Além dos Limites: Teoria e Prática do Teatro [1ª ed.]

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PERSPECTIVA

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E nquanto a semiologia teatral, de larga influência n o s an o s d e 197U e de 1980, com representantes da estatura de Patrice Pavis, An n e Ube rsfeld e Marco de Mar inis, ded icava-se à análise dos signos espe t a c u la r e s , debr uçando-se sobre a passagem do texto à cena e ce ntran do-s e n a compreensão do teatro como escritura de palco, .Ioserte Féral já inici av a pesquisas focadas no p'"ocesso criativo, pren unciando o q u e s e r ia um dos marcos preferenciais de análise da c e n a atual. Sua investigação dos rastros da feitura artística do espetá c u lo por me io do estudo detalhado d e cadernos de direção, anotações d e ato r e s e es b o ço s de cenografia passaram a fig urar como método de a nálise Irrrp rescf rr dfv el ao esclarecimento daquilo que se a p r ese n t a v a em cena. E m gra n d e part e graças a seus esforços, foi nessa e t a p a dos estudos teatrais que o traba lh o em processo dos criadores passou a ser levado em conta n o mesmo nível que as questões ligadas à representação. É dessa amp la per s p e c t iv a de análise que os teatros reunidos nesse livro se beneficiam. As noções de teatralidade, performatividade, performance, presen ça e interculturalismo, tratadas com ênfase em Além d o s Limi te s : Te o r ia e P rática d o Teatro, foram as chaves c om que se abriram novo s â ngulos de visão no tocante ao teatro realizado no final do século xx e i n ício do XXI _

estu!os estu os estu os

Sí lv ia Fern andes Professora do Departamento e do Progra m a de Pós-Graduação de Artes Cênic a s da E C A- US I'.

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3 19

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PER SPECTIVA

Coleção Estudos Dirigida por J. G u i nsb u r g

Josette Féral

ALÉM DOS LIMITES TEORIA E PRÁTICA DO TEATRO

Equ ip e d e realiz a ç ã o - E dição d e Tex to : Lu ís Fe r nan do Reis; Re v is ão : A d r ia no C.A. e S o usa , E le n Durando ; S o b reca pa: Se rg io Ko n; Produ ç ão : Ri c ard o W. Neves, Raq ue l Fernandes Abran che s , S e rgio Kon , E le n Durando e Lu iz H en ri qu e So a res .

~\III ~ ~

~I\'~ ANOS

P ERSPECT IVA

Sumário

© Jo sctte Féral, 2009

c rr--Brastl . Cata logação na Fonte S in d ica to Na cio nal d o s Ed ito res de Livros,

R)

F386a Féral , Io s e rt c Al ém dos limites : teoria e prátic a do te atro I Io sctte Féral ; t raduç ã o I. Gu ín sburg ... [et a l. ] . - I. e d . - Sã o Paulo : Perspe ctiva , 20 1 5.

4 24 p. ; 23 c m . (Est ud os; 319) 9 73 -85 -273 1027-7 Teatro. 2 . T e at ro - Históri a e c rít ic a .

In troduç ã o - Sílvia Fernandes

XIII

IS B N I.

I.

Título .

II.

S érie.

COD: C D U:

792 792

Parte I : UMA TEO RIA À PROCURA D E PRÁTICA 1.

Teatro e Soc iedade: Da Si m b iose a u m Novo Co n trato Social. . . . . . . . . . . . . Teat ro, C ult ura e Sociedade . Os Estu dos Sobre o Teatro

2.

D ire itos re servados em língu a portugue sa à EDITORA PERSPECT IVA S.A. A v. Brigadeiro Lu ís A n tô nio, 30 2 5 0 14 0 1- 0 0 0 São Pa u lo SP Bra sil Tel cfax : (O H) 3885-8388 '"Avw.edito rapersp ect iva.com.or 20 15

3

.

3

.

Que Pode (ou Quer) a Teoria do Teatro? A Teo r ia Como Tradução

9

.

17

17 A Teoria Não é Mais o Q ue Era . . . . . . . . . . . . . . . . Uma abordagem marcada pela pluralidade . . . 19 As teorias instauram p erspectivas inesperadas . . . . 21 A teoria p ermite lev a ntar q uestões . . . . . . . . . . . 22 A Teoria é u m a Prática 24 Teo ria e prática são dois do mínios interdependentes . ":" 25 Tanto a Teoria Quanto a Prática Traduzem o Mundo 29

3. A Crítica de uma Paisagem Cambiante

37

O Exemplo do Esporte: O Mundial, Julho de 1998 Segundo Exemplo : Setembro de 1983, o Meio Artístico Contra a Crítica Toda Pa lavra Sob re o Teatro é um Atrevimento _ Descreve r, I n terpretar, Julgar Crítica: Uma Gama Variada de Práticas e de Ide ias .. A Crítica Como Poder. Uma Arte Ameaçada -. .

2 .

37 40 44

46

60

Retomada Histórica A Teatralidade Como Propriedade d o Cotidiano O Teatro Como Pré-Estética: O Q ue Permite o Teatra l? A Teatralidade Teatral O ator Ojogo A ficção e sua relação com o real A Proibição

108

11 3

Parte III: PERFORMANCE E PERFORlvIATIVIDADE

63

66 68 68 71 72

2.

A Performance ou a Recusa do Teatro

135

O Teatral da Performance

138

Performance e Teatralidade: O Sujeito Desmistificado

149

3. O Que Resta da Performance? Autóps ia de uma Arte Rea lmente Viva . . . . . . . . . . . . 165 A utópsia de uma Função A perforrna nce n asceu d e uma teori zação . . . d o fienomeno artistico O nascimento de um gên ero A lguns Exemplos d o s Anos de 1990

Parte II : PA RA UMA DEF I N IÇÃO DA TEATRALI DADE A Teatralidade: Em B usca da Especificidade da Li nguagem Teatral

104

__

3. Por uma Poética da Performatividade: O Teatro Performativo

1.

1.

103

49

Teorias Empíricas da Produção

Rascun hos Text uais Rasc un hos Cê n icos e V is uais Os cadernos de direção Os registros de vídeo As anotações de ensaios

Evoluções Diferentes Teatrurn Muridi __ A s T r ê s C livag e n s

47

53

2

10l

41

4 . Teoria e Prática: Além dos Limites

5. Por uma Gené tica da Encenação: Ta ke

Mirri es e e Tea t r a li d a de

.

. 17 0 . 175 . 177

81

83 84

88 90 91 93

95 97

4. Da Estética da Sedução à do Obsceno De u m a Performance a Outra Laurie Anderson: Uma Estét ica do Descontín uo e d a Sedução Dos objetos q ue produzem signo A pura ressonância dos vocábu los Uma organização por sobreimpressão Uma poética do fragm ento Uma economia dos signos

189 190 194 194

195

195 196 197

A con str u çã o do sentido pertence ao espectador. . 198 O s mecanismos coloc a d os a nu 198 K are n Fin ley: O Fetichismo do Corpo 199 Um corpo teatralizado 199 A linguagem do recalcado 200 Um a narração que es t r u t u ra a repres enta ç ão 201 Um a arte do e u 202 O esp ecta d o r voye ur 203 5. Orla n e a Dessacralização do C o r p o

Da p ercep ção à cogn içã o A superfíci e-limite O esp a ço -p la n o Novos Mo do s de Perc epção Ver d e Outra Man eira

27 6 278 281 28 3 28 5

3. O Teatro de Robert Lepage: Fragme ntos Id entitários.. 29 1 O Id e al de Autentic idade o u o Nascimen to da Noção Mo de r na de Id en t ida d e O processo identitário como ancoragem m o ra l Memoria e narrativa: relação co m o temp o A necessidade d e m u dança : do interpessoa l p a ra o intercultural A Ins e r ç ã o N u m Horizo n te d e Sen t ido Colet ivo A A r te Como Fon te Moral

205

Corpo e Ficções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 2 13 Imagens e V i r tu a lidade 2 18 O Sag rado n a A r te 220 A Legiti mação Pelo Disc u rso 222

29 2 295

29 7

30 2

3 04 306

6 . Distanc iamen t o e Multimidia o u B rech t I nver t ido .. 2 2 5 Evocação Históri c a O D i stancia rneri t o Bre chtiano Como Teoria d a R ep re s entação O D is ta n c ia me n to n o Teat ro A tual

226 23 0

2.

O Espetác u lo d o A tor n o T rabalho Ordem d a s P al av r a s / Ordem d o s Mortos

23 6

P arte IV : A CENA SOB I NVESTI G A Ç Ã O 1.

4 . A Tra vessia das Linguagens : Valere Novarin a e C la u d e R égy

30 9 311

32 2

Parte v: O I N T ERC U LT U R A LI SM O A INDA P O SSUI UM SENTIDO ?

O Texto Espetac u lar: A Ce na e Se u Texto

2 45

Tex to e Texto P erform ativ o (Perfo rmance Tex t) O texto perform ativo O texto espetacular Ericadearne rr t o e SiInulta n eidade A ce na do texto e o tex to d o texto . O t exto co m o dram atu rgia

246

260

Um Corp o no E spaç o : P e rcepção e Pro j e ç ã o

269

A Emergência d e Novos Espaços Espaço-volume e espaço-form a

269

1.

246 250

Linguage m e Apropriação : Co mo R einte rpr etar Shakespeare n o Quebe c , o Exemp lo d e R obert Lepage

333

Pe rcepção do Intercultu r alismo: O Exem p lo d e A r iane Mnouchkine

3 47

25 4 2 54

273

2.

Ricardo II à la Jap o n esa Ab ra ha m Mo les: Teo r ia d a Percepção Estética à L uz da Teoria da In fo rfri a ç ão Redundância e originalidade

348

349 347

Introdução 3. Toda Trans-Ação C o n cla m a Novas Fronteiras

357

O Polí tico: Territórios Con tra Localidades Território e sobera n ia O Espaço Des-terri to r ializado O q ue a p eça exp r ime? D o A r t ís t ico a o Teó r ic o

36 0

4.

Em D ireção a Identidade s Tra nscu lt ura is: O In terc u lt u ralis mo Ainda É Possível? A Necess idade d e P ens a r o I n terc u lt ura lis mo R elacionado ao P olític o Uma f a scin a çã o d e d oi s g u mes U m interculturalisrn o que a t ua en t re o g lo ba l e o lo cal Efe itos discutív ei s Interculturalismo e Imagem Identitária O Que Se r ia Esse Modelo Intercultural ?

364 36 6 369 373

38 1 384 3 84 3 87 38 9

39 2 39 5

A excele n t e compil a ç ã o d e e nsa ios qu e a editora P erspectiva leva a público é um a s ín tese das preocupaç õ e s que a compa nham a t e órica Io sett e Fé ra l n o s último s v in te ano s, e ligam - s e e specia lm e n t e ao s co nce itos e à prática d a c e na c o n te m po rân e a. Profe ssora durant e longo p eríodo n a U n ive rs id a d e d o Quebe c , e m Montreal, e atualmente lecion ando na Universi dade d e Sorbonne Nouvelle - Paris III, Féral partiu d e s ó li da form aç ão e m e studo s literário s , orientada p or [ulia Kri steva, p ara e m s eguida dedi c ar- s e à p aix ão p ela ce na contemp orâ ne a , n o qu e ela t em de m ais inventivo e tran sgres sor. C o m divers o s livros public ado s e textos antológicos apre s entados em c o n g ress os e co n fe rênc ias e m diversas c idades importan tes , como Bruxel a s , P a ri s , Bu eno s Aires, C racóvia, Dubro vnik, Liubliana, L ondre s , C idade d o M é xico, M o s c ou, N o v a D éli, Sy d ney e São Paulo, a p e squisadora conc entra- se, na últ ima década , na exp lo r a ç ã o da teoria da performatividade e da tea tralidade, de cuja sistematizaç ã o foi pioneira, c o m incursões pela p erformance e pelo interculturalismo, al ém da investi gação especí fica d e alguns g ry pos, com o o Théât re du S ole il . São t e mas r e c orrente s e m s e u s t rabalhos , q ue freq ue n tam as várias seções d este li vro .

ALIôM DO S LIMITES

I N TROD U ÇÃO

Talvez o difere nc ial dessa pensadora da ce na contempo rânea tenha sido, desde o princípio, a preocupação em aliar a prática à teoria d o teatro, fazendo desse t r âns it o seu foco de atuação. E n q u a n to a sem iologia teatral, de la rg a infl uê nci a nos anos de 1970 e de 19 8 0 , com representantes d a estatu ra de Patrice P avi s, Anne Ubersfeld e Marco de Marinis, de dicava - s e à a nálise dos sig nos espetaculares, debruça ndo-se s o b re a passagen1 do texto à ce na e centrando-se na cornprce ns ão do teatro como escrit ura d e palco, F éral já iniciava as inv e s ti g a ç õ e s focadas no processo c r iativo, prenunciando o q ue seria u m dos marc os preferenciais de análise da cena atual. A p a rt ir desse po nto de v ista, n a q ue le momento, inéd ito, e m cer to se n t ido p r ó xi m o d a pesqu isa ge né t ica, a ensaísta passo u a pri ori z ar a s e ta pas q ue precede m a aprese n tação de u m tra balho teatra l. O aco m pari hame nto , a o bse rvação e o e s t u d o d o pro c e ss o , a compreensão do pe rc urso d o e ncen a dor, do ator e d a e q u ipe de criação, a inves tigação d o s r a s t r o s da feit u r a a r t íst ica d o e sp etá culo p or m eio do e s tu do d etalhado d e cadernos d e direç ã o , a n o tações de atores e e sboço s d e ce n o g r a fi a passaram a fig u r a r co mo método d e anális e imprescindível ao esclarecirne rito daqu il o que se a p rese n tava e m ce n a . E m grande p arte g raças a se us esforços, fo i n e ss a etapa d o s es t u dos teatrai s qu e o t r a b alh o em pro c esso d o s cria dores passo u a se r le v ado e m conta no mesmo n ível qu e as que s t õ es li g ada s à rep rese n t ação. É dessa a mp la pe rs p ec t iva d e a ná lise qu e os teat ros reunidos n e ss e livro se b enefic iam . A d e sp eito d o m ergulh o n a p r át ic a d o teat ro e d a ex periê ncia de partilha d e pro c e ss o s co m a rtistas d e divers a s extrações, Io s e tte Fé ral n u nca s e desviou d a s p r e o cupações teórica s . Pelo con trário, a v ivên c ia d os p ro cessos le vou- a a prospectar, co m m ai or acu idade, o s c onc eito s que se ade q uavam a os percursos a r t ísticos q ue teste rn u n h av a. Co m otim is mo carac terís tico, acre d ito u, des de o princípio , que a a p r oximação e n t re a t eo r ia e a prá ti c a do teatro auxiliava n ã o a pe n as pesquisadores , profe ss ore s e teóricos, mas os próprios a r t is t a s no exercício da cria ção. A s n oções de t eatralidade , performatividade, performance, p re s e n ç a e interculturalismo, t r atad a s com maior ê n fase nes te livro, fora m as chaves co m qu e abriu n ovo s â n g u los d e v isão n o tocan te a o t e a tro re al iz ad o n o fi na l d o séc u lo xx e

início d o XXI. Sem dúvida, é desse ponto de vista que devem ser lido s os ensaios reunidos nes te volume. A prime ira parte da compilação, "Uma Teoria à Procura da P rát ica", centra-se nos modos de relação entre a s duas instâncias e problematiza a descon fia nça em r el a ç ã o à teoria que sempre aco mpanho u os artistas d e te atro . Ana lisa n do a crítica jor nalíst ica, o e nsaio te ó ri c o , a a bo rd a gem sociológica e os es tu dos ele c rítica ge nét ica, Féral d e senha o estado da p esqu is a na á rea, n ã o como m e r o recensea men t o ele possi b ilidades , mas como es tratégia ele investigação d a s muita s vias de acesso ao fe nôme no t e atral. Especia lmen te n o s tex to s " Po r u m a Ge né tica d a E nce naçã o: Ta k:e 2" e "Tea tro e So ciedad e : Da Si m biose a um N o vo Con t rato Socia l" re afirma a nece ssi d ad e d e te ori za r o t eat ro a partir da p r áti c a , o que faz c o m rara propri edade . E m c a m in h o t alve z mais c o n ceit u a I e abstrato, a segu n da parte d o livro é d edicada à exploração das noç õ e s de teatralid ade e p erforrnatividad e. A sequência de texto s d edicados ao tema permite ao leitor acompanhar, de form a privilegiada, o percurso da ensaísta n o aprofundamento d e seu instrumen tal de análise. Sublinhando, inicialmente, a dep endência da noção de teatralidade aos co nce ito s de representação e mimese, a a u to ra e n fre n t a a qu e stã o d e frente em " Per for m aric e e Teatralidad e: O Sujeito D esm istificado': em qu e opõe o conceito d e teatralidade a o d e p erformatividade. O texto a presen ta a p erformanc e como uma fo rça din âmica cujo prin cipal obj etivo é d esfa zer a s c o m petências d o te atro, que tende a ins cre v er o p alco num a s e m iolog ia específica e rrormativ a. C a rac te rizad o p o r estrutura n arrativ a e r epre s entacional, m an ej a có digos co m a fin alidade de realizar determinada ins crição s im bólica do assunto, ao contrário da performance, expressão de fluxo s d e d e sej o qu e tem por fu n ç ã o desconstruir o qu e o primeiro fo r m at o u . Ainda que o pon h a o s dois conc eitos , p erc ebe - s e que uma das principais intenções de Féral é e n fa ti z a r qu e a teatralidade é a resultante d e um jogo de forç a s e n t re duas realidades em oposição: a s e struturas simbólicas e s p e cífi ca s do teatro e os fluxos energéticos - gestuais , vocais , libidi n a is - que se a t u a lizam n a performance e irnpl icam c r ia ções e m pro c e ss o , inconclus a s , ge r-ado ras d e lugare s instáv eis d e man ifesta ç ã o c ênic a. Ao rec us a r a a d o ção d e có d igos ríg id os,

XIV

XV

XV I

AL ÉM DOS LIMITE S

c omo a definição pre cisa da p ers o nagem e a inter preta ç ã o d e u rn t e xto , o p erform er ap r e senta - s e ao es pec tado r como u m s u jei to d e s ejante, qu e e m g e r a l s e expressa e m rn o vi m e rit o s a u to b iog rá ficos e tenta escapar à re presentaçã o e à orga n ização simbó lica qu e d ominam o fe nô meno teatral, lutando p o r defin i r s u as c o n d iç õ e s d e exp r essão a pa rtir d e r ed es d e impuls o . A co n d ição d e eve n to n ã o r epet ív el, q ue se a p rese n ta no a q u i e ago ra d e um e sp aço, é o u t ro prin cípi o d e se p a ração e n t re perforrnan c e e teatro. No e nsa io aqui .r e p ro d u z id o , "A Tea t r a lidade: E m Busca d a Espec ifi cida de da Lin gu a g em Tea tra l", public ad o pela primeira v e z e m 1988 , a e ns a ís ta r e cus a - s e a d efinir a te atralidad e como um a qualid ade n o s entido k antian o , p ertinent e excl usivamen te à a r te d o t e a t r o e pré - e xistente ao o bje t o e m q ue se in v este . Ao c ontrário , d e fende a id ei a d e que ela é co nse q uê nc ia d o pro cesso dinâmi co de teatraliz a ção qu e o o l h a r p r oduz ao p o stular a c r iação de outros es p a ços e outro s suj eito s. Ess e pro ces s o construtivo é resultado de um ato c o n s c ie n te qu e pode partir tanto do p erformer no sentido amplo do termo - atar, e n cen ador, ce n ó g r a fo , iluminador - quanto do esp ectador, cuja visada cria a cl ivagem espacial necessária à sua precipitação. Por meio desse argumento , a ensaísta d efend e que a teatralidade tanto pode nas cer do sujeito que projeta o u t ro espaço a partir d e se u olhar, q uanto dos criadores que instauram um lugar alterno e r equerem um olhar que o r e conheça. Ou d a s operaçõ e s reu nidas de criação e r e c ep ção. D e qualqu er forma, faz questão de s ubli n h a r que a teatralidade n ão é um dado e m p í r ic o o u uma qualidade, mas uma operação cognitiva ou ato performativo daquele que olha (o espectador) e/ou daquele que faz (o atar). E m ensaio recente, " P o r uma Poética da Performatividade: O Teatro Perform ativo", F éral ass o c ia o co nce it o d e performatividade à no ç ão de teatro performativo. Co ns ider a a preponderância dos e studos da performance nos últimos v i n te anos, especialmente nos Estados Unidos e no Canadá, uma resposta incisiva às radicais transformações dos modos teatrais contemporâneos, que romperam com o texto e abandonaram a s estruturas tradicionais. É tamb ém pela via d o p erform ativ o q ue a e nsaís t a pro bl ematiza a r ela ç ã o diferencial d e uma p arcela do te at ro

IN T RO D U Ç Ã O

XV I!

co n te m porâ neo corri a rea li dade . Considera um d o s t r aços característi cos d e s s e s t r a b a lh o s o q ue vê com o a e m e r g ê n c ia do rea l e m cena, fe ita e m geral de forma e x t r ernamerite vio le nt a , por int e r p el a r o esp ectador com brut a li dad e . Para F é r a l, o d enominador co m u m das diferentes formas d e real no teatro é o ca ráter participativ o , q ue defi ne um a r uptura d e cis iv a n o s m od o s d e recepção. Territór io s de experime n tação e j ogo, os "teatros do r e al" c o lo c a m e m a ç ã o n o vas est r a tég ias p ercepti vas, qu e o b r íg a rn o e s p e c t a d o r a e x per imen ta r e viver o teatro e n1 lu g ar d e recebê- lo a pe nas v is ual me n te, o q ue coloca e m xeq ue as fr on teiras tra di cion ai s d o fen ômeno t e atral. A terceira p ar te do li vro é d edi cada à "a r t e d a p erfo rman c e" e aos pr incípio s q ue a fund am entam. Os e ns a ios reunidos n a s e ç ã o p ermitem c o n h e c e r as mudan ç a s d e paradigm a que m a r caram a prá ti c a a r tís tica no final do s é culo xx . Apoiando -s e e m exe m p los re p r ese n t a t ivos, a auto ra desenh a uma rica traj etória e m di r e ç ã o às fo r m a s híbridas da cena de hoj e. E m c erto sen tid o, é uma preparação para a sequência seguinte, que trata de alguns c r ia d o r es emblemáticos do teatro contempo râneo. "A Trave s sia das Linguagens': texto dedicado a Claude R égye Valere Novarina, c o m p a r a os percursos estéticos dos dois artistas , de certa forma antitéticos. Na aproximação entre o e n c e n a d o r e o dramaturgo, F éral não di stingue competên cias e specíficas, analisando Régy c o m o v erdadeiro escritor e N o varin a co mo exc el e n te diretor d e atare s. Dessa comparaç ão intencionalmente paradoxal, deduz um p onto comum: ambos p r etendem reenc ontrar aquilo qu e e x is te "a n te s do di zer e do escrever': na intenção de chegar aos limites do apreensível e do r epresentável. " F r a g m e n tos Identit ár ios" consagrado à obra do artista multimídia Robert Lepage, propõe que o sucesso do trabalho del e deve- s e à capacidade de construir modelos e v a lo res ind ependentes de identidades c u ltu r a is esp e cífi c as . Completando a seção, anali sa em " U m Corpo no Esp a ç o : Percepção e Projeç ão" uma instalação da companhia australiana Urban Dream Capsule, recorrendo a Paul Virilio para compreender os novos modo s d e percepção e apreensão do espaço cênic o. A últim a parte d o livro abord a o interculturalismo e co n textu ali z a o espe tác u lo t e atral e m s it u ações c u lt urais m ai s es p ecíficas, d e te ndo -s e e specialmente no fenômen o de rec epção

XVIlI

ALÉM DOS LIM ITES

i n terc u lt ural, necessá r io para co rn p re e rider a recepção do t ea tro e rn países co m c ulturas rnult i étn icas, co nfronta das corri o fe nôme no da g lo balização. Ao c o me n tar a t endên cia de est udos cult urais exp lo rada, d e m odo inte ns ivo, nas u n ive r s idades no r te -americanas e in gl e s a s nas últi m a s décadas , Féral o bser va que nessa abordagem a pró pri a noção d e te a tro ten de a desap a r ec e r em proveito d o s cu lt ura l studies e d o s perfo rma nce st udies, o qu e indica u ma decis iva muta ç ã o n o dis cu r s o t e óric o ligado à cena, e spec ialme n te e m p aí s e s com g ran de infl uência n orte -a rri e r ic aria, corn o o n o s s o . C OIno s e vê po r esse b re v e apo ntame n to in trod utório , as re flexões d e Iosette Fé ral são fund am entai s para a co m p ree nsão da s imb iose ent re a prá ti c a e a te oria d o teat ro na n o ss a cena c o n t e m po r â n e a . São um co n vi te ao lei to r p a r a q ue pa r t ilhe a análise aprofu n dada d e co n ce itos e criações que pennite m ap ree nder, com m aio r pre c is ã o , o terr itório movediço ela cr iação teatral d e h oj e .

Sílvia Fe rnandes"

Professora do D epa rtam e nto e d o Programa de Pó s-Graduação de Art es Cê n icas d a E C A -USP.

Parte I

Uma Teoria à Procu ra da Prática

1. Teatro e Sociedade da simbiose a um novo contrato social

Receio que rninha comunicação sofra urna fragmentação extrema que constitui precisamente um dos problemas que mais afeta o teatro hoje em dia. Meu objetivo é estabelecer um paralelo - rápido, desculpar-rne- ão por isso - entre, de um lado, um contrato social que sempre ligou o teatro à sociedade; e, de outro, o trabalho que certos departamentos empreenderam para conseguir criar urna ponte entre a teoria e a prática. O paralelo pode parecer distante, difícil de justificar e, no entanto, tenho a íntima convicção de que a história do teatro nos ensina precisamente que, no seio da cultura, os laços entre teoria e prática são objetos de um combate que devemos enfrentar constante e regularmente no âmbito das estruturas nas quais atuamos. Meu desejo é mostrar que a evolução do teatro, em sua relação com o público e a sociedade, tem corno par uma evolução similar no domínio das pesquisas teóricas sobre o teatro.

TEATRO, CULTURA E SOCIEDADE

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Atualmente a Cultura (com maiúsculo) tornou-se o último refúgio de nossas identidades em vias de desaparecimento.

ALE M D O S LI M IT ES : U M A TEO RI A i\ PROCU R A D E PRÁTI CA

T EATRO E SOCIED A D E

Grande s es fo rços c u lt u r a is e po lí t icos s ã o dedicado s , e m numer o s o s país e s , ao prop ó si to de r eque s t ionar a gl obaliza ç ã o e as lei s do m ercado que terr d ern a transformar tud o e m mercadoria. D aí a s batalhas feroz e s que E uropa e Estados Unido s t r a v a m em torno d a n o ção d e exceç ã o c u lt ura l. Q uanto mai s a s nações m a is tradi c ion ais s e se n te m arn ea ça d a s , mai s iInportân c ia é c o n c e d id a à p a lavra "Cu l t u r a". Não é, portanto, de e s p a n t a r que , d e cer ta m ari e i r a , o teatro t enha se tornad o, por s u a vez, a exp re ssão ú lt ima o u, a o rne no s , o trunfo cultural mai s visível que um p aí s p o d e o fe rece r, a lé m do s monumento s que c o ris t itucm s e u patri mâ nio h abitual. E n t re t a n to, ao m e SI110 tempo q ue o t eat r o é um tru n fo c u ltu r a l, portador d e uma iden tidade c u lt u r a l colet iva, ele s e to rna tarnb érn , ao rn esrn o ternp o e paradoxalrn erite , cada vez mais trans c u ltu ral ou mu lt icu lt ural , u ma s it uaç ã o n o mínimo es tr a n h a que exige a lgu ma reflexão. Os g o v e rn os e o s E s t a d o s e m todo s os níveis (nacional, reg ional, muni cipal) e stão de fato muito d e s ej o s o s de most rar até q ue ponto s u s t e rit a rn as a r tes e m ge ral e o t e at r o em p artic u la r, ao rnesrno tempo q ue as e scolas de t e a t r o estão lotada s e os programas de teat ro se mul t iplic am no q uad ro d a s univ ersi dades . Pode -se d izer q ue esse estado d e coisas é realmente o signo do d e s envolvim en to " n a t u r a l" da sociedade c ivil? É essa a c o n s e q uê nc ia lógica de urna prosperi dade aum entada (q ue acaba d e sofrer u m golpe d e es tagnação) ? O u é , ao contrário, a pro va d e uma fuga coletiva p ara long e d a reali dade ? O u a in da, é um dos aspectos da bolha c u lt ura l se melhante à bol ha fina nc e ir a e q u e pode estourar e m um d ado m o m e n t o ? Qualquer que seja a resposta dada a t al questão - eu mesma t e n t a r e i apresentar um pouco ma is ta rde a lguns elementos d e resposta a tais ques tões - des de lo g o p are c e q ue o te a t r o fa z parte d e um e s q u e m a rnuito elaborado e m que inte r v êm fatores históricos, p olíticos e e c o n â m ic o s cujas imp licações vão além das simples e s fe r a s estéticas ou ins t itucio nais . Te ntare i esboçar s uas p ri n c ip a is linhas. O te atr o si tua-se no centro d e um a est r ut ura co m p lexa q ue p ode ser descrita como um triângulo p olítico que com pree n de em u m vértice a q u ilo q ue c hamaremos d e in d ú st ri a (comb inaçã o d ifícil da arte e do dinheiro ) , no o u t ro ângulo a sociedade (c o m b inaç ã o difíci l d o público e do E stado) e, enfim , no terceiro

â n gu lo a crítica (combin a ção difícil de j o r n a lis m o e de pesquisa) . Ess e tri ângul o c onhe c eu difere nte s va r iações no tem p o e no espaço, algumas das quais merecem que nos d ebr u c erno s sob re elas, pois s e acham no co r a ç ã o do qu e eu g o sta ria d e d es c re ver co m o sendo a demanda q ue a sociedade fe z a o teatro n o c u rso do ú ltimo séc u lo e m e io . Situarei , por certo, e s t e estudo no exclusivo quadro do teatro ocidental e u ro p e u - e alea to r ia men te norte-americano - que conheço um pouc o mais . D ist inguirei, d e maneira mais ou rneri o s a r b it r á r ia, trê s fases de exigências feitas ao te a t r o pela s oc ie dad e . a . Um a primeira f ase poderia ser ca rac te riza d a p elo m omen to na história em que o teatro era considerado co m o puro divertimento. Em outros termos, não h av ia encomenda so ci al específi ca e o teatro era visto essencialmente COIno u m objeto de consumo destinado a s e r aprecia do no p re s e n te , sem nenhuma c o ns ide ração do q ue p odia precedê-lo e segu i-lo. Ess e "grau zero" da d emanda social p ode r ia ser d e fi n ido como um puro período d e divertimento . Durante todo o séc u lo X IX, apesar d e a lg u mas c r is es q ue tiv era m poucas cons equê n cia s , a não ser quanto aos as pectos d a história lite r á ria (B a talha d e H ern a ni , por exemp lo), a n atur e za d a relação qu e unia o t e atro e a sociedade parece ter sido muito s imples. As pessoas ia m ao t ea t r o , em grande número, com a convicção d e que este e ra u m lugar de d ivertimento coleti vo. E m bora as m an ife staçõ e s , como ca fé -concer tos, salões d e baile, mostras , feiras , exp osiçõ es univ ersais , co rridas, c rescessem em importân cia à m e dida que o séc u lo XIX chegava ao fim, o teatro co ncentrava, n ã o o bstante, toda a atenção do púb lico. Todo au tor que se respeitasse queria escrever peças (mesmo Balzac, Fla u ber t e Zola experimen tara m fa zê -l o , sem grande s ucesso) e ga n har din h eir o - p o is era aí que se e ncont rava a possib ili dade de enriq uecimento. É bastante sign ificativo o fa to de que n umerosos d ramaturgos c ujas peças a lcançaram im e n s o êxito sej a m h oj e es q uecidos a justo t ítulo , enqu a n to a u tores q u e h oj e re p resen tam a literatura con heceram insucess o s impo rtantes. O teatro con tin ua se n d o um acessório q u e não prob le m a t iza o contrato soc ial, u m a ima g e m d a f u nção si m b ió t ica d a a r te em seu n ív el mais acadê mico, fi r rnerne n te e ntrincheirado a t rás dos r it u a is sociais e da ordenação das coisas tal como projetada por uma sociedade burguesa em seu ápice. Tal situação

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AL EM DOS LIMITE S: U M A TEO RIA À PRO C URA D E PRÁT ICA

era verdadeira em todo o Ociden te, em conj unto, que r seja pe nsa ndo em Paris, Londres ou Viena. b . Uma segunda fase pa rece surgir com o "teatro de arte" e as emp rei ta das cé n icas dos simbolis tas d urante o "[in de si écle" e se estende até os anos de 1960. Os simbolistas, no período a n terior à Primeira G uerra Mundial, cujas ram ificações vão a té depois dessa conflagração, p usera m e m r el e v o q u e as o b ras deviarn ser d e ar te, apon tar para re ali d ad e s s u periores e mis t er io s a s . Ta l ideia foi compart ilhada pela m a io r par te d o s in t el e ctuai s da época, o q ue acarreto u o s urgi mento de peças mais "s é r ia s" e o d e s a p a re ci merrto de ur n públic o que bus c ava n o te atro seu d tve r tirn e nto . O cine ma re ve zou com o te atro , p assando p or s u a vez a d esem p enha r seu p a p el n o d omínio do e n t re te n ime n to até que o s "filmes d e arte" a pa reCera lTI nos a nos d e 19 5 0: g ra n des pelíc u las v ie ram e n tão à luz, mas, já àquela a lt u r a , o públic o d e ci ne ma co meça va t amb ém a diminui r. Durante este período, o te at ro é consid e ra do cad a vez m ai s como urn a a r te e n g aj a d a - no s e n t id o mais amplo do termo. As exigências em relação ao teatro se tornaram mais precisas. Es p e r a -s e doravante que ele diga a Verdade: sobre o Homem, a Sociedade, a História. T u d o é posto em questão, não h á mais n enhuma certeza que seja e viden te e o teatro participa desse vasto qu e st ionarriento. E le deixou de s e r um acessório do contrato socia l: "tornou- s e um lugar e m que o próprio contrato s o c ia l é posto e m questão e s e vê analisado e apresentado em termos que lhe s ã o próprios d e sua tessitura dramática e de sua visibilidade cênica. Não é de es p a n t a r, por c o n s eg u in t e, que o Estado esteja e n volv id o, quer volu n t a r ia m e n te, quer involuntariamente , n o s n egócios teatrais. E n q u a n to seu papel anterior estava limitado à censura e à distribuição de fundos públicos a um pequeno grupo d e c o rnp a ri h ias, ele se torna agora um parceiro condenado a intervir no cam p o a r t ís t ico. Durante todo esse período, o Est a d o veio a a ssurnir o p apel d e g uar d iã o d o futuro, ao passo que antes seu papel se acantonava no presente. Autores, encenadores e crítico s ficam doravante à e sp e ra do que o teatro fale não s o m e n te do est a d o de nossa sociedade, mas do que ela poderia vir a s e r. A o rnesrno tempo, o Es ta do se p õe a investir p esadamente nas ins t i t u ições que e r a rn c o ns ide rad as co m o representante s das n ova s rn o d a liclacles d e um co n t rato s ocia l vindouro - um fu tu ro

TEAT RO E SOC IEDADE

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luminoso que o Estado e os político s p o d ia m n os ajudar a realizar. Instala-se um gênero d e utopia em que os teatros o c u p a m um lugar c entral n o s novos modelos de cidades, delineadas segundo concepções que colocam em jogo relações sociais reo rganizadas de maneira ideal: o teatro devia ser "p o p u la r" em um sentido altamente míst ico e os teatros iriam deslocar os lugares habituais de r itual. Malr aux c r io u, por exemp lo, com b as e n e ss e p r in cípio , suas "casas d e c u l tu ra': conside ra das como catedr a is . Do mesrno modo, o teatro v ia-se d ota d o de uma nova m iss ã o , a d e re in terpretar o passado e p edir- lhe s uas liçõ e s (o u s ua mensagem): d o s g regos a Gold o n i, desco bria - se de sú b ito n o s t extos a n tig os urna n o va p ertin ência que j usti fic ava s ua a p rop r iação. É a í que um novo par c ei ro se junta ao co n t rato s ocia l: o p e squis ad o r é d aí para fr ente d e si g n ado para oc upar o p ap el d e intermediário entre o pres ente d a s o ciedade e se u passado . A de mais, n e sse n ovo p apel d o intele ctual que lh e é a t r ib u ído, pedem-lhe t amb ém que prediga o p orvir. É o m omento e m que o estudo do teatro começa a atrair grandes e sp írit o s críticos formados originalmente nos moldes acadêmicos tradicionais (Dort, Barthes, Steiner etc.). O teatro não é mais um lugar d e negócios. O teatro tornou- s e uma coisa p or d emais s é r ia para ser deixada para comerciantes. c. É assim que nos vinte ou trinta últimos anos , o teatro tornou -se uma das vias privilegiadas por numerosos país es para exprimir o r espeito à s u a identidade cultural. Novos t eatros foram c o n s t r u íd o s , festivais vieram à luz, e scolas viram suas subvenções serem aum entadas d e maneira s u bs ta ncia l, os E s t ados, o s g o vernos estabeleceram políticas d e apoio e instalaram novas burocracias que s e consagram ao desenvolvimento e à gestão da empresa teatral. Somas importantes foram de repente postas a s e r v iço de aventuras culturais e n t u s ias m a n te s. O t eatro v iu -se de súbito co m o e nca rgo d e novos valores e das ex ig ê n c ia s das sociedades pós -modernas: su b s t it u in do em seu palco o contrato social vigente em se u início, o teatro deu o r igem a comunidades que se auto -organizam e mudam de forma, de es t r utu r a, e cujos participantes atuam s e m co n trole externo . O que os liga é um contrato comunit ário c u ltural. A época q ue eles o c u pam e que eles qu erem que o teatr o represen te se este n de do passado ao futu r o . O que se esp era d o te at ro , à sem elhança

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AL.IÕM DOS Ll MI T ES : U M A TEOR IA À PROCURA DE PRÃTlC A

dos con1p u tado res e d o s s iste mas, é uma rne rn or ização to tal: qu e se lemb re d a totalidade d a c ultura tanto quanto efe t ue um a e x p lo ração d o d e s c onhe cido. C a da um dele s está n a m e sma sit uaçã o que os es pec ta dores do film e Phantom M ena ce (A meaça Fantasma ): p o ssuídos p o r um fu tu ro comp lexo e indefinido c ujo p a ssado e les q u e re m co n h e c e r, ambos os as pecto s (passado e fu tu ro) a parece m da forma mais e s t ran h a p o ssí vel, inclusi ve sob a forma d o o u t ro que doravan te faz p arte da maquinaria c u lt ural! t ranscultural que nutre o teatro p ó s-moderno t anto quanto a s sociedades p ó s - m odernas . Este ráp ido sob revoo não tinha o u t ro o bjet iv o s e não s u b linh ar o paradoxo q ue co nst itu i hoj e a s o b rev ivên c ia do teatro, m esmo que el e tenha s id o campo d e batalhas que d uraram quase dois sécu los e n t re duas tentações co n t rá r ia s: de um lado , o atrativo d e u m teatro popu lar; e, de o u tro, de um te a tro clandestino reservado a uma elite. Nos dois c asos , a existência do teatro repousou s o b r e re laçõ es ern c o nst a n t e mudança, elas rrresrnas p r es a s em u m a rede d e desejos e asp irações camb iantes. A q uestão que se colocava era saber q uais e str u turas surgiram, simbólicas o u n ã o , q ue p o d iam apoiar u m a forma tão in stáv el ? A resposta reside n o desenvolvimento, em cada etapa q ue n ó s sublinhamos, de relações " in d ust r iais': estando entendido q ue as estruturas simbólicas s ã o sempre a s primeiras. As estruturas sociais (governamentais, cornunitárias) estão sempre em atraso com respeito às aspirações das coletividades. Prova disso é o fracasso d o s palcos g iratórios co nstruídos a c ustos astronômicos, assim corno num e ro s o s empreendimentos que d eviam responder às novas necessidades do teatro moderno, no rnomento exato em que os modernos optaram por formas pobres. O q ue foi dado testemunhar através dos séculos é u m a evolução d o teatro desde uma posição d e simbiose com o público e com a sociedade, até u m a ruptura entre esse mesmo público e o t eatro, entre o teatro e a s o ci ed a d e . Foi nesta r u p tura mesmo - e por causa dela - que o s Estados e os gover nos co nseguiram se imiscuir, dando origem a u m novo con trato social q ue o briga o teat ro a respon der a objetivos particu lares: o de se d irig ir a u m público cada vez mais amplo. Nesta b u s c a da cultura, em seu aspecto mais vasto, o sentido do te atro como arte se perde um pouc o. O t eatro d eriva lentamente , mas s e m dúvida, parec e, para as margen s d e uma

TEATRO E SO CIEDADE

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sociedade que tern de lutar a cada dia para reconduzir esta q ues tão ao se u centro. Tal si t uação v a i d urar? O que ela significa para pessoas q ue trabalha m n e ste d o m íni o e - final mente - como p o d e m os estu dos teat ra is n o s aj uda r a co mpreen de r o q u e se passo u, bem con lO n o s ajudar a pro ceder d e rn o d o qu e o t e atro p e rm an e ç a fi rm e me n te no centro d a s soc iedades p ó s -mode r n a s?

OS ESTUD O S S O BRE O TEATRO É intere ss ante nota r qu e tudo q uanto a cabamo s d e dizer acerca

da evo lu ç ão da relação e n t re o t e atro e o Es tado, e n t r e o te atr o e o público, tem o s e u p endant nos e s t u d os sobre o t e a t ro e n a relação que tais estudo s mantêm co m o exe rcício d a profis s ã o, ao mesmo tempo q u e se r ej u n t a m, n o nível teórico, a s cl ivagens e evolu ções constatadas na prátic a . a . Até a rn etade do séc u lo x x, numerosos estudos efetuados no domín io d a pesquisa teatral não operavam a cli vagem à qual assistimos h o j e entre estudos teóricos e a profissão. Os estudos de Lope de Vega, Boileau, Voltaire, H urne, Diderot, Rousseau, Lessing, Schiller, Goethe, Hurnbolclt', por exemplo, para c it a r Ve r o s estudo s d e [odelle (L'Eugen e, 1552 ); La Tai lle (De l'Art d e la tragédie [A A rte da T ragéd ia ], 157 2) ; Lope d e Vega (L'Art n ou veau d e co m poser d es pi êccs en ce temp s [A Nova Arte d e Compor as Peças Nesse Tempo], 16 0 9 ) ; Labb éd i\u bi gnac (La P ratique du th éâtre [A P rá tica do Teat ro ], 16 57 ) ; D rydcn (Essai su r la p o ésie d ramati que [E nsaio Sobre a Poesia D ramática], 16 6 8 ) ; Boileau (L'Art po étique [A Arte Poética], 1674); Ricco bo n i (De l'Art de repr ésenter [A Arte d e Represe nta r ], 1728); Voltaire (D iscours sur la trag édie [Discurso sob re a Tragédia ], 1730); Hume (Disser tation su r la tragédie [D isser tação Sob re a T ragéd ia], 17 57) ; Diderot (Le Para d ox e su r li! co médie n [O Parado xo d o A tor], 17 7 3 ) , Rousseau ( Lettre à M . d'Alembert su r les spectacles [Carta a M. d'Alembert So bre os Espet áculosj): Lessing (Dramatu rgie d e Ha mbourg [Dramaturgia d e H amburg o ], 1767); Beaumarc hais (Essa i sur le genre d ra matique s érieux [Ensaio Sob re o Gênero D ra mático Se r ia 1, 1767); Sc h ille r (P réface de B rigands,178 1); Goethe ( Trai té sur la p oésie ép iq ue et la poésie dramatique [Trat ado Sob re a Po esi a Ép ica e a Po esia Dramática], 179 7 ) . H á igua lmente esc r itos que se seguirão no sécu lo X IX: Humboldt ( De lét at ac tu ei d e la scé ne trag iq ue française [O Es ta do A IUal d a C ena Trágica Francesa ]) ; Sc h legel (Cours d e litt érature drama tique [C urso d e Lite ra tura Dramática], 1808); Manzoni (Lettre à Mr C. su r l'unit éde tem p s et de lieu dans la trag édie [Carta ao Mr. C. Sobre a Unidade do Tempo e o Lugar da Tra-gédia], 18 23 ); Stendhal (Racine et Shakespeare, 18 23 ) ; H ugo (Préface de Cromwell, 1827); Wagne r (L'Oeuvre dart davenir [A Obra de Arte do Futuro], 1850; Op éra et drarne, 18 52 ) ; Zola (Le Naturalisme

ALIôM DOS LI MITES: UM A TEOR IA À PROCURA DE PRÁTI CA

TEATRO E SO CIEDADE

a penas a lg u ns m orn erito s forte s d a reflexão sobre a p r á t ic a do te atro , p a r e ciam , n o m omento d e s u a p ublicaç ão, esta r em con tato d ireto co m a prática. Pre o c upavam -se co m o jogo do a tor, co m a poesi a d r a m á ti c a , co m a tragédi a, t e n tand o d efin ir o s parâme t ros mais a p r o p r ia dos a o teat ro de u m a é p o c a . A s p ontes e n t re a re flexão s o b r e o teatro e a p rática a rtís ti ca p a r e ci am , s e n ã o fo r tes, a o me nos r e a is , se b ern q u e a lg u é m c o m o D ide rot , h o m e m de teatro e não o bsta n te pe n sador, p odi a se n t ir-se pro fu n da me n te in teress a d o por to d o s o s a s pectos d o a c o nte c im ento te a tral: pelo texto e pelo jog o d o a ta r. A té filóso fos c o m o H egel (Es té tica, 1832) e N iet z sc h e (O Nascimento d a T ragédia , 18 71 ) p o di am a bo r d a r que stõ e s d e es té t ica t eatral, perman e c endo ao m e srn o temp o m ais pró xim o s d a profis são e da arte tal com o e ra p rati cada ou tal c o mo d e sejavam qu e o fo s s e.

[ .. . ] Desde então nerih u rn prévio acordo fundamental sobre o estilo e o se n tido d esses es petác ulos existe m ais en tre es pec tadores e homens de tea tro . O eq uilíbrio entre a sala e a ce na, entre as ex igê ncias da plateia e a or de m d o palco, não é mais co locado co mo pos tu lado. C umpre recriá-la a ca da vez. A p ró p ria est r ut ura da d em a nd a d o p úblico m o d ifico u -se. Uma mudança d e atitude e m relação ao público se p ro d uziu .'

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b . O s é c u lo xx perdeu um pou c o d e sta simbiose e n t r e a r eflex ã o teó r ic a sob re o teatro e a p rofis são artística no decorrer d os a nos por caus a de urria sé r ie de rupturas ou d e deslocam entos qu e cristalizaram um desvi o que foi se ampliando. Um a primeira ruptura coin cid iria, na ordem do saber, com o m ornento em que a prática artística perde, por sua vez, o contato direto c o m o seu público, n o fim do s éculo X I X . OS públicos se d iversifica m e n tão; a práti ca a r t ística n ão é algo que se impõe por s i, e n q uan to o enc enado r e merge como o m ediador e n ca r rega do d e preencher o desvio que se a b re e m face d e um teatro que s e afirma como o b ra de a r te. B erna rd Dort, na Fr ança, foi um dos primeiros a a nalisar t al entrada d o te atro n a esfe ra estética, notando tratar-se d e um sa l to qualitativo que afetav a a prática. Dort explica o s u rg imen to da nova função de e nce n a d o r no fim do século XIX pelo d esvio q ue se pronunci a doravante en t re o teatro e se u público. O teatro

não está m ai s a í p a ra en viar ao p úblico a imagem global e un ifo rme d e se u d esej o o u d e se u gosto p el o divert imento , mas ele se afir m a co m o o bra d e arte, como ob ra esté tica [. .. ] uma relação diferente [... ] in st itui -se no teat ro e n t re o es pec ta d or e a produção teatral'.

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a u th éàtre [O N a tur a lis m o n o Tea t ro], 18 81); St r in d b e rg (P réf a ce à madem oi seIle Ju lie ); Jarry ( De l'in tit u l é du th éâtre au th éãtre [Do Título d o Te a tro d o Dram a], 1899); A p p ia (La M usique e t mise e n sc éne [Músic a e Ence nação]). B. DOrI , La Condition soc iologiq ue d e la m ise en scerie t h éât ra le ., Th éátr e réel: Essays de critique, 1967-19 70 , Paris: Seu il, 1971 , p . 58 . (Trad. b ra s .: O Teatro e S u a Realidade, 2 . ed. , São Pa u lo : Pe rspectiva, 20 10 . )

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A pista a be r ta po r D ort é i n teress ante , pois el a rea liza um a re v oluç ã o que d e re pe n te fa z d o te a t r o n ã o s ó o resu lt ad o d e uma evoluçã o in tern a e m urn c a m p o art ís t ico d ad o - o qu e as p e squis a s habitu ais tendem a pro v a r - mas tamb ém de m u dan ças ex te rnas que a fe tam a soc ie d a d e e s ua rela ç ã o co m a a r t e . E la r eins creve a evolução t e atral e m uma relaç ã o c om o ext r ateat ral e , mais p art icularrri ente, c o rn a sociedade , que con ti n ua s e n do um dos fatores mais d eterminantes. Não c aus a esp a n to que essa s rnudariças externas afetem tarnb érn as pesquisas te óricas no domínio teatral. c. Alguns anos mais tarde, ver-se-à aparecer, n o domínio da reflexão sobre o t eatro, os prim eiros esc ritos que registram uma preo cupação propriam ente teórica ligada n ão mais a o fa z er teatral, porém à sua apreens ão como fenôm eno a se r apreen dido, c o m p ree n d ido e interp retado. O â n g u lo d e preocup a ç ã o d eslocou-se d o "a r t is ta que c r ia" ao e sp e ctador qu e recebe e analis a. O s primeiros t exto s de Polti no começo d o s a nos d e 192 0 (L es T re n te -six sit u a t io ns dramatiqu es - As Trinta e Seis Situaç õ e s Dramátic a s ) , o u os d e Mukarovs ky n o s an o s d e 19 3 0 (A r t as Se m io tic Fa ct - A r te como Fato S emióti c o ) o u a in da o s de E . Souriau (Les D eux ce n t mil/e situations dramatiqu es, 1950 - As Duzentas Mil Situações Dramáticas), de André Villiers (La Psychologie d e Tart dramatiqu e, 19 51 - A P sic ologi a da Arte Dramática) ou m e smo de Veinstein (La Mise e n sc êne th éâtral e et sa condition es th étiq u e, 19 55 - A Encen a ção Teatr a l e Sua Condição Estética) consti tuem a s diversas e tap a s de um perc u rso que vai afastar a s pre o cupações dos pesquisadores da prática propriamente dita. Esta tendência prosseguirá com Peter Sz ondi (Teo ria dos Dramas Modernos, 195 6 ) , Eric B entle y (ln S earch of

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Ib id em , p . 61.

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TE ATRO E SOCI E D A lJE

ALEM DO S LI M ITES: UMA T EORIA À PROC URA DE PRÁTI CA

Th eater, 195 7 - À Proc u ra do Teatro), Nor t hrop Frye (A natomy ofCrit icism, 1957 - Ana tomia da C rítica) e tan tos o u tros. De fa to, a figur a qu e e merge d e todo s e sses esc r ito s é a d e u rn pes q u isado r q ue se to rn a em p r ime iro lu ga r co mo crí tico, d istan ci a n d o - s e cada vez mais do p r o c e s s o d e criação pa ra se i nteressar apenas pela obra aca bada . A r e p r e s enta ç ã o teatral se torna obj eto d e olhar e rn uma esfe ra esté tic a mais a m p la. O p ró p rio Ro la n d Bart hes, c u jas a ná lises judic io sas sob re a ar te d r a mática m arc aram os a nos d e 19 6 0 (Sur Ra cin e , 19 6 0 Sobre Racin e ; até se us Essa is critiq ues, 197 2 - E nsa ios Críticos ) , não esca pa a es ta te ndê n cia . O te a tro t ornou- se o b jeto d e UITI d is curso crític o d esligado da arte d e fa z er e c entrado n o o lh o do e spectador. Ora , e sse e s pec t a d o r se diversifi cou, a ssim c o mo a práti ca a r t ís t ica que o cerca . E s ta se tornou múltipla, fragmen tária, exp lo d id a . N ã o h á mais um teatro único. Não é mais poss ível, p o rtant o, fal ar co m uma s ó v oz p ara dar c o n t a d e encar a r se u porvir, c omo W a g ner podia fazê -lo no firn do século X IX em um texto maior, A Obra d e Arte do Futuro (1850). E s t a visão e n g lo b a n te não pode mais ter curso. Ela será bom bardeada pelos discursos críticos que vão se seguir, discursos que são obrigados a se div ersificar para refletir a diversidade m esma das práticas que lhes se r v ir a m de objeto de e studos. d. A segunda metade d o século xx e mais particularmente o s anos d e 1970 e de 1980 a ssinalaram, sem dúvida, o ponto de suspensão desta ruptura que eu gostaria de tentar explicar aqui. Para s er exata, convém dizer que tal ruptura que os estudos teatrais regi stram no s é c u lo x x não deve fazer esquecer que outra corrente perdura, aquela que os séculos anteriores desenvolveram e que dá a palavra a artistas preocupados com sua própria arte. Assim, os escritos de Antoine, de Gordon Craig, de Meierhold, Marinetti, Cop e a u, Appia, Piscator, Brecht, Artaud, Batty, Decroux, Dullin, I ouvet, B arrault, Brook, Grotowski, Boal, K antor, F o e Foreman, que pontuam nosso século, c ori tiriuarn a inscrever-se no domínio dos escritos sobre teatro uma tradição preocupada com a arte do artista (ator, encenador ou c enógrafo ). E n t r e essas duas c orrentes (aquel a que se debruça so b re a a rte de fa ze r e a q uela q ue a co n ver te n o o bjeto d o o lh a r), o desvio i rá se amplia ndo no cu rso dos a nos.

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A repetida importância conced ida aos estudos teól-icos em m eado s d o s anos de 19 6 0 vai cristalizar a ruptura de m aneira ain d a rn ais acentuada. C o m efe ito, sa bem os q ue as pesquisas sobre o teatro, no sen ti do que a tribuímos h oj e à palavra (estu dos teóricos sobre a prátic a da a r te), são um fenôm e n o recen te na maior parte dos p aís e s e u rope us, n a Am érica do No rte e, pro v avel rn e nte, n o Bra sil do mesmo mo do. Isso é conseq uên cia d o s ú b ito lug ar dominante co ncedido à t e orizaçã o n a virada d o s a n os d e 19 6 0 , ela própria a r eb oque das pesquis a s literárias , n a é poca, no c a m po da s emi o lo gi a d e um lado e, d e o utro, n o s esc ritos de Derrida, Kriste v a e Lacan. Ta is influências maiore s (m a is fortes na Am érica do N orte d o que na Europa) , quer tenham ou não marcado fortem ente o teatro, quer t enham s i d o s eguidas ou não ao pé da letra, não deixaram d e in fl u ir tamp ouco e rn u m certo modo d e p ensar o teatro. Elas impõem um grau de teoriza ç ã o que vai cortar ainda mais a relação do fenômeno teatral com a profissão. O s estudos teatrais giram então em torno da representação como objeto acabado, submetido ao olhar de um espectador encarregado de dissecar seus componentes e o sentido (escritos d e Pavis, Ubersfeld, Helbo, De Marinis, Kowzan, Cole, Elarn ):'. Quando as pesquisas não são de n ature za semiológica , e las são quer sociológicas ou antropológica s (Duvignaud, Burns , Gourdon, Deldime) S, quer descritivas e analíticas (Gouhier, Veinstein, Bablet, Aslan , Jacquart, Bariu)", ou poéticas (Charn ber, Durand)7, históricas (Roubirie) ", ou ainda psicanalíticas. É 4

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A . Ubersfeld, L er o Tea tro, '977; P. P a ví s , Probl êrn es d 'une sémio logie th éâ t ral e , '975, A A n álise dos Espet ácu los , 19 9 6 ); A . H elbo , Sémiologie de la représenta tion , '975; D . Cole, Th e 7h eatrical Even t (O Even to Teat r al , 19 7 5); T. Kozwan, Sémiologie d u théâtre ' 9 90 ; M . de M arinis. J. Duvignaud, Sociologie du th éâtre, 19 63 ; E . B u rns, 7heatr ica lity: A St u dy of C o n ve ntion in th e Th ea te r and Soc ia l Life (Tea t ralidade: Um Estudo d a Convenção n o Teatro e n a Vida Social, 1972); A .M. Gou rdon , Thea t re , Public, Perception, 19 8 2; R . Deldime , L e Ouatri êrne mur; regards s ocio log iq u es su r la relation th éãt ra le, '990 . D. Bablet, La M ise e n sc éne co ntem pora ine ( A E ncenação Contemporânea , 1968); O. Aslan , LlActe ur au xx êrn e si écle (O Ator n o Séc ulo xx , 19 74 ) ; E. Ja c qua rt, Le Th éàtre de d éri sion (O Teat ro de Escár nio. 1974); G . Banu . H . Gou h ie r, L'Essence d u th éátre, ' 9 4 3; R. C harnbers , La Com édie au ch âteau: Contribu tion à la po étique du th éâtre, ' 9 7'; R Dura n d , La Relation th éâtra le ( A Rela ção Tea t ral, 19 8 0 ; A. Veinstein. Le Th éâtre exp érimental, 19 6 8 . J.- J. R oubine , l n t rodu ction aux grandes th éories du th éátre , '990 .

A L ÉM D O S LIM ITES: U M A TEOR IA A P RO C URA DE PRAT ICA

T E ATRO E SOC IE D A D E

e v id e n te que o s estudo s te a t r a is parec em a ss irn imp ortar matri zes tomadas de empréstimo a outras discip linas para melhor a nalisar se u obje to . Esses métodos de aná lise sofreram contragolpes de uma s u s pe it a gen eralizada que abarca t odas as teorias totali zante s , qu er sejam d e natureza política, ideológ ica, científica, literá ria o u ar tísti ca. Não há mais teo ria unificadora, globalizante, se não as d e ideologia forte. Há muito s anos, o bser va -se um a f r a gm enta ç ã o d a s teorias h om o g ê n e a s d e exp licação e de a ná lise e o s urgimen to de abordage ns teóricas mais pa rcelares, c uja bus c a é menos a de refere nciar parâ met ros co m u ns a vários fenô menos d o q ue sub li n har as espec ificidades. É pre cis o , p o is , a d m it ir d efinitiv am ente que hoj e e m dia não pode e xisti r teo r ia c ie n tífica e g lobaliz ante d o te atro. Apena s uma multiplic idade de a bordagens te óricas diversas que se a pl ique m à prát ica d o te atro p ode ci rc u n va lar s ua n ature z a , traz endo cada uma delas um a il umina ç ão diferente , mas sempre limitada. E m toda abordagem do fen ômeno teatral, s u b sis ti rá sempre um "resto" que escap a r á a toda apreensão teórica, por mais c o m p le ta que sej a. Se m dúvida, é d e tais limites inapreensíveis da cena , do "dem as ia d o': do "ex cesso': do "excedente", q ue vem o prazer do teatro . Mais d o que e m qualquer outra form a de arte, esse d e s fr ute se deve precisame n te a tal p arte irrep re s entável n o dis curs o crítico, a esse n ã o pre vis ível, a esse fl ou que constitui s u a essência . N u merosos discurso s c r ít icos (s ociolo g ia, sem io logia, psicanálise, so c iocrít ica, t e o ria d a r e c epç ã o ) tentaram, não obstante , fazê- lo, pro cur ando ce rcar a multipli cidade da repre s entaçã o , privilegiando o r a um, ora outro dos discursos cên ic os (o t exto , o espaço, o jogo d e atua ção, a relação com a s o c ie d a d e, com o espectado r), mas n e nhum d el e s conseguiu e d ifica r c onceito s e n o ç õ e s q ue possam d a r con ta a deq u a d ame nte da totalidade d o sistema. O te at ro per m ane c e u m sis tema flou, dificilmente d efinível. É in ter essan te o bservar, n esse c ap ítulo particular d a que stã o , que o teatro n ã o produz iu ci ência que lhe seja própria, capaz d e le v a r e m conside r a ç ã o tod as as fa s es d e s u a el aboraçã o . Privileg iando sempre um aspecto o u o utro, as d iferen tes a bordagens foram se m p re parcelares ou fragmentárias, constrangidas a ignorar seja a fase de produção (o fazer), seja a da recepção (o receber).

De fa t o , h á u.m v azio n e s ta irriagern, re lativa rne nte lisa, se m maiores asperezas, aqui apre sentada. É que, a desp e ito d esta diversificação de instr umentos, s istemas e conceitos inventados para nos ajudar a apreender a natureza do teatro, há urn em que nossas pesquisas s ã o , se não inexistente s , a o m enos rudimentares, e el e diz respeito à produção do teatro mesmo. C o m o s e faz uma criação? O que se passa durante os ensaios? O que determina as escolhas do encenador? As do a tor? Poucos pesq uisadores escolheram esse domín io como c ampo de explo ração. Segue-se que, se u rn a ciênc ia do teat ro - e, p o rtanto , urna teoria do teatro - deve exist ir, e la só pode se f u ndar sobre visões múl t i pl a s q ue dividem o d o m ín io do t e a t r o e m cam p o s dis t i n tos. É p r e c is o esforça r-se p ara qu e essas v isões não sejam cortadas d a p rópr ia prática e q ue se d eb ru c em sobre o ato m e sm o d e c r iação d e um a o b ra.

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e . A e me rgência d o teatro co mo p rát ica n o seio d a univ ersi d a d e , a c r iação d e d eparta m en tos p a r a fo rmar artista s com o desígni o d e vê- los integrar a profiss ão - fen ômeno mais difun d ido na América d o N orte d o que n a E u r o p a - é algo r e cente: h á uma v in te na d e anos n o Queb ec e h á um pouco mais nos E sta dos Unidos . Est a abertura para a prát ic a no s e io d a univers idade c orre spondeu, sem dúvida , a um d e s env o lvim ento d a s m entalid ade s , que recon heceram a p o s sibilidade d e e nsi n a r n o â m b ito da un iv ersidade a s div ersas fo r m as artíst icas e a c r iação. P ouc o comum n a E u rop a e m u ito con testa da pela s escola s p rofiss ionais a g uerridas (conservatórios e escolas n a cionais d e teatro ) , esta fo r mação prá ti ca nas univ e rs idades p odia le var a supor que u m a aproximaçã o ir ia operar-se e n t r e a prática e a s p esquisas t eóric a s . Ora, c u m p re r e a lmen te admitir, ao c abo d e ssas últimas dez en a s d e a nos, que o c orte s u bsis te e fe t ivamen te n e sse s departamento s multic é fal o s q ue d e v eriam a n tes ser integradores. Com efe ito, t em o s d e a d mitir q ue, a pesar d o s esforços e da prolifera ç ã o d e práticas e dis cur s o s te órico s , s u bsis te uma t en são ent r e p r ati c antes (a profis s ã o ) e teórico s (es t u d os terci á rio s d e d r ama ) . Tal tens ã o é difu s a e n ã o l e v a a uma confro n t ação aberta, q ue po deria ter o corrido h á q uase vinte a nos, no t emp o do im p e r ia li s m o teórico; mas a tensão subsiste sob a superfície, e emerge mesrno nos debates mais triviais .

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A Lf. :- l DOS LIM ITE S: U:-1A T EO R IA À P RO CU RA DE PRATI CA

Ta l tens ã o p arece provir mai s de uma atitud e m e n tal d o que d a n atu re z a e fe t iv a d os pro c e s s o s d e pe nsa me nto q ue o discurs o práti co e teóric o envolve . Quero diz e r CO In isso que o dis cu rs o te ó r ic o, qu alqu er que seja s ua n ature z a , p e r l11 an e Ce p ara a mai oria dos p ratican tes co rno Ul11 ex ercíc io s usp e it o d esde o in íci o , tendo pouca influên cia sobre a prá t ica. M e srno que se pos s a se n t ir um a evolução n o d om íni o da própria teor ia, d evido e m grande p arte às tra n s fo r m a çõ es m ai ores qu e ocor re ram n o s último s anos n o d om ín io d a te oria, a s usp e i ta co n t in u a a í em estado larv ar. E la se t r aduz a m i ú d e por uma ign orân ci a recíproca e por um n ã o re c orrhe cirnerito da utilidad e d e uma form ação te óric a para o ato r. O tale n to ap o ian do -se e m um a técnica sólida - p ermanec e a in da e sem p re um do s valore s dominante s do me io profissional. É por c a us a d essas carências no domínio dos est u d o s teóricos qu e o m eio profissional s e desinteress a da t e oria. É talve z p o rque a teoria não ernpree nda s u fic ie n t es esfo rços para s e interessar pela prática, pelos aspectos importantes dela , que poucos praticantes se interessam por ela. Urna das soluções desse d ilema pode implicar a defi nição de campos de pesquisa dentro dos quais praticantes e teóricos poderiam colaborar a fim de desenvolver novos conhecimentos e, o qu e é rn a is importante, realizar juntos ex p e r i me n t o s. Aplicar amb o s os tipos de conhecimento - do artista e do pesquisador, que são diferentes em natureza - poderia levar a um relacionamento complementar mais do que antagônico e enriquecer tanto a teoria como a prática. O teórico contribuiria c o m seu con hecime n t o analítico - c o n c e ito s , metodologias, perspectivas históricas - enquanto o artista contribuiria com seu tipo de conhecimento, que é mais pragmático, sobre o palco e os textos dramáticos. Por fim, precisamente e com tal perspectiva, a d e um pos s ível futuro , e u gostaria de concluir minha a p rese n t açã o " . Trad. t. G uin s b u rg A au tora s e re fere a uma t erc ei r a se ção da con fe r ê n c ia : " N es t a t erc e ira seçã o for necerei a lg uns exe m p los c o nc re to s que d em o n stram que u m r e lacion amento m ai s e q u ili b rado e n t re c o n hecime n to te óric o e práti c a n ã o é a pe nas um pe n sam e n to d e s ej á v el , o u o res u ltad o d e um a e spec u laçã o puram en te a cad ê m ica , po ré m li m a re ali d ad e mui to ta ngíve l e pro duti v a". (N . d a E .)

2. Que Pode (ou Quer) a T e o ri a do Teatro? a t e o ria como t ra d u ç ã o

Se n ã o tra duzim os, se n ã o rep rese n ta mos, n ós renunciamos à vida. Le [o u r nal d e C h a illo t, n .

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fe v. 19 6 3

A TEORIA NÃO É MAIS O QUE E R A Em 1994, Mieke Bal e Inge E. Boer public aram um livro intitulado Th e Point of Th eory ' ( O Ponto d a Teo r ia) e m qu e faziam a ligação com outras e d iç õ es' s o b re a f u n ç ão qu e p oderia ainda hoje ocupar a teoria nos es t u d o s literários, culturais ou artísticos. Mesmo que nenhum artigo trate do teatro, certas o bse rvaçõ e s feitas então perman ecem válidas n o domínio dos es t u dos teatrais. N otemos, para co meça r, o r ec eio , a d e s c onfiança, para não dizer o temor que provoca, mais do que nunca, toda aborda gem teórica. Assinalável no domínio dos estudos literários, tal

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M . Ba l; L E . Boer (e ds .), Th e Point of Th eory , Am sterdam: Amsterdarn U ni v e rs íty Pre ss, 1994. Jonat h a n C u lle r, Br ia n M cHa le , N o r m a n Br y so n , E lisa bet h Bronfe n , M a ri ann e H irs ch , S ie p S t u u r ma n , M.ich a el A nn H o!l y, Ev e ly n Fa x Keller e o u t ro s .

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AL IÕM DOS LH"lITES : Ulvl A T EORIA À PROCU RA D E PRÁTI CA

des co nfia n ça é ma io r ainda no do mí n io do t e at r o , j u n t o a o s p ra t ican tes q u e co m fre q u ên cia não veem nerih u ma u tilidade im ediata p a r a s u a práti c a n e sta s e lab o r ações t e óri c a s s o fis ti cadas que d es c asca m se u tra ba lho e m fa t ias p e r fe i tam ente homogêneas e e rn s istemas q u e parecem a prese n t ar rel ações muito d is ta nte s d o s pro c ed im en to s e co nce itos qu e perm it iram se u t ra ba lho de cr iação. Por que , e n tão, fa r ia m el e s o e s fo r ç o d e p enetrar n esses s is te mas de co ns t r uções co m p lexas q ue por ce r to exp l icam - parcialmente a o meno s - a obra aca b a d a , rnas q ue s e r e velam a m i úd e im p otente s para tratar d a o b ra e m gestação? Ta l p ro b lema p ermane c e e m s ua i n tei reza, a i n d a h oje. É evidente q ue a t e ori a é intimidante p or s u a p r ópri a n atu r e z a , e m primeiro lug ar p orque el a s e b en efi ci a d o pre c on c eito, sem p re fa v orá vel e m n o s sa soc ie d a de, à s c o ns t r u ções do p en s a men to; e m s e g u id a porque a s diferentes t eorias pare c em -s e por ve zes a c id a d e la s fortem ente d efendid a s . E las c o loc a m g e ra lme n te a q u i e ali um a r ede d e palavras, d e c o nce i tos, de e struturas, d e modos de pensamento, por vezes obscuros, em que o profano tem alguma dificuldade de s e aventurar sem guia. A entrada na fortaleza se faz ao custo de grandes e sforços. E o c u s to do e sforço consentido não s e mede s e m p re pela eficácia d o resultado obtido. Além dis so, as numerosas fortale zas co e xi stem sem qu e s ej a possível produzir pas sagens de uma à o u t ra. O c aminho que leva a cada urria d elas é úni c o, longo, e m ge ral á r d u o . O es fo r ç o é recomeçar sem cessar, s e g u n d o a a bo r d a gem es c o lhid a e a cidadela na qual se quer p enetrar. AcrescentenlOS a essas observações de superfície a advertência s e g u i n t e feita por Ioriathan C u ll e r em sua introdução a Th e Point of Th eory e teremos um quadro, certamente ligeiro, m as ver d a dei ro, das razões que explicam ao nível dos indiví duo s s ua r e sistên cia frente à teoria:

o aspec to m ais in ti m id a n te d a te o ri a n a d é cada d e 19 8 0 é ela ser i n term inável [ ... ] A teoria pode p are c e r o b s c u ra n t ist a , a té terrorista em seu s recurs o s por infinitas recorrência s [ ] A incontrolabilidade da te or ia é a c a u sa maior de resi stência a ela [ ] Grande p a rte da h o s tilidade à te oria sem dúvida v e m d o fato d e que a d m it ir a im po r tância da t eoria é faze r um com p ro misso ilim it ad o , de ix ar- s e esta r e m u m a p o s iç ã o e m q ue h á se m p re c oisas impo r ta n tes que não se co n h ece. ·' 3

J. C u lle r, In t ro.d u cr io ri Wh at's l h e Po int ?, M . Ba l; I. E. Boer (e ds.) , o p . c it. , p . 14 .

Q U E PODE (O U QUE R ) A T EOR IA DO TEATRO?

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É pre ciso, a t od a pessoa q u e se ave nt ure no domín io te ó ri c o, a h umildade d e reco n hece r que jama is o a ba rca r á completamen te e q ue parcelas inteiras d e s a b e r lh e e s capa r ã o in fa liv el m e n te. T al é a le i d a finitud e humana. A essas p r im eiras constata ç õ e s , às qua is n ã o devem o s mini n1izar rnes rno atualmen te , s o rn a m -se raz ões mais profundas que se p r endem d e sta vez a o cam inho pe rcorr ido pela própria te oria n o d e curs o d o d e c êni o d e 1990 . A primeira r a z ão e stá li gada à evo lução do s própri o s es t u d o s t eóri cos. Co m e fe ito, d ep ois d a expa nsão d omi nan t e das te ori a s n o s a nos d e 19 6 0 e d e 19 7 0 e do i m pe r iali s mo qu e as acom pan ho u, os a nos d e 1980 m arc am um a i nter r u pção b rusca . A ssim sen d o , p e squis adore s e crí t icos d eram- s e co n ta d e que n essa formid ável exp losão d as te ori a s q ue agita r a m, se m dú vi da alguma , nos sos m odos de p ensar e a b o rdar a s obras, a p r ópria obra s e p erd eu um pouc o , t ornando -s e a m iú de pretexto p ara elaborações comple xas e c o nse rva n do co m a obra inicial ap enas relações longínquas. As e speranças depositadas em certos s istemas teóricos dominantes revelaram -se v ã s . O progresso n em sempre vem ao seu encontro. Pensemos no estruturalismo, na s e m io lo g ia em particular. Os pesquisadores se recuperaram dessa vontade científica qu e marcou a épo ca est r u t u r a li s t a e aquela que a s e g u i u , cuj o declíni o a s e m io lo g ia domin ante ass in a lo u, revelando s u a própria impotên cia d e compreende r e p enetrar os sistemas. Era natural que uma co r r e ção d e trajetória se fiz ess e e que o u t r as abordagens , de n atureza m ais modesta em s u as a m b ições, viessem à luz. A esse reconhecimento de fra casso ante as ilusões de toda uma ép o c a, s o m a- se uma desconfian ça g eneralizada contra as t e orias glob alizante s, que n ã o é se não o r eflex o daquel a que n o ssa é p oca opõ e h oj e à s ideo lo g ias a u tor i tár ia s, d e prete n s ã o totalitária.

Um a Abordag em Ma rca da Pela Pl u ralidade A s m u danças sobrevie ram, p o is, fr ente à t e ori a , a o se u papel, ao q ue del a se esperava. Não s e exigia m ais dela, d o r av a nte , t u d o

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e nglo bar, tudo explicar. Ela pode ser fragmentária, parcial. Não se espera que responda a todas as q uestões, mas, de modo rnais s im p les, que aj u de a colocá-las. E la to rnou-s e o instrumento q ue p erm it e interro g ar a obr a, explorá-la para faze r emergir não mais o se n tido, poré m os sen tidos q ue nela reside m . Estabelece u-se , daí e m dian te, a co nv icção de que não ex is t e m ai s m odelo únic o qu e perm ita co m p r een de r u m sis tema. O p e squisador n ã o es tá m ai s e m bus c a d e m odel o s para a p l ica r, de g rades de a n ál is e qu e p ermitam deco d íficar sis tem a s diferentes. Ele n ão pro cura ma is est r ut uras fundamentais . E le d e s c onstrói a o b ra . C o nc e itos a m p los fora m subst it u íd os p or co nceitos ma is p r ecisos: fal a -s e d e p ó s -modernismo, de interculturalism o , d e c u ltu r a . E m t odo s esses c asos, as n o ções não retorna m mais aos rn o virn e nto s claram ente de finid o s a os quais pod e r iam aderir os p e squisado r e s, como p u d era rn fa zê- lo e m r elação ao estruturalism o, à crítica socia l o u à des c o nst r u ção ; elas re tornam de preferência às vastas c orrentes de preocupações às quais os próprios artistas permanecem, com frequ ência, estranhos. As referências te óricas vieram apelar à pluralidade. As abordagens múltiplas, rnerios dogmáticas, fo r am substituídas pela s teorias propriamente m ais disciplinares, e m p r est a n d o s im u lt a n e a me n te para diversas dis ciplinas o s instr urnerito s d os quais elas poderiam ter necessidade: sociologia, antro p ologia, filosofia, ciências. As pesquisas de Ilya Prigogine e Isab elle Stengers são exemplares nesse se n tid o, n ã o no que ofereceriam como m odelos utilizáveis n o d omínio a r tís ti co - tal n ão é o c a s o . E las são exe m p la res pelo próprio pro c edimento des s es d ois cient is tas que n ã o hesitam em derrubar as barreiras s ec u lares e n tre c iê n c i a e fil o sofia, e m fazer d ialogar Boltzmann e B e r g s o n , Sch r 6 d inge r e Zen ão p ara coloca r a questão da irre v ersibilida d e do ternp o s. P ens a - se por iss o n o s trab alh o s d e Ja cque s Mono d e de René Thom . É precis am ente e m tal p lu r alid ade das a bordagens que ainda é possív el, h oj e, p ensar a t eoria.

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QUE P OD E ( O U QUE R) A T E ORI A D O T E ATRO ?

A LÉ M D O S LIMITES : UMA TEORIA À PRO C UR A D E PRATI CA

I. P r ig o g i n e ; I. S te n g e rs, La N o u ve lle alliance, Paris : Ga llim ard , 19 79 ; En tr e le te m p s et l éte rnit é, Par is: Fayard , 198 8 .

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A s Teor ia s Instauram Perspecti vas In esperadas Detemo -nos alguns instantes para tentar del im ít a r o que é a " natureza" da teoria, se é q ue possa haver um sentido na questão. Não retornarei aqui certos desenvolvimentos s o b re o assunto fei to s alhures" e q ue tentavam precisa r as d iferentes acepções da p al avr a e o sentido q ue o t e r m o "teoria" pode ter para o teatro, m as incl i n a r - m e - e i de preferê ncia sobre o uso q ue os p ró p r io s p esquis ado re s faze m da n o ç ã o , assim como da "coisa". N ã o ocultare i tampo uco o fato de que a dific u ldade em delim it a r tal c o n c e it o vem precisamen te do fa to de q ue, no d omín io art ís t ico, e ma is especificamente n o teat ro, o conce ito p ermane c e vago e se aplica in d iferen te men te t anto a o s p esquis a do res que r efle te m so bre a o b ra a r t ística, um a vez concluíd a e a presen tad a ao p ú blic o (os t r abalh o s de A n ne U bersfeld, d e Marco d e M arin is , de Theresa d e La uretis , po r exem p lo ) , quanto a o s prati c ante s qu e te n tam t e o rizar se u própri o sabe r (Jouvet, Appia, Stanislávski, Meierhold, por exernplo) ". A multiplicidade das práticas teóricas ocasiona certamente uma confusão da noção, mas essa confusão é parte integrante da própria teoria quando a aplicamos no domínio do teatro e , de modo mais g eral, no domínio artístico. Para deslindar essa confusão, tentei, a prop ósito, em o u t r a o casião, distinguir e n t re as t eoria s d a pro du çã o e a q u elas d a o b ra co n clu ída, ch a m a d as teorias an alítica s? Limitar-me- ei, pois, nas páginas s eg u in tes, a tratar apen a s d a s t eorias analíti cas.

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C f. J. Féral, Pourquoi la théo rie du thé â t re ?, Sp ira le, Mont réal, fev. 19 8 5, assim co mo Po ur une t héorie des ense m b le s flo us, 7heaters chrift, n . 6, 19 9 3· Pois, nesse ú lt imo caso, o s p raticantes rec usam-se a fa lar de teoria para designa r s uas reflexões . "A s teoria analíti ca s partem am iú de da observação e da re presentação. Elas tê m por objetivo compreen der melhor o espetácu lo e produzir noções, con ce itos, es tru turas, sinais q ue pe r mitam cap turar a e dificação d o sentido s o b re a cena e a nat ureza das trocas que aí se p r odu zem: do te x to ao ator, do ato r ao espec tador, d o s a tares ao espaço, d o cor po à voz." As teorias da produção tê m como objet ivo "c o m p r e e n d e r o fenô meno teatral como processo e n ã o como produ to. Ela s procuram dar ferra-rne ntas Oll métodos para que o praticante dese n vo lva sua arte . Ela s vi sam à h a b ili d a d e". J. Féra l, Po ur un e th éorie d es ensemb les flou s, op. cit.

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ALEM DOS LIM ITES: UMA TEOR IA

A

A Teoria Permite Leva n tar Q uestões

Se a teor ia, como diz Mieke Bal, não é nem linguagem, nem uma coisa, n e m um todo; se, como o diz Jonathan C u lle r, a t eoria n ã o é te oria d e a lgo e m particular, nern m e smo d e a lg u ma coisa e m ge raIB; se a teoria n ã o é tarripouc o u m conjunto de conhecimentos que p odemo s ap rop r iar e comandar, então é preciso admitir que a teoria só exis te co mo um exercício do p ensamento: C u ller n ota: C hamei teoria o s u posto n o m e p a ra u m corpus ili m itado d e tra b alhos que conseg u iu d esafiar e r e orientar o pens amento e m d omínios o u t ros que a q uele s a os qu ai s o stensivamente p erten c iam porque s u as análises d e ling u agem , m ente , história o u c u lt ura o fe rece m n o v o s e p e r suas iv o s valores d e s ig n ificação, t orn am estran ho o famili ar e tal v e z c o nve nça m le ito re s , p or si m e smos , a c o n c e ber o p ens amento e a s in stituiçõ es às quais e les se rel a ci onem d e n ovas m aneiras"

Nesse sen t ido, acresce n ta C u lle r, a teo r ia n ã o é d e n enhum m odo a j ustaposição d e te o rias par ticu lares, m a s d ev e te r efeitos práticos e , partic u lar men te, é ela que pe r mite conceber um obje to de estu do d e for ma dife r err t e '". Por sua vez, IvIieke Bal n ã o fa la o u tra coisa qu a ndo afirma qu e a teoria funciona sobre o modelo da metáfora" , isto é, à 8

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QUE PO D E (OU QUE R) A TEOR IA DO T E A T R O ?

PRO C URA DE PR ÂTI CA

" Te o r ia n e ss e se nt ido ge ral é ext re mamen te d i fícil d e d efin ir: n ã o é uma teo ria de nada em p arti cular n e rn d e coisas e m geral; é men o s u m conteúdo particular, parece, d o q ue a lgo que a lg uém p o ssa fazer ou não, a lgo qu e alguém possa es tu dar, ens inar, o u ig n ora r, es tar in te ressado n isso o u od iar.': ). C u ll er, o p . c it ., p . 13 . ). C ulle r, Lite rary Theory, lntroduction to Scholars hip in Modem Languages and Literature, 2 ed., New York: 1he Moder n Lan guage Associatio n of America, p . 203. " E sse rel ato evi de ncia dua s coisas. E n fat iz a que a te ori a n ã o é a p e nas a so ma d e teori as p articulares - ist o é, u m a teoria de s ig n ific a do, so mad a a uma te oria d e sexualidade, à te o ri a d e p e r spe ct iva , e assim por dian te : o corpo d e teorias d e fenômeno c ult u ral de alguma forma agrupados (. . . 1. Segundo, es sa formu lação enfat iza q ue a te oria d e v e , p el o menos até um certo p onto , ser d e fi n id a em term o s de efei tos p ráticos: com o o que muda a s o p in iões d a s pessoas, o q ue faz com que co ncebam , d e seus o bjetos de es t u do e s ua a t ividade, estudar d e modo d ifere nte': Ibid e m. George S teiner já afi r mava is so After Babel. Sempre negando a existência da te ori a, reconhec ia q ue toda a reflexão teórica só p odi a exis ti r sob o p ri ncip ia m etafórico: "Não h á 'te o r ias d e lite r at ura; não há 'te o r ia d e crít ica: Tais rótu lo s sã o blefes arrogan tes , ou um empréstimo, transparente em seu p áth os, de in ve jáveis acasos , movimento a va n te de c iê n c ia e tecnologia ( .. . 1O que temos,

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imagem de um "co nce it o n órriade" ( a expressão é d e l sabelle Ste ng e r s) que se s itua em um lugar móvel entre as disciplinas: "móvel" porque não é lo c alizável em um único lugar, "n órnade" porque o pesquisador a uti liza segundo suas necessidades. Como a metáfora, a teoria p reencheria assim cer tas funções b em específicas: te r ia um p ap el cog nitivo im por ta nte, at u a r ia e m d e sl o c a r o se n t ido, em c r iar n o v o s , e m foca r n o v o s elem ent o s . Instau r aria perspectivas in e s p e r ad a s, p a r a ser efetiva, sempre m a nterido um elo e n t re o n ovo e o a n t igo. A te oria ap a re c e r ia , p ois , co rno u rria p rát ica, urn a fo r m a d e interpreta ç ã o . N ã o es tan do m a rc a d a p el a o bje t iv idade, ela servi r ia antes d e p edra d e toque p or uma s u b jet ivid a de que fix a r ia , con tu do, s ua a ncoragem n o rea l". E lizabet h B ron fen n o t a q ue: "A v isão d e teoria t em o efeito d e agu ç ad a fo calizaç ão. As o bsc u ras margens e sob reposições d e minh a s impress õ e s d e leitura de r epente ga n ham co n tornos definidos, m esmo se a cada n o v a mirada colo q ue mais a m b ivalê ncias que r e qu eiram até u m sempre cont ín uo p rocesso de refocalização:'13 Po r sua vez, Siep Stuurman observa: "Es t u d a r um tema sern noções teóricas seria como e s ca la r urna s uperfície rnontarihosa po r a leatórios movimentos c o r p o ra is : você pode chegar a a lg um lugar, mas é mais provável que ficará e m p a cad o, ou pior:'14 Poderíamos estender indefinidamente a li sta dessas observações, mas o q u e rete m o s, s o b retu d o dessas q uatro abordagens, é q ue a teoria pare c e ter definitivam ente perdido a q u ilo qu e , em s e u s primórdios , fora s u a justi ficativa primeira: ou seja, a n ec e s s idade de estabelecer os fundame ntos de uma c iê ncia

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sim, são d escriç õ es razoáveis de p ro c esso s. No melho r d o s casos, encont ramos e pro curam o s, e m troca, articu la r narrações d e experiê ncia sentida, anotações exe m p la res o u h eurísti c a s d e trab alh o e m pro gre sso . Essas n ã o têm stat us 'cie n t í fic o'. Nossos instrumentos d e percepção não são te o r ias o u hipóteses em tra b a lho em nenh um sentido científico, o que significa falsificável, mas o q ue eu d e n o m in o de ' m e tá fo r as d e t ra b al h o" G ~ Ste in e r, After Babel: Aspects of Lang u ag e a n d Tra ns la tion, 2 ed., Oxfo rd: Oxfo rd U n ive rs ity P ress, 1992, p . XV I. "Nesse senti do teoria é u m a prática, u m a forma de in te rp re tação, não o p in á culo de objetividade quanto uma p edra de toque para a s ubjetividade; não abst rata , mas empiricamen te ancorada ." M . Bal, Scared to Death, M . Ba l, LE. Bo e r (eds.), o p . c i t. , p. 4 7· E. Bronfen, Death: The Navel ofthe Imag e, M . Ba l: I.E . Boer (eds.), op. c it ., p . 2 8 7. S. Stuu rman , l n the Long Run We S h a ll A il B e D ead, M . Bal ; I. E. Bo er (eds .) , op. cit., p. 29 0 -291.

A LIôM D O S LIMI T E S : U MA T EO R IA À PRO C URA DE PRÁTI C A

QUE P O D E ( O U QUER) A TEORIA D O T EATRO?

a nalítica, cria ndo rn éro dos d e inves tigação e ferramentas de dese mpe nho, perm itindo penetrar em profu ndidade na obra es tu d a da e fazê- la fa lar. A tualmen te, n ã o é m ai s o caso, a fu nção d a teo ria v isa a n tes fazer e merg ir novos aspectos d e uma obra o u de uma p e ça , co nfrontando -a com divers o s sab eres, p o r vezes al eatório s , fa zendo -a e n t rar e m a t r ito com di s curs o s difere n tes, obs erv ando - a so b pers pectivas diversas p a r a que novas interrogaçõ es s u rjam e forcem a re flex ã o a ir m a is long e. Topo logicamen te p oder-s e -la dizer q u e e la cria se n t idos n a o b r a, abr e camin hos , tra ça novas v ias. Di to de ou tra m arr e i ra, a t e o r ia cede u lug ar às t e oria s m u ltiforrnes, p l ura is e a m iú de p arc el a d a s

E ainda: "O teat r o é [ .. . ] o lugar da troca de ideias e do trabalh o da socieda de so b re s u a própria língua e s eus próprios gestos . A cena é o laboratório da língua e dos gestos da naç ão,"? Se essa posiçã o de Vitez fosse nat uralme n te endossada p o r um grande número de encenadores e se Vitez, corno se verá mais a diante, co ns idera d e bom g r ado a e nce n ação co mo traduç ã o, p o d emo s p o r esse m o ti v o diz e r qu e to do e nce nado r faça necessar iamen te obra t e óric a? A resposta não é evidente e var ia, é claro, segu n do as d ive rsas práti cas . Coloca ndo ta l questão, me u o bjet ivo aqu i n ã o v isa negar a d ico to rn ia hab itual e nt re p r áti c a e t e or ia , ao re c on du zir a co m plexidade do prob le ma a um nív el d e re flexã o ún ic o , m a s s im p les me n te red uzi r essa divis ã o que pe rs is te entre t e ori a e práti c a e pro v a r que , c o m a di ssoluç ã o d a s t eori a s " for tes" (co mo G ia n n i Vatt imo fal aria das id eologias fo rte s '"), os li mites se tornaram cada vez m ais po ros o s . Será precis o , p or isso, confundir a reflexão teórica d e ss e s praticantes e a s t eoria s que s e prendem à obra acabada ? Com cer tez a não.

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A T E ORIA É UMA PRÁTI C A Se tal é o caso, que diferença se p ode fa z e r entre a teoria e a prá tica artística? Pois, é preciso reconhecer: tudo o que acabamos d e dizer para a teoria se aplica igualmente à prática. A prática, por is so, pelo menos no domínio do teatro, é o lugar correto d e co n fr o n tação d e saberes, de atritos d e diversos conhecimentos e m p re s t a d os d e diferentes domínios e de e x per irnerrtaç ão d e s ses rnesrnos s a b e res s o b re uma ob ra e m curso d e criação. U m e ncen a d o r, por exemplo, confrontado com um texto que d eve montar, o s u b mete às diversas perspe ctivas, suscitando diversas interrogações que lhe permitem fa z er brotar d ele todos o s se n tido s p o s s íveis. C it e mos, p or e x empl o , o que di z Vitez d e s ua v isão da e nce nação e d e seu trab alh o sob r e os t exto s: A enc enaç ã o é necessa r iamen te crítica d o a u to r.": I sso n o s faz retornar a co ns iderar q ue t u do a q u ilo q ue foi escrito d esde a o r ige m pe r te nce a nós todo s e devem os - é urn a necess idade imp erios a - transport á -l o ai n d a e sern p re sob re a cena. E sempre re come çar. As obra s s ã o enigm a s aos quai s, perpetuamente , d e vernos respon der. I sso é ve rd a de iro, m esmo no caso em que urna obra - p ri ma d a e n cen ação e d a interpreta ç ã o p are ça responde r p or longo tempo a toda s as questõ e s que lhe foram colocadas. ,6 15 16

Antoine Vi tez . L e Th é átre d es id ées, Paris: Ga ll irnard, t99t . p . 2 7 0 . Ibidern , p . 2 9 3 .

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Teoria e Prática São D ois D omínios Interdep endentes Se nos e sforçamos por um breve instante e m olhar as cois a s sob outro ângulo e d e nos p erguntarmos qual é o o b j e t iv o final do praticante e do t e ó ri co, se r á que não poderíamos dizer que ca d a um à s u a m aneira tenta e n ten de r, anali sar e, som a n do tudo , traduzir o mund o que o e nvo lv e ? O homem d e teatro o fa z c o m su as e n ce nações, o p intor c o m seu quadro, o c o r e ó g r a fo com s uas c o reografias . C a da um interpreta as co isas à s u a maneira. E le o fe rece uma re sp o sta a o que st ionam ento que lhe é feito. Ap r e ende , in ter p re t a , a n a lis a e p r oduz e m fun ção de sua v isão es p ecífica , daquilo que é oferecido à s u a percepção. Ele a traduz. É ness e sen t ido que Vitez colocou o problema nas linhas que citam o s a cima, é t amb ém n e ss e se n t ido que ap onta a

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Ib td e rn , p . 294 . G. Vatt irri o , La Fin d e la m odernit é, Pari s : Seuil , t 9 8 5.

AL ÉM D O S LIMIT E S: Ul'"IA TE OR IA À PRO C U R A D E P R ÁTI C A

Q UE P O D E ( O U QU ER) A TEOR IA DO T EA T RO?

a fi rmação perem ptória q ue Steiner fazia no irr ício d e After Babel (Depo is d e Babel):

final : entende r, tradu zir, cornu n ic a r. O prob le rna, a pesar d e se r falso , não c ess a de se r formulado. As respo stas que s e lh e po d e m dar serão, p ois, n ecessariamente pontuais. E las r e sp onderão cada vez a u m cas o e s p e cí fic o s e g u n d o a teoria o u a práti c a estudada. A reflexã o te órica e m V it e z e o lugar que e sta oc up a em relação à sua prátic a é dificilmente co m p a r á v e l à de Re za Ab doh no s Es t a d o s Unid o s ou mesmo à de Peter Brook. Além d isso, se é evidente que uma teoria elaborada a partir de um a obra press upõe a obra e m seu ponto de partida - pelo menos ta l é o caso da maioria das teoria s analíticas - , isso não é verd adeir o para toda teoria . As teorias científicas (cosmológicas, rn ate rn át.i ca.s, por exemp lo) são a prova" . Exce to ta is casos raríssimos, teo ria e prática não consti tuem , na maior ia das v ezes , dois conjuntos q ue se excluem um do o u tro, mas s ã o bem interdependente s, a teoria servindo amiúde d e moldura à prática, de ponto de partida, aj udan d o s ua progressão ( teo ria d o j o g o , p or exe m p lo"). Igual mente, n ã o exis te t eoria es tável qu e n ã o se f u n d a men te sobre qual qu e r o bse rvação p rática. M e smo se as t e oria s de obs ervaçã o n ã o pare c em mais estar p articularmente na mod a (por exem pl o , ve r o que dizia Brian McH a le a esse p ro pósit o v ) , ela n ã o imp ede qu e se u papel n a e di ficação d o s sabe res t e ó ric o s perm an e ç a imp o r t ante . Basta ver o trab alh o que exec u ta a inda Eugen io Barb a sobre esse que sito >'.

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After Babel postula q u e a traduç ão e s tá formal e pragm aticamente implícita em c a d a ato d e comuni cação, na e m is s ã o e recepção d e todo e q ua lquer significado, seja e le no se n t id o s emiótico mais a m p lo ou em trocas verbais mais específicas. Entender é decifrar. Escutar a s ig n i fic aç ã o é t radu zi r. Assim a estrut ura essencial e os significados e prob lemas de exe c u ç ã o do a to d e t r a duç ã o estão to talmen te pres entes em atos da fa la, da e scrita, d e c odifi c a ç ã o p ic tórica no in terior de qualquer linguage m dada. A tradução e ntre diferentes líng uas é uma ap lic a ç ã o par ticu lar d e uma c o n fig u r a ç ã o e modelo fundamental à fala humana mesmo o n de e la é mo noglota. ' 9

Steiner co n cluía qu e esse p o s tul ado é n o p r e s en te la r g a men te aceito. A h istória das ide ias pa rece l h e d a r razão, d a mesma forma q ue Octavio Paz, ao afirmar : " N o s s a geração, nossas sens ibilidades p e ss o ais 'estão im e r s a s n o mund o da t r a dução o u , mais precisamente , e m um rn u rr do que é ele mesmo a traduç ão de outros mundo s , ou o u t ros s istern a s'" >. Se todo ato d e comunic a ç ã o é t r adução, e n tão é fá cil afi r m a r que t anto o teóric o quanto o p r átic o são a m b os tradutore s do mundo q ue os e n volve. O te óric o o fa z, seja diretam ente crian do s isternas conceit u a is comple xos , seja exploran do uma o bra e m p articul ar: a r epre s enta ção específica, o texto teatral, o p e r curs o estét ico d e um artista. Seu p r o c edimento é a interro g a ç ã o , o ques tion am ento d o s a ber, d e n o ss o s m odo s d e con hecimentos, d e n o s sa man eira d e apre ender as co isas, d e exp r im i- las, d e t r aduzi -las . O a rtista escolhe como ve íc ulo d e t al expressão s ua arte; o teórico esc o lhe os conceit os. O fim d e um e d e o utro é d e m elhor com p ree n der a s obras, d e r evelar s e us limites e s u as p o s sibilidade s , d e aí introduzir as bre chas , d e es talar as estruturas , de d e s cortinar, se fo r n e c e ss ário , a fa c e oc u lta. Coloca r o problema n e ss e s t e rm o s é r econhe c e r implic i t am e nte que a que stã o d a pre e xistência d a t eoria e m relação à prática o u da prática e m r el a ç ã o à t e o ria é um fa lso p r oblem a , p ois que se trata d e um pro cedimento id ênt ico e m seu o bjet ivo 19 20

G. Steiner, o p. cit., p x II. O c tavi o P a z ; Ja cqu e s Roubaud , E d oard o Sa ng u i ne tt i; C h a rles Tomlin s on , R enga , Pari s , ' 9 7' , p. 2 0 , apud G . S te ine r, op. c it ., p . 2 47.

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C f, o trab a lho d e Riem ann e Lob atché vski, p or exemp lo, procedendo a m bos de uma hipóte se g e o mét r ic a puram ente te ó r ic a - pensar a geom etria a p artir da e sfera e não a partir d o pl ano - e co nse g ui n d o r evolucion ar p or iss o as p esqui sas matemáticas . Sua t eoria n ã o se fundament~va s o b re , n~nhllIn fen ômeno c o n c r e ta me n te assi n a lável, mas d e um a prIOri metodol ógico . Ta l é o cas o , sobre t udo das teorias da produção. P ensamos n o s texto s d e Stan isl ávski , Io u ve t , Brook. " Te m h avido uma redução inicial d o que, para Hrush ovski, é (minimamente ) uma estrutura tri ádica - teoria, d e s crição, obj eto -discurso - para uma es t r u tura binária (teo r ia versu s práti ca ) antes d o cola pso d e ss a es t r u t u r a e m uma monosuperfície de 'p r á t ic a di s curs iv a'. O que está inteiramente p erdido apagado, s u p r i m id o - neste c o la p s o de níveis é que o nível intermediá.ri~ d e generalização e ab straç âo, aqui d enominado 'p o é ti c a d e s critiva', s e pO SICIOna como j a zendo em um a hierarquia vertica l ou 'pilha' de níve is algo e n t r e o 'o b jet o- d isc u rso' (o te xto li te r á r io ) e uma extremamente abstrata 't e o ri a d a literatura'." B. McHal e , Wh ate v er H appen ed to D e s criptiv e Poet ic s ?, M. Bal: I. E. Bo er (e d s .) , o p . c it., p . 58 Ve r o tra balh o que e le e fe t ua na I S T A , lntern ati on al Sc ho o l o f Thea t re Antro p ol o g y, e s uas p e squis a s s o b r e a e ne rg ia, a p r é -e xpressividade d o ator.

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AL ÉJ'l.1 DO S LIMIT ES: U MA TEOR IA À P RO C U RA D E P R ÁT IC A

QUE P O D E ( O U QUER) A TEOR IA D O TEAT RO?

É qu e a prática e a teor ia são amb as rnetali nguageris-' das quais só d íferern as fe rra me ntas. A teo ria s e f un d amenta sobre

N ã o é senão guardando esse parentesco pre sente n o esp ír ito q ue será p o ssí vel s u p ri mi r as cli vagens , m a nter o diálogo entre prat ican tes e teóricos e paradoxaln1 ente a fi r m a r a autonornia d e cada p roced imen to, ao rnes rno tempo que sua legitimidade.

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o ve r bal e a a bs traçã o do s co nce itos, a prátic a tea t ra l, so b re o fazer >". Es ta últim a c on strói irnage ns , um o b j e to que a t ra i o o lha r, que in t e rp e la o espec ta do r, q u e lhe " fa la". E la co nstró i am iú de u ma na rração, in t e r ro g a a língua, est r u t u ra u m esp aço, c r ia um a ficção . A te o ri a , p or s ua vez, o pe ra e x cl us iv a men te s o b re o rrio d o d isc u rsivo. E la se prende ao m odo ló g ic o , se apo ia n a s p a lavras, na coerê nc ia d o p e n s amento. F u nda me n tad a so b re a o bse rvação ( ta l é o primeiro s entido d a p al a vra "teo r ia" e m g rego), e la a na lisa, co d ific a e dec odifi ca o s s in a is , estabelece as r ela ç õ e s e n tre a s palavr as e a s cois as, os conce itos e a s ima g ens. E la r e o rdena , p o is , n o ssas p e r c epç õ e s , n o ss a corn p r ee ns ão d o s fe nôme nos, p ara ir a lé m d a s impre ss ões d e s u perfície. Se a te oria n o s ajud a a o r g a n iza r o s a be r, se hi erarqui z a os si na is, ai n da d e aco r do c o m Vitez" , é ne c essári o r e c onh ece r que a prática igualmente o faz, quaisquer que sejam o s meios que adote para fazer com q ue seja, ela também, diferente. E la tenta, da mesma for ma, fazer emergir as novas relações entre a s c o is a s, de n os fazer ver o mundo de forma diferente. Co mo o diz muito bem H .- G. Gadamer, e como o r eco r d a Michael Ann Holly-", uma o b r a d e arte tem o poder de modi fic a r a co ns c iência do o b s e r v a d o r que a exarniria ->. 25

U ma meta ling uagem p or definição é u m sistema co nce it ua i q ue não te m n enhum a r e fe rênci a exterio r a s i m e sm o p ara lh e v alidar. C f. I.R. La d m iral: " E x is te a m et alingu a g em qu ando , e m t erm o s lingu ísti c o s , não h á o u tro refe rente que o s ig n ifi q u e': Traduire: Th éor érnes pour la traduction, P a r is: Payot,

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Vitez co ntesta ria pro v a v elme n t e essa fo rm u lação, e le que a fi r mava q ue o t eatro é "o lug ar e m que o p ovo v em esc u ta r s ua língua': N ota v a t a m b ém: "O o bje to perma nece, p erpetu amente , in s olúv el , o r a s t o do t exto , p erm ane c e , n ós d evemos perpe tuamente trad uzi - lo:' A. Vi te z, op. cit., p . 2 9 3 ; e a inda: "O teatro é [ . . . ) o lugar d a troca d e ideias e o trabal ho d a s o cie d a d e sobre su a própria língua e se us próprios gestos . A c e n a é o la b o r ató r io da língua e dos ges tos da n a ç ã o." A . V itez, o p . c it., p. 294 . " Isso me fe z pensa r que o que c o n ta n o fe n ômeno d a tra d u ç ã o - e do espe t ácu lo, e d e t udo o qu e s e fa z no te m p o , tudo o que corre - é a hierarquia dos sinais:' Ib id e m , p. 295 ; o u ainda ; "Para mim, traduçã o ou encenaçã o , é o mesmo trabalho, é a a r t e d e escolher n a hierarqu ia dos si nais :' Ib id e m , p . 296. \Nitnessing a n Annunciati on , M . Bah l, I.E . B oer (e ds .) , op. c it ., p . 22 8. Ha n s -Georg Ga dam e r ( 1987) , Tr uth and M ethod, 2 . e d . rev., trad . Io e l W ein s h e i me r e Donald IvIars ha ll. N e w York: C r oss ro a d, 199 0 ; Idem ( 19 60) . Th e

P ·25 2.

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TANTO A TEO RIA QUANTO A PRÁTICA T RA DUZEM O M U N D O Dizíamos acirna que a teoria pode s e r considerada como a tra d ução d o mu n do. G o s t a rí a m o s de r eto rn a r a e ss a ideia e impulsi oná -l a ad ian te e m r elação ao teat ro. Se a te oria d o te at ro é uma p ráti c a q u e organiza o m un do e n o ss o s saberes, é preciso recon hecer q ue ela só p o d e fazê - lo agin do como fu n ç ão regu la d o r a d o s s is te m as s u bmetidos à s ua observ a ção, n ã o n o que ela lhes imp õ e d e reg ras a se re m segu id as, m a s n o qu e el a te nta o rd e na r d o s s a be res o u dis cu rs o s que pertencem à obra ao tradu zir o s el emento s , s uas v is u a lizações mais frequentes (a diferença entre um texto e s u a colocação e m representação s e s it u a precisamente no a specto c ê n ico qu e a e n ce n a ção autoriza) , e m um di scurso diferente qu e os torna d e codifi cávei s. E la a pa rece, pois , co mo traduç ã o d e um a língua e m outra, d e urn dis curso e rn outro. Essa seg u n da " le it ura" que p ermite a t e o ria n ão s u bs t it u i a primeira leitura que to do e spectador faz esp o n t a neamen te diante de uma obra, el a e n r iq u ece e s t a últirna e a esclare ce tornando visíveis a s ramifi cações internas (est r u tu ras, se n t idos, s istemas si gnific antes ) o u exte r nas (rel ações co m o social, co m o p olítico ) d a ob r a obs ervada. ·A v erdade d e ss a seg u n d a leitura - e , po rtanto , do discurso t e órico - ve m d e s u a própria coe rê n cia interna , cer ta me n te, rna s t a mb ém de s ua e ficác ia e m ler a o b ra, d o que r e vela d e oc u lto, d e n ã o a paren t e. E la ve m ta m bé m e, sobre tu do, d a s brechas qu e p errnite a b r ir e m um co n j u n to complex o e apa re nt emente s u turado - o d a r epresentaç ão. Tal é por isso a fun ção d o e nce n a do r e a d o t radutor. R elevan ce of th e B ea utiful and O t her Essay s, trad . N ic holas Wa lker, e d . R ob ert B erna s c on i, C a m b r id g e : C a m b r id g e Un iv e rsi ty Pres s , 1986 .

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Q U E P OD E ( OU QU ER) A T E OR IA D O TEAT RO ?

A L !Ô M DOS LIMIT ES : U MA TEORIA À P RO C U R A DE PRÁTICA

Vitez afir ma a esse propósito : tudo que foi escrito depois da origem nos pertence a todos e [ . .. ] devemos - é urn a necessidade imperiosa - levá-lo ainda e sempre em cena. E s empre recomeçar. As obras são en igmas aos q uais, perpetuamente, devemos responder [ .. . ] O objeto permanece, perpetuamente, insolúvel, () rasto do te x to perrnanece, nós deve mos p e r p e tuam e nte tradu z i- Io w,

Prossegui n do nessa via e es te nden do p ara a lém o pensame nto do pró prio V itez, Darn êie Salle nave e Geo rge Banu, em se u posfácio ao l iv r o d e V itez, Le Th éâtre d es id ées (O Tea tro d a s Ideias), co rne ritarn: é , no a to que faz passar de uma língua à o utra, manter u m a afirmação ambígua e con tradi tória . Traduzir é n e ce ssário - tradu zir é impossível. Em o u tros te r m o s , se trad uzir é uma tare fa inte r miná vel , p orque semp re h á o int r a duzível (o ess e ncial tal ve z ), n ã o p odemo s n o s dispensar diss o . Há um dever d e trad ução, q ue se co n fu n d e com a p rópri a a tiv idade d o espírito. Traduzir é um hurn a n ís mo. Se por vezes as lí n guas , os te xto s , os corpos resistem, não pod emos renunciar a el a . Nós lhe devemo s sem p re".

E eles prosseguem: Toda o b ra de A n to i ne V ite z, poeta, traduto r e enc enado r le v ou ao á p ice essa consciência d a n e c es s idade d e tr aduzir : toda s ua o bra é u m a é tica da t raduç ã o gene ra lizada. Escrever, tradu zir, a tu a r, e nce nar d epen d em de um p ensamento únic o , fundam entado n a própria atividade de tradu zir, is to é, sob re a c a p acidade, a necessidade e a al egria de inven ta r se m tré gua equi valên ci a s poss íveis: n a língua e e n t re a s língua s, n o s CO I'POS e e n t re os co rpos, e ntre as gerações, e n t re um sexo e o o u tro. E, fi nal me nte, o ou tro n ome pelo qua l se des igna a arte da encenação é a inda tradu çã o : s is te ma por o n de se c o m u n ic a m o mundo d o texto e o mundo da ce n a. >

D e imediato, p ró s e contras são colo cado s e m termo s idêntic o s p ara o tradutor e o e ncenador. Tr aduzir é uma n ecessidade absolu ta

e criadora de todo ato de co m u n ic a ção e d e todo pensamento. E la implica: 1. uma passagem (de uma língua a outra língua, de uma forma em outra forma ); 2. uma perda, p ois todo ato d e t r a d u ção se baseia em uma impotência e algo se m p re escapa ao processo. U ma não pode se dar sem a o utra e traduzir cons iste em um mesmo sopro para estabelece r tal passageTI1, para criá-la negando se mp re a poss ibi lidade de uma tra n s fe r ên c ia perfeita, de u m a a dequação exata e ntre a fo n te e o a lvo. Entre as d uas, u m dia se c r ia u m a brecha na q u al s urge toda inventividade d o "tradutor': S te i ner defin ia t r ê s movi me n tos n o pro c e s s o seg undo o qual se e n trega o t r adut or qu ando t r ab alh a em um a traduç ã o : 1. um a to d e fé é o q ue ele c ha ma d e trust (c rença); 2 . um trabalh o d e i nc u rsão na o bra e d e extração (i nc urs ivo e ext rativo ) ; 3. um trab alh o d e in c orp o raç ã o , de im portação n o c urso d o qu al se o per a um a certa res t i tu ição d o que d e s c obriu n a fase 2, o fim ú ltimo p e r manece n d o a p e squis a d e um c erto e quilí brio e n t re o texto -fonte e o t e xto - alvo» . A traduç ão implica, é claro, qu anto ao seu ponto d e p a r tida, p enetrar no universo do outro, impregnar-se, proceder p o r empatia em relação ao objeto de origem (objeto-fonte, t exto - fo n te ), por s i m p a t ia. E la implica um trab alho d e an áli s e , d e esc u ta, de obs erva ç ão e, n o fin al d o p ercurs o , d e interpr eta ç ã o , transmutaç ã o , transfiguração. P ara ass im fazê- la, n e c e ss aria m ente, ela apela a todo s os saberes. A lea tó ri a e m se u s e nca m in h a me n tos , el a r epousa sob re as intui ç õ e s d o tradutor. E n t r e t a n to, el a n ã o pod e se servi r de um m étodo rigoro s o. Wittgenstein c o m para a esse pro p ó s it o a traduç ão de um m odelo matemático e m que se e n c o n t rar iam so lu çõ e s , mas sem metodologia r igorosa>'. É precisamente nessa ausência de método rigoros o - que n ã o excl u i a pos sibilidade d e e n c ont rar sol uções - q ue s u rge tod a a s u bje t ividade d o t radutor e seu t alento. A ele compe te 33

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A . Vite z, op. cit. , p . 293. O auto r vai a té m a is lo n g e , pois afirma q ue o trabal ho do trad utor é "p ô r em cena': assim ele afirma que a tradução de Hamlet p o r Past ernak é " u ma obra poética r u ss a e uma encena çã o, em um m omento d a hi stóri a': a cres centando que h á t ambém " n a própria tradu ção, um efeito d e en c enação': p . 292. Ib idern , p . 585. !bide rn , p . 586 .

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G . Steiner, o p . cit. , p. 313 . " T r a d uzir de u m a lín g u a para o u t ra é u ma ta r e fa matemática, e a tra duç ã o de um poema lír ic o , po r exemp lo, em uma língua estrangeira é quas e análoga a um problema matem át ic o . P o is alguém pode enquadrar bem o problema 'C o m o e sta piada ( p . ex .) pode s e r traduzid a ( i.e . s u bs t it uí da) por um a piada e m outra líng ua' e esse problema pode se r r es olvido; mas não havi a n enhum m éto do sis temát ico para reso lv ê - lo': Z ettel , p . 698 . Oxfo rd, 19 6 7, a p u d G . Ste i n er, op. cit., p . 121.

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A L É M D O S LIMIT E S: U M A T EO R IA À P RO C U RA DE P R ÁTI C A

faze r as e s c o lh a s que se irnpõem e n t re t odas a q uelas que se lh e o fe rec e .rn, de s ugerir a s vias, de fazer s u r gir no seio d o m e smo o diferente. Parece q ue a t e o r i a procede d e rnarie i ra id ê nti c a . D ian te dos p r o ble m a s que se l h e c olocam , soluções e xi stem , cer t a mente n u m e r o sas , mas a s me to d o lo g ía s es tã o longe de t e r o rigor cien tífico desejad o . Elas r epousam tanto sobre a i n t u iç ão do pesquisado r, seu grau de inventividade, q uanto sobre os co ncei to s ou s is te m a s c la rarne rite d efin idos. A s u b jet iv id a de d o p esquisador es t á ainda lá n a obra. Por is so, não é espan toso qu e o resu ltado d a e mpreitada difira s egundo os m étodos utilizad o s e os indivíd uos q ue a isso se entregam. O que sublinha essa co ntradição no seio do andamento d a tradução é q ue o própri o ato d e traduzir impõe n ecessariamente uma di stância crí tica. Se o o b jet ivo fi n a l do tradu t or p erm a nece exatamente a q uele de restituir o espírito da o bra-fonte, s u a poesia, seu se nt ido, n ã o de mora muito q ue nesse p e r c u r s o ele se e ncont re a s u b lin h ar igualm ente os limites e as difi culdades . Assim faze n do, intr oduz o estran ho no â mago d o famili ar e faz e mergir o n o v o p ara a l ém d o a n tigo. É ce r tamen te n es s a brecha que o t r adutor trab alh a : e n tre o j á con hec ido e o d es c onhe c ido , o re presen t a do e o irrepre s e nt á v el , o q ue tra nsita faci lmente na lí n gua e o que lhe es capa. E le revela, pois, as t ens õ e s da o bra, fazen do c o rn q ue ela se a l tere. A literatura em tradução apres enta-s e co mo a réplica de textos que já exi stem. É por isso q u e ela oferece u m po st o de o bservação privilegia d o. Podemos rebater cad a um a d as traduções sobre o texto origin al que lh e corresponde e assinalar d essa m aneira o q ue os tr ad ut o res alte raram [... ] A tr adução é por excelência um lugar d e imped imentos e de ten sõ es. Por n atureza, ela cria a diferença . É por isso que ela oferece à investigação d o s fenômenos disc ursivos e de seu fu ndamento institucionaluma área d e ob se r vação privilegiada.»

"C r ia r a dife r e n ç a", suscitar a s "t e n s õ es" n a obra estudada. Fala ndo d a teo r ia, os termos q ue u til iz a C u ller n ã o são m uito d iferente s . Este ú lt i mo evoca, também, o fa to d e q ue a t e o r ia " to r na e stranho o famil iar, nos força a conceber nosso obje to 35

A nn ie B riss e t , S o ci o critiq u e d e la t radu ction : Th éâtre et a lterit é au Q uébe c (1968-1988) , Lo ng ue u il: L e Pré a m bule , 19 9 0 , p. 2 8 .

Q UE POD E (O U Q UER ) A TE OR IA DO T EATRO ?

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de es t udo d e m an e ira d ife r e n te">. C o rn o a tradu ç ã o e com o a e n c enaç ã o , e la é, t amb é m , tran s muta ç ão, tra nsfigu ração, transp o siç ã o criadora da represen tação . C o m o a tradu ção, e la su b li n ha a s relações q ue, d e ou t r a forma, perman e c eriam i nvis ív e is ao o l har o u à esc u ta do espec tado r, to r nando -as qu a s e fam ili are s. E la c r ia o d ista nciame n to no seio d a p ró pri a r eprese ntaç ã o, se imis cui e n tre o objeto e o espec tador, reor ien t a o o lhar d ess e últim o . E la explo ra a res is t ê ncia da o b ra, son da os perímetro s . Seu o b jet ivo primei r o é o de faze r est a la r os sistemas e práti cas os q u a is el a agr ide. Esse pro c ess o d e es clarec ime n to nã o p ode, e n tr e ta n to, s e r exa u stivo. De um lado , c a m a d a s inte iras d a prática e scapam n e c e s s a r íam enr e a ess a a t i t u d e d e "passagem". Por outro lado , o processo impli ca escol h a s : t e óri c o e tradutor a í t êm o privi légi o, sublinh am os e ix o s, marcam as p r e fe rê nc ias, efe t uam as escolhas o b li t e r a n d o outros a s pec t os que lhes parecen1 me no s interessante s a explorar o u menos corretos . N ã o seria de s urpree n der q uan tas d ife r e n ç a s e a ss imet rias s u bs is tem o u pe r manece m inexp lora das. Tais são os li m ites d e tod a tradu ç ã o . A t e ori a , como a t rad ução, tor nam -se assim jogos d e reve la ç ã o e d e m á s c a r a s e m q ue os s is temas esco lh idos d e p e n d e m t anto d e m odel o s teóricos ap lica dos q uanto da s ubje t ividade d o p e s qu is a d o r. Q ue, nesse processo de tradução, camadas inteiras d o real lh e escapem, ig u a l m e n t e não é de s u r p r e e n d e r. Aris tóteles n otav a d e s d e e ntão que a s palavras n ã o podem d e nenh um m odo ser a cópia perfeita da r ea lidade. E Michel Foucault, trab a l han do sobre a história das ide ia s através dos séc u los, d e m onstr ou como no correr dos a nos as p a l avra s vieram prog ressivam en te a se separar das co isas e a s e tornar suspeitas. 36

J. C u lle r, In trod u ctio n . . . , o p. c it ., p . 13 . C f. a s pro p o sta s d o a u to r evocadas a ci ma: "Ch a m e i te oria o s u p ost o n om e p ara u m ili mitado co rp us d e tr a b alh o s q u e con seg u iu d e s afiar e r e ori entar o pens amento [ . . . 1 torn ar e s t ra n h o o fa m iliar e t al ve z p ersu a dir leitore s a c o n c eb e r po r s i próprios p ens amento e inst ituiç õ e s aos q uais se relacion e m em n o vo s ca m in hos." ; c f. ta m b é m "Teoria é o que m odi fic a os p onto s d e v is ta d a s p ess o a s , fa z c o m q ue co nceb a m s e u o bj e to d e es t u d o e s ua at iv idad e d e e s tu d a r d e u m mo do di fe r ente ." Ibid em. E e le ac resc e n t a : "A n at u re z a d a te o r ia é d e s fa z e r, m ediante u rn d eb ate de prem issas e po stu lados , o q u e vo cê pen s a c o n hece r" Ibide m , p . 15 .

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ALIô,\' 1 D O S LIMI T E S : U MA T E O R IA À P RO C URA DE P R ÁTI C A

A n n ie Brisset fa lava da traduç ã o c omo réplica dos t e xto s exis te n tes . A teo ria n ã o pode, d e m an eira a lg u ma, a ssumi r esse papel. E la é s o m e n te interpreta ç ã o , questionamento d e um a o b ra. E la a exp lo r a, a f rag m e n ta, a desloca. Por isso, s e é imp o ssí vel e m todas as traduções atingir um a s irnet r ia real, fazer passar adequadamente urn sistema sern ân tico a outro (passagem de uma língua a outra, de um s is tem a discursivo a outro), é preciso admitir, c o m toda razão , que não é possível haver uma adequaçã o perfeita e n t re doi s s is te m as co nce it uais t ão diferentes com o podem s e r uma representa ç ã o teatral e a te oria que o a n a lisa . Aqui, como alhures, um pro cesso de entropia está sen1pre presente na obra e fa z com que haja s e m p r e uma perda. Que esse longo processo seja ditado pelo desejo de melhor c o m p reen d e r os fenômenos é uma evidência, porém esse desej o s e duplic a junto ao te órico na vontade de explicar a obra. Ora , e m tal vontade existe um perigo inflacionista que Steiner a ssi nalou com propriedade: " P o rq u e a explicação é aditiva, porque s im p le s men t e não reafirma a unidade original, mas deve criar para ela um contexto ilustrativo, UH1 campo de ramificações atualizadas e perceptíveis, as traduções são inflacionárias [ . .. ] Em sua forma natural a tradução supera o or igirial"." A teoria não escapa ao perigo q ue Steiner sublinha para a tradução. Ela extravasa muito do original, o ultrapassa, engloba, se serve dele amiúde para assinalar outras vias. Com efeito, para além da prirrreira pretensão do teórico que visa confrontar-se com uma obra de partida para descobrir o s aspectos, estruturas, leis ocultas, se perfila o desejo freq uente de estender mais longe as investigações em direção à edificação de sistemas mais complexos e abarcantes em que a obra-fonte toma, é certo, seu lugar, mas de maneira marginal. A pletora espreita. Por isso, jamais será possível dizer, a propósito do discurso t eórico, o que Steiner ponderava a propósito da tradução, que e sta última existe não "em lugar de': mas "no lugar do" texto de origern-". As construções teóricas estão condenadas a existir ao lado da obra, como complemento, trazendo um esclarecimento, ce r t a m e n te diferente, mas necessariamente incompleto. 37 38

G. S te ine r, o p . ci t. , p . 29 1. Ib id e rn , p . 271.

Q UE P OD E (O U Q UER ) A TEORIA D O T EAT RO ?

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Ev ide n temen te, não s e trata de est e n d e r derria is o paralelo en t re tradução e teoria . O s o bjetivos visad os p o r esses d oi s proced im e n to s "p rá t ic os" são bem diferentes, mas nem p o r isso deixa de ser verdade q ue, ao co nsiderar o tra balho teóric o e m uma perspe cti va s imi lar, n o s é dado esca pa r d a s d icotomia s nas q uais nos e nca deamos com rnuita fre q uên c ia e n t re o p ens a r e o fazer, o corpo e o e s p ír ito, o v is u a l e o v e r bal, o es té tico e o polít ico. Tal p e r curs o p e rmite, nã o obstante, ao e nca ra r a t e oria co mo u m es fo rço d e tradu ç ã o d e uma obra o u d e um procedimento, colocar como a prio ri , p ara t odo p roce d imento d e ordem teóric a , um ce r to núm e ro d e b ali za s e , p arti cula rm ente, a n e c e ssidade: 1. De certa escuta, para n ão dizer observa ç ã o fund am ental da o b r a o u dos fen ôm enos que se quer estudar. 2. De ce r ta humildade ante a ex te nsã o d os saberes e d o s co n hecimentos à o b r a na r epresentação e na sociedade que a integra. 3· De um procedimento incursivo e extrativo frente à prática. 4· De uma interdependência o u diálogo entre a prática e a teoria . 5· Da n ecessidade enfim de pesquisar ao termo do procedi mento um determinado equilíbrio e n t re a fonte e o alvo.

