A Filosofia do Horror ou Os Paradoxos do Coração

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A Filosofia do Horror ou Os Paradoxos do Coração

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SUMARIO •'

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AGRADECIMENTOS

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INTRODUÇÃO

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Contexto

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Uma breve visão geral do gênero do horror · Uma filosofia do horror?

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1. A NATUREZA DO HORROR A definição de horror

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Biologias fantásticas e as estruturas das imagens de horror Resumo e conclusão

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2. METAFÍSICA E HORROR OU O RELACIONAMENTO COM AS FICÇÕES O medo de ficções: Sobre o paradoxo aqui referido e sua s9lução Identificação com o peraÕnàgàm?

3. ENREDOS DE HORROR

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Enredos de horror

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Alguns enredqs de horror característicos Horror e suspense O fantástico

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4. POR QUE O HORROR?

230 230 233 276 288

Por que o horror? O paradoxo do horror Horror e ideologia O horror hoje

ÍNDICE ·

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S em dúvida, meus ·p ais, Hughie e Evelyn Carroll, deram origem sem querer a este tratado quando me d isseram para não perder tempo e dinheiro com livros, revistas, revistas em quadrinhos, programas de TV e filmes de horror. Num a to final de provocação filial, eu, um homem de meia idade nascido no pós-gueiTa, decidi provar a .eles que aquele tempo todo me dedicara a algo proveitoso. Minha reflexão sobre o horror começou realmente a se a1ticular quando Annette Michelson e eu demos um curso sobre horror e ficção científica na Universidade de Nova York. Annette ministrava a metade do curso que se referia à ficção científica, ao passo que as partes mais pegajosas do terreno ficavam para mim. Annette foi, e continua sendo, muito útil no desenvolvimento de minha teori~. Sugeriu que organizasse minhas noções sobre biologias do horror em termos de fusão e fissão, e também me instou continuamente, diante ~de meu ceticismo em relação à atual teoria do cinema, a levar a sério o pat:"adoxo da ficção. Embora minhas soluções a suas questões possam não ser o que ela aguardava, espero que sejam pelo menos intrigantes. Anteriormente, dois filósofos - ambos viciados em horror - fortaleceram-me na convicção de que tratar desse assunto poderia ser interessante. Judith Tormey e eu

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AGRADECIMENTOS

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fizemos juntos uma divertida viagem ao México, abo~recendo todos os demais passageiros do carro com nossas histórias de monstros preferidas. JeffBlustein leu meus primeiros ensaios na teoria do horror com o rigor analítico e colTl o entusiasmo que só ' . um fã de horror pode ter.

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O falecido Monroe Beardsley também leu meus esforços nascentes no campo da teoria do horror. Disse não entender como eu podia me interessar por esse tipo de coisa. Mas, depois, discutiu minhas hipóteses apres~ntando contra-exemplos que só podem ser entendidos como esotéricos. Timidamente, explicou seu respeitável conhecimento na matéria dizendo que tivera de acompanhar os filhos pelo ciclo de fllmes de horror dos anos 50, e que se lembrava de alguns dos filmes (em detalhes impressionantes, eu diria). Meu interesse pelo horror foi aos poucos se convertendo em artigos acadêmicos, apresentados na Universidade do Sul da Califórnia, na Universidade de Warwick, no Museu da Imagem em Movimento, no LeMoyne College, na Universidade ~e C01·nell, na Universidade de Nova York e na Universidade de Iowa. Cada auditório fez comentários estimulantes - menção especial merecem os de: Stanley Cavell, Ed Leites, Karen Hansen, Richard Koszarski, Johnny Buchsbaum, Stuart Liebman, Allan Casebier,

