Uma História do Roubo na Idade Média. Bens, normas e construção social no mundo Franco 8580541662

Este livro aborda um assunto original: o roubo nas sociedades da Alta Idade Média. Marcelo Cândido da Silva não procurou

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Uma História do Roubo na Idade Média. Bens, normas e construção social no mundo Franco
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Uma história do roubo na Idade Média Bens, normas e construção social no mundo franco

Marcelo Cândido da Silva

Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda. ©Marcelo Cândido da Silva Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora. As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

cip –Brasil Catalogação-na-Fonte | Sindicato Nacional dos Editores de Livro, rj A817c Arruda, Rogério Pereira de Cidades-capitais imaginadas pela fotografia: : La Plata (Argentina), Belo Horizonte (Brasil), 1880-1897 / Rogério Pereira de Arruda. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2013. 264 p. : il. (História ; 39) Apêndice Inclui bibliografia ISBN 978-85-8054-160-1 1. 2. Fotografia - História. 2. Capitais (Cidades). 3. Fotografia - La Plata (Argentina). 4. Fotografia - Belo Horizonte (MG). I. Título. II. Série. 13-07326 CDD: 770 CDU: 77 25/11/2013 27/11/2013

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Para a Néri e para a Marina.

Sumário Prefácio

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Introdução

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1. Normas e construção social 15 2. O roubo nas hagiograficas

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3. O roubo da legislação real

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4. O roubo nos cânones conciliares 5. O problema dos bens da Igreja Considerações finais Bibliografia

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“Le droit se heurte aux faits, mais il n’est pas de faits qu’il ne simule de surmonter pour empiriquement développer son emprise sur eux” [Thomas, Y. Fictio legis. L’empire de la fiction romaine et ses limites médiévales. Droits. Revue française de théorie juridique, 21, 1995 : 35]. “Un père (certains soutiennent qu’il s’agissait d’un cheikh fort riche), sentant sa fin prochaine, prit ses dispositions pour régler sa succession. Son troupeau de chameaux devait être réparti entre ses trois fils (Ahmed, Ali et Benjamin, mais les noms varient d’une version à l’autre) selon l’ordre suivant: le premier, en vertu du droit d’aînesse, recevrait la moitié, le second hériterait du quart, quant au cadet, il se contenterait du sixième. Lorsqu’il mourut peu après, ses fils furent bien embarrassés : le partage se révélait en effet impossible, dès lors que le troupeau s’élevait à onze chameaux très exactement. Alors qu’ils en étaient déjà venus aux mains à propos de ce partage impossible, ils convinrent de soumettre l’affaire au khadi. Celui-ci, après avoir entendu les parties, réfléchit, traça quelques signes dans le sable, et finalement déclara: ‘Prenez un de mes chameaux, faites votre partage, et, si Allah le veut, vous me le rendrez’. Interloqués, mais peu désireux de contredire cet homme sage, les fils s’en allèrent avec le chameau du juge. Ils ne tardèrent pas cependant à réaliser l’ingéniosité du khadi: avec douze chameaux, le partage devenait fort aisé — chacun reçut sa part et le douzième chameau ne manqua pas d’être aussitôt restitué” (antigo conto beduíno, citado por Ost, F. Le douzième chameau, ou l’économie de la justice, In: Liber amicorum Guy Horsmans, Bruxelas, Bruylant, 2004: 843-867). “Car les hommes ne vivent pas seulement en société, comme les primates et autres animaux sociaux, mais ils produisent de la société pour vivre. Et il me semble que, pour produire une société, il faut combiner trois bases et trois principes. Il faut donner certaines choses, il faut en vendre ou troquer d’autres, et il faut toujours en garder certaines” (M. Godelier, “Des choses que l’on donne, des choses que l’on vend et celles qu’il ne faut ni vendre ni donner, mais garder pour les transmettre” (Godelier, M. Au fondement des sociétés humaines. Ce que nous apprend l’anthropologie, Paris, 2007 : 87).

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Prefácio Antes de mais nada, este prefácio testemunha uma amizade estabelecida há quase dez anos, mantida por numerosos intercâmbios profissionais e pessoais. Ele é também o fruto de uma colaboração mantida entre historiadores medievalistas brasileiros e franceses por meio de encontros científicos e de publicações comuns. O livro de Marcelo Cândido da Silva foi, em parte, escrito na França, graças a uma bolsa de pesquisa da prefeitura de Paris e foi objeto de discussões preliminares no Seminário de História da Alta Idade Média da Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne. Esse livro aborda um assunto original: o roubo nas sociedades da Alta Idade Média. O roubo e a sua repressão não são especificidades das sociedades bárbaras: todas as sociedades que definem direitos de propriedade, sejam eles individuais ou coletivos, condenam a apropriação ilícita de bens de outrem e desenvolvem procedimentos de repressão e/ ou compensação pelos danos sofridos pelos proprietários. As leis bárbaras, elaboradas entre os séculos VI e VIII, não são diferentes e fornecem frequentemente um catálogo bem preciso das multas e punições previstas para as diferentes categorias de roubo. Alguns chegaram até mesmo a defender que os Bárbaros reprimiam mais o roubo do que o homicídio e que eles davam mais valor aos seus bens do que à vida humana. Tal afirmação é desmentida pela presença onipresente da vingança de sangue. Além disso, essa preposição não leva em conta a necessidade de contextualizar os discursos e de desconstruir as fontes, necessidade que se impõe depois de três décadas de linguistic turn. Por um lado, as leis escritas não esgotam o campo normativo nas sociedades da Alta Idade Média, na qual prima à oralidade. Por outro, as normas são permanentemente contornadas ou renegociadas, o que torna móvel o limite entre a legitimidade e a ilegitimidade. Marcelo Cândido da Silva não procurou descrever as práticas sociais a partir de normas, muito menos elaborar um quadro das formas de repressão dos delitos. Seu livro se insere nas problemáticas históricas renovadas, que procuram relacionar a fabricação da norma e o processo de construção das relações sociais. O roubo de bens é um tema que se presta bem a uma pesquisa desse gênero. Os trabalhos sobre dom e transferência patrimonial na Alta Idade Média, que se multiplicaram nos últimos anos, abordam a circulação de bens materiais, reagrupando sob um único termo de troca todas as formas de transações que envolvem reciprocidade: os dons, as trocas de bens materiais, a venda e a compra. A noção de dom e troca, elaborada por Karl Polanyi, permitiu realçar o caráter circular e indefinido de relação criada pelo dom, nas sociedades em que o econômico está incrustado no social. O historiador deve, portanto, observar a parte social e simbólica nas operações que parecem ser essencialmente econômicas e vice-versa, ao se interrogar, por exemplo,

sobre a mais-valia simbólica contida nas operações de transformação. Essa abordagem foi utilizada recentemente ao se estudar o launechild lombardo, contra-dom obrigatório nas trocas matrimoniais, cujo valor dependia das funções sociais que lhe eram atribuídas: de um valor simbólico a um preço aproximado, passando pelo reconhecimento de dívidas anteriores à transação. O roubo e a pilhagem fazem parte dessa circulação infinita de bens, mas de forma negativa, pois coloca em perigo a ordem social. Dessa forma, as normas servem para delimitar a parte do lícito e do ilícito, ao qualificar juridicamente os atores e as suas ações. Mais do que reprimir delitos, elas servem para estabelecer o valor social dos bens e a hierarquia das pessoas, em um processo indefinidamente renovado. Marcelo Cândido da Silva não limita a sua pesquisa a legislação real, ele levou em conta todos os textos que denunciam, de uma maneira ou outra, a apropriação ilegítima dos bens de outrem: a hagiografia, a legislação real, os textos canônicos, os testamentos, etc. Para cada tipo de texto e a partir de exemplos significantes, ele desenvolve uma normatividade particular. A natureza das fontes conduz a colocar em destaque o roubo de bens da Igreja, quer que se trate do roubo de bens de santos reportados nas hagiografias ou de bens das igrejas denunciados nos textos conciliares. Mas o autor não cai na armadilha de uma oposição anacrônica entre as esferas civis e religiosas. A partir do século VII, a Igreja passa a controlar uma grande parte da circulação e da redistribuição de bens, por meio do dom e da salvação da alma. E mesmo se os Pais da Igreja tenham definido os bens da Igreja como bens inalienáveis, cujo verdadeiro proprietário é Deus, o seu uso pode ser legitimamente devolvido aos laicos. No século IX, os prelados carolíngios afirmam ser os únicos que podem controlar o uso, mas são os reformadores gregorianos que, somente no século XI, se empenham na luta para reservar o uso dos bens somente aos clérigos. Definitivamente, a principal concepção desse rico livro é a qualificação jurídica que aparece nos textos como uma ação normativa destinada a definir aquilo que é lícito e aquilo que não é. Ela permite compreender por que o valor econômico dos bens roubados e o prejuízo sofrido não determinam diretamente o rigor da punição ou a ausência de punição. Ela apresenta o desejo de pacificação que anima as autoridades e o estatuto do possesso, o que confirma a ideia de que nessas sociedades, nas quais pessoas e bens estão estreitamente ligados, o valor social dos bens é determinado pelo estatuto daquele que os possuem. Esse rápido prefácio não esgota a riqueza do livro, mas provocará, eu espero, a vontade de lê-lo para saber mais. Régine Le Jan Professora de História Medieval da Université Paris I (Panthéon-Sorbonne) 12

Introdução

A imagem da Idade Média é a de um mundo dominado pela violência atávica e sem limites. E isso graças notadamente à historiografia do século XIX, que deplorava no período medieval a ausência de uma autoridade central forte, na mesma proporção em que exaltava o Estado Moderno como a forma mais perfeita de controle da violência interpessoal. Dois conflitos mundiais, uma série de outros conflitos de alcance regional, as milhões de vítimas dos totalitarismos, bem como a explosão da violência nas grandes metrópoles, o fenômeno do crime organizado, entre outros, solaparam a confiança no Estado como um instrumento capaz de combater ou mesmo prevenir a violência. Assistimos também a um aumento do interesse pelo fenômeno da violência entre os historiadores, sociólogos, antropólogos, etc. Nos últimos vinte anos, houve uma multiplicação de estudos sobre a violência na Idade Média, cujo foco está menos na autoridade pública e em sua capacidade de lidar com esse fenômeno do que nas formas societárias de solução de controvérsias1. A publicação, em 1986, por P. Geary, de um artigo sobre os mecanismos de resolução de conflitos [“Vivre en conflit dans une France sans État: typologie des mécanismes de règlement des conflits (10501200)”, e o colóquio La justicia nel alto Medioevo, organizado em Spoleto, em 1995 e em 1997, pelo Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo (CISAM), são eventos que marcaram uma guinada nos estudos sobre as relações entre paz e violência na Idade Média. Nesse sentido, pode-se mencionar também os trabalhos de P. Fouracre e W. Davies, E. James, I. Wood, F. Bougard, R. Le Jan, R. McKitterick, bem como o colóquio Le règlement des conflits au Moyen Âge, organizado pela Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public Français (SHMESP), em 2000, cujos anais foram publicados um ano mais tarde; ou ainda, mais recentemente, o colóquio sobre a vingança, promovido na École Française de Rome, em 2003, cujos anais foram publicados em 2006 (La vengeance, 400-1200). Essa guinada “societária” do estudo da violência, com uma ênfase inédita nos mecanismos de solução de controvérsias que não passam pelos tribunais, é sintomática da crise da crença na eficácia do Poder como categoria de análise, de uma dissociação entre a História Política e as instituições, e também da integração das práticas sociais como um lócus privilegiado para o estudo do poder. Em 1994, o historiador norte-americano R.F. Newbold, publicou um artigo sobre a violência interpessoal nas Histórias, de Gregório de Tours. Nesse artigo, o autor desenvolve uma abordagem quantitativa acerca da violência: números 1 Tratamos do problema da violência e da paz na Idade Média em um livro escrito com Néri de Barros Almeida (Paz e violência no Ocidente medieval, no prelo).

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de agressões, origens sociais dos agressores, formas de violência, efeitos, etc.2 As formas de violência são catalogadas e tratadas como se Gregório fosse um cronista dos fatos quotidianos do mundo franco, e suas Histórias, um relato jornalístico da crônica policial do período. A violência em Gregório de Tours não pode ser dissociada do sentido que o autor atribui à história, a saber, a luta dos reis contra as nações adversas, dos mártires contra os pagãos, das igrejas contra os heréticos. Todos os inúmeros atos de violência descritos nas Histórias servem, portanto, para ilustrar não apenas o fim dos tempos, mas também para dar sinais irrefutáveis do triunfo final da Igreja: é nesse sentido, como bem mostrou Martin Heinzelmann, que a morte do rei Gontrão - o rei cristão ideal na perspectiva gregoriana - é ocultada nessa obra, ainda que o bispo de Tours faça menção a ela em um trecho dos Sete livros de milagres dedicado aos milagres de São Martinho3. Este é apenas um exemplo da reavaliação dos sentidos da violência nos textos da Alta Idade Média. Numa perspectiva distinta daquela adotada por Newbold, este trabalho parte da ideia de que a violência e, particularmente os ataques aos bens, não podem ser dissociados dos imperativos da produção e da difusão dos textos que descrevem esses fenômenos. Os ladrões, os proprietários e os bens descritos nas crônicas, nas atas conciliares, nas leges ou nas hagiografias dos primeiros séculos da Idade Média não podem ser delas isolados sem que se compreenda o papel - formal inclusive - que eles exercem em tais textos. Fazer uma história desses personagens e dos bens que eles disputam sem levar em conta as funções narrativas dessas disputas nos diferentes suportes em que elas aparecem equivale a esvazia-las de parte essencial de seus significados. Daí resulta a organização dos capítulos deste livro, centrada nos diversos tipos de fontes e nas formas pelas quais elas descrevem os ataques aos bens, e não nas diversas modalidades de roubo. Optou-se por igualmente por evitar a tipologia oriunda do Direito moderno e fundamentada na distinção entre “roubo” e “furto” (que só é efetiva a partir do século XVI). Aliás, não se pode fazer uma história dos ataques aos bens desde a Antiguidade até a época moderna sem reconhecer que os ataques aos bens encobrem conteúdos e sentidos radicalmente distintos segundo a região e o período, ainda que as palavras utilizadas para defini-los sejam as mesmas. O ladrão, o proprietário e os bens são criações documentais tanto quanto personagens da vida social: toda a dificuldade está em tentar definir 2 “In reading Gregory’s history one is struck by the frequency of episodes such as above. Excluding the violence involved in warfare, books 2-10 yield 261 separate instar of physical interpersonal violence, such as beating, stabbing, arresting, imprison torturing, poisning, burying alive. Such incidents can be under a number headingd, such as place of occurrence, agressor, victim, nature of violence, cause, effect, and purpose of the violence, in order to illustrate the role and nature of interpersonal violence in the world as Gregory perceives and reports it”, R.F. Newbold, “Interpersonal Violence in Gregory of Tours’ Libri Historiarum”, Notingham Medieval Studies 34 (1994): 3-17, aqui: 3-4. 3 De virtutibus beati Martini episcopi, IV, 37: “Tempos depois, após a morte do gloriosíssimo rei Gontrão...”.

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os limites entre uma e outra manifestação! Talvez a tarefa dos historiadores esteja menos em tentar resolver essa ambiguidade (o que dificilmente poderia ser feito sem o recurso à dicotomia entre “ideal” e “realidade”) do que em entender o seu funcionamento, compreender a sua função. Não se trata, evidentemente, de negar a existência do real, mas de levar em conta a mediação realizada pelos textos em toda a sua amplitude, e tirar ao mesmo tempo as consequências das dificuldades documentais para os estudos das sociedades da Alta Idade Média. Devemos, por isso, deixar o estudo do roubo, do furto e da violência em geral aos especialistas da literatura medieval? De forma alguma. Ainda que não possam ser avaliados a partir de um ponto de vista estritamente quantitativo, como expressões sociológicas do nível de violência ou de intensidade de ataques aos bens, os relatos desses ataques nos textos dos primeiros séculos da Idade Média não são desprovidos de interesse para o historiador. Eles permitem que se alcance o universo das concepções sociais acerca do roubo, do furto e da violência em geral e, mais importante ainda, as formas pelas quais as normas que coíbem essas práticas participam do processo de construção das relações sociais e dos próprios sujeitos. Tal é a trama que será tratada ao longo deste livro.

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1. Normas e construção social

Os estudos sobre as sociedades da Alta Idade Média constituem, já há alguns anos, uma paisagem em plena mutação1. Eles são o terreno da emergência de novas perspectivas sobre fontes já conhecidas: a descoberta, desde o final do século XIX, de alguns textos fiscais (as Contas do Monastério de Tours e uma nova versão do Políptico de Saint-Rémi de Reims), e também de necrópoles e túmulos de chefes não pode explicar por si só as transformações em tela. Assistimos a um movimento de outra natureza, e seria redutor defini-lo como um “retorno às fontes”. As fontes disponíveis são reconsideradas, desconstruídas e reconstruídas2, e o próprio termo “fontes” é colocado em questão3. Essa intensa renovação engloba tanto os textos escritos quanto os elementos da cultura material. Os dados arqueológicos, ao invés de pressupostos, são considerados materiais sujeitos a interpretações que se abrem para horizontes até então desconsiderados por historiadores e arqueólogos, como a amizade, a inimizade4, a competição5, as emoções6 ou a psicologia social7. Paradoxalmente, esse movimento só foi possível graças à crise da História, dos paradigmas e dos objetos de estudo tradicionais do historiador. Mais do que uma crise da História, o mais correto, aliás, seria falar em crise da História Científica e de seus instrumentais teórico-metodológicos consagrados em boa parte à genealogia do Estado Nacional. Essa crise atingiu em cheio as grandes edições de textos realizadas nesse período (Monumenta Germaniae 1 As primeiras páginas deste capítulo foram publicadas na Signum, a revista da Associação Brasileira de Estudos Medievais, sob a forma do artigo “A Idade Média e a Nova História Política” [http://www.revistasignum.com/signum/index.php/revistasignumn11/issue/current/showToc] 2 A este respeito, ver “Descontrucionismo e construcionismo nas fontes da Alta Idade Média”, conferência ministrada por Régine Le Jan na abertura do Colóquio Internacional “Os medievalistas e suas fontes: a Alta Idade Média”, organizado pelo Laboratório de Estudos Medievais (LEME) e pelo Laboratoire de Médiévistique Occidentale de Paris (LAMOP) nos dias 7, 8 e 9 de abril de 2009. 3 Para uma crítica do termo “fontes”, ver os artigos de Morsel, J. Les sources sont-elles le pain de l’historien? Hypothèses 2003. Travaux de l’École Doctorale d’Histoire de l’Université Paris I Panthéon-Sorbonne, Paris, 2004  : 263-586; e de Kuchenbuch, L. Sources ou documents? Contributions à l’histoire d’une évidence méthodologique, Hypothèses 2003 : 287-315. 4 Régine Le Jan prepara atualmente um livro sobre “amizade” e “ódio” nas sociedades da Alta Idade Média (séculos VI-XI). 5 Baray, L., Brun, P., Testart, A., “Dépots funéraires et hiérarchies sociales aux âgs du fer en Europe occidentale: aspects idéologiques et socio-économiques”, In: Pratiques funéraires et sociétés Nouvelles approches en archéologie et en anthropologie sociale, Dijon, 2007: 169-189 (Collection Art, Archéologie et patrimoine). 6 Rosenwein, B. (ed.), Anger’s Past: The social uses of an Emotion in the Middle Ages. 7 Halsall G., Settlement and Social organisation in the Merovingian region of Metz, Cambridge, 1995.

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Historica, Patrologia Latina, dentre outros)8. Muito embora a leitura crítica das edições dos textos medievais não seja um fenômeno recente, ela se concentrava, pelo menos até os anos 1970, nas questões de erudição. Em 1925, por exemplo, F. Lot mostrou que o texto identificado por A. Boretius e V. Krause como a primeira capitular de Carlos Magno era uma falsificação.9 Para F-L. Ganshof, a edição de Boretius e de Krause deixaria a desejar, tanto do ponto de vista da crítica textual, quando do ponto de vista da história do Direito: o aparato crítico seria incompleto e não repousaria em uma classificação metódica dos elementos da tradição manuscrita ou impressa. A crítica contemporânea sustenta que os autores dessas edições foram além de um trabalho de erudição, privilegiando algumas famílias de manuscritos em detrimento de outras, reconstruindo manuscritos a partir da supressão de discrepâncias que, mantidas, permitiriam uma outra compreensão do texto. Essa crítica é acompanhada de um retorno aos manuscritos e da percepção de que um estudo atento dos mesmos pode chamar a atenção para uma série de elementos figurativos e paleográficos que geralmente passam despercebidos nas edições impressas10. Antes consideradas apenas do ponto de vista da hercúlea tarefa de erudição que as engendrou, as edições de textos medievais constituem-se hoje também em um objeto historiográfico11. 8 Uma das mais importantes edições de textos medievais, os Monumenta Germaniae Historica (MGH) constituem parte essencial do projeto Romântico de recuperação da Idade Média. A divisa da coleção, Sanctus amor patriae dat animum já foi interpretada como prova da marca patriótica associada ao projeto. Essa não é a opinião de H. Fuhrmann: “Cette maxime illustre l’esprit qui présida à la fondation des MGH: ‘l’amour de la patrie incite à l’action’. Mais il serait pour le moins aventureux d’identifier purement et simplement cet ‘amour de la patrie’, qualifié, qui plus est, de saint (Sanctus amor), au patriotisme. Il exprime plutôt la conviction que l’esprit agissant émane du peuple et de la patrie et que seul le renforcement de cet esprit permet d’espérer des résultats. Que la libération de l’‘esprit populaire’ comportât certains dangers pour l’ordre, c’était ce que craignaient avant tout les forces de restauration, qui venaient tout juste de conquérir ou de reconquérir leurs biens et leurs territoires lors du Congrès de Vienne en 1815” (Fuhrmann, H. Les premières décennies des Monumenta Germaniae Historica. Francia 21/1, 1994 : 175-180). Para uma história dos MGH, ver Knowles, D. Great Historical Enterprises. 9 Lot, F. Le premier capitulaire de Charlemagne. École Pratique des Hautes Études. Annuaire,1924-1925. (Ganshof, F-L., Recherches sur les capitulaires: 8). 10 Um bom exemplo desse retorno aos manuscritos é o livro Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição (Campinas, LEME/Editora da UNICAMP, 2009), organizado por M. Zerner e resultado do seminário “Heresia, estratégia de escrita e instituição eclesial”, acontecido em Nice de 1993 a 1995, e de uma mesa-redonda que se seguiu, em 1996. Os autores optaram por retornar aos textos, narrativos, normativos e polêmicos escritos antes da criação dos tribunais da Inquisição. Poderíamos citar também o artigo de C. Lauranson-Rosaz sobre o Liber Legis Doctorum de Clermont (Lauranson-Rosaz, C. Le Bréviaire d’Alaric en Auvergne: le Liber Doctorum de Clermont (ms. 201, anc. 175) de la B.M.I.U. de Clermont-Ferrand”, In: Rouche, M., Dumézil, B., Le Bréviaire d’Alaric. Aux origines du Code Civil, Paris, Presses de l’Université Paris-Sorbonne, 2008: 241-276). 11 Berger, S. “Introduction: Towards a Global History of National Historiographies”, In: Writing the Nation. A Global Perspective: 1-29; do mesmo autor, The Power of National Pasts: Writing National History in Nineteenth- and Twentieth- Century Europe, In: Writing the Nation. A

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A própria História Política retorna com força, mas ela não é a mesma que foi criticada e destronada pelo movimento dos Annales. A questão colocada por J. Le Goff em seu artigo de 1971, “a História Política ainda é a espinha dorsal da História?”, parece ter encontrado sua resposta na multiplicação das pesquisas sobre as elites, os poderes locais, o espaço político, e a renovação do interesse pela diplomacia, pelas normas e pela resolução de conflitos. O campo de estudo do poder estendeu-se para domínios antes inexplorados pelos historiadores, como a construção das identidades12, os funerais13, a literatura, os sentimentos14, a amizade, a inimizade, as relações de parentesco e a psicologia familiar15. Até a primeira metade do século XX, poucos eram os historiadores que acreditavam que esses fossem loci do poder ou mesmo temas dignos de atenção da História. O estudo do consenso nos reinos bárbaros tem mostrado que o fenômeno da dominação nas sociedades da Alta Idade Média vai além da simples relação de mando e obediência, consagrada pela teoria clássica do Direito16. A relação governantes/governados não foi a única a ser colocada em xeque na reflexão historiográfica dos últimos trinta anos. Os binômios construídos no âmbito da História Científica e sobre os quais se fundamentavam os estudos sobre a Idade Média (público/privado, racional/irracional, ideal/realidade, clérigo/laico, sagrado/profano, Igreja/Estado, paz/violência) encontram-se relativizados, e até mesmo abandonados, em proveito de leituras mais nuançadas das concepções e das práticas sociais daquele período17. Saliente-se, no entanto, que esse intenso questionamento dos pressupostos tradicionais de análise não conduziu ao triunfo do relativismo no campo da História Medieval. As correntes “pós-modernas” Global Perspective: 30-62. 12 Há uma boa síntese dos debates sobre a construção das identidades em Gazeau, V. Bauduin, P., Modéran, Y. (dir.), Identité et Ethnicité. Concepts, débats historiographiques, exemples (IIIeXIIe siècles). 13 Testart, A., Enjeux et difficultés d’une archéologie sociale du funéraire, In: Pratiques funéraires et sociétés : 9-13; do mesmo autor, Deux politiques funéraires: dépôt ou distribution, In: Archéologie des pratiques funéraires: approche critique: 303-310; G. Halsall, Settlement and Social Organization: The Merovingian region of Metz. 14 Rosenwein, B. (ed.), Anger’s Past: The social uses of an Emotion in the Middle Ages. 15 Rosenwein, B. Emotional Communities and the Body (http://www.kcl.ac.uk/content/1/ c6/02/04/95/LondonEmtheBody.pdf). 16 “Merovingian Francia, we now realize, worked by consensus; the Carolingians, far from forging a state, were forever negotiating to stay in power; and the ‘ feudal anarchy’ of the post-Carolingian period worked through informal mechanisms of dispute resolution” (Rosenwein, B. Writing without fear about early medieval emotions. Early Medieval Europe. v. 10, n.2, 2001.: 229-234). Ver também, Wood, I. Kings, kingdoms and consent. In: Sawyer, P. Wood, I. (ed.), Early Medieval Kingship: 3-29. 17 No que se refere às relações entre racional e irracional: Colman, R. Reason and unreason in early medieval law. Journal of Interdisciplinary History, v. 4, 1974: 571-91; ideal e realidade: Mckitterick, R. Perceptions of Justice in western Europe in the ninth and tenth centuries. In: La Giustizia nell’Alto Medioevo (Secoli IX-XI), Settimane di Studio del Centro Italiano di Studi sull’Alto medioevo: 1075-1102; paz e violência: Wallace-Hadrill, J.-M. The Long Haired Kings.

