A mensagem da Epístola aos Hebreus [3 ed.]

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A mensagem da Epístola aos Hebreus [3 ed.]

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A mensagem da Epístola aos Hebreus Albert Vanhove



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COLEÇÃO "CADERNOS BÍBLICOS"

Para uma prim eira leitura da Bíblia, E. Charpentier De acordo com as escrituras, P.-M. Beaude Uma leitura do Pentateuco, J. Briend Homem, quem és?, P. Grélot Para rezar com os Salmos, M. M annati /saias 1-39, VV.AA. 0 Dêutero-lsaías, W .A A . Libertação dos homens e salvação em Jesus Cristo. (1 ? parte), VV.AA. Libertação dos homens e salvação em Jesus Cristo, (2* * parte), VV.AA. O que é o intertestam ento, A. Paul Leitura do Evangelho segundo Marcos, J. Delorme Leitura do Evangelho segundo M ateus, W .A A . Leitura do Evangelho segundo Lucas, A. George A s narrativas da infância de Jesus, C. Perrot A mensagem das bem -aventuranças, \N .fKf\. Os m ilagres do Evangelho, VV.AA. Cristo ressuscitou!, E. Charpentier Leitura do Evangelho segundo João, A. Jaubert Uma leitura dos A to s dos Apóstolos, VV.AA. A s epístolas aos coríntios, VV.AA. A mensagem da epístola aos hebreus, W .A A . Uma leitura do Apocalipse, W .A A . Iniciação à análise estrutural, W . AA. Jesus diante de sua paixão e m orte, VV.AA. Os Salm os e Jesus, Jesus e os Salmos, W .A A . S. Paulo e o seu tempo, W .A A . A Palestina no tem po de Jesus, VV.AA. A s raízes da Sabedoria, W .A A . M o rte e vida na Bíblia, VV.AA.

* No prelo ** Em preparação

ALBERT V AN H O YE

A MENSAGEM DA EPÍSTOLA AOS HEBREUS

ED IÇ Õ ES P A U L IN A S

Título original: Le Message de VÉpitre aux Hébreux © Éditions du Cerf e Service Biblique Évangile et Vie, Paris, 1977.

Traduziu

Álvaro Cunha

CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação Câmara Brasileira do Livro, SP

V329m

82-1824

Vanhoye, Albert. A mensagem da Epístola aos Hebreus / Albert Vanhoye; [tra­ duziu Álvaro Cunha]). — São Paulo: Edições Paulinas, 1983. (Cadernos bíblicos; 21) 1. Bíblia. N .T . Hebreus — Crítica e interpretação í. Título. CDD-227.8706

Índices para catálogo sistemático: 1. Epístola aos Hebreus: Interpretação e crítica 227.8706 2. Hebreus: Epístola: Interpretação e crítica 227.8706

Com aprovação eclesiástica © EDIÇÕES PAULINAS - SÃO PAULO. 1983

"Homilia a cristãos desorientados" — assim podería ter sido in ti­ tulada essa "Epístola aos Hebreus", que não é epístola, nem de Paulo e nem aos hebreus! Trata-se de homens e mulheres que aderiram a Cristo com entu­ siasmo. Mas, com o tempo, com as dificuldades e também com as per­ seguições que se anunciam, eles ficam um pouco desencantados. Tra­ ta-se, no sentido, de verdadeiros cristãos. E nosso autor os sacode um pouco: " Vocês estão sofrendo demais, em comparação com o conhe­ cimento que vocês têm de Cristo. Vocês estão desamparados diante da atua! evolução, diante das dificuldades? Então, aprofundem sua fé: fixemos o olhar no chefe de nossa fé, Cristo, nosso sumo sacerdote!” E um chamado vigoroso e sem concessões aos cristãos de todos os tem­ pos, inclusive a nós, cristãos de hoje: se quisermos manter nossa fé em tempos difíceis, temos que aprofundar nosso entendimento dessa fé e ir ao essencial. 0 fausto das cerimônias^ de outmra, os sacrifícios ou o latim, isso é secundário ou superado — o essencial é Cristo. Será paradoxal dizer que essa epístola — m uito mais um sermão — é desesperadora de simplicidade? Nas epístolas de Paulo, o leitor é frequentemente sufocado pela multiplicidade dos temas abordados. Aqui, no entanto, o autor não tem senão uma idéia: Jesus é o nosso sumo sacerdote. A dificuldade desse sermão deriva sem dúvida da profundeza dessa doutrina; o autor tem que apresentá-la em todas as suas faces para fazer brilhar as suas múltiplas facetas. Em especial — talvez porque falasse a pessoas que conheciam bem os ritos judaicos —, ele se refere sem cessar às instituições judaicas, mostrando em que

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elas preparavam a vinda de Jesus e como este as cumpriu e superou. Enfim, trata-se de um escritor de alto nível, cujo texto é uma obraprima literária, mas cujos procedimentos nos desconcertam. Para nos guiar ao essencial, ajudando-nos a superar essas difi­ culdades, precisàvamos de um mestre. E A ibert Vanhoye, jesuíta, pro­ fessor do instituto Bíblico de Roma, é um mestre sob todos os aspec­ tos. Sua tese sobre a estrutura da Epístola aos Hebreus constitui um marco na história de sua interpretação. Hoje, ela é quase universal­ mente admitida, encontrando-se presente sobretudo na Tradução Ecu­ mênica da Bíblia. Mas esse estudo técnico não tem nada de árido: ele está a serviço do entendimento religioso do texto. 0 jovem professor que eu era na época ainda se recorda do atordoamento que sentiu ao ouvir, no curso de um seminário, o pe. Vanhoye expor seu pensamen­ to. A partir desse dia, a Epístola aos Hebreus tornou-se para mim um texto luminoso, incessantemente meditado. Graças a efe, esse " sermão sacerdotal” — como ele gosta de cha­ má-lo — m uito amiúde considerado difícil, transforma-se em luz para o nosso caminho. Que nós também possamos nos deixar aturdir por essa riqueza de Jesus, Filho de Deus e nosso irmão, que aprendeu pelo sofrimento o quanto custa ser homem. Em Jesus Cristo, participando em seu sacerdócio, todos os cristãos podem chegar junto ao Pai.

ETIENNE CHARPENTIER 6

1

PRIMEIROS CONTATOS

1. AOS "HEBREUS" OU A “CRISTÃOS"? Recentemente, um sociólogo itaiiano estudou os nomes masculi­ nos e femininos da população de Bolonha. Noticiando a pesquisa, um cronista do jornal Corríere delia Sera ressaltou como. pode ser aflitivo para uma jovem ser chamada por um nome que pareça masculino ou, para um rapaz, de um nome que pareça feminino. Era precisamente o caso do cronista, que não deixou de enumerar com bom humor as inú­ meras situações desagradáveis que teve que sofrer. No Novo Testamento, ocorreu uma situação análoga, não com uma pessoa, mas com um escrito. Em virtude de circunstâncias que ig­ noramos, uma magnífica pregação sobre o sacerdócio de Cristo rece­ beu por título “ aos hebreus” , título que não corresponde ao seu con­ teúdo. 0 efeito mais comum desse desajeitado título é o de dissuadir os cristãos de se interessarem por essa obra ou, pelo menos, o de fal­ sear logo de saída as suas perspectivas. É uma pena, pois essa pregação constitui um verdadeiro tesouro. Ela encerra inesgotáveis riquezas doutrinais e espirituais, apresentadas com uma perfeição literária pouco comum. Não se contentando com o ponto de vista teórico, ela também se preocupa em estimular a comu­ nidade cristã a viver sua fé. A grande novidade que se pode encontrar nela é o fato de dar a Cristo os títulos dé sacerdote e sumo sacerdote, o que não é feito por nenhum outro escrito do Novo Testamento. E mais ainda: ela realiza uma vigorosa síntese da fé cristã, centrada no tema do sacerdócio. Mas o título "aos hebreus" não dá a mínima idéia disso tudo. Esse título, aliás, não faz parte da obra. É um título que lhe foi aposto depois, sem que tivesse base explícita no texto. Nesse ponto, pode-se observar uma clara diferença com as epístolas de são Paulo. Elas trazem títulos que encontram confirmação no próprio texto. A epístola intitulada "aos gálatas", por exemplo, foi efetivamente dirigida "às Igrejas da Galácia" {G! 1,2) e interpela os "gálatas insensatos" (Gl 7

QUEM É 0 AUTOR DE HEBREUS?

1. É o apóstolo Paulo? — Não. pois Hebreus revela uma personalidade diferente:

PAULO

0 AUTOR DE HEBREUS

* * * *

estilo impetuoso e irregular gosta das oposições bem marcadas freqüentemente coloca-se à frente defende a sua autoridade de apóstolo (Gl 1,1.12; 2 Cor 11) * diz com frequência "em Cristo” , "Cristo Je­ sus", "Jesus Cristo nosso Senhor" ou "nosso Senhor Jesus Cristo" * ao citar p Antigo Testamento, .usa amiúde as expressões "as Escrituras" e "está escrito" * nunca fala de "sacerdote", "sumo sacerdote" ou "sacerdócio"

* * * * *

estilo tranquilo e sempre bem cuidado gosta das transições suaves apaga-se atrás de sua obra nào pretende ser apóstolo (Hb 2.3) nunca emprega essas expressões, elaborando fórmulas originais para preparar o nome de "Jesus" (Hb 2,9; 3,1; 4,14; 6,20; 7,22; 12.2.24) * nunca empreg8 essas expressões, usando comumente o simples verbo "dizer" * fala constantemente de "sacerdote", "sumo sacerdote" e "sacerdócio"

Oòs.: Estas observações se aplicam ao Sermão (Hb 1 ,1*13.21) ® não ao bilhete (Hb 13,19 .2 2 *2 5 ): este últim o poderio ser de auto­ ria do apóstolo Paulo.

2. 0 autor apresenta pontos de contato com o apóstolo Paulo? — Sim, apresenta estreitos pontos de contato em aspectos importantes: * Uma forte polêmica contra a Lei: Gi 2,16-21; 3.19-25 Hb 7,12.16.18-19.28 Rm 4,14-15; 5,20; 8,3 Hb 10,1.8-9; 13,9-10

* A insistência na obediência redentora de Cristo: Rm 5.19; Fi 2,8

Hb 5,8-10; 10.9-10

* O m o iti de expressar a glória divina de Cristo

C! 1,15-17 FI 2.9; Ef 1.21 Cl 2.15; Ef 1,21 ICor 15,27; Ef 1,22 1Cor 15,25

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* A doutrina de Hebreus sobre o sacrifício de Cristo f9.14; 10,10.12; 13,12) encontra a sua melhor preparação em Ef 5,2.25 (cf. Gi 2.20).*

w ui Hb Hb Hb Hb

1,4 1,4-14 2,8 10,13

* No Novo Testamento, há 65 palavras que só são empregadas por Hebreus e por são Pauto: por exemplo, "combate", "orgulho”, "profis­ são de fé", etc. * 0 bilhete que acompanha o sermão fala em Timóteo (13,23), que, provavelmente, se trata do companheiro de Paulo (cf. 1Tm 1,1; etc.). * 0 bilhete termina por uma saudação final tipicamente paulina (13,25; cf. C! 4,18: Tt 3,15).

3. Inúmeros candidatos

Testemunhos antigos, as mais das vezes vaci­ lantes. atribuem a redação de Hebreus tanto ao evangelista Lucas como a Barnabé. cristão dos primeiros tempos (At 4.36) e depois companhei­ ro de Pauto (At 9,27; 11,22-30; 13-15; Gl 2). ou ainda a Clemente de Roma (Fl 4,3?). Todas essas candidaturas encontraram defensores nos tem­ pos modernos, sobretudo a de Barnabé. Mas ne­ nhuma conseguiu se impor. Em lugar delas, propôs-se o nome de Silvano ou Silas lA t 15,22), companheiro de Paulo (At 15,40-18,5; ITs 1.1; 2Ts 1,1; 2Cor 1,19) e se­ cretário de Pedro (IP d 5,12), e até mesmo o nome do apóstolo Pedro em pessoa, mas tam­ bém os nomes de Judas, irmão de Tiago, do qual se tem uma breve epístola; de Filipe, "um dos Sete" (At 6,5; 8; 21,8); de Priscila, mulher de Á quila (Rm 16,3-5; A t 18), de Apoio (IC o r 1,12; 3,4-6.22; 16,12; Tt 3,13) e de Aristião, discípulo do Senhor segundo Pápias. Mais recentemente, chegou-se a sugerir até mesmo que a doutrina de Hebreus seria proveniente de Maria, mãe de Jesus. É desnecessário dizer como é problemática a identificação do autor. A descrição que Lucas dá

de Apoio em A t 18,24-28 corresponde bastante á idéia que podemos ter do autor de Hebreus ao ler sua obra: origem judaica, educação em uma grande cidade helenlstica como Alexandria, pro­ fundo conhecimento do Antigo Testamento, grande talento para a pregação, cristianismo de inspiração pauline. Mas isso não basta para de­ monstrar que Apoio é efetivamente o autor de Hebreus. pois todas essas características podem ser encontradas em outros homens apostólicos da época. Assim, temos que nos resignar à incer­ teza. Também não conhecemos a data em que foi elaborado o Sermão Sacerdotal, nem os lugares em que foi pronunciado e os lugares para onde foi enviado. As opiniões variam grandemente a respeito disso.' A data mais provável parece ser uma data um pouco anterior ao ano 70, ano da tomada de Jerusalém e da destruição do Templo. Com efeito, o autor descreve a liturgia do Templo como atual (10,1-3.11), embora afir­ mando que ela estava destinada a desaparecer (9,10).

3,1). Na obra de que estamos tratando, porém, é vão procurar uma menção, mesmo de leve, aos "hebreus” . Os "hebreus" não são citados nunca. Como também não se en­ contra o termo "judeus", frequente nas obras de são Paulo, nem o ter­ mo "israelitas" ou qualquer alusão à "circuncisão". De fato, o texto não contém nenhuma determinação precisa de seus destinatários. Ele se dirige visivelmente a cristãos (cf. Hb 3,14). E mais: cristãos de longa data (cf. 5,12). Mas o autor não indica a região em que eles vivem nem a sua origem étnica. Não fala sobre o que eles eram antes de sua con­ versão. Não evoca em parte alguma a diferença entre judeus e pagãos. A única realidade que prende a sua atenção é a vocação cristã dos destinatários: com todas as suas forças, ele procura favorecer o seu desenvolvimento (cf. 2,3-4; 3,1; 4,14; 10,19-25; 12,22-25; 13,7-8). Em função disso, ele certamente se vê levado a considerar a questão das relações entre o Antigo e o Novo Testamento e, por outro lado, tem que tomar posição contra certas tendências judaizantes que se fa­ ziam sentir na época. Não há dúvida de que foi esse aspecto de sua obra que mais tarde determinou a escolha do título tradicional. Uma escolha bastante infeliz, repitamos, pois não corresponde à orientação essencial da obra, que é de aprofundar a fé em Cristo e dar um novo impulso à vida cristã. Assim, ao invés do título "aos hebreus” , seria muito mais correto intitulá-la "a cristãos"! 9

2. UMA EPÍSTOLA OU UM SERMÃO? Em geral, o título tradicional é completado com o termo “ epísto­ la” . Fala-se de "epístola aos hebreus” ou mesmo, para torná-la mais atual, “ carta aos hebreus". Trata-se de outro equívoco. Na realidade, o texto “ aos hebreus" não é uma epístola, mas sim um sermão, no fim do qual foi transcrito um bilhete de acompanhamento, redigido quan­ do o texto desse sermão foi enviado a alguma comunidade distante. Tal bilhete é composto de poucas e breves frases. Ele ocupa apenas os quatro últimos versículos do texto atual (13,22-25), aos quais deve-se acrescentar uma breve frase (13,1 9), inserida imediatamente antes da conclusão solene do sermão (13,20-21). As feições simples e familia­ res desses poucos versícuiCfs (13,19.22-25) os distinguem claramente do conjunto do sermão, que foi elaborado, como veremos, de acordo com todas as regras da arte oratória. Se, para mudar o gênero literário de uma obra, fosse suficiente agregar à sua conclusão três frases de saudação, então poderia se jus­ tificar o título de "epístola aos hebreus". Mas não há como sustentar tal opinião. Suponhamos que Bossuet tenha enviado a um amigo uma cópia de seu Oraison Funèbre d'Henriette d'Angleterre , escrevendo na última página: "Espero que este discurso seja bem recebido por vós. Regressarei em breve. Recebei minhas saudações!" Isso significaria que aquela obra-prima de eloquência deveria ser classificada como li­ teratura epistolar, ao lado das cartas da Sra. de Sévigné? Está mais do que claro que não. E a "epístola" aos "hebreus" também não é uma carta. Do início (1,1) ao fim (13,20-21), ela pertence ao gênero da pre­ gação. Ela constitui inclusive o único exemplo que temos, no Novo Testamento, de um texto de sermão conservado integralmente. Nos outros casos, trata-se sempre de fragmentos de pregação incorpora­ dos a epístolas ou de composições literárias integradas a relatos. Em nossas bíblias, a pregação cristã intitulada "aos hebreus" es­ tá situada logo em seguida às epístolas paulinas, pois a tradição da Igreja oriental a atribuía a são Paulo. E, com efeito, pode-se encontrar nela vários pontos de contato com o ensinamento do grande Apóstolo. Entretanto, é mais conveniente falar de origem paulina num sentido mais amplo, como já o fazia Orígenes no século III. O texto "aos hebreus" não foi escrito por são Paulo. A personalidade de seu autor — tal como se manifesta no vocabulário, nos movimentos de estilo, na orientação do pensamento — é claramente diferente.

