Um escandaloso theatro de horrores: a capitania do Ceará sob o espectro da violência

582 117 5MB

Portuguese Pages [142] Year 2010

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD FILE

Polecaj historie

Um escandaloso theatro de horrores: a capitania do Ceará sob o espectro da violência

Citation preview

UM ESCANDALOSO THEATRO DE HORRORES A capitania do Ceará sob o espectro da violência

·'

•.. •'·:1'·)1 'l)'.i\!r~ José Eudes Arrais Barroso Gomes

Vencedor do Concurso de Melhor Monografia do Centro de Humanidades/UFC/2007

Fortaleza 2010

Mapal CARTA MARÍTIMA E GEOGRÁFICA DA CAPITANIA DO CEARÁ (1817)

PROGRAMAÇÃO VISUAL E DIAGRAMAÇÃO

Thiago Nogueira

G 612 e Gomes, José Eudes Arrais Barroso Um Escandaloso Theatro de Horrores: a capitania do Ceará sob o espectro da vioência. I José Eudes Arrais Barroso Gomes. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2010.

283 p. 1. Ceará-história 2.Violência-crime-história-Ceará 1. Título CDD: 981.31

Fonte: PAULET, Antônio José da Silva. CARTA Marítima, e Geographica da capitania do Ceará. Levantada por ordem do Gov. Manuel Ign. de Sampayo, por seu ajud ante d'ordens Antônio José da S. ª Paul.et, 1817. Gabinete de Estudos Arqueológicos e de Engenharia Militar, 4578-lA-lOA-53.

...andei em diligências do serviço de Vossa Majestade, e tendo ouvido sobre esta matéria pessoas de grandes experiências e feito sobre elas as reflexões que podem caber na minha capacidade, julguei que faltaria a minha obrigação, se deixasse de representar a Vossa Majestade que ainda nestes sertões do Ceará há absurdos, e que não há para a diferença que tem das mais capitanias outro motivo, que a falta de observância das leis e ordens de Sua Majestade. Antônio José Victoriano Borges da Fonseca, capitãomor do Ceará, 1767. · Em toda esta Capitania se supunhão os homens na liberdade natural, cometendo todo o gênero de atroádades e despotismos, tendo só por lei a sua vontade, e por melhor direito a maior força: ninguém se admira que morra um, ou muitos homens a tiro de espingarda ou de bacamarte, e menos que acabe na ponta de uma faca, nos fios de uma espada ou a pauladas, porque isso é coisa muito ordinária, nem é necessário que o morto ofendesse o matador, por que este por um módico preço não recuza ser verdugo, e satisfazer paixões particulares de outrem por ser a solidão deste numeroso continente acomodada para todo o gênero de iniquidades ... ...se não olha para parte alguma desta Capitania, em que se não vejão roubos, adultérios, estupros, e assassínios ... João Baptista Azevedo Coutinho de Montaury, capitão-mor do Ceará, 1783.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃ0 .... ...... ..... ............ ....................................... 13 1 INTRODUÇÃO ............... ···: ... ............. ................. ............ ... 17 2 OS CAMINHOS DO GADO: A EXPANSÃO DA PECUÁRIA E A COLONIZAÇÃO DOS SERTÕES CEARENSES ........ ................................. ..... .......... 21

2.1 As lutas ........................................................................... 22 2.2 As terras .......... ................................ ............................... 31 2.3 Os nomes ................ ........................................... ............. 35 2.4 As lidas ...... ..................................................................... 43 3 OLHARES ESTRANGEIROS: IMAGENS DA VIOLÊNCIA, IMAGENS DA PERMANÊNCIA .............. .. .............. .... ............. ..... ....... ......... 51

3.1 George Gardner: Ceará, terra sem lei ........... ........... 51 3.2 Henry Koster: violência e poder ............................... 63 4 UM ESCANDALOSO THEATRO DE HORRORES: A CAPITANIA DO CEARÁ SOB O ESPECTRO DA VIOLÊNCIA .............................................. .............. ...... ......... .77

4.1 Vagabundos e ladrões, assassinos eJacinorosos ... 79 4.2 Cotidiano em armas: o disseminado uso de armas e sua proibição ................................................................... 127 4.3 Atentados à propriedade: o abominável roubo de gados .................................. :................................... 145

4.4 Vidas por um fio: as querelas do cotidiano e os termos de segurança de vida .......................................... 164 4.5 A justiça em ruínas: a trama das cadeias públicas .. 178 S AS PATERNAIS PROVIDÊNCIAS D'EL REY:

REFORMAS E CONTROLE SOCIAL NOS SERTÕES ..... 193 5.1 Vilas para os "vagamundos", diretórios para os índios ... e dízimos para EI Rey ....................................... 195 5.2 Alistamentos, passaportes e licenças: população volante e deserção ......................................... 207 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................... 229 ANEXOS ................................................................ .-............... 233 FONTES ......................... ..... ........................ ......................... 247 . BIBLIOGRAFIA .................................................................. 269

Abreviaturas 1

Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Arquivo Histórico Ultramarino. Lisboa. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Arquivo Público do Estado do Ceará. Fortaleza. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Biblioteca Central da Universidade de Coimbra. Coimbra. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. DHBC Documentos para a História do Brasil e especialmente a do Ceará (Col. Studart). IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro. MACC Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil. Revista do Instituto do Ceará. RIC RIHGB Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Sesmarias Cearenses se

ABN AHU ANRJ APEC BNRJ BCUC DH

Quadros Quadro 1 Distribuição de sesmarias na capitania do Ceará ... 31 Quadro 2 Fundação de vilas na capitania do Ceará............... 203 Quadro 3 Ordens de mostras militares na capitania do Ceará (1766-1789) .......................................... 217

Mapas Mapa 1 Carta marítima e geográfica da capitania do Ceará (1817) ....................................................... ... 5 Mapa 2 Entradas de conquista do interior das capitanias do norte............................................................. 25 Mapa 3 Capitania geral de Pernambuco e suas anexas63 Mapa 4 Planta da vila de Fortaleza em 1726 ....................... 88

Iconografia Figura 1 Figura 2 Figura 3 Figura 4 Figura 5 Figura 6 Figura 7

Representação do sertanejo ......................... ....... ~ ... 70 Armas de fogo: séculos XVI, XVII e XVIIIl .......... 132 Armas de fogo : século XIX ................................... 132 Espadas: séculos XVII, XVIII e XIX ....................... 135 Lanças: séculos XVII, XVIII e XIX ......................... 135 Marcas de gado usadas no Ceará ................... ...;... 158 Sinais que os sertanejos cortam nas orelhas das reses .................................................... 159

Anexos Anexo 1 Reis de Portugal ................... ...... .................... ......: 233 Anexo 2 Governadores-gerais e vice-reis do Estado do Brasil.. ...................... ....................... 235 Anexo 3 Capitães-generais governadores de Pernambuco .............. ............................... ········ 238 Anexo4 Capitães-mores do Ceará ..................................... 241 Anexo 5 Ouvidores do Ceará .............................................. 244 Anexo 6 Moedas, pesos e medidas ..................................... 245

APRESENTAÇÃO Este livro consiste em uma versão da monografia de bacharelado de José Eudes Arrais Barroso Gomes, apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal do Ceará em janeiro de 2007. _ Por mais que possamos interpretar a violência atual no Ceará como um elemento constitutivo da vida em sociedades contemporâneas e relacioná-la às desigualdades entre as classes, os gêneros, às disputas nos espaços urbanos e rurais, aos grupos organizados em milícias armadas, que nos leva ainda a refletir o tempo cotidiano conflituoso que dissemina sentimentos de insegurança generalizados, bem como ideologias que apregoam a segurança total, dificilmente conseguimos tratar o tema da violência como um tema histórico. Afinal, podemos afirmar que a história do Ceará foi marcada por uma prática generalizada da violência? Talvez todo o esforço da historiografia tradicional sobre a conquista e colonização do Ceará, produzida no final do século XIX e início do século XX, tenha sido empreendido visando destacar fatos históricos que ocultam, de uma forma ou de outra, que elas se deram em meio a uma conjuntura de guerras entre Impérios europeus e que se desdobraram em guerras nas áreas coloniais. Guerras entre Impérios, guerras por disputas de áreas coloniais, guerras entre mazombos, guerras cotidianas, frondas, entre agentes coloniais e indígenas, entre os próprios indígenas e guerras que consolidaram a expansão.do Império português em direção às fronteiras do que hoje chamamos Nordeste. Sim, podemos afirmar que a colonização do Ceará foi feita a partir de uma guerra: a efetiva conquista e colonização do Ceará em fins do século XVII e início do século XVIII é tributária de uma cultura, ou de culturas onde a violência extrema era cul-

