Acumulação Mundial. 1492-1798.

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ACUMULAÇÃO MUNDIAL

1492-1789

BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Economia V oi umes

publicados:

TRATAMENTO MATEMATICO DA ECONOMIA,

G.

C. Archibald & R.

Lipsey

A ANTIECONOMIA, Jacques Attali & Mane Guillaume A

ECONOMIA POL1TICA DO DESENVOLVIMENTO, P.

A. Baran

HISTóRIA DO PENSAMENTO ECONôMICO, John Fred Bell A ECONOMIA EM LINGUAGEM MATEMATICA, R. C. Bingham MACROECONOMIA, F. S. Brooman

(5.• ed.)

A EVOLUÇÃO DO CAPITALISMO, M. Dobb A INTERNACIONAL DO

CAPITAL,

P.

(4.• ed.)

Dockes

CONTABILIDADE SOCIAL E ECONOMIA REGIONAL, P. R. Haddad ELEMENTOS DE MACROECONOMIA, R. L. Heilbroner INTRODUÇÃO À

MICROECONOMIA, R. L. Heilbroner (4.• ed. rev.)

HISTóRIA DAS DOUTRINAS ECONôMICAS, E. Heimaun

(2.• ed.)

UMA TEORIA DE HISTóRIA ECONôMICA, J. R. Hicks PLANEJAMENTO REGIONAL,

J. Hilhorst

HISTóRIA SOCIAL E ECONôMICA DA IDADE MÉDIA, G. A. Hodgett O CONTROLE DA ECONOMIA MODERNA!

J.

S.

Hogendorn

O MERCADO NA ECONOMIA MODERNA, J. S .. Hogendorn TEORIA DO CRESCIMENTO ECONÔMICO, S. Kuznets A EVOLUÇÃO DA ECONOMIA BRASILEIRA, O. S. Lorenzo-Fernandez O CAPITAL, Karl Marx

(3.• ed.)

HISTóRIA ECONôMICA MUNDIAL, F. Mauro INTRODUÇÃO À ECONOMIA, B. J. McCormick, P. D. Kitchin, G. P. Marshall, A. A. Sampson e R. Sedgwick ELEMENTOS DE ANALISE DE CUSTOS-BENEFtCIOS, E. J. Mishan ECONOMIA REGIONAL, H. Richard•on ELEMENTOS DE ECONOMIA REGIONAL,

H.

Richardson

ETAPAS DO DESENVOLVIMENTO ECONôMICO, W. W. Rostow TEORIAS ECONôMICAS DE MARX A KEYNES,

(5.• ed.)

J. Schumpetcr

SISTEMAS DE CONTABILIDADE SOCIAL, R. Stone e G. Stone TEORIA ECONôMICA, A.

W.

Stonier &

D.

C.

Hague

(7.• cd.)

TEORIA DO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA, P. M. Sweezy DESENVOLVIMENTO PLANEJADO, Jan Tinbergen AONDE VAI O CAPITALISMO?, Shigeto Tsuru PLANEJAMENTO Walinsky

E

EXECUÇÃO

DO

DESENVOLVIMENTO

ECONôMICO.

O QUE HA DE ERRADO COM A ECONOMIA?, Benjamin Ward

L.

ANDRE

GUNDER

FRANK

Tradução de HÉLIO PóLVORA

e CARLOS NELSON COUTINHO

ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO

Título original: World Accumulation 1492-1789

Copyright

© 1976 by Andre Gunder Frank

capa de É R 1C O

Edição para o Brasil Não pode circular em outros países

1977 Direitos para a Edição Brasileira adquiridos por ZAHAR

EDITORES

Caixa Postal 207, ZC-00, Rio que se reservam a propriedade desta versão Impresso no Brasil

SUMÁRIO 7 21

Prefácio Introdução PARTE

1

Rumo à Gloriosa Revolução Inglesa (1689) CAPÍTULO

1

A Expansão do Século XVI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 O Mundo em 1500 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 Expansão Ultramarina da Europa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . III Acumulação Primitiva da Europa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV Troca e Produção Agrícola na Transição do Feudalismo na Europa Ocidental e Oriental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAPÍTULO

59 59 69 83 86

2

A Depressão do Século XVII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 O Declínio do Mediterrâneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II Depressão e Transformação no Noroeste Europeu . . . . . . . . . . . . III Ásia, África e as Américas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV A Resposta Européia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . PARTE

98 101

107 120 128

II

Do Comércio à Indústria: Revolução A merica11a e Revolução Francesa (1789) CAPÍTULO

A

3

Economia

Política

da

Expansão

Cíclica

e

da

Rivalidade

(1689-1763)

........................................... 1 As Guerras Cíclicas, 1689-1793 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

137 137

II Fornecimento de Moeda do Brasil e de Portugal para a Inglaterra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

146

6

ÍNDICE

III Açúcar e Lavouras Intensivas Escravistas no Caribe . . . . . . . . IV Comércio Escravo na África . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAPÍTULO

4

A Transição na índia para a Transformação da Ásia . . . . . . . . . . . . 1 O Imposto Superficial da Europa sobre a Ásia . . . . . . . . . . . . II Modos de Produção Asiático, Feudal e Capitalista . . . . . . . . . III índia na Ásia . . . . . . . .. . .. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . .. . . . . . . . . IV O Roubo de Bengala em 1793 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . V A Transformação da Agricultura, 1757-1793 . . . . . . . . . . . . . . . . VI Comércio e Manufaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VII "Investimentos" Privados na China e na índia . . . . . . . . . . . . . VIII A Sangria de Bengala .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . CAPÍTULO

167 167 170 176 178 185 187 190 l 94

5

Depressão e Revolução, 1763-1789 .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . I Depressão e Acumulação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II O Caribe Após 1763 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . III Espanha, Portugal e seus Impérios . . .. . .. . . . . . .. .. . .. . .. . . IV Exploração e Expansão no Pacífico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . V A Revolução da Independência nos Estados Unidos . . . . . . . . . VI A Revolução Francesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VII Invenção e Iluminismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAPÍTULO

153 160

198 798 210 213 219 220 234 235

6

A Revolução Comercial e o Processo de Acumulação . . . . . . . . . . . . . I Expansão, Direção e composição do Comércio Internacional . . II Comércio Triangular e Comércio Escravista . . . . . . . . . . . . . . . . . III As Colônias Pagaram? Guerra e Acumulação . . . . . . . . . . . . . . . .

238 238 244 248

Fontes Mencionadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referências Adicionais Citadas no Prefácio e na Introdução . . . . . .

264 278

Prefácio Penso que os autores deveriam olhar para trás e nos fornecer algumas informações sobre como suas obras se desenvolveram, não porque suas obras sejam importantes (elas acabarão por se tornar desimportantes), mas porque precisamos saber mais acerca do processo de escrever a História. Os historiadores de hoje geralmente reconhecem, enquanto cientistas sociais, que suas investigações são uma atividade da qual eles próprios participam. Os historiadores não são observadores. São eles mesmos parte da ação e precisam observar a si mesmos em ação. A visão deles sobre o que "realmente" aconteceu é inicialmente filtrada pela cortina suja e freqüentemente enganadora das provas disponíveis; e, em segundo lugar, pelos prismas de seus próprios interesses, pela seleção e interpretação das provas de que dispõem. O resultado não pode ser mais que uma aproximação imperfeita. Felizmente, ninguém os encara como a última palavra. Uma vez que o autor olha retrospectivamente para o que ele pensava que estava tentando fazer, muitas perspectivas emergem. Em primeiro lugar, aparece a ignorância, pelo menos em meu caso. Um livro que, para seu autor. é um simples vestíbulo de uma inteira biblioteca não escrita. enfrentando problemas que aguardam ser analisados, aparece ao feitor como algo dotado de uma solidez que deriva suas investigações de todas as partes. É inútil assegurar a esse leitor que o livro é, na verdade, cheio de falhas. Prefácio a Trade and Diplomacy on the China Coast, Ed. Stanford, 1969. JOHN KING FAIRBANK,

8

PREFÁCIO

Não respondi a todas as questões que meus leitores colocarão por si mesmos no final desta viagem excessivamente longa que lhes impus. Mas, em História, o livro perfeito, o livro que jamais será escrito, não existe. Ao contrário: a História é uma interroganão sempre mutável acerca do passado, na medida em que deve se adaptar às necessidades e, algumas vezes, às ansiedades do presente. A História se apresenta como um meio para o conhecimento do homem e não como um fim em si mesma. Nesse contexto, não sei o que o leitor será capaz de extrair de um livro como este; cada um tem sua própria maneira de dialogar com um livro. Quanto a mim, esse Mediterrâneo - magnífico e recoberto com as vicissitudes do século VI, hoje consumido no mundo das sombras fez-me atravessar muitos caminhos, perseguir muitos problemas que são problemas de hoje, não de ontem ou de anteontem [... ] . FERNAND BRAUDEL, El mediterraneo y el mundo mediterraneo en la época de Felipe /l, ed. em espanhol, México, 1953, vol. II, pp. 549-50.

