repente uma delas mostra o seu poder exibindo o pênis que ela aparentemente não tem. Ela entra imediatamente em apresentação macha para as outras que, logo que reconhecem que essa é superior, também entram em apresentação fêmea. Se não entrarem ela enraba as outras (não sei com o quê): faz o ritual e as outras põem o galho dentro, como se houvesse galho. Neste movimento agonístico, o importante é a correlação entre sexualidade e poder. A sexualidade, como exibição de um querer esteado nas

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estruturações etogramáticas da espécie, vira uma espécie de signo do poder, signo da ordem hierárquica. É muito natural, pois o de que se trata é da resistência da espécie, da sua reprodução, da dominância dos melhores para que a reprodução seja eugenicamente viável, para que se produzam os mais sadios, os mais fortes, etc., no sentido de sobrevivência. Estamos, aí, no reino animal. O espantoso é termos que reconhecer o quanto de etogrâmico herdamos dessas espécies. E, esquecidos de que somos da espécie humana, o quanto não funcionamos, com muita freqüência, diferentemente dos macacos. *

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Nossa questão é a de tratar estes objetos de estudo em relação com o campo tipicamente humano, que é o que interessa para a teoria psicanalítica. Qual é a distinção radical e absoluta entre o que é específico do humano e o que é da ordem da espécie biológica? A espécie humana sempre se deu conta de que, nela, existe algo que é radicalmente diferente, que extrapola definitivamente as arrumações etogrâmicas. Na medida dos aparelhos de saber que vai construindo, ela tenta situar ora aqui ora ali a diferença como sendo descritível por determinado modo de operar o ser humano, por suas observações. Quanto mais estudamos as ciências humanas, dado seu modo de operação, de articulação, seu ferramental, fica cada vez mais difícil estabelecer uma razão nítida de diferenciação. De modo geral, as ciências ditas humanas – não sei por que, pois humanas são todas, não há ciências macacais –, e mesmo a psicologia, nos seus esforços de laboratório, de criação de delírios cada vez mais acurados, precisos, em última instância acabam se reduzindo facilmente a uma razão etológica de diferenciação. Encontramos, por exemplo, no campo da filosofia, a tentativa dessa distinção, sobretudo em certos momentos conhecidos de sua história, na tentativa de conceituação do que fosse a subjetividade humana. Mas a filosofia passou por tantos percalços que, até em seus momentos brilhantes – com Descartes,

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por exemplo – de tentativa dessa distinção, embora estabeleça coisas fundamentais, deixa muito a desejar. Mesmo a psicanálise, que tem a pretensão – talvez, desde Freud, e mais veementemente com Lacan – de ter estabelecido a radicalidade da diferença entre a espécie humana e as outras, com o passar do tempo, com o desenvolvimento e a aplicação das teorias produzidas, muito do que foi sonhado, praticado e discursado como sendo exposição dessa diferença, também recai com certa facilidade em aparelhos etológicos. Como eu disse, há dois conceitos básicos de peso dentro da psicanálise contemporânea, que está em vigor pelo menos até o lacanismo: uma espécie de subjetivação no Estádio do Espelho e o conceito de Falo. Mas uma viabilização e uma repetição mais profundas vão mostrar como estão apegadas demais a razões etológicas da espécie, se não mesmo a razões etológicas dos primatas em geral. Meu esforço neste momento é abstrair cada vez mais dentro das configurações teóricas produzidas, de modo a pensar uma distinção mais nítida e uma autonomia cada vez maior do Sujeito humano, na sua concepção, em relação às pressões etogrâmicas do biológico. Ou seja, estatuir cada vez melhor para nossa espécie, a radicalidade, na especificidade, da sua diferença. Diferença esta que não vai ser criada, pois já existe, tanto é que virou todo o lixo em que vivemos: o lixo cultural, o artificialismo radical da nossa vivência. Para que a psicanálise tenha estatuto, não seja facilmente reduzida a outros saberes e possa também permitir que a espécie receba, inclua, a sua diferença específica, é preciso, então, cada vez mais particularizar, especificar, abstrair, a ponto de chegar a um salto radical na diferença desta espécie para com as outras. No calor das décadas de 60 e 70, encerra-se praticamente um século dentro do pensamento. Muitas coisas foram aí trabalhadas com rigor extremo, com pertinácia e pertinência, com teorias brilhantes, etc., e, justamente porque vieram à luz e foram operadas, começam a mostrar seus furos e a exigir cada vez maior precisão. Tomemos, por exemplo, uma teoria que parece bem assentada e com foros de dominância dentro do campo do saber contemporâneo, que é a teoria estruturalista da antropologia. Pudemos acompanhar o esforço de um Lévi-

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Strauss – começado em 1949 com a publicação de suas Estruturas Elementares do Parentesco - no sentido de estabelecer a radicalidade dessa diferença e sua correlação com a ordem pregressa, no que quis chamar “passagem de Natureza a Cultura” dentro da espécie humana. Ela seria responsável pela caracterização e criação dos roteiros dignos da existência do homem como espécie cultural. Em sua tentativa de especificar a antropologia, afastando-se dos modelos biológicos e sociológicos anteriores, Lévi-Strauss se recusa a reconhecer em dados que hoje chamaríamos de etológicos, etogrâmicos, etc., a vocação humana para a cultura. Ele acha que há uma passagem radical do natural para o cultural. Dentro de certas definições de ciência daquele momento, para estabelecer cientificamente esta passagem, era preciso um ponto de pega, de engatamento, das vertentes natural e cultural. As pesquisas de campo e de texto dos antropólogos indicavam que nenhum tema comportamental da espécie humana poderia ser tomado como universal. Não se poderia definir a natureza humana por um, pequeno que fosse, aparelho de convivência cultural, pois este variava infinitamente de cultura a cultura. Eles suspeitavam – isto porque nem todos garantem – que existia certo modelo comportamental que parecia ser universal: a Interdição do Incesto. Supunha-se que a espécie humana, em qualquer agrupamento cultural em que se colocasse, variava infinitamente em seus comportamentos, menos em um. Isto se colocaria do seguinte modo: em qualquer cultura, existe pelo menos uma proibição de associação entre indivíduos de sexos diferentes. Há pelo menos um tipo de aliança – que resultaria em filiação, em processo de descendência – que era proibido. E mediante essa proibição de incesto, a partir de dados naturais, a cultura construiria uma espécie de computador que organizava e reinseria seus indivíduos em determinada ordenação estritamente cultural, portanto, independente das ordenações etológicas dos grupos, de hierarquia, de território, de modo de se relacionar proxemicamente com os outros animais, com os cônjuges, etc. Mas tudo isso dependeria de uma ordem computacional dependente de uma regra básica de interdição do incesto.

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Notem que jamais esta antropologia disse que interdição do incesto é proibição de fornicação entre indivíduos de determinada cultura. A fornicação oculta funciona, foi registrada. O proibido era, dentro da ordem estrutural da cultura, que tal indivíduo se casasse com tal outro e tivessem filhos nomeados a partir desta aliança. Isto no sentido de que viesse a computar o processo distributivo da organização. Então, todo o brilho de Lévi-Strauss se baseou em supor que existe uma ordem natural – que, hoje, na etologia, sabe-se que é etogrâmica –, a qual a espécie humana abandonou e construiu uma ordem cultural inteiramente simbolizada em termos de linguagem, de organização social, etc. E a ligação se dava mediante um aparelhinho que deveria ter as características das duas ordens para ser a passagem de uma à outra. Então, ao distinguir o elemento de passagem de Natureza a Cultura, se refletirmos sobre o que ela está dizendo, isto deveria ser uma espécie de definição da natureza humana na sua cultura. Se tudo que é natural se apresenta nas mesmas condições como universal, e se tudo que é cultural se apresenta como não universal, como estritamente particular, a interdição do incesto sendo universal em todas as culturas, embora fosse postiça, fabricada, teria características de natural por ser universal. E no que era um elemento postiço e permitia a computação do campus cultural, passava a ser pertinente à ordem cultural. Assim Lévi-Strauss, genial e brilhantemente, achou o elo definitório da espécie humana entre as suas origens de primata e sua construção da cultura. Todos estudaram isto, só que é uma bobagem... Ao dizer isto não estou querendo desmerecê-lo, pois a humanidade tem caminhado de bobagem em bobagem. Mas, quem sabe, não está na vez de outra bobagem? É preciso fazer um esforço veemente, rigoroso, para estabelecer um teorema qualquer que, justo por ter sido construído brilhantemente, permita ser aplicado, que possamos dar alguns passos adiante, de modo que se torne evidentemente uma bobagem. Bobagem é quando esse esforço todo, que valeu, valeu a pena, acrescentou, e permitiu desfazer sua própria importância ao se demonstrar pouco operativo, podendo ser posto de lado. Quando o esforço é eficaz, deixa de ser uma bobagem

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e espera-se que se transforme numa banalidade, que seja distinguido de tal maneira que se torne uma coisa banal na vida cotidiana, como é a aritmética, por exemplo: aprendeu-se a contar, todo mundo faz conta... Os conceitos, as criações teóricas, devem, então, ser bem construídos e aplicados rigorosa e vigorosamente, de maneira a, o mais depressa possível, se transformarem ou em bobagem ou em banalidade. A colocação da interdição do incesto é uma bobagem na medida em que, primeiro, partiu-se da suposição de universalidade. Costumo dizer que ela é o Sabonete Lever da antropologia, Sabonete Lux hoje em dia: nove entre dez estrelas da antropologia usam a interdição do incesto. Notem que, no texto de Lévi-Strauss, não são cem por cento. Segundo, à medida que, por via psicanalítica, aprofunda-se a observação das estruturas psíquicas dos sujeitos, concluise que a interdição do incesto é datável. E há autores, no campo da antropologia inclusive, que pensam assim. Vejam, por exemplo, Jacques Dupuis, que trata disso num livro intitulado Em Nome do Pai. Ela não é estrutural da espécie. Este não é o modo de passagem de Natureza a Cultura. Antes ainda de conhecer esses autores, em Seminários antigos, eu disse que isto era datado do Neolítico, desse momento de assentamento de território, de fundação da agricultura, etc., e certamente copiado de razões etológicas, mas não diretamente de comportamentos etológicos. Os etólogos, hoje, vêem que certas espécies muito raras têm algumas interdições de incesto em sua organização etogrâmica. Mas posso suspeitar que, no momento de computar a ordem neolítica, prestou-se atenção não diretamente a comportamentos etológicos, a etogramas de algumas espécies, mas ao fato óbvio de como se dá a reprodução quando organizada no sentido da criação de gado, p. ex. Embora isto seja conjetura literária, parece evidente que alguma coisa forneceu imaginariamente um modelo fértil em culturas as mais dispersas por aí, desde que tenham um mínimo de assentamento no que quero chamar genericamente de Neolítico. No processo de desenvolvimento da cultura humana, em algum momento, isso funcionou como um creodo (cre, necessário, e hodós, caminho): já que a reprodução é binária – macho-fêmea, não costuma ser de outro sexo

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biológico –, parece que esse computadorzinho, uma vez domesticado, ofereceuse como facilitador de sua organização computacional. Era quase um creodo, pois está na carne, está no processo reprodutivo. Só que a espécie humana, justo no momento em que inventa alguma interdição de incesto para ocasionalmente organizar determinada cultura, e justo porque a inventa, está mostrando que não há obrigatoriedade de se acreditar nela: se não, funcionava sem ter que se inventar ou sem termos que usá-la. Se há uma proibição, é porque, se não se proibir, não é assim. Isto é óbvio. Esses atos se instalaram como sintomas, com aparência mais ou menos definitiva em nossa história: acreditamos até hoje em interdição do incesto e, com o reforço da cultura, com as religiões – o cristianismo, por exemplo – e outras coisas, chegamos mesmo a disseminar isso a graus distantes de parentesco. Não vamos, pois, confundir nossas tendências sintomáticas – de estabelecimento por via de recalque, de nossos comportamentos, etc. – com alguma coisa que fosse da ordem do estrutural e do inato. Nada têm a ver. *

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Trata-se para nós de, para além do que se conseguiu estabelecer até hoje, continuar procurando uma especificidade cada vez mais nítida desta espécie. Em que ponto, a partir de que razões, de que momento estrutural, esta espécie diverge radicalmente das outras conhecidas? Isto a ponto de, com uma razão rigorosa de observação, de reflexão, não se poder de modo algum atribuir à espécie, no que ela funciona enquanto especificidade humana, nenhuma razão natural. Levamos séculos, se não milênios, nessa questão da Natureza e da Cultura, como Lévi-Strauss apresentou a passagem de uma à outra. Mas há natureza? O que se pode chamar de natureza? Há natureza para a espécie humana ou ela é a espécie, fundamentalmente, do artifício? Se posso reconhecer a espécie humana como estritamente fundada na razão do artifício, o que fazer com o conceito de natureza? De onde a espécie tirou o privilégio de, pelo menos,

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até agora, ser ela sozinha a espécie que está sob a razão do artifício? Haverá nisso que se chama de natureza uma razão de artifício compatível com o surgimento do artifício da razão na espécie humana? Ou não será o meu conceito de natureza senão vocação, petição de ignorância em função da minha perplexidade diante dos objetos dados espontaneamente dentro do que há no espaço que me circunda? Devemos insistir na existência de uma natureza naturante e procurar a natureza humana dentro dela? Ou devemos supor que o que quer que haja, que aconteça, mesmo nisso que chamamos de natureza, é da ordem de um artifício regulado não se sabe por quem (ou sabe-se por quem)? Como levar esta razão à sua mais extrema conseqüência reconhecendo que o que quer que haja, que exista, é construído do mesmo modo, dentro da mesma razão artificiante da razão humana? Já que a via mediante a qual tento avançar respostas é a psicanalítica, é preciso levar até às últimas conseqüências certas coisas que a psicanálise colocou, mas que, por diversos motivos – cansaço, medo, resistência, neurose, etc. – tem sido difícil deslocar. Mas se dermos um empurrãozinho, verificaremos que certas razões básicas colocadas pela psicanálise não podem ficar estacionadas nos momentos em que estacionam hoje e que isto promete um processo de radicalização, de abstração tão grande que pode levar a uma ampliação do escopo sobre a existência da humanidade, e mesmo sobre a existência do Universo. Como sabem, no campo da psicanálise, há algo que até hoje parece esquisito: a insistência nos movimentos da sexualidade como centrais, nucleares, fundamentais, tanto na história de um sujeito quanto na da humanidade inteira. Na razão etológica, como mostrei brevemente, a sexualidade é uma espécie de signo dominante, fundamental, no campo das relações de dominação interna e externa, tanto na configuração da espácio-territorialidade quanto na da hierarquia dentro de um grupo. O que está embutido na carne – e que é mais abstrato, superior, à ordem da carne – que é essa potenciação de exibir o movimento desejante que

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está espalhado em todas as ordens da chamada natureza: na própria maneira de uma árvore brotar, de uma planta crescer, nessa pujança desejante que está embutida em algum lugar? Como entender, a partir do destacamento da especificidade de nossa espécie, a abstração radical desse movimento desejante, dessa força libidinal que invade todos os nossos atos e que, certamente, terá compatibilidade com a presença dessa mesma força maior, total, plena, do que quer que haja? O esforço de abstração pode estabelecer teoremas cada vez menos conteudizados, cada vez mais capazes de exibir o valor de artifício, de articulação – o radical art quer dizer: articular, o que se articula –, cada vez mais eficazes e com algum conhecimento sobre esses modelos simples de pura articulação do que quer que haja. Nossa especificidade – e até segunda ordem a nossa parece ser a única espécie a tê-la – é sermos compatíveis com essa máquina de produção, diferentemente de algumas outras espécies que ficam mais ou menos a meio do caminho, apenas numa possibilidade combinatória de binariedade de construção das suas ações dentro do mundo. Este esforço tem uma importância ética fundamental. Isto no sentido grave do termo, e não de ética dos comportamentos, que é quase animal. Trata-se da ética que, uma vez destacada essa especificidade radical, tentará dar conta e aproximar-se dela o mais possível, deixando cada vez mais para trás os modelos etogrâmicos de funcionamento que ainda restem em nossas atividades. Na construção desta teoremização está, então, a vontade ética de aproximação cada vez mais veemente do “prêmio” que a espécie recebeu, de estar na possível indiferença em relação a todos os fenômenos já articulados, e no processo de rearticulação constante do mundo. Isto de modo a tornar-se compatível com o que, durante milênios, foi chamado a ordem divina de criação do Universo, da existência do que quer que haja. Fiz este preâmbulo relativo à nossa existência carnal e animal, para, da próxima vez, começar a apresentar o que tive a sorte de intuir como Esquema geral, capaz de, por via psicanalítica, mostrar como tudo isso pode ser arrumado num grande teorema. Isto em função da especificidade da espécie e do vigor da potencialidade das forças libidinais, desejantes, do que há no mundo.

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" Pergunta – O que Freud chama de herança filogenética ou herança arcaica, para você, é mais da ordem desse esquema etogramático ou da ordem de alguma coisa que diferencia justamente o homem das outras espécies? Freud, quando fala em herança arcaica, refere-se, por um lado, ao simbólico e, por outro, faz um paralelo ao dizer que seria da mesma ordem dos instintos nos animais. Freud teve a inteligência de não deixar de lado essas coisas que, naquele momento, a psicanálise não sabia explicar e que brotavam espontaneamente. No seu tempo não havia nascido o ponto de particularização de observação da etologia. Quando Freud fala em dispositivos inatos, em herança filogenética, etc., isto é importante para que o analista não se esqueça de que não está lidando apenas com o manejo liguageiro que está na superestrutura. Freud está falando disso que, depois dele, veio a significar, tanto no campo da biologia quanto da etologia, os aparelhos que estão lá insistindo. Antigamente, chamava-se a isto de instinto. Mas o instinto, como conceito, cai por terra, o termo pode continuar a ser usado ou não, em função de se reconhecer que há construtos autossomáticos básicos. Isto porque a célula ou determinado aparelho biológico vai funcionar na dele, e ponto. E há também os construtos etogramáticos ou etogrâmicos, que são herança filogenética. No que se observa o movimento em progresso da história da humanidade, ou de um Sujeito humano, vê-se o apego às possibilidades tanto autossomáticas, corporais, quanto etogrâmicas dentro dessa herança. Mas não se tem o direito de justificar nada como processo mediante os aparelhos auto e etossomático se a espécie tem algo a mais, que lhe é específico. A regência ética da espécie não deve ser por seus aparelhos herdados. Mesmo porque, em muitos séculos de produção, o processo abstraente e industrial, no sentido geral do termo, do artifício humano, vai-se encaminhando para a dissolução desses aparelhos e a invenção de outros cada vez mais pirados, mais potentes, ou mais divergentes, deslizantes, desviantes. Se, portanto,

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destacamos na espécie sua particularidade neutralizante e artificiante, é preciso, na consideração dos aparelhos herdados, tomá-los como outros tantos artifícios produzidos espontaneamente. Para mim, o que quer que haja é artifício. Distingo artifícios naturais, ou seja, dados espontaneamente, e artifícios industriais, produzidos pelo homem, com a sua “mãozinha”. Uma árvore é um artifício dado. Não tenho dúvida de que a insistência, mesmo na sua impotência, do saber, da artificiosidade humana em querer penetrar na construção de uma árvore, possa, um dia, vir a fabricar uma árvore por vias artificiosas. O mistério, o “misticismo” em torno da natureza, é absolutamente boçal. Não é da nossa espécie cultuar um mistério que não passa de ser a própria ignorância. O que é típico nosso é perguntar: será que há mesmo mistério? Será que, se formos penetrando aí e pesquisando, não descobriremos com que artifício a natureza se produz? Tanto é que insistimos e investimos rios de dinheiro na produção artificiosa de dominância sobre a naturalidade do corpo, no caso da medicina, do uso de remédios, dos processos de longevidade, de cura, etc. A razão que nos interessa é a razão artificiante. Isto não quer dizer que se destrua o que foi dado como artifício espontâneo à natureza. Pode nos ser tão necessário que, então, possamos ter uma Ecologia um pouco mais lúcida, de interesses da espécie, e não porque achemos maravilhoso existir verde. Só é maravilhoso porque nos interessa... [...] Suponho que o que ignoro tem algo de misterioso, mas, sendo rigoroso com a palavra, mistério é algo que escaparia definitivamente a toda e qualquer abordagem. Se, então, partir, como continuo partindo, como toda a história da psicanálise partiu, de que há pelo menos um impossível, isto me parece logicamente equacionado. Não vejo mistério aí. Fiz um Seminário Sobre o Grande Mistério, onde disse que não há mistério algum, e sim ignorância. O fato de reconhecer a impossibilidade não implica em mistério. Podemos dizer que, levado às últimas conseqüências, o mistério fundamental se reduziria à questão repetida por Heidegger: “Por que

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há o Ser e não antes o Nada?” Traduzido em termos da minha esquemática é: “Por que há o Haver e não há o não-Haver?” Ora, isto não é questão de mistério. Só há o Haver e o não-Haver não há, isto é óbvio. Isto é a minha angústia, não o meu mistério. Há! e disto não sei escapar, isto não sei resolver. Acho que é masoquismo demais ficar o resto da vida se perguntando isto, pois não tem fim esta questão. E não tem sentido. [...] Quanto à questão da subjetividade, eu disse que era relativa ao Estádio do Espelho, em Lacan. E que aí, como Lacan o diz e toma Lorenz como exemplo, vai muito de etológico. É como se ele quisesse mostrar que no Estádio do Espelho há uma verdadeira passagem – contraposta à de Lévi-Strauss, e fico mais com a de Lacan – entre natureza e cultura, entre o etogrâmico e o subjetivo. Ou seja, é uma espécie de contestação da interdição do incesto, de Lévi-Strauss. Lacan, a partir de relações que chama de imaginárias, quer dizer que o processo de subjetividade se dá num nível que eu poderia colocar como etogrâmico, que extrapola esse etogrâmico e precisa de um reforço externo, que ele chama de simbólico, para se tornar subjetivo. Mas vai aí tanto de etológico que é preciso fazer limpeza. Como eu disse neste começo de Seminário, não estou produzindo – aliás, assim, fico meio devagar, pois me sinto muito mais à vontade quando estou produzindo –, e sim repetindo. Mas já produzi a crítica do Estádio do Espelho, em 88, em dois Seminários intitulados O Estalo do Espelho e O Epitáfio do Espelho. Quanto à crítica ao Falo, tomei a questão das apresentações macha e fêmea – que é etogrâmica em função de destinos de operação e de dominação num grupo, porque o biológico precisa disto – no sentido de apontar que, na psicanálise – tanto em Freud e seus seguidores, na maioria talvez, mas não em todos, pois muitos contestaram, quanto em Lacan –, o fato de abstrair em sentido de simbolização do fenômeno etogrâmico a partir da pregnância gestáltica do pênis é muito pouco para se pensar mais abstraidamente. Como sabem, em vida, Freud foi contestado, sobretudo por analistas fêmeas, que diziam haver aí uma grande pregnância fálica. Isto que as feministas,

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hoje, chamam de machismo. A crítica que apresentaram quanto à constituição do conceito, do símbolo, que é o Falo, era absolutamente pertinente, mas criticaram com a ferramenta errada, pois fizeram contrapor à evidência etológica, etogrâmica, na qual ele se baseara, outra função etogrâmica, etológica, a qual não temos como evidência. Então, quebraram a cara. Na mesma medida em que concordo com a posição daquelas feministas, discordo veementemente do argumento. Em algum lugar, elas intuem que há algum erro, mas quanto ao argumento dizem bobagem. Ou seja, têm razão intuitiva, mas um argumento péssimo. Não deve ter sido fácil, no tempo de Freud, trazer um conceito novo e ainda ter que encontrar escoras na epistemologia, nas discussões científicas da época, sem parecer que aquela paranóia que estava construindo não fosse aceitável. Ele tinha que dar-lhe um pouco de segurança, pois havia outra paranóia em vigor e que custava caro para deslocar. Ele foi cauteloso, prudente, em preferir argumentos evidentes. Não tenho dúvida de que, do ponto de vista etogrâmico, a pregnância fálica seja um fato. Isto se vê. Não tenho dúvida de que haja herança filogenética disso em nossa espécie, tanto é que freqüentemente funcionamos mais como animais mesmo. Pensa-se, por exemplo, que, por ter um pênis que aparece mais, se é melhor do que a outra, que se é o tal. Isto porque não se está pensando de acordo com a especificidade da espécie. Lacan, então, até certo ponto, vai estear a manutenção do conceito de Falo sobre essa investidura gestáltica. Para não falar em etogrâmica, saiu da reta falando em gestáltica. No caso do Estádio do Espelho ele vai ao etológico, mas certamente ficou envergonhado de falar em pregnância etológica, no caso do Falo, pois seria atribuir seu valor simbólico a razões estritamente animais. Mas por que a pregnância, dita gestáltica, tem privilégio, torna-se pregnante, se não por ser assim no mundo animal e na ordem etológica? Esta pergunta é importante porque, por via psicanalítica, em certos momentos, encontramos uma verdadeira equivocação, se não desprezo, por esta pregnância. Isto a ponto de haver casos onde a pregnância é ao contrário. Isto apesar das falas contemporâneas que induzem o processo educativo e o processo animal mesmo, levando o sujeito a entrar nessa.

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Então, levar às últimas conseqüências a abstração a respeito do símbolo fálico, a respeito da castração, é saltar fora das razões evidentes de caráter estritamente etológico. Ou seja, se aquelas feministas têm razão mas não têm argumentos, estou emprestando argumentos a elas. *

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" P – Certamente que o Estádio do Espelho é uma crítica à interdição do incesto. E o que há de interessante e confuso aí é o uso do aparelho do espelho, que é fundamental na crítica. No momento em que se coloca o espelho em cena, tem-se que, em algum momento, pensar o próprio espelho. É isto que vai trazer o argumento mais radical de se poder afastar das pregnâncias gestálticas, que, porventura, certamente, vão acontecer, mas que não são estruturais no sentido do que interessa em sua utilização. Porque Lacan constrói o Estádio do Espelho na razão especular, ele deixa muito de lado a razão catóptrica que está metida dentro da relação especular. O passo que tento dar é dizer que, mais importante no processo do que a dialética imaginária confrontada com o simbólico e que precisa imediatamente de um terceiro já subjetivado, é a razão mesma do espelho, que força esta espécie. Isto porque há escoras, suponho eu, mesmo autossomáticas para isto. Lacan não mexe nisto, põe o terceiro do lado de fora. Eu, acho que a espécie tem condições de, diante do espelho, para além do reconhecimento especular, fazer o reconhecimento catóptrico. Lacan faz, brilhantemente, a saída deste processo investindo no conceito de Nome do Pai. Assim como o Nome do Pai será construído pelo conceito de Falo, ele referenda o Falo freudiano e o vai abstraindo. Ele não parte já de uma catoptria, que não está no seu Estádio do Espelho, para abstrair imediatamente. Não se pode, então, acusar Lacan de ter mantido um Falo etogrâmico, pois ele abstraiu. Mas os lacanianos têm alguma razão de, porque o teorema foi construído assim, ao fazerem a leitura para trás, bater na figuração peniana desse Falo. E isto é extremamente prejudicial, pois a tendência é, ao invés do

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mais abstrato de um pensador, ficar-se com o anedotário, como aconteceu com o famigerado complexo de Édipo de Freud que, como anedota, é interessante, mas se não se fizer abstração, não adianta, não vale nada: fica igualzinho à interdição do incesto, de Lévi-Strauss. Por exemplo, Totem e Tabu, se o tomarmos como um grande livro, uma grande narrativa, na tentativa de mostrar um processo de abstração poderemos destacar que o que Freud conta como anedota e mostra como fundamento da transformação é o que é etológico em qualquer macaco. Nisto, Philippe Sollers tem toda razão ao fazer a frase: “l’inconscient est structuré comme un lynchage, o inconsciente é estruturado como um linchamento”. Se a anedota que Freud construiu foi para mostrar a ausência radical, o zero radical, o zero simbólico radical de toda e qualquer paternidade, ao fazer um teatrinho disso do modo que fez, deixa-nos, de retorno, como deixa nas melhores instituições psicanalíticas, no dever de assassinar o pai para podermos nos libertar. Isto é coisa de obsessivo, neurose obsessiva, e não fundamentação ou abstração. É simplesmente retornar ao etológico por via do anedotário freudiano. O neurótico obsessivo é quem precisa matar o pai, de fato, para... ficar na pior ainda. As pessoas acham que sou violento quando digo: O neurótico é um animal. Estou dizendo com isto que, mesmo que tome construtos culturais e os ponha – neuroticamente, é claro – como fixações de comportamento cultural, sou ainda etogramático, ainda que seja um etograma postiço por cima do etograma fundamental. É não poder abstrair a ponto de viver num processo operatório, operativo, de dados, de interesses, de jogos, etc.: é algo tomado como se aquilo fosse A verdade, de pé. Estamos, aí, de volta à macaquice. Tomar Totem e Tabu ao pé da narrativa não é senão: neo-macaco. A não ser que se faça abstração e se tome como narrativa que tenta induzir a pensar, à abstração e neutralização desse lugar.

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3 AIMÉE SÉLAMOR Aimée Sélamor é a irmã gêmea, natimorta, de Rrose Sélavy, que é a mulher de Marcel Duchamp. Um duplo genitivo está valendo de vários modos: a mulher de Marcel Duchamp é Marcel Duchamp travestido de mulher. Rrose Sélavy é o nome que ele deu a essa construção travestida, que, na língua francesa, dado o r dobrado, lê-se: Eros é a vida. Rrose Sélavy mise à nu par Marcel Duchamp, même: Rrose Sélavy desnudada por Marcel Duchamp se torna a mesma. *

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Marcel Duchamp teve grande influência em tudo que trabalhamos. A invenção do ready-made, ele a tomava como uma desumanização da arte. A escolha que fundava o ato de designação de um ready-made, ele a produzia por indiferença sexual. Ele dizia: “indiferença visual”. É a mesma coisa: não por nenhum deleite estético, mas por “ausência absoluta de bom gosto ou de mau gosto”. O que Duchamp vai destacar, em última instância, é a pulsão narcísica como indiferenciante. O que chega a rimar um pouco com o que Gaston Bachelard chamava de “narcisismo cósmico”. O que Duchamp, com esses atos poéticos, queria provocar, era: abolir distinções. Por exemplo, entre natureza e cultura; o artista e o profano; a arte e a vida; a ciência e a não-ciência. De certo modo, bastante parecido com algumas instâncias da reflexão de Empédocles.

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A chamada psicanálise francesa simplesmente não existiria sem a presença do surrealismo. Antes ainda que a França se desse conta de Freud, apesar da princesa Marie Bonaparte, no sentido da própria psicanálise, de teorias psicológicas, etc., é através de artistas, poetas, pintores de índole surrealista que Freud é tomado como paradigma para a distinção do que fosse ato poético e obra de arte. O próprio Lacan, nessa época muito jovem, nasceu dentro do movimento surrealista: antes ainda de sua freqüentação surrealista, nosso querido Lacan era apenas um jovem psiquiatrazinho, playboy, discípulo dileto do taradinho do Clérambault... Felizmente que, na prática da sua psiquiatragem, ele teve a enorme sorte de topar com a sua Aimée. Aliás, sua verdadeira analista, como brilhantemente soube destacar a vivacidade de Elisabeth Roudinesco. Não é por outro motivo que cheguei a me interessar por Lacan: porque antes já me interessara por essa outra questão. Em 1977, estávamos habitando a Escola de Artes Visuais, do Parque Lage. Isto porque uma pequena universidade, mais ou menos suburbana, um pouco reacionária do ponto de vista intelectual, para não dizer boçal mesmo, onde eu tinha certo cargo e havia colocado o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro ali perto, utilizando suas instalações, esta universidade, de repente, nos obrigou a buscar refúgio em algum outro lugar. E fomos, então, acolhidos no Parque Lage, quando era diretor Rubens Gerchman... Nessa ocasião, fiz um Seminário intitulado Marchando ao Céu, por um arranjo fonológico com Marchand du Sel, o mercador, o vendedor do sal, que era um dos pseudônimos que Marcel Duchamp se dava, trocando as sílabas de seu nome. Fiz este Seminário dentro da questão da psicanálise. Foi uma pena que, quando saímos do Parque Lage para uma sede particular, o conjunto das fitas gravadas se tenha perdido. Isto é um peso na história do meu Seminário, pois quer me parecer, hoje, que sua falta na série criou uma série de mal-entendidos. Estivesse ele na listagem dos Seminários publicados, as pessoas não teriam feito tanto mal-entendido sobre certas posições em que insisto e que desde então lá estão presentes e esclarecidas. Gabo-me de ter, no céu de meu nascimento, a estrela de Rrose Sélavy.

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É como se eu tivesse nascido sob o signo da Virgem (não sou do signo de Virgem), da Mariée de Duchamp. Na noite, na madrugada de 16 para 17 de janeiro de 1938, quando nasci, no overnight do surrealismo, estavam eles, em certa galeria de Paris, arrumando a grande e maior exposição internacional do surrealismo, inaugurada dia 17 de janeiro de 1938. Duchamp, chamado de Nova York, foi nomeado o árbitro da exposição. Ele a arrumaria como quisesse, como achasse que devia ser. Ela foi uma grande explosão em dois sentidos: explosão do surrealismo no mundo, que se tornou maior; e explosão do surrealismo como movimento, que, a partir daí, começou a se degringolar. Disseminação e diáspora. Duchamp arrumou as coisas de maneira peculiar, evitando, por exemplo, que houvesse luz sobre os quadros, para que não se enxergasse direito. No centro da exposição, montou uma espécie de caverna central, uma instalação, como se diria hoje. Ele monta a exposição toda e se manda, vai para Londres e não comparece à exposição. Mas deixa lá, tomando conta, um manequim fantasiado de Rrose Sélavy. (Nessa época, Duchamp tem 50 anos. Freud estava à beira da morte: morre no ano seguinte. Lacan tinha 37 e já estava bem longe de apegado aos surrealistas). A gruta central, arrumada por Duchamp, consistia de uma grande sala, onde espalhou folhas mortas pelo chão, montou uma poça d’água com lama, cercada de plantas, e pendurou no teto mil e duzentos sacos de carvão. No centro da sala, colocou um braseiro de carvão, sendo que, na poça d’água, se refletia uma cama desfeita, na qual era notória a ausência dos dois sexos animais. O que estaria ele querendo dizer com isto? Duchamp é autor de uma obra só. Durante toda a vida, fez a mesma coisa: repetiu o mesmo ato, mas jamais a mesma invenção. Suas duas grandes obras são: O Grande Vidro, O Vidrão, conhecido com o título de La mariée mise à nu par ses célibataires, même, A noiva Despida por Seus Celibatários, Mesma, que ele levou cerca de oito anos para fabricar, com extremo rigor e com um protocolo muito complicado. O outro, seu último grande trabalho, que levou vinte anos fazendo, escondido, chama-se Étant donnés la chute d’eau et le gaz d’éclairage, Sendo Dados a Queda D’Água e o Gás de

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Iluminação. Nestes dois trabalhos, ele trata da mesmíssima questão, que sempre foi sua questão desde as primeiras pinceladas sobre tela. O Grand Verre é um grande pedaço de vidro, onde Duchamp faz uma verdadeira engenharia simbólica, dividindo-o em duas metades: a inferior, correspondente ao celibatário, no singular, embora tenha escrito no plural, e existem vários objetos o designando, é o Masculino; e na superior, a noiva, ou o “enforcado fêmea”, ou a “Virgem”. Ele estabelece, então, uma equação do que possa ser Masculino e Feminino para a espécie humana. Em sua instalação na exposição surrealista – que, aliás, não tem nem título –, ele não estava fazendo senão repetir la mariée mise à nu par ses célibataires, même, de outro modo. Ele está estabelecendo a relação do alto com o baixo: id quod inferius sicut quod superius, o que está embaixo é o mesmo que está em cima. O Masculino embaixo e o Feminino para cima. E isto com o mesmo título, basta escrevermos do modo correto (sou eu quem escreve assim): La mare y est mise à nue par sexe libatoire, même. La mare, a poça d’água, de lama, y est, ali está, mise à nue, posta em nuvem por sexo libatório. Libar é aquele negócio que a gente dá para o santo. E o sexo é sempre libatório, sempre um desperdício, porque relação não há. No que a poça está ali tornada nuvem por sexo libatório – ou seja, o calor do braseiro –, ela (a poça) mesma em cima e mesma embaixo (do verbo mesmar: ficar igual). A chuva cai da nuvem, vira poça, a qual, rechauffée, esquentada, é de novo transformada em nuvem para cair como água, chuva, poça. Assim como o carvão, lá adiante, queimando no braseiro, vai se volatilizar e se tornar nuvem de carvão que cai. É apenas esta a fornicação possível dentro da mariée mise à nu par ses célibataires, même. De maneira poética e por via da plasticidade – que ele inventava naquele momento: ninguém fazia essas coisas; hoje, é muito conhecido, mas foi ele quem trouxe tudo isso –, Duchamp buscava resolver a questão da sexualidade, da subjetividade humana dentro dessa sexualidade. Sua referência, por exemplo, à retomada da perspectiva do Renascimento em contraposição à transformação topológica mais ou menos sensível de Picasso, é no sentido de retomar

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para as artes visuais a questão fundamental da organização do espaço e do tempo em função da subjetividade e da pulsionalidade da libido, da sexualidade humana. Duchamp está com as artes visuais e na contracorrente das artes retinianas. Ele quer ver, olhar e conceber sem ficar seduzido pelas coceiras retínicas que o colorido da pintura ou que a pasta sobre o suporte da tela poderiam produzir. Ele quer se afastar do retiniano e cair no visual conceitual. Por isso, retorna ao ponto de vista perscrutante dos inventores renascentistas da perspectiva. Ele vai buscar a “janela” de Alberti e Dürer – em que se colocava o artista, uma janela de vidro e o nu deitado, que o artista, de lá, copiava sobre o vidro para destacar as leis fundamentais da perspectiva –, mas para se servir desse aparelho dando um salto bem grande. Constrói a Mariée como se ele próprio fosse um terceiro ao olhar, ao olho masculino, no sentido de desejante, apreensivo, do artista. É um terceiro lugar em relação ao olho do artista sobre o objeto que era o corpo da mulher. Ao invés de estabelecer a relação que poderíamos ver no Renascimento entre o olho masculino, o olho tesudo do artista sobre o modelo, ele se põe em terceiro lugar e tenta ver vendo: ver alguém vendo. Uma de suas frases brilhantes é que “é possível a gente ver vendo, mas é impossível ouvir ouvindo”. Então, reconstrói, dentro da Mariée, este aparelho, mas no qual ele é terceiro. Ou seja, estabelece a relação do Masculino embaixo com o Feminino em cima (aliás, ao contrário do que as pessoas costumam pensar) e também estabelece uma terceira posição mediante a qual consegue subverter as idéias puramente etológicas – é o caso de dizer – a respeito da sexualidade, para instalá-la numa visão que se estrutura sobre o que é fundamental no psiquismo humano. *

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Quando Duchamp diz que é preciso se servir d’un Rembrandt comme planche à repasser, servir-se de um quadro de Rembrant como tábua de passar, há, aí, duas vertentes subversivas. Como inventor do ready-made,

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num momento de indiferença entre o que é e o que não é o artístico, ele podia perfeitamente tomar uma tábua de passar, colocar dentro de uma exposição e dar-lhe um nome. Assim ele o fez com um mictório, no qual, como sabem, assinou seu pseudônimo da época, R. Mutt, e mandou para uma exposição como obra de arte. Ele não via diferença entre a instalação artística de um mictório e a da Vênus de Milo, achada numa escavação de arqueologia. O que ele punha aí era o ato de transformação do objeto banal em objeto de arte. Mas readymade não é a mesma coisa que objet-trouvé, que apareceu depois e que é achar algo bonitinho e colocar como enfeite, como se faz com freqüência na arte popular. Na casa do pobre lá do interior, se, de repente, ele arranja uma embalagem maravilhosa, ao invés de jogá-la fora, coloca-a em cima da mesa com umas flores (o que é muito chique, como vocês hão de convir). Se ele tomou esse objeto como um objeto achado, de valor estético para ele, isto é um objet-trouvé. Um ready-made é alguma coisa fabricada pela mão humana, e que é a disposição do poeta de tornar-se indiferente, tanto faz um penico quanto a Vênus de Milo, e nessa indiferenciação, elevar o objeto à categoria de obra de arte. Há, pois, diferença radical entre a aplicação de um valor estético e a indiferença a respeito da situação do objeto. Este é o ponto fudamental de Duchamp: o ready-made criado a partir de radical indiferença. Mas ele se serviu realmente (não de um Rembrandt, mas) de um Manet para fazer uma tábua de repasser. Manet é aquele que pintou Le déjeuner sur l’herbe, o piquenique, na época do impressionismo, que é uma transcrição – isto é, repasser – de um quadro, talvez desaparecido, de Rafael: O julgamento de Páris. Como sabem, Páris foi chamado a julgar qual era a verdadeira autora da maçã de discórdia posta em determinada festa, escolhe Vênus, e dá naquele negócio todo... Um tal Raimondi havia copiado, em gravura, o quadro de Rafael. É a partir dela que Manet pinta seu Le déjeuner, que é uma espécie de julgamento (não de Páris, mas) de Paris, a cidade: a mulher pelada sentada na grama com dois homens vestidos e com um fantasma de mulher ao fundo, e que é exatamente a mesma composição do quadro de

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Rafael segundo Raimondi. Ele está certamente tratando do julgamento de Paris no que diz respeito tanto à subjetividade da pintura impressionista, da arte no momento, quanto à sexualidade em geral. Duchamp toma, usa como tábua de passar e transporta esta questão (já ligeiramente desviada por Manet) para o Grand Verre, primeiramente, e, terminalmente de todo seu percurso, para o Étant Donnés, que é o mesmo problema que: sendo dados a poça d’água e o aquecimento que a transforma em nuvem. É o mesmo problema que sendo dados o masturbatório, do Masculino, na máquina celibatária da mariée e o gozo de outro, que está em cima e que nada tem a ver com o gozo do um. Mas que, de qualquer modo, através de uns buraquinhos topológicos que investe sobre a vidraça, consegue fazer certa passagem: já que não há transa possível, pelo menos, há certa possibilidade de passar, subir, descer, subir, como faz a nuvem a partir da poça... Étant donnés é um ambiente. Duchamp busca num lugar distante uma porta velha, muito esquisita, coloca-a fechada e faz dois buraquinhos – ao contrário de Dürer, Alberti, Piero Della Francesca, que espiavam por um único buraquinho para estabelecer a “perspectiva exata” –, estabelecendo assim uma perspectiva binocular. A obra é essa porta com dois buraquinhos, onde metemos os olhos para ver o que há lá dentro, que é uma câmara escura, absolutamente vazia, portanto, não a vemos. O que vemos é o que está por detrás dela. Visto por cima, projeção horizontal, é como se fosse um esquema mais ou menos assim: há a porta com seus dois furinhos; atrás, há uma câmara escura, uma parede de tijolos, mas com um rombo, como se um canhão – quem sabe, o olhar de quem olha – tivesse arrombado a parede; atrás da parede com seu buraco, a mariée. Há uma mesa e o chão desenhado como tabuleiro de xadrez – que era a paixão da vida de Duchamp – mas não se vê mesa alguma, e sim o manequim de uma mulher, com as pernas abertas, mostrando nitidamente o que é para mostrar, com o braço esquerdo levantado segurando uma lâmpada de gás acesa: a luz é muito bonita. Atrás dessa mulher, que só vemos em parte (o rosto, os cabelos, mas não o braço direito), há uma belíssima paisagem, construída com mil macetes

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quase que cenográficos (iluminação, movimento, etc.), onde vemos uma queda d’água, plantas, um céu muito claro, nuvens feitas de algodão – é um verdadeiro cenário... Quando espiamos por esses buraquinhos com os dois olhos, vemos aquela coisa deslumbrante: a mariée outra vez mise à nu par ses célibataires, même. Célibataire é quem está aqui do outro lado, naturalmente se masturbando com sua visão. Aí, de novo, está o mesmo problema. Todos os objetos que Duchamp produz são intrincados na sua solução... A função da queda d’água, referida a outro trabalho seu, anterior, propedêutico deste, é fazer mover uma roda que antigamente se usava para a produção de energia na beira das cascatas. Ele está, de novo, fazendo o circuito: a queda d’água gira a roda que produz energia que acende a lâmpada (de gás) que ilumina a roda... O interessante aí é o estabelecimento do voyeur. Qualquer pessoa menos avisada, qualquer “analista” de enésima categoria, quereria estabelecer a “perversão” de Marcel Duchamp... quando o perverso seria o tal “analista”. Duchamp simplesmente trabalhava com as artes visuais, o que é reduzir a visual o problema que houver, ou seja, reduzir ao voyeur, ao olhar sobre o mundo: a investidura (a) do olhar como objeto, e (b) do olhante como tesão. Ele está, então, reequacionando a posição masculina de quem olha, sua posição voyeuriste, solitária, celibatária, masturbatória, seja qual for o sexo do seu corpo, e a posição alterada, se não alterosa, de outro, daquilo que é olhado. Ele faz uma grande confusão, uma bordadura, entre esses elementos ao colocar, pela primeira vez, na questão da perspectivação do olhar do artista, uma câmara morta intermediária, uma câmara cega, neutra, escura. Segundo o que se pensou desde o Renascimento na perspectiva, temos Atanasius Kircher, da Holanda, construindo objetivamente, em 1671, uma grande câmara escura no meio de um jardim. Ela foi calculada de tal maneira que quando se entrava e fechava a porta, via-se lá dentro toda a paisagem ao redor cruzada pelos raios luminosos. A câmara escura de Duchamp não recebe, dentro, os raios externos para dar a imagem. Ela é neutra e não é atravessada pelos raios luminosos. A imagem bem como o voyeur estão do

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lado de fora. A parte fechada é a câmara escura, a caixa preta. Ela é uma espécie de lente neutra que a visão do voyeur atravessa para apreender a mariée: ele deixa a subjetividade enclausurada no seu espaço de absoluta neutralidade, a ser atravessada para se refigurar de algum modo, de acordo com a relação trissexual que ele apresenta nesse trabalho. Temos o Masculino na frente, na sua vocação perversa, se quiserem, de voyeuriste; e o Feminino do outro lado, na sua vocação de inatingível, de inatingente, de nuvem postergada a esse movimento. Temos toda a libido lá atrás, como circuito da cascata até à lâmpada, representada outra vez como relação impossível da sexualidade, e o Terceiro neutro, intermediário, que é o sexo que fará sentido (porque é neutro), que dará sentido à “voyura” do voyeur. É como se ele pusesse o princípio de Heisenberg – do qual se utilizou – dentro da caixa preta: os meios de observação são tão importantes quanto o ponto de vista do cientista. Duchamp está dizendo que o meio de observação, neutro, é tão importante quanto o ponto de vista do Renascimento. A neutralização, a abertura do processo para essa relação triádica que fora esquecida por todas as abordagens até então (com exclusividade de certa tradição que vem desde a Idade Média, mas que a reduz tolamente à existência, possível ou alquímica, do andrógino). Duchamp não produz o andrógino, apesar de alguns autores dizerem esta bobagem a seu respeito. Ele produz a tri-secção ou a tri-sexão do processo. É como se estivesse ainda apegado àquele antigo menininho que olhava, através de uma vidraça de janela, a poça, o céu com nuvens, ou seja, la mare e la nuée, la nue, repetindo para si mesmo que havia entendido que id quod inferius sicut quod superius. Mas ele estava no terceiro lugar: nem mare, nem nuée. Frase de Duchamp: c’est le spectateur qui fait l’oeuvre, são os vedores que fazem o quadro. Isto porque têm a câmara escura como terceiro lugar neutralizante. É a cada voyura que se faz o visto, mediante a intervenção da lente neutra, que é a câmara escura. Eu gostaria de fazer com que vocês se apaixonassem por Duchamp. Pesquisem sua obra e verão que é muito mais rica do que estou mostrando.

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Duchamp é aquele que inventou isso que alguns pensam que inventei com o nome de Revirão. Ele é o criador do conceito que chamo de pósetológico, do Falo. E justo no que o constrói, no que o explicita na Mariée e em outros lugares de experimentação, ele o constrói como Revirão. Um objeto maravilhoso que ele criou é o chamado objet-dard – em francês se ouve dardo ou de arte –, que é o molde feito com a pasta com que os dentistas fazem gengiva para nossas dentaduras postiças, naturalmente artificiais. É o molde em positivo da “buchota”, se quiserem. Ele mete aquela massa dentro de sua mulher, tira o molde, ao qual, positivado, chama de objetdard, radicalizando definitivamente qualquer conceito de Falo. Ele insiste nisto construindo outro trabalho, chamado Feuille de Vigne Femelle, folha de parreira fêmea. É também um molde, mas que não faz o caminho todo, só o das brebas e que, positivado, é algo que há, que lá está. Cria outro bem mais neutro, chamado Coin de Chasteté, cantinho de castidade, que é um molde parecido com a folha de parreira, mas com uma cunha metida dentro. Ou seja, está tudo neutralizado: é Terceiro. Temos, então, aí, Duchamp construindo não só o conceito pós-etológico de Falo, como o constrói como Revirão. Ele é também o inventor do que chamo Estalo do Espelho, que é exibido em vários aparelhos seus, mas é muito evidente na glissière da Mariée. É um pequeno detalhe em perspectiva dentro da Mariée que, antes, ele produzira isoladamente num semicírculo de vidro, montado dentro de uma moldura de metal. Não interessa o que seja a glissière, no momento, e sim que é uma figura perspectivável, que se pode desenhar em perspectiva exata sobre o vidro, e que é presa à parede com uma charneira de metal. Isto de tal maneira que se pode ver a mesma figura tanto de um lado quanto de outro, e que, por estar sobre vidro, pode-se rebatê-la para a esquerda ou para a direita, que ela aparecerá mesmíssima como ela é. É esta, exatamente, a concepção de Revirão no Estalo do Espelho: se

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a perspectiva não é o objeto, se é projeção cônica do objeto, ela permanece a mesma de qualquer lado que se a olhe, mas, trocando o lado do meu olhar, ela se torna estranhíssima, unheimlich. Quando viro para o lado contrário ao que estava vendo, espero ver o objeto que está perspectivado pela outra face, mas aí ele continua na mesma. Então, o Revirão se dá dentro da minha cabeça: sou eu quem sente a estranheza de ter passado por um Revirão diante de uma coisa que permanece neutra e mesma: eu revirei, o objeto é neutro. Duchamp é também o inventor do Falanjo tanto no Étant donnés quanto na Mariée quanto no objet-dard (aliás, posso ler: Étang Donné – étang é a mesma coisa que mare, poça) ao criar o Terceiro, que é a minha posição olhando para a relação sexual, que não há, entre a mariée e o celibatário. Isto quando sou eu o voyeur que se desloca para atingir o objeto por dentro do espaço neutro da minha representação, que é o terceiro espaço. Há outra peça de Duchamp que é igualmente a invenção do Falanjo. Trata-se de Rrose Sélavy, que é Marcel Duchamp travesti, fotografado por Man Ray. É uma espécie de entendimento radical dessa posição terceira do pensador, no caso, do artista. Há ainda um objeto, que chama “ready-made corrigido”, que é uma reprodução do famoso quadro de Leonardo da Vinci, Mona Lisa, na qual ele põe bigodes e escreve embaixo: L.H.O.O.Q., que pode ser lido em inglês como look. (Como sabemos, há grande celeuma a respeito da Mona Lisa. Quem será o modelo? Será o namoradinho de Leonardo ou a condessa de não-sei-o-quê?) Em francês, soletrando o título, temos: elle a chaud au cul, ela tem fogo no rabo. Recentemente, na Itália, uma moça produziu uma tese de doutorado para demonstrar que a Mona Lisa, ao contrário do que se pensava, é autoretrato travesti de Leonardo da Vinci. Ou seja: Rrose Sélavy. *

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O conceito de Falo, tanto em Freud quanto em Lacan, está carregado de denegação. Diferentemente em Duchamp, esse conceito ultrapassa o minueto

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intelectual da racionalização, para se apresentar nuamente, mis à nu, em conformidade com a razão inconsciente em sua radicalidade afetiva de indiferenciação. Lacan abstraiu bastante seu Falo. Não é por nada que termina o Seminário da sua vida na equivocação da sexualidade sobre um terceiro sexo que ele não conseguiu encontrar, mesmo o tendo explicitado no L’Étourdit. Dizer, conseguiu; encontrá-lo, foi o que não conseguiu. Vocês hão de convir que Rrose Sélavy não podia não ser um osso atravessado na garganta de alguém que, juntamente com seu nome de pai, recebeu o apelido de Jacques-Marie, sem resolver depressa esta questão, o que significa: resolver como Duchamp resolveu. A Mariée foi começada em 1915 e terminada em 1923. É claro que Duchamp era bem mais velho do que Lacan, mas não podemos esquecer que em toda a série dos Seminários de Lacan, só me lembro de uma única vez ele ter falado no seu velho amigo Duchamp, não sei por que. Ou seja, sei por que. Duchamp, muito cedo, havia atravessado o Dada e o Surrealismo, depois os mandou às favas e transformouse, ele mesmo, num ismo, tornando-se duchampista ou rrosista. Ele criou praticamente tudo que então e até hoje se desenvolve em todo o planeta como vanguarda na arte. Ninguém disse nada de novo depois dele. Acrescentaramse desenvolvimentos a pequenas dicas suas, mas custo a reconhecer qualquer coisa que compareça nas artes plásticas, daquela época até hoje, que não tenha passado por suas mãos. Ele havia resolvido que essa lhe era – como devia ser para cada sujeito – questão fundamental da sua posição subjetiva e sexual no mundo. Resolveu bastante cedo e antes, se não de nada, pelo menos – esse pelo menos tem certa ironia –, da tese de Lacan de 1932, na qual, com bastante esforço, este consegue saltar fora da psiquiatria da sua época, entrar no barato dos surrealistas e retomar a questão de Salvador Dali, da paranóia crítica. É preciso, pois, informar aos lacanianos desavisados que essas coisas estavam no mundo, e com projetos de solução, há bom tempo. O Seminário de Lacan, digamos, o Lacan propriamente dito, começa em 1953. A Mariée é

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terminada em 1923: são trinta anos de diferença. Toda a obra de Duchamp é fabricada em cima de mots-valises, das trocas fônicas de palavra, dessa brincadeirinha que os lacanianos acham tão moderninha de fazer com sonoridades do que o analisando diz. Isso era brincadeira de Duchamp, de poetas surrealistas, de Lewis Carroll, de Raymond Roussell. Lacan – brilhantemente, diga-se – retomava um grande aparelho que já estava à sua disposição. Dizer “a relação sexual é impossível” é uma frase (que não está assim dita, mas) que estava inscrita na Mariée. Le désir de l’homme est le désir de l’autre, o desejo do homem é o desejo do outro, em duplo genitivo, também se inscreve na Mariée como no Étant Donnés com toda clareza para quem sabe ler. Certamente, Lacan sabia ler. Suspeito que o entendimento do movimento pulsional em relação com a sexualidade inscrita, reinscrita, subvertida, pelos processos inconscientes mediante o fenômeno da linguagem, foi melhor entendido e explicitado por Duchamp do que pelos psicanalistas. Mesmo porque ele tinha uma vantagem bem grande, pois não devia obediência a ninguém: era um artista solto na vida. Era preciso Lacan atravessar a neurose de Freud. É preciso qualquer um atravessar a neurose de Lacan. Duchamp, não: estava leve, livre e solto. Havia se recusado a atravessar a neurose de Picasso. Ele estava brincando com seus objetos e procurando ali uma solução sem ter que se haver com as teorias anteriormente fabricadas. Então, vai diretamente ao assunto, à questão, despojado de pesos que sempre abandonou, para poder pensar livremente nem que fosse para quebrar a cara no Grande Vidro, e equaciona mais depressa. Por que esse cara consegue equacionar mais depressa? Tenho cá minha tese, que não posso provar, mas na qual posso apostar. Duchamp me parece desses sujeitos que Freud disse que são mais brilhantes, inteligentes, rápidos, porque jamais tiveram na sua vida essa asneira que chamamos de fase de latência da sexualidade. É claro que Freud a teve, tadinho. É claro que Lacan a teve, coitadão. Então, isso pesa. Duchamp me parece desses sujeitos que não passaram por aí. Basta ver a sua renitência, desde a infância, em enfrentar cara a cara o problema do incesto, que ele jamais abandonou tanto

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na teoria quanto na prática. Não que Duchamp não fosse sublimatório, pois quando la mare y est mise à nue par sexe libatoire, isto é produção de sublimação. Pelo contrário, ele se tornou um celibatário radical: não tocava em nada nem em ninguém. Mas desde sua infância viveu acossado – este é o nome verdadeiro da coisa – pela paixão incestuosa por Suzanne, sua irmã um pouquinho mais nova. A cada passo que ela dava de “traição” – casava com alguém, etc. –, ele acrescentava sublimatoriamente um dado à sua obra. Mas não de maneira puramente inconsciente, e sim de maneira refletida e insistindo na solução desse problema, que Lévi-Strauss solucionou da maneira que sabemos... *

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Duchamp é talvez a personalidade mais fulgurante deste século. Daí, termos que passar de Rrose Sélavy a Aimée Sélamor. Afinal de contas, o que Duchamp está fazendo ao declarar a pujança, o vigor e o rigor quase matemático de Rrose Sélavy, de Eros é a vida? Ao equacionar isto, simplesmente demonstra o tesão inarredável pelo Impossível. A impossibilidade de qualquer relação sexual; de se fazer qualquer coisa a mais do que simplesmente subir e descer; do que simplesmente sublimar e concretizar. Ele trata diretamente – tanto no incesto, quanto na sexualidade pura e simples, no jogo de palavras, na organização do espaço, na contemplação do tempo – com o Impossível, no entanto, desejado. O Impossível é aquilo que Freud, custosamente, laboriosamente, depois de 64 anos de vida, consegue equacionar como a essencialidade da Pulsão. Falando em português: a essencialidade do Tesão, que é um conceito-charneira na teoria de Freud. Ele o situava entre o psíquico e o somático, pois, por causa de seu dualismo ferrenho, não havia se dado conta que os dois são a mesma coisa. Ele surpreende o conceito de Trieb, Tesão, nos movimentos cotidianos dos sujeitos. Portanto, surpreende o tesão parcializado: oral, anal, fálico, etc. Isto porque o vê instalado em certa modalidade, sintomaticidade, do corpo, como que aderido aqui e ali a determinadas zonas (não se sabe por que, mas

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que são) privilegiadas. Ele começa, então, a defini-lo como um processo dinâmico que consiste num impulso, numa carga energética, um investimento de energia, uma coisa qualquer assim, que faz o organismo tender para determinado fim, determinado alvo. Só que quanto mais trabalha os tesões e as aventuras do tesão, Triebe und Triebschicksale, mais ele verifica que todos vão acabar dando com os burros n’água. Ou seja, todos os tesões procuram determinado tipo de gozo que não é senão a tendência ao próprio desaparecimento do tesão. Não é à toa que se joga facilmente com a relação de gozo, entropia e morte dentro dos princípios estabelecidos por Freud: a konstante Kraft, que é o princípio de constância dessa energia libidinal dentro do psiquismo e do corpo humanos; o famoso princípio do prazer, que é o que não quer senão caminhar direto para o objeto privilegiado, ou seja, para o gozo absoluto e radical, mas que encontra barreiras pela frente e tem que se transformar em princípio de realidade, tem que transar numa boa com as resistências que encontra para poder gozar um pouquinho, já que não pode gozar tudo... Mas quando começa a observar a constância deste princípio no próprio Universo – e a teoria da entropia, a segunda lei da termodinâmica, não é posterior a isso, como sabemos –, Freud não pode deixar de reconhecer que o alvo último do tesão não é senão um Nirvana radical. O que se quer é destruir o tesão porque ele nos aporrinha a vida. Mas, em função das modalidades que se organizam espontaneamente no Universo, começam a aparecer resistências a esse gozo absoluto tanto de cada modalidade quanto, suponho eu, de toda a estrutura do Universo, e não se consegue gozar. É como as moças histéricas que, no divã, se lamentam: “Trepo, trepo e não gozo”. Deus é mais ou menos assim, pois só consegue ter gozos parciários. Na verdade, o que Freud chamou de Todestrieb, que se traduz por Pulsão de Morte, é um tesão “de morte”, em todos os sentidos, que não quer senão a radicalidade da sua extinção, do seu desaparecimento. Como Freud dizia: levar a zero a sua energia. Mas consegue-se, no máximo, levar a muito pouco. A zero, não se consegue. Se estou aqui, Zero não está disponível para

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mim. Como poderia eu, in praesentia, sabendo que estou fazendo e vivendo o que estou fazendo, chegar a zero? Antes ainda de atingi-lo, eu teria sumido de mim mesmo. Antes ainda de gozar definitivamente, eu teria volatilizado. Por isso, Freud chama de Tesão de Morte. Por isso, coloco essa irmã natimorta de Rrose Sélavy como o Revirão no mesmo lugar de Aimée Sélamor. Porque, no fundo, o que a gente deseja é uma coisa só: morrer, sumir, gozar definitivamente. Só que, por incrível que pareça, isto não é possível. A morte não há. Temos o mau hábito de ver alguém empacotar, sucumbir, e falarmos em morte. Mas, radicalmente, conceitualmente, haverá morte? Alguém pode testemunhar sobre isto? Melhor dizendo, pode alguém dar o testemunho da experiência da morte? O único parecido que temos é quando gozamos um pouquinho. É mais ou menos la petite mort, como se diz em francês, a mortinha. Damos uma mortinha, uma lambidinha. É o máximo que conseguimos. A experiência da morte se torna impossível, pois eu teria que estar presente a ela, e antes ainda que ela se dê, em qualquer regime que eu puder pensar – da matéria bruta à animada, ao psiquismo humano –, antes ainda que um sistema se desagregue podendo dar conta da sua desagregação enquanto tal, enquanto sistema, ele já deixou de ser sistema, já não está presente a isso. Então, para a espécie humana, para nenhuma espécie, para nenhum sistema, para o Universo, para Deus, não existe o conhecimento da morte. Simplesmente, porque ela não há. No entanto, é tudo que a gente desejaria, enquanto deseja: pudesse eu gozar definitivamente, em presença! Vemos pessoas perecerem e chamamos de morte à falta que fazem. Elas, não estão sentindo falta de nada. Duchamp mandou escrever em sua sepultura como epitáfio: D’ailleurs, ce sont les autres qui meurent, aliás, são os outros que morrem... Posso constatar, tenho atestados de óbito, tenho enterros a freqüentar, menos o meu... O meu, não é problema meu: eu não estarei presente. Portanto, a morte não há, mas é extremamente desejada, é só o que se deseja. “O celibatário bate seu chocolate sozinho”, le célibataire broie son chocolat lui-même. Assim como “o Mestre produz sua própria pedra

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filosofal”... Da próxima vez, trarei para vocês um objeto duchampiano, que é o que consegui construir como meu Grand Verre: o Esquema Delta, chamado vulgarmente de Pleroma. *

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[Perguntas e Respostas] " Pergunta – Pode-se fazer uma relação entre a estética, ou anti-estética, de Duchamp, sua produção, inclusive os ready-made, com o significante lacaniano? Há algum tipo de relação aí ou seria muito simplista pensar isto? Eu diria que até posso suspeitar que haja esta relação, mas não posso provar. O conceito de significante, em Lacan, diferente do da lingüística, de Saussure, está apoiado na verve surrealista e, quer me parecer, muito nos achados de Duchamp. O significante de Lacan (que não é o significante que estou trazendo) é pura metáfora. Se tomarmos os textos bem como o uso proeminente e antecedente da palavra na produção do objeto visual, que era uma constância em Duchamp – ele pensava verbalmente e depois ampliava o conceito na construção –, veremos, e isto é muito claro, que mediante esse tipo de frase – la mariée..., Rrose Sélavy, etc. –, ele vai significantizando (ou seja, metaforizando) numa verdadeira engenharia simbólica. Neste processo todo, e também na produção verbal dos seus achados – escritos, entrevistas, etc. –, vemos o jogo significante de torção auditiva que Lacan retomou. E que estava francamente em voga na cultura francesa, pelo menos de então. Eu diria, pois, que a exposição do significante que Lacan tomou, saiu proeminentemente, se não só, da mão de Duchamp. " P – O que é ultrapassar a latência sublimando? Eu disse que o fato de não se ter na sua história – o que alguns, graças a Deus, não têm – a chamada fase de latência não implica que não se possa sublimar. A tendência do neurótico, sobretudo, quando está bem assentado na estrutura pequeno burguesa em que vivemos, é supor que, se alguém não tem fase de latência, é um taradinho incapaz de sublimar, deve ser um perverso. Aliás, a definição de perversão é um saco de gatos, só se

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diz asneira em torno disso. Quero ressaltar o brilho e a velocidade que um sujeito desses pode ter em encontrar determinados teoremas que lhe organizam o campo. Não digo encontrar solução, pois um lema de Duchamp é: “não há solução, porque não há problema”. Mas há que encontrar equacionamentos das situações. Então, isto não impede que esse sujeito – por exemplo, Marcel Duchamp –, pressionado pela constância (que jamais denegou, reprimiu ou recalcou definitivamente) da sua visão sobre o incesto, pratique efetivamente este incesto, ainda que por via sublimatória. As transas dele com Suzanne, nunca vi, o que não tem a menor importância, mas que isto foi sublimado, equacionado, não tenho a menor dúvida. [...] Só há denegação quando há recalque. Se não, não é preciso denegação. E recalque bem transado, de tal maneira que até seu retorno seja escamoteado. Ora, um processo recalcante é fabricador de denegações. Mas se consigo liberar determinados, digamos, significantes do recalque, não preciso denegálo. Posso simplesmente afirmá-lo em suas duas vertentes, posso significantizálo mesmo. E este é o meu conceito de significante, que não é mera metáfora: é neutralização pelos opostos. (E não me chamem de junguiano, porque fico bravo. Não há nenhuma coincidentia oppositorum. Este sonho da alquimia é uma bobagem. O que um Duchamp traz, e em que insisto, é indiferentia oppositorum: um terceiro que está indiferente à dualidade. Não é conjunção, porque ela não existe. E isto ele e Lacan demostraram). " P – A latência está muito mais do lado de repressões secundárias, que vão mesmo dificultando o retorno do recalque. Esta é a grande questão. Já que estamos numa Universidade, esta é a grande questão da Pedagogia. Por que as pessoas são tão burras, como costumamos ser? Que efeitos violentos de não se falar, de não se trazer à expressão, como um artista desses traz, e sim manter um processo repressivo – até sobre as falas, não é nem sobre os atos – de tal maneira que, com muita freqüência, encontramos essa bobagem chamada período de latência? Não sou eu que chamo de bobagem, é Freud, tanto é que disse que há pessoas que não a têm

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e que são mais brilhantes. " P – Você falou que Duchamp estaria mais livre para criar porque não tinha o comprometimento com Freud ou com Lacan como os psicanalistas teriam. Como você está tentando colocar a arte e a psicanálise como uma mesma posição discursiva, isto que você falou não o obriga, de certa forma, a diferenciar o comprometimento da psicanálise, em termos discursivos mesmo, do comprometimento da arte? Quando digo isto, estou dizendo que há uma atitude lúdica. Ou seja, o poeta, o artista – que é maneira de dizer, pois artista é todo mundo –, que está metido nessa questão, está simplesmente brincando. Ou seja, é um sujeito sério, porque brinca direito. Ao contrário do que estamos acostumados a pensar, quando se pára de brincar, não há mais seriedade, já se tem compromisso. Ser sério é fazer série até “o rabo da palavra”, como diz Guimarães Rosa: é levar às últimas conseqüências. Estancar um movimento por compromisso, é falta de seriedade, chama-se: neurose, burrice... Qual é a burrice da psicanálise? Se acabei de dizer o que acabei de dizer, estou dizendo que Duchamp não seria burro e os analistas seriam meio burros. Mas eles têm certo direito à burrice por causa dos compromissos históricos, sociais, etc., que tivera a psicanálise nascente com a razão epistemológica do seu tempo. Então, para parecer sério segundo uma razão epistemológica que diz que ciência é isto e não aquilo, que conhecimento é x e não y, o sujeito tem que ficar dependurado em dar conta de certas coisas que foram colocadas pelo discurso científico até então. E isto se chama: neurose. Se o artista está brincando e não querendo ser levado a sério – pois já o é: quando alguém é inteligente, não precisa ficar dando provas de inteligência, é inteligente e ponto –, ele brinca com isso de tal maneira que vai mais direto ao assunto. Ou seja, a razão epistemológica de determinado momento não é senão o período de latência na sexualidade. " P – Há outra questão que se sobrepõe nesse achatamento da psicanálise, que é a da institucionalização. Os psicanalistas, em geral, funcionam em instituições que, digamos, emperram o movimento e solidificam essa razão

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epistemológica, fazem essa espécie de período de latência... Não devo culpar a instituição, porque uma obra de arte é uma instituição. O grave são as instituições que não sabem brincar a sério. Ou seja, não é por ser instituição, e sim porque simplesmente talvez nem o sejam. A que vieram? A instituição chamada Grand Verre é séria: veio para brincar para valer. Mas se monto um aparelho qualquer, chamo de instituição, e que não é para brincar, mas para fazer um joguinho sujo de manutenção de status quo, isto não vai a lugar algum. " P – Em geral, as instituições psicanalíticas, como as instituições pedagógicas, etc., impedem a brincadeira no sentido em que você está falando, ficam num processo repressivo, sisudo. Tomemos a IPA, onde Lacan não pôde trabalhar o tempo lógico e uma série de coisas... O mal não é que Lacan não possa brincar na IPA, pois ele fez a instituição dele e foi brincar, mas sim que, quem fica, não brinca. Como sabem, sou extremamente impiedoso com as pessoas dentro da instituição Colégio Freudiano. Isto porque quero saber do que estão brincando. Se estão brincando disso, então brinquem direito. E não vem fazer outro brinquedo aqui, faz lá fora, se não, vai atrapalhar o meu brinquedo. Eu, estou brincando, e as pessoas que estão comigo devem estar brincando para valer. Se Lacan não pôde brincar dentro da IPA , fundou a École Freudienne de Paris, mas o ruim é que o pessoal que fica não brinca de nada... Se não, vamos cair na crítica à instituição pela instituição. Não se consegue, pois não se faz nada sem metaforizar. Então, metaforiza-se uma instituição: ela que leve a sério o seu brinquedo, a sua metáfora, que brinque direito do começo ao fim. O pior é quando não brinca. É o caso, por exemplo, da Universidade. Não se pode confundir seriedade com unha encravada, prisão de ventre, isto que você chamou de cara sisuda. Seriedade, às vezes, é extremamente alegre. Aliás, é o que há de mais alegre. Quando está brincando a sério, você fica contentíssimo. " P – O Grand Verre sofreu umas rachaduras, quebrou-se quando estava sendo transportado, e Duchamp encampou a rachadura no quadro.

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Como você vê isto? Duchamp nunca terminou a Mariée, de propósito: deixou-a inacabada, porque é para ser inacabada. Aí o troço se esfarelou, ele simplesmente botou um vidro de cada lado, arrumou os caquinhos e disse que o acaso, que não há, acabou fazendo uma intervenção aí, que acho belíssima: parece uma teia de aranha, um troço assim, e que lhe dá um novo estatuto. Tanto é que quando se vê a réplica, feita sob a observação de Duchamp, que está na Tate Gallery, de Londres, é decepcionante, porque está inteira e não tem aquele tremelique das rachaduras. Ou seja, o brinquedo era tão sério que a fragmentação, a incompletude, a impossibilidade de aquilo ser um troço único e fechado veio se instalar dentro do quadro. Mas ele ficaria muito puto se alguém metesse uma marreta para quebrar... " P – O fato de o Grand Verre ser inacabado, acho isto meio tirado de Leonardo da Vinci, que também não acabava seus trabalhos. Dizem que A Ceia, no estado em que está, é muito mais interessante do que as cópias que fizeram e que estão inteirinhas... Mas você privilegiou Duchamp pelo fato de ter feito o Revirão. No entanto, me parece que qualquer artista, quando produziu uma obra de arte, fez exatamente a mesma coisa. Estou privilegiando Duchamp não como alguém que fez um Revirão, mas como o cara que conceituou o Revirão. Toda grande obra de arte produz isso, mas o faz à revelia da conceituação. A vontade de Duchamp era conceitual. Antes ainda que a psicanálise trabalhasse grande quantidade de práticas e de conceitos, ele havia trabalhado e nos dado isso de presente, conceitualmente. Encontro por exemplo, o conceito freudiano levado a últimas instâncias n’As Meninas, de Velázquez. Mas é um trabalho de leitura, pois ele não privilegiou isto conceitualmente.

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4 COMO UMA ONDA NO-NADA (Como uma Onda, Nonanda) Du Lacan comme planche à repasser le retour de Freud. Retomando a questão da Pulsão de Morte como impulso de gozo absoluto e definitivo, tentarei situar seu movimento no sentido do Impossível para, depois, reconhecer os avatares desta pulsão antes ainda de sua instalação corporal no falante. Isto no sentido de montar um grande Esquema, que chamo Esquema Delta, cuja pretensão é arrumar de uma vez por todas – o que não significa que é definitivo, e sim de uma vez só – os conceitos básicos da psicanálise em relação com os próprios eventos dentro do que há, dentro da possibilidade do que há. *

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A intenção é montar um aparelho único de integração da teoria psicanalítica, a qual sempre parece extremamente fracionária e dispersiva, já que se fazem microteorias a respeito de cada recanto da sua experiência, agrupando pequenos conjuntos de conceitos, sem integrar a estrutura toda num movimento único, numa macroteoria que abranja tudo. Isto, a meu ver, se deve a uma série de diatribes internas ao campo da psicanálise, onde encontramos grupos, maiores ou menores, que vêem seus

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interesses contrariados com o surgimento de certos conceitos. Isto é evidente no que diz respeito ao que me parece o conceito fundamental da psicanálise: Pulsão de Morte. Conceito este nascido em 1920 e tratado por Freud com muito cuidado, muita prudência e até com agressividade baixa demais para a grande invenção que havia feito. Como sabemos, este conceito teve péssima repercussão entre grande parte dos discípulos de Freud, em função da subversão radical que fazia na própria abordagem dos teoremas anteriores. Quem havia aprendido a lição dos pequenos teoremas preparados anteriormente, se recusava a ter que remodelar aquilo tudo no sentido de fazer valer como preponderância o conceito de Pulsão de Morte. Depois de Freud, Lacan consegue elevá-lo a seu lugar adequado, mas nem por isso o conceito conseguiu, a tempo, no percurso construtivo de sua obra, organizar uma macroteoria que fechasse o processo. Minha intenção foi recolocar, reestudar, diversos aspectos de Freud e de Lacan no sentido de organizar essa macroteoria dentro de um Esquema de funcionamento geral que viesse a agrupar os conceitos fundamentais – que não são necessariamente os quatro que Lacan colocou – e ordenando todo o escopo da psicanálise num grande processo. Por isso, coloquei em epígrafe aquela espécie de paráfrase de Marcel Duchamp, que citei da vez anterior. É como se eu estivesse usando um Lacan como tábua de passar o retorno de Freud. Como sabem, Lacan promoveu o retorno a Freud depois que suas teorias e práticas teóricas e clínicas foram mais ou menos deturpadas por seus seguidores. Lacan tenta retornar a Freud nisso que chama “a letra de Freud”, tentando fazer falar o texto de Freud. E no que faz isto, por seus métodos e suas abordagens, é claro que o texto se modifica muito, se não na sua estruturalidade, pelo menos na sua leitura. Não estou fazendo nenhum retorno a Freud, o que já foi feito, e sim tentando utilizar Lacan como tábua de passar: o retorno de Freud ser passado por aí, ser alinhado por essa tábua. De novo, permitamme usar a língua francesa para me divertir com as frases de Marcel Duchamp. O retorno de Freud, seria uma espécie de: le pas de table rase. Em francês, porque tem dois sentidos: (a) não há tábua, e (b) o passo de tábua rasa. Não há nenhuma tábua rasa em matéria de percurso científico, artístico, etc.

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Como uma onda no-nada

Qualquer percurso produtivo é necessariamente, se é um percurso, da ordem da tradição. Portanto, não se está fazendo aí nenhuma tábua rasa, ao mesmo tempo que se está dando o golpe de retorno, que é fundador de uma tábua rasa. Ou seja, utilizar o já feito como tábua rasa é, em última instância, tentar traduzir radicalmente a tradição. Traduzir a tradição é pleonástico, mas trata-se de fazer com que ela se renove radicalmente, como se não existisse antes, ao mesmo tempo que partindo de todos os seus fundamentos anteriores. Freud havia apresentado o conceito, a noção, de Pulsão como se fosse uma verdadeira mitologia da psicanálise. Ele chega mesmo a dizer, vol. 22, Standard Edition, nas Novas Conferências Introdutórias, p. 95: “A teoria das pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia. As pulsões são entidades míticas, grandiosas em sua indefinição”. Isto na medida em que, para Freud, naquele momento, ficava pouco explícito apontá-la como conceito. Então, ele apresentava como uma grande mitologia sobre a qual iria assentar o seu desenvolvimento. Hoje, isto não deve ser dito assim, pois a teoria das pulsões não é mitologia alguma. Já temos ferramentas da biologia, da etologia, de uma série de percursos científicos, ou ditos científicos, que nos garantem que há fundamento material, estrutural, etc., para se pensar as pulsões como tais, conceituá-las sobre os fundamentos biológicos do ser humano, e, mais, para generalizar seu conceito para todo e qualquer movimento de energia na face do Universo. Alguma produção de energia que se encaminha para determinado fim, isto é uma coisa cada vez mais verificável em todos os movimentos energéticos do Universo. Mesmo a questão da ambigüidade, de a Pulsão ser, como Freud colocava, uma entidade intermediária entre o psíquico e o somático, também aí não é preciso colocar nenhum entre. Isto porque podemos considerar que há certa homogeneidade de campo entre o psíquico e o somático. Portanto, a Pulsão passa por seus diversos aspectos, gradientes, avatares, sem estar passando necessariamente de uma coisa para outra, mas embutida dentro do mesmo campo de observação. *

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A ambigüidade entre Pulsão e Instinto – que Freud deixa bastante aberta na sua obra e que Lacan criticou como foi tomada por diversos autores – também deve ser re-estudada. No que diz respeito à opositividade interna da Pulsão, Freud se remete à oposição fundamental entre Philía e Neikos, de Empédocles, que utiliza como Pulsão de Vida e Pulsão de Morte, esse tipo de coisa... Mas não podemos deixar de lembrar que, em Empédocles, isto faz parte de uma Cosmologia. Ele já havia percebido, nem que fosse intuitivamente, que toda a estrutura do Universo, do que há – gosto de dizer: toda a estrutura do Haver, pois isso é muito mais amplo do que Universo ou existência –, ou seja, então, toda a estrutura do Haver, está subdita a esse movimento pulsional na sua bipartição interna entre amor e ódio, ou philía e neikos, ou Eros e Tânatos, essas coisas que Freud colocou. Lacan fazia a crítica do uso da palavra Trieb, que, segundo ele, estava mal traduzida nos textos franceses, ingleses, etc., pois não se dava muita distinção entre o que fosse da ordem da Pulsão e da ordem do instinto. Chamou atenção de todos para o fato de que Trieb, que designa um drive, um instinto no sentido pulsional, ou seja, a força pura do movimento libidinal – isto que quero chamar de Tesão, para não chamar de instinto, de Pulsão, ou de Trieb propriamente, pois não é da nossa língua –, o Tesão que atravessa o Haver, é radicalmente diferente do uso que Freud fazia de Instinkt, quando queria se referir às organizações instintuais dos animais, por exemplo. De qualquer forma, Lacan chamar atenção disso naquele momento é importante. Mas nem por isso apaga a ambigüidade, se não a confusão, que vai no próprio texto de Freud, onde freqüentemente Instinkt é usado no lugar de Trieb. Do ponto de vista com o qual estou abordando a questão, há mesmo certa indistinção genérica, até necessária do ponto de vista explicativo, embora não específica, entre Pulsão e instinto. Trata-se da mesma força constante, konstante Kraft: a energia constante agindo, mediada por uma resistência e, portanto, ligada a uma representação. É assim que Freud colocava a Pulsão,

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diferentemente do instinto no animal, que seria certa organização funcional, etc. Não há para nós, depois de conhecimentos avançados na nossa época, a necessidade, do ponto de vista genérico, de estabelecer esta distinção. Tanto o que chamamos de instinto quanto de Pulsão depende da mesma pressão constante de certa força, de certo Tesão, pulsional, que vai se qualificar, aqui e ali, pelas resistências que encontra. Ou seja, pela obrigação de investimento que vai ser posta sobre a força constante. Instinto, no caso do animal, significa que a força constante que anda por aí, ali, é absorvida em todos os seus investimentos por determinado aparelho etológico, determinado etograma, que a captura inteiramente numa obrigação de representação desse etograma. No caso das pulsões, no sentido dos falantes, o que vem não só substituir, porém, mais freqüentemente, manter e acrescentar o etograma é uma espécie de etograma postiço, o qual vai funcionar como resistência à força constante. Isto do mesmíssimo modo, de maneira a capturar todos os seus investimentos. Então, se a representação de que Freud está falando é da ordem do transcritivo, do postiço, do imprinting cultural, da mistura, substitutiva ou não, de um etograma por um cultograma – como eu gostaria de chamar essa coisa postiça –, trata-se da mesmíssima coisa. Ou seja, os instintos humanos são subvertidos, traduzidos, industrializados, pelas representações cultogramáticas associadas, de modo substitutivo ou não, aos etogramas que vêm filogeneticamente da espécie. Foi importante Lacan, naquele momento, fazer distinção para separar o que era da ordem do que queria chamar do significante na linguagem e o que era das construções etológicas dos animais. Hoje, uma vez feita a distinção, já podemos generalizar dizendo que o movimento pulsional da força constante no sentido de atingir o Impossível, o gozo absoluto, esbarra em resistências que são construtos que se apoderam inteiramente dos investimentos ali colocados. Isto, portanto, no sentido de fazer agir (a) no animal, um instinto, um etograma dado, e (b) na espécie humana, uma formação qualquer, uma “representação”, que, de modos os mais diversos, liga funções etogrâmicas com funções cultogrâmicas. Prefiro equalizar tudo para ter uma teoria única.

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Não vamos, pois, distinguir Instinkt de Trieb senão pela naturalidade ou industrialidade de uma formação absolutamente artificial, seja ela da natureza ou da indústria. Isto porque tomo tudo como artifício, como modelos articulatórios, como se produzidos por algum Sujeito, seja no nível da natureza, seja da indústria. Quero falar em indústria, pois cultura, para mim, é coisa situada historicamente, datada do Neolítico. O homem não precisa de cultura, e sim de indústria. Cultura pode acabar. *

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Em continuidade ao que trabalhamos da vez anterior, veremos que a Pulsão de Morte, que foi tão maltratada na obra de Freud, não é de modo algum apenasmente uma “necessidade estrutural”, como se diz a respeito de sua invenção. O próprio Freud opera assim, como se a estruturalidade da teoria exigisse pensar uma Pulsão de Morte, mas ela se torna o verdadeiro conceito do destino da Pulsão, do destino do Tesão. No momento em que Freud produz esse conceito já se construira a noção de entropia generalizada, sobretudo com a segunda lei da termodinâmica que apontava o destino mortal, digamos, de equalização, de indiferenciação, de toda e qualquer diferença produzida por movimentos energéticos dentro do Universo. Ou seja, há, pelo menos, uma vontade de caos, de indiferenciação, de perda de estruturalidade, o que, no pensamento de Freud era uma espécie de vocação para a morte, que encontramos na idéia de “ser para a morte”, da filosofia, em Hegel, por exemplo. O destino de todo Tesão seria apaziguar-se, extinguir-se, gozar definitivamente, absolutamente, desaparecer, tornar-se zero. E isto, hoje, depois de tantos avanços da reflexão, não é pensável como mera necessidade estrutural, e sim como algo que parece que exige ser colocado, desde a cosmologia até a psicanálise. Assim como a questão do conceito de Recalque Originário, que trataremos mais tarde, mediante o qual Freud segurou o conceito de Recalque, apresentando-o como uma necessidade de estrutura da teoria, podemos também

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mostrar que não é nenhuma desculpa estruturante, mas algo fundamental e condição de funcionamento de todas as formações dentro do que há. É mesmo um evento necessário, indispensável, em função do reviramento absoluto que aconteceu no seio do Haver. Neste sentido, utilizando a lição de Duchamp – que, como mostrei, em alguns aspectos, supera a psicanálise –, coloquei da vez anterior que a verdadeira face de Rrose Sélavy é Aimée Sélamor. Não há Tesão senão de Morte, mas todo e qualquer tesão é fracassado, não consegue atingir o ponto zero. E fracassa esbarrando na resistência de um destino bem menor do que a Morte, esbarrando nas Triebschicksale, numa aventura qualquer, resistente, portanto, criadora de realidade, que é uma espécie de prêmio de consolação já que o Tesão não consegue se extinguir. Poderíamos dizer, então, que estamos condenados à sublimação. Ou seja, sublimação não é nenhuma vantagem, e sim condenação: uma vez que não se pode atingir o desejado, vai-se sublimando pelo caminho. Todo e qualquer ato dentro da estruturalidade do Haver já é sublimatório, já é perda de objeto original. O ato de sublimação é estrutural, e não nenhuma coisa que o sujeito conquiste para além de suas possibilidades mais diretas. Isto é, podemos sublimar em diversos níveis porque não podemos outra coisa. Ainda que partamos diretamente para o objeto da Pulsão, já estamos sublimando. É o tratado geral da masturbação divina, como colocariam os surrealistas: a grande masturbação universal. Neste grande aparelho masturbatório, que Duchamp chamava “máquina celibatária”, e que pode ser visto como sendo o Universo inteiro, não temos senão a possibilidade espontânea e estruturalmente dada da sublimação. Estamos condenados a ser artistas. Não tem saída, há que ser artista. E se somos artistas nesse aparelho celibatário, na verdade, somos todos autistas. Em última instância, não se sai dessa. É o tema da relação sexual, ou seja, das possibilidades ou não de relação. É o tema que Duchamp trata no Grand Verre, do encontro (relação) impossível e do ato sexual (relação) que facassa se tem sucesso, mas que tem sucesso se fracassa. É uma espécie de reviramento especular, catóptrico:

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“renvoi miroirique”, como Duchamp o chamava. Rrose Sélavy demonstrou Aimée Sélamor. Isto é, que a impossibilidade de relação, de zerar um processo absolutamente, projeta-se em decadência, em tropeços menores, em aventuras pequenas, na Impossibilidade de relação sexual. E isto remete o falante ao Falanjo. Isto é, só nos dá a saída de efetuar, autisticamente, quer dizer, narcisicamente, em sua solidão subjetiva, esse encontro fortuito. Não há possibilidade de sair do narcisismo. O que há é possibilidade de operar artisticamente, e em ascese subjetiva, toda e qualquer possibilidade de narcisismo. Fazer a suposição – como fazem alguns de maneira idiota – de resolver as questões por solução do narcisismo é simplesmente da ordem da religiosidade transcendente, que supõe a possibilidade de relação. E isto é incompatível com toda e qualquer postura que designe a psicanálise como seu referente. *

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Trata-se, então, de apresentar-lhes o meu Vidrão. A maneira como Freud conseguia colocar a Pulsão de Morte, compatível com a segunda lei da termodinâmica, era a tendência de “retorno ao inanimado”, o que seria regressivo, pois ele fazia a suposição de que o inanimado era anterior ao animado. A vida tenderia para o mineral, para o inanimado. Hoje, várias visões cosmológicas, por mais diferentes que sejam, fazem, de um modo ou de outro, a suposição do funcionamento da segunda lei da termodinâmica e da tendência que tem todo o Haver para a indiferenciação, para a morte térmica. Essas cosmologias supõem mesmo um grau radical de indiferenciação e a divergência entre elas seria quanto à questão de se isso vai morrer e ficar morto, ou vai renascer. As tendências das teorias mais recentes são no sentido de que isso vai se encaminhar para uma estrutura caótica, talvez de indiferenciação interna radical, e ali algo vai se comover e retornar à ordem, à produção de diferenças, de ordenações. Mas nenhuma destas teorias apresenta, que eu saiba, o motivo dessa comoção. Por que essa coisa vai se comover a partir da sua indiferenciação radical, em termos cosmológicos, e retornar a

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alguma ordenação, alguma diferenciação? A intuição de Freud é mais vigorosa, pois nos empresta – ainda que só indicativamente – a razão dessa comoção que faz com que um Ilya Prigogine diga hoje que é a vida que vem da morte, e não o contrário. A morte como produtora de vida e a vida como capaz de recair nessa morte, que é capaz de produzir vida. É uma espécie de motu perpetuo, de movimento infinitamente recursivo sobre si mesmo. O que se deseja, no pensamento de Freud? Nos seus percursos e percalços através de seguir, perseguir, o movimento do desejo, Freud, que o aborda pela via do humano, do falante, encontra pequenos fragmentos dele no sonho, no ato falho, no funcionamento em geral do Inconsciente. Mas ele vai poder equacionar de modo genérico o fato de que o movimento desejante corre atrás de alguma coisa, se não mesmo d’Acoisa, que é a coisa última dessa perseguição. Esta coisa, ele chamou de das Ding, Acoisa. Deseja-se, portanto, Acoisa. Isto fica evidente, por exemplo, nos percursos da criança em relação à mãe, em todo o périplo da libido nas suas transformações na história de uma criança até chegar ao movimento do adulto. Assim, o que Freud, em última instância, designa como sendo Acoisa, que teria sido representada pela mãe num certo momento, é algo que é o grande atrator do movimento libidinal, mas que não há como ser atingido. Lacan, em seguida a Freud, vem enfatizar o nível da impossibilidade, e não da impotência, do atingimento dess’Acoisa que se deseja. O atrator do desejo, o que o faz funcionar perenemente, é algo que só o mantém em movimento porque o desejo jamais consegue atingir das Ding. O desejo é diferente de um desejo: já que não tem Tu, vai tu mesmo. Já que não posso conseguir Acoisa absoluta, encontro resistências, formações, sobre as quais deposito esse investimento. E tudo isso é fracassado... porque não se tratava disso. Se, então, aumentarmos grandemente o escopo do atingimento d’Acoisa, o que será Isso que o desejo deseja? Pergunto isto independentemente dos desejos intermediários, de resistência, de realidade, que se apresentam no movimento desejante, pelo meio do seu percurso. E é por aí que começa minha construção do aparelho geral de organização da teoria psicanalítica.

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Imaginemos um vetor desejante, que é uma força constante, que busca atingir alguma coisa, que estabiliza essa força, que lhe dá definitivamente a Paz: Vamos sair deste inferno! Na verdade, o inferno cotidiano que a gente vive pode se parecer com o de Sartre: “O inferno são os outros”. São os embates na agonia da vida, em que vemos determinados desejos serem contraditos pelo desejo de um outro. Mas isto é um inferninho muito barato, pois o Inferno é um pouco maior do que isto. A crítica que Lacan faz a Sartre é justamente para mostrar que seu inferno é pequeno, regional. O inferno mesmo é um inferno, pois se há um vetor desejante, isto já é o inferno. Não podermos não desejar, já é o inferno. Ou seja, o paraíso. Tem que ser, pois se não há saída disso, se é inevitável, relaxa-se e aproveita-se. A transformação do inferno em paraíso é no sentido de: será possível atingir Acoisa? Se é impossível, se o movimento não vai gozar definitivamente, se o Tesão não acaba, se não encontra zero, portanto, não há saída dele. É o inferno definitivo... então, pode ser transformado em paraíso definitivo. Um vetor desejante que procura Zero, mas não tem como encontrá-lo, este é o chamado desejo. Onde encontrarmos, e sempre encontramos, algum movimento no sentido de algo, estamos subditos à ordem do vetor desejante que jamais encontrará a Paz. Encontramos remansos, na medida em que se aplica o vetor desejante sobre determinadas resistências, determinadas modalidades do Universo. De repente, dá-se uma gozadinha, aí, um pequeno repouso... mas começa tudo de novo logo em seguida. O vetor continua no seu movimento para seu alvo, seu objetivo, que é simplesmente a Paz: extinguir toda possibilidade de agonia – mas isto não acontece. Mesmo desejar não desejar – que é o caso da técnica budista, por exemplo – ainda é desejar alguma coisa. Desejar não desejar é simplesmente desejar, pois que é desejar a Paz em relação ao desejo. O budismo, com a tentativa de desejar não desejar, veio nos mostrar o que é a Pulsão, a qual não deseja senão extinguir-se, não desejar. *

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Se é, então, impossível o atingimento de um grau zero de desejo, teríamos que nos perguntar a respeito da Morte. Prometer alguma coisa para além da morte é cair de quatro no registro religioso, o qual não precisa ser necessariamente teísta – o budismo, por exemplo, não o é –, mas necessariamente faz a promessa de algo para depois da morte. Os pensamentos e tradições orientais ou ocidentais que não caem nessa neurose obsessiva de repetição infinita para cada sujeito em isolado – pois o que as religiões prometem, isoladamente, é uma repetição infinita e isto é neurose obsessiva –, que não prometem nada para depois da morte, vão se ver em apuros com a noção de morte. Num rito religioso de passagem, se morro e vou para o céu, há um momento em que – presente a mim mesmo como sujeito que ascende ao céu na sua glória, ou vai para o inferno na sua glória também (afinal de contas, há que assumir o que se escolheu) – posso dizer: aqui foi a morte, eu estava presente a ela, ultrapassei-a, fui para o reino dos céus ou para a metempsicose: vou virar lagartixa, sapo (sapo que vira príncipe, príncipe que vira presidente, tudo isto...). Mas é preciso eu sustentar algo para além desse momento. Como a psicanálise não tem condições de sustentar isto senão recorrendo ao conceito de neurose obsessiva, mediante o qual critica as religiões, ela, como todo pensamento que não promete isso, vai ter um problema sério com a questão da morte. Vemos a filosofia ocidental, em última instância, desembocar no “ser para a morte” do homem. Mas que morte? Do ponto de vista em que tenho uma presença dentro do Haver em geral, subjetiva minha ou não, do vetor desejante que se encaminha vertiginosa e obcecadamente para o Zero, chamaria eu isto de morte? Só poderia chamar assim o momento em que o atingisse. Ou seja, se o vetor do desejo atinge – enquanto tal, e não observado por outro – o Zero, aconteceu a morte. Ora, do ponto de vista de um Sujeito, terei então que dizer que somos radicalmente imortais: a Morte não há. Para supor que houvesse, teríamos que pensar que, enquanto tal, dono da minha subjetividade, ou seja, simplesmente Sujeito, eu pudesse chegar ao grau Zero do desejo, seja por algum movimento de pacificação e de gozo radicais dentro da minha vida, seja pelo fato disso que

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fazem como atestado de óbito. Acontece que não há nenhuma prova, nenhuma demonstração, possível ou plausível – a não ser em razões religiosas absolutamente mistificadas – de um sujeito poder dar o depoimento do seu atingimento do Zero. É claro que, no espiritismo, vai baixar um cara lá dizendo que morreu, que está em outra, etc., igualzinho a qualquer neurose das religiões em geral. Mas isto não conta em nosso caso, pois sabemos muito bem do que se trata. Resta saber se um sujeito, alguma vez, pôde ou poderá dar testemunho de seu atingimento de zero desejante. O simples fato de um falante qualquer estar apegado a um sistema biológico que é sistemático, ou seja, que luta pela sua resistência sistemática, e que uma vez que se degringole, pára de funcionar como sistema, então temos fragmentos também sistemáticos... Esta é a questão dos médicos, por exemplo, entre a morte cerebral e a “morte subjetiva”: o sistema ainda tem muitas funções, mas a presença subjetiva já se foi, não tem como funcionar. Então, antes ainda de qualquer atingimento de morte, ou seja, de gozo absoluto, já não há mais ninguém para testemunhar isso: o sistema se degringola antes do atingimento. O perecimento biológico de alguém que dizemos que morreu, que recebeu um atestado de óbito, etc., pode ser para mim uma perda. Então, isto entra no conceito de castração: uma limitação, uma perda, que sofro ainda como desejante. Se não tenho desejo, não sofro perda nenhuma. Confundo a perda de uma presença com a morte dessa presença. Ela tomou sumiço, desapareceu. Um sujeito teve seu corpo em perecimento. Mas ele não morre, nem mesmo para mim. Não há atestado de óbito que me faça parar de sonhar com alguém cuja perda senti. Do ponto de vista de outrem, se alguém realmente morresse para mim, eu teria apagado seu registro da minha memória. Aí, nem saberia que morreu, pois não tenho mais registro: ele teria morrido num passado condicional, mas não faço a menor noção. Se ainda posso falar dele, sonhar com ele, é porque não morreu. Algo pereceu, ele não foi. Nem para mim, nem para ele, pela simples razão de que ele não está presente em sua subjetividade ao fato do seu desaparecimento, do seu perecimento. A Morte não há. O que acontece com o Desejo, então?

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Na medida em que tomo tudo como da mesma ordem, prefiro agora passar ao registro cosmológico. O que acontecerá com tudo isso que há? Tudo isso que há, vai sumir, desaparecer, para onde? Para isso desaparecer, com toda a sua massa de materialidade e força de energia, de pressão, etc., tinha que sumir para algum lugar. E se é assim, posso cair na neurose obsessiva da religião de inventar o céu do céu: o céu vai desaparecer num outro céu, ou num outro inferno. Se supuser isto, cairei numa cadeia infinita de céus e de infernos, onde um Haver morre e vai para o céu ou para o inferno do Haver, que morre e vai para o céu ou... O que aconteceria com um vetor que corresse desesperadamente para a sua Paz e não a encontrasse? Ou seja, que desejasse morrer, mas isto lhe sendo impossível como o é para nós? Acho que o vetor imediatamente se tornaria curvo. Assim como foi a intuição de Einstein, de que o Universo é curvo. Melhor ainda, a intuição de Guimarães Rosa quando diz que “Deus é curvo e lento”. Mesmo Deus tem que se curvar ao não-Haver O vetor, então, caminha para sua morte, mas não a encontra. Se o que quer que haja – que chamo de Haver, para não falar de Universo, etc., e que é muito bom pois as outras línguas não têm um termo tão apropriado para dar conta disso que ultrapassa o Ser, o Universo, o Óntos mesmo: Isso Há –, se o Haver é desejante, dentro do vetor de desejo, e procura zerar-se como Haver, o que seria o seu atingimento do Zero? O que seria, para o Haver, atingir essa Paz? Seria simplesmente negar isto, ou seja, seria: não-Haver. Na representação do Esquema Delta que lhes reapresento agora, o não-Haver é o que está notado por Ã. O Haver, o A Delta, que noto simplesmente por A, é movimento desejante puro: tudo que deseja é não-Haver. Mas simplesmente é impossível, para o Haver, enquanto Haver, tornar-se não-Haver. Mesmo supondo-se que o não-Haver fosse atingível, é de se supor que o Haver já teve tempo demais para chegar lá. Por que não chegou? Ou bem não chegou e é “lento” demais; ou já teve tempo suficiente, mas não chega por uma razão muito simples: porque, como está dito, o não-Haver não há. Se formos à filosofia dos poetas arcaicos da Grécia, veremos que pensavam

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isso com muita clareza: “O ser é, o não-ser não é”. Lacan diz que é besta como diabo dizer um troço desses. Ora, se for besta, coloca a questão metafisica de Heidegger: “Por que há o Haver e não, antes, o Nada”? Não há nada mais besta do que esta questão, pois, de fato: há o Haver e o não-Haver não há. A simplicidade do poeta arcaico é mais radical do que a baboseira da filosofia. Não há motivo para perguntar isso pois está dito que o não-Haver não há. Por isso, ele é não-Haver. E não há como pensar isso por lógicas intricadas que, embora tenham a aparência de estar pensando sobre o não-Haver, estão simplesmente de retorno ao Haver, na angústia de não conseguir realizar o seu desejo. É pura angústia, e a gente sabe como se trata isso...

PLEROMA MDMagno (1986) Εx φ x A x φx Estado Atual – Falante = recontrabanda J$

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A

(ACOISA) DAS DING (Impossível Alsoluto)

PAX

(Nada Além do Princípio do Prazer)

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Se é besta dizer “o ser é e o não-ser não é”, fica muito mais besta dizer que isto é besta. E a gente não sabe como sair da besteira. Para sair dela, talvez seja melhor ser um pouco mais simples reconhecendo que, se há o Haver, o qual inclui o que quer que haja, fora dele, só não-Haver, que não há. Portanto, não há saída, não há nenhum céu do outro lado. É o momento em que a filosofia pensa como a religião, pensando que não está pensando como ela. Ou seja, ao se prometer raciocinar a respeito do por quê o Haver há e o não-Haver não há, está simplesmente, religiosamente, tentando achar um furo para encontrar o Outro do Outro. Ou seja, o céu do céu, e não sair nunca mais desse infinito. Se há o Haver, se ele engloba o que quer que haja, nada há fora dele, muito menos o não-Haver, que, como está dito, não há. Para fora disso, entramos no reino da neurose, da morfose ou da psicose... *

*

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" Pergunta – Como fica a questão da realização alucinatória de um desejo. Miticamente ou imaginariamente, o sujeito vive como se tivesse havido o encontro com o objeto. A criança quando alucina o seio ou na “experiência de satisfação”, por exemplo, não fica lá buscando o nãoHaver, uma não diferença? A própria alucinação em si, não podendo não ser parcial, como você acabou de mostrar, é a prova de que o não-Haver não há. Houve o seio. Não houve o não-Haver. Quando o desejo fica muito forte e vai alucinar-se, e o sujeito vai alucinar para realizar o desejo, o que alucina? Algo que há. O dia em que me mostrarem que alguém alucinou o não-Haver, calo a boca. Experiência de satisfação, é absolutamente baratinha, coisinhas do caminho. Não é o nãoHaver. Alucinar um objeto desejado é reencontrar, dentro do que há, uma experiência, fundadora de realidade interna ou externa ao Sujeito, capaz de apaziguar dentro dos cânones do Haver. O seio há, logo tenho o direito e a possibilidade de alucinar, seja por fome, seja por outra razão.

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" P – Nessa cronologia do bebê, o seio não surge como sendo o objeto que vem primordialmente ocupar o lugar do que não há, como estase, homeostase? O seio vem como aquilo que chamei ainda há pouco de prêmio de consolação. Deste então, não preciso de representação alguma. Como se trata de um mamífero, ele vem, como qualquer regrinha de representação animal, etologicamente oferecer-se a mim como aquilo que é o “tu mesmo” do “não tem Tu”. Portanto, não há nenhum não-Haver em jogo aí. O fato de ser alucinatório, nem por isso deixa de ser uma realidade. Resta saber de que nível. Mas é uma realidade. Esbarro de novo na realidade, ou seja, numa formação que há. No périplo do movimento do desejo – e podemos colocar isto no nível do cosmológico, da grande ontologia do Haver –, o Haver não encontra não-Haver pela simples razão de que o não-Haver não há. Ele pode, no máximo, alucinar. Mas, para o Haver, alucinar é coisa muito séria, pois quando alucina, ele faz mesmo, põe mesmo o objeto. Ele não é meramente transcritivo, representativo. Uma representação, para o Haver, é algo que há concretamente. A única coisa que o Haver pode fazer é, pois, encurvar-se: curvar-se à impossibilidade. Quando o Haver tem o seu na reta do desejo, em não havendo o objeto desejado, não pode fazer senão curvar-se a essa impossibilidade. Não é à toa que Einstein percebeu que o Haver era curvo e curvou-se a essa necessidade. No que se encaminha para não-Haver, ele se encurva cada vez mais e vai ter que manter o seu périplo em continuação, vai em frente: esbarra no fato de não-Haver, faz algum contorno e continua havendo, porque não tem saída. No que esbarra o Haver quando se dá conta que o não-Haver não há? Ele vai em frente, curvamente: continua o seu périplo, mas não sem traumatismo. O pobrezinho desejava Ã, mas como é impossível, sofre um traumatismo e uma queda, e tem que retornar a de onde nunca saiu. Isto é uma coisa muito chata: ele pensava que estava se encaminhando para o não-Haver, mas nunca tinha saído do Haver, apenas desejava aquilo. Então, num certo momento, é traumático: tem que retornar para dentro do seu estado de Haver, de onde nunca saiu, aliás.

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Vou fazer uma coisa que parece mitologia, mas que pode ter bastante escora em vários pensamentos cosmológicos contemporâneos. Vamos supor que o Haver que temos hoje em dia – e que é absolutamente diferenciado: as coisas vivem dentro da lei da diferença radical – e que isso, no tesão de acabar com esse inferno, no tesão de chegar à Paz absoluta, queira gozar definitivamente no não-Haver. O que acontece nesse périplo do tesão é, segundo grande quantidade de teorias, todas mais ou menos baseadas na segunda lei da termodinâmica, que as diferenças vão se apagando. É isto que chamam de morte. As diferenças vão se eliminando até chegarem, quem sabe, a uma radical Indiferença interna ao Haver: tudo se empasta, tudo retorna a um estado primordial de energia pura, indiferenciada. Tudo pode, pois, retornar a um estado indiferenciado, puro, de energia e dentro do qual tudo, daqui a zilênios, resolve ir morrendo, acabando com a diferença, transformando-se numa grande massa indiferenciada de energia. Vira uma espécie de caos, ou seja, não há ordenação possível, é absolutamente aleatório. O que as diversas teorias de 1980 para cá resolvem pensar é que nesse estado de indiferenciação máxima, de caos, se quiserem, algo fará essa ordem caótica comover-se e voltar a produzir diferença. É como se ela fosse se encaminhando e, a partir de certo ponto, se comovesse, fizesse umas dobras internas, as quais produzem diferença. Aí, outra vez, renasce o Haver da forma anterior, que não deixou de existir em momento nenhum, pois isso ainda há como indiferenciação, mas há. O Haver retorna como diferenciante, como ordenador outra vez, como ordenação. As teorias contemporâneas não falam nada além disto. Mas temos Freud, que dizia que há das Ding, o alvo do desejo como impossível: Ã, o nãoHaver é Acoisa desejada. Então, podemos supor um traumatismo aí, que, dentro do Haver – que jamais deixou de haver, embora esteja indiferenciado –, faz uma comoção que o faz revirar-se sobre si mesmo. Ou seja, passar de um lado para o seu oposto, do ponto de vista catóptrico. É passar da indiferença absoluta, interna, à diferença que venha a renascer. Algo comove o Haver enquanto indiferenciado, aparentemente morto na sua internalidade, indiferença pura, de

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maneira que ele vira o contrário: passa de indiferente a diferente, a diferenciado. A diferença para com as teorias contemporâneas é, pois, que me reporto a Freud na Pulsão de Morte, que levou o Haver a perder a diferença interna, caminha longamente na indiferença, no sentido de não querer nem mesmo ser puramente indiferente. Ele quer mais, quer não haver. Ser indiferente, ser uma massa absolutamente homogênea de energia, ainda é haver demais, ainda é infernal. Isto porque ainda há desejo nessa massa indiferente. Se esse desejo, sem diferenças internas, ainda deseja, deseja o quê?: Não desejar. E se deseja não desejar, quer chegar a não-Haver, mas como isto não há, não pode fazer mais, como indiferente, do que espremer-se, espremer-se para ver se some. Isto ele pode fazer. Mas não some, pois seria chegar a não-Haver, que não há. Então, simplesmente pode virar ao contrário. Se, por exemplo, tomarmos a teoria do Big Bang – que está em questão, o que é problema para os físicos, para nós não o é –, é como se isso implodisse, implodisse, assim feito um grande buraco negro para ver se some. Mas não podendo sumir, chega num certo ponto em que a própria implosão é tão grande que a força explode de novo. Então, o buraco negro V-I-R-A buraco branco. Como tenho o direito de delirar com a psicanálise – os físicos que se virem para demonstrar –, é como se tivéssemos, na direção de Ã, um grande movimento implosivo que, no limite da sua possibilidade de contenção, já que o não-Haver não há, torna-se explosivo. Isto se pensarmos em termos de Big Bang, mas não é preciso, pois há o universo inflacionário, de outras teorias, que implode, implode, entra em deflação e, de repente, entra em inflação de novo. Não vi ainda nenhuma cosmologia apresentada recentemente que não caiba, mais ou menos, neste aparelho freudiano. *

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O que importa é que existe um ponto, um momento – que, talvez, jamais a ciência consiga situar a não ser forçosamente, por um tour de force –, que é como aquele ponto sobre uma banda de Moebius, sobre uma superfície

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unilátera, em que a superfície girou sobre si mesma. Seria o ponto em que a superfície saiu da sua bilateralidade e entrou na sua unilateralidade. Ponto através do qual, por um recorte da superfície – retomarei essa topologia da próxima vez –, esta passa a unilátera, e também pelo qual pode passar a bilátera, por um corte. Este ponto não é situável. Posso forçar a barra e fazer a suposição – que os matemáticos não gostam de fazer – de que, sobre uma superfície unilátera qualquer, sobretudo que tenha a borda única como repetível sobre ela mesma fazendo uma bilátera, devo conjeturar que seus pontos são bífidos. Ou seja, alguma operação transforma a superfície em bilátera. O ponto que os matemáticos acham que é sem orientação, sem possibilidade de marcação, etc., eu o considero, portanto, em si mesmo, um ponto bífido. E veremos mais adiante que, no fundo, é trífido, como dizia James Joyce. Mas estou forçando a barra e o situando em R, no Esquema Delta. O ponto não é situável previamente, mas posso situá-lo a posteriori, o que Freud chama Nachträglichkeit, e que traduzo por só-depois, que é a virtude de se encontrar determinada verdade depois da sua realização, embora não possa ser encontrada antes. É como acontece, por exemplo, com a Teoria do Caos atualmente. Não é previsível o momento em que vai acontecer tal catástrofe, mas, uma vez acontecida, pode-se entender por que foi ali. Ora, o só-depois do Haver é que, por algum motivo de pressão interna, do desejo de apagar-se, ele, num certo momento, se revira. Posso, então marcar em R esse momento, quando já revirou. Aí está o ponto bífido, que é o ponto pelo qual esse périplo avessa e faz o que chamo de um Revirão. Ou seja, o Haver, no desejo inarredável de tornar-se não-Haver, e na impossibilidade, pois o nãoHaver não há, simplesmente não pode fazer mais do que revirar-se sobre si mesmo e começar tudo outra vez. Não necessariamente igual, pode ser tudo diferente, mas é um recomeço. Isto é que é “como uma onda no nada”, pois é a idéia que o Ocidente tem de Nada. Quando o ocidental diz Nada, pensa que é não-Haver. Mas como poderia estar falando do Nada – noves fora, nada, etc. –, se está falando,

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se está contando com aquilo? Já o oriental sabe muito bem que para além de Nada ainda há o não-Haver. A idéia que fazem de Nada dentro do Universo se aproxima do que a física ocidental de hoje chama de matéria escura, um outro estado da matéria, o quarto estado da matéria. O chinês chama de Chi: energia indiferenciada. Para eles não existe Vazio nenhum. O Vazio é indiferença. É material, corpóreo, dado, só que não se lê nele diferenças internas. Então, para quem está no ponto de vista da diferença, dá a impressão de Nada. Temos, pois, uma grande massa indiferenciada de energia, que é materialmente dada, mas onde não lemos nenhuma diferença e a chamamos de Nada. Nada ainda é muita coisa. É tudo. Tudo que há vai se transformar em Nada, que é tudo. E não há paradoxo aí, pois é simplesmente transformação: tudo se transforma em Nada, que não é senão a quantidade e a materialidade de tudo em estado indiferenciado. Paradoxo, aliás, é coisa de obsessivo que em vez de ir para a religião, faz filosofia... O que vai acontecer, então, é que Nada tem que continuar como tudo: diferenciado. O tudo que ele próprio é. Nada não consegue passar a nãoHaver. Nada continua. Assim estamos aí no campo em que o Haver no seu périplo – que certamente gira em torno do próprio umbigo por toda a eternidade –, num certo momento, eliminou as diferenças, transformou-se em Nada, ou seja, Tudo em estado de indiferenciação. Mesmo como Nada, não pára de desejar e tenta, ainda por cima, não haver nem como Nada. Isto não é possível, no ponto R ele reexplode e, então, começa a haver, de novo, como nunca deixou de haver, mas não como Nada, e sim como diferenciação. Por isso, o que quer que haja em diferença dentro do seio da nossa maneira de existir, atual, no Haver, não é senão “como uma onda no nada”. O Nada, no que passa por R, faz marola; no que faz marola, se diferencia. Mas onde o Nada esbarra? No que esbarra?: No que chamo de Real (R). Esta é, para mim, a única definição possível de Real. É o ponto, que não sei situar mas que se situa por si mesmo, que nunca sai do mesmíssimo lugar, pois está sempre entre indiferença e diferença, está sempre no meio das oposições, é impegável, passo por ele mas lá não fico, é indefinível no sentido

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da sua materialidade (mas está definido no Esquema como ponto bífido de reviramento, e está sempre no mesmo lugar). Lacan dizia que “real é o que retorna sempre ao mesmo lugar”. Eu diria que está sempre no mesmo lugar. Aliás, a indiferenciação de o Haver passar a sua diferenciação não significa, não prova para mim, que o Real está entre, e sim que está como o terceiro que não se contou nessa brincadeira. É o terceiro não incluído de todas as lógicas. Temos o mau hábito de chamar as coisas de Real, mas que, na minha visão, não o são. Lacan mantém o conceito de real na ambigüidade o que, a meu ver, atrapalha o processo de reflexão. Ele chama de real (a) o impossível de se inscrever na estrutura: de certo modo, está chamando assim o não-Haver; e igualmente (b) a dureza das realidades em que a gente bate e não consegue inscrever como saber. Quando procuro saber a respeito de uma materialidade, algo parece que escapa. Então, ele chama de real esse impossível de se inscrever em todos os fatos da realidade. Mas eu só chamo de Real aquele ponto R, o resto podem ser realidades fundadas simbolicamente, em qualquer nível. E Real, no meu Esquema, não é, como diz Lacan, o impossível de se inscrever na estrutura, e sim aquilo que se inscreve na estrutura como lugar-tenente do impossível de se escrever: o ponto de reviramento que pertence à estrutura como lugar-tenente daquilo que lá não se inscreve, pois é impossível (Ã). Porque o não-Haver não há, o Real pinta dentro da estrutura como mero lugar de reviramento: o que quer que haja passa por ali, mas lá não fica. E quando aparecem as modalidades diferenciadas dentro do Haver, do que quer que haja, são todas realidades fundadas da mesmíssima maneira como se funda o Simbólico, não há diferenças de espécie alguma, são realidades instituídas a partir de uma matéria indiferenciada como Nada e revirada pelo Real em diferença. Então, como uma onda no nada, tudo reaparece na sua diferenciação. Por hoje, eu queria ficar neste pedaço do começo do meu Vidrão. *

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[Perguntas e Respostas] " P – Para haver desejo é necessário que haja recalque. E o psicótico, ele não deseja, não apresenta demanda. Muitas vezes, ouvimos, ou ouvimos mal, que o psicótico não deseja. Se for assim, não conheço psicótico, todos que conheço, desejam. Não confundir o recalque lá adiante, em instâncias muito mais mesquinhas, com o Recalque, que é fundamental. Psicótico é gente, Sujeito, deseja, faz tudo igual aos outros, só que é psicótico. " P – Do ponto de vista conceitual, qual a diferença que você faz entre pulsão e desejo? Praticamente nenhuma. Do ponto de vista da materialidade da coisa, a Pulsão não é senão o desejo, que é a konstante Kraft. Isto, mesmo em Freud, que as pessoas, a meu ver, lêem mal. Separar os conceitos é importante, mas não referenciá-los à máquina que ele está produzindo, faz muita falta. Quando Freud fala em Pulsão, está conceituando a força constante, no que aderida a determinada representação. Isto é positivo. Do ponto de vista geral do périplo do Haver, a representação do desejo para torná-lo Pulsão é o não-Haver, das Ding. O fato de o não-Haver não haver de fato não impede que ele (h)aja de direito. Ou seja, não impede que, de dentro do Haver, possamos colocar em oposições, em catoptria, o que quer que compareça. Então, perguntando mesmo à dialética de Hegel, o que quer que você ponha, posso pôr o contrário. Especularmente. Melhor dizendo, catoptricamente. Se posso, então, pôr o Haver, o que me impede de pôr o não-Haver? Nada – daí o fundamento do meu desejo. É que, de direito, pela razão catóptrica das minhas possibilidades de oposição, vivo num processo de perene simetrização: posso simetrizar o que quer que compareça, inclusive o Haver enquanto tal. Por isso, posso falar em não-Haver. Toda e qualquer simetria é possível no Haver, menos uma, que é, de fato, o não-Haver não comparecer. Mas, de direito, posso colocá-lo. Então, coloco-o como desejo. Isto porque se me puser de dentro da totalidade do Haver, só desejo o que me falta: não-

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Haver. Mas, de fato, isto não comparece. Então, só há um impossível dentro do Haver, que é não-Haver. O resto é possível, depende das condições de possibilidade. Aí, podemos apelar para Leibniz. A Pulsão funciona e é a mesma o tempo todo, sem parar. Só que a partir do ponto de explosão, no que ela se diferencia, encontra resistências onde investir-se, aplicar-se. Então, ela faz mais barato: Já que não tem Tu, vai tu mesmo. Ao passo que quando perde a diferenciação, no movimento de implosão, vai direto ao seu cerne, que é ser Pulsão de Morte, ou seja, Pulsão de nãoHaver. Pulsão, Tesão, é o nome que o desejo tem quando você sabe apontar o seu objeto. Não há diferença coisal, substantiva, entre Pulsão e desejo. Há diferenças de designação. Eu desejo, mas quando digo: Desejo isto, tenho tesão nisto, estou trazendo o que Freud chamou de Pulsão. Ora, em qualquer lugar do Haver, você está sempre designando. Pode ser inconsciente num momento dado, mas está sempre designado qual é o objeto do seu desejo. No ponto do Nada, está designado que o objeto desse desejo é o não-Haver, que coloco para mim, de direito, como objeto do meu desejo, mas que, de fato, não há. " P – Desejo é de direito, na medida em que desejo não-Haver, mas Pulsão, é de fato, pois tenho que chegar a alguma coisa, a uma representação? Desejo é de direito, mas o gozo é de fato, e não a Pulsão, a qual apresenta, expõe, o seu objeto ao desejo. Não existe, na verdade, desejo sem Pulsão. O desejo enquanto tal não se apresenta puro jamais, pois só é puro na sua impureza de desejar o não-Haver. Como é sempre sujo, graças a Deus, só se apresenta como Pulsão. Por isso, Freud não fez uma teoria do desejo, e sim da Pulsão. O desejo sempre se apresenta com objeto designado. Não há desejo no vazio. Em sua máxima pureza, é o reconhecimento, digamos, de um analisando de ver que não é nada disso que ele deseja, pois o que deseja mesmo é aquilo, só que não vai ter nunca. É o tal do “O que será, que será?” O que deseja é: a Morte. É não desejar: a Paz absoluta, o gozo absoluto. Pára, que eu quero descer. Este é o desejo, só que não dá para descer. Nem morrendo, pois quem morre não viu que desceu, logo não gozou disto. E não adianta se matar, pois não há saída.