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3. O SERMÃO SACERDOTAL

Considerando tudo isso, seria de se desejar, em princípio, a mu­ dança do título da "epístola aos hebreus", pois o título atual só faz ali­ mentar confusões. Como já dizia um professor bem humorado, poderse-ia propor uma apresentação da "epístola de são Paulo aos hebreus" em três pontos: 1) não é uma epístola; 2) não é de são Paulo; 3) não se dirige aos hebreus. Assim, seria muito melhor chamá-la "Pregação sobre o sacerdócio de Cristo" ou, mais brevemente, "Sermão sacerdo­ tal", da mesma forma como falamos em "oração sacerdotal" para de­ signar o capítulo 17 do Evangelho de são João. Mas se já é difícil para uma pessoa modificar seu nome ou sobre­ nome, devidamente registrado em cartório, ainda mais difícil é realizar uma operação desse tipo no caso de um escrito cujo título enraizou-se num uso de cerca de vinte séculos. Assim, temos que nos resignar com essa situação. "Epístola aos Hebreus" continuará sendo o título oficial do Sermão Sacerdotal e nós continuaremos até mesmo falando em "carta" aos hebreus para torná-la mais viva e atual. A única mu­ dança que podemos esperar introduzir — e que eu recomendo com for­ ça aos leitores deste Caderno — é uma mudança de interpretação. A expressão "epístola aos hebreus" deve ser compreendida mais como um nome próprio, desprovido de significado, do que como um título significativo. Expliquemos: quando uma palavra é empregada como nome próprio de uma pessoa — por exemplo, o nome do sr. Legrand —, já deixa de ter importância o sentido da palavra em si; o seu único va­ lor é um valor de "referência" à pessoa assim chamada. 0 sr. Legrand pode até ter um corpo pequeno e ser baixo, mas isso não o impede de chamar-se Legrand. Desse mesmo modo, poderiamos fazer com que a "epístola aos hebreus" se torne para nós simples nome próprio, como no caso do sr. Legrand, uma simples designação cçnvencional, servin­ do para designar um dos escritos do Novo Testamento, sem com isso definir em absoluto o seu gênero literário ou o seu conteúdo. Para faci­ litar essa mudança de interpretação, muitas vezes abreviaremos a de­ signação: ao invés de falar da "Epístola aos Hebreus", diremos sim­ plesmente Hebreus. Para nós, Hebreus é o nome próprio de um escrito que conhecemos, escrito que não é uma epístola, nem se dirige aos hebreus, mas constitui um esplêndido sermão dirigido a cristãos do sé­ culo I. Tendo-nos livrado de falsas perspectivas, podemos agora partir com um novo ardor para a descoberta desse inspirado escrito. 11

Trabalho sugerido Determinar o gênero literário de Hb 1,1-13,21 1. Comparar o início (Hb 1,1-4) ao início de qualquer das epísto­ las de Paulo: — Que elementos estão normalmente presentes no início de uma epístola? Tais elementos podem ser encontrados em Hb 1,14? — Esses elementos deveríam ser encontrados no início de um discurso? O texto de Hb 1,1-4 é um bom inicio de discurso? O estilo é familiar ou solene? Os temas do sermão são prepara­ dos? 2. Analisar a frase de Hb 13,20-21: — O estilo é famiiiar ou solene? São recapitulados os temas do sermão? 0 trecho tem as feições de uma conclusão? 3. Examinar o desenvolvimento de 1,5 a 13,18: — Pode-se encontrar elemento que seja característico de uma epístola? • 0 autor diz às vezes que está "escrevendo" (comparar com Gl 1,20; 1Cor 4,14; Pm 15,15; etc.)? • Ou, ao contrário, diz que está "falando" (cf. Hb 2,5; 5,11; etc.)? • 0 seu modo de se expressar mostra às vezes que eie não es­ tá presente no meio daqueles a quem se dirige (comparar com G14,20; 1Cor 5,3; 2Cor 12,14;Rm 1,10-14; 15,22-25; etc.)? • Eie faia de notícias que tivesse recebido (comparar com 1Ts 3,6; 1Cor 1,11; 5,1; etc.)? • Eie dá noticias suas (comparar com ITs 2,8; ICor 16,5-9; 2Cor 1,8; etc.)? — Um texto como 5,11-6,12, que passa bruscamente da severi­ dade (5,11-12) aos elogios (6,9-10), não está melhor situado em um discurso (efeito oratório) do que em uma epístola? — A composição global corresponde à de uma epístola (flexibili­ dade e espontaneidade) ou a de um sermão (estrutura firme e orgânica)? Observação: Depois de trabalhar em torno dessas questões, pode-se consultar o estu­ do de VANHOYE, Albert, Situation du Christ, pp. 9-26.

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II O PROBLEMA DO SACERDÓCIO A grande originalidade do autor de Hebreus reside no fato de ter sido o único autor, em todo o Novo Testamento, que afirmou explicita­ mente o sacerdócio de Cristo. Como já dissemos, são Paulo nunca abordou esse tema; ele não fala uma única vez de sacerdote, nem de sumo sacerdote, nem de sacerdócio. Quando os evangelhos empre­ gam os títulos de "sacerdote” e "sumo sacerdote", é sempre para de­ signar os sacerdotes e sumos sacerdotes judeus, nunca para designar Jesus. Nos Atos dos Apóstolos , a situação é semelhante, a não ser pelo fato de que o título de sacerdote também é utilizado uma vez para designar sacerdotes pagãos (At 14,13). 0 autor de Hebreus, porém, não hesita em chamar o próprio Jesus de "sacerdote” e "grande sacer­ dote". Ele, por exemplo, convida seus ouvintes a considerarem "aten­ tamente a Jesus, o apóstolo e sumo sacerdote da nossa profissão de fé" (Hb 3,1; cf. também 4,14-1 5; 5,10; 6,20; etc.) e apresenta a con­ dição de sacerdote de Cristo como "o tema mais importante" do seu ensinamento (8,1). Tal contraste só pode mesmo nos surpreender. Como é possível que uma doutrina ignorada por são Paulo e pelos evangelistas seja apresentada como ponto capital de outro escrito inspirado? Como ex­ plicar esse longo período inicial de omissão e logo depois tal insistên­ cia na inovação? Se quisermos compreender o encaminhamento dos primeiros cristãos por esse rumo, devemos antes de mais nada nos esforçarmos para encontrar seus pontos de partida. E.isso implipa em que renuncie­ mos por algum tempo ao nosso modo atual de compreender os termos "sacerdote" e "sacerdócio". Tal esforço, aliás, também nos será útil para clarificar nossas próprias posições, ajudando a nos livrar de con­ fusões muito freqüentes e a melhor compreender as diferenças exis­ tentes entre o sacerdócio de Cristo e o antigo sacerdócio.

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1. O ANTIGO SACERDÓCIO Quando se fala de "sacerdote" e "sacerdócio", o católico espon­ taneamente pensa logo nos sacerdotes de paróquias e em seu ministé­ rio. Nós sabemos também que todos os cristãos participam de certa forma de sacerdócio, o que foi recordado pelo Vaticano II. Por fim, sa­ bemos que Cristo possui a perfeição do sacerdócio e que existe uma missa votiva de "Cristo, soberano sacerdote". Por isso, temos certa di­ ficuldade para perceber que nossa mentalidade sobre todas essas questões está muito distante da mentalidade dos cristãos dos primei­ ros tempos. Quando se falava de "sacerdote" e "sacerdócio", os cristãos dos primeiros tempos pensavam espontaneamente nos sacerdotes judeus e nas imolações de animais no Templo de Jerusalém. Eles também po­ diam pensar nos sacerdotes pagãos e nas imolações de animais nos templos dos ídolos. Não lhes viría à mente a idéia de colocar nessa mesma categoria o Senhor Jesus ou os apóstolos de Jesus. O que lhes saltava aos olhos eram muito mais as diferenças.

a. Sacerdócio e relações interpessoais As atribuições dos sacerdotes judeus não deixavam de ser bas­ tante variadas. Pode-se fazer até mesmo uma enumeração bastante heteróclita, indo dos sacrifícios rituais (Lv 1-9; 16) ao controle sanitá­ rio (Lv 13-14), passando pela leitura da sorte (Dt 33,8; 1Sm 14,3642; 23,9-12; etc.), certas atribuições jurídicas (por exemplo, Nm 5,1131), o ensinamento das decisões divinas (Dt 33,9-10; 31,9-26) e a distribuição de bênçãos (Nm 6,22-27; Eclo 45,15). Essas atribuições, aliás, assumiram diversas formas ao longo dos séculos. Entretanto, se formos buscar além dessa diversidade o motivo profundo da instituição sacerdotal, acabaremos descobrindo que é uma questão de relações entre as pessoas. A revelação bíblica, muito melhor do que a filosofia grega, faz com que se tome consciência da importância fundamental das relações interpessoais para a existência humana. Nesse ponto, a revelação bíblica está em consonância com uma importante corrente do pensamento moderno e das ciências hu­ manas, que insistem nessa questão. Não existe o homem isolado. Uma criança só se desenvolve como pessoa humana graças a toda uma rede de relações com outras pessoas. É no encontro com o outro que a pessoa desperta e cresce. A conquista progressiva do mundo exterior 14

só se torna possível com o estabelecimento de múltiplas formas de re­ lações interpessoais. Pois bem, entre as relações constitutivas da pessoa humana, há uma que é fundamental, mesmo que não tenhamos claramente consciência disso. As outras relações só atingem este ou aquele setor da existência, situando-se em níveis variáveis. Esta relação, porém, situase no mais profundo do ser e tem extensão universal. Ela condiciona todas as outras relações. Trata-se da relação com Deus. 0 homem é um ser chamado a entrar em relação com Deus. E nada é mais importante para ele do que a resposta que ele dá a essa vocação. Em seus esforços por chegar a uma existência verdadeiramente humana, desde tempos imemoriais os homens reconhecem essa característica essen­ cial de sua situação. Mas, diante dessa constatação, três atitudes são-possíveis. A primeira é completamente negativa: trata-se de uma negação da dimen­ são religiosa da existência, negação que, por ser mais radical, chega ao ponto de negar a existência de Deus (cf. SI 14,1; Rm 1,21). Aparente­ mente, é uma solução simples, mas que na verdade desemboca em terríveis conseqüências (cf. Rm 1,18-32). A segunda atitude, aparentemente positiva, constitui na realida­ de outro tipo de negação: trata-se do individualismo religioso. Teorica­ mente, nos abrimos à relação com Deus, mas na prática tenta-se con­ finá-la dentro dos limites da vida psicológica individual, impelindo-a de passar para os outros setores da existência. É uma atitude incoerente (cf. 1Jo 4,20): a relação com Deus só pode ser autêntica se for acolhi­ da como fundamental, isto é, como a relação que sustenta e orienta todas as outras relações, estendendo sua influência decisiva a todas as dimensões da existência. Assim, é preciso encontrar uma terceira solução, que evite ao mesmo tempo "o drama do humanismo ateu" e o sufocamento do in­ dividualismo religioso, uma solução que corresponda plenamente à vo­ cação humana, abrindo toda a existência dos homens para a relação vivificante com Deus. É a essa exigência que a instituição do sacerdó­ cio pretende responde?. O sacerdote, com efeito, é um homem que tem a responsabilidade social das relações com Deus. Ele está a servi­ ço do grupo em seu conjunto — e, conseqüentemente, a serviço de cada membro do grupo — em tudo o que se refere à relação com Deus. Em outras palavras, o sacerdote tem um papel de mediador.

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b. Sacerdócio e culto ritual Os povos antigos, particularmente o povo de Israel, compreende­ ram muito bem a dificuldade de tal empresa. Eles tinham um agudo sentido da enorme distância que separa o homem de Deus. Como é que um ser fraco e miserável podería entrar em contato com o "Três vezes Santo", com o "fogo devorador" (Dt 4,24; Hb 12,29)? Quando Deus se manifesta, o homem, sente-se tomado de pânico (cf. Is 6,5; Ex 20,18-19). A luz fulgurante de Deus é forte demais para seus olhos doentes; a apaixonada generosidade de Deus constitui uma exigência insustentável para o homem, ele percebe uma extraordinária diferença de densidade entre a eclosão de vida de Deus e a fragilidade de sua própria existência. E reconhece que a relação com Deus não é possível sem uma radical transformação de seu ser, transformação que ele con­ cebe como uma transição do nível profano ao nível sagrado. Deus é santo. Assim, para poder entrar em relação com ele sem danos, im­ põe-se uma condição prévia: impregnar-se de santidade, graças a uma "consagração". A solução proposta pelo antigo culto para satisfazer/a essa exi­ gência era uma solução ritual, que consistia em um sistema de separa­ ções rituais. Parte-se da idéia de que o povo não tem a santidade exigida para • se aproximar de Deus. Se o tentasse, perecería (cf. Ex 19,12; 33,3). Assim, coloca-se à parte uma tribo, que se consagra ao serviço de Deus; nessa tribo, separa-se uma família, que tem uma consagração especial; nessa família escolhe-se então o sacerdote, encarregado de assegurar as boas relações entre o povo e Deus. 0 sacerdote é separa­ do do mundo terreno por meio de uma consagração que o transporta para a esfera do sagrado. Tal consagração é descrita com detalhes nos livros do Êxodo e do Levítico (Ex 29; Lv 9): banho ritual para purificar dos contatos profanos, unção que impregna de santidade, vestes espe­ ciais que simbolizam a pertença ao mundo sagrado, sacrifícios de con­ sagração. A "santidade" assim conferida deve ser cuidadosamente preservada: severos preceitos obrigam o sacerdote a evitar tudo o que possa levá-lo ao nível profano (Lv 21). Se ele infringe esses preceitos, já não lhe é possível aproximar-se de Deus. Além disso, seu encontro com Deus também está submetido a outras condições ainda. Não se encontra Deus em qualquer lugar, mas somente num lugar santo. Também nesse caso trata-se de separação. 0 lugar santo é um espaço reservado ao cuito, interdito ao público. Para entrar no lugar santo, o sacerdote deve se submeter a um ritual, 16

que lhe prescreve o cumprimento de cerimônias sagradas em tempos sagrados; a mais significativa dessas cerimônias é o "sacrifício''. Mais uma vez, temos que fazer um esforço para nos desligar do sentido que habitualmente damos às palavras. Para nós, "sacrifício” equivale a "privação". 0 sentido antigo da palavra era berh diferente. 0 termo não expressava uma privação, mas sim uma transformação: "sacri-ficar" significa tornar sagrado, assim como "purificar” significa tornar puro e "paci-ficár” significa tornar pacífico. 0 sacrifício era um ato ritual que fazia com que uma oferenda passasse do mundo profano para o mundo sagrado. Por que então o sacerdote deve apresentar sacrifícios? Por que lhe é impossível passar inteiramente para o mundo divino. Apesar das cerimônias de sua consagração, ele continua sendo um homem terre­ no. Desse modo, precisa-se escolher outro ser vivo, suscetível de efe­ tuar a passagem. 0 ritual prescreve ao sacerdote escolher tal ou qual animal, cuidando para que nada contrarie as prescrições. O animal é inteiramente subtraído ao mundo profano, pois é imolado e oferecido sobre o altar do templo. Consumido pelo fogo, sobe ao céu, transfor­ mando-se em fumaça (cf. Gn 8,20-21; Lv 1,9.1 7; etc.), ou então — ou­ tro símbolo — seu sangue é como que lançado ao trono de Deus (Lv 16,14-15). Esse é o ponto culminante da missão de mediação tal como a concebia o antigo culto. Como se vê, trata-se de uma busca de consa­ gração sempre mais total, que se realiza por meio de uma série pro­ gressiva de separações rituais. O sacerdote é separado do povo para ser reservado ao culto; deixa o espaço profano para entrar no lugar santo; abandona as atividades profanas para cumprir as cerimônias sa­ gradas; suas oferendas sacrificais separam-se da vida terrena para as­ cender junto a Deus. SANGUE OU VIDA OFERTADA

Talvez nos surpreenda o uso de sangue nos sacrifícios ou a insis­ tência de Hebreus na questão do sangue. Mas deve-se recordar que, para a Bíblia, "o sangue é a vida". Nos sacrifícios, o que se oferece não é a vítima (que não passa de um cadáver}, mas o "sangue quente" ou "vivo", isto é, a vida da vítima. Se adquiríssemos o hábito de substituir mentalmente a palavra "sangue" pela expressão "vida ofertada", mui­ tos textos bíblicos, ao invés de nos parecerem curiosos ou até repug­ nantes, se tornariam tremendamente sugestivos para nós.

E.C.

2 - A mensagem da epístola aos hebreus

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Depois desse movimento ascendente de separações sucessivas, é de se esperar, evidentemente, um movimento descendente de favo­ res divinos. Se o sacrifício é digno de Deus, a vítima é aceita. O sacer­ dote que a ofereceu pode então entrar em contato com Deus e verá suas preces atendidas. 0 povo, representado pelo sacerdote, se encon­ trará, por seu intermédio, em boas relações com Deus, obtendo assim as graças desejadas: a) o perdão dos pecados e o fim das calamidades daí resultantes; b) as instruções divinas que permitam encontrar o jus­ to caminho através das perplexidades da existência; c) as bênçãos divi­ nas, isto é, a aplicação da influência benéfica produzida pela relação positiva com Deus a todos os setores da existência. Desse modo, chega-se ao esquema seguinte, no qual todas as atribuições do sacerdócio encontram o seu lugar e adquirem um sentido. i ! • Esquema da antiga mediação sacerdotal 2. Elem ento central

o sacerdote é admitido

1. Elementos ascendentes

série ascendente de separações rituais, cujo ponto culminante é a oferenda a Deus, por um sacer­ dote, de um animal imolado.

3. Elementos descendentes o sacerdote transmite ao povo os dons de Deus (o perdão, ins­ truções, bênçãos)

Pode-se compreender, então, que o bom funcionamento desse esquema depende inteiramente da eficácia de sua fase ascendente. Em última instância, tudo repousa sobre o sistema das separações ri­ tuais de que falamos. E é por isso que os judeus davam-lhe tanta im­ portância. As infrações a esse sistema eram" punidas com a morte (cf. Nm 1,51; 3,10.38; At 21,27-31).

2. JESUS E O ANTIGO SACERDÓCIO Que relações os primeiros cristãos poderiam encontrar entre a antiga instituição sacerdotal, que acabamos de descrever, e a existên­ cia humana de Jesus? À primeira vista, nenhuma relação. Jesus não 18

pertencia a tal instituição, seu ministério não se havia inserido nela e sua própria morte o havia afastado ainda mais dela. a. Muitas questões haviam sido colocadas a propósito da pes­ soa de Jesus . As pessoas se haviam perguntado quem era aquele ho­

mem e múltiplas respostas surgiram, favoráveis ou hostis: "E um pro­ feta", "um possesso", "o Messias", "um sedutor". É significativo que ninguém tenha levantado a idéia de Jesus como sacerdote. Mas não há nada de surpreendente nisso. Estava muito claro que Jesus não era sacerdote segundo a Lei judaica. Com efeito, ele não pertencia a uma família de sacerdotes ou sumos sacerdotes, nem mesmo à tribo sele­ cionada para o serviço do culto. Na série ascendente das separações rituais, ele se encontrava no degrau mais baixo, o do povo. b. Ele próprio nunca pretendeu exercer funções de sacerdote ju­ deu. Seu ministério não foi sacerdotal, no antigo sentido da palavra. Sua atividade era muito mais continuidade da ação dos profetas, que proclamavam a palavra de Deus e anunciavam a sua próxima interven­ ção. A propósito, deve-se observar que amiúde se manifestava uma forte tensão entre a pregação dos profetas e a antiga instituição sacer­ dotal. O problema da instituição é que dava a entender que para estar bem com Deus bastava cumprir exteriormente os ritos e respeitar as separações exigidas. Os profetas se insurgiam contra esse formalismo, exigindo uma verdadeira docilidade para com Deus na existência con­ creta, particularmente na vida social e política. Jesus colocou-se clara­ mente na linha dessa tradição profética. Os evangelhos testemunham da sistemática ação que ele desenvolveu contra a concepção ritual da religião. Ele mostrou que dava pouca importância às preocupações de pureza ritual (Mt 9,10-13; 1 5,1-20 e paralelos) e recusou-se a dar va­ lor absoluto ao preceito do repouso sagrado, o dia de sábado (Mt 12,1-13; Jo 5,16-18; 9,16). Além do mais, rejeitava o antigo modo de compreender a santificação. No Evangelho de Mateus, Jesus opôs por duas vezes aos seus adversários a palavra de Deus proclamada pelo profeta Oséias: "Misericórdia é que eu quero e não sacrifício" (Os 6,6; Mt 9,13; 12,7). Desse modo, colocou-se contra o sistema das separa-' ções rituais, cujo ponto culminante, como já dissemos, era a oferenda do "sacrifício". E escolheu a posição contrária, que procura servir a Deus propagando a misericórdia que vem dele. Ao invés de uma santi- ' ficação obtida separando-se dos outros, ele propunha uma santifica- j ção obtida acolhendo os outros. Assim, abolia-se a preocupação com a ( pureza ritual, dando lugar a um dinamismo de reconciliação e comu­ nhão. Em lugar de multiplicar as barreiras, tratava-se muito mais de suprimi-las.