Neste prefácio, tentarei inicialmente fazer um retrospecto e fornecer algumas informações sobre o modo pelo qual esta obra se desenvolveu; e, depois, dizer algo sobre o que este livro aborda. De certo modo, recordarei e dialogarei à minha própria maneira com este livro de História, perseguindo problemas de hoje e não de ontem. Já no prefácio ao meu Capitalism and Underdevelopment in Latin America, datado de 26 de julho de 1965, referi-me à "necessidade de elaborar, nos países subdesenvolvidos e socialistas, uma teoria e uma análise capazes de situar a estrutura e o desenvolvimento do sistema capitalista numa escala integrada em nível mundial, bem como de explicar o desenvolvimento contraditório de tal sistema, que gera ao mesmo tempo o desenvolvimento econômico e o subdesenvolVimento nos níveis internacional, nacional, local e setorial". Aquele livro, certamente, não pretendia nem pretende satisfazer essa necessidade. Como é decla-

PREFÁCIO

9

rado no prefácio, seu objetivo era tão-somente o de apre:.entar o contexto histórico (talvez eu devesse dizer: propor uma abordagem capaz de situar o Chile e a América Latina no contexto histórico) no qual eu proponho que o "subdesenvolvimento" contemporâneo seja estudado e do qual algumas conclusões políticas podiam e deviam ser deduzidas. Essa abordagem, incluindo os últimos escritos deste autor juntamente com centenas de outros sobre a América Latina, veio a associar-se com a "escola da nova dependência" da teoria e da praxis, que surgiu na América Latina durante os anos sessenta. Esses escritos - se me é permitido citar agora o prefácio a meu segundo livro, Latin America: Underdevelopment or Revolution - eram "a expressão da nova época e dos problemas que lhes deram nascimento, filtrados através do prisma igualmente novo da conscientização e da compreensão do autor e de outros [ ... ] [na] tentativa, como milhões de outras, de assimilar a revolução latino-americana e a inspiração que ela encontra na Revolução Cubana". No início de 1967, simultaneamente com (se não mesmo diretamente em resposta ao) apelo no sentido de "dois, três, muitos Vietnãs", e em colaboração com meu amigo e colega da tndia, Sa:d A. Shah, tentei aplicar ou estender esse enfoque da "dependência" ao estudo do subdesenvolvimento na Ásia, no Oriente Médio e na África assim como na América Latina. Já que nós mesmos não sabíamos o bastante para escrever um livro abarcando todas essas áreas do mundo (e suas relações com as "metrópoles"), decidimos editar uma antologia, reunindo escritos de outras pessoas sobre subdesenvolvimento. Ao contrário de outras antologias, essa não pretendia representar tudo ou todos, mas tinha em vista utilizar as análises parciais existentes a fim de construir, como num quebra-cabeças, uma "abordagem da dependência" ou mesmo uma "teoria" que emergisse ou fosse destilada a partir dos fragmentos e parcelas da experiência de cada uma dessas áreas do mundo e, no interior delas, de subcontinentes como a índia. A antologia teria dois volumes. O volume 1 seria histórico e, com o lema "teoria é História", mostraria o desenvolvimento do subdesenvolvimento em cada uma dessas áreas tomada separadamente, de modo a indicar que o subdesenvolvimento é produto do capitalismo; já o volume II, tratando de fatos contemporâneos (e que nunca foi concluído), analisaria o imperialismo, a estrutura de classes, a política e a ideologia, com o objetivo de mostrar que o único modo de sair do subdesenvolvimento é a libertação nacional. (O volume 1 foi concluído em 1969, mas até hoje

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PREFÁCIO

não publicado, já que os editores progressistas - e, portanto, pobres, - consideraram o livro, com 88 textos selecionados a formar aproximadamente 1 . 000 páginas e com muitas traduções, excessivamente caro para ser comercialmente produzido; enquanto isso, os editores comerciais ou universitários tinham também cbjeções de ordem política ao projeto.) Em 1969, após completar as reformulações referentes à América Latina, publicadas posteriormente em Lumpenbourgeoisie: Lumpendevelopment, Class and Politics in Latin America, decidi-me a escrever uma "introdução teórica" ao volume histórico de Underdevelopment, tentando formular a "tese da dependência" em escala tricontinental, num texto de 25 páginas. Esse primeiro esboço - que tinha 50 e não 25 páginas - já excedia os limites de uma introdução, pelo menos em sua extensão. O segundo esboço - que cresceu para 100 páginas no processo de aprofundamento de certos problemas teóricos - começou também a ultrapassar as finalidades de uma simples introdução à "dependência", na medida em que buscava lidar com a determinagicamente, determinadas, na medida em que podem ser separadas. (Em nível de microuniverso, a esse respeito, ver, por exemplo, Erich Fromm & Michael Maccoby, Social Character in a Mexican Village: "O caráter social resulta da adaptação da natureza humana às condições sócio-econômicas disponíveis [o parágrafo seguinte eles referem-se a 'desempenho de classe'] e. secundariamente, tende a estabilizar e manter tais condições.") (p. 230). Ao analisar as "Race Relations in Curaçao and Surinam'', Harry Hoetink observa que, apesar de sujeitas ao mesmo protestantismo holandês, suas leis e instituições, as relações sociais nas duas colônias foram bem diversas: "Quanto a Curaçao, basta notar que os desempenhos sociais do senhor e dos escravos produziram um modelo institucionalizado e mutuamente complementar de conduta para um e outros... [porque] Curaçao não tinha lavouras intensivas de fato, nem verdadeiros latifúndios produzindo para o mercado mundial. . . A situação foi totalmente diferente no Suriname. Ali havia vastas lavouras intensivas de cana, café, algodão e indústria madeireira ... [onde] com o tempo, o núme-

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REVOLUÇÃO AMERICANA E REVOLUÇÃO FRANCESA

ro de brancos excedeu em 7% o de escravos. No fim do século XVIII havia, no Suriname, cerca de 3 mil brancos e 5 mil escravos. Em Curaçao, o número de brancos era mais ou menos. o mesmo, porém com apenas um décimo daquele número de escravos. Tais estatísticas bastam para explicar o tratamento mais severo dos escravos no Suriname" (Hoetink, em Foner e Genovese, 181-2). Por outro lado, Elsa Gouveia afirma que, "a despeito das diferenças religiosas entre os franceses católicos e os ingleses. protestantes nas índias Ocidentais, ambas as atitudes religiosas. e sua conduta geral em relação aos escravos mostraram notáveis semelhanças durante o curso do século XVIII, e tais semelhanças estabeleceram marcante contraste com as atitudes e comportamento aceitos em Cuba até que a colônia começou a desenvolver um grande sistema de lavouras intensivas... Todas as provas apontam uma conclusão. A julgar por sua administração efetiva no século XVIII, as leis escravistas francesas diferiam muito· menos de suas contrapartes inglesas do que se poderia imaginar. A aplicação do Code Nair [que, em outras circunstâncias, Colhert patrocinou a fim de proteger os escravos mais por motivos comerciais do que humanitários] durante esse período [afrouxou muito] . . . A lei tendia a transformar-se cada vez mais em letra morta" (Gouveia, em Foner e Genovese, 168, 134 e 131). Isso ocorreu, naturalmente. durante os anos de boom (17631789) das colônias açucareiras francesas. David Brion Davis explica: "Onde quer que os escravos trabalhassem em moldura de· boom econômico, nas índias Ocidentais, nos meados do século XVIII, e nas lavouras intensivas de café no Brasil, no século XIX. a instituição caracterizou-se por um atrito opressivo. Um paternalismo mais brando tendeu a aparecer quando os preços caíram. quando havia pouco incentivo à maximização da produção ... " (Davis, em Foner e Genovese, 67). "Talvez seja significativo que relatos sobre a escravatura latino-americana retratem freqüentemente a vida relaxada nas lavouras intensivas de cana, após o declínio de sua importância econômica, e ignorem condições que prevaleceram durante o boom açucareiro do Brasil no século XVII, o boom da mineração no começo do século XVIII e o boom do café no século XIX" (Davis, em Foner e Genovese. 67, 73). Estes imperativos econômicos e políticos, internos e externos, é que determinaram princi· palmente as condições de trabalho nas lavouras intensivas escravistas, como também nas minas e outros sistemas de trabalho colo1

A

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159

nial. Circunstâncias adicionais, embora relacionadas, que contribuíram para a definição das condições de trabalho e relações sociais em geral foram o tamanho e concentração das unidades produtivas e as condições de substituição da força de trabalho. Desse modo, os regimes escravistas mostraram-se menos severos em áreas, como as ilhas menores, altamente especializadas (sobretudo em épocas de boom) na agricultura de lavouras intensivas; foram ainda menos severos, não obstante a ocorrência de rebeliões de escravos, especialmente na Jamaica, onde a montanhosa hinterlândia oferecia algumas possibilidades de agricultura de subsistência e refúgio militar; e relativamente menos severos em partes meridionais dos Estados Unidos, onde as lavouras intensivas ou melhor. fazendas - e concentrações de escravos eram freqüentemente menores e mais dispersas. De igual maneira, o tra-tamento aos escravos foi mais duro - uma vida "útil" de sete anos ou menos - onde e quando as possibilidades da substituição desse capital "de trabalho" foram maiores e mais baratas (em termos absolutos ou relativos quanto aos lucros das épocas de boom). Ao contrário, o tratamento revelou-se mais "humano" onde as vidas úteis dos escravos tinham de ser prolongadas segundo as necessidades do senhor e, o que é mais importante, onde e quando a oferta de escravos Jependia, em grande parte. de sua própria reprodução. Um argumento vinculado ao primeiro, e que assume maior e menor importância política em diferentes instantes históricos, é o seguinte: se o preconceito racial é causa ou efeito de discriminação racial e, especificamente, da escravidão negra. Com isso, certos setores buscam justificar para si mesmos e para outros sua própria discriminação, e sobretudo a exploração de terceiros, a pretexto de que algumas raças são inferiores/superiores a outras, e que este sentimento de fato existe; já outros sustentam que aquele sentimento, que é o preconceito, é mais a conseqüência histórica e social das relações e do sistema de discriminação e exploração e, ainda mais, que as diferenças agora observáveis de superioridade /inferioridade racial são também resultado sócio-histórico de tal exploração e opressão. Os últimos, em nível simbólico, observam que Shakespeare não mostrou ou refletiu preconceito de raça dos brancos contra os negros, quando escreveu Otelo; e outros criticam Shakespeare por não ter refletido suficientemente o preconceito racial que supostamente já existia então. Incapazes aqui de analisar esta questão em detalhes, limitar-nos-emos a notar que, pelo visto, a análise com-

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REVOLUÇÃO AMERICANA E REVOLUÇÃO FRANCESA

pleta deste livro tem a ver apenas com a tese de que o sentimento racial é fundamentalmente conseqüência, e não causa, de opressão e exploração racial, e remeter o leitor a escritores que examinaram a fundo e defenderam esta tese, tais como Williams, James, e muito mais zelosamente, Genovese. A observação de C. R. Boxer, referente à proclamada "falta" de preconceito racial entre os portugueses, é sugestiva: "Uma raça não pode escravizar sistematicamente membros de outra raça, em larga escala, por três séculos, sem adquirir um sentimento consciente ou inconsciente de superioridade racial" (Boxer, citado por Genovese em Foner e Genovese, 246). Alguém poderia sustentar o contrário? Dificilmente.

IV.