Tal r eflexão nos relernbra tamb ém de qu e o p e squisador não deve e squecer que todo ato teórico o coloca, antes d e tudo , como suj eito da enunciação e e le próprio como sujeito neces sariamente inscrito no social e no político do discurso qu e ele veicu la. Além disso, parec e que a interrogação fund amental que que remos propor sobre o papel da teoria e m face da prática teatral reúne a de todas as práticas discursivas (t r a d uçã o e encenação inclusa) . A teoria teatral, co m o a teoria literária ou ci entífica , proc u r a a seu modo reinterpretar o mundo, traduzi-lo s eg u n d o o s parâmetros que lhe s ã o p rópri o s. A ssim procedendo, ela traduz o que o envolve tal qual o faz o artista frente à s u a própria prática, ainda que com outros meios. Ambos apresentam, sem dúvida, um discurso diferente, mas cujas finalidades são as mesmas: as de melhor fazer compreender o mundo, a s coisas e a s práticas que nos rodeiam. A te o ri a a pa rece , po is, como- u ma p rática d e um a n atu re za divers a d a prát ic a artístic a , mas ainda assim um a p r áti c a .

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AL lõM DO S LIMI T ES: UM A TEO RIA Ã PRO C U RA D E P RÁTI C A

Por isso, contrariamente a Brian McHale, nós endossa remos de bom grad o as palavras de Virgil L. Lokke ao afirmar:

3. A Crítica de uma Paisagem Cam íante:

o que constitui a teoria não é uma essência ou algo imanentemente superior à prática e a 'seu domí nio: é antes simplesmente outra pr ática discursiva, gerando cer tos padr ões e marcações retóri cas, sinais para um a dada cultura que o discurs o em pro cesso agora deslocou par a o mod o teorético - isto é, que o discurso agora é teor ia praticante." Não é dessa passagem perm anent e entre prática e teoria qu e os praticante s como Peter Brook ou Antoine Vitez nos oferecem o exempl o? Não é senão sobre essa base comum que práti ca e teori a pode rão dialogar e cessar de se excluírem. Não é senão ao preço de seu própri o requestionamento perp étu o que a teori a sairá enfim do enclausuramento que a espreita.

Os críticos j ulgam a obra e nã o sabem que são julgad os por ela.

Trad. Fa ny Kon

JEA N COCT EAU

o EXEMPLO DO ESPORTE: O MUNDIAL, JULHO DE 1998 Estamos no domingo, 12 de julho de 1998. A Copa do Mundo de futebol opõe na final França e Brasil. A França ganha por 3 a o. Dentro de alguns minutos, estará finalizada a partida. Contra todos os prognósticos, contra todo s os críticos de esporte, pela primeira vez em sua história a França vai vencer o jogo, entrando para o clube seleto dos ganhadores do Mundial. O júbilo popular é sem precedente: 1,2 milhão de pessoas estão na Charnps-Êlys ées, a França se reconhece por inteira nessa equipe: azul, branco, magrebino, negro. Mas, apenas terminada a partida, as televisões transmi tem em todos os canais a imagem do técnico Aimé [acquet e toda sua cólera, uma cólera que não provém de ter vencido certamente, ele estava eufórico por isso. Não, sua cólera se desencadeia contra os críticos e, mais particularmente, contra os críticos do jornal ERquipe, o jornal desportivo que é lido por 39 Vl., Lokke, Narratol ogy. Obsole seent Parad igrns, and Scienti fie "Poetics; or Whatever Hap pened to P TL ?~ Modem Ficticn Studies, n. 33. p. 550. ap ud B. MeHale. Wh atever Happened to Deseriptive Poeties? M. Bahl, I.E. Boer (eds.), op. eit.• p. 58.

Confer ência m ini strad a no semi ná rio organ izado pelo Nordie [ournalist Ce nter, Tarnpere, Finlândia. jul. 1998.

ALtM DO S LIM IT ES: UMA TE OR IA A PROC URA DE P RÁTI CA

A C R1TIC A DE UMA PAISAGEM CAM BIANT E

todos os adeptos do esporte. Durante os dois anos que durou o treinamento, os críticos esportivos não cessara m de censurar cada um de seus atos. Denunciaram sua incompetência, as más escolhas que fazia de jogadores , suas técnicas de treinament o... Em suma, para os críticos e os jorn alistas, particularmente os do L'Equipe, Aimé [acqu et não estava à altur a. "Um bando de vagabundos" rugirá Aim é [acquet na noite da vitória , ao falar dos críticos, reiterando alguns dias mais tarde sua opinião em termos tant o mais fortes: a Copa do Mundo "deve ser a recompensa daqueles que trabalharam como mouros e não daqueles que se aprove itam dela, essas pessoas que gravitam em torno do futebol profissional e que ainda vão se ernpanturrar'" . "Aqueles que se empanturram" são, certamente, os críti cos e os jornalistas. Durante dois anos, Aimé [acquet tentou ma nter-se long e deles e durante os dois meses dos jogos - nas oitavas, nas quartas, na sem ifinal e enfim na final- ele se rec usou a lê-los. Fechou-se em silêncio, longe das mídias, longe da im prensa escri ta. E depois, vejam! O time da França ganhou e essa vitória dá razão ao técnico , ao seu tra ba lho, às suas escolhas. Ela invalid a o qu e puderam pen sar os crí ticos d uran te todo o períod o dos trein amentos preliminares e dos primeiros jogos. Vemo- los, doravante, reduz idos ao silêncio. Fim dessa pequena históri a. O que interessa desse pequeno desvio pelo espor te é que ele oferece,em resumo e de maneira bastante clara, as posições habituais de todo artista em confronto com a crítica. Visivelmente, o paralelo aproxima esport e e arte. Ele afirma - ou reafirm a:

do público, eles que são considerados como os "cães de guarda da sociedade"? 3. Resta enfim a questão do papel do crítico: deve ele comentar, analisar, julgar o que se submete ao seu olhar? Deve ter uma empatia pelo trabalho do artista (ou do esportista)? Deve, ao contrário, permanecer do lado externo da empreitada sem tentar compreender as etapas que aí foram conduzidas? Deve contentar-se em analisar os resultados colocando-se acima da confusão, ser o olhar "objetivo" que reivindica? Ou, ao contrário , tomar par tido e arriscar-se em dar uma opinião forçosamente subjetiva? Q ue parcela deve dar à aná lise circu nstanciada e à crítica temperamental, apaixonada e parcial?

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1. A convicção junto aos artistas (e aos esportistas) de que existe superioridade de ação ("aqueles qu e tr abalh aram como mouros") sobre a opin ião pa ras ita dos come ntado res ("eles ainda vão se empanturrar"). 2. A dist ânci a qu e opõe por vezes, para não dizer co m frequência, os críticos ao público. No caso do Mundial, aparece nitidame nte que o público sempre teve fé em sua equipe, que foi mesmo a fé que impeliu os jogado res. Se o pú blico é afavor e os críticos são contra, em nome de quem falam, pois, os críticos? São na verdade seus próprios representa ntes ou falam em nome

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Le Monde. 18 jul. 1998 .

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Para ser exemplar, a história que precede é, no entanto, bem par ticular e não pode se aplicar ao domínio das artes. Na verdade , o que torna as posições tão nítidas no caso do esporte é que, no final do percurso, há sempre a sanção da vitór ia ou da derr ota. Foi pelo fato de ter a equipe francesa ganh o que Aimé Iacquet pôde ser tão virulento. Sua vitória lhe dá razão, ela justifica seus métodos, suas estratégias. É por ter obtido a vitória que pôde fazer calar a crítica. No domínio ar tístico, sabemos que isso jama is será o caso: um ence nador não vence nu nca de mo do tão espetacular. Mesmo se o públi co lhe faz uma ovação de pé e sai entusiasmado de um espet áculo, o crítico não se comove. Ele pode achar suspeita essa adesão sem reserva, essa alegria popular e a explicar. Tal não o imp ede, a ele, de pensar diferentem ent e. Um sucesso popular não invalida, pois, jamais a crítica - e Aimé [acquet, mesmo ganhando no domínio ar tístico, poderi a da mesma forma ter errad o. Por outro lado, um a dolorosa derrota não imp ede um sucesso de crítica. Afinal, os primeiros da fila são amiúde ignorados pelo grande público .. . Estam os, pois, no direito de colocar a questão de qual é o pap el da crítica hoje e qual o papel que ela ainda pode vir a ter?

A CRITICA DE UMA PAISAGEM CAMBIANTE

ALÉM DOS LIMIT ES: UMA TEORIA À P ROCURA DE PRÁTI C A

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SEGUN DO EXEMPLO : SETEMBRO DE 1983, O MEIO ARTÍSTICO CONTRA A CRÍTICA Em 16 de setembro de 1983, foi publicado no jornal LeDevoir uma crítica de Robert Lévesque, jornalista encarregado da rub rica de teatro, sobre a peça Visite libre (Casa Aberta) de Michel Faure, um espe tác ulo em car taz no Théâtre de Quat'so us. A crítica foi severa. O meio, sempre crítico da crítica, se choc a com o artigo que considera violento e injustificado. Decidem boicotar o jornal recusando toda publicidade em suas páginas, recusando oferecer entradas gratuitas ao crítico e recusando as entrevistas. Cento e cinquenta e seis artistas e artesãos da peça assinam uma petição denunciando os rigores do crít ico, seu tom virulento, suas críticas acerbas. O debate se agrava. Todo o meio reage. O público intervém no debate e envia cartas de denúncia, fustigam amiúde os artistas. Alguns jorn alistas aproveitam para acertar suas contas e acusar tamb ém o meio art ístico. Eles denunciam a insegurança visceral dos art istas, falam de um a "matilha de raivosos", denunciam até a complacênc ia das críticas, dando uma considerável publicidade gratuita e, por vezes, injustificada aos arti stas, esses esfolados vivos, que não hesitam em solicitar a ajuda pública sem querer prestar contas. O debate toca tod os os críticos. Dentre aqueles, um a que acabara de publicar uma crítica à Sorciêres de Salem (Bruxas de Salém ), até recebe pelo cor reio um a bon eca vodu trespassada de agulh as. O caso acabará por voltar ao normal, os teatro s retornando a ter sentime ntos melhores par a com os críticos, os críticos por seu lado reencontrando um pouco de sua serenidade nesse debate em que as paixões se inflamaram}. O qu e essa crise sublinha, próxima de um acting out (atuaçã o) coletivo é, uma vez mais, o mal -estar geral do meio art ístico ante à crítica teatral, tolerada, mas não verdadeiramente aceita, sobretudo quando ela é negativa. O meio admite ". mal que a crítica se ar rogue o direito não apenas de julgar, mas de denu nciar. No fun do, ele adula a crítica quando ela é positiva; tolera-a quando é neutra; e contesta-a quando é negat iva. 3

Para um relato detalhado desse acontecimento, ver Pierre Lavoie, Aimer se faire haír ou haír se faire aimer, Cahier de Th éãtre lEU, n. 31, 1984, p. 5-13.

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TODA PALAVRA SOBRE O TEATRO É UM ATREVIMENTO O que esses diversos exemplos sub linham é que toda palavra sobre o teat ro - e sobre as artes em geral - é um atrevimento. Ela carrega em filigrana duas questões fundamentais: 1. Apoiado em que direito fala o crí tico da obra artística? A que título? Em nome de quem ou de qu e ele fala? 2. Como falar da obra artí stica ? O qu e dizer? Co mo tradu zir em palavras o que é relevante de ser feito?

Tais questões pressupõem uma concordância de definições sobre o que é preciso entender por "criticá: Ora, essaconcordância é ilusória. Ela cobre duas realidades diferentes conforme se faleda criticacomo horizonte de espera ou como prática da vida cotidiana. Digamos primeiramente que a prática artística, a prática da critica assim como a prática da teoria são fundamentalmente três modos de tradução do mundo: o crítico traduz em palavras sua visão da arte, o teórico tradu z em palavras sua visão da prática. Que a arte seja tradu ção das coisas é afirmar que toda form a de arte é de antemão crítica; que ela dá o que pensar. Era àquela altura a visão de Antoine Vitez afirmando que o encenador faz antes de tudo obra de tradução' . Era também, desde a origem, a visão de Aristóteles afirmando em A Poética que o poeta traduz em palavras as coisas. Como em toda a tradução, a questão que se coloca para a crítica assenta sobre a natureza da tradução que opera . Tratar-se-a de uma tradução fielda obra de arte sob forma de testemunho ou de comentário sobre o modo de pensar do artista? O crítico trabalhará então por empatia com o artista, entrará em seu universo, explorará seu processo de trabalho, suas intenções, sublinhará seus objetivos independentemente do resultado obtido? O crítico oferecerá daí trabalho próximo a uma leitura tautológica da obra, oferecerá um espelho apenas distorcido e não será senão um elo suplementar na corrente que conduz a obra de arte ao público, prolongando os revezamentos dessa trajetória qu e vai do art ista ao espectador.

um

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Ver supra, p. 30, nota 30 .

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AL!ÔM DOS LIMITES: UMA TEORIA À PROCURA DE PRÁTICA

Ao ocupar uma fu nção de cron ista ou co mentar ista, d e comentador ou escriba, ele se co ntent ará em fazer eco às obras artísticas de maneira sem d úvida esclarecida, ma s necessariamente insuficientes. Tornado porta-voz, sua p er so nal idade, sua identidade se perderá na sombra do andamento da criação que escolheu esclarecer. Para ser necessário, esse trabalho do crítico não é menos limitado e pode-se pe rguntar se tal é sua verdadeira fu nção. A segunda forma de t radução da obra de arte é a de um olhar crítico mais analítico e, portanto, necessariamente deformante . Pode-se tra d uzir sem tr air, propondo-se com o qu est ão o problema dos esp ecialist as da tr adução? A questão se coloca necessariamente no domíni o da crítica. Toda crí tica é traição. Mas podia ser diferente? No mundo de hoje , o crítico não pode m ais se co nte ntar em receber a obra de maneira inocente. Para lh e d ar sentido, deve fazê-la operar em um tod o mais vasto: d eve fazer referência ao encaminhamento global do artista, insc revê- lo em um m ovimento estétic o, marcar seu percurso em relação às correntes dominantes. Deve de alg uma forma reescrever a obra ao seu m odo, mostrando a originalidade ( O U a ausência de originalidade), faze ndo-a dialogar com as outra s obras, situa ndo- a de novo no de sen volvimento da his tória. Um traba lho crítico que não faz tal labor de construção analítica e teórica se co ntenta em ser um espelho muito pálido da reali da de artís tica. Não preenche sua fun ção . Impelid o para mais longe, como ocorre no domínio d as ar tes plást icas mais do que no domínio do teatro, isso leva o crítico a im prim ir no campo cultural que escolheu percorrer os sulcos co rresp on den tes ao s m ovimentos, tendências, corren tes artísticas que ele tenta assinalar e até nomear, dando -lhes por veze s existência em meio às leituras e observações q ue faz: pensamos nos escritos de Clément Greenberg, de Rosenberg ou me smo de Baudelaire ou de Oiderot sobre a pintu ra. Eles so ub eram , a seu m odo, fazer ver aq u ilo que os artist as mesmos não viam de sua própria prática, situa ndo-os nos grandes movim entos estéticos que agitavam o mundo deles, revelando 5

Era a política editorial do The Drama Review sob Michael Kirby. Toda análise dos espetáculos era co lada a um desejo ilusório de estar o mais pr óxim o da obra artística sem o filtro pessoal e deformante do olhar do analista.

A CRITIC A DE UMA PAISAGEM CAMBIANTE

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correntes que a história recuperou em seguida como referências para pensar a h istória da arte" , No domínio teatral, alguns pesq uisadores realizaram esse trabalho, mas com menos envergadura, sem dúvida, do que aqueles que se consagraram às artes plásticas. Max Herman na Alemanha, [an Kott na Polônia, Martin Esslin nos Estados Unidos e, sobretudo, Bernard Oort na França, são alguns exemplos dos que realizaram tal trabalho de recuperação e deco dificação das obras teatrais, permitindo ler a história do teatro de seu tem po, pressentindo as novidades e analisando todas as prát icas de sua época, int egrando-as na persp ectiva mais vasta de um trabalho sobre um domín io pa rticu lar: teat ro, artes plásti cas, m úsica, cinema ... Bernard Dort permanece um modelo do gênero, ele que soube aliar finura de análise, con hecime nto aprofun dado do tea tro, desejo de pen sar a his tó ria e a arte da escritura. Suas an álises críticas, que apa rece ram ao m esm o tempo em jornais e rev istas especializadas, permane cem como referên cias ainda hoje . Essa vitó ria da crí tica so bre o tempo é o princip al sinal de sua pertinênc ia. De forma mai s modesta, outros crí ticos como Bonnie Marranca e Théodore Shank so uberam dar, cada qual a seu m odo, um n ome a certas co r rentes artístic as, desenhando eixos qu e foram retomados em seguida para desenhar o mapa do teat ro atual: teatro de im agens, teatro alte rn at ivo... Esse tr abalh o que baliza a prát ica permite esta belecer a cartog rafia da prát ica de nossa época. Sem isso, haveri a um mosaico em que a prát ica de cad a um se jus ta poria a dos o utro s, se m que dessa multiplicidade emergisse uma leitura globalizante e necessária segundo a qu al cada obra ganha sen tido em um vasto co njunto. É preciso, pois, qu e o crítico atual pense a arte contemporânea, faça emergir con ceitos no vos, correntes qu e vão permitir a todos assinalar e criar a história de um a arte.

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Aconteceu, é claro, de chegar a se enganar. Os escritos de Baudelaire a respeito de certos pin tores pretensiosos da época sobre os q uais gabava os mérito s (Bouguereau) não sobrevi veram ao tempo e. no entanto, o trabalho de reflexão critica que Baudelaire realizou é um exemplo notávelde análise e lucidez criticas. Cf tamb ém 'hoje toda a polémica lançada por Jean Clair sobre a arte contemporânea é outro exempl o do papel fundamental que pode ter o critico a despeito da parcialid ade de que tais combates são portadores.

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É evide nte que para concl uir tal trajetória, as competências

do crítico atual diferem necessariamente das de outros tempos . Elas necessitam de um saber teórico, estétic o e artístico importan tes. Necessitam por isso, compreende-se bem, que as competências do crítico difiram daquelas que lhe são comumente solici tadas. É preciso que ele seja analista e tenha um conhecimento especializado do domínio que escolheu percorrer /, Do tado de uma visão mais vasta do que a do artista preso na rede de sua própria forma artística, deve poder elevar -se acima do campo cultural para poder analisá- lo com distanciamen to. Ele deve, pois, ter uma visão. "O crítico atuan te é aquele que já descobriu por si mesmo o que pod eria ser o teatro': nota Peter Broo k, "e que tem a audácia de recolocar em questão essa fórmula cada vez que participa de um acontecimento'". Essas novas necessi dades da crítica explicam sem dúvida as razões pelas quais hoje as po ntes entre crítica jornalística e crítica eru dita são mais fáceis de transpor. Numerosos pesquisadores, na verdade, se entregam a uma ou a outra segun do as necessidades dos órgãos nos quais publi cam. A crítica erudita perdeu sua soberba e tornou -se menos esotérica, a crítica jorn alística aspira, por seu lado, ser menos superficial. Tal é a imagem do crítico qu e se poderia desejar. A realid ade da profissão é completame nte outra .

DESCREVER, INTERPRETAR, JULGAR De fato, na acepção comum, um crítico é aquele cuja leitura das obr as se que r, em princípio, "esclarecida'; no sentido que o sécul o XV III dava a esse termo. Não se trata de fornecer a leitura do que aparecer, mas oferecer uma leitura documentada, analítica, informativa. Agindo como primeiro filtro do espetáculo, ele informa o espectador, esclarece a obra, situa de novo, 7

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A C RITICA D E UMA PA ISAGEM C AM BIANTE

ALÉ M DOS LIM ITE S: UM A TEORIA À PRO C UR A DE PRÁTI C A

No domínio do esporte, por exemplo, os comentadores espo rtivos são ex-atletas. Sem querer que os críticos de teatro sejam ex-arti stas, é importante que seu conhecimento da prática arti stica se apoie sobre outra coisa do que apenas na competência de espectador: é necessário que tenham um bom conhecimento da dramaturgia,da prática teatra l em seu conjunto não apena s local, m as além da [romeira. P. Brook (1968), L'Espace vide , Paris: Seuil, 1977. p. 53.

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rapidamente, o texto (se for necessário) , diz algumas palavras sobre a encenação, a atuação dos atores, a cenografia. Faz, pois, para o espectador, um trabalho inicialde filtragem. Para executar tal tarefa, é necessário que tenha discernime nto e a possibilidade de especificar, de denominar as coisas. Para assim fazer, ele designa as obras que merecem atenção. Seu trabalho habitualmente se interrompe aí. Raros são os casos em que estende mais além a análise, indicando pistas, situando mais amplamente a obra em um contexto histórico e estético mais vasto. Escrevendo sobre seu ofício de crítica, Solange Lévesque assinalava que para ela importava "receber e anali sar a obra teatral utilizando a si mesma como primeiro instru mento, e de se deixar vibrar da maneira mais precisa possível'>. A expressão parece bastante exata na visão que é mais comumente propalada. Ela sublinha o que causa o perigo da crítica (mas também sua grandeza): tornar a crítica tributária da personalidade do crítico. Concebida assim, a crítica por vezes parece sem risco e tem uma duração de vida limita da. Consu mida rapidamente, não deixa senão poucos rastos. Ela só é útil como reação epidérm ica para um espetáculo em curso. O crítico aparece aí como um "cão de guar da" da sociedade, encarregado de citar seu prazer ou seu tédio e, por tanto, indiretamente de servir de diapasão ao resto do públi co. Mas ele pode fazer mais. Se atualmente não precisa responder à questão "o que é a arte?", quest ão outrora fundamental, ele pode apresentá- las como obras que extravasem o que dizer a respeito delas, que são os enigmas a cujo respeito tem a sensação de qu e a aná lise não é capaz de esgotar o sentido. Ele pode apresentá- las como obras aber tas ao lhe abr ir as portas. Evitando os dois perigos que o espreitam - o dogmatismo e o impressionismo -, ele pod e ter em mira aproveitar a causalidade ent re a forma e o efeito pro duzido, entre a sensação, a emoção e o que a causa. Assim procedend o, o percurso do artis ta permite ao crítico traçar o seu próprio percurso, balizando a obra artística sem tom ar seu lugar ou oc ultá- la. É preciso que encontre um equilíbrio difícil entre a originalidade de seu próprio mo do de reflexão e o respeito pelo trabalho 9

s. Lévesqu e, Por trait 1986, p. 61-65.

du cr itiqu e en créateur, Cahiers de théâtre lEU, n. 40,

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A L1Ô M DOS LIM ITES: U M A TEORIA

A PRO C URA DE PRÁTI CA

do ar tista, esforçan do-se por deixar ver a obra através de suas palavras sem ocultá-la e sem tomar seu lugar" . Tal exige de sua parte um "atletismo do pe nsamento': a fim de desentocar o sen tido, de fazer significar as obras além de seu primeiro e imediato sentido, de nomear as formas para permitir qu e as "reconheçamos': Dito de out ra maneira, seu encaminhamento po de e deve ser criativo, como o do artista. Os melhores críticos são aqueles que têm , também, o exercício de um pensamento pessoal, que são criativos, pesq uisadores, ensaístas. Co nverg imos nesse ponto com Peter Brook. Essa visão idílica, entreta nto, é infelizm ente amiúde falseada por out ra realidade e um jogo de poder que ultr apassam ao mesmo tempo o artista e o crítico.

A CRÍTICA: UMA GAMA VARIADA DE PRÁTICAS E DE ID EIAS Efetivamente, a realidade da prática é outra. Forçoso é constatar qu e a profi ssão de crítico oscila com frequência entre o discurso complacente e tautológico sobre a obra de art e em que se apresenta na cena o discurso do mesmo e um discurso em que o crítico se faz passar por juiz e sua opinião se apresenta como espetáculo, exibindo-a em cena, justificando-a por vezes como um processo até certo ponto executado. Para isso, podem-se encontrar várias razões. Uma dentre elas, a mais importante sem dúvida , é que a crítica atual sofre de uma falta flagrante dé referências. Ela não é uma ciência e não pôde se dotar, apesar dos anos, de um aparato científico adequado. Ela permanece antes de tudo uma arte tributária da arte de escrever. Além do mais, ela geralmente se apresenta à imagem das mídi as às qu ais se destina. São estas últimas qu e lhe imp õem não apenas sua forma, suas escolhas, mas igualmente seus conteúdos. Ela desposa o mínimo denominador comum. Esse m odo de funcionam ento justifica a incompetência artística do crí tico; não é senão segundo essa qu alidade que 10

Duchamp nos record a qu e são os contempladores que fazem o quad ro.

A C RIT IC A DE UMA PAISAG EM CAM BIAN TE

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ele se torna o espectador básico ao qual supostamente ele deve se dirigir. Há, po rtanto, uma indigência da crítica voluntariamente promovida pelas mídias de massa. O críti co é incitado, pelo pouc o espaço que lhe é dado , pelos breves prazos que lhe são impostos, a nã o tomar distância em relação às obras, a evitar toda argumentação verdade ira para escorar seus julgamentos. Ele se deixa, pois, levar por julgamentos que partem do coração (ele gosta ou não gosta). Não é espantoso que vários críticos acabem por subst ituir seus próprios gostos , sentimentos, emoções, para se colocar diante da obra com o perigo de ocultá-la completame nte. São eles próprios que se termina por ver por detrás de sua crítica e não a obra. O crí tico acaba por se apresentar como espetáculo, feliz pela ocasião que a obra artíst ica lhe concede de se colocar a si próprio em cena. Sua popularidade, ele a deve, para começar, não ao seu talento, mas ao meio que o carrega e que o projeta em evidê ncia a cada vez que ele tom a a palavra para falar de uma obra . Na maioria das vezes enfrenta po ucos riscos nesse longo processou.

A CRÍTICA CO MO POD ER A isto se acrescenta um segundo pro blema de impo rtância que não se pod e deixar passar em silêncio. A crítica é poder. O crítico se ben eficia, quer queira qu er não, de um argumento de autor idade, do qual, por vezes, parece abusar. Com efeito, 11

Aqui aind a é preciso estabelece r nuan ças e variações. Se todo s os críticos se reúnem aparentemente sob uma única bandeira , a realidade do que eles concluem difere profun dame nte de um para outro segundo a personalidade de cada um e, mais ainda, segundo o órgão de imprensa para O qual escrevem. Qual O parentesco que existe entre os críticos da televisão, do rádio e os que escrevem nos jorn ais? Nenhum. Os primeiros são comentadores em geral passivos da atualidade teatral , os segund os, de acordo com os casos, tentam assinalar na paisagem teatral as atividad es dignas de interesse, as come ntam e as analisam proc ura ndo informar o público. É preciso, por tanto, começar por diversificar um vocabulário que dê a impressão ilusória de que todos os críticos fazem o mesmo trabalho, qualqu er que seja o órgão de imprensa ao qual se consagram. Ora , o crítico que escreve nos jornais de grande tiragem, o cronista que anima uma emissão cultural na televisão ou no rádio, o analista que publica nos jornais especializados, aquele que se contenta em fornecer os ecos ou seus humores sobre a atividade cultural e artística, não têm nem os mesmos imperativos, nem as mesmas exigências.

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ALI:M D O S LIM ITE S: UMA T EO RIA

A PRO C UR A DE PRÁTI C A

se a crítica é intolerável para o arti sta (sobretudo qu and o é negativa), é porque participa de um jogo de poder cujas forças são em geral desiguais . Se encenadores com o Robert Wilson, Peter Brook, Peter Sellars, Ariane Mnouchkine", pod em não dar importância à crítica é porque a do mina m com tod o o peso de sua arte. Eles pod em ignorá-la com soberba sem que isso afete profundamente sua arte ou seu talent o. Mas, para a maioria dos artistas, não é o mesmo caso. A crítica e o crítico têm uma incid ência imp ort ante sobre a frequência do público, o financiamento e as subvenções do s quais eles se beneficiam, o reconhecimento do meio, dados que ninguém pode ignorar. A isto se acrescenta uma relação de forças que desfavorece o arti sta e que toca um número de indivíduos atingidos pela crí tica e por um espetáculo. Se Mnouchkine chega a alcançar com alguns de seus espetáculos pert o de 250 mil espect adores (Os Átridas, as peças de Shakespeare), poucos artistas pode m dizer o mesm o. Eles atingem, no melhor dos casos, algumas dezenas de mil hares de espec tado res lá on de o crítico, pelo poder de seu órgão de difusão, alcança de imediato várias centenas de milha res (jornais, televisão, rádio). Em número de pessoas atingidas, o peso de um ar tigo fica evidenciado, pois, como infinitamente mais atuante do que aquele do espetáculo. Ora, qu an to tempo o crítico investiu em uma crítica? Apenas algumas horas lá onde o ar tista empenha o trabalho de vários meses, senão alguns anos. É verdade que o "tempo em nada interfere na questão", mas é evidente que essa diferença suscita ali também um problema ético. Por outro lado, quando a crítica não é concebida de modo criativo, como tentamos apresentar acima, ela permanece um exercíc io superficia l de digestão rápi da da obra ar tística. A esse trabalh o superficial nos induz tod a a nossa soc iedade e, partic ular me nte, as m ídias de massa que se apoderaram das obras artí sticas como bens de consumo, em busca de eventos culturais, do mesmo mod o como são eventos sociológicos ou políticos, transformando tud o em espetáculo em si. A fun ção 12

E, no enta nto, o próprio Th éâtre du SoleiI no tava que as críticas que tardam a sair os obr igam por vezes a fazer um a camp anh a publicitária que não havi a sido prevista, pois o trabalho de d ifusão da inform ação tarda a se fazer. Foi o caso, parece, para Et So udain des nu its d éveil (De Repente, Noites de Vigília).

A C RiTI C A DE UMA PAISAGEM CA MB IAN TE

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crítica, pois, cede u o lugar tamb ém à função espetacular, tor nando-se um espetáculo em si. Não são mais as obras que são valorizadas, mas o próprio crí tico servindo-se amiúde de tal terreno para se colocar em cena. A própria obra de arte se perde atrás de seu valor como acontecime nto. Último ponto, relativo ao desequilíbrio que se estabelece entre o artista e o crítico, é qu e este último não tem contas a prestar a ninguém e, no entanto, por vezes a parcialidade de seus julgame ntos autorizaria, e até mesmo exigiri a, um direito de resposta do qual o arti sta é necessariamente privado. O crítico se beneficia , pois , de certa imunidade, qualquer que seja a natureza (ou a violência) de suas palavras. Acres centemos enfim que, segundo o país , segundo as cidades, segundo os casos, a incidência das críticas é mais ou menos considerável sobre a frequentação dos espetác ulos. É relativamente fraca qu ando aquelas são dirigidas aos encenadores mais renomados , é pouco diss uasiva em cidades onde há uma diversidade de órgãos de imprensa, que raramente são da mesma opinião, mas se torn a importante qu and o incidem sobre as companhias jovens ou encenadores ma is dependentes da opinião pública. A responsabilidade da crítica nesses últimos casos é, portanto, gran de.

UMA ARTE AMEAÇADA A despeito do impacto importante que a crítica possa ter sobre um dado espetáculo, é preciso reconhecer, tod avia, que esta não tem senão uma incidência limitada sobre a evolução da arte e, com mais razão, sobre a socie dade. E, contu do, a despeito desse dom ínio bem exíguo que lhe é reservado, ela está ameaçada. Em nossos dom ínios, há rarefação do espaço crítico. Na verdade, a ar te da crítica está ameaçada por tod a no ssa cultura de massa que recusa a crític a. Está ameaçada pela era das mídi as, na medida em que ela tem senão um fraco impacto frente ao que as mídias podem trans mitir. Sofre, por outro lado, a concorrência da pu blicidade, pela multiplicação de cópias promocionais nos jorna is, pelas entrevistas dadas pelos artistas para anunciar e explicar seu trabalh o. Seu campo de ação está,

ALÉM DO S LIMI TE S: UMA T EOR IA À PRO CU RA DE PRÁTI C A

A CR IT ICA D E UMA PA ISAG EM C AM BIANTE

po is, terrivelmente restri to. Daí a necessidade de lhe enco ntrar um novo sentido na falta de lhe encon trar novas formas. Ademais, perante a fragme ntação, ao parcelamento das práticas, à sua multiplicação que faz com que seja impossível para o crítico tudo ver, esse perdeu a função política e social que lhe dava sentido: a de formar o gosto do público, de orientá-lo, de canalizá-lo. Tendo perdido por isso seu objetivo inicial- aquele reivindicado por Diderot e Baudelaire - de forma r o gosto ou mesmo o julgamento, de ensinar o discernimento, tal como podemos pensar que ela fazia outrora, a crítica se contenta atualmente em inscrever uma individualidade suplementar, a do crítico, à de todas as outras individualidades que constituem a tram a de nossas sociedades explodidas . Ela dá, pois, inde vidamente um lugar exorbitante ao parecer de um único sujeito. Q ue lhe resta ? No melh or dos casos, ela inscreve um a solidariedade com o meio, com o pú blico, com a sociedade (Lucie Robert); ela converte o crítico em "cúmplice da aventura teatral, o parc eiro de criação" (Pierre Lavoie), ao conduzir uma "formação do olhar': Tal papel não é desprezível. Mais imp ortante aind a, ela inscreve o espaço na obra , uma distância entre o espetác ulo e o espectador, entre a recepção e seu tratam ento pelo pensament o. O crítico analisa esse percurso qu e vai da reação epidé rmica, gostar ou não gostar, às imp ressões mais profund as. Ele traça os caminhos, faz as ligações . Insc reve o afastamento no seio da experiência estétic a. Afirma que toda obra artística exige reflexão, que ela não é simplesme nte um bem de cons umo imediato e sem consequ ência, qu e par ticipa de um conjunto soc ial e estético e que faz parte de um a coletividade. A atitude indi vidual do arti sta encontra o coletivo. É ela que permite tornar coletivo aqu ilo que depende do particular. Mesm o sendo produto de um indivíduo, ela é, antes de tudo, destinada a todos. E, destinada à coletividade, a pos ição crítica se justifica. A coletividade delega um indivíduo para repre sentá-la, e este último faz a relação com a coletividade. Sem essa missão social, a função do crítico seria obscena, intolerável. Existe então um a crítica justa? Provavelmente não. Gilles Sandier reivindicava o "direito à indignação': Como fazer para que esse direito não seja abusivo? Considerado do ponto de

vista do público, Sandier tem razão. O crítico deve preencher tal papel. Ele é mesmo o único que pode fazê-lo. Do ponto de vista do artista, a coisa é mais difícil de aceitar. O arti sta não pod e senão sentir-se necessariamente lesado pelo procedimento. A dificuldade se prende às exigênci as contraditórias que impomos ao crítico. Sua arte é em primeiro lugar "arte de combate", certamente, segundo a expressão de Sandier, ma s é também uma "arte de solidariedade", solidariedade com o meio artístico ameaçado em nossas sociedades, uma arte que deve sempre provar a sua necessidade . É também uma "arte do diálogo", diálogo com a obra, com o artista, com o público . Ele é aquele que permite tornar coletivo o que realça do par ticu lar. Ameaçada, a arte da crí tica não permanece menos essencial. A co~tin uar por praticá-la como o fazemos nas mí días, não será em breve senão um a sobrevivência do passado sem urgência e sem necessidade. Por falta de encont rar novas referências no mundo atuaI, ela será levada a desaparecer ou a sobreviver como vestígio s de um outro mundo. É preciso, pois, que o crí tico reassuma com tod a urgência sua responsabilidade social e sua função estética. Utilizando sempre com circunspecção sua subjetividade e explorando o espectro comp leto do saber, qu e vai da reação epidé rmica aos espetáculos até as análises mais aprofundadas, é preciso qu e ele efetue a ligação entre emoção e conhec ime nto, ten do consciência qu e esc reve a história ao deline ar o traçado do futuro.

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Trad. Fany Kon

4. Teoria e Prática: Além dos Limites'

Digamos, num primeiro mom ento, que o dom ínio da pesquisa teatral, como o da busca em outras disciplinas artísticas (artes plásticas, música) traz em seu cern e uma cesura, uma ruptura que opõe o mundo da prática e o da teoria. De um lado, figura o universo do artista e de seus lugares de referência, do outro, aquele do pesquisador e de suas categorias epistêmicas. Entre os dois, o decurso passa com pouca dificuldade , passa com dificuldade ou não passa absolutamente. Esta clivagem está presente, é preciso reconhecê-lo. Mesmo contorna da às vezes por uns ou outros - arti stas ou pesqui sadores - , ela não deixa de ressurgir quando cada um se embrenhar na lógica de seu próprio encaminhamento intelectual. Pode-se distinguir esta clivagem com o um a situação inevitável que se refere à natureza de cada disciplina (a prática de uma arte ou a reflexão sobre uma prática ) ou à forma de cada atividade (a prática buscando a construção de um objeto artístico, a pesquisa visando ao desenvolvimento do conhecimento). Mas a esse respeito pode-se também interrogar seu sentido e seus fundamentos, explorar as razões dessa ruptura. Numa época em Texto aprese ntado na abertur a do XVIII Congresso da FlRT-IFTR (lhe Internation al Federa tion for lheatre Research) , Canterbury, em julho de 1998. cujo tema aborda do era precisamente lheórie et pratique: au-delà des limite s.

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TE ORI A E PRÁTICA : ALÉM DO S LIMITES

ALÉM DO S LIMI T ES: UM A TEOR IA À PRO CU RA DE pRATIC A

que inúmeras pesquisas teatrais ocorrem na Amér ica do Norte no seio de escolas de teatro que formam atores, essas clivagens, se não são dolorosas , são pelo menos prob lemát icas. Elas nos obrigam a interrogarmo-nos acerca da natureza dos processos que opõem, deste modo, o encaminhamento do praticante e o do pesquisador. Não há, da parte de uns e outros, ausência de compreensão dos encaminhamentos próprios a cada um, não há arrogância dos pesquisadores ao constatar que estamos satisfeitos com nossos próprios domínios de exploração, indiferentes à rejeição do limite de nossos campos de competência, ao enfrentarmos domínios da arte teatral em que os instrumen tos que nós instalam os não são suficientes para ana lisar? Onde estão os questioname ntos fund amentais relativos à nossa disciplina? Quan do nos interro gamos a respeito dos limites de nossos própri os instrumentos metod ológicos? Das fronteiras de nossos campos de análise? Parece-m e que atuamos muito melh or às vezes, para não dizer frequentem ente, na convicção de nossos sistemas realmente expe rim entados do que nessas zonas mais problemá ticas, terra de ninguém das posições front eiriças. Gostaria, portanto, de aproveitar a ocasião, que me oferece hoje o tema do congresso, para inte rro gar o campo disciplin ar no qu al nós todos operamos e par a tent ar ver algumas de suas lim itações. É evidente que não trato de submeter à discussão tudo o qu e acontece nos diver sos campos de esp ecialização, realizações reais e qu e construí ram, ao longo dos séculos, uma base fundamental aos nossos conhecime ntos, mas gostari a de me avent urar nessas zon as não tão frequentadas, nos confins de nossos sistemas, de nossas metodologias, de nossos campos de pesqui sa e de criação para ver o que nossas abordagens deixam habitualmente no esqu ecim ent o. Meu trabalho não será nem sistemático nem exaustivo. Ele se constitui num tracejado dos aspectos do teatro que me pare cem esquecidos ou insuficientemente desenvolvidos, ou porque evoluem em tais zonas fronteiriças de nossos campo s disciplinares (desempenhos lim ites), ou porque não temos os instrumento s para apreendê-los (trabalhos sobre os conceitos imprecisos de energia, presença, interpretação do ator). Sem dúvida, haverá alguns que me dirão que vão me julgar, que tud o isso já é objeto de estudos apro fun dado s, que neste

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ou naquele canto do mundo tudo isto já pertence à norma. Eu gostaria, portanto, que isto fosse apreendido como o olhar, forçosamente parcial e parcelar da cientista que sou, no nosso campo disciplinar. Estou feliz que o tema do congresso me ofereça esta possibilidade que desencadeia a questão dos limites. A noção dos limites é essencial em tod o camp o teórico. Ela é indispensável à edificação de um campo de análise homogênea. Ela afirma impli citamente o que faz parte de um campo de estudo e aquilo que dele é excluído. Falar, portanto , de limites é constitui r necessariamente um interior e um exterior de um campo específico , uma abordagem teórica particular. Tal clivagem, todo cientista realiza-a automaticamente assim que recorre a uma metodologia ou teoria específica, desde que escolha uma determinada compilação. Nós falaremos, portanto, de du as formas de limites: a que concerne a uma aproximação teórica determinada; e aquela que é relativa tamb ém a um campo de investigação par ticular. Falar de limites é desencadear certo número de observações: a. No domínio científico, leis são consi dera das como verdadeiras e opera tivas, desde que elas não sejam confrontadas a casos em qu e elas cessem de ope rar, portan to desde que elas não tenh am atingido certos limites na sua aplicação. Quando estes são atingidos, é corren te que outras metodologias sejam descobertas para prestar contas da evolução das coisas. Falar, portant o, de limites é interrogar, num pr imeiro momento, os funda mentos episte mológicos sobre os quais funcio na toda pesqui sa teatral. Segundo Michel Henry, "Toda ciência constitui-se numa redução que delimita o própr io campo e lhe fornece seus objetos - contudo, na med ida em que ela coloca fora de jogo nesta redução, e por ela, tudo com o que ela não se preocupa - o que no fundo de suas decisões iniciais, ela não será jamais um tema:'> Tal modalidade de funcionamento que descreve Michel Henry para a ciência aplica-se muito seguramente ao teatro . Tod a aná lise teatr al, tod a metodologia, tod a teor ização se constrói através de um a redu ção que delim ita seu obje to. Esta 2

M . Henry. Descarte s et la qu estion de la technique, Le Discou rs de la m éthode, Paris : P UF, 1987. p. 28 5.

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A LEM DO S LIMITES: UMA TE OR IA À PRO C UR A D E PRÁT IC A

limitação, nós queríamos pô-la em destaque em algun s casos específicos realçando o que permanece na penumbra. b. Destacar também a questão dos limites ou das fronteiras, é supor que estas são fixas, ou nós estamos numa época em que essas fronte iras estão elas própri as em movim ento? O que estava outro ra excluído da ciência teatral, hoje faz parte de seu objeto, respondendo assim a uma evolução das mentalidades e a uma evolução das formas . Observa Ch ristian Décamp s: Atualmente, os campos filosóficos como os campos cien tíficos não cessam de se deslocar - de marcar igualmente - os limites e as direções do saber. Desde Dad á, pelo menos, a ar te é também uma longa interrogação dos limites da obra.'

O teatro não escapa a tais flutuações de limites, longe disso, prova que os limites do campo teatral flutuaram no decorrer dos anos, adotando as trocas da própria prática. Assim a noção de teatro cedeu pouco a pouco o lugar a esta noção de representação teatral, de desemp enho, à medida que o texto cedeu o lugar ao corpo do ator, que o palco enfatizou o espaço e a interpretação. À medida que emergiram forma s artísticas limites, nos confins das artes : teatro -dança, but ô, perfor ma nce art, os limite s do teatro alteraram-se, englobando todas as formas de representação, esticando às vezes ao extremo a representação, tais como todo s os estudos americanos sobre o 'carnaval, os espetáculos de circo, os treinos de anim ais, os peep shows, os rituais. Desse ponto de vista, é claro que não há lim ites na compilação que pode conter os estudos teatrais. Ganhou-se realmente muito em tal abertura, para todos os sentidos, da noção de teatro ? Difícil dizê-lo. Seguramente nós ganhamo s nisso um a ampliação de nossas mentalidades, mas também nos trouxe instru mentos mais precisos de análise, uma melhor apreensão dos fenômen os que nos cercam ? A questão merece ser formul ada. c. Observemos tamb ém: Cada recorte do saber, do espaço, faz ressurgir a necessidade tant o quanto a arb itrariedad e - dos limites. Demasiado restringidos, 3

C. D écarnps, Fronti éres et limites. Par is: Centre Pornp ídou , 199'. p. 9.

TEORIA E PRÁT ICA : ALEM DO S LIMI T ES

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estamo s engastados, prisioneiros. Ilimitados, não somo s mais nada! A cada vez, trata-se de escalas. de medidas, de cadastros, de trocas e de rejeições [.. . J Em outros term os, cada recort e cria uma estrutura, que diferencia, mostra ao irmã o vide nte.' .

Tal est rutura é também a das metodologias específicas de que vamos tornar a falar. Essas recortam o objeto, o saber em conjuntos isolados e concebidos como autônomos. Ora , a realidade da prática teatral exige que se analise as interferên cias entre os diferentes sistema s significantes. Estes puderam ser definidos, mas existem po ucas pesq uisas que conseguem colocá-los em con formidade uns com os outros. Afirma Jean Hamburger: Mais a pesquisa progride, mais é claro que abordando um objeto por métodos e escalas múltiplas, nosso espírito pode adquirir reflexos distintos. Nós notamos então o objeto sob pontos de vista diferentes e não podemos mais passar livremente de um para o outro. As regras do jogo do objeto não são as mesmas nas diversas escalas de observação.' É reconh ecer que nossas pesquisas teatrais assinalam a descon-

tinuidade e não podem oferecer uma imagem global integrada. As diversas disciplinas acabam por constituir-se em arquipélagos que poucos vínculos têm umas com as outras. Elas oferecem pontos de vista de abordagens diferentes e não integrados (ver, por exemplo, o que diz Michel Serres sobre o assunto). É preciso reconh ecer que não é possível obter uma visão integrada da ciência. A unidade da ciência é um fato passado. O mesmo ocorre no teatro. É-nos necessário reconhecer, de agora em diante, que pode haver diferentes modo s de conhecimento de um mesmo objeto, como observa Jean Hamburger",

o ato do conhecimento pode ser representado simul taneamente em vários palcos, comunicantes. mas distintos, ilusoriamente confun didos pelo nosso espírito apaixonado pela unicidade. Ademais, que essa ciência dividid a em pedaços permaneça parcelar e múltipla, enquanto ela tenta descrever um mundo exterior que nós supomos sem cesura, e que traduza talvez simple smente os limites da inteligência humana.' 4

Ibidern, p. 11.

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J. Hambur ger, La Raison et la passion, Paris: Seuil, 1984. p. 14-15. Ibidern, p. 18-19. Ibidern, p. 19.

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Em resu mo, os lim ites se ligam a vár ias coisas: ao ca mpo inculto d as observações; ao modo de seleção dos fen ômen os; à esco lha da ling uagem utilizada; à impossibilida de de pr ovar qu e tal teoria é ve rd ade ira, mas que sim plesmente ela não é falh a. Há um ca rá ter provisório da adequação de um a teor ia à natureza, esp erando um modelo melh or qu e o precedente. O s esc r itos teóricos so bre o teatro, na for ma intensa qu e eles tomaram hoje, são o res ultado de uma época, a nossa, qu e desen volveu há aproximadamente tr inta anos uma teorização excess iva de todos os fenô me nos literári os e artísticos. É evidente, p or o utro lad o, qu e esforços de teorização pontuais não são recentes e existem há muitos séc ulos, mas a forma int en sa que tais pesquisas adqui ri ram hoje é o resultado de um a aceleração co m ênfase na teoria. A auto no m ia da pesquisa teatral, ela própria em relação a uma época não tão distante, em qu e os estudos teatrais inscreviam-se na dir eçâo das investigações literárias, não está tão longe. Portanto, nã o surpreende qu e no ssas pesquisas atuais contenham a marca dessa história. De fat o, no sso s modelos epistemológicos foram trazidos da literatura, antes de se adaptarem às formas mais recentes de análise centradas na representação. Os estudos sociológicos, psicanalíticos, sociocríticos, por exemplo, até mesmo h íst óricos", não diferem na sua essência (e no s instrumentos que eles adotam) daqueles que utilizam outros campos disciplinares, sobretudo literários. No que os instrumentos metodológicos utilizados diferem quando se aplicam à literatura ou à represe ntação teatral? No que as metodologias propostas foram modificadas pelo seu objeto de an álise? No que o objeto teatral trabalhou as categorias epi stêmicas em uso? Às vezes, tem -se a impressão de um mold e uniforme que se aplica indiferentemente ao romance, à po esia, ao cinema, bem como acontece com o teatro. Sem dúvida tais aproximações nos 8

TEOR IA E PRÁTICA : ALÉM DO S LIMITES

A Lt M DO S LIMIT ES: UMA T EOR IA À P RO C U RA D E PRÁTI CA

Duvignaud observa: "Quem acreditará que exista um a continuidade no temp o, uma evolução misterio sa e oc ulta do teatro desde as primeiras manifestações neolíticas (duvidosas, é verdade) até nossos dias? A ideia de uma criação das formas na sucessão, criação resultando numa lógica interna do desenvolvimento huma no, perten ce certamente ao arsenal ideológico do século passado [.. .] Não há vestígio de evolução quanto a isso. e nenhuma sequência liga, entre elas, os gran des períodos de expressão dramática europeias, exceto, sem dúvida , a iden tidade das inquiet udes" Le Th éãtre, Paris: Librairie Larousse, 1976, p. 7.

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elucidam a respeito do fenômeno teatral, na sua relação com o social e com o indivíduo, mas elas nos dizem bem po uco, é preciso reco nhecê- lo, sob re os mé todos da própria produção da obra (inter pretação do ator, afinida de do diretor com uma obra, correlação do ato r a um papel, afin ida des entre a produção da obra e a socieda de) . Quase sem pre tais an álises contentam-se em estuda r as tem áticas da obra numa peça o u numa repre sentação para ver o qu e elas nos di zem de uma dete rm inad a soc iedade ou de uma psicologia pa rtic ular: Hamlet, O Cid, O Príncipede Homburg ou Tartufo. O utras afinidade s inscrevem -se nessa linhagem. Menos frequentes hoje, elas não se fazem m en os presentes. Inspiradas pela filosofia, pela estéti ca ou pela dramaturgia, elas tentam criar um a po éti ca do teat ro, analisando os gêneros e procurando difer enciar o teat ro das outras formas artísticas (Go uhier, Veinstein, Kowzan, Banu). Mais recentes, outras afinidades foram especificamente concebidas em volta da obra teatral. Ao emprestar seu impulso para pesquisas que se desenvolveram elas próprias em o utras disciplinas: se rriiolo gia, p or exemplo. Essa s parecem ter modelado um instrumento especificamente destinado à representação e em condiçõe s de delimitar a natureza", Os exemplos são inúmeros. Aí está um do s únicos exemplos de constituição sistem ática de uma ciência própria à representação teatral: pesquisa das categorias de significação na representação, reconhecimento do s diferentes sistemas significantes, definição da noção de personagem. Ora, nes se caso, a semi ologia marcou seus limites. Na verdade, ela deixa por completo na ob scuridade essas zonas imprecisas e, no entanto, fundamentais, da produção teatral, que são o desejo, a energia, a em oção. Em resumo, a representação, a produção, a criação. É possível delimitá-las? A resposta não é segura. Mas continua sendo importante questionar e reconhecer tal deficiência como limite de certas abordagens metodológicas. Aliás, essas abordagens, que nós chamamos "analíticas?" , "partem muitas vezes da representação. Elas têm por objetivo 9

Cf. A. Ubersfeld , E. Fischer-Lichte, P. Pavis, M.de Mari nis, K. Elam, E. Rozik, G. Savona. 10 Cf. Pour une théorie des ensembles flous. Theaterschrijt, n. 5-6, 1994>p. 58-80.

C.

ALIÕM DOS LIMITES: UMA TEORIA A PROCURA DE PRÃTIC A

TEORIA E PRÃTICA: ALIÕ M DOS LIMITES

compreender melhor o espetáculo e produzir noções, conceitos , estruturas, referências que permitam apreender a cons trução do sentido em cena e a natureza das trocas que aí ocorrem: do texto para o ator, do ator para o espectador, dos atores para o espaço, do corp o para a voz.. . Elas analisam o fenômeno teatral como produto acabado , exploram os diferentes sistemas da representação, interrogam a relação do teatro com a sociedade, analisam o corpo do ator, seus movimentos, sua voz. Essas teorias visam ao saber : desenvo lver os conhecimentos, melhor compreensão da representação. Essas teorias agem de duas maneiras:

Esboçadas quase exclusivamente pelos próprios praticantes, tais teorias da prática são úteis para os diversos artífices do espetáculo: atores , diretores, cenógrafos. Elas não visam à melhor compreensão, mas à melhor realização. Elas constituem um a forma de teorizar a prática. Entram nessa categoria os textos de Appia , Craig, Meierhold, Taírov, Vakhtângov, [ouvet, Stanislávski, Brecht, mas também aqueles de Dullin, Brook, Grotowski e tantos outros. Por vezes, mais próximas de uma metodologia que de uma verdadeira teoria, essas reflexões permitem, no entanto, melhor pensar o fenômeno teatral como aprendizagem e como criação. Esses múltiplos esquemas que nós distinguimos pela como didade da intenção, realmente não se excluem . Seus limit es, às vezes, são nebulosos uns aos outros, porém nos pareceu útil marcar tais distinções, a fim de melhor circunscrever a natureza das con fusas relações que a teoria mant ém com a prática. Mas, ao final desse pe rcurso, perg unta-se contudo se não haveri a meio desses dois eixos teóricos (esses dois modos de referência) que nós mencionamos (as referências analíticas e as teori as da produção) se encontra rem, desenvolverem-se dialeticam ent e e enri quecerem-s e mutuamente. Eis a questão que gostaria de formular. Para o mom ent o, isso parece ser difícil, dada a diferença dos obje tivos processados segundo cada um dos gru pos e a diferença dos interesses. Não se descarta qu e haveria talvez a possibilidade de pro curar, com o terceiro vetor teórico das zonas onde o question ament o e as expectativas do prático e do teórico seriam da mesma natureza, zonas teórico -práticas ou prático-teóri cas em que as questões form uladas partiriam da prática, mas onde as respostas não pod eriam ser encontradas sem uma cooperação entre art istas e pesq uisado res, sem qu e interviesse seus mod os de reflexão recíproca: trabalho sobre a energia, por exemplo, na presença do ator, no corpo, na voz e na relação com o texto. Tanta s zonas "imprecisas" e contudo fundamentais, ao mesmo temp o, para a evolução do prático e para a compreensão do analista. Não se po de ria acrescentar tamb ém , aos modelos já existen tes, outros modelos de teo rização mais apropriados à natureza efêmera da representa ção teatr al: teoria do impreciso,

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1. De maneira induti va: nesse caso, elas partem da observação de inúmeras práticas para referenciar constantes, assentar as bases de uma metodo logia, construir sistemas de explicação. Porta nto elas ultrapassam frequentemente, no fim do processo, a aná lise de uma represen tação específica, de um a prát ica ou de uma forma estética, buscando extrai r concl usões de orde m mais geral que seriam aplicáveis a outras práticas. 2. Ou de ma neira ded utiva: nesse cao, elas part em de sistemas de pensamento já constituídos qu e tentam aplicar ao texto para descrever o fenômeno da representação. Tais teorias, esboçadas a partir de campos ideológicos diferentes daquele do teatro, apesar disso encontram neste último, um campo fértil de utilização. É o caso das teorias socio lógicas, psicanalíticas, ant ropo lógicas, sem iológicas, assim como teorias da recepção ou da co mu nicação mencion adas acima. Todas elas pedem em prestado de outros domínios de observação seus instrumentos e suas metod ologias e, tod avia, conferem um brilho particular ao fenômeno teatral que elas extravas am à larga.

TEORIAS EMPÍ RICAS DA PRODUÇÃO Existe um segundo grup o de referências, mais empíricas, que se pode ria chamar de teorias da produção, cujos objetivos são a compreensão do fenômeno teatral como processo e não como produto. Elas procuram fornecer instru mentos ou métodos para que o prático desenvolva sua arte. Elas visam à experiênc ia.

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ALÉM DOS LIMITE S: UMA TEORIA À PROCURA DE PRÁT ICA

do movime nto, do acaso, do caos? Teorias dos sistemas instáveis, noções de escolha, de risco, de incerteza? Isso permiti ria adaptar nossos model os à evolução dos conhecimentos. Nesse quesito, a pesquisa teatral tem ainda um incontestável caminho a percorrer. Deixando portanto os sistemas de teorização rígidos , pareceria útil que hoje definíssemos novos caminhos de exploração, novas dimensões da teor ia, que possam compree nder esses conj untos imprecisos (teoria da sed ução, do obsceno, talvez). É somente a esse preço que o discurso teórico poderá encontrar a prática do teatro e falar disso de mane ira viva.

5. Por uma Genética da Encenação: Take 2'

Trad. Aimée Amaro de Lolio

As primeiras bases desta reflexão foram lançad as em 1998, no artigo "Por uma Genética da Encenação': publicado na revista Th éãtre/public' e traduzido pela revista Assaph, de Tel Aviv, no mesmo ano. Retomamos aqui alguns aspectos dele porque aquela cartografia de um campo ainda frágil permanece, todavia, válida . Em todo caso, há algun s anos , vários textos e pesquisas importantes foram publicados sobre tal tema, especialmente os trabalhos de Jean-Marie Thomasseau, de Marie-Madeleine Mervant Roux e de Sophie Proust, bem como o número especial de Genesis, dedicado ao teatro '. No âmbito anglo-saxão (no caso, australiano) podemos mencionar os estudos de Gay McAuley, um pioneiro nesse campo e que, há mais de vinte ano s, observa o trabalho dos arti stas em ensaio' . Publicad o co mo in trodução ao número espec ial d o T RI (7hea tre Research

lnternationali so bre G ené tica d a Performan ce. Towards a G ene tic Study of 2 3 4

Perfo rmance: Take 2, TRI, v. 33. n. 3, oc t. 2008, p. 223-233. N. 144, p. 54-59. N. 26, automne 2006. Ver a revis ta About Performance (Universidade de Sidney), dirigida po r Gay McAu ley. Pode-se acresc en tar a esta lista do universo anglo-saxão Shommit Mi tter, Systems of Rehearsal: Stanislavsky; Brecht, Grotowski and Brook , Lon donoRou tledge , 199 2; Susan Letzercole, Directors in Rehearsal; a Hidden World,

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A L ~ M DO S LIM IT ES: UMA TEORI A A PROCURA DE PRATI CA

PO R UMA G ENnICA DA ENCEN AÇÃO: TA K E 2

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í 1995, take

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Em visita à Un iversi d ade de Toronto, onde a Schaubüh ne foi conv id ad a para apresentar um de seus espe táculos, a ence na dora Andrea Bret h oferece ao público uma master class basead a em uma d as ce nas de A Gaivota. A cena escolh id a foi a d o último encon tro en tre Trepl ev e Nin a, onde Treplev d escobre que Ni na, d e regr esso já há algum tempo, e aba ndo na da por Trigo rin, não pod eria, contudo, jam ais amá-lo. Os d ois ato res, so b a d ireção de Breth, interpre tam a cena. Nina está estirad a so bre um di vã enq uanto Kóst ia, se ntado na extremidad e super ior, aperta-lh e os d ed os co m força, exprim indo ass im, ao mesm o tempo, o seu desesp ero e a sua pa ixão. A atriz, en tão, inte rrom pe a cena e se queixa qu e a pr essão da m ão de se u retr aído enamo rado está lh e quebrando as articulações. 1998, take 2 . Em visita à Sch aubü hne de Berlim, ass isto ao espe táculo já estrea do de A Gaivota, encenado por Andrea Breth, e constato, agora, que os doi s atore s interpretam esta cena m antendo vá rios m etros de distân cia ent re eles, im óve is e com uma emoção contida. A força dessa relação à distância, onde os co rpos não se to cam, mas onde toda a paixão de Tre plev está lá, diante da indiferença de Nina - d estruída por um amor não cor respond ido - mostra com força a irrevogabilidade daquela se pa ração e intensifica o sentimen to de fatalidade qu e vai se abater sobre aqueles jovens, esquecidos pela vida. A primeira disposição espacial originalmente encontrada, aq uela d e 1995, revela , dessa maneira, suas insuficiências. O que terá levado a encenadora e os atores a esta tran sformação? Por meio de quantas etapas tal afastamento na cena ocorreu? Que d iscussões conduziram a tais escolh as? Essas foram as primeiras instânci as de uma interrogação que me despertaram o interes se pelos processos de criação de uma obra e, de modo especial, pelas fases de prep aração de um espetáculo antes de sua cristalização final. Qualquer apresentação de um espetáculo, estudado par a fin s de análise, se constitui ap enas co m o um momento do processo , o qual se deve reafirmar co ntinuam ente como um ins tan tâneo, capturado ao vivo, de uma circunstância qu e se 1.

London: Routledge, 199 2; Vasili Toporkov, Stanislavski in Rehearsal, London: Methuen, 2001. Na França, Geo rge Banu. (ed .), Les Répétitions: Un siecle de mise en scéne, De Stan islavski à Bob Wilson, Bruxelas: Alternatives Théâtrales 52-53-54 ,1997, e reeditado pela Actes Sud em uma versão revisada (2005).

inscreve na duração, devendo ser necessariamente lida como tal. Isso é co nfirmado, aliás, pelas várias obras in progress das quais acompanhamos o percurso : as de Waj di Mo uawad, Robert Lepage, Robert W ilson, Peter Sellars ', ape nas para citar algumas. A obra cênica, portanto, es taria sempre em vias de se fazer e esta r ia inscrita em u m pro cesso de constante criação. Aq uilo qu e é ve rda de iro so bre uma obra apresentada ao público o é, m ais ainda, em relação a um a obra em gestação . E, se não é uma novidade, no cam po da pesquisa teatral, o interesse pelas fases d e criação d o esp etáculo e a investigaçã o de cer tos documentos exist entes (entrevistas co m ence nado res e atores, depoiment os pessoais, descrição de se us modos d e trabalho ou de suas visões de teatro, estudo de m aquetes, cro quis, ano tações diversas), o estu do sistemático desses doc umentos e, ma is ainda, dos cade rnos de d ireção, do s esboços e ano tações de cena qu e document am os en saio s (red igidas pelo próprio en cen ador, por seus assistentes ou pelos atores), isso sim, ainda é ra ro. Contudo, se anali sado s de modo sistemático, todos esses materiai s permitem qu e adentrem os concretame nte no mundo de tr abalho de um criador - por mei o de um determinado espetácul o - e que exploremos as fases de um processo de criação. Como trabalha um ence nado r? Que conselhos ele dá aos atores? Que diretrizes ele adota no que concerne ao espaço e à gestualidade? Como acontecem os ensaios? Como se efetua a entrada dos atores no palco? Em qu e momento a cenografia interfere no processo? De que forma ela afeta a marcação e a interpretação? Por que um determinado adereço de cena foi incorporado à obra? Tais an otações, por mais fragmentárias que sejam, são as únicas que podem revelar, em sua multiplicidade, as modificações trazidas ao espetáculo ao longo de sua gestação, bem como as hesitações, rasura s, descobertas e escolhas diver sas que acompanham o trabalho. Tais documentos, qu e chamaremos de "rascu n hos'", a fim de caracterizar o seu statu s de obra inacabada e incompleta, 5

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Seuls (Só), Incendies (Incênvios) , Littoral (Litoral) , de W. Mouawad; Os Sete Afluentes do Rio Ota, de R. Lepage; Civil Wa rs (Gue rras Civis) , de R. Wilson; I Was Looking at the Ceiling and 7h en I Saw th e Sky (Eu Estava Olhan do para

o Teto e Então Eu Vi o Céu ), de P.Sellars, po r exemp lo. A. Grésillon dá o nome de "pré-texto" a todos os docum entos dessa fase de gestação de um espetáculo. Cf Élém ents de critique génétique: Lire les manuscrits modernes, Paris: PUF, 1994, p. 241. Artigo retomado em A. Grésillon; ).-M.

ALÉM D O S LIMITES: U M A TEO RIA A PRO CURA DE p RATI CA

POR U MA GE NÉT ICA DA ENCENA ÇÃ O : TAKE 2

compreendem, ao mesmo tempo, tudo aquilo que diz respeito aos rascunhos de dramaturgos, tradutores e mes mo de encena dores, bem como todos os elem ento s qu e servem à com posição do espetáculo: maquetes, cro quis, registros visuais e sonoros e, sobretudo, os documentos que pe rmitem rec uperar as d iferen tes etapas dos ensaios. Criados d uran te a ges tação de um espetác ulo, eles se dividem em dois gra ndes gru pos, de acordo com a natureza dos vestígios remanesce ntes: podem ser de o rdem textual ou cênica.

etapas que levaram à forma final de um manuscrito. Inspirada pela teoria genética da literatura, com a qua l ela part ilha certo número de elementos metodológicos, a gené tica textual se concentra sobre '0 processo de escritura da obra em seu momento de gestação, tanto quando ele ocorre mu ito antes - a escritura de uma peça que preceda em muito a sua representação -, quanto no momento em que ele se efetua no corpo a corpo com a cena: como pode ocorrer nas peças de vários dramaturgos que trabalham com um encenador na urgência do palc o e que modificam seu texto ao longo dos ensaios. A análi se genética se esforça, portanto, em acompanh ar e em reconstitu ir o processo de criação do texto a partir dos vestígios existe n tes, especialme n te das ano tações, ras ur as, sobrepos ições, rascun hos de toda natureza - textos ma n uscr itos ou partituras de encenadores ou de ateres". O método, q ue se pretend e o mais rigoroso possível, deve, certamente, deixar espaço para a esp ecul ação, apo ntando pistas e elab orando argu me ntos possíveis, sem qu e se ten ha certeza absoluta. No campo teat ral, os rasc un hos textu ais po dem, certame nte, ser estud ados indepe ndentemente da represent ação, mas eles só encontram seu verda deiro sentido no jogo de vai e vem en tre a cena e o texto. Em opos ição à an álise gen éti ca dos textos pro priamente dita, a análise gené tica da representação não pode ser reali zada sem o estudo d as relações entre o texto e a cena, mostrando co mo as modificações trazid as ao esboço tex tual

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RASCUN HOS TEXT UA IS Esse primeiro grupo de documentos reúne tud o o que conc erne ao texto propriamente dito: texto ou manuscrito de partida, onde se encontram sobrescritas todas as correções, modificações, ad apt ações e reescrituras, os cortes, que alteram uma determinada versão de partida. O estudo desses "rascunhos" textuais pode con stituir como havíamos chamado a atenção em um de nossos primeiros artigos sobre o assunto?- a genética dos textos propriament e dita. Criada por Louis Hay em 1968 e depois sistematizada por Almuth Grésillon em 19948, a genética dos textos procura traçar as diversas

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Thomasseau, Sc ênes de genêses th éâtrales, Genesis: Revue lnternationale de Critique G én étique, número especial dedicado ao teatro, n. 26, automne 2006, p. 21. Ver o art igo Pour une analise génétique de la mise en sc êne, 'Ih éâtre/public, Paris, n. 144, p. 54-59 , autom ne 1998. Foi pub licado também em inglês sob o titulo For a Genetic Approach to Performance Analysis,Assaph, Tel Aviv, n. 13,199 8, p. 41-54. Ver o número de Genesis mencion ado an teriormente. Editado sob a coordenação de Nathalie Léger e Almuth GrêsiJIon,ele procura exatamente lançar as bases, pela primeira vez na França, de uma "genética do teatro" Ver, de modo mais preciso, o artigo de A. Grésillon; l.-M. Thom asseau, Scenes de geneses Th éâtrales, p. 19-34Quanto à genética textual prop riamente dita, ela teve por precursor - conforme o indicamos anteriorm ente - Louis Hay (e isso já desde 1968) , que foi o primeiro a se interessar pelos pr ocessos de criação, tra balhando particularmente sobre os manuscritos de Heine, encontrados em um cofre. Depo is dele, foi Almuth Grésillon que instituiu a genética textual na França, em seu livro Eléments d'une critique g én étique (Elementos de um a Crítica Genética, 1994 ). Foi tomando os textos como seu corpus, que a análise genética encontrou, mais facilmente, sua aplicação e seus métod os. A passagem da genética textual àquela da represent ação foi, po r sua vez, ma is lenta e mu ito mais difícil de estabelecer. A anál ise genética passará, então, primeiramente, pelo estudo das tran sfor mações das peças escritas an tes de ter como objeto o trabalho de preparação do espetáculo . Foi necessário determ inar, nas primeiras fases da reflexão, não somen te a factibilidade de tais estudos, mas também o corpus dos documentos que seriam submetidos à observação do pesq uisador. No ãmbito francês, foi l.-M. Thomasseau quem conduziu

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primeiro tais pesquisas na França. Seus prim eiros art igos sobre o tema datam do fim do s ano s de 1990 . Qu ant o aos ensaios de cena, eles constituem um campo de investigação imp ortante em si mesmo, indispensável ao estudo dos processos de criação. Gay McAuley, na Austrália, é sem dúvida o primeiro a se interessar pelo acompanhamento constante de ensaios . Cria até mesm o um a estrutura, no interior de sua universidade , que permitia às companh ias trabalhar ali, o que lhe possibilitava condições de observação rigorosa do trabalho dos atores. Ver, no ãmbi to francês, Sophie Proust, La Direction dacteurs: Dans la mise en scêne th éãtrale contemporaine, Montpellier: I'En tretemps, 200 6. Ver, a esse propósito, o est udo de Anne- Françoi se Benhamou, Genes e d'un combatoUne Rencon tre "derriere les rnots" publicado em Genesis, n. 26, p. 51-69. que analisa, de modo conciso e esclarecedor, os documentos com as ano tações de Chérea u sob re os textos de Kolt ês,especialme nte sobre O Combate de Negro e Cães. Confira tamb ém Marie -Madeleine Mervant-Roux sobre Le Square (A Praça) , de Duras: The Fragility of Beginnings: The First Gen etic Stra tum of Le Squa re (M. Duras, 1956 ). Theatre Research lnternational, n. 33, autu mn 2008, Genetics ofPerformance, núm ero dedi cado aos pro cessos de criação. Mer vant-Ro ux ana lisa aí, parti cularm ente, as diferen tes etap as de criação pelas qu ais Duras teria passado e qu e a levaram do romance à peça de teatro .

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A LBM DO S LIMITES: UM A TEOR IA A PRO CURA DE PRÁTI CA

PO R UM A G EN BTI C A DA ENC EN AÇAo : TAKE 2

condiciona m o trabalho cênico e como esse últim o, por sua vez, interfere no texto e interage com ele. Seria instrutivo, por exemplo, estudar as diferentes fases de escritura das peças de H él êns Cixous em relação ao trabalho de ensaio do s atares do Théâtre du Soleil, especialme nte em Elndiade ou l'Inde de leurs rêves (A Indíada ou A Índi a dos Seus Son hos; Théâtre du Soleil, 1987) ou em L'Histoire terrible mais inachevée de Norodom Sihanouk, roi du Cam bodge (A História Terrível mas Inacabada de Norodim Sihanouk, Rei do Camboja; Théâtre Du Soleil, 19 85- 19 87). Pondo de lad o os rascunhos referentes ao manuscrito da peça, subsistem, com frequência, bem poucos vestígios facilmente con sultáveis sobre as etapa s que conduziram à construção de um espetáculo.

interessan te de pesquisa, embora raramente sejam de domín io público. Constituem-se, na maioria das vezes, de testemu nhos das diversas fases pelas quais a montagem passou. Permitem acompanhar as experimentações cê n icas, as correções, observações, modificações, hesitações de uns e de outros e as escolhas definitivas. Se são bastante interessantes de cons ultar depois que o espetácu lo'está terminado (por exemplo, os cadernos de direção de Roger Blin, Patrice Chéreau, Antoine Vitez'", arquivados no IM EC *) , eles o são ainda mais enquanto a montagem está em curso, pois permitem, então, um jogo de vai e vem entre a obra em proc esso e o espetáculo acabado. Os cadernos de direção de Roger Blin ou de An toine Vitez são reveladores nesse sentido".

RASCUNHOS CÊNICOS E VISUAIS O segundo grupo de documentos constitui aquilo que den ominamos de rascunhos cênicos e visuais. Compreende o vasto conjunto de todos os documentos escritos, visuais e sonoros relativos ao trabalho de ensaio propriamente dito. Esses escritos são gerados, primeiramente, pelos diferentes criadores e técnicos do espetáculo (encenador, ator, dramaturgo, cenógrafo, figurinista, iluminador, engenheiro de som, aderecista). Figuram, portanto, nessa categoria, os cadernos de direção, as anotaçõe s dos assistentes, as notas dos atares, os cadernos do "ponto teatral" (quando existem ), os planos de marcação, os procedimentos de condução do espetáculo, as nota s do encenador para os atores, os planos de luz, as maquetes, os croquis do cenário, os desenhos de figurinos. Eles podem ser enriquecidos por outros vestígios, relativos aos meios atuais de notação e registro (fitas de vídeo e áudio, anotações de observadores externos), que permitem recuperar assim, mais facilmente, as etapas anteriores do trabalho.

Os Cadernos de D ireção Temos, antes de tudo, por ordem de importância e de confia bilidade, os cadernos de direção, que permanecem uma fonte

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10 Ver também as anotações de trabalho de Stanislávski (M ise· en·Scene d 'Othello de Skakespeare, Paris: Seu ii. 1948 . 1973) ou aque las feitas por Brecht, por exemplo. l M EC é a sigla para Inst itut Mém oir es de I'Editio n Co nte rnpo raine , que reúne e preserva os arquivos das principais editoras da França , bem como de inúmeros artistas, constituindo uma m em ó ria do livro , da edição e da criação artística (N . d a T.). 11 Conferi r os diá rios de trabalh o de Vitez, tornados pú blicos graças aos esforço s de Natha lie L éger, do [M EC, e da editora POL. Eles permitem um merg ulho no un iver so vitez iano. Ver Écrits sur le théâtre I . II, III, IV, Paris : POl , 1994, 1995. 1996 e 1997· Ler. por exe mp lo, as notas sobre Partage de midi, que Antoine Vitez m onta em 1975: «29 de dezembro de 1974 (a Yannis Kokkos) : A ideia do 'M use u Claude l' m e per segue [ ... ] No fun do, tr at a-se m enos do m useu Claudel. mas do int er ior da cab eça de Claudel . no mo me nto de sua mort e. Ha ver ia lá todas as épocas de sua vida desde 1905. Os retratos de mulheres, o Ernest-Sirnons (uma ma rinha soberba) , as cartas guardadas, os móveis de dife rentes épocas. crucifixos, um genullexório, um rosário. um retrato de sua irmã Ca m ille, uma esc ultura feita por ela e lum inári as de esc ritório, móvei s. co rtinas. forros [... J O utra ind ica ção [... 1é a sua id eia sobre a iluminação. Uma arte figurativa no lim ite da abstração, pois só é necessário mostrar pou cas coisas do cenário real [.. .] somente a luz. . 10 d e março de 1975 (a Yannis Kokkos): Ai está a árvore. Mas ela deveria ter um q uê a mais de ch inesa. o u m ais Ho kusai. E de modo geral, eu gos taria q ue o quadro da cena. assim claro e frág il. tivesse qualquer coisa de Hokusai e de desenho japonês. verdade o que você diz : se nós atulharmos o palc o em declive. ele parecerá um mecanismo. necessário selecionar os signos ut ilizados na parte de ci ma - por exemplo, os sapatos. 15 de agos to de 1975. A ra mpa. Ela precisa ser util izável. É indispensável que os m óveis possam se manter nela, pois os objetos devem ser a co isa qu e tran sfor m a a apa rência de brinca de ira em um verda deiro teat ro - a não ser que tenhamos um cenário figurativo estilizado (e de forma nenhuma abstrato)," Ao final de todas essas observações, das q uais reprod uzimos aqui apenas alguns fragmentos, o espaço de Partage de m id i, criado po r Yannis Kokko s "será co mposto po r um g ra nde se micírculo bran co em declive. atravessado. no lad o mais distante da plateia, por u ma faixa de p iso em madeira clara , e fechado. ao fundo. por um to ldo branco. Algun s objetos marcavam o ritmo É

É

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ALÉM DO S LIMITES: UMA TE OR IA À PROCU RA DE PRÁT IC A

PO R UMA GENÉTICA DA ENCE NAÇ ÃO : TAKE 2

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Se esses cade rnos se tornassem acessíveis logo após o final dos ensaios, eles perm itiriam aná lises mais pert inentes e mais esclarecedoras sobre o espetáculo, análises que dir iam respeito dir etam ente ao trabalho de criação, conectando este últim o ao resultado fina l. Seria possível, portan to, perceber as fases de criação de um encena dor, quais vozes toma emp restado para efetuar as suas pesqui sas, em que moment o retém ou elimina um a det erminada interação cênica, um gesto, um deslocamento, um ade reço relativo àquele espetác ulo em questão. Contudo, os cadern os não revelam como um encenador dirige os atores, com o a cenografia intervém no seu trabalho, em que moment o e de acordo com quais parâmetro s entram em jogo a cenografia e os figuri nos, elemen tos funda mentais de qualquer criação teatral. Para tal, é necessá rio recorrer a uma observação do trabalh o em processo. A visão analít ica, levada à representação pelo viés genético, lon ge de recortar a encenação em momentos descontínu os, reintegra-os na continuidade de um fluxo geral, reinscrevendo a escolh a específica de um determinado movimento, deslocamento, gesto, objeto, no fio de um processo esboçado no tempo. Os cont ornos do presente se desenham, dessa maneira, sobre as virtualidades de um passado , cuja principal virtude é aquela de ter sido esquecido. Contudo, é sobre os rastros e as sombras deixados por tal passado que melhor se pode ler as escolhas deliberadas do presente e aquil o que foi pres ervado. Todavia, uma questão se coloca: a da interpretação desses cadernos de d íre ção , já que não existe um sistema uniforme de notação para registrar as escolh as da encenação e nem mesmo para an otar as modificações que interferem no curso de um processo de criação. O que registra um determinado encenador nos seus cadernos? De acordo com quais parâmetros? Privilegiando quais detalhes? As respostas diferem dependendo do artista. Se para um Vitez as anotações são bastante detalha das, para vários outros encenado res elas se configuram muito mais sóbrias e menos sistematizadas. Por outro lado , surge

outra dificuldade: de fato, a maior par te dos encenadores tem tendência a apagar os registros das etapas anteriores de uma montagem, preservando por escrito apenas as suas últimas escolhas. Co mo então resgatar essas etapas, a fim de conseguir registrar, em palimpsesto, os rastros dos desloc~me ~t~s anteriores? Seja como for, o pesquisador permanece tnbutano da forma de notação que cada assistente invento u em função de suas necessidades. É claro que as modalidades de pesquisa e de trabalho dos encenadores diferem não somente em função de cada artista, mas também em função dos espetáculos e das condições espaciais e temporais sob as quais elesse desenrolam. Cada espetáculo constitui um caso único, cada cena um caso com feições particulares. O estudo genético aplicado ao teatro não estudaria, então, a totalidade de uma encenação, mas escolheria alguns momentos privilegiad os a serem analisados, a fim de escl~rece r as etap~s que conduziram até ela. Tentaria, dessa maneira, tornar mais claras as mod alidades de criação de uma determinada cena, de um gesto, de um deslocament o, com objetivo de delinear, nuan çadamente, as sombras sobre as quais o trabalh o de gestação se constrói, o modo como se operam as renúncias, as retifica ções, as mudanças de percurso, ou seja, toda s as etap as preliminares que levaram às escolhas definitivas. Não se trat a, de maneira nenhuma, de realizar tal trabalho para o conjunto de uma peça - o que seria um trabalho titânico, de necessidade discutível -, mas sim para alguns momento s escolhidos, privil egiados pelo olh ar do pesqui sador por lhe parecerem portadores de instânci as significativas de um espetáculo. Portant o, a aná lise genética é marcad a, em seu pont o de partida, por certa dose de subjetividade, pelo menos em relação às escolhas efetuadas, subjetividade essa que nos parece indispensável de ser preservada a todo custo.

da represen tação: a maqu ete d o navio a vapor Ernes t-Simons descia do urdiment o; uma mobília de rotim: cade iras. mesa baixa. cadeira de balan ço; um grande apo io de ped ra; uma árvo re estiliza da, ideograma da China': La Scêne,

o segundo material de pesquisa a partir do qual é possível se

Ecrits sur le th éãtre, p. 7-27.

Os Registras de Vídea

trabalhar compreende os registros em vídeo que alguns encenadores realizam durante o período de ensaio e aos quais eles

ALÉM DO S LIM ITE S: UM A TEORIA À PROCURA DE PRATI CA

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recorrem com o documentos de trabalho. Tais fitas de vídeo, espécie de arquivo da montagem em processo, repr esentam as diversas fases de elaboração do projeto. Elas constituem um momento específico, ao longo dos ensai os, durante o qual os encenadores e atores se detêm para um temp o de reflexão, para observar a cena e avaliar o estágio no qual eles se encontram. Ocorre também que essa instância de "parar sobre a imagem" nasça de um a dificuldade particular do processo, sobre a qual o vídeo, por meio do distan ciamento, possibilite uma explicitação. Hoje em dia, são vários os encenadores que fazem uso corrente de tal procedim ento, mas ainda são poucos os pesquisadores que abordam sistematicamente a análise desse tipo de docum ento. Tais regi stros das fases de trabalho são fund am entais. Ocorre-me como prova o filme Tartuffe: A u Soleil. m êm e la nuit (Tartufo: o Sol, Mesmo à Noite), que Eric Darmon e Catherine Vilpoux realizara m ao acompanhar a gestação do espet áculo de Mnouchkin e", Mais que o próp rio espetáculo, o trab alho de criação da obra foi aqui privilegiado, tendo sido reconstruído para o benefício do espe ctador. É evidente que tal filme ilumine, de modo fun damental, o espetáculo visto pelo público. Ele preserva os fluxos de vida que animam a representa ção. E por trazer à ton a, por exemplo, as diferentes etapas que cond uziram ao surgime nto da personage m de Dam is ou de Dorine, ele explicita não somente as escolhas da encenação, mas, sobretud o, o trabalh o profun do, ind izível, do ator em busca de sua perso nagem , e tamb ém o de toda uma companhia .

A s Anotações de Ensaios

Na ausênc ia de todas essas balizas, as sessões de observação e as notas tomadas pelo próprio pesquisado r ao longo do s ensaios se tornam um a imp ortante font e de referência - desde que o encenado r e os atores aceitem esse olhar exterior lançado sobre seu trabalho. De fato, nem sempre tal presença é bem-vinda, e algumas pessoas ligadas à prática recusam qualquer observador extern o em suas empreitadas, a fim de evitar que o tr abalho

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Uma coprodução de LaSept ARTE. Agat Films & Cie. com o Théâ tre du Soleil, 1997·

PO R UMA GEN ÉTI CA D A ENC ENAÇAo: TAKE 2

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seja perturbado por ele. Outras, quando conco rdam com esse "direito de observar': exigem uma presença assídua por part e do pesq uisador, o que implica um a disponibilida de que ele nem sempre pode assumir. Habitualmente, ele prefere optar por uma presença episód ica, que pod e se configurar como um mal menor, mas que não substitui o acompanhamento completo do processo de trabal ho'}. As proposições esparsas, nascidas da prá tica e mantid as pelos artistas, estão no centro de seu processo de criação. É necessário assegurar o lugar que lhes cabe na análise dos 13 Coloca-se também a questão do estatuto a ser dado a outros tipos de documen -

tos não mencionados anteriormente, já que muitos deles pontuam o percurso dos artistas: trata -se de entrevistas, declarações públicas, depoimentos de artistas q ue esclarecem o trabalho de um encenador. Conferir os livros sobre o u de encenado res, p ub licados há m ais de dez anos: Phili ppe Adrien, lnstant par instant, Pari s: Actes Sud, 1988; Luc Bondy, La Fêtede l'instant, Pari s: Actes Sud, 1996 ; Jacqu es Lassalle, Pauses, Par is: Actes Sud, 1991; Richa rd Forernan, Unhalancing Acts: Foundationsfor a Theater, New York: Theatre Com munication s Group, 1992; Claude Régy, Espaces perdus (1998), L'Ordre des mots (1999), CEtat d'incertitude (20 02 ), Besançon, Les SoUtaires intempestifs; Bernard Sobel, Un Art l égitime, Paris: Actes Sud , 1993; Antoine Vitez, Le Th éãtre de; id ées, Paris: Gallirnard, 1991, Ecritssur leth éãtre, I , II, III, IV, apenas para citar algumas ob ras. Estudos sobre a prática, mu ito raros nos anos de 1960 e 1970, propagaram-se bastante desde o inicio dos anos de 1990 . Co nfi ra também os livros edi tados sobre di re ção de atores: Thom as Ríchards, TravailleravecGrotowski, Paris: Actes Sud, 1995; Vassiliev,maitre de stage, Bruxe lles: Lan srn an , 1997. Ver ain da Maria Delgad o; Paul Heri tage, ln Contact With the Godsi Directors Talk Theatre, Ma nchester: Man ch ester University Press, 199 6; [osette Féral, Dresser un monument à léph émêre: Rencontres avec Ariane Mnouchkine, Paris: Ed itio ns Th éâtrales, 1995;Mise en scêne etjeu de l'acteur - t. 1: EEspacedu texte, Montréali Bruxelles: [eu/ Émile Lansman, 1997; 2001; t. 2: Le Corpsen scêne(1998; 2001); t 3: Voix de femmes, Q uébec: Am érique, 200? Essas entrevistas e reflexões sobre a prática teat ral , escritas frequente mente a posteriori, são igual mente esclarecedoras sob re as etapas prelimi nares do es petáculo acabado, cu mprindo um papel fundamental , po r motivos d iversos, para a compreensão d o pe rcurso de um a rtis ta. Permitem acompa n ha r a criação em mo vimento: criação da encenação, de um papel, de um a pe rsonagem , do es paço. A importâ ncia de sses vestígios é grande, já que eles co n tribue m para recolocar a trajetó ria de um d eterm in ad o ar tis ta numa persp ect iva ma is am pla, englob ando o co nju nto do teatro. Dessa m aneira, o percurso d e C laude Régy ou de Vitez se torn a m ais cla ro, evidentement e, por co n ta de se us próp rios escritos. Por m ais úteis que sejam, esses documentos ligados reflexão a posteriori de um artista sobre a sua pr óp ria trajet ória não são, ent retanto, levados em consideração nas páginas seguintes, poi s não se encontram conectados com a urgência da representação. Isso não os torna menos importantes. É que somente nos int eressa aqui os vestígios ligados di retamente ao processo de gestação d e um determinado espetáculo. à

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ALÉM DOS LIM ITES: UMA T EORI A À PROCU RA DE PRÁTI CA

POR UMA GENÉTI CA DA ENC ENAÇÃO: TAKE 2

espetáculos, mesmo que elas sejam, frequenteme nte, apresentadas de maneira fragmentária, pois deter min am a form a final da representação. Constituem, com frequência, o terre no fértil que conduz a certas escolhas, que define determi nados gestos, que incita a algumas rasuras. São os eixos profun dos que nu tre m a peça acabada. Silenciá-las, em proveito apenas dos signos perceptí veis sobre o palco, é arrancar a peça do solo adubado no qual ela floresceu, fazendo dela um objeto abstrato de pesquisa. O teatro está em outro lugar. Ele se enco ntra na própria vida que anima a cena e que faz, ano após ano, espetáculo após espetáculo, com que o teatro não pare de se renovar, sem que nenhum estudo cons iga petrificá- lo e nem mesmo descobri r as suas leis fun da men tais. É essa vida que a aná lise genética deve proc urar preservar a fim de evitar tais clivagens mo rtais, das quais toda a aná lise teórica do teatro carrega estigmas. Portanto, a análise genética privilegia o espetáculo como uma obra de criação em mov imento, como um processo do qual aqueles que realizam a prática não são jamais excluíd os. Ela ten ta cons truir a pon te entre o saber prático do arti sta (teorias do fazer, mas também todo um saber pragmático que lhe é próprio) e o saber teórico da aná lise (teo rias do espetáculo e da obra acabada) .

Além disso, a ambiguidade de tal trabalho genético se amplifica em razão de todos os vestígios remanescentes não terem o mesmo status nem a mesma finalidade . De fato, a maior parte dos - senão todos os - documentos produzidos pelos ar tistas tem como primeira intenção auxiliá-los na construção da obra. . Estão lá, antes de tudo , como instâncias do trabalho que permi tem a com unicação e o acordo entre os realizadores. E, uma vez que sua missão foi cumprida, são relegados ao esquecimento. portanto, o seu uso a posteriori para fins de aná lise é secundário para o artista, o qual costuma devotar um interesse moderado em relação a eles, uma vez que o espetáculo esteja terminado. Mencionamos as notas do encenador como exemplo do desafio com o qual o crítico genético se vê confrontado. O desafio é ainda maior na medida em que os eleme ntos reun idos para o estudo são de natureza diversa, se apoiam sobre diferentes suportes materiais (pap éis, fitas magnéticas, vídeos, ovos, imagens digitais, fotos etc.) e carregam com eles informações fragmen tadas que respondem aos imperativos dos diferentes criadores e executores do espetáculo (encena do res, ata res, cenó grafos, assistentes, iluminador etc.). Ao trazer informações sobre os diversos aspect os da repre sentação, eles oferecem um quad ro caleidoscópico e inacab ado das distintas etapas da mont agem e da imbricação do s vari ado s discurs os cênic os. Traça m assim, nas entrelinhas, as diferentes fases do trabalho anteriores à apresenta ção do espetácul o. Em face de tal diversidade de documentos, coloca-se de modo mais agudo ainda, não somente a que stão da coleta desses registres, mas tamb ém a de sua decodifi cação e análise. Coloca-se também , de forma crucial, como já dissem os anteriormente, a importância do s cadernos de direç ão. Percebe-se, por exemplo , pelos escritos dos assistentes de d íre ção, qu e não existe nenhum método de notação, e que, a cada assistente, não somente adota uma maneira de tomar notas que lhe é peculi ar, mas decide - segundo os imperativos do encenador ou dele próprio - anotar certos detalhes em detrimento outros' Desse modo, com o tex t o sofrendo ataques e não poden do mais garantir a teatra li dade da cena, era normal q u e os h o m ens de te atr o co meçass e m a se interro g a r so b re a es pec ific ida de do a to tea tral, especialme n te porq ue essa es peci fic idade p a re ci a, a par t ir daí, fazer pa rte de ou tras práticas como a d a n ç a , a pe rfo rmance, a ópe ra . A emergê ncia d a te a t r alid ad e em o ut ros espaços q ue n ã o o tea tro p a r e c e t er p or coro lário a di ss oluç ã o dos lim ites e ntre os gê neros e d a s d is t inções form ai s e n tre as p rá t icas: d a da nça - teatro às a r tes m u lt i m íd ia, passa n do p el o s h app en ings, a perfo rmance, as n o v a s t e cnolo gi a s , é cada vez mais di fícil d ete rmin a r as es pec i fic idades . À rrie d id a q ue o es petac u la r e o te atral p a ssaram a fazer p arte d e n o vas form as , o t e atro, repentinamente d escentrado, foi o b r ig a d o a se redefinir. A partir daí, p erdeu s u as c ertezas. C o m o, e n t ã o, definir a teatralidade hoj e? É pre c iso falar de te atralid ad e , n o s i n g u la r, o u d e te atralidade s , n o plural ? A teat r alidade é um a propri edade que p ertenc e , e m sen t id o p r óprio e ún ic o , ao te atr o , o u p ode investir, p aral el amente , o c o ti d ia no ? É um a q uali d a de ( no se n t ido k anti an o d o termo) p ré-exis tente ao o bjeto e m qu e se ap lica, a con d ição d e eme rgência d o te atr al? O u seria a n tes a c o ns e q uê n cia d e um d eterminado p ro c e sso d e t eatral iz açã o d irigido ao r e al o u a o s u jeito ? Ess as são as q ues tões que p re ten demos propo r a q u i.

RETO M ADA HISTÓ R ICA A noção de teatra lidade parece ter s u rg id o na história ao mesmo tempo qu e a noção de literaridad e 4, ainda que t enha e xperi m e n ta d o uma difusão m enos ráp id a , j á que a maior parte dos textos que abordam o tema, e que pudemos inventariar, datam dos ano s de 19805. Portanto, é preciso dizer, antes de tudo, que a noção de teatralidade enquanto conceito é uma preocupação recent e , q ue aco mpanha o fenômeno de teor ização do teatro no s e n t id o moderno do termo. Entre tanto, pode -se objetar q ue A poética de Aristó teles, O Paradoxo Sobre o C o med ia n te, de D iderot, o s prefácios de Rac ine e Victor H ugo, para c ita r alguns exemplos, c o n s t it u e m , efetivame nte, um trabalho de teoriza ção do t e a tr o. É claro que sim. Mas sabemos que a te o r iz a çã o d o te at ro no sen tido atu.al, o u seja, e n q uanto re flexão so b re a es pecific idade dos gê neros e a defi n ição de concei tos, como a "serniot iz a ção ", a "osterição", o "e n q u a d ra m e n to", a "li min a ridad e" é muito m ais rece n te. É o s ig no d e um a é poca c u jo fascí n io pel a te o ri a R oland Barthe s ex pôs. Se a n o ç ã o d e t e a tralidade di fundiu - s e a ti vame n te há ce rca d e a lg u ns anos , essa di fus ã o rec ente pare c e ter es q uec ido a hi s tória m ai s longínqua d o co nceito, já que a n o çã o d e te atralidade pode ser e ncon t rada n o s primei ro s texto s d e Nico lai E v réi nov (1922). Nesses escr itos, ele fa la de teatra lnost e insiste na importâ ncia d o s u fixo n ost, afi r man do q ue é s ua m aior d e s cobe r ta". Po uco d efinida lex ic al m e nte , e t i mologica mente p ouc o clara, a teat ralidade parece res u lta r dess e "conceito t á ci t o" que 4

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Um indício des sa impo rtância foi a pesquisa r e a lizada em 1912 pela revista

Les Marg es, que perguntava a o público: " Se g u n d o voc ê , quem é superi o r, o h om em que ama a leitura o u o h om em que tem p a ixã o pelo t eatro ?". a oca s ião, a maio ria d o s p art icipante s re sp o n d eu que o te x to e ra m ai s importan te q u e o espe tác u lo. O fato é d e s c rito po r A n d ré V e in ste in e m L a M ise en sc éne th éát ral et sa co n d i t io n es th étiq ue, Pari s : Fl ammari on , 19 55, p . 55.

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Ver a respei to Mircea Marg h e scou, Le C on cep t de littéra rité: Es sa i su r les possibilit és th éoriques d 'un e scien ce d e la litt érature, C o ll. D e proprietatibus litterarum , H ai a : Mo uton, 1974 ; C h a rles Bouazi s , L itt ératu re et société: Th éorie d'un m od éle du fo nction nemen t litt éra ire, P ari s : M arn e , 1972 ; Thomas Aron , Litt ératu re et littérarité: Um ess a i d e mise au p oi nt , C a lL Annale s littéraires de l' U ni versité d e Besanç on, Paris : Le s B elles Lettre s, 19 84, assim COITIO as prim e ir a s referên cias à n o ç ão d e " Iite rar idadc" e sbo ç adas n o â m b ito d a Escola de Pra ga. No entanto, é p reci so notar que O termo " teatralidade" foi i ntro d u z id o na França por R o lan d Barthes e m 1954 (em Le Théâtre d e Baudelaire , prefácio à edição de O euvres co m p le tes de Baudelaire, Paris : C lu b du meille ur livre , 195 5; reeditado em Essais crit iq ues, Pari s: Seuil, 19 64 ) . Ve r Sha ron M arie Ca r n icke, L I ns ti nc t t héât ral: Ev re inov e t la th é âtralité , Revue des ét udcs slaves , v. 53. f. I, p . 9 7 -ro8 , 198 1. Em f r a n c ê s , a expressão man t ida foi " t héâ t r a l it é", em in g lê s , parece osc ila r ent re " t hca t ra l ity " e the atri c a lity ", e seu u s o é ITI en OS impo r ta n te do qu e faz o f ra ncês .

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AU~ M DOS LI :VUT E S: PA R A UlVI A D E FI Ni Ç Ã O DA T EAT RALIDADE

Ivlic hacl Polanyi me nciona? e defi ne c o m o u ma " id e ia c o n c re ta d ireta mente rn a n ip ul ável , mas q u e s ó p ode s e r d e scrita ind ireta m ente", ass o c ia n do -se, d e m odo p r iv ile g ia do, ao tea t ro .

A TEAT RA LIDA DE C O M O P ROP R IE D ADE DO COT ID IAN O A par t ir d a inv e stigaçã o da s c o n d ições de manife stação da te at r alidad e e m c en a e fo ra d e ce na , p ode-s e escla recer que a te at ralidad e nã o p erten c e , e m se n t ido excl us iv o, ao t eatr o. A lg uns exem plos são cap azes d e o r ie n ta r nossa re flexão. S u poriharno s os seg u in t es cenári os : 12 C enário : Vocês e n tra m e m um teatro onde uma determinada d ispo si ç ão c enográfi c a es t á, e v id e n t e m e n t e, à e spera do início d a r epre s entaç ã o; o a to r está au s ente ; a p eça n ão com e çou . P ode- se dizer que aí ex is te teatralidade? Responder de modo afirmativo é reconhecer que a d ispos iç ã o "t e a t r a l" do lu g a r cênico traz em si certa teatralidade . O e s pec t a d o r sabe o q ue esperar d o lug a r e da cenog rafia: t e at ro ". Quanto ao espaço, s u rg e como portador de teatralidade porque o s u jeito percebe nele relações, uma encenação do especu lar. Essa importânc ia do e spaço parece fundam ental a toda teatralid ade , já qu e a passagem do literário ao teatral sempre s e funda, prioritariamente, sobre um trabalho espacial.

Cenár io: Vocês es tã o e rn 'u.rn metrô e ass istem a uma discussão e ntre dois passagei ros. Um deles fuma e o outro lhe pede, com veemên cia, que não fume, pois é proibido. O primeiro não 22

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E m 7h e Ta cit D im ensi on , New York: Garde n C ity, 19 6 7, Pola nyi no ta qu e esse s a b e r tácito pro vé m d a s li g a ç õ es qu e o in divíd uo es ta belece e n t r e duas e n ti da d es. O co nhecim en to d e u m a p er m ite q ue d e d u za a s c a r ac te r ís t ic as d a o u t ra ["tac it knowing establishes a mean ingful rel at io n betwe e n two te rrns" ( I" 13 ) ; " we know the firs t te r m o n ly r e ly in g o n o u r a w aren ess of it for a tte n di ng to th e sec o n d " ( p .ro j ] . Ap l icado à n o ç ã o de teatralid ade , iss o s u b li n ha que n o sso c o n h e c imento d o que é o te a t r o perm it ir ia d edu z ir as c a r a c te rí s t ic as da teat rali dade . Ve r tamb ém Ja cque s Ba íllo n , D'u ne ent re prise d e t héât rali té , Tr avail th éát ra le , n . 18 - 19 , 1975, 1' .1 0 9 -1 2 2 . A au s ên ci a d o a to r coloca um prob lem a . H á te at r alidad e se m at or ? Ess a é a q u e stão fun dam ent al. Be c kett te n ta da r u rn a res p o s ta fa ze n do com que o a ta r traba lh e n o limi te d o d es ap are cimento.

A TEATRA LIDADE

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obede ce: ins u ltos, a rneaças, o t om sobe. O s o u tros e sp ect a do res o bservam at entame nte, a lg u ns fazem comen tários, to rn am partido. a vagão para d iante d e uma impone nte p ropaga n d a publicitária. A agredida (é um a mulh e r ) d esce, fazendo com que o s esp ec tad o re s presentes n otem a desproporção e n tre a pro ib ição de fum ar, escri ta em letras rnuito pequenas sobre as late rai s d o rnctró, e o estím u lo a fu mar q ue ocupa tod a a parede d a plataforma . H á teatralidade n esse incidente? A tend ência ser ia respond er pela n egativa: n ã o houve nem enc ena ç ã o , n em ficç ã o , ne m apelo a o o l h a r do o u t ro por p arte d o s p r otag onista s; a penas p essoas envo lvidas n urna escaramuça. Ora , o espec t a dor que tivess e d escido na m esma e s t a ção teria d es c o b e rto que a s p e s soas eram a to r es e faziam te at r o invisíve l, s eg u n do os princ ípi o s definidos por Augu sto Boal''. Po rtanto, h a via t eatralidade n o espetác ulo a que o espectador assis tiu involuntariamente ? A posteriori, s e r ia possível di z e r q ue s im . O qu e c o n cl u ir dessa m udança de opinião? Que a t eatralidade , nesse caso, parece ter s u rgi do do c o n h e c i m e n t o do espec tador, d e s d e que fo i informado d a intenção de teatro em s ua dire ç ã o. Esse s a ber m odific ou se u o lhar e fo rço u-o a ve r o espetac u lar onde a té e ntão só h av ia o espec u lar, ou seja, o even t o ?", Ele t r an s fo rmou e m ficção o qu e pe nsava s urgir do coti diano; sem iotizou o espaço, d esl o c ou os signos e pode lê -l o s em seguida de m o d o dife rente, fazendo emergir o s imulacro n o s cor pos d o s performers e a ilus ã o o nde, supostamente, ela não estaria pró xima, ou seja, em seu espaço cotidiano. Nesse caso, a teatralidade surge a partir d o perform er e de sua intenção expressa de teatro. Mas é u m a intenção que o espectador deve conhecer, n e c e ss a r i a n l ent e , sem o q ue não consegue notá-Ia, e a t eatralida d e lhe escapa. 3 2 C e n á r io : Enfim, o último exemplo. Sentada no terraço de um

café, o lho os hom ens passando na rua. Eles n ão t êm intenção 9

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F oi efetivamente o qu e aco n te ceu nesse exem p lo re al. O p a ss a g eiro ag ressor, que desceu n a rn e srn a es tação, n otou a rnulttdã o q ue s e forma v a e m torno d a passageira agredida , e com p r een d e u que se t r a ta v a de urna fic ç ão te at r a l. Fi cou irri tad o p or ter s ido e n gan a do d es sa m ane ir a . A re sp eito d o es p e tacu la r, G u y D eb o rd es creve : "O espe tácu lo n ã o é ide nt ifi cável a o s im p les o lhar, m esmo c o m b in a d o à escu ta . É o que escapa à a t iv id ade dos h omen s , à recon s ide ração e à c o r re ção d e s u a o b r a. É o opos to d o di ál o g o :' G uy D eb o rd , L a S oc ié té d u spec ta cle, Pa ris : C ham p lib re , 197 1, p . 4 ·

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A T EATRALIDAD E

AL ÉM DOS LIM ITES: PARA UIVIA DEFINI ÇÃO D A T EAT RALIDADE

de ser vistos n e m d e s ej o de a tuar. Não p rojetam s imulacro nem fic çã o , a o menos apare ntemen te. N ão exib ern se us corpos ou, ao m eno s, n ã o é essa a razão de s u a pre sença nesse lugar. Eles m al d ã o a tenção a esse olhar q ue s e dirig e a eles e que ignoram . O r a , o olhar q ue lh e s di r ijo lê certa teatralidade nos corpos q ue o bserva , e m s u a gest ualidade, e I11 s ua inscrição no espaço. O s i m p les exercíci o d o o l h a r in screve essa t eatra lid a d e , colocan do a gest u a li dad e d o o u t ro n o esp aço d o especular. Desse exem p lo fi n al, pelas rest ri ções mínimas qu e ex ige do espec ta do r" , p ode - s e depree n de r uma irnport a nte conclusão: a te atralidade não parec e relacion a r - se à nature za d o objeto que investe - o a t o r, o espaço, o o b jeto, o even to ; tamb ém não se re stringe ao s im u la c r o, à ilusão, às aparências , à ficção, j á que pudem os apre endê-la e m s it uações c otidianas . Mais qu e urna p r opriedade, c u j as características s e r ia possível a n a lisar, é u m process o, uma produçã o relacio nad a s o b r e t u d o ao o lhar qu e postula e cria outro esp a ço, tornado e spaço d o outro - e s p aço virtual, é claro - e dá lugar à alteridade dos sujeitos e à emergência da ficção . Esse espaço resulta de um ato consciente tanto do próprio p erformer (no sentido amplo do termo: ator, encenador, cenógrafo, iluminador, e tamb ém arquiteto) - e ess e é o sentido dos dois primeiros exemplos -, quanto do e spectador, cujo olhar cria urria clivagem espacial de onde surge a ilusão; o lh a r dirigido, sem distinção, a eventos, c o m p o r t a m e n t o s , c o rpos, objetos, espaço cotidiano e tamb ém ficcional - e isso tem relação com nosso ltirno exemplo. A condição da teatralidade s eria, portanto, a identificação (quando é produzida pelo outro) ou a cria çã o (quando o s u j e ito a projeta sobre as coisas) de um outro esp a ço , espaço diferente do cotidiano, criado p elo o lh a r do e s p e c t a d o r que se mantém fora dele. E ssa clivagem n o esp a ço é o espaço do outr o , que instaura um fora e um d ent r o d a t eatralidade . É um esp aço fundador da alteridade da teatralid ade . Percebida dessa fo rma, a te a t r a lidad e não seria apen a s a e m e r g ê n c ia de uma fratura n o e sp a ço, uma clivagem no real ú

que faz surgir aí a alteridad e , mas a p rópria c o n s t it u içã o desse espaço por meio do o lhar do espectador, um olhar at ivo q ue é condição de emergência da teatralidade e realmente prod uz uma modificação "qualitativa" nas relações entre os sujeitos: o o u tro torna -se ator seja porque m o s tra que represe n ta (nesse caso, a iniciativa parte d o ator), sej a po rq ue o o lhar do espectado r transfo rma -o e rn ato r - a d e spe it o d ele - e o inscre ve na teatra lidade (nesse caso, a iniciat iva parte d o espec t a dor) . Ass im, a teatra lidade cons is te tanto e m si tu a r a coisa o u o o u tro n ess e o u tro es p aço, e m q ue ela p ode a parecer g raças ao efeito d e e n q u a d ra me n to a través do qual ins cre v o o que olho (v er no ss o t e r c eiro exe m p lo ) quanto e rn tran sfo rmar UI11 eve n to em s ig no ( q ua n do um simple s fato c o tid iano tran sfo rm a - s e e m espe tác u lo - ver n o ss o seg u n do exem p lo ) . P ortanto , n ess a e tapa d e nossa refle xã o, a te atralidade n ã o a parec e c omo um a propri edad e , m as c omo um p r o c e sso qu e indica "s ujeitos em pro c ess o" >: a q u ele que é o lh a d o - aquele que o lh a . É um fa zer, um vir a ser que constrói urn objeto antes de investi-lo. Essa construção é resultado de uma dupla polaridade, que pode partir tanto da cena e do ator quanto do espectador. O que faz o olhar da espectadora sentada no terraço do café, ou o do espectador no vagão dometrô, ou mesmo aqueles dos espectadores que entram no teatro, é criar esse e s p a ç o de clivagem, um outro es p a ço ou o espaço do outro no lugar do seu próprio. Se essa clivagem não existisse, não haveria possibilidade de teatro, pois o outro estaria em meu espaço imediato, ou seja, no cotidiano. N ão haveria teatralidade e muito menos teatro. Portanto, e m princípio a teatralidade aparece como operação cognitiva e até mesmo fantasmática . É um ato perform ativo daquele que olha ou daquele que faz. Cria o espaço virtual do outro, o espaço transicional referido p or Winnicott, o espaço liminar mencionado por Turner, o enquadramento ev o c a d o por Goffman. Permite ao sujeito que fa z, e àquele que olha, a passagem daqui para outro lugar. 12

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Isso nos p e r mite ler. p el o avesso. o segundo exemp lo dado (a ce na no metr ó), dessa v e z p ara re spo nder afirmativamente à q uestão co locad a anteri orm ente (Esta cena é te a t r al ?) : s im , o e sp e tác u lo no metrô é po r ta dor d e teatra lidade. rnesrno que o espec tado r ignorasse tra tar- s e de teat ro.

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Segu n do a exp ressão consag rada p or Iul ía K r is teva ( '977) e m O Suj ei to e m P rocesso. Po lylogue, ca l. T e! qu el , P ari s : Se u il , 19 91. Co m essa expressão. Kr isteva prete nde sub linha r O móVimento d o s ujeito s e m p r e e1T1 pro c e ss o de est r u t u ração, s u j e it o n ã o m on ol ít ic o . qu e escapa à le i u ni ficado ra d a lingu a g e m .

ALÉM DOS LIM ITES : PARA UMA DEF INi Ç ÃO DA TEATRALIDADE

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que q uer d izer q ue a teat ra lidade não te m ma n ifestações físicas o briga tórias, riern p ropriedades q ualitativas que per ~li ta m re c onhe c ê -l a com exa ti d ão . E la n ão é um dado e m pí r ico. E urna s it uação do s ujeito em relação ao mu n do e a se u im aginá rio. É essa s it uação das estr u t u ras d o imaginário, fundadas sobre a pre sença do espaço d o o utro, que p ermite o te at ro. Ve r a teatralidade n e ss e s ter m o s coloca a que stão da transcen dência da te atralidade.

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T E ATRO COMO PRÉ - ESTÉ TI C A : O Q U E PE RM ITE O T E A TRA L ?

Para Nicolai Evréiriov, um dos primeiros a te o rizar sob re a n oção, a te atralidad e é vis ta co mo in stinto d e " t rans fo r maçã o d a s a p a r ências da n atureza" E sse instinto, que Evréinov chama , em outra passagem, de "vontade de teatro", é um impulso irresistível e n c o n t r a d o e m todo s os homens ( ve r O Teatro Por Si Próprio, 193 0, ou Apologia da Teatralidade, 1908), do mesmo modo que o jogo nos animais (ver Teatro Entre os Animais", 1924, L e Th éâtre dans la vie [O Teatro e a Vida], 1930). Portanto, trata-se de uma qualidade quase universal e presente no homem antes de todo ato propriamente e sté t ic o . É o gosto pelo travestirne nto, o prazer d e criar a ilus ão, projetar simulacros de si e d o real em direção ao outro. Nesse at o que o transporta e o transforma, o homem parece ser o ponto de partida da teatralidade: é sua fonte e seu primeiro o b jeto - o fe re c e s im u la c ros de si . E v réi n o v fala da transforrnação da n atureza':', outro norne dado ao real. Assim , para E v r é i n o v o ho rnern está no centro do processo; é fundamental para a emergênci a e a manifestação da teatralidade. C o m origem no " in s ti n t o", nesse caso a teatralidade liga-se sobretudo ao c o r p o do ator e resulta de uma exp e r iê n c ia física e lúdica, antes de tornar-se um rne io intelectual vi sando a uma dada e stética. E ss a e xperiência lúdica leva à transfor m a ção da natureza. Isso quer dizer que, nesse caso, o processo fundante 13

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o títul o exa to d o li vro é Tea t r u j ivotnyklz ( O Teatro n o s A n imais : So bre a S ig n ificação Biológica d a T e atralid ad e ) , Len ingrado / Moskvá: Kni g a , 19 2 4 , n ã o tradu zid o e m fra ncês. Não d e s en v ol v e r em o s aq ui as q uestões teóric as le va ntad a s pe las n o ç ô e s d e n a tu re z a e de rea l.

A TEATRA LI DADE

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da teat r a lidade é pré - e s tét ic o . A pela à criatividade do s ujeito, m a s precede a criação co mo ato ar t ís t ic o e estético aca bado. C o n lO n ota Evréinov, é um a tr an sforrnaç ão qu e p ode a co n tece r n a v ida co t id ia na . Nesse aspec to, o limi te e n tre te a t ro e cot idian o é mínim o . E m s u a d e fini ç ã o m a is a m p la, a t e atralid ade p ertenc e a todo s. A i n d a que s e c ompreenda profundamente a s co n v icções de Ev ré i no v e a r el açã o qu e mantém c o m a é p oca e m que foram elaboradas ( e specialInente no que se refere à noçã o de instinto ), trata - s e de um m odo d e ver a t e atralidade que não diz r e s p eito esp ecificamente ao teatro, e que pod e se r aplicado à ant ropologia, à etnologia , à so ciol og ia ' >. Na tentativa d e aproximar teatralidade e cotidiano, Evréinov c orre o risco d e anul a r a especificidade da teatralidade cênica (pois in s cre ve a teatralidade no cotidiano), mas confere uma extensão a o termo teatralidade que merece ser explorada. Evréinov nota que a t eatralidade, antes de ser um fenômeno teatral, é uma propriedade (uma transcendência) que pode ser deduzida, sem passar pelo estudo empírico que pressuporia a observação de diversas práticas teatrais. S e estamos próximos de admitir que existe de fato uma teatralidade dos atos, dos acontecimentos , das situações e dos objetos fora da c ena teatral, coloca-se , a partir daí, uma questão de ordem filosófica , a da existência possível de uma transcendência da teatralidade (para falar em termos kantia nos) de que a teatralidade cê n ic a seria apenas uma expressão. Colocando e m outros termos, a teatralidade é uma propriedade transcendental que pode investir todas as formas do real (o artístico, o cultural, o político, o econômico)? Ou só pode ser deduzida a partir do empirismo e da observação do real, com base em um denominador comum a práticas artísticas dotadas de teatralidade? Vista como e strutura transcendental, a teatralidade s e r ia dotada de características nas quais o teatro poderia inscrever-se naturalmente. E seria justamente por existir a possibilidade de transcendência da teatralidade que haveria teatralidade em cena. Dito de outra forma, o t«;:.atro só seria possível porque a 15

Co mo faz E lizabe t h Burns em se u Thea tr ícali ty. A Study of C o n ven t io n in the Thea t re and in Socia l Life, New Yo rk: H arp er & Row, 1973.

AL ÉM DO S LIM IT E S : PA RA U M A D E FI NI Ç ÃO DA TE ATRA LIDAD E

A TEATRALIDADE

tea t ra lid a de ex is te e o teatro a co n voca. Urna vez convoca da, a t e at r al idad e passaria a a d q u ir ir ca rac terísticas p ro priamen te t e a t r ais , va lo riza das co letivame n te e socia lmente p rofundas. Mas essa t e atrali dade pró pr ia ao teatr o não pode r ia existir se n ã o houve ss e a p o ssibilidade d e um a t ranscen dênc ia d a teat ra l ida de . O a tar tom a lugar n e ss a e strutu ra t ransce n de n ta l, m ergulhando n e sse es p aço clivado que escolhe u o u que lhe fo i irnp osto".

teatro , respeitando as mudanças históricas, s o cio ló g ica s ou estética s: o atar, a ficção e o jogo.

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A T EATRALIDADE T EATRAL Se a co n d ição sin e qu a n o n d a t eatralidad e , co mo aca bamos d e d efini -l a , é a c r iação d e ou t ro espaço o n de a ficção pode s u rg ir, essa c a r ac te r ís t ic a n ã o nos parece es pecí fica d o teatro . E n tão, quais s e r ia m o s s ig n os ca rac te r ís t icos da es p ecificid a de cê rrica?? O qu e ap ena s o teatro co n s egu e produzir? Evréinov afirmava que a teatralidade do teatro repousa essen cialmente sobre a teatralidade do atar, movido por um instinto teatral que lhe suscita o gosto por transformar o real circundante. Apresentava a teatralidade como uma propriedade que parte do atar e teatraliza aquilo que o rodeia: o e u e o real. Ora , temo s nessa dupla polaridade (eu - rea l) as " in te r faces" fu n damen t a is de toda reflexão sobre a teatralidade cénica: seu lugar d e emergência (o atar) e s e u ponto de finalização (a relação que institui com o real). As modalidades de rela ção que s e estabel ecem e n t r e os dois pala s são dadas p el o jogo, cujas regras tem a ver, ao m esmo tempo, COITI o pontual e o permanente. Na ve rd a de, o s p ercursos entre esses dois palas podem ser variados, mas não obrigatórios . Eles organizam as três modalidades da relação que definem o processo de teatralidade e que pode env olver o c o n j u n to do

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Ver a p articip a ç ã o forçad a a qu e os es pec ta dores são s u b met idos, à s ve zes , p el o s a to res. São e lo q ue ntes, n es s e se n ti do, as expe riências d o Living e m Antígone, p o r exem p lo, ou de terminadas práticas teatrais dos anos de 19 6 0 , em que os espectado re s eram forçado s a ent rar no espaço de representação, o u seja, no es paço do o utro, muitas vezes com rel u tâ n ci a . Em Le So uffleu r in quieto número espe cial de Alternatives Th éátrales , n . 20- 2 1, dez. 19 8 4 , Je a n - M a rt e Pi e m m e afirmava que a teatrali d a d e é aquilo que o teatro é o únic o a prod uzir, aq u ilo que as o ut ra s a r tes n ã o o fe re ce m, não podem pro d u zir.

Atar

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F ic ç ão Jogo

OAtor Se o a tar é portador da teatra lida de no teatro - axioma que Pete r Bro o k , sem dúvida, e n dossa r ia " -, é porque tod o s os sis tem a s s ig n ifican tes - espaço cenográfic o, figurinos, maquiagem, nar ra çã o , tex t o , iluminaçã o , a cessório s - p odem d esaparecer sem que a te atralid ade cén ica sej a p rofu ndamente afetada. É s uficien te que o a tar p e rm an e ça p a r a qu e a t e atral idade sej a pre servada e o teatro poss a a contecer, prova de que o ato r '? é UITI dos elementos indispens ávei s à p rodução da teatralidad e cên ic a . Pois o a tar é, a o m e smo tempo, produtor e portador da teatralidade. Ele a codifica, inscreve -a em cena por meio de s ig nos, de estruturas s im b ó lic as trabalhadas por suas pulsões e seus desejos enquanto sujeito, urn sujeito em processo que explora se u avesso, seu duplo, seu outro, a fim de faz ê -lo falar. E ss a s es tr u t u ras s im bólicas p e rfeitamente co d ifica d as, facilmente identificáveis pelo olhar d o público , que delas se apropria como modo d e conhecimento ou de experiência, são todas as formas do narrativo e do ficcional que se ins crevem em cena (personagens, atleta s do ges to, m arionete s m ecanizadas, narrativas, diálogos, repres enta çõ e s ), e que o a ta r faz s urgirem no teatro. R esultante s d e s im u la c ros, de ilusões, ess as estruturas manifestam em 18

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Ver Peter Brook: " Eu po deria tomar n ã o imp orta que espaço vazio e ch a m á -lo de cen a. Alguém a travessa esse espaço v a z io e nquan to a lgué m o obse rva, e é s u fic ie n te para que o ato te a t r a l se inicie." Peter Brook, L'Espace vide: Ecr its su r le th éâtre , cal. Pie rres vives, Paris: Seu il, 19 7 7, p . 25 . A essa pri mei ra definição, Pete r Brook acrescen ta a n e c essid a d e de u m d iál o g o sob re a ce n a . "O elemen to de base d e uma p e ç a é o di ál o g o . E le implic a um a tensã o e s u põe q ue du as p essoas n ã o es tejam d e aco rdo. O q ue sig n ifica um co n flito. Q ue e le seja laten te ou manifesto, po uco im porta': em Pe ter Brook, Points de Suspensi on , coI. Poin ts Essa is , Paris : Seuil, 2 0 04 . A noção de a to r é tomada aqui n o senjído mai s amplo possível: pode -se trata r de marionetes, é cl aro , mas ig u al m e n te d e te a t r o sem atores , como fa z o Nou veau Théât re Expér imen ta l de Mon tr éa l, quando a prese n ta um a peça e m q ue apenas o s obje to s a t uam (Les Objets p a rlen t [Os O bjetos Fa la m], 1986- 1987) .

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cena a e mergê ncia de In un d a s possíveis, d o s q uais o espectad o r apreende, simultaneamente, toda a ve rdade e to da a ilusão. Mais que as es tru t u ras d ad as a ver o q ue o o lhar d o p ú bl ico interrog a sob a másca ra, é a pres e n ç a d o o u tro, seu savoir-faire, s ua té cnica, se u jogo, s u a arte d a dissi mula ç ã o , da represen tação. Po is o o lhar do p ú bl ic o é sempre dup lo. Jam a is se d e ix a tomar co m p leta men te. O paradoxo do comed ia n te é o seu próp ri o : acred itar n o outro se m ac re d itar. Co mo di z Schech n er, o espectado r é c o nfro n t a do COIn o not-not me d o ator'''. O atar se oferece a ele p or m e io de s irn u la c r o s qu e são es tases d e um p r o c e ss o e o p ú blic o sabe m u ito be m que aq u ilo q ue a ssi ste rep resenta a penas um a d e s uas e tapas. D iz respeito à trav essia d o i mag inár io, a o des ej o d e se r o u t ro, à transforma ç ã o , à a lter idade . A ss i m qu e stionado , p o sto e m cena, d ad o a v e r, o a tar trabalha nos limite s d o e u , o n de o d esej o torn a - s e p erformance. Ele si na liza a diferença, o d eslocamento, o d esconhecido. Po rtanto, a t eatralidade d o p erform er e s tá n e sse d e sl ocam ento que o atar opera entre ele próprio e e le como um outro, nessa dinâmica que registra. A teatralidade está nesse processo do qual o atar é o foco, que faz com que ele sinta, nos momentos d e imobihsrno das e struturas simbólicas, a ameaça sempre presente de retorno ao s u je ito . C o n fo r m e as estéticas, a tensão e n t re as e s t r u t u r a s simbólicas d o teatral e as invectivas do puls io na l é rna is o u m eno s valo r iz a da . E m um ext remo encontra -se Artaud, e rn outro, o teatro oriental. De um a outro , está toda a di versidade das escolas e das práticas individuais" . O lugar privilegiado dess e confronto da alteridade é o co r p o do atar, UIn corpo e m jogo , em c e n a , c o r p o pulsional e s im bó li c o em que a histeria fr iccio n a a maestria. O corpo é , a um só tempo, o lugar do c o n h e c im e n to e da mestria. Um corpo co n s ta n te m e n t e ameaçado por certa insuficiência, falhas, 20

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A TEAT RA LI DA DE

A Lf M DO S LI l'vIl T ES: PARA U M A DEFI NI ÇÃO DA T EAT RALIDA D E

" To d o s os espetácu los partilham esse ' n ã o - n ã o eu': O livier n ã o é Ham let, mas ao m e smo temp o e le n ão é n ã o H a mlet: se u jogo se sit ua e n t re a n e g a ç ã o de se r um o u t ro (= e u so u e u) e a n e g a ç ã o d e n ã o o ser ( = eu so u H aml e t ) ". Ri chard Schech ne r, B etw een Theatre and An thropology, P h iladelp hia: U niversity of Pennsilvania Press, , 1985 , p . 123 . A r el a ç ã o co m o co r po difere, é claro, seg un do as escolas de formação. A lgumas te n dem a inc ulcar n o a to r u ma m a est ri a absoluta. fundada em um mé todo a t lé t ico - é o exe mp lo de G rotowsk i - e o ut ras exal tam a p e rd a do a tor em si mesmo: é o exemplo de A rtaud .