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c. Sendo assim, o ministério de Jesus havia tomado rumo inve so do antigo sacerdócio. Mas, no fim das contas, não se terá operado uma reviravolta? Será que, por sua morte , Jesus não atingiu o sacer­ dócio? Será que a morte de Cristo não constitui uma oferenda sacer­ dotal, um "sacrifício"? Nós estamos habituados a responder afirmati­ vamente a essa questão — e não estamos equivocados. Entretanto, é provável que, assim fazendo, não tenhamos consciência da complexi­ dade da situação. Para não ser simplista, essa resposta afirmativa deve decorrer de uma reflexão que começa por uma posição negativa. De­ vemos começar por reconhecer que a morte de Jesus não foi um sa­ crifício no antigo sentido do termo, que era um sentido ritual. Segundo a velha concepção, o sacrifício não consistia na morte da vítima e me­ nos ainda em seus sofrimentos, mas nos ritos de oferenda realizados no lugar santo. Ora, a morte de Cristo não se produziu no lugar santo nem teve qualquer coisa em comum com uma cerimônia litúrgica. Aliás, foi exatamente o contrário: a execução de um condenado. E os israelitas — e, portanto, também os primeiros cristãos — percebiam to­ tal contraste entre a execução de um condenado e o cumprimento de um sacrifício ritual. Os ritos do sacrifício constituíam um ato solene, glorificador e santificador, que unia a Deus e era fonte de bênçãos. A morte sofrida por um condenado, ao contrário, apresentava-se não so­ mente como o pior dos castigos, mas também como uma "execração", justamente o inverso de uma "consagração". Afastado do povo de Deus (cf. Nm 15,30), o condenado era maldito e fonte de maldição (Dt 21,23; Gl 3,13). No caso de Jesus, a condenação era evidentemente injusta e o acontecimento recebia, de seu interior, um significado com­ pletamente distinto. Mas nem por isso tornava-se um acontecimento ritual, não constituindo, portanto, um "sacrifício" no antigo sentido do termo. Da parte de Jesus, era muito mais um ato de "misericórdia" le­ vado ao extremo: Jesus chegou ao ponto de "dar a sua vida em resga­ te por muitos" (Mc 10,45), morrendo "por nossos pecados" (1Cor 15,3; Rm 5,6-8). Esse ato de misericórdia correspondia ao desejo de Deus, que quer "misericórdia e não sacrifício" (Mt 9,13; cf. Mc 12,33).

Longe de reduzir a distância entre Jesus e o antigo sacerdócio, o acontecimento do Calvário aumentou-a ainda mais. Todas essas constatações fornecem a resposta para uma das questões colocadas: elas nos fazem compreender por que, nos primei­ ros tempos da Igreja, ninguém pensou em aplicar a Cristo os títulos de sacerdote e sumo sacerdote, nem em atribuir a ele o sacerdócio. As­ sim, explica-se facilmente o longo período inicial de omissão: aparen­ temente, na pessoa de Jesus, em seu ministério e menos ainda na sua

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morte, nada correspondia à imagem que as pessoas tinham do sacer­ dócio na época.

3. A QUESTÃO DO CUMPRIMENTO DAS ESCRITURAS Visto isso, devemos agora examinar a mudança que ocorreu mais tarde. Por que a omissão não se manteve indefinitivamente? Por que o tema do sacerdócio acabou por ser introduzido na expressão da fé cristã? Trata-se de uma adição supérflua? De uma infidelidade à mensagem primitiva? Ou se trata de um autêntico aprofundamento da fé? Não há qualquer dúvida na resposta: trata-se dé um aprofunda­ mento autêntico, que se tornou necessário por uma questão que não se podia eludir. Com efeito, embora normal a princípio, a omissão não podia se prolongar sem criar sérios problemas. Ela provocava interrogações que vinham em detrimento da fé cristã. Então, tratava-se de uma religião sem sacerdócio o que a fé cristã introduzia? Os cristãos formavam uma comunidade que não precisava de sacerdote? Seria admissível tal situação? Uma resposta simplista não bastava, pois essas questões punham em jogo uma pretensão fundamental da fé cristã, a qual pro­ clamava e proclama que Cristo cumpriu as Escrituras, realizando perfeitamente o desígnio de Deus anunciado no Antigo Testamento. Mas como sustentar essa afirmação se o mistério de Cristo estava comple­ tamente desprovido da dimensão sacerdotal, que ocupa lugar tão im­ portante no Antigo Testamento?

a. Quem lê o Antigo Testamento não pode deixar de constatar importância que a instituição sacerdotal ocupa nele. Uma grande parte da Lei de Moisés diz respeito à organização do culto e do sacerdócio (Ex 25,31; 35,40; Lv 1-10; 16-17.; 21-24; Nm 3-4; 8; 15-19; etc.). Nos livros históricos, pode-se observar que a influência do sumo sacer­ dote não cessou de crescer. Depois do Exílio, o sumo sacerdote aca­ bou por se tornar o chefe único da nação, acumulando a autoridade re­ ligiosa e o poder político (cf. Eclo 50,1-4). No século II a.C., foi uma família de sacerdotes que fomentou e dirigiu a insurreição contra os selêucidas. E o motivo determinante foi de ordem sacerdotal: não se podia aceitar a profanação do Templo pelos pagãos, precisava-se res­ taurar a qualquer preço o culto ao verdadeiro Deus (1Mc 1-2; 4,3659). 0 êxito da insurreição levou essa família de sacerdotes ao poder, confirmando novamente a importância do sacerdócio. No tempo de

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Cristo, o sumo sacerdote ainda era a autoridade suprema da nação; ele presidia a assembléia do Sinédrio, que os romanos reconheciam como poder local.

b. Naturalmente, essa situação histórica apresentava també um lado sombrio. O comportamento de alguns sumos sacerdotes, am­ biciosos e sem escrúpulos, haviam suscitado amargos protestos (cf. 2Mc 4). Mas não se podia colocar em questão a instituição divina do sacerdócio, pois ela não fora afirmada apenas pela Lei de Moisés, mas também até mesmo pelos profetas, que, no entanto, não haviam deixa­ do de criticar os sacerdotes e seu culto (cf. Os 5,1; 8,13; Am 5,21-25; Ml 2,1-9; Is 1,10-16; Jr 2,8). Jeremias, por exemplo, cuja audácia chega­ ra ao ponto de fazê-lo predizer a destruição do Templo (Jr 7,12-14), nem pór isso deixara de anunciar, da parte de Deus, que os sacerdotes levíticos jamais careceríam de sucessores para oferecer os sacrifícios (Jr 33,18). E o Sirácida (Eclo) recordava com insistência que o sacer­ dócio de Aarão era garantido por um pacto eterno (Eclo 45,7.1 5.2425).

Em virtude disso, quando se evocava o cumprimento do desígnio de Deus prometido para os tempos do Messias, incluía-se nesse desíg­ nio uma renovação do sacerdócio (Ml 3,3). Vários escritos judeus do século I a.C. atestam que naquela época esperava-se um sacerdote dos últimos tempos. Os manuscritos de Qumrã, em especial, nos reve­ laram vários textos que falam claramente nesse sentido. Essa expecta­ tiva era normal, pois, para merecer seu nome, o cumprimento finai não poderia deixar de lado nenhum dos elementos essenciais do projeto de Deus. E a mediação sacerdotal apresentava-se sem qualquer dúvida como um desses elementos essenciais.

c. Desse modo, à medida que os cristãos afirmavam terem e contrado em Cristo o perfeito cumprimento do desígnio de Deus, uma questão colocava-se diante deles. Uma questão grave e inelutável: o cumprimento realizado por Cristo comportava ou não uma dimensão .sacerdotal?

Se a resposta-fosse negativa, a posição cristã corria o risco de tornar-se insustentável. Mas como dar uma resposta positiva depois de tudo o que já vimos a respeito dos sacerdotes e do sacerdócio anti­ gos? Considerando a ausência de relação —e, pior ainda, a oposição — que ver ificamos entre a existência de Jesus e o antigo sacerdócio, essa resposta positiva não seria impossível? Por outro lado, uma tentativa de inovação nesse ponto não apresentaria graves riscos para a fé cris­ tã, C‘ UMA ESTRUTURA CONCÊNTRICA jíÓ A P O C A L I P S E

As estruturações concêntricas não são raras na B í b l i a . m a i s fá­ ceis de distinguir são as que caracterizam textos curtos, como, por exemplo, Lv 24,16-22. Quando os textos são mais longos, elas já se tornam mais discutíveis. Um dos casos mais convincentes é o das car­ tas às sete Igrejas da Ásia, no Apocalipose. Vamos estudar rapidamente esse caso, com base no estudo de N. W. Lund (Chiasmus in the New Testament, Chapei Hill, 1942). Para facilitar, designaremos cada carta por seu número de ordem. Eis a lista:

(1) (2) (3) (4) (5) (6) (7)

a Éfeso (2,1-7); a Esmrma (2,8-11); a Pérgamo (2,12-17); a Tiatira (2,18-28); a Sardes (3,1-6); a Filadélfia (3,7-13); a Laodicéia (3,14-22).

1. Todas as cartas são apresentadas do mesmo modo e apresen­ tam no fim uma frase idêntica. Os elementos comuns a todas são os se­ guintes: — No início: a) "Ao Anjo da Igreja de ( . . .), escreve:"; b) "Assim diz . . (seguindo-se uma fórmula variável, que de­ signa Cristo); c) "Conheço . . ." (uma vez "sei"). — No finai:

"Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas.” De passagem, pode-se observar que a palavra "Igreja " forma uma inclusão em todas as cartas, pois se encontra na introdução e no finai. Já que todas possuem um quadro comum, as sete cartas podem ser agrupadas em uma mesma fileira:

HT)

(2)

(3)

W

(5)

(6)

(7 p

2. Em todas as cartas, o final contém dois elementos: um é inva­ riável, como acabamos de destacar ("Quem tem ouvidos .. ."); o outro é muito variável, mas é sempre uma promessa ao "vencedor". A promessa ao vencedor começa sempre por um só particípio grego ("aquele que vence") em todas as cartas, à exceção da carta (4).

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Nesta —e somente nela —, temos uma fórmula dupla e longa, que, tra­ duzida literalmente, é a seguinte: "Aquele que vence e aquele que ob­ serva minhas obras até o fim " (2,26). Essa particularidade sugere que se diferencie essa carta das outras. E acontece que ela é justamente a carta centrai. Nas três primeiras cartas, a promessa ao vencedor vem depois da frase invariável ("Quem tem ouvidos . . ."). Mas, nas quatro últimas, ela aparece antes dessa frase. E, como a carta centra! se distingue das ou­ tras, obtemos o seguinte esquema: (depois)

~Tl)

(2)

(especial)

(3J

(4)

(antes) [5]

(6)

(7)

Em todas as cartas, a promessa ao vencedor começa, no origina! grego, por um nominativo, "o vencedor", salvo em duas cartas, onde encontramos um dativo, "ao vencedor", as cartas (1) e (3). Esse detalhe sugere que essas duas cartas mantêm estreitas relações entre si, mais que com as outras. 3. Na maior parte das cartas, observa-se um chamado à conver­ são: "Converte-te!" Mas esse chamado não está presente nas cartas (2) e (6). Na carta central, a (4), há uma fórmula especial, que expressa uma recusa a "se converter". A ausência do verbo "converter" nas car­ tas (2) e (6) nos leva a observar que essas duas cartas —e somente elas —não contêm nenhuma censura nem qualquer ameaça de castigo. Se­ guindo esses dados, podemos então obter a seguinte disposição: — nenhuma censura: (2) (6) — censuras: (1) (3) (5) (7) — Jezabef recusa-se a se converter: (4) /4s cartas (2) e (6) são as únicas que falam em "coroa", bem como as únicas que contêm uma alusão à "sinagoga de Satanás", "alguns dos que se afirmam judeus, mas não são" (2,9; 3,9). 0 seu parentesco, por­ tanto, é bastante estreito. 4. Nós já notamos várias semeihanças entre as cartas (1) e (3). E uma comparação mais acurada revela que o seu esquema é quase idên­ tico: o "conheço" è seguido de elogios; em seguida, vem um "devo reprovar-te, contudo" seguido de censuras; logo, aparece um "convertete "; por fim, um "do contrário, virei a ti" ameaçador. Essas duas cartas são as únicas que contêm uma alusão aos "nicolaítas", o único lugar (2,6.15) em que são citados em todo o Novo Testamento. 5. As cartas (5) e (7) têm a particularidade de serem as únicas a começarem por censuras: em ambos os casos, o "conheço" não é se­ guido de elogios, mas somente de queixas. 0 diagnóstico que elas ex­

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pressam é análogo: "tens fama de estar vivo, mas estás morto" (3,1): "dizes: sou rico ( . . . ) és tu o miserável" (3,17). Ambas as cartas con­ têm ameaças terríveis, sobretudo a carta (7) em 3,16. Mas, depois do chamado à conversão, encontramos também promessas (3,4-5) e até mesmo grandes promessas (3,20-21). Ademais, elas são as únicas car­ tas que não mencionam nenhum adversário da Igreja. 6. Já observamos diversas particularidades da carta central. Mas ainda há outras que podemos destacar. Ela é a mais longa de todas e apresenta uma estrutura especial, que lhe dá o aspecto de carta dupla. As outras cartas só apresentam a palavra "Igreja" no princípio e no fim, nas fórmulas fixas. Mas a carta (4) apresenta essa palavra uma vez mais, ainda por cima em uma fórmula mais solene, "todas as Igrejas", no meio de seu texto (2,23). Essa frase de 2,23 tem o efeito de uma conclusão, falando das Igrejas no plural, como a frase fixa de conclusão. Mas também contém um elemento de começo, apresentando uma de­ signação de Cristo semelhante às que aparecem regularmente no início das cartas segundo a fórmula "Assim diz. . .". No caso, a designação aparece sob esta forma: "quem sonda os rins e o coração" (2,23). Em seguida, o nome da cidade é repetido, como se fosse um novo começo (2,24), introduzindo uma segunda parte da carta. A primeira parte (2,18-23) apresenta no início uma estrutura se­ melhante à das cartas (1) e (3): "conheço" seguido de elogios; "reprovo-te, contudo" seguido de censuras. A partir daí, porém, toma uma di­ reção diferente (veja o ponto 3 deste quadro), de modo a abrir a possi­ bilidade de uma segunda parte. Essa segunda parte (2,24-28) se asse­ melha às cartas (2) e (6), pois não contém censuras nem ameaças. Des­ se modo, a carta central se apresenta como síntese dos dois tipos de cartas. 7. Nossas diversas observações, portanto, podem se resumir no seguinte esquema concêntrico: (2)

.

(3)1

(4)

f(5)

(5)

Não se pode negar que se trata de uma estruturação harmoniosa, em sua complexidade. Mas o que se ganha com essa descoberta? Em primeiro lugar, a constatação de que o autor do Apocalipse era um grande artista, que gostava de belas construções. E, por outro lado, a constatação de que a Bíblia não desdenha a busca do belo. Isso não se reveste de interesse? Mas ganhamos também um instrumento de análise. Com efeito, o esquema é útil para melhor analisar o texto em seu conjunto e em suas minudências. Essa descoberta revela que as sete cartas não constituem um agrupamento heteróclito, devido ao acaso, mas sim uma constru­

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ção intencional, cujo objetivo é apresentar um panorama das diversas situações existentes então nas comunidades cristãs. A ordem das cartas demonstra excelente sentido pastoral. A carta (1) convém perfeitamente para o começo, pois inicia com elogios, for­ mula algumas críticas e então solicita um esforço. Colocadas no início, as cartas (5) ou (7) teriam causado um choque, já que começam com críticas. Já as cartas (2) e (6) não teriam despertado muita atenção, pois não contêm nenhuma crítica e logo as pessoas teriam se tranquili­ zado. No entanto, no lugar em que estão, as cartas (2) e (6) são muito úteis, pois mostram que a perfeição é possível. Se João houvesse des­ crito apenas comunidades imperfeitas, o quadro teria se mostrado me­ nos estimulante, pois se teria podido pensar que a fidelidade total cons­ titui um ideal inacessível. A escolha da carta fina! é ditada pelo mesmo sentido pastoral. Co­ locadas no final, as cartas (2) ou (6) teriam deixado uma impressão ex­ cessivamente tranqüifizadora: não há nada a corrigir. . . Mas João co­ locou no fim a carta que contêm a mais severa descrição de todas (3,15-17) e a ameaça mais forte (3,16). Entretanto, tomou o cuidado de não terminar com um contexto inteiramente negativo. Pelo contrá­ rio, ao encerrar, ele abriu as mais atraentes perspectivas de intimidade com o Senhor (3,20).

