Uma Teoria Econômica da Democracia
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Clássicos 15

UMA TEORIA ECONÔMICA DA DEMOCRACIA

ANTHONY DOWNS

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor Vice-reitor

João Grandino Rodas Hélio Nogueira da Cruz

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Diretor-presidente

Presidente Vice-presidente

Plinio Martins Filho

Tradução

COMISSÃO EDITORIAL

Sandra Guardini Teixeira Vaseoncelos

Rubens Ricupero Carlos Alberto Barbosa Dantas Antonio Penteado Mendon~a Chester Luiz Galvão Cesar Ivan Gilberto Sandoval Fal!eiros Mary Macedo de Camargo Neves Lafer Sedi Hirano

Editora-assistente Chefe Téc. Div. Editorial

Carla Fernanda Fontana Cristiane Silvestrin

Copyright © 1957 by Harpen & Row, Publishers, lncorporated Título do original em inglês: An Economic Theory of Democracy

1" edição 1999 l" reimpressão 2013

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Downs, Anthony Uma Teoria Econômica da Democracía I Anthony Downs; tradução Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos. - I cd. 1 reimpr. -São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. - (Clássicos; 15) Título original: An Economic Theory of Democracy. Bibliografia. ISBN 978~85-314-0469-6 ! . Administração pública. 2. Democracia. 3. Escolha social. 4. Partidos políticos. 5. Votos (Eleiçôes) I. Título. II. Série.

CDD-350.0001 Índice para catálogo sistemático: l. Administração pública: Teoria econômiea

350.0001

Direitos em língua portuguesa reservados à Edusp- Editora da Universidade de São Paulo Av. Corifeu de Azevedo Marques, 1975, térreo 0558 !-00! - Butantã- São Paulo~ SP- Brasil Divisão Comercial: Te!. (11) 3091-4008 I 3091-4150 SAC (li) 3091-291!- Fax(!!) 3091-4151 www.edusp.com.br- e-mail: [email protected] Printed in Brazil 2013 Foi feito o depósito legal

Para minha mãe e meu pai

SUMÁRIO

Apresentação . . _ Fábio Wctnderley Reis Prefácio Agradecimentos ....... .

....................... ll .... 19 . ....... 21

Parte I. ESTRUTURA BÁSICA DO MODELO l. Introdução ................................... . . .. .25 2. Motivação Partidária e a Função do Governo na Sociedade .. .43 ...................... 57 3. A Lógica Básica do Voto 4. A Lógica Básica da Tomada de Decisão Governamental ... 71

Parte !I OS EFEITOS GERAIS DA INCERTEZA 5. O Significado da Incerteza ..... . ... 97 6. Como a Incerteza Afeta a Tomada de Decisão Governamental ..... 103 7. O Desenvolvimento de Ideologias Políticas . ......... 1l7 como Meio de Obter Votos .............. . .. 135 8. A Estática e a Dinâmica de Ideologias Partidárias .163 9. Problemas de Racionalidade sob Governos de Coalizão 10. Maximização de Voto Governamental .... 185 e Equilíbrio Marginal Individual

UMJJ. TEORIA ECONÔMICA DA DEMOCR!IC/11.

11. 12. 13. 14.

Parte!!!. EFEITOS ESPECÍFICOS DOS CUSTOS DE INFORMAÇÃO O Processo de Tornar-se Informado . . .227 Como os Cidadãos Racionais Reduzem os Custos de Informação .239 Os Retornos Provenientes da Informação e sua Diminuição . . . .257 ... 279 As Causas e Efeitos da Abstenção Racional ....

APRESENTAÇÃO

Parte IV IMPLICAÇÕES E HIPÓTESES DERIVADAS 15. U1n Comentário sobre as Teorias Econômicas . .......... 297 de Comportamento Governamental ...... . .313 16. Proposições Testáveis Derivadas da Teoria ..