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especialmente o linguistic turn, o performatif turn e a Gender History - tiveram um apelo reduzido entre os medievalistas e foram objeto de diversas críticas nos últimos anos18. A retórica dos textos e as questões formais por eles suscitadas não são hoje o monopólio da análise literária. Os historiadores estão mais sensíveis à possibilidade de utilizar os textos literários e os recursos retóricos para o estudo do poder e da sociedade19. Contudo, eles estão também mais atentos à dimensão literária dos discursos do poder, dos discursos históricos, dos discursos identitários. Tomemos um exemplo: um estudioso das sagas islandesas, T. Andersson afirma que o recurso às sagas constitui um remédio contra a ausência de detalhes no Livro de Leis (Grágás); ele também lembra que os historiadores do Direito, muito embora façam referência às sagas, concentram o seu foco nas questões processuais, negligenciando as implicações dos textos literários. A partir de uma leitura das sagas, por exemplo, seria possível identificar com clareza a natureza do roubo como crime de honra (o termo “roubo” é aplicado somente em caso de apropriação oculta de bens) e sua apresentação como defeito de caráter 20. Seria um equívoco negligenciar as dimensões normativas 18 O livro da historiadora israelense, N. Pancer (Sans peur et sans vergogne. De l’honneur et des femmes aux temps mérovingiens), é um bom exemplo da postura crítica assumida pelos medievalistas face à Gender History. 19 Os estudos sobre as “emoções” têm desempenhado papel importante na reconsideração das relações entre topos retóricos e pesquisa histórica. Segundo Barbara Rosenwein, uma das maiores expoentes dessa corrente analítica, “[…] the representation of emotional standards is itself a social product […] the existence of topoi need not deter the historian of emotion […]If emotions figure in those documents (and even if they do not) we have right to ask what emotional structures are revealed by them in their proper context, taking into account all we can about the linguistic, social, economic, intellectual and political processes and structures that make up that context, while not reflecting the audience and the range of ways in which it might have received the texts in question” [Rosenwein, B. Writing without fear about early medieval emotions, Early Medieval Europe: 232-233]. O “topos” retórico parece cumprir uma função que não se esgota no interior do texto. Como mostrou Peter Dronke, “... a distinctive use of a topos can itself constitute individuality within a tradition; and further, that it is the function of the topos in context, rather than its topicality, which repays study: ‘analytic study must constantly be accompanied and complemented by integrative and contextual understanding; the first is accurate only in so far as the second is sensitive” [Dronke, P. Poetic Individuality in the Middle Ages: 11-12 apud. Garrisson, M., The study of emotions in early medieval history. Early Medieval Europe. v.10, n.2, 2001: 246]. Segundo M. Garrisson: “A first step will be to reject the widespread notion that dismisses topoi in medieval texts as by definition antithetical to the expression and communication of genuine feelings” (The study of emotions in early medieval history, Early Medieval Europe. v.10, n.2, 2001: 245). 20 “The law-books tell us about procedures, not emotions. The sagas perform a different service – they mirror public opinion. It is clear that in the hierarchy of public animosity, theft in Iceland occupied an unenviable position and was considered to be particularly distasteful. The thief was characteristically lowborn, often a foreigner or otherwise estranged from the community. Theft was not infrequently connected with sorcery, another crime regarded as particularly contemptible… Accusations of theft invite extreme reactions on the part of those accused and result almost always in bloody reprisals” T. Andersson, The Thief in Beowulf. Speculum, v.59, 1984: 496-497.

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dos textos narrativos, da mesma forma que é preciso pôr em xeque a ideia de que esses últimos correspondem a descrições fiéis do real. As narrativas históricas não são mais consideradas reflexos da realidade social, ainda que essa realidade seja vista como uma das referências da construção desses textos21. O real é apenas uma das referências, ao lado das idealizações políticas e também dos imperativos ideológicos ou de transformação social. G. Bührer-Thierry mostrou, por exemplo, que a constituição das coleções canônicas não levava apenas em conta as questões de direito, mas também os conflitos políticos entre os diversos grupos episcopais22. Os historiadores não veem mais o poder apenas como uma forma de controle sobre homens ou sobre estruturas. Uma nova variável começa timidamente a integrar o horizonte das reflexões sobre o poder: o acúmulo de bens, materiais ou não23. A compreensão do funcionamento do poder está a um passo de se tornar indissociável do estudo da administração e da distribuição desses bens24. Se há ainda algumas questões sobre a Alta Idade Média que não foram suficientemente exploradas pelos historiadores, como, por exemplo, a articulação entre o simbólico e o conjunto da vida social25, talvez seja porque nos últimos anos os historiadores se concentraram muito mais nos sujeitos como produtores do simbólico. A contribuição da antropologia foi decisiva para que os historiadores se dessem conta de que as relações entre os sujeitos não são os únicos meios a partir dos quais são produzidos os símbolos que compõem o edifício social. As relações entre os homens e as coisas, ou melhor, entre os sujeitos e os bens, são também produtoras de símbolos e de sentidos que constroem a sociedade. Esse é o campo que será explorado ao longo deste trabalho. Pretende-se estudar, nas leges, editos, preceitos e cânones conciliares, histórias e hagiografias, como o roubo, o furto de bens e, especialmente, o combate a essas práticas participaram da construção das posições relativas 21 É o que podemos observar a partir dos estudos de P. Wormald sobre a Lex Salica (Lex Scripta and Verbum Regis: legislation and Germanic kingship, from Euric to Cnut, In: Sawyer, P.  H., Wood, I. N. (ed.), Early Medieval Kingship, Leeds, 1977: 105-138), ou ainda, de M. Heinzelmann sobre a obra historiográfica de Gregório de Tours (Gregory of Tours: History and Society in the Sixth Century, Cambridge, 2001). 22 Bührer-Thierry, G. Évêques et pouvoir dans le royaume de Germanie. Les Églises de Bavière et de Souabe (876-973). 23 Ver, nesse sentido, a pesquisa coletiva sobre a competição na Alta Idade Média, lançada em 2010 por medievalistas franceses, alemães, italianos e ingleses, e ainda em seu estágio inicial. 24 É o que mostram os trabalhos sobre as transferências patrimoniais na Alta Idade Média, especialmente a obra coletiva Les transferts patrimoniaux en Europe occidentale, VIIIème-IXème siècles. 25 Le Jan, R. Femmes, pouvoir et société: 13. S. Airlie tem uma opinião semelhante quanto aos problemas da articulação entre o simbólico e as práticas sociais: “Thus the good news for historians, that a historical approach to all forms of social experience and values is both appropriate and necessary, is balanced by the bad news that the recapturing of that experience is bound up with all sorts of problems of representation”(Airlie, S. The history of emotions and emotional history: 235).

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de sujeitos e bens, e também da própria natureza desses últimos no mundo franco, durante a Alta Idade Média (séculos VI-XI). A ênfase nos francos e no mundo franco ao longo deste trabalho se explica por várias razões. Em primeiro lugar, a extensão do domínio franco: em seu apogeu, no século IX, o Regnum Francorum ia do norte da Península Ibérica e da Itália até a Frísia, e da Aquitânia até a Baviera. Além das regiões sob seu controle direto, os francos estavam em contato com outras regiões, como a Escandinávia, as Ilhas Britânicas, a Espanha, o papado, Bizâncio, os Bálcãs e a Europa oriental26. Em segundo lugar, a centralidade dos francos e de sua experiência jurídica e administrativa. O Liber Constitutionum, o Breviário de Alarico, a Lex Visigothorum foram utilizados na Gália franca muito tempo depois que o Reino dos Burgúndios, o Reino Visigodo da Aquitânia e o Reino dos Visigodos tinham desaparecido. A influência desses textos no Pactus legis Salicae e na legislação real merovíngia e carolíngia é considerável. Além disso, os francos estiveram na origem da compilação da Lei dos Alamanos, Lei dos Bávaros, Lei dos Frisões, Lei dos Turíngios e Lei dos Saxões. Resta, ainda, o problema de uma definição preliminar de roubo e furto. O Código Penal Brasileiro os diferencia a partir do comportamento do criminoso: o furto é definido no artigo 155 como o ato de subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel; já o roubo, previsto no artigo 157, consiste no ato de subtrair coisa alheia móvel, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência. Não há diferença formal entre roubo e furto no procedimento judiciário da Alta Idade Média: isso só ocorre a partir do século XVI. A principal diferença que encontramos, por exemplo, no Código Teodosiano, e também em algumas leis bárbaras, é entre o roubo oculto e o roubo manifesto, o primeiro sendo considerado em geral uma forma mais grave do delito. Os termos utilizados para definir as apropriações indevidas de bens nos textos da Alta Idade Média são numerosos, especialmente no que diz respeito aos bens da Igreja. Em uma busca nos MGH, especialmente nos volumes consagrados aos textos francos da Alta Idade Média, é possível notar que o campo semântico dos ataques aos bens é bastante amplo, e designa não apenas a apropriação dos bens, bem como a invasão e a destruição completa ou parcial dos mesmos. Aquele que se apropria dos bens de outro é designado como latro, nis, m. (ladrão); fur, is, m. (ladrão); rapax, is, m. (assaltante); raptor, oris, m. (sequestrador); eversor, oris, m. (destruidor, dissipador, aquele que derruba); exspoliator, oris, m. (espoliador); praedo, onis, m. (pilhador); praedator, oris, m. (pilhador, caçador, sequestrador, sedutor); subreptor, oris, m. (aquele que subtrai, que rouba); pervasor, oris, m. (invasor, usurpador); depraedator, oris, m. (aquele que pilha, que depreda, que devasta). A maior parte dos termos serve, aliás, para descrever as circunstâncias nas quais os bens são indevidamente 26 Ver McKitterick. R. Politics. In: The Early Middle Ages: 3-58.

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apropriados: furtum, i, n. (roubo); furor, atus sum, ari (roubar, furtar); rapina, ae, f. (rapina, roubo, pilhagem); rapio, rapui, raptum, ere (levar consigo, subtrair, roubar); raptio, onis, f. (rapto - de uma mulher); rapto, avi, atum, are (levar consigo, pilhar, devastar); exspoliatio, onis, f. (ação de espoliar); exspolio, avi, atum, are (espoliar, pilhar); praedatio, onis, f. (pilhagem, pirataria); praedor, atus sum, ari (praticar a pilhagem, pilhar, roubar); subreptio, onis, f. (roubo, subtração); subripio, ripui, reptum, ere (roubar, subtrair). Uma segunda categoria de termos remete à invasão ou à ocupação dos bens (bens imóveis): pervasio, onis, f. (invasão, usurpação); pervado, vasi, vasum, ere (invadir, penetrar). Finalmente, há os termos que designam a destruição completa ou parcial dos bens: eversio, onis, f. (destruição, ruína, derrubada); everto, i, sum, ere (derrubar, destruir, expulsar, expropriar); depraedatio, onis, f. (depredação, pilhagem, devastação); depraedor, atus sum, ari (depredar, pilhar)27. Os termos que designam a apropriação indevida ou a ocupação ilegítima dos bens são muito mais numerosos que os termos que remete à destruição dos mesmos. Essa discrepância pode significar tanto uma maior recorrência da apropriação e da ocupação face à destruição dos bens quanto uma maior preocupação dos textos do período com a apropriação e com a ocupação. Essa classificação preliminar não deve nos fazer perder de vista duas coisas importantes: em primeiro lugar, não havia uma fronteira rígida na utilização dos termos anteriormente elencados. Por exemplo, os textos conciliares utilizam uma grande variedade de termos, de conotação moral bem clara, para designar os ladrões: oppressor, sacrilegus, antichristus, necatores pauperum (assassino dos pobres). Em segundo lugar, o essencial na definição do ataque aos bens não está no comportamento do criminoso, mas no estatuto do proprietário dos bens atacados, como veremos mais adiante. Isso fica claro, sobretudo, no caso dos bens da Igreja, como veremos nas páginas seguintes. Optou-se, neste trabalho, pelo uso do termo “roubo” para designar as formas de apropriação ilícita dos bens de outrem, com ou sem o uso da força. As leis, os editos e os cânones conciliares também mencionam a razzia, a corrupção, os confiscos por parte da autoridade pública, entre outros. Se adotarmos uma definição preliminar de roubo e furto – ataques ilícitos, violentos ou não, à relação entre os proprietários e seus bens – a “razzia” fica de fora, por consistir em um ataque considerado legítimo quando perpetrado contra membros de outra comunidade; da mesma forma, também deixamos de lado o confisco de bens por parte da autoridade pública, por ser um ato amparado na legislação. No entanto, dar-se-á ênfase às formas de qualificação 27 Agradeço a Gaëlle Calvet-Marcadé por ter partilhado comigo os primeiros resultados do levantamento lexicográfico sobre os ataques aos bens que realizou nos cânones conciliares carolíngios [Calvet-Marcadé, G. “From sacrilege to Antichrist. How Church robbers are called in carolingians councils (815-909)?”, comunicação apresentada no Colóquio Internacional Texts and Identities Session XII, Auxerre, Centre d’Études Médiévales, 17-19 de outubro de 2008 (texto impresso)].

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do delito nos textos. Assim, muito embora a razzia, e o confisco possam ser eventualmente formas legítimas de apropriação de bens, poderão ser objeto deste estudo se, e quando forem qualificadas nos textos a partir do campo semântico do roubo28. Isso porque uma definição apriorística de roubo só engessaria esta análise e impediria que se atentasse para todo o alcance construtivo das formas jurídicas de qualificação. A maior parte dos casos de roubo examinados neste trabalho diz respeito aos bens eclesiásticos, o que se traduz, inclusive, no vocabulário mais extenso utilizado para designar essa modalidade de roubo. No entanto, não se deve deduzir daí nenhuma predominância estatística do roubo de bens eclesiásticos no mundo franco. O que se pode inferir é que a documentação disponível, aliás, majoritariamente de cunho eclesiástico, ocupa-se essencialmente de disputas em torno dos bens da Igreja29. No entanto isso não representa empecilho para o estudo que aqui se propõe, mesmo porque não é especificamente o roubo de bens que interessa30, mas sim suas relações com as normas que o combatem. As normas jurídicas, tratadas no capítulo seguinte, podem criar moldes e categorias – os qualificativos jurídicos31 – capazes de produzir efeito sobre as relações entre sujeitos e bens, e mesmo de transformá-los. O aparato normativo que busca combater os ataques a essas relações são instrumentos de construção social. E seu estudo, cotejado com as crônicas e hagiografias do período, permite que se acompanhe a economia de tal construção. Portanto, a escolha de se estudar o roubo, tendo como ponto de partida as relações entre norma e exceção, pode nos conduzir à história da fabricação das formas de vida social. Em um balanço historiográfico sobre as normas, publicado no livro Les tendences actuelles de l’histoire du Moyen Âge en France et en Allemagne (2003), C. Gauvard, A. Boureau e R. Jacob mencionam uma série de problemas que os 28 A exceção é o roubo de relíquias. Esse tema, já estudado por P. Geary, não será objeto deste trabalho. P. Geary mostra que essa era uma prática legítima: muitas vezes, o relato do roubo servia para dissimular a aquisição, o dom ou a invenção de relíquias, pois a possessão de relíquias roubadas tinha se tornado uma marca de prestígio. Isso ocorria, sobretudo, em relação às relíquias que provinham de fora do mundo católico (Espanha, Norte de África ou Oriente Próximo). Segundo Geary, Roma era a grande exceção: o roubo de relíquias provenientes dessa cidade era uma fonte de prestígio (Geary, P. Furta Sacra: 70 e 160). 29 Segundo W. Brown, “Documenys recording church and monastic property rights, including the outcome of property disputes, have tended to survive the early Middle Ages, whereas other kinds of records have not. They have above all because many early medieval monasteries and churches remained in being beyond the Middle Ages, and because monks and churchmen have had an ongoing interest in keeping ttrack of their property holdings” (Brown, W. Unjust Seizure: Conflict, interest, and authority in an early medieval society. Ithaca/Londres, 2001, x-xi). 30 Essa é a perspectiva adotada, por exemplo, em artigo de Renaut, M.-H. La répression du vol de l’époque romaine au XXIe siècle. Revue Historique CCXCV/1, 1996: 3-47. 31 Segundo Y. Thomas, a qualificação jurídica “met en forme la vie sociale, elle y découpe et y singularise des entités comme la personne, les biens, la propriété, le contrat, etc., toutes formes nécessaires aux opérations pratiques et changeantes du droit” (Thomas, Y. Présentations: 1426).

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historiadores ainda não teriam conseguido resolver: qual o fundamento das normas? Qual o lugar do Direito na elaboração das normas? Quais as relações entre normas e poder? Qual a natureza do poder normativo? E, finalmente, qual o peso das normas na disciplina dos costumes? Se o mesmo texto tivesse sido escrito hoje, seus autores certamente constatariam mudanças significativas nos estudos sobre as normas. A primeira delas, e a mais evidente, é o abandono dos termos “lei” e “direito”, em proveito de “normas”, já consagrado, aliás, no artigo em tela32. O fundamento das normas e o lugar do Direito em sua elaboração têm sido objeto de interesse de um grupo de historiadores reunidos em torno do projeto coletivo La fabrique de la norme, do Centre d’Etudes et de Recherches en Histoire Culturelle (CERHIC)33. Além disso, estudos recentes sobre a resolução de conflitos, especialmente o livro de B. Lemesle, Conflits et justice au Moyen Âge, têm explorado a relação entre o poder e as construções normativas34. Outros problemas repertoriados em 2003, como a natureza do poder normativo, ou ainda, o peso das normas na disciplina dos costumes, constituem terrenos a serem explorados pelos historiadores. Neste trabalho, refletir-se-á sobre uma questão que não é elencada por C. Gauvard, A. Boureau e R. Jacob: em que medida e em quais circunstâncias as normas participam da construção e transformação dos sujeitos, das coisas e das relações entre eles? Colocada dessa forma, a questão pode parecer surpreendente, afinal há mais de um século os historiadores se empenham em mostrar que as normas são uma construção social muito mais do que um instrumento de construção da sociedade. Porém, isso não significa que se esteja propondo um estudo das fundações normativas da sociedade, como foi defendido pela Escola Alemã do Direito, no século XIX, e duramente criticado pelos historiadores ao longo do século seguinte. O caminho aqui proposto não é o da negação – que seria, aliás, anacrônica e inadequada – do enfoque social das construções normativas, ou ainda, um retorno aos pressupostos clássicos da preeminência das ideias e das instituições sobre as formas da vida social35. 32 Ao empregarem o termo “norma” ao invés de “direito”, preferindo sua utilização no plural, C. Gauvard A. Boureau e R. Jacob pretendiam salientar “...le pluralisme des codes de comportement dont l’expression ne se [limitait] pas aux formes écrites du droit savant”, e estudar as “structures normatives” concebidas como “valeurs de référence qui disciplinent la société médiévale”. Gauvard, C., Boureau, A., Jacob, R. Normes, droit, rituels et pouvoir. In: Schmitt, J-C., Oexle, O. G. Les tendences actuelles de l’histoire du Moyen Âge: 461. 33 A primeira Jornada de Estudos associada ao projeto, e intitulada Fabrique de la norme, fabriques des normes: inventaire et ouverture, ocorreu em 17 de outubro de 2008, na Université de Reims (http://helios.univ-reims.fr/Labos/CERHIC/CERHIC/17Octobre08.html). Em 2012, foi publicado o livro La fabrique de la norme. Lieux et modes de production des normes au Moyen Âge et à l’époque moderne, coordenado por V. Beaulande-Barraud, J. Claustre e E. Marmursztejn (Rennes, Presses Universitaires de Rennes). 34 Lemesle, B. Conflits et justice au Moyen Âge. 35 Um bom exemplo desse enfoque é um livro de W. Ullmann, que teve grande sucesso entre os medievalistas: Principios de gobierno y politica en la Edad Media.