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difi culdad e d e se r. Porque, aqu i, o corpo é imperfeito por definiçã o , co nhece se us limites . Feito de matéria, é vuln erável e su r p ree n de quando se s upera" . Mas esse co r po n ã o é ape n as p erf orm a n ce. Posto e m ce na, posto e m s ig nos, semiotiza tudo q ue o rodeia: o espaço e o tempo, a narrativ a e os diálogos, a cen o g rafia e a música, a ilumina ção e os figurin o s. Introduz (c r ia?) a teat ralida de em cena. Quanto menos é portador de inform a ção e sabe r, quanto m eno s le v a em conta a representação, n ã o assu mindo a mirnese, m ai s fa la da presença d o atar, do imediatis m o do evento e d e su a p rópria m a te r ialida d e v. Exibido e n q uan to espaço, ritmo , ilus ã o , o pacidade, t ransp a rência, linguagem, n arrati va, p ersonagem, a tle ta, o co rpo do a ta r é um dos el ementos m ais importantes d a teatr alida d e em cena.

Dfogo É nesse ponto que intervém uma s egun d a n oção fund amental para a teatralidade do ato teatral: a noção de jogo. Para quem tenta apreender a noção de jogo no teatro, a definição d e Huizinga é apropriada. Jogar é fa z er uma ação livre , sentida como "fic tíci a" e s it u a da fora da v id a C Ofrente, e no e n ta n to capaz de absorver cornpletarnente o jogado r; é um a ação desprovida d e tod o intere ss e m aterial e de toda u t ilida d e , que se pratica ern um temp o e u m espaço exp ressame n te circ unscritos , desenvolve -s e segu n d o uma o rdem e co m regra s d ada s-',

Portanto , o jogo implic a uma a t it u de co n sc ie nte da p arte d o p erform er (tomado aqui em seu sentido g e ral: a ta r, e ncen a dor, 22

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Surpreende nte m e nte idên t ica àq ue la qu e o e s pec tador sente em uma com p eti ç ã o espo rtiva ; o para le lo en tre o s esportes c o tea tro é retom ado c o m freq uê ncia . Ver Th éãtre/Public, n . 63 , maio 1985 . Para Je a n -M a r ie Piemme, esse corpo traz a m a te ri a li d a d e, a s i n g u la r id a d e, a v u lnerab il ida de, p oi s é cada vez m ai s a nac rânico diante das t e c n ol o gias. Mesmo sen do ca da vez m a is m ed iat izado , per ma nece singu lar. "No momen to e m que o r e al mediat iza-se cada vez mais, em q ue o ser humano mergu lha n a s im a g e n s de si mesmo que as mo dernas tecnologi as de reprodução lh e r emetem de volta, o corpo, n a ra d ic al id a d e de s ua p resenç a materia l no espaço n ã o p a r a de ga n har ím po r t ância. "; õp. ci t., p . 40. /ohan H u iz ing a , O Jog o Co mo Elemento da Cu ltura , 7. ed.. São Pau lo : Pers pecti va, 2012, p. 16 .

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ce nóg ra fo, d r a m a tu rg o .. . todos e les p articipam), re a liza n d o -se n o a q ui e agora de o utro espaço q ue não o cotidiano, visan do à realização d e "gestos fora d a v id a corre n te". Esse jogo provO ca um d is pê n d io pessoal cujos objeti vos, intensidade e manifestações var iarn de u m indivíduo a o utro, d e uma época a o u tra e d e u rn gênero a o u tro . A lé m di ss o , o jogo é co d ifica do aí a p a rtir d e reg ras específi c a s q u e se relacionam, por um lad o , com as regras d o jogo e m geral (e n q uadramento c ên ico, o u t ro espaço, liberdade no interior d e ss a rn o lclu r a , ostensão, transfor mação, tra nsg ressões), e p o r o u t ro com regras m ai s específicas q ue é p o ssí vel h is t o r ic ízar, n a m edida em que dão co n ta d e esté t ic as te atrais diferentes d e aco r do co m é pocas, gê nero s e prát ic a s especific as » . Essas regras i m põe m u m a moldura d e ação no interi o r da q ual o a to r po de toma r certas li b e r d ad e s em rela ç ã o ao c otidi an o . Essa mo ldura não é cên ica, como se p o d e ri a pe nsar (rnold ura fís ica q ue perte nce, co m f req uê nc ia, ao domíni o do visível) , m a s uma moldura virtual, aquela que o jogo impõe com suas constriçõ e s e suas liberdade s. Ela é visível graças à c o d ifi c a ç ã o tácita que o p e r a no espaço e nos seres que o ocupam, c r ia n d o o fen ô m eno te atral. E m lugar d e moldura, s eria convenien te fa lar a q u i d e e n q u a d rame n t o teatral, p ara retomar u rn c o n c e ito que E r v in g Goffman" definiu e tern a v a n t a g e m de sublinhar o ca ráte r din âmic o d o proce sso. Se a moldura é um resultado que é pos sível impor, o enquadramento, ao c o n trár io , é um pro c es s o , uma produção qu e exp ress a o suj eito e m ato. O enquadram ento sublinha muito bem o fa to d e s e r 25

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A T EAT RALIDADE

A LI'.M DO S LIMIT ES , PARA UM A D E FI NI Ç A o D A TEAT RA LI DAD E

As r e g r a s do jogo teatra l s ã o d ifere nte s, po r exemplo, n a época e lisabe tana o u na é poca cl á ss ic a ; d a m e sma form a q ue a Co m med ia d ell'A r te n ã o i m põe a s mesmas regras de jogo que a tragéd ia d e Sófocles. H oj e , à m edi d a que n o s colocamos ao la d o do teatro he rdado dos a nos de 19 6 0 o u do lado da t r a d iç ã o , a s r e gra s d o j o g o cé n ico s ã o d ifere nte s . Nesse sen t ido, a h isto ri ci z a ç ã o das regras d o jogo s u r g e de um estudo da e stética. A n o ç ã o de e nquadramento foi definida por Ervi n Goffman em 1959 e m Frame Ana lys is: An Essay o n th e Organieation ofExperience, Londo n : H a rp er & Row, '974, ass im como em La M ise e n scé n e de la v ie q uotidienne, P aris : Éd itions d e M irur ít , ' 9 73 (1959). Nesse d o m ín io d a p si c ol o g ia, o e nquadra men to é aqu ilo q ue p ermite a i n te rpre tação da experiência. Esse e nquad rame nto vi r t ual q ue impõe re g r a s, m a s ta m b é m liberda des, tem certo p aren tes c o co m o espaço tran siciona l d e Dona ld Woods W inni cott em [e u et réalité: L'Espa ce pote n ciei ( Playing an d R ea lity) , 19 7 ' , trad u z ido do in gl ê s por C la u d e Mo nod e J.-E. Po n ta lis , Paris : Gall imard , '9 9 7 (19 7 5) , re e d it a d o na c o I. Fo lio, 20 0 2 .

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u m a apreensão, urn a iluminação das relações pe rcep t iv as e n t re um sujeito e um objeto; s u b lin h a que esse obj eto t ransforma-se em objeto teatral e, nessa t r a n s fo rm a ç ã o , e s p aço cênico e ficçã o estão imbricados. A teatralidade n ã o e m e rg e aí c o m o p a ss iv id ade , o lhar q ue registra conj u n tos de objetos teatrais (de qu e seria p o s sí v el e n u merar as proprie d a d e s ) , mas como din âmic a , r e sultado d e u m fa z e r q ue s em dúvid a pertence, de form a p rivilegiada , ao t e at r o ; mas a teatrali d a d e também pode p e rten c er à q uele q ue se a p ossa d ela p elo o lhar, q uer dizer, o esp e ctador.

A Ficção e Sua R el a çã o Co m o R eal

o terc eiro t erm o d a r elação é a q ue le que t r a ta d o real. Optar por falar d a r elaçã o co m o real n o teatro pode pa recer p r oble m ático, j á que s u p õe a e xistência de um r eal c oncebido com o entidade autônoma, cognoscível e representável. Ora, a re flexã o filosófica atual tende a mostrar que o real só pode ser resultado de uma observação problemática, pois é sempre produ zido, sendo ele próprio resultado de uma representação, para n ã o dizer um simulacro. E n t re ta n to , é importante questionar a rela ção da teatralidade com o real porque ela m arcou a r efl e x ã o teatral desde o princípio do s éculo xx, e diversas arte poéticas (Stanislávski, Meierhold) trazem a marca dessa interrogaç ão. Em outros termos, seria possível associar a teatralidade a urna adequaç ão, maior ou menor, da r epresentação te atral ao r e al? Para determinados artistas ligados a outras form a s de arte que não o teatro, e também p ara certos artistas de teatro, a noção de teatralidade traz uma soma de conotações pejorati vas. G é r a r d Abensour escreve: " N a d a é mais odioso para uma peça lírica do que a ideia m esma de 't eat r a li d a d e'. E m s e u primeiro nível, ela designa uma atitude cornpletarnente exte ri o r, descolada do s e n t im e n t o íntimo que s e supõe inspirá-la, e se identifica com a ausência deliberada de s in c e r id a d e. A partir dessa ót ica, s e r teatral é ser falso.?'? 27

Géra rd Abenso ur, B10ck face à M e y erh ol d et Stan isl a v s k i ou le p roblême de la t héâtrali t é , R e v u e d es ét udes slaves, v. 54 , f. 4, p . 671-679 , 19 8 2.

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AL ÉM D O S LIM IT E S: PA R A U ,'l.IA D E F IN IÇ A O DA TEATRALIDA D E

Na li n g u a g e m pop ular, a teatralidade o p õ e -s e à sinceridade q ue lVIeierhold e Stanislávski reivindicam c o m objctivos difere n tes , cada um p or se u lado. O objetivo m anife sto de Stanis lávski é fazer o espectador esquecer que está n o te atr o , e o te n n o "t e a t r a l" t o r n o u - s e pejo r a t ivo n o Te atro de Arte de M oscou. A verdade da peça depende da proxírn idade en tre o atol' e o real a ser re prese ntado. A teatralidade aparece aí como um desvio e m relação à verdade, u m excesso d e efeitos, u m exagero de compo r tamen tos que soa m fa lsos e estão d ista ntes da verdade cên ica. Em sen t id o opos to à tese stanislavs k iana, para Me ierho ld a ce na d e ve rrian ifestar-s e p or meio do realismo g rotesco, realismo que refu ta as teses nat ural istas e m todos os pon tos . A teatra lidad e é o ou são os procedimentos po r m e io d o s quai s o a to r e o encenado r faze m com qu e o espec tado r j am ai s es q ueça q ue está no teatro e q u e t e m , d ian te d e si, um ato r ern p le n o dom ínio de se us m e io s, interpret a n d o u m papel. Afi r mar o " te a tral" como di stinto da v ida e d is tinto d o r e al ap are c e c o m o con dição s ine q u a n on da t e atralid ade e m ce na. A ce na deve fa lar s ua p ró p r ia linguagem e imp or s u a s próprias lei s. Meierhold questiona-se a c erca d a a deq u açã o d a r epresenta ç ão ao real. S u b li n h a que a te atralidade n ã o pode s e r e nco n t r a da n a r elação ilus ória c om o r e al ; n ão es tá ligad a a uma esté tica p artic u lar, mas deve s e r buscad a n o dis cu r so a utô nomo que const itui a cena . Insiste n a n e c e s sida d e de uma especificidade teat r a l. No pensa men to de Me ie r hold, é i mporta n te r ete r a ideia que defi ne a n o ç ã o d e te atrali d a d e co mo um ato d e osten ção s us te n ta do pelo ato r ( ao m o s tra r ao espec tador q ue e s tá no teatro) e que d e sign a o teatro e n q uan to t al , e n ão o rea l. A dis ti nção é fu n dam e n tal, p o is ce n t ra a t e atralid ade , por um lado , exclusiv am eri t e no fu n c ion a rn e rrt o do te a t r o e nquan to teat ro, tra nsfor ma n do-o n a rn áq uiria cibe rnética de q ue fa lava Barthes; p o r o u tro lado, coloca-a e rn um es paço fo ra d o cotidiano, onde o pro c e ss o d e produção d o te atral é i m p o r tante , e onde tud o se torna sign o , e é e xteri or a t od a re l a ç ã o c o m o r e al. Ao c ontrário d a d efini ç ã o d e t e atralid ad e dad a po r Meierh old , a d e S ta n is lávsk i t em a m a r c a da h istó ria , pois le v an t a que st õe s q ue h o j e n ã o se colocam rnais nos mes mos ter mos . Corres po n de a um m oment o hi s tór ic o e m qu e se b uscava o

A T EATRALIDADE

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natural contra o a r t if íc io teatral do final de s écu lo X IX, que todos c o n d e n a v a m. Mas s e o c o rn b a te contra o real ís rn o ainda n ã o termi n ou d e fato, não po de ma is ser li d o n o s mesmos termos, já q ue o próp rio rea lismo é reconhecido como uma forma de teatralidade . Hoje parece clara a resposta à questão de saber s e a t ea tra lidade po de ser definida por meio da relação que a ce na mantém co m o rea l que toma por objeto. A teatralidade aparece co m o um p r oces s o li g a d o , a ntes de t u do, às co n d ições d e pro duç ã o do te a tro e n ã o ao g rau de sem el ha nça ou d e s vi o em relação ao real rep resentado. Nesse sen t ido, é possível d izer q ue não há ass untos mais t e a t r a is que o u tros, im it a ç õe s ma is te at r ais q ue o u t ras, e qu e a teatralidade te m a ve r c om o próp r io p rocesso d e re p rese n tação.

A PROIBI Ç Ã O N a tripla r el aç ão qu e a din âmica c ênic a r egistra , apare c em proibi ções. Co m e fe i t o, c o m o em toda moldura , o enqua dramento teatral é dotado de uma dinâmica dupla: visto do exter io r garante a o r de m ; visto do interior autori z a toda s , o u quas e to das". as tran s g r e s s õ e s. "A e ssê ncia d o t e atro n ã o está, a n tes d e tudo , na capac idade d e trans gredi r as n o rm a s e stabelecid a s p el a natu reza, o E stad o e a soc ie da de ?", pe r g u n tava E v ré i nov. Essa p o s sibilidade d e tra n sgre s s ã o ga ra n te

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Seria correto d izer que as t ransgressões q ue o jogo autoriza são dete rminadas por div e r s o s gêneros. épocas. países e estét icas. É onde a teatralidade no singular dá lugar às teatralidades no plural (conceito que é . aqui. quase s in ônimo de estética s ) . Ex p lor a r esses lim ites poderia ajudar -nos a est ab elecer a diferença entre teatralid ad es específicas ligadas a é pocas ou g êneros d ados e a teatralidad e profunda . aquela qu e s o b re v iv e atravé s de tod as a s teatralidad es específicas. A título d e iníc io de reflexão. poderíamos di zer. por ex e m p lo. que a nude z h oj e aceita e m c e n a , como já o fo i n a Idad e M édia, provocou escãndalo n o s a no s d e 19 6 0. No en tanto, o q uad ro v irt ua l do jogo estava bem c o lo c a d o . mas as li berdades e transgressões a u torizadas pela cena e pelas e s té ticas de épocas ante r iores não permitiam o d esnu d a m e n to do co r p o do ator. Prova de que o quadro vi rtual c o lo c a d o pelo p ro c esso de jogo n ão permite (a u to r iz a) todas a s liberdades e el as continuam-marcadas por c e r t as restrições ligadas a épocas específicas. estéti c as, gêneros. mesmo se uma das fun ç ões do te atro é ass u mir e ssas t ransgressões.

a lib erdade c ê n ica d o a ta r e a po tê ncia d o li vre - a r b ítr io dos dive r s o s p arti cip an t e s 2 9 • As lib erdade s qu e o jogo ofe rece são d e re pro d uzir, im it a r, dupl ic a r, t r ans fo r rn a r, d e for rnar, t ra nsgred ir as n o rma s , a natu r e z a , a o r de m social. N o e n t a n to, c o m o m o s t r o u H ui zinga , o j o go e m ger a l, e o j ogo t e atral e m pa r t ic u lar, são c o n s t it uí d o s, ao m e smo temp o , po r uma m oldura limitativ a e um co n te ú d o tran sgre ssiv o . O jogo é , ao m esmo te m po, a q u ilo q ue a u toriza e p ro íb e . N ã o é cons t it u ído p o r tod a s as lib e rdad es. As lib erdades qu e o fe rece são dad a s p o r reg ras inic iai s - o u s ej a , pela m oldu r a v ir t ual que os p arti cipantes p artilham (mas na qu al o espec t ad or n ã o pode intervi r, p o is franqu earia um esp aço que n ã o lhe é d e stinado) - , mas tamb ém pelas liberdades admitidas p o r uma é po c a o u um d eterminad o gê ne ro . T a is lib erdades li g am - se, c o m freq uê nci a, a es té t ic as es pecíficas e a n ormas de r e c ep ção qu e constituem para o a ta r e o espec t a d o r um có d ig o co m u m d e co m u n ic a ç ã o . É p o s sível transgredir o c ódigo, s u r p ree n d e r o público, chocá-lo, ampliar o s limites da moldura; mas não é possível fazer de tudo nesse lugar. De fato, as liberdades não podem nos fazer esquecer cer t as proibições fundamentais . A transgressão des sas proibiç õ e s faz explodir a moldura do j ogo e abre esp a ço par·a a vida> , a m e açando a cena teatral. Há uma dessas proibições que podemos chamar d e lei de ex cl usão do n ão -retorno. Essa lei impõe à cena a r eversibilidade do tempo e dos acontecimentos, que se opõe a toda mutilação ou m orte do sujeito. Dessa forrna, são recusadas co mo t eatro cen as d e retali ação d o c o r po às quais certas performan ces dos anos de 1960 apelaram: mutilação real eD1 cena, a ssim como morte teatralizada de anirnais sacrificados em benefício da r-epre serrtaç ão». Tais c e nas rorripern o contrato t ácito c o m o 29

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A TEATRAI.lDADE

AL!Ô:y1 DOS LI MI T E S: PA RA UMA DEFIN IÇÃO DA TEATRALIDADE

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E m o u t ro lug ar, D o sto ié v s ki o bser vou q ue "n o te atro dua s vezes d ois são três o u a té m e smo ci nco, e m fun ç ã o d o g rau maior o u m enor da teatrali d ade im p lem entada': C itad o p or Evr éiriov, e r etomado p or Marie Carn ic ke , op. c it. , p . 105 . um pro cess o p aralelo àquel e que D .W. Winni c ott es ta belecia, a o a fir m a r que o inv e stimento pulsi on al n o j o g o n ã o d e vi a r edu zi r o s d e s ej o s do s u j e it o, s e n ã o o j o g o n ã o se r ia m ai s pos sível. Ve r os esp e t á c u los d e H er m arm N itsc h, c uj a c e n té s ima p e r fo r m a n c e , c o nceb ida como a co nclus ã o d e s ua o b ra, aco n tece u em 1998 e durou seis di a s. Aind a q u e s e m an ten h a e n q ua n to proib iç ã o, o pro c e ss o d e m orte de anim ai s

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esp ec t ador. A e le cabe ass istir a um ato de representação ins crito num a t emp o ralid ade o utra, qu e não a do cotidiano, o n de o te mpo é como que s uspe nso e, p ode -se di zer, reversível, o q ue imp õ e ao a ta r o r eto rn o se rnp re p o s sí vel ao p onto d e par t ida (ve r o Pa radox o d e D ide ro t). Ora, a t acan do o p róp ri o cor po, (o u o d e um a n ima l q ue é mo r to), o a tor d e strói a s co n d ições d a te a t r al id a d e . A partir d aí , n ã o e s tá m ai s n a alte ridad e do teatro . Ao s e mutilar, o perfo rm er a ssocia- s e a o real e se u a to fora das r e gra s e do s cód ig os n ão po d e mai s se r p erc e b ido co mo ilu s ã o, fi c ção , jogo . O esp aço e o t emp o da ce n a são dram a ti c a m en t e mo di fic a d o s e , p o r is s o m es mo, dest r u ídos . Es sas p r oibiç õ e s cons t it ue m p rec is a mente u m d o s lim it e s d o teatro " , p ois a rnea çarn a rn ol du r a d o j o g o e t ransfo r ma m o tea tro, m omentan e am ente , e m p is ta de c irco. Se a teatralid ade do e ve n to co n t in u a lá , o t e at r o , ao co n trá rio, d e s ap are c eu. Trad. S ílv ia Fern andes

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pa re c e , pa r adoxa lmen te , entrar ma is fa ci lme nte n a o r dem d a re p r e sen ta ç ã o do q u e aq ue le d e mutila ç ã o d o a to r. Ma s n ã o os limites d a te a t r a lid a d e . Ve r a ess e re s p ei to a n o ç ã o d e "sag rado" e m Georges Bat a ill e , es pec ia l me n te e m L a Sociologie sacr ée du m on d e co ntempo ra in , Co ll. L ígn e s , Pa ri s : M an ife ste s . 2004, p . 33-3 4 .

2. Mimese e Teatralidade

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É necessário fazer urn paralelo entre m imese e te atral id ad e. Se

o teatro traz em seu núcleo a no ção de teatralidade, que funda o processo teatral, também traz a noção d e mirnese. Analisada por Aristóteles e Platão, Diderot e Brecht, Stanislávski e Artaud, a mimese está no núcleo do processo c ênico, ao mesmo ternpo co m o texto e j ogo' . D e fato, exis te no teatro uma dupla mim e se: uma mimese textual, fundada na noção d e representaç ão por meio da linguagem , noção que Aristóteles foi um dos primeiros a afirmar, e sobre a qu al a s pesquisas de Saussure projetaram uma luz particular. P or s e u lado, Derrida c o men to u ex te ns amente a representação que se coloca nos fundamento s d a língua e do pensamento ocidental. Existe também uma mimese que

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A p rese n tado i nicia lmente como conferên cia n a Fun dação Soros e na Unive rs idade d e Bras tilava e m Es lováq uia, durante enco n tro sobre questões de m ím es is r eali zado e m 13 - 16 jan. 200 1. U ma ve rsão m odi ficada fo i ex posta no Coló q u io I nte rn a cional de Es tu dos Tea t rais, o rga nizado pela seção d e Teat ro Com parat ivo, Sociedade Ja ponesa d e Pesqu isa Tea tra l, Unive rsi dade de Se ijo, Tóquio, 2 - 8 maio 2001. A mime se é abordada segu ndo várias abo rdage ns: a . de modo onto-ep is te mo ló g ico (Re né G ira rd) ; b. b io-a ntrõpo lóg ico ( Wa lter Be njami n e Theodor Ado rno); c . ps ic a nalí t ico (S igm u nd Freu d) ; d . lin g u íst ic o e lit e rár io (Jacques De r rida) , e n tre ou t ros .

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MI MESE E T E AT R ALI D AD E

A Lf. M DO S LI M ITES: PA RA UM A DE F IN IÇAo D A TEATRA LI D ADE

di z r e s p e i to à "representaç ã o " e , portanto, ao jogo do ol har, mim e s e que e stá n a base do jogo d o at or e da ce n o g r a fia . As ligações q ue s e e s tabelecem e n t re a noção de mimese apli cada ao teat ro e a de teatralidade também são de d uas o rd e ns: ligaç ões n o nível dos fundamento s teóricos ( filo s ó fic os, m etafís icos ) qu e essas duas noções evid e nciam e também ligaç ões no nível da prag m ática da cen a , já q ue am b a s, mimese e teatralidade, faz e rn a cena f u nc io nar: o tex to , o jogo do atar, a cenografia. Também po deríamos nos perguntar, com razão, se a teatralidade n ão é uma das moda lidades particulares da m imese. Pai-a começar, pode -se notar que tudo a proxima a s duas noções, so bre t u do a exte nsão dos conce itos . Em um e o u tr o caso - mimese e tea tralidade - os concei tos u ti lizados ul t r ap a ssam o domínio es tri to das artes e nos o b ri g a rn a exarniriar as relações e n t re a arte e o rea l. Forçam o pesq u isa do r a q uest io n a r a inserção da obra em seu e ntorno (rea l, n a tu r e z a , sociedade) . Do mesmo modo, as duas noções i n te rpelam o posic ion am ent o do s u j e ito . Se a mim e s e , e m s u as rn últ ipl a s acepçõ e s, implica a intervenção d e um suj eito (porque r equer os atos d e r epres entaç ão ou interp r eta ç ã o ), a n o ç ão d e te atralidade pre s sup õ e um s uje ito que o lh a (o espec tador) e só tem sen t id o e m r elaç ã o a ele . F il ó sofo s e h om ens d e t e at ro (Ren é G i ra r d, Nicol ai Evréi nov ) a fi r m a rn qu e m imese e t e atral id ad e são d oi s rno d o s f u n da me n tais d e fu ncio n ame nto d o se r hurn ari o e s u rge m da própri a essência d o hom em. G ira r d fal a t amb ém d e in stinto m im ético c a r acteríst ico do s u jeito; Ev ré in ov fal a d e in stinto tea t ra l. Ass iI11, e n q uan to o pr irne iro s u b lin ha a t endênc ia do nd iv íduo a imitar o u represen t a r, o seg u n do sa l ien ta a tend ência a se trarisforrn a r , Afirmaçã o que o própri o A r is tó tel es já havi a feito, qu and o not a va n a P o ética : í

Desde a infância os h o m e n s têm, inscritas e m sua natu reza. ao m e s rn o te rnp o a ten d ên ci a a re p r e s enta r - e o h omem d ife ren ci a -s e d o s o u tros a n irnais p orque é p articularmente inclinado a re pre s entar e reco r re à r epre s enta ç ã o e m s uas p rimeira s ap re n dizagens - e uma tendência a e ncon tra r praze r n as rep resen tações .'

As du as n o ç ões tê m um a arn b ig u id a d e c o n c e p t u a l. Co m efeito, mirnese e tea tralidade p o d ern c obrir um call1po bastante vasto d e manifesta ç õ e s. A um só t emp o r e s u lt a do (da a ç ão O1imética ou teatral) e pro cesso, são aplicadas , s em discrimi na ção, a tod o s o s a spect o s da repre s enta ç ão: t exto, narração, personagens, j ogo, c en ografia; a teatr alidad~ (c o m o a mimese) são, a o I11eSmO tempo, o ato de tornar a a çao teatral e o resultado o bt ido. E n fi m , a s duas noções são indissociávei s da noção filosófica de representação definida por numeros o s filósofos, especialmente De r ri d a : rep resentação dirigida p o r texto, jogo e n a rrativ a . Po r ta n to, eI11 princípio, tud o justificaria a aproxi m ação q ue fizemos entre mimese e teat ralidade .

EVOLU ÇÕES DIFERENTES N a tradiç ã o a n g lo -aI11er icana\ a n o ç ã o d e mimese (e n te n d ida como " i m itação"), pre s ente na r eflexão do s fi lósofos através d o s sécu los, rea d q u ir iu ce r ta a t u a lidad e no princípio do s éc u lo x x , p o r m ei o d o s t rabalhos de Sam u el H enry Bu tche r, d a Esco la d e Chicago, q ue trad uz iu e a p resen tou a Poética d e A r is tóteles n o s anos d e 1930 . A segu ir, v ie ram os trab alho s de E r ic h A uerb ach e No r thro p F rye . Na F rança , a noç ã o p a s s a a in te ressa r a o s p e sq ui s a d o r e s especial men te n o s an o s de 19 7 0 : R ol and B arth es , Ja cques De r rida, Gé rar d Ge nette, R en é G ira rd, todo s se m a ni fe s t a ram sobre a q uestão . Por se u lado , a noção d e t e at r alidade s u rgiu n o in ício d o sécu lo x x, co mo di s s emos a n te r io r men te . Evréinov fo i o pri m e iro a m encion ar a palavra e m ru s so (tea tra ln os t) e m 19 2 2 . Será e s q uecida durante a lguns d ecênio s , a n tes d e reaparece r no s textos. E la se apoia na palavra literaridade, q ue aparece n o s anos de 19 50 e e n tra e rn voga n o s a nos d e 1960, ainda q ue s ua di ss em in a ção n o s texto s crític o s s eja m e n o s ráp ida . A d e fin iç ã o da mi mese como írn ita ç ão (ou r epr e s enta ç ã o ) da natureza po de irnp licar : 4

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Ar ist o te , Po étiqu e, e h . 4 . 4 8b4, trad . Ro selyne Dupont - Roc: Jean Lall ot , Pa ris : Se u il , 19 8 0 , p . 4 3 .

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Ve r o históric o feito p or Mihai Spa r iosu e m Mim esis in C o n tem p o ra ry Theory ; A n Ln t ersdisciplin ary Approa ch , Phi lad elphi a l Am sterdam : John Berij arn in s, 19 8 4 ,

p.

[-X XIX.

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MIMESE E TEATRALIDADE

AI.ÉM DOS LI M ITE S: PA RA Viv iA D E fI N I Ç ÃO D A T E AT R ALID A D E

a imitação ( re p rese n tação) d e o bjeto s ou fenômenos da natu reza (visão n e ocl á ssi c a ) , a ss o ci a da à rnirn es e imitativa , O U ; a imitaç ã o ( re p resen taç ão ) da nature z a c o m o p rocess o (visão r o m â nti c a ) , ass o ciada à mi m ese não i m it a tiva.

N u s s o o lh a r, n oss a ex pec tat iva, n o s s o co n heci men t o d e q ue haverá teatro começa a se rn iot iza r o esp aço e os o b jetos , o u seja, a tran sformá -l o s e m signo s que ain d a não s ão s ig n ifican tes, mas p o d em vir a s e r. Dois in c ide n te s p ermite m ide n ti fica r o pr o ce ss o desencadeado n o espectador:

Essa dual id a d e n o interior da noção d e mim e s e perm ite a P h ili p pe Laco u e-Labar the d e fin ir a ex is tê ncia d e du as rnirn esesv a mimes e r e st rita , qu e é a re pro d ução, a c ó p ia , a red up licação d o q u e é d a d o - traba lhado, re ali z ad o , ap rese n tad o pela n atu reza; a m im e s e ge ral, q ue não re pro d u z n ad a d o q ue é d a do (e, p o rtanto, não reprodu z ) , m as s u p r e um a certa car ê ncia da n ature za, s u a inc a p a c id a d e d e tudo fa zer, o rganizar, traba lh ar ; d e tu d o pro d u z ir. É u m a mim e s e produ t iv a . Portanto, a t eat r alidad e poderia s e r apenas rnais uma das modalid ad e s d o a to m irn étic o. Ao menos, é o qu e g o s t a ríamos d e provar a partir d este último exemplo.

T EATRUM MUNDI Estamos n o Brasil, à b ei r a de um lago. Eug ênio B arba a n u n c io u que haveri a um espetá culo de teatrurn mundi. Est a mos s e n tad os na grama, cercados por 2 mil espectadores. E m fr ente, e s t á um palco flutuante d e dim ens ã o modesta, montado para a o c a s ião. O espetác u lo ainda nã o co m eç o u , nenhuma ficçã o se esb o ço u e, n o entanto , a teat ralidad e d o esp aço e dos obj eto s c irc u n d a n tes já é perceptível. O espaço e as coisas começaram, de fato, a se transformar. Tudo diz a o esp ec ta d o r que haverá te atro. É interessante c o n s t a t a r que nossa expectativa já modi ficou nos s a p erc ep ção d a s co is as ao redor, que r d iz e r, no sso o lh a r d e e s pectado r c ome ç ou a p erceb er d e forrna diferente o e spa ç o , os e ven tos e os o b j e t o s c ir c u n d a n tes . E rn lugar d e serem p erceptíveis em s u a relação com o real, e v entos, objetos e s igno s diversos co meçam a significar de modo diferente. 5

Na seq uê n ci a, r es u m i mo s as pro po s t a s d e Philipp e La c ou e -Laba r th e. L.Lm ita t io n des rn odern es , Co ll. La p h ilos ophie en effet , Par is : Ga l il ée , 1986, p . '5 -35 ·

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Após me ia hora d e espera, qu a ndo s a b e m o s que o espetá culo a i n da n ã o c o m e ç o u , não h á nen h u m ator e rn cena, n enhu m a fic ç ã o acon teceu, uma fu maça com eça a s u b ir d e um a p e q uena ilh a s it u a d a à es q uerda d a c e n a , há c erca d e d ois met ros . N a da indi c a que a ilha fa ça p arte d o es paço cên ico e n em sabe mos se a f u maça q ue sob e é acid ent al o u s e foi proj etada, voluntariamente, pelo e n c e n a d o r. Quas e s i m u lta nea me n te , um barco s u rge ao longe , d o o utro lado d o lago . N ã o consegu imos disti n gui r quem está a bord o , mas podern o s ve r que cresce lentarnente". E le se dirige ao palco? A distân cia n ão p ermite respon de r à questão.

O espectador não s a b e se os dois eventos estão ligados à representação, mas é evidente q ue seu o lhar começa a semiotizar o espaço e o s evento s, a v ê -lo s de forma diferente. Portanto, el e os transformou em s ig n o s ao inseri-los em uma ficção poten cial, que não sabe como va i se desenrolar, mas que supõe que v ai aco n tece r. Dito d e o u tra forma, o pro cesso d e teatralização extraiu os o bj e tos o u even tos d e s e u co n tex to cotidiano para inseri-los (hipoteticamente) e m outra estrutura, d e onde poderiam s u rg ir. É preciso reconhe c er que se instalou cer ta teatralidade . No e n t a n t o , ainda não há ator, nem aç ão, nem fic ç ão. De fat o , a teatralidade apareceu d e forma latente quando o espectador so u b e que haveria teatro. A teatralidade nasceu, portanto, da ex pecta t iva do e spe ctador, c o n fi r m a d a por certos indícios ce n a , refletores, público, anúncio - e ess a ex p ec t a t iv a modificou seu olhar, se u mod o d e ver as coisas , e es tim u lo u sua atençã o de tal forma que ele c o m e ç o u a enxerga r o s e ve n t os e os o bjetos circ u n d a n t e s d e m odo diferente. Se analisarmos a c e na de outra forma , é preciso reconhecer que, no caso de qu e nos o cupamos, o trabalho do e spectador baseia-se no r as t rea me n to de uma m irne s e . O que o esp e ctado r 6

Ser ia n e c e ss á r io qua s e m ei a h ora p ara qu e ele c hegasse à be ira d o p a lc o tl utu ante e p udé ss e m o s v er os a to res sai n do dele.

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A LÉ M D O S LI M IT E S : PAR A UM A D EFI NI Ç À O D A T E ATRALI DAD E

fez , e fe t iva mente, q u ando identi ficou o barco n o lag o e a fu m aça na ilha? Leu - o s , s o bret u do, c orno s ig n o s e os integro u à es t r u_ tura teatral qu e supunha e star na o r ig e m dos evento s q u e Se p roduzi am. Ass im fazendo, p erc ebeu a "sem e lh a nça" do b a rco e da fu m aça c o m e v e n to s idêntic o s qu e po de r iam a co n tece r na reali dad e . Aquil o qu e se u o lha r id entific ou como te a tralid a d e é, de fato, o pro c ess o de imita ção p or trá s do e ve n t o ou d o o bjeto . Ele p ercebeu o a specto repre s enta ção . Portanto, leu o s d o is in cidentes c o rno r esultantes d o trab alh o de um artista qu e d is põe os s ig n os com fin alidad e fi cci onal. De fa to, est a mos n o do m ín io de urna dupla m irn ese : urna mim es e passiva fundad a n o reco nb e c irn e n to e uma mimese ativa fundada na tran sform a ção, no jogo. Ora, o público vai d escobrir, à m edida que o temp o passar, qu e a fuma ç a era a cidental e n ã o tinha nenhuma r el a ç ã o co m o e s p e t á c u lo, e n q u a n to a aproxim a ç ão elo ba r c o vai re vela r os atores a bord o. O que aprendemo s c o m e ss e exemplo ? So b r etudo, o papel fundamental que o espectador representa. São necessárias duas condições para identificar essa teatralidade: saber que o teatro vai acontecer, que há intenção de teatro; intencionalidade confirmada por indícios, signos (refleteres, palcos, anúncios) cuja presença p ermite semioti zar os objetos e o s eventos circundante s, que poderiam n ão partir, necessariamente, ela produção teatral (barco, fumaça). As mesmas condições prevalecem quando há o reconhecimento de uma aç ão mimética. Na identificação da teatralidade, foi a expectativa de teatro que modificou o olhar do espectador e semiotizou aquilo que o cercava. E s s e estado levou-o a ver teatralidade mesmo onde não havia. Entretanto, mesmo se admitirmos que não chegamos à ação teatral propriamente dita ( a peça não começou), a teatralidade já está ali. Ela precedeu o espetáculo propriamente dito. Manifestou -se c o rn o urna possibilidade de teatro. Em todos os aspectos, esse exemplo é contrário àqu el e do passageiro fumando no vagão do metrô, que apresentamos a n t e r io r men t e . Co rn efeito, nesse c a so o olhar semioti zou os s ig nos imed iatam en te e leu a rn i rn e se onde e la não e s t a v a (a f u m aça ). Ao c ontrá r io, o passageiro - es p ec tador i nvolu ntário

MU"tESE E TEAT RA LI DADE

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d a ce na no me tr ô - não pode fa zer isso n o m orn ento d o eve n to. Fo i a penas a p osteriori, com d is tâ n c ia te m p ora l e m r e lação à ação, q ue a iden tifi cação da mim ese pode ser fe ita e o esp ec t a d o r reco n hecer a im itação e m ação. Assim, a parti r d o momento em que o e s p e c t a do r so ube que se trata va de teatro, a leitu r a d a te at r ali d ade foi s uced id a , imed ia tame n te , pela iden ti fic a ção d a mi m es e . Se m ta l co n hec ime n to, não h ave ri a qu alquer sernio ti zação d e s ig n os de s ua p a r te e nenhum reconhecimento d e mime se. Mais um a vez, esse e x e rn p lo co nfi r m a o que diss emos a n te riorm ente a respeito da teat ralidade: co rn o a rn irn e se, a t eatralidade tern pouca relação com a natureza do o b jet o ou d o e v e n to que investe (ator, espaç o). O que importa n ã o é o result a d o d o process o - o engano, a ilusão , a aparência, a imitação (a teatralidade n ão se med e em graus ou intensidade) . É o próprio processo que importa, a transformação que permite identificar. Isto é válido também para a mimese. É o processo mimético que importa. corno a mimese, a teatralidade tem relação fundamental com o olhar do espectador. Esse olhar identifica, reconhece, cria o espaço potencial ern que a teatralidade será identificada. Ele reconhece esse outro espaço, espaço do outro onde a ficção pode surgir. Esse olhar é sempre duplo. Vê o real e a ficção , o produto e o processo. Como dissemos anteriormente, a teatralidade diz respeito, sobretudo, e antes de tudo, ao espectador. Sem ele, o processo mimético e teatral não tem nerihurn sentido. A partir dessas observações, pode-se deduzir que a tea tralidade não é urna sorna de propriedades ou urna sorna de características que se poderia delimitar. Ela só pode ser apreendida por meio de manifestações específicas, deduzidas da observação dos fenômenos ditos "t e a t r a is': Longe de ser sua forma exclusiva, tais manifestações são apenas algumas de suas expressões, pois a teatralidade excede os limites do fenômeno estritamente teatral e pode ser identificada tanto em outras formas artísticas (dança, ópera, espetáculo) quanto no cotidiano. A n o ção d e teatralidade exc e d e os limite s d o teatro porque não é uma p ropri edade que o s suj eitos ou a s coisas possam

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ALÉlv\ D O S LIMI T E S : PA RA U MA D E FI NI Ç Ã O D A TE AT \{ALl IJ AD E

adq u irir: ter ou não ter t e a t r a l id a d e . Ela n ão p erten c e exclu , s iva rn e n t e aos o bj e to s , ao espaço e ao próprio a to r, mas pode i nvesti-los se ne.ces s r io. Acima de tudo, é res ultado de uma dinâmica perceptiva d o olhar que u n e a lgo que é o lhado (sujeito ou objeto) e aquele que olha. Tal r el a ç ã o pode acontece r por iniciativa do atar q ue man ifesta sua intenção de jogo o u do espec tador que toma a iniciativa d e transforma r o outro em objeto espec u lar. Desse modo, p or meio do ol har que dirige àqu ilo q ue vê, o espectad o r c r ia o ut ro e spaço - cujas leis e regras já n ã o são as do co tidiano, e o n d e inscreve o q ue olha, perce bendo-o co m um o lhar diferente, distanc iado, como se p e r t enc e ss e a uma a lte r idade que só pode olh ar do ex ter ior. Sem esse o lhar, i n d ispe n s ável à emergência da teat ralidade e ao seu reco n hec ime n to enq ua n to tal, o outro que "e u olho" es taria em me u p r ó prio espaço, no e s p a ç o do espectador e, portanto, n o espaço cotidiano, exterio r a todo ato de represen tação. Ora, o qu e c r ia a te atralidade é o registro do esp eta cu la r pelo espec tador, ou até m e smo d o esp ecu la r, ou seja, de outra r elação com o c o ti d ia n o , de um at o de representação, d e uma cons t r ução fic c io n a l. A teatralidade é a imbricaç ão d a fic ção COJll o real, o s u r g im e n to d a a lte r id a de em um espaço qu e s itu a um jogo de o lhares en t re a q uele que o lh a e a q uele que é o lhado. Entre todas as arte s , sern dúvida é o t eatro que melh o r realiza essa experiência . á

AS TRÊS C LI VA G E N S Para chegar a u ma d efinição d a t eatralidade, digamos que ela seja o resulta do d e um a to d e recon hec i me n to p o r p arte do e s p e c t a d o r. Foi in s c r it a pelo artista n o o bje to o u n o eve n t o que o espectador o l ha pelo fi ltro d e pro cedimento s qu e s e pode e studar (dis tanciame nto, ostensão, e nquad ramento, por exemplo). Para o es pectador, o reco n hecimen to d e s s e s proced imentos é a prime ir a e tapa d e urn p rocesso d e p e rcepção q ue opera uma sé rie de clivage ns nas ações oferec idas a s e u o lh a r, que lhe permite reconhecer a existência da teatralidade. A teatralidade resulta precisamente dessa série de clivagens

M IMES E E TEAT R A LIDADE

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que o espectador põe em movimento visando à di sjun ção d o s sistemas de significação, na intenção de fazê -l o s atu ar uns em relação aos o utros a fim de criar as condições da representação. A pr i rne ira clivagem q ue o olhar do espectador realiza separa a a ção ou o s uj e it o observado do espaço cotidiano que o rode ia. Assim, isola a ação de se u e n torno e, dessa forma, consegue localizá-la em o utro espaço, o n de a representação pode surgir. Sabernos que, sem ess a r u p t ura no espaço, a ação (até então inseparável do rea l) não pode dar lug a r à ficção. Graças a ess a tra ns fo rm ação in ic ia l, o espectador percebe que o e ve n to que tes t e rnu nh a pertence a o ut ro espaço que n ã o o cotidiano. Ao m esmo tem po, percebe q ue os s ignos adq u ire m um sentido diferente ness e espaço, pois p e rtenc em à estr u t u ra secundária d a ficção e m vi a s d e se co ns t it u ir. Tal es p aço d e rep rese n tação te m p arentes c o evide n te com o esp aço qu e W in n icott charna d e potencial e con s ide r a a p rimeira condiç ã o d o j o g o ". A defasagem e n tre espaço c otidiano e e spaç o d e re p resen tação cria uma primeira du alidade, sem a qual a teat ralidade não seria reconhecida, e constrói um primeiro nível de fr icção realizado pelo olhar do espectador. E fe t iv a m e n te, e ste último não limita seu olhar a um único espaço, mas apreende os dois ao mesmo tempo, navegando d e um a outro e m um j ogo d e vai e vem que é uma d as c o n d içõ e s constitutivas da tea t r a li dade . Portanto, ess a primeira d efa sagem p ermite ao es pectado r sair do univers o co t id i a n o e r econhecer o caráter fi c cional d aquilo que se oferece a se u olhar. P el a mesma raz ã o , permite que coloque as bases da teat r a l iz a ção do o b jet o o u da ce na oferecida a seu olhar. Ator e esp ec t a dor r e articulam o s s ig nos, retirando-os d e seus s is tem as habituais d e s ig n ific a ção e integrando-os a outro universo ficcional. Por meio desse simple s jogo, conseguem fazê -los s ig n ific a r de outra forma e cons tr oem as bases da teatralidade. A s egunda clivagem a co n tece n o próprio núcle o d a r epre se n t aç ã o e m a is urna v ez opõ e r e alidade e fic ç ã o, a go ra n o nível 7

A in da que D .W. Wi nnicott t rate do jogo da crí ança, tudo q ue diz sobre a s co n dições q ue favorecem esse ú lti m o parecem poder aplicar-se a o jogo te a tral. Ver D onald Wo od s W inn ic ott ('9 7..l) , l eu et r éalit é: L' Espa ce potentiel ( Playing with Reality ), trad . C laud e Monod e ) .- 8. Pontalis , P aris : G a lli rn a rd , '99 7 [' 97 5], reedi tado n a coI. Fo lio , 20 02.

I IU

da ilusão. Efetivarnente, cada evento representado inscreve -se, ao mesmo tempo, na realidade (por meio da rn ate r i al i d a djsempre p resen te d o s corpos ou dos objetos e também da ação e m vias de se desenvolver) e na fic ção (as ações e os e ve n to s s imulados remetem à ficção. ou pelo menos a uma i lu s ã o ). E n1 qu alquer evento observado, a ação representa~la envolve o r e al - a pesar do j o g o d e apa rência e ilusão - e é percebida e nquanto tal : os corpos movimentam-se, fazem gestos, realizam ações, os obje tos tê m certa densidade, as le is da gravidade funcionam. Ma is u m a vez, o espectador percebe tal du al id a d e, a fr icção e n tre realida d e e ficção . Se u o lhar se movimenta de um n ív el a o ut ro, o pe ra n do urn a d isjunç ã o -unifi c a ç ã o de n a tu reza se mel h a nte à quel a q ue Michel Ber nar d descreveu". O rnov í . m ento une e o põe dois uni v ers o s q ue se excl uem e , n o e ntan to, se s up e r p õern . É p r ec is a me n te e sse rnovi rne nr o d e vai e vem qu e co nsti tui a s egu n da c o n d ição d a teat ra lidade. A té a q u i, consid erou-se a teat ra lidade o re sultad o de du as clivagens s im u lt â neas : aquela que o p õe espaço cot id ia no e espaço de repres entaçã o, e a que opõe realidade e ficç ão n o interior da mesma cena. A primeira mostra que o s signos e o s objetos adquirem u m s e n t id o d ife rente quando d eslocados d e s e u contexto c o m u m . A segunda estabele c e a disjunção no in terior do mesmo, s u bstit u i a un idade da s for mas pela dualidad e , ao p asso qu e n oss a p ercepção c o m u m vê a pen as un id ade e n tre s ig no e sentido. Por seu la d o , o esp ect a d o r p ercebe as fricções e as tensões e n t re os diferente s mundos qu e a teatr alidade p õ e e m j o go. Por is s o m esmo , é obrigado a o lhar d e o u tra form a. C r iada pelo a r t is ta o u pelo esp e c tado r, a te a tralidade sem p re t e rn , e rn seu núcleo, a duplicidade d o olhar, d a percepção que reconhe ce a existência simultânea d e realidade e ficção, e sua mútua excl usão. À dupla clivagem m encionada a c i ma, a cres centa - s e uma terce ira cl ivagem, qu e d e s t a vez se s it ua n o p r óprio n úcl e o do t eatro , à m edida que tem r elação es p e cífic a com o a tor. Liga -se a o e s cl arecim e n to do e q u ilíbrio pre cário que e s te deve es tabelec e r, e m s e u íntim o , e n tre as forç a s d o pulsional e d o s lrnbó l ico. No s u cesso d e tal e q u ilí b r io e ncon tra-s e g ran de p arc el a d e su a a r te. É t a m bé m esse e q uilíb rio que o espec tado r vê, atento às 8

lI.IIMESE E TEATRA LIDADE

ALf: M DOS LIMIT E S: PARA U M A D EH NI Ç A o D A TEAT RA LI DA DE

Mi chel Bernard, L'Expressivité d u co rps: R ccherch es su r les fondem ents d e la th é ât ralite, Co I!. C o r p s et c u lt ure, Par is : J.P. De lage, 1976.

111

forças opostas s empre presentes no j o go te a t r a l: aqu elas que permitem o confronto entre a ordem e a des ordem , o instintivo e o simbólico. Tais forças estão p resentes e m todo sujeito, mas são mais sensívei s n o teatro. pois de sua h armonia dependem o talento do ator e a e specific id a d e do jogo. Portanto, o olhar do espectador lê nos corpos ern ce na o movimento dessas forças e m a ç ã o constante, que reat ivam incessantemente o processo do jogo e o fragi lizam . O espectado r lê o jogo de fricções e tensões perceptível na ação cênica. Tem prazer e m reconhecer os s ig nos q ue se expõem a se u ol har e s ua s ubve rsão p e r m a n ente p el o p r ó pri o a to de ilus ã o. Dessa fo r ma, no ta o esforço do a tor pa r a co n tro lar a te nsão profunda n o in terio r do jogo - tensão que o co loca e m p e rig o , em es tado co ntín uo d e vu lnerabi li dade. N o a tar, as forç a s do s im bólico semp re s u peram o ins tin to q ue, n o e n ta n to , s u rge co m frequência d e modo im prev isto. A bel e za d o j o g o d o a tor pro v é m , prec isarrie n te, desse combate incess a n te e n t re a m e str ia d e seu co r p o e o permari ente t r a nsbor d a me n to qu e o a m e aça. A s sim, o olhar que o e sp ect a d o r dirige ao ator é s e m p re d uplo: vê neste ú ltimo a o mesmo tempo o s u je ito que é e a ficç ã o que e n car n a (a ação que interpreta e a il u s ão cênica em que se in screve; el e o vê a o m esmo tempo c o rno sen hor de s i e traba lh ado pela a lterid a de, p el o o u t ro em si) . A pree n de n ã o a penas o que o atar di z e faz, mas t amb ém o q u e lhe esca p a - o qu e di z a despe it o d e s i m e smo, ap e sar de si mesrno. E n t ã o c o n s eg ue ap reen der a extensão d a a lteridad e d o ato r e a g r a n deza de se r, a um só te m p o , o mesmo e o o u t r o. O espe tác u lo veic u la todo s os olhares ao rnes rno tempo, m a s é a últ irn a clivagem que causa um d o s p r aze res m ai s pro fundo s do espectador. Nesse nível, nin guém duvida que est a mos muito próximos da perforrnatividade .

Espaço cotidiano

Espaço d e rep resentação Re al

Ficção S írnb ólico

Esqu em a : a s t rês clivagens constit uin tes da te a tra lida de.

P u lsional

1 12

A LEM DO S LIM ITE S, PA RA U M A D EFI NI , lá o n de a aproximação 1.

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Termo q ue nos parece ma is adequado q ue teatro pós -dramát ico. cuja defi ni ç ã o d a d a por Le hma nn é a seg ui nte: "O teatro pós-dramát ico é um teatro q ue exige u m even to [acontecimen to] cénico que s e r ia, a t a l pon to, pura represen tação, pura presentificação d o tea tro. que ele apagaria toda ideia de reprod ução, de re p e t iç ã o do rea l" J-P. Sarrazac, C rit iq ue du th éátre, 2 000 , p . 63 . ci tado pelo p r ó p ri o Le hrna n n, p. 14 . f: e vide nte que não pode exi stir " p u r a repres enta ção do te atro", n ão mai s no te a tro p ó s -dram ático que n o te atro perform a ti vo. A tese d e Lehmann é d e que "a profunda rupt ura das

A LIÕ:-'1 D O S LI MIT ES: PARA U MA D E FI NI Ç Ã O D A T EATR A LIDAD E

P O R U M A PO ÉT ICA DA P ERFORM ATI VID A D E

frances a e do Q ue bec, por exernplo, per nlanece m, ambas, clarame nte mais teat rais . 3 . Se a a rte d a pe rfor mance se di sp e r s ou n a s n u m e r o sas prá ticas perfor mat ivas atuais , ela o fe z e rn m ai or g ra u do lado n orte -arner íc an o , a nglo -saxão, d e v er- se -i a di z er, rn a s ta mbém fl a me ngo, b elga, britânico, it aliano, s u íço, a lem ão. U m a das p r i n ci pa is ca rac te rís t icas des s e te a tro é qu e e le c o lo ca em jog o o processo sen do feito, pro c e s s o qu e tem m ai or imp ort ân cia do q ue a prod ução fin al , mesmo quando esta fo r m e ti cul o sarn e n te p rog rarna da e r itmada , ass im co rno na p erfo n n a n c e . O dese n ro lar da ação e a exper iê ncia qu e e la tra z, por pa r te

do esp e ctador, são bem mais i mp o rt an te s do qu e o resul tado final obtido. 4. A diferença e n tr e as duas abordagens é ig ua lrnerrte perceptível no t ocante ao s disc u r s o s te óric os e da s ab ordag ens a na lí ticas, os u nivers itários n orte-arner icanos tendo pre ferido d es env ol v e r o co nce ito d e pe rfo r ma nce em se u sentido antropológico, multicu ltu ral e mu lt id iscip li nar, abarcan do pelo fato e m s i toda a irne n s idade do rea l e perdendo, nessa emprei tad a , a especificidade da obra a rtística em si. Do lado francês, a r e s is tê n c ia ao con ceito é grande ( o conc eito permanece ali d e s c onh e c id o ou s ubestimado), como já havia sido com a p erformance a rt , A visão permanece defin itivamen te estética . 5. No te a tro pe r fo r rna t ivo, o atol' é chamado a " fa z e r ': a "e s t a r pres ente", a ass u rn ir os riscos e a " rn o s t.ra r o fazer", e m o utra s palav r a s , a a fir ma r a p erform a t ividade do p rocesso. A ate nção d o espcc ra d o r s e coloca na exec ução d o ges to, n a criação da for m a , na di s s oluçã o d o s s ig nos e e m s ua reco ns trução pe n nan e n t e . Um a esté t ica da pres en ça se instaura . 6. N e ssa forma artística , qu e d á lu g a r à p erformance e m se u sen t id o a n t ro p o ló g ico, o teatro asp ira a faz er even to (aco n teci m ento) , r e enc ontrando o pres ente , m e smo qu e ess e caráter d e des criçã o das ações n ã o p o ss a se r a t ing ido. A p e ça n ã o ex is te se não por s ua lógica interna qu e lhe d á se n t ido, lib erand o - a, com frequ ência, ele tod a d ependên ci a , exte r ior à uma mime s e precisa, a U111a fi c ç ã o nar rativa c o ns t r uíd a d e m ane ira li n e a r. a t eatro se di stanciou d a repre senta ç ã o . M a s , el e se di stan ciou, d e fa to, d a te atral idad e ? A q ues tão rnere c e ser co lo c a d a.

130

vanguardas nos a rredo res de '900 a [ . . . ] c o n t in u o u a p reservar o esse ncia l d o ' te a t r o dram áti co', e m despeito d e tudas as in o va ç õ e s revo lucionár ia s. As forma s tea trais que s u rg ira m e n tão, c o n t in u a r a m a s e r v ir à represe ntação, a partir de en tão m od erni z ad a co m uni v e rs o s te xtu a is" p. 28. Es tas m es mas va nguarda s s ó c o lo c a va m e m q uestão () 1110 d o t r ans m iti d o d a represe nt ação e d a c o m u n ic a ç ã o teatra l de rnan eira li n li t a d a , p ermanecendo, fina lm en te, fié is ao princíp io de u m a m im ese de u m a ação no p a lc o p. 28 . É "n a este ira do desenvolv ime n to, segui do da o n iprese nça das mídias n a vi da co t id ia na desde os anos de ' 9 7 0 , [q ue] s urge uma p rátic a d o dis curs o t e a t r al nova e diversifi cada': aq uela a q ue Lehmann q ua lifica d e te a t ro pós-dramático (I" 28) . O epíteto " p ó s- d ra m á t ic o " apl ica-se a u m teatro le va d o a operar para além do d ra ma; isto é, q u e o d rama n ele subs is te co rno "e s t r u t u r a do t e at r o norma l, n urna estr utu ra, enfraquecida e em perda de c rédi to : co mo e spera de uma grand e parte de seu púb lico, co mo base de inúm e ra s de s u as fo rmas d e rep rese n ta ção, e nqua n to n o r m a d e dra m at urgi a f u nc io nan do a u tom a t ica me n te", 1'. 35. Será p re ci so espe rar os a n os d e 19 8 0 , fa to ai nda o bse r va d o p o r Le h man n, p a r a que "o te atro o b r ig ue, p ara t om ar os te rm o s d e M ic hael K i r b y, a cons iderar que urn a açâo abst rata, u m t eatro forma lis ta em que o p r o c e ss o rea l da 'p e r fo r m a n c e' s u bs t itua o mimetic a cting, u m t e atro c o rn t e xt o s poéticos nos q ua is pra t icamente rren hu rn a ação seja ilu s t r a d a , não define mais some n te um 'e x t re m o ', mas u m a di me nsão primo rd ial d a nova r e al id ad e do t e a tro " (p. 49) . O te a t r o pós - dramático tem certo parentesco com a id ei a desenvolvida por J.- E Lyo tard de t e at r o e nergético que não se rá sob re maneira teatro d a significação, mas " t e a t r o das forças, d a s in te ns idades, das pul s õ e s cm s ua pre se nça [ . .. ] Um teatro e n e rg é t ic o exist iria p ara a lém da representação - o que , certamente, não que r s írn p le smente d ize r sem represen tação, mas antes n ã o s u bmeti do à s ua ló gic a': p . 52 . E de ac resce n ta r, "é so me n te quando os me ios te a trai s - a lém da lín gua - s e r ã o co locados n o rriesrrio níve l q ue o tex to e p en s áv ei s m e sm o se m o te xto , que p oderá s e fal ar d e teatro p ó s -dram át ic o': p . 81. A ação tend e a d e s apare c er, assi m como o co meço d e p rocessos fic t íc ios (p. 10 5 ) ; desaparece tamb ém a d e s criç ã o , a n arrativ idade fa bul ado r a do In u n d o . Esta definição d e Leh man n deve, cer tame nte, ser nu a n ç a d a , como ele m e s m o faz . Ela co ns titui um h ori zo n te de espera mais que um a realidade, na medida e m qu e é impossível p ara uma forma t e a t r a l, qua lquer qu e e la seja , de escapar à narrati vidade e, de fato , à represent a ç ão. Hari s -Thi e s Lehm ann , Le Th éátre post-drarnatiqu e , Pari s : LArche, 2002 .

D I

Trad. Lígia Borges/Rev. Cícero Alberto d e Andrade Oliveira

Parte II I:

Performance e Performatividade

1. A Performance ou a Recusa d o T e atro '

A performance não gosta do teatro e desconfia dele. O tea tro, por s u a vez, não gosta da performance e se distancia dela. Existe entre essas duas artes uma desconfiança recíproca. Tudo coloca a performance do lado das artes plásticas : sua origem, sua história, suas manifestações, seu s lugares, s e us artistas, seus obje tívos, sua co ncepção de arte, sua relação com o público. É preciso ler o livro de RoseLee Goldberg que marca a genealo gia da performance a partir do surrealismo e do dadaísmo até os nossos dias, passando pelo happening d e Kaprow e pelas manifestações do F luxus. A origem reconhecida é pictórica, escultórica, arquitetural, musica l, lit e r á r ia . Ela é raramente e, por assim dizer, jamais teatral, corno se o teatro fosse uma forma de decadência que espreitava as artes plásticas. É assim que RoseLee Goldberg ignora v oluntariamente performan ces teatrais que se apro xirnarn, no entanto, muito nitidamente do teatro: assim, os efêmeros de Jodorowski, o delírio de Arrabal, os espetáculos de Bob Wilson ou, mais próximas d e nós, as p erformances d e Valere Novarina. Publi cado pela primeira v ez e m Prot ée , v. 17, p . 60-66, 19 8 9 .

1 36

A LÉM

nos

LI M ITES: P E R FO RM A N C E E PERFORMAT IV ID ADE

As perfo rma nces têm lugar esse ncia lmente nas galerias, o u ao ar livre. Rararncrrte no s teatros . Quando o correm nos teatros , elas são vistas, de iníc io, como prod uções teatrais (casos de Rachel Rosenthal e de Va lere Novarina ) . Hoje, tal c liva bz e m é rnerios acentuada , na me d id a em que , cada ve z mais, gente de teat ro se a ventura a esta experiên cia. M a s essas pe rfo rmances estão m u ito longe das q ue são real izadas por perfo r ma dores, co reógra fos ( M a r ie C h o u i n a r d ) , cantores ( M ic h el Lem ie ux) e músi c o s ( Rober Racine) . Nos anos de 1980, era possíve l fa la r na proxim idade da performance e do gêne ro teatra l. Nessa época, es c rev i, a l iás , um texto q ue s e in t itu lava "Performance e T e atra l id a d e" e c o n cl u ía pela teatralidade da performance e s ua a p roximação evidente do fenômeno te a tra l. Hoje, isso não é m a is possível, e c o n v ir ia reescreve r a históri a . A arte d a pe rfo r ma nce d o s a nos de 1980 n ã o é m a is a dos a nos de 1970 . O gê ne ro - pois ela se torno u um gê ne ro, um gê ne ro n ã o h o m o g ên e o , rnu ito d ive rs ificado, mas a in d a a ss im um g ênero - evo lu iu , modificou - s e, t r a nsformou - s e . Observa-se concomitantemente um aprofundam ento das práti cas e, a o rn e srno t emp o , o que se poderia c h a m a r uma " in s t a la ção" na performan c e. Quero dizer c om is s o qu e a urg ência que governava ce rtas performanc e s d o s a nos d e 1970 e as j usti fic a va d e sapare c eu. E la foi s u bs t it u ída p or uma p rática c ujos objetivos n ã o são rnais t ã o cla r os q ua nto pu de ram ser n a é poca d a e mer gê ncia d e ta l fo rma a r t ís t ica. E, n o e n tanto, tudo coloca cer tas p erformanc e s atuais ao lado d o te a tro, e m partic ular, s ua esc r it u ra cê n ica, s u a relação c o m o co r p o d o perfo r rnador, co rn o t empo d e r epre s ent a ç ã o , co rn o r e al, corn o espaço. T oda via, querer fal ar d a per formanc e d e m aneira geral e m s ua relaç ã o com o t e atro , con de n a r ia a a n á lise a inte rrompe r -se rapidame nte por falta de parârnet ros com uns . A necess idade de estar em guarda impõe -se, pois. Ja m ai s se dirá o s uficien te sob re a div e r sidade do fenôme no d a performance. D e sd e se u in íci o, n o fim d o s a nos d e 19 6 0, n a esteira dos happening s e a té s uas manife st a ç õ e s midiáticas a t uais, p a s s ando p el o s a nos de o u ro que fo r am os da d écada de 19 7 0 , a p er formanc e sempre afixo u uma mul tipl ic idad e de insp irações e de fo r m a s , q ue nenhuma o utra arte pôde preservar co m a mesma intensidade. V i ndos à perfo rma nce de ho r izon tes

rn u seu s

A P E RF O R,\,IA N C E

ou

A RE C U SA DO T E ATRO

13 7

muito dife r entes (mú si ca, pintura. dança, e s c u lt u r a , literatura , teatro ), os p erform e rs inte graram progressr v am eri n, e m s u as criações as rn íd ia s e a tecno log ia mo derna, a tal ponto que essas novas tecnologias constituem hoje LIma das características essenciais da perforrnance do s anos de 1980, e m b o r a a título s d iversos e com uma maior ou menor intensidade . E , no entanto, para além de ta l diversidade, u m ponto com um une as di fe r e nt e s performa nces e mu ito partic u lar me n te urn a in te r rogação id ênti c a e m face da a rte e d o lug a r q ue essa deve oc upar co m re s p e it o ao real. A performance se propõe, com efeito, c o m o modo de intervenção e de ação sobre o rea l, u m rea l que ela p r o cu r a descons truir por i nter m é d io da obra de a rte q ue ela pro d uz. P o r iss o ela va i t r a b alh a r em um d up lo nív el , proc urando, d e um la d o , reproduzi- lo em função da s ubjet iv idade do p erforme r; e, de o u t r o , desco ns truí- lo, seja por m ei o do corpo - per fo r ma nce te at ral - seja d a im agem _ image m d o real q ue projeta, co nst rói o u d e s tró i a per for mance tecnol ógic a. E m um caso como n o outro , a ima gem nunca é fix a e o performe r; a manipul a à sua v ontade , conforme a instal a ç ã o que es ta b e lece u em tal lugar. É ess a relação c om a irnagern, que consideramos aqui com o LIma relaç ã o co m o esp e c u la r, que n os p erm it e clas sifi c ar hoj e as p erfo rman c e s e m dua s grande s ca tego r ias, uma q ue se s it ua d o la d o d o teatra l, e ou t ra d o lad o d o te c n o ló g ic o , s u b li n hando p or aí um a div e rg ê n ci a de ordem esté tica que a evolução a t ual ela per fo rrnance parece con fi r m a r.

Co m efei to, em face d a s p erfor m a n c e s t e at r ai s , q ue n ã o pare c em s e r senão o pro longam ento d a s prátic a s d o s a nos d e 1970 , as p e rforman c e s midiáticas conhe c e m h á a lgu ns a nos um su r to que as p r opuls ion ou, levando- a s ao p roscé n io e conve rtendo - a s em urna arte a u tôno ma, d ota d a de le is própr ias que conservam uma lembrança long ín q u a das fo rmas artís ticas d a s q uais são ori un das . Será pre ci s o ver e m tal evo lução o fascín io de nossa é poca p el o mundo da im agem, c u ja importân cia e m n o s s o s dias Je an B audrill ard e M arc elin P leynet m o straram? Ou s e rá precis o ver aí antes a rec usa d e ce rta t e atralida d e que a performa nce afixa desde s uas origens? A essas d uas q uestões convém responder, perguntando-se, todavia, que preço a perfo rmance paga por esta evol ução?

13 8

o

ALÉM DO S LIM IT ES : P E R F O R M A N C E E P E R I' O R M ATI V ! D A D E

TEAT R AL DA P ERFO RMAN CE

Mi ch a el Fr ied afirmava e m 19 6 8, "o s ucesso, incl us ive a sob re vida das ar tes, passo u a d e p e n d e r d e maneira crescente d e SU a fac uldade de pôr e m xeq ue o teatro" e acrescentava mais adiante: "A a rte se d e g en e r a à medida que se aprox im a do te at ro : 'z P odemos nos perguntar sobre as razões dessa desco nfiança das artes, e cump re en tender por ar te a s artes plás t icas, em r el a ç ã o ao tea tro. Por q ue e s s a in q u ie t ação? Po r q u e tal r e cus a ? A desconfia n ça de Fried com res pei to ao t e a t r o de fa to carrega consigo a recusa de certas noções fu n dame n tai s : a d e teatra li dade e m primeiro lug a r (a performance não deve recorrer ao teatral, que a faz soço brar n o exagero, n a rni se -ert -sc éne, no falso); a d e j o g o de a t uação e m segu ida (o p erform a d o r não pode in te r p r eta r, s e não ele se in s tal a na me n ti ra, porquanto ele não é mais ele rnesrno ). Ora, interpretar implic a necessari ar n e n t e tornar-se outro, es tar à esc uta do o utro dentro de s i; implic a r epr e s entaçã o enfim , n o ç ã o fu n d a men tal aqu i, na m edida em que a p erformance, d e sde s uas origens , qu e se torn a ra m a g ora d ista n t e s , i n sistia no aspec to " p resença" d e t oda ma ni fes tação. O te m po a í se escoa e fet iv a me n te e os corpos se trans for ma m d e m an e ir a irre v o g á vel. Os o bjetos vi aj a m , as v id raças se qu ebrarn , as escadas caem; os a tos s ã o e fetivarnen te p r ati cado s. No e n tan to, um ráp ido p erc urso hi stórico n o s per m it iria cons tata r q ue ta l desco n fia nça corn r e spe ito a o t eatr o é mais ve rbal d o q ue real e q ue, se a per fo r m an c e n a s c eu d a s ar tes plá stic a s e se e la se insc reve r e alm e nte na linhagem s urrealis ta e dad aísta , se ela e ra profundamente nutrida pela a r te co nceit ual, p el a a r te mini m alista, pela body a rt, p elo h appen ing , pela pap art, e la n ã o cessou, no c u rso d e s ua e v o lução, d e produzir o b ras qu e e u não d i r ia d e im ediato qu e são te atrai s , mas an tes que nela s a teat ralidade n ã o es tá a use n te. B asta pe nsa r n a s p ri m eiras criações de C age , d e Kaprow e, mais p ró xima s d e nós, d e C h ris B urden, Lucile M e r cile , M arie C ho ui nar d, Meredit h lvlo nk, R o s e E ngl ish, Marie-[o Lafontaine o u Rachel Rosenthal.

2

M. Fr ieci, A r t and Object hood, e m G regory Battc o ck (ed.), Minimal Art: A Criticai A n thology, New Yor k : E. P. Dutton , 19 6 8 , p. ' 3 6 -14 2 .

A PERFORMANCE OU A RECUSA DO TEATRO

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Rachei s Brain (Céreb ro de Rac h el), de R ac hel Rosen th al, 19 8 7. Soz in h a e m ce n a, um m ús ico na lateral, Rac h el R osenthal se veste. E la p õe saia e pantalona uma por vez, e n fi a u rn vestido e p ega um a ces ta à medida que d esfilam na parede diapos itivos s ern o r ci e rn a p a r e n te, e rn que a par e c e rn ce n a s da cidade, do ca m p o , do mar, d e pessoas que caminham , de c rianças q ue andam de bicicleta, de an imais enjau lados e tc. D u rante esse te m p o ela fa la , e se d irige a uma mesa do la d o do pá t io em q ue se en contra, e rn urn a tigela, u m a co uve - flor q ue e la começa a cortar com u m a faca, d e início com c a lm a e determ inação, depo is cada vez mais corn violência, para aca ba r a r rancan do as fo lhas, fazendo saltar por toda par te os ramos . D ura nte esse tempo , profere com v iva intensidade u m d isc u rso so b re a ori gem d o céreb ro, sobre a s experiências a q ue são submet idos os anima is, sobre s uas faculdades in tel e ctuais pessoais, sob re s uas possi b ili dades, seus limites, s ua exploração, s ua u tili zaçã o p elos h omens. E q uanto mais fa la, rnais a couve- flor que ela man ipul a tor n a - s e o bsce n a sobre a rn e s a , asse melh a n d o- s e progressivam ente ao se u c rân io calvo para terminar chocando -s e com ele. Ela se e rrrpa ntu r r a , come e fal a , fala e come; o a lim en to esco r re, tra ns bo r da, d eforma se u ros to; dep ois , voltan d o à calm a, ela ve m ao proscê n io e, com se us punhos nus , b ate v iole n tamen te na ca beça e, de fr ente para o públic o , co m urn a v o z cada vez ma is ro uca , e nro u q uec ida p elo s gritos, lan ç a à plateia "Eu n ã o so u nada, e u sou um a f raude, e u s o u um ninguém; e u n ã o sou n ada , e u sou uma fra u de, e u sou um ningué m ': A p erforman ce to da cond uz a esse momen to d e g ra n de intensidade d e d enún c ia d e s i e m qu e , e m u m ges to d e oferenda ao públic o , a a tr iz perfo rrner se mortifi c a ver d a deir a men te . O segun do exe m plo é me nos t eatral e repousa m a is so b re as m ídias . A la s Cinco de la Ta rde, de Marie- Io Lafon t ai ne, 19 84 . De co n for midade com se u hábito, M a rie -J o Lafontaine trabalh a cercan do-se d e r igorosas instalaç õ es d e vídeo e m que se des enrolam cenas d e m orte infin it amente repe tid as. Na perfo rmance que nos interess a , o es pectador está rodea do de u m a quinzena d e monitores dispostos em se m icír c u lo que difundem todos as mes mas cenas: as de u m a corrida, entrecortada de cenas d e fIamenco .

A LÉ M DOS LL"II T ES : P ERF O RM AN C E E P ERI' ORM ATIVID ADE

A PERfORMA N C E OU A R E C U SA D O T E AT RO

Mas as ce nas s ã o to d a s de fasadas uma s em relação às o utras, de tal rno d o qut:, a todo m orne nto, o espectador pode captar CO IU UDl lan ce de o lhos e de m an e ir a sim u ltâne a , ern c ada tu n a d as telas, diferen tes morneritos da ação, per dendo nesse p r oce sso s u a s refe rên cias temporais. C o rn o noto u Marie- [o Lafo ntai ne por ocasião de urn a entrevista efet u a d a e I11 .19853:

essencial dessa perfonnance, antes meSI11 0 da decodifi cacão d a narrativa q ue se desenrola. O espectador é , pois, co lo c ~ d o de pro nto e IU UI11 a p o s içã o voyeurista eI11 face de urna ação em p r o c e s s o e não em c u rso de apresentação. É a ssim que, na p e r fo r m an c e de Marie-Jo Lafontaine, a condução à morte do touro, re la ta da d e m a n e ir a ind ireta, em mú lt ip las telas, atrai m ais a a ten ç ão so b re o modo de narração u tili za d o (tela) e sua es trutura (red u n dânc ia d o fi lme) d o q ue sobre o ato mesmo q ue é contado (a morte d o t ouro ) , portanto, sobre o fa to d e que u m filme se d es enrola s o b os n o ss o s ol hos e q u e esse filme é u s a d o pelo p erfo rmacl or como um objeto com o qua l ele atua.

Quand o s e ralenta a im a ge m , c r ia -s e uma in t im id a d e com o o bje to [.. .] Si mb ol ic ar n c nte, parece -n1e que a sed ução é sempre u rna execução de mo rte i mise à mo rt). Acontece o mesmo com a dança r i na d o flam en co. Ela se o fe r e c e ao espec tador SeITI nada dar em t ro c a . E la tem um a r ameaçador, provocador. E la provoca como o ma tador. É o d e s ej o do p úb lico qu e a impele.

Nos dois exernp los que a p r e s entam o s acim a, t ão diferentes e m seu espí r ito c s uas apos tas, co mo apre ende r a teatralidade da p erfor m arice? O qu e c h arn a a ate nção desde logo, n a rnaior pa r te das pe rforrri ances, e p arti cularmente naquela s que são a q u i des critas, é antes de tudo U M A M I 5E-EN- 5 I T U A T I O N . Ass iste-se a í ao rec urso a certos elemen tos cê riicos, ali importados corno objetos e não como signos, e c u jo des lo c a me n t o já é portador d e s entido. Esses o bjetos são pos tos ern relação un s c om os o u t ros de ma neira a interagir prirneiro e ntr e s i, d epois co rn o p erformador e, enfim , com o espec ta dor. D ess a interação nasce a d inâmica da p erformance. Ta is objc tos e stã o raram ente e m repres entação e não é seu valor s imbólico que const itu i s ua importância, mas a n tes a ação q u e os in tegra, p o is esses o b j e tos s ão tomados por um fa zer que lhes dá sen t ido, do mesmo modo como dá sentido à performance to da. Assim , na per fo r m.a nce de Rach eis Brain , a couve-flor est á ali corno que remeten d o a s i própria e não à catego ria couve-flor. Ela não é sign o d e o u t r a co isa. Igualmente, na p erformance d e lVIarie-Jo Lafo n t a ine, o film e da corrid a de t ouro s, apresentado p el o s mon ito res d e v ídeo , não r emete a qualquer denúncia d o s combates d e t ouro, mas de fato à própria irnagern fílmica, iInag em q ue é m u lt ip lic a d a, dessincronizada no trans curso da perfo rmance. Essa dess incronização d a imagem é o pon to

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Art Press, n . 92 , May 1985 .

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E stá aí u rn a das p rim eira s c arac te ríst icas da p erfonn an c e : a rec usa do sign o em prov eito d e urna Iuani p u lação d e o bje tos, a permitir o li am e com um real im e di a ta m ente o perató rio. O p erformaclor não cons trói s ignos , ele faz. Ele é n a a ção, e o sentido em erge d o e nco nt ro de t o dos esses fa z eres . A s s irn, R~c hel Rosen tha l, ao golpear o crânio, no seu jogo de atua ç ão, nao representa urna personagem, d o mesmo modo qu e n ão represen ta Rachel R o s en thal martelando -se a cabeça; su a a ção é bem real e é p r e ci s o t o m á -Ia sem distância. A denún cia re side aí na r e alid a d e d e tal v iol ência: v iolê n c ia d o g esto, viol ên cia do verbo, "E u so u u m ningu ém': Toda a força da p erforman ce está nessa convicção que ela c o n seg ue insuflar n o espec tador. N ã o! Ela não r epresenta. N ó s estamos na imediatidade d a ação! N ós estan::os aqui no domínio d o s éri o. N a da é fictíci o. Os o bjetos, as aço es, os seres, o tempo m esmo são r eais . A s it u a ção é, p ois , d ada d e pronto: um p erformer e m u m zoológico (Al berto Vidal), e n cerra d o c om coiote s, (Joseph Beuys) , ro deado de objetos que ele vai desl o c ar um a um, blo~ueado a t,rás d e vidraças d as quais vai procurar s a ir. A s it uação e dada; s o resta des cobrir a ação; mas bem d epre s s a el a ser á previsível. O cenário, muita s v e z e s mínim o (B a rb ie, d e Lu cille Mercile, a E sca la Williams, d e Rob er R a cine ), é pos to n o lug ar desde o começo e in s tala-se urn a des c on struç ã o em que cad a gesto, cada objeto co n t a. Não há a bem di zer s u r p resa, a p en a s um a espe ra m ai s o u m en o s longa , c u r iosa , e a q ues tão : "O q ue ele es tá faze n do? Por que ele está fa z end o isso ? O q ue ele q uer d ize r ? A té o n de e le

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A Ll'OM D OS LIMITES : I'ERFORM A N C E E P E Rf O RM ATI VILJ AL>E

po de rá ir ? Q ua n to tempo poderá ficar nisso?" e depois a inte rrogação a ng us tiada : "Por qu e estou aí ? Quanto tempo mi n h a paciê nc ia vai a g ue n t a r? O qu e h á aí realme n te para se ver ?" A palavra imp o rtante aqui é "ver" Tudo se passa na perfo rmance ao nível do o lhar. Nós estamos no d omínio do especu lar (e n ã o do espetac u lar) e da espe ra. E spe ra d o aco n teci me n to, espera de ser imp regnado pela s coisas, espera q ue permi te aos sen t idos, às se nsações, e n t ra r e m atividade, es pera s imples men te qu e a q u ilo ac a be. O espec tado r n ão emba rca, o u rara m e nte o fa z. Ele n ã o se de ixa le v ar. Não h á aí efeito catár t ico como n o teatro, m es m o n o s mom ento s d e ext re ma violência, p orque n ã o h á jogo d e repres enta çã o propriamen te dito , porque não h á corpo lúdico, por érn um c orpo s ério a expe r irne n t a r se r iam e n te n o real. É qu e a p erfo rman c e , e a p erfo r m an c e medi átic a mais a in da d o qu e a te atral, pro cu r a pro v o c ar os se n t idos, a o pera r u ma di s s oluç ã o do s re fe re nciais h a bi tuais (e m r el a ç ã o a o es paço, ao t emp o, ao r e al). P a ra isso, ela instal a o e spe ctador e m ce r t a receptividade. O r a , ela instala, ela não constrói, e é pre cisamente na m edida e m qu e tal r e c eptividade é uma ins ta la ç ão e não uma construção qu e ela está condenada amiúde a perman e cer s u p e r fi c ia l, v is to que p assa pelos s e n t idos , logo pelas se n s a ções , e que s e s it u a à flor da pele. E s s a é uma de s uas diferen ç a s c o m o t eatro. Lá o n de o p erformador 'q u is c r ia r a lgo de n a ture z a d o a c onte cimento ( év énernentiel), el e só pôde instal ar algo especular. Isso n o s co n d u z à seg u n d a ca rac terís ti ca da p erformanc e: o en q ua d ra mento que ela subrnete à cena . A p alavra é imprópria . Não h á ce na na p e rforman ce , m a s lu g ares. Na m edida , p ois, e m qu e o lugar es tá prep arad o tendo e m vi sta uma aç ão, d á -se um e n q u a d r a m e n to espacial que s olicita o olhar do espectador. O e n q uad r a men to c r ia um e s paço, es paço d o es p ecu lar que r e cus a tornar- s e espe t a c u lar. Ao c r iar um espaço para s i, u m lu g ar pa ra s i, a performance c ria ao rn e srn o t empo o esp aço d o o u t ro, o m eu, o do es pec t a d or, e p aradoxalm ente e sta belece a b a s e d e toda teatralidade. El a p e rm it e que a alterid ad e d e um s uje ito a í se ins c r e v a . E la cria um a cl ivagem es p a c ial cuj o s limite s, c u jas fr a n jas, c u j as margens querem ser t ã o pouco marcadas quanto possível, tão pouco co nstra ngedoras q uan to possível. De fato, ta l espaço, ela

A P E R FO R M A N C E

ou A

RE CUSA DO T E AT RO

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o in s c re ve no real e in s t it u i e n t r e ambos uma p erm eabilidade q ue o teatro não autoriza. É aí onde a performance se separa d e n o v o do teatro. Porque difuso, e provindo do performador, que aí dispõe suas leis, o espaço da performance a utoriza transgressões q ue o teatro não per m ite. Os tab us são fra n que ad o s , os in te r di tos d e r rub a d o s. Com efei to, na med ida em qu e o e n quadramen to da p erfo r m a n c e é menos nít id o d o qu e o da cena, el e a u to r iza d e mo do be m part ic u la r a t ran sgre s s ã o d e uma d a s leis f u ndam e n tai s do teat ro, um a lei q ue e u c harnaria d e le i d a excl usão do n ão re to rn o . T al lei , a p lic a da ao t e atro, imp õ e h abitu al m e nte um a reversi b ili dade d o t erri p o e d o s a con tec i me n tos q ue s e op õ e a to da mutilaçã o o u exe cuç ã o d e m orte (mise à m ort) d o sujeito. São rec usadas corno n ã o p e r ten c ente s rn a is ao te a t r o cen as d e fragm enta ç ã o d o corp o às quais cer tas p e rforman c es d o s a n os d e 1960 recorre ra m: mutilaç ões verd a de iras e m cena, assim co mo exec uções t e atralizadas dando m orte a anim ais sacrificados (Hermann Nitsch) para o "p r a z e r " do p erfo rm er. Tais ce n as no teatro rornp ern o contrato t ácito com o espectador : o de assistir a um ato de representação inscrito e m uma temporalidade diferente daquel a d o c o t id ia n o em que o tempo é co m o que s uspe nso e, por a ssim dizer, reversível, que imp õ e ao ator um retorno selnpre possível à sua posi ç ão d e p artida. O ra, atacando se u próprio c o r po, o ato r destrói as c o n d iç õ es da alteridade e faz s u rg ir o real l á onde o e spectador a creditava es tar a ilusão e a repre sent açã o . Mutilando -se, o p erformad or une - s e de n ovo ao real, e s e u a to, fora d as re g r as e dos c ódigos , não p ode mais s e r p erc ebid o como s ig n o , c o mo jogo de representação. O espaço do teatro viu -se aí dramaticamente modificado . É que na performance n ão há jogo, nem r eprese n t açã o, n ós j á o dissemos . Ora , se o e n q uad rame n to ao qual a p erforman ce s u b m e te o espaço é impreciso, torna - s e t anto m ais fá ci l transpor s eus limite s. Esses in te r d itos c o n s t it ue m um d o s extremos da p erformance. S e a teatralidade do a con tecim ento p ermanece sem p r e lá , o teatro , quanto a ele, es t á definitiv amente banido d ali ' .

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AL BM DOS LIMIT E S: P ER FORM A N CE E PE R I' O RMATI VI D ADE

Tal transgressão reves ti a outrora a forma de um atenta do ao corpo do performer. Hoje, essas for mas de mutilaçã o um t an to exibicion is tas d e s ap a r e c e r a m. Elas fora m s ubst ituídas po r u m a v io lê nc ia di ferida qu e as diversas tecnologias introduzem sem d istância sob o o lhar do espectador: guerras, tourada, e statelame n to de avião, destruição de irn óveis , a ldeias arrasadas po r b orn b a rd e i o, corpos ru ort o s, d.esrn errib rad os, q ue imados etc. A tecnologia, e os rec u rsos à imagem q ue ela p erm it e , autoriza, assirn, a deita r o o lhar sobre o que ser ia, ern o u t ras circunstâncias, o bsce no. E la coloca face a face o espec tador e o real, mas um rea l qu e só pode ser a preend ido p o r diversas mediações, por meio d e to d a uma a parelhagem (v ídeo, tel evis ão, câmera e tc.) e m que s u a realidade rriesrna se per de e m proveito d e urna tecnolog ia da q ual o espectador capta todo o poder. Nessa transfe rênc ia d o real p a r a a máq u ina, a performance p erde u m a is d o que o jogo d a il u s ã o . E la perde u s ua relação c o m o próprio corpo. Essa será a tercei ra c a r a c te rís t ic a que es ru darernos. Ela versa sobre a prevalência do corp o . Se a importância do cor p o é sempre reafirmada pela performance tea t r al, tal importância se perde, todavia, na performance tecn ológica, o c o r po do p erform er c edendo lugar a uma relação mais ce re bral e ntre o e u do p erform er e a m áquin a pela qual el e se me d e. Nas p erformance s t eatrai s, a fo rça des se c o r p o é gran de, pois e le é m ovido pelos afeto s, d e s ejos, l ib ido e pelas sens ações d o perfo r rn a dor, O r a , os corpos d o s perfo r madores estão pre s entes , i n t e iro s , uno s. T u do p assa por e les. E é sob re se u rno virn eri to unicamente que r e po usa a d inâm ica d a r ep r e sent aç ã o. M a s esses corpo s n ão atuam, eles n ã o t êm dupl o, n em parado x o . E les não são c orpos de ata r e s e m luta CO IU uma a lte ridade . E le s n ã o são t omado s p el o jogo d o n ã o - e u e do não-não-eu do a to r d o q ual fa la Richa r d Schech n e r a propó sito do come d ia nte , ao .m e s rn o ternpo a tar e perso nageIu. Os co rpos d o p erformador são c orp o s de domínio de s i que filtra m o re a l. É p o r m eio dele s que a p e r fo r m a n c e se d á; ele s são os m oto r e s i n d is p e ns áve is d a a ç ã o. Pois t ais corpos em cena reali z am, colocam a ções, d e s lo c a m coisas, emitem e ne rg ia, m as jamais se im p licam ao nível das emoções . Eles filtram o rnu ndo e projetam imag e n s .

A I' E RF OR,v! A N C E OU A R E C U S A D O T E1\TRO

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1\I1as ess es corpos não são insensíveis, lon ge di sso. Ele s são a medida d e todas as co is as e podem s er agredidos. O rl a n , per[orrner francesa s, definia a performance como "o mom ento em q ue o corpo se põe em situação de ser agredido': Essa d efinição p a re ce muito justa. A performance teatral foi , no seu s inícios, e co n t in u a a ser, errrb o ra de rri a rie ir-a diferente, um lugar em qu e o pcrforrriador se deixa rriarcar pelos obje tos, pela matéria, p elos seres, pelas s ituações, pela sociedade, pelos acontecimento s, pelas sensações, pelos espectadores, po rtanto por todas as fo r mas q ue a a lteridade pode revestir. Ta l a lteri dade, ele assume o seu peso, ele a toma sobre si, ele a ex perimen ta, e le a analisa, a d es co n s trói e a d ispe nsa co mo for ma a r tís t ica . É assim q ue el e se p õ e e m es tado de v ulnerabi lidade (Ro ber Raci ne e m s ua Esca la W ill ia ms; Marina .Ab r arn ov i ó, nua à porta d a ga leria; Se rv ie Jansen ( 1981), atrás de s ua vidraça , q ue um espectador exasperado irá qu e b r ar, ferin do-o li g e ir am ente. N e ss a ação, o perfo r rne r mede se us lim-ite s e i n s cr e v e o corpo nas c o is as. Tudo passa p el o filtro de seu cor po, d e s e u olhar, de sua rnedrda ( é o e x e m p lo de Orlan, deitado so b r e as lajes de urn antigo claustro, que m ede o Museu São Pedro, museu d os b en editinos que d a t a d o séc u lo XVII, e av alia seu tamanho tomando seu próprio corp o como pad rã o de m edida ) . To da p e r fonn an ce gira assi m e m tor no d o corpo, toman do- o c omo s ujei to o u corno o b jeto d e exp lo r ação; serv indo-se dele como de urna ferrament a , e insc reve n do o hu m an o n as co isas a té os limites do p o ss ível: É o caso p o r exemplo d o a rtis ta C h r is to em b a lan do e m P a ris a P onte Nova; é o de A lberto V idal Be uys e ncerran do-se no zoológico e c o n v id a ndo o público a olhá -lo corno a um an im al bizarro, a mesmo título qu e os urs o s ou os pinguins e m suas j aulas; e ra o que Joseph Beuys j á faz ia e m se us início s, fecha n do -se em um a j a u la du rante d ias c on1 co io tes; é tarnbém o de C h r is B u r den correndo o r isco de ser ele t roc u tado e le v an d o os e spec tadores benevo lentes nessa v ia g e m ao p e ri g o. A lé m d o a nedótico, d a situa ç ão d ivert id a, além d o jogo c om o p erigo, d o d e s ej o d e implic a r um público semp re im p ass íve l 5

O rg a n izado ra d e um s i m pós io intern acional s o b re a perforrn anc e e m Lyon , e m '979 e 19 8 1. C r ia d o ra . e m 19 79 , d a A s so cia tion Corn po rte me n t, Environn em ent, Perfor rnan c e .

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ALEM DOS LI MI T E S: PERI'ORMAN CE E P E R F O R M ATI VI D A D E

e se m p re voye u r passi vo . al ém mes m o d o des ej o d e in te r ro gar a t ravés d e s i o p ap el d a arte e d o es p ec t a d o r, a lé m do d e s ej o d e tran s gredir tabus a fim d e fa z er c o m que transgridam o p r óprio públi co que rriede assi m n o s d edo s s e u s próprio s inte rdit o s, a perfo n n a nce a p a rece co rno a a r te do e u , uma arte e m que s e ex p ri me um a força rn u ito g rande d e e n u n c ia ç ão, um m im eu ( moi je ) qu e reduz tudo a el e e ele m e smo filtra o rnu n d o " . Mi rn e u fa lo, e u vejo, e u dig o , e u faço , e u desloco, e u me ço, e u const ru o , e u d e struo, e u produzo e e u produzo s e n t id o. Por isso o performer reduz tudo a e le. E le está, pois, no m ai s da s ve ze s só. C o m e fe it o , o p erformador e stá, amiúde, sen ão se In p re , s o z in h o em cena. Ele fa la de tudo através dele , através de s e u s atas, através da instalação que ele fez, da situação que ele armou ou da experimentação que ele tenta. Abraham Moles falava, a esse propósito, de " ria r c is isrno ativo'" ; Há na p erformance esse chamado do olhar do outro para si e para si só. É aí que a performance teatral deriva para longe d o teatro. É q ue o performer não representa. Ele é. Ele é isso que ele aprese nta. Ele não é nunca uma personagem. Ele é sempre ele próprio, mas em situação. Ele fabrica signos brutos sem mediações. Nós estamos no domínio do um . O perfonnador não tem duplo . Ele não é o lugar de nenhuma emoçã o. Ele pern1anece um olhar que observa, urri to car que apalpa , um gesto que faz. Em outras palavras, ele é sensação e não emoção. Ele joga (representa) c o rn seus sentidos e não com seu co r a ç ã o. E le recusa toda interioridade. Ele é na unicidade da m atéria, na imediatidade do fazer, na urgência da experiência, lá o n d e o ator é na urgência de um estado. O performer não tem estado (ou então ele não os projeta) . E le não tem interioridade. Ele é (está) todo em superfície. Ele 6

E m Jorg e G lusbe rg. A A rte da Pe rforman ce, 2 ed .• São P a ul o : Pe r sp ectiv a . 2009 · E le n ot a tamb ém "A perfo r ma nce d o b o dy art situa -se n o u n iv e r so d a s fracas d en s id ades : fr a ca d ensidade d e a tos, fraca d ensidade d e gestos . fr aca d e n s id a d e d e realiza çã o . N isso. e le d e cep ci o n a p erpetuamente c o mo um a es péc ie d e regra d o jogo que é pre ci s o a ceita r ; o espec tado r. a q u e le que vai lá p ara ver. n ão es pera ce r tamen te a plen itude . m a s a n te s o j ardim d e p edregulhos redond o s qu e o ze n budi st a co n te m p la. Ele d e ve se d ar ao trab alho. à ascese, de ap reender os m icroaco n tec ime n tos em u m re lat ivo deserto tem p o r al o u o long o resu ltado em um a perfor mance ri t ualizada." A expressão moi je é in t rad uzíve l; ma n teve - se pa ra ass i na lar o jogo de relações n o ego d o s ujei to. (N. da E .) .

A PERFORMA N CE O U A R ECU SA DO TEATRO

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fabrica e não se deixa habitar por nen h um outro. Sempre só, filtra o mundo através de si. É dele q ue pa rte toda palavra, to do ges to. É a ele q ue e la re torna. E se n e ss e p erc urs o , nessa palavra o u nesse fazer, ele encontra o ou t ro espectador e a alteridade d e se u olhar, se u procedimento se e s pec ulariza, se teatraliza a p onto de q ue esse olhar importa o t e a t r a l lá o nde e le não deveri a reg is tra r se não u m faze r. É o olhar d o es pectado r que faz n a s c e r a t e a tra li d a d e da perfo r man ce lá onde h a via a pe nas o espec u lar. A arte da p erfor m an c e d e veri a , p o rt anto , ler- s e e m prirn ei ro g ra u. Ta l te n dênc ia à tea t ral ida de que se en c ont r a e m ce rtas p e r formanc es, junto com essa d esc onfiança d o p erform er a respeito do teatro, ex p lica sem dú vida por qu e, na s performan ces ví deo, o c o r p o foi fago citado, abs orvido, devorado p ela máquin a. M ai s próximo da body art dos ano s de 197 0, as p erforman ces uni camente corporais c e de ra m lugar às p erfonnanc e s m ai s tecnológicas . E s e a re la ç ão com o corpo subsiste apesar de tudo, e la não tern mais a mesma coloração, ne m a rriesrna intensidade. É que a s apostas, elas mesmas, mudaram . Lá onde, nos anos de 19 70, as ideologias permaneciam fortes, lá onde a arte estava engajada e lá onde o perigo para o p erformador se medi a como um atentado a o corpo ameaçado de mutil ação e d e morte - uma das provas do engajamento do p erform er e da seri edade de sua a r t e e ra esse jogo que ele instituía com o perigo - o perigo com o qual se mede o perform er de hoj e não é mai s o perigo físico , mas o que s e poderia denominar um a viol ên cia branda (como se fala d e terapias branda s ). Não é mais seu c o r p o fí sico que e s tá ameaçado. Ele não c orre o risco nem de mutilação, nem de morte. O perigo para ele é um desapare c im e n to na matéria, uma dissolução no vazio da máquina. As apostas disso s ã o meno s grave s fisicamente, porém seus e feitos s ã o muito mais perigosos O performador reconhece tal perigo e faz uso dele. El e o denuncia e é, no entanto, seduzido por ele. Utiliza o seu corpo para produzi-lo. Seu corpo se tornou aí, ele mesmo, máquina de produzir, manipulando as mídias e deixando -se manipular por elas . D e s s e encontro , o c orpo emerge co m o imagem e co mo ilus ã o , CO ITlO frag rne ritos e s u p erfí c ie; se m espess u ra e se rn r isco.

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AL ÉM D O S 1.1.\ 11'[ E S : P E R FO R M A N C E E PERFORMATI V[D ADE

Met áfora do m undo e rn que vivemos, o p erformer perdeu seu co r p o e rn proveito da rn áquiria, d e urna rn úqu iri a que o perseg ue, o o bseda e su bsti tui a ele. A rn áqu in a tornou -se o se u duplo, máquina que lhe d e volve sua irnagern co rno estran heza. Nessa dissolução de s i mesmo, ele encon trou, no entanto, o domínio de si. Pois é e le quem manipula a m áquina e a faz e x is t ir ; a í está seu paradoxo. Ele joga com a dissolução de s e u próprio se r j ustamente pela mesma razão que joga com a dissolução do rea l. Evacuando os r e fe re n c ia is es paciais e temporais, ele s u bs t itu i os referenciais po r urna estr u tura m id i át ica cm que seus se n t idos são s o li c it a d o s e desconce r tados (caso de A las Cin co de la Tarde). O próprio real é aboli do. Só subsiste para o espectado r u m a impressão si nestésica ern q u e suas sensações são chamadas e não suas emoções. Com efe ito, a rn áq u iria incita a u m investim e n to em níve l da p e r c e p ç ã o e n ão em nível do d e s ej o , d a li b id o . As imagens se suc e d e m d e mas iad o rápido para q u e uma teatralidade se ins tale. O espec u lar prevalece sobre o teatral. H á n ess e arranjo d a s ima g e n s veic u ladas p ela t é c nica al guma co is a d e v o lun t a r ista . O perfo r mer, m esmo sendo o m ediador indis pe nsável d ess a est r u t u ra, passa ao s egundo plano. É ultrapa ssado p elo poder de evo c a ção e d e a c ele ração fabul o s o s d a m áquina q ue el e t em en tre a s m ã o s. N ã o h á m ais limite s ao s e u poder, se não aq ueles d a s ua i maginação. E le conseg ue cria r o real? A perfor mance aparece ass im como o lugar em q ue 6 performer d igere o real e o refle te n o s do is sen ti d os d o term o ( re fle xã o ; reflexo). As referências temporais desapareceram pela mesma razão que as referências espacia is. Os gestos reais s u bstituí ram os ges tos apr end id o s, d enuncian d o estes ú ltimo s (por exem p lo, Ba rb ie d e Lu cile Me rc ile). A per fo rmance instituiu s u a p rópria tempo r a li dade, s uas p róprias ima g e n s , d e fin indo o que Lyotard denom ina " u m a esté tica da d ispe rsão". Diante dessas imagens múlt iplas coloca -se a q uestão: onde se detém a imagem e onde começa o rea l? Onde termina o real e onde começa a verdade da o b ra artíst ica?

2. Performance e T e a tralida de: O Sujeito Desmi stificado'

Segu n do o s m e st res d o pen sarne n t o c h inês , duas tend ência s co m part ilh a m h oj e o t e a tro , t endência s qu e s u b li n h a rei aqui , retomando um a refle xão q ue A n ne tte Mi chelson fez acerca das artes d o es petác u lo e q ue me p a r e c e m u ito p e r tin ente a o m eu pro pós ito ( 1974) : Há na renovação co ntempor ân ea dos modos de r e pres e n ta ç ã o , dois movirnerrtos de base divergentes que modelarn e an irn a rn s uas p rin cip ai s in o v a ç õ e s. O p rimeiro, a ncora do n o s p ro longamen tos ideal is tas de um pas s a d o cristão, é mit op o éti c o , p o r s uas as p i rações e clé ticas , por s uas fo r mas, e é co ns ta n te m e n te a t r avessa do p el o est ilo domi na n te e p oli m orfo que const it ui o ves tígio m a is tena z d o passado: o expression ismo. Seus porta -vozes s ã o : para o te at ro , Artaud e Grotowski; p ara o ci n crna, Murnau e Brakhage; para a dança, Wigman e Graharn , O s eg u n d o , consequentemente profano no seu engaja men to na objet ificação, pro cede elo cubismo e elo construtivismo; s uas a bor dagens são a nalíticas e se us po r ta -vozes são: M e ie r h olel e

T rad. [. Guinsburg 7

C f J. F éra l, La Pe r fonn anc e e t les média : C Uti l izat ion d e l'irn a ge , em C l. Sc h u rnacher ( e d.), 40 . O es pectador tcrn a impressão de pa rticipar de u m r ito n o qual se co mbina m todas as transgressões p ossíveis: sex uais, fís icas, reais e cê nicas, r ito q ue leva o p erform er a o s lirn it.e s do suj eito const ituído c omo e n t id a de e qu e t e nta e xpl o rar, a partir de s e u "s i m bóli c o", a fa ce oc u l t a d o qu e o c onstitui com o s uj e ito unifi cado, isto é, um a "s e m ió tica", e s tes ch o ra que o ob s edam 6 • Mas n ão se trata aq ui de modo a lg urn, como a fi r mava K r iste v a a p r o p ó s i to d e Art a u d, d e u m a vo lt a ao co r po m a te rn o "esquizado" e m u do, rnas, ao c ontrário , d e m archa para f re n te r u rri o à dissolução d o suj ei t o , não n a exp losão, n a d is p e r s ã o o u n a 5

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O s espe tác u los d e H ermann N i tsc h, a r t is ta de n ac ionalidade austríac a. inspiram -s e e rn antigo s rit o s di onisí acos e c ris tãos adaptado s a um co n tex to m oderno, co ns id erad o co mo c a p azes d e fo r necer a ilustração pra gmática da noção aristotéli ca de c a ta rse p elo vi és do medo. do terror ou da compaixão. Suas Org ias . Mistérios. Teatro foram a p r ese n tad as em múltiplas r eprises nos a n o s de t970. Uma p erformance típica durava vári a s horas. começava por uma música muito forte. d epoi s H ermann Nit s ch dava ordens para q ue a c erimônia s e in ic ia ss e . Conduziam então p or e n t re o s a ss istentes um cord e ir o degolado. c rucificavam sua ca rc aça. e s vaziavam -no de s u as tr ipa s que e r a m despej adas (co m o sa n g u e ) s o b re u ma mulh er o u um h omem nus d ebai xo do animal. U ma tal prá ti c a tinha s u a origem na c onvi cção es posada p or Hermann N itsch de que o s instintos agressivos da h umanidade haviam s id o reprimido s p elas mídias . A té o ritua l de levar o s animai s à morte. tã o comum nos povos primitivo s. h avia d e sapare cido totalm ente d a experiência do h omem m oderno . Por iss o os atas rituais de Herm ann N its c h representam um meio d e d ar livre expansã o a e s sa energia repr irn ida no hornem , ao mesmo tempo que se rv e m como at a s de pur ific a çã o e d e redenç ã o p el o viés d o sofr ime n to. O o r ig i nal d e st e text o e ncon tra-se e m R . Gold b erg. Perfo rrn a nces, p . 10 6 . Apre s entamos aqui um a traduç ã o . Julia Kristeva , La R évolution d u lang ag e po étiqu e , Paris: Se u i l, '974 ·

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folia - outras formas d e v o l t a à origem - m a s na morte. A pe rforman ce c o m o fenômeno é trabalhada pela pulsão de morte . A ligação não é fortuit a, m a s se baseia em toda uma p r á t ic a consciente, deliberadamente c o n s e n t id a ; prát ic a do corpo ferido, desmembrado, mutilado , recortado (ainda que seja pela câmera: c a s o de D em o Model de El iz a b e t h C h itty) q ue provém de u m " Ies ion isrno" ass um ido). Cortar o corpo, não para negá -lo, mas para fazê - lo revi ver ern cada uma de suas partes, cada uma delas co nvertida em u m todo . (P rocedi mento id ê n t ic o ao d e B u riue l, ao fazer com qu e u rna de s uas personagens fos se representada, e m Um C ã o A ndaluz, corn u ma das m ã o s rnut la d as so b re a calçada ern m ei o à c i rc u lação d e tra n s e unt e s ) . Em vez de se atrofiar, o corpo se en r iq u e c e assim com todos e sses objetos parciais e o s ujei to a prende a d e s c ob r i r a riq ueza no seio da pe rfo r m a nce. O ra, o p erf orm e r p r ivi leg ia e e ngrossa t ais o bjetos pa rciais ao es t u da r se u fu nc io namento e se us mecan ismos e exp lo ra suas partes baixas, oferecendo assirn ao o lhar do s e spe ctadore s a experiên cia in vi tro e e m c â mer a lenta do que se p a s s a h ab itualm ente n a c ena. b . Manipulação do corpo e m primeiro lu g a r e manipulaçã o d o espaço em segu ida , e n tre os d ois aparece um a id enti d a d e d e funci onamento qu e faz co m q ue o perforrner a t r a vesse esses lugare s se m j amai s s e im ob il iz ar d e finit iv am en t e. A í recort ando espaços im a gin ári o s ou re a is (é o caso de R ed Tapes, d e Vito Accon c i), ora ern um o ra e m o u t ro , ele n ã o se insta la nunca n o seio d esse s espaços - ao m e smo ternpo físicos e ima g inários - mas os p erc o rre, os exp lora e os mede, aí o perando deslocam ento s e ín fi rn as vari açõ es . E le n ão s e inv e ste nel e s , ass i m co mo não se lirn it a a e les, j o gan d o co m o esp aço da performanc e como um o bje to, trans formando - o em m á qu in a "q ue age sobre os ó rgãos se nso r ia is"". A s si m como o co rpo, o es paço torn a - s e existencial a ponto d e v ir a ser inexistente como q uadro e como lugar. E le n ão rodei a , n ão ce rca a p e rforrn a ri c e , porém , tal c o mo o co r po, faz p arte estreitamen te d el a ao p onto de n ã o poder mais distinguir- s e d ela. E le é a p e r fo r m a n c e . Daí í

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O term o lesionism e n ã o p ossui e q u iva le n te ern fran cês e indica um a p rá tica qu e t ende a r epre s ent ar o c o r po n ã o co mo e n ti da de. c o mo un ida d e . ma s di vi dido em part es . e m fragmento s . In ga -Pin. op. c i t ., p . 5.

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AL F.M D O S LIMITES: P ERFORMA N C E E PERFORMAT IVI D AD E

a afirmação de que toda performance não é feita (e não po d e se r feita) senão em e para um espaço dado ao qual é indiss oluvelmen te li g ada. No seio desse espaço conve rti do em lug ar de u ma travessia cio s uje ito, o pe r forma do r pare ce d e s ú b ito pô r-se a v iver e m m archa le n t a . O te m po se al onga, se dis solve à m.e d id a que os ges tos "d ilatados, r epetitivo s, exaspe rados" (L ucia no Ing a -Pin) p are c e m uitas vezes m a t a r o t empo (por exemplo, a lentidão qu a se insupo rtável d e certas experiê ncias d e Mich ael Snow) . Gestos multiplicados ao in finit o , in finit amen te recomeçad o s (caso de Red Tapes d e Vi to Acco nci) e se mpre diferen te s , desdobra dos por u m a c ãrne ra que os re gi stra e os reenvia e nq ua n to eles o peram s ob os n o ssos o lhos n a ce na (por exe m p lo , Elizabeth Ch itty) . É a diferen ç a to rn ada p erc ept ív el. N ã o há aí, p o r conseg u inte, rie rn p a s s ado , riern fu t u ro, m a s um p rese n te co n t ín u o qu e é o da im ediatidade das coisas, a de um a ação e m fa zim ento. Ta is ges tos a p a rece n l ao mesm o tempo como produto acab a d o e corno e m c u r s o d e realização, e m movimento e j á terminados ( p o r exem p lo, a utilização da c â m e r a, da m áquina fotográfica), g est os q ue r e velam se u rne can isrno profundo e que o p erformer não e fet ua sen ão para descobrir as partes b aixas, semelhante n isso à câme ra d e Michael Snow que filma se u próprio trip é. E esse ges to , a perforrnanc e o mostra , o mostra d e novo a ponto d e saturar corn ele o terrrp o, o e s paç o e a imag em e, à s v ezes até à náusea, a fim de que não subsista mais do que o c in e t is m o do g esto qu ando desapare c e o s e n t id o , todo sen tid o. A p erformance corno aus ên c ia d e se n t ido. A afirmaç ã o é d ecerto fá cil de sustentar por quem quer que ve n ha d o t eatro (d a í a su r p resa e o furor d o público e m fac e das primeiras "e n cenaçõe s" do Livin g Th e atre, ou d e Wilson ou d e F o r e m a n ) . E, no e n ta n to , se há urna experiê ncia q ue fa ç a se n ti do, ela é s eguram ente a da perfo rmance . A p erforrnance n ã o v is a um se n t id o , mas e la faz s entido, n a medida e m que trabalha precisamente ness e s lugares de articulação e xtremamente frouxa de onde a c a b a por e m e r g ir o sujeito. Nesse sentido, ela o questiona de n ovo e n q u a n t o sujeito constituído e enquanto s u j e ito s o cial, p a ra d e sarticulá-lo , pa ra de sm ist ifi c á -lo . A pe r fo r mance como mor te do s uje ito. Fala mos h á pouco de puls ã o d e m o rte insc r ita na p e r for rn ari ce , volu n tariame n te

PERFO RMANC E E TEATRA LI DA DE :

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SU JE IT O D E S M ISTIFICADO

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p o st a em cena, posta em jogo por um j o go de repetições livre m ente pretendidas e assurn idas. E s ta pulsão de morte, q ue fragmenta o corpo do sujeito e o leva a o p e r a r um certo número d e objetos parciais, reaparece ao te rrn o da perfo rmance e m s u a fix a ç ã o n a tel a -v íd e o . É, com efeito, i nte ressan te observar que toda p erfo rm an c e v o lta a encontra r e m se u últ im o grau a tel a - víd e o e m qu e o s u jeito desmist ificado se fixa e m orr e e n a q ua l a p erfonna n c e r e en c on t r a a represen tação à q ual ela qu eri a a tod o c us to escapa r e que consig na ao m e srn o tempo a s ua r e ali za ç ã o e o se u fim . c. Por esse fa to m e smo , (l relação do a r tis ta co m sua própria p erf o rm an ce não é m ais a do ator co m seu pap el , a i n da que e sse último fo s s e o se u pró p rio , corno p r etendia o Liv ing. Recu sando -s e a se r pro tagoni s ta , o perfo rmer n ã o apre s enta a si mesmo, ass im co rno n ão s e re prese n ta. E le é antes fon te d e produçã o , d e deslo camento . Co n vert ido no lugar de pass agem de flu xo s energético s (ges t u a is, voca is, libidinais etc. ) que o atravessam sem jamais se imobilizar em um sentido ou e m uma representação d ada, se u jogo d e a t uação é o d e fazer os fluxo s operarem, captar a s rede s . Esses gesto s qu e e le executa n ã o desembocam em n ada a n ão se r nos flux o s d e desejo que o s p õ em em ação. Is s o é prov a rriais um a vez de que uma p erformanc e não quer di zer nada, que ela não v is a nenhum s entido preciso e único, mas que ela procura antes revelar lugares de passagem , d e "r itm os': diria Foreman (trajet órí a do ges to , do co r p o, da câ rn e ra, do olhar etc. ) e, a ssi m fa z endo, d e sp ertar o c o r p o, o do p erf orm er a s sí m corn o o d o e s pec ta do r, d a aneste si a am e a ç adora que os pers egu e. Parece-me que n ó s t rabalh amo s todos no nível do material, arranjando -o d e novo a fim de qu e a p erformance daí resultante reflita m ai s exa t a me n te n ão um a p erc epção do mundo, mas os ritmos de um mundo ideal d e a t iv idad e, refeito, para c heg a r melhor ao tip o de p ercepção que n ó s desejamos. Nós apres entamos então ao público estranhos objetos que não podem ser apreciados a não ser que o público esteja preparado para adot ar novo s h ábitos d e percepção - h ábitos que se cho ca m com os qu e lhe foram e nsi nados n a s p erformances cl ás s icas a fim d e ser recompe nsado pelos prazeres espe rados. No qu e c oncerne às p erforman c es clássicas, o públic o des c obrirá

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A LÉ M D O S LI M IT ES : P E R FO RM A N C E E PERFORJl,lATI V1D AD E

que, s e p ermitir que sua a t e n çã o s eja co n d u z id a por um d esejo - p elos- d o c e s , infantil e retrógrado, o artista terá colocado ess es d oces nos lu g a res estratégicos da peça em q ue a atenção ameaça a t in g ir seu apogeu s. Daí esta "d e s a t e n ç ã o selet iva" de q ue fa lava R . Schechne r em Essays o n Perforrna nce Theo ry (E ns aios sobre a Teo ria da Performarrce) ". O r a, não mais d o qu e o especta do r, o p erforrner s e i m p lica na performance. E le mantém sem pre u m d ireito de olhar. E le é o ol ho, s u b s ti t u t o da câ mera que filma, congela o u ral enta, operando d eslizamentos, superposições, ampliações e m um es p aç o e em urn corpo convertidos em fer rame ntas de s u a própr ia exp lo ração. Ern n o s s o traba lho, o q ue é aprese n tado n e m sempre é, todavia, o q ue é "a t r a e n t e" ( no rno rne rito em q ue u m a cois a é atrae n te, ela faz referência ao p a s sad o e a um "gosto" h e r d ado ) , mas a n tes o que até agora n ão foi a in da orga n izado e m gesta lte n reco n hecíveis ; t u do o q ue a té a g ora "esca po u à a te nção". E a te ntação co n t ra a qual n ó s lutamos to d os, c re io, é d e n o s tornarmos prernatu rarnerite " in ter essa dos" n o que d e s c ob rirno s 's. Sit uação t a nto ma is di fí c il para o es p ectador qu anto a pe rfor rn a rice, pres a e m uma sér ie p e rp étua d e transfo r m ações, co m frequê ncia m ínima s , escapa a t odo for rnalisrno, Sem fo rma fixa , cada perfo r mance é assirn p ara s i rnes rna se u próprio gêner o e cada a r t is ta lh e traz, c o n fo n ne s ua fo r mação e se us d e s e jos, nu anç as qu e lh e são próprias : as experiências d e Trish a Brown tende r ão p ara a d anç a, a s d e Mareh Monk p ara a música enq uan to a lgu rnas terão p rope nsão, a d esp eito d el a s p r ó p ria s, para o teatro, co rno é o caso d e R ed Tapes, d e V ito Acco ricí, o u Down i n the R ec R o am , de M ic hael Sm it h , revelan do q u e é difícil falar d a p erfo rm anc e . É o que r e velam , ali á s , as div e rs a s pesqu isas sobre o t e m a , as qu ai s to ma m a fo r ma d e á lb u ns de fotografias a o fe rece r os traços fixos d e p erforman c e s para sempre desaparec idas, ao p a s s o que o s dis curs o s c r íticos, que con t in ua m se n do r aros sob re o a ssunto, c ae m n o históri c o o u 8

Ri ch ard Fo re rna n, Pe rformance : A Conve rsat io n , e m St ephen Ko ck (e d. ) , Artforum,

PERFORMA N C E E T EA TRA LIDAD E: O SU J E ITO DES,'I.I1STIF ICA DO

na descri ção. T o c am o s a í em um proble m a id êntico ao q u e o teatro d e nã o repre s en ta ção con hece : como fal ar de le sem traÍ -lo? Como expô-lo? E n t re descri ções de en c e n a çõ e s q ue fora m efetuadas e m outros lugares o u qu e n ã o o s ã o mais e o d iscurs o crítico e parcelar d o p e squisador, a e x periênc ia tea t ral es tá co n d e n a d a a escapar in ce ss antemen rc de toda ten t ati v a d e stinada a exp licá -la exatamente. E m face d e ss e problema co ns t itu t ivo d e todo espetáculo, a p erforrnance d eu -se a s i m e sm a s u a própri a m e m ó r ia. Por intermédi o do aparelh o de víde o n o qual toda pe rformance v a i p a rar, e la se d o tou assim d e u m passado .De tud o o que foi dito a té agora acerca da p erform a n c e . p are c e realmente que as relações entre o teatro e a p erformance s ejam di fícei s de estabelec er. E a to mar por referênci a as declaraçõ es de certos performers, as relações parecem m esmo ser necessa r iam ente relaçôes de excl u s ã o. Fried escreve a esse propósito : "O t eat r o e a tea tra lidade es tão h o j e em dia e m g u e r r a, não so men te com a p intura modern ista, mas com a arte corno tal _ n a medida e m qu e as diferen tes a rtes podem ser descri tas co mo modernista s, c o m a se ns ib il ida de m ode r nis t a como tal': Fr ied art icu la t e s e e m d u a s propos ições: O sucesso, rn es m o a so brevivência d as artes, passo u a d epen d e r, de maneira c r e s c e n te , de pôr ern cheque o teat ro; 2. A ar te se d eg e n e r a à med ida q ue se aproxima do t e at ro " . 1.

Como exp lic a r, senão j us tifica r, t a l afi r mação? Se adm ite-se, seg u in do De rrida, q ue o teat ro n ã o pode escapar da rep resen ta ção e que esta ú lt ima o a liena e o mina; se admite -se t a m b é m que o te a t r o não p o d e escapar to talme nte à n arratividade (todas as exp e r iê ncias t e a t r ai s at ua is o provam, com exceção, as de Wilson o u d e Forernan ta lvez, m a s aí n ó s já estamos d o lado d a perfor m an c e ) , então parece evidente qu e t eatro e ar te são inco m pat íveis . " N o teatro , toda form.a, tão logo nasci da, já é rrrorib urrd a'" >, escrevia Peter Brook, ern O Esp aço Va z io, Oll, co m o afirm am o s h á po uco, a p e rfo r m an c e não é um fo rrna lismo. E la re cus a a forma, pois e ssa é imobilismo, e o p ta p el o d e s contínuo, o d e sliz a m e nto , p r ocurand o o que A lIan Kaprow

'9 72 . p . 24·

9 10

Ri chard Sc h ec h n er, Essuys o n Performan ce Th eory 1970 -76, Ne w Yo r k : D ra m a Book Spec ia lis ts . ' 9 7 7, p . 24 . R . F orem an , o p . c it ., p . 24 .

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11 12

M ich ael F r ie d , Art a nd O bjec thood e m Grcg ory Battco ck (e d . ), 0 1'. c it., p. 13 6 - 14 2. Pe te r Brook, L'Espace v ide: Ecrits s u r te th éát re , P a r is : Se u il, ' 9 7 7. p . 33 .