14

José Eudes Arrais Barroso Gomes

tivada. O espectro da violência, dos massacres, das chacinas, do extermínio, dos estupros, dos espancamentos, das traições, das emboscadas, das patrulhas volantes, dos envenenamentos, dos arrazamentos de arraiais, das mutilações e de tantos outros horrores documentados pelos cronistas foi uma marca sangrenta da colonização dos sertões do território que hoje chamamos Ceará e de áreas vizinhas. Foi a Guerra dos Bárbaros uma guerra de conquista particular, que além de utilizar as mais sofisticadas artes da guerra européia (Flandres) e brasílica (indígena), moldou-se aos tantos outros elementos das guerras entre tapuias dos sertões. Nossa sociedade formou-se a partir de uma cultura da violência. Mas não só nossa conquista se deu sob esse "teatro de horrores". A sociedade resultante, que se firmou no território durante o século XVIII e que se reproduziu a partir daí, também foi caracterizada por uma hierarquização extrema que contava com a violência como forma de regulação interna. A mobilidade social e territorial, a ausência do poder regular estatal, ou a incapacidade deste, os múltiplos núcleos de exploração dos recursos naturais e da força de trabalho propiciaram a formação de grupos armados e de milícias particulares que defendiam suas redes clientelares de forma bastante agressiva. As autoridades estatais nem sempre conseguiam enxergar a característica daquele grupo social formado nas trincheiras da guerra dos sertões, mas adjetivavam como podiam aquela população arredia aos mandas e bandos administrativos: infames, bandidos, devassos, adúlteros, bárbaros, malfeitores, sediciosos, rebeldes, perturbadores, agressores, desertores, verdugos, fadnorosos, libertinos, criminosos, vadios, sem ocupação, homicidas, ladrões, forasteiros, vagabundos, vagamundos, ociosos, déspotas, cabras, réus, perniciosos eram como se classificava a população dos sertões do Ceará. Essencialmente é sobre essa relação entre agentes administrativos/viajantes e a população local que a monografia de José Eudes Arrais Barroso Gomes trata. Mais que um esfor-

Um Escandaloso Theatro de Horrores

15

ço monográfico, o que o autor nos trás é um estudo aprofundado e ricamente documentado de historicização das relações sociais nas fronteiras entre público e privado. Mais que uma monografia porque o autor trás uma tese: no final do século XVIII e ainda no início do século XIX a cultura da violência marcou nossa organização social e foi o principal tema das tentativas estatais de estabelecer seus domínios sobre a população sertaneja. Cabe ressaltar que a submissão das classes sociais aos domínios do Estado não se restringirá apenas ao período tratado pelo autor. Durante o século XIX, por diversas vezes, a incapacidade regulatória de um poder central no Ceará se evidenciará em conflitos, sedições, revoltas e guerras onde o caráter violento será característico. A submissão das populações pobre e livre pelo poder do Estado durante o século XIX ainda é um tema a ser melhor escrutinado por nós historiadores preocupados com as formas organizativas do poder e das formas de ação das camadas populares que não se reconheciam nos projetos políticos do poder central no Ceará. Através de um texto estimulante, de leitura cativante, densa análise, cuidado empírico e bom recorte metodológico, o leitor encontrará aqui um pouco do que foi a nossa organização social.

Almir Leal de Oliveira Universidade Federal do Ceará Janeiro de 2010

1

INTRODUÇÃO Um espectro assombra a capitania do Ceará no século XVIII: o espectro da violência. Em 1731 o Conselho Ultramatino, órgão responsável pela administração dos domínios ultramarinos portugueses sediado em Lisboa, observou que o auxílio militar às diligências da justiça "se carece muito no Ceará por ser o p,a ís a que se retirão os delinquentes e mal feitores de todo o Brasil".1 Na década seguinte, mais precisamente em 1748, o capitão-general governador de Pernambuco declarou: "na capitania do Ceará a maior parte dos habitantes são homens criminosos". 2 Curiosamente, cerca de trinta anos depois, os comentários do ouvidor José da Costa Dias e Barros sobre o Ceará não foram muito diversos. Disse ele em 1779: "Vi em terror os contínuos assassínios, os roub0s e todos os insultos os mais execrandos perpetrados por uma multidão incompreencível de homens facinorosos e libertinos, que infestavam este dilatado estado. Vi com um bem pungente desprazer a Justiça geralmente desobedecida". 3 Em 1783, apenas um ano após tomar. posse do governo da capitania do Ceará, o capitão-mor João Baptista Azevedo Coutinho de Montaury informava que o Ceará era frequentemente palco de "todo o gênero de atrocidades" e que as copiosas mortes causadas por espingardas, bacamartes, espadas, facas e pauladas eram tão comuns no cotidiano da capitania que já não causavam admiração a ninguém. 4 Já em primeiro de janeiro de 1 AHU.

CT: AHU ACL CU O17, Caixa 2, Documento 119.

2 AHU.

CT: AHU ACL CU 01 7, Caixa 5, Documento 333.

3 AHU.

CT: AHU ACLCU 017, Caixa 9, Documento 564.

4 BNRJ.

Setor de Manuscritos. II-32, 24, 031. Documentos sobre a capitania do Ceará. Fundo: Coleção Ceará. Carta do capitão-mor João Baptista Azevedo Coutinho de Montaury, 12 de março de 1783, p. 72.

18

José Eudes Arrais Barroso Gomes

Um Escandaloso Theatro de Horrores

19

1800, o capitão-mor governador do Ceará Bernardo Manuel de Vasconcelos escreveu ao príncipe regente D. João VI a respeito da ocorrência de elevado número de crimes, vinganças, mortes e assassinatos na capitania cearense. Segundo aquele capitãomor, os sertões do Ceará eram "repetidas vezes no círculo do ano(. ..) theatro d'estes horrores". 5 Foi justamente a partir da leitura de trechos tão contundentes sobre a violência no Ceará do século XVIII que este trabalho se originou. O seu grande tema é a violência e o cotidiano na capitania do Ceará setecentista, sendo que o amplo recorte temporal da pesquisa buscou perseguir a amplitude do seu objeto, a violência, que só tem interesse aqui na medida em que é um traço revelador dos embates cotidianos e das relações de poder travadas na capitania. O capítulo inicial, Os caminhos do gado: a expansão da pecuária e a colonização dos sertões cearenses, procura discutir a violência como aspecto central do processo de efetivação da conquista e colonização do Ceará, processo este iniciado no final do século XVII a partir da chamada "limpeza da terra", que consistiano extermínio, expulsão, escravização ou aldeamento das populações nativas para a instalação de currais e fazendas de gado, e pelo sistema de concessão de terras em sesmarias. Segue-se ainda uma breve apresentação da estruturação econômica da capitania baseada no criatório, nas charqueadas e na exportação de algodão, atividades responsáveis pela fundação de vilas espalhadas pelos sertões cearenses. O segundo capítulo, Olhares estrangeiros: imagens da violência, imagens da permanência, toma como fonte as anotações de dois viajantes estrangeiros que visitaram o Ceará nas primeiras décadas do século XIX, os britânicos Henry Koster e George Gardner, buscando perceber a intrigante imagem feita

por ambos do Ceará corno uma sociedade violenta e belicista ainda depois de mais de um século do início do seu processo de colonização efetiva. O terceiro capítulo, intencionalmente intitulado de Um escandaloso theatro de horrores: a capitania do Ceará sob o espectro da violência é, como fica fácil supor, a parte fundamental deste trabalho. Escrito a partir de uma longa série de relatos e registros que evidenciam a violência como característica marcante do cotidiano na capitania do Ceará durante todo o século XVIII, o capítulo procura discutir a violência, a ocorrência de crimes, o descumprimento da lei e a impunidade como aspectos fundamentais das tessituras de poder na sociedade pecuária cearense. O último capítulo, As paternais providências d'El Rey: reformas e controle social nos sertões, pretende sugerir como a partir das reformas empreendidas pela administração pombalina o império português buscou apertar os seus laços colonialistas através de um maior rigor administrativo e fiscalista, implementado na violenta capitania do Ceará por uma série de medidas controladoras e policialescas, tais como a fundação de vilas por decreto, a constante exigência de mapas populacionais, alistamentos e mostras militares, e a obrigatoriedade do uso de passaportes e licenças. Por fim, é interessante notar que a idéia de a sociedade ver-se como num teatro, o theatrum mundi, metáfora adotada para o Ceará em 1800 pelo capitão-mor Bernardo Manuel de Vasconcelos é, na verdade, uma das formas mais antigas de auto-avaliação da própria comunidade. Todavia, se segundo a tradição platônica e medieval só havia o espectador divino do teatro humano, na Época Moderna inaugura-se o sentido de "teatro" como reflexo, de speculum ou espelho da realidade. 6

5 "Documentos para a história do governo de Bernardo Manoel de Vasconcellos (Collecção Studart)". ln: RIC, tomo :XXVIII, 1914, p. 333.

