Uns e outros
 9788581280295

Table of contents :
SUMÁRIO
Apresentação
por Maria Alice Rezende de CarvalhoJoaquim Nabuco
Joaquim Nabuco: intelectual político, político intelectual
Rui Barbosa
Sobre Rui Barbosa e a política: 1870-1910
O Brasil é fatalmente uma democracia:
Sílvio Romero
D. João VI no Brasil de
Oliveira Lima
Deus está nos detalhes: a propósito do centenário de
Américo Jacobina Lacombe
Celso Furtado:
um senhor brasileiro
Duas brevíssimas considerações sobre
Agostinho da Silva

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Para Anna Beatriz e Juliana © NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 CEP. 21042-235 Rio de Janeiro RJ FONE [55 21] 3546 2838 [email protected] www.naueditora.com.br

Coordenação Editorial: Simone Rodrigues Revisão: Miro Figueiredo e Ana Cristina Oliveira Projeto gráfico e editoração: Estúdio Arteônica Capa: Design de Dionísio Reis livremente inspirado em pintura Construção n o . 92 (em verde), de Aleksander Rodtchenko (1919). Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte, Claudia Saldanha, Cristina Monteiro de Castro Pereira, Francisco Portugal, Maria Cristina Louro Berbara, Pedro Hussak e Vladimir Menezes Vieira. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ A353u Alencar, José Almino de Uns e Outros [recurso eletrônico] / José Almino de Alencar. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Nau, 2014. recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-8128-029-5 (recurso eletrônico) 1. História social. 2. Mudança social. 3. Livros eletrônicos. I. Título. 14-13902 CDD: 303.4 CDU: 316.733 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) sem permissão escrita da Editora. Rio de Janeiro, 2014 - 1ª edição SUMÁRIO Apresentação por Maria Alice Rezende de Carvalho

Joaquim Nabuco Joaquim Nabuco: intelectual político, político intelectual Rui Barbosa Sobre Rui Barbosa e a política: 1870-1910 O Brasil é fatalmente uma democracia: Sílvio Romero D. João VI no Brasil de Oliveira Lima Deus está nos detalhes: a propósito do centenário de Américo Jacobina Lacombe Celso Furtado: um senhor brasileiro Duas brevíssimas considerações sobre Agostinho da Silva APRESENTAÇÃO UNS , a que alude o título deste livro, são Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. O primeiro, caracterizado como “melancólico, impaciente, eventualmente frustrado, quase sempre em uma atitude posada, misto de arrogância e de distância desencantada”, foi responsável pela formulação de uma das mais bem sucedidas narrativas brasileiras sobre o Brasil. O segundo, Rui Barbosa, apontado como “liberal renitente” e, por isso, quixotesco em ambiente ideológico de ralo liberalismo, foi político militante, interessado em firmar instituições em solo que diziam movediço. São, ambos, figuras mitológicas do pensamento e da ação – a Nabuco se deve a narrativa de um Brasil urdido pelo tempo, pela decantação da experiência, avesso a saltos, à mudança revolucionária; a Rui se deve a Constituição republicana de 1891, marco, fundação, arquitetura em que sobressai o liberalismo doutrinário. Experiência e doutrina, tradição e fundação são modos de nomear as tensões presentes na reflexão sobre o Brasil e na própria trajetória brasileira. Por isso, neste admirável livro de José Almino de Alencar, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa são homens de seu tempo e ainda do nosso. OUTROS são Sílvio Romero, Oliveira Lima, Américo Jacobina Lacombe, Celso Furtado e Agostinho da Silva, que, valorizados por José Almino em suas singularidades, são também medidos pelo encaixe de suas obras no quadro de referência proposto. Extraordinário, nesse sentido, o ensaio sobre Sílvio Romero, cujo título O Brasil é fatalmente uma democracia foi extraído da Introdução à segunda edição do livro Doutrina contra doutrina – o evolucionismo e o positivismo no Brasil , editado em 1895. José Almino

aproxima Gilberto Freyre e Sílvio Romero – pondo em linha, na verdade, Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre e Sílvio Romero –, com base na percepção que tinham do lento e gradativo processo de democratização social do país. Declínio da aristocracia rural, transferência progressiva do poder aos setores médios urbanos e miscigenação permanente compõem o diagnóstico de Sílvio Romero quanto à inexorabilidade, entre nós, do estado social da igualdade. A este estágio não se chegaria imediatamente, no tempo ágil da política, mas, ao contrário, no vagaroso compasso das estruturas, no tempo sociológico brasileiro. Difícil não perceber nisso os ecos de Nabuco, com sua confiança nas transformações moleculares, seu liberalismo evolucionário, seu reformismo entendido como simples aperfeiçoamento. Porém, como adverte José Almino, Sílvio Romero era “uma personalidade pública tomada de paixão”, enquanto Nabuco transpirava complacência – o que talvez explique o fato de o primeiro não descartar a intervenção de um demiurgo que, falhando o andamento sociológico, pudesse conduzir a nação a seu destino. A dimensão macroestrutural se impõe, igualmente, na produção de Celso Furtado, o economista-sociólogo, que entendia a história, a trajetória brasileira, como ferramenta política para a ação governativa. Admirador de Karl Mannheim, que extraiu a ideia de planejamento do campo semântico autoritário, Celso Furtado, desde a década de 1950, tornou-se um “planejador democrático” do desenvolvimento, assumindo cargos e responsabilidades para esse fim. E é esse perfil, de um membro da intelligentsia empenhada na afirmação do país, que serve à caracterização dos demais autores que compõem este livro: Oliveira Lima, representante da diplomacia brasileira, Américo Lacombe, construtor institucional, Agostinho da Silva, o filólogo português que apontou o valor do épico, em sociedade tão fortemente irônica, e mesmo o autor, José Almino de Alencar, intelectual refinadíssimo, mas também testado nas batalhas campais pela cultura no Brasil. Livros ensinam aos leitores coisas que não necessariamente foram previstas pelo autor, tornando, portanto, irrelevante sua motivação última. O livro que você, leitor, tem em mãos ensina sobre o liberalismo brasileiro em suas muitas expressões, e sobre o papel dos intelectuais em sociedades que não se estruturaram de forma autônoma, cabendo à intelligentsia a invenção da nação. O exclusivo agrário, que inibiu o aparecimento do pequeno produtor independente, não permitiu que o liberalismo se tornasse um valor do homem comum. Por isso, no Brasil, a defesa da liberdade tem sido feita – quando o é – pelo manejo intelectual da doutrina, de que Rui Barbosa foi o principal arauto. Assim, se é verdade que hoje o Brasil vem cumprindo seu destino sociológico e trilhando, decididamente, o caminho da equalização social, é necessário que o tema da autonomia se inscreva com força nos corações dos brasileiros. Este formidável livro de José Almino de Alencar, que tenho a honra de apresentar, é um balanço do que temos sido e um repto à nossa imaginação pública. Maria Alice Rezende de Carvalho

Cientista Social da PUC-Rio

JOAQUIM N ABUCO: INTELECTUAL POLÍTICO, POLÍTICO INTELECTUAL Vida política e abolicionismo Nabuco é quase um clichê da nossa história ou da história dos intelectuais no Brasil: membro da elite que se interessa pela causa dos oprimidos, literato diletante que se ocupa de assuntos políticos, estudioso e polemista

que se dedica a pensar sobre os destinos do p1aís. Melancólico, impaciente, eventualmente frustrado, quase sempre em uma atitude posada, misto de arrogância e de distância desencantada; e, forçando um pouco a mão, narcisista e autocomplacente. Manifestando-se frequentemente na vida pública, ora com destemido vigor – assim foi na campanha abolicionista – ora com um desencanto altivo – como no ambiente desfavorável dos primeiros tempos da República, vemo-lo hesitar, no curso da sua carreira, entre o ativismo político entusiasmado, a renúncia à vida pública, a aversão e a tentação do recolhimento estudioso do escritor. O itinerário político e intelectual de Nabuco é muitas vezes traçado de maneira sumária, entre dois polos: um início, obstinado, destemido, no qual a militância abolicionista é praticamente a única motivação de sua atividade política: “Sou homem de uma ideia só, mas não me envergonho dessa estreiteza mental porque essa ideia é o centro e a circunferência do progresso brasileiro” ¹ . Proclamada a república, marginalizado como monarquista, teriam agido “os atavismos de classe, e ele passou ao liberalismo atenuador de Um Estadista do Império , elaborado longe do povo, em diálogo tácito com as sombras de um passado que interferiu nas suas ideias.” ² Nesse período, os seus comentários amargos sobre as classes dirigentes brasileiras parecem ecoar o diagnóstico, desabusado, irônico, que Eça de Queirós formulara para o seu país: “Em Portugal, falta pessoal.” Faltam políticos, faltam estadistas, falta gente de qualidade: ainda hoje é o estereótipo repetido nos editoriais convencionais e nas conversas desencantadas sobre a política no Brasil. Ao ver de perto esse percurso, algo nos lembra da narrativa de um bildungsroman , de uma narrativa traçada em torno das experiências que uma personagem atravessa durante os anos de formação rumo à maturidade, em que o aprendizado na primeira informa e qualifica as mudanças de posição do fim da vida. E, ambas, naturalmente, não poderiam se desenvolver, sem encontrar inserção apropriada nos embates políticos de cada momento. É assim que o conjunto da obra de Nabuco aparece aos nossos olhos como uma autoavaliação biográfica, uma reflexão do autor sobre o seu próprio papel neste processo. Trata-se de um vasto panorama crítico sobre a evolução da sociedade brasileira e suas instituições. Ao estudá-la, vemos delineada a importância da sua geração, uma geração que se torna adulta na década de 70 do século XIX e que põe a sua marca na consolidação das fronteiras físicas do país, na construção das suas bases institucionais e na elaboração dos primeiros marcos analíticos sobre a nossa história. Durante o período da sua militância abolicionista, Nabuco foi não apenas o tribuno combativo, mas aparece também como “o primeiro a articular numa visão da sociedade a intuição segundo a qual o regime servil é a variante sociológica que a explica de maneira mais abrangente [...], aquela que ilumina mais poderosamente o nosso passado”: “Com referência à escravidão é que se definiu entre nós a economia, a organização social e a posição das classes e das ordens, a estrutura do estado e do poder político, o próprio sistema de ideias.” ³

A maior parte das terras era monopolizada pelos proprietários de escravos, em grandes glebas, destinadas, sobretudo, a uns poucos produtos de exportação. A exploração extensiva exauria o solo, a concentração de riqueza inibia a criação de indústria, do pequeno comércio e o aparecimento de camadas médias. O universo urbano era pouco diferenciado, constituído na sua maioria de centros administrativos. Atados a um produto único de exportação, sujeito a variações de preço, frequentemente endividados pela compra de escravos ou por seus hábitos de consumo luxuoso, os proprietários colocavam-se frequentemente na dependência do capital financeiro – dos bancos ou dos comerciantes exportadores, tornando precária até mesmo a condição de senhor de terra. O desenvolvimento incipiente, a estagnação parcial de regiões importantes como Pernambuco e cercanias contrastavam com o dinamismo de colonizações mais recentes – por exemplo, a Austrália e a Nova Zelândia, baseadas no trabalho livre. O sistema envolvia a sociedade inteira e constituía um fator inibidor à exploração de regiões e riquezas que permaneciam intocadas: Como se sabe o regime da terra sob a escravidão consiste na divisão de todo o solo explorado em certo número de grandes propriedades [...] feudos isolados de qualquer comunicação com o mundo exterior; mesmo os agentes do pequeno comércio, que neles penetram, são suspeitos do senhor [...]. A divisão de uma vasta província em verdadeiras colônias penais, refratárias ao progresso [...], entregue, às vezes, a administradores saídos da própria classe de escravos [...], não pode trazer benefício algum permanente à região parcelada, nem à população livre que nela mora, por favor, dos donos da terra, em estado de contínua dependência. Por isso também, os progressos do interior são nulos [...]. As cidades, a que a presença dos governos provinciais não dá uma animação artificial, são por assim dizer mortas ⁴ . [...] A fazenda ou engenho serve para cavar o dinheiro que se vai gastar na cidade [...] A terra não é fertilizada pelas economias do pobre, nem pela generosidade dos ricos; a pequena propriedade não existe senão por tolerância, não há as classes médias que fazem a força das nações [...] a nação é formada de proletários, por que os descendentes de senhores logo chegam a sê-lo ⁵ . [...] A fortuna passou das mãos dos que a fundaram às dos credores; poucos são os netos de agricultores que se conservam à frente das propriedades que seus pais herdaram ⁶ . [...] Compare-se [Pernambuco], essa província heroica de mais de trezentos anos com países, por assim dizer, de ontem como as colônias da Austrália e a Nova Zelândia ⁷ ; com os últimos estados que entraram para a União Americana. [...] A verdade é que as vastas regiões exploradas pela escravidão colonial têm um único aspecto de tristeza e abandono: não há nela o consórcio do homem com a terra, as feições da habitação permanente, os sinais do crescimento natural ⁸ . [...] A escravidão explorou parte do território estragando-o, e não foi além, não o abarcou todo, porque não tem iniciativa para migrar, e só avidez para estender-se. Por isso o Brasil, é ainda o maior pedaço de terra incógnita no mapa do globo ⁹ .

A sociedade brasileira não era só baseada, “como era a civilização antiga, sobre a escravidão, e permeada em todas as classes por ela, mas constituída, na sua maior parte, de secreções daquele vasto aparelho” ¹⁰ . Nada, entre nós, escapava de ser incluído na “síntese nacional da escravidão” ¹¹ : Escravidão e indústria são termos que se excluíram para sempre. O espírito da primeira, espalhando-se por um país, mata cada uma das faculdades humanas, de que provém a indústria: a iniciativa, a invenção, a energia individual; e cada um dos elementos de que ela precisa: a associação de capitais, a abundância de trabalho, a educação técnica do trabalho, a confiança no futuro [...] O comércio é o manancial da escravidão e o seu banqueiro [...], ou antes, o mecanismo pelo qual a carne humana é convertida em ouro e circula, dentro e fora do país, sob a forma de letra de câmbio ¹² . No regime servil, o Estado, sendo a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e o distribui, entre os seus clientes, pelo emprego público, sugando a economia do pobre pelo curso forçado, e tornando precária a fortuna do rico; como consequência, o funcionalismo é a profissão nobre e a vocação de todos ¹³ . A classe de funcionários vira o abrigo dos descendentes das antigas famílias escravistas que tiveram suas fortunas diminuídas pelo processo de divisão hereditária, comprometidas por dívidas ou por estarem enfiadas em alguma região economicamente decadente. O funcionalismo era também “o viveiro político, porque abriga todos os pobres inteligentes [...], os que têm ambição e capacidade, mas não têm meio, e que são a grande maioria dos nossos homens de merecimento”: Faça-se uma lista de nossos estadistas pobres [...] que resolveram o seu problema individual pelo casamento rico, isto é, na maior parte dos casos, tornando-se humildes clientes da escravidão; e outra dos que o resolveram pela acumulação de cargos públicos, e terse-ão, nessas duas listas, os nomes de quase todos eles ¹⁴ . A escravidão “apropriara aos seus interesses ‘forças sociais’, como a Igreja e até mesmo o patriotismo”: Nem os bispos, nem os vigários, nem os confessores, estranham o mercado de entes humanos. [...] Dois dos nossos prelados foram sentenciados a prisão com trabalho, pela guerra que moveram à Maçonaria; nenhum deles, porém, aceitou ainda a responsabilidade de descontentar a escravidão. [...] O trabalho todo dos escravagistas consistiu sempre em identificar o Brasil com a escravidão. [...] Atacar a monarquia, sendo o país monárquico, a religião, sendo o país católico é lícito a todos; atacar, porém, a escravidão, é traição nacional e felonia ¹⁵ . Na ausência de forças sociais expressivas a “política é a triste e degradante luta por ordenados que presenciamos; nenhum homem vale nada, porque nenhum é sustentado pelo país ¹⁶ ”. Autônomos, só haviam o poder do estado e do seu soberano:

No meio da dispersão das energias individuais e das rivalidades dos que podiam servir a pátria, levantase, dominando as tendas dos agiotas políticos e os astros dos gladiadores eleitorais, que cercam o nosso Fórum, a estátua do imperador, símbolo do único poder nacional independente e forte ¹⁷ . O caráter orgânico do sistema escravista, sua simbiose com a sociedade brasileira como um todo, seus efeitos deletérios sobre o desenvolvimento econômico e a forma de apropriação da natureza, enfim tudo aquilo que viria se tornar o senso comum de boa parte da nossa literatura sociológica atual sobre o assunto foi antecipado nesse pequeno livro de 1883, como se vê através dessas citações que escolhemos apresentar assim – de maneira extensa, um tanto exaustiva, para melhor pôr em relevo o pioneirismo da sua análise e o tom contemporâneo da sua prosa. Obra considerada de propaganda, O Abolicionismo talvez por isso mesmo tenha passado despercebido, é o que nos diz Evaldo Cabral de Mello ¹⁸ , a quem na República Velha estava, como Euclides da Cunha e Manoel Bonfim, melhor informado do que nosso autor a respeito das últimas novidades sociológicas surgidas na Europa. Novidades que impediram que se atinasse com o valor seminal de um modelo que explicava o Brasil não a partir do meio físico ou da raça, mas de uma forma de organização econômica e de uma instituição social. Só nos anos trinta a entrevisão de Nabuco será retomada em Casa Grande & Senzala , que a infletiu, contudo, no rumo de uma interpretação familista ¹⁹ . I O Abolicionismo foi escrito durante uma estadia em Londres ²⁰ , onde o autor se recolhera depois de uma derrota eleitoral, ao final do seu primeiro mandato de deputado. Em 1878, Joaquim Nabuco entrara para a Assembleia Nacional pelas mãos do barão de Vila Bela ²¹ , em eleições promovidas por um gabinete liberal depois de dez anos de poder conservador. No final de 1877, caíra o ministério conservador do Duque de Caxias. Em janeiro do ano seguinte, o imperador convida o visconde de Sinimbu ²² para formar o novo governo. Sobem os liberais. Preparam-se novas eleições. Em 23 de março de 1978, morre o velho José Tomás Nabuco de Araújo. Em Pernambuco, sabe-se que a eleição de Nabuco fora acertada pelo pai com Vila Bela. Morto o velho senador, alguns liberais não veem mais por que deveriam apoiar o seu filho. Um deles, Souza Carvalho, lança a boutade : tirada a causa, cessa o efeito . Luís Viana Filho ²³ relata: Vila Bela, no entanto, manteve-se intransigente, pois, embora duvidasse dos méritos do protegido, que tinha em conta um dândi preocupado com futilidades, considerava desairoso fugir à palavra empenhada. Para demover os amigos, escreveu então a Luís Felipe [de Souza Leão], seu lugar-tenente na Província: “Não sei por que rejeitar assim o Nabuco: eu penso de modo contrário e conto que me auxiliarão. Para mim, a morte do pai me obrigou mais: considero um certo compromisso de honra a adoção de sua candidatura [...]. Ponhamos o homem à prova; não tenho grandes esperanças de que seja boa, mas não podemos dignamente proceder, julgando-o previamente.”

Assim imposto pelo novo chefe do partido, o rapaz obteve um lugar na chapa... Esta era também a opinião de Nabuco: Não me custou nada essa eleição... Custou sim a Vila Bela na Corte e na província a Adolfo de Barros, que passou pela política como um perfeito gentleman , seu presidente, incluírem-me na lista... Meu nome afastava o de outros, como o Dr. Aprígio Guimarães, popular na Academia pelo seu liberalismo republicano e sua eloquência tribunícia ²⁴ . Em setembro de 1878, “com poucos votos, o que exprimia a irritação dos correligionários, Nabuco foi eleito em último lugar” ²⁵ . Quando chega à Assembleia Nacional, o assunto dominante era a reforma eleitoral. Discutiase a abolição da eleição em dois graus e a adoção do escrutínio direto. Uma iniciativa legislativa do gabinete Sinimbu previa a convocação de uma constituinte com poderes limitados para tratar da reforma. A proposta foi submetida a uma série de críticas e restrições dentro do próprio partido situacionista. José Bonifácio ²⁶ hostilizou o projeto, qualificando de “constituinte constituída” a assembleia por convocar. Silveira Martins ²⁷ , ministro da Fazenda, exigiu que fosse incluída na reforma a exigibilidade dos acatólicos, muitos dos quais de origem alemã e que habitavam a sua província, o Rio Grande do Sul. Vila Bela, ministro dos Negócios Exteriores, acompanha-o e ambos deixam o ministério. No seu primeiro discurso como deputado Nabuco critica duramente o projeto do governo, pronunciando-se também contra a inelegibilidade dos acatólicos, declarando-se anticlerical e censurando ministério por não se manter fiel às ideias liberais. Fala, “sob uma chuva de apartes e de protestos em defesa do governo” ²⁸ , recebendo, na ocasião, o apoio de Rui Barbosa ²⁹ , também no seu primeiro mandato. Na verdade, a oposição não era à eleição direta, aprovada pelo gabinete seguinte, mas ao governo Sinimbu, “que se apresentara com uma proposta já acabada” ³⁰ , que não admitia nem discrepâncias nem emendas, contrariando assim diferentes facções liberais ³¹ . O projeto de Sinimbu foi derrotado no Senado. Enfraquecido, o ministério vem a sucumbir ante a “revolta do vintém” ³² , denominação dada a uma série de motins provocados por um aumento de passagem de bonde, quando a polícia foi levada a empregar a força, daí resultando mortes. Organiza-se então um governo de conciliação ³³ , encabeçado por José Antônio Saraiva ³⁴ , que conseguiu enfim realizar as reformas da eleição direta pela legislação ordinária. A nova lei, conhecida como a Reforma Saraiva ³⁵ , estabelecia que a eleição dos representantes se desse por maioria absoluta dos votos, apurada em segundo escrutínio no caso de não ser verificada no primeiro. A reforma tornava o voto voluntário e instituía o censo restrito, mediante a exclusão dos analfabetos e a prova de determinadas condições de capacidade, pelo exercício da profissão ou por presumíveis recursos pecuniários ³⁶ . Com essas limitações, o corpo eleitoral foi drasticamente reduzido ³⁷ . A interdição do voto do analfabeto, confirmada na primeira república e só

abolida pela Constituição de 1988, veio a ser um fator decisivo para que a porcentagem de eleitores, relativamente à população total do país, se mantivesse pouco expressiva, até quase a metade do século seguinte ³⁸ . Nessa sua primeira legislatura, a presença de Nabuco destoa, em meio a discussões de direito constitucional e da reforma eleitoral, por sua insistência em tratar, sem rodeios, da libertação dos escravos: Quando os artífices do liberalismo constitucional teciam as filigranas das teses da competência ou da incompetência da legislatura ordinária para decretar a reforma (eleitoral) [...] a voz do tribuno abalava a assembleia, avisando-a que havia no horizonte sinais de um perigo maior, pois a sorte de uma classe e a liberdade de uma raça já se estavam impondo à solução dos pais da pátria ³⁹ . Por essa época a imprensa começa a falar dos “abolicionistas” como o embrião de uma corrente radical de políticos partidários da liberdade incondicional dos escravos, independente de indenização aos proprietários. Acercam-se de Nabuco alguns poucos: José Mariano ⁴⁰ , seu companheiro de eleição, liberal pernambucano, Saldanha Marinho ⁴¹ , Joaquim Serra ⁴² , Ladário ⁴³ , um pequeno grupo “que nem chegavam a quinze” ⁴⁴ . Fora do parlamento, o movimento crescia, tomava forma com a criação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão ⁴⁵ , presidida por Joaquim Nabuco, que publicava um pequeno jornal, O Abolicionista . Recebia a adesão militante de personalidades como André Rebouças ⁴⁶ , então professor da escola Politécnica, e José do Patrocínio ⁴⁷ , que já exercia os seus talentos de polemista na Gazeta de Notícias ⁴⁸ . Durante a sessão legislativa de 1880, Nabuco apresenta um projeto estabelecendo a libertação dos escravos em 1890 e declara naquela oportunidade: Na questão da emancipação [...] eu me separaria não só do gabinete, não só do partido liberal, não só da opinião pública e da conspiração geral do país, mas de tudo e de todos! Neste ponto faço uma aliança com o futuro! ⁴⁹ Mais tarde, ele vai exigir do novo ministério Saraiva que adotasse a ideia abolicionista e abandonasse as declarações vagas dos programas ministeriais: “são precisas medidas nas quais o mundo inteiro possa ver a prova da sinceridade política”; ⁵⁰ e apela para que este “não se declare, como o ministério passado, resolutamente disposto a não consentir que o prazo da emancipação seja encurtado de um dia” ⁵¹ . Ao que o novo presidente do conselho opõe: “Os ministérios não têm, e não podem ter programas largos... O ministério atual não cogitou desta questão porque acha cedo para cogitar dela” ⁵² . Desde então, o seu governo passa a ser tratado, pelos jornalistas favoráveis à emancipação, como o ministério que não cogita da questão ⁵³ .

Em agosto do mesmo ano, Joaquim Nabuco teve aprovado um pedido de urgência para a discussão do seu projeto de emancipação na Assembleia Nacional, ⁵⁴ o que veio alarmar a Presidência do Conselho. Uma caricatura de época representa Saraiva fugindo assustado, enquanto Nabuco deposita sobre a mesa da Câmara uma bomba explosiva. No dia seguinte ao pedido de urgência, Saraiva declara na Assembleia Nacional que o ministério “retirar-se-ia do poder se a Câmara quisesse ir além do governo nessa questão”. Dessa maneira associado à questão de confiança ao ministério, o pedido de urgência vem a ser rechaçado na sessão de 30 de agosto ⁵⁵ . Como sempre, o governo argumentava que a medida era prematura e inoportuna. A sua extrema dependência da mão de obra escrava fazia do país um caso sui generis entre outros que também haviam conhecido o regime servil. Respondendo a Nabuco, Martinho Campos ⁵⁶ , por exemplo, então ministro da Fazenda, invocava o exemplo dos Estados Unidos, que “tinha a escravatura circunscrita a muito poucos de seus estados [e onde] o elemento escravo representava a trigésima parte, ou menos, da sua população; e muito menor proporção guardava quanto às principais indústrias” ⁵⁷ . A escravidão era quase sempre vista, pelos que defendiam o seu prolongamento, sobretudo depois da lei de 28 de setembro de 71 ⁵⁸ , como um mal provisório e necessário. Saraiva compara-a a um pântano: “Quando pudermos ver-lhe o fundo faremos o mais... desde que pudermos dessecar o pântano, ao ponto de descobrir-lhe o fundo, a questão está resolvida” ⁵⁹ . Nabuco achava-se sem apoio dentro do Partido Liberal: tendo combatido o gabinete Sinimbu, ele vê-se agora impedido de debater o seu projeto durante o ministério Saraiva. Em Pernambuco, afastara-se de Vila Bela quando este se recompusera com Sinimbu ⁶⁰ . De resto, o barão, a quem devera a sua entrada no parlamento, vem a falecer logo em seguida ⁶¹ . A aprovação da lei Saraiva implicava a convocação de novas eleições e ele encontrava-se assim na contingência de ter impedida a sua candidatura pela sua província; o que, afinal, viria a ocorrer. No mês de dezembro de 1880, Nabuco foi à Inglaterra, passando por Lisboa e Madri, para fazer contatos com associações antiescravistas e simpatizantes da causa abolicionista. Em Madri, a Junta Diretora da Sociedade Abolicionista deu-lhe o título de sócio e recebeu homenagens dos deputados de Cuba ⁶² . É recebido pelas Cortes Portuguesas ⁶³ . Em Londres, foi recepcionado pela AntiSlavery Society. A aprovação da lei de reforma eleitoral o surpreende na Europa de onde volta em maio de 1881 para concorrer às eleições. Impossibilitado de disputar uma cadeira por Pernambuco ⁶⁴ , resolve disputar pelo segundo distrito da Corte, mas sem muita esperança: Voltando ao Rio, meus senhores, em maio de 1881, eu tinha que me preparar para a campanha eleitoral. Eu sabia que não seria eleito por parte alguma, mas era do meu dever dar batalha [...] A ideia abolicionista representava naquela época uma simples agressão; não tinha chegado a ser aceita pela consciência nacional ⁶⁵ .

As eleições, realizadas em 31 de outubro de 1881, ficaram conhecidas como uma das mais livres do império. Sancionada a reforma eleitoral, Saraiva nomeia para as províncias presidentes que se mantiveram imparciais durante o pleito. Um dos sinais dessa imparcialidade foi a derrota no Rio de Janeiro e em São Paulo de dois dos seus ministros, o dos Negócios Estrangeiros, Pedro Luiz Pereira de Souza, e o do Império, o barão Homem de Melo. Os conservadores elegeram uma forte minoria e notadamente a província do Rio de Janeiro elegeu uma maioria conservadora para representá-la ⁶⁶ . No seu conjunto, o pleito foi um completo desastre para o pequeno grupo de candidatos abolicionistas. Assim como Nabuco, Marcolino Moura e Jerônimo Sodré não se reelegeram. Sancho de Barros Pimentel foi derrotado, em Sergipe. Artur Silveira da Mota ⁶⁷ , que renunciara uma comissão do governo na Europa, para disputar uma cadeira pela corte ⁶⁸ e Quintino Bocaiúva ⁶⁹ , candidato pelo minúsculo Partido Republicano, não tiveram maior sorte. Carolina Nabuco dá um tom melancólico, familiar e aristocrático ao resultado: “Das vinte e uma legislaturas do Império era a primeira, e foi a única, em que não figurou o nome de um Nabuco de Araújo, representado desde a Independência até a República no parlamento brasileiro ⁷⁰ .” Desencorajado com a derrota, Joaquim Nabuco deixa o Brasil para Londres, a 1° de fevereiro de 1882. Trabalha como correspondente do Jornal do Comércio e dedica-se à preparação de O Abolicionismo . II Desse regime social, nasceu fatalmente a política negativa que nos abate, porque ficamos sem povo. A escravidão não consentiu que nos organizássemos, e sem povo as instituições não têm raízes, a opinião não tem apoio, a sociedade não tem alicerces... a vontade nacional não existe ⁷¹ . O contato “venenoso da escravidão aviltava tudo”, é o que nos diz José Maria Bello ⁷² ao resumir O Abolicionismo . Na sociedade descrita pelo panfleto, a instituição permeia por inteiro o tecido social, subordina todas as hierarquias aos seus interesses, acachapa os conflitos, amesquinha e praticamente anula a política. O peso da inércia escravocrata só poderia ser quebrado por um fator, digamos assim, externo: a vontade política de uma elite, a militância de uma aristocracia do espírito, capaz de vir a romper com o sistema e a aboli-lo. Este é o fundamento do “mandato da raça negra”, reivindicado por Nabuco para os abolicionistas: O mandato abolicionista é uma dupla delegação, inconsciente da parte dos que a fazem, mas, em ambos os casos, interpretada pelos que a aceitam como um mandato a que não se pode renunciar. Nesse sentido, deve-se dizer que o abolicionista é o advogado gratuito de duas classes sociais que, de outra forma, não teriam meios de reivindicar os seus direitos, nem consciência deles. Essas classes são: os escravos e os ingênuos ⁷³ . Os motivos pelos quais essa programação tácita impõe-nos uma obrigação irrenunciável não são puramente – para muitos não são mesmo principalmente – motivos de humanidade, compaixão e defesa generosa do fraco e do oprimido [...] No Brasil, o abolicionismo é antes de tudo um movimento político, para o qual, sem dúvida, poderosamente concorre o

interesse pelo escravo e a compaixão pela sua sorte, mas que nasce de um pensamento diverso: o de reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade. A raça negra é um elemento de considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro [...] a emancipação não significa tão somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor... Aceitamos esse mandato como homens políticos e por motivos políticos, e assim representamos os escravos e os ingênuos na qualidade de brasileiros que julgam o seu título de cidadão diminuído enquanto houver brasileiros escravos, isto é, no interesse de todo o país e no nosso próprio interesse ⁷⁴ . Vasto programa, como se vê, mas que obedece à lógica do diagnóstico radical que ele havia encontrado para caracterizar as relações entre a escravidão e o conjunto da sociedade brasileira. Vale aqui lembrar, em contrapartida, que a defesa da escravidão entre nós se limitava ao argumento pragmático, tendo sido raras as manifestações de caráter filosófico, fundadas em algum princípio de valor: a superioridade da raça branca e o seu papel civilizatório, o combate ao iluminismo e ao liberalismo trazidos pela influência da revolução francesa etc. ⁷⁵ Neste ambiente, o “regime servil” era tido como um mal provisório, necessário à sustentação de uma economia precária que não havia encontrado ainda alternativa para o problema da mão de obra; uma posição reforçada pela vigência da lei do Ventre Livre ⁷⁶ que fazia antever o fim dos escravos dentro do horizonte da geração em curso. O abolicionismo era, portanto fútil, ou mesmo redundante e dispensável, aos olhos desses conservadores, já que a libertação dos escravos estava na ordem natural das coisas. Assim sendo, ele tornava-se precipitado, eventualmente temerário e disruptivo, comprometendo a totalidade da ordem social existente e, assim fazendo, estaria operando perversamente, causando a desorganização econômica e contrariando, portanto os seus próprios propósitos de progresso e justiça. Os antiabolicionistas tinham, por conseguinte, uma estrutura de argumentação semelhante àquela da “retórica da reação”, identificada por Albert Hirschmann ⁷⁷ , que estigmatiza todo pensamento refor mador ou revolucionário como sendo constituído por essas características negativas e destrutoras. Veja-se, por exemplo, como Sílvio Romero ⁷⁸ criticava a atuação de Nabuco durante sessão legislativa de 1880, quando este último havia apresentado o seu projeto de lei que libertaria os escravos em 1890: O Sr. Nabuco [...] determinou de vida à escravidão o lapso de dez anos!... Ora, esta solução não é nova [...] é a mais impraticável e disparatada [...] Sr. Joaquim Aurélio, pelo seu talento acadêmico, que não gera ideias e só produz frases, estava reservado o papel de complicar uma coisa simples... Começou por alcunhar todos os que lhe não seguiam submissamente as pegadas – de escravocratas despóticos!!! Ora, ninguém, a não ser esse egresso do bom senso, ignora que entre nós, depois da lei de 28 de setembro de 1871, a escravidão é um fenômeno mórbido, uma instituição que vai

morrer, uma árvore daninha a que se cortaram as raízes . Ninguém aqui é escravocrata; todos querem o remédio ao mal; a questão é só do método a empregar. [A] ideia é estreita diante da ciência social e econômica, da social, porque ele não prevê a posição que devam ocupar os libertados; da econômica, pois que diante de uma tal perspectiva o desânimo invadiria as classes produtoras do país... O verdadeiro problema que nos ocupa vem a ser: a substituição do trabalho escravo pelo livre, o fim do regime colonial pelo democrático, a vitória da ciência sobre a rotina... Ora, isto não se improvisa da noite para o dia, nem se resolve com música!... ⁷⁹ O abolicionismo de Nabuco seria o gesto de um “diplomata vistoso, sedento de notoriedade fácil” ⁸⁰ , uma manifestação de exibicionismo de bons sentimentos feita “para figurar de benemérito da humanidade aos olhos da AntiSlavery Society ” ⁸¹ . Dentro de uma estrutura política fechada, entretida por poucos, onde os embates pelo poder eram um jogo de cartas marcadas e distribuídas pela Coroa, a discussão de ideias raramente fazia parte da ordem do convencimento, de pouco valor real para que as coisas mudassem ou se conservassem. Na maioria das vezes, o debate tinha um valor ornamental, servia para que os contendores fizessem bonito, se distinguissem entre os talentos disponíveis na “praça” do prestígio ou da influência. Por trás da opinião emitida, procurava-se onde estava o interesse, quase sempre definido em termos prosaicos ou mesquinhos: defendia-se a liberdade, mas na verdade buscava-se um emprego assim como se era abolicionista para agradar estrangeiros e aparecer nos salões. Sílvio Romero reproduzia esse lugar comum que, à época, certamente não era desprovido de sentido. O personagem de Nabuco contribuía para atrair a fúria do ressentimento provinciano. As admoestações morais por ele proferidas, a sua intransigência abolicionista, provocavam o bom tom e o realismo conservador dominante, irritando-o porque vinham de alguém que simbolizava, em muito, a elite política nacional: egresso da oligarquia canavieira do Norte, neto e filho, respectivamente, de governador de província e senador do império. Na dramaturgia das disputas dentro da intelligentsia brasileira, onde pose e prestígio faziam boa figura, cabia-lhe o papel de um Carlos da Maia local, dândi e anglófilo, admirado pelos joãos da ega e invejado pelos dâmosozinhos salcede ⁸² . E nisso também, diga-se de passagem, Nabuco compunha apropriadamente a intelectualidade periférica, cuja autoestima e referência de valor eram medidas pela distância ou intimidade que cada um mantinha com os centros mais adiantados. Ainda bastante ilustrativas da obstinação pessoal dos contemporâneos para com o personagem, são as inúmeras referências às vezes irônicas, às vezes elogiosas, à beleza física de Nabuco e até ao seu vestuário. Notava-se de tudo. Por exemplo, que ele causara “sensação, indo às sessões da Câmara com um facto inglês de casimira clara e um chapéu de palha” ⁸³ , contrastando com as sobrecasacas negras e os chapéus altos dos outros deputados. Ao comentar uma sua viagem a Portugal, Sílvio Romero ataca: “desapareceu da noite para o dia, para ir mostrar seus belos bigodes em

Lisboa, recolher os aplausos a que fez jus pelas insignificâncias que disse de Camões” ⁸⁴ . Em 1884, quando realizou a sua mais famosa campanha eleitoral para deputado, divulgaram-se em folhetos os seguintes versinhos: Quincas, o belo, o formoso, Rapaz da moda, elegante Veio de terra distante Uma eleição pleitear... Saltou de calças bem largar Pulseira d’ouro no braço Bengala de castão d’aço E um croisé de arrastar! Diz ele que é praxe agora Um candidato à geral Aparecer – figurino – Ante o corpo eleitoral... Tem razão: ele que nunca Foi de eleitor conhecido É preciso ser vestido De maneira sem igual!... ⁸⁵ Não raras eram também, sobretudo no início da sua carreira, as referências a sua posição de apadrinhado dos amigos do seu pai dentro do situacionismo liberal: “Muito antes de ter o Senhor de Vila-Bela inventado o Sr. Joaquim Aurélio de Araújo para deputado por Pernambuco...” era ainda como Sílvio Romero ⁸⁶ investia contra ele, referindo-se à sua primeira eleição, em 1878. Vale notar que Nabuco entretinha com a política partidária, eleitoral e mesmo miúda, uma relação de ambiguidade frequente, que parecia se acordar com a ciclotimia do seu temperamento. Por um lado, estava convencido, a partir do diagnóstico que havia traçado da sociedade brasileira, que a libertação dos escravos só poderia vir por uma iniciativa de cima para baixo, em ato que traduzisse um acerto qualquer entre pelo menos uma parte das elites nacionais. Por outro lado, essas mesmas elites decepcionavam-no frequentemente. Ao escrever O Abolicionismo , mostrava-se desencorajado com a Coroa: Olhando em torno de si, o imperador não encontra uma só individualidade que limite a sua, uma vontade individual ou coletiva, a que ele se deva

sujeitar [...] A verdade é que esse governo é o resultado, imediato, da prática da escravidão pelo país. Um povo que se habitua a ela não dá valor à liberdade, nem aprende a governar-se a si mesmo. Daí a abdicação geral das funções cívicas, o indiferentismo político [...]: causas que deram em resultado a supremacia do elemento permanente e perpétuo, isto é, a Monarquia ⁸⁷ . Repugnava-lhe também as constantes hesitações dos partidos políticos, sobretudo da agremiação a qual estava ligado, o Partido Liberal, que se traduziam em ações protelatórias destinadas a manter o regime escravo. Ora solicitado à participação militante, ora acabrunhado pelo ambiente desfavorável, vemo-lo, hesitar, no curso da sua carreira entre o ativismo político entusiasmado e a tentação do recolhimento estudioso do escritor. Poucos dias depois da sua derrota de 31 de outubro de 1881, escreve ao seu amigo Sancho Pimentel ⁸⁸ : A minha única aspiração pessoal, ir viver em Londres independente, por uma longa série de anos, vai ser realizada em breve. Conto partir no dia 24 deste mês ou, então, dia 1° próximo. Dizem que serei o correspondente do Jornal do Comércio. Suponho que é exato. Sem dependência do governo – livre quanto posso sê-lo – viverei livre e esquecido na sociedade que mais aprecio [...] no estudo da marcha dos povos e da circulação dos capitais, como ofício, e das letras e das artes como distração. Nabuco vai realmente para Londres e torna-se correspondente do Jornal do Comércio . Mas retorna ao país dois anos depois, em maio de 1884, convocado por seus amigos e animado pelo desenvolvimento da campanha abolicionista. Chega ao Rio de Janeiro nas vésperas da instalação do ministério Dantas ⁸⁹ ; e, em face da dissolução da Câmara, voltaria a disputar novamente um lugar na Assembleia Nacional, como representante de Pernambuco. III Entre 1878 e junho de 1884, foram cinco os gabinetes liberais: Sinimbu, Saraiva, Martinho Campos, Paranaguá ⁹⁰ e Lafayette Rodrigues Pereira ⁹¹ . Desde a iniciativa de Nabuco durante o gabinete Saraiva a questão do trabalho escravo não saíra do parlamento, mas avançara muito lentamente. José Antônio Saraiva, como vimos, opusera-se a qualquer reforma. Martinho Campos havia se declarado “escravista da gema” ⁹² . Finalmente, Paranaguá e Lafayette introduzem a questão nos seus programas de ministério, nos moldes dos “emancipadores”, ou seja, dos que eram favoráveis a modificações progressivas no estatuto do sistema: pedem aos legisladores a proibição do comércio de escravos entre as províncias, um aumento no fundo de emancipação e o aumento no imposto na transmissão de vendas de escravos; propostas de contemporização com o abolicionismo e que não chegaram a ser postas em execução. Apesar das resistências, a campanha abolicionista ganhara corpo nos jornais e na opinião. As províncias do Norte se desinteressavam da manutenção do sistema escravagista, a ponto do Ceará tê-lo abolido em 1884. Presidentes de províncias, como Sátiro Dias, no Ceará e Teodoro Souto, no Amazonas,

“associavam-se às festas abolicionistas e comungavam com as assembleias provinciais na decretação de medidas que proibiam a exportação de escravos” ⁹³ . Estabelece-se um acordo entre o trono e os liberais para tratar da questão da emancipação; um acordo, segundo Nabuco, feito por pressão do imperador. É o gabinete Dantas: Foi por uma insistência particular do Imperador que, depois de cinco ministérios escravagistas [...] resultou a chamada ao poder do Sr. Dantas [...] Somente a intervenção do Imperador, deu assim ao partido liberal, no fim de uma situação, ensejo de afirmar, do modo tímido e fraco por que o fez, a sua aquiescência tardia ao movimento ⁹⁴ . O ministério Dantas assume em 7 de junho de 1884. Logo no dia 9, do mesmo mês, prepara uma mensagem a ser enviada aos parlamentares em que trata, sobretudo, do problema servil: determina o levantamento censitário e a localização de propriedade dos cativos; pede o aumento de dotação para ampliação do fundo de emancipação e estabelece a libertação dos escravos que tenham atingido e atingirem a idade de sessenta anos. No entanto, o projeto só é apresentado na Câmara em 15 de julho de 1884, por Rodolfo Dantas, filho do presidente Manuel de Souza Dantas, porque previa a criação de impostos e não podia ser iniciativa do governo ⁹⁵ . Desde logo, Nabuco, apesar de achar que a solução proposta para a questão “era demorada, ilógica e insuficiente” ⁹⁶ , mobiliza-se a favor do novo governo. O seu primeiro artigo de apoio é de 12 de junho de 1884, três semanas depois da sua volta ao Brasil e cinco dias depois da mudança de ministério. Formou-se uma aliança tática entre os abolicionistas e o gabinete, simbolizada pelos artigos favoráveis a Dantas, publicados como matéria paga no Jornal do Comércio . Eram escritos pelos mais ilustres partidários da causa, que assinavam sob pseudônimos. Nabuco, Rui Barbosa, Sancho de Barros Pimentel e Gusmão Lobo ⁹⁷ tomaram, por exemplo, respectivamente, os nomes de Garrison ⁹⁸ , Grey ⁹⁹ , John Bull ¹⁰⁰ e Clarkson ¹⁰¹ . Os demais também assumiram nomes de personagens ingleses ou americanos, fazendo com que Martinho Campos, escravocrata empedernido, denominasse-os de “os ingleses do Sr. Dantas”. No parlamento, havia dois grupos inconciliáveis, acima dos partidos, quando se tratava da escravidão. Em carta ao barão de Penedo ¹⁰² , de 23 de julho de 1884, Nabuco dizia: “Estou apoiando fortemente o ministério. O Dantas não tem maioria, e acredita-se geralmente que fará as novas eleições dissolvendo a Câmara [...] eu também creio na dissolução pelo Dantas. No caso de presidir este à eleição eu terei toda a boa vontade dele.” Realmente, logo se verifica que o governo tinha maioria precária. Na seção do dia 28 de julho de 1884, a questão de confiança é posta de maneira direta, através da seguinte proposta de resolução: “A Câmara, reprovando o projeto de governo sobre o elemento servil, nega-lhe sua confiança.” A desconfiança foi votada por 59 votos contra 52 ¹⁰³ e a dissolução da Assembleia Nacional é decretada. Convocam-se novas eleições.