.319 .. 323 . .325

Bibliografia .... Índice Onomástico Índice de Assuntos

Fábio Wanderley Reis

Este volume de Anthony Downs foi originalmente publicado em 1957. É, sem dúvida (junto com A Lógica da Ação Coletiva, de Mancur Olson, aparecido em 1965 1), um dos, mais importantes trabalhos pioneiros no campo geral que veio a se tornar conhecido como a teoria da "escolha racional" (rational choice), que se especifica no campo da política, de acordo com certo uso terminológico, como a teoria da "escolha pública" (public choice). O volume representa um exemplo precoce e ffutífero, em particular, daquilo que alguns analistas designaram como a "escolha pública positiva", interessada, nos termos de Brian Barry e Russell Hardin, nas "ações individuais e suas conseqüências coletivas"2, em contraste com a "escolha pública nonnativa", interessada na articulação entre "preferências individuais e decisões coletivas". A escolha pública normativa - também designada, de maneira que se presta a confusões, como a "teoria da escolha social" (social choice theory)- tem raízes mais retnotas na subdisciplina conhecida, no campo da economia, como

l.

2.

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Mancur Olson, Jr., The Logic C?(Co!lectiveAction: Pub!ic Goods and the Theory q{Groups, Cambridge, Massachusclts, 1-larvard University Prcss, 1965, tradução de rábio Fernandez, a ser pubiicado brevemente [trad. pela Edusp, nesta coleção]. A contraposição entre escolha pública positiva e normativa se encontra, por exemplo, em Dennis C. Mueller, Pubtic Choice li, Cambridgc, Cambridge University Prcss, 1989; vr_:ja-se também Brian 13arry e Russelll-lardin (eds.), Rotiona/ Man and Jrratíonal Society?, Londres, Sage Publications, 1982.

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APRESENTAÇÃO

"economia de bem-estar" (welfare economies), e é possível dizer que um dos efeitos da conjugação do rigor analítico com a perspectiva normativa que a caracteriza foi a revivescência da própria filosofia política, que se tem especialmente com os trabalhos grandemente influentes de autores como John Rawls e Robert Nozick, alguns dos quais já contam com tradução brasileira há certo tempo. Downs, como Olson, pretende ser estritamente "positivo" em sua abordagem. O que distingue a abordagem é o esforço de tratar os problemas da política com a perspectiva e o instrumental próprio da economia como disciplina~ mais precisamente, da tnicroeconomia, empenhada na formulação de uma teoria abstrata e logicamente rigorosa do comportamento com base em certos supostos gerais, destacando-se o suposto da racionalidade dos agentes. Se uma visão convencional dos objetivos da microeconon1ia provavelmente exigiria a especificação de que se trataria de uma teoria do comportamento econômico, a aplicação da abordagem econôtnica aos fenômenos convencionalmente percebidos como pertencendo a outros campos (ciência política, sociologia) envolve justamente a suposição de que a economia como disciplina teórica redunda numa teoria do comportamento racional como tal, a qual seria em princípio válida para qualquer comportamento que envolva um problema de eficácia e seja, portanto, passível de ser apreciado em termos de racionalidade: a busca de poder político, status ou prestígio social não menos do que a de ganhos "econômicos" ou materiais. A fórmula das "ações individuais e suas conseqüências coletivas" para caracterizar a abordagem ressalta o que há de problemático na passagem do nível "tnicro"- correspondendo, no limite, às ações dos atores individuais na busca supostamente racional de seus objetivos de qualquer natureza - e o nível coletivo ou agregado ("macro"). Na verdade, a grande contribuição do livro de Olson, acima colocado ao lado deste volume de Downs, consiste em dar forn1Lllação abstrata e genérica à intuição de um paradoxo na articulação dos dois níveis, intuição esta que se acha presente em Downs e que, de fato, emerge fí·eqüentemente, com feições variadas, no pensamento de vários autores ao longo de toda a história do pensamento político ocidental. Refiro-me ao chatnado "paradoxo da ação coletiva", em que a ação racional dos atores no plano ''micro" (os indivíduos ou mesmo os atores coletivos de menor escala) aparece corno propensa a resultar em irracionalidade no plano "macro", com a frustração dos objetivos ou interesses de todos. Cabe notar que o paradoxo assume por vezes a forma, em certo sentido oposta à recém-indicada, em que vícios privados ou "micro" resultam em virtude pública ou "macro". Seja