6 ARAÚJO,

Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997, pp. 25-26.

20

José Eudes Arrais Barroso Gomes

Desse modo, muito além de sua mera utilização retórica, a metáfora da capitania do Ceará como um "theatro de horrores" sugere, na verdade, o reconhecimento de uma cruenta realidade de violências e de enfrentamentos sangrentos e, portanto, uma realidade de conflitos.

o s

2 CAMINHOS

D O

GADO

A EXPANSÃO DA PECUÁRIA E A COLONIZAÇÃO DOS SERTÕES CEARENSES

Dizem Manoel de Goez, o licenciado Fernando de Goez, Francisco Pereira Lima, Manoel de Almeida da Ruda, o licenciado Amaro Fernadez de Abreu, Estevão de Figueredo e Simão de Goez de Vasconcelos, moradores na capitania de Pernambuco e assistentes nesta do Ceará que por não ter a dita capitania de Pernambuco terras próprias capazes para a quantiade de suas criações de gado vacum e cavalar os vieram comboiando até esta capitania [do Ceará] por distância de duzentas leguas de matos fechados e terras de tapuios bárbaros com muito dispêndio de suas fazendas e perigo de suas vidas e querendo acomodar-se nesta capitania se deliberaram a buscar pastagens convenientes e caminhando desta força para a parte do Maranhão toparam nas ribeiras da qual se podem colher fontes a pastar gados com grande aumento da Fazenda Real desta capitania por tanto pede a vossa mercê que atendendo ao referido do bem real e aumento da capitania e moléstia dos suplicantes em trazerem seus gados com tanto custo a esta capitania sem terem onde [os] acomodar .se lhes faça mercê em nome de Sua Alteza a quem Nosso Senhor guarde conceder a cada um dos suplicantes cinco léguas [de terra] de comprido pelo dito Rio Caracu.

José Eudes Arrais Barroso Gomes

22

Registro da data de sesmaria de Manoel de Góes e seus companheiros na ribeira do rio Acaraú, Capitania do Ceará-Grande, em 23 de setembro de 1683. 7 Fui servido resolver se faça guerra geral a todas as nações de índios de corço entrando-se por todas as partes, assim pelo sertão dessa capitania [do Maranhão] como pela de Pernambuco, Ceará e Rio Grande, para que não possam escapar uns sem caírem nas mãos dos outros, e dividindo-se as tropas que forem a esta expedição saindo para o sertão por todas as partes, certissimamente hão de encontrar com tal inimigo, e incorporando-se umas com as outras, farão mais formidável o nosso poder e mais seguro o estrago desses contrários [os índios], e para que se animem os que forem a esta empresa, hei por declarar que não só hão de matar a todos os que lhe resistirem, mas que hão de ser captivos os que se lhe renderem. Carta de D. João V, rei de Portugal, a Luiz Cezar de Menezes, Governador do Estado do Brasil, em 20 de abril de 1708. 8

2.1As lutas Tanto o pedido de sesmaria de Manoel de Góes e seus companheiros na ribeira do rio Acaraú quanto a declaração de guerra contra os índios dos sertões das chamadas capitanias

7

ESTADO DO CEARÁ. Datas de Sesmarias. Vol. l. Fortaleza: Typografia Gadelha, 1920, pp. 90-9 l.

8

BEZERRA, Antônio. Algumas origens do Ceará. Fortaleza: Typografia Minerva, 1918, pp. 205-207.

Um Escandaloso Theatro de Horrores

23

do norte9 do Estado do Brasil citados acima, constituem-se em dois documentos emblemáticos do violento processo de conquista dos sertões da capitania do Ceará pela pecuária. Após décadas de expedições militares e missões jesuíticas restritas ao litoral e às estratégicas serras da Ibiapaba, em fins do século XVII inicia-se a sangrenta conquista das terras do interior da capitania do Ceará através da irradiação da pecuária extensiva, expulsa do litoral canavieiro pela expansão das plantações de cana-de-açúcar destinadas a alimentar o comércio açucareiro em crise. 10 Com a separação entre a produção de cana-deaçúcar e a pecuária determinada pela carta régia de 1701, que proibia a criação de gado a menos de 10 léguas do litoral, a um

9 O termo coevo "capitanias do norte" referia-se a todas as capitanias do "Estado do Brasil" situadas ao norte da de Pernambuco: Ceará, Rio Grande e Paraíba. Com o correr do tempo, todas as chamadas "capitanias do norte" foram paulatinamente incorporadas ao governo pernambucano como "capitanias anexas", elevando Pernambuco ao estatuto de "capitania-geral". A capitania do Ceará fez parte do Estado do Maranhão de I 621 a 1656, a partir de quando passou a fazer parte do Estado do Brasil, sendo que por ordem régia de 1668 adquiriu o .estatuto de capitania subalterna à de Pernambuco, tomando-se capitania autônoma somente em 1799 . A capitania do Rio Grande esteve subordinada a Pernambuco desde quando se desligou da Bahia, em 1701 , ganhando autonomia somente em 1820. A capitania da Paraíba foi anexada administrativamente a Pernambuco em I 755, tomando-se capitania autônoma em 1799.

IO "O período posterior à expulsão dos holandeses do Nordeste, em 1654, foi extremamente dificil para a economia açucareira no Brasil. Segundo Stuart Schwartz, se é verdade que fatores internos penalizaram a atividade produtiva, tais como epidemias, secas e outras calamidades naturais, os problemas mais fortes residiam em fatores externos: o crescimento da concorrência inter-imperial, com a ascensão da produção antilhana e, a partir de 1680, a consequente inflação dos preços dos escravos, dado o aumento da procura em África. Neste sentido, a Coroa procurava uma alternativa para repor as perdas no trato colonial. Expedições ao interior, antes até desencorajadas, passaram agora a receber apoio e mesmo a ser agenciadas pelo governo geral". PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e colonização do sertão nordeste do Brasil (1 650-1 720). São Paulo: Edusp/Hucitec, 2002, pp. 14-15.

24

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

só tempo a açucarocracia garantia uma espécie de monopólio territorial e oficializava-se a política de interiorização da pecuária, já em pleno curso. A extremada violência do confronto entre conquistadores e populações nativas em terras cearenses deveu-se ao fato de que no Ceará ocorreu o encontro de duas grandes rotas ou "entradas" de ocupação do sertão pelo gado, tangido para o interior do continente por levas de migrantes munidos de ambição, espingardas e bacamartes: a primeira, vindo de Pernambuco, seguia a costa litorânea atravessando as capitanias da Paraíba, Rio Grande e Ceará em direção ao Maranhão, dando origem à instalação de fazendas de criar no sentido litoral-sertão seguindo a ribeira dos principais rios, no Ceará notadamente o Jaguaribe, o Acaraú e o Coreaú; a segunda, saindo da Bahia e Pernambuco, seguia pelo interior avançando pelo médio São Francisco até o rio Parnaíba nos limites entre o Piauí e o Maranhão, sendo responsável pela ocupação do sul da capitania. 11

25

Mapa2 ENTRADAS DE CONQUISTA DO INTERIOR DAS CAPITANIAS DO NORTE

Fonte: Adaptado de: ANDRADE, Manuel Correia de. O processo de ocupação do espaço regional do Nordeste. Recifé: Gráfica Editora, 1975, p. 23.

11

"Se a Bahia ocupava os sertões de dentro, escoavam-se para Pernambuco os sertões de fora, começando de Borborema e alcançando o Ceará, onde confluíam a corrente baiana e a pernambucana". ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800 & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 135. Através do estudo da distribuição geográfica das sesmarias no Ceará, observa-se que as concessões de datas deram-se sobretudo nas margens dos seus três maiores rios: Jaguaribe e seus três maiores afluentes (Salgado, Banabuiu e Quixeramobirn), Acaraú e Coreaú. POMPEU SOBRINHO, Thomas. Sesmarias cearenses: distribuição geográfica. Fortaleza: Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 1970.

Expulsos do litoral desde a Bahia até a Paraíba pelos plantadores de cana-de-açúcar, os povos indígenas de diferentes nações foram sendo empurrados e forçados a migrar para o sertão das capitanias do norte, como confirma o relato feito pelos Tabajara da Serra de Ibiapaba em 1720, que indica ter havido, no início do século XVII, migrações de povos indígenas itoral da Bahia para a capitania do Ceará. 12 12 AHU.

CT: AHU ACL CU 017, Caixa l, Documento 65.