Na preparação desta eleição de 1884, Nabuco vai realmente beneficiar-se de “toda a boa vontade dele”, dele Saraiva, como já adiantara na sua carta a Penedo. Comentando essa posição do situacionismo liberal na Corte, Carolina Nabuco nos diz: Entre as candidaturas cujo êxito mais interessava o governo, nas eleições que iam resolver a posição perante o país, do ministério 6 de junho ¹⁰⁴ e da Emancipação, figuravam no primeiro plano a de Joaquim Nabuco e de Rui Barbosa. O cuidado do governo para conquistar na Câmara essas duas vozes poderosas era logo visível ¹⁰⁵ . Os dois candidatos sofriam restrições dentro do partido, mas conseguiram mesmo assim obter vagas como candidato: Rui, pelo 8° Distrito da Bahia ¹⁰⁶ e Nabuco, pelo 1° Distrito em Pernambuco. A nomeação de Sancho de Barros Pimentel para governar Pernambuco foi fundamental para tornar viável a candidatura de Nabuco. Seu amigo muito próximo, e abolicionista, jogou todo o seu prestígio de presidente de província em face da oposição dos liberais locais. Fez ameaças, exigiu e conseguiu a indicação do companheiro para uma circunscrição onde a possibilidade de vitória era considerada difícil ¹⁰⁷ . Comemorando a simpatia oficial em seu favor, Joaquim Nabuco volta a escrever ao barão de Penedo: Só não mando lhe dizer Veni, vidi, vinci , porque a batalha ainda não teve lugar, mas Veni, vidi, vinci , a primeira campanha, que foi ser incluído na chapa do partido liberal, como candidato do 1° Distrito do Recife ¹⁰⁸ . Nabuco vai ser o candidato da situação liberal em Pernambuco. É recebido, e criticado, como tal, pelos seus oponentes do Partido Conservador. Como não poderia deixar de ser, a abolição tornara-se o principal tema da campanha na província. Alguns dos conservadores atribuíam a Nabuco a dupla qualificação de apaniguado do poder e de extremismo. É assim que o trata, por exemplo, O Tempo ¹⁰⁹ , um jornal de oposição à presidência liberal: se o chefe liberal dessa província aceita, para ser agradável ao governo, o nome do Sr. Joaquim Nabuco e apresenta-o ao eleitorado, é claro que, nas condições em que vai ferir a luta, todos os candidatos liberais devem ser suspeitados de abolicionismo intransigente, de sectários veementes do programa ministerial, que é um programa que pode mais tarde chegar ao comunismo. Na verdade, a questão da abolição penetrava e dividia os dois partidos. Entre os liberais, muitos havia que defendiam a indenização e uma emancipação gradual, procurando adiar a libertação total dos escravos ¹¹⁰ . Nos meios conservadores, insistia-se que Nabuco era o candidato do ministério e do presidente da província. Alguns recusavam a pecha de escravocratas, fazendo valer o papel do Partido Conservador na promulgação das leis que proibiam o tráfico de escravos e da lei do Ventre Livre:

Essa peste negra que nos foi legada pelas gerações idas, tinha até anos atrás duas causas mantenedoras de sua incessante renovação: a importação de africanos e os filhos da mulher escrava. Quem fez secar essas fontes? Quem destruiu essas duas casas? É o que indagava, no Diário de Pernambuco de 10 de agosto de 1884, Felipe de Figueirôa Faria, proprietário do jornal. Argumentava que foram os conservadores com Eusébio de Queirós ¹¹¹ e Rio Branco, os responsáveis por estacar essas fontes. E acrescentava: “Como, pois, com que direito, com que fundamento se diz no Parlamento, e se repete na imprensa e na praça pública que o Partido Conservador é escravocrata?” ¹¹² . Durante a campanha, ficou célebre a série de conferências proferidas por Nabuco no teatro Santa Isabel, e os discursos realizados em diversas localidades do Recife: na Madalena, no Montepio Pernambucano, no Largo da Paz, no Campo das Princesas e em São José. No meio de uma luta em que os interesses políticos locais eram predominantes e as acusações pessoais campeavam, as suas falas caracterizavam-se pelo estilo eloquente, mas, sobretudo, explanativo, quase didático com que dissertava sobre a sua candidatura e o objetivo maior: o combate pela abolição. Na sua terceira conferência, por exemplo, traça uma autobiografia política completa, a começar pelo favorecimento na sua primeira eleição: Não me cabe neste momento justificar a minha eleição de 1878 que foi toda devida à influência pessoal e ao prestígio do chefe do partido liberal naquela época o barão de Vila Bela. Ele havia tomado um compromisso com meu pai, a quem os seus serviços ao partido liberal davam esperança de encontrar no Parlamento um filho em que ele via um prolongamento intelectual e moral de si mesmo ¹¹³ . Mais adiante discorre, com minúcias, sobre a oposição que fizera aos gabinetes Sinimbu e Saraiva, sobre seu afastamento da facção Vila Bela e sobre os contatos mantidos com a Anti-Slavery Society . Em outros discursos, indignava-se com a calúnia de que havia negociado com escravos ¹¹⁴ – [tinha] “as mãos limpas de qualquer transação sobre entes humanos” – e negava aos seus adversários a autenticidade e a boa fé, quando se proclamavam emancipacionistas ¹¹⁵ : É verdade que em 1850 ele [o partido conservador] acabou o tráfico de escravos pela mão forte de Eusébio, mas, antes que Eusébio tivesse coragem bastante para deportar os traficantes, o partido conservador, desde 1840, movera guerra aos Andradas e aos liberais pelo ódio que eles tinham ao tráfico (muito bem), condenara a ser letra morta a lei regencial de sete de outubro de 1831 ¹¹⁶ , e, por fim só extinguiu a pirataria humana quando, em execução do Ato Aberdeen, a Inglaterra deu ordem para que seus navios fizessem presas mesmo nos mares territoriais do Brasil, ao alcance das baterias das nossas fortalezas. (Sensação) De 1866 até 1871 os abolicionistas eram todos liberais; não havia calúnia nem difamação que não forjassem contra eles. E lembrai-vos que, ainda em 1871, para se fazer a emancipação do ventre, foi preciso que o partido conservador se dividisse em dois pedaços, dos quais um verdadeiramente

conservador, o depositário das tradições conservadoras, estava do lado da escravidão e tinha por chefe o Sr. Paulino de Souza ¹¹⁷ . Mas, sobretudo, Nabuco mantinha, e expunha em linguagem direta, incomum em comícios políticos de então e de agora, as mesmas análises publicadas no seu O Abolicionismo , dissecando a instituição da escravatura com as suas ramificações na sociedade brasileira: A escravidão não é uma opressão ou constrangimento que se limite aos pontos em que ela é visível; ela espraia-se por toda a parte; ela está onde vós estais [...] esse regime de trabalho agrícola só podendo ser mantido por a supressão da natureza humana, precisava de cercar-se de proteções especiais e viver num meio aparte, fechado e todo seu, e daí resultou um sistema territorial, caracterizado pelo monopólio da terra e pela clausura dos trabalhadores. Tal sistema deu origem nos seus interstícios e nas suas fendas apenas, à aparição e gradualmente ao crescimento de uma população livre, que nada tem que possa chamar de seu, sem um palmo de terra que possa cultivar por sua conta, miserável e dependente no mesmo grau que o escravo [...] Mas como se vê, com uma instituição que possui o solo, o trabalho agrícola e a população livre, o mal não podia circunscrever-se: a escravidão, de sistema agrícola e territorial, tornou-se um regime social e estendeu o seu domínio por toda a parte ¹¹⁸ . Encerrava a quarta conferência, com uma sentença inflamada, um tanto sentimental, porém curiosa, pela enumeração detalhada dos grupos e pessoas a que se dirigia, associando-os a princípios éticos e interesses específicos, obtendo assim um efeito retórico expressivo de denúncia e convocação: Denuncio ao povo do Recife, reunido nos seus comícios, aquela instituição que para ser condenada pela consciência humana basta ser chamada pelo seu nome – de escravidão; eu a denuncio como incursa em todos os crimes do código penal, em todos os mandamentos da lei de Deus. A vós, artistas, eu a denuncio como roubo do trabalho; a vós, sacerdotes, como roubo da alma; a vós, capitalistas, como roubo da propriedade; a vós, magistrados, como roubo da lei; a vós, senhoras, como roubo da maternidade; a vós, pais, filhos, irmãos, como roubo da família; a vós, homens livres, como roubo da liberdade; a vós, militares, como roubo da honra; a vós, homens de cor, como roubo de irmãos; a vós, brasileiros, como roubo da pátria... Sim, a todos eu denuncio essa escravidão maldita, como fratricídio de uma raça, como parricídio de uma nação! ¹¹⁹ Na eleição do primeiro de dezembro de 1884, Joaquim Nabuco enfrentaria o Dr. Manuel do Nascimento Machado Portela ¹²⁰ , veterano político e deputado geral pelo Partido Conservador, dirigido em Pernambuco pelo senador João Alfredo ¹²¹ . O pleito decorreu normalmente, mas à tarde, quando já se verificava a apuração, houve um grave incidente: partidários do candidato liberal, tendo à frente José Mariano, e convencidos de fraude na apuração dos votos, dirigiram-se à junta apuradora na Matriz de São José. Lá, entraram em conflito com um grupo de conservadores, do que resultaram vários feridos, inclusive José Mariano, e a morte de um conservador, partidário de Portela.

O fato teve grande repercussão e impressionou vivamente o imperador, o qual, de 1° a 21 de dezembro, escreveu treze cartas ao presidente do conselho. Numa delas, deixava ver quem tinha a sua simpatia: “Talvez morresse o menos culpado, senão inocente. O ex-deputado José Mariano bem podia deixar de andar capitaneando o povo, ou antes, a populaça” ¹²² . A junta eleitoral, na sua maioria, determinou a realização de uma segunda eleição, mas os partidários de Manuel Portela, em reunião separada, rebelaram-se contra a decisão e diplomaram-no como eleito. Desse modo, enquanto Nabuco preparava-se para o segundo escrutínio, os conservadores recomendavam aos seus eleitores que dele não participassem e se dispunham a defender a legitimidade do seu deputado na Câmara. Na segunda votação, que foi realizada em 9 de janeiro de 1885, Nabuco saiu vencedor, obtendo 890 votos em um total de aproximadamente 1.500 eleitores. No entanto, tinha a sua eleição contestada e quando a Câmara se reuniu, em 11 de fevereiro, para a sua primeira sessão preparatória, o 1° distrito de Pernambuco apresentava-se com dois deputados diplomados: Manuel Portela e Joaquim Nabuco. Esta situação reproduzira-se em vários estados – 45 deputados tiveram os seus diplomas contestados contra 69 –, refletindo a fragilidade do gabinete Dantas, que segundo alguns não havia se imiscuído o suficiente nas disputas, contrariando uma prática habitual dos gabinetes no império, deixando, por conseguinte, à solta os vários bastiões conservadores e as divergências locais ¹²³ . O governo Dantas não saíra forte do pleito. Rui Barbosa fora batido na Bahia, Mata Machado, ministro dos Negócios Estrangeiros não se reelegera; Sancho de Barros Pimentel, derrotado em Sergipe. Com a Câmara à espera do reconhecimento de quarenta por cento de seus representantes, os situacionistas quedavam-se paralisados, na expectativa de ceder aos que se opunham a medidas emancipacionistas ¹²⁴ . O projeto Dantas de libertação dos sexagenários estava ameaçado. A crise eclode durante a sua discussão na sessão de 13 de abril de 1885, quando o presidente da Câmara apresenta uma moção de desconfiança ao gabinete: “A Câmara de Deputados, não aceitando resolver sem indenização o problema do elemento servil, nega o seu apoio à política do gabinete.” A votação da moção é empatada, 50 votos a 50. Seguem-se manifestações populares dos abolicionistas, no Rio de Janeiro; e a oposição ao gabinete consegue fazer aprovar a desconfiança, em 4 de maio, agora sob o pretexto de manter a ordem pública ¹²⁵ . Para suceder a Dantas, o imperador chama José Antônio Saraiva, o mesmo da reforma eleitoral, provavelmente o nome de maior prestígio entre os liberais, para que ele fizesse a união do partido e possibilitasse a aprovação da lei dos sexagenários. O novo gabinete apresenta o seu programa no dia 12 de maio de 1885, mas antes de vê-lo discutido pelos deputados, cabia a estes decidir a questão dos reconhecimentos. No mesmo dia 12, a Câmara reconhece Manoel Portela como representante do 1° distrito de Pernambuco, por 52 a 49 votos. “ Consumatum est ! Foi-se o Dantas e logo depois fui eu degolado”, escreve Nabuco a Penedo ¹²⁶ . Mas o acaso favorece uma reviravolta: morre o

deputado pelo 5° distrito de Pernambuco. Dois dias depois da sua degola, Nabuco recebe um telegrama dos liberais pernambucanos oferecendo-lhe a vaga para a disputa. É eleito em 7 de junho e toma posse no dia 3 de julho de 1885. Para tornar viável a proposta de Dantas, José Antônio Saraiva abranda-a, através da proposta de um deputado liberal, Pádua Fleury. O novo projeto aumenta a idade de libertação para 65 e – garantia aos proprietários – determina uma multa de quinhentos mil a um conto de réis a quem seduzisse ou acoitasse escravos alheios. Os abolicionistas combateram o projeto que foi apelidado o monstro. Mais tarde, Joaquim Serra diria ¹²⁷ que ele era “uma concessão dos que pediam pouco e dos que recusavam em absoluto”, um pacto entre “os tímidos e os refratários”, “esse justo meio do mínimo e de coisa nenhuma”. Rui Barbosa deixou registrado a sua oposição – “as pilhas do artifício parlamentar estão em atividade, para simular a vida neste defunto de nascença” – em duas célebres conferências durante as manifestações abolicionistas realizadas no Teatro Politeama, no segundo semestre de 1885 ¹²⁸ . Para Nabuco, reagindo desde logo, “o Saraiva desorganizou o Partido Liberal e o Conservador” ¹²⁹ , com uma medida insuficiente e mesquinha, uma “lei que empresta ao nosso legislador a ganância de Shylock e a hipocrisia de Tartufo”. “Rejeito-a porque acredito que a nação, em menos tempo, fará mais e melhor” ¹³⁰ . No entanto, a manobra conciliatória de Saraiva é bem-sucedida e ele consegue reunir uma maioria capaz de garantir a aprovação da lei: o projeto recebe sanção da Câmara – por 73 votos contra 17 – na sessão do dia 14 de agosto. A semelhança do que fizera em 81, quando da aprovação da reforma eleitoral, mal os deputados votaram o texto (na verdade, no mesmo dia), enviou sua demissão ao imperador. A situação, que Nabuco definira poucas semanas atrás como “uma situação conservadora com um governo liberal à frente” ¹³¹ , revelava-se, dessa maneira, inviável. Em face dos liberais divididos, o imperador chama o barão de Cotegipe ¹³² , chefe do Partido Conservador, que assume a chefia do gabinete no dia 20 de agosto de 1885. A lei será homologada a 28 de setembro, sob os protestos e a oposição dos abolicionistas. Entregue o governo aos conservadores, a Câmara é dissolvida e novas eleições são convocadas para o dia 15 de janeiro de 86. A aprovação da lei Saraiva-Cotegipe entorpeceria o abolicionismo, que se mostrara isolado no parlamento e se encontrava agora órfão do gabinete Dantas, que convivera com o movimento e permitira o amplo desenvolvimento da propaganda. Sob a nova tutela, voltava-se à prática das manipulações e perseguições políticas dos liberais. Desde a posse do novo governo, Nabuco começa a receber sinais de seus eleitores denunciando demissões de correligionários, dificuldades entre clubes abolicionistas e autoridades, enfim, os desmandos rotineiros dos poderes locais a serviço dos novos situacionistas ¹³³ . Ao chegar para nova campanha em Pernambuco, o Teatro Santo Isabel foi-lhe negado para as conferências eleitorais. Era o retorno ao regime das eleições quase unânimes: em 15 de janeiro de 1886, somente 19 liberais, entre uma

centena de deputados, se elegeram para a Assembleia Nacional ¹³⁴ . Os conservadores solidamente majoritários firmavam-se no governo, Nabuco fora derrotado por Manuel Portela; a abolição, mais uma vez, adiada. O resultado das eleições confirmava os limites e a característica principal da política vigente: tudo, em ultima instância, dependia do Poder Moderador, ou seja, do trono; situação denunciada por Nabuco no seu O Abolicionismo , mas já analisada por Nabuco, o pai, em um célebre discurso proferido em 1868. Ao criticar uma situação de absolutismo de fato, o senador Nabuco de Araújo resumia o sistema numa fórmula silogística: O Poder Moderador ¹³⁵ pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do país ¹³⁶ . No entanto, não seriam as regras do sistema político que haveriam de surpreender Nabuco, habituado a usá-las, quando possível, a seu favor, mas sim a súbita reviravolta da Coroa que, estando disposta a auxiliar o movimento emancipacionista, apoiando o gabinete de Dantas, desiste do intento ao vê-lo derrotado por apenas um voto na Assembleia Nacional, e logo faz apelo ao “simulacro de solução, a lei Saraiva-Cotegipe”. De volta à imprensa, convidado por Quintino Bocaiúva, diretor de O País ¹³⁷ , Nabuco escreve um panfleto, O Erro do Imperador , no qual ele insiste sobre este ponto: Na véspera estava a emancipação no poder; no dia seguinte estava a escravidão. Esse foi o primeiro, o grande erro do Imperador – o erro de arrepender-se, de inutilizar a obra começada, de paralisar o movimento nacional ¹³⁸ . No curso de 1886, o gabinete Cotegipe mantém-se firme, apesar dos ataques abolicionistas na imprensa e de algumas escaramuças parlamentares. Em 1º de junho de 1886, Manuel Dantas apresenta um projeto no Senado, apoiado pelo conservador João Alfredo ¹³⁹ , abolindo a escravidão em cinco anos, que nem sequer foi discutido. Nabuco aplaude-o, pela imprensa: “o país não está tão moralmente apodrecido” ¹⁴⁰ . O mês de março de 1887, ele passa em Recife, a tentar reanimar o movimento abolicionista, ocasião em que ajuda a fundar, juntamente com José Mariano, a Sociedade Pernambucana contra a Escravidão ¹⁴¹ . Inesperadamente, um fato novo vem atrair Joaquim Nabuco novamente à disputa eleitoral. Manuel Portela, seu rival no 1° distrito do Recife, fora nomeado ministro do Império do gabinete Cotegipe e, de acordo com a lei, devia pleitear a confirmação da sua cadeira na Assembleia Nacional ¹⁴² . A eleição de Portela tinha, portanto, uma importância particular sobre o destino do ministério. A campanha realizada durante todo o mês de agosto foi marcada por um grande emocionalismo e vários incidentes, inclusive a morte de um popular em um dos comícios do candidato liberal. Em 14 de setembro de 1887, Nabuco sai vitorioso por 1.407 votos contra 1.270. A sua vitória tem grande repercussão nacional: há manifestações na rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro, e afluem telegramas de apoio de várias províncias. Em 5 de outubro de 1887, Nabuco é reconhecido como deputado pela Assembleia Nacional; no dia 15, o parlamento entra em recesso.

“Ainda não se viu uma eleição produzir o efeito que a minha produziu”, escreveu Nabuco a Penedo, em oito de outubro de 1887. “Pôs o ministério doido de contrariedade e o abolicionismo de alegria, ambos de surpresa.” Dentro da classe política, “conservadores e liberais, a exemplo do que se passara nas proximidades da lei do Ventre Livre, disputavam na argolinha da abolição” ¹⁴³ . Entre os conservadores, alguns políticos como João Alfredo, que apoiou o projeto do senador Dantas estabelecendo a abolição para 31 de dezembro de 1889, insinuavam-se como solução alternativa de governo ¹⁴⁴ . Em começos de 1888, os bispos brasileiros editavam uma pastoral, recomendando a libertação dos escravos. E o ministério Cotegipe não se desfez. Reconstituiu-se sem Manuel Portela e resistiu alguns meses ao movimento abolicionista que a eleição pernambucana vinha reanimar ¹⁴⁵ . “Todo o período do ministério de Cotegipe foi uma época de reação” ¹⁴⁶ , sem maleabilidade, manifestando-se quase sempre pela repressão. Embora se houvesse comprometido a resolver a “questão servil”, seguindo o ritual de todos os gabinetes que o haviam precedido recentemente, limitou-se a concluir o andamento da lei dos sexagenários. Sua preocupação maior, em seu governo que durou 31 meses, era preservar a monarquia, em face dos avanços dos republicanos que pareciam crescer no bojo da agitação abolicionista, reanimada na sua propaganda, pela desorganização crescente da própria escravatura ¹⁴⁷ e do que ficou sendo conhecido como a “questão militar”. Como é sabido, a expressão designa uma série de episódios – tensões, oposições – ocorridos nos últimos anos do segundo reinado, entre oficiais do exército e da marinha organizados em clubes militares desde 1884 e 1887, respectivamente, e o executivo. Eram questões envolvendo a defesa de prerrogativas corporativas e discussões quanto ao futuro da monarquia, adiante da possibilidade próxima de um terceiro reinado com a princesa Isabel. Crescia dentro das forças armadas, a propaganda republicana e a oposição à escravatura ¹⁴⁸ . Data, por exemplo, de outubro de 1887, a célebre petição do clube militar, tendo à frente Deodoro da Fonseca ¹⁴⁹ , rogando que os soldados não fossem ocupados a prender escravos fugidos. O conflito com os militares resultaria na queda do ministério. Um caso policial de pouca monta, a prisão de um oficial da armada pela polícia do Rio, em 22 de fevereiro de 1888, deu aos militares, à imprensa e aos republicanos pretexto para pedir a demissão do chefe de polícia, que ganhara na execução da política repressiva do governo uma impopularidade notória. A princesa Isabel, que exercia a regência na ausência do imperador, em tratamento de saúde na Europa desde julho de 1887, acatando os reclamos, solicita ao gabinete o afastamento do auxiliar. Cotegipe recusa-se, apresenta a sua renúncia e a dos seus ministros ¹⁵⁰ . Decorriam as férias parlamentares e a princesa Isabel resolveu tomar a responsabilidade da mudança de governo, convidando outro chefe conservador, o conselheiro João Alfredo, que aceitou a chefia do gabinete ¹⁵¹ . Desde logo ficou assentado que a fala do trono, durante a abertura da Assembleia Nacional no dia 7 de maio, devia incluir um projeto abolindo a

escravidão, pondo um fim às tergiversações protelatórias. Com esse gesto a princesa dava uma resposta à crise política e procurava atrair popularidade para a Coroa, no momento em que já se discutia a sua eventual ascensão ao trono; e os abolicionistas viam cair na mão dos conservadores a realização de um ideal que reclamavam como seu. Temendo uma reação do seu partido, Joaquim Nabuco escreve aos colegas da minoria liberal pedindo “que a causa da demissão do ministério Cotegipe não deve ser impugnada, sendo dever do partido liberal dar apoio ao ministério atual” ¹⁵² . Durante a sessão de 7 de maio, Nabuco faz um discurso incisivo e vibrante, afirmando que as dissensões entre liberais sempre prejudicaram a vocação emancipacionista do partido: [Foram elas que] impediram Antônio Carlos de fazer o que fez Eusébio, que impediram de fazer Zacarias o que fez Rio Branco e que impediram Dantas o que vai fazer João Alfredo, que nunca tiveram fé nem no povo, nem nas ideias liberais. Mas o escravo já tem sido por demais explorado. “Sublime discurso de Nabuco”, registra André Rebouças no seu diário ¹⁵³ . No dia 13 de maio, um domingo, o Senado reuniu-se em sessão especial e a princesa Regente desceu de Petrópolis para assinar a lei que aboliu a escravidão no Brasil. 1 Carta de Joaquim Nabuco ao Barão de Penedo, dos quatro de outubro de 1882. In: NABUCO, Joaquim. Cartas a Amigos, coligidas e anotadas por Carolina Nabuco. São Paulo: Progresso Editorial S.A., s.d., v. I. p. 98. 2 Cf. CANDIDO, Antonio. Radicalismos. In:__. Vários Escritos . São Paulo: Duas Cidades, 2004. p. 274. 3 Cf. Um livro elitista? Posfácio. In: NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império . 5. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, v. II. p. 1.324. 4 Ibid., p. 153-154. 5 Ibid., p. 159. 6 Ibid., p. 162. 7 Ibid., p. 167. 8 Ibid., p. 152. 9 Ibid., p. 162. 10 Ibid., p. 172. 11 Ibid., p. 173. 12 Ibid., p. 177-179. 13 Ibid., p. 180. 14 Ibid., p. 180-181.

15 Ibid., p. 187. 16 Ibid., p. 190. 17 Ibid., p. 193-194. 18 Cf. “Um livro elitista? Posfácio”, op. cit., p. 1326-1327. 19 Obviamente, Joaquim Nabuco não foi o pioneiro da crítica ao “regime servil”. Ele faz parte de uma linhagem de comentaristas e publicistas que se inaugura provavelmente com Maciel da Costa e se compõe de personagens igualmente ou mais importantes, tais como José Eloy Pessoa da Silva, Frederico Leopoldo César Burlamaque e José Bonifácio. (VIOTTI, Maria Emília. Idéias escravagistas e antiescravagistas. In:__. Da Senzala à Colônia . São Paulo, Editora Unesp, 1997, p. 389-440): MACIEL DA COSTA, João Severiano (1769-1833). “Memória sobre a necessidade de abolir a introdução de escravos africanos no Brasil, sobre o modo e condições com que esta abolição se deve fazer e sobre os meios de remediar a falta de braços que ela pode ocasionar”. 1821; PESSOA DA SILVA, José Eloy (1792-1841). “Memória sobre a escravatura e projeto de colonização dos europeus e pretos da África no Império do Brasil” 1826; ANDRADA, José Bonifácio de (1763-1838). “Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura”. Apresentado em 1823 e publicado em 1826; BURLAMAQUE, Frederico Leopoldo Cesar(1803-1866). “Memória analítica acerca do comércio dos escravos e acerca dos males da escravidão doméstica”. 1837. Entre esses, no entanto, Nabuco foi certamente o primeiro a identificar e traçar todos esses laços, por assim dizer, sistêmicos entre a escravidão e a sociedade brasileira. 20 Entre 1882 e 1883. A referência desta primeira edição é: Londres: Tipografia de Abraham Kingdon, 1883. 256 p. O livro começou a ser distribuído em agosto de 1883: “Custara grande esforço e consumira as pequenas economias de Nabuco, cerca de dois contos” (Cf. VIANA FILHO, Luís. 20 A Vida de Joaquim_Nabuco . Porto: Lello & Irmão Editores, 1985. p. 104). 21 Domingos de Souza Leão (Pernambuco 1819-Paris 1879) foi governador da província Pernambuco por duas vezes: entre 13/01/1864 e 01/12/1864 e entre 10/05/1867 e 25/07/1868. Em 1878, era ministro dos Negócios Estrangeiros e chefe do partido liberal em Pernambuco. 22 João Lins Vieira Cansansão De Sinimbu (Alagoas, 1810-Rio de Janeiro, 1907). Presidente de diversas províncias, foi deputado geral (1842 e 1853), senador (1857), ministro dos Negócios Estrangeiros (1859), da Agricultura e da Justiça (1862), e presidente do Conselho de Ministros em 1878. 23 VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 80. 24 Cf. NABUCO, Joaquim. Minha formação , op. cit., p. 219.

25 Cf. VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 81. 26 José Bonifácio Andrada e Silva, dito o Moço. (França, SP 1827-São Paulo, SP 1886). Professor da Escola de Direito de São Paulo, teve grande influência sobre a geração de Nabuco, Rui Barbosa, Castro Alves. Poeta romântico, abolicionista, deputado, senador e ministro do Império. 27 Gaspar Silveira Martins (Bagé, RS 1835-Montevidéu, 1901). Foi deputado várias vezes pelo Rio Grande do Sul. Durante a Revolta Federalista, chefiou a facção rebelde contra Júlio de Castilhos, então presidente da província do Rio Grande do Sul (ver nota, abaixo). 28 O discurso foi pronunciado em 19 de fevereiro de 1879. Cf. NABUCO, Carolina. A Vida de Joaquim Nabuco, por sua filha Carolina Nabuco . São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1929. p. 69 e VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 85. 29 Cf. BELLO, José Maria . A Inteligência do Brasil . São Paulo: Companhia Editora Nacional. 2. ed., s.d.. p. 103. 30 Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). 5. O Brasil Monárquico: do Império à República. Coleção História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1985. p. 240. 31 Em correspondência a Nabuco, Sancho de Barros Pimentel, seu amigo fraternal e que viria, mais tarde, a governar de Pernambuco, refere-se ao ministério Sinimbu dizendo “que este foi o pior período parlamentar da historia dos últimos tempos”. Carta datada de Curitiba, 05 de outubro de 1881. Arquivo da Fundação Joaquim Nabuco , n° de acesso: 0248 [CP P6 DOC 106]. 32 Na elaboração do orçamento de 1880, o relator Buarque de Macedo, deputado por Pernambuco, sugeriu ao ministro da Fazenda, Afonso Celso, a criação do imposto de um vintém por passagem de bonde, ideia rejeitada por Sinimbu, mas finalmente aprovada pelo gabinete. A queda do ministério se dá aos 28 de março de 1880 (Cf. MONTEIRO, Tobias. Pesquisas e Depoimentos para a História . Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia., 1913. p. 47). 33 Em 28 de março de 1880. 34 José Antônio Saraiva (Santo Amaro, BA, 1823-Salvador, 1895). Foi deputado, senador, e presidiu as províncias do Piauí, Alagoas, São Paulo e Pernambuco. 35 Lei Saraiva, Lei do Censo ou da Eleição Direta, projeto apresentado na sessão da Câmara dos Deputados de 07/01/1881, sancionado por meio do Decreto n.º 3.029, de 09/01/1881. O projeto de lei foi redigido por Rui Barbosa. 36 Exigia-se comprovação de uma renda mínima de Rs 200$000 que teria de ser comprovada de maneira bastante minuciosa: pela posse de bens de capital, pagamento de impostos, exercício de atividade comercial ou de

determinados empregos públicos ou de certas profissões como a de guardalivros, corretores etc. (Cf. CARVALHO, José Murilo. Teatro de Sombras . Rio de Janeiro: UFRJ/ Relume Dumará, 1996. p. 380). 37 Em 1872, o número de votantes era de 1.098 mil, ou seja por volta de 11 por cento da população brasileira do período (13 por cento excluindo a população escrava). Em 1886, portanto depois da Reforma Saraiva, esses números caem para 117 mil e 0,8 por cento, respectivamente (Cf. CARVALHO, José Murilo, op. cit., p. 361). 38 Somente depois do Estado Novo, em 1945, essa porcentagem de eleitores atinge o nível de 1872 (13,4 por cento) (Cf. CARVALHO, José Murilo, op. cit., p. 361). 39 MONTEIRO, Tobias. Pesquisas e Depoimentos para a História , op. cit., p. 57. Durante a discussão da reforma eleitoral (Sessão de 29 de abril de 1879), Nabuco diz: “Não que eu queira comparar os direitos da liberdade aos direitos eleitorais, não que eu não saiba que o primeiro problema do país é a emancipação dos escravos” (Cf. NABUCO, Carolina, op. cit., p. 71). Por todo o ano de 1879, são inúmeras as manifestações antiescravagistas. A propósito, ver o capítulo A Emancipação no Parlamento, In: NABUCO, Carolina, op. cit., p. 67-91. 40 José Mariano Carneiro da Cunha (Pernambuco, 1850-Pernambuco 1912). Formado em Direito pela Faculdade de Recife. Elegeu-se diversas vezes deputado geral durante o Império e deputado federal, no regime republicano. Foi provavelmente o abolicionista mais popular em Pernambuco, sobretudo em Recife por onde se elegia. O prédio da Câmara Municipal da cidade leva o seu nome. 41 Joaquim Saldanha Marinho (Olinda, PE, 1816-Rio de Janeiro, 1895). Jornalista e político, um dos autores do anteprojeto da Constituição republicana. 42 Joaquim Maria Serra Sobrinho, escritor (São Luís, 1838-Rio de Janeiro, 1888). Iniciou-se na imprensa no Maranhão. Transferindo-se para o Rio de Janeiro, lançou-se na campanha abolicionista. Autor de romances, de poesias e de peças teatrais. Patrono da cadeira nº 21 da Academia Brasileira de Letras. 43 José da Costa Azevedo Ladário, barão de (Rio de Janeiro, 1823-id., 1904). Político e militar. Muito contribuiu, com seus trabalhos e estudos sobre fronteiras, para esclarecer a questão das Missões, entre o Brasil e a Argentina. Foi ministro da Marinha no último gabinete do Império. 44 Cf. MONTEIRO, Tobias, op. cit., p. 57. Nabuco dirá na sua campanha de 1844 (Terceira Conferência no Teatro Santa Isabel a 16 de novembro) que “em todas as questões relativas à liberdade nós podíamos contar com dez votos” (Cf. NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife , Eleições 1884 . Recife: Editora Massagana, 1988. p. 75). 45 Fundada em 29 de setembro de 1880.

46 André Pinto Rebouças (Cachoeira, BA, 1838-Funchal, ilha da Madeira, 1898). Engenheiro. Foi construtor das primeiras docas do Rio de Janeiro, Maranhão, Paraíba, Pernambuco e Bahia. Abolicionista notável. Proclamada a República, exilou-se na ilha portuguesa da Madeira. 47 José Carlos do Campos Patrocínio (RJ, 1854-Rio de Janeiro, 1905). Jornalista, orador e escritor. Filho de uma escrava alforriada e do cônego João Monteiro, foi uma das figuras de mais destaque da campanha abolicionista: criou núcleos de propaganda e ajudou na fuga de escravos. Membro da Academia Brasileira de Letras. 48 Matutino carioca fundado em 1875 por José Ferreira de Araújo. Nele, José do Patrocínio começou sua carreira e Raul Pompeia iniciou a publicação de O Ateneu . Por volta de 1890, eram seus colaboradores, entre outros, Artur Azevedo, Olavo Bilac, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Guimarães Passos e Coelho Neto. 49 Cf. VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 89. 50 BELLO, José Maria, op. cit., p. 104. 51 Sessão de 22 de abril de 1880. 52 Sessão de 18 de maio de 1880. 53 Cf. NABUCO, Carolina, op. cit., p. 80. 54 Sessão de 24 de agosto de 1880. 55 Cf. NABUCO, Carolina, op. cit., p. 84-85. 56 Martinho Álvares da Silva Campos (Pitanguy, MG, 21/11/1816-Caxambu, MG, 29/3/1887). Doutor em medicina, conselheiro de estado, foi por várias vezes deputado, quer pelo Rio de Janeiro, de que foi presidente, quer por sua província, e escolhido senador em 1882, sendo neste mesmo ano incumbido de organizar o gabinete de 21 de janeiro, encarregando-se da pasta da Fazenda. 57 Na sessão de 30 de agosto de 1880. 58 Do Ventre Livre. 59 Sessão de dois de setembro de 1880. 60 Na terceira conferência no Teatro Santa Isabel, durante a sua campanha de 1844, ele rememora: “O Barão de Vila Bela pediu-me uma vez quando o ministério Sinimbú reorganizou-se com a entrada dos Srs. Sodré e Moreira de Barros que, se eu achasse compatível com a minha dignidade, cessasse a oposição que fazia ao gabinete para não criar dificuldades na província ao grupo que ele dirigia e que era então perseguido. Respondi ao ilustre amigo que não se tratava da minha dignidade, mas que minhas convicções me obrigavam a aumentar até a força de meu ataque ao ministério, como ia fazê-lo naquela mesma sessão” (NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife , op. cit., p. 98-99). No seu diário (nove de julho de 1881), Nabuco

antecipa a derrota: “Vi provas da minha circular; ao passo que escrevo pedindo votos estou pensando em redigir a minha despedida. Duas carreiras sacrificadas: a diplomacia e a política. What next?” (Cf. NABUCO, Carolina, op. cit., p. 118). A circular a que Nabuco se refere, datada de 7 de julho de 1881 (dos sete de julho de 1881), está arquivada na Fundação Joaquim Nabuco com n° de acesso: 0222 [CA P84 DOC 1650]. 61 Em 18 de outubro de 1879. 62 VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 91-92. 63 A passagem por Portugal desvaneceu-o em particular. Dezesseis anos depois ainda lembrava da sua visita ao parlamento português, em carta a Rui Barbosa: “Nas Cortes Portuguesas Antônio Cândido, para prestigiar a minha romaria abolicionista pelo mundo estrangeiro, como a de Garrison outrora, propôs em um discurso eloquente que a Câmara nomeasse uma comissão para me ir buscar à galeria onde eu estava e me concedesse as honras do próprio recinto do Parlamento Português, entre cujos membros tomei lugar” (Cf. Carta de 23 de julho de 1906. In: ALENCAR, José Almino de e SANTOS, Ana Maria Pessoa dos (Orgs.). Meu caro Rui, meu caro Nabuco . Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1999). 64 “Sobrava-lhe em Pernambuco a possibilidade de competir com dois de seus amigos – José Mariano e Costa Ribeiro, o que lhe repugnava” (Cf. NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife , op. cit., p. 99-100). 65 Ibid., p. 98 e 100. 66 Cf. MONTEIRO, Tobias, op. cit., p. 50. 67 Artur Silveira da Mota, Barão de Jaceguai, Almirante (São Paulo, 1843Rio de Janeiro, 1914). Tomou parte ativa na Campanha Oriental (1864) e na guerra do Paraguai. Dirigiu o Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, a Escola Naval e a Repartição da Carta Marítima. Autor de Organização naval (1896) e Reminiscências da guerra do Paraguai (obra póstuma, 1935). Foi membro da Academia Brasileira de Letras. Em 1895, escreve uma carta aberta a Nabuco, de quem era muito amigo, conclamando-o a colaborar com a república. Ao O Dever do Momento (era assim intitulado o documento de Jaceguai), Nabuco respondeu com O Dever do Monarquista. 68 VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 97. 69 BOCAIÚVA, Quintino Antonio Ferreira de Sousa (Rio de Janeiro, 1836-1912). Político, jornalista e escritor. Abolicionista, foi um dos signatários do manifesto republicano de três de dezembro de 1870, que deu origem ao movimento no segundo império. Ministro da Agricultura e das Relações Exteriores depois da proclamação da república. 70 Cf. NABUCO, Carolina, op. cit., p. 120. 71 Segunda Conferência no Teatro Santa Isabel. No 1° de novembro de 1884. In: NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife , op. cit., p. 31.

72 Cf. BELLO, José Maria. A Inteligência do Brasil , op. cit., p. 101. 73 Refere-se aos filhos de escravos nascidos depois da lei de 28 de setembro de 1871 (Ventre Livre), antes da maioridade. 74 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo , op. cit., p. 21-23. 75 Cf. As batalhas da abolição. In: CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. p. 65-82. José Murilo destaca o papel de dois desses ideólogos: José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1742-1821), que escreveu “Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos da costa da África”, de 1798; e José de Alencar (1829-1877), com as suas Novas cartas políticas (1867) dirigidas ao imperador, sob o pseudônimo de Erasmo. 76 A Lei nº 2040, de 28 de setembro de 1871, promulgada durante o gabinete conservador do Visconde do Rio Branco, dispunha que seriam livres os filhos nascidos de escravas a partir daquela data. Contudo, os filhos ficariam “em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães” até a idade de oito anos, quando o senhor teria a opção de ser indenizado ou de utilizar-se do menor até a idade de 21 anos. 77 Cf. HIRSCMANN, Albert . The rhetoric of reaction – perversity, futility, jeopardy . Cambridge, MA: The Belknap Press of the Harvard University Press, 1991. 78 ROMERO, Sílvio (1851-1914). Joaquim Nabuco e a emancipação dos escravos. In:__. Ensaios de crítica parlamentar. Rio de Janeiro: Moreira, Maximino & C., 1883. p. 157-173. Transcrito em MONTELLO, Josué. Os Inimigos de Machado de Assis. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1998. p. 309-319. 79 Ibid., p. 311-312. 80 Ibid., p. 310. 81 Ibid., p. 311. Sílvio Romero refere-se à sociedade inglesa, com a qual Nabuco manteve vários contatos. A Anti-Slavery Society foi criada em Londres em 1790 e teve um papel importante na promulgação do Abolition Trade Act , de 1807, que proibia o transporte de escravos em navios britânicos, e do Slavery Abolition Act de 1833 , que aboliu a escravidão nas colônias inglesas. 82 Cf. Os Mais , de Eça de Queirós. 83 Citado por VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 82. 84 Ibid., p. 311. 85 GOUVÊA, Fernando da Cruz. Joaquim Nabuco entre a Monarquia e a República . Recife: Editora Massagana, 1989. p. 93-94. 86 Ibid., p. 317.

87 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo , op. cit., p. 192-193. 88 Cf. Carta do Rio, em oito de novembro de 1881. In: VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 98. 89 Manuel Pinto de Sousa Dantas (Salvador, 1835-Rio de Janeiro 1894). Foi presidente de Alagoas e Bahia, deputado (1857-1868), senador (1878) e conselheiro de estado; várias vezes ministro (Agricultura, Justiça, Fazenda e Negócios Estrangeiros). Assumiu a presidência do conselho de ministros entre seis de junho de 1884 e quatro de maio de 1885. 90 João Lustosa da Cunha Paranaguá, segundo visconde e segundo marquês de. Político brasileiro (Piauí, 1821 – Rio de Janeiro, 1912). Ministro da Justiça (1859), da Justiça e da Guerra (1866), da Guerra (1879), da Fazenda (1882), de Estrangeiros (1885), conselheiro de Estado (1879) e presidente do Conselho de Ministros (1882-1883), retirou-se da política ao ser proclamada a República. Presidiu o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. O gabinete Paranaguá assume em 3 de julho de 1882. 91 Lafayette Rodrigues Pereira (Minas Gerais, 1834 – Rio de Janeiro, 1917). Político e magistrado Presidente das províncias do Ceará e do Maranhão. Ministro da Justiça do gabinete Sinimbu, presidente do Conselho de Ministros (1883), ministro plenipotenciário no Chile e ministro especial em Washington. Deixou várias obras jurídicas, entre elas, Direito das coisas [1877] e Princípios de direito internacional [1903]). Foi membro da Academia Brasileira de Letras. O gabinete Lafaytte Rodrigues Pereira sucede ao de Paranaguá em 24 de maio de 1883. É substituído pelo gabinete de Manuel de Souza Dantas em 6 de junho de 1884. 92 MONTEIRO, Tobias , op. cit., p. 61. 93 Ibid., p. 61-62. 94 O País , 12 de maio de 1886. In: NABUCO, Carolina, op. cit., p. 141. 95 Ibid., p. 142; e MONTEIRO, Tobias , op. cit., p. 74-75. 96 Carta ao barão de Penedo de 13 de maio de 1824. Citada por VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 114. Mais tarde, em um dos seus artigos, diria: “eu confesso que quando ouvi o programa do ministério Dantas – a libertação dos sexagenários – tive vontade de rir” ( O País , 15/12/86). 97 Francisco Leopoldino Gusmão (Pernambuco 7/06/1838-Rio de Janeiro 1900). Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela faculdade do Recife, foi deputado pela província de Pernambuco, sua província natal na 15 a e 16 a legislaturas e antes disso deputado na Assembleia da dita província em mais de uma legislatura. Abolicionista, notabilizou-se como jornalista. Escreveu em A Nação . Fez parte da redação do Jornal do Comercio e do Jornal do Brasil. 98 William Lloyd Garrison (1805-1879), abolicionista americano, presidiu American Anti-Slavery Society . Jornalista, fundou e editou o Liberator , jornal antiescravagista.

99 Charles Grey, conde (1764-1845). Primeiro-ministro inglês entre 1830 e 1834. Em 1835, fez passar a lei que abolia a escravidão em todo Império Britânico. Rui Barbosa usava também o pseudônimo Lincoln, homenagem ao 16° presidente dos Estados Unidos (Abraham Lincoln,1809-1865, exerceu a presidência entre 1861 e 1865.) 100 John Bull, personagem que tipifica a nação inglesa; tirado de The History of John Bull (1712), de John Arbuthnot (1778). 101 Thomas Clarkson (1760-1846). Abolicionista inglês, devotou a maior parte da sua vida à luta contra a escravidão, reunindo sobretudo vasta documentação sobre o tráfico de escravos, que utilizava nas suas denúncias. Partilha com William Wilberforce o crédito pela aprovação do Act of 1807 , que aboliu o tráfico de escravos no Império Britânico. 102 Francisco Inácio de Carvalho de Moreira (Penedo, AL 26/12/1816-Rio de Janeiro, RJ 01/04/1906), barão de Penedo, bacharel pela Faculdade de Direito da Bahia em 1839 e doutor pela universidade de Oxford; representou a sua província na 8 a legislatura, de 1849 a 1852; foi advogado no Rio de Janeiro e, tendo ingressado na carreira diplomática, exerceu vários cargos perante vários países da Europa e da América, sendo o último o de enviado extraordinário e ministro plenipotenciário na Grã-Bretanha, onde permaneceu por vários anos. Seu filho, Artur de Carvalho Moreira, também diplomata, havia sido colega de Nabuco na Faculdade de Direito de S. Paulo e promovera a aproximação deste último com o pai. Em Minha formação , há um capítulo cujo título “Grosvenor Garden” é relativo ao endereço londrino da mansão dos Penedo, muito frequentada pelo pernambucano. Joaquim Nabuco entreteve com o velho barão uma longa correspondência, cheia de familiaridade e na qual trocavam informações e comentários sobre os acontecimentos políticos. 103 NABUCO, Carolina, op. cit., p. 151-152. 104 Refere-se obviamente ao Ministério Saraiva, que foi escolhido no dia 6 de junho e toma posse no dia 7. 105 NABUCO, Carolina, op. cit., p. 158. 106 Rui Barbosa vem a perder a reeleição de deputado geral pelo 8º Distrito da Bahia. Durante a campanha fora duramente atacado pelos proprietários de escravos e pela Igreja. Era acusado de simpatias maçônicas e haver se pronunciado pela elegibilidade dos acatólicos, em defesa da liberdade de culto etc. 107 Cf. VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 116. 108 Ibid., p. 158. 109 O Tempo , 10 de outubro de 1884. Cf. GOUVÊA, Fernando da Cruz, op. cit., p. XVIII. 110 O Tempo , na sua edição do dia 9 de novembro, considerava a chapa do Partido Liberal, então sob a chefia de Luís Felipe de Souza Leão, “um

verdadeiro mosaico” em que se encontravam “desde a mais acentuada resistência aos avanços da ideia abolicionista, até o abolicionismo mais adiantado, uma escala inteira e completa entre os dois seguintes extremos opostos – o Sr. Dr. Souza Carvalho, o proprietário e diretor do Diário do Brasil , e o Sr. Joaquim Nabuco, o abolicionista exigente e sem restrição” (Cf. GOUVÊA, Fernando da Cruz, op. cit., p. XV). 111 Essa é uma referência, obviamente, à Lei n o 581, de 4 de setembro de 1850, dita lei Eusébio de Queirós: A importação de escravos foi considerada ato de pirataria. As embarcações flagradas no comércio ilícito seriam vendidas com toda carga a bordo, sendo o seu produto entregue aos apresadores, deduzindo um quarto para os denunciantes. Os escravos apreendidos seriam reexportados, por conta do governo, para os portos de origem ou qualquer outro porto fora do império. Enquanto isso não fosse feito, eles deveriam ser empregados em trabalhos públicos, ficando sob tutela do governo. 112 GOUVÊA, Fernando da Cruz, op. cit., p. XXII-XXIII. 113 Terceira Conferência no Teatro Santa Isabel. A 16 de novembro de 1884. In: NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife , op. cit., p. 58. 114 Especificamente da acusação de que havia vendido os escravos herdados da sua madrinha para financiar a sua primeira viagem à Europa. Discurso Pronunciado Teatro Santa Isabel. A 26 de outubro de 1884. In: NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife , op. cit., p. 20. 115 Ibid., p. 21-22. 116 Na verdade, o texto é de 7 de novembro de 1831, e não de outubro, como está transcrito na edição de 1885 do discurso de Nabuco, cuja versão fac-similar é utilizada neste trabalho. A lei regencial punia os importadores de escravos com multa e pena corporal e declarava livre “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora” (art. 1°). 117 Paulino José Soares de Sousa (Itaboraí, RJ, 21/04/1834-Rio de Janeiro, RJ, 1901) foi Secretário de Estado de Negócios do Império de 16-07-1868 a 29-09-1870, durante o gabinete conservador de Joaquim José Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí. Seu pai, de mesmo nome, era o visconde de Uruguai, várias vezes deputado e senador do Império em 1849. 118 Segunda Conferência no Teatro Santa Isabel. No 1° de novembro de 1884. In: NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife , op. cit., p. 30-31. 119 Quarta Conferência no Teatro Santa Isabel. A 30 de novembro de 1884. In: NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife , op. cit., p. 162-163. 120 Manuel do Nascimento Machado Portela (Pernambuco 25/12/1833-Rio de Janeiro 9/12/1895). Político, formado em Direito. Pelo Partido Conservador, foi deputado provincial, em várias legislaturas e deputado

geral em três legislaturas (18 a , 19 a e 20 a ). Exerceu o cargo de ministro do Império no gabinete do barão de Cotegipe, de 20 de agosto de 1885. Retirou-se da política depois da proclamação da República. 121 CORREIA DE OLIVEIRA, João Alfredo (Goiana, PE, 1835-Rio de Janeiro, 1919), formado em Direito (1858), foi deputado em sua cidade (1859) e presidente das províncias do Pará e de São Paulo (1861). Deputado em quatro legislaturas, senador (1877), ministro do Império (1871-1875 e 1877). Ilustrando, mais uma vez a ambiguidade que caracterizava a posição dos dois partidos diante do regime servil, o Conselheiro João Alfredo foi presidente do Conselho e organizador do gabinete de 1888, que aboliu a escravidão no Brasil. Na República, exerceu o cargo de diretor do Banco do Brasil. 122 Cf. MONTEIRO, Tobias, op.cit., p. 94-95. 123 Sobre a eleição de 1884, seus incidentes e contestações, cf. MONTEIRO, Tobias, op. cit., p. 95-98; VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 120-124; NABUCO, Carolina, op. cit., p. 175-180 e GOUVÊA, Fernando da Cruz, op. cit., p. XLVIII-LX. 124 Numa carta a Rodolfo Dantas, datada de 14 de janeiro [1885], dizia Gusmão Lobo que era na imprensa uma das grandes forças do gabinete: “A ninguém se não a você direi: estamos batidos. Tão convencido estou disto que já tenho pensado em transação com Lourenço e outros liberais que combatem a alforria sem indenização, concedendo-lhe um ou dois anos de serviços a título de indenização” (Cf. MONTEIRO, Tobias, op. cit., p. 96). 125 NABUCO, Carolina, op. cit., p. 180-181. 126 No dia 15 de maio de 1885. 127 No O País , de 17 de setembro de 1887. 128 Cf. Conferências no Teatro Politeama, a 7 de junho e a 2 de agosto de 1885. In: BARBOSA, Rui. Abolicionismo . Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988 (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 12, t. 1, 1885). p. 141-204. 129 Carta de 18 de julho de 1885. In: Arquivo da Fundação Joaquim Nabuco , n° de acesso: 0759 [CA P4 DOC 78]. 130 Sessão de 30 de julho de 1884 e discurso de Nabuco no Festival Abolicionista de 28 de setembro de 1885. In: NABUCO, Carolina, op. cit., p. 186-187. 131 Sessão de 6 de julho de 1885. In: NABUCO, Carolina, op. cit., p. 187.

132 João Maurício Wanderley, barão de Cotegipe (Vila da Barra do Rio Grande, BA, 1815-Rio de Janeiro, 1889). Foi presidente da sua província (1852) e ocupou vários ministérios: da Marinha (1855 e 1868), da Fazenda (1865) e de Estrangeiros (1869, 1875, 1885). O gabinete de São Vicente confiou-lhe a chefia da missão diplomática no Prata, para negociar a paz com o Paraguai. Foi presidente do Conselho de Ministros (1885-1888). 133 Por exemplo, em carta de 19 de agosto de 1885, João Aristóbulo Ferreira da Silva comunica que está ameaçado de demissão do seu lugar de coletor “por ser odiado pelos conservadores” (Cf. Arquivo da Fundação Joaquim Nabuco , n°de acesso: 0776 [CP P326 DOC 6652]); Em 22 de agosto de 1885, Zoroastro Nogueira Alves de Macedo escreve que “desordens provocadas pelos conservadores” dificultam a organização de um clube abolicionista na cidade de Bananal (ibid., n° de acesso: 0776 [CP P326 DOC 6652]). São exemplos singelos, mas tenha-se em consideração que as pressões se exerciam sobre um eleitorado diminuto, composto de homens muitas vezes dependentes de empregos públicos ou de favores governamentais. Mais tarde, em carta de 21 de outubro de 1885 (ibid., n° de acesso: 0792 [CP P327 DOC 6664]), depois de comentar sobre a organização da chapa provincial, alerta-o de que, face ao domínio conservador, diz “que o partido liberal será derrotado, pois o candidato mais forte será Nabuco, mas seus votos não bastarão para derrotar o Portela”. 134 Cf. NABUCO, Carolina, op. cit., p. 198. 135 O termo foi introduzido pelo escritor francês Benjamin Constant (1767-1830) no seu Cours de Politique Constitutionnelle e decorre provavelmente de uma interpretação de L’Esprit des Lois , obra maior de Montesquieu (1689-1755). Designa uma instância político-jurídica que deveria conferir equilíbrio aos poderes executivo, legislativo e judiciário. No Brasil, o Poder Moderador, instituído pela Constituição de 1824, era atributo do imperador. A este cabia a organização política do império, destacando-se entre as suas competências executivas: o poder para prorrogar ou adiar a Assembleia Geral (o conjunto da Assembleia Nacional e Senado), dissolver a Assembleia Nacional, bem como a de nomear senadores e ministros de estado. Eram frequentes as críticas ao que era percebido como uma concentração excessiva de poderes nas mãos da Coroa. Não obstante, essas prerrogativas foram mantidas até o 15 de novembro de 1889, quando da proclamação da República. 136 Ficou conhecido como o “discurso do sorites”. Foi pronunciado por José Tomás Nabuco Araújo no Senado, em 17 de julho de 1868, logo após a dissolução do ministério liberal de Zacarias de Góis e Vasconcelos (Valença, 1815-Rio de Janeiro, 1877). NABUCO, Joaquim. Um Estadista no Império . 5. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, v. II. p. 663. Em O Abolicionismo (op. cit., p. 190), Nabuco faz observação idêntica: “O presidente do Conselho vive à mercê da Coroa, de quem deriva a sua força, e só tem aparência de poder quando se o julga um lugar-tenente do imperador e se acredita que ele tem no bolso o decreto de dissolução, isto é, o direito de eleger uma câmara de apaniguados seus.” 137 Fundado em 1885.