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ALeM DOS LIMITES : PERI'ORMAN CE E PERFORMATI VIDAD E

rcc larnava para os h appenings há trin ta arro s '>: "q ue a li n ha de divisão e n tre a arte e a vida permaneça tão fl u id a e tão in d isti n ta q u an to possível - q ue o tempo e o espaço p e r m an e ç am variáve is e descon tínuos a fim de que , permanecendo aberto s e s usce tíveis de deixar espaço à m udança e ao improv iso, a s performances não ocorrarn senão uma vez". Es tamos m u ito longe do q ue Artau d pre c on iza v a pa ra o tea tro (o u d o que o Living ou Gro towsk i, na s ua estei ra , co m o rno delo d a re novação do tea tro) : a c ena c o mo um lug a r "viv o", a peça co mo experiência " ú n ic a" ? O fato d e a pe rfo rrnarice rec usa r-se a p r o c eder d o teatro é bem o sig no d e que um a a p roxim a ção e ntr e teatro e p erformance é n ão só p o s sível mas sem d ú v ida legltirna, uma ve z que não se trata d e s u b li n h a r a q u i s uas distâncias senão c o m a q u ilo a qu e se está amea çado d e a ssemelhar-se. Tentaremo s , pois , não desta car aqui as semelhança s e n tr e teatro e perfonnance, p orém d e marcar d e preferência s ua c o m p le m e n t a r id a d e , s u b li n han d o como o teatro pode ter o que aprender na escola da performance. C o m efeito, por seu funcionamento extremamente d esnudo, pela exp lo r a çã o à qual a perforrnance submete o corpo, por sua arti c u lação d o tempo e do espa ço, a p erformance ofere ce a câm e r a lenta de uma certa teatralidade, a que está se n d o trabalh ada no teatro atual: e esse teatro explora s uas artes baixas, oferecendo ao p ú b lico um apanhado de s eu avesso , s e u reverso, sua face oc u lt a. O teatro, tal como a p erformance, trabalha com o imaginário (o imaginári o t omado e m s e u sen t id o lacaniano) , quer dizer que ele u sa uma técnica de const r u ção do espaço para a qual o s ujeito se coloca ou para a qual s e co lo c a rn sujeitos. Construç ão do esp a ço fís ico primeiro, p si cológico em seguida. Entre os dois, um estranho paralelo desenha -se tendendo a decalcar a decupagem do espaço c ênico sobre o do sujeito e reciprocamente. A ssim, e m uma época em que o ator s e vê na obrigação de fagocitar as personagens que encarna a .fim de tornar-se um só corn elas (e cabe pensar no teatro do século XIX, no teatro naturalista ou nos primeiros papéis de Sarah Bernhardt), a cena afirma sua unicidade e sua totalidade. Ela é, mas ela é una, e o ator, na medida em que é e sse sujeito unitário, p ertence a essa glob alidade . 13

A .A. Bronson ; Pe g g y Gal e , Perf or mance by Artist s, Toronto: Ar! Métropole, 1980, p . 13 3 · L. I n g a - P in , op. c ito

PERFORM ANC E E TE AT RA LI DA DE: O SU JE IT O D E SMI ST l F IC A D O

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Mais próx imas de nós, as experiências d o t eatro atual (teatro experirnerital, teatro al ternativo e as primeiras experiências d o L iving o u, as mais recen tes, de Bob Wilson), a técnica de co ns trução d o espaço cênico tenta tornar tangível e visíve l to do esse jogo do imaginário que coloca sujeitos (e não um suje ito) na ce na. Ass im, to r narn -se aparen tes os processos de construç ã o do fe nô me no teatra l e daqu ilo q ue o funda, isto é, tod o um jogo de d e s d ob r am e nto e de p e rmuta ç ã o mais o u m en o s bem e nce nados, m ai s o u m en o s bern d istingu id o s, con form e os e nce nado res e os o bjet ivos v isados: d es d ob r a m e n to do ator e d a p e rs onagem ( P ira n dello t r atou muito be m do te m a ) ; d esdobram ento d o a u to r ( na m edida e m que esse so b revive à morte do texto) e d a p ersonag em; desdobramento d o a uto r c do e nce n a d o r (caso d e Ari an e Mnou chkine ); d e sdob r a m e n to , e n fim, do e n c e n a d o r e d o ator (por exe m p lo, S chech ne r e m Cloth es - Roupas). O co nj u n to d essas permutaçõ e s co nst ró i diferentes espaços projetivo s para c o n fig u r ar diferente s p o s turas do desejo, ao colocar sujeitos em processo. Sujeitos em processo: que se constrói em cena, proj eta-s e em objetos (p ersonagens para o teatro cl á ssico , obj eto s parciais para a performance) que pode inventar, mul tipli c a r, eliminar e m caso de necessidade. E esses obj etos co nstr uídos, produzidos p or s e u imaginário e pelas diferente s pos tu r a s de desejo, são outros tantos objetos "a" dos quais el e u sa ou a b usa segundo a s necessidades d e sua ec o n o m ia interior (é o c a s o d a utilização da câm e r a ou da tela-v íde o para um bom núme r o d e p erformances ). No t eatro, esses obj etos "a" s ã o fix ad o s durante o tran scurso d a peça. Na performance, ele s são, a o co n trá rio, moventes e revelam um imaginário não alienado a uma figura de fixação que é a personagem no teatro clássico, ou e m outra forma c ongelada do fenômen o teatral. Pois se trata realmente do "s u jeito" no teatro atual (Foreman , Wilson) e na perfo r mance, e não de personagenl. Com efeito, a base convenci on al da "a r te" do ator, inspirada em Stanislávski, quer que o ator v iv a s u a personagem pelo interior e torne não aparente em cen a a duplicidade que o habita . É contra essa ilusão que Brecht se ergueu, reivindicando o distanciamento do ator e m fa ce de s e u pap el e d o espect a d o r em fa ce da-c en a. Diante d e ssa problemá ti ca, a re sposta d o p erform er é o r ig in a l na m edida e m que ela

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AL t i\l D O S LI MI TES: P E R FO R,\,I ANCE E PER I'OIUvl ATIVIDADE

parece reso lver o dilema. renunciando totalmente à pe rsonage m e encenando o próprio arti sta. artista que se coloca como sujei to a desejar e a performar, mas sujei to ari ô n irn o a apre s enta r a si rnesrno na s ua atuação n a c e na. Po r co nsegu i n te, n ã o r el atando nada e não imi tando nj ngu érn, a perfor m a nce escapa a toda ilusã o, a toda representação, sem passado nem fu t u ro, ela se dá transformando a cena em acontecimento, aco ntecimento do q ual o suje ito sairá trans form ado, à espe ra d e o u t r a p erforman c e para p rossegu ir se u percurso. Tanto q uan to a pe rfor rnarice se recusa assi rn a toda represe ntação, a toda na rra t ividade. ela recusa igua lmente a o rganização simbólica q ue domina o fenômeno tea tra l, e expõe, c o mo tai s , as c o n d ições d a t eatralidade . É d e sse jogo in c e ss an t e , d e ss e s d e sl o c amento s co n tí n uos d e p o si ção d o desejo que é fe ita a te a t r alid a d e , isto é, u m a p o si ç ã o d o s ujei to ern processo e m um espaço c o n stru t ivo imaginário. É prec isame n te e m torno d a p o s iç ã o do s uj e it o qu e a p erfor rna nce e o teat r o pare c en1 excl u ir-se, e qu e o teatro talv e z te nh a a lg o a aprender da performance. C o m efeito, o te a t r o não pod e disp ensar o s uje ito (s ujeito perfeitamen te assu mido) e os exer cíc ios aos quais Meierhold e depois Grotows ki submeteram os a lu nos n ã o podiam s e nã o consolidar essa posição de suj eito unit ário na ce n a teatral. A p erformance, ao con trár io, e m bo ra fa la ndo d e um s u jei to perfeítamente assumido. ram ifi ca fluxos e o bjetos s im bó licos sobre um a zona d e s estabilizada (c o r pos, espaço) , zona in fra ssimbólica. Esses o b j e to s s ó acessoriamente se ap reseritarn e m trân sito p or um s uje ito ( a q u i o p erform e r), um s u je it o que não s e pres ta, a n ã o s er de um modo muito s u perficial e par cialm ente à sua p r óp ria p erformance. R etalhado e m fe ixes s e m iót icos, e m pulsã o , ele é um puro catalisador. E le é aquil o que p e rrn ite aparecer àquilo que deve aparec er. Ele p e rrni te de fato a tran sição, a passageln, o deslocamento. A pe r fo r m a nce a pa r ece assi m co rri o um processo primário se rn t el e ologi a , se m p rocesso sec u n dár io, vi sto qu e a p erfo rm an c e n ada t em a r epr e s entar para n inguém . Eis por qu e el a d e sign a a m argem ( R . S c hec h n er diria th e se a m - a costura) , a fr a nja d o te atro, o que não é nunca dito, mas que e stá n e c e s s a ri a m ente pre sente , e m b o r a o c u lt a do . E la d e smistifica o s u je ito e m c e n a, s u je ito c uja e n t ida de é ao mesm o tempo exp lo d ida e m o ut ros t anto s o bje tos p arci ai s e co n de nsad a e rn c a da urn

P E RF O RM A N C E E T E ATR ALID A D E: O SU JE ITO D E S M ISTI FI C A D O

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d e ss e s objetos, tornado , para si e n t id a de única, a o mesmo tem p o margem e centro. Margem quer dizer aqui não o que é excl u ído, m a s , ao contrário, n1argem como quadro no s entido d erridari an o d o te r rn o e . por co nseq uência, o que é o rna is imp ort a n te , o rnais ocultado, o mais recalcado, mas também o m ai s ativo no s ujeito ("o parergo" - suplemento, diria D crr icla':') e, portan t o , todo se u recurso de n ã o te a tra lid a d e . A p erfo rm a n c e aparece ass i m, d e a lgum rno d o , como o arm a z ém dos acessór ios do s i m bó lico, como o e ntreposto dos sig n ifica ntes, o todo fora do disc urso es tabelecido e no s bastid ores da teatrali dade . O teat ro não p od e recorrer a isso como tal , ma s e s ses acessó r ios co ns t it ue m impli ci ta m en t e a q u ilo sobre o qual se e d ifica o espe tác u lo cênico. C o m e fe ito, ao contrário da pe rfo r mance, o teatro não pode c o lo c a r, di z er, co nst r u i r, propo rc io nar p onto s de vista: p o n to de vista do e n ce n a d o r, d o a u to r sobre a a ção , d o a ta r so bre a cena, do es pect a d o r sob re o ator, H á tod a um a multiplic ida d e d e pontos d e vista e de o lh a res, uma "espessu ra de s ig nos" (pa ra citar Barthes) q ue coloca uma m ult ip licidade t ét ica " au sente d a p erfo rm an c e . A te atralidade apar e c e a ssim feita d e dois c o n j u n tos di te re nte s : um, que va lori z a a p erformance, são a s r e alid ad e s do i magi nário; o outro, qu e va loriza o tea tro, são as est rut u r as simbólicas pre cis a s . As prirn e iras se o r ig i na m n o s uje ito e d eixam fal ar se u s flu x o s d e des ej o , as seg u n das i ns crevem o sujei to na lei e n o s có d igos cên ic o s, isto é , no si m bó lico. Do jogo d e s s a s duas r ealidades nas c e a te atra lid ad e , um a teatralidade que ap a r e c e , por c ons eguinte, n eces s aria m e n t e li g ada ao sujeito que d e s eja. Daí, sem dúvid a , a dificuld ade de d e fi ni -l a . A teatralidade não é , e la é para alguém , quer di z er que e la é

para o outro. A multipli c idade de est r u t u ras s im u ltâneas (de que fa la mos mais a cima e qu e ve mos e m trabalh o na p er for m an c e ) parece reduzir-s e , d e fato, a urria infrateatralidade sem a u tor, 14

Ja cq u es Der r ida, La Vérité en p einture, Pa ris : Flarnrnar íon , 1978. Em francês, th étique destgria o que coloca alguma co is a no existente. Em t e r n o s filosóficos , afirma o ser : "o supremo juíz o t ético seria 'e u sou: no qual, segundo Fi chte , 'n a d a s e a fi r ma do éú. m as deixa -s e v a z io o lu g a r do pred icado para possível d et erminação do eu ao infi nito'": ver N . Abbagnano, Dicionário de Fil osofia . 5. e d .. São Paulo: Ma rtins Fontes. 2 0 0 7. p . 9 58 ( N. da E.).

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ALlôM DOS LI!\llTES: I' E K FO R M A N C E E P ERFORMATI VIDAD E

sern a tor e sern encenador. A pe rfo rrnance parece, corn efe ito, a t ua r e m se u jogo para revelar, para e nce nar a q ui lo que ocorre a n tes d a fi gura ç ã o d o s u jeito (mesmo se ela o faz a part i r de um suje i to já co nst i t uí do), na mes ma m e di d a em q ue ela se intere s s a po r um a ação em trabal ho de prod ução mais do que p elo produto ac a bado. O ra, o que ocorre ern ce na são fl u x os, a grega dos, ramificações de sig nifica n tes a i n da n ã o ordenad os e m có d igo ( da í a m ult ipli c id a d e das m ídia s e d a s lingua gens s ign ifica n tes à s qu ai s a performa nce r e c o rre : mig alhas d e rep rese n tação, de n arra ç ã o , m igalhas d e se n t ido), n ã o o r de na d os a i n da e m es t r u t u ras q ue p errn itarn s ig n ifica r. A p erformance s u rge ass im c onl O um a rn áqu in a a funci on a r co rn significantes se r ia dos : n a cos de co r pos ( po r exe m p lo , o d e srnernbrarnento, a d e sarti cul a ç ã o , o le s ioni smo d e qu e falam o s mai s aci ma ) , mas ta m bé m nacos d e sentido, d e representação, flu xos libidinais , nacos d e objetos c o nec ta dos seg u n d o con catenaçõ e s multipo lare s (caso d e R ed Tap es e os es p aço s parcelares e m qu e e le s e desloca: nacos de imóvel, naco s de peças, nacos de paredes etc.) e o todo sern narratividade. T a l ausência d e narratividade (narratividade contínua, e n ten de- se) é urri a d a s ca rac te rí s t ic a s dominantes d a perfor mance. E s e, por d es cuido, o p erform er c e de à tentação, n ão é nun c a d e mari e ira c o n t í n ua o u s e g u id a , rn a s a o co n t r á r io d e rn a rie i r a irânica, e rn segundo grau, c orno c it a ção o u para r evelar aqui ainda se us rn e can isrno s profundos. Daí cert a fru st raçã o de p arte d o e sp e ctador em fac e da pe r fo r mance e qu e a afasta d a exper iê n c ia da teatralid ade. É que da p erformance n ão h á nada a dizer, a dizer-se, a apre ender, a projetar, a introjetar se n ã o flu xos, redes , sistemas. Tudo aí aparece e desaparece c om o u rria galáxia "de objetos transicionais?" qu e r epres eritarn a pe n as os d efeitos de apresamento da repre sen t açã o . Para vivê-la, é preciso a o m esmo temp o e s t a r aí e fa zer parte dela, permanecendo ao mesmo ternpo e stranho a isso. Ela nã o fala somente ao espírito, rn a s aos sentidos (por exemplo, a s experiências d e Angela Ricci Lucchi e Gianikian com respeito ao olfato) e fala de sujeito para sujeito. Ela não procura di z er ( c o rn o o teatro) , mas provocar relações sinesté sicas de 15

o .\v. Wiu n icott , l eu

e t re a lit é, Pari s : G al li mard , '9 75 .

P ERFORMA N CE E TE ATR ALI D AD E: O SUJ E IT O D ES MI STI FI C AD O

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sujeito para sujeito, semelhante nisso ao espetáculo de Robe rt Wi lson lhe Lie and the Times oflosepli Stalin (A Mentira e os Te mpos de Jo s e f Stá lin) rela tado por R ichard Schechner em Essays o n Perforrnan ce (Richa rd Schechner desenvolve aí a noção de "desatenção seletiva" a propósito do referido espe tá cul o , n a re p resentação le v a d a a cabo na B roo klyn A cade my ofM us ic's Ope ra House, e m d e z e mb ro d e 1973) . Nessa ocas ião, o espaço - Le Perq, peça de cerca d e 50 x 25 m - fora prepa rado a fi m d e receber o p úblico não só dur ante os se is e n trea tos d e q u inze m iriuto s cada que a ó pera compor tava, mas d u ran te a própria ó per a, cuj a dura ç ã o d e via a t in g ir doz e h ora s. A a t it u de d o público s o fr e u altera ç õ e s no c u rs o d o e s pe tá c u lo. En q uan to o espaço - L e P erq - p ermane c eu na maior parte vaz io (exccto n o s e n t rea t os ) durante os trê s prim eiros ato s da ópe ra, v i u-se que pouco a pouco e le se t ornou o c e n tr o de u rna intens a a tivi dade, à medida que a noite avan ç ava. Uma filtragem o pe ra va-se no público, filtragem qu e n ã o deixava subsistir e m seus lugare s senão um número cada vez rnais reduzido de adeptos de Wil son a partilhar ao mesmo tempo sua experiência da peça e a experiência d essa experi êncía" . A performance aparece a ssim como uma forrna de arte cuj o obj etivo primeiro é o d e d e sfa zer a s "c o m p e tên ci as" (esse n c ia lmente teatrais). Essas c o m p e tê nc ias, ela as reajusta, as r e arranj a e m um desdobramento d essistematizado. N ão se p ode d eixar de falar aqui de "d e s c o nst r uçã o", mas, em vez de se trata r d e um ge sto " li n g u ís t ic o- teó r ic o': trata -se aí de um ver da dei ro g e sto , um a ges t uali d a de d e sterritorializada. C o m o t al , a performanc e apre s enta um desafio ao teatro e a toda reflexão do teatro sob r e si próprio. Tal reflexão, ela a reorienta, forçando-a a uma abertura , e obrigando-a a urna exploração das margens do teatro. É a esse título que urna excurs ão pelos lados da performance no s pareceu interessante e necessária, tendo sido o no s so úl t i rn o desej o voltar ao teatro após um longo desvio pelos bastidores da teatralidade. Tra d . t. G u in sb u rg

16

C f R . Schec h n e r, op. cit .. p . 14 7- 14 8 .

3. O Que R e s t a da P e rformance? autópsia de uma arte re al m e nte vi v a'

É p o ssível que um dia, qu ando o fe nôme no d a p e r for m a n c e

tiver c u m p r ido o se u t emp o d e se rviço, o pro b le ma de s ua espe cificidad e se t orne legítimo . Se rá t emp o então, n ã o de fa zer o histó rico d e um g êne r o , nern d e p ô r e m p e rspe c tiv a os aconte cimento s s egundo u m co ncei to enfim co mpleto, m a s de escrever a genealogia de um n o me: s e g u n d o q uais filiações de influ ência , p or quai s razões de c o m p ree n s ã o o u de in compreen são h istóric a , e m v ista d e qua is necessidades da co njuntura , e m respo sta a qu ai s co n d ições d a e n u nciação ar t ís tica, a palavra p e rformanc e terá ap arecido e m t al d ata e p a r a t al du r a çã o , e d e signando um c onjunto d e práti c a s que, d e t oda m an eira , continuarão a s e lh e s u b t r air e m p arte? Esta será t al v e z um d ia um a que stã o Ie g ttirna .>

2

Publicado s o b o tí tulo W hat is Left o f Performan ce A r t? A u to psy of a Functi o n . Birth of a Ge rire, D iscourse: [ourn al fo r Theore tica l S tu d ies in Atedia and Cult ure, Milwaukee , V. 14, n . 2 , p . 14 2- 162. 19 9 2 . La Perfo r ma n ce h ic e t n u nc , Perform a nce, texte(s) & d o curn ents, A ctes du co llo q ue Pe r fo r mancc e t m ult id is c ip lin ar it é : Po stmodernité, sob a d i r e çã o de C h a n t a l Pontbrian d , M ontréal : Para chute , 1981 , p . IS .

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ALÉM DOS LIMITES: PERFORMANCE E PERFORMATlV IDADE

É assim q ue, ern 1981, Thierry de D uve res umia ou, a n tes, a n u nciava , o fu t uro d e to da in te rrogaç ã o sob re a p erform ance. "É possível que um dia . . .': "Se r á tempo então . . ." É espantoso pe nsa r qu e "esse dia" q ue Thi err y de Ou ve anunciava não há tan to tempo, si t ua n do -o em u m porvir rela t ivame nte lo n g ín quo, já te n ha c hega do, mais de pressa, se m dúvida , que o a u to r, e le mesrno, o p r e vi ra . "É p o ss ív el qu e um dia , qu ando o fen ôm en o da p erfo rman ce tiver c u m p r ido se u tempo de serviço, o problema de su a espec ific id a de se t orne le gítimo", tal era a h ipót e se adiantad a co m prudên ci a por Thi erry d e Duve. A questão tornou -se d e a t u a li d a de: por que a p e r forman c e? P or qu e a palavra? E po r que a "coisa" ? T a n t as questõ e s h o j e e m dia ce r ta men te legí timas e m face d as quais poderíam os suscitar essas outras in terrogações: po r qu e a perforrnan ce não ex is te mais? Por que sempre a palavra q u a n d o a c o is a desapare c eu ? Dez anos apenas bastaram para q ue os d ado s muda ss em. Dez anos para q ue a performance desabroche e "morra': Dez a n os também para q ue o discurso crítico q ue se encont rava e n tão e m seus p r irne ir o s ba lbucios nesse dorn íriio, e que se e m perihava em u ma te or iz a ç ã o p r u d ente do fen ô m eno , e nfatizan do amiúde su a impotência na ten tativa de cercar o acon tecimen to, a bandon e e sse campo de exploração. Durante esse tempo a performance desa parecia sem fragor do proscên io e das preoc upações d a maior ia do rrieio artístico, relegada às ga lerias, aos circ uitos periféricos, evacuada, rnerios v is ível, às vezes ause n te>.

3

Annette tvl ichelson e Thierry de Duve t e n t a r a m no iníci o do s anos de 19 8 0 e st abelecer uma t a xi onomia para diferente s tipos de perforrnance, di stin guind o : a . Aquelas qu e ass ina la m urna volta d o e x is tencia lis mo. m ai s o u m enos ins p ira das no Tea t ro e Seu Dup lo. b a s e ad a s e m uma li b eração da s pulsões. e m uma exp r essão d e um in c on sci ente d o c o r po, a o scil ar, co rno d e sejava A r taud, entre "a g r a tuid a d e fr en éti ca das pu ls ões" e o "rigor de um a s in ta x e': Tal categoria , n a qua l p od emos in screver, embora a tí tu los diversos, c e r ta s perform ances de Vi to A c conc í. de A lberto Vidal ou de H ermann Nitsch , b em co mo a s d e M onty Can ts in em Quebec, seria teatral, aur áti ca, s ac ri fi c ial, seg un do Thi err y d e Duve (op. c it., p. 23) . "Tra t a -se d e um a en c en a ç ã o arcaizan te , sac ra lizante, que exclui t o d a interv e n ç ã o d a moderna tecno log ia na ce rra" Interro g a n d o a relação d o a r t is ta c om o s imbólico. joga n do com os afetos e os fan tas mas d o performer, essas p er form anc e s co nver t iam cad a

o

Q UE R ESTA DA PER FORMAN C E>

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A usênc ia il usória, pois ao o l ho aguçado do amador, ao xereta da "coisa" a rtíst ica, pa rec e ca da vez mais evidente que tal desap are cime nto n ão pas s a de um engo do. De fato, performan c e s c ontinua m a oco r rer, artista s co n tin uam a re ivind icar o títul o d e performers, lo c ais a rt ís t icos persistem em programar perfo rman c e s. Essas práti cas ai n d a v iv as que nos e sfo rçarem o s e m rast r e a r ma is abaixo, p or mai s interessantes que elas sejam, não c h ega m,

es pe tác u lo em acon teci me n tos. c r ia ndo às vezes p a ra o arrista e o espectador um r it ua l em qu e e ra m c ha mados a p ar ti ci p ar. Essa fo r ma d e perfo r mance d e s apa re c eu n o s dias d e hoje, não e ncon t r ando m ai s s ua just ificação a r t íst ica, assim como desapa receram, no do mí nio d o t e atro, as in flu ên c ia s c onj uga das d e C ro towsk i e de A r t aud , seja porque a prát ic a t e atral se afasto u d o va lor red e nto r d o corpo pul si on al , seja p orq u e o s a r t is tas p c rc c be r ar n o s limit e s d isso co mo m od o d e e xpre ss ã o . b . A segu n da c a tego r ia d e p erform an c e e m v igor nos a nos d e 1970 é m a is pró x im a d a tradi ç ã o d a s arte s p lá sti c a s e, po r t a n to, d e ce rto forma lis mo m in i m al qu e o p ta po r ce rta d e s c onstruç ã o das co isas, d o s ges tos e d a s lingu a gens. Animada d e um a s u s pei ta acerc a d a n o ç ã o de s ig no. e la p õ e e m que st ã o a íns t r u m enr alidade da linguagem por m ei o de pro cedim ento s de repet iç ã o . d e s a c el era ç ão e exp lo s ã o que levam aos limite s d o sen t id o, a os c o n fi ns d e uma z o na em que n ã o s u bs is te m ai s s en ã o p ara o artista e o esp ect a d o r "o d esgaste , a presenç a física, o ge r me da voz ", di z Sca r p e tta , p . 139 . Des sas p erforman ces, não h á nada a di z e r excet o a v ertigem que provo ca m no e s pec t a dor. a en ergi a d e que s ão p ort adora s e q u e s e torna p ara el a só o b j e t o e s u j e ito d a p erforman c e . E s s a s p erform an c e s , d otad a s . s eg u n do R é g is Durand , d e "s ig nos flutu ant e s . co m va lê nc ias múltiplas" (o que Ri ch a rd Schec h ne r d e nomin a multiplex sig n a ls) , renun c iam ao veto r todo- po de roso d o relato , p ara u s a r u m pro c edimento d e sob reimp ressão ern camadas (o q ue Le e Breu er c hama tracking) e jogam com o j ogo d o tra ç o e d o a pagame n to, c o m o e fe ito do dupl o (o qu e H erbert Bl au c hama g hosting). Segundo G uy Sca r p etta, e las reinterrog am , al ém disso. o "s ig n o te atral " pelo simples fa to d e q u e re nunciaram ao m odo n arrativo tradici o nal e, portanto , a b a n d o nara m toda c o n t in ut d a d e, s a i n d o ass im d o co nj u n to qu e as inte gra. Livres d e todo la ço dis cursivo . o s s ig n os flou s que o s co m põem estão livre s p ara e nt r a r e m div ers a s assem blages con fo r me a e nergia d e que são po r tadores . É a esse gêne ro de per fo r mances que pe r tence m p ráticas como as d e Lau r ie A n derson, E lizabe th C h it ty, M íc h el Lemieux. Tal forma d e pe r fo rmance, ela tamb ém , d e s apa r e c eu em p arte h o j e e m di a . tend o a a r te a bando nado um formalism o um p ou c o s e co e h a vendo se volta do d ora v ant e p ara uma n o v a busca d o s e n t id o qu e s e encontra n a pintura . c . A terc ei ra cate g o r ia, enfim, m enos num ero sa , s egu n do Thierry de Duv e (op . cit. , p . 23. 27), r eún e as p erform ances que indicam um a ve rdadeir a ass im ila ç ã o d o formalis mo e apon tam p a r a n o vo s e n ig mas. As últimas perfor mances de R a c h el Rose ntha l p e rt en c e m a t al catego r ia , assim como as ele Ma r ina Ab r arnovic: " E la s fazem intervir expITcitamente um processo de gravação e reprodução. No rnai s das vezes, acop larn o performer a um transco dificador qua lquer, in c o rp o r a nd o o a parelho e o performer e m u m m e Sl110 fee d back."

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AL tM DO S LIMITES : P E RFOR tvlAN C E E PERFORMAT IVIDAD E

toda via , a a p a g a r a impress ã o de qu e a p erfor rna rice n ão é um fenôme no " n a rnocla" ap ena s u m a sobrev ivê ncia d e uma prá tica d e o utro terripo, talve z uma ar te ultrap a s s ad a e a té u rn a arte do passado, como seria a ópera. É a im pre ss ã o q ue o presente art igo pretend e p ôr e m discussão a o trabalh a r so b re a brech a qu e existe e n t re uma interrogação ( por que a pe r for rnarice i") e um paradoxo (a p e rform ance não existe m ais, e m bo ra co n t i n ue ex is tin do) . A p o si ção é insustentável co mo se m p re foi p a r a todo d is curso sobre a perform ance, po is h oj e, co mo o n te m, é difíc il fazer uma id ei a p rec isa d o o bje to de a ná lis e que s e pretend e d efinir e qu e se d e s eja tratar. É a in da mais difícil s it ua r-se e m u m lug ar qu e nos a u to rize a fa la r, ain d a que ess e últim o fosse o d o a rt is ta ( necess ariamen te u n ívoco), o do críti c o ( n ecessa r ia me n te or ientad o ) o u o do espectad or ( ne cess a r ia men t e fragm entário) . No fu n do, t odo disc urso sob re a perform anc e, co m mais razão a in da so b re seu d esaparecimento , c o ntinua se n do u m discu rso em torno da performance, um disc u rso sobre o próp rio disc urs o crítico. Essa l inguagem é fei ta d e derrapagem, de r u ptu ra, d e a p roxi m a ção. Não te m interesse se não aq u ilo q ue e la n o s diz do pró prio discu rso e daquele q ue o usa . Mais do que qualq u er outro, ela é r eve lad o r a de n o ssas t eori a s c r ít icas, esté t ic a s n o to cante às arte s. Essas p erforrn an c e s fo ram mais fr e que nte s n o s an o s d e 1970 e são h oje as que a presentam a melh or sobrevi da a n te a evolução d a s p rát ic a s . M enos fo rm alistas d o que aq uelas q ue cornp ôcm o g r upo pre c ede n te , n ã o te n do ren u nciado à na r ração, re c o rre ndo ocas iorial rn e nre ao m icro r el ato , servindo -se am iú de da palavra em p ri rne iro g rau como veícu lo dos sentidos, tais performances, colocando ao mes mo t e m p o o p erformcr n o centro d o processo cénico, não faze m di ss o se u únic o obj cto d e ex p lo ração. El a s r einte rro g am O mu n d o e d escons t roem a o rd e m ex is te n te, m a s o exe rcí ci o a que se ent rega m n ã o se d e ixa aboca n har pelo m e can ism o de s ua p ró pr ia d e sconst ruçã o , p ela ver tigem d e u m a dissolução de palavras. de coi sas ou d o mundo. Uma vez operado o trabalho de desconstrução, essas perforrnances intr-oduzem aí sentido, recusando -se a deixar o lugar vazio. As pcrfor marices q ue Rachel Rosenthal faz hoje em dia são as q ue mais se inscrevem n e ss a v ia. E m Q uebec, po deríanlos c itar a tít ulo de exe m p lo as d e Nat h a lie D erom e o u d e Marti n e C hag no n. "E h! É e ngraç a do! A gora se p od e com p ra r ca m ise tas co m dese n hos d e a ni mais em v ias de exti nção. E u, e u es to u co n te n te p orq u e os an i ma is e m v ias de extinção são os que eu prefiro. Isso, e m p r i m e ir o lugar e, em s e g u n d o, eu digo a mim mesma que se h á cam isetas com an imai s debaixo, isso quer dizer que há alguém que sab e disso e se há a lg uém q ue sabe disso , há t al vez a lguém que faz q ua lq uer co is a e, em terceiro lu g ar, a m i rn , seln p re m e dá p raze r saber q ue h á um po uco de d i n heiro qu e va i p a r a o a r ma me nto."

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QUE RESTA D A P ERF O R M A N C E'

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Se a pc rfo r m a ri c e rn irna bem "o rles m o ro n arn c n to de um lu g a r so cia l, c entral, c er r a d o , domi n ado , transparente", como notava em 1981 Birgit Pelzer -, é evidente por si que todo discurso sobre tal prática des centrada não é , ele mesmo, descentrado, a liá s. Nós não poderíamos escapar aqui desse paradoxo.

AUTÓ PS IA DE UMA FUNÇÃO Nasc ida d e um rn ovi rn e rr to d e co n tes tação dos va lo res es ta b el e cid o s qu e e ra o de to da um a época (re c us a d a n o ç ã o d e rep rese n tação, d e ensaio, d e m emóri a ; rec usa d e um a p r át ic a se m inter r o g a ç ã o e se rn ri s co tanto pa ra o ar t is ta co rn o para o espectador), a p e rfo rrn an ce a r t con hecc u se u ap ogeu n o s anos d e 1970 . Vindos à p erformari c c d e horizontes muito dive r s o s (ar tes p lásti cas, mú si ca, arquitetura e tc.), os p erformad ore s havi am d e início in v e st id o COJn entusi a smo n essa nova fo r rna d e arte que lh es oferecia um meio de e x p r ess ã o renovado. Depois, ao long o dos anos, o s dados m udaram . O s dado s id e ológicos s e transformara m e os artistas, vi n dos à performance a partir de o utras d iscipli nas , puderam pouco a pouco reinte grar suas resp e ct ivas artes, deixando no campo d a p e r for ma nce três c a t ego r ias d e praticantes: os videoastas, qu e re cuperaram a performan c e p ara se us próprios fins , c o n ve rte n d o-a e m u m a arte aut ónoma in t ei r a m e n t e à pa rte, que tornou d aí p or d iante s u as distânci as em relação à arte da p erformance ; o s a r t is tas inter ou mult idis ciplinares qu e re ivin d icam muitas vezes o título de p erf ormers devido à multiplicidade d as artes e d a s tecno logias às quais s uas obras recorrem; e os performers que e u d efiniria como "teatrais", cuja arte e p rocedimento per m an e c em pró~imos daqu eles d o s anos d e 19 7 0, mesmo se seus quest iona me n tos e s eus obj etivos não são rn ais os m esm o s . P o r que es s a s o b re v ivên c ia do fenôm eno da p erform anc e? Que lugar ela ainda ocupa nos esq uemas de pensame n to e das práticas a r t ís t icas ? C o m o é possível qu e uma prática artística, baseada e m um requestionamen to de va lo res , não desapareç a , um a vez que todo s os próprio s pre~sup o sto s id e oló gicos qu e lh e 4

La Pe rfo nnance o u l'in tégrale d es equivoques , Pcrfor manc c. tex te(s) & documents, p. 31.

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ALÉM DOS LIMITES : PERFORMANCE E PERFORMATlVIDADE

davam sen t ido d e s a pare ceram ? Tais são a lg umas d as questões q ue se colocam p a ra n ó s.

A Perjor m a nce Na sce u de u ma Teoriz a ção do Fe nô men o A rtístico Para com p ree n der a evolu ç ã o da p r átic a da performance e a r elação que essa ú lt i ma mantém co m a teoria, é precis o inscrevê- la na probl emátic a m ais a m pl a que to ca a que st ã o da m odernidade . "O modernismo é dominante, mas est á m orto': dizia Jürgen Hab e rma s ir o n icarnente, tornarrd o p o sição contra e s sa ideia q ue p r etende que nossa é p o c a s eja o te stemunho do fim da rn ode rnidade. A modernidade e s ta r ia e m decadência porque a ideolo g ia qu e a est r iba e s ta r i a el a própria bombardeada p ela evol u ç ão de n o s s o s rn o d o s de pensamento, que r efutam o s f u n d a m e n to s sobre o s quais a modernidade havia construído ela própria seu domínio: a recusa da noção de progresso, de norma, de a -historicidade. A performance como prática artística, proveniente de um procedimento e ssencialmente m oderno, participaria dessa ampla rediscus são d o problema? E pod er-se-ia dizer, para r etomar aqui a e xpressão de Hab ermas, segundo a qual '1\ p erforma ce art é dorn inarite, mas está morta"? C o lo c a r a questão é já respondê-la parcialmente. É verdade que o fen ômeno da performance espalhou-se muito desde o fim dos anos de 19 70, porém por mais e s p a lh a d a que e st ej a , ela tem atraído doravante tão pouca atenção que numerosos artistas e críticos anunciaram sua morte: a performance não existe mais, diz- s e, e aquelas que se realizam procedem mais do teatro do que da performance propriamente dita . N o entanto, o número de performances que é possível a rrolar na Europa e na América do Norte, e o número de artistas que a ela se consagram , revelam que essa arte, longe de desaparecer, perdura e mesmo se institucionaliza. C e r t a m e n t e ela levanta m enos questões que o u t r o r a, espanta e choca muito m enos que no passado (por exe m p lo, as pri meiras p erfo r m a n c e s de Vito Accon c i, Herma n n N itsch, C hr is B urden) , seja p o rque os

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QUE RE STA D A P ERI'ORMA N CE?

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performers se torna rarn eles rnesrrios mais circunspectos corn o passar dos anos, seja porque o público, ao contrário, não poss u i m ai s essa fac ul dade de espanto, de e n t us iasmo ou de rejeição violenta que marcou sua reação a certas experimentações fracassad as nos a nos de 1970. Nosso o l har se dobrou ao que se to r no u a no r rn a nesse d om ín io . O n o v o , o dife re n te, o or ig i n a l não m a is s uscitam a uto rnat ic arn e n te o i nteresse, riem mes mo a a tenção . Se rá rea lrne ri te que nosso o lhar se e m bo tou o u q ue a p ró pria novid a de se to rno u urna norma, se bem que o novo não seja el e rnesrno co m p le tamente n o v o ? Wi lhel m R eich respo ndeu à qu e stã o , m o st r a ndo como n o s s a sociedade c o nseg ui u re cup e r ar toda dis sidên c ia em se u se io, to r nan do, p ois, in op e rante , devi do ao própri o fa to, a r e voluç ão pro curad a . A erne r g ê n ci a d a perfor mance co inc id i u, p o rtanto, com a g rande é poc a d o mo dern ismo triu nfante d o qu al el a e n dosso u ce r tos co rri p o r tarri errtos e ce r tos a tos d e fé . Ora, dentre as ca rac t e rís t ic a s do rno d er no (que eu não retomarei todas aqui), há uma s o b re a qual eu gostaria de me debruçar porque ela toca mais e s p e cifi c a m e n te a performance: é a r elação qu e essa mant ém com a teoria . O m odern o, desde s uas o r ige ns, façam o -las remontar ao começo d e s éc u lo xx , à é poca ro m â n t ic a ou até à Renas cença, mante v e r el açõ e s p ri vil e giad a s co m a te ori a , aí buscando s e mpre a recusa d o passad o , a j u st ific ação da mudança e a garanti a do progres s o vindouro. Nu mer-o sos sã o o s rnovirnerito s artísti cos que foram pre ce d id os, acorripan hado s o u s e guido s por te orias: a s d iv ers a s vanguardas, o surrealismo, o romantismo, o naturalismo mesmo e t c. S e r á pre ciso lembrar a e ss e propósito a o n d a d o te rrori smo teórico dos a nos de 19 70? Tal relação c o m a te oria esteve fortemente presente na per forrn arice , ao menos e m seu s in íc ios. E la constituiu inclusive o em b asamen to so b r e o qual se e d ific o u a prática. E la justificou os o bjetivos da performance e exp li co u s u a s diferentes modalidades. V is ta s o b e sse ângulo, a performance não pode s e r s en ão m oderna. Com e fe ito, se u m dos s ignos "da m o d ern id ade em a r te é rea l men te a opos ição à função no r m a t iva das t rad iç õ e s

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es té ticas, a perfo rmarice é po r cer to a forma artís t ica que mais teorizo u s eus objet.ivo s . Desde as p r imeiras experiências de Cage n o Bl a ck Mo u rrtai n Co ll ege e m 19 525 a té a s expe r iências de R a ch el Rose rit hal, M eredith Mo nk no fi m do s a nos de 1970, passan do por perJorrners montrealenses como Mon ty Can ts in, Lo uise Merci lle, R ob e r Rac in e, JVl ichel Le rn ie uxvMar ie C ho u inard " etc ., a perfo n n a nce foi fe ita contra urna cer ta concepçã o d a arte e d e s ua rel a ção com a sociedade: re f ut ação d a n o ção d e r e p r e s e n t a ç ã o p or um a p r e s ença " rea l" do p erforma d or (o que le v a à recusa de todo p a pel, de toda p ers on a g em , assi m corno à r ecusa de reap rese n tar um a p erfonnan ce, p ortan t o d e e ns a ia r do m e smo rnodo q ue g rava r o aco n teci m e n to) ; o pos ição ao va lor co me rciáve l da arte (daí a rec us a d e e nt ra r n o s mus eus, d e d eix a r tra ç o s , ern o u t ras pa lavr as, de t rans fo r ma r a o b ra de arte e m me r cad o r ia) ; p r imado con c e d ido a o pro c e ss o m ais do q u e ao produto; insc rição da arte n a v i da e recusa de u m a cl ivagem que fi zesse da prática artís t ica u m a es fera a utôno ma sem incidência no rea l; recusa, é claro, d e to da catarse, n ã o tendo o espectador, mui tas vezes, n e n h u m a e m p a tia c o m o e spetáculo q ue lhe é apres entado. A p erform an ce p erdeu tarnb érn s e u valor de expe r imentação (co m o o t eatro e xperim ental, ali ás), seja p o rque a experimentaç ã o se conve r te u n o m odo h abitual d e funci onam ento d a a r te e se viu então dotada d e uma nova legitiInidade

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ALÉM DO S l.IMIT E S : PERFORMAN C E E PERFOIU.IATIVIDAlJE

E x p e r iê n c ia s q ue Allan Kaprow a ssiste , então, em sua sala d e a u la. Todos e sses p erformers o cu para m o proscên io mo n trealense n o s anos de 19 8 0 , crn b o ra a títulos diversos e co rn mai s ou menos su ce sso. Os rn a is co n hec idos de ntre e les são, se m nenhuma dúvida, Marie C h o u i n a rd , que du rante m uito tempo fez perforrnanc es e xtremamente corporais, trabalh ando seu co rpo e a matéria ( M a r ie Chien Noir ) , l'vlichel Lern.ieux, cujas perfo r mances s e baseava m n a música e na palavra (el e ap re s e n to u u l te r ior me n te espetác u lo s d em a si ado te cnolo g izado s e menos performáticos) e Rober Raci ne , que reali zou ao mes mo te m p o performances mu s icais. corpo rais e sonoras (L 'Echelle Williams) . Quan to aos out ros, Lo u i s e Mercille (Barbie, Thermes) e Mo nty C a n ts i n (Restriction s), q ue c it a m o s a q u i, p arecem ter tomado dis tâ nc ia em relação à perfo rma nce. O pro ce d i m e n to de M o n ty Ca n ts in se in sc re vi a sob re tu do e m um a forma d e perforrnunce e xi st en ci a l. e a d e Lou is e Me rc ille e ra mai s feminist a e e ngaja da.

QU E R ESTA DA P ERFORMANCE ?

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n ã o s ubvers iva, seja porque a experimen tação s im p le s m e n t e d es a p a r e c eu corn o co riceito >, É evide nte q ue as práticas atu ais da performance tend em a n o s c onvenc er d e que a r e al idade se situa e m algum a parte ent re esses d ois ext remos . A p erfor m ance perdeu igual mente certas característ icas distintas qu e c o n st.itu iarn s ua o r ig in a li da de: o trab alh o sob re a ternpo ra l íd ad e da r epre s en ta ç ã o e sobre a duração, qu e e ra es pecífic a da performan c e , inv e stiu a s o utras arte s (c i nem a, sob re t u d o ); o t r a balho so b re o corpo, q ue e r a o ce n t ro d o ato perfor mati vo , desl o c ou - s e para a i m a g em, para a tel a t elevis ada . E le n ão es tá mais n o cen tro d a performance, m e smo se aind a co n t in u a a o c u par a í um lugar importante. E le se tornou um el emento d a perfo r rnarice, e n t re o u t ros ; o trabalho sobre o esp a ço ( in ves t i m e n to em lug are s diferen tes, fora dos museus) vo ltou a cen t r a r-se nos lugares habituais d e represen tação (g a ler ias, s a la s d e espet áculos, salas polivale nte s ) . Deixou d e fi n iti va m e nte os lo cais o r iginais: zoológico (Alber to V idal), jaula (Joseph B euys ) , piscina (Ch r is Burd en ) . Voltou a u m c o n fro n to tradicional com o público em espaços eles m e sm o s t radicionais : mus eus , g a lerias. Por outro la d o , a p erformance p e r d e u aquilo que constitu ía u m a de s uas força s e m seus i níc ios: a recusa d e considera r a o bra d e a r te co rrio mercadoria. A pe rfo rmance, a exernp lo do h ap p e n ing , d evia se r ún ica . E la n ã o devia d eixar traço s , r e cusando a ssim a d ota r - s e de uma mern óri a, r e começando sempre o empreendimento d e sde a origem. Nec e s sariamen te inscrita na intensidade d o presente, ela não tinha n em passado, n e m futuro, renunci ando a todo laço que poderia assinalar filiações, anunciar u m a descendência. O mercado de arte a c ab ou p or juntar-s e à p erform ance criando v edetes presas, elas m e smas , nas malhas do s c i r c u it os comerciais: é o exemplo d e L a urie Anderson, Me redith Monk. W en dy W oodson, urn a p e rforrner d a danç a , observava recentemente que o u t ro r a ela evit ava o rótulo de pe rfo rm a nce artist porque a n oção s e ligava entã o , amiúde, n os espíritos, 7

Vale notar que a n o ção de e xperimentação d esapareceu igualmente d o domínio do teatro , bem co m o a d e teatro a lte r n a ti v o .

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c orn as pe rforrriari ces masoq uistas e violentas. Hoje e rn dia, e la evi ta sc rnpre o terrno porq ue a perforrna nce se to rn o u " slick , co me rc ia l e ru ais te a t ral n o mau se n t id o d o ter m o'" . Ac resce n te rrro s, pa ra te rrn i nar ess a li st a que não prete n de ser de modo alg um exaustiva, que a p e r fo r ma nce perde u igualmente esta pr imazia q ue e la conced ia ao processo (à criação ern faz i me n to), para se concentrar sobre o prod u to . O cu id a do co m a o b ra acabada, po l id a, está d e n o v o prese n te. O próp ri o a to d e produ ç ã o é v el a do a o s o lhos d o públi c o . Ela re in teg ro u o s b a s t idores , de ixa n d o e rn ce na u m a obra c uja i mperfe ição se ace ita, mas e m q ue t od o traço d e b r ic o la g em te nde a d e s ap a r e c er. De t od o s esses r ep a r o s , s u rge essenclalrne.nte q ue a p e r form a n c e d o s a n os d e 19 7 0 co r res po n de u a u m vas to m o v i rn en to d e subversão q ue ve ic ulava , el e p ró p r io, um a id e ol o g ia c uja força se d e via à imp o rtâ n ci a das es tr u t u ras e das prá t icas q ue ela p roc u rava d e r rub ar. O ra, tal ide olo g ia d e s a p are c eu, carregan do co m ela a força d e s u b ve rs ã o que agitava a p erformance . O d e s aparecimento des sa ideologia - e da teori a que a fu nd arn erita - exp li c a-se , sem dú vida , p el a e vo luç ão d e uma é poc a em que Jean -Françoi s Lyotard, G ia n n i Vat t i mo, E d g a r M orin, G ill es Lipovetsky e tantos outro s m ostraram a descon fia nç a qu e e la dedi c a doravante a os g r a n des co nj u nto s ( ideo ló g icos o u teó r icos) . Ora , o d e s ap a re cim ento de ss a id e ol ogi a a fe t o u a p erforman c e , na rnedid a em que e la perde u ne s s a evoluç ã o a q u ilo que lh e dav a a o m e sm o t em p o se u se n t id o e s ua just ificaçã o. C a b e r ia deduzir dessas constataçõ es que a perfo r rn ance mudou d e natureza renun ciando à s reivindicações que con s titu ír am s ua o r ig inali d a d e e que a haviam imp o sto no panorama artístico d a é poca? I s s o é eviden te por si. A p erforman c e h o je não te m os rn e srn o s p arâm etro s q ue os de o u t ro ra, p o r q u e s uas a postas n ã o são rnai s a s m e sma s , b em c omo as te ori a s q ue a s f u n d a men t a m.

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ALf.lv\ DOS LIMIT ES : PERFORM ANCE E P ER FORM ATI VID AD E

Observ a ç ões feit a s p or o casi ã o d e uma m e s a redon d a sobre a perform an ce em 23 o ut , 1987. n o H am p shi re Co llege. Arn he rst, Massac huse tts, e mencionadas por Je ani e Fc r te, Wo rn a n's Per form an c e Ar t , e m S ue-E lle n Case (e d .), Perforrning Fe rn in ísrns , Baltim ore: Th e John s H opkin s U n ive rs ity Press, ' 9 9 0 . p. 266-267.

QUE RESTA DA PERFORMANCE?

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o Na scim ento de um Gê ne ro Se q uiséssemos traçar um esboço de exp licação para o des a p a reci mento de todos ess e s fenôrneno s, diríamos que a performance d o s anos d e 1970 tinha, sem dúvida, uma função ni tidamente definida. Ela participava de um movimento de c o n test a ç ã o dos va lores vinculados trad ici o nalrne nte à arte e pretendia ser a espora de um rriovirnerito de r ej e i ç ã o d a obra artística como obj eto. Daí as rn últ iplas perfo r ma nces tomarem posição co n tra a ob ra acabada, expos ta, co ris u rn í d a , co ntra a obra como pro duto . A performance insis t ia n o s p rocessos, n o trabalho em faz i me nto, no con ta to com o públ ic o. Não é de espantar que n e ss e req uestionamento tod a s as for mas t enha m s ido a d missíve is e to das as tendê nc ias te n ham po d ido se m ani fe sta r, d e sde a a r te co nceit ua I n a t radição min im ali sta a té um a for m a d e a r te puls io n al, mais teatra l, ex is tenci a lis ta , prática i ns pi ra d a e m Artau d o u em Gro towski. D e fato , ser ia justo dizer que, n os a n os d e 19 70, m ais d o que um gênero , a perfo rmance e r a s obretudo uma funç ão ? e , como toda fu nção, ela p odia p erten c er a práticas e artes diferentes. E s ta distin çã o que des ejamo s fa zer aqui e n t re função e gênero nos permitiria exp licar n o que a p erformance de hoje difere daquela de o n te m e po r que e la p ode sob r e v ive r enquanto s e us objetivos e as m oti va ç õe s q ue g u iam os artista s n ã o s ão mais o s m esmos . C o m e fe it o , se a p erformance fo i, ante s d e tudo, uma fun ção - fu nção d e despertar, d e provo car, d e t omada de posiçã o co n tra a tradi ç ão, d e instituir relaç õ e s diferente s entre a o b ra e o se u público - el a não tinha gênero o u forma e sp e cífic a , ainda que uma multidão d e práticas tenham s id o catalogadas s ob tal d enomin a ç ã o.

9

Em um artigo redigido em 19 8 0 (Une Nouvell e théãtralité : La perforrn ance, R e vuc fra n ça ise d 'études a mér ica in es, n . 10 , out . 198 0 ) , Régis Durand observava que a performance não é nem um gên ero, nem u m a arte, ta lvez u ma função, s u b li n h a n d o então q ue se r ia p o ss íve l referenciar u m a funç ão performa nce e m quase todas as artes . Haveria assim uma performance interna a uma arte, e uma performance pura, isto é, d esembaraçada de toda hegemonia de gênero . Tal ideia da p erforrnance co m o fun ção se n o s a fig u ra interessante, co n q u a n to p are ç a di fícil o pe ra r um a aprox imação ent re a p erfo r m a n c e i nter na a uma a rte (o teat ro. p or e xem p lo) e a perfo r ma nce p u ra . Sem d ú vi d a . o rn orri ento e m q ue R égís D ura nd efe tuava esta a nálise ( 1979. p ortanto n o pre ci s o in íci o d a p er form an ce ) ex p lica tal co men tá r io.

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AL I";,"I D O S LIM IT ES; PE R F O R M A NCE E P ER FOIUvlATl VID AD E

E ss a di v e rsid ade d a s p ráticas e d e fo r mas às quai s as p e rform.a nce s re co rre ram n ã o pode, todav ia, es c onder o fato d e q ue e s sas últ im a s tinham, to das el a s , uma s ó e JneS n la. fu nç~o : a de c ontestar a o r d e m a r t ís t ic a e e s téti c a que pre v a lec ia e ntao. Não é , p o is , espa ntoso q ue a p erformance desaparecess e co rn o form a q uando a função que lh e foi a tr ib uída v e io a ser p r een c h ida . Inc u m b ê n c ia que a perfor m a n ce parece haver execut a d o rn u ito b er n. É c e r to que n o s di a s de h o j e a perfo rma n c e, o u a q ui lo que d el a s ubsist e , n ã o p reen c he m ais essa m e s m a função . E la p a re ce in clu s iv e não p ree ncher ne n h u ma f u nção que con stituiria o d en o min a d o r CO IDum d a s prát icas atuais e d a s qu ais se po de r ia d iz er que sejam e s p e é ífic as à própria p erformanc e. F a to que p o d e ríam o s tradu zi r e m o u tros t e r m os a o di zer que um ~ r t is_t a que esco lhe hoj e a perform anc e co rn o m od o d e exp res ~ao nao profe r e fo r ços a rne n t e um dis curso a c e rc a de s u a re la çao com a arte , o qu e o u tro ra e le faz ia n ece s sarianlente. E sco lhe r a p erformance hoje, não é mais, portanto, e s colhe r COlDO prioridade uma função ; é optar acima de t u do por uma forma, um gênero ta lvez, q u e permita ao artis ta p r onuncia r um dis curs o , primeiro sob re o mundo e acessoriamente sob re a arte. No p roced ime n to do p erf orm er, a s preocupações formalist a s n ã o são m .ais p r imazi a s. O art ist a s e preocup a d e n o v o c o m a m ens agem, c om a s ig n ificaç ã o . E quando ele faz intervir as tecn ologi a s na c e n a (recorrendo ao vídeo sobretudo, mas tam b ém ao fil rrie , à foto e tc. ) , e s sas últimas es t ão lá apenas c o m o s istemas d ife ren tes p ara aj u d a r a melhor const r u i r o se n t id o . E s s e rec urso às t e cnolo gi as n ã o ve icu la rn ai s e m si m e sm o uma forte posiç ã o ideológica concernente ao valor artístico dess.as mídias. O lugar destas ú ltimas é doravante u m lug a r coriqu is tado e não s u r p re e n de ma is. Aí está o deslizamen to ( sh ift) imp ortan te ocor rid o no do mí n io d a pe rfor ma nce a par t ir d o s a nos d e 198 0 . A p erforman ce n ã o é mais uma fu n ção . E la se tornou um gên ero e, c o m o tal, el a p ôde por s u a v e z, como todo gênero, preencher vár ias fu nçõ es ( d e d enúncia, ritual, di scurso sobre o mundo, s o b re o e u ), t udo a q u ilo d e q u e n ã o se priv am o s múltipl o s artist a s qu e a e la s e e nt regam .

o

Q U E R ESTA D A P ER FORMA N CE?

17 7

A LG UNS E XE M PLO S DO S A NOS DE 199 0 E u gos taria d e to ma r aqui trê s e x e m p los q ue abrem o d ecêni o d o s a nos d e 19 9 0 e qu e il u stram bem ce r t a s forma s d e qu e a perfo rman c e at ua l p o d e se r evestir, fica ndo d e sde logo e n te ndid o qu e to d a práti ca e m s i é ú n ica c q u e nen h uma entr e elas p od e, sozin h a, servi r de te ste munh a do co n j u n to do gê ne ro. As du a s pri m e ira s pe r for ma nces tê m por a uto res vetera no s d a a rte d a pe r for ma n ce, p ois se trata de R a chel Rose n t ha l, d e um la d o , e d e M arina Ab r a rn ov i ó/Lllnv, d e o u t ro. A últim a é a de u m a jovem p erform er d e origem qu ebequ en s e, Mar t irr e C h a g n o n , pro veni ente d o teatro. E sses trê s exem p los s u b lin ha m a t ít ul o s divers o s trê s fo rmas d e p erformances e três relaç õ e s co m o se n t ido. Essas performances oco r r erarn, todas , n e s s e s ú l t i mos a nos: a d e M a r i n a Abram o v i ó e m 1988 , a de R a chel R o sen th al na prim a vera d e 199 1 e a de M artin e C h ag n o n n o o u tono d e 19 9 0 . A . O Percurso da Muralha da C h in a : um caso l im ite q ue não mais tor na a questio na r a f unção d a a r te .

Em 19 8 8 , Marina A b r a rn o ví ó e Ulay, conh e cidos n o mundo d a s artes desde o c o m e ç o dos anos d e 19 70, e m p re e n d ia m s ua últ im a performance corn urn . Essa deveria m a r c a r s ua separação. Daí por diante, eles i r ia m um e outro s e g u ir cami nhos s e parad os e , para s a l ie n t a r e sse fato , decid iram r ealizar c o n j u n tamen te u m projeto que lev avam a p eito há muito temp o e que cons is t ia e m percorrer em toda a s u a ext e nsão a muralh a da C h i n a , p r o jeto conceb ido d e sde 1980, no tempo de sua co laboração. A performance deles consistia, pois , em um traj eto, uma t ra jetó r ia de fato , que ia dos con fi ns da Á si a ao Pacífico . T r atava -s e de atravessar a C h i na e percorrer s ua muralha, única c onst ruç ã o humana perceptível do e spaço. Cad a u m dos d ois d e via partir d e uma extremidade da muralha e c a m in h a r ao e n con t ro d o o u tr o . Ulay partiu dos confins d o deserto de G o b i, Marin a da s cost a s d o Pacífic o. A m archa solitár ia devia durar trê s meses , ao t ermo d o s q uais e las d e vi am -s e e nco n t rar p ara se sep a r a r p a r a todo o se m p re .

ALf.M D OS LIMITES: P ERFORMA N CE E PE RFO R MATIV l lJA DE

17 8

A per fo rnlance p r o pr i arne n te dita consis tia, por certo, na p ró pr ia ca mi nhada sobre a muralha da C hina, caminhada q ue im p licava um desgaste f ís ico d o s d o is performers, ass im co mo um desloc amento c u ida dosamen te traçado, mas, para ser exato , seria preciso sem d ú vi d a inclu ir também, como fazendo parte da p erforma n c e, n ã o só t odo o trab alh o prepa r atór io n ece ssá ri o pa ra o ace r to fina l d e ss e pro j eto e a organização d e ss a longa v ia gerri - trab alh o q ue du rou vá rios a nos e req uereu tal e nto s de negociações impo rta n tes a fim d e se obter to das as a u torizações necessá rias, de plan ej a r o traje to, d e organ izar a chegada e as co n d ições d e ss a exp e r iê nc ia - m a s t a mb ém t od o o t rab alho s u bseque n te: produç ã o d e um film e , expos içã o, fo tos, criação d e o bras d e a rte inspi r ad a s p el a vi a g em e tc. Se ria dem a siado long o r etomar a q u i to d as as etapas d e ss e labo r qu e s e tornou o b jeto d e um g rosso lbu rn" e m que são retra ç ado s o s dife rente s m o me n tos d e ss e p ériplo , m a s é inte re ssante s u b li n h ar que os traços restante s d e sta ave n t ura (fi lme, á lb u ns, fot o s , e x p o s ição, comentá ri o, relato ) são os úni c o s m eios do público tornar c o n h e c i me n t o desta p erformance e, portanto, de "v ê- la". O interesse dessa p erformance é por ce r t o que ela c o n s t it u i u m c aso extremo e m face d o qu al a ge n te se interroga sob re os li m-ite s da perform ance e s o b r e o s e u se n tido h oj e e m dia. Com e fe ito, m e smo se os a r t is t as insi stem que para el e s se tratava ap enas de uma viagem, toda a e m b a la g e m artística que envolve u ess e longo périplo (e ncenaçã o , câmer a, álbum, exposição, filme) milita e m fa vor d a transformação d e sse eve n t o e m perfo r m a nce. Essa levanta, e n t r e t a n to, ce r t as interrogaç õ es : á

1.

A imensidade do trajeto a realizar e realizado (perto de

4 mil km) , a ssim co rn o a duração da ex per iê n c ia (p e r to d e três

m e s e s ) não r ep õ em e m discuss ã o a própria n o ç ã o d e performanc e? As exp e r iências t eatrais d o s a nos d e 19 7 0 , a s d e Bob Wilson, a s d e Jean -Pierre Ronfard e m Quebec", j á nos haviam 10 11

Marina Abramovic; Ulay, Th e Lover s, Amsterdam: St e d e lij k Museu m , 19 89. Em 19 81 , Jean -Pierre Ro nfard , do lhéâtre t xperimental d e Mont réal , c o nce b ia c punha e rn ce na u rn a ob ra mo n u me n ta l intitul ad a Vic e t m o r t d u roi boi t eu x ( Mo n t rea l, V L B . 19 81) . Apre s ent ada n o com e ç o e m trê s repre s entaç õ e s , a obra foi le va d a em s u a ín te g ra ern j un . 1981 e d u ro u qua s e doze hora s .

o

QUE R E ST A DA P E R FO RM A N C E ?

17 9

mostrado que a duração faz parte íntima da experiência estética, mas até onde se pode levar essa relação com o tempo e o espaço? O problema aqu i n ã o é tanto a natureza, ela mesma, do p rocedimento, porém o fato de que uma tal experiência artística exclui a possibilidade de que tenha um público, ainda que fosse u m es pec tado r único. E la s ubli nha q ue, no limite, a p erform an ce é feita essencial m.e n te, se não u n icarneri te, pa ra o próprio a rti sta. Se admitirmos tal afirmação, q ue n ã o n o s s urp reen de d e s medidame nte, v isto q ue a q uestão já se h a vi a pro p o sto ao te atro n o d e correr dos a nos de 1970, s u rge e n tão urn a o u t r a questã o : q ue di ferenç a há e n tre essa p erformance e a de um explorador q ue d e c ide re alizar uma fa çan ha: esca la r um pico ro chos o , p or exemplo? Se rá que o in tu ito d e realiza r urna o b ra a r tí s t ic a é em s i su ficiente? Será que o o lho d a câmera, a fotomontagem e a expo s ição q ue se seguerTI b ast a m para tr ansformar a aven t u ra inicial e m p erformance ? Com p reen der-se-á que a questão o culta por trás de tal interrogação é refe rente à n a tureza e à finalidade da arte. A diferença e n t re essa p erformance e as dos anos de 19 70 se deve ao fato de que a questão aqui colocada sobre a função da arte emerge de nossa própria interrogação e não daquela do arti sta. Se o s artistas a tivessem, eles mesmos, programado e teori z ado, teríamos re encontrado o gênero de preocupaçõe s qu e a p erformance dos a nos de 19 7 0 e 1980 veiculava de bom g r ad o . Mas, renunci ando a tal preocupação, transformando essa aventura em uma simples viagem, Marina Abrarnovic e Ulay s u b lin h a m bem a guinada que a p erformance deu nos dias de h oje. E la n ã o t em mais a fun ç ão de requestionar noss a relação com a a r te. E la não é m ai s s e n ão um gênero que veicula ideias so b re a distância, a duração, a multiplicidade dos povos etc. Isso ressalta que a distância tomada pela performance com respeito à s que stões teórica s por nós a p o n t a d a s mai s acima, constitui um a de s uas carac terís t icas a t u a is . 2. U m a performance sem público pode ser considerada uma p erformance, ficando entendido que o s espectadores oca sio n a is e n co n tr a d os por n o ssos dois p erform ers n o curso desse longo p éripl o , o foram a pe nas c ontra a v o n t a de, sem dúvida u m pouco s ur presos de ver esses-viajantes d e um o u t ro m u n do passar e m se u h o r izon te co t idiano?

18 0

C o m e fe ito, o ú n ico o lhar di reta n o d e c orre r dessa viagem fo i o d e um a c ârne r a , mas esse n ã o fo i n ern exa ust ivo , n em co mple to. Ulay n ã o pôde v ive r a p erformanc e d e J\tIar ina qu e , por s ua vez, n ã o p ô d e efe tu a r a de U lay. Necessar iame nte frag m e n tária, i m plic a n d o urnu co ns t r ução a post erío ri d o s d ife ren tes â ngu los de v isão, a expe riê n cia a ssi m transmitida n ã o co n to u c o m n enhum p ú b l ico pro p ria me n te dito, exce to os p ró prios pa r t ic ip a n tes que t ivera rn de aco rn p a ri h a r os d o is p erforrn ers n o trans curso de s ua v ia ge m - técnico d e c ârne r a , assistente, g u ia - m a s esses último s n ão e s c o lh e r a m se u pap el como público . S ó o o l ho d e uma c âme r a, pois, estava lá p a r a im ort a lizar a lgu ns ex tratos, e e sses ú lti mos n e c e ssa riam ente f ragrnertt ár io s, irnp oterite s para reconsti t u ir a duração, s ã o o único tra ç o que nos resta di sso. A í a in da a práti ca artística m ode rna n o s habituou a aceitar o fato d e q u e uma obra a r t ís t ic a existe m e smo sem público ( po r exe m p lo, a lan d art que dificilmente podia escapar dessa regra), p orém , o qu e n os parece m.ais intere s s ante no exemplo que damo s aqui, é que, malgrado a ausência de público, por ocasião da performance, houve, não obstante, espectadores: es p e c t a d o r es do filme, da exposição. Esses últimos puderam a p ost eriori "ass istir " à viagem, reconstituindo-a a partir dos traços apres entado s. Puderam, pois, efetuá-la como p ercurso mental. Ta l o bse r v a ç ã o sublinha, no caso, que há um efeito a posterio ri da performance que é muito importante, valorizando uma característica do fenômeno performativo: é que ele age, amiúde, c o m o traço, com o transbordamento. O essencial daquilo que se p a ssa para o e s p e c t a d o r não ocorre forço sarn erite'" no próprio lo cal da perfonnance, mas alhure s , depois . C u m p r ir ia estudar a performance como " p o lí t ic a de restos" p ara mostrar que toda performance, mesmo hoje erri dia, é inte ressa n te m ais pelas interrogações que s u s c it a, do que pelo não dito que nela s e discerne, mais pelo que ela d eixa subir à superfície d e nos sas próprias incerte zas. A p erformance de M arina Abrarno v í ó e d e Ulay é, neste sentido, e x e m p la r e permanece, ainda, muito próxima, no seu espírito, das performances dos anos de 1980. A de Rachel Rosenthal é algo totalmente diferente. 12

o

ALÉM DOS LL"vllT ES: PERFOIU"IA N CE E PERFORMAT IV ID ADE

Cf. Ma r iria A b r a ruo v ic e U lay, N ig h ts ea C ross in g, em cujo t r an scurs o . du ra nte \/0 dia s n ã o consec u t ivo s ( 19 1:1 1- 19 8 6 ), e les fica ra m se n ta d os, face a face , em s ilê n c io e sem u m s ó gesto. de u m lado e d e o utro d e um a m e s a .

QU E RE STA DA PERFORMAN C E?

181

B. Pa ngeia de R a c h e l R osenthal. San D iego, a b r il de 1991 : um te m a p olític o. Sobre um palco à it a li a n a , co locando, por tanto, face a face o públi c o e a a r t is ta e rn urn a relação f ro n tal tradicional, s u r g e Rachel R o s enthal e m uma cade ira d e r odas . I nválida, e n co letada p or todos os lado s , co bert a d e tala s e segu rando um a bengala, ela profere um dis cu rs o sob re o e nvel h eci men to, o abandono d o c orp o , a impo tên c ia , a fraqu e z a, a morte. O "e u" qu e ela utili z a n o se u di s cu r s o reme te, d e ma ne ira ambíg ua, perturbadora, ao m e s m o terrip o a Rachel (q ue p a re c e não po de r m ai s s e m e x er) e a Te rra , a Gaia .". D e rep ente R a ch el se inte r romp e , se levanta ela c a de i ra d e ro das e se d e s fa z brutalm ente de seu aparato d e inv álid a, c o n t in u a n d o ao m e sm o temp o a falar. À m edida que o discurs o se d esenvolve, c o m proj e ç õ e s d e imagens de rnovlrneritos telúricos, c o m p r ee n de-se qu e se trata de refazer a unidade p erdida e d e r e in te g r a r a um só temp o o Eu e a Terra, e também a mulher e m geral. Os movimentos mal coordenados do início convertem-se em uma dança e Rachel canta e baila a unidade a ser reencontrada em uma perfonnance que cons egue ser concomitantemente um discurso engajado, autobiográfic o e feminista; o mais impressio nante, sem dúvida, é e sse modo que a artista encontra para dizer "eu" falando ao rnesrno tempo d a Terra Mãe que trata de sa lva r. As palavras não são maneirosas, delas se desprende uma verdadeira força que provém do próprio poder da artista que espanta por sua energia e imp õ e s eu talento in contest ável '. Assi m fazendo, ao tomar o corpo como matéria-prima (e n ã o a rn ús ic a o u a t e c n olo gi a co m o o faz Laurie A n derson), a p e r fo r m a n c e de Karen Fin ley se aproxima da body art d e B

9

É, ce r ta me n te , presunçoso, qu erer c a r ac te r iza r as p erformanc e s atuais c o mparand o -a s à q uelas d e o u t ro r a, m a s o e x ercíci o n ã o vi sa aqui ap enas v e r onde e stã o os limites da própri a performance . Eles parecem e st ar no "e s p e t a c ular" de um la d o . do qual versa Laurie Arglers on e , d o o u t ro . o " tea t r a l" d o qu a l s e apro xim a K aren Fi n ley. C h r is top he r La s ch , Th e C u lt ure of N a rc iss is rn: Arn erican L ife i n ,m Age of Diminishing Expecta t io ns, N c w York: W .W. Norton , 1978. '9 79.

ALf:M DOS LIMI T ES: P ER I' ORMA N C E E PERI'OIUvlATI VID AD E

DA ESTf:TI CA D A S EDUÇÃO A DO OBS CENO

an tigamente . Sabe mos que ou tras p e r fo r m a n c e s de Ann ie Sp r i n k.l e '" irão a inda mais lo n g e nessa via, extravasando a í também a performance, cortejan do co m os limites da arte para tocar no que poderíamos por vezes chamar de soft porn . Essa preparação de con tex to te n do sido feita , ten temos estudar ago ra as du a s perfo r ma nces d o ponto de vista de seu relac ioriarrierrto com o corpo, a lin gu a g em, a tecno logia, Com o espec tador, com a m an ipula ç ã o d o s signos.

aCOInpanhando -se d e nxtr u rn e rr to x de músi c a origi na is : v iolão rernendado, gra vata transforrnada em s i ntetiza dor, qu e se transfornlam e rn s e u s parceiros d e cena.

19 4

LAU R IE ANDE RSON: UMA ES TÉT IC A DO DESC O NTÍ NUO E D A S ED UÇÃ O

í

A Pura R ess onân cia dos Vocábulos As pa lavras são raras , os relatos quase inexistentes, as frases são pron unciadas soto vo cce de modo atonaI, as fonte s de emissões da voz s ã o multipli cadas. A voz sai amplificada, tran sformada, multissex uada. Os sujeitos d e e nu nc iado deslocam -se, fazem eco. Sim La La La La (Yeah. La La La La) A qui. E Lá . (I -lere. And t here) O h Sim (Oh Yes) Essa é a li n g u a g e m do a mo r. (This is the la n gu age of la ve ) 00000. Oh yeah. (00000 . O h s im .) La La. A qui es tá . Lá está. La La . ( He re it is . There it is. La La) Essa é a linguag em d o a mor. (Th is is the langua ge of Lave)

Dos.Objetos q ue P ro d uze m S ign o

A p erformance d e A n de rs o n a ssenta -se inteiram ente sob re um relacio nam e n t o quas e erótico com a tecnologia" : músi c a , v íd eo , microcomputador, diapositivo. Recusando todo naturalismo, su a abordagem é r e solutamente estética, projetando s o b re a tela d e senhos, representando e m g eral signos que dialo gam c o m as p alavra s das canções: univ erso de d esenhos infantis, a lfa b eto ideogramático mais pró ximo d o s elementos d e so n ho d o que do re al que a p erforrnan c e pretenderia levar em ce na. D e sfilando a ssim pássaro, a v ião, casa, cava lo e tc. enquanto um a cl aridade mu it a s v e z es un iforme (azu l, a m a r ela, d ourada ) b anh a o a r t ista e a tela d e um m esmo h al o . O artista entra n a t ela, se projeta sob re e la, se inte gra a e la ou se -d is t a n c ia dela d e aco rdo c o m os momentos . A músic a c o n s t itu i a trama esse ncial, so no ra, h armoniosa que liga todos o s elementos entre si e n q u a n t o dançar i nos e cantore s acompanham a partitura do arti sta. O hu rnor não e s tá aus ente d ess e quadro: p ers ona g ens um tanto paródicos por s eus c o s t u mes permitem um p ercurso no mundo (Japão, C h in a, M éxico ) enquanto Lauri e Anderson, se r andrógino ne sse universo, dirige todo esse co n j u n to 10 11

Cf. Annie SprinkJe; Marie Beatty, 7he S /u ts a nd Goddesse s Video vvorkshop or How to Be a Sex Goddess in 101 Ea sy Steps, New York, F ilm Filrn, 1992. 52 min o A nderson t em amiúde fa lad o da fa scinação que a tecnologia ex erce s o b re ela. da s e ns u a lid a de das m áquinas . desse poder qu e ela con cede . Cf. Le R oman ti sme de la techno logie, Art Pr ess, n . 38, p. 2 4 -26. jun . 19 8 0 .

19 5

O s vo c ábulos m al têm s ig n ificado. Es tão lá p el a s sonoridades que carregam , pelo se u timb re , p elas s uges tões q ue evocam, m a s n ã o se e ncontra m a p r isio na das e m rierrh urn a si n taxe, em nenhum rel ato , estão liv r es p a r a s uscitar im ag ens o u n ã o s uscitá-las . A d iss olução dos so ns respo nde à d issolução d a s im ag e n s. O estatu to d e to dos esses s ignos - v is uais e sonoros - pro je tados o u evoc a dos é part ic u la r n a m edid a em qu e p erd e ra m toda h o m o g eneidade e con ti n u idade ent re s i. Eles apare c e m , seg u n do a ex p re ssã o d e R égi s Durand, como "s ig n os flutu antes d e valê ncias múltipla s , s uscetíveis d e e n t r ar e m divers a s com bi na çõ es d e acor do com a e nerg ia d a q ual e les são p o r ra d o r es? v.

Um a O rganização Por S o bre im p ressão É que s eu modo d e o rga n iz ação n ã o é o d o rel ato o u d e um a n arrativ a qualque r qu e seja, por érn a n tes a d e um a orga nização 12

Ré gi s Durand. L a Performa n c e et le s limit e s . . .. o p. cit., p. 40.

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A LÉ M D O S LI MIT E S: P ERF O R M A N C E E P ER FO RM AT rVI D AlJ E

por camadas sucessivas, sob rei mpressão (os algari smos que se s ubs t it u e rn u ns aos outros e se mu ltipl íc a rn ), por superposição (L. Anderson como e ixo do radar projetado sobre a ce na q ue se c r ia n a t ela), repetição (algarismos multipli cados : o depo is 1 depois o depois 1) , por desl o carne ntos , t ransl a ção v. Eles se apagam, se tra n sfo rrnarn ao olhar (a casa se transforma em pictograma que se transforma por sua vez em im p u lso). O espetáculo procede por inscrição e s upressão de traços, por escorregadelas f urt ivas. Não há choques v iolentos, nem r upt uras sal vo a q ue d ivi d e as "c e n a s" ou os a tos e ntre eles .

D A ESTE:TI CA D A SE DUÇ Ã O

A DO O BSCE NO

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s ignificado se esfu m o u. Es ta mos próximo s do "efeito c i ne ma" tal co m o o d efi niu R eri é Paya n t » a part ir d e W B en j a m in. A razão principal vem de que a sintaxe de conjunto, tão ri gorosa quanto seja, es c a p a a toda lógica racional: o s s ig n os aparec em a n te s como um alfab eto que o artista propõe. Eles constituem u rna linguagem c uj a s regras e as c o m b in a tó r ia s somente são dele conhecidas. Es ta b el e ce -s e assim sobre a cena uma dinâmica que projeta o espet áculo constantemente à frente.

Um a Economia dos Signos

Uma Poética do Fragmento Esses s ig nos só rnarit êrn corn seu r e fe ren te um e lo rn uito té n u e e fragme n tá r io. E les não es tão lá p r opriamente a fa la r p ara rele m brar, m as p ara abrir cami nh o s múltiplos n o s qu ai s o imagin ário do espec tad o r pode se aventurar. T entando r eaproxírn ar a p er for mance d o t eatro, c o m o d es ej av a A r t a u d, R. Durand n otava que a performance marca o fim d e uma "dramaturgi a d o c onflito" e opta d eliberadamente p o r um o u t ro modo d e co m u n icação mais p r óxirno d o r i t u a l, em q ue a in d etermina ç ã o tem se u luga r ass irn c o mo a v a riabilidad e os s ig nos » . A p erfo r m a n c e d e L. A n d e rson ofe rece - n os a ilust r a ç ã o p erfeita. Os s ignos que n o s são d a d o s ve r não são jamais un ívocos. Necessa riamen te fragme n tár ios, se m p r e a prese n ta dos fora d e co n texto, e les n ão r e env ia m ao real p elo fa to de n ã o serern p ort adore s d e s ig n ifi cado . E les "fazem s ig n o': co mo di zi a Artaud, eles r elemb r a m, eles lanç am o i m ag i nário d o espec tador sob re u m a pista , m as não o d e íx a rn a í se ave n t u rar p o r muito tempo. Sua rapidez d e a parição e de s ucessã o sob re a tela recon d uz o espectador p ara outros lu gares , la nça-o desde logo sob re o u t ras p istas que n ão a q u ela para a qual el e naturalrnerrte iria, se estivesse inteiramente livre p ara segu ir o s atalhos ofere cidos ao seu o lhar. O s si gnos aparecem a ssim c o mo "significantes" v is u a is c ujo

Jean -François Lyo tard observava que o tea tro oscilava sempre entre u rn s iru b ólico e um econô mico' 6 • Corri L. Anders o n es tamos b e m no do rn íri io do ecori ôrnico, u rna econo m ia d o s s ig nos e m q ue o fluxo a le v a ac irna d o se n ti do e e m q u e esse últ imo apa rece corno fora do tempo , le vad o n ã o pel o s vo c ábul o s, n em pelas imag ens, n em m esmo p ela própria a r tis ta, mas p ela conjunção global d e to d o s o s el em entos cénicos . D esse s e n t id o, o es pec t a do r é o único d ep o sitári o. É ele q.uem o fabri c a , quem, o co ns t i t u i, a partir d aquil o qu e o espetac u lo d e sp e rta n ele. E, pois, do traba lho dele q ue d e p ende n o fina l do percurso a significação - se h ouv e r u m a - qu e e le o porá ao a n damento da p e r fo r m adora . De fato, co mo tive mos ocas ião d e diz e r a n terior mente, a perfo r mance em s i não tem se n tido, po is n ad a tem a di z e r. E m cOlnpe nsação, e la faz se rit ido v, 15

16 13 14

I b icie rn , p. 50 . I b id e m , p . 51.

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C f. ~O c in e ma [ .. .) produziu no espectador um choque e não pode se r percebido sena~ graças a um esfo rço acentuado de a tenção. A cada imagem projetada, recebida pelo espectador, s e substitu i rapidamente uma outra a qual o olho deve se readaptar. O deslocamento . que cara cteriza o reencontro do espectador e da obr~, o efeito deste s o b re aqu ela, e que provoca a ansi edade (a experiência da a us e nc ra d e s e n t id o . da d eso ri entação) quanto à co n t in u a çã o, ao desenrolar. ao desenlace . O espectador de cinema d e ve , poi s , de algum modo, agir: se reajustar, se .t r a n s fo rm a r: se instalar n o mundo aberto pela obra. Ta nto em Heidegger q~anto em Benjarn ín, o c hoque-des locamen to q ue definiu a experiência estética nao desemboca ~ m ~ ma in teira fa m iliaridade. O m undo exposto pela obra já é marcado por oscilaç ão e ntre o es tran ho e O familiar '; op. c it., p . 13 6 . Cf. também Note s sur la performance, Parach ute, n . 14, p . 13-15. pri n temps 1979 . J. -E Lyotard , La Dent, la paume, Des Di sp ositifs pulsionnels, Pari s: U G E . , 19 73 . p . 95 (c o I. 10118 ). -

C r. ). Féral , Performance et théâtralité . Th éátralit é, ecr it ure et mise en scé n e, IlMH :

Montréal . 1985 . p .

12 5- 1 4 0

.

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A LE M D O S U ,\.1IT E S : PER FO R MA N C E E P E R FO R M AT I VI D AD E

A C o ns tr ução do S entido Perten ce ao Especta d o r

o

esp e ctador p ode apenas s e deixar leva r p or e s s a s u cessão r áp ida e ininterrupta d e sen sações. E le retira daí um a impr essão de libe rdad e ext re m a na medida em que não te m difi culdade d e apreender o espetác u lo em s ua g lo b a li d a d e . Tal vis ão po d e a p e nas se r fragmentár ia, parcelar se m u nicidade e sem c entro. Ele é a p risio na d o er n um quase r itual de r e cepção em que a o bra penetra n e le de m aneira insistente , p o r érn el e aí pennanece se m p re e stran ho. D e fato, não h á fami liari dade p ossível com o q ue lhe é dad o ve r : e le r econhec e o s fragmen tos , rn a s s u a percepção viaj a se m cessar do fam iliar ao insóli to. Se as imagens são, todavia, s e m p re iden t ificáveis, a j ustaposição de algumas de n tre elas, su a s ucessão, s ua s uperposição é tão rápida que o espec tador pode apen as se deixar levar pelo fl uxo. Sua percepção fica sem cessar desorien tada, daí o s enti mento de estran heza, de d istanciamento que se apodera d el e . U m certo deseq u il íbrio a limen t a do p ela artista se ins tala, d es equilíbri o que é fonte d e uma extrema liberdade, p oi s é ness e interstício p ermitido que pode s urgir t odo o im agin ário.

Os Meca nismos Colocados a N u C e r ta mente o mundo nos é dado a v er p or migalha s , p or s ugestõ es, m a s o espectador p erc eb e n e s s a m e sm a ocasião a n u dez dos m e c a n is m o s colocados e m ce na. E le percebe, p o is , tan to a pro du ç ã o do mun d o evocado qu ant o o p rocesso d e s s a pro dução. A p a s sagem d e uma t e cnologia a o u tra, de um modo de c omunic a ção a o u t ro (s om, imagem, vídeo, di a p o s itiv o s) ar t ic u la div e r s am ente o espaço e coloca n e c e s s ari a m e nte o espec tado r n o exterior desse un iv e r s o . O pro ce s s o n a r r ativ o (mesmo se não é li n e a r ) é ap reen d ido ass im como um e nco n t ro d e diferentes rnodo s de c ornurricações, como o e nco n tro d e fragmento s d e univ ers o s diferentes ( m úsica, i mage m , dança, p or exe m p lo) . P el a p ró p ria estr utura de compos ição de conjunto, o e fe it o de e n q u a d r a m e n to restritivo fica abolido. A atenção do e s p e c t a d o r viaja de um lug a r a o utro, da tela à pe rformer, da

DA E ST!ôTI CA D A SE DUÇ Ã O A D O O BS C E N O

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perf orm er a o s dança rinos . S u a a tenção torna -se flu tua n te e o esp etáculo s e constrói n e ss es deslocamento s p errnan e n t e s que a estrut ura do esp e tá c u lo lhe impõe. Seu o lhar é sed uz ido , co m o o é seu o uvid o . Não há n enhuma p r escr iç ã o , n e nhum mod o de e m prego e a apli c a çã o de to d o di s cu rs o e r u d ito s e esgo t a . Sua p e r cep ç ão fic a a ssi m ma r c a da p ela p re n hez das ima gens , p ela p ersi stên ci a d e algu mas d e nt re elas e p ela dissociação q u e s e o pe ra e n t re a s image n s pe rcebidas e se u s e n tido ime diato, evidente . T a l d is t â n c i a pe r m ite a e me rgência d a v is ã o crítica . Na a u sê n c ia d e to da d iret iva o u d e uma na rra ção qu e imporia um d esenv o lvim e nto do relato, é o es pec t a do r que co n s t ró i a o b ra e m último rec u rso. Esta só exis te n el e . Artaud reivindic ava uma escr itu r a não v erbal que t iv ess e o rigor da s in taxe e o fluxo d a s puls õ es . Se r ia p resu nços o a fi r m ar que as performances d e La u r ie Anderson resp orrdarn a essa definição quando sabemo s a importância que Artaud dava à presença do ator e ao seu c o r po, eleme n tos que não estão no ce ntro da performance d e Anderson. É preciso, e n tretan to, reconhecer que a força d a performance que analisamos a q ui depen de, contudo , d a e mergência d e u m ve rdadeiro dis cur s o n ã o verbal glo ba l em que to dos os elementos d a repres entaç ã o participam d o conj unto e n ã o existem de m aneira a utônoma. A força e a sedução que opera Anderson dependem d ess a independência e simu ltanei dade dos dis cur s o s que s ed uze m incontestavelmen te n a m edid a em q u e deixam e sp a ço ao fluxo das p u lsões, à via gem d o s entido, ao surgimento do imaginário. Sentimo-nos bem tranquilos e m uma esté tica do d e scontínuo e da dispersão, uma estética da sedução tal como a definia Baudrillard. Talvez seja esse u m d o s s ignos rne rio s contestáveis d o p ó s -m ode rnism o.

KAREN FINLEY: O FETI CH ISMO DO C O R P O

Um Corpo Teatra lizado Por s u a vez , a per fo r ma nce d e Firjjey é b a s e ada so bre o e x ibi cion ism o d o corpo. C orp o q ue e la d e snuda , q ue ela unta, q ue ela recobre de confete s, qu e e la veste, que ela manipula. Seios

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AL ~"1

que ela se n te o p eso, que e la deixa à mostra. E o espectador se vê hipnotizado por tanto d ese rnb araço '", por uma t al au s ência de pudor. Transpondo rapidamente o período de desvela ção, aq uele no qua l o fantasma se alim enta, ela vai di r eto à revelação e p or assim fa z ê -l o o d e s m iti fi c a . Mas ao mes mo t e m p o ela provoca o c hoque d o o lh ar, aquele que s e asse n ta s o b r e u m corpo torna do m at ér ia: corpo objeto, corpo ferramenta, corp o vaz io, corpo oco, sem id e n t id a d e do s uj e it o , sem sensualidade, sem erotismo. C o r p o do qual s e r etém apena s a nu dez, nudez provocante, pois e la parece gratuita . O corpo faz e ntão o s igno. Seu d e s n ud a m ento é por ele rriesrno o sig no e esse corpo n u apa rece d e nun ciador d e todas as censuras d a s q u a is a sociedade o responsabi liza. Co r po sexuad o, corpo d e m u lh e r, afirm a do como t al , p or iss o c o r p o d e poder. Co ntra r ia men te à perform a nce de L. A n derson, o co r p o de Fin ley se e n c o nt ra e n fe i t içado, i nce nsa do. E le é apre s e ntado co mo lug ar do d e s ejo, lugar d o fa n t as ma que a arti st a quer li b e rar, m e smo ao preço de violências aind a m ais fort e s. Tudo s e passa n o i ns t a n te. O t empo s e aboliu. Não h á mais nem p a s s ado , nem fu t u ro. A p e rfo rmadora es tá lá "p o r in teiro" e isso p a s s a e m se u co r po - matéria, c o r po d e smistific a d o de o n de t od a ce ns u ra fo i a b o li da.

A Linguage m do R ecalca d o A p erfo rm anc e r e c ondu z aqui a a r t is t a aos limites d o s ujeito c o nst it uíd o c o m o e n ti d a de e tenta e x p lo r á- lo a partir dos seu s e le men tos s im bó licos, o que a co n s t i t u i c o m o suj e ito unificado, co mo s u je ito femi ni no. A impo r tância co locada sob re os atributo s fe m i n inos do cor po o põe r a d ical m e n te Finley e And e r s on . T a ntoa p rim eira a fi rma seu s exo, quanto a segu n d a t ende p ara s ua dis s oluç ão em urn a androgen ia e rn qu e e la é às v ezes h omem o u rnulher, homem e mulher. 18

DA ESTÉT ICA DA S E DUÇ ÃO À DO OBS CE N O

DOS LIl'IITE S: P ERF ORM AN CE E P E RF OR.'"I ATI VI DAD E

N a fita de vídeo é interessante observar a câmera se deter sobre t odos esses o lh ares d e jovens e n t re t idos , s e d uz idos p or esse cor po q u e s e ofere ce a ss im se m ve rgo n ha. A câ m e ra s u b lin ha co m muita inten sid ade o voye u ri s mo d o qual esse gê ne ro d e p erforman c e ve m aco m p a n ha do.

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Denunciando a s est r u tu r as simbólicas que o aprisi on am , Fi n ley faz surgir sobre a c ena um corpo outro, urn cor p o "virg e m " car regado desde o início de toda a "semiótica" que o constitui em profundidade. O corpo assim oferecido to ca o inconsciente de todos : o do artista, o do espectador que aí s e projeta. T a l in c o n s c ie n t e , e la o represe nta . E la o es t u da ern seu cor p o, n o s afetos q ue e le provoca e o transg r ide, o denun cia. E la r ep r e s e n t a dessa forrna o recalcado. Faz com q ue ele s u b a à s u perfície, deixa-o visível, denu ncia -o. Estamos bem no domín io d e uma arte expressio nista que se ~ran~fonna e rn rnensag~m, massagem . Lyotard assinalava que a p erforrna ric e faz e mergrr o co rpo inconsciente, faz com q ue s u b a até a cam a da dos s ig nos': é isso q ue a perfo r mance de F in ley ilustra admira v elmen te . Parad o x almente , n e s s a c o lo c a ção em cena d o co rpo, de Seu próprio c orpo, a ident idade da p erform er a caba p or d esapa re c e r. O u m ai s exat a m e n te, s ua posi ç ã o d e s u je ito se e nco n t ra ao mesmo tempo r e a fir mad a e n egad a: r e afirm ad a pel a a ç ã o ap re sen t a d a e n egada pel a ext rem a pres en ç a d esse corpo m até ri a que acaba p or tudo in vadir s o b re a ce n a '". E nco n t ram o- nos em um trabalh o de d e sconst ru ç ã o do s u jeito e n q uan to s uje ito co nstituído e d e r e c onstruç ã o do s u j e i to e m torn o d e se u própri o co r p o , um c o r po t ornado outro n o final do ritu al a o qual e le foi submetido. A p erfo rm er aparece aqui c o mo trabalh ada p ara o consumo, o fluxo pulsi onal que a arrasta e que se a p r o x im a da pulsão d e rri or te .

Um a Narra çã o que Estru tura a R epresentaçã o C o n t r a r ia mente à p e r fo rman ce d e A n derson, Fi n ley fa la. Seu relato é d en ú n ci a , c rít ica v iru le n ta d e um a cer ta o r dem d e co isas, d~ certo s relac iona me ntos humanos, crí tica a se u pai, ao amor incestuo so que e le t em por ela, a o horror d e se u suicídi o , à inércia d e s ua mãe. E le é grito , recus a. E é ao redor d ele que se c onstrói a p erforman c e. 19

Pens o , e m p art icular e m o ut ras perforrffan c e s de A. Sp r inkJe e , em es p ec ia l. e m Th e S luts and God desses Vídeo W ork sh op o r H ow t o S e a Sex Goddess in 101 Ea sy S te p s.

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DA EST f'.TIC A DA S E DUÇ Ã O À DO OBS CE NO

ALlÕlI.'! DOS LI M ITES : PERFOIUvlAN CE E PER FORI- IAT IVIDADE

A perfornlad ora ofe rece s u a e x pe r iê nc ia , sua v id a, a ser e x p o s t a, a se r o uvida , e o espectador não pode escapar disso. A linearidade do relato e da palavra impõe urna ordem, u m desenvolvinlento, uma evolução. Não há distanciamento possível. A força de apropriação da irnagern surge assim q ue o corpo é colocado ern c ena, man ip u lado, exib ido, assim q ue também vem acompan hado de um di sc urso veernerite ern que a voz se t o r n a e la mesrna corpo e veícu lo de uma palavra g ritada, den unciadora, po uco har moniosa no s limites das capacidades vocais da artista. Ali também, a artista opera nos limi tes do "a u d ív e l". A narração que se dese nrola, feita de mic rorrelatos, mas cujo sujeito do en unc iado pe rmanece a a rtista fa la ndo na primei ra pessoa, é a via em prestada po r K . F in ley pa ra exp r im ir s uas pu lsões, para perm itir trazê -Ias à s u perfície , se m a n ife star. É um dos mo dos esco lh idos p a r a a tualizar seus fan tas mas: d ize r o r e c a lcad o , o inconscien te, o ce ns u r a do .

U ma A rte do E u E n o ârn a g o d e t o d o esse d isc urso, se e ncon t ra a art is ta - Karen F in ley, que se t o rn a ela m esrria h e r oín a d e se us relato s . É dela qu e tudo sob revé m . É dela qu e tu do p arte. I~ ela que es tá em jogo e que s e c o loca e m c ena. A pre n hez d a s im a gens aqu i, s ua p ersi stência, n ã o ocorre m do hipn o ti smo qu e o peram as image ns r apidam ente proj etadas e de pois apagadas, co mo é o caso d a s d e Laur ie A n derso n, ela ocor re a n tes d a forç a pro v o c ante d esse c o r p o terrrv elrrrente presente d a artis ta, incontor nável, t o rn ado m até ri a . Não há nen h um espaço para a psicologia em um t al espe tácu lo, a pe n as zo n as d e fugas p a r a o espec tador. A a rtista se torna o porta-vo z d e um a r e cusa g lobal. C o m cer t e za o espect ador é sed uzid o p ela força da transgressão tanto mais que é das suas censuras que a artista a s dirige, às suas proib ições. E essas censu ras, e la a s faz voar e m estilhaço s. Mas a lém dessa sedução de superfície, res ide u m a v iolê ncia m u ito maior feita contra o es p e c ta d o r que n ã o pode fugir salvo abandonando a sala (ou d esligando seu magnetoscópio) . O conjun to

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está p erfeitarneri te s atu rado , supe rs aturado d e co rpo e d e text o . Sobressai d o co nj u nto uma ex t r e m a v io lê n c ia q ue impõ e po r s u a vez uma violência ao es pec ta d o r incapaz de es capar dali. H á qualquer c o is a de t errorista no andam ento. A impos si bilidade d e e s c a p a r u m a v e z a performanc e iniciada. Aqu i, é o r itua l que se irnp ô e e, como todo r itua l, pode apenas ser segu ido em s ua integ r id ad e .

o

Espectador Voyeur

A lib e rdad e do espec tador é, p o is, menor aqui do q ue nas perfo r mances d e L. A nderson. O corpo d e K. Fi n ley cativa seus fa n tas mas. A e m pat ia es tá lá. Nós n ã o es tarrios no d omínio das aparências, d as ilusões. As co isas fa zem sen tido e seu sen t ido é cru . M as al ém d es s a a desão impo sta, o e spec tado r p ode a penas se inte rrog a r sob re o sen ti d o d e todo esse a n damen t o. Se rá s u fi ciente que o artista transgrida as proibições para que sej am , de imediato, transgredida s pelo e s pec t a d o r ? H av erá um interesse ve r d a de ir o e m deixar emergir d e ssa maneira o s fluxo s pul sío nais d o s u jeito ? Dev e toda denún cia n ecessari amente c hocar ? Se for precis o julg ar pelo públic o presente d o qual a câ me ra ap re e n de u os o lhar e s, não é c e r to que s e u prazer s eja es tran ho a um ce r to voye u r is rno, s e q ue r s uspe ito. Ao fin al desse p ercurso c e r t os ponto s de c o n v e r gê nc ia e me r ge m a pesa r d e tud o. 1. Po r ma is dife r ent e s que seja m essas dua s per fo rmances é eviden te que a relaç ã o das dua s a r tist a s com s ua própri a p erfo r m a nce n ã o é a d o atar com se u papel. A s perfo rrne rs n ã o se rep r e s entam p or s i próprias, m e smo se elas atuam b em e m ce na. E las são a n tes, e m um caso co m o n o o u t ro, fonte d e p roduçã o , d e d e sl o cam ento. Elas repre sentam o local de p a ssa g em e o gerad o r de fluxo s e n e r gé ti cos (ge stuais, v oca is , musi c ais , libidinosos) que a s atravessam s e m jamais se imobilizar e m uma d ada r epresentação. Elas atuam para operar o s fluxos, p ara es t a b elece r as redes, p a r a desl o c á -l a s , para so brepô- las. 2 . Nos dois casos as pe r for rnances procuraram operar no nível das percepções e das sensações dos espectadores e não no nível

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AL É l'-l D O S LI M ITES : P E RF O R M A N C E E I' ER FORM ATI VID AD E

d e seus sentimentos, força ndo-os a ver e sentir diferen temente . Parece que a comunicação se fa z pela rela ção sinestésica d e s u jeito a s ujeito. A recepção permanece, po is, epidérmica. As perfor m a nces parecen1, pois, d esfazer as compe tências do espectador para dispô- las novamente de maneira di ferent e segund o as estruturas própr ias da obra ern curso e não em função de parâ metros que existi riam antes, c o m o é o caso no teatro. 3 . Mesrno se as perforrnadoras es tão presas na performance, elas n ã o erice rra rn aí n e m corpo ne m alrna. Is t o é, sern dúvid a, mais verdadeiro p ara Laur ie Anderson d o q ue pa ra Kare n F inle y. E las aí permanecem como estran has, m a n t e n d o um dire ito d e mi r a r, u m o lho exterio r, dentro e for a ao rn c srno tempo. E la s não procura m , p or outro lado , so lic it a r a e m p at ia, nem a a desão, m e smo se ocorre que elas o s usc item c omo d emons t r a mos nos dois exe m p los qu e tornarnos , 4 . Nos dois casos, ain d a que d e mo do d ife r en t e, as pe rforrnanc e s p er m it ern aos a r tist as se interroga r como s ujeit o constituído, rn a s não de resolver o e n ig m a , o s u jeito que r esta d e s s a z o na de passagem em que a s coisas s o brevêm , um lugar feito de d eslocamentos, superposições, fluxos diversos , contradiçõ es, fragmentos. E m erg e qu e a s p erforrnan ces são antes de tudo s u jeitos d e sej osos e pe rfonn antes. 5. As p e rformances co ns t roern um d es equilíb rio perman e n te no qual a s artis t a s se instalam e onde elas instalam o e spectador. 6 . D ire m os enfim p ara t erminar que toda p e rforma n c e - e a de L aurie A n derson e d e Karen F in ley não faze m exceção m esmo retornada, p erman ec e um lugar v ivo, sem irn obilis mo e sem fixi dez. E la n ã o pode jamai s ser reap resen tada t a l q u al, uma p a r te dela n ecessi tando d e uma e nerg ia e d e um co nsu mo sem p re renovado s. A performanc e c o mo lugar de c onsumo e n ergét ic o, esc a pan do d o s circuitos s im bólicos d e outras artes, o perando no nível de u m a infrateat rali dad e sem a to r, sem a u tor e sem d iretor. É assim que el a a p a rece cad a vez rnais . E la é o b r a de descons t r u ção, d e d enúncia , d e recus a dos s is t e m as de repr e s e n t a ção es tab el ec idos e a s si m fa zendo , ela se coloca nos lim it es do teat r o . Trad. Fany Kon

5. Orlan e a D e ssacralização do Corpo

Eu n ão quero parece r com a Vên us d e Botticell i. Eu não quero p arecer com a E urop a d e G us tave M o r e au.' Eu n ão quero p arecer co m a Psiqu ê d e Géra r d . E u não quero parece r com a Mo na L isa d e Le onardo Da V i nci . .. como tern si d o reivin dicado e con ti n ua a s er dito e m vá r ios jo rna is e p ro gram a s de televisão a despe ito d e m inha s múltip las contradições e co r reção ir r itu d a ." O rlan n ã o é o n o m e dela. Se u rosto n ã o é seu rosto. Lo go seu cor po n ão será seu corpo. Paradoxo é seu co n te ú do; su bversão é s ua técnica. Suas feições e membros são inte rminavelm ente fo tog rafados e r epro duzido s; na Fra nça, e la a parece e m re v is tas pop u la res e e In p ro g ramas d e en trevis tas . Cada ve z que é vis ta, ela p a r ece diferente, porqu e s uas p erformances o cor rern n a sala d e o perações e e nvolvem ci rurgi a pl ástica.'

Tais term o s , com os quai s a crí tica Barbara R o se inicia um a rt igo q ue consagra à evolução de O rlan, a bord a m realmen te

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A citação completa a crescenta: "e le nem é me u pinto r favo r ito. Eu e scolhi Europa po rque e la é parte d e uma pintura inacabada como a maio r ia das p in t u ras o é': Orla n , I d o not want to look like Orlan o n becoming Orlan, Wom en s Art Maga zin e, n . 64 . m a io -ju n.o 1995 P . 8 . B. R o s e , "O r lan : Is it Ar t ? Orl an and the Tran sgre ssi v e A ct", A rt i n Ame rica, v. 81, p . 83 -125, fev. 19 9 3.

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ORLAN E A DESSA CRALIZAÇ ÃO DO C O R P O

A LÉM DOS Lll'. lITES: PER FORMANCE E P ER FO RM ATI VI D A D E

° e nig m a q ue re pres enta a evo luçã o

artísti ca da p e rfo r m ática O rl a n . E n ig m a p o r vá r ias r a zõ e s : ini cialmen te devid o à nat ur e z a d a atuação d e O rl a n , e m seguida, por causa do se n t ido q ue a artista atribu i h o j e à s u a atuação. E m 19 90, aos 43 anos, O rlan empreendia a prime ira de uma sé r ie d e n ove o perações c ir ú rg icas que v ir ia m a transfor m a r seu c o r p o e se u r osto, n o d e correr do s anos vi ndouro s, d e acor d o com u m mod e lo do qua l ela det in ha o coma ndo. S e rvin do - s e do s qu adro s de divers os a r t is t a s ( B o u c h e r, L e o n a r d o d a V inci, BotticelJi, G é r ô m e e u m pi n tor anô nimo d a E s c o la de Fontainebleau) , a artista comp un ha u m a utorretrato pelo co m p u t a d o r formado por fragmen tos de r e t r a t o s de mulheres tornadas célebres pelos pintore s qu e as represe ntaram e e n c a r r e g a v a vá rios cir urg iões d e transfo r ma r se u c o r p o real e m obra de arte . E m p re s t a n d o dos q uadros um nariz, u ma te st a , um q u eixo, olhos, a artis ta recompu n ha o conjunto n o computador à ma neira de urn pintor, fazendo emergir, desses fragmen t os espars os d e mulhere s so n h a d as , o retrato d e uma m u lher d e stinada a s e t ornar b em r e a l, uma nova mulh e r q u e cria, à image m d e D eus , seu próprio ro sto e s e u próprio cor p o . Eu inventei meu auto rret ra to usan d o um co m p u ta dor para combinar e fazer um híbrido de re presentações de d eusas d a mitol ogia grega. Eu as escolhi n ão pel o s câ no nes d e beleza q ue elas d evem suposta me nte representar (v istas de lunge), m as por con ta d as hi st óri as associadas a elas. Diana foi escolhida p o rque ela se rec usa a se submeter aos deuses ou aos h omens, ela é at iva e m esmo ag ressiva, ela di rige um grupo; Mo na Lisa foi esco lh ida como um fa ro l n a h ist ória d a a r te, uma referência ch ave, não porque ela é lind a de aco rdo com o cri tério contemporâneo de be leza, vis to que p o r d ebaixo d essa mulher h á um h omem, q ue ago ra n ó s sabemos ser Leonardo d a Vin ci, um au tor re trato esco n d ido n a imagem de Mona Lisa (o que nos traz de volta à questão da identidade). Depois de te r m is tu rado m in ha imagem co m essas o utras imagens, eu tornei a trabalhar o co nj u nto co mo qual q u er pintor far ia, até que um retrato final emergiu e foi possível parar e assiriá- Io .:'

como Hermann Nitsch, Günter Brus, Otto Mühl, RudolfSchwarzkogle r e out ros represen ta ntes d as Akt ionen, o ativi smo vi en e nse, que e ncarnaram seguramente uma das forrnas mais vio lentas d essa arte do corpo maltrata do, m utilado, exposto, q ue exibiam de maneira ritualizada , às ve zes o rgí aca e freq uentemente sacrílega o contrá r io d o social: a sexu a lidade, a morte, o sa n g ue, o esp e r ma. Todavia, m esmo se O r la n r econhece a in fluên c ia do ativi smo vienens e na s ua p rópria prática, o cam in ho q ue el a empreendeu há a lg u ns a nos n ã o a p res e n t a n em o rri esrri o esp ír ito, n em o s mesmos parâmetros . Servindo-se do body art e d o ready-made, sua trajet ór ia parece cer tam e n te rnais radi cal n o tocante à m odi ficação de uma condição natural do indivíduo, transgredindo um dado b io lógico e perturbando voluntariamente a ordem existente das co is a s , tocando no seu próprio rosto e no seu próprio corp o. Além d iss o , jamais um artista tinha d ecidido rnudar de rosto e de identidade. Tampouco jamais um artista tinha e m b a r cado numa ação sem possibilidade de retorno. Acrescente-se também que esse radi calismo é a m p liado corn todo um discurso te ó rico q ue o acompanh a e explica seus fundam ento s. As m oti v a ç õ e s d e O rlan são realmen te co m p lexas e de natureza e irnp or t ân c ia di fe r entes , vis to que a ar t is ta ins iste d e preferência no d iscurso social q u e e la tenta manter assim o u n a to ma da de posição artíst ica e existenc ia l q ue s ua a t uação expri me. Esses d o is disc ursos, obviame n te, não têITI n e m a m es ma im p ortâ n c ia , nem o mesmo impac to. O dis cu rs o social, a n tes d e mais nada, revel a, p o r p a rte d a artista, preoc upações q ue a tingem a imagem da m u lher na arte e na sociedade assim c o m o na prática da cir urgia p lást ica e no se n ti d o que essa ú ltim a o c u pa n a s n o s sas est r u t u ras m entais . O p aralel o en tre o rn ár ti r religioso e o sofrimento co n temporâ neo vivido p ela s m u lheres q ue se subrnetern a tratarrientos de c irurgia p lástica é ób v io .' 5

A atitu de é sem dúvi d a r adica l, s urpreenden te, p a r a não dizer desconcertante, e e la s urpreen de apesar d o s excessos aos quais p uderam nos acostumar a rtistas da body a rt n o s a nos de 1960, ta is 4

O rlan, o p . cit., p. 8.

2 07

Pa ralelo , a liás , o bse rvad o p or B. Rose, op. cit., p . 84. El a lembra com igual precisão que a a u to ra b elga Fran c e Bore l fa la d essa s u b m issão das mulheres à cirurgia pl á st ic a como um d o s rito s d e p ass a g em d e nossa sociedad e. Sem a d e rir c o m p le tamen te a tal a fi r mação, pre cis am o s co n tu do re conh e ce r que essa prática oc u po u um lu ga r n ã o d e spre zí v el no imagin ári o fem inin o . Su bmeter-se a uma operação, seja qu a l fo r ã nat ureza , imp lica o desejo s ubjacen te de melho r integrar-se à so c iedade , respondendo àquil o que s e c rê se rem s u as n orm as de b el e za .

20S

ALI~l\1

D O S LIM JTES : PERFORMAN CE E I'ERFORMATIV IDADE

E u te n ho s e m p r e co nsi de rado rueu co r po fern in i n o, rn eu co r p o d e a r tista fe m inino co rn o se n do o m ate r ial pr irn ár io para m eu trabalho c r ia t ivo . .M eu t rabalho tern se m p re questi onado o s tat us d o co r p o fe m i n ino, e m m e u trabalh o a t u a l, co ns ide ro is to e m te r mos d e p ressões soc ia is; e n o pass a do e u identi fiqu ei a lg u mas d a s rn a n e i ras q u e o co r p o de mul h e r tern si do in s crito na história ela ar te.

E ela a c r e s c e n ta um pouco mais adiante "eu acredito que há rnuitas pressões nos corpos das mulheres a ssi m como no corpo físico dos trabalhos de arte". É e vi d e n te que a prática de Orlan ultrapassa infini tamente essa tomada de posição "fe m in is ta" contra as pressões que a sociedade ex e r ce sobre o co r p o da mulher, posição que só s u r te efeito, s e for p o ss ível dizer, num nível superficial. Discurso igualmente s u per fic ia l deve-se, contudo, reconhecer (a ck n o w ledge ) - como aquele p elo qual a artista deseja "d ess a c ra liz a r o ato cirúrgico': c-

M eu trabalho não pretende s er c o n t ra a c i r u rg ia pl á s ti ca, mas contra as nonnas de beleza e os ditames da ideologia dorni nante que estão se tornando mais e mais embutidas no feminino . . . Assim como no masculino .. . Carne . . . Eu sou a primeira artista a usar cirurgia como um meio e desviar a cirurgia plástica de seu objetivo de melhoria e rejuvenescimento.?

Que Orlan decida submeter-se a uma operação de c ir u rg ia estética, que ela seja até rnesrn o a primeira artista a utilizar, c o rn o o afirma, a cirurgia como material artístico, ou que busque dessacralizar o ato cirúrgico, não constituem em si posições dignas de interesse. Elas transformam o ato cirúrgico, em compensação, desde que a démarche da artista nos seja apresentada como obra artística, acompanhada de toda uma reflexão teórica que elucida sua prática e suas intenções. 6 7

O r la n, op. c it ., p. 6. Ibidem, p. 9 . Ou a in da: "Co m o um a art ista pl ástic a , e u queri a interv ir n a fria e es tereot ipada imagem d a ci r u rgia pl ásti c a p a ra a lte rá- la com o utras form as, p ara d esafi á -la. E u transform ei o c e ná r io , o s cirurgi ões e minha e q ui pe es ta v am vesti dos c o m roupas exec u ta d as por im por tantes desenhist as d e moda, por mim e por j ovens est ilis tas ( Paco R abane, F ran ck So rb ie r, Isse y Mi yake , L an Vu, um es t il ista americano e su a equipe )' ; p . 8. B. R o se acresce n ta a esse r espeito que o fato d e Orlan esc u lp ir seu co r po, lembra, de m aneira intenci on al , como os mártires c r is tãos, esta b e le c e n d o um p a r al el o ent re os so fr im e n tos d esses últimos e as cio res das mulhere s q ue se s ub m etem a ope rações pl ásticas , operações, os ritos de p a ssa g e m segu ndo a fem in is ta belga Fr an c e Bo rel , op. ci t ., p. 84.

ORL AN E A DESSA CRALI Z A Ç ÃO DO C O R P O

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Noss~,época ode~a carne . . . Análises psicológicas e religião co n co rd arn q ~e: . o c orpo n~~ deve ser atacado': deve-s e aceitar a si mesmo . Essas sao Id e. ias prrrrut rvas, ancest rais e anacr ónicas . nós ucred Iit arn os , , que o ceu carra sobre nossa cabeça se nos i nt rorncterrno, com o co r p o ."

. Tal a~o sacrí le~~ d e modificação no seu próprio corpo, 01 la n dec I~e. e ri u rici á-Ir, com toda cla r iv idência, indo m a is longe n e~se dOmII1l ~ q.ue qualqu er o u tro a rtis ta q ue a tenha p recedid o. Alem d e ss e Iirn ite, não rest a senão a n iqu i lar o d o indivíduo e a m orte, escol h a qu e outros criadores puderam assurnir COID O limite d erra d e iro d e s eu percu rs o, mas qu e p erma n e c e além da pre o cupação de Orlan m esmo se alguns s e c o m p r a ze m e m observar a que ponto ela arris c a s u a v ida e m c a d a operação 9 . Ess a e t a p a, Orlan, entretanto, não a transpõe, atribuindo para s i uma o u t ra fo. r rn a de rn or te - o u de ren a sc imen to ' d epen d e - d e um ~ orpo difere nte dotado de urn a nova identidade. E u s ou um outro: e u sou o p onto mais ex tremo da cori frontaç,ão. Como o artista australiano Stelarc, eu acredito que o corpo e obsoleto. Ele não pode mais lidar com a situação. Nós sofrernos mutação." lO "Nós sofremos mutação': diz Orlan justificando desse modo sua prática. E ss a s mutações que inscrevem o ser humano numa temporalidade que ultrapassa usualmente a de urna vida e nos lembram nossa origem animal, as operações performáticas ~e .O rl a n apontam -nas com o dedo, fazendo desaparecer esse úl t irn o bastião do indivíduo: um eu pessoal ligado a um corpo pessoal tal c omo recebido pela natureza. M eus trabalh os e ideias incorpo r ado s e m minha carne. El es fa zem pergLlnta~ sobre o status do corpo em nossa s o c ie d a d e e s e u futuro nas geraçoes futuras em termos de novas tecnologias e manipulação

8

O r lan , o p . ci t., p . 8-9 .

9

"~ rl a n de cla ra que a a rte é um as s un to de v ida e m orte , e e la n ã o es tá b n ncan do: c a d a vez que é o pe ra da , h á um co ns ide rável fato r d e ri sc o . .. O p roced lmen t.o, co n hec id o como raquidi an a, r equ er urna inj e çã o n a es p in ha, c o r re n do o rISCO d e p ara li s ar o p a ci ente se a a g u lha n ã o ace rtar exata mente na m a r c a. Com cada inj e ç ã o e p o st e r io r in te r venç ã o c irú rgica , o perigo tende a au m e n ta r. O rlan p od e es ta r b rin c a ndo d e role ta russa , transformand o se u corpo n um traba lho a rtí st ico. De lgurna for m a , ela correr o ri s c o d e ficar deformada , para lisada , e, a té m es m o , morrer." B. Rose, op. cit., p. 86 . O rla n , op. c it ., p . 9. ü

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O RLA N E A D ESS lI.C R A l.I Z AÇ Ã O DO CO R PO

A L I'.M D O S LI MIT ES : P E RF ORM A N C E E I' E RF O R 1'.lATl VID AD E

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genética qu e não d e rno r arâo a vi r. Meu corpo :e m s~ torn ad o um luga~: ele debate público , fa ze n d o uma pergunta q u e e c r u c ia l para n o ss a era .

Nesse processo, a própria noção de natureza se anula. Não há mais nem natu ral, nem eu, nem inlageIn d e si , nem identidade própr ia . Esses co n ce it o s - d e r ra d eiro s baluartes do homem num.a sociedade que s e desumaniza incessantenlente - to r n a r a m-se quimeras visto que cada um pode transformá- los à vontade. "Meu t rabalho é urria luta contra o inato , o in e x oráv el , o programado, natureza , DNA e Deus [ ... J A lguém pode d izer que meu trabalho é b lasfe mo?" . , Se r D eus no lug ar d e Deus, criador n o lugar do cnado r : h á certamente a lgo d e verti g inoso n es t a emp re itada de O rlan, a lgo d e sac rílego e de b lasfe mo ern pre tende r assim nasce r somen te d e si m esmo . Von tade d e p oder, dir ia Nietzsche. Há e m toda essa at itude d e O rlan a lgo que evoca rem in is cênci a s cristãs e insc reve suas perfo rmances e m ri tua is a n t icr istãos dos quais a artista tem plenamente consciência, el a que trabalhou durante v in te a nos e m iconografia religio sa judaico-cristã, encarregando - s e d e algum~~ retonladas das imagens d e madona b arro c a , r e encarnando -s e ]a numa primeira v e z s o b a designaç ã o d e Sa n ta -O r la n ". , Que n ão s e ja s u fic ie n te s er contra para e s c ap ar d a m etafis ica, t rata - s e a té m e smo d e uma co n t rame tafís ica, o q ue é fá cil co nstat a r, o bse rvan do -se q ue O rlan n ã o se d e ix a e ngana r p el o laç o que une indefe ctivelmente o c orp o a t odo o c a m p o d o sagrado e d o social. Prejudic ar o c o r po, o seu co; po, é ~SS i ~1 a d mit ir u m a to a n t issocial se m dúvid a , m a s t amb em a n tí rrelig io s o ( mes mo se fo r d e s crente ) porque d e su m ano. É o res pe ito d o dado , do inato , d o próprio co r po, d a própria v ida que se e n con t ra assim ult r a j ado , aniquilado , transformado. Co ns iderando "a v ida c omo um fe nômen o estético recu per ável?". O rlan t r ans gride , p ortant o , r e alm ente um tab u e m rio rne d a a r te: _ " Is to é me u corpo, isto é m eu sangue" d iz a mi tolo g ia cnsta. " Isto é m eu c o rp o , isto é minha arte" pode r ia respo n der Orlan, que a t r ib u i às s uas va r ia d as operaçõe s d e s ignaç õ e s s ugestivas; 11 12

13 14

Ibidem , p . 8. Ibidem , p . 10. O rl a n , na ve r da de, é um n ome e m p res t a do. "C o n s id e ri n g \ife a s a recupe rab le aes t he t íc phen om en on". ibid em . p . 7·

2 11

desi g naç õ e s e m co nso nâ nc ia c r is tã , ta is c o m o "rito de passagem': " is to é rneu co r p o, isto é rni n ha coerência", "e u ofe reci meu corpo à arte", ou em consonância carnal, tais como "a rte ca r n al': "t ro c a d e id entidade': "o pe r ações b em s u ce d id a s", "co r po\sta i u s", " ide n t id a de\ a lte r id a de" " . Mas esse tabu que Orlan transgride prej udicando s e u corpo só existe na medida e rn que o tema permanece r egistrado na mitologia cristã, que insiste na unidade d e um deus num único corpo. Se ele c hegasse a mudar par âmetros para op tar po r u rna mitologia ind iana ou g re g a , como Orlan o fez em performance s anteriores e, rn uito especialmente, em Imagens -Novas Imagens, que faz ia referê nc ia aos de uses e d e u s a s h i n dus qu e m u dam de aparência para empreender novas obras e novas pro ezas", a partir desse momento sua ação se torna mais compreensível e m e n o s sacrílega. O que O rla n marca assim sobre seu corpo é se u d e s ej o da d iferença, da a lteridade, s ua recusa em a derir a urna identida d e d efin ida d e uma vez p or to das. Ela r e vel a d es s e modo o ave sso d e s ua p ess oa, o universo de suas fa n t as ias - a rtísticas e outras inv ertendo a o r de m das coisas, faze n d o v ir à tona , d e m odo v isível para o o bse rvado r, a q u ilo que n ormalmente p e rm an e c e oc u lto n o in d iv íd uo. A imagem interna q ue o indivíduo t em d e s i mes rno va i ao e nco nt ro aq u i da i rnag ern ex terna, se d e ixa ve r, observar, come n t a r, exis t in do p a r ad ox a lrn erite n o s ujeito ce r t a profundid ade e s u a dualidade e n tre o interior e o exte r io r, o v is ível e o invis ível, o p e n s a d o e o p ercebido , o corpo real e o co rpo me tafó r ico. O co nceito q ue d á v ida e j ust ificativa ao pro jeto d a artis ta tomou forrna , e nca r nou-se, tornou-s e s u b itamen te m atéria . Q u e a a r tis t a p are ç a p erder s ua alma n es s a o peração e pareça um tan to d e sumaniz a d a n ã o consegui r ia surpreender, a í está uma pro v a s u p le rneritar daquil o que e u c hamarei o efeito Orla n , ou seja, s ub mete r à dis cus s ã o valores q ue nos cercam nessa pós-metafísica d a q u al parecemos fazer parte. Essa re to mada d e que stionamento d a p r oblemát ic a d e n o s s a época é rea lme n te o qu e t enta , à s u a m an ei r a , Orlan, 15

16

" C a r n a l A r t , Id e n t it y C ha n g e, Rite of P assage, This is my body, thi s is m y softwa re , I g a be m y bod y to a r t , s uccessfu ll operati on (s ), Bo d y/ st atus, Id entit y \ A lter iy ", ibid em , p . 6 . Ibid em , p. 6 .

A LfM DOS LI MIT ES: P E R F O R MA N C E E PERFORMATI V IOADE

ü R LAN E /\ DESSACRALIZA ÇÃO D O C O R PO

para q uenl a ar te deve antes de t udo ~ e r r~sistente, fazer-~os refletir, d errubar n ossas convicções e mscrrr- s e fora das leis e das no r mas a fim de propor um p rojeto de sociedade.

e assustadora; admirável po r q u e o o bje t ivo bus cado pela a r t is ta é, s e rn dúvida, sinc ero , e mb o r a extremado e irreversível - na verdade, toda atitude irreversível tentada em plena consciência e sern retor no poss ível a u m e n t a a admira çã o - , mas assu stadora, tamb ém, porque a g ente s e pergunta se é absolutamente necessário passar por tais extremos para defender um ponto de vista. E o espectador s e põe a pensar: são esses o s últimos reduto s da arte oci den ta l d e h oj e ? A arte d e v e c hegar a tais extremos para continuar a te r u m s ignificado? Tal e mpreitada faz sen tido? Deve-s e , necessariamente, e n c o n t r a r para iss o uma justificativa e não seria tentado r d es co n s id e r á -Ia de um a só vez simplesmente como g ratui ta e u m t ant o patológica? Tais expe r iê ncias têm r e almente essa relação c o m o social que elas rei v indic a m ? Têm el as verda d e ira m ente a lgo a diz e r ? Em b usca de autenticidade, o a rti sta d e ve cheg a r a tai s extre mos p ara se fazer e n ten der? U m a d émarche q ue, com cer teza, n o s que sti o n a n o pla n o s oc ial, ruas tam bé m, e p ri n c ip a l me n te, n o p la n o art ísti c o , le v a n d o a nos interrogarmo s sobre os limites da arte. Co mo separar u m a p r á ti c a artística a u têntica de outra q ue não o é se o artista for o ú n ico r esponsável por tal d ecisã o? Sabe- s e , d esde D u c h a m p , que ess a é realmente a s it uação, mas quando s e e nco n t ra diante d e c ertas o b r as artístic a s (pic t óric as o u performances de la n d art, d e ready-rnade ou d e body art ), o e sp e ctador começa a duvidar da utilid ade d e cert a s a t it u des, d e s eu s ig n ifi c a d o e d e sua legitimidade. Se m q uerer inserir- s e num cons ervadori smo r eaci oná ri o q u e s e dissem ina e que s erviu d e desculpas para as divers a s ce ns u ras con t ra Mapple t h o r p e , K aren F i n ley e t antas o u tras aqui e a li praticadas pelas di versas instituições , é s ensato , crei o eu, e n ecess ário, interrogar- se s o b re a questão dos li m ite s da a t it u d e de Orlan.

2 12

Para rn i rn, a arte que é interessante est á relacionada e pertenc e à res is tência. E la d eve p erturbar n ossas prer ni s sas , esmagar noss o s pe nsa rn entos, s it u a r-s e fora das n or m as e d a lei . Ela deve co nt ra a a r te b u rguesa; e la não d e ve confo rtar, n em _d a r- n o s ~ q u e p sa b e ln.o~ . ~l a deve ass ur nir r iscos, co rno o r isco de nao se r ace rta, ao me nos i n icialrn e nte . E la deve s er transgressora e e n volver u m p ro je to para a so c iedade. E m esrno se essa decla ração pa r e cer rnuito ro m ânt ic a , eu d igo: a arte pode, a arte deve m udar o m undo, poi s é su a únic a justifi ca ção. "

sr::

Tal profissão d e fé, mu ito s a rtis tas pode ria m p arti lh á -la c o m O rla n . No e nta n t o , e la s urpreende, n ã o p or ser d e s u s a d a , mas porque ela d ifici lme n te parece aplicar- se à a: t ista. De fato, de q ual p roje to de sociedade p o d e - s e fa lar aqui, de ql~al real transgressão, de q ual ris c o , co m q ual o bje t ivo, com qua~s ~ n~? A s que stõ e s a s erem colo cadas à p rática d e C?rl a~ sao .m umeras e as reações m uito diversas - sej a d e a d m ir a ção, sep de rej e içã o - que ela su s c it a provam s u fic ie n te m e n t e .a q ue ponto suas perfo r m a nces nos interpelaIll , n o s a b a la m e nos in~omodam. N a ve r dade, p ara qu em assiste a um a operaç a o-performance da ar ti sta O r lari, tran smitida ao vivo por satéli te em P a r is e e n l Toro n to e m bo r a a ope raç ã o s eja realizad a e m Nov a York , h á a lgo de a luc in a n te a ser v is to, d e ss e modo t oda a pro n: o ç ão q ue a mídia faz a c erca d e tal acontecim e nto, as t ecnol o g ia s de po n ta c olocada s à disposiç ão da artis t a , o número de ~ e ssoas de todos os tip o s movimen tan do-se em volta d o acon teCimen to na sala d e c iru r gia (ar tis tas, e nfermeiras, ci r u rgiões, t.écnic~s a u d iovis u a is, rel açõ es públi c as, assiste n tes) , e n o ext e nor (crit icos, analista s, esp e c ia li st as d a s m íd ia s , to d os co n ectado s na repro d ução e m ví deo da c irurgia), assim como a quan ti d a.de de anál ises e d e in ter p retações às quais se e n tregam espectalis tas n o s qua t r o can tos d o m undo assisti ndo à perfor m a n c e e corneri t a n do o s ign ific a do. Sem sombra d e dúvida, h á a lgo de esp a n toso n a e mpreitada que O rlan le v a adiante, alguma coisa ao mesmo tem po admirável

17

l bidem , p . 7·

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CO R PO E FI C ÇÕ ES É eviden te q u e at in g in do seu p ró prio corpo, O rlan abre u m a caixa de Pandora q ue sopra freq uen temente u m ven to d e te m pest ade nos campos os m a is variados: do sagrado e d o o ntológico, d o inconsciente e d o patológico, d o consc iente e do si m bólico, do

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AL ÉM DOS LIMITES: PERFORMAN CE E PERFOR:VIATIVIDAO E

social e, fin alme nte , da a r te. Toda p er fo rmance fu ndamentad a n o corp o suscitou sern p re reaç õ e s muito divers a s dev ido à p róp r ia irn po r t ânc ia dos inve stim entos lib idinosos d o s quais o t ema a sobrecarrega ou d evido às proibi ç õ e s que a s ociedade a c umu la. Assi m a acolh id a , p elo m en o s moderada , c ujas inú meras apres en tações do body art foram o bj e to n o decorrer dos a nos de 1960, e x per iê n c ia s frequentem ente taxad as n o mínimo d e decaden tes , para n ã o dizer ne u róticas ( Wald b e r g ) , cansati vas n a m ai or par te dos casos , às vezes i nsign ificantes'", são a prova disso. S em querer retornar a q u i todos o s argu m erito s a favor o u c o n t r a a body art e sua fun ção subversiva, p ouc o imp orta q u e a performance d e O rl an d e sperte esses fantasm a s e tor ne a q u estionar nossa relação corn o c o r p o atualrn erite, e n q u a n t o n ós viv ern os e rn s o c ied a des qu e na s ua mai oria tran sfo rma ram o corpo e m c u lto, liberando o co rpo sobrecarregado pelos ferreci rnerrtos dos quais outrora el e e r a respo nsável devido à sua a usência de espiri tual idade, devido tam b ém a e s t a di vi são i rrevogável e po r rri u ito terripo d o rn i n a ri t e e n tre a al ma e o co rpo, o espír ito e a maté r ia . Hoj e , valorizado, c u ltivado, rn o t ivado, trarisforrnad o e m o bjeto do o lhar, o corpo sad io to r no u-se o objeto d e UITl novo c u lto social qua s e unive r sal n a s n o ss a s so ci edade s oc identa liza das . Os efei tos d e ss e n o v o c u lto n ã o são totalm e nte libertadores porq ue, nessa o pe ração de revalorização do corpo, e s te último pa rece ter perdido to d a forma d e espirit ualidade, transformado em matér ia facil me nte manipulável, rea li dade sem profundi dade, e xibindo-se i n teiramente ao ol har, transfonn ad o e m s imples o bje to. É exatamente con tra essa im a g em d o corpo bri l hante e p olida à p e r feição , i m p on d o - s e por sua vez como norma, contra a irnagern q ue continua a e sconder o r everso d o corpo (do 18

nA body art não s ig ni fica n ada. Se us ce lebra n tes, p or fa lta d e comp reensão d o s entido oc u lt o da t e cnolo gi a , que une o qu e j á n ão es tá mai s se pa rado, n ã o sou be ra m o p ta r po r um a p o si ç ã o interm edi ári a e s a d ia e n tre o s imbolis mo es t ú p ido . e a e spiritu al idade , deg radan te" o u a in da "a n o ç ã o d e d en ún ci a e de co ntestação d o pode r na qua l insis tiram numerosos artistas corpo rais, se vê reduzida a uma ve le idade certa mente h o n e st a , mas ingênua e in e fic a z. assolada por um vício fundamen ta l"; v er Gaston Fernandez C a r re ra , La Fa ble vraie: I.:Art con te rnp o ra in d ans le piege de Di eu , Bru x ell e s /MontréaI: La lett re - v o lé e/Sa in t - M a r t i n, 199 1, p . 120-12 2 .