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A discussão em torno do problema de qual das esferas determina a outra é estéril, como bem mostrou M. Weber, em A ética protestante e o espírito do capitalismo. Além disso, as normas não se dirigem à sociedade, mas são parte integrante da própria construção social. A distinção entre uma esfera “social” e uma esfera “normativa” nasceu de uma identificação demasiadamente estreita entre norma e instituição jurídica. A Escola Alemã do Direito criou a ilusão de que os produtores dos valores de referência que disciplinam os sujeitos e as coisas são atores institucionais, que agem pela coerção e que se situam acima dos demais atores. As normas são instrumentos produzidos pelos homens para resolver problemas colocados no âmbito das relações entre eles e entre eles e as coisas. Mas, para atingir o seu objetivo, muitas vezes, elas alteram deliberadamente os dados desses problemas, de maneira semelhante ao khadi do conto beduíno citado em epígrafe deste livro. Nesse sentido, constituem parte integrante e mais ou menos eficaz do próprio estabelecimento da sociedade. Essa eficácia não depende da semelhança da norma com uma sociedade determinada, mas da sua capacidade em criar formas que são aceitas por aqueles que dela fazem parte. A aceitação das normas significa não apenas uma mudança de comportamento dos atores sociais, ela implica também no reconhecimento por parte dos mesmos de que as coisas e as pessoas assumem formas distintas daquelas que eram as suas antes que as normas se projetassem sobre elas. Nesse sentido, as normas criam a impressão de uma transformação social e, por isso mesmo, a própria transformação social. É por isso que, neste estudo, não se buscará medir a efetividade das normas contra o roubo no mundo franco durante a Alta Idade Média (“seriam as normas efetivamente aplicadas?”), tema, aliás, limitado pela documentação do período36. Nosso interesse está nas maneiras pelas quais essas normas fabricam os sujeitos, os bens e as relações entre eles. Essa não deixa de ser uma forma de avaliar a eficácia dessas normas. Se hoje é possível colocar a questão da fabricação jurídica das pessoas e das coisas, é porque, na prática judiciária contemporânea, esses elementos constituem problemas, muito mais do que pressupostos. Houve uma implosão da antiga distinção entre pessoas e coisas, devido, entre outras coisas, à tecnologia em geral e à biotecnologia, em particular. O complexo de técnicas 36 O mundo das elites é o único acessível aos historiadores da Alta Idade Média? Decididamente, as tentativas de se reconstruir a história das comunidades camponesas a partir do ponto de vista da “cultura popular” encontraram seus limites nos últimos anos. Por outro lado, há a emergência de perspectivas que pretendem recuperar a história econômica e social dessas sociedades e desses atores. É o caso dos livros recentemente publicados de J-P. Devroey e de C. Wickham. Este último pretende estudar os grupos sociais situados às margens do mundo franco, camponeses livres catalões e italianos, pequenos proprietários da Alemanha média, etc. No entanto, a questão das fontes permanece delicada: elas podem servir para o estudo do mundo camponês? A resposta de J-P. Devroey oferece certa clareza quanto às suas motivações e ao mesmo tempo deixa dúvidas quanto à operacionalidade da mesma: “Par conviction personnelle, l’essai de synthèse que j’ai tenté est écrit dans la perspective de ces acteurs muets” (Devroey, J-P. Puissants et misérables: 13).

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tradicionalmente utilizadas pelas instituições jurídicas para fabricar as pessoas e as coisas, bem como as distinções entre elas não são mais confiáveis. A propriedade é o campo no qual a constituição jurídica das pessoas e das coisas tornou-se mais vulnerável à evolução social e tecnológica contemporânea. Com o advento das patentes de biotecnologia, das intervenções biomédicas, das plantas transgênicas e das novas sensibilidades ambientais, as distinções entre as pessoas e as coisas tornaram-se um centro de interesse e, mais importante ainda, de ansiedade social. Em cada uma desses domínios tecnológicos, as fronteiras se deslocam ou simplesmente desaparecem: sequências de genes são, ao mesmo tempo, parte da genética, e produtos químicos a partir dos quais medicamentos são fabricados; os embriões são ligados aos seus pais pelas mesmas relações que unem as pessoas e os bens e, no entanto, também são pessoas, em função da utilização que deles é feita; as células de embriões produzidas por fertilização in vitro possuem um potencial “natural” para o desenvolvimento da pessoa humana, e, ao mesmo tempo, representam um recurso valioso para a investigação sobre a terapia genética. Em cada caso, a classificação de uma entidade como pessoa ou coisa é tributária de um contingente de distinção muito mais que de uma divisão intrínseca37. A construção da pessoa legal do autor mostra, por exemplo, como a personalidade legal é tomada como uma característica de indivíduos “reais”, e como a doutrina legal reforça essa convicção38. Os historiadores há tempos perceberam que os laços entre pessoas e coisas são construções realizadas com o concurso das normas39. No entanto, a possibilidade de as pessoas e as próprias coisas serem, também, fruto de construções jurídicas, não é levada suficientemente em conta pela História Social. Essa possibilidade constitui uma vasta área a ser explorada40. As fronteiras cambiantes entre coisas e pessoas foram mais bem percebidas por antropólogos ou sociólogos, ou ainda, pelos teóricos do Direito41, do que 37 Pottage, A. Introduction: the fabrication of persons and things. In: Pottage, A., Mundy, M. (ed.), Law, Antropology, and the constitution of the social: Making Persons and Things, Cambridge, Cambridge University Press, 2004: 4-5. 38 Ibid: 11-12: “For example, by constituting the author as an owner of ideas, intellectual property law stabilised and ‘naturalised’ the romantic conception of the spontaneously creative individual, and this relation between legal personality and natural individuality still seems self-evident”. 39 Os exemplos são demasiadamente numerosos para serem citados aqui. Fiquemos apenas com alguns trabalhos relevantes no campo da circulação de bens na Alta Idade Média, e que foram publicados nos últimos anos: Rosenwein, B. Negotiating Space. Power, Restraint, and Privileges of Immunity in Early Medieval Europe; Wood, S. The Proprietary Church in the Medieval West; poderíamos citar ainda os estudos sobre as transferências patrimoniais, o dom, a herança e o comércio. 40 Cf. Cändido da Silva, M. Le vol des biens et la construction sociale dans le royaume des Francs (VIe-IXe siècle), In: V. Beaulande-Barraud, J. Claustre, E. Marmursztejn, La fabrique de la norme, Rennes, 2012: 71-89. 41 é o caso da reflexão de Yan Thomas sobre as ficções no Direito romano [Fictio legis. L’empire

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pelos historiadores tout court. Os antropólogos foram capazes de identificar os significados cambiantes dos sujeitos, ao mesmo tempo em que punham em dúvida a existência objetiva de um indivíduo que não está sujeito aos caprichos do tempo e do espaço. Um dos melhores exemplos dessa abordagem é a reflexão de M. Godelier sobre as “coisas”. Se existem diferenças, como demonstrou Godelier, entre as coisas que se vendem, aquelas que se dão, e, finalmente, aquelas que não se vendem nem se dão, mas são guardadas para serem transmitidas, não é por causa de uma diferença atávica entre elas, mas em razão dos distintos significados que lhes são atribuídos. Godelier salienta a capacidade dessas diferentes significações em alterar o estatuto e a própria natureza das coisas, modificando, assim, as fronteiras entre essas últimas e as pessoas. Ele mostra, por exemplo, que as conchas que são trocadas por uma mulher ou oferecidas para compensar a morte de um guerreiro apresentam-se como substitutos simbólicos dos seres humanos, ou seja, como equivalentes imaginários da vida. Da mesma forma que os objetos sagrados, os objetos preciosos são investidos de um valor imaginário que não pode ser confundido com o trabalho necessário para descobri-los ou fabricá-los, ou mesmo com sua relativa escassez. Este valor traduz o fato de que eles podem ser trocados contra a vida, ou seja, colocados em equivalência com os seres humanos42. Embora não negue que o Direito se remeta a referências concretas, seu teórico não tenta decifrar, por trás das abstrações dessa área – regras, de la fiction romaine et ses limites médiévales. Droits: Revue française de théorie juridique n.21, 1995: 17-63]. Poderíamos mencionar ainda, o estudo deste autor sobre a construção da unidade cívica no Direito Romano, no qual a cidade, em suas relações jurídicas, era considerada um sujeito [Thomas, Y. La construction de l’unité civique. Choses publiques, choses communes, choses n’appartenant à personne et représentation. Mélanges de l’École Française de Rome. Moyen Âge, n.114, 2002: 13]. Saliente-se ainda a reflexão de G. Agamben sobre a junção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder: “L’un des résultats auxquels elle est parvenue est précisément le constat que les deux analyses ne peuvent être séparées, et que l’implication de la vie nue dans la sphère politique constitue le noyaux originaire – quoique occulté – du pouvoir souverain. On peut dire en fait que la production d’un corps biopolitique est l’acte original du pouvoir souverain. En ce sens, la biopolitique est au moins aussi ancienne que l’exception souveraine. En plaçant la vie biologique au centre de ses calculs, l’État moderne ne fait alors que mettre en lumière le lien secret qui unit le pouvoir à la vie nue, renouant ainsi (selon une correspondance tenace entre le moderne et l’archaïque qui peut être observée dans les domaines les plus divers) avec la plus immémorial des arcana imperii” (Agamben, G. Homo Sacer: le pouvoir souverain et la vie nue I, Paris, 1997: 14). Esses estudos demonstraram, de um ponto de vista filosófico, que o “Direito” e a “vida” correspondem até tornarem-se uma “zona de indistinção”, realizando assim a famosa assertiva de C. Von Savigny, segundo a qual “Le droit n’a aucune existence en soi, son être est plutôt la vie meme des hommes, considérée sous un aspect particulier”. 42 Godelier, M. Des choses que l’on donne, des choses que l’on vend et celles qu’il ne faut ni vendre ni donner, mais garder pour les transmettre. In: Au fondement des sociétés humaines: ce que nous apprend l’anthropologie. Paris, 2007: 71-81. Ver também, do mesmo autor, L’énigme du don (Paris, 1996); outras referências importantes sobre o tema são os livros de A. Testart (Des dons et des dieux. Anthropologie religieuse et sociologie comparative, Paris, 1993) e A.B. Weiner (Inalienable possessions: the paradox of keeping-while-giving, Berkeley, 1992).

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procedimentos, conceitos, sistemas de categorias – a realidade de um jogo social, no qual poder-se-ia enxergar a irredutível singularidade de seus atores e a irredutível realidade de suas relações. Essa singularidade e essa realidade são, por esse teórico, suspensas e colocadas à distância43. E são precisamente elas que o historiador pretende alcançar, deixando de lado os esquemas de qualificação produzidos pelas normas, como se esses qualificativos existissem somente nas leis e nos editos. Uma vez ignorado o alcance dos qualificativos jurídicos, cria-se a impressão de que haveria um universo de práticas sociais “não normatizado”, bastando para alcançá-lo escolher os documentos “narrativos” ou “literários” e colocar-lhes as boas questões. Para tanto, seria necessário que as distinções entre textos “narrativos”, “literários” e “normativos” correspondessem a uma distinção na vida social entre, por um lado, o campo das normas jurídicas e, por outro, o das práticas sociais. Os estudos realizados nos últimos anos mostraram que, se a ordem judiciária é o locus por excelência da produção das normas, não constitui, de modo algum, o locus exclusivo: no domínio religioso, por exemplo, o Direito canônico é complementado por uma vasta gama de “mediadores culturais religiosos” que, como a literatura de devoção, os livros de peregrinação, a casuística, e mesmo o mobiliário litúrgico, participam da normatização de crenças, práticas, comportamentos44. A ampliação do conceito de norma, implícita no abandono pelos historiadores do termo Direito, é concomitante à crítica da reificação do “social” e do “popular”. Não se pode esquecer que o “povo”, como entidade original e refratária às influências normativas, de matriz civil ou eclesiástica, nasceu com a historiografia romântica do século XIX. Se as normas, ao estabelecerem as categorias para o tratamento das ações criminais, constroem “qualificativos jurídicos”, os historiadores não deveriam deixar ao estudioso do Direito o monopólio da análise dos efeitos de todas as mediações formais, a partir das quais o Direito se interpõe entre os próprios sujeitos e a própria sociedade. O interesse dos historiadores pelo Direito e pela lei esteve quase sempre restrito à possibilidade de, por meio desses, ter acesso ao conhecimento das práticas, das mentalidades ou das ideias. Assim, se os historiadores reconheceram o domínio dos atentados aos bens como o terreno privilegiado da lei penal, essa lei é vista como um instrumento pelo qual é possível alcançar os múltiplos códigos de comportamento. O Direito Penal, pelas próprias sanções que exprime, manifestaria, também, os valores que participam da construção da sociedade45. Mesmo que não abordem mais a lei como um “espelho” da sociedade, os historiadores ainda buscam uma correlação entre a primeira e a situação que 43 Thomas, Y. Présentations. Annales HSS, novembro/dezembo 2002, n.6: 1425. 44 Marmursztejn, E. Proposition d’introduction. Jornada de Estudos “Fabrique de la norme, fabriques des normes: inventaire et ouverture”, Reims, 17 de outubro de 2008 (texto impresso). 45 Esse é o caso de Renaut, M-H. La répression du vol de l’époque romaine au XXIe siècle. Revue Historique CCXCV/1, 1996: 3-47.

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ela pretende regular e/ou modificar. Esse é o caminho que tem sido adotado pelos historiadores da justiça nos últimos anos: muitos são os que pensam as normas, e não apenas o Direito, como uma construção da sociedade, ou que, pelo menos, a leva em conta em sua elaboração46. Os historiadores devem estar atentos para o fato de que esses qualificativos são instrumentos que servem, não para conhecer, mas para avaliar as coisas e para “trancher les disputes nouées à leur sujet – et donc à les produire autrement qu’elles n’existent au dehors de cette étroite et précise mesure du droit”47. É necessário, também, estabelecer um inventário das diferenças. Se o historiador do Direito, como afirma Y. Thomas, busca descrever o trabalho pelo qual as normas agem sobre pessoas e coisas, para transformá-las (na medida em que toda técnica social transforma a sociedade à qual remete, mas sobre a qual, ao mesmo tempo, opera), os historiadores podem tentar compreender as circunstâncias da produção e ação dos qualificativos jurídicos. Não se trata de alcançar a “realidade” que esses qualificativos pretendem transformar a partir de sua “desconstrução”, mas de compreender as funções desses qualificativos. Decididamente, não é possível encontrar nas normas jurídicas, fontes imediatamente disponíveis para uma história das práticas sociais, para uma história institucional e política, ou para uma história das ideias48. Mas talvez seja possível encontrar nelas, material para uma história da construção social e de seus imperativos. Isso não se traduzirá, aqui, em uma história dos qualificativos jurídicos, pois esses não possuem uma existência completamente dissociada das pessoas e coisas sobre as quais agem, ainda que, no curso de sua ação, eles as transformem em sujeitos e coisas. Por outro lado, propor uma história social dos qualificativos jurídicos significaria considerar que, a partir deles, é possível alcançar o universo das “práticas sociais”, o que não parece ser o caso. A posição desses qualificativos é ambivalente: eles podem ajudar a revelar o complexo jogo de interesses e conflitos que participam da construção da sociedade, mas não são meio de acesso direto a ela; eles revelam muito mais o que está em disputa e é objeto de litígio, do que o desenrolar do próprio litígio. Nesse sentido, o que se propõe neste trabalho é uma “economia dos qualificativos jurídicos”: um estudo sobre o modo de produção dessas formas jurídicas e sobre as maneiras pelas quais elas se difundem na documentação – leges, editos, cânones conciliares, histórias, hagiografias –, alterando os limites entre as pessoas e entre essas e as coisas, convertendo-as em sujeitos e bens. É necessário prestar mais atenção à construção das formas – procedimentos, esquemas de qualificação – que veiculam e filtram dados para as necessidades de 46 Ver, por exemplo, o artigo de McKitterick, R. Perceptions of Justice in western Europe in the ninth and tenth centuries. In: La Giustizia nell’Alto Medioevo (Secoli IX-XI): Settimane di Studio del Centro Italiano di Studi sull’Alto medioevo, XLIV, Spoleto, CISAM, 1997, t.2:1075-1102. 47 Cf. nota 29 deste trabalho. 48 Descimon, R. Declareuil (1913) contre Hauser (1912). Les rendez-vous manqués de l’histoire et de l’histoire du droit. Annales HSS, 6, 2002: 1615-1636.

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uma aplicação prática da decisão jurídica. Em geral, não se consegue considerar o alcance dessas categorias que servem, nas palavras de Y. Thomas, para produzir o mundo muito mais do que simplesmente descrevê-lo49. A validade das normas jurídicas não depende de sua aplicação aos casos particulares, quer se trate de um processo ou de um ato executório; ao contrário, é precisamente porque as normas são gerais que devem valer, independentemente do caso particular50. As normas também não se aplicam diretamente aos fatos, infinitamente diversos e polimórficos, mas também não se aplicam aos indivíduos irredutivelmente singulares. Elas se aplicam a determinadas situações, que se configuram como exceções – como o roubo de bens –, diante das quais o intérprete começa por reduzir os fatos e impor a eles uma forma propícia à atuação da regra, projetando sobre eles os contornos dessa última. É precisamente aí que reside seu potencial construtivo. Da mesma maneira, as normas se dirigem a sujeitos tão abstratos em relação aos próprios indivíduos quanto o sujeito gramatical o é em relação à singularidade de cada um. A operação jurídica não se situa em um “impensável e impossível posicionamento da lei em face dos fatos, mas na remodelação que qualifica esses últimos para o julgamento prático do valor que ela ordena”51. Os sujeitos e os bens produzidos por essas normas não são figuras individuais, mas categorias que se aplicam a certo número de casos que, por sua vez, são individuais. O papel das normas que combatem o roubo de bens não se resume, portanto, à criação de moldes da vida social, que as pessoas tomam como referência e limite para seus comportamentos, mas abrange, também, a construção de qualificativos jurídicos que alteram a própria identidade das pessoas e das coisas que essas normas buscam preservar. Entre os teóricos do Direito, a relação entre normas e exceção constitui uma questão capital. Nas obras do jurista alemão C. Schmitt, há uma das mais prolíficas reflexões sobre as normas e a vida social. Para poder agir sobre algo, uma norma deve ser capaz de supor, segundo Schmitt, o que se encontra fora da relação para, em seguida, estabelecer uma ligação com este elemento. A relação de exceção exprimiria, assim, a estrutura original da vinculação jurídica. Partindo da constatação de que as normas do Direito são notadamente fabricadas a partir de circunstâncias excepcionais, e que a exceção é a própria condição de validade da ordem jurídica, Schmitt crê que as construções normativas podem entrar em comunicação com um universo que, em princípio, lhes é exterior e não previsto na ordem legal em vigor. O papel da exceção, nesse sentido, é que, por ela, a força da vida real consegue quebrar a “carapaça” de uma mecânica fixada na repetição52. E é nessas condições que a norma jurídica alcançaria a vida social. 49 Cf. nota 29 deste trabalho. 50 Agamben, G. Homo sacer, le pouvoir souverain et la vie nue I: 28. 51 Thomas, op. cit.: 1426. 52 Schmitt, C. Théologie politique: 25.

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No entanto, no esquema proposto por Schmitt, a exceção provoca a suspensão da norma, deixando espaço para o poder soberano: na assertiva tornada clássica, ele afirma que “soberano é aquele que decide do (über) estado de exceção”. Como bem notou J. Freund, a preposição “über” pode significar aquele que decide “do estado de exceção”, ou bem aquele que decide “em caso de estado de exceção”. O sentido da assertiva de Schmitt parece estar nesta última tradução, na medida em que para esse autor, a situação excepcional é imprevisível, tanto do ponto de vista político quanto do ponto de vista jurídico, e nasce espontaneamente do curso dos eventos. A reflexão de Schmitt remete aos problemas da soberania e do poder soberano, tal como se apresentam no âmago do Estado Moderno: “O soberano está, ao mesmo tempo, no exterior e no interior da ordem jurídica”. Para tentar compreender em que medida a soberania marca o limite da ordem jurídica, o autor se interessa à estrutura da exceção, que ele define como “algo que não é possível subsumir; ela escapa a toda formulação geral, mas simultaneamente revela um elemento formal específico de natureza jurídica, a decisão em sua absoluta pureza” (Grifo nosso). A situação excepcional seria imprevisível, tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista jurídico; nasceria espontaneamente do curso dos eventos, tal como uma capitulação em seguida a uma guerra perdida53. Em razão de seu caráter singular, as situações excepcionais não exigiriam normas, mas decisões que devolveriam sentido à norma jurídica, que elas próprias perturbaram54. Para Schmitt, o ordenamento jurídico repousaria, como todo ordenamento, em uma decisão e não em uma norma. O principal limite para um estudo sobre o roubo e a legislação que se aplica a ele na Alta Idade Média, à luz das assertivas de C. Schmitt, está em que a soberania – da mesma forma que a coerção – não constitui, nesse período, o canal primordial de comunicação entre norma e exceção. A ênfase dada por C. Schmitt nos mecanismos de decisão revela sua preocupação com a soberania moderna, e indica sua inadaptação às especificidades do ofício de governo na Alta Idade Média. Assim, o príncipe bárbaro não é um soberano, no sentido “carl-schmittiano” do termo; não se encontra no exterior e no interior da ordem jurídica. Sob os merovíngios, as exortações episcopais já associavam o bem comum (utilitas publica) à realização de um bem espiritual definido fora do âmbito do poder real: a salvação das almas dos cristãos. Sob os carolíngios, esse programa é acentuado. A justiça encontrava-se no epicentro do programa ideológico que os clérigos apresentaram a Carlos Magno e a seus sucessores. Novo Davi, como sublinhou Alcuíno, o rei carolíngio é um justiceiro, que deve manter a ordem, defender as igrejas e os fracos contra toda forma de opressão, 53 Freund, J. Les lignes de force de la pensée politique de Carl Schmitt. Nouvelle École 44, 1987:1127, especialmente: 18. 54 Schlegel, J-L. Introduction. In: Schmitt, C. Théologie politique, ix.

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colocando as práticas sociais em conformidade com a ordem estabelecida por Deus. O cerne desse programa encontra-se menos na decisão do rei do que na vontade divina expressa nas Escrituras e interpretada pelos clérigos. Os juízes são, nesse sentido, os ministros do rei; participam de seu ministério e devem ajudar a implementar um sistema judiciário que repouse sobre a lei, a concórdia e a misericórdia55. Em seu livro Homo sacer, G. Agamben sustenta que não é a exceção que se subtrai à regra, mas a regra que, colocando-se em suspensão, dá lugar à exceção. Somente dessa maneira a regra se constituiria como tal, mantendo uma relação seguida com a exceção. É algo bastante distinto do que se encontra em C. Schmitt, para quem, em circunstâncias excepcionais, a norma é reduzida ao nada, ainda que, para ele, a exceção permaneça acessível ao conhecimento legal, pois os dois elementos, norma e exceção, permaneceriam em um ambiente jurídico56. Segundo Agamben, a exceção é um espaço de exclusão, um caso singular que é excluído da norma geral. Mas o que caracterizaria propriamente a exceção seria o fato de que aquilo que é excluído não fica sem relação com a norma: ao contrário, os dois casos permanecem unidos pela suspensão. A norma se aplica à exceção, desaplicando-se a ela, retirando-se. O estado de exceção não é o caos que precede à ordem, mas a situação que resulta de sua suspensão. Nesse sentido, a exceção, etimologicamente falando, é aquilo que é “apanhado fora” (ex-capere) e não apenas excluído. O que interessa particularmente na reflexão de Agamben é o fato de que nela, a lei conserva uma relação com o exterior, com o campo da vida; e essa relação é que dá à lei um vigor particular, conforme se observa: […] la situation créée dans l’exception a donc ceci de particulier qu’elle ne peut être définie ni comme une situation de fait, ni comme une situation de droit. Elle institue plutôt entre celles-ci un seuil paradoxal d’indifférence. Elle n’est pas un fait, car elle est créée uniquement par la suspension de la norme; mais, pour cette raison même, elle n’est pas non plus un cas d’espèce, même si elle fonde la possibilité d’une mise en vigueur de la loi… L’exception est, en ce sens, la localisation (Ortung) fondamentale qui ne se limite pas à distinguer ce qui est dedans et ce qui est dehors, la situation normale et le chaos, mais trace entre eux un seuil (l’état d’exception) à partir duquel l’intérieur et l’extérieur entrent dans ces relations topologiques complexes qui rendent possible la validité de l’ordre57.

55 Le Jan, R. Justice royale et pratiques sociales dans le royaume Franc au IXe siècle. In: Femmes, pouvoir et société dans le haut Moyen Âge, Les médiévistes français, 1, Paris: Picard, 2001: 149-153. 56 Schmitt, C. Théologie politique: 23. 57 Agamben, G. Homo Sacer: le pouvoir souverain et le vie nue I: 26-27.