26

José Eudes Arrais Barroso Gomes

Também a este respeito, afirma João Brígido que "pelo tempo da colonização do país de Jaguaribe, mais tarde Capitania do Ceará-Grande, vieram índios da tribo dos Potiguares, da Paraíba e do Rio-Grande".13 Assim, através do avanço das frentes do gado as populações nativas se viram encurraladas nos sertões cearenses, uma espécie de última fronteira, o que acabou por culminar no conjunto intermitente de confrontações entre indígenas e "conquistadores" conhecido por "Guerras dos Bárbaros"14, enfrentamentos estes que no caso do Ceará 13

BEZERRA, Antônio. O Ceará e os Cearenses. lª edição de 1906. Edição facsimilar. Coleção Biblioteca Básica Cearense. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, p. 3. 14

A dita "Guerra dos Bárbaros" foi corno ficou conhecida a série heterogênea de confrontos que envolveram as variadas e numerosas populações indígenas e os diversos agentes coloniais - moradores, soldados, missionários e bandeirantes ocorridos no avanço da fronteira do sertão norte, ampla região de terras semi-áridas que vão do norte da Bahia até o leste do Maranhão, abarcando parte das capitanias do Pernambuco, Paraíba, Rio Grande, Ceará e Piauí. Pedro Puntoni divide a Guerra dos Bárbaros em dois grandes conjuntos de conflitos: as Guerras do Recôncavo Baiano (1651-1679) e as Guerras doAçu (1687-1704). Em relação ao Ceará, tem maior interesse a.consideração das chamadas Guerras do Açu, que segundo Maria Idalina Pires estenderam-se da década 1680 até a de 1720, iniciadas por volta de 1686, quando os índios Janduins das regiões de Açú, Mossoró e Apodi no Rio Grande rebelaram-se atacando vilas e fazendas dos colonos que avançavam sobre suas terras. Nos anos seguintes os conflitos propagaram-se pelo vale do Jaguaribe na capitania do Ceará rumo ao interior chegando aos limites das capitanias do Piauí, Pernambuco e Paraíba. A partir de 1688 vários bandeirantes paulistas foram contratados, dentre os quais Domingo Jorge. Velho, Matias Cardoso, João Amaro Maciel Parente, Fernão Carrilho e Manuel Álvares de Morais Navarro. No Ceará, vários acordos e alianças foram feitos e desfeitos. Em 1706 o rei chegou inclusive a autorizar o fornecimento de armas a todos os moradores "brancos" da capitania do Ceará e em 1713 índios Baiacus, Anacés e Jaguaribaras, entre outros, atacaram a vila de Aquirás. Nestes conflitos, teve atuação decisiva o regimento de cavalaria do Jaguaribe, chamado de "Cavalaria do Certam", composto por mestiços e "índios mansos", leia-se "aliados", comandado pelo coronel João de Barros Braga, grande senhor de terras do Jaguaribe, regimento cuja formação marca o início da derrota indígena no Ceará. Os textos fundamentais sobre o assunto são: PIRES, Maria

Um Escandaloso Theatro de Horrores

27

ocorreram por cerca de 50 anos, sobretudo entre o último quartel do século XVII e o final da década de 1720. Como estratégia de expansão de seu imperium em uma conjuntura de crise da economia açucareira, a Coroa lusitana concedia o título de "capitão-mor de entradas"15 aos vassalos que se propunham adentrar os sertões e fazer guerra aos índios, chancelados pela retórica do conceito de "guerra justa", concedendo-lhes como prêmio a doação das terras que desapossavam das populações indígenas em datas de sesmaria e os índios capturados como escravos, como fica claro na declaração de "guerra geral a todas as nações de índios de corço" das capitanias do Maranhão, Pernambuco, Ceará e Rio Grande, datada de 1708, citada anteriormente. A análise dos pedidos e concessões de datas de sesmaria no Ceará, publicados em 14 volumes, confirma a intensidade desse violento processo de guerras de conquista, que deu origem a célebres fortunas como a de Bento da Silva e Oliveira e a do coronel João de Barros Braga no vale do Jaguaribe.16 Aproximações e confrontos marcaram o contato travado entre os diversos grupos indígenas e as várias expedições de

Idalina da Cruz. Guerra dos bárbaros: resistência indígena e conflitos no nordeste colonial. Recife: Fudarpe/Cerpe, 1990 (que na verdade trata especificamente das ditas "Guerras do À.çu"). Já uma visão mais geral dos confrontos encontra-se em: PUNTONI, Pedro. Op. ·cit. Sobre os confrontos no Ceará, mais especificamente, veja: STUDART FILHO, Carlos. "A guerra dos bárbaros" e "A rebelião de 1713". ln: Páginas de história e pré-história. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1966, pp. 15116 e 119-133, respectivamente. 15 "O governo não recusava o titulo de capitão-mór das entradas aos fazendeiros, que se propunham fazer guerra aos selvagens, e concedia-lhes as terras, de que os desapossavam. Entre outros, fez-se celebre por essas correrias o coronel Bento da Silva e Oliveira ..." BRASIL, Thomaz Pompeu de Sousa. Ensaio estatístico da Província do Ceará. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997, p. 268. 16

ESTADO DO CEARÁ. Datas de Sesmarias. 14 volumes. Fortaleza: Typografia Gadelha, 1920-1928.

28

José Eudes Arrais Barroso Gomes

colonizadores franceses, portugueses e holandeses na região desde as primeiras décadas do século XVII.17 Todavia, diante da marcha dos conquistadores e seus gados provenientes das áreas de colonização mais antigas, principalmente Pernambuco, Paraíba e Rio Grande, nas últimas décadas do século XVII, momento em que se intensificaram as migrações de colonos e a tentativa de efetivação da conquista da região, as populações nativas também redobraram sua luta pela terra através de ações de resistência e revoltas. Em 1700, por exemplo, os oficiais da câmara de São José de Ribamar representaram sobre "os grandes roubos que aos moradores desta vila faz o gentio bárbaro". 18 No ano de 1704, em decorrência dos ataques a fazendas e até mesmo a vilas causados pelas ações e levantes indígenas de resistência, os vereadores da câmara de Aquiraz escreveram carta através da qual representaram queixosamente ao rei D. Pedro II acerca dos roubos de gados, assassinatos, atentados e "outros muitos delitos" que diziam virem sofrendo dos índios Paiacu na ribeira do Jaguaribe, justamente o principal foco de ocupação colonial na capitania pelo criatório. Segundo os oficiais da câmara a capitania vivia verdadeiro "cerco", pois os indígenas impediam os caminhos

17

Durante o século XVII houve várias expedições militares e jesuíticas lideradas por portugueses ao Ceará: o açoriano Pero Coelho em 1603, os padres inacianos Francisco Pinto e Luís Figueiras em 1607, Martins Soares Moreno em 1611 e 1621. Tropas holandesas ocuparam o Ceará por duas vezes: 1637-1644 e 1649-1654. Em 1654, por conta da capitulação holandesa, as tropas batavas deixam o Ceará e ocorre a restauração portuguesa da capitania com o capitão-mor Álvaro de Azevedo Barreto. Entre 1656-1662 uma missão inaciana na Ibiapaba foi liderada pelos missionários jesuítas Pedro Pedrosa e Antônio Ribeiro, este último posteriormente substituído por Gonçalo Veras. Após o envio dos jesuítas Manuel Pedroso e Ascenso Gago em 1695, ocorre a fundação do aldeamento de Nossa Senhora da Assunção da Ibiapaba em 1700. 18

"Documentos: archivos da câmara deAquiraz". ln: RIC, 1943.

29

Um Escandaloso Theatro de Horrores

de comunicação com Pernambuco e muitos moradores já haviam deixado suas fazendas com medo de serem assassinados, complementando argutamente que aquela situação repercutira decisivamente na "diminuição do rendimento que a fazenda de Vossa Majestade teve nos dízimos desta capitania". Declaravam ainda que a gravidade das circunstâncias chegara até a obrigá-los a construir uma fortaleza naquela ribeira às custas dos próprios moradores, o Forte de São Francisco Xavier, construído em 1696, que se situava onde depois surgiu o povoado e vila de Russas. Além disso, os camaristas afirmavam peremptoriamente: "por todos estes fundamentos para a conservação desta capitania será Vossa Majestade servido destruir estes bárbaros (. .. ), que de humanos só tem a forma". 19 Todavia, em 1697, portanto apenas alguns poucos anos antes da representação dos vereadores de Aquiraz, o próprio monarca português havia feito menção no texto de uma ordem régia de 4 de março sobre o que "obraram os moradores daquela capitania [do Ceará] com os índios correndo e fazendolhes grande destruição, sendo suas desordens o instrumento principal de que os ditos índios se exasperem e levantem, movidos de muita violência". 2 De qualquer modo, com o acirramento dos confrontos entre povos indígenas e vassalos na capitania acima descritos fundamentada em tão convincentes argumentos fornecidos pelos camaristas de Aquiraz, destacando-se dentre eles a diminuição na arrecadação dos dízimos reais, em 1706 o rei enviou carta régia diretamente ao capitão-mor do Ceará,

º

·

19 Carta a Sua Majestade, enviada pelos vereadores da câmara da vila de São José de Ribamar em 13 de fevereiro de 1704. In: BEZERRA, Antônio. Algumas origens do Ceará. Fortaleza: Typografia Minerva, 1918, pp. 203-204. 2

º

Ordem Régia de 4 de Março de 1697. ln: BEZERRA, Antônio. Op. cit., pp. 198-200.