como for, o que importa é que há traços que emergem no nível agregado (os efeitos "agregados", "emergentes" ou "perversos", na linguagem de algunsl) como regularidades que não apresentam correspondência com os desígnios dos atores tomados isoladamente e, às vezes, se colocam em aberta coi)tradição com eles. A questão das relações entre racionalidade individual e racionalidade coletiva é, portanto, central. O curioso, contudo, é que a intuição do que bá de problemático nas relações entre os planos "micro" e "macro", tão fortemente presente na abordagem da escolha racional em suas diferentes variantes, não impede que a perspectiva mais ortodoxa dentre os seus proponentes se caracterize pela expectativa de derivar com êxito o que se passa no plano agregado ou coletivo com recurso à construção teórica assentada em postulados referidos ao plano individual ou "micro"-- ou de estabelecer, segundo o conhecido lema da escolha racional, "os fundan1entos micro dos fenômenos macro". Uma caracterização simples que permite esclarecer tanto os possíveis fundamentos dessa expectativa quanto as dificuldades que enfrenta se tem com a distinção de Jon Elster entre o comportamento intencional, de um lado, e, de outro, dois tipos de causalidade, a causalidade subintencional e a causalidade supra-intenciona/4 Comportamento intencional é o comportamento dos agentes huinanos capazes de desígnio e racionalidade; trata-se de algo que corresponde, em princípio, ao plano dos indivíduos, com o que há de desígnio no plano das coletividades (organizações de um tipo ou outro), sendo visto como supostamente redutível aos indivíduos e à interação entre eles, de acordo com os princípios do "individualismo metodológico" próprio da abordagem da escolha racional. A causalidade subintencional seria aquela com que lidam as ciências da natureza e, de maneira peculiar, a psicanálise, que contempla fatores alheios à vontade dos indivíduos a condicionar-lhes o comportamento (não obstante o suposto racionalista que associa a cura com a assunção de autocontrole consciente por parte do agente antes submetido à operação de tais fatores). Mas a causalidade supra-intencional é a que interessa de maneira singular às ciências sociais: ela corresponde justamente àquilo que "emerge" como regularidades "objetivas" da interação dos atores individuais distinguidos por intencionalidade. Esta é a causalidade especificamente "sociológica", objeto, por exemplo,

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3. 4.

Veja-se, por exemplo, Raymond Boudon, Ef!Cts pervers et ordre social, Paris, Presses Universitaires de France, ! 977. Veja-se Jon Elster, Logic mui Society: Contradic!ions and Possible Worids, New York, .John Wiley & Sons, 1978, apêndice 2 do capítulo 5, "CaLtsa!ity and lntentionality: Three Models oi'Man". 13

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APRESENTAÇÃO

da forte intuição durkheimiana em que o mundo social aparece marcado pelas características de objetividade e exterioridade com relação às consciências individuais, resultando na "coerção social" e levando Durkheim a estabelecer como regra importante do método sociológico a de "tratar os fatos sociais como coisas". O plano do "agregado" ou "emergente" é, pois, o plano que a sociologia "convencional" reivindica em. sua especificidade e no qual se instala, enquanto a perspectiva econômica ambiciona dar conta dele em termos de mecanismos correspondentes ao plano individual ou "micro". Como costuma acontecer, cumpre apontar méritos e dificuldades de parte a parte. Assim, não há como negar o interesse e a importância do questionamento feito pela abordagem econômica dos postulados próprios do "coletivismo metodológico", destacando-se a idéia da contradição micromacro e a percepção do caráter problemático da ação coletiva, que a perspectiva sociológica convencional tende classicmnente a ver, ao contrário, como decorrendo natural e espontaneamente do simples compartilhamento de determinada condição objetiva pelos indivíduos ou atores de nível "micro". De outro lado, contudo, é claramente precária a aposta decisiva da abordagem econômica em sua face mais ortodoxa, segundo a qual seria possível deduzir a sociedade e reconstruí-la teoricamente a partir da mera suposição de racionalidade e de agentes individuais calculadores postos numa espécie de "estado de natureza", pois a recuperação do cálculo do agente e a avaliação da racionalidade da ação supõem que se esteja adequadamente informado a respeito do contexto em que o agente atua - e que se possa, portanto, entre outras coisas, aquilatar a extensão e a acuidade da informação que o próprio agente processa ao agir e a qualidade do seu cálculo. Ora, o analista não tem como obter a informação requerida com os instrumentos da abordagem econômica ou da perspectiva da escolha racional por si mesma, e não pode prescindir, na caracterização do contexto, do equipamento fornecido pela ciência social convencional. Por outras palavras, o uso do próprio postulado de racionalidade, que seria a marca distintiva da abordagem econômica, remete à ciência social convencionaL E a receita consistirá em combinar o recurso àquele postulado, importante e mesmo indispe\1sável (e de fato sempre presente, ainda que freqüentemente de forma tosca e pouco elaborada, em qualquer esforço de "compreensão" do comportamento), com a contextualização que só a ciêucia social convencional possibilita. Na verdade, as razôes de perplexidade envolvidas na articulação micromacro têm produzido, há algum tempo, sinuosidades reveladoras nas relações da econon1ia con1 as demais ciências sociais. Se a perspectiva ortodoxa da