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Jim Manley, Bruce Wilshire, Susan Bordo, o falecido Irving Thalberg j r., Stephen Melville, Mary Wiseman, Ken Olsen, Nick Sturgeon, Anthony Appiah, David Bathrick, Cynthia Baughman, Murray Smith, Dudley Andrew, Henry Jenkins, Kristin Thompson, ·Berenice Reynaud e Julian Hochberg. Boa parte da redação inicial deste livro teve início durante um ano sabático na Universidade Wesleyana. Discussões iniciais com Kent Bendall- um dos filósofos mais precisos e, no entanto, de imaginação mais aberta que tive o privilégio de conhecerderam-me importantes idéias para resolver o que chamo de paradoxo da ficção. Longas conversas com Chris Gauker, durante vários jantares extremamente agradáveis, ajudaram-me a esclarecer minha posição. Ken Taylor e, sobretudo, Philip Hallie, cujo trabalho pioneiro na filosofia do horror, em seu livro The paradox crnelty, serviu-me de modelo, ouviram as minhas teorias com uma atenção crítica generosa e sempre . ' encorajadora e iftstrutiva. Phil queria até ir comigo a vários filmes e depois discuti-los (um gesto de companhe!rismo irrestrito é algo que só quem trabalha com o gênero do horror pode perceber). . Michael Denning, Nancy Armstrong e Leonard Tennenhouse deram muitas sugestões proveitosas acerca de correspondências e ntre a minha pesquisa e os estudos literários contemporâneos. Betsy Traube, transcendendo sua aversão por meu assunto, fez várias recomendações pertinentes sobre a literatura antropológica a esse respeito. Khachig Tololyan, que, entre suas muitas realizações, dirige um dos maiores serviços de recortes de jotnal do mundo, manteve-me sempre em dia quanto ao tema. E Jay Wallace, que leu os rascunhos dos dois primeiros capítulos com enorme atenção, brindou-me com muitas críticas e sugestões. Em mais de uma oportunidade, Jay mostrou como eu poderia modificar judiciosamente minhas afirmações sem abandonar minhas posições. Tanto seu interesse genuíno quanto seus argumentos tiveram muita influência sobre este livro. Foi maravilhoso ter sido seu colega. Francis Dauer, Annette Bames, John Fisher, Dale Jamieson, George Wilson, Arthur Danto, George ·Dickie, John Morreall, Richard Moran, Teny Irwin, Laurent Stern, Paul Guyer, Alex Sesonske, Daniel Banes, Jennefer Robinson, Susan Feagin, Gary Iseminger, Roy Gordon e Myles Brand ouviram ou leram minhas hipóteses e fizeram comentários que achei importante levar em consideração. Joe Margolis, em várias conversas, mostrou-me a necessidade de fazer diversas distinções que e u ignorara, bem como indicou alguns autores cuja obra eu desconhecia. Richard Shusterman, depois de ler meu ensaio "A natureza do horror", alettou-me para a existência dos escritos seminais

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e mais avançados de Peter Lemarque acerca do mesmo tipo de teoria de objetos ficcionais ql.le eu estava tentando desenvolver. Tony Pipolo e Amy Taubin, tendo ambos visto e lido tudo, deram-me informações de "primeira mão" sobre cada romance, cada filme e cada yfdeo que eu esperava acomodar em minha teoria. Se a sensibilidade deles superou minhas fónnulas, espero, no entanto, que possam ver que algumas de suas intuiçOes influíram em minhas · descrições. David Bordwell, David Konstan e Peter Kivy leram o manuscrito inteiro. Cada um deles fez críticas estimulantes e sugestões úteis. David Bordwell mostrou-me que eu precisava tornar mais clara a distinç.ão entre a minha teoria e os modelos psicanalíticos hoje dominantes nas ciências humanas, bem como corrigir alguns (não eram tantos assim) de meus erros acerca da história do cinema. David Konsmn fez observações sentença por sentença, muitas das quais incorporei; suspeito que aquelas que deixei de lado ficaram por minha conta e risco. Peter Kivy fez não apenas a revisão do manuscrito como também muitos comentários filosóficos penetrantes sobre seu contelldo. No entanto, acima de tudo, é a Peter que devo, graças a seu trabalho na filosofia da música, a intuição da aplicabilidade, em geral, da teoria das emoções a questOes da filosofia da arte . •

Devo um agradecimento especial a William Genn~tnOr que podemos dizer ter sido o primeiro a pensar que este livro podia ser escrito. Durante uma conversa sobre outros assuntos,. ele indicou que "adoraria" (foi a palavra) uma prop~s~ ....minha de um livro . sobre a filosofia do horror. Se não fosse isso, eu não teria pensado no assunto. O resto é história (destino?). ~

Dediquei este livro a minha mulher, Sally Banes. Ela me acompanhou corajosamente em minhas muitas incursões a cinemas e teatros em todo o mundo no interesse da minha "pesquisa". Aguardou paCientemente enquanto eu examinava inúmeros mostruários de livros toda vez que ia a uma mercearia, a uma fanná.cia ou a uma loja de departamentos. Seu próprio trabalho sobre contos de fadas também me forneceu um complemento extremamente útil à teorização sobre o horror. Sally leu todos os rascunhos deste projeto e fez um comentário constante: gramatical .e lógico; estiHstico e conceituai. Se tal livro é um trabalho de amor, é também um trabalho de amantes. E tive a sorte de ter uma amante que quis adotar o meu projeto. Muita gente inteligente e talentosa me disse muita coisa. Se ainda houver imperfeições neste texto, é prova apenas de que sou mau ouvinte.

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Contexto

Durante mais de uma década e meia, talvez sobretudo nos Estados Unidos, o horror floresceu como fonte importante de estímulo estético de massa. De fato, ele pode até ser o gênero de vida mais longa, o mais amplamente disseminado e o mais persistente da era pós-Vietilã. Os romances de horror parecem estar disponíveis virtualmente erh todo supermercado e toda farmãcia, e novos títulos surgem com desconcertante rapidez. O assalto dos romances e das antologias de horror, pelo menos atualmente, é tão irreprimível e inevitável quanto os monstros que eles retratam. Um autor do gênero, Stephen King, tomou-se um nome familiar, ao passo que outros, como Peter Straub e Clive Barker, embora menos conhecidos, também têm muitos admiradores. Os cinemas populares também ficaram tão obcecados com o horror desde o sucesso de bilheteria de O exorcista que é difícil visitar um cinema local de várias salas sem se deparar com pelo meno~ .u m monstro. A evidência da imensa produção de filmes de horror na última década e meia também é facilmente confirmada por um