30

José Eudes Arrais Barroso Gomes

. Gabriel da Silva Lago, determinando o fornecimento de armas aos moradores da capitania e, em 1708, D. João V declarou "guerra geral" a todas as nações de índios não-aliados ou "indômitos".21 Em 1713, índios de diversos grupos, como Paiacus, Anacés e Jaguaribaras, entre outros, atacaram Aquiraz provocando a morte de mais de 200 colonos e forçando seus moradores a se abalar desesperad~mente da vila à pé, buscando refúgio na Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Informado da intensidade e continuidade daqueles confrontos na capitania, em 1715 o rei resolve reafirmar a declaração de guerra aos índios no Ceará autorizando e incentivando o chamado processo de "limpar a terra": ... para que de todo se extingam estes bárbaros vos ordeno que, considerando o bom estado presente e as forças com que vos achardes para fazer esta guerra a continueis com todo o fervor para que assim ou se extingam estes bárbaros ou se afugentem de nós tanto que nos fique livre o uso da terra ...22

por sua vez, o capitão-general de Pernambuco autorizou o coronel João de Barros Braga a formar uma bandeira com o objetivo de exterminar os índios do Ceará, o que demonstra a continuação do quadro de confrontações e pelejas entre índios "insubmissos" e vassalos pela posse das terras da capitania.24

2.2 As terras A tabela abaixo, que apresenta o movimento de ocupação do território da capitania do Ceará através dos pedidos de datas de sesmaria informando a motivação das solicitações, mostra que a grande maioria dos vassalos alegava à Coroa portuguesa a instalação de fazendas de criar gado como motivo para a doação da t erra. Quadro 1

DISTRIBUIÇÃO DE SESMAR!AS NA.CAPITANIA DO CEARA Período

. necessarias". Carta Régia ... f:açaes dar e estes moradores as armas que lhe forem ao Capitão-mór Gabriel da Silva do Lago, de 18 de agosto de 1706. ln: BEZERRA, Antônio. Op. cit., pp. 209-2 10. 21 "

22

Ordem de Sua Majestade que mandou ao Governador de Pernambuco em 27 de março de 1715. ln: BEZERRA, Antônio. Op. cit., pp. 207-208. 23

AHU. CT: AHU ACL CU OI 7, Caixa 2, Documento 84. Curiosamente, apesar de tod~s as declarações de guerra e os conflitos acirrados entre colonizadores e povos nativos durante as primeiras décadas do século XVIII, para Capistrano de Abreu:

Pecuária

Agricultura ~

ô7Q-

Mais ~guns anos se passaram até que durante o governo de Salvador Alvares da Silva, que governou o Ceará como seu capitão-mor entre 1718-1721, abria-se "guerra declarada" aos índios "tapuias" Genipapuassú em Jaguaribe. 23 Já em 1727,

31

Um Escandaloso Theatro de Horrores

1

' 1

j

-

.'

-

' '

- ..

,,,., --

7.

Agricultura

Total

Da... n-'wr~ ....

-

07

-

Hl

li

•!

!~ 1

0, um detalhe não passa desapercebido: tan:to Koster quanto todos os integrantes de sua pequena tropa traziam armas consigo, o que corrobora a afirmação feita por Gardner de que nos sertões todos andavam armados. Sempre que Koster prorura oferecer ao leitor descrições e imagens da população sertaneja, e ele sem sombra de dúvida esforçouse e,m fazê-lo, a referênáa ao uso cotidiano de armas é uma constante: O major vestia verdadeira indumentária de um brasileir? no interior. Estava de camisa e ceroulas, alpargatas nos pés, espingarda ao ombro, espada ao lado suspensa por um boldrié, e uma faca de caça à cintura.103 Ainda nesse sentido, a descrição e a gravura apresentadas por Koster d,o "sertanejo" são exemplares. Segundo o viajante, entre os itens de uso obrigatório pelos "habitantes do sertão" as armas ocupam lugar privilegiado: i '

º KOSTER, Henry. Op. cit., pp. 161-162.

1 2

103

Idem, p. 130.

José Eudes Arrais Barroso Gomes

70

Um Escandaloso Theatro de Horrores

Figura 1 REPRESENTAÇAO DO SERTANEJO 1-·---·-··-···· --~" """~"'' ""''"'"''"" '"'"'" ""''"""''""'"-''l

\

71

pública nos sertões cearenses, identificando a fragilidade da segurança social na região como resultante de uma estrutura de poder senhorial. 104 No entanto, tal como fica evidenciado no trecho que se segue, Koster identifica claramente a estreita relação entre violência e poder na capitania:

.t A administração da justiça no sertão [da capitania do Ceará] é, geralmente falando, muito mal distribuída. Muitos crimes obtêm impunidade mediante o pagamento de uma soma de dinheiro. Um inocente é punido se interessar a um rico fazendeiro enquanto o assassino escapará se tiver a proteção de um patrão poderoso. Essa situação é mais devida ao estado feudal nessas paragens que à corrupção dos magistrados, muito inclinados a cumprir seu dever, mas vêem a inutilidade dos esforços e a possível gravidade para eles mesmos.105

ii )

i

'

) :l ·

.I }' 'l' ~

1

l

! .1 í l

!

'

Ao descrever a pequena vila de Fortaleza em 16 de dezembro de 1810, onde permaneceria até 8 de janeiro 1811, Koster observou: Fonte: Cromolítografia publicada pelo autor na primeira edição de Travels in Brazil. Londres: Longman, Hurst, Rees, 1816. ln: KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste da Brasil., vol. 1. 12ª edição. Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza: ABC Editora, 2003.

Na mão direita empunhava um longo chicote e, ao lado, uma espada, metida num boldrié que lhe descia a espádua. No cinto, uma faca(. .. ). A todo esse equipamento, o sertanejo junta ainda uma pistola, cujo cano longo desce pela coxa esquerda, e tudo seguro.

Assim como faria Gardner quase três décadas depois, Koster comenta sobre a precariedade de imposição da justiça

A fortaleza, de onde esta Vila recebe a denominação, fica sobre uma colina de areia, próxima às moradas, e consiste num baluarte de areia ou terra, do lado do mar, e uma 104 Para Koster, muito antes de ser resultante da ocorrência de secas, a fragilidade da segurança social na região devia-se principalmente à "estrutura de poder patriarcal e patrimonialista do mundo rural, onde os caprichos pessoais, os interesses de um indivíduo ou família, sobrepunham-se facilmente às regras a princípio impessoais do sistema de organização social". FERREIRA, Angela Lucia; DANTAS, George A. F. & FARIAS, Helio T. M. "Adentrando os sertões: considerações sobre a delimitação do território das secas". ln: Scripta Nova - Revista e/ectrónica de geografia e ciencias sociales. Universidad de Barcelona, vol. X, n. 218 (62), agosto de 2006. 105

KOSTER, Henry. Op. cit., p. 177.

Um Escandaloso 1heatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

72

que o interior da capitania inspirava temeridade e merecia vigilância. 108 Nesse sentido, a projeção e desmandos dos Feitosa nos sertões da capitania cearense nãq passaram ao largo da pena do viajante, confirmado por Câmara Cascudo como "Koster, o exato". Anotou nosso curioso visitante em 1810:

paliçada, enterrada no solo, para o lado da Vila. Contém quatro peças de canhão, de vários calibres, apontados para muitas direções. Notei que a peça de maior força estava voltada para a Vila. A que estava montada para o mar, não tinha calibre suficiente para atingir um navio no ancoradouro comum. O armazém da pólvora está noutro ponto da colina e é visto do porto. 106

Funcionando como sede do poder régio na capitania, a "Vila da Fortaleza" cumpria o papel de centro administrativo no Ceará e teria a sua posição de destaque na governação cearense reafirmada quando se tornaria capital da capitania erp 1799, ano em que fir,ialmerite o Ceará ganha autonomia administrativa em relação a Pernambuco, tornando-se dpitania autônoma. q comentário de Koster sobre a Fortaleza Nossa Senhora da Assunção mostra-se a um só tempo sutil e mordaz: protegida p~lo lado do mar por baluarte de areia e separada da vila por p~içada107 en~errada no solo, a fortaleza tinha o seu canhão de mais grosso calibre apontado na direção da vila a qual tinha cotno função defender. I>ara além da provável permanência da memória dos temidos ataques indígenas ou da explicação tática de uma possível investida pela retaguarda, o fato de o canhão mais poderoso do forte - que sediava não somente o governo da capitania e o cofre do Erário Régio, como também a única companhia de tropas de linha em serviço na capitania estar direcionado para ' o sertão sugere simbolicamente

de

106 Idem, 107

1

p. 172.