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A reflexão de Agamben não é menos centrada nos dilemas contemporâneos do que aquela de C. Schmitt. Aquele se preocupa com a propensão do estado de exceção em tornar-se a regra. Entretanto, propõe, e de maneira mais útil para os fins deste trabalho do que Schmitt, um esquema de relações topológicas complexas entre normas e exceção menos fundamentado na decisão e, portanto, no paradigma da soberania. Esse esquema permite apreender a norma, não apenas como instrumento de controle, prescrição e comando – no sentido de que submete à sua regulamentação uma organização normal das condições de vida (para C. Schmitt, a norma precisa de um meio homogêneo) –, mas como uma fábrica de quadros de referência no interior, e a partir de uma vida social não normalizada, no sentido em que ela própria colocou-se em suspensão. Para melhor compreender o processo de construção social, é necessário, portanto, refletir sobre as relações dinâmicas e fluidas entre as normas e a exceção. Os estudos recentes sobre a resolução de conflitos na Idade Média mostraram que é preciso ter a devida precaução de não tomar a norma e a exceção como dois mundos que se comunicam somente por meios coercitivos. Desde o século XVIII, e pelo menos até a primeira metade do século XX, os historiadores viram a Idade Média como um período dominado por uma violência endêmica e sem limites58. O longo processo de revisão da natureza e da extensão da violência nos séculos que sucederam à queda de Roma começou no imediato pós Segunda Guerra Mundial, mas foram nos últimos vinte anos que esse movimento assumiu a sua amplitude que se conhece hoje59. Os historiadores contemporâneos consideram que a violência daquele período não era necessariamente desagregadora, tampouco um sintoma da “decadência da civilização”. A Antropologia Jurídica anglo-saxã, bem como os estudos realizados na França desde a década de 1990, demonstraram que a violência também pode ser utilizada para a manutenção e mesmo para o reforço dos laços sociais. Esse é o caminho seguido pelos estudos sobre a resolução de conflitos na Idade Média60. Alguns autores estão convencidos de que, nas 58 Guizot, F. Histoire de la civilisation en Europe. Depuis la chute de l’Empire romain jusqu’à la Révolution française. P. Rosanvallon, Paris, 1985 (1a. ed., 1828); Lehuërou, J-M. Histoire des institutions mérovingiennes et du gouvernement des mérovingiens jusqu’à l’édit de 615 (sic), Paris, 1842; Thierry, A. Récits des temps mérovingiens, Paris, 1840; LOT, F. La fin du monde antique et le début du Moyen Âge, Paris, 1927; entre outros. 59 Um bom balanço historiográfico dessa questão foi realizado por J.-M. Moeglin, em um artigo recente (Le ‘droit de vengeance’ chez les historiens du droit au Moyen Age (XIXe-XXe siècles). In: Barthélemy, D.,Bougard, F., Le Jan, R. (eds.) La vengeance, 400-1200, Paris, 2006: 101-148. 60 A publicação, em 1986, por P. Geary, de um artigo sobre os mecanismos de resolução de conflitos (Vivre en conflit dans une France sans État: typologie des mécanismes de règlement des conflits (1050-1200), e o colóquio A justiça na Alta Idade Média,, organizado em Spoleto, em 1995, pelo Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo (CISAM), são dois eventos que marcam um aumento do interesse dos historiadores pela solução das controvérsias. Pode-se mencionar também os trabalhos de P. Fouracre e W. Davies, E. James, I. Wood, F. Bougard, R. Le Jan, R. McKitterick, bem como o colóquio Le règlement des conflits au Moyen Âge, organizado pela

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sociedades da Alta Idade Média, a violência era também um instrumento para a afirmação da paz. Em um artigo sobre monastérios femininos, violência e competição pelo poder na Francia do século VII, R. Le Jan mostrou que os ataques de que foram vítimas as abadessas e suas comunidades não eram fruto de uma violência cega, mas constituíam uma forma de injúria (iniuria) que rompia o equilíbrio e, ao mesmo tempo, produzia uma troca de violências para restabelecer a paz61. Os estudos sobre as emoções também lançaram uma nova luz sobre a natureza da violência na Idade Média. É o caso, por exemplo, do livro organizado por B. Rosenwein sobre a “cólera”. Esse estudo é um claro contraponto a N. Elias e à distinção feita por ele entre a expressão “violenta” das emoções na Idade Média e a delicada, embaraçada e vergonhosa expressão dos sentimentos na época contemporânea. O desenvolvimento do Estado monárquico e a imposição do Estado absoluto no século XVI explicariam, segundo Elias, essa transformação. Para os autores do livro organizado por B. Rosenwein, o papel importante da cólera na sociedade medieval não resultaria do fato de que seria “incivilizada”, mas, ao contrário, porque era sensitiva, adaptável e atenta às possibilidades de reajustamento62. Portanto, um estudo sobre o roubo deve, necessariamente, levar em consideração, em primeiro lugar, que as normas não são simplesmente um instrumento de punição: nas sociedades da Alta Idade Média, constituem, sobretudo, um meio de pacificação. Assim, a coerção não constitui, nesse período, o principal canal de comunicação entre a norma e a exceção. Em segundo lugar, os comportamentos violentos não podem ser avaliados unicamente do ponto de vista da imprevisibilidade e da irracionalidade; eles servem como instrumento de pressão para a ação normativa e para a pacificação. Assim, no período deste estudo, a exceção dialoga com as normas por meio de comportamentos violentos, que podem, eventualmente, ser um meio para forçar a aplicação dessas normas e a obtenção do compromisso dela decorrente.

Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public Français (SHMESP), em 2000, cujos anais foram publicados um ano mais tarde; ou ainda, mais recentemente, o colóquio sobre a “vingança”, promovido na École Française de Rome, em 2003, cujos anais foram publicados em 2006 (La vengeance, 400-1200). Nesses estudos, a vingança não é mais vista como a realização de uma pulsão violenta e irracional, e sim como o resultado de códigos e normas que presidem a organização de uma sociedade. Para um estudo do tema, ver Cândido da Silva, M., Almeida, N. de B. Paz e violência no Ocidente medieval, São Paulo: Alameda Editorial, 2010 (no prelo). 61 Le Jan, R. Monastères de femmes, violence et compétition pour le pouvoir dans la Francie du VIIe siècle. In: Femmes, pouvoir et société dans le haut Moyen Age. Les médiévistes français: 89-107. 62 Rosenwein, B. (ed.), Anger’s Past: The social uses of an emotion in the Middle Ages.

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2. O roubo nas hagiografias

A Vida de São Filiberto de Jumièges, escrita por volta de 750, relata dois episódios de roubo. O primeiro, descrito no capítulo 12, trata do roubo das luvas do santo. Filiberto teria ido até Paris para restabelecer a paz entre os habitantes. Tendo conseguido promover a concórdia na cidade, ele teria se retirado para uma hospedaria, esperando o dia seguinte para retornar ao monastério de Jumièges. No entanto, durante a noite, um ladrão (“latro”) teria entrado em seu quarto e se apossado de suas luvas. O santo se deu conta disso pela manhã, mas manteve silêncio sobre o ocorrido. Então, o ladrão teria sido tomado subitamente por dores horríveis e, gritando que estava queimando, mostrava seu peito, onde estavam guardadas, sob suas vestes, as luvas que ele havia roubado. Depois de sua morte, os habitantes teriam retirado as luvas, entregando-as ao abade1. No capítulo 16 dessa mesma vita, o autor descreve o roubo do cavalo do santo. Ao retornar de uma viagem, Filiberto se apressava para celebrar a missa solene do domingo. Ele teria, então, montado em uma barca com os religiosos de seu séquito a fim de atravessar o Sena, deixando nos prados os cavalos que os tinham servido. O guarda das florestas (“forestarius”) do rei encontrou o cavalo que havia sido montado pelo santo e o levou consigo, com a intenção de roubá-lo (“equum quem vir Dei sederat furto abduxit”). Ao colocar-se no leito para dormir, o forestarius teria despertado subitamente, acreditando estar no meio de chamas, que pareciam devorar toda a sua casa, mas sua esposa nada via. Então, ela, tomada pelo mesmo terror de seu marido ao ver o prodígio, suplicou que ele lhe dissesse se havia roubado algo dos servidores de Deus. O forestarius teria, então, confessado seu erro. Imediatamente, ela o levou até o monastério, conduzindo o cavalo que ele havia roubado. O homem, após receber a penitência imposta por Filiberto, retornou tranquilamente com sua esposa para sua casa, que lhe apareceu em seu estado ordinário, não tendo sofrido nenhum dano resultante das chamas sobrenaturais que tinham aparecido2. 1 Vita Filiberti abbatis Gemeticensis et Heriensis, 12: “Quodam tempore Parius civitate exigente causa discordiae, vir Domini pacem perrexerat reformare. Obtentu quod voluit, latro wantos illius inlicita praesumptione furavit. Ipse dum in crastino eos non inveniret, more solito patientiam tenui. Sed infelix ille, percussus a Domino, furtum quod fecerat patefecit. Ardere se eiulans inclamabat et aliud loqui non poterat, nisi extensis brachiis sinum cum furto abscondito demonstrabat. Illo morte multato, cives loci illius ad sancti Dei cenubium praedictos wantos eius repraesentaverunt obtutum”. 2 Vita Filiberti abbatis Gemeticensis et Heriensis, 16: “Dies erat dominica, et vir Dei, peracta itinera, festinabat ad caenubium missarum celebrate sollemnia. Parveniens ad Sigonam, ipse cum fratribus adscendit navicula; caballus quos habueret reliquid in pascua. Quod regius fo-

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Em uma mesma hagiografia, têm-se duas descrições bastante distintas do desfecho do roubo dos bens do santo, mais precisamente no que se refere à punição dos ladrões. Como explicar que o ladrão do cavalo foi perdoado, e o das luvas não? Trata-se apenas de mais um paradoxo literário em um gênero que conhece tantos outros? Ou será que esses dois relatos revelam duas abordagens distintas do roubo, na prática judiciária da Alta Idade Média? Essa última possibilidade é a privilegiada por A.-M. Helvétius, para quem os dois capítulos da Vita Filiberti mostram que os grandes deviam ser magnânimos, evitando, assim, que o roubo degenerasse em faida, ao passo que exerciam uma justiça mais severa em relação aos mais fracos, como se observa a seguir: [...] Une telle sévérité à l’encontre des voleurs des biens ecclésiastiques n’est pas exceptionnelle en soi, compte tenu du précédent biblique offert par l’histoire d’Ananie et de Saphire. Pourtant, lorsque le forestier du roi s’empara du cheval de Philibert, lui et son épouse ne périrent pas ni n’encoururent de châtiment; au contraire, un signe divin les amena à restituer l’objet du larcin au saint abbé, dont ils reçurent pénitence et indulgence. Cette mansuétude peut sembler surprenante dans la Vie de Philibert: le vol d’un cheval serait-il moins grave que le vol des gants? Il est plus vraisemblable de supposer que la peine varie ici en fonction du statut du voleur. Selon notre hagiographe, le grand n’est encouragé à pardonner à son prochain que si celui-ci est de la même condition sociale que lui, car il serait risqué de s’en prendre à un agent du roi. En d’autres termes, les grands sont invités à se montrer magnanimes entre eux pour éviter qu’un vol ne dégénère en faide, mais ils se doivent d’exercer une justice sévère à l’égard des plus faibles3.

Contrariamente ao que afirma A.-M. Helvétius, é pouco provável que a Vita Filiberti descreva penalidades que variem em função do estatuto dos ladrões. Os textos hagiográficos francos estão repletos de exemplos de ladrões – sobre os quais não há dúvidas de que não se tratem de “potentes” – que não são punidos com o mesmo rigor do ladrão das luvas de São Filiberto. A Vida de São Germano de Auxerre, escrita por Constâncio de Lyon no final do século V, relata, por exemplo, o roubo cometido por um ladrão de baixo extrato social: durante uma viagem do santo, enquanto ainda estava restarius dum aspexit, equum quem vir Dei sederat furto abduxit. Sed cum se ad dormiendum locasset, repente surrexit et totam domum suam flammis exitialibus ardere conspexit. Sed cum hoc uxor ipsius non videret et eius anexietatem conspesceret, subito et ipsa hoc quod vir suus videbat conspiciens, anexietatem conpesceret, subito et ipsa hoc quod vir suus videbt conspiciens, percunctare coepit, si aliquod de rebus servorum Domini vir suus haberet in fraude. Quod bi cognovit, ambo pariter nullam moram fecerunt, donec et durepta reddiderunt et paenitentiam cum indulgentiam recepissent” 3 Helvétius, A-M. Le récit de vengeance des saints dans l’hagiographie franque (VIe-IXe siècle): 447-448.

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no pagus de Auxerre, veio juntar-se a seu séquito um viajante de pés nus, sem capa, “desprovido de tudo” e cuja dificuldade teria despertado sua piedade. Durante a noite, enquanto os guardas rezavam, ele apoderou-se do animal que transportava Germano. Quando amanheceu, todos perceberam a perda da montaria e, para que o animal não fizesse falta ao bispo, um dos clérigos, continuou a viagem a pé. Enquanto seguiam viagem, os companheiros do santo notaram que ele tentava dissimular a alegria que aparecia em seu rosto. Germano pediu, então, que parassem, e pouco depois, perceberam ao longe o ladrão, a pé, conduzindo com a mão o animal roubado (post se manu captum animal deducentem). Ele se aproximou e, prosternado aos pés do santo, confessou o delito que cometera. O ladrão contou que, durante toda a noite tinha ficado imobilizado, como se tivesse sido apanhado em uma rede de tal forma que não podia avançar; e não tinha encontrado outro meio de se livrar daquilo, a não ser devolvendo o animal. Diante dessas palavras, o santo teria dito: “Se ontem demos a você com o que se cobrir enquanto estava nu, não era necessário roubar” (“‘Si hesterna’, inquit, ‘die nudo tibi tegimen dedissemus, furandi necessitas non fuisset’”)4. Não apenas foi o ladrão perdoado pelo santo de quem havia roubado o cavalo, como recebeu uma bênção como recompensa. Na Vida de Santa Genoveva, escrita por volta de 520, há o caso de uma mulher que, após roubar os sapatos da santa, ficou cega. Embora sua condição social não seja especificada no texto, como foi o caso do ladrão de São Germano, pode-se supor que o texto se refira a um “pauper”. O roubo de objetos, tais como luvas e sandálias, está sempre associado aos pauperes nas hagiografias francas. Ao compreender que se tratava da vingança divina por causa da injúria (“iniuri”) dirigida a Genoveva, a mulher teria se lançado aos pés da 4 Constâncio, Vida de São Germano de Auxerre, 20: “Operae pretium puto mandare memoriae, etiam eius iter clarum fuisse virtutibus. Necdum territorium suae civitatis excesserat, viam leniter carpens, eratque, inminente iam vespera, dies pluvius: cum subito comitatu suo nudus pede, cucullo vacuus, nimis expeditus viator adcrescit, cuius etiam nuditate condoluit. Qui dolose inhaerens contubernio, iungitur mansione et inter innocentes occupatosque custodes, qui Deo, non animalibus vigilabant, iumentum, quo senior vehebatur, praedo nocturnus arripuit. Die reddito amissio evectionis agnoscitur et, ut sacerdoti animal non deesset, unus ex clericis in peditem mutatur ex equite. Dumque iter agitur, circumiecti comites intuentur beatum virum extra morem conceptam laetitiam vultus obumbratione velantem. Quod cum ab omnibus videratur, unus ex reliquis, circumiecti comites intuentur beatum virum, extra morem conceptam laetitiam vultus obumbratione velantem. Quod cum ab omnibus videretur, unus ex reliquis, auctoritate concepta, causam laetitiae percunctatur. At ille inquiens: ‘Paulolum commoremur, quia infelicis illius labor et inridendus est et dolendus, quem mox videbitis aestuantem’. Cumque delapsi animalibus substitissent, paulo post eminus intuentur peditem, post se manu captum animal deducentem. Qui brevi adiungitur; dum ille accelerat, hi morantur, statimque vestigiis provolutus, crimen quod commiserat confitetur et ita totius noctis spatium inretitum esse se retulit, ut longius prodire non posset nec evadendi viam aliam repperisset, nisi ut abductum animal reformaret. Ad haec vir beatissimus: ‘Si hesterna’, inquit, ‘die nudo tibi tegimen dedissemus, furandi necessitas non fuisset. Quod deest, accipe; reforma, quod nostrum est’. Itaque confessor criminis pro poena commissi non solum veniam, verum etiam praemium cum benedictione suscepit”.

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santa para pedir perdão, o que ela obteve, e sua visão foi restituída5. Como é possível observar nos dois exemplos citados, não há necessariamente nas hagiografias francas um maior rigor com o roubo cometido pelos mais fracos. No capítulo 65 do Liber in gloria martyrum, Gregório de Tours descreve como os membros do séquito do príncipe Chramn teriam cometido crimes na região de Clermont, na Auvérnia, tomando os bens do oratório de Ysaacla-Tourette. Entre os cinco ladrões, quatro teriam morrido em rixas, e apenas um teria conseguido escapar da vingança (ultio) divina, mas mesmo assim teria ficado cego. Sua visão teria sido restituída somente após a devolução dos objetos roubados6. Ainda que fossem membros do séquito real, os ladrões sofreram a ultio divina. Outra história da vida de um santo, contemporânea à Vita Filiberti, também mostra a punição de um funcionário real que roubou o cavalo do santo: a Vida de São Corbiniano, redigida em 769, por Arbeo, bispo de Freising, narra o caso do conde Husing, que contraiu apoplexia e morreu algum tempo depois, mesmo tendo confessado o roubo e pedido à sua esposa que devolvesse o cavalo ao santo, e que lhe entregasse 200 moedas de ouro: apesar de suas reticências, o santo é convencido, pelo rei, a aceitar a reparação e orar pela salvação da alma do conde. A especificidade desta vita é que nela, o rei, e não o santo, é quem age como pacificador, presenciando o pagamento da compensação pecuniária, e forçando o santo a acordar o perdão7. 5 Vita Genovefae, 24: “Quedam femina furto abstulit eius calciamenta, que ut ad domum suam pervenit, continuo oculorum lumem amisit. Ergo ut cognovit furuncula, caelitus in se ulcisci iniuriam Genuvefae, alterius ad eam ducatu revectans calciamenta ruensque ad pedes Genovefae, ignosci sibi pariter et lmen restitui ululans exorabat. Genuvefa vero, ut erat benignissima, manu eam ab umo subridens levavit, et signans oculos eius, pristinum visum restituit”. 6 Liber in gloria martyrum, 65: “In ipso quoque territurio tempore, quo Chramnus Arvernum abiit, cum diversa scelera ab eius gererentur ministris, quinque viri sacrosanctum oratorium domus Iciacensis furtim appetunt - habentur autem in eum sancti Saturnini reliquiae -, inruptumque, ablatis palleolis vel reliqua ministerii ornamenta, nocte tegente discedunt. Sed presbiter recognoscens furtum ac inter vicinos scrutans, nullum potuit ex his quae ablata fuerant indicium repperire. Protinus vero latrones, qui haec admiserant, in Aurilianensi se territurio transtulerunt; divisisque rebus, accepit unusquisque partem suam. Sed mox, insequente ultione divina, quattuor in seditionibus interfecti sunt. Quintus vero totam sibi furti huius hereditatem superstis remanens vindicavit. Sed ubi haec in domo sua contulit, statimque obtectis sanguine oculis, excaecatus est. Tunc conpunctus tam doloribus quam inspiratione divina, vovit, dicens: “Si respexerit Deus miseriam meam et mihi visum reddiderit, referam loco illi sancto quae abstuli”. Et haec cum lacrimis orans, visum recepit. Accedens vero ad oppidum Aurilianensem, providente Deo, diaconem Arvernum invenit. Cui traditis rebus, suppliciter exoravit, ut easdem oratorio restitueret; quod diaconus devotus implevit”. 7 Vita Corbibiani, XV: “Sedente autem rege et cum eo vir Dei, mulier ipsius tunc defuncti, orbata viro et viduata, flebili vultu vestigiis viri Dei provoluta est, deducens viri Dei cavallum, a viro suo machinis diabolicis et nefande raptum insidie, forma et specie decorum, quasi debito viri sui mortis reum; insuper ducentos solidos viro Dei obtulit, dicens virum suum eadem die percussum fuisse, in quo inlecebris machinis viam viri Dei inpedire praesumpsit, et ut ex eadem percussione languor cottidie dolori fomitem ministrasset, et ut iam a medicis esset disperatus, sibi praecepisset, ut sub omni diligentia ipsum custodiret cavallum et viro Dei, si, Deo donante, ibidem reversus

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Tendo em vista a diversidade das narrativas hagiográficas, é difícil estabelecer uma mesma regra que explique todos os casos de roubo. Podese, entretanto, descartar algumas possibilidades. A primeira, e mais evidente, é a relação entre o valor dos bens roubados e a intensidade da punição: nas hagiografias francas, o valor dos bens roubados não influencia a amplitude da penalidade, ou mesmo a recorrência do perdão. Na Vida de São Filiberto, por exemplo, o roubo de luvas é punido com mais severidade do que o roubo de um cavalo. Outra alternativa que pode ser descartada é a relação entre punição e estatuto social do ladrão. Não é possível entender as punições ao roubo, descritas nesses textos a partir do estatuto social daqueles que cometem o ato, contrariamente ao que sustenta A.-M. Helvétius. Mesmo que a hierarquia social desempenhasse um papel importante no tratamento de actio criminalis, não se pode afirmar que a justiça mais severa em relação aos mais fracos fosse uma constante da prática judiciária e das concepções de justiça no mundo franco. A proteção aos pauperes é um topos recorrente da documentação legislativa carolíngia: em vários capitulares, Carlos Magno exortava os juízes a não aceitarem presentes (munera) no exercício de sua função. Essa proibição visava proteger os homens livres das pressões exercidas sobre eles pelos poderosos, sob pretexto do exercício da justiça: os juízes não deveriam reduzir os pauperes à miséria, exigindo deles presentes que iam além de seus meios; mas deveriam ter por única preocupação julgar segundo a lei escrita, sem considerar a situação social dos litigantes, ou as relações que tinham com alguns deles8. Carlos Magno pedia que os juízes não se concentrassem somente nos processos dos poderosos, e que também cuidassem dos interesses dos pobres e dos menos poderosos. É o que se pode observar em uma instrução de 802, endereçada aos representantes locais do imperador, os missi dominici (“enviados do senhor”): “Façam de maneira plena e equânime justiça às igrejas, às viúvas e aos órfãos, e a todos os outros, sem fraude, sem corrupção, sem demora abusiva, e cuidem para que todos os seus subordinados façam o mesmo”. O Capitulare de iustitiis faciendis (811-813), publicado ao fim do reinado de Carlos Magno, pretendia garantir que as disputas entre condes e poderosos não atrapalhassem o andamento dos processos dos pauperes e dos menos poderosos9. A condenação da violência praticada pelos potentes contra fuisset, omnino redderet et eius facinus illi profiteretur, insuper debiti inpensionis ei aurum adferret, ut pro eius anima vir sanctissimus depraecari divinam clementiam dignatur”. 8 Le Jan, R. Justice royale et pratiques sociales dans le royaume Franc au IXe siècle. In: Femmes, pouvoir et société dans le haut Moyen Âge, Paris, 2001: 152. 9 Capitulare de iustitiis faciendis (811-813), 1: “De termino causarum et litium statuimos, ut ex quo bonae memoriae domnus Pippinus rex obiit et nos regnare coepimus causae vel lites inter partes factae atque exortae discutiantur et congruo sibi iudicio terminentur... Ut episcopi, abbates, comites et potentiores quique, si causam inter se habuerint ac se pacificare noluerint, ad nostram iubeantur venire praesentiam, neque illorum contentio aliubi diiudicetur neque propter hoc pau-

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os pauperes, as viúvas e os órfãos é parte integrante da concepção ministerial do poder secular. Entretanto, a denúncia repetida dos abusos cometidos pelos grandes não significa que os textos carolíngios condenassem a violência em si, mas a atitude brutal que provoca a desordem, isto é, a perturbação da ordem social10. É improvável que a Vida de São Filiberto servisse como caixa de ressonância de uma prática de justiça recorrente entre os grandes, e amplamente condenada pelo poder real e pelos próprios bispos francos entre os séculos VIII e IX. O mais importante indício nesse sentido é a comparação com outros textos hagiográficos francos. Na Vida de Santa Genoveva, na Vida de São Corbiniano, no Liber in gloria martyrum e na Vida de São Germano de Auxerre, a punição ou o perdão aos pauperes e aos potentes não decorrem de seus diferentes estatutos sociais. Em todos os casos mencionados anteriormente, aqueles que se arrependem, ou não são punidos, ou recebem o perdão para sua alma, ao passo que aqueles que não se arrependem são punidos severamente com a morte. Esse arrependimento vem acompanhado de um ato concreto: os ladrões dos cavalos de São Filiberto, de São Corbiniano e de São Germano, o último ladrão do oratório de Ysaac-la-Tourette, bem como a ladra das luvas de Santa Genoveva, devolvem os bens que roubaram. O mesmo não ocorre com o ladrão das luvas de São Filiberto nem com os quatro primeiros ladrões do referido oratório. A punição mais severa do ladrão não tem relação alguma com seu estatuto, mas apenas com a não devolução dos bens, qualquer que seja seu valor. E essa punição é a morte, que atinge os membros do séquito de Chramn, bem como o pobre ladrão das luvas de São Filiberto. Embora o ladrão do cavalo de São Corbiniano também morra, ao devolver o cavalo e ressarcir pecuniariamente o santo, ele obtém a salvação de sua alma. A pacificação ocupa um lugar mais importante nas vitae francas do que a punição. Ela promove o perdão e a conciliação do santo com os ladrões arrependidos. P. Fouracre et R. Gerberding lembram que a “paz” está no cerne das preocupações dos cronistas e hagiógrafos do século VII11. E, mesmo nos casos em que os ladrões não devolvem os bens dos santos, esses retornam a seus proprietários: São Filiberto e Santa Genoveva recuperam suas luvas. Os santos são mais do que proprietários dos seus bens; são proprietários eficazes na sua defesa. Qualquer que seja o estatuto do ladrão, um forestarius, um membro do séquito real ou um pauper, ele pode ser punido pelo roubo dos bens dos santos.

perum et minus potentium iustitiae remaneant”. 10 Devroey, J-P. Puissants et misérables, Paris, 2006: 332-333. 11 “Seventh-century chroniclers and hagiographers had no great Love of the abstract; for them the purpose of political Power was contained in one concrete and comprehensible Word: peace” (Late Merovingian France. History and Hagiography, 640-720. Manchester, 1996: 2-3).