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Se fizermos, ainda, a idéia de Deus – que é claro que há –, que é o Sujeito supostamente implícito nessa operação, Ele simplesmente é impotente. É preciso ser neurótico obsessivo para achar que Ele é onisciente, onipotente. Ao contrário do que afirma Nietzsche, ele não pode morrer, logo não pode tudo. " P – Você colocou que entre os orientais não se coloca a categoria da oposição do não-Haver. Então, como funcionaria aí a simetria? Ou me expliquei mal, ou você entendeu mal. Os orientais não colocam o Nada como se fosse um não-Haver. O Ocidente começa agora, na física, por exemplo, a colocar o Nada como sendo algo. No Ocidente, quando se falava em Nada, pensava-se em não-Haver. O Oriente, quando colocava Nada, embora não colocasse a palavra, colocava Chi, ou seja: indiferença que há. Portanto, há muito que sabem que, para além de Nada, ainda há que colocar o não-Haver. O Ocidente tem parado ainda muito antes, na sua história: há um Nada, então, este já é não-Haver. Não é. O Nada ainda há: é um Nada de diferenças. Quando tomamos a filosofia – o ser e o nada... –, vemos alguém falando de algo substantivo, e não se dando conta disto. É algo positivo, substantivado. Aí é que se fica naquela angústia desgraçada: “Por que há o Haver e não, antes, o Nada?” Ora, o Nada há, é claro! O que não há é o não-Haver. Se estou em condição de Nada, qual é a minha representação de desejo? É o não-Haver, das Ding. Eu só teria absoluta falta de representação, para o desejo, se passasse ao não-Haver. Como não posso passar, mesmo na condição de Nada, de indiferença interna absoluta, aí aparece a última diferença possível e irredutível. Não posso reduzir o meu desejo de não-Haver pelo simples fato de que não passo a não-Haver. Uma ausência de diferença interna exaspera a diferença externa, é claro. Estou no Nada, em absoluta indiferença dentro do Haver, e justamente quando estou absolutamente indiferente – e não preciso, para isso, ficar psicótico ou virar o Haver no seu périplo final –, como Sujeito, tenho isso como vantagem sobre os outros seres. Nossa espécie tem esta vantagem: podemos, como

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Duchamp ensinou com o ready-made, nos colocar numa indiferença radical dentro do que há. Aí, exaspera-se a morte, pois do outro lado disso só tem nãoHaver. Aparece a diferença externa como radical e impossível de ser reduzida. Quando estou no Nada, estou, portanto, no cúmulo da diferença. Ao contrário, quando estou disperso nas diferenças, isso alivia: faço metonímia, passo de uma diferença para outra, descanso dessa pressão correndo atrás de objetos. Mas se todos esses objetos se tornam indiferentes, o que vai se exasperar para mim é a diferença radical “externa”. É o que o melancólico não sabe, não se dá conta, pois é cagão. A melancolia é uma covardia extrema: fica no Nada da indiferença olhando para dentro do Haver. Ele dá as costas para a diferença radical para não sofrer angústia e começar a entrar de novo no barato. Não se deve, pois, ser bonzinho com ele. Deve-se empurrá-lo para o pior. Aí ele dirá: Epa, isso não, é exasperante demais, vamos voltar depressa para casa. É preciso angustiá-lo. Ele não fica angustiado: é melancólico, tadinho... " P – A indiferença interna radical, é o Nada? E aí é o máximo de diferença externa? Então, o analista teria que tender para essa indiferença absoluta? Parece, então, que o objeto a é alguma coisa que pode acossar, pois aponta uma radical dissimetria. É disso que muitos psicanalistas até hoje não se deram conta, mesmo que Lacan o tenha indicado sem explicitar. O lugar do analista é um lugar de absoluta indiferença. Por isso, quando ele é analista, é cruel. O resto é babá, baby-sitter...

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5 KAOSMOS: VERBUM (O Pleroma Outravez) Tratamos da Pulsão de Morte como o fundamento da movimentação do desejo tanto na espécie humana, no que se chama de ser falante, quanto na plenitude daquilo que há, no que se costuma chamar de Universo. Vimos que o movimento constante da força libidinal, no que se encaminha para o seu objeto desejado, que, a rigor, não há, não o encontrando por sua impossibilidade radical, não pode fazer senão encurvar-se, ou curvar-se a essa falta radical, e retornar sobre si mesmo. Este seria o primeiro momento do encontro faltoso, impossível, da Pulsão, na sua radicalidade, com seu objeto, que ela se propõe de direito, mas que, de fato, não pode encontrar. Nessa tentativa de apresentar-lhes como funciona o meu Vidrão, mostrei que o movimento pulsional do que quer que haja, essa energia neutra funcionando na impossibilidade de reduzir-se a si mesma a zero, vai resultar numa série de metamorfoses, avatares. Partindo, então, desse núcleo, radicalizando o conceito freudiano de Pulsão de Morte, tomando-o como base, como fundamento da estruturalidade, e tentando acompanhar por vias já estabelecidas, pelo menos em seu desenho grosseiro, seu esboço, por Freud e retomadas por Lacan, é que tento construir um aparelho que desenharia os avatares, as transformações, a metamorfose contínua desse movimento da libido. A tentativa é produzir um grande Esquema capaz de unificar a psicanálise teoricamente e, também, estabelecer certo diálogo com outras ciências contemporâneas, como, por exemplo, a física moderna, a cosmologia,

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extraindo as possibilitações discursivas que oferecem. Construí, pois, um grande Esquema, que apelidei de Pleroma, e que foi publicamente apresentado em 86. De lá para cá, estamos utilizando a sua estrutura e os conceitos que nascem daí. Pleroma é uma palavra grega já utilizada em vários pensamentos ocidentais com o sentido de completude do que há. Plerous é o cheio, o pleno. Hoje, ficaremos na tentativa de esclarecer um pouco seu funcionamento. *

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Anteriormente, ao encontrar a energia em estado indiferenciado do ponto de vista “interno”, do ponto de vista do que há, em entropia absoluta – que a termodinâmica passada, com sua segunda lei, julgava ser capaz de atingir um estado de Morte radical –, acreditava-se que isso ia realmente atingir o não-Haver, que ia sobrevir a morte definitiva. Ao contrário, hoje, físicos e cosmólogos pensam que a própria entropia, a própria indiferenciação interna do sistema, ou o Caos que se formaria ali, por sua própria maneira de ser – e definir essa estruturalidade será difícil, eles terão que dar conta disso –, tenderia a se reorganizar em vida, em ordem. Isto mais ou menos no sentido que coloquei “como uma onda no nada”. Os próprios desenhos de simulação que os computadores apresentam de um caos em transformação para a ordem, é como se aquilo começasse a apresentar uma onda de movimento interno – cuja causa não conseguem detectar e que suponho estar dentro mesmo dessa estrutura caótica –, de retorno do caos à ordem, como um processo bífido. Isto é acompanhado na mimetização que fazem, mas também não há uma explicação por enquanto. Ao contrário, do ponto de vista do psiquismo, a partir do objeto que não há, das Ding, em vazio, colocado por Freud, poderíamos estabelecer uma Causa para esse movimento. O não-Haver, que não há de fato, mas é conjeturado de direito pela estruturalidade simetrizante do Haver, mesmo não havendo, mas posto como alvo, torna-se retroativamente a Causa do próprio

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movimento do Haver. Uma física, uma cosmologia, porque não pertence ao rigor do seu método, não têm como destacar essa Causa da transformação do caos em ordem. Nós outros podemos conjeturá-la assim. É o que Lacan chegou a chamar A Causa Freudiana: das Ding, o objeto que não há, inatingível, impossível, no entanto, sendo a Causa do movimento libidinal. Do ponto de vista lógico, não me parece muito difícil estabelecer essa Causa em vazio. Se fizermos a suposição de que o simétrico do Haver, que chamo de A Delta, é o não-Haver – ou seja, um é simétrico do outro: o movimento do Haver é no sentido do não-Haver, que, sendo impossível, faz com que o Haver retorne sobre si mesmo –, poderíamos, como está especificado em tantas dialéticas do pensamento ocidental, fazer a conjetura de que, dentro do Haver, para o que quer que se movimente em completude, plenamente, com todas as suas possibilidades – que é o caso, até segunda ordem, do homem, do ser falante –, supõe-se uma subjetividade que posso chamar de Deus. Suponho, pois, para essa totalidade, uma subjetividade divina à qual corresponderia uma subjetividade humana, na possibilidade de plenificar esse movimento para os dois casos. Teríamos, então, tanto o Haver quanto os falantes em suas plenitudes como capazes do exercício da faculdade de plenificar o movimento libidinal. Exercer plenamente as possibilidades de Haver resulta necessariamente na dialética de, como propunha Hegel, ao que quer que se coloque como tese, poder colocar-se seu oposto como anti-tese (deixemos de lado as sinteses ou para-teses possíveis). O que quer que se coloque como possível – e aí pode-se também tomar Leibniz – inclui a possibilidade de seu oposto. Mas o fato de algo ser possível não significa que seja manifesto aqui e agora, que saia imediatamente da latência. Significa que há sua possibilidade. Ou seja, se atribuirmos à ordem do Haver a faculdade de o que quer que ali se coloque ter oposto possível – como vemos na física mais recente: matéria/antimatéria, partícula/antipartícula, etc. –, poderíamos dizer que há uma espécie de vontade de simetria no seio do Haver. E isto não quer dizer que a simetria se produza concretamente aqui e agora, mas que, considerada numa perenidade, numa temporalidade infinitamente grande, ela certamente se

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exercerá aqui e ali e será sempre, pelo menos, latente no processo do Haver. Ora, se a simetria é uma possibilidade constante e sempre em busca da sua efetivação, qual será o máximo de simetria possível para o Haver? Se a qualquer aparição, a qualquer surgimento dentro do Haver, o seu simétrico é possível, é preciso pensar a simetria no sentido radical, segundo uma catoptria (kátoptron, em grego, é espelho): o avesso absoluto de determinada coisa. O espelho que conhecemos e utilizamos cotidianamente apresenta uma catoptria bem fraca, bem simplória. Não é espelho radical, senão inverteria radicalmente as imagens: de positivo para negativo, de orientação, de cor, de tudo. A catoptria radical é: ao que quer que se coloque ter-se o avesso em todos os sentidos e com várias possibilidades de avessamento interno a esse processo: enantiomorfia total. Considerando-se, pois, que há na estruturalidade do Haver uma vontade radical de catoptria em função mesmo de ser impossível para seus movimentos atingir o seu alvo absoluto, só é possível retornar a questão para “dentro” do Haver. Ou seja, o máximo de avessamento conjeturável pela própria lógica de seqüência de avessamentos dentro do Haver seria o atingimento do avessamento radical, da simetria radical, do própio Haver. Assim, a vontade de simetrização perene só pode chegar ao máximo de avessamento possível de ser conjeturado que é a simetria entre Haver e não-Haver. A simetria de, dado o Haver, ser postulado o não-Haver. " Pergunta – Por que desejo de não-Haver é a mesma coisa que desejo de simetria? A palavra simetria é que pegou aí. O que estou chamando de simetria é catoptria radical. Você está diante do espelho e a imagem que vê – dentro de certa catoptria que não é radical no espelho plano que conhecemos – é justamente o avesso da sua imagem. Pensamos comumente que o espelho é capaz apenas de mudar certas orientações. Por exemplo, a imagem do meu braço esquerdo é braço direito no espelho, mas ele não chega a me virar de cabeça para baixo, pois é limitado. Se imaginarmos a construção, a passagem topológica, da razão especular daqui para lá e de lá para cá, verificaremos que aquilo é um avessamento, pois vimos uma mudança de orientação. Mas se quisermos realmente transportar a

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mão daqui para lá – e encontramos isto, do ponto de vista da literatura, em vários autores: Lewis Carroll, talvez um pouco em Raymond Roussell, no próprio Duchamp, etc. –, tomemos uma luva de borracha sem avesso nem direito, dessas de cirurgia, que se pode usar de qualquer lado, e a coloquemos como mão esquerda diante do espelho. Então, para transformar esta forma de cá na de lá, basta virar a luva pelo avesso: estabelece-se assim, topologicamente, sobre esse objeto, luva de borracha, o mesmo artifício, a mesma produção que a máquina espelho produziu para nos dar aquela imagem do lado de lá: enantiomorfas. Trata-se, aí, de simetria dessa forma, que não é absoluta, pois se o espelho fosse absoluto daria isso em negativo, na cor oposta, em outro espaço... O espelho que usamos é careta. Existem outros mais complexos: na microfísica, na cosmologia, etc. Não uso o termo “relação especular”, pois ficou sendo tomado como da ordem do imaginário, entre figuras... A relação catóptrica, qualquer transformação catóptrica, é de radicalidade contrária, é passagem para o avesso. É, pois, a simetrização de determinado objeto por avessamento: enantiomorfia radical. *

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Surge, então, na vontade de simetrização perene, o que as lógicas querem chamar de Paradoxo, o qual, na verdade, não existe. Fala-se de paradoxo quando determinada frase apresenta avessamento em si mesma. Não há paradoxo nenhum aí como Lacan já demonstrou com o simples manejo do (seu) significante. Na medida em que o Desejo desse movimento tem a faculdade de exigir-se o máximo e a perenidade dos avessamentos, das simetrias, isto seria colocar para si mesmo o não-Haver como desejável, fundar para si a possibilidade do não-Haver. Só que ele não há, e, no que não há, esse desejo parece paradoxal. Desejar é desejar não-Haver, é desejar o Impossível. Entretanto, só há retorno à internalidade do Haver em sua perene tentativa de simetria.

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Se, porque vivo no processo da exigência de simetria, de dialetização, posso de direito me colocar o último simétrico, entretanto de fato não o encontro. Assim como, nos movimentos cotidianos de nossa vida desejante, freqüentemente estamos nos colocando objetos que eventualmente seriam avessamentos de possibilidades já dadas e, no entanto, essas possibilidades em avesso não comparecem para nós. Sendo que, aí, a impossibilidade não é absoluta, e sim inteiramente regional, localizada, modal. E não se torna nem mesmo um impossível fundamental por causa disso. É impossível aqui e agora com as disponibilidades que temos. É impossível eventualmente porque custa caro demais: o preço é alto demais para aquilo ser conseguido. Mas não porque seja absolutamente impossível como o é o não-Haver. As impossibilidades no seio do Haver são regionais, agônicas, lutas de forças, de poderes, de possibilidades, de disponibilidades, de preço, etc. O Haver, desejando não haver, nessa aparente paradoxalidade, em não havendo o não-Haver para ele realizar o seu desejo, não lhe sobra senão realizá-lo em seu próprio seio. Ou seja: retornar sobre si mesmo e continuar no movimento desejante (do não-Haver, ainda, porém) por uma via deslocada. Vemos, então, que alguns conceitos freudianos se aplicam com a maior clareza: das Ding, como objeto impossível; sublimação, a própria realidade do Haver é sublimatória. Estabelecermos níveis de sublimação dentro de determinados movimentos agonísticos localizados é completamente diferente de podermos reconhecer que o que quer que haja no seio do Haver já é, em si mesmo, sublimatório. Isto porque o objeto verdadeiramente desejado não é atingível e o Haver tem que fazer um desvio e trocar “Tu” por “tu mesmo”: já que não tem isto, vai aquilo. É uma espécie de Bendição radical. O que quer que haja é bendito, santo, sancionado pelo movimento de sublimação do Haver. Por isso, do ponto de vista divino, sub specie aeternitatis, não existe a menor distinção quanto a valores do que haja. O que quer que haja é santo, mesmo o crime. Quanto ao que quer que se coloque dentro do campo do Haver, temos, pois, várias maneiras de pensar a sua simetria, a qual não é uma só. Existem

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vários processos de simetrização: no espaço euclidiano, numa superfície, em três dimensões, em quatro dimensões, simetrizações topológicas, etc. Do ponto de vista estritamente lógico, então, qual seria o máximo de avesso, de contrário para o que há? É o não-Haver. Se o Haver tem essa vontade de simetria – ou seja, de possibilitar tudo que seja possível –, pode-se imaginar tudo que seja possível pelo avessamento de tudo que há disponível. Se começarmos a catoptrizar o que quer que se nos compareça, irão aparecendo novos seres, novas entidades, que são o avesso daquelas dadas anteriormente: uma antiárvore, uma anti-estrela, um anti-cigarro, um buraco branco... É possível pensar isto. O jogo das possibilidades está aí. O Haver na sua plenitude tem, então, como seu simétrico radical, o não-Haver. A vontade da transformação topológica de Haver em não-Haver é impossível, pois se o Haver enquanto havendo, de direito, pode conjeturar o seu avesso, este não comparece porque o não-Haver não há. Então, no seio de um movimento perene de simetrização, o limite que essa vontade de simetria encontra é: quando se exerce ao máximo, ela encontra uma dissimetria. Não há paradoxo nenhum aí. De direito, peço o máximo de simetria, de fato, encontro um limite: a última simetria é conjeturável, desejável, mas é impossível de se realizar. Então, porque o não-Haver não há e o Haver não passa a não-Haver, não morre, ele retorna, pelo avesso. É justo por uma vontade de simetria que a dissimetria vai pintar. Por uma intensificação máxima de desejo de simetria, de encontrar o meu outro – a cara-metade, a outra metade da laranja, tudo que se fala a respeito dos sentimentos, seja de tesão, de amor –, o que quero é me completar encontrando a metade que me daria o todo. [...] A simetria radical da mão direita é a não-mão direita. Ou seja, é: o que quer que se coloque como simétrico à mão direita, qualquer objeto serve. Se radicalizarmos pelo simples estatuto do não, o que quer que não seja mão direita lhe é avesso. No caso do eu, não-eu que é sua cara-metade. Se quiser configurar

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formalmente um avesso designado pela estruturalidade aqui e agora do seu eu, seria o não-eu que teria todas as características que seu eu não tem e não teria as que ele tem. O avesso do seu eu – e este eu é muito difícil de organizar, pois de que eu se está falando? de ego, de Sujeito? – só pode ser imaginado como não-eu. Se é não, retira-se do avesso o que quer que haja do lado de cá como eu. Então, lá é algo que se constitui, tem tudo que o seu não tem e, os dois juntos, somariam zero. Configura-se exatamente uma peça, pois você é sintomatizado, o seu eu é limitado. Se o seu eu fosse absoluto, neutro, o avesso seria igual, idêntico, mas como está sintomatizado, limitado, configurado, o avesso será configurado como sendo o contrário do de cá. Então, quando se coloca o sinal de não sobre alguma coisa, x e não-x, ~ ~ ~ ( x) por exemplo, se este x for neutro, indiferente, x e x serão a mesma coisa, ~ configurar-se-ão do mesmo jeito. Mas se x for configurado, sintomatizado, x será sintomatizado como avesso de x. É como se exigíssemos que a plenitude ~ de x com x somasse zero – zero, aí, menos no sentido numérico do que de índice de indiferenciação, de neutralidade radical. Assim, quando a coisa é tomada modalmente, aqui e agora, podemos conjeturar, pensar na possibilidade de existência do não-eu. É possível, embora não tenhamos condições de fabricá-lo... " P – Então, só podemos trabalhar com as coisas que podemos representar, configurar. Ao eliminar a possibilidade de configuração daquilo que não há, ficaremos afirmando eternamente essa positividade... Por isso, tenho que colocar de direito e de fato. Não me é difícil conjeturar o não-Haver, nem que seja numa frase: some tudo, (não só se neutraliza, mas) desaparece tudo, é o néant absoluto. Mas isto não é possível de fato. De direito, é até possível, tanto é que escrevo: A e Ã. Então, de dentro do Haver, pensando sua neutralização e sua unificação radicais, podemos conjeturar, ainda que por escrito, seu sumiço. Mas, de fato, isto jamais comparece. *

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Estou partindo da definição freudiana de das Ding, do objeto que não

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há e que é o destino da Pulsão. O não-Haver não há, é conjeturável por mim por negação do Haver, mas é o único que é impossível absolutamente. Isto é um parti pris do ponto de vista freudiano. Toda a base do meu raciocínio é: há o Haver e o não-Haver não há. No entanto, o Haver, enquanto processo de simetrização, coloca-se o não-Haver como desejado, mas não o encontra de fato. E não há sustentação para paradoxo aí, pois o não-Haver não há. Ele é só conjeturado. E retorna ao Haver. Quando trato de um paradoxo em cima de uma frase, é preciso limitar-me, aprisionar-me sintomaticamente a determinado sentido dessa frase, se não, não há paradoxo algum. Isto porque, quando passei daqui para lá, avessei o significante e não me dei conta. Lacan resolve assim o paradoxo de Russell dizendo que não é paradoxo, pois o significante na primeira frase não é o mesmo da segunda. Eu, digo mais. Se inventar um “paradoxo” mais complicado, da primeira vez situo x e depois acho que há paradoxalidade na sua passagem para x na segunda frase, x nada tem a ver com x, é o avesso. Não há paradoxo, e sim transiência contínua. É preciso introduzir aqui a idéia de continuidade no processo. Não há, a rigor, nenhuma descontinuidade. Os próprios físicos do Big Bang não pensam em nenhuma descontinuidade, que a coisa veio, implodiu e depois explodiu. Mas, mesmo assim, estão colocando um começo qualquer, que podemos conjeturar por outros aparelhos da cosmologia contemporânea: não há descontinuidade entre algo que veio como Indiferença absoluta e, não podendo passar porque não há passagem, retorna sobre si mesmo e avessa internamente. É a massa de energia que morreu, no sentido “interno”, da qual falei da vez anterior. Ou seja, tornou-se indiferente: uma pasta radicalmente neutra de energia. No entanto, continua sendo energia, não fica parada, pois continua no movimento de querer o seu alvo: sumir. Vamos supor que isso vá se condensando até que tudo o que haja fique muito pequenininho na tentativa de desaparecer. Como não tem por onde, então, a implosão revira para o avesso, para a explosão. Ou seja, não podendo virar para o avesso que desejava, vira para outro: não tem Tu, vai tu mesmo. Posso, aí, sonhar junto com certa cosmologia contemporânea que pensa

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em deflação e inflação do Universo. Imaginemos que tudo o que há, o Universo inteiro, em zilhões de anos, vai morrendo, entrando em entropia, virando caos, indiferença, falta de ordem, energia pura. Ele morre aí? Assim pensava a termodinâmica, mas os atuais pensam que isso vai se comover e, outra vez, virar forma, ordem. Minha conjetura, a partir da teoria da Pulsão, é que isso vai se neutralizar e não pára aí. Mesmo na sua neutralidade, a partir de uma indiferença “interna” radical, vai exacerbar o que é fundamental: a diferença “externa”. A diferença não morre porque isso se torna indiferente, mas, justamente porque a diferença “interna” sumiu, a verdadeira diferença vai funcionar: entre Há e não-Há. No que o desejo disso é acabar unificando tudo, tentará unificar Haver com não-Haver, o que seria sumir, pois o não-Haver comeria o Haver. Isto não sendo possível, isso se restringirá ao máximo e, quando chega no ponto que chamo de Real, R, revira, passa para o avesso. Mas não para o avesso “de fora”. Não podendo criar simetria externa, re-cria simetria interna. O paradoxo é, pois, um artifício fajuto para paralisar o movimento que nunca paralisa. Não há paradoxo algum, pois basta destrinchar o processo e procurar as artimanhas de avessamento que estão sendo feitas ali. É como faz um poeta: ultrapassa a paradoxalidade e começa a inventar, na simetria. Se escarafuncharmos um paradoxo, ele começará a falar. Mas fala de uma maneira a que o Ocidente não está habituado. Fala, por exemplo, fazendo Alice atravessar o espelho, revertendo tudo e mostrando o mundo possível. O fato de este mundo não estar aqui e agora não tira sua possibilidade. " P – Você pode explicar mais o fato de o avessamento ser possível regionalmente, mas muito caro? O que são sonhos? Segundo Freud, são desejos que você realiza de maneira narrativa. Então, tanto faz estar dormindo ou acordado, você sempre está sonhando. A maneira de sonhar é que muda. Mas o que quer que você deseje, e que se lhe apresente difícil de atingimento, é algo que se pode conjeturar como o avesso de uma situação presente, se não, não se estaria desejando. Estamos sentindo calor aqui nesta sala, por exemplo. Meu desejo é avessar o calor, fazê-lo transformar-se em frio. Isto é impossível? Aqui e agora

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é, pois o aparelho de refrigeração está quebrado. Ou seja, há um preço. Se conseguir pagá-lo, resfrio a sala. A humanidade se acovarda ao raciocinar em termos de chamar de impossível absoluto o que é meramente impossível regional, modal. Se verifico que o preço a pagar para conseguir determinado avessamento, determinada simetria aqui e agora, é inexeqüível, isto não é necessariamente impossível. É-nos impossível voar, por exemplo. Mas o homem ficava olhando os passarinhos com inveja e se perguntando por que não tem asas, por que não pode voar. Passarinho não pensa essas coisas, mas eu penso. Então, num investimento muito grande de trabalho, de pensamento, de criação de recursos, etc., inventa-se o avião e voa-se. É nesta região que mora o poeta. Poeta não é aquele que fica escrevendo poesias. Ele pode, também, fazer isto. A região onde mora o poeta é a de não aceitar como impossível absoluto o que é meramente regional. E o homem pode sonhar isso. Trata-se de uma luta, de uma agonística, uma política, e também de um investimento de recursos a serem dotados. Que recursos temos aqui e agora para produzir o avessamento? Esta é a questão. Não há nenhuma impossibilidade, e sim que o que é de fato não foi feito. Então, o que acontece dentro do Haver é a política do possível. Mas quanto custa? Esta é que é a questão. Forças reativas, de resistência, às vezes nos impedem de realizar determinada coisa em determinado prazo. Isto porque não temos como pagar o seu custo, o que não nos obriga a reconhecer que haja impossibilidade. Aí, fico no partido das histéricas. Elas têm razão ao reconhecerem que o que quer que haja como falta dentro do Haver é da ordem da impotência, e não da impossibilidade. *

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Continuo, então, com o desenvolvimento do meu Esquema Delta. A massa de energia indiferente tentou passar, não conseguiu porque isto é impossível, no entanto, passa mesmo assim. É como se dissesse: Sei muito bem que o não-Haver não há, que o Impossível não é atingível, mas

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mesmo assim quero me avessar. E ela se avessa “para dentro”: a implosão revira ao contrário de si mesma, vira explosão. Mas isto não fica assim. Quando falo de explosão, estou apenas falando do movimento de expansão. É como se aí ainda não acontecesse nada como diferença interna senão expansão. Assim como, próximo do ponto A, do Esquema, quando houve aumento de entropia, nada aconteceu como diferença “interna” senão implosão. A partir deste ponto é que a coisa já está absolutamente indiferente. Não há mais nenhuma diferença “interna” nessa região. Mas aí se exacerba a evidência da diferença “externa”. Mesmo na sua indiferença “interna”, isso continua a caminhar – pois a diferença “externa” o causa, o atrai, o chama – e começa a se condensar. Quando chega ao ponto F, que é a marca do Real como falta dentro do Haver, há a experiência do Impossível, e ele continua nos seus aspectos de indiferença, mas expansiva. Ou seja, afastando-se do não-Haver, pois já “aprendeu” que ele não há. A partir de A, é uma neutralidade que sonha com o não-Haver e o quer. A partir de F, é uma neutralidade que tomou uma porrada do Real – Não há o não-Haver, volte para casa – e volta na mesma indiferença interna, mas em expansão. Expansão esta que quando chegar em determinado lugar – que chamo aí de A barrado, A/ –, por ser expansivo demais, começa a se fracionar. O que é expansivo torna-se explosivo e, aí nesse ponto, a energia começa a se diferenciar. Notem que não é em F, que é a região que a física e a cosmologia ainda não têm como explicar. Como é que essa neutralidade, essa indiferença, se espreme, não consegue passar, se expande de novo, e adiante começa a produzir todas as diferenças por explosão, por fracionamento, por diferenciação interna? Isto é mistério para os físicos, mas não o é para Freud. A comoção que o pessoal do Caos, por exemplo, percebe – a coisa entra em caos e, depois, ela mesma se ordena bifidamente – é a partir de F. A coisa que parecia morta, o Haver que parecia morto, porque era indiferente do seu ponto de vista interno, energia pura, mas que não está morto porque ainda deseja o não-Haver, vai se condensando. Aí dá com a cara no Real, que não é senão: não ter passagem e ter que voltar. É o limite do Haver: fora, não há nada, não há mesmo nem Nada. O Haver se expande de novo para, lá adiante,

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fracionar-se em diferenças, fractalizado. Tudo isso que é o mundo em que vivemos, o Haver que reconhecemos na face do Planeta e no Universo, é a diferença pintando a partir de A. / Ou seja, o Haver foi fracionado em diferenças. Então, tudo que pensamos ser enorme é simplesmente essa região de produção de diferença. A explosão vai fracionando cada vez mais, as diferenças se tornam infinitamente variáveis e vão se encaminhando a partir de A/ . Dentro do pedaço entre a produção da diferença e a da indiferença, a diferença primeiro se produz explosivamente e, depois, sofre de novo o abissal da entropia. Assim como, ainda no seio da diferença, aquilo explodiu, implode aí dentro também. Aí dentro é o jogo do que a ciência tem chamado de entropia e neguentropia, diferenciação e indiferenciação, vida e morte... Nesse pedaço entre A/ e A está, pois, todo o processo da nossa experiência cotidiana, que é: produção de diferença e eliminação de diferença. Chamando com mais rigor do que se tem chamado, mesmo na teoria psicanalítica, teríamos aí a agonia, a luta agonística entre Eros e Anteros, e não entre Eros e Tânatos. Tânatos seria se pudéssemos chegar a Ã. O movimento tanático é o movimento da libido, mas a Morte não há, não é possível. Se há Pulsão – que Freud chama de Morte – é porque o movimento tanático é para o desejado, para a Paz. Quero paz, quero nunca mais ter que me virar. Mas o que acontece é que vou ter que me virar, pois não é possível achar a Paz onde não tenha mais que me virar. E no que me viro, passo à explosão. Aí, dentro, entre A/ e A, é o campo da agonia, de uma agonística de sentidos, entre Eros e Anteros. Aí, há que fazer sentido, as coisas têm que significar, têm que fazer sentido. Ao contrário do que se pensa, o que é criador de Vida não é Eros. Por isso, fiz aquela brincadeira com Rrose Sélavie dizendo que ela é Aimée Sélamor. Há certa incongruência nessa frase de Duchamp que soa: Eros c’est la vie. Eros não é a vida, e sim sua extinção. Eros não cria nada, ele descria, apaga. Quando estou num movimento a favor de Eros, o que quero é eliminar a diferença. Por isso, o Amor não dá certo, pois, nele, o que quero é eliminar a

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diferença e me fundir com outro. Para dar certo, seria preciso que funcionasse na diferença. E o amor, na verdade, não quer isto. Mesmo que se diga o contrário, é mentira. Ele quer eliminar a diferença: quero ser aceito, compreendido, amado e reconhecido por um outro que reconheça direitinho, igualzinho, sem diferença. Ora, para conseguir isto, só por eliminação da diferença. E isto é mortal: é “erótico” demais, e mata. Assim, conseguiria me fechar e acabar com as minhas diferenças em relação a uma alteridade qualquer. Anteros é que é, pois, criador, e não Eros. É a região onde isso explode e cria diferença. Toda riqueza é antierótica, o que não quer dizer que não seja pura sacanagem... Não vamos confundir as coisas... Amoroso é cafona, e mata. Por isso, Fernando Pessoa dizia: “Não me amem porque não gosto!” Sua lucidez foi ver que quando alguém começa a me amar, vai me destruir, pois quer destruir minhas diferenças. Anteros é justamente o lugar onde criação, reconhecimento de diferença, respeito, pacto são possíveis. Essa mania amorosa que o Ocidente inventou, é a sua perdição. Está aí o cristianismo que não deixa mentir. Quando começamos a “amar o próximo”, estamos levando-o diretamente para o inferno, para o nosso inferno. A psicanálise nada tem a ver com esse cristianismo. A religião do amor é: cala a boca, elimina a diferença. E sabemos como foi e é a história da Igreja que se fez com essa religião. É: ou concorda comigo ou vai para a fogueira. Não há aí nenhuma perspectiva diferocrática, de aceitação, organização e pactuação da diferença. A psicanálise não está nessa. Aí fora, no corredor desta Universidade, há um cartaz engraçado onde lemos: “Psicanálise: quando o amor acontece, tudo se resolve”. Ora, vão para a Igreja, vão procurar uma religião para isso... O processo diferenciador, criativo, capaz de conseguir reconhecimentos, pactos sociais, como se diz – aliás, todo pacto é social –, é no processo antierótico. Mesmo essas coisas que chamamos de sacanagem – que é algo maravilhoso – são antieróticas, e não processos eróticos. Quando estamos na vertente criativa de um processo libidinal, não somos compatíveis com Eros, mas sim com a riqueza da diferença, de Anteros. Quando se resolve criar uma

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grande estrutura amorosa, cria-se justamente uma região de morte da diferença. Isto pode até ser eficaz. Na luta cotidiana do mundo, de repente, é preciso criar regiões eróticas para se poder, por exemplo, lutar com seu exército mais ou menos unificado contra outro. A diferença, aí, vai pintar externamente. É uma dinâmica complicada, pois freqüentemente há que reunir um conjunto de indivíduos numa relação erótica, que parece mortal internamente, porque externamente pinta diferença e a guerra se faz... graças a Deus. Não há paz. Trata-se sempre de como organizar a guerra. Na região de F, não há sentido algum. O campo entre A/ e A, que chamo de Campo do Sentido, é onde se faz sentido. Aí, são os lugares onde a gente, assim como o Haver, se dá conta de que só há um sentido: a Morte, que não é conseguida. Mas aí dentro, como a coisa vai se fracionar, este sentido, ou seja, este objeto do desejo, vai se modalizar. Vou querer morrer devagarinho em uma porção de objetinhos, que são mortais. Quero, então, me desgastar nesses objetinhos que, para mim, sem que me dê conta, são representantes do objetão que é a Paz que desejo. Quero conseguir um objeto que me dê a Paz: morro, não penso mais... Mas esses objetinhos são extremamente hipócritas, fingidos. Sempre os xingamos em todas as relações: eu pensava que você fosse outra coisa. Nunca pensei que você fosse isso. Sempre foi. Um dos maiores sofrimentos do Ocidente é que se vota tanto no amor, que só dá em desgraça. Fica-se querendo tanto que o outro seja aquilo, que só se vive quebrando a cara. Essa vontade amorosa só leva para o inferno. Seria muito mais interessante se pudéssemos estabelecer pactos com pessoas diferentes e regiões de distanciamento, de não-atrito, para dar para conviver. Se não, a mutilação virá, como vem no seio do Haver. Na guerra, morre-se muito. É a polêmica de entropia comendo para cá as diferenças e neguentropia brotando daí. É como se isso tivesse as características – que alguns cosmólogos, hoje, começam a pensar – de ser, de um lado, buraco negro e, de outro, buraco branco. De um, chupa toda a neutralidade, de outro, cospe a diferença. Isso constituiria um grande motu perpetuo, essa coisa que a humanidade sempre quis inventar em casa. Não dá, pois, aí, é regional. Só

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podemos ter um motu perpetuo na plenitude do que há. Aquilo jamais parará, estará eternamente girando: a energia é constante, não desaparece, e não tem desgaste para fora. A entropia só existe internamente. Para fora, não tem fora. Então, nada se gasta, pois o não-Haver não há. O Universo não tem a menor despesa, é absolutamente gratuito. Deus vive de graça: não gasta um tostão, e sim transforma. Para nós outros, que somos regionais, as transformações parecem desgastes, mas não desgastam absolutamente nada. A indiferença vai-se montar lá adiante e a diferença externa vai obrigá-la a se movimentar. Esta seria a estrutura do chamado Pleroma, desse Esquema de dentro do qual posso retirar os elementos da teoria psicanalítica, encaixar os conceitos, etc. Sua explicação continua longamente... *

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" P – Você re-colocou a questão de Deus. Como isto se situa em relação à teologia? O Deus, que não pode não ser conjeturado segundo o pensamento psicanalítico, nada tem a ver com os deuses das teologias, que são compactos e são a ultimidade do processo. Esse Deus, no campo da filosofia, sofreu metamorfoses enormes. Aí, dentro da filosofia oficial, pelo menos, a que a universidade se permite – pois tira-se do campo certas filosofias que os filósofos, não sei por que, consideram espúrias, como, por exemplo, Jacob Bohème, essa patota, que estão bem mais perto –, quem mais se parece com esse Deus que coloco é o de Spinoza. Ele faz todo um desenvolvimento de sua teologia para equacionar Deus na igualdade com o Haver: Deus é o Haver na sua plenitude. Não é o meu caso. Não há nenhum Deus pessoal. E minha idéia de Deus não é, também, coincidente com o Haver, pois essa subjetividade que poderia aparecer no seio do Esquema, no seio desse pensamento, é justamente no confronto do Haver, em todos os seus processos de metamorfose, com o nãoHaver. É entre Haver e não-Haver que faço suposição de Sujeito.

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Spinoza disse: Deus, sive natura: Deus, ou seja, a natureza. A minha frase seria: Deus vel natura. O ou do sive quer dizer: a mesma coisa. O vel quer dizer: a mesma coisa, mas, também, ou isto ou isto – é ambíguo, é um vel de interseção. É entre um Haver e um não-Haver que coloco essa “subjetividade”. Deus é desejante, é desejo puro. Se é assim, não pode ser a babaquice mediante a qual nos é apresentado: onisciente, onividente, onipotente. Isto porque Ele também só sabe depois. Ele sofre das mesmas mazelas que sofremos, só que seu porte, seu escopo, é infinitamente maior. Então, sou um deusinho de merda e Ele é um Deusão. Sou um sujeitinho minúsculo, com as mazelas todas da minha posição subjetiva e mais as da minha parciaridade. O Deusão, o Sujeitão, sofre das mesmas mazelas, só que abrange tudo: o seu corpo, o seu escopo e a sua corporeidade, seriam a plenitude do Haver. Mas Ele não é isto, e sim o movimento que existe entre o desejo disso e o objeto desse desejo que não-há: logo, não é maior nem menor do que Eu. Como num holograma do Sujeito. Deus, como Lacan definiu, é inconsciente como eu, e não onisciente. O fato – que está na Teoria do Caos, por exemplo – de isso entrar em movimento de caos, onde nada determina para mim qual será a saída, pois não há como acompanhá-la, só me deixa saber depois que tais ou quais saídas são razoáveis em função do que vinha antes. Portanto, não posso prever. Nem Deus pode. Ele também brinca, também está jogando. Deus não sabe qual será a conseqüência de seus movimentos. Ele é tão ignorante quanto eu, ou melhor, é talvez mais. Minha ignorância é do tamanho de tudo que não sei: é o avesso do meu saber. Se imaginarmos que Deus sabe mais, sua ignorância será muito maior, gigante. Mas não é: é igual. As teologias tentaram pensar a questão de uma subjetividade que percorre o Haver, mas a situaram em modelos, retratinhos, que salvassem a responsabilidade dessa abertura. Deixaram, então, a espécie humana em derrelicção diante de um Deus onipotente, onividente, que só pode ser um perverso. Se já estava sabendo de tudo, por que então está me sacaneando? O Deus, no meu Esquema, coitadinho, é absolutamente inocente, não sabe bem o

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que vai acontecer, também está no jogo. Ele é tão inconsciente quanto eu e está brincando comigo de ver o que acontece. É uma grande brincadeira. Doa a quem doer.

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6 VERBUM: KAOSMOS Gostaria de chamar atenção para o fato de que estou fazendo um breve resumo de coisas que já foram tratadas longamente em Seminários passados. Então, está muito resumido, sem que eu tenha tempo de apresentar detalhes e demonstrações, mas o acesso é possível, pois as bases já estão publicadas. *

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No Esquema do Pleroma, já mostrei o destino fundamental da Pulsão, enquanto Pulsão de Morte, no sentido do não-Haver. Mostrei a curvatura que isto sofre na medida em que o não-Haver não há: o reviramento da massa indiferente no seu simétrico, no seu oposto, que é justamente a explosão; a passagem desta para a fragmentação, que vai bater lá em cima, no Campo do Sentido; e, depois, sua implosão no jogo de entropia com neguentropia. O retorno, portanto, à indiferença interna nessa massa energética indiferenciada e, daí, a tentativa, outra vez, de alcançar o não-Haver e, novamente, dando com a impossibilidade. O retorno é eterno: isso não tem começo nem fim, não acaba, apenas se vira, se transforma, para sempre. Gostaria de colocar, agora, as categorias básicas. É preciso certa atenção para não confundi-las com categorias com o mesmo nome apresentadas por Lacan. A origem de tudo isso é o desenvolvimento reflexivo de Freud e Lacan, mas diversas categorias situadas com o mesmo nome não correspondem conceitualmente às mesmas coisas.

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Uma vez que a massa energética não pode chegar a não-Haver, pois ele não há, a coisa explode de novo. O momento de deflação/inflação que passa pelo ponto central, a que chamo de Real, R, após a explosão, vai sofrer uma fragmentação, a qual – esquematicamente, é claro – se daria a partir do que ali está notado como ponto A/ . Neste ponto, as coisas se partem de certo modo e dentro de certa lógica, que apresentarei depois. Isso vai se fracionando: o movimento é transmitido de explosão. Podemos imaginar, ainda que meio caoticamente, como se fosse um efeito cascata, de fogos de artifício: aquilo vai se abrindo, explodindo em fragmentos. Vai nascendo um universo multifário de diferenças, que é aquele em que vivemos e onde as coisas começam a fazer determinados sentidos, perdendo aparentemente o sentido originário, que era de se encaminharem para o não-Haver. No jogo de entropia com neguentropia, lá no ponto A, é como se isso perdesse outra vez a diferença – por entropia que vai se tornando quase absoluta –, recaísse de novo no estado de indiferença interna, sobrando apenas a diferença externa que vai comover essa massa no sentido de esbarrar outra vez com o Real do seu reviramento para si mesma. O importante, quanto às categorias, é situar o que Lacan tanto prezou: real, simbólico e imaginário. Resumidamente, ele tenta definir o real de dois modos, que são um pouco equivocantes no seu confronto: (a) é o que é impossível de ser escrito na estrutura, ou seja, designao como impossibilidade; e (b) é o que retorna sempre ao mesmo lugar, ou seja, quaisquer que fossem as peripécias dos eventos, ele estaria sempre retornando com sua freqüência de algo inarredável, e estaríamos sempre esbarrando com ele. Ele também define como sendo da ordem do real as coisas do mundo tanto (a) na sua característica de não-inscritibilidade, daquilo de que nada podemos dizer, o indizível, quanto (b) na sua dureza, de algum choque que se tenha com ela, intelectual ou físico. Isto me parece misturado na medida em que a filosofia tem o mau hábito de chamar de real as coisas que se nos comparecem. E nos traz um problema muito sério no que diz respeito, por exemplo, à alucinação. É claro que há um real da alucinação, e aí a coisa fica complicada... Recuso-me, a partir da esquemática que estou apresentando, a nomear

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o Real assim. Real, R, para mim, é, dentro do Haver, apenas a possibilidade de atingimento de uma Indiferença radical, a qual é para além mesmo da indiferença interna existente na massa. Ou seja: o momento em que algo não podendo nãoHaver revira sobre si mesmo e se transforma no seu avesso. Isso teria algo a ver com o ponto sobre uma superfície unilátera – a banda de Moebius, por exemplo – que a matemática supõe como sem sentido, sem possibilidade de definição, de fração, etc. É um ponto absolutamente não situável e cujo sentido não é determinável (pela matemática). Chamo, pois, de Real essa condição de, em algum momento, a coisa revirar sobre si mesma e retornar ao seu mesmo lugar. E isto ocorrendo nos chamados mundo físico ou mental, que, para mim, são a mesmíssima coisa: é tudo material. Esse ponto, onde, não podendo passar a não-Haver, reviramos e avessamos o processo – se não tem Tu, vai tu mesmo –, e retornamos ao estado anterior, é ele e só ele, que chamo de Real. As durezas que encontramos no mundo, não vejo motivo algum para chamá-las de real. Mesmo porque, por algum modo, elas são abordáveis, fracionáveis, capazes de serem invadidas. Ou seja, não posso confundir minha impotência técnica diante de uma realidade, se quiserem, com o real disso. Lacan tenta impor a diferença entre impotência histérica e impossibilidade analítica, por exemplo. Para mim, isto está mal discernido, pois Impossível de fato e de direito só o não-Haver. O que quer que nos pareça de dureza impossibilitante, aqui e agora, de uma penetração, é apenas da ordem da impotência. Nesse ponto, estou de acordo com as histéricas e com a ciência. O conceito de Real é, pois, o que está em jogo no ponto R. Não há nenhuma outra possibilidade de chamar de Real o que quer que não seja esse lugar e esse momento de reversão e avessamento. O Real é como se fosse o movimento interno de reviramento funcionando como a parede de não haver externalidade e com a qual o Haver bate. A parede é o próprio Haver, na medida em que tenta passar para um fora que não há. *

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No que essa coisa explode, quer dizer, no que revira, no que passa outra vez pelo Real porque nele ricocheteou, isso explode e vai bater num lugar de fracionamento, A/ , e que é onde escrevo o Simbólico, S (de sym-bolé, ser lançado junto). Vejo, às vezes, algumas pessoas, que acompanham meus Seminários ou lêem meus textos, confundidas por não notarem que, em certos momentos, estou me referindo ao simbólico de Lacan, e não ao meu. Aí, fica uma confusão dos diabos. É preciso manter a distinção. O simbólico de Lacan é próximo disso que corriqueiramente chamam assim, pois ele está tratando não da plenitude do Haver, onde meu psiquismo está inserido, e sim estritamente da estrutura psíquica do falante. Em todo o percurso da obra de Lacan, podemos ver que o que nomeia como simbólico é, na verdade, estritamente da ordem do metafórico: a função de o falante poder usar, substituir, uma coisa por outra. Sobretudo, substituir o nome de uma coisa pelo de outra. E é exatamente assim que ele define a metáfora. A metáfora, para Lacan, é a substituição significante (no sentido lacaniano) de um significante por outro. Isto na medida em que haja uma espécie de significante intermediário que, mesmo escamoteando o sinal de igualdade para evitar alguma correlação com a analogia, ele não deixa de escrever assim: S1 S2

S1 S2 = S3 S3

Aí temos que S1 está para S2 assim como S2 está para S3, elimina-se o S2 e teremos S1 sobre S3. Ou seja, faço uma substituição de S1 por S3 porque, na verdade, utilizei um significante intermediário. Lacan evita o sinal de igualdade para as pessoas não trabalharem “imaginariamente”, segundo ele, a partir do conceito de analogia. Naquele momento, ele precisava distinguir o analógico do simbólico, pois queria dizer que não é por nenhuma analogia que se dá nome a determinado objeto em função de uma transformação metafórica, e sim por uma pura e simples substituição significante.

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Mas se não há analogia entre os substituídos, há semelhança formal no modo de substituição. Ou seja, o modo de operação da criação da metáfora, em Lacan, não deixa de ser analógico ao modo de operação da criação da analogia. Se coloco um terceiro, a coisa fica um pouco diferente. Lacan quer dizer que sua substituição significante não é por analogia. De fato, se tomo os significantes, não há nenhuma analogia neles, mas se tomo o modo de operação dessa substituição significante – o modo de operação de uma analogia: isto está para isto assim como aquilo está para aquiloutro –, com essa terceira posição, posso ver que: a substituição significante, em Lacan, enquanto metáfora, assim como os processos de produção de analogia, são da mesma ordem lógica de subtrocar algo por algo em função de um terceiro elemento. De qualquer modo, ainda assim, não estou compatibilizando a definição que dou de Simbólico com a de Lacan. Tudo que encontrarem em Lacan com o nome de simbólico, chamo de metafórico. Ou, se quiserem um pouco mais sutil, já que ele usa os processos de metáfora e metonímia como fundamentais do psiquismo ou da linguagem, poderíamos chamar de metaforonímico, juntando numa palavra só. Na verdade, é o processo metafórico. Mas como esses processos estão sempre mais ou menos apegados um ao outro, podemos, pois, dizer que o simbólico de Lacan tem como modelo o que acontece no campo da língua como processo metáforo-metonímico, ou processo metaforonímico. A definição de Lacan parte de uma das possibilidades antigas em que simbólico é: a troca de uma coisa por outra. É como uma coisa representando outra que não é ela mesma. Minha definição parte de uma das possibilidades arcaicas, que me parece mais de acordo com o nome Sym-bolon: o fato de se utilizar como símbolo determinada coisa partida em duas. Usou-se muito isto, na história da humanidade, como uma espécie de senha. É o caso de quando estou representando determinada coisa mais ou menos secreta – seja da ordem do governo, seja da criminalidade, pouco importa: é a mesma coisa, no caso – e recebo, por exemplo, metade de uma moeda para, quando encontrar aquele com quem falarei a respeito do assunto, poder conferir se ele tem a outra

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metade. Aí, encosto as duas: se encaixar direitinho, aquele é o representante daquilo de que estou falando. Ou seja, fiz aí uma simbolização a respeito de determinada coisa: juntei as duas metades da representatividade da coisa. Simbólico, para mim, é: aquilo que se parte ou que se junta, tanto faz. Não é a coisa estar separada ou junta que importa, e sim aquilo que de inteiro vira partido ou de partido é possível virar inteiro. É a conjunção/disjunção de duas partes. Desse arrebentar-se, fracionar-se em duas partes é que vem a mania de oposição, de pensamento binário que temos. Parece mesmo que até os artifícios da chamada natureza, até segunda ordem, funcionam de maneira binária: macho/fêmea, claro/escuro, quente/frio, etc. Isto com todas as nuances, é claro, mas a binariedade parece estar inserida em todo o Campo do Sentido, que é a construção da diferença dentro da qual vivemos. A coisa vai se partindo binariamente, portanto. Como é fracionada, vai constituindo pequenos nódulos de significação, os quais, na verdade, eles sim, são metafóricos. Ou seja, seguindo a definição de metáfora, de Lacan, e adscrevendo a esta definição o conceito de simbólico, eles são: sintomas. A definição de sintoma, para Lacan, é a de metáfora. Ou seja, repetindo, o simbólico de Lacan é da ordem do metafórico e, portanto, do sintomático. O Simbólico de que falo é da ordem de algo que se parte, se fraciona num aspecto (só) aparentemente binário. Mediante isto é que encontro esse mundo de oposições tanto na lingüística, como na biologia, na física, etc. Então, a partir do ponto A, a massa indiferente passa pelo Real e explode em simbólico. Como a explosão é em cascata, estamos aí no reino da diferença, da proliferação das diferenças por partições de coisas que eram anteriormente neutras e que, fragmentadas, vão se tornando pequenos nódulos sintomáticos e uma criação infinitamente grande de diferenças. O mito de Aristófanes, embora mal narrado, é mais verdadeiro do que o de Lacan. Isso tudo, no sentido interno, é movimento de neguentropia. A diferença está proliferando, mas vai perdendo sua força de explosão. Mesmo porque o movimento explosivo continua sempre para frente, mas no sentido de não-Haver.

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É como se – e o mostrarei em outro momento – o Real se repetisse lá em cima, em diversos movimentos, entre entropia e neguentropia, só que fracionado, e não por inteiro. Isso vai, digamos, “morrendo”: as diferenças vão desaparecendo, aquilo se aglutina de novo, o que é sym-bolon, posto junto, ou seja, que foi separado, se ajunta de novo. No movimento de ajuntamento, de “morte” das diferenças, quanto mais as diferenças vão morrendo, mais nos aproximamos do ponto A. É aí que coloco o meu Imaginário, I, que também é radicalmente diferente do de Lacan. O que Lacan chama de imaginário é o que, para ele, vive apenas do recurso da analogia, da semelhança. Ao contrário de seu simbólico, que vive do recurso da substituição independentemente da analogia. Acho difícil sustentar isto por muito tempo, pois o processamento da metáfora, mesmo arbitrariamente, se faz por via do modo de operação da analogia. Por isso, fica difícil distinguir o que é imaginário do que é simbólico quando um sujeito está falando. E as pessoas vivem perdidas dentro disso. Virou apenas uma maneira de falar: “fulano acha que é simbólico”... “sicrano acha que é imaginário”... “é preciso simbolizar” – essa baboseira toda que se fala no “campo lacaniano”, sem nenhuma precisão. O meu Imaginário é no sentido de que, por alguma coalescência, algum estancamento do movimento de diferenciação, a coisa se empacota. Ou seja, no que a diferença pifa, a coisa cai no Imaginário. Há vários modelos disto, que teremos que desenvolver mais para frente, pois hoje estou apresentando apenas as bases. Portanto, temos: " O Real enquanto estritamente o lugar de absoluta indiferença, pois além de já haver a indiferença “interna” anterior, no movimento de partir para a diferença “externa”, isso revira sobre si mesmo. Então, o Real está no ápice, no cúmulo de momento neutro: neutralidade radical. " Isso continua, se expande e explode: bifidiza-se, torna-se aparentemente

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binário. (Aparentemente, porque não o é: nós é que temos o hábito de ver o mundo como binário). Passamos, assim, ao Simbólico. Toda vez que posso pegar algo e cindir em constituintes, quem sabe mesmo se opositivos internamente, estou tratando do Simbólico. Por exemplo, sou aparentemente uma pessoa só, mas entro em contradição comigo. É nesta contradição que estou metido no Simbólico, e não quando estou inteiramente afetado do Imaginário da minha completude. Quando a diferença vai desaparecendo – ou porque fiz a conjunção outra vez do cindido, ou porque tomei algum pedaço, algum sintoma, como sendo, ele, uma inteireza que não quero repartir outra vez –, aí sim, estou no campo do Imaginário. Daí, então, a coisa se empasta e não tenho nada a fazer senão tentar me encaminhar para o Real para retornar ao Simbólico, e assim por diante... *

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O que acontece quando isso vem e bate com o Real? O que acontece nessa explosão? O que se poderia categorizar aí nesse lugar? Para tratarmos disso, é preciso retomar também outros conceitos de Lacan (que trabalharei melhor na próxima vez): o Falo, que já critiquei brevemente, e a função fálica, que é outra coisa que fica mal na obra de Lacan. O conceito de Falo, mesmo tendo sido relativizado depois, tem, no pensamento de Lacan, assentamento inicial sobre certa pregnância etológica do macaco, que vive no macacão que a gente usa: o tal de corpo, ou porco, humano. E o conceito de função fálica fica valendo como a aplicabilidade possível dessa falicidade demonstrada simbolicamente, e que entrará no jogo de ser ou ter para a sexualidade. Isto é uma espécie de concessão dramática à ordem do etológico: é coisa de macaco. Uma das denúncias sérias que, com essas reflexões, pretendo fazer à psicanálise, é de ela ainda ser muito pobre, ou seja, de vir trabalhando com operações que são da ordem do mental, do psíquico, do humano, seja qual for o nome que se dê a essa diferença esquisita,

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como se estivesse trabalhando com macacos. Está fazendo concessões exageradas ao que uma mera etologia pode resolver. Estou tentando refinar um pouco mais o que é da ordem do psíquico humano, do que interessa à psicanálise, da especificidade do ser falante, e limpar o mais possível a área do que seja importação de teorias mal feitas em outras áreas. Uma etologia incipiente forneceu elementos parcos na construção da teoria psicanalítica de tal maneira que quando abrimos muitos (se não a grande maioria) dos livros de psicanalistas contemporâneos, vemos que estão tratando é de etologia, e não de psicanálise. E mesmo “grandes” autores. Não pensem que eles são estúpidos ou que tiveram má vontade. É simplesmente uma questão de protocolo teórico. A partir do que era disponível no seu momento, no sentido de produção científica, de pressão recalcante do ambiente científico, social, etc., o que puderam fazer foi isso. Ninguém é de ferro, e mesmo aqueles que pensam, pensam sempre muito mal. É normal. Exatamente como estou fazendo... A gente pensa muito mal. Mas o que seria função fálica se nos afastarmos do que Lacan assim chama e designa pela mostra, pelo exibicionismo, de uma entidade simbólica capaz de representar, na verdade, em última instância, o poder de se representar como desejante? Em Lacan, o significante F é, em última instância, o puro e simples significante do desejo, mas a história de sua montagem me parece etológica demais. Ou seja, ao invés de nos basearmos no Falo como significante puro e simples do desejo, somos levados a entrar no processo etológico mediante o qual ele constituiu isso. Então, ficamos nessa coisa de machinho, que nada tem a ver. Assim como Freud escreveu sobre Édipo, e as pessoas, como sempre, se esquecem de que, com aquilo, estava tentando representar determinada lógica, e o que fica é uma anedotinha do débil mental do Édipo, que nada tem a ver. Para evitar este tipo de coisa – o que só é possível depois de Lacan, obviamente – é que suponho que o movimento desejante é o movimento que está sobre o meu Esquema, e o designo como função fálica: a relação do movimento desejante com seu interesse no último dos objetos, no não-Haver. É o movimento do desejo para não-Haver, o qual é constituído da energia

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libidinal. Estão aí, então, as definições de desejo e de libido. Qual é, pois, a função fálica que está em jogo o tempo todo dentro do Haver? É desejo de não-Haver. Pode lhes parecer que estou definindo a mesma coisa com vários nomes. E é mesmo, pois a coisa é uma só, a funcionalidade é que é diferente. O movimento desejante se chama libido. O destino impositivo desse movimento para não-Haver, chama-se Pulsão. A relação do movimento pulsional com o não-Haver como destino é a função do desejo, da libido e da pulsão. É a isto que chamo de função fálica, a qual, portanto, tem a ver com o desejo assentado na sua massa libidinal, designado por um fim. Portanto, ele passa a ser pulsional na medida em que procura gozar, procura gozos. Na verdade, procura o gozo absoluto. Ou seja, então, falo em função fálica quando encaro o desejo do ponto de vista da sua vontade de gozar. É a mesma coisa, o mesmo movimento. Estou analisando e nomeando pelas funcionalidades. Há toda uma energia libidinal, a cujo movimento chamo desejo. Há a designação do destino da libido, que chamo pulsão, a qual é esse movimento destinado. E há a intenção de gozo, de atingir mesmo o não-Haver, que chamo função fálica, a qual é intenção de gozo. Isto é muito importante para, por exemplo, entendermos a diferença entre liberdade e poder, que se faz por movimento libidinal e potência, possibilidade, de gozo. Poder é: poder gozar. Freqüentemente se confunde liberdade com o fato de “ter o poder de...” Mas não, estou livre simplesmente quando desejo: sou absolutamente livre para desejar. Se vou conseguir, é outra coisa: aí, é preciso o poder de gozar segundo esse desejo. A função fálica, então, para mim, é a relação, na intenção de gozo, do movimento do desejo com seu alvo, que é inatingível. E esta função está sempre em exercício através de todo o périplo desse movimento. *

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A função fálica – que, como Lacan, noto: #x – está em exercício em

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qualquer momento, só que é diferenciada em três estados a que chamo de estados do Haver. O Haver pode estar no estado de Real, no de Simbólico e no de Imaginário. Mas entre um e outro, esses movimentos parciais estão adscritos à libido, à função fálica, à pulsão, etc. A função fálica, pois, na diferenciação que estabelece entre esses campos, sofre modificações, se diferencia. A função fálica pura e simples é tentar chegar à realização, ao poder de realizar a fantasia primordial de Haver. Como sabem, Lacan escreve o matema da fantasia como $!a, $ punção de a, que se lê: Sujeito desejo de objeto. O que chamo de fantasia primordial é: o Haver deseja o não-Haver, A!Ã. Quer dizer, o Haver vive de fantasia, que ele jamais realiza como tal. Este é seu movimento. O objeto desejado, a causa – e não importa se é antes, depois ou só-depois do seu movimento – é o não-Haver. A fantasia que o Haver carrega o tempo todo é, pois: o Haver deseja o não-Haver. A função fálica é a que permite o movimento desejante no que diz respeito ao alvo a ser atingido, à designação de gozo. Ela caminha por aí o tempo todo como função fálica, mas, como já disse, dentro de seu périplo, se diferencia entre esses estados. O que Lacan chama de Gozo-Fálico – e que torna as coisas tão apropriadas à ordem do macaco, pois as pessoas pensam que é gozo de macho, ou seja, essa coisa que se chama de ejaculação, que pode até ser Gozo-Fálico, mas, de repente, pode não ser, dependendo do caso: nem todo mundo que tem um pênis está gozando falicamente –, cuja designação matêmica é: JF, jouissance phallique, é a meu ver, muito flou do ponto de vista das experiências, embora matemicamente bem situado (para Lacan). O Gozo-Fálico, para ele, reduz-se à completude, à universalização de determinado projeto. O Gozo-Fálico, para mim, é o gradiente da função fálica entre o Real e o Simbólico. No momento em que se passa pelo Real, neutramente, na tentativa de ir para lá, revira-se e se explode outra vez, e é este movimento expansivo que chamo de Gozo-Fálico. Ou seja, revirou, expandiu no sentido da simbolização, da partição, é nisso aí que está o Gozo-Fálico. Se pensarem bem, verão que se parece muito com essa coisa que chamamos de orgasmo. A mim pouco importa se é macho ou fêmeo, pois é igualzinho. Os lacanianos dirão que

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não, pois, não sei por causa de quê, acham que as fêmeas não tem as coisas... Lacan só colocou dois gozos: o Gozo-Fálico e o Gozo-do-Outro. Este último seria o Gozo-Fálico decepcionado na sua impossibilidade de compleição, o que ele adscreve ao feminino. É, pois, numa outra lógica, feminina, um gozo que se desarvora um pouco, que não encontra senão referência dupla, ou coisa dessa ordem. Na medida em que não pode se universalizar, não se completa como algo universalmente tomável como um no sentido aristotélico. Isto ficará mais claro quando falarmos da sexualidade. Em função da tripartição do meu Esquema é que coloco um gozo além dos trazidos por Lacan. Trata-se do: Gozo-do-Sentido, J$, que é o gradiente que toma a função fálica dentro do processo da diferença, da partição. O puro e simples fato de haver expansão no sentido da partição é que é Gozo-Fálico. Gozo-do-Sentido é, pois, conseguir bater ponto a ponto com determinada produção de pequena diferença no interior da ordem sintomática. Lacan adscreve o Gozo-Fálico ao significante S . Ele diz que não há 1 gozo sem adscrição significante: a causa do desejo é o objeto, mas a causa do gozo é o significante. Para determinado indivíduo existe determinada significância, a partir de determinado significante, que é causador do GozoFálico, ou mesmo de qualquer gozo seu. O que chamo de Gozo-Fálico não é adscrição a nenhum significante, e sim a expansão no sentido de alguma partição que, lá adiante, aí sim, tomará sentido sobre determinado significante e adscreverá a possibilidade de puro e simples Gozo-Fálico a determinada ordem de sentido parciário, diferencial. Mas vamos agora no grosso, no cotidiano. Nêgo goza!: ele se masturbou, trepou – isso é um direito dele – e gozou! Ele goza sempre adscrito a algum significante, o qual pode estar ligado diretamente a todo o percurso de sua história (infantil, etc.), ou pode até ser modificado com relações com a massa significante. O que bate é que aquilo toma sentido na ligação com determinado significante (no sentido de Lacan, ainda), com determinada significação de gozo ali. Isto, para mim, é: Gozo-do-Sentido. O Gozo-Fálico é a expansão que permite isso, a qual vai bater num determinado sentido. E ali encontramos o

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Gozo-do-Sentido. Esta diferença é importante, pois quando se retira este gozo da estrita comoção corporal relativa à ordem orgásmica, pode-se encontrá-lo funcionando, por exemplo, de maneira que as pessoas costumam chamar de sublimatória, na produção de um poema, de uma obra de arte, de uma sublimação qualquer. O cara, então, tem um movimento expansivo estritamente dentro da linguagem, goza para valer, falicamente, e adscrevendo depois um sentido a isso e produz um poema. Aí houve Gozo-Fálico e Gozo-do-Sentido. Não é preciso estar só trepando, pois a gente não pára de trepar. Nem estou sendo original. É como Lacan dizia: “Agora estou falando, não estou trepando, ou seja, estou trepando”. Os dois gozos estão na ordem do sentido no que são adscritos a determinada significância, mas ambos têm a sua materialidade própria. O fato de meu corpo ser vampirizado pelo sentido no momento em que tenho orgasmo não é menos materialmente dado do que serem vampirizados a linguagem, meu cérebro, meu desgaste energético na produção de uma escrita. Os dois são materialmente dados, cada um num nível diferente. Não costumamos chamar o Gozo-Fálico ou o Gozo-do-Sentido adscrito à ordem orgásmica de sublimação porque Freud começou daí. Ele a definiu por ocorrer quando se troca de objeto, pois não se troca o desejo nem o gozo. Apenas, dá-se uma voltinha: não pode aqui, vai ali. Mas se o conceito freudiano de sublimação é possível, não estou falando da mesma materialidade, da mesma organicidade? Não passei de um orgasmo para uma cirurgia? Não tenho que ter um engate (digamos:) “psicossomático”? Se não, Freud estaria dizendo asneira. Se posso acreditar que, ao invés de trepar, escrevo um poema, é porque simplesmente desloquei a mesma energia sobre outra materialidade, outro órgão. O gozo do órgão não é o gozo do Falo. Isto é uma coisa que Lacan ficou careca de repetir, mas, dado o protocolo teórico que utilizou, as pessoas vivem confundindo isso. Se não é, pois, o gozo do órgão, como não vou encontrar Gozo-Fálico numa produção artística? Encontro sim. Está lá: mudou só de materialidade. Assim como posso encontrar Gozo-Fálico adscrito ao órgão por

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diversos sentidos: o sentido pode variar à vontade. Se o sujeito não for muito sem imaginação, nem muito obsessivo nas suas perversõezinhas cotidianas, ele poderá ser capaz de gozar baseado em várias estorinhas. Ele ficará devaneando e inventando sacanagem. O obsessivo duro não pode, pois só goza pelo mesmo lugar, tadinho. No que a função fálica se encaminha para realizar-se para valer, ou seja, passar direto para não-Haver, e quebra a cara, em nenhum momento ela fica mais exasperada do que aí. É quando está mais longe desse atingimento que ela é mais exasperada. Por isso, coloco aí: Gozo-Fálico, J#. No que se quebra a cara porque é impossível gozar absolutamente é que se retorna com mais veemência de desejo de não-Haver. Aí há a expansão para, outra vez, querer aquilo de novo. É a repetição pura e simples. Aí está o conceito de Repetição, de Freud, enfiado dentro do Esquema. Repetição pura e simples é essa tentativa eterna sem conseguir. É preciso que haja não-consecução, pois, se conseguir, o sujeito vai querer mais para quê? Por que o sujeito não trepa e goza de uma vez por todas? Porque gozou só um pouquinho. Quando o cara diz: “Gozei paca!”, é mentira, foi só um pouquinho. Se gozasse mesmo, não voltava nunca mais. Seria a felicidade. Gozava e nunca mais se trata deste assunto horroroso. Como não tem tudo, a gente aceita um pedacinho... É apenas isto o conceito de Castração. Não é preciso cortar o peru de ninguém , não é necessária nenhuma violência a mais do que a que já existe. Castração, foi a maneira de Freud representar esse teorema em conformidade com a mitologia grega. Trata-se aí de que, no que é impossível gozar absolutamente, goza-se relativamente. E ponto. Isto tem rebarbas no interior do sentido. Em nossa vida essa impossibilidade e essa limitação vão criar uma série de pequenos ecos dentro do nosso cotidiano, com várias limitaçõezinhas que são sintomáticas, relativas a pequenas organizações sintomáticas. E o tempo todo precisamos nos dar conta – ou seja, operar-se dentro da castração – de que aquele gozo, aquela relação, isso não há, não é possível: Se manca e goza o pouquinho que você

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pode, o máximo que puder, mas é sempre pouco. É o peu de realité, de nosso caro André Breton. *

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Entre, A/ e A as realidades se possibilitam (sintomaticamente) e no que as diferenças entram em decadência, passamos ao que Lacan chama Gozodo-Outro. Ou seja, na medida em que, internamente, as diferenças começam a não interessar mais, vai-se exasperar para mim a verdadeira Diferença, entre a indiferença “interna” e o não-Haver que está “do lado de fora” como radicalidade de diferença. Eu continuaria (com Lacan) colocando aí o chamado Feminino. Não é que as mulheres sejam esses seres horrorosos, desprovidos de piroca, como parece que todo o machismo diz. Não é que não andem aí no Campo do Sentido. Ao contrário, andam muito bem, e como andam. É que estar na posição feminina é, de certo modo, estar indiferente às diferenças internas e voltado exasperadamente para o gozo radical. O Masculino parece mais apropriado ao criativo, porque justamente está voltado ao gozo parcial. Ele se interessa rapidamente: Não tem Tu: vai tu mesmo, vamos ver por onde é que a gente goza. Fica uma coisa ativa e criativa. E isto vai dar em algum sentido, em alguma colocação de significância, mesmo que adscrita ao gozo chamado orgásmico. Passar ao Feminino é ter certa indiferença por esse gozo tão babaca, tão mixuruca. É querer gozar mesmo, de fato e de direito, no absoluto. Só que isto é impossível. Por isso, encontramos o Feminino tão fracionado. Onde ele aparece com sua maior grandeza e sutileza é no gozo dos místicos. Não estou falando dessas histéricas que dão chiliques religiosos, e sim de gente séria, desses que visam o gozo absoluto em relação com Deus, ou sei lá com quem... Eles não fazem por menos: Santa Tereza – Vou trepar é com Deus, o resto não interessa –, São João da Cruz, que nem por ser do sexo macho era menos menina... Eles estão nesse gozo, nesse tesão desenfreado de banalizar e achar

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muito mixuruca todos os gozinhos que se lhes oferecem como prêmios de consolação. Querem se encaminhar decisivamente, ainda que por via poética, por via de ataque místico, etc., para louvar esse gozo absoluto que haveria se seu desejo se realizasse. Então, temos aí périplo do Haver: com Real, Simbólico e Imaginário como seus estados; com Gozo-Fálico, Gozo-do-Sentido e Gozo-do-Outro como gradientes da função fálica, a qual, em última instância, se encaminha, se designa, pelo não-Haver como tesão de morte. E temos, também, os conceitos de castração, de sublimação, de repetição, do que quiserem, pois qualquer conceito se encaixa muito bem dentro do meu Esquema, desde que seja modalizado de acordo com a nova visão. *

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Suponhamos que isso aí seja o campo do Haver, o campo de tudo que há. Se pensarmos em termos cosmológicos, por exemplo, hoje, não temos senão a imensa diferença posicionada aí, de galáxias, etc., e toda essa estrutura que a gente vê. É como se, até onde nosso olho alcança – nosso olho, significa toda a parafernália com que conseguimos ver: o telescópio é parte da minha anatomia –, temos a impressão de que, no momento, para existirmos assim de carne e osso, etc., estamos, entre A/ e A, em alguma região sintomática, em alguma região do sentido. O universo que está morando por aí e que parece aos cosmólogos estar em expansão, tenho a impressão de que está indo em forma de neguentropia: expandindo-se em diferenças. É claro que as entropias locais aparecem, mas a entropia radical está muito longe. E nós, o que estamos fazendo aí dentro? Há, pois, essa multidão de sintomas que falam tão pouco ou não falam nada – estrelas, galáxias, planetas, oceanos, montanhas, animais, plantas –, em que tudo é etologicamente mais ou menos desenhado nos seus sistemas opositivos: isto entra / aquilo não entra, tem isso / não tem aquilo... Mas nós outros, apesar dos macacos que somos – não estamos muito longe disso –,

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temos nos comportado dentro do Haver de maneira absolutamente louca. Não a todo momento, pois vivemos a maior parte do tempo mergulhados até o pescoço na mais santa imbecilidade. Se tomarmos, então, a história da humanidade e tudo que ela faz, e compararmos o ser humano com o restante dos seres que podemos observar, a impressão é que ele é o único maluco dentro do Haver. O resto é tudo certinho, decente, sabe o que faz, aliás é o contrário: faz o que sabe. Ou seja, estão definidos, são o que são, e ponto. Mas nós, somos essa espécie esquisita que faz até o que não sabe. Às vezes, até pensamos saber o que fazemos. Inventamos um monte de maluquices, artificializamos tudo em que pomos a mão, extrapolamos nossa individualidade corporal com engenhocas as mais loucas: não temos asas, mas voamos; não temos guelras, mas andamos debaixo do mar. Toda essa loucura que praticamos, poderíamos situá-la com alguma lógica dentro de meu Esquema? Apresento-lhes uma resposta que podem tomar como mítica, mas que não é sem fundamento, e nem estou maluco sozinho, pois há uma grande quantidade de pessoas de acordo comigo (não dentro do campo da psicanálise). É a suposição de que no campo do Haver, dentro do Campo do Sentido, as coisas, esses sintomas dados pela realidade, se modalizam fracionariamente, sempre em lógica binária, mas a lógica do todo, do movimento, não é binária. A lógica da totalidade, do Pleroma, da plenitude disso que há, como estão vendo no Esquema, é, pelo menos, ternária: sempre se divide em três, ou coisa parecida. Sendo que há um quarto do lado de fora, mas que não há, é mudo. Na verdade, tudo é quaternário, mas, nas possibilidades de Haver, já que o nãoHaver não há, tudo se ternariza. É, pois, essa lógica ternária que, por algum motivo que ninguém consegue detectar qual nem como, nossa espécie, mesmo fantasiada de macaco, conseguiu herdar dessa totalidade. O nome disso na cosmologia contemporânea pode ser Princípio Antrópico. Ou seja, se o Universo é observável pelo homem, uma das coisas que podemos pensar é que a tendência do Universo foi chegar ao homem, algo no Universo se encaminha para o surgimento do ser falante. Eu não diria

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“homem”, pois nada impede que, em outra galáxia, haja um ser falante que não seja de base carbono, herdeiro do macaco. Pode ter sido herdeiro da lagartixa, de algo assim. Mas onde quer que aconteça essa loucura da falação e da produção de sentido, e por que isso acontece, pode-se pensar que algo no Universo – dizendo em meus termos: no Haver – parece encaminhar-se para a produção disso. Aí, quero abusar um pouco, pois, nas cosmologias contemporâneas, nos sistemas baseados nos diversos princípios antrópicos, nas teorias baseadas nisso, vocês não vão encontrar a colocação do não-Haver, Ã. Isto porque todos se viram para explicar por dentro mesmo. Acho que só no pensamento de Freud há colocação desse objeto absolutamente causador da pulsão e que não há, que é impossível, mas que não foi por ele nomeado assim. Se, então, tomarmos o meu Esquema como o esquema do Haver, do que há, poderemos fazer a suposição de uma lógica ternária funcionando ali. Ela não funciona diretamente nos elementos sintomatizados, modalizados dentro do Haver, mas sim na completude, na compleição do Haver. Os elementos modalizados, à primeira tomada, apresentam-se como binários, mas o Haver na sua totalidade, ele, é ternário. É como se o Haver pensasse. Mas o cachorro, por exemplo, não pensa, ele é pensado. Ou seja, o movimento da lógica é de três. Nas modalidades são modalidades binárias que são influenciadas pelo princípio ternário que engloba todas as modalidades. Todas as coisas que abordo, mesmo por via científica, se expõem com nitidez como binárias e dentro de um princípio opositivo em que talvez estejam mesmo. Mas elas sofrem modificações das quais não são sujeitos, não têm como se dar conta, pois o Sujeito que as engloba trabalha no nível ternário englobando-as todas. Como disse, há físicos e filósofos contemporâneos, de 1980 para cá, que estão nesta: os holistas, na física; o pessoal da estrutura cerebral, que vai por esse caminho da completude; algumas filosofias estão embarcando aos poucos. Eles só não colocam o Ã, o qual é propriedade de Freud, e que apenas estou ressaltando e nomeando.

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A conjuntura de que falo é: esta nossa espécie, mesmo sobrevivendo dentro de um estatuto de macaco nitidamente binário, não sei por que cargas d’água – e isto um dia será esclarecido –, incluiu de novo a estrutura ternária em cada um dos seus elementos. É como se a estrutura ternária do Haver, que não comparece na sua ternariedade nas modalidades do Haver, se tivesse reincluído numa das modalidades. Temos, então, a espécie de um bichinho constituído biologicamente com aparência binária do ponto de vista de sua razão autossomática, autogramática, de sua compleição biológica, mas que algo lá dentro, mesmo do ponto de vista autossomático, é complicado. Isto de tal modo que ele tem possibilidade de funcionar nos três níveis em que funciona o Haver. Daí toda a relação esquisita que as religiões colocaram entre o pai e o filho, o Haver e o falante, Deus e o homem. Nós seríamos, como diz a tradição: centelhas divinas – embora sejamos imbecis o suficiente para não querermos nos dar conta disso. Isto porque temos essa possibilidade, mas não nos sentimos obrigados a ela. Ou seja, somos macacos, mas com a condição lógica de abordar uma lógica ternária, e não apenas uma lógica binária. Somos macacos falantes. Falantes como quem? Como Ele, como o Outro, como o Haver. Por isso, escrevi: Verbum: Kaosmos, como, da vez anterior, escrevi: Kaosmos: Verbum. James Joyce foi quem misturou Caos com Cosmos e inventou esta palavra, Kaosmos, onde temos toda essa cosmologia que passa pelo caos também. O caos está inserido aí. Temos pensado, com a tradição, que o Verbo só se faz carne e habita entre nós quando aparece o ser humano. Mas o verbo sempre se fez carne e sempre habitou entre nós com ou sem ser humano. Estou dizendo que esse movimento, mesmo no campo do Haver, é a ordem do verbo. Não vejo por que adscrever o Simbólico somente à espécie humana. As outras espécies são meio deceptivas, não funcionam nessa produção do verbo, mas fazem parte do verbo. O Haver por inteiro é absolutamente verbal. É um discurso. Vocês querem saber o que Deus está falando neste momento?: Isso que está por aí. É isso que Ele está dizendo. Não há mais nada para dizer, pois o momento é

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este. Tudo isso que alcançamos com nossas percepções é o discurso d’Ele neste momento. Amanhã muda. Da próxima virada, de repente, Ele resolve e muda tudo ao contrário. “Resolve” mais ou menos, pois Ele não tem nenhuma onipotência. Ele simplesmente “entra numa”. E quando entra numa, Ele faz um discurso. Tudo isso é verbal. É muito grave o que estou dizendo. Quais são, por exemplo, as conseqüências epistemológicas disso? Qual é a correlação que existe entre o discurso da ciência e o de Deus? E o discurso do Haver? Se não houvesse nenhuma, não conseguiríamos abordar nada. Se o conseguimos precariamente, é porque são discursos da mesma ordem. *

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[Perguntas e Respostas] ...O não-Haver é radical demais, não dá para chegar lá. Tenho até uma desconfiança de que essa convulsão epilética é uma espécie de orgasmo fora do órgão, sei lá em que nível, cerebral, coisas assim... Freud tem uma desconfiança das mulheres – e isto é problema dele: cada um tem a neurose que merece –, mas, independentemente dos problemas especiais do Dr. Freud, temos que levar em consideração que o protocolo teórico que organizou conduzia necessariamente a isso em função de sua própria definição de Falo. Então, ele encontra esse “continente negro” no feminino, que ele adscreve às mulheres (não sei por causa do quê). A sublimação, para Freud, está primariamente definida como desvio de objeto em relação a gozo genital. É claro que podemos, como ele também pôde, ampliar o termo e querer dizer, como ele o disse com toda razão, que as mulheres não são lá muito afeitas, não têm muito boas relações com a Lei. As mulheres, traduza-se: o Feminino está cagando para a Lei, graças a Deus. Deus também está, de certa forma. Ele só não pode deixar de se interessar pela Lei dura de que o nãoHaver não há, pois esta não tem jeito. Mas temos que conceber com clareza o estatuto de Lei para podermos pensar este fato, o que faremos nas próximas

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sessões deste Seminário. O que posso adiantar é que não podemos esquecer, e mesmo Freud o disse, que o estatuto da Lei é compatível com o estatuto da perversão na ordem masculina. Isto é uma virada radical, que quero e faço. Não podemos entender os avatares da função fálica sem (a) definir com clareza Gozo-Fálico, Gozo-do-Sentido e Gozo-do-Outro, e sem (b) chegar à possibilidade, que parece que o final de século já nos oferece – e não se ofereceu muito a Lacan, embora ele tenha relativizado isto bem – de situar de uma vez por todas o que é essa bobagem que está nos tratados de psicologia, de psicanálise, etc., com o nome de perversão. Como a maioria é neurótica, perversão é a sacanagem do outro. Se apertarmos mesmo os textos e as pessoas, veremos que vão definir perversão como a sacanagenzinha do outro. Isto porque a delas não o é, é claro. Elas, afinal de contas, são boas pessoas... e neuróticas. Ou seja, não houve até hoje condição, e certamente coragem, suficiente para enfrentar-se o estatuto da perversão, no que ele está absolutamente adscrito à própria emergência da Lei no seio da modalidade. A humanidade, a meu ver, jamais conseguiu pensar a perversão porque não tem coragem de enfrentar a Lei, o significado da Lei. Lacan fez um tremendo esforço para adscrever à Lei, binomicamente, o próprio movimento do desejo. Na relação de um sujeito com a alteridade, com o Outro, com os movimentos de desejo paranoicamente constituídos pelo desejo do Outro, ele até que adscreveu em qualquer discurso o momento perversista da constituição da Lei, dá o mal-entendido com o Feminino, que está para lá de Marrakesh. Ou seja, não está interessado em nenhuma universalidade como fundante de significante aqui e agora para o gozo parciário situado. Ele parece sempre extrapolar a ordem da Lei. Freud tinha razão, ainda que por intuição. O Feminino não está muito interessado em nenhuma sublimação... mesmo porque não faz outra coisa. Por que vai se interessar por uma coisa da qual não sai? Do ponto de vista (com toda razão de ser chamado assim:) machista da ordem perversa do GozoFálico instituidor de ditames legais, o Feminino parece um ser esquisito porque não cabe nessas ordens. Mas a perversão está do lado masculino, e não lá.

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Noventa e nove por cento do que se diz na teoria psicanalítica sobre perversão é asneira. Alguém tem que se virar para demonstrar isso. [...] A atitude de Marcel Duchamp é de pensar ternariamente. No Étant donnés, ele coloca um elemento neutro intermediário que equipolariza o processo. Assim como, no Vidrão, nitidamente faz uma observação da sexualidade como dois para lá e um para cá: é um triângulo. Isto será melhor desenvolvido quando abordarmos a sexualidade humana, que tem quatro sexos, sendo que só três funcionam. Esse negócio de dois sexos, é coisa de macaco. Os macacos, os corpos – que são de macaco –, parecem ter dois sexos. Isto é problema de procriação e nada tem a ver com sexualidade. Na verdade, a sexualidade humana não tem sexo. Quem tem sexo é o comportamento que se faz com essa sexualidade. Qual é o sexo da sexualidade humana? É Falo. É um só, mas se modaliza em três sexos curtíveis e um, quarto, que não é curtível, mas que nem por isso, deixa de funcionar. " Pergunta – Recentemente saiu publicado um livro chamado Psicanálise e Medicina, em que o autor propõe uma Epistemossomática e fala sobre o objeto medicinal, que seria algo da ordem do que está recalcado, da noção do divino ou de Deus, que funcionaria nos falantes, traria alguma cura e teria certa eficácia. E isto seria simplesmente o recalcamento de todas essas noções que foram eliminadas da ciência. Até posso aplaudir o autor, desde que esteja falando do ponto de vista de uma estruturalidade, e não, tendo algum chilique religioso. Se não for chilique, é muito bem pensado, pois isso que chamam de ciência – e nada tenho a ver com isso: resolveram chamar assim sem me consultar –, na medida da sua sintomática discursiva específica, tem há séculos evadido a questão da linguagem. Lacan já mostrou isto claramente. No que evade a questão da linguagem, a ciência se esquece de uma porção de atividades efetivamente curativas – e não estou falando necessariamente em medicina alternativa, mas sim de coisas comuns –, que, até segunda ordem, estão mais ou menos relegadas à mão do analista. Qual é

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o interesse em entender o que é a Psicossomática? Não há psico-somática coisa nenhuma. São a mesma coisa, essa dicotomia é absolutamente desnecessária. E não é preciso fazer mágica, pois o ato de um cientista no laboratório intervindo linguageiramente nos processos por vias artificiosas – e não existem outras – e transformando isso naquilo, é intervenção de Terceiro. O que a ciência não faz é dar-se conta de que o Terceiro está em jogo o tempo todo e só descreve o binário que está vendo do lado de lá. Ela não descreve o processo. " P – O autor nomeia essas questões que a ciência deixou de lado, mostrando que elas surgem como um retorno de recalcado. Por exemplo, a noção de hereditariedade, de constituição, que são responsáveis pelo fator aleatório de um tratamento, de uma cirurgia, de uma operação, de um ato médico qualquer... Quais são os atos falhos na relação do sujeito falante com sintomáticas, digamos, naturais do Haver? Quais são, por exemplo, os atos falhos que se cometem no seio do biológico? Não porque o biológico seja ternário, mas porque está metido dentro do ternário. Os processos de mutação, por exemplo, são verdadeiros atos falhos. Por que a maquininha não funcionou direitinho até o fim? Por que, de repente, degringolou? Ela não é Sujeito desse degringolamento. É assujeitada a esse degringolamento, que a física já descreveu, em parte, com o nome de segunda lei da termodinâmica. Quando mostrarmos o esquema dessa ternariedade, veremos como as coisas vão se decantando binariamente e o Terceiro atravessa no campo do Haver. Assim como, em nossa relação aparentemente binária com as oposições lingüísticas, o Terceiro atravessa o tempo todo e é quem permite, por exemplo, o ato poético, o ato falho, essas coisas todas.

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7 FALO OU KALO Já consideramos a estrutura geral do Esquema Delta: o movimento da libido como desejo; o sentido da pulsão; a diversificação do movimento nos seus estados de Real, Simbólico e Imaginário; e os gradientes de gozo que percorrem esse tesão radical do Haver: Gozo-Fálico, Gozo-do-Outro e Gozodo-Sentido. Quero, hoje, para chegar a um conceito fundamental, colocar os acontecimentos lógicos a partir da explosão no Gozo-Fálico e o fracionamento em modalidades no campo do Gozo-do-Sentido a partir do estado do Simbólico. O conceito fundamental é o que denuncia o título de nossa sessão de hoje: Falo ou Kalo. Phallós, em grego, que deu o phallus latino, é isso que chamamos de Falo, e que foi situado na obra de Freud de certa maneira e acompanhado por Lacan. É o que vamos retomar e criticar. Kallós, em grego, é: o belo. Na língua portuguesa dá uma certa explosão de sentido quando digo: Falo ou Kalo. Os dois objetos que vocês estão vendo dependurados aqui no auditório, o da direita, chama-se obviamente Falo ou Kalo, e o da esquerda, Ora ou Hora. O primeiro é a maquininha que faz o outro virar pelo avesso. Quando a maquininha funciona, aquele vira pelo avesso – é mágica! O que acontece com o Haver bem como com a estrutura do Inconsciente quando, ela, por explodida, depois da sua expansão, chega a se fracionar numa miríade de eventos modalizados? Qual é a lógica de explosão disso?

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O que acontece depois quando ela chega, de novo, no ponto A? Neste momento aí é que é preciso uma lógica ternária para justificar o que venha a acontecer futuramente com o que chamamos de Significante, o qual, dentro da estrutura do que venho promovendo, difere bastante do significante enquanto estrita metáfora no pensamento de Lacan. *

*

*

Preciso fazer uma digressão topológica para entendermos, pelo menos como exemplo, como analogia possível, o que acontece de ternário nessa lógica. Um Plano Projetivo, como sabemos, é o plano dos planos, o plano absoluto, sobre o qual o pensamento matemático supõe poder projetar, inscrever, toda e qualquer representação possível. Se imaginarmos um plano infinitamente grande, infinito, sobre o qual todas as representações possíveis possam vir a se projetar, esta é, genericamente falando, a idéia do plano projetivo. Em termos topológicos, o plano projetivo foi concebido como tendo a estrutura de uma superfície única, absolutamente unitária e inteiramente uniface. É uma superfície onde o número um, a unidade, se repete exaustivamente. Uma grande superfície, ou simplesmente uma superfície, que é única; tem uma só face; não tem avesso, pois é o avesso de si mesma; não tem nenhuma margem; não há a menor condição de se estabelecer sobre ela nenhuma diferença, nem mesmo de orientação, de acompanhar certa margem que possa nos guiar no encaminhamento longitudinal. Costumam representá-la de várias maneiras, uma das quais pode ser algo como se fosse uma esfera, que Lacan costumava chamar de asfera. Imaginemos uma esfera que não tenha dentro nem fora, que, se acompanharmos sua superfície, estaremos passando imperceptivelmente de dentro para fora, ou melhor, não estaremos nem dentro nem fora, e sim sobre uma superfície que tem uma face só. Não temos nenhuma condição de orientação dentro dela: para a direita ou para a esquerda; para frente ou para trás; para cima ou para baixo. Isto porque não temos nenhum ponto de referência, nem mesmo

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margem que nos dê uma longitudinalidade. Para pensar o plano projetivo – que os topólogos chamam também de gorro cruzado –, imaginemos o que lhe faltaria para fechar um buraco, um círculo, que dela se retirasse. Então, sobre esta superfície – que anteriormente não tinha nenhuma margem, era absolutamente inteira, sem diferenciação nenhuma em sua integridade –, uma vez feito um buraco, retirado um círculo, o que sobra é o que os matemáticos chamam de Banda de Moebius – e a que Lacan se referia como Contrabanda. E se quisermos coser de volta o círculo – notado por a no desenho –, teremos que cosê-lo ponto a ponto com a banda que sobrou, de maneira a reintegrá-lo à superfície do plano projetivo.

Oa

A banda de Moebius – já mais conhecida de vocês, até em obras de arte; de Escher, por exemplo –, é uma superfície com uma única face (não estamos considerando sua espessura, é claro). Em qualquer ponto seu em que estejamos estaremos sempre sobre a mesma face, pois não há avesso. Basta acompanharmos o seu percurso que veremos que ela “passa” de um “lado para o outro”. Diferentemente de uma superfície cilíndrica, que tem dentro e fora e em que não podemos passar de um para outro lado sem furar a superfície.

Então, se esta superfície sem margem, sem diferenciação de espécie alguma, sem possibilidade de orientação, se dela retirarmos um círculo, ela se transforma numa superfície que continua sendo unilátera, de uma só face, mas

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em que aparece uma margem. Dizem alguns matemáticos que é extremamente difícil, ou mesmo impossível, também estabelecer uma orientação sobre ela, pois um ponto ali não saberia para onde caminhar. Mas ela tem uma margem. O que dela foi retirado já é algo de outra ordem, pois uma superfície cortada em círculo tem duas faces: uma de um lado e outra de outro. Mas embora seja uma superfície euclidiana onde podemos nos orientar, por outro lado, a superfície do círculo também só tem uma margem, que é esta que a circunda. Então, no que cortamos do plano projetivo uma circunferência, criamos (a) essa superfície de Moebius que continua sendo unilátera, mas com uma margem, e (b) a outra, também com uma só margem, mas que passa a ser bilátera, pois tem duas faces. O que estamos vendo é a decadência de um plano projetivo na sua integralidade indiferente. A diferença ali não pode ser inscrita, pois é uma superfície de indiferença radical: nenhum ponto ali inscrito pode ser precisado, orientado, e nem mesmo pode referir-se a uma margem que possa acompanhar. Na banda de Moebius, pelo menos podemos acompanhar aquela margem e percorrer longitudinalmente a superfície. Isto é impossível no gorro cruzado, no plano projetivo. Quando se corta aquele círculo, passamos, então, de uma face e zero margem, de um vazio de indiferenciação, para uma face e uma margem na contrabanda. O que resta, o círculo, tem duas faces e uma margem. Colandose uma margem com a outra, no lugar do corte, recompomos o plano projetivo. Se, agora, cindirmos a banda de Moebius mais ou menos pelo meio, de maneira longitudinal, ela, por este novo corte, constituirá uma única superfície, agora bilátera. Não pensem que se separa em duas. Ela se separa de si mesma e passa a ser uma superfície bilátera da mesma natureza do círculo, com uma face de um lado e outra do outro lado, com duas margens, e com os pontos sobre ela facilmente orientáveis. É este espaço euclidiano em que habitamos mais comumente – diferentemente talvez do espaço sideral e do espaço psíquico. Mas que operações temos que fazer para, a partir de uma banda bilátera, reconstituir o plano projetivo? Como podemos tanto (a) cortar a contrabanda pelo meio, o que faz com que ela aparentemente desapareça e surja uma

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superfície bilátera, quanto (b) cortá-la várias vezes pertinho da borda, o que fará cair diversas superfícies biláteras e sustentar-se a superfície unilátera como resto, é preciso, pois, lembrar que é possível reconstituí-la. Se, então, a cortarmos pelo meio ou perto da borda, ela nos apresentará uma superfície bilátera, euclidiana, que poderemos, de novo, suturar, coser, grudando uma borda na outra. Uma das margens desaparece e fica uma margem só. E se quisermos reconstituir a superfície do plano projetivo aí, além de ter feito a operação de sutura, de reconstituir a contrabanda, teremos agora que colar margem com margem, suturar com o círculo e fazer desaparecer todas as margens. Temos, então, uma operação progressivo-regressiva. Do plano projetivo retira-se um círculo e surge o círculo e a banda de Moebius, a qual continua sendo unilátera, mas com uma margem, margem esta que acoplada ao círculo daria o plano projetivo de volta. E podemos cindir a banda, encontrando o espaço euclidiano bilátero e, então, tendo a possibilidade de, por sutura, reconstituir as duas margens numa única, a qual, acoplada ao círculo que sobrou, fará desaparecerem todas as margens e as possibilidades de determinação precisa de todo e qualquer ponto sobre essa superfície. Isto porque a superfície do plano projetivo é absolutamente indiferente, aceita qualquer coisa que sobre ela se projete – como, por exemplo, um círculo –, pois não tem nenhuma distinção “interna”. Vejam, então, a decadência: de uma superfície absolutamente indiferente, passa-se a outra (que até certo ponto é indiferente na sua unilateralidade, mas) com uma borda, uma margem, e esta pode ser cindida e constituir a superfície bilátera comum de todo dia, com duas faces, duas margens, duas bordas etc. *

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O que nos interessa é, no Esquema Delta, conceber que de implosão a expansão temos uma região de indiferença, que é o plano projetivo como o estado de Haver em absoluta indiferença “interna”. Se, então, concebo-o assim,

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só me sobra a diferença “externa” de não-haver plano projetivo. No que o plano projetivo se contrai e, depois, revira e se expande, nesta explosão, ele se fraciona. Vejam, então, que estou tomando isto como metáfora da explosão no Haver e no Inconsciente. Como isto se fraciona? Quantas operações é preciso para juntar os fragmentos da explosão do plano projetivo nessa coisa cotidiana que é o nosso mundo aparentemente bilátero, binário? Tomemos essas operações pelas margens. Para, então, de volta, constituir o ser indiferente do Haver, embora havendo ainda em sua diferença externa para com o não-Haver, é preciso entender que temos uma explosão em três, e não em dois. No que se retira o círculo do plano projetivo, como vimos, temos na contrabanda uma margem e no círculo outra (não estou considerando a lateralidade, mas só a margem). Se, agora, operarmos a contrabanda a uma segunda ordem de lateralidade, passando à bilateralidade, teremos duas margens, as quais, por sua vez, podem ser novamente acopladas e transformadas numa só, que é a contrabanda, a qual, somada a mais uma margem, que é o círculo, nos dá o plano projetivo, sem margem. Fez-se, pois, um acoplamento de três margens. Como vêem, estou representando a operação de fracionamento do Haver como sendo essa operação de produção de margens. Notem que depois que chega à estrutura da superfície bilátera dos objetos que têm duas margens, daí para frente podemos continuar cindindo que eternamente haverá duas margens. Temos, então: o plano projetivo, com zero margem; a contrabanda, com uma margem; e o que chamo de bandacontra, que é a superfície euclidiana, com duas margens. A partir do cotidiano bilátero, binário, de nossa vida – mesmo de nosso biológico –, é preciso, pois, acoplar três margens para chegar-se à Indiferença, ao plano projetivo. É preciso fazer desaparecer três margens, o que já está quase que evidenciado na contrabanda, embora tenha uma margem só. Nosso cotidiano é, pois, de lidar com aparências e oposições biláteras, binárias: esquerda/direita, alto/baixo, claro/escuro, etc. Em grande parte da história do

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pensamento do Ocidente, fixou-se a visão sobre a bilateralidade, a binariedade, porque os objetos do mundo, até mesmo nosso corpo, na maior parte de suas ações, se apresentam nesse aspecto. Mas a lógica que funda isto, em si, é ternária, pois mesmo minha postura psíquica exige, do meu lado, alguma coisa como unariedade para juntar alhos com bugalhos na relação bilátera que vejo do lado de fora. Se me deparo, como Sujeito e não como corpo, com uma bilateralidade, consigo operá-la subjetivamente como sendo eu Sujeito, da ordem da estrutura unilátera, de uma margem só, que é capaz de acoplar as duas margens e chegar até a indiferença. Por isso, Lacan representou o Sujeito topologicamente assim. A topologia do Sujeito é unilátera, porém com uma margem, que é a estrutura da banda de Moebius. Não é por menos também que o gênio poético de Guimarães Rosa descreve – num conto fascinante e preciso chamado A Terceira Margem do Rio – a relação do Sujeito com isso. Ele invoca a terceira margem do rio porque nossa imbecilidade cotidiana só vê as duas que o rio tem e esquece a terceira, que preciso acoplar às duas para subjetivar minha posição diante do rio. Ele trata daquele pai atravessando o rio de baixo para cima, no rigor da sua bordadura da terceira margem, para acoplar isso tudo, na imposição ao leitor desse mundo em três dimensões verdadeiras, em três margens, em que o filho, por não ter o mesmo rigor do pai, foge da raia, sai correndo. Isto porque não pode agüentar o rojão de ficar segurando a terceira margem. *

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" Pergunta – Por que o plano projetivo está na ordem do Haver? Você acha que ele seria da ordem do não-Haver? Não, pois o nãoHaver não há nem mesmo como plano projetivo. Se há plano projetivo, já há algo. O plano projetivo, eu o chamo de Nada, mas Nada já é muita coisa, pois, de fato, Nada há. Se imaginarmos uma estrutura matemática absolutamente indiferente, se a chamarmos de Nada por causa da sua indiferença, ela não

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continua havendo como pensável e, quem sabe até, como construtível? NãoHaver é pior do que Nada. Passarmos por uma experiência de Nada, por exemplo, é passarmos por uma radical indiferença, mesmo havendo. Esta é a idéia de plano projetivo para mim. Ele está dentro do Haver porque fui eu que o coloquei, foi a metáfora que utilizei. O plano projetivo é o Haver em sua estrutura de Nada, no seu gradiente gozante de Nada. Só lhe interessa o Gozodo-Outro. Coloquei, no Esquema Delta, o Gozo-do-Outro porque, numa indiferença “interna” radical como o plano projetivo, a única diferença que se pode colocar é a diferença “externa”. Se não, ele vai fracionar-se em diferenças internas. Mas se acabou a diferença interna, o que sobra é uma diferença para além dele, em que não há nem ele. Então, ele fica querendo gozar com esse Outro dele, que é o não-Haver, que não há de fato mas, de direito, há. Se, para nós, perpassa certa angústia ao pensar uma estrutura que há, mas que não é nada, que é Chi, que é vazio, esta estrutura já nos é alteridade suficiente, que já podemos chamar de Outro. Então, quando o Nada procura ainda um Outro para ele, já está procurando aquilo que não há: o Outro do Outro. Para mim, Nada já é Outro bastante, uma estrutura absolutamente indiferente, mas se chego a essa indiferença e ainda busco algo, é isto o que ocorre quando vemos os místicos procurarem a indiferença e ainda terem algo a buscar, inatingível, que é o Outro do Outro, que não há. Lacan, na verdade, termina no plano projetivo. Ele não passa para nenhum não-Haver, ainda é o (seu) real dentro do Haver. O que estou dando é o passo a mais, em que Nada ainda é muito, ainda é Haver. O que haveria para além do Nada, que é o plano projetivo? O que haveria de menos definido ainda? Só o não-Haver, que não há. O plano projetivo continua sendo meu limite como havência, mas não limite lógico, já que o Haver na sua indiferença ainda tem como diferença externa o não-Haver que ele suscita, que ele pede, demanda, de alguma forma. Então, mesmo o Nada implora por algo e, justo por isto, quebra a cara, pois este algo além dele não há. Então, se não tem Tu, vai tu mesmo. Como o Nada não pode passar à realização da diferença “externa”,

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que não Há, retorna para a diferença “interna”: fraciona-se de vez e cria diferenças internas a ele. O jogo todo é: o tesão pela diferença. Quando a diferença acaba no seio do Haver, ele continua com tesão pela diferença que ainda o suscita, que é a “externa”. Como esta não há, ele quebra a cara, e para outra vez criar diferença, só pode fazê-lo para dentro. Então, ele se fraciona em diferenças internas, mas que são decadência do seu estatuto de indiferença. É a decadência do plano projetivo em banda de Moebius e, depois, em banda bilátera, criando o mundo das bilateralidades que estão diante de nós. Quando Lacan diz que o plano projetivo, o gorro cruzado, é a fantasia, isto é assim porque ele o instaura como o corpo, corpus mesmo, da fantasia, o que é uma fantasia mediana. Minha fantasia não é esta, e sim isso ainda desejando não haver, é o plano projetivo com tesão de não-Haver – esta é a fantasia última. O que permite pensar o movimento desejante é ainda instalado dentro da fantasia, e não a fantasia como ponto de chegada do movimento desejante, mas sim como escrita mesma do desejo. Em última instância, em termos de Pleroma, a fantasia é a escrita do desejo. É, digamos, o romance sintetizado da Pulsão. É a descrição da pulsão. – Tens tesão no quê? – Tenho tesão em não-Haver. Esta é a fantasia do Haver na sua neutralidade e indiferença. Não chamo isto de real, e sim quando o Haver quebra a cara e “cai na real” de saber que não tem isso pelo que anseia, mesmo que esteja escrito na sua fantasia. Então, terá que subtrocar sua fantasia fundamental, originária, por fantasias outras, que são essas bobagens com que fantasiamos a vida inteira. *

*

*

Qual é o percurso do Sujeito dentro da sua estruturalidade? A estrutura do Sujeito em Lacan é a da banda de Moebius, que ele representa com o movimento de um ponto dentro desta superfície. Um ponto se movendo aí fará um percurso chamado, em matemática, oito-interior. Basta acompanharmos o deslocamento do ponto em cima desta forma para vermos

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que ela é contínua: dá duas voltas pela única face, sobre uma lateralidade só e produz o oito-interior. Isto, diferentemente dos dois percursos sobre uma banda bilátera, que são separados, um em cada face.

A lógica original da partição do Haver dentro do meu Simbólico, como disse, não é a binariedade que temos até hoje chamado de simbólico, o opositivo. Ela é ternária. Na lógica ocidental, só tratamos da binariedade dos objetos que a ciência aborda, e mesmo a filosofia, digamos, mais ocidental pensa binariamente. Mas os pensamentos orientais, filosóficos, religiosos, e mesmo alguns pensamentos ocidentais que têm sido calados pela dominante do Ocidente, indicam essa ternariedade. O ternário, então, a partir do ponto A, se parte em três pela lógica das três margens. A primeira partição é ternária e há um eco de explosão, que na sua inércia, vai explodindo em miríades de objetos binários, ou seja, continua se partindo, binariamente. Estamos já acostumados com o desenho da arvorezinha, com o radiciamento em dois, o que é uma lógica muito simples para nós. Mas esquecemos que há um terceiro que não se parte, que continua. Então, em qualquer lugar do estado do Haver em sua modalidade de sentido, em qualquer objeto binário, se consideramos a oposição, teremos que contar dois e mais o terceiro que lá está para completar o Todo.

A

etc.

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Todas as ramificações em dois se reduzem aos dois do início e sobra o Terceiro. É como se a lógica ternária nos fosse difícil porque a partição é ternária, depois um continua o seu périplo e os outros dois se partem em dois, em dois... Ora, quem está observando apenas o que está partido, só verá dois. Para quem está observando a integralidade do Haver e do Sujeito, há três. Isto porque, para somarmos a oposição desses dois até não faltar nada, é preciso incluir o terceiro que os acompanha. Então, no Pleroma, no ponto A, é como se as coisas se partissem em três e houvesse uma espécie de cometa, que é o Terceiro que vai acompanhando tudo como empuxo. O resto vai se partindo em dois, e se lermos apenas o que está modalizado, só veremos binariedades, mas se tomarmos como princípio que a partição foi em três, poderemos ver o Terceiro acompanhando o processo o tempo todo. E lá na frente, quando chegar no A para matar a diferença, é preciso dos três para, outra vez, completar o plano. É claro que isto é uma grande ficção, que estou matemizando através da analogia com a topologia. E devemos saber que se partirmos do princípio de que a explosão disso não pode não ser ternária, pela contagem das operações de acoplamento de margens que foi preciso fazer, se são três, o que observarmos como binário jamais chegará a nenhuma coincidentia oppositorum. Desde Nicolau de Cusa, esta idéia perpassou muita coisa no Ocidente: a alquimia; dentro da psicanálise, chegou no pensamento de Jung, por exemplo; em vários pensamentos que estão ressurgindo no momento contemporâneo, etc. Os alquimistas e certos filósofos pensavam que as oposições: claro/escuro; dia/ noite; alto/baixo; em algum lugar, semelhante à morada de Deus, se apagam, se neutralizam porque coincidem. Daí, na alquimia e em toda a mitologia antiga, vem a idéia de Andrógino, de que, na representação corporal, chegarei num ponto alquímico em que serei homem e mulher, macho e fêmea. Acuso o pensamento alquímico e o da androginia de serem muito baratos por tentarem pensar a neutralidade somente a partir da dualidade que enfrentavam. É preciso um pensamento mais radical que jamais encontra alguma coincidentia oppositorum. O andrógino é impossível, não existe, pois não dá para colar os dois, resultantes da partição em três, e transformar num neutro.

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Isto porque estão no reino da partição. Só dá para colar lá no final, quando todas as diferenças acabarem. Entra o Terceiro e o que temos aí é uma Indiferentia oppositorum: eles se indiferenciaram. Portanto, não posso falar em coincidência, pois não apresentam mais diferença: a diferença morreu e não há coincidência alguma. Trata-se, pois, de uma lógica completamente diferente. Nada tem a ver com a lógica alquímica do andrógino, que junta os dois opostos numa coincidência. É no movimento do Haver por inteiro, pois enquanto ele estiver fracionado não há, para os objetos do mundo, a menor condição nem de androginia nem de indiferença. Mas quando aquilo termina o seu périplo de diferença, o acoplamento dos três cria uma Indiferentia oppositorum porque o Terceiro, como neutro, encontra os outros dois e a neutralidade absorve tudo. O percurso chamado oito-interior sobre a banda de Moebius, a contrabanda, é recuperável. Imaginemos que toda a estrutura do Haver, que todos os objetos, de corpos humanos até pedras, árvores, etc., sejam constituídos binariamente. O Terceiro está passando ao lado para aquilo poder se constituir, é uma espécie de empuxo catalisador dessas produções, está sempre ao lado carregando o empuxo do Haver. Encontro, portanto, tudo bilateralizado, binário: tudo se apresenta binariamente para mim. Mas sou Sujeito, até segunda ordem. Na verdade, então, o operador que opera essa binariedade já entra posturando o Terceiro, capaz de pensar as oposições e mesmo as passagens entre elas. *

*

*

Suponhamos que a espécie, esta coisa grotesca chamada o Humano, ainda não tenha aparecido no seio do Universo, ou, pelo menos, no planeta Terra, no sistema solar. As coisas estão todas binarizadas. Então, qualquer objeto que se venha a abordar de perto tem a aparência de uma banda bilátera, é opositiva. Então, o que, no seio do Haver, transformado em suas modalidades binárias, reinstaura a ternariedade, ou seja, o surgimento do falante como ser ternário?