4 - A mensagem da epístola aos hebreus

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opõem duas a duas de um lado e outro do centro (cf. p. 41). Assim, é de se esperar que o tema das subdivisões centrais (9,1-10 e 9,11-14) seja, aos olhos do autor, a questão decisiva. E, de fato, nessa subdivi­ são central encontramos o confronto entre o culto ritual antigo (9,110) e o único sacrifício que teve êxito, o de Cristo (9,11-14). E mais: se formos examinar que palavra está colocada no centro de toda a estrutura (ou, mais exatamente, a palavra mais próxima do centro, que cai precisamente em um espaço vazio entre duas subdivi­ sões centrais), perceberemos que sua escolha não pode ter sido deixa­ da ao acaso. Com efeito, essa palavra outra não é do que o próprio nome de Cristo: “ Cristo, porém . . (em grego, Chrístos dé). Essa é a primeira palavra do parágrafo positivo (9,11-28). Para melhor evidenciá-la, o autor evitou mencionar essa palavra na primeira metade dess? seção (8,1-9,10). Mas agora, em 9,11, o autor proclama esse nome alto e bom som, logo acrescentando-lhe o título de “ sumo sacerdote” e descrevendo a atividade sacerdotal que justifica esse título (9,11-14). Assim, o nome de Cristo sumo sacerdote foi escolhido como viga central de toda a estrutura. Ele está no ponto central (9,11) da seção central (8,1-9,28) da parte central (5,11-10,39). Nesse esquema geral de Hebreus, ele é precedido de cinco seções e meia e seguido igual­ mente por cinco seções e meia. No desdobramento do texto, ele é pre­ cedido por 1 52 versículos e seguido de 146 versículos (sem contar os cinco versículos do final epistolar, que não fazem parte do sermão). Esse é um fato dos mais significativos, pois nos revela ao mesmo tem­ po o extraordinário domínio do autor em matéria de composição literá­ ria e, por outro lado, sua preocupação de colocar o talento que tinha inteiramente a serviço da sua fé.

8,1-5

8,6-13

9,1-10

9,11-14

9,15-23

9,24-28

Trabalho sugerido — Analisar a composição e comparar os temas das duas exorta­ ções da parte III (5,11-6,20 e 10,19-39), que têm inúmeras relações entre si. — Pesquisar se o comentário do SI 95 em Hb 3,12-4,11 tem subdivisões indicadas por inclusões. Examinar de que modo os termos do salmo e seus temas são retomados no comentário. 50

IV

UM APROFUNDAMENTO DA FÉ E DA VIDA CRISTÃ A julgar pela análise que acabamos de fazer, o Sermão Sacer­ dotal (Hb 1,1-13,21) foi elaborado para ser pronunciado perante uma assembléia cristã, sem dúvida semelhante à que são Lucas nos descre­ ve em At 20,7-8 ou à que são Paulo nos mostra em 1Cor 14,26. Os cristãos estão reunidos para "ouvir a Palavra de Deus,' cantar e orar, bem como, provavelmente, também para celebrar a Eucaristia (cf. At 20,7; 1Cor 11,20). Vamos procurar nos inserir no seio deles para ouvir a pregação que lhes é dirigida. Ela também vale para nós. Observação: antes de cada seção deste capítulo, aconselhamos vivamente a leitura da passa­ gem de Hebreus indicada entre parênteses após o titulo da seção — e. depois de lê-la, você deve mantê-la à mão enquanto estuda conosco a respectiva seção.

1. PALAVRA DE DEUS E AÇÃO DE

D E Ü S ( le r H b 1 ,1 -4 )

a. 0 sermão vincula-se evidentemente à liturgia da Palavra d Deus. 0 pregador tem consciência disso, o que se pode perceber logo em seguida, pois suas primeiras palavras evocam esse tema: "falou Deus" (1,1). Ao longo de toda a história humana. Deus se preocupou em entrar em relações pessoais conosco: "Muitas vezes e de diversos modos falou Deus, outrora aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio de seu Filho". Essa iniciativa di­ vina e essa perseverança de Deus não podem deixar de nos causar surpresa e confusão, mas também uma maravilhada gratidão: "O que é o homem, para que dele te lembres?" (SI 8,2.5; Hb 2,6). Ao mesmo tempo, desperta em nós o sentido de nossa responsabilidade: Deus, que nos fala, tem direito a toda a atenção! Como sabemos, sua palavra é uma semente que pede para ser acolhida em um coração bem dis­ posto (Lc 8,15) para dar frutos em abundância.

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Mas a liturgia da Palavra não é tudo, pois Deus não se co tentou em falar: ele agiu. Ele interveio ativamente em nossa história. A Palavra de Deus está intimamente ligada à sua ação, que lhe dá a sua consistência. Assim, a liturgia cristã comporta duas partes, insepará­ veis uma da outra: uma que proclama a palavra, outra que torna pre­ sente a ação de Deus, isto é, a vitória de Deus sobre o pecado e a mor­ te, vitória obtida na Paixão de seu Filho. O início do sermão reflete fiel­ mente essa realidade, pois, em uma frase única, ele apresenta sucessi­ vamente a Palavra de Deus e o mistério de Cristo, associando-os es­ treitamente. Reduzida a seus elementos essenciais, a frase, com efei­ to, afirma que "Deus nos falou por meio de seu Filho, que, depois de ter realizado a purificação dos pecados, sentou-se à sua direita". A partir daí, a palavra de Deus nos chega em sua plenitude, pois encon­ trou sua forma perfeita graças à encarnação do Filho de Deus, que é "o resplendor de sua glória e a expressão do seu Ser" (1,3). Agora, a ação de Deus transforma a nossa existência, pois se desencadeou por nós de modo mais completo e definitivo na glorificadora Paixão de Cristo. Desse modo, para nós, a palavra de Deus e a ação de Deus estão indissoluvelmente ligadas à mediação de Cristo. É em Cristo que Deus nos fala, é em Cristo que Deus nos salva. Nesta frase de introdução, tão rica de substância1, nós podemos notar que o autor não falou uma só palavra sobre sacerdócio. Mas nem por isso ele deixou de preparar seu tema de modo muito hábil e pro­ fundo. Nós teremos ocasião de constatá-lo. b.

2. UMA EXPOSIÇÃO TRADICIONAL SOBRE CRISTO

(le r H b 1 ,5 -2 ,1 8 )

a. A frase de introdução (1,1-4) termina com uma contemplação

da glória atual de Cristo.' E a primeira parte (1,5-2,18) toma essa con­ templação como ponto de partida. Com efeito, é a Cristo ressuscitado que Deus dirige as palavras do SI 2 citadas em Hb 1,5: 'Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei.” Lendo esse salmo, que proclama a sagração do Rei-Messias, os primeiros cristãos experimentavam a alegria de des­ cobrir nele uma profecia que se realizara no acontecimento pascal: Je­ sus, cuja glória filial havia sido oculta durante sua vida terrena, fora "estabelecido Filho de Deus com poder por sua ressurreição dos mor­ tos" (Rm 1,4; cf. At 13,33). ~ b. Deve-se observar já de saída que o início da primeira parte não constitui um caso particular em Hebreus, mas sim, ao contrário, 1 Cf VANHOYE, Albert, Situtation du Christ, cap. II (cf. Bibliografia, ao final deste cader­ no).

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uma característica da abordagem do autor. Este sempre parte da posi­ ção atual de Cristo glorificado, tal como ele a conhece pela fé. A exemplo da primeira parte (1,5-2,18), a segunda parte (3,15,10) também começa orientando o seu olhar para a glória presente de Cristo, glória na quai repousa a'sua autoridade. É uma glória maior do que a de Moisés (3,3), pois é a glória do Filho (3,6), ao passo que a de Moisés não passava da glória de um servo. (3,5). Da mesma forma, a grande exposição da parte central (7,110,18) começa evocando a posição gloriosa de nosso sumo sacerdote. 0 personagem de Melquisedec, que já a simbolizava antes, represen­ tava o "Filho de Deus” (7,3). E, efetivamente, o oráculo do SI 110 se aplica ao "Filho", tornado perfeito através de seus sofrimentos (7,28; cf. 2,10; 5,8-9) e "elevado mais alto do que os céus" (7,26). Por aí pode-se ver qual é, para o autor de Hebreus, o dado funda- j mental que define a situação cristã: os cristãos se reconhecem em re- j lação viva com Cristo ressuscitado, que agora está sentado à própria I direita de Deus. /

c. Como já observamos, a primeira parte se apresenta com uma breve síntese doutrinai sobre o mistério de Cristo. Nela, o prega­ dor se mantém nas perspectivas tradicionais, de sorte que seus ouvin­ tes podem segui-lo sem dificuldade. Inicialmente, ele recorre à expe­ riência presente da comunidade cristã, que contempla na fé o Cristo glorificado e o reconhece como seu Senhor (1,5-14). Em seguida, ele recorda o caminho de sofrimentos que Jesus teve que seguir para al­ cançar essa glória (2,5-18). Paixão e glorificação de Cristo Jesus — são essas as duas afirmações básicas da mensagem cristã (cf. 1Cor 15,34). As mais das vezes, elas são apresentadas em sua ordem cronológi­ ca. Nosso autor, porém, prefere a ordem inversa, que corresponde à abordagem concreta: parte da situação presente para a sua explicação histórica. Essa ordem pode ser encontrada nas palavras de Pedro re­ latadas por são Lucas (At 3,13; 5,30) ou na frase de são Paulo que ex­ pressa o movimento de união a Cristo (Fl 3,10). Para descrever a glória de Cristo, o autor cita o Antigo Testamen­ to (Hb 1,5-14). Situados à luz do acontecimento pascal, os textos ins­ pirados revelam todo o seu sentido: falam de Cristo, de sua relação com o Pai, de sua entronização celeste, de seu poder sobre o mundo. Em sua maior parte, os textos aqui citados relacionam-se com o mes­ sianismo real, em conformidade com a tradição cristã primitiva. Cristo glorificado é o filho de Davi para que se realize o oráculo do profeta Natã (Hb 1,5b = 2 Sm 7,14; 1Cr 17,13), bem como o oráculo paralelo do SI 2 (Hb 1,5a = Si 2,7; cf. At 13,33). Ele é o Rei vitorioso de que 53

fala o SI 45, (Hb 1,8-9 = SI 45,7-8). Ele é o Senhor do SI 110 que Deus chamou para sentar-se à sua direita (Hb 1,13 = SI 110,1; cf. Mt 22,44; 26,64; At 2,34; 1Cor 15,25; etc.). Nele, as esperanças messiâ­ nicas cumpriram-se com plenitude inimaginável, pois ele é ao mesmo tempo o Criador do céu e da terra (Hb 1,10 = SI 102,26); assim, sua soberania é total (Hb 1,11-12 = 102,27-28). Ele tem direito não ape­ nas aos títulos de “ Filho” (1,5), de “ Primogênito” (1,6) e de “ Senhor" (1,10), mas também ao próprio nome de “ Deus” (1,8.9). 0 nome de Cristo abarca também outros aspectos, que se deve ter o cuidado de não esquecer, pois não foram em absoluto abolidos por sua glorificação. Por isso, o autor os recorda no outro parágrafo de sua exposição (2,5-16). Cristo é “ homem" e “ filho do homem” (2,6). Para tornar-se o “ Autor da (nossa) salvação" (2,10), ele se fez nosso “ irmão” (2,11-12). E continua a sê-io em sua glória, pois esta veio co­ roar os sofrimentos que ele aceitou “ em favor de todos os homens” (2,9). Assim, sua glória sela para sempre sua solidariedade para conos­ co. Para evocar a Paixão glorificante, o autor também utiliza textos tradicionais: o SI 8 (Hb 2,6-9), que são Paulo cita com o SI 110 (1Cor 15,25-27; Ef 1,20-22), e o SI 22 (Hb 2,12), que constitui, mais do que qualquer outro, o salmo da Paixão (cf. Mt 27,35.39.43.46). Quanto ao tema da superioridade de Cristo sobre os anjos, do qual o autor se serve para melhor unificar toda essa primeira parte, sabe-se que ele também havia se tornado familiar aos cristãos (cf. Ef 1,20-21; Cl 1,16; 2,10.15; 1 Pd 3,22).

d. Assim, a exposição da primeira parte é inteiramente tradicio nal. Somente ao terminá-la é que o autor abre novas perspectivas, na frase de 2,17 em que dá a Cristo o título de “ sumo sacerdote” . Essa inovação podería soar até como algo surpreendente. Entretanto, está enganado quem considera que ela constitui uma ruptura na exposição. Pelo contrário, deve-se observar que ela é introduzida sem o mínimo choque, encontrando-se em perfeita continuidade com a argumenta­ ção que a precede (2,5-16). É do modo mais natural possível que se passa da apresentação tradicional do mistério de Cristo para a apre­ sentação sacerdotal, com a única condição de fixar a atenção no obje­ tivo essencial do sacerdócio e não em sua organização ritual. Como já vimos (pp. 19ss), o sacerdócio pretende ser um instru­ mento de mediação. Desse ponto de vista, não se deve reconhecer que Cristo glorificado, Filho de Deus (1,5-14) e irmão dos homens (2,516), encontra se em situação ideal de mediador? Por meio de sua Pai­ xão, ele obteve para sua humanidade a glorificação filia! junto de Deus »*. m> mesmo tempo, ligou se a nós da maneira mais completa e defini-

tiva possível, tomando sobre si a nossa morte. Sendo um com Deus e sendo um conosco, ele é o mediador perfeito —ou, em outras palavras, o "sumo sacerdote misericordioso e fiel" (2,17).

Aquilo que se fazia mais pecessário para ele chegar a essa posi­ ção era tornar-se semelhante a nós, pois o fato de eie ser Filho de Deus já havia assegurado a outra condição da mediação, a relacionada às relações com Deus. Assim, o autor apresenta o tema do sacerdócio em 2,17 em relação imediata com a exposição sobre a Paixão: "para ser, em relação a Deus, um sumo sacerdote", convinha que Cristo "em tudo se tornasse semelhante aos irmãos". Aí, "em tudo” significa tor­ nar-se semelhante até mesmo nas provações, nos sofrimentos e na morte. Desse modo, podemos constatar que a própria disposição da pri­ meira parte foi admiravelmente concebida para preparar a introdução do novo tema. E a insistência na questão dos anjos, que à primeira vis­ ta poderia nos parecer um tanto bizarra, também se explica perfeitarnente tendo em vista essa orientação. Com efeito, o que atraía os crentes da época para os anjos era exatamente a sua capacidade de mediação: não eram os anjos os seres melhor situados para servi­ rem de intermediários entre os homens e Deus? A tradição judaica lhes atribuía esse papel e alguns textos chegavam mesmo a atribuir ao mais elevado dos anjos a dignidade de sumo sacerdote celeste. Combatendo implicitamente essas pretensões, nosso autor demons­ tra, sem dizê-lo, que Cristo é muito mais qualificado do que qualquer anjo para cumprir esse papel de sumo sacerdote. Filho de Deus, ele tem com seu Pai uma relação bem mais íntima do que qualquer anjo (1,5-14). Irmão dos homens, ele é bem mais capaz de nos compreen­ der e nos ajudar (2,5-16). Certamente, os anjos têm lugar assegurado na realização dos desígnios de Deus, mas trata-se de lugar subalterno (1,14). Cristo glorificado vale incomparavelmente mais do que eles. Para nós, ele é mais do que um simples intermediário, pois foi pelo mais profundo de seu ser que ele se tornou, por meio de sua Paixão, o verdadeiro mediador entrè Déus’ e os homens. e. Por fim, não seria o título de "sumo sacerdote" aquele que ex pressa do modo mais perfeito o mistério de Cristo? Esse, pelo menos, é o pensamento sugerido pelo autor de Hebreus concluindo a sua pri­ meira parte do modo como o fez. Em última análise, o título que resu­ me e completa todos os outros é "sumo sacerdote misericordioso e fiel" (2,17). 0 ouvinte é levado a preferi-lo mesmo em relação ao título de Rei-Messias. Com efeito, as imagens do messianismo real são de difícil adaptação ao mistério de Jesus. Elas evocam excessivamente o poder político e os triunfos guerreiros. Não há dúvida de que é possível 55

apresentar a Paixão como um combate vitorioso, mas tal apresentação é bastante paradoxal e não reflete os aspectos mais profundos do acontecimento. Ao contrário, a apresentação sacerdotal não revela os mesmos inconvenientes, pois situa-se no plano religioso e fala do es­ tabelecimento de uma mediação. Ela evidencia a necessidade que o sumo sacerdote tem de dupla e estreita relação com os homens e com Deus. E a Paixão de Cristo revela-se necessária para estabelecer uma solidariedade completa com os homens, ao mesmo tempo que sua glorificação celeste revela-se necessária para assegurar perfeita rela­ ção com Deus. Outros títulos expressam apenas um ou outro aspecto da situa­ ção e do ser de Cristo: "Filho de Deus" reflete somente a sua relação com Deus; "irmão dos homens" expressa somente a sua relação co­ nosco; "Senhor" evoca apenas a sua glória; "Servo" recorda apenas a sua voluntária humilhação. No entanto, "sumo sacerdote" dá a idéia da dupla relação e, ao mesmo tempo, evoca sua Paixão e sua glória. Assim, esse título oferece grandes vantagens. No entanto, era um títu­ lo muito inovador para que o autor pudesse se contentar com uma rá­ pida apresentação. E, ademais, ele precisava explicá-lo corretamente, pois era título suscetível de ser mal interpretado. E, por fim, ele preci­ sava demonstrar metodicamente que se tratava de título legítimo. A essa tarefa ele se dedicaria nas seções seguintes.

3. UMA DEMONSTRAÇÃO EM DUAS ETAPAS Nossa análise da estrutura literária de Hebreus mostrou que a obra expõe a doutrina do sacerdócio de Cristo em duas partes sucessi­ vas, que constituem a segunda e a terceira partes do sermão. Agora, portanto, devemos examinar mais de perto o conteúdo dessas partes, tendo em vista compreender bem o desdobramento da demonstração dessa doutrina. 0 autor desdobra a demonstração em duas etapas, que se se­ guem segundo uma ordem plenamente coerente. Ele começa mos­ trando que Cristo é sumo sacerdote: esse é o tema da segunda parte (3,1-5,10). Depois, mostra que tipo de sacerdócio é o exercido por Cristo: esse é o tema da terceira parte (5,11-10,39). Assim, ele consi­ dera primeiramente (na segunda parte) os traços fundamentais do sa­ cerdócio e constata a sua existência em Cristo. Depois, dedica-se a ver (na terceira parte) quais são os traços específicos pelos quais o sacer­ dócio de Cristo se diferencia das formas anteriores do sacerdócio. 56

A base de referência, evidentemente, é o Antigo Testamento. 0 autor não tinha nada que considerar em relação aos cultos pagãos, pois a questão que se colocava para os cristãos de sua época, como já vimos, era se Cristo havia "cumprido” tudo o que fora anunciado pelo Antigo Testamento. Pode-se encohtrar, no misiério de Cristo, o cum­ primento do sacerdócio do Antigo Testamento? Esse era o problema que tinha de ser resolvido. E, a propósito disso, pode-se notar que, sendo positiva, a resposta será ainda mais válida em relação ao que há de válido nos sacerdócios pagãos, que representam uma forma de reli­ gião bem mais misturada. Para que houvesse cumprimento do sacerdócio antigo em Cristo, era indispensável uma relação de semelhança entre Cristo e os sumos sacerdotes judeus (cf. o quadro da p. 42). Pois a segunda parte mos­ tra precisamente que essa relação existe. E é interessante observar como é que o autor faz para demonstrá-lo. Ele evita examinar os deta­ lhes exteriores. Não considera nenhuma das cerimônias prescritas para a consagração do sumo sacerdote: banho ritual, unção, vestes sa­ gradas, imolação de animais (Ex 29; Lv 8). E também não se detém em nenhum dos ritos que o sumo sacerdote devia efetuar. Ele vai direta­ mente ao fundo das coisas: passa direto ao exame das duas qualida­ des essenciais que condicionam o exercício do sacerdócio. Um sumo sacerdote deve ser: 1) acreditado "em relação a Deus"; 2) "misericor­ dioso" para com os homens. É fácil ver que não se trata aí de virtudes individuais, como seriam a coragem ou a sobriedade. Essas duas quali­ dades situam-se no plano das relações com as pessoas: com Deus, por um lado, e com os homens, por outro. Sua presença simultânea em um representante da família humana constitui a condição necessária e suficiente para que se possa falar de sacerdócio. Um homem tomado de compaixão por seus semelhantes, mas que não tem acesso junto a Deus, não preenche as condições para ser sacerdote, pois não pode re­ presentar seus irmãos junto a Deus. Desse ponto de vista, sua compai­ xão permanece estéril. Por.outro lado, um ser que é admitido na. intim i­ dade de Deus, mas que se situa longe da solidariedade humana, tam­ bém não preenche as condições para ser sacerdote, pois não represen­ ta os homens. Desse ponto de vista, sua posição elevada não muda em nada a sua condição. Só pode ser sacerdote aquele que está ao mesmo tempo intimamente ligado aos homens por todas as fibras da natureza humana e plenamente acreditado junto a Deus. Essa situação poderá, com efeito, assegurar a seus irmãos boas relações com Deus e transformar assim a sua existência. Desse modo, pode-se compreen­ der por que o autor apresentou juntos esses dois aspectos do sacerdó­ cio (em 2,17) e por que fez deles o tema de duas seções de uma mes­ 57

ma parte. Os comentadores que deslocam essa parte para impor a Hebreus uma divisão diferente (cf. pp. 25-26) não somente estão des­

figurando a forma literária da obra, mas também estão impedindo o leitor de captar o pensamento do autor sobre um ponto fundamental.