Comércio Escravo na África

"Um comércio negreiro em larga escala teria· sido impossível se a África fosse verdadeiramente primitiva. . . Mas a África não era primitiva" (Bohannon e Curtin, 264). A escravatura nas Américas e o comércio escravista do Atlântico puseram a África no processo de acumulação de capital, e o fizeram em nova base. Nas palavras de Sarnir Amin, "durante esse longo período de incubação, abrangendo três séculos, a periferia americana do centro mercantil europeu ocidental desempenhou parte decisiva na acumulação de riqueza pela burguesia da Europa Ocidental. A África Negra desempenhou papel não menos importante: o que qualificamos de periferia da periferia. Reduzida à missão de fornecedora de trabalho escravo para as lavouras intensivas, a África perdeu sua economi'a. ·Começou a ser modelada de acordo com as necessidades estrangeiras, as do mercantilismo" (Amin, Underdevelopment and Dependence in Black Africa, IDEP, 1971). Escravatura e comércio escravo tiveram longa história na África, mas antes do tráfico negreiro do Atlântico eles existiam em bases sociais diferentes e tinham funções e conseqüências econômicas diversas das que viriam a ter sob a égide do capitalismo mercantil mundial (Hargreaves). Davidson divide este último desenvolvimento em três estágios principais e em grande medida sucessivos: pirataria, aliança militar entre caçadores europeus de escravos e chefes de tribos costeiras que começaram a fornecer escravos por compulsão e acabaram produzindo-os para lucro; e uma associação mais

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ou menos pacífica entre os escravizadores europeus e os fornecedores costeiros que, em troca, comerciavam ou capturavam escravos nas investidas guerreiras continente a dentro. O tráfico escravo afetou quatro grandes regiões em África: o Congo, o Delta nigeriano, a costa da Guiné e partes da África Oriental; e afetou-as diferentemente, prejudicando a base populacional muito mais gravemente, por exemplo, no Sul pouco povoado, que era a principal fonte portuguesa, do que no Noroeste, mais povoado do comércio escravista anglo-francês (Oliver & Fage, 121). Enquanto o fluxo total de escravos passava de menos de 2.000 por ano, antes de 1600, a uma média de cerca de 55.000 anuais, durante o século XVIII, e a uma média de 70. 000 a 75.000 e mais de 100.000 em certos anos, durante a década do pique de 1780, a fonte africana de escravos também se desviava na direção Sudoeste. A Costa do Ouro, como fornecedora relativa, declinou de cerca de 25%, na década de 1720, para 8%, na de 1790, enquanto a baía de Biafra subiu de somente 2o/o, naquela primeira década, para 42%, no primeiro decênio do século XIX; e os fornecimentos da África Central dobraram entre 1770 e 1780. Para o período 1711-1810, o Senegal, Gâmbia e Serra Leoa forneceram cerca de 5,5%, a Costa Windward, cerca de 7,7%, a Costa do Ouro, 9,2%, a baía de Benin, 19,5%, a baía de Biafra, 16%, e a África Central e o Sudeste africano, 42% (Curtin, The Atlantic Slave Trade, 22, 228, citado em Bohannan e Curtin, 269-271). "Em resumo, enquanto a demanda de escravos se manteve relativamente firme, ela foi satisfeita por ligeiros desvios de uma para outra fonte de abastecimento, dependendo das condições políticas ou do desenvolvimento de novas rotas comerciais no interior" (ibid, 269). Entretanto, mais importante ainda que essas diferenças regionais, para uma apreciação da operação e conseqüências do :omércio escravo para a África, foi a diferença entre sua operação perto do litoral e seus efeitos de longo alcance nas áreas ,jo interior do Continente. Davidson escreve em The African Slave Trade: "Ele isolou os povos do interior de qualquer contato com a Europa, exceto através da venda de cativos. Os chefes das rtibos costeiras empenharam-se em defender o seu poder, comprando armas de fogo aos europeus; os da retaguarda, privados de qualquer vínculo direto com europeus, foram reduzidos à impotência ou envolvidos no tráfico. De forma crescente, escolheram o envolvimento,

162

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ou a isso foram forçados" (Davidson, 154). Assim, analogamente aos principais abastecedores locais dos frutos do trabalho colonial, mais tarde neocolonial, e depois ao que veio a se chamar genericamente de "burguesia compradora'', os africanos, pelo menos os governantes do cinturão litorâneo, tomaram parte ativa e consciente no comércio escravo. "É um erro considerar a experiência da Guiné [e de outros centros de tráfico negreiro] como ordenada e imposta de fora, com a parte africana desempenhada de forma negativa e involuntária. Esta visão espelha a noção familiar de incapacidade africana, e não tem lugar no registro histórico. Os africanos envolvidos no comércio raras vezes eram vítimas indefesas de uma situação que não compreendiam; ao contrário, compreendiam-na tão bem quanto seus parceiros europeus. Responderam ao seu desafio. Exploraram suas oportunidades. Sua grande desgraça - e isto seria a tragédia africana - foi que a Europa queria apenas escravos" (Davidson, 201-202). Por outro lado, "as feridas do comércio escravista se haviam tornado realmente inevitáveis ... Em momento algum eles [africanos] tiveram possibilidade de escolha, salvo a de juntarem-se ao comércio europeu - com perigo de suas vidas, e para lucro quase certo de seus rivais - ou então renderem-se às incessantes demandas da Europa... O poder de o Daomé resistir ao Oyo (sujeitando-se, cm troca, à mesma pressão) dependia da entrega de escravos à costa; a alternativa drástica e inevitável era escravizar outros, a fim de comprar armas de fogo, ou arriscar-se então à escravização. Esta, com efeito, foi a dinâmica interna da escravatura em conexão com a Europa; e compeliu o Daomé, como compeliu outros Estados, à participação plena na escravatura. Estado algum podia resistir, ou tinha oportunidade de resistir a esta combinação de espingardas e cativos ... O Daomé foi apanhado na ruinosa cadeia de causa e efeito do comércio de escravos. Grandes quantidades de armas de fogo foram infiltradas na Africa Ocidental durante o maior período do tráfico negreiro. . . Negociantes europeus da costa talvez lamentassem esse fluxo de armas, pois ele fortalecia o poder de barganha de seus parceiros africanos, mas nada podiam fazer a respeito. A exemplo dos africanos. também eles foram colhidos na cadeia de causa e efeito. Tinham de ter escravos, e para ter escravos tinham de pagar com armas. Mesmo que os comerciantes europeus quisessem recusar armas, andavam muito descon-

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fiados uns dos outros para tentar qualquer espécie de política comum" (Davidson, 240, 238, 241, 242). Em certas áreas litorâneas, o comércio de escravos gerou novas colonizações ou novas formas de colonização. "Os pântanos do Delta do rio Níger eram escassamente povoados ou mesmo despovoados antes da chegada dos veleiros. . . Contudo, dentro de 100 anos, emergiu ali, em meio ao labirinto de canais. . . um sistema intrincado de Estados comerciantes; e, ao cabo de outros 100 anos, esses Estados tinham evoluído para uma posição quase invencível de monopólio comercial. Tornaram-se intermediários indispensáveis entre a Europa e as terras densamente povoadas atrás do Delta. . . A história desses pequenos Estados ... pertence ao Atlântico e à Africa. Eles foram, a bem dizer filhos do comércio da Guiné - o comércio de escravos - d~ mesma forma que as colônias de lavouras intensivas do Caribe e da América do Norte. E, no ·entanto, permaneceram fortemente africanos na fala e nas idéias" (Davidson, 205-206). Ao longo de toda a costa, "o comércio escravista tornou-se inscparúvcl das influências de Governos tribais. Onde o comércio encontrava chefes fortes e reis, prosperava quase desde o princípio; onde não os encontrava, fazia-os aparecer. Seja na acumulação de riqueza por via dos direitos alfandegários, presentes ou lucros comerciais; seja pela superioridade militar que derivava da compra de armas de fogo; seja pela autoridade política que os escravizadores atribuíam a figuras de prestígio, a escravização edificou o poder dos chefes onde ele não existia antes, ou transformou tal poder onde já estava presente. desviando-o de um caráter amplamente representativo para um sentido autocrático" (Davidson, 213). As armas de fogo constituíram o elo vital entre os Estados litorâneos e o interior mais densamente povoado. "O uso generalizado de armas de fogo mudou o curso da história no Delta [o do Níger] tão seguramente quanto em outras partes da África. Foi sua concentração de poder de fogo que capacitou os chefes do Delta a afrontar e intimidar os povos numericamente mais fortes do interior. E os mosquetes foram quase com certeza decisivos para que os sacerdotes-comerciantes Aro sustentassem seu monopólio - e fizessem respeitar o oráculo - em face da crescente oposição dos que sofriam as injustiças do sistema. Os padres Aro não parecem ter usado as armas eles próprios. Alugavam pessoas. Convocavam mercenários nas associações militares profissionais da lbolândia. . . Assim. o comércio

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foi organiL:ado com a arma de fogo e deus de um lado e, do outro lado, certamente o navio e· a lavoura intensiva... As relações entre os Estados da Hinterlândia eram crescentemente envenenadas pela luta do privilégio monopolista no abastecimento de escravos. Guerras feudais transformaram-se em guerras comerciais. Guerras comerciais, devidamente santificadas pela religião, degeneraram num salve-se-quem-puder, onde cada homem podia caçar outro ... bastando-lhe para isso a força" (Davidson, 213, 226). Desse modo, nos Estados do interior, o comércio escravista do Atlântico tendeu a ter conseqüências outras que nos Estados do litoral. O interior mantinha, há longo tempo, comércio com o mundo exterior, porém através do Saara, como já vimos. Onde esse comércio ainda subsistia, teve de ser suprimido pela força - como o fizeram os franceses no que hoje é o Senegal-Máli (Amin). Mais importante ainda, os Estados imperiais preexistentes foram isolados e politicamente enfraquecidos. "Todos os grandes Estados da floresta - Oyo, Benin, os de Akan e Daomé - envolveram-se profundamente no comércio de escravos; e cada um foi influenciado por suas tensões e pressões. Com mais freqüência, porém, as conseqüências revelaram notável contraste com o crescimento político que ocorreu ao longo da costa e na maior parte das cidades-estado do Delta. Pois, en1quanto os povos do Delta absorviam novas tensões, resultantes de novas formas de organização social, os Estados do interior mostravam crescente rigidez e resistência ao desenvolvimento político. Numerosas vezes, embora com muitas variações locais, seu feudalismo virou-se contra eles, seus governantes eleitos tornaram-se tiranos, e o tecido de sua vida social evoluiu de forma perigosamente áspera e insensível. Ao ampliarem seu comércio com a costa, comerciaram também sua própria ruína. Cresceram poderosos nesse comércio, mas seu poder revelou-se mortal" (Davidson, 225). Alguns Estados, como o Congo-Angola e a Federação Iorubá, foram destruídos ou desintegrados sob o impacto do comércio de escravos. A exceção aparente a esta regra teria sido o Estado Ashanti, que se desenvolveu e expandiu, para se tornar afinal o mais poderoso Estado africano da "Idade Média" da história da África, durante o século XVIII; e o conseguiu numa região mediterrânea, centralizada em sua capital, a cidude de Kumasi. Os fundadores e construtores do império são lembrados e reverenciados até hoje. Mas se o Ashanti foi excepcional ~m seu poder

