Uma Lição de História de Fernand Braudel 2700305574, 857110087X

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Uma Lição de História de Fernand Braudel
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UMA LIÇÃO DE HISTÓRIA DE

FERNAND BRAUDEL

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Châteauvallon Jornadas Fernand Braudel 18, 19 e 20 de outubro de 1985

Tradução: Lucy MagalMes

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Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro

O MEDITERR ÂNEO A formação das culturas mediterr â neas ( Jean Guilaine ) O homem biológico no Mediterr â neo ( Mirko D. Grmek ) O tempo bizantino no mundo mediterrâneo ( Hélène Ahrweiler ) O Mediterrâ neo muçulmano ( Robert Mantran ) O Mediterr â neo, o Atlâ ntico e a Europa ( Maurice

Titulo original : Une Leçon d' Histoire de Fernand Braudel

Tradução autorizada da primeira edição francesa publicada em 1986 por Les Editions Arthaud -Flammarion de Paris, França

© 1986, Les Editions Arthaud © 1989 da edição em língua portuguesa: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031 Rio de Janeiro, RJ

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Todos os direitos reservados. * A reprodu ção não- autorizada , desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright» (Lei 5.988)

Ay mard ) O Mediterr âneo no horizonte dos europeus do Atlântico ( V. M. Godinho ) A galera, rainha do Mediterr â neo de Salamina a Lepanto ( Alain Guillerm ) Problemas do Mediterr â neo nos séculos XIX e XX ( André Nouschi ) O Mediterr â neo das tensões ( Almirante Denis )

Discussão: Veneza e Bizâ ncio . . . e Istambul Maomé e Carlos Magno A história comparativa, longa dura ção da história Biologia e longa duraçã o Moscou , nova Bizâncio? A autonomia dos povos mediterr â neos E a Revolução Francesa Balan ço

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(Edição para o Brasil )

Capa : Gustavo Meyer

Impressão: Tavares e Trist ão Ltda .

O CAPITALISMO Economia política e hist ória econ ómica ( Paul Fabra ) O capitalismo, um jogo de cartas marcadas? ( G érard

Jorland ) ISBN: 2-7003-0557-4 (ed. orig.)

ISBN: 85-7110-087-X ( JZE, RJ)

O capitalismo: continuidade ou mutação? ( Alberto Tenenti )

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Capitalismo comercial e produçã o industrial na Ásia antes de 1800 ( K. N. Chaudhuri ) Elementos endógenos do capitalismo indiano (Barun De ) Capitalismo brasileiro: crescimento ou desenvolvimento? (Celso Furtado ) Técnica, ciência e sociedade ( Laszlo Makkai ) O capitalismo, inimigo do mercado? ( Immanuel Wallerstein )

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Discussão: Por uma história económica A revoluçã o industrial da Idade Média? Capitalismo, estrutura camaleão Capitalismo e economia-mundo Estado e capitalismo O exemplo indiano Viático para o futuro

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102 107 O Centro de Reuniões de Châ teauvallon ( Toulon-Ollioules ) , fundado e dirigido por Henri Komatis e G érard Paquet, organizou nos dias 18, 19 e 20 de outubro de 1985 as “Jornadas Femand Braudel”. A concepção e a direçã o deste colóquio foram realizadas por Marielle Paquet , que também estabeleceu, com a colaboração de Véronique Christol e Gilbert Buti, o texto desta obra, onde estão reproduzidas as comunicações e as discussões de cada um dos três dias. O colóquio contou com a colaboração das seguintes entidades: Conselho Regional Proven ça Alpes Côte d’Azur, Minist ério da Pes quisa, Ministério da Cultura , Minist ério da Educação Nacional, Secretariado de Estado para as Universidades, Ministério das Relações Exteriores, Cidade de Toulon e Conselho Geral do Var.

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129 A FRANÇA ) 129 Roy ( du ç Albert a da Fran Fernand Braudel e a História 138 Os primeiros camponeses da Fran ça ( Jean Guilaine ) 142 ) Dos “países” à nação francesa ( Etienne Juillard 147 A Frância (K. F. Werner ) Por uma teoria ecológica das localizações industriais 150 (Claude Raffestin ) A árvore dos Cargos e Funções de França ( E. Le Roy 154 Ladurie ) 158 Compreender Fernand Braudel ( Théodore Zeldin ) Discussão: História, geografia e povoamento Papel das finanças sob o Antigo Regime Fernand Braudel em pessoa

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AS OFICINAS . “Há uma visão f ílmica da história?” , por Marc Ferro Filme e contra-história; o filme, agente da história “ A França: demografia e política”, por Hervé Le Bras “ Antropologia da França”, por Emmanuel Todd

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Lista dos participantes, bibliografia

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0 MEDITERRÂ NEO

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Christine OCKRENT: Desejo lhes um bom dia e agradeço lhes por es tarem conosco desde o início destes três dias consagrados a Fer nand Braudel e à sua obra. Serão dias verdadeiramente excep tional , não só pela qualidade dos participantes, mas tamb ém pela presença e pela contribuição de nosso herói; pois é raro que um colóquio seja tão rico de ciência, senso de humor e gentileza. Esta manhã é consagrada ao Mediterrâneo, berço do pensamento de Fernand Braudel. Especialistas eminentes fala rão sobre assuntos muito diversos, já que a matéria que nos reúne é extremamente vasta. Mas creio que todas essas comunicações encontrarão sua unidade em torno do pensamento, do método e da contribuição de Fernand Braudel , a quem passo a palavra.

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Fernand BRAUDEL: Agradeço a Christine Ockrent. Todos os srs. a viram, os srs. têm esta manhã a alegria de vê-la, o que é muito agradável. Não é em torno de La M éditerranée, o livro que escrevi e publiquei em 1949, que vão girar os debates, mas em tomo do Mediterrâneo real, vivo, o de hoje, o de ontem e o de outrora. Eu diria que as especialidades daqueles que formam esta mesa devem nos impressionar! . .. Formamos uma orquestra, mas os instmmentos são muito diferentes uns dos outros. O problema é saber se os debates resultarão ou não em música de conjunto. Eu gostaria de tentar prepar á-la. O Mediterr âneo é um continuum, ou uma continuidade, ou ainda um conjunto. Assim sendo, se abordo um aspecto qualquer do Mediterr âneo, seja geograficamente escolhido, seja historicamente

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reencontrado, é importante que a constatação, a explicação, consi gam fundir-se com outras explicações e outros espet áculos. Os alemães têm o hábito de dizer que o Mediterr âneo é um mundo em si, ein Welt fur sich. Eles dizem também que é ein Welt theater , um teatro mundial ou um teatro do mundo. Eles acrescene encontrei nessas palavras uma expressão que se tomou tam até que é o Mediterrâneo uma eco familiar no ensino da história nomia-mundo, ein Weltwirtschaft; não uma economia mundial, mas a economia de uma parte do globo que constitui um conjunto, e é muito dif ícil apresentar esse conjunto. Como disse aliás C. Ockrent, é um problema de método. Durante muito tempo, observei o Mediterrâneo, perguntando me como poderia consider á-lo, compreendê-lo, reconstituí-lo. Coo que me rejumecei a trabalhar sobre o Mediterrâneo em 1922 e só acabei esse venesce muito, mas talvez os rejuvenesça demais livro em 1947, vinte anos mais tarde. Ora, n ã o foi imediatamente que eu consegui ver o Mediterrâneo em seu conjunto. Foi preciso que eu esperasse o ano de 1935, foram treze anos de espera! Tive a sorte, naquele momento, de chegar a Dubrovnik, ou seja, a Ragusa. Seus arquivos são maravilhosos e foi a primeira vez que tive a possibilidade de ver navios, cargueiros e veleiros que iam até o mar Negro, que subiam para além de Gibraltar at é Londres, Bruges ou Antuérpia. Foi lá que comecei a compreender o Mediterrâneo. Mas compreender o Mediterrâneo nã o basta. Como apresentá-lo? Vou fazer-lhes algumas r ápidas confidências e espero que elas sejam suficientemente claras. Tive o azar, ou a sorte, de passar um pouco mais de cinco anos na prisão. Eu estava na linha Maginot . Suportei um destino ingrato e o suportei longamente. Encontrava me em 1941 na fortaleza de Mainz, hoje felizmente desaparecida ; era uma prisão simplesmente terrível, pois lá n ão havia espaço Eu era um dos raros prisioneiros que sabiam alem ão, n ão perfeitamenlo mas um pouco. Quando se escutava a r ádio alemã, eu resumiu as informações para meus camaradas. Eu era um dos raros a ler ulentamente a imprensa alemã. O problema era escapar de algum modo aos acontecimentos que zumbiam à nossa volta, pensando ; Mísso não é tão importante assim.” Ser á que n ã o poder íamos superar esses movimentos de maré, esses altos e baixos, para ver algo completamente diferente? Era o que eu logo chamei “o ponto do vista de Deus Pai”. Para Deus Pai, um ano nem se conta » Ultl Néciilo é um piscar de olhos. E, pouco a pouco, abaixo da história (IHN í Uitua-

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ções, abaixo da história dos acontecimentos, da história de superf ície, interessei me pela história quase imóvel, a história que se movimenta, mas que se movimenta lentamente, a história repetitiva. . No Mediterrâneo do século XV ou XVI, quando chega o inverno, todos os navios voltam para o porto. Só recomeçam a correr aos mares com os dias bonitos, com o mês de abril. É assim que todos os anos, quaisquer que sejam os acontecimentos, as situações, as civilizaçõ es que se instalem no contorno do Mediterrâneo, obser . vamos esse movimento. Encontramos um movimento comparável nos rebanhos que voltam às alturas e tornam a descer para as planícies quentes. São movimentos que se repetem, que continuam; nada parece mudar. Essa história imóvel, essa história que acabei por chamar história de longa duração, é a estrutura da história, ela é a explicação da história. Ela é a explicação do próprio Mediterr â neo, a de um país como o nosso. Estou quase concluindo. Espero que tenham me compreendido . Se não, serei quase obrigado a recomeçar. A história da França, como a vemos hoje, considerada em suas crises, seus movimentos, gostemos ou não ; disso suas impaciências, suas querelas políticas , essa França que parece construir o seu destino, flutua na reali dade sobre uma história profunda, sobre uma hist ória não imóvel mas quase imóvel. É a hist ória do mundo, uma história que cami nha em certas direções, e, a despeito de nossa agitação, nossa vontade, nossos desejos, nossas fantasias, somos levados nesse movimento de ordem geral. É o que eu tentei mostrar-lhes, indicar-lhes. Espero que possamos orquestrar todas as comunicações que se farão ouvir e, na longa duração, tentar compará-las, dar-lhes todo o seu significado. Eis o que eu tinha a dizer.

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Christine QCKRENT: Vamos agora ouvir o arqueólogo Jean Guilaine que, segundo o método braudeliano, voltará à infra estrutu• ra da história, ou às suas origem.

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A formação das culturas mediterrâneas Jean GUILAINE: O Mediterrâneo que detém minha atenção é um dos mais velhos Mediterrâneos, um Mediterr âneo cujos dados sã o exclusivamente arqueológicos; não o Mediterrâneo dos caçadores-

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coletores, o mais velho, mas o dos primeiros camponeses, aproximadamente de 8.000 a 2.000 antes de Cristo, isto é, o Mediterrâneo do neolítico e da primeira idade do bronze. Existiu desde essas épocas antigas uma certa unidade do Mediterrâneo? Se partimos da hipótese que as primeiras culturas de cereais e leguminosas foram realizadas no Sudoeste da Ásia, por um lado; que a domesticação dos animais teve como cen ário uma zona que ia da Anatólia ao Zagros e à Palestina, por outro lado; e que, enfim, segundo os bot ânicos e os paleontólogos, essas plantas e esses animais domésticos foram transmitidos às margens ocidentais, podemos pensar que essa difusão de plantas, animais e técnicas pôde cimentar, por ocasiã o da emergência das populações sedent á rias, uma certa unidade cultural do Mediterrâneo. Não tomemos, evidentemente, datas excessivamente recuadas: por volta de 8.000 em Jericó, já se vive da agricultura e elevam-se poderosas muralhas. Na mesma época, no Ocidente, bandos de caçadores-colhedores vivem ainda de plantas selvagens e da caça ao íodo compreendido entre cervo e ao javali. Consideremos um per , o sexto milénio. É um período 6.000 e 5.000 anos antes de Cristo interessante porque é o milénio durante o qual a economia de produ ção e as primeiras comunidades camponesas ganham praticamente todo o espaço mediterr â neo. E, precisamente, houve arqueólogos que evocaram uma espécie de civilização primitiva mediterrânea, atribuível ao mais antigo neolítico, que teria nascido no Levante, isto é, no Sul da Turquia, na Síria , no Líbano, e que teria difundido, de modo um tanto mecanicista as primeiras aldeias, a cultura do trigo e da cevada, os primeiros animais domésticos, a primeira cerâ mica, ao conjunto da bacia mediterr ânea. Para justificar-se, esses uma pré-historiadores observavam que um denominador comum freqiientemente se encontrava o çã impressa cerâ mica com decora nos mais antigos estratos neolíticos dos sítios mediterrâ neos: atribuíam pois essa cerâmica aos primeiros colonos, pioneiros, que teriam difundido at é o Ocidente a economia de produ ção. O povoamento da maior das ilhas está ent ão realizado, ou em curso, o que demonstra que a navegação em alto-mar estava tecnicamente assegurada. De fato, os progressos da pesquisa mostraram que existia, desde o mais antigo neolítico, uma evidente fragmentação cultural. A neolitização do Mediterrâ neo aparece muito mais como resultado de um processo de aculturação, isto é, empréstimo de t écnicas por populações autóctones, do que como produto



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O Mediterr âneo

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de um simples fato de colonização. Logo de início, desde as primeiras civilizações camponesas, observam-se diferenças nas técnicas de constru ção, nos materiais utilizados, na implantação dos habitats e sua duração, nos estilos de cerâmica, no instrumental de pedra, nas expressões simbólicas. Pode se distinguir á reas culturais: a Anatólia, o mundo egeu, a área apulo dálmata, o mundo franco-ibérico, sepa radas por filtros ( um entre a Ásia Menor e a península grega , outro entre Gr écia ocidental / Albâ nia e It ália do sul, um terceiro no nível do mar Tirreno ) . O primeiro Mediterr âneo agrícola já estava com

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partimentado. Os outros exemplos serão tomados, depois, nos períodos mais recentes, o quarto e o terceiro milénios. Trata-se ent ão de comunidades mais numerosas, definitivamente fixadas no solo, e que de senvolvem frequentemente sepulturas coletivas e ossu ários. Curiosamente, apesar dos progressos técnicos que devem ter tido incidências positivas sobre a navegaçã o, a compartimentação se mant ém e às vezes se acentua. Tomarei exemplos do megalitismo, dos hipogeus, da arquitetura de pedra, da metalurgia, do papel das ilhas. Vejamos o megalitismo. Na arqueologia, acabou o tempo em que, ofuscados pela influência de civilizações orientais, pensá vamos que as primeiras tumbas megalíticas haviam sido erigidas primeiramente no Oriente, depois no Ocidente. Com efeito, os progressos da cronologia absoluta, a do carbono 14 particularmente, mostraram que é nas duas extremidades do Mediterr âneo que nasce o megalitismo: na Palestina , com monumentos construídos por populações do quarto milénio e já no est á dio da idade do cobre; depois, no outro polo, em Portugal e na Bretanha, vemos civilizações que igno ram totalmente a metalurgia e que começam a construir tumbas coletivas megalíticas. Durante dois milénios, e às vezes mais, o Mediterrâ neo será a sede da floração de uma arquitetura variada, muitas vezes de extensão limitada e sem nenhum laço genético entre si. Pode-se dizer que consou hipogeus o mesmo das tumbas cavadas na rocha tituem um outro traço cultural próprio ao domínio mediterrâneo da Palestina e de Chipre até a Andaluzia e Portugal. A partir das mais antigas experiências conhecidas ( os proto-hipogeus de Bonu Ighinu, aproximadamente no quarto milénio, depois os hipogeus de Ozieri na Sardenha ou de Serra d’Alto no Sudeste da It ália, por volta de 3.500 antes de nossa era, as cavidades artificiais do Ghassouliano, na Palestina, mais ou menos na mesma época ) , haverá, em fins do

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quarto milénio e durante o terceiro, e at é mesmo depois, uma profusão de criações, que parece dif ícil ligar a um fio condutor único. Um outro exemplo sobre o qual construiu-se uma pretensa unidade mediterrâ nea é a arquitetura em pedra seca. Evoca-se às vezes uma espécie de pré helenização durante a qual traficantes egeus teriam fundado no Ocidente, e principalmente na península ibérica, colónias precoces ( terceiro milénio ) . Certos traços arquiteturais comuns às localidades mediterrâ neas ( paredes de pedra, presença de muros e bastiões semi-circulares ) , do Egeu ( Chalandriani, Egina, Lerna ) e da península ibérica ( Los Millares, Zambuyal ) confirmariam essa tese. Esse é um típico processo de convergência, já que nenhum elo existe, na mesma época no Mediterrâneo central. A emergência da metalurgia também mostra qual foi a fragmentação do Mediterrâneo. Este permaneceu pouco receptivo ao impulso dos calcolíticos precoces da Anatólia ( desde o quinto milénio ) ou dos Balcãs ( no quarto milénio ) . O verdadeiro nascimento da metalurgia só acontecerá no terceiro milénio, com produções totalmente diversificadas no Egeu, na península itálica ou na Espanha. Sem ir ao extremo de afirmar que houve invenções independentes, tudo aconteceu como se cada área tivesse realizado, por exploração de suas próprias potencialidades minerais, produtos bem característicos. O papel exato das ilhas merece ser elucidado em toda tentativa de interpretaçã o dos espaços culturais mediterrâneos. Durante muito tempo consideradas como “trampolins de civilizações”, as ilhas são na realidade a sede de dois fenômenos contraditórios: fenômenos de conservação e de ref úgio que desembocam em criações tardias e barrocas ( as Tumbas de Gigantes da Sardenha, as Navetas das Baleares ) ; mas também fenômenos de inovação e aceleraçã o que fazem com que as ilhas desempenhem um papel pioneiro: é o caso da aparição de centros proto-urbanos nas ilhas do nordeste do Egeu ( Poliochni, Thermi ) ou nas Ciciadas ( Phylalakopi ) . Constata-se aliás que o Egeu conheceu um desenvolvimento urbano mais linear a partir desses primeiros centros, seguidos no tempo pelos palácios cretenses e as aglomerações micênicas, enquanto que o Ocidente recusará a cidade ainda por muito tempo. Consideremos, para concluir, o próprio conceito de espaço mediterrâneo. Se está provado que circula-se muito no Egeu a partir de - 2.500 ( é a época do primeiro comércio “internacional” ) , é mais dif ícil supor, em bases científicas, relações com a It ália penin-

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sular, ou com a Sicília. O filtro adriático age ainda fortemente. Uma situação de comércio com o Mediterrâneo central só se desenvolverá no Bronze Médio do Ocidente, como se pode ver pelas importações de cer âmicas micênicas para o Sul da Itália, a Sicília, as ilhas Eólias, a Sardenha, sendo os documentos mais antigos não anteriores a 1600. Talvez as condições de um verdadeiro mercado entre o Egeu e a It ália só estejam instaladas no segundo milénio. O què se pode concluir? Conclui-se que durante cinco milé nios de proto-história antiga, o Mediterrâneo constituiu um formid ável laboratório de experiências que fizeram nascer culturas not áveis, mas essas civilizações irradiaram-se pouco. Os fenômenos de convergência foram numerosos e os contatos um tanto limitados. O primeiro sinal de ruptura desses espaços limitados acontece no Egeu do terceiro milénio, mas ser á necessário esperar ainda vários séculos para que um primeiro estímulo micênico se irradie simultaneamente das costas da Ásia, do Egito e do Mediterrâneo centro-ocidental. O

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C. OCKRENT: Agradeço a Jean Guilaine. Vamos agora abordar um outro aspecto da longa duração no Mediterrâneo com o Doutor Grmek , que nos explicar á como o Mediterrâneo forma também um espaço-mundo biológico.

O homem biológico no Mediterrâneo

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Mirko Drazen GRMEK: Atribuiu-se ao Professor Braudel o título de herói, de pontífice, de historiador exemplar da longa duração; ele merece também o de doutor em medicina honoris causa. Com efeito, o olhar que ele dirige para o Mediterrâneo parece estranhamente com o de um médico, pousado sobre o corpo, as funções e as ações escreve Fernand de seus pacientes. “O que est á estabelecido é a unidade arquitetural desse esBraudel na sua grande obra pa ço mediterrâneo, cujas montanhas são seu esqueleto, um esqueleto incomodo, desmesurado, onipresente, e que, em todos os pontos, fura a pele. ” Fernand Braudel observa essa pele para saber o que se passa no coração. Da observação dos sintomas externos, dos fenômenos superficiais e das convulsões passageiras da história, ele conclui processos profundos, molas escondidas, permanências estru





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lurais evoluções lentas. Observando o Mediterrâneo como organismo, Fernand Braudel sublinha a unidade fundamental de um certo espaço. Mas ele consagra também um capítulo especial à unidade humana. No momento em que ele redigia seu livro, não se dispunha ainda de conhecimentos biológicos sobre o polimorfismo genético das populações mediterrâneas. Sabe-se hoje que desde os tempos pré-históricos havia uma mistura extraordinária. Ouso utilizar, para ser r ápido, uma f órmula imprópria, resumida, até inexata: os povos do Mediterrâneo são caracterizados por uma particular ‘‘impureza racial”. Encontra-se aí uma mistura absolutameníe extraordinária dos genes formados no seio das populações separadas num certo momento da hist ória. As pesquisas de J.-L. Angel sobre os esqueletos da Grécia arcaica e clássica mostram que a variabilidade antropom étrica é extrema na região. No espaço mediterr âneo, observa-se não apenas uma interpenetração das civilizações o que os historiadores nos ensinaram há muito tempo , mas também uma mistura extraordinária dos fatores genéticos. É justamente nos grandes núcleos culturais, a Gr écia arcaica e clássica do século VII até o século IV, Roma no início de nossa era , os países á rabes da Idade Média, a Espanha do Renascimento, que se opera essa mistura. Um outro fenômeno biológico, talvez mais bem conhecido, é a unificação microbiana do Mediterr âneo que se realizou por volta dos primeiros séculos de nossa era . Para o historiador das epidemias, o capítulo que Fernand Braudel consagra às comunicações, principalmente à rapidez do correio, é muito esclarecedor. Os micróbios viajam como as cartas. As cartas são transportadas por seres humanos que também transportam micróbios patogênicos. As linhas de comunicação que Braudel traça são exatamente as que são seguidas pelas doenças contagiosas. Inversamente, estudando a propagação das epidemias, encontra-se a rede das rotas comerciais. Fernand Braudel escreveu magníficos capítulos sobre o papel das endemias, o que é singular, pois a maioria dos historiadores se interessou principalmente pelas grandes epidemias. Conhece-se bastante bem a história da peste e do cólera, mas muito menos a da malária ou da tuberculose, assassinas terríveis, ainda mais importantes por serem silenciosas. O impaludismo levanta um problema muito complexo, que os historiadores só puderam compreender, de fato, recentemente, graças ao progresso das pesquisas biológicas. Durante muito tempo, dispunha-se apenas de uma explicação etiológica relativamente sim-





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ples: os pântanos e a má qualidade do ar; mas não é esta a “causa”, no sentido forte do termo. Se não se conhecem as propriedades biológicas do germe e do vetor, e mesmo as diferenças entre vários germes e entre vá rios vetores implicados, fica-se desarmado diante da realidade epidemiológica. Tomemos como exemplo a famosa expedição dos atenienses à Sicília. Dispomos de textos médicos da época de Péricles. Sabemos que no momento em que os atenienses organizam sua expedição à Sicília, no fim do século V antes de nossa era, só conhecem a febre terçã benigna. Quando encontram na Sicília a febre terçã maligna , cuja existência ignoravam completamente, consideram-na como uma doença insignificante. Foi porque os chefes militares e os médicos atenienses subestimaram os efeitos de uma forma particularmente nefasta do impaludismo, que o corpo expedicionário caiu em uma armadilha biológica. Õ estudo dos vetores do impaludismo é também muito esclarecedor para o historiador. Os mosquitos são diferentes, de acordo com o terreno. Braudel mostra muito bem em sua obra que os limites das regiões impaludadas não correspondem a fronteiras de países: as endemias zombam da política. Os limites se estabelecem de preferência no sentido vertical. “A montanha nutre a planície”, es creve Braudel, isto é, o Plasmodium e certos micróbios gastrointestinais não se desenvolvem em altitude. Vejamos agora o fator humano, que só há pouco vem sendo estudado, ou seja, os costumes, a imunidade devida ao contato prolongado e sobretudo a influ ência da alimentação. Esta última era compreendida do ponto de vista quantitativo, mas não do ponto de vista qualitativo. Ora, certas substâncias sã o necessárias para a produção das imunoglobulinas específicas. Certas carências explicam o desenvolvimento fulminante das doenças microbianas no seio de populações gozando aparentemente de uma boa alimentação. Citemos também a imunidade hereditária devida a doenças que protegem contra o impaludismo, por exemplo a doença “mediterrânea”: a talassemía. É uma doença particularmente grave, mas que pode dar a uma população chances de sobrevida excepcionais em uma zona impaludada. A maior parte dos historiadores considera ou que a malária toma as pessoas incapazes de trabalhar a terra, causando a degradação da agricultura ; ou que as crises políticas ou os fracassos militares provocam uma decadência da agricultura, causando a exten-

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sã o dos pântanos e o avanço do impaludismo. Fernand Braudel não caiu nessa armadilha. Ele explica muito bem que a malá ria diminui a capacidade do homem de trabalhar a terra, mas também que ela se agrava logo que o homem relaxa o seu esforço: ela é tanto uma consequência quanto uma causa. Há efetivamente um jogo que se estabelece nos dois sentidos, uma espécie de círculo vicioso, o que torna muito dif ícil a identificação do fator inicial. No que diz respeito à Itália e ao mundo grego, observa-se um agravamento da situação sanit ária por volta do século IV antes de nossa era, nos séculos II ou III, em um certo momento da alta Idade M édia, depois do Renascimento. Por que precisamente nesses momentos? Ninguém conhece ainda a resposta. Chegamos agora a um dos mais sérios e mais importantes problemas de toda a história: o do aumento demográfico e do prolongamento da duração média da vida humana. Esse fenômeno condiciona quase todos os outros. Como explicá-lo? Qual é o impacto do fator biológico? Qual é o do fator humano? Alfred Perrenoud publicou nos Annales um artigo sobre o papel do biológico e do humano no declínio secular da mortalidade. Ele não d á a resposta, mas mostra perfeitamente que o impulso demográfico da Europa não pode ser completa que se deve à baixa da mortalidade mente explicado por nenhuma ação humana. As ações humanas não bastam como explicaçã o, pois, por mais espetaculares que sejam ( como a vacinação jenneriana e a cloração da água ) , só intervie ram quando a morbidez já estava em baixa. Estudos demográficos muito avançados demonstram que, por exemplo, a vacinação pelo BCG se situa no momento em que a tuberculose começava a ser combatida eficazmente pela cirurgia e pela aeroterapia, e depois por antibióticos. Todavia, se as ações humanas nem sempre iniciaram o movi mento, impedem hoje a volta de certas causas. Só se poderá elu cidar o papel respectivo dos fatores biológicos e humanos por uma colaboraçã o estreita entre os historiadores e os biólogos, e com um respeito absoluto dos fatos históricos. Em seu capítulo sobre as misérias antigas e as novas misérias, Fernand Braudel propõe perguntas muito pertinentes, muito graves, às quais o historiador sozinho não pode responder, às quais os bió logos só podem trazer esclarecimentos ainda insuficientes e provisórios. Na pesquisa científica, fazer a pergunta certa é a condição indispensável do sucesso.