138 Cf. O Erro do Imperador. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, Rua do Ouvidor, 31, 1896. p. 7. 139 ANDRADE, Manuel Correia de. João Alfredo: o estadista da Abolição. Recife: Editora Massangana, 1988. p. 169. 140 O País , 5 de junho de 1886. 141 NABUCO, Carolina, op. cit., p. 206. 142 Era obrigado a reapresentar-se em novas eleições, especialmente convocadas para o seu distrito eleitoral; no caso, o 1° distrito de Pernambuco. 143 Cf. VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 153-154. 144 Cf. ANDRADE, Manuel Correia de, op. cit., p. 169. 145 Cf. NABUCO, Carolina, op. cit., p. 207-209; e VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 146-147. 146 Cf. MONTEIRO, Tobias, op. cit., p. 168. 147 Províncias como a do Ceará, Amazonas e Rio Grande do Sul, que já haviam abolido a escravidão, tornavam-se refúgios para os escravos fugidos. Por outro lado, cresciam o número de incidentes de fugas de escravos: “Tal foi o êxodo em S. Paulo que se chegou a calcular em dez a doze mil o número dos que desceram a serra do Cubatão e foram acoitados em Santos, onde, ao que se dizia, contavam com a benevolência das autoridades” (MONTEIRO, Tobias, op. cit., p. 169). Em Pernambuco, eles fugiam da cultura da cana e se refugiavam sob a proteção de José Mariano, que organizava fuga de cativos para o Ceará (ANDRADE, Manuel Correia de, op. cit. p.169). 148 O incidente que marca o início da questão militar foi a recusa do jangadeiro Francisco Nascimento de transportar escravos na sua embarcação para levá-los aos navios. Homenageado por um coronel, Sena Madureira, esse ato foi considerado indisciplina, o que motivou a transferência do militar para o sul do país. 149 Manuel Deodoro da Fonseca (Alagoas, 1827-Rio de Janeiro, 1892). Marechal e político. Em 1848, combateu a Praieira em Pernambuco. Participou da guerra do Paraguai. Foi o chefe do movimento militar que proclamou a República em 15 de novembro de 1889. 150 Em 10 de março de 1888. 151 Assume no mesmo dia da renúncia de Cotegipe: 10 de março de 1888. 152 Alguns arguiam a legitimidade da renúncia de Cotegipe por não ter sido submetida ao parlamento, que estava em recesso. Cf. Carta a Custódio José Ferreira Martins, de cinco de maio de 1888. In:_ Arquivo da Fundação Joaquim Nabuco , n° de acesso: 1157 [CA P5 DOC 98]

153 NABUCO, Carolina, op. cit., p. 222. NABUCO: HISTORIADOR POLÍTICO, POLÍTICO HISTORIADOR No ano seguinte, a proclamação da república não foi antecedida por uma crise institucional grave do império. Os analistas do período preferem se referir a uma usura da monarquia: ao desgaste provocado pela impopularidade da Regente e do seu marido, o conde D’Eu ¹⁵⁴ , e por uma série de oposições e conflitos – que envolviam aspectos pontuais da política imperial e provocaram, por exemplo, a exacerbação política dentro das forças armadas, o crescimento de reivindicações provinciais, que se reclamavam federalistas ou mesmo separatistas, e finalmente a desafetação de um contingente de proprietários rurais, descontentes com a abolição da escravatura. “Segundo uma espécie de reflexão post festum ”, é o que diz Sérgio Buarque de Holanda, “o grande responsável pelos 15 de novembro foi o 13 de maio” ¹⁵⁵ . Assim pensará Nabuco: logo após a abolição ele revigora os seus ataques ao movimento republicano, no qual identifica elementos de “reação” escravocrata, em uma série de artigos publicados no O País entre setembro e dezembro de 1888 ¹⁵⁶ : A minha tese [é que], tendo o atual movimento republicano o inapagável carimbo histórico de uma explosão de despeito contra a lei de 13 de maio, é inexplicável, mesmo do ponto de vista da República, que ele [mereça] qualquer simpatia aos que concorreram para aquela lei ¹⁵⁷ . [...] Eu sei que há abolicionistas sinceros no atual movimento republicano, e que não se pode acusar de escravista o movimento republicano do Rio Grande do Sul, por exemplo, mas o que sustento é que sendo cada vez mais claro que o atual movimento republicano, onde ele realmente tem importância, é uma reação contra a lei de 13 de maio, ele ficará isolado do abolicionismo, isto é do povo... Da lei de 13 de maio não pode sair a república senão pela evolução, não pode sair pela reação e a reação demora a evolução ¹⁵⁸ . [...] A lei de 13 de maio foi o incêndio das velhas embarcações que trouxeram D. João VI ao Brasil. Agora, sim, a instituição penetrou no coração da pátria, mas é somente à força de audácia, de coragem e de resolução liberal que ela pode manter-se nele ¹⁵⁹ . Em carta a José Mariano, de 2 de janeiro de 1889, encontramos: Não te enganes! A causa do povo não é a república [...] qualquer que seja o caráter democrático do movimento no Norte, no Sul ele é a explosão de despeito e de rancor contra a lei de 13 de maio. Organizou-se nesta cidade uma chamada Guarda Negra e no domingo houve um combate entre ela e os republicanos na Sociedade Francesa de Ginástica. Os republicanos fizeram fogo sobre os sitiantes do prédio e dispararam não sei quantos tiros. Isto não promete nada bom, mas o resultado de tudo há de ser o ódio de raça, porque os republicanos falam

abertamente em matar negros como se matam cães. Eu nunca pensei que tivéssemos no Brasil a guerra civil depois, em vez de antes, da Abolição. Mas havemos de tê-la. O que se quer hoje é o extermínio de uma raça e, como ela é a que tem mais coragem, o resultado será uma luta encarniçada. De tudo isto eu lavo as mãos. Os liberais se subirem hão de ter um papel difícil a desempenhar ¹⁶⁰ . No entanto, entre amigos, Nabuco revelava-se descrente. Em carta endereçada a Penedo, de 25 de maio de 1888 ¹⁶¹ , confessa que, embora a abolição haja cercado a Coroa de larga popularidade, não basta para sustentar a monarquia, já “que as classes fogem dela e a lavoura está republicana”. Em outra correspondência, endereçada a uma amiga na Inglaterra ¹⁶² , declara a ambiguidade de seus sentimentos diante do regime e do seu novo combate: Parece-me muito curioso ver-me neste papel e à testa da coalizão monarquista, pois, apesar de não ter fé na República no Brasil nessa fase de feudalismo e quase vassalagem das classes trabalhadoras, não quisera sustentar a monarquia contra a democracia. A defesa do regime monárquico custa-lhe o afastamento político dos amigos abolicionistas, muitos deles simpáticos ou aderentes à causa republicana. É assim que em janeiro de 1889 afasta-se de O País ¹⁶³ . Na mesma época, casa-se com D. Evelina Torres Soares Ribeiro ¹⁶⁴ , faz uma longa viagem de núpcias pela América do Sul (Uruguai, Paraguai e Argentina), instala-se na ilha de Paquetá e dedica-se cada vez mais aos seus negócios privados. Depois do 13 de maio, que havia estabelecido uma trégua para a monarquia, recrudesce a propaganda republicana. Dentro do Partido Liberal, levanta-se um ânimo por reformas e uma nova linha programática, sobretudo em torno da ideia federalista, num movimento liderado por Rui Barbosa e apoiado por Joaquim Nabuco. O gabinete João Alfredo, que sobrevivia com poucos apoios, entre os ataques dos adversários e a indiferença de muitos correligionários inconformados com a libertação dos escravos, virá a cair em 1° de junho de 1888, afogado na onda de acusações levantadas pelas transações da administração pública com uma firma de uma família amiga do chefe do governo. O imperador, envelhecido e doente, quase alheio à política, o substitui pelo visconde de Ouro Preto ¹⁶⁵ , que durante o Grande Congresso Liberal, reunido nos primeiros dias de maio, havia liderado a facção contrária ao movimento federalista ¹⁶⁶ . O novo gabinete, liberal, instala-se no dia 7 de junho e convoca eleições para 31 de agosto. Ouro Preto, autoritário, desejando uma Assembleia complacente ¹⁶⁷ , procura obter do Partido Liberal de Pernambuco o afastamento de Nabuco, como na Bahia conseguira impedir a inclusão do nome de Rui Barbosa na lista dos candidatos à Câmara dos Deputados ¹⁶⁸ . Embora alguns liberais estivessem descontentes com seu apoio ao conservador João Alfredo, por ocasião do 13 de maio, a cúpula partidária renova-lhe a confiança e ele reelege-se pelo 1° distrito, não obstante o seu total alheamento da campanha ¹⁶⁹ . As novas eleições dariam ao governo liberal uma Assembleia quase unânime, assim como a última, eleita por um gabinete conservador, resultara em uma

maioria conservadora. O visconde de Ouro Preto havia elaborado um programa, tido como audacioso, para neutralizar os republicanos, e a fronde liberal, seguindo a orientação do imperador, numa atitude conciliadora, chamou oficiais para as pastas militares. Too little... too late . Não obstante esses esforços de apaziguamento, o governo sucumbiu sob a pressão militar que crescia em agitação republicana, boatos sobre a redução dos efetivos armados, sobre transferências etc. ¹⁷⁰ . Três meses depois de empossado, cai Ouro Preto: no dia 16 de novembro, o país amanhece republicano. I Em novembro de 1890, solicitado a postular uma cadeira nas eleições para a Assembleia Constituinte da república recém-proclamada, Joaquim Nabuco envia aos seus eleitores pernambucanos a seguinte mensagem: Aos dois compromissos da minha carreira pública – a emancipação do povo e a emancipação das províncias – guardo a fidelidade das manifestações morais espontâneas. Sou, entretanto, forçado a pedir-vos que me dispenseis de associar-me à fundação da República, porque me considero para isso política e moralmente impróprio. Politicamente, porque tudo o que eu disse na Câmara, perante vós, no País, e, ainda o ano passado, no Rio da Prata, em preferência da monarquia, como a fiadora idônea da autonomia das províncias e a continuadora natural da obra de 13 de maio, foi-me ditado pela mais profunda e desassombrada convicção que um espírito sincero possa formar sobre os problemas vitais do seu país. Moralmente, pela humilde parte que tive no movimento abolicionista, na semana histórica de maio, e na sustentação da monarquia duas vezes libertadora, depois do seu segundo Alea jacta est , ainda mais nobre e mais generoso do que o do Ipiranga ¹⁷¹ . Completara 41 anos no mês de agosto daquele ano e renunciava à política ou, pelo menos, abandonava a poli-tique politiciéene : as eleições, as articulações parlamentares e as combinações partidárias que haviam ocupado duas gerações de sua família ¹⁷² . Enfim, aquelas mesmas práticas que o ajudaram a ser eleito para a Assembleia Nacional como representante de Pernambuco por quatro vezes, entre 1878 e 1889. Nabuco dizia-se convencido “de [sua] inaptidão para lidar com o elemento pessoal, de que dependem em política todos os resultados... Lutas de partidos, meetings populares, sessões agitadas da Câmara, tudo isso me parecia pertencer à idade da cavalaria” ¹⁷³ . No entanto, afiança não ter guardado da política “nenhuma decepção, nenhum amargor, nenhum ressentimento” ¹⁷⁴ . Para ele, as eleições e a tribuna no parlamento haviam sido instrumentos da luta abolicionista, esta sim o elemento real a quebrar “o jardim encantado do Oriente, as formas enganadoras de existências petrificadas” ¹⁷⁵ que caracterizavam as escaramuças pelo poder e os duelos de oratória. E tira uma lição, enunciada com simpática franqueza : “Ah! O que não recebi nesses anos de luta pelos escravos! Como os sacrifícios que por vezes inspirei foram maiores do que os meus! Eu tinha a fama, a palavra, a carreira política...” ¹⁷⁶ . A “passagem pela política”, ¹⁷⁷ na qual ele percebe que a luta antiescravista constitui, e sem nenhuma dúvida se tornará com o passar dos anos, o ponto

culminante da sua biografia, deixou uma marca nostálgica, saudades de uma generosidade ainda possível entre as elites para com “o quadro doloroso do sacrifício ingênuo dos simples” ¹⁷⁸ : E no dia que a escravidão foi abolida, senti distintamente que um dos mais absolutos desinteresses de que o coração se tenha mostrado capaz não encontraria mais as condições que o tornaram possível. “A queda do Império pusera fim a minha carreira política.” É o que diz no capítulo final de Minha formação . Compara então a sua atitude de renúncia com gestos de monarquistas franceses em diferentes episódios que antecederam o estabelecimento definitivo da república (a Terceira República) na França, em 1871: Compreendo a carta de Berryer ¹⁷⁹ moribundo a Henrique V, como compreendo a carta do conde de Chambord ¹⁸⁰ sobre a bandeira branca; a monarquia francesa gerara uma cavalaria, um ponto de honra aristocrático, um espírito de classe à parte, e mesmo assim era como o próprio Berryer, como Chateaubriand ¹⁸¹ , como o duque d’Aumale ¹⁸² – La France était toujours là – que os nossos antigos homens de Estado desde os tempos coloniais, e o imperador lhes refletia o sentimento patriótico absoluto, colocavam a pátria fora de competição com qualquer outra ideia ou sentimento... A impressão desses sentimentos varonis, dessa lealdade, foi grande em mim e à medida que eu a ia respirando, o desejo aumentava de não deixar pelo menos o meu túmulo murado do lado do futuro... Nessa atitude melancólica, sem provisão para o futuro, havia um traço de autocomplacência narcísica, inspirada muito certamente no modelo romântico do político e intelectual, tal como este era vivido, por exemplo, pelo visconde de Chateaubriand ¹⁸³ , figura referencial da sua geração. Em ambos, nós encontramos a mesma exaltação sentimental da lealdade e do sacrifício, a veneração do estilo aristocrático, o cuidado extremoso com o julgamento do futuro. Nabuco afirma então ter desistido de “lidar dora em diante com partidos e com acontecimentos; minha esfera tornara-se toda subjetiva” ¹⁸⁴ . Recémcasado ¹⁸⁵ , volta-se para a vida em família e o trabalho intelectual ¹⁸⁶ . Fechava-se assim o ciclo da sua vida militante, que iria do radicalismo abolicionista até o refugio na escrita desencantada e conservadora. II Ao se afastar da vida política durante a década de 1890, Joaquim Nabuco vai escrever textos... políticos, em que dramatiza a narrativa histórica através da análise da vida ou de comportamentos de indivíduos excepcionais: ele mesmo, em Minha formação (1900); seu pai, o senador José Tomás Nabuco de Araújo, em Um estadista do Império (1896); e Balmaceda (1095), no qual ele conta a guerra civil que precedeu a deposição e depois o suicídio de um presidente chileno, Balmaceda Fernández ¹⁸⁷ , em 1891. O conjunto desses três livros – ao qual devemos acrescentar A intervenção estrangeira na Revolta de 1893 (publicado em 1896) – compõe o núcleo dos escritos históricos e políticos de sua maturidade.

Esses exercícios, animados por narrativas vívidas, procuram analisar o comportamento e as decisões de homens de poder em situações – Nabuco Araújo durante a Revolução Praieira, Balmaceda combatendo o levante armado organizado pelo parlamento chileno – nas quais se defrontavam escolhas entre valores, identificados por ele como fundamentais para as sociedades em questão: a ordem e a unidade nacionais, representadas pelo império, contra o populismo da Praia em 1848; o despotismo de Balmaceda contra o “parlamentarismo oligárquico” no Chile, percebido como uma solução democrática viável para a América do Sul. Embora imbuída de valores predefinidos, a abordagem de Nabuco fugia com vantagem, pelo menos aos nossos olhos, das doutrinas deterministas, às vezes biologistas, com as quais os seus contemporâneos intentaram elaborar interpretações sobre o país. Dirá o seu contemporâneo José Veríssimo: O seu trabalho histórico [...] é apenas de crítica e de generalização, [...] A história para ele não é mais que a política em teoria, dela o que lhe interessa é a parte contemporânea, cujos atores ainda conheceu e de cujos atos sente ainda os contrachoques. [...] A desenterrar a história do pó dos arquivos como, para não sairmos da nossa língua, Herculano, ele preferira animá-la com o seu pensamento, com a sua crítica, com a sua generalização, como Oliveira Martins. ¹⁸⁸ Em Nabuco, portanto, não se deveria procurar o historiador, mas o político e, acrescenta Veríssimo, também o literato. Nesse sentido, Silviano Santiago ¹⁸⁹ caracteriza Minha formação como uma série de ensaios ficcionalizados e a mesma expressão poderia ser aplicada aos outros três trabalhos. Em todos eles está presente a busca de uma combinação daqueles dois ângulos que regem – é o que nos diz Antônio Cândido – a visão do escritor: “o de subjetivismo que investiga a realidade como algo subordinado à consciência” e outro, “de objetividade que põe a consciência a serviço de uma realidade considerada algo existente fora dela” ¹⁹⁰ . Em Balmaceda , a narrativa centrada em um personagem principal é quase que conducente a esse exercício e toma frequentemente uma forma romanesca – entremeada de comentários e análises, em um ritmo atraente, envolvente, que nos faz seguir sem pena os conflitos entre as facções políticas chilenas, as manobras militares do embate entre o parlamento e o executivo e o drama de Balmaceda, sua queda e seu suicídio. Em Minha formação , Nabuco dramatiza a sua própria condição: Sou antes um espectador do meu século do que do meu país: a peça é para mim a civilização e se está representando em todos os teatros da humanidade [...] Em minha vida vivi muito da Política, com P grande, isto é, da política que é história [...] Mas para a política propriamente dita, que é a local, a do país, tenho esta dupla incapacidade: não só um mundo de coisas me parece superior a ela, como também minha curiosidade, o meu interesse, vai sempre para o ponto onde a ação do drama contemporâneo universal é mais complicada ou mais intensa.

Poderíamos acrescentar também a expressão mais conhecida deste sentimento, porque frequentemente citada quando alguém se refere a Nabuco: “o sentimento em nós é brasileiro, a imaginação europeia.” Esta “instabilidade”, como ele a nomeia, é o lote comum a muitos intelectuais do seu tempo nos países da periferia ocidental. É análoga à mesma dualidade vivenciada, por exemplo, pela intelligensia russa do século XIX, dividida entre cosmopolitas e populistas, “irmãos inimigos”, no dizer de um ocidentalizante, Alexander Herzen, juntos no fervor intelectual patriótico e separados quanto ao caminho a ser adotado pelo país: o da imersão na cultura popular nacional ou o da integração no universo da civilização do ocidente europeu. Neste contexto, Evaldo Cabral de Mello fala da nossa grande ferida oitocentista, o dilema do mazombo , isto é, do brasileiro descendente de europeu ou considerado como tal, inseguro na sua identidade, sentindo-se dividido entre a América e a Europa. Em “A atração do mundo” ¹⁹¹ , Silviano Santiago chama a atenção para um trecho de uma carta do jovem Carlos Drummond de Andrade endereçada a Mário de Andrade, logo após a famosa visita deste a Minas Gerais, em 1924. Dizia Drummond: “Pessoalmente acho lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados. Acho o Brasil infecto.” Nesta afirmação, Mário vê uma manifestação sintomática de uma nova forma de doença tropical e responde ao jovem poeta: “o Dr. Chagas descobriu que grassava no país uma doença que foi chamada de moléstia de Chagas. Eu descobri outra doença mais grave, de que todos estamos infeccionados: a moléstia de Nabuco.” O sentimento de desamparo do indivíduo provinciano que se transforma em aspiração cosmopolita é caracterizado por ele como “[a] tragédia de Nabuco, de que todos sofremos”; sofrimento que somente poderia ser transmudado se nós brasileiros enfrentássemos o nosso passado nacional: “Nós já temos” – escreve Mário – “um passado guassu e bonitão pesando em nossos gestos; o que carece é conquistar a consciência desse peso, sistematizá-lo e tradicionalizá-lo, isto é, referi-lo ao presente [...] Nós só seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos da fase do mimetismo, pra fase de criação. E então seremos universais, porque nacionais.” Em seu relato autobiográfico, Nabuco sugere que a sua atividade política seria um esforço de superação dessa dicotomia na busca de integração entre a experiência local e uma dinâmica universal da razão que ele identificava como o movimento da história nos centros civilizados. Observado da maturidade, ele via no seu engajamento abolicionista o momento privilegiado quando esta síntese emergira: Era preciso que o interesse fosse humano, universal; que a obra tivesse o caráter de finalidade, a certeza, a inerrância do absoluto, do divino, como tem as grandes redenções, as revoluções de caridade ou da justiça, as auroras da verdade e da consciência sobre o mundo. No Brasil havia ainda, no ano em que comecei minha vida pública, um interesse daquela ordem, com todo esse poder de fascinação sobre o sentimento e o dever, igualmente impulsivo e ilimitado, capaz do fiat, quer se tratasse da sorte de criaturas

isoladas, quer do caráter da nação... Tal interesse só podia ser o da emancipação [...]. É a emancipação a verdadeira ação formadora para mim, a que toma os elementos isolados ou divergentes da imaginação, os extremos da curiosidade ou da simpatia intelectual, os contrastes, os antagonismos, as variações de faculdades sensíveis à verdade, à beleza, que os sistemas mais opostos refletem uns contra os outros, e constrói o molde em que a aspiração política é vazada, e não ela somente, a inteligência, a imaginação, os próprios sonhos e quimeras do homem. A escrita memorialística e as biografias que Nabuco escreveu são diálogos com o seu tempo e com as alternativas políticas que a sua geração enfrentava. Para ele e outros do pequeno grupo de elite que com ele dialogava, o auto-exame e os projetos biográficos estavam imbricados com o destino que imprimiriam ao futuro da sociedade brasileira e da construção da posição dessa sociedade num mundo que se modernizava. Quando falam de si, ou um dos outros, esses intelectuais frequentemente falam também da nação. E vice-versa, ao falar da nação, falam de si: A relevância [...] da intelligentsia nas sociedades ditas retardatárias se liga à superação de um cenário fragmentário e disperso, no qual o próprio diagnóstico dessa circunstância é já parte do processo de construção nacional [...] Ao falarem de nação, tais intelectuais falam, portanto, de si, na medida em que se instituem como representantes de uma “vontade geral” e portadores de um sentido comum a toda a sociedade. Intelligentsia e nação constituem, assim, os dois hemisférios da geografia ideal da periferia ¹⁹² . III Enquanto em O abolicionismo – supostamente um texto panfletário – Nabuco estabelecia um diagnóstico bastante elaborado da estrutura social brasileira, nas suas obras históricas, que traziam a pretensão do trabalho do estudioso, nós encontramos a marca da intenção política, do confronto com a época imediata: a primeira década republicana. No seu discurso de posse como novo associado no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, em 25 de outubro de 1896, Joaquim Nabuco dizia que a história do Brasil, ou melhor, a sua interpretação, atravessava uma grave crise, cujo resultado podia ser sua mutilação definitiva. Os agentes dessa ação eram uma “escola religiosa” [evidentemente os positivistas] que pretendia reduzir a história nacional a três nomes: Tiradentes, José Bonifácio e Benjamin Constant. A questão de Nabuco, entretanto, não era a de negar o “direito” a nenhum dos três como representantes gloriosos de nossa história. Ele não discute, inclusive, o lugar atribuído a Benjamin Constant, incontestavelmente o Fundador da República. Mas não concorda que Tiradentes “resuma em si o ingente esforço pela independência”, a ponto de não se valorizar “os heróis pernambucanos em 1817”, ou de que José Bonifácio fosse mais destacado que Pedro I, até porque aquele se ligava muito mais à independência do que ao passado imperial ¹⁹³ . O ano anterior havia sido decisivo para a consolidação da República instaurada pelo golpe militar de 15 de novembro de 1889. A posse de

Prudente de Moraes em 15 de novembro de 1894 marcara o início do fim de um período de tensão e conflito que caracterizaram os dois primeiros governos republicanos, chefiados por marechais do Exército. O estabelecimento de um governo civil abre caminho para a pacificação entre as diversas facções da elite nacional. O momento era de congraçamento, de colaboração. “O dever do momento” – título de uma carta pública do até há pouco monarquista, almirante Jaceguai ¹⁹⁴ , e dirigida a Nabuco – seria o de se integrar ao processo político de uma República enfim pacificada. Para Nabuco, além das querelas entre regimes, o que estava em jogo naquele período, o seu objetivo maior, como deixa claro em Balmaceda ¹⁹⁵ , era a viabilidade de uma ordem liberal no Brasil e na América do Sul; um arranjo político possível que garantisse a estabilidade institucional, as liberdades públicas e certa coexistência competitiva na classe política, seguindo o exemplo do que existira, a seus olhos, no reinado de Pedro II. Para ele, a derrota de Balmaceda na guerra civil que se seguiu, e que restabeleceu o sistema anterior, significou, por assim dizer, a restauração das virtudes da monarquia parlamentar brasileira dentro da ordem republicana do Chile. O que houve no Chile foi algo inédito na América: uma rebelião comandada por um parlamento que defendia as suas prerrogativas, com o apoio da marinha e que levou de vencida um poder executivo apoiado pelo Exército. Normalmente, a história da região vinha se caracterizando por golpes de Estado iniciados pelo exército contra presidentes civis, ou contra outros militares, e a despeito de qualquer tomada de posição pelo legislativo. Duplamente inédito, portanto, este desfecho da crise no Chile que havia forjado uma concertação do parlamento legislativo e a supremacia militar da marinha, uma força que habitualmente apresentaria limitações de mobilidade tática quando empenhada em conflitos internos. No Chile, segundo Nabuco, havia-se constituído, ao longo do século XIX, uma situação constitucional, conservadora, criada e fortalecida por um arranjo oligárquico, sob a forma republicana e parlamentar. Balmaceda, ao tentar impor a força do executivo contra o parlamento, representara – à semelhança do golpe militar republicano, no Brasil – um rompimento com a “cultura social” do país, “uma evocação” , pode-se dizer, “na presidência do Chile, do gênio sul-americano da ditadura que nunca havia penetrado nela” ¹⁹⁶ . Nabuco opõe “o reformador em geral [que] detém-se diante do obstáculo; dá longas voltas para não atropelar nenhum direito; respeita, como relíquias do passado, tudo que não é indispensável alterar; inspira-se na ideia de identidade, de permanência” e a “natureza intransigente” do “metodismo científico” a que ele associa Balmaceda e os nossos positivistas republicanos. Tanto um quanto os outros dão as costas à experiência e à sabedoria acumuladas pelas respectivas histórias nacionais e preconizam transformações baseadas em concepções que dão lugar a receitas abstratas de transformação social: Não há paixão, por mais feroz, que se possa comparar em seus efeitos destruidores à inocência da infalibilidade. Os Terroristas de Paris,

“massacravam” brutalmente como assassinos ébrios; os Teoristas inovadores amputam com a calma e o interesse frio de cirurgiões ¹⁹⁷ . Sente-se rondar aqui o espectro do pensamento contrarrevolucionário do século XIX, o de Edmund Burke, por exemplo, nas suas análises e invectivas contra a Revolução Francesa e a quem Nabuco se refere algumas vezes no seu livro. As críticas ao novo regime vinham de par com uma reavaliação positiva da monarquia brasileira, um reexame das suas origens e do seu papel. No seu discurso de posse no IHGB tratava-se menos de proteger uma “galeria de nomes” e mais de combater as distorções, mutilações, que tais escolhas introduziam na história do país: “isso porque, para ele, o projeto positivista/ jacobino, além de fazer datar nossa história da Independência, como se não existisse uma história portuguesa do país, pretendia criar entre a Independência e a República um deserto de quase setenta anos, ‘a que posso dar o nome de deserto do esquecimento’; [...] objetivava realizar uma ruptura entre Monarquia e República, e ignorando todo o progresso material então alcançado” ¹⁹⁸ . Em Balmaceda , Um estadista do Império e Minha formação , Nabuco vai opor continuidade e reformismo à mudança revolucionária, identificada com o “jacobinismo” dos fundadores da nossa República e do presidente chileno deposto. Trata assim de restabelecer o que ele considera o sentido da herança depositada pela história nacional, e que deveria constituir a base sólida e natural do desenvolvimento político de países como o Chile e o Brasil, que conheceram o privilégio de haver acumulado alguma experiência democrática, ¹⁹⁹ “cultura social” que fora violada pelo “gênio sul-americano da ditadura” ²⁰⁰ . A diferença entre Chile antes de Balmaceda e o Brasil do Segundo Reinado estava em que o Chile havia tido “um governo forte como nós nunca tivemos”. Durante o império, “a liberdade brasileira [havia sido] uma teia de uma tenuidade invisível, possuindo apenas a resistência da elasticidade da seda que a monarquia, como uma epeira doirada, tirou de si mesma e suspendeu entre a selva amazonense e os campos do Rio Grande” ²⁰¹ . No Chile, havia se constituído, ao longo do século XIX, uma situação constitucional conservadora, criada e fortalecida por um arranjo oligárquico, sob a forma republicana e parlamentar. Garantiram-se, assim, as liberdades civis, um mínimo de jogo democrático e a estabilidade política. O Chile republicano do século XIX era muito semelhante ao Brasil monárquico. Ao tentar impor a força do executivo contra o parlamento, Balmaceda agira à semelhança do golpe militar republicano no Brasil. Haveria um paralelo evidente entre o presidente chileno e a figura de Floriano Peixoto. O acerto oligárquico chileno permitira a sobrevivência de certa forma de república – restrita, porém liberal – um “parlamentarismo oligárquico”, no dizer de Nabuco. Entre nós, o regime parlamentar durante o reinado havia sido praticamente uma concessão da monarquia, a maneira encontrada pela Coroa de melhor governar política e administrativamente o país. E essa teia, essa “epeira doirada”, ameaçava romper-se, em face da ausência da proteção monárquica e a emergência de forças heteróclitas – os militares

“jacobinos”, os ex-proprietários de escravos ressentidos separatistas e toda sorte de arrivistas – unidas apenas na oposição conjunta à monarquia. A disputa facciosa, sem o poder moderador do imperador, findaria por empurrar o poder para as mãos ditatoriais de um vencedor mais empenhado. Em carta ao barão de Rio Branco (julho de 1890), ele dá vazão a essas especulações pessimistas: Entramos na série dos governos pessoais militares e daí virá a degradação do exército, a bancarrota pela ladroeira e pela especulação, como nas repúblicas do mesmo tipo, o governo nos “Estados” de verdadeiros caudilhos, cercados de uma quadrilha de analfabetos, e por fim o desmembramento, se o sentimento nacional não reagir à ultima hora ²⁰² . A sua análise do Chile de Balmaceda é uma reação à república recémproclamada. Em contraste com o Brasil, a “revolução chilena”, como a denomina Nabuco – liderada pelo parlamento –, reconduz o país à República, uma república de práticas muito semelhantes às nossas práticas do Segundo Reinado. As duas situações eram simetricamente opostas e, na sua exposição didática, virtuosamente exemplares. A década de 1890 assistirá ao desenvolvimento e à consolidação de uma interpretação revisionista da história da monarquia brasileira que segue de perto as linhas gerais do diagnóstico de Nabuco, cujos ecos se encontram, por exemplo, embora de maneira ainda mais partidária, no grande balanço intitulado A década republicana , promovido pelo Diretório Monarquista e organizado pelo visconde de Ouro Preto. Essa interpretação se prolonga em O ocaso do Império (1925), de Oliveira Viana, e constitui ainda a versão canônica de boa parte da historiografia brasileira. Nela, põe-se de lado a longa duração do regime servil e sublinha-se a extinção pacífica da escravidão; faz-se abstração das revoltas regionais e salienta-se a consolidação da unidade nacional desenvolvida pela Coroa e mais: a obra de construção do Estado brasileiro, do sistema políticoadministrativo, o funcionamento continuado do parlamento e de partidos políticos, em um regime onde vigorava ampla liberdade de expressão. Por último, ao lado desse rol de feitos positivos gerados pelo realismo, quase nunca se deixa de mencionar a chance histórica de ter sido o regime conduzido por um monarca exemplar que teria realizado “o ideal da democracia antiga, o governo do melhor homem – um reinado pericliano de meio século”, no dizer hiperbólico de Nabuco ²⁰³ .

Surgida de uma situação de crise do regime republicano brasileiro, essa linha de pensamento delineava as guias dentro das quais iam se criando um eixo narrativo da história nacional: tentava-se – nos propõe Ângela de Castro Gomes – “fundar a autoridade política na tradição, e não na força e no carisma, como nos lembra a tipologia weberiana” ²⁰⁴ . Procurar-se-iam, portanto, elementos que permaneceram, no longo prazo, definindo o caráter original e a sustentabilidade da ordem política e social brasileira, para a qual teria sido notável a existência de uma monarquia. Enfim, esta última apontaria para uma continuidade do legado colonial – de resto já presente na História geral do Brasil de Varnhagen – que manteria o país enlaçado à história dos países civilizados, atributo importante para que se firmasse um caminho em direção do progresso. IV Para além de reações de circunstância, visando à experiência republicana no Brasil, as obras de Nabuco na sua maturidade esboçariam também a sua resposta política ao diagnóstico radical sobre a estrutura socioeconômica brasileira que ele adotara desde a juventude. Em Minha formação , escreverá: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, ²⁰⁵ que prolongava uma afirmação já antiga, proferida em 1884, durante a campanha abolicionista: “[Da escravidão] nasceu fatalmente a política negativa que nos abate, porque ficamos sem povo. A escravidão não consentiu que nos organizássemos, e sem povo as instituições não têm raízes, a opinião não tem apoio, a sociedade não tem alicerces [...] a vontade nacional não existe” ²⁰⁶ . Essa gente abúlica, que não sabia dar organicidade às suas demandas, ameaçava a todo instante a ordem política. Durante a Revolução Praieira, está em Um estadista do Império, o povo acreditava ter dois inimigos que o impediam de ganhar a vida e adquirir algum bem-estar: [...] os portugueses, que monopolizavam o comércio nas cidades, e os senhores de engenho que monopolizavam a terra no interior. A guerra dos praieiros era [...] mais que um movimento político, era um movimento social. Ora, a dificuldade desses movimentos quando se organizam em partido está em descobrirem uma fórmula que os satisfaça sem ser antissocial. [...]. O partido Praieiro foi um partido sem direção e sem disciplina, porque propriamente não foi senão um movimento de expansão popular. Os chefes deixavam levar-se pelo instinto das multidões que formavam o seu séquito, em vez de guiá-las e de procurar o modo prático de satisfazer, na medida do possível, o mal-estar que elas sentiam sem o saber exprimir ²⁰⁷ . Horror à sociedade iníqua, temor da massa informe que dela resultava e desprezo pelas elites republicanas entregues às lutas pelo poder e por seus interesses imediatos são sentimentos que atravessam os escritos de Nabuco; sentimentos que se socorrem, diga-se de passagem, do pensamento antirrevolucionário do século XIX e do liberalismo advindo da Restauração francesa. Segundo ele, uma construção nacional brasileira bem-sucedida seria o resultado de um esforço civilizacional vindo do alto e que acomodasse ou

integrasse o que resultara da escravidão: grupos sociais dispersos, vítimas ou dependentes do regime escravista, presas fáceis da sedução e do controle de demagogos e de tiranos. Nabuco vislumbrava então um dilema entre uma solução civilizada e um caminho bárbaro; dilema que ele acreditava ver tipificados em duas experiências sul-americanas caracterizadas em um parágrafo de Um estadista do Império: Para mim, são os dois maiores esforços de energia que a América do Sul desenvolveu neste meio século: a resistência paraguaia e a Revolução chilena. Um, bárbaro, fanático, horrível, mas ainda assim sublime, alguma coisa de parecido com o incêndio de Moscou, porém mais vivo, mais palpitante, mais trágico, porque era com vidas humanas, e não com labaredas, que a nação fazia o deserto diante do invasor. A resistência paraguaia até o último homem, sinistra como se torna pela loucura do tirano, quando se apossa do seu ânimo a suspeita de todos, é o grau de maior intensidade, o grau absoluto, a que o sentimento de pátria possa chegar. A Revolução chilena não traz esse cunho sombrio, exclusivo, intransigente, do gênio de Francia. É um fato de ordem moderna, jogo de molas inteiramente outras, resultado de educação oposta, corresponde a uma ordem superior de sentimentos, a outra classe de homens, mas, como esforço nacional, é também o atual limite humano ²⁰⁸ . Nabuco parece querer emprestar intensidade retórica similar aos dois exemplos. Hesita entre a “resistência paraguaia” – descrita de maneira comovida – e a “revolução chilena”, a ela comparada por também ter atingido o “atual limite humano”; e essa hesitação parece-nos similar àquela outra, entre o “sentimento brasileiro” e a “imaginação europeia”. No parágrafo acima: o sentimento é paraguaio, a razão, chilena. 154 Luís Felipe Maria Fernando Gastão Orléans conde D’Eu (Neuilly, França 1842-a bordo, 1922). Neto de Luís Felipe, rei de França. Casou-se em 1864 com Isabel, princesa imperial brasileira e mais tarde regente do trono. Em 1869, foi nomeado comandante-chefe das forças armadas brasileiras na guerra contra o Paraguai, dirigindo-as até o final em 1870. Sofria a oposição de setores militares que identificavam como indevido o seu envolvimento com as forças armadas. 155 O Brasil Monárquico: do Império à República. São Paulo: Difel, 1985. p. 240. Coleção História Geral da Civilização_Brasileira. 156 GOUVÊA, Fernando da Cruz, op. cit., p. 365-399. 157 A República e a Abolição, O País , 1º de outubro de 1888. 158 O crescimento da República, O País , 5 de outubro de 1888. 159 A monarquia Federativa (segundo artigo). O País , 3 de dezembro de 1888. 160 Apud CHACON, Vamireh. Joaquim Nabuco: Revolucionário Conservador (sua filosofia política). Brasília: Senado Federal, 2000. p. 135. 161 VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 162.

162 Carta de 21 de novembro a Miss Schlezinger (Cf. VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 162). 163 Quando abandona o jornal, Quintino Bocaiúva, seu diretor, escreve-lhe (3 de janeiro de 1889): “O pesar que causa a tua separação da redação do País é igual ao prazer que tive quando para ela entraste. Mas a profunda discordância dos nossos ideais e pontos de vistas políticos impõe-nos efetivamente essa separação para que cada um de nós, no posto em que está colocado, tenha a necessária liberdade de ação.” Cf. NABUCO, Carolina, op. cit., p. 247. 164 O casamento foi no dia 23 de abril às 11 horas da manhã na capela do barão do Catete em Botafogo. A noiva tinha 23 anos. Cf. ALENCAR, José Almino de, e SANTOS, Ana Maria Pessoa dos (Org.). Meu caro Rui, meu caro Nabuco , op. cit., p. 20. Por essa época, João Alfredo, chefe do governo, propõe-lhe o título de visconde, que ele recusou como o havia feito seu pai, ao lhe ser oferecido o mesmo título, pelo visconde de Rio Branco, em 1872 (Cf. NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império . 5. ed., op. cit., v. II. p. 1118). 165 Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto (Ouro Preto, MG, 1837-Petrópolis, RJ, 1912). Foi deputado (1864-1868 e 1878-1879), senador (1879), conselheiro de Estado (1882), ministro da Marinha (1866), no início da guerra do Paraguai, ministro da Fazenda (1879 e 1889) e presidente do último Conselho de Ministros do Império (1889). Membro fundador da Academia Brasileira de Letras. 166 O Grande Congresso Liberal, reunido durante os primeiros dias de maio de 1889 para traçar as linhas programáticas do partido, divide-se diante desta tese, tendo a maioria, dominada pelo visconde de Ouro Preto, rejeitado-a como um objetivo mais distante, e que deveria ser precedido por amplas reformas financeiras. 167 Na seção de 11 de julho de 1889, ao apresentar o seu programa, Ouro Preto é recebido com hostilidade. Uma moção de desconfiança é aprovada, por 79 a 20 votos, o que provoca a dissolução. 168 Cf. Rui Barbosa: Cronologia da Vida e da Obra. 2 ed. rev. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999. 169 É eleito quase por unanimidade. João Alfredo garantira-lhe os votos conservadores (Cf. VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 178). 170 Para uma descrição minuciosa da queda da monarquia, ver: HOLANDA, Sérgio Buarque de. A queda do regime. In:__. O Brasil Monárquico: do Império à República, op. cit., v. 5. p. 348-359; Quinze de Novembro. In: MONTEIRO, Tobias, op. cit., p. 199-259; MORAES, Evaristo . Da Monarquia para a República . Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1885. 171 Resposta às Mensagens de Recife e Nazaré. In: NABUCO, Carolina, op. cit., p. 265.

172 José Tomás Nabuco de Araújo (S. Pedro Velho, BA 1785-Salvador, BA 1850), avô de Joaquim Nabuco, foi presidente das províncias da Paraíba (1831) e do Espírito Santo (1836). Seu filho, de mesmo nome, José Tomás Nabuco de Araújo (Salvador, BA 1813-Rio de Janeiro, RJ 1878) foi ministro da Justiça nos gabinetes de Paraná (1853-1856), de Caxias (1856-1857), de Abaeté (1858-1859) e no último de Olinda (1865-1866). Conselheiro de Estado em 1866, acabou tornando-se uma das vozes mais destacadas do Partido Liberal. 173 Cf. NABUCO, Joaquim. Minha formação . Rio de Janeiro: W. M. Jacksom Editores, 1952. p. 320. 174 Ibid., p. 276. 175 Ibid., p. 275. 176 Ibid., p. 269. 177 Título do capítulo XXIII, de Minha formação . 178 Ibid., p. 275. 179 Pierre Antoine Berryer (1790-1868). Católico, realista e advogado francês. Defendeu a causa da liberdade e imprensa durante os processos de Lamennais (1826) e de Chateubriand (1832). A partir de 1830, ou seja, da monarquia de julho (Casa de Orléans), tornou-se o porta-voz dos legitimistas (Casa de Bourbon). 180 Henrique de Bourbon Chambord, duque de Bordéus, conde de Chambord, príncipe francês (1820-1883). Sob o nome de Henrique V, foi o pretendente legítimo ao trono da França, após a morte de Carlos X (1836). Durante as discussões sobre o regime a ser adotado, depois da guerra franco-alemã de 1871, escreveu uma carta aos seus partidários (12/07/71), recusando-se a aceitar o pavilhão tricolor, em detrimento da bandeira branca com a flor de lis dos Bourbon, uma das condições de um acordo para a adoção da monarquia em França. Muitos acreditam que esse gesto facilitou a adoção da república, minoritariamente representada na Assembleia Nacional. Foi o último representante da casa de Bourbon. O episódio pode ser encontrado no clássico relato sobre o estabelecimento da Terceira República na França, La Fin des Notables , de Daniel Halévy. 181 Fugindo à Revolução Francesa, Chateubriand emigrou em 1792 para a Inglaterra, onde passou a viver. De volta à França, em 1800, apesar de lisonjeado por Bonaparte, acabou rompendo com ele após o assassínio do duque d’Enghien. Manteve-se “legitimista” (favorável à Casa de Bourbon) e envolveu-se em várias conspirações monárquicas. Durante a Restauração, foi embaixador em Londres, depois ministro dos Negócios Estrangeiros de 1822 a 1824, mas manifestou sua oposição às nomeações feitas por Carlos X.

182 Henri D’Orléans, duque d’Aumale, general e historiador francês (1822-1897), quarto filho do rei Luís Filipe. Em 1871, durante as discussões sobre o regime na Assembleia Nacional, era o líder da facção monárquica orleanista. 183 Trata-se, naturalmente, de François René de Chateaubriand visconde de Chateaubriand (1768-1848). Escritor francês, autor de O gênio do cristianismo e das Memórias de além-túmulo , entre outros. V. nota 12. 184 Ibid., p. 320. 185 Casou-se no dia 23 de abril de 1889 com D. Evelina Torres Soares Ribeiro (Paris-França, 1865-Rio de Janeiro, 1948), filha de José Antônio Soares Ribeiro, barão de Inhoã e fazendeiro em Maricá, na então província do Rio de Janeiro. 186 A partir de 1891, passa a colaborar regularmente na imprensa, escrevendo, notadamente, para o recém-fundado Jornal do Brasil e para Jornal do Commércio , onde publica vários textos importantes, alguns reunidos mais tarde em livros: O Dever dos Monarquistas , carta ao Almirante Jaceguai; A Intervenção Estrangeira , um estudo sobre a revolta naval contra Floriano Peixoto; Balmaceda , uma narração da revolução chilena contra o presidente deste nome. Na década de 90, também vem a público o seu livro mais importante, Um estadista do Império e, em 1900, Minha formação . Esses livros formam o conjunto principal da obra de Joaquim Nabuco, publicada na maturidade, depois do seu afastamento da cena parlamentar. A eles devemos acrescentar os seus escritos de militante abolicionista: O Abolicionismo , um trabalho de 1883, e as seis conferências pronunciadas em Recife no ano de 1884, durante a sua campanha para deputado na Assembleia Nacional. 187 Jose Manuel Balmaceda Fernandez (Santiago, Chile 1840-1891). Político e estadista chileno, chegou a presidente da República (1886-1891), tendo sido derrubado depois de violenta guerra civil. Asilou-se na embaixada da Argentina, recusando-se a sair do país ou a ser julgado por seus vencedores. Viveu até expirar seu mandato legal, suicidando-se no dia seguinte. 188 VERÍSSIMO, José. Um historiador político. In: NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império . São Paulo: Topbooks, 1973, v. II. p. 1.304. 189 SANTIAGO, Silviano. Atração do mundo: políticas de globalização e de identidade na moderna cultura brasileira. In:__. O cosmopolitismo do pobre . Belo Horizonte: UFMG, 2004. p. 11. 190 CÂNDIDO, Antônio. A compreensão da realidade. In:__. O observador literário . Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p. 33. 191 SANTIAGO, Silviano, op.cit. p.11-44. 192 CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Casa Grande & Senzala e o pensamento social brasileiro. In: GIUCCI, Guillermo; LARRETA, Enrique; FONSECA, Edson Nery da (Orgs.). Casa Grande & Senzala – Edição crítica. Madrid: Unesco, 2002, v. 55. p. 877-878. (Coleção Archivos).

193 Cf. GOMES, Ângela de Castro. Rascunhos de história imediata: de monarquistas e republicanos em um triângulo de cartas. In: Remate de Males , n. 24. Campinas: Departamento de Teoria Literária, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade de Campinas, 2004. p. 20. 194 De 2 de setembro de 1895. O texto integral da carta pode ser encontrado em ALENCAR, José Almino de & PESSOA, Ana (Orgs.). Joaquim Nabuco: o dever da política . Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2002. p. 59-75. 195 NABUCO, Joaquim. Balmaceda . São Paulo: Cosac Naify, 2008. 196 NABUCO, Joaquim. Balmaceda . p. 16 do manuscrito. 197 Ibid., p. 43. 198 GOMES, Ângela de Castro, op. cit., p. 21. 199 ALENCAR. José Almino, op. cit., p. 236-237. 200 NABUCO, Joaquim. Balmaceda , op. cit., p. 42-43. 201 NABUCO, Joaquim. Balmaceda . p. 145 do manuscrito. 202 VIANA FILHO, Luís. A Vida de Joaquim Nabuco . Porto: Lello & Irmão Editores, 1985. p. 183. 203 NABUCO, Joaquim. O dever do monarquista. In: ALENCAR, José Almino de & PESSOA, Ana (Orgs.). Joaquim Nabuco: o dever da política, op. cit., p. 81. 204 GOMES, Ângela de Castro, op. cit., p. 21. 205 Cf. NABUCO, Joaquim. Minha formação, op. cit., p. 232. 206 Segunda Conferência no Teatro Santa Isabel. No 1° de novembro de 1884. In: NABUCO, Joaquim. Campanha abolicionista no Recife . Recife: Fundação Joaquim Nabuco-Massangana, 1988. p. 31. 207 NABUCO, Joaquim. Um estadista no Império , op. cit., v. I. p. 114. 208 Ibidem, v. II, p. 793.