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e glória, também o foi na medida em que desafiou as reivindicações dos Estados litorâneos Fulani e Ga ao monopólio do comércio escravo - e alcançou êxito, estabelecendo-se como intermediário entre eles e o Norte, em vez de ficar à margem ou ser destruído pelo tráfico negreiro. Enfim, foi o comércio escravo, e também a produção de ouro, a base econômica do poder de Ashanti e de sua formação como Estado (F. K. Fynn, Ashanti and its Neighbors 1700-1807. Ver ainda Klein). O comércio escravo e as guerras escravistas também contríbuíram, de forma significativa, para a ruína da democratização, para a estratificação e o autoritarismo da sociedade africana. Não somente o poder dos chefes foi reforçado (ou, em certos casos, virtualmente criado), e sua legitimidade pervertida como ocorreu com os caciques índios do século XVI na América Hispânica, e voltaria a ocorrer na África colonial, na virada do século XX - mas também, em contrapartida, "o status de muitas pessoas comuns diminuiu e a divisão da sociedade em diferentes classes tornou-se mais rígida. . . O envolvimento ativo no comércio escravista do Atlântico significou o aumento de categorias servis nas sociedades em que elas existiam, e sua criação onde não existiam. Assim, mais ou menos no fim do século XVIII, uma ponderável proporção de habitantes da África Ocidental encontrava-se sob alguma espécie de servidão.. . No período do comércio escravo do Atlântico, uma penalidade tão drástica quanto a venda como escravo foi introduzida para um número cada vez maior de delitos, descendo até os mais triviais. Com efeito, as pessoas comuns haviam perdido a segurança individual que as leis consuetudinárias lhes garantiam no passado. . . Os sacerdotes estavam geralmente envolvidos do lado dos comerciantes de escravos, juntamente com poderosas instituições espirituais, como sejam as sociedades secretas. Autoridades religiosas eram peritas em casos de feitiçaria a descoberto, o que significava que os acusados eram vendidos aos europeus. Havia um sofisma óbvio nesses procedimentos, conquanto a prática de feitiçaria houvesse aumentado nas confusas condições de era do comércio negreiro. Outra área de escuridão é a dos valores morais" (Rodney, em Oliver, org. 37-39). Finalmente. podemos indagar quais as contribuições imediatas que a participação da África no comércio de escravos e, daí, sua contribuição ao processo mundial de acumulação de capital nos anos 1650-1850 trouxeram ao seu próprio desenvolvimento econômico. Rodney (39) escreve: "O comércio certamente nãc~

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estimulou quaisquer recursos de produção na África, como o fez na Europa e no Novo Mundo. Ao contrário, desviou esforços da agricultura e da indústria. A introdução de mercadorias européias não causou benefícios econômicos, já que as mercadorias eram consumidas sem gerar crescimento na economia ... A economia estagnou-se e os recursos humanos foram devastados. Não há dúvida, entretanto, quanto à extraordinária contribuição dos africanos ao desenvolvimento econômico alheio. 12

12 As bases soc1a1s, econonucas e políticas que o comercio escravista africano deixou no processo de acumulação mundial de capital, nos séculos XIX e XX, serão examinadas mais adiante, no contexto do resumo desses séculos.

CAPÍTULO

4

A Transição na índia para a Transformação da Ásia

1.

O Impacto Superficial da Europa sobre a Ásia

Antes da conquista inglesa de Bengala, na segunda metade do século XVIII, o impacto europeu de maior alcance na Ásia foi o da Companhia Holandesa das índias Orientais em algumas ilhas da Indonésia - mas até esse impacto foi modesto, embora prenunciando acontecimentos que viriam no século XIX (van Leur, 275 et passim). A especialização da agricultura para exportar foi então pela primeira vez exigida e aplicada na Ásia, quando os holandeses cuidaram de fortalecer sua posição monopolista, fazendo com que várias ilhas pequenas se especializassem na produção de determinada especiaria, com a exclusão de outras. Isso significava o exercício de incipiente controle político pelos holandeses, pelo menos através do "Governo indireto" de líderes locais. Além disso, "com a extensão do controle territorial holandês em Java, grande quantidade de produtos que, até então, eram vendidos pelos preços do mercado, começaram a ser recebidos em condições mais vantajosas, mediante contratos e tratados concluídos com governantes indonésios. Os holandeses passaram a exigir quantidades especificadas de arroz, açúcar, pimenta e café do povo de Java, e também reclamaram serviços pessoais na indústria de sal, corte de madeira nas florestas, dragagem de canais, construção de estradas e pontes. e toda a espécie de obras públicas. Ademais, os representantes da Companhia exploraram a fonte de trabalho em suas atividades privadas" (Bastin & Banda, 25).

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Todavia, isso ainda era pouco para que "a agricultura de escala planasse na superfície de uma imobilizada economia de subsistência. . . Seu impacto na moldura ecológica indonésia, como um todo, foi marginal e assistemática" (Geertz, 52). Este último argumento tem sido sustentado com maior ênfase por van Leur: "Parece-me que, até explicação em contrário, esses. fatos opõem-se ao conceito de um universo indonésio lânguido,. retardado, e uma Companhia dominadora. . . Para resumir: o curso da história indonésia, quando em confronto com alguns. episódios e conceitos econômicos, não parece ter coincidido com os da Companhia Holandesa, não mais do que a história de qualquer posição política européia na Ásia do século XVIII orientou o curso da história asiática" (van Leur, 281, 284). J. D. Legge, por seu turno, comenta: "van Leur tendeu a superestimar seu caso a fim de contrariar os exageros da oposição. Haveria hoje concordância geral com o seu argumento de que a chegada dos portugueses e holandeses não constituiu ruptura dramática na continuidade da história do comércio asiático. Haveria menos concordância geral com a implicação de que a chegada do europeu não representou mudança alguma ... " (Legge, 61.) Qual, então, o impacto capitalista mercantil da Europa sobre a Ásia, distinto da América Latina e da África, anterior à Revolução Industrial e ao século XIX? Podemos concordar.. em boa parte, com a resenha e avaliação de J. C. van Leur: "Uma visão geral do todo só pode levar à conclusão de que quaisquer idéias de uma Ásia européia no século XVIII estão fora de questão, de que alguns centros europeus de poder se tenham consolidado em escala muito limitada, de que em geral - e aqui deve recair a ênfase - as terras orientais continuaram a formar fatores ativos no curso de acontecimentos, como entidades válidas, militar, econômica e politicamente ... Devese ter em mente o quadro da situação política global na Ásia Oriental e Meridional durante o século XVIII. . . A Pérsia, então, foi no século XVIII um país ainda intacto. Na índia, o estabelecimento de poder local, até mesmo regional, pela França e Inglaterra, não perturbou, se não ligeiramente, o poder do Império mogul [embora este declinasse por si mesmo e fosse substituído pelo poder britânico em Bengala durante os quatro últimos decênios do século]. A Birmânia e partes extremas da 1ndia abrigaram Estados inviolados. A excelente organização da burocracia mandarim em Annam e Tonquins só desapareceria

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com as guerras coloniais dos franceses sob o Segundo Império [o de Napoleão III, depois de meados do século XIX]. Ao tempo dos Imperadores Manchu, a China do século XVIII alcançou o pináculo do poder político e padrão cultural. O Imperador K'ang Hsi (1662-1723) estendeu uma vez mais a influência militar do Império até o Turquestão Ocidental e pôs o Tibete sob a suserania chinesa. O Imperador Ch'ien Lung (1736-1796) assegurou as distantes fronteiras ocidentais, fez o Nepal retroceder sobre os Himalaias e obteve o reconhecimento da soberania chinesa por parte da Birmânia (1769) e Annam (1789). 'Nunca, nem mesmo sob o Governo dos T'angs, regiões de tal modo vastas da Mongólia e do Turquestão foram tão completamente anexadas ao Império ... Nunca, em toda a sua história, o poder e a supremacia da China pareciam mais consolidados' (citando J. J. L. Duyvendak, W egen en gestalten der Chineesche geschiedenis). No Japão, o shogunato permaneceu inabalável. O novo deslocamento de influência para a classe 'burguesa' de ricos. mercadores, especuladores e acionistas não afetou a ordem das coisas existentes; os contratempos causados por erupções vulcânicas, inundações, secas e fracassos agrícolas foram de natureza bastante estática. Também merece exame a significação social e econômica das enormes massas populacionais: de 60 ou 80 a 100 milhões na China, 26 milhões no Japão, 100 milhões na índia, em oposição ao número de habitantes na França, que era o mais povoado país europeu: 19 milhões no fim do século XVII e 23 milhões no fim do século XVIII (a Inglaterra tinha somente 6 milhões de habitantes; incluindo a Escócia, 7). Tal comparação é sobremodo válida num mundo cujos meios de subsistência eram, sob o aspecto técnico, praticamente iguais na Ásia e na Europa. Por outro lado, devemos considerar a posição· dos postos avançados europeus na Ásia. A Rússia havia atravessado a Sibéria até o Mar de Akhotsk, mas a região permanecia completamente periférica em relação à China (conforme mostrado pelos tratados de 1688 e 1724), bem como ao Japão. Tampouco começara ainda suas conquistas na Ásia Central. Nos mais antigos baluartes do Sudeste da Ásia houve alguma mudança, o equilíbrio mudou e os ocidentais vieram por acaso a dominar? No quadro político do século XVII os asiáticos dominavam inteiramente, quando comparados aos pequenos postos que os europeus haviam estabelecido. O equilíbrio teria sido desfeito depois, com a balança pendendo para o outro lado, no século XVIII? Certamente não quanto à China, Japão, Indochina.