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Topologicamente, é fácil pensar isto. Se tomarmos uma banda euclidiana, bilátera, um pedaço de cilindro, por exemplo, que tem duas faces, basta fazermos um pequeno furo para que o percurso sobre ela possa deixar de ser duas circunferências isoladas. Através do furo pode-se passar uma vez, mergulhar, dar a volta, continuar do outro lado e voltar de novo. Ou seja, com um furo criou-se sobre a bilateralidade o mesmo percurso da ternariedade. Assim como, se fizermos um furo na banda de Moebius, poderemos constituir um percurso bilátero sobre ela, por onde se mergulha e separa. O sonho, então, que tenho a lhes apresentar como proposta teórica é – na seqüência de: primeiro, o Plano Projetivo; segundo, a Contrabanda (de Moebius); e terceiro, a Bandacontra (de Euclides) – o que seria (quarto) a Contrabandacontra: a reconstrução do curso do Sujeito. Quando a explosão se deu, porque o Terceiro lá estava, surge no seio da binariedade que se instaurou um elemento, uma espécie biológica, chamada humana, que reinstaura o percurso sobre a banda de Moebius. Ela pode ter as oposições etológicas que um animal tem – o animal tem uma oposição nítida, sua etologia o informa de que: isto é sim, sim, sim, e aquilo é não, não, não –, mas com um furo. Portanto, instaurase que: sim ou não. Cria-se uma abertura, um buraquinho, pelo qual passa um tesãozinho capaz de absorver todos os nãos em sins. Daí Freud dizer que não há não no Inconsciente. Onde há Inconsciente o percurso é como sobre uma banda de aparência bilátera, a qual ainda não é o plano projetivo, mas se, com este percurso, podemos – pelo menos, imagino que possamos, embora os matemáticos não gostem de fazê-lo – representar, situar, esse ponto terceiro, teremos tanto as oposições, sim/não, quanto, segundo o modo de representação sobre o oito-interior, nem sim nem não. Ou seja, aí é o lugar pelo qual, a partir do sim, posso passar ao não, e vice-versa. Então, jogo no seio mesmo da bilateralidade a possibilidade de deslizar de maneira que sim e não, para mim, sejam muito relativos. Todos os dois são sim, pois quando digo não-isso, já falei isso. Não há não sem sim. Há não para o cachorro. Não radical, que não pode nem ser dito, pois, para ele, se algo é sim, o que não é este algo é não, não se o considera. Para

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o falante, algo é sim, mas se faço um percurso, tomo o que era não e o trago para dentro do sim. E mesmo se quiser negar isto, tenho que dizer não ao sim previamente dito. Daí é que Freud tira o seu conceito de denegação, quando prova que negar e denegar são no fundo a mesma coisa. Ou seja: não posso dizer não senão àquilo a que já disse sim. Então, não adianta o analisando dizer “sonhei com isso, mas não é minha mãe”, pois já disse, agora é tarde. Quando disse: não é isso, isto é: isso com o não na frente. *

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Representamos, assim, a possibilidade de língua no seio das bilateralidades do mundo. Instaura-se um sistema de oposições, mas que sofre da vertigem da unilateralidade, pois a língua desliza. Se começo a falar, o que estou afirmando agora, daqui a pouco, passa a ser negação no meu próprio discurso. Não é à toa que Hegel inventou brilhantemente uma chamada dialética e ficou buscando uma síntese disso tudo sem conseguir encontrar. Como, da modalidade binária do mundo, reinstaura-se – sei lá por que cargas d’água –, num sujeito falante, numa espécie nova, um furo que faz com que o uso do binário comece a transparecer como ternário? É a isto que chamamos de língua, que é um sintoma grave, todo apetrechado, todo binarizado. Mas no que começo a utilizá-la, ela começa a sofrer operações de reversão. Assim, não posso garantir, se não por um pacto aqui e agora de significação, que o nome deste objeto que está a meu lado é: televisão. Pode ser: Dona Maria, basta conversarmos muito, como fazem os escritores e os poetas, e irmos fazendo a sua metamorfose lingüística. Daqui a pouco, estaremos todos convencidos de que estamos falando da Dona Maria, pois não há motivo para não ser isto. Não vamos, pois, confundir códigos convencionados aqui e agora com o movimento da língua, que é tomar o binário da instalação do Haver pela via do ternário do Sujeito. A língua é sintomática, mas se o Sujeito mete o nariz nela, como faz o poeta, ela começa a se revirar e a perder a pura binariedade

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que aparenta. Por isso, estou representando esta questão sobre a estrutura do Sujeito na contrabanda, pois isso, através da criação de um furo dentro de uma banda bilátera, imita de novo a constituição da superfície unilátera aonde o Sujeito vai vigorar. Mas se o Sujeito insistir muito nisso a ponto de revirar demais a sua língua, de modo a ficar mais ou menos referente a esse pontinho de passagem radical, o que ele está exigindo com isto, o que está neutralizando dentro da língua, é a sua última borda. Ele está tentando coser a borda da língua na borda do que lhe falta para (não) ser Nada, fazer silêncio. Falar, então, pode ser fazendo silêncio. Falar insistentemente a partir da neutralidade da oposição binária é constituir um significante, que, este sim, é significante plenamente, pois que se neutraliza e se encaminha para Nada, na vertigem de coser radicalmente a sua falta dentro da binariedade com a sua posição de Sujeito na Indiferença do Haver naquele lugar desde onde Nada se diz (em todos os sentidos: nada se diz e o Nada se diz). Não é outra coisa que fazem os poetas. Pensamos que eles querem dizer alguma coisa, mas só dizem porque escorregam, fracassam. O fracasso do poeta é o poema. O poema malfeito não é fracasso do poeta, e sim do imbecil que tentou escrevê-lo. Quando o poeta consegue, ele fracassa e faz um grande poema. Mas é o fracasso dele, se não, ele (não) dizia Nada. É do lugar de onde Nada se diz que digo mais uma besteira maravilhosa. Constituo assim a representação, no mundo das binariedades, de um percurso reinstaurado pelo Sujeito, ou seja, Deus de novo: Deu-se (isso) de novo (nele). Deu-se de novo, que, no campo da binariedade, da oposição que era bilátera: +/-, o Sujeito arranjou, na sua estruturalidade, mesmo dentro do boneco – pois há que estar em algum lugar senão ele não falava –, um furinho por onde consegue fazer travessuras, travessias, atravessar, ser atravessador da significação. Isto vai da beleza ao crime. Não há medida. Não confundir a ética com a política. O homem é um ser maravilhoso/o homem é um ser deletério; o homem é um criminoso/o homem é um anjo de bondade; o que quiserem... Não porque é homem, pois isto é um macaco que não serve para muita coisa, mas porque o Sujeito está escrito lá em algum lugar.

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Quero, então, representar com o oito-interior assim escrito a inserção no seio do que chamamos de Linguagem, que pertence ao Universo, ao mundo. Se o mundo fala carne, madeira, pedra, está falando a linguagem. E é ternário, também. Se o cachorro é binário, ele pertence ao mundo que é ternário, vai no empuxo disso. O Haver fala ternário e não podemos confundir sua fala com a fala binária de duas modalidades. Eu, que tive a sorte – boa ou má, não faço a menor idéia – de ter o furinho reinscrito em minha binariedade, penso e ajo igualzinho ao Haver. Sou um caco de Deus. E quem sabe se Deus não é um caco de mim? Fica muito difícil distinguir. Não sei discernir isto. Não é megalomania, e sim ignorância.

É a isso que chamo de Significante. É a isso que chamo mesmo de: A linguagem. Para Lacan não há linguagem, há línguas. Ele só trata dos fenômenos sintomáticos que encontra. Estou dizendo que A linguagem não diz nada, é apenas a estrutura que, mediante furo, me permite circular. A linguagem é: Haver significante (em todos os sentidos: há significante e Haver é significante). O Haver é puro significante, é haver significante, em todos os sentidos. A linguagem, então, se apresenta como significante e é significante (não no sentido como se trata o significante lacaniano, por exemplo, que é uma metáfora, mas), o aparelho ternário em que: o que quer que se coloque, coloca o seu oposto no sentido binário da oposição e, pior, coloca-se como avessamento possível,

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pois tem o Terceiro mediante o qual se pode passar do primeiro para o segundo. É a lógica ternária de que, para além das oposições, há o Revirão, o avessamento possível. Lacan reconhece isto quando, tratando da retórica, diz que o que quer que se diga num discurso muito longo, daqui a pouco, passa-se para seu oposto. Quem passa? Por onde? Chamo, portanto, de significante a compleição toda, e não apenas o que até hoje temos chamado assim, que é um dos elementos (+/-) da sua posição sintomática. Por exemplo, quando se diz que preto é um significante, está-se dizendo que é uma metáfora, um sintoma dentro do Haver. Significante, para mim, é quando tenho o preto que necessariamente põe o branco, e não só isto como tenho condições de passar de preto a branco pelo Terceiro, que é um lugar que posso ocupar. Para mim, então, a estrutura do Sujeito é esta que é a estrutura da linguagem: estrutura ternária que retoma as oposições binárias do mundo, põe-nas em sua oposição e as atra-avessa – avessa secamente, atramente – pelo ponto por onde posso designar o Real. O ponto onde eu quebraria a cara se procurasse escapar disso e partir para o não-Haver. É a atra-avessura, a atra-avessia. Portanto, só chamo de significante essa brutalidade ternária que posso percorrer. O que chamam de significante, mesmo em Lacan, chamo de metáfora e sintoma. *

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" Pergunta – Por volta de 76, que já é bem avançado no percurso de Lacan, ele diz que se você pudesse ter um pedacinho de real, isto o colocaria diante da situação em que as trevas e a luz se alternariam viceversamente e você ficaria no escuro. Nesse momento, ele está definindo o real a uma medida de indiferença. Arquimedes – o homem que mede arqui – dizia, quando fez a teoria das alavancas, poeticamente: “Dê-me um ponto fixo no Universo que desloco qualquer astro”. Claro, dê-me um ponto fixo que também o faço: dê-me um

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pontinho de Real que avesso tudo. Lembro a vocês que não delirei sozinho, isto está em Lacan, em Freud, só que não explicitado e aproveitado. Digamos que foi onde Lacan chegou. E foi de onde estou partindo. Para quem sabe ler a obra de Lacan, ele foi para lá. Só que partiu de outro lugar e se encaminhou para isso. Não se explicitou, nem foi de serventia na re-polarização de sua teoria, mesmo porque tem-se o mau hábito de morrer. Se não morresse, de repente, não me dava esse trabalho, ele mesmo o fazia. Aí vem a questão que seria a de hoje: o Falo. (Trouxe dois objetos, aqui, de arte – porque sou muito arteiro, gosto de brincar dessas coisas e, além do mais, isto faz parte de certa pesquisa plástica que a Uerj assina para mim –, no sentido de visualizar isso). Desenvolverei da próxima vez e retomarei a questão de Lacan de colocá-lo como o significante do desejo. Vou equiparar a estruturalidade do Falo como significante com a estruturalidade da linguagem e do Haver. Então, o Falo passa a ser significante do desejo, ou seja, do movimento do Haver, de suas pulsionalidades, do Haver em sua estruturalidade, etc. Farei a crítica da tentativa (brilhante, porém apegada ao etológico) feita tanto em Freud quanto em Lacan, de estabelecer o Falo a partir de uma versão puramente binária e etologizando-o de certo modo. Etologizando nos princípios, mas nenhum dos dois é imbecil que não tenha abstraído o suficiente para nos dar a dica da continuação. " P – Você lembrou que Lacan adscreve o Sujeito do Inconsciente à banda de Moebius. Você tem dito que o Sujeito do Haver, quer dizer, o Sujeito da Denúncia, é mais radical que o sujeito lacaniano, que seria apenas da enunciação. Como você aproximou o Haver do plano projetivo, pergunto: como você topologiza o Sujeito da Denúncia? Pela mitra? Ou existe outra topologia? O plano projetivo, a mitra, o gorro cruzado, para mim, isto é a estruturalidade do Haver. Quanto ao tal Sujeito da Denúncia – no qual ainda não entrei aqui, – se temos o Haver, o A-Delta, desejo de não-Haver, A$Ã, escrevo-o no tensionamento da diferença para com um diferente que não há. E como ele repercute no seio da linguagem, na intensificação desse Sujeito

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mesmo, dentro da binariedade, recorrendo ao Terceiro e produzindo a possibilidade de um ponto de neutralidade com referência ao não-Haver, escrevo-o também no percurso do oito-interior. Então, do ponto de vista de quem está mergulhado na binariedade da linguagem, referindo-se ao Terceiro, o que ele tem de semelhante com o Sujeito da Denúncia do Haver é: num, está entre Haver e não-Haver, entre o plano projetivo e o não-Haver; e, noutro, no seio da linguagem, passando pelas oposições de todos os possíveis, referindo-se ao Terceiro, neutralizando isso. Ou seja, é de dentro da linguagem, nessa neutralidade, referenciar-se também ao não-Haver, pois o segundo é o mimetismo linguageiro do primeiro.

Quando o matemático diz que um ponto sobre a banda de Moebius não é orientável, está se esquecendo de que existe uma borda, um corte ali, tirado do plano projetivo e que, se esse ponto não é orientável, de alguma maneira é guiável por essa margem. Aí faço uma cisão ao dizer que o ponto, quando o encontro, não é orientado, mas se imagino um ponto de real dentro desse percurso, posso, uma vez dizendo aqui é positivo (+), dar a volta e dizer ali é negativo (-), mas passando pelo Terceiro. O matemático não quer pensar assim, pois para ele é falta de rigor matemático. Estou topologizando sobre o oito-interior como gráfico e dizendo: Fixe um ponto. Estou fazendo como Arquimedes: a lei das alavancas funcionaria no Universo se eu fixasse um ponto. Assim como o entendimento da lei da linguagem pelo avessamento funciona logicamente se digo: aqui é um ponto de Real. Como tenho as oposições e o Terceiro ponto, basta dizer que este é o ponto por onde passo de um lado para outro.

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Se na banda de Moebius marco o lugar de um ponto e, atrás, marco o lugar de outro, no percurso são dois lugares diferentes – se não tenho condições de determinar a orientação, é outra questão –, é um percurso entre os dois. E se digo que, em algum lugar, senti que passei daqui para ali – como vemos na fala, quando de repente, dizemos que sentimos que passamos de branco para preto, que não sabemos onde, mas que passamos, passamos – esse ponto, essa região, onde terei passado é que estou chamando de terceiro lugar. Porque não é marcado nem como preto nem como branco. Façamos, como metáfora disto, a diferença visual de passar do branco ao preto por uma série de cinzas tão pouco definidos que não se sabe por onde se está passando. De repente, chegase ao preto. Ou seja, passou. A experiência do artista plástico é radical aí. Isto a ponto de, de repente, ir descolorindo a obra até tentar construir uma série de quadros em negro aonde ele fale as cores. Eu não saber situar o ponto senão depois que passei é a própria estrutura do só-depois freudiano. Isto porque passo numa região de aparente caos, que só vai se definir como oposição quando encontro a oposição no avessamento. Mas passei lá, sei que passei, e só posso dizer depois, e não determiná-la previamente. O Sujeito da Denúncia é, no efeito dessa passagem, entender-se na neutralidade do preto e do branco e ainda dizer: Nem preto nem branco, quero é não-Haver. É o Sujeito, no embate com as oposições, atravessar de um lado para outro e dizer: Isto tudo ainda é muito, porque não é mais que Nada. Fazer o movimento de travessia, percorrer, já é dizer demais, pois eu queria a Paz absoluta de não ter que dizer nem preto nem branco. Não quero saber do Nada disso. " P – Aí é autismo? Sim ou não. Alguém tem ferramenta para distinguir um autista absoluto de um místico absoluto? Eu, não tenho, não sei isso.

08/MAI

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8 VIRGO OU VIRGA Da vez anterior, chegamos à topologia do significante. Eu disse que o Falo, a rigor, era essa lógica mínima do percurso do Sujeito. Isto segundo uma ternariedade que dissolvia as oposições corriqueiras do mundo das modalidades e que permitia, do ponto de vista do Sujeito, a passagem de um oposto para outro. Chegamos aí através da analogia com alguns objetos topológicos: o Plano Projetivo, como superfície absoluta, sem nenhuma distinção, nenhuma margem possível de orientar ou referenciar um percurso; um corte de uma só margem feito sobre o plano projetivo resultando na Banda de Moebius, ainda unilátera mas com uma margem; e um disco, um círculo, com uma margem só, mas com duas faces. Depois, a possibilidade de partição da própria Contrabanda, de maneira que ela se transforma numa superfície bilátera com suas oposições destacadas. Mostrei-lhes, assim, que, do jogo da oposição binária à reconstrução da banda de Moebius numa unilateralidade, e à reconstrução do plano projetivo com o resto que sobrara como superfície de círculo, retorna-se ao Haver como Nada, como Indiferença. Outro dia, conversando com alguém, vi-me obrigado a dizer que, se considerarmos o movimento topológico do Sujeito – da diferença estatuída sobre as oposições destacadas até à indiferença radical no plano projetivo, e desse plano projetivo para o destacamento da diferença –, esse vai-vem de cortes e suturas, recortes e re-suturas, a psicanálise, afinal, não passa de um curso de corte e costura: é saber quando é momento de cortar e quando é de costurar.

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Nossa questão fundamental era o Falo. É um conceito que tem promovido muitas diatribes, bate-bocas, discordâncias, dentro da ordem psicanalítica. No percurso feito por Freud e acompanhado quase que ipsis litteris por Lacan, não é de se destacar propriamente nenhum erro, dado o protocolo que utilizaram na construção do conceito. Eles acompanharam movimentos psico-lógicos das crianças, os quais, se são imbuídos de psicologia, são, na verdade, etológicos. É como Lacan define a psicologia: uma etologia. A questão se tornou extremamente áspera, pois se o Falo, como resultante de um processo de simbolização, tem origem na eminência gestáltica, como Lacan aponta, do aparelho genital masculino – na verdade, é isto –, como símbolo, está aderido a essa vertente do biológico. É evidente que, dado este protocolo, há razões para isso. No jogo de aproveitamento etológico do sexo para garantias de territorialidade, de dominância entre os mamíferos superiores, sobretudo, o pênis dos machos é utilizado como capaz de, em ereção, ser brandido como um signo, um broquel de ameaça para intimidar ou mostrar presença, a força vital. Isto como tesão de luta, de modo que o animal possa, com este gesto – que Freud costumava chamar de apotropéico – designar o ato de dar uma banana ou de dizer: Aqui, ó! É a exibição peniana no sentido de mostrar disposição para a luta, tesão de combate. Como já lhes disse, vemos esses movimentos nitidamente descritos pela etologia, em caso de desenhos de territorialidade e impostação de dominância, de hierarquia. Não há tampouco dúvida de que, do ponto de vista da pregnância visual, onde se pode ver, destacar, uma imagem de desejo evidente entre os corpos humanos é na ereção do macho. Lacan toma essa pregnância visual como indicadora de base vital – ele fala mesmo da evidência de turgidez vital – para se adscrever ao corpo um signo de desejo. Ele desenvolve, então, o seu projeto de explicação do que seja o Falo como significante mediante o entendimento da simbolização dessa pregnância visual como signo e, depois, significante do

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desejo. A coisa é abstraída a partir de um processo etológico – que, na etologia, funciona mesmo como signo: representa algo para outro animal –; há a entrada disso na ordem da linguagem, passando, portanto, a um símbolo que pode receber nomes; e há sua decantação final em significante do desejo em geral. Uma vez isto tornado significante, certamente que entra na massa da linguagem. Lacan conta com a transformação do que fora pênis em ereção, com a passagem pela signização, mesmo entre os animais, com a pregnância fálica, como chama, desse visual, permitindo a simbolização, a metaforização, como significante do desejo. Ele sente aí nessa passagem a abolição do etológico: se o signo virou símbolo, se o símbolo se articulou como significante do desejo para qualquer um, está descompromissado com seu passado etológico. Cria-se, assim, uma questão muito séria. Se o significante do desejo, ainda que tenha essa história no seu processo de passagem a significante, abriu mão das suas referências anteriores, nem por isso deixou de ser, enquanto significante, metáfora naquele processo de sua historização de significante. Fica, então, muito difícil dizer que há abolição, abstração radical, a não ser para a frente. Mas a história de constituição desse significante está ligada psicologicamente, ou seja, etologicamente, à funcionalidade animal. Por melhor que seja este tipo de explicação do processo de simbolização do Falo, nem por isso, desde depois de Freud, e mesmo apesar das construções de Lacan, diversos autores em psicanálise, sobretudo do sexo fêmeo, resolveram contestar isso. Algumas psicanalistas mulheres – quer dizer, que portam um corpo constituído no fêmeo – apontaram que Freud não poderia colocar o Falo como o representante fundamental, e mesmo dominante, do processo. Naquele tempo, a coisa era um pouco mais difícil de ser rebatida. Freud não dava outra explicação – no sentido do significante, por exemplo – senão a da historização e do processo, digamos, de dominância fálica, tal como o vemos no reino animal. Isto na medida em que, para ele, isso era o símbolo de alguma coisa. O Falo, então, estava distribuído de maneira diferente para os dois sexos. Essas mulheres partiam da sua própria experiência e da de seus analisandos. Diziam que havia uma dualidade. Uma análise levada bastante

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longe mostraria que a constituição da sexualidade para as mulheres não dependia exclusivamente dessa pregnância fálica, e sim de que tinham respostas anatômicas diferentes para constituírem o seu modelo de desejo de outro modo. Ou seja, a discussão ficou no mesmo nível: a palavra de Freud constituindo o Falo como dominante a partir da ereção peniana no masculino; e as mulheres dizendo ser falta de experiência dele porque não era mulher e não podia perceber essas coisas. A coisa ficou numa conversa mais ou menos de comadres. Lacan pretende ter resolvido isto ao estabelecer a passagem até cair no significante, que, para ele, seria o mesmo para os dois sexos, pois a pregnância é a mesma para machos e fêmeas. Mas também, alguns autores lacanianos, ou pelo menos que seguiam seu ensinamento, sobretudo do sexo fêmeo – Luce Irigaray, Madame Dolto, por exemplo –, continuavam contestando essa dominância do significante Falo como instalado decisivamente na vertente masculina. Há também Ernest Jones, que, no meio da discussão – para quem vai o Falo, afinal de contas? há dois Falos? há duas posições? –, muito fiel ao ensino de Freud, pretende resolver dizendo que, para aquém da constituição do Falo, há a questão da posição desejante do Sujeito, de tesão sexual mesmo. E isto certamente se resolveria com o conceito que ele traz de afânise. Antes ainda de se questionar sobre macho ou fêmea, masculino ou feminino, segundo ele, o Sujeito, nos impasses da relação do corpo com a linguagem, teria a questão fundamental da sua pura e simples existência como desejante. Ele poderia encontrar no discurso de muitos analisandos colocada a questão de, antes ainda dessa diferença, ter ou não ter esse vigor desejante. E também do terror, do medo, que aparecia em diversos momentos de uma análise, não de sofrer-se a castração de algum Falo, de debater-se com a questão da diferença sexual anatômica, mas de, primariamente, debater-se com a questão de ter ou não ter desejo. Também isto foi criticado por Freud e, posteriormente, por Lacan, que coloca a afânise em outra situação. *

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Retomando, portanto, depois de todo o trabalho de Lacan e das discussões de alguns de seus discípulos, coloco a questão de duas maneiras opostas. Primeiro, ainda retomando o percurso de Lacan, ou seja, a partir de uma pregnância visual da diferença sexual anatômica, tenho determinado órgão sexual colocado como dominante, pregnante e como signo, mesmo entre os animais, depois, para os humanos. Num processo de simbolização, ele vai se abstrair até chegar a ser mero significante de desejo. Daí para frente, o passado metafórico desse significante pode ser abolido e tudo ser abstraído a partir dele. Na própria vertente desse movimento, eu diria que, isso tornado significante, começa a participar da equivocidade radical que Lacan encontra em qualquer significante. Então, se não do ponto de vista do passado, da sua história metafórica, pelo menos do de sua história significante, o significante Falo como significante do desejo é necessariamente passível, a partir daí, de entrar no jogo mais radical da equi-vocação que o significante produz. Lacan se aproveita disto a ponto de abstrair longamente daí para frente. Então, do ponto de vista lacaniano estrito, pelo menos como vetor no sentido do acrescentamento discursivo, o Falo significante está, pelo modo mesmo de ser do significante, radicalmente imbuído de equivocação. Portanto, não tem mais nenhum compromisso sério com a sua história metafórica. Se o Sujeito passou do regime etológico da distribuição, pelas pregnâncias emprestadas pela ordem das modalidades naturais, uma vez tornado significante, tudo isso perdeu o prestígio e a equivocidade comparece inarredável daí por diante. O que não faz mais do que demonstrar a falta radical de fundamento que qualquer Sujeito humano, falante, encontra na sua sexualidade. Se pintou o significante, o fundamento explodiu. Aí, Lacan vai querer demonstrar que são os demais significantes advindos da discursividade do outro que vão desenhar, fundamentar, para esse Sujeito absolutamente equivocado diante da sua designação sexual, uma postura sexual qualquer como discurso do Outro. Ainda que seja pela vertente lacaniana, temos que reconhecer que, em última instância, como significante, o Falo pertence ao reino da equivocidade radical. Tanto é que, para achar alguma ancoragem, Lacan precisa pedir, na

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história do Sujeito, algum “mito individual” que lhe garanta uma inserção desse Falo em determinado discurso. Já por esta vertente a coisa acaba onde quero ir. Minha crítica é mais radical, pois é ao próprio protocolo teórico de Freud e Lacan, os quais, a posteriori, no processo, chegam a essa abstração. Eu me pergunto se, tanto na questão daquelas senhoras psicanalistas quanto na de Ernest Jones, não há algo mais fundamental, que os protocolos de Freud e Lacan deixaram de lado quando partiram da experiência etológica, psicológica, do Sujeito. Ou seja, peço licença para acusar de psicologismo o nascimento do Falo como significante. Há certas questões que tomamos como definidas e que deixam um rabo muito comprido para ser trabalhado. O que Freud reconhece – como, digamos, observador psicológico – é a perplexidade da criança no momento em que ela distingue a diferença sexual anatômica. Toda a estorinha da constituição do Falo, para Freud, começa daí: eis senão quando uma criança, no seu processo normal de maturação, se dá conta da diferença sexual anatômica. A partir daí, Freud inventa aquela estorinha de rebatimentos lógicos para mostrar os percursos que a criança faz para dar conta de por que um tem e outro não tem aquela coisa que ele privilegiou segundo seu protocolo psicológico (para não dizer etológico). Daí para frente, a coisa parece caminhar muito bem, mas há uma questão fundamental que não é tocada nem por Freud nem por Lacan, pois não está nos seus protocolos. Qual seja: por que a criança fica perplexa? Pois os bichos não ficam, os bichos encontram a diferença sexual anatômica como algo que é de ser esperado: está inscrito no seu etograma que é assim. E sabem até como se comportar. Não é preciso ensinar a nenhum animal como se trepa: é um programa, a diferença anatômica é aceita como inscrita no seu processo. N’O Pato Lógico, tentei inventar um esqueminha que desse um pouco de conta dessa diferença entre o etogrâmico absolutamente descrito e o etogrâmico embaralhado por um processo de indiferenciação. Por que, segundo Freud, a criança faz a hipótese da indiferença sexual? Por que ela imagina que os sexos não devam ser diferentes? Ela se espanta: devia ser tudo igual.

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Por que o órgão sexual deveria ser só um? Freud mostra que a criança não espera essa diferença. Ela acha que tudo é gente, que é tudo igual. Isto se parece, também, com a questão da constituição do Sujeito no Estádio do Espelho, onde Lacan mostra que, diferentemente dos animais, que não se reconhecem no espelho, a criança humana vem a se reconhecer. E, aproveitando o momento de reconhecimento, digamos, gestáltico, de sua imagem no espelho, Lacan insere aí a possibilidade de entrada da linguagem. Isto quando a criança aprende a chamar-se eu assentada sobre a possibilidade de se reconhecer no espelho. Então, nossa primeira questão para criticar o conceito de Falo, independentemente do percurso último do próprio Lacan, no começo da história, é: por que a criança fica perplexa? por que acha que não devia encontrar nenhuma diferença sexual anatômica? Segunda questão: por que, diferentemente de outras espécies, a espécie humana tem a chance de se reconhecer no espelho? É claro que não temos nenhum estudo de laboratório que possa nos dar conta disso. *

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O que tento fazer para responder a essas questões é tomar, lá adiante, o evento do significante com a sua equivocidade radical podendo colocar dois opostos sobre a mesma nomeação. Um mesmo significante podendo: na história de um sujeito, nomear objetos radicalmente opostos; em certos momentos da língua, até passar pelo que Freud chamou de duplo sentido opositivo das palavras primitivas. A mesma palavra designa claro e escuro, quente e frio. Dependendo do contexto é que será claro ou escuro, quente ou frio. Esta equivocação, este equívoco radical do significante, que passa por n diferenças e pela diferença marcante fundamental de designar o oposto do que designara antes, é que me chama atenção para, com isso, retornar às origens. Se isto é possível para o ser falante, é por que ele já traz inscrito algo da natureza dessa equivocação. Não é simplesmente o fenômeno de haver línguas que vem demonstrar que há linguagem

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no falante, que vai me oferecer a idéia de que a língua, a linguagem, fura o ser falante subtrocando-o numa possibilidade de produtor de significantes. Mas sim que a espécie enquanto tal, inscrito no seu estatuto mesmo auto e etogramático, porta esse avessamento. Faço, pois, a hipótese de que a criança vem a se reconhecer diante do espelho porque, como Lacan chamara atenção n’O Estádio do Espelho, não só ela é (a) capaz de fazer uma projeção paralela, ponto a ponto, dessa imagem, ou seja, que corresponde àquela de lá, como (b) ainda – e Lacan passa rapidamente por isso em seu texto – precisa entender o avessamento que o espelho faz em relação a sua figura, pois vira-a pelo avesso. Há um processo de avessamento da imagem diante do espelho. A criança, diferentemente dos filhotes de outros animais, consegue dar-se conta disto porque a estrutura de avessamento já lhe é inerente. Por via de vontade, de protocolo estruturalista, Lacan, a partir de um corte sincrônico na história do falante, demonstra que o falante fala e que vai-se partir aí. O processo é saussuriano, lévi-straussiano: vou fazer um corte aqui e agora e daqui tirar a estrutura. Seu protocolo está correto, já que não aponta para uma origem dada, natural, se quiserem. Como só-depois é que, através do protocolo estruturalista, fica demonstrado que o significante necessariamente atinge a equivocidade e o reviramento, tomo o reviramento demonstrado e o trago para me perguntar: por que uma criança vem a se reconhecer diante do espelho quando outros animais não o fazem? Por que uma criança desconfia da diferença sexual, se espanta, fica perplexa, pois não esperava encontrá-la? O porquê, a meu ver, está situado mais além de onde, de passagem, Lacan o situou: deve acontecer por causa do processo de neotínea, de prematuração do animal humano, em que as coisas não estão fundadas. Mas o que vai dentro desse processo de prematuração? Apenas uma falta de pregnância de etogramas, ou há algo mais? Este algo mais, eu o construo teoricamente a partir da equivocação do significante. Digo: o significante, na linguagem humana, é equívoco e passa pelos opostos porque esta espécie está assim constituída. Talvez, um dia, um trabalho de biólogos demonstre isto.

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Estou, então, fazendo uma hipótese como outra teoria qualquer faz e parte disso. Tomo a equivocação por avessamento que o significante me deu e faço a suposição de que isto já está inscrito na espécie. A criança se reconhece no espelho porque, diferentemente dos outros animais, consegue avessar-se, avessar a imagem na sua percepção. Ela, com algum aparelho – cerebral que seja –, consegue acompanhar o avessamento que a teoria da Gestalt mostra ser freqüente na psicologia humana. Nos animais, não podemos saber, pois eles não dizem. Quando olho fixamente para um vermelho e depois ponho um cinza, vejo a cor oposta. Esse avessamento aparece mesmo nos processos de percepção, mas, certamente, para além do processo perceptivo, a espécie tem como registrar isso. E o registra em algum outro lugar, em algum outro processo cerebral, por exemplo. Ou seja, registra que isso se avessa e que ela acompanha o avessamento. Se a espécie tem uma constituição (cerebral) tão complexa que permita essa abertura, certamente que também permite à criança vir a se reconhecer no espelho: ela tem aparelhos para acompanhar o processo de avessamento, o qual não é senão a própria estrutura do espelho. Estrutura esta que, do ponto de vista topológico, é a estrutura de uma banda de Moebius. Ou seja, se a compacidade material do espelho não me permite atravessá-lo, no entanto, permite a Alice, no País do Espelho, atravessar logicamente esse espelho: avessar-se, avessar o seu mundo segundo a lógica de avessamento do espelho. Isto porque Alice, como falante, ela própria, porta as condições catóptricas de reconhecimento do avessamento. Por que a criança não supõe dever encontrarse com uma diferença sexual? Porque, no seu próprio jogo, catóptrico, com o outro, ela não encontra senão lugar na superfície mesma do espelho, o qual a permite supor que as coisas se avessam para lá e para cá. Se está nesse lugar, e não num e noutro extremos da oposição, ela vive numa radical indiferença em relação à sexualidade enquanto anatomia. Aí é que reconheço o talento de Ernest Jones, que, antes ainda de situar o tesão sobre este ou aquele órgão, aposta que está situado no próprio movimento vital da criança no seu desejo. Então, antes ainda de a criança

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botar a mão na vulva ou no pênis, ela bota a mão simplesmente lá. E lhe dizem: tira a mão daí! Ela bota a mão no que chamei de Pipi. As titilações eróticas dessa pequena região, que só tem o privilégio de ser um pouco mais intensa, independem de se designar para a criança essa região como desta ou daquela anatomia, macho ou fêmea. Isto é um problema animal que ela só vai reconhecer depois. Ela reconhecerá que, como um Sujeito, que ela não se reconhece como tal mas o é, instalado em algum lugar e sentindo alguma coisa por ali, tem um pipi lá que a seduz porque titila. Só muito depois, então, talvez em função da própria prematuração – prematuração do quê? de um etograma que não está fechado – é que ela vai ver que tem pipi de dois jeitos. Isto pelo menos enquanto houver animais sexuados do ponto de vista do mamífero. Mas o pipi vem antes. Por isso, quando se dá conta de que há dois tipos de pipi, ela estranha e se pergunta: Por que há dois tipos, se todo mundo tem pipi? *

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É aí nesse momento que insiro o conceito de Revirão: o processo de equivocação do significante passando pelos opostos. Insiro-o como estrutura mínima desta espécie. Chamo-o mesmo de: a estrutura da linguagem, a estrutura do significante. Digo mesmo que, se quiséssemos significar os significantes, diríamos que o significante de haver significante é: Falo. É o lugar de embate entre as construções corporais e as da linguagem. E é abstrato por natureza, pois se funda num reversamento lógico contínuo e se torna independente mesmo dessas oposições. Se, então, o oito-interior que lhes mostrei na sessão passada é um significante que posso chamar de Falo, eu diria que o reconhecimento do avessamento das oposições estaria, nesse percurso, situado no ponto terceiro de onde parte a seta. E a posição do Sujeito que atravessa tudo isso, é a posição desse circuito, que tem um ponto sobre uma superfície unilátera, o qual não posso destacar, situar, mas posso conjeturá-lo quando vejo as oposições. No só-depois de reconhecer que há oposições, posso conjeturar que, no

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percurso sobre a banda de Moebius, consigo passar continuamente da marca (+) para a (-) através do que chamo de Ponto Bífido. Isto porque ele permite a bifididade do significante para mais ou para menos. Digamos que, na série dos significantes dentro da língua, pudéssemos sempre fazer uma redução. Por exemplo, se tenho claro e escuro como opostos no sentido lingüístico, em algum lugar posso reduzi-los. A língua me oferece a possibilidade de passar de um a outro pela palavra luz ou luminosidade, por exemplo. Ou seja, passo de claro a escuro pelo conceito redutor de luz, de luminosidade. O percurso do Sujeito na ordem da linguagem, o conceito mesmo de significante, para mim, deixa de ser o que é para Lacan, um desses elementozinhos, como metáfora. E passa a ser a possibilidade de, diante de qualquer eventualidade significante – o que Lacan diz: o significante vem do real; la paix du soir; o passo na experiência, etc. –, este evento só ser significante porque se propõe como isto que colho aqui e agora com o fundo do seu oposto. Isto está no Seminário d’As psicoses, de Lacan, com toda clareza. Eu me ponho diante do dia porque há o fundo da oposição do dia à noite, do claro ao escuro. Então, aquilo só é significante na plenitude de eu ser o percurso desse avessamento. Eu, Sujeito, é Revirão, que passa por uma lógica ternária: dois opostos situáveis porque há um terceiro lugar por onde posso passar e equivocar de um para outro. O conceito de significante que passo a usar é, pois, o conceito do que chamo: Halo significante. No mundo das dualidades – ao qual a própria língua pertence, pois ela trabalha como se fosse uma formação binária do Haver –, ele se divide, na sua primeira aparência, em dois alelos significantes. Mas o significante é isso tudo e o Sujeito é esse percurso, esse Revirão. Daí que a sexualidade humana e sua relação com o que a proposta biológica, o evento biológico, nos ofereceu – a binariedade – é tão esquisita. Isto porque o Sujeito enquanto tal, na sua posição radical de Sujeito, não tem compromisso de espécie alguma com essa partição. Os compromissos serão fundados na história do sujeito mediante processos de Recalque. Será fundado um mito individual, necessariamente neurótico, para cada sujeito para que se

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enquadre numa, noutra ou sei lá em quantas posições que determinada tribo lhe oferece. É claro que uma das sugestões feitas à criança é a sugestão bruta do dado anatômico, do mamífero. Mas ela não tem nenhuma obrigação de se colar a isto, pois, do ponto de vista da sua subjetividade, que tem ela a ver com isto? Ela tem apenas um pipi. Pipi serve para muita coisa. Assim, aquelas senhoras, Karen Horney, Melanie Klein, Ruth MacBrunswick, a princesa Bonaparte, Madame Dolto, Luce Irigaray, estavam realmente colocando uma questão importante, mas que simplesmente não sabiam resolver, pois a colocavam no mesmo nível de debate. Não tinham um aparelho teórico, como Lacan formulou depois, para, com ele, retornar às bases. No Campo do Sentido, em que podemos manipular com a dualidade lógica das decantações das formações do Haver, tudo comparece como formações binárias. Mas no horizonte do Sujeito, esse terno, terno significante, lhe impõe o seu percurso de transiente, transeunte, até mesmo de transitório, de transador. Com esse protocolo fechado, não é por menos que Freud, em alguns momentos, chega à conclusão de que todas as análises batem de cara num tal “rochedo da castração”. Ele achava que todos os homens acabavam a análise sem poder terminá-la. A análise se tornava infinita porque davam de cara com o protesto macho, não abriam mão disto. E as mulheres batiam no mesmo rochedo: não conseguiam acabar a análise porque davam de cara com a inveja do pênis. Ou seja, a falta de fim de análise no pensamento de Freud pertence ao protocolo de Freud. Pois se, do lugar do analista, exijo que um sujeito, porque nasceu macho, o seja, o que ele vai querer senão me satisfazer? E se exijo que um sujeito, porque nasceu fêmeo, seja mulher, ele vai ficar eternamente, no processo de satisfação, em rivalidade comigo. A análise não anda. Em última instância, a figuração peniana do processo do Falo que a psicanálise tem usado até hoje não é, ao contrário do que se pensa, nenhum machismo, e sim “primatismo”. É coisa de macaco: qualquer macaco funciona assim. É supor que um sujeito da espécie falante, aborrecido, aporrinhado pelo reviramento que o equivoca o tempo todo, e por isso mesmo permite que tome destinos os mais diversos, vá ter que se reduzir e se conformar com a ordem

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primata das destinações de luta de prestígio, de território ou de hierarquia. Este, aliás, tem sido o broquel das lutas racistas. Então, para além de um humanismo – e quando se fala em humanismo vem toda a etologia do macaco junto –, é preciso um Subjetivismo radical que entenda que o processo é absolutamente abstraente, equivocante. Não foi por menos que eu trouxe aqui Marcel Duchamp, cuja obra é a tentativa de entender esse avessamento radical que a espécie porta. Naturalmente, ele vai colocá-lo no mesmo lugar onde sempre se colocou: na sexualidade. Antes ainda de construir La Mariée mise à nu par ses célibataires, même, ele faz o trabalho de entendimento do que chama: passage de la vierge à la mariée, passagem da virgem à noiva. Parece a mesma coisa, mas não é. Ele está, talvez – e isto já foi chamado à atenção por vários autores –, jogando aí com o termo verge em francês: a passagem da verge à mariée. Por isso, intitulei o Seminário de hoje Virgo ou Virga. Virgo, é a virgem, em latim; virga, é a verga, o pênis. No que eles se avessam, tanto no Grand Verre como no Objet-dard, por exemplo, Duchamp, na verdade, está demonstrando que essas duas posturas, que parecem opostas e avessas uma à outra, dependem da lógica unária, primordial, de serem a mesma coisa configurada em dois opostos. E pior, se há Sujeito aí, e não mero animal, essa coisa faz a passagem de um lugar para outro. E o Sujeito está sempre perplexo diante disso. A Noiva, no trabalho do Grand Verre, ele a chama de pendu femelle, o enforcado fêmea. Nada mais enforcado fêmea do que um pênis que não está em ereção: o pendurucalho. Ou seja, se ele coloca o masculino embaixo e o pendurucalho em cima, como se passa de um para o outro? Não estamos sempre do mesmo lado? Isto se encaminha através de toda a história da arte: as Vênus esteatopígeas da pré-história, que são evidentemente Falos, no sentido de pênis; a Princesa X, a Senhorita Pogany, de Brancusi, que são esculturas do caralho se quiserem; a recente Vênus, de Tunga, uma obra prima onde está embutido todo o processo de avessamento dos furos e das formas. Tudo isto está no trem de passagem do avessamento da virga para a virgo, da virgo para a virga.

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O que há aí no meio é o Sujeito com sua sexualidade, seu tesão, com a libido que há no Haver funcionando e se decantando no percurso do Sentido aqui, ali e em diversos objetos, até mesmo nessa coisa que chamamos de mamífero, com a sua dualidade. Mas o que tem a ver o Sujeito falante, cujo princípio é ternário e semelhante ao princípio do Haver, com isto? Só tem a ver na medida em que ganhou este ou aquele aparelho. O que ela pode fazer com isto? Isto varia do comportamento à tecnologia. Não sei o que o futuro nos reserva quanto às possibilidades de troca de sexo, por exemplo. Efetivas, convincentes e competentes, pois até hoje não existem. O que nos darão os processos de clonagem no futuro? Não faço a menor idéia. O Sujeito, então, porque não está compromissado com isso que aí está senão enquanto isso o oprime por sua incompetência, sua impotência, ele consegue politicamente – este é o nome –, agonisticamente, forças, competências, poderes, grana, em última instância, para intervir e modificar o mundo. Isto porque, repito, não tem compromisso, mas apenas está circundado disso. A neurose não é senão aproveitar-se dos esquemas de cerceamento para cercear os movimentos do Sujeito. Ou seja, fundar recalques que lhe dêem uma aparência de etograma. Mas os Sujeitos, liberados dos processos de recalcamento, ou seja, que podem retomar o retorno do recalcado com simpatia, com discursividade, têm pela frente todo o infinito das possibilidades do Haver. Talvez não tenham, aqui e agora, o valor para investir e pagar o seu processo, mas na medida do seu enriquecimento, estão livres de brincar de Deus. *

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[Perguntas] " P – Se não se reconhece o Falo enquanto significante, se esse aparelho é predisposto a não se reconhecer diferente e a fazer o avessamento no espelho se indiferenciando, por que, quando se reconhece a falta, não se reconhece, por exemplo, a falta do seio no outro? Reconhece-se, sim, a falta do Falo, já que se vem com uma predisposição a se ver igual e pode-

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se fazer o avessamento mantendo-se como Sujeito indiferente. Aí o Falo já não é mais significante. Esta é a estorinha que nos contaram e até encontramos motivos para repeti-la. A criança, de repente, eis senão quando, nota a diferença e diz: ali está faltando isso. Eu me pergunto se essa estorinha é suficientemente primitiva para eu lhe dar bola. Suficientemente primitiva quer dizer que nós, já impregnados por milênios de decantação recalcante do próprio corpo sobre a nossa subjetividade, já estamos nessa. E ninguém se deteve em prestar atenção em um momento um pouco anterior a isto, na criança: o momento da perplexidade. Imaginemos um ser que, não se sabe por que, surge no meio do Haver, diferente dos outros. É um macaco, igualzinho, funciona biologicamente, é mamífero, com reprodução sexual binária, etc., mas é esquisito, disto não há dúvida: fala, apronta essa loucura toda ao seu redor. Estou partindo da hipótese de que o nascimento do falante é algo que está escrito na ordem biológica: de repente, houve uma mutação tal que uma complexidade permitiu que ele pudesse lançar mão do avessamento. O que vai acontecer com um ser que, de repente, se sente perplexo? Ou seja, à beira da loucura (a qual, antes de mais nada, é oriunda de um momento de perplexidade)? Ele perde as estribeiras. Restar muito tempo perplexo sobre uma questão crucial, dá medo, ele procura uma solução. Que solução melhor se apresenta de imediato senão colar sobre a pregnância gestáltica, corporal? Neste momento aí é que a criança se apega naquilo e diz: Então, aqui tem isso e ali não tem. Que alívio! Ela faz uma teoria que lhe é propiciada pelo aparelho metafórico, que é o próprio corpo. Mas a questão radical é: por que terá ela ficado perplexa (já que bicho não fica)? É preciso, pois, colher a criança num momento antes ainda de ela dizer: aqui tem e ali não tem. Eu digo: Não! Tu já tá contando história da anatomia que viu. Quero saber da sua estorinha antes. Pelo que você passou? Passou pela não-espera, pela angústia, pela perplexidade de não ter nada aqui que obrigue que aquilo tenha e ali não tenha. E isto é uma imposição já recalcante. Imaginemos um Sujeito puro, alguém exercendo aqui e agora sua posição subjetiva de indiferença, transposição, deslizamento significante,

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avessamento, etc. Este Sujeito não tem compromisso nem mesmo com as configurações que aí estão. Se tivesse, não inventava a ciência, não modificava o espaço, não criava a arte. Ele tem que se descompromissar para dizer: vou fazer outra coisa. Para fazer outra coisa, ele freqüentemente lança mão de algumas disponibilidades que aí estão, e as modifica. Para um Sujeito enquanto tal, o resto da sua estrutura biológica, que não a do reviramento, lhe é radicalmente estranha, não lhe interessa, é muito pouco. É um animalzinho que ele vai carregar para o resto da vida... e vai deformar o resto da vida. Passamos a vida inteira deformando nosso corpo: vestimos roupa, vamos a cabeleireiro, etc. Isto, é claro, em função de outra sintomática, a da moda aqui e agora. Se tomarmos todas as sintomáticas do mundo, veremos a loucura que as pessoas fazem com o corpo. Não têm asa, passam séculos colocando asa e quebrando a cara, pois não é assim que se consegue. Até que se inventa outro tipo de asa, pois sem asa não dá. Como é que o Cara vai me fazer parecido com o macaco se estou a fim de ser passarinho?! Que possibilidade é esta do Sujeito, que independe ou até mesmo freqüentemente recusa sua instalação nesse macaco? Então, até acredito, pois o protocolo teórico de Freud, além de uma experiência, lhe dá isso. Se tenho experiência com as crianças, encontrarei isto que ele disse. Mas já é decantação, com surgimento de um recalque. Não é recalque de alguém que disse. Não é preciso. É o próprio corpo oferecendo uma resposta para me liberar do processo de equivocação. Então, o que se faz é que você se segura naquilo: aqui tem e ali não tem. O que estou pedindo é uma reflexão sobre um pouco antes. Esse momento aí me parece espontâneo acontecer, mas não é universal. Nada impede que a criança não adira a essa solução. Que, por exemplo, resolva ficar em suspenso, nem que seja para cair na psicose, na perversão. Nada a obriga. Retomando a pergunta, por que a criança não pensa: por que uns têm seio e outros não? Aí, temos que perguntar a ela. Eu, suponho que está tudo mais ou menos determinado, tanto na discursividade quanto na anatomia. As titilações daquela região são um pouco diferentes das outras. Freud descobriu muito cedo, na teoria, a masturbação infantil: aquilo coça, tem tesão, mesmo

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no bebezinho. A tensão fica muito voltada para ali. Mas a criança poderia olhar o seio dos adultos e perguntar: por que vovó tem e vovô não? Às vezes, vovô tem. A gente fica mais velha, fica assim. Ela deve ficar meio confusa... Mas até do ponto de vista animal mesmo, etológico, há certa concentração ali. Até nos animais, vemos isto. Tanto é que usam, etologicamente, o pênis para falar com o outro: aqui, tu não pisa. Sou melhor do que você. E isto tem certa vigência etogramática mesmo na nossa espécie: está escrito lá, há certa concentração naquela região. Se chega, portanto, a comparecer com este valor sígnico na ordem do animal é porque a sexualidade, no sentido de genitália, tem alguma importância, alguma pregnância. Há que colocar em vários níveis. Há uma pregnância de alguma sensibilidade naquele lugar. Depois, na ordem animal, aquilo se decanta em valor sígnico dos machos. Há também o valor sígnico das fêmeas, que está escrito. Elas fazem a apresentação feminina para dizer: tudo bem. E viram a bundinha. Este é um processo de que a etologia tem que dar conta: primeiro, há uma pregnância ali; depois, aquilo vira um signo porque funciona. Não podemos esquecer que temos esse macaco que carregamos. Então, é um diálogo constante das oposições inscritas na ordem do macaco com o aparelho de equivocação. A criança, no que enfrenta o problema, sua primeira batida é perplexidade, pois não há nada definitivo inscrito aqui. Mas há certas titilações e certas coisas que pertencem à ordem do animal. Dizem que – nem garanto que seja – o mais freqüente é que ela até adira rapidamente a esse bicho para ter um alívio: então, sou assim, o outro é diferente; eu tenho, ela não tem. Pronto, resolveu-se o problema. Mas não se resolve. Se resolvesse, ficava assim. Mas lá adiante vão aparecer outras equivocações. Isto porque o processo continua capaz de reviramento. Não revira necessariamente. Para isso, existe o bom neurótico, de peso, o senhor neurótico, aquele que está tão bem recalcado que não mexe mais nesse assunto. E ele fica muito parecido com o bicho: fica-lhe difícil até raciocinar para o futuro em cima dessa questão. O reviramento pode ser depois do impacto, ou antes. Teríamos que estudar caso a caso. Ou seja, há disponibilidade para não marcar, que não é

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nem reviramento, que a criança apresenta com muita freqüência. Ela fica perplexa, aí, mesmo com o discurso que fazemos com ela, inventa-se um ancoramento para ela não ficar piradinha. Ela, então diz: oba, consegui uma diferença, deixa eu guardar para mim. Mas não podemos esquecer que essa instalação de diferença, de escolha de diferente, é recalque. " P – Essa questão da criança vem junto com a indagação sobre a origem dos bebês. Então, a pregnância fálica também não tem a ver com o poder que se atribui por ser o órgão capaz de uma reprodução, nem que seja, num primeiro momento ainda, num nível etológico, mas que devia ser simbolizado de outra forma? A criança se põe a questão da reprodução: de onde vêm os bebês? É evidente que são trazidos pela cegonha. Alguém duvida? Quem é trazido de outro modo são os animais. O que satisfaz mais uma criança, dizer que os bebês são trazidos pela cegonha ou que se faz neném metendo o peru lá dentro? Qualquer dos dois satisfaz, pois o que se quer é uma resposta. Não vamos confundir a resposta que a criança precisa: você é criança da tribo tal. Suponhamos que não andem nus, e que tenham escondido a reprodução, aí se inventa que o bebê é trazido pela cobra grande que faz não-sei-o-quê. Ela tem uma resposta. Por enquanto, ela está satisfeita de sair do quê? Da perplexidade. Do ponto de vista do Sujeito, tanto faz que as crianças sejam trazidas pelas cegonhas ou pelo doutor, na clínica tal. Aí, já é outra questão, que terá que ser vista depois: vamos pesquisar melhor, pois não são sempre trazidos pelas cegonhas. " P – A questão do Pai passa por essa fantasia. Até então, enquanto ela não precisava se perguntar, a questão do pai, para ela, também não tinha nenhuma significância. O que o pai está fazendo na nossa conversa? Bebê não tem pai. Só tem mãe. " P – Então, quando é que começa a ter pai? Quando ela exige isto na linguagem, pois ela não precisa de pai. Todo mundo é filho da Virgem Maria. Você nunca percebeu isto? Estamos, agora, é botando nossas “neuras” de adultos em cima da pobrezinha da criança. É o

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que sempre fazemos. Criança precisa de pai? " P – Ela o deseja? Deseja em função do quê? De todo um processo discursivo. Se lhe dermos qualquer origem, ela aceita. Há criança que foi achada na lata do lixo, outras foram achadas no repolho, etc. Estamos é misturando os nossos saberes posteriores, invadindo a criança com eles. Ela, não sabe e nada tem a ver com isso. Depois, ela verá, no discurso social, que há umas transas por ali que ela não entende bem. Aquilo, de repente, dá em neném, ela quer saber como é, mas isto é posterior. Se a criança está perplexa diante da sua existência, podese contar qualquer história – e será verdadeira. Não vamos tomar a posição imperativa, imperialista, do pensamento dito científico: tem que dizer a verdade. Mas qual é a verdade? Pelo amor de Deus, me diga: de onde vêm as crianças? Sei, por certo discurso científico e até por observação, que os filhotes costumam nascer assim. Mas as crianças, de onde vêm? Eu, não sei. É a mesma coisa que perguntar: de onde vem esta espécie falante? " P – De onde vem o Revirão? Da minha cabeça! É pura invenção minha. Parece uma brincadeira, mas a questão é grave. Quando uma criança pergunta: de onde é que eu venho?, ela está perguntando e eu estou perguntando até hoje. Não adianta a biologia explicar como se faz neném. Tá, já entendi. Agora: de onde é que eu vem? Não faço a menor idéia. Pintou ali, pintou esta espécie. Deve ser o desejo do Haver. Por isso, até tenho uma razão para pegar o meu princípio antrópico. Quem sabe se o Haver não desejava que eu existisse? Isto porque ele é doido, sei lá, nada tenho a ver com isto, é problema dele. São respostas que estou inventando, pois se fundamentalmente perguntarmos de onde vêm as crianças, não sabemos. " P – Essas respostas míticas dadas: veio da cegonha, do repolho... é o desejo da cegonha? A própria criança começa a se indagar a questão da origem, pois tem a ver com a questão: alguém quis? Ou seja, quem foi o sacana que me meteu nessa? Aí, posso dar uma resposta: Deus! Está errado? Não posso dizer que foi Deus que quis? Há

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milhares de pessoas que ficam satisfeitas com isto. O chato é ficar satisfeito só com isto. Eu, fico satisfeito, mas não só com isto. E a resposta não virá nunca. A pergunta foi feita para você inventar respostas e não a resposta. *

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" P – Para Lacan, a estrutura está centrada em torno de uma falta. No lugar topológico ou lógico da falta que existe na teoria de Lacan como estruturante da sexualidade, para sua teoria, o que está neste lugar é a máquina de Revirão? Que estrutura é o Revirão? A máquina de Revirão é a estrutura. Se procurarmos uma Causa para esta estrutura, vamos encontrá-la em: não-Haver. A falta é isto. Lacan diz que o que é estruturante da estrutura é a falta, que, para ele, também é causa da estrutura. Estou dizendo a mesma coisa. Nisto, não discordo. Mas estou dizendo que coloco a falta radical como não-Haver. E no que a coisa passa pelo Real, o não-Haver se rebate sintomaticamente dentro do Haver não como não-Haver, mas como faltas localizadas. Por exemplo, faltam-me asas, falta comida ao bicho, etc. Mas estas não são faltas radicais. São faltas a um sistema que não tem a plenitude do Haver. Isto porque ao Haver não falta nada, a não ser ele não-haver. Para mim, a causa continua sendo a falta. Mas não é falta de pipi, pois esta é só para quem não o tem, aqui e agora. E, sendo Sujeito, até inventa um. O que me parece mesquinho – e não é de Lacan, mas mesquinharia de lacaniano – é colocar a falta num regime muito próximo. Lacan a colocou como Impossível absoluto. Depois, mostra-a comparecendo talqualmente, como causa de movimento desejante aqui e ali, em faltas menores, que são não estruturais. São representantes da falta estrutural, são faltas modais. Estou perfeitamente compatível com ele, mas abrangendo para deslocar para o mais radical possível. " P – Dizer que ao Haver não falta nada, já pressupõe uma distância em relação à semântica da noção de falta. Certamente que a indicação de

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que há falta está em Lacan, mas não se tematiza de frente na radicalidade da negação. Até porque vai comparecer sintomaticamente na noção de furo no campo do Outro e no próprio conceito de real. Foi por onde você, aliás, pôde fazer a crítica ao conceito de real. Há certo deslizamento, não há uma definição seca, um enunciado definitivo, em Lacan, nas conceituações. Ele vai passando, mudando e a coisa fica em aberto. Et pour cause. O protocolo teórico de Lacan é estruturalista. Ele lê no corte sincrônico: Vou fazer um corte sincrônico aqui e ler através deste corte. Fica completamente esdrúxulo, no protocolo dele, colocar essa falta radical. Ele só diz que é o impossível, aquela coisa que terá sido, que nunca foi. Isto porque seu corte é aí: Vou estudar o inconsciente a partir desta manifestação aqui. É no só-depois de tudo que ele elaborou, que planto o Esquema Delta, que extrapola radicalmente o projeto dele. " P – Há outro aspecto, que é a questão da perplexidade. Pode-se reconhecer na montagem da teoria do Falo essa dominante etológica, tanto diretamente em Freud quanto já mais trabalhada pelo processo de simbolização em Lacan. Mas existe um aspecto essencial em que tanto Freud quanto Lacan foram extremamente atentos. A questão da perplexidade se tematiza no Unheimliche, em Freud, e na noção de não realizado, em Lacan. São dois momentos em que equacionam a questão da perplexidade dentro da teoria. A perplexidade não é uma maneira de falar, um modo de dizer alguma coisa, e sim algo que tem conceito. O conceito de Unheimliche não é senão o momento de absoluta perplexidade em que o que está diante de você é, ao mesmo tempo, absolutamente familiar e absolutamente estranho. É indecidível. É tão indecidível quanto o não realizado, em Lacan. Está ainda no regime do indecidível. É preciso encontrar alguma escora sintomática para aquilo vigorar. Não posso viver no indecidível. Não posso ficar em suspenso como puro Sujeito da Denúncia. Tenho que ir à ação. Que faço eu quando vou à ação? Sintomatizo. Escolho qualquer coisa. Mas posso sintomatizar (a) dando absolutamente estofo jurídico – digamos assim – ao recalque, ou seja, abolindo o contrário daquilo;

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como posso sintomatizar (b) com juízo, fazendo um juízo foraclusivo: Deixo aquele para lá, fico com este. A questão do momento de perplexidade atravessa a obra de Freud e de Lacan. " P – Há outra resposta que é a renegação, em relação à perplexidade. Freud, no final, começa a fazer a teoria da renegação como um, digamos, aposto ao recalque. Acho que a máquina do Revirão muda toda a noção do que seja perversão. Essa questão de ter/não ter pênis e isto ser o regulador da perversão tanto para Freud quanto para Lacan, fica uma coisa muito regredida como entendimento da sexualidade humana.Isto muda fundamentalmente a compreensão do que seja perversão. E psicose também. E neurose, de lambuja. Tomar o Falo como símbolo não exclui que o processo é sígnico passando a simbólico. No que passa a simbólico, Lacan o designa como significante. O que se esquece é que, neste percurso, o significante pode deslizar, mas não consegue não ser senão metáfora. Ou seja, o significante é metáfora porque é herdeiro do ato simbólico de transformação do sígnico em substituto, por inscrição. O conceito de significante, em Lacan, é absolutamente metafórico. O meu é: unheimlich. É como se Lacan tivesse esteado todo seu processo sobre o processo da metáfora. Estou esteando o meu sobre o Unheimliche. Dentro do Unheimliche, metáforas são possíveis. O significante, enquanto unheimlich, é, pois, anterior à sua partição por via de recorte como metáfora. Lidamos com as metáforas, mas o significante é pleno, é absolutamente não-senso. E Lacan diz isto quando percebe que o significante começa a deslizar por alguma coisa, que é o processo mesmo: ele se torna absolutamente sem sentido. O que é isto senão que o significante é sem sentido antes ainda da metáfora? É recortando o não-senso do significante que se consegue dualizar suas metáforas. No que, então, se toma o Falo como significante, ou seja, como sintoma – que é a definição que Lacan dá de metáfora – está-se distribuindo a sintomática. Aquelas senhoras têm razão na sua crítica, pois está-se fazendo a distribuição do mundo através do sintoma que se herdou do macaco. Eu, não estou nesse partido. Sou também macaco, mas com muita desconfiança.

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" P – Você falou que Lacan faz um corte sincrônico, fica no nível da estrutura, de acordo com o projeto dele que, imagino, seja clínico. Qual é o projeto, então, de quem faz um Esquema Delta, de quem radicaliza a questão da Clínica. Você escreveu no quadro: Clínica Geral, o que é isso? Se Lacan opera mediante um estruturalismo e um corte sincrônico, segundo o quê estou operando? Segundo o que chamei: retorno de Freud. Em Freud, a tentativa de descrever os processos do inconsciente acabam, em última instância, remetendo-o a uma exigência de que isso esteja inserido aí. Lacan não trata disso, não é assunto dele. Tomou o inconsciente no seu movimento, fez um corte sincrônico, estudou e disse: Este é o resultado que vi. Freud podia até fazer isto também, mas queria saber como isso se inscreve no seio da, digamos, Natureza, no seio do que há dado. Isto sem resposta porque, naquele momento, não tinha condições para isto. Eu, me aproveito do quê? Dos encaminhamentos mais avançados de Lacan, que descobrem esse processo. Dos encaminhamentos de certas ciências de hoje, que me dão referenciais, como a etologia, a biologia moderna, a física, etc. E faço a grande conjetura – que não é menos nem mais conjetura do que as de Freud ou de Lacan – de que (ao invés de tomar o inconsciente aqui e agora num corte sincrônico, que já entendi como é, pois Lacan me deu de presente) posso procurar agora como isso, na plenitude do Haver, é inserível por alguma fabulação cientifizante, digamos assim. Meu projeto seria – não gosto deste nome – holístico, alguma coisa assim. Não quero ver o surgimento do Inconsciente aqui e agora, pois isto já me deram. Quero saber se ele tem uma base de geração no campo do biológico, pois faço a suposição de que ali nasceu esta espécie que porta isso. E isto tem referências com a plenitude da materialidade do Universo, como são tendências de várias ciências hoje. Essa coisa que, falando baratinho, virou a Ecologia. A totalidade, isto tem uma razão qualquer de ser e se inseriu aí de algum modo.

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9 OS QUATRO SEXOS DO HAVER Trata-se agora de mostrar a distribuição lógica da sexualidade tanto para o Haver quanto para o falante. Isto em função do significante Falo, que é instituído, na teoria, como significante do desejo. A partir de sua instauração – instalado como proveniente de um processo metafórico, aderido a uma pregnância gestáltica –, Lacan vai dar certo estatuto à função deste significante como significante do desejo, endereçando sua função, que chama de função fálica, às peripécias do desejo em relação com os sexos. Aí a coisa fica ambígua, pois se este significante o é, (a) acaba por abstrair-se dos comandos corporais, anatômicos, (b) ao mesmo tempo que sua fundação sobre uma Gestalt retorna, de certo modo, a esta fundação. Em termos lacanianos, então, a função fálica – ou seja, o movimento desejante em função da marcação do significante Falo como significante do desejo – está na dependência desta dupla postura e, portanto, numa grande (não bem equivocação, mas) ambigüidade. Isto porque, do ponto de vista estritamente lógico, este significante (a) constrói, permite a construção, de uma partição sexual independentemente do corpo, da anatomia, ao mesmo tempo que (b) por sua fundação, continua a exigir a presença de dois sexos, mais ou menos distribuídos pela sexualidade anatômica. Vemos, assim, na passagem do antropológico – se não mesmo, etológico, primatológico – para a subjetividade, uma ambigüidade das articulações do significante do desejo com

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o sexo em relação à partição sexual dada pela biologia. Entretanto, no desenvolvimento de sua teoria, à medida que vai abstraindo cada vez mais, a partir dos movimentos do inconsciente – sobretudo, no famoso texto L’Étourdit que, em muitos aspectos, é superior a vários textos anteriores de seus Seminários –, Lacan leva isto a uma tal exacerbação que não mais pode sustentar qualquer designação de sexualidade sobre nenhum aparelho anatômico. Trata-se, então, de retomar isso tudo. Não é a primeira vez que o faço – já está publicado –, mas faz parte da introdução que lhes prometi. *

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Como a função fálica, que se escreve: #x, designa a distribuição lógica dos sujeitos em relação ao significante fálico, Lacan, no que diz respeito à sexuação dos sujeitos, parte para uma crítica à lógica aristotélica da distribuição dos particulares e dos universais. Como sabemos, na lógica de Aristóteles, a existência de algo, por generalização, funda um universal. Por exemplo, se existe x, %x, algum existente, posso fazer a suposição de que a generalização desta afirmação me conduz necessariamente a distinguir todos os elementos da mesma natureza como sendo constitutivos de um universal designado por esse particular. Ou seja, se há giz, se faço a coleção de todas as existências de giz sobre o Planeta, o Universo, ou simplesmente sobre a lógica, generalizando a existência de giz e reconhecendo sua repetição, posso dizer que todo giz é giz. Então, a partir do existente, posso afirmar o universal, &x. Então, se existe x, em sua generalização, todo x é x. Lacan vai mostrar que, do ponto de vista da sexualidade humana, se disser que existe função fálica, %x #x, não posso tirar daí nenhum universal, que todo x é função fálica, &x #x. Não posso, para todos os falantes, reconhecer esta função a partir da generalização do existente. Ou seja, a particular afirmativa – existe função fálica, %x #x não conduz necessariamente à universal afirma-

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tiva – todos são função fálica, &x #x. Ele diz isto baseado na estrutura da castração, segundo Freud, o qual, a partir da construção do significante fálico, baseado na pregnância fálica do masculino, do macho, e reconhecendo a existência disso nas análises, teria encontrado o rebatimento da sexualidade sobre a anatomia. Freud chega à conclusão de que a função fálica é fundamentalmente masculina, tanto para meninos quanto para meninas. E de que só posteriormente surge uma dificuldade lógica diante da não-existência de um órgão semelhante ao masculino no corpo das fêmeas. Então, estatui o significante Falo sobre a pregnância gestáltica do pênis em ereção como significante evidente do desejo. Lacan, retomando a via por aí mesmo, mantendo esta estrutura freudiana, vai reconhecer que, no jogo da diferença anatômica, relacionada com a diferença psíquica, a presença do pênis, pela distinção para com a falta de pênis no corpo das fêmeas, referenda no psiquismo da criança um temor da castração. Se ela não tem é porque alguém o tirou, pois previamente supunha-se que todos tinham, ou eram iguais. Então, a partir da suposição de “todos iguais”, assentada sobre uma mais-valia peniana, distribui-se esta mais-valia sobre os corpos e suspeita-se que, aqueles que não têm, certamente lhes foi tirado. Freud chega mesmo a dizer que as análises acabam esbarrando no “rochedo da castração”, ou seja, que os homens não conseguem ultrapassar, em sua análise, o temor da castração, o qual, na sua atitude cotidiana, se representa como protesto masculino. Qualquer coisa que signifique para eles a perda, efetiva ou representável de algum modo, desse Falo, eles se rebelam contra isso. Por temor da castração, apresentam um protesto macho. E que as mulheres, que já não o tinham, tiveram que se acostumar à idéia de não tê-lo e referendá-lo ao masculino. Elas, em última instância, esbarrariam não no temor da castração, mas na inveja daquilo que não têm. Então, Freud suspeita de que as análises das mulheres esbarram, em última instância, na inveja do pênis, o que me parece uma coisa tola, como pareceu a Lacan também. Lacan consegue dialetizar isto, introduzindo a questão do Falo como significante puro e podendo, portanto, com ou sem presença de pênis, fundar

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uma lógica de pertinência ou não-pertinência, apesar dos corpos. É com isto que ele põe que, de qualquer modo, a função fálica, que seria indistinta se não surgisse a diferença, não consegue fundar nenhum universal a não ser que seja barrada pelo temor da sua perda. Discordando, então, de Aristóteles, Lacan diz que, do ponto de vista dos mecanismos psíquicos, da distribuição da sexuação, da distribuição das posições sexuais, em função do desejo designado por seu significante Falo, não teremos, na experiência clínica ou do mundo, a menor condição de dizer que a pura e simples existência de função fálica é distributível por todos os sujeitos. Mesmo porque grande parte de sujeitos, talvez metade, não pertence a esse campo de necessariamente inserir-se na função fálica. Este é um dado clínico e um dado reflexivo. O que faz Lacan? Partindo do conceito de castração em Freud, abstraído naturalmente, disse que a particular afirmativa não funda, na sexuação, nenhum universal. Muito pelo contrário, o que fundaria um universal lógico seria algo que viesse barrar a função fálica. Ou seja, não é porque “existe função fálica” que “todos serão função fálica”. Muito pelo contrário, só podemos falar de um universal quando temos um particular negado e externalizado. Ou seja, se temos uma coleção de objetos, só podemos dizer que aí estão todos os objetos dessa coleção porque “existe pelo menos um que não o é” (%x #x) dessa coleção. Mais ou menos nas pegadas do positivismo lógico, que vai na seqüência de Russell, Wittgenstein, etc., Lacan parte do princípio de que o universal só se funda por sua exceção. E isto parece encaixar muito bem com o conceito freudiano de castração. Ou seja, só posso dizer de uma coleção universal, a respeito da função fálica, quando suponho que exista alguém que não está dentro desta função e que possa barrá-la. Ou seja, posso dizer que “todo verde é verde” porque existe um limite que nega, se contrapõe, excede, a verdidade do verde. Então, para dizer isto, tenho que pensar pelo menos um que não seja verde e que faz o limite, o contorno do universal. Com isso, Lacan diz que não é a questão de que toda regra tenha exceção, mas, ao contrário, que é a exceção que funda, garante a regra. Referindo-se à castração, Lacan diz, então, ao contrário de Aristóteles,

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que é preciso que exista pelo menos um que diga não à função fálica, à função desejante, para que se tenha a coleção universal de todos aqueles que são função fálica. Só posso fazer o conjunto universal de todos aqueles que são necessariamente subditos à função fálica quando coloco no exterior um que nega esta função. E a nega em dois sentidos: (a) de não estar obrigado a esta função, e (b) de negá-la para aqueles que estão dentro do conjunto. Em termos de castração, seria aquele que atemoriza, aquele que, eventualmente, é castrador. É aquele que, segundo esse tipo de raciocínio da criança, lhe colocaria, como limite, sua castração. Se, na cabeça daquela criança, existe alguém que possa ameaçá-la de castração, e se ela vive neste temor, a partir daí, esse alguém, ainda que suposto, é aquele que está fora da mesma condição e funda o universal de todos aqueles que são função fálica. *

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Lacan adscreve este raciocínio ao masculino e há uma conseqüência ' lógica entre %x #x e &x #x. Se existe alguém capaz de brandir a ameaça de castração, o qual pode ser puramente simbólico, todos aqueles que estão sob a ameaça fundam o universal, pois o círculo da universalização, da totalização se fecha: para todos aqueles que temem a castração, sua funcionalidade em relação ao desejo é universalizável.

" Pergunta – Essa exceção, o que está fora, é a partir de um mesmo ou de um outro? Qual é o referencial da exceção? Fica-se, aí, com uma questão de fronteira. Se for a partir do mesmo, ele vai habitar a fronteira e a coisa fica indecidível. É a questão de Russell, do catálogo de todos os catálogos, que se inclui a si mesmo, que Lacan escande

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pela diferença significante. Já que você perguntou, conto de novo a estorinha, que prefiro transformar na do barbeiro. Uma pequena cidade tem um único barbeiro que faz a barba de todos os que não fazem a própria barba. Quem faz a barba do barbeiro? Em termos de articulação puramente significante, se a questão for colocada assim, quando o barbeiro faz a própria barba, ele não está fazendo a própria barba, pois ele é aquele que faz a barba de quem não faz a própria. E se ele não fizer a própria barba, então, ele faz a própria barba porque justo ele é aquele que faz a barba de quem não faz a própria. Cria-se, então, um paradoxo de absoluta indecidibilidade, que Russell desenvolve longamente na questão da universalidade dos catálogos: o catálogo de todos os catálogos inclui-se ou não a si mesmo? Lacan corta a questão dizendo que o significante que está dentro não pode ser o mesmo que está fora, ainda que se escreva do mesmo jeito. A posição o desloca da fronteira. Lacan diz, então, que não há tautologia no Inconsciente. A crítica que faz a Russell é, pois, que ele está falando de dois barbeiros, quando pensa que está falando de um. A posição do barbeiro quando faz ou quando não faz a própria barba desloca o significante barbeiro radicalmente. Então, não é o mesmo barbeiro. De qualquer forma, é preciso ver que no masculino existe apenas um ' negador da função fálica, %x #x. Seja qual for seu estatuto, ele tem autoridade para impedir a função fálica de outrem, ameaçá-la. Ou se esta negação diz respeito a ele próprio, ele próprio não está submisso a esta função, ele é aquele que a nega. Então, se a negação inclui todos os negados, &x #x, estes estão na função fálica porque existe pelo menos um que diz não. Assim, pela lei da castração, Lacan faz a reserva do negador e a universalização daqueles que estão no interior por negação. A negação, portanto, funda o universal daquilo que ela limita. O conceito fica como conceito de limite ou de exceção, de um determinado que extrapola e nega porque não pertence e porque proíbe que os outros saiam do seu cinturão com ameaça de castração. Com isto, funda o universal. Então, se existe pelo menos um que nega a função fálica, isto, para Lacan, diferentemente de Aristóteles, é que funda o universal. E como a

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estruturalidade do Inconsciente é dependente do processo do desejo e, portanto, em qualquer de suas ações, dependente do significante do desejo, isto não só se tornará, em Lacan, a lógica da sexuação como a lógica que diz respeito ao Inconsciente, em qualquer de suas manifestações. Ela extrapola a sexualidade. Ou seja, no que Lacan está fundando a lógica da sexuação, do mesmo modo que Freud, está também fundando a lógica do Inconsciente. Lacan chama isto de masculino. O que fica difícil é, na abstração aí exigida, empatar o masculino com o macho. Isto porque se um sujeito, na sua atuação aqui agora, desejante, se comporta na referência a uma exceção que o inclui junto com os outros numa universalidade, ele estará no masculino, tenha ou não pênis. E isto continua ambíguo por causa da história desse significante. A história de fundação dessa metáfora é uma história comprometida com a Gestalt do pênis em ereção. *

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Em contraposição ao masculino, o que vai colocar Lacan? Se é uma exceção que funda a regra, se é a negação da existência que funda a universalidade, a contraposição a isto só pode, neste raciocínio, ser a sua suspensão. Ou seja, alguém faz a suposição de que não existe esse que funda a universalidade. Alguém tem a rebeldia de não ter medo da castração, de dizer: não vou limitar meus atos pelo temor a essa limitação. Este alguém está suspendendo aquele que nega, o que não é senão dizer que fora não há nada. Dizer isto, em função do primeiro momento, não é senão negar aquela ' ' proposição. É dizer que não existe nenhum que diga não, %x #x. Isto porque a base reflexiva, a base lógica, no percurso feito por Freud e Lacan, foi colocar a existência de castração. Ou seja, que é no temor da perda que o sujeito encontra seus pares, que universaliza essa função. Se a base foi esta, não é possível conceber alguém que não tenha passado por aí. Isto na medida em que a criança freudiana supôs que todos tinham pênis. Não há, em Freud, suposição de uma criança que ache que a diferença já é dada por si. Na suposição de que todos têm algo e, depois, na projeção desse algo

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que todos têm sobre o Falo, como representante do pênis em ereção, não há como alguém pensar antes que a coisa não haja. Todos, segundo Freud, pensaram que todo mundo era masculino. Se todos pensaram isto, se no processo de lidar com a castração, segundo Freud, as meninas vão ter que fazer uma equação secundária para achar que não têm porque o perderam, mas que o podem ainda conseguir, de algum modo, elas extrapolaram esta suposição porque elas não o têm. Além do mais, se não o têm, não têm mais nada a perder. Então, não têm mais medo da castração porque já passaram por isto. Se já passaram, o que podem dizer? Que não existe nenhum que negue isto. Se não existe ou não existe mais, logo isto não é problema delas. Portanto, fazem a suspensão dessa proposição dizendo: ao contrário do que todos pensam, não existe ninguém que diga não a essa função. Ora, se não existe nenhum limite fora, o cinturão universal fica em resto, em aberto, não se fecha. Tento arrolar os indivíduos que cabem nessa condição, mas não consigo fechar o cinturão porque não posso ter algo que limite a quantificação desses indivíduos. Por isso, dentro, não se escreve nenhum universal, mas uma coleção talvez infinita, aberta. A resposta lógica que Lacan dá é que, se não existe nenhum que diga não, dentro, tenho negação da universalidade: elas participam da função fálica, sim, mas não se referem a nenhum limitador. Elas, não se referindo a nenhum limitador, não fundam nenhum universal, e sim o não-universal. Então, a resposta que Lacan dá é: não-todas ' são função fálica, elas são função fálica, mas não todas, &x #x. Não há universal aí. A função fálica, portanto, só é reconhecível de um a um porque não posso dizer todas as mulheres.

Segundo a lógica de Lacan, está no masculino quem se refere a uma lei que o limita, que limita o seu gozo. A não referência a esta lei, dizer que esta

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lei não se propõe, não me faz temer, significa extrapolar o masculino e fundar o feminino. Nesta lógica não se pode dizer as mulheres porque não existe A mulher. Quando Lacan diz que “A mulher não existe” é porque só posso dizer A mulher no universal. Como isso não existe, isto é, não existe um universal capaz de comportar A mulher, não posso dizer as mulheres, só posso dizer uma a uma. Cada mulher é diferente da outra porque não existe nenhum universal que as arrume numa unidade só. Posso dizer, por exemplo, que todos os homens são imbecis porque todos participam da imbecilidade que é não extrapolar o limite da sua determinação. Não poderia dizer que todas as mulheres são idiotas, mas sim que mulheres são idiotas, pois se cada mulher não constitui um grupo chamado A mulher ou as mulheres, elas só tem referência idiós feminina, própria. Elas não fazem referência a nada que as arrume no universal, então têm uma idio-referência. O outro, o homem, não escapa de ser o grande imbecil porque, para poder transar na ordem da universalidade, na ordem fálica, é preciso que ele não ponha nenhuma questão sobre a existência ou não desse que está do lado de fora. Um imbecil é justamente aquele que não põe questão sobre uma instância limitadora que lhe foi apresentada. No feminino, esta questão é posta. Logo, as mulheres não são imbecis, elas são idiotas. Ou seja, perdendo a referência externa, só podem se safar pela referência interna, a si mesmas. Há, então, o masculino que diz que existe uma função castradora que diz não à função fálica para que haja universalização dos homens. Há uma posição feminina, que nega isto, que não se rege por e não se refere a isto e diz: não existe nenhum que diz não, isto é besteira de vocês que têm medo de perder. Por isso, nada se universaliza aí. A função aí está, mas não é universal, não ajunta todos num mesmo rebanho. O que temos, pois, é necessariamente uma função de imbecilidade e uma posição de idiotia. Se existe o masculino, um sujeito para o qual a referência é o não, a ameaça de castração, se ele se refere a este não, ele faz o universal. Como não posso apagar essa referência porque é uma constante na minha história, até pela experiência de negação que a realidade me dá, a única coisa que posso fazer é suspender isso dizendo:

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eu é que não, está lá, mas digo não. Ao contrário do que se imagina, não é o feminino que é temeroso, e sim o masculino. O feminino é arrogante, corajoso. Por isso, Freud diz que as mulheres não se dão muito bem com a Lei. Você precisa estar em uma posição de esprit de corps, com uma referência – a lei é esta, tudo bem –, se não, diz: tudo bem, sei que é esta e daí? E eu com isto? Isto é posição feminina. Quase não conhecemos mulheres, mas sim “senhôras”, que são do clube dos homens. É muito difícil encontrar pessoas no feminino. Encontramos “senhôras”, que são fêmeas dos homens e agem como eles. Quais são os dois tipos privilegiados das mulheres na história da humanidade? Qual é o cúmulo de feminino na referência de qualquer obsessivo? A santa e a puta. Estas são do feminino. E a santa – no sentido místico e não igrejeiro – está sempre no feminino, seja de que sexo for. Nada, na anatomia, portanto, obriga que o sujeito se reconheça deste ou daquele time, mesmo porque isso pode ficar ambíguo no nível perceptivo. Bem como na relação com o Outro que vai, por falta de demarcação definitiva, no anatômico, indicar as posições sexuais. Nada obriga o indivíduo a tomar este ou aquele partido. Ou seja, podemos ter machos-masculinos, o que parece até ser a maioria, por uma impregnação discursiva. São machos que referem sua posição sexual à propriedade do pênis – e é claro que isto é sintomático. Como posso ter fêmeas que se reconhecem não proprietárias e, portanto, desafiam o limitador. Mas posso ter o contrário, machos-femininos que, apesar de terem pênis, não acham que aquilo tenha a menor garantia. Não porque temem a castração, mas porque acham que aquilo já não é a grande coisa, não lhes garante nada e, portanto, podem passar ao feminino. Assim como algumas fêmeas podem simplesmente achar que têm mesmo, está lá, ninguém tasca e, portanto, com o terror desta taxação, cair no masculino. Assim como um sujeito, que teria passado por um processo de reconhecimento dessa lógica toda, certamente ficaria pouco se incomodando de estar aqui ou ali. Ou seja, ele teria condições de posturar masculina ou femininamente, e a seu bel grado, dentro dos interesses de articulação discursiva aqui e agora. Isso aí é, mais ou menos falando, de maneira grotesca e simples, a

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estruturação que Lacan fez para a partição sexual, de maneira estritamente lógica. É o que chamou de fórmulas quânticas da sexuação, que separam os falantes em masculinos e femininos. Assim termina o samba-canção da sexuação em Lacan. *

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Mas não podemos deixar de reconhecer que a história de fundação do significante Falo é comprometida com a pregnância gestáltica que se apóia no pênis em ereção. Seguindo a crítica que fiz da vez anterior, diria que o significante Falo está para aquém dessa percepção distintiva, designa o movimento do desejo, sua instalação pulsional no corpo, e mesmo a dominância, digamos, de zona erógena como a chamada zona genital. Nessa abstração, recorrendo a alguma coisa anterior à distinção – que, para mim, é neurótica –, acho que a criança entra no movimento e dá uma solução etológica ao problema: uma solução imitativa. Ela dá uma resposta mimética, do reino animal. A resposta é lógica, mas por causa desta pregnância, ela mimetiza a anatomia. Então, ao contrário de Freud, Lacan até acha que isto pode ser analisado. Ele não acha que a análise esbarra nessa coisa compacta que é protesto masculino ou inveja do pênis. Ele diz que se isto for tratado como significante que é, o Sujeito atravessa esse estado fantasioso, põe-se no nível do significante e entra na ordem discursiva, com seus jogos de interesses discursivos, etc. Isto na pregnância da sua sintomática, designada por sua história pessoal. Mas tudo isso me parece ainda da ordem da concessão à neurose. " P – Você, então, vê, mesmo no investimento não-anedótico que preside a formulação das quânticas de Lacan, ainda uma pregnância etológica? Não na escrita, pois esta é resultado de uma abstração. Posso mantêla. É na história de fundação do Falo e da questão da castração que a coisa fica distribuída, na estorinha do analisando, mediante a pregnância etológica. Então, a história da fundação disso está empastada de etologia. É como se

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pudéssemos dizer que o protocolo teórico de Lacan partiu da experiência freudiana e da sua na clínica. Freud esbarrou demais na questão da diferença sexual anatômica. Lacan esbarra menos porque põe isto como puro significante e portanto com certa mobilidade. Mas de qualquer forma, digo eu agora, aquele protocolo condena, num certo momento, mesmo o progresso lacaniano, a uma referência à diferença sexual animal. O que Lacan faz é mostrar que o progresso simbólico retira o Sujeito dessa referência anatômica, mas que ela estaria mais ou menos garantida na fundação. Digo que a garantia, encontrada na fundação, é já uma resposta neurótica, por pressão recalcante da própria ordem corporal, provocando isso, pois o que a criança se colocou, antes de achar que todos deviam ser iguais, é que é a questão propriamente humana e que não aparece em nenhum outro ser. Então, a resposta que a criança dá com a sua chamada “teoria sexual infantil”, é uma teoria neurótica. E embarcar nessa teoria, é construir a psicanálise sobre um aparelho neurótico. Quero um Sujeito prévio e uma teoria mais abstrata, independente da decantação etológica sobre os corpos. Se fizer este tipo de crítica – que meu protocolo permite, pois são os desenvolvimentos de Freud e de Lacan que me ajudam a extrapolar isso e partir já da abstração, parto da abstração assentada concretamente, na questão e não na resposta infantil. Isto é que é fundamental, pois no que Lacan, partindo mesmo daí, vai à abstração e separa a sexuação dos corpos por abstração, tomo esta abstração como possível e a coloco na questão da criança e não em sua resposta. A resposta da criança é a teoria que ela faz miticamente, como faz um neurótico. Ela faz a estorinha de seus reconhecimentos figurativos, portanto, com pregnância anatômica e de retorno de uma função etológica sobre o corpo. Então, tomo a abstração última e a embuto na questão e não na resposta e vou procurar em outro lugar a resposta para esta questão. A resposta que encontro é a do Revirão. A possibilidade de estruturação de Sujeito já está inclusa na mesma possibilidade de estruturação do Inconsciente, que não é senão o aparelho de Revirão instalado no Cérebro. Lacan não podia dizer isto porque não queria nenhum fundamento ontológico

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ou genético, mas sim um fundamento puramente estrutural da fala da criança. Como uso outro protocolo, posso dizê-lo, porque está certo. Como uso outro protocolo, não posso, então, tomar tal qual, essa estorinha que Freud conseguiu como resposta infantil e que Lacan retoma para fundar a castração. Isto porque o protocolo deles difere do meu. Onde incluo a castração, que posso reconhecer repetida miticamente nos protocolos de Freud e Lacan? Se não quero essa historinha, onde, também, vou incluir a função fálica? Quando falava do Pleroma, já lhes disse que a função fálica é a questão que está embutida no processo mesmo da Pulsão do Haver que, em seu movimento desejante, designa determinado objeto que não há. E este movimento desejante do Haver se coloca de direito, em função da repetição das simetrias, um Outro lado, radical, avesso, da sua plenitude. Mas, de fato, este lugar não há, mesmo porque se chama não-Haver. Coloco, pois, a questão fundamental da castração entre Haver e não-Haver, seja para o Haver, seja para o Sujeito. Questão esta que vai se rebater, em última instância, sobre a da dicotomia entre direito e fato. Isto porque o que a castração coloca é que posso requisitar de direito o que quer que queira requisitar, mas, de fato, isto pode não comparecer. Então, como vêem, faço uma abstração bem mais radical da questão da castração. Nos seus percalços, a criança tem quilos de motivos para entender a castração, mesmo que referendada à sua bolinação pessoal da genitália, o que é o referendum típico que Freud coloca: tira a mão daí, menino, não se masturbe, etc. Esta é a palavra que diz não à função fálica, colocando o temor da castração. Fora desta mítica, criada pela diferença anatômica, como rebatimento etológico, não vejo aí nenhuma diferença, por exemplo, entre meninos e meninas. Ambos são limitados por algo que vem dizer não (não como impossibilidade, mas) como limitação da requisição feita por esse sujeito. Isto afora a questão, de fato, dos impossíveis modais, referidos, mesmo que a criança não saiba disto, ao Impossível absoluto. Em termos do Haver, a função fálica não é senão o movimento desejante instalado porque designa o seu objeto. Mas acontece que esse objeto

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não há, de fato. Ele é posto, requisitado, de direito, das Ding, mas não há de fato. Então, necessariamente, o Haver quebra a cara, pois não vai passar a não-Haver. Vai simplesmente quebrar a cara no Real, vai “cair na real”, ou seja, o objeto requisitado de direito não comparece de fato. Uma criança, instalada na ordem subjetiva por sua nascença nesta espécie, simplesmente por isto, e depois engrenada nos processos linguageiros da sua alteridade cultural, etc., tem quilos de motivos para aprender que muitas requisições de direito são impedidas de fato ou pela resistência das modalidades do Haver ou pela substituição disto por um não dito por alguém – aí já é a questão da Lei, que não vou tocar hoje... Rebater isto sobre a anatomia é uma resposta sintomática e mítica. É explicar a diferença anatômica, percebida, pelo mito do encaixe da castração modal, aqui e agora, num aparelho que não chega a descrever. É preciso algum tipo de projeção, de escolha arbitrária, pois nada impede que aqueles que não têm pênis tenham uma funcionalidade de gozo da mesmíssima ordem naquela região. Apenas há uma diferença anatômica. Então, a resposta mítica que a criança dá é em função de uma ignorância sobre a diferença. É perfeitamente normal, pois se o aparelho descritivo é feito sobre a Gestalt peniana, aqui tem e ali não. Então é uma ciência mixuruca, cheia de “neura”, como qualquer cientista do século tal é capaz de falar coisas incríveis a respeito do flogístico. Quero, portanto, distinguir (a) o Sujeito previamente disponível para o entendimento da sexualidade humana como movimentação de desejo aderida a uma lógica em aberto, de (b) sua decadência sintomática na pregnância corporal em função de certas pressões etológicas, figuracionais ou de praticidade de comportamento que vão aderir a tendência de resposta à figuratividade que o sujeito encontra. Em termos de Lacan, estou dizendo que a resposta mítica é imaginária demais, tanto na criança quanto na história da humanidade. Não fosse isto, a criança saberia de onde vêm os bebês. Ela continua com a questão porque não é resolvida aí. Nada tem a ver com nenhum saber a respeito de órgãos sexuais ou de reprodução. É simplesmente uma figuração entrando como elemento de um mito para dar resposta a uma questão não sabida porque ninguém vem a tempo intervir. Talvez mesmo porque não tenha ainda gabarito,

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estofo simbólico, para isto, para mostrar que somos uma espécie repartida em machos e fêmeas sem nada ter a ver com isso. Nós, humanos, nada temos a ver com que a natureza queira se reproduzir pela cópula de machos e fêmeas. Nós outros costumamos reproduzir as coisas em laboratório, na arte, etc. *

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Se coloco, então, como função fálica o movimento desejante, estou colocando que, em última instância, o desejo se designa pela fantasia fundamental do Haver, que é: Haver desejo de não-Haver. Isto designa a função fálica do seu lado de Pulsão, de fantasia, etc. E é com esta estrutura que escapou das modalizações dos animais que funcionamos. Se isto for aceitável, tenho que retomar a sexuação de Lacan que me deu dois sexos possíveis, ainda que por questões simbólicas mais ou menos independentes das anatomias. Pergunto: por que Lacan só escreveu dois sexos se as proposições por ele escritas me permitem quatro? Ele deve ter parado o jogo da combinatória em função do mesmo protocolo que utilizou, pois a combinatória de suas formulações me dão pelo menos mais dois sexos. Se chamo o masculino de primeiro e o feminino de segundo, tenho um terceiro que chamo de Falanjo e um quarto que chamo de Morte. E para não ficar jogando combinatoriamente de araque com as fórmulas, preciso encontrarlhes alguma lógica de assentamento.

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Se o Haver passasse a não-Haver, que gozo haveria aí? O Haver não pode passar porque o não-Haver não há. De direito, ele o requisita, mas, de fato, não o consegue. Se conseguisse, que tipo de gozo encontraria? Que sexualidade teria o Haver ao gozar na passagem a não-Haver? Se o Haver passasse a não-Haver, isto extinguiria toda e qualquer função fálica, então, posso dizer que, para o Haver que passou a não-Haver – e só posso pensar isto de direito, e não de fato –, não existe função fálica, ela morreu. A conseqüência disto seria a universalização da negação da função fálica. Ou seja, se não existir, se parar de existir, se puder ser negada, se eu disser: não ' ' existe função fálica, %x#x, tudo será não-função fálica, &x #x. Então, inventei aí um sexo que simplesmente posso pensar, conjeturar, de direito, mas que, de fato, não comparece, pois o Haver não passa a não-Haver porque o nãoHaver não há. Este é o Sexo da Morte. E se estou dizendo que não é possível passar a não-Haver, que é impossível gozar com não-Haver, ou seja, que este gozo não é dado ao Haver, e muito menos a qualquer coisa que haja dentro do Haver, estou dizendo, portanto, que, se este sexo é conjeturável mas não comparece, a morte não há. Aí a vaca tosse, pois costumamos achar que as pessoas morrem, e venho dizer que não morrem, que é impossível... Nada morre. As coisas podem perecer na sua estrutura sistêmica. Elas perecem, se desarticulam, se dissolvem, viram até nada, mas não há, nem para o Haver nem para o humano, a experiência desse gozo. Imagine que você, enquanto você mesmo, pudesse passar pela experiência de estar presente ao seu não-Haver. Devia ser um gozo fantástico! Mas é justo o que não é possível. Então, como Marcel Duchamp mandou escrever em seu túmulo: D’ailleurs, ce sont les autres qui meurrent – aliás, são os outros que morrem. Confundo a perda da presença de determinado objeto para mim com experiência de morte, quando não tenho aí mais do que a experiência de castração. O objeto ficou configurado para mim como radicalmente perdido, aparentemente perdido, mas que continuo requisitando, se não, não precisava fazer luto. Não tenho a experiência da morte do outro, e sim da sua perda. E o outro, terá ele tido a experiência da morte quando digo que morreu? Certamente que ele

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pifou antes de gozar, porque, enquanto ele, não pode passar pela experiência de não-Haver, que é impossível. Portanto, a morte não há. O Haver é imortal e o humano é imortal. As pessoas somem, desaparecem, enterram-se pessoas, mas não tenho nenhuma experiência de morte. Só sinto a perda e quem morreu não faz a menor noção do que terá acontecido. Não gozou com isto. Desapareceu de si mesmo, pereceu, é o perecimento de um sistema. Sobra, então, um Terceiro Sexo que todo mundo sabe que existe, mas não sabe qual é e pensa que é bicha, sapatão... O próprio Lacan, no final da série de seus Seminários, começou a pirar e perguntar por ele, mas não disse mais nada. Proponho, portanto, em cima da lógica do Pleroma, a existência de um terceiro sexo, que começa como a particular afirmativa de Aristóteles, que Lacan tirou de circulação. Imaginem que, a partir da experiência da castração e da suspensão dessa experiência, que fundaram o primeiro e o segundo sexo, ainda há um Sujeito aí atrás que, na dialética do masculino com o feminino, vem a reconhecer que, segundo Lacan mesmo, uma coisa é inegável: para ambos há função fálica. Isto diferentemente do quarto sexo que negou a função fálica, portanto, não comparece. Então, na dialética da castração com a suspensão da castração, há um Sujeito que escuta esta dialética, e chega à conclusão de que seu denominador comum é: há função fálica. Para um, existe algo que limita esta função e, para outro, não, mas, para ambos, há função fálica. O feminino tem que reconhecer esta função para dizer que não há ninguém que a suspenda. Ele está na função, mesmo que não faça universal. Se entendo a dialética da castração nestas duas posições, há limitação e posso suspendê-la. Como denominador comum, só tenho então, que: há função fálica. Repetindo, se mantenho a dialética dos dois primeiros, (a) reconheço que há limitação e caio no universal, ou (b) reconheço que posso suspender a limitação e abro o universal. Mas se reconheço que qualquer dos dois se refere à função fálica porque ela há , %x #x, só posso concluir que, em função da limitação e de sua suspensão, a função fálica pode ser negada, mas não ' ' por inteiro, &x #x. Então, se parto da pura e simples afirmação da função fálica para qualquer falante, seja no masculino, seja no feminino, não posso

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dizer senão que a função fálica pode até ser negada, suspensa – por exemplo, por aquele que diz não, fundando o masculino – mas não inteiramente. Assim, justo no que o masculino nega, reforça fundando o universal. E justo no que o feminino suspende esta negação, afirma de novo a função fálica, mesmo que não universalizando. Na dialética das possibilidades de sexuação diante da castração, só tenho, então, uma possibilidade resultante, a qual funda o que estou fazendo a concessão de, eufemisticamente, chamar de terceiro sexo. Ele se diz assim: há função fálica, ela pode ser negada, mas não inteiramente, não universalmente. Não sabendo como chamar esse troço, chamei de Falanjo, ou o Anjo do Falo, ou da fala. *

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Vamos, agora, situar no Esquema Delta. O movimento do desejo, ou seja, a função fálica que se esteia na fantasia de desejar o não-Haver, quebra a cara no Real porque não dá para passar a não-Haver. É o limite do Haver. Algo diz não à função fálica – a qual é desejo de não-Haver – porque é impossível realizá-la. Disse não, fundou o universal, fundou o Masculino. Ou seja, quando o desejo do Haver, ou do homem, o desejo na sua estruturalidade fundamental, desejo de Morte, não encontra aquele sexo que é o único desejado, não encontra gozo aí porque não há, ele quebra a cara. Então, encontrou um ponto, chamado Real, que diz não à função fálica, que é desejar o não-Haver. Este não fundou o quê? Que todo o Haver é função fálica. O Haver entra pelo Masculino, quando quebra a cara. Se existe limite, então retorna-se inteiramente, universalmente, à função fálica. Vamos adscrever o Gozo-Fálico, isto que Lacan escreve J#, ao Masculino. Gozo-Fálico é quando se está universalmente na função fálica. Isto se parte, se fragmenta e começa a fazer sentido por modalidades. Em que sexo estou, então, quando estou no Campo do Sentido? Se isto se parte, para que gozo vai? Para o gozo do sentido.

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Então, além do Imbecil e da Idiota, temos o Anjo, que só serve para se comunicar e que não sabe o que está dizendo. Quando isto se compactua de novo, perde as diferenças internas capazes de serem transadas na existência da função fálica, e corre vertiginosamente para o gozo do não-Haver, que sexo temos aí? O Feminino, o que Lacan chama de gozo do Outro, JA / . Neste momento, neste finalzinho de carreira, é quando se esquece do masculino e se diz: Não há nenhum que diga não, vou correr de novo para meu gozo de não-Haver! É o momento em que abandono as diferenças internas, a lembrança de que o nãoHaver não há, e insisto vertiginosamente no meu desejo de não-Haver. É isto o que ocorre na história do Haver. O quarto sexo é o que jamais comparece. Temos, então, o sexo Masculino, fundado universalmente pela nãohavência do não-Haver, em que algo diz não. Isto se fragmenta, começa a fazer sentido e a gozar estritamente no Campo do Sentido. Por isso chamo de Anjo – Agelós, em grego, quer dizer: aquele que conduz as mensagens – àquele que vive de sentido, de fazer ou de usar sentido. E, finalmente, quando o sentido se perde, porque tudo retorna à indiferença, é a vertigem de novo para o nãoHaver. Aí, teríamos o Gozo-do-Outro. Já é um pouco paradoxal dizer que o Feminino está aí, pois o Gozo-do-Outro mesmo estaria na chegada ao nãoHaver. Mas ele está no gozo de querer o Gozo-do-Outro. Por isso, é um gozo infinito, que não se realiza. O gozo feminino jamais se realiza, só se realizaria se chegasse ao gozo da Morte. Ele, aliás, seria aquele que se esqueceria do Impossível e acharia que tudo é possível, mesmo o Impossível absoluto. É aí que encontramos o lugar do místico. Há pouco, eu disse que era uma concessão falar em terceiro sexo. Retomarei isto da próxima vez, quando falar especificamente do Falanjo. Isto porque, a rigor, quem está metido na vida, dentro da espécie humana, só tem um sexo. Todo mundo é daquele chamado de terceiro. Os outros dois são absolutamente assintóticos, tangenciais, não comparecem. Só comparecem por via do terceiro. O que quero mostrar, se não puder demonstrar, é que a espécie humana vive nesse sexo que é o Gozo-do-Sentido, com tendências, dentro do sentido, para o masculino ou para o feminino.

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" P – O que é sexo? Sexo, para a espécie humana, é uma via de gozo. Você vai funcionar com os aparelhos que tem à disposição – de corpo, de linguagem, de arte, do que quiser – em busca de um gozo. O gozo que desejaríamos atingir seria o quarto, que é impossível. Não o tendo, a vida se fragmenta por ali. Mas o que quero dizer é que nós, embora estejamos na ordem do significante, do Inconsciente, do Revirão, etc., só conseguimos transitar mesmo é no Campo do Sentido. Na verdade, vivemos é dentro do terceiro sexo, mesmo quando pensamos ter um Gozo-Fálico, por exemplo, um orgasmo. Tome-se um macho, não precisa nem colocar fêmea, bota ele para se masturbar. Com o quê ele gozou (supondo-se que gozou, pois, às vezes, não consegue)? Isto já foi articulado por Lacan. Ele gozou porque adscreveu a função fálica à causa de seu gozo, que não é o objeto que ele deseja. É o significante que o limita e o empurra para o orgasmo. Então, quando um sujeito macho, supostamente, até eventualmente metido no sexo masculino, se encaminha num processo de gozo, aderido ao corpo, etc., ele só vai gozar na indicação significante que causa esse gozo. Então, ele goza no Campo do Sentido. O aparelho é que é macho. Por outro lado, as fêmeas (as que sabem mexer com as coisas) gozam igualzinho. Gozar no feminino nada tem a ver com orgasmo. Pelo contrário, é uma infinitização. Até tomei a mística hindu, a prática corporal – para não chamar de sexual, pois qualquer prática é sexual – de sacanagem do hindu místico, que chamam de maituna, que é de ficar trepando para não ter orgasmo. Esta é uma prática feminina de encaminhar-se vertiginosamente, mas sem termo, para o não-Haver. É uma trepada mística. Estou cada vez mais convencido, sei lá por quê, de que quando se escuta na clínica, quando se escuta o mundo, não se encontra ninguém na posição masculina nem na feminina, jamais. Encontramos é esforços significantes. Por exemplo, se as pessoas tivessem condições mesmo de conviver no masculino, vocês acham que o estatuto da lei, da contenção da lei, etc.,

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precisava ser tão vigoroso? Ou que essas pessoas, espontaneamente, já não se sairiam legais, mesmo aquelas que fazem as leis? O que é um Congresso? É um monte de moças e de rapazes, ou do quê? Que é aquilo? Estão gozando com o quê? A questão toda precisa ser retomada. Não vamos confundir isto com a eventual passagem pela designação de interesse no aspecto legal, pela firmeza, pela manutenção dentro desse estatuto. Nada tem a ver. Se sou um Sujeito operatório, que, como se diz, bota o pau na mesa: isso está uma bagunça, vamos botar um pouco de ordem, vamos fazer uma lei!, daqui a pouco, eu mesmo começo a atravessar. Tanto é que preciso circundar o Estado com a polícia, a qual é altamente corruptível. São umas moças! Desbundam para o outro lado com a maior facilidade. O que é corrupção? Vocês acham que homem que é homem seja corruptível? Se a definição de masculino está certa, não. Mas, para não ser corruptível, tem que fazer um esforço, ajoelhar no caroço de milho, se não, há sempre um lugar onde aparece a puta. Há sempre que saber qual é o preço. Então, é preciso que se possa jogar com esses aparelhos para ir sobrevivendo. O que encontramos é um paranóico dizendo que é do masculino... justo quando está provando o contrário, pois a psicose mora perto do feminino. O que vemos é uma baita paranóia, afirmando o masculino... com elementos do feminino. Então, o que temos é, na verdade, uma massa de anjos, mais ou menos deslizantes. Às vezes, são neuróticos que ficam paralisados. Às vezes, até fazem o papel de: vamos brincar de homem, vamos levar a sério: bota um do lado de fora para fundar a regra. Daí a pouco começa o desbunde. Vocês já pensaram o que é economia? O maior homem do Brasil, quem é atualmente? A Zélia. Mas isso desbunda daqui a pouco...

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10 FALANJO OU KALANJO Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim. FERNANDO PESSOA Vimos da vez anterior a distribuição lógica da sexualidade do falante. O proposto foi a existência de quatro sexos lógicos, um dos quais, certamente, mudo. Além disto, na verdade, é de se supor que a freqüência do falante é no sexo que foi chamado de Terceiro: o Falanjo. Ou seja, na dialética da fundação da sexualidade, embora o começo, a partida, seja a produção de um fundamento onde não há fundamento – essa coisa que chamamos de Lei – e o segundo sexo venha a aparecer por negação deste fundamento, na dialética destas duas primeiras posições, a resultante temporal – e, digamos, como denominador comum – é a da pura e simples afirmação do desejo, da função fálica, colocando como conseqüência a possibilidade de sua negação, mas não inteiramente. O que põe, na verdade, aquele que chamei de Terceiro sexo, como primeiro. *

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Toda a dificuldade da questão é entendermos o que é a produção inicial, o ponto de partida que Freud dá ao Masculino. Isto se estatui pela falta de fundamento. Não havendo, para esta espécie capaz de fala, de reviramento de

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todas as significações, nenhum fundamento – como há para os animais, por exemplo, um etograma – mais definitivo que funcione como se fosse da ordem de uma impossibilidade modal de ser ultrapassada, algo tem que vir fingir que é fundamento. Todo o estatuto da Lei, que não vou tratar hoje, é dependente dessa transposição. Se tivesse programas inatos, eu não precisaria reconstituir nenhum fundamento. O programa seria o fundamento do meu movimento, do meu comportamento. No que aparece uma espécie que apresenta certas construções etogramáticas, mas cujo fundamento se neutraliza por causa da sua possibilidade de reviramento, é que surge a questão da Lei, ou seja, o faz-de-conta de que algo que é proibido designa um impossível. A própria estrutura da sexualidade, que é completamente desvairada por falta de fundamento, começa daí também. Por isso, tanto para Freud quanto para Lacan, é preciso pensar primeiro sobre a constituição do masculino – ou seja, em não havendo fundamento, uma primeira posição, seria constituir um fundamento como interdição. É aí que Lévi-Strauss tenta, talvez sem muito sucesso, constituir as culturas sobre a interdição do incesto, de que já reclamei a respeito. Isto pode servir como certo tipo de computador capaz de organizar a cultura de certo modo, mas é uma proibição como outra qualquer, poderia ser outra coisa. Há, pois, um momento histórico de surgimento disso e pode haver um momento de dissolução, por desnecessário. É o mesmo que acontece quando se constitui a sexualidade a partir de uma limitação. Dizer que “existe pelo menos um” que limita o gozo, o desejo, é supor que algum ditame faz de conta que é uma impossibilidade. Aí se institui o que se chama de masculino. Mas, dito isto, e por causa da função revirante mesma do Sujeito, sempre aparecerá alguém, ou o mesmo, que seja capaz de escrever um sinal de negação sobre essa existência, dizer que não existe nenhum que diga não. Só pode dizer que não existe porque reconheceu que a fundamentação depende disto. Então, o não não é prévio, mas posterior ao sim. Não há não sem sim. O terceiro vai surgir justamente da dialética disso tudo. Se posso

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conjeturar uma lei como faz-de-conta de realidade, de limitação dada, se posso suspender essa lei negando, porque reconheço que ela é posturável, só tenho como resultante que: minha posição freqüente é de simplesmente reconhecer que há o tesão, e que ele pode ser negado, mas não inteiramente. Eu diria, então, que a freqüência da sexualidade humana é o terceiro sexo. Dizer isto não significa abolir os outros dois, mas que se, digamos, a média e extrema razão da sexualidade seria o sexo do Falanjo, mesmo não calculável, pois é apenas uma maneira de dizer, enquanto média e extrema razão, o terceiro sexo pode só se calcular a cada momento, na referência aos outros dois, sendo que todos estão referidos ao sexo fundamental que é o quarto sexo. Ele é fundamental porque foi definido, de início, como construção plerômica, e porque o tesão é desejo de não-Haver, desejo de Morte, pulsão de Morte, a qual Morte não há, embora haja sua pulsão. Na verdade, o próprio não, que é tomado como fingimento, como faz-de-conta, na posição masculina, não pode ser senão, segundo essa estrutura, um eco do Não do Impossível radical com que se depara o Haver. O Não que lhe é dito, ou melhor, que não lhe é dito, a respeito da sua sexualidade fundamental, a qual é tesão pelo Imundo, por aquilo que não pode constituir mundo, porque é impossível de ser inscrito dentro de qualquer mundo, o não-Haver, a Morte. Este Não é de direito, e é de fato depois que se diz. O desejo é de direito. Como o Não é de fato, ele reinstitui um não de direito, o qual retorna para dentro da estrutura como proibição, como fingimento de Impossível. É aquele não que se diz no estatuto do masculino. Portanto, dizer que existe pelo menos um que diz não à sexualidade do falante significa fundar, de direito, uma limitação ao gozo, que se estatui sobre o fato de não haver o desejado. Estou, então, dando a volta e dizendo que a fundação mesma do masculino só é possível como faz-de-conta, como coisa de direito, porque, de fato, no Haver, não há possibilidade de se gozar do sexo verdadeiro. Não se podendo gozar de fato, procura-se instituir o não na ordem do direito, do fazde-conta, e cria-se uma limitação que demarca como masculino todos aqueles

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que, aqui e agora, estão na referência a esse não (que Lacan chama de simbólico). Isto porque é faz-de-conta. Só posso entender o simbólico puro, para aquém do metafórico, como faz-de-conta absoluto: Faz de conta que isto é aquilo. É o eterno processamento da narrativa: era uma vez um não-Haver, que não havia; como ele não era possível, fazemos de conta que ele há e criamos o simbólico. Vivemos no regime da estorinha... Como sabemos muito bem que o não é faz-de-conta, porque não é de fato, é só de direito, podemos questioná-lo, podemos até criar uma jurisprudência, que seria, no caso, feminina. Em sendo dado o não que é fazde-conta, no que sei que é assim, posso suspendê-lo e dizer-lhe não. No que lhe digo não, o universo não se fecha. Ora, quem está diante (a) do processo de um não que é faz-de-conta para simplesmente poder organizar, e da (b) suspensão deste não, que é negação do faz-de-conta como puro processo de negatividade, de Revirão do Sujeito, criando outra possibilidade, mas que não é universalidade, ele só pode (c) chegar à conclusão de que: existe desejo, há tesão. Isto é inegável, pelo menos inteiramente. Num faz-de-conta, posso até negá-lo, posso até negar esta negação, mas é inegável que a função é desejante. Esse é o lugar do que chamo Falanjo. Como ele não pode funcionar senão na referência a esses dois extremos, nos quais jamais estaciona, a não ser por fixação neurótica ou psicótica, está sempre providenciando sentido, significação, para substituir o Sentido verdadeiro – que é sempre perene, pois é: desejo de não-Haver – e para substituir principalmente o encontro faltoso que jamais terá com o não-Haver. Então, ele produz encontros que são fazde-contas, também eles, na referência a limitações masculinas e a rupturas de limites que são femininas. Mas a posição de onde faço isto, de onde faço esse périplo, é necessariamente a posição do terceiro, cuja sexualidade é completamente deslocada da partição binária dos corpos, que são autogramáticos e etogramáticos. Vive, então, o Falanjo, que somos nós, na tentativa de um gozo em vários níveis, mas que é sempre gozo de sentido. Sempre gozando com algum sentido: ou, neuroticamente, com o sentido que me foi dado e que seguro para não me sentir meio perdido, ou, então, na

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produção de sentido novo, que é onde se goza realmente. Este ser esquisito não é senão algo parecido com a Tieta, que botei para tocar no início. Se prestarem atenção na letra, ela é descrita nessa lambada, nessa lambida, como terceiro. Na novela, ou no texto de Jorge Amado, ela é fêmea, mas isto pouco importa. O que é construído como posição, pelo menos na canção, é esse “ser que não é feito da costela de Adão”. O mito judaico é interessante quando tomado em conseqüência. Temos a fundação do Adão, proibido de comer a maçã, se não, conheceria a Morte – é claro que não vai conhecer morte alguma, pois ela não existe. Temos Eva, que é feita de negar alguma coisa, que é feita de fazer um furo no Adão – tirase um pedaço dele, um furo qualquer, não precisa ser na genitália: se Adão furar o cerco vira Eva. Mas temos a serpente no Paraíso, e isto é que é importante. Se Adão só se qualifica como aquele que se refere ao não do Pai Eterno, Jeová, Eva é aquela que chega a dizer não ao não de Adão, e até chega a feminizá-lo, pois ele acaba comendo a porcaria da maçã. Quem induz Eva a comer a maçã? O terceiro. Ou seja, na dialética da referência de Adão ao não do Senhor e da dúvida de Eva a respeito disto, a serpente não conseguiria cantá-la se Eva não tivesse um pouco de dúvida. Ela não foi tentar cantar Adão, pois sabe que não cola: Adão é frouxo, ou seja, é firme. Então, aparece a serpente da lambada, da lambida, que é o mais que se consegue: uma lambada, uma lambida... A serpente, que persente, é a dialetização entre Adão e Eva. Não é à toa que é o símbolo da ciência, do conhecimento, na antigüidade. É o símbolo do conhecimento da árvore do bem e do mal. Não é à toa que Paul Valéry escreve um texto maravilhoso sobre o conhecimento, chamado Serpent, que, lido ao contrário, dá: penser. Serpente: Pensar. Não é à toa que, em certas mitologias, o Haver inteiro é representado como Ouroburus, a serpente narcísica, que come o próprio rabo, em todos os sentidos. O Haver é isto: a serpente que come o próprio rabo. A tetrassexualidade do Falanjo – e tenho que falar em tetra porque, logicamente, ele tem que se referir ao Desejo maior do Haver –, portanto, é centrada no Gozo-do-Sentido. E já que não há fundamento, já que não tenho a

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obrigação de referência perene ao não, ou seja, já que o masculino não se apresenta senão por momentos, o sentido é qualquer sentido. Isto porque qualquer sentido produzido aqui e agora tem como referência o sentido absoluto, que é o de não-Haver. O que quer que se diga, seja para o bem, seja para o mal, está referido àquilo que fica para além de mal e bem, que é o Bem Absoluto, ou seja, o Mal Absoluto, o que não-Há. Bem Absoluto, porque é tudo o que se deseja. Mal absoluto, porque inconsecutível, impossível. Qualquer sentido que não esteja, partidariamente, ligado ao interesse de alguém, aqui e agora, só tem como resultante ser representante do sentido único que há para o Sujeito. *

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Quanto mais eu sinta como várias pessoas Quanto mais personalidades eu tiver Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver Quanto mais simultaneamente sentir todas elas Quanto mais unificadamente diverso Dispersadamente atento estiver, sentir, viver, for Mais possuirei a existência total do universo Mais completo serei pelo espaço inteiro fora Mais análogo serei a Deus, seja Ele quem for Porque, seja Ele quem for, com certeza, que é tudo E fora d’Ele só há Ele E tudo para Ele é pouco. Fernando Pessoa Esta seria, se tivéssemos um pouco de vergonha, a posição em aberto do Sujeito, para além de suas decantações neuróticas, de suas prisões objetais, morfóticas, para além de seu recurso último contra, e ficar inteiramente perdido na psicose. (Aliás, fazendo um parêntese, gostaria de pedir que lessem um pequeno

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romance de Clarice Lispector chamado A Hora da Estrela. É possível indicar aí que um personagem tão reflexivo como Clarice Lispector é capaz de já ter demonstrado o vigor dos quatro sexos com uma clareza espantosa). O sentido possível de ser produzido, aqui e agora, coloca certos problemas. Por exemplo o de indiferenciar a sexualidade animal no que esteada na sexualidade falante, na sexualidade que faz sentido. O macho e o fêmeo ficam absolutamente subvertidos pelo falante, embora, em seus aspectos neuróticos, ele faça esforços para, num discurso fechado, definir o que seja um e outro. Mas a coisa escapole, pois revira. Fernando Pessoa, num poema de 1934, coloca como epígrafe uma citação que é textual do ritual de passagem ao grau de Mestre do Átrio, na Ordem dos Templários. Como devem se lembrar os afiliados à Ordem dos Templários foram dizimados, assassinados, tiveram seus bens tomados pela Igreja num certo momento. Isto porque faziam outra reflexão a respeito do Cristo. Se quiserem uma noção romanesca do que ali se passou, leiam um romance fabuloso de Pierre Klossowski chamado Le Baphomet. O que nos interessa é que é no entendimento do Revirão que se passa ao grau de Mestre. Mas é uma hierarquia: Neófito, é o que acaba de entrar na Ordem e recebe um quilo de verdades para praticar; aí, passa ao grau de Adepto, e recebe um quilo de verdades opostas àquelas, para praticar; e passa ao grau de Mestre no entendimento de que elas são a mesma verdade. Ou seja, que aquilo revira. O poema de Fernando Pessoa, que, aliás, devia se chamar Fernando Pessoas, é Eros e Psique, o amor e a mente, que ele escreve em cima do mito da Bela Adormecida: “...E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade”. Conta a Lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada.