public choice pode ser descrita como correspondendo à "economicização" da ciência política, no sentido do recurso ao instrumental da análise econômica para tratar os fenômenos da esfera política, são vários os esforços mais ou menos recentes que redundam no movimento inverso e que se poderiam descrever como uma espécie de "sociologização" e "politização" da ciência econômica. É o caso, para começar, da perspectiva da "nova esquerda" de alguns decênios atrás, para a qual, de forma curiosa e sugestiva, certos autores reivindicavam o rótulo de "nova economia política", também sendo usado para indicar a public choice; na óptica da nova esquerda, porém, tratava-se de designar com esse rótulo a atenção para fatores políticos e macrossociais na operação da economia, numa empreitada que poderia justificar a divisa de busca dos "fundamentos macro dos fenômenos n1icroeconômicos", sin1etrican1ente ao lema da "escolha racional". Mas é também o caso de diversas tentativas correntes de estabelecer uma economia "pós-walrasiana"~ genericamente designada às vezes cmno o "novo institucionalismo" ou a "nova econmnia institucional". Apesar de ambigüidades e desdobramentos equivocados, que se ligam com a pretensão reiterada de revelar as "microfundações" das instituições, podem citar-se perspectivas como a do "intercâmbio conflituoso", de Samuel Bowles e Herbert Gintis, ou a da "economia da informação", de Joseph Stiglitz, onde se tem o estudo das "falhas de mercado" e o questionamento de velhos supostos da economia neoclássica (preferências dadas, enjàrcement sem custos, informação sem custos), como exemplos de esforços que levam à diluição das fronteiras entre a economia e as demais ciências sociais de maneira que resulta diferente da mera invasão do campo convencional destas últimas pelos instrumentos tradicionais da análise econômica - e que ocasionalmente, como nos trabalhos de Robert Bates, chega mesmo ao recurso explícito às contribuições de sociólogos e· cientistas políticos'. O presente volume de Downs ilustra uma faceta particular do confronto das perspectivas econômica e sociológica, a saber, a faceta relativa à explicação da democracia e dos processos políticos específicos que nela se dão. As análises empreendidas na perspectiva sociológica convencional a respeito, ainda que não deixem de considerar os interesses, tendem a destacar o papel

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5.

Veja-se, por exemplo, Samuel Bowlcs e Herbert Gintis, "The Revenge of Homo Economicus: Contested Exchange and the Reviva! o f Po!itica! Economy", Journal o/Economic Perspecti\'es, voL 7, n. 1, 1992, pp. 83~! 02; Joseph E. Stiglitz, Whither Sociafism'?, Cambridgc, Massachuselts, The M!T Press, 1994; e Robert I-L Bates, Beyond the Miracle olthe Market, Cambridge, Cambridge University Press, 1989. 15

UMA TEORIA ECON6MICA DA DEMOCRACIA

APRESENTAÇÃO

cumprido pelos "valores" ou pela "cultura política", tanto na criação de democracias estáveis quanto na dinâmica democrática, especialmente nas decisões envolvidas na vida eleitoral e partidária. A discussão feita por Downs trata o processo político-eleitoral em termos análogos aos que são utilizados para dar conta do jogo do mercado na ciência econômica, salientando o cálculo realizado por partidos e eleitores em variadas circunstâncias que encontram regularmente ao tomar suas decisões. O livro estabeleceu um marco usualmente tomado como referência pelos autores que se dedicam ao estudo do processo eleitoral, quer se trate de autores simpáticos à abordagem econômica ou reticentes ou hostis diante dela. Entre os inúmeros comentários de maior ou menor fôlego a que deu origem, sem dúvida cabe destacar o volume de Brian Barry intitulado Sociologists, Economists and Democracy, que já em 1970 realizava minucioso confronto das perspectivas de economistas e saciá lagos a respeito da democracia e sua dinâmica, com atenção especial