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C. OCKRENT: Obrigada, Dr. Grmek , por essa exposição particular mente concisa sobre um assunto apaixonantej que provocará cer tamente muitas perguntas. Passo agora a palavra à Sra. Reitora H élène Ahrweiler, que nos falará do tempo bizantino no mundo mediterrâneo.

O tempo bizantino no mundo mediterrâneo

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Hélène AHRWEILER: Caro amigo, o sr. foi chamado de herói; posso cham á-lo de pontifex, já que hoje o sr. é a ponte entre nós todos? Evidentemente, estou em um domínio, que, graças ao sr., é conhecido: o Mediterrâneo; mas apresento uma incógnita: Bizâ ncio. O sr. disse muitas vezes que, em história, as coisas só são ver dadeiras “ em geral . Tentarei pois apresentar a longa duração de um Império que foi mediterrâneo e europeu desde o nascimento. Uma primeira observação: a delimitaçã o do tempo bizantino transborda largamente dos limites cronológicos desse Império ( 3301453 ) . Por quê? Porque os fenômenos de mentalidade, de comportamento, e a prática das técnicas que marcam esse período mergu lham suas raízes na Antiguidade. Do mesmo modo, as realidades bizantinas, isto é, as realidades que apareceram durante o milénio bi zantino, prolongam o futuro bizantino para além de 1453. Vejamos alguns exemplos. Se Ulisses e Enéias marcam simboli camente a presença da Antiguidade na época bizantina, São Nico lau e a Xeniteia, a nostalgia, a saudade do país, prolongam no ima gin ário coletivo o tempo bizantino até bem depois de Bizâncio. A grande modernidade bizantina é a aceitaçã o do cristianismo, mas também o movimento de grupos de homens e de populações no espaço mediterrâneo, e isto por razões relativas ao mar, seu comér cio e sua conquista. O que significa conquistar o Mediterr âneo? “Se vês em sonho o mar e as vagas, fica sabendo que serás dono do mundo.55 Eis o que escreve um autor do século X, no seu Tratado de interpretação dos sonhos. Um imperador da mesma época, Nicéforo Phokas, que reconquistara as ilhas de Creta, Chipre, e at é uma parte da Sicília antes dominada pelos árabes, declara ao emissá rio do imperador ger mânico: “A navegação sobre os mares me pertence , o que equi vale a dizer: “O mundo é meu”. De que mar se trata? Para os bu

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zantinos, a totalidade do mar se identifica com o alto-mar, com o

No momento em que uma outra força naval, marítima e mundial aparece nas águas do Mediterrâneo, todo o equilíbrio se rom pe. Penso na criação do Califado de Damasco, Califado dos Omía das, que construíram sua frota, note-se bem, graças à ajuda de ma rinheiros bizantinos. Foi com essa primeira frota montada por trb pulações gregas que os árabes lançaram seu exército para conquis tar e pilhar as ilhas e o litoral. Já antes do fim do século VII, Constantinopla tinha sido cercada por mar e por terra, enquanto no outro extremo do Mediterrâneo, na Espanha, os árabes formavam o Estado de Córdoba. Isso supõe a conquista de toda a África bizan tina no mar Egeu e no mar Jônio. A zona do “crescente” e a da “cruz” sã o doravante duas zonas de conflito, e essa fronteira ma rítima é asperamente disputada. O resultado dessa disputa, desses debates e conflitos, é a queda de toda atividade de navegação e de comércio. “Em história, as coisas só s ão verdadeiras ‘em geral’ evidentemente, há exceções no interior desse mar interior e, como escreve Lopez de modo exagerado, “os ribeirinhos do Mediterrâneo não são mais que camponeses que exploram as águas”. Entre esses dois regimes, o regime bizantino de um lado, o regime muçulmano do outro, instala-se uma espécie de entendimen to. Citemos como exemplo o condom ínio estabelecido na ilha de Chipre. É uma f órmula absolutamente sui generis que merece ser examinada hoje. Esse condomínio precisava que os impostos dos cipriotas deviam ser divididos entre á rabes e bizantinos: essa ilha tornava-se assim uma espécie de ponto de encontro para inimigos agora seculares. Divisão do fisco em Chipre, divisão da autoridade de facto no Mediterrâ neo. Estamos longe da época em que o Me diterrâneo era um lago bizantino. A militarizaçã o do Mediterrâneo, devida à aparição de frotas á rabes salpicadas em todos os portos do Sul, provoca do lado cristão o recuo de cada um para seu domínio, e a divisão no interior da Cristandade. Essa divisão segue, esquematicamente, a linha de demarcação que atravessa o Adriá tico, com, a Leste, os ortodoxos crist ãos, a Oeste, os católicos crist ãos. O divórcio entre os dois grupos se instala desde o fim do século IX, para não dizer desde o início, com a coroação de Carlos Magno. Essa linha de divisão da cristandade no interior do Mediterrâneo se confunde com a linha de divisão entre o “crescente” e a “cruz”. São as cidades italianas que prosseguir ão, em consequ ência das cruzadas, a guerra contia os

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com a mesogeios. O termo raeé o termo da época p élagos sogeios é inusitado, mas recobre uma realidade absolutamente fami liar os bizantinos. Por quê? Porque o domínio marítimo reivindicado por Bizâncio em nome da herança greco-romana, ou melhoi ainda , em nome de sua vocação universal, cobre o Mediterrâneo em toda a sua extensão, o Mediterrâneo com seu prolongamento natural, o Ponto-Euxino, Constantinopla tornando-se assim a chave do eixo que liga Gibraltar ao Bósforo cimeriano. Esse mar, outrora sulcado de um extremo a outro pelos navios dos negociantes gregos, dos quais Ulisses é a melhor ilustra çã o, tornou-se, com o tempo, o foco da pirataria, até que a força romana estabelecesse a pax romana, a paz mediterrânea, que Roma legou à sua herdeira. Bizâncio considerou o Mediterr âneo como lago romano, ou seja, um lago bizantino. Pois Bizâncio sempre se chamou Roma, e, como diz Bury, “Bizâncio nunca existiu , foi Roma que morreu em 1453”. Não insisto no exagero desses termos. O Império Bizantino nasceu “grande e espessò”, poderia escrever Braudel. Desde o seu nascimento, Bizâncio considerou o Mediterrâneo como um mar interior, que lhe permitiu justamente estabelecer seu controle sobre um vasto território que cobria naquele momento tr ês continentes: a Europa, a Ásia e a África. A rede de bases navais implantadas sobre o contorno do Mediterr âneo teste munha a eficá cia do controle marítimo. Constantinopla é abastecios armadores comercida pelo celeiro egípcio. São os naucleroi que difundem seus produtos at é a longínqua Tule, segundo antes os textos, e os portos bizantinos que acolhem as matérias-primas provenientes do Ocidente ou do longínquo Oriente. Estamos, sob Justiniano, na época em que o mundo mediterrâneo est á unificado sob a égide constantinopolitana; as esteias imperiais são visíveis da Núbia e do Cáucaso at é o mar Cáspio e até Gibraltar. É no centro dessa oikoumene, do mundo civilizado pois, que se encontra o Mediterrâneo que pertence a Bizâ ncio e que est á sob a dominação de Constantinopla, sendo o Mediterrâ neo ainda um lago cristão. O Es tado é o instrumento de Constantinopla, de sua vontade de controle sobre esse lago. cito ainda Braudel Com o tempo, o Império se torna uma espécie de “subúrbio constantinopolitano”, e a Propôntida continua sendo, em seu conjunto, um porto avançado da grande capital *

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bizantina.



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infiéis. É nesse exato momento que o Império Bizantino se tornava uma espécie de pequeno subúrbio de Constantinopla, que ainda permanecera livre até 1453 Concluirei dizendo simplesmente isto: quando se citam as grandes capitais mediterrâneas, Atenas, Roma, Jerusalém, não se deve esquecer de citar doravante Constantinopla. Como nova Roma, ela é crist ã; como nova Jerusalém, ela é a componente de todas as metrópoles de nossas civilizações européias e mediterrâneas. Desde o século IV, as margens euro-asiá ticas do Bósforo foram, em última instância, preferidas por Constantino o Grande à região de Tróia , de ílion, para a construção da capital do mundo renovado, isto é, do mundo cristão. Enéias e Ulisses, figura central do mundo troiano e símbolo da unidade greco-romana do Mediterrâneo, deram lugar a São Nicolau , santo de Mira e de Bari simultaneamente. A duraçã o bizantina, assim como a unidade mediterr ânea, é ilustrada pelo Livro dos Milagres de São Nicolau, cujo nome, evocado com respeito também pelos marinheiros muçulmanos, é venerado em todas as margens do Mediterrâneo. Terminarei com uma palavra de nosso mestre: “O tempo passado nunca é completamente passado, e algumas vezes o presente est á mais próximo do passado que o futuro.”

A expressão “Mediterrâ neo muçulmano ’ designa habitualmente a dominação árabe no Mediterrâneo ou, mais tarde, a dominação otomana; ela enfatiza assim o critério religioso. Fala-se de Medi terrâneo romano, de Mediterrâneo bizantino, de Mediterrâneo de Carlos Quinto, de Mediterrâ neo dos espanhóis, etc., mas diz-se: “Mediterrâ neo muçulmano”. Essa expressão não é inocente. Essa vis ão do mundo mediterrâneo pelos ocidentais, os europeus, os latinos, sobreviveu. Ela designa uma tradição cultural que realmente marcou a dura ção mediterrânea durante mais de um milénio, do século VII a nossos dias; ela denota também uma ignorância, volunt ária ou n ão, dos elementos que comp õem esse mundo considerado como um todo indissociável, definido unicamente por sua religiã o. Ora, esse mundo do Isl ã é muito variado e n ão representa uma unidade total Consideremos a expansão muçulmana do primeiro período, isto é, o período árabe que vai do século VII ao X, aproximadamente: constata-se que o movimento de conquista lançado após a morte de Maomé teve por objetivo essencial submeter ao Islã territórios possuídos pelos infiéis, e não islamizar os habitantes desses territórios. Não se trata da islamização; trata-se de conquista de territórios n ã o-muçulmanos; é a vontade do indiv íduo que deve conduzi-lo ao Islã, é a manifestação do poder do Islã que deve levar à con versão. No início, pelo menos, n ão existe a vontade de submeter as populações a urna religião ú nica. Assim, a conversã o n ã o foi a finalidade essencial da conquista, e é talvez a consequência de uma certa identificação Islã-arabismo, que fazia dos árabes os únicos “titulares” da f é revelada por Maomé, os verdadeiros “detentores” da religiã o. A preeminência dessa f é devia se manifestar pela submissão dos n ão-mu çulmanos. No Mediterrâneo, essa preemin ência se exerceu sobre as populações das margens orientais do Oriente Próximo e das margens meridionais, isto é, toda a África do Norte. Essas populações eram na maioria n ão-gregas e só aderiram ao Islã progressivamente. A conversão dos últimos crist ãos da África do Norte data dos séculos X e XI, logo, de quatro séculos após a conquista. Cristãos permaneceram cristãos na Síria, no Líbano, na Palestina , no Egito. Se algumas dessas populações mediterrâneas se converteram ao Islã, foi talvez com a vontade crescente de entrar em uma sociedade triunfante, uma sociedade vitoriosa, de serem recebidas nela sem reservas. Conseqiientemente, os muçulmanos, mi

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C. OCKRENT: Obrigada, H élène Ahrweiler, por seu brilho e concisão. Proponho agora, depois de Bizâncio, depois dos dois princí pios a sade Braudel fortemente evocados por H élène Ahrweiler , passemos que , espa ç o mundo bei\ as noções de tempo e de mu neo â Mediterr ao Professor Mantran naturalmente com o çulmano.

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O Mediterrâneo muçulmano Robert MANTRAN: A sequência é natural, efetivamente. Agradeço à Sra. Ahrweiler ter mencionado por várias vezes o Islã, e com razão. Também farei menção de Bizâncio, pois não me esqueço de que fui bizantinista; e minha conversão profissional não impede meus sentimentos. Também agradeço a nosso mestre Fernand Braudel, a quem muito devo na continuação de meus estudos sobre o Mediterrâneo muçulmano.

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Uma Lição de Hist ória

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norit á rios no Mediterr âneo quando da conquista, tornam-se ao longo do tempo majorit ários nos territórios que ocupam. Paralelamente à expansão religiosa, assiste-se à expansão cultural. A língua árabe, veículo da religião, toma-se também o de uma civilização nova, original, que toma empréstimos em parte às tradições culturais árabes, mas tamb ém às tradições locais das populações costeiras do Mediterrâneo, pois n ão se pode fazer abstração de Bizâncio, da herança romana, nem mesmo da Antiguidade romana ou grega. Os bizantinos transmitiram a filosofia grega aos árabes, que, por sua vez, transmitiram sua civilização ao conjunto do mundo mediterrâ neo-árabe muçulmano. A conquista militar árabe contribuiu talvez para modificar a paisagem humana e religiosa do Mediterrâneo; mas foi por sua civilização que o mundo muçulmano desempenhou um papel de primeiro plano com seus filósofos, seus sábios, seus médicos, seus comerciantes. Entre o século VIII e meados do século XI, o Mediterrâneo est á coberto pelo comércio muçulmano, exercido por comerciantes muçulmanos, sunitas ou xiitas. Das margens da Espanha ao Oriente Próximo, e mesmo além, eles est ão sempre, ao longo do Mediterrâneo, em terra muçulmana, num mundo que eles conhecem e compreendem. Todos esses homens que participaram da expansão muçulmana da supremacia mu çulmana sobre os mundos antigo, * bizantino, crist ão, medieval, contribuíram para difundir essa civilização em duas grandes regiões mediterr âneas: primeiro a Espanha, a Sicília depois. Permitiram assim, durante três séculos, ao mundo cristão medieval beneficiar-se com o desenvolvimento intelectual e, em menor grau, artístico dos muçulmanos. A Sra. Ahrweiler falava das grandes capitais mediterrâneas: nesse mundo muçulmano mediterrâneo também existem grandes capitais: Damasco, Cairo, fundado no fim do sé culo X , Fez, Kairuan, Córdoba e muitas outras, que resultam da criação original de uma civilização que não se pode separar do mundo da história. Entre os séculos XI e XV, o mundo muçulmano mediterrâneo se fraciona. Aparecem dinastias locais, agora não-árabes, dinastias bérberes na África do Norte, dinastias turcas ( Seldjukidas, Mamelucos e outras ) no Oriente Próximo. Mas a dominaçã o do Islã continua na margem meridional e oriental do Mediterrâneo, e a islamização faz nesse momento sensíveis progressos. Pois, se os comerciantes ocidentais de que falávamos, de Veneza, de Génova, de Amalfi ocupam um lugar cada yez

maior no comércio trans-mediterrâneo, isso nã o quer dizer que os comerciantes muçulmanos desaparecem. Eles ainda ocupam firmemente as proximidades do Mediterrâ neo, as costas sírias, o Egito, as costas da África do Norte, do Magreb. Perderam uma grande parte da iniciativa comercial mas ainda são intermediários obrigatórios. Vejamos agora o segundo grande período da presença muçulmana no Mediterrâneo: o Império Otomano. Ele se estende da Ásia Menor a Anatólia de hoje, a Turquia atual à Europa balcânica, que n ã o tinha sido conquistada pelos árabes. Por outro lado, ele não compreende nem a Espanha, nem a Provença, nem certas outras regiões mediterrâneas, a Sicília por exemplo Esse período é marcado pela dominação de um governo centralizado, personalizado pelo sult ão e por seu braço direito, o gr ão-vizir, mas também caracterizado por um sistema de administração territorial fracionado em províncias. Algumas delas têm uma autonomia bastante grande: o Egito, as Regências barbarescas ( a Argélia, a Tunísia, a Tripclitana ) . Esse poder otomano apoiou-se sobre um exército, uma administraçã o de alta qualidade. A descoberta dos arquivos otomanos e principalmente sua utilização de quarenta anos para cá permitiram rever um certo número de conceitos, de preconceitos, em relação aos otomanos. Eles n ã o sã o santos, longe disso, e a Sra . Ahrweiler não me desmentirá . . . Entretanto, mesmo se os problemas políticos contemporâneos mascaram essa realidade, não houve no tempo dos otomanos nem islamização, nem otomanização das populações locais. Estas conservaram suas características específicas, sua religi ão, sua língua, muito freqiientemente sua organização, seu estatuto local, suas atividades económicas. Os otomanos que riam dinheiro, produtos e homens, mas não procuraram otomanizar a qualquer preço, a tornar turco cada grupo, cada população; cada regi ã o conservava suas características próprias, e isso explica a emergência, no século XVIII e principalmente no XIX, de nacionalismos de que se falará, penso eu , daqui a pouco. Durante esse período otomano, como se manifesta no mundo mediterrâneo essa influ ência do Islã? Pela presen ça de um poder forte, com um exército, uma marinha respeit ável, chefiada muitas vezes por gregos que se tornaram otomanos. Com efeito, esses otomanos não sã o exclusivamente turcos, mas tamb ém á rabes, armé nios, gregos, sérvios, egípcios, norte-africanos. O Império Otomano é um mundo um tanto disperso, muito variado, mas que reconhece



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a supremacia de um poder central personificado pelo sult ão. O Isl ã se manifesta pelo poder, mas também por um povoamento turco, principalmente nos Bálcans: na Bulgária, país de que muito se fala atualmente, na Bosnia, a região de Sarajevo. Ele se manifesta principalmente pela edificação de monumentos religiosos, principalmen te mesquitas. Fala-se ainda de estilo arquitetônico otomano: realmente, quando se entra nessa região da Bosnia ou quando se percorre uma grande parte do mundo mediterrâneo da Síria e do Egito até Argel, em tudo aquilo que foi o dom ínio otomano, reconhece-se um estilo verdadeiramente imperial, marcado especialmente pela construçã o de grandes mesquitas. Essa arquitetura marca os limites geográficos do domínio que vai da Iugoslávia à Argélia, passando pelo Oriente mediterrâneo. Como todos os imp érios, depois de ter conhecido um grande período de prosperidade no século XVI com Suleyman o Magnífico, período celebrado por Fernand Braudel, o Império Otomano perde sua importância económica. O Mediterr â neo é abandonado por certos comerciantes ocidentais entre os mais importantes atraídos pelo oceano Atlântico, pelo oceano Indico, e também, mais longe, pelo Pacífico. A partir de ent ão, é certo que esse império vê desaparecer uma parte de suas riquezas, diminuir uma parte de sua força, e, enfraquecido, torna-se o objeto da cobiça das grandes potências. No século XIX, estas últimas, valendo-se de relações ao mesmo tempo políticas e religiosas, visam seu desmembramento e sua partilha. Ê o que se chamar á mais tarde a “Quest ão do Oriente”. C. OCKRENT: Obrigada, Professor Mantran. Maurice Aymard vai agora falar exatamente do que o Professor Mantran acaba de evocar, essa espécie de fluxo histórico da Europa estritamente . mediterrânea para a Europa atlôMicaf lembrando^ nos assim um outro preceito braudeliano: a história é primeiro a geografia.

atual, do Mediterrâneo onde viveremos, espero que por muito tem po, durante as próximas décadas. À luz do livro de Braudel, eu desejaria interrogar me sobre as relações entre o Mediterrâneo e a

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O Mediterrâneo, o Atlântico e a Europa Maurice AYMARD: Estamos aqui para divertir-nos, isto é, para discordar uns dos outros e aproveitar da presença de Fernand Braudel para fazer-lhe perguntas e provocá-lo um pouco, com todo o respeito. Ele nos convidou pessoalmente a tratar do Mediterrâneo I

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Europa. Com efeito, o livro enfatiza essencialmente a longa duração do Mediterrâneo, as continuidades, as permanências. Interessa-se menos pelas dinâmicas das quais o próprio Mediterrâneo foi o ator ou a ví tima; e suas rupturas são apresentadas como rupturas internas, profundas, dos três mundos separados que o compõem ainda hoje: cristandade do Ocidente, Bizâ ncio, Islã. Desejaria interrogar Fernand Braudel sobre as rupturas e as relações muito ambíguas que se estabeleceram entre o Mediterrâneo e a Europa atlântica primeiramente, e o restante da Europa depois. Parece-me que a Europa na qual vivemos foi construída pelo Mediterr â neo, inclusive em suas divisões profundas. A Sra. Ahrweiler lembrava há pouco essa fronteira entre Roma e Bizâncio, que se prolongou até o Báltico o que nã o é um acaso e dura ainda at é hoje. Voltemos à longa duração e concedamo-nos um longo milénio, do fim do primeiro milénio at é o fim do segundo. Essa Europa, parece-me, adquiriu sua autonomia muito lentamente no início, mais energicamente e mais violentamente depois; ela se construiu a partir do Mediterr âneo e pelo Mediterrâneo, mas ao mesmo tempo contra ele; é talvez a si

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tuação que vivemos hoje. O Mediterrâneo muito contribuiu para a Europa atlântica, cujo n úcleo europeu se situa nessa Europa do noroeste, entre o Sena e o Reno, ponto de partida da reconquista européia, tanto na direçã o do leste quanto na do sul. O Mediterr âneo finalmente impôs seu modelo de vida. Ele deu à Europa atlântica suas plantas cultivadas, principalmente a vinha, que subiu muito longe para o norte, onde, custa-se a acreditar, produziu-se outrora um vinho aceit ável Ele deu suas regras de consumo, uma religiã o monoteísta, uma organizaçã o religiosa dominada por Roma at é a Reforma. Mais ainda, o Mediterrâneo deu a essa Europa romanizada o conjunto de suas t écnicas, de seu equipamento mental e cultural, sua língua, seu direito, as instituições do Estado e um urbanismo que afirmava o peso e a autoridade das cidades sobre um território povoado de aldeões, isto é, de pagani, ou seja, de pagãos. Ele lhe deu o prestígio da escrita , com essa cópia incansável dos manuscritos, com os mon ges que copiam e recopiam até o fim dos tempos, continuando o trabalho dos escribas da Antiguidade. Ele lhe deu os instrumentos

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de medida do tempo, o quadrante solar at é o norte da Escócia, a clepsidra at é a Holanda, onde ela gelava durante uma parte do inverno. Aliás, gostaria de escrever um romance cuja primeira frase seria: “ A água gelava nas clepsidras . . . 55 Era verdadeiramente um símbolo que esse Mediterrâneo projetava at é a Europa do norte. Se observarmos como as coisas evoluíram, veremos que a Europa atlântica, entre a Idade Média e os tempos modernos, não renegou a totalidade dessa herança. Ela até a manteve e reforçou em muitos pontos, ao mesmo tempo em que adquiria sua autonomia. Ela inventou por sua vez seus instrumentos t écnicos, cuja difusão ritmou a história do Ocidente medieval até nossos dias. Nesse ponto, a Europa atlântica fez , de certa forma, um jogo duplo. Se as etapas desse jogo são relativamente perceptíveis, seria conveniente, entretanto, pô-las em perspectiva. Na mais longínqua Idade Média, observa-se uma revolução da agricultura com rotações de culturas diferentes, uma revoluçã o dos sistemas de transporte e de obrigações coletivas, uma organização dos terrenos, charruas com rodas diferentes, o cavalo com seu cabresto de atrelagem, a charrete, o leme de cadaste. Os historiadores das técnicas insistiram longamente sobre essas grandes invenções no fim do primeiro milénio, que propiciara a força da Europa do noroeste. Depois, a Europa afirmou muito lentamente, contra a pretensão do latim ao monopólio, também do ensino, a multiplicidade das línguas locais, das línguas vulgares, até o momento em que uma torna a o francês primeiro, o inglês depois língua vulgar questionar o monopólio dessa cultura erudita. A Europa atlâ ntica inventou novas técnicas que associam à madeira uma metalurgia mais elaborada, que permite utilizar melhor o ferro. Ela inventou também novas máquinas, os moinhos a água, os relógios mecânicos que os flamengos v ão por sua vez construir at é na Sicília , justa resposta às clepsidras fabricadas até na Europa do Norte. A Europa atlântica inventou a artilharia e a imprensa, que revolucionará as regras de produção e de difusão da escrita. Enfim e principalmente, a Europa atlântica impôs uma dupla e decisiva ruptura da unidade. Ela afirmou, nã o mais a concepção de um Estado unit ário, com dimensões de império, mas a de um Estado que se define pela autoridade de um príncipe, antes de identificar-se com uma nação. É nesse mundo que vivemos hoje, considerado como o cenário normal e necessário da vida política,

consequentemente do equilíbrio a manter ou a impor entre as forças que se exercem em sentido contrário. Todas essas novas técnicas, a Europa atlântica procurou impôlas, não sem sucesso, ao sul como ao leste, já que foi a partir da Europa do noroeste que se efetuou o grande impulso em direção ao leste, impulso evidentemente contrariado no plano político, entre os séculos XVI e XVIII, mas que reaparece nos modelos gerais de civilização, no urbanismo e no próprio funcionamento do Estado. Professor Braudel, à luz dos trabalhos que o sr. consagrou ao capitalismo e depois à França, o sr. não se sentiria tentado hoje, se tivesse que reescrever La M éditerranée, a integrar essa dinâmica de longa duração, que durou um bom milénio, quase um milénio e meio? Tranqiiilize-se, não é uma obrigação que vamos impor-lhe amanhã: mas reescreveria o sr., hoje, o mesmo livro?

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F. BRAUDEL: Claro que não. C. OCKRENT: A resposta foi curta , mas teremos talvez uma continuação daqui a pouco. J á que falamos nas rupturas nesse mundo do Mediterrâneo, tão brilhantemente descritas por Maurice Aymard , o Professor Godinho, historiador português, vai exatamente explicar-nos o papel que os europeus do Atlântico desempenharam no Mediterrâneo.