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Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado. Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora. E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia,

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Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia. É um sábio, que vai pelo percurso e encontra o Sujeito em reviramento dos dados binários que o mundo lhe apresenta, através do circuito da sua subjetividade, que é o “processo divino de haver a estrada”. Não é por nada que, comentando a questão da psicose, no Seminário a respeito, Lacan fala de la grand’route, que caminhar pela grande estrada é o que levaria o sujeito a não entrar na psicose. Está aí a questão (a) da subversão da diferença binária, dada pelo que é modalidade dentro do Campo do Sentido, do sentido dado, do sentido que está aí no Haver, e (b) do Sujeito que é produtor de sentido, questionador do sentido, construindo a estrada de passagem e, portanto, estando deslocado das bipolaridades que lhe são impostas, aparentemente, pela dita realidade de sentidos dados, aqui e agora. Coloca-se aí também a questão do por quê estou falando da Arte Total à Clínica Geral. É o Sujeito assim sexuado, tetrassexuado, mas referido ao seu lugar de Falanjo, que transforma, ou pode transformar, tudo o que toca, que artistifica o mundo, produzindo sentido, subvertendo todos os sentidos dados, ou podendo fazer isto – só não o faz quando se demite –, e podendo, portanto, no uso, no exercício do tesão assim sexuado, praticar indefinidamente a Clínica Geral de todos os seus fracassos. Como são os fracassos de sentido dado, na neurose; os fracassos de Gozo-Fálico, ancorado em objeto; os fracassos de Gozo-doOutro, perdido do Real. Então, todo o processo é de pensar a estrutura do Sujeito no seu périplo orgástico, se quiserem, na orgia da sua possibilidade de produção de sentido, e repetindo indefinidamente este processo como criação e como Cura. Isto sem, no entanto, poder jamais se afastar de seu narcisismo radical, o qual, diferentemente do tolo narcisismo de se apegar a esta ou àquela forma dada aqui e agora, é consentâneo com o narcisismo radical do divino, do Haver, que não faz senão recorrer-se a si mesmo – é a cobra que come o próprio rabo – e goza com isto, aqui e agora.

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As peripécias do Haver e do Sujeito – dentro do narcisismo radical, que não é para ser extirpado, e sim acrescentado até para chegar perto do narcisismo divino – passam necessariamente pela Patologia Fundamental do Sujeito. O resto, que chamamos de patológico, é doentinho, é fixação. O grande pathos do Sujeito é passar por essa sexualidade absolutamente unheimlich, produzindo sentido, criando e curando, ou seja, cuidando do sentido. A cura é isto. Não há mais do que isto: chegar a algum ponto em que se possa passar o resto da vida cuidando do sentido, sem se estagnar ou mesmo se deslocar por obrigação. *

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" Pergunta – Como fica, nisso que você disse, o mito da primeira Eva? Está respondido às páginas tantas de meu Seminário de 87. Lilith é o nome do capítulo. Chamar de primeira Eva já é interpretação. Isto nunca foi dito no mito, que é de que, antes de Eva, já havia uma oposição a Jeová. Alguns autores dizem que Lilith é a primeira mulher de Adão. Mas o casamento de Adão é indissolúvel, não há “primeira mulher” só há uma. Aliás, casamento é indissolúvel, não sei se já deu para notar. Isto porque a experiência desejante e amorosa, que situa um objeto e um Sujeito como meta, como alvo, tem que supor o Sujeito em movimento e a experiência passada aí pode-se até perdê-la, abandoná-la, mas ela não se dissolve nunca. Contratos de coabitação, de propriedade, isto é outra história. Se retomarmos o mito dentro do mito bíblico, teremos a impressão de que Jeová, como aquele que diz não a Adão, comparece como um Deus masculino, ou pelo menos de que é o Deus que diz não e propicia o masculino. Fica meio ambígua sua posição, mas a leitura judaica, posterior, é de Jeová no masculino. Jeová é um epiléptico: tem ataques, solta trovões, fica furioso. Então, me dá a impressão de que o mito de Lilith é uma espécie de suspeição de que o Outro de Jeová tinha que existir. Coloco, então, Lilith como sendo a mulher de Jeová, de Deus, a mulher que não há. Estou colocando Deus como inconsciente, como a suposição de Sujeito

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no Haver. O Haver, no seu movimento desejante, o que deseja? O seu Outro radical, que é não-Haver. Lilith para mim é: a mulher de Deus não há, o Outro do Outro não há. Por isso, ela é o supremo Bem, porque o mais desejado, até por Deus; e o supremo Mal, porque jamais vai comparecer de fato. E Deus fica nisso que Salvador Dali chamou O Grande Masturbador. Ele só não é o masturbador absoluto porque já que não tem Outro, ou seja, se não tem Tu, vai tu mesmo. Ele inventa Outro por dentro, que, eventualmente, somos nós. Somos as esposas de Deus – qualquer místico diria isto –, qualquer que seja o sexo carnal. " P – Falanjo, então, é a capacidade de se produzir sentido no masculino e no feminino, no imbecil ou no idiota? A produção de sentido dele não é masculino nem feminino, é do seu sexo próprio. É: sentido. Não estou dizendo que ele faz produção de sentido masculino ou feminino. Isto não existe. Masculino não faz sentido, não faz o menor sentido. Masculino só faz sentido quando o Falanjo diz. Só é masculino na referência a um não. O que fazer com este não? Do ponto de vista desta referência, não se tem nada para fazer. Tem-se a fazer é dentro do sentido. Feminino, não faz sentido nenhum: é a loucura total de correr desesperadamente para o não-Haver. Que sentido isto faz? Faz-se no gozo do Anjo. Por exemplo, vamos fazer de conta que se pode encarnar essas coisas até com uma paridade anatômica. Isto não vale, mas vamos fazer de conta que uma fêmea seja feminina o tempo todo. Ela vive na tensão ou no tesão do Gozo-do-Outro, e isto jamais comparece. Ela estrebucha, estrebucha e não goza. Onde ela vai entender este não-gozar do Outro? Ela vai ter que arranjar expedientes para dizer isto. Na posição de Falanjo, ela vai dizer com sentido do gozo místico, mas com sentido. Ela vai produzir sentido para a suposição de um gozo místico, que ela projeta sempre para frente. É Santa Tereza, com toda sua obra: Morro de não morrer! Passemos, agora, para o masculino. Aí, chega-se a erguer certa barreira e até se goza. Com o que ele goza? O que é o deslanchamento, o interruptor do gozo dele, ainda que gozo orgástico masculino (como qualquer fêmea pode

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gozar também)? É na estruturalidade do seu anedotário inconsciente que ele encontra um sentido. Então, em cima do quê um Sujeito goza orgasticamente? Em cima de fantasia. Ele tem todo um roteirinho para retomar aquele sentido e gozar. Se a fantasia ficar um pouco estropiada, um pouco pressionada por alguma coisa, ele fica em crise. Ninguém goza com referência ao não, e sim ao sentido que escreveu para o seu não. Então, é sempre o Anjo que está nessa, os outros dois são referências. Ele pode falar estritamente da sua posição. E isto é que o anedotário – que chamamos de Historia – sobre as artes, sobre as produções humanas em geral, nunca conseguiu conceber bem, entender com clareza. Costumamos entender com mais clareza quando se desenha, angelicamente, um sentido que aponta para o masculino ou para o feminino. Agora, quando ele aponta para si mesmo, temos uma dificuldade enorme para entender. Mas, hoje em dia, na história dos estilos, já começa a tentativa de destacar esse terceiro. " P – Neurose, psicose e perversão já são produção de sentido? Não. Tratarei disto mais adiante. Chamo de neurose, psicose e morfose, que são aprisionamentos hiper-patológicos nessas referências. Se um sujeito se aprisiona na região do sentido, mas a sentidos dados, ele pára de produzir sentido e é a isto que chamo de um neurótico. Ele não consegue mais movimentar sentido ali na região do sentido, só usa sentido já dado. Se um sujeito se aprisiona na região do Gozo-do-Outro, ele até perde os sentidos, e daí vai construir uma psicose. Se um sujeito se aprisiona na região do masculino, na referência ao não, ele vai ancorar este não em alguma coisa, e aí ele é morfótico, ou seja, fóbico ou perverso. Mas tudo isso só é feito com o auxílio do sentido que vem lá de cima. São sentidos ancorados: ou como sentido; ou como objeto de âncora; ou como vertente perdida do sentido. A função do Sujeito é manter-se girando aí, é ser operatório/operativo. Se sou essencialmente do registro do terceiro sexo, que diz que “há desejo, há tesão, pode ser até negado, mas não inteiramente”, posso negá-lo aqui, renegá-lo ali, etc. " P – Mas não ao mesmo tempo? Fica difícil articular duas lógicas ao mesmo tempo. Você banca o

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masculino aqui, até no sentido político: está na hora de fazermos um projeto, masculino para organizar um pouco. Ou feminino ali: está na hora de contestar o projeto. Ou terceiro acolá: está na hora de escrever sentido sobre este projeto. O sujeito que se fixa em uma região, está ferrado, e ainda ferra muita gente com ele. Essas posições podem ser, e têm sido, decantadas em artes como estilos, os quais talvez se esclareçam pelas posições sexuais do escrito. Não é nem do escritor, é do escrito, da obra. Uma obra tem sua vertente estilística maior para tal lado, outra, para outro. Às vezes, encontramos obras como o livro que pedi que lessem de Clarice Lispector, que, seja qual for a vertente estilística que tenha tomado como autor, ela começa a demonstrar, entre os personagens, essas posições de estilo na vida. É como se ela tivesse, antes de mim, intuído os quatro sexos na literatura. " P – Você falou sobre o simbólico, dizendo que era faz-de-conta absoluto, aquém da metáfora? Você pode explicar um pouco este aquém da metáfora? Isto é fundamental para quando formos encarar o conceito lacaniano de Nome do Pai, o conceito de Lei na psicanálise, essa coisa toda que acho mal entendida. Fazendo uma prévia ao tratamento disto, vamos considerar que temos uma série de elementos dentro do Haver, chamemos isto de natureza ou não, seja factício ou não, as coisas estão por aí. Estas coisas têm uma espécie de design pronto. Elas podem ser extremamente complexas, mas não negativizam, não dialetizam. Por mais abertas que sejam, são aquilo que são. Posso não saber o que são, mas, para mim, supostamente são. Chamo essas coisas de Gnomos. Alguém já tentou me corrigir, dizendo que é gnoma, em termos de conhecimento. Mas não, gnomo é aquele duendezinho na floresta, uma coisa meio mágica, meio esquisito. Por ressonância, até podemos tomar a idéia de gnoma, de um saber ali inscrito. Essa coisa, então, não relativiza, não dialetiza. Aí, aparece outra coisa, cindida, $, que, esta, negativiza e dialetiza, não é gnômica, embora esteja numa corporeidade que, aparentemente, seja gnômica. O $ tem como Lei a sua própria ordenação. Lei no sentido de que há

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alguma Lei fundamental dentro do Haver. Para mim, a Lei é: Há desejo de não-Haver, mas é impossível passar a não-Haver. E isto é o fundamento da castração no Haver. O simples fato de ser impossível passar a não-Haver, aí já está definida a castração para o Sujeito como para o Haver. O fundamento da castração vai se representar na historinha do Sujeito de maneiras diversas. De repente, Freud lê isto até na relação que chama de Édipo, o que é uma bobagem, pois o fundamental é que há um impossível, o qual justamente só é reconhecido porque é o desejado. O gnomo tem uma lei regional. Tanto é que nem procura o impossível, só funciona dentro da sua ordem. Na passagem de gnomo para $, mesmo o boneco, o macacão, sendo mais ou menos parecido com o gnomo, o $ se subverte pela negatividade, pela dialetização, pelo Revirão. Então, nem mesmo o que trago como macacão, suporte do Revirão, é fundamento, pois o Revirão é capaz de revirar até isto. E revira freqüentemente com a tecnologia. Há uma espécie de nostalgia do futuro.

S

Gnomos

Esse cara, $, é Sujeito. Se sua estruturalidade mínima, básica, é ser Revirão, que fundamento tem ele para operar, para, eventualmente, até estacionar aqui ou ali? Nenhum. Mas se fosse existir o tempo todo neste processo, seria a esquizofrenia radical, absoluta, então, como $ dialoga com o gnomo? Aquilo tem fundamento, eu não tenho. O que posso fazer para dialogar, estacionar, aqui e ali, até mesmo para exercer a minha criatividade, como dizem, para pôr um ato criador? Tenho que fazê-lo sobre algo. Não vou ficar girando, pois isto não vai a lugar nenhum, só gira. Então, isto lida com aquilo pelo faz-de-conta. Faça-se de conta que sou uma arara, como diz o índio de Lévi-Strauss. Assim, ele estabeleceu que o Nome do Pai desse índio é Arara. Ou seja, que pegou um sintoma e disse: vou

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fazer de conta que este sintoma me define e põe os meus fins, os meus limites, a minha marcação. Então, toda e qualquer legiferação, para o Sujeito, é da ordem do faz-de-conta que isto que digo que é proibido – pois o que define o limite é uma proibição, não é nada de concreto – é impossível. Isto porque, para o gnomo, é modalmente impossível, ele não pode sair do seu registro. Não é Impossível absoluto, mas o impossível modalizado num sistema. O $, que não tem sistema algum de referência, toma um sistema de referência, ou inventa. Quero acreditar que, na história ou na pré-história do Sujeito, ele começou tomando modelos externos. Acho mesmo que a interdição do incesto é um computador, inventado em cima de modelos. Isto não tem a menor importância hoje em dia. Se pensamos numa sociedade ultra-técnica, para que serve o incesto? Para nada. Lá no neolítico servia, era o computador que tinham para organizar as coisas. Aí então se funda uma proibição que é metáfora de um impossível. Para mim, portanto, o processo metafórico, o processo de fundação de Lei, é simplesmente imitar o impossível. Por exemplo; digamos que tenho aqui alguma relação com vocês de dominação, de crença, de transferência ou porque resolveram votar em mim, aí digo: é proibido passar por aquela porta! Todos sabem que não é impossível, mas começam a obedecer como se a porta fosse um limite intransponível. Isto é um faz-de-conta. Ou seja, a fundação da Lei, a fundação da metáfora é fazer de conta que uma ordenação sintomática vai funcionar para mim como um intransponível. Agora, se eu, para além do operatório, começo a acreditar nisto, aí a coisa é feia porque sou neurótico, psicótico ou morfótico. Temos a impressão de que as pessoas vão surgindo, as crianças vão nascendo e não há a pedagogia disto. Então, vem a tentativa de produzir uma pedagogia aí dentro, de fazer a crítica da pedagogia. Será possível que um neófito, ainda que por estágios, venha a aprender que aquilo que recebeu como limitação doada é meramente operacional? Taí uma das vertentes da Clínica Geral: a presença do analista dentro da escola, quer dizer, intervindo na pedagogia de maneira a se poder pensar que talvez este entendimento não seja

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diretamente possível. Ou seja, a criança vai ter que se referir à autoridade para dizer que isso é proibido porque é proibido, e ponto! Ela até acredita, mas isto tem que ser dialetizado para ela vir a entender que é uma operação entre Sujeitos. Para podermos estabelecer uma ordem, há que botar um limite: então, fica combinado assim. Isto seria operatório. Mas como parece que não há tempo suficiente de começo, que o tempo para compreender é longo, talvez o começo tenha que ter uma estruturalidade de recalque e, portanto, de germe neurótico. Acontece que, apesar das críticas a Wilhelm Reich, os sistemas que vão açambarcando poderes, ao invés de levarem à operacionalidade, procuram surreprimir, ou seja, se aproveitam da crença do outro para manter um processo de neurotização, que é rentável em termos de poder. Isto já é uma política a ser feita. Uma pedagogia para Sujeitos até arcaria com a necessidade eventual de ter que fazer recalques, mas também levaria os recalcados a retornar, a serem repensados e passarem de recalque àquilo que Freud chama de juízo foraclusivo. Não se tem nenhum recalque quanto a tal coisa, mas se põe de lado porque, operativamente, agora, no nosso jogo político, é importante fazêlo. Não que esteja recalcado em mim, mas simplesmente opero. O que encontramos na ordem política é uma massa enorme de seres históricos, ou seja, que saíram da pré-história, mas continuam na crença da sua animalidade: sou um Arara. Seres míticos: sou branco, sou brasileiro, sou homem ... Aí, não dá para conversar. Não dá para fazer de conta que se é mulher, que se é negro, que se é chinês, por que não? Qual é o grande furo da pedagogia moderninha? Ao invés de o sistema educacional, o professor, assumirem a posição de autoridade no arbítrio, dizem: vamos fazer tudo bacaninha, pode tudo. Primeiro, é mentira, porque não pode tudo, há limites. Segundo, isto não transmite a idéia de fundação de arbítrio, que seria a idéia operativa na educação. Enquanto uma criança ainda não tem – se é que isto é verdade, deixo em suspenso –, durante algum tempo, condições de entender a fundação do arbítrio, ela tem que ser submissa a uma autoridade. Paciência! O que a pedagogia moderninha fez foi achar que “a educação é tão

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repressiva, vamos diminuir a repressão”. Apenas mudou de repressão, a qual continua a mesma, se não for pior. Os processos de manipulação psicológica da criança são mais emburrecedores do que você dar uma porrada nela, pois, aí, ela fica com raiva pelo resto da vida e pode procurar resposta. Mas se você manipula e não a deixa pensar, aí, acabou-se. Prefiro dar um bofete. Sabem da história do garoto que achava que havia mosquito à sua volta e vivia o dia inteiro batendo as mãos, matando os insetos? O pai, desesperado, levou-o ao psicólogo, ao psiquiatra, a todo mundo, a clínicas no mundo inteiro. O garoto melhorava um pouquinho, voltava para casa e recomeçava a bater as mãos. Um dia, o pai ficou injuriado e gritou: Pára com isso, que merda! O garoto nunca mais fez isso. Pessoas inteligentes não disseram essas bobagens. Com todos os erros que se possa imputar aos protocolos teóricos de um Piaget, ele, pelo menos, tentava articular um processo de chegada a uma razão operativa. Pelo menos este desejo ele tinha, e não o pedagogismo água com açúcar que, na verdade, é produção do baixo clero. O baixo clero pedagógico produz essas gracinhas, que são de uma indecência radical, pois são manipulação de dona-de-casa. Aquilo não pode ser sério. " P – Você podia dizer: é permitido passar pela porta. E ainda assim seria a metáfora do impossível? O permitido nunca é metafórico, não funda metáfora. Não encontramos nenhuma lei que, como lei, se fundamente na afirmação. É sempre na negação. O que é permitido é absolutamente coerente com o Revirão. Isto, porque se começo a me movimentar, o que quer que pense é permitido. Chamase princípio do prazer. O que quer que passe pela minha cabeça, é sim. Não há não lá. Quando Freud diz não há não no inconsciente, está dizendo que, se deixar, ele topa qualquer parada, qualquer coisa serve. Aí, para organizar a minha relação diplomática com o mundo, mesmo com o meu corpo, preciso de proibição. Por exemplo, eu gostaria de sair correndo pela janela e passar direto. Vou cair, me esborrachar, mas que desejo isto, desejo. Até sonho que abro a janela e saio voando... Mas não dá, tenho que fazer uma diplomacia com o

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corpo que pertence ao campo do gnomo. Aí, entra o não. Tenho que dizer para mim: isto não! Estou pondo uma proibição porque não é impossível sair para lá, só que vou me esborrachar. Comparo este impossível com a minha proibição e dou foros de metáfora de impossível à proibição que me dou. Se não, me ferro. Assim como na política, na relação inter-pares, entre Sujeitos. Os desejos são muitos, a comida não dá para todos, vamos organizar de algum jeito. Ou, se não, se ninguém consegue organizar, vamos colocar um para mandar. Também serve. Isto é arbítrio de quem? Do Sujeito, que toma um arbítrio qualquer e diz: faça de conta que isso que estou proibindo é impossível. Como sempre há uns que não vão levar muito a sério, aí você ainda inventa a polícia para ficar parecido com o impossível. Ou seja, se você tentar passar na porta, o cara te dá uma porrada de cassetete para mostrar que é impossível. A metáfora se esclarece com a polícia. Temos um Estado para organizar: o único jeito de arrumar agora é botar tal lei. Bota o exército na rua! Sempre foi assim. Ou seja, botar a polícia na rua significa demonstrar que, pelas forças em luta, há até possibilidade de dar certo ar de impossível ao proibido. Mas, para isto, tenho que contar com forças opostas. É uma política. Nada impede, por exemplo, que o pessoal, o chamado povo, do lado de lá seja maior quantidade, fique puto com a polícia e diga: não é essa a lei que a gente quer. Vamos é dar uma porrada em vocês. Vocês é que vão ver o limite. Então, é tudo agonístico. Mas, fundamentalmente, o processo é este. É simples como bom-dia. Aquela coisa que Lacan chama de Nome do Pai, não sei o quê, é apenas a possibilidade de saber brincar: vamos brincar disso, tá?, mas brinca direito! É só isto! O brincar é a realidade. Se resolvermos aqui, brincar de alguma coisa, se não houver o limite, se não delimitarmos as regras, não há jogo. Só dizer que a regra é tal e não outra já não é afirmativo? Afirmar o catálogo das regras de um jogo é negar as que não estão ali. Então, vamos brincar direito! Há sempre um maluco que acha que aquilo não é brincadeira. Este só pode ser neurótico, psicótico ou morfótico. Ou seja, ele acredita que é assim

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mesmo, ao invés de ser a brincadeira combinada que é: brincar. Vocês leram no jornal sobre o suicídio do garotinho que não teria suportado uma repreensão no Colégio Militar, não é? Ele não entendeu a brincadeira. Acho que aquilo é psicose, mas enfim ... Não sabe o que é brincadeira. Não leva a sério a regra da brincadeira, porque esta é de brincadeira. Lacan, por exemplo, correndo lá na psicose, imagina que há uns sujeitos que não entendem que é faz-de-conta, que não conseguem fazer de conta. O elenco das permissões não faz, portanto, senão excluir o que não está ali. Isto pelo simples fato de que, se me referir às minhas possibilidades, não há nada que seja proibido. O que faz um Sujeito que cria um troço novo, uma lei nova, uma ciência nova, um saber? Simplesmente precisa fazer a suspensão das proibições. Sem passar, de certo modo, no feminino e retornar para o Angélico, vai-se suspender uma lei, uma lei química, uma lei física? Não. Você estava brincando disso, mas pode, de repente, não ser assim. Então, esse Sujeito fez a suspensão da lei. Mas enquanto aquilo estivesse vigorando, o simples fato de dizer que as leis da química são tais e tais, significa que, fora disto, não é. Já é uma proibição você afirmar. A audácia do criador qual é? É assegurar-se do saber para, depois, dar uma suspensão nele. Negar a negação, e ver se acha um caminho. É aí que Freud diz que teve sucesso onde o paranóico fracassou. Isto porque ele não foi de araque, ele não se perdeu e resolveu por um delírio. Ele foi brincando direito e disse: faço a seguinte sugestão: se suspender tal proibição, o campo fica mais interessante. Ele sugeriu um brinquedo novo, uma regra nova.

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11 OS ESTILOS POSSÍVEIS Um dos interesses da distribuição da sexuação é que, em conformidade com o movimento libidinal do Sujeito, ela estabelece uma verdadeira patologia fundamental. *

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Antes ainda de se pensar a patologia designada nos estudos e produtos teóricos assentados na experiência clínica, com defecções mais ou menos graves das posições estruturais em que os Sujeitos se decantam, acho que, com o acúmulo de experiência e com todo o escopo teórico que já se pode manejar de certa forma com alguma completude, já seria o caso de se dizer que a patologia fundamental do Sujeito – o que não está longe de certas assertivas de Freud mesmo – é a sua sexualidade. Ou seja, as posições que o Sujeito pode tomar na sexualidade já constituem, por sua estruturação, a patologia fundamental. O pathos do Sujeito, antes ainda do encosto em alguma formação conteudística, pode ser descrito certamente pelas posições que ele aí pode tomar no circuito da libido. Diria eu, então, que a patologia fundamental do Sujeito é: Masculino, Feminino, Falanjo e Morte. É claro que as peripécias de um sujeito nessa patologia, conteudizada e sintomatizada aqui e ali por pegas metafóricas, já são um segundo grau da patologia. Dificilmente se encontra

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isto nesta circularidade, pois justamente, se os sujeitos estão mais ou menos decantados em apegos patológicos secundários, metaforizados, isto significa que ele não circula. E esta patologia secundária aparece com tanta veemência, pregnância e paralisia que não nos deixa, com facilidade, verificar o que está por trás. Mas supondo-se um Sujeito despatologizado da sua sintomática secundária, e até mesmo podendo fazer o circuito da libido pelas posições fundamentais, ele estará, aí, em sua patologia de Sujeito. Este é seu pathos. Esta patologia será desenvolvida posteriormente, tratando-se de neurose, psicose e morfose. Outro interesse é que, se não há como situar-se o Sujeito para fora dessa patologia – em algum lugar aí ele deve estar, aqui e agora –, é de se supor que todas as suas produções estejam mais ou menos comprometidas com ela. Ainda não é aí uma sintomática, no sentido de apego a uma metáfora, mas uma estruturação possível do Sujeito na sua manifestação aqui e agora. O assentamento do Sujeito nesses lugares possíveis de sua manifestação, de sua colocação lógica, quer me parecer que, para aquém dos estilos – no sentido da letra própria, no sentido da decantação sintomática de um sujeito numa língua ou numa linguagem qualquer de expressão –, esses lugares também designam, enquanto patologia fundamental, uma estilística fundamental. Ou seja, quero dizer que um sujeito não pode exprimir-se fora da patologia fundamental, fora das lógicas possíveis de seu assentamento como Sujeito na sexuação, e que isto constitui a primeira distribuição de uma estilística fundamental. Então, estou dizendo que estilo e patologia fundamental são a mesma coisa. As quatro posições designariam, então, tanto a patologia fundamental do Sujeito, na sua colocação dentro das possibilidades de sexuação, quanto a estilística fundamental do Sujeito, na expressão desse pathos. Só que, dado o modo de operação do Sujeito, necessariamente dentro do Campo do Sentido, só pode haver expressão do pathos, expressão estilística, também dentro do Campo do Sentido. Faço a suposição de que, entre aqueles quatro sexos, aquelas quatro patologias, aqueles quatro estilos, há um que é mais ou menos gerencial. Esta lógica, sendo temporal – exigindo, primeiro, a determinação do masculino;

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segundo, a sua negação, para a determinação do feminino; a dialetização disto, no terceiro sexo, como Falanjo; e o fundo comum da vertente mortal, regulando o movimento pulsional –, quero supor que o Sujeito fica mais ou menos centrado, pois não pode se exprimir fora do Campo do Sentido. Ele fica, então, no lugar, digamos, gerencial do terceiro sexo. É de dentro do lugar terceiro, sem poder sair dele, sem poder manipular qualquer significação fora do Campo do Sentido, que o Sujeito empurra o sentido, mesmo dentro de sua patologia secundária, para as vertentes masculina e feminina. E, até mesmo através destas duas vertentes, chega a tentar empurrar o sentido para a vertente mortal, que não sei se qualifica um quarto estilo destacável, mas, pelo menos, qualifica uma tendência de negativização radical dos processos de significação. Gostaria de propor-lhes algumas figurações compatíveis com a lógica destas quatro posições: No Masculino, a exteriorização do excedente garante, funda um Universal tão radical que simetriza tudo, coloca tudo dentro de posições absolutamente equivalentes, se não idênticas. Os homens, como diz Lacan, são todos iguais. É o processo mesmo de estabelecimento do regime legal e do processo de legiferação, onde quer que apareça: todos são iguais perante a lei. Então, há uma espécie de colocação sobre certa superfície de inscrição para a qual todos os pontos têm o mesmo valor e a mesma distância em relação ao que defina, regule, essa superfície. É como se estivéssemos diante, por exemplo, da esfera: a esfera divina organizando, lá dentro, todos com eqüidistância em relação a seu centro. No caso do Feminino, por falta de delimitação externa, de expulsão do excessivo, teríamos um movimento cuja tendência seria extravasar qualquer limite de retificação, qualquer esfera. A “esfera” do feminino seria dilatável e em aberto. A forma que mais me ocorre para isto é qualquer coisa da ordem do espiralado, ou da hélice, uma coisa expansiva, ou regressiva, tanto faz, mas que tenha um espécie de fulcro longínquo. No Terceiro Sexo, é alguma coisa que se expande e se retrai sobre si

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mesma, é uma espécie de pulsação, de movimento oscilatório de ida e vinda, de expansão e de retração, sempre intermitente. E, quer me parecer, que a forma do oito-interior sobre uma banda de Moebius ou qualquer movimento expansivo/ regressivo por intermitência, consegue representar bem esse tipo de pulsão. No caso do Quarto Sexo, seria todo e qualquer movimento de anulação, de apagamento. Toda a tendência de ou representar, mediante um signo qualquer, este apagamento ou produzi-lo: produzir um silêncio, um preto, um branco, alguma coisa onde não houvesse nenhuma inscrição. Poderíamos também fazer a metáfora de se estar brincando de girar uma pedra amarrada numa linha. Se mantenho a pedra numa distância constante entre meu dedo e a pedra, faço algo como um círculo ou passo por dentro de uma esfera com a pedra. Se imaginarem que vou soltando a pedra à medida que vou girando, é um movimento expansivo, que tem uma espécie de ponto de fuga no infinito. No primeiro caso, estaríamos no masculino e, no segundo, no feminino. Podemos imaginar também que eu possa soltar e retrair este círculo. Ou seja, faço movimentos expansivos e depois retorno, solto e prendo. Ou, então, terceiro sexo, o fio é elástico e faz movimentos de afastamento e aproximação, mas não tem nenhuma distância constante em relação ao centro, nenhum ponto de fuga no infinito. Ele vai e volta. Ele transa entre a expansão e a retração. Ou, simplesmente, posso tentar esvair esse movimento, retirar a pulsão que faz girar a pedra, tentar apagar isso, silenciando o movimento. Aí eu estaria no quarto sexo.

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Gostaria de tomar certo momento da assim chamada História da Arte para ilustrar esta estilística e esta patologia. Isto porque há um momento fecundo, entre o quatrocentos e o seiscentos, até mesmo chegando ao setecentos, no qual há grande efervescência de pesquisa e elaboração a respeito das possibilidades de significação que fazem com que apareça com certa nitidez essa patologia e essa estilística. Em primeiro lugar, após um momento chamado de medieval, com tendência gótica fundamental, sem tocarmos na questão estilística do gótico, temos toda uma situação histórica no mundo que é de tendência classicista. Isto por pressão da própria transformação interna da Igreja. É o retorno a um processo grecizante, no sentido clássico, é a filosofia platônica. E vamos dar de frente com um movimento eficaz e produtivo, que é o chamado Renascimento. Na arte, ele não pode ser tomado senão como um movimento de legiferação radical a respeito dos processos de expressão na pintura, na arquitetura, etc. No seio da Igreja tinha-se como Regina Scientiarum, a rainha das ciências, a teologia, a qual se mostra, nesse momento, absolutamente centrada: um Deus central, onisciente, onividente, oni-tudo, organizando numa consciência absoluta o universo. Isto faz com que os embates de poder tendam a invadir o campo da teologia com outros saberes na disputa com este centramento. Encontramos aí os momentos de relanceamento da ciência no sentido de entronizar-se, em competição com a teologia, na competência de estabelecer esse saber divino centrado, organizado, fundamentado como conhecimento preciso do real. Claro que não conseguem, mas tentam. Interessante é o que acontece com os artistas no movimento de busca também de status compatível com os poderes instalados dentro da Igreja. Como sabemos, os artistas dessa época tentam cientifizar a arte no sentido da competição com o centramento teológico. Não é por menos que uma série de conhecimentos relativos a certos fenômenos da natureza são devastados por

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eles. É o caso, por exemplo, da anatomia humana e animal. São os artistas que começam a dissecar os corpos, descrever a construção óssea, muscular, orgânica, etc. Isto no sentido de estabelecer uma representação que fosse compatível com a natureza, como conhecimento da natureza igual a conhecimento divino. Tudo isso centrado e regiamente regulado por leis mais ou menos absolutas. No caso da própria representação, os artistas vão imaginar uma superfície plena e universal capaz de, mediante uma metodologia radical a respeito da relação da visualidade com o mundo, estabelecer a possibilidade de representação de tudo que há no universo sobre essa superfície compatível com a recepção deste tudo. Não é à toa que, sobretudo entre os pintores e os arquitetos, inventa-se a chamada perspectiva exata, ou perspectiva linear. Tratava-se de, na relação da visualidade, da percepção ocular, geometral, com o mundo, com os fenômenos em observação, estabelecer leis radicais a respeito desta relação, e a possibilidade de representar, sobre uma única superfície – no caso, plana e infinita – o que quer que fosse observável pelo olho. Temos aí, então, uma potência masculina de colocar a exceção do lado de fora e regular, legislar absolutamente sobre o processo de representação. Este, em última instância, é o espírito do classicismo onde quer que apareça: a tentativa de constituir leis de representação, de expressão, ainda que possam variar de época para época, absolutamente cientifizadas, ou supostamente cientifizadas. Então, pela primeira vez, inventa-se uma pintura, uma representação científica que tem como base o laboratório. O laboratório mais importante dessa fundação é o de Albrecht Dürer, que inventa um processo de representação experimental e legislado pelas regras euclidianas de pensar o espaço em terceira dimensão. Isto será passado adiante para Alberti e por todos os teóricos do Renascimento que vão desenvolvendo o processo, a ponto de, num certo momento, ter-se uma perspectiva exata sobre uma superfície infinita de representação plena, legislada para todo e qualquer artista. É claro que, quando chegamos na questão do colorismo, da profundidade – e basta ler o Tratado de Leonardo da Vinci sobre a pintura –, vemos que

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essa tentativa de cientifização não passa de mera tentativa de descrição das possibilidades de representação. Isto porque não têm nenhuma competência de medição de luminosidade, de colorismo, de modulação de tonalidade, etc. Na música, a coisa demora um pouco mais. É preciso todo um desenvolvimento tecnológico para que se venha a constituir, bem mais tarde, mas com vontade classicista – não esquecer isto –, uma espécie de cânone geral da música tonal, que se representa, com toda a clareza, no cravo bem temperado, de Johann Sebastian Bach. Inventa-se, pois, no Renascimento, o masculino radical, o estilo daquele que concebe que existe pelo menos um externalizado para que o universo das leis funcione. Qualquer historiador de estilística, de arte, que vocês leiam, evidenciará isto, para aquém mesmo do conhecimento técnico da perspectiva exata, num certo princípio de equilibração, de simetria das formas, de organização mais ou menos vertical dos modelos, de distribuição mais ou menos eqüitativa das superfícies e dos personagens dentro dos quadros, da distribuição mais ou menos harmônica e suave do colorismo, etc. É esta coisa absolutamente organizada, segundo um princípio de homogeneidade do espaço, sob a égide de um ponto de vista que regula tudo, e que é atribuído à divindade. É como se pudéssemos pensar que a forma circular, que campeia no pensamento dos teóricos da arte nesse momento, a esfera, o círculo, etc., fosse a razão mesma de certa espécie de simetria interna mesmo à representação. É como se pudéssemos imaginar espelhos internos no caso da circunferência em que tudo é simétrico. Eles rebateriam a forma em simetria com maior perfeição em qualquer lugar. Qualquer diâmetro de uma circunferência é espelho para completá-la internamente. É o princípio de uma simetria radical. E as dissimetrias que vão aparecendo no movimento fenomenológico cotidiano vão sendo organizadas dentro desse princípio de legislação das formas, das simetrias, etc. A estilística do Renascimento se reduz a isto. *

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Sabemos e reconhecemos, através da História da Arte, o surgimento de uma coisa que se chamou de Barroco. Este termo é, de início, depreciativo. É claro, pois se a vontade classicista era dominante, o surgimento do barroco é como alguma coisa errada, feia. Aliás, é uma palavra portuguesa, que foi assimilada pelo Renascimento italiano e que significava simplesmente “pérola defeituosa”. Uma pérola barroca era aquela que teria perdido as características preciosas de uma pérola, a sua esfericidade completa, teria nascido um pouco torta, um pouco descentrada, um pouco deseixada. E é o nome desta pérola torta, que não se esfericiza, que vai bater como uma espécie de nomeação depreciativa. O barroco não é senão uma espécie de contrapartida da posição masculina do classicismo. Mas uma contrapartida um pouco marota porque, se o quadro que o renascentista inventou, com a sua perspectiva exata, é mantido como superfície de representação, se mesmo as leis da perspectiva são mantidas como organização do quadro, procura-se escapar da regência do ponto principal. Como se sabe, a perspectiva exata exige certas marcações de base dentro do quadro e um de seus pontos fundamentais chama-se ponto principal, que é a projeção ortogonal, perpendicular, do olho do observador sobre a superfície do quadro. Digamos até mesmo que, no caso do Renascimento, o ponto principal fosse uma espécie de organizador das simetrias. Quando estou diante do quadro, o meu ponto de vista deve coincidir com o ponto principal, deve estar nessa mirada e organizar a harmonia do quadro em torno da simetrização que o ponto principal pode providenciar. O barroco foge para um ponto de fuga cada vez mais no infinito. Ou seja, a perspectiva e as leis de composição estão lá, mas o quadro como que procura um centro que é “externo” à própria superfície de representação. “Externo”, entre aspas porque é um ponto nesta superfície, mas infinitamente distante. Não estou dizendo que todas as obras barrocas sejam assim, de repente, o ponto de fuga está mais ou menos bem situado, mas é como se fosse a tendência de excentrar radicalmente o movimento no sentido de encaminharse para uma infinitude. Isto mais ou menos como é a comparação entre a

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esfera e a espiral. Afora isso, há todo um processo de movimentação, de descentração das figuras, de retirada dos eixos verticais e das composições equilibristas, no sentido de grande movimentação, de uma fuga. Digo que é um movimento meio maroto porque talvez haja uma espécie de compromisso discutível, e alguns autores efetivamente discutem isto, entre o barroco e a Contra Reforma. Ou seja, na medida em que alguma coisa foi contestada, no sentido do centramento radical, em termos de filosofia, de teologia, etc., o barroco como que entende o desdobramento infinito do processo de representação, esta espécie de dobradura, como chama Gilles Deleuze – aliás chamo atenção para que não posso concordar plenamente com seu trabalho sobre este fenômeno porque mistura duas coisas que não devia, mas colocarei isto adiante –, o recurso de uma série de plicas, mas de qualquer forma é ainda a determinação de um centro. Isto porque uma espiral tem um centro, que caminha para o infinito, pode regredir para o centro, mas é uma espécie de re-centramento da legiferação no reconhecimento do abandono do ponto principal como destinação e partindo para um ponto de fuga. A meu ver, dentro do barroco, isso está tudo bem organizado, bem centrado ainda no aspecto de domar o feminino pela regragem dos princípios básicos, ainda masculinos, da Igreja. De qualquer forma, eu diria que o barroco é essencialmente feminino na sua estilística. Até mesmo com chiliques femininos mais ou menos graves, como é o caso, por exemplo, do Rococó, completamente enlouquecido, o qual não é necessariamente nenhuma “decadência do barroco”, mas um exagero, uma espécie de floreamento radical. É como se o barroco reconhecesse que uma forma qualquer, saindo do princípio da circularidade, encontra o seu simétrico do lado de fora. É como se o espelho fosse colocado do lado de fora. Ou seja, não havendo a limitação que põe o espelho para dentro, é como se reconhecesse que o que se representa sobre um quadro – e quadro é o nome genérico desta superfície de representação total –, é simétrico, sim, a alguma coisa, mas externa. Parece, então, aí, que as coisas se colocam de maneira assimétrica, mais ou menos desequilibradas, etc. É como se tivéssemos que

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reconhecer um espelho qualquer situado lá no infinito que daria, no somatório da divindade, a representação em equilíbrio. *

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Há um fenômeno que coincide, no tempo, com o classicismo e com o barroco. Ao mesmo tempo que o classicismo se desenvolve, este fenômeno reaparece e, durante todo processo do barroco, está presente. De maneira bem interessante, ele contém os mais importantes artistas daquela época. É um movimento a respeito da representação, que parece tão exorbitante, tão esquisito, que os teóricos da época, e mesmo de muito tempo depois, não conseguem estabelecer um cânone para ele. Lêem-no como uma espécie de estilística muito pessoal, de uns e outros. Neste caso está, sobretudo, Michelangelo Buonarroti, que chamamos de um artista renascentista, que viveu nessa época, mas que não é um classicista. Atribui-se, pois, esta coisa esquisita a determinados artistas e seu rebatimento em outras obras como uma espécie de influência deles. Fala-se, então, da maneira: à maneira de Michelangelo, à maneira de Bronzino, etc. Isto porque não se consegue enquadrá-los nem dentro nem fora do classicismo ou do barroco. Mas mesmo este apelido é ainda pejorativo. Daí, vem o nome de Maneirismo. São maneirismos, modos peculiares de representação ainda regidos, quem sabe, por princípios clássicos, ou ainda em fuga, dentro dos princípios barrocos, mas são influências de maneiras particulares na representação. Maneiras estas que são muito possantes e pesam muito no conteúdo geral da História da Arte desse momento. Fica difícil, por exemplo, estabelecer-se, na obra completa de determinado artista, se ele foi sempre barroco ou clássico. Isto porque, de vez em quando, ele passa pelo maneirismo. Já tive oportunidade, em Seminário antigo, de comentar um quadro de Rafael Sanzio chamado A Transfiguração. Rafael, lídimo representante do classicismo, no entanto, mesmo morrendo muito cedo, ao final da vida, começa a variar um pouco e a apresentar obras de

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tendência nitidamente maneirista. E isto é esquisito porque, em confrontação com a vontade michelangelesca, era de ele manter a vertente clássica para confronto. Mas ele entra pelo maneirismo adentro. O tal maneirismo, assim chamado ainda hoje, que até a década de 50 deste século não tinha sido entendido, foi tomado como uma espécie de amaneiramento ou estilística pessoal de alguns artistas, os quais oscilavam, ou oscilariam, entre o classicismo e o barroco. Era mais ou menos uma indecidibilidade estilística entre ser clássico e ser barroco, ou uma mistura de ambos. Então, durante muito tempo, foi considerado uma espécie de estilo mais ou menos inominável, insituável. Isto na medida em que só podia ser lido pelos teóricos de então como sendo resultante de uma mistura mais ou menos confusional entre os princípios clássicos e barrocos. Este é um erro gravíssimo, que começa a ser sanado a partir da década de 50 com alguns autores, sobretudo alemães, como Hauser, Weise, que começam a se deter sobre o levantamento das obras que não fossem tipicamente clássicas ou barrocas, a fazer o seu conjunto e tentar, mediante certo tipo de leitura, o estabelecimento de uma estilística para esse conjunto. Eles conseguem demonstrar que o estilo maneirista é radicalmente diverso tanto do clássico quanto do barroco, que não é uma mistura deles, que é outra vontade de representação. É impressionante a quantidade de grandes obras e de grandes nomes envolvida com este estilo. É o caso de Michelangelo, que acabei de citar, que é tipicamente um grande maneirista desta época do Renascimento. Como é o caso também de uma infinidade de artistas, de obras extremamente importantes. A Península Ibérica, a meu ver, é tipicamente maneirista. Temos aí duas obras tipicamente maneiristas fundamentais em literatura: Don Quixote, de Cervantes, e Os Lusíadas, de Camões. O importante é que, mediante este estudo da estilística, se levantem os valores e as vontades específicas desta forma de representação, de expressão, como radicalmente diversos, em suas estruturalidades, em seu modo de expressão, tanto do classicismo quanto do barroco. Ou seja, o maneirismo não é uma mistura, mas sim um estilo particular. Ele dá a impressão de ser uma

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mistura porque não opera nem no centramento legiferante a respeito da obra, nem no desbordamento que também tem a sua legiferação, pois o barroco é bastante discernível em relação ao classicismo. O maneirismo propõe nada mais nada menos do que um processo reflexivo, de idas e vindas, um processo do que eu chamaria de reviramento constante dos objetos colocados no mundo. Ou seja, o que lhe interessa é a ambigüidade da forma, o troca-troca das experiências, o positivo pelo negativo, o negativo pelo positivo, a tensionalidade das oposições, a representação aqui e agora da resultante que esperavam certamente sacar da representação, da colocação aqui e agora das oposições em termos de forma, de colorismo, de reflexão, mesmo filosófica, etc.. Quer me parecer, então, que, nesse longo período da história em que se coloca uma vontade masculina, como lógica fundamental do classicismo, e uma vontade feminina, como lógica fundamental do barroco, na dialética destas duas posições, conjuntamente com elas, e contestando a validade de ambas, os próprios artistas envolvidos com a criação desse processo mesmo de classicismo e barroco, vieram a refletir sobre uma posição tipicamente dialética, tipicamente reflexiva, em Revirão, em reviramento constante de produção de um estilo que situasse esse não-sei-o-quê de terceiro que, nesse momento, a história começa a propiciar, na clareza do confronto com o clássico e com o barroco. O objeto espelho, por exemplo, essa coisa diante da qual tentam-se ver as próprias imagens, tornou-se uma espécie de centro das atenções dos artistas. Vemos isto disseminado por todos os maneiristas: a reflexão a respeito da reflexão. É uma espécie de tentativa de cercar o aparelho chamado espelho com suas possibilidades infinitas de reviramento sobre si mesmo, de reconceituação da lógica fundamental do pensamento que se inscrevia naquele quadro. Eu diria mesmo que é como se o maneirista colocasse o espelho como limite, como borda da situação. É como se o espelho fosse, ele próprio, o limite. Digamos que, no caso da esfera, é como se o espelho fosse a própria esfera, o próprio círculo, a própria moldura do quadro. Ou seja, o quadro trabalha com a imagem e com seu avesso. Quero

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supor mesmo que o maneirista foi aquele que inventou a Banda de Moebius antes de ela aparecer. Ele tentou constituir, dentro do quadro, o processo uniface, de reviramento sobre si mesmo. É claro que fazia isto através de tentativas as mais esquisitas. Por, exemplo de compor figuras na forma serpentinata: as figuras se deslocando, a perna para um lado, o tronco para outro, a cabeça para outro, como se estivessem fazendo um movimento, que a princípio parece expansivo, mas que retorna sobre si mesmo. Isto ao contrário da figura mais ou menos estática, equilibrada, do clássico e a figura pendente, em movimento e para fora, do barroco. Vê-se com muita clareza, sobretudo nas esculturas de Michelangelo, que é o inventor da forma serpentinata, que é como se a figura se movimentasse, mas em torno de si mesma. Ou seja, é como se o movimento de expansão fosse de retorno, como se tudo aquilo valesse como uma reflexão, como entendimento da especularidade interna, da catoptria interna do Sujeito, numa posição de reviramento dialético sobre si mesmo. Outros procuraram outras modalidades. Por exemplo, Bronzino tem um quadro famoso chamado Alegoria do Tempo, onde vai representar isto por processos de equivocação radical entre o rosto e a máscara, uma figura com a mão direita no lugar da esquerda e a esquerda no lugar da direita, etc. É preciso muita atenção para perceber o reviramento dentro do quadro. Ele distorce, inclusive, o erotismo do quadro: a Vênus com aquela lingüinha na boca do cupido, e este com aquela bundinha maravilhosa, virada em primeiro plano. Ele vai deslocando inteiramente os erotismos entre Vênus e Cupido, entre a velhice do tempo e as posições das mãos, a máscara e o rosto. Ele revira o processo por inteiro. É um dos quadros mais precisos do maneirismo. Isto sem contar com a obra de Michelangelo e todo o rebu que criou no seio dos cardeais. Não fosse Júlio II estar segurando a barra, não deixavam ele pintar aquilo na Capela Sistina, sobretudo, o painel de fundo chamado Juízo Final, que é absolutamente maneirista, a ponto de Hauser dizer que, por seus deslocamentos e reversões, é a primeira obra de cinema, o primeiro filme. Há outros momentos dentro do maneirismo situando a posição terceira independentemente tanto do barroco quanto do classicismo. Isto porque vão

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pela via não da utilização do mesmo projeto científico em suas possibilidades de princípio de fuga dentro da representação, como é o caso do barroco em relação ao clássico. O barroco toma o mesmo projeto clássico, que se estabelece no princípio de equilibração em torno do ponto principal, e, utilizando as mesmas regras, as mesmas leis, escolhe o ponto de fuga, sobretudo no infinito. Então, a coisa continua regrada, mas vem a lembrança dessa fuga. Isto é o mesmo que dizer: sei muito bem que existe pelo menos um que diz não à função fálica para que todos o sejam, mas mesmo assim, digo não a isto, situando assim o esteio não no ponto principal, mas no ponto de fuga. Ou seja, não há feminino sem reconhecimento do masculino e sua negação. Não há barroco sem utilização do princípio masculino, negando a sua funcionalidade fechada. Mas isto é preciso, pois não há feminino sem que o masculino se coloque como universal, para, então, o feminino o negar. Não é o caso do maneirismo. É como se este dialetizasse um e outro. Ele não está preocupado em referendar-se à Lei fundada como universal para negá-la e nem mesmo para obedecer a ela. *

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" Pergunta – Existe uma hierarquia tanto na ordem dos sexos quanto na metáfora que está sendo usada na História da Arte. Ou seja, na medida em que o maneirismo se situa ao lado tanto do Renascimento Clássico, quanto do barroco, e estaria, de uma forma ou de outra, promovendo sua subversão, ele depende da existência de um e de outro. De alguma forma, então, ele existe dentro de uma hierarquia... Eu não usaria a palavra hierarquia porque, se a usasse, estaria dizendo que, uma vez dados os estilos, teria que dizer da principialidade e, talvez, hegemonia do masculino para, depois, ser negado no feminino. Isto não é pensável porque, uma vez que estão postos, não reconheço aí nenhuma hierarquia, ainda que, através da história, se tenha tentado fazer desta emergência uma hierarquia. Isto é outro problema, onde, por exemplo, as femi-

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nistas têm toda razão. O que existe, sim, é que o modo de surgimento da Lei, a emergência de qualquer organização, se dá por princípio masculino, mas isto não é hierarquia. “Antigüidade é posto” – esta é uma regra militar, mas só lá na realidade dos milicos. Então, a hegemonia seria do masculino, mas isto seria de uma burrice escandalosa, pois se, dentro de uma situação de caos, é preciso, para entronizar alguma ordem, estabelecer um limite externo, e se isto eventualmente funda o masculino, no processo, uma vez dito, isto pode ser negado e criar o feminino, pode ser dialetizado e criar o terceiro, mas isso tudo está sob a regência inarredável do Quarto Sexo. Eu até diria, que se hegemonia, hierarquia, existem é deste Quarto. E uma hierarquia feita de tal maneira que os outros três ficam na mesma diante dele. Não devo, pois, confundir ordem de emergência de uma lógica temporalizada com nenhuma hegemonia, com nenhuma hierarquia. Quando, conscientes disto ou não, os sujeitos se dão conta de que a emergência é por esta centração, vêm com a do milico de dizer que antigüidade é posto. Só que, se o fosse, não seria subversível, manteria a hegemonia. No entanto, sabemos muito bem que qualquer mulherzinha subverte qualquer machinho. Portanto, a hierarquia dele foi para o beleléu. E que qualquer anjinho diz: não é nada disso!, vocês estão discutindo aí, mas é uma questão simplesmente de que está valendo tudo. Não gosto do termo hierarquia, aí, porque, se a lógica de que a emergência da ordem se dê por um princípio de universalização está correta, isto não faz nenhuma hierarquia na medida em que pode ser negada e dialetizada. " P – Então, a presença do terceiro sexo, do Falanjo, é imanente, assim como a do maneirismo? Parece que sim. Se alguma ordem é posta, se alguma lei se procura, ela põe o universal. No entanto, não há fundamento para este universal, portanto, pode ser negado. Na dialética de sua afirmação e de sua negação, com o quê me deparo? Com a equivocação radical e, por isso, acho que o terceiro sexo é mais preciso, nos dois sentidos, para o ser falante. Ele é mais consentâneo com aquele que realmente designa a hegemonia, que é o último, que representa

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o desejo de não-Haver, que é o desejo do falante. Então, se a ordem se funda no universal, se é negável no particular do feminino – que alguns querem chamar de singular, mas que não concebo como tal, mas pode ser –, ela é dialetizável e, portanto, revirável, na sua reflexão, em função, sobretudo, do Quarto, que é o que destitui radicalmente os outros três de qualquer hegemonia. A tendência, na história da arte mesmo, de calar o maneirismo – vejam vocês, até 1950! –, não será ela própria a denegação radical que o falante faz, na pregnância da corporeidade macho/fêmea, da sua essencialidade sexual? Isto, para mim, é denegatório. Como pôde a história ficar tanto tempo denegando a vigência específica do maneirismo se não por isso mesmo? Et pour cause, por ser denegação pura e simples para tentar sustentar a estilística e as formas lógicas de representação na compatibilidade primata com os corpos sexuados da reprodução animal. Acho que foi preciso um movimento imenso de dialetização, terminado na filosofia, no final do século XIX, para se chegar a permitir que a estilística, digamos, mais evidente da espécie humana, como falante, na dialetização e equivocação constantes, viesse a se pôr como sendo a estilística do falante, que pode resvalar para cá, para lá, mas que, no fundo, não pode não ser dialetizável, mesmo em uma obra hiperclássica. *

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Um dos modos interessantíssimos de questionar, para fora da legiferação radical do classicismo, e mesmo para fora da pura e simples negação disso, mas mantendo o negado, são os artistas que usavam – às vezes, por brincadeira, divertimento, ironia, às vezes com um sentido altíssimo da própria representação clássica na sua mais radical determinação –, para fazer cruzamentos, mais ou menos indébitos em relação ao pensamento clássico, certos procedimentos que fizessem uma dialetização meio violenta dentro do quadro. É o caso, por exemplo, que Lacan trabalha no Seminário XI, dos artistas que lidavam com a anamorfose. Lacan, sem tratar da questão da estilística, utiliza a anamorfose, sobretudo num quadro de Holbein, Os Embaixadores, para mostrar a presença

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da morte, a presença do -( da castração, atravessando o processo da construção de um mundo constituído. Isto para evidenciar a função da morte na relação com a castração, a afânise do sujeito, etc. Mas isto é bem mais rico. Lacan se utilizou do livro de Jurgis Baltrusaitis, intitulado Anamorphoses, e publicado antes de seu Seminário. São pesquisas em torno das anamorfoses, que cobrem todo o período em que há a tentativa de utilizar rigidamente, dentro dos processos de representação do classicismo, deformações importantes de ângulo, de projeção, da superfície, da figura, etc. É a dialetização interna deste regramento, e não como o barroco faz, de negação para o externo. Considero, como um monte de autores também, a anamorfose um ato maneirista, um ato de terceiro, intervindo já aí nas simples brincadeiras, e brincadeiras sérias, de questionamento do universo fechado e regrado do classicismo. Já fiz um trabalho mais ou menos longo – que está publicado, embora, hoje, eu gostasse de modificá-lo – sobre um quadro de Velázquez, que é mais tardio, 1600 e tanto, século XVII, e que considero um quadro de vontade maneirista, ainda mais na Península Ibérica. Tentei demonstrar, através de sua obra, em vários quadros, sobretudo culminando n’As Meninas, a reflexão sobre o espelho a que me referi há pouco. Foi estudando o espelho que ele constituiu com brilhantismo o deslocamento radical sobre a superfície do quadro, tornandoo uniface, cruzando a imagem real com a imagem virtual, cruzando a posição do Rei e da Rainha com a do reino numa unilaterização radical da superfície. Isto, para mim, é uma vontade maneirista: nem tanto, nem tão pouco, mas fora, lá fora, em outra situação. Mas voltemos ao famoso quadro de Holbein, de 1533, que é uma obraprima do maneirismo. Este quadro não é possível de ser construído fora da regragem clássica. Ou seja, sem a perspectiva exata do Renascimento, ele não faz sentido, pois é como deformação da perspectiva que ele funciona, e não, como faz o barroco que nega o ponto principal dentro da perspectiva e afirma o ponto de fuga no infinito. Isto é uma negação, um deslocamento, dentro da ordem. No caso d’Os Embaixadores temos um questionamento dentro da

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própria ordem, um questionamento dialético da posição, para a qual Baltrusaitis e Lacan chamam a atenção, da vaidade do mundo em relação com a morte. Aquela coisa esquisita, atravessada no meio do quadro – que, como se sabe, é um crânio de caveira – não é senão, representado sobre a superfície plana do quadro renascentista, um objeto deformado porque visto de outro ponto de vista radicalmente diverso, embora sendo ponto de vista, mas com seu ponto principal diverso do ponto de vista do quadro. Não é que, dentro do quadro, haja a escolha de um ponto de fuga em contraponto com o ponto principal, mas é outro ponto de vista atravessando o ponto de vista do quadro. Então, é uma posição dialética de reviramento entre dois pontos de vista, exigindo de mim que procure uma terceira posição para entender esse reviramento. Ou seja, é radicalmente outra coisa que não o clássico ou o barroco. Acho este quadro extremamente safado e inteligente. Um dia, se tiver tempo, farei com ele o que fiz com As Meninas, por exemplo, mas é preciso tempo, é preciso ir para a prancheta, projetar, fazer cálculos. O que vou lhes dizer é apenas sensível, por enquanto. A meu ver, Holbein pintou o quadro sobre uma superfície cilíndrica. Na verdade, o quadro, antes de ir para a superfície plana que está atrás dele, é pintado sobre uma superfície cilíndrica. Lacan chamou atenção para a anamorfose que existe, evidentemente, na caveira, no crânio, mas não considerou que o quadro é anamorfótico. Basta estudarmos a perspectiva do braço direito do embaixador da esquerda – o da direita não evidencia muito por causa das distâncias – para vermos que é como se o quadro original, que não está ali, fosse pintado sobre uma superfície cilíndrica e, depois, projetado sobre a superfície plana. Então, isto dá uma deformação no braço do rapaz, e outras em outros lugares. Onde está a caveira? Não fiz nenhum cálculo, e estou só na sensibilidade, mas quero supor que esteja ao contrário. Então, eles pertencem, um a uma ordem convexa, e outro, a uma ordem côncava. Ele produziu duas anamorfoses. Uma, que é representar a vaidade dos sentidos, os dois embaixadores, e as artes liberais, produtoras de sentido. Ou seja, ele está trabalhando no Campo do Sentido, com todas as possibilidades de criação de

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sentido, de significação, etc., e coloca isto numa superfície, que não é a do quadro renascentista, cilíndrica, côncava. A esta superfície côncava, ele contrapõe um outro quadro, de outro ponto de vista, sobre uma superfície convexa, que está fora daquela superfície, em oposição, como se fosse uma lúnula de oposição. O vel da alienação lacaniana, ele pintou aí em cima. Então, este tem um ponto de vista, aquele tem outro, atravessado, de lá para cá. Um, representado sobre a superfície côncava, e outro, sobre a convexa. quadro

caveira

Tome-se isto tudo que foi representado na superfície cilíndrica e rebatase sobre o quadro, sobre a superfície plana. Então, será preciso, de algum modo, reencurvar o espaço dos embaixadores para ver como eles são. Preciso me deslocar, tomar o ponto de vista da morte, para, atravessando em oposição entre côncavo e convexo, de frente, com todas as oposições, vê-la situada aparentemente no mesmo espaço, mas pertencendo a outra ordem de figuração. Quem fez todos estes movimentos? O Terceiro. O espectador se constitui como o terceiro, que organiza o que, no quadro, mediante as deformações e as oposições, está construindo esta terceira representação. Notem que no canto esquerdo, em cima, há um crucifixo sendo encoberto pela cortina. Este é um detalhe importantíssimo, pois a coisa fica resolvida neste Falanjo aí no cantinho, escondido. O crucifixo está na direção do encaminhamento para onde o Sujeito vai encontrar a sua posição terceira em direção à morte. O que interessa é que o quadro todo, para mim, só pintou uma coisa: a cortina. O que interessa é o que há por trás da cortina, o resto todo é embromação. Ele fez um quadro e depois disse: Pensem no que há atrás da cortina. O que há atrás da cortina?

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" P – O que está na frente e o que está atrás não serão a mesma coisa? Esta é a minha questão. Será que são a mesma coisa no mesmo nível? Ou não será que a morte de cá é impossível, e a de lá é que é a regente do processo? Atrás da cortina, está a morte ou a vida? Ou será que morte e vida são a mesma coisa do ponto de vista do pulsional? Suspeito que ele esteja apontando que sim. " P – Mas há um detalhe na apresentação da pintura. É como se embaixadores e artes fossem eternos. A morte está como uma coisa passageira. Isto é uma ironia radical, pois até o movimento – imaginemos como se fosse cinema – que é apresentado sobre o crânio, parece que aquilo está passando. Isto para quem está de frente para o quadro. Mas se você vai para o ponto de vista desde onde o que se vê é a caveira, quem está passando? Acho que a temporalidade aí está na Vanitas. Aliás, temos aí um corpo diplomático. Se nos preocuparmos com a “psicossomática” do quadro, trata-se de um corpo que não passa de meramente diplomático. Se a espécie humana tem um corpo, ele é meramente diplomático. " P – Poderíamos pensar aí no que Lacan fala do objeto no lugar da Coisa? É esta Acoisa aí que está para aquém do quadro, solta no espaço. É Acoisa definitiva como não-Haver, representada aí como Morte; ou Acoisa como a Vida, representada na razão cristã do quadro como o Falanjo que está por trás da cortina. Não tenho a menor dúvida de que a figura do Jesus Cristinho é absolutamente do terceiro sexo, angélica. *

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O que faz, então, reiteradamente em tantas obras dos maneiristas desta época a presença do crânio de caveira? Como disse, suspeito que existam três estilos básicos – Clássico, Maneirismo e Barroco –, correspondentes às três patologias básicas, Masculino, Falanjo e Feminino. Mas existe, de qualquer modo, regendo tudo isto, o Quarto

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Sexo. Ele não pode ser representado enquanto tal, pois, se não existe função fálica e todos são não-função fálica, zerou, mas não deixa de ser a preocupação regente dentro do campo das manifestações, sobretudo dentro do Campo do Sentido. Então, se não faz um estilo, é, pelo menos, uma questão definidora de certas temáticas dentro dos estilos. E é definidora também de certos projetos de representação extremamente inventivos. Ou seja, de dentro de sua produção terceira, na região do masculino e do feminino, o artista ainda se esforça por representar isto – que Lacan quer chamar de afânise, e que é o que chamo de posição de não-Haver – como não havendo. Isto se representa nos crânios de caveiras que regem esses quadros. Mas existem outras manifestações. Chamei atenção num Seminário de 88, em que fazia um breve comentário a respeito de narcisismo, em torno do livro de Christopher Lasch, para dois artistas norte-americanos, minimalistas, que são Reinhardt e Rothko. Os dois, procurando por vias opostas nada mais nada menos do que representar o não-Haver. Isto não é necessariamente um estilo, pois acho que ambos foram maneiristas nesta representação. Mas ambos estavam no sentido de eliminar a representação. Um, procurando que as cores fossem reduzidas ao negro da sua substância, sem pintar o preto diretamente no quadro. Ou seja, utilizando as cores no sentido de reduzi-las ao negro da sua substância. O outro, tentando fazer a tarefa oposta, através de expandir em cores a substância do negro. Os dois, então, buscando poder fazer a dialetização entre as cores no sentido da vertente da ausência de cores, do silêncio absoluto – que encontramos na obra de John Cage, por exemplo: a tentativa de produção, mediante o processo dialético do som, de um silêncio radical. São as invocações dos Sujeitos, freqüentemente situados na Terceira posição, para com o não-Haver e para com o Quarto Sexo, que exibe o desejo fundamental. Não sei, pois, se poderia chamar isto de estilo, parece que não. Mas é uma tendência de representação dentro dos estilos possíveis e, sobretudo, dentro do terceiro, que dialetiza o tempo todo. Eu diria mesmo que é na exacerbação do terceiro que comparece, com sua essencialidade, o quarto. É na dialetização entre masculino e feminino, entre clássico e barroco, que há condição de

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aparecer, na sua essencialidade, o quarto. Ele é aquele suposto que se coloca como unheimlich dentro do quadro, mesmo se não se o designar, como sendo o organizador absoluto do movimento desejante. Ele comparece com mais freqüência na obra que indica o terceiro. No barroco, morte é representação de cena, e não Umheimliche proposto. Mas não esqueçamos que a morte não é atingível e que, no entanto, freqüenta nossa cabeça o tempo todo, como destino.

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12 MAIS ALÉM DO SIM E DO NÃO Falei dos Estilos, assentado na distributividade da sexuação, e considerei que aí estava designada a Patologia do Sujeito. O pathos fundamental que o Sujeito percorre é inarredável para aquém da relação do Haver com o nãoHaver. Um pathos fundamental não designa uma nosologia. Aquele é inarredável, embora percorrido. Para além da patologia de base, é no seu estacionamento que considero o que poderia existir de Nosologia. A doença do falante não é a sua patologia, e sim sua estagnação no campo dessa patologia. Dessa nosologia – a doença, ou as doenças possíveis que genericamente são distribuídas mais freqüentemente em três campos: Neurose, Psicose e Morfose –, tratarei no próximo semestre, pois algumas considerações ainda são necessárias antes de entrar aí. *

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Nesta e na próxima sessão, que, aliás, será a última deste semestre, tecerei considerações mais gerais sobre a situação do Sujeito no campo do Haver e na estrutura do Pleroma. Questões estas que são fundamentais no sentido de estabelecer o fundamento ético do Sujeito e, portanto, em conseqüência disto, uma reflexão sobre a nosologia. Costuma-se dizer no campo analítico, depois de Lacan, que o fundamento da psicanálise é ético. O que é uma certa bobagem, pois se a psicanálise

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coloca o Sujeito dessa maneira, é o fundamento do Sujeito que é ético. Esta ética não é da psicanálise, enquanto prática, é a ética que a psicanálise oferece para os Sujeitos. Mas a coisa anda tão degringolada que, quando ouço a palavra ética, sinto vontade de puxar o trêsoitão. Sobretudo, quando é alguém que se diz psicanalista e fala essa bobagem a respeito de bagatelas. Como Dubuffet, que quando ouvia falar em cultura puxava o revólver. Há algumas questões básicas sobre a estrutura do Pleroma. Questões fundamentais como: a da determinação; a de, no caso da neurose, por exemplo, Freud colocar os fatores de sobredeterminação; a da determinação em oposição à indeterminação; a da reversibilidade ou irreversibilidade no campo do Haver; a da redutibilidade ou irredutibilidade de algo em algo, que fundamenta, inclusive, a possibilidade epistemológica de produção de conhecimento; a da posição do Sujeito nesse campo, em sua essencialidade; a do desejo, do gozo, da liberdade, do poder, do direito, do fato; e todas – que são questões cruciais da reflexividade em todos os campos do conhecimento – resultando, em última instância, se tomarmos exemplarmente as duas linhagens, digamos, mestras do pensamento ocidental, Hegel e Nietzsche, na questão da afirmação e da negação como fundamentos do Sujeito na sua (H)ação dentro do mundo. Se é verdade que o Haver se constitui como o Pleroma o indica, ficamos numa questão difícil, que, em última instância, remete a uma ética provável. É a questão da determinação ou indeterminação dos processos no interior do Haver. Isto, no escopo ético, resulta na questão da determinação radical ou do livre arbítrio. Se consideramos a estrutura do Pleroma como aí está posta, não podemos deixar de considerar que, sejam quais forem os processos, tanto no campo do Haver como tal – o processo cosmológico, por exemplo –, como no campo do Sujeito dentro do mundo, há uma determinação radical. Isto lembrando com Freud, que, do ponto de vista do que a psicanálise escuta, nada parece comparecer sem determinação complexa, no sentido do que chamava de sobredeterminação dos eventos no inconsciente. Mas uma suposição de Sujeito, tanto para o falante quanto para o

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Haver, colocaria necessariamente em questão o rigor obsessivo dessa determinação. O que quer que o homem faça parece, no nível do sintoma, das emergências metafóricas, mediante as quais – e só mediante as quais – ele pode exercer a sua palavra, parece tudo determinado. O difícil é procurar e encontrar todas as forças determinantes de determinado evento. Mas se a estrutura funciona assim, como está aí dito, não se pode não supor essa determinação funcionando perenemente. Entretanto, tanto para a espécie falante quanto para a suposição que esta espécie pode fazer ao Haver – isto é, aquilo que, na tradição, se chama Deus –, a subjetividade aí colocada exige alguma referência última que permite a intervenção no campo das determinações. Do ponto de vista da reversibilidade ou irreversibilidade, uma vez iniciado um processo, se tomarmos, por exemplo, o ponto do Real como o momento de reviramento e reinício – isto porque o início, a contar deste ponto, pode ser em qualquer lugar – de todo o périplo do Haver, a partir do momento em que, no Gozo-Fálico, o processo se expande e se fraciona, certamente que, a partir deste momento – como é, por exemplo, o pensamento do Big-Bang da física –, algo determina a seqüência do processo, que parece encaminhar-se até o fim a partir desta determinação. A questão da reversibilidade e da irreversibilidade, dada a determinação original, parece exigir que tomemos o partido da irreversibilidade, ou seja, essa coisa, com base primeira na determinação inicial, tem um périplo que se historiciza, seria o caso de dizer, até o atingimento novamente de alguma neutralidade interna. Isto de tal maneira que, no interior do Haver, como no interior do psiquismo, parece que tudo se determina e se sobredetermina, e que bastaria uma leitura adequada para encontrarmos o processo de determinação e, portanto, de irreversibilidade. Isto significa que não dá para voltar atrás, pois há uma temporalidade que se cronifica nesse movimento, uma temporalidade cronológica. Entretanto, do ponto de vista do Sujeito enquanto tal, o que Freud encontra na sua escuta e nos transmite é uma absoluta ausência de temporalidade, de irreversibilidade, de negatividade e de sexuação no

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inconsciente. Como Freud coloca o processamento do inconsciente, não é possível designar para ele nem tempo, nem negação, nem irreversão, nem sexuação. Seriam organizações sintomáticas no percurso do inconsciente, mas não no inconsciente. Ora, como resolver esta questão? Por outro lado, na abordagem de todos esses processos do inconsciente, como do Haver, nada se pode dizer fora de um discurso que, em última instância, é sintomático e sintomatiza discursivamente o objeto que aborda. Isto significa que os esforços de redução de um fenômeno qualquer, dentro do Haver, a um discurso, digamos, científico, que pretenda dar conta do fenômeno, são de certo modo possíveis de encontrar realização. Por outro lado, o simples fato de isto ser metafórico, de ser sintoma falando de sintoma, sintoma tentando exprimir sintoma, esta redução tem valor ficcional. Isto porque, no simples processo de transformar uma entidade sintomática em outra, já se fez uma redução indébita. Entretanto, sem os processos de redução, como se poderia constituir um discurso capaz de falar do discurso do Haver, o que é condição sine qua non de qualquer entendimento possível? É por este caminho que se pode constituir algum fundamento para o Sujeito, oferecido pela psicanálise como ética. Mas, para isso, preciso retornar à estrutura mesma do Sujeito como Revirão, talqualmente tenho colocado, para repensar os processos de oposição. E aqui fica um problema (que, no momento, é apenas um parêntese): é a oposição que funda a diferença, ou é a diferença que funda a oposição? Do ponto de vista da estrutura global do Revirão, esta questão simplesmente não me interessa. Não é possível pensar sem oposição e sem diferença, pois tanto uma quanto outra se esvaem no seio mesmo do significante como Halo completo. Este tem relações singulares com o nãoHaver e engloba essas questões num todo unificado onde esse questionamento só interessa no momento de tomada de decisão. É a oposição Hegel/Nietzsche, que mencionei. Todo o pensamento de Hegel passa por um processo opositivo, isto é, toma a oposição como fundamento da diferença. E Nietzsche vai dizer justamente o contrário, que só existe diferença, e que a oposição é o efeito abstraente da diferença. Em nosso caso,

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isto não precisa de nenhuma decisão, pois a diferença, posta diante do Sujeito, só pode ser tomada como oposição, e a oposição, posta diante do Sujeito, só pode ser percebida como diferença. Então, estão valendo os dois processos. Sendo que, no processo reflexivo, que não é necessariamente – embora herdeiro dele pela via lacaniana – o processo hegeliano... A ética de Hegel, se há alguma, digamos, seu wo Es war, é a obrigatoriedade de reflexão para o Sujeito. Reflexão, aí, significando o exercício do poder de negação do dado. Esta é uma ética radical de Hegel, que Lacan retoma praticamente ipsis litteris, embora pense de outro modo o seu processamento. *

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Em nosso caso, se o significante é compreendido alelicamente como um halo completo que não significa absolutamente nada, que se esvai na completude dos opostos, que não coincidem, mas simplesmente se organizam dentro de um todo ternário, tenho para este lugar, no périplo do Sujeito, n possibilidades de articulação, segundo três modos possíveis. Se tenho sim num dos alelos do halo e não no outro, tenho uma diferença e uma oposição colocadas ali. Mas na completude subjetiva do halo significante, tudo isso se neutraliza (não em nenhuma coincidência de opostos, mas) numa indiferença em relação às oposições e, portanto, às diferenças no que a completude dos opostos se opõem ainda por cima ao não-Haver como desejado. Tanto faz como sim ou como não, ou tanto faz a completude da oposição sim/não, pois isto se opõe radicalmente a não-Haver, que, por definição, não há. E o Sujeito não pode fazer senão passar brevemente pelo lugar terceiro como recurso que tem em relação a essas positividades de sim e não. Do mesmo modo que, na estruturação do Pleroma, o não-Haver, como objeto desejado e impossível, me dá as condições de fazer a suposição de um Sujeito entre Haver e não-Haver. É preciso distinguir pelo menos três níveis de exposição da subjetividade. Isto diferentemente, por exemplo, de Lacan, que consegue distinguir dois.

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Nível do enunciado. O sujeito está no enunciado quando pode escolher uma das faces opostas no modelo da oposição: o que digo aqui e agora é posicionalmente um enunciado que, na sua escolha, me posiciona apegado a este momento aqui e agora do enunciado. Então, aí, chamo de sujeito do enunciado, $en. Nível da enunciação. O sujeito capaz da reflexibilidade hegeliana, por exemplo, da dialética entre as oposições, é aquele que Lacan quis chamar de sujeito da enunciação, $e. No processo de produção dos enunciados, escolho isto ou aquilo dentro do procedimento de enunciação, fazendo um recorte na enunciação e fazendo brotar em enunciado. Então, o enunciado é uma espécie de castração da enunciação. Mas é esta que vigora no meu percurso nas escolhas opositivas que devo fazer: se vou para cá ou para lá, se afirmo ou se nego. Nível da Denúncia. Ainda por cima, existe outra posição de subjetividade que não consta explicitamente dos teoremas predecessores, mas que, de qualquer forma, suspeito poder encontrá-la em discursos mais poéticos. É a indiferenciação do Sujeito, na sua estratégia dialética, diante do fato bruto e inarredável de que Há e de que não-Haver não há, e de que tanto faz sim ou não, pois isto não me dá nenhuma escapatória de uma negação radical, já que isto se “afirma” radicalmente como sim e como não. A este chamo de Sujeito da Denúncia, $d: a Denúncia da condenação radical do Sujeito a Haver e não ter como não-Haver. Donde, a Morte não há.

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O que quer que um sujeito, encarnado neste macacão que habitamos, produza como enunciado, ou seja, sintomatize a respeito de sua estada no mundo, é resultado de longa e complexa determinação. Determinação esta que chega a invadir mesmo o sujeito da enunciação. Isto na medida em que oscilar, digamos que obsessivamente – não precisa ser neurose obsessiva, basta ser oscilação –, nos contrários dialéticos, ainda é determinado. Embora seja uma possibilidade de deslocamento do dado, como enunciado bruto já encontrado – e isto é a reversibilidade hegeliana –, ainda é determinado pelo dado colocado que tenho que negativizar. Mas quando o Sujeito alcança sua potência máxima, que é de indiferenciar-se diante da enunciação e colocarse na condenação radical do Haver confrontado com a possibilidade, puramente de direito, de um não-Haver que não se oferece de fato, ele então entra na essencialidade da sua posição subjetiva. É aí que ele comparece como capaz de retorno ao campo da determinação e de desvio em relação ao enunciado, ainda que seja mediante a enunciação. Então, para além da negatividade pura da reflexão anunciada por Hegel, para além da afirmatividade pura como negação do que o nega no campo dos elementos já dados, como no princípio nietzscheano da possibilidade de não dentro de um sim radical: um sim cercado de não por todos os lados, quero supor que, para além disso tudo – e sem nenhuma novidade, pois farejo isto tanto na reflexibilidade hegeliana quanto na vontade de poder nietzscheana –, há o deslocamento radical do Sujeito para o lugar de sua essencialidade entre a irredutibilidade radical de Haver e a impossibilidade radical de não-Haver. Este é o momento fundamental, fundante do Sujeito. E é este momento, é de lá que é possível qualquer ato de criação, é na referência ao lugar de indiferença interna – pela exasperação da diferença externa para com aquilo que não há – que o Sujeito assume a radicalidade da sua estada como Sujeito no campo do Haver, que, este, é também Sujeito, sujeito a algo. Isto é bastante grave, pois pode deslocar a questão última da filosofia ocidental. Se o cristianismo conseguiu ser, para qualquer abordagem pensante, pelo menos por via ocidental, o limite último da externalidade da divindade – e

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daí Lacan dizer que é a única religião verdadeira, repetindo Hegel que também o disse –, ou seja, quando o sujeito se dá conta da sua relação subjetiva para com um sujeito, só que, enquanto religião, colocando este sujeito como externalidade: um Deus a quem a gente predica. Aí vêm os “assassinos” de Deus, os filósofos, que, para ultrapassar o cristianismo e a religião, rebatem a divindade para o interior da subjetividade do homem. É o caso de Hegel, de Nietzsche, ou seja, do que chamam “a morte de Deus”. Notem que o Sujeito da Denúncia que venho colocar retoma esta questão. Se esta é essencialidade do Sujeito, posso fazer dele uma imitação do Deus que ele supõe, imitatio Dei. Atingir a sua essencialidade, suprematizar a sua posição no mundo, não é senão ter e referir-se à experiência da Denúncia. Mas, na medida em que faço a suposição desse mesmo Sujeito para o Haver, onde o coloco, onde posso encontrar essa divindade? Deus está morto. Fica a possibilidade de certa imbecilidade querer propor que estou trazendo de volta o Deus que já foi assassinado. Mas sabemos que Deus é imortal e que a morte não há, assim como o Sujeito é imortal. Mas também não estou fazendo referência a nenhum Deus pessoal, que transcenda definitivamente a subjetividade do falante. É o mesmo lugar: a divindade e o falante ocupam o mesmo lugar, que não é dentro nem fora. Não há interioridade ou exterioridade para ele. Portanto, tanto se me dá que se coloque a divindade no interior do Sujeito, que assume a sua fundamentação, ou no exterior, assumindo esta complementação para ele. Ou seja, se esta dicotomia é indiferenciada pelo percurso uniface de uma superfície unilátera, que importância tem isso? Que os religiosos façam uma cisão na banda de Moebius e a transformem numa face dupla, colocando o Sujeito de um lado e Deus do outro, isto é mera metáfora, maneira de dizer. Só que esta redução, acreditada por imbecis, artistificada, é muito engraçada. Por que não se prosternar diante do Sujeito? Acho que um sujeito que não tem diante do que se prosternar, é um animal, e não um Sujeito. Por que não, eventualmente, se prosternar diante de um Sujeito suposto saber absolutamente disso? Sujeito prosternável, nos dois sentidos. É o velho oceano de Lautréamont, que nem por isto deixa

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de ser metáfora... Então, esta coisa dolorosa que fundamenta a minha estada é na aparência de um indecidível absolutamente decidido, de uma subjetividade que não é dentro nem fora e que, se transcende alguma coisa, transcende a si mesma o tempo todo na multifariedade de seus percursos sintomáticos pelo Haver. Deus não sendo menos inconsciente do que qualquer Sujeito que brotou da sua subjetividade. Sua, de quem? Escolham! Fiquem à vontade! " Pergunta – Como você distribuiria o seu investimento de análise em relação à perspectiva do estruturalismo, ou seja, à motivação filosófica que o melhor estruturalismo procurou assentar? O máximo que o melhor estruturalismo conseguiu como externalidade foi uma falta radical, mais nada. Se a aproveito e a determino em cima do projeto freudiano do Mais Além como não-Haver, como vertente da pulsão de morte, simplesmente me desinteresso imediatamente das duas mortes que se tentou provocar em cima do projeto da pulsão de morte, como morte, nos outros campos que não o da psicanálise. Ou seja, a morte de Deus e a morte do homem, que são duas tolices. Não há morte de Deus e não há morte do homem. Há simplesmente Sujeito, que não é dentro nem fora. Isto não é questão que lhe interesse. Dentro e fora são metaforizações, no máximo, de enunciação para o sujeito em crise de lidar com os dados ou os produtíveis. O estruturalismo pensaria este lugar no campo da metáfora, talqualmente o significante de Lacan. Pensar a subjetividade aderida, ainda que na enunciação, ao campo da metáfora, ao campo da sintomática, me promete o jugo indecidível das oposições. Ao passo que na indiferença absolutamente inocente, porque inconsciente, da Denúncia entre o Haver como tal, em pura positividade, e uma negatividade que nem consegue se apresentar de fato, embora requerida de direito, com seus ecos de oposição no interior do Haver, coloca um Sujeito absolutamente vivinho. Que a história se deteriore, que a arte se banalize, que o saber fique trocado em miúdos, isto pouco importa. Estão com nostalgia do quê? Eu me pergunto se a tal morte do homem, depois da morte de Deus, não é nostalgia de valores?

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" P – Mas na vertente nietzscheana, a morte redunda numa produtividade, que é a tal vontade de poder. Mas o homem de que fala Nietzsche é um babaca, não é um homem. Foi preciso colocar um Super-Homem. É o babaca que fica acreditando na propriedade do Sujeito. Retornando, então, é mediante o aparelhinho que lhes desenhei aí que vou pensar o que há de liberdade possível. Ou seja, o que há de vergonha na cara. O Sujeito da Denúncia não é antes nem depois. Ele é uma experiência de indiferenciação que positiva sim e não. O que quer que haja, dentro do Haver, há e ponto final, seja como dado, seja como negado. E é indiferente ao Sujeito – chamem-no de Deus, de Homem, de Super-Homem –, no que ele se lembra da sua essencialidade entre Haver, ponto final, e não-Haver, ponto final, do seu recurso à indiferenciação e, portanto, à possibilidade da sua liberdade. No que coloco para você dados, um dado comportamental, digamos – e se você pratica no campo da neurose, o dado é dado e ponto final... É toda a relação que faz, por exemplo, o percurso da filosofia terminal, em Hegel, o percurso da sua retomada, em Nietzsche, a diferença entre o homem e um animal. O simples fato de nascer na espécie humana não o subjetiva necessariamente. Por que vivemos tão satisfatoriamente como animais? Porque é preciso, para além do dado, a dialetização deste dado, e a decisão, nesta dialetização, de negar o dado, ou seja, de criar o novo. Isto é todo o pensamento de Hegel. Mas existe, para além do jogo cotidiano que faturou com o dado, a possibilidade reflexiva, catóptrica, do Sujeito – que se anuncia, embora não explicitamente, em Hegel, e se anuncia em Nietzsche mesmo –, de que, para além da positividade do dado ou da negatividade positivante do dado, existe a indiferença radical a que o Sujeito pode recorrer de bem dizer o que quer que venha, bem dizer sim e bem dizer não, dentro de uma luta radical. *

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É a partir daí que posso reconsiderar determinação e indeterminação. A determinação vigora no campo do Haver porque ele está num périplo momentâneo e que demora demais. Os nossos são rapidinhos. Então, dentro da determinação do Haver, o que me permite a dialetização? Por que o animal não faz isto? Porque não consta da sua estrutura a maquininha de subjetividade que permite ao Sujeito não simplesmente operar as opositividades diante do dado, mas indiferenciar-se diante do que quer que haja para com o Impossível, que é o seu não-Haver, no entanto desejado, e que, de retorno, ele pode negar o dado. Tomem um neurótico obsessivo. Não simplesmente uma situação obsessiva de retorno, de compulsão de retorno, mas o neurótico obsessivo. O que faz ele? Fica na dúvida entre dois dados opostos. Ele não dialetiza entre dois dados opostos que viu na sua vida, na sua história, mas fica em dúvida. Não é diante de uma afirmação ou de uma negação que ele se independe destes dados positivantes ou negativizantes, volta e faz uma escolha de positivação nova. Não, ele se acha até muito inteligente, porque é burro. O brilho do obsessivo é um brilho fosco. Por quê? Porque fica duvidando, questionando dados opositivos. Ele não cai fora da oposição e diz: “Agora retorno, mas retorno na experiência da nadificação radical disso tudo. Agora escolho. Não tenho dúvidas, só desejos”. No processo da determinação, que possibilidade há de liberdade? Apenas a possibilidade de eu ter passado a experiência de minha subjetivação e recorrer a ela como Denúncia. Nada vale nada, ou seja, nada vale tudo; ou tudo vale nada; ou tudo vale tudo. Ou seja, me encaminho por alguns interesses, aqui e agora, e operativamente faço uma escolha, dentro de uma agonística, pois os sintomas me pressionam, os sintomas humanos, naturais, etc. Então, faço uma estratégia. O Sujeito da Denúncia é absolutamente maquiavélico quando retorna. E quando não o é, é doentinho. Minha liberdade está em função de eu poder fazer referência ao Sujeito da Denúncia, numa indiferença radical, e retornar como inteligente. Ou seja, capaz de entender as determinações e capaz de aceitar até a minha derrota, porque tanto faz. O que importou foi a guerra, e não uma luta. Isto porque

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enquanto a referência é feita à Denúncia, não há nenhuma derrota. Às vezes, até a maneira de navegar como é preciso é afundar o barco. Voltemos à questão entre determinação e indeterminação que, esta, na verdade, não pinta. Na medida em que o Haver se constitui, ele começa a se determinar radicalmente. A indeterminação é um sonho de não-Haver. A única possibilidade que existe é de recorrer ao que quero chamar Hiperdeterminação, que é fundada pelo Sujeito enquanto denunciante. Poderia chamar de indeterminação, mas é tolice, pois, diante das determinações, o Sujeito hiperdetermina a novidade de seu caminho diante das circunstâncias possíveis. Ou seja, hiperdetermina porque retorna a determinações. Ele faz a guerra, age, e age dentro das determinações na referência à Indiferença. Isto é hiperdeterminar-se pela diferença radical de ser Sujeito. Então, isto é um ato de santidade, um ato poético. Se o Sujeito, consciente disto ou não – e aí vem toda a história do emsi, do para-si, do em si para si, de Hegel –, pode hiperdeterminar-se, ele é sujeito da reversibilidade total. No campo das suas representações, das suas transcrições a respeito do Haver, Freud encontra um Sujeito absolutamente reversível, para quem, como diz, não há tempo, não há não. Do mesmo modo que Einstein constrói um universo absolutamente simétrico e reversível a partir dessa posição do Sujeito. É claro que, na história cronológica do Haver, as determinações são evidentes, e a irreversibilidade é evidente. Acontece que isto se gere pela inconsciência de um Sujeito, que até se manifesta dentro da espécie humana, capaz de, revertendo os processos do tempo, do espaço, da estrutura, etc., de repente, intervir e conseguir pequenos bolsões de neguentropia, ou de nega-neguentropia contra os dados. Ou seja, é capaz de rebelar-se contra o dado, é capaz de negativizar, como diria Hegel, o dado. E é onde ele exerce a sua função subjetiva. Por isso é que tenho vontade de pegar no revólver quando alguém fala em ética, sobretudo quando se nomeia psicanalista. Porque o imbecil, do ponto de vista do saber, e o a-subjetivizado, do ponto de vista de sua análise, não percebe que o exercício pleno, radical, ético, fundamental do Sujeito está neste poder, nesta liberdade.

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Há, portanto, o absolutamente irreversível enquanto dado, enquanto cronologia do Haver. Mas eis senão quando surge, no seio mesmo do Haver – como já lá estava –, o Sujeito que, ele, reverte radicalmente. Ele se depara com irreversibilidades que lhe custam um trabalho imenso para poder reverter, mas aqui e ali reverte. A essencialidade do trágico, dentro do meu Pleroma, é simplesmente o embate terrível do Sujeito que, enquanto desejante, pode reverter, mas que se depara com irreversibilidades poderosas que não consegue reverter de fato. Podem estudar a tragédia em toda a sua produtividade e refletir sobre a sua essencialidade, que verão que, em resumo, é a impotência radical de um Sujeito incapaz de reverter diante de uma irreversibilidade que o afoga. Mas a luta essencial deste Sujeito, como Antígona, por exemplo, é insistir no seu desejo de reversão, nem que pague com isso o preço de seu perecimento. *

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" P – Na época em que Glauber Rocha morreu, você lembra do que ele falava sobre “assassinato cultural”. Como, então, juntar esta questão cultural com a hiperdeterminação? Isto não te parece absolutamente claro tanto pela teoria quanto na prática? Toda insistência de um Sujeito na sua santidade, ou seja, em seu estado poético dentro do mundo, enfrentará irreversibilidades radicais. Sobretudo, aquelas situadas como sintomas na neurose dos humanos, os quais ficam extremamente incomodados com o surgimento dele mesmo em outro, e praticam imediatamente todos os atos de poder que lhe são disponíveis para apagar esta denúncia de diante dele. Assassinato cultural é o que acontece a determinada pessoa, que tem o mínimo de respeito por sua subjetividade, que a exerce no mundo e que, por isso, denuncia a todos os outros que estão brincando de animais. Ora, atravessem a floresta sozinhos e verão o que acontece. Eles mordem! Mas aqui e ali aparecem alguns Sujeitos que dizem: “Não faz mal, eles mordem, mas vão morrer do meu veneno”. E, neste caso, já que não é morte, é perecimento, mas não sei para quem. Quem perece mais nisto? Num

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certo sentido, Glauber está vivinho da silva, os dentes de outros é que estão cheios de veneno... " P – Como você pensa a questão da estratégia de sobrevivência enquanto alguma coisa diferente da questão de seleção natural? A estratégia da sobrevivência é a inteligência maquiavélica de que eu falava antes. Mas mesmo ela tem um limite, pois aí é uma luta de foice entre poderes. O que é muito diferente de desejo. Falarei sobre isto adiante. Reduzir para conhecer é possível, mas continua falso. Não reduzir, deixa sem nada conhecer e, portanto, impotente. Daí que a tragicidade no processo de conhecimento é que tenho que reconhecer – e já lhes citei aqui Bruno Latour, que é um autor que coloca isto – que é preciso partir do princípio de que nada é redutível nem irredutível a coisa alguma. Aí entra o jogo de forças da agonística geral diante dos dados da chamada Natureza, diante dos dados do Sujeito sem crises sintomativas. E não há outra coisa senão esta agonística. Sobrevivência, aí, é tentativa de vencer, ou ceder, ou escapulir, retornar. " P – Então o mal-estar é resignar-se? Se você se sente mal com isto, é. Há gente que acha um barato! O mal-estar radical não está aí, e sim em que você está condenado a Haver. Não adianta nem se matar porque não vai ter o gostinho de olhar lá de fora e dizer: “Olha! Saí fora!” Mas, dentro da guerra, há gente que acha o maior tesão, o maior barato, e tem muito bem-estar. O mal-estar não é mal-estar nas peripécias do Haver, é mal-estar no Haver. " P – A questão do herói trágico não gira sempre em torno de um destino do qual ele tenta fugir? E este destino não se colocaria aí como sobredeterminação? O destino é: “Estás condenado a Haver!” O destino contra o qual entra em agonia o herói trágico é o destino do Sujeito: não há não-Haver. E ele só é herói porque não se animaliza, porque se refere à Denúncia e a garante. Isto não é o destino dele, e sim a essencialidade do Sujeito. Só que há indivíduos que não fazem a menor questão de serem Sujeitos. Basta ser um bichinho de estimação que eles já estão felizes... até que a trolha os separe. A

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essencialidade do herói trágico é que ele é Sujeito, e o destino contra o qual luta é a sua fantasia primordial: Haver desejo de não-Haver. O destino do herói trágico se escreve na Fantasia do Haver: Haver desejo de não-Haver, que não há. Não tem saída. " P – Mas ele não está subdito ao destino do oráculo? O oráculo é safado, conta uma história de mentira para ele. Édipo é um babaca completo, eu já disse várias vezes. Ele é um neurótico, se não, não precisava sair de casa, comia a mãe ali mesmo, que nem era mãe. Foi comer a mãe verdadeira lá, para quê? É um débil mental! Édipo só é trágico no final, em Colona. Édipo Rei é o percurso da babaquice do Sujeito quando não se assume como tal. Aí o oráculo lhe diz: “Pô! Tu és um animal, hein cara? Tu acreditas que vai comer a mãe? Acreditas em historinha. Ah é, acredita? Então, vai lá e come!” Ele acredita, quebra a cara e, aí sim, vai encontrar sua tragicidade. " P – Como o Édipo seria o Édipo em Colona, se não tivesse quebrado a cara? Se tivesse quebrado a cara de começo. Ao que ele se recusou. " P – Mas ele tentou, só que não deu certo. Aí, estarei dizendo que a essencialidade do humano é a neurose. Todo mundo vai sair feliz daqui. É isto! É isto que define tudo, que, com n+k chances de atingir a subjetividade, fazemos um esforço enorme para demonstrar que a essencialidade do homem é a neurose. E fica todo mundo feliz, pode morder os vizinhos e destruir tudo que está à mão... Neurose é demissão. A neurose é um problema ético, é uma doença da ética. Ou você tem pena de neurótico? Neurose, ainda que seja a minha, é falta de vergonha na cara. Se aceitar como inarredável o seu destino, está aceitando como sobredeterminação. Ele precisa aceitar como indiferente para ser herói trágico. Se tivesse aceito assim, é como se o oráculo tivesse dito a Édipo: “Quer comer a mãe? Come logo, pronto!, grande merda!” Então, se fizesse isto, paradoxalmente, não teria comido a mãe, pois aquela não era a mãe. A tragédia consiste, pois, em, de dentro da reversibilidade radical do Sujeito, ter que se deparar com irreversibilidades às vezes intransponíveis. O livre-arbítrio, portanto,

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é meio preso, pois a única coisa que se tem a fazer é contentar-se com sua condenação a Haver, referir-se a uma indiferença em relação a isto, e retornar a tratar da possibilidade. Não era impossível que ele comesse logo a mãe. Por que não fez isto? Aliás, já tinha feito. Você acha que alguém nasce sem ter comido a mãe? O creodo para a subjetividade não está em ter que passar por isto assim, assim. Está em ter que abolir o animal. Animal este que já estava perdido desde o começo. Por exemplo, quem disse a vocês que Édipo já não sabia de tudo? Ele estava careca de saber. Há duas pessoas naquela brincadeira que sabiam de tudo: Jocasta e Édipo. Sempre souberam, só não assumiram. Há uma diferença radical entre saber e assumir que sabe. " P – Eles ficavam fazendo de conta que não sabiam? É! Você não vê como tratamos as crianças na pedagogia? " P – Como inocentes? Inocente é Deus, inocente sou eu. A pedagogia trata a criança como imbecil. *

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O que é o desejo? O desejo é pura e simplesmente a possibilidade de fazer o curso, de cumprir o périplo. É o movimento da força constante da libido caminhando pelo Pleroma. Mas o desejo não é o gozo. O gozo é a limitação do desejo, é onde o desejo esbarra. O limite do desejo é o gozo, ou seja, no que põe o desejo em exercício, ele atingirá momentos gozosos que escandem o desejo. E vai-se aplicar o desejo em certos gozos no limite da sintomática mais ou menos preciosa. É por isto que Freud diz que não há diferença entre o movimento pulsional puro e simples diante do objeto e num processo de sublimação. Pois o objeto jamais saiu do lugar, sempre foi o mesmo. Quando se faz referências à Denúncia, é em função de uma agonística, de uma contextualização da aplicação do desejo, que se reconhecerá, ou não,

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esse desejo como sublimação ao lado do gozo. Isto porque, se há Sujeito em exercício, não há diferença entre objeto sublimado e não sublimado. Uma coisa é, neurótica ou perversamente, abolir-se da subjetividade diante do objeto, e aí, funcionar como animal gozante. Outra coisa, é exercer o direito desejante na produção de um gozo que se referiu à subjetividade, seja que gozo for. Mas, no campo da imbecilidade psicanalítica, encontramos a definição de objetos gozáveis e de não gozáveis, exatamente como faria qualquer animal. Se há subjetividade, aplica-se a função gozante onde quer que ela seja criativa. De repente, ela é ultra-poética na baixeza do mais inferior. Temos a poética de um Bataille procurando a vertente da experiência sublimatória justo no campo do erotismo, se não mesmo da pornografia. Aliás, a diferença entre erotismo e pornografia é que o erotismo é pornografia de chique, de salão ou de academia. Quando o sujeito é intelectual, chique, não faz pornografia, faz erotismo. Não vejo diferença, e acho que isso tende à canalhice do moralismo. Eros é absolutamente imaginarizante. A “pornologia transcendental” de Bataille não é imaginarizante. É o Sujeito no exercício da sua plenipotência, e refletindo muito bem sobre o que faz. O desejo funciona, então, e esbarra no gozo como seu limite. Ou seja, algo faz sentido e o gozo se dá. A liberdade é simplesmente a liberdade de se liberar. É simplesmente a possibilidade de percorrer o curso do desejo. Se, no meu processo transcritivo, no meu processo psíquico, permito-me perambular pelas possibilidades do Haver, sou absolutamente livre. Mas a liberdade também tem seu limite. O Sujeito, enquanto tal, na sua referência à Denúncia, é absolutamente livre, absolutamente soberano. É o que Lacan quer dizer quando fala que “o analista só se autoriza por si mesmo”. Ele está resolvendo o problema grave da soberania. Quem faz referência ao Sujeito da Denúncia é absolutamente soberano para o que der e vier. Isto é liberdade. Mas, no campo dos gnomos do Haver, a liberdade encontra seu limite. Onde? No poder. É a questão dos assassinatos. O poder é aí a reunião de forças, na ordem do sintoma, capaz de fazer com que um enunciado libertário funcione. Por exemplo, se a ciência vai criar determinada injeção que cure

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determinada doença terrível, ela está na liberdade de pensar, mas restrita ao poder, ao custo dessa tarefa. Então, no campo da ação humana, o limite da liberdade é o poder, mas a liberdade continua como tal. É na realização dos projetos da liberdade que vou encontrar o custo dessa liberdade, onde vou poder sobreviver, onde meu poder limita a ação a partir da minha liberdade. De direito, posso ser estritamente desejante e estritamente livre, radicalmente desejante e radicalmente livre. Mas, de fato, encontro o limite do gozo e o limite do poder. E se a essencialidade máxima do Sujeito é sua referência a esta própria essencialidade nos seus atos, proponho a palavra Hação com H: a Hação do Sujeito. É aquilo que, na ética hegeliana, vai terminar na ação, na atividade do Sujeito. Na referência à sua estruturalidade fundamental, o Sujeito não pode contar mais do que com sua Hação, ou seja, com a aceitação bem-dizente de sua estada operante dentro do Haver. E tudo isto vai se encaminhar para uma Ética radical, de que tratarei de outra vez. " P – Você dividiria a loucura entre as possibilidades de haver loucuras bem e mal sucedidas? Quando Lacan diz que a loucura é o limite da liberdade, é limite no sentido da infinitude, no sentido matemático. A liberdade, no que se encaminha infinitamente, seu limite final seria a loucura. Estou dizendo que o limite da liberdade é o poder, na Hação dentro do mundo. Mas se você não tem a prudência de passar à ação, no contexto das guerras possíveis, se insistir nessa liberdade, no sentido dela própria, no sentido do seu direito, no sentido do seu desejo pura e simplesmente, você certamente vai esbarrar na loucura. É preciso que a sua liberdade sofra decadência dentro do Haver, decadência na luta. Isto porque se ela funciona como pura liberdade desejante, de direito, vai cair nos nevoeiros da loucura. Tratarei disto no próximo semestre, quando puder pensar a respeito da psicose, por exemplo. E é onde Freud tem razão de dizer que o psicótico é aquele que perde o contato com a realidade. A loucura fundamental do Sujeito é a loucura de sua liberdade, do seu desejo. Isto já é uma loucura, não precisa mais. Mas acontece que ele pode se

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Mais além do sim e do não

esvair, pode esgotar essa loucura na criação – e é a isto que Deleuze chama de esquizofrênico, mas que não é esquizofrênico nenhum –, ou pode ter que retroceder e segurar-se em algum lugar, como, por exemplo, numa psicose. A psicose é um retrocesso. A prudência toma a loucura e tenta pôr em jogo no mundo, ainda que seja para o perecimento, mas não para a loucura.

19/JUN

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Apo-ética do singular

13 APO-ÉTICA DO SINGULAR Es war {Wo Soll Ich werden FREUD noblesse oblige

Hoje encerramos o primeiro semestre deste Seminário, durante o qual fiz um breve resumo de uma série de desenvolvimentos anteriores, que, como sabem, já estão publicados. Tentei recolocar a questão do Inconsciente em relação com a linguagem; a questão do significante, ampliado para a sua plenitude; a relação da estrutura do psiquismo com a estrutura do Haver como tal; a crítica do significante Falo, em função desta outra perspectiva sobre a linguagem; a distributividade da sexuação, em função da apreensão da lógica que Lacan nos apresentou; a indicação mais veemente do terceiro e do quarto sexos; os estilos ou patologia fundamental, que decorre desta sexuação; a afirmação pura e simples para além do sim e do não. *

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Para encerrar, hoje, gostaria de conectar o que foi trazido até agora, sobretudo o que foi indicado na sessão passada, com o que poderíamos chamar de Ética talqualmente pode se apresentar para a psicanálise.