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índia e Pérsia. Sequer quanto à índia. O início do controle territorial britânico ali datou de Plassey, 1757 ... " (van Leur, 274, 270, 271-72). "Duas civilizações iguais desenvolviam-se em separado - e a asiática, em todos os sentidos, era superior qualitativamente. A igualdade permaneceu enquanto o veneno mágico do moderno capitalismo ainda não encantara a Europa e o Nordeste da América, levando-os a produzir a máquina a vapor, a desenvolver a mecânica e o canhão com estrias ... " (van Leur, 284-85).

II.

Modos de Produção Asiático, Feudal e Capitalista

Bhowani Sen começa o capítulo sobre "A Herança do Passado", em sua Evolution of Agrarian Relations in Jndia, desta forma: "Os historiadores diferem quanto à natureza do antigo sistema agrário na índia. Está além dos objetivos deste livro esmiuçar os detalhes da controvérsia" (Sen, 37). O mesmo se pode dizer com respeito a outras partes da Ásia (p. ex., Chesneaux e o alvo do presente debate). Uma parcela ponderável do debate concentrou-se no "modo de produção asiático". Roger Bartra lembra que "o conceito do modo de produção asiático ou despotismo oriental tem uma longa história no pensamento ocidental", que ele faz retroceder a Platão e Aristóteles, passando por Maquiavel, Hobbes e Montesquieu, antes de vir a ser reformulado por Marx e Engels. Durante o século XX, essa discussão esmaeceu durante o período stalinista, para ser revivida somente .como arma ideológica pseudocientífica do anticomunismo, nos ;anos da Guerra Fria do decênio de 1950, com a publicação, por Karl Wittfogel, de Oriental Despotism (para uma crítica nãomarxista, ver Robert M. Adams, The Evolution of Urban Society, e Steard et al, Jrrigation Systems). Assim, o conceito de modo asiático de produção degenerou em arma política. Mais recentemente, e sobretudo através da tradução e publicação em várias 1ínguas do Grundrisse, de Marx, renasceram uma pesquisa e debate mais sérios, inclusive entre marxistas, que procuraram reivindicar o "modo de produção asiático" como um conceito científico e aplicá-lo na pesquisa, a partir de uma perspectiva materialista histórica (ver, por exemplo, Hobsbawm, Pre-Capitalist Economic Formations; Godelier, Las Sociedades Primitivas; Bartra, El Modo de Producción Asiático; CERM, sobre o "Mo.de de production asiatique", etc.).

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Bartra resume e define: "O modo de produção asiático é um sistema em que aparece um poder estatal bastante forte, política e economicamente, o qual se baseia na exploração generalizada das comunidades aldeãs no território dominado pelo Estado, exploração esta que se efetua através da extração do excedente de produção da aldeia, mediante tributos em espécie ou em trabalho (raramente em dinheiro) ... O modo de produção asiático deveria ser considerado uma formação de classe social. Ou podemos admitir estarmos em face de um modo transicional de produção... No modo de produção asiático não existe apenas baixo nível geral das forças produtivas, mas também desequilíbrio interno em seu desenvolvimento. . . Há maior utilização da força produtiva trabalho humano do que da força produtiva meios de produção. Identificamos aí uma superexploração das forças de trabalho que compensa a subutilização das possibilidades tecnológicas. . . O desequilíbrio que condiciona a estagnação é a característica do modo de produção asiático; mas trata-se de fenômeno econômico histórico, com um fator estrutural, não um fator natural, em sua base. O instrumento sócio-político que permite a manutenção deste desequilíbrio é representado pelo aparelho do Estado. Em tais condições, a sociedade só pode atingir alto nível de civilização mediante o severo e despótico controle, centralizador e organizador, do Estado; pois, quando este controle desaparece, perde-se a possibilidade de superexploração maciça da força de trabalho, que se dispersa e se integra perfeitamente na comunidade aldeã, a base relativamente imutável do sistema. Neste caso, e até certo ponto freqüente no mundo asiático, quando ocorre declínio no poder do Estado, as comunidades tradicionais voltam-se outra vez para si mesmas, para sua vida isolada e auto-suficiente, sem ter adquirido inovações técnicas que permitiriam seu desenvolvimento ... " (Bartra, 15-17). Foi essa espécie de conceito, às vezes pondo maior ênfase na suposta imutabilidade e estagnação, e às vezes menos ênfase na vida aldeã e no sistema estatal como um todo, que caracterizou parte substancial da observação ocidental na Ásia, de Platão a Marx. A partir daí, e com ênfase crescente na dinâmica interna e aspectos transicionais do modo de produção, este pensamento tem sido "encontrado" também em partes da África, na América pré-colombiana e nas civilizações clássicas do Mediterrâneo, de forma que alguns autores recomendam a eliminação da referência regional à "Ásia" (onde, por outro lado, o

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modo de produção não foi encontrado por toda parte) e su& substituição por "despotismo aldeão" ou algo parecido (Chesneaux). Várias considerações, entre elas a insistência stalinista na suposta seqüência histórica primitiva-escravista-feudal-capitalista e o abuso político e eurocêntrico do conceito marxista do moda. de produção asiático, para sugerir a "superioridade" de forma-ções sociais européias pré-capitalistas, cuidaram de substituir a interpretação marxista anterior, especialmente da índia, por outras teses. Autores soviéticos e estudantes indianos associados ao Partido Comunista da índia (Dange) apoiaram a tese de uma índia feudal: "Do século XVI ao século XVIII, o feudalismo na índia desenvolveu-se muito rapidamente ... Quando os europeus apareceram na índia, o modo de produção feudal predominava ali" (Levkovsky, 2). "Certas formas de feudalismo, um tanto diferentes das européias, evoluíram durante o Governo da dinastia Gupte. . . Já observamos que os aspectos gerais do feu-dalismo explicados acima começaram a se desenvolver na antiga índia, mais de 2. 000 anos atrás. Indicamos também que o traço especial do feudalismo indiano foi a forma tributária, isto é. ao contrário da servidão européia, o trabalho forçado não foi uma característica geral, o senhor de terras recebia apenas tributos ... " Sob Governo muçulmano, o sistema agrário da índia perdeu muito de seu primitivismo, característico do sistema asiá-· tico, e desenvolveu-se num tipo de feudalismo que se asseme-lha, em alguns aspectos, à forma ocidental clássica" (Bhowaní Sen, 41, 47, 51). No século XVII, "a burguesia mercantil ainda se mostrava subserviente ao poder feudal da sociedade indiana ... Em suma, as decadentes forças feudais da sociedade não forneceram base ao renascimento cultural que a índia testemunhou nesse período, nem puderam manter por muito tempo seu controle sobre a índia ... A burguesia mercantil indiana ... como classe não conseguiu erguer-se acima das forças feudais do país e tampouco, àquela altura, teve mão forte sobre os mercadores europeus, e especialmente sobre a Companhia inglesa" (Ramkrishna Mukherjee, The Rise and Fali of the East India Company, III, 121). Outra questão diz respeito ao destino do "feudalismo" na_ índia. A. I. Chicherov escreve na Introdução de seu livro lndia: Economic Development in the 16th-18th Centuries: "Existem duas tendências básicas na Indologia Soviética com referência à matéria do presente estudo. A primeira é representada por es-

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tudiosos que acreditam na emergência, de uma ou de outra forma, de elementos capitalistas na economia feudal da índia, do século XVII ao começo do século XIX. Esta tese foi desenvolvida pela primeira vez na historiografia soviética no início do decênio de 1950, através de 1. M. Reusner, e recolhida por A. M. Dyakov, V. 1. Pavlov, E. N. Komarov. A. 1. Levkovsky e outros, que ofereceram a primeira prova documental de existência de relações capitalistas embrionárias no subcontinente. . . A outra tendência é representada pelo estudioso que, ou nega o surgimento de elementos capitalistas, ou os considera tão íntimos que poderiam passar ignorados. Esta tendência está nitidamente expressa, em particular. nas obras de K. A. Antonova. Recentemente, as opiniões de K. A. Antonova sofreram revisão e encontram-se agora mais próximas das sustentadas pelo grupo de pesquisadores acima mencionado" (Chicherov, 11-12). Eis a opinião de Chicherov: "Fontes à nossa disposição permitem-nos falar do aparecimento e desenvolvimento, em certas áreas da índia, nos séculos XVII e XVIII, de relações capitalistas que transformaram o capital mercantil em capital industrial, mediante a organização da indústria capitalista doméstica" (Chicherov, 181). O aprofundamento da divisão social do trabalho (separação entre ofícios e agricultura, cidades e campo, e evolução das relações mercadoria/moeda) na economia feudal deu origem, ao que se presume, à emergência de rudimentos de novas relações capitalistas envolvendo o aluguel do trabalho para a produção do valor excedente. O aparecimento de tais relações esteve ligado à crescente demanda no mercado interno e, especialmente, no mercado externo. O volume considerável de comércio administrado por europeus foi somente um dos fatores que contribuíram para o desenvolvimento de tais fenômenos, "os quais, no seu todo, vinculavam-se mais ao capital indiano e ourros capitais asiáticos do que propriamente ao capital europeu" (Chicherov, 181, 234). Todavia, "uma estrutura feudal da sociedade, em vários graus de desenvolvimento, parece ter prevalecido nos diversos Estados do subcontinente indiano, nos séculos XVI-XVIII. Suas economias fundamentavam-se principalmente na propriedade feudal da terra ... O modo feudal de produção ainda não havia esgotado sua potencialidade de desenvolvimento ... Chegamos, portanto, à conclusão de que, no fim do século XVIII e começo do século XIX, a índia aproximava-se aparentemente dos primórdios do estágio industrial na evolução do ca-