4. SUMO SACERDOTE CONSTITUÍDO

(le r H b 3 ,1 - 6 )

a. 0 primeiro aspecto desenvolvido é o que diz respeito à rela­ ção com Deus. Jesus tem direito ao título de sumo sacerdote porque "é digno de fé junto a quem o constituiu" (3,2). Quase todas as tradu­ ções cofnetem aqui um erro, falando de "fideHdade" e dizendo que Je­ sus "é fieI a quem o constituiu". É certo que a palavra grega utilizada possui esse sentido em outros contextos. Entretanto, seu primeiro sen­ tido é "digno de fé". E, nesta passagem, é esse primeiro sentido que devemos considerar (3,1-6). O autor, com efeito, refere-se a um texto do Antigo Testamento (Nm 12,7) em que a palavra tem esse sentido. 0 que é afirmado nesse texto não é a fidelidade de Moisés, mas sim sua credibilidade, sua autoridade como representante de Deus, funda­ da em sua relação íntima com Deus (Nm 12,1-8). E Cristo glorificado merece a mesma qualificação de Moisés, com muito mais razão, pois "foi, de fato, considerado digno de maior honra do que Moisés" (3,3). Moisés tinha seu lugar na casa de Deus, como um servo (3,5), mas Cristo tem autoridade sobre a casa de Deus, pois é o Filho (3,6) e tem a posição de arquiteto (3,3; cf. 2Sm 7,13-14). E a casa de Deus que ele constrói é um edifício composto de pedras vivas (cf. 1 Pd 2,5; Ef 2,21-22), no qual nós, crentes, nos integramos (Hb 3,6), com a condi­ ção de permanecermos fiéis à nossa vocação. b. A isso, o autor encadeia naturalmente uma exortação que mostra as conseqüências que a posição de Cristo glorificado traz para nós (3,7-4,14; leia essa passagem).

Já que Cristo tem plena autoridade sacerdotal, já que ele nos fala estando situado junto a Deus, nós devemos acolher sua palavra com fé. É essa palavra que nos introduz no "repouso" de Deus. A base do texto ó fornecida por uma passagem do SI 95: "Hoje, se lhe ouvirdes a voz, não unduroçais os vossos corações . . ." (3,7-8). Esse tekto é con­ veniente também polo fato de permitir a continuação do paralelo entre (•listo o Moisés, á medida que evoca certos acontecimentos do Êxodo. Nesse ponto, é aconselhável precisar um aspecto. Às vezes, dizse que o iiutoi compara aqui a vida cristã à longa peregrinação dos is!»H

raelitas no deserto. Isso podería ser exato se o salmo fosse citado em hebraico, pois nesse caso se encontraria a menção a Massa e Meriba (Ex 17,1-7; Nm 20,1-13). Mas o autor utiliza a tradução grega, na qual esses nomes próprios desaparecem, restando como únicas alusões perceptíveis as que se ligam a um episódio bem determinado, que se situa antes da longa peregrinação de quarenta anos no deserto. Na Bíblia, o relato se coloca exatamente antes do texto de Nm 12 onde o autor vai. buscar inspiração (Hb 3,5 = Nm 12,7). Partindo do Egito sob a direção de Moisés, os israelitas mantive­ ram-se inicialmente durante certo tempo no Sinai, mas depois Deus fez com que avançassem rumo à Terra Prometida, para que tomassem posse dela (cf. Dt 1,6-8). Chegando perto dessa terra, os israelitas en­ viaram uma missão de reconhecimento (Nm 13), que volta com um re­ latório ao mesmo tempo entusiasta e desencorajador: a Terra Prometi­ da é um lugar maravilhoso, mas seus habitantes são temíveis (Nm 13,27-28). O que fazer? São possíveis duas atitudes nessa situação. A primeira é uma atitude de fé na palavra de Deus. É essa a atitude suge­ rida por Moisés: "Vê, o Senhor, teu Deus, põe à tua disposição esta terra: sobe, ocupa-a, conforme a promessa que te fez o Senhor, Deus de teus pais; não temas, não desanimes" (Dt 1,21; cf. Nm 14,7-9). A segunda é uma atitude de desconfiança, que se afasta da palavra de Deus e deixa-se sugestionar pelas dificuldades da empresa: "É gente mais numerosa e mais alta do que nós; são cidades grandes e fortifica­ das que tocam o céu" (Dt 1,28; cf. Nm 13,32-33). Se tivessem conti­ nuado seu avanço, os israelitas teriam entrado na Terra Prometida. Mas, como não tiveram confiança em Deus, foram condenados a errar no deserto até a morte (Nm 14,32-33). E, agora, os cristãos encontram-se diante da mesma alternativa. 0 Reino de Deus está diante deles, ao alcance da mão, com sua paz, sua alegria, suas bem-aventuranças. Cristo, que abriu esse caminho, chama-os a tomarem posse do Reino desde agora, na fé. Eles ouvem sua voz, que o Evangelho faz ecoar: "O tempo está realizado e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho" (Mc 1,15; cf. Hb 4,2). Duas atitudes são possíveis aí: ter fé e entrar ("Nós, porém, que abraçamos a fé, entraremos no repouso" — Hb 4,3) ou recusar-se a crer e ser excluído. A sorte dos israelitas condenados a errar pelo de­ serto constitui impressionante advertência. Então, impõe-se a conclu­ são: "Empenhemo-nos, portanto, por entrar nesse repouso .. ." (4,11). "Temos, portanto, um sumo sacerdote eminente, que atravessou os céus: Jesus, o Filho de Deus. Permaneçamos, por isso, firmes na pro­ fissão de fé" (4,14). 59

Toda essa exortação mostra muito bem como o autor une estrei­ tamente o tema da Palavra de Deus ao tema do sacerdócio de Cristo. Longe de omitir o ministério da^Palavra nas atribuições de Cristo sumo sacerdote, ele insiste com força nesse aspecto aqui. E apresenta esse ministério como atual: é agora que Cristo, sumo sacerdote plenamente acreditado por Deus em sua glória, nos transmite a palavra divina ca­ paz de nos salvar, palavra que nós devemos acolher na fé.

c. No que se refere à relação entre o sacerdócio de Cristo e a p lavra, impõe-se uma questão: por que o autor preferiu comparar Cristo com Moisés e não com o sumo sacerdote Aarão nesse trecho? A res­ posta é simples: nesse domínio, Moisés aparece na Bíblia como mais representativo do que seu irmão. Não há nada de surpreendente no fato de que um autor judeu como Fílon tenha atribuído a ele a plenitu­ de do sacerdócio. Com efeito, o Antigo Testamento não conhece ne­ nhum mediador da palavra que seja superior a Moisés: é precisamente isso o que proclama o texto de Nm 12,1-8 citado em Hb 3,2-5. Nesse ponto, os sacerdotes judeus dependiam de Moisés: segundo Dt 31,9, efetivamente, foi ele quem lhes confiou o conjunto dos preceitos divi­ nos, com a tarefa de transmiti-los ao povo. Assim, se o objetivo era mostrar em Cristo o cumprimento definitivo desse aspecto do sacerdó­ cio, era lógico e necessário tomar como ponto de referência a posição de Moisés e não a do antigo sacerdócio, inferior a Moisés. E o autor , não tem dificuldade para demonstrar que Cristo glorificado dispõe de autoridade não somente igual, mas superior à de Moisés, para nos fa­ lar em nome de Deus e nos introduzir desde agora, se o ouvimos, na intimidade de Deus.

5. SUMO SACERDOTE SOLIDÁRIO COM OS HOMENS

(le r H b 4 ,1 5 - 5 , 1 0 )

A extraordinária autoridade de Cristo e sua posição à direita de Deus poderíam dar a impressão de que ele estaria situado muito alto para se interessar pela sorte dos homens. E, além do mais, ainda pode­ ríam suscitar temor paralisante: como ousar entrar em contato com um ser tão glorioso e tão santo? Na verdade, a união com Deus na gló­ ria não basta como base do sacerdócio. Essa união precisa estar ligada estreitamente a outro aspecto: a capacidade de ser acolhido pelos ho­ mens. E, certamente, essa capacidade não falta ao Cristo glorificado. O autor o diz claramente no início da segunda seção (4,15) e logo nos convida a nos aproximarmos "com segurança” (4,16). Com efeito, de60

AS TRÊS CONDICÕES DO CUMPRIMENTO DAS ESCRITURAS

a. Três condições devem ser cumpridas para que se possa reco­ nhecer no Novo Testamento um cumprimento do Antigo Testamento. A primeira condição, fundamental, é a existência de uma relação de se­ melhança e continuidade. Se a nova realidade que pretende substituir a antiga não tivesse qualquer relação com eia, não se podería falar de cumprimento. Nesse caso, ao contrário, se teria que falar em pura e simples inovação, sendo então impossível situar essa inovação no qua­ dro dos desígnios de Deus, preparados e anunciados há muito tempo. Suponhamos, por exemplo, que um evangelho nos tenha apresentado como Salvador um homem oriundo de um povo pagão e desprovido de qualquer parentesco com a descendência de Abraão, a tribo deJudá e a família de Davi. Evidentemente, não se teria podido reconhecer neie o cumprimento das promessas messiânicas transmitidas peta Bíblia. b. A segunda condição — na qual, espontaneamente, não se po­ dería pensar — é que a realidade nova não deve ser semelhante à antiga em todos os pontos. Se não, continuaríamos nos encontrando ao nível de preparação, ao invés de já termos passado ao nível da realização de­ finitiva. Se, por exemplo, Jesus houvesse assumido a sucessão do rei Davi da mesma forma que Salomão ou Josias, isto é, exercendo o po­ der terreno enquanto durasse a sua vida mortal, não se podería reco­ nhecer nele o cumprimento perfeito das promessas messiânicas. Um cumprimento divino nunca é uma simples repetição do que já houve antes. Ele apresenta sempre diferenças e rupturas, pois se situa em um outro nível. c. Esse outro nível, naturalmente, é um nível superior. Essa é a terceira condição do cumprimento. As' diferenças observadas *devem eliminar os limites e as imperfeições antigas. Devem avançar no senti­ do de um progresso decisivo e imprevisível, que manifeste a interven­ ção criadora de Deus. Caso contrário, feríamos apenas uma contestável variação de valor. Assim, por exemplo, a reconstrução do Templo de­ pois do Exílio, embora fosse diferente em muitos pontos em relação à construção de Salomão, não constituía o cumprimento definitivo do projeto expresso por Deus de um dia habitar no meio de seu povo, pois as diferenças eram de ordem secundária e não representavam um avanço no sentido do progresso (cf. Ag 2,1-3); desse modo, era de se esperar uma nova intervenção de Deus (Ag 2,6-9). 61

Semelhança, diferença e superioridade ou, em outros termos, continuidade, ruptura e superação —esses são os três tipos de relação que se pode encontrar sempre em um verdadeiro cumprimento entre a nova realidade, que ele estabelece, e a preparação antiga, à qual ele põe um termo. Pode-se observar inúmeros exemplos disso no Novo Testamento.

Trabalho proposto: Procurar distinguir os três tipos de relação em Hb 8,1-9,28 ou ainda entre a Paixão e a Ressurreição de Jesus, por um lado, e a história de Abel (Gn 4; cf. Hb 11,4; 12,24), o sacrifício de Abraão (Gn 22; cf. Hb 11,17-19) ou a história de José (Gn 37;42), por outro lado; fazer o mesmo entre a igreja cristã (1 Pd 2,5-10) e o Templo de Salomão (IRs 5,16-6,38), e assim por diante.

pois que Cristo sentou-se no trono de Deus, este não constitui mais para os crentes um lugar do qual seria perigoso se aproximar (cf. Is 6,1-5; Ex 19,21): aliás, tornou-se "trono da graça" (Hb 4,16), pois Cristo é nosso irmão, que conhece por experiência própria a nossa si­ tuação de fraqueza e está aí para nos ajudar.

a. Para desenvolver esse segundo tema, o autor apresenta um definição de "todo sumo sacerdote" (5,1-4), mostrando em seguida a sua aplicação a Cristo (5,5-10). Não se trata de uma definição comple­ ta: ela deixa de lado o aspecto da autoridade, que já foi mencionado em 3,1-6, para insistir unicamente no aspecto da solidariedade. O sumo sacerdote é "tirado do meio dos homens" e "é constituído em favor dos homens em suas relações com Deus” (5,1). É nessa ótica que o autor fala da oferta de sacrifícios, discernindo nas prescrições do antigo ritual o indício de uma profunda solidariedade entre o sumo sa­ cerdote e o povo. 0 sumo sacerdote pertence à mesma raça, com suas fraquezas e seus pecados. A Bíblia atesta isso, pois prescreve ao sumo sacerdote "oferecer sacrifícios tanto pelos pecados do povo quanto pelos seus próprios" (5,3; cf. Lv 9,7-8; 16,6.11). É ainda nessa ótica que o autor recorda a necessidade de um chamado de Deus (5,4): nin­ guém se torna sumo sacerdote por si mesmo, elevando-se orgulhosa­ mente acima dos outros homens (cf. Nm 16-17); ao contrário, o aces­ so ào sacerdócio exige uma atitude de humildade perante Deus, atitu­ de através da qual o sacerdote permanece unido aos outros homens.

Na aplicação disso s Cristo (5,5-10), este último ponto é logo retomndo, segundo a técnica do desenvolvimento concêntrico. Cristo

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mostrou-se solidário com os homens, pois assumiu uma atitude de hu­ mildade: "ele não se glorificou a si mesmo", como diz literalmente o autor (as traduções geralmente se afastam um pouco do texto grego): foi Deus, seu Pai, que o constituiu sumo sacerdote, como testemunha a Escritura (Hb 5,6 == Si 110,4). Em seguida, o autor descreve (Hb 5,78) de modo mais preciso o caminho de humildade e solidariedade hu­ mana que conduziu Cristo ao sacerdócio. Trata-se de uma pungente evocação da Paixão de Cristo, que faz pensar, especialmente, em sua oração no Getsêmani (Mt 26,36-44 e paralelos), bem como em seus grandes gritos na cruz (Mt 27,46.50; Mc 15,33.37). 0 texto mostra que Cristo verdadeiramente compartilhou até as últimas consequên­ cias a nossa condição humana, com tudo o que ela comporta de sofri­ mento e infelicidade. Diante da angústia de uma morte iminente, ele ora, suplica, grita e chora (5,7). Ele está verdadeiramente "cercado de fraqueza" (cf. 5,2) e sua situação, portanto, corresponde à situação que "todo sumo sacerdote" (5,1) deve aceitar para tornar-se capaz de verdadeira compaixão.

b. Mas o papel do sumo sacerdote não consiste simplesmente em assumir sua parte de. miséria humana. Consiste sobretudo em transformar essa situação por meio de uma oferenda de sacrifício. E esse aspecto de oferenda não falta no caso de Cristo, da mesma forma que a transformação operada: Cristo "apresentou" e "foi atendido". 0 que apresentou ele? "Apresentou pedidos e súplicas, com vee­ mente clamor e lágrimas, àquele que o podia salvar da morte" (5,7). Os dramáticos acontecimentos que colocavam em jogo a vida de Je­ sus — e, com ela, toda a sua obra e a própria revelação de sua pessoa (cf. Mt 27,40) — transformaram-se em matéria de uma oferenda, por­ que foram enfrentados em intensa oração. 0 autor não especifica o objeto dessas preces, mas pode-se compreender que se tratava de subverter o curso dos acontecimentos, triunfando sobre a morte. As preces de Jesus foram veementes, fazendo-se acompanhar de gritos, mas não tomaram a forma de um ultimato imposto a Deus. Revelou-se e se manteve como autêntica prece, peneirada de "submissão" (é a úl­ tima palavra do versículo 7, que corresponde ao que a Bíblia chama "temor de Deus” ). Assim, essa prece deixou a porta aberta para a ini­ ciativa divina. E é por isso que ela pôde ser atendida, como o foi efeti­ vamente. A oferenda de Cristo agradou ao Pai e o curso dos aconteci­ mentos foi transformado. Mas esse atendimento tomou forma paradoxal: foi morrendo que Cristo triunfou sobre a morte (cf. 2,14)1 0 acontecimento não foi mo­ dificado de fora, por uma intervenção divina miraculosa, mas sim de dentro, graças à adesão de Cristo à ação transformadora de Deus. A