O Mediterrâneo no horizonte dos europeus do Atlântico V. M. GODINHO: Como se apresenta esta Europa que engloba o Mediterrâ neo e o mar do Norte? O Mediterrâneo é um mundo de heran ças m últiplas, um espaço onde se interpenetram as civilizações, as economias, as t écnicas, uma zona de conflitos mas também de colabora ção, de cidades muito ricas, de campesinatos diversos, de atividade comercial transbordante, apoiada sobre uma navegaçã o densa e decisiva. Do outro lado, o mar do Norte e o Báltico, muito ativos e já “industrializados” desde os séculos XI e XII, como demonstrou Michel Postan, não comportam os diferentes níveis de riqueza que se encontram no Mediterrâneo. Observa-se, antes, um comércio volumoso e pesado ( cereais, metais, peixe, sal ) , que se apoia sobre '

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uma navegação também diferente: procuraríamos em vão aqui as

económico que se constitui na Europa atlâ ntica , por si mesmo; penetra por um lado no mar do Norte, por outro no Mediterrâneo. O peixe portugu ês chega regularmente aos portos de Valença ou Barcelona. Os biscainhos frequentam regularmente o Mediterrâneo ocidental; sã o eles os transportadores do mar interior entre os portos da África, do Magreb, os portos da Catalunha, de Valença, das Baleares e das costas italianas, onde os portugueses também penetram em grande número: fazem pirataria, espreitam a carga que podem encontrar nos diferentes portos mediterrâneos, penetram enfim at é o norte. Existe pois uma dinâmica própria a esse mundo atlântico, que n ão resulta absolutamente do impacto dinamizador das economias mediterrâneas ou nórdicas. Esse é o primeiro ponto a sublinhar. Certamente, os mediterrâneos estão presentes nesse complexo atlântico, mas é além de Southampton que a presença italiana se torna verdadeiramente importante, não em Bristol ou em Galway, nem nos portos cant ábricos ; presença nos portos portugueses mas sem tomar-se o fator que ser á, em parte, nos portos castelhanos. O que permitiu o desenvolvimento desse complexo atlântico foi a ades ã o, em 1200, dos senhores de Biscaia e das Ast úrias à Coroa de Castela, a reconquista a partir das vias marítimas e a conquista de Sevilha em 1148 pelo rico mercador Bonifazio. Certamente, a criação do que eu chamo “complexo atlântico” goza de uma convergência de t écnicas mediterrâneas e atlânticas, e não se pode negar a importância da presença dos italianos no que diz respeito à guerra naval, com suas galeras ; mas nem a marinha da Galicia, nem a marinha cant ábrica, nem a marinha portuguesa existiram graças a eles. São as contribuições culturais e não a presença dos comerciantes italianos que marcam a influência do Me diterrâneo no mundo do Atlântico. Os italianos trouxeram seus conhecimentos, a bússola, os mapas la carta di navigare desde o fim do século XIII. Esse fato é muito importante, pois essa car tografia engendra uma evolução e uma revolução culturais decisivas, ligadas aos fen ômenos económicos e sociais. Tinha-se primeiro uma cartografia simbólica e mítica com uma Terra inscrita em um círculo ou uma elipse, um oceano salpicado de ilhas ( ilhas da Felicidade, ilhas Afortunadas, ou ilhas da Infelicidade ) , depois a divisão entre dois sistemas , sistema ternário e sistema quatern ário. Quatro rios descem do Paraíso e terminam em três ramos: o Nilo, o Níger, o Senegal ; e tudo se constrói os

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galeras do mar Interior

Entre esses dois mundos, comerciantes e viajantes utilizam as vias terrestres ou as fluviais, vão a feiras e estabelecem muito cedo relações entre regiões “industrializadas” como o norte da Itá lia e os Países Baixos. Graças a essa circulação por via terrestre, essas regiões formam um conjunto; uma civilização se difunde, civiliza ção visível no mapa da arquitetura romana e da arquitetura gótica. Além do estreito de Gibraltar, aquém da Mancha, essa Europa atlâ ntica seria uma “periferia”, um mundo dependente? Seriam pois povos mediterr âneos que teriam investido, formado empresas, lan çado técnicas, e favorecido assim um crescimento julgado muito lento até o fim do século XV? Pois os mapas dos atlas históricos revelam que, em geral, assimila-se esse “Atlântico europeu ” a uma rota de passagem entre o Mediterr âneo e o mar do Norte. Tomemos uma perspectiva diferente. Esse mundo atlântico desenvolveu-se na realidade muito cedo, desde os séculos XI e XII . Esse desenvolvi mento efetuou-se em relações limitadas com os dois outros complexos económicos e culturais de que acabamos de falar. Sem d úvida, ele herdou , no sul, a contribuição islâmica, fundamental para a navegação, a organização do comércio, o progresso das ci dades., mas também a contribuição do norte, especialmente a dos normandos nas costas da Galicia. Mas essas contribuições não bas tam para explicar esse desenvolvimento que vai de Sevilha, Lisboa e Porto até o fundo do golfo de Gasconha, contorna a Bretanha , penetra na Mancha, atinge o Sudoeste da Inglaterra e a Irlanda, de Bristol a Galway. Esse mundo se constrói em torno de uma produção própria, óleo, vinho, cereais, madeira; os canteiros navais sã o muito ativos e o ferro de Biscaia, muito mais importante que a totalidade do ferro mediterrâneo, permitirá a grande arrancada, a entrada na época moderna. Inventam-se formas de navios as “naves”, as “coquas”, é assim que se chamam no Mediterrâneo com o leme de cadaste, que permite aos biscainhos e aos portugueses afastar sc das costas e aventurax se através do Atlântico. Instaura-se pois toda uma rede de comunica ções: os tecidos da Irlanda chegam a Portugal, os produtos do Algarve vão para o norte . . . Desde o fim do século XII, encontmm Hõ portugueses no Mediterrâneo oriental, no levante, mas també m em Bruges; eles pescam nas águas territoriais inglesas. Ê tini verdadeiro complexo

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segundo os dois sistemas que pontos cardinais, os ventos, etc se combinam. É um mundo mítico que representa o destino do homem e o destino dá Terra, e não uma representação f ísica da Terra. Ao contrário, a “carta ái navigare” , estabelecida a partir da rosa dos ventos, utiliza a bússola, calcula o caminho percorrido “a olho’5 e permite passar a uma representaçã o eficiente: é disso que o navegante precisa, para voltar a seu porto ou encontrar seu destino. Esse mapa “operacional” se desenvolver á, inserindo-se ao mesmo tempo na cartografia mítica. Acharemos aí um centro realmente conhecido, o Mediterrâneo, e o mundo que o cerca, o mundo simbólico. Essa cartografia se desenvolverá até meados do século XV, mas esgotará todas as suas virtualidades. A tradu ção de Ptolomeu nada lhe trar á, pois Ptolomeu est á avançado demais com seu sistema de coordenadas, mas atrasado demais com todas as suas fantasias e suas id éias erróneas, sobre o fechamento do oceano índico, por exemplo. É por isso que se chega a um impasse. Nesse momento, uma nova cartografia do complexo atlântico nascerá com Jayme de Maiorca, que veio em 1410 a Portugal ensinar cartografia. Essa nova cartografia se apoia de um lado sobre a náutica, que utiliza a observação das estrelas e do sol, e de outro sobre o cálculo das distâncias estabelecidas segundo a diferença de altura dos astros e enfim sobre o cálculo das latitudes, e conseqiientemente sobre a escala de latitudes, que permitirá uma representação moderna. Cada vez mais, o conhecimento preciso das costas permite situar esse Mediterrâneo e um conjunto real, e se se compara o mapa-múndi dito português de 1502 com o atlas catalã o de 1375-1381, a diferença é muito visível. É o mundo, enfim! É a possibilidade de pensar os imp érios! É uma ferramenta política nova, pois sem cartografia n ã o se pode pensar nem em termos de Estado nacional, nem em termos de política internacional. Apesar dessa modificação, o Mediterrâ neo fica um pouco à distância. At é os cartógrafos deixam de corrigir a distorçã o em latitude que existe em todos os mapas do Mediterrâ neo, que vai do estreito de Gibraltar ao mar Negro. Os erros de subida em latitude só foram corrigidos em 1527-1529. Essa retificação não será geralmente inserida na evolução da car tografia. O Mediterr âneo continua sendo um mundo como foi concebido no século XV, mas integrado em um conjunto muito mais vasto; ele não será mais representado como tal, mas ligado ao Atlântico e ao oceano índico.



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Apesar do progresso das economias oceânicas, apesar da osci la ção entre os períodos de depressão e as retomadas devidas à industrialização e aos novos circuitos comerciais, apesar das crises sucessivas ( que não atingem apenas o Mediterrâneo: crise dos tecidos ingleses, por exemplo, ou da rota do Cabo) , esse Mediterrâneo, pois, não foi aniquilado pela expansão oceânica. Eu diria antes que foi a rede mundial das trocas pelas rotas oceânicas que transportou essa economia mediterrânea e criou oportunidades novas para os comerciantes e os povos mediterr âneos em geral, através do Atlântico e do oceano índico. Assim, foi efetivamente graças à expansão atlântica que o Mediterr âneo se manteve.

C. OCKRENT: Obrigada, Professor Godinho. Permaneceremos ainda no mundo da navegação. Alain Guillerm , um dos melhores especialistas na história marí tima, nos falará do papel da galera não das galés, felizmente.

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A galera, rainha do Mediterrâneo de Salamina a Lepanto Alain GUILLERM: O que impressiona na galera, a primeira coisa que é preciso compreender é sua beleza. Nunca houve obra marítima tão bela quanto a galera. Em segundo lugar, é a sua lógica. A beleza e a lógica são as duas definições da galera , porque as restrições que ela impõe, decorrentes do número de remadores e das técnicas de fabrica ção, exigem um rigor extremo. É o que eu gostaria de dizer, antes de entrar no tema braudeliano da longa duração. Citemos uma frase de Augustin Jal, datada de 1840: “A galera ligeira do século XVIII é uma tradução bastante fiel da galera egípcia do século XV antes de Cristo. Esse fato não é desprovido de valor aos olhos dos homens de ciência.” Por outro lado, um século antes, Montesquieu escrevia: “Como podemos julgar a perfeição da marinha dos antigos, já que abandonamos uma prática na qual tínhamos tanta superioridade sobre eles?55 . Essas duas frases resumem a meu ver a oposição entre a hisa de Montesquieu tória clássica e a história da longa dura ção, a de Jal, que os arqueólogos descobriram um século antes dos





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historiadores e perderam depois, por falta de uma visão intereiências, como diria Fernand Braudel. Estudemos agora a galera em tr ês pontos assim considerados: um povo, porque cada povo tinha a sua, um barco, e uma batalha

“Penetro pelo centro e cerco os lados”. Foi assim que a batalha de Salamina foi ganha. Os fenícios foram simultaneamente esporeados e forçados na abordagem. Depois, o navio clássico, o das grandes conquistas da Antiguidade será a quinquerreme. O problema da quinquerreme é Roma diante das pot ências helenísticas. A quinquerreme é um barco mais largo, de 4,80m de largura por 40 de comprimento, mas para o qual foi enfim encontrado o processo tecnológico que o tomar á quase perfeito porque n ã o existe barco perfeito : a primeira fila de remadores est á no nível da á gua é tem um remo curto normal; a segunda fila é constituída de dois homens e não mais de apenas um, e a terceira fila, situada muito alto, vê seu esforço compensado pela presença do porta-remos. Os romanos, aliás, vão transformar esse porta-remos, que ultrapassa dos dois lados a largura do barco, em ponte de combate, o que permitirá a ação de sua infantaria. Em resumo: duelo entre Cartago e Roma, primeira guerra púnica, que é uma guerra naval,* vitória pú nica, porque os romanos t êm marinheiros e não aliados marítimos. Quando os romanos inventam uma arma o “corvo” , isto é, uma passarela de abordagem que permite à legião manobrar sobre a água como se estivesse em terra, nesse momento Cartago está perdida ; os esforços de Aníbal, como diz o Almirante Mahan, serão inúteis, porque ele n ão terá apoio. Ele poder á atravessar a Espanha, as Gálias, a Itália, mas não terá apoio por mar. Políbio disse: “Sem o domínio dos mares, Roma não teria nunca conquistado Cartago, a Macedonia, nem vencido os selêucidas, herdeiros de Alexandre.” Pode-se acrescentar que Roma tam bém não teria conquistado o Egito dos Lágidas e de Antônio e Cleópatra. Na batalha de Actium, sabe-se muito bem, depois do livro escrito em 1930 pelo Professor Tara, não havia, de um lado, barcos monstruosos e gigantescos nas mãos de Marco Antônio, e do outro, pequenos barcos nas mãos de Otávio, o futuro Augusto. Basta ler Virgílio na Eneida: ele descreve muito precisamente a batalha Ignora-se se ele estava presente; de qualquer modo, conhecia o que se passava. Descreve barcos de tamanho idêntico que se enfrentam. De cada lado, há uma frota colossal de 400 qúinqiierremes. O que faltava era talvez uma boa reserva. Essa reserva era Cleópatra que a tinha; em lugar de servir-se dela, partiu, e seu amante foi ainda mais covarde que ela, pois a seguiu.

decisiva. Meu primeiro ponto será: a galera é um dom do Nilo. Os egípcios criaram a galera. Eles desciam o Nilo com o vento e no sentido da corrente. Decidiram navegar em sentido contrário e criaram barcos mais delgados. A mais velha galera conhecida data de 2.650 antes de Cristo. Ela é contemporâ nea do faraó Kéops, um megalómano, pois essa galera já tem 43 metros de comprimento e 6 de largura. É o tamanho que terá La Réale de Luís XIV, quase exatamente. Passamos depois a uma história que se pode conhecer melhor, a dos fenícios e dos gregos, que est ão ligados à invenção da birreme e da trirreme. Os fenícios primeiro graças à criação da cidade Estado oligárquica e comercial, onde o rei não é mais um déspota mas simplesmente um poder religioso revolucionam a propulsão, acrescentando uma segunda fila de remadores, em vez de alongar a embarcação. Pois, se se tivesse feito isso, o que talvez teria sido possível com os cedros do Líbano, o barco n ão poderia girar, por ser longo demais. Houve pois a revolução tecnológica dos navios polirrêmicos. Depois, Aminocles, em Corinto, no século VII antes de nossa era, quando a birreme se generalizou, inventa a trirreme. O resultado foi também um grande aumento do poder de propulsão. A trirreme tem 170 remadores e pode transportar 200 homens, fi um pequeno barco, de 35 a 40 metros de comprimento e 3,50 dedargura, sem contar o porta-remos. Essa trirreme é uma maravilha de beleza e finura. Com seu esporão de bronze, ela . tem também uma eficácia decisiva. A batalha agora: é Salamina. Quando o rei da Pérsia, o Rei dos Reis, quer invadir a Grécia, seriamente não como em Maratona com um verdadeiro exército e uma verdadeira frota, a batalha decisiva vai se travar em Salamina , de maneira absolutamente Clássica. Mas quem os 380 navios gregos vão enfrentar? São os fenícios. A frase de Ésquilo: “200 cruzadores ligeiros reforçavam a armada” significa, segundo penso, 200 trirremes fenícias. Os gregos vão ganhar a batalha de um modo muito simples. Um general a quem uma senhora perguntava como fazia para vencer, respondeu:



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mas a Sra. Ahrweiler falou melhor dc O mais interessante que eu sobre Bizâncio que Bizâncio assinala a ressurreição da é . é polim rica O “dromon ”, como nos diz o cronista Josimo, marinha é uma embarcação rápida, que tem uma velocidade igual à da qiiinqúerreme, que há muito tempo não se sabe mais construir; e é mais Veloz que as pirogas dos godos. O “ dromon” recupera as características da guerra antiga, que nã o deve ter sido perdida por Bizâncio, como disse a Sra. Ahrweiler. Ele tem o espor ão imerso e duas velas latinas. Sabe-se hoje que a vela latina é muito antiga, como se lê no livro de Fernand Braudel sobre o capitalismo. O “dromon ” tem 200 remadores em dois andares. Combina uma ponte de com bate protegida, em baixo ( essa ponte protege ao mesmo tempo os remadores ) , e uma ponte, no alto, onde est ã o os remadores semiarmados, com armas leves, que podem executar os dois trabalhos: remar e lutar. Pode se dizer que o “dromon” era uma mistura harmoniosa da trirreme e da qúinquerreme. Graças a ele e ao “fogo grego”* o cerco de Constantinopla em 717-718 e a vitória de Leão o Isauro salvaram a civilização cristã da civilização árabe (sem fazer julgamento de valor ) . Basta ler alguns títulos: “Afirmou-se com razão que, graças à resist ência Leã o o Isauro salvou n ã o somente Bizâncio mas toda a civilização da Europa ocidental.” “718 é uma data ecuménica, o maior sucesso da hist ória romana .” Depois vieram os venezianos e genoveses nas águas do mar Egeu. No começo, Veneza tinha apenas uma frota de 30 galeras que representavam a esquadra do golfo do Adriá tico. Quando as armadas turcas fazem sua aparição com 150 barcos, o arsenal de Veneza se transforma em imensa f ábrica moderna, onde prefabricam-se, montam se em série galeras, logo que se d á o alerta, logo que a frota turca deixa o Bósforo. Por outro lado, Veneza abandonou a propulsão por remos dispostos em andares. Apegava se à trirreme cada homem em seu banco com seu remo, e depois um só remo para três remadores. A trirreme era extremamente dispendiosa para a república de Veneza: os remadores eram homens livres, croatas, e seu salá rio era proibitivo. As galeras russas que desciam o Adriático ao longo das

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* Mistura capaz de arder na água, inventada por monges bizantinos (N T. )

costas venezianas, ao longo da Croá cia, para recrutar remadores, sempre se deparavam com o custo de seu trabalho, ao qual era preciso acrescentar o dos oper ários dos arsenais. Além disso, por um lado, os croatas remavam para Veneza, mas por outro, e em outros períodos, tornavam-se piratas, o que não era nada agradável. O momento de maior glória para Veneza acontece em Lepanto5 aliás não graças aos venezianos, a não ser por seu espírito de conciliação, mas graças a Dom João da Áustria. Este consegue persuadir os venezianos de que o tercio espanhol pode embarcar em suas galeras. Isso era quase inadmissível: a duplicidade de Filipe II era tal que os venezianos temiam que, uma vez embarcado o tercio nas 70 galeras de Veneza, ele se apoderasse das galeras. Não obstante, a diplomacia de Dom João conseguiu criar uma infanta ria homogénea no front de batalha das 200 galeras cristãs, aproximadamente ( essas cifras são controvertidas ) . O que há diante delas? 200 galeras turcas, com a melhor infantaria do mundo, os Janízaros . As duas melhores infantarias do mundo v ão se chocar nessa batalha de galeras. Durante muito tempo acreditou-se que a vitória se deveu à artilharia. Na realidade, foi à infantaria “espanhola”. Acreditou-se que as grandes galeras venezianas tinham feito estragos na frota turca: na verdade, elas afundaram apenas uma galera turca, e danificaram outras três ou quatro. Duas conclusões se impõem. O navio portador de canhões, na época posterior a Lepanto, era indispensável, como em nossos dias a força de dissuasão nuclear. Entretanto, citarei um exemplo: em que não é o Mediterrâ neo , Mahan descreve um mar interior o último combate de galeras que se desenrolar á de modo exeepcionalmente sangrento para a época, 1790, entre a Suécia e os Russos, combate no qual os russos foram esmagados, no golfo de Finlândia, pela frota a remo do rei da Suécia . “ A Suécia, nossa amiga, nossa aliada . . . Mas seu rei n ã o gostava de revoluções; fez a paz imediatamente, em vez de socorrer a República Francesa.” Mas concluo fazendo referência a Maurice Aymard: a partir do desaparecimento da galera, o Mediterrâ neo, sulcado por frotas de combate, não pertence mais aos povos mediterrâneos! C. OCKRENT: Obrigada, Alain Guillerm, por essa evocação apaixo nada da galera. Voltemos agora a problemas mais contemporâ neos, com André Nouschi, que vai nos falar do Mediterrâneo nos séculos XIX e XX .

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Problemas do Mediterrâneo nos séculos XIX e

Em 1906, o historiador de Marselha, P. Masson, sublinha o papel e a importância do comércio colonial, que representa . mais ou menos um quarto do valor do comércio do porto. Depois da se^ gunda guerra mundial, o tráfego petroleiro ofusca praticamente todos os outros e dá ao comércio no Mediterrâneo de hoje esse aspecto

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André> NOUSCHI: VOU me concentrar primeiro e antes de tudo no Mediterr âneo em si, pois Fernand Braudel nos lembrava há pouco, retomando uma expressão alemã: “O Mediterrâneo é um mundo ern Si.” Deliberadamente, evocarei apenas paralela ou marginal mente os países mediterrâneos. Com o fim do século XVIII e principalmente com o início do século XIX, a circulação econ ómica no Mediterr âneo conhece um progresso excepcional, que cresce de uma d écada para outra, apesar das guerras que contrapõem as grandes ências. Uma pot cifra permite medir a importância dessa circulação: . , o, íráfegò de Marselha, primeiro porto do Mediterrâneo, multiplicase por 25, aproximadamente, entre 1834 e 1950. Èntre 1834 e 1914, o tráfego de Marselha é multiplicado por 16; o aumento maior é o de 1870, pois o tráfego passa de 4,5 M /T para 21 M/ T. O primeiro porto do Mediterrâ neo registra, a seu modo, os movimentos da conjuntura internacional e francesa: du rante as duas guerras mundiais, o Mediterrâneo fica sujeito ao acaso das confrontações entre beligerantes; daí uma depressã o importante do tráfego, mais notável ainda de 1939 a 1945 que de 1914 a 1918. A:- crise de 1929 freia sensivelmente o tr áfego portu ário, enquanto a segunda guerra mundial tem efeitos radicais, reduzindo por assim dizer a zero, a partir de 1943, o com ércio marselhês . . . O outro indicador do tráfego mediterrâ neo é o do canal de Suez , cuja evolução a partir de 1969 parece seguir o movimento marselhês; a única diferença entre as duas curvas é que a retomada começa em Suez em 1942, bem antes da de Marselha. . Esse crescimento extraordinário, excepcional , o maior que o tráfego marselhês já conheceu , reflete bem o conjunto do tráfego mediterrâneo. Esse fenômeno é mais ou menos da mesma ordem para Nápoles e Génova. Analisemos os componentes desse tráfego marítimo. Organizase de, primeiro e antes de tudo, entre os países da Europa indusÁfrica e Ásia, essencial trial e os países em desenvolvimento mente com exportações de produtos industriais manufaturados, por tim lado, e por outro, importações de produtos agrícolas ou mi nerais, inclusive o petróleo.

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gigantesco. Em 1983, o comércio de Marselha ultrapassa 86 M/ T, dos quais 63 M/T para os hidrocarbonetos ( 73,2% ) ; Marselha é assim o primeiro porto petroleiro francês, bem à frente do Havre. É verdade que a Marselha chegam os produtos petroleiros destinados a vários parceiros europeus, e que são encaminhados pelo oleoduto entre Marselha e Karlsruhe. Esse comércio mediterrâneo representa pois uma parte extremamente importante no conjunto do volume mundial. Se, de um lado, há exportação de produtos elaborados ou manufaturados, e do outro, importação de produtos minerais ou matérias-primas, con seqiientemente o intercâmbio financeiro entre a margem norte , e a margem sul do Mediterrâneo se torna desequilibrado. Os países inFrança, Itália, Espanha, Grã Bretanha, Alemanha, muidustriais exportam trabalho pago a preço alto: to tardiamente os Bálcans logo sua balança comercial é superavitária. Ao contrário, os produtos minerais, os produtos agrícolas, as matérias-primas seguem o . movimento da conjuntura mundial; seu preço est á em baixa. Esses fenômenos têm um efeito evidente sobre o mundo mediterr âneo,) sobre a circulação no Mediterrâneo. O Mediterrâneo, mar dos desequilíbrios financeiros e comer? ciais Sim, mas é também o mar pelo qual passam os investimenem direção dos países ricos tos dos países industrializados uma conponto nesse se . Encontra sia da e frica Á aos países da Á se fa a . Se é culo s XX o e XIX s é culo entre o tinuidade evidente , seja que se percebe , outra para an álise das cifras de uma d écada forma a , sob seja blico ú Tesouro p sob a forma de subvenções do indus- , investimentos de investimentos privados, seja sob a forma de ou ou, , exemplo a Compagnie Française des Pétroles por triais , sem nenhuma tras sociedades mineiras e empresas industriais dúvida possível, existe um fluxo financeiro importante dos países ricos em direção à África e à Ásia. H. Feis e R. Cameron calcularam a importância desses investimentos financeiros nos países mediterrâneos. Em 1914, a Grã-Bretanha investiu 125,5 bilhões de li-

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bras esterlinas, a França 18,4 bilhões de francos-onro, a Alemanha 7 bilhões de marcos, ou seja, para a primeira um pouco mais de 3% do total dos seus investimentos, para a segunda 40,6 % dos seus, 6 para a terceira 29,7%. Hoje, esses investimentos são substituídos pelos empr éstimos concedidos pelas diferentes potências, entre as quais os Estados Unidos1, a URSS, independentemente dos países europeus, tradicionalmente emprestadores. Pode-se pensar que os mecanismos seriam na realidade id ênticos e engendrariam os mesmos efeitos: transferência das rendas dos países africanos ou asiáticos para os países emprestadores industriais. Sabe-se também que esses empréstimos propiciam concorr ências às vezes muito acirradas; assim foi no Egito, onde à mericanos e soviéticos se entregaram a uma competição que terminbu na crise de Suez em 1956, permitindo aos soviéticos reforçar sites - posições político-estratégicas no Mediterr âneo e no mundo árabe. Observarei entretanto que os países produtores de petróleo do Oriente Próximo dispõem, de 1973 para cá, de uma abund ância de capitais de tal ordem que os transferem para a Europa industrial ou para os Estados Unidos, participando assim do progresso dos países industriais; quanto à Argélia, as rendas provenientes do petróleo e do gás são reinvestidas no orçamento do Estado argelino e servem para edificar a nova estrutura económica do país. Uin terceiro elemento deve ser sublinhado, é a transferência de poder e de populações. O Mediterr â neo dos dois últimos séculos foi a artéria de circulação dos homens. A esse respeito, será preciso um dia repensar, seriamente e sem paixão, a colonização. É um fenômeno que ultrapassa de muito a ocupação e a administração territorial. É uma transferência de poder e a instalação de um poder em um país; mas com tudo o que isso implica. Em primeiro lugar e ê o que nos interessa isso significa que várias centenas de milhares de homens atravessaram o mar. Lembremos os fluxos de homens da Europa para o Magreb, que avalio pessoalmente em 700.000, entre 1830 e 1950, sem esquecer o crescimento resultante da instalação desses homens e dessas mulheres! Acrescentemos os 400.000 europeus instalados ha Palestina que criarão o Estado de Israel e chegamos ao total impressionante de 1.100 000 homens! Os dois últimos séculos presenciaram pois o mais importante fluxo de homens que atravessaram o Mediterrâneo em toda a sua história; o '









que implica contatos culturais e étnicos, transfer ências de ideologias, transferências de culturas, criação de mentalidades novas; o que modifica muito sensivelmente a paisagem humana do mundo mediterrâneo. A outra vertente desse intercâ mbio s ã o as migrações de traba lhadores que vêm da África e da Ásia. É um fato que conhecemos bem na França, mas que existe também na Alemanha e em. um certo n ú mero de outros países europeus. Admite-se geralmente que essas transfer ências de populações atingem uma cifra da ordem de dois milhões, até três milhões. Acrescente-se a essa última cifra as os italianos, os espanhóis e os portransfer ências inter-européias tugueses para a França ou a Europa central ; deve-se então fixar em vários milhões essa transferência de homens. As transferências inter-étnicas, interculturais, a remodelaçã o e a transformação das mentalidades que se operam em consequência desses movimentos de população representam um fen ômeno considerável. Esse fenômeno, aparentemente invisível, ter á repercussões de longa duração, repercussões sobre as estruturas humanas e sociais, e que nãò po derã o ser ignoradas pelos historiadores. O Mediterrâneo fica assim reinserido de modo espetacular no jogo mundial da economia, no jogo mundial da circulação comercial e financeira, no jogo mundial da circulação dos homens e das idéias. Por isso, ele se torna o fiel da balança entre as grandes potências, uma artéria de circulação e um trunfo estratégico. Sobre o Mediterrâneo como zona de conflitos, o Almirante Denis nos fala r á ; ele é mais competente que eu.

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C. OCKRENT: Obrigada, André Nouschi, que já apresentou o Almi rante Denis, a quem passo agora a palavra, :

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A. DENIS: Quero destacar em primeiro lugar a qualidade de uma coordenação que, como nos grandes processos, d á em último lugar a palavra à defesa.