SOBRE R UI B ARBOSA E A POLÍTICA: 1870-1910 Introdução Hoje em dia, quando alguém se dispõe a escrever sobre Rui Barbosa: sua história, seu legado político, sua importância para a história intelectual brasileira, tem necessariamente de lidar com estereótipos que desde cedo cercaram a sua biografia. O modernismo literário brasileiro, por exemplo, tomou-o como representante de um passado a ser antagonizado e ultrapassado à semelhança do que preconizavam para os seus algozes nas letras: poetas e escritores parnasianos e simbolistas. Falecido em 1923 – um

ano, portanto, depois da Semana de Arte Moderna –, foi frequentemente alvo dos ataques de seus representantes que acoimavam a grandiloquência de seus discursos e de sua escrita, em que predominava o exibicionismo de um vocabulário de tamanho invulgar, eivado de arcaísmos, conduzidos por um malabarismo sintático peculiar, que visaria mais ao prestígio do que à substância, além de ser alheio à língua falada e mutante do povo. O culto cívico a Rui, que se combinava com a mitologia popular a seu respeito – efeito, sobretudo, de suas campanhas à presidência e à presença combativa e continuada no parlamento e na imprensa –, ainda persistia vivo e crescente, quando caía a república da qual ele foi fundador. Politicamente, ele ficou identificado com a República cognominada de Velha pelo movimento político-militar de 1930 que a derrubou, consagrado pelo senso comum como uma espécie de momento inaugural da modernidade no Brasil. Liberal renitente, Rui Barbosa não viu os seus esforços logrados: o liberalismo não se fez parte significante da vida ideológica brasileira até um período relativamente recente. Quando veio à tona a percepção de um sistema republicano em crise, depois de o país ter conhecido sucessivamente uma experiência autoritária com Floriano Peixoto e o grande acordo oligárquico da “política dos governadores”, as discussões sobre o novo regime – na sua versão mais liberal – tornaram-se o apanágio principalmente dos nostálgicos do Segundo Reinado – como Joaquim Nabuco, Eduardo Prado e Oliveira Lima, entre outros – com o seu parlamentarismo, seu poder moderador e a imagem de um monarca indulgente. E, mais ainda: logo começariam a surgir correntes críticas antiliberais, calçadas em instrumentos sociológicos, que sustentavam haver no cerne da organização social brasileira algo que nos inabilitaria definitivamente para o regime democrático. Poder-se-ia dizer que convergiriam mais tarde para essa mesma posição o autoritarismo de direita, o pensamento de esquerda e a ciência social acadêmica. Nesse contexto, a Constituição de 1891, que se queria liberal e democrática, segundo os padrões contemporâneos e da qual ele fora o principal redator, passara a ser, quase desde o início de sua vigência, política e ideologicamente contestada. Rui Barbosa trabalhou sobre o efêmero: foi jornalista, jurisconsulto e político. Sobre o seu legado já se indagava, em 1952, João Mangabeira em conferência proferida na Faculdade Nacional de Direito. Um a um, ele examina e afasta, minimiza ou torna relativos os atributos que lhes são normalmente associados. “Não é o Rui jurista”, dizia “cujas opiniões, doutrinas ou teorias estão em parte superadas, senão esquecidas”; não é o escritor, cujo estilo fincado na sua época mal poderia ser transmitido em legado; nem mesmo o orador brilhante ou o homem público cujos “quatorze meses de presença no Governo Provisório sagraram-no o grande estadista da República”; não, nenhuma dessas qualidades, afirmava em seu linguajar retoricamente desenhado viria a servir de exemplo máximo ¹ . E concluía lírico e hiperbólico: “[Estará presente] o Rui que escreveu nas almas, sobretudo com a prática de sua vida, com o espetáculo de sua luta contra a violência, contra a mentira e contra a opressão.”

É certo que, ao evocar a figura de um Rui Barbosa pragmático, fazemos frente a estereótipo enunciado frequentemente pelos seus críticos – mas que é também muitas vezes confirmado por seus admiradores, obviamente com outro sentido e propósito: para muitos dos que a ele se opuseram, Rui era um ingênuo, insensível à nossa história. Imune às realidades sociológicas de um país constituído, na sua grande maioria, de uma população primitiva e governada por uma elite oligárquica, estaria condenado – por espírito de imitação comum à intelectualidade brasileira – a defender códigos e constituições importadas ou exóticas, no dizer de um Oliveira Viana, por exemplo ² . Por outro lado, muitos dos seus admiradores gostam de apresentá-lo como sendo um idealista intransigente que, no curso de sua vida, se teria defrontado permanentemente com a mesquinhez da vida política nacional, muito aquém das suas virtudes cívicas e do seu talento. Nas duas acepções, um traço comum: o de distância entre Rui Barbosa e o seu tempo, entre Rui Barbosa e a sociedade brasileira. E, no entanto, foram poucos os seus contemporâneos que se empenharam tanto quanto ele, e, sobretudo, tão continuamente, na prática da política real, com tanto sucesso. Sucesso na política partidária, parlamentar, eleitoral, por vezes até mesmo local, com as implicações de negociações e compromissos que se imagina terem de passar para sucederem os espíritos mais altivos e intransigentes. Seu pai, João Barbosa, fora um político relativamente menor, que fracassara nas tentativas de fazer carreira com o Partido Liberal e conhecera uma vida de percalços financeiros. Na ocasião de sua morte, Rui completara 25 anos e, em menos de 11 anos, viria a ser: uma vez deputado provincial, duas vezes deputado geral, líder da bancada governista e conselheiro do império. Uma análise das relações entre Rui e a política deve confrontar esses dois aspectos, aparentemente paradoxais, mas que de certa maneira combinaram-se e ajustaram-se mutuamente, com maior ou menor sucesso: por um lado, o seu liberalismo renitente, a sua defesa do regime representativo tachados muitas vezes de quixotescos pelos seus admiradores; e o caráter pouco prático das suas ideias, denegrido pelos seus críticos; por outro, o seu desempenho na política brasileira da sua época, tomando a política inclusive em seu sentido mais prosaico: que lida com eleições, articulações parlamentares e combinações partidárias. Trata-se, portanto, de contemplá-lo “na objetividade de sua posição histórica, pensando e agindo como pessoa dramática da sociedade em que viveu” ³ . 1 MANGABEIRA, João. A presença de Rui nas gerações novas e a função política e social da mocidade no presente. In: BARBOSA, Rui. Escritos e discursos seletos . Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Nova Aguilar, 1995. p. 19-27. 2 VIANA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras . Rio de Janeiro: José Olympio, 1949. 3 DANTAS, San Tiago. Rui e a renovação da sociedade. In: Rui Barbosa. O JOVEM R UI B ARBOSA: PERSEGUINDO A POLÍTICA Em Rui, predominaria sempre o “interesse político” ⁴ .

Homem de classe média, ele próprio vindo de uma estirpe provinciana, dada às profissões liberais, à magistratura e à política e descendendo do ramo que se conservou pobre, enquanto os colaterais se aliavam à aristocracia agrária pelo casamento [...] ⁵ . O entorno sociopolítico Em 5 de setembro de 1893, à véspera de eclodir a Revolta da Armada, identificado como um dos elementos mais importantes da oposição a Floriano Peixoto – cujo governo ele havia combatido duramente pela imprensa e nos tribunais em defesa de prisioneiros políticos –, Rui Barbosa, prevenido sobre o levante, asila-se na Legação do Chile, de onde sairia para o exílio na Inglaterra. A julgar pelas suas primeiras cartas enviadas a Maria Augusta, sua mulher, o sentimento de Rui diante dos acontecimentos é de desolação profunda: declara-se abandonando a política. Assim, ainda da legação chilena, escreve: “Politicamente, meu anjo, tenho feito o meu testamento. Não há mais seduções, que me façam voltar a essa vida. Ela só é possível para os homens de alma livre, nos países livres. Nós caímos na maldição do militarismo, e não sei quando sairemos dele” ⁶ . Não seria abusivo atribuir em parte esse desalento à surpresa diante da quebra do convívio político pacífico, comum desde a década de 50 no Segundo Reinado; a destruição daquela “brandura e suavidade de costumes públicos” que Nabuco considerava um traço da monarquia brasileira ⁷ e que acompanhara a sua geração desde a sua emergência e os seus primórdios na vida política. As quatro décadas anteriores haviam sido, também, um período de crescimento econômico quase continuado e do desenvolvimento de uma sociedade urbana que tentava superar o acanhamento dos burgos coloniais. A economia brasileira cresceu durante toda a metade do século XIX. Em grande parte, esse crescimento deveu-se ao desenvolvimento da cafeicultura que se expandiu pela Baixada Fluminense, pelo Vale do Paraíba e pelo oeste paulista. O país conheceu também o desenvolvimento irregular e esporádico de outras culturas: a cana-de-açúcar, o algodão e a borracha. A proibição do tráfico de escravos em 1850 disponibilizou mais capital, antes empregado naquele comércio, para investimento em outras partes da economia. O estado passou a promover o investimento estrangeiro em setores de infraestrutura, como portos e ferrovias, garantindo muitas vezes um rendimento mínimo para tais investimentos. Essa expansão econômica refletiu-se claramente na evolução do comércio exterior: entre 1851-1860 e 1891-1900, as exportações e as importações brasileiras cresceram cerca de 200 % e 120%, respectivamente ⁸ . O progresso econômico fez-se acompanhar de uma diferenciação no sistema social como um todo. A porcentagem do capital investido no setor manufatureiro começa a aumentar, ainda que timidamente, no período entre 1870 e 1874 (2,3 %), chegando a quase 12,0% no final do século ⁹ . Entre esses mesmos períodos, cresce de maneira expressiva o número daqueles que trabalham na administração e em profissões liberais. Entre 1872 e 1900, o crescimento da população urbana em termos absolutos foi grande: de 728.000 a 2.030.000, com as grandes cidades passando a concentrar uma

maior parte da população urbana. Assim, enquanto em 1872 as cidades de mais de 100 mil habitantes reuniam 51% da total da população urbana, em 1900 elas compreendiam 67% da população das cidades. Formava-se nas grandes cidades uma “massa crítica” que viria a ser cada vez mais “politicamente decisiva” ¹⁰ . Nunca é fastidioso sublinhar que os produtos agrícolas de exportação se mantinham como a base principal do crescimento econômico e que o conjunto dessa economia dependia do trabalho escravo. Por sua vez, como seria de esperar, o funcionamento do estado, da autoridade pública, era diretamente ligado à renda derivada da economia exportadora, coletada sobretudo através de tarifas alfandegárias ¹¹ . Na segunda metade do século, as taxas de crescimento da receita e das despesas do Governo Central superam em muito as de crescimento da economia ¹² , apontando para um fortalecimento progressivo do poder público que, principalmente no final do período, começa também a orientar e garantir os investimentos em obras de infraestrutura, auxiliares do sistema exportador. Durante todo o período, o país conheceu uma relativa estabilidade monetária, o que contribuiria para criar certo sentimento de segurança, sobretudo entre as elites e as populações das grandes cidades: entre 1829 e 1887 – um espaço de 58 anos –, o custo de vidas se elevou à taxa correspondente de 1,5% ao ano ¹³ . Em 1848, a derrota da Revolução Praieira em Pernambuco significa “o fim do processo de aceitação da monarquia parlamentar pelas elites rurais. Uma aceitação que foi problemática, mas que forneceu a legitimidade básica do sistema” ¹⁴ . De 1848 em diante, e até a proclamação da República, o regime político desenvolve a sua capacidade de praticamente evitar os conflitos políticos violentos, promovendo a alternância das camadas dirigentes, cooptando opositores, sob a regência e mediação do Poder Moderador da Coroa. Uma maior diferenciação na estrutura social, sobretudo nas camadas urbanas e nas elites, possibilitou uma inclusão maior de elementos das profissões liberais ou de uma ainda muito incipiente camada média urbana, nem sempre herdeiros diretos de posições de fortuna ou de poder, possibilitando mudanças na agenda política e imprimindo maior dinamismo à vida pública ¹⁵ . A geração de 1870 seria parte, portanto, desse movimento de ascensão, um grupo de jovens candidatos à elite que vão beneficiar-se de um contexto histórico excepcionalmente favorável: longe do estado servil e do trabalho manual, começam a vida adulta em um período de expansão econômica, de equilíbrio financeiro, quando a vida política do país já se encontra pacificada, com regras de acesso bastante restritivas, mas previsíveis, onde o regime tolera a manifestação de ideias e opiniões diversas, e o chefe de governo promove, discricionariamente, é bem verdade, a alternância partidária no poder. Isso tudo ajudaria a entender, por exemplo, a reação de choque e desânimo de Rui, depois de uma sequência de sucessos, diante da repressão florianista. Vale sublinhar, no entanto, porque a pirâmide social era ainda muito afunilada, que as possibilidades de ascensão social eram certamente

bastante restritas e precárias, advindas (tratando-se de indivíduos e não de grupamentos) ou dependentes de fatores quase fortuitos, como as cumplicidades construídas nas poucas faculdades existentes, de alianças por casamento e de iniciativas de cooptação e de favor, promovidas pelos que estavam no topo da escala social e de poder. No início da sua carreira política, Rui irá trilhar esse corredor estreito e subir essa escada difícil, caminhos balizados pela vontade e pelo interesse dos que mandavam. Um bacharel do Segundo Reinado: entre o valor e o favor Em artigo publicado no Diário de Notícias ¹⁶ , em 5 de maio de 1889, Rui Barbosa rememora o início do seu engajamento na política partidária entre os liberais da Bahia da seguinte maneira: Já em 1866, ano em que me matriculei no curso de direito, estavam publicamente rotas as relações entre meu pai e esse parente ¹⁷ , separados, desde então, por figadal inimizade até à morte do primeiro, em 28 de novembro de 1874. Formando-me em 1870, encontrei, na Bahia, dividido o Partido Liberal. Acaudilhava esse irmão de minha mãe os dissidentes. Meu pai ¹⁸ estava, e esteve, até falecer, ao lado do Sr. Saraiva e do Sr. Dantas ¹⁹ , como tôda a gente sabe. Acompanhando a estes, segui, portanto, as pegadas paternas. Seria natural que preferisse ao pai, cujo espírito era um foco luminoso, o tio, inimigo irreconciliável dele? Que o diga o senso comum e o coração dos que o têm. Dois anos antes, a queda do gabinete liberal de Zacarias de Góis, em julho de 1868, substituído pelo conservador visconde de Itaboraí ²⁰ – uma iniciativa do trono que passara por cima da maioria liberal na Câmara de Deputados –, tivera enorme repercussão: o mundo político tremeu sob a impressão de que acontecera alguma coisa de muito grave. E os liberais, aliados a outros descontentes, logo fundaram o Clube da Reforma, destinado a enfrentar o “poder pessoal” do rei, e tendo como lema: “reforma ou revolução”. A reforma representava a modificação do sistema eleitoral com a adoção da eleição direta ²¹ . Em São Paulo, onde Rui ainda cursava a Faculdade de Direito, tem lugar a agitação da juventude liberal, que funda também um clube, o Clube Radical Republicano, réplica menor daquele organizado na Corte. Em março de 1869, por proposta de Rui Barbosa, organiza-se um pequeno jornal do clube, o Radical Paulistano ²² , do qual participarão também Luís Gama, Américo de Campos ²³ e outros; e em cujo programa já se entreviam as ideias de república e se discutia a extinção do Poder Moderador, a eleição direta e a abolição ²⁴ . Parte dos seus companheiros começava a se bandear para as ideias republicanas, mas,

Rui, como folha lançada à torrente, não tinha rumo certo, embora frequentemente participasse de comícios liberais e abolicionistas, atacando D. Pedro II com ásperas expressões [...] Rui ainda não se decidira. Vacilava. De um lado, os companheiros, os colegas de Academia, do outro, João Barbosa ²⁵ , o entourage familiar, com os seus apelos à moderação, como nesta carta paterna: Doeu-te que teu pai te escrevesse [...] a propósito [...] de tuas manifestações radicais [...] [Esses] fatos teus públicos, meu filho, me preocupam – porque (tenho dolorosíssima experiência) eles podem armar contra ti, ao principiares a carreira, poderosos ódios, produzindo a penúria, a pobreza [...] Não te quero hipócrita, não te quero sem o sentimento do teu século, não te quero inimigo das liberdades modernas; mas quero-te prudente [...] ²⁶ . Essa indecisão vem a resolver-se logo após a sua formatura: a volta à Bahia, em 1870, caracteriza-se por uma opção pelo realismo político – a adesão a uma das facções do liberalismo –, e a lembrança narrada no artigo do Diário de Notícias , anos depois, sublinha o caráter afetivo e singelamente provinciano – a lealdade ao pai em uma briga de família – que contrasta com os altos ideais proferidos em São Paulo. Em 3 de dezembro de 1871, aparece o primeiro número do jornal A República , que divulga o manifesto de oposição ao regime monárquico e que vem assinado por muitos dos seus ex-camaradas e contemporâneos da época estudantil: Joaquim Saldanha Marinho, Manuel Ferraz de Campos Sales, Francisco Rangel Pestana ²⁷ , entre outros; e quase concomitantemente Rui inscreve-se no Partido Liberal baiano ²⁸ . Não poderia haver carreira política no país sem participação na polítique politicienne das disputas entre grupamentos provinciais, assim como não haveria ascensão de qualquer dos dois partidos ao poder governamental sem o beneplácito da Coroa, princípio que já havia sido consagrado pelo famoso sorites de José Tomás Nabuco Araújo ²⁹ no Senado, em 17 de julho de 1868, logo após a dissolução do ministério liberal: “O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí o sistema representativo do país” ³⁰ .

Quando Rui Barbosa ingressa na vida partidária e política, em 1870, o chefe liberal a que João Barbosa servia e que estendeu facilmente a sua simpatia ao jovem bacharel ³¹ era Manuel Pinto de Sousa Dantas. Desnecessário dizer que a fama de talento precoce de Rui, como orador e escritor, já começava a se espraiar. Em fevereiro de 1872, ele inicia sua vida forense, no escritório do conselheiro Dantas. Quase ao mesmo tempo começa a trabalhar no Diário da Bahia , do Partido Liberal, jornal controlado também por aquele chefe político, e em dezembro do mesmo ano, com 23 anos, é nomeado redatorchefe do jornal, trabalho, aliás, sem remuneração ³² . Um cargo remunerado viria em dezembro 1874, alguns meses depois da morte do pai, quando Rui o sucede no lugar de secretário da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, nomeado, a pedido de Manuel Pinto de Sousa Dantas, pelo provedor Cincinato Pinto da Silva ³³ . As asas do favor protegem o jovem bacharel de talento, filho do correligionário dependente e empobrecido, que será assim agregado aos Dantas e tratado, segundo expressão consagrada, como “alguém da família” ³⁴ . Em uma sociedade escravagista, as reduzidas oportunidades para a ascensão social ou política dos homens livres ³⁵ , à margem da riqueza e do poder, teriam quase fatalmente de submeter-se a um movimento de favor ³⁶ e, assim, valor individual, ideais liberais e mesmo a fidelidade ao nome e ao sangue haviam que se acomodar ao beneplácito dos que comandavam a economia ou a política. Ponta de lança do Partido Liberal Dois itens, sobretudo, faziam parte da pauta liberal quando do ingresso de Rui Barbosa no partido: a demanda pela eleição direta e o que era normalmente conhecido por uma expressão um tanto eufemística: a questão do elemento servil. No que diz respeito a este último, a Coroa, durante o gabinete de Rio Branco – quase que inteiramente por conta própria, neutralizando uma reação contrária na Câmara de Deputados, de início majoritária e que incluía conservadores e liberais –, tinha dado um passo na direção da extinção do trabalho escravo, com a lei de 28 de setembro de 1871, conhecida como a lei do Ventre Livre ³⁷ . Adiava-se, por assim dizer, a discussão da abolição total da escravidão por mais de uma década, quando então o movimento abolicionista passa a crescer de maneira mais expressiva. Por sua vez, a questão da eleição direta viria a surgir com força quando da volta dos liberais ao poder, em 1878. O regime dos conservadores que se instalara em 1868 durara, portanto, dez anos e acabou da mesma maneira que começou, por iniciativa do imperador: é provável que o tenha movido a necessidade de fazer com que a gangorra ministerial funcionasse na aparência, já que na realidade não funcionava [...] Os conservadores vinham governando o país por um período muito longo, quase dez anos, e Sua Majestade não haveria de permanecer longamente insensível às queixas da oposição ³⁸ . Sua Majestade incumbe João Lins Vieira Cansansão, o então barão de Sinimbu ³⁹ , de organizar o ministério que se instala no dia 5 de janeiro de 1878. Em 13 de janeiro de 1878, realiza-se eleição provincial na Bahia, que é ganha, como de praxe, pelo partido que detinha o poder central. Rui

Barbosa, forte na sua participação na política regional ao lado dos Dantas, sem pedir votos ⁴⁰ , foi eleito à Assembleia Legislativa Provincial, na 17ª legislatura, com 1.071 votos ⁴¹ . No entanto, não foi longa a permanência de Rui como deputado provincial. Na apresentação do seu programa, Sinimbu anuncia que o novo governo encaminhará uma proposta de reforma eleitoral contemplando a eleição direta. Para tal, o novo gabinete não poderia contar com a câmara eleita pelo governo conservador. Procede-se ao mesmo ritual: dissolve-se a Câmara em abril de 1878, convoca-se outra para 15 de dezembro do mesmo ano e faz-se a eleição em setembro, quando, como era previsto, é eleita uma legislatura com maioria liberal. Na Bahia, sempre por indicação de Manuel Pinto Dantas, Rui Barbosa é eleito deputado geral à 17ª legislatura. A questão da eleição direta A introdução da eleição direta substituiria a eleição em dois graus, onde o corpo eleitoral escolhia um grupo de eleitores que votavam para os parlamentos provincial e geral. Para alguns, a reforma eleitoral implicava mudança na Constituição de 1824, já que esta dispunha sobre a matéria a ser reformada, determinando que o procedimento eleitoral fosse indireto. Outros, porém, entendiam que se poderia empreender a reforma através de uma lei ordinária. Sinimbu, com o apoio de Pedro II, pensava que as duas opções seriam válidas, mas entendia que se deviam “ressaltar todos os escrúpulos” ⁴² . A 13 de fevereiro de 1879, foi apresentado à Câmara um projeto de convocação de uma constituinte. O projeto do gabinete determinava que se convocasse uma constituinte para que se reformassem unicamente os artigos da Constituição que diziam respeito ao procedimento eleitoral. Propunha-se também elevar o total de 200$000 (duzentos mil-réis) de renda líquida anual por bens de raiz, indústria, comércio ou empregos – condição necessária para o direito de votar em representantes da nação e províncias ⁴³ – para 400$000 (quatrocentos mil-réis) anuais. Além disso, o projeto estabelecia uma condição inexistente na Carta de 24: só poderiam votar aqueles que sabiam ler e escrever. Tratava-se de uma constituinte com poderes limitados e logo recebeu, por parte dos seus oponentes, a alcunha de “constituinte constituída”, o que provocou os escrúpulos e a reação de vários liberais. Rui Barbosa recusou-se a assinar esse projeto: “seria reconhecer a esta câmara o direito de reduzir a constituinte a mero órgão de plebiscito” ⁴⁴ . No entanto, isso não o impediu de dar o seu voto: “Mas, [...] a razão que não me deixava ceder-lhe a minha assinatura era insuficiente para que eu recusasse o meu voto sincero e firme, quando, no âmago do projeto, estava a exigir-mo uma ideia benemérita do aplauso dos verdadeiros liberais [...]” ⁴⁵ , e, na verdade, o voto era o que mais interessava ao governo. Contra o projeto, abriu-se uma campanha parlamentar promovida por uma dissidência liberal ⁴⁶ , liderada por José Bonifácio, o Moço ⁴⁷ , que, em 28 de abril de 1879, pronuncia um discurso veemente. Em resumo, dizia que, no momento em que os países adiantados tendiam a tornar o voto universal, “condena-se ao ilotismo político, num país livre, a imensa maioria de seu

povo. Este projeto, senhores é odioso [...] porque diz às massas: Pagai impostos, mas não votareis!” ⁴⁸ . A eliminação do voto do analfabeto significaria “repudiar os que nos mandaram a esta câmara ( apoiados ). Aqueles que são os verdadeiros criadores da representação nacional ( apoiados, muito bem ). Por quê? Porque não sabem ler, porque são analfabetos! Realmente a descoberta é de pasmar!” ⁴⁹ . Quanto à elevação do limite censitário, ela não seria uma garantia de maior independência do eleitor: “O pobre corrupto vende-se por dinheiro, o advogado por contratos administrativos, o cortesão por títulos, [...] os ambiciosos por empregos e posições. Ainda não se descobriu o sinal para separar os honestos dos desonestos, pobres ou ricos” ⁵⁰ . A proposta deveria ser recebida com ironia, enquanto não ficasse provado que 19/20 – uma estimativa da proporção da população masculina e adulta excluída do eleitorado, feita por Silveira Martins ⁵¹ , em discurso anterior – não queria votar nem participar da elaboração das leis do país ⁵² . Nesse debate, Rui Barbosa vai defender, “com mais desvelo do que o comum dos defensores do projeto”, qualifica Sérgio Buarque de Holanda ⁵³ , o ponto de vista do governo em um longo discurso, pronunciado em 10 de julho de 1879, quando a proposta do gabinete Sinimbu já se encontrava aprovada, o que acontecera em 30 de maio do mesmo ano. Na verdade, o seu empenho na defesa do gabinete liberal se daria praticamente desde o início, quando pronuncia um enérgico discurso, em 16 de abril de 1879, contra Silveira Martins, que renunciara há pouco ao Ministério da Fazenda, por discordar da exclusão dos não católicos da reforma eleitoral – e que interpelara, em tom bastante agressivo, o chefe do gabinete a propósito de seus negócios com o Banco Nacional ⁵⁴ . Diante da dissidência composta de liberais tão prestigiosos, Rui Barbosa vai receber uma convocação de Manuel de Sousa Dantas: – “Meu Rui vai fazer esse sacrifício”, lhe teria dito o chefe do Partido Liberal na Bahia. “Na verdade, era uma ordem”, comenta Luís Viana ⁵⁵ . E é o que, de fato, aparenta ser: o discurso em resposta a Silveira Martins é de 16 de abril; em 9 de abril, Rui recebe um bilhete de Rodolfo Dantas, que se diria tratar desse assunto: Rui, [...] Faze por falar a meu pai hoje, que pediu-me para dizer-te que aparecesses. É sobre negócio importante (interpelação Gaspar) que ele quer falar-te. À tarde darei um pulo aí, para abraçar-te. Saudades à Cota, à D. Mariquinhas e muitos beijos a Maria Adélia. Teu do Coração Rodolfo. P.S. Quando meu pai disse-me que te chamasse para falar com ele sobre a interpelação Gaspar eu não pude dizer-lhe, por estar perante gente de fora, qual a nossa intenção ⁵⁶ . O discurso de Rui, considerado audacioso por se opor de frente a um político veterano e orador temível, é contundente, como sempre rico em imagens,

mas consiste basicamente em um só argumento, que a seu ver invalidaria a posição tomada por Silveira Martins: a de que este último careceria de autoridade moral para atacar um governo ao qual pertencera: o gabinete de 5 de janeiro forma com S. Ex., [Silveira Martins], nesta questão, uma entidade só; perante a qual, se houvesse, nesta hipótese, um réu de quebra de moralidade administrativa ou do pudor parlamentar, esse réu seria, não menos que o gabinete de 5 de janeiro, o ex-ministro da fazenda [Silveira Martins] [...] se o Partido Liberal estivesse, como S. Ex. diz, fulminado de morte, se o gabinete 5 de janeiro estivesse moralmente defunto. S. Exa. seria um membro não menos morto do cadáver [...] ⁵⁷ . A defesa do projeto Sinimbu se fará de maneira bem mais substantiva. No seu discurso de 10 de julho, no qual ele se dirige, sobretudo, a José Bonifácio, seu antigo mestre na Faculdade de Direito de São Paulo ⁵⁸ , Rui Barbosa passa a defender dois dos pontos principais da proposta governamental que estabeleciam limites para o eleitorado e que tinham sido alvo principal da ala mais radical do liberalismo: o que ele chamou de censo literário , ou seja, o saber ler e escrever; e o censo pecuniário : a renda líquida anual (o projeto, além de exigi-la para todo o corpo eleitoral, também elevava o mínimo exigido previsto na Constituição de 1824 para os eleitores de segundo grau). No que diz respeito à primeira cláusula, Rui dirá: Aplaudo a cláusula de saber ler e escrever, porque é justa (muito bem); porque é útil; porque é civilizadora (apoiados); porque é sobretudo liberal. (Muito bem; apoiados) ⁵⁹ [...] Entendo que o sufrágio universal é a ultima expressão em matéria de eleição (apoiados), mas, para que o país possa lá chegar, sem risco de comprometer gravíssimos interesses, há uma escala a percorrer na educação e ilustração do povo (apoiados). [...] A necessidade de saber ler e escrever não é uma limitação do direito; é apenas uma condição ao seu exercício; visto ser impossível desempenhar a função de eleitor quem não souber escrever a sua lista (apoiados), e, não sabendo ler, for forçado a contingência de pedir a outrem que escreva. (Muitos apoiados) ⁶⁰ . Referindo-se a uma afirmativa de José Bonifácio – “esse projeto é o suicídio moral do partido [liberal]” ⁶¹ – evoca opinião de outros liberais ilustres contrários ao voto do analfabeto e cita longamente um discurso do conselheiro Saraiva de 1875, em que se diz: O Sr.Saraiva – Repugna ao meu bom senso levar a democracia a este ponto de “selvageria” [a do voto do analfabeto]. [...] O liberalismo verdadeiro diz: Vote quem puder; e habilite-se a população toda para votar. [...] Não quero nem o absolutismo dos príncipes, não obstante sua educação, nem o absolutismo da ignorância, das multidões brutas; a inteligência deve governar, e só ela.

E Rui concluía: “Era impossível, Sr. Presidente, reprovar o voto dos analfabetos em termos mais condenadores. Saraiva, Zacarias e Nunes Gonçalves ⁶² acordavam nisto” ⁶³ . Finalmente, e no que dizia respeito à segunda cláusula, para Rui Barbosa só um indigente viveria no Brasil com uma renda anual de menos de 400$000 (quatrocentos mil-réis), o que lhe tolheria a independência ao votar e justificaria, portanto, o “censo pecuniário” do projeto do governo: “para tal grupo de pessoas o sufrágio representaria quase sempre o preço do chapéu, da jaqueta e dos sapatos, recebidos, na hora, do candidato pelo eleitor maltrapilho, sob o pretexto de acomodar a decência do traje ao decoro eleitoral” ⁶⁴ . O debate reproduzia uma antinomia presente até hoje nas interpretações de pensadores sociais: enquanto José Bonifácio e os seus aliados viam – ainda de uma maneira bastante vaga, nos diria Sérgio Buarque de Holanda – no aprimoramento da sociedade e suas instituições o motor para a elevação do indivíduo ⁶⁵ , Rui Barbosa insistia “que o princípio elementar de toda liberdade, de toda inteligência, reside na molécula humana, no indivíduo vigoroso, instruído e livre”; cabia, portanto, primeiro elevar-se o indivíduo para se obter “uma sociedade robusta, livre e sábia” ⁶⁶ . Tratava-se, pois, de ter bons eleitores para que se obtivessem boas eleições ⁶⁷ . Por sua vez, o imperador também se opunha ao voto do analfabeto, a julgar por anotações suas escritas sobre texto do projeto, encontradas entre os papéis do conselheiro Saraiva ⁶⁸ . Com a maioria de que dispunha na Câmara de Deputados, o debate revelou-se praticamente inútil, e a iniciativa do governo foi aprovada por 71 contra 13 votos. Além do mais, recusou-se a proposta de elegibilidade dos acatólicos. “Câmara de servis”, protestou Silveira Martins ⁶⁹ . No Senado, porém, o projeto terá outro destino. Configurou-se uma maioria de senadores contra a “constituinte constituída”, por razões diversas, algumas até mais conservadoras, como a aventada por Rio Branco, que propunha o envolvimento do Senado e do Poder Moderador na reforma constitucional ⁷⁰ . Em 12 de novembro de 1879, o projeto foi rejeitado pela casa. A discussão sobre a eleição direta teve que aguardar um novo gabinete liberal, o gabinete Saraiva, que sucederia ao de Sinimbu em março de 1880, em seguida à chamada Revolta do Vintém. Manuel de Sousa Dantas assumiria a pasta da Justiça e seria encarregado de elaborar um novo projeto de reforma eleitoral, que veio a ser conhecido como a lei Saraiva, lei do Censo ou da eleição direta. A participação de Rui na redação dessa lei é sobejamente conhecida ⁷¹ . Em 17 de maio, escrevia ele sobre o texto a Manuel Dantas reafirmando a sua fidelidade às orientações do governo e dizendo do seu propósito de defender uma “lei tão perfeitamente liberal quanto as circunstâncias nos permitirem”, e acrescentando, mais adiante: “sei que o gabinete rejeita o sufrágio universal, que eu também absolutamente não quero” ⁷² . Preparou o projeto em curtíssimo espaço de tempo, a partir de notas que lhe foram enviadas pelo próprio Saraiva através do seu ministro da Justiça:

[Trouxe-me o conselheiro Dantas] as bases [do projeto] escritas pelo Conselheiro Saraiva. Para tão grave tarefa apenas me deixava o lapso de dois dias. Recusei, resisti; mas tive de ceder à pressão de uma autoridade que se acostumara à minha obediência e à fascinação de uma ideia, que arrebatava o meu entusiasmo. ⁷³ No seu discurso de apresentação do projeto à Câmara, em 4 de junho de 1880, Saraiva irá insistir na sua oposição ao sufrágio universal. Em fala anterior, de 1875, já mencionada em discurso de Rui aqui citado, Saraiva dissera que a condição de saber ler e escrever seria por si só uma base suficiente para a eleição direta, na medida em que analfabetismo e baixa renda eram praticamente conjugados, uma vez que o objetivo era preservar a sociedade do domínio das classes miseráveis sobre as outras, que dispõem de mais informação e haveres; portanto, mais interessadas na manutenção da ordem pública e das instituições. No entanto, ao expor agora a proposta de reforma eleitoral do seu ministério, insistirá, sobretudo, na prova de renda de 200$000 (duzentos mil-réis), que se cercará, assim, de procedimentos de comprovação minuciosos. Além dessa restrição censitária, a lei Saraiva, aprovada em 9 de junho de 1881, ⁷⁴ elimina o voto do analfabeto, exclui praticamente o assalariado privado do direito de voto e torna o voto facultativo. Por outro lado, introduz alguns pontos liberalizantes: o voto aos acatólicos, aos libertos e aos naturalizados. Ao fim e ao cabo, porém, essas mudanças tiveram como efeito uma redução drástica do número de votantes, que passa de aproximadamente 1.100.000 em 1872 a 117.000 em 1886 ⁷⁵ . Em 30 de junho de 1881, procede-se à dissolução da Câmara, para que se pudesse pôr em prática a nova lei eleitoral, e convoca-se uma reunião da nova câmara para o último dia do ano, depois de apuradas as eleições marcadas para o dia 31 de outubro. Com o corpo eleitoral bastante reduzido, as eleições ficaram conhecidas como uma das mais livres do Império. Sancionada a reforma, Saraiva nomeia para as províncias presidentes que se mantiveram imparciais durante o pleito. Um dos sinais dessa imparcialidade foi a derrota no Rio de Janeiro e em São Paulo de dois dos seus ministros, o dos Negócios Estrangeiros, Pedro Luiz Pereira de Sousa, e o do Império, o barão Homem de Melo ⁷⁶ . Os conservadores elegeram uma forte minoria e notadamente a província do Rio de Janeiro elegeu uma maioria conservadora para representá-la ⁷⁷ . No seu conjunto, o pleito foi um completo desastre para o pequeno grupo de candidatos liberais mais radicais, sobretudo a facção abolicionista: Joaquim Nabuco ⁷⁸ e Jerônimo Sodré ⁷⁹ não se reelegeram. Sancho de Barros Pimentel ⁸⁰ foi derrotado, em Sergipe. Quintino Bocaiúva, ⁸¹ candidato pelo minúsculo Partido Republicano, não teve melhor sorte ⁸² . Dentro desse quadro, em que vários dos seus mais ilustres coetâneos e companheiros liberais foram derrotados, Rui escapou por pouco. Sempre aliado dos Dantas, mas incompatibilizado com o presidente da província, o visconde de Paranaguá ⁸³ , não consegue reunir os liberais em torno de seu nome, e uma facção do Partido apresenta um outro candidato: José Álvares do Amaral. Na competição para a renovação do mandato de deputado geral pelo 2º Distrito, nenhum candidato obtém quorum para vencer: candidato

conservador, José Eduardo Freire de Carvalho. Este tem 404 votos, e Rui Barbosa, 378. Em segundo escrutínio, Rui acaba vencendo por 444 votos contra 424 dados a Freire ⁸⁴ . Ao voltar para a Corte no final de 1881, Rui Barbosa atravessaria mais quatro gabinetes liberais – Martinho Campos ⁸⁵ , Paranaguá, Lafayette Rodrigues Pereira ⁸⁶ e Manuel de Sousa Dantas – antes de ser derrotado nas eleições de dezembro de 1885. Com todos, à exceção do gabinete Paranaguá, com quem mantinha divergência oriunda da política baiana, ele teve um próximo envolvimento que se extremou no gabinete de Manuel Pinto de Sousa Dantas, seu conterrâneo e chefe político. O gabinete Saraiva cai sob o peso da reforma eleitoral que havia promovido. O Partido Liberal não fora derrotado, mas a oposição fez um terço da Câmara de Deputados, mesmo depois da verificação de poderes que eliminou vários conservadores. Resolveu a Coroa trocar de ministério sem que se dissolvesse a câmara: o imperador chamou o liberal Martinho Campos para organizar um novo gabinete em 21 de janeiro de 1882. Martinho Campos manifestava-se francamente escravocrata ⁸⁷ ou escravocrata da gema ⁸⁸ . Além disso, apresentara-se à Câmara de Deputados com desconcertante candura: “As minhas condições pessoais são singulares e excepcionais; não admira que eu não saiba fazer um programa; eu nunca me julguei preparado para o governo” ⁸⁹ . No entanto, representava a situação liberal, ou seja, a continuidade do Partido no poder, desde janeiro de 1878, depois de dez anos de domínio conservador. Martinho Campos havia tido a precaução de atrair o apoio da bancada baiana, nomeando o filho do chefe liberal daquele estado, Rodolfo Dantas, para o ministério do Império, o que provocou o entusiasmo de Rui ⁹⁰ . Mais ainda, “Martinho buscou prender mais fortemente a Dantas, oferecendo-lhe o posto de líder para outro seu – o Rui aliado da família” ⁹¹ . Como líder do governo, este último pronunciará um longo discurso na sessão de 6 de março de 1882, desenvolvendo o argumento de que o gabinete de 21 de janeiro representava o liberalismo possível e realista. Dizia Rui que o presidente do conselho não apresentava programa algum, porém dissera: “me desvaneço de ter, durante toda a minha vida, merecido a confiança do meu partido.” “Para mim, senhor presidente”, acrescentava Rui, essas palavras contêm a equivalência de um verdadeiro programa [...] [porque] o nobre presidente do conselho não teria o direito de esperar a confiança da maioria desta Casa, se concebesse a possibilidade de contrariar os compromissos contraídos na oposição e ratificados no poder ⁹² . Pondo de lado o escravismo de Martinho Campos, Rui Barbosa dá ênfase, nesse mesmo discurso de 6 de março, às realizações liberais – como a lei Saraiva, da eleição direta –, e defende a reforma do ensino secundário e superior, ideia desenvolvida no parecer ao projeto de mesmo nome que, como relator da Comissão de Instrução Pública, apresentaria algumas semanas mais tarde, no dia 13 de abril de 1882 ⁹³ .

O gabinete de 21 de janeiro duraria pouco menos de seis meses, derrubado por um voto de desconfiança da Câmara. No entanto, mantiveram-se os liberais no poder. Em 3 de julho, assume a chefia do gabinete o então visconde de Paranaguá. “Poucas situações poderiam ser mais desagradáveis a Rui”, escreve Luís Viana, “do que ver Paranaguá dirigindo o ministério. Embora seu desafeto, tratava-se de um liberal. Resultado: perdia os favores, mas não o podia atacar” ⁹⁴ . A solução foi assumir uma posição discreta no parlamento, restringindo-se praticamente à redação do parecer ao decretolei de Leôncio de Carvalho de 1879 e do projeto substitutivo de reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública ⁹⁵ – que veio a ser um trabalho mais extenso e aprofundado do que os anteriores sobre os outros dois graus de ensino –, apresentado ainda em setembro de 1882 à Câmara de Deputados. Ainda em setembro, durante os debates parlamentares, manifesta divergência em relação à política do gabinete referente aos impostos provinciais, arguindo a constitucionalidade de medidas governamentais. Colocava-se, assim, discretamente, na dissidência liberal, apanágio, diria , de uma nova era, quando a eleição direta abolira o “domínio das deputações unânimes” ⁹⁶ . Pouco tempo durou o gabinete Paranaguá: em menos de um ano foi substituído pelo de Lafayette Rodrigues Pereira (em 24 de maio de 1883), que havia sido um dos signatários do manifesto republicano de 1870. A mesma Câmara permanecia em vigência e continuava o império dos liberais. Com a saída de Paranaguá, Rui volta a ter uma participação mais ativa. Empenha-se sobremodo na defesa do chefe do gabinete, cujo republicanismo pregresso o fazia alvo permanente da oposição e de parte da imprensa. Entre o final de novembro de 1883 e janeiro de 1884, Rui publica no Jornal do Commercio , sob o pseudônimo de Salisbury, uma série de artigos ⁹⁷ , em que, inteiramente identificado com Lafayette, se propõe a justificar, usando exemplos do parlamentarismo inglês, a atitude do republicano aceitando a chefia do gabinete ⁹⁸ . Pouco antes, ele havia escrito, também para o Jornal do Commercio , vários artigos sob a assinatura de Swift, defendendo o governo das acusações feitas à participação de oficiais do exército no assassinato de Apulco de Castro, redator de O corsário , jornalista panfletário que, dizendo-se ameaçado, havia se entregado à proteção da polícia ⁹⁹ . Provavelmente motivado por tão firme e determinada solidariedade, Lafayette propôs ao imperador que lhe concedesse o título de conselheiro, obtido em 31 de maio de 1884, invocando os seus serviços à educação. Rui Barbosa ascendia, portanto, a uma das posições mais honrosas da monarquia brasileira, antes de completar 35 anos de idade ¹⁰⁰ . Logo depois, em junho, ainda enredado com as repercussões do affaire da morte do jornalista Apulco de Castro e em face da oposição crescente no parlamento, o gabinete apresenta ao imperador a sua demissão coletiva. Um inglês do Sr. Dantas O imperador dispensa o expediente de dissolução da Câmara e reafirma a continuidade liberal: o novo gabinete assume em 6 de junho de 1884, tendo a sua frente Manuel de Sousa Dantas. Nunca Rui Barbosa estivera tão perto

do poder. Cogita-se da sua nomeação para o ministério, mas nada acontece, e ele torna-se líder do governo ¹⁰¹ . Ao ser escolhido, Dantas recebe o apoio do imperador para que se retomasse a discussão e a iniciativa de se lidar com a “questão do elemento servil”, que, desde 1871 – quando da lei do Ventre Livre –, se encontrava praticamente ausente das instâncias decisórias da política, embora a campanha abolicionista já houvesse tomado certo vulto. Desde o início da década de 1880 haviam se multiplicado as sociedades abolicionistas, sobretudo na Corte e em algumas [outras] capitais ¹⁰² . Os cinco gabinetes liberais dos últimos seis anos pouco haviam proposto e nada haviam feito no sentido da extinção do trabalho escravo. Durante as primeiras discussões sobre o tema na Câmara de Deputados, ainda no início do gabinete Dantas, Afonso Celso Jr. ¹⁰³ fez um balanço das posições assumidas sobre a emancipação dos escravos pelos últimos ministérios liberais, de 1878 até então ¹⁰⁴ : Desses seis, dois não cogitaram da questão ¹⁰⁵ ; o do Sr. Martinho Campos declarou-se francamente infenso à sua solução; o quarto, o do Sr. Paranaguá, propôs alguma coisa: a localização dos escravos; o quinto, o do Sr. Lafayette, propôs ainda mais: um imposto para redimi-los; e finalmente o atual arvorou a emancipação como objeto primordial das suas elucubrações. Nessa diversidade de pontos de vista, os conservadores enxergam incoerência, contradição, motivo para severa censura. Nisso, porém, eu apenas noto a pressão crescente dos acontecimentos, o impulso ascendente da opinião, o desenvolvimento lógico e natural de uma grande ideia, que não podia deixar de ser aceita pelo partido que se inspira nos instintos progressivos da consciência pública, e inscreveu na sua bandeira como divisa a palavra – caminhar. Em 15 de julho de 1884, Rodolfo Dantas apresentou à Câmara o projeto do governo sobre a emancipação dos sexagenários, um documento que havia sido praticamente escrito por Rui Barbosa, ¹⁰⁶ que vinha a ser, aliás, o seu segundo signatário. Como assinala Pinto de Aguiar, teria de redigi-lo, como um representante do Partido Liberal, cujo chefe na Bahia era o seu grande protetor político, Sousa Dantas; [...] e ainda levando em consideração o fato de, nele, como no Partido Conservador, militarem segmentos contrários à corrente emancipatória ¹⁰⁷ .