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INTRODUÇÃO

cálculo rápido da área reservada aos filmes de horror na locadora de vídeo da vizinhança. O horror e a música unem forças explicitamente nos vídeos -de rock, especialmente em Tbril/er, de Mic~ael Jackson, embora possamos também lembrar que a iconografia de horror dá uma coloração geral a grande parte da M1V e da indústria de música pop. O grande sucesso musical da Broadway em 1988 foi, evidentemente, O fantasma da ópera, que já havia feit~ sucesso em Lond res e inspirou companheiros de viagem improváveis como Carrie, a estranha. Na parte dramática do teatro, apareceram novas versões de clássicos do horror, como as variações de Drácula de Edward Gorey, e a 1V lançava várias séries de horror ou relacionadas com o horror, como A hora do pesadelo. O horror aparece até mesmo nas belas-artes, não apenas diretamente, nos trabalhos de Francis Bacon, H.R. Giger e Sibylle Ruppert, mas também sob a forma de alusões nos pastiches de muitos artistas pós-modernos. Em suma, o horror tornou-se um artigo básico em meio às formas artísticas contemporâneas, populares ou não, gerando em quantidade vampiros, duendes, diabretes, zumbis, lobisomens, crianças possuídas pelo demónio, monstros espaciais de todos os tamanhos, fantasmas e outros

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preparados, num ritmo que fez os últimos dez anos, mais ou menos, parecerem uma longa noite de dia das bruxas. Em 1982, Stephen King especulou- como muitos de nós no fmal de cada verão - que o atual ciclo de horror parecia estar chegando ao fim. 1 Mas, no momento em que esta introdução está sendo escrita, Freddy - em sua quarta reencarnação lucrativa - ainda está aterrorizando os herdeiros de Elm Street, e uma nova coleção de autoria de Clive Barker, intitulada Cabal, acaba de chegar pelo correio. Em princípio, o atual ciclo de horror ganhou impulso lentamente. Do lado Hterário, foi anunciado pelo aparecimento de O bebê de Rosemary (1967), de Ira Levin, e de Balada para satã (1969), de Fred Mustard Stewart, que abriram caminho para sucessos de venda CO!ll? A inocente face do terror 0971), de Tom Tryon e o campeão de bilheteria O exo~c~ta (também de 1971), de William Peter Blatty.2 O múcado leitor de massa conseguido sobx;etudo por O exorcista foi, em seguida, consolidado pela publicação de livros como: 7be Stepfo rd wtves (1972), de Ira Levin; o primeiro romance publicado de Stephen King, Carrie (1973); Burnt offerings (1973), de Robert Marasco; The sentinel (1974), de Jeffrey Konvitz; e Safem :s- lot 0975), de King. Evidentememe, a literatura de horror - criada por mestres como Richard Matheson, Dennis Wheatley, John Wyndham e Robert Bloch - sempre esteve disponível antes da publicação desses livros. Mas o que parece ter oco rrido na primeira metade da década de 1970 é que o horror, por assim dizer, adentrou a corrente principal. Seu público deixou de ser especializado, ampliou-se, e os romances de horror foram se tornando de acesso cada vez mais fácil. Isso, por sua vez, aumentou o púbHco que estava em busca de entretenimento de horror e, no fmal da década de 1970 e no começo da de 1980, surgiu um grande número de autores para satisfazer essa demanda, entre eles: Charles L. Grant, Dennis Etchinson, Ramsey Campbell, Alan Ryan, Whitely Strieber, James Herbert, T.E.D. Klein, John Coyne, Anne Rice, Michael McDowell, Dean Koontz, John Saul e muitos outros. Sem dúvida, como o leitor reconhecerá imediatamente, os romances mencionados anteriormente foram todos transformados em filmes, não raro em filmes de muito sucesso. Nesse aspecto, o mais impoltante, quase não é preciso dizer, f()i O exorcista, dirigido por William Friedkin e lançado em 1973. Considera-se que o sucesso desse filme não só agiu como um estimulante para a produção de filmes, como também tornou o horror mais atraente aos editores, pois muita gente que se aterrorizou com o filme comprou o romance e adquiriu gosto pela literatura de horror. A relação entre