ORl.AN E A D E SSA CRALI Z A ÇAO D O CO RPO

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ce nár io) - suas funções pudendas ou repreensíveis : morte , sexo, sa ng ue, urina, fezes - q ue se irrs u rgern ainda hoje alguns a r t is tas performáticos como Ka ren Fi n le y' v, Annie Sprinkle, co mo o faziam outrora Vito Acconci, G ina Pane ou Ivlichel Io u r n iac, rn ost ra ncto-rro s aquilo q ue a soc iedade cont in ua a oc u l tar, transformando e m espe tác ulo aq ui lo que se e rg ue da intimida d e p r o fund a d o indivíduo . Vol u n t a r ia me n te pro voca n tes, exib ic ion is tas , esc a tológ icas , s á d ic a s ou rnaso qu istas, seITlp r e n o lim it e cIo tolerável , tai s pe rfo rrnan ces rem etem frequ e n terne n t e o a p resen t a do r e o espectad o r a si mesmo, a se us p r ó p rio s li m ites, s u as própri a s ce ns u ras. O indi víduo se n te vert igens d ia n te d e to d as ess a s formas d e ex per iê n c ia que algum a s p erforman c e s arra stam a o s lirn ites do s u p o r táv e l: s o f r i me n to, v io lê nc ia e mutilaç ã o . É no nível d o e s p ec t a d o r q u e s e sit ua a ação e n ã o no palco, a pe r fo r m a n c e não sendo na maioria das v ezes senão um pretext o so b re o q ua l o e sp e ctador interroga sem cessar o Sig n ifi c a d o e a pertinência. É ao jogar assim com o corpo, toman do-o como m até r ia , uni nd o o indiv íd u o e s ua image m , o in d iví d uo introdu z ido na su a o bra e se torn and o u m com e la, qu e a re p res e n taçã o s e s u p r i me em benefício d o pro c e s s o , d o real izar, c uja imp ortâ ncia torna- se dom ina n te. É e le q ue in te ressa e q ue se fix a . Alijado de toda di mensão psíquica o u es piritual, o corpo torna-s e aí s u p e r fíc ie sem p r o f und idad e , sern espessu r a. E le aí está, sem espir itua li dade ne n h uma. Devolvido à rap i dez da ação, do estar aí, e le p e rd e to da transce n dência, Iirn it ado ao aq u i e agora, se m pro bab ilidade d e s u peração o u d e pro jeção e rn o u t ro lug a r. Parad oxal men te, tal m anipulaç ã o d o corpo r e s t a b el e c e essa d ivisão mais q ue m ilena ren t re o corpo e o espírito, o corpo e a a lma. O co rpo tra nsformo u -se em máquina , se m individualidade, sem persona li dade, vol tado a ser simples o bjeto pr ivado de t o d a s u bje t ividade. Por ter ass im preten dido la str ar d emais o corpo d e sím bolos, a performance esvazio u -o d o s s ign ifica dos d o s q uais e le p o d ia ainda estar sob recarregado. Fazendo isto, ela o d e slig o u d o social ao qual cont udo seu dis curso crítico e teórico não cessava de 19

Cf. nosso tex to " D a Es té tica da Sedução à d o Obsce no'; n e sta co m p ilação.

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remetê -l a. E la o co rto u tam bérn do indivíduo que não aparece m a is se não COl110 " rn áqu i na desejante", indivíduo despersonalizado, co n c e ito e nca r nado d entro d e u rn corpo. O corpo o rgânico origi nário d es a p a r e ceu cede n do o lugar ao "corpo sem ó rgãos" do q ua l Deleuze e G uattar i fa lara m. u rn corpo que se to r n o u o s igno d a esqu izofren ia qu e es p reita nosso sis tema. Portarito, longe d e t er s usc itado es ta co nsciê nc ia p olític a q ue ela a lmejava, lo nge de d e s t ru i r a i magem t rad ic ional d o c o r po qu e ela pro cu r ava s u bverter, a body a r t insti tuiu n o se u lugar UJn c o r p o rn a t ér i a e nce rra n do rrova rrie nte o h o rn ern n a s ua fin it u de, corpo t orn ado opaco. encla us u rado. se m t r a n s ce n dênc ia n enhuma. N ó s r een contrarn o s aí o r eino das "c o is a s aut ório rnas" se m "va lo r divino" d o qu al fa lava Geo r ges Bataille e que a b re o cam irr ho à a r te co rno "j n d ú.str ia" ?". A p erformance de Orlan n ão fo g e de tais limit e s . Ap e sar d o co nce ito inicial qu e prevê que o a r t is ta coreog r a fe suas o perações seg u n do UIl1 es q u e rn a es c r u p u losa me n te c ombinado, decorando a sala de operação com fotos d e suas operações ante riores, além de acessórios diversos, ela própria lendo extratos de textos filosóficos ou liter ár ios" durante a op eração e vestindo roupas especialmente concebidas por grandes costureiros ou d e s enhistas d e moda p ara a o cas i ão " , o foco da atenção s e co ncen t r a nurn corp o im ó vel , p arcialrn erite anestesiado e colocado sob re uma Ines a d e c i r u r g ia . T o da a ação que se s e g ue a o vi vo focali z a -se no s a n g u e , no cs calpelo, no c o r p o talhado novame n te e t rans fo r mad o em obj e t o ". c

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ORLA N E A U ESSACR AU ZA ÇÃO D O CO R PO

AL € M D O S LIMITES , I'ERFORMANCE E PEKFORM AT IVIDADE

" O q ue i n augu ra assim a n e g a ç ã o d o valo r divin o d a s obras é o reinado d a s coisas a utônomas . N u ma palavra, o m u n do da in dús tr ia". Geo rges B ataill e, Théorie de la re ligion , Paris: Gal l irn a rd , 19 73 . p . 118 . E m p a rticul ar te xto s de Eugén ie Lem o in e -Lu c ci on i, Michel Ser res, A lp hon se A liais, A n to n in A r ta ud, E lizabe t h Be tue l F ie b ig . Raphael Cu ir o u ai n da t e xto s s â n s c ritos. C o la b o ra ra m , dentre o u t ro s, c o m o s trajes, Paco Rabane, Franck Sorbier, l ss ey M iyake, La n Vu . Obse rvamos, a liás, q ue n ur na d a s ope rações que pud emo s aco m pa n har em ví deo e m 1995 . a pós as g ravações v ia saté lite n o Cen t ro M c l.uha n d e Toronto, não h a vi a quase nada a ver da próp ria o peração devi do não s ó à má quali dade d a s gravaçõ es , mas t a m b é m pela m u ltidão de p essoas presen tes n a sala de ciru rg ia q ue d e s c on c ent r av am a ação. A l iás , Orlan acabará por inter ro m p e r a ope ração d e v ido à s u a extrema fadiga e ta mbé m porq ue n uma tal atmosfera, o c ir u rg ião t in h a certa d ificu ldade em conce nt rar-s e . Ma is interessante aind a , Orlan observará a es s e respeito que ela transfere o fim da o p e ra ção para d e z

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o interesse pela atit ude de Orlan, o que a diferen c ia da body art movida pela nostalgia de um corpo energético primitivo e natural, é q ue não há no seu disc u rso evocação de um cor po originário, verdadeiro, de um corpo arcaico do qual a soc iedade nOS teria afastado. de um corp o pri mitivo que se teria esquecido c que a pe rfo rrn arice nos permitiria r een c o n tra r. O corpo d e que fala O rla n é u m c o r p o novo . u m corpo do fut uro>' q ue a p a r e c e co mo r e s ult a d o de um d is c u rso, c o mo vi rt uali dade d e um rel ato , c o mo r ep r e s ent a ç ã o de um d e s ejo. É um co r po fic ç ã o , u m co rpo real certamen te poré m co rrio mern órra, um portador de m arc a s: in ic ial m.en te a s da própria O rlan como su jeito d es ejoso, em seg u ida as da c u ltu r a n a qu al e la se inspira. Ta is marcas i.rnplícitas se acresce ritarn n aturalmen te a todas as marcas exp lícit as que n ó s s u b lin h a m os até ag ora e qu e fund am eritav arn o discurso teóric o d a a r t ist a : marcas do dis curso socia l sobre o cor p o e censuras às quais a so c ied a d e submete este último, marcas das técnicas atuais e de seus efeitos. Ele exibe implícito, à imagem de um palimpsesto, a superposição de todas as memórias. Uma vez terminado, e le conta sua história na medida em que e xibe inscrito sobre ele a rnern ór ia de sua origem, as marcas d e s e u passado. Um e vá r io s ao mesmo tempo, ele s e r á o protótipo assustador d o h ornern atual. " U m c o r p o não p ode ser v ivid o senão c o m o virtualidade de narrativa't» observava Ivan Alm eida, sublinhando que o corpo é c h a m a d o constante ao d iscurs o não porque e ste últim o o re p r ese n te, mas p orque el e o interpreta, e que se rn d is curs o o corpo não existiria porque ele seria ininteligível. Ess e desejo de inteligibilidade do corpo, de seu corpo, Orlan o fe z se u, indo mais longe que o comum dos mortais, escolhendo até mesmo cada um de seus componentes n o final de um trajeto onde cada u m a d e s u as esc olhas e nco n t ra-se rac io n a lme n te justificada. Se todo corpo t e J11 n eces sidad e da palavra p ara p oder sim p lesmente e x p r e s s a r-se, o de Orlan impõ e esta necessidade . E le

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dias maís ta rde p o rq u e ela não consegue le r os textos que tinha intenção d e ler e porque e la se sente como um c o r p o s o fr e d o r, o que va i e v iden te m e n te ao e nco n tro de toda sua teo r ia . _ A liás o le m a da a rti sta é " Le m b re -s e do futuro", O rlan , 0 1' . cit., p . 7· Ivan Alme ida , Un C o r p s devenu ré cit, e m Claude Reichler (e d .) , Les C orps et se fictions, Paris: Mirrui t, 1983.

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A LJ'.M DO S LIMIT ES : PERfORMAN C E E PERfORMATIVIDADE

acaba por es ta r e fe tivamente a n tes d e toda li n gu a g e m . E le tem n e c es s id ade de ser di t o , a nal isado, ex plicitado p ara existir, se m isso e le ree ncon t ra ria a b analidade do real.

IM A G E N S E VIRTUALIDADE T r a t a n d o do ativi smo v ie ne nse , O sw a ld Wi erier men ci onava qu e os artistas se pre stavam a uma "d es t r u ição d a realidad e pela a r te":". A r efle x ã o p oderia se m dúvid a a p licar-se a Orlan , 111as n es se rnorne nto e rn qu e o at iv is m o se co n te n ta co rn um ato de destruição blasfematório e exib ic io n ist a , Orlan prop õ e uma r econ strução des sa rn e s rna realid ade, tU11 a r ealidade mítica, fi ct íc í a c e r t arnerrte , m a s ap e sar di sso real. Porém , tal recon strução de Orlan, contrariamente também nesse momento à body art, passa pelo recurso à tecnologia, uma tecnologia hipostáti ca que permite realizar e sse corpo s o n h a d o . O novo corpo que será oferecido aos olhares nega por parte da artista toda inocência primitiva ao sujeito. O s u j e it o aí e stá, onde seu desejo o leva e aonde a tecnologia o conduz. E se às vezes s e conleçar a p ensar que tal co r p o qu e Orlan construiu (o u está construindo ) tem alguma c o is a de um robô o u de um c o r p o morto, não s e pode es q u ece r pelo rnerios que isso que o espectador é instado a ver é uma ação que ainda não está c o ncluída. O processo sobrepõe-se à representação, um processo onde o conceito é, s ern cessar, posto na frente e onde ninguém j a m a is se interroga sobre o resultado. Na verdade, é interessante notar que, mais que o horror das imagens impostas ao espectador com um exibicionismo evi dente, o interesse principal da p erformance para o espectador reside no conceito principal que tem guiado a criação da obra e no que diz em relação ao corpo e à identidade. Paradoxalmente e apesar de seu aspecto muito realista - o de uma operação cirúrgica - é a abstração que se destaca na performance de Orlan , uma abstração teórica, um conceito que está na sua origem. Esse último, acrescido das difíceis condições 26

Apud Robe rt F leck, LAc tionnisme viermois, Hors limites: Iar t et la vi e 195" -1994 . catá logo. Centro Georges-Pornptdou , 9 novo 1994-23 jan . 1995. p . 205 .

O R LAN E A DESS A CH AU ;éA ÇÃO DO CORPO

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de observação da "experimentação", torna quase imaterial a o peração trarisrnit ida por vídeo da q ual só subsistem fitas de vídeo o u repro duções fotograficas v. "O séc u lo xx tem, a cada d ia, cada vez m e n o s necessi da d e da realidad e e cada vez mais necess ida de d a im a ge m", obs e rvava C arrera-". A p e r form anc e de O rla n cer ta m e n t e n ão foge dessa co ns tat açã o. N a verdade, n a medida em qu e a o pe r a ç ã o é apre s entada , cerca d a de t od a um a aparelh a gem te cn oló g ica, r e p ro d uzin do-a e multipli cando-a p oten cialm e nte a té os co nfi ns do p la neta, a i mage m tran smitida acab a p or te r mais re alidade qu e a própria o pe ração, desacreditando a própria realiclade -s. Nós e n t ra m os n o universo das vi rtualidad es mais reais qu e o re al d o qual Jean Baudrillard falou. E fe t iva m e n te, o desap are cimento da realidade em favor da r e p r o d u ç ã o pela imagem, torna tangível , nessa performance de Orlan, o imperceptível n o próprio seio da arte, o fru strado da criação. Ela realça, uma vez mais, tanto para a artista quanto para o espectador, os conceitos que aí riascerarn e que nos permitem lê -la. Em último caso, sem eles, a perforrnance não existiria. O discurso crítico e analítico torna -se mensageiro da perforrnarice, explicitando-a e por isso mesmo oferecendo-lhe uma legitimidade . "Para dizer a verdade, não re sta nada no que se furidarrie n taro Não nos resta mais senão a violência teórica': obser vava Baudrillard com resignação em L'Echange symbolique et la mort (A Troca Simbólica e a Morre p v. A constatação parece verificar- se para essas performances. É nessa relação, no questionamento por parte do espectador, que se interroga sobre seu lugar e sua função (ele está legitimando somente pela sua presença e pelo s e u dis curso 27

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Se ria p r e ci s o t amb ém ci tar os frascos de sa n g ue liqu efeito s ve ndidos pela art ist a . ass im com o as fotos , obj eto s sec u n d á r ios d e stinad o s a fi na nciar as o pe r ações e qu e se ins cre v ern num a v isão m ercantilista d a p erforman c e , a lgo que s e c e ns u ra fortem ente e m Orl an . Op. c it., p . 93. Lembra m o s a e ss e r espeito que as g ravações e m v ídeo que t iv em o s a ocas iã o d e ve r e que dura v am a p roxi mada men te d ez h ora s (g ravadas pelo Cen t ro Mc Lu h rm , e m T o r onto e m 19 9 5 ) eLam imp o ssív e is d e se re m vis tas na s ua integralidade devido à du ração do a conteci mento, da má qualidade da gravação e pelo fato de q ue materia lmente havia po ucas coisas a ver. ]. Baudr llard , L'E ch a ng e symbolique et la mort, Paris: Gal li ma rd, 1968. p . 13 . í

A LI:M D O S LI M ITES : P E RFO RM A N CE E P E R FORM ATI VI D A D E

O R L AN E A DESSACRALI ZAÇAO DO C O R PO

c rí tico uma exp e ri ê ncia d a qual ele co n tes ta o sent ido? ), sob re s e u s p róprios tab us e censura s , s o b re o s e nt ido de t al e m p r e itada, qu e pode r esidir o inte re ss e d e t ais práticas .

co mo uma fase na história dessa c o ri s c iê ri c ra">. A d is tinçã o é imp o r t an te se q u ise rrnos evi ta r cair nos d iscurs o s relig io s o s m o r ali s t a s que por m uito t empo d e cidira m a s no rmas do bem e do mal n a a rte . Se ap licarmos lit e r al m e n t e a d e fin iç ã o d e M ircea E li a d e, to d a o b ra artística p a rt ic i p a d o sagrado n a m ed ida e m que ela é r e almente um esforç o d e inteligibilidade diante d o mund o e de s i m eSIT103 3 • Não é s e n ã o re conhe c endo ess e as pec to f u n d am ental n ã o ap enas d a a r te, mas d e todo e m p ree n d imento c u lt ura l, que é possível resti t u ir à o b r a art ís t ica uma d imensão que ultrap a ssa a s im ples exp ressão d e um a s u bjetiv id ade. C i taremo s ainda Mircea E l ia de:

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SAGRADO NA A RTE

O n de fi ca m o s n ó s e m relação ao s im bólico, à a lm a e a o sagr a do quand o no s ac h amos c o n f ro n ta dos a ta is e m p r e it a d as r O que advém desta du alidade d o hom em - c o rp o e esp ír ito - na qu al n ós m e rgulhamos se m cessar (sobretudo no teatro) ap e sar de todo s os di s cursos t e óricos mod ernos e p ó s -modernos que t c n ra rn e l i m i n á-I a ? A questão p ode pare c er obscen a numa é p oca cm qu e s e rec u s a nor m alrn e nte toda e s p ir it u a l idade , con t u do e la n o s parece fu n d a m en tal po rque é es s a relação co m o sagrado , tomado n o s eu sentido m ai s ge ral, que justifica, no fim do percurso, toda prática artística. Sem se entregar a um misticismo redutor, q ue estaria muito deslocado hoje, necessitamos reconhecer com todos os grandes pensadores - filósofos, sociólogos, etnólogos - que se inclinaram para a história das religiões: Mircea Eliade, Georges Dumézil, Marcel Détienne, Maurice M erleau -Ponty, Roger Caill o is e t antos outros, que a questão não pode ser evitada e que toda fo r m a artística deve s er interrogada em função des ses par ârn etros que a ultrapassam e na qual e s t á forçosamente inserida. Se a ar te reflete rea lrne nte, sob s uas múltiplas formas, a necessidade de sublimar o real , s e ela r e sp onde no artista a uma necessidade de despojamento de si e a uma retomada em troca, e se, como faz notar Mircea Eliade, "a consciência do mundo re al e significativo está intimamente ligada à descoberta do s a grado", p orque "p ela exp eriência do s a gra d o , o esp ír it o human o [ .. . ] apreende a diferença entre o que s e revela co m o s e n do real, poderoso, rico e significativo, e o que é desprovido dessas qualidades, ou seja, o fluxo caótico e perigoso das coisas, suas ap a rições fortuitas e vazias de sentido">, assim, sagrado aparece c omo "um elemento na est r u t u r a d a consciência, e n ã o

Os pr-im órdio s da c u ltura têm s ua o r ig ern e rn e xp ene n ci a s e c renças r eligi o s a s. A lé m disso, rn esrri o a pós s ua secu la r ização r adic al , c riações c u ltura is c o mo as in st it u ições sociai s, a s técnicas , as idei a s mo ra is , as a r te s e tc ., não po d e m ser corretame n tc co rn p ree n d idas se n ão s e c o n hece su a matri z orig i n a l religiosa , matri z que elas c ri ticam tacitamente, que elas modific arn ou que elas recusam tornando - s e o que elas são atualrnentc: valores culturais sec u la r es .i-

Verdadeiras em toda body art, essas observações se aplicam bem particularmente às performances de Orlan . De fato, tal matriz religiosa original de que fala Eliade, a s performances d e Orlan trazem sua rnarca e a artista usa -a conscientemente (fras cos de sangue, imagens de madona, sacrifício) e coloca-as em ce n a , ainda que s ej a para denun ci á-las. Mesmo que se as consid ere pueris o u n ã o, elas evo c a m co n t u d o o sagrado pelo aspecto s ac r ific áv el das experimentações às quais a artista s e submete, ainda que elas o façam de maneira ridícula e forçosamente paródica. Sagradas ou profanas, elas são incontestavelmente o si na l d e um a re sistência ide ológica que é frequentemente aquela de toda arte moderna. 32 33

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M . E lia de, Hi sto ire des croy ances et d es idées religi eu ses , Par is: Payo t, 19 7 6 , v. I, p. 7.

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Ib idem . "P a r a o h o m e m t o rna r -s e c o nscien te d e se u pró prio modo d e s e r e a ss u m ir s u a presen ç a n o m u n do, isso repre s e n ta li m a exp e r iê n ci a reli gi o s a'; obse rvava Mirc e a E liade, La N os talg ie d e les o rigi n es, Paris : Gall imard , 19 7 1, p . 32 . citaç ã o co m o um eco d e s t a fras e de G. Ba ta ille: " N a med ida e m q ue e la é espí r it o, a rea líd ade h um a n a é sa n t a , m a s e la profana n a me dida e m que e la é r e al "; ve r op. c i t., p . 52 . M . Eliad e , La N osta lg ie d e les origines. p . )2 .

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A LI'. M DOS LIMIT ES: PE R FORMA N C E E P E R FO R :I", G e o r g es B ataille c h a mava a aten ç ã o , muito j u s t a men te e m " O Esp í r ito Mo d ern o e o Jo go das T ran s p osiç õ es", que eram impulsos muito ativos m a s tam b ém muito c o n t u r b a d os qu e deram origem às obras artísticas que s e inspiraram nes sa decadência, se bem que "s o b sua forma mais p erfeita , o esp írito m oderno [ .. . ] s e d e s envolvera a r e s p eito d e um mal- ente ndíclo"v A re sponsabilidade d e s s e mal -entendido não cabe t anto aos te órico s - "c u j a r e sponsabilidade , di z Bataille, é muito menos e n g aj a da do que ap arenta p orque d emonstraram s o b ret u do a inc onsistên ci a d a v o n tade" - "q uan t o à s transp o si ç ões s im bóli c as [q ue ] fora m colocadas à f ren te e m todo s os domíni o s com a c o ns is tê nc ia mais puer il" >". O r e sultado é um d e s c onhe cimento "d o caráter esp e cífi co d a s emo ç ões violentas e impess o ai s que 35 36 37 38

Op. ci t., p. 71. E ele a cre s centava: "e part icu larmente o s is te m a qu e identifica a ideia à realid ade, a a r te à vida': G. Bataille, Docum ents , P aris : M e rc u re d e Fran c e , 19 6 8 , p. ' 9 7. Ibid e m , p . 198 . Ib id em .

ORl. A N E A D E SS A C RALI Z A Ç Á O D O COR PO

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sign ifi c avam os s ímb ol o s" s e bem "q u e p or m ui to temp o fo i difícil escol h e r e n t re o c a r á te r se d u to r de um a tal simpli c idade e a passividade que re p rese n t ava n o fu n d o o intere s se m a rca do para o jogo das transp o sições"J9. S eri a d e sejável c i ta r e s s e b elíssimo texto d e Bataill e n a s u a to ta lidade tan to ele parece descrever nossa sit uação diante dessas performances dos ano s de 1990 . Deve-se falar "de inconstância pueril " para o artista? De simplicidade o u de passiv idade para o espectador? Se toda arte é e x p e r irn errtaç ão-» e se o "d e s e rrv o lv i rne nro g igan tesco dos m e io s de produção" tem, como o afirmava Bata ille, le v a d o à realização da própria consciência nas livres exp losões da orde m In t irna- ', e ntão a atit ude d e O rlan tem a ver r e altn en te com se u tempo. É p o r tod o s e s s e s mo t i vos q ue as perfo r m a nces d e Orlan no s i n teressam e n o s q ues t i o ri a rn : ao rnesrn o temp o pel o se u co nteúdo, pela s ua na t u reza, p elo que elas di z em da r elaç ã o n o co n j u n to d e nos sa s o c ie da de, pel o s tabus que elas in fringem , pel o s limite s que el a s tran sgridem e a c o ncei t u a ç ã o qu e e las s usci tarn . E rn o u t ros t e rm o s , e las n o s fa zem fa la r (esc r eve r, dis cutir) e esses dis cu r s o s div e r s o s n o s le v am a e x p lic i tar d e n o v o n o s s o s pens am ento s . E m razão d e ss e simples fato, a a t itude da a rt is ta s e acha po r t a n to plen amente justificad a e se u o bj e t iv o a t in g id o . Trad. A imée A maro de Lolio

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Ib id e m . Deleuze e Guattari d efin em a p alavra "e x p e r im e n ta l" com o "o que desi gna não um a to d e stin ad o a ser julgado e m term o s d e s ucesso o u d e fra cass o , m a s s im p le s me n te u m at o c uj o res u lta do { d e sco n h e c id o' : E m LA nti-Oedip e, Pari s: M inuit , 19 72 , p . ' 3. G. Bataill e , o p. c it. , p .124.

6 . Distanciamento e M u lt im íd ia ou Brecht Inv e rt id o

A n o ção bre chtiana d e dist an ciam ento ' torn ou - se um d ogma n a s teoria s d a r ep r e s entaç ã o ligadas à form a ç ã o d o ator, urn do s p olos da tríad e que se rve d e base à s divers a s esc o las d e form a ç ã o te atrai s - os d ois o u t r o s p olos sendo oc u pados , p or dife r ente s r a z õ e s , p o r Stan is lávs k i e Artau d . Q ue r a z õ e s p ode en t ão h av er para vo ltar nos dia s d e h o je a esse feri órnen o q ue é o d ístari ci a m erito, fenôm e no amplamen te es t u dado e c u ja e vidênc ia impõ e , por ass im d ize r, a n e c e ss id ade teatral como a lte r n a t iva à identifi c a ç ã o d o a to r à s u a p ers o nag em ? Minha interroga ç ã o parte dess a própri a evidênc ia. A ce n a teat r al atual tem p or p r in cípio implícito e n ã o t e orizado o fe nô meno d o di stan ci a m ento . A d e sumaniz a ção d a s p ers o na gens d e Tade usz Kantor (A C lasse Mo rta) , a tipificação liga da ao palhaço ou o r ie n tal das pe rso n a gens d e A riane M nouchkine (O s Palha ço s , A Id ade de O uro, Ricard o III ) , a afe taçã o d a s p ersonagens m ediáticas d e Ge o r g es Lavaudant (As Cefeid as), Nós chamarem os "dista n ci ame n to " o procedimento cê nico que tende a tornar es t ra n ho um fenômeno p articular d o palco o u d o coti di a no forçando o especta dor a lima di st ânci a c rít ica e m rel a çã o ao q~ lh e é d ado ve r o u o uvir. Ta l d efinição te m a vanta ge m de a m p lia r o con ce ito de "d istan ci a m e n to" coloca n do -o n a linhag e m d as c o n ce pções idênticas às elaboradas pelo s forma listas russos.

ALÉM DO S LI M IT ES : PERFO RMANCE E PER FORMATlVIDAOE

D ISTANCIAME NTO E M UI.TIMIOIA OU I3RE CHT IN V E RTID O

a m ecanização das p ersonagens de R. Wils o n (Ei nste in o n the Beach [E i n st e in na P r a ia]) e a histeria m ec ani ci st a d a s p erson a g en s d e Richard Fo re man (Pe ng u in Touq uet), po de r iam se r tod a s a na lis a d as corno efe ito d e di stan ciam en t o e nvo lve n d o esse v ai v ém in c e s s ante pa ra o ator e n t re o ex ib ido e o v iv id o que r e gistra a teatral idad e n o p alco. Além di sso, um a o u t ra ce n a teatral - aquela qu e será e specificamente tratada aqui e c uj a história encontra s u a r en o vação voltad a para as artes pl ásti c a s , tecnologias n ovas, a r tes multid ís, c ip li n a r es, isto é, co rn um a esc r it a c êni ca diferente - a u me n t o u e tran sferiu o proce s so de d i s t a rrc i arne nto do c o r po do ator ( e sua relação c o m a personagem) para tudo qu e o ce r c a e o ab s orve. É o exemplo d e Trisha Brown, Andy d e G r o a t, Laurie Anderson, Meredith M onk, Sob Ashley, e também do S Q U AT . Nos casos aci ma mencionados, não s e trata d e distanciarnento propriamente brechtiano, quando muito n eobre chtiano; para a maioria, Brecht não c o n s tit u i nem uma refer ência t eórica nem urna referência prática. Porém o fenômeno do distanciamento é essencial à arte moderna e rnais ainda pós -moderna. Corno explicar a partir daí essa preeminência do fenômeno do d istanciarnerito no teatro moderno e pós -moderno fora de qualquer referência às preocupações brechtianas? E por consequência, como é necessário compreender o distanciamento brechtiano em relação à q u e le dos dias atuais?É essa interrogação que este artigo se propõe abordar, voltando sua aten ção para os pressupostos teórico s e filosóficos que permitiram p ensar (e passar à prática) essas duas manifestações do di stanciamento.

distancianlento) c o rn a v iagem que es te úl t i m o fe z a Moscou ern 19 35- E le aí reproduz ia a o r igem do con ceito b recht iano de Ve rfre-

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m d ungseffekt (efei to de distanciamento), n u m primeiro momen to d e finid o como Entfremdu no (alie nação), fazen do -o reportar a té o uso qu e fize ra m dele Schklóvski e os form alis tas russos-. M arjorie H o o v er m o strou, p o r seu lado , como o conce ito de ostra n i ên ie (a lienação), (de po is d e otd a liê n ie [d istanc ia me n to ]), defin id o por S chkl ó v ski, co ns t it u i a o r ig e m d o co nce i to d e di stanciamento, e corno Bre cht te ria tid o co n hec i me n to di s s o no d e c orrer de suas v ia g e ns à Rús sia. T a l c o ncei to lh e t er ia s ido c o m u n ic a d o, seg u n d o toda s a s probabilidade s , pelo s eu amigo Tretiakov que est ava c ie n te dos trabalhos que Sch kl óvski então empreendera a r esp eito de algun s textos d e Tolst ói. E s s a s p esqui sas tinham s ido publicadas em N ó v i Lef, revi sta da qual Tretiakov e r a então o editor. Questionando a respeito da especificidade da o b r a artística, Schklóvski volta a indagá -la essencialmente sobre uma ideia que e le nomeia processo de singularização. "O procedimento da arte é o processo da singularização dos objetos e o processo que c o n s is te em obscurecer a forrna, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção,"> observa ele em 191 7. A arte aparece aí c o mo u rn rrie io que p er mi te lutar c o n t r a a a u torn at.i zuç â o da pe r c cp ç â o " e como um processo que permite ins crever o mundo numa " v is ã o" e não num processo de " r e c o n h e c im e n t o': "O objetivo da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhe cimento [ . .. J a àr te é um meio de compro va r a transformação do objeto, no que já s e transformou não importa para a arte ."? Ou ainda: "Se nós exarn irrarrrros as leis gerais da percepção, vemos que uma vez tornadas habituais,

EVOCAÇÃO HISTÓRICA 4

Que o distanciamento não seja urn co nceito rigorosamente brechtiano, é o que os estudos de John Willett", retomados e desenvolvidos h á alguns anos por u m excelente artigo de Marjorie Hoover sobre o tema, permitiram esclarecer ' . John Willett ligava a isso o uso que Brecht fez da palavra Verfremdurzg (estranhamento/ 5 2 3

John W ille tt , Th e Theatre of Bertolt Brech t , L o n do n: Me t h u e n , 1959 , p . 208 . Ma rjorie H o o v er, Bre ch t's Sov ie t Co n nec t ion: Tret ia k o v, em Brecht h e ute B rec h t To d ay; Ger m a ny, A the nau m, p . 39-56. Ja h rgang 311973-74.

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Essas afi rm a ç õ e s se rão reto m ada s por Re inh old Grirn rn , Ber n hard Re ich, m a s co n tes ta das p or Ian Knopf. v.v. Schkló vs ki ( 1893) foi escr itor e c rí tico literári o . Fu n do u a S o cieda de Para o Es t u d o da Língua Poética (a O po iaz ), pilar d o fo r rna lís rno. E s cre veu c u rtos ens ai os p ol émi c o s : O M o vim ento do Cava le iro ( 19 23 ), A Literatura e o C ine m a ( 1923), M ateri ai s e E stil o e m "G ue r r a e Pa z" d e Tolstói ( 1928 ); N otas S obre a Pro sa dos C lá ss icos Russo s ( 1955 ). A Fav or e Co n t ra, No tas Sobre D o stoi évski ( 1957) . Da Pro sa Literária (1959), T ol s t ó i ( 1963), ass im como rom an c e s. v.v. Sch k lóvs k i, L'A r t co m me pro céd é, e m Th éorie de la lit t érat ure, Pa r is : Se u il, 19 6 5 , p. 83 . lbi d e rn , p . 94. lb idem. p . 83.

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as a ç õ e s tor narrr -se tar nb érn a utorn át icas.?" P r e c isando o que co nvi n ha e n t e n d e r po r s i n g u larização (ostra niênie), S c hklóvski d e s envolve no seu a r t igo os div e r s o s pro c e dim entos utili z ados po r Tols tó i nos s e us romance s.

o pro c e s so de s i ngu la r izaçã o e m To lst ói cu ns is te e m que e le não c h a m e o obj eto pelo s e u nom e , mas o d e s c r e va co mo se o vi ss e pela p ri meir a vez, e trate cada incide n te co mo se el e oco r resse p el a p r imeira vez; a lé m dis s o , e le e m p rega n a d e s cri ç ã o do objeto, n ã o o s n omes ge ra l me n te d ado s às s uas p arte s , m a s o ut ras palavra s e m p res tadas da desc r ição das p arte s cor res pon den tes em o utros objetos .> Ou ainda: "Tolst óí se rve-s e co ns ta n te m e n te do m étodo d e singularização: p or e xempl o, em Kh olsto rn er ( H is tó r ia de um C avalo), a narrativa é dirigid a a o n orn e d e um cavalo e os o b j e to s s ão singulari z ados pela percepç ã o at ribuída ao animal, e não pela nossa":". A s i n g u la r iz a ção ap are c e assirn COlTIO "e ssa maneira de ver os obj etos fora de seu c ontexto" !', op erando as mud anças nas redes semânticas estabelecidas pelo texto, tirando o objeto "d a série dos fatos da vida", retirando -o "de s e u invólucro de associações habituais"". A s sim o po e ta re aliza um a mudan ç a serná ri t lca, e le tira a n o ç ão d a sé r ie se mâ n t ica o n de e la se e nco n t ra va e a c o loca, c o rn a ajuda de o u t r as p alavra s ( d e u rn t ropo), numa outra sé r ie sernâ n t ica: n ó s nos apercebemos assim d a novidade , a co lo c a ç ã o do obj eto numa nova série [ ... ] É um dos meios d e tornar o objeto perceptível, d e transformá -lo num elernento de obra d e arte . A c r iação de uma forma em etap as é diferente . O obj eto se duplic a e se triplica graças à s suas proj e ç õ es e s uas o pos ições l ...] Esse pro c esso tem U1TIa va r ian te que consi ste em d eter- s e num único d etal he da cena e a cen t uá- lo; isso conduz a uma d eforma ç ã o d a s proporç õ es habituais ."

O que permite a S c h klóvsk i c o n cl u i r "q ue e m quas e toda p arte o n de h á imagem , há singularizaçã o " 14. 8 9 10 11 12 13 14

DI STA N CIAME NTO E MULTlMiDIA OU IlRECHT INV ERTIDO

Al.IÕM DOS LIMITES : PERFORMAN CE E PERFORMAT IVIDADE

Ibidem , p . 8I. Ibidem , p . 8 4 . Ib id em, p . 85 . Ibidem , p . 89. v.v. Sc h kl óvs ki. La Co nst r uc t io n d e la n ouv elle e t d u roma no e m Théorie de la Litt éra t ure , Pa r is : Seu il , 19 6 5, p . l R5. lbidem , p. 184 e 185 . V. V. C h k lo v s k i, LArt com me p rocédé, op. cit., p . 9 0 .

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A s ing u larização descri ta p or Schklóvski refere-se antes d e tu d o ao texto poético. E la evide ncia alguns desses procedime ntos p o n t uais: u t ili zaç ã o d a s im agens, das m etá fora s ; s u bstitu ição d e o r d em se mâ n t ic a, m u d a nç a d o se n ti do. E la se i nte r roga também s ob r e o d e senvolvimento da narraç ã o e a disp o si ç ã o dos epis ó di o s: e n c a ixe dos enun ciados; inserçã o dos discursos; estruturas em níveis ; e nq uad r a m e n to, o r d e n ação, inclusão. E la sublinha um a e s t r a tég ia que Irving G o ffman d efiniu co mo o princípio de fo regro u rid ing (fundamento) do s e n t id o. Por urn a r epresentaç ão po éti c a a po ia n do-s e o r a no s ig nificado, o r a no signific ante, ora n o s uj e ito d a e n u nc iação, o princípio de singularizaç ão re al ça a peculiaridade do t e xto modificando suas condições de e m iss ã o a fim d e transformar em troca a p ercepção d o leitor, s e m p r e presente nas preocup a ções de Sch kl óvski. E le restitui às palavras certa den sidade d e sentido que nivela o uso do discurso cotidiano. Pelo fato em si, a atenção do leitor s e en contra até rnesmo renovada . Schklóvski alcança nesse momento, nas suas observações , o que constituía então a preocupação fundamental do Círculo Linguístico de Praga": uma atenção renovada ao processo de semiologia que caracteriza a obra artística e a pesquisa da espe cificidade da obra literária . Dessa breve análise, d estaca-se portanto que a relação entre o princípio de singularização e o princípio brechtiano do distan ciamento se impõe em razão da proximidade dos aspectos e dos objetivos. Ele destaca, sem qualquer dúvida, se não a incidência direta da noção de singularização s o b r e a teoria brechtiana do d ístanciarriento, ao menos sua enorme semelhan ça. Precisamente como os formalistas russos , Brecht procura modificar o automatismo da percepção do espectador no teatro por um trabalho de s in g u la r iz a ç ã o dos diversos aspectos da representa ção. Nesse trabalho de valorização d e uma especificidade teatral, o texto ocupa um lugar privilegiado . Que e s sa e specificidade marque necessariamente suas distâncias face a um rn írnetisrno rigoroso em relação ao real não conseguiria surpreender. A obra de arte pode, de agora em diante, manter-se distante em relação

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V ic tor Erlich desenvo lve esse po nto em Formalismo R usso . 1955 . Cf. também L. Ma tejka, Se m iot ics of Art , Cambridge: M IT, 1976.

A LÉ M DO S LI MIT ES : I' ER FO R MA N CE E P ERF ORMATI VIDADE

DISTANC IAMENTO E MULTIMiDIA OU BREC HT INVERTIDO

ao real ". N essa evolução, Brecht rnarc a urna zona de passagem , um ponto de transição necessário.

os v í nc u los. D a interaç ão d es s es q uatro fatores nasce o q ue s e poderi a charnar o efeito d e di stanci amento. Co mo o bse r v ava G ro to ws k i , o d istanciamento n ã o é u m m étodo d e representação, qu an d o muito u m princípio . A n tes de Grotowski , Barthes, por s ua vez, c hama ra a a t e n ção, e m 19 54, em co n s e q uência da vinda do B erliner a Paris, a que ponto o distanciam ento brechtiano afastava - se de uma simples r e fl exão sob re a melhor maneira de representar e de encar nar uma personagem '7. Benno Besson , qu e trabalhou por m u itos anos com Brccht, observava e rn 19 79:

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o

DISTANCIAM ENTO BRECHTIA TO COMO TEO RIA DA REPRESENTAÇÃO

O princíp io d e distanciamen to brech t ia no é freq ue nte men te a p rese ntado des taca n do -se d e u rna teo ria da represe ntaçã o. Pode-se com esse in t ui to c ita r as d iv ers a s defin ições do distan c ia me n to c itadas po r B rec h t: " E m cada m om e nto impo rtan te, o ar t is ta d e v e ain da, ao lad o do que ele faz, for m u lar e deixa r e n t rev er a lgo qu e ele não faz" ; "Os c h ineses m o stram não a p e nas o corn por t a m e ri t o d o s h o rri eris , rn a s o co m po rta men to d o s a r t is tas"; "dis t i ng ue -se nitid am ente d uas p ers o nagens: u rn m o stra, o o u t ro é m o strado". C o n t u do, o d is ta nc ia men to brec h tia n o n ão pode co n tar somente com o a tor e d eve se r pensado, para ser compreendido, em toda a complexidade d e um sistema onde o s parceiros são n umerosos e que, por s ua cola b o ra ç ã o , garantem a efi c ácia da te o r ia : o ator, o espectador, um projeto d e socied a de e n t re os quais um diretor-autor tece 16

A s poucas observações a b a ix o todavia realçam os pontos de d ivergências e n t re as duas posturas: a. Como já o observamos mais a cima. o processo d e singularização tal como definido por S chklóvski é um c o n c e ito inicia lmente aplicado à lite ra tura. Po rtanto, não é vedado pensar que os fundamen tos teóricos do d istanciamento brechtiano te n h a m inicia lmente tido como campo de aplicação o tex to teatra l. b . Se a no ção de singulari za ção pode ter inspirado Brecht, c o n vém não minimizar o papel capital que desempenhou na elaboração do princípio d e di stanciamen to. sua descoberta do teat ro c hi nês e mais especificame n te se u enco nt ro com o a tar Mei Lan Fang que pa recia ap resen tar no palco o p rocesso de distancíame nto. Segundo Rei ch , Brec ht se famil iarizo u não a penas com a teoria de Sc hklóvski ap licada à li tera tu r a . mas também com sua ap licação ao teatro. Efet ív a rne n te, Nicolai Okh lópkov q ue dirigia en tão o Realisti c Theater mon tara o s Aristocratas de Pagódin em 1935 e Brecht te r ia assistido à p rod uç ão. A teo ria do Verfrerndungseffekt te ri a s urgido pouco d e p o is de 1935. c . Finalme n te u m ú lt irno ponto importante : m e sm o se a n o ç ã o teorizada do Verfre m du ngseffekt só aparecesse b em tard iamente n o s tex tos d e Brech t, o p ro c e ss o de d istancia me n to já estava nas prá t ic a s respec t ivas de B rech t e d e P is c a t or bem an tes dessa data . como tes te mu n ham d iv ers o s artigos s o b re o a ssunto. A lém di sso, t a l filiação destaca igua lmente qu e o processo de singulari z a ção é a própri a essê nc ia d e toda obra a r tis t ica. Acre scentemos também que o s processos de distanciam ento, p or outro la d o , foram arnpl am ente e m p reg a d os pela corri éd ta, as for m a s d e teatro popular, o teatro a si áti co.

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Eu trabalhei bastan te tempo c om Brecht, o u seja, de 1949 a 1956, a té sua morte; e duran te todo o traba lho p rát ico, eu n ã o o o uvi empregar um a ú nica ve z a palavra "d is t a nc ia m e n to". É uma opção teó r ica que e le (Brecht) assumira nos anos de 1930, e da qual ele não se servira depois. Todas as teorias de Brech t são mui to perigosas se sepa rá - la s de sua prática. e e las não serve m senão p a r a con trolar e esco n der a verdade d a rea lidade d e s ua p rá tica . .É d ete stá vel ve r intimidar as p ess o as com co nceitos abstratos , e n o fund o is s o se tran sforma em in s t r u me n tos d e bloquei o. E m v ez d e deixar às p es soa s s u a p erc epção d o s se n t idos e d o emocional b em como a do intele cto , e las são bloqueada s com conce itos in telect uais e a el as são p roi bi das qu al que r a p roxi mação sensível q ue lhes p e r mitiria te r acesso a conceitos concretos."

Não li m it ar o p r incíp io d o distanc iame n to às s im p les teo rias d a represen tação é s u po r q ue o p r o ce ss o d e distanciam ento po de ser tam bém, e e u direi especia lme n te , p r odu z ido p el a peça e pela ce na a ntes d e sê- lo pelo corpo d o atol' e p orque ele é in d issociável d e um p roj eto g loba l d a sociedade . Tal p roj eto envo lve e m o utro ter mo d o percurso um espec tador n o v o e um m ate ri al te xtu al n o v o. Se um d o s termo s chegar a fa ltar, o di st a n c iam e nto n ã o p o d e aco n tecer'>. Q uais são as refe rênci a s d e um p rocesso d e dis ta nciamen to no palco ? 17 18

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Fran ce Observateur, 22 ju l. '954. C itad o no número especia l sobre Brecht e m Obliqu es, n . 20 -2 1 , '979 . C f o e p is ó d io q ue relata Brech t no s e u jornal a propósi to da e s p ec t a d o r a c h o r a n d o dian te do a tor c hi nês . Me i Lan Fa ng, enq uan to e le representava uma ce n a de v io lênci a , pro va que o di st anci amento representad o n o p alco n ã o b a sta p ara pro vo car um a distãn cia c r ít ica n o e spectador se el e nã o enco n tra um públic o fo r m a do p ara decifrá -I o .- Um e fe ito ca tá rt ico n o te at ro e a iden tificação do espectador co m a p ers on a g e m p ode , p o rtanto, ocor re r m e sm o d iante d e um a re p rese ntação distanci ada .

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DI S TA N CIAM E N T O E MULT I M1 DIA OU B REC HT IN V E RT I D O

A LÉM DO S LI MI T E S : PERFORNIA N CE E P E R F O R M AT IV I D A D E

a. O di sta n c ia m ento corrio ap ro p r iação d o r e al. A complexidade fundame n tal d a t eoria brech t iana do tea tro, é que e le procede d e rri a n e i r a c i rc u la r p artind o de uma aná lise política do real, representada e a nalisada po r interméd io do t eatro para aí r e t o r n a r n u m a te n t a tiva de tra nsformação desse r e a l at ravés de u m espectador-cidadão. Ness e trajeto, o d istan cia m ento é um pro c e s s o , um p r i n cí p io - não u m m étodo -, per m it in do a o a u tor a p a s s age m d o re a l ao palco e, ao espectador, o retorno crítico a esse mesrno rea l' ". Nos do is t errnos do processo, encont ran1 -se po r ta ndo assentadas a ex istê n cia desse rea l e s ua r ep rese n tação pelo p alco. A te o ri a d o te a t ro e m Br ech t n ão d iscute de rno d o algum o p a p el mimético do palco e m r elação ao re a l. E la admi t e c o m o a prio ri fu nd arne rital q ue esse rea l existe realme nte fora do p a lc o, que é poss ível r e pre s en tá - lo, exp licá -lo e m odific á -lo pela me d iação do e s p ectador. O te a tro e n co n t ra sua necessidade e s ua just ifi c a ção fo r a dele. Ora, t al r e p r e s e n t a ção do r eal, cxatamen te como e rn Arist óteles , é essenc ialme nte a s su rn id a pela s p al avra s que passam a d efinir a fi c ç ã o e fazem- n a d esem bocar no real. Sã o p o is as palav ras q ue trarão, q uanto ao e ssen cia l, a marca do processo de d ísta ri ci ar ne nto , in screven d o ess a s in g u la r i d a de n o tex to. T al process o n ão o b e d ece a nenhuma u n iv e r s al id a d e da for m a q ue a u tor iza r ia a a nal is ar un iform ern e n t e s u as n o rm a s; antes d e t u do , ele está ins crito n as práxi s e sp ecí fic as e d ife r e de uma p e ça para o u t r a , da í a d ificuldade ern desenhar se u conto r n o . A pesar d e s s e c u idado, ten t a re i m o strar aqui se us p ri n cí p io s d e fu nc io name nto ao inv é s d e analisar as modalid ade s de r ealização específi cas . b . O dtstanc íarriento co mo a to d e palavra e c o mo fr agme n to. O p ri ncíp io de d ista nc iamen to, elaborado co n tra a catars e aristotélica, n ã o p õ e em disc ussão os fu n d a me n tos d a mi mese 20

D aí a importân cia da defini ção exata da noção de distanciamento como esse "e fe ito de estranheza", de s in gu la r izaç ã o dos objetos e dos acontecimentos que os c o loca à di stân cia. C f. a an ális e d e Schklóvski referida m ais acima: "O processo da arte é o proced im ento da s in g u la r izaçã o dos objetos e o procedimento que co n s is te e m ob s cu rec er a forma , em aum en ta r a d ificuld a d e e a d uração da p erc ep ç ã o ." ( L'A rt co m m e pro c édé, op. ci t. p . 83) observava el e em 191 7·

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a r istotélica. Na verdade, o teatro brecht iano p errn artec e urn teatro de representação, de tradução do real que se assenta antes d e m a is nada n a função represen tativa da linguagem. São as palav r a s qu e i rnp ortarn . E las são rela to , n a rra ç ã o, ação. Falar é agir, tanto para a personagem apan hada n o emaranhado do e n re do, como para o ator apan hado no emaranhado da peça. O r a , o e nredo está no centro da re p resentação, m e smo rorn pido , m e smo f r agmen t á r io , rn e srn o m arc a d o por r upt uras . O distanci am en to que está e m di sc u ss ã o em Bre c h t não é a utorizado senão pelo texto . É o te xto qu e o le g it im a , o auto riza e o desencadeia. E le só p ossui sig n ificado e m r el a ç ã o à n a rra ç ã o. O ap are cimento do ator por trá s d a p ersonag em é p r imeiramente um e fei to d e dis curso, a e me r gê ncia d e um n o v o obj eto da e n u n c iação que s u b it a mente se e nca rrega d a p al a v r a , d esli gando- s e do en redo p ara m o s trá -l o - aí está um d o s papé is q ue assumem as canções n a s p e ç as de Bre cht. Tal a parição a tém-se unicamente à pal avra : o atar n ã o está mais n o e n r e do mas porq ue ele fala q ue e sse enredo torn ou- se o bjeto de seu disc urso e q ue u m primeiro efeito de distanci a men to pode ser registrado. M a s , ao fa zer isso, o a tor permanece na ficção , sua p artitu ra se ndo comandada pelo texto. Dois enunciados s e alternam e à s vezes se sob r e põe m: o d a person ageln ocu p a n d o lugar n o enredo e o d o a tor oc u p a n do lu g a r no palco. Ora, o tex to tem como s u jeito d a e n u n c iação a pers onag em ficcional, o ra s e trata de um a to r n a rrador c omen tando a a ção e n q uan to instância s u p e r io r que d etém ce r t a p arte de verdade . Duas v o zes se sob repõem, u m a polifonia s e in sta la. O distanc iamento torna sensível a q u i os diferente s e n u nciadores que estão sem p r e presente s n o palco. E le os colo c a no lugar, realça- os, m ostrando o fen ômeno d e sem iolog ia p el o q ual o a t o r torna - s e p ersonagem, tornando o p a cos o s s ig nos para o e sp ec t ado r. T u do se re pre s enta p o r tan to a p artir d o enredo n u m a r el a çã o de afirma ção - co n testação da qual é r e s p ons á vel o a to r e m relaç ã o à p ers ona g e m d a ficç ão, m as que é dit a d o pelo te xto e pela cen a. N a o r dem da narração, tal distan ciam e n t o é inic ialmente um a interrupção da linearidade d a narrat iva q ue a utoriza a m uda nça do t e m a da en unc iação. E le para a n a r r a t iv a e

A LÉ M DO S LIMITES: P ERFORlvlAN C E E PERFORMATJ VIOAD E

DJ ST A N CI A lvI E N T O E MU LT IM [D JA OU BREC HT I N V E RT lO O

frag menta a ficção, introduzindo espaços abertos, recusan d o a prog ressão de uma narrativa que não obedeceria s e n ã o à s ua p ró p r ia dinâ m ica i nterio r. E le i n t r odu z u ma causalidad e exterior à fic ção que lhe justifica o movimento. A narração é submetida a um o b j e t ivo dia lético que lhe é e x ter io r. S u b it a mente o tempo do e s p e t á c u lo s e põe no lugar daquele da ficção. A imediatez do clímax teatral aparece ao mesmo temp o q u e a ce na registra uma ruptura, uma q uebra na o rd em da rep re sen tação q ue permite a muda nça da ordem da narra ção para a do espetáculo. O distanciarnento des igna tal ruptura, UITl processo de c o lo ca r e m prirn e i ro p lano. E le represe n t a a p a s s a g em q ue o pera a ce na e n t re a o rd ern do rea l e a d a cena, tra nsfo r man d o a ficção e m o b jeto d e dis cu r s o , i ntrod uz in do u m a dife ren ç a c uja pertinê ncia e eficácia são rnc d id as p el a análise soc ial. As for mas esté ticas são e las p ró pr ias a p an hadas nesse q uestio riamento e m q ue o palco oscila e n tre o cabaré e a narrativ a pura, e n t re o espe c u la r e o dis cursiv o >'. O distanciam.ento tamb ém p ode ser produz ido por u m e fei to d e ins erção: ins erç ão d o s e n u n c ia d os ( p a ró d ia, p alirnp sesto), e ncaixe d os d is c ursos (c it ações), r etóri cas d o es petácu lo (caba ré, fi lme, d iapos it ivos, im a g ens ). As form a s se e ncaixam u m a s nas o u tras, se revelam, se d e si gn am , se de nu nc iam . É de s ua justapos ição q ue emerge a s i ngu la r idade. U m d es enc o ntro aparece, uma dial ética e n tre as fo r mas, uma d e s c entr aliz a ç ã o. As palav r as, os aco ritecirnentos, se e ncon t r a m des s e m o d o sem p re context ualizados, eles não remete m a seu únic o s ign ificado. E les partic ipam d o conj unto. Ao mes mo temp o todo e parte. "A parte q ue d esigna o todo " - a expressão é de Lukács - "o esse ncia l es tan do p r e s ente em cada rn ornertto" A p arte , o f r agmen to se põe assim a des frut a r de urna a u toriom ia r elativa, e ncontran d o seu sign ificado e s ua justificação somen te e m rela ç ã o ao todo. O pro c e s s o d e distanc ia me n to a pa r ece, por tan to, e m Brec ht corno sen do i n icialmen te u m d is tancia me n to d e o rdem

di s cursiva . E sse se manife st a p or um deslocamento d o tema da e n u nc iaç ão, que ri o rncia a n o va fu nção d a a r te q ue o o r ie n ta em direção a o social. E le apare c e tarnb érn c o m o uma sensibilização do ato r e do p úblico a esse e fe ito d e derrapagem e n t re o rea l, a fic ção e a c e n a, a e s s e e fe ito de e nca ixe dos discurso s ; o real sendo de novo qu estionado pela cena e a cena recolocada em discussão por s u a necessár ia final idade fo ra do palco. A c omplexidade fu ndamental do p r o c e s s o d e dis tanc iamento é q ue ele realiza no q uadro dessa zona in termediár ia ent re o real e o disc urso, nessa zona de t r o c a onde o r e al é antes de t udo disc u rso, a pree nd ido por inte r m é di o d a lirigu a g ern , m a s o nde inv e r s am ente a caracter ís t lca essencial d o di s curs o é e nco ntra r a justifica ç ã o fo r a dele , no r eal. Ma is exatamente a inda, o d ist a n c iarn c n t o apa rece co mo o m omento o n de se p a ss a d e u m a n damen to d o dis curs o como d etento r d e s ig nific a ç ã o sobre o real a um a n da men to d o dis cu r s o como veíc u lo d e um a es té t ica e de uma teat ralidade".

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É em relaç ão à ins cri ç ão a t u a l da person agem na n a rra ç ã o e n a so ci edade que s e define o discurso (gestu a l incluído ) da personagem c o m o re v el ador d e se u mo do d e int e g r a ç ã o soc ia l e d e s ua inclu s ã o d e cl a s s e, m a s é e m relação à soc ieda de f u t ura q ue h á d e s lig am en to do a to r e d a p e r s onag e m , e q ue um n o v o tem a d e enun ciaç ã o desper ta.

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c. O distanciamento c o m o domínio do real Tal a n d a men to d o di stan ciam ento e fe t ua-se n o dom ín io : d o r e al d omínio que as p al a v r a s p odem alcan ç ar ; d orn ín io d a s p al a v r a s qu e pode m a deri r a um a ver dade p e squis ada , crença num a ver dade fo ra d e ce na, do m ín io d e um d iscurso. E o que nós q ueremos ob ter, não é ta nto q ue seja o lhado de outro modo, é que se olhe de u m m o d o bem de terminado, d e u m modo diferente, não tão d iferente quanto as d e m a is , mas de um modo justo, isto é, de acordo com as coisas. Nós n ã o que r em o s simp les me n te" conseguir o domí n io", na arte como na p olíti c a , m a s o d omínio das co is a s': observa Brech t em "C o n s id e r a ç õ e s Sobre as A r tes P l ást icas" ."

Brecht declara, co mo d o gm.a , que o mundo é d ominad o peJo es pí r ito, po rtanto é p o s sível: L c o m p r een dê- lo; 2. r epr e sentá -lo; 3 . exp lic á- lo; que essa apre ens ã o pas s e p elas palavras. 22

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Exi ste um terceiro termo d a operação que Brecht não le v a e m c onsideração, é o tema. O t e m a é deixad o por conta, fora d a fic çã o e fora do real ; u m a fic ç ã o q ue s u b lin ha o p rocesso d a se rniolog ia d o a to r, m as n ã o o d e s m onta to t alm ent e ; um re al qu e n ã o tem espaço para o tema . Obliques, n . 20-2 1, 19 79 , p. 58.

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A LÉ M DO S LIMI TES: PERFO RMAN CE E PERFORMATI VrOAD E

D ISTANC IAME N TO E !v[ U LTI M I D IA OU BR E CH T IN V E RTI D O

Implica a existência de uma ve rdade fora do palco, que polariza e justifica não somente o a ndarrie n to da ficção cénica, mas ainda o conjunto do processo artístico. Supõe um ponto de vista considerável sobre a história, e a possibilidade de uma atitude de supremacia para pensá -la. Nós estamos na o r d e m da lei, a expressão é de BaudrilIard, ern oposição àquela da r egra >. Como tal, o d ís t a ri c ia rn e ri to brechtiano aparece rne nos co rno uma teor ia da inte r p re tação que corno uma teoria da rep resentação. E le pennanece encerrado n a clausura de uma re presentação da q ual Derrida most ro u o inevitável desvio. O que nos auto riza a dize r qu e , lo n g e d e romper totalme nte com a teo r ia aris t o télica d a cena , Brec ht é se u último gran de re presentan te.

O teatro atual, e rnais ainda, as artes multimídi a fi z e ra rn da maior parte desses pro cedimentos, uma forma e stética q ue marca d o r a va n te a modernidade da representação e não c onvida mais o espectador a uma distância crítica tanto a fórmula tornou -se co r re n te . A c ena perdeu aí a narração e a s u p re m ac ia do texto ao m esmo tempo q ue se dissipou to d a materi alidade d e uma personagem mesmo ficcional. O ator aprende aí a s e posicionar em cena, a se arriscar, a se comunicar em sua relação corn o real. Mai s interessante é o recurso específico às mídias. A s perfo rmances multidisciplinares recorrem às mídias COI110 material d e nosso universo cotidiano que r eproduzem nosso ambiente e modelam nossa sensibi li dade tanto quanto nosso imaginário. Po rq ue na a t uação das pe rfo rrnances m ulti mídia, bem como na atu a ç ã o brech t iana , tud o parte e t udo volta ao real num q uesti onam ent o que b usca analisar- lhe a situação. É portanto so bre a a nálise d o rea l e s u a p e rcep ç ã o p elo art is ta e pelo espectador q ue res u l ta o essencial d o t r a balho de distanciamento. As m an ífesta ç ões co nc retas d e sse d .istan ci a rne nto são numero s a s e v a r ia m s egundo as prática s e s pecíficas. Al gun s procedimentos contudo podem se r v erificados a q u i. O primei ro c o ns is te seja numa desaceleração e imo bilidade da im ag e m , seja num a m ul ti pli c a ç ã o detonada de seu co nteúdo. M a s trata n do -se de um ou de outro procedimento, os dois rep ro duzem o r e al (esp aço, corpo, o bjeto) fo ra d e s uas relações sociais, d e m odo frag rnenr ár lo, não contin uado, por d e fo r m a ção, s uper posição, enca ixe. Es tas deformações ap rese ntam o o bjeto sob u m as pecto po uco conhecido, po uco ide nt ific áv el a tal po nto que o significado da imagem acaba po r desaparecer sob o c inetismo d a máqui na que emerge como um fa lan te à parte, por inteiro , a o m e s m o te m p o q ue aparece/transparece, at ravés d a s m odal idade s da im a g e m , o imaginário d o s suje itos q ue p erform am e pe rcebem . O seg u ndo p r o c e dim e nto consis te em reprod uzir no palco o rea l, s em trab alh o se nsível da imagem (cenas de violência, j o rnal tel e vis ivo , gestos coti d ianos, conversações inúteis e v ã s ) . E ss a r ep r oduç ã o do real t ent a ajustar-se r ig oro s a m e n te a se u o b jeto oferece ndo não somente a imagem mim é t ica mas a inda, p ri nc ipalmente, as estratégias de-percepção que essa imagem organiza . Mais que de uma referência qualquer ao próprio real,

O DISTANCIA ME NTO N O TEATR O ATUAUs Com p leta me n t e diferente é a atitude da p erformance multimídia ap e sar do s procedimentos de distanciamento i nte irarri erite s im ila r es ao distanciamento brechtiano. T a is p erforrn ances multimídi a , b em c o m o um a u tên t ic o teatro atual do qual nós qu erem o s fa lar, aqui p are cem t e r encontrado nas te cn ol ogias d iversas (vídeo, tel e v is ã o, aparelhos fotográ fic o s, s intet izadores) o mo do de reve r o di s t anciamento de man eira d ialética pró pria à nossa sensib ili da de, m antendo s eus p r i ncipa is t e rmo s: o r e al , o ato r (aq uele qu e a t ua), o n o v o espec tador, uma visão da soc iedade iluminada pela hi stória. Ent re os procedime n tos d e di stanc iame nto da obra nas p e ç a s d e B rech t pudemo s n otar a fragmentaç ã o d a n a r ração, a r u p t u ra na o r d e m da r epresentação, o deslocamento d o tema da e n u nc iação, o d escentrar d o ponto d e v is t a d o acon tecimen to, a passagem do rea l à ficção e da fi cção ao r eal, a co ntextu a lização da p art e no t odo, cada par t e se n do e la pró pria deten tora da históri a , a renúncia à lin e aridade d a narrativ a (cf. o exem plo do SQUAT), a rejeição d a p ersonagem c o mo e n ti d a de, o rec urs o a o u tras fo r m a s do e s p ecular (fi lme, diap ositiv o s , c a baré) . 24 25

I. Ba udr tllard , De la s éduc ti on , Pari s : Ga lil ée, 1979 . A s referências princip ai s se fa zem ao t eatro S Q U A T. a o \Vo o ster G rou p, ao esp e tác u lo multimídia de Monty C a n ts in.

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A Lf::1>.I IJ OS L1l1iIlT E S: PERFORMANCE E PER FORMAT IV IDADE

DI STANC IAMENTO E MULTIM[DIA OU BRECHT INVERTID O

a im age m to m a significado n o palco pela co n t ex tu a lizaçã o e re lacio nan do os o u t ros sistemas d e s ig n ific a do cê n ic os co m os q u a is e la se e n c o n t r a d e i medi ato, numa relaç ão di ai ética da qu al ela s ubli n h a ao rn e srn o tem po o a fast a m e n to e a ruptura e m re lação à s ua ló gica profurida'". A im agem importada a o palco através d a s mídi a s p ermite a q u i ruptura e distân cia c rí t ic a perante a c e n a e introduz tal d e sl o c am ento do terna de e n u n c iaçã o trazendo um ponto de v is ta diferente no palco e m sua relação com o real: o da câm e ra. As mídias: monitor d e vídeo, televisão, filme, introduzem assim urn terna não polarizado, difuso, urn novo terna da enunciação que desarma o processo da representação em curso. A re p r o d u ç ã o do real não é jamais inteira nem exaustiva. Bem como os t ernas qu e a viverr ciarn, ela é portanto necessaria rn e nte p arcelar, fragmentada. A parte que se refere sorne n te a ela é um discurso sobre a totalidade, estando integrada a uma r e flex ã o de ordem discursiva e crítica sobre o real e a rel a ç ão que os terrias rnarit êrn com ele. Nós vimos a parte que o parcelamento ocupava na estética brechtiana. A reprodução do real não se prende entretanto às estruturas so c ia is como em Brecht, aí elas estão em causa. A sociedade co rn o e s t r u t u r a coerente analisável em termos rnarxistas e brechtianos não tem sua evidência para o artista. O real das performances multimídia é de preferência o do tema na s u a relação co m o real, um real de que participa o social mas somente como um de seus componentes. O processo não é contudo puramente formalista . Ele não é unicamente dirigido contra os modos de representação artísticos habituais. Ele vai além de urna retomada de questionamento da s in t ax e de representação. Ele não pretende instituir um discurso puramente estético sem incidência sobre o real. Ele aspira revelar o s automatismos que aprisionam o espectador em relação ao real e leva-o também à necessidade de um espectador formado que saiba decifrar nisso um discurso crítico de denúncia.

É ern virt u de de as mídias autorizarem precisamente mais qu e q ua lq uer outra forma especular tal aproximação ex terna, quas e a bso lu ta, e n t re a cena e o real, q ue o real e ncon t ra-se a í supri mido. D e tan t o reproduz ir o real com exat id ão , de se l he aju star, el a s a c a b am por se colocar no se u lug a r, po r t r agá-lo ; o re al midi ati zado nada ma is é q ue u m s im u lacro, ilusão, po n to d e v is ta , rota de fuga. W alter Benjamin a fir m av a q ue a t é cnica p ermite s uperar a o p osição estéril e n t r e a for m a e o c o n t e ú do. Pare ce qu e se esta opo si ç ã o é na v erdade s u p e ra d a, form a e con t e ú do d esapareceram os doi s n o pro c esso, o u ainda melh or, se fundiram. Se a ameaça de um ponto de vista privilegiado p ermanece, o do mestre da obra dessa est r u t u r a cibernética, tal am eaça é contornada pela integraçã o do a r t is t a ness e processo de dis solução própria. Porque o que r epre s enta o artista é sua visão monádica, seu corpo, sua relação co m os obj etos, sua percepção do real assirn como seu e sforço pennanente e sempre fracassado para ir ao encontro dele. Nessa circularidade da irnagern e do real , torna-se impossível um ato de domínio e de conhecÍInento diante do real. Todo ato de domínio que pode ser imediatamente frustrado na sua própria realização. O homem social tal como classificado em categorias sociais específicas. A sociedade ela própria não é mais que um efeito de ilusão, uma mudança de pontos de vista onde ela acaba por se dissolver, um jogo de ilusões onde só conta o indivíduo e onde a história universal não pode mai s ser escrita. Nesse ernpreerrd ím ento para ir ao encontro do real, s e a máquina cibernética se desenvolve sem limites, ela acaba por devorar seu objeto e por s e colocar em seu lugar. O simulacro vampiriza o real. Na ilusão do real, a máquina cibernética gera e substitui o seu próprio gerador assim como seu próprio espaço e sua própria temporalidade, negando o real. O real dissipou -se totalmente nessa microscopia. Ele acabou por irnplod ir-", O distanciamento brechtiano assentava-se sobre dois a priori, de um lado a representação do real, de outro, a escolha da linguagem c omo instrumento privilegiado d e tal representação

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C f. o filme de )im )armus ch , integrante d o S QUA T , que é p rojetado n a primeira pa r te da p eça Drearnla n d Bu rns o e fe ito d o real que se acha a o lado do p alco (c f. n o ss a d es criç ã o d a peç a ap resen t a da n o c a r t az d o Fes t iva l d a s Amé ricas su rgido ern Th e Drama R eview, ou to no 1986; ass im corno o artigo " Ex is te m ao Me nos Trés Américas" pu b lic a d o sob o títu lo Th ere Are at Le a st Three Americas, New Theatre Ouarteriy, Cambr idge, v. 3 , n. 9. p. 82-88. fe v. 1987.

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" D ra m a t u rg ia da p rópria imp losão", di z ia Sue E lIen C a s e no ar tigo From Brecht t o Heiner Mu lle r, Perform ing Arts Iourna l, 19 , v. VII. n . I. 19 8 3 .

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A LtM DOS LI MIT ES : PERFORMAN CE E PE RFORMAT IVIDADE

num objetiv o de transformação s o c ia l. Os a priori qu e s e pode r e fe re n c ia r são de outro g ênero. Na verdade , a joga da essen c ial do distancia mento q ue operam as performances multimíd ia incide não sobre a própria representação, m a s sobre o es tatuto d o real. Se as performances não visam a uma transformação d o próprio real, elas organiz am todavia e stratégi a s p erceptivas que permitem decifrá -lo e e vita r a il usão disso. É n esse sen ti d o que a a tuação das perfo rmances mu ltirnídia é p olítica. O d istanciamento na perfo r mance vi sa se m d úvid a nenh uma ao estabelecimento de u m a d istância c rí t ic a em re laç ã o ao real. Tal distanciam ento representa , e é aí qu e n os parece a ma io r "atualiclade" da arte m ultim íd ia, não um ato de dom ínio corno e rn Brecht, rn as u m a to d e s up ressão em relação ao m undo e e m r elação ao real. Esse distan c ia m en t o reg is t ra uma perda d e influên cia que não é senão o correlato de u m a p erda do real. A h istó ria n ã o ex is te mais , a h isto ri c id a d e perde s u a i mportância p orqu e e la não é mais poss ível de ser imaginada d e u m p onto d e v ista imperiali sta e unitári o p orque ela re n u n c ia a um ponto d e v is ta p oderos o que lhe daria um s ig nificado. Nós es ta m os no domínio d aquil o q ue Vattimo definiu e m O fi m da moder n idade'" como a "fraca ideolog ia". Bre c ht acreditava q u e existia u m sentido na his tó r ia, uma o r igem na cena, u m a verdade no dis curs o -s. O princípio do distanciamento não é senão o reflexo desses a pri o r i: a existência do real e a p o ssibilid ade de apoderar-se d el e por u m ato de domínio. A p e r fo rm ance ren unciou à averiguação d e tal origem, torna ndo a q uestionar o estatuto do p róprio real , o se ntido da h is t ória, trabalhando ao nível da o rg a n iza ç ã o d a s estratégias percep ti vas do espectador. Ela se tornou a a rte d a criação de u rna a t mos fe r a de ir realidadev', d a superfície, s u p rimin do os refe rentes dissimula d o s , s ubstituindo a redundância da d e c od ifi c a ç ã o brec h t ia n a do r e al, operando através da exasperação d o s signos ". Fazen do isto, as a rtes mul ti m íd i a impuseram u rna relação difere n te no 28

29 30 31

G . Vatt irno, La Fin d e ia modernit é: nihil ism e et h erm éne utiqu e da ns i a culture p ost modern e , Pari s : Se u il, 19 8 7. G . Sca r p e tt a, B rec h t o u ie so id a t rno rt , Pari s : Grass et , 19 8 0 . G . Sca r pe t t a, L'Irnp urité, Pari s : G rasse t, 1985 . p . 64 . " Pa ra a tradi ç ã o m odern a . a re p re s e nt a ç ã o d e vi a s e r vo ltada ao fracasso p ela ir r u pção do re al ; para a pós-mo der nidade, é o própri o e stat uto d o real que é s u b me ti do à d e s c o nfi an ç a': Ib id em , p . 18 6.

D ISTANC IAME NTO E II.IULTIMiDIA OU BRECH T INV E RT I D O

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palco, no rea l, n o te rn a . E la s a sse n tararn a questão do co rn soc ial da arte e manifestam aos nossos olhos um do s rn e io s mai s a t uais e m ai s in teress a n tes de compreende r o distanciamento h oj e . E co n cl ui rei c o m estas p al av r as q ue p roferia Brecht nas s uas "co ns ideraçõ es s o b re as ar tes p lást icas": p ro rn i ss o

Os a rtis tas d e difere ntes épocas vee m o bviamente as co isas di fe renteru ente . S u a v isão n ã o d epende u ni c amente d a p ers on alidad e d e cada u rn , m a s tarnb érn d o sa be r' qu e eles e seu tempo p o s suem so bre as cois a s. É urna exigê nc ia d e n o ss o te rn po considerar as coisas na s ua evo lu ç ão. corn o c ois a s que Se transforma rã o , q ue s ão in flu en ciada s p or o ut r as coisas e outros proc edirn cn ro s .v

A r eal idade ela qual falava Brecht impli cava a fé numa h istória universal qu e s e dirigia ao dest i no da hurnan id ad e e co locava e rn c en a u rn h o rn eru universal, e r a uma realidade a n tes de tudo social e o h o m e m aí aparec ia como u rn p rod uto d a cole t iv id a de; a reali dade d a qual fala a a r te p e r fo rm a t iv a é m a is a t u a l rrurn se ntido. Essa rea lidade não é mais a da socie d a d e ; ela é in dividu a l e afeta o h omem so mente fora d e toda a li g a ç ã o ao g r u po; ela chega ao tema q ue tin ha esvaziado o teatro b rechtiano. Trad, A imée A m aro d e L o lio

32

B. Brech t, Ecrits sur ia lit t érat urc et l art

2,

Paris: L'Arc h e , 19 7 0 .

Parte

IV

A Cena Sob Investigação

1. O Texto Espetacular: A Cena e Seu Texto'

o título dado acima é "A Cena e Seu Texto" e não "O Texto e Sua Ce n a" Ao inverter, dessa forrna, a ordem habitual dos dois termos "texto" e "cena': que são frequeriternente os com ponentes do processo teatral, nosso objetivo é sublinhar bem a perspectiva de conjunto na qual desejamos inserir essa reflexão, qual s eja, a de uma interrogação que se origina primeiramente num espetáculo que se forja a partir da prática (tal como a de Robert Lepage, Denis Marleau, Gilles Maheu ou Jean Asselin) , e qu e tenta mostrar a rel ação que o ator manr érn corn o texto durante a r epresentação. A caminhada que vai da cena ao texto não visa, sobretudo, mostrar o grau de fidelidade de uma encenação com relação ao texto de origem, questão a b u n d a n te m e n t e debatida e que t eve s e u grande momento. Antes, procura operar a decupagem do texto espetacular ao evitar a distinção ainda corrente entre el e mentos visuais e elementos textuais, distinção essa tradicional e pouco fecunda, parece -nos . Tem em mira também interrogar, questionar, observar a interpretação do ator, seu corpo, Es te te xto apa receu an te r io r mente e m Pa t ric e Pa v is (ed.), La D rarnatu rg ie de l 'act ri ce, Brux ell e s : D egré s , 199 9 , p . I , 1- 21.

A L!ÔM D O S LI MIT ES : A CENA SOB INVESTIGAÇÃO

O TE XTO ES PE TACU LA R: A CENA E SEU T EXT O

s u a d inâm ica n a r elaç ão co m o t e x t o através de um espet ácu lo exib ido co mo tot a lid a d e, no qual o texto é um cornponente e m meio a out ros d o p r o c e ss o cê nico. Con c re tam en te, coloca mos a q uestão do des emp enh o do atar no centro daqui lo q ue se pe rcebe de bo m g rado co mo sen do a dualidade do t e xto e d a ce n a. Esta reflexã o i nsere-se na linhagem d a s reflexões q ue E ugenio Barba e Nicola Savarese exp ressa ram no se u livro I..:Energie q u i d a n se: J;Ar t secret de Ta cte u r (A E ner g ia Que Dan ça : A A r te Secre ta do A to r) ". T a l linh a consti t u i o essen c ia l d e s u as p esquisas no se io do I S TA e referênci a o b r iga tó r ia nesse gênero d e reflexão . Do is t exto s nos s e r v ir a m corno fio condutor: "D ra rn a tu rgie", de E u ge n io Barba, e " T ext e e t scê rie" (Texto e Cena) , d e F r a n co R u ffi n i, doi s textos no s quais o principal interes s e é fornecer urna defi n ição diferente d o s c o n ceitos de texto e ce na ao d esloc a r nossos pontos d e referência habituais e desorganizando um pouc o a ordem cênica que n os é familiar. Con fr o n t a re m o s essas definições para a prática cênica usando c o m o ponto de apoio alguns resumos aos quais nos referiremos: Les Sept branches de la Rivi êre Ota (Os Sete Afluentes do Rio Ota), de Robert Lepage, Les Maitres anciens (Os Velhos Mestres), encenado por Denis lvIarleau, L e Dortoir (O Dormitório) do Carbone 14 , encenado por Gilles Mah eu, e Ricardo II, do Mime Omnibus encenado por Je an Asselin.

a licerçado no texto c o rri o ponto de partida para a e n c e n a ç ã o e que esta ria inserido n a tradição escrita ocidental, e um teat ro b a s e a d o no performance text (que aqui traduzirem o s por "texto perforrnativo"), indissociável da representação e que se d esta ca r ia sobremaneira no que diz respe ito à tradição o ri e n ta l. Na li n g u a g e m corre nte, o texto refe re-se a deternli n ado repertório q ue pre exi s t e à rep rese n taç ão. Na m ai o ri a das vezes, é esc r ito e serve hab it ual me n te de po nto de pa rt id a para a e n cen a ç ã o , o q u e não o dispe n s a ele te r urn a exis tê ncia extracê n ic a pe r fe itame nte legítima e de c irc u lar e n quan to escrito a utô nomo. E le pre exis te , a ss im, à rep rese n tação o u serve- lhe d e s uporte c o mo fo r m a es crit a . O te xto p erforrnativo, p or s e u lado, é um texto indissociável de s u a r epresentação cê n ica . E n ão existe exce to na e para a representaç ã o . É essa últ irn a que , não apenas, lhe dá sua ancoragem cê n ic a , s u a coerên cia e s e n t ido, mas que lh e permite muito s im p le s me n te ex ist ir. É um componente da representação em mei o a outros e não existe senão materializado na cena. Sua existência autônoma sob forma independente da representação é difícil de prever, pois trata-se de um texto esburacado, às vezes muito aberto, ·m ú ltip lo , esfacelado, que poderia revelar-se incoerente c a s o se pretendesse publicá -lo enquanto tal. Trata-se de urn texto que muitas vezes não tem autonomia própria e c u j o sentido parcelado raramente c o n s t it u i uma totalidade em si. Ele não adquire s e n ti d o a não s er quando inserido na rede múltipla dos diferentes si stemas da cena. Schechner d á -lhe a s e g u i n te definição:

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TEXTO E TEXTO PERFORMATIVO ( P E RF O R M A N C E TEXT) O Texto Performativo No seu texto intitulado " L e Training dans une perspective interculturelle"3 (A Formação de uma Perspectiva Intercultural), Richard Schechner retoma uma distinção feita nos seus textos anteriores entre duas espécies de teatro: um teatro 2

3

Euge n io B arba ; N ico la Savarese, Lecto u re: B ouifo n n eries -C o ntra stes , n. 32 -33, 19 9 5. An te r ior mente publicado c o m o t ít u lo A n atomie d e Tacteur: un dictionnai re d'anthropologie th éatrale ( A n a to m ia do A to r, Um Dicionário d e Antropologia Teat ral), 19 8 5. Reed itado depois s o b o t ítulo LA rt secr et d e lacte",; 199 5 R . Schec h ne r, L'Energie qui dans e, p . 231 -23 2 .

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o performan ce text é esse pro cesso g lob a l feit o da rede de comu nicações que constitui um ato es peta c u la r. E m certas culturas, em Bali ou no Japão por exemplo, a noção de performan ce text é muito clara. O drama n õ não existe s en ã o corno conj u n to de p alavras que se r ã o a seg u ir interpretadas pelos a tares, tod a via, co m o conjunto d e p al avras i nextr ic a velm e n te mí st u ra d as c om a música , os gestos, a dança, o s diferentes modos do jogo teatral, co m o s figurin os. [ . . .] O s performance texts [.. .] sã o mais redes de comportamento do que comunica ções verbais.:' Assim definido, o texto p erformativo exige não apenas a atuação mas também todos os elementos da representação. É 4

Ibi dern , p . 23 1.

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O T EXTO ES P ETAC UL AR , A C E N A E SE U T EXTO

ALf: M DO S LIMITES, A CEN A SO B I N V EST I G AÇÃO

n essa rede fechada de relações em meio a todos os sistemas cênicos que ele s it ua, preso rrurn novelo fecha do de int er-rel a çõ e s COIl1 o s demais componentes da ence nação. S ua tra n s c r iç ã o escrita, qua ndo existe, não pode ass umir no m áx i rrio s e n ã o o aspecto d e urna par t it u ra q ue leva ern co nta t oda s as irite r-relações c o m o s outros elenlento s da r epresentação, n e ste se nti do co m parável às par ti turas m usicais p a r a v á r ios i n s t r u mentos e m q ue todas as notas são lida s si nllrltaneamente sob pautas difere n tes. O s si nais escritos, q uando existem, n e ss e caso não são se não urna ex igê ncia para a real ização cê n ica n a q ual encontram s ua fina lidade legítima. Mesrno q ue o exe mp lo d e Schech ner seja e m pres tado do Orien te, é evidente q ue as fo rm a s d e teatro q ue ele d e s cre ve tornaranl-se iau al m e nte co rre n tes no Ociden te. Pe nse-se nas primeiras encenações d e W i lson, n a s d e Kari t o r, G ro towski, Barba, peças c uja d r a m aturgi a repo usa nu m a r e dé d e sistemas vis uais e so noros na qual o texto n ã o oc u pa n e c e ss aria In e n te o primeiro luga r e e m que este último permanece e sburacado , indi s s o ciável d o s d emai s s iste ma s s ig n i fi c a n tes . Pen s e - s e igualmente e m algum a s e ncenações d e Rob ert L epage ( Les A ig u iLles et Fopiurn - Ag u l h a s e O p io ) , E l izabe t h Lecompte (The Crucible - As Fe itice iras d e Salem), R e z a Abdo h (Tight, Right, W hite - A pe r tado, Cor reto, B ra nco). Essas fo r mas , que os anos d e 1960 e 19 7 0 pro moveram a m p la me n te, s ão h oj e a re g r a de t o d o um t e a tro institu cional o u a lte r nativo qu e se t o r n o u m u ito com u m ern d ive rsos g raus co n fo rme os p aís e s e , muito partic u larmente, na G rã -Bre tan ha (Comp lici té, Foot Barris, Forced En te r tainment) . As div ersas e nce nações d e urn rne srno e ncena do r empres t am eve n tualmen te ma is de um e eve n t ualmen te m ai s d e outro. Caso queiramo s a p licar as d is ti nções menc ionadas ac ima aos exe mplos q ue esco lhe m.os, pode r-se- ia d iz e r que a lg umas encenações d e Rober t Lepage (E lse neu r), d e D enis Marleau (Les Maitres a nciens, Na th a n le sage - Nat han , o Sáb io) e Je an Asse lin (Le Cycle des ro is - O C iclo d o s R eis ) , lembrad o s acima, des tac a m-se n a p rim eira c ate g o ria , n a m edida em q ue t oda s p o ssue m u m t exto que lhes se rve d e p onto d e p a r tida (Bernhardt, Lessi ng ou Shakespeare), ao contrário de o utras dos mesmos encenadores: Les Aigu illes et Topiurn, de R o b e r t Lepage, ~

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Oulipo S ho w. M erz O p éra , d e De n is M arle au, Le Dorto ir, Les A mes m ortes (A s Almas Mo rtas ), de G ill es Maheu, destacam-se inconte stavelm ente na s e g u n d a. H á, s eguramente, forrnas diferentes de texto p e rformativo de acordo com a natureza dos próprios tex tos e seu modo de ins erção n a representação : texto s narrati vos que evoca m urn a ap resentação múltipla mas qu e permanecem li neares (Os Sete Afluentes do Rio Ota, A Trilogia dos D ragões, de Robert Lepage), o u , pelo c o n t r á r io , tex tos esburacados, mu itas vezes heterogê n e o s , q ue s urgern em. d iversos rno rne rrt o s da representação e cujo s e n t id o apoia-se não na ló gic a d e uma apresentação ou d e u rna dada for ma, m a s q ue se apoiam a n tes na co m bi natória d e di vers o s eleme n tos cênicos a prese n tados (Time Rocker [Bala nça do Tempo], de Wilson, OlI Les Ames Mortes, da C a r b o n e 14) 5. To dos os textos performativos n ã o têm, porta nto, a mes ma impor tânc ia n o espe tác ulo riern o m e smo es t a t u to. E n tre a a p resen tação lin e ar cons t r uída, no final das con t as, d e m odo razoavelmente muito cl á ssico , ainda qu e f rag me n t a d o , e o s te xtos fragm entados ins e rindo imagens , m ic roaprese n taçõ es, diál o g o s, ritmo s e p ortado res d e sen t idos plurai s n a repr es enta ção, h á um vast o leque d e m o d alidades diversas d e inte gra ção, de imbri c a ç ã o do texto perfo rmativo n a represe ntação. De fa to, seria adequado diz e r que os dois te rmos d esta dis ti n ç ã o - "tex to" e "texto pe r fo r rnat ivo" - rep resen tam os dois p ol o s entre os qua is oscilam a t ual me n te as e ncen ações n o s e u u s o do texto e qu e o teatro, segu n do os e nce nadores, a s épocas e a esté tica t e atral d o m omento , tem oscilado - e oscila semp re - d e u m extremo ao o u t ro". A distin ção e n t r e um t e atro baseado n o texto pré vi o que lhe s erve d e matri z para a enc en a ção e um te atro e m que o text o s ignificativo é ap enas o t exto p erfo r m a ti v o represe n ta, 5

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Aconte c e ta rnb érn d e a repres e nta ç ã o co m b in a r a c a da vez essas duas formas textuais - aprese n tação li n e a r e evocações fragme ntadas - q ue se entrecru zam, que se d iale t izarn , colorindo- se u m a s às o utras e que se comple tam com a ima g em de um rizo m a que em erge d o e spetáculo (c f. Les A iguilles et l opium , de R. Lepage ) . Assim sen do, o te at ro dos anos de 1960 e 19 70 escolh eu co m o b ase fundamental d a represent a ç ã o o te xt o pe rfo r mat ívo. O te a tro d os a nos de 19 9 0 o pe ra , po r se u lado, um re torn o e m di reção ao te xto preservando inteira m ente, algu m as vezes, as forrnas te atrais em que o te xt o p erforma ti vo p e rmanec e importante.

A LEI" I DOS LIMIT ES: A CENA S O B INV EST IGAÇÃO

O T E XTO ESP ETA CULAR: A C EN A E SEU TEXTO

dernasrado bem, intuitiv~llnente,a diferença entre "teatro trad ic iona l" c " n o vo teatro'", observa Barba. Desse modo, o lugar dado ao texto o u ao tex to performativo varia cm fu nção de períodos estéticos e percursos pessoais de cada um: Robert Wilson trabalhando Orlando não se entrega às m esmas rest rições com relação ao texto corno aquelas que ele possa ter q uan do trabalha Time Rocker: d o mesmo modo, Robert Lepage m ontand o Les Aiguilles et Iop iurn, te m uma lib erd ad e maior diante d o texto d o que aq uela que lh e foi im p osta por E lseneur. Da mesm a maneira, G illes Maheu com Le Dortoir sen te -se sem dúvida mais livre d o que q u ando aborda os textos de Heiner Mü lle r (Hamlet-M ach in e o u R ivag e à Iabandon [Praia do Abandono 1); assim como Jea n Asselin m onta ndo A lice, e m que se sente menos restringido do q ue o e ra qua n d o encenou La C hanson de Ma rio n [A Canção d e M arion] ou Le Cy cle des ro is, com os qu ai s escolheu d ivergir posterior men te. De rno do interessante , a lg uns e ncenadores ta is co mo Le page o u Wilso n u s am co m prazer o texto o u o texto p erformativo co n fo r me o caso. Ass im co mo Lepage em Les A ig u illes d e Fopiurn , Léo na rd d e V inci p ertence, sem som b ra d e dúvida, à c at e g o r ia d o s te xto s p e r forrnativo s, e n q uan to E lse neu r res pe ita amplam ente H amlet de Sh a kes pea re.

que indi ss o ciávei s. N esse sentido, to dos os textos le vado s à cena destacanl - se rnu it o do texto es pe t ac u la r se m e n t r ar, p a r a tanto, na categoria de textos p erforrnativos".

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O Texto E spetacu la r Não o bstante , a fim d e evitar as ambiguidades e preservar a o r ig i na lidade das c a tegor ias d efin ida s p or Schechner, p a r e c e -n o s o por t u no introduzi r urn a distinçã o le x ic o ló g ic a acres centan do um t erceiro elemento à t axinomia aqui e v o cada: a d o texto espetacu la r. A palavra u s ad a c o m u me n t e n ã o se o põe n em à noção de t e xto n ern à q uela d e texto p erformativ o , po rém engloba ambas . Co m efei to , se o texto p e r fo r m a ti v o é um texto que n ã o p ode exis t ir n em ser co m preen d ido fo ra da part it ura d a qual n ã o é sen ã o um d o s ,c o m p o n e n t e s , o texto es petac u la r é m ai s simplesmente o r e sultado d e uma u rdidu r a ce r r a da e n t re o t exto e os d crnais e leme n tos d a repre s enta ç ã o , uma u rd idura na q ual os elementos es tão est reitamente im b r ic a d o s e quase 7

E . Barba, Drarnaru rgie, e m E . Barba ; N . Sa varese, a I' . ci t., p. 49·

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Texto espe tac u la r Te xto

Texto p erform ativo

A aproximação não é injustificada caso se leve em conta o fato de q ue não há fundamentalmente diferença radical para o esta tu to do texto e n tr e a encenação de um tex to clássico, como a quela que pode fazer Anne d 'Elb ée montando Fedra para a Comédie-Fr a n ça is e ( 19 9 6 ) , e a encena ção que lhe fez Cécile Garcia-Fogel no Th éâtre de la Bastille, em adaptação musical (1997). É ó bvio q ue, ai nda que se tratasse do mesmo texto como ponto de parti da, os res ultados ao final do percurso não tê m nada d e si m ilar não so mente porq ue a a daptação q ue lhe d eu Garcia -Fogel o perou cortes irnportan tes, rnas tamb ém porque a forma do te xto encenado n o s dois casos n ã o p ode m ais s e r lida senão e m relação a to dos os demais e le mentos d a represen t ação com os quai s d ialo gam : inte rp retaçã o , luz, es paço, acessór ios, figurino , m aquiagem. Sob t al aspecto, a e ncenação d e A n ne d 'Elb ée, que fe z qua se um o ra tó r io e que foi fie l à integralidade d o texto d e Racine , e a d e Cécile Garc ia -Fogel, que fez, po r se u lado , um texto e sb uracado, perfonnativo, e o fe z ser co nduzido por um a música rap q ue lhe preservou sem embargo o espírito do p onto d e p a rtid a , as d uas diferiam, certamente, por sua estét ica e s ua fin alid a d e, porém encontravam-se n o fim do percurso naq ui lo porq ue o t ex to resultava, n um e noutro caso, ind issociável d a rep resen tação. O m esmo acon tece co m qualquer texto, s eja el e "cl ássico" ou "per fo rrnativo', a p artir d o m omento e m que seja lev ado à cen a . No exemp lo q ue d em o s de R icard o II , m ontad o p or Je an Asselin , tomemos o enfrentame n to e ntre os dois d u ques, o d uque de Mowbray e o d uq ue de Boli ngbroke, n o mo me n to 8

Observ arno s qu e o co n c eito d e p erformance texto tal como uti lizado po r Sche chn er e r etomado por Barba, apo ia -se n a noção d e "p e r fo r m a t ív ld a d e" que evo ca aquilo que est á na própria base d o trabalho d o atar. Ilumina aquilo que é eviden te p ara qualqu er a ta r, a sabe r, que todo s ig no teatral permite uma le itura dupl a : uma leitura n o pl ano d o se n ti do e o u t ra n o pl an o d a p erformati vidad e , o u sej a, n o pla n o do d ispêndi o ex ig ido p el a a t uação. É a co ns t r ução d est a relação e ntre os d oi s p la nos qu e co ns ti t u i a a r te do atar. É d ess e duplo pl an o d e p ercep ç ã o q ue se or ig ina t amb ém o pra zer d o espectador.

ALÉM D OS LIMIT E S: A C E N A SOB I N V ESTI G A Ç Ã O

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e m que ne n h uma palavra é pronunciada e, portanto , quando a voz - o texto - de Shakesp eare cala-se para deixar fa la r a inte rpretação dos atores. Nesse c a s o , e s t a m o s exclus ivarn e nte no texto espetacular. Por o u tro lado, o dis c u r s o in icia l de Boli ngbroke - aquele em que acusa o duque d e Norfo lk, TI10mas de Mowbray, d e t r aiç ã o , e m q ue o e s t igrn a t iza po r ter desviado em p rove ito próprio u rna parcela das somas recebidas pelos exércitos - é fie l ao espírito e ao texto de Shakespeare. Nesse momento, ele está m ais próximo do "texto" na terminologia que proc uramos uti lizar aqui, visto q ue a performance gestual não importa, já q ue sobressaem un ic am e n t e as e s co lh as do at o r e do encenado r. a mesmo s e dá co m Oulipo S h o w : o essencial da rep resen tação situa -se no pon to d e vista do "texto" - textos fiéis à s ua or ig e rn - , e nquanto as t r a n s iç õ e s en t re os d ive rsos extra tos q ue co mpõe m o co n j u n to d o espetác u lo , o r it mo, a elocução, fic ar iam , po r se u la d o , rn a is por co n ta d o texto espe tac u lar. a que d izer, igualmente , d a e n c e nação que fez P eter Se lla rs d e O Me rca do r de Ve neza , p e ça que m ontou n o c r uzam e n to co m os even tos sobrevindos em Los Angel es p or ocasi ão d o espanca m ento d e Rod ney K ing", que n ã o é s e não o texto d e Sh a kespeare, n o e ntanto respeitado ao p é d a le tra , q ue n el a está absolu tamen te in d issociável d a const r ução cênica d o con j unto ? Eis a pro v a de que qual q u er texto, tal como defi n ido p o r Sch ech ner, uma vez levado à cena torn a-se por se u turno p erformativo. É possível nos perg u nta r mos le gitim am ente a q u ilo que urna tal tax iriorn ia tra z p ara a co m p ree nsão d o fenômeno te a tral. De fato, ela pe r mite esclarecer: Que n ã o é a p rese nça o u não d e u m t exto servi n d o d e base à encenação q ue determ ina se esta últim a exige o u n ã o um texto perforrnativo, que são as modal idades de integração d o texto aos demais elementos da r ep re senta ç ã o que p ermitem d izer a qu al c a tegoria a ence nação se vinc u la; 2 . Q ue texto e texto p erf o rm a tivo enc enad o s são a m bos co nside rados como textos espe tac u lares e que , e n q u a n to t ai s , s ão 1.

R o d n e v King : tax is ta a fro-a me r ica no v io le n t a m e n te espa nca do p el a pol icia d e Los A ngel e s e m 3 d e m arç o d e 19 9 1, d etid o sob a ac usaç ão de di r igi r e m a lta v el o cid ad e . ( N . d a T. )

o

T EXTO ES PETACULA R : A CENA E SE U TEXTO

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apre endidos c orn o s dema is e le rneritos d a representaç ã o n u m a densa urdidura d o s procedimentos cênicos; 3. Que o texto performativo não tem autoriom ia própria. El e não existe senão corno partitura estreitamente ligada a todos os d emais componentes do espetáculo. Parece-nos, ass im, que Barba, ao emprestar d e Schechner o conceito d e texto performativo, o q ual trad uz p o r texto esp eta cu lar , o con ce b e com uma extensão que não é aquela q ue Schechner havia previsto. Portanto, adotaremos o conceito de texto espeta cula r quando necessário, nas páginas que se segue m, dando -lhe as características atrás mencionadas e distinguin do -o do texto perforrnativo, que p ermanece para um uso mais específico. Nesse se nt ido, a classificação que demos an teriormente aos d ive rs o s exernp los evocados carece d e a lgumas p rec isões . Com efe ito, v is to que fa larnos essencia lm ente d e e nce nações, po rtanto de textos n a represe n tação, p o d emo s d ize r qu e to dos os ex emplo s d ado s pe r tence m à cat ego r ia d e te xto s espetac u lares, m a s que a s referên ci a s a W ilson, Le page e M a he u, entre o utros, p erten cem mais propriam ente à categ o r ia d e texto s pe r for mati v o s t al como d e fin ido s a n ter io r me n te. É precis o ver nessa p olaridade e n t re tex to e tex to performativo n ã o um a relação d e excl usão - o teatro de t exto rec usan do o p e r fo rm ativo e o t ex to p erfo rmativ o n ele se inseri nd o d eliberadamente (o posição que os a nos d e 1960 promov era m co mo regra) - , mas ac ima d e tudo um a relação d e com p le menta ridade com d o s a g ens variáve is . As dosagens entre um e outro d e p e n d e m po r s ua vez, n esse caso, de fa tores exteriores (as ideologias e as e s té t icas dominantes) e d e fato r e s p e ss oais próprios d a co n d u ta c riadora d e um e ncenador. Sem d ú vid a , é também essa o pção p el o tex t o p e r fo r m a t iv o q ue faz co m que num e ro s o s e ncenad ores ten h a m escolh ido trab alh a r a p arti r d e te xto s que n ã o são fe itos o r ig in a lmente para o p alco (tex t os d e r omanc es , ex t r atos , po ema s ) e qu e p ermitem m ai or lib erdade à s ua imagin açã o : é o caso d e e ncena do res como W ilson, Lepage ou Ma rleau. Quanto à d osagem entre..texto e t ex t o performativo, nessa escolha de um ou outro, trata-se mais do que um simples

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A LÉ M DOS Ll lvIl T ES , A CENA SO B IN V ESTI G A Ç Ã O

equilí b rio e n t r e co nj u n tos heterogê n eos e q uantit a t ivament e v a r iá ve is . A arte de um encenador vem da cornp lernen tar id ad., q ue ele co n seg ue e s tabelece r e ntre u m e o u t ro . O term o "comp lementarid a de" é muito importante aqui - v is to que mo d i fic a a relação h ierárqu ica tradi ci onal entr e o texto e a cena e esvazia as polê micas e s t éreis sob re o que dom ina e n tre ele me n tos te xtuais o u elem e n to s visuais nurn a dada e nce n ação. E xisti r ia, ass im , tanto fo r m as d e teatro quanto e q u ilíb r ios diferentes e ntre tex to e texto pe rfo rmati vo, algumas e n cen a ções privileg ian do o p rimeiro (Les Maitres an ciens, d e Marleau, Le Cycle des rois, d e Asselin, todo o teatro de repertório) e outras privilegiando o s egundo, mais próximo d o "novo teatro" tal como definido por Barba (Tim e Rocker, de Wilson, Les A iguilles et Iop iurn, de Lepage, Th e C r ucible, de Le cornpte, L c D ortoir, d e Maheu) . Essa distin ção que S chechner fe z e que Barba re tom o u, e n tre tex to e texto espetac u la r, p oderia se r, c o m e fe ito, po uc o operatória e até perigosa caso se incluíssem - o que s e fa z h a b i tualmente - conjuntos relativamente homogêneos e fáceis de ser determinados: o texto, dessa maneira, estaria ligado antes de tudo à intriga, à fábula, ao diálogo e às personagens, enquanto o texto espetacular englobaria todos os elementos performativos da cena : a interpretação do ator, a s ações que ele coloca no palco mas tarrib érn a decoração, a c e n o g r a fi a , a iluminação, os objetos, o s figurino s, a música, em resumo, todos o s elementos visuais e sonoros - tal n ão é o caso, como mostra a análise que Barba e Ruffini fazem desses conceitos.

ENCADEAMENTO E SIMULTANEIDADE

A Cena do Texto e o Texto do Texto Eugenio Barba recorda, em princípio, que a palavra "texto", antes de designar o texto falado ou escrito, impresso ou manuscrito, significa "urdidura". Nesse sentido, não existe espetáculo sem texto>, nem mesmo o texto performativo do qual falava Schechner.

O TEXTO ESPETACU LAR, A CENA E SEU TEXTO

Ao Retomar a definição trazida por Barba, Fra n co Ruffin í pro p õ e, a fim de fazer a questão avançar, uma distinção q ue pare ce interessan te e q ue divide o texto em d ois componentes: o " tex to do t ex to " e a "c e n a do texto': A p a lavra "texto': neste caso, de ven d o sem p re ser tomada n o senti do que lhe d eu, co mo dito a n tes, Barba: o d e u m a "urdid u r a" d e elementos difere n tes. O text o d o t e xt o , d iz F. Ruffini , é "o e l e me n to r ígid o , orientado , p r ogram ad o. É o co n fl ito e a fá b u la" :", e le teri a como c a r a c teríst ic a o e n cad eame n to d o s evento s , um a ce r t a previsibilidade d e sejada p a r a o t exto d e o r ig e m, portanto, um a certa rigidez de ações . As rela ções de encadeamento de uma peça seriam d eterminadas p r io r it a r i a m e n te pelo desenrolar da intriga . T ai s relaçõ e s d e e n c a d e a me n to qu e o texto - o "texto d o texto" - imp õe, t êm -n as e studado e m detalhe os l in gu ista s, se m iólo go s , filó sofos, críticos de teatro, ao mostrar como o texto e scrito, o t exto falado, obrigam o ator e o espectador a uma escuta determinada. O mesmo não se dá com a "c e n a do texto", que é representado "pela personagem e por tudo aquilo que lhe concerne (réplicas, microssituações) na direção para além, à margem da 'drreç ão' imposta pelo conflito e pela fáb ula?" . A "ce n a do texto" teria como característica a simultaneidade e u rna certa imprevisibilidade que dão livre curso ao encenador e ao ator. Este último seria "o elemento flexível, não orientado, não pro gramável" do espetáculo. Visto da ótica do espectador, isso significa dizer que o texto fornecido ao espectador é "uma ancoragem semântica" que frequentemente impõe um sentido à peça, no ponto em que o texto espetacular, "também proveniente seja do texto seja da cena, tem corno função favorecer, em sentido contrário, uma desancoragem e o aparecimento de uma zona de fruição mais profunda ou pelo menos rnais personalízada'v-. Dito de outro modo, a narração impõe elementos de rigidez, previsibilidade, lógica narrativa no palco, ali onde a personagem, considerada como entidade múltipla, que pode 10 11

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R . Sc h e c h n e r, o p. ci t., p . 4 8 .

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F. R u ffi n i, Texte e t s c e n e , e m E . Bãr ba; N. Sava rese, op. ci t. , p . 225 -226 . Ib id ern , p . 226 . Ibidem .

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esca par da na rraçã o , introduz um e le me n to d e irrr p r e v is i hjjj , da de e , p o rtanto, d e f u ga. Hav eria, portanto , dualidade na p ers onagem . Um a parte de se u fu ncio n a m e n t o emergiria d o "texto d o te xto" e a o u tr a da "cena d o texto" (os dois c o mpo n do o texto espe tac u lar) ; u m a p a rte ser ia , a ssim, previsível e a out ra parte n ã o o ser ia . É ne s s a im p rev is ib ilid a d e perte n c ente à p e rs o n age m que se in s e r e o a t a r. E s s a imprevisibilidade per m it e , prec isame n te , "a interpreta ç ã o " que tal a ta r fa z d e t al pe rsonage m. É a i n da ess a impre visibilidade que medei a o espaço entre a narr a ção e a ação na qu al se ins e re a v is ã o d o e n cenado r e a criatividad e do a ta r fren te a o papel que d eve e ncar nar. A e sse propós ito, é interes s ante fa ze r um paralelo entre as ide ias qu e B arba e s t a b e le c e s o b re isso e aquel as d e A b raham Moles'>, q ue trabalhan d o s o bre a te oria d a in fo r m ação, d esen volve u a rela ç ã o que ex is te e rn qualquer m ens a gem e n t re o grau d e informaçã o v eiculada e a originalidade da mensagem. P ara Moles, informação e originalidade estão diretamente ligadas. De que maneira detectar a originalidade de uma mensagem ou aquela de urn a obra de arte? Pelo grau de imprevisibilidade , d e inesperado das estruturas. Ora, tal imprevisibilidade é percebida necessariamente no âmago de uma redurrd ân oi a'e. É a relação sutil entre redundância e originalidade que faz a c o m p lexid a de e o valor d e uma obra estética, observou M oles. A pe r c e pção est é t ica viria, nesse caso, da seleção seja de elementos "s ig n ifi c a tiv o s' : s ej a de elementos originais que surp r e e ndem. O r a, paradoxalmente, a informação é transmitida não p elos elementos s ig n ifi c a t ivo s - corrio habitualmente se c rê - , m as pelos elementos originais que são portadores de informações adicionais e que provocam mais reações". "O único procedimento que o raciocínio lógico nos o fe rece'; o b serva Moles, "é gozar antecipadamente a improbabilidade desta s it uaçã o ":". Para 1'Vloles, "o valor [de uma mensagem] es tá ligado ao inesperado, à imprevisibilidade, ao original. A dimen 13 14

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ALÉ M D O S LIMITES : A CE N A SO B I N V ESTI G AÇ A O

A. Mole s , 7héorie d e l'i nformation e t p er ception esth éti que, P aris: D e rio el , 19 73· C f. J. F éral , Th éàt r e e t p u bl ic: U ne q ues tio n d e ré cepti o n , c o n fe rênc ia. C h ilpa n c in g o. M éxic o , m ar. 19 9 8 . A . Mo le s . o p . c it., p . 3 8 . Ib id em , p . 4 3.

T EXTO ESPETAC ULAR : A C E NA E SE U T E XTO

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são d a q uantidade de in fonnaçõe s e n co n tra -se repro duzid a na p r o p o r ç ã o d e imprevisibilidade, o u seja, é uma q uestão d e teoria d a s prob abil idades" v, O ra, o q ue é impre v is ív el nu m a e ncen ação? Para reto m a r, n esse sentido, a t e r m in olo gi a de Barba e Ruffin i, t rata-se n e ces sariam ente d a quilo q u e r el e v a não do e nca de a men to, m as d a s im u ltane id a d e, is t o é, d a quil o qu e re al ç a não do "tex t o d o texto': mas a n tes d a "cen a d o t e xto", porta n t o , d o e spe ta c u la r. É exatarrie nte is s o que provam os exe m p los escolh id os . Tomemos o exem plo d e Ricard o I I. Nessa encenação de Je a n Asseli n, a s p e r s on a g e n s d e R icardo u, Henry Bolingbro k e o u Thomas de M owbra y, são d i feren tes daquel a s das e n cen a ç õ es qu e h abitualm ente se faz d e s s a s p e rs onage n s s hakespearianas. O aspec to deliqu e s c e n t e do rei, se u c o m p o r ta m e n t o efem inado, se u co lan te ros a e s ua t únic a q ue evideri c iarn o a s pecto longilíneo d e s ua p es s oa e o p ouco p e s o ( no sentido li ter a l e simbólico do t ermo ) que oc u p a , s ão comentário s silenc iosos à sua impotência na fun ção que exerce. Colocado à frente do reinado pela h ereditariedade, a personagem de Ricardo II mantém simultaneamente um discurso duplo: suas palavras s ã o a s de um rei, porém s e u comporta mento, o aspecto de se us tr ajes, s u a e n tona ção, as inflexõ es de sua voz, se us g estos, s e us d e sl o c a rnerrt os, s ã o o s d e um a dolescente que ingressou prematu r amente n o Inundo d o p oder. Carregando uma coroa cuja leveza n ão s e e q u ip a r a s e não co m a pouca autorid ad e d o j o vem rei so b re s eus vas salos, Ricardo II fará desaba r esse sign o de seu po der co m um gesto d esastrado a ltam e n t e s im b ó li co. A criatividade de Jean A sselin, atestada pela v is ã o que nos comunica da personagem d e Ricardo II, igualmente se encontra na interpretação que d á aos d ois j ovens duques: o duque d e Norfolk, Thomas d e Mowbray, e o duqu e d e H ere ford e futu r o Henry IV, Henry B o lingb r o ke . Se não existe, n ess e c aso, um desnível v erdadeiro na sua postura e no s seus figurino s e n t r e os que es tão na c e n a e a maneira pela qual o texto de Shakespeare o s e v o ca, o s e u enfrentamento, em com p e ns a ç ã o , e a m ane ira com a qual 17

Ibl cle rn , p. 37.

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AL BM D O S LL"'IIT E S; A CENA SO B IN V E STI GAÇ Ã O

ambos se d e s a fia m ao jogar a luva à face d o o u tro, ao a pan há - la e ao se ericarare rn, fre n te a fre nte como d oi s j o vens t ouro s, t u d o s us te nt a um di s curs o m ai s fo r te d o qu e as própria s palavra s. O co n fro n to an imal fa la d a a lt ivez d e ss es guerr eiros, d e sua im petuosidade, mas fa la tam bém do aspecto a ni mal d e s ua r ivali dade, d o des bordamento d e energ ia e cóle ra q ue e nco n tra o se u p onto m á xi m o n ess e ran gido son oro qu e vai se a m p lia n do, s ig no d o co m bate interio r que se m ani fe sta nel es e n t re a s u a vontade d e o bedece r, s ej a a o se u rei, sej a ao seu p ai, e a incap a cidade n a qual es tão ime rsos d e r enunci ar v erdadeiramente ao se u ó d io . O m e smo ocorre com o exe m p lo d ado por D enis M arle au e m O u lipo S haw:

o es ta tis mo d o s a ta res se s a t is faz com d izer o texto de C a lvino, a dapt a do p o r Den is Ma rleau para as n e ces s idade s da p e ç a , s ua a usê nc ia d e rn o v írn e nto , d e deslocame n to, d e g e s to , segu ra m ente valor izam o " texto" - o " tex to d o texto" - , que é ass im interpretado diante d o espec t a do r, rn as por o u t r o lado a ext re rna r apidez d a e loc u ç ã o, essa rn esrna ri g ide z d as p ers onagens , esses e n o r mes ócu los a trás dos quais se esco n d e m e as transi ç õ es coletivas e c o re o g r á ficas de t odos o s atores ao m e sm o tempo che g am a apaga r o te xto e m proveito d o esp etacular - ("a c e na do t e xto") - tornado e m o b je to d e atenç ão do público. Mais do qu e ao con te ú d o das p alavras , o espectad o r n ã o está sensív e l sen ão à pe r fo r ma nce d o a tor prc cts arn e nte e m vi a s d e lutar com essa torrente verbal assi m d e sp ej ada d e se us láb io s. O se n t ido - e este te xto tem sen tido! - d o texto se esfu ma e m prove ito úni co d o "tex to p erfo rrn a ti vo" no qual se tor no u. Pomos o dedo, nesse caso, no processo pelo qual um texto s e transforma em "t e x t o perforrnatívo", ou mais exatamente no processo pelo qual um texto pode ser ao m esmo tempo "t e x to" e " text o p erforrnativo", ou para retomar a ternlinologia trazida p or Ruffini , nosso dedo toca aquilo que fa z com que qualquer texto seja a o m e sm o tempo "t ex t o do texto" e "cena do texto': O interesse desses exemplos origina -se do fato de nos permitirem mensurar aquilo que, no teatro, emana do encadeamento (a apresentação, a intriga, a lógica do texto, a coerência d a s a çõ e s , a das p ersonagens ) e daquilo que emana da simultan ei d ad e (o ritm o , a e lo c ução, o gesto, o so m d a voz, o figurino, o espaço, m a s igualrn erite as escorr egad e las d e sen t ido, a p o e sia

O TEXTO ES PET ACULAR; A CENA E SEU TEXTO

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das palavras, as surpresas do texto, os desbor-dame rit o e da personagem e tudo aqu ilo q ue não fo i previsto pelo texto original). D e fa to, esses dois aspectos ("tex to" e "texto performat ivo", "texto d o texto" e "cena d o texto") não são exclusivo s urn do o utro, mas bastan te cornplerrientares. Como o bservou Barba, a r el a ç ã o e ntre texto performat ivo e texto p révio não aparece mais co mo contradição, mas como co m p le me n ta r idade, co mo o pos ição di al étic a . O prob le ma, p ortanto, n ã o é mai s a esco lh a d e um ou o u tro p ol o , a defi nição d e um o u o u t ro t ipo d e espetác u lo. O p ro b lema é, ao cont rário, o d o equ ilíb rio en t re o po n to do e ncadeamento e o polo da sim u lta neidade. O f racasso n ã o é senão a perda do e q u ilí brio e n t re o s d ois p ol o s '". E ac rescen ta : "Q u a n do s e faz d eri v a r o espetáculo de u m te xto e s crito , a r r isca-se a p r odu zir a p erda de e q ui líb r io p elo predominio das rela ções lineares (a intri g a e n q ua n to e ncadeam ento ) às custas da in t r iga conc ebida c o mo 'u r d id u r a', co mo emaranharnento de a ções s im u lta n e a m e n te presente s ' vs. Bem entendido, em algun s dos exempl o s que escolh e m os não é possível falar-se d e desequilíbrio n o sentido exp o sto por Barba. Seu interesse advém do fato de que os e n ce n a d o res evocados s o u b e ra m conceber as r el açõ e s do texto d e orig em e da cena numa montagem hábil e rn que as microssequên cia s ressaltam d o e n c a de am e n to e d a s im u lta n e id a de, el a s s ã o tecidas de modo fe chado. A c ontribuição principal d esta di stinção co nce it u a I qu e Barba reali za é que, aparentemente, ela s u bst it u i o problema da oposição entre a palavra e o visual ao não centrá-lo nas questões da relação com a linguagem, o que fez , p or ex emplo , um Derrida. O p onto de v is t a d e Barba é de um prátic o d e teatro e é e m relaç ã o à prática c ênic a que el e s e d efine. Ver o t exto como "u r d id u r a", co m o " m o n t a ge m", é es tar mais perto da realidade c ênica do que s e p a r a r -se o texto , pela s razões de análise, dos aspectos visuais e performativos do e spe táculo. É restituir ao trabalho d o encenador e ao d o ator toda sua complexidade. Não é sen ão nesta c o m p lexid a de q ue o texto espetacular r ealm ente existe . 18 19

E . Barba, Dramaturgie, op. cit. , p . 49 . Ib id e m .

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Texto Co mo Dramatu rg ia

A montage m, a urdidu r a q ue o encenador real iz a aj u dado pelo ator e pelos d em ai s prát ic o s e técnicos de palco, n o q ue consis tiria verdaclei rarnerite? De aco r do com Barba, N. Savarese e F. Tavia n i , reveste-se d e três modal idades:

a. Coloca r a s ações num co ntexto que as faça desv iar-se de s ua significaçã o implícita . Pa ra is s o , imp õe - s e um traba lh o d ra mat ú r g ico qu e d ê s u bi ta me n te ao t e xto um a ex istência e ID três dim ensõ e s. A inda n e s s e caso, a p alavra "d ramat urgia" d e v e ass u rn ir um se n t ido diverso d aquele que o u so acabo u p o r a t r ib u i r- lhe. A e t imolo g ia da pal a vra dram aturgia, lembra F. Ruffini, é d ra rna-eryo n , O conce i to li gado à palavra evoca um trab alh o d e exe c u ç ã o das aç ões-". A s ações tais como definidas por Barba a b r a n g e m quase sempre a totalidade do fenômeno espeta cular: os rnovirne ntos e as palavras dos atores, o universo sonoro e v is u a l, a intriga IDas também os vazios entre as cenas, a progressão de um r itrrio, de uma intensidade, a utilização feita de obj etos, a s inter-relaç õe s e interaçõ e s e n t r e personagens. O trabalh o d ramático, mais precisamente, visa a "s it u a r as ações num con tex to que a s faça des vi ar- s e de s u a significaçã o irnpl íc it a' ? ', é aquilo a que nos habitu aram as múltiplas reinterpreta ç õ e s de t e xtos e fe t u a d a s pela mai or p arte dos encenadores n o s a n o s d e 198 0, porém é t ambém aquilo que c o n s t it u i o fu n d a me nto de qu alquer trabalho estétic o e, rnu ito particularmente, do t ra b a l ho do a t o r. É isso qu e n os lembra Barba: Concretamente, num espet á c u lo teatral, é a ção (i sto é, concer n e à dramaturgia), de um lado, aquilo que os atores faze m ou dizem, d e outro lado os sons, o s ruídos, as luzes , a s v a r iaç õ e s do esp aço . São açõ es num nível superior de organi zação o s e p is ó d io s da história o u as diversas fases de uma situação, os espaços de tempo entre duas entonações do espetáculo, entre duas mudanças do espaço, ou ainda a evolução conforme 20 21

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ALJO.M DOS LIM IT ES: A C EN A SOB I N V EST IG A Ç ÃO

F. Ruffin i , Tex te e t sce ne op. c it., p . 225. Ib id e m , p. 137. É n e s s e desvão q ue reside, alg umas ve zes, a originalidade da qua l fala igualme nte Mo les.

TEXTO ESPETA C U LAR: A C ENA E SEU T EX T O

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urna relação a u tónoma de urna trilha sonora, variações de luz, modificações de ritmo e de intensidade q ue um ator realiza nos tem a s físicos determinados (o comportamento, a utilização de obje tos, da maquiagem ou do fig urino). São também ações todas as relações, todas as interações e ntre as p ers o n a g ens ou entre as personagens e as luzes, os sons, o espaço. São igua lme n te a ç ões aq uelas q ue o per am di r e tam e nte n a a te n ç ã o do espec tador, na sua cornpreerrsão, sobre s ua e rno t ivid a de, n a s ua c ines tesia. v Esse desvio d o qua l Barb a fal a n ã o visa co m p licar in u tilm e nte o texto ao mudar-lhe os se n t i dos s i m bólicos ou m etafóri c o s que interfe ririam na s ig n ific ação o r ig in a l, p orém vi s a antes d e tudo pratic ar uma política d e a fa st a m e n to, de distarici a rn e nto para p ermiti r qu e s u r j a m s im u l t a nea me n te diferentes se n ti d os p ara urn m esrno texto. E m p o b r ece r o polo d a s im u lt a n e id a d e signifi ca limitar a possibilidade de fazer emergir n o teatro significaçõ e s c o m p le xas que nascem não de um encadeamento completo de ações , mas do emaranhamento de várias ações dramáticas, cada qual dotada d e uma "s ig n ific a ç ã o " sirnples-s. Para ilustrar tais pro postas, tomemos o e x e m p lo da encenação de Denis Marleau na qual a s interpretações corporais em coro para todos o s ato res p erdem f r e q u e n t e m e n te sua rigidez e articul am aqui um a cabeç a , ali um pé, lá aind a uma b a cia, criando, para al ém dess e corpo coletivo em rnovirnerito, uma impressão d e h omogeneidade lúdica do c o n j u n to, de distância pela rel açã o co m o te xto sern qu e não se n e gue nunca a autenticidade d e c ad a p ers onagenl tomada individu almente. Com efeito, esses gestos (bamboleio, rotação, não à fr e n te mas para trás) são um comentário derrisório e irônico que coloca o "sér io" d o texto à distância. Fazem emergir o lado lúdico da cen a, "a ce na do texto", diri a F. Ruffini, o dos atares e, s e g u r amente, o do encenador. Cada movimento, cada gesto c o lo cad o fala do prazer que o ator tem de estar ali e de interpretar c o m o texto, no texto e a despeito do texto, para além do texto. Fala da confrontação do ator e do texto, da fricção de um e outro, do

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E. Barba, Dramaturgie, op. c it. p . 48 . Ib id e m , p . 50 .

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A LJ:.M D O S LI M IT E S: A CENA S O B IN V E ST IG A Ç A O

trabalho d e um sobre o o u t ro e da co m p le m e n ta r id a d e de um com r el a ção ao o u t ro. b. Co n s t r u ir uma sín tese d e vá rias v is tas e não um a v ista única . O s e g u n do pro c edimento d e urdidu ra visa, d e a cordo com Barba, co nstru ir urria sí ntese de várias "vis t a s" ao mostrar as várias faces de um e d ifí c io e não u m a v ista " re a l" ou úriica«. É isto que c onsegue co m êxito Jean Asse lin co m Ri cardo II. A v isã o qu e e le n o s dá da p ersonagem o fe rece de repente a v is ã o de s u a s múltipl a s facetas, in d iv íd u o c omp le x o fe ito de con tradição e ambiguid ade; Ricardo II emerge e n tã o como u m a personagem fe ita de fr aquezas e d e força s, r ei e m a r io n ete ao mesmo ternpo. O dis curso que e le s ustenta o ancora em seu papel de rei; em com pe ns aç ã o, se u modo de s e r, se u co m p o rtarn e ri t o , s u a apresentação teridern, ao co n trário, a le v á -l o n a direção d o h o m e m , do adolescen te, d o migno n , o "fo fin h o" u m tanto ultrapassado p elos acontecimen tos, an tes p re o cup ado com se us peque nos p razeres d o q ue co m as fu nções à f re n t e de um r e ino. E o e sp ectador p e rcebe , ao m e smo temp o , e ss es diferentes aspec tos d e uma rri es rna pe rso nalidade que parec e , d ess e rnodo, d ota d a s u b itamen te de m ú lti p las face t as. Isto d á d ens id ade à personagem e cr ia u m efeito de "e s t r a n h a m e n to" n o espectador, renova n do s ua visão habi t ual d o s re is, d e sp ertando se u in teresse, s u a c u r ios id a de, a té seu j u lga men to c rít ico, p e rc ebendo n um úni c o e mesmo o lhar t anto a visão d o a u tor qu anto a d o e nce nador. A v isão q ue Jean Ass el in dá d e ss e Shakespeare, p o r mais car n avalesca que sej a, e n r iq uece a p e rso riage rn d e Ric a rd o II com t oda uma série d e e m oções, es ta d os, comp ortam ento s e ações que vão p a r a a lém d a s r epre s enta ç õ e s h ab itu a is que se costuma fazer d el e. O q ue se chama a partitu ra do e ncenador é, p recisamente, o resu ltad o d e t odas essas micro ssequênc ia s nas qu ai s este último escolhe t r a z er à lu z t al ou t al fr a s e , t al ou tal momento e m q ue s u b li n ha o co m por tamen to de uma p ersona g em, salien ta o pouco peso de um suse rano, o arrebatamento dos cavaleiros, lbidem , p . 50 .