O projeto definia, no seu artigo primeiro, quatro hipóteses de emancipação: 1) pela idade do escravo; 2) pela omissão da matrícula, ou seja, estabelecia a obrigatoriedade de serem registrados os escravos, por nome, idade, filiação, estado e naturalidade, entre outras características. (Este dispositivo visava aprimorar a aplicação da lei do Ventre Livre, assim como recensear os escravos contrabandeados, introduzidos no país depois da proibição do tráfico.); 3) pelo fundo de manumissão; 4) por transgressão do domicílio legal do escravo, o que impedia a sua transferência de domicílio provincial, facilitando a liberação espontânea, por parte dos proprietários naquelas províncias onde o trabalho escravo não era significativo e evitando a sua venda para centros utilizadores da mão de obra servil ¹⁰⁸ . O fato novo era a definição de uma idade-limite para o estado de escravidão: 60 anos. Mais importante: ficava implícita, por este dispositivo, a preclusão ao pagamento de qualquer indenização pela emancipação do escravo, o que seria a primeira contestação ao direito de propriedade sobre a pessoa humana, na legislação brasileira. Ao esboçar um breve retrospecto do caminho percorrido pela causa abolicionista, em Minha formação , Joaquim Nabuco sublinha a importância daquele momento: O movimento abolicionista teve com efeito duas fases bem acentuadamente divididas: a primeira, de 1879 a 1884, em que os abolicionistas combateram sós, entregues aos seus próprios recursos, e a segunda, de 1884 a 1888, em que eles viram sua causa adotada sucessivamente pelos dois grandes partidos do país. Em 1884 deu-se a conversão do Partido Liberal e em 1888 a do Partido Conservador ¹⁰⁹ . E destaca o papel de Dantas (na categoria dos chefes políticos), “que primeiro colocou a serviço dela [da abolição] um dos partidos constitucionais do país, o Liberal” ¹¹⁰ . A percepção de que o projeto de lei ameaçava a legitimidade da propriedade de escravos foi imediata. Logo após o discurso de Rodolfo Dantas, o presidente da Câmara de Deputados, Moreira de Barros, renunciou à presidência, em protesto contra a proposta do governo. Assim, em torno da renúncia, travou-se o primeiro combate parlamentar entre abolicionistas e escravocratas. A votação para a aceitação da renúncia de Moreira de Barros punha em cena a questão da confiança no gabinete. Rui Barbosa assume a defesa do governo e pede votação nominal: verifica-se que 55 deputados a aceitam e 52 a rejeitam. O Partido Liberal cindiu-se. A queda do ministério foi evitada por uma maioria de apenas três votos. Poucos dias depois, em 23 de julho de 1884 ¹¹¹ , a dissidência do Partido Liberal une-se aos conservadores e aprovam o voto de desconfiança no gabinete Dantas por 59 votos contra 52. Em defesa do governo, Rui vaticina: “As concessões moderadas que hoje recusardes, amanhã já não satisfarão ninguém” ¹¹². Diante deste obstáculo, Sousa Dantas solicita ao imperador a dissolução da Câmara, mediante exposição de motivos redigida pelo líder do governo. Por sete votos a três, o conselho do Estado pronuncia-se contra o pedido, o que sublinha ainda mais a extensão da oposição ao governo; mas, apesar disso, o imperador resolve dar o seu assentimento e, em 3 de setembro, decreta-se a dissolução da Câmara e, com isso, adia-se a discussão do projeto Dantas,

para o qual Rui Barbosa havia elaborado um circunstanciado parecer, submetido à Câmara em 4 de agosto de 1884. São quase duzentas páginas de texto, apoiado em extensa bibliografia. Apesar de ser um documento de grande erudição – sobretudo se considerarmos o público ao qual era endereçado – trata-se de uma peça eminentemente de combate parlamentar, em que predominam os elementos táticos, envolvendo as questões em pauta e a posição dos adversários. Entre outros, denuncia o sempre presente argumento dos conservadores: o de que uma legislação que avançasse no sentido da emancipação seria, de imediato, perturbadora – atingindo a produção nacional –, além de ser redundante ou fútil ¹¹³ , posto que a escravidão tenderia a desaparecer como uma consequência da proibição do tráfico e em decorrência da lei do Ventre Livre, pelo movimento natural da demografia. Rui objetava que essas previsões, já aventadas (inclusive pelo então deputado José de Alencar) durante o debate sobre a lei de 28 de setembro de 1871, custavam a se realizar: 13 anos depois da emancipação dos nascituros, ainda havia cerca de 1.300.000 escravos no país ¹¹⁴ . Trata ironicamente o “lema que nos reduz à condição de um Estado puramente agrícola” ¹¹⁵ e, em seguida, citando economistas contemporâneos, associa escravidão à baixa produtividade e ao baixo desenvolvimento econômico ¹¹⁶ , argumentando também que a produção agrícola no Brasil havia crescido sistematicamente desde a lei de proibição do tráfico em 1850 ¹¹⁷ . Rui não se furta, porém, a atacar de frente o estatuto legal da propriedade escrava: O que a nossa Constituição assegura, em toda a sua plenitude, é o direito de propriedade, mas da real, da verdadeira, da natural: é o que recai sobre as coisas, pois não é propriedade o que recai sobre pessoas. Instituição puramente de direito civil, manifestamente viciosa, privilégio que tem uma raça de conservar outra no cativeiro, não se chama propriedade ¹¹⁸ . Convocadas as eleições para o 1º de dezembro, essas últimas talvez “tenham sido o mais importante pleito em que os eleitores foram chamados a pronunciarem-se sobre um princípio [...] Organizaram-se as chapas de acordo com os pronunciamentos sobre o projeto [Dantas]” ¹¹⁹ . É o que Rui vai escrever logo após a dissolução da Câmara, em artigo assinado como Lincoln, no Jornal do Commercio de 27 de setembro de 1884: “É ele [o projeto] em verdade o objeto especial do apelo às urnas: a Câmara recusouse examiná-lo, discuti-lo, emendá-lo; e desta repulsa prévia recorreu o ministério para o corpo eleitoral, perguntando-lhe se bem procederam os seus mandatários [...]” ¹²⁰ . Rui apresenta-se pelo 8º Distrito da Bahia e perde a reeleição de deputado geral para um candidato conservador, tendo sofrido – em um eleitorado restrito – campanha de oposição da parte de escravistas e da Igreja Católica, esta última atribuindo-lhe posições anticlericais ¹²¹ . Mas porque era certamente um conhecedor dos métodos eleitorais do seu tempo, quando o governo não perdia eleições, anos depois Rui Barbosa não resiste a extravasar sua mágoa contra os seus habituais protetores:

o meu nome era então a bandeira parlamentar do abolicionismo; era o nome do autor do parecer da Comissão, que acabava de recomendar ao Parlamento a adoção do projeto Dantas. O governo fez-me a honra de abandonar a minha candidatura à sua sorte, e tive a satisfação de ser derrotado ¹²² . “E quando dizia ‘o governo’,” comenta Luís Viana, “era como se mencionasse o nome do chefe do gabinete, o conselheiro Dantas” ¹²³ . A câmara estava dividida, não mais entre liberais e conservadores, mas entre abolicionistas e escravistas, e o governo Dantas enfrentava novamente um número ameaçador de deputados hostis. A defesa do gabinete é, assim, de mais a mais, identificada ao projeto de emancipação dos sexagenários. Desde janeiro de 1885, começam a aparecer no Jornal do Commercio artigos assinados por pseudônimos ingleses de Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Rodolfo Dantas e Gusmão Lobo ¹²⁴ , que ficaram conhecidos como “os ingleses do Sr. Dantas” ¹²⁵ . Rui assina vários artigos, ora com os pseudônimos de Lincoln e Grey, ora com seu próprio nome. A indenização dos proprietários de escravos é discutida repetidas vezes, porque era questão central: “O problema servil, entre nós, reduz-se hoje a estas duas questões: indenizaremos, ou não, os senhores de escravos? Se houvermos de indenizar, em que consistirá a indenização?” ¹²⁶ – pergunta Rui Barbosa em um dos seus artigos. A resposta é tática, cuidadosa, dentro dos termos e do padrão de negociação postos pela relação de forças com os adversários: Em primeiro lugar, dizia ele, a ideia da indenização em dinheiro é “arruinadora, insensata”. Aceitava, no entanto, uma eventual indenização em serviços dos escravos com menos de 60 anos: “o projeto no tocante a todas as idades abaixo [de 60 anos] estabelece a indenização em serviços (vá o eufemismo) [...] Somente seria mister que essa obrigação de serviço não transcendesse um prazo bastante curto: talvez, por exemplo, de um ano” ¹²⁷ . Em termos mais gerais, os artigos procuravam identificar a bandeira da abolição com o Partido Liberal, denunciando a facção escravista como adversa ao espírito e ao programa partidário. O artigo é do início de abril, quando já se desenhava uma derrota do gabinete, calçada na dissidência liberal e prenunciada por Rui, poucos dias depois, no artigo “A bênção dos punhais” ¹²⁸ . Enquanto se desenrolava a queda de braço entre o gabinete e a Câmara, Rui acirrava o seu combate na imprensa: entre 2 de abril e 5 de maio, quando cai finalmente o gabinete Dantas, ele publica 13 artigos em sua defesa, e multiplicavam-se manifestações de populares, partidários do governo, junto aos deputados. Em 4 de abril, a oposição submete uma moção de desconfiança, que é aprovada por 52 votos contra 50. De início, Dantas se recusa a demitir-se, mas o imperador nega-lhe o apoio, sob o pretexto de que a nova Câmara nascera sob o gabinete que agora recusava. Em 6 de maio de 1885, coube a José Antônio Saraiva organizar novo ministério liberal, levando em conta a frágil unidade do partido e a reação escravista dentro da Câmara, o que o faz apresentar novo projeto, reformulando a proposta de Dantas. Para bem marcar o seu respeito ao direito de propriedade, o projeto Saraiva condicionava a liberdade dos

escravos a valores que decresceriam com a idade. A partir de 60 anos, não era atribuído mais valor, porém a título de indenização pela emancipação, esses escravos teriam que prestar, por três anos, serviços que cessariam automaticamente ao atingirem a idade de 65 anos. O projeto estabelecia também multa de quinhentos mil réis a um conto de réis para os que “seduzissem ou acoutassem escravos alheios” (no parágrafo 3º, Artigo 7). Além disso, suprimia na nova matrícula obrigatória a naturalidade do escravo, furtando-se dessa maneira a controlar a aplicação da lei de novembro de 1831 ¹²⁹ , que, por proibir o tráfico, tornava ilegal a escravidão dos nascidos na África. A 13 de agosto de 1885, o novo projeto foi aprovado com apenas 17 votos contrários, evidenciando a pouca expressão da facção mais progressista do Partido Liberal. Todo o processo esgarçara a unidade do partido, dificultando a liderança de Saraiva, que, tendo feito aprovar a sua lei, devolve o cargo ao imperador, para criar melhores condições políticas ao encaminhamento da reforma do regime servil ¹³⁰ . O retorno dos conservadores era um dos resultados da divisão entre os liberais e havia sido anunciado várias vezes por Rui nos seus artigos no Jornal do Commercio , em defesa do gabinete Dantas. Poucos dias após a ascensão do novo gabinete conservador de Cotegipe ¹³¹ , Rui dá vazão a sua indignação contra os recentes acontecimentos, atacando duramente a lei Saraiva, em conferência pública comemorativa da lei do Ventre Livre: Pelo cativeiro dos sexagenários, pelo caráter da nova matrícula, pela disposição que capitula em roubo a hospitalidade generosa, o direito moral, legal, constitucional de asilo doméstico aos escravizados – essa reforma pretende ser a anistia indireta do contrabando negro, o perpétuo silêncio decretado sobre as reclamações que se esteavam na lei de 1831 ¹³² . Até o final da monarquia, Rui Barbosa não mais ocupará cargo eletivo. Por três vezes, tentou a eleição, sem sucesso, para a Câmara de Deputados: duas vezes pela Bahia – em janeiro de 1886 e em janeiro de 1888 –, quando dominavam os conservadores, o que tornava praticamente inviável a sua vitória. Com a queda do gabinete conservador de João Alfredo, e a posse do liberal visconde de Ouro Preto ¹³³ ,em 7 de junho de 1889, tendo-se recusado a participar do gabinete, Rui afasta-se da política liberal e antevê a República, ou dela se aproxima: Os acontecimentos – escreveu no Diário de Notícias –precipitam-se para a República, com mais pressa do que despenhavam para a abolição. A federação era o preservativo. Retardando-a, o gabinete atual está destinado a ser provavelmente o eliminador do terceiro reinado, o derradeiro ministério da Monarquia ¹³⁴ . Quando se organiza o que seria a última eleição do império, em agosto de 1889, ele se vê excluído da chapa liberal na Bahia. Um grupo de amigos apresenta a sua candidatura pelo Rio, mas é derrotado pela terceira vez. Entre 1885 e a Proclamação da República, Rui Barbosa se dedicará, sobretudo, ao jornalismo e à advocacia. É o seu período de “muda”, entra em uma nova fase. Assume a direção de um pequeno jornal, o Diário de

Notícias , que prospera sob as suas ordens. Nesse período, publica centenas de artigos. O seu prestígio na Corte como personagem público e polemista se consolida e amplia. Passa a defender com insistência o sistema federalista, toma o partido dos militares nos seus conflitos com os gabinetes conservadores e com Ouro Preto, distancia-se da monarquia, distancia-se sobretudo dos Dantas: “O antigo partidário desapareceu”, diria Lacombe, depois de citar um comentário de Campos Sales, que resumiria o assunto: “Depois que o Rui arremessou as cangalhas do velho Dantas, ninguém mais pôde com ele” ¹³⁵ . É significativo que na mesma época, no seu discurso de homenagem póstuma a José Bonifácio, em 8 de dezembro de 1886, tenha-se mostrado arrependido dos ataques que havia feito ao velho mestre durante a campanha pela eleição direta: A inexperiência, a sinceridade do meu respeito aos homens que eu vira comandarem o fogo 10 anos, uma desconfiança natural de mim mesmo nos primeiros passos da vida de responsabilidade política, explicam, sem escusála, uma incongruência em que nunca reconsidero sem tristeza. A José Bonifácio coube a ventura de indicar então o roteiro do dever. E nessa fase, toldada de auspícios sombrios para a situação incipiente, o seu espírito despediu imensos clarões crepusculares. Mas a cerração prevaleceu ¹³⁶ . Liberal e republicano A República vai reconhecê-lo como aliado. Ministro da Fazenda do Governo Provisório, ele tenta transformar a política de emissão e de créditos iniciada pelo visconde de Ouro Preto – concebida para vir em socorro de uma parte da agricultura atingida pela abolição do trabalho escravo – em uma política de apoio e de incentivo à indústria, através da taxação aos produtos importados e de créditos a novos investimentos. As medidas tomadas fracassaram, enredadas em uma corrida especulativa desenfreada, em aumentos significativos da dívida pública e em um processo inflacionário que inibiria inclusive o próprio desenvolvimento industrial almejado. Como é sabido, os efeitos dessa política só serão remediados no quatriênio de Campos Sales, entre 1898 e 1902 ¹³⁷ . Durante a sua participação no Governo Provisório, procura fazer valer muito do seu ideal doutrinário liberal. Assim, logo em janeiro de 1890, fará aprovar pelo Conselho de Ministros o projeto de separação da Igreja do Estado, que proíbe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa, consagra a plena liberdade de cultos e extingue o padroado. Eleito senador constituinte pela Bahia em 15 de setembro de 1890, Rui terá um papel decisivo na elaboração da Primeira Constituição Republicana. Nela, ao se decidir pelo regime presidencialista e federalista pensava atender as suas preocupações de ampliar o sistema de representação política ao mesmo tempo que daria os elementos ao poder central para manter a ordem e a unidade no país. Em outro tópico fundamental: antecipando possíveis extrapolações dos poderes executivo e legislativo, tratou igualmente de fortalecer o judiciário, definindo um papel central para o Supremo Tribunal Federal, encarregado de ser – no dizer de um seu

biógrafo – um “poder neutral, arbitral, terminal, que afaste os contendores, restabelecendo o domínio da Constituição” . A promulgação da Constituição, em 24 de fevereiro de 1891, e as Eleições pelo Congresso Nacional Constituinte para o primeiro período governamental republicano virão um mês depois da renúncia coletiva do primeiro ministério do Governo Provisório, do qual Rui Barbosa fazia parte. Em seguida, é o que se sabe: os conflitos entre Deodoro e o Congresso, a sua deposição e a ascensão de Floriano Peixoto à presidência, sua disposição autoritária e o seu empenho em reprimir a oposição da qual as expressões mais violentas foram a Revolta da Armada e a Revolução Federalista, movimentos insurrecionais duramente combatidos e derrotados. Floriano consolida a autoridade do regime, mas perde o controle da sua própria sucessão para políticos civis, reunidos em torno de um núcleo forte e coeso, o Partido Republicano Paulista, que promoverá a eleição de Prudente de Morais ¹³⁸ . Para muitos o estabelecimento de um governo civil abriria caminho para a pacificação entre as diversas facções da elite nacional. O momento era de congraçamento, de colaboração. O dever do momento – título de uma carta pública ¹³⁹ do até há pouco monarquista Almirante Jaceguai e dirigida a Nabuco – seria o de se integrar a uma república que poderia vir a reconstruir as mesmas características de convivência entre aqueles que habitualmente conduziam os negócios do governo no país, prevalecentes durante o Segundo Reinado. E o governo Prudente de Moraes seria “a arena onde a forma republicana encontrará seu molde” ¹⁴⁰ . No inicio de 1895, Rui Barbosa ainda hesitava em voltar do exílio na Inglaterra para onde o levara a sua oposição a Floriano. No sul, a revolta federalista resistia e continuava a ser combatida pelo governo da república. Especulava-se sobre a estabilidade do governo do novo presidente civil, sobre uma possível volta do marechal de ferro ao poder. Este, no entanto, viria a falecer em 29 de junho do mesmo ano ¹⁴¹ . Curiosamente, para costumes políticos mais contemporâneos, exilado, Rui Barbosa continuava detentor de seu mandato de senador, mesmo fora do Brasil. Tinha dúvidas ou escrúpulos se deveria guardá-lo (guarda-o): “Como poderei eu continuar ali, lado a lado com essa gente, que assistiu impassível, na Bahia, à tentativa escandalosa de prisão contra mim, e não teve sequer uma palavra, com que protestar depois contra ela na tribuna, ou na imprensa?”, escreve ele em carta de Londres a Antônio Araújo Ferreira Jacobina ¹⁴² . Mas, sobretudo, até as vésperas da sua viagem, não se sentia seguro com o arranjo político emergente: Quanto à política do Brasil, [...], apenas lhe posso dizer que me sinto muito triste, diante da debilidade do governo. [...] ultimamente despachos publicados em vários jornais anunciaram mais um motim militar e a reunião dos generais, em que se deliberou apoiar o Prudente. Quando os soldados deliberam e protegem o governo, a que deviam simplesmente obedecer, mal vai ele ¹⁴³ .

Suspeitava haver influência de Floriano e do florianismo em atos do novo presidente – “a debilidade do Prudente sente-se de um modo muito notável na conservação dos empregos vagos em florianistas dos mais conhecidos” ¹⁴⁴ – e, sobretudo, na resistência do governo a aprovar o projeto de anistia, em apreciação pela Câmara de Deputados. Obviamente, a instabilidade do regime seria elemento ponderável dentre as considerações políticas de um exilado prestes a voltar para seu país. Mas, a Rui, além da insegurança natural, afligiria sobremodo a incerteza de seu destino político. Algoz dos jacobinos, partidários de Floriano, sob suspeição dos monarquistas, alguns deles, antigos companheiros de Partido Liberal, distante dos republicanos paulistas, que chegavam ao poder com Prudente de Moraes – até mesmo incompatibilizado pessoalmente com alguns deles, sequela de sua posição predominante durante o primeiro gabinete republicano –, era-lhe difícil vislumbrar um papel no acerto político ainda incipiente e que viria a superar o militarismo republicano até então dominante. E por último, mas não menos importante, não podia confiar nos seus apoios regionais na Bahia, a quem incomodavam o seu prestígio nacional e as suas veleidades de independência. Retorna a sua banca de advogado e dias depois de sua chegada retoma o lugar no Senado em 24 de agosto de 1895 – um dia após o fim da Revolta Federalista –, onde logo no primeiro dia discursa sobre a pacificação do Rio Grande do Sul e pede anistia irrestrita para os revolucionários. Retorno ao pragmatismo Na década de 1890, o Rio de Janeiro tinha algo mais de 500 mil habitantes e era o maior centro urbano brasileiro. Sede do poder, era também o centro das polêmicas e, embora a política efetiva se “articulasse nos palácios, nos quartéis ou nas casas aburguesadas”, a cidade constituía a audiência privilegiada do período com uma população bastante diferenciada, “letrada e burocrática, que deveria pesar na ‘opinião pública’ da época”. ¹⁴⁵ Esse é o quadro de atuação privilegiado de Rui, sua arena, sua plateia e será sobretudo nesses grupos que a imagem do combatente político se firmará de maneira mais profunda e tomará uma dimensão mitológica por muito tempo. O tom é de independência, altivez, senão de oposição. Rui se insurge, através do judiciário, contra atos do executivo que julga arbitrários. Luiz Viana Filho ¹⁴⁶ , biógrafo apaixonado, nos diz: Depressa Rui se transformou numa espécie de advogado do povo. Há alguém preterido nos seus direitos? Rui será, certamente, o seu patrono. Assim, se o Congresso decreta a anistia, julgando impossíveis de revisão as penas e os processos dos aparentemente beneficiados pela medida, é ele quem bate às portas dos tribunais, para se opor àquele caso de “teratologia jurídica”. Foram demitidos das suas funções os professores da Escola Politécnica? Rui irá defendê-los. Aposentou o Governo alguns magistrados em disponibilidade? Rui aparece pleiteando a reintegração. E os próprios monarquistas, cujo partido fora reorganizado em 1896, vendo-se ameaçados, não procuram outro advogado.

Pouco tempo depois, a resposta governista viria por ocasião da eleição para o Senado em 1896, quando dentro do grupo situacionista da Bahia surge um movimento, “apoiado” por Prudente de Morais e “estimulado” por Francisco Glicério ¹⁴⁷ – líder do Governo na Câmara – para excluí-lo da lista dos candidatos oficiais, o que equivaleria à derrota no regime eleitoral vigente. Nesse episódio, uma carta de Luiz Vitorino ¹⁴⁸ , senador, a Luiz Viana – recém-eleito governador do Estado – é expressiva, pela forma como se manifesta a insatisfação com o comportamento e as atividades políticos de Rui: Politicamente, como se poderia justificar a eleição dele [Rui] em nome das nossas ideias? [...] O Rui, a golpe de erudição e abusando de sua autoridade, prestigiada aliás pelo país inteiro, perante juízes que nada estudam e pouco raciocinam, tem causado ultimamente os maiores embaraços à administração de Prudente. Em sua resposta, ¹⁴⁹ na qual defende a candidatura de Rui – eventualmente vitoriosa em 11 de dezembro de 1896, graças ao seu apoio –, Luis Viana dá ênfase aos méritos pessoais e ao prestígio nacional que cerca o seu nome, mas salienta a necessidade de se manter a unidade entre as forças que defendem o governo civil: Discordo inteiramente dos que pensam que a exclusão do Rui é uma necessidade. [...] O que é inegável é que é bom republicano, e será de má política estar a descontentar os que se esforçam e creem nas instituições republicanas. O Rui é um baiano, um brasileiro tão eminente que, sem grave responsabilidade, não poderíamos assumir o compromisso de excluí-lo da representação do país. Esta exclusão seria o resultado de ódios, que, confesso, não esposo. A Bahia não ficaria bem, e desceria aos olhos de todos se o expelisse, digo repudiasse. [...] Receiam o Rui? Ele nos faria mais mal fora do Parlamento. Não se lembra do que se deu por ocasião da exclusão acintosa dele do ministério Ouro Preto? O Rui é um combatente até ousado em favor do governo civil. Não está isto no programa do Partido Republicano Federal? A eleição para o Senado marca o inicio de uma readaptação progressiva de Rui Barbosa aos jogos da política, é bem verdade que sempre permeada pelas hesitações advindas de um temperamento orgulhoso e, não menos, vaidoso. Contemporaneamente, os episódios de Canudos vão provocar a indignação e a revolta da facção jacobina, que viam nele uma revolta visando à restauração monárquica. Uma série de incidentes violentos na Capital da República – o assassinato de um diretor de um jornal monarquista, ligado ao visconde Ouro Preto e o atentado contra Prudente de Morais, em cinco de novembro de 1897 – leva Rui a manifestar firmemente a sua solidariedade ao Presidente e ao regime, notadamente em um discurso pronunciado no Senado, no dia seguinte ¹⁵⁰ ao atentado.

O Partido Republicano Federal se divide em torno da sucessão presidencial, em uma quase réplica do que se passara em 1891: deodorismo versus florianismo, com a variante, nos diz Costa Porto ¹⁵¹ , de ser, agora, Prudente o centro do deodorismo. O primeiro grupo – em torno do presidente – era formado de modo geral pelos Estados da Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, Maranhão, Rio de Janeiro e a maioria paulista. O segundo grupo, florianistas ou jacobinos, reunia basicamente Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina ¹⁵² . Campos Sales, republicano histórico, na sua variante paulista ¹⁵³ , apoia Prudente de Moraes e transforma-se no candidato da presidência à Presidência, atraindo a adesão da grande maioria dos grupamentos, convencidos esses da derrota inevitável da oposição ¹⁵⁴ . A sua vitória viria a confirmar o controle da nova república pelos elementos civis. No entanto, a julgar pela palavra do próprio presidente eleito, o regime carecia ainda de mecanismos de estabilização, sendo apenas – no seu dizer – “uma grande agregação de elementos antagônicos, [...] cujo intuito, em cada um, era fundar a sua preponderância na política” ¹⁵⁵ . Surgiu assim o que veio a ser conhecido como a “política dos governadores”, um “pacto oligárquico”, capaz de dar lugar a um sistema baseado numa liderança que mais do que pessoal ¹⁵⁶ seria “institucional” e cujo poder decisório em matéria política caberia em última instância à Presidência da República. À condição, entretanto, de que o acesso à “institucionalidade” se restringisse àqueles capazes de exercer uma “soberania diretora” ¹⁵⁷ . O pacto dos governadores desenhava uma hierarquia entre poderes e um modo de funcionamento. “O poder que, pela natureza de suas prerrogativas, se acha em condição de esclarecer e dirigir, é o Executivo [...] cuja autoridade legal e moral jamais deverá desaparecer atrás dos [...] ministros”, dizia Campos Sales. E mais: o Congresso não governa nem administra: tem necessidade de que sua maioria seja esclarecida, e sob certos assuntos, dirigida. Consequentemente, é preciso buscar uma fórmula que solidarize as maiorias com os executivos, federal e estadual. Na prática, o presidente propôs que se reconhecesse automaticamente a “legitimidade” das maiorias estaduais. Com isso, ou seja, com a promessa de que o Governo Federal não apoiaria dissidências locais, as situações se obrigavam a apoiar a política do presidente ¹⁵⁸ . No entanto, Rui Barbosa praticamente manteve-se, ou foi mantido, alheio às decisões que encaminharam e deram cabo desse processo ¹⁵⁹ . “Não tenho, meu prezado amigo, a honra de ser ouvido, nem cheirado sobre a política do país”, escrevia ele a Luis Viana em 4 de outubro de 1900. “Neste regime, como no outro, os homens que governam nunca me julgaram, a esse respeito, digno de voto” ¹⁶⁰ . A oportunidade de ser ouvido e cheirado se ofereceria, sobretudo durante o jogo sucessório, quando a própria política de governadores implicava rearrumações dos elementos que lhes davam suporte. É assim que os prenúncios da sucessão de Rodrigues Alves abrirão novamente para Rui Barbosa uma volta aos embates mais diretos da luta pelo poder.

E, para isso, no novo contexto, aliás, como no antigo, era necessário refazer a ponte com o governo: “Contra todos os governos anteriores vivi sempre de tenda armada em campanha. Clamavam então os ortodoxos que eu malfazia à República [...] Afinal, não porque o temesse, mas porque me doía a tacha de egoísmo [...] e reservar-me as glórias fáceis da censura, me dispus a tentar a experiência, a sair daquela posição criticada e crítica.” Esperava, assim, “auxiliar um pouco a obra dos governos, com o apoio dessa minha têmpera, da minha educação jurídica e liberal, tão longamente posta ao serviço das oposições ¹⁶¹ . Ao quê, Luis Viana conclui: “Rui mudara sensivelmente [...] E a primeira recompensa”, acrescenta, “foi a eleição em 1906 para a vice-presidência do Senado” ¹⁶² . Rui governista “A sucessão [seria] sempre o nó górdio da combinação reinante”, é a fórmula concisa de Raimundo Faoro ¹⁶³ ao descrever a política de governadores. O arranjo funcionaria contanto que seguisse exatamente a hierarquia por ele estabelecida: era necessário primeiro se chegar a um acordo quanto a uma candidatura à Presidência. Ela seria o motor primeiro que poria em movimento todos os outros motores da composição, para usarmos a imagem teológica. A premissa levara Campos Sales a controlar pessoalmente a sucessão e fazer de Rodrigues Alves seu sucessor. Este último ensaiaria repetir a fórmula, indicando o nome do coestaduano Bernardino Campos ¹⁶⁴ à Presidência, fazendo suspeitar que o período da política passara. Pinheiro Machado vê ali uma oportunidade de subverter o processo, empregando – entre malícias, intrigas e manobras – o argumento mais explosivo e decisivo: o das diferenças regionais, que poderia unir a todos contra o “tacão do PRP”, contra o “exclusivismo paulista”. A oposição do senador gaúcho e, desde o início também a de Rui, não se dirigia propriamente ao nome de Bernardino Campos, mas a um modelo que se fortalecia no regime, o qual previa o controle do executivo sobre a sua renovação ¹⁶⁵ . A alternativa imediata era a instabilidade. Primeiro, cresceu a revolta: de diversos setores nomes começam a surgir, cada um com a sua sequela de oposições e apoios. Na Bahia, o governador José Marcelino levanta o nome de Rui, Pinheiro Machado, não sem malícia, lança o nome do paulista Campos Sales, cogita-se de nomes de ilibado passado republicano, como o de Lauro Muller, certos meios começam a inclinar-se por um nome mineiro. Pairava, portanto, sobre o oficialismo, o perigo da cisão, impossível prever os resultados da disputa. A solução procurada foi a de congregar as várias lideranças estaduais – que seria cognominada O Bloco – contra a iniciativa de Rodrigues Alves. Mas, antes disso, durante todo o primeiro semestre de 2005, assiste-se a uma guerrilha de posições na arena política: entre os estados, mas, sobretudo, entre as principais facções partidárias dentro dos estados mais fortes, os que tinham chance de apresentar um candidato: São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Os gaúchos permaneciam unidos. São Paulo estava partido entre Bernardino Campos e Campos Sales e surgiriam também outros nomes, como o de Antonio Prado. Minas oscilava

entre os que seguiam e os que se opunham à liderança presidencial, e o nome de Afonso Pena já fazia caminho. Na Bahia, a candidatura de Rui sofria resistência do chefe do partido, Severino Vieira. A aliança que garantira a sustentação de Rodrigues Alves na Presidência, o triângulo São Paulo, Minas e Bahia, se dilacerara. A sua recomposição dependeria de uma força agregadora, um estado que se apresentasse unido e que tivesse um nome aceitável por todos: seria o papel de Minas Gerais. As hesitações de Campos Sales em ser candidato levam Pinheiro Machado a uma iniciativa que seria decisiva: alia-se a Afonso Pena. “Se vierem dias lutuosos, a responsabilidade não será somente do governo, mas também dos Estados divergentes que não conjuraram a crise” ¹⁶⁶ é o que ele teria dito ao procurar o candidato mineiro. Estabelecida a aliança com o Rio Grande do Sul, a candidatura de Pena ganha um álibi poderoso que forçaria Minas Gerais a apoiar seu nome. A essa altura, a Bahia viria por gravidade. Em 30 de agosto de 1905, Rui Barbosa publica um documento “Explicação à Bahia”, manifesto de desistência de sua candidatura. Fizera-o, diria em seguida, “em prol do bloco, aliança contraída entre os chefes republicanos para acabar com o poder, reconhecido, até ali, aos presidentes de instituírem os seus sucessores” ¹⁶⁷ . A 1° de março de 1906, Pena se elege tranquilamente com 288.285 votos, a mais baixa votação obtida até então para Presidência. Eleito, escreveria uma carta de agradecimento a Rui, “não tanto”, dizia ele, “para significar-lhe que o meu reconhecimento é profundo, mas para fazer-lhe sentir quanto espero de seu concurso para o desempenho da enorme responsabilidade que vai pesar sobre mim”. “Iam longe os dias de oposição”, conclui novamente Luis Viana ¹⁶⁸ . Durante o quatriênio de Afonso Pena, Rui talvez tenha conhecido o seu mais longo período de situacionismo. Em janeiro de 1906, é reeleito senador pela Bahia e em 1907 é nomeado pelo governo para representar o Brasil em Haia, de onde volta consagrado. Em 1908, reelege-se vicepresidente do Senado e, juntamente com José Marcelino e Luis Viana, elegem o governador da Bahia, João Ferreira de Araújo Pinho. A sucessão de Afonso Pena é que o leva a rever a sua posição: opõe-se à candidatura de Davi Campista, ministro da Fazenda que o Presidente da República havia escolhido para sucedê-lo, tentando ressuscitar o feito de Campos Sales. Lançada a candidatura de Hermes da Fonseca, rompe com o Bloco e se manifesta francamente contrário à candidatura militar. Surge a sua própria candidatura: começava a Campanha Civilista. Atingia, mais uma vez, o limite de uma atuação criadora, independente, dentro de um sistema político circunscrito, no qual se poderia dizer: o seu pragmatismo seguia a medida do seu protagonismo. O “liberalismo possível” durante a discussão da Lei Saraiva é caminho aceitável quando ele pode participar e influir na sua elaboração. A política dos governadores deixará de sê-lo, quando ela se faz instrumento único do poder executivo. Breves reflexões finais

Rui Barbosa foi um político militante e um militante da causa da liberdade. Inteligência e erudição privilegiadas, não foi um pensador: diferentemente de alguns dos seus contemporâneos, não despendeu muito da sua energia a discutir a pertinência das várias correntes filosóficas de sua época, nem procurou elaborar interpretações sobre a realidade nacional. Foi sim, sobretudo, advogado e jornalista combatente. E um político renitente que tentou tornar efetivas as bases do liberalismo no Brasil. Agiu quase sempre – mesmo quando empenhado e enfronhado nas lides práticas da política partidária – como um ideólogo de uma reforma da sociedade (a expressão é de San Tiago Dantas), que acreditava no poder contagiante das ideias, avesso aos fatalismos sociológicos que subestimavam a força da vontade e do exemplo. A realidade social sozinha não poderia determinar o rumo da ação civilizadora. A insistência teimosa nos princípios apontava para a convicção de que a existência continuada da norma e das instituições de direito criariam as armas e as oportunidades para que o combate democrático e o consequente desenvolvimento da democracia fossem possíveis. Mas se Rui não conseguiu fazer de imediato o liberalismo parte principal do nexo efetivo da vida político-institucional brasileira, não se poderia negar que seu empenho em dotar e fortalecer o país com instrumentos garantidores das liberdades individuais tenha, no longo prazo, sucedido em alguma medida; como no caso (talvez o mais notório) daquela instituição que ele nomeou – no seu estilo peculiar: “o sacrário da Constituição, [...] veto permanente aos sofismas opressores da Razão de estado”: o Supremo Tribunal Federal ¹⁶⁹ . Ao lermos o relato de Rui Barbosa da sua derrota no habeas corpus impetrado em 23 de abril de 1892 para os presos políticos do Estado de Sítio decretado pelo governo de Floriano Peixoto ¹⁷⁰ , temos uma imagem expressiva do que acabamos de esboçar: sentimos ali que o seu desalento é composto de uma resignação realista, à qual aliava, entretanto, uma esperança que nele era alimento de luta: Havia no Tribunal, ao cair dos votos, que denegavam o habeas corpus , a impressão trágica de um naufrágio, [...] de uma sentença de morte sem apelo, que ouvíssemos pronunciar contra a pátria; Quando, subitamente, fragorosa salva de palmas, seguida ainda por outra [...], nos deu o sentimento de uma invasão violenta da alegria de viver. Era o voto do Sr. Piza [de Almeida], concedendo o que todos os seus colegas tinham recusado. Toda a grandeza desta causa, [...] figurou-se-me humanada naquele homem modesto, silencioso [...] Vendo perder-se tudo, pela distensão de todas as molas morais dentro e fora da política, refleti entre mim: Seis homens desta têmpera comporiam o alicerce da República e salvariam a Pátria ¹⁷¹ . Em contraponto, lembrei-me então da minha ida ao Supremo Tribunal Federal no segundo semestre de 1964, portanto durante o regime militar e 72 anos após a derrota de Rui naquele tribunal, quando assisti à sessão que concedeu habeas corpus ao governador deposto de Goiás, Mauro Borges. Ouviu-se o voto favorável do relator da matéria, ministro Hahnemann Guimarães. Pareceu-me simples e direto. O tom era monocórdico, quase

burocrático, como se o propósito fosse fazê-lo contrastar com a dramaticidade do momento, dando-lhe um ar de normalidade em que se assinalava ser a medida, usual e corriqueira, simples aplicação de uma norma de direito. Seguiu-se o voto unânime do Tribunal. Naquele instante, homens armados do respeito imbuído naquela instituição – um respeito historicamente construído – tornavam concreto, mais uma vez, aquilo que havia sido desejado e, de certo modo, antecipado por Rui Barbosa. Escritos e discursos seletos , op. cit., p. 55. 4 CARNEIRO, Levi. Rui Barbosa e Joaquim Nabuco: duas vidas paralelas. In:__. Dois arautos da democracia : Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1954. p. 27. 5 DANTAS, Santiago, op. cit., p. 59. 6 LACOMBE, Américo Jacobina. Mocidade e exílio . São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1949. p. 171 e 179. (Coleção Brasiliana série 5ª, v. 38). 7 NABUCO, Joaquim. O dever do monarquista. In: ALENCAR, José Almino de e PESSOA, Ana (Orgs.). Joaquim Nabuco: o dever da política. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2002. p. 81. 8 IANNI, Octavio. O progresso econômico e o trabalhador livre. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). O Brasil monárquico : reações e transações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987, v. 3. p. 299-300. (História Geral da Civilização Brasileira, t. 2.) 9 Ibid., p. 301. 10 Cf. CARDOSO, Fernando Henrique. Dos governos militares a Prudente – Campos Sales. In: FAUSTO, Boris (Org.). O Brasil republicano : estrutura de poder e economia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987, v. 1. p. 20. (História Geral da Civilização Brasileira, t. 3.) 11 Os impostos de importação, que compreendiam mais de 65% dos impostos tarifários durante a segunda metade do século (XIX), tinham quase sempre um objetivo fiscal e não obedeciam a uma política de proteção de indústrias nascentes, como nos Estados Unidos à época e como veio a tornar-se no Brasil a seguir (Cf. CARVALHO, José Murilo de. I. A construção da ordem ; II. Teatro de sombras . Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; Relume Dumará, 1996. quadro 4 e p.246). 12 Entre 1845 e 1889, as receitas públicas aumentaram 520% e as despesas 540%, indicando por essa diferença um deficit , aliás crônico praticamente desde a Independência, mas que se acentua depois da Guerra do Paraguai (calculado a partir do quadro 16. Ibid., p. 393). 13 Os dados são de ÓNOY, Oliver. A inflação brasileira . Rio de Janeiro: [s.n.], 1960. p. 25 e 117. E ainda: Buescu, MIRCEA. 300 anos de inflação . Rio de Janeiro: Apec, 1973. p. 223. Citados por FAORO, Raimundo: Machado de Assis : a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974. p. 182. (Brasiliana, 356.)

14 CARVALHO, José Murilo de, op. cit., p. 236. 15 José Murilo de Carvalho examina em detalhe as mudanças e combinações no tempo entre os vários estamentos que ocuparam as posições dirigentes na organização do Estado: magistrados, clero, militares e profissionais liberais. Ver, sobretudo, os capítulos 7 e 8 de A construção da ordem . 16 BARBOSA, Rui. Queda do Império ; Diário de Notícias . Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. p. 258. (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 16, 1889, t. 2.) 17 Trata-se de Luís Antônio Barbosa de Almeida, seu tio, irmão de sua mãe, Maria Adélia. 18 João José Barbosa de Oliveira (1818-1874) ingressara na política protegido pelo cunhado, Luís Antônio Barbosa de Almeida, com a ajuda de quem se elegeu deputado provincial em 1846. Em 1848, a queda do gabinete liberal de Francisco de Paula (Sousa e Melo) impossibilita a renovação do seu mandato. Ainda por indicação do cunhado, entra na redação d´ O Século , jornal liberal de Salvador. No entanto, seguem-se anos de dificuldades e aperturas para João José. Maria Adélia inicia a fabricação caseira de doces, para ajudar nas despesas. Entre 1864 e 1868, João José consegue eleger-se por duas legislaturas, a 12ª e a 13ª, deputado geral. O rompimento com o cunhado, em 1866, e a queda do gabinete liberal de Zacarias de Góes e Vasconcelos, em 1868, dando início a sucessivos governos conservadores por dez anos, inviabilizam a sua carreira política. Novamente passa por dificuldades financeiras e tem que recorrer ao amigo e companheiro de Partido Liberal, João Ferreira de Moura para manter o filho, que fazia os estudos de Direito em São Paulo. Até a sua morte, aos 56 anos, tenta sem sucesso alguns empreendimentos em negócios (Cf: MAGALHÃES, Rejane de Almeida. Rui Barbosa : cronologia da vida e da obra. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 1999. p. 13-42). 19 José Antônio Saraiva, o conselheiro Saraiva (1823-1895), foi deputado geral, senador do Império e da República; presidiu as províncias do Piauí, Alagoas, São Paulo e Pernambuco; foi várias vezes ministro durante o Segundo Reinado, tendo por duas vezes presidido o conselho de ministros. Manuel Pinto de Sousa Dantas (1831-1894) foi presidente das províncias de Alagoas e da Bahia, deputado geral de 1857 a 1868, senador em 1878, e conselheiro de Estado; várias vezes ministro (Agricultura, Justiça, Fazenda e Negócios Estrangeiros); presidiu o conselho de ministros entre 06/06/1884 a 04/05/1885. 20 Zacarias de Góis e Vasconcelos (1815-1877) teve como principais cargos a presidência do Piauí, de Sergipe e do Paraná; deputado geral, ministro da Marinha, presidente do conselho de ministros e senador. Joaquim José Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí (1802-1872), foi senador, ministro de várias pastas e eminente financista; por duas vezes (1848 e 1868) presidiu o conselho de ministros. 21 VIANA FILHO, Luís. A vida de Rui Barbosa . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. p. 69-70.

22 Cf. MAGALHÃES, Rejane de Almeida. Rui Barbosa : cronologia da vida e da obra. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999. p. 33. 23 Luís Pinto da Gama (1830-1882) foi um jornalista de renome e também líder abolicionista. Américo Brasílio de Campos (1835-1900) foi um jornalista republicano e abolicionista, participou da primeira convenção republicana em Itu (1873); foi nomeado, pelo primeiro governo republicano, cônsul em Nápoles, onde faleceu. 24 VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 72-73. 25 Ibid., p. 74. 26 Ibid., p.74-75. 27 Joaquim Saldanha Marinho (1816-1895) foi jornalista e político, deputado geral por Pernambuco, signatário do Manifesto Republicano e um dos autores do anteprojeto da Constituição republicana de 1891; Manuel Ferraz de Campos Sales (1841-1913) foi deputado provincial e deputado geral durante o Segundo Reinado, pelo Partido Liberal; foi ministro da Justiça no Governo Provisório, logo depois da Proclamação da República; em 1891, elegeu-se senador por São Paulo; foi o quarto presidente do Brasil (1898-1902). Francisco Rangel Pestana (1839-1903), jornalista, signatário do Manifesto Republicano de 1870; deputado provincial em 1884; senador em 1890 e um dos autores do anteprojeto da Constituição republicana de 1891. 28 Cf. MAGALHÃES, Rejane de Almeida, op. cit., p. 36-37. 29 José Tomás Nabuco de Araújo (1813-1878). Foi ministro da Justiça em quatro gabinetes durante o Segundo Reinado; conselheiro de Estado em 1866, era uma das vozes mais destacadas do Partido Liberal; pai de Joaquim Nabuco. 30 Cito do livro de Joaquim Nabuco sobre o pai: NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império . 5. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, v. 2. p. 663. 31 LACOMBE, Américo Jacobina. À sombra de Rui Barbosa . Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1984. p. 11. 32 “ Rui passou a colaborar no jornal do partido, o Diário da Bahia , onde se trabalhava de graça e ainda se contribuía para as despesas porque jornal de oposição não tinha direito a publicações oficiais nem mesmo a anúncios de empresas bafejadas pelo governo” (Cf. LACOMBE, Américo Jacobina, op. cit., p. 11; e, também, MAGALHÃES, Rejane de Almeida, op. cit., p. 35 e 39.) 33 MAGALHÃES, Rejane, op. cit., p. 42.

34 Rui Barbosa e Rodolfo Dantas, filho de Manuel Pinto de Sousa Dantas, passam a ser amigos muito próximos, ambos trabalhando no mesmo escritório de advocacia e no Diário da Bahia . Em outubro de 1873, Manuel Pinto de Sousa Dantas convida Rui para que vá, em companhia de Rodolfo, em viagem à Europa (ibid., p. 40). 35 Cf. FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata . São Paulo: Editora da UNESP, 1997. 36 Reconhecer-se-á obviamente aqui a análise desenvolvida por Roberto Schwarz desde o seu Ao vencedor as batatas : forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977. 37 Para uma narrativa bastante minuciosa dos esforços do gabinete de 7 março de 1871, chefiado pelo visconde do Rio Branco, para ter aprovada a lei de 28 de setembro, consulte-se: HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). O Brasil monárquico : do Império à República. São Paulo: Difel, 1985, v. 5. p. 135-145. (História Geral da Civilização Brasileira, t. 2.) 38 Ibid., p. 185. 39 João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu (1810-1907), barão e depois visconde de Sinimbu, foi presidente de diversas províncias, deputado geral, senador, ministro dos Negócios Estrangeiros, da Agricultura e da Justiça; presidiu o conselho de ministros em 1878. 40 VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 140. 41 Cf. MAGALHÃES, Rejane de Almeida, op. cit., p. 49. 42 BARBOSA, Rui. Discursos parlamentares : Câmara de deputados. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1943. p. 217-218. (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 6, 1879, t.1.) 43 Essa restrição na Constituição de 1824 dizia respeito aos votantes do eleitorado do segundo grau, que eram eleitos para votarem nos parlamentares. No projeto, já que a eleição passaria a ser direta, estendia-se a barreira de renda a todo o corpo de votantes. 44 BARBOSA, Rui, op. cit., p. 223. Trata-se de um discurso de Rui Barbosa, em sessão de 10 de julho de 1879. 45 Ibid., p. 223. 46 Da qual, na discussão desse projeto, faziam parte: Joaquim Nabuco, Silveira Martins, Saldanha Marinho e Pedro Luís Pereira de Sousa, entre outros. 47 José Bonifácio de Andrada e Silva, dito o Moço (1827-1886), sobrinhoneto do Patriarca da Independência, foi professor da Faculdade de Direito de São Paulo; teve grande influência sobre a geração de Nabuco, Rui Barbosa e Castro Alves; poeta romântico, abolicionista, deputado, senador e ministro do Império.

48 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil monárquico : do Império à República, op. cit., v. 5. p. 205. 49 Ibid., p. 206. 50 Ibid., p. 207. 51 Gaspar Silveira Martins (1835-1901) foi deputado pelo Rio Grande do Sul, em várias legislaturas; durante a Revolta Federalista, chefiou a facção rebelde contra Júlio de Castilhos, então presidente da província do Rio Grande do Sul. 52 HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., v. 5. p. 207. 53 Ibid., p. 218. 54 BARBOSA, Rui, op. cit., p. 167. 55 VIANA FILHO, Luís. op. cit., p.145. 56 ARQUIVO DA FUNDAÇÃO CASA DE CASA DE RUI BARBOSA. Correspondência de Rodolfo E. de Sousa Dantas . Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1973. p. 41-42. Uma nota de Américo Jacobina Lacombe (p. 42) esclarece: “A posição de Rui era delicada, comenta Batista Pereira, porque no fundo ele concordava com o funcionamento da interpelação. Em obediência à injunção partidária, porém, focalizou especialmente a posição falsa do interpelante, antigo membro do gabinete. Era a essa posição doutrinária certamente que se refere o post scriptum desta carta.” 57 BARBOSA, Rui, op. cit., p. 170-171. 58 Quando estudante, Rui Barbosa participa de uma homenagem a José Bonifácio (em 13/08/1868), pronunciando um discurso que foi depois considerado por seus adeptos como o marco inicial de sua carreira (Cf. MAGALHÃES, Rejane de Almeida, op. cit., p. 31 e 209-210). 59 BARBOSA, Rui, op. cit., p. 238. 60 Ibid., p. 245. 61 Ibid., p. 241. 62 Antônio Marcelino Nunes Gonçalves (1823-1899), visconde de São Luís do Maranhão. Foi deputado geral, presidente de província e senador do Império entre 1869 e 1889. 63 BARBOSA, Rui, op. cit., p. 242-243. 64 Ibid., p. 189-290. 65 Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., v. 5. p. 227. 66 BARBOSA, Rui, op. cit., p. 279.

67 Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de, op.cit., p. 227. 68 Ibid., p. 227. 69 Ibid., p. 217. 70 Ibid., p. 233. 71 Cf. VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 154; ver também artigo de Rui Barbosa no Correio da Manhã , de 21 de dezembro de 1901. 72 ARQUIVO DA CASA DE RUI BARBOSA. Correspondência do conselheiro Manuel P. de Sousa Dantas. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1962. p. 39. 73 Saraiva e o projeto eleitoral. Correio da Manhã , 21 de dezembro de 1901. In: BARBOSA, Rui. A imprensa . Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1979. p. 68. (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 28, 1901, t. 3.) 74 Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., v. 5. p. 242. 75 CARVALHO, José Murilo de, op. cit., 360-361. 76 Pedro Luís Pereira de Sousa (1839-1884) foi deputado em duas legislaturas; ministro dos Negócios Estrangeiros e da Agricultura e presidiu a província da Bahia. Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo (1837-1918) presidiu as províncias de São Paulo, Ceará e Rio Grande do Sul; integrou o gabinete Saraiva; instalado o regime republicano, abandonou a vida política. 77 Cf. MONTEIRO, Tobias. Pesquisas e depoimentos para a História . Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1913. p. 50. 78 Desencorajado com a derrota, Joaquim Nabuco deixa o Brasil para Londres, a 1° de fevereiro de 1882. Trabalha como correspondente do Jornal do Commercio e dedica-se à preparação de O abolicionismo . Cf. ALENCAR, José Almino de. Radicalismo e desencanto. In: ALENCAR, José Almino de; PESSOA, Ana (Orgs.). Joaquim Nabuco : o dever da política. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2002. p. 20. 79 Jerônimo Sodré Pereira (1840-1909) fez a campanha abolicionista, na qual se distinguiu desde um discurso em 05/03/1879, na Câmara de Deputados, representando a Bahia, em que proclamava: “Abolição já!”; presidiu a província de Sergipe. 80 Sancho de Barros Pimentel (1849-1924) foi contemporâneo de Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, de quem foi grande amigo; político liberal e abolicionista, presidiu as províncias da Bahia e de Pernambuco.

81 Quintino Antônio Ferreira de Sousa (1836-1912) foi político, jornalista e escritor; abolicionista, foi um dos signatários do Manifesto Republicano de 1870 e tornou-se um dos mais insignes militantes do movimento; depois da Proclamação da República, foi ministro da Agricultura e das Relações Exteriores. 82 Cf. VIANA FILHO, Luís. A vida de Joaquim Nabuco . Porto: Lello & Irmão, 1985. p. 97. 83 João Lustosa da Cunha, segundo visconde de Paranaguá (1821-1912), político liberal, exerceu inúmeros cargos durante o Segundo Reinado; foi ministro da Justiça, da Guerra (duas vezes), da Fazenda e dos Negócios Estrangeiros; presidiu a província da Bahia, foi conselheiro de Estado e presidente do conselho de ministros (1882-1883); retirou-se da política ao ser proclamada a República. 84 Cf. MAGALHÃES, Rejane de Almeida, op. cit., p. 57. 85 Martinho Álvares da Silva Campos (1816-1887) foi por várias vezes deputado, quer pelo Rio de Janeiro, de que foi presidente, quer por sua província natal (Minas Gerais); foi membro do conselho de Estado, senador por Minas em 1882 e chefe do gabinete nesse mesmo ano (21 de janeiro). 86 Lafayette Rodrigues Pereira (1834-1917) foi político, jurisconsulto e escritor; deputado geral por Minas Gerais, foi republicano; mais tarde, aproximou-se da Monarquia, tendo sido senador, ministro da Justiça e da Fazenda, presidente das províncias do Ceará e do Maranhão; presidiu o conselho de ministros em 1883. 87 Intervenção de Afonso Celso Jr. na 4 a sessão, da 15 a legislatura de 1884. In: BARBOSA, Rui. Discursos parlamentares: Emancipação dos escravos. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1945. p. 318. (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 11, 1884, t.1.) 88 MONTEIRO, Tobias, op. cit., p. 61. 89 Nota introdutória de José Veiga a A situação liberal e o gabinete de Martinho Campos. Sessão em seis de março de 1882. In: BARBOSA, Rui. Discursos e trabalhos parlamentares. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1948. p. 9. (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 9, 1882, t. 2.) 90 Cf. VIANA FILHO, Luís. A vida de Rui Barbosa , op. cit., p. 165. 91 Prefácio de José Veiga. In: BARBOSA, Rui. Discursos e trabalhos parlamentares , op. cit. 92 Cf. A situação liberal e o gabinete de Martinho Campos. Sessão em 6 de março de 1882. Ibid., p. 37. (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 9, 1882, t. 2.) 93 Cf. MAGALHÃES, Rejane de Almeida, op. cit., p. 58. 94 VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 168.