Paliçada: tapume feito com estacas fincadas na terra; obstáculo para defesa militar. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 348.

73



A família dos Feitozas ainda existe no interior desta Capitania [do Ceará] e na do Piauí, possuindo vastas propriedades, cobertas de imensos rebanhos de gado. No tempo de João Carlos [Augusto de Oeyhausen Gravenburg, capitão-mor governador do Ceará de 1803 a 1807], o chefe dessa família chegara a tal poder que supunha estar inteiramente fora do alcance de qualquer castigo, recus~ndo obediência às leis, tanto civis , como criminais, fossem quais fossem. Vingavam pes' soalniente as ofensas. Os individuos condenados eram assassinados publicamente nas aldeias do interior. O pobre homem que recusasse obediência às suas ordens estava destinado ao sacrifício e os ricos, que não pertencessem ao seu partido, eram obrigados a tolerar em silêncio os fatos que desaprovavam. Os Feitozas são descendentes de europeus, mas, muitos dos ramos têm sangue mestiço e possivelmente raros são os que não teriam a coloração dos primitivos habitantes do Brasil.

108 "Com o canhão mais potente voltado para o interior do aglomerado urbano, as autorid11des locais revelavam um temor contínuo diante de agressões por parte dos indígetias. Talvez não seja exagero imaginar que a posição do artefato bélico expressava um modo repressivo de manter a ordem social, intimidando o surgimento 'de rebeliões e ondas de descontentamento popular. Por butro lado, pode-se pensar em mais um descuido administrativo". SILVA FILHO, Antônio Luiz Macedo e. Fortaleza: imagens da cidade. Fortaleza: Museu do Ceará,,2001, p. 31.

'

José Eudes Arrais Barroso Gomes

74

O chefe da família era Coronel de Milícias, e podia, ao primeiro chamado, pôr em armas cem homens, o que equivale a dez ou vinte vezes esse número numa região perfeitamente despovoada.109

Desse modo, assim como os Feitosa, poderosas famílias sertanejas cearenses descumpririam as leis régias e desrespeitariam as autoridades locais, impondo os seus desígnios através da posse de vastas propriedades, rebanhos e do comando de bandos armados, sendo que, no caso dos Feitosa, o próprio chefe da família era coronel de milícias. Como espero ter apontado, através da leitura das notas de viagem dos viajantes estrangeiros que passaram pelo Ceará no início do século XIX, não obstante o cuidado que devemos ter com as especificidades que a análise interpretativa desse tipo de fonte exige, percebemos a configuração da violência como tema recorrente, assim como também é recorrente a descrição de uma sociedade belicista, onde o uso de armas não só é bastante difundido como chega a ser indiscriminado e a manutenção da justiça régia se vê constantemente ameaçada pela debilidade da - JU . d.ioa . 1.11 sornado a isso, . açao amb os viajantes acabam por ressaltar o entrelaçamento entre o exercício da violência e a estruturação do poder nos sertões, intimamente ligado ao sistema de propriedade fundiária e à ocupação de cargos

º

109

110

KOSTER, Henry. Op. cit., p. I 84.

"Koster e Gardner representaram um Ceará onde a violência era vulgarizada, matizada sob o pincel da inoperância e manipulação do poder instituído e em severos valores que puniam qualquer ofensa moral e patrimonial com sangue. Apesar de separados por décadas, os britânicos observadores construíram discursos que se aproximavam e evidenciam poucas alterações nó que tange ao uso e presença de assassinatos e agressões, interagindo seus discursos com as falas e memórias dos nativos moradores cearenses". VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. Op. cit., p. 168.

Um Escandaloso Theatro de Horrores

75

públicos, dentre eles as patentes do oficialato das milícias e ordenanças locais. A citação de Geertz que inicia este capítulo refere-se à atenção exigida pela leitura de um relatório etnográfico, evocando a atitude de perplexidade perante o desconhecido e, desse modo, a noção de estranhamento: a percepção do olhar estrangeiro como registro dotado de particularidades, como espreitador do incomum, do não familiar aos olhos do observador. Geertz utiliza-se dos termos máscara e entalho como metáfora para uma leitura literal ou superficial das impressões recolhidas a partir da observação da realidade social. Nesse sentido, através dos relatos de Koster e Gardner nas primeiras décadas do século XIX, talvez a máscara a ser quebrada ou decifrada deva ser a máscara da violência. Seus relatos . nos convidam a buscar perceber através de lentes menos foscas e opacas esse que foi um aspecto tão longevo quanto profundo da realidade setecentista cearense.

4 UM ESCANDALOSO THEATRO DE HORRORES

A CAPITANIA DO CEARÁ SOB O ESPECTRO DA VIOLÊNCIA

Essa região, o sertão, caracterizou-se de duas formas ao longo desse tempo: como uma área fora da colonização, e logo depois como uma nova sociedade colonial. (... ) Sua conquista foi executada visando a exploração econômica de novas áreas, mas também como uma válvula de escape para os muitos tipos sociais considerados indesejáveis pela sociedade colonial açucareira. Assim, vadios e pobres de todas as cores foram empurrados para essa região tanto para atuarem como mãode-obra para a conquista em si, mas também como uma alternativa à crescente população livre e pobre das vilas açucareiras. Tal situação caracteriza o sertão como uma região de fronteira, construída corno resposta aos problemas da sociedade colonial mais antiga, a açucareira. Kalina Vanderley111

Como procurei mostrar, em suas anotações de viagem os britânicos Henry Koster e George Gardner apontaram 111

SILVA, Kalina Vanderlei et alli. "Tipos sociais na conquista do sertão das capitanias do Norte do Estado do Brasil, séculos XVII e XVlll". ln: Revista Mneme, volume 5, número 12, out./nov. 2004.

78

Um Escandaloso 1heatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

a violência como uma característica geral dos sertões brasileiros que se fazia presente nas terras cearenses durante as primeiras décadas do século XIX. Contudo, bem antes das solas daqueles atentos viajantes britânicos palmilharem as estradas sertanejas cearenses, considerável documentação mostra que ao longo de todo o século XVIII o governo da capitania andava às voltas com a grande ocorrência de crimes, a vulgarização do uso de armas e a larga impunidade que grassava no Ceará, especialmente nos seus sertões. Essa situação obrigou a constante publicação de leis, ordens, alvarás e cartas régias dirigidas à capitania-geral de Pernambuco e ao governo do Ceará-Grande determinando medidas de vigilância sobre a população, regulamentação e controle do porte de armas, combate ao crime e à impunidade. Tais medidas buscavam garantir o "bom governo" da "república", viabilizando assim a manutenção da "polícia" na capitania, entendida como o bom funcionamento da sociedade112 , e a desejada produção colonial, com a consequente arrecadação dos reais dízimos para os cofres de "Sua Magnânima Justeza", o rei de Portugal.

79

4.1 Vagabundos e ladrões, assassinos e facinorosos ... As queíxas dos administradores locais contra levas de homens "vadios", "facinorosos", comuns em toda a colônia, teriam assumido nas regiões de pecuária proporções maiores. Havia, apesar de muitos potentados necessitarem de homens para compor exércitos particulares e muita terra potencialmente cultivável, pouca ou nenhuma sobra para aqueles qualificados de "vadios": mestiços, índios aculturados; homens sem terra e sem trabalho. Nas queixas oficiais e particulares contra esta camada de individuas enfatizava-se sua inconveniência enquanto subvertedores da ordem que, no caso, consistia nas agressões contra os bens - gado e meios de subsistência - e a vida dos potentados e seus agregados. As preocupações da administração local com a necessidade de construir presídios ou de reforçar os poucos existentes deveriam estar associadas às ameaças constantes das levas de desocupados que vagavam pelos sertões. Maria Auxiliadora Lemenhell3

112 Segundo Hespanha, na acepção do

período o termo "polícia" correspondia a "atividade do poder tendente a organizar as actividades económicas e sociais". Ainda segundo este autor, "Nos finais do Antigo Regime surge, por parte do poder, urna intenção nova de organização activa ( ... ).Esta nova intenção é designada por "polícia" e é tida como visando impor à desordem dos interesses particulares uma disciplina visando o interesse público, que surge, deste modo, como algo de contraditório ou oposto ao interesse dos particulares". HESPANHA, António Manuel. Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 1984, p. 15.