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o n e r v o sism o dos c av a los. Es tu d a d a e m det al h e , iss o co n s t it u i a próp ri a partitura d o e n ce n a do r, conceito que Barba evoca com jus teza p o r a n a log ia àqu ela do a to r. A ta l p a r t itu r a j unta -s e , seguramen te, a do p ró p r io a to r, qu e provo c a d a parte dele p r óprio uma ce r t a q ua lid a de d e prese nça co r po ra l, uma cer t a e n e r g ia, uma gestual id ade , um a pos tura , urn a evocação da p erson agem e n r iq u eci d a co m tod a a d ensid ad e inter i o r de qu e e le p ode s e in cumbir. A v isão qu e e ma na d a p eça, n o fi m d o p ercurs o , é preponderantement e o resultad o d e t od as as a ç ões que o a t o r ex ecuta. É a "s ín tes e de várias vistas': Tem por res ultado fornecer ao espectador uma visão múltipl a que não s e reduz a uma perspectiva ún ica. Poder-s e-ia acred it a r que se está longe do ideal clássico, qu e visa "to r n a r o texto a n t e r io r a tudo': E n t re ta n to , não é est e o caso. A força de uma e n ce n a ç ã o r eside na maioria das vezes nessa conj unção de c o m p lex id a d e e evidência q ue impõe a admira çã o nesses momentos de grande s ucesso, a arte d o encenador cons is t in do em encontrar a j usta d o s ag em par a n ã o se extraviar nas interpre t a ç õ e s q ue resu ltariam e m extrapolações fo rçadas d emais e p ouco convinc entes d a leitura que fa z da p e ça . c . E nergia que se transfo rma e m movimento. A terce ira característica desse traba lho dramatú rgico, segu ndo R uffini , d iz respeito desta vez ao a tor. A d r am atu r gia é "como o filtro", o ca na l por m e io do qual u ma e nerg ia se t ransforma e m m o v irnerito " . "São as ações q ue efetuam o t rab al ho,":" Tais ações q ue visam um "c o m p o r t a m e n t o" são p recisamente a expressão da energia na cena, as mo dalidades d e suas ma nifestações, d e s ua p ercep ç ã o pelo espec tador. Porém, d e que e n e rgia se est á fa lan do? O t e r m o é difícil de defin i r. T rata-se da energia do ator? Daquela do processo cênico? Barba voltou muitas v e ze s a tal noção , procurando torná - la mais clara. A noção de energia é extremamente simples [. . . ] No plano biológico, é um conjunto de tensõe s musculares e nervosas. A energia é 25

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T EXTO ESP ETAC ULAR: A C E N A E S EU T EXTO

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M no uch k ine fa la a es te prop ó s ito d a necess idad e d e s e e nco n t ra r um a form a . S e u t rab a lh o e o d o a ta r v isa n do da r um a forma v is ível ao in vi s ível. F. Ruffini , Texte et scé n e , o p . c it., p. 225

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aquela da ativid ade [. . . ] A energia se manifesta por uma onda complexa e s im u ltâ nea d e varia çõ es tóni ca s. Porém, não é a energia qu e ca racteriza qualq uer ser vivo no cotidiano que nos interessa. Interes sa -nos antes d e tud o de que m aneira essa en e rg ia é modelada e expressa, Como se torna eficaz nos sentidos e no es p ír ito do esp ectador [. . . J O teatro é a ar te de tornar manifesto, d e expressar esse fluxo co n tín u o de mudanças q ue é nosso perisarne nto. que são to d os os nossos p ro cesso s interiores e q ue fre que n tcrn c n tc vão para d ireçõ es d ive rgentes. A energia é uma var iação muscu lar e n er vo sa. É uma tensão. En tão, corno se trabalham as tensões? [. .. ] Todos os textos que, para nós, são m uito importantes são text os que tratam da maneira d e co n str u ir o co m p o rtam en to cê nico, da rn a n e ír a de c riar essa relação e n tre nossa m an eira de pensar e nossa maneira ele so m at iza r esse pe n sarne nto, de torná -lo corporal para que possa se r eficaz para o espectador. '7 A energia é, po rtan to, ao mesmo t e m p o o t rab alh o d o a to r n a s ações fís icas e o re sultado da "fricção, da r e sistê n c ia e n t re os t e r m o s o post os e com p le menta res da d ial ét ica" qu e co n fr o n ta texto e ce na-". Pois tudo parte do texto. Barba o r e a firrn a :

H á, a n tes , o texto . .. O ponto de partida é o texto . Os es tu dan tes chega m co m um tex to e, em segu ida, eu lhes digo: faça m - me uma improvisação, n ão ações [. . . ] Então, peço aos es tu d antes que com pon ham a imp ro visa ção como se fos se u m p oema em id eo gram as, p orém corporais. Dessa for ma, p od e-se dizer q ue cada ideograma corresponde a uma ação. O tex to foi t raduzido sob a fo rm a de um p o ema cor poral, d e ações. Ess e é o p ro ce sso . . . M as o pon to d e partida foi o texto [. . .] É, ass im, o texto que se r ve d e pont o de partida, m a s o texto nã o se con fig ura como um co nj u n to si mbólico n o p apel. Ele se to r n a p rocesso vivo, e n esse caso n ão h á m a is separação e n t re a p al avra e a açâo . >? Se n do a s s i m, n a p ersp e ctiv a d e B arb a tudo está li g ado. A e nergia vem da f r icção entre e ncadeam ento e s im u ltaneid a d e, e a dramatu rgi a d o e n cenado r, como t amb ém a do a ta r, co nsiste pre cisamente e m s usci t a r essa fr icção plen amente ao ge rá- la. Eu d e sta c a r ia e ssa ide ia d e fric ç ã o que pare c e c a pital n o p r o c e sso c ê nic o e que d á c o n t a m uito bem do trabalho do ence nador e daquele d o atar. 27

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o

A Lf. M DOS LIMITE S: A C E N A SO B I N V ESTI GAÇ A O

C f. E . Barba, Faire du t héâ t re , c'e st pen ser d e fa ç on p arad o xal e, e m J. Féral (ed .) , Mise en sc éne et jeu de Ia ct eu r, II : Le Co rps en sc éne, M ontré a llBruxelles: Jeu/Lan sman , 199 8 , p . 8 0 -81F. R u ffi ni , T e xt e e t sc én e. o p . cit. , p . 2 25 . E. Barb a , Fa ir e du th é âtre . . . , op. ci t., p . 10 5- 10 6.

TEXTO ESPETA CU LA R : A C EN A E SEU TEXTO

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Haveria, p o rt anto , p ara qualquer pra t ic a n te d e teatro, duas realid ade s co rri as q ua is se acha co nfronta do : u m a realidade m arcada por leis d e e nc a dea me n t o e suj eito a algum a s res triç ões relativam ente rígidas , e o u t r a realidad e marcad a por princípios e simultaneidade n o s quais se manifesta a ludi cidade da i nterpretação. É d a fri c çã o d esses do is c onj untos, de s u a coexistên cia (não se trata a bs o lu ta m e n te de supr imir um dos termos da dialética), d e s ua o pos iç ão e compl ementaridad e que simultaneaInente nas c e a en c en ação . Mais interessante ainda é qu e , exa tam ente n essa z o na d e frente s é que s e situam a interpre taçã o do a tar e o seu talento. Sua arte consiste em fa zer dialogar e m maior grau e sses dois conj u n tos - encadeam en to e simultaneidade, texto e c ena - em cada uma d a s ações q ue e mpree nde. A riqu e z a d e LlITIa e ncenação vem, paradoxa l men te, não so men te da fric ç ã o e n tre essas du a s realidades, m a s da res is tênci a d e uma fren te à outra, d e s ua corri p lerneritar idade> . É da percep ç ã o que o e sp e ctad o r t em ao m e smo temp o d e ss a f r icção e da j ust e z a das es col has efet u a das, das d o s a g ens e n t re te xto e texto performativ o q ue nasce o se u praz er. O que tais o bse rvações qu e r em r e s s altar é qu e o praze r d o espec tador raram e nte vern d o fa to únic o d e com p reende r. Ann e U b e rs feld m o s t r ou m u ito b em co mo o praz e r q ue se apossa do e spectado r é s e m dúvida o d e r e c onhecer, m a s é ig ualm ente o de d e s cobrir. O s e s p ect a d o res que nó s s o m o s n ã o gos tam que se n o s indiq ue exp lici t a mente o s e n ti do q ue ta l a ção , t a l g e sto , t al personage m devam te r. Não gos tamos q ue o trabalho d e a nálise e interpre t a ç ã o seja fei to e m nosso lug a r. N osso praz er v e m, a n tes d e mais n ad a , d e u m a certa bus c a , d e um p ercurs o que a cena nos p e r rn ite r e a l izar, durante o qual tra ç a as grandes linh a s m a s n ã o o faz p o r nós . A cena esboça, p o rtanto , os caminho s e aponta a lgumas direções, p o r é m não deixa q ue n o s aventure mos por e les sozin hos . É nesse percurso efe t u a do s o li t a r iame n te p el o espec tado r q ue resi de u m dos pra z e r e s do t eatro . 30

F. Ruffini, Texte et sc êrie, o p. ci t. , p . 2 2 5. C f o que o bse r v a m os m ai s a trás s o b r e o texto q ue ofe re ce u m a ancorage m se mân tica, o "tex to p erforrn a t ívo" favo rece n do, ao co n trári o , um a d e san corag em e a a p a r iç ã o d e um a zo na d e fr uição m ai s perso n al iza d a . Ibidern , p . 22 6 .

A LIÕ M D O S LIM IT E S: A CEN A SO B I N V ESTIG A Ç ÃO

O TEXTO ES PET ACULA R: A CENA E SEU TEXTO

"Fa z e r compreender um es pe t ác u lo ", diz Ferdinand o T avia n i :

Isso é muito visível nas en c enações d e Jean Asse lín , De n is lVlarleau ou G il les M aheu qu e c it a mos a n te r ior men te . T a l trabalho de dilataçã o de certa s p a lavras, c e r t a s fra s e s , c ert os comportamento s, ce r tas s it uaçõe s , c e r to s sons, certo s r it mo s, rep resenta seguram ente urn dos aspectos ma is importantes, senão o mais fu n cla rn e rrtal, da i nterp retação do ator. Ta l tra b alh o visa concent rar a a te nção d o espectado r sobre alguns as pectos qu e o e n c e n a d o r esco lhe u para privilegiar. Co n s is te "e m g uiar o o l har do e spectado r": a m o nta g em "c o ns is te em guiar o ol har do esp e c t a d o r para o t e c id o (texto) dramático (perfo rrnance), d ito de outro modo, fazê -lo experimentar o texto performativo. O encenador concentra a atenção d o espect ador p o r m eio d a s ações d o s ato res , d a s palavras, d o te x t o , da s relaç õ e s , d a músi c a , do s so ns , d a s l u z e s , d a utili z a ç ã o d e a cess ór ios?» . O u seja, o a to r d e fato trabalh a n ão ape nas nas a ç õ e s m a s "so bre o e fe ito que as ações d e'vern produzir no esp ec taclor' v", "G u iar o olhar d o esp ec t a d o r': "fazê - lo ex p e r im e n t a r o texto p erfor mativo" ao manter pres ente no se u esp ír ito o "text o': e is aí, d e fato , o papel d o a t o r e do e ncenad o r.

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n ã o é o rg a n iza r a s d escobe rtas mas desenhar, projetar a s ma rgens ao longo das quai s o es pec ta d o r n avegará atento e , desse modo, faze r desen v o lv er- se nes sas rna rge n s u m a vi da m i n uciosa, rnu lt lfor m-, i m p re vi sta , na q ua l o espectador po de rá mergu lhar o seu o lhar e faz er s u as p r ó pr ia s d es c ob ertas>'.

Eis aí o papel do ator e o do enceriadorv. Nesse pro c es so, c o rno c r ia r esses efeitos de s irn u lt a ne id ade e ericadeamenn, de sentido ?

o ator q ue t rabalha n u m s is tema cod ificado cons trói a "mon tage m" por m ei o de u m processo de a lteração fís ica d e seu c o m po r tame n to " n a t u r a l" e "e sp o n t â n e o". O e q uilí brio acha-se m od ifi cado e m odel ado, torna- se precário : s u rge m ass im n o vas tens õ es n o co r p o que se e nco n tra desse modo dil atad o . Do rnesrno mo do e m que se ach a m d ila tados e c o d ifi c a d o s a lguns fe n ô m eno s fisio lógicos p art iculares .v É

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que B arb a d en omina "c o r p o dilatado" :

O a to r, por exemplo, o b té m efeitos d e si m u lt a neidade a part ir do rnornento e m que rompe o esquerna abs trato d o m o vi m e nto t al como o espectador o previu. E le m o n t a (com põe = p õ e e m conj u n to) a su a ação numa sí n tese distan ci ada d o co m p o r ta me n to co tid ia no: seg men ta a aç ão, escolhe a lg u ns frag me ntos e os dilata: o a to r c o m p õe os r itrno s. > 31

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C f. Les De ux visions: v is io n de l'a cteur, v is io n d u spectate ur, op. cit., p . 256 . I: tamb ém assim que s e expressa Barba afirmando: "Em numerosos casos, isso quer dizer para o e spectador que, q uanto mais se to r n a difícil para ele in te r p re ta r ou avaliar imediatamente o senti do daquilo q ue se passa sob seus o lhos o u diante d e se u espírito , m ai s forte é para ele a sensação de viver uma ex pe riê n ci a :' Dramaturgie, op. cit., p. 50 . É esse o caso, ainda, de uma questão de g ra u . Pensemos n o s espetáculos do Furla deis Baus, n o s quais é extremamente difícil a valiar o sentido imediato d as a ções que são colocadas, de tentar uma in te r pretaçã o qualqu er e m que O espec ta d o r registra as ações umas a pós as o u t r as, cansado desse b orribardearnent o de im age n s sonoras que o agridem e que n ão lhe deixam mi n i mamente q ua lquer p o ss ib ilidade que seja para analisa r ou aderir. Ibid em, p. 13 4 . E. Barba, Drarnaturgi e, o p . cit., p . 50. Em apoio a essa ide ia , Ba rba recorda q ue Walte r Be nj a m in o bservo u que "o a tor deve espa çar o s se u s gest o s co mo um tipóg ra fo espaça as p a lavras; de ve fa zê -lo d e so rte que se u s gesto s possa m se r c ita dos" Ibidem, p . 159 ; que R o b ert Bre sso n , p or se u turno , obse r vo u q ue p a ra "co m po r" é pre ci s o sa b e r o lha r a realid ade que n o s rod ei a. d istingui n d o as

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Tra d. N a n ci Ferna ndes

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diferentes partes que a constituem. Precisamos saber isolar essas peças diferente s, torn ando -as índependentes para dar-lhes uma nova depend ência" Ibidem, p . 132. Barba recorda, aliás, que Schechner insistia que "a vida do cor po do at ar é o resultado de um processo de eliminação que consiste em eliminar d eterminadas ações ou fragmentos de ações executadas pelo a tar e destacá -las': A es te pro cesso e le dá o nome de "r es ta u r açã o de comportamento': Ibidem, p. 145 . O q ue essas dife rente s visões d est a ca m é u m a m o di fica ção das con tinui dades previsíveis, a in tro dução de u m a ruptura n o continuurn , u m a fragmentação da unidade para o su rgimento de u m vácuo, a q uebra, a rup tura, u m a ruptura q ue se dirige à atenção d o espectador e que desper ta o seu interesse. Moles também insiste nesse processo d e reconhecimento da originalidade d a mensagem, uma o r ig ina lidad e, cab e lembrar, furi dadn n a impre visibilidade . Ib id em, p . 134. Ibidem .

2. Um Corpo no Espaço: Percepção e Projeção

Tornar es t ra n ho o fosso e n tre o o lh a r e a es cuta . R O B ERT W ILSON

M inh a regra co nsis te em qu ere r prop or um cen á r io que se p areça co m uma evidê nc ia e a uma su rpresa YA N NI S Kü KKüS '

A EMERGÊNCIA DE NOVOS ESPAÇOS Estão nossos métodos de pesquisa, no campo dos estudos teatrais, em sincronia com as concepções científicas do nosso tempo? Mais particulannente, nossa concepção do espaço teatral valeu -se de todas as lições possívei s dos estudos empreendidos não apenas pelos historiadores, mas também pelos fisiologistas, pelos neurologistas, pelos filósofos? Sem querer responder aqui a questão tão vasta, eu observaria, para corrreçar, que essa defasagem entre pesquisa científica e pesquisa teatral, fácil de ser observada no campo dos estudos teóricos de suporte ao espaço teatral, parece desaparecer no campo da prática artística, em especial na dos cenógrafos. Com efeito, de Isamu Noguchi a Yannis Kokkos, de Wilfrid Minks a Guy-Claude François, de Jean-Pierre Chambas a Eduardo Arroyo, de Gae Aulenti a Yannis Kiounellis , os cenógrafos, consciente ou inconscientemente, parecem integrar muito naturalmente as descobertas científicas do seu tempo, tão bem C it a d o em J. Co ue lle , Co n s tr u i re un e sp ac e déjà h a b it é. leu, n. 69 , p . 33 -40 , dez . 19 9 3. E n t re t ie n avec Mic hel Go u let.

AI. J':M DO S LIMIT ES: A C EN A SO B I N V ESTI G A ÇÃO

U ,"I C O R PO N O ESPAÇO : PERCE PÇ ÃO E PRO/EÇ ÃO

qu e o seu trabalho de criação cont r ib ui, de um lado, para refletir ( n o se n t in d o de reproduzir) a experiência que temos do espaço no cotidiano, e por o u tro lado p ara modificar, pelo viés d e sua arte, os m o dos de percepção q u e dele ternos. Ass im, e les aparecem ao D1eSnl0 tempo co mo h e r d e i r o s do seu ternpo ( no q ue s e ju ntarn a nós e testernurrham s ua é poca) , co m o tamb ém e nq uan to p r o s p e c t o re s d o futuro (ao institui r n o v a s estratég ias de percepção) . Um exemplo nos pe rmit irá ilust r ar essa in te nção. Gos tar ia de anal isar o gênero de espaço d o qual certo espet ácu lo, Urban Dream Capsule (Cápsula d e So n ho U rbano), levado e D1 maio de 2000, se servi u e o gênero d e p erc ep ç ã o que ele a u toriza. Tornare i tal exemp lo C0 D10 trarnp oli m d e uma r efl exão qu e n o s p er mitirá exa mi nar a q u ilo que os c ie n t is t as n o s dizem d e nossos m od o s de p erc epç ã o d o espaç o atu al , in serind o exa ta men te es ta r eflexão n a história.

e nem falar c o m os a to r e s, a não se r pelo v iés de uma m ediação tecnol ógica: tel efon e , fax, m ensagem e le t rô n ic a , Internet>, 111as ta m b é m por desenhos e sinais através do vidro. Nenhuma narração c o n t ín u a estruturada se des enrolava nesse espaço, s e n ã o inÚlTIeraS micronarrativas espontâneas segui ndo os event uais e ncontros e d iá logos co m o púb lico. Os ato res conten tava m -se e m viver no coti d iano da v ida que os espectadores q ue os o lhavam Ie v a rn habitu a l men te nos seus apartamen tos, atrás d e p a r e d e s e corti nas. Os a tores tor n avarn vis ível a máscara de n o ss a sociedade, desve lavam, COIDO afirmava m a si rnes rnos, "o espaço urbano ín r i rn o" Lo nge d e seguir u m a narrativa (inexistente) o u um d iál o g o (m u do), long e d e a d m ir ar um a estét ica, os especta do res - qu e seguiraD1 t al expe r iê nc ia aos milh are s - co n t e ntara m -se e m est a r p rese n tes, e rn estar a li , ex pe r i me n ta n d o a s se nsações, emo ç ões diante d o es pet ác u lo que r e sultava do eve n to -.

N a primavera de 1999 , no Festival de T eatro das Am éricas apre s entado em Montreal, no quadro de suas atividades um espetác u lo intitulado U rb a n Dream C ap s u le , r ealizado p or um grupo de artistas australianos. Tratava -s e de uma instalação p erformática irnagiriada por Neil Thomas, o fundador da com p a n h ia . E s te havia concebido uma instalação nas v it r in as d e um grande magazine (La Baie) reformuladas como um ap artarnerito onde deveriam evoluir durante quatorze dias , s e m qualquer interrupção , quatro atores entregando -se a s u a s a tividades cotidianas sob o olhar permanente do público. U m quarto d e dormir, UITI a sala, um a cozinha e um banheiro e ram a p rese n tad o s, a s sim, de maneira frontal, o s a t o r es p a ssando d e um e s p a ço para o u t ro conforme suas atividades e s e us desej o s. N ad a d e cor ti n as o u persianas para a ssegu rar-lhes intim idade: refe içõ es, du ch a s , s o n o , atividades d e la z er acontec iam sem cessa r e m interaç ã o c o m milhares d e espect a d o res d e sfilando a toda h ora , d e d ia e de noite, para sab er onde e stariam o s quatro arte- a stronautas. E stes últimos moravam num e spaç o colorido no qu al os o b j e tos e r a m mais irn po r tantes d o que as forrnas , o n de os d e slo c amento s tin ham mais se n t ido d o que a própria ação que deveria ser executada. A audição e stava excluída desse universo. O espectador não podia nem escutar

Tal s u c e ss o nos interroga so b r e aquilo que parece estar nas próprias antípodas d e um teatro de arte. E n t r e t a n t o, o público encontrou prazer nele , um a ludicidade que ele nem s e m p r e enco n t r a n as expe r iê n c ias mai s "a r t ís t ic as': Um públi c o não habituado ao t e atro foi cooptado , a r rast a do por e sse universo que lh e foi prop o sto . O mesmo aco n teceu co m o público habi tual d o fe stival. C o n fr o n ta do com st im u li e sensações provenientes de todo o e spaço visual (lembremos que o s o m direto estava aus ente d ess e uriive rs o ):', o espec t a do r d ei x av a - s e arrastar pelo j ogo de

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Cf. disponíve l em : < www .u rbarrd rc a rn .c o rn » ou < w ww.a lp h a li n k .c o m . au/ - surreal > . O espet áculo, apresentado pela companhia em maio de 1999 em Montreal, inseria -se numa s é r ie de instal ações ini ciadas pelo grupo no c o meç o d os anos de 1990 e que não c ess o u de continuar d esde então (G e n t, 1999; Londres, 1999; Festival da Nova Zelândia, 20 0 0; Perth, 20 01 ; C h ic a g o , 20 01) . Precedeu, é claro, a ed ição francesa Loftstory difundida no M6 e m 2000-2001, que obteve grande sucesso popu lar, da mesma for ma q ue a maior pa rte dos rea lity shows das cadeias d e tel e v isã o a me r icanas e inglesas. A lg uns p a r al el o s poderiam ser destacados e q ue aprox imam essas várias exper iências . A m a io r d ifere n ç a reside no fato de que, no nosso exemp lo , houv e ao longo de to da a experiência uma interação com o púb lico, o qu e n ão é o caso dos reality sh o ws . Essa int era ç ã o c o nst it uía p arte importan te d o es pe tá c u lo. Porém h a vi a o so m da r u a . O espec ta dor p odi a o uv ir a s reflexõ e s d o s o u t r os es pecta do r es e sua s tent ati vas d e co mu n ic a ção co m o s a r t is tas .

A LB M D O S LI M IT ES: A CENA SOB I N V ESTI G AÇ ÃO

U M COR PO NO ESPAÇO, PERCEPÇÃO E P RO JE Ç A O

se n s a ções , d e percepções expe ri men tadas . A d im ens ã o c o gnitiva que pe r ma n ec ia p r es en te re vela-se in ope rante p el o fat o de n ão e s cl a rece r rn ínirnarn e.nte o esp e tá c ulo. O e spectador era a n tes c onfrontado co m uma ins t a la ç ã o espacia l q ue o incluía e o excl uía ao m e smo te m p o. E le não tinh a q u e co mpree n der nada, m a s s im experimen t a r. Nossa h ip ótese é que a raz ão d e tal s ucesso d e v e s er pro curada na p rópria nature za de s s a e x pe r iênc ia qu e se ac resce n t a à experiên ci a teatral naquilo que ela t em d e mais fund amental, uma e x periê n c ia bas eada, a n t e s d e mai s nada, n a relação do espec t a do r co m o esp aço, um espaço qu e se a r t ic u la , no caso, e m três c a m p os d e interv en ção: esp a ç o d o palco, e s p aço do espec tad o r, esp a ço virtual, e e m trê s mod o s ( e s p aço - im a gem, espaço -forma, espaço -volume) . Tais e spaços não so me n t e nos remetem ao nosso e s t ilo de viver no sso es p aço c otidian o (esp aço vivido de m odo um tanto o b s o le to ) , mas no s c o n fro n tam c o m uma relaç ã o di stinta d e espaço (e com um es paço di stinto) , que se situa no nosso cotidiano atual, e s p a ç o do qual P aul Virilio e sclarece alguns parâmetros (espaço -plano, s u p e r fície - lim ite ). Ness e exemplo, dois aspectos merecem especial atenção e levantam duas séries de questões: a. Quais são as características desse espaço assim criado por Neil Thomas e sua equipe num contexto tão at ípico? Que g ênero d e leitura faz o espe ctador? C o m o el e o percebe e como o lê a partir de seus esqueInas perceptivos, cognitiv os, mne m ônicos o u imaginários? O intere s se do e x ercício, n e sse caso, re side e m que tal espaço c ênico s o m a- s e a o fu n c io n a m e n t o da cena teatral mais tradicional ao erripre star amplamente o espaço cotidiano para o e ssencial, um cotidiano que divide, na sua grande maioria, com o público convidado a vir olhar. b. Por o u t r o lado, no que esse gênero d e e xp eriência pratic ada p elos artistas - c enas banais sobre tema s var iados c om o s quais cada uni d e n ó s e n t ra em c a n t a ta cotidiariarnerrte sem nem rnesrno prestar atenção - pôde des encade ar t ão grande interesse, a tal ponto que o s e spectadores n ão apenas passavam longo s p eríodos à s u a frente para olhar o s atares entr egando -se à s a tividades de n ossa vida co t id ia na ( t r a b a lha r n a cozin h a, passar r o u pa, fa z er os jogo s s o c ia is ) , m a s t amb é m vo ltando a ele s em pa ra r c omo q ue movidos p el o d e s ej o d e ver onde s e

d eu essa exper iênc ia e o q ue pode r iam fazer os atares n a s u a redorna?'

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Espaço- Vo lu m e e Espaço-Fo rma À pri meira qu estão - q uais são as c a racterís ticas d ess e espaço ? _

é fác il r e sp o n d e r qu e o espaço ap resen ta do ao espec tador es tava di sp o sto em c a m a d a s diferenciadas de s e d im e n t a ç ã o . A primeira c am ad a d e percepçã o mantinha um a sen s ib ilização nas p ró p rias dim ens õ es d a "ce n a': do espaço co m o q ual o espec tado r era co n fron tado qu and o d e s ua c hega da. Te n do ouvido fa la r d a exper iência, o espec t a d o r co n hecia b em s e u princípio, n ã o os se us p arâm etros . Tratava-se p ara el e , p ortan to , de id entific ar o lugar r eal e m que e la se des enrolava, o es paço que a tornava tangível. Tratava - s e, no c aso, d e um lugar físi c o: largura das vit ri n e s", profundidade , a ltu ra d o s tetas, pres en ç a do v id ro . O esp ec t a d o r calculava-lhe o volume, interrogando -s e sobre as dimensões (são elas adequadas para s e viver quatorze dias e n cla u s u r a d o ?) . Esse primeiro cantata passava pelos sentidos antes mesmo que uma anális e interpretativa elaborada s e sobrepusesse a e s s e primeiro cantata. Um segundo e spaço de perc epção a d ic io n o u- se ao pre cedente: de diferente nature za, el e era repl eto: o passeio e a ru a , o espaço exterior onde os e spectadore s, de p é atrás do s vidros , deambulavam observando o s quatro arte -astronauta s qu e s e apresentavam c o m o esp e t á c u lo . Tal esp a ç o, estando claramente delimitado, via s e us limites mudarem em função da d ensidade do s esp ec t a d o r e s . Conforme a hora do dia, a tem peratura, o espaço do espectador flutuava de forma semelhante em importância. N e sse, primeiro nível, o esp ec tado r ' identificava o espaço -volu me. E n e s s e e spaç o qu e os dem ai s nív eis d e leitura iam se enxertar. 5

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Essa situa ç ã o le m b r a a s e x peri ên ci a s ao v ivo n a web (web c a m ao v ivo), m as também , como o di ssem os a n te r io r men te , to d a s as sér ies te le v is iv as qu e se desenvo lvera m ab u n dan teme n te h á a lgu ns a nos e qu e fas ci nam o p úbli c o : Big Broth er, Loft S to ry, S u rvivor, O palco é vasto (v in te metros - e q u iv a le n te a q ua t ro peça s co lo cad as e m filei ra n u m apart a men to ) .

ALiÔM D O S U1VlITES: A C EN A SO B I N V ESTI G A Ç Ã O

UM COR PO NO ES PAÇO : PERCE PÇÃO E P ROJ EÇ ÃO

O u t ro espaço es tava presente igual e r epentinamente, o do grande magaz iri e no qual s e encaixava a "ce n a", n o mínimo atí pico. C o n s ta n te m e n t e presente, ele existia na percepção do espectador como luga r de acolhida dessa c u r io s a experiência e o espe ctador mensurava igual m e n te a distância que separava as f unções hab itu ai s d e t al espaço - ap rese ntação d e o bje tos i rra rrirn ados fe itos p ara se r ern co nsu n1idos - e a ação q ue se desenrolava d ian te d ele , a o coloca r e m cena seres vivos oc upados em viver. Nesse caso, a p e rc e p ç ã o do espec tador passava pela mediação de um a a nál ise, medindo a d is t ân c ia en t re a fu nção h a b itual de tal lug ar e o u s o lú d ic o q ue dele e r a fe ito. E le percebia assim o es paço do m a g a z in e , as peças, sua dispo s ição d e umas co m r ela ç ã o às o u tras. Se u t r a b alh o d ep endia d a p e r c ep ç ã o d o espaço-f o r ma e d o espaço-im agem ao mesm o tem po. N e ssa seg u n d a fase, o es paço é p erc ebido , d íz e rn -ri o s os c ie n tistas, como íc o n e dado a ve r. E le d efr onta o espec tador q ue lhe avalia o v o lume, as forma s , as t exturas e cores. É pe rceb ido com o bidimensional. Não é sen ão n esse caso precis o , e m que o espectador e stá no esp a ço de atua ção, que t al bidime n s ionali d a d e s e a paga e que o esp ec tad o r e n t r a n o espa ç o -v olume . P o rtanto , de um lado , um esp aço fe chado - o d o s a tores totalme n te e nvid raçado, ab erto p ara o m u n do e que o lhava o espec t a dor; d e o u t ro urn es paço a be r to - o d o s espectado res - , porém c uja linha d o horizonte es tava fec hada pela p arede d o palco. Todas a s condiç õ e s da s it uação t e atral es t avam lá: s ituaç ão frontal, e n q uad ramen to d o p alco , fenômeno d e expos ição. A dispo si ç ã o d o espaço s u perp u n ha t eatr o e o bje to comercia\, transfo rma v a os a tores e m o bjetos d o o lhar (e por extensão, e m objeto s de c onsumo ) . Esses trê s n ív e is de p erc epç ã o do espaço (espaço -i magem, espaço -forma, espaço -volume) são evide ntes, po rém d ã o conta da m ane ira pela qua l são apropriad a s h abitu a lm e n t e todas as fo r mas d e espaço, e m p arti cula r as qu e se ac resce ntam ao espaço d a sala. O ra, esse espaço é tamb é m fre q ue n temente o d o p a lc o à italian a. O que evide nc ia m as prim eira s o bservações:

ap r o p r iação d o esp aço p el o sen tido, a v isão oc u pa um lu gar fund am ental, veiculando m ais informa çõ es d o q ue o resto dos se n t icios". Ta l visão alterou-se, afinou- se a o longo d os séc u los. As mutaçõ es s o b re v in d as não revel a m s im p lesmen te que a quan tidade de informações re colhida s a partir do olhar mudou (a q uantidade seria, parece, mais importante hoje d o que outrora), porém revelam também a importância, a credib il idade e o lug a r maior dado ao o lhar e à informação v is u a l q ue ele veicula na construção do sentido. É isso que proporciona a peça Urban D ream C ap su le. Nela, tudo passa pelo olhar: aç ão, gesto, mímica. Toda a construção de sentido passa por um trabalho de p ercepção da imagem e de seus componentes, uma im a g e m a seguir d uplicada pela in teração que se instala com o espectador, os arte-astronau tas n ã o se contentam em fazer gestos, p o ré m reagem, p o r se u lado , aos est ím u los dos espectadores. A penas o o lhar ca rrega a ação, d ete rmi n a a intera ção , p e r mite à a ção ser acom p anhada . O único canal d e informação e co m u n icação p ass a pelo o lho d o espectador. To do um domínio d e p esquisa se interessa atualmente por esta p regnância d o o lh a r n o teatro, o t e atro at ual tendo se tor n a do o lugar d o o lhar mais a in da d o que o d a escu t a". 2 . O q ue n o ss o exemplo evide ncia igualm ente é que o esp aço v is ual é fe ito totalmente de um agregado de estím u los se nsoria is, que solicita m n ã o a penas o o lhar m a s tam bém todas as outra s fac u ldades sensor ia is d o s ujeito (sensação d e proximidad e dos demais espec t a do res , tocar o v id ro, manipula ção d o telefone, e n vio d e e- rnails). A experiê ncia t e atral, n o caso, é com.o um lug a r de polissensoria li dacle. O importante para o espec tador, p orta nto , n ã o é reconhecer lu g a re s reais o u fic tícios, m a s v iajar n as fo r mas, n a s es truturas d a maté r ia: n ess e caso, cores, a superfície, a tessitur a , a maciez, o tocar. O espectador se satisfaz e m perceber a h o r izo n t a li d a d e, a ver t icalidade, fo rmas a be r tas, fechadas, massas cromáticas. Tal polissensorialidade é primária

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1. A importância da apropria ção sensorial na experiência teatral - e de man eira gera\' na experiência artístic a . Nessa

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É, p elo m enos , uma das hipóteses exp o s tas por E.T. Hall, que nota: "o n ervo ó ti co possui cerca de dezoito vezes mais neurânios que o n ervo coclear, p ode-se c oncluir daí que el e transmite pelo m enos dezoito vezes mais informações'; fato q u e o le va a a fi r ma r que o s o lhos são mil vezes m ai s e ficazes do que o o u vi do. E .T. H all , La D im en sion cac hée, p . 62-63 . A e x p ress ã o é d e W ilson , velh o rrre st re na a r te de d esestr u t u rar o s di sc urso s cê n icos un s em r e la ç ã o aos o u t ros. Ê preciso, d iz , " tornar es t r a n h o o hi at o e n t re o o lh a r e a esc u ta':

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A L t M D O S LIMITES : A CENA SO B INV E STI GAÇ ÃO

e acom pan h a d e rno d o in diss ociável a codificação das s ign ificações q ue lh e são ern ge r a l e espontaneamente atr ibu ídas . Q uan do um ar tis ta co mo Mnouchkine fa la d a n e c essidade d e f r uição do o lh a r n o t e atro , é pre cis amente ta l p ol is s e n s o ri a l idade qu e ela evoca. O es p aço v is ua l não destaca, po rtanto, si m p lesmen te p el a v is ta, mas t amb ém pelo se n tido. No e n tan to, a p erc ep ç ão d o es pec t a d o r não se lim ita uni came n te aos s e n t idos . É um a combina ç ã o d e sensação, de p ercepto e d e co nce it o . Implica, c ertam ente , a im ediate z d a p e r c epçã o d o s s ig n ifica n tes (matéria, t e xtura , cor, pro fund e za , vec torial ida de, vertic alidade, h oriz ontalidade , for mas a be r tas, fec h a das, rn a s s a s c rorn át ica s) , m a s t amb ém o trat amento cognitivo que p e rmite p ensá-las e an al is á-Ias ".

Da Pe rcepção à C ogn ição Seria interessante poder remontar à fonte das percepções e des tacar o percurso que leva dos mecanismos neurofisiológicos que governam a apropriação do espaço até a leitura do e spaço na representação ( espaço simbólico). Uma tal traves sia ainda r e s ta a ser feita . Ela r eanimaria os partidários do " h o m e m neu ronal': que tentam mostrar no que o s processos do pensamento humano podem s e r analisados em tennos de m e c an is m o s n eurofisiológicos. A que stão de s a b e r como passamos da p ercepção à c ognição ou, m ais e xat a men te , como p as samos d e um m odo de p ercepçã o n ão ve r b a l do espaço para um a a nálise d is cursiva d e tipo s emiológico, ou dizendo de outro modo, c omo passamos de um esp aço r eal percebido p elos s entidos (ins e r id o n o prin cípio de p raze r o u desprazer) p ara u m espaço s im b o l icamen te m arcado e liga do a uma rede d e significaç õ e s que se d e sta c a e m m aior grau do p ensamento, continua d ifícil. Vam os c hegar, no

UM C O RP O N O ES PAÇO : P E RC E P Ç ÃO E PROJE ÇÃO

caso, ao cr uzamento entre a s c iê n c ia s cognitivas e as c iê n c ia s da percepção, domínio que tenta fa z e r a p onte com maior ou me nor s ucesso e ntre as ciências e x a t a s e as ciências humanas para rea lizar a passage m q ue va i do át o rn o ao pensamento, seguindo os circ uitos cerebrais e neurológicos q ue explicariam, e m pa r te, a experiê ncia estética. O que pe r m ite a nalisar a experiê ncia de Neil Tho mas é q ue toda p e r c ep çã o d o espaço v isual é a n tes d e mais nada de ordem c ines tésica . E la pass a p ela a p r o p r iação d o s d e sl o came n to s , m ovim ento s , a ções daqu el es que partic ipam, confir mando aq ui lo qu e os físi co s n o s e ns inaram: que o sen t imento do es paço n o s é d ado pelo d e sl o c am ento d o s cor pos uns e m r el a çõ es a o s outros e p or s ua inter-relaçã o , m ais do que pelas ima g ens que a ret ina g rava 10 . Ta l apr opria çã o e nvolve o e squema co r po ral d o sujeito, v is to que o espectador julga ess e es p aço, expe rimen ta-o, prova - o rnesrno n o seu cor po. Alguma s e n cen ações ex p loram d e m odo mais aprofund ado que outras a importância dessa vivência do espaço (cf. La Fura d els Baus). Há portanto, para o espectador, uma verdadeira exp e r iên ci a do espaço, s e j a po rqu e el e se encontra introdu zido nele , c o m o é o c as o d e algumas experiências d e palcos a m b ieri tais ''. s ej a porque t al espaço seja dado a v e r e a co n st r u i r s irn bolicarrien te, corno o que oco r re e m Urba n D ream Cap su le. Tal passagem pelo próprio corpo do s uj e ito fa z da exper iê n cia esp a c ial n o teatro um fen ômeno que remete para al ém dos m ecanismo s perceptivos c o m u ns, para a s u bj e t iv idade d e cada um: s u bjet iv idade d o p ens amento , da m emó r ia, d o imaginário 10

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Dessa forma , o espaço parece d esta car ta nto o re a l q uanto o imaginário. U m a a ná lise c o m p le ta de urn es paço deveria, a ss im , in te r e ss a r - s e não somente p el o aspecto vi s ual, m a s ta mb ém por todo s o s out ro s sistemas sensório -perce p t ivo s, exterocept ivos e prop riocept ivos (o espaço tá til [háp tico], auditi vo , o lfa t iv o , g u s ta t iv o, c inestés ic o, postural ), co m o ta m b é m pelo s s is te m as in te roceptivo s (álgi cos , imagin ários , tím ico s ). to da co m b inaçã o de todas essa s s e ns ib il id a des que nas ce a perc ep ção de um es p aç o especifi co.

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De a cordo com F rederick K íes le r, arqu iteto a u stríaco q u e ten to u d e fini r o espaço cênico em termo s modernos a partir de 1926: "O es p a ço não exis te e n q u a n to espaço se não para a pessoa q ue n el e se des loca. Para o a tar e não para o espectador:' [5pa ce is space on ly for th e person who moves about in it . For th e a ctor, not for th e sp ecta to r ], ve r Debacle of the Modern The a tre, 7he Little R eview, n . i i , winter 1926 , p . 67. ' Nos anos de 19 7 0 , inúm eras experiências introduziam d essa form a o espec tador n um lug a r "a t íp ic o" e a experiê ncia desse último p rovinha tanto d e se us des locamentos no s e io de u m dado e spaço quanto daq uilo que nele s e desenro lava: v e r Promenade (p a rco u rs) d an s le n oir ( P a ss e io [percurso] n o Es c u r o ) , espetácu lo feito por cegos e ap resentado n o Festival de Avignon em 1994 · C f. também o teatro de Ta rnpere , n a Fi n lã nd ia, que é o único tea tro no mun d o , qu e e u sa ib a, n o quã l o s espe c tado r es es tão se n ta d os e m pleno ar num p alco rotati vo . São, port anto , os espec ta do re s q ue se desl o cam p ara s eg u i r as aç ões dos atares co loca d o s num n ív e l inferior e m terra firme .

A LÉM DOS LIM ITES : A C ENA SO B IN V ESTI G AÇ ÃO

UM C O R P O NO ES PAÇO : PERCE PÇÃO E PR Of EÇ Ã O

e , mais a in da, subjetividade do corpo. C o m efeito, na medida em que a percepção do espaço v is u a l implementa o e squema corporal do sujeito, remete à individualidade de cada um. Essa experiência acentua, portanto, que a percepção do espaço, longe de ser um objetivo dado, que existiria ao redor do sujeito e do qual ele poderia mensurar as propriedades circundantes a partir de sua posição como sujeito é, antes de tudo, um dado subjetivo q ue percebe o sujeito através da mediação de suas próprias percepções corporais, as quais, elas próprias, são ativadas por alguns estímulos implementados pelos artesãos do espetáculo. Não se trata somente, nesse caso, de referências ao domínio da cognição que atrai, seguramente, a subjetividade de cada espectador, mas da referência à subjet ividade do próprio corpo. A força da instalação de nossos artistas australianos vem do fato de que conseguem combinar e dissociar para o espectador, ao mesmo tempo, o espaço-volume, o espaço-forma e o espaço-imagem, ao permitir plenamente ao espectador uma experiência se nsorial e cognitiva d e c ujo perc urso ele estava a lienado e q ue foi deixado à s ua própria iniciativa.

repentinamen te dentro. E ao colocar a questão, po derrros a in d a fa lar d e uma facha da n o e sp a ç o das cidades a t u a is ? Quest ão à qual Vi rilio res pon de pela negat iva, a c res cen t a n do que o u t r a s m utaçõ es c arniriha rn p a r al el amente CO ITI e ss e des aparec imento da fa chada e do v is-à -vis: d a o posição cen t ro/ per ife r ia bem c o m o da o pos iç ã o " i n t r a m u ro s"I"e x t r a m u ro s': que dariam uma axialidade ao dispositivo u rban o e que parecem ter d esaparecido. São novos m odo s d e percepção e d e c r iaçã o do espaço igualm ente co locados e m j ogo pelo esp e tá c u lo Urban Dream C apsu le? Cas o se atente b em para isso , a e n ce n a çã o de Neil Thomas atinge precisamente essas características. O princípio de fachada, por e xe m p lo , que foi dominante na cenografia durante vários séculos, desapareceu em inúmeras e n ce n a ç õ es da atualidade, c e d e n d o lugar a espaços que evocam t anto espaços exteriores quanto interiores, cujos limites não estã o mais claramente definidos. As leis da p erspectiva t o rnaram - s e c a d u ca s ao mesmo tempo que os ângulos mortos desapareceram. Tudo é doravante visível, dado a ver. O espaço concreto é colocado horizontalmente, d esv ela d o , sem segredo nenl zona de so mbra, sem â ngu lo mo r to nem zona de fuga. É o fim da perspectiva d o Quattrocento, diz V irilio. Mais precisamente, o espectador é em geral colocado d e repente na Interface'>, quer dizer, tanto no espaço corno fora dele. Tal interface concretiza-se na experiência australia na pela vitrina separando e ligando ao mesmo tempo, pelo olhar, os atores e os espectadores. É nessa interação q ue repousam o espetáculo e o prazer do espectador. Na medida em que, do outro lado da vitrina, os atores desempenham ações insignificantes em si mesmas, a atenção do espectador é centrada mais acentuadamente na interação entre os seres e menos na signifi cação de seus gestos ou na interpretação que se lhes possa dar. A materialidade de seres e objetos perde-se nela. Estamos na superfície, uma superfície que se deixa ver e, através da qual, nos vemos a nós, os espectadores. Virilio fala a esse propósito "da opacidade dos materiais de construção [que] se reduz a nada': O próprio princípio dessa interação reorganiza o espaço clássico observador/observado nUI11 espaço único onde necessariamente os dois lados do espelho estão e onde a interpretação

27 8

A Superfície-Limite Nossa relação com o espaço, não obstante, não se dá mais unicamente pelas formas evocadas acima: a relação alimenta-se também conforme os modos que Paul Virilio expôs no seu: L'Espace critique (O Espaço Cr ít ic o ) ." Virilio insiste n a importância que se dá atualmente à superfície-limite no nosso espaço cotidiano. Esta parece ser uma das modalidades de acordo com a qual se percebe o espaço onde evolu ímos no nosso m undo contemporâneo. Ele observa, assim, que nossa relação dominante com o espaço tornou-se a da interface . Tal relação é resultante da retornada em questão da " n o ç ã o de limite [que] se apossou das mutações que dizem respeito tanto à fachada corno ao vis-à-vis': A fachada, como realidade do espaço, parece ter desaparecido, como se nunca estivéssem os diante de um e s p aç o - Virilio fala aqui da cidade -, p oré m 12

P. V iri lio, L'E spa ce critique. Paris: C h r is t ian Bo u rgo is, 1993 .

13

Ibidem , p.

12 .

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AL ÉM D O S LIM ITES: A CEN A SO B IN VESTI G AÇ ÃO

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dos a tares duplica -se com a d o s espectadores, a p resentando-se a si meSl110S como espetácu lo, de modo consciente o u in consciente. O es petácu lo é, n es se sen t ido, r esulta nte não so m e n te d aquilo que se produz e m cada ce n a, como tarrrb érn - sob re tu do, seríamos t entado s a dizer - d a interação recíp ro ca e ntre o s ind ivíduo s a ta res o u esp ec ta dores - de u m a par te e o u t ra do p a lc o. Desse modo, a q u ilo a que a ssi ste o espec tador, n essa ex periê ncia te at ral , e nvolve a j us ta posição d e dua s fo r mas d e p ercepção d o espaço: a. A prime ira o r igina -se d o re c onh e cimento d e u m es paço e u cl idiano - o u q ue se a prese n ta co mo t al à prime ir a v ista - na di spo si ç ã o clássi ca do espaço te atral. Tal esp a ç o é p e rc ebido n a s ua forma, n o se u volu me e nas s u a s linhas d e fuga, assim co mo na s ua materialidade. b. A seg u n da e nvo lve a pe rcepção d e um seg u n do espaço qu e se so b re põe ao p rim eiro e q ue é c alcado n aquel e d a in t e rface e d a tela. É o d o v idro q ue sepa ra e qu e un e a o mesmo tempo o s atare s e os espectadore s. É nel e que se inserem a s r edes. No vidro, o espaço se torna su p e r fíc ie , uma estrutura d e s u p o r t e, um "m u r o- c o r t in a", diz Viril ia, "pelo qual a transparên cia e a leveza de algumas matérias (vidro, plastificações diversas) subs tituem o aparelhamento d e pedras das fachadas'v- . O espec t a d o r é c o n fr o n t a d o com urn a r e a l idad e que s e apres enta c o m o um jogo, c a d a açã o apagando aquel a que a precede num a instan t aneidade na qual impor t a apenas a interação pre sente. U ma vez mais , o que con t a p ara o espectado r n ã o é a n atu reza d a a ção posta n o outro lado d o v id r o (p assar roupa, lidar n a c ozin ha), porém o sim p les fa to d e que essas ações oco r rem e que s ão dadas a v er s o b o olhar intervencionista e lúdico do e spe ctador (que m odifica o s ingrediente s d e um a receit a d e cozi n ha, indica a existê ncia d e um vin co ). A n ature za d a p erc epçã o d o espec tad o r n ão é rn ais , d esde e n tão, uni c am ente a d e um d ado espaço, mas t a m b ém a d e urna t emp o r alidade. As ações se d e s errrolarn e se ins e rem n o t empo, um tempo que é urn "p resen te p ennanente". Estamos num es p aço no qual o fu n cionamen to p arece result ar d e um espect ador diante d e s ua t el a : volu mes, fo rma s e limit es 14

Ibidem , p.

I) .

U M C O R P O NO ESPAÇ O : P ERC E P ÇÃO E P ROJ EÇ Ã O

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do espaço apagam-se unicamente e rn proveito desse v id ro, face plan a de d up lo sentido o nde as redes se in s e r e m de um lado e do outro. Segundo Virilio e Re né Thorn, tal forma de percepção é doravan te a d e um Inundo n o qua l realmente evoluímos.

o

Esp aço- P la no

Tal mudan ç a n o s n o ss o s m odo s d e p e r c ep ç ã o d o espaço a t ualm ente , qu e n o s faz p erc ebê -l o co mo es paço-plano, o u a i n da tel a - es p a ço , cam in ha para le lamen te com urna d e sre al iz a ç ã o e co m urn a virtuali zaç ã o d o r e al. Ora , tal virt ualização d o r e al tra z, por se u turn o , urna vi r t u a lização d o espaço, q ue p erde s ua m ate ri alid ade , d e ix ando -s e a p reen de r co mo es t r u t u ra rizomáti c a o n de circ u la o lúdic o e onde todo trabalho d o sentido p erde s ua n e c e ssidade. D e ss e m odo , e m Urban Dream C apsu le , p ermite -se ao s e spectadores jogar c o m a r ealidade que observam caso desejem , pois podem seg u i r algumas das atividades na internet. O espectador tem, com efeito, múltiplas possibilidades eletrônicas para seguir os atares caso o s perca de vista: o e spectador pode r eencontrá -los na tela, es c r eve r- lhes. Ao recusar, dessa forma , o princípio de fim d a a ção (ou do esp etá culo - visto que e sse dura quatorze di a s s e m inter rupção ) , o espectador p ode viver a ex p e r iê n c ia tanto o n lin e quanto off lín e. Ele s e apropri a tanto do aspecto d e e ve n to da açã o r e al qu anto s u a virtualização. Ainda n e ss e caso, o s co nceit os d e Virilio são esclarecedo res:

o esp aço co nstr u ído p articipa d e um a top ol o gia ele trônica n a qual o en quad rame n to d o p onto d ~ vista e a tr ama d a imagem di gital re novam o p a rcelamen to urb an o. A vel ha oc ultação privado/público, à d ifer en ci ação d a h abil itação e d a ci rc ulação, sucede um a superexp osição n a qual cessa a distâ ncia d o "p róximo" e d o "lo ngínquo", da m esm a fo rma que d esap arece na va rre dura ele trô nica d os m icroscópios, a di stânci a d o "micro" e d o "rnacro" 15 Tal v irtu aliz a ç ã o d o real com pree n de um espaço que se t ornou uniformemente c hato,_o n de t oda s as co isas, o bjetos, 15

Ibidem , p. 14.

AL ÉM D O S LIMITES; A C E N A SO B I N V ESTI G AÇ ÃO

UM C O R P O N O ESPAÇO ; P E RC E P Ç Ã O E PR OJ EÇAO

sujeitos, seja q u al for sua figura, acabam po r ter a mesma im portância e a m e s m a realidade. Passamos do espaço-volume para o espaço- p lano. O rrres rn o aco ntece com as ações coloca das n a ce na: n ão exis te m ais um a ação mais imp ortante d o qu e o u t ra, m ais central , m ai s indispens áv el. O es paço acha - s e a p la n a do, vazio d e s u a s u bs tâ ncia. N ã o s u bs is te se não uma r e alidade que d e ixa ao espec ta dor um praze r "hedon is ta" que lh e c hega pelos se n tid o s. Como n o s lemb r a a re speito V ir ilio: O "tem po n ele se fa z s u pe rfície" :", o te m p o "ex p õ e - s e" e fo rça o espec tador a a band onar s ua sede n ta r ie dade'? O s ucesso d e Urban D ream Caps u le p are c e -no s d ec o rre r d e t odas essas ra zõ e s ao m e smo tempo e, m ai s especifica me n te , do fa to d e que s ã o a presen tados c o n j u n t a me n te ao es pec ta do r dois e spa ços a n t agôn icos: De um lado, um esp a ç o o r ig in a d o de um a realidade que se pre sta a u m a a p ro p r iaçã o tangível do espectado r, m eio do v ié s dos se us s entidos . Ora, t al e spaço a p r ese n t a a t odos o inapres entável, o o culto, o invisível, o insignificante d e nosso c o ti d iano para t odo s, tornando -o rapidamente s ig n ifica n te. Ao fa zê- lo, ap resen t a o re verso d e nossas vidas: ações ín ti mas, b anais, que n ã o são feitas p ara ser v istas o u apresentadas ao o u t ro, q u e e m an a m geralmente d o ín t i m o e da relaç ão cons ig o próprio . O papel d e quem a s si ste ao espetá culo é igualmente acen t u a d o, mas tamb ém rapidamente le g it i m a d o . Esse e s p a ç o é a p res e nt a d o s e gundo a s n orm a s clá ssi c a s do t eatro (espaço-image m, espaço- fo r ma, espaço-volu me) . P or o u tro lado , t al espaço se e n riq uece p or u m segu n do espaço, um e s paço v ir t u a l, um espaço distinto que repre senta alguns mom ento s d o cot id iano e repr oduz o espaço real. Nesse esp aço, os espec tadores também interv êm, e m bora difere n tem ente. Tal espaço é um espaço-su per fíc ie, um espaço-pla no sem imagem fix a, s em volu me e sem forma d eterrriinada. É um es paço inscrito n o tempo. Talvez sej a esse o espaço -tempo do qual falava

Gilles Deleuze, O es p a ço dominante do am anhã, um esp a ço em permanente ajustamen to e em reajustamenro para o espectador. Es tá claro que do ravan te estamos n um e s p a ç o sensorial e cognitivo mui to d iferen te d a quele no q ua l se inseria o teat ro d o s períodos a nteriores. É t al mudança n a s n o ss a s formas d e ap reensão d o es paço que o t rabalho so b re o co nce it o d e es paço, n o d e cur s o d o s últim o s t r in ta a nos, d e h istoriadore s, fis iologista s, filósofos, an tropólogos, soc iólogos, n o s p ermite mens u r ar.

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16 1?

Ibidem , p . '5 . Ibtdern , p . '5 . Aqui se ri a precis o um desenvolvimento com rel a ç ã o às ceno g rafi as n a s qu ai s n ã o h á m ai s d o q u e um a ilu min a ç ã o artifi ci al . ate mporal. "A o t emp o q ue passa d a c r o n o lo g ia e d a históri a . s u cede um te m p o qu e se expõe ins tan ta nea me n te ."

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NOVOS MODOS DE PE RCEPÇÃO Co m efei to, n o ss a s exp lorações no dom ínio do espaço te at r al fora m enri q uec idas n o d e c o rre r d o s a nos c o m rru m e r o sas d e s c oberta s ci entífic a s - fí sica s e n eurobiológica s s o b ret u do -, que n o s p ermitem esclar ece r no ssas form a s d e r ecepç ã o e p ercepção d o es p aço, m odos que p ermanecem fundament ais na ex per iê n cia es té t ica d a repre sentação. A s pesquisas d o s fis io logista s d e stacam, por exe m p lo, que nossa própria c oncepção do esp aço mudou atrav é s dos séc u los e que o d omínio a r t ís tico carrega a m arca d e t ai s transformações, quando não a s pre cede. É pre cis o le r, p or exe m p lo, as p áginas d e E.T. Hall sob re o modo pelo qual as o b r as dos artista s destacam nossos I110dos d e p ercepçã o e as mudanças sofr idas ao lo n go dos séc u los, a parti r d a R ena scença até o presente. Essas p erspectivas permitem explicar d e m an eira iluminado ra a história das mudanças cên icas que afe taram o es paço teatral. E las m o stram, em particu la r, como todo o espaço teat ral carrega a m arc a d a evolução d e noss o s m odo s d e p e r ce p ção d o espaço, mo dos q ue evoluíram e que se afi nar am com O tempo n a m edida e m que nossa própr ia v isão - n o sen ti do fisiológico d o term o (capacidade de ver) - mudou, m odific ando n ã o a pe nas n o ss o s m odo s d e p e r cepção, como também n o ss o modo d e ap reensão d o mundo (cog n iç ão). A po ia n do-se n o s trabalhos d e p e squisadores como Gyorgy Ke pes'", e sob retu do n o s d e G ibsori'", que inv entariou t r eze varie18 19

G . Kep e s (19 4 4). Th e Languag e of Vis io no C h ic ago : P. The obald , 19 51. Kon r a d M arc- Woga u o põe a te oriã d e G ibso n à q uela d o m éd ic o H erm ann von H el mh o lt z s o b o p re tex to d e q ue Gi bson re cus a -s e a rec onh e c er que a percepção é cons truída a p a rt ir de s i n a is d ado s p el o s ó rgãos, " in co n s ci e n te

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dades de perspectivas e i mpressões visuais associadas à percepção da profundidade, E .T. Hall mostra como o artista medieval, ta l como nos revela a arte da época, ainda não t in ha aprendido a disting u ir o campo vis ual (image m real gravada p el a reti na) e o mundo visual co ns ti tuí do pelo conjunto daquilo que é percebido. E le não conhecia e ntão mais do q ue a proximadamente seis formas d e pe rspec t ivas (perspectiva aérea, contin u idade linear, situação dos o bjetos n a par te s u perior d o campo v is ual, começando depo is a com pree n der as perspectivas q ue d ize m respeito à textura, à dimensão, ao espaçamen to linea r ). De acordo com H all , a Re nascença s ofre u um a r e voluç ã o ao in t ro d uzir as leis d a p erspe ctiva , p orém estas, ao p o stular um po n to fix o , o b r igaram a tratar o esp aço tridim ensi on al em dua s d ime nsões. A o fa z ê -lo , os a r tis t as a u me n taram o espaço, i nt rod uz in do - lhe v ária s linh a s d e fuga . O espaço t ornou- s e m ais din â mic o e mais c o m p lexo d e se orgarii za r". M a is es pecific a m e n te, Hall m enciona o papel qu e a lgu ns a r t ist as a n t igo s (V in ci, Tintoretto, Rembrandt , Hob ema) ou m oderno s (Mon d ria n, Dufy, Bracque , Miro, Kandínski ) d esemp enharam , ele s próprios, n o es t a b ele c ime n t o d e um a nova p erc ep ç ã o d o esp aço . Hall m o stra , d essa maneira, co mo a o b r a d e Remb ran d t revela que esse a r tis t a t eria sab ido, muito a n tes dos cie ntistas, distinguir visão fovea l, macular e p eriférica e, desse m odo , co nseg u ir evocar dis tintamente e m s uas o bras o cam po v isua l e o mundo vis u a l" . Os impression istas, p o r se u turno , d e s c ob r em a lgu mas carac te rísticas d a p ercepção e d a v is ã o que G ibson e o u t ros

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UM C O R P O NO ESPAÇO : P E RC EP Ç Ã O E I'RO JEÇ ÃO

A Lf M DOS LIMIT ES: A C E N A SO B I NVESTI GAÇ Ã O

inferência" de dados correntes fo rnecidos pelas imagens da retina e a r m a ze nado s a partir de percepções passadas . O que Gibson recusa é reconhecer que a perc ep ç ã o é dada pelos pro cessos ativo s que constro em a visão a p artir de dados fragmen tários ó p t ic os e armazenados na mem ória, a p o ia dos p or s in a is v in d o s de o u t r os sent idos . O que ele re cusa, filosoficamente , é que a p ercepção repre senta o bj e tos. E le vê a s p ercepções c o m o s el eçõ es passivas - e p ortanto c o m o parte de uma realidade fí si c a . Percept ual Space, em Maja Sv ila r; André Mercier (ed. ) L'Espace... Spa ce , Berne: P e te r Lang, 19 7 8 , p. 188 -189 . Todavia, o que a Re nascença fe z foi apre nder a lig a r a figura humana ao espaço de forma matemática e a regular s u a s dimensões em função das diferentes di st ân cias . Gi bso n d efine o campo vi sua l como se n d o "c o n st itu ído se m ce ssar p el as es t r utura s lu m in o sa s mutantes g ra va d as p el a retina d a qual o h om em se se r ve para c o n s t r u ir s e u mundo v is u a l': A p u d E . T. Hall , op. c it., p. 88 . Ve r Th e Per ception of t h eVisual World , Boston : H oughton Mifflin, 19 50 .

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pesquisadores teorizarão e m seg u id a . Estabelec em um a distinção entre luz ambiente, que amplifica o a r e qu e é re fle t ida pelos objetos, e luz irradiada que são da alçada do domínio da física. Seus traba lhos são uma ilustração da importânci a que a lu z ambiente exerce n a visão. Os impressionistas d esviaram, portanto, novamente, a atenção para o espaço. Mesmo q ue tais constatações, q ue Hall retoma por con ta própria, não s ej a m unanimidade, para n ó s o importante é que elas estabelecem a h ip ó tes e de "q u e o h ome m h a b itou inúmeros m u n dos percep tivos diferentes e q ue a ar te co ns titui urna d a s fo ntes d e esclarecimento das mais abundantes sobre a percepção hum a ri a" > . E las m o st rarn e m qu e m e d id a os artistas pude r am agir como pre cu r s o re s n ess a á re a. A reflexão é inte re ss an t e po r q ue n o s fo rç a a mo dificar o â ng u lo sob o qual t emo s a tendênci a de a bordar o es paço n a s obra s artístic a s e , muito par t ic u larmen te, n o te at ro v . Co m efeito, long e d e n ã o se r m ais d o q ue a ilust r ação d e d es c oberta s c ie n tífi c a s que s e dão e m o ut ro cam p o ( nesse caso , a p erc epç ã o d o e spaç o ) , H all nos m o stra que , d e fato, as o b ras d e a r t e prec e d em- n a s às vezes, as a n u nc ia m e as tornam tang íve is . O s a r t istas emergem delas co rno os pre curs o res d e urna n o v a o rdem visual. M uito a n tes d o que os cientistas, os artistas consegui ram tornar t an g ív e is e le gíve is nas s uas pi ntu r a s n ã o ape nas u rna nova ordem vis ual (por exemplo, Rembrandt) , corno também uma nova m aneira d e ver e de o l har o m un do. Eles nos ensinaram a "ve r " de outra maneira.

Ver de Outra Mane ira Tal t ra nsfor mação que teriam operado as artes ao criar uma n o v a o r de m v is ua l, n ã o poderia se r t amb ém a marca do tea tro d a a tualidade e m u it o partic u larmen te d e algumas for mas es té t icas que e mergiram n a segunda m etade d o séc u lo xx, n a 22 23

E.T. Hall, op. c it., p . 110 -116. Essa reivind icação d everia igualm ente p ermitir darmo -n o s co n ta da mud an ç a d e p erspe ctiva co nce r ne n te ao espaç ã q ue afe to u toda a n o ssa época, e de c uja mud anç a o esp a ço teatral , e m a is pre ci samente o es paço v is ua l n o s e io d esse es paço te atral , ca rrega tamb é m essa m arc a .

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U M COR PO NO ES PAÇO : P ERC E P Ç ÃO E PROJEÇÃO

ALÉM DOS LIMITES : A CENA SO B I NV ESTI G AÇ ÃO

med ida em que ce r to te a t r o - teatro d e im agens, tea t ro ambie ntal, teatro tec nológico - faz ia s ua a parição? É o qu e ten tam p rovar certo núm e r o d e p e s quis a s e nce tadas d e sde h á a lg u ns a nos no Can a d á, n o ca m po d a s c iê ncias c o gnitiva s, como as de C han ta l Héber t , Ir en e Pe rell i-Co n tos , Mari e - Christine Lesa ge, P ierre O ue lle t, Jocelyn e Lupien. Tais pesquisas mostram , com o a p o io d e a n á lises, qu e o t eatro de imagens instituiu e fe t iv am ente uma nova se ns ib ilid a de n o espec tad o r -'. D e fa to, s e o bse rvarrrios a lg u m a s forma s teatrais d o s lt í . n10 S trinta a nos, d o s quai s Ro be r t Wil s on é uma d a s figura s ruais m a r c antes, p ode - s e o b servar que e ssas instituíram novas fo r mas d e esc r it u r a cên ic a definitiv amente s e p a r a d as d a lógica p redo m inan te ligada à pregnância do t exto dramático ( R e za Abdoh , Tade u s z Kantor, Elizab eth Lecompte , Bob Wil son, Robert Lepage) . A hipótese d essas p esquisas é que essas novas esc r it u ras teriam, elas próprias, modificado radicalmente nos sos modos d e p e rcepç ão-s. Ao apelar a procedimentos s o b r e t u d o utilizados nas artes plásticas - p erforman ce art, instalação, videoarte - , recorrendo a todas as formas de tecnologias modernas (las er, informática, flash eletrônico, instalações de arte tecnoecológicas, fotos, vídeo, filme s, novas tecnologias digitais, holografias ) , usand o tamb éITI texto s como materiais s o n o ros, mais ainda do qu e c o m o ú

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Ve r os di versos te xto s em C ha n tal H é b ert; I. P erell i -C onto s (e d s.) , Th éâtre , m u ltidiscipli narite et mu lti cu lturalisme, N ui t Blariche, 1997. p . 23 - 40 . Ver ta mbém P. Ouellet (ed.) , A ction, passion, cognition , N u it Blanche , 1997. e mu ito particu larmente Jocelyne Lupie n , La Poly sensorialit é dans les discours symboliques plast iques, p . 24 7 -265. De acordo com l'vlarie-Christine Lesage, por exemplo. o paradoxo de alguns espaços visuais da atualidade é que. sendo completamen te realizados com materiais duros - aço. madeira -. transformam -se numa tal vi rtualidade que não subsiste. para o e spectador. mais do que a percepção d e espaços em perpétuas movi mentações e a projeção de imagens me moriais que lh es são próprias . Não estando ma is ligado à evocação de lima r e alid ade mirn ét ica, O es paço vis ual escolhido por i números e ncenado res a lime n tados pelas a r tes pl á s ti c a s tornou - s e um espaço pu r o . es paço e m t ro mpe l o eil que some n te a inte r p re ta ç ã o d o a to r (e d as te c n olo g ias ) a tiva (Reza Abdo h, o W o o s te r Group. Urban Drea rn Ca ps ule). O es paço tor n o u - se máquina d e sensações. Para os cenógrafos . o d es a fio é consegui r man ter. com re lação ao es p e c t a dor. lib erd a d e de percepção. permitindo- lhe navega r en t re o re c o n h e c im e n to e a e xploração . deixar-se ir às suas percepções. porém c o m a possibilidade de estar se m p re v inc u la do ao espetáculo . Ver l n s ta ll a t io n s scéniques : Le Cas du Théâtre U BU e t du coll e ctif Recto Vers o. LAnnuaire th éâtral, n . 26 . n o vo1999 .

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significações, essas encenações procuram instalar o espectador num estado, numa certa a tmosfera, mais do que incitá -lo a d e c odi fic a r de maneira racional as represen tações v isua is q ue p ode r iam ser-lhe d ad a s a ver. Ao fazê- lo, tais e ncenações força m o es pectado r a m odi fic ar a o r de m de s uas pe rcepções, obrigam -n o a ficar à esc u t a de suas se ns a ções ini ciais an tes que as outra s se tornem o bjet os d e cog n iç ão (p ercep ç ão, conc eito ). As e ncena çõ es pro cur aram o u t ro modo d e diálogo co m o es pec tador, um diál o g o que p ass a p el o cor po, muito antes d e se d irigir ao espí r ito. Como lembrav a W ilso n n o começo d e s uas e nce n ações, na ocasião e rn que trabalhava com Jo seph A n d rews e C hris to p her Knowles: o corpo o uve e percebe diretamente sem que o intele cto intervenha. Num erosas encena ções tentam h á trinta anos tal diálogo direto com o s se n ti d os, um diálogo que as artes plá sticas, as p erformances e a v id eo a r te d esenvolveram com muito maior acuidade. Elas sublinharam a polissensorial ídade" da cena co m o lugar d e estímulos senso r ia is diversos que o co r p o percebe. Ao fazê -lo, obrigaram a que oespectador rompess e d efinitivamente com a antiga ordem' ? E ss a nova sensibilidade tem, por seu turno, influído na representação, a m esma se tornando, co m o no caso de Wilson ou Kantor, v o lu me, esp a ç o, música, antes mesmo de se r a portadora de uma dada s ig n ific a ção ou d e uma narrativa. A visão única, predominante, aquela que impunha as leis da perspectiva, cedeu lugar a uma diversidade d e pontos d e fuga na medida em que as leis da perspectiva foram sendo, elas próprias, abandonadas na cena. O esp aço v is u a l foi, d esse modo, transformado rrurn lugar ri zom áti c o ( na a cep ção de Mi chel Serre s ) , o n de a s r ede s d e sens a ç ões s e originam (c o m o em Urba n Dream Cap su le ), onde O espectador deixa - s e im p reg nar p elos objetos s u b m e t id os a o se u olhar. T al modo d e percep ç ão, e m que o m enor detalh e se torna importante, e m que o espa ço n ã o é m ai s n em o p ortador d e s e n t id o único de um texto, nem mimético d o real, origina - s e de uma estrutura "d ifus a" na qual o espectador viaja d e uma s e n s a ç ã o para outra, modificando a percepção que tem d e um espaço em mudan ça frequente s e não permanente (quando u sa as nov a s te cnologia s ) ( cf. La Fa!;.e cachée de la lun e [O L ad o 26 27

Cf, J. Lupie n , La Pol ys ens orialité . .. em P. Ouellet (e d .), o p. c it. C. Hébert; I. Perelli- C ontos (e d s .) , o p . cit.

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A LÉM D O S LlMIT ES : A CEN A SO B I NV ESTIG A Ç A O

UM CORPO NO ESPAÇO : PERCEPÇÃO E PROJEÇÃO

Oculto da Lua], Zulu Time ou Les AiguiUes et Topi urn de Robert Lepage). O espaço obr iga o espectador a ajustar-se s e rn cessar, a modificar suas perspec t ivas, a passar das sensações para as percepções e depois às e s truturas cogn itivas", para desmontar rapidamente as lig a ç õ es estabelecidas a fim de substituÍ -las po r outras que administram as variações do espaço e d o s obje tos colocados diante d el e. O espectador se acha, portanto, reme tido ao s ubje t ivo. É isso q ue p rova, de forma m u ito convi nce n te, I'vlarie-Christine Lesage e Cha ntal Hébert na s ua pesq u isa. Mais interessan te ai n da, elas s ubli n ham que os espaços visuais de a lgumas encenações (pense-se em W ilson, K a n tor, Lepage, Lecompte n o v am ente ) es tabeleceram estratégias p ercept ivas q ue necess itam d e um aj ustarnerito p erman ente p o r parte do espec tador, d e " renegociações coris ta nte s'" >, n a s q u a is a rel a ç ã o percepção-cogn ição é co ns tan temente reaj us ta da, d eslo c ad a , exp lo d ida. N u nca re conhe cido, o espec tado r sabe que o espaço que lhe é ap resen t a do tornou- se mal e áv el , sem p re pronto a se d eformar, a d e sapa re c er para r eaparecer d e o u t ro modo: a e nce nação d o Wooster Group - Hous e Lights ( Luzes d e Casa, Mon t real, FTA, 1999) - , a d e Urf a ust montada p or D enis M arleau (Mon t real, 19 9 8) , ou a in da os o ne rnan sh ow d e R obe rt Lepage , são il ustrações d ess es espaços caleidoscóp icos e m que os li mites, as cores, as for mas se d e sl o c am sem cessar, co nsegu indo fazer do espaço u ma entidade qua se abstrata, dilu indo a realidade d a s coisas p a r a não deixar s u bsis t ir senão a fo rça d o s traços sensoriais ou memoriais q ue re metem a alguns mo delos mentais > .

O espaço a ssume o papel de "es t r u t u ras d is s ip adora s?» lá onde a narrativa, a n a r r a ç ã o, a interpretaç ã o d o s a tores são rec ondu zidas a uma materialidade e a u rna interpretaç ã o rn ais un ív o c a . A teatralidade b rotaria dessa din âmi c a qu e não cess a d e passar da o r d e m p ara a deso rdem . No esp aço v is ua l, co ridu ziria o esp e c t a d o r p or caminhos cruzados, lá o n de o te xto (e a narração) o cond u ziria a um logocentrismo que permanece frequent emente abarrotado. É deste v a i- e -v e m e n tre a e strutura linear da língua e da estrutura rizomática do olhar que e vo lu e m encenaç ões co mo as de Kantor, Wilson, Sellars ou Lepage> . Entrarnos ple namente numa nova ordem v is u a l. O es p a ço apresenta a s i m es m o c o m o espetác ulo. Passamos do esp a ç o do espe tácu lo para o espetác u lo do espaço. Urban Dream Capsule, portanto, re p resen taria não apenas o u n iv e r s o espac ial que n o s cerca, mas colocar ia n a s cenas nossos modos at uais de percep ção do espaço, fa z endo desses a r tis tas os h e r d e ir o s do n o s s o te mp o e os pi oneiro s do porvi r.

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e v ide n te que iss o que a q u i foi a p resen tado de m odo seq uencial se faz d e modo s im u lt â neo, a percepção se n do p or muitos fí s ic o s indiss o ciável da cog nição; ve r Francesco Vare la , Elnscrip tio n co rporelle d e l'esprit, Paris: Seuil, 1993. C . Hébert; I. Perelli-Contos (eds.) , op. cit., p . 30 . Alguns quiseram e studar essas estruturas e m termo s de teori as d o caos, a centuando que a cena é o lugar d e uma desordem que se organiza . C f. C . H ébert, De la mimesis à la mixis ou les jeux a n a lo g iq ues du théâtre a ctuei (Da Mimese à Mixis ou o s Jogos Analógicos do Teatro Atual), em C. H ébert; l. Perelli-Contos (eds.), op. cit., p . 23 -40 . N o mesmo liv ro , Roger Chamberland, LExpérience du chaos et la pragmatique du corps, p . 13 -23, observa que "A teoria do caos [. . . ] atesta a emergê ncia espontânea da auto -organização de um si stema caót ic o q ue, d e sde que a par eça, tende a retornar ao princípio da entropia - o efeito da desordem - que lh e é c a r a c te rís t ic o'; p . 14 . E acrescenta: "Não se pode permanecer no n ível d a obse rvação e da d escri ç ã o d o sis te ma sem cair num o bjet iv is mo que n ã o c onsidera se não um es ta do a cabado e finito d o si s te ma, sen do, po r tan to, o caos urn a ciência d o s pro c esso s m a is d o que d o s estado s , uma ciência d o d e vi r

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Trad. Nan ci Fernandes

É

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mais d o que o que oco rre, co rno s uste n ta m inúm eros fís ic o s'; p . 15. Ele lembra , p o r fim, quatro g r a n d es axiomas própr io s da te ori a d o caos, q ue gove r n a m igualm ente o s fen ômeno s a r t ís ticos e os fen ôm en o s n atura is: a . um a din âmica n ã o lin ear c a racte r iz a as formas complexas; b . h á um a si rne t r ia re corrente e n t re os d iverso s ní v ei s d e escala , d e o u tro m od o c hamado d e inva riâ ncia d e esca la; c. n o ta -s e a presença d e um a sensi b ili dade n a s co n d içôes in ic iai s q ue se d esi gna p el o termo "e fe ito b orb ol eta"; d. o feed back e m espi ral é o princíp io reg ul ador d o caos e a sse gura -lhe a estabilidade d e m odo pon tual e a leató r io, a entropia exe rcen do urna pre ssão muito fo r te n a s es t r u tu r as es tabilizado ras ( p . 16 ) . C . H ébert se r efe re, p o r se u la d o , aos t ra balhos d e Prig o g in e e de Ste ngers e fa la d e "d eso rd e m o rg a n izadora': Ela lembra igualm e nte os escritos d e Q uéa u que fal ou "d e arte intermediária" p ara d esi gnar uma arte que n ã o quer m ai s imitar a n ature za , m as que est á preo cup ada a n tes d e m ai s nada co m o que a g ita a alma e "p roc u ra aquilo que v isa o m o vim ento e o que o tumultua': Tais conceitos n o s lembram q u e a e xperiênci a d o es pectador é, a n tes d e m ai s n ada . ci nestés ica. A ex p ressão , emprestada d a te oria d o caos, é ai n da utili zad a po r C . H ébert, o p. ci t. , que a apli ca a o teatro d e Lep a g e. Ver o que di ssemo s sob re o tern a e m Théat ra lité, éc rit u re et m ise en sc éne, H MH , 19 8 5, p . 137 : ''A teatralidade m o stra -se, assim, fei ta d e dois co nj u n tos diferentes: um que valoriza a perforrnanc e , são a s realidades do imag in ár io; a o u t r a que valo r iz a o te a tro , sã o as estrutura s sim bó licas precisa s. As primeiras o r igin a m-se n o s ujeito e d eixam fa la r seus fluxo s de d esej o , as segu n das inser e m o suje ito n a lei e n o s có digo s, is to é, n o si m bó lico. D o j o g o dessa s duas realidades n asce a teatrali dade, um a teatralid ade q ue aparece, p or tanto , necessariamente lig ada a u m sujeito d esejante. Daí. sem dúvida, a d ific uldade d e d e fin i -Ia . A te at r al id a d e n ã o o é e m si, ela é p a ra a lguém , ou seja. ela é p a ra o outro."

3 . O Teatro de Robert L e page : Fragmentos Id e n t it á ri os'

E ncon t rar um â ngu lo de a bor dage m que Ja n ã o t enha s ido tratado p ara falar d o trab alho d e R obert Lepage é um a t are fa difíc il. A p roveita re i tamb ém a ocasião q u e m e é d ada p ara refl e tir s obre urna qu e stão qu e m e é c a ra h á a lgu m temp o e qu e que stiona as r a z õ e s d o s ucesso d a o bra d e Lepage , des tacan do-lh e o u t ros fa to res p o ss ív eis a lém d o s que são h abi tu almente propo st o s , seja a esté tica d e s uas o b ras, seja o t al ento inco ntestáv el q ue as impre gn a . Gos taria d e s uge r ir q ue u m a das razões d o s ucesso fertorne n al d a o b r a de Lepage - s ucesso junto a c ulturas tã o diferente s qu anto o podem ser as c u lt uras Vers ã o r evista d e com u ni c ação a p rese n tada e m Lon d r es n a pr im av era d e 200 6 , p or ocas ião d o colóqui o R obert Le p age, o rgan izado p e lo G r u po d e Pesquis a s e E stud o s sob r e o C a n a d á F rancó fo no no R ein o U n ido. O co lóquio ocorreu n a C a nada House, como também n o Birbe ck CoIle ge n a Un ive rs idade de Londres. Devo agradecer a Emil ie Olivier e Edwige Pe t r ot p el a s p e squi s a s p relim inares e pelas d iscu ssões que leva ram à redação d e ss e artigo. O m e smo apareceu e m Le Théâtre auj ourd' h ui : h ísto ír e , s u j e ts, fab le s , em C h r is t ine Hamon-Sirejol, et aI. (d ir.), Th éâtre/Public, GenneviIliers lac tes du co Ilo q u e su r le théâtre contemporain: E n t r e t ie ns Ia cque s -Cartter, Lyon , 2003], n . 188, p. 2 3-2 9, mars 2 0 0 8 . Versão ingl e sa pre vi sta par a 2009 n a Co nternporary Th eatre R e v iew , Lon do n . A p are c eu igu al m ente e m The Dra m a t ic of Robert Lepag e : F rag me n ts of Identity, S ijo [our n a l of Aesthetics an d H ist ory , v. 17, p . 4 3 -6 2 , Mar ch 200 8.

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AL f.M D O S LIMITE S: A CENA SO B I N V E STI G A Ç Ã O

rio r te - urn e rtca n a , e u ropei a e as iática - re fe r e - s e ao fato d e que

talvez os espec t a dores, qualqu er q ue seja s u a origem c u lt ural, r e enc ontram n el a inc ons cientemente o m odelo de n o ssas co ns t r uções identitária s d a atu alid ade e os v a lo res q ue a elas es tão ligad o s . Ta l que stã o p oderia d eix ar s u po r qu e se trata essencia lrne n te d a intercultu ralidad e nas obras d e Lepage. Esse asp e c to es tá, se m dú vid a algum a , no ce n t r o da o b r a le pag iana, po r é m n ã o co ns ti t u i o o bjet o d o m eu prop ó si to. Tra ta-se, com efei to, d e rnost ra r d e qu e m an e ir a a obra d e Lep a g e refle te a fa b ricação d e n o s s a s iden t idades e n q ua nto "s u j e it os" nu ma sociedade em qu e o sentido do co le t ivo e d a é tica , omitidos du r ante rn u ito t e rnp o, r e c om e ç a p ouc o a p ou c o a se afirmar. Trata - s e , ass im, d e t razer a r efle x ã o p ara um n ív el exis tencial, qu a s e o n tológico, que di z res pei to à s e tapas d a co nsti t u ição d o s indi víduo s qu e somos e n q ua n to s ujeitos . Os t r ab a lho s do fil ó sofo C harles Taylo r, esp ec ia l men t e L es So u rces du m oi: La Fo rm a tion d e l'id entit é modern e ( Fo n tes d o E u : A Fo r mação da Identidade Moderna ) , d e 19 98 , eLe Malaise d e la m odernité ( O Mal - E star da Modernidade) , de 2002, nos se rvi rão de fio co n d u to r. Com efeito , o p erisarri e n t o de Tayl or en c ontra um t erreno fértil de a t u a liza ç ã o na fo r m a pela qual Lepag e c o nce be seus p ersonagens e os faz evo lu i r. E ss a a ná lise t amb ém será articulada em torno do s grande s princípio s que d efinem a identidade : a identidade vista c o mo busca d e a u te n t icidade, a necessidade de um hori zonte "c o m u m de significações" p arti lhado p or t odos e, por fim, a c r iação artística como p arad igma d e bus ca da a u t e n t ic idade .

O ID EAL D E A UTENTICIDAD E OU O NAS CI M E N TO DA NOÇÃO MOD ERN A DE IDENTIDAD E A noção d e identidade, tal c o mo a compreendemos h oj e e n q u a n to c ria ç ã o , p esquisa e c o rnp r e e ri s ão de s i mesmo corn o s e r único - , c o n s t it u iu-s e no Sé culo das Luzes . Segundo T a ylor, a n t e s do séc u lo XVIII o s indivíduos e r a m definidos geralmente por seu e statuto s o c ia l, se u lugar na hierarquia, s e u papel n o seio d a s est r u t u ras sociais e fa m ili a res . F req u e n teme n te co ns iderada co mo imutá v el , s ua p o siç ã o n a soc ie d a d e e ra a c ompa nh ada

T E AT RO DE ROBERT LEPAGE: FRAGME NTOS I D EN T IT A RI O S

2 93

por valores morais e de c o rnp or tarne ntos c o d ific a d o s que se transmitiam de geração a geração no seio d e c a d a uma das esferas sociais e estru turavam esse mesmo social. Os indivíduos co nheciam seu lugar na g rande organização do mundo, aceitavam -no habit ualm ente sem refletir, s em questioná -lo. As trad içõ e s se perpetuava m pere n izando, ass im, u m a ordem q ue ir á m inar n u mero sos séc u los v indo uros. No séc u lo XVIII , especialmen te so b o impu lso de Rousse a u , a ideia de pertence r a um univ e r s o regido po r leis e valores morais impostos do exterior (pela rel igião, pelo re i ou pela soc ie d a d e ) viu - se colocada e m questão e deu lugar ao p ensamento de que os seres huma nos s ã o dotado s de um sentido mo ral inter ior, d e u rn a intu ição "q u a s e natural" daqu ilo q ue é o bem e d a q uil o q ue pode ser o m a l. R ous s eau afirma qu e a moral e os co rnpo r ta me n tos deco rre n te s d el a pro c e d ern d e um a "voz interi o r ", n o caso do i n d ivíd u o , e d e u m certo apo de r amen to, p el o s ujeito, d e s ua p r ó p ria lib erdade d e pensamen to, d e escolha e d e ação. D ito d e o utro modo , "an tes d o fim d o séc u lo XVII I, n ingué m p ens a ria que as diferen ç a s e n t re os seres hum a n o s tinham t anto d e s ign ificação rnoral".' D ep ois d e R ous s e au e da profunda mud an ç a d e p a r a digm a qu e ele estab elece u no seio d o p ens am ento d a é poca, são os fi lósofos r omâ nti c o s , pro s s e gue Taylor - H e rd er mais es pec ifica me n te - qu e e m p u rraram p ara m ai s longe a idei a d a identidade co mo princípio de unicidade, d e s i nce r id a de, d e o r iginalidade do s uj e ito . P ara H erder, c a da p e ssoa possui em si m e sm a s ua p ró p r ia m edida d a s coisas e se u próprio m odo d e assu m ir s u a p o s iç ã o como s e r hu m ano . Sob t al p erspe cti va , n a qual cada in d iví d uo é conside rado s i ngu lar e t endo algu m a co isa p ara exp ress a r, cada um p ode se r v is to com o orig inal com a cond ição, é cla ro, d e est a r se n do s in cero cons igo p r ó p r io . A noção d e iden ti dade toma e n tão a forma d e uma bus ca d e au te n ticidade . Ora , t al a u te n tic id a de que se d efine c o mo u m p e rfeito a cordo consigo rnesrno e c o m o s v a lores rnor'ais intrín secos es t a bele c e-se c o rrio um ideal n o vo. Ser sincero para comigo mesmo sig nifica ser fiel à minha própria origin a lid ade [. . . ] é aquilo que sou o ... úrr i c o a poder dizer e a descobrir. 2

C ha rl es T aylo r. Le Ma lai se d e la m odern it é, Paris : Ce rf,

2 0 0 2,

p. 37·

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ALfM DOS LIMITES : A CENA SO B I N V ESTI G A Ç ÃO

A o fa zê-l o , eu m e defino de um só golpe. Realizo u m a potenci alidade que é propriamente minha. Tal é o fundamento do ideal moderno da au ten ti_ ci dade, tanto quanto os objetivos de desenvolvimento de s i mesmo o u da reali zaçã o de si rnesrno nos quais ele é mais frequ entemente formulado.'

Tal concepção mo der na d e ideal mora l, f u ndamen tad o n a d esco b erta e na co nstrução da a u te n ticida de d e si p róp rio, es tá pre s ente e DI toda a o b ra d e L epag e. O rien ta-a m e smo, se r ve - l he de po n to d e a ncorage m filosófica e explica tal vez se u impa c t o sob re o públic o . As pe rso nage ns de Lep age represen tam, inconsc ien te me n te é claro, o p róp r io modelo de nossos func ionamentos e n q ua n to s uje itos sociais e mora is na at u a li da de e pe r m it e rn ao s espec ta do res que somos q ue nos re c onh eç amo s, seja e m cada um d entre el e s o u seja e m todo s ao m e smo t empo . Corn efei to, através d a m ai or parte d a s criaçõ es de Lep a g e - qu er se t r a te de sagas o u espe tác u los solos - , a questão d a ide n ti dade é co ns ta n te, um a identidade fre quentemente co nceb ida c omo re speito p or s u a própria originalidade. É e ssa busca d e identidade e d e a u te n ti c id a de que se d e senha com o fio c o n d u to r da a ção n a maior parte , s e n ã o e m t odas as o b r as (ve r o exemplo d e La Fac e cachée d e la lune ou d e O Projeto A n de rsen) . Â n g u lo sob o qu al se p ode a bo rda r a s criaçõ e s de Lepage, m ostra e ste últim o co mo um homem profundamente a n c o ra d o na sua ép o ca, que s e ce n t r o u n o ponto esse n c ial daquilo qu e e strutura o s indivíduo s e a sociedade da atualidade. O princípio (a busca) de autenticidade como ideal moral é lido claram ente a partir de La Trilog ie d es dragon s (A Trilogia d o s Dragõ e s ) e n ã o escap o u a Lorra ine Camerl a in, que j á o b se rv av a em 1987= " T r ata-se d e um texto [ . . . ] es petacu la r que propõe urna c erta fil o sofia. Sem didatismo e sem pro vocação , a obra propõe a bus c a d e um ideal cuj a s raízes estão e m si rn e srno." A s duas g ran d es e nca r n a ç õ es d a bus ca de a u ten ti c id a de n esta obra são Pierrre e Yukali, que e nco n t r a m a r ealizaç ão d o seu s e r profundo na t erceira parte, no fim de urna evolução que diz respeito, seg u r a men te, a todas as personagens, mas que se afirma mais cl aramente naquelas cuja juv entude encarna o futuro. 3 4

Ibid em ; g ri fo no ss o . L. C a r me la in , Le Lang a ge c ré a te u r, Cahiers de théâ t re l eu , Qu ébec . n . 45 , 4 trimestre, 198 7, p. 96.

O TEATRO D E ROBERT LEPAGE: FRAGMENTOS IDE NTITÃRIOS

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De modo intere ssante, a busca d e a u te n t ic idade n ão s e faz de forma egocêntrica o u umbi lical, mas passa pela mediação da história, uma história que se vive nas d imens ões do cosmos, para a lém da diversidade das culturas. Não é mais a s o c ie d a d e a resp ons ável pelo futuro das personagens. Estas últimos são res ponsáv eis i ntegralmente p o r s ua consti tuição e nqua nto sujeitos. Em Vi nci, é Ph ilippe q ue está em busca da integr idade e q ue "no fim de sua viagem [ . .. ] contempla a h umi ldade d a peq u e n a cidadezinha de Vinci: a simplicidade, a acessibilidade generosa, ele as terá feito s u as ao longo de todo o se u p ér ip'lo" >, Em O Projeto Andersen, é Frédéric Lapointe quem e stá em busca de s i m esmo e q ue vai procurar na França u m a legitimação a n tes de des c obrir q ue ela está nele e q ue to d o s os seres que o ro de iam (o dire t o r da Óp e ra Garnier, A nde rsen ele próprio) ta mbém tiveram u rn a par te d e so m bra q ue devera m reco n hece r - e ace ita r - p ara se assum ir. Ta is p e r s onag ens, to das art is tas , fazem efeti vamente d a s in ce r idade e d a criação de si mesmo o o bjet ivo último de s u a existência .

o P ro cesso

Identit ário Co mo A ncoragem Mo ra l

Taylor c o loca c o m o primeiro fu n dame n to da r eflex ão sob re a identidade a s u a n ecessá ria ancoragem m oral: " Não podemo s nos abster d e uma orientaç ã o p ara o b em v is to qu e não p ode mos ficar indiferentes à n o ssa s it u a ção co m r elação a esse b em e v is to que es ta s ituação represen ta a lgu ma coisa que sem pre de ve mudar e se tran s fo rmar." 6 T rata -se p ara e le, n o cas o , d e uma moralidade interior qu a s e inata, n ã o imp o sta, e presente em cada um d e n ó s , sob repon do -se às vezes às intuiçõe s uni vers ais d o b em . N a p e rsp ectiv a t ayl or iana , a identidade é, ass im, an tes d e m ais n ada , o r ie n tação m o r al. Dessa a firm a ç ã o d e c orrem v á r ias consequência s o u princípios igualmente ess e ncia is, tanto uns quanto outros , p ara a definição da identidade, da s ua

5 6

Diane Pavl ovic, Du d é coll age à lenvol, Ca h ie rs d e th éâtre l eu , n . 4 2 , 1 trime st re , 198 7, p . 88. C. T a yl or, L es Sources d u moi: La Forrna t ion de I'ide n t ite m odern e. M ontré al : Boréal, 199 8, p . 7 1.

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ALÉM DO S LIMITES : A CENA SOB I N V ESTI G A Ç Ã O

natureza e de se u s rn e c a n i s rn o s que nos p errn itern es cl a recer novamente a o b ra d e L epage. A primeira g r a n de implicação da identidade , v is ta co m o paradigm a d o id e al mora l d e a u te n t ic ida de, sig n ifica qu e cad a um d eve "descobr ir a q u ilo qu e s ig n ifica se r ele m e srn o ">. Co m~ o di z Taylor: A teo r ia segundo a qua l cada um d e n t re nós te m um modo o r ig inal de ser hum an o implica que c a da um de ntre n ó s d e ve d e s c o b rir aqu ilo que é se r p a r a s i rn esm o . P or ém , n ã o se p o de faze r essa d es coberta ao n o s reportarm o s a mo delos pre e xistente s , é ó b vio. Não se p ode fa zê-lo se não re com eç a n d o de n o vo. D esco b rimo s a q u ilo que devernos ser ao to r na r iss o o nosso m o d o d e v id a, ao dar- lhe fo r ma p el o nosso discurso e por n o ss o s atos co m rel a ç ã o à q u ilo q ue é o r ig inal e m n ó s. "

C o m o a c ontece fr eq uentemente na o b r a d e Lepage , as p ers o n a g e ns vi ajam pelo mu ndo, no se n t id o p róprio ou no s entid o figurado, p ara melhor viajar em s i 'm e s m a s e para melhor se ree n cont ra rerri ; pa ra d e s c o b rir s ua iden tidade m a is a inda do que para afirmá- la. Por tan to, a iden t idade n ã o é nunc a d ada r epen tinamente; é p rocesso, carni rihar; busc a e construção. E la é talhada n o tempo. É m ovente "p o r q u e nossas vidas s e movem . Reencontra-se, nesse caso, u rria outra carac teríst ica essencial d a existência h uman a. Aqu ilo que somos n ã o pode nunc a esgotar o prob lema de nossa condição, por que estamos se rn p re e m m u dança e e m vir a ser">, Estamos m u ito próximos d o pe nsame nto d e Judith Butle r, que define o sujeito e o gênero que o constit ui como "p e r fo r rn ativo" e, a ssim, como o resultado de ações postas pelo indivíd u o que r epre s enta m co nst a n te mente s ua ide n tidade e s ua catego rização sexual':'. É isso que as p ersona gens lep a g ian a s nos 7 8

9 10

I b idem , p. 69. E ac rescen ta: "A id e ia d e que a r e v el a çã o se enc ontra n a exp ressão é o que pro curo fa zer o uvi r ao fa la r d o 'e x p r ess io n is m o' da m odern a ide ia d e in d ivíduo:' L e Malaise d e la m odernit é, p . 69 . Les So urces d u m o i, p. 70-7 I. C o n trar ia m e n te a Simon e de Be auvo ir, que afirma va que n ão se n as ce mulher. to r namo- nos m ul her, Judith Butler afi r ma que a iden ti dade é não um desti no, m a s s im o r e s ult ad o d e ações p erform at iv as colocadas pelo s ujeito (e pela soc iedade) . Rem eten d o à re spo n sa b il idad e dess e v ir a ser tan to à socied ade q ua n to ao indivídu o , u s ando a di stinç ão própria da lín gua anglo -s axõ n ica e n t re sex e gen de r, Butler d es lo ca p ara o s ujeito o s u p o r te de se u d es tin o . Se o

O T EATRO D E ROBERT LEPAG E: FRAGMENTOS IDENTITÁRIOS

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demonstram, tanto n o s esp e tác u los so lo s (Vinci, La Fa ce cach ée de la lun e, L e P rojet A n de rse n) quant o n a s sagas. E las vêm a ser ao fa zê -lo. " Desc o b r imos o que de vemos se r ao vi r mos a sê- lo no n o ss o m odo d e v ida': diz Taylo r, É e x a t amen te ao fazê- lo ao sê-lo, que a s p ersona g ens d e s c obrerTI o se u ser pro fund o. ' Em Vin ci, Philippe é o próprio arquétip o d o indivíduo e m busca de sua identidade profunda; o mesm o oco r r e co m Phi lippe e André e m L a Face cachée. Quanto a F reder ico, e m L e Projet A ndersen , ele procu ra uma legitima ç ã o e, d e s s a forma , procura a s i n, eS1l10 na vi agem que faz à França. As p ers onagens s e "desco b r e m a o vir a ser" e , e m bor a tal descoberta n ã o lh es traga a feli cidade, traz com ela um s entimento de re alização d e s i m esmo que se ap o d e r a d o s especta d o res. E n tão eles são capazes até de r e conhe ce r a s ua própria história p or trás daquela das p ersonagens - nem heróis, n e m anti -heróis . Portanto, o percurs o das personagens é freq uenternente quase que iniciático (s em que se afirme enquanto tal) e determina um p ro c e s s o de rTIe ta m o r fo s e , de transformação de si mesmo. Em Le Proj et Andersen, a peç a termina n es s a aceitação d e si m esmo (aceitaçã o d e sdr amatizada : " b o m, se é assim que d e ve ser"), q ue p as sa p el a mediação d e uma cadela - Fanny -, q ue fará aquilo que Frederico se recusar a fazer ( ter fi lhos).

Me moria e Na r ra tiva: R el a çã o C o m o Tempo

C? se~undo fundamento do pensamento d e Taylor é a import ârrcia do t e m p o nessa co nst rução da identidade. Se o eu é n ecessa r ia m en t e um devir, e n tão n ã o se p ode reco nhece r aq u ilo que é estável e m s i mesmo senão n o trans c orr e r d o s acon tec imen tos . "E n q u a n t o ser que crê e vem a ser;' pode -se ler em Les Sources du moi, "e u não posso conhecer- me s e n ã o pela história ~exo d o indivíduo é se m dúvida um dado bio ló gic o, o gen der, p el o contrári o , e O resultado de uma construção s im bólica, pro vém do "per fo r rria tiv o" A Identlda~e p ara .e la emerge como um com pone n te fluid o que é d esempe nhado e ~ed~fi mdo co tid ia nam e n te pelo próprio s ujeito em cada u ma d e s uas a ções. Nao e, . por tan to, um d ado fixo, d efin ido d e uma vez p ara semp re; está e m evoluçao, e m criação. Redefine-se e rrrcada u m a das ações do in dividuo. Ver o dese nvo lv ime n to que faze mos so bre esse tem a n a n o ssa concl usão d e M ise en scene e t je u de l a ct eu r, v. J: Voix d e fe rn rnes . Qu é b e c: Am ériqu e, 2007.

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d e meus progressos e d e me us retrocessos, de rn eus êxi tos e de me us fracassos . O conhecimento de si mesmo compor ta n ecessariame nte u m a profu n didade tempo ral, inclu i a nar rativa ?» Dessa fo r ma, o in divíd uo desenvolve a s u a vida no tempo corrio u m a nar r ativ a , na r rativa q ue cornporta Inicrona r rações fe itas d e m omento s p rese n tes , im ediato s , de aco n teci men to s im portantes o u não, a nó d inos o u n ã o , que se irnbr icarn uns nos o utros e q ue cons ti t uem a trama dessa identidade. São eles a narrativa de nossas v idas, narrativa que es trutura o presente id entitário de cada um pela co n s ciê n c ia q ue d á d o passado tanto m ais que não p erm ite projeção no futuro. É exatamen te isso que com preende Frede r ico Lapointe n o fim de Le Projet Andersen q uan do d e cide , afirial, q ue s ua rel ação com Marie é mais im portan te do q ue s ua re cus a in fant il , do que deco r re sua últim a propo si ção: "Da r u m se n t ido à m i n ha ação pre s ente exige um a co m pre ens ã o narrativ a d e minha vid a , um se nt ido d aquil o e m q ue me tornei, que s o me n te uma n arrativa p o d e propo rcio nar'vTal narrativa no interior da o b r a d e Lepage é s empre d upla: é a do autor Lepage , mas tamb ém a das p ersonagens que se e x põem. A ssim sen d o, L e Projet Andersen é um longo "c o n to moderno " n o qual se e ncaixam o u t r as narrativa s; L es A ig u illes et l'opium ins ere igualm ente as n arrativ a s uma s nas o u t r as: as d o autor, mas tamb ém a q ue las d a s pers ona g ens. Tal m odo d e fIc cionali zaç ão é um proce s s o distintivo d a es té t ic a d e Lepage. A narrativa a s sume , p ara o s perso nagens (e para o a u tor, L epage ) , a form a d e um a viagem no t empo - a da História (C o c teau, Anders en , v iagem à lua, viagem a o u t r a c u lt u r a ), mas t ambém aquela que se o r igina do univ ers o pes soal (v iagem à infânc ia, ao incons ciente , à memória) -, essencial para a compreensão e p ara a c onstruç ão d e s i mesmo, t otalmente insepará veis , vê-se, d e um trabalho n a memória . " Na m edida em q ue retrocedemo s p ara tomar a d e vida distância, determinamos 11 12

o T EATRO

A LtM D O S LIMITES: A C E N A SO B I N V ESTI G A Ç ÃO

Les So urces d u m o i, p . 75 . "E n a medida em que p ro jeto minha v ida p a ra a fre n te e aprovo mi n ha o rientação dada a ela o u q uando lh e imprimi u m a n o va , p rojeto u m a narração futura, v isa n d o [. . . ] uma orientação que empenhe to d a minha vida futura :' Ib íde rn, p . 73. Es sas reflexões poderiam se r a ilustração perfeita da maior p arte dos per sonage ns lepagi ano s : e m Les Se p t branch es d e la ri v í ére O ta (Os Se te Afluentes d o Ri o Ota ); Pi erre e Yu kali e m La Trilog ie d es d rago ns (A Trilo gi a d o Dragão); Philippe em V in ci ; Robert em Les Aiguilles et Iopiurn ,

DE ROBERT LE PAGE: FR AGM ENTOS IDENT ITÃRIOS

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aquilo que nos tornamos , através d a narrativa da maneira pela qual chegamos a is s o ,"? Se a identidade é em s i só um processo, é t a m b é m um processo narrativo que s e constrói pela sucessão de micronarrações que inserem exatamente u m a trajetória de afirmação identitária. Essa não se faz sob o mo delo de uma progressão que cond uz necessar iamente a um o bjetivo, ou a um dest ino que ve ria o se u cumprimento ú ltimo na cena, corno na tragéd ia g rega o u no drama rornântico. Ela se faz tanto de progressos como de re trocessos, tanto de êxi tos como de fracassos. É nesse sentido que os contos de Lepage são absolutamente pós-modernos. E les co locam na cena personagens que correspondem perfe itamen te à v isão q ue n o s s a época faz d a realização de si mesmo. "Consegu imos comp reender e rn parte o que caracte r iza verda d ei ram ente os estados m orai s qu e p r o curamo s d esenvolv er p o r es forço próp r io ao t entar a lcançá- los, e pelo s d es afio s que , a liás, se seguem.">' O ace n to colocado p or Taylor n o s d esafio s p are ce, 13

14

Ibidem, p. 7 2. A importância d a narrativa/das nar rativas em Le page merece riam p or si só s um desenvolvimento: narrativas que est r u t uram os d ifere n tes fios da narração num jogo de encaixe em que tudo aqui lo q ue n o s é mostrado origina- se de uma história que é contada ao espec tador. Com efeito, Le Projet Andersen é antes d e tudo uma vasta narrativa: a de F rederico contando sua ex p e r iê n c ia de autor reside nte no Pa lai s Garnier. No se io dessa m a c ron a r r ativa , as narrat ivas sec undárias e ncaixam -se umas nas o u tras: a d e D ryade q ue son hava descobrir Pa ri s e a d e An dersen. U m te rc e ir o n íve l d e n a r r a ti v a s é com pos to p or todo s os acon te ci me n tos individuai s d as p ersonagens presentes d as quai s segu imos a v id a p or e p isó d ios: a h ist ória d e Fa n ny, a jovem cadela ; a d a psicóloga; a d e Di d ier e d e seus tra fica n tes; a d e M a ri a; a d e A r na ud; di r et o r da Opera Garnie r; a d e Rachid, h ome m da limp e za n o peep sh o w; a da filha do d iretor que r ecl a m a da h is tór ia da Sombra e tc. A identi dade se cons trói , assim, n a memória que se assenta, ela mesma, na subjetividade d o indivíduo. O ra, a memória é construção de le m b ra n ças e se lê , portanto, como mic ronarrativas que se encaixam, nar rativas q ue, em última instância, fu n dam também nossa ident idade e nos permitem ser. Com efeito, Sc hacter de monstrou exata mente como as lembranças são construções . E le explica, a esse propósito: " N ã o podemos separar n o ssa s le m bra n ças d o s acontecime ntos atuais de nossa v ida [.. . ] Aq uilo que vivemos no p assad o determina o q ue ex t raímos de nossos e n co ntros co tidianos na vi da; as le mbra n ça s são "gravações d o m odo pelo q ual vivemos os aco n teci me n tos , n ã o rép licas de aco nteci men tos e m si m esmo s. As experiê ncias são co d ificadas p el a s re des cer e b rais c ujas conexões já foram m ol d ada s p el o s e nco n t ros a n ter io res co m o m u n do. Esse sa be r preexistente influencia fo r temen te a m a n e íra pela qual codificamos e armazenamos as novas lembranças, contribuindo assim para a natureza , a te x t u r a e a q ualidade de nossas lembranças futura s': Daniel Sehac te r, A la R ech erch e d e la m émoi re/L e Pa ssé, lesprit, le ce rvea u , Bruxelles: D e Bo eck Université. 19 99 , p . 2 0 . Les So u rces d u moi, p. 73.

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AL ÉM D O S LIMIT ES: A CEN A SO B I NV ESTI G AÇÃO

n o caso, imp orta nte . Co m efeito, essas traj etór ia s n ã o se faz e m nem na for ma d a in trospe c ç ã o nem n aquel a da a nálise c rít ica ou d istanciada. Elas se fa zem, a n tes de m ai s n ada , n a ação. Ess a viage m d e reco n hec imen to d e s i m esmo é v iv ida n o coti d ia n o, sem drama e se m e mo tivid a de, e d epende d a p o s iç ã o geográ fica d o s uje ito, daqueles que o cercam, d o s acon tec imen tos que s ob reVêITI. Co mo o diz, ainda, Taylor: "Eu d efino que m so u ao d efinir d e o n de e u fa lo, n a g ene alogia, no e s paço social, n a geogra fia dos estatu tos e n a s fun çõ e s d a socie dade, nas minh a s relações ín ti rna s co m aqueles q ue a mo e, t arnb érn , d e fo r ma capital, no espaço de o r ie n tação m o r al d entro d o qual v iVO:'15 O qu e é, e n tão , a identidade? E la p r e c is a que o s u j eit o faça um rec u o, que duplique o se u o lh a r p ara obs er v ar-se, p ara apropriar- s e d o s có d ig o s, t r a nsfo r má - los, jogar c o m eles, ampli ar os s e n t id o s deles , e n t r a r e m a cordo ou em conflito com os mesmos . A zona de c o n flito é e ss encial; e ssa é inerente à busca d a autenticidade d e s i mesmo, nos diz Taylor. É isso que se observa em L e Projet Andersen , por ex e m p lo, quando Frederico encontra a psicóloga ou ainda em La Fa ce cachée, através da conferência abortada de Philippe em Moscou. Existe uma margem, um fosso entre o eu e o código, que é uma zo n a de exploração própria para cada indivíduo. A identidade, o eu, situa-se exatamente entre o eu rotineiro e o eu autêntico, entre o e u submetido às im p o s iç õ es de um percurso sociocultural adquirido e aquele que sonha com uma liberdade totalmen te subjetiva. Tal paradoxo é colocado na cena por Lepage em Le Projet Andersen (encontro com a psique), porém o mesmo já se encontra presente na Trilogie d es dragons, por exemplo, quando o artista joga com os clichês culturais. A peça "t ir a partido aqui de frases feitas, de sua clareza e de sua evidência para escavar de outro modo [grifo meu] as verdades que elas cont êm':". Tal multiplicidade de figuras do eu, Lepage as usa - e abusa delas - trazendo à luz ao mesmo tempo a extrema simplicidade (aparente) das personagens e sua enganosa complexidade. As personagens são ao mesmo tempo u m a e múltiplas, elas próprios e outras. O expectador não poderia concebê -las sem 15 16

Ibidern , p . 56 . Oiane Pavlovic, Le Sable et les étoiles ( A A reia e a s Estrelas ) . C a h ie rs d e th éátre leu. n. 45 . op. cit., p . 126.

O T E AT RO DE RO BERT LEPAG E: FRAG ME NTOS IDENTITÁRIOS

3 UI

sua par te de sua sombra (temática na qual insiste Le Projet Andersen), sem o seu duplo v. As criações d e Lepage destacam, sem cessar, t al d e s d o b r a m e n t o da personalidade, essa figura d a dupla re pres ent a ç ã o da identidade (por exemp lo, Philippe e A nd ré, as du a s faces do mesmo indivíduo, ou Frederico Lap ointe e Arnau d, o d i re to r da Opera Garn ier, q ue podemos encarar corno a figu r a d ual do criador e de se u manipu lador) . O r e curs o a o vídeo exprime, ta lvez, d e maneira mais parti cular, esse jogo de desdobramen to . Q uando e le é ao vivo, q uan do a interve nção do vídeo é direta e q uando filma as perso n agens já e m ação na cena, ela as desdobra, observa-as, torna -se se u espel ho, c o rno n o espetác u lo Elseneur, por exem plo, o u ain d a e m Le Projet A n de rsen (é n u ma p r oj e ç ã o n a tela do r o s t o de Frederico c o me n do que a p e ç a acaba). "O v ídeo intervém frequ entemente como resultado d e um j o g o d e espelhos s imbólicos múltiplos c e rcan do o dispositivo e c u jos re flexos e m cas ca t a permitem o trân sito d e um reflexo até uma s u pe r fíc ie final oferecida ao olhar do esp e ctador. ?" É a presença do outro e de si própr io, do outro em si mesmo que a dramaturgla d e Lepage caracteriza aqui, ainda uma vez mais. Aliás, o fato de que Lepage interpreta a s i próprio em todas as personagens ( Vin ci, L es A ig u illes et lopiurn, La Face cachée, Le Projet Andersen) , p ermite a e ssa dualidade co n s ti t u t iva d o sujeito metamorfosear-se na multiplicidade. A diversidade . das personagens remete finalmente às diversas facetas d e um mesmo indivíduo com suas inúmeras ambiguidades e com os paradoxos da natureza h urnaria'>. 17

18 19

"O ator que evolui no p rocesso da carre ira existe como contador e como s ilhueta d e so m bra. es ta às vezes a ú nica visível [ . . . ] Ele (o a tor) tem q ue co mpor co m ta l dup lo maior que ele, mais d ramático, que refle te ta n to a som bra qua nto e le próprio às vezes se co ntempla:' Ludovic Fouquet, Robert L ep ag e: l'horizon en images, Q uébec: L'Instan t rn êrne, 2005. p. 7 5 . Ib íd ern , p. 170. Consta tação que já h a vi a fei to Oiane Pavlovic a p ropó s ito de Vinci: "Q u an d o ele se assemelhar, p or fim, às diversas p ers ona g ens d a p e ç a d a m es m a fo r ma que as fa c etas de um mesmo indiv íduo (o jovem intelectual . o 'velho safa do"; o 'g uia britànico' [... ] e a 'G íocon da d e p a c otilha com fa lta d e liberda d e; tornaram -se os m últiplo s as p ectos d a personalidade d e Philippe ), ele d ará u ma imagem tã o mais fo r te d as co n t radições q ue modelam cada indiví duo quanto, ai nda outra vez, esse objetivo segue a forma do espet áculo : conviria pensar, quanto a e ssas d iversas personagens, co m toda lógica, que um único comediante as interpretass e a todas:' Oiane Pavlovic, Ou Oécollage à lenvo í" Cahiers de th éâtre leu , n . 42, p. 90 -91.

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A Necessidade de Mudança: Do Intcrp essoal Para o Intercu ltural

Ass im, a identidade, a busca a u tên t ic a d e s i m e srn o vista co m o id e a l m oral, é um processo, um a const r ução que se es tabelece e qu e evo lu i n o t empo. Esse p r ime iro princípio é seguido por um segu n do igualm ente cap ita l: a identidade de um indivíduo tem u m caráte r di al ó gico fu n da men t a l. Não s e é um e u a não ser em me io a o u tros "eus", expl ica- nos Taylo r. N ã o se pode nun c a , por isso rnesrno, co n tor nar um eu sem fa zer re ferência aos d ern a is qu e o ce rcam. Ma is a in da, é pre ciso um es p a ço corn urn que s irva d e um t erren o a p r o p r ia d o para a troca . " N ó s no s de fi n im os se m p re , de fato , num diálogo, às vezes por o p o s ição, c o m as identidades que 'os outros que contam' querem reconhecer e rn n ós ,">' A identidade n ão se compreende e não se lê, portanto, senão em relação c o m o outro, senão numa rede de relações de transmissão mas, sobretudo, de interlocução. Existe, segundo Taylor, redes de interlocução e de troca privilegiadas: na nossa civilização ocidental moderna, as relações íntimas e privadas - as da família, do trabalho, mas, sobretudo, as do amor - oferecem um espaço particularmente propício e fecundo para a descoberta e a exploração de si mesmo". É , portanto, no diálogo com os outros, o íntimo, o próximo, na maneira que se t e m de viver com ele que nossa identidade se desenvolve e se constrói. É isso que colocam na cena - com simplicidade e naturalmente os espetáculos solos de Lepagev. Tais espetáculos conseguem dar conta dessa importância da vida cotidiana. As personagens 20

Ib id ern, p.

21

"É preci so c ompre e nd er que est a im po r tân cia da v id a co t id ia na . co mo o bjeto

22

o

AL ÉM DO S LIMITES: A CENA S O B I N V E ST I G A Ç A O

4l.

d e va lo r, n ão foi p artilhada pelas ge r ações anteriores a o s Lurni êres. A mudança co ns t it u t iva d a m odernidade co ns is te numa inversão dessas hierarquias (n obre za, casta d e c a vale iro s e tc .), em d eslocamento a partir de uma á rea p articular de atividades s u p e r io r es, em vez da boa vida, que se s itu a d ora vante 'no interior' da própria vida. A vida inteiramente humana define-se agora p elo trab alho e pela produção , de um lado. pelo casamento e pela v id a fam íli a de o u tro lado". C.s T ayl or. Les So u rces d u m oi , p . 275 . Não é m ai s anódin o . a bsolu tam e n te, que a p artir d o sécu lo XVIII te nham se desenvolvido ob ras artísticas p róxi mas à vi da cotid ia na. que n ão cessaram de se afirmar n o século XIX com O n atura lism o, m as também no séc ulo xx através, p o r exemplo. de ce rta d ramat u rg ia d o coti d ia no a p art ir dos anos de 19 70 .

TEATRO D E RO BERT LEPA G E: FRA GM ENTOS ID E N TITARIO S

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múltiplas que povoam suas peças, solos e sagas, representam fig u ras comuns de nosso ambiente. Sem serem arquétipos, m o str a m figuras do co ti d iano : pais, fi lhos , esposos, amantes, p es s o a s que trabalham, d ito de outra forma , personagens que e mergem do universo fam iliar, do amor o u do trabalho. Ora, é no interi or dess as redes in terpessoais qu e se tecem e se desfazem soh n o ss o s o lhos (M a r ie e Frederico e m Le Projet Andersen , p or exe m p lo) as id en tidade s , co mo o reco r da Taylor, e que se model a m as p ers ona g ens d a s p e ça s d e Lepage. Ta l necess idade de r elações in te r pessoais está ligada, ao m esm o t empo , à necess idade o n to lóg ica de d iá lo go e troca, mas t amb ém àquela , t amb ém f u n d a men t a lm e n te e s s en c ial n a co n s t r u ção identitá ria, do reconhecimento. "A c o m p reensão da identidade tal como e m e r g e do ideal da autenticidade m odi ficou -se ao acentuar a irnportância do recorrhecirnerito. ? » N a so c ie d a d e de outrora, a do Antigo Regime, o reconhecimento ia para aqueles que tinham nascido possuindo-o. Na atualidade , numa sociedade que se quer democrática e igualitária, na qual cada um tem o direito de ser quem é, o reconhecimento não está mais ligado ao estatuto social e depende inteiramente do olhar que os outros colocam sobre si. O paradoxo da identidade moderna quer que essa autenticidade do sujeito - na qual repousa a identidade - ernane do interior do sujeito, apesar da necessidade, para se forjar e se ass umir, de um reconhecimento por parte dos "o u t r o s que contam para nós': Face a essa dependência do outro, há sempre o risco de um desafio, visto que é sempre possível que o reconhecim ento não advenha. É especialmente o c a s o de Philippe, em Vinci, o jovem artista que a sociedade ainda não reconheceu e que não se sente em casa em lugar algum. Ou ainda o de Frederico Lapointe em L e Projet Andersen, contratado como autor no Palais Garnier para urna produção de ópera prestigiosa, que descobre porém que não é senão uma peça na enonne engrenagem da coprodução cultural em que seu talento não é o q ue realmente conta. Não reconhecido, ele se dará conta do desafio dessa experiência profissional, ao mesmo tempo que o desafio d e s u a v id a am orosa s e confirma. A opressão d o não 23

Le Malaise d e la modernité, p. 55.

AL f.M D O S LIMIT E S: A CENA S O B IN V E STI G A Ç ÃO

O TEATRO D E ROBERT LEPAGE: FRAGMENTOS IDENT ITÁRIOS

reconhec im e n to n a s c e , como diz Taylor, d o s prejulgamen to s de uns e outros. Os p rejulgame n tos e n t ravam o diálogo, a troca essencial p ara a criação das iden ti dades porque são, a ntes de mais nada, u rn n ã o r e c o n h e c im e nto da di fe r e n ç a dos i n d ivíd uos e de s u as c u lt uras .

sua igualdade. [ . .. ] O reco n hec i m en to d a s di fe ren ças . assim co mo a liberdade de e scolha, exig e um ho r izo n te de s ig ni fic ação, m ai s , um horizonte partilhado" .

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A IN SERÇ Ã O N U M HORIZONTE DE SE NT IDO COLET IVO Falamos do id eal d e a u tentic ida de e d e s uas imp l ic a ç õ es e m t ermo s m oral, c o m po r t a me n t a l, identitário. Esse ide al foi des crito com o o primeiro princípio da afirmação id entitária. Tayl or acres c e n ta- lhe um seg u n d o: a n ecessidade de o r ie n t a r o pro c e sso identitário para um hori zonte de significação partilhada p or todos. A que stão do sentido da vida é fundamental, "s ej a porque aprendemos a perdê-lo, seja porque dar um sentido a nossas vidas é o objeto de urna busca"?'. Ora, em nossas sociedades ocidentais, definidas em torno de noções de originalidade, liberdade de escolha e igualdade perante a diferença, a questão do sentido fica à deriva. Cada um desenha sua geografia, sua cartografia, s eu espaço interior. Porém, para evitar os desvios individualistas do ideal de autenticidade, é necessário apoiar-se nas raízes coletivas, numa memória comum, numa cultura - num espaço rnoral comum. Deve haver urna zona de partilhamento com o outro, um lugar de linguagem comum com o outro -, sem o que nenhuma troca ou diálogo constitutivo pode advir. A autenticidade está fundamentada no reconhecimento da igualdade de valor das diferenças. Ora, s e o s h omens são iguais, não o s ão porque sejam diferente s , mas porque, para além da diferença, e xistem propriedades comuns ou complementares que são legítimas. São os seres dotados de ra zão, capazes de amar, de se recordar, de dialogar. Para nos entendermos quanto ao reconhecimento r ecíproco das diferenças [ .. . ] devemos partilhar norm a s e m função d a s quais a s identidade s em questão podem m ensurar 24

Les Sources du moi, o p . cit., p . 34 .

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Tal horizonte p artilhado arti cula -se em torno de questões essenc ia is, como as que se vincularn à apropriação da história, d a n a tu r e za , d a soc iedade. E nglo ba a n e c e s s id a d e de torrrar consc iê ncia do se u lug a r nu m p roje to coletivo, num a memória co m u m . O in divid ual não po de advir senão co m relação ao cole t ivo no q ua l ele teve nascimento, seu microcosmo não é apreendido senão sob a lu z d o mac rocosmo que o integra. Contudo, isso n ã o sign ifica, a bsolu tame n te, qu e se deva aderir sem crítica às n o rmas cole t ivas já estabel e cida s. M u ito ao contrári o , a op o si ç ã o e o conflito são igualmente constitutivos da identidade . A ide n t id a d e , dial ó gica, é t ambém dial é ti ca: n ã o progride s e n ão p ela troca e p elo conflito, pelo confronto c o m os paradoxos, pela mistura e complementariedade das noções e realidades contrárias. Dessa forma, para ser autêntico, verda deiramente sincero consigo mesmo, "não podemos atingi -lo completamente senão ao reconhecer que esse sentimento nos une a um todo mais vasto">". Lepage está totalmente de acordo com tal pensamento "A abertura para o macrocosmo não é senão uma maneir~ de apreender o rnicrocosrno'tv, observa ele. Refletindo sobre a noção de identidade individual, ele não cessa de inseri-la no coletivo: as histórias individuais estão situadas no contexto coletivo da grande História; a cultura individual permanece ' indissociável de urna cultura universal; os questionamentos de cada um reequacionam aqueles que a humanidade inteira se coloca sobre a vida, a morte, o medo, o amor. Ele mescla facilmente presente e passado, próximo e longínquo, individual e coletivo. E longe de opô -los, o que seria uma visão muito sirnplista da vida e das coisas, ele os faz esbarrar continuamente; ele os engasta. A história de cada personagem articula -se àquela das outras e à grande história. No plano da dramaturgia, é frequente a superposição de temas universais 25 26 27

Le Malaise de la m oder n it é, p . 60. Ib íd e m , p. 96 . L. Fo uquet , op. c it ., p. 2 79 .