95 O governo central dispensava autorizações para funcionamento de escolas superiores não estatais então existentes; muitas escolas secundárias também receberam autorização, dispensada por leis específicas. O estudo primário era de competência do poder provincial. Numa tentativa de ordenar esses procedimentos, o gabinete de 5 de janeiro de 1878, do visconde de Sinimbu, fez preparar por seu ministro do Império, o conselheiro Leôncio de Carvalho, um projeto que deu lugar a um decreto executivo (n° 7.247 de 19/04/1879) reformando o ensino primário e secundário da Corte e o superior em todo o país. O decreto, para ser executado na sua integridade, dependia de aprovação da Câmara e foi nessa condição que recebeu os pareceres de Rui, como líder do governo e por solicitação especial de Rodolfo Dantas. Protestando contra o instrumento jurídico utilizado (o uso de decreto-lei), Rui prepara um projeto substitutivo, dividido em dois relatórios: um primeiro, relativo ao ensino superior e secundário e outro que tratava do ensino primário. “Uma autêntica lei orgânica”, nos diz Américo Jacobina Lacombe, que, “é triste dizer, nunca foi submetida à votação e desapareceu do arquivo do Legislativo” (Cf. LACOMBE, Américo Jacobina. À sombra de Rui Barbosa . Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1984. p. 11). 96 Cf. A suspensão do orçamento em Pernambuco. Sessão da Câmara em 29 de setembro de 1882. In: BARBOSA, Rui, op. cit., p. 114. 97 Reunidos e publicados sob o título Traços para a história da oposição em 1883 : féria política. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1884. 98 Cf. MAGALHÃES, Rejane de Almeida, op. cit., p. 60. 99 Ibid., p. 60. Ver também VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 178. 100 MAGALHÃES, Rejane de Almeida, op. cit., p. 62. 101 Por que Rui Barbosa não foi chamado para compor o gabinete e se ali estaria a gênese de seu futuro e progressivo afastamento político dos Dantas é questão aberta à especulação. Luís Viana dá impressão de que enxerga malícia na atitude de Manuel Dantas ao insinuar que a candidatura de Rui a deputado correria risco, eleição que só dele, chefe, dependia (VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 179). José Veiga nota que, em seu esboço de memória, Antônio de Araújo Ferreira Jacobina, parente e grande amigo de Rui Barbosa, teria escrito sobre o gabinete Dantas: “Dantas reconhecendo o talento de Rui e dizendo-o incapaz para o governo...” (Cf. Prefácio de José Veiga. In: BARBOSA, Rui, op. cit., p. XI). Dantas guardou silêncio sobre o episódio, e Rui refugiou-se, naturalmente, em uma postura orgulhosa, reconhecendo, embora veladamente, na introdução a Queda do Império , a atitude evasiva do chefe e amigo. 102 Cf. MORAIS, Evaristo. A campanha abolicionista : 1879-1888. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1924. 103 Afonso Celso Jr. (1860-1938), filho do visconde de Ouro Preto, foi político, professor, escritor e historiador; deputado geral, defendeu o abolicionismo; já no período republicano, era ainda um monarquista.

104 Intervenção de Afonso Celso Jr. na 4ª sessão, da 15ª legislatura de 1884. In: BARBOSA, Rui. Discursos parlamentares : Emancipação dos escravos, op. cit., p. 317. 105 Tratava-se do gabinete Sinimbu, de 5 de janeiro de 1878; e do gabinete Saraiva, de 28 de março de 1880, respectivamente. 106 Existe um manuscrito na Fundação Casa de Rui Barbosa, em que Rui anota de próprio punho: Documentos da gestação do meu projeto (projeto Dantas) sobre a emancipação dos sexagenários . 107 AGUIAR, Manuel Pinto de. Prefácio. In: BARBOSA, Rui. Abolicionismo . Rio de Janeiro: Ministério da Cultura: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988. p. XVII. (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 12, 1885, t. 1.) 108 Ibid., p. XVIII-XIX. 109 Cf. NABUCO, Joaquim. Minha formação . Rio de Janeiro: W.M. Jackson Editores, 1952. p. 249. 110 Ibid., p. 245. 111 MAGALHÃES, Rejane de Almeida, op. cit., p. 62. 112 Cf. BARBOSA, Rui. Discursos parlamentares : Emancipação dos escravos, op. cit., p. 44. 113 ALENCAR, José Almino de. Radicalismo e desencanto. In: ALENCAR, José Almino de; PESSOA, Ana (Orgs.), op. cit., p. 21-22. 114 Cf. BARBOSA, Rui. Discursos parlamentares : Emancipação dos escravos, op. cit., p. 61. Para um resumo do parecer, cf. AGUIAR, Manuel Pinto de. Prefácio. In: BARBOSA, Rui. Abolicionismo , op. cit., p. XXX-XLII. 115 BARBOSA, Rui. Discursos parlamentares : Emancipação dos escravos, op. cit., p. 64. 116 Ibid., p. 81. 117 Ibid., p. 64 e 73. 118 Ibid., p. 96. 119 Cf. LACOMBE, Américo Jacobina, op. cit., p. 30. 120 Cf. BARBOSA, Rui. Abolicionismo , op. cit., p. 223. 121 VIANA FILHO, Luís. A vida de Rui Barbosa , op. cit., p. 184. 122 Discurso no Senado, em 8 de julho de 1903, citado a partir de VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 190. 123 Ibid., p. 190.

124 Francisco Leopoldo Gusmão Lobo (1838-1900), jornalista, foi deputado provincial em Pernambuco, abolicionista de primeira hora; dele escreveu Nabuco que foi “dos que combateram [...] sem descanso, durante os primeiros cinco anos da propaganda, os quais foram os anos de ostracismo político e social da idéia”. NABUCO, Joaquim. Minha formação , op. cit., p. 256. 125 Cf. LACOMBE, Américo Jacobina, op. cit., p. 30. 126 GREY. O projeto Dantas, 6 e 7 de abril de 1885. Citado a partir de AGUIAR, Manuel Pinto de. Prefácio. In: BARBOSA, Rui. Abolicionismo , op. cit., p. 77. 127 Ibid., p. 77 e 79. 128 Ibid., p. 121. (O artigo é de 19 de abril de 1884.) 129 Após 1822, a Inglaterra estabeleceu o fim do tráfico negreiro como uma das exigências para o reconhecimento da emancipação do Brasil. Um tratado entre os dois países, de 3 de novembro de 1826, fixou o prazo de três anos para a sua completa extinção. O tráfico passou a ser considerado, a partir de então, ato de pirataria, sujeito às punições previstas no tratado, que incluía a autorização a navios ingleses para apreenderem navios negreiros. Finalmente, a 7 de novembro de 1831 – com atraso de dois anos em relação ao estipulado pelo tratado de 1826 –, uma lei (Lei Feijó) formalizou esse compromisso. Na prática, o tráfico continuou, pois até 1855 registram-se entradas de escravos no Brasil, embora fortemente reduzidas após a lei Eusébio de Queirós, de 4 de setembro de 1850. Por isso, dizia-se na época que esta era uma “lei para inglês ver”, admitindo-se que fora editada apenas para dar satisfação à então potência dominante. Felipe Alencastro estima que entre 700.000 africanos trazidos entre 1831 e 1850 e seus descendentes foram assim ilegalmente mantidos na escravidão (Cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe. As populações africanas no Brasil, manuscrito. Texto redigido para capítulo do “Plano Nacional de Cultura”, apresentado ao Congresso em 15/12/2006 pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil). 130 BEIGUELMAN, Paula. O encaminhamento político do problema da escravidão no império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). O Brasil monárquico : reações e transações,, op. cit., p. 215. 131 João Maurício Wanderley, barão de Cotegipe (1815-1889), antes de presidir o conselho de ministros em 20 de agosto de 1885, foi presidente de sua província e ocupou vários ministérios: da Marinha, da Fazenda e dos Negócios Estrangeiros. 132 Comemoração da lei Rio Branco. Conferência no Teatro Lucinda do Rio de Janeiro, a 7 de novembro de 1885. In: BARBOSA, Rui. Abolicionismo , op. cit., p. 210. 133 Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto (1837-1912) foi deputado, senador, conselheiro de Estado, ministro da Marinha, da Fazenda e presidente do último conselho de ministros do Império.

134 Citado a partir de VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 223. 135 Cf. LACOMBE, Américo Jacobina, op. cit., p. 36. 136 Citado a partir de HOLANDA, Sérgio Buarque. O Brasil monárquico: do Império à República, op. cit., p. 218. 137 Alguns efeitos positivos do encilhamento passaram quase despercebidos ou só vieram a ser reconhecidos mais tarde: as dificuldades de importação (por causa da inflação ou das tarifas introduzidas) favoreceram uma indústria ainda incipiente de bens de consumo não duráveis, tais como tecidos e alimentação; e o crédito fácil vai beneficiar certas áreas onde a produção de café estava em expansão. FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro, op. cit., p. 574-578. E também: LEVY, Maria Barbara. O encilhamento. In: NEUHAUS, Paulo (Coord.). Economia Brasileira: uma visão histórica. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1980. 138 As peripécias de conjuntura política do período são inúmeras e enleadas de tal forma que não podem ser aqui tratadas adequadamente. Recapitulando, rapidamente: o governo do Marechal subira em aliança com o Partido Republicano Paulista e são alguns dos seus políticos mais expressivos que passam a ocupar posições-chave: a presidência da Câmara, Bernardino de Campos, a presidência do Senado, Prudente de Morais; e Rodrigues Alves, personagem central na política de São Paulo, ocupará a pasta de Finanças. Fernando Henrique Cardoso sintetiza bem a sucessão de Floriano: “Não espanta, portanto que os aliados de Floriano dotados de recursos políticos mais estáveis – os republicanos paulistas – tivessem sido os beneficiários com a sucessão. Bastavam-lhes duas condições: que o Marechal ganhasse as lutas contra os revoltosos (para garantir a ‘situação’ para ambos os lados da aliança) e que sua ascensão não se fizesse como um desafio ao César vitorioso. Floriano ganhou com empenho. Os paulistas constituíram um partido – o Partido Republicano Federal –, deram a presidência dele a um homem simpático ao Marechal, Francisco Glicério, e não polemizaram, na fase sucessória, com o Presidente. Aceitaram, inclusive, sucessivas postergações – justificáveis pelas circunstâncias – das eleições para deputados e para a presidência”. (Cf. CARDOSO, Fernando Henrique. Dos governos militares a Prudente – Campos Sales. In: FAUSTO, Boris (Org.). O Brasil republicano : estrutura de poder e economia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987. p. 43-44, v. 1. (História Geral da Civilização Brasileira, t. 3.) 139 De 2 de setembro de 1895. O texto integral da carta pode ser encontrado em ALENCAR, José Almino de e PESSOA, Ana (Orgs.), op. cit., p. 59-75. 140 FAORO, Raimundo, op. cit., p. 638. 141 Rui Barbosa desembarca no Rio de Janeiro, voltando da Inglaterra exatamente um mês depois: em 29 de julho.

142 Carta a Antonio Araújo Ferreira Jacobina, de Londres, em 5 de março de 1895. In: LACOMBE, Américo Jacobina. Prefácio. BARBOSA, Rui. Mocidade e exílio , op. cit., p. 296. 143 Carta a Antonio Araújo Ferreira Jacobina, de Londres, em 9 de maio de 1895. Ibid., p. 300. 144 Carta a Antonio Araújo Ferreira Jacobina, de Londres, em 23 de maio de 1895. Ibid., p. 305. 145 CARDOSO, Fernando Henrique. Implantação do sistema oligárquico. In:__. O Brasil republicano , v. I: estrutura de poder e economia (1889-1930), por Fernando Henrique Cardoso [et al.]. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 17. 146 VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 323. 147 Ibid., p. 325. 148 De 17 de setembro de 1896. Ibid., p. 323. 149 De 12 de outubro de 1896. Ibid., p. 327. 150 6 de novembro de 1897. 151 PORTO, Costa. Pinheiro Machado e seu tempo . Brasília: LP&M /INL, 1985. p. 100. 152 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. O processo político-partidário na Primeira República. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Brasil em perspectiva. São Paulo: DIFEL, 1976. p. 181. 153 Campos Sales participara da criação do Partido Republicano Paulista em 1873, havia sido Ministro da Justiça do primeiro Governo Republicano e ocupava naquele período a presidência de São Paulo. 154 O Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Pará propuseram a candidatura de Lauro Sodré, mantida até o fim como uma “homenagem pessoal ao candidato”. 155 SOUZA, Maria do Carmo Campello de, op. cit., p.182. 156 Como no Poder Moderador. 157 Ibid., p. 48. 158 O mecanismo prático para isto foi a alteração na maneira pela qual se fazia o reconhecimento da “lisura” das atas eleitorais. Até então, como era habitual a fraude e como as dissidências apresentavam resultados eleitorais diversos dos resultados oficiais locais, as oposições podiam, com apoio federal, fazer representantes seus. Daí por diante, por acordo aprovado na Câmara, a “Comissão de Verificação de Poderes”, que deveria resolver as dúvidas sobre quem havia sido eleito, passaria a aceitar as atas assinadas pelas maiorias das Câmaras municipais (a instância competente para isto) e

o sistema de controle parlamentar seria supervisionado pelo presidente da Câmara anterior. Dessa maneira, evitavam-se surpresas que a praxe então vigente de dar ao mais idoso eleito poderia acarretar. 159 Em 1897, Rui Barbosa participara da fundação da Academia Brasileira de Letras. Volta ao jornalismo, como redator-chefe e editorialista de A Imprensa , um jornal criado às vésperas da posse de Campos Sales e gerenciado por seu cunhado, Carlos Viana Bandeira. Em 1902, a questão da revisão do Código Civil vem arrancá-lo da relativa obscuridade, contra a qual ele luta tenazmente, e o traz de volta ao seu público mais fiel: o da Capital Federal, que bem ou mal, o mantém à vista. 160 VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 331. 161 Discurso no Senado, em 5 de agosto de 1905. In: VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 344. 162 Ibid., p. 350. 163 FAORO, Raimundo, op. cit. 164 No inicio de 1905. 165 A mesma tentativa de interferência do Presidente no processo sucessório se repetirá na eleição seguinte e se tornaria a origem do que veio a ser a Campanha de Rui em 1909-1910 à Presidência da República, a Campanha Civilista. VISCARDI, Claudia Maria Ribeiro. O teatro das oligarquias: uma revisão da política do “café com leite”. Belo Horizonte: C/ Arte, 2001. p. 88. 166 LACOMBE, Américo Jacobina. Afonso Pena e sua época. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1986. p. 290. 167 Ibid., p. 294. 168 VIANA FILHO, Luís, op. cit., p. 352. 169 A esse propósito, leia-se o ensaio de Christian Lynch: LYNCH, Christian Edward Cyril. A utopia democrática: Rui Barbosa entre o Império e a República. In: MAGALHÃES, Rejane de Almeida e SENNA, Marta de (Orgs.). Rui Barbosa em perspectiva. Seleção de textos fundamentais. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2007, p. 37-66. 170 Segundo Rubem Nogueira, “o primeiro habeas-corpus sobre matéria política, que se impetrava ao mais alto órgão da justiça republicana”. 171 BARBOSA, Rui. O voto do Sr. Ministro Pisa e Almeida. In: Trabalhos jurídicos: Estado de sítio (Obras Completas de Rui Barbosa, volume xix, 1892, t. 3). Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1956, p. 294.

O B RASIL É FATALMENTE UMA DEMOCRACIA: S ILVIO R OMERO ¹ Uma fulgurante plebe intelectual O século XIX, sobretudo a partir do período da Regência, foi o século da descoberta do Brasil pelos brasileiros. Descoberta e “invenção” do Brasil, em que aparecem imbricados o aparecimento de mitos, a elaboração de símbolos, a criação de instituições e a afirmação de um ideário nacionalista.

Nesse processo, ressaltemos aqui pelo menos três aspectos: a) uma série de fatos e manifestações que assinalam a existência de uma língua nacional, de uma literatura e de uma arte brasileiras, começando talvez com a publicação do Compêndio da Gramática da Língua Nacional , de Antônio Álvares Pereira Coruja em 1835 e culminando com a obra de José de Alencar e as discussões por ela geradas; b) a emergência e desenvolvimento de uma historiografia brasileira em torno de instituições como o Instituto Brasileiro Histórico e Geográfico, criado em 1838; esforços consubstanciados, por exemplo, nas obras de Von Martius, notadamente do seu Como Escrever a História do Brasil (1840), de Varnhagen e, mais tarde, de João Capistrano de Abreu; c) A constituição e evolução de um sistema político-administrativo, incluindo-se aí o os esforços de consolidação da unidade nacional desenvolvidos pela Coroa, o funcionamento continuado do parlamento e de partidos políticos, em um regime onde vigorava liberdade de expressão. Esses seriam, por assim dizer, alguns dos antecedentes de uma geração que vai completar vinte ou trinta anos entre 1868 e 1878, “o [decênio] mais notável de quantos no século XIX constituíram a nossa labuta espiritual” ² . Geração que era composta por nomes como Machado de Assis, André Rebouças, Rio Branco, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Tobias Barreto, Castro Alves e Sílvio Romero. Este último, no seu discurso de recepção a Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras ³ , caracterizou a época e o espírito que animava essa geração em um parágrafo que se notabilizou: Quem não viveu nesse tempo não conhece por ter sentido diretamente em si as mais fundas comoções da alma nacional. Até 1868 o catolicismo reinante não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista, católica e eclética a mais insignificante oposição; a autoridade das instituições monárquicas o menor ataque sério por qualquer classe do povo; a instituição servil e os direitos tradicionais do aristocratismo prático dos grandes proprietários a mais indireta opugnação; o romantismo, com seus doces, enganosos e encantadores cismares, a mais apagada desavença reatora. Tudo tinha adormecido à sombra do manto do príncipe ilustre que havia acabado com o caudilhismo nas províncias e na América do Sul e preparado a engrenagem da peça política de centralização mais coesa que já uma vez houve na história em um grande país. De repente, por um movimento subterrâneo, que vinha de longe, a instabilidade de todas as coisas se mostrou e o sofisma do império apareceu em toda a sua nudez. A guerra do Paraguai estava a mostrar a todas as vistas os imensos defeitos de nossa organização militar e o acanhado de nossos progressos sociais, desvendando repugnantemente a chaga da escravidão; e então a questão dos cativos se agita e logo após é seguida da questão religiosa; tudo se põe em discussão: o aparelho sofístico das eleições, o sistema de arrocho das instituições policiais e da magistratura e inúmeros problemas econômicos; o partido liberal, expelido do poder, comove-se desusadamente e lança aos quatro ventos um programa de extrema democracia, quase um verdadeiro socialismo; o partido republicano se organiza e inicia uma propaganda tenaz que nada faria parar. Na política é um mundo inteiro que vacila. Nas regiões do pensamento teórico o travamento da peleja foi ainda mais formidável, porque o atraso era horroroso ⁴ .

Nesta “peleja” contra o “atraso horroroso”, a geração de 1870 valeu-se fartamente das teorias que imperavam na Europa, marcadas pelos determinismos cientificistas da época – determinismos geográficos, raciais, de Buckle, de Gobineau, eivadas do evolucionismo de Spencer e de Darwin. Surgiam as primeiras manifestações de interpretação da realidade nacional, que tem como exemplo conspícuo a História da Literatura Brasileira , de Sílvio Romero. Desenvolvem-se, assim, uma série de teorias, ideias, diagnósticos sobre a nossa formação histórica, presentes, por exemplo, na obra de Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Oliveira Lima, culminando com a publicação dos três clássicos que – pelos menos ao olhar de Antônio Cândido ⁵ – teriam inaugurado o ciclo moderno dessas interpretações gerais sobre o país: Casa Grande e Senzala , de Gilberto Freyre, Formação do Brasil Contemporâneo , de Caio Prado Júnior, e Raízes do Brasil , de Sérgio Buarque de Holanda. Essa geração, a geração de 1870, como veio a ser conhecida, era composta, em boa parte, por “doutores pobres, jornalistas oradores que de todos os pontos do país surgiam com a pena, com a palavra e com a ação, em nome do pensamento liberal, para dominar a opinião”. “Aparecem no eclipse das famílias arruinadas pelo fim do tráfico e de outras causas acumuladas...” ⁶ . Eram os expoentes daquela “fulgurante plebe intelectual”, identificada por Gilberto Amado ⁷ , na qual a característica étnica é sublinhada por Gilberto Freyre: A expressão “fulgurante plebe intelectual” é exata e feliz para caracterizar os bacharéis, tantos deles de origem humilde, e vários negroides, que, com a fundação dos cursos jurídicos, foram aparecendo na sociedade brasileira como nova e considerável elite, compensada pela cultura intelectual e jurídica nas deficiências de sua posição social e na inferioridade de sua condição étnica ⁸ . Para Gilberto Freyre, Sílvio Romero (“o sagaz sergipano”) teria sido o primeiro a associar o fenômeno da ascensão social do bacharel e do mulato ao declínio do patriarcado rural no Brasil: “a transferência de poder, ou de soma considerável de poder, da aristocracia rural, quase sempre branca, não só para intelectual – o bacharel ou doutor às vezes mulato – como para o militar – o bacharel da escola Militar e da Politécnica, em vários casos negroide” ⁹ . No curso da sua vida, Sílvio Romero pode testemunhar a ascensão social do mestiço, vê-lo ministro, senador, grande do império, general, titular, diplomata, professor da faculdade, mas, sobretudo, personificado de maneira muito expressiva em Tobias Barreto, seu amigo, por quem tinha verdadeira adoração intelectual. Nesta figura do mestiço, ele vislumbrava um instrumento privilegiado de adaptação, capaz de incorporar as manifestações intelectuais e os avanços da civilização europeia, ao mesmo tempo que viu na mistura de raças um fator decisivo no desenvolvimento da democracia entre nós. Sílvio Romero e a democracia no início da República Logo no início da sua Introdução a Doutrina contra Doutrina ¹⁰ , Sílvio Romero faz a seguinte afirmação: “O Brasil é fatalmente uma democracia”. O verbo ser no presente, aliado ao advérbio, parecia querer indicar que a

democracia faz parte da natureza íntima do caráter nacional; alguma coisa que por ser parte da essência, do fundamento da nacionalidade, não poderia ser contrariado e desabrocharia de qualquer modo. Fazia parte do seu esforço teórico – teria sido um traço inovador – caracterizar os elementos da nossa formação para depois ordená-los dentro de uma interpretação determinista ¹¹ . Determinismo fincado na composição étnica brasileira, e determinismo também da história circundante, global, na qual o país – sua formação, sua evolução – se inseria. O Brasil se tornara independente “quando a realeza já tinha entrado em plena decadência, quando a aristocracia feudal era quase apenas uma reminiscência histórica” ¹² , tornando os seus vínculos com a aristocracia bastante tênues e afastando o perigo de uma restauração monárquica. No desenvolvimento da nação brasileira, “duas forças, a natural e a social, têm estado constantemente em ação” ¹³ . Por um lado, “a formação do povo era o resultado da [ação] burguesia, da plebe, do terceiro e do quarto estado, aliados aos índios e negros que eles escravizaram” ¹⁴ . Por outro, havia um processo de mestiçagem permanente, “o caldeamento das três raças fundamentais tem sido imenso” ¹⁵ . Esse duplo mecanismo favorecia a equalização social e a unidade étnica. A “democracia é fatal” ¹⁶ , concluía Sílvio Romero: O Brasil é fatalmente uma democracia. Filho da cultura moderna, nascido na época das grandes navegações, o que importa dizer, depois da constituição forte da plebe e da burguesia, ele é, além do mais, o resultado do cruzamento de raças diversas, onde evidentemente predomina o sangue tropical. Ora, os dois maiores fatores de igualização entre os homens são a democracia e o mestiçamento. E estas condições não nos faltam em grau algum, temo-las de sobra ¹⁷ . E referindo-se ao ainda jovem regime republicano brasileiro: Em um povo destarte argamassado, os mestiços de todas as gradações e matizes estão em maioria e nos governos democráticos a maioria dita a lei ¹⁸ [...]. A república foi uma vitória dessas populações novas representada por seus homens mais eminentes [...] Ela representa a maioria e tem assim um esteio etnográfico ¹⁹ . Esta é a visão de Sílvio Romero naqueles dias do final de 1892, durante o governo de Floriano Peixoto, período no qual ele escreveu a Introdução a Doutrina contra Doutrina. Tratava-se de um texto de intervenção política que procurava influir sobre os destinos da República, ainda noviça e conturbada. Nele, o autor analisa as principais correntes partidárias e de opinião, vistas por ele como os principais contendores pelo poder: o partido monarquista ou restaurador, os jacobinos (republicanos sectários ou exclusivistas), a embrionária corrente dos socialistas, os positivistas e o “partido militar”. Republicano de primeira hora, o escritor rejeitava a restauração monárquica, mas se preocupava, sobretudo com a precariedade, fraquezas e inconsistências dos grupamentos políticos existentes. Por exemplo, os socialistas eram um agrupamento insuficiente, que procuravam reunir uma camada social praticamente inexistente no país: o

operariado. A pobreza no Brasil não seria o efeito do desenvolvimento do capital – gerador de crises e de desemprego, como na Europa, mas era simplesmente o resultado de uma estrutura produtiva minguada. Aqui existiam os “pobres da inércia”, uma “pobreza geral”, porque o capital era exíguo, insuficientemente desenvolvido: “Se, pois, há pauperismo é da nação inteira” ²⁰ . Neste contexto, os socialistas viriam a ser anacrônicos e não raro, acrescentava ele, intelectualmente mal equipados: São célebres os estudos de Karl Marx e de Engels sobre as classes operárias na Inglaterra; os de Bebel e Lieknecht sobre as Alemanhas. Que estudos sobre a vida econômica, sobre as classes produtoras no Brasil já tentou algum dos aclamados chefes do nosso socialismo? Onde os seus escritos demográficos e estatísticos? São até hoje um mistério, uma incógnita. Entretanto, por aí é que se deveria ter começado. É por isso que caráter da macaqueação da democracia social brasileira é visível a olhos desarmados ²¹ . Sílvio Romero qualifica de “jacobinos” o núcleo de republicanos mais sectários – “antigos declamadores da tribuna e do jornalismo, representantes do elemento retórico da propaganda histórica republicana [que] constituiriam se pudessem um puritanismo, em que só eles aparecessem e dessem voz de comando” ²² . Essa minoria, que afastava, por sua intransigência, a participação política de uma grande parte da elite não ideologizada e que assustava a grande massa dos cidadãos com o seu radicalismo, havia sido responsável “pelos grandes desatinos no provisório ²³ e especialmente no governo do Sr. Floriano Peixoto” ²⁴ . Ora, dizia o autor, “todas as grandes reformas, capazes de representar um papel na história, só se podem fazer, só se podem transformar em realidades vivas, se elas rompem o círculo de ferro do sectarismo estreito e derramam-se sobre as massas exteriores” ²⁵ . O positivismo, uma corrente filosófica que no Brasil havia assumido o caráter de seita politicamente organizada, era também acusado de incorrer em sectarismo e exclusivismo. Na “Introdução”, Sílvio Romero ocupa-se da “ação prática” desse grupamento – ou seja, das suas atividades de propaganda junto à intelligentsia , da sua vocação conspiratória dentre as elites, das suas pretensões ditatoriais e da influência insidiosa e desproporcional que ele exercia junto às forças armadas ²⁶ : a despeito de suas pretensões e ousadias, [os positivistas] não passariam, não teriam passado até hoje de um grupo insignificantíssimo, sem a mínima preponderância, se não contassem entre seus adeptos os moços estudantes e os moços oficiais, há pouco saídos da Escola Militar e da Escola Superior de Guerra [...] eles, em última análise, e para quem sabe ver, pelo prestígio, é quem dirigem a parte geral e mais numerosa do Exército, e, com tais recursos, hão dado o tom à política republicana ²⁷ . “No Brasil, o Exército há sempre sido o principal fator de nossas conquistas democráticas” ²⁸ , nos diz Sílvio Romero, quando agiram decisivamente em alguns pontos cruciais da vida política nacional. Foi assim na época da independência, quando “a jovem gente armada pugnou ardentemente pela

emancipação política do país [...] foi ela, mais tarde, no 7 de abril de 1831, quem melhor verificou a indisponibilidade da deposição do primeiro imperador; foi ela quem largou as armas quando, nos últimos anos do cativeiro, mandaram-na pegar escravos revoltosos; foi ela, finalmente, quem, prestando ouvidos à propaganda do republicanismo histórico, deu, em 15 de novembro de 1889, o último empurrão ao trono imperial” ²⁹ . Com a proclamação da república, os militares instalaram-se permanentemente na política: Sendo a classe mais organizada da nação, tendo atirado fora o trono, meteram-se os seus chefes na direção do país, tomando conta dos lugares que acharam vagos [...] O estado de atraso do país, onde nove décimos da população são de analfabetos; onde a mor parte do Centro e do longo Oeste é desconhecida e inabitada; onde a organização do ensino na realidade [...] é verdadeiramente primitiva; [...] onde todas as classes jazem amorfas e indistintas; [...] onde os mais adiantados ainda pensam que o “velho positivismo francês” é a ultima palavra da sabedoria humana [...]; o estado de atraso do país, dizíamos nós, bem estava indicando que havíamos de passar pela fase de agitações militaristas por que tem passado as Repúblicas espanholas. Era fatal ³⁰ . [...] Metida nas agitações da política ativa só dois casos se poderiam deparar à Força Armada: ou toda ela constituir um só partido, ou dividir-se em partidos diversos. No primeiro caso, que aliás jamais se deu em todo curso da história, teríamos o espetáculo terrível de ir a nação por um lado e a força pública por outro [...] No segundo caso, que é o que geralmente se dá, e é exatamente a nossa condição presente, a Força Armada quebra-se em matizes diversos, uns adversários dos outros, e, então, adeus, disciplina, adeus, organização superior do Exército e da Marinha ³¹ . Grandes ideias, política miúda e uma sociedade incompleta Há um nítido contraste na análise política de Sílvio Romero, um contraste de escala entre as generalizações relativas aos rumos da evolução sociopolítica do Brasil, condicionada pelo tempo histórico em que o país havia sido fundado, movida pela dinâmica da sua miscigenação étnica, recebendo as influências externas do movimento geral da civilização europeia e a descrição empreendida pelo escritor, ágil, dos embates entre esses pequenos agrupamentos políticos ou ideológicos. Durante o período em que viveu a sua maturidade, a geração de 1870 viu o país começar a tomar forma moderna: mais urbanizada e socialmente diferenciada. Entre 1872 e 1900, a sua população passa de 9,9 milhões ³² a 14,4 milhões em 1900. O número de habitantes em cidades de mais de 100.000 quase duplica, de 580.000, em 1872, a 976.000 ³³ . Depois da guerra da Tríplice Aliança (1865-1870), o Brasil conheceu uma nova expansão da economia, principalmente em torno do polo cafeeiro paulista e das cidades no centro-sul. Era um desenvolvimento alimentado pelo ingresso de mão da obra imigrante e incentivado pelo Estado, que, se valendo do financiamento estrangeiro, sobretudo inglês, promoveu a instalação de uma infraestrutura – expansão da rede ferroviária e melhoria dos portos, necessária ao avanço do setor agroexportador. Por outro lado, o crescimento

de um mercado interno mais diversificado, permitiu a criação de um setor fabril, indústria de alimentação, de tecidos e de certo desenvolvimento do setor de serviços. A sociedade urbana, sobretudo em algumas capitais, tornava-se mais complexa, com a expansão do número dos setores “médios”: funcionários, profissionais liberais, empregados de bancos e comércio ³⁴ . Por sua vez, diversificavam-se os interesses em jogo na esfera pública com o desenvolvimento dos negócios, sobretudo a partir do Encilhamento, fomentados pelo governo ou por políticas públicas: “o negocismo desenfreado, a advocacia administrativa a viver do orçamento, das subvenções, fornecimentos, contratos de estrada de ferro, imigração estrangeira, empréstimos, garantias de juros etc.” ³⁵ . Seriam, no dizer de Sílvio Romero ³⁶ , os “avezados cultores da advocacia administrativa, insignes inventores de malabarescas concessões”. A queda do gabinete João Alfredo, o penúltimo do império, assim como a demissão do primeiro ministério republicano, por exemplo, se deram em meio a escândalo ou controvérsias ligadas a financiamentos de obras portuárias ³⁷ . Os conflitos políticos, as discussões de ideias ou as disputas eleitorais envolviam uma quantidade muito reduzida de pessoas e organizações. Vale lembrar que o número de eleitores no começo dos anos 90 do século XIX era de aproximadamente 290.000, ou seja, cerca de dois por cento da população total, um número e uma porcentagem que haviam decrescido com as restrições introduzidas pela lei Saraiva, ou lei da eleição direta, de 9 de janeiro de 1881 ³⁸ . Para Sílvio Romero, o caráter mesquinho dessas disputas, o facciosismo que elas representavam, comprometia o desenvolvimento da “natureza” democrática do país. Mais tarde ³⁹ , ele diria que a revolução social que se devia iniciar com a emancipação dos escravos foi logo entravada “[por movimentos políticos] que longe de facilitarem a constituição social do povo, embaraçaram-na ao invés consideravelmente”. Na obra de Sílvio Romero, os aspectos sociais se articulam com o político, ou seja, o autor busca uma base sociológica e esta o leva a encarar as soluções políticas. Desse entrelaçamento é que nascem, por vezes, uma riqueza crítica e uma amplitude de percepção, fazendo-o examinar o meio cambiante, as complexidades do real, através de facetas, antinomias e fatores, pescadas por ele à medida que desenvolve as suas “leis sociológicas”, em narrativas de história social. Junte-se a isso uma valorização reiterada pelo conhecimento do que é observado, o amor do documento, que se traduziriam, por exemplo, na elaboração de uma obra como a História da Literatura Brasileira e a aproximação intelectual do autor, mais tarde, com os trabalhos de Le Play, que enfatizavam a pesquisa empírica e a metodologia dos inquéritos sociais (“social surveys”) ⁴⁰ . É assim, instruído por essas perspectiva e intuição, que Sílvio Romero vem a definir a mestiçagem – um estado atingido através da adaptação e seleção, dentro de um processo de evolução progressiva, como o fenômeno étnico brasileiro por excelência, um traço fundamental em nossa psicologia. Um sentido mestiço da civilização nacional, concebido como um traço positivo,

se impôs pouco a pouco aos preconceitos arianistas de um Oliveira Viana, por exemplo, tendo começado a se tornar corrente, sobretudo depois de Gilberto Freyre com o seu Casa Grande e Senzala. A esse respeito, Sílvio Romero manteve uma atitude ambígua. Ora achava o mestiçamento um bem, pois esta seria a forma apropriada de adaptação do branco ao trópico; ora julgava-o um mal inevitável, quase humilhante. De toda maneira, considerava-o, porém, um dado irreversível, um traço constitutivo da nossa formação. Devido à nossa inserção no desenvolvimento do Ocidente, no “mundo Américo europeu” (a expressão é sua), haveria uma interpenetração de culturas, levando-as à interdependência. A individualização do Brasil como nação, a emergência e a evolução de uma cultura brasileira original seriam o resultado da evolução racial e se completariam quando estivesse encerrada a fusão dos elementos díspares. É nesse contexto que Sílvio Romero traça a sua história da literatura brasileira, procurando definir o que nela havia de específico, em face da literatura de Portugal, cuja língua o Brasil fala na América, cuja civilização ele representava no Novo Mundo; dentro desse mesmo desenvolvimento o autor antevia a perspectiva de um branqueamento final – teoria que foi o primeiro a expor no Brasil ⁴¹ . À espera desse desfecho, o país vivia a síndrome da insuficiência, da incompletude. Carecíamos ainda daquelas condições que nos possibilitassem consolidar uma identidade própria, suficientemente expressiva e forte, para nos garantir um lugar entre os povos mais adiantados. Éramos uma raça em formação. Falta-nos a educação, o espírito de iniciativa. Tínhamos uma estrutura social pouco definida, com a maioria da população, que mal produzia para subsistir, entregue a atividades de baixíssima rentabilidade. Sílvio Romero enfileira um mundo de características sociais que não possuíamos: Falta-nos a hierarquização social, o encadeamento das classes, a solidariedade geral, a integração consensual, a disciplina consciente de um ideal comum, a homogeneidade íntima. Falta-nos a radicação à terra pela propriedade espalhada largamente, pelo cultivo, pela produção autônoma da riqueza nacional. O nosso povo está em geral desenraizado do solo ou nele subsiste como uma vegetação estranha. Não temos o operariado rural organizado, afeito ao trabalho regular e seguido, nem uma classe numerosa, por toda a parte espalhada, de pequenos proprietários agrícolas; nem a dos médios proprietários da mesma espécie; porque as terras são devolutas, de heréus, ou estão nas mãos dos grandes latifundiários, hoje geralmente decadentes; não possuímos, por outro lado, o vasto operariado urbano nacional pelo Brasil em fora; nem a pequena burguesia proprietária, farta e abastada; nem tampouco a grande burguesia comparável à das fortes nações particularistas, opulenta, poderosa, progressiva, e, menos ainda, a vasta aristocracia do dinheiro, o grupo dos milionários, dos banqueiros, dos capitalistas compatrícios empreendedores. Não possuímos os grandes mineradores, os grandes criadores, os grandes agricultores, os grandes industriais à moderna. Esta geral falta de base econômica estável e independente, que repercute na família e na índole do povo, pela incerteza dos meios e modos de viver, leva-nos a não ter, nem como os povos orientais,

a estabilidade patriarcal, de uma parte, e, nem de outra, a iniciativa da coragem e espírito empreendedor particularista ⁴² . Em resumo, ele repete (e cita-o explicitamente) o mesmo raciocínio de Louis Couty, biólogo francês, residente no Rio de Janeiro na década de 1880, que escreveu no seu O Brasil em 1884 : “Tomemos a questão do alto, estudemos o conjunto da população. O estado funcional da população brasileira pode-se resumir numa palavra: o Brasil não tem povo!” ⁴³ . Falhara o Brasil, em duas oportunidades históricas, ao não empreender as mudanças sociais observadas na “milenária evolução do Ocidente”: A primeira vez foi na última fase do século XVIII, quando foram libertados os escravos índios e mestiços de índios. Fugiram quase todos para os matos e os que ficaram em aldeamentos não se transformaram em proprietários de terras e nem se entregaram à cultura. Prolongaram uma vida de misérias, servindo ofícios inferiores até se obliterarem quase inteiramente na massa do proletariado anônimo e apagado das vizinhanças. A outra vez foi ontem, em nossos dias, quando se libertaram os escravos de origem africana e mestiços deles na penúltima década do século XIX. A debandada foi ainda mais geral ⁴⁴ . Neste rápido esboço da evolução das estruturas de classe no Brasil, há uma tensão de opostos – entre um fatalismo sociológico e a necessidade de uma vontade política demiúrgica que pusesse ordem nesse estado de coisas, o que pode ferir as exigências da lógica, mas enriquece o senso de realidade de nosso autor. Sob esse aspecto, “havia algo de dialético no jogo das suas ideias e opiniões, que, se não chegavam a uma síntese satisfatória, permitiam sempre uma conclusão interessante, graças aos entrechoques por vezes antinômicos, mas vivos das proposições, jogadas como pedras” ⁴⁵ . Para encontrar uma solução ele arremete, no exemplo em presença, na direção de uma determinação mais geral, que envolve a evolução da humanidade e o papel destinado ao Brasil. Se nada for feito, algo maior nos obrigará a mudar, por cima e em detrimento de nós mesmos. A afirmação soa, penosamente, contemporânea: O Brasil progredirá, é certo; porque ele tem de ser arrastado pela enorme reserva de força, poder e riqueza, que está nas mãos das três ou quatro grandes nações postadas à frente do imperialismo hodierno. Progredirá, quase exclusivamente, com os braços, os capitais, os esforços, as ideias, as iniciativas, as audácias, as criações dos estrangeiros, já que não queremos ou não podemos entrar diretamente na faina, ocupando os primeiros lugares como colaboradores. Progredirá, certo; porque, afeiçoado o país pouco a pouco a seu jeito, eles, de posse das grandes forças produtoras, de todas as fontes de riqueza, virão chegando oportunamente e tomando posição seleta entre os habitantes da terra; e, senão estivermos aparelhados, apercebidos, couraçados por todos os recursos da energia do caráter, para a concorrência, iremos, nós os latino-americanos, insensivelmente e fatalmente, para o segundo plano... Assistiremos, como Ilotas, ao banquetear dos poderosos; ficaremos, os da elite de hoje, na mesma posição a que temos, mais ou menos geralmente,

condenado os africanos e índios e seus filhos mais próximos que trabalharam para nós... Triste vingança da história! ⁴⁶ O país poderia falhar o seu destino como nação, mas não escaparia do movimento geral da história que o incorporaria de qualquer maneira, sob uma forma que o diminuiria. Um patriotismo mal-humorado Evaldo Cabral de Mello ⁴⁷ nos fala do “dilema do mazombo”, isto é, do descendente de europeu ou considerado como tal, inseguro na sua identidade, sentindo-se dividido entre a América e a Europa. A fórmula de Nabuco é conhecida: “De um lado do mar, sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país”. A cultura brasileira teria sido criada “com vistas a cicatrizar nossa grande ferida oitocentista, mediante a invenção destinada a romper com a Europa”. O modernismo forçou a anulação do “dilema”: criou uma nova forma de ufanismo, pela ironia autocelebratória, à Oswald de Andrade, ou pela adesão telúrica, na obra de Mário de Andrade e Villa Lobos ⁴⁸ . Depois de 1922, desenvolvemos uma tolerância progressista, que contempla um vasto número de manifestações culturais, por mais acanhadas, toscas ou precárias, como podendo ser um indício de nossas raízes e de uma identidade, sempre procuradas. Ceticismo, distância irônica frente à realidade, fizeram-se parte da norma culta do comportamento contemporâneo. Ora, em Sílvio Romero convivia o horror ao nosso atraso e o apelo do patriotismo. Ele era aquela personalidade pública tomada de paixão verdadeira que erra muito e que não se importa de ferir as pessoas. Embirra com a gente. O seu patriotismo mal-humorado está provavelmente fora de moda, ou talvez mesmo fora do país. Daí, porque eu o tenha reconhecido nesses versos de uma americana e que talvez fosse do seu agrado. Estão em um poema de Elisabeth Bishop e descreve um caipira burro e atrapalhado (Manoelzinho) que trabalha em seu sítio; caipira que poderia ser o Brasil de Sílvio Romero: You helpless, foolish man I love you all I can, I think. Or do I? I take off my hat, unpainted And figurative, to you. Again I promise to try. ⁴⁹

1 Publicado em ALENCAR, José Almino de. O Brasil é fatalmente uma democracia: Sílvio Romero . Revista Tempo Brasileiro 145: 39-55, abr-jun, 2001. 2 ROMERO, Sílvio. Realidades e Ilusões no Brasil. Parlamentarismo e presidencialismo e outros ensaios . Org. Hildon Rocha. Petrópolis: Editora Vozes Ltda e Governo do Estado de Sergipe, 1979. p. 162. 3 ROMERO, Sílvio. Discurso pronunciado aos 18 de dezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha . Porto: Chardron de Lello & Irmão, 1910. 4 Ibid., p. 162-163. 5 Prefácio de Antônio Cândido. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 16ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. 6 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1977. Consulte-se, a propósito, todo o capítulo Ascensão do Bacharel e do Mulato. p. 573-632. 7 AMADO, Gilberto. Grão de Areia e outros escritos. Rio de Janeiro, 1919. p. 244-245. 8 FREYRE, Gilberto, op. cit., p. 626. 9 Ibid., p. 586. Gilberto Freyre chama a atenção para um trecho do estudo sobre Martins Pena (Porto 1901. p. 163-164), no qual Sílvio Romero menciona a influência na administração e no governo das “centenas de bacharéis e doutores de raça cruzada”, egressos das academias do Recife, da Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. 10 ROMERO, Sílvio. Introdução a Doutrina contra Doutrina. In: VENANCIO FILHO, Alberto (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Trata-se aqui da Introdução à segunda edição de Doutrina contra doutrina: O evolucionismo e o positivismo no Brasil, livro publicado em 1894 e reeditado em 1895. 11 Cf: CANDIDO, Antonio. O método crítico de Sílvio Romero . São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. 12 ROMERO, Sílvio, op.cit., p. 73. 13 Ibid., p. 74. 14 Ibid., p. 74. 15 Ibid., p. 74-75. 16 Ibid., p. 75. 17 Ibid., p. 72. 18 Ibid., p. 75.

19 Ibid., p. 76. 20 Ibid., p. 85. 21 Ibid., p. 85-86. 22 Ibid., p. 93-94. 23 Sílvio Romero refere-se ao primeiro governo republicano, chefiado por Deodoro da Fonseca. 24 Ibid., p. 100-101. 25 Ibid., p. 102-103. 26 As observações de Sílvio Romero assemelham-se bastante às que viriam a ser elaboradas, com mais rigor, por José Murilo de Carvalho no seu: A ortodoxia positivista: um bolchevismo de classe média. In: CARVALHO, José Murilo. Pontos e Bordados: escritos de História e Política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. p. 189-201. 27 Ibid., p. 118-119. 28 Ibid., p. 106. 29 Ibid., p. 52. 30 Ibid., p. 108-109. 31 Ibid., p. 113-114. 32 Um milhão e meio eram escravos. 33 Cf. CARDOSO, Fernando Henrique. Dos governos militares a Prudente – Campos Sales. In: O Brasil Republicano. v. 1. Estrutura de poder e economia (1889-1930). São Paulo: Difel, 1997. p. 20. (Coleção História Geral da Civilização Brasileira, sob a direção de Boris Fausto.) 34 Ver, por exemplo: SINGER, Paul. O Brasil no Contexto do Capitalismo Internacional. 1889-1930. In: O Brasil Republicano . v. 1. Estrutura de poder e economia (1889-1930), op. cit., p. 345-390. 35 MELLO, Evaldo Cabral de. Joaquim Nabuco. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 140: 5-30, jan-mar., 2000. p. 22-23. 36 No Discurso pronunciado aos 18 de dezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha: http://www.academia.org.br/abl/cgi/ cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=8351&sid=196 . 37 Nos portos de Recife e Rio de Janeiro, respectivamente. Cf. ANDRADE, Manuel Correia de. João Alfredo: o estadista da Abolição. Recife: Editora Massangana, 1988 e CALMON, Pedro. O golpe de estado. In: História do Brasil. Século XX. A República e o Desenvolvimento Nacional, v. VI. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1959. p. 1923-1932.

38 Em 1872, portanto antes da lei Saraiva, foram registrados 1.097.698 eleitores, 11 por cento da população brasileira (excluindo a população escrava). Cf. CARVALHO, José Murilo. Eleições e partidos: o erro de sintaxe política. In:__. A Construção da Ordem e O Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Relume Dumará, 1996. p. 359-382. 39 Em 1906, no seu já citado discurso de recepção a Euclides da Cunha. 40 Mas não apenas isso. Antônio Cândido assinala que Sílvio Romero sentiuse atraído não somente pelas diretrizes metodológicas, mas igualmente pelas ideias teóricas de Le Play e da Escola da Ciência Social, “que tinha para lhe agradar o destaque dado às explicações de fundo mesológico e racial, a valorização da iniciativa privada (o ‘particularismo’) e a fascinação pelos povos nórdicos” (Cf. CÂNDIDO, Antônio. Introdução de Sílvio Romero. In:__. Teoria Crítica e História Literária . Seleção e apresentação de Antônio Cândido. São Paulo: EDUSP, 1978. p. XXVII. 41 Ibid., p. XIX-XXI. 42 ROMERO, Sílvio. Discurso pronunciado aos 18 de dezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha, op. cit. 43 A citação, por inteiro, de Couty é a seguinte: “Tomemos a questão do alto, estudemos o conjunto da população. O estado funcional da população brasileira pode-se resumir numa palavra: o Brasil não tem povo! Dos seus doze milhões de habitantes (hoje serão talvez quinze, o que não muda em nada o raciocínio), um milhão é de índios e inúteis ou quase, um milhão e meio é de escravos (hoje os ex-escravos e seus descendentes andam quase inúteis, esparsos nos povoados e raros nas antigas fazendas e engenhos). Ficam nove milhões (serão talvez agora doze), mais ou menos. Destes, 500 mil pertencem a famílias proprietárias de escravos: são fazendeiros, advogados, médicos, engenheiros, empregados, administradores, negociantes. Acontece, porém, que o largo espaço compreendido entre a alta classe dirigente e os escravos (agora criados e empregados de toda a ordem) por ela utilizados não se acha suficientemente preenchido. Seis milhões (atualmente mais) de habitantes, pelo menos, nascem, vegetam e morrem sem ter quase servido a sua pátria. No campo serão agregados de fazendas, caipiras, matutos, caboclos; nas cidades, serão capangas, capoeiras, ou simplesmente vadios e ébrios. Capazes todos eles muitas vezes de labores penosos, como os da desbravação das matas e arroteamento das terras, ou da criação de gados, não terão, porém, nem ideia da economia nem do trabalho seguido e perseverante. Os mais inteligentes, os mais ativos, dois milhões talvez, serão negociantes, empregados ou criados. Em parte alguma se encontrarão, nem as massas fortemente organizadas dos livres produtores agrícolas ou industriais que, nos povos civilizados, são a base da ordem e da riqueza, nem tampouco as massas dos eleitores conscientes, sabendo votar e pensar, capazes de imporem aos governos uma direção definida.” 44 ROMERO, Sílvio. Discurso pronunciado aos 18 de dezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha, op. cit.

45 CÂNDIDO, Antônio. Introdução de Sílvio Romero. In:__. Teoria Crítica e História Literária , op. cit., p. XI. 46 ROMERO, Sílvio. Discurso pronunciado aos 18 de dezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha, op. cit. 47 MELLO, Evaldo Cabral de, op.cit., p. 26-30. 48 Cf. COELHO, Marcelo. Lobato era patriota que detestava o Brasil. Folha de São Paulo , São Paulo, 25 de fevereiro de 1998. 49 BISHOP, Elizabeth. Manuelzinho. In:__. The Complete Poems. 1927-1979. New York: The Noondat Press, Farrar, Strauss and Giro, 1995. p. 99.