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Nas vidas de santos, as ocorrências do termo proprietatis são bastante numerosas12. Isso mostra o papel central desempenhado pelas hagiografias francas nas disputas sobre os bens na Alta Idade Média, especialmente no que se refere aos bens das igrejas. Muito embora o seu valor não entre em consideração na descrição da punição aos ladrões, os bens dos santos possuem um estatuto e uma natureza à parte nas narrativas hagiográficas sobre o roubo. Os relatos de roubo desses bens nas vitae francas cumprem um papel na defesa dos bens da igreja, em face dos ataques perpetrados por eclesiásticos e, sobretudo, por laicos. O primeiro indício nesse sentido é a recorrência dos objetos roubados aos santos nos textos hagiográficos: luvas, sapatos e cavalos. Esses objetos são instrumentos a partir dos quais os santos podem exercer sua atividade evangélica. Em segundo lugar, o roubo desses bens, muitas vezes, é punido com a morte, da 12 Vita Faronis ep. Meldensis I, SS rer. Merov. 5, c. 106: 195, lin. 18: “Haec cum curis studiosissimis Deo militaret in villa residendo quae vulgo Pinnevindo dicitur ex iure suae proprietatis, praesul Dei Faro mandato eam suae praesentiae adesse optavit”; Vita Faronis ep. Meldensis I, SS rer. Merov. 5, c. 109: 196, lin. 12: “Conservantur eius nempe sancta membra, quibus ad omne opus bonum velut organo usus est Spiritus sanctus, hac in speciosissima basilica, habitaculum angelorum facta, quam ipse miro opere in fundo proprietatis suae fundavit in honore salutiferae ac vivificae Crucis necne baptistae beati Iohannis atque omnium apostolorum”; Walahfridus Strabo, Vita Galli, SS rer. Merov. 4, lib. II, c. 10: 319, lin. 13: “Postmodum consilio cuiusdam ducis nomine Nebi persuasus, ad praefatum principem Carolum cum eodem duce properavit ipsique eandem cellam proprietatis iure contradidit et, ut Otmarum presbyterum eidem loco praeficeret, exoravit”; Walahfridus Strabo, Vita Galli, SS rer. Merov. 4, lib. II, c. 14: 322, lin. 31: “Comites vero quidam, Warinus et Ruadhardus, qui totius tunc Alamanniae curam administrabant, cum infra ditionis suae terminos ecclesiasticarum non minimam partem rerum suae proprietatis dominio per potentiam subicere niterentur, maximam de eiusdem monasterii possessionibus partem sibimet vindicarunt”; Vita I Gangulfi mart. Varennensis, SS rer. Merov. 7, c. 4: 160, lin. 17: “Transmissa viarum intercapedine, ad suae proprietatis devenit habitacula, constituta in loco qui Varennas dicitur, ubi etiam ipsius sancti nunc basilica habetur”; Vita Hrodberti ep. Salisburgensis, SS rer. Merov. 6, c. 6: 159, lin. 8: “Saepe nominatus dux ibidem primitus ei in circuitu aliquas proprietatis possessiones tribuit”; Almannus, Vita Nivardi ep. Remensis, SS rer. Merov. 5, c. 9: 166, lin. 40: “Ergo excellentissimus atque apice nobilitatis insignissimus Nivardus archipresul, nimium de angelica revelatione gavisus, cum querit in hac vita sollerter heredes habere ministros Christi, ut in futura coheredes Christi effici mereretur, tali modo fecit sibi Christum debitorem, ut hoc opus letus aggrederetur et daret illis res sue proprietatis in regione mortuorum, ut esset ei Dominus portio in terra viventium, sicut est in eternum”; Hincmarus Remensis, Vita Remigii episcopi, SS rer. Merov. 3, cap. 7: 273, lin. 20: “Et dum haec agerentur, accidit, sobrinam illius nomine Celsam, Deo sacratam, perinde transire et villam suae proprietatis nomine Celtum adire”; Vita Rigoberti ep. Remensis, SS rer. Merov. 7, cap.: 60, lin. 18: “Quia in Gerneicourt villa proprietatis suae multo tempore deguerit, vitam suam bonis semper operibus exornans, quodque proba consuetudo ei fuerit creberrime urbem Remorum invisere et ibi in ara beatae Mariae missarum sollemnia celebrare; quorum quoque sanctorum memorias inde regrediens visitare solitus fuerit”; Vita Rusticulae sive Marciae abb. Arelatensis, SS rer. Merov. 4, c. 6: 343, lin. 2: “Erat enim strenua in omnibus, prudens in verbis, moribus bonis, elegans specie, aetate conspicua, in omnibus mansueta, praeceptis Christi morigera, ut suis proprietatis nomine actibus demonstraret, ut iam illo in tempore dignam sponsi vocem mereretur audire: Speciosa sicut luna”

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mesma forma que Ananias e Safira, contramodelos do cenobitismo na Alta Idade Média, como mostrou I. Rosé13, mas também exemplos de personagens que retêm uma parte da doação que prometeram integralmente à Igreja14. O relato da tomada de Jericó é ainda mais eloquente: [...] Porém a cidade será anátema ao Senhor, ela e tudo quanto houver nela; somente a prostituta Raabe viverá; ela e todos os que com ela estiverem em casa; porquanto escondeu os mensageiros que enviamos. Tão-somente guardai-vos do anátema, para que não toqueis nem tomeis alguma coisa dele, e assim façais maldito o arraial de Israel, e o perturbeis. Porém toda a prata, e o ouro, e os vasos de metal, e de ferro são consagrados ao Senhor; irão ao tesouro do Senhor15.

Apesar da advertência, Acã teria roubado uma capa babilônica, duzentos siclos de prata e uma cunha de ouro. Uma vez confessado o roubo, ele, sua família e seus bens foram apedrejados e queimados16. A intensidade da pena 13 Rosé, I. Ananie et Saphire ou la construction d’un contre-modèle cénobitique (IIe-xe  siècle). Médiévales 2008 (55): 33-52. 14 At. 5:1-11: “Mas um certo homem chamado Ananias, com Safira, sua mulher, vendeu uma propriedade, e reteve parte do preço, sabendo-o também sua mulher; e levando a outra parte, a depositou aos pés dos apóstolos. Disse então Pedro: Ananias, por que encheu Satanás o teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo e retivesses parte do preço do terreno? Enquanto o possuías, não era teu? e vendido, não estava o preço em teu poder? Como, pois, formaste este desígnio em teu coração? Não mentiste aos homens, mas a Deus. E Ananias, ouvindo estas palavras, caiu e expirou. E grande temor veio sobre todos os que souberam disto. Levantando-se os moços, cobriram-no e, transportando-o para fora, o sepultaram. Depois de um intervalo de cerca de três horas, entrou também sua mulher, sabendo o que havia acontecido. E perguntoulhe Pedro: Dize-me vendestes por tanto aquele terreno? E ela respondeu: Sim, por tanto. Então Pedro lhe disse: Por que é que combinastes entre vós provar o Espírito do Senhor? Eis aí à porta os pés dos que sepultaram o teu marido, e te levarão também a ti. Imediatamente ela caiu aos pés dele e expirou. E entrando os moços, acharam-na morta e, levando-a para fora, sepultaram-na ao lado do marido. Sobreveio grande temor a toda a igreja e a todos os que ouviram estas coisas”. 15 Josué 6, 17-19. 16 Josué 7, 19-25: “Então disse Josué a Acã: Filho meu, dá, peço-te, glória ao Senhor Deus de Israel, e faze confissão perante ele; e declara-me agora o que fizeste, não mo ocultes. E respondeu Acã a Josué, e disse: Verdadeiramente pequei contra o Senhor Deus de Israel, e fiz assim e assim. Quando vi entre os despojos uma boa capa babilônica, e duzentos siclos de prata, e uma cunha de ouro, do peso de cinquenta siclos, cobicei-os e tomei-os; e eis que estão escondidos na terra, no meio da minha tenda, e a prata por baixo dela. Então Josué enviou mensageiros, que foram correndo à tenda; e eis que tudo estava escondido na sua tenda, e a prata por baixo. Tomaram, pois, aquelas coisas do meio da tenda, e as trouxeram a Josué e a todos os filhos de Israel; e as puseram perante o Senhor. Então Josué, e todo o Israel com ele, tomaram a Acã filho de Zerá, e a prata, e a capa, e a cunha de ouro, e seus filhos, e suas filhas, e seus bois, e seus jumentos, e suas ovelhas, e sua tenda, e tudo quanto ele tinha; e levaram-nos ao vale de Acor. E disse Josué: Por que nos perturbaste? O Senhor te perturbará neste dia. E todo o Israel o apedrejou; e os queimaram a fogo depois de apedrejá-los. E levantaram sobre ele um grande montão de pedras, até o dia de hoje; assim o Senhor se apartou do ardor da sua ira; pelo que aquele lugar se chama

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– o fogo, mesma punição que atinge o ladrão das luvas de São Filiberto, e que quase destrói a casa do ladrão do cavalo desse santo –, como o próprio texto demonstra, se deve ao fato de que os bens pertenciam ao Senhor. Os relatos hagiográficos retomam o precedente bíblico da intensificação da punição, transferindo aos bens dos santos o papel que na Bíblia cabe aos bens ofertados a Deus. Outro indício de que os bens dos santos nos relatos hagiográficos reportam-se àquilo que pertence à Igreja está nas descrições do roubo de bens que não pertencem nem a ela, nem aos santos. A maioria dos casos de roubo de bens não eclesiásticos encontra-se nos relatos que envolvem a libertação de prisioneiros pelos santos. Esses episódios constituem um dos principais topoi da literatura hagiográfica da Alta Idade Média17. Neles, louvase o perdão acordado pelos santos, como bons imitadores do Cristo. Nas Histórias, X:1, Gregório de Tours relata essas palavras do papa Gregório Magno: Ninguém dentre vós deve se desesperar em razão da enormidade de vossos pecados. Uma penitência de somente três dias apagou a longa vida de pecados do homem de Nínive. O ladrão arrependido ganhou a recompensa da vida no mesmo momento em que recebeu a pena de morte!18.

As palavras atribuídas ao papa mostram que o perdão aos ladrões no mundo franco se enraíza na tradição bíblica de perdão aos criminosos, desenvolvida, por exemplo, em Ezequiel 33, 11 e em Jonas, 3 (texto do qual o trecho acima citado retira sua referência). Ainda que o roubo seja, muitas vezes, punido com a pena capital – e isso acontece diversas vezes nos textos reais e nas vidas de santos – o ladrão pode se beneficiar do perdão e da intercessão dos bispos e santos. Esses dois elementos – o perdão e a intercessão – são uma constante nas vidas de santos e nas crônicas e histórias do mundo franco. Boa parte dos prisioneiros libertados pelos santos é culpada de roubo19. o vale de Acor, até ao dia de hoje”. 17 É bastante ilustrativa, nesse sentido, a proximidade dos relatos de libertação de prisioneiros na Vida de Santa Radegonda, de Venâncio Fortunato, e na Vida de São Germano de Auxerre, de Constâncio de Lyon. Fortunato inspirou-se, muito provavelmente, do texto de Constâncio para descrever este que foi o primeiro milagre de Santa Radegonda. 18 Gregório de Tours, Histórias X, 1: “Nullus autem de iniquitatum suarum inmanitate disperet; veternosas namque Ninnivitarum culpas triduana paenitentia abstersit, et conversus latro vitae praemia etiam in ipsa sententia suae mortis emeruit”. 19 I. Westeel trouxe à luz três manuscritos originários da Aquitânia, mais precisamente da região de Limoges, e que oferecem quatro episódios suplementares à Vita Eligii conhecida através das edições clássicas. Esses manuscritos constituem, segundo a autora, um grupo à parte na tradição manuscrita desse texto. O editor da Vita Eligii no início do século XX, B. Krusch, havia identificado um desses manuscritos e editado nos MGH dois de seus episódios. Dois outros acréscimos foram colocados em evidência por I. Westeel, uma predição de Santo Elói sobre os reinados dos três filhos da rainha Batilda (adição ao capítulo 32 do livro II), e também um milagre de ressurreição

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Gregório de Tours consagra o capítulo 72 de seu Liber in Gloria Martyrum ao mártir Quitinus (morto no início do século VI). Nele, descreve o roubo do cavalo de um padre. O padre teria encontrado o ladrão e o teria conduzido até o juiz. Após ter sido preso, acorrentado e torturado, o ladrão confessou e foi condenado à forca. Segundo Gregório, o padre temia que um homem perdesse a vida por causa de uma acusação sua. Esse padre teria, então, pedido ao juiz que poupasse a vida do ladrão. Entretanto, o juiz manteve a sentença. O padre teria chorado e suplicado diante do túmulo do mártir: [...] Gloriosíssimo atleta de Cristo, eu vos peço que salve este pobre homem das mãos de uma morte injusta, para que eu não seja coberto de vergonha caso este homem morra através de minha acusação. Eu vos suplico que mostre vosso poder, de maneira que a atenuação de vossa gentil piedade possa libertar um homem a quem a crueldade humana recusou o perdão.

Depois desta oração, as amarras do patíbulo se romperam, lançando o acusado no chão, são e salvo. Quando o juiz soube o que aconteceu, de acordo com Gregório, ele teria ficado aterrorizado e maravilhado com este milagre divino, e não teria ousado fazer mal a esse homem20. O perdão acordado ao ladrão é mais importante nesse relato do que a defesa do bem do padre.

(acrescentado ao capítulo 31 do livro I). O capítulo 31 da Vita Eligii narra como o santo obteve do rei Dagoberto o direito de inumar todos os corpos daqueles que haviam sido mortos pela justiça real pelos motivos mais variados: “Um dia que ele atravessava a Austrásia em companhia do rei, eles chegaram perto de Estrasburgo e viram um homem suspenso que havia sido estrangulado no mesmo dia. Eles tiraram a corda para dar-lhe uma sepultura. Quando começou a tocar o corpo, Elói sentiu a respiração do homem. Este último se levantou como se nada tivesse sofrido. Seus perseguidores tentam recapturá-lo, mas Elói consegue para ele uma carta de securitas (“Quem Eligus vex eorum manibus ereptum regi pro eo suggessit cartamque ei securitariam apud regem impetravit atque ita eum defendit”). O quarto e último episódio relata um fato semelhante (Westeel, I. Courte note d’hagiographie: un nouvel épisode du ‘pendu-dépendu’ dans la vie latine de Saint Éloi. In: Aurell, M. Deswarte, T. (org.), Famille, violence et christianisation. Mélanges offerts à Michel Rouche, Paris, 2005: 216). O trecho traz informações precisas sobre o morto, e mostra, uma vez mais, o santo agindo como intercessor. Ele rescussita o enforcado endereçando uma oração a Deus. Como ocorria muitas vezes nesse tipo de milagre, o enforcado era culpado de roubo. 20 Liber in gloria martyrum, 72: “Sed presbiter metuens, ne ob sui damni causam anima hominis auferreretur, iudicem deprecans, ut, concessa illi vita, hic culpa reus absolveretur a poena, dicens, satis sibi esse iam factum, quod per tot tormentorum genera latro quae gesserat declarasset; sed severitas iudicis cum nullis precibus potuisset inflecti, reum patibulo condemnavit. Tunc presbiter cum lacrimis prostratus ad beati martyris tumulum, suppliciter deprecatur, dicens: ‘Quaeso, gloriosissime athleta Christi, ut eruas hunc pauperem de manu mortis iniquae, ne mihi fiat in obprobrium, si per meam accusationem moriatur hic homo. Ostende, deprecor, virtutem tuam, ut, quem asperitas humana nequit absolvere, lenis pietatis moderamine tu dissolvas’. Haec sacerdote cum lacrimis deprecante, disruptis vinculis patibuli, reus ad terram ruit. Quod audiens iudex, timore perterritus et divinam admirans virtutem, nihil illi ultra nocere praesumpsit”.

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Nessa mesma categoria de relatos, há o capítulo 8 do livro VI das Histórias. O bispo de Tours narra como Eparchius, um eremita de Angouleme salvou um criminoso reincidente, considerado culpado de muitos outros delitos, roubos e também assassinatos, da condenação à morte. Eparchius teria enviado um de seus monges para pedir ao conde que lhe acordasse a vida desse homem, apesar de ele ser culpado. A multidão teria se manifestado e objetado que, se o acusado fosse libertado, seria o fim da lei e da ordem no pagus, e o conde perderia toda a sua autoridade. Ele foi torturado e sua condenação confirmada. Eparchius teria, então, enviado seu emissário novamente para que lhe trouxesse o condenado, por cuja vida ele pediu a Deus. Depois disso, o cadafalso cedeu, as correntes se romperam, e o enforcado caiu no chão. Então, o monge conduziu-o até o abade, que agradeceu a Deus e admoestou o conde, mostrando-lhe o condenado são e salvo21. Um último caso de perdão e libertação de prisioneiros é narrado pelo bispo de Tours no Liber in Gloria Confessorum, e refere-se aos prodígios realizados por Sequanus, abade na região de Langres. Gregório associa sua faculdade, em vida, de libertar os homens do controle do diabo, e os prodígios que realizou após sua morte, permitindo que homens que estavam presos e acorrentados fossem libertados. O capítulo trata do roubo da corneta de caça (cornu) do rei Gontrão, com a qual ele reunia seus cães e caçava os cervos na floresta. Em busca do culpado, o rei teria aprisionado vários homens e privado alguns de seus bens. Três desses homens procuraram, então, o santuário do confessor. Quando o rei Gontrão soube disso, ordenou que fossem acorrentados. No meio da noite, uma luz apareceu na igreja, as bolas de ferro presas aos pés deles se romperam, as correntes foram quebradas, e os prisioneiros foram libertados. 21 Histórias VI, 8: “Quodam vero tempore, dum pro furtum quis ad adpendendum deduceretur, qui et in alia multa scelera, tam in furtis quam in homicidiis, accusabatur ab incolis criminosus, et haec ei nuntiata fuissent, misit monachum suum ad deprecandum iudici, ut scilicet culpabilis ille vitae concederetur. Sed insultante vulgo atque vociferante, quod, si hic dimitteretur, neque regioni neque iudici possit esse consultum, dimitti non potuit. Interea extenditur ad trocleas, virgis ac fustibus caeditur et patibulo condemnatur. Cumque mestus monachus abbati renuntiasset: «Vade», inquid, «a longe, quia scito, quod, quem homo reddere noluit, Dominus suo munere redonabit. Tu vero, cum eum cadere videris, protinus adprehensum adducito in monasterium». Monacho vero iussa complente, ille prosternitur in oratione et tam diu in lacrimis ad Deum fudit preces, quoadusque, disruptum obice cum catenis, terrae restitueretur adpensus. Tunc monachus adprehensum eum abbatis conspectibus incolomem repraesentat. At ille gratias Deo agens, comitem arcessiri iubet, dicens: «Semper me benigno animo solitus eras audire, fili dilectissime; et cur hodie induratus hominem, pro cuius vita rogaveram, non laxasti?» Et ille: «Libenter te», inquid, «audio, sancte sacerdos; sed, insurgente vulgo, aliud facere non potui, timens super me seditionem moveri». Et ille: «Tu», inquid «me non audisti; Deus autem audire me dignatus est, et quem tu tradidisti morti, ille vitae restituit. En», inquid, «coram te adstat sanus!» Haec eo dicente, prosternitur ad pedes comitis stupentis, quod videbat vivere quem in mortis interitu reliquisset. Haec ego ab ipsius comitis ore cognovi. Sed et alia multa fecit, quae insequi longum putavi. Post XLIIII vero annos reclusionis suae parumper febre pulsatus tradidit spiritum; protractusque a cellula, sepulturae mandatus est. Magnus autem conventus, ut diximus, de redemptis in eius processit exsequiis”.

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Segundo Gregório, o rei ficou aterrorizado quando soube do acontecimento, e rapidamente cessou a perseguição contra os homens22. Esses relatos não se ocupam dos bens ou da propriedade: o essencial é a atuação dos santos como libertadores de prisioneiros. Algumas vezes, os bens não são sequer discriminados. Gregório de Tours, por exemplo, não diz quais bens foram roubados pelo ladrão condenado à morte e depois salvo por Eparchius, eremita de Angoûleme. Por contraste, tem-se em outras hagiografias francas do mesmo período uma descrição pormenorizada, não apenas dos bens roubados dos santos, mas do estatuto social dos ladrões e do que aconteceu com eles após o roubo. F. Graus afirma que os relatos hagiográficos de libertação de prisioneiros e de escravos aumentam a partir dos séculos V e VI, e que isso, muito provavelmente, correspondia a uma prática recorrente nas sociedades da Alta Idade Média23. O aumento da recorrência desses relatos adquiriria todo seu sentido em um período onde os editos e preceitos reais estabelecem penalidades mais duras para o roubo. As leis francas, bem como o Liber Constitutionum e a Lex Visigothorum preveem a pena de morte para os ladrões. Entretanto, no que se refere ao período compreendido entre 600 e 750, as conclusões de Graus são nuançadas por M. Van Uytfanghe, para quem o milagre não é abundante: [...] S’il est vrai que les hagiographes n’ont pas nécessairement besoin de miracles pour célébrer, parmi les vertus de charité de leur saint, le souci et le rachat des captifs, il n’en reste pas moins que la délivrance miraculeuse (généralement après le refus initial du juge, du seigneur ou du marchand impitoyables, d’acquiescer à la supplique du saint) est en quelque sorte l’apanage de deux évêques du Nord de la Gaule, à savoir Géry de Cambrai dans le corpus A (ses 4 miracles de ce type suggèrent déjà une certaine ‘spécialisation’) et Saint Éloi de Noyon-Tournai dans le corpus B (7 cas)24.