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filme de horror e literatura de horror é muito íntima no atual ciclo de horror- tanto no sentido óbvio de que não raro os filmes de horror são adaptados de romances de horror quanto no sentido de que muitos dos escritores do gênero foram muito influenciados pelos ciclos anteriores de filmes de horror - aos quais se referem não apenas em entrevistas, mas também no texto dos romances.3 Evidentemente, a influência imensa exercida sobre a indústria do cinema pelo sucesso de O exorcista é até mais evidente do que seu impacto sobre o mercado literário. Estabelecendo os temas recorrentes de possessão e de teleclnese, O exorcista (o filme) foi imediatamente seguido por uma grande quantidade de imitadores, como Abby, Espírito malígno, La endemoniada (também conhecido como Demon wttch cbild), Exorcismo e 1be devil's raín. Inicialmente, parecia que o gênero iria se perder numa enxurrada de imitações medíocres. Mas, em 1975, Tubarão sacudiu o mercado de filmes, dando de novo aos produtores de cinema a certeza de que ainda havia ouro a ser garimpado no campo do horror. Quando a reação a Tubarão (e seus derivados) parecia diminuir, vieram juntos Carrie, a estranha e A profecia. E, em seguida, em 1977, Guerra nas estrelas, embora não sendo um ftlme de horror, abriu as portas ao espaço sideral, admitindo, por fim, Alien, o oitavo passageiro e que tais. Toda vez que a saúde do gênero parecia ameaçada, ele subitamente se restabelecia. Parece imensamente resistente. Isso indica que atualmente os gêneros fantásticos, dos quais o horror é um exemplo eminente, entram sempre em consideração quando os prod]..ltores pensam no que fazer em seguida. O resultado disso foi um m~unero realmente impressionante de títulos de horror. Também temos agora uma geração de diretores consagr&dos, muitos dos quais são reconhecidamente especialistas em filmes fantásticos/de horror, entre os quais: Steven Spielberg, David Cronenberg, Brian De Palma, David Lynch, John Carpenter, Wes Craven, Philip Kaufman, Tobe Hooper, John McTieman, Ridley Scott e outros. I Ao enfatizar o grande número de ftlmes de horror produzidos na última década e meia, não quero dizer que não houvesse ftlmes de horror na década de 1960. No entanto, tais filmes eram um tanto marginais; tinha-se de ficar de olho nas últimas ofertas da American International Pictures, de William Castle e da Hammer Films. Roger Corman, embora adorado pelos conhecedores do horror, não era uma figura de muita fama; e clássicos da madrugada, como A noíte.dos mortos-vivos, de George Romero, tiveram sobretudo uma reputação marginal. A série de sucessos de bilheteria, come-

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çando com O exorcista, mudou a posição do filme de horror na cultura, e, diria eu, também encorajou a expansão da publicação e do consumo de literatura de horror. Evidentemente, os mercados da literatura e dos filmes de horror não saíram do nada. O público, como era de se imaginar, era composto sobretudo de pessoas nascidas no pós-guerra. Esse público, como um grande número dos artistas que se especializaram em horror, fazia parie da primeira geração do pós-guerra, criada pela TV. E poder-se-ia aventar a hipótese de que seu gosto pelo horror, em ampla medida, foi alimentado e fortalecido pelas incontáveis reapresentaÇões das séries antigas de horror e de ficção científica que formavam o repertório da televisão qas tardes e nas madrugadas de suas juventudes. Essa geração, por sua vez, foi criada num regime de diversões de horror, cujas imagens inundam a cultura - dos cereais do café da manhã e dos brinquepo,s elas crianças à arte pós-moderna - e fornece uma parte impressionante da prod~ção literária, cinematográfica e até mesmo teatral de nossa sociedade. É nesse contexto~que . a hora parece ser especialmente propícia para iniciar uma investigação estética sobre a natureza do horror. O propósito deste livro é o de investigar ft.losoficamente o gênero do horror. Mas, embora este projeto seja sem dúvida sugerido e tornado urgente pela ubiqüídade do horror hoje em dia, na medida em que sua tarefa é fllosófica, ele tentará chegar a um acordo com as características gerais do gênero, tais como elas se manifestaram ao longo de sua história.

Uma breve visão geral do gênero do horror

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O objeto deste tratado é o gênero do horror. Todavia, antes de desenvolver minha teoria desse gênero, será útil apresentar um esboço histórico rudimentar do fenômeno que pretendo discutir. Seguindo o exemplo de muitos comentadores do horror, vou presumir que o horror é, antes de tudo e sobretudo, um gênero moderno, que começa 4 a surgir no século XVIII. As fontes imediatas do gênero do horror foram o romance gótico inglês, o Scbauer-roman alemão e o roman noir francês. O consenso geral, embora discutível, é que o primeiro romance gótico de relevância para o gênero do horror foi O castelo de Otranto (1765), de Horace Walpole. Esse romance deu continuidade à resistência ao gosto neoclássico, iniciada pela geração anterior de poetas de cemitério. 5