C. OCKRENT: OU seja, à “Royale”*

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* Designação familiar da marinha francesa

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0 Mediterrâneo das tensões

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Alain DENIS: Para falar das tensões no Mediterrâneo ou do Medi terrâneo das tensões, hoje, é preciso antes de mais nada escolher uma linguagem. Arist óteles é o primeiro a utilizar, para designar a bacia mediterrânea, a expressão “grande lago de paz”. Eu o suspeito de só ter querido ouvir os gritos dos golfinhos cegos de um olho, que nadam em círculo sempre no mesmo sentido, para não perder de vista a costa com seu único olho vidente. Seria melhor utilizar a linguagem mais combativa de Temístocles em Salamina, de Agripa em Actium, dos atores da batalha de Lepanto ou da de Malta em 1941, para quem o Mediterrâ neo é o mar das guerras? Seria friomelhor enfim usar essa liguagem atual, pudica e “friorenta” e falar do renta a ponto de fazer gelar a água nas clepsidras mar das crises, do tempo da crise, crise que temos a responsabilidade de analisar, compreender e tentar resolver? Todos aqui aderem ao desejo de Aristóteles; infelizmente cada um de nós pode constatar o fato polêmico. A prova disso é que estamos cotidianamente em presença do contraste permanente entre a , aspiração da maioria à paz e a realidade de hoje. Essa realidade da bacia mediterrânea é a superposição permanente, ou quase permanente, de conflitos, ditos limitados ou localizados, entre países limítrofes ou próximos. São guerras civis entre facções rivais, guerras religiosas entre tendências confessionais diferentes, e, há quinze ou vinte anos, a emergência do terrorismo, nacional ou internacional; fi . assim que nos quarenta últimos anos, entre 1945 e hoje, cito-os fora da ordem cronológica, apareceram os conflitos árabe israelense, franco-argelino, anglo-franco-egípcio, greco-turco, e depois as oposições latentes e permanentes que existem ainda agora entre Argélia e Marrocos, Tunísia e Líbia, sem esquecer as sequelas de caráter terrorista dos problemas palestinos e da revolução iraniana, ou ainda da guerra Irã-Iraque. É verdadeiramente demais! Fora de qualquer interpretação política, por natureza conjuntural e fugitiva, pode-se discernir quatro fatores de crise: • a velha oposição entre os mundos crist ão e muçulmano, que remonta ao século VII, mas que parece hoje em vias de reativação. a situação particular do Estado judeu e sua oposição com os países islâmicos que o cercam .

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o desequilíbrio económico entre o mundo industrial relativamente rico no Norte e o mundo em desenvolvimento relativamente pobre no Sul. o fator demográfico: crescimento galopante de um lado, estagnação e até recessão do outro. No plano geográfico, um dos parâmetros essenciais em mat éria de estrat égia, o mar Mediterrâneo apresenta duas características fundamentais: é a zona de encontro entre a relaçã o Norte-Sul e o confronto Leste-Oeste, há quarenta anos; é o fracionamento dessa bacia em três bacias menores . cujo acesso pode ser facilmente limitado ou proibido por qualquer uma das nações costeiras (como, atualmente, na bacia c e n t r a l . No domínio militar, e particularmente no domínio naval, dois tipos de nações est ão presentes nessa zona: as nações costeiras, evidentemente, mas também as nações n ão costeiras, entre as quais as duas mais potentes forças armadas mundiais: os Estados Unidos da América e a União Soviética. No Mediterrâneo, a marinha americana tem em média dez grandes vasos de guerra, quatro submari-. . nos de ataque de propulsão nuclear, seis embarcações anf íbias com 1.800 marines a bordo, uma dezena de barcos de apoio, uma cen tena de aviões embarcados, dos tipos mais modernos (Corsaire 2, F-14 ) e recursos complementares. A marinha soviética também est á representada por um imponente conjunto de navios: 8 vasos ; de guerra, 6 submarinos de ataque, 20 barcos de apoio e aproximada , mente 8 coletores de informações muito ativos e muito discretos. Quanto às nações costeiras, citemos ao norte os espanhóis, os franceses e os italianos. Os italianos têm toda a sua marinha no Mediterrâneo, enquanto os espanhóis e os franceses devem alimentar duas frentes, a fachada atlântica e a fachada mediterrâ nea. Mas a França dispõe aqui - no Mediterrâneo da potência mais concreta e mais importante depois dos Estados Unidos da Am érica, porque ? é a única detentora de porta-aviões e aviação embarcada, único ins- . trumento que permite, se não modificar o evento, ao menos ter uma chance de influir no curso da evolução do acontecimento. A leste, duas marinhas de uma certa importância: a marinha grega e a marinha turca. Mas estas estão atualmente mais ocupadas em opor-se uma à outra do que em trabalhar juntas no interior da .aliança à qual pertencem. Na margem sul da bacia, verifica-se a emergência de forças armadas, principalmente aero-terrestres, mas também na-







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vais, que constituem uma ameaça muito séria. Graças às rendas do petróleo, certos países da margem sul adquiriram, nesses últimos quinze anos, um potencial militar extremamente importante. E assim que a Líbia dispõe hoje de um número de aviões mais ou menos equivalente ao de toda a força aérea francesa, de maior quantidade de mísseis mar-mar do que o conjunto de nossas forças navais no Mediterrâneo. Os riscos de tensão e de confronto são variáveis, de acordo com o lugar e a evolução da conjuntura, e reforçados pela difusão do terrorismo e as reações que este acarreta. Por exemplo: o assassinato de cidad ã os israelenses, na marina de Larnaca, seguido da destruiçã o, na Tunísia, da sede da OLP, pela avia ção israelense; o sequestro do Achille- Lauro, seguido do sequestro do Boeing 737 egípcio. Cito esses acontecimentos porque eles apresentam a particularidade de assinalar a aparição do fato terrorista sobre o espaço marítimo, o que é extremamente inquie-

tante. Esse mar Mediterrâneo tornou-se pois, outra vez, a encruzilhada mais instável do planeta. A curto prazo, n ão se pode ter nenhu ma ilusão sobre perspectivas de melhora. A questão libanesa engendrou um acúmulo de rivalidades, ódios e exasperações. É triste dizer que, para o Líbano, que n ão tem um exército suficientemente poderoso, é definitivamente um exército estrangeiro que restabele cerá a calma e, conseqiientemente, a paz. Os israelenses não o conseguiram, será agora a vez dos sírios... Na lógica do episódio revolu cion á rio iraniano, e em clima de paix ã o religiosa , a guerra Irã-Iraque suscita o equívoco do comportamento, já ambíguo, de certas nações costeiras vizinhas. A Líbia , enfim, no centro da bacia, conduz uma açã o no mínimo dinâ mica e às vezes passional, mas representa de qualquer modo um fator de desequilíbrio no Mediterrâ neo e fora dele. A Líbia pesa aqui, neste cen ário mediterr âneo, com o peso de suas forças armadas, simultaneamente sobre a fronteira oriental com o Egito, sobre sua fronteira ocidental com a Tunísia do presidente Burguiba e sobre as orlas setentrionais do coração da África. Nesse dif ícil contexto mediterrâneo, a França tem por ambiçã o conservar sua liberdade de ação e levar sua ajuda àqueles que, por razões de tradição, história ou política, partilham com ela interesses ou amizade. Ela procura também reduzir os antagonismos e apaziguar as querelas. Ê o que ela faz e continua a fazer há três anos no Líbano, por sua conta e risco, usando como meios de ação essenciais suas forças marítimas no Mediterrâneo. A título de exemplo, nos

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anos de 1983 e 1984, mantivemos diante das costas libanesas até 14 vasos de guerra, entre os quais um porta-aviões, durante 245 dias, isto é, oito meses sem interrupção, isto é, também, a manutençã o da presença, na vizinhança dessas costas amigas, de 4.000 mari nheiros, duas vezes mais que as tropas em terra, e se levarmos em conta o jogo dos revezamentos e substituições, sã o 20.000 jovens marinheiros que há três anos operam ao largo de Beirute, nas águas

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libanesas. Para concluir, gostaria de dizer que os sinais extraordinários de simpatia e afeição de que fomos cercados durante essa longa estada de três anos no Líbano, e a ajuda que as pessoas desse país pediram espontaneamente aos nossos cidad ãos e às nossas forças são, no meio das provações que lá experimentamos, um motivo para pensarmos que, lá como em outros lugares, nossa ação não é in ú til.

C. OCKRENT: Agradeço ao Almirante Denis. Professor Fernand Braudel , depois de tudo o que o sr . acaba de ouvir , gostaria de fazer lhe por minha vez a mesma pergunta que Mareei Aymard : Nos dias de hoje, como reescreveria o sr . “La Méditerranée”?

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Veneza e Bizâncio F. BRAUDEL: Essa pergunta é t ão dif ícil que nã o responderei de maneira exata. Nesta manhã, um de meus amigos, um de meus colegas, quase ouso dizer um de meus alunos, me lançou um desafio. Não sabendo o quanto a sua pergunta podia me perturbar, ele me disse: “Se o sr. tivesse que recomeçar La M éditerranée, escreveria de novo o mesmo livro de 1947?” Evidentemente, ele não se d á conta da amplid ão da pergunta que me faz: Passei vinte e cinco anos escrevendo o primeiro La M éditerranée, ao menos uns quinze anos para esquecê-lo, hoje já o esqueci completamente. Algumas vezes, tenho pesadelos. Naturalmente, n ão me vejo no inferno, mas no purgatório; e no purgatório sou condenado a reler La M éditerranée. Os srs. não imaginam em que estado de tensão, de amargura e de dificuldades eu fico! Pois bem, agora me perguntam: “E se o sr. tivesse que recomeçar La M éditerranée?” Mas eu recomecei La M éditerranée. Depois de 1949, quando o livro foi publi cado, continuei ainda durante cinco ou seis anos a frequentar os

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depósitos de arquivos. Eu tinha a id éia, bastante má, de que não havia coberto suficientemente o espaço cronológico, de que não devia começar em tomo de 1550 para ir até 1600, mas era preciso começar pelo menos em 1450. Passei meses assim, seja nos arquivos de Veneza, seja nos de Simancas, procurando os documentos de antes de 1450. E, além do mais, quando em 1963 tratou-se de traduzir meu livro para o inglês, tive a vergonha de não dar conta de tudo o que se publicara a partir de 1949. O acaso me ajudou muito, e, naturalmente, sempre é preciso pagar as vantagens que se recebem. Tive muitos alunos discípulos, como se diz e sobre o que trabalharam eles? Sobre o Mediterrâneo. Conseqiientemente, por volta de 1960, La M éditerranée precisava de ser revisto. Trabalhei durante um ano e refiz um terço do livro. O que Maurice Aymard me pede hoje não é refazer um terço do livro, mas o livro inteiro. Ele me pede demais! Se eu tivesse que refazê lo e com a ajuda das personalidades que est ão nesta tribuna, seria f ácil eu tentaria começar, não em 1450, mas lá pelo século XI ou XII. Eu estaria errado, é claro. Depois, iria, como o Almirante Denis, at é 1985. Naturalmente, levaria outros vinte e cinco anos, mais ou menos. Como nasci em 1902, podem imaginar que dificilmente eu poderia acabá-lo! Mas vejo muito bem como eu procederia. O Mediterrâneo é por si só um mundo, logo uma espécie de espaço experimental; e penso que, sempre que a observação é possível, e ela não o é em relaçã o a séculos demasiadamente longínquos, percebe-se que sempre há uma regiã o do Mediterrâneo que prevalece sobre as outras e se nutre das outras. No tempo do Império Romano, o conjunto do Mediterrâneo se encontra unido pela primeira vez: Diz se: “O Mediterrâneo tomou-se um lago romano.” É uma boa f órmula; não é completamente verdadeira, mas quase. Ora, nesse mundo que é o Império Romano, verdadeiramente um “mundo em si”, há uma região, a de minha vizinha, a Sra. Reitora e Chanceler das Universidades de Paris, que prevalece sobre esse pobre mundo ocidental; porque só se brilha e só se floresce quando se exploram os outros. E a sra. sabe que Bizâncio, cujos ardores, luzes e faustos a sra. celebrou, não deixa de explorar o mundo ocidental e o mundo mediterrâneo. A sra. está convencida ou não?

F. BRAUDEL: A sra. pensa que, se não houvesse uma preponderância por parte do Ponto Euxino ou de Bizâncio, teria havido uma preponderância em outro lugar. Nós, no Ocidente, se nós nos tivéssemos arranjado, nós teríamos explorado o Oriente.

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H. AHRWEILER: Sim, inteiramente, mas acho que Bizâncio fez bem! Porque foi assim que o Mediterrâneo se constituiu.

H. AHRWEILER: Os srs. ainda n ão estavam lá! F. BRAUDEL: Sim, est ávamos. Há uma cadeia que remonta, a partir da sra. como de mim, que penetra muito longe no passado e lá se perde. Estamos representados no século II depois de Cristo por muito mais pessoas que pelos membros de nossa família atual; logo, os srs. estavam lá e os srs. nos exploraram .

H. AHRWEILER: Cada um tem sua vez! F. BRAUDEL: Essa é a boa expressã o, a f órmula ideal. Explora-se, fica se rico, adormece-se, tem-se necessidade de ser servido pelos outros, e, num certo momento, os outros despedaçam o explorador. Vejam os srs. como é grave o que eu digo, porque, nas rupturas do mundo mediterrâneo, não se enganem, não foi o Islã que prevaleceu a Sra. Ahrweiler não ousou dizê-lo * mas Bisobre Bizâncio zâncio sobre o Islã, não apenas com as galeras, mas também com o fogo grego. Os srs. se arranjaram muito bem naquela época!

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H. AHRWEILER: E com o dromon! F. BRAUDEL: E com o dromon . Ali ás, poderíamos falar um pouco dele, seria útil. Os srs. percebem o que é um dromon? H. AHRWEILER: Percebo um pouco melhor, agora. Mas gostaria de saber quantos anos dura uma galera.

F. BRAUDEL: Antes do século II, não sei lhe dizer. No século II, talvez vinte e cinco anos, desde que a galera não viaje durante o inverno. Em Veneza, no século XVI, todas as galeras são postas a seco sob as arcadas do arsenal; depois, quando se retoma o mar no mês de abril, elas são preparadas, armadas e lançadas no movimento contínuo do Adriá tico até o mar Egeu. Assim, as galeras duram vinte e cinco anos quando tudo vai bem, e quando tudo vai mal, dois ou três anos. A sra. acha que o dromon não é satisfatório? H. AHRWEILER: N ão, mas penso que a frota dos dromons não podia existir isoladamente, sem ser completada por uma série de outros

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barcos bem menores. Esses pequenos barcos redondos constituíram as frotas de comércio conduzidas justamente pelos dromons, que fizeram a grandeza de Bizâncio, isto é, que permitiram a Bizâncio

H. AHRWEILER: EU conto venezianos, italianos, etc, e lhes dou uma informação: quando os Cruzados chegam pelo Danúbio, Bizâncio, que é apenas um Estado centralizador, quer coletar o imposto e o passagio; envia seus notários para contar os barcos que transportam os Cruzados e sabemos pois quantos milhares deles havia. Mas en fim, os srs. conhecem o exagero grego!. . .

explorar os outros.

F. BRAUDEL: Alain Guillerm é obrigado a lhe dar razão, primeiro por cortesia, e depois porque a sra. conhece melhor a questão que ele. Assim, a sra. tem toda a razão. Mas aconteceu com Bizâncio uma coisa desagrad ável, de que a sra. não falou, se não me falha a memória: Bizâncio pilhou o mundo ocidental, mas numa certa hora foi pilhado e comido por fora, porque nós venezianos . . . A . NOUSCHI: Gostei de “ nós venezianos”. . .

F BRAUDEL: Forçando um pouco, pode-se dizer que Veneza é o mundo oriental, mas ela já é verdadeiramente o mundo ocidental.




F. BRAUDEL: O sr. procura um apoio exterior à assembléia, nã o sei se o sr. o encontrará, mas o que diz é perfeitamente correto. N ão vou me divertir provocando-o. Falando seriamente: note bem que a fortuna dos povos do Mediterrâneo é exterior ao Mediterrâneo; eles exploraram os outros.

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A. NOUSCHI: A fortuna sempre se faz explorando o outro.

F. BRAUDEL: Estou sendo atacado por todos os lados! C. OCKRENT:

É

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. . e Istambul

uma pergunta.

F. BRAUDEL: Será que os pobres do Mediterrâ neo vão ganhar? A. NOUSCHI: é uma pergunta que, parece-me, está mal formulada . F. BRAUDEL: Todas as perguntas são mal formuladas quando nã o se sabe a resposta. A. NOUSCHI: Segundo que crit érios alguém é pobre ou rico? Há pouco, o sr. disse que desejava limitar-se aos séculos XVI e XVII. Concordo, mas quero saber se não foram os próprios povos mediterrâ neos que se empobreceram e dilapidaram a extraordinária for tuna que tinham acumulado; se não deixaram de levar em consideração um certo n ú mero de elementos e, especialmente, digamos francamente, o fato de que o Mediterrâneo lhes escapava. Entre 1640 e 1750, os mediterrâ neos nã o dominam mais o seu destino. Não se-

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guram mais as duas extremidades da cadeia. F. BRAUDEL: Sim, mas isso acontece muito lentamente e eles n ão o percebem .

I

R. MANTRAN: Quem são os mediterrâneos, nos séculos XVI e XVII? Nem os venezianos, nem os genoveses. Apenas aqueles que controlam os mercados, as duas extremidades da cadeia, desde o Ocidente at é os confins do Mediterrâneo no Oriente Próximo, têm o poder: sã o os otomanos. Esquematizando, pode-se dizer que sã o eles os herdeiros diretos dos gregos, que ocupam o lugar dos bizantinos. Gertamente, Istambul é a cópia, não diria id êntica, de Constantinopla, pois ali se encontra uma continuidade na adaptação de uma certa forma de poder, sistemas de pensamento, sistemas comerciais e económicos . . . mas com um outro ideal. A palavra “ otomano” quer dizer muito mais que “ turco”. Ela faz referência à grandeza do Império Otomano, celebrada pelas relações de viagem dos ocidentais. Esse mundo que vem do Oriente e que se impõe, rico de suas conquistas, drena com ele as riquezas e domina o mercado; é preciso negociar com ele.

F. BRAUDEL: Não creiam em Robert Mantran. N ão se deve nunca acreditar nos historiadores, principalmente nos especialistas. Mantran acaba gostando do Imp ério Otomano. Ora, o Império Otomano

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n ão conseguiu nem tomar Marrocos, não desembocou no oceano Atlântico. Pobre Império Otomano! Com dificuldade, conseguiu desembocar no mar Vermelho, tomou-o e depois perdeu-o; desembocou no golfo Pérsico, mas n ão no oceano Indico. Ent ão, um grande império que chega às portas do paraíso, às portas da riqueza e que n ão consegue forçá-las . . . Não concorda? R. MANTRAN: É verdade, mas Bizâncio não se saiu muito melhor!

F. BRAUDEL: A sra. salta os séculos, mas recuando. H. AHRWEILER: SOU obrigada a isso. É importante dizer ; na duração bizantina, h á tempos diferentes, tempos precipitados e outros que são lentos. Façamos uma pausa em um primeiro período, até o século VII. Queira-se ou não, Bizâ ncio está em todos os lugares. Um texto do século VI, de Comas, prova isso. Esse monge vai ao oceano Indico, e Indicopleustes, por sua vez, não fala apenas da seda, mas escreve um tratado de cosmografia, isto é, a descrição do mundo segundo a concepção bizantina. “O Império”, escreve esse monge, “será eterno porque foi o primeiro a crer em Cristo”, o que n ã o é surpreendente da parte de um monge, mas sobretudo, e é esse ponto que eu sublinho, “porque em sua moeda negociam todas as na ções”. F. BRAUDEL: Muito bem, o Império Bizantino tem a moeda de ouro, mas prefiro a seda à cosmografia.

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H. AHRWEILER : Mas como assim? A. NOUSCHI: Nesse momento, mesmo se o Império Otomano tem uma marinha dirigida por gregos, bizantinos . . . F. BRAUDEL: Essa marinha grega continua a existir. A . NOUSCHI: Sim, mas a marinha grega não é a marinha de Bizâncio hoje.

F. BRAUDEL: Há muito tempo que Bizâncio morreu.

H. AHRWEILER: Estamos de acordo. Mas é um monge que escreveu a cosmografia e ele inclui nela pela primeira vez a moeda, como elemento de uma cosmographia! Pois mesmo se Bizâncio não se estende politicamente at é o oceano Indico, encontra-se presente comercialmente, o que é igualmente importante.

À.

NOUSCHI: Não acham surpreendente que nem o Império Bizantino, que dura um milénio, nem o Império Otomano, que dura quatro séculos, consigam conquistar o conjunto do Mediterrâneo? Não seria em razão da própria estrutura, geográfica e territorial, desses impérios?

F. BRAUDEL: Sim, mas com uma diferença: o Império Bizantino durou muito mais tempo e foi muito mais brilhante que o Império Otomano, se não me engano. A. NOUSCHI: Em outra conjuntura.

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H. AHRWEILER: Até o século XII, se quiser, ou XIII . . . Tanto faz.

Maomé e Carlos Magno F. BRAUDEL: A sra . tem razão. Voltemos atrás e importunemos Robert Mantran. O sr. saltou o Islã e nos falou principalmente dos otomanos. Sugiro-lhe voltar às teorias de Henri Pirenne. Fui aluno dele e essa foi para mim uma das ocasiões mais extraordin árias de aprender algo quando eu era jovem . Henri Pirenne pensava que com o impulso mu çulmano através do Mediterrâneo, o “lago romano” passa para o outro lado e se torna o feudo dos muçulmanos, e que o fechamento do Mediterrâneo pelas conquistas muçulmanas acarretou a decad ência do mundo ocidental, assim como o estabelecimento do feudalismo. Sr. Mantran, o que se pensa hoje da questã o?

F«. BRAUDEL: O Império Bizantino viveu muito tempo porque estava no Mediterrâ neo certo, no Mediterrâ neo rendoso, que permite ir at é o cora ção da Ásia, até o oceano Indico. Apesar de tudo, no tempo de Justiniano, houve o drama da seda. H. AHRWEILER: Posso dizer uma palavra, mestre? A coisa está ficando séria. Estão queimando as etapas. Admito que o tempo n ão exista, mas n ã o se deve fazê-lo existir saltando-o constantemente. Bizâncio começa no século IV e dura até o século XV . . . F. BRAUDEL: Ah, n ã o!

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R, MANTRAN: As teorias de Henri Pirenne sobre Maomé e Carlos Magno est ão hoje um tanto ultrapassadas. O Islã e aquilo que exis1

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O Mediterr âneo

XJma Lição de História

Hu do mundo mediterrâneo não são os únicos envolvidos : certos elementos exteriores, invasões bárbaras, etc., contribu íram para o fracionamento da Europa e do Império Romano. O Império Romano se destruiu pelo norte. F. BRAUDEL: O mundo ocidental estava em decadência bem antes das invasões bárbaras; os bárbaros entram no mundo ocidental porque este está em decadência. Assim, isso não modifica nada, n ão é um argumento. R. MLANTRAN: Ê uma constatação. É incontestável, parece -me que a criação desse Império árabe-muçulmano, a partir da segunda metade do século VII e principalmente no início do século VIII, contribuiu para recriar uma potência política, económica, militar e religiosa; naquele momento, ainda não há cisão grave no interior do Islã. Essa unidade dá um peso a esse conjunto territorial e huma no, não completamente islamizado, longe disso, um valor comercial diante da desagregação do mundo europeu. O mundo europeu só vive graças às necessidades dos muçulmanos; de escravos , eviden temente, mas também de matérias-primas, madeira especialmente . Veneza e outras cidades desempenham nesse aspecto um grande pa pel. Criou se um Estado económico poderoso que, como mais tarde o mundo otomano, constitui em polo de atraçã o. Mas não esqueça mos um outro elemento muito importante: o desaparecimento de Bizâncio. A sra. Ahrweiler fala muito do mundo bizantino mediter râneo, mas o que se torna ele a partir do século VII? Limita se à parte norte do Mediterr âneo: mais nada no Egito, nem na Síria, nem na Palestina, nem na África do Norte. Bizâncio vai perder a Sicília, Creta, Chipre, mesmo que exista efetivamente um condom ínio em ... . Chipre posteriormente. Bizâncio reduziu-se mas se vingar á de outra forma. Apesar de tudo, uma potência que pesará consideravelmente sobre a Europa se instala, e graças a ela, a Europa reviverá e se reconstituir á pouco a pouco. Talvez não tenha respondido completamente à sua pergunta . É um debate que vai bem além do simples questionamento de Mahomet et Charlemagne.

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F. BRAUDEL: O sr. respondeu magnificamente, mas entre professores, nós n ão nos poupamos. Tenho uma terrível arma secreta. Nã o acredito muito nela, mas vou apresent á-la, O melhor conhecedor do primeiro Islã e do Islã nos séculos X e XI chamava-se Asthor,

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professor em Jerusalém. Acho sua teoria magnífica. Não sei se ela é exata, mas é verdadeiramente muito bela. Segundo ele, e creio que tem razão, há no Mediterrâneo, em um vasto espaço, oscilações muito longas, seja em direção à prosperidade, seja em direção a uma certa decadência, um mal-estar, mas são mal-estares que duram. Ora, quando os muçulmanos chegam ao Mediterrâneo, são por assim dizer favorecidos por uma espécie de regressão quase geral, que n ão poupa nem Bizâncio, nem o Oriente Próximo, nem o Egito, nem a África do Norte. Uma regressão tal que o Mediterrâneo, contrariamente ao que pensava Henri Pirenne, n ão se torna um “lago muçulmano”. Ele não é o lago nem dos crist ãos, nem dos muçulmanos. Essa espécie de regressão geral não significa que os navios desaparecem do Mediterr âneo, mas que nem a cristandade e nem o Isl ã

venceram.

R MANTRAN: As teorias de Asthor são sedutoras, mas insuficientemente apoiadas. A longa duração não basta mais, é preciso também considerar a parte dos diferentes períodos que se sucedem. Em um certo momento, o mundo muçulmano foi predominante, é verdade; em outro, foi inferior em potência, também é verdade; as oscilações existem , mas são muito mais curtas do que se crê geralmente, muito mais limitadas no tempo, de tal modo que não se pode estabelecer estatísticas ou dados sobre quatro ou cinco séculos, entre o início do Isl ã e sua queda. Claude Cahen faz sobre esse ponto um racio cínio bem mais profundo, bem mais claro que Asthor; ele salienta primeiro os recursos interiores do mundo muçulmano em todos os planos. Cahen pensa que, no plano econ ómico, se ele não pudesse bastar-se a si mesmo, teria força suficiente para obrigar outras potências e atrair para si um certo número de elementos.

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F. BRAUDEL: Felizmente, Asthor n ão est á aqui. Ele se defenderia como um leão!

R. MANTRAN: Geralmente os islamitas não seguem suas teorias. F . BRAUDEL: O sr. disse uma palavra que lhe dá satisfação, mas que a mim inquieta. O sr. diz: é uma teoria que não é “apoiada” . Ê justamente quando não se tem com que apoiar as situações que se lança uma teoria. R. MANTRAN: Devemos estabelecer dados que os outros possam ve rificar. Se não se pode verificá-los, não são mais teorias.

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F. BRAUDEL: A teoria de Firenne suscitou mais estudos e pesquisas do que uma explicação que fosse verdadeira. As teorias são indispensáveis no domínio das ciências sociais, da pesquisa histórica, como em qualquer outra ciência.

ordem médica. Do ponto de vista endémico, o Império Otomano foi um país particularmente insalubre e sofrido. Um paradoxo revelador: a eclosão da medicina ocidental e seus grandes saltos correspondem aos momentos em que as coisas vão mal. É assim que a medicina de Hipocrates corresponde ao início da decadência sanit ária da Grécia. At é o século XIX, a medicina n ão tem controle real sobre as doen ças. O grande período da medicina árabe corresponde a uma época de recrudescimento das epidemias.

H. AHRWEILER: Uma palavra sobre a paisagem humana no momento em que os á rabes chegam. Os bizantinos consideram a primeira batalha entre árabes e bizantinos em Yarmuk como um acontecimento local de nenhuma importância e o Islã como uma heresia cristã como outras nessa parte do mundo.

F. BRAUDEL:

É

verdade, é uma heresia!