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prece de Cristo em agonia foi um diálogo com o Pai que desembocou em união de vontades (cf. Mt 26,42) e na realização de obra comum (cf. Jo 16,30). O Pai atende o Filho, ao mesmo tempo que o Filho cum­ pre a vontade do Pai. O autor de Hebreus expressa esse mistério des­ crevendo a Paixão de dois modos diferentes, que, à primeira vista, po­ dem parecer incompatíveis, mas que na realidade são complementa­ res: ele a descreve ao mesmo tempo como uma súplica atendida e como uma dolorosa obediência. Cristo "apresentou súplicas" e “ foi atendido" (5,7), mas ao mesmo tempo "aprendeu a obediência pelo sofrimento" (5,8). Estamos diante de revelação extremamente profun­ da do mistério de Cristo, fonte de luz inesgotável para a vida de prece dos cristãos. c. A última frase desse texto (5,9-10) expressa o resultado da oferenda obediente de Cristo: ela faz dele o sumo sacerdote perfeito. Não houve somente transformação do acontecimento — que, ao invés de se configurar cOmo catástrofe, levou a um triunfo —, mas também, o que é ainda mais importante, no seio do acontecimento, a própria humanidade de Jesus foi transformada. Acolhendo o paroxismo do so­ frimento humano e abrindo esse sofrimento à ação de Deus, Cristo foi "levado à perfeição” (ainda voltaremos a esse termo) e tornou-se "princípio de salvação eterna” para todos aqueles que aceitam ser conduzidos por ele. Em outras palavras: tornou-se o perfeito mediador. E isso é perfeitamente compreensível, por pouco que se reflita naquilo que aconteceu: em sua Paixão, Cristo levou além de qualquer limite sua obediência ao Pai e sua solidariedade para com seus irmãos; as­ sim, ele levou sua relação com Deus e sua relação com os homens a uma perfeição insuperável, selando a união dessas duas relações no mais profundo de seu ser. E uma proclamação divina constata esse fa­ to: depois de sua Paixão, Cristo recebeu "de Deus o título de sumo sa­ cerdote, segundo a ordem de Melquisedec" (5,10). 0 oráculo profético do SI 110 encontrou assim o seu cumprimento. Pelo caminho da soli­ dariedade humilde, Cristo chegou ao sacerdócio. d. Assim o autor termina a primeira etapa de sua demonstração. Devemos reconhecer que foi uma demonstração convincente. Temos, porém, que observar novamente que, para desenvolvê-la bem, ele teve o cuidado de se restringir aos elementos essenciais. Em sua descrição do antigo sacerdócio (5,1-4), ele não inseriu nenhum pormenor con­ creto sobre o ritual de consagração do sumo sacerdote, contentandose com a expressãcrmais vaga possível: "todo sumo sacerdote ( . . . ) é constituído " (5,1). E, da mesma forma, absteve-se de precisar minú-

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cias sobre os sacrifícios, evitando especificar que os sacerdotes judeus ofereciam animais imolados. Além disso, como já ocorrera em 2,1 7-18, o autor insiste aqui na exigência que não era em absoluto destacada no Antigo Testamento: os laços que o sumo sacerdote deve ter com os outros homens. Como já constatamos (pp 14s), o antigo Testamento se preocupava muito mais em marcar as separações, com a idéia de assim assegurar melhor relação entre o sumo sacerdote e Deus (cf. Dt 32,9). A semelhança es­ tava implícita e era mesmo muito estreita: o sumo sacerdote era peca­ dor como todos os outros homens. Isso já fora constatado desde os tempos de Aarão (cf. Ex 32,1-4). Mas era conveniente ocultar esse de­ plorável estado de fato. Então, ao invés de falar de solidariedade e mi­ sericórdia como condições do sacerdócio, exigia-se muito mais a seve­ ridade contra os pecadores, a recusa de qualquer comprometimento com eles (Ex 32,25-29; Nm 25,6-13). Longe estava a idéia de indicar um caminho de humildade como via de acesso ao sacerdócio. Pelo contrário, os textos antigos compraziam-se em celebrar a extraordiná­ ria dignidade do eleito de Deus (Eclo 45,6-13; 50,5-11) e considera­ vam naturalmente a posição de sumo sacerdote como o ponto culmi­ nante de toda promoção. Para chegar a esse ponto, muitos ambiciosos não haviam recuado diante de nenhum meio (cf. 2Mc 4). No entanto, uma análise mais atenta dos textos bíblicos permitia discernir que a solidariedade com os homens era uma exigência para o exercício do sacerdócio e que o próprio Deus havia barrado o caminho aos orgulho­ sos (Nm 16-17). 0 autor de Hebreus releu os textos antigos à luz da Paixão de Cristo, descobrindo esses aspectos.

e. E desse modo o autor completou sua demonstração. Para re conhecer Cristo como sumo sacerdote, como já vimos, ele havia parti­ do da situação atual de Cristo e dos cristãos. Agora, Cristo está junto de Deus e nos coloca em relação com ele, integrando-nos em seu pró­ prio corpo. Assim, ele é o nosso mediador e', mais do que ninguém, tem direito ao título de sumo sacerdote. Para ser plenamente válida, essa primeira demonstração deveria ser completada por uma reflexão sobre o acontecimento e confirmada por uma palavra explícita de Deus. Com efeito, não basta afirmar que Cristo agora é o nosso mediador; é conveniente mostrar como ele es­ tabeleceu essa mediação, pois o elemento mais importante do sacer­ dócio é precisamente esse, a ação pela qual o sumo sacerdote estabe­ lece a comunicação entre o povo e Deus (cf. 15s). Se nada desse tipo 5 - A mensagem da epístola aos hebreus

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fosse encontrado nos acontecimentos vividos por Cristo, então haveria lugar para dúvidas sobre sua qualidade de sumo sacerdote. Ademais, não se pode contentar em se limitar a esse domínio de reflexão pes­ soal. Caso contrário, a doutrina proposta não ultrapassaria o nível de uma interpretação humana da história da salvação e deixaria margem para discussão. No entanto, se ela puder recorrer ao testemunho explí­ cito da Escritura, então fica claro que se trata de revelação divina. A seção que acabamos de ver (4,15-5,10) contém todos esses elementos. Ela não mostra apenas que Cristo tornou-se plenamente solidário com as desgraças dos homens; ela mostra também que, devi­ do ao seu modo de enfrentar os acontecimentos, ele os transformou em oferenda ("apresentou"), que estabeleceu uma mediação ("princí­ pio de salvação'eterna"}. Por outro ladG, o autor encontrou nas Escritu­ ras um argumento de valor incontestável. Bastou tomar o salmo 110, reconhecido pela Igreja como salmo messiânico, que proclama a glori­ ficação de Cristo (cf. Mt 22,44; 26,64; etc.), e, nesse salmo, passar do versículo 1 (citado em Hb 1,13) ao versículo 4, para mostrar que Cris­ to, entronizado à direita de Deus (SI 110,1), também foi proclamado sacerdote por Deus (SI 110,4). A experiência atual dos cristãos, que sabem estar unidos a Deus graças a Cristo glorificado; uma reflexão sobre os acontecimentos da Paixão, que leva a reconhecer que eles estabeleceram uma mediação; um testemunho solene da Palavra de Deus no SI 110 — essas são, em Hebreus, as três bases da demonstração do sacerdócio de Cristo. E não há como censurar essa demonstração por falta de solidez!

Trabalho sugerido 1. Comparar a descrição do sumo sacerdote em Hb 5,1-4 com os tex­ tos do Antigo Testamento, como Dt 33,8-11 e Ecio 45,6-32. Notar os elementos comuns, as diferenças de ênfase, os aspectos omiti­ dos e os aspectos novos. Procurar compreender e explicar essas di­ versas relações. 2. Comparar a descrição do sumo sacerdote em Hb 5,1-4 com sua aplicação a Cristo em 5,5-10. Notar inicialmente as correspondên­ cias; depois, observar os pontos nos quais a aplicação difere da des­ crição. Procurar avaliar o alcance das correspondências e o alcance das diferenças. 06

6. UM SACERDÓCIO DIFERENTE

(ler Hb 7,1-28)

a. Perfeitamente consciente das três dimensões do cumprimen to das escrituras, o autor de Hebreus prossegue sua exposição numaterceira parte (5,11-10,39), na qual mostra que o sacerdócio de Cristo é muito diferente do antigo sacerdócio, que já se encontra superado. Esse é um ponto de vista novo, que não havia se expressado explicita­ mente na segunda parte (3,1-5,10).

Na seção anterior (4,15-5,10), quando citou a proclamação divi­ na do SI 110,4, o autor tomou-a globalmente, servindo-se dela para demonstrar que Cristo foi nomeado sacerdote por Deus, como Aarão (5,4-5). Agora, em 7,1-28, ele retoma o mesmo texto para submetê-lo a análise minuciosa, servindo-se dele para provar que Cristo é sacerdo­ te de modo diferente do modo de Aarão. Com efeito, o salmo diz: "se­ gundo a ordem de Melquisedec” . O que significa tal especificação? O autor descobre seu sentido remontando ao texto de Gn 14,18-20, re­ lativo a Melquisedec. Na verdade, ele não comenta esses versículos por si mesmos. Sua abordagem consiste em colocar em contato, sem dizê-lo de imediato, o episódio antigo, o oráculo do salmo e a posição atual de Cristo glorificado. Desse modo, ele descobre que o texto de Gn 14 dá uma descri­ ção de Melquisedec que o torna, precedentemente, semelhante ao Cristo glorificado. Efetivamente, esse texto apresenta Melquisedec como sacerdote "sem pai, sem mãe, sem genealogia". O fato é estra­ nho, pois, no Antigo Testamento, a origem familiar tinha importância decisiva para o sacerdócio (cf. Esd 2,62). Mas o texto de Gn 14 tam­ bém não fala do nascimento de Melquisedec nem de sua morte, não lhe dando assim limites no tempo. Desse modo, evoca a figura de um sacerdote que participaria da eternidade divina e seria sacerdote para sempre; em suma, um sacerdote que seria ao mesmo tempo o Filho de Deus (7,1-3). Ausência de genealogia sacerdotal e perpetuidade do sacerdócio — esses são os dois traços que caracterizam o sacerdócio "segundo a ordem de Melquisedec". O autor retornará incessante­ mente a esse ponto ao longo desta seção (no que se refere à primeira característica, cf. 7,5-6.13-14.1 6a; no que se refere à segunda, cf. 7,8.1 6b-17,23-25.28). Além disso, outros dados do texto de Gn 14 permitem mostrar que Melquisedec encontra-se em situação de superioridade em rela­ ção a Abraão e, portanto, também em relação aos sacerdotes judeus, descendentes de Abraão (7,4-10). 67

Com base nessa análise de Gn 14, o autor minou a tradicional convicção dos judeus, que atribuíam ao sacerdócio levítico o mais alto valor. Efetivamente, ele mostrou que, antes mesmo de falar do nasci­ mento de Levi, a Bíblia já havia esboçado a figura de um sacerdote di­ ferente e superior.

b. O autor passa então para o oráculo de SI 110,4. Mas, des vez, assume claramente posição ofensiva em relação às antigas insti­ tuições, ao sacerdócio judeu e à Lei de Moisés. Esse parágrafo de Hebreus apresenta muitas dificuldades. No entanto, o seu argumento básico é simples: o autor observa que, proclamando de modo profético o sacerdócio perpétuo de um sacerdote diferente — que, evidentemen­ te, tomaria c lugar do,s sacerdotes levitas —, o oráculo do salmo revela o caráter provisório e imperfeito do antigo sacerdócio. Desse modo, todo o edifício das antigas instituições fica fadado à ruína, pois o sa­ cerdócio constituía a sua viga-mestra (7,12). Assim, de um lado temos a abolição da "prescrição anterior, porque era fraca e sem proveito" e de outro lado a introdução de "uma esperança melhor", constituída por um sacerdócio plenamente válido (7,18-19).

Para desenvolver seu argumento, o autor levanta a questão do valor da consagração sacerdotal no Antigo Testamento. E é nesse pon­ to que uma dificuldade de vocabulário vem complicar as coisas para o leitor moderno. Na tradução grega do Antigo Testamento, os ritos prescritos para conferir o sacerdócio não são chamados "consagra­ ção” dos sacerdotes, nem "ordenação", mas sim "aperfeiçoamento" (teleiosis), isto é, "ação que torna perfeito", "ação que dá a perfeição". E nosso autor considera que a palavra foi muito bem escolhida, pois uma verdadeira consagração sacerdotal deve transformar profunda­ mente aquele que a recebe, de tal modo que nada nele possa desgos­ tar a Deus. É isso o que exige o seu papel de mediador. Assim, a con­ sagração sacerdotal deve dar a perfeição. É disso que depende a posi­ ção do sacerdote junto a Deus e sua capacidade de intervenção em fa­ vor do povo. Ora, anunciando implicitamente a destituição do antigo sacerdó­ cio, o oráculo do salmo permite concluir que, no Antigo Testamento, a consagração sacerdotal não merecia esse nome. Não sendo verdadei­ ramente uma "ação que;dá a perfeição", ela não assegurava ao sacer­ dote uma boa relação com Deus. Não sendo assim. Deus não teria ne­ nhuma razão para suscitar novo tipo de sacerdote (7,11). E Deus sus­ citou (a mesma palavra grega significa também "ressuscitar") um sa­ 68

cerdote totalmente diferente, que não é da tribo sacerdotal de Levi, mas sim da tribo não-sacerdotal de Judá (7,13-14). E que, além disso, não recebeu o sacerdócio por sucessão hereditária, mas sim graças à transformação glorificadora de sua ressurreição (7,16).

A frase de Hb 7,28 nos dá oportunidade para uma observação que também vale para as outras seções da terceira parte. Pode-se ob­ servar que, para criticar o sacerdócio do Antigo Testamento, o autor se apoia sobre o próprio Antigo Testamento. Assim, se ele nega o valor do Antigo Testamento de um determinado ponto de vista, ele reconhece um valor de outro ponto de vista: ou seja, ele reconhece o seu valor pro­ fético e nega o seu valor de instituição. 0 que ele mostra é que o Antigo Testamento como profecia anuncia a revogação do Antigo Testamento como Lei. Ou, em outros termos, mostra que o Antigo Testamento como revelação prediz o fim do Antigo Testamento como instituição. É exatamente essa a posição de são Paulo, tal como ele a expressou, por exemplo, em Rm 3,21: "Agora, porém, independentemente da Lei (fim do Antigo Testamento como instituição), se manifestou a justiça de Deus, testemunha peta Lei e pelos profetas (valor do Antigo Testamen­ to como revelação)." Essa posição está inteiramente dentro da lógica do "cumprimento" (cf. o quadro sobre o cumprimento na p.61).

c. Garantido, no salmo, por um juramento de Deus, o seu sacer dócio é incontestavelmente superior ao dos sacerdotes judeus (7,2022): trata-se de um sacerdócio perpétuo — “ Cristo, uma vez ressusci­ tado dentre os mortos, já não morre" (Rm 6,9) —, ao passo que o dos sacerdotes judeus era limitado pela morte (Hb 7,23-25). Assim, fica claro que a posição de Cristo como sacerdote, tal como é proclamada pelo salmo, é muito superior à dos sumos sacerdotes judeus. Estes úl­ timos continuavam sendo homens mortais, imperfeitos e pecadores (7,28). As cerimônias do seu “ aperfeiçoamento" não mudavam em nada essa situação: como não tinham nenhuma eficácia (7,18), elas portanto não os dispensavam de recomeçar indefrnidamente as suas oferendas (7,27). 0 oráculo do satmo, ao contrário, coloca diante de nós a figura de um sacerdote verdadeiramente agraciado por Deus "para sempre". É nele que se realiza o que a Bíblia esboçava ao falar de Melquisedec: um sacerdote que é o Filho de Deus e que, desse mo­ do, tem com Deus a relação mais íntima que se possa imaginar. E sua Consagração não foi ineficaz. Ela foi verdadeiramente uma "ação que torna perfeito". Essa é a conclusão dessa seção (7,28). Ela pode ser parafraseada nos seguintes termos: "Enquanto a Lei de Moisés esta­ belecia como sumos sacerdotes homens que permaneciam deficien69

tes, o oráculo do SI 110 estabelece como sumo sacerdote um homem que é ao mesmo tempo Filho de Deus. Esse homem foi consagrado sumo sacerdote para a eternidade por meio de úma ação que verdadei­ ramente o transformou, dando-lhe a perfeição." No fim do versículo 27, o autor diz brevemente em que consistiu essa ação transformado­ ra, mas essas poucas palavras não bastam: seu papel é apenas o de preparar a seção seguinte (8,1-9,28).

7. O SACRIFÍCIO QUE TORNA PERFEITO( le r H b

8 e 9)

Retomando a afirmação final do capítulo 7, a seção central (8,19,28) nos convida a examinar o caminho que Cristo seguiu para chegar à sua posição atual de sumo sacerdote pela graça de Deus. Esse cami­ nho é o de' uma oferenda sacrificai de um tipo inteiramente novo, gra­ ças à qual Cristo foi verdadeiramente "tornado perfeito". Transforma­ ção pessoal, oferenda efetuada, caminho seguido — eis três modos di­ ferentes de expressar o que se realizou num acontecimento único, a Paixão de Cristo. a. Ao longo da segunda parte (cf. 5,1 -10), o autor já havia falad disso, mas numa perspectiva de continuidade com o antigo sacerdócio e, portanto, sem destacar explicitamente as diferenças. Agora, porém, ele retoma o tema, advertindo logo de saída os seus ouvintes de que chegou ao "tema mais importante da nossa exposição" (8,1). E essa avaliação não é de surpreender, pois há muito tempo já notamos que, no esquema da mediação sacerdotal, o momento decisivo é o da fase ascendente (cf. p. 17), pois tudo depende de sua eficácia. Em 5,1-4, o autor contentou-se com expressões pouco precisas para evocar a atividade sacrifical de "todo sumo sacerdote". Tais ex­ pressões permitiram-lhe destacar a semelhança com o mistério de Cristo, que também fez sua oferenda ("apresentou" — 5,7). Agora, po­ rém, ele entra nos pormenores, para fazer com que apareçam os con­ trastes. 0 "mistério" de Cristo é "bem melhor" do que o antigo culto sacrificial (8,6). 0 autor examina sucessivamente: a) o nível em que se efetuava o antigo culto (8,4-5); b) a aliança que a ele estava ligada (8,7.13); c) a organização concreta desse culto (9^1-10). E então, em ordem inversa, opõe às antigas instituições: c) o desdobramento do sacrifício de Cristo (9,11-14); b) a fundação da nova aliança (9,1 5-17); a) o nível atingido por Cristo (9,24-28). Note-se que as duas subdivisões rélativas ao tema da aliança (b e b) evocam ao mesmo tempo a antiga e a nova aliança, sendo a pri­ meira subdivisão (8,7-13) numa perspectiva de oposição e a segunda subdivisão (9,15-23) em uma perspectiva de semelhança. 70

b. As subdivisões mais significativas são as do centro (c: 9,1-10 — c: 9,11-14), pois tratam do tema principal: a própria atividade sacrificial. 0 autor recorda o antigo sistema de separações rituais que nós já descrevemos (pp. 13s). Um lugar sagrado foi constituído, composto de uma parte santa, a ''primeira tenda" (9,2), e uma parte santíssima ("Santo dos Santos" — 9,3), considerada como a morada de Deus ou "santuário". 0 povo não é admitido em nenhuma das duas partes, pois não tem a "santidade" requerida para tanto. Os sacerdotes podem en­ trar na "primeira tenda" (9,6), que é como que uma via de acesso ao santuário, mas não podem entrar neste. 0 único que tem sua entrada autorizada no santuário é o sumo sacerdote, devido à sua consagração especial, mas até mesmo a ele são impostas severas restrições: ele deve se limitar a entrar apenas uma vez por ano e essa entrada é con­ dicionada a uma oferenda sacrificial (9,7). A cerimônia à qual o autor alude é a do Dia das Expiações (o Yom Kippur — Lv 16), que constitui o ponto culminante da liturgia judaica.