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Freud coloca o que poderia ser o lema da bandeira freudiana ao dizer: Wo Es war, soll Ich werden, aonde estava, tenho que chegar. Este é um mandamento que, em última instância, é o mandamento da estrutura: o retorno à sua própria essencialidade. O Ich, de Freud, este eu-sujeito, como pude mostrar brevemente da vez anterior, coloco-o no que chamo de Sujeito da Denúncia, para além de sim e não, afirmação pura. E o que comanda a ética que este discurso pode oferecer é o dever de ser si mesmo, que significa: dever, porque assim o é, aproximar-se da própria subjetividade. O Sujeito da Denúncia, que qualifica o falante, como qualifica o Haver, faz com que cada sujeito, se quisermos, cada indivíduo desta espécie falante, na aproximação desse Sujeito, não esteja fazendo senão aderir ao Sujeito enquanto tal, que, na verdade, é único e singular como Sujeito do Haver. Daí que, em certa ocasião, falei em Imitatio Dei. A aproximação da subjetividade é imitação do Divino. Não preciso supor nenhuma pessoa para este Divino, assim como é de praxe, pelo menos nas recitações livrescas, não atribuir nenhuma pessoa para o analista. Quem quer que se aproxime deste lugar, pela via que puder, está na sujeição à ética fundamental de ser o que é para ser, o que já é, ser si mesmo enquanto tal: um Sujeito suposto à singularidade do Haver, um Sujeito absolutamente singular. Os efeitos da singularidade do Sujeito é que produzem a pluralidade que há dentro do Haver. O Haver em suas manifestações é absolutamente plural. O Pleroma é um pluroma. Mas o Sujeito que sustenta todas essas manifestações é singular. Não é propriedade de nenhum falante. Pelo contrário, são os falantes que são assujeitados a esse lugar. E não há nenhuma relação de mestria no assujeitamento. Não é submissão. É ser como tal. É esse Sujeito que é o único agente de Cura, a qual não é senão a aproximação do Sujeito, e é ele próprio o agente da cura. Todo o resto é malabarismo discursivo. Este é o Sujeito da Hação, com H, como escrevi da vez anterior, da Hação de Haver, a qual, uma vez que não há o não-Haver, é absolutamente positiva, afirmativa, ativa. Isto significa que, no seio das operações, ele pode até dizer não, desde que isto configure uma afirmação. Mas ele está em

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Apo-ética do singular

necessária inferioridade, mesmo que não tenha inferioridade de poder, ou seja, de força. Estou falando da relação que fiz entre direito e fato, desejo e gozo, liberdade e poder. Mesmo que seus poderes sejam muito grandes, os sujeitos, dentro do campo do Haver na sua manifestação, no que recusam a aproximação da afirmação radical para além do sim e do não, são inferiores, ainda que poderosos. Então, se a perspectiva for esta, não se pode negar que há uma hierarquia de valores no seio do Haver. Isto em função da aproximação da subjetividade. Se as hierarquias do baixo clero da subjetividade mal distribuída se organizam em função de valores adscritos à negação desta afirmação primordial, elas certamente que pecam por, diria eu, crime de lesamajestade. A majestade do Sujeito é lesada a cada vez que é desvalorizada a sua afirmação fundamental. A afirmação é aquela que tem compromisso com a Denúncia do Sujeito. Estabelecer criticamente a valoração desse campo é tarefa extremamente difícil. Mas isto não impede que se tenha em mira a nobreza do Sujeito. Por isso, coloquei na epígrafe da sessão de hoje, de brincadeira, que o que obriga a realização do lema freudiano, é: noblesse oblige. É a vocação de nobreza do Sujeito que o adscreve ao imperativo essencial de retornar à sua própria essência. A palavra nobreza aí ganha todos os foros de eminência em relação à queda, à decadência da subjetividade nos aparelhos dados pelo mundo. Como vêem, o encaminhamento mesmo do discurso que tenho tentado conduzir faz o exercício de eliminar – se conseguirei ou não, é outra história – a suposta oposição do campo da filosofia, por exemplo, e que repercute ainda hoje no campo da psicanálise entre a ascese e a afirmação no mundo. Se Nietzsche critica o ideal ascético, é com razão. Como ideal de atingimento, aquilo ainda é inferioridade, ainda que se tratem de homens superiores. Se um pensamento, do tipo hegeliano, por exemplo, encarece a ascese, isto, idealizado, inferioriza a ascese encaminhada. Por outro lado, é de supor que, no embate com as forças reativas, como diria Nietzsche, ou seja, no embate com a sintomática na sua razão específica, que esquece a essencialidade nobre do Sujeito

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na sua posição de Denúncia, a posição do analista, quando ele há, seria a de exigir a referência radical, fundamental para essa ascese, à Denúncia fundamental do Sujeito. Então, é um caminho de subida, de referência à Denúncia que reside num momento de indiferenciação. Mas que isto não seja o alvo, e sim o caminho necessário e suficiente para o retorno ao mundo. É a constância do embate com a sintomática estabelecida no mundo, mas na referência à experiência de passagem pelo Sujeito da Denúncia. Isto faz uma diferença radical, qualitativa, para com o embate cotidiano no mundo, sem referência à subjetivação, e que é da ordem da animalidade. Isto, como referente próximo, é da ordem da sintomalidade, digamos, da sintomatização espalhada em modalidades pelo mundo. Os embates não referidos à subjetivação são embates que poderíamos generalizar como animais. É na referência última à posição puramente afirmativa e distanciada do sim e do não, até mesmo da enunciação, que o Sujeito retorna banalmente ao mundo, mas nesta referência. Ou seja, retorna ao lodaçal da cotidianeidade, sem perder a sua nobreza. Isto seria a afirmação do grande Desejo. Não afirmação pura e simples na polêmica, na agonística natural deste ou daquele desejo em confronto com outro desejo, mas a afirmação, digamos, banalizada e algo indiferenciada, de um desejo operativo aqui e agora em função do grande Desejo, que extrapola as designações dos desejos. Isto é extremamente difícil. Não é por menos que Nietzsche diz que “é preciso proteger os fortes contra os fracos”. A fraqueza é a falta de nobreza, falta de referência à subjetivação última. Isto é demissionário, é inferior a si mesmo. É um indivíduo falante inferior à sua subjetividade. Então, aí ele coloca a Força. Mas uma multidão de pequenas fraquezas pode tentar anular a relação da grande Força com o mundo. Anular a Força não anula, de modo algum. Daí que quando me pediram da vez anterior um comentário sobre o chamado assassinato cultural, eu dizia que isso continuava vivo. Se a Força fosse anulável, haveria o não-Haver. Se o nãoHaver não há, a Força nobre do Haver não é anulável. Mas é possível que uma porção de fraquezas se arrume numa grande força que, se não consegue destruir

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Apo-ética do singular

a Força fundamental do Haver, consegue desconectá-la da Hação no mundo. Isto é que é a reatividade na qual vivemos mergulhados dentro do mundo. Não há outra ética para a psicanálise senão a referência constante à indiferenciação da Força que bem-diz o que der e vier, para o bem ou para o mal, tanto faz. Esta é a nobreza do Sujeito. É isto que faz o lema freudiano que noblesse oblige. A partir daí, teríamos que, no processo de enunciação da Força e suas derrogações dentro do mundo, fazer valer algum enunciado. Aí vem a questão da Lei. É a partir do entendimento da Lei, no campo do Haver, como uma espécie de provável corregedora da relação da Força ativa do Sujeito com as forças reativas dos contra-Sujeitos, que podemos tentar estatuir algo a respeito do que ela possa ser. E é em função do estatuto da Lei que podemos retomar a patologia e a estilística fundamentais e pensar a nosologia que advém, eventualmente, das relações com esta Lei no que ela opera ou não a Lei fundamental da Força maior. Próximo semestre, então, teremos a retomada da questão sobre a Lei, e, daí, as decorrências nosológicas das relações com a Lei e a possibilidade criativa do Sujeito na sua potência maior, na sua potência nobre de vencer os aparelhos reativos que mesmo esta Lei consegue instalar. Eu hoje ficaria por aqui, esperando algumas questões, porque me foi pedido pelo editor que acabasse cedo porque ele quer fazer o lançamento – não sei se pela janela – do livro com o texto do Seminário de 89, De Mysterio Magno. *

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" Pergunta – Pierre Klossowski fala muito da “denúncia de Roberte aos espíritos”, da “denúncia de Sta. Tereza D’Ávila aos espíritos” também. Você pode falar mais sobre a sua Denúncia? Não sei se o termo está no mesmo registro do de Klossowski. Suponho que não. O Sujeito da Denúncia que proponho é o Sujeito da diferença absoluta. Em termos de Pleroma, temos, dentro, todas as diferenças internas. Como

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mostrei da outra vez, não é compatível com o meu Esquema priorizar-se a oposição ou a diferença. Ou seja, dar prioridade dialética à oposição, no caso de toda a linhagem hegeliana, chegar a determinado lugar e dar prioridade intensiva à afirmação da diferença pura e simples, no caso da versão nietzscheana. No meu Esquema, diferença e oposição são reciprocamente causantes. Ou seja, o que quer que haja como diferença, posso colocar como oposição, e o que quer que haja como oposição, posso ler como pura diferença. Isto caminha em cima de uma unilateralidade, onde a oposição se desfaz e só é possível na unilateralidade do suporte desta razão. O que faz com que, tanto no nível do Pleroma, quanto no do significante plenificado assim, para além do sim e do não internos – que, para mim, se escrevem esquematicamente como oposição ou como diferença, um gerando a outra indiferentemente –, na sua unilateralidade, é proposta uma externalidade outra, que é a do não-Haver. Então, toda a positividade nietzscheana está valendo, e toda a dialética hegeliana está valendo em diálogo perene. Sendo que o que é proposto é um confronto de toda essa diatribe, essa agonia, interna ao Haver, em sua oposição radical ao não-Haver, em tomando ciência disto. O Haver toma ciência deste seu desejo, que é desejo, segundo a Pulsão de Morte freudiana, de não-Haver. Ele toma ciência desse desejo na sua impossibilidade. Então, crio uma diferença externa que, por causar uma dissimetria fundamental porque não-Haver não há, e não é possível de ser atingido, devolve o que quer que compareça para dentro do Haver, mas na referência à diferença entre Haver e não-Haver, que é irredutível. É esta diferença irredutível que se pode tomar como diferença de potências, no sentido nietzscheano, fundadora de qualidade, de Força maior da nobreza ética, que coloco. É ela que é denunciada pelo Sujeito no que se aproxima do lugar de Denúncia da singularidade radical do Sujeito. A nobreza é desta singularidade. Por isso, não tenho o menor escrúpulo em dizer que é uma Imitação de Deus. Deus é a substância subjetiva, que é singular, e à qual tenho acesso. Isto porque, não sei por que cargas d’água, esta espécie nasceu com acesso a essa subjetividade. Mas ela é uma só. Não existem sujeitos no plural. Existe a

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pluralidade do Sujeito investido aqui e ali. Só há um Sujeito, que é a nobreza radical. É a majestade do Haver. Então, demitir-se, de qualquer maneira que seja, da posição de aceitabilidade pela majestade do Sujeito é crime de lesa-majestade. É inferioridade mesmo. É a aproximação do animal. " P – Então, o estatuto que se quer sempre é o da simetria? Sim. E no desejo de simetria, deparo-me com o impossível de reduzir a última diferença. Isto porque simplesmente não há, de fato, o redutor. Então, não há senão condição de reconhecimento do lugar de referência possível e Hação – havência ativa – a partir deste reconhecimento. A psicanálise não pode chegar senão nisto, e não pode propor como ética senão o retorno ao mundo, ao Haver, na nobreza da instalação da Força maior pela diferença irredutível que qualifica o Sujeito. A qualificação da nobreza do Sujeito pela Denúncia da irredutibilidade desta diferença é que é a Força maior do seu retorno no campo do Haver em suas manifestações. " P – Neste sentido, a ascese nietzscheana não seria, de outra forma, com outra qualificação, também um ideal, uma utopia? O que me consta é que Nietzsche rebate com força o ideal ascético na medida em que já o conhecemos demais. É um sujeito que se supõe capaz de estagnar na Denúncia para além do mundo, e sem retorno. Ou se não, se prometendo um outro mundo celeste, onde reina a paz absoluta, a vida absoluta, etc. Ele dá duro neste ideal ascético, no que é uma besteira. Aí há é um esnobe fundamental, sem nobreza. É o esnobismo de se supor capaz de retirar-se para os píncaros da glória e olhar o mundo com desprezo. Minha Indiferença não despreza nada. Pelo contrário, lhe é indiferente. Ninguém pode sentar nesta suspensão entre Haver e não-Haver a não ser reinventando miticamente um lugar outro de glória celestial, etc., que prometem, prometem, mas não dão... É como se Nietzsche estivesse denunciando como babaquice fundadora desse procedimento a hipótese de suspensão radical e definitiva sem retorno. Ao contrário, é no retorno do Sujeito ao campo das modalizações do Haver, mas na experiência radical de aproximação da Denúncia, que encontro algo

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semelhante à nobreza nietzscheana, do que ele pede para o Super-homem. Só que acho que não se precisa de Super-homem algum, basta o homem tomar vergonha na cara... " P – Por que o Sujeito da Denúncia está graficamente representado entre Haver e não-Haver? Se não há, como se coloca aí? Não há de fato, mas há de direito. Ele faz a suposição desejante de uma simetria radical, Pulsão de Morte. Na medida em que a morte não comparece, porque não há, ele se situa entre o Haver enquanto tal e o nãoHaver, como não havendo. É nesta situação, neste choque, neste embate com a obrigatoriedade do retorno que ele passa por aí e tem a experiência. Então, o lugar do Sujeito da Denúncia é na diferença radical entre Haver isso tudo e não-Haver nada disso. Quer dizer, posto um significante na sua plenitude, ele enquadra oposição e diferença, e, na indiferença desta oposição ou diferença, isto internamente, lhe é indiferente quando esbarra com a diferença fundamental, radical, que é de haver sim ou não e simplesmente não haver não a este sim ou não. Só há positividade. Aí é que mora a experiência da subjetividade denunciadora da sua essencialidade. " P – Então, a Denúncia denuncia uma positividade? A Denúncia me leva à pura e simples positividade que Lacan chama de bem-dizer. Mas não confundir calhordamente, pelo amor de Deus, a positividade que se esteia nesta referência com a positividade agonística do animal, que é o mais freqüente na nossa vida cotidiana. Os embates são feitos sem referência à Denúncia radical, e, portanto, falta-lhes inteligência. Se não, poderíamos tomar, por exemplo, uma guerra racista como sendo da ordem da Denúncia. Não. Porque aí posso dizer não como confronto denunciante ao sim negador do outro. A afirmação radical sabe melhor do que ninguém dizer não. Diz não às afirmações que pretendem negar as afirmações do Sujeito. Até agosto. Muito obrigado.

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De zero a infinito, etc.

II

O LIMITE: !

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De zero a infinito, etc.

DE ZERO A INFINITO, ETC.

Este texto se lerá sobre o fundo de Le Nombre et les nombres, de Alain Badiou, Paris, Seuil, 1990.

" Há o Haver (possível), o não-Haver não há (impossível): este é o princípio de catoptria: A/Ã. " O desejo do Haver é o desejo de não-Haver: este é o princípio da Pulsão (de Morte). " Os dois princípios acima se resumem como Fantasia Primordial do Haver: A)Ã. " O que quer que se diga, põe o Haver. Dizer de não-Haver já é pôr o Haver – assim como desejar não-desejar é desejar ainda. " Assim como o não-Haver não há, dizer de não-Haver é propor (de direito, pelo princípio de catoptria) o não-Haver (que não se põe de fato), mas como Haver ainda. " Pro-por o não-Haver (de direito) é, do Haver, experimentar o desejo de Impossível (de fato) que há no Haver (Pulsão de Morte). " Na experiência desse desejo (ab-surdo) se nomeia, por decisão (axiomatização) como Zero (conjunto vazio), a marca, no Haver, do nãoHaver desejado.

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" Zero, então, é o nome (dado por decisão), no Haver, do não-Haver Impossível mas desejado. " Zero é o Real como marca, no Haver, do desejado mas impossível nãoHaver. Assim, o que quer que haja é real (adjetivo), isto é, começa com Zero e tem compromisso com ele. " Zero não é um Número. Mas sim o axioma que inscreve a experiência de não haver o não-Haver. O Número começa com a inclusão do Zero como (0), singleton de Zero contado e inscrito como Um. " Assim, Zero é o Nome do Haver, enquanto Real, segundo a experiência de não haver o não-Haver. Ou seja: Real é o nome do Haver, nome este que adjetiva (como real) o que quer que haja. Zero é Nome-Próprio Numérico do Haver ou Forma-Número do Haver. " Ora, se Zero é o Nome do Haver segundo a experiência de não haver o nãoHaver, então Zero é, também, o nome do não-Haver enquanto marcado no Haver como tal. " Zero é um Ponto-Bífido (ou Neutro): nome do Haver (perante o não-Haver impossível) e nome do não-Haver enquanto timbrado no seio do Haver. " Como este nome (Zero, Real) só se propicia pela Fantasia Primordial do Haver enquanto resumo dos dois princípios de Catoptria e de Pulsão, devemos dizer que o Zero (conjunto vazio) denota, como axioma, a Fantasia Primordial do Haver. Assim, podemos escrever: A)Ã = 0. " Contar a Pulsão como tal é incluir, sucessivamente, esse Zero como contado. Ou seja: é tomar a Pulsão como constitutiva de um objeto, que não há, como se ele houvesse. O primeiro passo seria, em termos matemáticos, constituirse um conjunto (singleton de Zero) cujo único elemento é o vazio. Donde: (0)=1. " Zero não sendo Número, sua contagem põe o Número, de saída, como Um – o que corrobora para a ilusão da Unidade do Haver, o qual, por incontável, por Inconsistente, não faz Um; embora, tido Zero, ele possa ser contado por Um. " Contar por Um o Haver não impõe (por necessidade) o “esquecimento” do

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Zero, mas facilita (por ilusão) esse esquecimento. " O que podemos chamar de Travessia da Fantasia (Lacan) é o desvelamento do Zero na origem de sua conta. Tal travessia revela o Haver (não como Um mas) como Singular Infinito ou Multiplicidade Genérica. " Uma fantasia é conta pseudo-axiomática do Zero como axioma do Haver. Uma fantasia é um Número. " Zero, como conjunto-vazio, é denúncia vazia do não-Haver como Impossível mas desejado. Ou seja: denúncia de não se poder escapar do Haver, denúncia de assujeição à Fantasia Primordial, mas também denúncia que despeja o não-Haver. " Assim, é de se dizer que Zero é o litoral do Haver, enquanto sua origem – para além da qual é não-Haver. " Contudo, seu litoral não empresta ao Haver (em sua “internalidade” absoluta) nenhuma consistência. A plenitude do Haver (bem como a multiplicidade original) é inconsistente (ICS), não constitui um conjunto, nenhuma formamúltipla pode totalizá-la. " Qualquer totalização (&) no seio do Haver depende da posição de um pontolimite (!= ordinal infinito). A posição deste infinito como “passagem ao limite” é uma operação de axiomatização. " Contudo, diferentemente do Zero (litoral) que se axiomatiza na experiência da Fantasia Primordial, a axiomatização do limite (!) é metaforização do Zero, no seio do Haver, como horizonte da série ordinal. " O limite (não possuindo nenhum elemento máximo interno) marca o maisalém próprio de uma série sem ponto final. Isto é: ele não sucede a nenhum ordinal particular. Mas podemos dizer que o limite sucede a todos os ordinais da série da qual ele é limite. " O limite (!) totaliza (paratodiza,&) a série, mas não distingüe nela nenhum ordinal particular. O limite é o ponto-de-basta, nomeado mas não distinto, que paratodiza a série, emprestando consistência à inconsistência do Haver. " O limite (!) é o que se pode, lacaniamente, chamar de Nom du Père (com a significação francesa de sobrenome, de nome de família – e não de prenome

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ou apelido). " Resta portanto, na infinitude da série, entre Zero e Infinito axiomáticos, o estabelecimento de alguma distinção que numere, aqui e agora, necessariamente provisório (em providência), algum prenome, apelido que, re-meta-forizando o limite, sintomatize distintamente a maximalidade de tal série: ponto-de-basta agora distinto como Père-Version. " Tal decisão, que não é axiomática mas sim sistemática, estará sempre sujeita à eventualidade política da infinita interpretação: única série-dade possível de sua instalação. " Da inconsistência inarredável do Haver fomos ao Zero que equivale à Fantasia Primordial, mediante a qual o sexo da Morte (impossível) se elimina de fato embora se requisite de direito. " Da inconsistência do Haver, apesar de Zero, fomos à fundação (axiomática) do limite que empresta consistência ao Haver, mas em infinitude, garantindo a índole lógica do sexo Masculino como paratodização embora indistinta. " Tal paratodização (podendo ser) suspensa por negação (contestação) reintroduz o tema da inconsistência segundo a índole lógica do sexo Feminino. " Entre a totalização (por basteamento do limite) e a inconsistência (por sua suspensão), e na consideração destes dois extremos não-sucessores, vige a fixão sintomática recorrente (de sistematização), deslocável por algum movimento de sucessão (um passo a mais?), segundo a índole lógica do sexo do Falanjo. " O que aí pode vigorar, para além das operações discriminativas, é a aposta singular capaz de propiciar, no ato da interpretação, a eclosão do evento e a conseqüência de sua infinitização. " Esta é a política da psicanálise. Ou melhor: sua polética.

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Não dopai

14 NÃO DOPAI (Para que não sejais dopados) Ao terminar o primeiro semestre deste Seminário, prometi que, em seguida, abordaria a LEI, e abordá-la atualmente depende do fio que Lacan deu ao Pai. Isto é: seu Nome como significante. Nome do Pai assim definido por ele: aquele que, no campo do Outro, é o significante do Outro enquanto lugar da Lei. É de se esperar que tal Lei possa referenciar o que de nosológico se propõe com a psicanálise. A Patologia do falante, diferentemente de sua nosologia, é inarredável. No que o falante não pode não estar assujeitado a suas Sexualidades possíveis quando se trata de sua Hação no seio do Haver. Ou seja, aí, o falante não pode estar liberado, licenciado, da patologia da sua sexualidade possível. Já a Nosologia do falante, que é outra coisa, depende é do estancamento de suas possibilidades – por algum erro lógico de conseqüências mais ou menos drásticas para sua instalação no seio do Haver. Não confundamos, pois, o patológico inarredável do falante com a nosologia que define certos estancamentos seus no seio da movimentação no Haver. As conseqüências deste estancamento, costumo genericamente reunir sob três aspectos: Neurose, Psicose e Morfose – de que trataremos, agora, a partir dessa instalação da Lei e dos erros lógicos que podem ser cometidos nesta instalação. *

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Passarei, primeiro, pela consideração de algo fundamental na abordagem desta lógica: o número. Farei isto com a segurança de uma orientação competente, já que não é minha especialidade, à qual remeto os interessados em acompanhar seu desenvolvimento (pois que não o repetirei todo aqui). Seu autor é um filósofo contemporâneo da maior virtude matemática, é velho conhecido de muitos e ultimamente vem produzindo uma grande transformação em sua própria produção, o que só tenho que aplaudir por ele me dar assim subsídios fundamentais para o re-pensar dentro dos quadros que venho me propondo. Trata-se de Alain Badiou cujo livro Le Nombre et les nombres foi lançado este ano pela editora Seuil, e no qual folgo em poder encontrar certos apoios. A referência a este texto fundamental me desobriga, portanto, de desenvolvimento detalhado. O que pode ser a Lei? Perguntando melhor: como pensar o nascimento da interdição? Na verdade, o que quer que diga uma lei, enuncia uma interdição. Desde os tempos do meu Seminário O Pato Lógico que venho insistindo em que: pensar o nascimento de Lei é entender a passagem – que um Lévi-Strauss coloca entre Natureza e Cultura, mas, já que mostro que tudo é Artifício, não preciso pensar nestes termos – do Impossível ao proibido. Quando estamos no reino animal, aquele cuja psicologia se reduz fácil e absolutamente à Etologia, a razão etogramática que funda sua comportamentalidade já é regragem suficiente para designar todas as suas atividades. Assim, para um animal, regido etogramaticamente, nenhum Impossível se coloca porque as barreiras de limitação das suas possibilidades já estão inscritas como regra de comportamento, por mais aberto que seja seu sistema. É como se um animal estivesse adscrito, subdito, à lei que vai inscrita na sua razão etogramática, a qual ele não pode ultrapassar por não ter condições para isto. Essa lei é ali inscrita, fundamentada, como inscrição etossomática, como costumo dizer, e não tem que ser pensada: é seu limite, ponto! Ou seja, a partir do que a construção etogramática lhe permite, ele já está diante do impossível modalizado – que não é o Impossível Absoluto de que falamos no

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Pleroma – e que se inscreve como fronteira mesmo de seu comportamento. Não há questão de Impossível para o animal: é o que ele pode, e está encerrado! Acontece que surge, de repente, essa espécie dita humana e, talvez – o que a etologia certamente vai desvelar paulatinamente –, esse animal humano, desta espécie, esteja muito mais acochado por razões etológicas do que se possa imaginar. Ele é, segundo alguns, uma descendência dos primatas com grandes construções etológicas em várias regiões de sua existência animal. Entretanto, esta espécie, como especificação, se apresenta sem condições etogramáticas suficientes. Ou seja, aquilo que o etograma de um animal fecha e define como sua possibilidade, além da qual é o impossível modalizado, não está inscrito na nossa espécie. Há várias funções etológicas – até demais – ainda em uso, mas que não nos dão nenhum fundamento, não se fecha nenhum sistema com isto. Proponho como instalação de um enunciado legal para a espécie como que uma imitação (que Lacan faz bem em chamar de metafórica) mediante a qual – está aí todo o totemismo, por exemplo, para nos ajudar a pensar isto –, sem limitações inscritas etogramaticamente, posta diante de um vazio comportamental, a espécie vai fingir que tem um limite inscrito, que tem uma fronteira comportamental. Isto na imitação, como se fosse um etograma, de um regime qualquer, metaforicamente construído, que interdita alguma coisa, que põe uma fronteira. É isso que aparece fenomenologicamente como a fundação de lei, como enunciado legal, metaforizado do animal, que porta essa fronteira desenhada. Copia-se alguma fronteira no dito de alguém – ou até no “dito” do animal, o qual também diz, diz o que ele é – e se a imita, mediante uma interdição, uma impossibilidade modal. O surgimento da lei, antropologicamente, é sempre mediante um enunciado metafórico e, enquanto metafórico, sintomático e, enquanto metafórico e sintomático, imitação de impossibilidade mediante interdição. Mas é só interdição, pois a impossibilidade de fato não há: é pura imitação. Entretanto, dando um salto muito longo, preciso pensar a LEI como onticamente dada, como ontologicamente fornecida, ou melhor, a LEI como

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imanente. Se o Esquema Delta é um quadro competente tanto para a espécie falante quanto para o próprio Haver, está ali designado que a Lei é imanente. Resta saber como ela pode ser pensada neste nível. Coloquei como princípios fundamentais para fundar o Esquema Delta que: (a) há o Haver, o nãoHaver não há e (b) o desejo do Haver é desejo de não-Haver. Isto é suficiente para sustentar toda a estrutura. Ora, como é que, no Haver, porque o Haver há, diante da questão de o não-Haver não haver, no entanto ser desejado pelo Haver, como aí se inscreve a Lei? E se ela aí se inscreve só pode se inscrever como origem, como ponto originário de qualquer possibilidade de legiferação. Farei algumas inscrições de ordem logicizante para podermos acompanhar:

Tomemos o que se poderia, por exemplo, pensar de um Animal nesse regime. Nossa questão é de Sim e Não, originariamente. Posso supor que o que nele se inscreve como possibilidade etogramática é da ordem do sim, o não estando do lado de fora. É claro que este não não é nenhum vazio, porque ele vive no seio de uma série de ocorrências que não se inscrevem para ele: ali é o seu limite. Se observarmos essa construção de fronteira, e colocando as devidas aspas, poderíamos dizer que no nível etológico temos algo parecido – parecido, mas que não é – com as fórmulas que coloquei. Ou seja, se tenho uma fronteira e um não externo é como se, do ponto de vista etogramático, um animal funcionasse no regime lógico do chamado masculino. Não estou dizendo que animal seja masculino, e sim que, com aspas, posso dizer: “existe pelo menos um, do lado de fora, que diz não a uma função de abertura, função desejante” e, conseqüentemente, “todo animal é função não desejante do seu limite”. Tudo isto é com aspas, repito, apenas um pensamento a posteriori sobre aquilo.

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Mas imaginemos que, de repente, nasce uma espécie chamada Homem na qual, onde quer que apareça, tem-se verificado que o não passa para dentro. Diferentemente dos animais, o homem pode dizer sim e não e não se pode fechar o circuito, a coisa não tem fronteira. Então, com aspas de novo, é como se disséssemos: “não existe nenhum para fazer essa barreira, que possa dizer esse não, surgindo aí então uma inconsistência em relação ao fechamento”. Aí está uma espécie com características que poderíamos dizer “feminizantes” – mas é mera analogia – e que é absolutamente inconsistente, inumerável. Lacan tem a saída brilhante de, no caso humano, dizer que só se pode contar de um a um porque isso não tem fim. Ou seja, é mais que mera infinitude, é uma inconsistência radical. Não é contável como Um, como inteiro, de maneira alguma. Esta é uma maneira de aplicar às duas espécies os raciocínios de Lacan, o que só pode ser metafórico. Mas vamos sair da etologia, da antropologia – depois retornamos para aplicar isso. *

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*

Trata-se de fundar um não, uma externalidade que diga não. Será um não inteiramente postiço que se ponha como limite à inconsistência desta espécie. A questão, portanto, para tratar da Lei, é pensar como se funda o limite. Fundar o limite é um Ato. Este ato partirá de uma experiência? Que experiência me propõe a possibilidade deste ato? No que ponho o ato e crio um Nome para colocar como origem, estou fazendo o que se faz em qualquer pensamento decente – no nível matemático, por exemplo –, ou seja: axiomatizar esta experiência, colocar-lhe um axioma de base. Tomando o Pleroma, consideremos que, se esta for a estruturação da espécie, há nele um lugar onde um Não radical, de fato, é dito à plerocinese, ao movimento desejante. Se o não-Haver não há, a insistência desejante do Haver pelo não-Haver, que lhe é impossível, esbarra, de fato, contra o seu direito de desejo, com um não-Haver que não há. Ou seja, milenarmente, a experiência

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da espécie, no seu desejo de Impossível, de extrapolar o Haver numa catoptria que o leve a uma radical terminação de seu processo, esbarra com o Impossível disso: é impossível morrer; é impossível falar do lado do não-havente; é impossível, de dentro do Haver, encontrar o não-Haver. Esta experiência milenar se escreveu dos modos os mais diversos, como aparelho religioso, filosófico, poético e matemático. Ou seja, não posso haver fora do Haver e, de dentro do Haver, na experiência da radical falta de não-Haver, não posso senão inscrever, na minha experiência de havente, o abismo de não-Haver com o qual me choco e retorno para o Haver sem saída. Isto lá se inscreve como Furo, como Real. Lacan costuma dizer que o real é aquilo que não se inscreve, por impossibilidade, na estrutura. Eu digo: Real é aquilo que se inscreve, sim, na estrutura no lugar da impossibilidade de se inscrever o não-Haver. É uma experiência inscrita na estrutura como marca – nome, se quisermos – da experiência de não-Haver. Isto não é senão o fundamento de muitas filosofias e da matemática mais moderna: o conceito de Vazio. Por isso, o chamei de Furo. Há um vazio, inscritível, que se marca internamente como falta, mas que já é algo. É a inscrição, no interior do havente, de um Nada que se refere ao não-Haver. Nada já é muita coisa, já é uma inscrição. É o que a matemática, tardiamente, vai escrever como Zero. Levou milênios para que um árabe maluco, em vez de fazer a guerra do petróleo, estabelecesse o zero. Ou seja, conjunto vazio; marca como Furo; inscrição no Haver da experiência de se deparar com uma barreira radical porque não se pode passar para o não-Haver. O que falta ao Haver? Falta não-Haver. Como isto se inscreve no Haver? Como zero, conjunto vazio, marca de uma falta absoluta, que depois finge que faz falta. Mas nada falta porque está marcada a falta verdadeira. Aquilo é marca da verdadeira falta. Axiomatizar a Origem, axiomatizar ontologicamente o Haver como Impossível de passar ao não-Haver desejado, é escrever Zero, que passa então a ser o litoral real do Haver, porque para lá é o abismo, o não-Há. Zero é uma espécie de vazio à beira de não-Haver. Diria que é o primeiro tempo lógico

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da Castração, a qual, reduzida abstrativamente até seu miolo, é só isto: inscrevese o vazio no lugar da impossibilidade de passar ao Impossível. Isto resulta em dizer: Há! “Estás condenado por uma lei, instaurada ontologicamente, a haver! O máximo que consegues é aproximar esse não-Haver pela inscrição, axiomatizada de algum modo, desse vazio, como à beira de não-Haver”. Isto foi escrito de n maneiras na história da humanidade até que, um dia, a matemática conseguisse escrever simplesmente Zero: conjunto vazio. Está aí, então, o fundamento ontológico da LEI. A LEI do Haver é: o não-Haver não há, mas é desejado. Isto, se quiserem, se inscreve: A)Ã=0, Haver desejo de não-Haver é igual a zero. Dizer “Haver desejo de não-Haver” é enunciar a Fantasia primordial do Haver; dizer “igual a zero” é axiomaticamente chamar essa fantasia de “Lei”. Esta é a LEI, dura e Real, do Haver. *

*

*

Zero não é número. Todo um lacanismo, inclusive um grande périplo de Lacan, está imbuído de um processamento lógico (aliás, brilhantemente) construído por um, na época, jovem chamado Jacques-Alain Miller a partir de um texto fundamental de Frege. Eu mesmo tive a oportunidade de ter sido o primeiro tradutor, para o português, de seu texto a respeito d’A Sutura, no qual Jacques-Alain tentava mostrar a função Sujeito na produção da série dos números a partir do conceito freguiano de zero como número correspondente a um objeto que não é idêntico a si mesmo e, portanto, que não acha inscrição senão como vazio. Todo o lacanismo está até hoje influenciado por esse texto que funda a tal função mais-um, mas que propõe o Sujeito como função operante na construção dessa série. Zero é a nota que, hoje, estou dando ao texto. Não porque eu tenha competência para tal, mas porque assim imaginei e alguém teve competência para demonstrar que isto simplesmente não acontece. Não há função mais-um alguma a não ser como ilusão, posterior, daquele que conta. Zero não é um número, como queria Frege. Não posso deduzir o zero

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numérico de coisa alguma. A série dos ordinais pode ser construída, mas os ordinais seriáveis aqui e ali comparecem ontologicamente no Haver. Zero não é um número. Digamos que é uma espécie de nome axiomático dado a um vazio fundador. A diferença que vocês encontrarão no pensamento de Alain Badiou em relação ao meu é que, para ele, esse zero é absoluta e estritamente axiomático, sem dever nada a nenhuma dedução ou experiência. Ele está pensando como matemático e lógico puros. Eu, estou dizendo que tiro o axioma do zero da experiência, milenarmente indicada, de uma espécie que se depara com esse vazio diante do não-Haver e o nomeia de algum modo, até que chegasse o dia em que pôde nomeá-lo matematicamente como vazio fundador das possibilidades do número. E do qual não infiro necessariamente a série dos números – como o mais-um de Jacques-Alain –, mas sim do qual posso destacar o traço inscrito no seio de qualquer número que encontre. Isso faz muita diferença. Uma coisa é (a) fazer a suposição de que, posto o axioma como origem, daí, por uma função subjetiva qualquer, retiro a formação, por mais-um, da série de números. Aliás, se criticarmos Frege, antes ainda de Miller, isto já não é matematicamente afiançável. Outra, é (b) supor que a origem inscrita axiomaticamente num ato decisório, qualquer número encontrado aí, pelo mundo, ontologicamente dado, inclui como traço o zero. Isto significa que não posso ter a ilusão de ter encontrado a seriação produzida por um sujeito que vai somando mais um e que não tenho demonstrabilidade para isto. Mesmo porque quando Frege diz que se trata do conceito de um objeto que é não idêntico a si mesmo, e que tal objeto não há porque é vazio, está dizendo bobagem, pois o que mais há por aí é objeto que não é idêntico a si mesmo – por exemplo, o Sujeito. Se tenho conjunto vazio, posso até reencontrar que: ( )=0; (0)=1; (0(0))=2, mas isto na minha ilusão de estar contando subjetivamente aquilo, pois o que interessa é que, se, por exemplo, encontro o número 1.832..., qualquer operação lógica que faça com ele, reencontrarei o zero como fundamento. Foi necessário axiomatizar o zero porque se teve que propor como ato uma origem que se reencontra reinstalada como marca em todos os números. E isto foi

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axiomatizado um dia pelos árabes que, a partir dos hindus, lhe deram um nome: sifr (‘o vazio’), zero. Isto faz uma diferença enorme porque, passando por cima da limitação de Badiou, me ajuda a dizer que escrever zero é resposta matemática a uma experiência, milenarmente dita de outros modos, do Real instalado como Furo no seio do Haver. É experiência do homem. Experiência de limite radical, ou seja, de litoral: o não-Haver não há. Não adianta insistir, pois se esbarrará sempre com o fato de que o não-Haver não há. Isto funda o estatuto ôntico do Haver em sua LEI. *

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Mas, para o falante, como funciona o que vem depois desta experiência? Axiomatizada a origem, posto o primeiro tempo da castração, o zero imediatamente se inclui nos meus procedimentos com o número. De tal modo que o fato de R, no Esquema Delta, ser um litoral radical, não impede, de modo algum, que ali, dentro do Haver, tudo se infinitize. Ou seja, quando tenho instalada a marca axiomática de zero para mim, seja lá qual for o nome que eu dê, isto não impede que, passado o momento traumático desse desencontro radical com o não-Haver, e para “dentro” do que há, se possam infinitizar as possibilidades. Mais do que isto, o fato de haver zero, de não haver o nãoHaver, não empresta nenhuma consistência ao Haver. O Haver é inconsistente. Zero é limite radical, mas, para dentro do Haver, posso contar mais do que infinitamente: não tenho nenhuma consistência para estabelecer o campo unário dos ordinais. Então, a experiência humana, aquela em que posso escrever Sujeito, rasurando aquelas fórmulas que coloquei entre aspas no início e que são uma prévia, não é senão a de, a partir de uma Inconsistência radical, já na experiência desse zero inarredável, de dentro do Haver, fundar algum limite para a inconsistência. Lembremos que o Haver é absolutamente inconsistente, mesmo

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com a marca do zero. O que vou, então, fazer, tendo tido a experiência de Real, de zero, para estabelecer um limite qualquer que empreste consistência, que possa me permitir contar por Um, por unidade, por inteiridade, a inconsistência e, portanto, torná-la provisoriamente consistente? Estamos aí diante de outra necessidade de axiomatização que, milenarmente também, foi colocada de vários modos, e que a matemática já exprimiu. O zero, experienciado como tal, não põe, internamente, como disse, para o Haver, nenhum limite. Dentro, vale a inconsistência do Haver. Digamos, a inconsistência do Inconsciente. Não sou o primeiro a colocar isto, já está no texto de Miller que Ics., em vez de Inconsciente, deveria ser chamado: o Inconsistente. Então, o meu Inconsistente precisa achar consistência em algum lugar, só que não acha, porque é inconsistente. Que operação vai fazer o falante, já na experiência do zero, para construir uma consistência interna para o seu Inconsistente? Ele terá que pôr outro ato axiomático. Mas, agora, não baseado na experiência de que o não-Haver não há, e sim na escrita que já fizera, pois que o Zero está lá como nome numérico da fundação da Origem: o que é como se fosse pôr uma primeira metáfora, mas tão abstrata que sintomatiza muito pouco. Trata-se, então, de axiomatizar, sobre a experiência do Zero que já passou para dentro, juntamente com o sim e com o não. Vai-se colocar uma barreira, um limite axiomatizado agora, não sobre a experiência do não-Haver, mas sobre a experiência de se ter inscrito aquilo que nomeia o litoral do Haver: experiência de Zero (a outra era de não-Haver). Inventarei alguma coisa que chamo de Infinito, o que já foi escrito pela matemática e que hoje se representa pela letra grega ômega (!). Escrevo, pois, infinito e dou consistência ao Haver. Escrevo infinito ali porque, quando proponho, lá na rabeira da série dos números ordinais, onde quer que ela esteja, um limite (que não sei dizer qual é) o que faço, matematicamente, é designar esse limite. Passei aí de zero a infinito: 0...!. Se digo que, em algum lugar, há um limite, mesmo sem saber qual é, estou propondo, axiomaticamente, que: existe pelo menos um que diz não à inconsistência. Passamos de haver a ser.

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Então, pela primeira vez, diante da anterior inconsistência, axiomatizo que existe pelo menos um que diz não à função fálica, a qual vige na inconsistência, pois quer chegar a não-Haver. Conseqüentemente, o que quer que esteja lá dentro faz um Todo, um universal. Mas o que interessa, do ponto de vista da escrita matemática, é que, ao escrever o nome que dá consistência à inconsistência do Inconsistente, eu o estou propondo como infinitude.

N

S

ω

O

Não tenho que ter nenhuma marcação de quem, como ou qual é o limitador para me propor um limite. Se esse nome não está indicando uma distinção, ele está designando uma infinitude que, mesmo assim, me permite universalizar. Então, digamos que o axioma do infinito, na matemática, dentro da minha perspectiva, não é senão repetir, no seio do Haver, o zero como horizonte da série ordinal, o que, ainda que em infinitude, põe ocasionalmente limite interno à inconsistência do Haver, assim como o zero lhe põe limite externo. É mesmo nossa passagem de haver a ser. Assim, estou dizendo que Zero, axioma fundado sobre a experiência do Haver na impossibilidade de não-Haver, se reescreve como infinito, como outro axioma, sem sucessão, que escreve para mim um limite que paratodiza o campo, como universal, que lhe dá consistência. Atenção!, limite não é fronteira necessariamente. Há questões de limite, há uma diplomacia ainda a ser jogada, de tal modo que um outro momento de castração se dá na metaforização do infinito que veio no lugar do zero. Está aí, nessa inscrição do infinito como limite, um segundo momento de castração. Primeiro tempo lógico da castração: reconheço que o não-Haver não há, de algum modo: poeticamente, matematicamente... Segundo tempo: de cá de dentro do Haver há uma zorra, isso continua inconsistente, colocarei então,

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algo (!) que sirva como limite assim como o zero serviu para limitar do lado de lá. Este limite colocado por dentro me dá oportunidade de contar isso como Um, mas não marca nenhum ponto preciso, ele se marca apenas como limite. Então, propondo a ordem do Masculino, não criei nenhuma finitude. O que propus foi um limite, mas infinito. Axiomatizar, portanto, o limite, é metaforizar o Zero no final de qualquer operação, e me dar um limite que, nem por isto, me põe dentro da finitude, pois mantém a infinitude. Aí entrei na ordem do Gozo-Fálico, mas isto não é tudo, tudo que há, embora funde o universal. *

*

*

Posso, a partir de agora, contar o Haver por Um. Daí é que vem essa nossa inocência, nossa ingenuidade, de quando encontramos algum limite pensarmos que há uma unidade, uma inteireza, uma integração. É falso, pois essa inteireza ainda é infinita, ainda falta muito, muito para a podermos identificar. No primeiro tempo, estou diante de uma paratodização que universaliza e limita mas não põe finitude alguma. Ou seja, o Todo encontra seu limite naquele infinito, mas não distingue nada dentro dessa infinitude, não faz distinção de onde isso pára. Se o Todo pode ser fundado porque coloquei um limite, mas que não distingue, tenho que pensar que, se tenho um Todo limitado infinitamente pelo limite chamado axioma do infinito, isto faz um Todo, mas há uma zona de indistinção. Há, no mínimo, uma lúnula dentro daquele conjunto que diz que posso ter meus sins, meus nãos, meu zero, etc., que isto pode estar limitado, mas não tem distinção. Então, tenho aí uma zona necessária de indistinção na infinitude. Estou preso, mas se isso é infinito, funda-se um Todo, mas nem por isso se distingue finitude alguma, não se aponta onde termina discurso algum. Ou seja, se isto não distingue, tenho um Todo mas, no seio desse Todo, tenho uma farta zona infinitamente grande de indistinção. Então, não se pode confundir a universalização, pela designação de um limite que é infinito – passeio aí de zero a infinito, 0...!, e volto – com a distinção de onde isso termina, pois só

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tenho distinção de onde isso começa: no zero. Que operações poderei eu fazer para estabelecer aí alguma distinção? Para tentar provisoriamente alguma distinção, preciso pegar alguma coisa aí dentro e, com ela, fazer um corte. Ou seja, preciso tomar outra decisão, que não é a de fundar um axioma (o que não é necessário, pois já tenho o axioma Zero e o axioma Infinito). Pego, eventualmente, aqui e agora, determinado elemento desse campo indistinto e digo: “Este é o representante do limite”. Aí, caí num sintoma brabo. Esta é, provisoriamente que seja, a minha finitude, só que é falsa, é só sintoma, porque aquilo é infinito. Trata-se, nesse corte arbitrário, de metáfora do limite, sintoma, portanto.

Φ

Decisão sintomática Suspensão do limite

N

S O

No reconhecimento desse corte como sintomático (por arbitrário), estamos portanto no surgimento de outra posição lógica: a que diz que existe função fálica e que ela pode sim ser negada, mas não inteiramente: gozo do sentido. Já saí do regime da inconsistência originária pondo um limite. Agora, saio do regime do limite e caio no da distinção, da construção de uma finitude provisória aqui e agora. Esse ato decisório é de criação, de nomeação: é o que faz terminar o Todo, sua “finitude” está presa aí. Se isto for apenas um convencional momentâneo, tudo bem, é um sintoma necessário para eu me arrumar aqui e agora, mas a zona de indistinção permanece, e nada impede que o mesmo Anjo, que pôs esse ato, possa reconhecer a progressão passo a passo do limite novamente nomeado. Este é, então, o nome provisório do limite.

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O limite é sem fundo porque é puro limite. O corte é uma versão sintomática da castração. O que pode ser, neste raciocínio, o que Lacan quer chamar Nome do Pai (porque há um odor de catolicismo em sua vida)? Nada mais nada menos do que essa decisão de se colocar um limite infinito. Abstratamente, o Nome do Pai é proposição axiomática de um limite que dê consistência ao Inconsistente. Mas o limite é apenas apelido do Zero e funciona, para a série, como ele funciona para o Haver. Ele não marca nenhuma posição exata, mas sim o lugar da limitação. Então, o mais abstrato daquilo que Lacan quer chamar de Nome do Pai, e que prefiro chamar puramente de limite, é esse infinito (!). Na decadência da construção do limite para apelidá-lo com uma decisão de provisória marcação de finitude, eu diria que o que temos aí é que é fundamentalmente aquilo que se poderia chamar Nome do Pai, mas o que se inscreve nessa decisão é um pouco mais, é o Pai como sintoma, aquilo que Lacan chama de Père-Version. Quando a estabeleço, posiciono apelido para o Pai. Quando Lacan diz Nom du Père, não esquecer que, na língua dele, as pessoas são chamadas pelo sobrenome, o que não é hábito por aqui. Portanto, Nome do Pai é seu sobrenome e se chama limite, mas, para trabalhar dentro de certa ordem, coloco um apelido, um nome-próprio que certamente é um sintoma grave, e minha estupidez será sempre a de acreditar que o prenome do pai seja mais do que um apelido provisório. Então, faço a substituição do nome pelo prenome, ou seja, do limite pelo sintoma que aqui e agora designei como sendo marcação de minha finitude. Esta é, pois, uma decisão que põe sintoma. A outra é uma decisão que põe limite. Não confundir as duas coisas, que é o que mais vemos em texto de lacaniano, por aí. Só que ainda há mais uma coisa. Ainda posso – só de sacanagem, porque não sou lá muito homem, ou porque o sou demais – suspender o limite e dizer: “Está bom, disseram que há um limite, mas não quero, hoje, tratar dele, não estou a fim”. E digo, então, que não existe nenhum que diga não à função fálica. Aí já estou de volta ao limite e dizendo: “Saquei, mas suspendo e ponho uma negação”. Aí é que vem o tal feminino de Lacan. Por que, no início,

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coloquei o Animal e depois o Homem? Não pensem que suspensão do limite é foraclusão. Não é. Só pode suspender o limite, ou seja, atuar no Feminino, aquele que o escreveu. Então, por exemplo, uma frase de Octave Mannoni que lhe servia muito para designar o que pensava ser perverso, posso a emprestar ao Feminino: “Sei muito bem que há um limite, mas mesmo assim estou a fim de suspendê-lo”. O Feminino não é nenhuma falta de inscrição de zero nem mesmo de inscrição de infinito. É simplesmente co-memorar, apesar dessa marcação, a inconsistência do próprio, do dito Inconsistente. Quando posiciono o limite e construo o universal, masculino, não quero rememorar a inconsistência, fico na infinitude. O que o Feminino diz é que, além de infinito, ainda por cima, isso é inconsistente, portanto: “Não vem que não tem”. Aí, vem outro e diz: “Lembrei que é inconsistente, mas vamos conversar...” Quem é que conversa? Aquele que produz Sentido. O Falanjo: “Sei muito bem que há limite, mas mesmo assim, você o quer suspender, vamos então entrar em acordo e produzir, quiçá poeticamente, um apelido para esse limite numa transa viável aqui e agora”. O ato do Falanjo é bem mais difícil do que os atos masculino e feminino. Isto porque, na experiência do não-Haver, posso até produzir o axioma do Zero; na experiência da necessidade de um limite, posso produzir o infinito; mas, de dentro de uma situação, apelidá-la aqui agora, produzir mais um passo no sentido de uma distinção dentro do indistinto e que seja nova em relação à distinção velha, não é mole – porque, aí, já estou operando no seio do número. Aí não estou mais nem no zero nem no infinito. Traduzindo, por exemplo, em termos da história da psicanálise. Se Freud teve uma experiência de vazio mediante a qual pôde escrever seu zero, que se chama psicanálise, ato inaugural – o grau zero da psicanálise chamase Freud –, Lacan dá uma de Falanjo e vai reescrever a psicanálise. Não pode ser de araque, só há uma maneira: aplicar Freud a Freud, escrever zero e dar um passo. Lacan é o primeiro, funda o Um. Por isso ele fala de “retorno a Freud”. Qualquer passo daqui para a frente não pode ser retorno direto a Freud. Só se pode fazer retorno a Lacan, ou seja: o retorno de Freud via

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Lacan. A única saída é tentar escrever Dois. Não se sabe quando isso vai acontecer: " Freud: 0 = psicanálise " Lacan: 0 = 1 " ? : (0,(0) = 2 Este é o passo sucessor, que é até possível, mas, como os números são ontologicamente dados, não tenho nenhuma garantia de Sujeito que fará dar-se tal passo. De repente, até acontece, em algum lugar... O Feminino justifica, na suspensão do limite, revisando a inconsistência, o questionamento do universo e, portanto, justifica, no seu confronto com o Masculino, a existência do único lugar onde se pode efetivamente pôr em prática a sexualidade: dar mais uma... e, feito o Marquês de Sade, marcar isto na cabeceira da cama. Mais uma... chama-se Lacan, por exemplo. É a história da fornicação, se não da masturbação, do Haver. O que tenho a lhes apresentar daqui por diante é: como – dados os dois axiomas do zero e do infinito; dado o entendimento da apelidação desse ato, que Lacan chamou de Nome do Pai; dado o questionamento disto e a possibilidade de passo sucessor, ou seja, a continuação da criação no seio do Sentido – posso retirar daí a Nosologia do falante: Nv, Ps e Mf? Depois de conseguir retirar daí, de maneira puramente lógica, as três, poderemos dar longos passeios com essa ferramenta e verificar isto pelas ordens discursivas. O que prometo para a próxima sessão é, pois, retirar daí Neurose, Psicose e Morfose, que são estagnações nessas pato-lógicas. *

*

*

[Perguntas e respostas] " Pergunta – Você pode falar sobre a questão da ontologia neste momento em que você a traz a uso e com a, digamos, articulação simultânea à questão axiomática? Até porque esta foi uma questão posta, em 64, por

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Miller a Lacan, diante dos aparelhos que ele construía e apresentava. Qual ontologia estaria ali presidindo? E Lacan não foi muito explícito. Mesmo porque ele estava envolvido com ferramentas estruturais que eram contraditórias com esse investimento ontológico. Sim e não, pois, mais tarde, ele dirá que há a ontologia de Lacan, e ponto! Estrutural, de onde? Vem de onde? É um impasse do estruturalismo em si. Se consigo capturar uma estrutura, de onde ela emerge? Ela deve estar inscrita em algum lugar. Do ponto de vista da multiplicidade ordinal, remeto essa ontologia ao que diz Badiou. Ele, melhor do que eu, pode dar de presente a ontologização do número tal como consegue prescrever. Do ponto de vista de minha construção, isto é fundamental. Se há Pleroma, se há Esquema Delta como, digamos, estruturalidade do Haver, isto, para mim, há como Haver, e ponto! Portanto, pode até se dizer como Ser aqui e ali. Então, proponho essa estrutura como ôntico-ontológica do Haver. Isso há, comparece aqui e ali de tal modo – não estou falando das modalidades –, e é dizível assim ou assado como tentativa de exposição do Ser disso. O que proponho como ontológico – e fica difícil dizer ontológico, pois não é o verbo ser, o ontós, que me interessa, e sim o Haver – é que, no que o Haver se estrutura nesses estados e gradientes, posso até dizer que isso é Ser do Haver, e não posso dizer nada sem supor que há isso aí. Pensar um estruturalismo sem ontologia, capturando, no falante, estruturas que emergem aqui e ali, tudo bem! Mas não vai esbarrar, em última instância, em procurar onde isso se inscreve? Então, ponho que, se há falante, tenho que tratar da ontologia desse falante enquanto tal. O Sujeito não cai do céu: está inscrito aí em algum lugar. Não sei se é uma boa resposta, pois estou sendo um pouco ligeiro. " P – Uma questão decorrente disso é a da experiência. Ou seja, no sentido da apresentação que você vai nos fazer, refletir sobre a experiência é algo necessário antes de pensar a patologia e a nosologia ou a posteriori? Tanto faz, pois se estou, didaticamente, partindo dessa origem é na medida em que se tem, milenarmente, e dita das maneiras as mais diversas, a tentativa de expor essa experiência. Chamemos, por exemplo, com palavras

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de Philippe Sollers, “experiência dos limites”; com palavras de Georges Bataille, “experiência interior” (pois a exterior, não há)... Algo que quero abordar aqui com mais calma é: como se fundamenta o “bode expiatório” a que se refere René Girard? Quem você designa para ficar no lugar do zero – e para se ferrar, portanto? A experiência é milenar. Encontramos em todas as religiões, mitologias, etc. O que a matemática faz é matematizar isso abstratamente. Para mim, é uma experiência do não-Haver. A do limite é um pouco depois. " P – A experiência do limite, ou seja, o axioma da infinitude, é que seria o recalcante etológico? Não! O recalcante etológico é parecido com aquele da finitude e já é da ordem de fundar uma perversão. Não é a perversão nosológica, e sim a père-version. Ou seja, vai-se dar um apelido ao Pai. Isto porque Pai não tem nome, chama-se: infinito. Não há infinito para o etológico. Para ele, é fronteira mesmo. Fala-se de aprendizagem animal, mas o que se tem é que ele desliza dentro dos limites etogramáticos, e não fora. Como o sistema é complicado, ele tem é elasticidade interna. Isto deixa os pedagogos aos pandarecos. Há uns malucos nos Estados Unidos que gastam fortunas tentando extravasar, procurar a elasticidade externa do limite etogramático. Ela é interna, é uma combinatória que dá frutos. Ou seja, há aprendizagem animal, o diabo, mas aquilo não é um limite, e sim uma fronteira. Animal não infinitiza. Não pode dar um passo a mais, ou seja, entrar cachorro e sair girafa. Mas eu, posso. " P – O funcionamento da Pulsão de Morte está adscrito à inscrição do zero? Não! A pulsão funciona porque é puro movimento desejante no sentido de não-Haver. Mas a questão é pertinente, pois coloca outra coisa: o zero como escrita legal da Fantasia. Digamos que a Fantasia Originária se escreve como: zero. (Desenvolverei isto melhor da próxima vez). Inscrever zero é dar escrita ao sentido, significação, etc., da Fantasia. Quando digo: “há o Haver, o não-Haver não há”, primeiro princípio, e: “o desejo do Haver é de não-Haver”, segundo princípio, ambos se intrincam naquela pequena fórmula: A)Ã. E isto se inscreve como zero. Daí, a impressão bífida do Real, que

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parece paradoxal. Mas não há paradoxo algum, pois é simplesmente: o nãoHaver não há, mas é desejado. Então, dá-se um basta nesses dois princípios e nessa Fantasia pensando: Zero! Este é o axioma fundamental de toda e qualquer Fantasia, pois o que os analistas costumam chamar assim e que aparece no divã não o é, é o apelido da Fantasia. As fantasias que aparecem aí e que Jacques-Alain quer chamar de axiomáticas em cima de certa dica de Lacan, não são axiomáticas, e sim apelidos perversos do axioma. Atravessar a Fantasia seria poder reduzir aquilo que, para você, parece a sua Fantasia desejante e que não vale mais do que zero. Como chegar ao grau zero da sua Fantasia? É por isso que preciso do tal Sujeito da Denúncia. Que travessia pode haver de uma Fantasia que é absolutamente fantasiada, que quer parecer como axioma e que, na verdade, é mera fundação perversa? É: reduzi-la ao zero que ela merece. [...] O limite é o infinito, Zero é origem, que se mostra aqui como barreira definitiva entre o Haver e o não-Haver. A idéia de limite não zera nada. Ela finge que é o zero, mas é infinito. O que é mais dentro desse universo, o rabinho infinito que chega ao limite ou a parte que contei? O rabinho! Se é infinito, é infinito. Ou seja, só contei o que está dentro, mas dentro do Todo, há um rabinho infinito. Nem por isto deixa de fazer um Todo. O fato de se axiomatizar um limite não dá nenhuma distinção. E muito menos nenhuma finitude. Finitude é doença. Lacan nunca disse essa asneira, pois não era débil mental demais – só um pouco –, mas o papo freqüente dos lacanianos (mesmo que digam que não) é que sonham que o Nome do Pai é perversidade, finitude. " P – O fundamento ontológico que se poderia adscrever ao Haver não seria a Fantasia Primordial, ou seja, o axioma igualando a zero? Não! Se há, é ontologicamente dado. O zero, aí, é axioma, que se vai propor ao seu questionamento, à sua experiência de impossível. Isto é um ato, tanto é que o zero não estava aí. Quantos milênios de humanidade existiram até que se dissesse: “Zero!”. Outros apelidos houve antes – e apelidos os mais doentios por exemplo: “Sou uma arara”. É o que encontramos no otimismo,

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mas está-se fazendo muito barato. É claro que o Inconsciente desliza e o sujeito vai voar por aí. Mas quando diz “sou uma arara” é perverso demais. É um pouco diferente de dizer: “sou uma infinitude”. Zero não há. O que há é o Real de não se poder passar a não-Haver. E vai-se axiomatizar a experiência disso. Vai-se chamar: Zero. Ou seja, há um vazio no meio da minha angústia. Como o chamo?: Zero. Eu jamais poderia colocar o axioma do limite se não partisse da minha experiência de radical não-havência para além do Haver. O limite é posterior, mesmo historicamente. Ou seja, o axioma infinito foi criado muito, muito depois do axioma zero, et pour cause. Não se encontra na história da matemática nenhuma proposta de infinito anterior à de zero. Deve haver razões para isto. Ou seja, um dia, consigo escapar da contabilidade pura e simples do primitivo que fala um-dois-três, e nesta série, marcar uma origem: zero, compatível com minha experiência de que só há “para dentro” do Haver. Não há saída; origem, barreira. Isto não tira a minha loucura de caminhar, infinitamente, “para dentro”. É preciso, pois, reaxiomatizar um dia, se não, pira. Vocês já imaginaram se os matemáticos, pensando loucamente como pensam, não tivessem alguém para lhes inventar o infinito? Estariam todinhos surtados. É uma maneira de sair do surto: “Invente-se o infinito, pelo amor de Deus!” O zero é um axioma que nomeia a experiência. Mas não é um número, diferentemente do que põe Jacques-Alain em cima de Frege. Ou seja, zero é o nome do número. É um nome do número. É um nome numérico disso. É decisão axiomática, é ontologicamente posto, ou seja, posto em cima de uma experiência ontológica. " P – O zero é condição para o falante ser falante? Não! Porque o zero está na história da matemática. Se é falante, experiência, eventualmente nomeável por zero, vai-se dizer – talvez, perversamente – com um apelido qualquer. Há, portanto, uma ascese aí: na história da reflexão sobre as experiências do falante, isto vai-se abstraindo. Outro pode chamar isto de “Arara”. Não esquecer que esse bicho, o falante, vem instalado dentro do macaco: nossas aderências etológicas são terríveis.

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Antes que alguém pudesse abstrair e encontrar o zero ou um limite, primeiro falou direto na sintomática, *. É uma ascese subjetiva, pois o que vemos é o primitivo imediatamente agarrar uma perversão e chamar de zero, de infinito, de tudo. Isto exige repensar, por exemplo, a questão da “horda primitiva”, do assassinato do pai, etc. Aquele macacão lá é nada mais nada menos do que o zero e o infinito deles. Há, pois, aí, uma ascese, um processo de abstração lento, gradual. Somos ainda macacos demais. A própria psicanálise ainda é primatológica demais. O esforço é de abstração até se afastar de primatas e falar como gente. Depois, até se pode reconhecer: “Está vendo, este neurótico aqui é um macaquinho, é um animal, olha como ele faz. Mas como é falante, podemos até retirá-lo de sua animalidade e trazê-lo para cá”. " P – Dentro do estruturalismo, já em uma perspectiva diacrônica, houve uma tentativa de Jean Piaget de definir por uma frase circular: não há gênese sem estrutura, não há estrutura sem gênese. Isto não seria o apontamento do artificialismo por onde quer que se pegue, para frente ou para trás, no seu esquema Delta? A infinitização aí sendo colocada na circularidade de uma gênese estrutural. Não gosto de ir por aí, pois acho muito perigoso. Não vou confundir origem com gênese. Axiomatizar-se uma origem não obriga fazer nenhuma gênese. Por isto mesmo, coloco o Pleroma como dado, isso funciona assim. Não tenho nenhuma gênese para o Haver. O Haver há e funciona assim. Isto é diferente de estabelecer axiomaticamente uma origem no seu seio. Origem, não é genética, é axiomática. Pelo que entendo de Piaget, me parece que ele está procurando a gênese mesmo. " P – Quando você falou do fingimento feminino de suspender limite, é o infinito ou o sintoma? E o Falo fica onde? Suspender o limite é apelar para a memória da inconsistência que encontra antes ainda de estabelecer o axioma do limite. Mas o que chamo de Falo é a interioridade que se pode destacar. É aquilo que se estabelece como significante toda vez que se postura um limite. É dentro. O Nome do Pai é

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axioma de limite à inconsistência. No que a inconsistência, mesmo como inconsistente, inclui sim, não, zero, é Falo, posso manejar com isto. Toda a questão é: tem ou não zero inscrito? Onde se mete o zero? A questão do recalque, por exemplo, vai depender de se o zero está ou não situado. Quando produzo um recalque estou tentando eliminar minha comemoração do zero. E posso até fazer mais do que recalcar, posso arrolhar o zero. Tratarei melhor disto posteriormente.

14/AGO

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15 NOSOLOGIA GERAL (Introdução) Como lhes disse, pretendo retirar da série de raciocínios colocada na sessão anterior, em sobreposição ao que está escrito como Patologia no Pleroma, toda a ordem de discriminação do que poderíamos chamar de Nosologia do falante. *

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Coloquei que Zero se axiomatiza a partir de uma experiência radical e fundadora: a experiência do falante de que não há como escapar do Haver, ou seja, de que o não-Haver não há. Dito isto de qualquer forma, é de maneira axiomática que se instala finalmente e, na matemática, se escreve como Zero. Portanto, situei zero no lugar mesmo de Real, como Nome-Próprio numérico, se quisermos, do que se inscreve no seio do Haver como não havência do nãoHaver. Aí está uma espécie de pedra fundamental sobre a qual se deslanchar o processo da significantização, bem como o processo do Número no pensamento filosófico e matemático. O axioma Zero é da ordem da LEI (com três maiúsculas) onticamente posta, ontologicamente sugerida. A LEI sendo: o não-Haver não há, mas é desejado. A partir desta experiência fundamental, falando em termos de número, a internalidade da dispersividade dos ordinais que pode se serializar, nem por isso deixa de ser inconsistente, pois isto não faz um conjunto. Ou seja, a

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dispersividade do número que há não faz conjunto porque nada fecha as possibilidades ontológicas de aparecimento do número. Portanto, na reinstauração do zero, como se fosse uma metáfora do litoral entre Haver e não-Haver, é que é preciso um novo ato de instauração axiomática, que quero reconhecer como metáfora do zero no seio do Haver. Então, a inconsistência recebe a possibilidade de um “fechamento” quando escrevo um limite. Quando axiomatizo o Infinito (!), estou fazendo a mesma coisa que fizera com o zero, o que pode ser tomado como sendo metáfora do zero no seio do Haver. Um limite paratodiza (&). Se tomássemos toda a série de números que antecede o infinito, poderíamos dizer que qualquer número ali está abaixo desse infinito. Então, o infinito, embora não distinga precisamente qual seja o número que o antecede, ou seja, se procurássemos saber se é sucessor de algum número, verificaríamos que não o é de nenhum e a coisa fica empastada. Porém, uma vez colocado o limite, uma vez axiomatizado o infinito, isto vira um Todo. Como devem se lembrar, parti do não, do sim e do zero, igualando-os a Falo (#). Então, posto o limite, posso dizer que, na interioridade disso, todo número é número, tudo que há, há: posso fundar um Todo matematicamente sustentável. Mas o infinito não me traz nenhuma distinção. Há um empastamento da série com o infinito. Não posso maximizar o conjunto ou dizer qual é o número do conjunto.

ω N

S O

Σ Φ

Se isto é verdadeiro, então, dentro mesmo do Todo, há uma região de indistinção, a qual estará certamente cheia de números. Tomar, aí, um número

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qualquer como se fosse o fim da série (S1), ou seja, numerar com este número aquele limite que não é numerável, é também tomar uma decisão. Mas ela é sintomática (*), pois finge que é este número o lídimo representante do infinito. Ou seja, aí é uma metáfora substancialmente posta. Se aquele infinito anterior é metáfora de zero, é tão aberta que não consegue fazer nenhuma distinção, mas se escolho um número para ser o fim da série, estou dizendo que ele é metáfora do limite e, portanto, o limite está aí sintomatizado. Isto porque o fato de marcá-lo como fim não elimina toda a infinita série que deve estar entre ele e o infinito. Resta, em relação ao sintoma, toda uma atividade política de interpretação: o que acontecerá na historicidade de um sujeito, em relação a esse número, é que ele terá razões para interpretá-lo e deslocá-lo... Coloquei também que o Feminino suspende o limite. Se o infinito paratodiza, ou seja, se na instauração do axioma infinito estou dizendo que existe pelo menos um que diz não para que todos sejam, suspender o limite é fazer a negação que Lacan propõe para o feminino: não existe nenhum para que não-Todo seja. Portanto, a série se abre, mas dentro do sim, do não e do zero, continua aberta digamos que falicamente... Isto nada tem a ver com a inexistência ou não instalação do limite. É apenas a possibilidade que tem todo homem (enquanto espécie) que fundou um limite – e que portanto caiu no masculino – de recorrer ao feminino, de suspender este limite, mesmo sabendo que ele foi posto, de dizer, por suspensão ou negação, que não se considera esse limite. Mas se faço sua suspensão, tenho que dizer que ele participa, de algum modo, de certa maneira de denegar. Não é preciso contar aí com nenhum recalque específico, mas é uma certa maneira de denegar, ou de renegar, fica vago aí. Sei que há um limite, mas mesmo assim posso suspendê-lo e entro na comemoração da inconsistência do Inconsistente, cujo campo está entre zero e infinito. Então, neste caso, retorno à inconsistência: re-lembro, co-memoro a inconsistência. O feminino é só isto: diante da decisão de consistência pelo limite, haver a chance de suspender a consistência. Temos também o sexo da Morte, aquele que vai se escrever como Zero: o axioma zero é entendimento desse quarto sexo, de que a morte não há,

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de que não é possível gozar por ali. Temos o sexo Masculino como proposição e ato de fundação de limite, também axiomático. Temos, no Terceiro Sexo, uma “escolha”, por acaso, que não é axiomática: toma-se um número qualquer, dado, como substituto do limite. E temos, no sexo Feminino, a possibilidade de suspender o limite. A partir de zero – o sexo fundamental é a Morte, que não há –, a partir da primeira experiência sexual, ou seja, de que não dá para gozar com Ela, cai-se na possibilidade de instalar axiomaticamente a posição cujo nome é fantasia primordial: o Haver deseja o não-Haver – mas isto se iguala a zero (puro vazio). Tido isto, retorna-se para o seio da inconsistência – que nada tem a ver com o não-Haver, pois é inconsistente dentro do Haver – e é possível instalar aí um limite, também axiomaticamente. Ou seja, imitando o litoral, que é zero, inventa-se um limite, que é interno, mas limite é apenas uma linha de horizonte em que se diz: “Tudo de lá para cá, há, reconheço, mas não sei onde colocar precisamente o horizonte, porque, se me deslocar, ele se desloca também, mas resta como horizonte”. Isto é que é um limite. Aí se masculiniza o processo. Mas ninguém consegue viver assim, só na base do horizonte. Ter só o horizonte como referência para o falante instalado no macacão é muito pouco. Como ele vai ter pontos de referência mais ou menos fixados para aquém do horizonte? O que se pode fazer com isso? Na experiência de cada sujeito, pouco importa se essas instalações são anteriores ou posteriores, pois não é o tempo que interessa aí, e sim que, se formos fundo no processo, chegaremos a essa instalação. Mas certamente ninguém é matemático de saída, nem começa instalando zero ou infinito... Isso que Lacan chama de Nome do Pai – para o qual mesmo ele tem duas posições – é o limite da inconsistência: !=NP. Basta que se tenha um limite para poder dizer que existe pelo menos um – que não se sabe qual é, pouco importa – que diz não à inconsistência, que a limita e funda um Todo. Então, quando Lacan o põe como significante puro, sem nenhum significado, me dá o direito de enquadrá-lo axiomaticamente, e conceitualmente, como limite. Mas, na história particular de cada um, Lacan também fala de certa metáfora paterna que instala um processo de significância. Aí estamos

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passando para a terceira posição lógica, que é a de marcar certo significante, ou certo número, como sendo a referência. Em não se podendo ter referências concretas e amarradas no puro horizonte, é preciso determinada (digamos com todas as letras:) figuração significante para se dizer que ali é o fim do processo. Aí usarei a palavra limite de maneira errada, como se fosse esse ponto, mas não o é, porque aquilo é inconsistente e a marcação do limite não finitiza nada. Então, quando o indico, chamando-o, por exemplo, de S , estou como que 1 indicando finitude para a série, um lugar que pode ser lido como fim da série. Mas nem mesmo um significante qualquer, no sentido simbólico dado por Lacan, finitiza nada: é muito ambíguo, pode ser equivocado. Posso tomar um número ou um significante como sendo um marco metafórico do limite, mas se o levo a sério ele não põe nenhuma finitude. Ele finge aqui e agora uma finitude, mas pode ser interpretado, e o será, necessariamente, através das aventuras que o sujeito tem pela vida. Isto significa que a metáfora do limite é uma metáfora em processo, se não, em progresso: aqui e agora, está sempre diferenciada de si mesma. O que é fazer o processo do gozo (ou do jogo) do sentido? É, mesmo tendo algum elemento metafórico para me referenciar, continuar no processo de produção de Sentido, aqui e agora, no regime das peripécias do Haver, das minhas peripécias no mundo. Esta é a atividade do Falanjo, o qual sabe que existe função fálica, ou seja, que a inconsistência está lá, pode até ser barrada, mas não toda. Não é o mesmo que no feminino, onde não-Todo é afirmado. No terceiro sexo, não-Todo é barrado. A inconsistência pode, pois, receber um não, o qual não finitizará coisíssima alguma. É isto que o Falanjo diz no reconhecimento do masculino e na invectiva do feminino que nega aquilo. Os três sexos só funcionam um de olho no outro. É uma lógica inter pares: a cada posição sexual, tem-se que estar de olho nas outras, porque uma fundamenta a outra. É como se fosse uma amarração borromeana desses três sexos, mais um quarto que não dá para escrever. A posição sexual de um sujeito aqui e agora é borromeana: ele precisa optar por um lugar, de olho nos outros dois, porque a garantia é sempre entre os três. Não existe, por exemplo, feminino

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sem masculino, sem Falanjo, na mesma construção de um sujeito. Aliás, não se pode confundir a didática do processo com a estrutura. Chegar a se dizer Zero, infinito e horizonte é complicado, mas quero supor que isso sempre esteve em ação, e o zero está vigendo lá no meio. É como se ele fosse aquele a que Lacan escreve no seio do nó borromeano. A experiência sempre é assim, o que não pode ser confundido com os sintomas e as pressões sintomáticas que fizeram as pessoas poderem dizer isto e depois aquilo. O processo é total e borromeano – e a morte, como sexo, está lá segurando tudo o tempo todo: está assegurando as sexualidades possíveis. Quando digo que o sexo (h)agente do falante é o Terceiro, é porque este é o lugar desde onde se pode manejar qualquer instalação, mesmo sintomaticamente dada, digamos, pela natureza. Colocar-se um limite não maneja muita coisa, só faz um Todo. Suspender o limite também não maneja muita coisa, só empurra. Isto porque essas duas posições são axiomáticas, e não se trata aí de ter que lidar com o ontológico diretamente e comentá-lo. Então, a verdadeira sexualidade do falante é terceira. É aí que ele age o tempo todo, na consideração dos outros dois e em torno do quarto. Até quando se diz a asneira de que as fêmeas são femininas e os machos são masculinos, está-se errando e tentando produzir sentido aí na terceira sexualidade. É por aí que se goza para se poder dizer isto. E mais, é por aí que se goza, mesmo falicamente. Ainda que se adscreva o Gozo-Fálico a uma marcação significante, é esse significante, em Lacan, que é causa desse gozo. Se é o significante que é causa de gozo, ele é manejável no regime do Sentido, e não no do limite ou no da sua suspensão. Por exemplo, isso que se chama de Gozo-Fálico, e que se pode tomar pela via do chamado orgasmo, é causado por um significante que demarca a possibilidade desse gozo. Isto só se consegue manejar – inscrever, desinscrever, suspender, modificar, etc. – no regime da sexualidade que pensa aí o terceiro lugar. Portanto, o orgasmo de um macho, digamos, é determinado falangelicamente. A condição sine qua non para isto é a de que ele, primeiro, tenha posto limite, mas o gozo é determinado em vias de terceiro sexo, pois ninguém goza no primeiro nem no segundo. Não se confunda isto com o

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anedotário social, pois, na verdade, ninguém goza senão no terceiro sexo, aplicando sentido por escrito no mundo ou na carne. Se não, se ficava beócio: “Há um limite para eu gozar, mas quando é? Onde? Não sei”. Se não marcar, não se sabe onde é. Então, a marcação de limite de gozo jamais é masculina. Feminina, nem pensar. Aí estão, pois, as peripécias gozosas do falante: sua patologia. Mas está na hora de se começar a pensar por que esses caras adoecem. Por que, além do pathos original de terem que perseguir os quatro sexos num minueto muito esquisito, de só poderem gozar pela referência encontrada no terceiro e de só poderem funcionar ali, ainda ficam doentes? *

*

*

Quero começar pela Psicose. A psicose não é o Feminino. Quando Lacan diz que as mulheres são meio doidas porque suspendem o Nome do Pai, aponta com isto a loucura normal, cotidiana, do falante na inconsistência do Inconsciente. Digo até mais, se o Sujeito, angelicamente, não inscrever um Nome reconhecível no lugar do limite, também ficará meio doidinho. Ou seja, o Masculino é meio doido: fica aí dentro, sabe que há um limite, mas precisa sempre estar perguntando onde é. Ele não desbraga como o Feminino, ele tem limite, mas para saber qual é, vai conversar com os outros, precisa invocar o Falanjo. Ele só sabe que sem limite não dá, mas jamais será de seu ponto de vista de Masculino que se dirá qual é o limite. É preciso chamar um Anjo, um Mensageiro, para se saber isto. O Masculino, aí, tomará ou achará um limite, que pode ser um acaso, um dado bruto, copiado do macaco, por exemplo. Façamos de conta que se está fundando a Cultura, o limite será, então, a “interdição do incesto”... Ou seja, o Anjo lhe diz alguma besteira, mas que é operacional, operativa. O psicótico depende de uma Nosologia, a psicose é uma doença. O psicótico não consegue funcionar jogando com as pelotas (os quatro sexos sendo que uma bate em falso): três bolas no ar e o vazio entre elas. O que

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Lacan chama de foraclusão do Nome do Pai é, para mim, foraclusão do limite. Portanto, se por algum motivo, prévio ou atual, um sujeito não pode se colocar um horizonte, chama-se psicótico. Se quisermos nos livrar um pouco do catolicismo de Lacan, não é mais preciso falar em Nome do Pai, basta dizer: foraclusão do limite – que é mais matemático, mais abstrato e não se fica devendo muito à sua história religiosa. Foracluir o limite é, tomando a tese de Lacan, previamente, um sujeito não ter conseguido incluir – ou seja, axiomatizar para si a partir de certa experiência – a noção, a idéia, o conceito, sei lá o quê, de limite. E se um sujeito não tem horizonte, ele fica como uma nave louca perdida no espaço interplanetário. Eu precisaria, na experiência de que estou dentro do Haver, com o litoral intransponível do zero, ter uma noção de horizonte para poder dizer um Todo. Então, eu me viraria dentro do Todo e até acharia alguma referência para colocar no lugar do horizonte. Se, por exemplo, paro aqui, o horizonte estará ali. Esta é uma boa maneira de marcar o horizonte de que preciso hoje. Ou seja, esse-um (S1) ponto que está aqui, me dá aquele horizonte ali. Não confundir o horizonte com o ponto de onde o marco, pois posso mudar de lugar e re-definir o horizonte. Mas o horizonte está lá, não saiu do lugar. Portanto, não confundir marcar o lugar desde onde vejo o horizonte com haver horizonte. Quando não se tem a referência do horizonte há psicose. Reclamo, pois, para garantia da idéia de Psicose, o conceito de foraclusão do limite. Algo acontece quando um sujeito ou não conseguiu axiomatizar o limite ou perdeu seu axioma. Uma das maneiras de o sujeito vir a axiomatizar o limite na sua história, talvez mesmo na passagem do etológico ao simbólico, é justamente, antes ainda de axiomatizar o limite, ter fincado o pé ao lhe dizerem: “Aqui é o seu lugar, é daqui que você vê o horizonte”. Talvez, então, ele venha até a compreender o horizonte porque lhe mostraram o lugar de onde deve vê-lo. Isto pouco importa. Mas se marcaram o lugar, ele entendeu o horizonte. Se o lugar foi marcado com vistas ao horizonte, ele poderá axiomatizá-lo de algum modo. Acredito mesmo que, dado o modo de surgimento desta nossa espécie, não se tenha começado pelo horizonte, mas sim que

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foram necessários milênios para que as pessoas fossem entendendo os deslocamentos, até dizerem que, no fundo, é um horizonte que é o mesmo para todos. Depende do ponto de vista, mas é o mesmo. O que é marcar o lugar de onde se divisa o horizonte? Se o limite pode ser chamado de Nome do Pai – não esquecer que, em francês, trata-se do nome de família, sobrenome, ou seja: Lacan, e não Jacquinho –, para todos entenderem o nome do seu pai como limite, isto se dará a partir de um prenome que o marca aqui e agora. Então, o apelido do pai é um número, um significante, um local demarcado de onde se vê o horizonte. É possível que nenhum falante entre numa de entender o horizonte sem que lhe seja dado prenome: um Nome Próprio a ser justaposto àquele Nome do Pai. Mas o que é preciso é que, tendo recebido esse lugar, o sujeito venha a entender que ele põe divisa para o horizonte. Só ter o lugar, não segura, é preciso o horizonte. Não é à toa que Lacan fala em metáfora paterna, mesmo porque ! é metáfora de zero, mas é uma metáfora muito aberta, e S1 é metáfora mesmo, sintoma, S, lugar marcado. Também não é à toa que ele chama isso de PèreVersion. Horizonte não pode ser perverso, pois se mexe o tempo todo. Mas quando se produz o enunciado de um nome, de um lugar desde onde se divisa o horizonte, não há como não ser perverso – Freud disse isto desde o início. O puro e simples enunciado me situa, me dá mesmo o gozo desta situação, começo a gozar por aí: a primeira referência de gozo diante do horizonte é a versão paterna que dou ao horizonte. O mais provável é que só se consiga fazer a grande abstração de horizonte porque alguém forçou o sujeito num lugar de onde ele o divisa. Há também pressões etológicas. Por exemplo, lhe dizem: “Você é fulana, nascida em tal lugar, menina, com roupa rosa”. Ela acredita, olha para o mundo desde esse lugar e vê que há um horizonte. Ela não é psicótica. No caso da Neurose, o que há é, pois, uma inclusão do limite. Não confundir a lógica abstrativa que precisa do zero, do infinito, etc., com o processo de historicização de um sujeito, cuja “didática” do horizonte deve passar pela imbecilidade da marcação. Ou seja, pela perversão que lhe dão de presente para divisar o mundo.

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Temos, então, no ponto marcado S1, duas coisas importantes. Um sintoma, que o sujeito toma como tal (um significante metaforizado), sobre o qual vai definir um lugar e mesmo construir objetos. Este lugar é, pois, sintomático e perverso, o que não é da ordem da nosologia, e sim do pathos. O perverso, diferentemente do perversista, não é doente. Freud sacou isto quando falou em perversão polimorfa. Mesmo uma perversão mais ou menos escolhida (cada um tem a sua, graças a Deus: sabe com o que goza e por onde) é um pathos fundamental a partir do qual transitamos na sexualidade. Mas é apenas um pathos, que não deixa de ser imbecil por ser sintomático e perverso, mas se não fosse assim seria pior: não se seria nada e se estaria perdido. Se não tenho condições de divisar um horizonte, o limite do mundo que vejo a partir de meu sintoma e da minha perversão, sou psicótico. Se desde um lugar sintomático porque metafórico, perverso porque localizado e amarrado num objeto, posso divisar no mundo o seu limite, o seu horizonte, sou Sujeito não-psicótico. O psicótico seria aquele que não divisou, não sacou que a única funcionalidade disso é demarcar um horizonte para ele, tanto é que com o tempo poderia mudar ou elasticizar o sintoma, a perversão, e o horizonte continuaria tido: só se desloca junto, pois tem sempre o mesmo tamanho, é sempre equivalente, não tem nem figura, é só o horizonte, só limite. Eu me desloco e ele continua lá. No psicótico há alguma distração, algum rompimento que o faz perder a noção de horizonte. Ou seja, não axiomatiza limite para si e o que fica conseqüentemente prejudicado é o zero. Isto porque, além de axiomatizar o zero, é preciso, agora de dentro, instalar um limite que não deixe o Sujeito fluir radicalmente pela inconsistência. O Feminino não é doido, pois sabe muito bem que existe o Masculino, o limite, que ele vai suspender. Ele vai criar caso com a metáfora da LEI. Se a LEI onticamente dada de haver zero, Real, é transposta metaforicamente para R, no Esquema Delta, significa: a LEI, “internamente”, é o limite. Saber que há LEI é saber que há limite. Qual? Isto é outra história. O Feminino sabe que há LEI, tanto é que a nega, pois não a poderia negar se não soubesse que havia. O que faz é forçar o

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Masculino a considerar a mobilidade do horizonte. Isto não é cair na inconsistência, desvairadamente, por não haver limite. As coisas estão aí ontologicamente postas, imanentemente dadas, mesmo para o psicótico. O que ele não sabe é colocar um limite, seriar isso. Se não sabe seriar o que se lhe apresenta, ele tomará séries emprestadas dos outros. Tanto que se o vê “passar bem” a vida inteira até que, um dia, surta – porque estava utilizando a seriação de outrem. Ou seja, se descolar e pedir para si mesmo, ele se perde. E se perde no que, para mais do que infinitizar as possibilidades, ele dá de cara com uma inconsistência que é tal que vai prejudicar mesmo o seu zero. Ele vai se produzir, no contato com os discursos, com as coisas, um delírio, uma alucinação, que lhe dê uma marca, mas que não vem como limite, e sim como contrafação de um zero. É o zero que saltou de lugar, e pode saltar de tal maneira que se passa para outra vida, fala-se com Deus, com os mortos... É como se entrasse uma porção de não-Haver dentro do Haver. No caso da possibilidade de um sujeito vir a se tornar psicótico, a foraclusão, segundo o último conceito de Lacan, é de que jamais teria entrado para ele a inscrição de limite. Tenho sérias dúvidas aí. Gosto mais da frase de Lacan nos Écrits, p. 176, que diz: “Longe de ser para a liberdade ‘um insulto’, ela [a loucura] é sua mais fiel companheira, ela segue seu movimento como uma sombra”. Isto me parece bem mais verdadeiro, pois no que se consegue desgrudar de neurose e se invectiva angelicamente sobre o mundo, pode-se, na própria referência ao limite e nesse périplo de infinitude, de repente, perder as estribeiras, dissolver o horizonte, mesmo que ele tenha sido embutido lá. Isto porque, se se diz que tanto zero quanto infinito são números, fica a garantia de que, se entrou, não sairá mais. Mas se dissermos que é um axioma que se tem que posturar, a garantia do axioma é só ato, mais nenhuma. Não se tem nenhum número de pedra para colocar no lugar da experiência de zero ou de infinito do Sujeito. Temos as pedras – o real que Lacan diz que é onde o psicótico cai – dos números que estão no mundo, mas a origem e o limite são ato. Minha hipótese é de que este ato pode desatar. Não fico de modo algum

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convencido de que um Hoelderlin fosse psicótico enquanto fazia aqueles poemas. Prefiro supor que, no movimento de sua decolagem, o horizonte sobrou, de repente... Por isso é que, lá n’O Sexo dos Anjos, coloquei que o psicótico – e esta é outra maneira de dizer isto – fica na obrigação do Feminino. Não é bem de Feminino que se trata, e sim que, no caso das sexualidades, ao invés de ter condições de correlacioná-las e deslizar aí dentro, é como se as outras desaparecessem e ele ficasse em R sem zero e fosse direto, como se pudesse ir, até o não-Haver. Ele perdeu a consistência. É como se o Feminino existisse sozinho sem os outros. Portanto, não é nem mesmo Feminino, não é só uma suspensão do limite, é como se limite não houvesse. Acho a questão da Morfose mais simples, porque nela não há foraclusão. Só que, seja da vertente da fobia ou da perversidade, é muito pior. Tem limite, tem fronteira, mas o sujeito não quer saber nem de um nem da outra, e sim só disso que chamo de Marco, aquela pedra que se põe na fronteira para a demarcar. Ele só olha para ali. Faço a metáfora de que é como se o sujeito tivesse empacotado zero, limite e fronteira dentro desse Marco. Mas mesmo assim, há como abrir esse troço e re-expor a abertura. É o que deixa alguns analistas perplexos diante, por exemplo, do que chamam de perverso, e que eu chamo de perversista. Eles se encaminham na sua análise e acham que ali não há zero, limite ou fronteira, mas o sujeito age sempre como se o tivesse. Não funciona como o psicótico. Ele reclui, põe tudo dentro daquele pacote. Isto seria, digamos assim, um fetiche. Aliás, cabe lembrar que Renegação (Verleugnung) é de todos nós e não garante conceito algum de perversão. Que o sujeito, baseado nisto ou naquilo, renegue mais ou menos, isto não qualifica nada. Talvez se possa descobrir, por exemplo, determinado morfótico tão seguro no seu Marco de fronteira, que tem ousadias renegatórias que um neurótico não teria e, aí, fica parecendo que é disso que se trata. O que entendo – tanto da reflexão teórica quanto na prática – é que o tal de morfótico é uma peste. Ele simplesmente empacota tudo ali dentro. E

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quando se mexe ali, ele não abre, mas vira ao contrário: faz grandes surtos fóbicos, se estava numa de perversista; ou surtos perversistas, se estava numa de fóbico. Ou seja, utiliza o Marco da sua fronteira como ponto de báscula da mesmíssima estase morfótica. E eles são muito vivos, jogam muito bem... Isto é diferente de não ter Nome do Pai, pois está tudo ali dentro empacotado. Ao manejar o seu Marco, ele está manejando tudo isso junto. Portanto, primeiro movimento legal: posturação do limite; segundo: nomeação provisória, como providência, desse limite; terceiro: o lugar posicionado nessa fronteira, o Marco de limite de cada um (o neurótico é aquele que pensa que este é o limite) que dá suporte às nossas perversõezinhas e fobiazinhas cotidianas, mas que não é uma estrutura morfótica. Agora, tomese essa marquinha aí e se a coloque como fetiche, que o morfótico porta: ele transará muito bem através daquilo, mas só através daquilo. É possível universalizar a partir do limite, é possível criar uma fronteira desse universo – e a crio toda vez que faço um enunciado legal. Ou seja, se fiz um enunciado legal, já estou culpado de perversão – mas não de perversidade necessariamente. Freud diz que governar é impossível: é impossível no limite, mas é possível na fronteira. Mas não é possível governar sem processos contra a fronteira e sem ter feito um ato de perversão, ou seja, de delimitação da fronteira. Só que o perversista não faz só isto, pois reduziu o limite obstado por seu horizonte à fronteira, e reduziu a fronteira ao Marco que empacota, como fetiche, e o põe no bolso. A perversidade do perversista está em que: a lei para ele é o Marco que ele porta, ou que ele é – e ele impõe uma regência a partir deste seu barato. Portanto, ele não sofre de uma falta de limite, mas sim de uma reclusão do limite, e da fronteira – tudo empacotado dentro daquele Marco. A partir de sua estada (ou do seu estado) – o verbo do perversista é estar –, ele rege qualquer coisa que vier, porque aí está seguro. Seu lugar, para ele, não é falso, nem é só verdadeiro: é real, concreto e absoluto. Se ele, portador do fetiche, ficasse na análise – e é bobagem dizer que eles não vão ao analista: vão, porque sofrem de outras coisas, mas não ficam –, de repente, seria como se

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pudesse fazer uma cirurgia: abrir-se-ia o feitiço e se mostraria onde está o Marco, a fronteira e o horizonte. Isto porque, quero crer, há possibilidade de cura, já que ele fez o contrário do psicótico que perdeu as estribeiras. Ele só tem seu estribo, mais nada. Por isso, pode invectivar a lei, invectivar tudo: afinal está tudo no bolso dele. Se ele tem isso, pode legiferar à vontade, não importando nenhuma lei que Outro faça... O que é o avessamento disso? É que isso é explosivo, pois contém tudo lá dentro. Se retorna contra ele, ele entra em fobia. Por exemplo, o sujeito tem claustrofobia: a situação de claustro lhe é um verdadeiro anti-fetiche, pois o aniquila. Ou seja, uma coisa é o fetiche ser dele, outra, é ser do Outro. Se o fetiche que é dele aparece com alteridade, ele estará ferrado, será posto fora. Mas todas as transas que chamamos propriamente de perversistas estão no interior da perversidade, e não da fobia – sadismo, masoquismo, são jogos no manejo do fetiche... Eu disse n’O Sexo dos Anjos que o morfótico seria a obrigação masculina. É claro que isto é meio falso. Não é por ter que ficar na obrigação do limite que ele é morfótico. Obrigação aí quer dizer que ele encolheu o limite, a fronteira e ficou aprisionado ali no seu Marco. Ele nem considera os outros. É como se houvesse um empacotamento do limite, uma reclusão, para dentro. Já o Falanjo, que não é doente, opera o tempo todo a eclosão do limite. Ou seja, vive no jogo do mundo, no discurso, fazendo eclodir o evento, o acontecimento: dizer sobre esse lugar, remarcar as fronteiras, reconsiderar o limite, dentro dos processamentos da sua história. Temos, então, o seguinte quadro: " Ps – foraclusão do limite (!) " Nv – inclusão do limite (!) " Mf – reclusão do limite (!) " Flj – eclosão do limite (!) *

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Mas há umas coisas esquisitas. O neurótico, por exemplo, precisa tanto da sua fronteira para não ficar angustiado com o que vem adiante no limite que, ao invés de acreditar no Anjo, acredita no morfótico. Quem é o avesso, ou seja, o dono do neurótico? É o morfótico. Vivemos, hoje, numa sociedade perversista: por ordenação dos perversistas e com o voto dos neuróticos. Coloque-se um perversista como candidato e os neuróticos votarão nele, seja o perversista de que partido for, isto pouco importa... O gosto que tem o neurótico em se referir, ou seja, culpabilizar o perversista, para restar numa boa dentro da sua própria neurose... Tadinho, ele faz tudo direito, quem faz errado é o dono dele, que manda ele ser isso e aquilo. E ele fica nesse double bind com o morfótico. O neurótico precisa do fóbico para lhe dizer: “A partir daqui é o horror”. O horror, na verdade, está lá no longe, quase no horizonte, mas o neurótico bota o galho dentro e faz o que o fóbico diz. O perversista lhe diz: “É aqui que se goza” E o neurótico aquiesce: “Então vamos fazer tudo direitinho senão a fronteira vai ficar esculhambada”. Quer dizer, o presidente dos neuróticos é morfótico. E se alguém diz ao neurótico: “Não é nada disso, dá uma de Anjo, conversa, muda, repensa”, ele grita logo: “Esse cara é perverso, só pode ser, pois vejam o que está fazendo: estava tudo arrumadinho e ele está querendo que eu faça uma sacanagem diferente”. Em nossa cultura chama-se de perverso quem é sadio, e aos perversistas chama-se de deputado, senador, presidente... Às vezes também se chama de analista. A lógica mínima do morfótico é, pois, a reclusão do limite, a qual, como fundamento, será aplicada sobre tudo, sobre qualquer coisa. No caso do fóbico, por exemplo, encontraremos coisas da ordem da agorafobia, da claustrofobia, etc., que são organizações já dentro da sua historinha, dependendo de como operou a reclusão. Se determinada figuração significante é imaginária e passar a incluir, a ser o ponto de reclusão, aquilo é que será o terror. Estou começando por destacar a lógica mínima, a minimalidade, dessas doenças. No morfótico, como já disse, é como se houvesse um empacotamento do limite e uma reclusão “para dentro”. O psicótico fica como se fosse preso “para fora”,

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numa posição em que não tem marca nenhuma, em que perde todas as referências. O neurótico é como se ficasse preso no Sentido, num sentido já obtido, dado, que faz fronteira para ele. Este é um pouco mais brando porque o recalcado retorna, há melhores condições de conversa, tratamento do recalque, etc. Os outros dois são barra muito pesada porque não estão referenciados apenas a uma estagnação de fronteira. Por que alguns autores, quando começam a abordar francamente um perversista, pensam que parece que há aí também foraclusão do Nome do Pai? A foraclusão aparente aí é efeito. Na psicose é como se disséssemos que não adianta, já que aquilo não está lá inscrito. Na morfose, não se pode nem dizer isto, porque está tudo empacotado. É preciso pensar se será que, mexida esta reclusão, o lugar, a marca, passa a ser fronteira, se a fronteira reconhece o horizonte. Ainda acho isto um pouco mais fácil do que na psicose, que não tem nada. Por isso é que o perversista não precisa de analista, não precisa de nada: ele reina porque tem tudo empacotado ali dentro. Esse lugar marcado para ele é reclusão tanto da fronteira quanto do limite. Ele o leva no bolso, chama-se fetiche, e sem questões. Só pinta questão se isto lhe for tirado. No caso do fóbico, como ele o guarda no bolso de trás e não o está vendo, quando se lhe diz: “Olha aqui o que há no seu bolso”, ele pira, entra em pânico. Ele bota no bolso da calça, atrás, para não ver, e só não enfia em algum lugar porque isto lembraria demais... Quero supor que se um sujeito está em foraclusão, qualquer aparência de inclusão, de reclusão ou de eclosão deve ser falsa, deve ser emprestada de fora. Mas não posso duvidar da existência, por exemplo, de um sujeito que tenha uma regência, um referencial básico, perversista, sem ser absolutamente perversista, pois dá para ele transar no regime da fronteira, do limite, etc. Ou seja, os casos, a casuística deve ser enorme, a partir da minimalidade lógica que estou apresentando. Há uns textos engraçadíssimos sobre perversão, onde lemos: “a perversão na neurose...” Se o sujeito é neurótico, fronteira, lugar, a perseguição do recalque, etc., estão marcados. Mas como qualquer sujeito, ele tem o seu

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“barato”. E ter um barato não é ter um fetiche. O fetiche comanda mesmo, barato é barato. Pode-se passar a vida inteira com aquele barato porque se pode elasticizá-lo no discurso. A fixidez, a fixão do neurótico na fronteira não faz mais do que acrescentar a força do barato. Pode parecer um fetiche mas não é: ele tem mais força no barato justo porque tal barato o ajuda a recalcar. O trato dado pelo neurótico à sua perversão dá impressão de que se trata de perversidade, mas, ao contrário do que se pensa, a fixidez nessa perversão o ajuda a recalcar o que deve ser recalcado. E isto é da ordem da neurose, nada tendo a ver com morfose. A melhor maneira de se distinguir isto é tomar o caso daqueles que são chamados normais. A melhor das interpretações não é aquela que visa um desvio ou uma grande diferença, e sim a que faz eclodir uma eventualidade em cima do que a todos parece muito comum. O melhor golpe político é em cima da normalidade, ou vocês não entenderam o que está acontecendo no Oriente Médio, que é o feitiço contra o feiticeiro? Em vez de tomarmos um sujeito neurótico que tenha esse ou aquele desvio, de que fala no consultório, tomemos um que diz assim: “Não vou nem ao analista, sou um cara muito normal”. Por exemplo, o protótipo do machão, que é bem considerado na cultura ocidental: é, na verdade, um neurótico, cuja perversão é exacerbada para lhe garantir o recalque. Ou seja, pergunte-se a um grupo o que ele chama de normal e se interprete isto: ali é que pinta a minimalidade da coisa. Do ponto de vista de uma cultura afeita a tal neurose, esse cara é o “bão”. Por exemplo: “Sou vidrado em mulher”. Mulher é maravilhoso, mas não é tão assim, para ele ficar tão gamado. A lua é muito mais interessante – os poetas que o digam. Nessa hora ninguém pergunta que aparelho de perversão – e não de perversidade – foi intensificado para ele operar neuroticamente uma fronteira mesmo debaixo dos retornos do recalcado. Todo machão que se preza, se você botar o dedo no lugar certo, aquilo abre, todo mundo sabe disto. É preciso ir ali e interpretar, pois é onde está a neurose do “consenso” social. Não se deve tomar uma exceção, pois esta só é boa para se pensar a grandiosidade dos casos, mas, para pensar a veracidade mínima, tome-se o mais normalzinho.

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Todo morfótico, perversista ou fóbico, é fetichista, no meu modo de conceituar o feitiço, e que inclui tudo o que chamam de fetiche, pois está abstraído ao máximo na minimalidade do conceito. O que as pessoas não sabem é distinguir a ordem de fetichização, pois pensam que só é feitiço quando um objeto está em jogo. Um objeto facilmente discernível. Mas se temos qualquer coisa, algo, qualquer havência, qualquer formação do Haver que valha para o sujeito como esse Marco que reclui o limite, e junto com o limite a fronteira, então temos a regência, para o perversista. Para o fóbico, se isto comparece, ele está perdido, mas perdido de quê? Paradoxalmente, disso, dessa marcação. Os dois, aliás, se perdem: um “para dentro” e outro “para fora”, um é buraco negro e outro buraco branco, joga-os longe. Mas é o mesmo feitiço. O conceito de feitiço é suficiente para dar conta de morfose: é a reclusão do limite, o pacote onde o limite está recluso. Como já disse n’O Pato Lógico, é o pacote onde o Nome do Pai está enclausurado. É a mesma coisa, só que agora está minimalizado e matematizado. O feitiço é zero, infinito, fronteira, limite, tudo. É o que quer que sirva. Um sujeito que possui essa pedra filosofal é dono do mundo... até que ela seja questionada, posta em perigo. A LEI é onticamente dada, imanente, porque o Haver há e o nãoHaver não há. Isto já é castração suficiente, e é o que vai ser remodulado. Posturar zero é entender a LEI, imanente. Agora, tome-se a LEI e se a reposture como limite, vai dar-se um zero no final da série, daqui para lá não há mais nada, só que é infinito. O que temos aí é a Lei com L maiúsculo. Aí começa aquela marcação de lugar porque é preciso, mesmo angelicamente, ter enunciado alguma lei, agora com l minúsculo. É a minha referência: “Sou um macaco, um papagaio, da tribo tal”. Fiz um enunciado legal, que é falso, ou seja, provisório, uma pro-vidência tomada: é apenas pro-videncial. Temos, então, o quadro: " LEI – 0 " Lei – ! " lei – (enunciado) É preciso lidar com a lei angelicamente, no infinito das interpretações,

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das lutas, de fazer valer este ou aquele sentido... Mas se acredito nela, se digo que a fronteira é esta e não quero saber do que está para lá, sou neurótico. Se tomo o enunciado como tal e, sem crença alguma, o ponho no bolso, sou morfótico. Não há aí nem retorno de recalcado: o que pintar é comensurável com a lei, com o fetiche. Não existe infinitude, incomensurabilidade, inconsistência, nada: esta é a régua que mede qualquer coisa, e a régua é minha. Para o melhor ou para o pior, para o gozo ou para o horror, meço com essa régua. Isto é que é um feitiço. Eu poderia fazer uma metáfora melhor e, para brincar de Karl Marx, dizer que feitiço é o padrão monetário fixado da ordem capitalista, que é absolutamente perversista. Estamos com dificuldade de entender a perversidade porque talvez nunca, em nenhum momento da história, se tenha vivido numa sociedade perversista como esta em que vivemos, e com os neuróticos aplaudindo e dizendo que o mal é uma questão de narcisismo... Ora – não é assim. Nada é mais narcísico do que o Haver. Ninguém mais narcisista do que Deus. Estão me perguntando aí sobre a queda do muro de Berlim. Os muros só caem porque de um lado e de outro era igualzinho, não havia diferença alguma. Agora, não se precisa mais de muro, se precisassem estava lá. Estamos nessa coisa bonita da TV, de que caiu o muro de Berlim, oh! Ele já não estava lá, portanto nada caiu. Na verdade, estamos passando por um período de homogeneização que foi tentado por tantos políticos e está acontecendo na base da fetichização radical, numa luta ferrenha contra o deslanchamento do próprio capitalismo, e nisto Deleuze tem alguma razão. Se deixassem deslanchar, não ficava assim. Então, a única coisa de que se consegue brincar hoje em dia é de virar o feitiço contra o feiticeiro. Surge um perverso que diz: “Sou mais perverso do que vocês, querem ver?” – e faz a invasão do Kuwait. É só isso, é tudo família, está tudo em casa... *

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Preciso, portanto, primeiro, já que minhas bases são no sentido de abstrair cada vez mais até a minimalidade lógica dos processos, posturar essa conceituação. É claro que não a tirei do bolso, pois há uma história enorme da psicanálise atrás de mim – apenas a utilizei. Mas tenho que fazer o caminho de volta: preciso ir mostrando paulatinamente algumas configurações (não mínimas, porém freqüentes) em torno disso e, depois, a casuística particular. Acho um pouco abusivo o modo como isto é tratado freqüentemente nos textos. Esse negócio de que “a mãe do psicótico” fez isso e aquilo, não dá. É preciso ler com abstração e encontrar os pontos de referência, ou de não referência, que podem ser situados nos lugares os mais imprevistos, e não com a historinha edipiana de mamãe fez isso, papai fez aquilo. É preciso entender, na fala do sujeito, onde prega e onde desprega, com muito mais abertura, talvez... 21/AGO

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L’Inconscient est Structuré comme un Lynchage

16 L’INCONSCIENT EST STRUCTURÉ COMME UN LYNCHAGE O título da sessão de hoje é uma brincadeira literária de Philippe Sollers, que, num certo texto, faz alguns comentários sobre Lacan e sobre a frase: l’inconscient est structuré comme un langage. Com esta pequena deformação sonora, a frase de Lacan passa a ser: o inconsciente é estruturado como um linchamento. Para apostar nesta frase, Sollers se baseia nos trabalhos de um chamado René Girard que, por via da história e da sociologia da religião, e fazendo certa chamada de atenção sobre o texto freudiano Totem e Tabu, quer assentar, digamos que em última instância, a construtura do humano na violência realizada por um grupo social em sua totalidade. Violência mediante a qual se produziria, por assentamento nitidamente religioso, o “bode expiatório” como emissário de um processo simbólico de humanização. Freud, como sabem, no famoso Totem e Tabu, inventou aquele mitozinho do começo da história da humanidade, através do qual é narrado que certo orangotango humanizado que dominava a tribo, sobretudo possuía todas as fêmeas em detrimento dos outros machinhos que eventualmente lá estivessem, um dia é contestado por seus filhotes, os quais se organizam e “jantam” literalmente o pai, mediante um assassinato e uma comida. Nesta manducagem originária, eles entendem o processo de formação da sociedade humana, da simbolização no social, pela construção de um tabu em relação ao totem: “Não se toca mais naquele bicho”. Está fundado aí,

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talvez, um totemismo radical, inicial. Os poderes e as fêmeas são divididos entre aquele grupo de filhos que conseguiu arcar com o assassinato primitivo que, aliás, fundaria a instância paterna enquanto Pai morto. É claro que estou resumindo muito brutamente o Totem e Tabu. A crítica de Girard é que, para ele, não se trata só disto, mas de uma necessidade fundante como violência social praticada por toda a comunidade sobre determinado indivíduo que não é necessariamente o chefe, mas que, por via religiosa, funda a estabilidade social mediante o ato de construção de um bode expiatório. De um modo ou de outro, o que é espantoso é reencontrarmos sempre o modo de fundação por via de linchamento. Algum processo de abstração, cada vez mais produzido, mais levado a cabo, poderia eventualmente nos retirar desta vocação de linchamento que parece percorrer as teorias e os fatos sociais. Não quero dizer que Freud estaria errado em fazer a suposição de um linchamento no começo da história. Não quero dizer que não reconheça uma série de linchamentos fundadores na história da humanidade e no cotidiano das pessoas, mas ao invés de explicarmos a fundação por via de linchamento, ou seja, mitificando-o como necessário, devíamos insistir na sua abstração de maneira a poder deduzir, ou compreender, o linchamento que se instala na aderência do macaco a determinada estrutura. Compreender por via de abstração mais abrangente, que eu gostaria que fosse mesmo matêmica, se não matemática. *

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A partir de construções matemáticas dos Seminários anteriores, quero perguntar sobre certos fenômenos de passagem, na história de um sujeito, que conotam a relação que pode haver entre a estrutura abstrata de fundação da Lei – e mesmo da imanência da Lei ao Haver – e a passagem deste entendimento ao entendimento das composições legais dos processos legiferantes, no nível do macaco que se torna falante. O linchamento, nas sociedades contemporâneas, não parece tão

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evidente. Tampouco o puro e simples linchamento freudiano do orangotango proprietário, ou mesmo, como aposta Girard, o linchamento de qualquer um feito por um ato social total de transformação e de fundação do social por via religiosa. Mas eu encontraria fortes evidências da repetição intensiva e extensiva desse linchamento quando desenhado por outro aparelho que é também muito preciso na escrita de Freud, que é o aparelho Moisés, embora não haja uma correlação muito grande, ponto a ponto, entre o linchamento de Totem e Tabu e o suposto linchamento de Moisés no Moisés e o Monoteísmo. No primeiro caso, o linchamento do orangotango é no sentido de quebrar a opressão, tomar o poder, simbolizar o linchado, organizar simbolicamente o grupo, fundar uma sociedade de fratria sobre aquele assassinato. O orangotango primevo – talvez Pai da ordem primitiva – porta todas as características reativas do orangotango em relação à sublimação possível por seus filhotes no que instalaram a simbolização criativa, criadora de social. Há aí o odor de animalesco no morto que vai virar Pai morto. Isto por um ato de substituição, um ato simbólico da sua filiação, e não dele. No Moisés, é uma coisa mais parecida com o que acontece hoje em nosso mundo. Moisés não é bem o orangotango de um bando de macaquinhos capazes de sublimação. Tal como Freud o apresenta, ele se parece mais com um Sujeito capaz de alta sublimação por aprendizagem egípcia de uma religião no máximo de sua desimaginarização, com Amenófis IV, Akenaton, contra o imaginário da religião egípcia. Justo no que tenta emprestar este valor abstratíssimo àqueles que tomou por membros da sua verdadeira fratria, os chamados judeus, a hipótese de Freud é de que isto foi recusado e que Moisés foi linchado pelos próprios judeus porque lhes trazia algo de superior. Há, pois, uma dissimetria entre o macacão da horda primitiva e Moisés. Um, assumindo todas as características do animalesco, ou seja, insistindo sobejamente nos “direitos” etogramáticos da sua macaquice. Quando observamos etologicamente um grupo desses, notamos lá instalado determinado macacão mais forte que tem direitos de domínio de territórios, de domínio sobre o grupo, de possessão das fêmeas, etc. É preciso alguma decadência deste

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macacão para que algum outro macaco venha se instalar no lugar. Freud não faz um mito com a sucessão de macaco para macaco, mas sim com um animalzão e, ali, alguma coisa se passando já na ordem do simbólico. Este animal será assassinado, comido num banquete ritual, transformado em antepassado morto e, mediante este símbolo, vai-se organizar o social. Então, o Pai da horda primitiva é um animal, um grandíssimo animal que será simbolizado, sublimado, digamos, pouco adiante, pela sua filiação. O que é diametralmente oposto à posição de Moisés, que parece trazer um grande refinamento abstrativo a uma tribo de bárbaros, que o mata justo por causa disto. A tese de Freud é: lincha-se Moisés porque ele foi melhor e depois, passado muito tempo, isto vira uma grande culpa. Sem a presença daquele mesmo Moisés que podia cobrar por aquilo, num processo de dissolução lento e gradual desta culpa enorme no passado, os judeus começam, por via também de pequenas minorias, chamadas proféticas, através de alguns profetas, a retomar as palavras do assassinado, do linchado, e a impor aquilo, culposa e culpabilizantemente, como ordem legal. Se a psicanálise serve para alguma coisa, seria no sentido de – no processo de limpeza, em primeiro lugar, de toda nossa história individual e coletiva de entendimento e abstração das estruturas e de como funcionam – cobrar de si mesma a possibilidade de poder instaurar-se dentro do mundo uma ordem de abstração de tal nível que não fosse mais necessário que a “neura” fundada e fundante em que vivemos mergulhados se obrigasse perenemente à sucessão de linchamentos que praticamos sem parar. Isto para que as coisas viessem a dar passos sucessivos. Em uma das sessões anteriores, alguém me perguntava como se poderia entender o chamado assassinato cultural, que é algo que percorre a história da humanidade e nosso cotidiano. Como seria possível que grupos humanos, esteados em certos vislumbres que a psicanálise pôde trazer na prática da análise constante, pudessem operar as suas relações interpessoais, de grupos, de coletividade, de instituições, como quem mexe numa maquininha, numa espécie de regra de jogo que funcionará ou não, será modificada ou não? Isto ao invés

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de se estar perenemente fazendo recurso à ordem etológica, fantasiando-se de animal, para poder projetar em determinadas pessoas esta movimentação de modo a exercer um linchamento efetivo para, depois, tomar vergonha e tomar o linchado como legislador. Se a psicanálise, então, serve para alguma coisa do ponto de vista do político, seria: onde ela habitasse, funcionasse, manteria o entendimento da abstração e da distinção entre as possibilidades de regragem de jogos intersubjetivos. Ela faria a distinção entre isto e a projeção sobre determinadas figuras ou determinados Sujeitos, sejam eles da ordem do artístico, do científico, do político, etc., que viessem a ter que assumir valores carismáticos para serem trucidados e, posteriormente, entronizados. Minha pergunta séria é: como, depois de tratar com tudo isto, os próprios psicanalistas não sabem se comportar politicamente? Que tipo de operação, de trabalho cotidiano, destes que se fazem com as pessoas que estão deitadas no divã, é possível? O que também se poderia fazer num nível mais abrangente, de modo a entender, destacar, interpretar os fenômenos, as ocorrências, muitas vezes absolutamente indiscerníveis, que aparecem? Criando-se com isto uma eventualidade capaz de transformar em discurso que vai se projetando para a frente, e não sobre as pessoas? Acho espantoso que os chamados analistas – aqueles que teriam, quem sabe, maior dever de lidar com isto na invenção de uma política nova –, sobretudo dentro das ditas instituições psicanalíticas, sejam tão projetados sobre a etologia imbecil que a gente carrega de algum modo e tanto valoriza. *

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Vim desenvolvendo a questão da imanência da Lei, dentro da estrutura do Haver, e os modos como ela pode ser dita a partir da sua imanência, da experiência da Impossibilidade radical. Desenvolvi a partir do conceito de número; do axioma de Zero; do axioma de infinito; e das possibilidades, da criação, do limite, que não é criação da finitude. Estabeleci este quadro, pois

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através dele dá para pensar. Mas, do cotidiano da legiferação, para aquém deste raciocínio abstrato, o que é uma Lei? Como ela se funda? Qual é a história, aqui e ali, de uma interdição? A proposta que venho fazendo desde Seminários antigos é de que o fundamento de uma Lei, enquanto enunciado, não é senão a passagem do impossível ao proibido. Como, então, relacionar o Impossível com o proibido? O Impossível absoluto, se considerarmos o que é posto no Pleroma, é o não-Haver. Este não comparece jamais por absoluta impossibilidade. Se o que quer que haja se manifesta como possível, entretanto, não se manifesta sempre de maneira, aqui e agora, real, ou seja, em indiferença radical quanto às diferenças possíveis. O que comparece são diferenças moduladas, modalizadas. Ora, uma modalização – o que quer que haja segundo um ser isto ou aquilo, ou estar nisto ou naquilo, aqui e agora – tem uma compleição, uma estrutura sintomática tão cerrada que demora em sua forma atual. Falando da política, tal como escrita por certo autor, isto tem um custo: quanto custa para se modificar isto? É, então, um peso sintomático, uma impossibilidade modal aqui e agora. Custaria determinado esforço, determinado quantum de investimento que, às vezes, ultrapassa as forças do momento. Então, por causa desta ultrapassagem das forças, teríamos que dizer que é um impossível modal. É impossível aqui e agora dar uma empurradinha no sol, por exemplo. Já foi impossível ir à lua. Hoje, já não é mais. Entre as formações do Haver na formação do etograma de determinada espécie, se tal etograma tem uma regência muito forte, como costumam ter os etogramas, poderíamos dizer que esta formação etogramática é uma espécie de impossível modal para determinada espécie animal. É o possível dele, mas cria um impossível modal para além desta formação. Assim, a psicanálise vem dizendo desde o começo – e intensificando com Lacan – sobre estruturas pertinentes na formação de certos animais e sobre a formação garantidora do comportamento x ou y que faltaria à espécie humana, por prematuração, por exemplo. Esta espécie, então, mesmo que tenha razões etogramáticas – o que a etologia cada vez mais pretende demonstrar –, pelo fato

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de poder elasticizar ou revirar estas formações, estaria na ausência, na falta de inscrições etológicas – no sentido do ethos, do comportamento – que lhe garantissem determinada lei comportamental. Em suma, se faço uma etologia muito acurada, ampla, de determinada espécie, poderia dizer que fui capaz de destacar a lei do comportamento dessa espécie. A lei não é algo a que a espécie precisa se referir, conferir e voltar para se comportamentar, pois esta é a lei de seu comportamento. O que parece é que a espécie humana, ainda que tenha instruções etológicas as mais graves, tem condições de reviramento. Ainda que algumas dessas inscrições lá estejam, não têm nem a garantia de lá permanecerem pois podem ser reviradas. Quanto mais, então, aquelas que lá não estão. Portanto, produzir um enunciado legal aqui e agora é da ordem do fingimento, da imitação. Fingimento na imitação do que seria, modalmente, impossível, mas que não o é. A lei, no seu processo de instalação, não é senão: tomar determinado enunciado proibitivo como se fosse a descrição de uma impossibilidade, só que em outro lugar, pois, para nossa espécie, não é impossível. Produzo, então, um enunciado que diz não a determinada coisa, na imitação do funcionamento do enunciado tal como inscrito numa espécie onde esta inscrição fosse suficiente para criar uma fronteira inarredável. A produção de lei, de enunciado legal, é então essa passagem do impossível ao proibido. Lévi-Strauss colocou algo parecido com isto na passagem que inventou de natureza a cultura, assentado sobre uma possível universalidade de certa interdição que organizaria toda e qualquer ordem de parentesco. Fundando, portanto, o social humano. Já desenvolvi longamente que isto é precário e quero manter que, para esta espécie falante, lei é: tomar determinado enunciado – proibitivo –, produzido por alguém aqui e agora, como se fosse a indicação de uma impossibilidade. É possível, então, mediante qualquer arte literária de qualquer um de nós, inscrever uma série de roteirozinhos científicos ou de science-fiction a respeito da fundação de sociedade aqui e ali. Isto até mesmo preocupando-se com a idéia de que, talvez, a interdição do incesto fosse um creodo por necessidades estruturais de jogo social. Mas o que está importando é que não

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é possível não se entender que toda e qualquer fundação de lei, dita, enunciada, não faz senão tratar a interdição como se fosse de uma espécie para a qual ela funcionaria como impossibilidade modal. Logo, isto é necessariamente da ordem da metáfora produzida aqui e agora, dentro de certo campo de interesses por alguém em condições de entregar este enunciado e fazê-lo valer. Qual é a perversão, se não mesmo perversidade, que vai no instante de montagem da produção do enunciado, da metáfora, do fingimento de impossível? Bem como no seu avessamento pela liquidação – através de linchamento, por exemplo – do montador de determinada mensagem legal? A coisa é perversa pelos dois lados. Se pensarmos em termos da abstração feita, se temos a inconsistência a ser tornada consistente por um limite, !, esta consistência, entretanto, não me põe nenhuma distinção. Há uma zona tracejada de indistinção e há passos possíveis a serem dados ali. Em última instância, se pensarmos que não é preciso mais que um limite para instaurar a possibilidade de consistência, basta este limite para que o zero inaugural seja metaforizado, em razão abstratíssima, como puro limite interno, comparativamente com o zero que era limite externo para o não-Haver.