AL lOM DOS LI M IT ES : A C E N A S O B I N V EST IG A Ç Ã O

O TEATRO D E ROBERT LE PAGE : FRAG MENT OS ID EN TITÁRIOS

internaciona is a a nedotas mai s q uebequenses, d e imagens retiradas d e uma história d a hum an idade (a guerra, H irosh im a) co m o u t ras mais individu ai s n a s q ua is Lepage c h eg a a ex p r im ir o qu anto a id e nt idade é f u ndam entalme n te d ial ógica , dupla. Ess a filosofia da co m p leme ntarie dade ecoa, a liás , to d a a filoso fia asi ática, a d o y in e d o ya ng, qu e baliz a a obra lepag iana (L a T ri logie d es d rago n s , L es S ept b ran ch cs d e la riví ére ata ). Para Lepage, a com p lemen ta rie da de é um princípi o fund a me n t al que c o loca o horn ern e m r elação com o cos mos e co m a s fo rças d o u n iv e rs o ?". Esse é outro rrio d o d e inserir o s ujeit o num h o ri z onte d e s ig n ificaç ão moral.

o co n t r ár i o ." > Significa di zer q u e L epage faz d e s e u d e sejo de integr idade o vetor moral de seu trab a lho. Is s o e xplica a irnportân cia qu e ass u me e n tã o a fig u ra do a r t is t a (C o c te a u o u Davis em L es A ig u illes et I opiurn, Phili p pe e m V in ci , Pierre e You k a li em La Tri log ie ), fig ura fundam en ta l na med id a e m qu e to das as p e rs onag ens p r o cu r am enco ntrar n a arte o voo n e c e ss ário par a s ua liberaç ão e p a ra s ua r e vel a çã o id e n titá r ia, un e -s e n e ste p onto a Taylor, p ara q uem a a rte c omo fon te m oral p r e ci s a d e um h o riz onte d e s e n t id o. O a r t is ta íntegro , respeitoso pela é t ica que o a n tecedeu , é o agente da d e fi n iç ã o o r ig in a l d e si próprio, que ele exprime em meio à s formas estéticas que esco lh e para s u a adequação com a busca do sujeito. Tal visão do artista, herdada da era romântica, dá nascimento à imagem do artis ta criador d e valores culturais> , Da im a g em d o a rtis ta, Taylor escreve:

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OU

A A RTE COMO FONTE MO RAL A identidade s ig n ifica d e s c oberta, cam in h a r, bus c a e co ns tr uç ã o do s e n t id o, h o riz onte ide a l d aquilo q ue se coloca c o mo o bem por s i mesmo e p ara a c o letivid a de na qual o s ujeit o es tá inserido. Descobrimos o que s o mos ao v ir m os a ser, "a o d ar forma ao nosso disc urso e ao s nossos atos com relação àqu ilo que é original e m n ós ' > >. T al a fi r maç ã o s u g e re a importância dad a à formul a ç ã o p ara a exp r essão d e s i própri o , d a qual a c r iação artística p are c e ser o p aradigma. "O art is ta é promov ido d e alguma form a à categ o r ia d e m odelo d o ser humano, e n q u a n to agent e da definição original d e s i m esmo"> . O artista fa z d a autenticidade s ua fonte de fé , que ele coloca co m o ideal. Deve - s e t al v isão ao romantismo, d o qual Lepage n ã o está d istante. A propó sito d e Vinci, o a r t is ta q uebequense comen t a: "A integridade é um dos t emas de V in ci [. .. ] A inte gridade é a tendência a desc obrir quem s e é , para decidir sob re sua moral. Tenho a impress ã o d e q ue um bom núme r o d e a r tistas faze m 28

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Em Trilogie d es drag on s, Lepage fa z a artista japonesa Youkali d izer, ao comentar o trabalho de criaç ão d e Pierre: " Yo u p u t t h e u n ive rse in a s m all r o orn" [Você coloca o universo num quartinho] . A réplica de Youkalí, interpreta Lorraine Camberlain, " il ust r a bem como a o b r a de Pierre, metáfora da própria peça, estabelece uma relaçã o cria dora entre o g ran de e o p equeno , e n t re o se r e o mundo [ ... ] e n t re o n aci onal e o in te r nacion al ': Lorraine C a rn e r la in , I.:Invita tion a u vo yage , C a h ie rs d e th éâ tre l eu , n . 45. p . 89 . L e M al aise de la m odernit é, p . 69 . I b id e m .

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Eu me d esc ubro graças ao meu trabalho enquanto artista, através daq uilo q ue crio. A descoberta d o me u eu passa por u rna c riação, pela fabricação d e a lg um a coisa o riginal e nova. Inv ento urna nova li ngua ge m a rtística [ .. . ] E por meio dela , somen te p o r meio dela e u m e t o rn o o se r que e u car regava e m rn irn. v

Seguramen te, o a to de criação, e n q uan to uma n o vidade , é t amb ém um pro c ess o dial étic o que a identi dade, d a qual é inseparável, j á que o r e cusa, rejeita, d e s c onstrói. Ele se ch o ca fr equentemente co m as n orma s mas, parado xalment e , quando passa pelo con fli to, pela recusa (recusa d o con d icioname n to, d o co mportamento restaurado), pelo que stionamento d o s con heci mentos a dquir idos , ele não o pode faze r fora d e um h orizonte co letivo d e sen t ido. É e m t al p onto fu n dam e n t a l que Rob ert Lepage e C harl es Taylo r conver gem . "A arte é u m con flito", en u ncia Leonard a Philippe e m Vinci. "Se não h á con flito, não h á arte [ . . . ] não h á artistas. A arte é um p a r ado x o , u m a co ntradlç ão,">

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R . L epage , E n t revue, C a hiers de th éâ tre l eu , n . 42, p . 118. A a r te n ã o p ode se r mais im it açã o da n atu re za ; d e ve tornar- se c r iação ú n ica . lin g u a ge m s u bje tiva e p esso al. Le Ivla laise d e la m odernite.p, 70 . So la nge L évesq ue, La M esure d e l'art , C a h ie rs d e th éâtre l eu , n. 42, p. 105 ·

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A L~M D OS LIMITES : A CENA SO B IN V E STI G AÇ Ã O

A busca identitária é um processo longo que se ins e r e no tempo e q ue é feito através de uma v ia g e m inter ior do in d iv íd u o e m bus c a da a u te n t icidade . Ao fazê- lo, essa b usca id e n ti t ária se faz ética. Constr uir sua identidade é também ter um horizo n te de sentido par ti lhado pelos outros. Pois essa identidade é Um di álo g o , um a t r oca , i n terpessoa l e i n terc u lt ural. A viagem, a figura do estrangeiro, o desfilar de pe rso nagens no te m p o e n o es paço são o u tras tantas tentat ivas de Lepage para fa ze r e me rgir esse diálogo, para expr imir- lhe a n e ce ssidade . A viagem é uma bus c a inic iát ica q ue co nvid a a d e s cob ri r - s e a si m esmo g r aças a o o u tro . A cria ç ã o a rt ís tica é o p aradigm a dessa b usca e o artista, na s u a consciência d e s i e do rnun d o , na necess á r ia integridade que s u a definiç ã o e x ig e, torna- s e a próp ria figura d a autenticidade enquanto ideal moral. Suas o b ras, s ua arte s ão o lugar e o m eio da troca, do diálogo. É ness a rel ação com a identidade , c om o reconhecimento e a autenticidade que as peças de Lepage s ã o particularmente atuais e e stão e m sintonia com nosso tempo, T ra d. Nan ci Fernandes

4 . A Travessia das Linguagens : Valere N o v a rin a e C la u d e Régy !

Aqu ilo d e q ue não se p ode f a lar. é o q ue deve ser dito.'

Desde os anos de 1960, tornou-se banal dizer que o texto de teatro mudou radicalmente de estatuto. Rapsódico, de acordo com Sarrazac, o texto da atualidade não é mais aquilo que foi outrora. Sua forma mudou, seguramente, como não o deixou de fazer através dos séculos, porém, mais ainda, seu estatuto c ê n ic o modificou-se. No que esse " n o v o" estatuto difere daquele que o texto ocupava no passado? Que novas relações o mesmo instituiu no palco entre o encenador e o ator? No que as forrnas que ele s e reveste condicionam as estéticas cênicas atuais? Responder a todas essas perguntas não é uma tarefa fácil, não somente em razão da diversidade de escrituras contemporâneas, mas também por causa da multiplicidade de estéticas cênicas. Entre a cena e o texto não há nem determinismo absoluto nem neces sidade obrigatória que imporiam ao encenador que monta sse um texto de modo específico ou ao autor de escrever num e st il o

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A versão inglesa desse artigo apareceu sob o título Moving Across Languages or Widening the Gap, em D o n ia M o u n se f; J. Fé ral (e d s .), Yale French Studies: 7he Tra nspa rency of th e Text: Co ntemporary W riti ng fo r th e Stage , n . 112, p. 50-68. o utono 2007. Todas as citações de Nova rin a s ã o tiradas de V. Novari na , Le Th éâtre de s paroles, Paris: P OL . 1989 . p . 169.

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A TRA VE SSIA DA S LI N GUAG EN S: VA LfO RE N OVA R I N A E C LA U D E R f. G Y

AL f. M DOS LI MIT ES: A C EN A SO B IN V ESTIG A Ç ÃO

partic ular para u rn dado palco. A riqueza da prática teatral da atualidade reside precisamente e m tal diversidade e abertura. Reside também na c o nvicçã o partilhada por todos - auto r, a rt ista, pesquisador ou e spectador - de q ue tudo é possível nesse enco ntro entre as duas escrit uras - dramatúrg ica e cê n ica. E n treta nto, a a ná lise de u m ( texto) b em como a da o u t ra ( cen a ) n ã o d e ve dispens a r -s e d e uma v erdadei r a reflex ão sobre o d omínio do "o ut ro" - ce na (para o texto ) o u texto (para a cena) - , po is é dessa reflex ã o c r uza da - d o e ncenador sob re o tex t o e d o a u tor sob re a representação teatra l - q ue surge o est ilo d a e nce nação n o caso d e um , o u o est ilo d a esc r it ura no caso do o u t ro . Dois exempl o s n o s ajud a r ã o a es cl a rece r tai s o lh a r es c r u z a d os . De um lado, a vi s ão qu e d edica C la u d e Régy ao texto d e t eatro - e, mais em g eral, à própria es c r itu r a - , visão que determina o es t ilo muito particular d e suas encenações; de outro lado, a visão que Novarina dedica à cena - e , mais em geral, ao ato d e dizer com o qual se confronta o atar - e que explica seu modo de escritura. Ao fazer dialogar esses dois criadores cujos percursos estéticos estão nas antípodas um do outro, tentaremos mostrar d e que modo a sua refle xão sobre a escritura converge não apenas para as questões fundamentais que na atualidad e percorrem a cena teatral, como também para aquelas que se referem à palavra, palavra soprada ou palavra morta, destinada a dizer, tanto no caso de uma quanto da outra, o que está para além das palavras. Régy emerge dessa situação corno v e r d a d e ir o escritor, ao sondar as próprias condições da escritura; Novarina emerge como um verdadeiro diretor de atares que procura as condições da emergência de uma palavra verdadeira, entre corpo e sopro. Dessa aproximação v o lu n t a r ia m e n t e paradoxal emergem duas visões poderosas de criadores animados pela mesma busca: a de encontrar na cena um antes do di zer ou do escrever e de remontar aos limites do apreensível, do sondável, do performável. Tarefa difícil que exige um trabalho rigoros o por parte do ator, ator transformado e m barqueiro, barqueiro de s ilên c ios cuja fun ção é paradoxalmente a de di zer.

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ESPETÂCULO DO A Ta R NO T R ABALH 0 3

"Atar, nunca fui senão isso. N ão .o autor, mas o ata r de meus textos, aquele que os soprava em silêncio, que os falava sern urna palavra">, diz Valere Novarina no início da atuação para quem q uiser compreen de r seu t rabal ho de esc rit ura. Para ele, com o tamb é m para R égy - porém d e o u tro modo - , mais do q ue p ro lo n gam e nto d a escritu ra, a cena é a p róp r ia escritu ra. A p assagem do escr ito p ara a cena já está lá , sob re a folha. De modo inverso, a ce na não é senão escrit u ra, escritura verbal segu r a men te, mas tam bém escr it u ra cor po ral d e um ata r p ortador de palavra. É n ess e vai e vem e n tre o es c r ito e o fluxo das p alavras que reside todo o te atro d e Novarina , ao m esmo tempo densidade da matéri a e s urg im e n to do sop r o; a palavra é travessia de Iinguagens>, A palavra "d iz" o homem; ela o pronuncia como diz a Dama Autocéphale da Opérette irnaginaire". Sem dúvida é difícil mensurar a densidade de tais propostas. Mais do que um questionamento de natureza estética, a busca de Novarina - como a de Régy - tenta ir à origem das coisas e interroga a origem física da palavra, s u a s relações orgânicas com a matéria, c o m a respiração e com o corpo. "L iv r a r-s e do s e n t id o para que est ej a mais abaixo de quem fala (.. . ] para fazer falar o m orto, o hom soterrado no hornem'", diz Novarina como que em eco às propostas de R égy". No centro dessa exploração reside o atar, um atar barqueiro da obra, um atar atravessado pela palavra de um escritor que diz escrever c o m o um atar, mas do qual constatamos que pensa como encenador. Tal palavra que s e encontra em questão em toda a obra de Novarina e que está no centro de sua estética - palavra e scrita na página ou soprada no espaço - é antes de mais nada corpo 3 4

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Didascál ia d e Le Drame d e la v ie , Paris: POL, 19 9 9 [1984], p . 135 . V. Novari na, op. c it ., p . 85 Ibidem, p . 135. D iz Novari na: "a travessar a seq uência d a (s) lingua gens [.. . ] re inventar a ca d eia d a carne com as p al a vra s': o p . ci t., p . 13 5. Ib idem, p . 35 . Ver es pecialmen te o q ue d iz C la u de Rég y L'Ordre des morts, Besa nçon : Les Soli ta ires inte m p est ifs, 19 9 9 , p. 60 : "O teatro ociden ta l, d e sde s ua origem, está [. .. ] na ordem do s m ortos [ ... ] erteatro está também , s e se pode dizer, na o rd e m da desordem . Isso não se daria se n ã o devido à sua ligação inalien ável c o m o mu ndo dos mo rtos :'

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AL t:M DO S LIMITES : A CE N A S O B I NVESTI G AÇ ÃO

de escr it u ras . CO Dl e fei to, no caso d e Novar ina a esc ri tura n ão é senão uma modalidade de atuaç ão, te m sentido só ern fu nçã o dela e d e sta carne do a t or q ue a c a r reg a. A palavra só é COncebível e m re lação com s ua d imensão cênica. Não é, por tan t o , a u m leit o r eventual q ue ela se di r ige, tan to rnais q ue não se destina a u m a tor d ete rmin a d o . E la vai mu it o a l érn e interpela o ator n ã o e n q uan to portador d e u rna a ç ã o cênica rrias s im na s ua função de por tador de voz, de barquei ro de palavras. É para tal me tamorfose do comediante em a tor d o impossível q ue se oc upaDl os d ife r e n t e s textos d e Nova r ina q ue acompan ham s ua obra. Textos teó ricos para ler p a r a lel a m e n t e aos s e u s textos drarnat úrgic o s, p a r e c e nl constitu ir -se como u m rnarrual>, como se o desejo d o escri tor fosse n ã o a pe nas o r ien tar o comedian te sobre o rn o do pelo q ual este ltirn o d e ve r ia diz e r seus textos, porém, rn ais precisamente, sobre a m an e ira pela qual deve r ia enfrentar fisicamente a r ela ç ã o COIU a s palavras e, para além, a relação com a escrit ura. D ito de o u t ro m odo , rna is do q ue uma sim p les liç ã o d e " leitu ra" d e su a obra, ou d e a t uação, a tarefa de N ovarin a tem a ver com os próprios arc a n os da palav ra, uma p alavra na qual o ator permanece o b arqueiro indisp e n sável, incontornável e quã o imperfeito! Se é e vi den te que N o v a rina esc reve bem como u m a ta r, é menos eviden te que os conselhos que prodig a li z a ao a to r se façam n ota r na prátic a como o olhar d e um e ncenado r, neces si tando, como n o caso d e R égy, d e uma verdadeira visão da relação q ue pode - q ue até deve - existir e ntre corpo, espaço e palavra cên icos. Com e fe ito, o te atro d e N o v a ri n a c o loca e m cen a u rna visão q u e n ã o somente ab range a at uação d o ator mas que questio n a n o v ame n te t odo o fen ôrnerio da represe n tação: pap el d as p ersonagens, relação com a r epre sentação , com a narrati va, com o g esto. Mesmo que o essen cial d e s uas reflexões sobre o teatro se refir am ao estatuto d a palavra e à arte de dizer, tal a r te não pode ser compreendida se não se p e rc ebe o lugar rnu lto par ticu lar q ue a escritura ocupa n o c entro d a cosmogo nia d e N o varin a. No caso d e Novarina, a esc r itu ra está na origem das co isas, é voz, sop ro, re ss onância (no esp aço e n o corpo antes d e estar no o uvido) . Mais ainda, e la é o que p ermite d iz e r "o hom" ú

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Ve r es p ec ia lme n te Le Th éâtre des parol es. que se as semelha a te xto s tã o impo rt a nles quanto L ettre a ux a ct eu rs o u Le Th éàtre d es o reilles, Pari s : POI. , 19 89 .

A TRAVESS IA D A S LINGUAGENS : VALÉ RE NOVARIN A E C LA U D E RÉ G Y

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excluindo-se qualquer representação e qualque r se n t id o , permite aproximar a diferença daquilo que não se diz, de roçar o silêncio e o vazio. A afirmação soa estranha quando se considera até que ponto a palavra tem uma virtude operante em Novarina, até que ponto sua proliferação, seu fluxo satura, satura t u do e enche todos os poros deixados vazios, tanto no plano d a es c u ta quanto naquele da atuação. Eis o paradoxo da visão que Novarina exprime sobre a escritura, nisso residindo tamb ém sua força. De um lado, portanto, a escritura como potência do dizer, p r o fe r irn erito, sopro, ritmo, fo rça, rapidez. Todo o pensamento de Novarina está impregnado dessa convicção profunda. O proferi mento da palavra aparenta-se a um verdade iro instinto de sobrevivência. Ela se to r n a q uase an imal, Novarina gostando de provocar ass im, no ator, tal d ispêndio de energia indisp ensável fei to de r apidez e aceleração q ue convoca os limites do co r p o , t r a n s fo r m a n d o o comediante ern atleta do impossível: A m a io r parte d o texto deve ser la n ç ada de um só fôl e go , sem se re tornar o se u fô le go, ao u s á -l o p lenamen te . Despender tudo . Não atentar p ara suas peq ue nas re serv a s, n ã o te r m e d o de se es tafar. Parece que é desse jeito q ue s e encontra o ri tmo, a s diferen tes res pirações, ao se jogar, em q ueda Iiv re. :"

Ultrapassar se us li m ite s , ir para a lém d a s f ro n tei ras do p o s s ív el, inventar o ut ra coisa, o u tro s sent idos. "Pu lrnoriern! ", " Resp irem !", ordena Novarina aos seus a tores: Rcspi rern , pullnonem! Pulmo nar não quer di zer d e slo c a r o ar, esguelar-se , inchar, mas ao contrário ter urna verdadeira economia re spira tó ria , usar todo o a r q ue se r es p ir a , d espeja ndo tud o antes d e re tomá-lo, ir ao fim da res p iração, a té a constrição da asfixia fina l d o ponto, do ponto d a frase, d a fo rça b r uta q ue te m o s ao lo n g o da corrida."

Extenuar o corpo para qu e ele escape d a representação, para que s imples rneri te seja e para q ue pe rforme a palavra. 10

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V. Nova r ina , op. cit. , p . 1 0 . A esc r it a tamb ém é respiração. Sem e la nenhum movimento pode advir: " P o is a respiração do a ta r provoca no s eu corp o fenômenos físicos , orgânicos , ce rebrai s que despert am emo ç ões , vertigens, m anifesta ções in suspeit adas", di z C la u de Buchvald, que e nce n ou o b r as d e Nova r ina, e m U ne Voi x de pl ein ai r;-Europe, n . 8 8 0 -8 81, a g o .l s et. 2002, p. 8 1, . Es pecia l Nova ri na. V. Nova r ina, o p. c it., p . 9 .

AI.É~l DOS LIMITES : A C E N A SOB INVESTIGA ÇÃO

A TRAVE SSIA DAS LI N G UAGENS : VA L E R E N O VA R I N A E C LAU D E RÉGY

Esta mos n u ma per fo r mat ivid a de a b s o l u t a d a língua que esvazia o co r p o à fo r ça de e nchê- lo. Há urna grande justapos ição desej a d a do s co n t rá r ios n o c aso d e Nov ar ina. O atar n ovariniano é torn ado por esse co r p o a co r po do atar Co m o text o, p or ess e d e safio p ermanente do s o p ro que o obriga a empurrar para mais longe seus limites físi cos e verbais", por e ss a n ecessidade de c u r v a r - se aos r itrnos, às torrentes de p alavra s proferidas , que escorregam, derrapam, que se desv ia m , multipli c ando a s pistas do s e n ti d o se m e m p resta r- l h e n enhum , mas qu e o deixam esgota d o ao fim d a c o r r ida. Há todo um e x cesso, situações limites , performances . Além disso, trabalhar o texto novariniano - cheio de n eologismos , d esafios de s o ns, e n u m e r a ções, listas infinitas que s ã o outros tantos desafi os físicos, rítmico s e respiratórios - impli ca, no caso do a t a r, o gosto pelo risco, pela u ltrapassagem dos limites, pela v ir t u o s id a d e, mas tamb ém pela generosidade e pela abertura, física e rn e ri t a l'>. Respirar o texto, fazê -lo respirar. . . Tornar-se o atar pneumático tanto quanto o autor'. P a ra Nova r ina, a função d o teat ro é m ai s profunda do q ue aquela d o "repro d uzi r", d o "represen ta r ", do "imita r". Deve m o strar aq ui lo que n ã o se p ode ve r, que não se po de d ize r, "aquilo que v o c ê é", aquil o que n ã o pode s e r. Eis aí s u a g ran deza e s e u ver dade i r o d e stino, do qu e d e corre e sta fra s e um p ouc o s ib ili na d e N o v arina: " O teatro é interessante q uan do se v ê o co r p o n ormal d e quem (q uan do e m tensão , parado, a lerta) se d e sfaz e o o u t ro corpo esca p a, esper t o b rin c alh ã o , que re ndo divertir- s e com iSSO: ' >5 Mu ito s o u tros e n ce n a do res - d entre os q uais R égy, segurarrierite - e n d o ss a r ia m s e m problema essa n e c e s sidade d o es q uec ime n to d e s i no c aso d o a to l'. O v a zio nece ssário do a t o r, que aqui está em q ues tão, é uma despossessão, implica um a cer ta des truiçã o d e s i. O próprio N o v a r in a , e nquanto escr it o r, não escapa a ess e e st a d o d e d espossessão. Ele descre ve s ua própria postu ra na escrit ura como q ue e screvendo fora de si mesmo:

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Co mo evit a r a r epre s entação d o h om em? COIllO evita r r econhec ê -l o? Novarina p reco niza d e ixar os sons, os r itrnos, os fluxos da palavra o pe ra re m e convida o atol' a d i r ig ir-se diretamente a os sentidos". Os co n s elh os não d iferem sen s ivel m.e n te d aqueles que os anos d e 1960 contribuíram p a ra v u lgar izar. " Isso se dirige para a lém das camadas com u ns d o cé rebro, is s o colo ca e m fu nc io na me n to ou t ros h e rn isfér io s afo r a os d ois g lo b o s re c onh e cido s . U ma pro v a químic a , uma experiên cia q uím ic a :'» Mais pro fund amente , é a própri a fun ç ão d a p alavra como a to de co m u n icaçã o qu e Novarina c o loca e m questão. E le exp lic a : "O s a n i rnais tamb ém se cornu riica m muito: fa zem iss o p erfeit amente s e m fa lar. Fala r é uma co is a di stinta d o que t e r q u e tra n s miti r -se m utuam ente humore s o u ve rter ideias [ ... ] fa lar é uma resp ir aç ão e u m a atu ação. F a lar nega as palavras. Falar é um d r ama." >' Con10 fazer advir o drama da palavra na ce na? Co m o faze r para que ape nas a palavra v e rdadeira s ej a entendida? É preciso ir para a lém das palavras, d iz Nova r ina, e para isso o a to r deve abster- se de s i mesrno, deve despossuir-s e a s i mesmo, esv a z ia r-se para ser a palav ra . Ap enas essa trajetória lhe p ermite ir al ém de sua ide n ti d a d e , es q ue c e r- se para dar l ugar à respira ção. O e m p r ee n d iIn e n t o não é n em a r tau d iano nem místico, apesar das aparências , mesmo q ue prec ise de u m a v erdadeira a scese p or parte d o a to l'. C o m efeito, t rata-se para e ste ú ltimo d e tentar " fa zer- se tran sparente, deixar-se dissolver n a s palavras no ex ato instante e m que e las são e n u n c ia d as, d eixar- se m orrer a cad a e x p ir açã o' : d o que decorre e s t a constataçã o: "é a ausência do atol' que não queb ra s ua presença [ . . . ] O a to l' qu e e n t r a em

Queda d o s istema de reprodução, q ueda do s is te m a d e a ção, escrevo sem mim, como uma dança s e m dança, escre vo renunciado, d esfe ito. D e sfeito de minha língua, desfeito de m eu p ensamento . Se m p ens amento , sern palavra , sem lembrança, s e m o pi nião, sem ver e s e m e n ten de r. Esc revo pelos o uvid o s. Es c revo ao contrário . E n te n d o tudo; "

Essa despossess ão, ess a "derrocad a" é u m a etapa indispen sável para escapar à re p resen tação e p ermitir ao ato l' ser, muito simples mente, a fim d e mel hor po der t r a n smiti r a palavrav .

o a ta r que a t u a v e rdadei ra m e n te, que interpreta no fund o , que se interpreta d o fundo [ . .. ] leva n o seu ro sto [ . .. ] sua m á sca r a mortuária, 24

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"Ent revis ta com Valere Novari n a", realizada p or Yannick Mercoyrol, Franz Io h anss o n , P rograma da p e ç a. A p rese ntação de L'Orig ille rouge. Th éát re Nation al d e Stras bou rg, 12-20 d e z. 2000, p . 12. O t e xto es b u r ac a do de L'Op érette imagin ai re trata , po rta n to, d o conj u n t o d o se r. A primeira p a rte d o segu n do a to termin a co m um d elírio de sons e sa ngue, d e se n t ido v iv ifica do. V. Novar ina, o p. c it., p . 77. Novar i na per ma nece p r ude n te e cét ico: 'A q u e le s que pensa m q ue se po de t r a d u zi r q ua lq uer co isa de u m co rpo para o u t ro e que urna cabeça pode comandar qualquer coisa num corpo alinham -se com o desconhecimento do corpo, com a repressão do corpo': observa. Ibidem , p . 23· Ibidem , p . 163 .

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Ibidem, p . 12 1 -1 2 2 . É isso q ue p ensa ig u al m ente Claude Régy e é dessa fo r ma que e le di r ige seus a te res . O ato r não é le v ado a inter pre ta r m a s a es tar n o p a lc o en q uanto pess o a , o bserva Valérie D reví lle, q ue tra b al h ou n a ocas ião co m Régy. " N ã o p o d emo s n o s cons ide rar a to res n e ss e p a lc o ; po uco a p ouc o d es c o b rim o s se r, antes, pessoas", o bserva n o fil m e Le Pa sse ur (O Barqu ei r o ) . Ré g y e Novari na n ão sã o muito di ferente s de numero s o s e nce n a d o res que pro curam esse se r -s i- mes mo d o a tor. Élisabet h Coro n el; Ar naud de M e z am at , Claude R égy, le passeur, F rança: A baca r is F ilm s; S E P T - A RT E, 19 9 7, 15 2 : Ibidem. p. 24 Ib id e m . p . 7 2 . Do que advém o título-de um de seu s textos : "Le Th éât re des orei lles" Ibidem, p . 125 .

A LÉ M DOS LI MI T E S, A CENA SO B IN V ESTl G A Ç Ã O

A T RAVES S IA DAS LI N G U A G E N S , VA LtRE NOVA R INA E C LAUDE RÉGY

b ran ca, desfeita, v a z ia L.. . ] e le mostra, b ranco, se u rosto c a r reg a n d o s u a morte, d esfigurad o ." ' "

nova ri ana é u m a e scr i t ura es b u r a c a d a - tanto quanto a de Rég y é u ma escr i t u ra d o afa s ta men to - para c ava r a distância com relação à r epresentação, p ara tocar o não-dizível. Ambos rei vindicam a ora li d a d e co rri o f und a m e n to do texto cên ico e o corp o do ator, sua respiração, s u a v o z , corno únicos meios p a ra carregar tal palavra: "Q u e o ator venha a encher meu texto esburacado, dançar dentro dele?», reclama Novar iria>. Duas irnage ns importam nesse caso : a d a dança e a do buraco. O a tol', não para d e repetir Novarina, é u m dançarino, dança, c o lo c a palavras em movirnerito. Ora, o movimento não pode ser lid o senão no presente do ato d e movimentar-se e se conci lia com a presença do dançarino em pleno esforço. "Dança-se q ualquer born pensamento, qualquer p e n s a m e n t o ve rdade iro deve poder ser dançado. Pois o f undo d o m u n do é r itm a d o " > R e e n c o n t rar a dança no d izer mas também no escrever. A pró pria escrit ura de Novarina tem a ver com a dança e é essa d a n ç a que deve reviver, resti tuir, reencontrar o ata r v is to que a p alav r a e o dizer e x t r aem s u a fonte da p r ópria c a v idade do se r. Trata - s e, di z o a u t or, d e: "e n c o n t rar posturas musculares e respiratórias n a s quai s se e s creve [ .. . ] N ão é [ .. . ] o c o r p o do a utor q ue pre c isa m ais r e en c ontra r - s e [ ... ] r eclamar a exis tência d e alguma coisa q ue quer danç a r e a qual não é o corpo humano que se acred ita p o s suir" > . "A lgu ma co isa que quer dançar", como se d o "mais a baixo" uma voz se fizesse o uvir, a v oz do "mo r to': "o h om sote r rado n o h o rriern">. M u i to m a is d o que uma po ética, a tarefa d e N ovarina diz r e spe ito às p r ópria s fonte s da c r iação. O utra imagem, a d o b uraco : essa imagem do burac o é urria m e t áfora d e que p artilh am t anto o dis curs o d e R égy qu anto o

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Não e s t a rn o s rnais no universo d o sensível senão naquele da edificação de u rna poética. A busca de Novarina visa um para a lém do ser e da aparência do ator. Ele não convoca s e n ã o o vazio, pelo menos fazer o vazio. De fato, o que Novarina perseg ue infa tig a v e h n en te n o caso d o a tor é q ue este últim o se solte e ace ite a derrocada (no se n t ido d e es tar d e r r ota d o ) , d ito de o u tra maneira, q ue cons inta no fa to de q ue as coisas são ditas por m eio dele, quase que a despe ito dele, apesar da força que ele controla , ordena e centraliza. Evitar a cen tralidade, a cent ralização do sen tido, d a s ideias. Há no caso d e Novarina a co nvicção de q ue existe uma concordância ent re a cen trali dade d o r itmo (da respiração ) e a do perisarnento, d e o n de o d e s ej o de dirní nu ir "a emissão d o ritmo profundo" da resp'iraç âo w. É difí c il co nseguir fic a r e m esta do de "d e s p o s s e s s ão" d a s cois as, das p alavras , da p alavr a! Para ajudar o a to r, a n âo - aç ão >, uma n ã o -a ç ã o que per m ite a est e último m ergulha r p ara a lém do sen tido. O nada fa z er ou fa zer o rn íriirno possível, des aprender. Exa tam e n te c o mo R é g y, Novarina tenta e m p u r r a r o a t o r p ara s uas últim a s t r incheiras . Que r d e svi á -lo, fazê- lo ren u n cia r à q u ilo que já aprende u, esvaziá - lo p ara que esc reva, a p al avra p odendo e nchê- lo n o v amente e q ue o gesto p o ss a s u rgir d e m a neira j usta , is t o é, d e aco r do c o m a palavra , brotada d o rnesrri o espaço interior, d a rrie srna c a r ne. É d e s sa form a qu e o ato r p ode ultr apassar o t exto p ara atingir a escrit ura son o ra e para a lém, "fazer fa lar o m o rto" p ara q ue esteja " mais a baixo d e q uem fala">'. Tal r enún cia do preex istente , do j á c o nst r uíd o é, d e acor d o co m N o v arina ( e d e aco r do c om R égy, ve re mos a d ian te ), a úni c a via pela qual se p ode t o c ar o imp o s s ív el, o in a c e s sív el, a q u ilo que o ord i ná r io e o cotidiano b a nir am d e n o ss o s corpos e d e no s s o s es p i r ito s > . Is s o exp lica em p arte que a escr i t u ra

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Ib id e m , p . 24 -25. O ator morto é , a liás, uma das personagens de L'Opérette imagina ire . Ibidem , p . 123. Ib id e m , p . 135 . l bi d e m , p . 35. Em tai s tarefa s , o a to r toma con s ciên cia de se us próprios có d ig os, d e s ua próp ria repre sent a ção e co m eça a transformá -los Oll at é a d e spossu ir- se deles.

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" De rr u b a r o s ídolos mortos, queimar o s feti ches fei tos po r nós mesmos, nós p odemos [. .. ) tudo aqu ilo que pet rificamos - e q ue se tornou coisa do pensa mento - talvez cruzado novamente '; observa . Entrevista com Valere Novarina, r ealizada po r Yan nick Mercoyrol, Franz Io h an ss o n , op. cit., p . II. V. Novarina, op. cit., p . 19 Por seu lado, Régy observa: " O ato d e esc rever se d e st a c a menos como u m agenci ame nto do real do que como sua descoberta. É um processo pelo qual nos colocamos entre os objetos e o nome dos objetos, a v igilãncia desse intervalo de silêncio, de to rnar os objetos visíveis - como se fosse pela primeira ve z - e de possuir então seus nomes." C. Régy, op. c ít ., p. 12 1. V. N ova r na, op. cit. , p . 13 8 . lbidem , p . 2 1. Ibidem, p . 35 í

ALBM D O S LIMI T E S : A C E N A SO U I N V ESTI G A Ç ÃO

A T R A VESS IA DA S LI N G U AGE N S: VA LE RE NOVAR INA E CLAUDE R f.GY

d e N o varina. Régy, por exemplo, diz aos se us atares para " fa ze r as pala v r a s c a í re m c o mo uma p edra num p o ço, e sc u t a r o ec o para p erceber a profundeza do buraco, a abertura, o abismo n o qual o h omem e o ator es tã o">". Abordar o s buracos, cair n o s bu r a c o s para nel e s se p erder e neles m orrer e renascer. R ed e s c obrir na qu eda outra co isa s o b r e nós m esmo s. É tamb ém paradoxalmente a fun ção do silêncio, el emento m uito irnp o rta n te igualme n te na s encenações de Régy e nos textos de N ovarina . C urio samente, a e s critura novariana é nu trida do n ão -dito, nisso muito mais próxi mo da visão de Régy d o q u e p od e parecer à prirneira vista. Com efeito, como na música, o s ritm o s novarianos são sernp re n u t r id o s de paradas, p ontuações silenciosas e d o não - d ito . O au tor faz d iss o o p r incíp io da atuação no mesmo patamar que o da língua: "s e você n ã o quer fa lar m ecan icarrie nte , você deve senlpre m ante r na tua palav ra a lg uma coisa de voc ê">, obse rva para o a to r, re to mando, co m o em eco, a ide ia d o afas ta me n to d e que fa la R égy-". O drama novariano se insere e n tre a questão "de o n de vem o q ue fa lamos': que Adam c olo c a em Le Drame d e la v ie (O Drama d a Vida), e a afirmaç ã o que a rrem a ta L e R epas (A R efeição): "Aq u ilo de q ue n ã o se p o d e fa lar é a q u ilo que se d e ve d izer:' A palavra é a única m a n eira - e m a t éria - para narrar o h omem. E la é ato, ação. É somente nisso talvez que ela faz sent ido -', Inesgotável , tal palavra é, no entanto, i nsuficiente. Do q ue d e co rre esta constatação desafiadora:

da apresenta ç ã o , fa d ig a d e represen tar cada ve z maior e q u e c o loca n u m est ado d e co ngelamen to to tal , des t r uição d o s lugares, u lt r aje público à língua fr an cesa , d e struída e rebai x ada. Esse re baix amen to d a lí ng ua qu e a tu a lrne n re a tem feito d e s m o ron arY

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Decadência da repres entação, derrocada teatral. C a d a vez mais fa d ig a de representar, de d izer o que quer que s ej a pela língua . Fadiga 38 39 40

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No filme Le Pa sseu r. V. Novarina, op. cit., p. 164lê q ue toda pala vra verdadeira d e ve g ua rd a r um d ado mi st erio so, o culto. Daí a ex is tê n ci a do E -mue t, um a d as personagens de L'Op érette imaginaire e n a qual ela u s a e - m u d o s , suspensão d a r espi ração, si lê nc io do ritmo na escritura. Em D e van t la parole (Diante d a Palavra ) , e la s it ua "e x a ta m e n te no meio, quatro se q uê n c ias subi tamen te brancas , á to nas, e m contratempo s, quat r o preces em bran co" (s. p.). Parale lam en te , escreverá te x tos de Je a n - Paul Kaufma nn : "Ao ídolo da co m un icação, oponho os s ílêncios de Je a n - Pa ul Kaufma nn e sua prec e muda da prisão:' l b íd e m , p . 162. Todavia, se bem que possa haver p lagas d e s ilê nc io em Novarin a, sã o menos o terreno propíci o para a esc u ta co ra l d o q u e um d o s el em ento s essen c iai s de qua lquer j o go rí t m ico. " Eu es crevo li vro s n o s qu a is a a ção é fa la r", excla ma Novar ina e m Le Dra me

d e ta ngu e fra nçai se .

32 1

Sarrazac ressalta, a prop ó sito d o drama co n te mporâ neo, "u m a s it u ação de crise d a lí n g u a d orni nante":" a fim d e e lim in a r a m e c âni c a ern prol d a ri qu ez a . Os autores a do r a m mistu rar o s estilos e g êneros num a p e ç a c o m p ost a de fragmento s , observa ele, porém procuram igualm ente hibridizar a língu a , lutar co n tra a uniformidade lingu ística, colo ca r as línguas em tens õ es: aqu el as q ue dominam ou q ue são dominadas, as línguas sec re tas, as ou tras como os dialetos , jargões, citações e m línguas estrangei ras, línguas especializadas etc. Novar ina parti cipa ao se u modo, segurarnente , d essa te ndência in iciada nos ano s de 19 6 0 que a filosofia, especialmen te a der r idariana , d o s últimos tri n t a a nos co nt r ib uiu abundan temente pa ra d ifundir. " E u d es c r evo", e sc reve N o v arin a , "a luta n a líng u a d e um e o efei to pulverizante d a lingu ag em de apen as um que pode n e g ar t u do, pode reduzir o mundo a p ó : nega r até a q u el e q ue fa la"44. Poré m, se r ia tanto e n te n der m a l Novari na limita r o a lcance d e seus esc r itos quanto n o s fixarmos nisso . Lu tar co ntra a lín gu a apre n dida, a líng u a verdadeira, a língua oficial, a da id e ol o g ia , es tá, segurame nte, n o centro d e seu t r ab alho d e criador. E le próprio define a s ua tarefa d e escritura corno "reinve nção das línguas" e sua proposta d e "refazer todo o cami n ho d a ap rendi zage m d a língua m a t e r ia l, reaprender s e u lingu ismo. Lapso, c o v a r d ia , barbaris rno":". Por ém , não é nesse combate constante contra a unicidade d a s ignificação q ue re s ide a força maior d e seu teatro, pelo menos at ualmente. E la reside a n tes de tudo n e ss a a bertu ra d a língua que ele t e nta institu ir a seu m odo n o p ró prio ce r n e d a s p al av ra s , urn a a bertura q ue se reenco n tra no coração do h omem , n o co r ação da escri tu ra e n o coração da ce na. Há a lguma coisa d e presen te, de a use nte e furtivo em n ó s . C o rn o se carregássemos a marca do desconhecido [ ... ] H á um o u tro em mim, 42 43

44 45

V. N o v a r ina , op. c it. , p . 4 7 -48 . Ibide m , p . 13 6 . V. Nova r in a , I.:Hom me h ors de lu i, Eu rope , op. c it., p . 16 5. Espe c ia l Novarina. V. No v a r in a , o p. c it ., p . 34.

A L ÉM DOS Lllv llTES : A CENA SOB INVEST IGAÇÃO

A TRAVESS IA DA S LINGUAGE N S: VA Ltô R E NOVARINA E C LAU DE R ÉGY

que n ã o é você, qu e n ã o é ninguém. Q ua n do fa la mos, ex is te na n o ssa pa lavr a u m ex íl io, um a sepa ração d e nó s m e sm o s [ .. . ] Fa la r é uma c isão de s i m esmo, um d om , uma p a r t id a . A p al a vra p a rte d e mim no se n t ido e m q ue e la rne a ban dona. H á e m n ó s , m u ito no fu n d o, a consciê ncia d e u m a p resença d istinta , d e um ou tro para a lém de n ó s mesrnos, aco lh ido e fa ltante, d o qua l poss uímos a g ua r da sec re t a , do q ua l m an te rn o s a fa lta e a rna r-ca.:"

qu e a única co isa que co nta q ua ndo se faz uma magern , quan do se eScreve u m texto ou q uando se lhe ret ranscreve, é que o que se vê ou o qu e se o uve n o s remele ao incr ia do, pe rce be o incriaclo. Aq ui lo qu e mostramos não ter n q ualquer interesse [ . . . ] No fazer c1ever- s e -ia ma nifestar o " n ã o fazer ': dever-se -ia s e n t ir ao mes mo tempo a impotência do fazer: ".

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É tal abertura, t al v oz da so m b r a , tal duplo, t al vazio q ue N ova r in a persegue in c an savelmente. Niss o está a o ri g in a lid a d e de sua o b r a, s u a g ra n deza e s u a mi s éri a . É t amb ém n es se ponto preciso qu e a s atitud e s d e R é g y e d e Novarin a c o n ve r gem de rnod o assustador.

ORDEM DAS PALAVRAS/ORDEM DOS MORTOS "O teatro ocidental, desde sua or igem, está [ . . . ] na ordem dos mortos [ . . . ] o t e a t r o está também, se se pode dizer, na ordem da desordem. Isso não se daria senão por sua lig a ç ã o in alie n ável c o m o mundo dos rnortos":", diz Claude R égy, explicando assim o título de um dos seus primeiros livros, e se une a Novarina na sua convicção. Tais mortos que aqui estão em pauta, no c a so de Régy, não rernetern a n enhum luto nem a nenhuma perda, mas a uma vida ausente da qual R égy está convencido de que está para além das palavras e das imagens, uma vida que o escritor e o artista te ntarn renovar s o b o mesmo enfoquc, uma vida anterior à palavra, uma vida que a ordem das palavras, das imagens, do dito, seria incapaz d e restituir, de fazer emergir, de trazer à s u p e r fície . De fato , para Régy, a escritura, qualquer que seja, fala do indete rminado. A escritura tem a ver com o próprio ato de criação, criação não das origens, mas do in criado, daquilo que ainda não é, daqui lo que se busca dizer mas que não se diz. " P r o c u r e i pensar", diz ele:

46 47

Ibid em, 134-1 3 5. A maio r p art e d a s c itações qu e se seg u e m são empre st ada s d e L'O rdre d es rnor ts e a s p á gi n a s ind ica das ent re pa rêntesis. Essa id ei a d e R é g y te m como eco refle x ã o d e Nova r ina qu e re c ord am o s n a prirn eira p arte : é p reciso "fazer fa lar o m orto , o h o m sote r ra do n o h o rnem" : o p. c it ., p. 60 ,35 ·

3 23

í

A ideia é podero s a e lembra a q u ele p ensamento d e Nova rin a , co lo c a d o como e píg ra fe n o no sso títul o : "Aq u ilo de que n ã o se p ode fa l ar, é o qu e d eve s e r d it o : ' D o que d e corre a co nvicção que R ég y t em de que a escritura é o m ei o escol h ido pelo escr ito r para fa zer o uvi r o morto, o s m ortos , es s es m ortos que todo autor tenta trazer à luz, fazer nas c er, mas qu e, todavia, continuam na região do indeterminado, do não -dito. A escri tura s e r ia , portanto, uma e scr it u r a daquilo que não é, pois para além daquilo que se diz , uma outra palavra deve se fazer ouvir, uma palavra no vazio poder-se -ia dizer - e é esse vazio que o atar, guiado pelo encenador, deve procurar exprimir. Mostrar para a lém da palavra, ou mostrá- la aquém, o lugar em que as coisas não são ditas, em q ue elas não afloram no plano da consciência mas em que são percebidas de modo obscuro através da atuação do atar. Tal é o objetivo do teatro. P ara entender o que o pensamento de Régy tem como força, sem dúvida é preciso restituí-lo ao c e n t r o de uma reflexão que procura, no seu caso, remontar à origern da escritura - como também no caso de Novarina - e levar em consideração sob esse mesmo asp ecto a escritura do escritor e aquela do encenador. De fato, no caso de Régy, longe de opor texto e interpretação, não existe qualquer contradição entre o texto e sua passagem para a cena como também, mais ainda, há convergência entre a palavra do comediante e os gestos que este último coloca no espaço. No momento em que c o m eça m o s a nos mover n o es paço, parece-

-rne que não é preciso para o ator nem se movimentar n em falar sem antes procurar reencontrar a fonte da palavra e do gesto, então pensei que se poderia até supor que há um pon to no ser (do qual não posso definir a situação) no qual sem dúvida nasce a palavra , no qual nasce a escritura, e no qual provavelmente a sensibilidad e d o gesto toma forma. Para que nunca n o s m ovimentemos e falemo s s e m que o g e s t o 48

C. Régy, o p . ci t., p . 6 4 .

ALBM D OS LIMITES : A CE NA SO B I N V E ST IG A Ç A O

A TR AVESSIA D A S LI N G UA GE N S: VA LÉRE NOVA R [NA E C LAU DE R BG Y

e a pa lav ra se i n ic iem n a s ua fo nte cornurn e para que se m o v a m ao mesrno te mpo, é preciso ra le ntar.v'

t ra m a palavra, apossando -se dela, fazendo do dizer a única

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Exis te, p o r t a n to, um esp aço n o ser hum an o que seria ao rn esrno tempo o cent ro co m u m d o gesto, d a p al a v r a e da es crit ura . Trabalhar um (o ges to) permite ass i m, n e c e ssariamente, at i ngir o o u t ro ( a p al avr a ) e, ass irn faze n d o, fa zer de n o v o o gesto do escritor. R é g y t ern v o n t a de d e r een contrar n o atar o estado d o escr ito r, mas o es ta do do esc r itor a n tes que ele deite a s ua frase no p ap el, a n tes m e smo do ges to d a e scr it u r a ; reenco n trar, p o r t a n t o, o irnp u ls o que o briga a esc rever, corno se um mesm o sop ro habita sse o esc r ito e o lido. Essa q ues t ã o alimenta toda a reflexão d o e ncenad or sobre a atuaç ã o e o trabalho vocal e co rporal d o a tar. Régy o d iz t amb ém d e o u t ro m odo. Inte rpretar é t entar acresce n tar a "parte imate rial d o cor po">", é pro curar urn cor p o po r tado r d e p ensam ento". Se, n o cas o d e N ovarina, a palavra é c o r p o , no caso de Régy a coisa está aparentemente invertida: o c o r p o é pensamento. Régy está convencido de que corpo, voz e e s c r itu r a fazem parte de urn todo e que é inconcebível separá- lo s . A voz provém do corpo. Ela é corpo. Ela é esse momento e m que certos efeitos do corpo - especialmente as vibrações das co r d as voc a is - tor n a m-se palavras. A ideia em si não é nova; o que o é em princípio é que, para R égy, a atuação repousa na esc r it ura. A escritura de aritern ão é , portanto, interpretação, e n cenação . Igualmente, para o atar a matéria a ser trabalhada é, ante s de m ais nada, a própria e scritura. É di sso que tudo parte, porém é daí também que tudo a fl o r a. Com efeito, sob est e aspecto, Régy é herdeiro de Blanchot e de todos os autores que questionaram nos anos de 1970 a relação da língua e da representaç ão. Para R égy, a língua deve ser trabalhada em si mesma, se m se d eter na personagem ou na s u a psicologia, na açã o dramática ou na sua progressão na narrativa. No caso dos atares , não há nenhuma necessidade d e procurar encarnar ou im it a r nenhuma coisa nem ninguém . N enhuma "representação" é necessária. Basta que eles se remetam à escritura. Como 49 50

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Ib idem, p . 66 . Ib ide rn, p. 92. Ibide m, p . 95.

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na caso d e Novari na, se bem que de forma diferente, eles mos açã o d o d r ama. Para isso , n o cas o de R égy, assim como no d e Novarina, o a tar deve esq uecer d e s i mesmo ( não da personagem encarnada) n o esp aç o d a p alav ra. Portador d e u m a palavra antes de tudo, d e u m dis curso vindo d o alé m, ele trabalha a lín gua a fim d e n ão fec har o se n tid o d as p alav r a s e das frases, d e m ant er o se n ti do ab e r t o e, assim, d e p ermitir a circulaçã o d o sen t ido. Como a linguagem é "cheia d e aproximaçã o , a m b ig u idade, mal-ente ndido, d eli cadeza , ambival ência': cumpre ao atar m anter essa abertura, este espaço entre as palavras e os p ensamentos p ois é n e ss e d es v ão que a "poes ia s e aloja">. E ssa ideia d e desvã o n a língua, n o próprio seio do palco, é fundamental para quem q uer com p reen der a estéti ca de Régy. E la s e s o m a à ide ia do bura c o e m Novar iria» . O que R égy procur a atingir para a lé m d a s p alavra s é "o som que a linguagem faz" e , a in d a m ai s p rofundam ente, "a organização do movimento da palavra na linguagem" >' a fim d e que a linguagem possa atingir o espectador na mesma região em que a música toca. Fazer da língua urna músi ca, a única música na cena, e fazer de tal maneira que a música toque o espectador nas m esmas zonas corporais co m o o fa z a própri a música, eis o objetivo confesso de R égy». Para fazê -lo, Régy opta pelo ralentamento ext r e m o, u ma das modalidades Irnportantes do s e u trabalho nos texto s . Essa lentidão extrema permite, acredita ele, r e m o n t a r à s próprias fontes da escritura: "p a r a fazer ouvir a escr it u ra e o que a língua revela, pareceu-me que não s e r ia pre ciso falar r ápido [ . .. ] a rapidez não é criadora de nada, salvo da rapidez [ .. . ] É durante as paradas que a verdadeira plenitude da e scritura se ouve ca so não s e a tenha ocultado desde o c o rn eço" >", observa ele, 52 53

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Ib ide m , p . 67. "Q u e o a ta r ve n ha encher meu te x to esb uracado, d a n çar den tro" d iz Novar ina, o p. cit., p . 19 . R ég y afi r ma co mo réplica: "fazer cair as p al a v r a s co mo u m a pe d ra nu m p o ço. esc u tar o eco para perceber a p r o fun d e za d o b uraco, a abe r t ura . o a b is mo no qual o h omem e o a tar estão". C. R ég y, op. c it ., p . 92. Es tamos nu m a sines tes ia a q ua l Ba ude lai re foi um d o s p r imeiro s a q ue re r in stituir no ato da c r ia ç ã o, que sesá persegu ida pelos simbo lis ta s e espec ia lme nt e por Maet e rlirick, que Régy retoma e m a lgumas montagens. C. R égy, op. c it. , p . 65 .

32 6

A LB M DOS LI MITES, A C E N A S O B I N V ESTI G A Ç Ã O

acon selhando os ato res a proc urar o " n ã o- fa ze r", exatanlen te ex p e r im e n ta n d o a impotência de conseg uir à perfeição ess e não -fazer. Também d urante os ensaios, o a to r trabalha ig u alme nte o r a le n t a m e n to dos gestos e das palavras, da respi ração e d o mov im e n to . O temp o da criação é o da lentidão. De fa to, o alentecer dos gestos permite lu tar cont ra o naturalis mo e a repres entação. E le "d es real iza" o movime nto e o br iga o ata r a sair do s e u cotidiano a té atingir u m es tado dife renciado. O ralentamento acentua por si rnesrno a presença no es paço, na d ura ç ão, nos sons, nas percepções, colocando e m s uspe nso o imag inário d o ator e d o espec tado r. Tal ral en t a rnen to é portador de um se n time n to de imateriali d ad e , imate r ialidade do co rpo e da a t uação q ue caracte riza t ã o b e m os espe tácu los de Régy. E ss e es ta do - qu e n ã o é n em êxt ase n em transe - ag u ça a p resença d o a to r q ue se to rn a , a ssi m , pal avra escr ita e fa la d a. A bre o espaço interio r e íntim o d o ator p a r a a quel e, imenso, d o além. O ator to rn a -s e per meável a to d a s as dimens õ e s e e nche e n tão o tab la d o, e n t re t a n to v azio d e s u a transparência . A le ntidão dos gesto s caminha paralela com a lentidão da elocuç ão, uma el oc u ç ã o fei ta tamb ém d e silên cio. A ssociad o aos m o vim entos ralentados , o s ilê ncio de cupla as fo rças, as t ro cas e ne rgét icas e pro vo c a o est a do d e co ncen t r a ç ão, o estar-lá do a to r, o bse rva R é g y. O a to r d e ve a p ren der a escu tá- lo , a car regá- lo. O silêncio es tá lá p ara c o lo c a r -se co n t r a a a gitação d o a m b ie n te. Permite p erceber os detal h e s dos ges to s, aumen ta o es paçov e traz à lu z as força s d e atração co le t iva do tablado. O s ilê nc io é ação cên ic a: "É durante as paradas qu e a verd a deira pl eni tud e d a escrit u ra é o uvida , caso n ão a t enhamo s oc u ltad o desde o corne ço' v": ela conduz os atores "p o u c o a pouco, a es tar m ais p erto de s i mesmos e a emitir o s s o ns a partir desse mais p erto d e s i m e smo s na expec t a t iv a d e atingir, o m ai s p o ssí vel, os o ut ros - os espectadores - e d e sl o c ar assim o barulho p e riférico no qual n ó s nos movirnentarnos'tw. Esses es p a ços de s ilên cio são um a das formas d e c r iar esse d e svão no seio das palavras q ue 57

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Tal imp ort ância d o e s pa ço deve se r s u b li n h a d a porque, para Rég y, assim co m o p ara N ovar i na , a fonte comum da p alavra e d o gesto é precisamente o e sp a ço. C. Régy, o p . cit. , p . 65 . Lb i d ern , p . 15.

A TRAVES SIA DA S LIN G UAGE N S, VAL [;RE N OVA R INA E C L A U D E R ÉG Y

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lem b r a m o s anteriorm ente. O ator n o cas o a ssume u m a figura de barqueiro, um barqueiro de s ilê n c io s . Foi dito frequentement e q ue o s ilên c io é um a d as c ara cterísticas recorrentes da dramaturgia contemporân ea. Todos aqueles que trabalham no teatro da atualidade revel am-lhe a preg n â n cia extre ma nos textos. É evidente que o silêncio q ue está em q uestão na obra de Régy não tem nada a ver co m a falta, a incomunicabilidade, a impossibilidade de falar ou o desejo de se calar. Ele não se refere nem às circunstâncias nem à psicologia dos seres. T rata -se de um silênc io infi nitamente mais rico e carregado d e re novação, um s ilêncio d e na tureza qu a s e existenc ial que permite remo n tar rastros do in cria d o . Pois q uando o a tor está "fazendo silêncio" é a escuta q ue ele desenvolve: t anto a s ua quanto a dos o u tros. Ele p ode então abrir-se "para a cena, ao unive r s o , a t oda s as d im e n s õ e s" para que se o uça "a a bert ura da p al avra': Ao institu ir o silêncio no cen tro d a cena é qu e as palav ras escapam d a re p resent açã o que as esp reita. Elas acabam por ser dotadas d e d ensidade . Lon ge d e ser estát ico, tal s ilê n cio é portador de plenitude na cena. P e rmite a forç a da c a p t ação da palav r a c o m o também a a m p l ific a ção da pres ença e da escu ta do ato r, para n ã o fa la r d aquel a do esp e c t a d o r. Tal s ilêncio e t al r itm o ralentado facilitam, segu ndo Ré g y, a circula ção d o t exto e ntre os atores. Os a to res n o tab lado entã o estarã o ab ertos às forças d e atr a ção cole tiva. Os diálogos fu ndem - s e riurna única voz, num único dis curso , transformando as múltipla s pala v ra s n um conju n to . Eles se t o rnam um, "[ res titui n d o ] u m m o n ólo g o , o que n ã o q uer di zer d isc u rso de uma única p ess oa, m a s um discurso ún ico"?". A palavra n ã o é m ai s a de um indivíduo, mas aquela d e urn a co le t iv id a de como o era, na trag édia, a palavra d o coro que fa lava e m nome d a ci dad e. N ess a circ u lação d e p alav ras, que ultr apa ss a os indiv íduo s para a ti ngir o co letivo, o espec tador tem a im p ressão d e q u e o ator fa la n ã o em seu próprio no me , mas no n ome d e todo s . Esse con j u n to rest it u i a a c e n a unicidade, p o esia e trans c endência. E le restitui a forç a d a escr it u r a, dramátic a e cê n ic a a o m esmo tem p o . O m esmo oco rre com as peças q ue m onta (Quelqu'un va ven ir [Alguém Virá], de [o n Fosse, Knives in Hens , de David 60

Ib id e m , p . 68.

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AL € M DOS LIMITE S: A CENA S O B I NVESTI GAÇÃO

Harro w er, 4.48 Psychose, de Sa rah Kane, o u L a Mo rt d e Ti n tao i: les [A Morte d e TintagilesJ, de M a u r ic e Maeterlinck, p ara c itar a pe nas a lgu m a s )?', n a s frases muito si mples que faz os a tore s d izerern - f rase s que ele fr a g iliza e d ensifi ca a o m e smo tenlpo _ e nas q uais R é g y tenta precis am ente a p lic a r esses prin cípios. É be m co n hec ida a ext re ma lent id ã o d o s esp et á culos d e Régy, ruas trazer à lu z tarnb érn as r a z õ e s que e xpli c am e s sas e scolha s es tétic as e sclarece, para o públic o , o m .étodo d e trabalho d o e nce n a d o r e pe r m ite compre ender no q ue tal es tética es tá não sorne ri te ligada d i retarrierrte a uma determinada v isão d a escr i tu ra, mas e m . qu e m edid a e mana a par ti r dela e é inclus ive d eterminada por el a. D ado qu e R égy pro cura para além d a esc r it u ra o lugar d e ond e n a sce a esc r it u r a - o l ugar "d e o n de se fal a': com o o di z ele próprio - , s uas e n c e n açõ e s são m arcad as por essa estét ica tão p articular que as carac ter iza. Pois, p ara a lém das p r ó p r ias p eças, das narrativa , dos diálogos, é uma ve r d a d e ir a visão de es critor q ue Régy c a r r e g a cons igo. E sc r ever pa ra a ce na e esc rever u m a peça r e sultam d a mesma n e c e ssidad e e b ebem n a s mesma s fo nte s . V is to que R é g y levar a sér io a escr it u ra - e ntre palav r a e sopro, e n t re corpo e esp ír ito, e n tre o rde m e d e s ordem, e n t re d ensidade e esp ir it ualidade, entre imateriali d a de e inc ons ci e nte -, ele adota um mo do d e interpretaç ão que lhe é ú nic o , baseado no s ilê nc io e na lentid ã o que às vezes irrita os espectadores , mas dos quais compreende-se lo go o sentido profu n do. Tal busca é alimentada pelo olha r q uase 61

Pod e ría mos ta m b ém ci ta r Der R itt iibe r den Bodensee (A Cavalgada n o Lago d e Co ns ta nça), de Pe ter H andke ( 197 4); D ie u nvern ünft ig en s terben aus (As Pesso a is !rra z o á veis es tão e m V ias d e E xtin ç ã o ) , d e P e ter H and ke ( 1978); T rilogie des Wieders eh ens (T r ilog ia d o A deus), d e Botho St rauss ( 1980); Gross und klein (Gr a n d e e Peque no), de Bhoto St rauss ( 1982); Über di e D õrfen (Pelas Ci dades), d e Pe ter H and k e ( 1983); Ivanov, d e A n ton Tchékhov ( 1985); Der Park (O Parque), de Botho Strauss (1986) ; 7hree Travellers Watch a Sunrise (Três Viaja ntes O lham um P ôr d o So l), d e Wal1ace Stevens, e Le Crirnine l (O C r im i n o so ) , de Leslie Ka plan (1986); Le Cerceau (O A rco) , d e V iktor Slavkine; H uis elos (E n t re Qu at ro P aredes ) , d e Jean - P aul Sa r tre (1990); Downfall (F racassos), d e G rego ry Motton (199 1); Th e Ter r ible Vo ice of S a ta n ( A Terrível Voz d e Satã), d e G rego ry M otton (1994); Pa rol es du Sage ( Pa la v ras d o Sá bio), de Henr i Mesc honn ic ( 1995) ; La Mor t de Tintagiles, de Mau rice Maete rli nck ( 19 9 6 ); Holocaus to, de Charles Reznikoff ( 19 97); No k o n kjem till a komme ( A lg u é m virá), de Ion Fo sse ( 19 9 9); Knives in Hens , de David H arrow e r ( 20 0 0 ); M el an ch olia ( M e la ric o lia ). de Ion Fosse, e C a r n et d 'u n d isparu (Cad e r n eta d e um Desaparecido) , de Leo s Ia n a ce k ( 200 1); 4 .48 Psy chose , d e Sarah Kane ( 200 2); Variation s s u r la mort ( Va r iaçõ es so b re a Morte ), de [ori Fosse ( 20 0 3).

A TRAVESSIA D A S LINGUAGE NS: VALtRE NOVARINA E C LA U D E R € G Y

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exis tencial q ue carrega não apenas sobre o s textos dramatúrgicos que .e s c ol h e para mon tar, po ré m, mais ainda, sobre a própria escntura.. E n ten de -se ig u alm ente q ue a at it u de d e R égy, longe d e ser uru c arn e n te esté tica, é de n ature z a ontológica e origina -se de urna ética de artista e de u m a ética de vida . Sua atitu de é , paradoxalmen te, a d e urna travessia da língua , lí ng ua da qua l ele proc ura res t it uir a de nsidade e a f ragilid a de ao m e sm o te mpo. Para. e s s a .viagem a través d os texto s e a t r avés d a lí n gua , R é g y d eseja a SSIm c o n d uzi r o a to r p ara uma tra v e ssia d e si própri o , um a trave ssia n o deco rrer d a qu al poderá talve z co nsegui r ir ao cen ~o d a s coisas, carregando o espec tador co ns igo. E imp ortante r e s s a lta r que esse o l har q ue R é g y d edi c a à escritura e q ue c olo c a e m p rática trabalhando s o b re a lgu ns tex to s os rna ís r epres entati v o s das form a s dram áticas d a a t ua lid a de (M a rg u e r it e Duras , Jon Fo sse, Peter Handke , David Harrower, Leos Ja n a c e k , Sarah Ka ne, G reg o r y M otton, Tom Stoppard, Botho Strauss ), e le o dirige paralel amente a texto s mais anti go s q ue escol heu m o n ta r ( M a u r ice Maeterlinck, especialmente, mas ta m b é m Anton Tchékhov, Jean-Pau l Sartre) o u para textos emprestados d e o utras formas n ã o teatrais (especial men te a lgu ns tex tos bíblic o s d o Eclesias tes t r aduzido s p o r H enri Mescho n n ic ou poemas d e C h a rl es R e znikoff) . É preciso q ue se dig a q ue tal visão n ã o é própria nas e scrituras contemporâneas - esc r itu r as que tendem a privilegiar u m a escritura esburacada, urn a d ramatu rg ia fragme ntada, uma dramaturgia d o s ilêncio, do quad ro, longe da linearidade e m q ue a língua se insere como signo fra tu rado -, porém nelas encontra u m terreno privilegiado. Compreender-se-á, s e g u r a m e n te, que no caso de Novariria, como t amb ém no de Régy, a r ela ç ã o com a r e pre s ent a ç ã o , no senti do fi losófico do termo, é questionada m u ito profundam ente. Seu teatro n ão pode mais r epresentar o mundo . El e s e di stanciou não somente da mimes e , mas também do próprio tea tro . Nisso, ambos s ã o rnuito herdeiro s do s ano s de 1970. Sem dúvida, a a t it ude não é nova n em no domí nio da literatura ne~ no do teatro. Numerosos são os poetas e escritores que se inserem nesse m o vim ento a par tir d e M allarm é e Artaud, especialmente. N u me rosos são t amb é m os m ovimento s literá ri o s q ue colocaram essa rela ção com a língua no seio de suas pr e o cup a ç õ e s. O q ue é novo, ao co n trário, ta n to n o caso d e

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A LIÔM D O S LIMITE S: A CENA SO B I NV ESTI G A Ç A O

Régy q ua nto n o de Novarina, é a fo rça dada à palavra car re gad a por urn corpo q ue o atar trabalh a para esvaziar de s u as escórias. " É no lu ga r d o va i e ve m do co r po na p alavra"?' que re side , para Novar ina, o trabalho esse nc ia l do texto . R é g y pode r ia dizer outro tanto, por ém, mais p rofundamen te no seu caso, é a n tes de tudo para o trabalho de de nsificação e d e frag il ização d a líng ua q ue e le orien ta to dos os esfo rços d o ata r. O trab al h o deste ú lt imo n ã o re sulta d o exe rcício b anal d a si rnp les e n ce n ação de um t exto , ele to c a n o s fu rrda rrie rrtos d a escr it u ra e nas fontes da p al avr a e, exatarrien te iss o, nos a rca nos do s ujeit o. É urn perc u rso, se não espirit ual, pelo m eno s exis te n c ial, que um e o u t ro proc u ram instituir. Tan to um quanto o o u t ro tentam ir às fonte s d o in criado ; daq u ilo que você é , daquilo que não é ai n da e que pro vavelm ente nun ca será . A m b os colo cam u m a qu estã o co m u m , fund am ental e que c im e n t a o c o n j u n t o da sua o bra e d e s ua atitude : d e o n d e ve m o que s e fa la? Há qualq ue r cois a d e p re s ente , d e ausente e d e furt ivo e m nós. C o m o se car regássemos a m a rc a d o des conhecido [ ... ] h á um o ut ro e m m i m , que n ã o é v ocê, q ue n ã o é ninguém . Quando fa lamos , h á na n o ss a p al avra um e xílio , um a s eparação para conosco mesmos [ . .. ] Fa la r é urna ci são d e s i m e sm o , um d om , um corne ço. v-

A a p roxim açã o entre R égy e Novari na para aí. Se Novarina procura restab el ecer a primitiva ligação entre a palavra e o corpo, um co r p o - p a lavr a e urna palavra -corpo, Régy tenta , espetácu lo a pós espetác u lo, ir mais longe ao tentar criar uma s im b io s e entre pensamento, corpo, espaço, texto e voz. Porém, tanto num caso co m o no outro, observa-se bem uma b usca do a b soluto da palavr a e m conexão com o dize r. Criar o desvão n o centro d as palavras, faze r o u vir a abertura n o centro das coisas e, para além daq u ilo que se o uve n a cena, fa zer o uvir urria outra cena. A missão é quase im possível tanto para um quanto para outro. N ess a captação da palavra , nesse a to cor aj o s o de di z er onde o atar se esquece de si m esmo , es p ect ad o re s e atares são convidados a fazer uma travessia das linguag ens e a transpor-se para além. Trad.NaciFerna n d~

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V. Nova r ina , o p. c it., p . 30 . Apud Ivan Darrau lt -H arri s, f?e vant la p arole, p . 134 -135 .

Parte V

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Interculturalismo Ainda Possui u m Sentido?

1. Linguagem e Ap rop riação : co m o re in t e rp re t a r Shakespeare no Quebec, o e x e m p lo d e Robert Lepage l

Embora, faz uma década, a noção de interculturalismo esteja d e certa forma em voga na América do Norte e ocupe no discurso crítico o lugar que ainda ocupava há b em pouco o di scurs o so b re o p ós-rnoder'nisrno ou sobre a d e sc onstruçã o , a in da assim, e la reflete as t ran sformações profundas que afetarn n ã o apen a s nossos modos d e p ensar e d e c r ia r, m a s nossa man eira d e v iv e r no interior de uma c u lt ura específica , de várias cultu ras, n o cru zamento d a s culruras-. Longe d e se r um fenômeno estético ou um s im p les e fe ito d a m oda , o interculturalism o tornou-s e , acima d e tudo , um fenômeno social qu e n o s a fe ta a to dos, q u er nos submetamos a ele, quer o assumamos seg u n d o os contexto s nos q uais avançamos. Portanto, deter-se no interculturalismo den tro d o s d orn nio s do te a tro é e s c olher isolar, n o s e io d e s s e fe nô me no planetário que faz fronteira c o m todo s os se to res da socieda de, as mudanças que imprimem se u s efeitos sobre a prática teatral. Entretanto , a o fazê-lo , é necessário lembrar : toda an álise s o b re o teatro n ão pode - nem d eve - s e r isolada d o conj u n to d a s í -

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Public ado e m French R ev iew, Sa n ta Ba rbara. v. 7 1, n . 6 . M a y 1998. Para rem eter a um títu lo de P atr ice Pa vi s, O Teatro no C ruza m en to de C u lt u ras. Sã o Paulo: Pers p e ctiv a . 200 8 .



LI NG UA GE M E APROPRIAÇ Ã O

ALf.M DOS LI MI T ES: O I N T E RC U LT U RA Ll SM O . . .

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m u d a nças q u e afetarn a sociedade . A a ná lise re mete necessar ia m e n te a is so, de s tac a ndo q ue ela p ró p r ia se i n s c reve n e sse co n text o m ai s vas to que co m p ree n d e n o s sa é po c a p a r a a lé m das s o c ie d a des . Ass im se n do, e la a t in ge o " rnac rossocial" Nou t ro extremo, pensar o inte rc u lt uralismo exige igual m ente d o s uje ito um tra b alho sobre s i p róprio n a med ida e m q ue a q uest ã o fo rça n e c es sar ia m ente quem possui um discu rso crítico a se p o si ci ona r sob re o tabu le iro de xad rez d a s c u lt uras. O exercí cio o o b r iga involu n taria mente a retra çar s u a p rópria h istória , a tornar claras s uas pró pr ias fil ia çõ es , a a n a lis a r seus a n c o radouro s para m elhor lo c a li z a r a si p ró p rio e o e nco n t ro p ossível co m o o ut ro ; isto é , p ara lanç a r luze s s obre seu p róprio c o n texto d e a n álise e c r ia çã o. Aqui, n ós a ti ngimo s o "m icrossocia l". A p a ssage m d o m.acrossoc ial a o m ic r o ss o c ial, que p ermite a reflexão sob r e o interculturali smo, é s ua grande rique za em relação à n o çã o anterior e p o liticame n te mais limitada, a q u ela do multiculturalismo, a qual fo i p reponderante nos discurso s p olític o s e governamentais, a que insistia s o b re a justaposição p acífica das culturas e não sobre sua dinâmica de absorção recíproca. No d omínio propriamente do teatro, o interesse prin cipal da noção de ín t e r c u l t u r a lis m o, cuja incidência sobre a repres entação t eatral tanto c o m o sobre as técnicas de atuação e s obre o texto >, que alguns analisaram e m detalhe , é o fato d e q ue ela no s força - n ó s , espectadore s e analistas do fenômeno t eat ral - a r einterrogar nossa posição n a história, assim c omo a da obra a r t íst ica es t u d a d a, a r e -historici zar o a contecim ento teatral a partir d o lugar em que ele se inscreve, a c o n t extuali za r a obra a partir do modo por meio do qual ela integra a s temá ticas ou as práticas artísticas de outras culturas, a reinterrogar n o s sa rela ç ã o co m o outro. E ssa noção traz e m seu cer ne as questões a ssociada s à tomada d e e m p rés tim os, a textos literár ios que passam d e uma c u ltu r a para a o u t r a e , e m particular, à questão d a língua na qual as transferências acontecem, c r u ci al, é ó b v io , numa nação como o Quebec. 3

R u s to m Bha ru ch a , Th eatre an d th e W o rld , N cw Yo rk: Ro u tledg e , 1993; P. Pavis , o p. c i t. ; E d war d Saíd , Orie n ta lis m, New Yo r k: Pa ntheon, 19 7 8 ; Ric h ard Schech ner, Essays on Performance Theory, New Yo rk: D r am a Book Specialists, 1977. Ve r t am b é m os a r tigos de Dary l Chi n, Una Chaud uri e Diana Taylor em Bonn ie M a r r an ca; Gauta m D a sgupta . In tercu ltu ra lis m and Performa nce, New Yo rk: PA I P ublicat io n s, 19 91.

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É co m esse espírito que esco lhemos discutir três formas d e prá ti c a s interc u lt urais no Q uebec: as de Michel Ga r nea u, d e Jea n - P ie r r e Ronfard e de Robert L epage , b em co mo ana lisa r sua n atu r e z a à luz de ce rto refere n cial teó rico empres t a do, ao m e smo ternpo, dos conce itos interc u lt ura is e das teori as d a co n1un icação. S e h á uma n a ç ã o o n de a p robl emát ic a intercult ural e lin g u ística se m p r e es teve p r es ente, é cer ta m en te o Quebec e, cl aro , o C a n a dá. Pát r ia de imig r a ç ã o , te r ra d e a s ilo dito volu n tá r io. Muit o pró x imo d o s E st a d os U n ido s e, n o e n t a n to, m u ito dife rent e , o C a n a d á se m p re p romove u a "s oc ie d a de das c u lt u r a s" ao es boça r, no d e cu rs o d o s a nos, p olít ic a s encarregadas d e s u a prom oçã o . P rog ressiva men te, os v o c á b u los e vo lu ír a m. A no çã o d e "s o c ied a d e d a s c u lt u ra s" cedeu lu g a r à d e "m u lt ic u ltu r alis m o" que os p olític os preferiam - aind a a té h á pouco t e m p o - porque ela fa z ia um c h a m a d o , um c h a m a d o à v arie d a de d e etnias e c u ltu ras que lhe são con t íg u as, p ara formar o m o s aico cultural de que falam os t exto s governamentais , um mosaico em que as co is as se justapõem sem se integrar de verdade. Hoje, é a noção de interculturalismo que a assume, mais vasta, que s u b li n h a a necessidade de uma dinâmica interior de troca entre as culturas. A práti ca artísti ca no Quebec é , ela mesma, um reflexo dessa pluralidad e d e culturas, visto que h á um certo número d e p r átic a s p lu r ic u lt u r a is que s ã o r e sultado de grupo s étnicos específi c o s ( g r e go, h aitian o , português , v ie t n a m it a, latino -a me r icano, italian o ) , o u que integram v á r ia s c u ltu r as, raças e co res no se io d e um m esmo grupo (C a r bone 14, Théâtre Repere e Robert Le p a g e, Pigeon International, Omnibus , Arts Exilio au théâtre) . No entanto, é preciso lembrar que , a cada vez que esse mul ticulturalismo fa z im p o r t ações, responde um multiculturalismo interno constitutivo d a identidade canadens e, uma vez que o país conta com d ois grup o s linguísticos: o francês e o inglês. As relações e n t re um e outro nem sem p r e são harmoniosas, mas uma tolerância recíproca, às vezes forçada , os leva a coexistir -. Falar de multiculturalismo n o Quebec é despertar seu lado sombrio. 4

Aos doi s grupos, cuja identidade ling uística se suste nta sobre uma identidade cu lt u ra l, acresce n ta -se u ma te rce ira cu lt ura: a a meríndia . única tensão a u tê ntica, g era lm ente esqueci da no con t ine nte.

AL I'.M D O S LI MIT ES : O I NT E RC U LT U RALl SM O .. .

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Por tan to, é s obre a problem ática multi cultural e interc u lt u ral co mplexa, in de fec t ivel me n te ligada a o s problema s d a lí ngu a , q ue se ins c r eve a prática do teatro e , de modo mais esp e cífico, o p roble ma prop o sto pela le it u r a d e o bras d e Sh a kespea re n o Q u e b ec. É co m p le tame n t e inútil le rn brar aqui o quant o a dec u p a g e m d o rea l e a a r t ic u la ção do p ensamento são profundam e n te d ete rminados pel a s pal avras que utili zamos. É em t or n o de uma língua q ue s e o pe ra a integraç ão d e o u t r as culturas , é a t r a vés d o bia s d a integração das o u tras lí n gua s n a sua p róp r ia c u ltu r a qu e s e o p e ra, p or s ua v e z, um c e r t o i ntercu lturalisrn o s. Ora , o Queb e c se e s forç a e m vão, e le s ó continua a e xisti r n a m edida e m q ue a língua q ue se fa la é o fra ncês, apesar de to dos os quebequismos e particular idades locais. A língua impregna tudo e forç a uma a p reensão particular do mundo . Esp e c ific a men te , se h á um d omí n io o n d e a líng u a é fun damental, de cer to, é aqu ele da o b ra lit erária e, particularmente aqui , o da ob ra dramatúrgica. Ora, para todo quebequense q u e se s a ib a , é impossível ignorar os grandes m odel o s d a h istória: Molie re, R acine , Beckett , Ionesco , G e net, p a ra c ita r ap en a s a lguns que esc reveram e m língua fra n cesa. Em consequê ncia de o a r tista d e t e atro ressentir-se de uma a lie nação face a esses t e xto s muito distan tes d e seu falar cotid iano, é qu e os a n os d e 1970 p rOInovera m a rejeição a todo s esses modelos tão dist a nte s q ue tendiam a eliminar a identidade lo cal. Nos anos de 1990, retornou-se bastante a essa re c u s a s iste m áti ca e vár ios en c enado r e s quebe quens es - d e Je an Asselin a Alice Ronfard, passando por René-Richard Cyr, Yves D esgagnés, R o bert Lepage, Gilles Maheu, Denis Marleau , Lorraine Pintal - mon tam hoje em d ia textos ant igos e con temporâneos s e m se e n r e d a r nos p rob lemas da língua . Is s o não impediu q ue Shakespeare ti v esse proposto no passado - e coloque ainda h o j e - algum prob le m a 5

"D' u rie faço n g érr éra le, c'est le lang a g e q u i d orm e acces à la cul t u re, e t e n p art ic ulier aux identit é s culture lles d ífféren tes d e la n ôtre, Corr cr êternent, il est b ien clai r que dans le rapport à la c u lt u re de l'Aut re, le p r e mí e r obstacle au q u el o n se heu r t e , cest l'obstacle d e la langue , Iobstacle d e s langue s (au plur íel ) . To ut co m me nce p ar là: ces t la p ar tie visibl e d e l' íc e b e rg " (De um m odo geral , é a li n g u a g em q u e m d á acesso à cu lt u ra e , e m par t ic u lar, às id ent idade s c u ltu rais dife ren tes d a n o ss a. Co ncretamente, é claro q ue em rel a ç ã o à cul tu ra do Outro, o p r imeiro obstác u lo co m o q ual n o s d e b a temo s é o da lín gu a , o obstácu lo das lí n gu a s (no plu r al ). Tu do começa aí : é a pon ta d o iceberg), n o s di z Iea ri- Ren é Ladrn ral, Edmo n d Marc Lipian sky, La C o rnrn u nication intercu lt urelle , Pa ris : Armand C o li n , 1989, p . 21. í

LI N G U AGEM E A P RO P R IAÇ Ã O

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n a medida e rn que ele sobreveio em traduções e que estas são freq uentemente realizadas na França, donde a necessidade de retraduz ir os te x to s no Q ue bec, de reter r itori a lizar o au tor e a ssim o faze ndo, retomar posse da lite r a t u r a". ' Foi o que fez Michel G a r n e a u , um dos primeiros a tentar com s u a tra d ução de l\Ilacbe th para o qu éb écois", publicada em 19 7 8 . Sem fa la r no gesto político que o texto representav a à época, é eviden te q ue a t r a duç ã o de Nlacbeth para o qu éb écois trazia um p aladar mais sh a k e s p e aria n o para o texto , d e um rn o d o que n ã o fa zi a , por exem p lo, a trad ução an te r ior d e F rançois -Marie H ugo ou, m ais pró xim a de nós, a d e Yves Bon nefoy. O n es t encôre ben é loég nés dno tar r iv ée . Oh , qu e cest q ui s urgi t là! Tout v íe íll'z.ís, tout entortillés da n s une confu sion D 'artifai lles a bom ina b les . . . Y-z-on t l'aparcevan c e d ê te E tra n g es à terre .. . p our tant son t v is ib el me n t présents. E tes-vo us d es corps humains e n v ie ou b en d es cadâbes ? Avez -vo u s co m me qui dira't e u n e p arl ure quon p ourras e n te n de? Vo us m 'a ve z l'ai r de com p re n d e de quoé cest que j'dis . Rg ârd . . . Aveuc le u s d oigts tout eilichés, ca s' to uch e les leuves C hac u n son touro Vous avez quasiment l'air dête des c ré a t u res, S i que vous avi e z pas d 'barbes, j'e n s'r as pluss e ca r ta in. ( 1,3,20 -2 1)

BANQUO :

O modo de s e reapropriar dos textos pelo bias d a língua é o p rimeiro degra u d e s s e interc ulturalismo lite r á rio q ue Bonnie Marranca c hamav a d e s u as oferendas e m se u li vro Intercult u ralismo e Perforrnan cer. Trata - s e de urna prim eira form a d e 6

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Para m a is d etal h e s sobre a questão da tr adução de tex to s d ramáticos no Quebec, nós re ferimo s ao estudo bem interessante fe ito por Annie Brisset em seu Sociocritique de la trad u ction: Th éâtre et al te rité au Québec (1968-1988), Longueuil: Le Pr éarnbule , 1990, assi m como ao n úmero d o s Ca h iers d e th é âtre lE U, 56 , 1990, d ed ic a d o ao te a tro . Em p o rt u g u ê s não h á equival ente ao termo québ éco is p ara nomear o idioma, por iss o , prefe rimos m anter a expressão. (N. da T.) " Tha t i n terc u lt ura l wri t i ngs h a v e n ot made a m ore s u bs tantial a lte m p t to bri n g into the di s c o u r s e th e d ifficult q uestions of d r a m aturg y, o r to exp lore t h eir own literary ambig ui ty, is regrettab le, especia lly since in terculturalism can b e understood more broadly a s a form of in tertextualism" (Que escritos in te r cultura is n ã o te nha m feito u m a ten tativ a mais s u b s t a n ci a l d e tra ze r p a r a o interior do di sc urso as questões dtfíceis da dram aturg ia , ou e xp lorar su a própria ambigu idade lit erária , é lamentável , e specialm ente, desde que o interc u lt u ra lis mo pass ou a se r entendido m ai s arnpl arnenre co mo uma form a d e

LI N G U A G E M E APRO PRIAÇÃO

ALÉ M DOS LI M IT E S: O I N T E RC U LT U R A Ll S M O .. .

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importação e adapta ç ão de u m texto "estran gei ro" e m uma c u lt u r a e uma língua loc ai s. É claro que Shake spe are ultrapassa as espe cificidades regionais e mesmo nacionais e q ue el e é, m ais que n enhum outro , u m autor u niversal, po rém s ó permanece a ss im n a m edida e m q ue a es co lh a da língua d e ap re s e ntação não é in d ife re nte. Essa fo rma de t r a d uçã o- a d a p taçã o " d e t e xto s d ifere n t es daqueles que sobressaem d e deter m ina da c u lt u r a - aqu i, a queb equense - imp ôs - s e n o s lt irnos vin te anos c omo uma necessidade , porque e la faz fron te ira com a afirmação de uma identidade lo c a l. Ora, esta passa necessariame nte pela língua. O pro b le rna aumenta porqu e no Q uebec a lí n g u a n ão cons is te propr ia m e rr t e ern falar o francês ta l como praticado na Fran ça, na Bélgica o u em qualque r o u t ro p a ís francófo no. As b ases d a s d uas língua s são d e c e rto idêntic a s cria n do aparen ternerite u m fenô m eno de reco n h ecimen to que se presta às vezes à ilus ã o , mas, de m odo geral, o resu ltado d e superfície, aquele da lí n gua fal ada coti d ia n a men te, é b em d iverso, id iomático, dando a impre ss ã o d e o u tra língua. É que a língua falad a n o Quebec possu i n u merosas estru tu ras s in táticas e lexicais que lhe são p róp r ias, acrescidas d e u m sotaq ue - o u sotaques totalme nte específico s. Se acrescen tarmos a t u do iss o o fato d e que essa lí ngua é, e m g ra n de par te, p opu la r, com p ree n de rerllos a co m p lexidade do problema que s e c o loca a todo art is t a que d es ej a tr a d uz ir para o q uébéco is um t exto advindo d e uma outra c u ltu r a . As sol uções t amb ém s ão va riadas, segu n do as é pocas e a evolução d o prob le ma identi t ári o d o Quebe c; a tradução -adaptação de Garneau p ara Macbeth em québ écois (le m b ro q ue estávamos em 1978) rep resen to u um a d ata imp o rtant e na afi r mação d e s s a língua e d ess a identidade". ú

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intertextu alismo ", ver Bonnie Marranc a; G a u ta m Dasgupta, lnterculturalism and Pe rfo r man ce, New York: PAI Publications , 1991, p . 18 -19· Essa oposição entre o q ue pode ríamos ch a m a r um intercu lturalism o literári o (o u dramatúrgi co) e um interc ulturalismo pe rformati vo ou cé n ico está ce r ta m e n te no ce n t ro d a problemátic a qu e n o s interess a aqui. Para m a is d et alhes so b re a quest ã o d a traduç ã o , ve r l. -R. La d m i ra l; E.M . Líp ía n sky, o p. c it .; a ssi m c o m o A nn ie B ri sset, So ci o critiqu e d e la tr adu ct ionBriss e t afi r m a qu e a t raduçã o to r n o u -se maté ria p ara esc r it u ra. No m esm o s e n t ido, Ga r nea u re a liza r á um Ci d mag an é a bo rd a n do, desta vez, a li te rat ura fran cesa .

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Assim, a ten tativa de a propriação lingu ís t ic a d o t ex to de Shakes peare te ve , e m s u a o r ige m, o objetivo p rincipal de afi rm ar a identidade d e uma língua - o q uébéco is - (e e m s eg u id a de uma " p á t r ia" ) que p oderia critic ar o s grandes textos e fazer »>: -Ih es justiça. Po r t a n to, o res u ltado imediato foi a aprop riação de u m texto clássico q ue s e enriqu ece u com o ap orte li n g u ístic o . E n t re t a n t o , ao montar Macb eth e m 1992 n a Inglaterra e na F r a n ç a, c o m a mesma tradução d e Garneau, Robert L epage tinha um objetivo totalmente diferente, o co n tex to hi stórico en t ã o havia mudado. C o m e fe it o, para Lepag e , não se tratava , d e maneira ne nhuma, d e fazer uma d eclaração p olítica s e melhan te àquela de Garneau alguns anos antes. Ao retomar a trad ução de Gar neau, Lepage proc urava reencontrar a a spereza do inglês d o o r igi nal. Ass im, ele agia ape nas p o r fidelidade ao t exto e n ã o ma is co m u m a p r e o cupa ç ã o d e afirmação identitária. A lín gu a tor nava-se u m meio, u m veícu lo para melhor fazer o espec tado r entrar no u niverso s hakespeariano, para mel hor restituir a lg u ma coisa d a ve rdade d o t exto . A p r e o cupa ç ã o era puramente estétic a, a r tíst ic a e Shake spe are foi b em retribu ído . N esse s e n t id o, cabe o b ser var qu e o Macbeth d e L epa g e foi m u ito b em receb ido n a I nglate r ra e n a F rança, onde os críticos d estaca ra m a rique za da língua e a sensuali dade d o s corpos. Em com p e nsação, el e foi re c ebido com fr ieza no Q uebec p o r cau sa d a interpretaç ão d o s a t ore s , julgada insuficiente. Fato in teres s a n te foi a língua utili z ada - m uito pró xim a e , no e n ta n to, diferente d o québ écois (essa língu a , com efeito, n ã o existe como tal, co m u m voca b u lário e uma s in taxe d e fi nido s ) - , q ue d e s a g radou p orque e la n ã o permitia, em r a z ã o de s ua p roximidade d o québ écoi s, a distânc ia c rítica q ue os espectado res n a França co ns ide ra ram t ã o s uges tiva , por tanto, a língua não operou como m e io d e sed ução. D e fa to, a escolha da língua n o Macbeth d e Lepage advém d a m e sma pre o cupaç ã o m anife s t ada p o r A r iane Mnouchkine quando el a reco r re u à estét ica d o te at ro n ô e d o k abuki p a r a m ontar seus próprio s Shakespeares. Ao insp irar-se e m t éc n ica s d e in terpretação pertencen tes a u m a c u ltura e uma t r a d içã o tea tral d ist in t a s '0, Mnouchkine e ntendia isso como o meio de fa zer 10

As tradi ç õ e s asiát ic a s p are cem p ara IVl no u c h k in e as úni c as ve rdade iras n o cam po d o te at r o . C f. On n'inve n te p lu s d e thé o ri e s du jeu dans le d om ai n e

ALlÔM DOS LIM ITES: O INTERCULTURALlSMO ..

LINGUAGEM E APROPRI A ÇÃO

compreender e ver Shakespeare d e m odo diferente , reti ran d o- lhe de re p rese n ta ções tradi cionai s às quais e le fora s ubmet ido. Ao c r ia r al gum efeito d e di stanciam ento, ela forçav a o espect a d o r a o lha r d e o u t ro m odo. Havi a aí o d e sejo d e re stituir ce rta pureza ao tex to , d e renovar a esc u ta d o público. Portanto, lo nge de ser p olític o , o e m p résti mo foi puramente estético, p ara o ben e fíc io exclusivo do texto, da representação e do espectador". Long e de fazê -lo com outra cultura como o fa z M ri o u c h . kine , é paradoxalmente ao emprestar de s u a própria língua que G arneau e Lepage se reap ropr iarn do texto de Shakespeare. Mas, em ambos os casos, o efeito visado e obtido é totalmente diverso, para não dizer contraditório. Para Garneau, o uso do québécois permite reapropr iar-se de Shakespeare desalienando o públi c o de um francês normativo no qual este último não se reconhecia à é p o c a. Portanto, há algum efeito de aproximação. Para Lepage, contudo, a língua não permite aproximar o texto do público, mas, ao contrário, distanciar-se para melhor apreender o que pode ser a língua de Shakespeare em sua época. Se acrescentarmos a isso o fato de que seu Macbeth foi inicialmente apresentado para um público francês antes de sê-lo aos quebequenses, compreende-se por que a recepção em ambos os lados do Atlântico só poderia ser bem diferente. Aqui, a contextualização é capital para melhor compreender e analisar não apenas as intenções do artista, mas também as reações do público" . É ainda mais interessante constatar que, dez anos mais tarde, quando Garneau publica as traduções de Coriolano (encomendada pela Ecole Nationale de Théâtre) e de A Tempestade,

sua s traduç õ e s , mui to poét icas, não poss uenl quase nenhum q uebeq u ismo; co m mui to t rabalho, pe rcebe-se algumas singularidade s d e uma língua q ue pe r manece mu ito b el a para ouvi r, p o r exe rnp lo, em Co riola no:

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du th éátre, C a h ie rs du th éâtre [eu , n . 5 2 , 1989, p . 7 - 14. Publi c ad o numa ve rsão ingl e sa em The Drama Re view, n . 124. 1989, p . 88-9 7. C f. t amb ém 1. Feral, R encontres a vec Ariane Mn ouchkin e: Dresser un monument à l éph ém êre, Paris: XYZ; Montréal: Éditions Th éãtral e s, 199 5. É d a m e sma preocupação que advêm o s empréstimos de d anças indianas feitas e m Os Àtridas, a preocupaçã o d e Mnouchkine e do Théâtre du So leil foi d e en con trar um modo de apres entar o s coros hoje, redescobrindo-lhes alguma coisa da impress ão que eles deveriam dar à é p oca de Ésquilo e Eurípides. É exa t a m e n t e o que enfatiz ava Mikhail Bakhtin ao a fi r mar qu e "o centro nerv o s o d e toda enunciaçã o . d e toda e x p r e ss ã o não é interi or. m a s exterior; e le está s ituado n o m ei o soc ia l qu e c erca o indivíduo". ver Le Ma rxisme et la philo sophie d u langag e: Essa is d'a p p lica ti o n d e la m éth ode socio logiq ue en li ng uisriqu e , Pa ris : M in u it , 19 7 7. p . 13 4. Po r ta n to, é e x at am e nte a socieda d e re c eptora que co lo re o s en t ido de u m a traduç ã o . É o q ue d iz também B ri ss et q uan do afirma qu e a traduç ã o opera n o di scurs o socia l. ver o p. cit., p . 252.

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E le trata o melhor butim Co mo se fosse u m a isca Ele é mais mesqu in h o que a m iséria Qu ando se trata d e se r p ago E c o ns ide ra que seus a tos São s u a úni ca re comp ens a . ( II, 2)'3

C O M ÍN IO :

A história do Quebec se n d o novamente alterada , a rel ação c o m a própria língua também rrruda. Por sua vez, Jean-Pi erre Ronfard v a i se estender mais n essa refl exão. Apareceu em 19 79 c o m o desejo de levar adiante um projeto intitulado "Shakespeare Folies, un théâtre de variétés peuplé de personnages shakespeariens" (Folias de Shakespeare, um teatro de variedades povoado de personagens shakespearianas), que Ronfard finaliza em 1981 ao criar uma obra que ele vai intitular Vie et mort du roi boiteux (Vida e Morte do Rei Manco), vasto panoraJna shakespeariano no qual se encontra o enredo de Ricardo III e de H enriqu e IV, acrescido de excertos de Hamlet e Rei Lear, aos quais se acrescentam num erosos excertos, citações e acenos a toda a literatura: de Racine à Bíblia, de Brecht a Aristóteles, de Anouilh a Trernblay, Toda a literatura está aí de modo que cada um seja capaz de possuí-la: e m parcelas, povoada de imagens, de estereótipos, de mito s , de lembranças de leituras, de tiradas aprendidas anteriormente. As personagens mitológicas coexistem com aquelas que realmente viveram: Mata Hari ao lado de Joanna D'Arc, Moisés e Einstein, Ricardo III com Francis co I . O prólogo dá o tom: Entra a horda humana [ . .. ] composta de uma quinzena d e p erso nagens heteróclitas entre as quais há obrigatoriamente um monge cego e possivelmente uma gueixa japonesa, uma mendiga da rua Saint-Denis, 13

" C o rn rn in ius : II traite le m eilleu r Du t in I co m me si c 'é tait de la boue tte I ii est plus c h ic he q ue la m is ere II quan d ii s'agit d 'ê t re p a yé I e t conside re que ses actes I so n t sa seu le r écornpe n s e"

LI N G U AG E M E A P RO P RIAÇÃO

A LÉ M DO S LIMITES : O I N T E R C ULT U R ALI SM O ...

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um lenh ador queb equense, um escocês, um ha re krishna, u m a dama distinta , um homem -rã , u m gerente d e banco com sua maleta, um travesti , uma banhista, urna vegetariana, u ma enfermeira, um a ge n te de seg u r a nça , um. guerreiro rorrr arro, uma da ma da Idade Média com se u h en nin , um m arquês do século X V II, Rob e sp ierre, o aiatolá Khomein i, Golda 1'vlei r, um c os m o n a u t a , um á r a b e , o Apo lo d e Belvedere, .!vIana Lisa o u A Liberdade Gu iando o Povo, de Delacroix, a lg umas cr ianças, alg uns a ni m a is do rn ést icos.':'

C o m o e m Shakespeare , e o u tros tan tos, a cena d o teat r o é o m undo e as personagen s v iajam d e u ma cena à outr a : d o Azer bai jão ao topo do Mon te A rarat; d o d ese rto nas planícies d o Cáucaso; d o s cam pos d e batalha d e Varincourt aos quintais d o b airro d e Arsenal o u ao Café Spartacus; d o j a rdim do rei Ri c ardo a o topo do Emp ire State Building ; d as p ro fund e z a s d a A mazôn ia a Samarka n d . Os n íveis d e linguagem s e s uce d e m e o t exto p a ssa, se m t r a nsição , d o dis curs o da corte ao dis curso da rua, da linguagem polida à popular, da li n g u ag e m da tragédia àquela da farsa.

A n n ie , e u e s to u na rnerd a . E nfi m! Iss o d e ve a conte c er co m você , c o m o a to d o rnu n d o , Envelhece s, m anco, a penas isso. R I CA R DO : N ão rne a m o le, estou e m c aco s." RI C A R D O:

ANA :

Para es t a releitura bem pessoal dos clássicos, R onfard a crescenta uma ficção c r ia d a a partir de todas as peças, im p o r ta n d o para a vida de u m pequeno bairro de Montreal - o bairro do Arsen a l - as luta s fratricidas e reais q ue opõem os clãs na obra d e Shakespeare. Aqui, é a genealogia dos Ragone que afronta aquela dos Roberge em combates s a n g r e n to s, e m combates de r ua que dife re m p ouc o d a q u el e s d as cortes. Atrás do R e i Manco, há todo um m u n d o que se perfila: R icardo II, certamen te, m a s também H amlet e N e ro. A trás de Catari na Ragone, es tão ao m esm o tempo Catarina II e Catarina de Médic is, mas também Agripina o u a mãe d e Hamlet. P a ssando de u m a a o u tra, o d iálogo permite ao espec tado r v iaj a r e m to dos esses un iv ers o s sem dis c ri min a ç ão . A p roxi me-se Nero, e tomai vosso lugar É tempo que e n t re n ó s a luz se fa ç a Eu ign o ro d e qual crime puderam m e calu n iar De todos aquel es que e u come t i, e u irei vos esclarecer [ . .. ] R ICA R DO : O lhai es ta pintura. Ve de que g raça respira sob re esse rosto! A f ron te d e Jú pi ter e m p e ss o a ! É a face d e m eu pai, F rancisco Primeiro. Vosso marido (ele prende o medalhão d o p es co ç o de Catar ina). E ago ra o lhai p ara este, o a ma n te que to m ou seu lugar: um h orror! Vó s poderíe is a pagar a lembr anç a d esse á pice esplê n dido p ara c hafurda rdes n e sse lafue iro [... ] (7° d ia , 13),6 CATA R INA:

A C idade do R ei Manco, 6 2 d ia, 7-

O M aj e stade , vós m e s u r p r een de is e m minhas o c u pações d omé stic a s! D e s culpai -me . Não sei c o mo r e c onh e c er a g r a n de h on r a que m e fazeis [ . . . ] RI C AR D O : Con dessa. N ã o vos p erturbai. Não sede e m o t iva a ess e p onto. ANA : E u s o u, Majes tade . P ens ai, e n tão. O r ei R icardo , me u r ei! Neste lu gar! S u bitame n te ! Às o nze h oras d a m anhã, e nquan to eu p reparo a comi da ! U ma sala d a d a estação c om e rvas m edicina is, seg u n do o s preceito s vegetariano s d o h erborista da co rte. E vó s, sir, e m t oda vossa g lória, em v o ss o g ra n d e traje s o lene, c om a c oroa e o cet r a ! [ .. . ] AN A :

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"En tre la horde humai ne [ . . . ] composée d 'u ri e q ui nzaine de p ersonnages h étéroclites parmi lesquels ii ya obligatoirement u n moine aveugle et possib lement une geisha japonaise, u n e clocharde de la rue Saint-Denis, u n b üc h eron q u éb écoís, u n Ecossa ís , u n h arikris h n a , un e d a m e d is ti nguée, un hornrnegre nou ille, un géra n t de banque avec son suir-case, un trav e sti, une baigneuse , un e végétarien ne, u n e garde -malade, u n agent de sécu rité, un guerrier romain, une dame du moyen-âge avec son h e n n in , un marquis du XVIIeme sie cle, Rob e spierre , I'Ayatollah K hom einy, Gold a Meir, un c os mon a u te, un Arabe, I'A p ollon du B el véd ére , Mon a Li sa o u La Liberté s u r les B arricades d e Dela c ro íx, qu elques enfants, q u e lques a n im a u x domest iques': Je a n - P ie r r e Ronfard , V ie et mort du roi b oi teux , Montréa l: Leméac, 19 81 , p . 38.

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La C ité du Roi boiteux , VI eme j o u r n é e , 7. ANNfE: O Majesté , vo us m e su rpre n ez d ans m es occupations m énag êresl Excusezm o i. Ie n e sais comment re con n ait re le grand honneu r que vous me faite s [.. .]. R I CHARD: Com tesse, n e vous trouble z pas. Ne soyez pas ém ue à c e pomt. ANNfE: [e le suis, Majesté. Pens ez -d onc. Le roi Richard, mon roi! Dans ce lieu! A l'i m p ro v iste ! à o n z e he u res d u matin , p endant q ue je prépare le manger ! Une s a la d e de s a is o n aux simple s des bois, se lon les préceptes végétariens d e I' herboriste de la co uroEt vo u s . Sire , dans to u te votre g loi re, dan s v otre g r a n d cos tume d 'a p parat, avec la cou ron ne e t le sceptre ![ .. . ] R I CHARD: A n nie, je s uis d a n s la mer de. ANN IE: E nfi n ! Ça devait t'arriver comme à tout le monde. T u vieilli s, le bo úi t e ux, cest toute . R I CHARD : Bouscu le-moi pas, j e suis e n morceaux. C A T H E R I N E : App ro che z -vous N érori , e t pren e z v o t re p la c e II e st temps qu 'entre n ous la lu rn ie re s e fass e J'ignore d e quel crime on a p u m e noircir

LI N G UA G E t>1 E A PRO P R IAÇÃO

ALI'.M DO S LIMIT ES: O INTERCULTURALI SM O . . .

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N ós citamos no início deste t ex to a reflexão de Bonnie Marranca sobre essa incapacidade q ue reveste uma cer ta forma de inte rc u lt u ralisITIo para integrar as literatura s de o u t ras c u ltu ras e ID u rna m e sma fo r ma de esc rit ura qu e interroga s ua própria ambig uidade e insc reve se u p ró p r io con texto cultural. Uma das g ran des qualidade s d o tex to d e Ronfa rd é precisamente jogar com t oda s essas litera tu r a s rec usa n do- lhes ao mesmo tempo o s imp les e m préstimo d e o u t ras língua s , cult uras o u tradições ar tís t icas - seja m es tas tã o impres si onante s quant o p ode sê- lo a o b ra d e um Shake spe are ou a q u ela de um Racine po r exemploe a a daptação. Ronfard opto u por um a inte gra ç ã o comple ta em q u e t e xto s d e o rigem se to rnaram parte integ rant e de uma o b ra o r iginal e to t alm ente p e s s oal. P o rtanto , ao se rvir-se d o s rriocl e lo s d a gran de literatu r a e ao res t a b e lecê- los ao n ível do qu otidian o , ao lh e s colocar igualmente e m p aralelo co m a mitologia lo cal c r iada a partir d e t odas a s p e ças , R onfard n ão a pe n a s desrnorita os mecanismo s conduzindo a uma admi ração paralisante do s textos, mas ele faz um texto que lhe é próprio e que é propriamente québécois. Então, como c o m p ree n d e r toda est a g enealogia sem conhecer alguma coisa da literatura quebequense (a de Trernblay, por e xem p lo ), sem ter um co n h e c im e n t o - s eja este s u p e r fic ia l - do m ei o quebequense e m que ela se localiza? Aqui, a contextualiza ç ã o da obra é uma vez mais indispensável à sua co m p r ee nsã o. E la a enriquece com um nível de leitura que escaparia de o u t ro modo a o esp e ctador. Mas e s t a contextuali zação vai bem rn a is long e n a m edida e m que ela inscreve um a form.a d e " in t e r c u lt u r a li s m o dram a t úrgico" que se dobra em um interculturalismo evid e n t e . C o m e fe it o, caso se defin a o interculturalismo, como o faz L.E. Sarbaugh, através do nível de h eterogeneidade dos p articipantes e m p reseriç a " , assim, c ompreende- s e toda a riqueza d a o b ra

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De tous ce ux qu e j'ai faits je va is vo us é claircir. [ . . . ] RICHARD : Regardez cette pe int ure. Voyez quelle grâce respirait s u r ce visage! Le fron t de Ju p ite r lu i- m ê m e ! C'es t la face de mo n pere F rançois P remier. Votre mari (II ar rache le médaillon du cou de Catherine) . Et maintenant regardez ce lu i-ci, l'a ma nt qui a pris sa pl ace : u n e horreur! Avez-vo us pu effacer le souven ir d e ce sommet s p le n d id e po ur vous vautrer dans ce marécage [...) C f. os d iversos empréstimos feitos por Ivlnouchkine de formas artísticas in spiradas em dife rentes culturas asiáticas em Os Átridas.

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de Ronfard. Daí em diante , c o m p re e n d e- s e t amb ém por qu e toda tradução dessa obra torna -se difícil: v is to que ela não deve a pe nas restituir todos os níveis de línguas, mas também trazer co nsigo todo um universo feito de sobreposições . Aqui, não se trata de modo algum de um interculturalismo cênico t a l como aqueles que p u de ram fazer Brook, Mnouchkine ou Barba, m uito menos se t r a t a de passar UD1a mito logia de uma c ultu ra para a o utra. Trata-se sobretudo de apresentar o modo segundo o q u a l as m it ol ogi as se tra n srnit e rn de uma c u lt ura a o ut ra e po dem se integrar de ntro de uma mito logia local fictíc ia . Com efeito, o res ultado é um nivelamento das literatu ras: literatura nobre e lite r atura p o pul ar, lingu ag em p olida e p opula r, p ers o n a g e n s d e fi c ç ã o e p e rs o n a g ens h is t óric a s . To dos d o mes mo modo animam esse uni ve rs o e rn q u e não h á mais o a lto n em o b a ix o , o n de n ã o h á m ai s cl a s s e s d efinida s, d e c ul t u ras nitidam ente disti n tas, d e p ropriedade s culturais. D e fa to, h ouv e um ap o rte ex ter ior, m a s n ã o colon izaç ão c u ltu r a l. O s di versos e m p r ést im o s foram absorvido s, trans formado s , digeridos. Eles saíram d aí capacitados para uma segunda v ida num t exto p odero s o , se n d o bem - suc edidos numa integração d a s c u lt u r as e d a s literaturas, n o plural, para uma c u lt u r a lo cal qu e se e ncon t ra agora e n r iq uecida. É preciso fa lar d e ac u ltu r ação, d e encu lt uração (e ncu lt ura tio n) ou d e trans cultura ç ã o? A que stão co n t in ua a ser dis cutida. Analisou-s e com frequên cia a o b ra de R onfard a partir do modelo d o carnaval bakhtiniano. P o r s ua vez, a a nálise, p or mais justificada que seja, aparentemente pre cis a ser ultrapass ada ou ao meno s reno v ada à luz dess a v isão intercultural que s e es b oça. E n t retan to, uma questão p erdura : t ai s transferênc ias podem viaj a r em direçã o a o u tr as c u ltu ras que as t omariam de em p réstimo p ara integ rá -l as a seu modo?'8 Is so n ão es t á claro , n a medida e m que o pro cedimento só p ode ser específico e rn u m lugar, um p a ís , um a de te r m i nada c u lt ura. Seria iss o uma confissã o de fraca ss o ? Totalmente c orreta é a afirm a ção d e que o interculturalismo pro v a velmente possui limites . Trad. A driano C.A . e So usa

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Dito d e o u t ro mod o, seria possível retradu zir o texto de Mi chel Ga r nea u?

2. Percepção do Intercu Itu ral ismo o exemplo de Ariane Mnouchkine

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As diferentes teorias que abordam a questão do espectador procuram traçar-lhe o perfil e o funcionam ento, seja em termos estatísticos (estudos sociológicos), seja como ser passivo, que reage ao estímulo da representação, colo cada em prática pelos realizadores do espetáculo (autor, atar, diretor, c e n ó g r a fo ) ; seja, ainda, como ser ativo construindo o espetáculo a partir de proposições que lhe são feitas. Com efeito, as distinções são apenas teóricas, em favor das necessidades dos estudos efetuados. Na realidade, o especta dor é ao mesmo tempo determinado por uma soma de fatores (sociais, físicos, emotivos, culturais, estéticos) que o condicionam e sobre os quais não possui um compromisso verdadeiro, mas ele permanece pouco livre de suas reações face à representação dentro da qual escolhe seus elementos de leitura, de interpretação, de apreciação. Assim, há em toda representação determinismos impostos pela mise-en-sc êne, ela própria um condicionante do espectador, e determinismos que pertencem propriamente ao espectador, Esse texto fo i ap rese ntado no Co ngresso d a GETEA (Grupo de Estudios de Teat ro A rgentino e Ib e ro a m e r ic a n o ) , em B uenos Aires, jul. 1999.

ALIÕM DO S LIM IT ES: O l N T E R C U I.T U RA Ll SM O . . .

P ERC EPÇÃO D O rN T ER C U LT URALISMO : o EX EMP LO DE MNOUCHK INE

qu e fazem co m que ele vej a uma apres entação apenas através d e de ter m in a das grades e a lg u mas categ o ri a s. Mas h á t a m b é m, para a lém do s d eterminismo s , uma ce r t a liberdade d o espectad o r que o d eixa livre p ara se interessar pela r epre s enta ção O u p ara n ão s e interess ar e, caso ele s e i n te resse, d e orientar SUa ate n ção aos elementos que e le privilegia . Ri chard Schechner obs erva q ue, fa c e à abundâ ncia d e estímulos q ue o es p e c t a d o r re c ebe no decurs o de uma representaçã o teatral, e ste último e scolhe e s elecio na. A propósito disso, Schech ne r fala "de inatenção sele t iv a", insistindo não s o b r e o qu e o esp ec t a d o r r et érn, rnas s o b r e o qu e el e esc o lhe eliminar. Todos nós j á fomos vítimas d e sses mom entos "d e inateri ção"

Ocorre ig ua lme n te qu e M rio uchkine jamais ped iu a se us at o re s p ara interpretar "à la japonesa" ou mesmo para aprender regra s d a a r te d o kab u k i, p or exem p lo. E la s imp lesmen te d eu o te atro japo nês COIno m odel o ex te r io r, a o ci rc u lar imagens e fot o s, ao faze r v e r film es , ao recome n dar ce rtos liv ro s e p edir aos a tor es para encont rar, c a d a um , uma via que lhe fo ss e própria para dar a mesma impre s s ão de presença e xtrem a qu e ve i c u l arn as peças o r ie n t a is . G e orge s Bigot, por ex e m p lo , que foi um Ri cardo II m emorável, afirma que e s tud o u , durante esse mesmo p eríodo, o savate - e n ão o teatro oriental - a fim d e poder des c obrir a pres ença do co r po, a rapidez d o gesto , a tonicidade do movimento que o o lh a r profano do públ ico e n co n t r a r á completamente "j a p o nês': Portanto, é a partir de s eu p ró p r io imaginário q ue os atores r e criam esse Ja pão imagin ár io, inspir a n d o -s e, e n tre o utros, em filmes ele Kurozawa e Mizoguchi, imagens pop u lares d e samu rais, li v ros e seu conhec imento, mesmo s ucinto, de fo rmas teat rais . N ã o é s u r p reen den te, p ortanto , que semelhanças tenham si do p erc ebidas entre a interpreta ç ã o d o s a tores d e M no uch kine e um est ilo d e inte rpreta ç ã o "japonês': semelhanças q ue perm itia m ao público projetar elementos d e "japoriidade" mesmo o n de n ão havia. Efetivamen te, todo mundo lh e convém, M nouchkine, excepcional: os Shakespeares não eram nada japoneses. A com u nicação p ass ava assim a través de d ois imag in ário s que se e nco ntrav am: o d o a tor e o do espectador. Po rta n to, é a t ravés d ess e Japã o imaginário, q ue o es pec ta d or rec riava a seu modo, que o contato se fazia e q ue o prazer de recon heciInen to se estabelecia. O espe tác ulo s e dava como japonês em sua totalidade, m a s não no detalhe. E le despertava no espírito d o espectador a im a g e m desse Jap ã o conhecido de todos, mesmo daqueles q ue jamais estiveram lá.

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Ricardo

II

à la Jap o n esa

E m 1981, A riane Mno u chkin e e o Th éâ t re du So le il aprese ntaram ao público fran cês u m a série d e t rês peças shakespea ria nas: Ricard o II, He nrique I V e Twelfth N igh t (Noite de R eis) . As peças foram apresen tadas em turn ê de 19 8 2 a 1984 em Munique, B erlim , Avignon e são a atração de en cerramento do festival olím p ico d e Los Angeles. A acolhida recebida p elas três peças do Théâ tre du Soleil é adm irável. Para essas três peças, o Th éâtre du Soleil a dotau um estilo de in terp retação j ap on ês pa ra R icardo II e H enrique t v e um es tilo de interpreta çã o in dian o, in spirado no Kathakali, para Twelfth Nigh t. Os críticos são u nânimes. Eles f al a m d e "S a m u ra i d e S hakes p eare" (L e Monde), d e "Sh akespea re em Quimono" (L'Hurnan ité], de "nô" shakespeariano (EEspo ir) . Eles di zem que, com Mno uchkine, Shakespeare se torno u japon ês (France Sair). De mo do surpreen dente, Mno uchki ne co nvence a m a io r ia do p úblico a través de s uas escolhas artís ticas, m e sm o se essas esco l has não são, e m n ad a , fi éi s às formas d o teat ro j ap o n ê s nas q u a is e les se insp iram e às qu a is somos o r ie n tad os a r el a ci oná -la s : n k abuki. O interessan te nessa démarche d e Mnouchkine é q ue jamais o teatro orie ntal foi colocado como m odelo para imitar, mas simple smente como fonte de inspiração. ô,

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AB RAHAM MOLES: TEO RIA DA P ERC EP Ç Ã O ESTÉTICA À LU Z DA TEO RIA DA INFORMAÇÃO C o mo a n a lis a r essa p ercep çãoj To marei emprestado a Abraham Mole s c ert o s c on ceitos da teoria d a informaçã o e da perc epção

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ALf:M DO S LIM ITES: O INTERC ULT URALl S IvIO . . .

esté t ica - tí t u lo d e se u l ivro p u b lic a do em 197 2 - pa ra te n ta r a r t ic u la r como o pera u m a le itura q uase coletiva desses dois es petác u los de M nouch kine. Moles lig a si m u ltaneame n te do is c onceito s: o que ele cham a de g rau de originali dade pe rceptível n u ma me nsage m e o g rau de informa ç ã o que ela traz. A mbos, p ara ele, estão di retamente lig ad o s. Co m efe ito, para Mol es , não é o q ue se s a be que chama a a te nção (ou informa ) nurna m ensa gem - mas o que n ã o se sabe e q ue a parece, portanto, num a primeira abo rdag em , como o rig inal. Como lo cali z ar ess a o r igi nal idade ? A r e sp o sta d e M oles é qu e ela ocorre pelo g r a u d e imprevisibilidade , d o quanto há de inesperado. Trê s c o n c e it os estão e m j ogo aqui: o r ig i n a li da de , informaç ão e imprevi sibilidade. N o caso que nos pre o cupa, a imprevisibilidade do espetáculo de Mnouchkine vem, e m parte, de ssa componente japonesa que ela escolheu dar à p eça de Shakespeare e que é a marca de sua mise -en -scén e , Um quarto conceito vem se juntar aos três já mencionados. Com efeito, Moles observa que em todas as s it u a ç õ es de comunicação, a im.previsibilidade deve ter limites. Uma obra estética não pode se construir sobre a imprevisibilidade; esta necessita de um fundo de redundância s o b r e o qual pode se c o n s t r u ir. Por quê? Porque esse fundo d e redundância permite a inteligibilidade da e strutura. Em outros termos , isso significa que na mise - en -sc én e que Mnouchkine fe z de Ricardo II, a japonicidade só pode ser p ercebida como forma , visto que e sta última constrói uma ce r t a redundância: s igno s retornam nas máscaras, nos figurinos, nas maquiagens, na interpretação que enriquece a categoria d e "j a p o n ic id a d e" para o es p e c ta d o r e que permite identificá-la, reconhecê -la e lê-la no e sp et á c u lo. Uma redundância c r ia d a a partir das formas, lembrando que a forma, s e g u n d o Moles, é um a "c o n s c iê n c ia de previsibilidade': Digamos, então, que é a relação sutil entre r edundância e originalidade que faz a complexidade e o valor de uma obra e stética. Foram a redundância e a percepção de originalidade que provocaram no público, no caso de Mnouchkine, a persuas ã o que s e r ia necessária a um Shakespeare japonê s .

P ER CEPÇÃO DO INT ER C ULT URALl SM O : o E XEMPLO DE MNOUC H K INE

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Redundância e Originalidade po r q ue tomar esse exemplo na investigação q ue nos interessa aq ui? Porque o exemplo coloca um prob le ma. Agora q ue e u os co nvenci, ao menos, eu espe ro, que Ric ardo II te nha s ido realmente japonês, revelo q ue as mesmas referênci a s visuais a prese n tadas n o Jap ã o p a ra um público japonês n ã o fo ram, d e m odo alg u m, perceb id as como japonesas, recolocan do e m questão todo o pro cesso d e recepçã o d e q ue n ó s já fa la mos. O que faz co m que o m es m o espetác u lo tenha s ido p erc ebido como japonês p or ocid entais e d e m odo a lg u m pelos as iátic o s (s o b re tu d o, japones es). Ten tem o s compreender e ex p lic a r a partir de M ole s por que tod a s as referências j aponesas reconhecidas n ão foram r econh e cida s e apreciadas como tais pelo e spectador j ap on ê s. E s t e se q ue r a s viu ou rnesrno a s localizou. E uma vez mencionadas, n ão reconheceu sua pertinência estética. 1. O primeiro motivo vem disso que destaquei há pouco, no processo de trabalho de Mnouchkine. Seu trabalho com os atores jamais teve por objetivo reproduzir um Japão bem específico ou uma determinada forma artística japonesa, mas sobretudo de inspirar-se nele para restituir a aparência de um Japão imaginário. Portanto, a parte de subjetividade do ator foi muito grande ness e trabalho. Para ele, tratava-se de chegar o mais próximo possível de uma forma , d e um espírito, de uma linha que evocasse o Japão. Essas ca r a c terís tica s, Mnouchkine as fundiu , ela as construiu ao entrecruz á-Ias com elementos ocidentais (figuras eli sabetanas, gibões, cenários abstratos) que as atenuava e com as quais eles dialogam. Paradoxalmente, o cruzamento (estético) permite ao espectador ocidental perceber muito antes a japonicidade do conjunto, visto que o próprio espectador japonês percebia muito mais o ocidentalismo da mise-en-scên e. 2. O segundo motivo está ligado ao processo de percepção e de informação que coloca à prova todo o espetáculo. Esses processos, Moles os analisa assim: o fenômeno da percepção (e, portanto, da recepção) é fundado sobre certos princípios: um deles é que

o indivíduo p o ssui um limite m á xim o p ara a p ree n de r informa ç ã o. Ou essa capac idade máxima d e produção de informaç ões p erc eptíveis é

A LfM D OS Lll\IITES: O I NTERC ULT URALl SM O .. .

P ERC E P Ç Ã O D O INTERCULTU RALISMO: O EXEMPLO DE MNOUCHK INE

muito inferior à c a p acid a d e de produzir d as fo n tes que nos e nvo lvem v isíve is. s o no ra s o u táteis : n ó s utili zarnos - c o n statação banal em psic o lo g ia - ape nas li m a fra ção ínfima d e informação q ue n o s chega do rn u n d o ex te r io r.

"A originalidade da mens agem se rá , para ele, p e s s o alm ente , dim in u íd a à proporç ão, a quantidade d e in form a ç ã o que ela lhe t r a n s m it e será ainda mais fraca: a redundância c o n ve n ce pro p o rc io n al m e n te :'; O que nos revela um tal ex e m p lo de experiência d o público face a urna rep resentação?

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M oles co n cl u i, e n tã o , ao afirmar que " P e r c e b e r é selecio n a r, e compree nder o mundo é compreender as regras da seleção percept iva"". Afina l, o q ue n ó s sele c iona mos? O ra e le rn e n to s "s ig n i ficat ivo s" ( q ue fa z em se n t ido e são i n te li g íve is), Ora el ementos "o r ig in a is" q ue su rpreenda m . Moles r e ss alt a quê, paradoxalmente, a in fo r m a ç ã o é transm itida não po r eleme ntos s ig n ific a t iv o s - como s e crê hab it ua lme n te - m a s através de ele mentos orig inais que são portado res d e m ais in for m a ções e provocam m ai s re a ç õe s>. E ntão, co mo d efinir a p ri ori a o rig inalidade d e um a s itu ação? Através d e se u g rau d e imp re visibilidade. O q ue se r e v el a improv áv el na rnise-en-sc én e d e Mnouchk i ne p a r a o es pec ta do r fr a ncês , norte o u s u l-am e r ic a n o ? São as co m po n e n t es japoni zante s da enc enaç ã o que destacam a orig i nali d a de da rnise -en -sc én e e criam o e feito d e ruptura que s u r p ree n de o leitor. São esses el ementos que sustentam informações novas tra zida s pela mise-en -scé n e. N o caso d e n o s s o esp ec tador j ap on ê s , a s it u ação é diferen te: é a lux ú ri a d o s figur in o s bas tante elisabe tan os que vai chamar s ua a tenção e, portan to, co nfe r ir- lhe o sen t imen to de originalidade , a paga n do os p ouco s elementos j a ponizantes que e le acaba n ã o ven do, d ado que estão longe da imagem muito real e v iva qu e e le t em do Japão d e h oj e o u mesmo d e o u tro ra. Isso con d uz a um a que stã o: o qu e a c o nte c eria, então, se o s u jeito r e c e p tor, s egu in do s u a c u ltu ra, seus con h ecimen tos anteriores o u, por q ualquer o utro motivo, possu ísse u m con h ecimento cada vez m ai s a profundado (como é o caso de n osso espec tador japonês), cada vez mais extenso sob re a m ens agem que lh e é transm.itida , so b r e os m odo s d e es t r u t u r a ç ão, s o b re os símbolos e s ua fre q uência ? A r e sp o sta d e M ole s é a segu in te: 2

A . Mole s . Th éorie d e l'info r mation et perceptio n esth ét iq u e, Paris: De no él, 1973.