A questão que se coloca é a relativa ao valor de mediação que essa liturgia solene pode possuir. Com efeito, é disso que depende a avaliação de todo o sistema. Se o sistema estabelece uma relação au­ têntica com Deus, então ele é excelente. Em caso contrário, porém, re­ presenta apenas uma solução temporária, que se deve tratar de aban­ donar logo que se encontrar outra solução melhor. 0 diagnóstico do autor é implacável: a antiga liturgia era incapaz de estabelecer uma mediação. E isso é atestado pelas próprias prescri­ ções do ritual, pois, tanto antes como depois do sacrifício, elas exigem a manutenção de todas as separações. Deve-se notar que essas pres­ crições, formuladas na Bíblia, fazem parte do texto inspirado. Assim, é o Espírito Santo em pessoa que, através delas, revela que a antiga li­ turgia não era suficiente (9,8). Ela;se chocava com um impasse. De fa­ to, não era na morada de Deus que entrava o sumo sacerdote judeu, mas em uma construção humana, material (cf. 9,1.24). E Deus não ha­ bita as construções humanas (cf. At 7,48; 17*,24).:ilnfelizmente, a "pri­ meira tenda" não podia dar acesso a outra coisa, pois ela própria era de fabricação humana. Impõe-se uma conclusão: "o caminho do san­ tuário não está aberto enqüanto existir a primeira tenda" (9,8). c. 0 autor encontra a causa profunda dessa situação sem saída na natureza dos sacrifícios oferecidos (9,9). Mesmo que o verdadeiro

caminho fosse conhecido, ninguém podería tê-lo tomado para se apro­ ximar de Deus, porque não havia sacrifícios dignos de serem apresen­ tados a Deus: e não é caminhando que se avança até Deus, mas ofere­ cendo. 71

É muito significativa a crítica que o autor formula em relação aos antigos sacrifícios. Ela abre uma perspectiva inesperada no que se re­ fere ao objetivo da oferenda sacrificial. Espontaneamente, nós conce­ bemos essa oferenda como meio de agradar a Deus e atrair suas boas graças. De alguma forma, nós procuramos fazer com que Deus mude de atitude para conosco. Mas o autor chama a assumir a perspectiva inversa: ele mostra que o efeito do sacrifício deve ser muito mais transformar aquele que oferece do que aquele a quem é oferecido. As antigas oferendas rituais careciam de valor justamente porque eram "sem eficácia para aperfeiçoar a consciência de quem presta o cu lto " (9,9). Elas não passavam de "ritos humanos" (literalmente, "ritos de carne") associados a todo um sistema de observâncias relativas aos alimentos, às bebidas e às abluções (9,10).

YOM KIPPUR

Desconhecida antes do Exílio, essa festa iria se tornar; antes da era cristã (e ainda nos tempos atuais), a mais importante das festas judaicas.Ela é por vezes chamada simplesmente de "O Dia", ou ainda "o dia do jejum " ou “o dia do perdão". Nesse dia, uma única vez cada ano, o sumo sacerdote penetrava na parte mais sagrada do Templo, o "Santo dos Santos", local da pre­ sença de Deus, da primeira vez com o sangue de um novilho, por seus próprios pecados, e da segunda vez com o sangue de um bode, pelos pecados do povo (cf. Lv 16). Nesse "Dia", pela mediação do sangue oferecido pelo sumo sacerdote, o povo tinha a certeza de que seus pe­ cados estavam perdoados. cp

Ora, o que o homem precisa para poder entrar em contato com Deus é de profunda transformação de seu ser, que aperfeiçoe sua consciência. E, nesse nível, os antigos ritos eram completamente inefi­ cazes. Mais adiante, o autor completa seu pensamento (10,4-6): ofe­ rendas de animais imolados, os antigos sacrifícios não podiam realizar a mediação. Com efeito, que relação podería haver entre o sangue de um animal morto e a consciência de um homem? "É impossível que o sangue de touros e bodes elimine os pecados” (10,4). Por outro lado, que possibilidade de comunhão pessoal pode haver entre um animal morto e o Deus vivo? 0 Antigo Testamento já havia manifestado várias vezes o desagrado de Deus com esse tipo de culto (cf. Hb 10,5-7 = SI

40,7-9). Desse modo, não se estabelecia contato nem de um lado, nem de outro. Por fim, o antigo sistema permanecia no estágio das se­ parações: separação entre o povo e o sacerdote, separação entre o sa­ cerdote e a vítima imolada, separação entre a vítima e Deus. Essas se­ parações eram necessárias porque o sacerdote não podia se oferecer a si mesmo a Deus: pecador, ele era ao mesmo tempo indigno e incapaz disso. 0 resultado é que não se estabelecia nenhuma mediação. O anti­ go culto permanecia necessariamente confinado a um nível figurativo e terreno, como observa o autor na primeira subdivisão (8,5). E a alian­ ça que estava ligada a esse culto era necessariamente deficiente, como ele nota na segunda subdivisão (8,7-9). Não se fundando sobre um ato de mediação verdadeiramente válido, a antiga aliança sofria do mesmo mal que o culto: uma irremediável exterioridade. Assim, a si­ tuação religiosa dos homens do Antigo Testamento correspondia ao seguinte esquema: POVO | SACERDOTE | VÍTIMA | DEUS

d. Surge então Cristo (9,1 1), cujo sacrifício subverte completa mente a situação e, ao mesmo tempo, acaba com o antigo sistema das separações rituais. Aqui, o autor não repete a descrição do aconte­ cimento, que já fez em 5,7-8, mas formula o seu significado e mostra em que a oferenda de Cristo foi diferente dos antigos sacrifícios e os superou.

Ele afirma com um tom triunfal que Cristo realizou aquilo que ne­ nhum sumo sacerdote havia podido realizar: "Ele entrou uma vez por todas no Santuário" (9,12). Reservando para mais tarde os pormeno­ res relativos ao santuário (9,24), ele passa diretamente à definição dos dois meios que permitiram a Cristo penetrar nele (9,11-12). E esses meios são exatamente paralelos aos meios usados pelo antigo culto: 1) uma via de *acesso; 2) uma oferenda sacrificial. * A via de acesso é "uma tenda maior" (9,11), que substitui a "pri­ meira tenda” criticada em 9,8. E a oferenda sacrificial consiste no "próprio sangue” de Cristo (9,12), que substitui o "sangue de bodes e de novilhos", isto é, os sacrifícios que criticara em 9,9. 0 segundo meio é designado claramente, tendo seu valor expli­ cado mais minuciosamente na frase seguinte (9,14). No entanto, o pri­ meiro meio parece mais difícil de identificar. Alguns estudiosos pen­ sam que falando de "tenda" o autor quer se referir aos céus que Jesus atravessou (cf. 4,14). De conteúdo doutrinai muito pobre, essa inter­ 0

A niiiiitaiinm ila «pistola aoa habroua

73

pretação não permite compreender a importância excepcional que o autor atribui a esse meio de acesso: ele o coloca no próprio centro do texto (cf. p. 55) e o descreve de modo enfático. Por outro lado, essa in­ terpretação não se coaduna tampouco com o que acaba de ser dito em 9,8: a via de acesso ao santuário não estava aberta na época da pri­ meira tenda. 0 fato é que a idéia de que é preciso atravessar os céus para chegar a Deus já era idéia conhecida desde aquele tempo. Não teria sido necessário esperar a chegada de Cristo para descobri-la. Visto tratar-se do modo como o antigo Templo foi situado em re­ lação ao mistério de Cristo, é melhor procurar luz no que a tradição evangélica diz a respeito. Deve-se notar que a tradição evangélica já existia antes que nossos evangelhos chegassem à sua redação final. Assim, nosso autor^tão podería ignorá-la num ponto de importância como esse. Com efeito, o tema do novo Templo ocupa lugar de primei­ ro plano na tradição evangélica, onde se liga diretamente à morte e à ressurreição de Jesus (Mt 26,61; Mc 14,58; Jo 2,13-22). O modo como nosso autor fala de “ tenda maior e mais perfeita” corresponde grandemente ao que os evangelhos sugerem: por meio de sua morte e ressurreição, Jesus constituiu um novo Templo, não material, mas sim espiritual, que permite realmente aos crentes entrarem em contato com Deus. E são João explicita claramente aquilo que os outros ape­ nas dão a entender: esse novo Templo outra coisa não é do que o cor­ po de Cristo ressuscitado (Jo 2,21). E, assim, nós somos levados a profunda interpretação de nosso texto (Hb 9,11): para entrar na glória do Pai, o próprio Jesus, enquanto homem, precisou da transformação de sua humanidade. Essa transfor­ mação se efetuou na Paixão. E é por meio de sua humanidade trans­ formada que Cristo se colocou em contato com Deus. Essa humanida­ de, portanto, toma o lugar da- “ primeira tenda” , cujo papel era o de in­ troduzir ao santuário. Entretanto, a “ tenda maior e mais perfeita", evi­ dentemente, não constitui meio de acesso reservado para o uso exclu­ sivo de Cristo. Ao contrário, ela foi constituída para nós. Todos nós so­ mos convidados a entrar nela para encontrar a união com Deus (cf. 10,19-22). Mas foi Cristo quem estabeleceu essa tenda (cf. 3,3) e também foi ele quem inaugurou esse caminho (10,20).

e. A existência desse novo meio de acesso é inseparável da of renda sacrificial de Cristo. 0 autor o demonstra unindo estreitamente a “ tenda" ao “ sangue" na mesma construção gramatical, ao afirmar que “ ele atravessou uma tenda” e "entrou uma vez por todas no Santuá­ rio" com "o próprio sangue" (9,11-12). E, efetivamente, foi por meio rio suu oferenda a Deus que a humanidade de Jesus se transformou. 7-1

0 ESPÍRITO. "FOGO DO CÉU O Corpo de Cristo é um "corpo espiritual", o locai de um Pentecostes perpétuo. Em Cristo, a igreja é a igreja do Espirito Santo. A ce­ lebração eucarística, que constitui a igreja, está inteiramente estrutura­ da com base na epiclese, essa súplica que o sacerdote — e com e/e o povo — dirige a Deus para que ele envie o seu Espirito Santó "sobre nós e sobre estes dons", isto é, o pão e o vinho. E a primeira e original epi­ clese é a do Senhor ressuscitado "elevando-se" à direita do Pai e inter­ cedendo junto a e/e — é esse o sentido da Epístola aos Hebreus —para que ele envie o sopro e o fogo de Pentecostes à Igreja expectante. Na medida em que a comunhão eucarística nos integra ao Corpo de Cristo, nós entramos no lugar —o único sem obstáculos — em que a "vida na morte" se transforma em "vida no Espírito". É como cantam os que acabam de comungar: "Nós recebemos o Espírito celestial!”. Na litur­ gia siríaca, a eucaristia é chamada "espírito e fogo". Viver em Cristo significa viver no Espírito e do Espírito, o "Espírito vivificante", (personi­ ficação) da Vida mais forte do que a morte, no qual devemos respirar, amar e conhecer, pacificar e unificar nossa existência, todas as nossas faculdades e até os nossos sentidos. Nessa perspectiva, "vida espiri­ tual" não significa outra coisa do que "vida no Espírito Santo". E é todo o nosso ser, até mesmo em sua forma corporal, que o Sopro deve vivificar.

(CLEMENT, O., La Douloureuse Joie, pp. 5-6). Essa oferenda realizou aquilo que os antigos sacrifícios eram incapazes de efetuar (cf. 9,9). Ela tornou Cristo "perfeito” (cf. 7,28; 5,9; 2,10), de modo que sua humanidade tornou-se a "tenda maior e mais perfeita", que põe em contato com Deus. 5,7, o autor descreveu a oferenda de Cristo dizendo que ele "apresentou pedidos e súplicas ‘ . agora, dando um passo aâiante, ele diz em 9,14 que Cristo "se ofereceu a si mesmo a Deus". Trata-se de forma nova, mas muito exata, de expressar a realidade profunda do acontecimento evocado em 5,7-8: em sua prece suplicante, Jesus abriu todo o seu ser de homem à ação transformadora de Deus e acei­ tou aprender, por meio de seus sofrimentos, a obediência. E assim ele "se ofereceu a si mesmo a Deus” e foi "levado à perfeição". Nele a hu­ manidade deformada pelo pecado transformou-se em nova humanida­ de, inteiramente dócil a Deus e cheia de inusitada misericórdia para com os homens. 75

É evidente o contraste com os antigos sacrifícios. Passa-se de um culto ritual, exterior, separado da vida, a uma oferenda pessoal, to­ tal, que se realiza nos dramáticos acontecimentos da própria existên­ cia. Necessária no caso dos sacerdotes judeus, a distinção entre o sa­ cerdote e a vítima é abolida na oferenda de Cristo, que foi ao mesmo tempo sacerdote e vítima, pois se ofereceu a si mesmo. E como é que isso foi possível? A essa questão, na densa frase de 9,14, o autor ofe­ rece dupla resposta: Cristo pôde se oferecer a si mesmo porque era digno de ser oferecido, pois não tinha "mancha", e porque era capaz de se oferecer, "por um espírito eterno” . Diferentemente dos antigos sacerdotes, Jesus era absolutamente isento de qualquer pecado e de qualquer cumplicidade com o mal (cf. 4,15): ele era "santo, inocente, imaculado" (7,26). Assim, podia se apresentar a Deus sem se arriscar a desagradá-lo. Ademais, o Espírito Santo de que estava tomado (Lc 4,1) o tornava capaz de generosidade total. Em uma intensa prece (Hb 5,7-8), Jesus deixou que o Espírito de Deus penetrasse profundamen­ te em sua existência humana, inclusiveem sua trágica morte, trans­ formando tudo em oferenda perfeita. Esse aspecto do acontecimento é captado por uma prece da missa (antes da comunhão), que recorda que foi "com o poder do Espírito Santo" que Cristo deu, por sua morte, a vida ao mundo. A propósito disso, é interessante destacar que, na oferenda de Cristo, o Espírito Santo preenche o papel que era atribuído ao "fogo do çéu" nos antigos sacrifícios (Lv 9,24; 1Rs 18,38; 2Cr 7,1; 2Mc 1,22; 2,10). E, de fato, o verdadeiro "fogo do céu" outro não é senão o Espí­ rito Santo, único capaz de realizar a transformação sacrificial. Mas, para que ele a realize, é preciso que sua ação seja acolhida na oração e na docilidade generosa (cf. Hb 5,7-8). As novas Orações Eucarísticas têm o mérito de aplicar essa verdade à vida cristã, especialmente a III Oração Eucarística, na qual pedimos "que o Espírito Santo faça de nós uma eterna oferenda" à glória de Deus. E, evidentemente, é nos fazen­ do arder de caridade com Cristo que o Espírito Santo nos transforma em um sacrifício que se eleva para Deus.

f. A oferenda de Cristo a Deus, com efeito, consistiu em um a de amor extremo (cf. Jo 13,1; Hb 2,14-18; 4,15-16). Não foi por si mesmo, mas sim por nós, que Cristo aceitou aprender "a obediência pelo sofrimento". Por si mesmo, ele não tinha necessidade dessa transformação dolorosa; ele submeteu-se a ela "embora fosse Filho" (5,8). E, tendo-a aceito por nós, ele está em condições de nos transmi­ ti-la. Se nós aderimos a ele na fé, seu sangue "há de purificar a nossa consciência", permitindo-nos então prestar "culto ao Deus vivo" (9,14). 76

Em virtude desse fato, depois de sua Paixão, Cristo tornou-se "mediador de uma nova aliança” (9,1 5). Jeremias, que havia predito a nova aliança (Jr 31,31-34; Hb 8,8-12), não pensara em explicitar de que modo ela seria fundada. Mas o autor de Hebreus observa que, se­ gundo o Antigo Testamento (Ex 24,3-8; Hb 9,18-21), uma aliança en­ tre Deus e os homens se funda sobre um sacrifício de sangue, mas que, por outro lado, uma nova aliança exige um sacrifício de novo tipo (Hb 8,6). O acontecimento do Calvário é apresentado como o cumpri­ mento dessa exigência (9,15-17). E, ao mesmo tempo, permite com­ preender a sua razão profunda: o homem pecador necessitava de com­ pleta refundição de seu ser, o que só podia se realizar através de sua morte. Assim, era preciso que a morte tomasse sentido positivo, ser­ vindo para estabelecer nova relação entre o homem e Deus, bem como nova solidariedade entre os homens. E foi isso ò que realizou a morte de Cristo, pois ela constituiu uma oferenda pessoal perfeita. Ela realizou definitivamente aquilo que o culto da primeira alian­ ça só podia esboçar. Ela superou a distância que separava o homem de Deus, transportando a humanidade de Cristo para o nível celeste e in­ troduzindo-a para sempre na intimidade de Deus (9,24-28).