Pelo menos desde fins do século.XVII e primeiras décadas do século XVIII o rei português e o seu Conselho Ultramarino recebiam representações de diversos administradores coloniais câmaras locais e particulares queixando-se do grande númer~ de cr~mes e da desafiadora situação de impunidade que se lhes seguia nos sertões das capitanias do norte. . A_ carta régia de 20 de janeiro de 1699, que se const1tm em uma das primeiras tentativas de organizar

11 3

LEMENHE, Maria Auxiliadora. Op. cit., p . 36.

80

José Eudes Arrais Barroso Gomes

administrativamente os sertões conquistados, pode ser tomada como exemplo. 114 No seu texto, o rei de Portugal, D. Pedro II, esclareceu que se dirigia ao governador da capitania de Pernambuco e anexas por conta de reclamações que lhe haviam sido feitas acerca da falta "de quem administre justiça aos que vivem nos dilatados sertões ( ... ), fazendo tão exorbitantes excessos, que obrigam aos que amam a quietação a retirarem-se, ficando as terras só povoadas . dos malfeitores". Para mitigar aquela sorte de problemas o monarca resolveu ordenar a criação de freguesias e a concessão de patentes e poder militar aos mais poderosos senhores sertanejos: ... em cada freguesia das que tenho mandado formar pelos dito~ sertões, haja um juiz à semelhança dos juízes da vintena, que há n'este Reyno, o qual será dos mais poderosos da terra; e para que este viva seguro fazendo seu ofício. Hey por bem que se crie em cada uma das taes freguesias um capitão-mór e mais cabos de milícia, e que n'estes postos se nomeem aquelas pessoas, que forem mais poderosas, os quais serão obrigados a socorrer e ajudar aos juízes, dando-lhe toda a ajuda e favor para as diligências da justiça, co. - ...115 minando-!h e penas se faltarem a' sua ob ngaçao 11 4 "As primeiras medidas voltadas a organizar o sistema administrativo, nos sertõ~s ocupados, foram determinadas pela Carta Régia de 20 de janeiro de 1699, que autonzava a criação de freguesias, de juízes escolhidos entre os mais ,ricos, além da função do capitão-mor e seus auxiliares, os cabos de milícias" . JUCA, Gisafran Nazareno Mota. "O espaço nordestino: o papel da pecuária e do algodão". ln: SOUSA, Simone de (org.). História do Ceará. 2ª edição. Fortaleza: Demócrito Rocha, 1994, p. 19.

Informação Geral da Capitania de Pernambuco em 1749. In: Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. :X:XVIII, 1906, Rio de Janeiro, 1908, pp. 343344.

115

Um Escandaloso Theatro de Horrores

81

·Passados alguns anos, por razão de novas reclamações que lhe haviam representado, em 1729 o rei português D. João V ordenava a Dom Manuel Roulim de Moura, governador e capitão-general de Pernambuco: "procureis com a maior e mais eficaz diligência evitar todos os malefícios, que se cornetão nessa Capitania, mandando prender aos culpados neles, castigando-os segundo a gravidade de seus crimes, para que por este meio se atalhem as desordens, mortes, insultos e extorções que fazem os ditos criminosos, e cessem as repetidas queixas que há neste particular" .116 A documentação acima, portanto, aponta para um quadro geral de violência nos sertões da capitania de Pernambuco, dentre os quais o Ceará. No entanto, em meio à correspondência da capitania-geral de Pernambuco, a capitania do Ceará aparece como dotada de intrigantes especificidades a este respeito. Senão vejamos. Em 1718, "resoluto de que os ciganos e ciganas fossem extraminados do Reino, pelos furtos e mais delitos, que frequentemente cometião'', o rei D. João V determinou que · os ditos ciganos "fossem embarcados para as conquistas da Índia, Angola, Santo Thomé, Ilha do Príncipe, Cabo Verde, Ceará e Maranhão", ordenando ao governo pernambucano que todos os ciganos que fossem destinados àquela capitania de Pernambuco "sejão mandados para o Ceará".117 Por meio dessa determinação real percebemos que a capitania do Ceará, que estava em pleno processo de conquista portuguesa através da guerra aos índios e da doação de sesmarias para a instalação de

116 Idem, pp. 117

345-346.

Idem, p. 345. Acerca do assunto, veja-se também: CARTA do governador da capitania de Pernambuco, D. Manoel Rolim de Moura, ao rei D. João V, sobre a expulsão dos ciganos para o Reino de Angola, devido os roubos e maleficios cometidos na dita capitania, 17 de julho de 1725. Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos, Pernambuco, caixa 31, documento 2.847.

José EudesArrais Barroso Gomes

82

Um Escandaloso Theatro de Horrores

fazendas de gado, aparece como um imenso sertão para onde deveriam ser enviados elementos incômodos classificados como "vadios" e "criminosos", como foram rotulados os tais "ciganos e ciganas" de que nos fala D. João. Essa consideração fica ainda mais clara quando em 1724 o mesmo monarca novamente procurava responder aos apelos dos moradores de Pernambuco:

Uma outra carta real, desta feita destinada ao governador de Pernambuco Duarte Sodré Pereira, em 1729, trazia o mesmo tipo de preocupação sobre a dinâmica de tão peculiar fluxo migratório intra-imperial, motivado pelas queixas dos vassalos moradores nas suas conquistas. No seu texto o rei ordenava que o dito governador deveria "mandar transportar para o Reino de Angola alguma gente, que há nessa Capitania [de Pernambuco] da muita, que nela há vadia e da do Ceará, em que se contam muitos facinorosos de muito mau procedimento, e ações muito escandalosas" .120 Preocupado "sobre se degradarem para Angola os vadios e prejudiciais", D. João V acaba fazendo uma instigante comparação entre as capitanias de Pernambuco e Ceará: enquanto a primeira encontrar-se-ia povoada de muita "gente vadia'', a segunda teria como especificidade o elevado número de "facinorosos" entre as suas gentes. Décadas depois, no ano de 1761, vinha a público no Ceará uma determinação real que visava:

Faço saber a vós Dom Manoel Roulim de Moura, governador e capít.ão general da capitania de Pernambuco que os oficiais da câmara da cidade de Olinda me fizeram presente em carta de dezesseis de dezembro do ano passado em como para as capitanias d'este governo forão extrarninados os ciganos por malefícios, que fizeram n'este Reyno, e como nam teve emenda o seu vício, e a terra é tam dilatada, tem feito tantas exhorbitandas de furtos, que se narn podem tolerar, e que assim devia eu mandá-los para a capitania do Cyará, aonde me poderarn fazer algwn servíço na conquista do Gentio Bárbaro, e ficará esse povo com algum socego, e do contrário se seguirá um grande dano, pois já se experimenta nas mortes, que tem feito.11 8

Observamos aqui que após o envio de "ciganos" para Pernambuco em 1723, no ano seguinte em virtude das reclamações dos vereadores de Olinda sobre a conduta daqueles novos moradores do termo da sua vila, novamente aqueles degredados, que gozavam do infame estatuto de "criminosos" e "perturbadores", deveriam ser remetidos ao Ceará. Desse modo, mais uma vez a vinda ao Ceará funciona como forma de punição a elementos indesejados. 119 118

1

...determinar que os ciganos que se achasem neste Estado do Brasil vivessem conforme os mais vasalos e sem os tráficos de [ilegível] de escravos cavalos e mais coisas de que costumão fazer com justos e enganos de suas

!

1 1

1

lbidem, pp. 345.

u 9 "Como ocorre ainda hoje, o simples fato de ser cigano era motivo de desconfian-

83

1 1. r·

l

ça ( ... ). Indivíduos estranhos, de procedência desconhecida, pele morena, cabelos longos e barbas hirsutas, o que mais inquietava neles era o fato de andarem sempre juntos, em grupos, "aos magotes". Eram tidos por inveterados ladrões das estradas, sempre às voltas com o roubo de cavalos. Apresentavam acentuada solidariedade de grupo, pois tinham a uni-los, mais do que tudo, a identidade cultural e a "nacionalidade" comum". SOUZA, Laura de Melo e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 2ª ed. Rio de Janeiro, Graal, 1986, p. 197. Vejam-se também: ALFARO, Antônio Gómez. Ciganos e degredas: os casos de Espanha, Portugal e Inglaterra (séculos XVI-XIX). Tradução: Fernanda Barão e Isabel Fernandes. Prefácio de Maria Augusta Lima Cruz. Lisboa: Centre de Recherches Tsigaines, 1999. 120 Ibidem, pp. 344.