D. J OÃO VI NO B RASIL DE O LIVEIRA L IMA Nascido em 1867 ¹ , Manuel de Oliveira Lima emerge para a vida intelectual e profissional ainda no limiar do regime republicano. Logo vem a participar de instituições centrais, sócio-fundador da Academia Brasileira de Letras aos 20 anos e secretário diplomático, três anos depois, em Lisboa. O início da sua carreira se dá justamente durante os dois primeiros governos militares, quando medrava os ataques jacobinos dirigidos aos monarquistas e ao corpo da diplomacia brasileira, identificada à “diplomacia faustosa do império, enquanto o descrédito corroía a imagem da República no exterior” ² . Explica-se talvez por isso um texto datado desse período ( Sept ans de

Republique au Brésil ), oficioso, no qual se procura justificar a República e no qual “Oliveira Lima obrigou-se à defesa não apenas do regime, mas de sua própria posição no corpo diplomático” ³ ; texto, aliás, pouco conhecido e ímpar, no seu republicanismo, ao que se saiba, dentro do conjunto da sua obra. Já em governo civil, durante o quadriênio de Rodrigues Alves, o Impressões da América Espanhola – reunião de artigos publicados no Estado de São Paulo –, ao estabelecer uma comparação entre o desenvolvimento político sulamericanos desta última com o nosso, retoma o argumento praticamente consensual entre os críticos da República: o de que a natureza mesma do regime monárquico teria evitado as divisões territoriais e a multiplicação do caudilhismo após a independência “quando o Império Espanhol se libertou fragmentando-se, e a colônia portuguesa, graças à monarquia, se libertou mantendo a sua unidade” ⁴ . Caberia talvez aqui invocar uma assertiva de Angel Rama: “não há texto que não esteja determinado por uma situação de presente e cujas perspectivas estruturantes não partam das condições específicas dessa situação” ⁵ . Surgidas de uma situação de crise do regime político (republicano) brasileiro, as interpretações acima enumeradas vinham a delinear – em termos muito gerais – guias dentro das quais ia se criando um eixo narrativo da história nacional: procurava-se, talvez em primeiro lugar, como lembra Ângela de Castro Gomes, tentar “fundar a autoridade política na tradição, e não na força e no carisma, como nos lembra a tipologia weberiana” ⁶ . Procurar-se-ia, portanto, elementos que permaneceram no longo prazo, definindo o caráter original e a sustentabilidade da ordem política e social brasileira, para a qual teria sido notável a existência de uma monarquia. Enfim, esta última apontaria para uma continuidade do legado colonial que manteria o país enlaçado à história dos países civilizados, atributo importante para que se firmasse um caminho em direção do progresso. Assim, para Oliveira Lima, “a continuidade ‘civilizacional’ teria sobrevivido com os herdeiros da dinastia de Bragança, após a volta de D. João para Portugal, ao longo do século XIX, tal como ocorrera com os congêneres europeus”, o que garantira ao Brasil a possibilidade de uma independência relativamente pacífica e teria igualmente lhe evitado a violência e a anarquia presentes nas frágeis repúblicas hispano-americanas ⁷ . Assim identificadas, essas diretivas permeiam a nossa leitura de D. João VI no Brasil . Origem e escopo A preparação de D. João VI no Brasil foi longa, tendo os seus começos provavelmente em 1897, quando o autor comunica a José Veríssimo que projetava escrever sobre o assunto como parte de uma planejada história da diplomacia brasileira ⁸ . A primeira edição do livro data de 1908 ⁹ e foi publicada a expensas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) como trabalho premiado em um concurso de monografias sobre o governo de D. João VI, instituído em 1903 em comemoração ao centenário de abertura dos portos. O concurso havia sido uma iniciativa do visconde de Ouro Preto, cuja proposta ao Instituto já previa que o trabalho exaltaria “a

unidade nacional do Brasil independente” e estabelecesse “a interpretação da transferência da Corte como antigo projeto que resultou na fundação do Império ” ¹⁰ . Nas correspondências do autor com José Veríssimo, Capistrano de Abreu e Machado de Assis, antes da publicação e citadas por Teresa Malatian, todos eles salientam a importância de se rever os lugares-comuns sobre o personagem que lhes pespegava “um renome – talvez não usurpado se contido nos limites do desenho e não puxado até a caricatura – de desmazelo bonacheirão e de esperteza saloia ” ¹¹ , advindo, sobretudo da historiografia portuguesa. “Eu o tenho por um sujeito atiladíssimo, e mais ainda inteligente”, dizia Veríssimo ¹² . Dever-se-ia descobrir a “fisionomia real daquele príncipe que vindo aqui fundar ‘um novo império’, como ele mesmo disse, tão particularmente contribuiu para a nossa independência”, escrevia Machado ¹³ . É verdade que Varnhagen, na sua História Geraldo Brasil , antecipara a interpretação preconizada por Ouro Preto, quando apresentara a independência como a continuação natural do Brasil Português. Ao transferir a corte para cá e ao decretar a abertura dos portos, D. João VI praticamente abolira a condição colonial do Brasil e transformara o país em sede do Reino, possibilitando o advento de um governo monárquico independente. Oliveira Lima incorpora a mesma interpretação ¹⁴ , mas acrescenta um retrato pessoal do Príncipe Regente cheio de nuances, relendo o que era tomado por mediania, hesitações e até poltronices como manifestações de uma espécie de “astúcia dos fracos”, em um mundo onde imperavam forças muito superiores a sua dinastia e a Portugal. Por exemplo, já no início do livro ele questiona a versão da fuga da Corte como tendo sido somente um ato destemperado e improvisado, sugerindo que ela estaria entre as alternativas políticas previstas pelo governo português, ao pôr em relevo uma memória de 1803 de D. Rodrigo de Souza Coutinho ao Príncipe Regente, na qual se lê: “depois de devastado por uma longa e sanguinolenta guerra, ainda resta ao seu soberano criar um poderoso império no Brasil, donde se volte a reconquistar, o que se possa ter perdido na Europa” ¹⁵ ... E, bem mais adiante, conclui sobre D. João VI: “Seu senso político revelou-se em muita ocasião. Um dos mais fracos soberanos da Europa, vimos ter sido o único que escapou às humilhações por que fez Napoleão passar os representantes do direito divino” ¹⁶ . Essa versão revisionista da personalidade e das habilidades de D. João VI constitui um dos atrativos mais populares desse livro, mas não creio eu ser o seu traço mais significativo, o qual se diria derivado de um conselho que Capistrano lhe havia voluntariado: “Quando chegar à época em que ele [D. João VI] veio para o Brasil, leia, de lápis em punho, todos os viajantes, apresente um quadro largo do estado do Brasil e ver-se-á quanto é falso e acanhado tudo quanto agora se tem feito” ¹⁷ . Oliveira Lima consultou praticamente todos os viajantes e estudiosos, como Tollenare, Saint-Hilaire, Luccock, Koster, Freycinet, Mary Graham, von Leithold, Spix, von Martius, James Prior; e foi muito além: percorreu cartas

e memorandos de diplomatas estrangeiros – da França, da Inglaterra, dos Estados Unidos – lotados no Rio de Janeiro, e cartas de personagens menos importantes que lhes forneceram valiosas descrições da vida durante o período joanino, como é o caso da extensa correspondência do bibliotecário da Biblioteca Real, Luís Joaquim dos Santos Marrocos; além de documentos de um sem-número de arquivos brasileiro e portugueses. Ao descrever o seu esforço de compilação, Otávio Tarquínio de Souza nos diz: Para levar a cabo a grande obra [...] forjou uma pachorra de velho frade e durante anos se entreteve nas coleções de manuscritos do Arquivo Nacional, da Biblioteca Nacional, do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério dos Negócios Estrangeiros da França, do Departamento de Estado dos Estados Unidos, do Museu Britânico, da Real Biblioteca da Ajuda. Muitos dos documentos em que se apoiou eram inéditos ou só tinham sido manuseados por um ou outro pesquisador menos atilado e sobre eles não se havia feito até então qualquer trabalho ¹⁸ . O resultado desse esforço é um volume de aproximadamente 700 páginas distribuídas em 30 capítulos. A espinha dorsal da narrativa segue aproximadamente a linha cronológica da estadia de D. João VI no Brasil – da partida da Corte de Lisboa em novembro de 1807 ao seu retorno para Portugal em abril de 1821 – mas o autor introduz capítulos nos quais se engaja em digressões para, por exemplo, compor um personagem como nos capítulo VI, sobre a rainha dona Carlota ou no muito citado capítulo XXIV, El rei , quase no final do livro, onde se tenta descrever modos de agir e traços da personalidade de D. João VI à luz da história do período. Às vezes, também se detém em um tema especialmente relevante para esclarecer a sua narrativa – é o caso do capítulo X, sobre o tráfico de escravos e do capítulo XIX sobre o tratamento dos índios. Em outros, seleciona um episódio particularmente expressivo, como no capítulo XX sobre a Revolução Pernambucana de 1817 . A multiplicidade de informações acumuladas faz com que D. João VI no Brasil seja utilizado muitas vezes como uma simples fonte de dados ou guia de referência de uma época, por especialistas de áreas diversas que o consultam à procura de material relevante aos seus interesses específicos. No entanto, o todo se apresenta como um monumento de história narrativa em que a riqueza das informações recenseadas – de história diplomática, de história política, de economia, biografias, cenas de descrição da vida comum, anedotas – são alinhavadas com um cuidado analítico permanente; o que faz com que este livro possa ser classificado como sendo um dos pilares da historiografia do século XIX, juntamente com Um estadista do Império, de Joaquim Nabuco. Oliveira Lima analisa, talvez pela primeira vez, a emergência do Estado brasileiro dentro da dinâmica das relações internacionais da época, percorrendo minuciosamente os seis anos (1808-1814) da hegemonia napoleônica e os cinco anos posteriores ao Congresso de Viena (1815-1820), quando se redefiniu as relações de poder entre os países da Europa.

Destrinçar toda a trama histórica envolvida vista de um país periférico submetido a dois grandes determinantes – o avanço crescente do domínio do capital inglês e o grande jogo de poder entre as potências europeias – é tarefa que exige um fôlego intelectual e uma paciência para os detalhes admiráveis. Esse esforço narrativo é feito ao longo de seis capítulos (do XII ao XVII), repletos de peripécias diplomáticas, do jogo de dissimulações e habilidades de muitos agentes manipulando uma variedade de interesses, mas, cujas linhas centrais vêm a constituir o cerne do livro em torno do qual tudo o mais se organiza ¹⁹ . Ao observar essa movimentação complexa de agentes e interesses, há que se aceitar a observação de Luiz Costa Lima que vê em D. João VI no Brasil não uma biografia de um príncipe regente, depois rei, mas uma “biografia plural”, compreendendo uma “plêiade de nobres e juristas burgueses (o conde Palmela, Antônio de Araújo, o conde Barca, o marquês de Aguiar, Rodrigo de Souza Coutinho, Tomás Antônio Portugal, Silvestre Pinheiro Ferreira), sem a qual as hesitações do príncipe-regente teriam sido paralisia e suas astúcias, inconsequências” ²⁰ . A importância da aliança com a Inglaterra – centro do capitalismo industrial e comercial em expansão – implicava um estado de dependência de Portugal que se submetia às exigências inglesas. Depois da abertura dos portos, em 1806, medida que também favoreceu o movimento comercial da colônia, as condições exaradas no convênio de 1810 significavam a transplantação do protetorado britânico, cuja situação privilegiada na metrópole se consagrava na nossa esfera econômica e até se consignava como perpétua. A falta de genuína reciprocidade era absoluta ²¹ e dava-se em todos os terrenos, parecendo mesmo dificílima de estabelecerse pela carência de artigos que se equilibrassem na necessidade de consumo, sendo mais precisos no Brasil os artigos manufaturados ingleses do que à Inglaterra as matérias-primas brasileiras ²² . O predomínio econômico da Inglaterra é tomado por Oliveira Lima, como não poderia deixar de ser, por dado inevitável, paisagem permanente do período. Do ponto de vista político, tratava-se, para Portugal, de sobreviver em meio ao jogo das potências europeias, abocanhando as vantagens possíveis. Se nos ativermos ao que se passou no Congresso de Viena, veremos que os representantes portugueses procuravam resolver três questões prioritárias: a restituição do território de Olivença, tomado pela Espanha na guerra de 1801; a fixação da fronteira norte com a Guiana Francesa – invadida pelas tropas portuguesas em 1809 – de acordo com o tratado de Utrecht de 1713 que a Inglaterra havia alterado, em detrimento de Portugal, no acordo de Amiens com a França em 1802; e a defesa do tráfico negreiro cuja proibição vinha sendo objeto de campanhas da opinião pública na Inglaterra. A posição marginal de Portugal, na órbita de influência inglesa, durante as negociações de Viena, não contribuiu para a resolução definitiva de nenhum desses pontos: Olivença não foi devolvida e a questão da Guiana ainda se arrastaria por décadas. Ressalve-se, porém, que embora fosse Portugal o único estado verdadeiramente interessado em que não se cessasse o

comércio de escravos ²³ , tenha obtido uma vitória parcial nesta questão, graças, em muito, às movimentações do conde de Palmela, representante português junto ao Congresso: acordou-se que o tráfico de escravos fosse abolido ao norte do Equador, mantendo-o, todavia, abaixo da linha equatorial. Oliveira Lima sublinha a lucidez premonitória de Palmela sobre esse resultado, citando uma sua comunicação ao Brasil: Julgo-me na consciência obrigado a declarar e a repetir que a ideia de continuar sem limite de tempo à importação de escravos para o Brasil é impraticável e que nos atrairá, se não nos precavermos, as mais fatais consequências. Basta para provar essa asserção o refletirmos que o Brasil é já agora o único país no mundo para onde se levam, sem ser por contrabando, novos escravos. Em todo o resto da América se acha esse tráfico abolido, e a Inglaterra está bem determinada (porque quando mesmo o governo o não quisesse, a nação o exigiria) a conseguir finalmente a abolição geral. O que podemos ainda é ganhar tempo , e para preparar-nos para o sacrifício, mas não evitá-lo afinal ²⁴ . E Oliveira Lima conclui: “D. João VI conseguiu, todavia regressar para Portugal sem que estivesse resolvida a questão, o que neste caso era sinal de vitória” ²⁵ . A essa vitória que, sabemos agora, conseguiu ser empurrada até 1850, acrescente-se a ocupação portuguesa da Banda Oriental do Prata, “o maior desforço, o desforço tomado pelo príncipe regente e seus conselheiros em oposição a toda a Europa, mesmo contra o aliado Inglês, do que Portugal deixara de alcançar em Viena e de justiça lhe cabia” ²⁶ . Aproveitando a fragilidade da Espanha, recém-saída da ocupação francesa, do relativo alheamento europeu com relação às Américas e da instabilidade do governo de Buenos Aires, o governo no Rio de Janeiro pretextando intervir contra as movimentações militares de Artigas invade Montevidéu, em 1816. Apesar dos protestos espanhóis e até da oposição inglesa, Portugal conseguiu protelar a situação, através de seguidas negociações de Palmela, criando-se uma situação continuada de ocupação que levou à anexação formal em 1821 da região e a criação da Província Cisplatina. É notável a maestria como Oliveira Lima descreve as manobras diplomáticas e os ganhos possíveis desse Reinado com espaço limitadíssimo dentro do jogo das grandes nações. Nesse processo, ele salienta a divisão virtuosa e produtiva de trabalho entre um rei que tomava iniciativas aqui no continente americano e o seu enviado, que ora se fixava em ganhos específicos julgados essenciais (como no caso do tráfico negreiro abaixo do equador), ora tergiversava, protelava, chicanava, para evitar uma solução definitiva que fosse prejudicial aos interesses do reino, como no caso da campanha do Prata. O problema da Guiana, a ocupação da Banda Oriental a partir do Rio de Janeiro, o envolvimento comercial com a Inglaterra, as negociações internacionais que têm naturalmente que receber o aval e desenvolvimento da Corte carioca, vão cada vez mais caracterizando o espaço territorial brasileiro como unidade política, o que, de resto, ele já se tornara formalmente, com a sua elevação a Reino Unido. A dependência dos grupos

proprietários brasileiros do trabalho escravo, que determina o afinco na defesa do tráfico negreiro pelos diplomatas portugueses, tão bem descrita por Oliveira Lima, aponta para e existência de um interesse nacional, perverso é bem verdade, mas que tem a força de unir as classes dominadoras dentro do país. Tudo isso é descrito, analisado ou sugerido pela enorme quantidade de documentos e fatos aqui reunidos, o que torna as seções sobre a política internacional uma raridade dentre os estudos sobre essa época. Era no tempo do Rei... Com esta primeira frase do seu Memórias de um Sargento de Milícias , Manoel Antonio de Almeida nos projeta – pelo poder evocativo de um pregão frequentemente utilizado pelos contadores de história – a um tempo mítico onde fantasia e imaginação encontram o seu lugar; um tempo estranho pelo pitoresco que a distância impingia, mas igualmente familiar, nosso. Era o tempo de D. João VI e quase todos nós reconhecemos naquele livro – que praticamente funda a nossa prosa de ficção – um ar, um espírito com os quais nós gostamos de identificar como brasileiros, mas precisamente de um Brasil urbano que teria sido inaugurado com a presença da Corte no Rio de Janeiro. Gilberto Freyre, em Sobrados e mocambos , nos diz que Com a chegada de D. João VI, o patriarcado rural que se consolidara nas casas-grandes de engenho e fazenda [...], começou a perder a majestade dos tempos coloniais [...] No Brasil dos princípios do século XIX e fins do XVIII, a reeuropeização se verificou [...] pela assimilação, da parte de raros, pela imitação (no sentido sociológico, primeiro fixado por Tarde), da parte do maior número, e também por coação ou coerção, os ingleses, por exemplo, impondo à colônia portuguesa da América [...] uma série de atitudes morais e de padrões de vida que, espontaneamente, não teriam sido aceitos por brasileiros ²⁷ . Nós sabemos que o sociólogo, apesar de vez por outra manifestar sua nostalgia pelo patriarcado, compreendia que, ao destruir a sociedade patriarcal, mas também lhe assimilando certos aspectos, a reeuropeização mencionada fazia parte constitutiva da nossa formação; um pouco à maneira de Oliveira Lima, que foi seu mestre, ou pelo menos seu guia nas leituras, e à diferença dos românticos, que procuravam no passado mais remoto, précolonial, base para a construção da identidade nacional. Para o autor de D. João VI no Brasil , “havia uma forte convicção do acerto da ação colonizadora exercida pelos europeus e, sobretudo pelo Estado, simbolizado na figura de D. João VI” ²⁸ . O Brasil se afirmava, se definia, entrando na grande roda do mundo civilizado; e lá entrava, pela mão do Rei. 1 Manuel de Oliveira Lima nasceu no Recife a 25 de dezembro de 1867 e faleceu em Washington DC, a 24 de março de 1928. 2 MALATIAN, Teresa. Oliveira Lima e a Construção da Nacionalidade. São Paulo: EDUSC, 2001. p. 101.

3 Ibid., p. 101. 4 Apud. MALATIAN, Teresa, op. cit., p. 201. 5 RAMA, Angel. La crítica de la cultura en América Latina. Caracas: Bib. Ayacucho, 1985. p. 98. Apud PAMPLONA, Marco A. Ambiguidades do pensamento latino-americano: intelectuais e a ideia de nação na Argentina e no Brasil. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 32, 2003. p. 25. 6 GOMES, Ângela de Castro. Rascunhos de história imediata: de monarquistas e republicanos em um triângulo de cartas. In: Remate de Males , n. 24. Campinas: Departamento de Teoria Literária, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade de Campinas, 2004, op. cit., p. 21. 7 Cf. PAMPLONA, Marco A., op. cit., p. 21. 8 MALATIAN, Teresa, op. cit., p. 203. 9 A primeira edição em dois volumes foi feita pela Tip. do Jornal do Commércio do Rio de Janeiro. A segunda edição, de 1945 e também em dois volumes, é da editora José Olympio (Rio de Janeiro). Em 1996, a Topbooks, Rio de Janeiro, publicou uma terceira edição de onde extraímos as citações deste artigo. 10 MALATIAN, Teresa, op. cit., p. 205. 11 LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks. p. 577-578. 12 Em carta de 7 de janeiro de 1897, apud MALATIAN, Teresa. p. 203. 13 Em carta de 5 fevereiro de 1906. Ibid., p. 205. 14 Ibid., p. 208. 15 LIMA, Manuel de Oliveira, op. cit., p. 44. 16 Ibid., p. 578. 17 Em carta de 11 de dezembro de 1900, apud MALATIAN, Teresa, op. cit., p. 204. 18 SOUZA, Octávio Tarquínio de. Prefácio a 2ª. edição. In: LIMA, Manuel de Oliveira, op. cit., p. 771. 19 NEVES, Guilherme Pereira das. Oliveira Lima: D. João VI no Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao Brasil: Um banquete no trópico. São Paulo: editora SENAC, 2000. p. 152. 20 LIMA, Luiz Costa. D. João VI no Brasil (Oliveira Lima). In:__. Intervenções. São Paulo: EdUSP, 2002. p. 376. 21 O tratado luso-britânico de 1810 fixava em 15% a taxa alfandegária sobre produtos ingleses vendidos para o Brasil, o que constituía uma vantagem

unilateral fragrante para a Inglaterra, já que os demais países pagavam uma taxa de 24% e Portugal 16%! Somente em 1816, igualaram-se as taxas inglesa e portuguesas. 22 LIMA, Manuel de Oliveira, op. cit., p. 251. 23 Ibid., p. 276. 24 Os grifos são nossos. Oficio a Thomas Antônio de Villa Nova de 10 de agosto de 1819. Cf: LIMA, Manuel de Oliveira, op. cit., p. 283. 25 Ibid., p. 283. 26 Ibid., p. 371. 27 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1968, v. 2. p. 3 e p. 309-310. 28 MALATIAN, Teresa., op. cit., p. 215.

DEUS ESTÁ NOS DETALHES ¹ : A PROPÓSITO DO CENTENÁRIO DE A MÉRICO J ACOBINA L ACOMBE Sou de uma geração de cientistas sociais que, quando não ignorava os trabalhos de Américo Jacobina Lacombe e de outros seus contemporâneos – Pedro Calmon, Hélio Viana – a eles votavam uma oposição, que acreditávamos ser metodológica: estranhávamos “aqueles homens que pareciam se interessar pelos fatos históricos sem se interessar pela história”, como vim a ler depois em Arnaldo Momigliano; ² atitude em parte fruto da nossa própria presunção científica, mas, acredito: reação também ideológica.

Na verdade, separava-nos a política e quando leio no seu depoimento à Isabel Lustosa a afirmativa: “O nosso grupo que era de direita tinha fama de fascista ” ³ , referindose a sua época de Faculdade de Direito em fins dos anos 1920 e a companheiros como San Thiago Dantas ou Otávio de Faria, vem à memória a imagem de meu pai, um quase contemporâneo. Ingresso na mesmíssima Faculdade um ano depois da formatura de Lacombe, eles tiveram em comum os cursos de alguns dos professores: tais como, por exemplo, Leônidas de Resende, renomado esquerdista ⁴ , a quem ambos, meu pai e Lacombe, se referiam com igual admiração à inteligência e à erudição. Meu pai, ao falar dessa parte de sua vida, certamente diria: “O nosso grupo que era de esquerda tinha fama de comunista .” E, no confronto dessas duas assertivas, desenhase o perfil de uma geração, esta comunidade feita de percepções, de subjetividade ativa e de sentimentos, composta por homens que compartilham, de maneira distinta e conflituosa, dos dilemas e das alternativas políticas, ideológicas e filosóficas no horizonte de uma mesma contemporaneidade. Neste caso: o Brasil daquelas décadas entre as duas grandes guerras. Com o risco natural da simplificação e de repisar fatos conhecidos, diríamos que essa geração viveu, desde a década de 1920, a percepção de um sistema republicano em crise, depois de o país ter conhecido sucessivamente uma experiência autoritária com Floriano Peixoto e o grande acordo oligárquico da “política dos governadores”, construído a partir de Campos Sales. Por um momento, antes da Primeira Guerra Mundial, as discussões políticas se ocupavam, sobretudo, do novo regime e haviam sido o apanágio principalmente dos nostálgicos do Segundo Reinado – como Joaquim Nabuco, Eduardo Prado e mesmo Oliveira Lima, entre outros – com o seu parlamentarismo, seu poder moderador e a imagem de um monarca indulgente. Em contraste, os anos 1920 e 1930 são marcados por novos e amplos debates na intelligentsia brasileira, reflexo de um debate mais generalizado, global, envolvendo sistemas de valores diversos, grandes projetos de mudanças sociais e de construção de novos tipos de sociedades: embates entre liberalismo, comunismo e fascismo, levando, por exemplo, à criação do Partido Comunista, da Ação Integralista, mas também a iniciativas ideológicas e políticas no interior da própria Igreja Católica, partindo de individualidades no clero e de grupamentos intelectuais que visavam a uma renovação espiritual da Igreja e a uma participação mais ativa na vida social e política do país.

Por essa época, o processo de diferenciação da economia brasileira, que tomara impulso a partir do final do século XIX e princípio do século passado – evidenciado na expansão da lavoura cafeeira, no desabrochar da indústria, no aceleramento do processo de urbanização e na emergência de um mercado interno –, ia dando origem a uma estrutura social mais complexa e diferenciada. O crescimento das camadas médias urbanas, a constituição do proletariado e da burguesia industrial, o incremento da imigração europeia e a crescente organização e autonomia das Forças Armadas acusavam a presença de novos atores que passavam a exigir uma ampliação nas bases de representatividade do sistema vigente. É um período de mobilização política e social, sobretudo, nos grandes centros urbanos. Os conflitos sociais e a efervescência ideológica se manifestam nas greves operárias e no maior grau de perturbação provocado pelas campanhas presidenciais. O ano de 1922 é expressivo desse clima geral: presencia-se a concretização da inquietude cultural e estética com a Semana de Arte Moderna e a agitação nos quartéis, colocando em cena os movimentos tenentistas. Como assinala Francisco Iglesias, ⁵ esses grupos descontentes ignoravam ou excluíam a Igreja de seus programas e de suas soluções; de resto, ela havia sido relativamente alijada do processo político por uma República que se definia como laica, conduzida por líderes que provinham de círculos positivistas, evolucionistas ou, pelo menos, indiferentes ao catolicismo. Nesse contexto, avulta a célebre pastoral de D. Sebastião Leme, de 1916, ao assumir a diocese de Olinda e que vai servir de catalisador ou de inspiração a uma “rapaziada” (para usar um termo caro a Mário de Andrade que frequentemente assim designava os seus companheiros de geração) ávida de conhecimento e de ação. Um seu pressuposto básico é o que identifica o Brasil como um país essencialmente católico. No entanto, embora constituindo a quase totalidade da Nação, os católicos se comportariam como um grupo amorfo e inoperante. Nas palavras de D. Leme: Chegamos ao absurdo máximo de formarmos uma força nacional, mas uma força que não atua, que não influi, uma força inerte [...] que maioria católica é essa, tão insensível, quando leis, governo, literatura, escolas, imprensa, indústria, comércio e todas as demais funções da vida nacional se revelam contrárias ou alheias aos princípios práticos do catolicismo? E finalmente: Para o espírito pensador, a crise no Brasil não é uma crise política, cuja solução depende de formas de Governo. É uma crise moral, resultante da profunda decadência religiosa, desde o Antigo Regime, das classes dirigentes da Nação, e que só pode ser resolvida por uma reação católica ⁶ Nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro, D. Leme se transfere para a então capital brasileira, em 1921, quando encontra Jackson de Figueiredo, que se converte no seu principal colaborador na cruzada para a reconquista da inteligência brasileira, parte da elite mais sensível e exposta ao embate espiritual, ao debate de ideias. A partir do encontro dessas duas personalidades, a “reação católica” irrompe na cena nacional. Em 1922, é fundado o Centro D. Vital, dirigido por Jackson de Figueiredo, lugar para onde convergiu um grupo de jovens intelectuais – Hamilton Nogueira, Alceu Amoroso Lima, padre Leonel Franca, dentre outros –, que tomou para si a

continuação de sua obra de apostolado, depois de sua morte prematura aos 37 anos, em 1928. Esses católicos procuravam, principalmente, intervir no ambiente intelectual do país, promovendo uma renovação espiritual, oposta ao cientificismo e racionalismo, nas suas formas degeneradas de agnosticismo e ceticismo prevalentes nas gerações passadas e que tanto haviam marcado a história brasileira recente. Para eles, tornava-se também necessário corrigir o “catolicismo de sentimento”, rotineiro, tendente ao supersticioso e fundamentar a fé religiosa em um conhecimento mais aprofundado dos ensinamentos cristãos. Mas, sobretudo, havia que se combater no imediato o desenvolvimento de um materialismo que reeditava pretensões a uma ciência da sociedade e se revelava, entretanto, uma escatologia da história anunciadora de uma revolução social redentora. À ordem harmônica de um mundo socialista futuro a ser construído através da revolução como propunham os seus novos adversários cabia aos católicos fazerem prevalecer uma ordem fincada nos valores morais cristãos e cimentada na crença. Tratava-se, de certa maneira, de recompor o que havia sido vislumbrado na Idade Média: uma humanidade permeada pela ideia de Deus, pelo sentimento da fé e integrada pela autoridade de uma igreja mãe, universal. Esse ideal vinha sendo destruído com o desenvolvimento do mundo moderno que, desde Descarte, favorecera a dúvida e a razão, estimulara o individualismo e a laicização da sociedade e do Estado, fatores que eram tomados como explicativos para muitas das crises modernas. A reação católica que desponta no Brasil nesse período segue de perto o pensamento conservador antirrevolucionário europeu, que ganha impulso no século XIX (Joseph de Maistre, por exemplo, é um dos autores mais citados por Jackson de Figueiredo) e estará em consonância com os movimentos políticos mais à direita nas primeiras décadas do século XX, como a Action Française . Ao sustentar que a consolidação da nacionalidade dependia de um substrato moral comum entre os indivíduos e ao identificar a nacionalidade brasileira com os valores católicos, o grupo advoga a disseminação da doutrina cristã como a única arma eficaz para combater o pluralismo político, sem o que seria impossível restabelecer a unidade e a ordem no país. É com essa matriz de pensamento e com esse projeto de “salvação nacional” que Jackson de Figueiredo cria, em 1921, no Centro D. Vital, a revista A Ordem , que se converte no mais importante instrumento de difusão do ideário católico. Obviamente, falo aqui do limiar do Centro D. Vital, e de maneira até certo ponto esquemática, mas não a tal ponto que obscureça o universo ideológico que se oferecia ao jovem Lacombe quando ele iniciava a sua vida intelectual adulta, entra no Centro D. Vital e faz assim a sua escolha pela reafirmação da fé católica e pela Ordem, assim: com O maiúsculo. Escolhas que assumiram outros e matizados aspectos no curso do tempo, mas que certamente continuaram marcando a sua vida e a sua obra. I Américo Lourenço Jacobina Lacombe nasceu no dia 7 de julho de 1909, filho de Domingos Lourenço Lacombe e Isabel Jacobina Lacombe. Nasceu e criou-

se no Rio de Janeiro, onde viveu praticamente toda a sua vida. Fez os primeiros estudos no Curso Jacobina, da sua família, orientado pela mãe, professora. Em 1927, inicia o bacharelado na Faculdade de Direito, e aí dará os primeiros passos intelectuais e políticos. Católico convicto e praticante, ingressa em 1929 na Ação Universitária Católica e logo começa a frequentar o Centro D. Vital, onde teve oportunidade de se aproximar de Jackson de Figueiredo e do padre Leonel Franca. Já no primeiro ano havia participado da criação do Centro Acadêmico Jurídico Universitário (CAJU), depois, Centro Acadêmico de Estudos Jurídicos, que era chefiado por Vicente Chermont de Miranda e de cuja revista, ele, Lacombe, foi o principal redator, ao lado de San Tiago Dantas, Otávio de Faria e Hélio Viana. Forma-se em 1931, tendo convivido durante os anos acadêmicos com um grupo de jovens – muitos, entre eles, seus correligionários – que depois se projetariam nos mais diversos campos da vida nacional. Além dos já citados: Antônio Gallotti, Elmano Cruz, Aroldo Azevedo, Almir de Andrade, Antônio Balbino, Gilson Amado, Thiers Martins Moreira, Plínio Doyle e, provavelmente o mais moço de todos, Vinicius de Moraes. Sobre esse período, em depoimento a Isabel Lustosa, Lacombe descreve em comentários rápidos e bem-humorados – tudo ainda era muito pueril – as relações estudantis e o ambiente político no Centro Acadêmico e na Faculdade: Nós tínhamos fama de fascistas. Havia também o grupo comunista que era muito sério e do qual fazia parte o Letelba Rodrigues de Brito, um dos maiores comunistas da turma, e o Chico Mangabeira, antigo católico piedoso que tinha se transformado em comunista [...] Algumas vezes a coisa chegava às vias de fato. O Letelba teve uma briga firme com o Chermont. Se estapearam. O Castro Rebelo, que era de esquerda, implicava muito comigo. Ele desconfiava de mim e me chamava de fascista [...] Ele foi paraninfo e eu me recusei a ser paraninfado por ele. Doze alunos da minha turma formaram na secretaria, para não ter Castro Rebelo como paraninfo. O Castro ficou com uma raiva danada. E, na nossa missa, quem falou foi o padre Leonel Franca, que era o maior padre da época, um grande orador ⁷ . Conseguido o seu grau de bacharel, Américo Jacobina Lacombe não exerce em momento algum a profissão de advogado e inicia, logo em seguida, o doutorado na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, concluído em 1933. No próprio ano de formatura é nomeado secretário do Conselho Nacional de Educação, cargo em que permaneceu até 1939. Antes, em 1932, com um grupo de colegas da Faculdade inscreve-se na Ação Integralista Brasileira, mas logo deixa o movimento. Durante todo o curso de Direito, ensina História da Civilização e História do Brasil no Colégio Jacobina, disciplina que lecionará também no Colégio São Bento, entre 1936 e 1939. Em 1935, casa com Gina Masset com quem terá cinco filhos: Américo Lourenço, Francisco José, Luís Antônio, Mercedes e Eduardo. Em 1939, foi nomeado diretor da Casa de Rui Barbosa, por ser ele, já naquela época, um cultor e estudioso da obra e da vida de Rui, sobre o qual já havia publicado em 1934, uma coletânea de cartas a familiares, Mocidade

e exílio , com uma introdução, anotações e comentários que podem ser considerados até hoje primorosos. Américo Jacobina Lacombe era carioca, filho de pai e mãe cariocas, gente há muito implantada na cidade do Rio de Janeiro, na Corte, e que tivera sempre posições e ocupações tipicamente urbanas (um seu bisavô, francês, chegado ao Brasil em 1818 nas vésperas do retorno de D. João VI, foi maître de ballet ; um outro foi magistrado ilustre). Gente cujas relações de parentesco e de amizades formavam redes que compreendiam zonas de poder ou influência, sem que houvesse necessariamente exageros de fortuna. Ao descrever suas origens de família, Homero Senna assinala: não devemos esquecer-nos de que a genealogia do conceituado historiador [Lacombe] entronca em vultos dos mais ilustres do nosso passado. De fato, seu bisavô – o Conselheiro Albino José Barbosa de Oliveira foi Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, tendo deixado, aliás, valioso livro de reminiscências – Memórias de um Magistrado do Império , publicado na coleção Brasiliana, com notas do bisneto. Seu avô – Antônio de Araújo Ferreira Jacobina, primo e grande amigo de Rui Barbosa, era doutor em Ciências Físicas e Matemáticas pela Universidade de Coimbra e bacharel em Filosofia pela Sorbonne, tendo sido condiscípulo, em Portugal, de Gonçalves Dias. Seu pai – Domingos Lourenço Lacombe, que fez estudos de humanidades no Liceu Condorcet, de Paris (onde teve como colega ninguém menos que Henri Bergson), voltando ao Brasil casou-se com Isabel Jacobina, fundadora do tradicional Colégio Jacobina, do Rio de Janeiro ⁸ . Descendia, portanto, de uma elite letrada e mesmo culta, ciosa das origens e da própria posição social que havia acumulado guardados e referências familiares: cartas, objetos, álbuns, documentos, fotografias. Desde cedo, o historiador convive com essa herança, encanta-se com ela, valoriza-a, conserva-a, e, mais tarde – já na direção da Casa Rui –, dá-lhe formato e organização institucional. Assim formou, no dizer de Arno Wehling, “o gosto quase estético, e hoje quase esquecido de ‘papier passer’ – do peneiramento de informações que tanto podiam constituir a matériaprima para uma análise histórica, como um substrato anedótico para o ‘mot d’esprit’” ⁹ . Na verdade, pode-se imaginar que ao mesmo tempo que tal material possui força evocativa considerável e provoca uma atração tão genuinamente humana pelo prazer dúbio do voyeurismo, pela petite histoire , pelo diz que diz que, ele também pode vir a servir a nos revelar o avesso dos personagens que estudamos: suas obras e seus feitos ¹⁰ , conhecimento que se faz necessário quando o historiador se esforça para recompor a integridade de uma época, de um episódio . No prefácio de Mocidade e exílio , ao justificar a publicação da correspondência de Rui Barbosa com familiares, Lacombe dá ênfase a este argumento: Nossa literatura não é rica no gênero epistolar. São raras entre nós as obras nos moldes das Memoirs e as Life and Letters , tão pesadas quanto úteis, dos homens públicos ingleses. Dir-se-ia termos horror a guardar papéis velhos. São raros os vultos que deixaram um arquivo apreciável [...] de tal sorte uma publicação nesse gênero, a não ser de vulto muito alto, está destinada certamente a não ter bom êxito de livraria, salvo se contiver outro

interesse além da simples documentação. No caso de Rui Barbosa, essa publicação tem importância primacial. Sem conhecer-lhe o pensamento íntimo e a sensibilidade não se poderá compreender exatamente sua atuação e encontrar a unidade subjetiva da sua obra [...] ¹¹ . No seu trabalho de historiador, Américo Jacobina Lacombe se pretendia minucioso, levando em conta os meandros das vidas pessoais, das motivações dos atores e sujeitos, das redes de contatos estabelecidas dentro e através das gerações, das ligações familistas tão importantes na nossa história, até os tempos recentes. Para ele – como nos diz Arno Wehling citando a Introdução ao estudo da História do Brasil ¹² – “à genealogia [por exemplo,] caberia um importante papel na história social, não mais para satisfazer a ‘prosápia antiga’, mas para interpretar os movimentos da sociedade e ‘o modo de vida de uma classe’, particularmente no Brasil, onde era decisivo o peso das relações de parentesco” ¹³ . Nesta direção, destaco um dos seus últimos trabalhos, publicado postumamente e nem sempre lembrado: O mordomo do imperador ¹⁴ . Tratase de um estudo biográfico sobre o Conselheiro (e, como o título indica, mordomo imperial) Paulo Barbosa da Silva, cujos papéis e documentos chegaram até Américo Jacobina Lacombe como um legado de seu avô, Antônio de Araújo Ferreira Jacobina, grande amigo do casal Paulo Barbosa ¹⁵ . Nesse livro, o historiador reconstrói a vida de um homem cuja importância histórica tem sido praticamente ignorada pelas gerações que o sucederam, apesar do seu envolvimento na política conturbada do período regencial e do papel relativamente destacado que teve em certos episódios expressivos no seu tempo, como, por exemplo, nas negociações que levaram ao casamento de D. Pedro I. O que me seduz em Paulo Barbosa – e aí vai um viés sociológico – é menos a sua eventual proeminência e mais a mediania do personagem, os aspectos mais típicos de sua carreira política e profissional que poderiam nos fornecer indicações sobre a trajetória de vida dos homens pertencentes às camadas mais elevadas da sociedade brasileira: suas redes sociais de suporte, as regras de mobilidade social e de acesso ao poder que os orientavam, suas ambições, suas estratégias de carreira. Acredito não ser abusivo aproximar este livro de outro estudo biográfico – Um funcionário da monarquia. Ensaio sobre o segundo escalão ¹⁶ – de Antônio Cândido. É certo que havia entre o mordomo e o barnabé em questão uma distância de vinte anos de idade ¹⁷ e uma diferença de origem considerável: ambos vinham de cidades do interior próximas à Corte, mas Antônio Nicolau Tolentino, o funcionário de Cândido, era filho de modestos lavradores (porém tipicamente apadrinhado por uma tia), enquanto o mordomo de Lacombe tinha um pai coronel de milícias que morreu em 1817, deixandolhe de herança um cabedal expressivo para a região mineira da Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. Contudo, os dois atingiram exatamente os mesmos cumes sociais, chegaram a lugares assemelhados: além de mordomo imperial, Paulo Barbosa também exerceu funções diplomáticas e por duas vezes ocupou uma cadeira na Câmara dos Deputados como representante de Minas Gerais. Antônio

Nicolau teve importantes cargos na administração do império – foi presidente do conselho fiscal do Banco do Brasil, por exemplo –, exerceu funções no exterior – em 1852, vai servir em Montevidéu, nomeado comissário imperial na Junta de Crédito Público destinada a amortizar a dívida de República Oriental do Uruguai com o Brasil – e foi presidente de província no Rio de Janeiro. Caberia talvez ainda acrescentar que os dois jaziam quase anonimamente em sossego, quando foram resgatados pela curiosidade de olhares igualmente cultos e competentes de familiares. Ambos, Tolentino e Barbosa, quando se lançam no mundo da Corte e procuram progredir, avançar, são submetidos aos mesmos condicionantes, às mesmas limitações: uma estrutura ocupacional e de prestígio social que tinha o formato de uma pirâmide de base larguíssima, com posições superiores extremamente escassas e praticamente monopolizadas e onde vigorava um sistema de distribuição de vantagens dentro do qual – nas palavras de Antônio Cândido – muita coisa contava: favores, família, padrinhos e até habilitação ¹⁸ . Cabia, portanto, aos recém-chegados fazer uso em beneficio próprio da melhor combinação desses atributos que lhes fosse possível reunirem. Em seu livro, Lacombe narra com detalhes todos os meandros da carreira de Paulo Barbosa, suas aproximações e afastamentos da Coroa, sua participação na política da província mineira, seu envolvimento nas disputas entre as cliques e grupamentos políticos da época regencial, pondo a nu as relações de amizade, de família e de proximidade ou distância do centro de poder: em última instância, o imperador. É interessante notar a importância e a frequência dos pedidos diretos de benesses, privilégios ou o que era percebido como direitos que tomam a forma de solicitações formais, documentadas oficialmente e devidamente encaminhadas às autoridades superiores. Apresentavam uma combinação curiosa entre uma cultura do favor com um juridicismo burocrático; este último, como é sabido, identificado por muitos observadores – inclusive pelo próprio Américo Jacobina Lacombe, já na introdução a Mocidade e exílio, citado acima – como sendo prevalente na formação social brasileira. Paulo Barbosa peticiona e peticiona, petições as mais diversas, sobretudo no início de sua carreira: ora ele reivindica vaga de capitão de cavalaria, a qual afirma ter direito, ora solicita a concessão de hábito de uma ordem religiosa, mais adiante requer concessão semelhante para o seu irmão, em remuneração dos serviços dele, Paulo Barbosa. É bem verdade que nem sempre é atendido e tem os seus pedidos denegados por duas vezes, o que provoca em Lacombe comentários bem-humorados sobre a diligência e tenacidade do amigo e protetor de seu avô. Por vezes, o historiador se compraz em descrever as minúcias dessas operações e manobras, sugerindo-nos ser procedente a observação de Lêdo Ivo, de que Lacombe sucumbia de bom grado à “atração de figuras secundárias do processo político e social. Ele amava espiolhar a vida de certos conselheiros e até de fâmulos do Império, como se estes fossem portadores de um segredo essencial capaz de iluminar a História: a história da vida cotidiana, da vida secreta e escondida da Pátria” ¹⁹ . Américo Jacobina Lacombe foi escritor prolífero cuja obra em grande parte se espraia e se pulveriza ao longo de prefácios, anotações e comentários.

Historiador de enorme erudição, amava o detalhe, o comentário agudo, mas pointilleux : “[Tinha] pendor para a anotação erudita” , escreveu Josué Montello ²⁰ , “o comentário elucidativo, a retificação minuciosa, de que constitui exemplo a coletânea de cartas de Rui, que reuniu no volume ‘Mocidade e exílio’ [...] Pertencia ele, assim, à linhagem dos grandes escoliastas. Aquele que, anotando os clássicos gregos e latinos, soube fazer do pé da página e do estudo introdutório a sua sala de aula, no mais alto nível da lição universitária.” Poderíamos citar pelo menos mais dois exemplos de trabalhos semelhantes e de igual qualidade: as interessantíssimas Memórias de um magistrado do Império , reunião de anotações do conselheiro Albino José Barbosa de Oliveira (1809-1889), em forma de cartas dirigidas à mulher e aos filhos. Escritas em 1882, tratam de episódios testemunhados por seus antepassados, que remontam à segunda metade do século XVIII. Assemelham-se à massa de material autobiográfico coletado por Gilberto Freyre (muitas vezes suscitado por ele mesmo) e que constitui uma dasbases principais para a elaboração de Ordem e progresso ²¹ . Não nos surpreende, portanto, a pronta resposta de Freyre às Memórias do Conselheiro Albino, consideradas por ele um trabalho da maior importância para o estudo da família brasileira. Outro exemplo seria o volume Rio Branco e Rui Barbosa , conjunto de cartas entre os dois homens públicos no período de 1889 a 1908, amplamente glosados por Lacombe e que constitui objeto de consulta obrigatória para os estudiosos da Primeira República. Além dessas duas obras, citemos, entre as mais conhecidas, À sombra de Rui Barbosa (1978) – um ensaio biográfico sobre Rui Barbosa, no qual o historiador trata também da sua convivência de intelectual com a obra e a figura de Rui; e alguns outros títulos de âmbito mais geral da historiografia brasileira: Um passeio pela História do Brasil (1943), obra depois revista e editada com o título Resumo da História do Brasil ; Introdução ao estudo da História do Brasil (1974), que é uma edição revista e editada de Um passeio pela História do Brasil (1943); História do Brasil (1979); Relíquias da nossa História (1988) e Ensaios brasileiros de História (1980). Naturalmente, devemos aqui incluir os dois Roteiros das Obras Completas de Rui Barbosa, referência obrigatória para os pesquisadores ruianos . E por fim, a sua obra de fôlego mais sustentado e que é por muitos considerado o seu livro mais importante: Afonso Pena e sua época (1986). No mais, muita coisa ficou dispersa nas introduções, prefácios, notas, artigos, monografias que se contam às dezenas. “A grandiosa História do Brasil que estava completa e irretocável, em seu espírito e em sua memória, ele preferiu doá-la, ao longo de sua vida, aos seus companheiros e amigos, aos seus discípulos, aos investigadores e pesquisadores que, durante meio século, o procuravam” ²² . Segundo Homero Senna, no que é seguido praticamente por todos o que conviveram com Américo Jacobina Lacombe, a sua obra de historiador, que podia ter realizado, ficou em parte prejudicada pela sua incessante e obstinada dedicação às suas duas maiores paixões que, na verdade, existiam conjuminadas: a Casa de Rui Barbosa e a obra de seu patrono, de quem organizou os papéis, reuniu os dispersos, arquivou e elaborou a estratégia

que deu formato às dezenas de tomos – aproximadamente 160 tomos, dos quais 138 já publicados – que compõem o conjunto dos trabalhos de Rui. II Américo Jacobina Lacombe assume a direção da Casa de Rui Barbosa, então uma instituição ligada ao Ministério da Educação e da Saúde, em março de 1939 – tinha, portanto trinta anos incompletos –, indicado pelo ministro Gustavo Capanema e por decreto do presidente Getúlio Vargas. Desde a sua instituição por Washington Luís, em 1928, como um museu-biblioteca, a Casa havia conhecido nove dirigentes. Por ordem: Artur Luís Viana, Fernando Nery, Alberto Barcelos, Múcio Vaz, Antônio Joaquim da Costa, Humberto de Campos, Luís Camilo de Oliveira Neto e Cláudio da Silva Brandão, três dos quais interinos. O historiador chegou à direção da Casa de Rui Barbosa um pouco à maneira do seu biografado, Paulo Barbosa, ou seja, peticionando. O episódio é contado por ele em seu depoimento a Isabel Lustosa: Fui falar com o Capanema, que me disse: “– Olha, eu sou político, tenho um compromisso com Juraci de levar o nome do Homero Pires que quer ser diretor da Casa de Rui Barbosa. Mas eu não gosto do Homero Pires. Escreva uma carta ao Getúlio, diretamente, dizendo quais são as suas condições, fale do livro que você escreveu, diga que você se candidata a revisar o arquivo, faça uma carta bem feita.” “Então”, completou o Capanema, “se o Getúlio, na hora em que eu levar o decreto, disser: – Eu tenho aqui uma carta e perguntar: – Você o que é que acha? Eu então direi o que penso a seu respeito”. Quer dizer, foi de uma lealdade absoluta. Eu levei a tal carta ao General Pinto, que era o secretário do Getúlio. O Capanema cumpriu a palavra dada ao Juraci, de levar o nome do Homero Pires ao Getúlio. Durante a reunião, quando o Getúlio perguntou: “– Quem é esse Lacombe?”, ele disse. Depois, ele me contou que o Getúlio ia me nomear. Foi assim que fui nomeado ²³ . Lacombe permaneceu neste cargo até 1993, data de seu falecimento aos 84 anos, portanto durante 54 anos, uma marca provavelmente única na história do serviço público brasileiro. Dizer simplesmente que a sua administração foi profícua, inestimável ou qualquer outro adjetivo seria descaracterizar o seu papel. Imensurável talvez fosse o termo apropriado, porque, de fato, em muitas ocasiões e circunstâncias e, sobretudo, nos primeiros tempos, a Casa de Rui Barbosa foi Américo Jacobina Lacombe.