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A rubrica gótico abrange um vasto território. Seguindo o esquema classificatório quádruplo sugerido por Montague Summers, podemos ver que ele subsume o gótico histórico, o gótico natural ou explicado, o gótico sobrenatural e o gótico equívoco.6 O gótico histórico representa uma história situada no passado imaginado, sem sugerir eventos sobrenaturais, ao passo que o gótico natural introduz o que parecem ser fenômenos sobrenaturais apenas para dissolvê-los por meio de explicações. Os mistérios de Udolpho (1794), de Ano Radcliffe, é um clássico dessa categoria. O gótico equívoco, como o da obra Edgar Huntley, or the Memoirs of a Sleepwalker (1799), de Charles Brockden Brown, torna ambígua a origem sobrenatural dos acontecimentos que aparecem no texto em personagens psicologicamente perturbados. O gótico explicado e o gótico equívoco prenunciam o que hoje em dia é muitas vezes chamado de sinistro ou de fantástico pelos teóricos da literatura. Da mais alta importância para a evolução do gênero do horror propriamente dito foi o gótico sobrenatural, no qual a existência e a ação cruel de forças não naturais são afumadas de maneira vívida. Acerca dessa variação, J.M.S. Tompkins escreve que "os autores trabalham com choques abruptos, e quando lidam com o sobrenatural, seu efeito favorito consiste em levar a mente de repente do ceticismo à crença impressionada no horror"? A aparição do demônio e a macabra empa,lação do padre no final de The monk (1797), de Matthew Lewis, são o real precursor dq gênero do horror. Dentre as outras realizações importantes desse período do desenvolvimento do gênero estão: Frankenstein (1818), de Mary Shelley, The vampyre (1819), -dê 'John Polidori, e Melmotb, o errante (1820), de Charles Robert Maturin.

Já por volta da década de 1820, as histórias de horror começaram a fornecer a base para dramatizações. Em 1823, Frankenstein foi adaptado para o teatro por Richard Brinsely Peake sob o título de Presumptio'n: or, tbe fate of Frankenstein (também conhecido como Frankenstein: or, the danger of presumption ou Frankenstein: A t·omantic drama). Thomas Potter Cooke fez o papel do monstro, bem como o de Lord · Ruthven em adaptações de The vampyre de Polidori. Ocasionalmente, adaptações das duas histórias eram apresentadas como sessões duplas, talvez sugerindo a maneira como os dois mitos dão inicio tanto ao ciclo dos filmes de horror dos. anos 30 quanto à época áurea da Hammer Filrns. Versões alternativas da história de Frankenstein eram populares nos anos 1820, inclusive Le monstre et te magicien, Frankenstein: or, tbe man and tbe monster, bem como muitas variantes satíricas, que sem querer anunciam ·as brincadeiras de Abbott e Costello.8 O balé também explorou temas de horror no

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divertissement das freiras mortas da ópera de Giacomo Meyerbeer, Robert /e diable (Filippo TagJioni, 1831) e em balés como La sylphide (Filippo Taglioni, 1832), Les ondines (Louis Henry, 1834), Giselle (Jean CoraUi e Jules Perrot, 1841) e Napoli (August Boumonville, 1844).

Continuou-se a escrever horror no período de 1820 a 1870, mas ele teve sua importância na culrura do mundo de língua inglesa eclipsada pelo surgimento do romance realista. Da década de 1820 à de 1840, o Blackwood's Edinburgh Magazine manteve acesa a chama gótica publicando ficções ' curtas de auroria de William Mudford, Edward Bulwer-Lytton e James Hogg, ao passo que, no final da década de 1840, a imaginação popular era cativada por Vamey tbe vampíre: or, the feast ofblood, um romance em série, com 220 capítulos, de autoria ele Thomas Prest,9 e Wagner, the webr-wo/f. de George William MacArthur. Nos Estados Unidos, Edgar Allan Poe seguiu o exemplo ·d~ 13i'ackwood e, na verdade, escreveu uma peça intitulada "Como escrever um artigo ao estilo Blqckwood''. 10 Generalizando acerca çlesse período, Benjamin Franklin Fisher escreve: A tendência significativa desse período para histórias de horror reflete desenvolvimentos nos maiores romances vitorianos e americanas, que surgiam então como um gênero artístico e sólido. Houve uma passagem do pavor ffsico, expresso por misérias exteriores e atos infames, ao medo psicológico. A virada interior na ficção deu ênfase às motivações, e não a suas patentes conseqüências aterrorizantes. O fantasma-de-lençol deu lugar, como ocorreu literalmente em Canto de NaLal, de Charles Dickens, à psi?ue mal-assombrada, uma força muito mais significativa para "assombrar" vítimas infelizes. 1

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Juntamente com a obra de Poe, Fisher parece ter em mente aqui as aunosferas góticas das obras de Hawthorne, Melville e das irmãs Brome. Conrudo, a figura da época que talvez tenha dado a maior contribuição direta ao gênero do horror foi Joseph Sheridan Le Fanu, que em suás histórias colocou com freqüência o sobrenatural em meio ao dia-a-dia, em que a perseguição de vítimas comuns e inocentes (em vez dos excessivos personagens góticos) era observada de perto e recebia o tipo de elaboração psicológica que daria o tom a grande pa1te dos tr-.:~balhos posteriores no gênero. Num espelho escuro (1872), deLe Fanu, abriu uma época, que durou até a década de 1920, de grandes realizações nas histórias de fantasmas. Obras-primas dessa forma, em geral no fonnato de contos, saíram das penas de Hemy James, Edith Wharton,

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Rudyard Kipling, Ambrose Bierce, Guy de Maupassant, Arllhur Machen, Algernon Blackwood, Oliver Onions e outros. Nesse breve esp aço de tempo, foram produzidos romances de horror clássicos mais tarde adaptados e readaptados para o teatro e para o cinema-, como: O estranho caso do dr. jekyll e mr. Hyde (1887), de Robett Louis Stev~enaon,. O retrato de Dorian Gray (1891), de Oscar Wilde, e Drácula (1887), de Bram Stoker. H.G. Wells, que costuma ser associado à ficção cientifica, também produalu lalstórias de horror e de fantasmas da virada do século em diante. Embora ~o .tlo .&tmosos, outros autores apreciados de obras de horror nesse período foram : Grant Allen, Mrs. Riddell, M.P. Shiel, G.S. Viereck, Eliot O'Donnell, R.W. Chambers, E.P. Benson, Mrs. Campbell Prael e William Clark Russell.