H. AHRWEILER: Analisemos o mapa da expansão muçulmana. Ele cobre justãmente todas as populações que se separaram de Constantinopla e da ortodoxia, não somente por razões religiosas, mas também por causa da pressão fiscal imposta a essas populações essencialmente rurais. Estamos pois em presença de uma clivagem endo-bizantina. É

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por isso que eu falava anteriormente dos pobres e dos ricos no interior desse “Estado espesso”. Essas clivagens endo-bizantinas levaram à ruptura total em um certo momento, o do iconoclasmo ( é aliá s o único termo de origem bizantina que sobrevive no vocabulá rio ocidental de hoje ) . É interessante notar que sã o iconoclastas todos aqueles que herdaram a cultura greco-romana e conhecem a Antiguidade que representou o sagrado. Mas os iconodulos são amigos dos árabes porque o comércio se faz por mar e não podem dar-se o luxo de serem privados desse recurso. Chega-se até os árabes para fazer comércio, mas também, como sabemos, para roubar até os despojos de São Marcos em Alexandria e conduzi-los depois a Veneza.

F. BRAUDEL: A sra. é pois a favor dos iconodulos?

H. AHRWEILER: SOU verdadeiramente iconoclasta por natureza , mas inteiramente iconodula no que se refere ao mundo bizantino.

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M. D. GRMEK: Permitam me lembrar a esse respeito a importância do fator biológico. Para fazer a guerra e o com ércio, precisa-se de homens. Ora, nunca se poderia sobrestimar os danos ligados à peste de Justiniano. As Cruzadas foram influenciadas de maneira absolutamente decisiva pelo tifo, o escorbuto e outros acontecimentos de i

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F. BRAUDEL: Hoje, a medicina faz progressos consider áveis. O sr. considera que isso é um sinal de decad ência?

M. D. GRMEK: Não, pois após o início do século XIX, as relações entre a medicina e a ciência se transformaram e o desenvolvimento da medicina não é mais um sinal de agravamento da situaçã o sanit ária. C. OCKRENT: Depois desses fogos de artif ício na tribuna, proponho que passemos às perguntas dos participantes. A primeira, dire tamente dirigida a Fernand Braudel, é feita pelo Sr. Berger, di retor do “ Institut d’ Etudes Á rabes et Islamiques” da Univer sidade de Bordeaux; “O sr . declarou preferir a história compa rativa à história tradicional que o sr. praticou outrora. A histó ria comparada das civilizações está bem implantada na França e no mundo, entra na metodologia?”

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A história comparativa, longa duração da história F. BRAUDEL: Sim, prefiro a história comparativa , que é para mim a hist ória segundo a longa duração. Se eliminarmos os acontecimen tos, os homens que atraem um pouco demais as luzes da história tradicional, se n ã o levamos em conta as flutuações económicas, pol í ticas, etc., ficamos em presença de uma história profunda que se deformá muito lentamente; de modo que a história de longa duração apresenta espetáculos que não são tão estranhos uns aos outros e que podemos comparar entre si. Afirmo que não há história cien tífica possível se não se emprega o método comparativo. Ora, se

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lin í lUtmoN \i H visões da história tradicional, o que comparamos? Aenillettlmentos da época de Napoleão III com acontecimentos da é poca do I ,ufs XIV, o que é uma heresia, um anacronismo. A hisl ó i‘ln ii ílo ve as possibilidades que eu lhe abro, com ou sem razão.

dade. Quando eu me surpreendia com isso, respondiam-me: “É um assunto ‘católico’; o papa é polonês e católico; entre nós é um assunto entre ortodoxos.” Quando Chipre foi invadida, quais foram as reações na França? . . . Assim, sã o os acontecimentos de 1204 ( tomada de Bizâncio pelos venezianos ) que explicam não só as atitudes de hoje, mas também as decisões.

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Eu gostaria de que esse colega de Bordeaux viesse at é aqui, porque ccrtamente ele quer dizer algo diferente daquilo que estou respondendo.

F. BRAUDEL: É um exemplo magnífico! Naturalmente, eu sempre elogio os exemplos que parecem me dar razão. Tomemos a história da Reforma no século XVI, a ruptura do mundo ocidental em dois, que se faz de modo curioso ao longo do Reno, ao longo do Dan úbio, isto é, ao longo da antiga fronteira de Roma. Essa fronteira custou a acabar. Prisioneiro na fortaleza de Mainz, eu olhava as igrejas jesuíticas que subiam no horizonte; e eu estava certo de uma coisa, é que o mundo latino tinha reconquistado a margem do Reno, margens importantes por razões muito profundas de tele-história. A história comanda a dist âncias prodigiosas. A África do Nor, abriu te, moldada por Roma e Roma o fez melhor que nós suas portas, dificilmente é verdade, ao Islã. Mas não se esqueçam de que antes o mundo oriental tinha passado por lá e que ele custa a acabar. No tempo de Santo Agostinho, os camponeses ainda falavam púnico. Encontram-se os mesmos fenômenos na Espanha meridional, sob a conquista árabe; a Andaluzia sofre por muitas razões, mas também por razões longínquas. Existe pois uma história de longa duração que não se deve negar de modo algum, ainda que seja dif ícil de ser identificada; mas ela corre o risco de ser muito cômoda para explicar os acontecimentos. É possível abusar da his tória de longa duração. Nã o respondemos talvez à pergunta de nosso colega de Bordeaux, mas é o que acontece na maioria das vezes.

M. BERGER: O sr. respondeu que era preciso praticar a história segundo a longa duração. O que me impressionou há pouco é que, à pergunta de Maurice Aymard referente a uma reescritura possível de sua obra sobre o Mediterrâneo, o sr. respondeu que começaria muito mais cedo e iria muito mais além . . . De fato é esse o problema quando se quer fazer história comparativa. O sr. estabelece uma distinção entre a história comparativa e a história comparada?

F. BRAUDEL: É excessivamente sutil, comparada e comparativa. Para elucidar sua pergunta, seriam necessá rias horas de discussão. Entre tanto, tomemos um exemplo compreensível para todos. A história de longa duração, eu a encontro subjacente à história que a França est á vivendo. Essa história de longa duração estrutura e comanda a história da França. Muitos políticos têm a impressão de que os historiadores de amanh ã têm os olhos fixos neles. Na realidade, o que importa saber é se as decisões que se tomam cotidianamente no plano político correspondem à direção da França na hist ória profunda que é a sua e que é a história do mundo. Para mim, a história profunda, a história de longa duração estrutura e digo “estrutura” no sentido de “comanda” as histórias superiores. Os srs. não são obrigados a concordar com meu ponto de vista. Mas , a meu ver, uma história que nã o permitisse concluir a menor regra tendencial parece-me ser uma distração e não pertencer a um dom ínio científico razoável. O que eu digo é uma defesa pessoal e, repito, os srs. não são obrigados a concordar. A sra. concorda talvez, sra. Ahrweiler. Ela é minha vizinha, tem a obrigação de me ajudar.



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H. AHRWEILER: Tomemos um exemplo na atualidade. Quando os últimos acontecimentos na Polónia se produziram, toda a França demonstrou sua solidariedade. Os mesmos acontecimentos passaram desapercebidos em meu país de origem, onde o povo adora a liber-



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, .

C. OCKRENT: O sr . Duval , engenheiro de “software” , pergunta ao Doutor Grmek : “Falando do desaparecimento de doenças liga das ao fator humano, o sr. pensa que a evolução do polimor fismo genético das populações pôde acarretar um aumento da resist ência às doenças?”

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M.D. GRMEK: O problema do desaparecimento da peste ainda nâo foi completamente resolvido. A peste não é uma doença humana; é uma doença dos roedores que, durante períodos históricos rela tivamente breves, foi muito nefasta para o homem. Um parasito nã o tem interesse biológico em matar quem o abriga.

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Biologia e longa duração M.D. GRMEK: Precisemos logo de saída que o fator humano é toda ação do homem sobre seu meio. Os animais não agem sobre o meio, mas adaptam-se ao meio, de um modo darwiniano ou lamarckiano. O homem pode agir ativamente sobre seu meio e sobre si mesmo. Precisemos em seguida que o fator biológico representa o que o homem não controla. Falaremos agora apenas de doenças infecciosas, já que a pergunta diz respeito a um fenômeno de imunidade. Para responder à pergunta, o que nos interessa aqui é a resistência do homem aos parasitos. Existem hoje, digamos para simplificar, duas grandes teorias imunológicas: uma considera que o homem pode criar sua imunidade, qualquer que seja a estrutura química do atacante; a outra, que ele deve dispor de algo pr é-existente que corresponde ao antígeno. É essa última teoria, neodarwiniana, que responde melhor à pergunta feita. Se existe um polimorfismo genético, é então muito provável que a possibilidade de desenvolver uma imunidade específica seja maior, que haja mais re cursos no genoma para responder a um ataque do exterior. Mesmo se não - está definitivamente demonstrado, tudo leva a crer que o polimorfismo genético é favorável ao aumento da imunidade. Até o século XIX, aproximadamente, os medicamentos, exceto o quinino e dois ou três outros, não tinham nenhuma ação sobre as doenças de importância social. A medicina era pois impotente para intervir sobre a morbidade geral e sobre a mortalidade, mas o homem podia agir através de sua alimentaçã o. Existe uma uni dade alimentar do mundo mediterrâneo: o óleo e o trigo, antes do milho e da batata. Foi graças ao uso do óleo que as populações mediterrâneas n ão sofreram de arteriosclerose e outras doenças do mesmo tipo, e isso at é um passado recente. Se as doenças cardíacas eram relativamente pouco frequentes, a insuficiência do aporte cárneo provocou, até o século XVIII, mais ou menos, uma grande fragilidade em relação às doenças infecciosas. F. BRAUDEL: Pode-se separar o biológico do humano, o humano do biológico? Uma doença desaparece em razão da ação humana ou por causa de um fenômeno espont âneo e profundo da biologia? O desaparecimento da peste lhe d á ou não razão?

A peste humana não teria podido existir se não fosse ao mesmo tempo e essencialmente uma doença dos roedores. A “peste” de Atenas não era uma peste. Houve apenas três grandes epidemias de peste, no verdadeiro sentido: a peste de Justiniano, no século V; a peste negra, no século XIV, que vai causar, durante muito tempo, problemas muito graves, ainda que o tifo exantemático não lhe seja inferior por seus efeitos maléficos; depois a peste da Mandch úria, no século XIX, que ainda grassa nos Estados Unidos; as vítimas humanas são atualmente raras, mas a população dos roedores selvagens se encontra fortemente afetada. Não sabemos ver-

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dadeiramente por que a peste se desenvolve ou desaparece; muito provavelmente, intervêm mutações bacterianas, fatores alimentares, hábitos, etc. F. BRAUDEL: O que o sr. pensa do cólera?

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M.D. GRMER: Ao contrário da peste, o cólera é uma doença humana, endémica em certos territórios, sobretudo na Índia gangética . Essa doença aparece pela primeira vez na Europa em 1830; est á ligada a certos hábitos no uso das águas. Seu desaparecimento do mundo ocidental deveu-se a medidas de higiene coletiva.

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C. OCKRENT: Uma pergunta dirigida pela sra. Vincent à sra. Ahrweiler : “ Milan Kundera estabelece uma comparação entre a civili zação russa ou soviética e a civilização bizantina, no que diz respeito à sua concepção das liberdades , concepção radical mente diferente da civilização ocidental. O que pensa disso?

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Moscou, nova Bizâncio? H. AHRWEJLER: Não me surpreende que Milan Kundera se interesse pela longa duração. Conheço um pouco sua mente e sua maneira de formular as questões. Mas sejamos um pouco bizantinistas. O homem antigo sempre esteve a serviço da medida, o homem

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Uma Lição de História

O Mediterrâneo

sendo a medida de todas as coisas, a medida de todas as coisas sendo o homem: evidentemente, são palavras da Grécia antiga. Sur preende ver que a posteridade da Antiguidade grega, logo o homem bizantino, esqueceu a medida para pôr-se a serviço da ordem. É o termo taxis, que quer dizer lugar ou ordem, que caracteriza toda a estrutura e a pirâ mide do Estado bizantino, que acabava no cume, isto é, no imperador. Não se podia contestar essa ordem sem ser iconoclasta, sem ser acusado de barbárie; e havia duas espécies de bárbaros: aqueles que, no exterior, contestavam a ordem política territorial de Bizâ ncio, mas também aqueles que contestavam o que n ós chamaríamos hoje o “regime”, os bárbaros internos. Mas, evidentemente, o que estava posto em questão não era o “regime”, eram todos os valores, todo o património, todas as tradições que faziam a quintessência do mundo bizantino. Assim, se o mundo russo é um mundo ortodoxo, ou seja, que tem como ancestral Bizâncio, é natural que se encontre nele o reflexo do respeito da or dem. A concepção das liberdades das civilizações russa, soviética ou bizantina é pois radicalmente diferente da nossa e quero lem brar isto: o termo “democracia”, inventado pelos gregos, significava a tomada de palavra e de responsabilidade pelo demos no interior da cidade, enquanto que esse mesmo termo de “democracia” significava em Bizâncio, durante toda. a época bizantina, a anarquia e a tomada do poder pelo povo.

main e o Sporting-Club de Toulon. Quando as coisas vão mal nos est ádios, interditam-se os campos e vai se jogar em outro lugar, em terreno neutro. O Mediterrâneo d á um pouco essa impressão. Depois das épocas longínquas que evocamos, um fato novo apareceu: as forças nucleares em diferentes países próximas do Mediterrâ neo (seis, talvez sete agora ) , a União Soviética , a França, os da outra margem, a margem atlântica, os Estados Unidos da América. Esse armamento, afinal, cumpriu seu contrato. Há 40 anos, não há mais guerra maior, não há mais confronto direto e maciço com todos os seus horrores; mas esse instrumento de proteção contra a guerra secretou, por seu próprio sucesso, ações indiretas às quais assistimos, principalmente no Mediterrâneo. Os jogadores não se enfrentam mais em. seu terreno ou no do adversá rio dueto, mas em terreno neutro, no Mediterrâneo. Em outras palavras, o Mediterr âneo existe ainda, mas os povos mediterrâneos n ã o são mais seus únicos proprietá rios. Nós tentamos fazer prevalecer nossos direitos e manter à distâ ncia aqueles que são demasiadamente invasores.

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C. OCKRENT: Jacques Ruget , jornalista, faz ao Almirante Denis uma pergunta próxima daquela que eu fazia há pouco: “O Mediter râneo ainda existe?” Esse jornalista esteve no Lí bano. “Seguin do-se a história no cotidiano, tem se a impressão de que, com a agonia daquele paí s, uma certa id éia afetiva e cultural do Mediterrâneo como lugar de encontro, intercâmbios e coabita ção, está morrendo. A partilha de Chipre, a situação dos pa lestinos, o desaparecimento das comunidades judias nos paí ses árabes ribeirinhos seriam outras demonstrações do fato. O que pensa o sr.? Será que o Mediterrâneo existe ainda?”

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C. GCKRENT: Esta última pergunta nos reconduz à história ou antes a um debate sobre a história , mais teórico e mais tradicional. A pergunta é feita por Christine Laurent, arquivista: “ Atual mente, certos historiadores, valendo-se da longa duração, que rem isolar a Revolução Francesa e até dizem não compreendi-* la. Outros não querem tratá-la diferentemente das outras é po cas. Em uma perspectiva de longa duração, não se poderia an tes incluí la nos séculos XV 111, X I X , a ascensão da burguesia, por exemplo?”

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E a Revoluçã o o Francesa >

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A autonomia dos povos mediterrâneos r

A. DENIS: Quanto a mim, respondo que sim. Gostaria de aludir ao jogo que vai haver esta noite em Toulon, entre o Paris-Saint-Ger-

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F. BRAUDEL: SOU obrigado a responder um pouco rapidamente a essa pergunta muito interessante e muito claramente formulada. Christine Laurent é arquivista, ela é pois do nosso of ício. Ela surpreende-se que, sob pretexto de longa duração, suprima-se a Revolução Francesa. Acaba de sair um livro, Comprendre la Révolu tion, que incorre nesse defeito ou nesse processo. Mas a Revolução Francesa deve ser estudada sob todas as suas formas; na perspectiva do século XVIII, evidentemente, mas também na do século

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Uma Lição de História

O Mediterr âneo

XIX. A Revolução Francesa só existiu em sua realidade, em sua linguagem, em algumas de suas verdades, um século depois de 1789. Foi preciso um século! Se é útil estudar a Revolução Francesa na longa duração, pode-se estud á-la também na breve ou na média duração. Estudar a Revolução Francesa é ainda hoje, como no tempo da minha juventude, por volta de 1920, tomar, por assim dizer, uma posição política. Na verdade, a Revolu çã o Francesa, apesar do seu próximo bicentenário, não est á mais em evidência; não é sua culpa, nem a dos seus historiadores!

cesso de Jenner salvou mais vidas humanas do que a Revolução Francesa e as guerras napoleônicas destruíram, o que foi providencial. Quanto à Revolução Chinesa, os grandes sucessos na duração e na qualidade de vida são devidos às realizações da medicina moderna. Eles nada têm a ver com a Revolução e no entanto são imputados à ideologia.

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C. OCKRENT: Obrigada ao Doutor Grmek por essa informação que repõe as coisas em seus lugares. Antes de nos sé pararmos até amanhã áe manhã, deixemos as últimas palavras do dia a Ferimiíd Braudel.

A. NOUSCHI: Quando nos interessamos pela Revolução Francesa na longa duração, percebemos que ela acaba na exaltação do nacionalismo . . . nos países do Oriente Próximo, nos países da África . . .

F. BRAUDEL: A Revolução Francesa já tem suficientes responsabilidades para que se lhe atribua também a da exaltação dos nacionalismos. Mesmo sem ela, tudo teria acontecido assim. Quando eu ensinava na América Latina, falava da Revolução Francesa, não segundo a longa duração, mas seguindo Mathiez, mostrando os personagens da Convenção iguais a homens comuns. Eu fazia o meu trabalho, e no fim das aulas os estudantes literalmente me cercavam e me diziam: “No nosso caso, a Revolução Francesa, nós a esperamos!” São realmente palavras muito belas. Contra a Revolução Francesa, e pois na superf ície do mundo, há a Revolução Russa. Sua lembrança se apaga consideravelmente no mundo dos historiadores e na opinião pública francesa . . .

Balanço F. BRAUDEL: Deixei-me levar por uma discussão um tanto viva! Para concluir o tema “Mediterr âneo”, precisaríamos ainda de muito refletir e muito discutir. Gostaria de que cada um dos senhores dissesse se nossos debates, que poderiam ter sido melhores, mas que n ão deixaram de ser apaixonantes, lhes d ão ao menos uma certa satisfação. Estamos no bom caminho?

Ho AHRWEILER: Esperava-se julho e foi outubro ou novembro que veio. A. GUILLERM: Para mim, a Revolução Francesa é filha do século XVIII, filha de Colbert e de Vauban, da criaçã o do Estado centralizado moderno, que ela terminou, de certo modo. Ê no elogio f únebre de Vauban por Fontenelle que se acharão as fontes da Revolução. . . (

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F. BRAUDEL: Pode-se dizer também da Revolução Francesa que ela data das guerras de religião, que a Liga . . . A, GUILLERM: A Liga não criou um Estado centralizado.

M.D. GRMEK: A Revolução Francesa foi onerosa em vidas humanas, mas é justamente ent ão que se introduz a vacinação. O pro-

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Y.M. GODINHO: Resta uma certa insatisfação ao fim dessa discussão. Seria necessário voltar ao caso dos Impérios. Chegaram eles ou não às portas do paraíso? No momento da expansão islâmica, o Atlântico ainda não existia. Quando os otomanos reinavam , o Atlântico estava se construindo, mas ignorava-se que o novo mundo formaria um continente contínuo, logo ele não era atraente. Poderíamos voltar ao oceano Indico. Os Impérios em quest ão tinham uma estrutura apoiada sobre uma rede de caravanas e tropas terrestres, de modo que seus horizontes e sua maneira de pensar a estrat égia era terrestre e não oceânica, não marítima. Seria necessário voltar também às resistências culturais. Maurice Aymard lembrava há pouco que a religião partira do Mediterrâneo para chegar at é as margens do Atlântico. Mas os estudos feitos atualmente mostram que a cristianização está longe de ter sido completa e que velhas crenças persistem de uma maneira surpreendente. É preciso enfatizar também que o Mediterrâneo resistiu por muito tempo às transforma ções trazidas pela navegação marí

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Uma Lição de História

O Mediterrâneo

tima. É assim que a distorção em latitude persiste em toda a cartografia do Mediterrâneo até o século XVII. Algumas inovações entretanto: os mediterrâneos tomam as “naves” e deixam as galeras para chegar até a Inglaterra ou Portugal.

F. BRAUDEL: É triste o que o sr. diz, sr. André NouscM. As pessoas são t ão tolerantes no Mediterrâneo quanto em outros lugares. Foi a história que “liquidou” o Mediterrâneo e a história não se apaga. As civilizações estão frente a frente e não são fraternas, jmas sempre foi assim. ^

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F. BRAUDEL: Agradeço a Vittorino Godinho ter evocado o oceano Indico, porque o Mediterrâ neo fica no centro de altas pressões e de proteção em direção ao oceano índico. Para ter a última palavra sobre o destino do Mediterrâneo de ontem e mesmo de hoje, é preciso ver o que acontece no oceano índico. R. MANTRAN: É certo que o mundo muçulmano, não importa em que época, n ão é um mundo totalmente mediterr â neo. Ele ocupa apenas uma parte do Mediterrâneo, mas sobretudo um ponto estrat égico, capital: é a ligação entre o Mediterrâneo e o oceano Indico. E o mundo muçulmano que põe em contato o mundo do Mediterrâneo, . o mundo europeu, o mundo da Rússia central, e, mais longe ainda, o mundo da rota da seda. O Islã desempenhou um papel político, económico e cultural extremamente importante. Lamento que nos colégios e em todas as casas de ensino na França, não se realce mais a longa duraçã o, principalmente quando se estudam mundos diferentes do francês e do europeu. Sofremos de um acentuado eurocentrismo, somos quase que totalmente ignorantes dos mundos diferentes, a China, a índia, o Islã . . . Chegamos a cometer incompreensões graves, e o espet áculo que se vê hoje é tal, que torna-se urgente abrir os espíritos à toler â ncia, ao conhecimento dos outros. Para isso, o esforço de todos é necessário .

A. NOUSCHí: Ê verdade, mas devemos ser lúcidos. N ão se deve dourar a pílula.

F. BRAUDEL: E mais agradável tomar uma pílula dourada,

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A. NOUSCHí: Não concordo. Se dizemos aos povos mediterrâneos:

“ A situação é grave, vocês estão perdendo suas vidas”, é xnelhor d ízê-lo brutalmente, na esperança de que eles reajam. F. BRAUDEL: A situação é grave para o mundo inteiro, não apenas para o Mediterrâneo . . . É sua vez, sra. Reitora. H. AHRWEILER: Por favor, não é a Reitora . F. BRAUDEL: Estão vendo, nunca se sabe com quem se fala!

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H. AHRWEILER: Conhecemos o Mediterrâneo pelos documentos dos ricos; aqueles que “entram na história” são os que constituíram um grande destino mediterrâneo. O destino bizantino era, evidentemente, cobrir o Mediterrâ neo em seu conjunto, E há um direito na história, um direito da história para todos os povos, e nem todos já exercerá m esse direito. Existe aí, parece-me, uma nuance particular. . Ém relação aos nossos trabalhos, destaco vários pontos. Primeiramente, as continuidades e as permanências. São os fatores biológicos, os homens, as plantas, os animais, mas também a geografia e alguns fatos humanos, por exemplo o movimento quase geral de homens, de grupos de homens e povos que se instalam no interior dos . .países do Mediterrâ neo. A nostalgia, a dor da partida, a saudade ca,

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A. Nouscm: Para mim, o Mediterrâneo de hoje é uma angústia. Eu o vejo estilhaçado, eu o sinto estilhaçado muito profundamente, não pela revolta, mas porque os povos mediterr âneos não controlam mais o seu destino. Outros reinam s^bre eles, e dominam suas vidas a ponto de ditar-lhes o preço de compra do quilo de pão, do litro de óleo ou do litro de vinho. Esta situação é muito grave. Este Mediterrâneo que deveria ser o mar da paz tornou-se um foco de confrontos e rivalidades ... é verdade, algumas vezes de cooperação. Eu me preocupo com o futuro, não o meu, mas o de nossos filhos. Desejaria vivamente que essa preocupação desaparecesse. Como Robert Mantran, afirmo que é necessário um esforço de compreensão, de análise e toler ância do outro. Ora, a toler ância é o que menos domina atualmente no Mediterr âneo.

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racterizam também o mundo mediterrâneo.

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Mas depois, procuro as unidades ou a unidade do Mediterr âneo e nã o a encontro. Eu lhes dizia há pouco que o termo mesa geios, o sonho do alto-mar, quase nã o existe, a não ser entre òs escritores eruditos. Então, para encontrar a unidade mediterrânea, é preciso interèssar-se pela cartografia, pela galera, isto é, péla unidade através dos mares. Seria talvez preciso pesquisar a toponímia para ver as superposições dessas unidades. Não tivemos tempo de

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falar disso. Ainda uma observação: a única unidade bizantina é a presença de um Estádo forte, a talassocraeia. O termo não foi ci tado e talvez seja necessário dizer que toda ruptura da talassocracia leva à pirataria no interior do Mediterrâneo, e que a reação a essa pirataria provocará a criação do direito internacional. Uma série de convenções bilaterais primeiro, a definição das águas territoriais depois, começarão nesse momento. Sã o pontos que n ão evocamos, Há em seguida fraturas, é verdade, o tempo precipitado, curto, breve, imediatamente vivido, e cada zona , cada filtro encontrará suas fraturas. Hoje, infelizmente, não vivemos uma fratura, mas um verdadeiro estilhaçamento.

sistir as populações presentes nesse território nas dificuldades que elas atravessam atualmente.

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M.D. GRMEK: A unidade política e a unidade cultural são dif íceis de encontrar no Mediterrâneo. Mas existe a unidade biológica, a unidade de genes, a unidade de alimenta ção ; quanto a esta última, hoje menos que no passado. Estou contente de ter sido convidado por historiadores, o que me permitiu chamar-lhes a atenção para um aspecto da história, que muito freqúentemente é silenciado. A. DENIS: Agradeço-lhe, mestre, por ter-me associado a essa discussão, em que se falou muito de história, que não é a minha área. Gostaria de voltar ao direito marítimo, que a sra. Ahrweiler acaba de evocar. Por ocasião de três conferências (Caracas, Nova York e Genebra ) , tentou-se estabelecer um direito marítimo internacional válido no mundo inteiro. Zonas econ ómicas foram criadas. O Mediterr âneo é o único lugar onde esse direito não é aplicável, ou pelo menos não é aplicado. Era preciso dizer isso. A hist ória é um elemento fundamental de nossa açã o. A ação militar não gosto desse termo, mas é a açã o de força, a ação é fundada sobre o estudo dos acontecimentos históriviolenta cos análogos. Numerosos são aqueles aos quais se poderia ou deveria referir cada dia. Foi assim que, a trinta anos de intervalo ( 1954, os acordos de Genebra e 1984, os acordos de Tripoli) , encontrei-me exatamente na mesma situação. No primeiro caso, tratava-se da retirada do corpo expedicionário francês na Indochina, e no segundo caso da presença francesa no Chade . . . Penso que esse é um motivo de preocupação e de atualizaçã o do risco no Mediterr âneo. É esse risco que queremos controlar. Foi assim que fomos levados a manter, durante os três últimos anos, 20.000 de nossos marinheiros diante das costas libanesas para as-

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A. GUILLERM: Dirijo-me primeiramente à sra. Hélène Ahrweiler* para dizer-lhe que Mahan traduz o termo talassocraeia por sea po wer. Assim, o conceito grego e o conceito anglo-saxão existem; o conceito francês não. Queria também lembrar-lhe que por ocasião da invasão de Chipre, Rosanna Rosanda ( é verdade que ela é italiana ) escreveu: “Em que mundo vivemos? Os Bourbons est ão em Madri, os turcos estão em Chipre É uma visã o da longa duraçã o num jornal de extrema esquerda italiano. Para voltar aos gregos e aos turcos, o Almirante dizia há pouco: “Eles se neutralizam”, o que é muito triste! Ora, existe um pacto balcânico entre essas duas nações às quais juntou-se a U.S. Navy. Esse pacto balcânico deveria ser reativado No caso contrário, os russos se tornar ão uma potência mediterrânea. Concluirei em tom otimista. O general de Gaulle criou profundamente nos espíritos uma aliança franco-árabe que inclui o Líbano. Os árabes n ão se entendem entre si; o problema é pois a escolha. Nós, por exemplo, escolhemos Marrocos, conseqiientemente, Khadafi. Há 500 t écnicos franceses que lutam atualmente em Marrocos; é por isso que os argelinos nos detestam. A situaçã o pode reverter-se de um dia para outro. Mas a França, com sua pot ência marítima , diante dos dois impérios mundiais e continuando essa política de amizade franco-árabe, é capaz de garantir um mínimo de autonomia para os países mediterrâneos.