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pitalismo dentro da moldura de sua economia geralmente feudal ... Grande parte, se não a principal, dos nascentes elem-:n'.os burgueses foram provavelmente destruídos no entrechoque de guerras feudais, movimentos antifeudais e, particularmente, da subjugação colonial e pilhagem" (Chicherov, 230, 236, 237). Alguns estudantes indianos levam o argumento ainda mais longe, hipoteticamente, para trás e para diante: "Autoridades eminentes na questão, como Baden-Powell e Radha Kumud Mookerjee, afirmam que a propriedade privada e a propriedade camponesa existiam na índia, já no período védico" (B. Sen, 37). E V. B. Singh sustenta que "o rumo desta mudança teria conduzido a economia hindu ao capitalismo, se a evolução natural não fosse torcida pelo Governo britânico ... Mas a intervenção britânica não permitiu o avanço deste processo natural: ao criar a classe proprietária rural, o Governo britânico reverteu o desenvolvimento das relações capitalistas de produção na agricultura e introduziu uma economia semifeudal. . . Minha opinião é que, entregue a si própria, a índia (como outros países subdesenvolvidos) teria na devida altura acompanhado o caminho da industrialização, com todas as suas implicações, e que o atual estado de subdesenvolvimento lhe foi imposto pelo imperialismo ... O capitalismo na índia teria crescido mesmo sem Plassey e Clive ... " (Singh, 2, 15, 8, 31). Esta é a tese, por muito tempo corrente entre muitos Partidos comunistas, de que o mercantilismo, o capitalismo e o imperialismo revigoraram e mantiveram o feudalismo, quando não o introduziram de chofre. no mundo colonial e que, através desse feudalismo, o imperialismo impôs/impõe o subdesenvolvimento em tais países. Analistas sérios de sua própria história indiana tendem a rejeitar todos esses fáceis modelos da índia de outrora e exigir estudos mais detalhados. Por exemplo: K. S. Shelvankar lembra que "o que o desenvolvimento agrário indiano criou foi, por isso, uma multiplicidade de reivindicações simultâneas e coordenadas a respeito da terra. Elas abrangiam três tipos: as reivindicações costumeiras dos camponeses na aldeia; as reivindicações apresentadas por delegação ou derivadas do intermediário; e as reivindicações superiores do soberano. A propriedade privada da terra, como é comumente entendida, só pode ser reivindicada quando esta tríplice reivindicação é sistematizada e unificada, de uma ou de outra forma ... " Nenhum dos maiores conflitos na história indiana teve por objetivo o exercício de direitos sobre

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a aldeia. Foram conflitos entre os senhores de vários graus, pelo direito ou poder de receber pagamento dos camponeses, não para se apoderarem de sua terra. A história européia, ao contrário ... O conflito indiano estalou entre senhores que não estavam preocupados, de maneira alguma, com métodos de cultivo. mas apenas cm tirar renda do campesinato ... O problema colocou-se sempre entre diferentes reivindicadores da espada ... " (Shelvankar, em A R. Desai, org., 150-152). "O feudalismo indiano difere tanto de sua contraparte européia, pelo menos com referência às suas manifestações superficiais, que a própria existência dele na índia tem sido às vezes contestada ... " (Kosambi, em Desai, 148). "A questão de 'quem possui a terra?' não poderia ser respondida, porque a propriedade tinha implicações totalmente diversas sob o feudalismo indiano em relação ao modelo europeu burguês ou protoburguês" (Kosambi, em Desai, 148-9) ... "Por tais motivos - a invencível resistência da aldeia e a importância política da burguesia - a evolução da economia indiana foi inibida e a emergência espontânea de uma ordem capitalista tornada impossível" (Shelvankar, em Desai, org. 150154). lrfan Habib, por seu lado. chega ao ponto de afirmar que Marx e Engels qualificaram, ou então abandonaram sua primeira teoria do modo de produção asiático, na Origin of the Family, Private Property and the State, e suspeita de recentes tentativas para reavivar o conceito; ele ridiculariza os que, como Dange, empenharam-se em descobrir o feudalismo na índia, como parte do esquema de desenvolvimento stalinista supostamente universal, e ainda mais os que vêem "a índia do século XVII encerrando potencialidades de desenvolvimento capitalista", o que ele classifica de "abordagem oportunista". "Os h'storiadores marxistas deveriam, primeiro e acima de tudo, concentrar-se num estudo de lutas de classes ... Se pudermos nos basear com firmeza no marxismo revolucionário, e conduzir uma pesquisa sem esmorecimentos. não há motivo para que, um dia, não possamos romper a cortina de sombras imposta pela reação, e ilum;nar a verdadeira história do explorado povo da índia" (Habib, em Jnquiry, 1969, pp. 52-57; ver também Habib, JEH, março de 1969). Parte dessa cortina foi levantada pelos próprios Habib e Kosambi, e por outros que colaboraram, por exemplo, em Readings in Indian Economic History, de R. N. Ganguli, org.

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III.

índia na Ásia

Foi durante os três decênios, em geral economicamente depressivos, de 1760 a 1790, anteriores à Revolução Industrial, que a transformação das relações da índia com o resto do mundo e, simultaneamente, da estrutura interna, política, econômica e social daquele país, assumiu nova importância histórica mundial .através de sua participação, agora decisiva, no processo de .acumulação de capital. "Embora os ingleses não fossem os primeiros europeus a se estabilizarem na índia, alcançaram êxito onde seus rivais ocidentais falharam. Sua vitória deveu-se a uma ,penetração vagarosa e paciente, que só rendeu frutos [após 1757] depois de mais de um século e meio de permanente con:tato com o país. Ademais, eles tiraram lições dos erros cometidos pelos primeiros europeus, e beneficiaram-se das técnicas apuradas depois de longa experiência pelos portugueses, holandeses e franceses. A época inglesa na história indiana deve ser vista como a fruição final de uns dois séculos e meio de experimentação e avanço europeu no Sul da Ásia. Suas raízes remon.tam a Lisboa do fim do século XV" (Wolpert, 64). Mas as sucessivas mudanças qualitativas nesta história ocor·rem, para começar, na primeira metade, e reproduzem-se na segunda metade do século XVIII. "Dois temas maiores dominavam a história da índia na primeira metade do século XVIII: a desintegração mogul e a rivalidade anglo-francesa ao longo das bordas de um império em colapso. Aos aspirantes indianos dos ,domínios mogul, os primeiros pareciam de longe os mais importantes. O advento do conflito anglo-francês, porém, estava destinado a decidir quem seriam os sucessores dos mogul imperiais. Enquanto marathas, afgãs, rajputs, mogul e sikhs desgastavamse em guerra indecisa, os rivais europeus eram deixados relativamente à vontade para determinar entre si [e confiando nas forças políticas e armadas rivais da índia como aliados] se Inglaterra ou França herdariam um Império indiano" (Wolpert, 72). Em relação aos acontecimentos indianos, internos e ao mesmo tempo de configuração histórica mundial, devemos dividir a história indiana do século XVIII a fim de distinguir os seguintes períodos signifü:ativos: até a morte, em 1707, de Aurangzeb, o último dos grandes governantes mogul da índia (ver capítulo 2, sobre o século XVII); de 1707-14 a 1742-44, começando com a Guerra da Sucessão Espanhola, na Europa, e o início ou aceleração da rufna mogul cm favor, particularmente,

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da expansão maratha, na índia, até a importante derrota mogul e a contenção do avanço maratha pelos persas, no Norte, em 1739, a designação de Dupleix para o comando francês no Sul e o choque anglo-francês em Madras, durante a Guerra da Sucessão Austríaca; a intensificação da rivalidade anglo-francesa no Carnático e o deslocamento da competição no rumo Norte, para Bengala, causando a histórica vitória de Clive sobre os bengalis, na Batalha de Plassey, em 1757, e a virtual eliminação do poder francês na índia, através do cerco, captura e destruição do seu forte em Pondicherry, durante a Guerra dos Sete Anos, em 1761; o período de 1757-65 a 1793, conhecido como o " roubo de Bengala", e a extensão do poder britânico ao Norte e ao Oeste, sob a liderança de Clive e Hastings, que coincidiu notavelmente com a longa recessão econômica incluindo o marcante declínio da produção de ouro brasileira e da retomada na produção de prata mexicana, que datava do fim do século XVII J - antes da Revolução Industrial na Inglaterra; e, por fim, os decênios de 1793 a 1816-17, marcados pela introdução da "permanente" colirnia agrícola zamindari, na administração de Cornwallis, e a destruição do poder maratha nas administrações de Welleslcy e Lorde Hastings, o que coincidiu com o período das guerras napoleônicas e os começos da Revolução Industrial na Inglaterra. Romesh Dutt divide os últimos dois períodos em 1784, aparentemente por causa da aprovação, naquele ano, da lei de Pitt sobre a índia, e a partida de Hastings no ano seguinte, embora as reformas instituídas por seu sucessor Cornwallis só entrassem em vigor em 1791-93. Devemos aqui resumir rapidamente os períodos anteriores a 1757 e examinar, sobretudo, o período entre 1757-65 e 1793, adiando para posterior atenção o período subseqüente à última data e deixando para debate em separado a questão geral da penetração capitalista européia no Sul da Ásia e o problema teórico dos modos de produção, sua transformação e a transição do feudalismo para o capitalismo na índia. Os europeus - portugueses, holandeses, franceses, ingleses e outros - tinham comerciado nos arredores do Império mogul durante dois séculos sem se tornarem fator decisivo na transformação qualitativa do modo de produção existente ou da organização social indiana. Não fosse a rápida desintegração interna do poder mogul, depois de 1700, o desenvolvimento capitalista mundial dominado pelos europeus não teria - apesar de suas "necessidades" de fontes "externas" de primitiva acumulação ca-

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pitalista e mercados, durante o século de 1750 a 1850 - feito incursões maiores e mais significativas na índia do que realizou, de fato, na China; e o desenvolvimento do capitalismo teria sido bem diverso do que foi. Muitas regiões da índia haviam estabelecido comércio interregional e "internacional", a longa distância, desde o século XIV e mesmo antes. Bengala, Golconda e Gujarat mantinham "favorável" balança comercial e importavam metais preciosos. Bengala, além de exportar cereais e outros grãos para outras partes da índia, mantinha relações de comércio com muitos lugares do Extremo-Oriente, Sudeste Asiático, África e Oriente Médio, exportando tecidos de algodão e seda e produtos agrícolas. A costa coromandeliana também comerciou com essas áreas, exportando os mesmos tipos de mercadorias, bem como produtos de ferro e aço. De modo crescente, desde o século XVI, comerciantes portugueses, primeiro, e depois holandeses, franceses e ingleses participaram desse comércio interasiático e outras formas de intercâmbio externo. Todavia, "parte considerável do comércio exterior da índia continuou em mãos dos mercadores indianos e asiáticos por todo o século XVIII" (Chicherov, 128-9). Nos começos desse século, 817.000 libras de um total de 1.852.000 do comércio externo de Bengala estavam em mãos européias, incluindo larga parcela do comércio interasiático (Chicherov, 130). "As exportações para a Europa ... eram ultrapassadas. de longe, pelo volume do comércio indiano com países asiáticos e africanos ... As exportações de mercadorias para a Europa, durante esse período, não tiveram papel decisivo no desenvolvimento da produção em Bengala. . . Mesmo em Dacca, um dos maiores centros de comércio externo, a exportação de panos para a Europa não significou muito nos meados do século XVIII, já que somava apenas 30% do comércio total" (Chicherov, 129-130).