opção envolve, sem dúvida, certa abdicação com respeito às ambições maiores dos teóricos da escolha racional; mas, além de ser provavelmente a condição para que esta possa pretender apresentar-se como abordagem peculiar perante a sociologia ou a ciência social convencional, a aparente modéstia da opção está longe de significar que os problemas que assim se situam sob seu foco analítico sejam problemas sem interesse ou destituídos de importância. O presente volume revela os ganhos possíveis de certa simplificação ligada à adesão aos postulados relativos à racionalidade, em que a estilização e mesmo a distorção das complexidades da realidade se compensa com o interesse analítico dos insights obtidos. Um exemplo se tem com as análises em que as idéias de Harold Hotelling sobre competição espacial são transpostas da esfera do mercado pára a da competição partidária: não obstante as críticas a que se expõem diversos pontos específicos da discussão de Downs, sua fecundidade fica evidente nas numerosas retomadas por outros autores e nos enriquecimentos que lhes foram trazidos. Merecem destaque, aqui, as análises dos sistemas partidários empreendidas por Giovanni Sartori (que não pode ser visto como adepto da escolha racional em sentido mais estrito) em Parties and Party Systems, de 1976, que culminam nas implicações e ramificações da idéia de competição espacial e se envolvem em intenso diálogo com Downsl. Além disso, não obstante a importância do lugar a ser reservado às normas e valores na explicação da democracia e da política em geral, a relevância da ênfase geral no cálculo "contextualizado" dos interesses dificilmente poderia ser exagerada, especialmente diante da tendência a certa idealização que cerca a ênfase nos fatores valorativos e na "cultura política", no Brasil não menos que em outros países. Vale talvez a pena evocar, como fecho destas breves notas, alguns dados brasileiros a respeito. Produzidos e examinados (em textos ainda inéditos) em conexão com um projeto de pesquisa executado no Departamento de Ciência Política da UFMG há alguns anoss, os dados em questão mostram que, em amostras de categorias diversas da população brasileira (e provavelmente de maneira mais geral), níveis mais altos de informação e sofisticação se acham associados, em condições normais, com maior propensão ao comporta-

para as análises de Downs6. Certamente não seria o caso de fazer o elogio sem reservas do que Downs tem a dizer-nos. Com toda a importância que atribuem a Downs, comentários críticos como o de Barry apontam com acerto várias dificuldades específicas en1 que suas análises incorre1n. Contudo, o volume é uma amostra bem clara da riqueza de intuições e resultados analíticos que cabe esperar da abordagem da escolha racional, se tomada com a devida sobriedade. O que se disse acima quanto às dificuldades epistemológicas da adoção da racionalidade con1o categoria decisiva aponta para um paradoxo crucial da abordagem, que se vê forçada a optar entre: (1) aderir de maneira conseqüente aos desdobramentos da posição central atribuída à racionalidade e dar atenção plena às complicações nela envolvidas, caso em que a perspectiva da escolha racional, ao invés de permitir a reinvenção "micro fundada" da sociologia, não escaparia de diluir-se numa sociologia "convencional" para dar conta daquilo que conforma socialmente o próprio ator racional como tal, incluindo as normas e os valores em função dos quais se define sua identidade e se torna possível a busca de objetivos remotos ou rnestno transcendentais e, portanto, uma racionalidade de maior fôlego; ou (2) apegar-se a uma concepção de certa forma mais estreita de racionalidade, na qual se visualizan1 agentes em busca de objetivos dados por contextos bem definidos e se podem explorar com rigor os desdobramentos da lógica do cálculo assim "contextualizado". A segunda

7.

8. 6.

Brian Barry, Sociofogisrs, Eco1tomists and Democmcy, Londres, Co!lier·Macmillan, ! 970.