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Segundo Gary William Crawford, em contraste com a linha cósmica das obras dos mestres da geração anterior (como Blackwood, Machen e Onlons), a história de horror inglesa posterior à Primeira Guerra Mundial assumiu um llS!'eCto realista e psicológico na obra de Walter De La Mare, LP. Hartley, W.F. Harvey, R.H . Malden, A.N.L. Munby, L.T.C. Rolt, M.P. Dare, H. Russell Wakefield, Elizabeth Bowen, Mary Sinclair e Cynthia 12 Asquith. Todavia, o lado cósmico da literatura de hor.ror'fli>i mantido vivo nos Estados Unidos por Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), que o~pava um lugar central entre os escritores que trabalhavam para a revistinha periódica ~rd Tales. Lovecraft era um escritor magnífico, produziu não apenas resmas de histórias, mas ~mbém um tratado intitulado Supernatural horror ín litemture e uma vasta correspOndência, na qual propôs sua estética particular do horror. Em parte graças a e ssa correspondência e a seu apoio aos escritores iniciantes, Lovecraft recrutou um s~quito fiel de autores e imitadores, como Clark Ashton Smith, Carl Jacobi e August Derleth. Robert Bloch também iniciou sua carreh-a na tradição de Lovecraft, de horror cósmico, que continuou a influenciar o gênero até bem depois da Segunda Guerra MundiaL13 Depois da Primeira Guerra Mundial, o gênero do horror encontrou também um novo lar na nascente arce do cinema. Filmes de horror no estilo que veio a ser conhecido como expressionismo alemão eram feitos na Alemanha de Weimar, e alguns deles, como Nosferatu, de F.W. Mumau, foram reconhecidos como obras-primas do ·horror. Antes do atual ciclo de filmes de horror, a história do cinema testemunhou vários outros su1tos importantes de criatividade no gênero: \.ltn ciclo do início dos anos 30, iniciado pela Universal Studios e que alguns produtores tentaram ressuscitar no final da década de 1930 e no começo da de 1940_yvisando aos públicos mais jovens; a /

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avalanche de ftlmes adultos de horror produzidos nos anos 40 por Vai Lewton na RKO; o ciclo de horror/ ficção científica do início dos anos 50, que inspirou a indústria japonesa do Godzilla em meados da década de 1950, bem como uma tentativa de reviver novamente o ciclo nos Estados Unidos, na segunda metade da década. Esses filmes, vistos seja nos cinemas, seja na TV, impingiram ao público nascido no pós-guerra um gosto pelo horror, que, nos anos 60, podia ser sustentado por matinês marginais que exibiam a produção de AIP, William Castle e Hammer Films. 14 Os mitos clássicos do filme de horror- muitas vezes remeteram seus adeptos sedentos de horror a suas fomes literárias, assim como a um material de leitura menos elevado, como Famous monsters of filmland (criado em 1958). E os produtos da televisão "fantástica", como Além da imaginação, encorajaram o interesse por escritores como Charles Beaurnçmt, Richard Matheson, Roald Dahl e a tradição de contos de que eles se originaram. Assim, no início dos anos 70, havia um público pronto para o próximo - ou seja, o arual - ciclo de horror. Essa história sumária do •g ênero do horror circunscreve de um modo geral o material de trabalho que o presente tratado tenta teorizar. Meu esboço em miniatura do gênero assinala, creio eu, o que muitos estariam dispostos pré-teoricamente a incluir no gênero. Ao longo da teorização sobre o gênero, algumas das obras dessa visão mais ou menos ingênua da história do horror terão de ser reclassificadas. Muitos dos trabalhos mencionados anteriormente serão excluídos do gênero quando este for submetido a uma organização teórica. Todavia, acho que a ftlosofla do horror desenvolvida ao longo deste livro caracterizará, quanto ao principal, 'a maior parte do que as pessoas estão pré-teoricamente dispostas a chamar de horror; caso contrário, a teoria estará furada. Ou seja, embora eu não espere capturar cada um dos itens do levantamento do gênero que acabei de apresentar, se minha teoria deixar de lado um número muito alto deles, terá errado o alvo.