22 Liber in gloria confessorum, 86: “Magnae enim virtutis fuit et ille Sequanus Lingonici abba territurio, qui vivens saepe homines a vinculo diabolici nexus absolvit et post obitum ad sepulchrum suum ergastulari catena revinctos liberos meritis suis abire permisit. Denique Gunthramnus rex cornu, cuius voce vel Molosos collegere vel illa corneorum arboreorum armenta effugare consueverat, furto ablatum perdidit. Quae res multos in vinculis coniecit, nonnullos facultate privavit. Ex quibus tres viri memorati confessoris monumento petierunt; quod rex conpertum, iussit eos catenis atque conpedibus necti. Factumque est ita. Media vero nocte lux in basilica humanae luci clarior oritur; dissiliunt ferrearum pedestrium repagula, catenarumque disruptis bacis, vincti laxantur. Quo audito rex exterritus, velociter eos liberi arbitrii potestate donavit”. 23 Graus, F. Die Gewalt bei den Anfängen des Feudalismus und die ‘Gefangenenbefreiungen’ der merowingischen Hagiographie. Jahrb. f. Wirtschaftsgeschichte 1961, I: 104. 24 Van Uytfanghe, M. Pertinence et statut du miracle dans l’hagiographie mérovingienne (600750). In: Aigle, D. (dir.), Miracle et Karama. Hagiographies médiévales comparées 2, Turnholt, 2000: 67-144, especialmente: 103 (“Bibliothèque de l’École des Hautes Études Section des Sciences Religieuses” 109)

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A pequena incidência de santos libertadores de prisioneiros, em que pese o aumento considerável da intensidade das penas contra os ladrões, mostra que as hagiografias francas não tentavam aportar uma resposta a esse problema. No que se refere ao roubo, a questão principal que animava esses autores eram os ataques aos bens eclesiásticos. Há, nesses relatos hagiográficos, uma distinção entre os bens dos santos e das igrejas, e os bens dos laicos. Os primeiros, não apenas por uma maior descrição das circunstâncias em que ocorreram, mas também pela punição mais acentuada, situam-se no cerne das narrativas hagiográficas. Os casos de perdão são sistemáticos quando há roubo de bens que não pertencem à igreja, ou aos próprios santos; entretanto, quando esses bens pertencem a santos ou igrejas, o perdão depende da confissão, da devolução do que foi roubado, e da penitência. Em todos os relatos anteriormente mencionados, esse tipo de roubo aparece como a forma mais grave de subtração dos bens de outrem. Os bens da Igreja encontram-se no cerne do tratamento dessa actio criminalis descrita nas hagiografias, quer seja na punição, quer seja no perdão acordado aos ladrões. Não se trata apenas de uma questão formal, de um topos retórico, comum a todos os textos hagiográficos. As descrições de roubo de objetos pertencentes aos santos ou às igrejas que eles protegem atendem ao imperativo mais amplo de defesa dos bens eclesiásticos. Essa é uma questão central, que mobiliza os bispos conciliares no mundo franco desde o início do século VI. É nesse contexto que se devem entender os relatos sobre o roubo de bens dos santos nas hagiografias. Não foi preciso esperar as Reformas Monástica ou Gregoriana para que a Igreja buscasse distinguir os seus bens daqueles pertencentes aos laicos a fim de melhor protegê-los das tentativas de apropriação. O conceito de “Eigenkirche”, elaborado pela historiografia alemã para sustentar a existência da apropriação privada das igrejas desde a época merovíngia até a época gregoriana, foi recentemente reavaliado por S. Wood: para essa autora, as relações de propriedade variam segundo o tamanho e o prestígio dos estabelecimentos eclesiásticos, alguns deles podendo ser objetos possuídos, e outros, objetos e sujeitos possuidores. Os únicos objetos eclesiásticos cuja possessão por parte de laicos – reis, condes, senhores, grupos de pequenos proprietários rurais ou urbanos – e clérigos – padres, bispos e monastérios – não era colocada em questão nos textos da Alta Idade Média seriam as pequenas igrejas (“lower churches”)25.Todas as outras apropriações de bens da igreja produziam reações vigorosas, visíveis não somente nos cânones conciliares, mas também nas vidas de santos. O papel das hagiografias na defesa dos bens eclesiásticos não é exclusivo dos primeiros séculos da Idade Média. No âmbito do combate intensamente travado pelos partidários da Reforma nos séculos XI e XII, as vidas de santos 25 Wood, S. The Proprietary Church in the Medieval West, Oxford, 2006.

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desempenharam um papel pelo menos complementar aos dos polemistas gregorianos. B. De Gaffier, em um artigo de 1932, mostrou que, nos textos hagiográficos do século XI, a vingança divina (ultio diuina) atingia aqueles que usurpavam os bens eclesiásticos e monásticos26. As vidas de santos também desempenharam um papel semelhante no mundo franco dos séculos VIIX, mas, como será mostrado nas páginas seguintes, o recurso à ameaça da vingança divina e de aplicação da excomunhão foram apenas alguns dos meios mobilizados na defesa dos bens eclesiásticos. No caso das hagiografias, a punição mais acentuada pelo roubo de bens dos santos e das igrejas não é a única maneira pela qual esses se diferenciam de outros bens. O santo obtém sempre a devolução dos objetos roubados, seja através do arrependimento dos ladrões, seja por meio de ações consecutivas à sua punição. Essa eficácia tem, muito provavelmente, precedentes bíblicos, na capacidade do Senhor em recuperar os bens que lhe pertencem, como se viu no caso de Ananias e Safira, e também no relato sobre Acã e os seus. O proprietário dos bens parece ser a chave para a compreensão do maior rigor da punição aos ladrões, bem como da eficácia na restituição desses bens. No entanto, é pouco provável que a fonte para a construção desses relatos fosse apenas bíblica: os casos veterotestamentários mencionados anteriormente concentramse na punição dos ladrões, ao passo que as hagiografias acordam um papel importante à recuperação dos bens e à pacificação. O perdão concedido aos ladrões (sejam eles pauperes ou potentes) é uma prática que se inscreve na tradição de pacificação da justiça da Alta Idade Média. A.-M. Helvetius tem razão ao considerar que não é possível separar as vitae francas das questões que envolvem a justiça e as disputas interpessoais. Contudo, essa relação não se situa simplesmente no plano exemplar ou moralizador. As hagiografias participam dos embates em torno dos bens e da sua propriedade. Os relatos hagiográficos francos estabelecem uma distinção entre os bens que pertencem aos santos e às igrejas e os que não pertencem. Nesses, os bens são hierarquizados em função dos estatutos de seus proprietários. A pista que se buscará examinar, nas páginas seguintes, é a da relação entre essa distinção e aquela estabelecida pelas leges bárbaras e pelos cânones conciliares. Em outras palavras, buscar-se-á relacionar a defesa eficaz dos bens eclesiásticos por parte dos santos, e a qualificação jurídica do proprietário, presente nas leges bárbaras e nos cânones conciliares. Interessa, neste trabalho, analisar como os relatos hagiográficos sobre o roubo tomam emprestados das leis civis e das normas conciliares os argumentos e as formas de qualificação dos bens e dos proprietários.

26 Gaffier, B. Les revendications de biens dans quelques documents hagiographiques au XIe siecle. Analecta Bollandiana 50, 1932: 123-138.

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3. O roubo na legislação real

Sujeitos e bens A relação dos proprietários com os seus bens não é apenas um problema de história do Direito, mas tem implicações na história econômica e na história social. Nas sociedades ocidentais, por exemplo, pelo menos até o século XIX, ou ainda na Polis grega, o estatuto de cidadão está associado à condição de proprietário (na Grécia Antiga, o chefe do Oikos). Já nas sociedades ocidentais modernas, o direito à propriedade estabelece uma individuação do sujeito a partir da exclusividade de sua relação com os bens; e é enquanto proprietário que ele age no espaço público. A relação com os bens define, também, as relações entre os próprios proprietários: o direito à propriedade individual, por exemplo, consagra uma oposição bem mais clara entre o proprietário e os seus pares – às vezes em termos de exclusão mútua – do que em um regime de possessão coletiva dos bens. Entretanto, essa oposição não traz consigo a desagregação das relações sociais. Uma das razões para isso está na circulação de bens: os sujeitos podem fazer legitimamente circular os bens entre si, quer seja através da troca, do dom, ou do comércio. Essas modalidades de circulação, quando aceitas por ambas as partes e legitimadas pela legislação em vigor, reforçam e ampliam as relações interpessoais. Mas há uma categoria de circulação de bens que se situa no limite entre a legitimidade e a ilegitimidade. Trata-se da razzia, uma espécie de roubo considerado legítimo quando se dirige ao exterior da comunidade. Nas sociedades beduínas, a razzia era valorizada e contribuía para construir a reputação e a honra de um homem nobre, ao lhe dar a oportunidade para mostrar sua coragem. No sentido inverso, o roubo no interior da tribo era considerado vergonhoso e digno de homens inferiores1. Algo de muito semelhante acontece na Gália franca: a razzia é praticada com frequência, como mostra Gregório de Tours, mas ele condena com vigor apenas as cometidas no interior do Reino dos Francos. Outra categoria de transmissão de bens que se situa no limiar entre a legitimidade e a ilegitimidade é a imposição fiscal. Há um grau, não necessariamente quantificável, muito menos indicado nos textos, a partir do qual os impostos são considerados ilegítimos. Do ponto de vista estritamente 1 Claudot, H., Haward, M. Coups et contrecoups: l’honneur en jeu chez les Touaregs. Annuaire de l’Afrique du Nord 21, 1982: 793-808.

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legal, não basta que um determinado ataque aos bens seja reprovado pelas comunidades envolvidas para ser definido como roubo; é preciso, ainda, que essa reprovação tenha alguma referência na legislação em vigor. Assim, o roubo é um ato praticado a despeito da legislação, civil ou eclesiástica, e não pode, a princípio, ser confundido com as ações de transferência forçada de bens, patrocinado pelo poder real – por exemplo, as imposições fiscais ou o confisco –, ou mesmo pela Igreja. Na perspectiva adotada neste trabalho, no entanto, o que define o roubo é o vocabulário utilizado pelos textos: razzias podem ser descritas como roubo, e confiscos também o podem. Nesses casos, eles serão objetos desse estudo. A Vita Sancti Severini, de Eugípio (†c. 533), por exemplo, mostra o santo defendendo sua civitas contra a pilhagem de um bando de bárbaros, que ele ameaça com a vingança divina. O termo utilizado pelo autor do texto para descrever a ação dos bárbaros é o mesmo que, em outros textos, designa o roubo de bens: praedatione2. Em um artigo de 1995, F. Lifshitz sustenta que o êxodo das relíquias da diocese de Rouen, relatado em textos hagiográficos, foi um mito que serviu para encobrir a prática sistemática do “confisco” desses bens durante os séculos IX e X. A “eficácia” dessas relíquias em proteger a diocese de Rouen das incursões vikings no século IX teria feito delas objeto de cobiça. Assim, na Translatio Gildardus, por exemplo, consta que o rei Carlos, o Calvo, pediu aos habitantes de Rouen que dessem as relíquias de Gildardus para o monastério de Saint-Médard de Soisson. Segundo Lifshitz: […] The inhabitants of Rouen were coerced to disgorge their relics by the royal authority of Charles the Bald, who wished to reward a favoured monastic house. This amounts to a theft; however, because nothing sanctioned by ‘public’ authority can, technically, be illegal, we might call it instead a ‘coerced translation’3.

O que aqui se propõe não é um estudo sociológico e estatístico sobre o roubo, mas sobre sua qualificação e seu tratamento nos textos francos da Alta Idade Média. Daí a importância que daremos às maneiras como os ataques aos bens são descritos. As pessoas se ligam às coisas, não apenas a partir de modalidades de circulação consideradas legítimas – comércio, dom, troca competitiva, troca 2 A Vita Sancti Severini, IV, 4-5: “...ite et vestris denuntiate complicibus, ne aviditate praedandi ultra huc audeant propinquare: nam statim caelestis vindictae iudicio punientur, deo pro suis famulis dimicante, quos ita consuevit superna virtute protegere, ut tela hostium non eis inferant vulnera, sed arma potius subministrent.” dimissis itaque barbaris ipse de christi miraculis gratulatur, de cuius et miseratione promittit numquam illud oppidum hostium praedas ulterius experturum: civis tantum ab opere dei nec prospera nec adversa retraherent”. 3 Lifshitz, F. The migration of Neustrian relics in the Viking Age: the myth. Of voluntary Exodus, the reality of coertion and theft. Early Medieval Europe 1995 (4/2): 182-183.

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não competitiva, razzia contra o inimigo externo –, mas também, por formas ilegítimas. Seja do ponto de vista do proprietário, da comunidade ou da autoridade pública, o roubo é uma forma ilegítima de circulação de bens. Pelo lugar que ocupa nas leges bárbaras4 e na legislação conciliar, é provável que constitua a principal fonte de disputas nos reinos que tomaram o lugar do Império Romano do Ocidente. Além disso, foi objeto de um número mais importante de regulamentações do que as formas legítimas de circulação de bens. Mesmo que as trocas, os dons, ou o comércio, tenham sido objeto de restrições por parte da autoridade pública na Alta Idade Média (os príncipes carolíngios se opuseram, por exemplo, a um tipo de comércio regido, segundo eles, pelo lucro indevido – turpe lucrum5), o roubo provoca mais sistematicamente a adoção de medidas repressivas e, às vezes, a vingança6. E é nessas medidas e na condenação desse ato, que as normas constroem os qualificativos jurídicos dos “ladrões” e “proprietários”. A reprovação ao roubo aparece mais claramente nos textos do que a condenação ao turpe lucrum, por exemplo. A centralidade do roubo pode ser observada, inclusive, no fato de que os textos tomam emprestados termos que designam esse ato para deslegitimar certas práticas de comércio ou dom. O roubo é a exceção que, em suas relações seguidas e topológicas com a norma, define as situações proprietárias. Pode-se falar em “propriedade” na Alta Idade Média? Embora esse não seja um argumento decisivo, a palavra proprietas está presente nos textos francos. Suas ocorrências são numerosas nos formulários7 e nos capitulares carolíngios8. Viu-se também, no capítulo anterior, que o maior número de 4 Hagemann, H-R. Diebstahl  - Deutsches Recht. In: Lexikon des Mittelalters, III, Munique/ Zurique, 1984, col. 990-991. 5 Capitular de Nimègue, 806. Sobre as regulamentações carolíngias do comércio, ver Cândido da Silva, M. O combate à fome nos capitulários de Carlos Magno (c. 780-806). In: R.O.A. Filho (org.), Relações de poder, educação e cultura na Antiguidade e Idade Média, Estudos em homenagem ao Professor Daniel Valle Ribeiro, Santana do Parnaíba, 2005: 379-390. 6 Em seu estudo sobre um código de honra seguido pelos habitantes de Barbagia (na Sardenha), A. Pigliaru mostrou que esses últimos diferenciavam os roubos “ofensivos” dos roubos “não-ofensivos”, os primeiros dando origem à vingança, e os segundos à compra dos objetos roubados pelos seus proprietários legítimos (A. Pigliaru, Il Banditismo in Sardegna. La vendetta barbaricina come ordinamento giuridico, Milão, 1975). 7 Cartae senonicae 25, 768-775: 196: “hoc est res proprietatis meae in paggo illo...”; Formulae extravagantes 11: 540: “... per hoc dotis testamentum de rebus proprietatis meae in paggo illo”. 8 Additamenta ad capitularia Regum Franciae Orientalis, Capit. 2, Cap. 248: 180, lin. 4: “Nullus monachorum aliquid proprietatis habeat, et res seculares, quibus renuntiavit, nullatenus sibi usurpet, nec parrochias ecclesiarum accipere presumat sine consensu episcopi”; Capitulare Olonnense mundanum, Capit. 1, Hlotarii capitularia Italica: 329, lin. 33: “Statuimus ut liberi homines, qui tantum proprietatis habent unde hostem bene facere possunt et iussi nolunt, ut prima vice secundum legem illorum statuto damno subiaceant; si vero secundo inventus fuerit neglegens, bannum nostrum id est LX solidos persolvat; si vero tertio quis in eadem culpa fuerit inplicatus, sciat se omnem substantiam suam amissurum aut in exilio esse mittendum”; Synodus Francofurtensis, Capit. 1, Karoli Magni capitularia: 74, lin. 9: “Necnon omnem iustitiam et res

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referências à propriedade está nas hagiografias. Pretender fazer uma história da construção social a partir de conceitos, tais como “propriedade”, “roubo”, que também estão presentes no vocabulário contemporâneo, coloca uma questão particularmente importante: a discrepância entre, de um lado, os sentidos que os textos da Alta Idade Média dão a esses termos e, de outro, seus significados contemporâneos. Um bom exemplo nesse sentido, e repleto de consequências para os estudos medievais, é o problema das identidades bárbaras. Vê-se, nesse caso, grande preocupação dos autores dos séculos V e VII em apresentar os nomes étnicos, os mitos de origem e as leis como parte integrante de um discurso de reivindicação de certa homogeneidade étnica de grupos (definidos pelo termo natio). Somada a isso, há a preocupação dos historiadores europeus, desde o século XIX, em encontrar as origens de suas próprias nações no interior dessas comunidades – pelo menos em parte – “imaginadas”. Os historiadores modernos tomaram os discursos de origem dos séculos V-VII como a prova de que sólidas comunidades étnicas encontravam-se na base dos reinos que levavam os nomes dessas comunidades. Entretanto, o sentido da palavra natio nos textos da Alta Idade Média somente pode ser associado a “nação” ao preço de se tomarem os reinos bárbaros como os ancestrais dos Estados Nacionais modernos. Em textos do século XIV, a propriedade é definida como o direito de utilizar, beneficiar-se e dispor de uma coisa de maneira exclusiva e absoluta, tendo como limite apenas as restrições estabelecidas pela lei. Herdeira da concepção romana de direito e propriedade, essa noção moderna aparece no Código Civil, de 1804, como um direito individual, absoluto, exclusivo e perpétuo. O direito contemporâneo define a propriedade como uma relação que se estabelece entre o sujeito A e o bem X, quando A dispõe livremente de X; e essa faculdade em relação a X é socialmente reconhecida como uma prerrogativa exclusiva, cujo limite teórico é “sem relações”, e no qual “dispor de X” significa ter o direito de decidir tudo o que diz respeito a X, sendo possuído no sentido material ou não9. No período que interessa, os séculos VI-IX, a noção de propriedade (proprietatis, dominium), isto é, o direito de ter um controle total sobre uma coisa, é limitado tanto pela possessio (controle físico dessa coisa, ou ius in re aliena) quanto pelo usufrutus. Entretanto, seria um equívoco ver na propriedade moderna um princípio absoluto, em oposição a concepções antigas, relativas. Mesmo em uma sociedade liberal, fundada no “laissez-faire” e no respeito à propriedade individual, como, aliás, em todas as proprietatis, quantum illi aut filiis vel filiabus suis in ducato Baioariorum legitime pertinere debuerant, gurpivit atque peroiecit et, in postmodum omni lite calcanda, sine ulla repetitione indulsit, et filiis ac filiabus suis in illius misericordia commendavit”. F.-L. Gasnhof define as capitulares como atos do poder cujo texto era geralmente dividido em artigos (capitulum) utilizados por vários príncipes carolíngios para publicar medidas de ordem legislativa ou administrativa (Ganshof, F-L. Recherches sur les capitulaires, Paris, Sirey, 1958: 3-4). 9 Sani, G. Propriedade. In: Bobbio, N. et alii, Dicionário de Política, Brasília, 1993, v.2: 1021-1035.

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sociedades, o direito à propriedade é limitado por controles legais e sociais. O simples fato de a noção de propriedade de uma sociedade ser diferente da nossa, não permite que se diga que essa sociedade desconhece essa noção10. A propriedade supõe sempre obrigações e restrições, isto é, é sempre uma questão de grau11. Essas restrições, e, sobretudo, os atentados à propriedade, constituem o melhor meio para se estudar a construção dessa noção, suas especificidades em uma dada sociedade. Isso permite que se vá além do domínio restrito da história das ideias jurídicas e se coloque no domínio vivo do diálogo entre as normas e a sociedade. A noção de propriedade raramente constituiu o cerne dos estudos sobre as relações entre sujeitos e bens na Alta Idade Média. Boa parte da historiografia centrou suas análises na noção de “propriedade coletiva”, oriunda, segundo vários autores, de uma tradição comunitária dos povos germânicos. Os historiadores de Direito na Alemanha, no século XIX, deram ênfase em seus estudos, à Alta Idade Média, ao uso coletivo e partilhado dos bens, em detrimento do direito individual do sujeito sobre os bens. As teses sobre os perfis não proprietários do uso dos bens no mundo franco estão estreitamente associadas à noção de “Völksgenossenschaft”, construção historiográfica que identificava na “Antiga Germânia” uma organização igualitária, cuja sombra teria sido projetada na história franca da Alta Idade Média. As críticas mais recentes a esta noção, especialmente a obra colossal de S. Wood, se traduziram na reabilitação da noção de “propriedade individual”. No entanto, pelos menos desde o século XIX, a historiografia francesa tem adotado uma postura crítica em relação à noção de Völksgenossenschaft12. Em um artigo publicado na Révue Historique em 1886, M. Thévenin aborda 10 A esse respeito, E. Levy mostrou que, apesar das limitações na transferência de bens nos reinos bárbaros, ela podia ser considerada como uma transferência de propriedade: “As late as the ninth and tenth centuries land gifts made by the sovereigns or churches in east Frankish areas were considered as transferring proprietas (concedere ou tradere in proprietatem) in spite of the fact that such land could neither be alienated nor inherited” (Levy, E. West Roman Vulgar Law. The law of Property: 89-90). 11 Reynolds, S. Fiefs and Vassals: 56: “In all societies the right of property may be limited or regulated in some way, for instance by the degree to wich one’s use of property is exclusive or by the possibility of its confiscation in at least some circumstances, however restricted they may be and whatever the compensation that may be offered”. 12 Centrando-se na questão da terra, N.D. Fustel de Coulanges elaborou uma crítica bastante dura dessa perspectiva: “Il faut donc que l’historien tienne pour vrai que les grandes secousses du Ve siècle et l’arrivée d’hommes nouveau n’ont ni altéré ni amoindri le droit de propriété du sol. Supposer que les Germains aient introduit une nouvelle façon de posséder la terre serait contredire tous les documents” (Les origines du système féodal, le bénéfice et le patronat. In: Histoire des Institutions politiques de l’Ancienne France, Paris, 1890, p.129. Sobre a distinção entre “propriedade” e “posse”, ver Andreolli, B. ‘Situazione proprietarie’, ‘situazione possessorie’. Spunti per un dibattito europeo sulla contratualistica agrária altomedievale. In: Montanari, M., Vasina, (ed.), Per Vito Fumagali. Terra, uomini, instituzioni medievali, Bolonha, 2000: 541 e 547.

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a questão a partir de um objeto específico: os moinhos. Esse artigo constitui uma vigorosa crítica à ideia de “propriedade coletiva”. O autor afirma que é impossível citar um só texto no qual um moinho apareça como propriedade coletiva de um vilarejo, ou que apresente os habitantes do vilarejo como coproprietários do moinho que utilizam13. No livro A Sociedade Feudal, de 1939, M. Bloch sustenta que a noção “medieval” de propriedade perdeu um traço característico do Direito romano: a exclusividade do direito do proprietário em relação ao bem. Bloch procurou ressaltar a multiplicidade de direitos que pesavam sobre um mesmo bem entre os séculos XI e XIII: [...] Sur presque toute terre, en effet, et sur beaucoup d’hommes, pesaient, en ce temps, une multiplicité de droits, divers par leur nature, mais dont chacun, dans sa sphère, paraissait également respectable. Aucun ne présentait cette rigide exclusivité, caractéristique de la propriété, du type romain. Le tenancier qui — de père en fils généralement — laboure et récolte; son seigneur direct, auquel il paie redevances et qui, en certains cas, saura remettre la main sur la glèbe; le seigneur de ce seigneur et ainsi de suite, tout le long de l’échelle féodale: que de personnages qui, avec autant de raison l’un que l’autre, peuvent dire ‘mon champ’! Encore est-ce compter trop peu. Car les ramifications s’étendaient horizontalement aussi bien que de haut en bas et il conviendrait de faire place aussi à la communauté villageoise, qui ordinairement récupère l’usage de son terroir entier, aussitôt celui-ci vide de moissons; à la famille du tenancier, sans l’assentiment de laquelle le bien ne saurait être aliéné; aux familles des seigneurs successifs. Cet enchevêtrement hiérarchisé des liens entre l’homme et le sol s’autorisait sans doute d’origines très lointaines. Dans une grande partie de la Romania elle-même, la propriété quiritaire avait-elle été autre chose qu’une façade ? Le système, cependant, s’épanouit aux temps féodaux avec une incomparable vigueur. Une pareille compénétration des ‘saisines’ sur une même chose n’avait rien pour heurter des esprits assez peu sensibles à la logique de la contradiction et, peut-être, pour définir cet état de droit et d’opinion, le mieux serait-il, empruntant à la sociologie une formule célèbre, de dire : mentalité de ‘participation’ juridique14.