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R Decisão Sintomática Zero

Quando alguma decisão é tomada – aliás, tudo isso é decisão – no sentido de se estabelecer um enunciado que faça uma fronteira – geralmente demarcada por um Marco, que se põe no chão e que é algo muito mais sólido,

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menor e mais compacto do que a fronteira –, que possibilidade há de um enunciado destes se pôr sem que seja necessariamente da ordem de uma perversão escrita, aqui e agora, segundo tais termos? A dificuldade é, na história inteira, estabelecerem-se as correlações necessárias existentes entre lei e perversão. Já ficou muito claro, com o trabalho de Lacan sobretudo, quais são as correlações entre Lei e desejo: se o funcionamento é desejante, posta uma Lei, ela vai justamente indicar o desejável. Mas a produção, aqui e agora, de enunciado legal não pode situar nenhuma Lei senão como ato perverso inaugural. O processo de metaforização, no interesse de um grupo inteiro ou de um indivíduo – os interesses e as intenções podem ser entre aspas, podem ser os mais puros, os mais elevados, os mais democráticos, os mais libertários, mas continuam sendo interesses e intenções –, o que quer que seja dito, no ato de metaforização, como produzindo enunciado legal, embute no seio desta metáfora determinado valor que objetifica aqui e agora, mediante esta metáfora, algo que pode, sim ou não, vir a ter mesmo valor de feitiço. Há o feiticismo da Lei. Não necessariamente, mas é uma possibilidade. Tanto a dificuldade de pensar a Lei como a de pensar a perversão tem muito a ver com a falta de reflexão e de análise que permitissem entender a congruência destes dois momentos. O que todo enunciado legal tem de necessariamente perverso? O que há com a lei, que é necessariamente – até sendo dos males, o menor – imanente na sua radicalidade, na anterioridade a seu pronunciamento, já que o não-Haver não há? É necessário axiomatizar o Zero, limite infinito. Mas o que quer que se diga para menos do que estas posições axiomáticas, o que quer se numere com o ato de produção de Lei, com um número dado, é necessariamente partícipe do que poderíamos chamar de perversão. *

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" Pergunta – Você fez um destacamento essencial de que há sustentação da

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fundação da Lei que se escora num projeto estrutural da condição de Haver. Por isso digo que é a imanência da Lei. Hoje, estou somente na abertura de algumas questões. A respeito de certos campos maltratados na psicanálise, é preciso ficarmos alertas. Por exemplo, a partir do momento em que se entendeu que há estrutura, deu um alívio enorme. A Lei é imanente, a estrutura é assim, não-Haver não há, o Impossível é impossível, não se inscreve, tudo bem – isto dá uma grandeza e um alívio. Mas vou mais adiante, pois entender isto me permite posicionar axiomaticamente, legiferar muito abstratamente um Zero que também continua me deixando numa boa. É estrutural, é preciso para a coisa não degringolar por dentro na inconsistência. Ou seja, apesar deste zero, aí posso pensar um limite, chamar de Nome do Pai, do que quiser. Acho que basta chamar de limite. Ótimo, está aí o espírito da Lei! Que conforto, que alívio, que coisa sublime. Só que ninguém é palavras ao vento, pois há um macaco embaixo disto. E todo mundo vive na política do macaco com o Anjo. Não se fica, pois, apenas na razão dos limites porque há o macaco suportando o Anjo. Há uma série infinitamente grande de interesses, de desejos, indicadores de objetos. Interesses são: “Não abro mão do meu desejo”. O cachorro faz o mesmo, pois não abre mão do seu osso. É eticamente perfeito. A frase de Lacan – “não abrir mão do seu desejo” – é enorme se for a radicalidade do desejo, pois sequer tem indicação de objeto. Mas as pessoas gostam de ler no sentido mesquinho do mercado cotidiano: “Este osso é meu, não abro mão do meu desejo, sou um cara ético”. Ou seja, repetindo, qualquer cachorro com seu osso é ético. Mais do que ético: é etológico. O outro lado da questão é que nos envergonhamos dele e, envergonhando-nos dele, tratamos mal teoricamente tanto a lei quanto a perversão. Há aí algo complicado, pois no que se toma o famigerado Nome do Pai – que separei em Nome do Pai e Père-Version –, se temos o limite e se o metaforizamos fundando um fronteira, do ponto de vista de produção de enunciado temos o que é da ordem estrita da neurose. Não se poderia produzir este enunciado sem recalcar o infinitamente grande que sobra nas brebas do Nome do Pai, sem foraclusão. No que o enunciado foi dito, também foi capaz de

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construir um aparelho eficaz de neurose que objetificou algo de interesseiro e, portanto, criou um fetichezinho possível. Então, fez-se uma perversãozinha, fundou-se a fronteira da neurose e erigiu-se o objeto da perversão. O que é diferente de vir, ainda por cima, fundar este objeto como Marco daquela fronteira e transformar aquilo num fetiche radical de morfose. Mas não dá para pensar as relações do falante com a lei se não por via do entendimento do recalque necessário para a fundação de enunciado e da objetificação que vai nisto e que é fundante de perversão. A evitação deste entendimento tem feito todos fugirem da raia na hora de tratar a sério a lei, a perversão e a neurose. Se tomasse isto ex abrupto e tentasse a produção de outro enunciado que viesse a dar conta disto, eu seria o canalha para além do perverso. Iria acanalhar a perversão dizendo: “Vamos dar um jeitinho aqui nesta perversão”. Acho que, por aí, não há saída. A saída que peço – e por isso estou colocando a questão do linchamento nas práticas cotidianas de projeção – é justamente o que a psicanálise veio tentar possibilitar. Isto é, que se entenda com cada vez mais clareza que são opções de jogo dentro de um campo absolutamente artificioso. Ou seja, que se possa operar com isto no reconhecimento do artifício, e não por imposição recalcante ou por gostinho perverso. E sim pelo que Freud chamou de juízo foraclusivo. Não é por nenhum recalque que não se chega lá, e sim porque ficou combinado assim: “Suspendamos e tomemos isto como regra providencial ou provisória de jogo”. Só. Não há que projetar em ninguém, nem achar que é a verdade das verdades. É só jogo. Como objeto, isto é só brinquedo, mais nada. Estamos brincando de ficar sério, o que não é permitido tanto pela neurose que vive subdita à ordem do recalque propriamente dito quanto pela perversão inaugural em cada um, que tira daquilo um prazerzinho todo especial. Então, qual seria o valor da psicanálise aí? De tanto funcionar no mundo, colocaria o Sujeito em posição de Denúncia, de Indiferenciação, de modo que não perdesse nem o gosto pelo brinquedo, nem o juízo a respeito dos jogos possíveis. Isto sem ter que se referir a nenhum recalque, a nenhuma perversão aqui e agora. E muito menos a nenhuma projeção destes referenciais sobre alguém,

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renecessitando-se freqüentemente o linchamento. *

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A má condução da psicanálise – ou seja, não levá-la freqüente e intensamente a suas últimas conseqüências – mantém a bicharada no lugar etológico postiço do recalque e da perversão, com o grande campeonato contemporâneo não só de perversão como de perversidade. Por quê? Se legifero para além de mera e simples perversão optativa aqui e agora, por marcação de determinada fronteira e ereção de determinado objeto como privilegiado, estou acenando para os outros – que chamo de massa, pois são irreflexivos –, no meu juízo, com uma perversão como hiper-valorizada diante das demais. O que faz disto uma perversidade, pois fica compactuando, no seu seio de Marco, de fronteira, várias coisas: a fronteira e o horizonte, a fronteira e o limite, tudo embutido nesse acenozinho... Qual pode ser, por exemplo, nossa questão com a essencialidade do capital? Para além das vocações marxistas, o que é o capital senão o grande fetiche dominante como perversidade reinante de todo um grande périplo na humanidade? Isto é algo para o que todo mundo abana a cabeça, e parece com aquelas coisas que Marx disse. Mas na legiferação cotidiana, nas pequenas institucionalizações dos grupos, isto é fervente de vários modos. Se institucionalizo determinada coisa e ponho francamente que é um ato perverso, que exige determinados processos, se não de recalque, pelo menos de juízo de exclusão, é preciso que aqueles que entram neste jogo saibam jogar direito, ao mesmo tempo que nele não ponham nenhuma crença. Então, há um lúdico fundamental aí e um manejo das ditas “necessidades”, entre aspas, por este joguinho que está em jogo. " P – Qual é o limite, se é que existe, para a indiferenciação? Parece que, em sua colocação, a indiferenciação seria um lugar privilegiado de olhar tudo. Isto porque há um momento em que a indiferenciação corre sempre o risco de se tornar uma neutralidade que não deixa de ser também uma

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coisa perversa. Para mim, neutralidade nunca é perversa, pois não tem nome. Ninguém pode se assentar em cima do neutro. Recorre-se à ele, como referência, a esta Denúncia, a esta virtualidade do indiferente. O indiferente não é o desinteressado, como se costuma usar mal a palavra. Do ponto de vista da Denúncia radical, é absolutamente indiferente que eu viva, ou morra. Não posso habitar nisto aí porque, então, deixaria de ser indiferença como posição e passaria ser: fingir que se está em cima do muro e, assim, não se comprometer com nada. Isto é simplesmente impossível. Não é tampouco uma questão de ser bom ou mau caráter. O cara que fica em cima do muro, há uma hora em que ele vai cair para um lado. Ele pode ficar se equilibrando durante muito tempo, mas a pressão de simetria vai pintar. A recorrência à indiferença – esta experiência pela qual a psicanálise poderia fazer com que as pessoas passassem, pudessem recorrer a ela com mais freqüência – seria no sentido de: se posso me indiferenciar, posso retornar e re-tratar os interesses (pois eles não vão desaparecer) na responsabilidade por esta indiferença radical. Isto sem ter que ficar projetando demais os interesses nem sobre mim, nem sobre os outros, e sim manter um jogo de operacionalidade possível. Não estou imaginando que, de tanto recorrer à Denúncia, as pessoas ficariam no limbo. Não acredito nisto. Mas o exercício freqüente disto, sobretudo nos momentos críticos, pode ajudar num processo de suspensão e de lembrar, sobretudo, que estamos, ali, num jogo. " P – Esta seria a Polética, no sentido em que você coloca de Diferocracia? Hoje, depois que algumas pessoas resolveram esta questão, até para mim, porque pensavam em separado e me deram dicas, eu diria que o ponto de vista da Polética seria no sentido de que não se está em nenhum mundo onde se possa contar com a grande maioria para agir desta maneira. Mas o que posso esperar da posição de um analista, neste mundo que não pode agir assim, é que ele possa. E que possa tomar o estado de coisas de uma ocorrência crítica qualquer e intervir interpretativamente onde quer que, por sua intervenção, ele se torne um evento. Neste ponto, recomendo-lhes a leitura do

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texto de um sujeito que aprontou para mim o resto da Polética, quase igual, que é Alain Badiou mesmo no seu Peut-on Penser la Politique?, Podemos pensar a política? Qual é, pois, aí, a posição política do analista? A mesmíssima que ele tem no trato de uma análise: deixar pintar a situação em sua crise específica e fazer alguma intervenção que transforme esta crise num evento, num acontecimento. Daí o acontecimento tem futuro. Qual o grau de intervenção, com que escuta, com que aparelhamento distanciado, neutralizado e capaz portanto de recolher a movimentação da crise? A interpretação, em psicanálise ou na política que deriva dela, é apenas isto, e não a babaquice, a “interpretose” que é ficar entendendo e compreendendo o que se passa com o sujeito. Ora, todo mundo torra o saco da gente o dia inteiro com interpretose idiota. Isto não vale nada. No que o processo, a situação, se apresenta, ela se põe em crise e se torna praticamente indiscernível. O que se faz, então, é dar uma escuta para o indiscernível e fazer uma intervenção capaz de criar caso, ou seja, capaz de fazer um acontecimento que terá futuro. Só isto. E fazer isto só é possível da posição daquele que sabe que tem culpa no cartório por sua intervenção. Isto ainda que ela seja ótima na criação do evento, pois participa do enunciado. Ela só não é fechadamente um enunciado porque parece ter futuro, joga para a frente. Uma interpretação que resolvesse o problema, não o é. É, sim, compreensão. Analista é aquele que interpreta justo quando não é mais possível entender nada. Enquanto estiver entendendo, está tudo claro, não tem nada a fazer. O que o analista pode fazer quando está entendendo é: empurrar o suficiente para o troço não ficar mais entendível, forçar para que se perca. Quando o analisando diz: “Você está entendendo?”, é claro que estou entendendo. Entendendo, estou, mas o que faço com isto? Nada tenho a fazer com algo que estou entendendo. E ele não quer saber se você está entendendo, e sim o que ele não está entendendo por trás do que você supõe que está entendendo. Quantas vezes por sessão o analisando diz: “Entende?”, “Você está entendendo?” Anotem num caderninho.

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Estou, então, colocando a questão preliminar de como tratar todos os objetos psicanalíticos nesta lembrança. Como podemos entender melhor (não vou dizer a psicose, mas) os funcionamentos da neurose e da morfose sem nos darmos conta de que não há escapatória e que a tendência de uma perversão funcional é, na mão de um partido aqui e agora mais poderoso, tornar-se perversidade legalizada o tempo todo, a cada momento? Como a neurose funciona diante desta coisa obscena que é a perversidade legalizada? Ela fica procurando chifre em cabeça de cavalo, fica olhando para tudo quanto é lugar, menos para onde a coisa está. Fica em pânico. Isto porque assume a legiferação perversista como eficaz, até boa, e fica procurando no resto. Não vê que é ali que se inaugura o sufoco. E ai de você se diz que isto é apenas uma regrinha do jogo, que a gente deve brincar direitinho para ele não dar certo e a gente refazer. Se você denuncia que sabe que está propondo uma perversãozinha, o neurótico fica cego para aquilo e vai procurar onde há uma perversidade eficaz, que ele pode escamotear ou escotomizar. E fica olhando para lá, dizendo que aqui não dá. O que está em jogo aí, por exemplo, é toda a história da institucionalização, ou da institucionalidade, possível da psicanálise no mundo como lugar de experiência de uma política nova e sempre barrada. Por quem? Pelos analistas – que ficam tentando reinventar um totemismo. E já que tentam, precisam linchar alguém a toda hora, no sentido mosaico sobretudo. A grande experiência da psicanálise e da política que ela pode, deveria dar-se no rigor e no sofrimento da sua institucionalização como experiência de interpretação e de prática política. E isto é barrado sobremodo. Já fiz, num Seminário, a denúncia ao perguntar: por que o psicanalista não se aferra à sua política? Que a universidade faça o que faz, está certo, pois não existe política universitária. O que o discurso universitário tem é a política de fazer a falcatrua e o jogo que já conhecemos. Mas por que os analistas estão sempre se digladiando entre si por políticas externas à psicanálise?

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Psicanalista que tem partido devia jogar o título fora, não combina. E olhem que estou repetindo uma frase que Badiou diz a respeito de comunista. Comunista com partido, só pode ser piada. A História provou. Se psicanalista fundar o partido psicanalítico, então, está ferrado. Sua política é a mesmíssima que funciona na análise, dentro do gabinete, mas na externalidade, na produção do evento. Ou seja, uma política e não um político. E é aquela que funcionaria na instituição se esta tivesse vergonha na cara, ou seja, se assumisse que é psicanalítica.

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17 FORACLUSÃO – 1 Eu havia proposto que Foraclusão – que Lacan chama de foraclusão do Nome do Pai –, a partir da teoria dos números, ontologizada por Alain Badiou, fosse entendida como foraclusão do limite que empresta consistência à inconsistência do Haver como metaforização primeira e axiomatizante do axioma fundamental, que seria, então, aquilo que estabelece o Zero como litoral do Haver. *

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Como sabem, nos desenvolvimentos já feitos, o conceito de foraclusão tem sido trabalhado num interesse de abstração máxima, de matemização extrema. Mas certamente, na vida das pessoas, a ordem de surgimento talvez não fosse esta. Ou seja, um tempo para compreender precisa ser gasto para que o sujeito venha a abstrair, na sua própria experiência, o que justamente fundamenta a sua posição. O que seria, então, um sujeito foracluído do limite? Como isto aconteceria? O que Lacan apresenta em seu Seminário As Psicoses é referido ao que Freud chama de Bejahung. Ele descobre no texto freudiano a Verwerfung, que passa a ser a não-Bejahung de determinado significante importante na estrutura do sujeito. Lá para trás, algo que o sujeito experimentou, de qualquer forma não foi inscrito por ele em seu nível simbólico. Lacan pergunta

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o que seria isto. É o temor da castração. Está tudo muito bonito, parecido com a história da psicanálise, dá para entender, etc. Ou seja, o tal significante, que ele chama de Nome do Pai, que seria o significante da Lei certamente – e quem fala em Lei, fala em castração –, o sujeito não o simbolizou. Eu, começo a dizer que, abstraindo radicalmente, trata-se de que o sujeito possa conceber o que seja limite. O que será que ele concebeu como o sendo? No regime do cotidiano da experiência, onde acontece a historinha caseira que Freud resolveu teatralizar como Édipo, e que os lacanianos ficam teatralizando como foraclusão, não-foraclusão, mãe psicótica, etc., o que poderíamos pensar sobre como aconteceria de um conceito como o de limite que não entrasse na formação do sujeito? Faço a seguinte historinha. Se coloquei no nível do etológico e de sua passagem para o falante que qualquer enunciado legal é da ordem da substituição de um impossível, ainda que modal, por um proibido, isto significa que, para a criança humana, na possibilidade que tem de reviramento dos dados – ou seja, se quiserem falar a linguagem mais antiga, de dialetização ou negativização do dado –, esta possibilidade do proibido está prejudicada para ela, mesmo que tenha fundamentos confortáveis, do ponto de vista etológico, para se assentar nesses dados. Ou seja, como o reviramento não lhe é ausente, o que quer que se apresente no enunciado como interdição, por mais que os esforços ao redor sejam no sentido de lhe dar estatuto de impossibilidade, aquilo tem condições de ser dialetizado. E freqüentemente o é, nem que seja como um breve questionamento: “Por que não? Por que isto? Por quê?” Já se comentou muito o que é a famosa fase dos por quês da criança. Tenho a impressão, traduzindo no nível do que tenho colocado, que é o momento em que, no processo de confronto com tantas diferenças no mundo, a criança começa a usar com mais freqüência o seu Revirão. Então, precisa situar a cada passo: por que isto? por que aquilo? Se não, não sabe por que é, não tem nenhuma razão etológica direta. E é o Outro, no sentido lacaniano, que vai lhe servir um prato feito para ver se ela engole. Enunciada alguma interdição, ou seja, posto algum enunciado legal –

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que é uma construçãozinha perversa e uma fronteirazinha neurótica –, o que se traça com isto é uma fronteira de interdição como se, para além daquilo, nada fosse possível. Mas qual é a relação do sujeitinho com essa fronteira? Tudo vai depender desta relação, pois se o dito cria uma fronteira, ele não põe um impossível modal. Põe apenas uma interdição que, para continuar a sê-lo, precisa da vigilância policial daqueles que disseram que aquilo é proibido. É preciso certa polícia para se estabelecer a política de se estatificar uma fronteira. Se os parâmetros ao redor são mais ou menos comuns, sem grandes pesos nosológicos, digamos, a criança pode se dar conta perfeitamente de que enunciaram uma fronteira. Mas como quem enunciou é alguém que está dentro de um processo desejante, isto depende de enunciação e, em nossos termos, até de Denúncia lá no fundo. Portanto, a relação dos falantes ao redor com esta mesma fronteira, deixa clara toda a molecagem cotidiana de se manter, se enunciar a fronteira, mas também de se ter certa elasticidade com ela, ou até mostrar que o adulto, para além da fronteira, também tem desejo. Todo esse jogo mostra que o enunciado que estabelece a fronteira é uma espécie de diploma razoável no sentido da diplomacia cotidiana deste sujeito, mas que está necessariamente elasticizado, se não mesmo corroído, corruptível, pela ordem desejante que lida com aquilo. No regime da fala, no confronto com os seus parceiros maiores e no interregno entre o que é de pressão etologizante e o que é de reviramento libertário, digamos, abstraente, dialetizante, uma criança precisa, de algum modo, para seu gasto, produzir um conceito que eu poderia enfeixar sobre o conceito de limite. Se perguntarmos à criança, talvez ela não saiba dizer, talvez precise de todo um processo, um encaminhamento longo, literário, científico, etc., para, um dia, dizer aquilo de uma maneira qualquer como o matemático disse ! como primeiro ordinal infinito, como limite de série, etc. É uma maneira de dizer. Outras existem. Por exemplo, falar em nível totêmico do pai, de pai morto, etc. São maneiras míticas ou totêmicas de dizer o conceito de limite, que é isto que Lacan quer chamar de Nome do Pai. No trato com as diversas fronteiras, que até se elasticizam na fala dos adultos, no jogo social, fica

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entendido – ou é preciso posturar isto como um axioma para me orientar, cada um teria que fazer este ato axiomático –, ou subentendido, como quiserem, que, para além de toda e qualquer fronteira, existe essa coisa chamada limite que permite a elasticidade quase que infinita, se não mesmo infinita, da fronteira. Isto sem que se retorne necessariamente ao seio da inconsistência. Estou falando aqui no nível quase etológico. É como se eu me perguntasse: o que Madame Dolto diria sobre isso? Quero supor, então, que, aí, estamos no trato com as indicações de fronteira, que não são, se não mais raramente, impositivas de tal maneira que o sujeito não sinta nenhuma elasticidade. A elasticidade, por exemplo, que Lacan chamaria de enunciatória do sujeito que disse isto. Tratam-se, então, das relações da criança com os enunciados enquanto proferidos por sujeitos desejantes, que certamente deslizam, cometem vários deslizes, eles próprios, aí dentro. Como entender que um enunciado legal tenha elasticidade sem romper o campo da consistência? Acho que cada sujeito, que não seja um “foracluído”, ou seja, que não sofra de uma foraclusão disto, em algum momento concebeu, fez, produziu para si, por alguma via discursiva, o conceito de limite, o qual nada tem a ver com limite designado. Então, por mais que tenha comportamentos, dizeres, ações de alta elasticidade, parecendo até mesmo ser de um desvio radical em relação à norma, digamos, estatística, mantém-se o conceito de limite para que não se desfaça o mínimo de consistência com o que se possa bordar por dentro dele. Lacan, de maneira absolutamente estruturalista e estruturalizante, diz que há um conceito chamado Nome do Pai, que é metáfora do desejo da mãe, do Falo, do não-sei-o-quê, que, se meteu na cabeça, fica lá, ou, se não meteu, o sujeito é psicótico. A equação de Lacan é esta, é seu exemplo princeps: Nome do Pai está para o desejo da mãe assim como desejo da mãe está para o significado ao sujeito. Isto quer dizer que há um movimento do desejo, que Lacan opera no nível de uma paranóia de reciprocidade entre criança e mãe, etc., que é nada mais nada menos do que o sujeito se dar conta de que pinta um limite. Que limite é este? Se Lacan dissesse que o Nome do Pai é um

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significado, estaria dizendo que ele era psicótico. Então, colocou um significante, uma marca qualquer, um conceito qualquer que o sujeito faz de haver limite, sem demarcação de fronteira. É só a noção de limite. Para lá, há uma fronteira. Onde é? Pouco importa. É preciso, pois, a freqüentação de uma série de fronteiras que lhe são apresentadas para que o Sujeito possa tirar o supra-sumo, o resumo, dessas fronteiras como um limite, independentemente do enunciado que as localize. Isto é posicionado, mas não localizado aqui e ali, pois é o conceito de haver limite, de fronteira ser desenhável para lá. Acho que, se uma criança, por algum processo de distração – alguém a distraiu a ponto de ela não ter oportunidade de fazer o conceito –, não fizer este conceito a coisa fica braba. É o que Lacan quer chamar de foraclusão. Por outro lado, penso que, mesmo aqueles que têm o conceito na mão, não estão muito longe de perder a sua utilização mais cotidiana. Isto na medida em que começam a questionar muito a terra de ninguém que fica entre qualquer fronteira e o infinito, que é infinitamente grande. Ou seja, até quem estabeleceu o limite pode se perder ou perdê-lo quando começa a questionar demais toda a terra sem dono que há entre alguma fronteira dada e o infinito. Faço a suposição de que não é apenas aquele que teve uma foraclusão prévia do Nome do Pai que fica psicótico, mas que qualquer sujeito, de repente submetido a grandes “oportunidades” de habitar com muita freqüência esse interregno infinitesimal, pode começar a dar de cara com a inconsistência e nela ficar. O conceito que ele houvera estabelecido algum dia, talvez na infância, começa a perder a força, a importância, a pregnância e ele fica mergulhado na inconsistência. " Pergunta – O Sujeito da Denúncia perdeu o limite? Como disse anteriormente, a fundação axiomática do Zero, seja qual for o nome que tenha para cada sujeito, isto que aqui estamos chamando de zero como axioma fundamental, propõe um litoral radical, mas ainda não empresta consistência às séries dentro do Haver porque aquilo corre. Então, o Sujeito precisa, mediante alguma experiência, lidar com os enunciados legais, dentro da família, etc., tirar um denominador comum ou um fio vermelho aí

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dessa corda e metaforizar o litoral como limite. No regime do limite, posso perfeitamente brincar de enunciação, pois o limite me permite isto. O conceito de Sujeito da Denúncia, dentro da estrutura global, inclui tudo, inclusive o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado. Não é, portanto, porque um Sujeito foi à Denúncia que perdeu o limite, se ele o tem inscrito.

Se o Sujeito está referido à Denúncia, ele está sem limite. Mas o Sujeito está referido a tudo. No que exijo de mim aquela referência, que é até anterior à criação de limite, o que faço? Não desinscrevi os meus limites, simplesmente parei de me referenciar a eles. Se tenho o conceito de limite, se suspendo minha referência a este conceito e passo a fazer referência a zero, suspendi o conceito, mas ele está aqui. Não estou me referindo, aqui e agora, ao conceito. Isto é diferente de um sujeito que não tem aquilo inscrito ou tem aquilo desmanchado. A “suspensão” aí é entre aspas porque não há referência maior. Se tenho o limite inscrito, então não há referência maior para o limite senão o zero do qual é metáfora. Se tenho o limite inscrito, no Sujeito da Denúncia, tenho o coração da idéia de limite aqui comigo, que é o limite do Haver. O limite do Haver como tal não há. É limitado, inconsistente. O único limite que há para o Haver é o litoral. Para lá, é abismo. Passo do limite das minhas possibilidades dentro do Haver ao limite do Haver. * * * O que aconteceria com um sujeito que não pode se referir ao limite?

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Ou como um sujeito – não estou falando de um psicótico posterior, que tem o conceito e se perdeu, mas de uma criança – chegaria a não poder estabelecer este conceito? Vemos nas historinhas apresentadas nos livros sobre psicose uma porção de anedotinhas – mãe de psicótico, não-sei-o-quê, esses nomes horrorosos que se dão (pois não é necessariamente assim) – que formariam um estrato suficiente para a psicose emergir. Mas entendo que existem duas maneiras genéricas de se “ajudar” uma criança a se tornar psicótica. Não diria fazer uma criança psicótica porque não acredito nisto, pois há uma parte lá que foi algum acidente interno a ela mesma. Pode ser até do macacão, que não presta. Há algum troço aí que não sabemos. Mas há maneiras de se colaborar intensivamente para uma criança se tornar psicótica, coisa que se faz com muita freqüência. Faz parte de toda uma pedagogia. Aliás, se entendermos a pedagogia suficiente para fazer psicóticos, talvez entendamos uma outra suficiente para não deixar fazer. Quero supor que o que é mostrado a uma criança – e só isto é possível ser mostrado - é uma fronteira. Não se pode mostrar um limite. Se o limite é uma posição axiomática, vai ter que ser colocado porque foi colocado ou, se não, inferido de alguma experiência. Concebo, diferentemente da posição puramente abstrativa de Alain Badiou, que o zero depende de uma experiência de não-Haver, da condenação radical. Esta experiência se nomeia como o que, em matemática, se chama de Zero. O limite vai ser metaforização do zero que foi litoral para a outra experiência, baseada na experiência de fronteiras que são apresentadas (e cujo denominador comum se consegue entender metaforizando o zero). Ou seja, não há saída do Haver. Tudo está aí dentro e chama-se zero, o qual é uma condenação. Fronteira, significa que há uma porção de enunciados, parece não ter saída, mas são elásticos, têm saída, sim. Parece o oposto do limite, mas, aí, estou no regime do possível dentro do Haver. Se metaforizo o impossível absoluto como impossível modal, isto chama-se limite. Mas estou metaforizando o impossível absoluto como um certo impossível modal e não como tal impossível

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modal. Isto é o entendimento do limite. Assim como pude entender o impossível absoluto como puro litoral à beira do impossível, dentro das possibilidades, posso trazer o conceito de limite para cá e entender a porção de fronteirinhas que ficam me obrigando, mas que têm uma elasticidade, que posso dialogar com elas, como metáfora do zero. E este é o limite que coloco conceitualmente como sendo possibilidade de fronteira. Isto dá uma consistência provisória, sempre provisória, para lidar com as fronteiras estabelecidas. Mas imaginemos uma criança em que algum processo distrativo a colocou numa das duas seguintes situações. Apresentadas as fronteiras, ou apresentada certa fronteira, esta é tão violenta, tão obstinada, tão pouco dialetizada, elasticizada, sem condições de dialética – isto do ponto de vista da “ajuda” para que se torne psicótica, pois o que acontece na criança não se sabe: ela pode ser estúpida demais, pode estar num momento de dificuldade extrema do ponto de vista da mera inteligência, onde precisaria de outra ajuda para entender a elasticidade –, de tal maneira que ao invés de aquilo ser tomado como fronteira, é tomado como uma parede. Eu diria que é uma fronteira mural. Não é só uma fronteira da qual disseram: “Não passe daqui, para lá é proibido”. Põe-se um muro de tal maneira que real, simbólica e imaginariamente parece que é intransponível. Isto pela presença arquipotente dos enunciadores da interdição. O que aconteceria para esta criança? Tenho a impressão de que não pode inferir um denominador comum capaz de situar para ela o que seja um limite. Ela tomaria a fronteira como limite, como tudo. Os enunciadores arquipotentes são os que chamamos de família, relação com o pai, com a mãe, função paterna, materna, esses troços todos que, para mim, estão embonecados demais, macaquizados demais na história da psicanálise. Por isso, estou falando tão genericamente das fronteiras apresentadas à criança e que, necessariamente, por uma questão de história, embutem essas figuras de pai, mãe, sexo, não-sei-o-quê. Mas acho junguiano demais fazer este tipo de referência. É como chamar de estrutura o que é arquetípico porque se repete. Estou acusando o passado psicanalítico de ter um cheiro junguiano exagerado, pouco abstrato.

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Por enquanto, estou ainda no genérico. Não estou fazendo Seminário sobre a psicose. Estou pensando um pouco a foraclusão, mas temos que pensar o resto depois. Estou, primeiro, perguntando: como não se inscreve para um sujeito o conceito de limite? Uma das vertentes que suponho é: a fronteira é tomada por ele – ou porque lhe foi apresentada assim, ou porque, por alguma ocorrência, não conseguiu entender sua elasticidade – como um verdadeiro muro. Aquilo é, ponto! Aquilo que um animal teria como etograma, um imprinting violento capaz de fundar uma fronteira etogramática, tenho impressão de que pelo menos uma das vertentes da foraclusão é parecida com isto. A fronteira não é dialetizada, então, fica parecendo que se barrou para o sujeito, como se fosse um etograma animal, o que não pode ser barrado assim. Tanto é que isto extravasa, mas não no regime do recalcado, e sim no do que Lacan quer chamar de real. Para além da fronteira, aparecem essas coisas. É o que Lacan chamaria de o sujeito estar dispensado da sua função subjetiva e aprisionado na função egóica. Ele precisa recorrer a um conceito de puro limite, como não entende, ele volta para a fronteira. Não é que não recorra. Ele recorre e vê aquela porção de coisas perdidas, mas aquilo não arruma, só arruma se for traduzível em ego. Não tem tradução. Minha questão é: como uma criança chega a se enganar – ela se enganar ou ser enganada, não sei como –, que teatro é necessário para que ela não possa vir a dialetizar o conceito de fronteira? Ou seja, substituir o conceito de fronteira pelo de haver fronteira. O conceito de limite é o conceito puro e simples de há fronteira em vez de ficar presa a tal fronteira enunciada. É uma das vias que vejo para isto que se chama de foraclusão, que quero chamar de foraclusão do limite. Algumas crianças não entendem o que seja limite porque há pelo menos uma fronteira que, para ela, é indialetizável, não dialetizável por pressões externas, inclusive. Um dia, conversamos sobre o pai de Schreber. É difícil ser filho do pai do Schreber e não ser Schreber. Alguém que inventa a ortopedagogia do sujeito não pode não inventar uma psicose. Aliás, Schreber não deve sua psicose só a isto. Há aí um grande ponto de interrogação. Por que não ficou perverso? Seria mais engraçado. Acho que não se tem todos os

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elementos para caçar este fenômeno aí. Há outra maneira. Ao invés de fazer um mural da fronteira, a criança vai apresentá-la como labilidade extrema. Imaginem que uma criança se depare com fronteiras, mas tão pouco precisas, tão pouco sustentáveis pela palavra, pelo ato de alguém, que são de uma extrema labilidade. Então, não consegue produzir para si um conceito de limite. Isto porque nem mesmo o de fronteira fica claro. Será esta a diferença entre paranóia e esquizofrenia? Qual é a vertente da esquizofrenia senão vazar na inconsistência direto? Qual é a vertente da paranóia senão, por falta daquele construto, retomar a consistência sobre um aparelho reconstruído como fronteira mural sobre os fenômenos elementares que vão dar consistência ao delírio? É o hábito que está segurado numa fronteira mural. Está segurando num dique, numa parede. Aquilo explode, o sujeito regride para o seu dique, o qual deve organizar inteiramente o delírio. Se um sujeito não construiu o que Lacan chama de pontos de basta, que são bastante elásticos, se não fez um basteamento a ponto de construir o grande ponto de basta, que é la grand’route, o pacotão, externo – segundo Lacan, o psicótico não tem a grande estrada, só tem os caminhozinhos –, isto quer dizer: a grand’route é o conceito de limite estabelecido na experiência de uma porção de fronteirinhas. É haver fronteira, haver possibilidade de fronteira. Lacan dá uma volta enorme, Nome do Pai, não-sei-o-quê, para mostrar uma coisa que também mostra assim. Vejo, então, duas vertentes. Uma, que é do empedramento de alguma fronteira que parece não dialetizável na história do sujeito e que, certamente, quando o sujeito precisa referir-se à elasticidade, ele se romperá e se perderá igualzinho a um esquizofrênico. Mas regride correndo, pois há parede fundada lá em algum lugar. É como se fosse o catalisadorzinho que se coloca na panela para o doce cristalizar. Tenho esse trocinho lá, aquela paredinha, o sujeito arruma o delírio e faz uma montanha em torno dessa pedra de toque, mediante a qual constrói um grande delírio paranóico e uma sustentação paranóica muito boa. A outra vertente é: se um sujeito não consegue fundar o conceito de

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limite e as fronteiras todas lhe são de uma labilidade que não pode nem fazer delas pedra fundamental de nenhuma construção, no dia em que houver uma pequena comoção e precisar daquele limite e não o encontrar, aquilo vazará direto e não há nem delírio para segurar. Nem delírio segura mais aquilo, pois não há como construir delírio. Faço, então, a distinção entre as duas vertentes das psicoses possíveis, os dois extremos. Uma radical paranóia emparedada numa fronteira mural e uma radical esquizofrenia na labilidade de todas as fronteiras que o sujeito encontra. Mas existem vários jogos. O que pode ser, por exemplo, o que se chama de uma psicose maníaco-depressiva? Qual é o grau de labilidade, de consistência, para o sujeito ficar indo e voltando? Será que todo maníacodepressivo é psicótico? Pode não ser. Pode ser um obsessivo em sérias questões com a sua fronteira. Então, se não se inscreve o limite, se há foraclusão do limite, ou seja, se não se conceitua um limite para além da fronteira, o que há para além da fronteira de quem não tem o limite lá? Um abismo. Ele funciona como se tivesse que ficar o tempo todo na Denúncia. Daí o psicótico ser o grande denunciador do Sujeito. Se não colocou limite, ele esbarra de volta no quê? No conceito de litoral. Se tirar a tal fronteira, ele supõe que é o abismo, e não que há um limite. Ou seja, vai-se inventar outra fronteira, escolher outro número na série, dá-se um jeito. Não há jeitinho para ele, pois, para além da fronteira conhecida, é o abismo. O sem-saída do Haver – porque o Haver é sem saída – serve de análogo ao sem-saída da fronteira, no caso do paranóico: parece que não há saída para fora daquela fronteira. No caso da esquizofrenia, não há nem fronteira, ele se perde radicalmente de qualquer fronteira. Qualquer enunciado legal parece que não faz muito sentido. Ao contrário, para o paranóico, qualquer enunciado legal faz muito sentido, pois atribui logo à sua fronteira. Entendo, por outro lado, que há perfeitamente possibilidade de alguém ser um Sujeito não psicótico, com o limite muito bem inscrito, mas nem por isso deixa de praticar sua loucura infinitesimal entre as fronteiras que se lhe apresentam e o limite que conceituou. Então, a região da loucura humana ocupa

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este espaço aí. Isto, para mim, não é psicose. É a nossa maluquice, a nossa loucura cotidiana, que alguns exacerbam tanto que até esquecem do limite e vão pirando por ali. Não consigo, por exemplo, chamar Hoelderlin, Van Gogh, Nietzsche, Artaud, de psicóticos no sentido lacaniano de que não tiveram tido inscrição. Não faz sentido com a obra deles. Só posso conceber que ou levaram a loucura infinitesimal, mesmo no posicionamento do limite, longe demais, ou que perderam a noção do limite na viagem. Foraclusão prévia, para estes caras, não faz sentido. *

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" P – Se houve perda de limite, numa tentativa exasperada de aproximação do real, por que não se poderia pensar que, se houvesse escuta para essas figuras que perderam em algum momento o limite, não teriam condições de reencontrá-lo, em outro lugar, de outra forma? É o eterno papo do neurótico com o psicótico. Este é o problema. Lacan era tão esperto que disse: “Se fosse suficientemente psicótico, eu seria melhor analista”. O que ele está querendo dizer com isto? Noventa e nove vírgula nove por cento dos analistas são bons neuróticos, como se sabe. São neuróticos domesticados, aprenderam a trabalhar no circo, direitinho. Você diz: “Se houvesse escuta...” Mas quem vai escutá-los? Quem? A maioria dos analistas não consegue nem ouvir meus Seminários. " P – Vejo crianças sofrerem disto muito novas. A cultura não lhes dá espaço. Muitas delas chegaram muito perto desse ponto e o retorno é difícil, na medida em que têm ainda muito pouca bagagem, um instrumental ainda muito rudimentar. Se forem muito inteligentes, correm sério risco de serem diagnosticadas como psicóticas, aí psicotizam mesmo. Com as crianças, isto acontece demais. Chamam criança de psicótica à toa, só porque a professora não sabe o que fazer... Mas não entendo – não é que não exista, só não consigo entender –, do que até hoje produziram, nenhuma cura para psicótico no sentido de o trazer de volta ao juízo dos limites. Se há possibi-

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lidade disto, acho que ainda está para ser pensada. Então, se fosse falar de uma pragmática em relação a estes conceitos, diria que é muito melhor abordar o campo da prevenção, ou seja, utilizar a ferramenta psicanalítica para acossar a sociedade, os mecanismos da sociedade e até mesmo para generalizar a prática analítica no seio da escola, da família, etc., de maneira a que se pudesse evitar o desbragamento dos limites, o que não é impor limite, pois é por isso mesmo que se desbraga. E também não é o afrouxar radical. Qual é o diálogo possível para que um Sujeito venha a ser “razoável”, para que nele se instale um limite que tenha o máximo de elasticidade com o mínimo de firmeza para não romper? É um processo dinâmico, econômico, e não a bordoada que se pensa em termos estruturalistas. O estruturalismo tem razão em mostrar que a estrutura é tal e rompeu em tal lugar. Mas como isso funciona? Não é na base de dar uma bordoada aí. Há gente que ouviu falar em Lacan e está metendo “lei” dentro de psicótico. Não sei como, deve ser no tapa. Do que eu saiba, nada me faz acreditar que se o sujeito pirou geral, ele tenha volta, a não ser por espontaneidade. Isto porque nenhuma ferramenta foi inventada para produzir essa volta. Lacan nunca se meteu a fazer isto. Apenas produziu um Seminário e um texto dizendo sobre “uma questão preliminar a qualquer tratamento possível...”, que, ele, que eu saiba, jamais operou. Ficava escutando psicótico para ver se dava pé. Fico mais preocupado em entender, teorizar este fenômeno e pensar como pode ser tratado no mundo. Isto de maneira a se evitar ao máximo – nunca se vai evitar radicalmente – que aconteça. Mas para o neurótico, que é maioria, isto é um problema muito sério. Primeiro, porque o mínimo de neurose instalada deixa o sujeito angustiado demais diante do psicótico, de tal maneira que sonha radicalmente com uma cura. É claro que ele não é bonzinho, não está querendo que o psicótico se cure, o que não quer é ser aporrinhado pela angústia de ver o psicótico. Então, fica parecendo um altruísmo maravilhoso. Nada disso. O que não suporta é ficar angustiado diante da existência de suas possibilidades de dialetização com o medo de ele mesmo cair lá. Não suporta, às vezes, acompanhar um Seminário,

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quanto mais outra coisa. O neurótico fica, por um lado, na vontade de achar cura de qualquer maneira, e, por outro, no medo de dialetizar no mundo, pois fica com a impressão de que qualquer dialetização um pouco mais radical vai endoidar todo mundo. Não vai não, não é assim. Estamos vivendo, desde a década de 60, numa devoção ao psicótico, que me parece completamente imbecil. O “santo da liberdade”, por exemplo, é um cara muito menos esquisito, que se chama Falanjo, e não é psicótico. Da década de 60 até a de 80, inventou-se que a liberdade mora por lá. Que liberdade? O Santo da Liberdade é aquele que transa no um-passo-a-mais, no sentido numérico, no como construir um passo a mais, com o máximo de segurança e o máximo de audácia, tudo junto. O endeusamento do psicótico deixou todos de boca aberta e sem fazer nada que preste. É claro que é horrível, você se depara com o psicótico e fica angustiado, e começa a inventar coisas para provar, por exemplo, que ele não é psicótico, que tem cura por aqui, por ali... Infelizmente é assim. Voltando à questão das criança, tenho impressão de que deveríamos poder surpreendê-las no momento da sua confusão. É possível ajudar o sujeito a produzir o conceito de limite. Isto tanto para aqueles que estão pressionados demais quanto para os que estão lábeis demais. Mas há que ter uma escuta muito fina para dialetizar ou na parede ou na labilidade.

11/SET

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18 FORACLUSÃO – 2 Fiz uma nomeação de nosologia tomando por base o termo Foraclusão, trazido por Lacan, pouco importa se em tradução ou não do termo Verwerfung, de Freud. Importa é que Lacan colocou este conceito e determinou o que fosse. Nomeei, então, o conjunto básico de nosologia a partir da tomada da foraclusão do limite, de reclusão e inclusão do limite. Isto, na verdade, é uma reverência e uma homenagem a Lacan por, com o termo foraclusão, de alguma forma, haver deslocado o que se costumava dizer a respeito da psicose. Homenagem ao meu mestre agridoce, como a melhor comida chineseum, se fôssemos falar como Schreber. Ao colocar foraclusão do limite, fiz apenas uma tradução abstrativa do tal Nome do Pai, do tal significante da Lei. É uma tradução abstrativa com base no conceito de número e na idéia de limite, por exemplo, dentro da teoria dos conjuntos. Mantenho a reverência e a homenagem, posso continuar falando em foraclusão do limite para representar isto, mas minha questão é um pouco mais grave do que o que tenho apresentado até agora. Ela foi bastante desenvolvida no segundo semestre de meu Seminário de 89 em três sessões consecutivas intituladas: A Pedra Angular, Da Pedra Angular e Ao Nome do Pai. Foi quando comecei a mexer na questão delineada este semestre como Limite, !. *

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Naquela ocasião, eu colocava a dica freudiana de que, citando literalmente, “a teoria do recalque é a pedra angular sobre a qual repousa todo o edifício da psicanálise”. Retomei esta frase para re-encontrar esta pedra angular e me perguntar se não tinha a ver com as diferenças fundamentais na nosologia do falante. Eu me perguntava, em última instância, se, com o conceito de Recalque, não podia pensar, além da neurose, que já é pensada com a questão do recalque, a psicose e a morfose. Pretendo mostrar-lhes que, a partir do que tenho colocado até agora, posso retomar essas questões e reassentar tudo de novo sobre a pedra angular do conceito de recalque. Como é do conhecimento de todos, o grande bate-boca no campo da nosologia, em psicanálise, é em torno de que conceitos básicos fazer a distinção entre neurose, psicose e morfose (como não sabem o que é morfose, chamam de perversão). Então, como ficou combinado que a neurose interessa ao recalque, fica-se procurando outro conceito para dar base à psicose e à morfose. Durante muito tempo, e isto ainda dura, tentou-se lançar mão do conceito que Freud chamava Verleugnung, e que chamo renegação. Isto para dar conta, às vezes, da psicose e, sobremaneira, da perversão. Mas sabemos muito bem que este conceito não tem a menor pega para estabelecer nem mesmo morfose, quanto mais psicose. Depois que Lacan inventou o de foraclusão de certo significante, já foi um alívio. Mas, em termos freudianos, a coisa foi pendurada, posta na conta da tal de Verwerfung, expulsão, rejeição, exclusão, sei lá o nome que se queira dar a isto, que não necessariamente bate ponto a ponto com a tal foraclusão de Lacan. Por isso eu disse, no começo, bata ou não, o que interessa é que Lacan inventou a forclusion du Nom du Père, que isto pode ser abstraído com o conceito de limite e que, portanto, não é preciso de Nome do Pai nenhum. No caso de morfose, de perversão, em particular, ficou a tal renegação até hoje freqüentando os livros sem a menor consistência. Isto porque qualquer autor que fala nisto a todo momento precisa reconhecer que ela não é privilégio de perverso, portanto, o conceito não serve. Já tentei, a partir do conceito de Limite, estabelecer com mais ou menos alguma clareza os conceitos de: foraclusão do limite, que segura bastante o

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que há de psicose em termos de lacanismo; de reclusão do limite, tal qual tratarei com mais vagar a partir do próximo Seminário e que garante bastante o que pudesse ser o conceito de morfose em geral, ou seja, fobia para um lado, e perversidade para outro; e o velho conceito de recalque pura e simplesmente que chamei de inclusão do limite, e que também é facilmente demonstrado. Agora – para além do entendimento da foraclusão do limite, que não é novidade nenhuma, pois, a meu ver, é simples tradução, em termos de número, do que Lacan colocou como significante paterno da Lei –, quero me perguntar sobre a questão freudiana do conceito de recalque como pedra angular sobre a qual repousa todo o edifício da psicanálise. O que há, na psicose, ou nas psicoses, relativamente ao conceito de recalque? Parece-me bastante claro que, se um sujeito não consegue preparar para si um conceito de limite para além do conceito de fronteira, com isto, já posso qualificar as psicoses. Mas, no que diz respeito à ordem recalcante, o que aí acontece? Como lhes falei, na verdade, produzir enunciado legal é apresentar um proibido como se fosse da ordem do impossível. É a transposição metafórica, se quiserem, ou analógica, tanto faz. Metafórica, no sentido comum de metáfora, não no de Lacan. É, pois, a transposição do proibido para o regime do impossível. Este impossível não é necessariamente o Impossível absoluto, que é o não-Haver, mas uma impossibilidade modalizada aqui e agora como regime fronteiriço de um havente qualquer, como, por exemplo, um etograma animal. O que acontece com esta espécie esquisita, chamada espécie humana, é que há nela, por um lado, uma necessidade de inscrição de algum enunciado legal que ponha fronteira. Isto porque, justamente, a espécie enquanto tal não tem fronteira de espécie alguma. Ou seja, na sua particularidade, na sua especificidade mais radical, o que há de humano é que há Revirão e isto é sua disponibilidade. Então, por mais macaco que seja, por mais lastreado que seja por um conjunto de pressões etológicas que certamente herdou em grande quantidade dos mamíferos, dos primatas, o que é específico do humano é que isto pode revirar. Tenho, então, que medir a especificidade da espécie por esta

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particularidade, e não por qualquer outra que, se fosse normalizante, fundaria uma antropologia definitiva. A antropologia sempre quebra a cara, sempre é não definitiva, justamente porque o que quer que se apresente se revira. (Com exceção, segundo certos estruturalistas, da famosa interdição do incesto, mas que revira também. Tanto é que Édipo faz o que faz. E deve revirar historicamente também). O que poderíamos chamar de Recalque Originário? Posso colocar este conceito em diversos níveis. No nível da falta de limite, o recalque é originário no que é fundante de limite. Mais pratrásmente, no regime de não haver o não-Haver, o Recalque Originário seria surgir o Real, ser recalcado do não-Haver porque se, de direito, existe, ele não existe de fato. Ele não pinta, mas é sonhado. Então, recalcar isto, esquecer o não-Haver para lá, e referir-se ao Real, é o que se poderia chamar de Recalque Originário no regime mais antigo. No regime recentíssimo, o que se poderia chamar de Recalque Originário é a bobagem que Freud chamou de Édipo. Ou seja, para além de zero, para além de infinito, na estorinha caseira do sujeito, é a fundação de determinada fronteira como um certo pai que diz: “Não!, tira a mão daí”, ou: “Não come a mamãe”, etc. Isto, aliás, é muito bobo, é pura representação de recalque. No regime da diferença ôntico-ontológica, se quiserem, do macaco para o falante, o Recalque Originário estaria na opressão que necessariamente se exerce sobre a possibilidade de reviramento, de neutralidade pelo simples fato de uma herança biológica, de uma formação do Haver num nível restrito, de macaco, etc. A diplomacia de sobrevivência exige que se cale, ainda que parcialmente, a possibilidade de reviramento. Digamos que a normalidade da espécie é ser louca. Não estou dizendo ser psicótica, mas sim nos termos que Lacan coloca nos Écrits, que o limite (eu diria: o regime) da liberdade humana é a loucura. Ou seja: reviro o que me der na telha, reviro qualquer troço, qualquer prazer me diverte, ou seja, qualquer desprazer. É claro que nossa covardia fundamental equipotente e equipolente à nossa liberdade fundamental vai pedir a diplomacia para com o macaco, para com as existências: “Enlouqueça um pouco menos para você ganhar algum...”

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Mas meu regime específico, minha particularidade, é de que posso revirar. Portanto, devo? Mas é também “o extremo som do perigo”, como diria Sá de Miranda. Então, o que é o Recalque Originário para esse louco fundamental, o chamado ser humano (que é o macaco, portador da competência de Revirão, que, quando assume esta competência, deixa de ser humano, acaba todo o humanismo e passa a ser angélico, revirante, arrastando aquele ser humano, aquele macaco defeituoso, aquele macaco maluco, atrás dele)? Recalque originário é a opressão obscena que verificamos exercer-se, perenemente, desde o começo do aparecimento desta espécie esquisita, sobre sua possibilidade de Revirão. Por exemplo, meu pé, meu braço, são recalques originários, fazem parte do recalcamento. Por que tenho que ter braço? O que tenho a ver com a anatomia imbecil que me deram? Isto tudo é opressivo, me oprime, a não ser que eu possa multiplicar e deformar mediante aplicação da força. Vocês viram Chaim Samuel Katz, falando sobre psicose aqui no Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, referir-se à força. Ele tem toda razão, pois falava da konstante Kraft, da força que está sempre aí quando se a aplica aqui ou ali. Ela é a força. Às vezes, não sabemos o nome daquilo sobre o que ela se aplica, aí ficamos só com a força na mão. Mas a konstante Kraft, aplicando-se sobre algo, tem nome. Chama-se: Desejo, o qual, como é desejo de não-Haver, quebra a cara. Então, é desejo de qualquer coisa. E isto se chama loucura. A espécie é louca, embora não necessariamente psicótica. Temos aí, então, um modo de entender o que é o Recalque Originário, que Freud conjeturava como uma espécie de pólo de atração para todo e qualquer recalque possível. Não se pode falar de Recalque Originário sobre um animal, pois ele não revira, ele é aquilo. Eu diria até que, para mim, ele é recalcante, mas não recalcado. De repente, eu queria que um cachorro saísse voando, mas ele não sabe, é um imbecil, é só cachorro. É recalcante, então, faz parte do Recalque Originário, desse buraco, desse negócio. Então, a massa recalcante, limitante das possibilidades de reviramento, de indiferença, de neutralização, é uma coisa enorme. Mas a minha especificidade é que o que quer que se diga, o que quer que se me apresente, com seu direito ou com seu

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avesso, pode fazer sentido, pode ser verdadeiro, pode ser interessante, pode ser produtivo, pode ser conhecimento. Aí, toda a epistemologia vai para o brejo. *

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" Pergunta – É possível fazer o Revirão no próprio Édipo freudiano? A tragédia não mostra exatamente o contrário, esta impossibilidade? Ele vive o incesto, mas quando reconhece, foge, se cega, se culpa. Ele se pune à medida que assume que comeu a mãe e, nesse momento, ficou louco. Édipo ficou é completamente lúcido. Uma coisa importante que Lacan diz é que não há punição alguma em Édipo. Ele furou os olhos para mostrar que não servem para enxergar o que é para se enxergar, que algo enxerga mais longe que o olhar. Ele assume a responsabilidade de ter sido cego e não enxergar o que estava na cara de Tirésias, que, este, era cego. Só ele não via o que estava na cara. Jocasta, por exemplo, nunca lhe disse outra coisa. Ela era absolutamente mulherzinha: “Pára com isso menino, que bobagem, esquece, todo mundo já sabe, só você não esta sabendo”. Isto está de algum modo no texto. Não há culpa na tragédia. Ele fica é muito danado da vida de se pegar como imbecil. Aí, ele passa a ser lúcido e fica habitando justamente a periferia, a fronteira de Tebas. Ele é uma espécie de zelador do horizonte, no Édipo em Colona. É como se dissesse: “Agora sou igual a Tirésias, entendi tudo, então, pode ou não comer a mãe, que dá na mesma”. Aquilo tem a ver com a fronteira que se constitui como Tebas, com sua “neura” interna que diz: “Se você comer a mãe, a peste vem”. Mas isto é Tebas, e não Édipo, que é aquele que atravessa tudo isso e sai lúcido do outro lado, impressionado de ver como antes era “cidadão” de Tebas, ou seja, um neurótico. Se entendermos a interdição do incesto como uma ferramenta, pode ser útil, quem sabe ser até um creodo na produção do social, mas colocar mais fé do que isto já é da ordem da imbecilidade, da estupidez da neurose. Nada impede que os processamentos da espécie, com a sua inteligência, venham a abolir o interesse interditório, pois não serve mais. Mas temos toneladas não só

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de interdição do incesto, mas de pré-conceitos, de conceitos que até já serviram numa idade prévia, etc., que não conseguimos abandonar, pois viraram fronteira do nosso quintal. São coisas absolutamente inúteis para a vida de hoje e que mantemos até numa grande crença afetadamente tomada por aquela que não serve mais para nada. É apenas uma antigüidade, uma peça de antiquário que ficamos prezando porque gostamos dela, mas que não tem a menor serventia. E não se é nem um bom antiquário, no sentido de um museólogo que sabe que determinada peça indica que em tal momento foi assim, mas agora não é mais, e não se investe nesse modelito inútil. As pessoas, às vezes, têm um sentimento muito esquisito quando se fala da loucura humana, da possibilidade de Revirão, e quando alguém assume esta possibilidade ficamos assustados. É normal. Falta certa desenvoltura para lidar com coisas que parecem da ordem do sagrado, que foram sacralizadas por religiões, por situações familiares, estatais, etc. Mas o sagrado mesmo é o não-Haver, que é absolutamente Sacer, absolutamente Imundo, o resto é tudo Mundo e dá para mexer à vontade. Quando alguém nos quer fazer acreditar que alguma coisa mundana deve ser sacralizada, devemos ter muita desconfiança, pois estão querendo nos manipular. Retomar, então, o conceito de Recalque Originário neste nível vai nos permitir perguntar se o que comparece no regime do que chamei de limite e no da foraclusão desse limite não está acoplado logicamente, de algum modo, a alguma possibilidade de suspensão da massa enorme que agora estou chamando de Recalque Originário. Qual é a correlação que pode haver entre estas duas coisas? Ou seja, se não me refiro a um limite, vou lidar diretamente com a produção de real, pois não tenho outro limite senão este. O que aí se põe em questão, o que aí se exacerba? Só pode ser, segundo o percurso que venho fazendo, a competência de Revirão. Estabelecer um limite a partir do entendimento de uma fronteira dá certo apaziguamento em minha loucura. Não estou falando de psicose, e sim da loucura fundamental. É uma certa satisfação com o seu quintal, mesmo que não se saiba bem qual é. Mas a suspensão deste limite me põe, outra vez, no

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questionamento da dimensão do território. Aí, estou de novo numa exacerbação da minha competência de reviramento. E isto é muito pirante. Só não o é se suspendo o masculino do limite com o feminino do não-existe-nenhum e dou um passo no Angélico de uma nova construção, mas sempre considerando o limite. No que o limite não está considerado, exaspera-se fortemente minha particularidade. Por isso, o próprio Lacan, que chamava a psicose de loucura (eu não chamo), diz que esta é o próprio limite da liberdade, que se exercermos francamente uma liberdade, o limite é a loucura, até a psicose. O que estou querendo dizer é que, para além – ou, se não, para aquém, não sei – do conceito de foraclusão, ainda que seja foraclusão do limite e não do Nome do Pai, posso pensar muito bem que o que acontece na psicose é o retorno do recalcado original. Retomo, portanto, o desejo de Freud, através das peripécias de Lacan, com o interesse que ele tinha de demonstrar que era o conceito de Recalque a pedra fundamental de tudo. Quando falarmos da neurose, veremos que esta lida com fronteiras e com chiliques em torno de recalques que põem a fronteira aqui ou ali. Retorno do recalcado é uma briguinha em torno de fronteiras, é coisa muito mais leve, muito mais simples. Mas, para além deste recalque secundário com que a neurose briga, há algo mais grave, que é o Recalque Originário, que me dá certo conforto em relação à produção possível de algum limite. Quando a invasão é forte demais, quando o limite não se inscreveu e procuro por ele, ou sei-lá-o-quê, quando o invado com muita força por causa da konstante Kraft do meu desejo, simplesmente a coisa extravasa, gira, gira, revira, revira, e, de repente, o recalcado originário retorna. Então, para além do conceito de foraclusão do limite, para situar o que seja psicose, digo que ela é retorno do recalcado originário. O que houvera sido recalcado? As possibilidade de Revirão por uma grande pressão. Se perco as estribeiras, começo a ficar muito pirado. Por exemplo, que direito tem o meu pé de imaginar que pode me recalcar? Muito menos direito o meu fígado! É a isto talvez que um Artaud chamasse de corpo sem órgãos. É uma inundação do Haver e, portanto, do Real. Se o recalcado é a possibilidade de reviramento, esta se dá porque, para além de um recalquezinho que tenho aqui, tenho o Real

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forçando o retorno do recalcado. Então, brota tudo, vem tudo. Isto é simplesmente a situação da loucura humana. Se tivermos pontos de referência para brincar com isto, brincaremos até numa boa, mas se os perdermos, é difícil. Como é, por exemplo, no caso da chamada esquizofrenia que, da vez anterior, situei como capaz de emergir a partir de uma labilidade extrema da fronteira. E há a versão paranóica em que, ao contrário de labilidade, o sujeito só pôde crer na fronteira e ficou sem condições mínimas de botar o pezinho para fora sem se perder. Podemos entender com clareza o Seminário de Lacan se considerarmos que, afinal de contas, quanto ao que é dito sobre As Psicoses, na verdade, é um Seminário a respeito da Paranóia. " P – O retorno do Recalque Originário, poderíamos, paradoxalmente, chamá-lo de retorno do foracluído? Até ficaria sem interesse o meu conceito de retorno do recalque se fossem a mesma coisa. O foracluído foi justamente o limite e, no que é foracluído, retorna o recalcado que ele mantinha, pelo menos, suspensivo, e que a fronteira mantinha à distância mesmo. No caso do paranóico, por exemplo, no que se encontra a paranóia pronta, não se encontra o sujeito em estado de loucura, ou seja, daquele que vai cair na paranóia ou na esquizofrenia. Mas este é que é o louco, aquele que está nas brebas de cair na paranóia, mas não cai ainda. Quando encontro o paranóico, este, não é louco. Paranóico é paranóico. Louco sou eu. Ele justamente arranjou a paranóia para escapar da loucura, já não é mais louco. Malucobeleza é aquele que vai lá, invade e volta. É como diz a musiquinha do outro: “a mistura da minha lucidez com a minha maluquês”. Quando você não consegue transar nessa daí, pode desabar vertiginosamente na paranóia e na esquizofrenia. No caso da paranóia é que conseguimos ver certos artifícios muito esquisitos. Eles são produzidos pelo paranóico não em função da foraclusão ou da loucura, mas sim da fronteira onde ele se agarra com unhas e dentes para reduzir a loucura a este campo de sua fronteira. Paranóico é um rigoroso redutor da loucura à instância do seu limite, que ele só entende como fronteira. O rigor do paranóico é redutível. O neologismo que Lacan encontra no final do papo com

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o psicótico-paranóico não é senão: “Daqui não saio, se não, me ferro”. Aí, ele se agarra numa palavra fronteiriça. *

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Lacan me dá garantias da perda de condição metaforizante porque o conceito que, para ele, segura a psicose é o de Nome do Pai, que é um significante de possibilidade de metaforização. Perdido isto, não se pode metaforizar. Então, ele garantiu ali. Vocês podem me dizer que estou lhes apresentando o conceito que não dá o suporte que Lacan dá baseado no que o sujeito não consegue apelar ao verbo, à palavra e, daí, a uma função nomeante. No conceito que apresentei, eu não teria apresentado onde está a perda, mas ela está aí. Está na cara, daqui a pouco aparece. Lacan deu um golpe genial. Se diz que é o significante de fazer metáfora que se perde, e é por isso que o cara não faz metáfora, ele colocou tudo numa panela só, numa panela verbal, se não, lingüística. Estou dizendo que o que o cara perde é também (Lacan chamaria de um significante, mas eu digo que é) um entendimento conceitual de limite. Isto perdido, não posso dizer se é antes ou depois da possibilidade de qualificar a psicose como retorno do recalcado primordial. Isto porque é estrutural, nem antes nem depois, é tudo junto. E por que o cara não poderia resolver isto através da nomeação? Não preciso dizer que é porque no conceito de limite vai o significante da metáfora, porque vai também, mas posso ficar, de maneira mais abrangente, de acordo com meu interesse, que é: no que o recalcado primordial retorna, o que não o nomeia, o que não é metáfora? Isto porque o que quer que compareça, para ele, é a mesma coisa: tudo é Nome do Pai. Tudo ser e nada ser, é a mesma coisa. Lacan amarrou o pontinho ali, tirou o Nome do Pai, que é a metáfora paterna, a condicionadora de qualquer metáfora. Atenção, pois quando Lacan usa a palavra metáfora, sobretudo no que diz respeito à metáfora paterna, não está designando a metáfora do campo lingüístico e nem lhe dando um novo conceito. Está dizendo que, no campo da psicanálise, o que interessa é o processo metafórico não de mera substituição,

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mas de identificação subjetiva com determinados significantes. Então, Lacan não está dando o conceito de metáfora em geral, mesmo porque se fosse aquele, seria uma besteira o que ele diz, pois os lingüistas, os retóricos, há muito tempo, disseram outra coisa. O que está dizendo é que a metáfora paterna, a metáfora que lhe interessa ali, é que sa gerbe identifica Booz, no exemplo que toma de Victor Hugo. Para ele, a metáfora só está valendo no regime do Sujeito. Então, a tal metáfora paterna, que Lacan diz que não está inscrita, é a possibilidade de o sujeito se identificar, sintomática e perversamente, com determinado elemento que o substitui no campo do verbo. Se o limite acabou, se o sujeito começa a rodopiar nas possibilidades de reviramento, pergunto eu: o que não lhe serve como pega? Se o ponto de basta que Lacan coloca aí no limite é o que segura, e se isto rodopia, Lacan diria que não há mais metáfora possível. Para mim, tanto faz dizer isto, como dizer que tudo é metáfora possível. Dá na mesma. O cara se perde é aí. Se é um sujeito de tendência paranóica, ou seja, se sua vertente de entrada na perda do limite foi pela pregnância excessiva da fronteira, isto vai funcionar como se fosse o sintoma e a perversão que não se deu para ele em sua elasticidade. Então, eu diria que o paranóico é uma espécie de hiper-sintomático, de hiperperverso, só que não sabe sê-lo. Isto não tem operatividade para ele. O esquizofrênico é outra história. Ele se perde para lá, vai escorregando. Como já disse, ainda não estou fazendo um Seminário sobre a psicose. Estou tratando da foraclusão. Mas tomem as coisas que se escrevem a respeito das psicoses e apliquem ao que estou dizendo e verão começar a funcionar o aparelho. Por exemplo, a velha questão da homossexualidade latente de Schreber, da qual Lacan já fez uma crítica enorme mostrando que não se trata bem disto. Que coisa esquisita é aquela que retorna a Schreber (que não funciona como um neurótico)? O neurótico é um cara que, no processo de seu Revirão, tem um recalque que passa entre os dois alelos do halo. Suponhamos que o recalcado, que carrega o Real junto, pois vai tudo de cambulhada, seja isto que as pessoas querem chamar – não sei por causa de quê, até hoje não entendi, mas fica assim mesmo – de homossexualidade. É recalcada a homos-

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sexualidade porque disseram que é proibido, que não está certo, pois quem come é o outro, que o outro come não sei quem, é uma confusão dos diabos que põem na cabeça das pessoas. O alelo de cima, chamemos de Hetero (embora eu também não acredite nisto). Um é o permitido, outro é o recalcado.

O que faz o neurótico? Como é apenas um recalcado secundário, consegue perfeitamente fazer voltar aquele recalcado por alguma via. Dá um sintoma nele, uma paralisia, começa a requebrar sem saber por quê... Feito um analisando que tive que não podia andar pela rua porque todo mundo estava olhando sua bunda. Os olhares todos convergiam para lá e ele ficava segurando para aquilo não mexer. Se mexer, entra em compromisso com o olhar que ele supõe dirigido para lá. Ou seja, o recalcado volta de alguma maneira. É assim que acontece com a psicose? Não. No que retorna o recalcado primordial, vem tudo de lambuja. Então, também, retorna, mas era aquilo que estava recalcado? Estava simplesmente recalcado? Ou devia funcionar como se não houvesse? Para que o alelo de baixo esteja simplesmente recalcado, é preciso que o sujeito seja razoavelmente sadio, seja só neurótico. Ou seja, está recalcado, é proibido, etc., mas há um horizonte onde ele dá um jeitinho de o retorno voltar, se não por sintoma, quem sabe, por sublimação. Ele vai ser artista, ator, se traveste, faz algum troço... Mas se não há horizonte para isto e se é caso de

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“parana”, o alelo de cima está posto como havente, e o de baixo como nãohavente, e não como recalcado. Mas, porque isso há, a maquininha dá a volta, retorna e traz este que não há para diante dele. Ora, é uma perseguição que só pode lhe parecer que vem de fora, do real. É isto que Lacan disse que não está inscrito no simbólico. Mas está inscrito no simbólico, sim. No simbólico do mundo, e até na cuca dele. Como está posto como não-havente, não faz parte de um horizonte que tem uma terra-de-ninguém, onde posso olhar. Não. A partir da fronteira, é o abismo. Então, o que não está inscrito dentro da fronteira é tratado como se não houvesse e parece que vem do real. Não há, pois, em Schreber, nenhum retorno de recalcado, do homossexual, nada disso. É como Lacan diz com clareza, que ele não inclui mais nenhum miligrama do que se chama de feminino no comportamento de sua época. É como se aquilo não pudesse. Então, volta direto no corpo: as tetas dele começam a crescer, direto. E ele não faz por menos do que ser enrabado por Deus. Ou seja, pelo maior dos bem-dotados. A Virgem (que tirou o dela da reta) que o diga. Então, vemos com certa clareza as maquininhas começarem a funcionar em cima dessa conceituação. Se então, no regime da suspensão, da foraclusão do limite, há o retorno do recalcado originário, isto significa que o que quer que dê consistência à possibilidade de recalques secundários foi suspenso. O regime da loucura desenfreada é o remanejamento do processo de Revirão sem leme. Ele começa a revirar, e no que começa a revirar, que basteamento é possível aqui e agora para o sujeito? No caso da esquizofrenia, chama-se qualquer coisa. No caso da paranóia, chama-se a fronteira. E isto não é nem um basteamento. É uma parede, um muro. Que argumento teria o cara para operar esta nomeação? O não-retorno do recalcado originário e a função limite. *

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Recalque Originário é condição sine qua non até de construção do limite. Vocês se lembram que Lacan diz que não podemos pensar que o maluco,

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o psicótico, fala coisa sem sentido. Tem muito sentido, é absolutamente rigoroso. Ele fala é sem aplicação, não é aplicável. Como posso, então, fazer estagnarse com algum interesse de aplicabilidade aqui e agora?

S s G

Aí, preciso do que já introduzi ano passado: Significante, significado e Gnomo. O que é o regime de basteamento na história etológica de um sujeito? Digo história etológica na medida em que se tomar os animais sobreviventes, verificarei que precisam o tempo todo ter referências sígnicas para poderem sobreviver. Ou seja, o que quer que pinte como significante para um animal – que nada impede que pinte: um som, um grito da mãe, o nascer do dia –, está, digamos, como que conceituado para ele numa pregnância direta com a formação do Haver que significa aquilo. Isto é que é um etograma. Formação do Haver e conceito são quase a mesma coisa: seja o que for que pinte como significante, ele traduz imediatamente, é sígnico. Mas o que é a história de um sujeito segundo o modelo do Recalque Originário? Com base em toda a grande massa recalcante da sua potência de Revirão – chamemos de Vontade de Potência, em Nietzsche, ou Vontade de Revirão, se quiserem –, massa esta que é uma massa sígnica e nada mais, o que o sujeito vai aprontar na sua passagem de signo a significante liberado é justamente em função desta possibilidade de Revirão no nível da transcrição, do transcrito. Então, se, no nível da representação verbal, tomarmos qualquer palavra, cadeira, por exemplo, Saussure diria que há: (a) um significante cadeira, que podia ser chair, qualquer coisa, e (b) um significado, que não é uma significação bruta, mas um conceito ligado a este som. Mas, digo eu que, para além do significante do conceito, a armação da relação significante/ significado depende de formações do Haver ligadas ao conceito. Por exemplo,

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a existência de cadeiras efetivas; a existência de, na beira de uma montanha, uma chanfradura em que me sento e que faz parte do conceito de cadeira... Formações do meu corpo, por exemplo, pois se minha anatomia fosse outra eu não precisaria de cadeira. Ninguém manda cobra sentar em cadeira. Tudo isso faz parte do que chamo Gnomo, que é a grande formação do Haver, que suporta o conceito de cadeira e ao qual dou um apelido lingüístico qualquer: chair, chaise, cadeira. Para mim, portanto, o regime é ternário: Significante/ significado/ Gnomo. Saussure fez muito bem em chamar de signo lingüístico, pois é o que vem em substituição à ordem sígnica que interessa à pregnância etogramática do animal. Só que, em função de haver Revirão, para a minha espécie, os signos deslizam, são deslizáveis. Toda vez que tenho uma grande pregnância sígnica, que Lacan quis chamar de Imaginário, Real e Simbólico, estou passando por uma espécie de deslizamento contínuo quantificável. Para mim, é maior ou menor pregnância da mesma coisa. Não há que passar a imaginário, é o mesmo. Ou tem uma pregnância exacerbada e funciona como se fosse o tal imaginário de Lacan, ou tem deslizamento maior. É só isto. Tenho, também, uma ordem sígnica, um signo lingüístico: cadeira. O conceito que dou a cadeira, aderido a formações do Haver que são formações do meu corpo lá fora, coisas dentro do meu cérebro, isto tudo segura junto. Ora, o assentamento disto é muito grande, ou seja, extremamente recalcante. É muito pregnante, “basteante”. Agora, comecem a deslizar demais com isto, brinquem de Joyce com a língua, brinquem de escrever o Finnegans Wake em português, por exemplo, e verão como isso começa a sofrer tal deslizamento, cuja competência ali está, mas muito leve, que vou perdendo as estribeiras. Qual é o limite? Há um limite, mas onde? Tentem, comecem a brincar de deslizar os significantes com seus significados e gnomos. Daqui a pouco, estarão chamando urubu de meu louro. E, pior, com razão, pois o próprio deslizamento do processo dá tal elasticidade ao basteamento possível que, uma vez perdido o horizonte, isto começa a produzir-se de maneira tão caudalosa que, de repente, você está aceitando qualquer um e sem volta. Ou seja, qualquer coisa, qualquer

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palavra, serve para nomear qualquer coisa. Algum despregamento acontece aí. E precisaríamos exatamente de uma justificativa lingüística com esta precisão para dizer: foi isso? Ou posso falar que é um campo enorme de deslizamentos tão intensivos que o sujeito começa a se perder radicalmente, sobretudo quando não conta previamente com o que vai suportando o Recalque Originário, ou seja, mantê-lo, que é estar o tempo todo pensando prudentemente num limite. Aí, ele se perde geral. Como já disse há tempo, sou pragmático e simplista. O pragmatismo é a ordem dos usos da loucura e da diplomacia com o boneco. Se não, como posso fazer uma regência, no sentido da maestria da sinfonia, disso tudo que vemos em tantos livros de psiquiatras, de vários movimentos psiquiátricos e anti-psiquiátricos? Por exemplo, é possível urgir modos de psicotização de um sujeito? É. Por isso alguns autores têm razão em dizer de como determinado grupo familiar produz determinado psicótico. Isto que estou dizendo é muito mais dinâmico do que simplesmente acreditar que, um dia, lá não entrou não-sei-o-quê. *

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A hominização, a meu ver, isto é dado, é ôntico. A espécie, as espécies foram se complexificando e, de repente, pintou esta que reproduz o processo do Haver. Isto está inscrito aí. Sou absolutamente materialista neste ponto. Está inscrita dentro da espécie a possibilidade de Revirão como possibilidade do Haver, a qual não está inscrita, por exemplo, no cachorro, no gato, no cavalo. Esta espécie tem isto como sua especificidade, a qual quero postular que é repetição da possibilidade do próprio Haver, da indiferença, do reviramento do Haver. Isto que a antropologia quer dizer que é o processo de hominização, para mim, é um processo de aculturação, e não de hominização. É quando o Neolítico se inventou e o falante, criado por si mesmo como um processo de Revirão, tornou-se o babaca que é no seio da cultura. É necessário, é preciso, passar pela babaquice, mas interdição do incesto, para mim, é matema da

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babaquice fundamental que funda a cultura, ou seja, que funda o Neolítico. Um dia ficamos livres disto e do Neolítico onde estamos até hoje. Que queira supor, catastroficamente pensando, que isto terá sido um creodo no processo, aí, tudo bem. Mas tem começo, meio e fim. O que é essencial é a competência de reviramento. Pode ter sido um creodo justamente porque esta coisa esquisita se deu no seio de uma espécie configurada como primata e que teve que fazer as diplomacias acordantes com os etogramas ancestrais. Isto não determina que eu vá ficar eternamente neste compromisso. Muito pelo contrário, vou superá-los e submeter não o homem ao macaco, mas o macaco ao homem. Não sou do partido retrô, que diz: “Viva o macaco. Sejamos mais humanos, mais família”. Sou do partido do futuro. O meu século não chegou. Desculpem-me, mas nasci fora de hora.

18/SET

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19 POLTERGEIST Na série do que vinha comentando nas últimas sessões deste Seminário, hoje eu deveria falar da Reclusão. Entretanto, farei um interregno por dois motivos. Primeiro, porque em torno da minha atuação, que se efetiva e se sintomatiza particularmente no seio do que se chama de Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, acontecem, de um tempo para cá, alguns fenômenos paranormais. Segundo, a demanda de interpretação que as pessoas ficam fazendo ao meu redor, pedindo explicações destes fenômenos. Daí eu ter o interesse de falar a respeito de Poltergeist, o que seria um pouco de praticagem da Clínica Geral: tentar dar conta, com alguma interpretação possível que relance os processos, desses fenômenos que ocorrem. *

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Tomo o termo Poltergeist e falo em fenômenos paranormais por causa da sugestão feita por um livrinho que venho de ler, de um autor que sempre prezei muito. Há cerca de 20 anos atrás, comecei a lê-lo e suspeito que tenha lido quase tudo dele. É um grande poeta francês, chamado Henri Michaux, que tem uma obra tão interessante quanto pouco lida. Há mesmo um verdadeiro “culto” a ele por um grupo mais ou menos seleto de leitores. Ele não é desses autores disseminados em cultura de massa, mas é extremamente bem considerado nos meios literários e pensantes. Sua obra é grande. Ele já faleceu

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há algum tempo... Por um acaso qualquer, este livrinho, publicado em 80, eu não conhecia e, por sugestão de um colega universitário, fiz também questão de lê-lo. Trata-se de Une Voie pour l’Insubordination, Uma Via para a Insubordinação. Ele já publicara todo um conjunto de livros a respeito de suas experiências com drogas, com a descrição das comichões psíquicas por que passou com elas, com a descrição dos movimentos da linguagem, do espaço, com suas experiências com sonhos, viagens... Neste livro, começa falando a respeito da via para a insubordinação que desenvolve mais ou menos longamente o fenômeno do Poltergeist. Henri Michaux é justamente uma das pessoas que mais me deram chance a pensar a hipótese do Revirão. Nas suas experiências poéticas e descrição de experiências interiores com a droga, o sonho, as viagens, há uma insistência no reconhecimento da clivagem do Sujeito, mas sempre acompanhado do movimento dialético da reversão no contrário. Mas retorno ao Poltergeist – aliás, até já passou um filme, tipo americano, sensacionalista, sobre o assunto, no qual tudo acontecia em torno de uma menininha. Henri Michaux começa considerando a existência, aqui e ali na face da Terra, de fenômenos de Poltergeist e chama atenção para o fato de que (não sempre, mas) geralmente é em torno de alguma menina que acontece. E mais, faz a hipótese, sem dizer o nome, de que é um fenômeno de Revirão. Pela presença catalítica de alguém (uma menina), há um Revirão no ambiente: as coisas começam a funcionar como se houvesse uma insubordinação, no sentido de que o oposto da ordem vigente começa a aparecer e a produzir grandes movimentos, e coisas voam para lá e para cá. Ele também associa com outros fenômenos narrados na literatura mundial a respeito da presença de um certo demônio – aliás, a palavra Poltergeist, em alemão, significa duende, diabrete, quiçá mesmo isto que chamo de um Gnomo. Há também experiências de Santos que quanto mais se concentravam nas suas orações para um lado, mais o demônio aparecia para o outro, mexendo nos objetos, etc. Como me sinto, no momento, uma espécie de catalisador, venho trazer como interpretação para esses fenômenos que me parecem paranormais, a noção de Poltergeist. Começo a fazer a suposição de que sou alguma menina

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e que, pelo simples fato de estar presente e dizer coisas, os fenômenos de Poltergeist começam a acontecer. Não necessariamente um livro sair voando pela janela, mas, às vezes, saem pessoas voando pela janela, o que é bem mais grave. Ou caem pedras sobre minha cabeça, que não sei de onde vêm... Mas tenho que tentar inserir este Poltergeist em alguma série que faça sentido, e só posso encontrá-la na linhagem daqueles que assumo como antecessores ou como maiores na minha história. Por isso, fui procurar como se deram os fenômenos parecidos na história, por exemplo, de um Lacan e estabelecer semelhanças e diferenças para ver se entendo um pouco a situação e posso, de uma vez, servir àqueles que vivem me demandando explicação: servir alguma interpretação que acaso os satisfaça. Estabelecer um contorno de ensino, de reflexão, sobre um tema tão esquisito como o da psicanálise é participar de uma aventura bem esdrúxula. Essa coisa que se chama Instituição Psicanalítica, se for levada a sério, se realmente começarmos a pensar o que seja, estaremos mergulhados no meio da situação mais paradoxal, de um esdrúxulo muito esquisito. Como, então, lidar com esse objeto, com esse barato estranho, esse Unheimliche que é, necessariamente, se levada a sério, uma Instituição Psicanalítica? Ninguém sabe. Talvez quem tenha melhor tentado seja Lacan, mas não soube, também se deu mal, ou seja, também se deu bem – acabou criando Poltergeist. Se abrirem o livrão publicado por aquela moça tão simpática, Elisabeth Roudinesco, Histoire de la Psychanalyse en France, vol. 2, na parte II, capítulo 2, sobre Le grand partage, p.237, encontrarão uma coisa que me parece óbvia e que tenho repetido com outras palavras no seio desta nossa instituição, e as pessoas simplesmente fazem ouvido de mercador: “A história das sociedades psicanalíticas revela esta coisa inaudita: quanto mais se favorece a emergência de um poder democrático fundado sobre o respeito da fala individual, mais se tende a apagar o primado do trabalho inconsciente. Sustenta-se, então, a garantia do ego, isto é, de um corporativismo associativo em detrimento de um combate teórico que visa o descentramento da posição subjetiva. De fato, a democracia se liga a um conceito de liberdade

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eminentemente contraditório com a descoberta freudiana, a qual sustenta que os homens são assujeitados a um destino que lhes escapa e cuja cura permite um desvelamento parcial. Se nos ativermos a esta teoria, é impossível criar uma associação de psicanalistas, respeitosa da “liberdade” do ego, sem liquidar no mesmo ato a doutrina de que ela é supostamente defensora. No outro extremo da cadeia, não se pode ceder ao autocratismo. Com efeito, quanto mais se fecha dentro da paixão por uma causa, mais se corre o risco do dogmatismo e menos se favorece a emergência de experiências novas. Contra a garantia do ego, recai-se então no culto de um mestre ou no ardor de uma mística, o que termina por substituir a ilusória liberdade da fala individual pela adesão religiosa à pessoa imaginária de um chefe ou de uma causa. Diante disto, nenhuma sociedade psicanalítica conseguiu resolver esta contradição insolúvel, mas nenhuma aceitou que esta contradição fosse insolúvel em relação à descoberta do inconsciente”. Ou seja, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Ela continua: “Em relação à França, somente Lacan conseguirá fazer operar, durante dezesseis anos, uma instituição inteiramente democrática quanto a suas modalidades de funcionamento, entretanto, centrada sobre uma relação quase que “religiosa” à sua pessoa e à sua doutrina. O caráter efêmero desta experiência que terminará com a agonia do mestre, demonstra bem a existência da dita contradição, uma vez que terá sido preciso um “grande chefe” para ousar correr o risco da democracia verdadeira e tentar, apesar de tudo, evitar as ilusões ligadas à “liberdade” do ego. Mas, a que preço!” Quando se tenta um jogo qualquer, inclusive o de Lacan, que era brilhante, e no entanto fracassado, os egos reclamam que não têm liberdade. Dar liberdade ao ego é acabar com o conceito de Inconsciente, então, os “eguinhos” todos ficam danadinhos porque não têm a liberdade de serem “eguinhos”. Por outro lado, o chefão fica adscrito à paranóia do Saber e do comando, e, por mais que tente sua dialetização perene, chegará o momento em que – ainda mais hoje que os egos estão quase todos alinhados no Partido obsessivo que tem aquele ardor de sufocar, asfixiar, o desejo do Outro – os “baixinhos”, como chamo, se

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rebelam: a rebelião dos baixinhos que não conseguem sustentar, longamente, o diálogo da fratura de crista dos eguinhos com a pretensão de ensino do egão – o que é ficar, portanto, na mesma. Se não houver a menor suposição (não de saber, mas de deslizamento) oferecida a este – eu, por exemplo, ofereci inteiramente a Lacan, pois preferia ser da religião de Lacan a ser um ego babaca dentro daquela Escola idiota. Não porque acreditasse que aquela religião valesse alguma coisa – aquela que os eguinhos sonhavam –, mas porque tinha bastante confiança no cara que suportava esse lugar e que era capaz de sacanear-se junto comigo, sem precisar que eu lhe fizesse nenhuma sacanagem de baixinho. Daí haver necessidade de considerarmos o Poltergeist. *

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Terei que fazer aqui, hoje, uma espécie de defesa. Se não, o que vou fazer? Talqualmente Lacan fazia num Seminário de 15 de janeiro de 1964 que tive o prazer e a honra de ser o tradutor para esta língua –, publicado no livro chamado Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, e intitulado pelo transcritor de A Excomunhão, é nesta série aí que tenho que me virar para entrar. Se não, não tenho dono e não tenho família espiritual... Não em concomitância com sua própria expulsão, mas no momento da renovação teórica, Lacan comenta a (pior do que excomunhão) aniquilação de Spinoza, aquele judeuzinho que pensavam que era normal mas não era, era espinhosa. O judeuzinho que parecia normal e que ia ser rabino, mas não era, era Spinoza e começa a pensar, e a dizer. Portanto, tem que ser aniquilado, e não só expulso, e não só excomungado do seio da judeuzada rabínica em que vivia. Lacan retoma este fato para comparar com sua própria expulsão da Internacional da Psicanálise, mediante uma sujeira de baixinhos também: jogos internacionais para se conseguir eliminar Lacan do seio da psicanálise. Por que? Procurem na boca dos baixinhos e eles dirão quinhentos mil motivos. Mas é só por uma razão muito simples: Lacan pensava e pensava alto. Aí começou a falar de um tal de Nome do Pai, que irritou terrivelmente os

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baixinhos. Não porque esses baixinhos fossem implicantes como eu, que não quero eliminar o Nome do Pai, e sim abstraí-lo cada vez mais. Não, eles queriam que não se falasse disso porque já tinham o Santo Édipo. Para que, então, Lacan estava de sacanagem com o tal do Nome do Pai? E por que tinha que fazer um Discurso em Roma dizendo que a psicanálise tem a ver com a linguagem? Os baixinhos não se conformaram e montaram um aparelho de eliminação de um cara que até chegara a ser presidente daquela porcaria de Sociedade – não se esqueçam disto – Francesa de Psicanálise, filiada à IPA. Mas vejam vocês que coisa mais interessante, como a eficácia de Lacan foi tal que inverteu a situação e reverteu a reversão do Poltergeist. Estou dizendo isto porque, se entenderem a aniquilação de Spinoza no seio da Sinagoga, não poderão deixar de perceber que o montante estrutural de seu processo de expulsão é nitidamente da ordem do Universal, do para-todo. Portanto, da ordem do Masculino radical que se rebelou contra a tal menina que estava fazendo Poltergeist dentro da Sinagoga. Isto porque é uma instituição no para-todo da sua regência por alguma exceção, que, numa totalidade, expulsa a menininha que estava fazendo a catálise do Poltergeist interno. A partir deste momento, só há uma saída: ou a menininha “cai na vida”, como toda boa filha de família que é expulsa: vira uma mulher da vida, ou ela tem que se recluir um pouco e assumir o lugar não da menina expulsa, mas do externo que teria dado paternidade aos expulsores. Foi o que ele fez: curtiu talvez uma pior durante a maior parte de sua vida, mas escreveu lá o Nome do Pai dele (segundo Lacan). Ou seja, desenhou o horizonte (segundo mim): desenhou o seu horizonte para todos. Lacan naquele momento se compara com Spinoza e por que não eu me comparar com Lacan, já que estamos na mesma brincadeira literária? Lacan é expulso da mesma maneira, que as donas do movimento feminista diriam que é a de um porco chauvinista, machista. Ou seja, a IPA, de maneira masculina e universal expulsou a menininha chamada Marie, Jacques-Marie Lacan, que estava fazendo a catálise de Poltergeist com o Nome do Pai e a linguagem no seio da IPA. Até aí repetiu-se igualzinho: um ato de exclusão, fundado masculinamente, de um

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serzinho que estava desordenando o interior universalizado da IPA. Ou seja, que estava dizendo: “Sei que existe pelo menos um que diz não à função fálica, mas vou dizer que, aqui e agora, decreto que não existe nenhum que diga não à função fálica até que ele compareça de novo”. A menina foi expulsa, mas também fez a mesma sacanagem que Spinoza: montou sua Escola, fez um discurso enorme e disse: “Não sou a menininha que faz o Poltergeist. Sou aquele que diz que existo como pelo menos um que diz não à função fálica, até nova mutação”. Até aí é fácil de entender, pois essas pessoas são notórias, brilhantes, luminosas, historicamente consagradas, mas o fenômeno acontece aqui e ali repetitivamente, espalhado pelos mais diversos lugares. Lacan fez um tal rebu dentro da história da psicanálise que começou, pelo menos provisoriamente, a não dar mais para haver um Universal masculino capaz de expulsar ninguém. E aí é a grande mutação. Não estamos longe de começar tudo de novo porque agora, além da IPA, há a PIPA, a Internacional Francesa, que está se virando para ser IPA, mas não conseguiu, ainda. Isto porque esse moço execrável, chamado Jacques Lacan, fez um tal rebu que não dá para haver um Universal capaz de expulsar. Nenhum universal ainda se monta porque a menina fez um tal bordel... Então, como seria a nova maneira de se expulsar a menina quando começa a ressurgir possibilidade de Poltergeist? Pergunto eu se não é os machinhos baixinhos – não conseguindo fazer um cinturão capaz de expulsar, porque esta universalidade não se dá –, por razões as mais diversas, fingirem eles mesmos serem as menininhas (no sentido da caprichosa) de tal maneira que revertem a expulsão? Como a expulsão pode ser revertida? Pode-se dar como expulsão no reverso: se estão fingindo de menininhas, tem que ser uma a uma, não é verdade?, como ensinou Lacan. Tenho cometido a estupidez, para alguns, um grande gozo, para mim, de continuar a implicar com os conceitos e as possibilidades da psicanálise. Então, agrupou-se uma tropa – sei lá com que interesses: devem ser os mais diversos – ao meu redor. Mas, ao invés de só dizer amém ao que já se disse, resolvi não imitar o dito, e sim imitar aquele que dizia: continuar dizendo, para

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bem ou para mal. Não inventei Nome do Pai, nem disse que “o Inconsciente é estruturado como uma linguagem”, mas inventei o Revirão e optei pelo Pleroma. Pronto! Foi o Poltergeist: os baixinhos ficaram assustadíssimos, talvez com medo de perder o emprego ou de não entenderem mais do que se estava falando. Felizmente, não todos os baixinhos. E nem todos são baixinhos. Aí começaram a me expulsar um a um. Não é uma reversão do cacete esta que Lacan inventou? Foi ele que inventou isto: fez um rebu tal dentro do campo da psicanálise que a baixaria não pode mais se juntar Toda. Então, elas expulsam um a um. E com uma desculpa fantástica: na medida em que é a meu redor que se junta a tropa e que, institucionalmente, a aparência de todo o mando está na minha mão, eles são vítimas. Tenho que tirar o chapéu, pois foi Jacques Lacan quem inventou isso por impossibilitar, até segunda ordem, enquanto durar o rebu que armou, que o universal se funde como capaz de expulsar. Dou, então, àqueles que me perguntam sobre o que está acontecendo, alguma explicação que me parece da ordem do interpretativo na história. É simplesmente este tipo de reversão: em não tendo condições de me expulsar, como tropa, um a um dos baixinhos vai me expulsando. *

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Serei eu tão chato quanto os predecessores para dizer, até o fim, que a menininha pode tomar o lugar do excessivo? Veremos. Se a casa está mal assombrada, é preciso que haja alguma ordem mediúnica capaz de dizer a verdade. Conto com o Inconsciente, que não nega fogo: vai acabar dizendo a verdade todinha. E não há condição de sustentação de um grupo de trabalho em torno da psicanálise, institucionalizado – ou seja, tentando fazer invenção política, que é a única política que compete, que é pertinente à ordem psicanalítica –, senão nesse jogo entre Cila e Caribde. Preciso fazer calar os egos “democráticos” para que a psicanálise não vá para o brejo, e precisaria ser eu mesmo controlado por aqueles que escutam o meu processo para que isto não vire um autocratismo. Como sustentar esse vôo para além da rebarba egóica dos

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baixinhos e para aquém dos rompantes megalomaníacos que meu lugar exige? Um comentário de Elisabeth Roudinesco, em dois pontos diferentes do livro, me sugere uma coisa muito interessante. Ela faz uma gozação com a Princesa Bonaparte que teria dito a asneira de que Lacan era paranóico: “Evidentemente, Lacan não era paranóico. De vez em quando, era megalomaníaco. Só”. E eu acrescento: “necessariamente”. Como ousa um ser falante investir em alguma empresa se não for com alguma mania de grandeza? Faz parte. Então, está falando para quê? Para chover no molhado? Quem ousa qualquer pensamento, participa do megalômano, queira ou não. E faço convite a todos que têm isto como questão que insistam em pensar da possibilidade da existência do psicanalítico no seio do social, diante desta coisa terrível, deste paradoxo que nos acossa o tempo todo: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Se fizer a democracia dos egos, acabou a psicanálise; se fizer a autocracia do mestre, acabou a psicanálise. Como é que a gente faz? Como não tenho mais nada a dizer, estou esperando que vocês me digam... como a gente faz... *

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Ninguém diz nada? Convoco, então, os democratas, pelo amor de Deus, aqueles que vivem me dizendo: e a democracia no Colégio Freudiano? Defendam seu ponto de vista para ver se a gente entende. Considero a posição indicada por Roudinesco absolutamente pertinente. É de quem não é bobo, sabe o que é psicanálise, tem experiência de escuta e de instituição. É absolutamente correta. E acrescente-se que não entendo que haja agrupamento analítico de melhor cepa do que aquele feito não sob a égide da mestria, mas com um mínimo de relação transferencial (cujo perigo não é de ser esquecido, obviamente). Seria o caso de perguntar aos tais democratas: como funciona a tal democracia dentro do consultório deles? Eles repetem em aula, em artigos, a tal da “Direção da cura”, de Lacan, mas não entenderam nada. Deveriam inventar um texto: “Da Democracia da Cura”...

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[...] O que eu via acontecer, não posso não colocar sob a égide da prática obsessiva, ou seja: “Asfixie-se o desejo que pintar”. É claro que os baixinhos dirão outra coisa, mas tiveram toda a chance de dizer antes. Eu implorava, quase me ajoelhava diante dos baixinhos para que dissessem o que me diziam, mesmo em análise, a todo mundo, que publicassem em nosso Boletim, que criassem debates. Mas nunca apareceu nada. Aparecia uma espécie de gado vacum diante de uma Assembléia Geral, onde todos votavam no que eu dizia e, dia seguinte, desfaziam sua própria palavra. Quando algum Poltergeist acontecia, parecia ser da ordem de interesse, digamos, de mercado, de poderes dentro da Instituição, mas tomar a palavra no devido tempo, dizer o que se pensa, apontar para o de que realmente se discorda, com argumentação, isto nunca se fez. Me diziam alguns impropérios, na moita. Mas logo a mim? Que dissessem a outros. Alto e bom som. E não nos bares da esquina, mas nas Assembléias. Isto sempre me deixou perplexo e me faz colocar a coisa na ordem do discurso do obsessivo, cuja vontade não é senão asfixiar qualquer desejo de dizer. Se alguém tem vocação para historiador, que comece a trabalhar, pois temos dezenas de fitas gravadas de reuniões, etc., e verifique como a coisa se propicia. Por isso, digo que considero da ordem da expulsão um a um: seu fulano me expulsa, depois dona fulana me expulsa, sem nada dizer, e quando diz é da ordem do reativo. Não é que seu fulano ou dona sicrana tenham querido uma coisa a mais. Não! Queriam a menos. Portanto, corri para a companhia dos expulsos, onde me dou muito melhor... [...] Estamos aqui diante de um Seminário, no seio de uma Universidade, com pessoas que fazem parte da Instituição e pessoas que não. Por que estou fazendo este escândalo? Porque o que de político – e hoje isto está evidente na face do Planeta – possa servir ao futuro, ninguém mais do que a psicanálise é responsável em apontar. E se uma Instituição psicanalítica não puder ser o seio da experiência política por vir, estamos ferrados. O que de menos ineficaz se apresenta no mundo contemporâneo é certo tipo de liberalismo que varia da

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falcatrua à anarquia no seio dos teóricos. E isto é muito pouco, é quase nada, é uma representatividade babaca no seio dos Congressos da vida. A psicanálise não pode se satisfazer com isto. Por isso, esta não é uma questão dos psicanalistas nem da Instituição Psicanalítica, e sim do mundo de hoje. E se os psicanalistas não sabem existir nesta exemplaridade, quem saberá?

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20 RECLUSÃO – 1 Vamos começar a falar a respeito de Reclusão. Como já lhes disse quando tratei da foraclusão, ou seja, da psicose, este não é um Seminário sobre a Morfose, mas apenas uma introdução. *

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No elenco geral da Nosologia, a morfose se caracterizaria pelo que, em função do esquema do limite, chamei de reclusão do limite. No caso de morfose, o que Lacan quis chamar de Nome do Pai, e que tenho apresentado como horizonte, ou limite, estaria empacotado junto com a fronteira, aqui e agora. Isto caracterizaria as posições de um sujeito no que chamei de Marco, que resume a fronteira e que é compatível com a idéia, que já percorre a teoria há tanto tempo, de fetiche, ou feitiço. É como se fosse um Nome do Pai portátil. Desde a fundação do Esquema Delta, coloquei a morfose como uma obrigação masculina. Isto na medida em que um universal se designa pela exceção (existe pelo menos um que diz não para que todos sejam). Assim, a substituição desta exceção, que seria o Nome do Pai como fundamento da Lei por determinada formação – para não dizer apenas objeto junto com significante, no sentido lacaniano –, se compactua, ou seja, torna-se compacta e se pactua, para o sujeito, como sendo o encosto fundamental do seu gozo, subdito, portanto,

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à lei do desejo que ali está inscrita. Por isso, não digo que é simplesmente da ordem do masculino, e sim da obrigação masculina. É como se um universal, para menos do que ter um horizonte, tivesse este horizonte compactado dentro de uma marca, de uma formação qualquer, que resta entre formação do Haver e formação do Inconsciente, que dá apoio, encosto, que oferece leito para esta formação. A Lei do desejo é a Lei do gozo. Isto para qualquer sujeito. Em termos de Esquema Delta, de Pleroma, por exemplo, Haver desejo de não-Haver, que é de realização impossível, suporta a lei do desejo na ambigüidade do desejado, porém impossível, mas como lei de gozo aspirado, requisitado. No caso da morfose, se quisermos retomar o conceito de anáclise (Anlehnung) em Freud, tal como é colocado primitivamente como fundamental dentro da concepção de pulsão – isto é, a pulsão tem um encosto, encosta-se em algo –, podemos dizer que, no caso de morfose, a anáclise, o encosto, de gozo passa a ser o legiferante. Não é como Sujeito referido a um horizonte, a um limite, a Nome do Pai, se quiserem, e que também, de lambuja, tem a sua perversãozinha particular, encosta-se, faz anáclise em determinada formação. No caso da morfose, o encosto, onde qualquer um costuma apoiar a pulsão para organizar a sua possibilidade de gozo, passa a ser a Lei. Isto é que é reclusão do Limite. O horizonte fica recluso no encosto, na formação que dá apoio ao gozo, de tal maneira que a legiferação do morfótico opera a partir da anáclise estabelecida na sua história pela reclusão de horizonte e de fronteira dentro desta condição de gozo que lhe parece reger toda a possibilidade para o Outro. É como se o Outro lacaniano, no sentido da alteridade radical, do grande Outro, fosse regido no interesse do gozo anacliticamente estabelecido na reclusão do morfótico. E já que a morfose tem a dupla face de perversidade e de fobia, isto não deixa de emprestar também função, para além de anaclítica, cataclítica a esta mesma formação. Ou seja, o objeto, a formação anaclítica que oferece encosto à Lei do gozo para o sujeito, em função da sua historicidade, na estrutura morfótica, e em função também das oscilações dentro da estrutura, pode apresentar-se como objeto cataclítico, capaz de detonar um cataclisma, o que

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seria o avesso da perversidade mostrada como fobia. Tanto é verdade que cada vez mais parece que temos depoimentos de sujeitos em análise que se apresentam: (a) ora fobicamente e, de repente, transmutam a mesma formação para um regime perversista, e (b) ora perversisticamente, e eis senão quando transmutam a mesma perversidade para um regime fóbico. Relembrem aquele caso da revista Scilicet, que já trabalhei um pouco, em que o mesmo sujeito tinha como fetiche um botão e, dependendo da situação deste botão, isolada ou em carreira, ele passava, através da mesma formação, da perversidade à fobia. No caso de um objeto é simples, mas é possível que essa coisa seja uma formação tão abstrata, ou tão sobredeterminada que, às vezes, não é um objeto, mas sim uma situação, determinada palavra, que pode fazer o sujeito, no processo de reclusão, referir-se a ela preferencialmente no regime perversista, ou preferencialmente no regime fóbico, ou transiente. É como se a formação recluída, ou reclusa, se tornasse, para o sujeito, o paradigma da normalidade da legiferação, fundasse todo o processo de organização do Outro e, designada qualquer formação, sempre será no regime do que se chama, com antigüidade, objeto parcial. Afinal de contas, tirante o Haver, qualquer objeto é parcial, menos o não-Haver, que não há. Para isto, é preciso razões estruturais e razões eventuais. Chamei de históricas por chamar, mas, no acontecimento do sujeito, estrutura-se uma reclusão no que alguma facilidade se lhe apresentou. No caso da psicose, existe uma facilidade, por exemplo, que é a extrema forçação dos contornos da fronteira, ou então sua labilidade. Isto é uma maneira de se facilitarem as coisas. No caso da morfose, a coisa é até um pouco mais aderida à ordem corporal, se quiserem. São as facilidades fisiológicas, anatômicas, de acontecimentos ao redor. Por exemplo, tomei conhecimento da seguinte piada. Uma garotinho de seus três-quatro anos de idade espia no buraco da fechadura da porta e vê os pais transando. Depois que observa bastante, diz: “Puxa vida, e eles me botam de castigo só porque chupo dedo”. Parece não ter nada a ver, parece ser: “Uma injustiça, eles chupam de tudo, eu chupo só o dedo e me botam de castigo”. Mas o que daria, eventualmente, no tesão de chuchotar o

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dedinho, com toda a situação, a estrutura de legiferação, de punição, etc., não seria, eventualmente, o momento adequado para, com outras circunstâncias evidentemente, o sujeito, de repente, entender que pode legiferar a partir da chupação de dedo? Ele poderia fazer uma reclusão de todo o horizonte: “A partir disto organizo um mundo”. Ou seja, o Outro se organiza em torno de uma boca que chupa um dedo, do lado de cá, ou de qualquer lado. E nem sei se, aí, seria abolir a alteridade ou fazê-la subdita, regida pela pequena função anaclítica do seu gozo no Haver. Há certa obstrução da alteridade no sentido de que não há Outro senão enquanto regido por esse feitiço. Num livrinho de Joël Dor, chamado Structure et Perversions, Paris, Denoel, 1987, posso colher, p. 190, a seguinte frase, que acho bastante interessante, sobre “o caráter imperativo com o qual o perverso faz intervir a lei do seu desejo, e que tende a impô-la como a única lei do desejo que ele reconhece, e não como a expressão de um desejo que se acharia fundado pela lei do desejo do Outro”. Eu comentaria dizendo que isto equivale a dizer que o tal imperativo – que, depois do texto de Lacan, poderíamos chamar de imperativo kantegórico – se escreve pelo morfótico, mas se exerce não por ele, mas sobre ele e, portanto, sobre o Outro. Isto porque fica essa coisa meio policialesca de supor que o indivíduo é perverso, é mau, aí ele toma esta razão anaclítica, transforma-a em lei e a impõe a todo mundo. Não. Ele é súdito. Foi assim que ele estatuiu a lei. Se para ele o Outro é súdito deste imperativo, ele também o é. É por isso que ele não abre mão desse desejo legalmente estabelecido. Aí fica minha pergunta: a paixão pela lei – e não a consideração da lei, que é uma coisa importante na medida em que pode ficar no meu horizonte – não é da ordem da morfose, da perversidade? Geralmente – não sempre, graças a Deus –, os redatores da lei são apaixonados pela legiferação, pela lei. Leiam no Código Penal brasileiro o que chamam de normalidade sexual, que é absolutamente perversista, pois é uma normalidade de animal, é trepar para fazer neném. Isto de tal maneira que um estupro, por exemplo, não seria anormal, pois pode resultar em neném. Então, é um atentado ao pudor só. Como dar conta disto? Como atender os processos de legiferação

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na sociedade com um esforço de verificação de estrutura? Aliás, para relembrar, não há condição de se estabelecer qualquer possibilidade de Gozo-Fálico senão pelo regime do que Freud chamou de perversão. Cada sujeito tem o seu encostozinho, no qual até leva certa fé para seu gozo pessoal, mas isto não é um imperativo categórico, nem mesmo para ele, porque não é para o Outro. Ele entende perfeitamente as diferenças e tem condição até de deslizar no seu próprio gozo. Eis senão quando você se surpreende gozando com um objeto que não era lá muito seu, mas que se apresentou com uma importância na hora da festa e você deu uma encostadinha. O perversista é aquele para quem o fetiche é lei para todos. Encontramos dezenas, se não centenas de analistas “escritores” dizerem que os perversistas não procuram análise e, se procuram, não ficam. O que me parece que nunca foi notado é que no momento em que se acossa o perversista nesse lugar, quem vai para o lugar do objeto fóbico é o analista. Ele escapole e reinventa. Dada a habilidade de gozo que o perversista tem com imperativo, ele finge muito bem. No que elege algo privilegiado como capaz de recolher o avessamento fóbico, ele imediatamente sarta fora e recompõe a lei no sentido da perversidade. Mas passa de raspão no fóbico e isto é o que retorna a ele para o lado de cá. O que o faz reinventar é o modelito fóbico. Ou seja, elege o próprio analista como possuidor do feitiço cataclítico, fica em pânico diante dele, reverte tudo e faz outra legiferação. Mas passa por este momento, que acho que é até o momento fecundo do retorno para a perversidade. O perversista, quando avessa, se assusta com o mesmo objeto, ou algo parecido, no lugar da fobia e retorna depressa. Assim como, mais eventualmente também, o fóbico radical, o morfótico, toma mais o partido do bem pago: ele avessa e fica na perversidade. Isto porque a perversidade é muito bem paga, sobretudo nisto que chamo de sociedade perversista em que vivemos hoje, que alguns querem dizer que é problema de narcisismo... *

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Eu falava a respeito da relação do perversista com a legiferação. É uma coisa velha, da qual se lança mão com muita freqüência hoje, de tal modo que coloco uma questão grave: na fundação, na história do movimento psicanalítico, algum perversista, ou alguns perversistas, não tiveram uma forte influência capaz não de fazer com que um Freud, por exemplo, que não o era, acolhesse esta perversidade, mas de pressioná-lo de tal maneira que ele pode ter feito alguma concessão, sob pressão, a alguma modalidade perversista na sua entourage social, histórica, etc.? Acho que sim. Quando quiser estudar melhor a morfose, sobretudo a perversidade, não escolherei como modelo nenhum Marquês de Sade, embora possa escolher a textualidade sadiana como exemplo princeps do questionamento veemente de uma perversidade social, de um, como Lacan mostrou, imperativo kantiano exercido no seio do social. Tenho a impressão de que a ironia de Sade é simplesmente voltar o feitiço contra o feiticeiro: “Querem ver qual é a cara de vocês? Está aqui! É assim que vocês fazem!” Não é por menos que o próprio Philippe Sollers, que já citei aqui dizendo que “o Inconsciente é estruturado como uma linchagem”, diz também outra definição de Inconsciente: “O Inconsciente é a inibição de ler Sade”. Eu escolheria como exemplo princeps de morfose um autor da maior influência, da maior importância na época de Freud e que era considerado pela entourage freudiana externa como sendo aquele que teria competência para responder a Freud. Era aquele contraposto a Freud e tido como tendo muito mais precisão, brilho e adequação. É um autor muito conhecido dos analistas, mas, hoje em dia, acho que é até pouco lido. Aliás, por estarmos no final deste século, estão aparecendo muitos estudos sobre o final do século passado, justo quando a psicanálise teve vez de começar a nascer. Era preciso estudar aquele momento vienense do qual Freud é habitante e herdeiro cultural, pois é da maior importância para se entender hoje, com cem anos de distância, os acontecimentos que levaram a certas praticagens, inclusive teóricas, do Dr. Freud. É preciso passar isso na peneira de alguma análise. Sabemos todas as influências que Freud teve de autores daquele momento vienense, austríaco, alemão, mas não sei se recordam de um livro

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bastante famoso chamado Sexo e Caráter, Geschlecht und Charakter, de Otto Weininger. O livro foi escrito como tese de doutorado com o título de Eros e Psiquê e, depois, publicado com alguns capítulos a mais que não ousara colocar na tese de doutorado, que já o aprovara com certa dificuldade. Capítulos que tratavam pura e simplesmente, com veemência, de dois temas importantes naquele momento: anti-feminismo, traduza-se: machismo; e anti-semitismo, traduza-se: nazismo, como conseqüência. O moço, que se apropria da temática freudiana da bissexualidade e da diferença sexual, reformula as coisas de tal maneira que constrói uma tese mediante a qual se torna famoso e influente. Sua época, como sabem, é muito fecunda, vai até a uma espécie de translação Viena-Paris, com a noção de jung, “jovem”. É jung de estilo, jung não-sei-oquê. Todo o movimento de nova arte, nova filosofia, etc., desse momento é transposto para Paris e para o mundo inteiro. Vai dar em Art nouveau, Art déco, etc., com movimentos imensos nas artes plásticas, na literatura, na música, na política... Otto Weininger era o best-seller da ocasião. Lembrem-se que Freud publicou, com data de 1900, a Traumdeutung, com 600 exemplares que levaram uma década para serem vendidos. Mas o moço era lido por toda a cultura vienense. E, pior, com evidências de influência no pensamento e na obra de pessoas como Kraus, Strindberg, Broch, Trakl, Kafka, Schoenberg, Alban Berg, Loos, Wittgenstein e Cioran. Qual era a temática de Otto Weininger? Sabemos que Freud teve a inteligência de, quando viu a barra pesar... Aliás, ele achava Viena uma bosta, achava um horror ter que viver no meio daquela canalha, mas precisava viver lá... Achava mesmo aquele “bando” em volta dele uns fracotes que não se esforçavam no sentido em que ele estava colocando e que, por falta de inteligência de pequenas diferenças, se deixavam influenciar por esse tipo de discurso. Ele ficava perdido no meio daquilo, o pobre, pois as pessoas confundiam as coisas com muita facilidade. Hoje em dia, 1980, 1990, alguns autores estão se esforçando para clarificar isso. Por exemplo, Paul-Laurent Assoun que escreve livros sobre Freud, Nietzsche e Wittgenstein, pois, por causa da influência de Weininger, parecia estar tudo de cambulhada. Aos contemporâneos parecia

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que Weininger era um sujeito muito mais porreta do que Freud, pois não ficava fazendo reducionismo sexual e nem pansexualismo. Então, como estabelecer com mais precisão a diferença? Pior, como estabelecer as eventuais concessões que, por outras razões também, Freud teve que fazer, talvez para não se sentir absolutamente pressionado sem ter percurso discursivo? O que denuncio é que um sujeito, com um livro como esse, best-seller, se aproveita da diferença sexual proposta por Freud para dizer que as mulheres são ma-ra-vi-lho-sas porque são doidinhas, servem para a gente comer, para a gente fazer não-sei-o-quê, mas não valem mais do que isto, e que os homens são a estirpe do gênio. O próprio Assoun, falando do texto de Weininger, pôde estabelecer o que chama der Pervers Diskurs über die Weiblichkeit, o discurso perverso sobre a feminilidade. Assim como outro autor de certa importância, Jacques Lerridé, escreveu um texto chamado Le Cas Otto Weininger, racines de l’antiféminisme et de l’antisémitisme, O Caso Otto Weininger, raízes do anti-feminismo e do anti-semitismo. Mas de que sofria o moço? Assoun disse que ele tinha o discurso perverso sobre a feminilidade, mas acontece que, por outro lado, tinha o discurso perverso sobre a masculinidade e seu gênio. Imaginem o que é um Schoenberg debaixo disso, inventando o dodecafonismo. É claro que Wittgenstein consegue se sair um pouquinho da jogada, mas nem por isto deixa de estancar o discurso diante de um suposto indizível no puro gesto de apontar, o que me parece extremamente compactuado com o reclusivo. Coisas assim me levam a situar o texto de Weininger como da ordem de um discurso morfótico tanto perversista quanto fóbico. Isto porque, na paixão da castração, como diz Assoun, ele é absolutamente fóbico diante do feminino, que traduz em judeu, como é absolutamente perverso diante do masculino criativo, e quiçá do nazismo por vir. O que acontece com o pobrezinho do Freud, encurralado entre o nariz do Fliess e o sexo do Weininger? Ele não é de aço, é gente. Fico me perguntando se o modo de constituição da história sexual infantil e, conseqüentemente, da designação do conceito de Falo, que já critiquei aqui, não deve, para além dos cinqüenta por cento que eu disse dever ao etológico da situação, a esta pressão

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externa que não o deixaria falar se não fizesse de algum modo concessão ao primado do masculino. Será isto um sintoma na história da psicanálise na Viena daquela época? E como tem durado. Atravessou Lacan inteirinho, embora sendo um pouco equivocado. Acho que é uma peça princeps que, no que se mete com a psicanálise, no que intervém na cultura ocidental, via cultura nova de Viena, pré-forma toda a situação fascista e nazista. Intervém maciçamente na cultura por via das artes em geral, da filosofia, da literatura, etc. Aliás, alguém como Robert Musil não cai nessa. Ele pré-inventou o Falanjo. A saída que dá à bissexualidade proposta por Freud é pós-lacaniana. A saída que Weininger deu foi dizer: então, há as mulheres e os homens, instala-se uma fobia de um lado e uma perversidade do outro, pronto, está tudo resolvido. Então, na base do raciocínio freudiano, e de sua retomada por Lacan também, encontro a concessão etológica e à pressão cultural desse tipo. Pergunto eu se alguém daria ouvidos, minimamente, a Freud sem que ele desse ouvidos ao ouvido que se lhe dava na exigência desse machismo chauvinista. Não fez ele uma estratégia de conveniência, inconscientemente que seja? A pressão estava lá. Estudem, por favor, essa época e verão que pressão enorme: o estado austro-húngaro comido aos pedaços, todo mundo se voltando para o interior, condição sine qua non de Freud até inventar a psicanálise, e as grandes guerras de conquista na ordem do espírito, da criação, etc. São pessoas realmente luminosas, criando coisas incríveis, numa perspectiva não raramente falangélica. Por exemplo, Musil, Klimt na pintura, etc. Mas pessoas deste naipe impressionadas com a tese de Weininger contra Freud... Weininger se matou poucos anos depois, em 1903 – o que não quer dizer nada, pois qualquer um se mata –, aquilo foi caindo, e foi Freud que brotou. Mas o livro circula por aí até hoje com uma influência, a meu ver, nefasta na medida em que, numa leitura mal feita, pensa-se que é a mesma coisa. Dizem até os ignaros que ele era discípulo de Freud. Nunca teve nada a ver com Freud, era raivoso contra Freud desde o começo. São, aliás, dois os perversinhos que andaram fazendo isto com ele. O narigudo só faltava processar Freud, que teria roubado a bissexualidade dele. O outro, o sexudo, idem. Freud

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era indignado com isto. As andanças dele com Fliess, aquele roça-roça de nariz, antigo, não estão incluídas no pensamento de Freud. E Weininger, que era judeu convertido ao protestantismo, evidentemente faz parte da briga de judeus da Viena de então. Havia a patota judaica que queria ser metida a besta e que esnobava a patota judaica daqueles que eles mesmos achavam uns merdas, os judeus orientais: por exemplo, Freud. Havia toda uma patrulha judaica contra o judaísmo. Não preciso ser a favor do judaísmo, ou achar uma gracinha, para reconhecer, como Lacan reconhece, a influência decisiva na cultura que eles tiveram: o questionamento perene no campo da arte ou do pensamento, etc., por uma herança radical, num determinado sentido do maior valor. É, portanto, nessa briga de judeus em ascensão de status social com os judeus pensantes, que um judeuzinho se transformou em protestante e invectiva a cultura de língua alemã a se colocar no anti-feminismo radical, imitado por Hitler, e no anti-judaísmo radical que, certamente, não interessava na medida dessa piração judaica com o simbólico. Acho este um caso princeps, pois tenho a impressão de que, bem estudado o personagem através de sua história e de seu livro, vamos ver a morfose bifidamente fóbica e perversista se instalando. E isto muito a gosto dos neuróticos, como regência em nível de pensamento dominante e de best-seller de influência cultural num momento em que a psicanálise está nascendo e que, certamente, levou as suas porradinhas que a fizeram conceder em alguns pontos. *

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" Pergunta – Você fez uma referência a esse momento, a essa sociedade, como sendo perversista, ou você está se referindo a esta que se instaurou modernamente? O que um arquiteto como Loos estaria fazendo na relação que você fez aí? Que influências uma obra como Sexo e Caráter teria na obra de um arquiteto, no caso de Loos, que seria o avô do funcionalismo da arquitetura moderna? Você pode falar um pouco sobre a questão da instauração da modernidade sob o aspecto do perversista? Esta talvez

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seja uma definição do próprio estatuto da modernidade, o autoritarismo e a conveniência com a etologia, como, desde o início, você está colocando. Somos uma geração altamente influenciada por isso de tal maneira que ainda guardamos resquícios brasilianescos, se você quiser, de um gosto informado pelo funcionalismo que deu muitos filhotes. Não gosto da palavra autoritarismo porque, para mim, é: um ato de autoridade. Autoridade tem quem é autor. Suponhamos, então, que um Loos tivesse o autoritarismo talentoso da sua projeção arquitetônica. Nada tenho contra. O percurso que me parece estranho é a vontade universalizante e legiferante que vemos necessariamente embutida por trás de todas as Bauhaus do mundo. Haja vista a indústria de massa, o conceito de design, etc. Que tenha valor, não discuto, mas que se faça disso a verdade arquitetônica do mundo, que um Gropius e outros venham destituir uma arquitetura como, por exemplo, a de Gaudi, isto não está com nada. É nesta vontade de universalização, premida por uma vontade industrial e guerreira, massificante, etc., que vejo a influência do livro de Weininger. Quando isso começa a explodir um pouco? Tivemos os movimentos os mais idiotas, como o hippie, maio de 68, aquele sacolejo todo, mas é uma vontade que vem se impondo como universal. Por que a arquitetura tem que ser funcionalista? Me dê uma razão. A razão dele, sim. Você gosta de morar em casa funcionalista, eu aplaudo. Goze bastante, problema seu. Mas a convicção com que nos foi transmitida a verdade universal desse designerismo alucinado é de se questionar. Qual é a casa do homem, a funcional ou a sensível? Sem ter que, por isto, descer o cacete nos funcionalistas. Você já viu alguma cidade mais terrivelmente fálica e impositiva do que Brasília? Aquele horror. Um funcionalismo que nem mesmo funciona. " P – Haveria a possibilidade de, por certo nível da arquitetura, da literatura, etc., pensarmos uma produção perversista? Toda produção, criação, tem um índice de perversão, naturalmente. Por isso mesmo, pode-se perguntar se não estou falando bobagem, pois, dentro do Esquema Delta, no Masculino, no Gozo-Fálico, coloquei o criativo no nível da pura e simples perversão da construção de uma formação qualquer dentro

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do Haver, a qual é compatível com o índice de gozo, de apoio, de determinado artista ou pensador. Mas se o empuxo perverso da criação é de índice masculino, a efetiva criação só pode ser no nível do Campo do Sentido. Para mim, qualquer que ela seja, participa do vetor angélico. Então, eu não diria que possamos encontrar criações perversistas. O que conheço são apropriações perversistas de criações angélicas. Estudamos qualquer momento altamente perversista da história e vemos artistas importantes, criativos, geniais, mas o processo de apropriação colocado sobre a criação, num regime de universalização e imperativo de gozo, de anulação das rebarbas na criação é que é o processo perversista que ali pode estar em jogo. Acho que perversista não cria, só se apropria. Seria, assim, o mestre tarado por excelência. Ele não faz nada, apropriase, reduz, põe na conta do feitiço e vai em frente. Não vamos, pelo amor de Deus, confundir isto com as relações necessárias da autoridade com o fazer. Por exemplo, se certa democracia liberal, que é esta porcaria em que a gente ainda vive – graças a Deus, poderia ser pior –, dá condições precaríssimas, porém algumas, de sobrevivência de certas diferenças, é possível exercer-se com autoridade determinado regime criativo que até expurga o que empecilha seu processo de criação, desde que isto não seja um universal categórico. Da vez anterior, estive falando que não creio na constituição de uma instituição psicanalítica sobre determinado percurso de pensamento no nível de desbaratamento “democrático”. Isto porque o ambiente é que ainda vale ser democrático, já que não pode ser melhor do que isto. Então, se um Loos, um Gropius, etc., instauram rigorosamente determinado tipo de arquitetura, tudo bem. Eles devem até expurgar de seu escritório, de sua escola de arquitetura, quem não está dentro de seus princípios criativos, desde que isto não seja um processo imperativo sobre todos. Mas, ali, é preciso fazer rigor, se não, não é nada, ou é o samba do crioulo doido. Por isso, não gosto de confundir o termo autoridade com perversidade. E insisto no fato de que não se pode estar dentro de um ateliê com rigor de criação, com princípios que você colocou, com interferências que desfiguram o processo. Há, pois, um autoritarismo de rigor. Por isso é que as pessoas têm dificuldade

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de entender Lacan, Freud, no seu movimento psicanalítico. Imagine se Freud vai andar com Jung. Não vai. Agora, Jung não está proibido de ir para a Suíça e fazer a baboseira que fez. Pode fazer, mas não venha desmembrar aqui. Ao mesmo tempo que não há a menor condição, e seria errado se houvesse, da imposição imperativa de Freud. Ele colocou lá. Se virem. Mas colocou rigorosamente. É pegar ou largar.