Uma filosofia do horror? Este livro se anuncia como uma filosofia do horror. O próprio conceito pode deixar muita gente perplexa. Quem é que já ouviu falar de uma filosofia do horror? Não é o tipo de matéria que se encontra num boletim universitário ou nos catálogos publicitá-

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rios das editor.as acadêmicas. Que diabos se poderia entender pela estranha expressão "uma filosofia do horror"? Aristóteles inicia o livro primeiro da Poética com estas palavras: "Meu objetivo é tratar da poesia em geral e de suas diversas espécies; Investigar qual é o efeito próprio de cada uma delas - que construção de fábula ou plano é essencial a um bom poema - em quais e em quantas partes consiste cada espécie; e tudo o mais que pertença ao mesmo assunto.'' 15 Aristóteles não realiza plenamente esse plano no texto que chegou até nós. Mas nos oferece uma ampla explicação da tragédia no que se refere ao efeito que ela deve causar - a catarse da compaixão e do medo - com respeito aos elementos, em especial os elementos do enredo, que facilitam esse efeito: que os enredos têm começos, meios e fins, no sentido técnico que Aristóteles dá a essas noções, e têm também reviravoltas, reconhecimentos e calamidades. Aristóteles isola os elementos relevantes do enredo da tragédia, ou seja, com atenção à maneira como eles são designados a causar a resposta emocional cuja provocação Aristóteles identifica como a qüididade do gênero. Tomando Aristóteles para propor um paradigma do que a filosofia de um gênero artístico possa ser, oferecerei uma explicação do horror em razão dos efeitos emocionais que ele é destinado a causar no público. Isso impliQlrá tanto a car.acterização da natureza desse efeito emocional quanto um exame e uma análise das figuras recorrentes e das estruluras de enredo usadas pelo gênero para suscitar os efeitos emocionais que Lhe são apropriados. Ou seja, no espírito de Aristóteles, presumirei que o gênero é destinado a produzir um efeito emocional; tentarei isolar esse efeito; e tentarei mostrar como as estruturas características, as imagens e as figuras do gênero são arranjadas para causar a ~moção que chamarei de horror-artístico (art-horror). (Embora não espere ter tanta autoridade quanto Aristóteles, é minha intenção tentar fazer com o gênero do horror o que Aristóteles fez com a tragédia.) Uma dimensão filosófica do presente tratado, que não se encontra na obra de Aristóteles, é a minha concentração em certos enigmas que são próprios do gênero o que chamo (em meu subtítulo), roubando uma expressão de certos escritores do século XVlll, "paradoxos do coração". Em relação ao horror, esses paradoxos podem ser resumidos nas duas perguntas seguintes: 1) como pode alguém ficar apavorado com o que sabe não existir, e 2) por que alguém se interessaria pelo horror, uma vez que ficar horrorizado é tão desagradável? Ao longo do texto, tentarei mostrar o que

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está em jogo nessas perguntas. E tentarei também propor teorias filosóficas que espero pulverizem esses paradoxos. O estilo de filosofia usado neste livro é o que muitas vezes é chamado de ftlosofia anglo-americana ou analítica. Todavia, uma palavra de advertência é útil aqui. Pois, embora eu considere correto dizer que este livro foi escrito na tradição da filosofia analítica, é importante observar que meu método não pertence exclusivamente ao que às vezes é chamado de análise conceitua!. Por muitas razões, eu, como muitos outros filósofos da minha ger-rovoca uma reação física forte. Na descrição de sua perseguição à menininha, diz-se que a visão de Hyde prpvoca repugnância. Essa não é apenas uma categoria moral, porém - pois está ligada a sua feiúra -, que dizem provocar até suor. Essa sensação corporal de repugnância é depois ampliada, quando Enfield diz acerca de Hyde:

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Não é fácil descrevê-lo. Há algo errado com sua aparência, algo desagradável, algo francamente detestável. Nunca vi um homem com quem antipatizasse tanto, não sei bem por quê. Ele deve ser deformado em alguma parte; ele passa uma sensação forte de deformidade, embora eu não possa especificar onde. É um homem de aspecto extraordinário, embora eu não possa citar nada fora do normal. Não, senhor, não consigo, não posso descrevê-lo. E não é por falta de memória, pois declaro que o posso ver neste momento.

O caráter indescritível é também uma característica chave em "The outsider", de Lovecraft. O narrador, nesse caso, é o próprio monstro; mas o monstro, um recluso à maneira de Kaspar Hauser, não tem idéia de sua própria aparência. A situação é aquela em que ele encontra um espelho, sern perceber, em princípio, que o reflexo é dele mesmo. E diz:

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Quando me aproxim~! da arca, comecei a perceber a presença mais claramente; e então, com o primeiro e último sÔm que jamais emiti- um horrendo uivo que me repugnou quase tanto quanto sua doentia causa ~. vi em plena pavorosa clareza a monstruosidade inconcebível, indescriúvel e indizível que, por sua mera aparência, transformara uma alegre reunião numa manada de fugitivos delirantes. Não posso sequer sugerir como ela era, pois era um misto de tudo o que é imundo, esquisito, importuno, anormal e detestável. Era a sombra demoníaca do apodrecimento, da velhice e da desolação; o ídolo pútrido e gotejante da revelação insalubre; o horrível desnudamento daqu ilo que a misericordiosa terra sempre deveria esconder. Deus sabe que aquilo não era deste mundo - ou não mais deste mundo -, embora, para meu horror, tenha visto em seu contorno carcomido, que mostrava os ossos, uma caricatura maliciosa e execrável da forma humana; e em seus atavios bolorentos e em decomposição, algo indizível que me enregelou ainda mais. Fiquei paralisado, mas não o bastante para não fazer um leve esforço para fugir; um tropeço para trás que quase partiu o espelho em que o monstro sem nome e sem voz me apanhou. Meus olhos, enfeitiçados pelas órbitas vítreas que os encaravam repulsivamente, recusaramse a fechar; embora graças a Deus estivessem toldados e só mostrassem indistintamente o terrível objeto, depois do primeiro choque. Tentei erguer a mão para afastar aquela visão, mas meus nervos estavam tão aturdidos que meu braço não conseguiu obedecer completamente à minha vontade. A tentativa, porém, bastou pará perturbar meu equiltôrio; tive, então, de dar vários passos para a frente, cambaleando, para não cair. Ao fazer isso, tomei consciência repentina e agonizantemente da proximidade da coisa putrefata, cuja horrenda respiração oca quase imaginei poder ouvir. Quase louco, ainda pude erguer ii mão para evitar a fétida aparição que tanto premia; quando, num segundo cataclfsmico de pesadelo cósmico e

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acidente infernal meus dedos tocaram a podre pata estendida do mon.Jtro 1mbalxo da arca dourada. Não gritei, mas todos os diabólicos vampiros que montam o vento da noite ar! taram por mim quando, naquele mesmo segundo, desabou sobre a minha mente umallnlca e r6plda avalancha de recordações devastadoras da alma. Soube naquele segundo tudo o que houve; lembrei-me de coisas para além do medonho castelo e das árvores, e reconheci o edlftclo decompÔito em que agora estava; reconheci, o que é o mais terrível de tudo, a ímpia nbomlnaylo que·me ficou encarando enquanto eu dela retirava meus dedos imundos.

Criaturas horrendas parecem ser consideradas não apenas lnconceb!veis como também imundas e repugnantes. O laboratório de F.rankenstein, por exemplo, é descrito como "uma oficina de imunda criação". E Clive Barker, o equivalente literário do filme de respingo, caracteriza o seu monstro, o filho de celulóide, na história com o mesmo nome, da seguinte maneira: [Filho de Celulóide]. "Sim, este é o corpo que uma vez ocupei. Seu nome era Barberio. Um criminoso; nada de espetacular. Nunca aspirou à grandeza." [Birdy]. ''E você?" "O câncer dele. Sou a parte dele que aspirou, que muito fez para ser mais do que uma humilde célula. Sou uma doença sonhadora. Não é de admirar que eu adore filmes." O filho de celulóide estava chorando na beira do chão quebrado, agora com seu corpo de .. · verdade exposto, não tinha razão para forjar algo glorioso. Era uma coisa imunda, um tumor gordo crescido em paixão gasta. Um parasita com a forma de uma lesma e com a textura de um fígado cru. Por um momento, uma boca desdentada, mal constituída, formou-se em sua cabeça e disse: "Vou ter de achar um jeito novo de comer a sua alma" Deixou-se cair no porão-baixo, ao lado de Birdy. Sem o casaco brilhante e multicolorido, tinha o tamanho de uma criança pequena. Ela se desviou para trás quando ele esticou um sensor para tocá-la, mas evitá-lo era uma opção limitada. O porão baixo era estreito, e mais adiante estava bloqueado pelo que pareciam ser umas cadeiras quebradas e uns Livros de oração esquecidos. O único caminho era aquele pelo qual viera, e ele ficava a quatro metros e meio acima de sua cabeça. Às apalpadelas, o câncer tocou no pé dela, e ela ficou nauseada. Não podia evitá-lo, ainda que ficasse envergonhada por ter reações tão primitivas. Ele lhe causou uma repugnância tal como nuQca tinha sentido antes; fazia pensar em algo abortado e jogado no lixo.

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''Vá para o inferno", disse-lhe ela, chutando-o na cabeça, mas ele continuou se aproximando, com sua massa diarréica prendendo as pernas dela. Ela pôde sentir o movimento das vísceras dele, parecido com o de uma batedeira, quando ele se tornou visível. I

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Mais recentemente, Clive Barker descreveu os bastardos de Weaveworld nos seguintes tennos: A coisa não tinha corpo, com seus quatro braços saindo diretamente de um pescoço bulboso, atrás do qual pendiam cachos de bolsas, molhados como fígados e bofes de porco. O golpe de Cal atingiu o alvo, e uma das bolsas estourou, soltando um fedor de esgoto. Com o resto dos parentes [dos bastardos] bem perto, Cal correu para a porta, mas a criatura ferida foi mais rápida na perseguição, avançou furtivamente como um caranguejo com as mãos, cuspindo conforme av.ançava. Um jato de saliva atingiu a parede perto da cabeça de Cal e o papel de parede empolou. O nojo pôs-lhe sebo nas canelas. Num instante, estava na porta.

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