13 “En raison même de sa nature, un moulin ne pouvait être construit que par un propriétaire de cours d’eau, disposant d’ailleurs de moyens suffisants; il servait à un nombre plus ou moins grand de voisins de la même circonscription territoriale et économique, c’est-à-dire du même village; il était commun à ces voisins en ce sens seulement qu’ils en usaient en commun; d’après la loi des Bavarois, du titre ‘de furto’, c’est un établissement ‘public’; il faut s’entendre sur la signification de ce mot... Il est visible qu’ici ‘casas publice’ ne signifie pas ‘maisons communes’ et que ‘publice’ ne rappelle, en aucune manière, le caractère collectif des premières propriétés immobiliers ou des premiers modes d’appropriation, comme la résidence du duc, etc., le moulin est public, c’est-à-dire, accessible à tous et constamment ouvert” (Thévenin, Études sur la propriété au Moyen Age. La propriété et la justice des moulins et des fours. Revue Historique 31, 1886: 245-246). 14 Bloch, M. La société féodale, Paris, 1982 (1ed., 1924): 119-120.

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Para além dos resquícios de uma interpretação com base na ideia de “propriedade coletiva” (exercida pela “comunidade do vilarejo”), a tese de M. Bloch convenceu a muitos da existência de uma nítida separação entre a noção romana de propriedade e aquela que teria prevalecido no período medieval. Essa também é, por exemplo, a opinião de M. Villey. Segundo esse autor, teria havido um descolamento progressivo entre o dominium e o jus: “le dominium, lui-même, devient un jus, ce qui est anti-romain au maximum, j’entends contraire au système général du droit romain classique. Au total, il n’y a plus que des ‘jura’ et, dans le domaine qui nous occupe, il n’y a plus que des ‘jura in re’”15. Alguns autores chegam mesmo a distinguir uma suposta “mentalidade da propriedade”, típica da época romana, de uma “civilização da posse”, característica da Idade Média: “A una mentalità angolosamente proprietaria come quella romana si sostituisce une civilità ‘possessoria’ cui è del tutto indifferente l’idea di un rapporto de validità [...] e che è invece dominata de un vigoroso principio di effettività”16. O fundamento dessa distinção excessivamente nítida está nas teses germanistas, segundo as quais os povos bárbaros teriam legado à Alta Idade Média uma forte tradição do uso e da possessão de bens comuns. As noções de cessão, ou a noção de propriedade plena (dominium), presentes nos formulários e diplomas da Alta Idade Média, não podem ser consideradas como uma simples transposição das formulações clássicas. Há algumas décadas, E. Lévy demonstrou que os elementos principais do direito bárbaro sobre a propriedade são oriundos do Direito romano tardo-antigo (notadamente o Codex Theodosianus e o Breviário de Alarico), e não do Direito romano clássico17. Isso teria resultado, segundo ele, em uma perda de precisão do vocabulário e das categorias que designavam o direito à propriedade, algo fundamental no Direito clássico. No plano das relações entre sujeitos e bens, não houve um distanciamento em relação aos princípios do Direito romano tardio na Alta Idade Média, tampouco um triunfo de supostas tradições germânicas, mas uma mudança no uso das palavras, que indicava uma limitação da plenitude dos direitos de propriedade. Os estudos recentes sobre as transferências patrimoniais mostraram, por exemplo, que o princípio da livre disposição de bens sobreviveu na Burgúndia 15 Villey, M. Le ‘ jura in re’ du droit romain classique au droit moderne. In: Conférences faites à l’Institut du Droit Romain en 1947, Paris, 1950 (Publications de l’Institut de Droit Romain de l’Université de Paris VI): 197-198. 16 Grossi, P. La proprietà e le proprietà nell’officina dello storico. Quaderni Fiorentini per la Storia del pensiero giuridico moderno  17, 1988: 392. 17 Levy, E. West Roman Vulgar Law. The law of Property. Filadélfia, 1951: 15: “The remnants of the classical law played only a modest part in the sources used for these legislations. The Roman law adopted in the Germanic kingdoms was at first everywhere the vulgar law... The very incentive for their undertakings came from Roman models, such as the Codex Theodosianus and later the Breviarium Alaricianum”.

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pelo menos até os séculos VII e VIII, e, em algumas outras regiões, até o século X. Algumas vezes, essa liberdade de oferecer, gratuitamente ou não, ou ainda, de transmitir os bens, chocou-se com a necessidade de consentimento familiar (a laudatio parentum), mas isso era excepcional18. Até o século X, os doadores não tinham necessidade do consentimento oficial e público de seus próximos quando transferiam uma parte de seus bens a outro ius et dominium. Segundo R. Le Jan, na época carolíngia, a lei garantia a cada sujeito o livre gozo de seus bens próprios, bem como a possibilidade de efetuar doações às igrejas pro remedio animae, contanto que não incidissem sobre a parte da herança garantida aos herdeiros diretos (Ebenwartrecht). Além disso, havia a possibilidade de conceder uma parte maior da herança a certos herdeiros. O sujeito dispunha livremente de pelo menos uma parte de seus bens para dotar sua esposa, privilegiar certos herdeiros, vender, trocar ou fazer doações19. Em seu estudo sobre a propriedade da Igreja na Idade Média, S. Wood define propriedade como o fato de uma pessoa (ou um grupo) ter posse ou uso direto, ou potencial, de um bem, durante longo e contínuo período de tempo, e com certo número de obrigações e restrições. Isso significa que o proprietário possui um título, ou pelo menos direito sobre esse bem, que ele pode defender diante da lei e dispor dele como melhor entender, vendendo-o, dando-o, dividindo-o ou arrendando-o. Esse poder de controle sobre o bem se exprime através de um léxico variado (potestas, dominium, proprietas) cujo sentido varia no tempo e espaço. O único traço comum nessas definições de propriedade é a capacidade de dar, vender ou alienar o bem. Na alienação, encontra-se, segundo S. Wood, a essência daquilo que funda o direito de propriedade: um sujeito é proprietário de um bem quando tem a faculdade de se desfazer dele20. Há, na Alta Idade Média, uma nítida associação entre propriedade e autoridade: os conflitos em torno dos bens aparecem nos momentos delicados, nos quais esses bens podem ser alienados: doação a um estabelecimento maior, transferência testamentária, divisão entre herdeiros21. E, no interior desses casos, o roubo constitui uma forma radical de ataque à propriedade e à autoridade. As normas que combatem o roubo são instrumentos de recomposição da propriedade, e, também, da autoridade das pessoas sobre as coisas. 18 Le Jan, R. Malo ordine tenent. Transferts patrimoniaux et conflits dans le monde franc (VIIe-Xe siècle). In: Femmes, pouvoir et société dans le haut Moyen Âge, Paris: Picard, 2001: 133; Devroey, J-P. Économie rurale et société dans l’Europe franque (VIe-IXe siècles), t.1, Paris, 2003: 179-180. Para um estudo da laudatio parentum entre os séculos XI e XIII, ver White, S. Custom, Kinship and Gifts to Saints, the “laudatio parentum” in Western France, 1050-1250, Chappel Hill/Londres, 1988. 19 Le Jan, R. Malo ordine tenent. Transferts patrimoniaux et conflits dans le monde franc (VIIe-Xe siècle): 133. 20 Wood, S. The Proprietary Church in medieval West, Londres, 2006: 76. 21 Calvet, G. Compte-rendu The proprietary Church in the medieval west. Annales, HSS, mars-avril 2008 n°2: 406-408.

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A noção de propriedade é, portanto, plenamente compatível com o mundo franco dos primeiros séculos da Idade Média, apesar da transformação nas categorias romanas clássicas acerca das relações entre sujeitos e bens. As principais transformações que se verificam nas relações entre sujeitos e bens desde o século IV podem ser resumidas da seguinte forma: uma confusão acentuada entre possessio e dominium (conjunto de relações de soberania absoluta sobre um bem), a absorção pela possessio dos diversos iura in re aliena (direitos limitados sobre a propriedade de outrem) e o aumento dos prazos de prescrição da propriedade pelo uso de bens. Segundo E. Levy, desde o final da Antiguidade, a propriedade de todas as coisas passou a ser designada pela possessio, que se tornou o denominador comum da lei da propriedade. Na Lex Visigothorum, bem como no Liber Constitucionum, possidere e suas derivações mantiveram sua dupla natureza: significam controle de fato de um bem, entendido como sua longa possessão22, e também as ações para sua 22 Lex Visigothorum X, 3, 4: “Si quis intra terminos alienos per absentiam aut per ignorantiam domini partem aliquam forte possederit1, ita ut diuturna inansio etiam multo tempore inolita vel amplius quam L annos hominum partis eius habitatio publice et inmobiliter consistere aut permanere nullatenus conprobetur, statim cum per antiqua signa evidentibus inspectoribus fines loei alterius cognoseuntur, amittat domino reformandam. Nec contra signa evidentia debitum doininium ullum longe possessionis tempus excludat; sed hoc, si ex his contendentibus unus possessoris sive autorum eius dominmm repperiatur advenisse postremum. Nam si tanta tempora excessenmt, ut nec ipsi nec autores eorum noverint, cuius primum aut dominium aut possessio fuit, et nec per testem nec per scripturam potuerit postremus possessor ostendi, quia dubium prime possessionis constat indicium, iinusquisque quod possidet inrevocabiliter possidebit. Veram ubi unus possessor sine alterius domini mansoribus publice possidens per evidentia signa locum ex integro vindicare videtur, nulla ratio sinit quamvis per longa tempora, ut eius possessionis integritas decerpatur. Unde, si alter illic se per presumtivam introduxerit novitatem, nihil nocere poterit possessori. Si vero idem aliena appetens aliquid ex hoc repetit non presumtive, sed per iudicium, si meretur, obtineat. Nam si incondite et inprovise adtemtet aliquatenus accedere velle, liceat hunc domino vere ut violentum accusare et ut invasorem per iudicium legibus abdicare”; Lex Visigothorum X, 3, 5: “Si quodcumque ante adventum Gotorum de alicuius fundi iure remotum est et aliquam possessionem aut vinditionem aut donationem aut divisionem aut aliqua transactione translatum est id in eius fundi, ad quem a Romanis antiquitus probatur adiunctum, iure consistat. Cum autem proprietas fundi nullis certissimis signis aut limitibus probatur, quid debeat observari, eligat inspectio iudicantium, quos partium consensus elegerit; ita ut iudex, quos certiores agnoverit vel seniores, faciat eos sacramenta prebere, quod terrainos sine ulla fraude monstraverint, et tamen rnullus novum terminum sine consortis presentia aut sine inspectore constituat. Quod si forsitan liber hoc fecerit, damnum pervasionis excipiat, quod legibus continetur. Si vero id servus admiserit domino nesciente, CC flagella publice extensus accipiat, et nullum ex hoc preiudieium domino conputetur”; Lex Visigothorum V, 1.4: “Heredes episcopi seu aliorum clericorum, qui filios suos in obsequiuni ecclesie conmendaverint, et terras vel aliquid ex munificentia ecclesie possederint, si ipsi in laicis reversi fuerint aut de servitio ecclesie, cuius terram vel aliquam substantiam possidebant, discesserint, statim quod possidebant amittant. Sed et de omnibus clericis, qui de rebus ecclesie quecumque possederint servetur liec forcna; ne quamvis longa possessio dominram ecclesie a rebus sibi debitis quandoque secludatj quia et canonum auetoritas ita conraendat. Sed et vidue sacerdotiim vel aliorum clericorum, que iilios suos in obseqiiium ecclesie conmendant, pro sola miseratione de rebus ecclesiasticis, quas pater tenuit, non efficiantur exteri”.

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recuperação23. Se o período clássico considerava, pelo menos teoricamente, o dominium como um direito eterno, que não podia ser transferido depois de certo tempo, desde o reinado de Constantino assiste-se à emergência da noção de proprietas ad tempus – expressão utilizada pelo próprio imperador24. No entanto, E. Levy ignorou um aspecto fundamental da construção da noção de propriedade na Alta Idade Média: se, na legislação civil, as prescrições, adotadas desde o século IV e, no Reino dos Francos, pelo menos desde o século VI, participam da diminuição do raio de ação da propriedade, no que se refere à legislação canônica, algo distinto acontece. Como será observado no capítulo seguinte, assiste-se à construção de uma noção plena e absoluta de propriedade, no contexto do combate à apropriação fraudulenta dos bens eclesiásticos. A legislação real da Alta Idade Média reforçou a preeminência da possessão e da utilização sobre a validade jurídica. A relação direta, material, entre o sujeito e o bem, tende a se sobrepor às relações de direito. Mas isso não significa em hipótese alguma o enfraquecimento do direito de propriedade. Um dos textos que inaugura essa preeminência no mundo franco é o Preceito Clotariano. Os problemas em torno da possessão pelo uso parecem coincidir com os do reinado de Clotário I, na metade do século VI, como se pode observar: [...]Tudo aquilo que for provado que a Igreja, os eclesiásticos ou nossos provinciais possuem durante trinta anos, sem que seus direitos sejam perturbados, permanece em sua possessão sob seu comando, se desde o início a possessão é justa; qualquer ação que permaneceu sepultada por mais do que esse período de tempo não deve ser restabelecido contra a lei, para que sem dúvida a possessão permaneça com seu possuidor de direito” 25. 23 Lex Visigothorum VIII, 1, 2: “Quicumque violenter expiderit possidentem, priusquam pro ipso iudicis sententia procedat, si causam meliorem habuerit, ipsam causam, de qua agitur, perdat. Ille vero qui violentiam pertulit universa in statu, qno fuerant, recipiat quod possedit et securas teneat. Si vero illud invasit, quod per iudicium obtinere non potuit, et causam amittat et aliut tantum, quantum invasit, reddat expulso”; Liber Constitutionum LXXXIII, 1: “Quicumque res aut mancipium aut quodlibet suum agnoscit, a possidente aut fideiuossorem idonem accipiat, aut, si fideiussorem petitum non acceperit, res, quas agnoscit, praesumendi habeat potestatem”. 24 Levy, E. West Roman Vulgar Law. The law of Property: 61. 25 Preceito Clotariano, 8: “Quicquid ecclesia, clerici vel provincialis nostri, intercedente tamin iusto possessionis inicio, per triginta annos inconcusso iure possedisse probantur, in eorum dicione res possessa permaneat, nec actio tantis aevi spaciis sepulta ulterius contra legum ordine sub alequa repeticione consurgat, possessionem in possessoris iure sine dubio permanentem”. Essa disposição, ao mencionar a “ justa possessão” dos bens como uma condição para a legitimidade da propriedade eclesiástica, restringe deliberadamente esta última, abrindo o caminho para reivindicações diversas. É em resposta a essa disposição e às reivindicações dela decorrentes que o canone 1 do III Concílio de Paris deve ter sido redigido: “Competitoribus etiam huiusmodi frenos districtionis imponimus, qui facultates ecclesiae sub specie largitatis regiae improba subreptione peruaserint”. Este é um indício de que O. Guillot tem razão ao atribuir esse preceito a Clotário I.

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Esse trecho trata do usucapio, isto é, uma forma de aquisição de um bem pelo seu uso no decorrer do tempo26. O legislador estabelece duas condições para que o direito à possessão de um bem seja reconhecido: a justiça da possessão e a ausência de questionamento dessa possessão durante um período de 30 anos. A menção à prescrição trintenária, como indica o próprio editor do preceito, é uma modificação em relação à Lex Wisigothorum, que previa uma regra semelhante, mas em um período de vinte anos27. Embora a prescrição de 40 anos esteja prevista no Codex Theodosianus28, foi progressivamente suplantada pela prescrição trintenária, a mais recorrente nas leges bárbaras. Esta última está prevista no Decreto de Childeberto II29, nas Formulae Andecavenses30, nas Formulae Turonensis31 e na Lei dos Lombardos, ao passo que a prescrição de 40 anos é aplicada em um único caso, também na Lei dos Lombardos. 26 Levy, E. West Roman Vulgar Law. The law of Property: 179: “The usucapio as an institution of the practice is, I see it correctly, not traceable any more during the period between Diocletion and Justinian. The term neither occurs in the Codew Theodosianus or the subsequent Novellae, nor in the Epitome Gai or the Interpretatio, nor in the Ostrogotic, Visigothic, or Burgundian codifications. It does not appear either in the constitutiones of these centuries incorporated in the Codex Justinianus”. 27 Lex Wisigothorum, V, 24, interpretatio: “Vinginti annuorum non requisitam possessionem, si tamen iustum possidendi initium intercessisse probatur, possessori prodesse certum est”. 28 Codex Theodosianus IV, 11, 2: “Impp. Constantius et Constans aa. Argyrio praesidi. Annorum quadraginta praescriptio, quam vetustatem leges ac iura nuncupare voluerunt, admittenda non est, cum actio personalis intenditur. Quare in praesenti et in ceteris causis id potissimum servabis atque custodies, nisi iure veteri comprehensum sit actionem, quae movetur, propter vetustatem non debere moveri. Sed quamvis actio pecuniae postulatae exceptione temporis non finiatur, iudex tamen debet inspicere, quae temporis intervalla nullis iustis causis exsistentibus fluxerint, et instrumenti vetustatem, ut diligentius his consideratis ex officio iudicantis, quid pronuntiari super huiusmodi actionibus oporteat, aestimetur. Dat. x kal. iul. Limenio et Catullino conss”. 29 Decretio Childeberti, 3: “Similiter Treiecto conuenit nobis, ut seruo, campo aut qualibet re ad unum ducem uel iudicem pertinentem per x annos quicumque inconcusso iure possedit, nullum habeat licentiam intertiandi, nisi tantum causa orfanorum usque xx anno licentiam tribuimus. Si quis super hoc iudicium presumpserit intertiare, soledos xv soluat et rem intertiatam amittat. De reliquis uero conditionibus omnes omnino causas tricinaria lex excludit, preter id quod rixa huncusque detenuit”. 30 Formulae Andecavenses, 10A: “...Ut hoc inter se intenderent, ut dum ipsi illi alius homines de sua agnacione non redebebat, sic visum fuit ipsius abbati vel quibus meus aderant, ut ipsi homo aput homines 12, mano sua 13, in basileca domne illius in noctis tantis coniurare deberet, quod de annus 30 seu amplius servicium ei nonquam redebibet”. 31 Formulae Turonensis, 39: “...Interrogatus ille ante ipsos viros taliter dedit in responsis, quod ipsam hereditatem, quam ipse contra eum repetebat, genitor suus, vel quilibet parens, ipsam ei moriens dereliquerat, et de annis 30 inter ipsum et parentes suos, qui ipsam ei dereliquerant, ipsam tenuissent, et secundum legem ei si debita. Dum sic intenderent, sic ipsi viri memorato homine decreverunt iudicium, ut in noctes tantas, quod evenit die ille, apud homines tantos, sua manu tanta, in basilica sancti illius, in loco nuncupante illo, taliter debeat coniurare, quod ipsam hereditatem, quam ipse homo contra ipsum repetebat, per annos 30 inter ipsum et memoratos parentes suos, qui ipsam hereditatem morientes ei dereliquerant, semper ipsam tenuissent, et per ipsos annos 30 secundum legem plus sit ipsa hereditas ei habendi debita quam ipso homini reddendi”.

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A regra da prescrição se afasta de um dos princípios essenciais, consagrados pelo direito individual e exclusivo à propriedade: o direito de dispor de um bem, decidir em relação a ele, quer se disponha ou não dele no sentido material. O imperativo da utilização dos bens neutraliza a ideia de um direito abstrato, diminuindo o raio de ação do proprietário sobre eles e reduzindo-o, nesse caso específico, ao domínio daquilo que é visível a todos, isto é, o contato direto do sujeito com os bens. A afirmação do usucapio na legislação real da Alta Idade Média consagra o imperativo da potestas na definição da propriedade e de seus direitos. Isso não significa, como pretendia L. Halphen em um artigo publicado nos anos 1950, que os bárbaros eram incapazes de compreender as abstrações (ele se referia à res publica). Mesmo porque a afirmação do usucapio começa no Direito romano tardo-antigo. Essa prática realça os atributos de arbitragem do poder real, cuja propensão é concentrar em seus tribunais as resoluções das disputas. Mas ela também reforça a figura do possessor dos bens, em detrimento do seu proprietário. Note-se que o usucapio impõe o critério da publicidade da reivindicação: se esta última não for apresentada em público, não possui valor legal. É possível notar, assim, a importância do espaço público na prática judiciária da Alta Idade Média. As reivindicações e as contestações à propriedade de um bem – usucapio –, bem como sua transferência legítima – a doação às igrejas32 ou à esposa –, mesmo quando acontecem no interior da casa, devem ser executadas diante de testemunhas, em público. A importância de um ato concluído diante de um público e em local público aparece claramente, aliás, no caso do duário. Claramente, há relação com a necessidade de melhor organizar as disputas sobre os bens tratadas pelos tribunais. No entanto, assiste-se igualmente a uma extensão do espaço público (inclusive em direção ao interior das casas), que não se pode dissociar do fortalecimento da própria autoridade pública33. As leges bárbaras Entre os textos fundamentais do Direito nos reinos bárbaros, encontram-se as leges, os resumos e os comentários das leis romanas, os cânones conciliares, 32 As doações às igrejas deviam ser feitas em casa e na presença de testemunhas legítimas. É o que prevê, por exemplo, o Capitular legibus additum, de 803: “Qui res suas pro anima sua ad casam Dei tradere voluerit, domi traditionem faciat coram testibus legitimis; et quae actenus in hoste factae sunt traditiones, de quibus nulla est quesito, stabilis permaneant. Si vero aliquis alii res suas tradiderit et in hoste profectus fuerit, et ille cui res traditae sunt interim mortuus fuerit, qui res suas tradidit, cum reversus fuerit, adhibitis testibus coram quibus traditio facta est res suas recipiat; si autem et ipse mortuus fuerit, heredes eius legitimi res traditas recipiant”. 33 Sobre o tema do espaço público na Alta Idade Média, ver Cândido da Silva, M. O público e o privado nos textos jurídicos francos, Varia Historia 26, 2010: 29-48.