IV. O Roubo de Bengala em 1793 A original Companhia Inglesa das índias Orientais obteve patente em 31 de dezembro de 1600. Depois de um século de perigosas rivalidades com outros grupos comerciais ingleses, e especialmente com os holandeses, mais poderosos, a Companhia foi reorganizada e assegurou o monopólio em 1702. Entretanto, Colbert havia dirigido a atenção francesa para a índia, com a fundação da Companhia Francesa das índias Orientais, em 1664,

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e a criação de um posto comercial em Chandernagore, Bengala, em 1688. Todavia, o interesse e atividade franceses na índia permaneceram modestos até a fundação da Companhia Perpétua das índias, em 1720, e especialmente a designação de Joseph Dupleix para governador de Chandernagore, em 1732. Começando do zero naquele ano, a Companhia Francesa e seus empregados tinham 15 ou 20 navios por volta de 1742, em uso diário (Sinha, I, 35-6). Entre 1728 e 1740, as exportações: da Companhia aumentaram 10 vezes (G. Williams, 107). Naquele ano, Dupleix mudou-se para Pondicherry, em Madras, e sob sua liderança os franceses acentuaram o propósito de se tornarem a maior potência européia na índia. A estratégia mudou sua forma tradicional de comércio a partir de posições isoladas no litoral, empenhando-se já agora em controlar território, pelo menos ao longo da costa oriental do Carnático e no rumo Norte, tirando vantagem de alianças com alguns governadores e pretendentes locais contra outros. Dupleix sentia-se limitado pela insatisfatória cobertura financeira da França, para quem, naquele tempo, a fndia estava longe de justificar atenção prioritária, dirigida. de preferência, para as Américas, as quais viriam a tornarse centro da contenda imperial anglo-francesa nas duas guerras de 1740-48 e 1756-63. Ao contrário da Companhia Inglesa das índias Orientais, "particular", a Companhia Francesa era controlada diretamente pelo Estado - mais vulnerável, portanto, a outras prioridades estatais e mudanças políticas. Além disso, a Companhia Francesa era muito mais pobre que a Inglesa. Por esses dois motivos, Dupleix, depois de uma grandiosa vitória na primeira guerra carnática, viu-se obrigado a ceder ante os ingleses na segunda, e em conseqüência foi removido do comando. A Companhia Inglesa das índias Orientais, apoiada pela Armada britânica, conseguiu assim uma "vitória decisiva. . . sobre seus rivais franceses [e] o tratado de 1754 entre as duas companhias. . . desfechou golpe mortal no poder francês na índia" (Mukherjee, 78). O que restou das posições francesas na índia recebeu o golpe de misericórdia com a tomada, pelos ingleses - novamente apoiados em força naval superior - de Pondcherry, em 1761, durante a Guerra dos Sete Anos. Todavia, James Mill escreveria mais tarde, em sua History o/ British Jndia: "Os europeus na índia, que até aqui rastejavam aos pés do mais humilde dos pequenos governadores de distrito, ficaram perplexos com o progresso dos franceses, que agora pa-

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reciam dominar toda a região de Decca. Uma carta a Dupleix, de um amigo no acampamento de Salabat Jung, afirmava que, dentro em pouco, o mogul em seu trono tremeria ao ouvir o nome de Dupleix; por mais presunçosa que a profecia pudesse parecer, pouca coisa era preciso para assegurar seu cumprimento" (citado em Mukherjee, 75). As diretrizes britânicas na índia começaram a mudar nos meados do século, talvez encorajadas, a princípio, pelas pretensões francesas sob a liderança de Dupleix, e depois impelidas por sua própria lógica, em face da derrota imposta por Robert Clive à resistência de Bengala, na Batalha de Plassey, em 1757, organizada por Clive depois de seu retorno da Inglaterra em 1765. De forma crescente, a conquista militar e o poder político tornaram-se a pedra de toque - e, com efeito, a base - das diretrizes comerciais. Regiões e povos foram postos sucessivamente sob controle militar, político e econômico. A base essen·cial do comércio inglês com a índia mudou por completo, primeiro - durante o restante do século XVIII e antes da Revolução Industrial - pela transformação da índia de importador líquido de capital europeu (através do pagamento de seus excedentes de exportação em lingotes de ouro), que ela fora durante séculos, num exportador líquido de capital para a Europa; e depois, nos séculos XIX e XX, transformando a índia, do exportador de manufaturados que ela fora durante séculos, em mercado para as indústrias européias do capitalismo em desenvolvimento. Depois de a Inglaterra ser obrigada. ao longo de dois séculos, a pagar as exportações indianas com barras de ouro extraído das Américas e com os lucros sobre a conta de serviços do comércio interasiático, "a situação mudou completamente depois que a Companhia capturou Bengala, e eventualmente toda a índia. Daí por diante, 'métodos de força seriam cada vez mais usados para pressionar a balança comercial e assegurar o máximo de mercadorias contra pagamento mínimo'. . . A Companhia era agora 'capaz de atirar a espada nos pratos da balança a fim de impor uma barganha que abandonou qualquer pretensão de igualdade de troca'. . . A política da Companhia visou a extrair dos produtores indianos tanto quanto possível, e darlhes, em troca, virtualmente nada, ou uma remuneração tão magra que eles, em última análise, tornaram-se até incapazes de manter a taxa de reprodução da economia. Esta decisão da Companhia, aplicada de forma inabalável, foi posta em prática, primeiro, em Bengala, depois de 1757, e ao longo do tempo es-

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palhou-se por toda a índia, com a subjugação de seu território, direta ou indiretamente, pela Companhia," até que o Governo britânico ficou alarmado e, sobretudo depois de 1793, procurou tomar medidas de salvaguarda, pelo menos, daquela parte da capacidade reprodutora da economia indiana essencial ao desenvolvimento capitalista (Mukherjee, 171, citando R. C. Dutt, lndia Today). Do mesmo modo, o inquérito oficial Shore, de 1789, relata que, em comparação com os modelos comerciais anteriores, "a partir do ano de 1765 ocorre modelo contrário. O comércio da Companhia não produz retornos equivalentes. Especiarias são raramente importadas por companhias estrangeiras, ou compradas em Bengala de outras partes do Industão em quantidades consideráveis" (citado em R. C. Dutt, I, 58). Ao contrário, "a importação de barras de ouro cessou quase inteiramente não muito depois da Batalha de Plassey, e a exportação de ouro para ajudar [a conquista de] outras Presidências e para socorrer o comércio com a China iniciou-se quase sistematicamente" (Sinha, I, 14). Também o nono relatório do Select Committee, em 1785, observou: "Quando um lucro é retirado do relacionamento. pois não se trata de comércio, entre Bengala e Inglaterra, os efeitos perniciosos do sistema de investimentos da renda aparecerão da maneira mais clara. Pelo visto, todo o produto exportado do país, no que toca à Companhia, não é trocado no curso do intercâmbio, mais levado sem qualquer forma de retorno ou de pagamento" (citado em R. C. Dutt, I, 46). Um dos tenentes de Clive, Scraffon, já dissera, em 1763, que a Companhia e seus funcionários "tinham sido capazes de administrar todo o comércio da índia (excetuando a êhina) durante três anos sem entregar uma onça de ouro" (citado em Mukherjee, 194). Que os ingleses não pagaram pelas mercadorias indianas com suas próprias mercadorias durante esse período. evidencia-se também das cifras de importação e exportação citadas adiante. Deve-se acentuar novamente que essa nova (ou, para a história da acumulação mundial de capital, renovada) confiança na espada para inclinar a balança "externa" em favor da Europa, ficando com todo o comércio da índia sem pagar uma só onça de ouro, foi inaugurada precisamente no instante em que, depois de 1760, a fonte brasileira do ouro inglês secou de maneira alarmante, e antes que a depressão econômica e outros fatores encorajassem a retomada da oferta de prata do México..

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começando por volta de 1775, mas sendo acelerada somente no decênio de 1780 e, sobretudo, entre 1790 e 1810. Além disso, enquanto o Caribe francês gozava ainda de sua maior prosperidade, e também da prosperidade da França, no decênio de 1760, o Caribe britânico e a economia inglesa já sofriam dificuldades, que seriam exacerbadas pela política de não-importação e pela subseqüente Guerra da Independência das colônias americanas nos anos de 1770. Nesse contexto, tanto a nova balança comercial indiana quanto a relacionada "drenagem" de capital da índia para a Inglaterra (a ser examinada adiante) assumiram importância muito especial. A entrega, em 1765, da dewani, ou administração política, de Bengala à Companhia das índias Orientais, pelo de jure, mas dificilmente de facto imperador de Déli, iniciou a total transformação política, econômica e social do país, primeiro em Ben_gala, que fora o celeiro de partes adjacentes da índia, e depois, gradualmente, em outras regiões. Os instrumentos e processos dessa transformação foram registrados por inumeráveis comissões contemporâneas de inquérito, e nas declarações dos próprios -governadores ingleses, que eram demitidos para "remediar" os "'delitos" de seus predecessores. Assim, o sucessor de Clive como governador de Bengala, Harry Verelst (de 1761 a 1770), recordou - acerca de sua própria administração! - em 1772: "Nas províncias de Brudwan e Midnapur, das quais a propriedade e jurisdição foram cedidas à Companhia por Mim Kasim, no ano de 1760 ... adotou-se, em 1762, um plano causador de certa ruína para a província. As terras foram oferecidas em hasta pública pelo curto prazo de três anos. Homens sem fortuna ou caráter tornaram-se licitantes na venda; e embora alguns antigos fazendeiros, não querendo abandonar suas habitações, excedessem talvez o valor real em suas ofertas [de rendimento para conservar suas próprias terras], os que nada tinham a perder foram além, querendo, a todo custo, obter posse imediata. As inumeráveis harpias foram deixadas livres para a pilhagem; o espólio de um povo miserável permitiu-lhes satisfazer o pagamento de seu primeiro ano" (citado em R. C. Dutt, I, 29). Philip Francis, membro do Conselho do Governador-Geral, disse em 1776: "A maior parte dos zamindares [proprietários de terra hereditários] foram arruinados e tirados da administração de suas terras, restando poucas pessoas de projeção e família; ou então, os que tinham tido altos empregos, pois que os havia, procuraram grandes lucros, que o 1