8. UMA PERFEIÇÃO QUE SE TRANSMITE (ler Hb 10,1-8) Na última seção de sua grande exposição central, o autor desta­ ca a mudança completa de situação que a oferenda de Cristo acarreta para nós. Inicialmente, ele recorda (10,1-3) que a antiga Lei não tinha uma solução válida a propor para remediar a culpabilidade humana. Ela estava circunscrita a recomeçar indefinidamente as mesmas tenta­ tivas ineficazes de mediação. Nós já explicamos por que essas tentati­ vas não podiam ter êxito: consistindo em oferecer animais imolados, elas permaneciam obrigatoriamente exteriores ao homem (10,4‘) e ex­ teriores a Deus (10,5). Em lugar desse culto ritual, Cristo oferece gene­ rosamente ao Pai a sua total obediência pessoal: "Eis que eu vim para fazer a tua vontade" (10,9; cf. Jo 6,38; Lc 22,42). E tal oferenda é evi­ dentemente aceita por Deus, já que consiste em cumprir o que Deus quer e, longe de ser exterior ao homem, ela o toma inteiramente, pois parte do coração e vai até a "oferenda do corpo” (10,10). 0 resultado é que ela nos tira do impasse em que estávamos bloqueados. 0 obstá­ culo do pecado já não está obstruindo o nosso caminho. Cristo ofere­ ceu "um sacrifício único pelos pecados" (10,12) e esse sacrifício foi 77

eficaz: "somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo" (10,10). E, graças a essa oferenda perfeita, Deus pôde por fim realizar o seu projeto de restabelecer uma comunicação vivificante entre ele e nós (10,10; cf. 2Cor 5,18-19). Nesse aspecto, o autor destaca em frase sugestiva (10,14) uma nova diferença entre o sacerdócio de Cristo e o dos sumos sacerdotes judeus. Segundo o Antigo Testamento, quando um descendente de Aarão era ritualmente "levado à perfeição", isto é, consagrado sumo sacerdote, sua consagração valia apenas para si próprio. Ou seja, ele era o único habilitado a penetrar uma vez por ano no santuário (Hb 9,7); nenhuma outra pessoa era autorizada a acompanhá-lo, mesmo de longe (Lv 16,17). No caso de Cristo, pelo contrário, o sacrifício de consagração sacerdotal não vale somente para ele mesmo: ele vale ao mesmo tempo para todo o povo crente. Esse é o sentido da frase de 10,14. O autor, que em 5,9 já dissera que Cristo fora "levado à perfei­ ção" (ou "consagrado") por sua dolorosa oferenda, afirma em 10,14 que Cristo, "com esta única oferenda, levou à perfeição (ou "consa­ grou"), e para sempre, os que ele santifica". Assim, ao mesmo tempo em que apresenta um aspecto passivo (Cristo foi "levado à perfeição", recebeu o sacerdócio), a Paixão também apresenta um aspecto ativo: Cristo nos tornou perfeitos, nos transmitiu o sacerdócio. É perfeitamente compreensível a razão dessa novidade: a consagração sacerdo­ tal de Cristo não se efetuou, como a dos sumos sacerdotes judeus, por meio de um ritual de separação, mas sim por meio de um aconteci­ mento no qual ele levou ao extremo a sua solidariedade para conosco. Por conseguinte, a transformação obtida não podia se restringir so­ mente a ele, pois isso teria entrado em contradição com o próprio ato que a havia produzido: essa transformação tinha que incluir necessa­ riamente um dinamismo de transmissão. E o autor reconhece nessa transmissão da perfeição sacerdotal o cumprimento da nova aliança (10,1 5-18), que, segundo Jeremias, de­ via se caracterizar pela ação de Deus nos corações. A trágica história do Antigo Testamento havia feito com que se tomasse consciência ao mesmo tempo da necessidade de transformação dos corações e da in­ capacidade dos homens para mudar seus corações maus (Jr 18,11 12). Quando o coração é mau, as melhores leis não servem para nada. Mas como formar no homem um coração verdadeiramente fiel e gene­ roso, dócil a Deus e aberto para o amor fraternal? Deus havia prometi­ do sua intervenção para "pôr" a sua lei "nos seus corações" (Jr 31,33; Hb 10,16). Para ver com que profundidade o autor de Hebreus com­ preende a realização dessa promessa, devemos recordar aqui a descri­ ção que olo fez anteriormente do acontecimento do Calvário (Hb 5,77H

8; 10,5-9). Cristo Jesus aceitou submeter-se, em seu ser de homem, à necessária transformação. Ele enfrentou os sofrimentos que essa transformação implicava. Fazendo a vontade de Deus (10,7.9) até à imolação do seu próprio corpo (10,10), eie aprendeu por nós a obe­ diência (5,8). Sendo assim, passa a existir um novo homem, formado na perfeita obediência: ele tem a lei de Deus inscrita no mais profundo do seu ser. Existe um "novo coração” (Ez 36,26), totalmente unido a Deus e a seus irmãos. Esse coração, criado para nós (cf. SI 51,12), es­ tá à nossa disposição. Se aderimos a Cristo, ele é nosso. E então a pro­ fecia da nova aliança se realiza para nós: nós passamos a ter a lei de Deus inscrita em nossos corações.

9. A SITUAÇÃO DOS CRISTÃOS

(le r H b 1 0 ,1 9 -2 5 )

Concluída a exposição da parte central (7,1-10,18), o autor, a partir de 10,19, passa a examinar as suas consequências para a exis­ tência cristã. Inicialmente, ele descreve a situação religiosa dos cris­ tãos (10,19-21), para depois chamá-los a corresponder de pleno cora­ ção a ela (10,22-25). Suas palavras tomam espontaneamente um tom triunfal, pois os cristãos encontram-se agora em situação privilegiada: liberados dos entraves e das angústias que oprimiam as gerações an­ teriores, eles podem avançar com toda segurança pelo caminho que se abre diante deles: "Sendo assim, irmãos, temos a plena garantia para entrar no Santuário" (10,19).

a. Novidade estupefaciente: foram suprimidas as barreiras entr os cristãos e Deus, não existem mais separações! É total o contraste com a situação do Antigo Testamento, que só conhecia o sistema das separações rituais, cuja incapacidade o autor já demonstrou (7,1819a; 9,8-10; 10,1-4). A esperada santificação ficava fora do alcance nesse sistema, não se estabelecendo nenhuma mediação válida entre o povo e Deus. O único resultado efetivo desse sistema era o fortaleci­ mento das separações, como já. notamos (p. 73) com base no seguinte esquema:

POVO | SACERDOTE | VÍTIMA | DEUS Mas, com Cristo, tudo se modifica. Sua oferenda pessoal, perfeita aboliu todas as separações. Foi suprimida a separação antes existente entre a vítima imolada e Deus, pois Jesus é uma vítima "sem man­ cha", que acolheu com docilidade perfeita a ação transformadora do 79

0 VERDADEIRO SACRIFÍCIO

Quem seria suficientemente louco para crer que Deus necessita dos sacrifícios que lhe são oferecidos? O culto que se presta a Deus be­ neficia o homem e não a Deus. Não é a fonte que se beneficia quando dela se bebe, nem a luz quando a vemos. Não há senão um modo de compreender os sacrifícios oferecidos por nossos pais: eles eram o sina! daquilo que se cumpria em nós mesmos, isto é, nossa adesão a Deus. O sacrifício visível é o sacramento ou sinal sagrado do sacrifício invisível. O verdadeiro sacrifício é tudo aquilo que fazemos para estar uni­ dos a Deus, para estar em comunhão com ele. O próprio homem, quan­ do consagrado ao nome de Deust e vivendo para Deus, é um sacrifício. E também nosso corpó, quando, por Deus, nós o dominamos pela tempe­ rança, quando não nos oferecemos ao mal, é um sacrifício. ( . . . ) E a isso que nos conclama o apóstolo Paulo: "Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: esse é o vosso culto espiritual" (Rm 12,1-2). Daí deriva que todo o povo resgatado, isto é, a comunhão e a co­ munidade dos santos, é o sacrifício universal oferecido a Deus pelo sumo sacerdote, ele que, em sua Paixão, se ofereceu a si mesmo por nós, para que nos tornássemos o seu corpo. Foi sua condição de ho­ mem que ele ofereceu, é segundo essa condição humana que eie é me­ diador, é nela que eie é sacerdote, é nela que ele é sacrifício. Eis portanto o sacrifício dos cristãos: todos juntos, um só corpo em Cristo. E esse o mistério que a igreja celebra tão amiúde no sacra^ mento do altar, onde lhe é mostrado que, naquilo que eia oferece, é eia que está sendo oferecida.

(SANTO AGOSTINHO, Cidade de Deus, X, pp. 5-6 /extratos/.)

Espírito de Deus (9,14; 5,7-8). Foi suprimida a separação entre o culto e a vida: Cristo tomou em sua súplica toda a infelicidade humana e a transformou em oferenda (5,7-8). Foi suprimida a separação entre o sacerdote e a vítima: no sacrifício de Cristo, o sacerdote e a vítima são uma só pessoa, pois Cristo "se ofereceu a si mesmo" (9,14). E, por fim, foi suprimida a separação entre o sacerdote e o povo, pois o sa­ crifício de Cristo é um ato de identificação completa com seus irmãos (2,17), um ato que funda nova solidariedade, mais estreita do que nun­ ca, entre ele e seus irmãos (5,9). Cristo é um sacerdote que incluí o 80

povo em sua própria consagração (10,14). Em suma, por toda parte a cruz de Cristo (t) estabelece uma comunicação, desde o povo até Deus. Graças a ela, o esquema transforma-se completamente, passan­ do a ser assim representado: POVO + SACERDOTE + VÍTIMA + DEUS Eis a razão pela qual agora todos são chamados a se aproxima­ rem de Deus (10,22). Todos os crentes possuem esse direito, que, an­ tes, era reservado somente ao sumo sacerdote (9,7). E passam inclusi­ ve a gozar de privilégio ainda maior, pois são autorizados a entrar no verdadeiro santuário e não em uma construção humana (8,5; 9,24). E, ademais, o seu direito não é limitado, como óutrora o do sumo sacer­ dote, a apenas uma vez por ano (9,7): ele é válido para sempre.

b. Mas um ponto deve ficar claro: a mudança radical de situaçã deveu-se à mediação de Cristo e só se verifica para os homens e mu­ lheres que aceitam essa mediação. Quem imaginasse poder avançar no sentido de Deus por seus proprios meios e de modo individualista, estaria completamente iludido. A entrada no santuário só é possível "pelo sangue de Jesus" (10,19; cf. 9,12). Ela só se efetua pelo "caminho novo e vivo, que ele mesmo inaugurou" (10,20) e que outra coisa não é do que a sua hu­ manidade glorificada (cf. o que foi dito sobre "a tenda" na p. 79). E só se realiza sob sua guia, pois ele é o "sumo sacerdote" com autoridade "sobre a casa de Deus" (10,21; cf. 3,1-6). Por isso mesmo, a primeira condição fundamental para avançar pelo novo caminho não é o esforço humano, e sim a fé. O autor já ha­ via colocado essa perspectiva desde a primeira parte de seu sermão (2,1) e nela já havia insistido ao longo da segunda parte (3,7-4,14). Ele já havia apresentado o Cristo glorificado, primeiramente e acima de tu­ do, como "sumo sacerdote fiel" (3,1 -6; 4,14). Agora, depois da grande exposição central, é ainda a fé que ele cita em primeiro luaar_ convi­ dando seus ouvintes a se aproximarem de Deus "cheios de fé" (10,22). Com efeito, é a fé que nos faz aderir a Cristo mediador, abrin­ do-nos assim a possibilidade real de viver em comunhão com Deus. E, ao falar da fé, o autor alude aos sacramentos da fé, que a conduzem à sua plenitude: o batismo (10,22) e a eucaristia, "sangue" e "humani­ dade" de Cristo (10,19-20). Já não se trata de ritos no antigo sentido do termo, pois os sacramentos cristãos estão em estreita relação com a oferenda pessoal de Cristo. É apenas dela que os sacramentos tiram todo o seu valor, tornando-a presente e atuante na existência dos crentes, para que esta seja transformada. 81

À medida que a mediação de Cristo é o único caminho para a Vi­ da, afastar-se de Cristo constitui mal sem remédio. 0 autor já o havia dado a entender quando comentou o SI 95 (Hb 3,7-4,11), depois de­ clarou-o mais claramente antes de começar sua exposição central (cf. 6,4-6) e agora o repete em termos bastante vigorosos (10,26-31). Ou seja, Cristo obteve a nossa salvação por meio de seus sofrimentos e de sua morte. Aquele que, desprezando esse dom de Deus, retornar deliberadamente ao pecado nada mais terá diante de si do que "um julga­ mento tremendo" (10,17). A fé não é um jogo. Ela é o mais sério dos compromissos.

QUEM É SACERDOTE?

O católico pode ficar confuso ao ler estas páginas: no "sermão sa­ cerdotal", fafa-se do sacerdócio de Jesus e dos cristãos, mas não da­ quele dos sacerdotes. Antes de mais nada, vamos precisar o vocabulário, isso é neces­ sário porque nós temos apenas uma palavra para expressar duas pala­ vras diferentes em grego. Em resumo, poderiamos dizer o seguinte: * apenas um possui o sacerdócio (ou melhor, é saçerdote): Jesus; * todos participam desse sacerdócio único (todos são sacerdo­

tes); * alguns são sacerdotes. Jesus é o único mediador, o único "sumo sacerdote", o único a possuir o sacerdócio. Nele, todos os batizados participam de seu sacerdócio, ou seja, nele, todos podem se oferecer a Deus, fazer de sua vida cotidiana uma oferenda, vivê-la no reconhecimento de que essa vida é o mais belo presente que Deus lhes dá para que sirvam a seus irmãos (Hb 13,1516). Nesse ponto, católicos e protestantes partilham a mesma fé. Para que os cristãos possam ser englobados por esse sacrifício único de Cristo, cumprido de uma vez por todas, os católicos consideram ser necessário que a mediação única de Cristo seja tornada presente por homens que são somente sinais dela, "sacramentos” dessa media­ ção: os sacerdotes. Mas o sacramento do sacerdócio está a serviço do sacerdócio essencial, o único que durará eternamente, o dos batizados. E.C.

Obs.: Vaja VANHOYE, A., “ Sacerdoce Commun et Sacerdoce Ministérief", in Nouvefle Revue Thóoiooiaua, 1975, pp. 193-207.

R2

E também o mais fecundo. Para mostrar esse aspecto positivo com toda a amplitude desejável, o autor faz dele o tema de longa se­ ção (11,1-40), na qual ela percorre de ponta a ponta o Antigo Testa­ mento para mostrar que a fé se encontra na origem de tudo o que hou­ ve de válido na história religiosa da humanidade. c. A essa fé, o autor une estreitamente a esperança (10,23), pois a mensagem recebida não é somente revelação de uma verdade; ela é, ao mesmo tempo, promessa e convite. As dificuldades da existência cristã parecem constituir obstáculo à esperança; mas, na realidade, elas permitem que a esperança se fortaleça na perseverança {10,36; 12,1-13). A exemplo de Jesus (12,2-3), os cristãos são chamados a se deixarem educar por Deus através da "contradição", recebendo por meio disso a "santidade" divina que quer se transmitir (12,10). Assim, as provas não devem ser para os cristãos motivo de desânimo, mas, ao contrário, motivo de esperança muito mais fundado.

Com efeito, a perseverança diante das provas une os cristãos de modo real ao sacrifício de Cristo. Como Cristo, em sua Paixão, apren­ deu a obediência e realizou a vontade de Deus (5,8; 10,5-10), agora os cristãos, em suas provas, se submetem à ação transformadora de Deus (12,5-11) e cumprem a vontade de Deus (10,36). d. 0 sacrifício de Cristo apresenta ainda outro aspecto, o do amor fraterna! pelos homens. Esse aspecto também deve ser encon­

trado na existência cristã (10,24). O autor insiste nisso na última parte de sua pregação: "Não vos esqueçais da beneficência e da comunhão, porque são antes os sacrifícios que.agradam a Deus" (13,16; cf. 13,13).

Tu, que segues Cristo e o imitas, tu, que vives na Palavra de Deus, tu, que meditas sobre sua lei noite e dia, tu, que observas os seus man­ damentos, tu estás sempre no santuário e nunca sais dele. Não é em um lugar que se deve procurar o santuário, mas nos atos, na vida, nos costumes. Se eles são conforme os preceitos de Deus e se eles se cum­ prem segundo os seus desígnios, pouco importa que estejas em tua casa ou no fórum, pouco importa que estejas até mesmo no teatro: se tu serves ao Verbo de Deus, tu estás no santuário, não tenhas nenhuma dúvida,

(ORÍGENES, Homílias sobre o Levítico, XII, 4). 83

Como se vê, o culto cristão não se situa ao lado da vida, mas sim dentro da vida. Ele é transformação cristã da existência, transformação que se tornou possível pela união a Cristo e que é inseparável da contí­ nua atitude de reconhecimento para com Deus (13,15). Ele se realiza em comunidade de crentes, dócil a seus "dirigentes", que tornam pre­ sente nela a mediação de Cristo, sumo sacerdote fiel e misericordioso (cf. 13,7).

CONCLUSÃO Quanto mais refletimos sobre a epístola aos Hebreus, mais fica­ mos maravilhados com as riquezas que ela nos traz. O autor respondeu com extraordinária agudeza à questão que os cristãos se colocavam: a questão do sacerdócio.íSua resposta é plenamente positiva: Cristo é o nosso sacerdote. Mas não é resposta simplista. Longe de aplicar ao mistério de Cristo a idéia que se tinha do sacerdócio, tal como existia antes, ele aprofundou o seu sentido a ponto de renová-la completa­ mente. Desse modo, ele pode mostrar que Cristo não apenas possui o sacerdócio, mas também é o único sacerdote no sentido mais pleno da palavra, pois foi ele o único que abriu aos homens o caminho que leva a Deus e os une entre si. Cristo nos faz passar de um culto necessaria­ mente exterior e ineficaz, marginal em relação à vida, para a oferenda que toma toda a realidade de nossa existência e a transforma profun­ damente, na adesão filial a Deus e no devotamento fraternal. Roma, 8 de dezembro de 1976.

84

SUMARIO 7

I. PRIMEIROS

co ntato s

Aqui, descobrimos que não se trata de uma epístola, mas sim de um "sermão", dirigido a cristãos e inteira­ mente centrado no sacerdócio de Cristo. 13

II. 0 PROBLEMA DO SACERDÓCIO O autor reflete a partir daquilo que é conhecido por seus ouvintes, isto é, o sacerdócio de Israel. Levando-o ao seu cumprimento, Jesus o torna superado.

25

III. ESTRUTURA LITERÁRIA Esse sermão foi admiravelmente escrito, construído com arte consumada, mas com o uso de métodos que podem nos confundir. Observar esses métodos nos permite descobrir sua estrutura, ver em que as diversas partes se correspondem e captar sua mensagem. 0 en­ carte central permite ter uma visão global dessa cons­ trução.

51

IV. UM APROFUNDAMENTO DA FÉ E DA VIDA CRISTÃ Agora, já podemos ler essa homília com proveito — e sem dificuldades. Cada parágrafo do Caderno é um convite a estudar o texto, levando-nos até à contem­ plação.

p

.

" sermão para cristãos d eso rientados" — é assim que poderíatos cham ar esta " epístola de Paulo aos hebreus" que não é epis­ ola, nem de Paulo, nem aos hebreus! parece d ifícil: poucos cristãos ousam se arriscar a esse texto. J^as este Caderno pretende ju sta m e n te m o stra r que, com um oínim o de esforço , essa hom ília é fá c il de le r e, sobretudo, é de 7na grande riqueza: trata-se do único te xto do Novo Testamento p e nos apresenta o sacerdócio de Cristo. Ele nos deixa m aravilha­ i s com essa figura de Cristo, Filho de Deus e tota lm e n te um dos io s s o s , que, p o r m eio da oferta de sua vida, nos p o ssib ilita o acesP a Deus, ju n ta m e n te com nossos irm ãos. |fòerí Vanhoye, um desses especialistas que sabem ser simples, u s conduz, com m u ito sentido pedagógico, ao próprio seio da nensagem desse sermão.

014 E d iç õ e s P íiu lin a s