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os editos, os preceitos e os formulários. Além disso, alguns textos produzidos entre o final do século V e o início do século VI apresentavam resumos e comentários das leis romanas, especialmente o Codex Theodosianus. Tal é o caso do Breviário de Alarico – também conhecido como Lei Romana dos Burgúndios – e do Código de Eurico – ambos promulgados pelo rei dos visigodos Alarico II – e do Edito de Teuderico. Pode-se citar, igualmente, os editos e os preceitos publicados pelos reis francos e visigodos, reunidos no Liber Iudicorum. Há também formulários, isto é, modelos para a redação de atos públicos ou privados, compostos na Espanha e Gália até o século IX. Finalmente, os cânones conciliares, que fixavam as regras de conduta dos clérigos e se pronunciavam igualmente sobre as disputas que os opunham aos laicos, bem como sobre a organização da sociedade – por exemplo, a obrigatoriedade do repouso aos domingos. Escritas em latim, as leges bárbaras foram publicadas e, algumas vezes, reeditadas entre os séculos VI e IX. A mais conhecida das leges, o Pactus legis Salicae, é também a mais polêmica, tanto do ponto de vista da datação quanto da autoridade. Os historiadores do século XIX o viam como uma espécie de “constituição” do Reino dos Francos. Os historiadores de hoje são menos otimistas, e colocam em questão a eficácia e mesmo a validade desse texto. Segundo I. Wood e R. Le Jan, é pouco provável que o Pactus contivesse toda a lei franca; segundo eles, boa parte permanecia oral. O Pactus legis Salicae não era a “constituição dos francos”, mas apenas uma peça do mosaico do qual faziam parte os cânones conciliares, os editos e os preceitos reais, bem como os formulários e os diplomas. Daí o interesse deste trabalho pelo estudo comparativo do Pactus e dos cânones conciliares. Na metade do século VII, havia no Reino dos Francos a ideia de que um povo, soberano ou submetido, tinha sua lex, enquanto a lei de Roma estaria na Igreja34. Daí a intensa atividade legislativa que se desenvolveu nesse período, e da qual resultou a publicação, pelos reis francos, de várias leges inspiradas no Pactus legis Salicae. A Lex Ribuaria (Lei Ripuária) foi promulgada entre o final do século VI e o reinado de Dagoberto I (629-639). Essa promulgação ocorreu em um momento de intensa atividade legislativa dos reis merovíngios, após o final das 34 Lex Ribuaria 61, 1: “Hoc etiam iubemus, ut qualiscumque francus Ribuvarius seu tabularius servum suum pro animae suae remedium seu pro pretium secundum legem Romanam liberare voluerit, ut eum in ecclesia coram presbyteris et diaconibus su cuncto clero et plebe in manu episcopi servo cum tabulas tradat, et episcopus archidiacono iubeat, ut ei tabulas secundum legem Romanam, quam ecclesia vivit, conscriberet faciat ; et tam ipse quam et omnis procreatio eius liberi permaneant et sub tuitione ecclesiae consistant vem omnem reditum status eorum ecclesiae reddant. Et nullus tabularium aut servum tabularii denariare ante regem praesumat. Quod si fecerit, ducentos solidos culpabilis iudicetur et nihilominus ipse tabularius et procreatio eius tabularii persistant, et omnis reditus status eorum ad ecclesiam reddant; et non aliubi quam ad ecclesiam, ubi relaxati sunt, mallum teneant”.

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guerras civis, o triunfo da realeza cristã e a reunificação do Reino dos Francos (613). Dos 89 títulos dessa lex, os 38 primeiros títulos indicam uma nítida influência do Pactus legis Salicae, mas apresentam valores ligeiramente mais elevados para as compensações; os títulos XXXIX-LIV repetem por extenso o Pactus, e os títulos LV-LXXXIX foram acrescentados no início do período carolíngio. Mesmo tendo sido composta a partir do modelo da Lei Sálica, a Lex Ribuaria tem características próprias, como a influência acentuada da Lei Romana dos Burgúndios e a recorrência dos temas ligados à Igreja, por exemplo, as multas pelo assassinato dos bispos. Desta época datam igualmente o Edito de Paris (614), o Pactus legis Alamanorum. O antigo Reino dos Burgúndios, anexado ao Reino dos Francos em 534, era o território de duas leis, a Lei Romana dos Burgúndios e a Lei dos Burgúndios (ou Liber Constitutionum). A primeira tratava, sobretudo, de delitos, doações, direito das pessoas e direito da família. A segunda era um código territorial que colocava em igualdade os burgúndios e os galos-romanos. Publicada sob o reinado de Gondobaldo († 516) e redigida, como o Pactus legis Salicae, por jurisconsultos romanos ou pelo menos por personagens conheciam o Direito romano, o Liber constitutionum foi revisado e ampliado pelos últimos reis burgúndios. Após a integração da Burgúndia no Reino dos Francos, o Liber continuou a ser utilizado, pelo menos até o século IX. A Lei Romana dos Burgúndios, ou Breviário de Alarico, também exerceu influência sobre a legislação franca, sobretudo no que se refere ao Preceito Clotariano, examinado anteriormente. O Liber Constitutionum, ou Lex Gundobada, foi transmitido através de treze manuscritos, nove dos quais anteriores ao século IX. Cinco desses manuscritos têm um texto de 105 títulos, os restantes, 88 títulos ou adições em números variáveis. Essa lex não foi composta de uma só vez: evidências internas ao texto mostram que os 88 primeiros títulos constituem a versão mais antiga da lei. Os títulos restantes, até o 105, bem como as Constitutiones Extravagantes, são adições posteriores, que os especialistas creem terem sido feitas sem uma aprovação oficial do monarca. Embora sua datação ainda seja motivo de debate, não parece provável que a lex tenha sido publicada antes do início do reinado de Gondobaldo, em 474. Dada a influência da Lex Visigothorum na Lex Gundobada, e o fato de que a primeira foi compilada em sua forma primitiva em 483, durante o reinado de Eurico, é provável que a redação da segunda tenha ocorrido após essa data. Assim, acredita-se que os títulos II-XLI tenham sido compilados entre 483 e 501; a segunda parte, os títulos XLII-LXXXVIII, entre 501 e 507; e a última parte, os títulos LXXXIXCV e as Constitutiones Extravagantes, durante o reinado de Clodomar (524532) ou após a anexação do Reino dos Burgúndios ao Reino dos Francos35. 35 Fischer-Drew, K. Introduction. In: The Burgundian Code. Book of Constitutions or Law of Gundobad. Additional Enactements, Filadélfia, 1972 (1.ed., 1949): 6-7.

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Outras leges, inspiradas do Pactus legis Salicae, foram estabelecidas pelos reis francos nos territórios conquistados na Germânia: tanto a Lei dos Alamanos quanto a Lei dos Bávaros foram publicadas em duas versões, uma primeira do início do século VII e uma segunda que datava da primeira metade do século VIII. Embora o Ducado dos Alamanos tenha sido incorporado ao Regnum Francorum somente em 730, desde o final do século V, após a batalha de Tolbiac, a história dos alamanos esteve integrada à história franca. No início do século VII, a primeira redação das leis alamanas, o Pactus legis Alamanorum, foi promulgada durante o reinado de Clotário II, muito provavelmente após a unificação do Reino dos Francos em 613. Uma segunda redação, chamada de Lex Alamanorum, foi realizada entre 717 e 719, sob o reinado de Clotário IV. Dessa redação deriva a tradição manuscrita chamada Lex Alamanorum Hlotarii. Há também a Lex Alamanorum Lantfridana (do duque alamano Lantfrid, que dirigiu a redação dessas leis antes da anexação do Ducado dos Alamanos) e a Lex Alamanorum Karolina (que corresponde à revisão feita por Carlos Magno em cerca de 788). Os 22 primeiros tratam de assuntos eclesiásticos, os títulos XXIII-XLIII dizem respeito à justiça ducal, e os títulos XLIV-LXXXXVIII, tratam “das disputas que ocorrem comumente entre o povo” (“De causis, qui saepe solent contingre in populo”). Da mesma forma que a Alamânia, a Bavária foi integrada ao Regnum Francorum na metade do século VIII. Data desta época a promulgação da Lex Baiuvariorum, mais precisamente entre 744 e 748. O mais antigo manuscrito dessa lei, conhecido como manuscrito de Ingolstadt, do início do século IX, possui 23 títulos (outros manuscritos apresentam um número maior ou menor de títulos). Cada um desses títulos é dividido em vários capítulos, que somam no total, no manuscrito de Ingolsdat, 273: o título I trata da propriedade eclesiástica, os títulos II e III tratam da justiça ducal, e os títulos IV-XXIII contêm, sobretudo, disposições criminais e familiares. A divisão dos temas é muito semelhante à adotada pelas leis alamanas. Além disso, dos 273 capítulos da Lex Baiuvariorum, 100 possuem uma grande similaridade com a Lex alamanorum. No início do século IX, Carlos Magno promoveu uma revisão da Lei Sálica e a publicação da Lei dos Frisões, da Lei dos Turíngios e da Lei dos Saxões36. Nesse período, se encerra a história das leges bárbaras. A edição dessas leis foi principalmente obra dos Monumenta Germaniae Historica. As numerosas fórmulas jurídicas escritas em língua germânica (e que remetem às “Glosas Malbérgicas”, sem que se saiba ao certo o que elas significam) e o princípio da reparação pecuniária paga à vítima ou à sua família levaram seus redatores a verem as leges como expressão escrita de um “Direito germânico”. A ideia de um “Direito germânico”, e mesmo a utilização do termo germânico para qualificar essas leges e os povos que lhe 36 F.-L. Ganshof considera que as capitulares são mais importantes na obra legislativa de Carlos Magno do que a redação e a revisão das leges, Recherches sur les capitulaires, Paris, 1958: 2, n.2.

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são associados (francos, visigodos, burgúndios, alamanos, bávaros e frisões), trazem inúmeros problemas. Os trabalhos sobre a etnogênese mostraram que a ideia de uma “Germânia unida”, cujos costumes e instituições teriam presidido a formação dos reinos bárbaros, é um mito historiográfico engendrado no século XIX. A influência romana sobre as leges é indiscutível: foram redigidas em latim, por jurisconsultos, ou especialistas do Direito romano, sob a forma de codificações inspiradas do Direito romano tardio. Segundo W. Pöhl, os nomes de pessoas, as narrativas, os mitos de origem e as leges da Alta Idade Média eram componentes de uma estratégia de distinção, cujo objetivo era justificar a existência de um grupo étnico (a gens) com uma reivindicação exclusiva de poder sobre parcelas do Império Romano. Assim, as bases “multiétnicas” dos reinos bárbaros teriam sido transformadas em uma identidade singular, expressa pelo nome do reino e pela ação das leis bárbaras. As distinções iniciais entre os povos, menos fortes do que geralmente se supõe, teriam sido cristalizadas, em razão de uma aculturação recíproca. Nesses reinos, onde cada povo deveria, teoricamente, preservar sua lei, as leges não se aplicavam apenas aos bárbaros, mas a todos os habitantes, segundo critérios territoriais. Dos 88 primeiros títulos do Liber Constitutionum, apenas 4 tratam diretamente do roubo; nas continuações, do título LXXXIX ao CV, 8 outros abordam o assunto. Na Lex Alamanorum, 21 títulos tratam do roubo de bens da Igreja e outros que não são da Igreja, num total de 105 títulos. Dos 273 capítulos da Lex Baiuvariorum, 29 dizem respeito diretamente ao roubo, 3 dos quais abordam os bens eclesiásticos. A Lex Ribuaria dedica 11 de seus 89 títulos ao roubo, ao passo que a Lex Visigothorum, de um total de 10 livros, dedica um, o livro VII, ao roubo e às fraudes. O Pactus legis Salicae é, de todas as leges, aquela que mais trata do combate ao roubo, objeto de cerca de 1/3 de seus títulos (II, III, IV, V, VI, VII, VIII, X, XI, XII, XXI, XXII, XXVII, XXIII, XXXIV, XXXV, XXXVIII et XL): os sete primeiros dizem respeito ao roubo de animais (porcos, gado, carneiros, cabras, cachorros, aves e abelhas); o título X trata do roubo de escravos e outros animais; o XI, de roubo e invasão de casas por escravos; XII, roubo e invasão de casas por homens livres; XXI, roubo de barcos; o título XXXIV, roubo de cercas; XXXV, assassinato e roubo de escravos; XXXVIII, roubo de cavalos e jumentos; e, finalmente, o título XL, trata da acusação de roubo contra escravos. Os editos e preceitos reais merovíngios também tratam de roubo, especialmente o Pactus pro Tenore Pacis (títulos I, II, III, IV, V, IX, X, XVI e XVII), o Edictum Chilperici (título VIII) e o Decretio Childeberti (títulos III, VII, XI, XII e XIII). O roubo dos bens eclesiásticos não é tratado pelo Pactus, mas aparece como tema recorrente nos cânones conciliares dos séculos VI e VII, bem como em outras leges (na Lex Alamanorum, o roubo de bens da Igreja é objeto de 5 títulos, na Lex Baiuvariorum, 3 títulos). O Pactus legis Salicae será a principal lex abordada neste estudo, por seu papel central na organização jurídica do mundo franco,

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por ter servido como modelo para as outras leges publicadas entre os séculos VII e VIII, e pela importância que nela se dá ao roubo. A análise do Pactus, no entanto, traz vários problemas aos historiadores: além das polêmicas sobre datação e autoridade, há lacunas, imprecisões e, sobretudo, dúvidas sobre a utilização efetiva desse texto na prática jurídica franca. Os estudos sobre a etnogênese mostraram que a lei serve, também, para a identidade de uma comunidade, e, se for levado em conta o que afirmam alguns especialistas do tema, foi esse o caso da Lei Sálica37. P. Wormald estima que, se o Pactus legis Salicae permaneceu inalterado ao longo do período franco, é porque era veículo de tradição, e seu objetivo não era de se adaptar às transformações da sociedade38. Texto normativo e literário conservado pelos meios eclesiásticos39, “documento de antiquário” que simbolizava a antiguidade e a legitimidade do Império franco40, lei escrita que servia para clarificar e completar a lei oral41, a Lex Salica também aparece em vários trabalhos como uma construção ideológica do período carolíngio. Todavia, há alguns indícios de uma relação estreita entre a Lei Sálica e a prática jurídica dos reinos bárbaros: primeiramente, o grande número de adições e cortes presentes nas diversas tradições manuscritas, que fazem pensar em sinais da utilização desses textos; em segundo lugar, as crônicas e as histórias fazem referência às leges: por volta de 575, Gregório de Tours arbitrou conflitos em sua cidade, tendo como referência de sua ação a lex. Segundo ele, foi decidido que o culpado deveria pagar metade da composição, contrariamente ao que estabelecia a lei - “et hoc contra legis actum” – para que a paz fosse restabelecida42. Além disso, um juiz, Evrard de Frioul, possuía em 37 Uma das melhores introduções à questão da etnogênese é o artigo de W. Pöhl: “Aux origines d’une Europe ethnique. Transformations d’identité entre Antiquité et Moyen Age”, Annales H.S.S., 60/1 (2005): 183-20. Um bom exemplo de postura crítica em relação à etnogênese é o livro de M. Coumert, Origines des peuples. Les récits du Haut Moyen Âge (550-850), Paris, 2007. Concentrando seu estudo nos diversos relatos de historiadores bárbaros, a autora afirma que não havia um consenso entre os diversos grupos étnicos acerca de uma origem ou de uma tradição comuns: “Le passé s’avère au contraire l’objet de la cristallisation des oppositions contemporaines, chaque récit se faisant l’écho des prétentions d’un clan au pouvoir en les projetant dans le passé. Aucune norme de vie, aucun culte commun ni aucune législation n’étaient directement rattachées aux récits d’origine” (: 535). 38 Wormald, P. The leges barbarorum: Law and Ethnicity in the Post-roman West. In: Goetz, H-W., Jarnut, J., Pöhl, W. Regna and Gentes. The Relationship between Late Antique and Early Medieval Peoples and Kingdoms in the Transformation of the Roman World, Leiden/Boston, 2003: 21 e 33. 39 Wallace-Hadrill, J-M. Archbishop Hincmar and the Authorship of Lex Salica. The Legal History Review, 21/, 1940:1-29. 40 Murray, A.C. Kinship and Lex Salica. In: Germanic Kinship Structure. Studies in Law and Society in Antiquity and the Early Middle Ages, Toronto, 1983:115-134. 41 Anderson Jr. T. Roman military colonies in Gaul, Salien Ethnogenesis and the forgotten meaning of Pactus legis Salicae 59.5., Early Medieval Europe, 1995 (4/2): 129-144. 42 Gregório de Tours, Histórias VII, 47: “Tunc partes a iudice ad civitatem deductae, causas proprias prolocuntur; inventumque est a iudicibus, ut, qui nollens accepere prius conpositionem

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sua biblioteca, vários exemplares das leges, cuja lista está em seu testamento, redigido por volta de 865: a Lei Sálica, a Lei Ribuária, a Lei dos Alamanos, a Lei dos Lombardos e a Lei dos Bávaros. Apesar das diferentes respostas dadas pela historiografia à questão da aplicação ou não do Pactus legis Salicae, os historiadores estão de acordo para reconhecer que o poder real está na origem da edição do texto, no início do século VI43. As medidas previstas pelo Pactus, qualquer que tenha sido a extensão de sua aplicação ou mesmo sua eficácia, refletiam em ampla medida o ponto de vista da autoridade real franca. As nuanças entre as diferentes tradições manuscritas – especialmente entre a tradição “A” e a tradição “C” – ainda são objeto de polêmicas, e não podem ser apresentadas como prova da utilização do Pactus no Reino dos Francos no século VI44. Por outro lado, há referências explícitas à Lex Salica nos textos reais do século VI: o Edito de Chilperico e o Pactus pro Tenore Pacis, ambos, textos que reservam um lugar importante ao roubo45. A questão fundamental neste trabalho não é saber se o Pactus tinha ou não relação com as práticas sociais do mundo franco, mas em que medida a qualificação jurídica do roubo nele estabelecida está presente em textos de outra natureza (cânones conciliares, hagiografias, histórias), através dos esquemas de qualificação jurídica, independentemente da imposição de normas sob a forma da coerção. domus incendiis tradedit, medietatem praetii, quod ei fuerat iudicatum, amitteret - et hoc contra legis actum, ut tantum pacifici redderentur - aliam vero medietatem conpositionis Sicharius redderet. Tunc datum ab aeclesia argentum, quae iudicaverant, accepta securitate, conposuit, datis sibi partes invicem sacramentis, ut nullo umquam tempore contra alterum pars alia musitaret. Et sic altercatio terminum fecit”. 43 Fischer-Drew, K. The law of salian franks: 29; Guillot, O. Observations sur la souverainité du roi mérovingien en matière de justice”: 275; Wormald, P. Lex Scripta and Verbum Regis. :108; Wood, I. Disputes in late fifth- and sixth- century Gaul: some problems: 10; McKitterick, R. The Carolingians and the written word: 40; Geary, P. Naissance de la France: Le monde mérovingien:112-114. 44 Em sua edição de 1962, K.-A. Eckhardt atribue a tradição “A” ao reinado de Clóvis, enquanto que a tradição “C” seria datada, segundo ele, do reinado de Gontrão, em um período anterior à publicação do Decreto de Childeberti II, em 596. A datação da tradição “C” resulta das semelhanças ressaltadas por Eckhardt entre o título XIII:1 do Pactus com o cânone 20 do II Concílio de Tours (567) - que legislava sobre o casamento entre os membros de uma mesma família - e das semelhanças formais entre o Prólogo curto do Pactus e o Pacto de Andelot, de 587. Essa opinião foi duramente criticada por A.C. Murray, em seu artigo Kinship and Lex Salica: 115-134, especialmente: 126-127. 45 A.C. Murray crê que o Pactus legis Salicae, em sua primeira redação, era o reflexo da lei no início do século VI (Kinship and Lex Salica: 133): “The text may have suffered severely in the course of transmission: it may have been subject for a long time to all kinds of revisions, emendations and additions, some of considerable merit, others of none. Yet there can be no doubt that in the earliest redaction, whatever he circumstances and purpose of its compilation, one can still find a reflection of the living law of the early sixth century”. Mas o autor não nos dá nenhuma pista de como ele conseguiu estabelecer essa relação.

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O que significa a lista de roubo de animais e terras que aparece nos primeiros títulos do Pactus? Poderia indicar a importância central da criação de animais, em relação à agricultura na sociedade franca, mas é preciso ser prudente, pois não se está diante de uma descrição exaustiva dessa sociedade. A ausência de menções à nobreza franca, à Igreja, às cidades, ou ao mar, mostra, inclusive, que a Lei Sálica não é um espelho da situação na Gália, em sua totalidade e complexidade46. P. Wormald tem razão, nesse sentido, ao destacar o papel ideológico desse texto. No entanto, o Pactus não era apenas um veículo de transmissão de uma visão ideal da sociedade franca. Seria um erro subestimar sua pretensão de ser instrumento de construção da sociedade. Não há correlação estreita entre o universo das práticas sociais e os elementos descritos no texto, na medida em que esses elementos eram mecanismos de intervenção e transformação dessas práticas. Assim, se nos primeiros títulos do Pactus, o roubo de animais precede o roubo ou a invasão de terras, não é necessariamente porque os animais possuem valor mais alto do que as terras: como será estudado mais adiante, o valor dos bens roubados não é levado em conta na punição do ladrão. O maior número de títulos consagrados ao roubo de animais poderia significar, talvez, que, mesmo que esses últimos ocupassem um lugar menos importante do que as terras na escala de valores comerciais, o roubo de animais causava maior número de disputas, constituindo, portanto, uma prática que merecia regulamentação mais detalhada do que o roubo de terras. No entanto, esse tipo de roubo ocupa lugar de destaque nos testamentos e cânones conciliares. A precedência do roubo de animais pode significar, inclusive, que o legislador escolheu, nesse texto em particular, legislar prioritariamente sobre essa modalidade de ataques aos bens. O texto do Pactus legis Salicae indica a importância da pacificação no tratamento da ação criminal (actio criminalis)47. É o que pode ser constatado no “Prólogo curto”, redigido entre o fim do século VII e o início do século VIII: [...] Foi decidido e acordado, com o auxílio de Deus, entre os francos e seus grandes, como se deveria zelar pela observância da paz entre todos para suprimir o crescimento das disputas, e por se destacarem dos povos vizinhos por seu braço forte, [os francos] também devem se destacar por suas leis, e dessa maneira eles conduzirão as ações criminais a um fim de acordo com a natureza das disputas48. 46 É o que mostrou Siems, H. La vie économique des Francs d’après la Lex Salica. : 612. 47 Cândido da Silva, M. Paz e violência no Pactus legis Salicae, In: Oliveira, J.C.M., Selvatici, M. Textos e representações da Antiguidade: Transmissões e Interpretações, Maringá, 2012: 91-113. 48 “Placuit auxiliante Domino atque conuenit inter Francos atque eorum proceribus, ut pro seruandum inter se pacis studium omnia incrementa rixarum resecare deberent, et quia ceteris gentibus iuxta se positis fortitudinis brachio prominebant, ita etiam eos legali auctoritate praecellerent, ut iuxta qualitate causarum sumerent criminalis actio terminum”.

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Essa ênfase na pacificação é a mesma encontrada nas hagiografias examinadas no capítulo anterior. Tanto as vitae francas, quanto o Pactus legis Salicae, e as outras leges bárbaras pertencem a um ambiente jurídico preocupado com a solução de controvérsias a partir do acordo entre as partes em litígio. Isso não inviabiliza a punição, tampouco a vitória de uma parte sobre a outra, afinal, os santos sempre triunfam sobre os ladrões: a pacificação nas hagiografias equivale à devolução dos bens roubados e ao arrependimento daqueles que praticaram o ato. A devolução dos bens também é o objetivo perseguido pelos títulos do Pactus que tratam do roubo. Há outro ponto em comum entre o Pactus e os textos hagiográficos: os bens roubados não são importantes na qualificação e no tratamento das ações criminais. Colocando-se em paralelo o Prólogo curto e os títulos seguintes, será possível constatar que as ações criminais são levadas a termo em função da natureza das disputas que delas resultam. Isso não significa que o valor dos animais fosse completamente desprezado: aquele que rouba três cabras ou mais deve pagar uma multa inferior49 à multa paga por aquele que rouba mais do que trinta cabras50; ou ainda, aquele que rouba uma leitoa com seus filhotes51 deve pagar uma multa maior do que aquele que rouba somente os filhotes52. Todavia, e de modo geral, o valor dos bens não é o eixo em torno do qual os diversos títulos sobre o roubo são ordenados e materialmente hierarquizados, mesmo porque o roubo de diferentes tipos de animais é punido com multa de valor semelhante. Admitir que os valores das multas correspondiam aos valores reais dos bens roubados significaria que um porco e um bezerro possuíam o mesmo valor, o que não era o caso53. Essa identidade de valores significa somente que o legislador considera que o valor da multa pelo roubo de um porco deve ser o mesmo que para o roubo de um bezerro, nada mais. As normas previstas nesse texto não se aplicam diretamente aos vários casos de roubo de animais, infinitamente diversos e polimorfos; e também não se endereçam 49 Pactus legis Salicae IV, 3: “Certe si tres (aut amplius) furauerit