1. A primei ra, e a mais e v id e n te, é que a s c o n d iç õ es c u ltu r a is de todo espec tador determ inam, sem dúvida, a recepção que ele faz d e um d ado es petác u lo. Portan to, é claro q ue se os espe tác ulos viajam, o modo como são recebidos varia de um e spectador a ou tro em razão de urna s é r ie de fatores pessoais, sociais, c u ltura is , p a r a os q uais a cultura é um componente fundamental. Ela cond iciona n ã o apenas a compreensão do espetáculo, s ua sig nifi cação, m a s , d e mo do mais impo rtante, o q ue o espectador perc ebe e o que lh e esca pa n u m d ado espe tác u lo. 2. D e m odo ain da rnais pe r tinen te, a c u ltura do espectador co n d ic io na a qu antidade d e info r m a ç ã o e a o r igi nali dade situ a d a n o e s petác u lo. H á elemen tos do espetác u lo que o espectador n ão vê porque n ão p ode fa zer a d ecupag em cên ica que lh e imporia a p ercepçã o . Isto é, ele n ã o cheg a a a preen de r os s ig n os de originalidade d e que fal ava Mole s . N o c as o pre ciso que nos interess a aqui, a razã o dess a insensate z é dupla : el a vem d e que o Jap ã o evocad o p o r M n o uch kine parece dis t a nte p ara o j a ponês dess a c u lt u ra, e m toda re ferência ao Ja pão q ue e le con hece. Ele co ncer ne t amb ém ao fato d e que o Japão imaginário q ue n ó s ociden tais con st r u ímos n ã o p o ssui n enhuma se melha nça co m o Jap ão im agin ári o d o próprio japon ês . 3. Se é evidente que um esp e t á c u lo o pe r a um a co nst r ução do proce sso de p erc epção do e spe ctador - p ortanto , que ele o orienta n a le itura qu e dev eria faze r - e m ú lti mo re cu r s o , d e seu lado , o espect a d o r ac rescenta seus pró p r io s e nquadramentos. O intere ss e d a exper iê ncia esté tica é que e la força o d ir eto r, como o espectado r, a m odi fic a r s uas p r ó p r ia s referências d u ran te a repre s entaçã o e a exp a n d ir se us limite s. O espectado r j ap o nês , recusando e ss a dim ens ã o d a o b ra, d e sta c a a relatividade d essa construção d a p erc e p ç ã o artística o perada pelo próprio espetáculo. A co nstrução do espet ácu lo e a significação fina l

P· 94·

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Ibi d ern , p . 3S .

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Ibi d ern , p . 191.

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ALÉM DO S LI MIT ES: O I N T E R C U LT U R ALl S M O . . .

p e r te nce m, e m boa par te , ao es pec ta d o r. É este último q u e lhe dá s entido e lh e a ss e gura a ava liação e s tét ica . 4 . A quarta c o n s tat a ç ã o q u e ess e e x e m p lo permite fa zer é que a percepção e stétic a é f u n d a d a s o b re urna percepção de u m a ce r t a distância e n t re o que deve chegar e m nosso " hor izo n te de exp ect a tiv a" e o q ue e fe ti v a men te acontece. É o elemento de r up tu ra, de imprevisibilidade d e que fa la Moles . Seria possível dizer q u e Mnouchkine, ao introduzir a interpretação japonesa, c r io u uma distância na percepção que o esp e c t a d o r tem do e s pet ác u lo, uma distância que o leva a o lhar as coisas de o u t ro modo. A manipulação da dis t â n cia é, s e g u n d o Ben C haim, um dos fa tores subjacentes mais instigantes das p ráticas teatrais de hoje-. E la criou um efeito d e s urp resa n o espectador ociden tal. E la i nscreve a originalidade para rec uperar os conceitos que tomamos emprestados de Moles lo g o acima, o u essa distância n ão foi p ercebida pelo espectador japonês, c ujas referê ncias c u lturais eram paradoxalmente p r ó xi m a s d aquel as evocad as. 5. I sso n o s e nsi na t amb ém que se os es q uemas na p erc epção d e um espetác u lo diferem d e urn a c u ltu ra a o u t r a, s ign ifi c a q ue os có d igos d e le itura d e um espetác u lo n ã o s ão, d e modo a lgu m, compone n tes ins c r ito s na própria re p resen tação, mas, ao contrário, que esse có d igo d e leitura se a t ualiza a cada v ez riurna realida de social específica e no rnornerito m e smo o n d e e le é recebido po r um espectador o u u m d e t e r minado p úb lic os, Repe ti n do em t e rm o s mais simp les, a reação d o p ú b lico a um certo espetác ulo é canaliza da p elo s lim it e s c u ltu rais de cada u m. Como concl uir esse bre v e percurso? S i m p les men te, lemb ran do S uzan Ben netF e Sa rah Bryan t-Berraí l", que a fir m avam q ue o t r abalho d e M no uchkine a presen ta a g rande vantagem de ter descentrado o t e a t r o europeu ao fo rçar o espectador e o a ta r a u m descentramento em relação a seus referen tes c u lt u rais e 5 6

D aphn a Ben C ha im , D istance in th e th eatre, Ann Arbor:uMI Press, 1984, p . 79 : Ja cque s Leenhardt, To ward a Sociology of R ead írig, em S usa n R. Suleiman; Ing e C r o s m a n (e ds. ), Th e Reader irt th e Tex t, Princeton: Prin ceton University

7

S usa n Be n ne t, Th e atre A ud ie n c e s , New York: Routled g e, 19 9 7, p. 197. Sa r a h Br y a n t - Ber ta i!, G en de r, E m pire a n d Body Politic a s Mis e e n Sc êrie: Mn o u c h k i n e 's " Les At r id e s" 7h ea tr e [ou rnal, Y. 4 6 , n . 1, 19 94 , p . 3 0 .

P re s s , 19 8 0 , p. 2 23 -22 4 .

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P ER C EP Ç Ã O D O I N T E RC U LT U RALl SM O : O EXEM P LO DE MNOUC HK INE

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est éticos h abituais . Mnouchkin e n ão o s u bs t it u iu, co n tu d o , p o r um m odelo o r ie n t a l definido . O modelo p r op o st o não pertence mais a o Oriente que ao O cidente, el e e s t á e n t re os d o is , e m um a zona d e fr o n te i ra onde tern s u a própria autonomia ficc io n a l e estética. Portanto, ele nos obriga, nós, e spectadores inscrito s e m s is tem a s c u ltu r a is determinados , a s a ir de nossos eriquadrameritos habituais . Ele faz o apelo a u m novo gênero de e s pec t a d o r, um espectador "iritercultura l" Trad. A d ria no C.A. e S o usa

3. Toda Trans-Ação Conclama Novas Fronteiras"

Em 1995, no decurso de um colóquio em Bruxelas, cujo título era Culture as Diversity (Cultura Como Diversidade), um fotógrafo narrou o resultado de pesquisas que ele havia desenvolvido durante anos. Ao realizar fotos aéreas de cidades, ele fotografava , ano após ano, certos quarteirões para ver que transformações se poderia constatar. a resultado era muito claro: os muros e tapumes foram construídos para separar as propriedades, os jardins, as áreas privadas, depois de terem desaparecido num primeiro período sob o efeito de uma vontade deliberada de construir espaços abertos, de facilitar as comunicações e as trocas, reapareciam ao longo dos anos, recriando assim os confinamentos que se pretendeu combater no início. A única diferença sensível era que essas novas fronteiras foram ligeiramente deslocadas, mas subsistem . a testemunho é interessante por vários motivos. Ele exprime, de fato , uma dupla tendência nos indivíduos - e Tex to proferido e m conferên cia durante o C o ngresso da FIRT em Sydney, 2 0 03. O tema d o c ongresso e r a Tran s -A ction : C u lt u re and Perf orm ance (T r a ns- Ação: C u lt u ra e Perform an ce ). Fo i publicado co m o título Eve ry Trans a ctio n Con jures a N ew Boun d a r y, e m Ia n el le Re inelt; Io e Ro a ch (eds.), C rit ica l Th eo ry and Performance, Mich igan : Un ive rs ity o f Mi chiga n Press , 2 0 0 7.

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A LIÕM D O S LIMIT E S: O INT ERC ULTUR ALl SMO .. .

den tro das estrut uras q u e estes colocarn - um d uplo movj, rnerito de abertura e de fechamento ao mesmo tempo. Com efe ito, aí o n de os disc ursos do m i nan tes, ce rtamen te n umer osos hoje em dia, n ã o cessam de fa la r e m a be rt u ra para o Ou t ro, q uer se trate de um lugar, UlTIa fro nte ira, UITI país, urna c u lt u ra, um a di s ciplina , u ITIa o u tra a r te , o bs e r va-se p a r alel amente um rnovi rne n to d e recorripa r tirne n t aç ão , d e fec hamen to, c o m o se o qu e se ganhava corno a ber t ura e m u m ce rto nível fosse p ago co m uma comparti mentação e m o u tro. Gostar ia de tomar essa h istó ria como metá fo ra d a p rop osta q ue desejo cons iderar e a na lisar t rês aspectos aos q uais el a n os sensib il iza : a . A n tes d e tudo , sob re a exis tên c ia d e s s e duplo m o vimento de d e s c ompartim entação e reco m parti me ntação qu e parece incidir a o rri e srno t emp o sob re o s indivíduo s e a s est r u t u r as que e les a p rese ri ta rn. b . E m s e g u id a, so b re a relação particular n o e s p aço que a compartimentação e a des c ompartimenta ção inscrevem (s eja um e spaço fí sico real ou um e spaço imaginário ). c. Adoraria interrogar a relação no tempo em que se inscrevem e s ses movimentos de ab ertura e fe chamento que sob revê m s im u l tâ n e a e alternativam ente. d. E n fi m , adoraria analisar e m que a prática artístic a - especificamente, a prática teatral que tomo como exemplo - podem contribuir com um esclarecimento particular sobre s e m el h a n te questão e, talv e z , d e que modo ela pod e trazer um aporte cognitivo, ajudando -nos a entender melhor o fen ômeno. C o m p r een derem o s atravé s desse preâmbulo que a noção de trans -ações, que co n s tit u i o tema agregador do c o ló q u io, é tão somente um a forma des s e proce sso d e a ber t u r a do qual d esejo fa lar. E n ten de re m os tamb ém que o pro c e s so é indis s ociável, a m eu v e r, de u rn p ro cesso d e fechamento quas e s im u ltân e o que o acompanha. E, para clarear as cois as , façamo s um rápido percurso linguístico considerando tudo que pode evo c a r a ideia de trans- ação o fe r e c id a a q u i à n o ssa reflexã o. Essa no ç ã o con cl a ma a q ue las d e t r o c a , influência, transla ç ã o , t r aduç ã o , tra nsc r ição, t r an sfo rm a ç ã o , t r an s fu s ã o , transparênc ia, transgressão,

TODA TRANS-AÇÃO CONCLAMA NOVAS FRONTEIRAS

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transmissão, trân sito, t r a n s e c ç ã o , transpira ç ã o e tc. E m todo caso, tais noções e x p re s s a m modalidades diferentes do conceito, mais geral, de trans -ação. É o que evo ca m os diferentes títu lo s de comunicações propostas nestes dias. Essas noções recorrentes são utilizadas em d iferentes cam po s d e aplicação: a c u l t ura, claro (fala-se, po rtanto, de transc u l tural, interc u ltural, mu lt icultural); a arte (fala-se assim de t ransartístico, de transdisciplinar); mas também a genética (transgenét ico); sexo e gênero ( t ransexua l), a geografia (transgeográfico, translocalídades, transnacíonalj -, o p olític o ( t ranspo lí tico); o eco nô mico (tra nseco nôm ico). Com s ua carga pos itiva, o pre fix o trans, qu e ret orna a b u ndan tem ente n o s d is curs o s d e h o j e , é fr equenten1 ente utiliz ado nas ci ênci a s duras e n a s c iên cias so c ia is e humanas: cu lt u ra l stud ies (es t u dos culturais ) , antropologia, p erformance , t e atro (talvez, fil o s ofia , história ) . A q u i, el e se dobra n a palavra a ções (tran s- ações), que implic a um cer to m o vimento , uma mud ança, na ver dade, uma din â mi c a, um a von tade d elib e rad a d e ir d e um ponto a o u t ro. O ra, cer tos p ens ado r e s d e h o j e (Ed g ar M orin, particularmente ) c onstatam qu e, p ara urna ép o c a em que ess as n o ç õ e s torn aram - s e o dis curs o d ominante e n ã o é m ai s p ossível p ens ar o mundo e m qu e vi v em o s - o u a a r te qu e pratic am o s - sem n o s referirm o s a e le, as práticas que n o s c irc u n dam n ã o t e stemu nham, d e m odo a lg u m, essa ab ertu r a . As dis ciplinas s e fe cham e n ã o se com u n icam u mas com as o u tras. Os fe nô m e nos são cada vez m ai s f ragmen tados, sem qu e c heguem a con ceber sua un idades. De fato, o bserva-se que as fro nteiras fora m s im p lesmen te d e sl o c ada s , m a s sempre est iveram lá . E las "se con fi r mam em lugar d e se d e sfa zerern't-.

2

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Arjun Appadurai, Sovereignty without Territoriality: Notes for a Postnati onal Geography, em Patricia Yeager (e d.), 7!!e Geograp hy of Ident ity , Ann Arb or: U n ive rs ity of Michi g an Press , 1996. Idem, p. 1 24 . Ibid em.

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TODA TRAN S'AÇ ÃO CON CLAMA N O V A S FRONTEIRA S

A Lt M D O S LIMI T ES, O I N T ERC U I.T U R ALI SM O . . .

Digarnos e ntão q ue se constata um mov imento ge nerali_ zado que tende a restituir as fronteiras geográficas, econômicas, políticas ou culturais porosas, ao mesmo tempo que soberanias territoriais (para tomar num sentido político, cultural e artístico) afirrnarn -se. Isso nos le va a constatar que, no fundo, nesse vasto movimento d e abertura m undial - trans -ações - no qual somos enredados, nós reconstituímos sem cessar exclusões e zonas de compartimentação. Nós reconstituímos necessar ia_ mente fro n teiras. Meu objetivo então, no tempo que me é concedido h oje, é de estuda r esse movimento constante de abertura e fechame n to em três níve is: 1. o político; 2. o artístico; 3. o teórico. Para ancorar minha reflexão nos domínios do teatro, eu m e basearei em dois espetáculos que acabam de ser apresentados no Festival d a s Arnértcas>: Rwanda 94 do Groupov e A llemaal Indiaan (Todos Indianos) de Alain P latel, espetácu los q ue já haviam sido apresentados em numerosos festiva is e que algu ns de vocês já d e v e m t e r vis to.

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POLÍTICO: TERRITÓRIOS CONTRA LOCALIDADES

Rwanda 94 é uma peça q ue t rata do genocídio em Ruan d a. Duran te c inco a nos, a equ ipe e nco ntro u sobreviventes, recolheu testem un hos, fez pesquisas h istó r icas, l e itu r a s , viagens ao país, para estudar o que ocorreu no decurso daqueles três meses (de abril a junho de 1994), durante os quais 800 mil túts is fo rarn eliminados p el o s h útus, re prese n tan do 8 0% da pop u lação e m Ru anda . Apo iando-se em testemunho s e informação recolhida, cinco autores entregaram-se à tarefa de esboçar esse panorama a fim: 1. de fazer u m espetác u lo; 2. um espetáculo que tivesse a dignidade q u e o assunto impõe, evitando-lhe o sensacionalismo e o simples doc unlentário. Entre os autores , uma mu lher, Yolande Mukagasana, testemunha direta do genocídio, tútsi de origem e autora de duas

obras biográficas perturbadoras: La Mort n e v e ut pas d e moi (A M o rte N ão m e Qu e r, 19 9 7) e N'eJÍe p as p e u r de savo ir ( Não Tenha Med o de Saber, 19 99). O e sp e tác u lo, que dura s e is horas, co rri eça c o rri o teste munho de Yolande Mukagasana, qu e narra durante quarenta minu~?s ~s três m eses de genocídio a partir de sua própria experre.ncra. Narra a morte de seu marido, levado de sua casa co~o milhares de outros tútsi s e espancado c orn golpes de fac ão, amputado de uma mão diante de s e u s olhos enquanto ainda estava vivo. Narra também a morte de seus três fi lhos com idades de dezoito, dezesseis e treze anos, a caçula, Nadine, inclusive, fora enterrada viva: ela te ria prefe rido se jogar na fossa de cadáveres em vez de enfrentar os golpes de facão. O testemunh o é desconcertante. Dia após dia, Yolande Mukagasana revive esses três rrieses, sua lu ta , se u medo, as trai ções dos vizin hos e amigos que eles frequentavam diariamente, com ?s q ~ais seus próprios filhos haviam crescido, e que serão os prrmerros a a po n tá -los para o m a s s a cre. In te r r o m p en d o se u tes tem u n ho com lá grim a s du r ante a evocação d e se us m om ento s di fíc ei s , dia a pós di a , Yo la n de Mukagasana vem t est e mu nh a r não as suas feri das, mas os eventos nos quais o país mergulho u e aos q uais s ua história serve de fio cOl:d utor. Sem ser patética e sem desejo de vingança, descrevera a fuga e o sentimento terríve l de ter fracassado em seu p a p el d e mãe. O espetáculo alterna entre ficção e real idade: testemunhos, filmes sobre o genocídio, cantatas de rnor toss. A peça compreende até uma conferência de Jacques Del uvellerie, direto r, que explica em 45 minutos as origens das etnias túts i e hút u e m Ruanda , e as razões políticas e econôm icas q ue le v a r a m a u m tal genocídio e à ausência de intervenção do mundo inteiro, que preferiu ignorar tais a co n t e c im e n to s 7. . Os procedimentos se entrelaçam para transformar o espetaculo cada vez mais em uma verdadeira peça de teatro e em um testemunho percuciente do extermínio sangrento de todo 6 7

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Fes t iv a l q ue ac o n tece a cad a d oi s a nos e que re ú ne es pec ta do res pro venientes sob ret u do d a Am éri ca d o No r te, da Am éri c a Latin a e Euro p a .

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Os a tores são belgas e ruandeses. As fo rças d ~ OT~N só in ter vi r a m t ard ta m ente no confl ito. A g ran de m ai o r ia d a p opul a ç a o ]a h a vi a SIdo e li m i nada. Ve r sob re a q ues tão, o s ite < h t tp :// r wand a .fr e e .fr /we brill g .htm >.

ALtM DO S LIMITES: O I N T E R C U LT U RA LI S M O . . .

T ODA T RANS -AÇÃO C O N C LA M A NOVAS fRONTE IRA S

um grupo étnico ao qual o mundo inteiro a ssistiu s em poder (o u querer) intervir. O que a peça coloca em cena? Para além do testemunho de fatos reais e históricos desoladores , ela coloca e m cena o que estudiosos c o m o Arjun Appadurai, Akhil Gupta, Jam es Ferguson e, claro, Homi Bhabha" examinaram com precisão, logo após Deleuze e Guattari , em particular: as relações muito complexas entre nação, Estado, identidade, territorialidade e localidade em relação ao espaço. Esses pesquisadores, c o rno outros no campo dos cu lt u ral s t udies, e mp errhara m-se em mostrar como a ideia que uma nação, um Estado ou um indivíduo faz de sua identidade está intimamente ligada à noção de território, concebido como espaço geográfico que se pode situar no interior de fronteiras bem definidas, portanto, território espacial>. Ora, todos nó s sabemos - porque temos todas as provas cotidianas nas mídias - que essas noções estão profundamente em crise hoje, graças a uma disjunção cada vez mais manifesta entre: 1. a ideia de nação e de Estado; 2 . e mais ainda, entre a ideia de nação e a de território considerado como espaço geográfico definido, quer esse território, seja uma subdivisão de um Estado, quer, ao contrário, ele venha a confederar diferentes espaços, para além das fronteiras, criando um território transfronteiras. Aqui, a noção de território é pertinente, porque ela faz abstração das fronteiras geográficas que fazem os Estados para lançar luzes sobre uma comunidade fundada em origens, interesses , características morfológicas, históricas, econômicas ou políticas comuns. Quando visão do território e visão do Estado se sobrepõem perfeitamente, e se apoiam sobre uma visão da nação ~epresen­ tada por uma só etnia, s u rg e m as guerras de extermínio às quais

pudem o s a ss is tir no decor re r dos séc ulos e, particularmen te, as guerras é t n ic as , q ue se dese n volvera m com fo rça d e a lg u n s anos para cá. Digo gu erra é t n ic a , mas é e vid ente que , quando as re lações de fo r ça são desiguais e q ue t odo um gr u po é t nico - o u q u e se identifica c o m o t al - g ue r re ia co n t r a urn o u t ro desarma d o , é preciso falar e m g e nocíd io . É o que a p eça R w a n da 94 t orna perfeitamente claro. Através de uma longa exposição sobre a s origens das duas etnias, a peça mostra c o m o a s múltiplas migrações de indivíduo s dentro do país co lo c a r a m e m questão a s sobreposições isomórficas entre a identidade das diferentes e t n ia s e dos Est a dos que elas compõ em. Paralelamente, ela chama a te n çã o para o fato de que a s diferenças é t n ic as observáveis foram o resultado deliberado, no c a s o de Ruanda, de um a vontade política dos belgas, ocupantes do país que decidiram, em 1920, identificar os habitantes de Ruanda através de seu pertencimento étnico, um pertencimento para o qual eles deveriam definir os parâmetros, visto que tais divisões não ocorriam à época. Assim, eles tomam inicialmente características morfológicas, econômicas, para, em seguida, operar esta divisão: o tútsi seria, sobretudo, cultivador e mais tranquilo, maior e de traços finos; o hútu possuiria os traços mais negroides e seria mais camponês. A peça narra que o s recenseadores foram , e n t re ta n to , confrontados com numerosos casos problemas de tútsis ou de hútus que não entravam nas categorias definidas. Aí juntaram-se outras: assim, foi declarado tútsi todo indivíduo que possuía dez vacas e hútu, todo indivíduo que tivesse menos de dez vacas. Pode -se entender tranquilamente o que tal classificação possuía de absurdo, mas ela foi adotada e se tornou uma das causas do drama que se representava em Ruanda, em 1994. Ela reflete um momento da história em que toda a população considerava judicioso definir seu pertencimento em termo s de etnia e que, longe de endossar a ideia que o indivíduo pertence à um vasto conjunto em que as interações (as transações) aproximam os seres, preferirá optar por fronteiras entre indivíduos, fro n t e iras raciais frequentemente traçadas com uma boa dose d e a r b it rarie dade.

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A. A ppa d u rai, Sovereignty w it ho u t Terr it or iali ty . . . , em P. Yeager (e d .), o p. cit.: Akhil G u p ta; James Ferguson, Be yond "Cu lt u re": Space, Id entity a nd lhe Politics .' of Difference, e m A . G u p ta; J. Ferguson (e ds.) , C u lt ure, Power, Pia ce: Explora tion s in Criticai Anthropology, D u r ham / Lo n don : Duke U n ive rs ity Press, 1997; Homi Bh a b h a , The C om mitment to Theory, The Location ofCulture, London : Routledge, ' 994. Mas também território v irt ua l que pode se r o re sultad o imagin ári o de projeçõ es com o pode ser o Khalistan, n a çã o de que alguns s iq ues so n h a m corno deveria s e r s e u própri o es p a ço .

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AL ÉM DO S LI MI T E S: O I N T E R C U LT U R A Ll SM O . ..

Território e Sobe rania

T O D A T RAN S-A ÇAo CONC L A M A N O VAS FRONTEIRAS

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4. E u acrescen ta r ia u m a última qu e s tã o relevante'». re lac iona -

Meu objetivo não é e x p o r a sit uação h i s t ó r ic a , muito Com plexa, que levo u ao d r arna ruandês, mas destacar como a peça m ontada pelo Groupov nos permite mensurar - n o domín io a r t ís t ic o - o que a obs ervação da realidade política j á con fi r m o u .

-se c o rn a noção d e e sp a ç o , u m e s p a ç o que é aí n ova me nte julgado isomórfico p ara o g r u p o ét rr ic o". Vis to que os hútus sentem - s e am e açado s e m seu es paço, e les el irn ina rn os tútsis , co nsi derados in trus o s, os enviam para suas pressu pos tas terras, Abis s ínia , e n t re outra s, d e o n de os tútsis seria m o rig i nários.

A lg u é m po deria infer ir a partir da peça que o s governantes de R uanda à é p o c a , tanto q uanto to d a s as pessoas q ue c o n t r ib u í r a m para o massacre, acreditaram que o E s ta d o - n a ção pe r m a n e c e na ideia s u bj a c e n te de coerência é tn ica como a b ase da s o b e r a n ia do Estado. Portanto, e les teriam a justificativa para d iminu ir, pe nalizar, expel ir e, n e ste caso, até ma tar aquele s co ns id e r a d o s in fe ri o r e s o u e t n ica men te d ife r ente s . Tal coerên ci a é t n ic a u lt irn a rn e rite esteve b a s e ad a no grupo fe c hado (enu meração, constan te e imóvel) d e d e st in a t á r io s ap ropriados. 2 . A peça também nos lembra que embora o fun dame n to terr itorial do Estado-rraç ão'? es teja ruindo rap idamente n o s dia s de h oj e , como todos sabem os, ainda que a ONU esteja aj u dan do a por fi m à ideia d e integridade te r r itorial d o s Estados-nação existen tes, ambos são os ú nicos gran des a tares n a cena g lobal q ue r e almente necessitam d a ideia d e soberania b a s e a d a em terri torialidade. 3. Isso enfatiza que, quando h á u m isomorfismo ent re os povos, o território" e a soberania le g tt irna " , a violência pode irrom per».

A r elaç ã o com o e spaç o é esse ncia l, porque um a das coisas qu e o público pode apre ender da situação p olítica, t a l c o m o ap resen tad a pel a peça R wanda 9 4 , é o fa to de que o s argumentos que p ermitiam tais matança s foram baseado s e m con cep çõ e s n aturalizadas de "c u lt u r as" e spacializada s onde Es t a d os apoiam -se n uma v isão de e s p a ç o como naturalmen te desco ne c t a d o d o viz inho. Essa desconexão parece te r s ido sempre prevale nte. Ta l po n to de vista perm i te afirmar a sob erania de u m a n a ç ã o o u, nesse caso, de u m gr upo é t n ic o que pretende d irigi r u m país. Enq uan to países, Es tados , mes mo te rritórios, ba s e are m - s e n uma v isão d e espaço d e s c one c t ada e m vez d e erri u m espaço conec tado, h a v e r á v iolê n c ia e disputa p elo p ode r. À gu is a de co n cl usão a essas primeira s co nstatações, p o d e m o s dizer que a peça ilust r a o fato, d e s t a c a d o de modo r e c o rrent e por pes qu isa dores (soció logos, a ntropólogos, observadores da cena política, econom istas) de que, embora as sistamos n o mundo a um d iscurso de abertura a o utras

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A n o çã o remonta ao aco rdo a sso ci ado co m as reso luções d a P a z d e W estfália e m 1648. Fo i nessa ocasião qu e O prin cíp io d a so b e r a n ia te r ri to r ia l to r n ou-se o conceito m atri z do Es tado - nação. O terri tóri o es tá voltado p a r a a integridade , top o grafi a , p olíti cas e s u b sis tê ncia. C la ro, isso fo i a ssumido p el o s "ge nocid ártos" qu e e n te n d e ram q u e es te iso m orfis m o esteve p erto d e se r rompido ap esar d e el es rep re se ntarem 80 % da p opul ação. "O que a pluralidade é tnica faz (es pecial m e n te qua n d o é o produto d e m ovimento s p opulacionais com m emória r ecente) é vi ol a r o se n tido de isomorfismo entre identidade territ orial e n a ci onal e m que o Estado-naçã o mode r no se apoia'; A. A p pad u r a i, o p . c it ., p. 57. E le ac resce n ta : "O que pl u ralismos di asp ó r icos pa rt ic u la r men te ex põe m e intensi ficam é a disparidade e n t re o s p oderes d o Estado p ara regular fr onteiras , mon it orar os di ssidentes, d istribuir direito s d entro d e um terri tório fin it o; e a fic çã o d a s in g u la r idade é t n ica n a qual a m ai o r parte das n ações tem se ap oi ado recentemente . E m o u tras palavras, a integridade territorial q ue j us tific a es tados e a s ingu la r idade é t n ica q ue valida naçõ es es tão ca d a vez m ai s di fíc ei s de ser vi st a s co mo as pectos se p a r a dos um d o o u t ro . . . Colocado d e o u t ro mod o , desde q ue estados, territó ri o s e id ei as d a s in g u la r id a d e é tn ica n a ci ona l são se m p re p rod uções h istóricas co m p lica d as . o plurali s m o d iaspórico tende a e mbaralhar todas as n ar rati vas q u e te n ta m n at urali zar ta is h istórias:'

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Des tacada p or A . G u p ta; J. Fe rgu son, Be yond C uItu re . 00' o p . ci t. Sob re e sse aspe c to, ve r tam b ém s o b re es te a s p e cto H . Bhab ha, The Co mmi tment to Theory, o p . c it. A . A p pad u ra i es c r e ve : " N a h ist ór ia d a teor ia da c u l t u ra, te r ri tório e ter r itori alid ad e d e s empenhara m um p ap el imp ortante: d e m odo ge r al, a ide ia d e que c u lt u r as são coe re n tes , d elimitad a s , con tí g uas e p ersi s tente s s e m p r e fo i d e ixado d e lad o p o r um se n t ido d e que a sociali dade hum ana está na tu ra lmen te lo c alízad a e m esm o d elimitada lo calmente . A p r eo c upa çã o d e an t ropó logos com r egras d e r esidência e s u a relação com g r upos e m b a ix a e o ut ra s forma çõ es sociais, por exe mplo, está b a seada n u rn se n tid o contí n uo d e que as realidad e s ter r it ori ai s d e um o u o u t ro tipo , a m bos d elimitam e d e termi n am as d ispo si çõ e s sociais . A d esp eito d e a lg u ns esforço s v ig o rosos para contrariar tais variedades d e d eterminismo territorial. A ima gem de r ecurs o s esp a ciais e práti cas, co ns t it ui n do e d eterminando form a s d e soc ia lidade, a in d a é impreci sa . Essa id e ia é co m p le ta m e n te exp líci ta n o s r am o s d a eco log ia , a rq ueo logia , e est u d o s c u lt u rais e le me n ta r es que tom am prática s esp a ci a is como s ua prin cipal fo n te d e e vidê ncia e a nálise [00 . ] H á aind a um se n tid o amplam ente d ifu n d id o de q u e os seres hu m an o s e st ão co n d ic io n a d o s a pro curar espaços d e s u b m iss ão que sã o exte nsões d e s e u s co r pos'; A . Appad ura í, o p . c it ., p. 53.

A L ÉM DOS LIMITES: O INTERC ULT URALI SMO .. .

TODA TRA NS-AÇÃO C O NC LA M A NOVAS F RO N T EI RA S

culturas q ue a simples existência de grandes correntes de migra ção vem reforçar, há paralelamente - em a lg uns países - Um m o v im e n to co n t rário d e fec ha men to extremo e de excl us ão, car regado de u rna t al v iolência q ue pode c u lm i nar em mass ac re ao afi rrria r u rn a soberan ia territorial. Em o utras palavras, a peça nos le mbra d o fa to d e que, e m bora a a c u lt uração esteja se esp a lhando pelo m u ndo, novos nac ionalism os, geralmente atad o s ao separatismo é t n ico e à tu r b u lênc ia e m nível d e Esta d o, e ncontram-se e m ascensão. Ela tam bém nos lembra de que as fro nteiras, d a s q uais não cessa d e tratar, p odem ser, evidentemen te, geográficas, mas elas são, cada vez m a is , d e natu r e z a ideológica, e se co ns t ituem de to do um p r o c e ss o a través d o q u a l co nfi n a mos o o u tro numa o r igem, n u ma c u lt u ra, nu ma religião, n u ma ideolog ia esp ecífica. Co m esse p rocesso d e identifi c a ç ã o - e de d e fin ição esclarecido - , pode-se excluir o o utro de seu próprio espaço. Eis o o b jetivo últim o : evacuar o lugar (no se n t ido de esvaziar o lugar, d e a b r ir caminho). Retornare i a esse p onto.

fen ômeno liberador, segun do a lgun s ; fe nô me no t a m bé m de enfraque cin1ento da identi d ade, s eg u n do o u t ros. Qualquer q ue s ej a a perspec tiva (o t i m is t a ou pessimista, e u fó r ic a ou disfórica ao tratar dessa rea li d a de ), é forçoso c o nst a t ar que a tendência dominante para v á r ios dentre n ós, globe- trotters do conhecimento e imigrantes transnacionais, é o fenômeno de aculturação no qual n ós estamos profundamen te inseridos. E n t ã o , o q ue narra Allemaa l Indiaan? Em cena, dois sob rados c o m peças, por tas e janelas, escadas, tetos e corredores . As portas e janelas se abrem, fecham- se, batem. Abrem -se e se fecham persianas. C e n as banais do d ia a d ia se desenrolam d e nt r o o u fora, j us tapostas , s e m ligação ent re e las, exceto a co n tigu i dade d e espaços ou os acasos p rovocados pelas ci r cunstâncias e os d e s ej o s dos in divíduos . O espec tador vê tudo através de v idros de casas o u no exterior d e d u a s casas (calçada, r uela o u r ua, o espaço é mal definido) . Ele observa vários fatos e ges tos d a v ida a nódina de d uas fa mílias d e u m bairro pop u lar. Iss o p oderia a co n tecer e m qualque r lugar. São famílias es tilh açadas (p a i o u mãe a use n te, pais so b re c a r reg a dos, filh o s que brincam d e am edrontar co m a r mas ou d e se a rris c a r e m ideias in ó cua s ). Cada p ers onage m possu i se us des vio s : d efici ente m ent al, cego, e m pregada domés tica s u ic ida, mãe sobrecarregada , imigran te p roc u rando ser aceito, filh o s que não querem reve r a mãe q ue r e to r n a e , após u rn a in ternação p siquiá t rica, adolesce n te à proc u ra d e u m pai que d es ej a d eixar a casa. A p e ç a é co nstruída em micro narrat ivas, c uja im b ricação te r mi n a realizando um tec ido d e relações t runcada s , m as múl tipla s e n t re os in d ivíduos (doze personagens) . Para alé m da violência n a s r el açõ e s e d a a usência d o p atético d a s s it u ações, col o c a - s e assim diant e de n ó s urna rede d e com u nic ações e n t re os seres, todo s um po uco perd idos, d e o n de, n o e n tan to, s u rge aq ui o u a li urn a certa le v e za , desajeitada, m a s p re s e n t e " . U rna p e r s ona g em chama nossa atenção, a q uela d e um imig ran te d e Mon tenegro, d e sobrenome Kóssovo, e ncan tado d e se e nco ntrar enfim n e sse novo país anfitrião, põe-se a can tar o h in o n acional

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ESPA ÇO D ES -TERRITORIALI Z AD O

A segunda p eça qu e e u gostaria d e evoca r co m vocês é totalm ent e diferente e m nature z a e ins p ira ç ã o . E la se ins c r e ve nas a n t ípo d as da peça Rwan da 9 4 . Sua t emática, s ua forma, as p ers onagens que ela c o lo ca e m cena p arecem mais p r ó x imas d o c o tid iano n o qual n ó s (ocide n t a is d e país es d e s e n v olv idos) est a mos m ergulhados habitualmente quand o ne n h u m cataclismo natural o u human o v e m gerar cris es corno a que a p eça Rwanda e voca. Mostrar a com par t imen tação s o b re a qual repousa a n arrativa con t a da p ela p e ç a R w an d a foi eviden te. Tudo a gia n esse sen t ido. C o n t u do, mos t rar a a bertura p a r a a o bra na p e ç a A llemaal Indiaan é também urna d émarch e evide nte n a m e dida em que o ferece corri o t emátic a p rincipal a ab ertu r a de espaços, a c irc u lação d e indiv íduo s e a aus ência d e identidade for te. A lle maal Indiaan é a terc e ir a p e ç a d e uma t rilo gi a do diretor Alain P latel que traduz o mundo de hoje, neste caso, um outro fenômeno atual em que nós estamos presos: a aculturação,

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Ca be c o nstat a r que o s joven s se r e conhe c em enorm emente n e ss e qu adro. O trat am ento fra gment ário da do às i m a g en s e à re alid ade caó tica q ue e las evoca m, m ergulha d a num a mú s ic a te chn o pró xirn a d e se u univ ers o , es tava mais har m o ni z a d o co m s ua se ns ib ili dade m ode r n a .

AL ÉM D O S LIMIT ES : O IN T ER C U LT U R ALl SM O . . .

T .ODA TRANS -AÇAO CO N CLAMA NOVAS FRONT EIRAS

de s ua te rra acolh e do r a - a Bélgic a - a pesar d e , n ess e mesmo rno m erito, um d e se us v iz in h o s e s c rev e r sob r e urn a v id r aça: Koso vo Go H ome ( Kóssovo Vo lte p ara Casa) . Sem t r am a narrat iva dom inan te, o elo en tre toda s as p e rso n ag ens é c r ia do p el o espaço (a s dua s casas c o n t ígua s d e o n d e as pe rsonage ns sae rn e o n de e la s erit r arn s e rn c e s s a r ) p el o b ias de a bert u ras à s vezes pre vi sí v ei s e às vezes s u rp ree n de ntes: portas e janelas, mas t amb ém t eta , ca m in ho a o long o d a can a le t a , e q u ilib r a n d o - s e num a t áb u a s e rn a p o io a lgu m. Nós e s ta mo s e m um e s p aço h abitado pela s frivo lid a des da vida co t id ia n a. Os laço s e nt re os seres são a q ueles q u e impõem o fa to de que todo s esses ind ivíduo s são v izi n hos : eles vão e vêm , o lh a m através das j an el a s, cam in h a m d entro das casas ou no ex terior, sem grande di stinção v e st i me n tár ia o u de outro tip o . A s e p a r açã o e n t re es paço interior e es p aço exte r io r se turva . O espaço torna - se um v a s to lugar de habitaç ão o n d e se r e con stitui uma comunidade dispersa, cujos laços s ã o e ss e ncialmente as ações rn i údas de uma vida cotidiana comum. É surpreendente a abertura extrerna do espaço, tudo é dado a ve r, m esmo o interior das c a s as . O íntimo desaparece. Não h á mais e spaço privado. Tudo se torna público, dado a ver, objeto d o olhar. Aí, tudo s e torna esp e tác u lo . O s indivíduo s p erdem (ou cedem, ren u ncia m a ) seu próprio esp a ço, daí as várias tentativas de uma d as p ersonagens para faze r os o u tros sa ír e m d e seu universo, o n d e el es vi eram se incrustar. Tem-s e a impress ão d e que o espaço n ão p ertence propriamente aos indivíduos. A peç a o ferece assim o q uadro d e um recuo d o es paço privado em b enefício d o esp aço público , trans fo rman do o privado e m público e oferecen d o -o ao o lhar. As fr o n teir as e n tre a casa e o mundo se diluem. O sujeito n ão fa z mais diferença entre o que deveria s e r m o strado e o que n ã o d e v eria, o públic o e o ín t irno . O mundo e n t ra e m ca s a e a a bertu ra ced e lugar ao fecham ento atrav és da inv a sã o d o ex ter io r", O espaço, que j am ai s é a p resen tado co m o t otalidade , nem em sua totalidade, n ão foi inve stido d e nenhum s entido simbólico. E le est á aí e m s u a m aterialidade e s e d e spedaça e m e spaços

múlti p los, se m fron t eiras reais - o exterior e o in terior estã o e m pro longam en to um d o o u tr o e n ão e m ruptura - quas e n eut ros, ond e têm lugar as ações das person age ns sempre em in ter-ação uns corn os o u t ros . A o m esmo tempo d e s co n tínuo e c o n tí n uo, é lu g ar a colhedor, d e passagem, d e t ravessia - t ransve r sa l - mais qu e de ide n tificação. É o lug a r m es mo d e s s a s z o n a s in d e fi ni das '", esp aços re territor ía liza d o s 's seg u n do n o vo s par â m et r o s qu e invis tam os ind iv íduo s q ue n ã o p a r ecem à pro cura d e pon tos d e ancora g e m. É o lug ar da exp loração e d a pass a g em, lugar d e trânsito. Desinves ti do como espaço próprio , e le é o simples r ece p tác u lo d a s ações d o cotidian o . Ele é o n ã o lugar d e que fa la M a r c A ugé, a zona d e pas sagem, d e transi ç ão, (e n t r e a c as a e o solo estr a n ge iro, entre o dentro e o fora , e n t r e con hecid o e des conhe cido, e n tre o e n t o r n o arnig ável e a v iz in h a nça antagóni ca), qu e reflete ca d a v ez mai s o s universos n o s quais nós vivemos.

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Co mo o di z H. Bhab h a , o p. c ít., p . 11: " Is to r e sul ta em u m redes en ho d o es paço do més t ico como es p aço das té c ni ca s de n o r m a li za ção , p asto ralização e individu a çã o do p oder e da p olíti c a m o d ern o s : o pessoa l é p o lít ico ; o mundo d e nt ro d a casa."

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o Que a Peça Exprim e? 1. A abertura do espaço parece responder à abertura dos indiví d uos e à s ua au s ência d e individualidade forte. É a r el a ção co rn o o u t ro que os d e fin e. 2 . O es p aço é d e sinve stido co mo e s p a ç o s im bó lico. Ele se to r n a a pe n as o luga r d e um faze r. M an ipulad o e long e d e

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Como o o bse rvam G u p ta e Fe rguson, retomando as pro p o si çõ es que D eleuz e d e s envolv e u antes d ele: "A es fe r a pública trans n a c ion a l certamente tro u x e alg u m se n ti d o d e c o munidade es t r ita m e n te deli mitada o u localidade obsole ta . Ao mesmo temp o , p e r m itiu a cria ç ão d e fo r mas de soli dariedade e de iden ti d ade que n ã o rep ousa m n uma ap ropriação d o espaço o n de contiguidad e e o con ta to face a face são s u p re mos. No es p a ço p u lve ri zado d a p ó s-mod er nid ade , o esp a ç o n ã o s e torn o u ir re le va n te : e le se to rnou re te r r it o ria lizado d e urn m odo que não se c o n fo r m a à ex p eri ê ncia d e es paço q ue ca ra c teri zo u a era d a a lta m odernidad e, A . G u p ta; J. Fe r g u son , op. c it ., p . 38 . Ele a c r es ce n ta a in da " D ad o que n ã o é a penas o d eslo ca d o qu e exp e r im e n ta um d esl o c a m e n to. Poi s , m esm o pessoas qu e p ermane cem e m lu g are s fa m il ia re s e a n cestra is co n s id eram a nature za d e s ua rela çã o co m o lu gar indiscutiv elmente a lterada e a ilusã o d e um a co nexão n atural e esse nc ia l e n t re o lu ga r e a c u lt u r a, a r ru in ad a :' " Re te r r itoria l izaç ão p ode e n vo lve r o esforço para c ria r n ovas co m u n id a des resid e n ci ai s lo cali zada s (favelas, ca m pos d e re fugi ado s, a lbe rg ues) q ue pe r m an e cem n ã o e m um im a g in ári o n aci on a l, mas apenas e ITI um im agin ár io d e au to no m ia lo cal o u de r ecurs o à so b e rani a': A . Appadura i, op. c it., p. 55·

A LJ:.M DOS l.IMITES: O INTERCULTURALISMO . . .

TODA TRA N S-A Ç ÃO C O N C L A M A N O VAS FR O N T EI RA S

apri sionar, é explorado em suas m últ ip las fa c etas. E le d á a cesso ao a lg ures s e os indivíduos o desejarem . 3. O perpétuo cruzamento nesse e s p a ç o cria redes que m a rcam co nj untos q ue s e mo d ificam ins tantaneamente para se prestar a o utras trajetórias . O espaço torna - se a pe nas lugar de trave ssias , zona f ronte iriç a (e n ã o zona de fro n te iras) o n de os limite s se transpõ em sem cessar. O c r uzame n to das fron te ir as trans for ma necessariamente to d o material o u c u ltura hegem ô" nico s , todo espaço hierárqu ico. E le corit arn ina-" o e spaço. O e s p a ço torna- se intersticial p a r a a s pessoas. O cruzamento das fro n teiras é o q ue os conec ta e nã o o q ue os separa. E le p erm ite tra ns -ações reais, b a s e ada s não e m trocas d icotômicas ou d e v ia ún ic a , mas um network d e movimentos e trocas. 4. A fronte ira, n e ss e caso, não se refe re a um a topolog ia fix a, mas a uma zon a inte r sticial, u m a "zo n a d e desloca men to e dester r i t orial iz.aç ã o", como o bservam G u p ta e Ferg uson, u ma zo n a que " molda a id en ti d a d e d e u m s ujeito h ibr id izado">'. Num tal espaço, n ã o é mai s p o ssí v el invocar a ideia o rtodoxa d e c u ltu ra. É um a zona o n de a lguém p ode te s t emunh a r "u m agrup amento d e prát ic a s c u ltu rais q ue n ã o per te nce m a um povo particu lar o u a um lug ar d ere r rn inado'l" . Não é um espaço h íb r ido , mas um espaço d e h ib r id isrno" .

5· A identida d e apa rece aí po rtanto como o resu ltado de u m a inte r a ç ão , de um recomeço q ue n ã o é o r e sulta d o de condições hi stóric a s s ociai s o u p olíticas, o lugar de u m a transpla n tação p erm an ente d o s ujei to n o te m po e espaço, o lugar d e trans-a çõ es com se u e n tor no p re sente e p a ssado, m últiplo. Nada d e fe tichização da noção d e ide n t idade, nada de id e ntidade fixa. O s uje ito to r na -se o lug a r de identi dades mutan tes, híbridas, re sult a d o d e tran s - a ç õ e s com seu e n to r n o .

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Noção que Barba utili zava para d esi gn ar a form a ç ã o que ele p r ivil e gi ava n a t r a ns rníss ão de u rn sab e r a o ato r e m for'ru a çâo . A . G up ta ; J. Fe rg u so n , op. c it ., p . 4 8 . Ibid e rn , p . 4 9 . E la e nfa tiza a produ ç ã o d a lo c a lid ade , co mo um a d im en são d a v id a soci a l, corno u m a es t r u tu ra d e se n t im e ntos, e n q uan to p rese n ç a diante d o o u t ro, atra v é s d a p ers onag em do i migran te, e la t amb é m ten d e a m o strar de que m aneira a lgu ns lugares que co ns t it uem espaços lo cais para a lg u ns, são transl oca is p ara o u tro s, expo n do a com p le x idade d o n o v o es paço e m que v ivemos. Es ta transl o c alidade seria o r e sult ado d e (ou exp ressa) di ferentes fo r mas d e o rga nização hu m ana . Deve mos r e verter est a v isão, co mo G u p ta e Fergus on têm ace r tadamen te tent ad o , p ara suge r ir e s u bst ituir a ideia de qu e es paços são n a tu r alm ente intercone ctado s, então, p aí ses, n a ç õ es o u ai n da g r u pos é t n icos p o ssi velm ente n ã o pre cisa r ã o m ai s u s ar o argu men to para e m p rego de v io lê n cia e luta pel o p oder. C o ntu do, e le re com end a in ic iar co m a "p re m issa de que espaços se m p re fo ram hierarqui c am en te in tercon e ctados, e m vez de n at ura lm ente desconec ta do s , a ssim, mud a n ç a c u lt u ra l e soci al co m eça a torn a - s e n ão uma que stã o d e contato e a r ticu lação c u ltural, mas um a refle xão a t ravés d a con exão': A . G u p ta ; 1. Ferguso n , op. ci t., p . 35. Es ta inte rconexão d o espaço é torn ada p o ss ív el p el a impo r tância dada a lo c a lidades ( tra ns loca lidades), o u transcomunidades ma is d o que a te r r itó r io s g r a n d es. A fro nteira , nes te c a so, n ã o r efere a u ma topo logia fixa , ma s so b re t u d o a u m a zona interst icia l, u m a " zo n a d e d e sl o c a m en to e desterritoria lização"

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G u p ta a fi r m a q ue N ó s di s cutimos q ue a d esterritoriali za ç ã o d es est abilizou a firm e za d o " nós m esm o s" e os "o u tros': Mas n ã o c r iou ass i rn s uj e itos que são m ónada s flutu an te s . .. A o invé s d e anular a noção d e d e sterri torializa ção, a pulverização do es p aç o da a lta mod ernidade, prec isamos teorizar com o o es p aço está sendo re territoria li zado n o m u n d o c o n te rnp o r ân eo.v

Nu m ero s o s pesquisadores d o d om ín io d o s cu lt u ra l studies diss ertaram a b un dantem e nte so b re o s benefícios de tais espaços a be r tos, est r u t uras sem f ro n tei r as, zon as d e p a ssagem que el e s defin iram como lo c alid ades, t ranslocalidades, fa la n do d a n ec e s s idade d e reter r itorialização d o espaço e m re a ç ã o c o n t ra um a d e ste r ritorial iza ç ã o que necessariamen te espreita o in d ivíd uo. T u do isso m e parece a p ro priadame n te expresso t anto e m Rwanda 94 qu an t o em A lle maal In diaa n, s e n do, evidente, ente ndido que as peças s ó n o s int eress a m p o rque n o s ofere c em uma traduç ã o c o n densada de r ealidades que n o s cer cam . E u gostar ia d e acrescen tar UITl último p onto às obs e r v açõ es feitas sobre A llemaa l Indiaa n e passar pa ra m in ha última p a r t e .

como G u p ta e Fe rguson afi r mam, u m a zo na que "dá for ma â id entidade d e um s ujeito htbr id tzado " E m um t al espaço, n ã o é m a is possível evoca r a ideia orto doxa d e c u lt ura . um a zona onde se pode apenas tes te m u nh ar " u m ag lo meramen to d e p rát icas c u lt u rais que n ã o pe r tence m a um povo pa r tic u la r o u a um lug a r d efi nido ': Não se trata d e um es paço h íb rid o , mas d e um espaço d e h ibridism o . A. G u p ta ; 1. Ferg u son, o p . c it., p . 50 . E le p erm ite a e me rgê nc ia d es s e third sp a ce, o lug a r d e u m a id entidade outra d e repente tornad a p o ssível d e qu e fal a v a H . Bh abha , op. cit. " Pa r a mim , a imp or tânci a d o h ibridism o n ã o é se r capaz d e traçar d o is m om ento s o r igina is dos quai s u m te r ce iro e merge, pa ra mi m , hib r idismo é antes de m a is n ada 'o terc e ir o espaço', q ue possibilita as hist órias qu e cons tituem isso, e pre p a ra- n o vas est ruturas de autoridade , novas inici ativas polít icas [ . . . ] A diferen ça não é nem de Um o u d e Outro, mas algo além disso': É

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AL tM DOS LIM IT ES: O I N T E R C U LT U R A LI S[I.[O . . .

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Nesse espaço virtual e completamente a ber t o que represe n ta a peça, os indivíd uos estão sempre te n ta n d o fechar portas, fec har j anelas, sair ou entrar para escapar dos o u t r os, porém, no minu to s eg u in t e , eles vão reab rir persia nas, abrir portas, ir em d ireção ao outro. E mesmo ass irn , a fron teira es tá s e m p re se movendo, desaparecendo, reaparecendo e m algum luga r. E m bo r a ela permaneça aí como uma possibilidade constante. Torna-se parecid a co rri u m a membrana elástica, uma linh a porosa , que precisa e s t a r aí como uma potencialidade a s e r c r uza da" . A s personagens não cessam, já o dissemos, de tentar, numa interpreta ção de disponibilidade e fu ga, abarcar o que é dado co m o n e ce ss a ri am e nte aberto, zona d e passagem, de fluxo, lugar de redes entre os indivíduos , o n de tudo passa e n a d a permanece. As p ersonagens te rminam por se enclausurar na própria abertura>, to d o s c o loca n d o aq u i e ali g estos qu e indicam o fe chamento. Vamos no s d eter um pouco sobre e sse desejo de fron teiras ( d e limites) qu e me leva a me u ponto de partida quando destacava, e u r e c ord o , que e m to d o m o vimen to d e a be rtur a, h á uma t en d ê n c ia ao fec hamento. A segu ir, gostaria de expo r sob re a n e c e ssidade d e e fe tiv amen te d a r atenção a a lgu ns discurs o s (d iv inos?) que só visam a abertura d e espaços (e d e in divíd uos) em termo s positivos de renovação e d e enriq uec ime nto d o s s ujeitos, de luta con t ra os n acionalismos dive rso s, os Estados soberanos e a s exclusões de toda sorte. Não duvido q ue h ouve e fe t iv a m e n te n umerosas vantagens para a ex is tê n cia de tais espaços o u de ta is d émarches (no mundo em que nós vivemos seria a liás difícil fa zer de outro modo) , mas é preciso p ermanece r vigilante quanto aos di sc ursos dominante s e jamais perde r d e v is ta, e u creio, o avesso d a s coisas. 25

"Zo n as d e fron te ira es tão s e to rnando ag ora esp aço s de c i rc u la ç ã o c o m p lexa q uase le g al d e pess oas e b ens . Exem p lo : a fr o n te ira e n t re o s E U A e o M éxi co. é u m e x celente exe m p lo de um ti p o d e t r an sl o c a li d a d e . Se m el h a n te m e n te, v á r ias zo n as tu rí s t ic as po dem se r d e scrit a s co mo tra n slo c a lid ade s [ . . . ] Todas as zo n as d e com é rcio li vre são zo n as d e co m é rcio livre, lug a r e s turístico s. g ra ndes cam pos de r efu g iad o s. viz in has d e exilados e t r ab alhadores convid a d o s . um a t r ansl o c a li d ade." A lg ué m p o d e a ss umi r, n a p er fo rrn a n ce . q ue as pers o nagen s precisam desse lim it e ( fr o n te ir a) pa ra p o d er j o g a r co m isso e o cu p a r o es pa ço d e o ut ro m odo . F.. intere ssant e n ot ar que é n es sa vi sã o d e a be r tu r a te r rivel me n te pre cária e pe rigo sa qu e o púb lic o n o rte a me r ica no e , e m p a rticul ar. os jovens. re conhece ra m -se m a is fac ilme n te. É

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TODA TRAN S 'AÇÃO C O NC L A M A NOVAS FRONTE IRA S

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D O A RTÍSTICO AO TEÓ R ICO Portanto , p ropon ho uma ap roximação e n t re as dua s peças d e que falei e pro curo apontar e m q u e, a pesar da o p osiç ão flagrante que contra sta as v isões que a m b a s p o ssuem sob r e o mund o (re lação co m o espa ço , c o m a naçã o , a identid ad e ) - a primeira m arcando o fecham ento e a compartimentação, a segunda mostrando, ao contrário, a abertura extrema e a ausência de fronteiras entre os espaço s e o s indivíduos - , as dua s p eças trazem e m s i, d e modo inconsciente, talvez, os rnesrnos ingredie n tes q ue expli cam por qu e elas s ão o avesso e o lugar de uma mesma r ealidade. C o m e fe ito , se co ns id e r a m o s as duas peças e o q u e elas nos diz e m dos e s p a ç o s, dos in divídu o s, das narrat ivas e das formas estéticas que elas ence nam, é pre cis o r econ he cer qu e ce r tas ca ra c te rís t icas são aí as mesmas, ve iculando assim ern filigrana u m d is c urs o qu e poderíamos tender a oc u lta r. De fato, o que as d uas p e ç a s mostram ao m e s m o tempo? 1. A diss oluç ã o d a iden t idade d o s in divíd uos represen tados. No primeiro caso, os indiv íduo s contam s ua p r ópria h istória , m o stram como p e rderam n o d r arna inesperado sua p rópr ia identid ade p a r a n ã o ser m ai s ident ificados senão a u m grupo étnico. Privados d e existênc ia autônoma, li g a d o s a u m grupo é tn ico , é es te último q ue os d e fin e e p el o m esmo m otivo que os conde na a mo rrer. E les perdem aí se u papel de mãe, esposa ou filha p ara não ser m ais que um n ú m e r o designado na m a ss a , no s braços d o s assass inos . No caso de Allemaal India an , as p erso nagens interpretam certos papéis de mãe, filho, esposo, mas papéis são desprovidos d e v it a lidade, t ã o s uperficiais , feitos d e tantas ações sem conseq uência, de p equenas frivolidades da vida cotidiana d eixadas ao acaso dos e n c o n t r o s e das situações, q ue o espectad or tem a impressão de que assis te a uma dissolução também da própria identidade do s indivíduos . Em q u e tal di ssolução coloca b ases d o h ibridis m o do novo s ujeito por vir e q ue permanece ainda a de terminar?

2 . A segunda característica que liga a s duas peças vem de que n o s d ois un iv ers o s o priv ado s e to r n a públic o . Imp o ss ível de se fi r m a r num a in t im idade que ind ivid ualize o s uje ito; t u do é

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A L~ M

D O S LIMITE S: O I N T E RC U LT U RA Ll S M O . __

v iv id o co n stan teme n te à v ista d e todo s (daí a s tentativa s perma nen tes das pe r so n age n s em A lle maal lndia an d e pux ar as pe rs ia n as, fech ar a s portas , es co n de r a s j anelas e s e enclausurar no fundo de cad a cô m o d o ), mas para tamb ém s a ir de lá, in ca p a z e s d e v iver fo ra d a relação c om o o ut ro. Em Rw anda 94, a n egaçã o d o priv ado também es tá presente, mas é imposta à força, a partir do exterior, p elos g enocidas. No c a s o de A lle m aa l Indiaan, parece s obretudo assumida pelas p ers onag ens, os indivíduo s a p a re n ta n d o se a c omodar n esse m odo de v ida o n de o privado se t orn ou p ú b lico, priv ando o se r d e toda intimidade. Os s u j e itos s ão objetos do olhar dos o u t r os e s u b m e tidos a seu olhar. O se r desapare ce n esse olhar que , longe d e lh e p ermitir localizar os s ig n os distintivo s, só re co n h ece o que t o rn a os s uje itos semelha n te s uns aos o u t ros, p ortanto, s e m diferença (indiferentes) . N o s d o is casos, o re sultado é qu e todos os eve n tos d o co t id ia n o s e t ornam "e s p e t a c u la re s", isto é , "o b j e t o s de espet ácu lo", c orno o filme documentário e m Rwanda 9 4, ao alinhar o s corpos massacrados que u rna câmera filma com a colaboração b enevolente dos assassinos, que s o r r ie m, mostram a tomada (co mo um quadro d e caça) e fa zem sinal para a câ rne ra, esq u ece n d o o h orror d a a ção exe c u t a d a. 3 . A terceira c aract e rís tic a é que, de modo s u r p reen d e n te, a

v iolê n c ia ocupa o s dois univ ersos. C la r o , não possui a m esma fo r rn a, n ern a mesma intensidade, nem o m esmo sentido, mas se r ia um e q u ív o co p ensar que a v io lê n c ia p ertence s o me n te ao e n cla u s u r a men t o evo cad o e ITI Rwanda 9 4 . Pre sente , d e m o do insuportá vel e m R w anda 9 4 , que evo c a a barbári e hum ana, ela está igualmente pre sente, mas de modo dissimulado, mais difuso, em Allernaal Indiaan, Feita de p equenas fraqu ezas e de traiç õ e s minúscula s , a v io lê ncia é c o nst a n te. A flo r a n a s relações e n t re o s in div íd u os, s u rge d e rep ente e m certas form a s d e j ogo , d e a t u ação p ara d e s apare c e r tamb ém d e s estabiliz ando o s se res ( p o r exemplo, a mãe fa zendo a morte e o p ânic o no o lhar d a crian ç a. O jogo d e a t uação se p r olonga p a r a a lé m do simples jogo de modo que o espectador é, e le também, d e repente, tomado pela dúvida; ou ainda, a c riança avan ça n do de o lhos ve ndados sobre a t áb u a com a inqu ietude de saber se

TODA TRANS-AÇÃO CONCLAMA NOVAS FRONTEIRAS

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os c a m a r a d a s vão efetivamente dizer que ele está nos limites do v a z io) . A violência está nas fraquezas de ca d a um e e clode às vezes e n tre os se res, se volta contra os o bjetos, se orie n t a às vezes contra s i própria (ten tativa de s u icíd io, jogo com a m orte). E o espectad or ass is te impotente o jogo que poderia a q ualq u e r mo mento d e g ene r a r n u m jogo d e m a s s a cre. Por tan t o, a violê nc ia es tá aí (ap e sar d e ce r tos m omento s d e te r n u r a e d e felicidad e , fran c a men te !) provando que esse universo d e abert u ra ve ic u la co nsigo s uas zo nas som b r ias e seus perigos. Nós ent ramos n o u niv e r s o iriu rriario o n de as iden t id a des fo r tes efet iva m e n te se d e s fa z em , o n de os indiv íduos re criam co m p ouca co n v icçã o s u as fr onteira s (ch a mem os de limites) de qu e eles teriam n e c essidade sem dúvida d e melh or se e nco n t r a r. 4 · Esses d ois espaços são o lug a r d e trans -açõ e s que n ão t êm ce r ta me n te n ada d e c o m u m nern e rn força, nem e m v io lên c ia, mas lá o n de R w an d a 94 est a belece um s is tem a linear e unívoco en t r e os car rascos e a s v ít imas, A lle m aa LIndiaan , por s u a v ez, prefere um s is t e m a de r elação e d e interação construído sobre a circularidade do s eventos , das r el a ç õ es e dos indivíduos. As micronarrativas s e e n t r a n çam no c a os de gestos insignificantes da v id a cot id ian a, e n q u a n to em R wa nda 94 , assiste -se também múltiplas mi c r onarrativas, que, todavia, compõem uma narra çã o : a d a e lim in açã o d e um a e t nia .

5· No s d ois cas os, e st a m os num c erto caos. N o primeiro caso, Rwanda 9 4, trata- s e d e um caos que tem sua origem na abolição de uma ordem que dava a ilusão d e repousar sobre uma ce rteza ética. N o seg u n do, A lle maa LIndiaan, o cao s é e strutural. É a própria v id a que é des e struturada e as coisas a í s e tornaram se m importân cia. 6. Tem -se a impress ã o e m a m bos os cas o s que a s noçõ e s de ética cad uca ram, mas p or m otiv o s diferentes . N u m caso, é porque ho uve uma re vers ão de uma cer t a o rd e m s o cia l, ela própria fu n d a d a sem dúvida sobre um a cer t a viol ência, e que ern seu luga r n ada foi instit u íd o . N o seg u n d o caso, p orque p arece difícil de in stituir n o espaço ab erto e s e m an coragem socia l o u p olítica d e A lle maal In dia a n d ire itos o u c!.everes que n e c essitam p o ssui r u m a visão d a socied ade à qual as p ira -se. Nesse últ irno caso,

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TODA TRANS -AÇÃO CONCLA MA NOVAS F RO N T EIR A S

ALIÕM D O S LIMIT ES : O I NT ERCULT UR ALl SM O . . .

está-se propriamente numa sociedade fundada sob re a abertu ra e a ausência de fronteiras entre os indivíduos, entre os espaços, rnas ao mes mo te mpo a ú n ica estr u t uração que perma nece é aquela das interações que ligam os ind iv íd u o s entre si. 7. Seria tentador dizer que nós entramos num terceiro espaço

que Homi Bhabha gostaria de ver emergir a partir desses espaços intersticia is, zonas de fronteiras (sem fronteiras), lug ares de diáspora c u ltu ral e política. De fato, o que as duas peças e ncarnam com força, s im u ltaneamente, é a necessidade de toda trans -aç ão, mas tam bém se u perigo q uan do ela se es te ia n a a be r tura ilusó ria de lugares tra ns-acio nais a bsolu tos. Em ambos os casos, as f ron tei ras p erm an e c e m e é pre ciso prese rvá- las, fro n tei ras q ue, e ntretanto, n ã o dist irig uern mais os li mite s geográ ficos, n a cionais o u é t n icos, m a s q ue d estacam a abso luta n e c e ssidade d e fazer, d e m odo que o p r ivado não se t orne públic o, c aso co n t rário o suj eito a n u la a s i próprio no es pe tácu lo. É o que G uy D ebord e x p r esso u muito b em . P a ra fi n a liza r, r etorno ao teatro e ao n o ss o p a pel nos estud o s t e at r a is. Q ue t emo s a d i z er d e tudo iss o ? Q ue discurso devemos apreen der sobre as práticas ? Se nos co nte ntamos em repertoriar as formas artíst icas e as práticas, ar riscamos p e r m an e c e r num forrna lisrno certamen te útil, mas p ouc o eficaz; se n o s co n ten tamos em sal ie n tar nas produções ar tíst icas, s ua adequação co m o real ou o discurso que elas possuem sobre o mundo, a déma rche é certamente útil, mas corre o risco t a mb é m de ter um a contrib uição limitada ; o t r a b al h o d a pesq u isa só é int e ress ant e se ela co nsegue ler, descobrir, traçar d entr o d isso q ue n o s é a p resentado cam in h o s ainda inexplorados . O interesse por esses dois espetác u los se dá porque eles nos permitiram assis tir à criação d e n o v o s territór ios, o bse r v a r uma per meab ili dade d e fro n teiras que poss ib ilitam esca p ar à rigidez de realida d e s coerc it ivas, do real, e que , ao p ro po rc io n a r um rec uo, pe r m ite m u m a d istân ci a c rítica. E las re a fi rmam a realidade d o teatro. O teatro a parecendo co mo u m a zo na d e fronteira em q ue se pode dizer as coisas, lugar entre dois que escapa a uma categorização de nat ureza política apressa da e

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q ue pode ser cornparado a zonas de trânsito onde as apostas do rriundo são provisoriamente suspensas (mesmo quando os inci-

den tes do espetáculo são reais) : aeroportos, hotéis, estações de trem . Ele se t o r n a a zona de fronteira que, em si própria, é rnais interessante que os dois lados que ela delimita, porque é nesse lugar único q ue as trans-ações são verdadeiramente possíveis. Ao re presentar não so rnente o mundo como é, mas mos trando q uais são as novas fo rças q ue o traba lham, tornando visíveis certas compone n tes que const it uem u m universo q ue nos envolve, ao most rar-l he as con t radições e a face escondida, o teatro desempenha seu papel d e revelador. Torna-se um instrumento cognitivo impo rtante, c u jas imagens p or ele projetadas são uma con t r ib u ição conce it uai. Esse mundo , que n ã o é faci lmen te decodificável e m fun çã o d a s categor ias clássic as, o tea t ro p e r m it e p enetr ar. E le d e s empenh a seu p ap el di al étic o e p re e n ch e s ua fu nção c rít ica . Iss o n o s p ermitiu fa z er a trave ssia pela s du a s peças . Darei a s últimas p alav ras a H omi Bhabha, que já o bservav a e m 1994:

o es t u do d a literatu ra d o mundo d e ve ser o es tu do do mo do a través do q u al c u lt u ras se reco n hecem a través d e suas projeções de "a lte r id ad e" Onde outrora a t r a n sm iss ã o de t r a d içõ e s nacionais foi o grande tema da literat ura do m undo, talvez possamos s ugerir q ue his tórias t raris nacionais de migrantes, o colonizado o u refugiados políticos - essas condições de li m it e e de fronteira - ta lve z ten ham se to r n a d o os terre nos da literatura d o mu ndo. " Privado e público, passado e presente, a p s ique e o social desenvolvem uma intimidade in te rst ic ial . É u m a intimidade que interroga divisões binárias at ravés das quais essas esferas da experiência social são geralmente opostas n o es paço, momento de distância estética que proporciona a n a rrativa com d upla face, q ue representa u m hibrid ismo, uma diferença " in te rior': um sujeito que h abita a margem de u m a "realidade intermediária"' 8. Pode-se questio n a r como u m a peça d esse ti po vai ao encontro d e s ig nos d e co m par timen tação d e que ela fa z a n a r r ativ a ? De que modo e la con t r ib u i, p ara a lém d a s im p les evocação d e ss e s eve n tos trági c o s , p a r a m odifi c a r a visão d e um fec hamento na visão estreita do terr itório, da nação, do Estado ou 27 28

H. Bhabha , op. cit. , p . Ib ídern , p. 13 .

12 .

ALE M DOS LIM IT ES : O I N T E RC U LT U RA LI SM O . . .

T O DA T RANS -AÇÃO CONC LA MA NOVAS FRO N T E IRAS

d o i n d iv íd u o ? D e qu e m odo p e r mi te i n sc re ve r uma aber tu ra poss ib ilit a n do trans - a çõ es f u tu ras ? E u distinguirei mai s níveis , alguns a d vê m d e fa to res não a r tíst icos, fa to res qu a s e co n t inge n tes , e n t r e t a n t o , imp o rtantes; o ut ros , res u lta m de fa to res propriarn e nte artís t ic o s.

a lógica binária q ue d iv ide os r ua n d eses e m tútsis e hútus, s u b s titu in d o- a por um a lógica mais comp lexa c o m apor tes d e o u t ras o r ige n s , e m que o p rese n te n ã o p ode ser n em o s imp le s prolongamen to do p a ss a d o , n em uma rup tu r a , mas é fe ito d e d e scontinuidad e s , de c omplexidades e d e exp e r iê n c ias.

1. A n tes d e m ais n ad a , o exclu siv ismo é t n ic o obse rvad o em Ruanda durante o s even tos d e 1994 n ã o ocorreu e m ce n a porque u m do s atore s e ra, pare c e, h út u" , uma presença e n t ret a n to não afirm ada na n arrati va. M e smo mod e sta, essa a be r t u r a era pertinente. 2. A lém di s s o , d e sd e o início d o es pe tác u lo, os a tores termin a r am c onstituindo urn a d i á sp ora . D ad o que todo s e r a m o r ig iná r ios d e Ru and a (exce to os a t o res belg a s ) , a lg u ns deles te rminaram p edindo o es ta t u to d e re f ug iado s qu and o pass a r a m pela Franç a o u pel a B élg ic a > : o u t ro m odo d e lutar co n t r a um a v isão identitári a qu e liga irrem edi avelm ente um e spaço geográfico e um a identidade é t n ic a . N ó s e n t ra m o s em zo n a s e m que as identidades , longe d e ser unívo c a s, t ornam -se interativas e n ão se diminu em c o la n do-s e a uma n a ção, um Estado, um p aís ou m esmo uma localidade. Elas e stão ligadas d ir etarn e n te com o presente, um presente qu e cons erva sem dúvida relaç õ e s com o passad o, mas segu n do p arâm etros que n ã o são mais a q u eles da n o stalgia o u da r ecus a . Advêm de nov o s esp a ços, espaç os interstic iais , es p aços d e fronteira , o t h ird space ( te rce iro es p aço) d e qu e n o s fala H omi B hab h a, o lugar d e uma di á spora c u ltural e p olítica. 3. Co n t ra a unifo rmidade d o g r u po, a peça afirmav a a identidade dos indivíduos e de s u a trajetória n ica>'. Ela recusava

4 · Co m efei to, ao rec usar a m bas as gran des n a r r ativ a s u nívocas, a forma a dotada p el a p e ç a sob ressai d e uma hibrida ç ão d e gêne ros . Ass is t ia-se a uma mistura d e fo r mas q ue i am do te stemunho , d a con fissão ao es t ilo a u to b iog r a fia narrada , do exame d e p rovas e m re portagem t el e visi v a , p a ssando p o r c o n fe rê ncia e m b o a e d e v id a forma (45 minuto s ) , a a bor dage m vi o le n ta d o p úbli c o - se n ã o m e escu tarem, vocês p articiparã o co mo ca r rascos - , a a nálise c rític a , mi cro fic ç õ e s , o ratória, o r e curs o às míd ias el etrôni c a s o u a in da à can t a ta. Ao m e smo t emp o , evit a n do re crutar o público, fa ze r uma c r u z a da pela justiça o u fa zer um ato d e reiv in d ic a ção, e v it a n do tamb ém a n arrativa patética, a peça foi a p resen t a da d e modo é p ico. Diferentes procedimentos a r t ís t icos coexistentes p ermi tiram fa z er desse espetá culo um c o n j u n t o que tem êxito e m con s e rva r a dignidade que o a ssunto impôs. O hibridismo do c o n j u n t o - colagem, montagem, bricolagens diversas - foi um a r éplica el oquente p ara a purificação é t n ic a que a narrativa re c ordava . Noss o objetiv o fo i mostrar co m o t odo discurs o de a ber tura - como p ode se r o d o tí tulo d o co ló q u io - trans -ações - te ve como co n trapart ida o s urg imen to d e n o v a s fronteiras.

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D e fa to , trata - s e d e u m t úts i, d esqu al ifi c ad o e m h útu por q ue é p o bre . Aliás. receando q u e a lg uns d el es requeress em o es tatu to de refugi ado s, o Canadá lhes impô s grandes d ifi c u ldades p ara co nferir um v is to pa ra atuar n a peça. Foi somen te co m a m obi liza ç ã o d e todo o m e io que a p eç a se torn ou p o ssível. H . B habh a , o p. ci t. , p . 2 . " Ess es es paços ' In te r v a la res' propi c iam o terreno para a e laboraç ã o d e es t raté g ia s d e i nd ivid u a li d ade - s i ngu la r o u com u n a lq u e cria m n ovo s s ig nos d e íde nti dad e e o lhar es in o v a d o r es de cola b o ra ç ã o e co n te s tação, n o a to d e d efinir a ideia da própria soc ie d a de. co m a e mergê ncia d o s interst ício s - a sob re posição e d e sl o c amen to d e d om ín io s d a di fe rença - d e que a expe riência intersu bje t iva e co le t iv a de n a c io n ali d a d e , i ntere ss e co m u m, o u va lo r c u lt u ral são neg o ci ados . Co mo sã o formados s uj e itos "i n te r v a la res . o u em e xc e sso d e, a so ma d e ' p a r tes' de d ife r e n ç a (n orma lmente , e n u nc ia dos c o mo r a ç a / cl a sse / g ê n ero e tc .) ?" É

Tra d. A d r ia no

37 9

c.A. e So usa

4 . Em Direção a Identidade s Transcultu rais o intercultu ra li s m o a in da é possível?

Esse tex to se p rete nde o prolongamento d e um a r tigo p ublicado sobre o o r ientalismo e m espetác u los de Mnouchkine, artigo que foi p u b licado no livro Trajectoires du So LeiL(Traj etórias do Sol) e fora apresen tado num co ló q u io organizado por M its uya Mori e Tomoko Saito e m Tókio n o ano d e 2011' . À época, e u havia apresentado essa reflexão sobre o interc ultural ismo a partir d o exemplo d e Ariane M nouchki ne , toman do como exemplo o c iclo d e Shakespea re (R icardo II, H enrique IV, p rincipa lme nte) e ao tentar la n ç ar lu zes sobre a insp iração japonesa que habitou Mno uchkine q uando da criação dessas obras, a ssim c o m o a r e c e p ç ã o q ue t a is espetáculos p rovocaram em toda a Europa, sob retu do o sen time n to p ara a maioria d o p úblico da época de uma criação q ue restituía características p r ó p r ias ao Japão ou à imagem q ue o público faz ia dele. A discussão foi aca lo r a d a e nossos a nfitriões japoneses não cessaram d e repetir qu e, para e les, a p ro d ução n ã o r e p r e se ntav a n en hurn ingrediente pro priamen te japonês. L'Orierit re v is it e , e m J. Féral, T raj ect oi res d u Soleil, Pa r is: Editions Th éâtrales, 2005, p . 225-2 43. O co ló q u io oco r reu e m 200 1. O te xto a qui anexa do foi apre se n tado n o coló q u io qu e segu iu e m 2006, IV Inte rnati on al Co lloq u ium of Theat re St udies in Tokyo, o rga nizado p el a s Universidades Meiji e Se ij o .

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A Le.M D O S LI MIT ES: O IN T ERC ULT URALI SM O .. .

E M DI RE Ç ÃO A ID E N TI D A D ES T RANSCU LTURA IS ...

o descompa ss o d e i n ter p re taçã o foi , para mim , perturbador, mas foi tamb ém ex t r e m a m e n te frugal na m edida em que e u nã o parei mais d e tent ar c o rn p ree rrde r a s razõ es de uma tal defasagem ' ern nossas a nál is es re spectivas d e um mesmo fen ômeno artístic o e d o interculturalismo q u e e le revelava. O in te rc u lt u r a lism o p oderia ser relativo ao espectador? D ependeri a do contexto d e c r ia ç ã o ? De recepção? Todas essas questões ab stratas me levaram s e m cessa r a uma que stã o pragmática b em s írri p les: por qu e os j a p o n e ses só v iam o o c id e n ta l n o s espetácu los em que o s e u ro pe us v ia m formas d e c u ltu ra pró prias ao Ja p ã o ? N ão r e t o m a r e i aqui esse lo n g o debate (sobretudo, por q ue n e cessi taria fa z er uma exp lica ção m uito lo n g a que pode remos a b o r d a r e rn o u t ro m om ento ). N ã o o recordo co mo s in to m a d e u m mal -estar pro fund o que percor r e toda leit u ra in terc u lt u ral. E le ap onta certas disfunç ões - do lado da c r ia ç ã o como daq uel e da recepção - e encaminha, afi nal, em último recurso, ao próprio espectador, à sua su bjet ividade (portanto, à b agagem c u lt u ral d e cada um ). O exem plo me perm ite também apontar o que já e ra um p ro blema e m 19 9 7 (u ma in terpre tação diferente d o interculturalismo e su a lo c aliza çã o e m cult uras div ers a s ) n ã o está s uperado, bem ao contrár io, creio que ele se amplificou na medida em que as prát ica s in tercu lturais tornaram -se d iversificadas e mult iplicadas. O inte r cultu r ali s m o n o campo a r tístico se aj usta b e m tanto do la d o das culturas ocide n t a is quanto do la d o das culturas asiáticas, notadam ente japonesas e c hinesas ou c r ia ç ões c omo aquelas d e Yukio N inagawa , Tadashi Suzuk í, o u Ong K eng Sen (por exemplo, seu L ear de 1997, ou s ua Desd êrnona, de 1999, o u a temporada britânica de Shakespeare no Jap ão, UK9046) p ermi tir a m c r uzam.entos de d r am atu rg ia s , t é cnic a s de in terpretação e s is t e m as d e representação.

A que stã o que g o staria d e colocar h oje é a s eg u in t e: o interc u lt u ralis mo fe ito d e em p rés ti m os, cr uza me ntos o u influ ências d e c u lt uras - o n ip rese nte n a p r á t ica te atral d e h oj e - e que s e d eclina sob rri ú lt ipla s for mas qu e seria necessário es t u d a r e m d etalh es pa r a e v itar gen eralizações - a in da possui um se n t id o a u tê n t ic o ? A in d a p oderia n o s aj u da r a p ensar os fe nô m e n o s d e qu e s u pos t a men te d e veria d ar c onta? O q ue ele n o s diz do estado d a s prátic as artís t ic as d e h oj e? Para la n ç a r d e rep en t e urna hipótese qu e n ão d eixará d e pro v o c ar a lg urn as reações vee me n tes , ava nce mos nis so. C o n fo r me o i nterc.ultu r a l ts rno traz e m s e u c oração a noção de diferença - diferen ç a d e culturas (dramat urgias, técnicas, lí nguas , m odos narrativo s , c o nce pçõ e s cên ic as) - pensar a diferença n o s termo s n os qu ais a p ensamo s hoj e (com o um p rogre sso, um sig no d e abertura de nossas so ciedades e de no ssas práticas artísticas à a lter id a de) - com todo o disc urso b em pensante e leniente tornado aquele d a maioria - não é iss o fi nalmente proc u rar promo ver um a di ferenç a e m uma é p oca na q ual a id e olo gia da d iferença e d a e q u idade se t ornou a norrna - para n ã o d iz e r u m dogma? Não p o d ere m o s d iz e r que pensar a d ife r enç a , lo n g e de a largar os esp íritos e de p e rmitir o diálogo e n tre cul turas, t e rmina, e m ú lti mo rec urso, refo rçan do a s individualidades, as especificidades, indo ao encontro desses d iálogos d e c u lturas q u e e la ten de a iristitu i r-. E u n ã o procuro co lo ca r em q uestão as práticas in tercu lt u rais e m s i que s ão mais do que nunca um a specto q uase onip re s e n t e de práticas atuais tanto na Europa quanto na América do No r te, n a Ásia, n a África o u no Oriente Médio (é o que ri ã o . param de nos mostrar os fe stivais e espetác ulo s que doravante viajam m undo afora: veja -se a ópera montada por Schech ner na C h ina, a sessão Shakespeare no Ja pão ( U K9 0 4 6 ) o u oLear de Ong Keng Sen ) , porém para in ter rogar o discurso implícito que toda prática interc ultural traz em seu â m a g o . Em si, a que stã o não é nova, mas a respos ta que se pode dar hoje é diferente do que poderia ser h á c inco, dez, q uinze ou vinte anos a trás. Com efeito, hoje, a questão necessita de u m a resposta q ue le ve em conta a s it u a ç ã o do m undo e das fo rças

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P enso ter e n con t rad o um el emen to d e s o lução e m A b ra ham M oles e s u a s te o r ia s da r e c ep ç ã o . Esse últi m o m o s t r a , e m p articular, como to d a le itu r a sob r e a o riginalida d e de um a o b ra - seja li terária o u artística - s e fa z sob re a b a se d e u m a d o se d e redu n d ân cia. Q uanto à impre ss ão d e originalid a de, e la ve m d e um a mi stura d e impre visibilidade e de ruptura n o c a m p o d a p erce p ção le v a n d o o es p e c ta dor a mod ificar s u as refe rê n c ia s e s u a v isão. Ve r J. Fér a l, P ercepti on s de l'inte rculturalisme : l'exemple d 'Ari ane M no uc hklne" a p rese n tado na Gete a, Bueno s A ire s , 19 9 9, e nes t a e d ição.

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A d ifi c u ld a d e n ã o se r ia, ao i n vé s di ss o , e nco n t rar disc u rs o s a r t is t icos, qu e assu mem a resp onsabilidade em relaç ão a o socia l e ao cole t ivo?

AL f M DOS LIMITES : O IN TERC ULT U RALl SM O . . .

E M D IREÇÃO A I D E NTI D A D ES TRANSC ULT URA IS .. .

em prese nça, si m u ltanea me n te a o nív el p olítico, fi losófico , antro po lóg ico, lin gu íst ic o e ao n ível artístico. N u merosos são aq ueles q ue e scre v e r am s obre a que stã o : d o lado fil o s ófico e polí t ico ci temos Tzve tan Todoro v, F rançois Lap la n t i ne, C la u d e C lane t e sob re tu do o fil ó sofo C harles Taylo r-, do lado d o teatro, Ja cquelin e L o e H el en Gilb ert, Uma C ha u d h u r i, C. Balm e e, cl aro, Rustom Bha ru cha, qu e foi um d o s primeiros , dep ois de E dward Said, a te ntar fazer a liga ç ão e ntre interculturalismo e polí tica (de n u nc ian do uma estratégia de interculturalismo que Bhar uc ha avalia co mo urn avat a r d o colon ialismo). Digamos também que a q ues tão do in te rc u lt u ral ismo, p erman e c e u rna pro b lemát ica que conce r ne b em m a is a o s te óric o s , t eatrólo g o s , fil ó s ofo s , linguista s e a n t r o pólogos, que t entam d e finir-lh e as p rern issas, a s m anifestaçõ e s e os obj etivos a inda mais p orque ela não preo cupa o s praticantes fa ce à c r iação, estes es tão com p ro m e t id o s co m a urgência d e uma prátic a que respo n de iniciahnente a n e c e ssidades a r t ístic a s>, O intercultur alismo ser ia a ssim um efe ito a posteriori de urna dinâmic a que a n tes d e tudo a urgência artística motivou. Algumas con st a t ações se impõem.

ao m esmo tempo, de nossas sociedades diversificadas e pl uric u lt urais, fe itas d e migrações m últ ipla s; mas ta m b é m de nossas individualidades c u lt ura lmen te complexas. Não se t r a ta aqu i d e louvar as vantagens d e um turismo to rnado m e rc ado r ía , porém , m ai s pro fundarnente , d e reco nhecer que as m igra çõ es - vo lu n tárias ou in v o lu n tá r ias - são h oj e e m dia uma evid ê nc ia, e rn esrno uma n ecessidade. P orque as migraçõ es , vividas sob o m odo e u fórico o u sob o modo disfóric o , afetam, é cl a r o , as sociedades nas quais se insc revem, forç ando -a s a redefin ir seus limites e zo nas d e liberdade (veja-se a ques t ã o do k irp an n o Canadá o u do véu islâmic o n a F rança) . P o r q u e o fa to d e as m igra çõ es afetarem as práticas a rtísticas é a penas uma d a s co nse ql~ê nc ias e n tre o u t ras d esse est a d o d e co isas. E n t ret a n t o, o s u r gi me n to d a alteridade n o seio d e n o s sas vidas prov o c a n e c e ssariamente o r e corihecim e nto d o O u t ro: um outro, longínquo ou pró xim o , que obriga a s ocie dade, o indivíduo e a arte a se redefinir. A r ela ç ão c om o outro é v iv id a diferentemente segundo o país , a s ideologias, o s partido s políticos, a s culturas e os indivíduo s. É v iv id a , pois , diferentemente, à medida que se trata de dar c o n t a da alteridade no c otidiano ou no campo artístico; à medida que ess a alteridade surg e num país d e imigração (co mo o Canadá, os Est a d os Unido s , o R ein o Unido o u a Fran ça) ou um país d e e m ig r ação ( c o mo a lgu ns países d a Á fri c a ou do Oriente M édio) . Portanto, pode-se realmente dissociar a an álise d o interc u lt u ralis mo artí stic o d o interculturalismo p olítico e so c ia l (assu m id o ou s u b met id o) ? Pode -s e dizer que a essência da a r te é de se m anter e m h eterotopia e m rela ç ão ao social d a m esma maneira que lhe foi frequentem ente c r iti ca d o ? P ode- se e studar o s cruzamentos artísticos de todas as naturezas sem a n a lisar o s pressup o sto s p olític o s e é t icos s obre os quais os c r uzame n tos repousam? Tal é uma das múltiplas questões que se coloca m hoje quando se aborda a qu estã o do i ntercultu ralisrn o i" Sem n ecessariamente des ej ar e n t r a r no s entido m ai s radi cal de alguns pensadores do interculturalismo - notadamente Daryl C h in, Carl W eber e R . Bharucha - nós s o mos obrigad os

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A N E C ESSIDAD E D E PENSAR O INT ERCULTURALISMO RELACIONADO AO POLÍTICO

Um a Fascin açã o d e D ois G u mes O intere s s e pelo intercultural - noção que se a m p a ra hoj e s o b r e aquel a s d e multiculturalismo e transculturalismo ( n o s e n t id o que o c u ban o Fernando Ortiz d eu àquele t ermo ) - é o s ig n o, 4

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Ver também Julie Holledge; [oanne Tornpkins, Pa rrice Pavis, Er ika Fischer-Lichte, C la ude Karnoou th, Le v G raham, I.R. M ulryne , B. Marranca, S. Hil f. Jo n athan Dollimore e n tre o u tros. Deste p onto d e v is ta, a qu est ã o d o int ercultu ralism o apresenta a lgum p aren te s c o co m a d o pós- moder nismo, que não co nsti t ui ne m u m m o v imento artístico n em uma es té tica d e fi n id a e que são, mais frequen temente, etiquetas coladas a pos teriori em p rá ticas q ue necessariamen te não as reivindicam. Entretanto. uma aproximação tem seus limites dado que os artistas possuem mu ito mais consciência dos cruzamentos intelectuais e de sua neces sidade. e qu e eles não se preocupam com p ó s -modernismo.

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São questões no cerne da reflexãõde pensadores tai s c o m o Edward Said o u Rustom Bharucha (se g u id o s por Arjun Appadurai ou Una C h a u d h u r i e tantos o u t ros) que foram o s primeiros a m o strar a ambiguidade d essas d érnarch es.

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ALÉ M DOS LIMITES : O IN T E R C U LT U R A Ll S M O .. .

a a d m it ir, e n t re ta n to, que o problema do interculturalismo hoje não v e m de uma falta de interesse pelo O utro, mas de uma g ra n d e paix ão p el o outro (a o meno s no domínio artístico): um "excesso d e desejo pelo Outro", diz Rustom B haru cha7. C la r a men te, a s ua preocupaç ão n ão é c o m o mérito de outras c ulturas, mas com a mística d e sua diferença (eu a doraria t ra bal har co rn o s zulus , s e r ia s u a resposta e n t us ia s m a d a) . De modo efetivo , há algum a coisa d e profundamente perturbador n e ss e ilimi tado e n t us ias m o pe la alteridade, a lgu ma forma que ela toma, um e n t usias mo que pareceria legitimar o que Daryl C h in o u C a rl Weber puderam denunciar pelo passado (um mo do fáci l de va lor izar formas mori b undas e d e irij e t a r - l h e s s a n g u e n ovo sem que a s formas antigas fo ssem por isso recolocadas em que stã o ou a legitimidade de tais transferências sej a colo cada) ". Esse e n t us ia s m o , nos parece, s ustenta -se n u m e rro e m relação aos fenômenos p olíticos e soc iais do int erc u ltu ralismo c o m o se a paixão dos artistas pelo fato intercultural estivesse longe d e r efleti r as co m p lexid a des d a prática art ís t ic a, e co mo se o m u n do d o teat ro vivesse sob o ú n ico mo do e u fórico que e m todos os lu g are s se revela infin itamente mais complexo. Poderíamos certamen te respon der a essas o bjeções d esta ca ndo : a . q ue a a u tonomia do campo artístico já está consolidada e que t o d a a n á lis e d eve se d e ter e m suas próprias componentes, 7 8

R . Bhar u c ha, The Pol itics of Cu ltura l P ractice, Wesleya n U nive rs ity Press: M id d le tow n, 2000, p . 43 . Ver a segu inte afirmação d e Carl Weber : "O que p arece ser ign orado em todo es te b em aven t u ra d o p ensamento utóp ico são as r ealidades d o ' b u s in ess tran sc u ltu r a l' co n te mporâneo . . . O teatro in te r nacion a l ou festivais d e performance são mu it o m a is ex posiçõ es d e comér cio d o que even tos c u lt u ra is I.. .] G r a n d e número d e pro jeto s transculturai s tentando com b in a r, fu n di r, misturar - o u como queira cha mar isso - traç o s indígenas com aq uel es d e uma c u ltu r a alheia , c hegam e m p erfonn an ces qu e u sam o co m ponen te a lhei o com o urri molh o p ican te p ara torn ar a lgu ma sopa fa m iliar novamen te palatável I... J Parece que eles teria m prosseguido com p ouco se t ivessem conside rado a historicidade d o mater ia l escolhido. Ai n da, a consciência d e con d ições h ist óri cas e sociais d e uma c u lt u ra es t rangei ra d ada e s u a ins c ri ção e m todo s o s trabalhos de arte é p arâmetro em nosso con texto. A negligênci a d e tais con d ições, e d a ideologia inscri ta a través d el es, in e vit a velmen te le va r ia a uma mist u ra inco n g ruente de e lemen tos estrangei ros e n ati vo s que n a a nál ise fin al re cusa a se fu n d ir, soma n do-se num re sultad o q ue é muito m eno s d o que se us co m po ne n tes:' Ca rl W eb er. ACTC: C ur ren ts o f The atri c a l Exc hange, em Bonnie Marra nca; Gau tam Dasgupta (eds.) , l n tercu lt ura lism and Performance, PAI Publications, 1991, p. 29-30 .

E M DIREÇÃO A IDENTIDADES TRAN SCULTURAI S . . .

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a arte t endo , e m t odo s os t ernpo s , v ivido d e e m p réstimos. É o que fazem os partisans de um interc ulturalism o sem limite e s o b r e t u do artistas c o m o Mnouchkine, Brook o u Barba, mas também Tadashi Suzuki , Ninagawa, Ong Keng Sen; b. é b om o fato d e que o campo das artes s irva d e mo delo ao político e permita um diálogo que s e desenvolve e m t ermos mai s difíceis no c a m po do social e do político, o teatro p odendo mesmo ser o lugar de utopias que o so c ial n ã o p oderi a p ermitir. Tais r e spostas, ce r t a In e n t e le g ít iIn a s , entre tanto, mal es c o ndem que a autarqui a d a prática artística é difícil d e j ust ifi c a r e ultrapassa necessariamente o soc ial, o que numerosos filó sofos , a ntropó logos e teóricos do t e a t r o se mpre nos le m b r a r a m.

Um Intercu ltura lismo q u e A tua En tre o G loba l e o Loca l A seg u n da cons tatação qu e se infe re d a precede n te , é que o interculturalismo n ã o p ode ser a nalisado h o je co mo o faz Pavis , Carlson o u mes mo Físcher-Líchtes, ao t o rná -lo o im passe d o fenôme no da g lobalização c ultural atualm e nte no cent ro d a s preocu pações: "S e o in tercu lturalismo ante rior a r r iscava se r um teatro da exposição etnográfica, um 't e a t ro m useu: o intercult uralismo no quadro da g lobalização corre o risco d e um câm b io d e mercador ias int e rn a cional, o u t ro lug ar p ara consu mis mo, t u r is rno de aventura e compras exó t icas", afir ma C h a u d u r i'". Como outros antes dele , Chauduri o bserva q ue há u m a equação implíc ita i ncontor nável entre o inte r cultur al e o fenô meno d a g lobalização q ue ameaça a diversidade d a s cultu ras e que t ende a nivelar tudo conduzin do o d ifere nte ao idêntico" . 9

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C ujos te xtos foram public ado s antes d a g r a n de conscientizaçã o d o fenôm eno da g lo ba lização e a n tes d o s te xto s d e Bhar ucha e d e o u t ros sob re a li ga ções im p o ss ív e is d e ignorar e n t re interculturalismo e polít ica. Ve r U na C h a u d h u r i, Be y ond a "Taxonom ic Th eatre": In te r c ulturali sm after P o stcolonialism a n d G lob a lizat io n, Th eater, v. 32, n . 1, p . 3 9 . C h a u d u r i fa z co men tár ios n otadamente a R . Bharucha , o p. cit.; de Joh annes Birring er, Perform ance on th e Edge; de Julie H olledge ; [o an n e To m p k.ins, Womens ln ter c u ltu ra l Perfor ma nce, ass i m co mo de C la i re Sponsle r; X iaomei H en (e ds .), Eas t of W est: C rossc u lt u ra l Perform an ce and th e Staging of D ifference. D e s ua p arte , C la ude Karn o ouh o bse rva: " Te r ia este concei to se to rnado u m d e ntre tanto s s im u lac ros d e pós -hu ma nismo durante a ú ltima m odern id a d e ? I ...] Q ua n do o Oc ide n te si n ton iza o u a bso r ve eventos c ul t u rais d e o u t ras

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o in terc u ltu ral seria assim um mito para as massas d e st in ado a fa ze r-lhe s c rer na iguald ad e das r elaçõ es intern a ci onais. C lau de K arnoouh o bse rva: "Intercultu r alidade é uma fá b u la pa ra as m a ss a s feli z e s , para faze r- lhes acredi ta r na igu ald ade das rel a ç õ e s ín te r n a ctonaí s ?' > E la p ress u põe uma liberdade d e escolh a que t odos o s benefi c iá ri o s d e migraç ões n ão puderam ter, que r el e s p erten c e ss em a c u lt uras d e tradiç õ e s forte s o u n ã o . Com o o c o n Ce s sava O ng Keng Se n à Rustom Bharuc ha a' prop ó sito de seu L ear: "Q u a n to d e mim mesmo terei que p erde r no intuit o d e pertencer a este c ir c u ito in terc u ltural ? Qu a nto d evo m e com p r o rne te r-":» Toda prática que t orria d e ernpré stimo, tradu z ou a dap ta cer t os co m pon e n tes d e outra s cultura s se m historici z á-l a s o u co n text ualizá- las, con t r ib u i irre v o gavelm ente para essa h omo ge neização de práti cas (e d e c u lt u ras ) e m pres ença, assi m como à s ua indiferencia ç ão. L o n g e, portanto , d e trab alhar p a ra o reco nhecimento d e diferen ça s a res pe it o d o o u t r o , um tal m odo d e funcionamento contribui, ao contrário, para nivelar a diferença e para levar o outro ao mesmo, reduzindo-o ao status de m ercadoria . O intercultural é , pois, e sp r e it a d o pelo global e nec e ssita d e ferram entas conceituais que nos permitam distinguir (d iscrirniriate, dizem o s ingl e ses) e n t re o intercultural e o gl obal ''. 23

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" P a re c e que o interculturalismo pode fazer pouco, ao meno s até agora, para dar expressão a o des ejo global por uma inteireza cultural': T.R. Mulryne, op. cit. , p . 7 5. Promover a ideia d a autonomia de uma esfera cultural que " t r a n s c e n d e todas as alienações, que é liberadora e fonte de felicidade , suscita paralelamente o relativismo cultural. C a d a um em sua identidade coletiva .. . Agora, O passo é rápido para s o lic itar o reconhecimento público de todas es sas identidades, sempre pressupostas positivas a partir d o momen to em que fazem o objeto de lutas por s e us direitos pela diferença e pela autenticidade. Nesse contexto, q ue transformam a s relações comp lexas e d ial é t ic a s entre cultura e civilização, entre c u ltura e sociedade?': interroga-se o a u tor de "XA': artigo publicado na Internet. Ou então as proposições de Slavoj Z ízek, fero z opositor do m u lticu ltural ismo, c o m e n t a d o por R . Bharucha: " M u lt icu ltu r a lism o é uma fo rma de racismo repudiada, invertida, autorreferencial, um ' r a ci s m o com uma di stânci a' - ele respeita a identidade do Outro, concebendo o Outro como uma comunid ade 'a u tê n t ic a: fe chada em s i própria , n a dire ç ão da qual, el e, o multiculturalista , mantém uma distância tornada possí vel g r aças à s ua posiçã o universal privilegiada . .. O respeito multiculturalista pela especificidade d o

EM D I R EÇ Ã O A IDE NTIDADES TRA N SC ULT URA IS

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Para fa z e r eco a Tzvetan T o do ro v, talv e z possa mos nos perguntar se essa diferença absoluta, reconhecida e a fi r m a d a sem limites, não advém, de agora e m diante , mais d e um p ensamento co nse r v a d o r quando, hoje, as diferen ças s ã o um dado, e o que p are ce difícil fa zer valer em n ossas sociedades é a fir m a r não a di versidade, mas a unidade, a coesão de grupo s s o c ia is e culturais. Uma unidade que supõe e n o r m e s es fo r ç os, é percebida como utopia negativa. Eu gostaria de ern iti r aqui uma hipótese, s e m ter o tempo de prová-la: o que faz hoje a força de artistas como William Kentridge, Wajdi Mouawad ou Robert Lepage é de s e r e m bem sucedidos em afirmar, para além da diversidade de diálogos c u lt urais, q ue s uas o bras conseguem instituir um diálogo u n itário, mob ilizado r, que alcança o transc ultura l, um discurso verdadeiramente m e stiço , me teco. Evocar essa mestiçagem, essa t r a n s cultu r alidade , p a r e ce - m e o verdadeiro d es a fio de h o je .

o QUE SER IA ESSE M ODELO I N T ERC U LT URAL? Lançar lu ze s sob re a mestiçagem implicaria privilegiar a lg umas formas de cruzamentos culturais - mais q ue o utros; cruzamentos que implicam m a is q ue transferências (translações, traduções, adaptações, integ r a çõ e s ) de for mas cult urais outras, mas aprop ria ç õ e s verdadei ras q ue provoquem transformações n a s profundezas de c ulturas-fonte e de c ultu ras -alvo para cria r formas onde o a málgama d e formas e de inspirações é tal que não é mais p o s s ív el marcar as d iferenç a s , mas, ao contrário, as complemen taridades . O produto a r tístico o btido seria fe ito paralelamente d e ren ú ncias e aquisições. De enriquecimentos, m a s t ambé m d e p erda s. Seria um a d a s m odalida d e s do interc u lturalismo e m duplo sen tido que evoca m vários te ó r ic o s d o intercultural (Schech ner, e m p a rticula r, que foi um dos p rimeir o s a m e n cionar, m esmo se os espetácu los in tercu lturais q ue el e Outro é a verdadeira forma de afirmar a superioridad e d e a lg u m vence do r." Z iz e k apud R . Bharuch a , Th e Politics ofCu lt ura l Practice , p . 3 4 -35. É prec is o , evlden t e men te, fa zer um a diferen ça entre interculturalism o e mult icultura lisrno , c o nce ito mais polític o que es té t ico.

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e ncen a podem nos deixar um pouco céticos). Ta l v isão apro xima-se sem dúvid a d o te atro s inc rético (ver Balme o u Lo/G ilbert), mas ela dever ia poder ser localizável igualm.ente e m o u t r o s lugare s g eográficos , não somente naqu eles q u e foram m arcados pelo coloniali smo . E n tre os exernplo s d e s s a s fon nas d e mes tiçagem, a lg u n s espetáculos d e Willia m Kentri dge (Woyz eck on th e H ighveld, Fa u st us in Afri ca [Faus to na Áfri ca] e U b u a n d th e T r u th Co m missi on [Ubu e a C o m issã o da Verdade ]), Wajd i Mouawad (Six p ersonnag es e n qu ête d'a u te ur [Seis Pers on a g ens à Procura de um A u to r ) » ocupam um lugar à parte . Vindos d e h oriz ontes políticos muito diferentes, um da Áfri ca do Sul, país d o Apartheid (e d e compar tim entação fe r o z d a s diferenças), o outro d e um Quebec multic u ltu r a l onde a diferença é reverenciada como u ma ri q ueza n ã o a penas n e c e ss á ria , m a s , rrie s mo, i nco n tor nável do pre s ente , fazem espe tác u los e m q ue tenta m não n e g ar as d iferenç a s (cu lturais, refe re nc iais, fo rm ais ) d e partida, m as colocá-las e m inte r a ção , d e m odo que, a p a r ti r d o diál o go , s u rja o u tra coisa, um se ntido n o v o , um model o d ife rente q u e reenvia ao mes mo tempo à c u ltura d e p a rt ida e à de c hegada, para que ao fim do p ercurs o as n o ç õ es m esma s d e ponto d e partida o u de c hegada não se d is ti n g am mais, t ornem -s e obsole tas . E mergem, e m cada urn d es s e s casos, espetácu los q ue t omam se u sen t ido e s ua ver dadei ra dim ens ã o d o cr uzame n to e do e n r i qtre c i rnento r ecípro c o das form a s d e p artida . Em se u texto "Toward a Topo g rap hy of C ross -Cult ural Theatre P r a x is" ( Rumo a u m a Topografia d a P r áxis do Teatro T ransc u lt ural}", Ja c queline Lo e Helen Gilbert constatam que n ã o h á quadr o t e ó ric o p ara estudar o teatro t r a n s cultu r a l. Não se p o d e estar senão de acordo. Também, e las se e mpenham em constituir um t o d o ao realizar u m sobrevoo muito eloquen te 25

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E M DI RE Ç ÃO A IDE NTIDADES TRA N SC U LT U RAI S . . .

AL(;M DOS LIM ITES: O INTERCULTURALl SMO .. .

P odem o s a cre sc entar aos exe m p los o d e M artin elli, do T e atro d ell e A lb e. Não des envolveremos aqui so b r e es te último e x empl o. P a ra isso, remetemos à tese d e Denise Agiman que tratou so b r e a e la b o raç ã o d e um a m etodo lo g ia de análise d o intercultural (UQ A M, 20 06 ) e que discute e m d etalhes as div ersa s mod alidade s d aquel e trab alh o. M art in elli fund ou co m s ua es posa o Te atro d eli e A lbe q ue reúne a tores italianos e a to res se nega leses e m torn o de espetác ulos d e Com m ed ia dell'Arte. Os atores, out rora re c r u ta d o s entre os imigran tes nas p ra ias, h o je são me mb ros reg ul a re s d a Compan hia. A r tigo pub licado e m 7he D ra m a Review 46, 3, fali 2002.

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e doc umen tado do campo intercultural. Cobrindo tudo e, ao mesmo tempo, o teatro multic ultu ral, pós -colonial e i nte rc u l tural, elas tentam u m a taxi nomia pe r fei tamente clara das d iferente s formas de teatro t ransc u lt ural, a nalisa n do d e p a s s a gem os modelos elaborados p o r Pavis, Carlson e B alm e para dar con ta d es s e s c r uzarn e nto s n o c a nlpo a r t ís t ico. O est u do p o s sui a v a n tagem d e ter ê x ito e m in screve r um a taxinomia e rn um d omíni o a té aí fortemente f re q ue n tado, mas d o qual n enhum es t u do teria co nseg u ido oferece r u m p an oram a co e re n te. E las lembra m q ue u ma primeira leitura d o fen ô m eno c u lt u ral, te n t ada j á faz v i n te a nos, v isava class ific a r as div ersas fo rm a s d e práti c a s a r t ísticas interculturais s e g u n do um esp ec t r o progressivo d ando conta dos g ra us d e familiaridade ou d e singu la rid a de das tran sferên cias. Tamb ém , é a reaç ã o do e sp e c t a d o r, confrontado a essas práticas, que determinariam o grau de fam iliaridade da práti ca. E s ta dep en deria assim de s e u próprio grau de c onhecimento o u d e familiaridade com as outras c u lt u r a s " , Tal m é t o d o , Carlson já havia t e nta d o e m 1990. E le se encontra hoje r etomado por Julie Holledge e Io a n n e Tompkins e m s e u livro'" , Ou como o n o t a , de m odo b e m preciso, U na C haudu ri , no comentár io que fez de s ua versão: 1.

A Taxonomia dem arc a fron teiras e n t re c u l tu r as. Desde o te at ro t ax o n ô m ic o (à s vezes c ha m a d o de teatro a n t ro p o ló gico ), começa co m o a to consc iente do d es lo ca m e nto c u lt ural e conflito interc u lt u ral, pode-se di z er, para instaurar dist inções c u lt u r a is assim como para ligá - la s ou misturá -las. O teatro taxonômico resiste acusado aqui de enfati zar, e a té d e fetichi zar, a diferença c u lt u r al, apesa r de seus maiores pro jetos terem s ido e m p re e n d id os sob o nome de urriversal isrno.t? 2. Uma segu n da le itu r a dos fe nômenos culturais, q ue Lo e Gilbert destacam, visaria investigar os graus d e adapta ção e d e transformação dos eleme ntos to m ado s d e e mpréstimo d a s

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D onde o fato, por exem p lo, no caso d o s Shak es peare d e M n ouchkine que n ó s e vocamos r apidamen te n o in íc io d este texto, que o público fr anc ês p ercebeu co mo japo nês - e p o r ta nto , como es t rangei ro - d e fo rmas japonizan tes que não parece ram fam ilia res aos p róp rios japo neses. Women s Intercultural Performancert-sew York: Routledge, 2000 . Beyond a "Taxonomic Thea ter": l n te rc u lt u r a li s m afte r Postcolonialism and Globalization, Theater, v. 32, n . 1, p . 34 .

.. E M DIR EÇ Ã O A I D E N T ID A D ES T RANSCULTURA IS . . .

AL I':M DOS LI MI T ES, O IN T ERC U LT URALI SM O ..

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c u lturas de pa rti da (cu lt uras-fonte) para integrá- las às c ultu ras d e chega da (c u lt uras-alvo) . Baseado no m odel o da amp u lheta d e Pavis, trata-se de destacar as transformações que afetam assim as migrações através dos múltiplos estratos (cu lturais, artísticos, pessoais) das c u lt u r a s fonte e alvo. A vantagem deste modelo sobre o precedente, é q ue o trabalho de codificação e decodificação é o resu ltado conj unto do trabalho do a r ti sta e d a q u el e d o receptor. O m odel o p ermanece , e nt re tanto, u m p o u co si m plista e . não pode dar co nta d a com p lexidade d a s transferências c u ltu rais no seio de nossas c u lt uras particularmente d iversificadas. 3. A te rceira le it ura segun do elas seria mais propriamente h istó rica e social e se fa ria na mov ência dos estudos pós-colon iais. É o que a do ta C. Balme e m se u liv r o s". Esse último , qu e trata d e num ero sas práti cas t e atrai s lo caliz ada s , a m ai o r p a r t e , e m países d e c u lt uras n ã o h e gemônic a s (Áfr ica, Caraíbas, Jamaica) t enta inv e rter a lente d e a p roxim ação sob re o fenômeno c u ltural, a nalisa n do as fo r m as inte rculturais nos próprios p aíses onde se o per a m o s c r uzamen tos evo ca d os. El e m o stra, portanto , como a s culturas hegemônicas irrigaram, por s ua vez, as outras culturas sem v erter numa forma d e c o lo n ialismo a r t ístico. Seus numero s o s exe m p lo s ilustram perfeitamente a diversidade de d iálogo s estab elecid os, t odo s p re s erv ando uma relaçã o c rítica com a história e o d iscurs o d o qual esta p ode ser p ortadora. A s d enomina ç õ e s das forma s d e c r uzamen to proliferam: t ea tro h íbrido (em que dua s c u ltu ras se fu n dem - merge), te atro n ômade (o n de as fronteira s d e iden ti dades são transgredidas a fi r ma C h a u clu r f) " . Em cada caso estudado, aparece d e modo evid e n te que há um esfo r ç o real para ev it a r toda "t e n tativa de univ ersalizar, gener a lizar, alego r iza r os c r uza mentos c u lt'urais" " . D e sta c a - s e d e ss a reflex ã o sob re o s incretismo que ele promete, d e um a cer ta m aneira , a forma d e trans cultural idade, d e mestiç a gem c u ltu r a l que n ó s tentamos definir. 4 . A leitura que n ó s gost a ríamos d e propor se a p roximar ia d as o b ras d e mestiç a gem e levaria e m co n ta, por cer to, a p e rspectiv a 30 31

D ecoIo nizing the S tage, Th eatricaI Sy n chre t isrn and Po st -Colo nia l Dram a , Oxfo rd : C la re n do n , ' 9 9 9 . U. C h a u d u r i, o p. ci t., p. ' 5.

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Ib idern , p . 3 6 ..

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histórica, mas esclarecendo -lhe o bjetivos es té ticos e for mais v isados. E la a nalisa ria o espet áculo, a n tes de tu do, como proce sso (a ideia já foi adiantada por vários teóricos do intercultural) e se debruçaria s obre as obras n ã o só à luz do sentido histórico que revela em filigrana os c o m po r ta men tos (e s o b re a s culturas de partida e de ch eg a d a) - o que fazem as análises críticas de Bhar ucha - mas também sobre o próprio artista e sua relação c o m o campo artíst ico. A obra intercultural emergiria daí verda d e iram ente como lug ar d e negociação (mais do q ue exp ressão cult ural), o que s ugere de modo bem preciso Zarr il i>' . A ideia nos p are c e j usta. A leitura que Lo e Gilbert privilegiam tam bém t r abalh a r ia a s disjunções e resistências como paradigmas do pre s e nte. Ass im, n ã o seria mais p o ss ív el estudar os elementos p a rt icipa ndo d a s for mas in terc u lt urais como acrésci mo (o u s u b tr ação) d a s c u lt u r as d e p artida, m a s como inte rp enetra ç ã o ver dad e ira ao nív el semân t ico e fo rmal. As n o ç õ e s d e c u lt u ra d ominante o u exp lo rada, d e c u ltura heg emônica , p erderiam d e ss e modo s e u se n t ido : elas não cess a ri a m de existir, m a s a obra final a s ultrapa ssaria , faze n do e m e r g ir um s e n t id o n o vo próprio para a obra v ist a. O proj eto pode parecer utopista, no entanto, tem - s e a forte impressão d e que ce r t as obras t eatrais adotam p r e c.isarn e n te esse modo de rela ç ão com outras c u l tu r as. A q u elas de Dj anet S e ars e W ajd i M ouawad n o Canadá, a q uela d e K entridge n a África d o Su l, p o r exem p lo . E las n o s parec em ilustrar p erfe itam ente essa forma d e trans cultur alismo p ara a lé m d a s c u lt u r as. À que correspo n de r iam essas formas d e n egociaçã o ( d iálogos , m a s também disjunç ã o e r e sistência) , em que níveis da obra elas poderiam ser lidas? E las p oderiam se manife star : a. Ao nível da n a rra çã o , e m s e tra t ando d o texto d e p artida , d a n a rrativ a , d o mi to r etomado e re t rabalhado numa p e rspe c tiv a inte r cultural. Assim, o a u to r canade nse d e d e s c endência 33

"Perforrnance como um modo de ação cultural não é um simples reflexo de a lgum atributo essencializado, fixado de u m a cultura estática e monolítica, m as uma a re n a para o processo constante de renegociar experiências e s ig nificados que c onstituem a cultura:' Ver Phillip Za r r ill i, For Whom is the King a King ? Issues of Intercultural Product íon, Percepti on, a n d Re cept ion in a Kathakali King Le a r, em }. R einelt; }. R o ach (e ds.), Cr itica l Th eo ry a nd Performan ce, Ann Arbor : University of Michigan Press, '992, p . 16 .

A L t M D O S LIM ITES: O I NT E RC U LT U R ALI SM O . . .

E M D I RE Ç Ã O A IDE N T ID AD E S TRA N SC U LT VR AI S .. .

afr icana D jane t Sea rs r e av ê a trama n a r r ativ a de O telo para c r iar uma o b ra int it u lada H arlem Duet (D ueto Harlern ), qu e co lo ca em c e na Billie e Otelo e r e i n t erp r e t a a peça de Shakespea re em o u t ros termo s qu e n ã o p o s suem m a is nada a ver com o or íg i ria l> . A peça d e Sears s it ua -se temporalmente an tes d o momento e m q ue começa a p e ça de Shakespeare, el a a a n tecip a, a a n u ncia e a coloca e m co n texto t ã o b em que o leito r, ve n d o em segu ida Otelo, vê s ua le itu r a marcada por essa con text u ali za çã o . Nós estamos p rec isame n te d entr o de um a out ra história, misc igenada, que d e ix a in tacto o texto d e origern, mas que o modifica profun dame n te, en tra num d iál o g o com ele. E le sai daí trans formado. O c orre o m e smo com as p e ç a s d e K entridge W oy z ech in [oh annesb urg, Faust us o u Ub u a nd th e Tru th Co m miss ion. To dos m odificam profundamente as p e ç a s d e p artida e se localizam e rn um a o u t ra din âmi ca q ue a q uela d a tomada de e m p rést imo. E n q uan t o preserva a forç a d o t exto d e partida , elas

lh e preser vam o es p ír ito, a quinte s s ên ci a , a fo rça s u bve rsiva, mas a crescentando uma nova camada d e leitura que permite es tabelecer a relação com a cultura onde tais textos torn arn lugar ou aque las de que eles emanam: a s o c ied a d e s u l- a fr ic a n a do apartheid. Nesse caso, como naqu ele de Djanet Sears , a nar rativa é idêntica, mas a s r éplicas foram modificadas e à s vezes com p letamente a lt eradas . O q u e r e sta do texto de ori gem? Po uca coisa, certamente, contudo, em cada u m desses casos, seria fa lso fa lar em traição. De fato, o e spectador tem a impre s s ã o , nos dois exe mplos ci tados, qu e o sen tido profundo da obra foi não só prese rvado, mas revelado, que Sears, tanto como Kent r idge, t orn am a dar a essas obras n ã o some n te seu ve rdade iro sen t ido, mas s ua p r o fund a fo r ç a s u bversiva. A insis tênc ia na n arra t iv a é a in da m a is in teressante, porq ue as pesq u isas in te rc u lt u r ais sob re o te at r o se co n c ent r am , e m geral, rnais sob re a repre s enta ç ã o e seus aspec to s visuais d o qu e sobre a dramaturgi a , qu e p a r e c e , no e n tanto, p res ta r-se tranquilamente às mestiçagens c u lt u rais produtiv a s .

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C o b r a d o como um a tra géd ia rapsódica e t r iste , Ha rlem Du et é o p re lú dio ao Othello de Shakespeare, e r e co nta a fá b u la d e O telo e s u a p rimeira mulher Bi llie - E la é a ú nica a n tes de Desdêmona [ .. . ] Sears descreve o Harl e rn como "a o mesmo temp o um lug ar e um símbo lo . . . rep resen ta o melhor e o pior de tudo sobre a s p essoas afro descendentes .. :' O a p a r t a m e n to de BiIl ie e Otelo está localizado aqui , n a esquina d os boulevards M arti n Luther Kin g e Malcolm X . O n ip rese n tes são os tema s d a a u toes t ima e raça tra b alhando juntos o contrastante ci sma entre neg ro/branco advogado por M alc olm x e a integração do "s o n h o" d e Marti n Luther King. A proporção que adent ramos o mundo .d a peça, a estudante de g raduação Billie d escobre que s e u marido, O te lo, a paixo no u -se por o u t ra mulher. .. " M o n a, q ue é branca. Ja m a is vemos M ona, e xce to po r s u a voz e o rápido relance de um braço de a labastro, u m con t r a p o n to d issonante com a s outras pers onagens . Scars, que tem dito que Harlem Duet é a h ist ó r ia de B íllte, e sboça um co m p le xo e rico quadro, u m a pint ura d a dissolução d o r el a ci o n amento d e Otelo e Billie. A bagagem da experiência negra norte-americana contemporãnea é aprese n t a d a numa sé rie de flashback.s. Billie e Otelo s ão também um casal escravo p lanejando u m a viagem n a estrada d e fe rro subterrânea d o s anos d e 1860; e um clássico ato r combat ivo re duzido a humilhantes sh o w s d e m e n est r el , e sua esp osa ciumenta , na era do va u de v ille . N a s três s it uaçõ es, Otelo é consumido pelo desej o de experimen tar as vantagens da so ci e d a d e branca. O primeiro passo, e fatí d ico, foi levar u m a m u lher b ranca para s ua cama. [ . . . ] Othello de Sears é consumido pela inveja da vantagem branca. Ele se un e a C h ris lago (!), um colega professor na U nive rsid ad e Colu m b ia , o p o n d o-se à ação afirmativa e outros esquemas so ci a is identificado s co m o a vanço da age n da n eg ra . Recon h ecendo que esta é a hi st ória de Billie , o ator Williams man té m as emo ções d e O telo b orbulh ando lo g o aba ixo d a s upe r fície . Willi ams co ns t ró i s u a p ers on agem devagar, num c r esce n do d e p ai x ã o c hega n do ao cl ímax em u m so li ló q u io int enso que a taca os ideais d e Bill ie .

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b. A o n ív el do corpo do atar, em seguida , porque este último é um lugar não recuperável politicamente como m ercadoría». Mais co s tu meiro lugar de localização do Intercultural, o c o r po se pre sta a diferentes formas de trabalho formal que só p odem se interpenetrar, como o tenta Barba e m s eu trabalho sob re a exp ressivid a de d o a tor. Com efeito , n a m edida em que o cor po é s e m p re p ortador d e uma c u lt u ra (o que a técnica d e Suzu k i pre cisamente co loco u e m questão) , toda técnica de in te r p retação o u forma es tét ica que se imprime s o b re e le só p ode ser realizada ao preço d e uma m odific a ção e m profund idade das téc n ic a s d e b a s e e sobre a e m e r gên cia d e um corpo novo, diferente e poliss êrnico fazend o dialog ar nele cor po pass ado e co rpo pres ente. c . Ao n ív el da represen ta çã o e nfi m, qu e fará a pelo a um verd adeiro traba lho t ran sdisc ip lin ar qu e se lo c ali za p ara a lém d a s t r adi ç õ e s c u ltu rais esp ecíficas e qu e t r a ç a as linh a s d e 35

O corpo intercultural conclama a "r ec u rso s fís icos enraizado s n o corpo que não necessariamente alimen tam a "n o va ordem g lobal". .. o co po p ode se r co nfr ontado co m o mundo , mesmo quando é m arcado , m old ado , re g imentado e vio la do po r se us cód igos di sciplinares': o bse r va R. Bh arucha , Politi cs o/Cu lt u ra l Pra ctice, p . 159.

A LtM D O S LI MI T ES: O I NT ER C U LT U RA LI SM O .. .

E M D I REÇÃO A ID E N TI D AD ES T RANSCU LTURAI S . . .

um " im a g i n á r io transc u ltu r a l" É a opção que tom a Johannes B i rr i nge r a o d e s t a c ar q ue e s s e imaginári o trans cultural é a c a r a c t e rís t ic a essenc ia l d a s p erformance s d e hoj e " n o m e a d a men te u m d e sta c a d o e a u tocie n te impuls o colabo r a t iv o que perma nece ve r dade iro p ara g r u pos d e todo s os t ipos, a q u el es e n t re e d entro d e países e a q ueles e n t re gê ne r os, mídia, tecnolo gi a s e dis cipli n a s" > .

e m c e na fa la m di fe r ente m e n t e p ara nosso i m a g i n á r io e e m q ue n o s força m a ver d e o u t ra m aneira? Ao término d e se u p ercurso -atrav és do intercultu r al , Bharucha o bser va: "Eu a p re n di que a mais forte r e sistênc ia co n t r a a r e sistên ci a cultural res ide e m trabalho c riativo . P ol ê micas t êm se u s limites , a d e speito d e elas s e rem n e c e s s á r ia s p ara questionar o s dis cursos dominante s e e strutura s d e p oder d e no ss o cenár io intercultural," Parec e -me que é a con cl usão que se impõ e em último r e curso. É a prática dos próprio s a r t is tas a q u el a d e Kentridge, p or exem p lo - que no s força a es te n der e a afinar mais o s limite s d e nossa reflexão. É o que p ermite a refl exão s o b r e o intercultural.

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O que co n clu i r d e s s a lo n ga e xplan a ç ã o? Seria necessár io o p ta r por um a co ns tatação de fra c a s so d e toda d émarche intercultural, como o faz C h a u d u r i, Bharuch, Mulr yne e tanto s outros? O e xemplo d e alguns artistas como Kentridge o u Mouawad nos prova qu e é possível tomar de empréstimo sem s e r s u jeit a d o ou sem sujeitar uma cultura à outra. Ele nos mostra que pode -se trabalhar os níveis de sentido um através do outro, enquanto temos êxito em manter as significações abertas . E le nos mostra também q ue se pode romper as certezas e considerar um discurso político e estético ao mesmo tempo. Se é preciso critérios adequados para compreender verdadeiramente as outras cult.urasv, como diz Charles Taylor, convém portanto nuançar, articular as diferenças em função das sociedades . Isso parece se impor também no campo do irrterc u ltu r a l artístico. Para lutar contra o absolutismo, a demagogia, o funcionamento h egemônico, talvez seja preciso sustentar que as únicas práticas propriamente interculturais são aquelas que colocam no centro de suas preocupações um ato de resistênc ia consciente e assumido, que destaca os cruzamentos e as disjunções; que permite também a cada cultura aprender sobre a outra sem pilhagem e sem assujeitamento. Qual é o eco de espetáculos como o de Kentridge para a reflexão intercultural? Qual ressonância tais espetáculos deixam e m nós? Em que nos forçam a sair de esquemas que nos apris io n a m ? Em que as linhas, as formas e os conteúdos colocados 36 37

U. C h a u d h u r i co me n ta n do a s propo si çõ es d e 1. Bírrtnger, o p. c it., p . 4l. C h a rl e s Ta yl or ( m as tamb ém Lapl antine ) fa la d a n ece ssidade d e encontrar c ri té rios que d e em con ta da evolução d e n o ssa s so ci ed ad es e que re conheçam q u e promo ver a ig ualdade p ode c hega r às pi o r es injustiças . preci so p ortanto le var em co n ta a s d ife ren ç as pa ra se r perfe itame n te j u s to. Tais c o n st a ta çõ es se a p lica m. ev ide n te. às tro ca s c u lt u rais. A ssim . n ã o se p ode m a is dize r q ue o funcionamen to intercul tu r al d eva se r id ê nt ic o de aco r do co m o que a análise na dire çã o d a s c u ltu ras h e gem óni c a s o u daqu e las q u e n ã o o sã o. É

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Trad. Adriano C.A . e So us a

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