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21 RECLUSÃO – 2 A questão na lida, em termos genéricos, com o limite, não só no caso da Reclusão, mas em todos os casos, é o que está em jogo na relação da fronteira com o limite. A prática do Sujeito – que eu chamaria de cerne da prática freudiana – é nas estratégias, táticas e movimentos em geral que digam respeito às relações da fronteira com o limite. *

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Como já coloquei de outras vezes, se pudéssemos dar um valor matemático ao que Lacan quer chamar de função paterna, poderíamos adscrevêla ao conceito de limite, o qual não é numerável. Acontece que os falantes situam o limite mais gravemente nisto que Lacan chama propriamente (não só de função, mas) de metáfora paterna, ou seja, metaforizam de algum modo. Essa metáfora que, para Lacan, é índice, se não sinônimo de sintoma, eu a estou chamando de fronteira, até retomando a equação lacaniana de Nome do Pai/desejo da mãe e desejo da mãe/significado ao sujeito, etc. Aliás, segundo esta equação, poderíamos dizer que a metáfora paterna é o sintoma da mãe. Todo o jogo, portanto, no que interessa a isto que poderíamos chamar de política da psicanálise, a prática freudiana, é entre fronteira e limite. Ou seja, poderíamos até, com certo cuidado mas não deixando de fazê-lo, reclamar certas posturas de Michel Foucault quando fala de “prática de si” na relação

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com as experiências-limite e aponta o jogo, sempre equívoco, na relação da inclusão com a exclusão. Ou seja, no que há referência ao limite, no que a função que Lacan chama de paterna funciona, apesar do metaforizado aqui e agora como fronteira, resta ao sujeito a experiência fundamental de, dentro do sistema, da situação em que vive, praticar a aproximação dos limites dessa situação. Eu diria mesmo que um sujeito vigora não no miolo de uma situação, que é estritamente sintomático, mas nas franjas da situação. É na experiência de abordagem, de questionamento da fronteira em relação com o limite, com o infinitesimal, ou mesmo o infinitamente grande, que está a fronteira e o conceito de limite, na relação inclusão e exclusão dentro da situação ou fora dela, que vigora o Sujeito na sua essencialidade. Digamos mesmo que é por ali que o Revirão, que caracteriza o Sujeito, opera fundamentalmente. Então, para a psicanálise, não se trata de um projeto de liberdade ou de libertação, mas muito menos ainda de conformação ou de adaptação. A política psicanalítica, que é a política da interpretação na criação do evento, da eventualidade, é na consideração do sistema, da situação, porém na experiência do seu limite. E se entro na experiência do limite, estou equi-vocando as fronteiras, sem perder a consideração pela sustentação até mesmo da possibilidade de jogar com o limite, que é a constituição da situação. Não é, pois, nem uma experiência de adaptação a uma situação composta, nem a experiência de liberdade da situação, de viver na marginalidade disso. É a experiência do limite, no questionamento da fronteira em relação à situação. A prática cotidiana exige metaforização mais ou menos precisa, mais ou menos numerável, sem deixar de considerar o rabinho do número, que é maior do que o próprio número. Tomem, por exemplo, um famoso número chamado pi para uso de tábua logarítmica, por exemplo. Na engenharia mais refinada, ninguém ultrapassa sua sétima casa. Então, pi costuma ser isto para uso tabular. Geralmente, os menos interessados na precisão logarítmica dizem que é 3,14. Mas não sabemos se é uma dízima periódica, pois podem ter calculado milhares de casas decimais, mas não todas. Não sabemos, por exemplo, se este número, ao invés de ser infinitamente grande na sua parte

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fracionária, tem fim depois de um bilhão de casas. De repente, visto por um hiper-computador, tem fim. Mas acontece que, quando me restrinjo aos 3,14, ou mesmo aos 3,1415926, estou jogando fora a experiência desse limite. Pode até ser bom na prática cotidiana, mas não sei até quando, ou em que situações, pois se o limite daquilo eventualmente for ômega, !, um limite pura e simplesmente, não tenho a numeração disso. A experiência do Sujeito na sua essencialidade de Revirão é a experiência da fronteira na razão do limite, em consideração ao número dado aqui e agora à situação, ao sistema. Então, isto é uma política de produção de sentido. É uma política angélica. Mas o lugar de aplicação do Sujeito é no instigamento do limite. Então, cortar qualquer pedaço do rabo daquele número, é sintomático. Voltaire, comentando Corneille, autor de tragédias importantes, dizia que a tragédia admite metáforas mas não comparações. Isto porque, segundo ele, a metáfora, quando é natural, pertence à paixão, e as comparações só pertencem ao espírito. Vejam que ele disse isto muito antes de qualquer Freud e de qualquer Lacan. Parece que pegou muito bem, pois a definição de metáfora para lingüistas e retóricos vai se estear no conceito dessa comparação. Há grandes discussões sobre o regime dessa comparação. Não é à toa que Lacan entende muito bem que o regime metafórico é sintomático, pois há uma paixão identificatória em jogo. Mas o regime do Sujeito, embora ele fale aqui e agora através de metáforas, não é metáfora de nada, ele é enquanto tal. Se precisa, e deve, operar para além da instalação metafórica aqui e agora, ele opera no regime mais aproximado à comparação – que Voltaire chama de espírito –, ou seja, da consideração do limite em sua relação com a fronteira e a situação, produzindo metáforas, todas elas válidas, enquanto metáforas só e enquanto durarem na sua validade. O Sujeito opera nas franjas da fronteira, fazendo sua referência ao limite (que Lacan quis chamar de Nome do Pai). Mas é interessante considerarmos a metáfora, já que ele falou de metáfora paterna. Metáfora é uma figura de retórica, e não encontraremos em nenhum autor de índole lingüística, ou de vontade retórica, a definição que Lacan dá. Isto porque a

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metáfora, enquanto figura de retórica, está um pouco mais disseminada, mais distribuída do que a metáfora que interessou a Lacan na conceituação psicanalítica a partir do texto de Jakobson. Qual é o valor que Lacan dá à metáfora, que não é necessariamente a definição de metáfora ampla que sirva para lingüistas e retóricos? Ele nos apresenta, como se lembram, uma frase de Victor Hugo, no poema sobre Booz: Sa gerbe n’était point avare ni haineuse, e até nos lembra que, segundo ele, isto não é propriamente uma metáfora, mas uma sinédoque. Eu, acho que é ambíguo, pois pode ser tratado como metáfora e como sinédoque na razão retórica. Qual é, então o valor de metáfora no sentido que Lacan deu para uso psicanalítico e que atribui a sa gerbe como substituição de Booz? É um valor simbólico de identificação de Sujeito. Não do sujeito da frase, mas do Sujeito que está em jogo ali. Pode-se, por exemplo, fazer a seguinte frase: As ondas serpenteiam sobre a praia. Isto, a meu ver, é metáfora no “serpenteiam”, pois onda não é serpente. O sujeito desta frase, qual é? As ondas, mas ondas não é Sujeito. Lacan, então, aplica Booz, como certo personagem, como certa subjetividade estatuída no poema de Hugo, o valor de Sujeito e diz que, nesta frase, sa gerbe – sinedoquicamente, talvez, como parte de Booz, e não sei se gerbe pode ser parte de Booz, mas pode ser parte de um entendimento de Booz – é metáfora no sentido que vale para a psicanálise. Isto porque o que está ali é o Sujeito, Booz, identificado por sa gerbe. Podia ser Booz identificado pelo time do flamengo, pois quando digo sou flamengo, estou atribuindo ao verbo ser uma razão partitiva que corresponde a uma identificação desse tipo, metafórico. Portanto, utilizar metaforicamente um elemento qualquer que venha por ordem metafórica, ou qualquer outra, sinedóquica, etc., é o que Lacan quer chamar de sintomatização da função paterna como Nome do Pai. Aliás, hoje em dia, as pessoas dizem: Sou Brizola. O verbo ser, aí, fica numa situação um pouco difícil. Se é um uso da língua no jogo com o processo de metaforização, isto é sintomatizante, mas não necessariamente empresta a sua razão sintomática ao sujeito. É preciso no mínimo, como veremos na Inclusão, que o sujeito inclua isto

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para se tornar um neurótico. Ele pode simplesmente operar isto. Por exemplo, aqui, neste momento, sou professor. Esta é uma situação e estou no uso desta atribuição, o que é diferente de acreditar que o sou mesmo. Aí, a coisa começa a ficar um pouco grave, já passa a ser da ordem da neurose. O problema da Universidade, por exemplo, costuma ser este de os caras terem lugar de professor e acreditarem que o são. Adiantando um pouco, o processo de Inclusão, que vai ser tratada depois, é: identificar-se provisoriamente, aqui e agora, pelo metaforizado e colar com esta identificação. Mas isto, ainda, graças a Deus, é muito frágil. Tanto é que existe o retorno do recalcado – ou seja, que Fulano não é isto, ou não é só isto – para implicar com a falta de jogo com o limite. Então, às vezes, o sujeito, por razões sintomáticas graves, é obrigado a reconhecer o jogo com o limite. Isto é que é o sintoma, chamado retorno do recalcado, no neurótico, que é algo que implica com ele, obrigando-o a reconsiderar o limite, ou lhe dizendo: você não é isso, ou, pelo menos: você não é todo isso. Trata-se, para ele, de poder lidar com a metáfora num desprendimento, numa provisoriedade, numa providência. É o possível, é o jogo falangélico do falante com o Sentido. Mas acreditar nisto, já é meio grave. *

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Há coisas piores. Para além de utilização da metáfora na vigência do sentido, para além ou mais grave do que acreditar-se identificado decisivamente por aquela metáfora, o sujeito pode essencializar isto. É o nome que tenho para a coisa. Não só identificar-se pela ou com a metáfora, que é o caso da neurose, mas essencializá-la. Ou seja, ela deixa de ser metáfora. O sujeito diz: sou isso. E é mesmo, porque aquilo não está sendo metáfora de nada. É isto que chamo de Morfose. O Marco que engole o horizonte e a fronteira é uma espécie de banimento da força metafórica do metaforizado. É como se o sujeito, no jogo com o outro, não ficasse como o psicótico na sua foraclusão – que

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simplesmente, não conseguindo entender a passagem da metáfora, fica referido à metáfora, que um outro lhe oferece –, mas ficasse não sabendo a que referir aquilo porque não pensou o horizonte, o limite. Nem é, como no caso da neurose, o sujeito simplesmente botar crença, identificar-se com a metáfora, ao invés de se identificar por ela. É o sujeito banir a formação da metáfora e essencializá-la. Este é, a meu ver, o fundamento da formação do fetiche. Acho mesmo que o termo feitiço, ou fetiche, serve para caracterizar genericamente todas as funções morfóticas, pois em qualquer tipo de fobia ou de perversidade encontramos necessariamente a metáfora essencializada e deslocada da sua postura metafórica. Ela vira coisa, último nome, pedra fundamental de todo o edifício do cara, segurança (ou insegurança) total pelo apagamento do valor metafórico da fundação do marco. Aí, talvez, é que podemos encontrar a angústia que quase todos os autores que leio a respeito sentem na distinção entre foraclusão e o que querem chamar de Verleugnung como fundamento da perversidade. Eles sempre confundem e dizem que há algo da ordem da foraclusão na perversão. Como estabelecem a foraclusão como fundamento da psicose, vão buscar a Verleugnung para fundamentar o que chamam de perversão e não conseguem, precisam atribuir algum valor de foraclusão também ao perverso, por exemplo, para poder entender o que acontece. Acho que nada têm a ver. São arquiteturas completamente diversas. Na psicose, o que encontramos é foraclusão, no sentido que coloquei. Na perversidade, é reclusão. Justamente o aparelho de referenciação metafórica foi abolido, não há foraclusão daquilo, é para cá. Se a foraclusão é para lá, aquilo não entrou, não pertence; na reclusão, é ao contrário, é como se o metaforizado, a metáfora produzida no momento do entendimento, engolisse o processo de metaforização e a coisa designada por aquele significante, com apoio em alguma realidade, passa a ser o fundamento que empresta ao sujeito um gozo, seja na ordem perversista, seja na ordem fóbica. O psicótico é aquele que perde o bonde na fabricação da metáfora. Ele é capaz de viver muitos anos parecendo não-psicótico, mas se procurarmos veremos que ele encosta

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na metáfora de outrem, de algum dono. Por isso, quando perguntam a Lacan se o psicótico não tinha essa inscrição, como é que, de repente, fica em surto, entra em psicose, Lacan diz que, de repente, ele encontrou un père, ou seja, a necessidade de recorrer a um Pai fora do regime da cópia em que vivia. Isto porque não entendeu a metáfora para generalizar. A metáfora está colada em alguém, em algum Pai, que não se apresenta como tal. Quando esta necessidade se apresenta e ele tem que passar de lá para cá, perde os pedais, pois não sabe fazer isto e surta. Este un père pode ser qualquer troço que tenha a característica de exigir ser mais uma metáfora daquilo. Não é isto que acontece com o morfótico. Em geral, ele não tem nenhuma dificuldade neste campo porque assimilou, sacou o processo de metaforização, adscreveu a sua subjetividade a essa metáfora, mas, digamos, objetando – seria este o verbo, mas o objetar não quer dizer isto, e de objetificar também não gosto –, empacotando de tal maneira o seu gozo naquela experiência com o metaforizado que ele abole. É como se ele, muito cedo na sua vida, fizesse um decreto de abolição daquilo: aquilo não é preciso porque com isto aqui me garanto. Ele é como se fosse não o esquecido da metáfora, que é o neurótico, mas aquele que tem a metáfora trancada dentro do seu feitiço de tal maneira que teria que desempacotar o feitiço para reencontrar a metáfora. Ele abole o processo de metaforização e fica com o feitiço do metaforizado. Marcel Duchamp tem um objetinho que serve para entendermos isto. Intitulou-o de Com Ruído Oculto. Ele tomou um novelo de barbante, que tem miolo vazio, dentro pediu que fosse colocado algo que não sabia o que era e empacotou o novelo entre duas chapas de metal presas com parafusos. Se o sacudirmos, até ouviremos um barulhinho, pois há algo lá dentro. Seria preciso abrir as chapas e desnovelar o novelo para reencontrar o que lá está. É fundamental que não se saiba o que seja, porque certamente não é nada. É o barulhinho da produção da metáfora. Eu diria que, se houver perspectiva de cura para o morfótico, é: soltar os parafusos, abrir as chapas, desenrolar todo o novelo, que é a linha do horizonte, para ele retomar o entendimento de

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que aquilo tudo empacotado, aberto, lhe expõe o processo. Não é, portanto, que o morfótico não terá produzido metáfora, e sim que entendeu e jogou fora. O processo não lhe interessa, não é preciso nem saber o que é, pois o que interessa é isto assim-assim na adscrição com seu gozo. E fica na referência disto para sempre. Sendo que, abrir as chapas e desnovelar o novelo é algo tão difícil e tão mal pago... Mal pago para quem? Por exemplo, para a análise do morfótico. É claro, pois ele fica bem pago com aquela referência. Então, não é que não tenha incluído para si nenhuma articulação da lei. Muito pelo contrário, tem a lei guardadinha no bolso, e até a impõe a todos. Trata aquilo como universal. Ao invés de tratar como universal o fato de que lei é factível, que é o caso do Sujeito, ele trata como se aquela é que fosse a lei. Não é nem no sentido da fronteira do neurótico, que diz que lei é essa da fronteira. Não, a lei está no bolso dele, empacotada com horizonte, com fronteira e o faz gozar. É o encaroçamento da metáfora sem o processo de metaforização que vira objeto-feitiço. *

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Mas há uma leitura legislante sobre o processo, que faz um bando de neuróticos acreditar que aquilo é feitiço. Ou seja, é como se, ao invés de considerar sa gerbe como um indício simbólico de Booz, eu considerasse que sa gerbe é tudo o que significa Booz. Ponto. Pego a jeba do Booz, tenho a lei aqui, pronto, o resto é papo furado. E mais, posso legislar sobre todos a partir dessa posse da lei. Então, o morfótico não está em carência legal como o psicótico. Ele é o dono – no sentido de mestria – da lei. Ele tem, então, a estratégia possível de, no resguardo do interesse do fetiche, lidar com todas as coisas, até no maior cinismo. Estarão interessando, por exemplo, questões de bem e mal a ele? Por que a vivacidade do morfótico, no sentido de ser muito esperto, muito moleque? Porque tanto faz ser bem ou ser mal. Interessa é se mexe ou não ali, o resto não tem o menor interesse. A posição do morfótico é para aquém de mal e bem. A posição para além de bem

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e mal é absolutamente aberta. É absolutamente viver no regime de uso da metáfora, mas sem nenhum pólo. São considerações essencialmente éticas. Isto, aliás é que é ética. A psicanálise não tem outra ética senão esta. O morfótico é um grande moralista no mau sentido, apoiado e aplaudido pelos neuróticos. Qual a diferença que poderíamos traçar entre moral e ética? Não tomando as palavras como sinônimas, eu diria que toda moral é universal. O fundamento de toda moral é ser universalizante. Se assim o é, ela tem a ver com o regime (não da perversidade, mas) da perversão masculina, que é utilizável, por que não?, aqui e agora, numa situação política ou social. Mas no que se concebe como não obrigatória a este regime, ela tem mudanças possíveis de sentido, ou seja, posso aqui e agora, dentro deste Seminário, por exemplo, estabelecer um comportamento qualquer, por praticidade. Isto é necessariamente perverso, mas não necessariamente perversista, pois na consideração dos limites, é flutuável, caminha no tempo. Qual é a diferença do perversista? É que, para ele, é mesmo, pois não há dialetização possível disso. Então, ele impõe essa lei não como se fosse uma, mas como se fosse a lei. O que é a lei? É a possibilidade de fazer metáfora. Ponto. Para o perversista, a lei é este enunciado aqui: a lei. Se tenho o poder de exarar qualquer enunciado legal, não é possível não estar dentro de um regime perverso, por um lado, e sintomático, por outro. Mas é meramente perversão local, provisória. Se acredito demais naquilo, sou um neurótico social comum que acredita no enunciado legal. Mas se não sou nem morfótico nem neurótico, se estou na vizinhança do Sujeito, aquilo é um instrumento compactuado com o outro, nos jogos políticos com o outro. Isto faz toda a diferença. Congelar a perversão é que é perversidade. O ético é relação em devir da singularidade com a situação. É claro que há uma singularidade toda vez que eu me pratico. Pinta uma singularidade aí. A relação desta singularidade com a situação, num processo de estratégias de lidar com o limite, é que é o ético para a psicanálise. Subscrever algum enunciado moral nada tem a ver com ela. Pode ser até uma prática regional válida, momentânea. Então, é importante chamar atenção para que não se suponha que o morfótico esteja para além de mal e bem. Ele até

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finge, até tem um comportamento que parece estar, mas apenas enquanto não se mexe no seu barato. Ele está é muito para aquém. Ou seja, joga com bem e mal no interesse de seu barato, e não porque esteja para além e possa considerar uma política com a alteridade. *

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Temos, então, que considerar as relações da morfose com o universal. Coloco, como disse, a morfose na obrigação masculina, ou seja, não é simplesmente o sujeito se praticar historicamente por alguma fixaçãozinha perversa ou fóbica, pois todo mundo tem os seus pequenos surtos perversos e fóbicos. Isto não significa que o sujeito seja perversista ou fóbico. Mas o que obriga ao Gozo-Fálico? A adscrição do próprio Falo a esse feitiço. Ele é o Falo. E não é questão de dizer: ter ou ser. O morfótico é o feliz proprietário do Falo, com o qual ele rege o mundo. Qual é o compromisso da morfose com o universal? Antes ainda de situar a questão da passagem do horizonte e da fronteira ao Marco, eu disse que era preciso pôr atenção na vontade universalizante do morfótico, mais evidente no perversista. Isto porque estar na obrigação masculina é a sustentação sem equívocos do universal. Mas de que universal? Daquele abrangente do horizonte, que diz que existe pelo menos um que pode dizer não, sem nem dizer que não é este? Não é bem este. É que aquela metáfora congelada é, para ele, o excluído. Ou seja, a tal metáfora congelada, esquecida do seu processo, é, para o morfótico, aquele pelo-menos-um que funda o universal. Não é um pelo-menos-um matemático, abstrato, é: este é o pelo-menos-um que funda o universal. Portanto, ele, feliz proprietário desse objeto, dessa metáfora, é excessivo, é a exceção. Mas há uma questão delicada aí, pois onde quer que você assuma um lugar de comando, de mestria, de qualquer coisa desta natureza, você habitará este lugar, queira ou não. E pior, só fará direito se assumir o lugar. Você não vai ser Presidente da República sendo um Zé-Bundão. Você joga, etc., mas terá que assumir esse lugar de que é o pelo-menos-um, pois é o representante da

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Nação. Mas isto encarna o valor da metáfora. O que é um ditador obcecado por sua ditadura? É um cara com autoridade? Não. Não é que ele ocupe esse lugar e acredite nele, ele o é, mesmo. Ele é a exceção fundadora da regra. Uma coisa é ocupar o lugar da exceção que funda a regra. Sem isto, não há como organizar nada. Mas é preciso estar fazendo referência e se lembrando de que se está ocupando o lugar – que é péssimo, aliás. Se se trata isto neuroticamente, acredita-se que se está num bom desempenho, que se identifica com o lugar. O perversista não faz assim, pois ele é a exceção que funda a regra para outrem. E quem está incluído neste outrem? Ele também, enquanto está nestas práticas. " Pergunta – Com esses esclarecimentos que você está dando, de repente, penso que há muito mais morfóticos do que se supõe, talvez confundidos com neuróticos. Também acho. Mas há uma multidão de neuróticos, cuja garantia é o perversista. Eles defendem com unhas e dentes a perversidade de alguém, para não se sentirem perdidos. Então, é tudo muito ambíguo. Às vezes, quando se vai fundo, vê-se que aquela perversidade não é dele. Para não ficar em crise de angústia, ele defende a perversidade de um outro. Vimos isto neste País, longamente. " P – Em geral, na bibliografia sobre perversão, sempre se fala que a questão do perverso estaria relacionada com o fantasma da mãe fálica, com a busca de identificação com a mãe fálica, essa coisa toda. Dentro do desenvolvimento do seu raciocínio, dá para pensar a questão do morfótico por aí? Para mim, isto não define nada. Isto, para mim, é um caso. Talvez tenha sido esta a metáfora com que Freud explicou a coisa, assim como foi o Édipo. Prefiro a abstração que estou trazendo, pois não é necessariamente assim como dizem esses autores. Prefiro a abstração de: eis senão quando, por relações com o Outro, o sujeito entende o horizonte, o limite, as fronteiras, etc., apega-se a um objetinho que ele faliciza, empacota tudo ali dentro, e aquilo é, ponto. É com aquilo, inclusive, que ele goza. Não precisa mais nada. E fica de

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tal maneira empacotado que não é como algo recalcado que você futuca, futuca e pode achar. É como uma construção, feito o objetinho de Duchamp, que já foi construído lá e há que desenrolar, desenrolar, pois o que está dentro é o oco do processo de metaforização, o vazio em volta do qual o rolo foi enrolado. Isto ele não capta, só vê o rolo. Não estou dizendo que seja impossível desenrolá-lo, mas há uma tal paixão por ele e uma tal serventia, ou seja, ele paga tão bem, que não se consegue que o cara queira desenrolar. É muito mais pesado, mais duro, do que no caso do neurótico, em que se vai simplesmente aprofundando os processos recalcantes da sua neurose. Aliás, com que ato falho o cara iria cuspir aquele vazio? É muito difícil. E tem mais, ele não sofre disto a não ser que o façam sofrer. Aí, é uma boa ocasião para tentar falar. E pior, se a morfose for de índole fóbica, empurra-se o sujeito, aí ele procura falar, dizer por que aquilo dói e o que acontece é que ele faz bom negócio, acaba, dentro da morfose, subtrocando a fobia pela perversidade. Ele passa para o outro lado. Eis senão quando, ele entende não que haja o troço lá dentro enrolado, mas sim que o mesmo rolo de barbante que o apavorava pode ser um grande barato. Aí, como continuar? Já vi também o caso contrário. Às vezes, estamos tratando de um morfótico, pensando que ele é neurótico, ou deixando em branco. Como todo mundo, por cima de morfose, tem aspectos neuróticos também – recalcamentos, dores, etc. –, chega um certo ponto em que se empurra o bicho na parede, pois vê-se que aquilo é morfose, aí ele fica fóbico. De quem? De quem o empurrou. Ou seja, tirando aquele que faz a pressão, ele controla tudo. Ele bota o Nome do Pai na chon (no chão), como diz a personagem da novela Rainha da Sucata. O puro e simples universal não implica em morfose. É uma utilização lógica, aqui e agora, necessária. É uma das patologias do Sujeito passar pelo masculino, quando necessário, útil, estratégico. Passar pelo universal apenas assenta um limite não numerável em função da infinitude. Mas não podemos esquecer de que um universal uma vez enunciado tem necessariamente, enquanto enunciado, características morfóticas. Não enquanto posição de

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Sujeito, mas quando não se leva em conta a equi-vocação a que o submete a língua em que se o enuncia. Vemos, pois, que a “prática de si” no campo freudiano é algo muito delicado. Você precisa de posições perversas, neuróticas, psicóticas, pois, de vez em quando, você alterar é um pequeno surto psicótico, o que é muito diferente de estar assentado na arquitetura obrigatória disto. * * * " P – No caso do morfótico, o que ele reclui é a subjetivação, ou seja, o Sujeito, o vazio no meio do objeto? Ele fica só com a objetivação, com uma premência de objetividade. E ele não substitui a subjetivação imediatamente pelo Gozo-Fálico? Ou seja, ao invés de haver Sujeito ali, há Gozo-Fálico, marcando o lugar que deveria ser do Sujeito? Sujeito é, para ele, sujeito gozante falicamente. Mas não vamos fazer a tolice, que pode nos acontecer, de dizer que não há Sujeito ali. Não me esqueço de um Seminário em que alguém, se não me engano Jacques-Alain Miller, perguntava a Lacan se, no caso do psicótico, havia Sujeito. Lacan respondeu que havia. É claro que há. O que não há, aí, é encosto. O Sujeito não está encostado, não consegue demarcar o valor metafórico de seu encosto. Mas, acefalicamente, há Sujeito. No caso de morfose, eu diria que há um Sujeito hipercabeçudo, cabeça de ferro. Isto porque ele não é apenas cabeçudo, como qualquer um, que pode ter uma referência metafórica. Não, a sua é uma cabeça de aço. " P – Em termos de cura, pode ser feita alguma equivocação no caso do morfótico? Acho que, teoricamente, é possível. Resta saber se, pelo extremo valor de prebenda que isto tem para ele, o sujeito fica na análise para que a equivocação possa acontecer. Mas, teoricamente, é muito mais simples do que pegar o psicótico e fazê-lo entender o que nunca entendeu. O morfótico entendeu e substituiu muito bem. É o que vemos os autores escreverem: o perverso sabe das coisas. Sabe mesmo. " P – Então, seria possível equivocá-lo se fizermos seu Gozo-Fálico ratear?

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Não sei se é ratear ou diversificar o gozo. Duvido muito que se vá fazer ratear esse gozo. Parece-me uma posição inversa à do psicótico. Onde fica mais minha implicância é quando os autores procuram lidar pelo lado da foraclusão também. Não. É reclusão, está lá dentro. A subjetividade está muito bem embrulhada, é muito consistente na sua referência, digamos, sintomática. Há também o fato de que o mesmo feitiço revira. E não revira senão dentro da morfose. Isto é que é a maior dificuldade. O mesmo feitiço servira morfoticamente tanto para a perversidade quanto para a fobia. Então, é preciso um exercício muito longo de reviramento para ele desistir. Não podemos nos esquecer de que o cara é bem pago. Vivemos numa sociedade que chamo de perversista, o que não quer dizer que a sociedade inteira seja perversista, mas sim que o valor dos feitiços é altíssimo e a transa com os feitiços paga muito bem. É isto o que chamam de capitalismo selvagem. Somos assediados pela comunicação de massa, etc. Quando entramos em lugares supostamente de alto nível, numa Universidade, por exemplo, vemos imediatamente o que antigamente se chamava de desonestidade intelectual. Ou seja, o que está sendo jogado é o valor de ganho, de sucesso, de vantagem. Dificilmente o sujeito está implicado, por exemplo, com o desvelamento de uma verdade, seja qual for. Os jogos são feitos estritamente neste campo. Isto de tal maneira que se você também não joga está ferrado. É só vermos, hoje, a política mundial. O sonho platônico dos reis filósofos foi para a cucuia há muito tempo. Não é que não se queira fazer uma política de ganhos, de crescimento, e sim que o paradigma é absolutamente morfótico. De repente, tira-se da cartola um coelho que se transformará no objeto fóbico do momento: Saddam Hussein, por exemplo. Juro que estou me esforçando para entender a diferença dele para com outros... E esta diferença tem que ser pesquisada no tempo. Jamais me espanta que estejamos vivendo numa cidade que tem tantos crimes, sobretudo agora com tantos seqüestros. O que me espanta é que haja tão pouco. Pois se temos disseminado pelos meios de comunicação de massa que o jogo válido é o da perversidade, então, o pessoal é muito burro, e neurótico demais. Se não, já tinham entendido. Como se vai tratar, por exemplo, a diferença

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Reclusão – 2

social entre a riqueza e a miséria quase absolutas com a candura sociológica com que se tem tratado? É preciso ser realmente ineducado, estúpido, neurótico a mais valer para agüentar esta situação e não botar merda no ventilador. Ou seja, há uma fé no sistema muito além do que supomos, muito mais sofrida. Como é então que, em séculos, se não em milênios, se tem conseguido domar os Sujeitos? Domar fera é fácil, mas se Sujeito é algo tão saltitante deve ser difícil de domar. É claro que há toda a base etológica para ajudar. Convencem o sujeito de que ele é um macaco e ele acaba convencido – mesmo porque se parece com um. O sujeito entra para a Universidade, passam cinco anos lhe dizendo que é um macaco e ele acredita. Não estou falando de favela do morro, mas sim da Universidade. Sei que há certas coisas a favor, mas mesmo assim é espantoso. Ou seja, o nível de mutilação é tal que o sistema consegue funcionar. Basta vermos meia dúzia de perversistas que instala uma legiferação violenta e logo temos uma multidão de neuróticos que ainda acha que tudo está certo. Mesmo porque ainda há outro tipo de Deus aí que diz que está certo. E não pensem que o que estou dizendo tem algo de revolucionário. Não tem, pois isto não fede nem cheira. É um pouco de esclarecimento que talvez vá colar numa meia dúzia que vou chamar de elite, se conseguir.

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22 INCLUSÃO – 1 Continuando, então, nos enunciados legais, já vimos que não necessariamente o enunciador está apegado a uma morfose, mas é preciso ressaltar o valor de morfose dos enunciados. Esta morfose geral, assim enunciada, acaba apresentando o que é do desejo particular do enunciador como lei, apagando no mesmo tempo a face Desejo de seu movimento de enunciação. Podemos ver isto claramente nos grandes movimentos contemporâneos de cultura de massa: a declinação inclusiva de certo processo de pura combinatória dentro do sentido dado. Ou seja, o processo já está incluído na cultura como sustentação das massas bem longe do limite de alguma produção de gozo de sentido. O que é, por exemplo, um festival de rock senão uma espécie de latejamento contido daquilo que poderia, pela eventual presença de um poeta, desencadear todo um movimento de massa? É um latejamento contido onde o prazer de uma pequena expansão, com a sucessiva regressão, afasta aquela massa imensa, de braços para cima batendo palmas, de qualquer respeito à subjetividade que viesse derrocar aquilo tudo, de repente – e tudo sob controle dos chamados comunicadores de massa, e não de presenças poéticas. Acontece, então, que a Neurose, subdita à vontade firme da morfose legiferante, resguarda a fronteira no temor do retorno do recalcado. O aparelho de Inclusão do limite – garantia da estrutura neurótica – é este resguardo da fronteira. O retorno do recalcado é mais ou menos manipulado de maneira a ser, desde que aparentemente respeitado, novamente afastado

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na sua essencialidade. É o caso de um festival de rock, que, se fosse realmente rock’n’roll, aquilo rockava e rolava... *

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As duas vertentes mais importantes, exemplares, da neurose são a histérica e a obsessiva. O que acontece com o regime de resguardo da fronteira é que, para ambas, a fronteira é uma determinação proveniente de outrem, desse outrem que deu valor de morfose ao enunciado. Se tivermos uma triangulação, a relação do Sujeito tout court, $, com a alteridade radical, A, pode até fazer (e vem fazer) uma mediação quando alguma objetalidade, a, é dada. Por exemplo, tratar a questão do Sujeito com a alteridade com referência à mestria de Freud, de Lacan. No entanto, o vetor forte é o de sua relação com a alteridade. Ou seja, no limiar da angústia, diante de sua questão no mundo, o Sujeito pode (e não só pode como deve) mediar por este objeto. Mas mesmo quando abandona a mestria e começa a tomar uma posição autoral, esta posição não é ele, ainda é a objetalidade do produto, que ele mesmo terá que produzir e que lhe é externo.

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Não é assim que se comporta o neurótico, para o qual esta relação é fraca, se não inexistente. Para ele, a relação forte é a que passa pelo objeto. Ele não consegue ter nenhuma autonomia, ainda que como referência de autoria, de autoridade, na sua relação com a alteridade. Todos os seus processos são mediados: o Outro só existe enquanto o que está por trás do outrinho. Então, ele permanece nos confrontos com este outrinho, seja papai,

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mamãe, analista, titia, teórico, mestre, amante do namorado, qualquer coisa serve...

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A

No regime do resguardo da fronteira, esta, então, se torna censura. A fronteira inclui o que é da ordem da censura, do recalcante, do status quo. Toda a questão da diferença entre o Sujeito, no uso de suas atribuições de subjetividade – que é o primeiro caso acima –, e o neurótico, que sofre de seu processo de inclusão, é justamente referido ao campo de batalha, que é o Campo do Sentido. Tudo se remete, aí, à relação de inclusão e exclusão. Se a fronteira é uma redução provisória, aqui e agora, do horizonte, este é o caso do Falanjo, que joga no Campo do Sentido. Ele precisa atuar dentro de movimentos em declínio, ou seja, que retombam dentro da situação. Mas isto, para ele, é provisório, pois há uma autonomia na sua relação subjetiva para com a alteridade, sem passar obrigatoriamente pela pequena diferença da alteridade menor, do outrinho. Ele pode até passar, mas isto é suspensivo, provisório. Então, tudo se joga no que se batalha pela inclusão ou não do excessivo. O que é o retorno do recalcado senão a infinitude que, de algum modo, tem ligações internas, portanto pode comparecer no seio da totalidade, e que será ou não incluído? O que importa no movimento da subjetividade do Falanjo é o ato subjetivo e essencialmente político, no que é analítico, de inclusão do nãoincluído. Entretanto, uma vez incluído, acrescenta-se ao Todo e, portanto, não passa de ser mero elemento na combinatória do conjunto. Zelar pela subjetividade é, radicalmente em diferença para com o neurótico, sustentar o movimento de subjetividade de estar invectivando perenemente a situação a partir do recalcado, do que não foi incluído. Portanto, o campo de batalha é o Campo do Sentido e se

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luta pela diferença entre o que está e o que não está internalizado. O neurótico não ousa isto. No que faz a inclusão do horizonte, está no partido da fronteira. Ele pode até sofrer com isto – aliás, só procura ajuda porque isto lhe causa sintomas pela agressão do não-incluído –, mas mesmo assim continua se recusando a qualquer inclusão do excluído. Então, o neurótico é reacionário mesmo. Ele está no partido da situação, mesmo quando não parece estar, mesmo quando está dando chiliques que parecem favorecer o excluído. É preciso ter uma atenção e uma concentração extremas para não se enganar com isto. Uma coisa é, pois, a autonomia na relação com a alteridade, mediada por alguns aparelhos, ou seja, ser uma máquina de guerra aqui e agora; outra, é estar no interesse da fronteira, mediando esta relação pelo outrinho, que fica vigiado pelo neurótico para simplesmente fingir que é bacaninha, mas não sê-lo. Daí o fracasso contínuo das análises. O campo de batalha sendo o Campo do Sentido, o que há de cura é o zelo pela subjetividade no sentido da tentativa de incluir o não-incluído. Então, o partido do Falanjo é do que está fora; o do neurótico, o do que está dentro. Mas é preciso prestar atenção para não cometermos a burrice de não entender o que é dentro e fora, pois aí é onde o neurótico é mestre em tapear a si mesmo e aos outros, dizendo que o fora é dentro e o dentro fora. Toda a questão, então, se joga no que poderíamos falar, junto com uma grande sacada de Alain Badiou, a respeito desta diferença. A diferença forte, como chama ele, é radicalmente diversa da diferença fraca. No campo do universal fundado pela marcação de uma fronteira redutora do horizonte há diferenças internas, mas são diferenças entre elementos do mesmo universal. Jogar com o campo desta pequena diferença pode parecer atuação de Falanjo, mas só o seria se o jogo se referisse à diferença forte, à diferença externa. Traduzindo em termos do que venho colocando é a comparação entre (a) o que chamam de sujeito, na diferença interna, no seu processo de relação entre enunciados, ou mesmo no joguinho das enunciações, que é o jogo fraco, bastante manipulado pelo neurótico, e (b) o jogo forte, que tem a força da remissão ao que chamo de Sujeito da Denúncia, que é o lugar onde o Sujeito

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topa com sua angústia, e que terá que resolvê-la em coragem. Não é à toa que o bom neurótico se apresenta com freqüência, no fracasso das análises, como capaz de curtir uma relação analítica até a tradução interna dos seus sintomas em pequenas diferenças. É um dilema terrível para a psicanálise, pois o sujeito que pertence ao partido da inclusão só procura a análise porque está pojado de sintominhas que lhe fazem mal. No percurso da análise, o próprio movimento do processo faz desaparecerem estes sintomas. O que aconteceu? O que foi analisado? Qual a guerra travada? É de se suspeitar, de imediato, que a guerra seja simplesmente o jogo combinatório do já incluído no sentido dado. O neurótico se abre à combinatória dos elementos da situação e começa a traduzir de maneira aliviante o sentido do seu sintoma, que é a implicância do recalcado, em outras modulações internas que possam dissolver aquilo tradutoriamente. *

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Acho que, de novo, devíamos falar do caráter neurótico. Já se falou há muito tempo, e já se esqueceu de falar nisto. Karen Horney escreveu sobre O Caráter Neurótico de Nosso Tempo, que é o que os lacanianos de hoje chamam de “estrutura neurótica” em diferença para com o “sintoma neurótico”. Um autor que trata disto é Joël Dor. Aliás, é muito comum, quando os sintomas caem, o analisando, se tem veleidades analíticas, correr direto para abrir um consultório. Mas pouco importa que os sintomas caiam – não estamos fazendo terapia de tirar sofrimentinho de ninguém –, pois o que possam chamar de estrutura neurótica, ou seja, o processo de referência restrita à inclusão, permanece. No que permanece, é o jogo manipulatório das combinatórias internas que elude o processo da análise. A diferença forte pode, assim, ser mantida à distância enquanto, com o auxílio da canalhice social que apóia veementemente este tipo de jogo, esse neurótico, seja ele interno ou externo às instituições analíticas, continuar no seu joguinho safado de distanciamento. Daí ser preciso denunciar perigos importantes dentro da própria prática analítica. Perigos que, se não observados, deixam a situação

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da psicanálise no mundo sem nenhuma diferença para com qualquer astrologia ou quiromancia. Perigos como o da aceitação da queda do sintoma neurótico como cura sustentando-se canalhamente o estruturema neurótico do sujeito. A psicanálise é uma faca de dois gumes. Cuidado com ela. Lacan fez um esforço tremendo diante de outro perigo, instituído pela IPA americana, de operar no sentido de reforçar o ego do analisando. Aí, é a salvação pelo ego forte, explicitada cinicamente por esses “analistas” como a salvação pela canalhice da inclusão combinatória. Acontece que, sem nenhuma culpa neste cartório porque equacionou tudo muito bem, Lacan não se vê melhor tratado pelos seus. Assim, hoje temos a outra face do ego forte entre ditos lacanianos que estão na imitação do jeito lacaniano de trabalho, e não dos fundamentos refletidos sobre a estrutura do Sujeito. É claro que nenhum deles aceitará que se diga que está reforçando o ego do analisando. E não está, pois está é reforçando o dele. Na repetitividade do jeito, na imitação do mesmo tipo de sucesso, com vistas morfóticas ao ganho, de preferência, vemos analistas que apresentam uma estrutura de ego que reforçam dia-a-dia no seu trabalho como exemplaridade para os analisandos. E isto dentro de uma constância comportamental copiada de trejeitos de Lacan, ou de outros lacanianos, que o próprio Lacan não tinha. São golpes no sentido de se manter a ambigüidade. O canalhazinho vai lá, copia as atitudes e opera o reforço do ego do analista no sentido de arrebanhar um bando de neuróticos ao seu redor que o façam bem sucedido e bem pago. O campo da neurose é o melhor para se ver isto. O grande perigo da psicanálise é que, pelo meio, não levada extremamente no seu rigor, é a maior fábrica de canalhice que já se inventou. Não só de canalhice generalizada pelo campo do chamado social, que é a neurose em pessoa, se não mesmo no campo de sua institucionalidade, inventando isso que há de sobra por aí. Como o h soa pouco na língua portuguesa quando o i vem depois, fica difícil a distinção para com a psicanálhise. Mas vocês poderiam me perguntar baseado em quê faço a diferença entre o canalha e o Falanjo. O canalha é um neurótico assintomático, mas que sustenta a estrutura neurótica alta e regiamente bem

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paga pelo sistema em que vivemos. O Falanjo é aquele que faz recurso ao Sujeito. Não será difícil, com boa escrita, pelo menos a médio e longo prazos, fazer a distinção entre um e outro. O canalha não se refere senão estritamente, dentro do Gozo-do-Sentido, à diferença fraca, em contraposição à ética – esta palavra está tão enxovalhada que até tenho vergonha de falar nela – da referência à diferença forte. Se nos jogos do mundo podemos escutar, seja qual for a estratégia ou a tática de um sujeito aqui e agora, sua referência constante à referência forte, à instauração do que não tem lugar, não há canalhice. Já o canalha se traveste porque aprendeu nos livros, ou com alguns mestres, o discurso cotidiano do psicanalês, ou o lacanês, por exemplo. Ele se traveste nessa figurinha, mas quando o escutamos com atenção, vemos que só está interessado nos joguinhos, no que chama de político. É o absolutamente canalha da internalidade do já declinado, do já dito, do sentido dado. Ele se esgueira por entre o sentido meramente no interesse de determinado sucesso, de determinado ganho, e mais nada. Para a clarificação dos conceitos dos quais estou hoje abusando remeto vocês ao livro Théorie du Sujet, de Alain Badiou, Paris, Seuil, 1982. Como sabem, ele é um brilhante discípulo de Lacan, que introduz a questão excelente do dentro e do fora em relação, sobretudo, às circunstâncias políticas. Isto que quero chamar de sustentação da fronteira, ele chama de espaço com lugar situado e junta num conceito que, em francês, é esplace, um calembour de espace com place, lugar situado. Eu o traduziria por espraço, o espaço com praça marcada. E isto que o horizonte indica para além de si mesmo como Sujeito da Denúncia referido a ele é o que chama de horlieu, não consigo traduzir senão por semlugar. Ou seja, só há vigência de Sujeito nas batalhas travadas por ele no sentido de forçar a barra para que o semlugar tenha espraço – esta é a ética. E uma vez que espraço houve, já quase não interessa mais a não ser como ferramenta de manobra. Isto porque a referência é ao semlugar. Só há emergência de Sujeito no combate sucessivo e infinito – daí, a análise infinita – pela emergência do semlugar no campo do espraço. É isto que se torna insuportável, dentro e fora das instituições analíticas, para o neurótico, travestido ou não de psicanalista.

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As duas estratégias principais em que se traduzem a reatividade contra a batalha pela emergência do Sujeito são por demais conhecidas. São a vertente chamada histérica, neurose histérica, e a vertente chamada obsessiva, neurose obsessiva. As estratégias destes dois, freqüentemente muito inteligentes, são diversas. Digamos que o obsessivo opera pela tática da rivalidade, ao passo que a histérica opera pela da destituição. Rivalidade com quem, com o quê? Destituição de quem ou do quê? Rivalidade ou destituição que não são senão o cerne mesmo revirado da transferência: a des-suposição. Teríamos que falar ainda longamente sobre a transferência para incluir isto. Como sabemos, Lacan demonstrou que transferência e contra-transferência são a mesma coisa. A fascinação do neurótico pode induzi-lo a determinada suposição de Sujeito, e Sujeito-suposto-saber é simplesmente suposição de Sujeito. Então, suposição de Sujeito a alguém, no nível da sua fascinação, pelo quê? Por aquele que ele supõe saber o quê? Saber sustentar o semlugar, a batalha do semlugar com o espraço. E ele vê isto melhor do que ninguém, pois é justo o que lhe falta. Daí sua fascinação e o assentamento da transferência. Sendo que basta ser aceito por esse Sujeito como aquele que desejaria aprender ocupar a referência ao semlugar para que ele, imediatamente, se conduza como o Senhor do espraço. Ou seja, é aquele que, no jogo da transferência, primeiramente fascinada, passa às duas estratégias possíveis, segundo seus estruturemas pessoais: rivalidade obsessiva ou destituição histérica. Vejam que deveríamos, de saída, achar a tarefa da psicanálise, votada ao fracasso de tão difícil que é. Isto porque a fascinação que leva o neurótico a se aproximar (fingindo entrega) do suposto Sujeito que saberia referir-se ao semlugar, é a mesma que vai se virar para reduzi-lo ao espraço. A mesma fascinação com que o neurótico olha o suposto Sujeito por ele, ou seja, alguém que é suposto saber referir-se ao semlugar, é que, na sua referência a seus estruturemas neuróticos, lhe dá sua insistência na fronteira, no recalque, etc. É a mesma força de fascinação que vai ser traduzida contra-transferencialmente na vontade de reduzir esse Sujeito ao espraço do neurótico. Esta é uma batalha sem fim no mundo. Às vezes, tem fim quando algum neurótico consegue ser

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(não convencido, mas) vencido pelo Sujeito. Ele vai ao analista, fascinado por aquilo que considera um poder, que é o de saber sustentar o semlugar. Isto o fascina porque é o que lhe falta. Ele até acredita que: se eu fosse assim, seria o máximo. Só que enxerga isto pela lente dos seus estruturemas neuróticos, o que é pura fascinação. Então, começa a operar imediatamente na transferência negativa. Ou seja: se sustento este Sujeito neste lugar, sou o cocô do cavalo do índio. É preciso, então, transformá-lo nisso para que não empuxe o outro, pois, para ele, trata-se é de derrubar a subjetividade em exercício. A função da análise seria tentar vencer os esquemas do neurótico, de maneira que ele passasse da relação fraca para com a alteridade para a relação forte. Aí, se possível, teríamos a transferência no sentido idiota da neurose de transferência e sua passagem a uma transferência aberta, isto é, referencial. Enquanto neurótico, ele opera a des-suposição o tempo todo, tentando, mediante ela, a rivalidade e a destituição. Quando Lacan diz que a transferência é ou se apóia no Sujeito-suposto-saber, isto é verdade, mas é transferência de quem? Do Falanjo ou do neurótico? Posso, falangelicamente, fazer a suposição de saber a um Freud, a um Lacan, pois me oferecem ferramentas boas para eu, na minha autonomia, lidar com o Outro. Outra coisa é, diante da suposição feita, eu jogar com a des-suposição para não permitir jamais o aparecimento do Outro e, assim, ficar mediando tudo pelo rabinho do próximo, que é a função do neurótico. Quando se põe qualquer problema para o neurótico, ele nunca pensa na alteridade do processo, o que quer é saber se você deu um sorriso para a Mariazinha ou para a Joaninha. Aí, ele vai pensar se é Joaninha ou Mariazinha. Ele nunca pensa no processo em jogo e o que é necessário para seu desdobramento. Ele fica sempre de olho no traseiro da vizinha. Nunca se pode esperar de um sujeito desse tamanhinho, de um baixinho desses, uma autonomia reflexiva diante de argumentos e de surgimentos do campo do Outro. Ele jamais olha o campo como quem se refere ao semlugar, mas sim de dentro, na referência da pequena diferença combinatória interna. Portanto, ele é incapaz de coragem, de heroísmo. Ele até diz que está fazendo isto, mas é só estratégia.

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Por exemplo, ele jamais abandonaria a psicanálise se chegasse à conclusão de que é um campo de imundice. " Pergunta – Você está dizendo que ele reduz a experiência da análise a uma mera prática cultural? A cultura é pré-histórica, é neolítica. A psicanálise não tem compromisso com ela, tem é que intervir nela, fazer brotar o que nela não tem lugar. Portanto, tem jogo com ela, mas não compromisso. A idéia de saúde que a cultura projeta nos aparelhos de televisão, por exemplo, é o bom funcionamento lubrificado do espraço. Quem faz referência a Sujeitos, ou seja, o psicanalista, sabe muito bem que isso é doença, que uma instituição psicanalítica não é senão a carapaça, talvez necessária, para o exercício da diferença forte, e não o monstrengo de pura carapaça que evita o seu surgimento. O analista sabe que revolução ou é permanente ou não existe. Por isso Lacan se perguntava: Que revolução, se tudo gira e cai no mesmo lugar? É claro, pois não há nada senão o lugar, como dizia Mallarmé. Então, o projeto político, ou seja, o projeto analítico, é de intervenção no sentido de agredir o espraço com o semlugar do Sujeito. Ou seja, explodir o espraço, a longo termo, à vontade. Só que não explode. Não pensem que vão explodir nada, porque não vão. O que se pode é sustentar o vigor de Sujeito, mais nada. Os cansados, os fatigados da posição subjetiva, e que já certamente abriram mão dela há tempo, e por isso estão numa de neurose confirmada, acham que isto é uma trabalheira incrível, e que não vale a pena. Daí dizerem: Vamos transar aqui numa boa, numa boa cultura, numa boa instituição. Portanto não fale essas coisas, pois estava tudo dando tão certinho, as pessoas estavam tão calmas, aí você vem com um negócio diferente. Não faça isto. Você não sabe lidar com essas coisas. Você é desajeitado. Freud e Lacan ouviram isto o tempo todo. Basta lermos as minutas da sociedade freudiana nos seus primeiros dez anos. Ou seja, é a domesticação do analista. É eliminar a sua função no campo. Como isto tem prêmio, não pensem que não vai vencer. As duas vertentes típicas do joguinho do neurótico funcionam, pois, da maneira seguinte: a histérica des-supõe o Sujeito por ela suposto, indicando

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alguém para este lugar desde que este alguém lhe devolva como verdadeira e eficaz a mesma posição que ela ocupa: você é um grande mestre. Mas por quê? Porque posso reduzi-lo à minha posição: você fica brilhando aí para mim, porque (sou uma besta mesmo, mas) no fundo, no fundo, tudo tem que ser traduzido no que eu sou. A vertente obsessiva é: o que quer que você diga, posso, pelos artifícios da combinatória interna, tentar desdizer por pura e simples rivalidade que possa impedir o semlugar. Isto, a meu ver, se inscreve com certa clareza no discurso da histérica que Lacan escreveu e que não é necessariamente o discurso da neurose histérica, mas que, traduzido na neurose, funciona muito bem. Até suspeito que certo autor tenha razão quando, em certo momento, fez algumas associações da posição obsessiva com o discurso universitário. Considerem bastante estes dois discursos para ver se, até conversando sobre eles, conseguimos elucidar, cada vez mais, a posição de des-suposição do neurótico nas duas vertentes, da rivalidade e da destituição. É disto que falarei da próxima vez. *

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" P – Você colocou o resultado de se vencer o neurótico como o deslocamento do esquema de referência ao outrinho para aquele em que a vetorização vai do Sujeito para a alteridade. Mas como se vence o neurótico se, por outro lado, você disse que ele é quem vai vencer? No que a neurose circunjacente dá muito bom apoio à neurose particular, a tendência é que isto vença. Ou seja, que o neurótico possa eludir a sua análise, dentro e fora da instituição. Ou seja, que possa evitar que as coisas se sustentem no nível daquilo que vence a neurose, que é haver analista, que é alguém poder arcar com a insistência na referência ao semlugar custe o que custar, mesmo que faça algumas contemporizações. Vencer é por aí. " P – A existência do poeta é vencer o neurótico? Sim. Por isso digo que não há diferença estrutural, mesmo que haja

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diferença substancial, no ato poético e no ato analítico. É na referência forte, do Sujeito da Denúncia ao não-Haver, que se retorna a insistir que o que não tem lugar o tenha. Isto é ato poético, no dizer, e ato analítico, no irromper, no recortar. " P – Mas se a neurose fosse vencer, já teria vencido, não? E você tem alguma dúvida? " P – Não haveria transmissão da psicanálise, não haveria nem Lacan. Freud já teria sucumbido... E quem disse que não sucumbiu? Você não notou? Ele disse que estava trazendo a peste, coitadinho, mas a peste o comeu. Você está confundindo a fama do Dr. Freud, a dispersão de sociedades e de analistas, com vencer psicanaliticamente? " P – Não. O que me parece é que a indicação do semlugar não deixa de comparecer. Felizmente, há Sujeitos recalcitrantes que, por um motivo ou outro, seja por análise, com ou sem analista, escaparam disso. Mas no espraço disponível, não são vencedores. " P – Mas, quanto ao ato poético, não são vencedores? Não podemos deixar de entender que um ato poético pode incluir o excluso que o poeta trouxe. Inclui, e porque inclui fracassa. No que incluiu, fracassou. Imediatamente é traduzido em termos de combinatória interna. E a vigência, o vigor, do analista é a sustentação do não-incluído, e não do que foi incluído. Esta precisão é necessária, pois vocês podem perguntar: quando o não-incluído é incluído, a cultura não evolui? Claro, ela se enriquece como espraço, mantendo o Sujeito fora. Mas se não sou um mero zelador do cultural, se estou do lado da criação, do poeta, do analista, ou coisa desta ordem, minha insistência é no não-incluído, que é: possibilidade de emergência de Sujeito. Outro dia, alguém aqui me perguntava sobre a queda do muro de Berlim. O que temos aí acontecendo? Do lado das esquerdas, burocracia de Estado, populismo demagógico e sindicalismo de pelego – que quase ganhou aqui –; do outro lado, que não é direita, pois não há esquerda, temos o liberalismo de fachada, babaca a mais não poder, no entanto, no momento presente, competente

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no mundo para homogeneizar o espraço. Está lá o Gorbachov que não me deixa mentir. E nós, o que temos a ver com isto? Tudo que não seja isto. Por isso, naquele dia, dei a resposta de que, para mim, era tudo igual: caiu porque não estava. Se estivesse, lá estaria. " P – Você pode falar mais sobre a relação que haveria entre o morfótico e o neurótico, considerando-se que a cultura paga bem? Isto não torna a cultura, na verdade, morfótica? O fato de o suporte ser morfótico não torna os seus participantes morfóticos. Poderíamos perguntar: se é numa vontade morfótica que se estatui, então, qual seria o vigor subjetivo diante desse estatuto? Seria o de mantê-lo sob análise, invectivando-o a partir da referência ao Sujeito como tal, Denunciante. Mas o que acontece com freqüência? Seja o estatuto compatível ou não com o estatuto mais geral, em qualquer institucionalidade, o que faz o neurótico? Ele mira sobre um estatuto cultural qualquer. E se opera algum mal-estar, não é no sentido analítico de referência à Denúncia, mas sim no de rivalidade e destituição, apoiadas numa diferença pequena entre relações estatutárias. Por exemplo, entre a cultura em geral e sua institucionalidade em particular. É como num casamento, por exemplo. Ao invés de a coisa ser mantida no nível da subjetivação, é entre você e a casa do vizinho. O casamento do vizinho é muito melhor. Ou seja, sempre se faz a medição por um outro estatuto, e não pela referência, de qualquer estatuto que seja, à subjetivação possível, com ou sem aquele estatuto. De repente, com aquele mesmo. A instituição chamada casamento, no mundo contemporâneo, é o joguinho rivalitário, ou destitutivo, entre posições, entre fórmulas de casamento. Não há sustentação de uma relação no encaminhamento para a subjetivação. O que é pedir muito, aliás. Mesmo porque a pura e simples troca de partido, geralmente, é bem paga. Na ordem partidária deste país, troca-se com facilidade de qualquer partido para qualquer outro. Isto porque a fratura só pode ser de homogeneização. São pequenas diferenças internas que organizam os partidos, mais nada. " P – Então, o que o neurótico não consegue apreender é onde está

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a subjetivação? Não. Ele consegue apreender muito bem onde ela está. Por isso, pode até eludi-la. Não vão pensar que neurótico é inocente. Ele sabe. Fazer a suposição de Sujeito é reconhecê-lo de algum modo. " P – Nesses pequenos espasmos a que você se referiu no início dizendo que não rolava, fico pensando que, às vezes, rola sim, que a música, independentemente do espaço em que você a coloca no rock’n’roll. Por exemplo, em Woodstock, acho que rolou uma revolução cultural grande, até que apareceu o vírus HIV. Essa paralisia, não entendo como você a vê. Suponhamos que em Woodstock, como em maio de 68, em dado momento até tenha rolado e rockado um pouco. Mas imediatamente isso foi deglutido. Estou falando é da grande massa, da grande insistência, do volume de coisas que pretendem repetir aquilo que teve vez uma vez e que, supondose que Woodstock tenha feito evento, tenha acontecido, foi comido pelo espraço até no seu modo de produção. Os grandes festivais, hoje em dia, já estão sob a égide do conhecido, da manobra disso. Não acontece nada. Acontece um show. Só. " P – Mas não acontece uma compulsão à repetição desse evento, dessa estética? A coisa não é eventural, é nostálgica. Não se inventa, não se tira do bolso, por articulação empresarial, o maio de 68. Isto não existe. Isto eventuraliza sobretudo quando sofre intervenção interpretativa. Isto não cabe no mercado. É porque ali se perderam as estribeiras, ou seja, houve um movimento qualquer – do qual não podemos acompanhar os percursos de suas minúcias, de seus detalhes – de tal maneira que, de repente, como diriam os cientistas do Caos, houve um afastamento muito grande do ponto de equilíbrio. Então, a eventuralidade teve vez. Mas não posso comparar maio de 68 com comício de Lula ou com Rock in Rio.

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Inclusão – 2

23 INCLUSÃO – 2 É no campo da Inclusão do limite, ou seja, no ponto que situo nosologicamente como da Neurose, que se percebe com maior nitidez o jogo do Sentido e a possibilidade de eficácia do manejo do campo pelo Sujeito. Daí eu dizer que o Campo do Sentido é o campo de batalha das recomposições, por instância do Sujeito. Na região da fronteira, a inclusão, rigidamente produzida por esta fronteira mesma, é que vai funcionar como uma espécie de anteparo radical a toda possibilidade de emergência do Sujeito. Isto é o que vemos funcionar no campo da Cultura. *

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Não podemos supor que o famoso Sujeito, que Lacan estabeleceu para o pensamento psicanalítico, seja algo de fácil surgimento. Se, pelo fato de ser falante, esta espécie tem acesso ao Sujeito, ou seja, é possível que haja emergência de Sujeito em suas manifestações, isto não garante de modo algum que a função-Sujeito esteja em exercício só porque se fala. Talvez por aí pudéssemos entender com mais clareza o que Lacan estabelece como diferença entre palavra plena e palavra vazia. Nossa fala, nossa presença cotidiana no campo do simbólico, no uso da disponibilidade simbólica, não implica em emergência de Sujeito. Nada mais fácil – e a neurose está aí para demonstrar isto – do que a manipulação, até muito rica, muito

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prolífica, do simbólico sem que nenhuma emergência de Sujeito se dê. Quero até supor que foi o sucesso do lacanismo no papo cultural que veio a produzir como efeito o mal-entendimento de se supor que porque se está falando, operando no nível do simbólico disponível, se está no exercício da subjetividade. Isto não é verdadeiro. Se o fosse, jamais seria necessária qualquer análise, pois neurótico também fala, também manipula o campo do simbólico, como o fazem o psicótico e o morfótico. Se a psicanálise tem alguma razão de ser na sua operação, é porque pode reconhecer que, se há Sujeito suposto na manifestação linguageira entre significante e significante, como quer Lacan, nem por isso esta suposição implica na emergência do Sujeito aqui e agora. Um tensionamento mais firme e mais radical é necessário para que o Sujeito tenha vez de se manifestar. A prova contundente que Lacan apresenta para a emergência do Sujeito é a angústia. E o bem-estar no discurso de modo algum necessariamente produz a aproximação da angústia. O que é isto que tem que ser aproximado para que o Sujeito, embora suponível nas cadeias dos significantes, tenha emergência efetiva? É preciso que sua fronteira, aqui e agora, seja posta em periclitância, que um mínimo de angústia possa remover a fronteira e exigir que aquilo que não cabia no campo por ela delimitado procure vez de emergência ali. Portanto, fazer referência à presença do Sujeito pela simples combinatória do disponível no campo do simbólico recai necessariamente na impostura. Poderíamos dizer que certa posição do nomeado psicanalista – mesmo lacaniano, se não sobretudo lacaniano, pois este é que deveria ter esta noção – no regime estrito da suposição de uma falta diante da manipulação simbólica não passa do que chamaríamos de terapia da falta. Isto na medida em que o defastamento radical, sistemático, do que de real possa emergir no jogo com a fronteira, o afastamento das possibilidades de subjetivação, ou seja, o exorcismo contra a angústia, resulta, em última instância, na pura e simples adaptação à repetição. Não fica bem para a descendência de Lacan, que tanto insistiu contra as terapias de adaptação, reintroduzir-se por uma via que parece outra, mas que acaba replicando no mesmo tipo de coisa, a terapia e a adaptação pela

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pura e simples repetição sintomática na manipulação da falta. Se um primeiro Lacan equacionou e algebrizou isto muito bem, nos deu o jogo combinatório da lingüisteria, extremamente importante de se reconhecer, nem por isso deixou, no seu percurso, no que eu chamaria de um segundo Lacan, de acirrar na teoria e na prática o processo desta lingüisteria, nitidamente idealizada hoje em dia por aqueles que esquecem da vertente mais importante de seu pensamento. A partir daí muitas questões vão surgir, sobretudo, no que diz respeito à famigerada formação do analista, se é que isto existe. Lacan dizia que ela não há, que só há formação do inconsciente. Contudo, no jogo prático de seu exercício, que nem por isso deixou de ser transformado numa profissão, há que se pensar o que possa ser, para além da impostura, uma efetiva formação do analista. Ou seja, uma efetiva formação do inconsciente compatível com este lugar. Do contrário, reduziremos a força do pensamento de Lacan a uma metafísica de algibeira, e a psicanálise inteira a um idealismo como outro qualquer. No regime daqueles que afrontam a vontade morfótica da Lei, instalada na rigidez da fronteira, vamos encontrar os grandes contrabandistas do simbólico. Contrabandistas que se conotam pela contrabanda de Lacan: o Sujeito enquanto unilátero. Qual é o recurso que permite a operação da fronteira no regime de contrabanda do real para o simbólico? Aí é que está instalado o vigor da subjetividade que a psicanálise pode apresentar. Depois do último Seminário em que fui razoavelmente veemente a respeito da posição do analista em sua relação com o Sujeito, pude ouvir coisas espantosas que não deixam de ter a ver com a situação, mas que são espantosas mesmo assim. Por exemplo: “Você está colocando uma posição tão radical para o analista que é a aproximação da loucura”. Mas sempre foi assim desde o velho Freud. O reducionismo terapêutico, a vontade de terapia, é freqüente no histórico da psicanálise desde seu começo. Ficamos todos felizes porque dois ou três caras muito inteligentes sacaram como funciona a estrutura do tal Inconsciente e nos deram meia dúzia de dicas que nos permitem driblar a nossa sintomática. Mas há que insistir, como insistia Freud – e Lacan, ironicamente, insistia menos, mas isto passava por sua ironia –, no fato de que há para esta espécie,

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do ponto de vista da ética da constituição deste discurso, uma tensão no sentido do que Lacan mesmo chamava de ascese do Sujeito e que prefiro chamar de ascese ao Sujeito. Do contrário, podemos ficar absolutamente satisfeitos com a pré-história onde vivemos, no Neolítico onde estamos mergulhados. E que razão teria a suposição de Cura – que não é ficar bom de nada; é para além de bem e de mal – se não houvesse este horizonte, talvez impossível de ser pego, mas orientando os percursos do falante no sentido da assunção subjetiva? Que seja difícil, penoso, mesmo impossível, não retira a imposição ética de haver este horizonte. As relações disto com a loucura são dramáticas evidentemente e nos obrigam a tornar a pensar a questão do autorizar-se e ser autorizado, e a questão de como sucede um psicanalista, por exemplo. Teremos que discutir isto futuramente. Estou aproveitando este momento porque a inclusão, a neurose, é o lugar da resistência, da defesa mais espraiada pelo mundo contra a emergência do Sujeito. Teremos que nos perguntar sobre algumas aparentes incongruências em certos ditos de Lacan. Digo aparentes porque podem ser equivocações. Coisas como: “a psicose é estruturada pela foraclusão de um significante” – foraclusão esta que terá sido o deslanchamento da psicose propriamente dita. Ou então: “uma análise levada muito longe, conduz à psicose”. Das duas, uma: ou a foraclusão não é prévia, ou a análise é o dissolvente universal do Nome do Pai. E mais: (a) “o fundamento ético da psicanálise é a exigência ética da ascese do Sujeito até o seu confronto com o real”; (b) “não devemos empurrar muito longe o analisando, há que ter uma prudência para ele não ser conduzido à psicose e quando ele está satisfeito com a queda dos seus sintomas, devemos deixá-lo partir”; e (c) “não há diferença entre análise didática e análise comum”. Quem amarra estas três frases? Do que estaria falando Lacan no contexto, e a cada momento, quando as disse? Pois ou bem esta ética funciona, é claro que com prudência, com manejo inteligente, ou bem se abre mão, quanto à análise daquele que pretende ser (ou que já se arvorou em) analista, do esforço de rompimento da fronteira, no sentido do horizonte. Ou bem há que fazer distinção entre análise didática e análise terapêutica, entre a análise propria-

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mente dita e a praticagem da análise para aliviar dores, ou bem alguma incongruência comparece. Então, para aquela pessoa a quem me referi – que intenta inscrever-se numa instituição como analista, que já tem seu consultório aberto por auto-autorização e que se apavora diante do que eu tenha dito da vez anterior e me diz: “Assim não dá, assim é a abordagem da loucura” – , teríamos que ter uma ferramenta, impossível de se conseguir, para saber que tipos de analisandos se manda para ela? Só pode ser analisando de fronteira curta, de território pequeno, porque se, de repente, tiver uma fronteira meio distante, como é que ela vai agüentar? *

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Estamos aí mergulhados nos estertores da neurose na tentativa de se sustentar enquanto tal, mediante naturalmente as duas posições de dessuposição do Sujeito, quer dizer, de quebra de transferência, digamos, de contra-transferência ou de transferência negativa, que são as vertentes histérica e obsessiva. A primeira, tentando a destituição daquele que é suposto ocupar o lugar da suposição, e a segunda, com a rivalização crescente com quem é suposto ocupar o lugar da suposição. Portanto, quero crer que, no campo da cultura, a guerra mais direta, mais cotidiana, é com a neurose mesma. Isto porque faz maioria e institui os territórios mediante fronteiras mais ou menos curtas. A escrita matêmica dos discursos de Lacan até que nos serve para recolocar a questão da des-suposição no seio da análise e, portanto, no seio da instituição. Costuma-se dizer que analista pode existir sem instituição. Claro que pode. Se há analista, há analista. Acontece que, no jogo dos ditos analistas com o campo fronteirado da cultura, a instituição é um órgão de anteparo, uma casca para o manejo dessa força. E o hábito é que analistas se agrupem em instituições, mesmo que seja para que não digam que estão loucos sozinhos. É uma espécie de hospício aceito no seio do social. Mas, facilmente, deixa de ser hospício para ser simplesmente uma categoria profissional. Assim como a

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revolução marxista, com sua temática rigorosa, no que se instalou institucionalmente no poder, acabou por resultar em nova burguesia. Esta é uma acusação feita por Badiou: a nova burguesia, depois da revolução russa, é a burocracia de estado que se instalou na União Soviética. Paralelamente, eu diria que o que as instituições psicanalíticas conseguem, apesar dos Lacans da vida, é construir a Nova Neurose. Houve um chamado Mao Tsé-tung que tentou reconduzir o processo que se fizera na Rússia com o nome de Revolução Cultural Permanente e deu com os burros n’água. Mas, de novo modo, fez uma exemplaridade. Mas foi deglutido por sua própria sintomática na medida em que o culto do nome, ou seja, se quiserem, como o culto do Nome do Pai, se transformou em culto à personalidade. É sempre o baixinho derrubando o processo. A insistência, o intensionamento da insistência é que vale, o resto são acontecimentos secundários. É preciso estar atento aos processos do reducionismo radical e veemente do horizonte à fronteira. Ou bem, então, no seu escopo mais geral, a psicanálise assume que toda e qualquer práxis freudiana está no risco da aproximação do real, mediante a aproximação do horizonte e, portanto, a análise e a postura do analista são a mesma para qualquer um; ou bem é preciso, por exemplo, no seio da instituição que se arvora o direito de produzir analistas e garanti-los, fazer uma distinção entre os analisandos que querem simplesmente ficar livres dos seus sintomas e aquele que vai ter a coragem de assumir o lugar de analista. Este não pode ficar liberado a partir da liberação do seu sintoma: precisa de um outro tipo de alforria que exija reconhecimento por outrem de sua coragem de experienciar a emergência do Sujeito, de poder referir-se a isto. E esta coragem joga lá no contrabando em relação à fronteira. São, aliás, os termos que Lacan coloca quando se põe este tipo de questão sobre o desempenho da análise e a formação do analista: justiça e coragem. Devemos manter a psicanálise no nível da terapia, como chamei, ou devemos levá-la até à consideração da justiça e da coragem? Quero supor que os operadores deste processo não podem fazer por menos do que esta aproximação até que outrem funcione como analisando e fique mais ou menos satisfeito

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do seu processo. Não gosto da idéia porque é em nada revolucionária no sentido de transformação da pré-história em alguma história que valha a pena, mas dá para engolir. Mas, no que diz respeito aos operadores, não dá para engolir que não se infinitize o processo até o regime da experiência da coragem, do “risco supremo”, como diria Heidegger: o risco da palavra, o risco do Sujeito. E o que estamos vendo é, depois da força ética de Lacan, já começar outra vez a grande arrumação da nova neurose, procurando o esquecimento deste risco mesmo quando, se não sobretudo, se usam as frases feitas para se falar na emergência do real: o sujeito, o S de A barrado... A frase feita vira tamponamento da experiência, vira defesa. " Pergunta – A propósito do que você colocou que o psicanalista não deveria evitar o contato com a loucura, Freud, em seu artigo Neurose e Psicose, diz: “Chamamos um comportamento de normal ou sadio se ele associa determinados aspectos de ambas as reações; se, como a neurose, não desmente a realidade, mas, como a psicose, se empenha em modificá-la”. Isto é o nome da contrabanda, ou do contrabando freudiano. A prática freudiana é esse contrabando. " P – E isto implica em chegar às beiras mesmas da psicose. Não da psicose enquanto doença, mas enquanto loucura? Se a psicanálise fornece alguns pontos de referência com sua prática de quase cem anos, nada indica que, necessariamente, o sujeito vá cair na psicose. Dizer que uma análise levada muito longe conduz à psicose, não significa que conduza à psicotização do analisando. Conduz ao regime que Freud põe aí da psicose, que não é necessariamente uma psicose. O que tento mostrar na estruturação que faço é que a psicose como tal é uma espécie de obrigação de restar lá. É o que Freud coloca: como o psicótico, vai fazer isto; como o neurótico, vai fazer aquilo. Ou seja, o processo da análise deve permitir, com o tempo que for possível para cada um, infinitizar a aproximação assintótica da loucura. Do contrário, não há condições de lidar com o menos, pois é preciso lidar com o mais para poder lidar com o menos. Mas a nova neurose, ou seja,

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a rápida e eficiente redução das reflexões dos maiores pelos baixinhos, acaba resultando na constituição de uma fronteira para além da qual se evita caminhar na felicidade institucional da terapia. Não vamos confundir a prudência necessária no manejo do processo com abrir mão do desejo do analista, que é o que se faz freqüentemente. Todos ficam bem instalados, ou seja, arranjam bom emprego para sua vida e seu bolso, e não se pensa mais no assunto. Faço a concessão disto até para a maioria, mas não para aquele que se supõe capaz de ser operador do processo analítico. Não posso confundir coragem com audácia. A audácia de abrir um consultório, pensando em não fazer mais do que abrir mão do desejo do analista, é apenas rivalitária para com os pares. Mas a coragem é solitária do Sujeito em relação à sua própria emergência, não conta com ninguém, não precisa nem de consultório. " P – Você coloca no Esquema Delta: o Real exigindo o Simbólico e este exigindo o Imaginário – isto não faz parte do próprio movimento subjetivo? Faz. O que não faz é a estagnação em alguma região. O que é da ordem do nosológico é a estagnação. Se o processo tem este percurso, tudo bem. E os operadores do processo supostamente não estão estagnados. Por isso, denuncio que o que há no campo da nova neurose da institucionalidade psicanalítica é a vontade de estagnação. " P – A má-fé é inerente à própria natureza das instituições? A má-fé é inerente à própria natureza das formações. Mas não posso tomar isto como desculpa para a estagnação. Ou seja, a má-fé faz parte de toda composição mais ou menos estável. Por isso, eu disse que a emergência do Sujeito é coisa rara. Isto porque a má-fé se instala naquele corpo. Estou chamando os analistas de novos neuróticos porque eles eram os velhos neuróticos de sintomática corriqueira, aí entraram num processo de produção de Sujeito mais ou menos estarrado num certo limite em que aquela produção neurótica caiu. Não se fazem mais neuróticos como antigamente, nem mesmo no seio do social depois que houve Freud. É uma coisa que é preciso observar. A histérica-beleza, por exemplo, quase não aparece. Quero supor que a maioria

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da população pré-Freud tinha a velha neurose instalada a olhos vistos, ninguém via porque estava acostumado, fazia parte da patota. Mas, ainda por cima, agora há o efeito de os analistas entrarem nessa jogada, cair a neurose anterior de certa sintomática e se instalar o que chamei de canalhice, ou psicanalhice, que é a nova neurose. Então, fica todo mundo satisfeito no campo da discursividade institucional. E institucional é uma coisa muito grande, não é tal qual uma instituição, e sim aquilo que até no discurso tipo intelectual ou literalóide dos livros de psicanalistas está sendo disseminado como aparelho da nova neurose para o povo. Digamos, que é a invenção do bem-estar na cultura. Mas evidentemente que é mal-estar, pois estão aí as instituições em que podemos ver isto muito bem. Insisto, pois, em que é preciso sustentar o vigor da referência à Denúncia para que, aqui e ali, alguma emergência de Sujeito crie o fato novo, o evento novo que desloca essa “felicidade” psicanalítica. Estou dizendo que o corpo psicanalítico mundial inventou a nova neurose e, por isto, faço a brincadeira, que não é tão inocente nem tão malévola, de falar em Nova Psicanálise. A psicanálise tinha eventualidade, mas acabou – a neurose toma conta de tudo. Uma das estratégias mais importantes da nova neurose é que se fica na repetição dos próprios argumentos sem invadir, como Lacan insistiu, o campo do simbólico de maneira a criar refregas que venham a questionar a sua própria posição. Esta foi a intencionalidade de Lacan no sentido da análise extensiva e no da criação de um Departamento de Psicanálise na Universidade. Ele apregoava que era preciso ir à matemática, à lingüística, à história, permear tudo... para a gente se achar. Um dos sintomas evidentes da estratégia da nova neurose é ficar repetindo uns para os outros, inter pares, o discursinho da psicanálise atual. Aí fulano vai para um congresso, faz um discursinho onde menciona o S de A barrado e todo mundo diz: É tão bonito. Fica-se, então, só neste minueto pseudo-intelectual, dentro da tematicazinha da patota. *

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Retomando nossa questão de hoje, quero falar um pouco sobre as

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estratégias discursivas que são utilizadas, preferencialmente, pelos partidários da inclusão. Para além da transferência que põe a suposição de Sujeito no jogo, a derrubada do processo por aquele mesmo que faz a suposição é desconstruir e conter a suposição mediante os módulos da destituição e da rivalização:

Todos sabem o que é um bom obsessivo, ou melhor, poderíamos dizer, um bom universitário. Como o obsessivo rivaliza? (Não estou pensando tanto na clínica do analisando, pois esta é obvia, mas na clínica da instituição). A partir de um saber composto, ele autua em flagrante o seu objeto e faz o processo disto na tentativa de produzir certo tipo de sujeito. Ou seja, Sujeito nenhum: certo tipo de sujeito para aquém de sua fronteira já delimitada pelos movimentos do saber. E o que ele escamoteia? Qual é o recalcado, no lugar da verdade, que suporta isso tudo? A mestria em que ele se apóia e oculta. Ora, ocultar a mestria é duas vezes canalha. Primeiro, porque está fazendo plágio sem dizer o dono, o autor. Segundo, está deixando de pôr o autor em xeque para ver se ele funciona mesmo. São duas canalhices sobrepostas, pois se opero minha transmissão para a produção de certo tipo de sujeito escondendo a mestria, sou plagiável, em primeiro lugar. Em segundo lugar, não ponho efetivamente em curso os ditames desta mestria para testá-la. E isto, testar, não é rivalidade, pois não recalca o mestre, coloca-o na mesa e diz: vamos ver se Lacan presta mesmo, vamos discutir. A histeria, o que faz? Finge que age como Sujeito. Digo finge, pois é um sujeito só algebrizado, um sujeito das combinatórias entre os significantes. Não deixa de passar entre significante e significante, mas não se apresenta se não saltar fora e não se referenciar à Denúncia diante do Real. Então, ela finge esta posição de subjetividade para fazer trabalhar uma autoria, uma mestria, de modo

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a produzir o saber que lhe interessa. Isto ocultando o quê? Ter ela mesma, a histérica, se colocado como o objeto maravilhoso no campo da verdade. Isto é o que rola no seio da institucionalidade no mundo como o grande impedimento – o maior, no sentido de generalidade, quantidade, – ao surgimento de emergência de Sujeito. Vemos isto na ação do discurso universitário: do ponto de vista estrito da transmissão e da vontade universitária, o que se faz é colocar-se um pseudo-mestre na banca para ensinar a pseudo-discípulos. Isto porque, do ponto de vista estrito da estrutura universitária, não se encontra nenhuma autoria daquele que está como agente da transmissão. Em assim sendo, as citações, ainda que compareçam, são mínimas, pois o Sujeito não diz uma única frase que tenha emergido de sua experiência. Ele está se referindo apenas didaticamente a um autor e não diz absolutamente nada que seja questão. De modo geral, ele fica procurando brilhos, procurando arrancar aplausos da sua platéia, justo no que não cita porque tirou a frase de outrem. Ora, isto em si já é um processo de rivalização. Vamos pular para o campo da instituição psicanalítica e dar exemplos clínicos. Um sujeito altamente obsessivo, daquele de fé, com veleidades intelectuais, absolutamente adscrito ao discurso de outrem e, naturalmente, como todo obsessivo, com empecilho forte para dizer a sua experiência. Ele fica empecilhado: se colocarmos uma máquina de escrever diante dele, ele vomitará em cima, terá suores frios e tremedeiras, mas não escreverá. Então, de repente, um sujeito destes é convidado a fazer uma apresentação num Congresso. Ele começa a passar mal porque não sai nada, o discurso não sai. Aporrinha o analista até às cinco horas da manhã pelo telefone, tentando escrever, dizendo que vai desistir e o analista lhe respondendo que não pode desistir. Ou seja, o analista apronta uma guerra de superegos. Se há um superego aí dizendo: Goza pela desistência, há outro aqui dizendo: Goza porque tem que escrever. Debaixo desta pressão, ele escreve, vai ao Congresso, até faz algum sucesso, volta com uma cópia de seu paper e diz ao analista: Fiz um discurso absolutamente dentro da tua teoria, mas não citei teu nome nenhuma vez. Diz isto como se fosse um modelo de autonomia. Nunca vi exemplo tão óbvio do

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discurso universitário. Ele fez todo o processo: produziu um certo tipo de sujeito, segundo o discurso ou teoria que o seu analista faz, e ainda declara que fez o recalque do mestre no lugar da verdade como um ponto de nobreza. O efeito disto no nível da instituição é que a instituição é que fica sem análise, como ocorre a toda hora dentro da universidade. Basta entrarmos em bancas de tese de mestrado e de doutorado para vermos. Às vezes, o miolo da questão é inteiramente referido a determinado autor que é ocultado. Ele é até citado na bibliografia, mas há uma pelotiquice em que não fica evidenciado que é um aproveitamento integral, de maneira que esse autor possa ser diretamente atacado. Temos aí um processo de des-suposição por rivalização. Outro exemplo clínico é o de um sujeito que participa de uma instituição durante anos, no momento em que seus interesses são defrontados, sarta fora e funda outra instituição. Diferocracia seria isto: rigor institucional em cada caso e, no caso de diferença eficaz, outro rigor. Só que não havia isto, era simplesmente uma questão pessoal que se evidencia logo depois. Onde colho o sintoma? Na nova instituição, na neurose novíssima que é fundada a partir desse gesto. Recomenda-se lá, explicitamente, que as pessoas estudem muito as produções da orientação da instituição anterior, mas à boca pequena diz-se que não se deve citar ou falar no nome de seu autor. É o cúmulo da canalhice, pois ou estou falando de Lacan e estou citando, ou há uma coisa nova e continuo citando ainda que seja contra. Mas está assumida a posição de crítica ou de trabalho, e não de rivalidade. O processo rivalitário esconde e projeta. É aquela coisa da criança que bate na outra e começa a chorar porque a outra é que bateu nela. Este é o processo rivalitário que está no seio do social inteiro, das instituições em particular, e no consultório de maneira particularíssima. O modelo histérico já é bem mais manjado. Procura-se o analista para que ele o cure... segundo as intenções do analisando. Ou seja: Você é o meu analista, é o máximo, te adoro... desde que a sua mestria esteja sob meu comando. No nível institucional, é a mesma coisa. Façam, por exemplo, a leitura da Escola Freudiana de Paris em torno da figura de Lacan e verão esses dois modelitos com muita clareza. Ou seja, o Dr. Jacques Lacan deve pensar ma

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non troppo. Isto porque ele eventualmente pode ultrapassar os interesses da histérica, o comando que ela quis ter sobre ele. Vocês se remetam, por exemplo, a um textinho de Jacques Lacan em que diz: “Eu não me identifico a Francoise Dolto...” Ele faz aí a denúncia da vocação histérica de que Lacan seria maravilhoso se fosse Françoise Dolto. Ele é até maravilhoso, mas se ultrapassar Françoise já não é mais... É o joguinho que vemos dentro da universidade, por exemplo. A vocação maximal da universidade é a vocação obsessiva de rivalizar com os produtores da mestria, ou seja, com os mestres, ou seja: os mestres não valeriam nada se não recebessem o endosso da universidade. Ou seja, os autores só são importantes porque estão dentro da universidade, mesmo que citados de través ou não citados. A universidade quer reinar por sobre os criadores, em rivalidade com eles. Quando ela começa a ficar muito moderninha, para não dar muito na pinta, chama as histéricas, põe num recanto e a isto chama pesquisa. As histéricas ficam lá felizes fazendo pesquisas de biologia, disso, daquilo, para a universidade fingir que a autoria está incluída no seu campo. Só que quando há autoria de fato, esta autoria imediatamente “cai na vida”. Ou seja, é no seio do mundo que será reconhecida ou não. A universidade apenas tira a mais-valia de dizer que esta autoria é do seu campo. Mas não é, porque se fosse, neste regime nem histericamente produziria saber, não conseguiria. Mas assim tem a desculpa de que não vige só na produção de determinados sujeitos. Se querem saber o que é o espírito universitário, ou seja, a obsessividade deste discurso, façam uma visita, em qualquer lugar do mundo, ao que se chama de Faculdade de Educação. É ali que está a nata da transmissão universitária. Nas outras, por causa da subversão histérica, porque a destituição é de outro nível, fica meio confuso. Mas onde se pretende simplesmente transmitir é que a “neura” se evidencia com muita clareza. " P – Mas não haveria nisso tudo uma molecagem que seria da ordem da perversão? Isto nada tem a ver com perversão. Justamente por falta de conceituação adequada para perversão – que é o que venho tentando

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estabelecer com precisão –, toda vez que há alguma molecagem se diz que é perversão. Perversão nada tem a ver com molecagem. Há perversistas absolutamente “probos”. Isto porque o sistema está de acordo com a perversidade deles. O regime da sua perversidade – em certo tipo de ditadura, ou em certos deslizes de democracia por exemplo – está absolutamente coerente com sua perversidade. Ou seja, é um perversista legal. A canalhice de que estou falando não é da ordem da perversão ou da perversidade, e sim da neurose, da safadeza do neurótico. Ou seja, são as chicanas do neurótico na sustentação da sua fronteira, e se esforçando para calar qualquer emergência subjetiva. A qualificação de PP, personalidade psicopática, por exemplo, é absolutamente imprecisa. Um pepesão pode ser um neurótico ou um perversista. A pepesada é o jogo mediante o qual se faz esta canalhice.

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24 ECLOSÃO – 1 (Arte Total) Depois da Foraclusão, da Reclusão e da Inclusão, quero comentar sobre a Eclosão do Limite, que não é senão a Eclosão do Sujeito. Fazer eclodir o limite de dentro do campo da fronteira é oportunidade de emergência de Sujeito. Toda eclosão possível de algo é manifestação de Sujeito. Não é por menos que, no subtítulo do Seminário deste ano, coloquei Arte Total. Não estou falando de nenhuma totalização da arte, o que seria tolo, e sim da totalização eventual, entretanto infinita e infinitizante, que vem com a eclosão do horizonte, do limite, para além das fronteiras que se esteja exercendo aqui e agora. Isto faz um Todo indistinto. E o único momento em que o Universal pode se dizer na sua pureza de Universal, ou seja, sem a demarcação menor do número que estabelece o lugar da sua fronteira, é nesta eclosão do horizonte. É a arte da Cura, que é coisa séria demais para ficar só na mão de psicanalistas, e por isso não fica só na mão de psicanalistas... *

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As oportunidades de eclosão são oportunidades do falante. Se a teoria psicanalítica vem apontar veredas de aproximação conceitual e de intensificação do processo, muito bem; se a prática analítica se exerce na arte desta eclosão, tanto melhor; mas não sejamos ingênuos de pensar que ela está adscrita a este campo, e que seja propriedade desses senhores que se nomeiam

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profissionalmente como tais. A arte da eclosão é uma especificidade do que chamo de Falanjo, que não somos nós – nós somos falantes –, e sim o que, porque há falantes, pode vir a acontecer. Falanjo é o nome do Sujeito, quando ele comparece. Talvez achem isto estranho já que situo o Falanjo no Campo do Sentido, mas não deixo de indicar que o que faz Um, como o Pleroma que pode ser contado por haver Um, não se amarra senão com o mínimo de três. Se assim é, a referência, digamos, feminina ao que irrompe no seio do campo limitado pela fronteira como o que Alain Badiou chama de semlugar conduz a um ponto de fuga que não transmuta nada. A referência masculina ao espraço, termo também de Badiou, ao espaço dado, também não sai do lugar, só remete à recaída no mesmo espaço. A terceira posição é a que permite que uma eclosão de Sujeito inaugure, por sua arte, uma transmutação aqui e agora, justamente na referência ao semlugar e ao espraço, como emergência eventual daquilo que pode produzir o contrabando. Não há nenhum lugar para se dizer senão o Haver. Como o não-Haver não há, o que quer que se diga terá que ser dito no campo do Haver. Quem faz esta operação? O Falanjo, o Sujeito que eventualmente eclode numa referência do semlugar que ele quer fazer tornar-se lugar, e numa referência ao lugar que é preciso ser reformado. Ou seja, a eclosão de Sujeito é na referência do semlugar, que vai se tornar lugar novo, e na referência ao lugar, no que tem de ser transformado. É, então, no ponto terceiro que se instala o ponto de eclosão do Sujeito na referência ao horizonte. O operador-Sujeito, o Falanjo, seria aquele que, na série do numerável, dos números – no sentido que quiserem tomar o termo: os números de um espetáculo, por exemplo – produz um passo a mais quando eclode. Esta é a Arte Total, seja com que material e em que campo de ação for. Em qualquer campo de ação que dê oportunidade a esta eclosão, vai se produzir a arte da cura, a Arte Total da cura, do cuidado com a eclosão. Um passo a mais, no que há eclosão do Sujeito, é eclosão de Sentido. O que será necessário, digamos, como artifício fundamental no sentido da eventual eclosão do Sujeito? Que artifício pode facilitar esta eclosão?

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Tomemos uma frase do velho Mircea Eliade, que hoje em dia pouco se lê, para mostrar como o aparelho com que ele expunha parecia se comprometer com tanto imaginário, que tem sido abandonado, mas não deixava de traduzir a verdade desse campo. Ele diz algo que acho bonito justamente porque é ingênuo: “Não mais estar condicionado por um par de oposições resulta em absoluta liberdade”. Isto é dito num livrinho chamado Mefistófeles e o Andrógino, em que está tratando da mitologia do andrógino (daí certo escrúpulo dos intelectuais da nossa era com este tipo de frase) e fazendo referência à idéia do andrógino que teria feito coincidentia oppositorum, ou seja, que caiu fora das oposições. Mas com a ingenuidade da frase podemos fazer uma tradução bastante adequada, no sentido em que coloco o Revirão com seu Sujeito da Denúncia, e insistir que é na tentativa da prática de uma indiferença para com a internalidade do Haver que se pode urgir a eclosão. É impossível restar na Indiferença. São momentos de passagem, rápidas suspensões das oposições dentro do Revirão, mas é o recurso da agonística de onde pode advir o Sujeito. Agonística que é essencialmente destrutiva. Quando Mallarmé diz “a destruição é a minha musa”, as pessoas pensam que ele é um obsessivo e que quer destruir tudo. Não é disto que se trata, e sim que é preciso operar alguma destruição, dentro do lugar, para que se tenha condições de refundar um edifício novo. Então, os dois movimentos que resultam na ação do Falanjo são: (a) o recurso à Denúncia, num átimo suspensivo das oposições internas ao campo do Haver, e (b) o rápido retorno que possa nos trazer à presença alguma oposição não incluída e que fará reconstrução, transformação. A agonística destrutiva sendo o recurso que temos entre o espraço e o semlugar nesta polêmica e no sentido da reconstrução do lugar. Não há salvação definitiva. Ou seja, não há salvação. O que há é a arte da eclosão. Para esta eclosão, no que se refere ao espaço que há, ao campo que está disponível, eu reclamaria outra vez a lembrança de Marcel Duchamp para insistir no fato de que se trata da produção de um ready-made. O que é a interpretação, se o analista ousa, senão um ready-made? Se é da fala de um outro que recolho para devolver a interpretação obtida, não terei eu revirado de algum modo essa

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interpretação para retornar ao campo com o sentido que não brotava anteriormente? Penico também é Vênus (com ou sem camisa). É brilhante a intuição do ready-made, pois é a invenção do Revirão in loco, dentro do espaço dado. Qual seria, então, a existência possível (não do, mas) de analista, se é que ele deve ser o zelador dessa arte? Ele fica meio aperreado, pois não deve se tratar de nenhum bem-estar, nem de nenhuma administração dos saberes como seus bens. O que o proíbe de ser ignorante. Aliás, esse negócio de não-saber está na moda. Depois que Lacan falou algumas coisas, há uns “analistas” que dizem que o analista tem que atingir o não-saber. Geralmente quem diz isto é um boçal, para justificar a sua boçalidade. O que há é saber muito, para até saber o que é possível não-saber do que se sabe. Como vou saber que não estou sabendo se não sei? Preciso saber, para poder colocar de lado. Se não sei colocar de lado, logo continuo sabendo. A boçalidade é a sapiência em pessoa. Então, perguntando de novo: que lugar é este que se espera de alguém que supostamente seria o artista da eclosão? É algo parecido como dar nó em pingo d’água. Ser malabarista de circo chinês é o que temos que nos virar para conseguir. Certamente que não com os artifícios do saber psicológico, que está em franca moda outra vez. A repetição pura e simples de frases lapidares de autores consagrados não passa de uma espécie de ortodoxia eclesiástica, canônica, onde nada é mexível. Isto acaba resultando na repetição canhestra que se ouve contemporaneamente, ou seja, numa repsicologização geral da psicanálise. Para que que serve a tal da psicanálise? Se não serve para nada de específico, está aí tomando lugar de verdadeiros proprietários do campo. São os grileiros do campo psi. Ou se não, têm que dizer a que vieram. Qual será a sua função? Re-entronizar o psicologismo ainda que seja pseudomatêmico do minueto do $ com o a? Ou é preciso se aproveitar de alguns passos dados por alguém, Lacan por exemplo, para insistir na sua abstração, digamos mesmo em sua matemização rigorosa? Não é por nada que, de novo, nos grandes aparelhos psicanalíticos, está em moda o retorno do caso clínico. Toda vez que a psicanálise pára de pensar, fica contando caso clínico. Não existe caso

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clínico. Isto é a ficção do analista em mal de reconhecimento das articulações. Alguns que têm um pouco de vergonha de dizer, sabendo que não existe caso clínico, agora inventaram uma nova moda, a da “construção” de caso clínico. Do ponto de vista de mercado, é brilhante, pois não se vai falar de caso clínico, e sim “construir” casos clínicos. Como se isto servisse para alguma coisa... Será que um analista, deixando de ser psicólogo de uma vez por todas, não pode escutar alguém sem o menor caso? É preciso estar de caso com o analista? Não há caso. Existem algumas formações do Inconsciente, aqui e ali, distinguíveis, como querem alguns, como estruturas clínicas? Não faço a menor idéia do que seja isto, nunca vi. Conheço formações do Haver, formações do Inconsciente, isso pula, isso pára, isso anda, isso desanda... Existe sim a possibilidade de se escutar para fora de qualquer caso, sem fazer disto caso. Há uma vontade ficcionista exagerada quando um sujeito se dá conta de que está diante de um caso. Vejam, por exemplo, a dimensão do tempo. Às vezes, pergunto para analisandos meus há quanto tempo estão em análise comigo. Eles ficam danados da vida porque não lembro. E não lembro mesmo. Tempo cronológico, já esqueci. Isto por que não há caso. Se não se faz um caso, e sim uma operação constante, o tempo é o da operação, o qual, aliás, é muito discutível que seja “tempo lógico”. Qual é o tempo de uma dor de barriga? E isto faz pressão. É preciso, pois, jogar contra os estruturalismos refinados, de gabinete ou de campo antropológico, entre a estrutura e a pressão do real. A função do operador da psicanálise é a de desmontar e remontar o campo: operação destrutiva e operação construtiva, perenemente. Então, o famigerado desejo do analista não é nem um pouco inocente no sentido da sua pragmática, embora seja tão inocente quanto o desejo divino. Se é inocente porque não sabe, não deixa de ser inocente no que seu desejo é designado. Eu diria que, do ponto de vista do momento histórico geral em que estamos situados, o desejo do analista é: retirar o campo do Neolítico, destruir o espaço neolítico em que vivemos. Não só por vontade de destruição, mas porque é preciso construir outro. Mas como o psicologismo larvar que está por trás da canônica

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em exercício é absolutamente compatível com o Neolítico, se não mesmo com os primatas, os esforços anteriores não são para serem guardados na gaveta como conquistas definitivas, e sim para serem tomados como endereços de encaminhamento. Não é à toa que Lacan criticava o conceito de revolução, dizendo que as revoluções de modo geral são como as do planeta, recaem sempre no mesmo lugar. Mas ao mesmo tempo, de passagem, não deixou de dizer que, talvez, a única Revolução possível fosse pela via psicanalítica, que é a que desloca radical e permanentemente. A aculturação da psicanálise deixa imediatamente de ser psicanálise. Daí, o perigo da teorização. A teorização produzida textualmente é necessária no processo de transmissão, mas imediatamente é preciso desconfiar de seus modos de absorção, pois ela recaiu no espraço, virou cultura. Onde fica, então, o lugar de produção do analista? Não é aí, mas é com o olho aí. O lugar deste produtor falangélico é entre o espraço, que podemos chamar de cultura, e o que não tem lugar, o excessivo. Isto de modo a construir perenemente o seu lugar. Ou seja, a psicanálise não tem lugar senão na perene construção do seu lugar. Lacan sabiamente se deu conta disto quando disse que a psicanálise tem que ser perenemente reinventada, se não, vira cultura. E quem pode perenemente reinventar este lugar é justo aquele que não faz caso. Quem faz caso está no mesmo lugar e virando ao contrário o vetor psicanalítico. Se a intervenção analítica é da ordem da produção do evento, ou seja, dado um acontecimento, uma situação, uma comoção possível desta situação, é suposto que sua intervenção, chamada de (não sei por que) interpretação, venha a colimar um evento. O vetor só permite caso depois, não encontra nenhum caso antes. Uma coisa é eu perceber um caso, ler uma situação e interpretála. Isto pertence ao mesmo campo da cultura. É, no máximo, a hermenêutica do cotidiano. Com certos aparelhos técnicos, é a semiologia dos acontecimentos. O que a psicanálise tem a ver com isto? Ela não opera aí, e sim com a situação, de fato. Com que arte vou produzir novo fato? Arte e Fato, é com isto que vivo. Com que arte vou induzir um fato novo? Com a arte de, considerada a situação, na implicância dessa situação com a turbulência possível,

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com a referência à Denúncia, deixar isto se chorar, deixar a angústia vir, pois ela põe a verdade. É possibilitar uma intervenção que venha a produzir Sentido, e não que apenas leia o sentido do que aí já estava. O vetor, como Freud disse com todas as letras, é no sentido do só-depois. Então, cadê o caso? Não é o caso. Se fico angustiado porque não consigo acompanhar o interregno de (digamos assim, porque está na moda) caos entre a situação e o sentido novo, aí começo a querer dar satisfação a certa epistemologia ou a certo gosto cultural do acontecimento. Começo a fazer comentários sobre passagens difíceis. Isto num processo é até válido. Por exemplo, na formação do operador psicanalítico, em relação ao que se chama com o péssimo nome de supervisão. Não há supervisão alguma, e sim um sujeito embrulhado num troço, que pensa que é um caso, e uma pequena emergência que se conta para outro e este diz: empurra para ali, quem sabe, faz sentido. Não há caso, o vetor é que está narrado de modo errado. Lacan dizia que a interpretação é a redução da significação ao nãosenso radical, ao zero radical. Posso visualizar isto do lugar de Denúncia. Se posso indiferenciar as oposições internas, parti geral para o não-senso, tornei caótico todo e qualquer valor de caso no vislumbre da possibilidade de isto se refazer. E isto não é mera combinatória, se fosse, bastava fazer os cálculos que saberia onde ia dar. Se não é uma combinatória, não sei onde vai dar, nem para quem escutou o analisando, nem para mim. Pode dar erro. O sujeito pode, por defesa, ficar mais neurótico ainda. Mas isto faz parte do processo. *

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" Pergunta – Como você situaria aí a função da pressa do analista? O que dá a pressa? Esta é a questão. Retomo a metáfora da dor de barriga. Sabe quando você está apertado? Pois é, se não estiver apertado, não vai depressa. Esta é uma questão séria, embora pareça brincadeira. Que tempo é esse? Lógico ou real? " P – Como fica aí a questão da fantasia?

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A insistência do analista, nesse momento, é na fantasia primordial: Haver desejo de não-Haver, que é o que conduz ao não-senso radical, pois o nãoHaver não há. Aí consigo o melhor de todos os aliados, que se chama Angústia. Ou seja, trata-se do semlugar, que chamo de Sujeito da Denúncia, em relação ao qual é preciso haver aquilo que propicia a sua eclosão. No que esta eclosão é propiciada mediante a suspensão que chamo de indiferenciação interna, é o cúmulo de diferença externa, portanto, é o caroço da angústia. No que isto é permitido, facilitado, volta-se correndo para o Campo do Sentido como uma intervenção que permite eclosão do Sujeito como produtor do sentido novo. Daí a interpretação não ser leitura de um dito, e sim instigação sobre o caos que acontece com o dito para que sentido venha. Daí eu dizer que não há caso. Mas a função da intervenção da emergência virulenta do semlugar no espraço é de romper a continuidade. É o que está velhamente dito quando Lacan fala em corte (evito utilizar este termo porque está na moda, há até “corte freudiano”, há de tudo...). Mas é um ato violento, destrutivo, de interrupção de uma repetição. O movimento é de destruição e recomposição. A recomposição é o efeito indefectível de uma adequada intervenção: o Sujeito retorna e recompõe. Poderíamos comparar a oposição que Lacan faz entre análise e contra-análise. Esta sendo levar o Sujeito até o lixo da angústia no seu confronto com nãoHaver e, depois, dizer-lhe que não há saída: volta para cá e (h)age. " P – Nesta retomada do sentido, o Sujeito, de alguma forma, não imaginariza? Poderíamos dizer, com Lacan, que o que aí ocorre é imaginarização do simbólico. Todas as vezes que se manipula o simbólico, reimaginariza-se através dele. Se vamos fazer simbolização do imaginário até o ponto de ser escorraçado para se defrontar com o real, há um retorno, que se chama reimaginarização do simbólico, em que ele fica recuperando para cá. Aí vamos ficcionar, de novo, no campo do Haver. É a arte da operação no Haver: ficcionar de novo, sem o que não há história (não como narrativa dos acontecimentos, mas como eventualidade da transformação). Uma coisa é contar história, outra é fazê-la. Por que Lacan faz história, consegue ser o segundo tempo na psicanálise? Ele

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foi lá, retornou, e disse: a psicanálise era isso; agora não é mais; agora é como digo; não porque saiba o que seja, mas porque sou um articulador sem rival. Ele disse isto porque ninguém sabe: se ninguém sabe, e se fiz o percurso, fico sabido. Não sei, mas fico sabido. " P – Até que ponto o exercício, a prática, da dita psicanálise de consultório não é incongruente ou incompatível com a possibilidade de o analista ocupar, na cultura, um lugar de denunciante? Talvez esta prática acabe sendo inibidora até mesmo da possibilidade de o analista ocupar este lugar na cultura como um todo já que vira profissão. A prática, em si, não tem nenhum confronto com a Clínica Geral. Pelo contrário, quanto mais gente ali fosse, quanto mais operadores verdadeiros fossem produzidos – não para abrir consultórios, pois não é necessário –, mais estaria congruente. O que acontece não é que a prática seja incompatível com a Clínica Geral, e sim que os cartéis, que se corporativizam e se tornam o institucional e o eclesiástico da coisa, vêm em contraposição a seu exercício. Por isso estou denunciando a psicologização da psicanálise, o corporativismo dos analistas, que acaba com toda a psicanálise, inclusive a de consultório. E fica o psicologismo do bem-estar profissional. A intervenção no campo da cultura pode ser perene. Por exemplo, tentar um Seminário como este aqui. Outro exemplo: que transformações você pode operar no seu comportamento cotidiano, com prudência, sem abrir os braços à cruz, e ser um pouco capaz de equivocar o comportamento do que está a seu lado? Entre analistas incorporados – Psychoanalysis Incorporation – vemos freqüentemente como têm a indignidade de operar em nível público falando de “ética” no que diz respeito à sustentação da moral cultural. Qualquer lacaneta desses faz isto o dia inteiro. Ele sabe que é um bom negócio. Todo mundo quer ser Pelé. Por quê? É um bom negócio tanto no sentido da sustentação do sistema quanto do enriquecimento ilícito, do ponto de vista “psicanalítico”, da conta bancária, manejar diatribes institucionais ou culturais chamando de ética o que é da moral cultural em vigor. Isto é o cúmulo da demissão. Não estou dizendo para ninguém ser imprudente. Ninguém deve ser candidato a

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Jesus Cristinho na cruz, pois também é outra tolice. Mas não aproveitar as oportunidades, até para não dizer nada?! Já é alguma coisa. Fazer o silêncio do analista tão propalado: nada a declarar. Escreva-se isto no jornal, no cadernosem-idéias. " P – Então, o que é preciso é que cada analista encontre o seu nível operatório de articulação? Sobretudo no que diz respeito ao trato direto com a função analítica, isto que chamamos de consultório. Mas acontecem coisas muito estapafúrdias no nível (não do acontecimento, mas) de emperramento, de bobajal, de besteirol. E isto no nível da referência. Tomemos um exemplo de peloticagem de vigarista. Lacan articula um texto sobre o tempo lógico para intuir ou deduzir dali a questão da pressa no ato. É, a meu ver, um texto bastante questionável, mas no qual está rigorosamente tratando da questão. Aí, aparece um débil mental que lança mão do tal texto para dizer que ganha mais dinheiro em menos tempo porque usa o tempo lógico. Que diabo é isto? Lacan jamais usou tempo lógico. Ele usava é sessão curta, rapidinho, a qual nunca justificou com tempo lógico nenhum. Então, como existe um negócio chamado Colégio Freudiano que ensinou para as pessoas um monte de besteiras, elas se aproveitaram disto e saíram por aí, fazendo tempo lógico... Este nível de referência é mesmo da ordem da empulhação. Ou seja, o sujeito quer justificar-se diante da cultura por seus atos em cima de um suposto teorema que o garante. Por que não coloca os próprios culhões sobre a pedra, ou seja, diz que é assim, que está neste exercício, em processo de subjetivação e ponto. O que fazem é enfiar na cabeça do analisando (que deve ficar completamente perdido) o mal-entendido de que a sessão é cortada no momento exato em que, por um tempo lógico, a intervenção veio. Isto é mentira. Às vezes, corta-se a sessão porque se está de saco cheio, o outro está torrando o saco. E com justa causa, pois não dá para escutar mais.