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J. GUILAINE: Arqueólogo perdido no meio dos historiadores, gostaria de concluir como arqueólogo. Quero evocar aqui os proble mas de prá tica científica. O material sobre o qual trabalha o arqueólogo não é o mesmo do historiador. Ele não tem textos à sua disposição. Ele trabalha com tempos que parecem, creio eu, bastante obscuros para o historiador. Assim, ele é um tanto marginalizado nesse debate. Tentei mostrar que não havia espaço mediterrâneo, não havia espaço cultural, mas, ao contrário, fragmentações. Só a partir do segundo milénio, quando se cria a escrita , quando se cria a pirâ mide social citei o caso de Micenas , quando se criam a capitalização e o comércio, é que o Mediterrâ neo desperta para destinos que põem em jogo praticamente todos os territórios que o contornam, e desse ponto de vista as talassocracias púnica, grega ou etrusca são apenas epifen ômenos. Concluo desejando que

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a arqueologia, que trabalha sob sua própria luz, que n ão é mais uma disciplina auxiliar da história, encontre-se de vez em quando com ela e possa enriquecê la com seus próprios ensinamentos.

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F. BRAUDEL: Sei que nosso ponto de partida era o Mediterr âneo do século XVI, mas pergunto-me se cumprimos a promessa que fizemos ao auditório.

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M. AYMARD: N ão.

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F. BRAUDEL: Temos milénios atr ás de nós para falar de um Mediterrâ neo que mudou muito e que mudou de status internacional entre os séculos XVI e XVIII. Os milénios nos tranquilizam. O ú nico que teve a continuidade do seu lado foi o Doutor Grmek. Os outros, nós tentamos achar a permanência dessas clivagens muito antigas no terreno. Mas a história que nos preocupa agora não tem milénios atr ás de si, mas na verdade dois séculos; é a história que viu a fragmentaçã o dos impérios, o austro-húngaro, a colonização e a descolonização, é a história que viu em torno do Mediterrâ neo alguns ainda muito fr á geis e sem ter a criação de 25 Estados que ainda não adquiriram verdadeiramente o status de Estado . as responsabilidades e os comportamentos necessários para mantei um equilíbrio mediterrâneo semelhante ao de outrora,, como também houve outrora um equilíbrio europeu. Falamos demais de pobreza e riqueza, e talvez não falamos suficientemente de poder e inferioridade, poder e depend ência. Hoje, compartilho as inquietações de Andr é Nouschi. Pela manh ã, fiquei seduzido pelo Mediterrâneo de Jean Guilaine, esse Mediterrâ neo megalítico, onde uns vinte atores inovavam, cada um no seu canto, onde n ã o havia difusão , essa difusão que hoje só pode fazer-se a partir dos dois grandes im périos extra-mediterr â neos. Eu gostaria de um Mediterrâneo onde, como no segundo ou no quarto milénios antes de nossa era, cada um dos atores deteria um poder considerável, e, já que é disto que se trata, uma considerável liberdade de inovaçã o, a fim de que se possa reinventar algo diferente. É uma utopia? Temo que sim.



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Paul FABRA : É para mim uma honra e uma alegria estar ao lado de Fernand Braudel . Seu nome representa tanto saber e talento que não é surpreendente que uma platéia tão numerosa tenha vindo escutá-lo. Eminentes pesquisadores de diferentes discipli nas, economistas, filósofos e sociólogos de vários países,"Í ndia, Brasil , Estados Unidos , Hungria e França dialogarão èhtre si . e depois conosco.

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funcionais de nossos Administradores de Departamentos, são também considerados juízes, mais precisamente como Presidentes de Tribu nais, o que não os impede de terem funções administrativas. Enfim, o grande afluente dos Bailios e Senescais se lança por sua vez no grande rio dos Parlamentos, que recebe todos os recursos proceden tes das jurisdições supracitadas. Outros afluentes aná logos, sempre no mesmo espaço da árvore, correspondem aos Mestres de Portos e Passagens, à Mesa de M ármore ( para a qual descem os recursos vindos dos tribunais do Almirantado e das Águas e Florestas ) , aos Cônsules e Bolsas dos Comerciantes,* e principalmente aos Presidiais,** fundados por Henrique II durante os anos 1550. O conjunto dessa rede encaminha-se para o Parlamento. Figon enfatiza bem, à moda de Saussure, que o seu interesse n ã o é a diacronia mas a isto é, as datas de fundação desses diversos organismos sincronia isto é, a maneira pela qual tudo isso funciona junto. À direita dos Presidiais, veremos os Prepostos dos “ Marechais” , ou que ser á aperavó de nossa polícia atual seja, a Maréchaussée feiçoada por Lu ís XIV, quando criar os cargos de lugar-tenente de polícia. Abandonemos o oeste de nosso quadrante, isto é, a Justiça, e examinemos agora o leste do quadrante, isto é, as Finan ças. Deixemos os outputs estatais, as produções judici árias, que, como acabamos de ver, são mais ou menos realizadas em resposta aos pedidos de justiça feitos pela população, para nos interessarmos pelos inputs, isto é, a receita fiscal efetuada em resposta aos pedidos de dinheiro exigidos pelo Estado. Insistamos primeiramente, com Michel Antoine , no fato de que o Chanceler, naqueles anos 1570, conserva uma influê ncia muito grande sobre a administra çã o financeira. A Chancelaria só perderá esse impacto na época de Colbert , quando haver á um desdobramento da árvore da Justiça e da á rvore das Finan ças, mas em 1579 isso ainda não aconteceu . Deixemos de lado alguns ramos de menor import â ncia , como Tribunal das Moedas, com seu Preposto, os Tesoureiros Supremo o Administradores Financeiros, que perdem prest ígio a e ç de Fran a partir do Renascimento, e o Supremo Tribunal de Impostos Indiretos. Encontramos a í um velho m é todo francês: quando uma admi-

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* Antigo nome dos tribunais de com ércio. (N.T.) ** Tribunais que julgavam sem apela ção. ( N.T.)

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nistraçã o se torna caduca em nosso pa ís, n ão é suprimida , mas jus tapõe se-lhe uma administra ção mais eficaz. Chegamos enfim ao que é importante: o Tribunal de Contas, que desemboca no enorme nó do Tesouro P ú blico e da Recebedoria Geral. São estes dois organismos essenciais. Do Tesouro P ú blico, fundado por Francisco P em 1523, partem as despesas que v ã o recair sobre a Corte ou a Casa do Rei. As receitas das 16 administra ções financeiras fundadas em 1542 esp é cies de “semi-províncias” atuais são encaminhadas ; Recebedoria Geral. Nessa Recebedoria Geral , entram os impostos diretos talhas e derramas , impostos aduaneiros, a taxa sobre o vinho e sobre o sal . A nordeste de nosso gr á fico encontra-se o Dom ínio Real, com seus direitos senhoriais, seus cortes de madeira, suas multas e condenações. O Rei é també m um grande propriet ário e um poderoso Senhor. Na realidade, o Dom ínio Real n ã o representava muita coisa, ao menos proporcionalmente, no orçamento, mas a tradição lhe concedia uma certa import â ncia. Nesta manh ã , Fernand Braudel se opunha às nacionaliza ções. Sua atitude me lembra a de Henrique IV: quando este via uma casa em ru í nas na cidade, exclamava : “ Isso deve ser meu .” Logo, existem precedentes! . . . Voltemos aos impostos reais. Representam eles mais de 90% das receitas: estas correspondem aos impostos diretos e indiretos, mas também aos empr éstimos representados a nordeste do qua drante e aos impostos sobre mutaçã o de cargos, isto é, a venda de cargos. O quarto sudeste da á rvore representa o setor das despesas. Parte ele da Recebedoria Geral e acaba em um enorme setor, o dos outputs ou produções do Estado, ou efeitos induzidos pelo Estado. Esses outputs sã o previamente alimentados pelos inpu]ts, ou seja , pelas receitas fiscais e financeiras. Ao longo dos dois grandes ramos descendentes, acham-se dois setores de desigual import â ncia , em forma de salgueiro chor ão: a Corte Casa do Rei que pode representar at é as 10.000 pessoas a serviço de Catarina de M édicis e Car los IX. ( Suas despesas: prataria , caça , cavalariça, sendo o Estribeiro Mor um personagem consider ável. ) É assim que aparece um eixo secund á rio, do alto para baixo, que parte do Dom ínio do Rei e desce para a Corte; Max Weber o chamaria “Monarquia patrimou niaV\ É assim que aparece também, à extrema direita do gráfico, um eixo “moderno”: no alto à direita, os impostos, e, em baixo, as despesas do Estado. Isso anuncia nosso setor de despesas “moder



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V ?na Lição de História

A França

nas”: as despesas ordin á rias da guerra, as despesas extraordin á rias as fortificações, a marinha , a artilharia . da guerra embaixo se encontram os honor á rios dos funcion ámais Ainda e ç das Finan ças, os sal á rios dos servidores. Isso é rios da Justi a pouca coisa. É verdade que os funcion ários, mal pagos pelo Estado, compensavam-se com os “presentes” que recebiam! Na base do tronco, quem encontramos? Os Governadores de Grande Preposprovíncia à esquerda , os Embaixadores à direita , mas principalmente to da Casa do Rei, Grande Conselho do Rei instituições de grande futuro: os Secretários do Estado, ancestrais de nossos Ministros pois a função propriamente ministerial nasce ent ã o com os Secret ários do Estado. N ã o esqueçamos os Intendentes das Finanças ( Sub-Secret á rios do Estado para as Finanças, diríamos n ós ) . Lembremos també m os Referend á rios da Casa do Rei, que Pierre Goubert chamará “a classe polí tica do regime” e Pierre Chaunu “a tecno-estrutura”. Sã o os avós, certamente putativos, de nossa “enarquia” * contempor â nea . Esta á rvore, mesmo deformada, representa a melhor fotografia que possamos ter do Estado francês no Renascimento, como matriz do Antigo Regime e de uma sociedade tradicional.

o compreendeu? 5’ Ele me respondeu: “Bem . . . Algu ém na Argen tina . . . ” Já é alguma coisa, ter achado algu ém! Há quarenta anos que ele escreve e tem dificuldade em ser com preendido, em impor uma nova história que seja aceita. Eu o consi dero como um artista, como um poeta, e interesso-me pela situação dos artistas que não são compreendidos. Pois essa situação não é privilégio dos artistas; ela é cada vez mais frequente. Na sociedade em que vivemos, nós não nos compreendemos. Em nossos dias, a partir da guerra particularmente, os indivíduos se tornam cada vez mais diferentes uns dos outros, porque podem fazer cada vez mais escolhas. O ensino tem efeito contr ário àquele que se espera. Cada um interpreta o ensino a seu modo. O professor não consegue impor o que tenta impor. Existe pois uma cacofonia que se desenvolve em nosso mundo, e que deve ser considerada como a contradiçã o dessa unificação que o sr. atribuiu às estradas de ferro. É por isso que, de preferência a comunicar-lhes meu pensamento, gostaria de levar Fernand Braudel a responder as perguntas, a mostrar seu rosto acima desse muro que o esconde a meus olhos. Fernand Braudel, com sua Histoire de France, o sr. ser á compreendido?

A. Du ROY: Agradeço a Emmanuel Le Roy Ladurie. Passo agora a palavra a Theodore Zeldin , historiador britânico, que se apaixonou pelo estudo da França e dos franceses.

F. BRAUDEL: Serei compreendido às avessas, mas já é uma satisfação, pois quando as pessoas n ão compreendem alguém, elas o definem Meu livro será certamente acolhido com gentileza e atenção, mas serei compreendido? Passei a vida não sendo compreendido, até por mim mesmo. É complicado. .

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Compreender Fernand Braudel Théodore ZELDIN : N ão preparei uma comunicaçã o . Sou bastante simples para imaginar que estamos aqui n ã o somente para render homenagem a Fernand Braudel , para exprimir -lhe nossa simpatia , nosso prazer em ler suas obras e em encontrar um homem que sabe aliar a sabedoria com brincadeiras de criança , mas também porque desejaríamos compreend ê lo melhor. Para mim , ele é o mais célebre dos historiadores, mas como pessoa, é um desconhecido. Ontem à noite, eu lhe perguntei: “Quem

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T. ZELDIN: O sr. diz que não quer ser definido. Muitas pessoas recusam-se a sê-lo porque acham sempre que são vistas de maneira muito simplista . . . F. BRAUDEL: EU lhe responderei, sr. Theodore Zeldin, daqui a pouco. Gostaria de que o sr. chegasse antes às suas conclusões. T. ZELDIN: Preferiria chegar a elas conversando com o sr. a fazer um discurso.

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F. BRAUDEL: Mas o sr. é capaz de fazer um discurso, o sr. já o começou.

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A. Du ROY: Tenho a impressão de que é Fernand Braudel que gos taria de lhe jazer perguntas . . .

Alusão ao papel desempenhado pela Ecole Nationale d* Administration (ENA) . (N.T.)

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Uma Lição de História

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A França

T. ZELDIN: Muito bem . Vou fazer-lhe outras perguntas. A primeira é sobre essa impossibilidade de comunicar se. Vindo aqui, eu anunciei como tema de comunicação “ A nação como objeto âe pesquisa histórica Era pois um problema de metodologia. Mas não teríamos chegado ao fim da era das metodologias? O que eu aprecio em Fernand Braudel é que ele não segue as regras que ele impõe aos outros. E é importante, porque seguir regras é muito tedioso. Então, eu me pergunto: se cometermos a temeridade de dar conselhos, o que poderíamos dizer? Quanto a mim, eu diria que a “nova nova história” é: é preciso surpreender! No passado, um historiador escrevia de maneira agrad ável e interessante o que todo mundo sabia, mas hoje isso não basta.

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T. ZELDIN: Faço-lhe uma outra pergunta, já que o sr. quer tomá-las todas juntas. É a quest ão da imobilidade, que é uma de suas obsessões.

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F. BRAUDEL: O sr. deve fazer a pergunta a Emmanuel Le Roy Ladurie, porque ele disse “a imobilidade” , e quanto a mim, eu disse “ a repetição”. Então, o que o sr. escolhe? Le Roy Ladurie, isto é, o futuro, ou eu, isto é, a repetição, as f órmulas fora de moda, a nostalgia . . .

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T. ZELDIN: EU estudo a nostalgia. Se se tenta observá-lo, compre ender o sr. o que é impossível a data interessante é 1929, data da fundação dos Annales e de acontecimentos muito importan tes no mundo, mas também a da publicação de um livro que não se conhece e ao qual eu gostaria de fazer referência. Às vezes chadesculpe-me, sei que o sr. n ão gosta mam o sr. “o papa da história” .





F. BRAUDEL: A gente diz de maneira desagradável o que todo mundo ignora!

T. ZELDIN: Não é só isso. Há uma razã o pela qual não se pode escrever sobre a França. Eu tentei; tomei um pequeno pedaço da França e percebi que teria de ler tantos livros que a tarefa de Michelet não é mais possível. Como é que o sr. comete essa temeridade?

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F. BRAUDEL: Mas ainda não entrei para o convento! T. ZELDIN: Então, eu me pergunto: por que o papa é francês?

F. BRAUDEL: O sr. acha que o destino está me punindo?

F . BRAUDEL: Porque nem todos os papas podem ser poloneses!

T. ZELDIN: Exatamente.

T. ZELDIN : Poderia sugerir lhe que há um papa-candidato inglês.

F. BRAUDEL: A Histoire de France será minha paixão, mas no sentido muito específico de “ocasião de sofrimento”.

F. BRAUDEL: é o sr.?

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To ZELDIN: Não.

T. ZELDIN: Muito bem! Pois afinal o sr. vai nos dizer o que é a França.

F. BRAUDEL: Um rival? Um anti-papa?

T. ZELDIN: Ele já morreu e é desconhecido pelos franceses. É Louis Namier. Escreveu um livro maravilhoso em 1929, sua obra-prima, sobre a estrutura da política no tempo de Jorge III. Ora, a Revue Historique dignou-se conceder-lhe apenas algumas linhas: “Este livro tem um caráter bastante inesperado e pode se recomendar a leitura da introdução” Muito bem, na Inglaterra considera-se que Namier é o maior historiador que este século produziu.

F. BRAUDEL: Sim, mas, pessoalmente, já conheço o fim. Espero os

outros . . .

T. ZELDIN: Espero que não, porque quando se escreve um livro, sempre é melhor não saber o seu significado!

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F. BRAUDEL: Os srs. estão vendo as lições de método que ele nos dá, que ele me dá!

F. BRAUDEL: EU lhe dou razão.

T. ZELDIN: Mais tarde, o sr. terá a ocasião . . . F. BRAUDEL: Mais tarde . . . Não penso nisso.

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T. ZELDIN: Fico contente que o sr. o reconheça . Mas os seus compatriotas quase não o conhecem.

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A França

Uma Lição de História

T. ZELDIN: O sr. mesmo disse que viveu no estrangeiro. Isso não é normal.

F. BRAUDEL: Estou certo de que Le Roy Ladurie o conhece. T. ZELDIN: Não falo de espíritos satélites, mas de professores de colégios. Eles não leem esse livro. F. BRAUDEL: O sr. não tem o direito de

F. BRAUDEL: Também vivi em Paris, na Savóia, na Provença . . .

generalizar . . .

T. ZELDIN: Isso me leva à seguinte pergunta: Como viajam os livros entre os países? O sr. vai escrever uma Histoire de France. Se o sr. tivesse começado assim, qual teria sido a sua carreira? F. BRAUDEL: EU teria permanecido professor de colégio até o fim de meus dias. K.F. WERNER: Gostaria de dizer uma palavra sobre o assunto. Fernand Braudel é um dos historiadores franceses que mais falou aos franceses sobre os outros países. Pela primeira vez, a hist ória mundial, ou antes a História dos homens, foi feita de modo inteiramente inteligente e novo, e isso foi conseguido falando relativamente pouco dos franceses. Na França, isso é algo inaudito e muito ousado. É por isso que vou na mesma direção de Zeldin, quando lhe pergunto, Mestre, se existe uma pesquisa internacional, ou , em outras palavras, se nós temos a realidade de uma cooperação internacional sobre os diferentes assuntes, entre os quais a França? Porque a França é um grande assunto e n ão apenas para os franceses. Aliás, estou certo de que o seu livro sobre a França foi enriquecido com tudo o que o sr. sabe sobre as outras nações.

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T. ZELDIN: Mas durante os seus anos decisivos, aqueles durante os quais o sr. formulou as suas id éias, o sr. estava no estrangeiro. F. BRAUDEL: Tcmei-me inteligente indo ao Brasil. O espetáculo que eu tinha sob os olhos era um tal espet á culo de história, um tal espetá culo de gentileza social, que compreendi a vida de outra forma. Os mais belos anos de minha vida, eu os passei no Brasil. Isso n ão deixou de ter consequências sobre mim, e de algum modo me expatriou. Eu me deixo facilmente levar pelas pessoas que me cercam. Se falássemos mais cinco horas, eu me sentiria muito inglês. T. ZELDIN: Gostaria de abordar com o sr. o problema do estilo. Como o sr. vê o desenvolvimento da hist ória no futuro? Acumular informações torna-se cada vez mais dif ícil! A história não deve ten tar recuperar seu atraso em relação às artes plásticas, que abandonaram o desejo de reproduzir o mundo, mas que tentam prolongar os fatos, criar alguma coisa?

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F. BRAUDEL: O sr. deseja uma história abstrata, em suma? Uma his tória que não seria mais uma história, mas que continuaria sendo uma carreira. T. ZELDIN: EU me pergunto se isso já n ã o existe.

F. BRAUDEL: Meus verdadeiros mestres foram Lucien Febvre e Marc Bloch . Ora . Marc Bloch disse: “Não há uma história da França, há uma história da Europa.” E, como se isso n ã o bastasse, disse, em confid ência, a um historiador: “Não h á hist ória da Europa , mas uma história do mundo.” Fazendo uma história da França, sinto me culpado, porque nã o conseguirei integrar a história da Europa e a história do mundo. Mas desculpe-me por interrompê-lo, sr. Theodore Zeldin.

F. BRAUDEL: Sim, é possível. Mas o sr. falou do estilo. Ora, há um estilo que faz com que a “ nova nova nova história” se pareça com a “nova nova” ou at é com a “nova” só. Ê que os historiadores franceses são os donos de sua língua. É verdade quanto a Emmanuel Le Roy Ladurie e Georges Duby, que escrevem divinamente, que sã o historiadores franceses de grande classe. Eles sabem manejar a língua francesa. Ora, os historiadores só terão o ouvido da opinião pública quando dominarem a língua francesa.

T. ZELDIN: Para terminar com esse assunto, pergunto-me qual é a import ância do fato de que o sr. não é um francês como os outros.

T. ZELDIN: É uma conclusã o maravilhosa! Ela concorda inteiramente com meu pensamento. Também estamos de acordo quanto ao fato de que a França não é suficiente para escrever uma história da França. É preciso fazer um estudo global para compreender qual

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F. BRAUDEL: Mas eu sou um francês como os outros!

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é o significado da França, assim como é preciso conhecer pessoas como Namier para compreender quem é Braudel. Pois bem, é na escrita e na arte . . . F. BRAUDéL: Também alguns geógrafos escrevem divinamente em francês.

T, ZELDIN: Ent ão, eu aplaudo! A. Du ROY : NOSSO diálogo, que já começou, vai prosseguir. Gostaria . primeiramente de perguntar a Fernand Braudel que reflexões lhe inspiraram as comunicações.

História, geografia e povoamento F. BRAUDEL: Deixei-me levar por Zeldin e conversamos demais; de modo que agora vou apressar o passo, conversando com os outros, porque gostaria de voltar a Zeldin. Isso nã o é sensato. . Escutei com prazer Guilaine, que é certamente hoje um dos príncipes da pesquisa histórica francesa. Ele domina um espaço da pesquisa pré-histórica, e ninguém o domina como ele. Conhecer a pré-história, ser mestre da linguagem, é uma coisa; mas dominar a linguagem e voltar-se, como ele o fez, para a história verdadeira da França, é outra coisa. Pois se os camponeses começam a existir na época da pré-hist ória, isso significa que a verdadeira , pro funda, biológica história da França começa muito antes do início daquilo que se chama história, bem antes do início da escrita. Escutei o com aten ção e quero fazer-lhe uma pergunta. Ou ele res ponde “sim” e estou salvo, ou ele responde “nã o” e me põe em apuros. Com efeito, li uma obra do pré-historiador Nougier, La Géographie préhistorique. Neste livro, fiquei sabendo de um fato que me entusiasmou: havia provavelmente por volta do segundo milénio antes de Cristo quatro ou cinco milhões de habitantes no Hexágono. Isso significaria que estes são o essencial da história da França os romanos e e que aqueles que virão instalar-se em nosso país em numerosos o ã t não são todos os que são chamados bá rbaros relação aos gauleses. A verdadeira história, a história biológica, a história profunda, é a história bem antes de Cristo, bem antes do primeiro ou do segundo milénio. Então, sr. Jean Guilaine, quero

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que o sr. responda “sim” à minha pergunta. O sr. não tem nenhu ma obrigação, mas seria elegante de sua parte. J. GUILAINE: Sob pena de ser deselegante, eu lhe darei uma resposta de normando.* As estimativas de Nougier referiam-se essencialmente ao terceiro milénio, isto é, a época em que se dispõe da maior densidade de habitats pré-históricos. Nougier havia observado entre o Sena e o Loire a presença de um nú mero particularmente elevado de “estações” neolíticas. Daí concluíra uma densidade hu mana mais forte. Mas, o que n ão sabemos é se todos esses sítios são estreitamente contemporâneos. Constata-se a existência de ha bitats atribuíveis ao terceiro milénio, mas qual é a sua contemporaneidade real? Não houve sucessão no tempo? No caso, não temos condiçã o de calcular com a precisão de um século. Um outro m étodo foi proposto pelo doutor Riquet, consistinno qual também temos muitas do em avaliar para esse período sepulturas coletivas: grutas funerárias naturais ou artificiais, monua documentação antropológica disponível. mentos megalíticos Tentava se avaliar depois a dura ção da utilização da tumba para calcular quantas gerações representavam os vestígios osteológicos estudados. Depois, tentava-se chegar, de modo um tanto subjetivo, à porcentagem de tumbas destru ídas por cinco ou seis mil anos de erosão e de destruição antrópica E Riquet chegava a cifras, se n ão me falha a memória, que eram sem d úvida mais baixas que as de Nougier, da ordem, no máximo, de um meio milhão de habitan tes no fim do Neolítico. Evidentemente, quanto ao procedimento de Riquet, também se pode fazer a pergunta: será que os indivíduos cujos restos se acham nas sepulturas coletivas são o reflexo demográfico real da coletividade, da comunidade? Será que todos os mortos tinham acesso à sepultura coletiva? Será que não havia indivíduos que eram enterrados em sepulturas mais comuns (fossas ) ? Se a resposta é afirmativa, é preciso modificar para mais os resultados de Riquet. Vejam como tudo é complicado. Além disso, ainda existe outro fator; é que nesse período, o terceiro milénio, dispõe-se de uma forte densidade de sítios. Em se-

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* Resposta ambígua . (N T.)

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guida, no segundo milénio, assiste-se a um verdadeiro desabamento. Por quê? Como se vê, caro Mestre, a pré-história não é f ácil.