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Gíovanni Sartori, Parties and Party Systems: A F'rame\·vorkfor Analysis, voL I, Cambridge, Cambridge Univcrsity Press, !976. Note-se que a edição brasileira (Partidos e Sistemas Partidários, Brasília, Uni3/Zahar, 1982) contém importante adendo ao texto da edição inglesa original, que se encontra justamente no capítulo final sobre a competição espaciaL .

Projeto "Pacto Soda! e Democracia no Brasil", executado pelo autor em colaboração com Mônica Mata Machado de Castro, Edgar Magalhães, Antônio Augusto Prates e Ma!ori Pompermaycr. Os textos mencionados devem publicar-se brevemente.

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menta orientado por non11as ou valores solidários ou cívicos; contudo, na ocorrência de circunstâncias que evidenciem o caráter inócuo ou ineficaz da postura cívica, quanto 1naiores a infOrmação e a sofisticação, tanto maior a propensão a substituir a postura cívica pela disposição à defesa desembaraçada ou cínica do interesse próprio. Do ponto de vista que aqui nos importa, dois aspectos merecem ser realçados: em primeiro lugar, em vez da contraposição cortante entre a referência a normas e o cálculo racional qne muitas discussões tendem a supor, o que os dados revelam é um padrão de articulação complexa entre a maior ou menor adesão a normas, de u1n lado, e, de outro, um elemento crucial para o cálculo e as feições por ele assumidas, ou seja, o elemento cognitivo, a informação em sentido amplo; em segundo lugar, os dados indicam também, como parte desse padrão, a importáncia de situações em que a atuação do fator cognitivo (das percepções e expectativas) torna simplesmente irrelevantes e inoperantes mesmo as normas a que convencionalmente de fato se adere, determinando o predomínio de considerações orientadas pelos interesses. Se os mecanismos assim sugeridos mostram-se importantes para o caso de democracias consolidadas e efetivas, onde a vigência de normas e da "cultura cívica" não teria por que ser vista como obstáculo à atuação "downsiana" do cálculo guiado por interesses, eles o são também, e de modo provavelmente especial, para fenômenos como a deterioração das disposições democráticas em situações de crise. Sem falar do jogo "fisiológico" de vale-tudo próprio da condição pretoriana em que tão longamente nos debatemos e cuja vigência impede o enraizamento efetivo das instituições democráticas: a superação dessa condição não parece depender apenas (ou sequer principalmente) de que normas cívicas sejam difundidas e assimiladas, mas antes de um difícil jogo de coordenação em que as cognições e expectativas venham a convergir de maneira consistente em direção propícia.

PREFÁCIO

Este livro procura elucidar seu assunto- o governo de Estados democráticos - tornando inteligível a política partidária das democracias. Esse era o ponto adequado para abordar o problema intelectual que o autor escolheu para si próprio, ou assim me parece. É um fato que sistemas partidários competitivos são um traço visível de praticamente todas aquelas nações que o mundo não-comtmista considera como democráticas. É um fato ainda mais importante que o que está em jogo no governo, e na competição para controlar os cargos públicos do governo, é basicamente a mesma coisa. Fundamentalmente,

governar significa conseguir que as pessoas façan1 coisas, ou conseguir que elas deixem de fazer coisas. Aqueles que têm a autoridade formal para governar, se é para eles governarem realmente, devem procurar descobrir quem está com eles e quem está contra eles. Nos Estados democráticos modernos, essas operações de inteligência e propaganda são políticas partidárias, ou são principalmente isso. Uma teoria da democracia que deixe de levar esse fato em conta é de pouca valia em nos dar uma apreciação dos tipos de ações que podemos esperar de um governo democrático. Tendo dado à política partidária um lugar central em seu pensamento sobre a democracia, Downs a trata de modo muito diferente de outros estudiosos de política. Todo o seu esforço vai na direção de explicar o que os partidos e os eleitores fazem. Suas explicações são sistematicamente relacionadas a suposições afirmadas com exatidão sobre as motivações que acompanham as