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país não lhes podia dar e tampouco pagar. Pessoas de menor padrão tiveram, portanto, de ser empregadas como Amils ou coletores [de impostos] da parte do Governo. Essas pessoas executavam um contrato por uma soma estipulada para o distrito onde eram designadas, e com efeito, podiam ser consideradas fazendeiros da renda. Saíam então do Sudder, ou sede do Governo, para os distritos, a fim de estabelecer com os zamindares ou inquilinos a renda que teriam de pagar" (citado em R. C. Dutt, 1, 40). Dutt recorda ainda: "Em 1777, o acordo de cinco anos feito em 1772 chegou ao fim. O sistema, de hasta pública foi um tanto modificado, e dava-se preferência agora aos zamindares hereditários [em vez de novos, criados pelos ingleses]. Mas a injustiça do sistema foi muito exagerada quando se declarou que as propriedades seriam cedidas não por cinco anos, mas por um ano só. Terras foram entregues, dessa froma, aos zamindares, em 1778, 1779 e 1780. O país gemeu sob esta tirania econômica; as rendas caíram outra vez ... Todos os grandes zamindares de Bengala, todas as antigas famílias rurais sofreram sob esse sistema de acordo anual, freqüentes aumentos e métodos rudes de realização que jamais haviam conhecido antes. Descendentes de casas senhoriais viram suas propriedades passarem às mãos de arrendatários endinheirados e especuladores de Calcutá ... " (R. C. Dutt, 41). Mais sofreram os camponeses e artesãos produtores das mercadorias que, através desse expediente, eram convertidas em outra forma de acumulação primitiva, não mais na índia, agora, e sim na Inglaterra. O mesmo Select Committee, em seu nono relatório, lembrou em 1783: "Não obstante a [resultante] fome de 1770, que devastou Bengala de maneira terrível, além de qualquer expectativa, o Investimento [compra de mercadorias indianas por comerciantes britânicos], graças a vários expedientes sucessivos, muitos deles da mais perigosa natureza e tendência, foi violentamente mantido ... (citado em R. C. Dutt, 1, 46). Warren Hastings tornara-se governador de Bengala em 1773 e governador-geral, responsável perante o Parlamento Britânico, em 1774, depois que este votara lei regulamentar, em 1773, e designara Hastings (com as conseqüências já observadas acima) para remediar as medidas de seus predecessores. Contudo, até mesmo Hastings - referindo-se à administração de seu antecessor - escreveu em 1772: "Apesar da perda de, pelo menos, um terço dos habitantes da província, e o conseqüente de-

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créscimo do setor agrícola [devido à fome de 1770-72], as receitas líquidas do ano de 1771 excederam inclusive as de 1768 ... Seria de esperar-se, naturalmente, que a diminuição de renda mantivesse igual compasso com as outras conseqüências de tão grande calamidade. Isso não aconteceu porque ela foi constrangida pela força a repetir seu antigo padrão" (Hastings, citado em R. C. Dutt, I, 35-36). Não obstante ... Warren Hastings também teve de ser demitido e mais tarde foi alvo, no Parlamento, de um processo de impedimento, enquanto a capacidade reprodutiva da economia indiana caía mais e a Inglaterra alarmava-se. O Parlamento votou o India Bill de Pitt em 1784 e pôs a Companhia sob controle da Coroa. Em 1785, Hastings foi substituído por Cornwallis, encarregado da missão de descobrir modos e meios de deixar a casa em ordem. Em 1790, Cornwallis estava em condições de depor: "Vinte anos foram utilizados na coleta de informações ... A exemplo de nossos antecessores, iniciamos a missão pela busca de novos dados, e passamos três anos reunindo-os. Volumosos relatórios foram transmitidos. . . As conseqüências da maciça fuga de riqueza, derivada das causas acima, com o acréscimo de que isto tem sido provocado, desde muitos anos atrás, pelas remessas de fortunas particulares, fazem-se sentir agora, gravemente, na diminuição de moeda corrente, na languidez incutida nas lavouras e no comércio geral do país. . . Uma alteração realmente substancial nos princípios de nosso sistema administrativo tornou-se, portanto, necessariamente indispensável, a fim de restaurar neste país um clima de prosperidade, e capacitá-lo a continuar sólido suporte dos interesses e do poder britânico nesta parte do mundo ... Somos, por conseguinte, convocados a um esforço maior, a remediar males pelos quais os interesses públicos são essencialmente ofendidos, e mediante a concessão perpétua de arrendamentos de terras a uma taxa fixa, faremos de nossos súditos o povo mais feliz na índia" (Lorde Cornwallis, minuta datada de 3 de fevereiro de 1790, citado em R. C. Dutt, I, 62). Em conseqüência dessa e de outras recomendações, os contratos decenais para cultivo da terra (zcmindari), que em Bengala, Bihar e Crissa tinham substituído provisoriamente, em 1789-90, os não mais aceitáveis acordos a curto prazo, foram, conforme anúncio de Cornwallis a 22 de março de 1793, convertidos nos desde então famosos, ou mais infames "Contratos

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Permanentes" - concessões de terra e de impostos sobre a renda a zamindares, naquelas e, mais tarde, em outras regiões da índia (examinaremos o assunto no próximo capítulo). Deve-se observar, porém, que depois de 1793 os "interesses britânicos" já não eram exatamente os interesses defendidos durante as décadas de acumulação primitiva que caracterizaram os três decênios anteriores e recessivos; e que tais interesses vieram a refletir-se na expansão econômica iniciada em 1790, na Revolução Industrial e sua burguesia, e de imediato nas necessidades e perigos das guerras napoleônicas (Napoleão tentava retomar a índia dos ingleses).

V. A Transformação da Agricultura, 1757-1793 Seria útil resumir rapidamente essa rápida sucessão de sistemas de trabalho e cultivo da terra, outra vez, de uma perspectiva complementar. A exemplo dos espanhóis no século XVI, no México e Peru, dos holandeses na Indonésia dos séculos XVIII e XIX, das potências colonialistas européias na África dos séculos XIX e XX, e até mesmo dos latino-americanos, que se inclinaram a reformas "liberais" no século XIX, os ingleses na índia, e especialmente em Bengala, lançaram uma série sucessiva de desastres institucionais, cada um visando, conscientemente, a remediar as faltas do antecessor. E cada um, descendo a conhecida estrada para o inferno, pavimentada de boas intenções e impulsionada pelo imperativo econômico da produção excedente, mostrou-se mais desastroso que o anterior. Nos primeiros 16 meses depois de julho de 1757, e em seguida à vitória militar em Plassey, a Companhia das índias Orientais, com Frankland na direção, recolheu ela própria o imposto territorial. No entanto, esse sistema provou a impossibilidade de uma administração eficaz e, além disso, conforme Holwell sugeriu, "a posse das terras jamais nos fará conhecer o seu real valor". Por isso, ele sugeriu que as terras deveriam ser levadas à hasta pública. E o foram, em 1759. Em conseqüência, os velhos zamindares e muitos de seus agricultores subordinados foram deslocados pelos fazendeiros de impostos essencialmente especulativos. O próprio Holwell foi um deles. Os pagamentos sempre em alta, efetuados pelos camponeses, e os crescentes abusos dos novos zamindares provocaram queixas imediatas. Daí a cessão de Burdwan, Midnapore e Chittagong à

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Companhia das índias Orientais, por Mir Quasim, em 1760, incluir dispositivo pelo qual a Companhia "deixaria os zamindares [existentes] e rendeiros em seus lugares". Mas os pagamentos elevados exigidos por Mir Quasim e, entre outros, Verelst, na qualidade de chefe em Chittagong, atruinaram muitos zamindares, velhos e novos, que atrasavam os pagamentos e tinham de entregar as fazendas. Outros "homens de estofo e caráter", como os chamou Verelst, recusaram-se a substituí-los, e assim, .quando Verelst foi nomeado Residente em Burdwan, em 1765, .aboliu a venda pública de terras e ofereceu a novos fazendeiros de rendas garantidas de que não seriam expulsos da mesma maneira. A partir daí, "uma torrente de corrupção, na cobrança do imposto territorial, ultrapassou todas as barreiras". O sistema tornou-se "embaraçado e confuso" e Verelst, como governador, decidiu pôr um fim a esse "estado de coisas sem controle, de conhecimento sem participação, e de influência sem oposição efetiva" (Sinha, II, 21-45). Os resultados, conforme o próprio Verelst admitiria em 1772, "causaram certa ruína à província" e provocaram a fome de 1770. Mais de um terço da população morreu e um terço da terra foi invadida pela selva. A vida social desorganizou-se e a ilegalidade generalizou-se. Warren Hastings, educado na índia, foi nomeado governador para melhorar a situação. Ele escreveria: "Meu eterno tema da Fome (assim os cavalheiros gostam de chamá-la) prossegue como acontecimento prioritário, cujos efeitos devem ainda fazer-se sentir por muitos anos". Acontecimento, diga-se logo, sobre o qual Hastings gostava de lançar a culpa do fracasso de seu próprio remédio: "Prolonguei o período dos arrendamentos, que antes era anual, para cinco anos. Isto foi considerado por muitos inovação corajosa". Em verdade, foi ainda mais desastrosa, na medida em que estendeu as taxas tributárias de um para cinco anos, precisamente na ocasião em que, entre os efeitos que "devem ainda fazer-se sentir por muitos anos", figurava a reduzida capacidade de produzir e de pagar, devido à fome. Em breve o Coletor comentava: "É surpreendente a rapidez com que eles atrasam os pagamentos". Conseqüentemente, em 1776, a Comissão Amini foi constituída e encarregada de investigar os valores das terras, contas de arrendamentos ~~. sobretudo, os n:eios de proteger arrendatários ou camponeses. Após o relatório da Comissão, da divulgação de um Plano por Philip Francis, e da mudança de orientação do próprio Hastings, todas as formas a11teriores foram restabelecidas em 13 de abril

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de 1777. Daí por diante, o sistema zamindari foi restaurado, e muitos