Pierre Gourou, que nós ambos estimamos, consideram como você, meu caro Etienne, que o espaço contém uma experiência humana muito variável. Então, eles pegam a experiência humana e esque cem o espaço. Eu os acuso de desespacializar a história. Repondo as coisas em seus lugares, tenho a impressã o de devolver à geogra fia seus antigos direitos. Isso se chama, ou não, determinismo. Lu cien Febvre, em La Terre et Involution humaine, não negou pura e simplesmente o espaço. O “possibilismo” de Lucien Febvre é : um

E. LE ROY LADURIE : Não pode dar-nos uma cifra, pelo menos? J. GUILAINE: Fiquemos com as cifras de Riquet, de duzentas a quinhentas mil pessoas no Neolítico, como ponto de partida. F. BRAUDEL: Pois é, não lhe custaria nada concordar comigo, mas o pior é que eu concordo com ele. O especialista sempre tem razão contra o historiador, que tem pretensões grandes demais. Mas, veja, sempre existe algo que acontece no fim da sua préhistória: tudo se agita tanto, há tantos povos novos, culturas novas, eles têm que ser numerosos. Conhece o geógrafo Pierre Bonnaud? Na minha opinião, entre os jovens, é o melhor. Ele lutou com os nomes de lugares, com a onomástica, e, cavando o solo, ele reencontra a pré-história , uma pr é-história dramática, especialmente para os celtas, mas a favor de um impulso impressionante dos celtas. Na realidade, eu queria que Guilaine, através de mim, desse razao a Bonnaud. Enfim . . . Sr. Etienne Juillard , o sr. fez uma magnífica comunicação. s á Ali , o sr. é incapaz de fazer exposições que n ão sejam magníficas. Más áconteceu-me uma história que me diverte e me entristece. Etieriné Juillard n ã o quis falar de meu livro sem t ê-lo lido. Ent ão, em lugar de lhe mandar um livro que representa mais ou menos oitocentas páginas, escolhi umas folhas, o capítulo 3, que se intitula “ A geografia inventou a França?”. Naturalmente, respondo que n ão,: ; mas para mim foi um prazer retomar as velhas afirmações de Vidal de la Blache. O vale do Ró dano, o istmo francês determinou o desenho da França? . . . Eu estava apaixonado pela geografia, mas eu me ligo a uma geografia muito mais antiga que a de Juillard. Assim, enviei-lhe o capítulo 3 e sua comunicação retoma exatamente o conteúdo do meu capítulo 2, que se chama “As regras do povoamento: as cidades, os burgos, as aldeias”. Isso me reconforta. Sua exposiçã o utiliza expressões melhores que as minhas, de modo que tomei notas, e no meu livro, mudarei certas expressões, para substituí-las por suas f órmulas e palavras esclarecedoras. Mas se eu lhe tivesse mandado o capítulo 2, sabem o que ele teria feito? Uma exposição sobre o capítulo 3. Aí é que está o problema. . . Enquanto isso, vou ter com Etienne Juillard uma tal briga, que lhe peço que n ã o me responda. Muitos geógrafos, entre os quais '

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determinismo edulcorado, mas é ainda um determinismo. Etienpe, peço-lhe que não me responda, porque vou me voltar para nossos colegas. i '

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A. Du ROY: Assim mesmo, vou perguntar-lhe se ele quer responder.

E. JUILLARD: Sim, vou responder. Não acredito de modo algum ter desespacializado. G que eu quis dizer, e creio que isso basta para condenar o determinismo, é que o significado dos dados espaciais varia, transforma-se em funçã o de todo um arsenal de outros - fatores tecnológicos, económicos, sociais, e que, conseqúentemente, n ão se pode dizer que haja um determinismo do espaço. Há ; um componente espacial de um complexo de fatores e esse componente espacial n ã o é fixo, não é dado uma vez por todas.

F. BRAUDEL: Sim, mas é o mais importante e o mais antigo, é ele que conta na história profunda. Você falou de migrações, você até falou de Stendhal, mas você sabe que isso não d á conta do problema em profundidade. Stendhal sozinho não é capaz de negar o determinismo geográfico. Eu gostaria de que você voltasse a . esse ponto, é muito importante e fica parecendo que eu não concordo com você gratuitamente. E, JUILLARD: NO capítulo 3, fiquei muito interessado pelo que o sr. diz do vale do R ódano, da navegação no Ródano, mas eu teria acrescentado algo mais. O sr. diz que o Ródano não desempenhou um grande papel na formaçã o do espaço francês, especialmente Lyon, a vocação de Lyon, etc. F. BRAUDEL: Entretanto, reequipou-se o Ródano.

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E. JUILLARD: Apesar de tudo, trinta milhões de toneladas de petró leo passam hoje sob o solo, ao longo do Ródano.

F. BRAUDEL: O Ródano é inocente.

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E. JUILLARD: O Ródano é inocente, mas não o corredor. Há a gran de estrada de ferro francesa e a auto-estrada para Paris e para a AleniSnha.

F. BRàUDEL: E ele volta ao determinismo geogr áfico, pois ele disse: “Há o corredor.”

E. JUILLARD: Isso me permite voltar ao que eu dizia há pouco. O significado desse corredor mudou completamente por várias vezes na história, segundo o contexto técnico, o contexto económico, o contexto demográfico. O Ródano perdeu o seu papel. Ele o reencontrou. Ele o perderá talvez de novo. Isso n ão é determinismo.

F. BRAUDEL: Sim , é determinismo. O determinismo é que um certo numero de causas acarreta um certo número de consequências. O que é dramá tico para o vale do Ródano é o equipamento que nós fizemos: ele só assumirá o seu valor se o corredor do Ródano se dirigir para o Ródano, isto é, se se negligenciar a Bacia Parisiense. K.F. WERNER: É mais f ácil para um alemão responder, porque o Ródano permite àquilo que será a Gália passar para o Mediterrâneo sem ser obrigada a passar pelos Alpes. O planalto ocidental da Europa tem a grande vantagem de reunir o Norte e o Sul sem a barreira dos Alpes. É um dos dados inscritos no futuro da Gália e da França, que será assim a encruzilhada que permitir á às aquisi ções do Mediterrâ neo passarem para a Europa central e setentrional. Esse dado est á inscrito na geografia

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F. BRAUDEL: Mas o Ródano nos traiu, a nós, pobres franceses, pois a unidade da França não se formou, como pensava Vidal de la Blache, ao longo do sulco rodaniano. Mas deixemos essas questões e, já que Karl Ferdinand Werner tomou a palavra, volto-me para ele. Não só admiro a sua comunicãção, como recomendo a leitura do primeiro volume da sua Histoire de France, sob a direção de Jean Favier, editada por Arthème-Fayard. Esse seu primeiro volume é um esplendor. Confessem que é bem reconfortante pensar que esse livro foi escrito por um grande historiador alem ão. E quando Karl Ferdinand afirma que não domina a língua francesa, cometeu a única mentira do dia. O que eu aprecio em sua obra é que o sr. d á a impressão de que os acontecimentos muito longínquos daquela cena medieval têm consequências que chegam até nós. O sr. é favor ável a uma histó-

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ria de muito longo alcance. O sr. explicou rapidamente a sua divi são do espaço em três partes. Poderia retomá-la agora? K. F. WéRNER: Que o mundo franco não seja bipartite, mas tripar tite, é efetivamente muito importante. O século XIX não observou suficientemente a génese da Alemanha e da França, mas, ao con tr ário, insistiu nas longínquas lutas franco-alem ãs. Entretanto os tex tos provam: as populações ainda não tinham nenhuma id éia de tais nacionalidades. A Gália não existe antes da chegada de César, mas existe bem depois da chegada dos francos. É uma Gália essenciàl rnente dividida em duas partes, divisão que está na origem de toda a história do Ocidente, inclusive da história da Inglaterra conquis tada pelos normandos afrancesados. Não é aí que se forma, do ponto de vista linguístico, esse mundo anglo-francês que dominará a his t ória moderna? Além disso, a Germâ nia como a It ália são conquistas dessa Gália franca e crist ã. Mas não desejo entrar em mais de talhes. Voltarei entretanto a uma id éia que o sr. formulou ao discutir com Etienne Juillard. O sr. desvelou um pouco o seu sonho: a massa humana que constituirá o que será a França já estaria instalada; assim, o número dos que chegaram depois seria afinal mínimo. Isso não seria uma concepção “medrosa” da França? A França não tem necessidade desse medo; ela deve levar em conta todas as riquezas veiculadas pelos que chegam, sejam eles celtas, romanos ou “ bárbaros”. Afirmar isso não minimiza em nada a importância funda mental daqueles que, também chegados em várias ondas, já esta vam presentes no território. Insisto, entretanto, para alertar contra essa espécie de medo. Encontra-se às vezes uma outra tendência: os homens gostariam de fundamentar sua unidade em um passado muito longínquo, ligandose a um mito. Assim, no século VII, as populações ao norte do Loi ro se diziam francas, já que estavam sujeitas ao Rex Francorum. As populações dessa regiã o sabiam perfeitamente que existiram antes os gãlo-romanos. Ent ão, para onde foram eles? Os textos do século VII dizem que eles foram expulsos ou massacrados: essa “ tábua . rasa” é um meio seguro para criar uma unidade. Esse fato é observado também na Inglaterra: não se afirma até hoje que os saxões expulsaram ou massacraram as populações' anteriores? Essa tendência também existiu na Alemanha.

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Atribuamos um justo papel àqueles que chegaram, mas nã o anulemos por isso a ação dos que pré-existiram nessas regiões. Pois é precisamente a simbiose desses dois elementos que est á na origem de nossas atuais nações. F. BRAUDEL: Professor Werner, o sr. é terrivelmente otimista. O sr. diz . que nós não massacramos tanto os galo-romanos. Que bom, é uma descoberta! Assim, pois, os galo-romanos existiram. E, se existiram, desempenharam um papel. Desde a época de Clóvis, não; é cedo demais. Pode-se achar elementos que aparecerão em seguida e que ser á necessário levar em conta, se se aceita que a história ê, apesar de tudo, uma evolução biológica. O que o sr. diz é muito consolador; será pois preciso esperar a época contemporânea para que o massacre atinja o auge; outrora massacrava se muito menos. Volto-me para o Professor Raffestin, que nos fez uma maravilhosa comunica çã o. Não é geografia, é um trabalho de cinzeladura. G sr. mostrou pessoas que não trabalham, mas que trabalham ; pessoas que não são inteligentes, mas muito inteligentes, e que se tratam bem. No início, eles se instalaram nos vales alpinos, depois, contrariamente à água que corre para as regiões baixas, tiveram a boa id éia de subir. Eu também prefiro o interior, prefiro subir. Ent ão,. o sr. é determinista ou n ão? Essa vocaçã o dos vales alpinos existe mesmo!

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C. RAFFESTIN: Nesse caso, sou aleat ório-determinista. Eu lembrava há pouco as estruturas de enquadramento de que fala Gourou . . . Muitas coisas dependem das técnicas de exploração . . .

F. BRAUDEL: Mas essas técnicas não são balões, elas est ão presas a um espaço. O sr. é obrigado a voltar ao próprio espaço; evidentemente ele n ã o é sempre o mesmo, ele se transforma, mas é quase sempre o mesmo. C RAFFESTIN: Sim, é claro, mas existem meios de escapar às mais fortes imposições do espaço.

F. BRAUDEL: é verdade, mas não se pode suprimi-lo. A história da França se desenrolou em um certo espaço. Eu não gosto da palavra Hexágono, mas o Hexágono est á aí.

Papel das finanças sob o Antigo Regime Vou agora provocar Emmanuel Le Roy Ladurie; nós somos velhos amigos.

Diga, Emmanuel, você se dá conta da obra-prima que você achou? Pois é uma obra-prima. E, ao mesmo tempo, fico indignado ao pensar que, quando fazíamos nossas provas, outrora, interrogavam-nos sobre esse esquema, que n ós nunca vimos! Havia conhecedores das instituições francesas t ão sábios, que, não importa o que você respondesse, você estava sempre errado E imagino que esse esquema é a demonstração de que ninguém pode dominar a profusão das instituições francesas. Você transformou o esquema em relógio; é uma transformação feliz, mas, mesmo assim transformado, continua muito dif ícil pois n ão apenas há muitas coisas, mas tamb ém coisas que faltam. Dizem: olhem como a monarquia francesa era inteligente, ela governava o país com vinte mil pessoas ( quanto a essas cifras, n ão estamos mais bem informados que quanto aos cinco milhões de habitantes que eu atribuí ao segundo milénio antes de Cristo!) . Mas n ão é possível governar um país com essas dimensões enormes, com sua morosidade, suas franquias, com a ajuda de apenas vinte mil pessoas. Ê preciso, pois, que haja cumplicidades. É preciso que haja a Igreja, é preciso que haja a nobreza, é preciso que haja os comerciantes. O Estado não está sozinho. Há toda uma sociedade que o cerca. No seu esquema simplificado, vê-se “Justiça” de um lado, “Finanças” de outro. Não se vê a administração. Ora, definia-se o “oficial” do Antigo Regime como o homem que julga e que adminis tra. Você vê, a diferença entre Justiça e Administração!. . . Mas a palavra “Finanças”, Emmanuel, você n ão acha que ela é perigosa?

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E. LE ROY LADURIE: Sim, mas era a palavra que se empregava. F. BRAUDEL: é uma palavra perigosa porque os financistas são homens de negócios que manipulam não o seu próprio dinheiro, mas o do Rei. E, aliás, ficam com uma parte dele, de passagem, e mais considerável do que a que corresponde a seus emolumentos. Mas, ao lado dos financistas, há banqueiros que desempenham, principal mente na época de Francisco I9, um papel considerável. O grande problema da monarquia francesa é que ela recebe

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massas consideráveis de impostos, mas estes não são suficientes; então, ela aperta o cinto da nação, mas em um certo ponto, não pode ir além . Isso a obriga a voltar-se para as pessoas, que lhe emprestam dinheiro e lhe impõem reembolsos consideráveis. No século XVI, houve esse período impressionante, durante o qual a Realeza francesa voltou-se para Lyon, que era uma enorme praça financeira. Lá pedia-se dinheiro, era magnífico! Havia lá uma bomba de dinheiro que funcionava extremamente bem. Não eram ape nas os ricos que emprestavam dinheiro, a gente modesta também. Tudo isso acabou com um tal desastre, que em 1557 o capitalismo nascente abandonou a Realeza. A Realeza viu-se obrigada ent ã o a viver sozinha. Os oficiais adiantavam o dinheiro, porque estavam a serviço do Rei. Estamos de acordo?

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E. LE ROY LADURIE: Sim. F. BRAUDEL: Você vê, dão a um pobre candidato a professor-substituto o primeiro esquema e lhe dizem: “Explique.” Você acha que ele conseguiria? Ê incrível!

E. LE ROY LADURIE: Este esquema, de fato, deixa de lado o Exército, que aparece um pouco, mas nã o suficientemente, a Igreja, que mal aparece ( através das décimas ) ,* deixa de lado os financistas e os banqueiros, mas se interessa pelos juízes senhoriais, pelos not ários e pelas municipalidades. É pois muito precisamente uma árvore das funções e uma árvore da justiça e das finanças. Se tivéssemos a aud á cia de completar o pensamento do Sr. Figon, podería mos acrescentar círculos, onde poríamos a Igreja, o Exército, etc. Mas não ousei ir além do documento; permaneci fiel assim a um certo empirismo hist órico.

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F. BRAUDEL: Seriam necessários não sei quantos esquemas para compreender as instituições do Antigo Regime. E. LE ROY LADURIE : De modo geral, esta árvore é v álida a partir do reino de Francisco I até o período antes de Colbert. A partir de Colbert, ela termina. F, BRAUDEL: Colbert já era cartesiano, em suma. Pior para nós. * Décima parte, dos rendimentos eclesiásticos^ que para certas necessidades urgentes (N T )

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A França

se cobrava

antigamente,

Fernand Braudel em pessoa Volto-me agora para Theodore Zeldin, que me questionou diante dos senhores, nesta manhã. Ele me acusa de ser um francês estra nho, o que me irrita um pouco, porque é verdade e não é verda de. Tenho medo de que a celebridade que bruscamente se faz em torno de mim seja, do ponto de vista hist órico, uma circunstância

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infeliz. Tive muitíssimos alunos, gosto muito deles, briguei com eles e brigarei de novo se for o caso. Eles me dizem freqiientemente: “O sr que teve uma vida particularmente privilegiada . . . ” Aí, eu protesto. Eu lhes disse ontem, falando de Jean-Paul Sartre, que ele se empenhara na vida francesa e na vida internacional de modo muito mais brilhante que eu. Ora, sem querer, ou querendo inconsciente mente, eu fui injusto comigo mesmo. Talvez os srs. se divirtam, escutando-me um instante. Tive uma vida dif ícil. Dif ícil, não; muito dif ícil. Mas nunca perdi o prazer de viver. Assim, nunca pensei em me queixar. Mas eu poderia queixar-me. Não o fiz porque tenho horror à gloríola. E imagino que a vida que foi a minha contribuiria, muito mais do que qualquer elogio, para situar-me acima do que valho realmente. Passei minha vida sendo rejeitado pela vida universit ária fran cesa e pela própria vida francesa. Sou desses homens que gostam de reformar, que gostam de melhorar. Sinceramente, acreditei que era f á cil. Pois bem, nunca consegui verdadeiramente. Quando voltei da prisão na Alemanha, em 1945 . . . não, isso vai lhes parecer pretensioso . . . fui encarregado de dar um curso na Sorbonne sobre a história da América Latina. A América Latina foi o encanto da minha vida. Dei algumas aulas; não tive um sucesso prodigioso, mas super-prodigioso. Assim, eu mesmo fechei para mim a Sorbonne, porque sentiram o perigo que eu poderia representar para a história tradicional. Foi assim que eu sempre fui empurrado por pessoas bondosas para as estradas secund árias. Fui nomeado para o Collè ge de France; isso foi um alívio para a Universidade francesa, porque o Collège de France não confere títulos. A Univere ainda hoje com sidade não percebia que o Collè ge de France significa uma posição meu sucessor Emmanuel Le Roy Ladurie

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de superioridade, de certo modo. Mas eu não tinha direito de distribuir diplomas. Tentei em seguida, corajosamente, criar uma faculdade que fosse Faculdade de Ciências Humanas, mas completa. Sou contra as Faculdades de Letras, Faculdades de Direito, etc. Foi entã o que o acaso é sempre muito divertido em uma vida, é a ironia da hist ória fui simplesmente (ouçam-me os que conhecem a história da Universidade ) , durante seis anos, Presidente da Banca do concurso para professor-substituto universit ário de história, e depois despedido por um ministro, não de direita, mas de esquerda. Talvez o fato de ter sido despedido nessas condições tenha atraído a atençã o para a minha modesta pessoa ; de qualquer modo, um mês ou dois depois de ter sido posto na rua , eu aparecia naquilo que se chamava ent ão plano quinquenal. Comecei a fazer estragos. Propus, em um artigo dos Annales, sob o nome de Chambon, uma Faculdade de Ciências Sociais. Isso representou um tal perigo, que houve uma prodigiosa reunião, da qual saiu um resultado que dura ainda hoje na nomenclatura. As Faculdades de Direito se tornaram Faculdades de Direito e de Ciências Económicas, as Faculdades de Letras se chamaram doravante Faculdades de Letras e de Ciências Humanas. Eu era talvez um implicante . . . entretanto, tive a grande vantagem de ser jogado para a pesquisa. É um privilégio fant ástico. O College de France é a pesquisa. Lucien Febvre, alguns outros e eu criamos a VI seçã o da Ecole des Hautes Etudes, no meio da ironia geral, pois ela n ã o confere t ítulos universit ários. Existe um diploma da Ecole des Hautes Etudes , mas ele n ão entra na hierarquia dos títulos. Assim pois, nessa estrada secund ária, deixaram-nos criar a VI seçã o dos Altos Estudos de Ciências Económicas e Sociais. Não éramos utilizados na França? Pois o éramos no estrangeiro! A VI seçã o da Ecole des Hautes Etudes foi a maior instituição entre 1929 e 1968. Sabe Deus as pessoas que incomodei! Depois, Christian Fouchet, que tinha uma grande amizade por mim a recíproca é , nomeou- me para uma comissã o de reforma. Em meu verdadeira lugar, os srs. teriam aproveitado? Eu aproveitei, e obtive que o concurso para professor-substituto fosse verdadeiramente modificado. Eu confesso baixinho, escondendo o rosto: n ão gosto dos concursos, porque eles quebram os aprovados e estragam os reprovados. E acho que não é nada razoável ser obrigado, em seis horas, sem ter os conhecimentos suficientes, a escrever um texto de vinte a vinte

e cinco páginas! Com vinte e cinco páginas, o candidato é aprovado, com vinte páginas, tem nota má, com quatro páginas, é reprovado. É incrível! Para responder a essas perguntas, que são ainda hoje a regra do jogo, acumularam-se conhecimentos nos manuais, conhecimentos medíocres, e a juventude não aproveitou sua energia para aprender alem ão, latim, grego, economia política. Assim, obtive uma modificaçã o do concurso e Christian Fouchet, radiante com a idéia de poder fazer algo, dizia: “Poderíamos suprimi-lo.” Então, houve sessões absolutamente inéditas na comissão de Christian Fouchet. O diretor da Ecole Normale Sup érieure me disse: “Mas se os estudantes n ã o fizeram o concurso, vão fazer o quê?” Todos responderam: “Outra coisa.” Mas ele não estava satisfeito. E não creiam que tudo terminou bem para mim. Christian Fouchet foi visitar Pompidou Pompidou o tratava por “você” ( é a regra: a partir da III Repúe este lhe disse: “Se blica , os políticos se tratam por “você” ) , eu ponho pela porta te concurso nesse mexer você continuar a afora.” Ent ã o, Christian Fouchet pensou muito e não houve reforma. Nove em dez vezes, fui rejeitado. Como reformador, sou um homem profundamente de esquerda, é verdade. Mas fui rejeitado pela esquerda e pela direita, pois minha boa vontade faz de mim um homem nem de direita nem de esquerda. Quando a esquerda chegou ao poder ultimamente, teve razão em destruir muita coisa , mas nã o de nacionalizar, como fez. É o que eu vi na Itália que definiu o meu julgamento. Não reflito num plano teórico, mas a par tir de dados imediatos. Poderia continuar durante muito tempo a contar-lhes minha vida . ..

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A. Du ROY: Quando Theodore Zeldin observava há pouco que o sr. era um francê s “anortnal” , sem d úvida ele queria dizer que a história de sua vida o mostra voltado para o estrangeiro. Ora, no estrangeiro, os franceses são considerados como quase que exclusivamente interessados em si mesmos, egocêntricos, pensando que a única cultura do mundo é a cultura francesa. Em relação a essa imagem do francês, o sr . é anormal. Em sua opi nião, esse julgamento sobre os franceses tem fundamento?

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F. BRAUDEL: Quem deve responder é Theodore Zeldin. Ele estudou os franceses como se estudam as cobaias. É o que o sr. disse, não é? Ent ão, o que o sr. pensa da cobaia francesa?

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quanto à descentralização. Foi na qualidade de cidadão, se eu entendi bem, que Braudel tomou posição”

T. ZELDIN: Estou muito feliz por ter conseguido levar uma dessas cobaias t ão distintas, e que fala t ão bem, a falar de sua vida. Eu me interesso pela sua vida porque a história é feita com a vida dos indivíduos.

F. BRAUDEL: Por que o sr. distingue o historiador e o cidad ão? É uma única e mesma pessoa. Posso fazer calar o cidadão e deixar falar o historiador, é claro, mas ambos podem falar ao mesmo tempo.

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A. Du ROY: Seu julgamento sobre a descentralização provocou in quietação. V árias perguntas do auditório manifestam isso.

A. Du ROY: Reprovam-lhe fazer um julgamento “a priorisobre a descentralização, pois ela ainda não se fez .

F. BRAUDEL: EU responderei, mas não sozinho, porque temo que os srs. não tenham o mesmo ponto de vista que eu. Eu me explico. O que eu mais admiro na França é a honestidade dos funcionários, e eu não a encontrei sempre nos outros países. Temo que essa burocracia improvisada que será formada pela descentralização das pro víncias não tenha a mesma qualidade que a atual. Estou sendo mal-

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doso . . .

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A . Du ROY: Leio duas perguntas dirigidas ao sr , sobre esse tema: “A desconfiança de Fernand Braudel em relação à descentrali é Yves Der zação será irredutí vel? N ão penso, na verdade” lahaye, do Ministério das Relações Exteriores, que fala “que , para a unidade nacional pois a descentralização apresente riscos ela não é um movimento centrí fugo, mas uma transferência de competências e de meios do cume para a base. Assim, ela per mite associar mais estreitamenie o cidad ão ao exercício do poder , o que me parece, ao contrário, de natureza a reforçar a unidade do pais ”

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F. BRAUDEL: Desejo que ele tenha razã o. Eu não quero que minhas previsões, um tanto pessimistas, se realizem. Mas quando se diz que transferir do cume para a base nã o é uma força centrífuga, então o que é, exatamente? É como se tomássemos o centro do círculo e levássemos certos elementos para a circunferência .

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A. Du ROY: Uma observação mais precisa sobre esse tema lhe ê feita por esta pergunta; “H á em Fernand Braudel, parece me, uma ambiguidade. Seu julgamento negativo sobre a descentralização seria ditado por seu nacionalismo? Temeria ele que a nação não fosse mais una e indivisí vel? Sua denúncia do papel exces sivamente pesado do Estado deveria, entretanto, levá-lo a apro var a descentralização. Observemos que ele não tomou posição quanto ao capitalismo. O historiador não deve tornar posição

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E. LE ROY LADURIE: Seria injurioso dizer que o financiamento dos partidos políticos, tanto à direita quanto à esquerda, se faz muitas vezes por operações imobiliárias no interior de comunidades descentralizadas, municipais ou regionais?

A. Du ROY: Não sei se é injurioso; em todo caso é real. E. LE ROY LADURIE: ISSO é um problema , e não podemos recen tralizar para evitá-lo.

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A. Du ROY: Hubert Caron, professor, o interroga sobre sua con cepção global da história; “O sr. definiu no início da sessão a história global como uma história enriquecida pelas ciências hu manas. Em que sentido essa indicação, que marca uma vontade de totalização e de unificação, identifica-se com uma filosofia da história, ou desta se distingue?”

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F. BRAUDEL: EU também moro na província, nos Alpes. Se eu tivesse sido suficientemente corajoso, teria intentado procedimentos judici ários contra certas municipalidades. N ão admito que, graças ao desenvolvimento das estações de esqui, alguns façam fortuna em preju ízo do trem, da iluminação das cidades, etc. E, repito, temo que tenhamos que lidar com organizações que não terão a honestidade que eu quase sempre encontro na burocracia francesa, da qual falam tanto mal. Evidentemente, não estou respondendo às perguntas. Mas essa é a minha impressã o. Se a descentralização se fizer, eu aplaudo, mas . . .

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F. BRAUDEL: O que os compatriotas de Karl Ferdinand Werner me reprovam é não chegar a uma filosofia da história. Primeiramente, sou incapaz disso; depois nã o quero fazê-lo. É preciso compreender bem o que é a lição dos Annales, da escola dos Annales, e mesmo da “nova nova história”: é que todas as ciências-

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humanas estão incorporadas na história, e se tornam ciências auxi liares. Mas são ciências auxiliares perigosas, porque o domínio do historiador é um domínio sem fronteiras entra-se no estudo da história como se entra na casa da sogra , de modo que essas ciências sociais, essas ciências do homem deterioram a história e levantam terríveis problemas. Pergunta-se ent ão se a finalidade da história é narrar o passado, ou ent ão colaborar para a unificação das ciências humanas, para o que chamo a inter ciência. Sou favor ável à inter ciência. O conflito que existe entre mim e os “Nouvel les Annales” , entre mim e Emmanuel Le Roy Ladurie o que eu digo vai agradar a Zeldin! é que eu estou decidido a sacrificar a história para tentar salvar as ciências humanas: acuso a economia política de ser imperfeita. Reprovo à geografia n ã o aprofundar se suficientemente. Quanto à sociologia, aí ent ão eu me enfureço! E Deus sabe que eu sou apaixonado pela sociologia! Mas os sociólogos que acreditavam achar a verdade sobre as sociedades, examinando com lente ou apurando o ouvido a cada vez que se trata do mundo atual, não têm a menor preocupação com a perspectiva; do mesmo modo que, se eu fizesse pintura abstrata, não diria que a pintura abstrata é a melhor. Mas é a história que eu amo, é para ela que eu tenho vontade de trabalhar.

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A. Du ROY: H á alguns dias, o sr . deu uma aula para crianças de 13 14 anos em um colé gio de Toulon sobre “ o cerco de Tou lon de 1707”. As crianças, disseram-me os colegas que as entrevistaram, ficaram muito interessadas . . .

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F. BRAUDEL: AO menos, eu as diverti. A. Du ROY: Foi um conto, uma peça de teatro. Eles gostaram.