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decisões de eleitores e partidos e sobre o ambiente em que eles agem, e dedutíveis dessas suposições. Ele está conscientemente preocupado com a economia da explicação, isto é, em tentar explicar os fenômenos em termos de uma quantidade muito limitada de fatos e postulados. Também está preocupado com as principais características da política partidária em qualquer Estado democrático, não com a dos Estados Unidos ou de qualquer outro país, individualmente. O livro de Downs não torna obsoletas, em qualquer sentido, as descrições cuidadosas e profusamente documentadas de atividades partidárias que caracterizam o melhor trabalho anterior nesse campo. É muito mais um ponto de partida para a ordenação e atribuição de importância às descobertas de grande parte da pesquisa passada e futura. Downs pressupõe que os partidos políticos e os eleitores agem racionalmente na busca de certas metas claramente especificadas -- é esse pressuposto, na verdade, que dá à sua teoria seu poder explicativo. A maioria de nós somos filhos tão acrílicos de Freud que dizer "Ele fez aquilo porque decidiu que era a melhor maneira de conseguir o que queria" tende a nos parecer como não muito profundo. Todavia, assim como firmas que não se envolvem na busca racional do lucro tendem a deixar de ser firmas, também os políticos que não buscam votos de uma maneira racional tendem a deixar de ser políticos. O comportamento dos eleitores pode ser ignorante, mas isso não é equivalente a ser irracional. É óbvio que se deve testar rigorosamente, na experiência, a utilidade de se pressupor racionalidade por parte dos atores políticos, mas as alegações de Downs com relação à utilidade deveriam ficar claras a partir do que ele fez com aquele pressuposto. Não posso dizer, nem mesn1o nesse Prefácio, que Uma Teoria Econômica da Democracia de Anthony Downs é um livro sem defeitos. Mas posso dizer, de modo muito sincero, que há poucos livros que tiveram um impacto tão grande no meu pensamento, ou que eu gostaria tanto de ter escrito. Daqui a alguns anos, ficarei surpreso se a obra de Downs não for reconhecida como o ponto de partida de um desenvolvimento muito importante no estudo da política; sua influência já é considerável e continua a crescer.

AGRADECIMENTOS

Como todas as obras supostamente originais, este estudo deve muito de seu conteúdo ao pensamento e esforços de outras pessoas. Gostaria de agradecer particularmente a Kenneth Arrow por todas as horas que devotou à orientação e correção do meu pensamento e pelas muitas idéias excelentes com que contribuiu. Também gostaria de agradecer a Robert A. Dahl e Melvin W. Reder, que ,leram o manuscrito e fizeratn muitas sugestões que incorporei. Além disso, minha gratidão vai para Dorothy Wynne, que corrigiu diversos erros na primeira versão do Capítulo 1O; para Julius Margolis, cujo interesse e paciência nas prüneiras discussões sobre o assunto me encorajaram a e 1nbarcar neste estudo; c para Carolyn Young e James Smith, que tiveram o trabalho de cuidar da datilografia e edição da versão final. Finalmente, gostaria de agradecer ao Office o f Naval Research pelo auxílio que tornou este estudo possível. Naturalmente, quaisquer erros nele devem ser considerados como parte da minha própria contribuição original.

STANLEY KELLER JR.

ANTHONY DüWNS

Princeton, NJ

Stanford University Maio de 1956

Maio de 1965

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Parte I

ESTRUTURA BÁSICA DO MODELO

1

INTRODUÇÃO

No Intmdo todo, os governos dominam a cena econôJnica. Seus gastos determinmn se prevalece o pleno emprego; seus impostos inf1uencian1 incontáveis decisões; suas políticas controlam o cmnércio internaciomll; e suas regulamentações domésticas se estendem a quase todo ato econômico. Contudo, o papel do governo no mundo da teoria econômica não é de n1oclo algum proporcional à sua predominância. É verdade que, en1 cada campo separado da economia, o pensmnento recente se concentrou de maneira frutífera no impacto do governo sobre a tomada privada de decisão, ou na participação do governo em agregados econ6micos. Mas pouco progresso se fez na direção de uma regra de comportamento generalizada porém realista para um governo racional, semelhante às regras tradicionalmente usadas no caso de consumidores e produtores racionais. Como resultado, o governo não foi integrado com êxito àqueles que tomam decisões privadas numa teoria geral do equilíbrio. Ess.a tese é uma tentativa de fornecer essa regra de comportamento para o governo den1ocrático e de rastrear suas implicações. Ao perseguir esses objetivos, não fingimos resolver todos os problemas que têm li·ustrado a análise nesSe campo. Entretanto, esperamos caminhar para a solução de alguns detes e formular uma saída razoável para outros que são intrinsecamente insolúveis.