Essa identificação entre criador e criatura, entre uma organização e um homem, constituiu traço comum em várias instituições brasileiras, e não somente em instituições culturais. Na construção do Estado nacional moderno – digamos assim, desde 1930 –, um Estado que tomava a frente do processo de desenvolvimento socioeconômico, que se expandia na sua função administrativa, não foram raras as figuras desses entrepreneurs no aparelho estatal: homens que ampliaram e inovaram o serviço público, trazendo para ele novas funções e novas formas de organização. Nelas, implantaram-se e lhes deram propósito e forças, garantindolhes a continuidade de existência, atributo tão importante, embora às vezes subestimado, para o progresso das coisas. Alguns se limitaram, muitas vezes por forças das contingências políticas, a ter o papel inicial dos criadores, dos inovadores: é o caso de Celso Furtado com a criação da Sudene ou o do menos conhecido, mas não menos importante, Jesus Soares Pereira na elaboração da política nacional de petróleo que deu origem à Petrobras. Outros mantiveram essa simbiose entre o homem e a instituição por longo tempo: lembro aqui os exemplos de Rodrigo Melo Franco de Andrade no Instituto Nacional do Patrimônio Histórico ou de Gilberto Freyre na Fundação Joaquim Nabuco, sem esquecer as figuras marcantes de alguns reitores fundadores, como Joaquim Amazonas, em Pernambuco, e Edgar Santos, na Bahia. Foi similar o papel de Américo Jacobina Lacombe na Casa de Rui Barbosa: por muito tempo, deu-lhe direção, forma e sustança. No seu início, a Casa de Rui Barbosa tinha como objetivo precípuo a divulgação da obra e vida de Rui Barbosa; a preservação da antiga residência, de sua biblioteca e do seu arquivo; e publicação de sua obra. No entanto, desde logo, Américo Jacobina Lacombe vai imprimir um sentido mais amplo a essa missão. Em seu papel de orientador e coordenador da publicação das Obras completas de Rui Barbosa , um projeto editorial dos mais ambiciosos, ele vai atrair alguns dos mais expressivos intelectuais brasileiros para discutir e comentar os seus mais diferentes aspectos, fazendo do conjunto de prefácios e introduções uma quase Brasiliana, na qual muitos dos problemas nacionais eram discutidos em diálogo com o pensamento e a vida pública de Rui. Percorramos a lista dos prefaciadores nas Obras completas e vamos encontrar, por exemplo: José Maria Belo, que escreve para o tomo sobre a Campanha presidencial ; Pedro Calmon, que introduz o tomo sobre a Constituinte de 1891 ; Afonso Arinos, que prefacia o tomo sobre a Intervenção de 1920 na Bahia . Hermes Lima, escrevendo sobre os artigos do Diário de Noticias que compõem o tomo sobre a Queda do Império ; Lúcia Miguel Pereira, que faz o prefácio das Cartas à Inglaterra ; Astrogildo Pereira, que prefacia os discursos parlamentares sobre a Emancipação dos escravos ; Luiz Viana Filho e Antônio Carlos Villaça, que escrevem para dois tomos em que estão reunidos Trabalhos diversos ; Alberto Venâncio Filho, que prefacia um tomo sobre Trabalhos jurídicos ; Hélio Viana faz o mesmo sobre um tomo reunindo artigos sobre a Questão militar . E ainda encontramos: Prudente de Morais Neto, Evaristo de Morais Filho, Oscar Bormann, que escreve um excelente, mas, acredito, pouco conhecido

prefácio ao Relatório sobre o Ministério da Fazenda; Djacir Menezes e outros. Fiel e empedernido defensor da obra e da biografia de Rui Barbosa, Américo Jacobina Lacombe sempre reagiu ao que identificava como injustiças e mesmo mal-entendidos que por ventura pudessem vir a tarjar a memória ou diminuir os feitos do patrono da instituição que dirigia. Lembro agora, a título de registro, o trabalho coordenado por ele com a colaboração do pesquisador Eduardo Silva no qual reuniram diligentemente um dossiê – publicado em 1988, ano do centenário da Abolição – contendo documentação com o objetivo de esclarecer o famoso caso da suposta queima dos arquivos da escravidão. A denúncia continha desde o início uma suposição ingênua: a de que haveria algum lugar físico ou institucional que congregasse algo como os arquivos da escravidão, que de resto , como escreve Francisco de Assis Barbosa na sua introdução, nunca existiram . Além disso, registros em papel, documentação em geral sobre o assunto estão longe de terem desaparecido: eles ainda existem em quantidade razoável – embora muitas vezes sobrevivendo em condições precárias, como muitos de nossos arquivos – e têm sido explorados e analisados, sobretudo desde finais dos anos 1970, por uma quantidade cada vez maior e mais qualificada de pesquisadores que estudam o período. No entanto, havia sim um despacho de Rui Barbosa de fins de 1890 – e reiterado por uma medida de seu sucessor no Ministério da Fazenda, Alencar Araripe – determinando a destruição dos documentos fiscais relativos à escravidão. O despacho foi redigido em meio a uma campanha pela indenização dos antigos proprietários de escravos dos prejuízos causados pela lei de 13 de maio. Lacombe assim relata o desenrolar do caso: No mês de novembro [de 1890] dirigiam-se os indenizadores ao governo para obter os favores e garantias imprescindíveis ao funcionamento do banco. Os fundamentos para a indenização não poderiam ser senão os pagamentos dos últimos impostos. O despacho de Rui Barbosa cortou-lhes, porém, todas as esperanças: “Mais justo seria, e melhor se consultaria o sentimento nacional se se pudesse descobrir o meio de indenizar os exescravos não onerando o Tesouro. Indeferido. 11 de novembro de 1890” [...] A Confederação Abolicionista [...] fez imprimir tal despacho em letras de ouro, numa espécie de diploma, e ofereceu-o solenemente ao ministro, num documento que se encontra exposto na Sala Abolição da Fundação Casa de Rui Barbosa. A ordem de destruição dos documentos fiscais (visto que se restringia ao Ministério da Fazenda) relativos à escravidão dista um mês deste despacho. Tudo nos leva a crer que há uma relação lógica entre uma e outra decisão ²⁴ . O despacho de Rui teria sido, portanto, gesto de um abolicionista convicto contra uma última investida dos escravocratas. III

A longa permanência de Américo Jacobina Lacombe à frente da direção da Casa de Rui Barbosa é provavelmente fruto da capacidade de adaptação e de regeneração que ele imprimiu à sua condução administrativa diante das mudanças impostas pela evolução das coisas e do país. Instituição governamental, a Casa de Rui Barbosa nasceu ao apagar das luzes da República Velha, ainda no governo de Washington Luís, viveu a Revolução de 30, alcançou o primeiro governo de Getúlio, o Estado Novo, quando passou a ser dirigida por Lacombe. Com ele, atravessou o período constitucional democrático entre 1946 e 1964, o governo militar, com as suas várias nuances de autoritarismo entre 1964 até a década de 1980, e percorreu parte da nossa redemocratização, agora já razoavelmente longeva. De simples museu, ela transformou-se progressivamente no que é hoje: uma fundação cultural que congrega iniciativas de reflexão e debate acerca da cultura brasileira através de um importante centro de memória e um centro de pesquisa, cujos trabalhos comandam respeito nas comunidades intelectual e acadêmica. Acumulou e dispersou virtudes e defeitos, vantagens e desvantagens aportadas pelos homens e pelas instituições que lhes foram contemporâneas em todas essas épocas. Criou uma aura própria, um capital apreciável em meio à crise de credibilidade que atinge o setor público no Brasil. Tudo isso se deve, em muito, à tenacidade de Lacombe, ao empenho de seu trabalho para o Estado e para a sociedade, através de governos e regimes diversos no curso do tempo. Américo Jacobina Lacombe teve existência longa, rica e criativa: cabe-lhe bem este lugar comum dos necrológios. Historiador eminente, professor durante grande parte da vida, gozou da chance de ter muitas vezes o seu trabalho e os seus méritos reconhecidos aqui e no exterior. Ocupou temporariamente uma miríade de cargos e exerceu funções diversas: ensinou na École des Hautes Études, dirigiu a coleção Brasiliana, foi secretário-geral de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, membro honorário de conselhos, e bem mais. Provavelmente muito se orgulhava de ser Grande Benemérito e presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, este último cargo em substituição a Pedro Calmon, assim como também da Academia Portuguesa de História e do Instituto de Coimbra. E muito certamente de ocupar a cadeira número 19 da Academia Brasileira de Letras, para onde foi eleito em 24 de janeiro de 1974. No entanto, os que lhe conheceram bem são unânimes em dizer que ele se via sempre e preferencialmente como diretor da Casa Rui, instituição que ele viu crescer e fez crescer e onde trabalhou até o fim dos seus dias, até seu último instante, assim descrito por Homero Senna, seu colega de trabalho:

Na manhã de sete de abril último (e é interessante notar que, segundo ele próprio, sua vida estava cabalisticamente marcada pelo número sete), foi ele, como de hábito, à Casa de Rui Barbosa. Lá ficou até, mais ou menos, meio-dia, hora em que desceu e ia retornar à sua residência, a pé, como era seu costume, quando se sentiu mal e pediu a um servidor da instituição que lhe arranjasse um táxi. A distância entre a Rua São Clemente e a Dezenove de Fevereiro é pequena. Rapidamente chegou em casa, mas ali o mal se agravou, e ele logo depois falecia. Recebeu, portanto, de Deus a graça de poder trabalhar e sentir-se útil até o último dia de vida ²⁵ . 1 Conferência pronunciada no Seminário Homenagem ao centenário de Américo Jacobina Lacombe, organizado pela Academia Brasileira de Letras, 2009. Publicada na Revista Brasileira , julho-agosto-setembro 2009. p. 155-174. 2 MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna . Bauru: EDUSC, 2004. p. 85. 3 LUSTOSA, Isabel. Lacombe, narrador . Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1996. p. 23. (Papéis Avulsos, 24). 4 Leônidas de Resende (Juiz de Fora, 1889 – Rio, 1950) foi professor de Economia Política dessa geração da Faculdade de Direito no Rio de Janeiro. Em 1932, passou a ser o catedrático daquela matéria, após derrotar Alceu de Amoroso Lima em concurso. Sua dissertação para obter a livre docência na cadeira de Economia Política e Ciência das Finanças, A formação do capital e seu desenvolvimento (Edições do Senado Federal, v. 156, Brasília, 2011), marca os inícios da divulgação da teoria econômica marxista no Brasil. 5 IGLÉSIAS, Francisco. Estudo sobre o pensamento de Jackson de Figueiredo. In:__. História e ideologia . São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 132 (Coleção Debates). 6 Os trechos da pastoral de D. Sebastião Leme podem ser encontrados em um trabalho que consultamos extensivamente: SALEM, Tânia. Do Centro D. Vital à Universidade Católica. In: SCHWARTZMAN, Simon (Org.). Universidade e instituições científicas do Rio Janeiro. Brasil: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), 1982. p. 97-134. 7 LUSTOSA, Isabel, op. cit., p. 25. 8 SENNA, Homero. Prefácio. In: LACOMBE, Américo Jacobina. Relíquias da nossa história . Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. p. 9. 9 WEHLING, Arno. Américo Jacobina Lacombe e a tradição hermenêutica. Revista Brasileira IX, n. 36: 35, julho-agosto-setembro 2003. 10 NOGUEIRA GALVÃO, Walnice. Desconversa. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. p. 157.

11 LACOMBE, Américo Jacobina. Prefácio. Mocidade e exílio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1949. p. 7. 12 LACOMBE, Américo Jacobina. Introdução ao estudo da História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional-Edusp, 1973. p. 96-97. (Brasiliana, 349). 13 WEHLING, Arno. O pensamento histórico de Américo Jacobina Lacombe. In: Américo Jacobina Lacombe. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1996. p. 14. (Papéis Avulsos, 28). 14 LACOMBE, Américo Jacobina. O mordomo do Imperador. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1994. 15 Aliás, Lacombe nos revela que já Antônio de Araújo Ferreira Jacobina tivera a intenção frustrada de escrever uma biografia de seu maior amigo e protetor. Ibid., p. 1. 16 CÂNDIDO, Antônio. Um funcionário da monarquia. Ensaio sobre o segundo escalão. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2002. No que diz respeito ao livro de Antônio Cândido, José Murilo de Carvalho já havia apontado no mesmo sentido, em uma resenha na Folha de S. Paulo (13/04/2002): “Sem pretensão acadêmica, mas dotado de acuidade analítica e fina intuição, o livro contribui para o entendimento do século 19, sobretudo no que se refere a dois pontos: os caminhos da mobilidade social na sociedade imperial e o lugar do mérito em um mundo dominado pelo patronato e o empenho.” 17 Paulo Barbosa da Silva nasceu no dia 25 de janeiro de 1790 e Antônio Nicolau Tolentino no dia 10 de setembro de 1810. 18 CÂNDIDO, Antônio, op. cit., p. 11. 19 IVO, Lêdo. Um velho anjo aposentado. Revista Brasileira IX, n. 36: 18-19, julho-agosto-setembro 2003. 20 Apud PADILHA, Tarcísio. Américo Jacobina Lacombe: historiadorhumanista. Revista Brasileira IX, n. 36: 24, julho agosto-setembro 2003. 21 FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. São Paulo: Global Editora, 2004. 22 IVO, Lêdo, op. cit., p. 18. 23 LUSTOSA, Isabel, op. cit., p. 29. 24 LACOMBE, Américo Jacobina. Pedra de escândalo. In: LACOMBE, Américo Jacobina, SILVA, Eduardo e BARBOSA, Francisco de Assis. Rui Barbosa e a queima de arquivos. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988. p. 37. 25 SENNA, Homero. Vida e obra de Américo Jacobina Lacombe. In: Américo Jacobina Lacombe. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1996. p. 10. (Papéis Avulsos, 28).

CELSO F URTADO: UM SENHOR BRASILEIRO La bêtise consiste à vouloir conclure. Gustave Flaubert A leitura extensiva da obra de Celso Furtado era prática generalizada entre os de minha geração que circulavam nos meios de esquerda. Fomos muitos a atravessar, em estado de espírito, aquelas fases pelas quais – se aceitarmos a caracterização pitoresca de Vera Alves Cepêda ¹ –, haveriam passado as suas análises desde o período imediatamente anterior ao Golpe Militar: uma

fase otimista, antes do 1 ο de abril de 64, seguida de uma fase de “pessimismo espantado”, em que se especulava sobre a natureza políticoeconômica do novo regime, e outra de “crítica renitente”, quando este se firmara politicamente e propiciara um largo período de diversificação e expansão econômica, firmando as bases de uma nova economia agrícola de exportação, uma industrialização ampliada, a renovação do sistema financeiro, enfim, a partir do que foi denominado, pelo poder, o milagre econômico brasileiro; e que moldou as formas contemporâneas de inclusão do país na ordem econômica internacional. Quanto a mim, desde meados dos anos 1960 (minha idade adulta, por assim dizer), eu venho lendo praticamente tudo o que ele escreveu em livro, inclusive os seus volumes de memória; leitura essas feitas por mais das vezes “em tempo real”, ao ritmo de sua publicação e por razões variadas: intelectuais ou políticas, de trabalho, e ultimamente até por razões afetivas que se compuseram dentro de uma relação de longo período, graças aos laços de amizade que o ligavam a familiares meus; embora eu tenha apenas com ele entretido raro e cerimonioso convívio, pouquíssima intimidade, guardada da minha parte uma distância mantida por respeito e deferência. História e teoria Mas por quais motivos as análises de Celso Furtado nos pareciam, se não totalmente persuasivas, certamente percucientes e nos eram, por assim dizer, indispensáveis e não menos importantes: atraentes? Afeitos às interpretações marxistas, éramos naturalmente sensíveis às interpretações abrangentes, que situassem a economia brasileira em seu contexto global e que caracterizassem os problemas advindos das tensões entre o desenvolvimento interno brasileiro e os centros dinâmicos do capitalismo mundial. Obviamente, neste nível de generalidade, tal abordagem não era nova e seguia uma linhagem de outros interpretes da realidade econômica brasileira, como, por exemplo, Caio Prado Jr, para citar somente o mais ilustre entre eles. No entanto, o processo como um todo era descrito por Celso Furtado pelo viés de variáveis macroeconômicas, de modo que a sua análise do crescimento da economia, ou, se quiserem, da acumulação interna do capital e dos seus impasses, tomava a forma dos estudos empreendidos à luz de análises da teoria econômica convencional, com a sua gama respectiva de sugestões operacionais, relativas a tópicos tais como: desequilíbrios da balança de pagamentos, carência de divisas para importar bens de capital, insuficiência da poupança interna, dependência tecnológica etc. Tratava-se, no dizer do próprio Furtado, da combinação de uma visão “essencialmente sincrônica” que assinalava “uma descontinuidade estrutural no sistema capitalista, geradora de dinâmicas distintas nos segmentos central e periférico” e uma narrativa que englobasse a história desse processo como um todo, “abarcando o que cabia e o que não cabia no marco explicativo do economista” ² . Tal postura oferecia não somente um diagnóstico da situação imediata, mas também apontava para políticas de Estado alternativas; ou seja, aversas às políticas propostas ou levadas a cabo pela ditadura.

“Aproximar a História da análise econômica, extrair desta perguntas precisas e obter respostas para as mesmas na História” ³ é o que Celso Furtado dizia pretender nos seus trabalhos: identificando os impasses estruturais do desenvolvimento econômico em um país periférico e elaborando soluções, indicando caminhos pertinentes para os poderes decisórios do Estado, que poderiam tomar a forma de medidas seletivas para a importação de capitais, uma política de reforma agrária ou a definição de uma política de créditos públicos, para citar algumas mais comuns. Os seus textos traziam assim embutida uma visão persistentemente reformista (o que fortalecia o traço realista da análise), dotada de coerência e que apontavam o governo como o mediador maior do processo de desenvolvimento brasileiro e o eventual orientador das mudanças sociais; o que, de resto, vinha e vem a ser a experiência comum de nossa história. Por suas implicações políticas diretas, a sua análise possuía um tônus mais realista do que “as análises concretas de situações concretas”, pretendidas pelo althusserianismo que vingava naquele tempo; e igualmente em contraste com os esquemas simplificadores e generalizantes de outras interpretações históricas. Em sendo assim, muitos marxistas eram de fato “furtadianos” envergonhados. Para Celso Furtado, no dizer de Francisco Oliveira: “não há uma teoria que explique a história, nem o contrário, uma história que seja explicada pela teoria: o andamento se faz tecendo os fios de uma construção autoestruturante, em que a história é teoria e a teoria é história” ⁴ . O seu método interpretativo, acoimado por alguns de eclético ⁵ , visaria ser um exercício em aberto. Em seu livro Formação Econômica do Brasil , encontraríamos uma narrativa de cunho histórico compondo “um vasto afresco, onde cada segmento estruturado teria o valor de uma sugestão”; uma espécie de matriz de hipóteses: “O livro (segundo ele próprio) seria uma coleção de hipóteses com demonstrações apenas iniciadas ou sugeridas” ⁶ , que poderiam eventualmente ser infirmadas, prognóstico, aliás, realizado em alguns estudos posteriores que se ativeram a uma ou mais dessas hipóteses. Assim, por exemplo, em um trabalho seminal de pesquisa em historiografia econômica que teve origem na sua tese de doutorado, Roberto Borges Martins ⁷ discute a afirmação de Celso Furtado de que a economia de Minas Gerais haveria decaído com o passar do ciclo do ouro. Baseado em uma análise demográfica meticulosa, apesar das limitações dos dados, ele demonstra que a população mineira de escravos não parou de crescer na primeira metade do século XIX e que o estado veio a ter a maior população escrava do país. Minas se reconverteu em um produtor de alimentos para o mercado interno, assim como teria desenvolvido uma cultura de café, o novo produto de exportação à época. No entanto, esta correção, como nos observa Luiz Felipe de Alencastro ⁸ , “é fundamental para explicar a evolução de Minas Gerais e ajuda também a entender a persistência da influência política mineira no Rio de Janeiro. Mas não incide sobre o processo geral de evolução econômica exposto em Formação Econômica”.

No mesmo sentido, um exemplo por vezes citado de diagnóstico e previsão errôneos nos textos de Celso Furtado é o seu artigo “De l’oligarchie à l’État militaire”, escrito logo após o Golpe de 64 e publicado em um número especial sobre o Brasil da revista Les Temps modernes ⁹ , editado pelo próprio Furtado a pedido de Jean-Paul Sartre ¹⁰ , fundador e então diretor daquela publicação. Para Furtado, o controle do Estado determinaria o caminho do desenvolvimento econômico e a vitória dos militares trouxera ao poder o grupo de economistas neoclássicos ¹¹ , aqueles mesmos que haviam se manifestado contra as políticas industrializantes empreendidas por Vargas e Kubitschek; grupo simbolizado por Eugenio Gudin, Roberto Campos, Otávio Bulhões etc. e que estavam representados no ministério do governo de Castelo Branco. Por dedução, ele previa, no seu artigo, uma reversão daquelas políticas: o modelo econômico que emergiria do novo regime seria um “modelo de pastorização”: o Brasil se veria “excluído da revolução tecnológica”, haveria uma contração relativa dos investimentos industriais e um crescimento ainda mais lento da massa assalariada, a população excedente teria de ser absorvida pelas terras agrícolas ainda não ocupadas e produziria bens para as cidades; e a pecuária se expandiria em terras anteriormente dedicadas à agricultura. Neste caso, como o título do artigo já parecia anunciar, todo o seu argumento partira de uma premissa, sobretudo política, induzindo-o a uma análise econômica que se revelou drasticamente errônea em futuro relativamente próximo. A relação com o poder Em “As aventuras de um economista brasileiro”, Celso Furtado nos diz que encontrara na sociologia do conhecimento de Karl Mannheim uma “forma de ligar a atividade intelectual do homem à história” e que “o desejo de vincular a atividade intelectual à história será o ponto de partida de meu interesse pelas ciências sociais. Já não se tratava de ler livros de ciências sociais e sim de buscar neles meios para atuar” ¹² . A atividade intelectual pressupunha o desejo de fazer – no seu caso, tornar possível o desenvolvimento econômico do país – e este objetivo se realizaria através da atividade política e na participação nos negócios de governo. Os intelectuais deveriam procurar imprimir racionalidade à ação dos homens de Estado, guiando-lhes no sentido de otimizar a utilização produtiva dos recursos internos do país em beneficio do interesse coletivo. A vasta experiência política e administrativa que ele adquiriria só viria fortalecê-lo nesta convicção, como afirma nas suas Memórias: “No mundo moderno” – escreveu em “A fantasia desfeita”, o Estado é uma arena onde se confrontam os interesses mais diversos. As circunstâncias podem favorecer estes ou aqueles grupos, mas nem sempre são alheias à vontade dos atores, como havíamos comprovado com frequência. Sem ousar, não se conhecem os limites do possível, e muita coisa é possível no plano político... ¹³

Luiz Felipe Alencastro nos lembra que “Furtado pertence à primeira geração de intelectuais latinoamericanos formados em economia – disciplina voltada para a ação governativa –, que refletiu coletivamente sobre a história e o planejamento público dos países da região no quadro da Cepal”. A sua obra começa a se firmar quando o voto secreto trouxera Getúlio de volta ao poder em 1950 e projetava a eleição presidencial como um vetor de transformação nacional [...] e o governo federal e o Estado-empresarial afirmavam sua presença na administração pública e na economia. À diferença de outros grandes textos de interpretação do Brasil – com a notável exceção de O Abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco –-, Formação Econômica do Brasil é um livro em que a reflexão prepara a intervenção nos centros decisórios do Estado, como ficou claro nas outras obras de Furtado e em sua carreira na administração pública ¹⁴ . E neste período, a figura de Juscelino Kubitscheck, que lhe confidenciara que “a ideia de construir Brasília lhe ocorreu como um estalido, ao ser provocado em um comício por um interlocutor ocasional”, assume um caráter simbólico da gama de possibilidades de iniciativas que estariam ao alcance daqueles que se dispusessem a “ousar”. Furtado o descreve em termos superlativos, quase líricos ¹⁵ : O Brasil que eu encontrei, ao regressar da Europa em agosto de 1958, era um país em extraordinária efervescência [...] A personalidade fascinante de Kubitscheck ocupava o centro da cena. Ao empenhar-se na construção de Brasília, [...] pusera em marcha um processo cujas repercussões em todos os planos da vida nacional começavam apenas a fazer-se sentir. Autêntico visionário, [...] se houvesse que compará-lo a alguém, eu lembraria Cristóvão Colombo, esse grande outro obstinado [que] como um D. Quixote guiado por alucinações, veio a descobrir o Novo Mundo. O certo é que muito deve a humanidade a visionários. Desde 1949, quando ingressara na recém-criada Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) ¹⁶ , Celso Furtado se envolvera nos vários esforços institucionais, políticos e intelectuais que agitavam partes da burocracia internacional, instituições governamentais e universidades em torno do debate sobre os fatores e condições necessários ao desenvolvimento econômico. As análises de Raul Prebisch, então secretário-executivo da CEPAL, denunciavam uma tendência histórica ¹⁷ à deterioração dos termos de troca em detrimento dos países exportadores de matériaprima (o caso da maioria dos países latino-americanos) e importadores de produtos industrializados e de tecnologia – o que limitava a acumulação de divisas necessárias para importação de capital desses países e as possibilidades de seu crescimento econômico. De uma maneira geral, aqueles que estavam sob a influência das teses cepalinas procuravam identificar os impedimentos ao desenvolvimento inerentes aos países periféricos visto que eles ocupavam uma posição estrutural desfavorável na divisão internacional do trabalho. Quase que imediatamente ficaram sob os ataques dos economistas liberais, ou neoclássicos, que reafirmavam, com maior ou menor sofisticação formal, os

benefícios da lei das vantagens comparativas no comércio internacional. Ao mesmo tempo surgia, sobretudo nas universidades americanas, o interesse pelos processos de crescimento econômico (reais ou postulados), o que trouxe à moda uma série de exercícios e modelos formais, sobretudo de economistas keynesianos que tratavam de descrever esses mesmos processos ¹⁸ . Neste contexto, a participação de Furtado é intensa. Torna-se um militante do desenvolvimento, defendendo uma política de industrialização induzida por um Estado que mediasse os interesses entre exportadores e industrialistas, que se tornasse um investidor direto em áreas cruciais da economia, que procurasse criar mecanismos de crédito de longo prazo garantindo grandes empreendimentos, assim como políticas que dirimissem os desajustes estruturais internos, notadamente com respeito à região nordestina; enfim, medidas muitas delas que se tornaram, bem ou mal, atribuições corriqueiras do Estado Brasileiro. Entre 1949 e 1958, Celso Furtado atua como funcionário internacional empreendendo missões de assistência técnica em países latino-americanos, inclusive no Brasil, onde vem a presidir o Grupo Misto CEPAL-BNDE, cujo estudo sobre a economia brasileira servirá de base ao Plano de Metas do governo de Juscelino Kubitschek. Em 1958, desliga-se da CEPAL e assume uma diretoria do BNDE. A grande seca de 1958 no Nordeste, que vem por assim dizer macular o brilho do quinquênio de Kubitscheck, recebe uma atenção especial do governo, que o nomeia interventor do Grupo de Trabalho do Desenvolvimento do Nordeste (GTDN). Em janeiro de 1959 dáse o seu grande encontro com o presidente em uma reunião no Palácio Rio Negro em Petrópolis ¹⁹ , onde ele apresenta as ideias gerais do relatório do GTDN: “Uma política de desenvolvimento para o Nordeste”. O trabalho é encampado por Juscelino, que, “de estalido”, cria a Operação Nordeste e o designa seu comandante. Em 1960, o Congresso Nacional aprova a lei de criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e Celso Furtado é nomeado seu primeiro superintendente, tendo sido reconduzido na Superintendência pelos dois presidentes seguintes: João Goulart e Jânio Quadros; possivelmente este seria o cargo público ao qual ele é mais frequentemente associado e que marcaria definitivamente a sua biografia. Finalmente, durante o governo Goulart, elaborou um plano de caráter nacional (Trienal), que fracassou na tentativa de dissipar a crise econômica de 1962-1963. Durante praticamente todo período democrático, até 1º de abril de 1964, quando, ao lado de Miguel Arraes, em Pernambuco, viu os militares tomarem o poder, Celso Furtado esteve sempre envolvido nos embates pelas reformas desenvolvimentistas no Brasil. Teve a oportunidade de pensar o Brasil e de agir sobre a sua história em papel privilegiado: foi um intelectual tal como esperaria Karl Mannheim: pensador e homem de ação; e que deu certo. Uma decência comum “Como seu pai magistrado em Pombal, no sertão paraibano, como o economista argentino Raul Prebisch, seu guia intelectual e seu outro modelo

moral ²⁰ , Celso Furtado acreditava no Estado como expressão do interesse geral e instrumento de transformação social”, assinala ainda Luiz Felipe Alencastro. Esta crença, mais do que um guia de ação, moldou a sua personalidade pública, o seu caráter. E já que comecei dando notícias da presença de sua obra na minha vida profissional, não resisto a concluir contando um episódio que testemunhei e que dá uma medida de quem acho que ele foi. Em A fantasia desfeita ²¹ , Celso Furtado descreve um momento crucial do 1° de abril de 1964, dia do golpe militar, que o surpreendeu no Recife à frente da Sudene: Dirigi-me para casa, em Boa Viagem. A meio caminho veio-me ao espírito, como uma faísca que subitamente deixa ver no meio do escuro, que tudo podia estar sendo decidido naquele instante. Em casa, eu seria facilmente preso e posto à margem de tudo. Se havia que ser preso, desejava antes assumir uma posição que me identificasse com as forças que lutavam para preservar a ordem democrática no país. Disse ao motorista que desse meiavolta e se dirigisse ao Palácio das Princesas, sede do governo estadual. Esta “meia-volta” redefiniu o seu destino. Eu me encontrava naquele dia no palácio do governo: um adolescente, filho do governador que iria ser deposto. A chegada de Celso Furtado surpreendeu a muitos. Personagem extremamente discreto, cuidadoso nas suas ações e palavras, ele não pertencia a nenhum dos meios de “esquerda” e não se imiscuía na política partidária em geral. Morando sozinho no Recife e tendo vivido muito tempo fora da região e do país, não entretinha muitos contatos pessoais na cidade e muito menos com o meu pai que, aliás, vez por outra, manifestava a sua impaciência com a Sudene. Muitos de nós, certamente eu, víamos ali um gesto público importante de uma personalidade política de peso. Talvez pensássemos que ele poderia ter se refugiado em uma posição de técnico, acima das circunstâncias e aguardado o desenrolar dos acontecimentos. Pois bem, chegou e ficou todo tempo ao lado do governador. Em um momento – o palácio já cercado pelo exército – teve-se noticia de uma altercação entre um oficial do exército e um oficial ou um soldado da Polícia Militar que guardava o Palácio. Meu pai se precipitou para ir ver do que se tratava e imediatamente Celso o pegou pelo cotovelo para que fossem juntos. Nem sei como este incidente terminou, mas tenho vívida a presteza do ato e o ar de determinação. A imagem ficou para sempre a ele associada, assim como o da meia-volta no carro, depois da leitura de A fantasia desfeita : gestos espontâneos de decência, como são normalmente os gestos de decência. 1 CEPÊDA, Vera Alves. O pensamento político de Celso Furtado: desenvolvimento e democracia. Março 2003. http://www.acessa.com/ gramsci/?page=visualizar&id=31 . 2 Cf. FURTADO, Celso. A fantasia organizada. In:__. Obra autobiográfica , 3 tomos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 163, t. 2. 3 Ibid., p. 312.

4 OLIVEIRA, Francisco. A navegação venturosa. Ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo Ed., 2003. p. 84. 5 Na introdução do livro Desenvolvimento e Subdesenvolvimento , editado dois anos após Formação Econômica do Brasil , assinala: “Se pretendêssemos sintetizar a contribuição das três correntes de pensamento antes referidas para o advento de um começo de pensamento econômico autônomo e criador, no mundo subdesenvolvido, diríamos que o marxismo fomentou a atitude crítica e inconformista, a Economia clássica serviu para impor a disciplina metodológica, sem a qual logo se descamba para o dogmatismo, e a eclosão keynesiana favoreceu melhor compreensão do papel do Estado no plano econômico, abrindo novas perspectivas ao processo de reforma social” (FURTADO , Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento , Rio de Janeiro: Fondo de Cultura, 1961. p. 13). Nas suas memórias, Celso Furtado reitera provocadoramente o ecletismo das suas interpretações do desenvolvimento face às explicações monocausais e como uma virtude metodológica. Em um ensaio de autobiografia intelectual (Cf. Aventuras de um economista brasileiro. In: FURTADO, Celso. Obra autobiográfica , op. cit., p. 16, t. 2), Celso Furtado nos diz que a sua crença no conhecimento científico seria originária de um positivismo atávico na sua geração, a consciência da historicidade dos fenômenos sociais, trazidas pelo marxismo e certa influência da leitura de Gilberto Freyre, sobretudo porque o teria levado a se interessar pela “sociologia americana, em particular [pela] teoria antropológica da cultura.” Uma atitude iluminista, por assim dizer, com relação à pesquisa científica e a utilização da História como instrumento de análise atravessam certamente a sua obra posterior. A influência da sociologia ou da antropologia americana no seu trabalho permanece um mistério para mim, a não ser que tomemos desta ultima a exigência disciplinar do trabalho empírico ou que vejamos na afirmação um elogio vago ao pluridisciplinarismo. Enfim, ele considera o ecletismo uma virtude metodológica. 6 Cf. FURTADO, Celso. A fantasia organizada, op. cit., p. 332. 7 MARTINS,RobertoBorges. GrowinginSilence: The Slave Economy of Nineteenth-Century Minas Gerais, Brazil, Ph.D. Diss., Vanderbilt University, 1980. 8 ALENCASTRO, Luis Felipe de. Formação econômica dos brasileiros, manuscrito, 2009. p. 10. 9 Trata-se do número 257, de outubro de 1967. Trazia artigos da nata da intelectualidade que se opunha ao regime militar: H. Jaguaribe, F. Weffort, F. H. Cardoso, F. Fernandes, J. Leite Lopes, O. M. Carpeaux, J. C. Bernadet, A. Callado. 10 Cf. FURTADO, Celso. A fantasia desfeita, op. cit., p. 153-154. 11 Ou “liberais”. 12 Cf. FURTADO, Celso. As aventuras de um economista brasileiro, op. cit., p. 16.

13 FURTADO, Celso. A fantasia desfeita, op. cit., p. 300-301. 14 ALENCASTRO, Luiz Felipe de, op. cit., p. 3. 15 Cf. FURTADO, Celso. A fantasia desfeita, op. cit., p. 63-64. 16 Órgão das Nações Unidas sediado em Santiago do Chile. 17 O termo usado era o de “degradação secular”. 18 Por exemplo, os modelos de Rosenstein-Rodan, de Arthur Lewis, de Hans Singer e outros. 19 Cf. FURTADO, Celso. A fantasia desfeita, op. cit., p. 74-81. 20 Sobre Raul Prebisch, Furtado conta nas suas memórias (Cf. FURTADO, Celso. A fantasia organizada, op. cit., p. 216) uma anedota curiosa e que deve tê-lo marcado bastante porque eu o escutei contar em mais de uma ocasião, quando comentava o hábito de certos executivos brasileiros de passarem, sem hesitar, da direção de bancos oficiais para a direção de bancos privados. Disse-lhe Prebisch: “Quando deixei o Banco Central, fiquei sem meio de vida. Tive que alugar minha casa em San Isidro e alugar um pequeno apartamento, onde minha mulher teve de privar-se de seu piano. Como eu mostrasse certa perplexidade por ele não haver arranjado um bom emprego, redarguiu em tom de explicação: Que emprego? Eu havia sido muitos anos diretor-presidente do Banco Central, conhecia a carteira de todos os bancos, pois havia ajudado a saneá-los, a ponto de poder administrar o redesconto pelo telefone. Quando me demitiram, muitos grandes bancos me ofereceram altas posições, mas como podia colocar meus conhecimentos a serviço de um se estava ao corrente dos segredos de todos? Preferi reduzir meu padrão de vida ao de um professor, o que não era muito.” 21 FURTADO, Celso. A fantasia desfeita, op. cit., p. 290-291.

DUAS B REVÍSSIMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A GOSTINHO DA SILVA I ¹ Embora a obra de Agostinho da Silva me fosse quase desconhecida, o seu nome e os ecos de sua influência me acompanham há muito tempo, pelo menos desde janeiro de 1964, quando fui prestar vestibular na Universidade de Brasília, e o avistei – apontado por Heron de Alencar – atravessando o campus. Não houvesse sido Heron um dos meus mentores intelectuais, não

fosse aquele o período solene da minha iniciação no mundo universitário e, enfim, não tivesse sido aquele ano de 1964 o ano que foi para o País e para mim em particular é provável que o momento tivesse escapado à memória de um adolescente mesmo muito impressionável. Mas, recordo-me bem, e é possível que essa lembrança não desagradasse ao próprio Agostinho, que pelo que aprendi, ele não se recusava a ver sinais em acontecimentos aparentemente triviais. Naquela ocasião, Heron de Alencar, um entusiasta de Brasília – na qual identificava o resultado de um empenho original do nosso espírito criativo, a manifestação de um gênio particular nosso –, expressou a admiração que tinha pelo filósofo referindo-se a um artigo recente que ele havia escrito sobre Brasília e a Universidade, ao mesmo tempo que denunciava – um tanto condescendente – o tom sebastianista do trabalho. Sendo nordestino, eu era certamente atento aos episódios de Canudos e, como todo adolescente brasileiro com pretensões literárias, já lera a Mensagem de Fernando Pessoa; mas aquela era certamente a primeira vez que ouvia a expressão “sebastianista” aplicada a um ser contemporâneo, vivente. Quando tratei de fazer o meu dever de casa para conhecer um pouco melhor a obra de Agostinho da Silva encontrei ao que Heron se referira: Para mim, Brasília não vale coisa nenhuma, apesar do que disse, pelo seu aspecto universitário. [...] Vale porque é o ponto de apoio, do qual vamos partir para essa aventura extraordinária que é a de reatar o que ficou interrompido nos séculos XV e XVI, para a aventura missionária que as tais circunstâncias não permitiram realizar e que nós agora podemos lançar pelo mundo tanto mais facilmente quanto menos esteja pesando em nós – como nos santos que se tornam ascetas – o corpo corporal, o corpo material ² . “Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma cousa!”, dissera Fernando Pessoa em uma entrevista à Revista Portuguesa de 1923, que vale ter um trecho citado aqui porque a sua visada extremada e a astúcia retórica, escandalosa, com que combina derrisão e pungência tem nítido parentesco com o tom adotado por Agostinho da Silva ³. O entrevistador, o poeta Antônio Alves Martins, pergunta a Pessoa: “O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?” E ele responde: Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar; resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma cousa! Aos olhos do cético mediano, entre os quais eu me incluiria, ou se tomarmos como referência, por exemplo, as análises que atribuem ao que é a força de uma inércia intransponível e fazem dos cálculos de interesse ou das disputas

de poder o centro-motor e praticamente único das coisas, tais afirmações são anacrônicas, excessivas ou talvez um exemplo de fabulação poética da História – cuja expressão épica contemporânea encontra na já citada Mensagem de Fernando Pessoa uma das suas expressões máximas. No entanto, despir esses dois autores de suas literalidades e intenções explicitadas é fazer violência contra a força sugestiva dos seus textos. No caso do pensamento de Agostinho da Silva, ele exige uma adesão inicial para que possamos segui-lo na sua aventura especulativa específica, que também é racional e universalista, circunstanciada e analítica, e que nos promete o que um pensamento verdadeiramente ambicioso teria a obrigação de nos oferecer, ou seja tudo : algo que se irmanaria àquela grandeza qual a sorte não dá , do conhecido poema sobre D. Sebastião; ou à coragem dos que pereceram na Serra do Rodeador, chefiados pelo profeta Silvestre dos Santos e dizimados pelas tropas do então governador Luís do Rego Barreto, em 1819, no hoje município de Bonito ⁴ , em Pernambuco. Na erística agostiniana, ao seguir a sua arte argumentativa, nós esbarramos a todo o momento com um estilo hiperbólico, arrebatador, envolvente, que ecoa o épico pessoano; no entanto, ele vem sempre acompanhado de uma argumentação cerrada, fincada em premissas que desafiam o senso comum e nos fazem olhar coisas ignotas ou talvez simplesmente esquecidas; premissas que também nos são extremamente sedutoras porque nos colocam na posição de depositários de uma vocação universalista do messianismo português. Ela se afasta – e nos afasta – e se opõe ao que nos era oferecido, por exemplo, por um dos antecessores mais ilustres – Eça de Queirós: a ironia dissolvente, muitas vezes repetitiva, e no final de contas, estéril: Todos os acontecimentos mais ou menos ridículos ele [Eça de Queirós] retalhava com o seu escalpelo de finíssimo analista e eram esses exatamente os únicos que ele apresentava aos olhos dos leitores. [...] Porque foi sempre e sempre será mais fácil, imensamente mais fácil, destruir do que edificar. Todos concordaram logo com o escritor, porque isso lhes trazia diminuição de trabalho, em que era preciso não estar sempre com endechas à Pátria e frases líricas a Nuno Álvares e ao Infante, ao Decepado e a D. Francisco de Almeida e apressadamente rasgaram as razões de ordem dos seus discursos e os manuscritos das suas poesias patrióticas: mas, quando viram, quando perceberam que se lhes exigia o esforço suficiente para fazer Portugal caminhar mais depressa na célebre e batidíssima estrada (ou senda – segundo alguns autores) do Progresso e da Civilização – construindo os desejados barcos e fundando escolas primárias – todos se foram recolhendo – como o cágado que se abriga debaixo da casca – ao “não te rales” nacional, ao “deixa correr o marfim”, como a uma segura e inviolável fortaleza.[...] O resultado de isto tudo foi a criação, o aparecimento de um pessimismo fortemente enraizado que só via nos homens Basílios e Acácios e nas mulheres Luísas e Cohens ⁵ . Opondo-se ao negativismo de Eça, Agostinho da Silva também não busca refúgio em um retorno ao sentimentalismo romântico ou patriótico: elege o épico pela força de seu apelo à história e como um fator de motivação a uma ação humana transformadora da vida. Penso que no seu caso, o messianismo

não sugere, por paradoxal que a afirmação possa parecer, uma ideologia ingênua da espera. A promessa a ser encarnada encontrar-se-ia virtualmente, por exemplo, nas fímbrias da cultura ocidental, produtos muitas vezes do trabalho de homens simples de terras como as nossas, pronta a ser desenvolvida por nossas imaginações e vontades: Tudo isto que está imerso na liberdade gaúcha ou na beleza dolorosa e frágil das violadas de roça ou nas carrancas do S. Francisco ou nos folhetos das feiras nordestinas; ou que já teve uma primeira e fragmentada expressão nos novos edifícios brasileiros, nas Escolinhas de Arte ou nos sábios do Instituto Oswaldo Cruz; tudo isto poderá de súbito eclodir numa explosão de Primavera do mundo e, dando as mãos a movimentos novos das terras portuguesas, trazer ao universo aquele novo tipo de existência que não será marcado pela submissão à cidade ou pela caridade perante o degradado irmão, mas pela possibilidade para cada indivíduo de ser um criador no campo da Arte ou no campo da Ciência ou, no que é talvez mais importante, no de sua própria vida. ⁶ São prognósticos quase insolentes, desabridos, se não fossem tão alegres e simpáticos nas suas pretensões de justiça e na vocação universal com que se apresentam. Enquanto escritores brasileiros como Gilberto Freyre, Ariano Suassuna e Darcy Ribeiro, por exemplo, reúnem elementos da nossa cultura que poderiam delinear um universo próprio, uma civilização entre outras manifestações nacionais, Agostinho da Silva propõe que nos tornemos uma cosmogonia em ação: o vetor de grandes transformações universais; grandes e ao mesmo tempo singelas se levarmos em conta o tempo que a humanidade vem esperando por coisas aparentemente tão elementares, como as que nos enumera o filósofo: um sistema de convivência social baseado na libertação do homem e não na escravatura à máquina, baseado no grupo e não na concorrência; de um regime em que possam os homens cumprir plenamente o dever de pensar, de se informar e de, livres, contribuírem para o progresso de sua comunidade; de um ecumenismo religioso que as integre no mesmo corpo místico a todos os teístas e a todos os ateus do mundo; mundo que nos espera e seguirá se tivermos a coragem de ser outros: os que não somos e éramos ⁷ . Postar-se assim com a disposição renovada de ser outro é, muitas vezes, viver uma posição de exilado entre a maioria dos seus contemporâneos e coexistir com a perspectiva frequente do fracasso. “Como viver sob o impacto de uma dor permanente”: nos diz o poeta pernambucano Tomás Seixas – que cito aqui em protesto contra o seu esquecimento – em um poema intitulado “O tratado”, uma alusão aos compromissos perversos e às rendições desonrosas. O pensamento de Agostinho da Silva constitui uma espécie de atraente canto de sereia para os espíritos descrentes como o meu. Ao cético caberia menear a cabeça e objetar com as dificuldades impostas pelas circunstâncias, pela força das coisas. Debate-se com os métodos, os “como fazer”. Mas não há escapatória a essa dor permanente, identificada pelo

nosso poeta. O cético, no fundo, deseja crer: o ceticismo é uma doença da esperança, uma forma quieta e fria de embriaguez que exacerba a razão; ou um atributo dos que muitas vezes desconhecem a advertência de Unamuno: ⁸ por serem vitoriosos os que se adaptam às ideias do mundo e derrotados os que exigem que o mundo se adapte às suas ideias, é dos derrotados que depende o avanço da humanidade. II ⁹ Em seu ensaio Algumas Considerações sobre o Culto Popular do Espírito Santo ¹⁰ , Agostinho da Silva, falando de Joaquim de Flora, o abade cisterciense e mítico filósofo do século XII (1132-1202), salienta: O tema essencial de Joaquim de Flora é o de uma teoria da história ligada a uma audaciosa suposição de que Deus evolui ou de que, pelo menos, cada uma das pessoas da Trindade tem, num contexto de eternidade, seu tempo de se mostrar com maior vigor, devendo dizer-se logo, como para uma grande maioria de autores de teologias e filosofias, que não é fácil decidir se o que se refere ao plano do sobrenatural decorre de uma meditação do natural ou se, pelo contrário, a doutrina de Deus é apenas uma justificação do que se desejaria em plano de homens. Acredito que não seria abusivo dizer que tal ambiguidade agrada e serve bem aos propósitos de Agostinho da Silva. Serve-lhe à retórica argumentativa astuciosa, cheia de provocações, paradoxos e muitas vezes um senso de ironia amena e alegre que lembra a malícia de uma criança precoce ou o ar fresco que sentimos emanar de um poema de Alberto Caiero ¹¹ . É assim, por exemplo, quando fala ¹² de Deus, “um Deus que é inteiramente livre, mas sobre o qual pesa a fatalidade de só poder ser Deus... é um ser paradoxal o próprio Deus...”. Esse Deus, por assim dizer, enclausurado na sua liberdade, seria uma criatividade – e não uma criatura –, uma virtualidade para si próprio e para os homens. Dir-se-ia que como o Deus de Spinoza a sua natureza é avessa ao milagre, porque ele já é . E nós podemos vir a sê-lo, se já não o somos sem sabê-lo. O Reino do Espírito Santo não seria necessariamente o desdobramento de um processo histórico, urdido por uma escatologia, mas poderia ser simplesmente o resultado de um gesto certeiro de liberdade de um homem ou de uma sociedade humana. Sugeríamos há pouco que o sebastianismo contido na mensagem agostiniana não é uma expectativa quieta. E que no curso de sua passagem pelo Brasil, Agostinho da Silva buscou e proclamou muitos dos sinais em que se vislumbraria, ou já se realizava, uma existência justa e amena. No entanto, mais do que afagar o eventual ego narcísico patriótico, o nosso autor propunha algo maior: que nos tornemos uma cosmogonia em ação, o vetor de grandes transformações universais. Como provavelmente ele mesmo diria: não será porque nunca foi feito que não poderemos chegar a fazê-lo. 1 Publicado anteriormente em: ALENCAR, José Almino de. Sobre Agostinho da Silva. In: EPIFÂNIO, Renato, PINHO, Romana Valente e DAVI, Amon

Pinho. (Org.). In memoriam de Agostinho da Silva . Lisboa: Edições e Atividades Culturais, Unipessoal Ltda, 2006. p. 242-247. 2 Agostinho da Silva. Presença de Portugal, publicado em 1962. In: BORGES, Paulo A. E. Borges (Org.) Ensaios sobre a cultura e literatura portuguesa e brasileira , v. I. Lisboa: Editora Âncora, 2000. p. 131. 3 Esta aproximação é sugerida por Paulo Borges no seu excelente ensaio introdutório aos Ensaios sobre a cultura e literatura portuguesa e brasileira , v. I, op. cit., p. 21-22. 4 Localidade de Pernambuco a 135 km do Recife. Em 1819, um pequeno povoado na Serra do Rodeador, em Bonito, formado por uma seita sebastianista, liderada por Silvestre José dos Santos, autoproclamado profeta, foi atacado por uma tropa enviada pelo então governador de Pernambuco, Luís do Rego Barreto. Houve luta e fala-se de aproximadamente quinhentas mortes; os homens prisioneiros foram fuzilados e decapitados e as mulheres e crianças levadas ao Recife e abandonadas. 5 As responsabilidades de Eça de Queirós, Acção Acadêmica , 15 de outubro de 1925. In: Ensaios sobre a cultura e literatura portuguesa e brasileira , op. cit., p. 143-146. 6 A cultura brasileira, 57, n. 5 (Lisboa, setembro de 1958). Ensaios sobre cultura e literatura portuguesa e brasileira , op. cit., p. 245-246. 7 A coragem de ser outros. Notícia n. 596, Lisboa, 8 de maio de 1971. In: Ensaios sobre a cultura e literatura portuguesa e brasileira, op. cit. p. 133. 8 Apud Roberto Mangabeira Unger. Ensino e futuro. Folha de S. Paulo, 4 de abril de 2006. 9 Publicado anteriormente em: ALENCAR, José Almino de. Breve consideração sobre Agostinho da Silva. In: Presença de Agostinho da Silva no Brasil. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2007. p. 13-14. 10 Ensaios sobre a cultura e literatura portuguesa e brasileira , op. cit. p. 321-335. 11 Penso aqui, em particular, no poema: O guardador de rebanhos. 12 Em uma entrevista à televisão portuguesa.