F. BRAUDEL: Nã o sou bom ator, esse é o problema! A. Du ROY: Que conselhos o sr. daria a um jovem professor de história? F. BRAUDEL: Primeiro, eu lhe diria: “Meu caro, siga ou não os meus conselhos. Eu os dou, mas o responsável é você.” Hoje, o professor é prisioneiro dos programas. Ora, não fui eu , apesar de tudo o que se possa dizer, que fiz os programas de história. Fui nomeado, por Edgar Faure, Presidente da Comissão de reforma do ensino da história no secundá rio. A comissão se reu-

niu durante oito dias. Não chegou à menor conclusão. Logo, não sou responsável. Mas, se eu fosse responsável, at é a “classe de primeira * eu ensinaria a história tradicional, a história-narração: o professor conta, pára, explica uma coisa um pouco mais importan te, de vez em quando introduz observações de sociologia, de economia social, etc; e eu concentraria a “ história nova-nova” e a “hist ória-nova-nova- nova” nas classes terminais. Porque eu acho horrível, abominável, que no exame do fim do secundário, as crianças sejam interrogadas sobre o período de 1945 a 1985 como se faz hoje. Estou certo de que, se eu fosse examinador, reprovaria qualquer historiador! E se eu me examinasse a mim mesmo, eu me reprovaria pessoalmente! Podem me aplaudir. N ão admito que os concursos e os exames sejam inventados para reprovar as pessoas. Isso não pode continuar , não é possível. Olhem o exemplo da medicina: no começo dos estudos de medicina, estuda se uma quantidade de assuntos que não têm nada a ver, depois, com o exercício da medicina, a fim, simplesmente, de diminuir o número de futuros médicos! Os srs. sabem que é verdade. É a mesma coisa em qualquer área. Deveríamos permitir um acesso mais f á cil ao ensino superior, a um ensino superior que convenha ao temperamento próprio de cada estudante. Na Inglaterra, vi coisas maravilhosas. Há em Oxford estudantes de Letras que só fazem grego. Na Fran ça , eles teriam que fazer também latim, francês, e até história Ê preciso deixar que os espíritos floresçam . . . Fui eu que reintroduzi no concurso para professor-substituto a explicação de texto. Os srs. sabem como os candidatos desse concurso são crianças. Quando fazem bem a explicação de texto, eles o percebem; e quando lhes dizemos que o tempo acabou, eles ficam desolados, gosta riam de ficar quinze minutos a mais, para fazer mais alguns pontos. Deveríamos sempre tornar possível que o candidato se apresentasse na sua melhor forma, no melhor de sua capacidade.

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A. Du ROY: Qual é a sua impressão, no fim destes três dias? F. BRAUDEL: EU me diverti muito. Pessoas de quem eu gosto me disseram: “Tenha juízo, por esta vez.” Será que eu segui o conselho?

* Classe que, no curso secundário* precede as classes terminais. (N.T.)

As Oficinas

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“Há uma visão f ílmica da história?”, por Marc Ferro Cabe a Fernand Braudel ser um dos primeiros a compreender qual poderia ser o lugar do filme na an á lise histórica. Ali ás, ele é um dos poucos historiadores que souberam utilizar as imagens e os objetos como fonte de informação e reflexão, no mesmo plano que as outras, e n ã o apenas como ilustração de teses elaboradas a partir de outros documentos. Na Ecole Pratique des Hautes Etudes ( VI seçã o ) ele criou assim uma Direçã o de Estudos, Cinema e História , que n ã o tinha equivalente; pois, em outros lugares, ou a história ignorava os documentos cinematográficos, ou ent ão o estudo do cinema era dissociado das Ciências Sociais, salvo a lingu ística ; e, nos Estados Unidas, por exemplo, ã quest ã o se apresenta assim, cinema e história n ã o mantêm nenhuma conivência. Nesses últimos vinte anos, com a difusão dos meios de comumcaçã o de massa, sua penetração nos lares, e tendo em vista seu quase monopólio na difusão do saber, especialmente no Terceiro Mundo, fica claro que, para o historiador, existe um desafio. Ele n ão pode mais considerar o filme apenas como um documento, mas também como a forma privilegiada que pode adotar o seu discurso sobre a história. Assim, uma pergunta assume cada vez mais importância: traz o filme um suplemento de inteligibilidade aos fen ô-

1 Figuram abaixo as comunicações dos responsáveis pelas oficinas que se realizaram durante as tardes e que foram largamente abertas ao público.

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menos históricos? O cineasta os trata com um olhar inovador? Que papel desempenha a criatividade do artista na relação e na an á lise do passado, no estudo de seus laços com o presente? Assim , neste caso, trata-se do filme histórico mais que do filme em geral. Mas todo filme nã o é, também, História? Existem várias maneiras de considerar um filme hist órico. A mais comum, herdada da tradição erudita, consiste em verificar se a reconstituição é precisa, se os soldados franceses de 1914 nã o usam, equivocadamente, um capacete, que só a partir de 1916 usaram; em observar se os cen ários ou os exteriores são fi éis, os diálogos aut ênticos. A maioria dos cineastas são atentos a essa precisã o erudita ; para garanti-la , fazem se ajudar por historiadores “ postiços”, que figuram, perdidos, em algum canto dos créditos. Naturalmente, h á cineastas que sã o mais exigentes. Por exemplo, fazem as vezes de historiadores, vão eles próprios aos arquivos, restituindo ao di álogo seu sabor antigo, utilizando se necessário o dialeto da Sil ésia ou da Normandia. Limitam ao m í nimo a parte da reconstituição para prevenir qualquer efeito de falso brilho, de mau gosto, selecionando com cuidado os exteriores em cenários naturais que se modificaram pouco desde a época em que se supõe ter acontecido a açã o do filme. Sã o tais exigências que, sem excluir necessariamente outras, fizeram a fama de R . Allio, de Tavernier ; celebra-se também a talentosa sensibilidade de Bertolucci: na Estratégia da Aranha, um simples lenço vermelho, uma indefinível diferença de luminosidade, de iluminaçã o, sugerem a passagem para um passado longínquo, para um passado imagin ário. O olho positivista n ão exclui o apelo a outros crit érios de julgamento. A realizaçã o de Nevski e de Rublev, por exemplo, é devida a dois artistas * igualmente atentos às suas exigências. Bem informados, de uma viva sensibilidade, ambos dotados de talento para recriar e imaginar uma época dram á tica, ressuscitaram os mesmos momentos da história ( ou quase ) , mas realizaram dois filmes de significa çõ es divergentes num ponto essencial. Em Nevski, o inimigo mortal é o alem ão, e em Rublev , o t á rtaro, o chinês. Neste, o que salva a R ússia é sua santidade, seu cristianismo, ao passo que em Nevski o herói é voluntariamente laicizado. Assim , a ideologia do

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Einsenstein e A. Tarkovsky , respectivamente. (N.T.)

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filme pode constituir um critério de julgamen to que se dissocia da habilidade do cineasta é uma evidência. Com efeito, essa outra maneira de ver interfere na primeira, e até muitas vezes a suplanta. O filme hist órico é julgado tanto quanto ao seu sentido quanto à sua essência. Evidentemente, durante esta última metade do século, numa sociedade dominada pelas ideologias, esse outro olhar prevaleceu . É claro que Abel Gance e Jean Renoir propõem duas versões contr árias da Revolução Francesa. A primeira, bonapartista e inconscie ntemente pré-fascista, glorifica o homem providencial; a segunda, ao mesmo tempo marxizante e popular, ignora a existência dos “grandes homens”. Nesse caso como no outro, o cineasta seleciona na história os fatos e os traços que alimentam sua demonstração, e abandona os outros, satisfazendo-se e satisfazendo os que compartilham a sua opini ã o. Glória feita de sangue, de Kubrick , é constru ído segundo esse princípio. O sucesso do filme prova que a obra respondeu admiravelmente à expectativa daqueles que professam a f é antimilita rista. Percebido dessa maneira , o filme histó rico difere pouco das outras formas de discurso sobre a história : romance histórico, trabalhos acadêmicos, etc. Mesmo em relação ao teatro , a especificidade do cinema é mínima, ainda que se manifeste ( â ngulos de tomadas , planos gerais, closes, utilizaçã o mais elaborada da relação entre o som e a imagem , etc ) . Sem d úvida , esses filmes contribuem para a inteligibilidade dos fenômenos hist óricos e para a difusã o dos saberes sobre a história; e têm uma virtude pedagógica. Mas intervêm pouco como aporte cientí fico do cinema para a inteligibilidade dos fenômenos históricos. Constituem eles apenas a transcriçã o f ílmica de uma visã o da história que foi concebida por outros. Certamente, pela escolha inovadora de um tema particular , existem cineastas que foram agentes dessa inteligibil idade, enquanto que as formas tradicionais do discurso histórico n ão conseguiram tornála sensível. Visconti, por exemplo, em Os Deuses um caminho privilegiado para aqueles que desejam Malditos, abre compreender a penetração do nazismo na alta burguesia alem ã . Nesse caso, entretanto, a forma e a tem á tica escolhidas tê m por efeito ou por função tornãr opaca a ideologia latente do filme, que, também ela, vem de outro lugar. Para Visconti, trata se de uma visão global da hist ória como decad ência, cada uma de suas obras constituindo uma elegia a tudo o que, com a irrupção do novo, desaparece.



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N ão acontece o mesmo com todos esses filmes que, tomando por tema um fato banal, exercem a mesma dupla função, que não é específica ao cinema, já que antes dele e paralelamente a ele, Zola , Camus ou Sartre, como Renoir, Rosselini, Godard ou Cha brol, tinham procedido de modo semelhante, usando o fato banal como revelador do funcionamento social e político. Simplesmente o cinema explorou esse veio bem melhor que o romance ou que os historiadores, que ficaram a reboque; após tê-lo experimentado no presente, o cinema o aplica ao passado. É assim com toda uma série de filmes que, desta vez, paralelamente aos historiadores, ana lisam a vida cotidiana das sociedades passadas, de A Á rvore dos Tamancos a Farrebique * inaugurando por assim dizer a era da hist ória anónima, a que sofre os efeitos da “ grande” história , os efeitos dos acontecimentos, suas tr ágicas consequências. Assim sendo, a função de an álise ou de contra-an álise do cinema só se exerce sob várias condições. Primeiramente, que os cineastas, tal como certos escritores, romancistas ou historiadores, se tenham tornado autónomos em relaçã o aos n ú cleos institucionais estabelecidos, o que n ão é o caso dos diretores de filmes ditos de propaganda , ou das correntes ideológicas dominantes, caso contr ário sua açã o n ã o faz mais que completar , sob uma forma nova, a dos n úcleos que as emitem. Desse modo, independentemente do filme-espetáculo de pura desde Cecil B. evasão, cuja funçã o continua sendo pedagógica , a principal distinção não opõe os de Mille até Sacha Guitry fiimes cujo cen á rio é a história, por exemplo A Grande Ilusão, e os filmes cujo objeto é a história , por exemplo Alexandre Nevski , pois a variedade das abordagens em história é infinita. A distinção se faz, antes, entre os filmes que se inscrevem nas correntes de e os filmes que prodominantes ou minorit á rias pensamento , sobre a soinovador , independ ente põem, ao contrário, um olhar documento filmes s e ciedade. A mesma distinção se encontra nos ó rico hist as montagens, os primeiros trazendo para o conhecimento uma contribuição inapreciável, arquivos in éditos. A segunda condição é evidentemente que a linguagem proceda do cinema, e n ão do teatro filmado, e que a obra utilize os meios

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* De Ermano Olmi e Georges Rouquier, respectivamente. (N.T.)

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específicos dessa linguagem ( traveling , montagem paralela, campo, contra-campo ) . Pode-se assim distinguir v á rias categorias de filmes de história : os que reproduzem os estereótipos das correntes de pensamento dominantes ou dominadas, e que n ã o têm necessariamente relação com a situação social real ( por exemplo, os filmes cuja ação se situa nas colónias, como mostraram J. Richards para o Império Brit â nico e S. Chevaldonne para as antigas possessões francesas ) ; os filmes de propaganda de todo tipo, filmes que exercem mais uma açã o sobre a história do que procedem de uma an á lise original ; os que reconstroem completamente uma an álise a partir de um procedimen to puramente cinematográfico ( assim procede Eisenstein , que em A Greve , realizou uma transcriçã o f ílmica da an álise marxista de um modo de produ çã o capitalista em um caso particular ; uma f ábrica russa de antes de 1905 ; os que fazem uma an álise original do funcionamento social e histórico, independente de toda filiação, e utilizam simultaneamente meios propriamente f ílmicos para exprimi-lo, como Fritz Lang, em M . le Maudit: atrav és da história de um man íaco sexual, mostra o funcionamento da rep ú blica de Weimar. Como se vê, a natureza da an á lise é independente do gênero cinematogr áfico ( document ário, reconstruçã o , reconstituição ) e da época em que se situa. Um filme sobre o presente pode melhor analisar o passado que uma obra dita histórica . É evidente.

dos objetos, dos comportamentos sociais, etc. ; o das estruturas e organiza ções sociais, essencialmente nos filmes não-document ários, que n ã o têm por função informar. Enfim , existem filmes nos quais a vontade explícita de desmascarar os funcionamentos ocultos de uma sociedade, j á que seus aspectos visíveis constituem elementos da hist ó ria tradicional, acaba realizando uma obra de contra-histó ria, que ergue contra si todos os sistemas institucionais: organizaçõ es polí ticas e sindicais, ligas de moral , imprensa de opiniã o, etc. Sob esse ponto de vista, cineastas como Kulechov, F. Lang, René Clair, J .-L. Godard, para nos limitarmos ao velho continente, podem ser considerados como os verdadeiros herdeiros dos romancistas do século XIX, grandes historiadores de seu tempo. Mais que os precedentes, alguns deles tiveram talvez consciência de que dispunham de um instrumento excepcional para acusar a iniquidade da história e propor sua verdade: dois gigantes do cinema , Abel Gance e Charlie Chaplin executaram uma obra coerente demais para que se possa duvidar disso. Realizando A Grande Ilusão , Jean Renoir pensou que agia sobre a hist ória, no sentido da paz . . . Tudo isso é tã o verdadeiro que hoje o filme constitui uma forma privile giada da contrar-história; uma forma mais que um foco. Não tanto o filme que figura entre os campeões de bilheteria , exceto , com atraso e fora de seu pa ís, os grandes filmes sovié ticos dos anos 1920; mas o filme pouco dispendioso que, ao menos em certos casos, permite a um grupo tomar a palavra. Outrora, a seu modo, diante do imperialismo e do capitalismo triunfantes, quando os filmes sovi éticos estavam proibidos, a obra de Joris Ivens conseguiu apresentar esses traços, obra que dá seu testemunho, como em Borinage , por exemplo ( 1931 ) . Posteriormente, essa obra mudou de status, já que hoje o partido e o Estado em que a revoluçã o triunfou a transfiguraram, e essa obra tomou-se assim a expressã o do discurso oficial. Hoje, diante da concentra çã o na imprensa , sã o as mini organiza ções, os grupos mal estruturados, que utilizam o filme, ora obras militantes de cineastas, ora filmes realizados pela própria sociedade. Tal é o caso do cinema feminino, do cinema dos imigrantes, e també m do cinema das regi ões, do campo francês . Sob esse aspecto, a obra de Troller e Defarge se situa nos confins do cinema da contrahistória e de um cinema verdadeiramente aut ónomo: foram os primeiros a dar a palavra, no tempo do xá , aos aiatol ás e aos habitantes das favelas de Teerã; foram os primeiros a deixar-se exprimir

Filme e contra-história ; o filme, agente da história J á se percebeu que um filme sobre o presente constitui uma obra de hist ória, ou mais precisamente de contra-hist ó ria , na medida em que, na ficção ou fora dela, uma imagem é sempre ultrapassada por seu conteú do: assim , ela n ão é a simples reprodu çã o do “ real”, daquilo que o operador julga ser a realidade. Os exemplos sã o numerosos. Analisando os filmes agrícolas dos anos 1930, Ronald Hubscher observava que o enquadramento sistem á tico das m ãos, nas diversas etapas do cultivo da vinha, correspondia à vontade de enfatizar a efici ência do gesto ; ora, saber e t écnica desigualmente divididos mantêm certas formas de organizaçã o do trabalho que o filme revela involuntariamente. Essa contra-an álise pode efetuar-se em vários n íveis. Em primeiro lugar, o nível do invent ário dos gestos,

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La Colère Corse ( 1974 ) . Raras foram as telas que autorizaram a passagem de suas imagens ( a Alemanha federal, por exemplo ) , a? rádios e a imprensa fizeram o mesmo. Os filmes militantes dos movimentos feministas tiveram melhor recepção, justamente porque eram apoiados por mini-organizações. Mas as grandes obras f ílmicas da contra-história provêm naturalmente das sociedades onde o regime político não deixa à história a sua liberdade e onde, para exprimir-se, ela toma uma forma cinematográfica. Assim, à sua maneira, o cinema polonês utiliza a hist ória para melhor exprimir a dissid ência da sociedade. Como mostra bem L. M. Rawicki, a Segunda Guerra Mundial é um observatório privilegiado para fazer a crítica global do regime; ora o n úmero de filmes que a utilizam, como cenário ou como objeto, atinge uma grande parte da produção total de filmes, um recorde europeu. Na URSS, onde o lugar da agit- prop * foi tomado pela televisão, o filme se emancipa com ousadia; o problema é saber compreender como foi possível produzir tantas obras, primeiro muitas vezes proibidas, depois autorizadas, das quais Rublev foi o protótipo. O cinema da Georgia, o de Iosclanni principalmente, levanta um problema a esse respeito, pois sua obra se situa a meio caminho entre a contestação e a dissidência . .. Outro lugar onde o filme constitui uma forma privilegiada de contra-história é a África Negra. A mão dos historiadores treme de medo ao ousar evocar as façanhas perpetradas, n ão pela coloniza ção, o que é hábito, mas pelo Islã e a escravatura á rabe em particular. Ora, a m ã o do cineasta Sembène Ousmane n ã o tremeu , quando sua câ mera assimilou o Islã triunfante do século XVIII a uma espécie de totalitarismo contra o qual lutam e morrem os Ceddo. Em um contexto diferente, a m ã o dos cineastas índios da Am érica Latina também n ão treme para dizer, em Le Sang du Condor , “o combate de duas forças que caracterizam a realidade nacional boliviana: o povo em busca da vida e o imperialismo que mata.” Nos Estados Unidos, Native Americans on film and video estabelece o inventário dos filmes da resistência indígena. Existem aproximadamente uns trinta, produzidos na maioria a partir de 1968,

além dos filmes sobre os índios, mas realizados por antropólogos. São um complemento à contra-história escrita, cuja difusão é menor, considerando-se a posição atual e a situação das tribos e nações indígenas dos Estados Unidos e do Canad á. Um dos mais importantes entre esses filmes é sem dúvida The Black Hills are not for sale, de Sandra Osawa, realizado em vídeo, que mostra como o general Custer violou o tratado de Laramie, feito com os sioux em 1868, e como, em 1978, os sioux obtiveram uma reparação parcial. Não é um western. .. O exemplo do conjunto do cinema americano permite verificar a relação que pode existir entre a visão da história que difunde o saber tradicional e a que é enunciada pela representação dos filmes: elas n ão concordam necessariamente.

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* Agitação e. propaganda pol íticas. (N T.) ** Título original Yawar Malku., de Jorge Sanjines

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“A França: demografia e política”, por Hervé Le Bras Apesar de pelo menos tr ês séculos de centralizaçã o, a França est á longe de ser uniforme. Educação, família, profissã o, mortalidade, opiniã o política mudam de uma regiã o para outra sem ordem aparente. Fundamentadas sobre a marcha da economia ou sobre a divisão em classes sociais, as explicações habituais das ciências sociais fracassam. O apelo a fenômenos culturais é igualmente vão, pois considera como dados o que se deve compreender como resultado. Exorciza-se então a dificuldade, h á quase um século, predizendo o próximo desaparecimento da diversidade regional, achatada pela “modernidade”. Ora, é possível esclarecer a heterogeneidade nacional com duas condições: levá-la a sério e segui-la na longa duração. As diferenças regionais exprimem efetivamente uma resist ência antiga e fundamental à unificação política do território ; cada uma delas oferece uma faceta à autonomia regional e à auto-organizaçã o local. Considerando-se assim, aparece então uma forte racionalidade. Resist ência à unificação, autonomia, organização, esses termos exprimem a noção de reprodução social, isto é, de recondução da sociedade de uma geração para a seguinte. A França está dividida em pedaços onde se desenvolveram modos originais, coerentes e incompatíveis de equilíbrio social ao longo das gerações. Estruturaçã o

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política e ciclos da vida familiar estão estreitamente associados: os comportamentos demográficos, migrações, idade e frequência dos casamentos, fecundidade, mortalidade, composição do casal, relações entre as gerações, modelam o controle social e a mobilidade. O domínio da mobilidade social, particularmente, a limitação da mobilidade descendente são a grande questão das sociedades: nenhuma sociedade pode, de fato, suportar por muito tempo uma dose excessiva de aspira ções contrariadas. É nesse ponto que política e demografia se misturam mais intimamente. Na França, é possível detectar tr ês modos diferentes desse metabolismo demo-político. Est ão eles respectivamente associados ao catolicismo, à família e ao centralismo parisiense. O catolicismo de certas regiões n ão é a expressão de uma f é misteriosa , mas de uma força política como se pode encontrar na Polónia ou na Irlanda, e, em outra religião, no Ir ã . O catolicismo enraizou-se na França, em regiões que gozavam de uma certa independência sob o Antigo Regime, e que recusaram a Revolução Francesa. Ele se apoia sobre uma curiosa demografia, feita de casamento tardio, celibato dos pobres e dos filhos de família numerosa, o que permite uma ascensã o social moderada. A família complexa, nas regiões leigas, menos independentes que as zonas clericais, exerce também um papel estruturante. Sociedade demasiadamente estreita, ela não foi entretanto capaz de resistir às mudanças dos cem últimos anos, e subsiste como força de recusa. O centralismo parisiense, enfim, impõe-se na Bacia Parisiense, e difunde-se ao sul, para Bordeaux, de um lado, e, pela Borgonha, para o Ródano, de outro Associado à família nuclear, ao casamento precoce, às migrações, ao assalariado, esforça-se para reduzir as duas primeiras forças mais antigas que se opõem à sua progressão. A longa resist ência da França à industrialização, a força do campesinato, a fraqueza das migrações, a implantação dos estrangeiros, a situaçã o atual da fecundidade, da mortalidade, da educação, a distribuição do desemprego, a do trabalho feminino, do divórcio ou dos nascimentos fora do casamento, tomam um sentido quando situadas nessa lógica das “três Franças” políticas e demogr áficas. As duas exposições introdutórias da oficina exploraram esses temas, antes de se encaminharem para questões mais precisas, aten-

dendo a intervenções dos participantes. Dois temas foram então partieularmente explorados: o cará ter único da evoluçã o demogr áfica da França no século XIX, especialmente a extrema fraqueza de seu crescimento em comparação com o de seus vizinhos; as causas e consequências dessa originalidade, as repercussões ideológicas a partir do século XX, sob a forma da eugenia e do natalismo. • • a interpretação dos escrutínios políticos em termos de ruptura do equilíbrio familiar e de recusa da homogeneizaçã o desejada por Paris. Do voto montanhês de 1849, aos votos do Partido Comunista e do Front National de 1984, passando pelos resultados eleitorais de Mitterand ou Tixier em 1965, pode-se reinterpretar a geografia eleitoral sem levar em conta ideologias, mas em termos de equilíbrio entre as três Franças, de que tratamos acima.

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“Antropologia da França”, por Emmanuel Todd A noçã o braudeliana da longa duraçã o sublinha a existência, através da hist ória, de fatores estáveis ou que evoluem apenas muito lentamente. Uma das conclusões possíveis dessa noção de longa duração é a antropologia histórica, disciplina inglesa antes que francesa, nascida no início dos anos 70 dos trabalhos de historiadores como Peter Laslett ou de antropólogos-historiadores como Alan Macfarlane. Os trabalhos da escola de Cambridge puseram em evidência um alto grau de estabilidade das estruturas familiares através dos tempos, ao menos durante o período 1600-1900. Aplicada à França, a análise antropológica revela a permanência, até 1975 ao menos, de formas familiares diferentes nas diversas províncias e regiões do país. O recenseamento de 1975, cujos resultados são igualmente nítidos para os meios agrícolas, rurais e urbanos, permite distinguir dois grandes tipos, um dos quais domina o sul e a periferia do Hexágono, e o outro a Bacia Parisiense, tomada em sentido muito lato. Na Ocit ânia ( exceto a fachada mediterrânea ) , na Baixa Bretanha, na Alsácia e em certas regiões do extremo norte, domina a família tronco, sistema de linhagem que insiste na continuidade do grupo doméstico e na transmissão dos patrimónios culturais ou materiais. Em meio rural, esse tipo familiar acarretava, tradicionalmen-

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te, a formação de comunidades domésticas de tr ês gerações, sendo que um herdeiro era designado pelos costumes ou por seus pais para sucedê-los à frente da propriedade. Esse sistema, que mant ém um filho adulto e casado sob a tutela paterna, deve ser considerado autoritário, no plano das relações pais-filhos. Por designar um sucessor e deserdar praticamente os outros filhos, obrigando-os à emigração ou ao celibato, deve ser considerado como inigualitário no plano das relações entre irmãos. No coraçã o da Bacia Parisiense, na parte central e politicamente dominante do Hexágono, encontra-se, provavelmente desde o fim da Idade M édia, um tipo familiar oposto, traço por traço, ao do sul e ao da periferia . O sistema familiar nuclear da Bacia Parisiense insiste na necessá ria independência das gerações e na necessária igualdade dos irmãos. A chegada à idade adulta dos filhos implica a formação, pelo casamento, de novas unidades domésticas, destacadas da dos pais. A divisão do património entre os filhos é igualit ária. Uma vez reconhecida e cartografada, essa dualidade familiar e antropológica da França, que não exclui a existência de tipos menores ou residuais, deve ser considerada como um fator explicativo essencial da história nacional. A inércia das estruturas familiares permite explicar o reaparecimento periódico, através da história cultural, ideológica, demográfica do país, de formas geográficas invariantes. Para interpretar corretamente a crise protestante do sé culo XVI, a revolução política do século XVIII, o socialismo do século XX, o aumento do poder cultural do sul após 1950, ou a fecundidade relativamente forte do norte, deve-se levar em conta a existência e a atividade de valores familiares est áveis, invisíveis, inconscientes, mas que constituem todavia um dos elementos fundamentais da vida social.

Participaram deste colóquio:

BRAUDEL, Femand ( França )

Da Academia Francesa. Fundador, em 1962, da Maison des Sciences de 1’Homme. Co-fundador, com Lucien Febvre e Charles Morazé, da VI seção da Ecole Pratique des Hautes Etudes, que preside de 1956 a 1972. Professor no Collège de France de 1949 a 1972. Di retor da revista Annales ( Economies, Sociétés, Civilisations ) .

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I

Nascido em 1902 em Luméville-en-Omois ( Meuse ) , professor substituto universit ário de história em 1923, foi nomeado professor de liceu na Argélia ( Constantine ) até 1932. Lá, descobre o Mediterr âneo. É em seguida designado para Paris (liceus Pasteur, Condorcet, Henri IV ) , antes de partir, em 1935, para o Brasil, onde trabalha na Universidade de São Paulo. Tr ês anos depois, deixa o Brasil, volta a Paris e entra para a Ecole Pratique des Hautes Etudes. Mobilizado em 1938 na fronteira dos Alpes, cai prisioneiro na linha Maginot em julho de 1940 e fica detido at é maio de 1945 em Mainz e depois em Liibeck. É ent ã o que tem a intuição fundamen tal quanto à maneira de organizar, segundo três temporalidades, sua tese, redigida de memória. Em 1947, defende sua tese, La M éditerranée et le monde méditerranéen à V é poque de Philippe II que ser á publicada em 1949, a expensas do autor. É então eleito para o Collège de France. Em junho de 1984, Fernand Braudel é eleito para a Academia Francesa ( cadeira de Andr é Chamson ) . Femand Braudel morre em 28 de novembro de 1985.

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