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UMA TEORIA ECON6M!CA {)A DEMOCRACIA

!NT!WDUÇ;[O

I. O SIGNIFICADO DE RACIONALIDADE NO MODELO

consecução de outra; portanto, não se pode traçar apenas um único cam.inho para aquele que tmna decisões racionalmente seguir. Para evitar esse itnpasse, os teóricos postulam que as firmas rnaxünizmn os lucros e os consumidores maximizam a utilidade. Quaisquer outras metas que qualquer um dos dois tenha são consideradas desvios que qualificam o caminho racional en1 direção à meta principal.

A. O conceito de racionalidade na teoria econômica Os teóricos econômicos quase sempre exan1inaram as decisões como se elas fossem ton1adas por mentes racionais. Esse simplificação é necessária para a previsão de comportamento, porque as decisões tomadas aleatoriamente, ou sen1 qualquer relação entre si, não obedecem a nenhun1 padrão. Todavia, as ações humanas só podem ser previstas, ou as relações entre elas sujeitas a análise, se elas formarem algum padrão. Portanto, os economistas devem adn1itir que ocorre um ordenamento de comportamento. Não há razão a priori para presumir que esse ordenamento é racional, isto é, razoavehnente dirigido para a realização de objetivos conscientes. Entretanto, a teoria econômica se erigiu sobre a suposição de que prevalece a racionalidade consciente, apesar das ácidas afirmativas contrárias de hmnens como Thorstein Veblen e John Maurice Clark. Já que nosso modelo ex defínitione diz respeito ao comportmnento racional, temos também que fazer essa suposição 1. Con1o resultado, os n1étodos tradicionais de previsão e análise são aplicáveis ao nosso modelo. Se o teórico conhece os propósitos daquele que toma decisão, ele pode prever quais passos serão dados para atingi-los, como se segue: ( 1) ele calcula o caminho mais razoável para aquele que toma decisão atingir suas metas, e (2) presume que esse caminho será realmente escolhido porque aquele que toma decisão é racional. A análise econôn1ica, portanto, consiste de dois importantes passos: descoberta dos objetivos que aquele que toma decisão está perseguindo e análise de quais 1neios de atingi-los são os n1ais razoáveis, isto é, exigem a menor aplicação de recursos escassos. Ao executar o primeiro passo, os teóricos geraln1ente tentarmn reduzir os fins de cada agente econôn1ico a uma única n1eta, de n1odo que se possa encontrar uma 1naneira eficiente de atingi-la. Se se permitem múltiplas metas, os n1eios apropriados a uma delas podem bloquear a

Nessa análise, o termo racional nunca é aplicado aos :hns de mn anente " , mas somente a setiS ·meios2. Isso resulta da definição de racional como eficiente, isto é, maxin1izar o produto no caso de um dado insumo, ou nlinimizar o insumo no caso de um dado produto. Desse modo, todas as vezes que os economistas se referem a um "homem racional", eles não estão designando un1 homem cujos processos de pensamento consistem exclusivamente de proposições lógicas, ou um homem sem preconceitos, ou un1 hmnem ct~jas emoções são lnoperantes. No uso normal, todos esses poderiam ser considerados homens racionais. Mas a definição econômica se refere unicatnente ao home.m que se n1ove em direção a suas metas de um 1nodo que, ao que lhe é dado saber, usa o n1ínimo insumo possível de recursos escassos por unidade de produto ·valorizado. Para esclarecer essa definição, vamos considerar um exemplo de comportamento que é racional apenas no sentido econômico. Suponha que um monge escolheu conscienten1ente, como sua meta, atingir un1 estado de contemplação 1nística de Deus 3. A fim de atingir sua meta, ele deve purificar sua n1ente de todos os pensmnentos lógicos e da busca consciente da meta. Econon1icamente íàlando, essa purgaçãO é bastante racional, embora fosse considerada irracional, ou peto menos não-racional, por quaisquer das definições não-econômicas de racionalidade.

2.

Estamos presumindo, ao longo deste estudo, que os fins podem ser separados dos meios na mente

dnquelc que lo ma decis5o. Em bom se possa argumentar que as metns podem ser modii'ic8das pelos processos usados pan1 ntingi-18s, nlguma sep