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25 ECLOSÃO – 2 (Clínica Geral) Quero lembrá-los de que, dada a coincidência da matemização, que vem sendo introduzida por Alain Badiou, com a psicanálise, sempre que estiver considerando situações específicas, estarei utilizando várias arrumações produzidas por ele, que são esclarecedoras, sem precisar citações freqüentes. *

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Continuando, então, a tratar de alguns pontos a respeito da passagem da Arte Total à Clínica Geral, pergunto: quem é o agente desta passagem? É preciso entender que um agente não precisa existir, assim como a Causa freudiana, a Coisa, não há. O agente pode ter condições de emergência, surgimento, eclosão, mesmo que não seja substantivo. O que, então, podemos reconhecer como agente dessa passagem, desse passe? A primeira tomada lacaniana da ética é sofoclesiana, tal como exarado no Seminário chamado A Ética da Psicanálise. O que tem sido o problema das éticas é o problema de Antígona, e Lacan, naquele momento, dá conta da ética da psicanálise em cima desta questão. Eu diria, pois, que este é o primeiro tempo da ética produzida por ele: a resolução de Antígona em “não abrir mão de seu desejo” como princípio mesmo da ética da psicanálise. Há um segundo tempo, sobre o qual não há um Seminário específico, mas a que certamente foi conduzido pelo desenvolvimento das operações que produziu depois, e que se

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enuncia com clareza em Télévision: só há ética do bem-dizer. A ética do bem-dizer é a de Antígona? Quero supor que ela insiste em se confrontar com a lei de Creonte do modo como Lacan aponta, reclamando uma Lei do Céu, que não devemos entender como uma lei mais antiga de consangüinidade. Seria barato demais supor que a reclamação de Justiça feita por ela, fora da lei injusta de Creonte, se baseasse no fato de que ambos, Eteócles e Polinício, eram seus irmãos. Já coloquei há tempo que se poderia pensar no adelphós, que é a irmandade dos falantes... Onde devemos buscar uma metáfora poética para o segundo tempo da ética de Lacan? É claro que este tempo está embutido no primeiro, quando Antígona clama pela Lei divina contra a injustiça legal de Creonte. Aí já se está colocado na distribuição da Justiça pelos adelphós, pelos falantes: uma Justiça maior que a mera operação legal de Creonte. Encontraremos este paradigma poético num autor trágico anterior a Sófocles, pois este vem num momento em que a pólis está visualizada dentro do trágico da impossibilidade de ultrapassar o domínio sobre ela. Um autor mais antigo certamente estava mais à vontade para se questionar sobre esse fundamento ético. Trata-se de Ésquilo, cujo estofo de tragédia não reduz o trágico da questão à pura e simples produção de um massacre operado pelo Destino – pois Creonte também sofre com a insistência na sua legiferação –, mas mostra a possibilidade trágica de superação do momento de aniquilação encontrado em Sófocles. É claro que Sófocles dá um jeito no processo quando, depois de Édipo Rei, escreve Édipo em Colona, mas depois vem Antígona e repete o mesmo processo nesta trilogia. Mas Ésquilo, após produzir uma série de tragédias (que desapareceram com o tempo) termina sua vida tentando escrever sua última trilogia sobre Prometeu, da qual consegue terminar a primeira tragédia, que é a conhecidíssima Prometeu Acorrentado. Ficou devendo, pois a morte não permitiu, as duas seguintes que, segundo os pesquisadores, seriam necessariamente Prometeu Libertado e Prometeu Portador do Fogo. É no vigor da função prometéica que encontro a ética do segundo tempo lacaniano, a ética do bem-dizer. Quem é Prometeu? Para situarmos um

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pouco o entendimento desse momento trágico, é preciso entender a posição de Prometeu: “Prometeu, tem que cumprir”, “ajoelhou, tem que rezar”... O que ele tem que cumprir enquanto Prometeu que é? Prometeu não é um falante no sentido dos homens, mortais, é uma coisa mais antiga na composição grega da mitologia. Ele é um Titã, o qual não é bem um deus, pois faz parte das forças do Haver, forças da natureza, se quiserem. Mas ele tem uma relação de procriação com os deuses e por isso, não sendo deus mas uma dessas forças, é imortal, porém não onipotente, pois os deuses estão acima dele. Prometeu estava metido naquela briga que houve na fundação da Joça, que é o lugar, a situação, o grande penico universal onde vivemos. *

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Como se deu a fundação da Joça, no sentido grego? Tínhamos, de início, o velho Urano, absolutamente inconsistente, um grande Haver perdido por aí. Em seguida, um deus descendente diretamente dele, chamado Kronos, vulgo Saturno na mitologia latina, opera a sua castração: um recorte sobre Urano. É claro que o raciocínio primata com que começamos as coisas vai traduzir isto em “amputação do pênis de Urano”. E por aí vem toda a história babaca que a psicanálise comprou... Mas, se formos um pouco mais abstratos em relação ao acontecido, havia o grande Haver inconsistente, nele é operado um recorte que lhe dá alguma consistência e este recorte se chama Kronos. Então, contar a historinha, mitologicamente, de que havia um deus chamado Urano, que o filho dele chamado Kronos vai lá com uma foice... e foi-se!, corta-lhe o pau, e que com esta imagética está fundando a estorinha, é pura tolice. Mais tarde, o pensamento grego matemizará isto, dará substância matemática ao processo, a qual nos livra de ter que pensar aquela historinha de primatas. Kronos, portanto, não é um deus que cortou o pênis do outro deus chamado Urano. Não. Urano é a grande inconsistência que, por uma operação, uma emergência qualquer, sofre uma limitação, um corte, que se chama, repito, Kronos.

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A historinha não fica aí. Saturno, o tal Kronos, passa a imperar sobre o Haver com seu recorte que empresta consistência. Ou seja, o Haver passa a ser consistente por este recorte. Mas o ser consistente não localiza nada, é apenas a consistência do Haver, então, ele devora tudo que há: tudo lhe pertence. Daí o mito grego de que Kronos comia seus filhos, devorava todas as suas criações. A consistência sem discernimento interno devora tudo. Eis senão quando, um de seus filhos, chamado Zeus, apelidado pelos romanos de Júpiter, Zeus-Pater, Zeus Pai, se rebela contra a devoração paterna e resolve fundar uma região em que dela possa escapar. Kronos já havia jantado todos os seus filhos. Então, com a ajuda de sua mãe, Zeus consegue enganá-lo fazendo-o engolir uma pedra pensando que fosse ele, seu filho. O que dá a Zeus tempo de crescer e organizar uma guerra contra Kronos, na qual é ajudado pelos Titãs, pelas forças, entre os quais está Prometeu. Zeus consegue, então, repetir o gesto de Kronos. Assim como este fizera um corte em Urano, Zeus faz um re-corte em kronos, sobre o qual a mitologia de cabeça primata diz: “Kronos cortou o pênis de Urano”. Este segundo corte permite a Zeus dominar um recorte bem qualificado, situado, nomeado, a partir do Monte Olimpo. Portanto, o simples fato de descer do céu e fazer o Palácio do Planalto dele no Olimpo significa que aquilo está regionalizado para uma pólis. Entretanto, quando os Titãs percebem o golpe de Zeus, ficam danados da vida porque, junto com tudo isso, com esse golpe de Estado, ficaram submissos a Zeus: as próprias forças ficaram submetidas ao império de Zeus. Os Titãs, então, se rebelam, mas Zeus ganha novamente a guerra e consegue dominar – não destruir porque isto não é possível –, manter o poder sobre eles. Isto porque pelo menos um deles ajudou Zeus nessa guerra: Prometeu. Por quê? Ele era puxa-saco do Presidente? Não. Prometeu achava que, na decadência do processo de Kronos até Zeus, essa guerra toda significava que, na continuação, as forças titanescas pudessem ser distribuídas aos homens. Ele achava que o processo de Zeus conduziria necessariamente à dominação dos Titãs, para que se pudessem levar as forças e distribuí-las aos homens. Só que Zeus era muito safado, como todo bom perverso. Fez a

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revolução com a ajuda dos Titãs, depois venceu os Titãs com a ajuda de Prometeu. Isto para enfeixar em sua mão todo o poder, fazer toda sorte de arbitrariedade com os homens, numa chicana entre humana e divina, mantendo as forças na sua mão sem distribuí-las aos homens. Aí Prometeu não gostou da brincadeira: “Não foi para isto que te ajudei, e sim para que se distribuísse a força dos Titãs entre os homens!” Então, rebela-se contra Zeus, mas já era um pouco tarde: Zeus “tinha a força”, as forças, e, se não pôde destruir Prometeu porque era Titã, pôde pelo menos dominá-lo e, mais, aprisioná-lo. Dono e com o poder de dar as ordens, Zeus determina que ele seja, com a ajuda de Hefaístos, o Vulcano dos romanos, acorrentado a ferros no cume de uma montanha de pedra no norte da Europa. Isto para que ele não insistisse na distribuição da força aos homens. Que força? O fogo. Prometeu tinha a força do fogo – justamente aquela que, em forma de raio, junto com outras, estava na mão de Zeus para dominar tudo. Aí começa a trilogia de Ésquilo, iniciada com Prometeu Acorrentado e que termina com Prometeu ainda acorrentado, mas jurando ter sido informado pela senhora sua mãe de que, uma dia, nasceria o filho de certa virgem que derrubaria Zeus. Ésquilo faz um projeto de tragédia bem diferente do de Sófocles, em que a tragédia se come por dentro e vira aquele dramalhão de destruição, impossibilidade, erro fatal, etc. Ésquilo põe a tragédia, o trágico, como promissor de evento, de acontecimento. Por isso, depois de Prometeu Acorrentado, ficou devendo Prometeu Libertado e Prometeu Portador do Fogo, ou seja, aquele que carrega o fogo, vai passando e acendendo as tochas dos homens. *

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Parece bastante óbvio que Prometeu acorrentado por Zeus não é senão a neurose. E como curar isto? Como libertar Prometeu? Refaçamos, um pouco, o percurso: Se partirmos de uma inconsistência radical do Haver, Urano, o que funda – atenção para a sintaxe da língua portuguesa – Kronos? O

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estabelecimento de um limite (!). Kronos não é senão a limitação de Urano – é isto que funda Kronos. Então, tido Urano, o que foi feito foi dizer-se que ' “existe pelo menos um que diz não”, %x #x, infinitamente. Aí está a fundação do Todo (&x), do Universal que se põe como função masculina. Isto não poderia ser fundado assim sem alguma co-memoração do Urano anterior. Como simplesmente cortar Urano? Se Urano sofre uma limitação, alguma coisa sobra. O quê? Aquilo que fazia sua inconsistência. Então, a mitologia diz, primatamente, que “Kronos corta o pênis de Urano, que cai no Mar, um dos Titãs, borbulha – aquilo ferve, tem força – e re-emerge na figura de Vênus... e sem camisa... Então, este corte não funda apenas ! porque o resto comemorativo da ' ' inconsistência vai recair, dizendo: “não existe nenhum que diga não”, %x #x, e, portanto, isto não faz um Todo (&x). Esta posição aí não é foraclusiva. A de Urano, sim, como se fosse uma grande loucura, uma grande psicose: a inconsistência radical. Posta, então, a consistência, vem a comemoração da inconsistência já de modo diferente: comemoração de Urano pela suspensão negativa do ato de consistência. Então, aí estão os dois momentos de Urano e de Kronos fundando, junto com Kronos, Vênus. A rebelião, a revolução, talvez, de Kronos contra Urano tenta resolver, no tapa, na guerra, a dialética que ainda se mantém entre o Universal e o não-Todo, esta coisa suspensiva. Resolver por decadência, para botar ordem ' no bordel. Aí surge Zeus, o qual eu não poria do lado do %x #x senão como imposição radical desse existente. Então, se dissermos que & é Nome do Pai (NP), ou seja, o Nome do Pai verdadeiro se chama Kronos porque foi capaz de tomar consistência com o resto a partir de Urano, Zeus não é senão a tentativa de abolição do resto e fundador não do Nome do Pai, mas da ' Père-Version, para a qual posso continuar com o %x #x: “existe pelo menos um, aqui do lado de fora, que diz não à função fálica para que todos sejam”. Mas isto é re-corte, forçação da limitação para aquém de suas possibilidades de mero limite, mero horizonte. Então, ainda não é bem perversidade, mas a distinção da perversão grega como Zeus. Mas insistir veementemente nisto, na chicana de dominação das forças que vem a ser a guerra contra os

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Titãs, aí já é perversidade. Então, rememorando até aqui: momento Urano, inconsistência; momento Kronos, o corte operado sobre Urano; cai Vênus, co-memoração da inconsistência – co-memoração porque não é a inconsistência pura, mas o lembrete, por negação, da inconsistência – esta dialética é em aberto. Isto que poderíamos chamar de Nome do Pai é horizonte. Portanto, dialetiza com Vênus. Qual é o vigor e a presença de Zeus? Ele quer recortar ainda mais. Se, no esquema que estou fazendo, temos o Infinito fundando um limite (!), outra coisa é criar a fronteira, que faz recorte dentro do corte. Por isso, para meu uso, faço distinção entre Nome do Pai e Père-Version. Nome do Pai é puro horizonte; e versão paterna é sintomatização, por um lado, e perversão, por outro – por isso Lacan chama de Père-Version. Esta é a operação feita por Zeus. A fórmula pode ser a mesma, mas ele, como externo, como que tenta eliminar todas as co-memorações da inconsistência e criar o cinturão radical da fronteira do reino. Isto para mim é perversão, que se tornará perversidade quando, ainda por cima, não dá a menor bola para os Titãs, faz outra guerra para dominá-los. Sobra quem? Prometeu. “Você já castrou o pai que havia castrado o avô, e ainda por cima quer passar de perverso a perversista e acabar com todas as possibilidades de emergência”. Prometeu diz não ao gesto de Zeus, mesmo acorrentado. O mais bonito da peça de Ésquilo é que Prometeu está acorrentado e Zeus continua a lhe fazer ameaças, pois quer que ele diga quem será o cara que vai destrui-lo para ele o destruir primeiro. Mas Prometeu não cede: “Não digo! Você pode me manter acorrentado, você pode colocar uma águia comendo meu fígado, mas você não pode acabar comigo!” Aí, o mensageiro, que é Hermes, lhe diz: “Mas você vai sofrer demais, vai passar dez mil projetos amarrados aí...” “Não tem importância, digo não”. O ato de Zeus amarrando Prometeu é, portanto, a fundação da neurose e se Prometeu insiste é porque o recalcado retorna. Mas Prometeu não vive só de recalque...

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É preciso instaurar o quarto tempo para além do golpe de Estado de Zeus, que é um golpe duplo. Primeiro, derruba Kronos na tentativa de manter a fronteira; segundo, derruba os Titãs para que nenhuma força mexa em sua fronteira. Então, há recalque e mais-recalque. Prometeu diz não ao insistir em dizer que é aquele que leva o fogo que roubou dos Céus, que tomou de Urano, e que vai distribui-lo a cada um, algum dia. Se vai conseguir ou não, não interessa, e sim que ele insiste na confiança de que virá a distribuir. Ele terá distribuído e distribuirá. Prometeu, por causa disso, é tomado como o transmissor de todas as artes aos homens – Arte, no sentido mais genérico de Arte Total –, de todas as possibilidades de trazer para dentro do cinturão criado por Zeus a emergência do novo, que vem provar que a inconsistência ainda funciona. Ele vai, pois, re-comemorar a inconsistência não a partir do Feminino, e sim na lembrança da castração de Kronos através da dialética do Masculino com o Feminino e da lembrança ' da castração de Urano. E vai não apenas dizer não ao %x #x como tentará fazer emergir, no seio da situação-Zeus, o novo. Isto através do ato poético em qualquer área de arte. Ele transmitirá aos homens a possibilidade de Justiça, aquela que Antígona vai requerer. Não adianta vir com a lei, pois ela é só regional. Existe uma Lei maior que, o tempo todo, pede Justiça. E fazer Justiça é deixar emergir no seio do Estado o que é não-Estado; no seio do lugar o que não tem lugar; no seio do espraço o semlugar. Como diria Badiou. Esta é a função de Prometeu que, nesta linhagem, vem concluir o esquema que estou apresentando, escrevendo-se como o deus a ser produzido – porque é mero Titã – e que insistirá na derrubada do trono de Zeus enquanto distribuição radical a cada um dos homens. Então, Prometeu é aquele que insiste em tomar o excessivo, a exceção, que Zeus se julga ser, e colocá-la para dentro. Ou seja, fazer um buraco na situação, no interior da fronteira. Neste momento aí eu diria que Prometeu tem que cumprir como aquele que, reconhecendo a imortalidade da força desta função, diz que ela até pode ser negada, mas ' ' não-toda, &x #x, por Zeus:

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O surgimento do Terceiro – que parece quarto no esquema mas que está no terceiro ato – que vai dar fundamento ao que chamo de Falanjo, que se chama Prometeu, é a possibilidade de transmissão do fogo dentro da ordem estabelecida, dentro do Estado, do lugar, da situação. *

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Isto é o que há de diferente entre as tragédias de Ésquilo e Sófocles. O babaca do Édipo é deixado por Sófocles perdido dentro de sua historiografia que vai acabar em Antígona batendo pé, com toda a razão, contra a injustiça, presa na caverna, vai morrer lá e ainda querem a segunda morte para ela como quiseram para o irmão, é esse sufoco... Mas Ésquilo, por sua vez, diz: É preciso apostar na transmissão do fogo. E a aposta feita nessa transmissão derrocará de algum modo, passo a passo, um passo de cada vez, o reino de Zeus. Por aí é que passa a CURA, pela liberação de Prometeu e a criação de condições para que se transmita o fogo: matematicamente, poeticamente, politicamente e eroticamente – que são as condições de transmissão. Só que têm que ser transmitidos em conjunto, não se pode perder nenhuma área, pois perder alguma é deixar preso um dos membros de Prometeu. Tem-se que soltar todos os grilhões para que Prometeu possa exercer sua Arte Total, a qual, exercida, se chama CLÍNICA GERAL. Soltar esses grilhões em todas

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as condições ao mesmo tempo é praticar a Clínica Geral. É claro que Prometeu anda muito acorrentado. A “neura” tem sido o populacho capaz de emprestar votos a Zeus, o taradinho, o perversista. E mais, nada obriga, na estrutura, que se soltem os grilhões – o que dá uma grande vantagem a Zeus. Não só não obriga como os deuses são bem pagos para manter Prometeu acorrentado. Nós todos sabemos disto: nós que recebemos as prebendas. Não vamos supor que esses atos, em sucessão, se darão espontaneamente porque a estrutura os levará lá. Não. Nenhum otimismo. Otimismo, só o de votar na libertação de Prometeu – mas isto não é espontâneo, o que temos todos os dias a olhos vistos. Foi o que Freud viu com o nome de Censura, Defesa, Resistência, numa análise, contra o ato prometéico de soltar os grilhões. É tudo o que vemos na ordem institucional das democracias de representação: vale tudo... menos desencadear Prometeu. Uma desencadeadazinha aqui ou ali não faz mal, pois outros membros estão presos, mas soltar, não. Nada obriga. Como, então, fazer a cura? Os ditos operadores da cura, vendidos a Zeus, podem fazer alguma coisa? Ou teriam que assumir o lugar imortal de Prometeu? O que não quer dizer que tal cara não perecerá: vai perecer sim mas, o seu lugar é imortal. Daí que os projetos em exercício na história contemporânea, projetos de liberação da metafísica da seqüência, têm sido os mais diversos e inoperantes. Por exemplo, a vontade de revolução social no pensamento marxista, que deu no que deu. Tudo acaba em Perestroika, em Carnaval... porque tinha que acabar. É um projeto revolucionário que não leva em conta que nada obriga. Por isso, de outra vez, escrevi no quadro: noblesse oblige. Noblesse, só tem um cara: chama-se Prometeu. Mas há outro projeto, o heideggeriano, último projeto da filosofia: revolução não vai dar certo, temos que fazer o retorno à essencialidade grega, pré-socrática, da força poética. É parecido com Prometeu, mas como operar esse retorno se, talvez, contra a metafísica, esteja pojado de metafísica? E temos o projeto, digamos que vencedor – e depois da perestroika, mais ainda –, do espírito anglo-saxão da democracia representativa. É campeã no mundo, num projeto

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que poderíamos chamar de “crítico”: crítica reformista das situações, perfeitamente endossável por qualquer Merquior. Será um destes três o projeto da psicanálise? Otimismo da revolução, otimismo do retorno ou otimismo da gerência? O projeto da psicanálise é arrogante, confiante, mas sem otimismo. É o projeto da ECLOSÃO, e não da revolução, não do retorno, não da crítica. (Não se pode confundir aí, pois Heidegger também fala de “eclosão do ser”). A psicanálise tem o projeto da eclosão do Sujeito: escuta do mundo na tentativa de surpreender a possibilidade de evento para, interpretando, nomeá-lo, para que ali advenha uma eclosão de Sujeito como Arte e Fato. Mas não pensem que esse Prometeu todo vai cumprir. Nada o ajuda, se não a sua força. Os menores gestos prometéicos são imediatamente traduzidos em funcionalidade jupiteriana para calar ou amarrar Prometeu. Haja vista a Freud, a Lacan... É sem nenhuma fé que este ato insiste, é pura confiança na insistência do fogo eterno: há função fálica, ela até pode ser amarrada, mas não-toda. A neurose é a aceitação pura e simples das correntes de Prometeu – e esta é campeã. É campeã votando na perversidade jupiteriana. Por isso digo que nada temos a ver com questões de narcisismo para pensar a contemporaneidade. Trata-se, sim, da perversidade social distribuída como neurose, garantida pela perversidade radical daquele que escolhemos para ser o mauzinho, para que todos nós sejamos tão bons... É muito mais fácil passar a vida xingando Zeus do ponto de vista do neurótico do que, prometéicamente, mandá-lo efetivamente todo dia à merda: você me mantém acorrentado, mas não vai me matar. Mas não, fica-se xingando o poder de Zeus: se ele deixasse, eu até fazia. Toda vez que um ato prometéico se instala, a subversão – este é o nome – que o neurótico faz é, porque encontra força no ato de Prometeu, xingá-lo de Zeus. Ao invés de lhe pedir que passe o fogo, fica dizendo: ele tem o fogo, é Zeus. Mesmo quando se lhe diz para encostar o seu rabinho na tocha para que o acenda. Mas a “neura” vem e o xinga de Zeus. É mais fácil e se tem a desculpa para ser o bosta que se é. Ninguém dirá que ele é um bosta, pois ele vive submisso a Zeus, é um terror, não se pode fazer nada...

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Que aparelhos utilizar para discernir se um gesto é prometéico ou é imposição de Zeus? Os dois têm força, são violentos. Quando se aponta para a lua, o imbecil olha para o dedo – porque nada obriga que ele olhe para a lua. Então, como praticar a cura na confusão geral entre as determinações de Zeus e as implicâncias de Prometeu? A posição do neurótico, defensora da perversidade social imposta por Zeus, é a do insulto. É quando um sujeito diz a outro: mas você é gênio, é por isso que faz essas coisas... Prometeu é gênio? Não. Gênio é o fogo que ele carrega. Basta encostar o rabito lá que ele acende – mas tem que encostar... *

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[Perguntas e respostas] ... Dentro da Clínica, não se pode dizer que nada obriga, pois supostamente ali há Analista, há Prometeu, que obriga, que aporrinha Zeus. Então, ainda continuo na pergunta anterior: como distinguir se há Prometeu ou se há Zeus? Mesmo quando Prometeu aparece, xingam-no de Zeus, como vimos na história da titica da Escola Freudiana de Paris. Aparece um Sujeito com o facho na mão e o pessoal diz: Lacan é um ditador. Por que não foram encostar o rabo no facho dele? Isto não, dói... Mas o sistema é “inteligente” na articulação do seu Olimpo. Por exemplo, faz uma Olimpíada – e não uma Prometíada – internacional, com aquele gaiato de tocha na mão, que corre, corre... e devolve o fogo para Zeus, lá em cima do palco. Ele não sai acendendo uma a uma as velinhas dos Sujeitos, pois é um bom neurótico. Alguns vão ganhar a Olimpíada e, por isso, vão receber merdalhas para pendurar nos seus despeitos. Cadê a festa? Cadê a distribuição? Como é que se toma um débil mental que, não se pode negar, tem a genialidade da bola, e se o locupleta como “ídalo” da população: enche-se-lhe o rabo de dinheiro, tomado da mesma população que deveria receber a distribuição? Aí vem o esquerdinha imbecil e diz que “está havendo muito seqüestro, muita violência por causa da má distribuição de renda”, que “isto é efeito da pobreza”. Qual pobreza? Só esta,

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ou a pobreza mental generalizada? Na medida em que verifico cotidianamente que ao invés de tomar o fogo da mão do atleta para nós, simplesmente se devolve para Zeus e se paga bem ao atleta para ele ficar de ídolo no lugar de Zeus, se sinto alguma revolta, posso ser o gênio do seqüestro. Sim ou não? Pois se seqüestraram a bola... É isto que se chama perversidade social, e que está na cara. E um bando de neuróticos fomentando, e de vez em quando um ou outro explodindo por aqui ou por ali, mas poucos, bem poucos... Estamos de volta à questão mais crucial disso que chamam de psicanálise. Como distinguir Zeus de Prometeu? Como escutar esta distinção, uma vez que nada obriga e que a força prometéica é imediatamente xingada de força olímpica? Por que se toma a força prometéica de um Lacan e, ao invés de se insistir e se deixar incendiar por ela, organiza-se esta força num Olimpo de psicanalistas que não o são justo por isto? Não digo isto com nenhuma esperança de botar fogo em nada. Nada obriga. A única espera é a de que, aqui e ali, alguém encoste o seu apagado no aceso desse Outro. Prometeu diz: Pode me manter acorrentado, mas morto não vou ficar. Então, como instalar a força prometéica, ouvir sua distinção em relação à força olímpica de maneira a sustentar a transmissão do fogo, apesar da surdez? Isto na espera de que, algum evento sobrevindo, alguém possa interpretá-lo e nomeá-lo de maneira que aquilo evento seja. [...] Será que Zeus beneficia apenas a si próprio? Não. Na sua perversidade particular, ele beneficia a todos os neuróticos. Estudar isto na história geral é um tanto complicado, mas na história da psicanálise é bem claro. Na institucionalidade psicanalítica, quando olímpica, tudo corre bem: as pessoas fazem fofoca, falam mal umas das outras, porque isto é o cotidiano, mas tudo corre bem. Isto porque a presença de algum Zeus psicanalítico, seja ele o nome de Freud ou de Lacan, distribui a situação muito bem para os neuróticos. Mas se – caso Lacan, por exemplo – aquele mesmo que está na postura que as pessoas pensam que é de Zeus, insiste no fogo, o que a turba faz é pedir a cabeça dele... Como disse, nada obriga, e a questão que fica no ar é a da

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impostura e da empulhação, pois é em nome de Prometeu que se faz o discurso. Este meu, por exemplo, que faço agora: está sob sua égide? Como distinguir? Chega o ato prometéico de Freud, imediatamente é transformado na gerência dos bens da IPA; chega o ato prometéico de Lacan, imediatamente é transformado na gerência dos bens da PIPA. Cadê o fogo? Quanto a mim, não tenho a menor esperança da cura disto, mas não deixo de denunciar. Aí vocês talvez perguntassem quem é que me paga para ser chato? " Pergunta – Prometeu fica como representante de quem tem o fogo e a moçada, de alguma forma, sob a égide de Zeus, impedindo que ele o distribua. Aí me vem a hipótese de que se Zeus o distribuísse para todos, como era o desejo de Prometeu... A questão não é a de que Prometeu não o distribua, se ele há, e sim que nada obriga que os outros o recebam. O gesto mais comum é: tira esse fogo daqui. " P – Não pode ser porque o outro não sabe o que vai fazer com aquele fogo, se se deixasse ser tocado? Este é exatamente o papo do neurótico: Prometeu é gênio, sabe o que fazer com o fogo. Eu não sei, não nasci gênio, não sou Prometeu. Ou seja: você, e não o fogo, é o gênio, então, vá para o lugar de Zeus. É o velho papo da neurose: eu até pegaria o fogo se soubesse o que fazer com ele. Ora, pegue, ele te queima... E não adianta alegar que é questão de desinformação e ignorância, pois há gente mais ignorante do que Zeus ou Prometeu? A ignorância nada tem a ver com isto. " P – Mas para organizar uma sociedade, se você pensar em termos maiores... Quem quer organizar a sociedade é Zeus, que é enciclopédico. Prometeu não o é, nem erudito. " P – Mas numa Diferocracia de que você tanto fala, como as minorias vão se representar? Se é diferocracia não tem representação. Aliás, não estou candidato a deputado, pelo amor de Deus, e me recuso a sê-lo. Mas vejam só que dificuldade: imediatamente traduzimos tudo em democracia representativa... Se nada obriga,

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não se tem mais do que exemplaridade, a qual fica também subdita à tal distinção. Como posso tomar exemplo se, defensivamente, xingo Prometeu de Zeus? Não dá. É preciso que a exemplaridade encontre o quê...? Tomo um Freud e um Lacan como exemplares, como portadores e transmissores daquele fogo. Com isto me proíbo de xingá-los de Zeus por um segundo sequer, mesmo que a aparência seja esta. Isto porque sei que o fogo está lá no bolso deles. Mesmo porque, que poder tem Lacan para mandar em mim? O imbecil serei eu se acreditar que ele tem este poder, pois só posso colher o exemplo, mais nada. Se acredito, xinguei-o de Zeus... e portanto sou uma besta. [...] Seja Zeus ou Prometeu, o campo é o mesmo. A confusão é que, se há força prometéica, há força, e mesmo violência. Quem não sabe fazer a distinção, pensa que qualquer violência só pode ser olímpica. Chamo-a assim porque ela me atinge. Se Prometeu me encosta o fogo, grito porque dói. Resta saber se posso pensar que ele encostou porque deixei, porque ele é exemplar ou se vou xingá-lo de Zeus e dizer que ele está me mandando ou punindo. A questão crucial da psicanálise passa por aí. A aparência olímpica – estou falando de um que pude conhecer um pouco de perto – de Lacan era só para neurótico ver: mas não havia nada de olímpico naquele palhaço prometéico – um clown, aliás absolutamente digno. Como vêem, estou encarecendo a polaridade (que é o regime da eclosão que a psicanálise traz) entre Zeus e Prometeu (e não entre Apolo e Dionísio, que é bem outra história...). É o Falanjo contra a perversidade.

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26 DA ARTE DE FORÇAR A BARRA Hoje é encerramento do Seminário deste ano, que foi atravessado por diversas perdas. Entre elas, quatro mortes, sobre as quais deixo aqui minha homenagem. Meus prezados amigos Mario Camarinha da Silva, a quem já tive o prazer de dedicar um livro de poemas, e Paulo Amélio do Nascimento Silva, que personificaram referências importantes no meu próprio reconhecimento intelectual e universitário; meu cunhado Yan Michalski, que honrou o teatro brasileiro contemporâneo em seus momentos mais difíceis; e por fim, mas não menos doído, o meu cão, o Kaiser, a quem já dediquei um volume do Seminário publicado. Também muitos prejuízos advieram de outros fatos. Mas não vamos confundir com verdadeiras perdas o que não passa de insultos e de agravos. Quem não sabe morrer, não sabe viver. Daí que tudo isto, por outro lado, é de se tornar como vantagem, na medida em que me ensine bem de modo a que possa, quem sabe, vir a ser aprovado no vestibular que interessa, de direito e de fato. A psicanálise não é senão o vestibular para a Morte, que não há de fato, mas que, de direito, nos aprova ou nos reprova. Daí a Educação pela Pedra, de João Cabral de Melo Neto, que, depois de Freud, mas antes de Lacan, também me ensinou sua “faca só lâmina”. Então, meu Seminário deste ano foi atravessado por diversos ganhos, e muitos me ajudaram, aos quais ficarei eternamente agradecido. Por isso, convido a todos para virem a nosso 23º Mutirão de Psicanálise, próximo dia 1º

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de dezembro, e verão que nem tudo foi em vão... *

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Hoje, quero falar sobre a arte de forçar a barra. Da vez anterior, dizia que, para a psicanálise, não se trata de revolução, retorno ou crítica, mas da eclosão do Sujeito. Como propiciar a eclosão, que é tão rara? Pela forçação da barra. A psicanálise veio para forçar a barra: a barra do Outro, que já conhecem com o apelido de A barrado, A / ; e a barra do Sujeito, também conhecido com o apelido de S barrado, $. O desejo do analista é o buraco da Virgem, no duplo sentido subjetivo e objetivo: o que ele deseja e o desejo dele. Então, o desejo do analista vige na transmissão desse fogo: é fidelidade ao fogo que ele investe no buraco da Virgem. No desejo do analista não se trata de mestria, como pensam os tolos, mas sim de ousia, que já chamei de Imitatio Dei. Não audácia, mas a coragem da ousadia. Mas, para forçar a barra, é preciso, como Freud, ter sucesso onde o paranóico fracassa, e aí as coisas ficam difíceis. Para ter sucesso onde o paranóico fracassa, precisa interpretação. Com duplo sentido: é necessário que venha interpretação, e o que tem a vir deve ser interpretação precisa. Precisa interpretação na transação da situação com o evento, o acontecimento, que depende desta interpretação. Esta relação impõe que se destrua a situação – golpe de destruição, escombramento – para restruí-la com o evento, o acontecimento, que depende da interpretação. Daí eu falar em Arte e Fato. O que é da Arte estando do lado do Sujeito falante, e o que é do Fato estando do lado do Sujeito suposto ao Haver. Ambos com suas artes e artifícios. Seja do lado do que se chama de Natura, como fato global no Haver ou que se poderia chamar de um artifício espontâneo; seja do lado do que quero chamar de Fatura, arte, critério local do Sujeito falante dentro da sua história. Estamos aí diante do mesmo artifício, seja espontâneo ou industrial. Uma situação dada evita exibir a sua inconsistência. É no

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escombramento da situação que o Sujeito tem condições de com-parecer, embora já (h)aja antes, e vir a tomar decisões, forçando a barra, no sentido de restruir a situação, recompô-la dando fluxo ao que há de vir. Este é o momento da interpretação, que se aproveita de uma radical indiscernibilidade para se colocar como interpretação. Mas esta pura e simples colocação ainda é equívoca, ainda é equivocação, ainda é da ordem do indecidível. E há que, ainda por cima, forçar a barra: apostar numa decisão sobre o indecidível, ou seja, fazer história. Mas isto deve ter um preço. Qual é o preço da interpretação? Se tomarmos por base tudo que foi colocado aqui este ano em cima do Pleroma, é a taxa de câmbio que há que se pagar, de câmbio da Pulsão de Morte em Pulsão de Vida. Do retorno. Este é o preço da interpretação: tirar do indiscernível e do indecidível que estão no ato desse trato, dessa retirada, dessa extração, uma decisão que força a barra e transforma o valor pulsional de Morte para o não-Haver que não há, para a Morte que não há, em retorno para a Vida. O processo que está no pagamento do preço é o recurso à Denúncia, ao Sujeito da Denúncia, $d, como estruturante do Haver em face do nãoHaver que não há. Então, o caminho do processo é do indiscernível ao indecidível, e do indecidível à decisão. Aí está terminada a interpretação. Se tomarmos isto em termos de Revirão, poderíamos dizer que o sujeito da enunciação, $e, vigora no regime do indecidível, porque há Real; e o Sujeito da Denúncia vigora no regime do indiscernível. Tomar aí uma decisão não pode não decidir sobre a equivocação, não pode não fazer escolha. Mas isto nada tem a ver com o recalque, o qual vai no sentido oposto de quando – antes ainda de me deparar com o indecidível da situação, e, por trás, com o indiscernível – já tenho que aprender por recalque uma decisão já tomada, já dada. Mas quando o percurso vai até o indiscernível na Denúncia, considera o indecidível na enunciação e decide no enunciado, não há recalque, e sim o que Freud gostava de chamar de Juízo Foraclusivo: a decisão é prática e não abole o seu oposto, mas o considera como resto a ser levado em conta no que se refere à inconsistência do Haver.

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O percurso varia. Tomar um enunciado como dado, posto aqui e agora, sem referência à equivocação da enunciação e à indiscernibilidade da Denúncia, é recalque. Por isso o recalcado retorna, das maneiras as mais esquisitas. O percurso da interpretação não é sobre o momento aqui e agora do recalque, mas o da equivocação do recalque para que se dê valor idêntico ao recalcado e ao recalcante de maneira a ainda se perceber o indiscernível que há por trás da equivocação do indecidível para que se possa retornar e tomar uma decisão. Agora sim, enunciado decisório. *

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Isto é uma aposta. E é o que faz história quando se tem sucesso onde o paranóico fracassou. E também quando se consegue impor à situação, de algum modo, a decisão tomada. Nesta operação o que está em jogo é o viraser do $. Havia Sujeito, mas ele não é se não vira-ser. Se ele havia, até na estrutura, aliás como estruturante do Haver, é neste processo prático de entrada na situação que ele vira-ser. Se ele vira-ser, algo sobra, mas nem por isso necessariamente recalcado. Isto é o que poderíamos chamar de passe do Sujeito do Haver ao ser, mediante uma forçação de barra referida a não-Haver. O encaminhamento

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disto não é através da neurose, como vimos, e sim o percurso da análise, onde tem-se que fazer o percurso da Hilflosigkeit à Gelassenheit, e depois, de retorno, à “Freudigkeit”: do Desamparo radical ao Abandono na tormenta, para retornar à produção de alguma Alegria possível. A outra opção, afora a “neura” animal, é a Morte, que, aliás, não há. A ousia, radicalmente diversa da mestria, não é luta de puro prestígio referida à morte, o que Hegel equacionou e Lacan escreveu matemicamente. Os tolos sempre confundem: quando estão diante da possibilidade da ousia, pensam que se trata de mestria, aí dá no que dá. A ousia é a morte do puro prestígio, referida à Vida, ou seja, ao Haver. Pois a Morte não há. Isto nos faz refletir sobre o suicídio. Lacan, em algum lugar, teria dito que o suicídio é o único ato bem sucedido. Não posso concordar, pois digo que a Morte não há. Então, digo que o suicídio não é um ato bem sucedido, mas também não é um ato falho. Não é nem covardia nem heroísmo. O suicídio, por exemplo, com a excelência reflexiva dos estóicos, é um enunciado indecidível, que comemora o indiscernível. É, na verdade, um enunciado indecidível à espera de decisão, a qual terá que ser tomada por outrem. Daí que o suicídio é inscrito como crime no texto da situação. Isto porque aqueles que estão na situação vão ter que decidir a respeito dele. Podemos tomar como exemplos remotos os suicídios de Sócrates, de Cristo (por que não? afinal, ele era onipotente e estava lá porque queria), e, se quisermos fazer barato, o suicídio de Vargas... Há que tomar uma decisão. Insisto nesta reflexão porque eliminar o valor do suicídio, enquanto escolha da Morte, que não há, é eliminar o valor possível do anti-suicida, o qual não é aquele que não se mata – se não, o seríamos todos –, e sim aquele que aceita a Morte sem se matar, mas foi lá. Poderia ter sido suicida, ou seu gesto é suicida. Os gestos suicidas de Sócrates e de Cristo são anteriores ao suicídio. Aquele que aceita a Morte sem se matar e retorna ao Haver na ousia do Sujeito em ser. Então, essa Morte que não houve vira-ser, na pura arte da forçação de barra do apostar e do pro-meter, sem a menor esperança, mas sem o maior medo também.

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Muito obrigado. sopesada na pauta se que ornada cada réstea, seu número, por grama no lugar de quem conta porque chama fora adentro a tricúspide porrada rio do leito que me aspera a carne se, com fragores, sobressume o hiato reconduzindo o cume do abstrato à estercolínea condição que a sarne se outra vez outra moda faz ultrage, descompasso, tropeço, disfonia, na pulsão do que se age e se re-reage, há recurso, ao não-Há, que reinaugura a singularidade dessa via de possibilidade de uma cura

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Sobre a psicose

ANEXO SOBRE A PSICOSE Trechos da seção de encerramento do trimestre de estudos sobre a Psicose no IJL – Instituto Jacques Lacan, instituto de ensino do Colégio Freudiano.

Convidei para o encontro da próxima terça-feira, um colega – que também está interessado em conversar conosco –, que é Chaim Samuel Katz. Ele é psicanalista e tem uma posição diferente da nossa, radicalmente diversa. Entretanto, opositores não são necessariamente inimigos, são opositores. Divergência de pensamento nada tem a ver com mordidas no rabo do cachorro ao lado. E pode ser interessante na medida justamente em que se conversa sobre uma coisa, a Psicose, com tanta estranheza, com tanta radicalidade diferente... Eu gostaria que outras pessoas se interessassem por isso, mas não basta que a gente convide, é preciso que a pessoa também tenha o interesse de conversar, como foi demonstrado por ele, até publicamente, em jornal. Cumpri o dever de dizer-lhe que a porta está aberta. *

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Vamos à nossa questão, que seria o que as pessoas têm para me ensinar a respeito da Psicose. Confesso que sei muito pouco a respeito, e acho mesmo que se sabe muito pouco. É claro que se publica muito, se diz muita coisa, mas

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infelizmente este é um tema grave e pouco abordado efetivamente. Sobretudo, a questão fundamental que é não só teorizar a respeito, que é o máximo que temos conseguido, mas algo de efetividade de cura: é possível, quais os caminhos, como abordar? Depois de muitos anos de vida de psicanálise, depois de Freud ter dado dois ou três endereçamentos mais ou menos adequados, parece não haver – no campo da psicanálise, pelo menos – nada de muito concreto a respeito da psicose, sobretudo de como lidar com ela. Há o golpe de entendimento e tentativa de teorização feito por Lacan de ter inventado quase que a partir de nada, mas com uma perspicácia muito grande sobre o texto de Freud, a Foraclusão do Nome do Pai – embora eu já tenha dito que não entendo muito bem como ele pôde tirar este conceito do de Verwerfung, pois me parece um pouco forçado. No entanto, o conjunto da obra de Freud permite muito bem que, em vários de seus Seminários, Lacan venha a inventar, é o caso de dizer, este conceito com muita pertinácia, mas que deixa as coisas ainda bastante nubladas. Sobretudo na medida em que considerar, no campo de um estruturalismo evidente, que a não inscrição de determinado significante típico, de determinada situação específica, ou seja, a não construção de determinada metáfora (no sentido de Lacan, de metáfora como substituição de Sujeito), é um golpe de mestre, genial. Mas isto precisa ser bem mais especificado em termos teóricos, de entendimento mais apurado, de talvez até um fracionamento estrutural e temporal do conceito. É justamente a questão de saber se, essencialmente, o golpe metafórico de base é coincidente, superponível, ao que Lacan chama de père-version, pois são dois momentos diversos. Se é verdade que uma psicose está na dependência de uma foraclusão prévia, no último sentido de seu Seminário sobre As Psicoses, resta saber o que fazer com isto. Se lá não entrou, como lá botar? É possível, viável? Não vim aqui hoje fazer conferência ou Seminário, e sim conversar. Isto, não esquecendo de lembrar-lhes que só posso me referir à minha produção, meu trabalho, ao que venho produzindo em meu Seminário, com a precariedade que lhe é peculiar. Quem me tem acompanhado, tem visto que, lentamente, há

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Sobre a psicose

cerca de dois anos, estou elaborando algumas coisas que possam esclarecer isto com, talvez, mais precisão. Em meu último Seminário, terça-feira passada, comecei a precisar os conceitos a partir de uma vontade imanentista, como é típico da própria estrutura do Pleroma, apoiando-me numa reflexão fundamental, que é a reflexão matemática, desde que esta não seja tomada no nível da mera escrita. Há uma diferença radical entre tomar a matemática no nível da própria escrita e tomá-la no nível de algum processo imanente ao Inconsciente. Neste sentido é que estou acreditando que é imanente. Então, se as possibilidades matemáticas, matêmicas em geral, são imanentes, ou seja, se há uma ontologia matemática, ou melhor dizendo, se o ontológico é matemático, é possível que por aí as coisas se esclareçam melhor. *

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Primeira questão: recalque originário. Freud constrói esta idéia em cima do tema do Édipo, portanto, numa grande recentidade na vida de qualquer sujeito. Recentidade de história de cada sujeito. Ele faz a suposição de que qualquer um que ele escuta passa por esse momento aí. Lacan dá um golpe mais interessante porque, jogando Édipo para o lado, vai buscar uma relação simbólica, como chama, de produção, de subtroca, de significantes, em que a coisa fica mais abstrata. Então, digamos assim, o recalque originário de Lacan é o recalque originário de Freud entendido num regime de abstração um pouco maior. Para Lacan, é instalação de um Nome do Pai. Mas, eu, estou procurando, por trás desse Nome do Pai, a sua garantia. Estou trazendo o recalque originário ao mais antes. Antes não é sempre temporal, é também estrutural, lógico. O que dá substrato a isto é que coloco um recalque originário, digamos, tão primordial que é condição sine qua non da fundação posterior de um limite, !, mas que não necessariamente é capaz de, porque lá está, fundá-lo. Eu diria que, acompanhando as pegadas da história da psicanálise, Freud tem cronologicamente razão, pois se na experiência de cada sujeito isto só se diz num regime mais próximo do etológico, que é o Édipo, este é o campo didático

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onde isto será apreendido. É bem provável que o sujeito não venha jamais a posturar um limite, ou um zero radical, não sendo por essa experiência, mas se matemizo cada vez mais extremamente, terei que encontrar que, no regime de uma estruturação teórica, de uma lógica da coisa, há que haver um substrato mais fundante, mesmo que isto não seja dito pelo sujeito, pois foi dito pela história, pela emergência do zero no seio do dizer matemático. Este é um ato poético, como Lacan diz que o Nome do Pai é um ato. É preciso passar cautelosamente da teoria para a casuística. Do ponto de vista estritamente lacaniano, psicose é foraclusão prévia, o que é maneira de dizer, ou seja, que jamais entrou. Semestre passado, fiz aqui uma grande “confusão” em torno das coisas justamente me perguntando se o limite mesmo instalado é apagável, perdível. Acho que é. Então, não se pode confundir as duas coisas. Tentando arrumar isto um pouco, vamos fazer parecido com o Pleroma. Temos aí o Zero, que chamo de Real, então, qual é o limite de qualquer série possível, já que zero está dito, pressentido, experimentado? Experimentar zero não precisa ter o nome de zero. Lacan, em certo momento, diz que, na falta de inscrição do significante chamado paterno, quando o sujeito reclama dele, esbarra com um grande vazio, um buraco. Que buraco? Zero. Isto porque ainda que se consiga estabelecer uma grande série, onde quer que se instale o limite, !, o que pode ser pertinho ou em qualquer lugar, é um limite que, se está instalado, me permite encaminhar para a frente, assentado sobre zero, mas escapando de zero na direção de zero. Zero é freqüente, mas estou escapando dele, mas na direção dele. O limite, como disse, é metáfora de zero. O que coloquei como substituição plausível ao que Lacan chama Nome do Pai no seu sentido mais abstrato, chama-se limite, infinito: poder situar infinito – a coisa se encaminha. O que Lacan diz das pegas do psicótico? Se não tem aquilo inscrito, ele tem que imediatamente reclamar uma pregnância imaginária enorme, situar o sujeito ao nível de falar instrumentalmente e só através de ego. Lacan diz, por exemplo, algo que pode parecer uma bobagem, mas que é metaforicamente interessante: “O ego de Dora é o Senhor K”. Evidentemente, esta frase é

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maneira de dizer (Dora não é psicótica, aí é identificação por outra via). Isto significa que o psicótico parece estar arrumado, às vezes um longo período da vida, porque vai pôr pegas numéricas – se estou falando em termos de números –, vai pegando nos números, mas ele não pode conjeturar justamente a distância infinita que há entre sua fronteira e o infinito, que é o seu limite. O que seria o sujeito apreender algo que Lacan quer chamar de Nome do Pai e que quero chamar de puro e simples limite? É passar por experiências lógicas, diante do discurso do Outro, de maneira que tenho uma relação apreendida com uma fronteira que se evidencia para mim, mas que, no jogo do outro no movimento desejante, percebo que mesmo o outro que diz qual é a fronteira extravasa desejantemente essa fronteira tendo mais do que barreira como referência de movimentação desejante. Posso, aí nesse intervalo, conjeturar a noção de que há uma fronteira, mas isto é desejante, então, entendo que é um limite, um horizonte. Se houver alguma coisa no psiquismo, no Inconsciente, capaz de estruturar algo chamado Nome do Pai – retiro este nome porque, para mim, tem pregnância demais no sentido do macaco, da ordem primitiva, do religioso, de tudo isso que disse essas coisas durante séculos, mas que é preciso abstrair e matematizar... Como, então, diante da exposição de fronteiras – culturais, comportamentais, relacionais, desejo de mãe, trepada do pai, etc. –, uma criança pode posicionar (no sentido de pôr para si), assim como zero foi posicionado, a metáfora que faz limite? Metáfora daquilo que, em meu esquema, não faz limite, mas sim borda, vazio radical? Isto apareceu em nuances as mais diversas na história da humanidade, inclusive a de chamar de Pai, de Rei, e mesmo de Deus, que, em muitos momentos, surge com esta função. No Velho Testamento, por exemplo, quais são as relações do judeu com Jeová? É um negócio assim de haver um limite, mas também um horizonte porque de Jeová, a gente se esconde, ele se esconde da gente, a gente o sacaneia, enfim, há um jogo desejante aí que me deixa olhar um horizonte e dizer que, de lá para cá, é um Todo, posso fundar o universo, mesmo sem saber quais são seus constituintes. Mas quero supor que a aprendizagem que vou tomar do outro, a

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possibilidade que tenho de vir a construir isto, depende dos meus embates com a fronteira, sempre dialetizada até pelos usuários dessa fronteira na própria cultura. Se não fundo esse verdadeiro axioma e não coloco isto para mim, fico o tempo todo na dependência dos movimentos da própria fronteira: vou colando aqui e ali, como diz Lacan, imaginariamente, de ego para ego, vou me comportando digamos que ponto a ponto na experiência, dentro do percurso. Donde Lacan tira a grande metáfora, que acho mais explicativa de seu conceito, que é la grand’route. Ou seja, se posso pôr um axioma de limite, fundo um Todo, faço um périplo generalizado sobre esse acontecimento. Caso contrário, vou de estradinhas, por aqui e ali, me colo em fulano, em sicrano, papai, mamãe, etc., e, quando preciso dar conta da elasticidade, me perco, pois tenho que desamarrar de ! e não tenho nenhum conceito de totalidade para segurar. O pacote se rasga porque não tem barbante, o qual barbante é o limite. É de algum modo o sujeito poder axiomatizar, seja com que nome for para ele, um limite que, como axioma, vem a ser vice-axioma da experiência de Zero. Ora, se não tem este limite, o sujeito se perde ali dentro e vai bater onde? O limite imposto pelo sujeito como horizonte, seja aqui ou ali, deixa uma margem enorme para ele elasticizar, mas sempre que vê passos ali dentro, diz: contudo, entendo e me viro dentro de um Todo. Mesmo com a experiência de zero, se não se traça um limite, isso fica girando e vai bater sempre em zero. O sujeito dá a volta, dá a volta e cai na angústia do conjunto vazio, na angústia da experiência do zero. Então, o que faz o limite, se ele é vice-representante? Deixa você ir para a frente, deixa o zero um pouco recalcado e freia o movimento necessariamente esquizofrenizante de um sujeito sem limite. Isso, que coloquei como esquema em meu Seminário sobre a Nosologia Geral, permite ao mesmo tempo transar na região indistinta que sobra dentro do universal, permite a possibilidade de construção de passos ponto a ponto, bem construídos, sempre de olho no horizonte, mas, por outro lado, é um grande freio. Limite é uma função matemática, que Lacan chamou de Nome do Pai. Não vamos tomar no sentido do cotidiano: ponha limite nisso. (Para fazer uma anedota: alguém que tem um parente em grande surto psicótico veio me

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dizer que a pessoa estava internada e cliente do Dr. Fulano. Perguntou-me se o conhecia. Tomei um susto, pois o conhecia – Dr. Fulano já andou por aqui –, mas disse: tudo bem, medicina, dá uma injeção... Aí a pessoa teve um grande argumento e disse: Dr. Fulano me explicou que é uma coisa muito simples, que tenho que botar a Lei nele. Respondi: está bom, bota a Lei nele. O rapaz, o tal Dr., ouviu umas conversas por aqui e está lá enfiando Lei no garoto. Não sei por onde). Portanto, cuidado com isso, pois é claro que ninguém enfia limite em ninguém. Não é limite no sentido do teatro cotidiano, de que: estou zangado, o limite é este, e está encerrado. É sim, uma função axiomática designada nitidamente no pensamento matemático como capaz de fundar uma totalidade indistinta. O psicótico não axiomatiza isto. Mas precisamos saber que o sujeito na sua experiência de vida – se estou imanentizando, ontologizando isso - tem que, em algum momento, ser matemático, tenha sido a matemática fundada ou não, pois o ato dele é um ato axiomático: na experiência de uma fronteira, de um litoral radical – não há o não-Haver, etc. –, ele funda o zero; de algum modo, axiomatiza isto para si, dê o nome que der. Depois, para não ficar girando e batendo de cara no zero, ele precisa refundar esse zero lá adiante como o outro axioma que é horizonte, limite matematicamente posto: pronto, paratodizou, e aqui dá um jeito de continuar. Mas esta paratodização não funda nenhuma finitude, nem mesmo em Lacan. Mas como as pessoas lêem mal, vemos correr por aí um conceito de Nome do Pai que não só é paratodizante – “existe pelo menos um que diz não, portanto todos são” – como o para-todo é entendido como finitude. Isto não existe no pensamento de Lacan. O que há é ambíguo, porque aí ele mostra a fundação de um significante mestre que – embora para Lacan seja significante, portanto não quer dizer nada, sim e não, e conseqüentemente não dá finitude também – tem a vertente dita metafórica, sintomática, dessa fundação, o que as pessoas começam a ler como sendo finitização. O que nada tem a ver. Está, sim, perto da ordem da morfose. Por que, então, o psicótico não vislumbra o limite, se ele passa pelo recalque? Porque nada obriga. O fato de se poder axiomatizar a radicalidade do impossível como real, não obriga a pôr nenhum limite nesse real. O

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recalcamento que existe aí não é produção de uma transa. É, sim, imanente: porque o não-Haver não há, ele quebra a cara, tem que fazer alguma coisa com isso, em cima disso vai se fundar a fantasia, tudo. Mas não há nenhuma conexão, obrigação, lógica obrigatória nem entre zero e um, quanto mais entre zero e infinito. Só pensando “millerianamente” – o que não tem nada a ver – é que se terá que: se zero é número, se mais-um existe, vai resultar em função Sujeito. Mas não há função mais-um, nem função Sujeito em cima do zero, e zero não é número. Nas peripécias do Sujeito, ele fundará ou não o segundo axioma de novo. Em termos de pensamento – por exemplo, a respeito da havência de número imanentemente no campo do Haver – bastam os dois axiomas: zero, primeiro; depois, infinito, que não é fundado sozinho e sim em torno de zero. Então, por exemplo, narcisismo, fixação narcísica, etc., são maneiras de dizer de Freud na apreensão de um fenômeno aqui e agora. Lacan resolveu isso mostrando que se o sujeito não pode efetivamente elaborar dentro do campo da linguagem, ele vai colar imaginariamente, ego a ego. Isto, em termos da minha construção, é muito pobre na medida em que o narcisismo é imanente ao Haver; suas peripécias é que são outra coisa: o Haver é narcisista. Mas é até melhor, se quisermos pensar um pouco mais abstratamente, aproveitar a dica de Lacan: em não podendo fundar o tal significante que o invocaria na hora de paratodizar alguma coisa, o sujeito só pode fazer colagem imaginária, especular, ponto a ponto, ego a ego, etc., e é isto que Freud está chamando de fixação narcísica. Como Lacan resolve o fato de o psicótico não poder se referenciar a Ideal de Ego? No que coloca Ideal de Ego no nível do simbólico, está dizendo que se o sujeito não pode, em termos lacanianos, simbolizar, só pode ficar no que chama de imaginário. Em meus termos, se o sujeito não tem construção de limite, só pode ir caso a caso, número a número, experiência a experiência e tem que ir construindo aquela fronteira, a qual não tem a menor elasticidade. Se, de repente, precisa de elasticidade, ferrou-se: ele rompe e cai em zero. Cada vez que tenta, cai no zero. A fantasia bate de frente, angustiosamente, com desejo de não-Haver e impossibilidade disso: ele não sai dessa. Isto é que

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é a psicose. Coisas do tipo paranóia, esquizofrenia, vêm depois, são outra história. A psicose mesmo é ficar freqüentando a beira do abismo porque não encontra nenhuma escora a não ser a escora axiomática de base, que só dá escora de angústia. Não desliza para a frente com freio. Se penso em termos de infinito, de limite, posso me enganar – “me engana que eu gosto” –, então vou construir teorias, fazer passos, etc., é uma grande baboseira, mas é o melhor que se tem: vou, passo a passo, construindo coisas de olho no horizonte e não fico o tempo todo achacado pelo regime terrível de estar de frente com a fantasia primordial – mas é imanente, é assim, não tem saída. A saída que tem é para lá, e construtivamente: utilizando a função limite na proliferação de discursos passo a passo, dando razão, uma seqüência, etc., embora aquilo seja uma grossa baboseira, da qual só se tiram duas ou três coisinhas. Não digo que é por via de poesia que se constrói isso, mas sim que, cada passo é um ato poético de construção. No que estou assegurado por dois pontos referenciais: aqui, o zero, e ali, o horizonte. O que Lacan chama de foraclusão do Nome do Pai é das duas uma – e ele só põe uma –, falando em meus termos, que o sujeito não axiomatizou limite, perdeu oportunidade, colou ponto a ponto e, um dia em que isso lhe foi exigido, estoura, se perde – e aí quero ver quem é que vai botar limite. A outra possibilidade (que Lacan não quer colocar, embora passe por ela no meio de seu Seminário) é o que chama de ruptura dos pontos de basta. Eu, acredito nisto pela experiência de certos autores que se tornaram aparentemente psicóticos – Artaud, Hoelderlin, Van Gogh... Não posso reconhecer neles uma incompetência de limite, pois não são Schreber, não escrevem aquela maluquice empacotada. Eles têm percurso poético. No entanto, caem, pelo menos, em algo parecido com a psicose. Se aquilo é psicose, é preciso pensar que mesmo um sujeito tendo axiomatizado um limite, pode perdê-lo. Isto pela simples razão de que não passa de um axioma. A experiência sobre a qual se axiomatiza o zero, esta é muito fundamental; depois, a reaxiomatização disso como metaforização do zero numa experiência; e no que se começa a fazer turbulência na região onde opera o Falanjo, que é da constituição de passos sucessores para além da fronteira e

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dentro do limite, o sujeito pode, de repente, simplesmente perder as estribeiras do limite e ficar batendo de cara outra vez contra o zero. Como isto opera, preciso pensar, mas suponho isto. " Pergunta – O fato de o não-Haver não haver não pode ser tomado como Verwerfung do não-Haver? Eu não poderia chamar isto efetivamente de Verwerfung. Primeiro, porque não gosto do termo. Vamos falar de foraclusão. Verwerfung, não sei se é bem foraclusão. Não há nenhuma foraclusão em não haver o não-Haver, porque não-há mesmo. Isto é estrutural. Posso dizer que é como se fosse foraclusão, mas não é. Foraclusão é de algo que pode estar dentro. O nãoHaver não vai estar dentro jamais, não pertence, não-há. O desejo se encaminha nessa direção, mas isso não há, não é inscritível, é absolutamente impossível de se inscrever. Já o que acontece no nível da foraclusão é outra coisa, pois não é impossível inscrever-se um axioma de limite. É possível, só que o psicótico não inscreve. Foraclusivamente mesmo a questão se coloca é no caso do limite. Antes, não é foraclusão, e sim ter que nomear esta experiência, que é a questão de todo e qualquer sujeito. Lacan pergunta se poderíamos dizer que para o psicótico não há linguagem. Eu acho que há. Isto na medida em que chamo linguagem de Revirão. Como revira o desgraçado! Por isso fica absolutamente perdido. Fundação de zero, ele tem. O que não tem é a fundação do limite para dizer um basta. Fundar limite axiomaticamente é primeira moção de ponto de basta. O que o psicótico não segura é o Revirão. Estou falando do psicótico, e não do pós-psicótico, que é o que a gente encontra no consultório: paranóico, etc. Este já arrumou um freio postiço, de nível de pega aqui e agora. Aqueles imaginariozinhos sobre os quais ele pegava antes, agora pega delirantemente: funda um delírio e segura ali. Por isso Lacan diz que ele ama o delírio como a si mesmo. Ele não é outra coisa senão aquele delírio. Mas isto é regresso. Não é um zero. É freio, pressionado pelas próprias circunstâncias de sobrevivência. *

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O Feminino não é psicose. Dizer “não existe” participa, em algum termo, da denegação, pois só se pode dizer “não existe” porque o “existe” está posto. O Feminino é suspensão disso, e não perda das estribeiras. É preciso pensar o sujeito que aí está metido, e não olhar de fora e dizer que, ali, não existe. Na experiência do sujeito, para ele dizer que “não existe nenhum que diga não”, é porque sabe que existe. O psicótico não pode dizer nada, pois simplesmente se cola em existência. Ele é existencialista: vai de existência em existência, colando nas existências. (Aliás, era de se procurar ver onde é que todo existencialismo se ferrou... É claro que o existencialismo não é isto, estou brincando). De existência em existência, ele podia até sacar que há um limite lá, mas não sacou. " P – A foraclusão do limite pode ser lida de acordo com o que Freud, sobre Schreber, diz que o que foi abolido internamente retorna de fora: esse retorno tem a ver com o cair de boca no zero do psicótico? É um grande salto que estamos dando. Teremos que repensar, em termos matemáticos, o que é isto. Qual a diferença entre o recalcado e o foracluído? Recalcado está lá, está inscrito, não foi abolido no meu universo porque a fronteira está lá. Se vou me comportar conforme a fronteira, sobra infinitamente para além dela, mas dentro do Todo, e não fora. De determinado ponto para lá é recalcado pela fronteira enquanto inscrita, mas não há nenhum Sujeito que, na plenipotência dos seus direitos subjetivos, não tenha pedidos, em função do movimento desejante, para além da fronteira. A fronteira é o limite do recalque, mas aquilo está tudo lá. Então, quando recalco, estou ainda dentro de uma inclusão de Todo. Estou no regime da lúnula de infinitude indistinta, que está no esquema que apresentei quando lhes falei da Nosologia Geral. Isso retorna de dentro, das inscrições: retorna como retorno do recalcado, como sintoma, etc. Ora, se este regime não foi passado, o Sujeito vive só de fronteiras, pois não tem a região intercalada. Depois daí, depois de infinito, é como se não houvesse nem nada, como se a metáfora fosse zero, para lá e não para cá. Se o sujeito não tem outra coisa senão se referir, existencialisticamente, à fronteira, não há recalque: isso tudo brota para ele como vindo de fora – não

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é “como”, vem mesmo. Lacan pergunta – e vejam como o cara é um literato – se o Nome do Pai não foi inscrito, o que é preciso para o sujeito surtar? Basta que apareça um sonho – fantasma: fantasma de Hamlet. É uma bonita metáfora literária. O que basta que apareça? Algo que seja da ordem do limite e não da fronteira, algo desejante. O cara se perde: Eu tava contando com essa fronteira, mas tem alguém me driblando lá detrás dela. Ele não tem como lidar com isso que brota para ele. Ele vai assim, ponto a ponto. Não olha para o horizonte e diz: Minha fronteira é aqui, mas há algo para lá e, de repente pinta, de repente não pinta. Não: É aqui. Se brota lá, ele pira, estoura sua fronteira. [...] Ser furado é simplesmente ser infinito. Furado não é sem limite. Qual furo há dentro do infinito? É uma indistinção, que me faz lembrar do vazio radical diante do não-Haver, fundado dentro do Haver. Por isso, não gosto da definição de Lacan de que real é aquilo que, como impossível, não se inscreve na estrutura. Digo que o Real é aquilo que se inscreve na estrutura como lugar-tenente do impossível. Está inscrito, sim. Só posso chamar qualquer coisa de real, de modo adjetivo. Quando digo “isto é real”, é adjetivo porque qualquer toque meu no mundo depende desta fundação de zero, mesmo sendo psicótico. Tanto é que o psicótico convive com o real o tempo todo. Qualquer emergência, para ele, que extrapole a segurança da fronteira, como se fosse aquele Real lá, como se fosse o zero, funde a cuca, não tem a menor elasticidade. A fronteira, na topologia do Sujeito, precisa ser elástica. O que quer que extravase a fronteira só pode ser seguro por duas coisas: recalque, ou juízo foraclusivo. Ou porque decido, aqui e agora, que isso fica fora, ou porque está encroado aqui como recalque, e retorna. Não há saída. Então, toda a questão – isto tudo é teorização – é saber como se põe limite em alguém, se ele não o tem. Como será que ele o poderia perder, depois de tê-lo? Isto, acho mais fácil, pois toda pessoa que faz alguma experiência interior um pouco grave passa por abismos assustadores. Acho que toda pessoa que faz uma experiência um pouco grave de pensamento – não de intelectualismo, porque intelectual não serve para isto –, uma experiência grave de pensar

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essas coisas, passa por abismos de onde parece que pode não ter volta. De repente, tem. Não sei se há aí condições de perder, de repente, de, digamos assim, desaxiomatização do furo – se é que isto pode haver. Toda vez que se quantifica a partir do axioma limite, já se saiu do limite e entrou na fronteira. Limite não é quantificável. Quantos números existem até o infinito? Não existe, matematicamente, a menor possibilidade de se estabelecer uma maximização do campo do infinito. Ou seja, qual é o número que vem exatamente antes do infinito? Qualquer um. Já lhes pedi que, por exemplo, lessem os livros de Henri Michaux, que elabora isto muito bem em cima de sua própria experiência com mescalina, etc., e brilhantemente. Mas sua experiência é de quem volta. Seus textos parecem mostrar que ele faz um avanço extrapolado e colado na direção do limite, mas não o perdeu, está dentro. Ele extrapola as fronteiras, mas dentro do limite, tanto é que voltou. A experiência dele é radical a ponto de nos mostrar o que seria uma experiência analítica, se as pessoas fizessem análise. Acho que se vamos fundo em análise, é um negócio parecido com aquilo. Minha suspeita é se poderia ele, como outro qualquer, por via de droga ou de pensamento, sei lá de que tipo de droga, extrapolar, extrapolar e, de repente, perder mesmo o limite? Acho que sim. Mas se ele escreveu aquilo que escreveu, é porque não perdeu o limite: beirou, ficou em pânico, mas não o perdeu. Então, quando se fala em quantificação é para aquém do limite. Se não há maximização possível, se não há ponto máximo distinguível antes do limite, o que quer que aconteça para cá pode ser extrapolação de fronteira, é até quantificável, mas o limite não o é. Pode-se perder as fronteiras, ter grandes surtos de fronteiras, sem ter surtos de limite. Confunde-se muito isto, pois encontramos, por exemplo, neuróticos em posição quase que delirante, e ficamos assustados pensando que é psicose. Não é: o surto é na fronteira, e não no limite, embora fique parecido. Basta alguém ser um artista genial e fazer um troço que ninguém está esperando que todo mundo diz que é maluco, doido. Não. Simplesmente ele extrapolou demais a fronteira. O Sujeito da Denúncia não extrapola limite nenhum. Ele vigora em cima do zero, reafirmando esta experiência. Ali estão embutidos: “desejo de

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não-haver” e “não-Haver não há”, ou seja, o fundamento radical da fantasia. Neste ponto é que posso fazer, por exemplo, a denúncia das minhas fronteiras. Não é uma experiência psicótica, e sim uma experiência de Real. Não é experiência nem de limite nem de fronteira, é de litoral mesmo, de abismo. No que ele retorna, referenciado ao seu horizonte, que é seu limite, porque o que pratica é elasticidade de fronteira. Mas lá naquela posição, ele não tem outra experiência senão de Real. É uma experiência arcaica, é antes de estabelecimento de fronteira, de um limite. Quando se vê a performance do Sujeito, vê-se que ele volta e reinstitui fronteira, elasticiza a fronteira, mas com base na experiência de Real. Quem expõe com mais clareza o Sujeito da Denúncia senão o psicótico? Ele expõe, mas não o segura. O que é um psicótico? É o grande testemunho do Sujeito da Denúncia. É a “denúncia viva”. Mas ele fica naquela denúncia e não articula nada de plausível, de aplicável, não faz um discurso a partir da experiência da Denúncia. [...] Seja a série que for, se pensarmos, por exemplo, em número de Fibonaci, o fi (#) como Lacan coloca, isto já é uma conjuminação complexa de número sobre número. São articulações entre números fundando uma razão, uma proporcionalidade que apresenta números postos numa série infinita. Acontece que ali vigora a repetição do zero de ponto para ponto. Ou seja, qualquer último rabinho que você escreva, tem zero depois. Vamos sair do Fibonaci e escrever: 0/1/2/3/!. Há zero em cada uma destas barras. Zero não pára de se repetir. Isto é infinito, qualquer número que se põe tem zero depois. Como é o nome desse zero? Limite. É preciso axiomatizar, metaforizar, o zero como limite: parar em tal zero. O que quer que apareça como número, se há continuidade, tem um zero depois. Chame-se este zero de limite. Remetaforizei o zero que freqüenta isso tudo o tempo todo lá. Freei, assim como zero freia a relação do Haver com não-Haver. Ou seja, a repetição do zero lá, quando o axiomatizo como limite, freia a série: vamos parar por aqui. A metáfora paterna, em termos de imanência dos números do Haver, não é senão metáfora do Vazio, que é a beira do abismo. O vazio não é abismo,

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é a beira do abismo. O psicótico denúncia este vazio. Ele não sofre, de modo algum, a falta de instalação da Denúncia. Lacan teima em responder afirmativamente quando lhe perguntam se o psicótico tem Sujeito. Tem. Sim. A coisa é desvairada porque não se instala nenhum limite que, aqui e agora, seja remetaforizável como fronteira, tendo fundado um Todo e discriminado, aqui e agora, esse Todo. Isto porque, para operar, produzir enunciados, precisamos, antes de mais nada, não ser uns animais, ou seja, ter zero. Animal não tem zero. É falante, tem zero. Preciso metaforizar abstratíssimamente o zero como limite, remetaforizar o limite como fronteira e, aí, estou na vigência da pèreversion, versão paterna. Estou distinguindo, pois Lacan chama tudo de Nome do Pai, o qual é axiomatização de limite; remetaforização do limite é pèreversion, é caso, é uma decisão fronteiriça. Mas tudo é decisão: axiomatizar também é uma decisão... Os números hão. Há números. Zero não é número, é axiomatizado sobre a experiência do vazio. O segundo axioma necessário, que é o Infinito, é, digamos que substituição do zero. Ou seja, encontrar o zero repetido lá adiante e dizer: Há zero aqui, e daqui para lá é como se não houvesse. Isto é que é o infinito. Mas ele não diz o que vem antes dele, é indistinto. Haver zero é uma coisa de se pôr o axioma zero. Uma coisa é a experiência do vazio, em que é preciso pôr alguma coisa no lugar disso, isto é, o axioma zero. Isto é um ato decisório. Depois, é preciso carregar lá para adiante e metaforizar como infinito. Depois, ainda, é preciso chamar esse limite por algum nome, por exemplo, seu fulano de tal, S1, signifiant maître. Seria um terceiro tempo em que se experimenta e se axiomatiza. Mas suponhamos que o sujeito experimentou e não consegue axiomatizar: esse, para mim, não vai ser falante, pois não tem pega e não tem origem, pega de origem para entrar em línguas, em nada. Se tem essa pega aí, pronto, tem zero, e aí virão as experiências... Vejam bem, quando digo: primeiro isso, segundo aquilo, terceiro aquiloutro, isto é uma ordem lógica. A ordem histórica talvez seja ao contrário. Em havendo zero, ele vai aprender o infinito na colagem, vai construir um axioma de infinito, talvez caso a caso. Aí, um dia, saca que há limite, e que a fronteira é outra coisa. Mas há o momento da axiomatização: se ele axiomatiza

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o infinito, a fronteira fica valendo como metáfora daquilo. A metáfora que é fundada ali é do infinito, é metáfora desse caso, mas no que ela é fundada, o caso é que passa a ser metáfora daquele, porque aquele é mais radical. Vamos separar a história do sujeito da ordem lógica do processo. Acho que há tempo para compreender, como diz Lacan, e é aí que o psicótico se ferra. Lacan faz aquela historinha que, hoje em dia, é como Freud contar anedota de Édipo. Estou me distanciando de tal maneira disso que vejo aquela formulinha de Lacan – Nome do Pai, desejo da mãe, etc. – como Lacan via a historinha do Édipo. É uma anedotinha, um pouco mais abstrata do que o Édipo. Mas é por aí que os sujeitinhos aprendem, sacam. É preciso matemizar isto de maneira longínqua, o mais distante possível, para se poder repensar o fenômeno sobre armações teóricas mais abstratas, se não, quedamos nessa historinha. Mesmo porque, com o modo de Freud dizer Édipo, o que as pessoas fazem? Ficam escutando a anedotinha. É o mesmo com o modo de Lacan dizer sua fórmula de Nome do Pai, desejo da mãe, etc.: ficam procurando aí. E se não estiver aí, se não foi exatamente assim o anedotário deste sujeito? Lacan põe o Falo como significante sem significação nenhuma, as bases gestálticas foram jogadas fora, virou símbolo puro... mas não é assim, porque depois se começa a normalizar tudo em cima das corporeidades, de “como é que um homem pode fazer amor normalmente com uma mulher...” O que é isso, onde é que nós estamos? O que quero saber é: como um sujeito pode constituir significância, aqui e agora, dentro de certos parâmetros, enumeráveis. Então, ao mesmo tempo que o efeito de abstração foi enorme, está tão apegado às figurações didáticas, que se retorna, e não vejo quase nenhum, se não nenhum, lacaniano reentender isto. Quer dizer, no final volta tudo ao papai-e-mamãe. Isto não é da nossa espécie. Nossa espécie trepa zero, e não papai-e-mamãe, trepa fantasia. *

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Eclusa é uma coisa conhecida. Quando se tem qualquer fluído, por exemplo, água, cujo fluxo, caso de uma usina hidroelétrica, é preciso controlar, constrói-se uma eclusa, que dará maior ou menor passagem a isso. Então, já que parti da clusão lacaniana, foraclusão, entrei com inclusão, reclusão e eclosão, que é o ato de refundação de sentido: eclosão de sentido novo, do Falanjo, etc. – isto tudo é o manejo da Eclusa. É aquilo que Lacan chama de Nome do Pai, a eclusa. Que condições são possíveis para um sujeito que não tem, porque nunca teve ou perdeu esse limite, de inscrição desse limite? Se há foraclusão do limite, só existe uma cura para a psicose: é inscrição do foracluído. Como? Se formos acompanhar as pegadas de Lacan e as minhas repegadas em cima das pegadas dele, parece que não há saída. Só há uma maneira de curar a psicose, se é que é possível: inscrever um limite. E se analista presta para alguma coisa, em termos de psicose é ele repensar tudo isso. Um sujeito que está completamente baratinado quanto ao limite, que perdeu o limite e já reconstruiu, por exemplo, todo um delírio nesse lugar, o que é possível fazer por ele? Antes ainda de tentar ajudar o sujeito na produção de um axioma a partir do seu zero, há pela frente todo um embrulho, que não é nem mesmo neurótico, é delirante, alucinatório, etc. Como, então, mexer aí para desfazer esse embrulho e ainda achar chance? A questão da morfose é mais simples, porque não há foraclusão. [...] Já vi essa história antes, de dizer que, se há delírio, é tentativa de cura. O delírio é tentativa de reconstrução até da colagem imaginária que foi esgarçada. E daí? Pegar por esta vertente? Estou falando em nível de terapia. Roustang, por exemplo: adentraria junto com o psicótico na sua ordem delirante...; Laing e outros. Não faço a menor idéia. Não estou dizendo que não seja possível, mas por aí encontro alguma pega para instalar limites? Se encontrar, ótimo. " P – O grande problema de pensar em termos de cura do psicótico é saber se é endereçamento de tratamento ou é domesticação. O que vemos

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no chamado tratamento é da origem da domesticação, seja medicamentosa, seja por pressão de um grupo em torno de um sujeito, querendo botar limites, reeducá-lo para a vida e coisas no gênero... Ou seja, fazer uma espécie de adaptação do delírio com as coisas que acontecem em volta. Suspeito que Lacan jamais falou em cura de psicose. Ele disse que o analista não deve se furtar a este desafio. Ele apenas disse que é preciso entender a psicose a partir de determinado ponto: estou estabelecendo um conceito chamado foraclusão do Nome do Pai, e sem isso não dá para pensar a psicose. Ele só acha que o analista deve se manter dentro deste desafio porque, de repente, pinta alguma coisa. Eu, estou aqui tentando abstrair cada vez mais. Quem sabe a gente descobre como é... Agora, pegar o sujeito e meter a lei dentro dele, não sei. " P – O interessante é que Lacan, historicamente, talvez tenha se valido da psicose para pôr em cheque a própria prática analítica em geral, em sua época. Não tenho a menor dúvida disto. Ele foi tão veemente que até requisitou para o analista a aproximação da psicose. Ele sempre dizia que não era melhor analista porque não era suficientemente psicótico. Maneira de dizer, não acredito nisto. Ele quis dizer, em meus termos, o seguinte: quanto mais você puder freqüentar a Denúncia, mais pode escutar. E isto não é psicose. É a mesma coisa quando ouço falar em “esquizofrenia”: é um abuso de retórica. Evidentemente que a prática do moço, Lacan, a que conheci, era criar um ambiente próximo da psicose na relação com o analisando. Ou seja, esgarçar as fronteiras, e tanto, que não se estará mais enxergando o horizonte. Isto parece meio psicótico, mas não é, pois Lacan estava lá. Se você saísse das estribeiras, ele pontuava. Isto nada tem a ver com psicose, e sim com o cacife que tem um Sujeito, que se diz analisado, de freqüentar a Denúncia sem ficar se roendo de angústia. Ou seja, seria a passagem que o analista teria que fazer da Hilflosigkeit à Gelassenheit: isto é da ordem de não temer a psicose, e não de entrar nisso: fazer a experiência de, quem sabe, chegar à beira do abismo, podendo até cair, mas vamos lá. Isto é aproximação daquilo que poderia,

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eventualmente, conduzir à psicose, mas não é psicose. A qualquer um que freqüentasse o Lacan que freqüentei parecia estar diante de um psicótico, só que não era: era elasticidade radical da fronteira. A frase: “uma análise levada muito longe conduz à psicose”, para mim, não se sustenta enquanto tal. É como se você pudesse conviver com o Real à beira da psicose. Se estou dizendo que o psicótico gira, gira e dá de cara no zero, você, mesmo sem ser psicótico, pode freqüentar o zero. Então, você está numa situação de escuta extremamente furada, mas o limite está lá e é tomado como tal. O que não está lá definido, jamais, é a fronteira. Se andamos perto de uma pessoa que tem elasticidade de fronteira, ela parece doida, a história está cheia desses “loucos” maravilhosos. Não há nada aí de psicótico. Estão saindo por aí uns livros interessantíssimos de gente que teve experiência com Lacan. Um que li, é ipsis litteris a minha experiência, vamos dizer assim, mundana, no consultório dele. Chama-se 5, Rue de Lille, que era seu endereço. O cara pegou e definiu claramente: os golpes teatrais, os coups de théâtre, que ele dava dentro do consultório, que, a meu ver, exibem com clareza a imensa elasticidade de fronteira, tão elástica que ele não estava falando desde uma fronteira. Quando ele dava um golpe assim, radical, de aporrinhar o analisando, de pôr fronteiras aqui, etc., era um golpe teatral. Quando ele fazia com você , você não via, mas quando você via fazendo com outro, estava na cara que aquilo era teatro No. Ele estava se lixando para a fronteira. Estava era utilizando a fronteira. Isto é que chamo de juízo foraclusivo. Era um teatro muito bem feito: de ódio, de raiva, tristeza, de alegria, etc. Isto não é comum. Vemos pessoas – vamos fazer pouco: só 99% – que se dizem analistas, diante de uma experienciazinha assim muito fajuta, sem coragem de ir mais além. Eles estão evidentemente utilizando fronteiras próprias. Se lhes brandirmos alguma elasticidade maior de fronteira, os bichos ficam em pânico. Então, como é que se sentam lá no poltronão? Uma coisa é eu estar negociando aqui e agora com você em torno de certas fronteiras que a gente está combinando. Outra, é eu sacar que, fora desta combinação, não sei onde botar fronteira. Então, vamos ter que combinar isso... Um Sujeito

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falangelicamente instalado na sua competência discursiva, ele brinca direito, é um bom ator: coloquei aqui a fronteira, e vai ser esta. O cara briga por causa dela. Não quer dizer que ele acredite. Isto faz uma diferença enorme. Quando você topa com “analista” acreditando em fronteira... Uma coisa é você acreditar, outra, é dar crédito, pôr um aval, aqui ou ali. Vemos, por exemplo, Lacan pegar um psicótico, entrar, sentar diante dele e não querer saber quanto tempo vai levar para encurralar o cara naquilo que ele chama de um neologismo empedrado – galopiner, por exemplo. Se você encurralar bem o psicótico, ele vai perder todas as estribeiras e cair num ponto fixo que foi estabelecido como marca pseudo-fronteiriça para ele. Agora, faça-se isto com um sujeito comum, não precisa ser psicótico, pode ser com um neurótico, ele vai estarrar na fronteira e, apesar de todo movimento desejante, vai sempre retornar a ela. Agora, passemos para o chamado analista, comecemos a pressioná-lo. De repente, se for analista, vai ficar perplexo: ah! sim, como é que tínhamos combinado a fronteira, me esqueci... Se não ficar perplexo, tomem cuidado. Não é analista, é neurótico mesmo... se não for morfótico ou psicótico. Uma coisa, por exemplo, deliciosa, que Philippe Sollers, que batia longos papos à beira de jantares deliciosos regados a champanhe com o Doutor Jacques Lacan, diz a respeito dele: “Lacan est incoinçable”, é inencurralável. Ele tem um jogo de cintura de só se referir a fronteiras por convencionalidade discursiva: não empurra, não. Está pensando que vou acreditar em fronteira? Para cima de mim? Se é no quebra-pau, tudo bem, é quebra-pau em torno de uma convencionalidade local, aqui e agora. Aqui e agora pode durar anos, pode durar segundos... Quem tem essa disponibilidade? Exijo, para reconhecer alguém como analista – para ser o meu, porque o mínimo que exijo num sujeito para achar que é analista, é que possa ser o meu – que ele seja o mais incoinçable possível. Isto é duro, mas não é de psicótico.

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ANEXO AS PROSPERIDADES DA “INOCÊNCIA”OU O POP PARTIU PRA PQP Seção de encerramento do trimestre de estudos consagrado à Morfose no IJL – Instituto Jacques Lacan, instituto de ensino do Colégio Freudiano.

Como sabem, desde meu Seminário, arrolo sob a rubrica de Morfose, perversidade e fobia. Coloquei o limite com referência àquilo que Lacan chama de Nome do Pai e falei de foraclusão do limite; coloquei também o horizonte como limite, e falei de inclusão do limite; por decadência disso, há a figuração como fronteira e a redução de tudo como ponto, talvez fetiche, que chamei de Marco, caso em que falei de reclusão do limite; e falei na possibilidade de eclosão do limite como eclosão do Sujeito. O caso da morfose, como também já sabem, nas suas duas vertentes de perversidade e de fobia, se refere à redução do horizonte e da fronteira a seu empacotamento dentro de um Marco. Outrora, eu disse que era uma espécie de clausura do Nome do Pai dentro do fetiche, mas agora apresento como um empacotamento também dentro de um objeto ou coisa desta natureza. *

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Lacan, em Kant com Sade, diz que é uma tolice o fato de se considerar Sade o precursor de Freud ainda que fosse, como dizem alguns, uma espécie de catálogo das perversões. Realmente, não se trata disto. Eu diria que não considero o Marquês de Sade nem mesmo um catálogo das perversões. Considero sua obra como um catálogo de fantasias, o que é muito diferente. E como catálogo de fantasias ele é excelente. Como já lhes disse, Philippe Sollers apresentou relativamente a Sade uma definição preciosa de Inconsciente: “O inconsciente é a inibição de ler Sade”. Ele está se referindo aí a um inconsciente certamente enquanto recalcado. A inibição de se defrontar com as fantasias define o recalcado com muito precisão, sobretudo no que diz respeito a um analista, o qual não pode ficar inibido de, pelo menos, tomar notícia de fantasias mesmo quando não sejam postas em cena, realizadas... Mas, hoje, eu preferia ficar em comentários mais genéricos. Depois, na conversa, quem tiver questões teóricas mais detalhadas pode colocar. Quero comentar sobre a generalização da perversidade no campo social. A rigor, o Sujeito não tem objeto. Isto porque tê-lo de direito é não têlo de fato. Portanto, o desejo que se demonstra por alguma emergência, algum ato que indica surgimento de Sujeito, não impõe objeto para o movimento capaz de produzir Sujeito. Este talvez seja o grande drama da espécie, dos falantes: não há nenhum objeto para o Sujeito. Falta radicalmente o objeto no sentido de que o desejado não há. Daí a decadência, a declinação, desse desobjeto em objetos mediante os quais certamente nossas operações são possíveis dentro do mundo. E a decadência posterior do objeto, para além da simples perversão da escolha de objetos privilegiados por determinado indivíduo, determinada pessoa (vamos parar com essa mania de lacaniano de pensar que quem fala é Sujeito: cachorro também fala e não é Sujeito), a ponto de carregar junto com ele as possibilidades que tem esse falante de se deixar emergir em Sujeito, chega ao que chamamos freqüentemente de feitiço, para bem ou para mal, para mais ou para menos, para fobia ou para perversidade. Então, já é momento de os analistas se darem conta de que não se pode mais ficar com a brincadeira interpretante de tentar aniquilar o objeto perverso de ninguém. O

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objeto é, sim, questionável na demonstração analítica de que, por trás dele, não há nada, há desobjeto. Entretanto, nas pragmáticas cotidianas, porque foi o encontro, uma tiquê em algum momento, uma eventual topada num determinado objeto resta na comemoração erótica, matemática, política e mesmo poética de determinado indivíduo. Nossa questão não é por aí, embora o objeto que qualifica a perversão de cada um, a perversão nossa de cada dia, tenha que ser questionado numa análise no sentido de se descobrir que não há nada que o sustente por detrás da fantasia em que ele se coloca. Daí ser preciso também fazer uma diferença entre desejo e querer. O desejo não é o querer. Não é muito comum no brasileiro, pelo menos não era antes do lacanês aparecer no vocabulário, dizer que “deseja” alguma coisa. Dizemos que estamos com vontade disso, com vontade de comer aquilo... Acho muito mais correto. Isto porque justamente o que se deseja, não se sabe o que é, porque não é. Se posso indicar o objeto do desejo, o desejo se ancorou em algum lugar, portanto estou com vontade disso ou daquilo. Tanto é que posso estar com vontade de não-isso ou não-aquilo anoreticamente, por exemplo. Se as condições de pensamento, como coloca Alain Badiou, são: matemática, poética, política e erótica, devemos pensar na possibilidade de cada uma destas condições, uma vez que já noduladas pela condição erótica, num processo de comemoração. Eu me pergunto se cada uma destas condições não está implicada quando faço a escolha de uma delas como eventualmente (e não necessariamente) suturante no trato das questões. O bobajal psicanalítico mais corrente nos livros a respeito de perversão, por exemplo, é vermos os autores perdidos, não fazendo a menor idéia do que ela seja e se esquecendo de pensar que, do ponto de vista da erótica, em termos mais genéricos, no que diz respeito ao amor, ao tesão, que esta erótica não é necessariamente erótica pura. Ou seja, que podemos perfeitamente ter uma erótica matemática, uma erótica poética, uma erótica política. Como situar, por exemplo, uma vontade perversa, e não perversista, que politicamente se apresente como destruidora de uma situação impositiva

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anti-poética e anti-matemática? Considero tolo o analista que fica olhando para a vontade perversa do sujeito para aquém do seu questionamento no sentido de que o não-objeto, que não sustenta isto, venha a se oferecer. Olhar aquém é se esquecer que, ainda que o sujeito advenha ao reconhecimento da falta absoluta, da inexistência, da não havência radical de objeto, mesmo dentro deste reconhecimento, algumas escolhas do tipo “vontade perversa”, se não todas, têm que ter implicâncias matêmicas e poéticas que freqüentemente seguem as implicâncias políticas. Existe uma política do erótico; uma matêmica do erótico; assim como uma poética do erótico. Essa coisa mesquinha, se não imbecil, de um psicanalista, seja teoricamente ou na sua prática, escolher esta ou aquela perversão, esta ou aquela vontade de phoder – que é o modo correto de escrever o poder de Nietzsche – por ali, não pode, para aquém da radical não havência de objeto sustentador, ser escolhida entre outras vontades de poder como necessariamente fora de possibilidade ou fora de permissão. Nada garante isto, a não ser determinado ditame imposto por determinada situação. Os analistas se perdem freqüentemente aí, pois, ao invés de questionarem para que alguma emergência de sujeito venha na ausência radical de qualquer havência objetal, ficam implicando que isto ou aquilo – por raciocínios absolutamente não demonstráveis – define uma perversão. Isto porque, para eles, não existe nem a perversidade, que é uma perversão que deve ser curada. Toda e qualquer significação em nível de objeto, de significantes arrumados como uma série de x ou y, deve ser curada no sentido de se chegar à não-havência que sustenta o desejo que por ali passa. Este mal-entendido dos analistas tem que ser destruído, pois é justamente uma estratégia defensiva no sentido de não se abordar com o rigor que se deveria a verdadeira perversidade, sobretudo no que ela está espraiada no campo social. A insistência – que não vou deixar de nomear tecnicamente de imbecil – nesta vertente aí é defensiva contra o dever que deveria ter o analista de praticar intensivamente a cura da perversidade que está espraiada no campo social. Como já lhes disse, o que há é um grande montante de neuróticos que

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vota no partido de determinado perversista contra a indicação de ditas perversões... para ser literalmente enrabado pelo perversista em quem votou. Por que, então, esta perversidade social no nosso tempo? Acho que nunca foi tão evidente. Daí eu ter dado a nosso encontro de hoje o título As prosperidades da inocência, fazendo a paródia com As prosperidades do vício, do Marquês de Sade. Estão todos refestelados na inocência na medida em que apontam para outrem perversões e fobias, morfoses em geral, que são aquelas mesmas, estruturalmente, pelo menos, que acossam a sociedade por inteiro. O que será que aconteceu que pôs esta perversidade social à tona? Há uns autores que insistem galhardamente contra o narcisismo, que o problema da cultura de hoje é o narcisismo. Isto me parece tolo. Se fosse um narcisismo de ego até daria para entender, mas o narcisismo não é só isto. É uma condição sine qua non de Haver. Nada há que narcisicamente não se escore em algum lugar. Se partirmos para o campo do dado, do artifício natural, uma árvore é absolutamente narcísica. Qualquer gato, cachorro, cavalo, é absolutamente narcísico, e com direito de sê-lo. O falante tem o seu direito narcísico, do ponto de vista de estrutura imaginária, egóica, bastante prejudicado justamente porque deveria ter o dever narcísico por outra vertente. Conhecemos bastante aquelas coisas que Freud chamou de feridas narcísicas – se não foi ele quem deu o nome, pelo menos é nele que está a sua base –, de feridas ao narcisismo da compleição egóica e imaginária. O reconhecimento de suas possibilidades subjetivas, para o falante, é o reconhecimento de um vazio radical no seio da estrutura. Este é seu único apelo específico. No que isso há, no que o Haver porta isso também, deveríamos, pois, falar numa indicação de dever não de a ferida narcísica ser reconhecida de fato, mas de um narcisismo da ferida. Qual será a diferença entre o narcisismo da inteireza e, portanto, sujeito a feridas narcísicas, e o narcisismo da ferida? O que esta espécie produziu que preste – no sentido de demonstrar sua existência –, me parece não ter sido até hoje senão o exercício radical de um narcisismo da sua ferida: a exibição contundente e veemente da sua ferida. Este narcisismo não é para ser desprezado, muito pelo contrário, deve ser cultivado por todos os monstrengos

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animalizantes e animalizados que se esquecem de seu lugar nesta espécie. Falei monstrengo, e não monstro, pois este é coisa séria. Desde que a chamada humanidade perdeu, quase que espontaneamente – pela exibição narcísica de suas feridas sucessivas, de alguns dos seus componentes – certas aparências de certeza na compleição das situações em que vive, aparências encontradas em grandes ordens míticas, religiosas e mesmo filosóficas, por exemplo, ela caiu na sucessividade de estruturas parciais de pensamento, para além das estruturas religiosas, míticas, científicas, poéticas e políticas. E a insistência nestas estruturas veio demonstrando, vez por vez, que não havia, afinal de contas, no que se apoiar para encontrar garantias de que, de algum modo, ainda que discursivamente postas, obrigassem ao que poderíamos chamar até de vontade de transcendência. Quero supor que, por aí, foi-se caindo num descrédito radical de cada uma destas estruturas de modo que a espécie vem perdendo gradativa mas violentamente as estribeiras. Ou seja, a noção de horizonte vem decaindo bruscamente nas suas limitações de fronteira e se recolhendo finalmente nos seus Marcos perversistas, um a um. Os neuróticos embarcam na tese, praticam a perversidade porque ela está na moda e porque são bem pagos para isto. Chamo a sociedade de perversista na medida em que vivemos o fetichismo do ego. Assim como Lacan aponta na psicose como que uma impossibilidade de emergência do Sujeito, ou seja, que o psicótico fala com o instrumental do seu ego, através do seu ego, eu diria que a morfose é simplesmente o narcisismo de ego e portanto o fetichismo do ego. Fetichizar o ego é empacotar no Marco egóico tanto a fronteira quanto o horizonte. Como o horizonte se perdeu, ninguém mais quer tratar de horizonte porque, do ponto de vista científico, ficou parecendo que não há transcendência. As religiões ainda insistem em alguma transcendência mediante uma certa fé, mas também verificamos que facilmente caem de volta na sua perversidadezinha. E se o poeta aqui e ali consegue fazer uma eclosão qualquer, imediatamente não é a eclosão que fica em evidência, e sim o resto (a obra) é que é fetichizado imediatamente. Tomem o caso do horror do surgimento de um Van Gogh na

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miséria, absolutamente não reconhecido, nem mesmo pelo irmão – que só lhe dava o dinheiro porque era irmão, e não porque era Van Gogh –, e o preço que tem hoje num leilão. Isto é um insulto, não há nenhum reconhecimento aí. O imbecil que o comprou certamente não tem a menor condição de o olhar. É um insulto à emergência que ali houve, pois o que vale agora é o fetichismo do quadro. Entra-se, pois, nos baratos dos egos, mas, como Lacan demonstrou, o ego não passa de mero objeto, de substituto fajuto do objeto que não há. O desprestígio total de qualquer transcendência hoje, é evidente. Isto porque a transcendência é visualizada de dentro da nossa sistêmica. Nada por aqui nos dá a menor impressão de que alguma transcendência tenha validade, sobretudo hoje que estamos mergulhados até os beiços na cloaca perversista. Alguma coisa precisa surgir em lugar desse horizonte perdido. E isto me parece responsabilidade dos psicanalistas, os quais têm sido péssimos exemplos, pois têm facilmente caído no barato do ego, no sucesso profissional, na titulação, nas instituições, etc. O que a psicanálise nos trouxe que pudesse, neste momento de perversidade tão generalizada, nos oferecer como algum substituto de transcendência? Quero supor que nenhum outro discurso no momento presente terá tido a competência de oferecer substituto à transcendência. Só que os analistas parecem surdos, não gostam de escutar essas coisas, sobretudo quando elas podem interferir na administração dos seus consultórios. Mas para além do desprestígio da transcendência, temos já oferecida para psicanálise a certeza do Sujeito. Há uma verdadeira saudade e nostalgia do horizonte, como se este tivesse se perdido para sempre. No entanto, de modo algum é este o caso. É preciso que os analistas, antes de mais nada, sejam capazes de entender isto e tentar disseminar este entendimento pela experiência da eclosão do limite. As delícias do capital, na sua perversidade fundamental, se prestam muito bem a toda burocracia, a toda administração, a toda mestria. Como aprendemos com o discurso do mestre, do Dr. Jacques Lacan, o mestre não é senão o mundo do capitalismo. Ou seja, o fundamento do capitalismo, um discurso capitalista, é o discurso da mestria. Mas as delícias do capital, que

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afogam inclusive os analistas contemporâneos, não deixam de ser questionadas peremptoriamente pela verdadeira posição do analista, que deveria ser exemplar da certeza do Sujeito. Aliás, não há mais temor a Deus – lembram do Seminário em que Lacan fala de la crainte de Dieu? – porque todos os deuses que nos foram apresentados, mesmo aquele barbadinho do monoteísmo, são Sujeitos meio comprometidos com as fronteiras e os Marcos. O que seria, então, de se colocar na certeza do Sujeito como substituição ao temor de Deus? Suspeito de que seja algo parecido com o respeito ao Falanjo. O respeito pela essencialidade do Sujeito como passível de emergência no campo dos falantes, esses macacos esquisitos. O respeito ao Falanjo necessariamente institui nas relações interpessoais o que teríamos que chamar, tomando um termo técnico do balé, de pas de deux, o qual não funciona sem dois, só há dois. Mas o termo francês diz: não há dois. Também não diz que há um. Ou seja, o pas de deux não é a concessão às esquisitices do companheiro, às inferioridades do macaquinho que mora ao seu lado, e sim uma dança constante em que há um tripé. O terceiro pé, dele temos certeza: é vazio, mas é certo. É onde se configura tudo o que a psicanálise, só ela, no mundo moderno veio constituir como sendo o que poderia chamar, com respeito, de Amor. Mas esta palavra está desmoralizada, a ponto de ser necessário um grande esforço para se fazer uma limpeza. Fala-se de amor a Deus e de amor ao outro, nos referenciais suturantes das religiões. Fala-se também de amor próprio, que geralmente está referido ao orgulho de certas posições inabaláveis em determinada pessoa. Mas não poderia ser o da transa possível de um amor voltado à alteridade no maior amor próprio, ou seja, amor pela essencialidade do falante? Este sim é próprio, o resto é do macaco, que tomamos emprestado, é até interessante, delicioso, mas não é próprio. Próprio é o do Sujeito. A psicanálise vem dizer algo que parece velho mas que é radicalmente novo: a solução temporal está referida ao amor. Parece muito com uma coisa que aconteceu recentemente – ou seja, há dois mil anos –, de certo Sujeito, também brilhante, genial muito honesto, que veio nos dizer:

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amai-vos uns aos outros. Isto nada tem a ver com a psicanálise. Seria absolutamente falso um Freud ou um Lacan dizer uma bobagem dessas. Talvez seja até melhor dizer: não amai-vos uns aos outros, pelo amor de Deus. Mas na vontade cristã de solução, o rapaz, que era absolutamente genial, teve a idéia de resolver tudo com o “amai-vos uns aos outros”, ou seja, ele não tinha aprendido psicanálise, não sacou o Inconsciente tal como um Freud. E certamente recairíamos nesta tentativa cristã quando repetimos amai-vos uns aos outros (quer dizer: a patota, pois há uns que não são amáveis, é óbvio). Faz-se uma grande democracia parlamentar, cada vez com maior representatividade, pequenas patotas vão aparecendo, fazendo seus deputados... e caímos no amai-vos uns aos outros de congresso nacional, se não mundial. Poderíamos dizer que esta frase reduziria o Ocidente à solução da lei do amor. A solução trazida pela psicanálise não é esta, e sim o amor para além da Lei. Logo, esta lei não tem sanção congressual. Não há congresso que dê conta dela. Não adianta se candidatar a deputado, pois não vai dar certo... Então, para além da lei não é a lei do amor. Talvez possamos, no futuro, encaminhar um estudo cada vez mais apurado disto. De qualquer forma, há tempos atrás, tentei definir, da maneira mais imprecisa e exata, num pequeno someto que publiquei, mas como ninguém gosta de me ler mesmo, então leio eu: Chega de amor – que os ódios mais fecundos nascem, crescem, florescem, frutificam é à sombra dele mesmo e se trumbicam as intenções mais lindas deste mundo: aquelas que só levam para o inferno aonde o amor espera, pelo avesso, as ganas paranóides do começo, pra repeti-las em retorno eterno.

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Nossa hora é de Lei, de afastamento, de corte sem costura, de respeito, mais pra mesura que pra sentimento. Possa o amor impossível – só depois – para além da Lei, ganhar um novo jeito: de dois não fazer um – mas fazer dois. Esta é a questão proposta por Freud e Lacan: de dois não fazer um, mas fazer dois – que é a possibilidade do pas de deux. Da posição firme do Dois e da sua suspensão radical, eventual, não se sabe para onde nem para o quê. Então, eu diria que a psicanálise não trata da lei do amor, mas poderia escrever assim: Há-Lei do A-mor – o que seria a única possível e verdadeira heterossexualidade, a única possível e verdadeira diferocracia. Só há heterossexualidade para além da Lei, num Amor que reconhece o Haver na sua destinação e hiperdeterminação pelo que não-há. Isto seria, talvez em séculos, o que teria que ser exemplarmente transmitido pelo psicanalista ao mundo na sua operação cotidiana. Mas, como eu disse, eles não sabem. Mas podem aprender... Isto seria a cura da perversidade. *

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" Pergunta – Você pode explicar mais como seria uma matemática erótica, uma matemática poética, uma matemática política, uma erótica matemática, uma erótica poética, uma erótica política...? Estes procedimentos não são estanques, e sim pólos de ação. Minha colocação de hoje foi no sentido de evidenciar a escuta bárbara dos analistas. Gostaria de mandar o Marquês de Sade pessoalmente a certos analistas para ver se têm culhão para escutá-lo. E não se trata de nada que ele tenha feito, e sim de algo que pensou e escreveu. Acho que um analista que não tem competência para resolver o Marquês de Sade deve pelo menos dizer que está no

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esforço de se tornar analista, para ser um pouco honesto. Considero uma escuta bárbara aquela que, ao invés de acolher o dito na perspectiva da psicanálise – ou seja, de fazer o sujeito que diz passar ao exercício do reconhecimento do des-objeto radical que (não) há por trás destas fantasias –, faz com que o sujeito fique catando feijão como a dona de casa que fica escolhendo qual está não podre. Isto não é escuta. Esquecem, portanto, de que, numa fala destas, se pode surpreender uma matêmica, uma política e uma poética muito sérias através da vertente erótica aí em jogo quanto aos corpos em transações. A coisa fica tão solta que não escutam nem o que é realmente perversista. Ou seja, acabam não escutando nada. " P – Por que você traduziu por erótica a condição que Badiou chama de amor? O radical grego é eros. Quando traduzo o texto dele, coloco amor, mas quando tomo para mim digo erótica, pois me parece mais genérico. Temo que a delicadeza de Badiou com a teoria, até a de Lacan, recaia nessa coisa idiota das pessoas que falam em amor. Conhecem aquelas pessoas, por exemplo, que só trepam “por amor”? Fazem como se não houvesse algum amor em jogo mesmo quando você está só trepando, ainda que seja um tesão objetal, o que é muito complicado, pois há muitos significantes em jogo e não dá para separar direito. Traduzi por erótica também por conta do valor. Aí, acho mais rigoroso o discurso de Georges Bataille que fala numa erótica que envolve desde o amor místico até a sacanagem bruta, que é tão mística quanto. E passa por uma estética. Ou seja, este é o campo da erótica através do qual temos os procedimentos da matemática, da poética e da política. " P – Poderíamos, por esta via, chamar a política de ética? Não. Mas eu diria que uma ética atravessa a política. Por que não a erótica ética, a matemática ética ou poética ética? Por isso, no tempo em que não sabia dizer as coisas, fiz o Seminário, que chamei de Polética. Chamei assim procurando esse negócio aí, que hoje está mais claro. A ética não é uma condição. Do ponto de vista da estrutura trazida pela psicanálise, é fundamento em cima do fundamento faltoso da estrutura. Existe uma ética que seja pura?

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Lacan colocou que a ética da psicanálise é fundante, fundadora e fundada na própria estrutura. Então, há discursos que a ética atravessa. Ética, portanto, só há esta. Do ponto de vista da psicanálise, ela não seria a ser constituída discursivamente, porque é fundamento. " P – Como você toma a colocação de Badiou sobre a psicanálise como uma das condições junto com a filosofia? Em primeiro lugar, Badiou até pede desculpas, pois sabe que não é isto, mas está tomando a psicanálise ali como tal. No Manifesto pela Filosofia, ele coloca as condições matemática, poética e política como invenções e a quarta condição, o amor (erótica, como chamo) como pensamento. Ele nos mostra que, nos tempos modernos, esta condição amorosa foi posturada pela psicanálise. Então, toma Lacan inteiro, com Freud dentro, e coloca numa região. Ele toma a filosofia como a abrangência destas condições não no sentido de que as inclui, mas como o pensar a compossibilidade das verdades já dadas por essas condições. Então, fica uma coisa meio vaga no pensamento de Badiou, pois é como se colocasse a psicanálise só na condição amorosa. Mas ele diz que a está aproveitando nesta condição. Evidentemente que não é só aí porque toda a filosofia recente de Badiou, todo seu pensamento recente, é impossível sem Lacan, é algo que só pode ser pós-lacaniano. Ou seja, até a constituição de sua filosofia passou por Lacan. A não ser que ele faça uma distinção entre dois Lacan, o psicanalista e o filósofo. Há gente que acha que Lacan é filósofo ou pelo menos anti-filósofo. " P – N’O Sexo do Anjos, você coloca a morfose como a questão da obrigação do Gozo-Fálico. Depois, no Seminário de 89, você diz que a morfose seria a universalização de uma modalidade perversa. Hoje, me parece que a questão da universalização de uma modalidade estaria muito mais numa vertente da condição política em relação à posição legal, à erótica de cada um, e a questão da obrigação ficaria como uma questão muito mais clínica. Todas as questões são clínicas, inclusive a política. Depois que coloquei a noção de Marco, se a tomarmos como conceito de estrutura de uma morfose,

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As prosperidades da “inocência” ou o pop partiu para pqp

ela acaba engolindo as duas outras que você citou e que realmente são um pouco vagas. A obrigação masculina, obrigação de Gozo-Fálico, me parece bastante compatível com o Marco, ou seja, a partir de, como diria Lacan, determinado significante instala-se uma obrigação de Gozo-Fálico com esta causa significante. Quando falei em universalização é que, naquele tempo, antes ainda de tomar os conceitos de limite, horizonte e Marco, eu pensava que a obrigação de Gozo-Fálico para um sujeito acaba sendo o resumo fetichizado da lei. É como se ele substituísse a idéia de universal, que hoje coloco como sendo o limite, pela de universalização daquele princípio. Isto também me parece válido. Aí você diz que parece que é mais do ponto de vista político, na medida em que um sujeito no poder impusesse ditatorial e policialmente a universalização aos demais – isto é, aliás, verdadeiro no mundo em que vivemos – e pergunta se há a clínica disto. É a mesmíssima clínica daquele cara perversista que está lá no seu consultório. A universalização é o que estou falando hoje, basta trocar o horizonte e até mesmo a fronteira pelo objetinho. Ou seja, é como se o objetinho fosse o limite que universaliza, que dá o para-todo. Mesmo um perversista individual dentro da sua perversidade só tem a audácia que tem na medida em que, para ele, o objeto-fetiche faz lei e vale para qualquer um. Ele funciona como se aquilo fosse uma lei que valesse para qualquer um. Isto é muito bem descrito pelo Marquês de Sade na imposição a outrem de um modo de gozo. E ele só pode fazer assim na medida em que isto, para ele, se universaliza. Não é determinado sujeito legislando para a multidão, e sim que a lei se funda assim. Uma lei é universalizante, é para todos. No simples fato de se escrever um enunciado legal, já se está fazendo um ato de perversão e necessariamente, de certo modo, um ato perversista. O estatuto da lei não se dá diretamente conta disto. É capaz de encontrarmos alguns filósofos do direito percebendo essas coisas, mesmo porque, para além da lei, há uma jurisprudência que maneja um pouco as coisas. Se um legislador disser que é impossível governar sem isto, o que ele fica sem saber é que nem com isto é possível. Então, não estou pedindo que não se tenha lei alguma porque uma lei é pojada

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de perversidade, mas sim que se lembre disto, que não se oculte a perversidade legal. Não preciso ficar me escondendo de estar condenado a ter que fazer o que faço, pois se me escondo, aí a coisa se torna perversista mesmo. Num regime de ordenação de mundo, em qualquer institucionalidade, é preciso um manejo de regras, de ditames legais, etc., o que não pode, para não se tornar perversista, é esquecer este fundamento. Estou dizendo que isto participa da perversidade, mas não o é necessariamente, a não ser quando se o esconde. Então, não posso me eximir de que, ao exarar um ditame, seja ele qual for, estou universalizando. É preciso lembrar do universal que vai nesse ato.

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SOBRE O AUTOR

MD Magno (Prof. Dr. Magno Machado Dias): Nascido em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, Brasil, em 1938. PSICANALISTA. Bacharel e Licenciado em Arte. Bacharel e Licenciado em Psicologia. Psicólogo Clínico. Mestre em Comunicação; Doutor em Letras; Pós-Doutor em Comunicação – pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Maria (RS, Brasil). Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Professor Associado do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII (Vincennes), quando era dirigido por Jacques Lacan. Fundador do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (instituição psicanalítica). Fundador da UniverCidadeDeDeus (instituição cultural sob a égide da psicanálise). Criador e Orientador de , Centro de Estudos e Pesquisas, Clínica e Editora para o desenvolvimento e a divulgação da Nova Psicanálise. Atualmente, além de sua atividade como Psicanalista, continua o desenvolvimento de sua produção teórico-clínica (work in progress) em Falatórios e Oficinas Clínicas, realizados na sede da UniverCidadeDeDeus e publicados regularmente.

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ENSINO DE MD MAGNO

MD Magno vem desenvolvendo ininterruptamente seu Ensino de psicanálise desde 1976, ano seguinte à fundação oficial do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. 1. 1976: Senso Contra Censo: da Obra de Arte Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 216 p. 2. 1976/77: Marchando ao Céu Seminário sobre Marcel Duchamp. Proferido na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro (Parque Laje). Inédito. 3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa 3ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 220 p. 4. 1978: Ad Sorores Quatuor: Os Quatro Discursos de Lacan Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 276 p. 5. 1979: O Pato Lógico 2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 252 p. 6. 1980: Acesso à Lida de Fi-Menina Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 316 p.

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7. 1981: Psicanálise & Polética Quatro sessões, sobre Las Meninas, de Velázquez, reunidas em Corte Real, 1982, esgotado. Texto integral publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 498 p. 8. 1982: A Música 2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 329 p. 9. 1983: Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso 2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987. 264 p. 10. 1984: Escólios Parcialmente publicado em Revirão: Revista da Prática Freudiana, n° 1. Rio de Janeiro: Aoutra editora, jul. 1985. 11. 1985: Grande Ser Tão Veredas Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 292 p. 12. 1986: Ha-Ley: Cometa Poema // Pleroma: Tratado dos Anjos Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 14. 1988: De Mysterio Magno: A Nova Psicanálise Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1990. 208 p. 15. 1989: Est’Ética da Psicanálise: Introdução Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 238 p.

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16. 1990: Arte&Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2001. 520 p., 2 vols. 17. 1991: Est’Ética da Psicanálise (Parte 2) Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2002. 392 p., 2 vols. 18. 1992: Pedagogia Freudiana Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. 172 p. 19. 1993: A Natureza do Vínculo Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 274 p. 20. 1994: Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 310 p. 21. 1995: Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 264 p. 22. 1996: “Psychopathia Sexualis” Santa Maria: Editora UFSM, 2000. 453 p. 23. 1997: Comunicação e Cultura na Era Global Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 408 p. 24. 1998: Introdução à Transformática: Por uma Teoria Psicanalítica da Comunicação Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2004. 156 p. 25. 1999: A Psicanálise, Novamente: Um Pensamento para o Século II da Era Freudiana: Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 224 p.

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26. 2000: “Arte da Fuga” Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 27. 2001: Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 28. 2002: Psicanálise: Arreligião Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 248 p. 29. 2003: Ars Gaudendi: A Arte do Gozo Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 340 p. 30. 2004: Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão Proferido na UniverCidadeDeDeus [a sair]. 31. 2005: Clavis Universalis: Da cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 224 p. 32. 2006: AmaZonas: A Psicanálise de A a Z Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 198 p. 33. 2007: A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009. 210 p. 34. 2008: AdRem: Gnômica ou MetaPsicologia do Conhecimento [a sair] 35. 2009: Clownagens [a sair]

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Formato 16 x 23 cm Mancha 12 x 19 cm Tipologia Times New Roman e Amerigo BT Corpo 11,0 | 16,5 Número de Páginas 528

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