84

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

85

acampamento de ciganos, com cerca de doze homens, mulheres e crianças. Não são gente rara no interior do Brasil, porque os encontrei ou deles ouvi falar em quase todas as cidades que visitei. São em geral detestados pelo povo comum, mas estimulados pelos mais ricos, como se dava nesta ocasião, porque se acamparam embaixo de grandes árvores perto da casa de um major da Guarda Nacional, proprietário de grande plantação de cana-de-açúcar ao pé da Serra. (...) Raramente se aproximam das grandes cidades da costa, preferindo os distritos mais escassamente povoados e, por isso mesmo, mais sem garantias legais. Andam errantes de aldeia em aldeia, de fazenda em fazenda, comprando, vendendo e barganhando cavalos e jóias diversas. Como os da Europa são frequentemente acusados de roubar cavalos, aves ou o que quer em que as mãos possam por.123

artes e que aos mesmos se não consentissem armas de qualidade alguma nem ainda as defensivas, e não se sujeitando a tão justa determinação fosem presos e se lhes sentasse praça de soldados para hirem para os presídios e que se lhes tirassem os filhos e judicialmente se repartissem pelos moradores para melhor os educarem a maneira de órfãons e como alguns se refugiarão das praças em que servião procurando o centro dos sertoens, onde além de continuarem na mesma vida poderião intentar coisas mais perniciozas não só ao bem comum do povo, mas também a tranquilidade dele se me recomenda da parte do sobredito senhor [o rei] grande vigilância sobre o referido (...) com toda cautella...121

Segundo Antônio Bezerra, em 16 de setembro de 1816 o capitão-mor governador do Ceará, Manuel Ignácio de Sampaio, enviou uma portaria-circular aos juízes ordinários de todas as vilas cearenses "estabelecendo o modo por que se haviam de haver com os ciganos, a que ele qualificava de raça de vadios e perturbadores do sossego público". 122 Um trecho das anotações do estudioso escocês George Gardner sobre a sua passagem pelo Ceará em fins da década de 1830 nos sugere o tipo de sorte que aqueles grupos, ou pelo menos parte deles, tiveram nos sertões cearenses:

Somados aos documentos acima relacionados a ciganos, que talvez possam ser considerados inusitados ou pouco representativos, uma extensa série de relatos e correspondências coloniais que atravessa décadas aponta a violência como parte do cotidiano na capitania do Ceará. Por conta das "queixas" dos oficiais da câmara de São José de Ribamar sobre as "repetidas mortes" ocorridas na capitania, uma ordem régia 9 de janeiro de 1711 determinou que a correição do Ceará fosse feita pela ouvidoria da Paraíba, ao invés da de Pernambuco. Segundo a representação realizada em nome dos moradores da vila, as correições na capitania viam-se dificultadas por conta das suas grandes distancias e do péssimo estado dos seus caminhos.124

Certo dia, perto da serra de Araripe [situada na região do Cariri, sul da capitania do Ceará], passei por um

121 APEC. Livro 14: Registros de portarias, editais, patentes, bandos e ordens régias da câmara da vila de Icó ( 1761- 1796), Carta de 25 de novembro de 1761, fls. 2020v. 122 BEZERRA, Antônio. O Ceará e os Cearenses. l ª edição de 1906. Edição facsimilar. Coleção Biblioteca Básica Cearense. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, p. 18-19.

123 124

1 l

1

GARDNER, George. Op. cit., pp. 96-97. BCUC, fls. 91-9l v e seguintes.

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

86

87

Outro exemplo é uma carta-resposta enviada em 27 de novembro de 1731 ao ouvidor do Ceará acerca do envio de tropas para a capitania cearense, na qual o Conselho Ultramarino fez questão de observar que o auxílio militar às diligências da justiça "se carece muito no Ceará por ser o país a que se retirão os delinquentes e mal feitores de todo o Brasil".125 Note-se que aquele tipo de queixa não era novidade na capitania: Em 1 708, o próprio governador interino do Ceará, Carlos Ferreira, foi alvo de uma tentativa de assassinato. 126 Além disso, segundo Tristão de Alencar Araripe, naquele mesmo ano a câmara de Aquiraz pediu ao rei a criação de seis alcaides para a prisão d.o s criminosos na capitania "por não serem para isso bastantes os 50 ou 70 soldados do presídio; pois desde 1700 até então havia impunes 214 delinquentes, que não eram perseguidos por falta de cadeia e de agentes policiais".127 Tristão de Alencar, que ocupou o cargo de chefe de polícia no Ceará na década de 1840, citou ainda como exemplo da "impotência da justiça e da extensão do mal da impunidade" o fato de que somente na vila de Icó "do espaço de 60 anos, a contar de 1735a1795, havia para cima de 1.000 criminosos, sendo a maior parte por fato de homicídio", e que a câmara de Aquiraz em 1737 representou ao rei que muitos dos habitantes do Ceará viviam "de furtos com graves crimes os quais não eram punidos pela largueza dos sertões, e por valerem-se de homens poderosos". 128 Diante de um quadro geral de violência e impunidade na capitania cearense, o autor da Planta da Vila de Fortaleza

de Nossa Senhora da Assunção, desenho da primeira planta da vila realizado por ocasião da sua fundação em 1726, atribuído ao capitão-mor Manuel Francês, esforçou-se em ressaltar as edificações que representavam a presença do poder metropolitano na capitania: fortificação militar, pelourinho; casa de câmara, forca e igreja matriz. 129 A profusão de enormes cruzes espalh adas entre as casas da vila sugere, para além da intenção de evidenciar a propagação da fé cristã e a anterioridade do estabelecimento dos primeiros moradores, uma forte presença da morte no cotidiano do povoado.

125 AHU.

129

CT: AHU ACL CU 017, Caixa 2, Documento 119.

126 "Tentativa de assassinato do governador interino Carlos Ferreira: auto de vistoria na pessoa do offendido", 13 de agosto de 1708. ln: RIC, pp. 215-216. 121 ARARIPE. Tristão de Alencar. História da província do Ceará: desde os tempos primitivos até 1850. 2ª ed. anotada. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1958, p. 170.

128 Idem,

p. 170.

"Cabe observar a convergência entre câmara e pelourinho, dispostos um em frente ao outro, reforçando mutuamente a administração colonial e a autonomia política subordinada aos ditames metropolitanos. Também parece sintomática a proximidade entre a forca e o forte, insinuando a presença do Estado português sob a forma da pena capital - infligida aos detratores da lei - e das tropas militares - aparato fundamental no exercício da violência institucional". SILVA FILHO, Antônio Luiz Macedo e. Op. cit., p. 24.

1 i

\[

88

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

Mapa4 PLANTA DA VILA NOVA DA FORTALEZA DE N . S. DA ASSUNÇÃO (c.1730)

l 1

1 i 1

l

89

era atribuído através das patentes militares de comando muito mais para satisfazer seus interesses de dominação pessoal e para a inflação da sua honra 131 ou prestígio particular do que para a punição imparcial de criminosos. 132 Nesse sentido, o caso do coronel Jorge da Costa Gadelha parece ser emblemático. Segundo denúncia datada de 1734, feita pelo ouvidor geral da capitania do Ceará, Pedro Cardoso de Novais, por trás da projeção e fortuna do coronel Jorge da Costa Gadelha escondia-se uma vida de crimes, roubos, assassinatos, subornos e impunidade:

1

Pois vindo este homem das partes de Pernambuco muito pobre e só com um criolo seu ou alheio, por mortes e outros ~rimes, e estando a ser vaqueiro de um seu cunhado Antônio da Costa Barros, lhe roubou a fazenda falsificando a marca com que ferrava osgados e com isto se foi alando, e casou com uma neta de uma índia caboucla. Conseguiu ser coronel da cavallaria desta ribeira por dois cavalos que deu ao capitão-mor desta capitania pela patente, sem ter mais serviços, e com este posto se

1

í l

1

1 1·

Fonte: PLANTA da Villa Nova da Fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção da capitania do Ciará Grande q. S. Mag.de q. Deos g.de foi servido mandar criar, c.1730. Arquivo Histórico Ultramarino, Cartografia/Iconografia, Brasil, Ceará, M848.

Assim como nas demais capitanias da América portuguesa, durante o século XVIII a prisão de criminosos era legada às tropas militares da capitania. Dado o limitado número de praças e o crônico estado de precariedade das tropas de primeira linha na capitania, o controle da ordem pública no Ceará era exercido basicamente pelos comandantes de distritos, milícias e corpos de ordenanças locais. 130 Dado que o oficialato dirigente das tropas auxiliares e ordenanças era formado exclusivamente pelos mais poderosos senhores de cada localidade, verificavase que frequentemente estes utilizavam-se do poder que lhes

~

1

!

1 1

i

ii 1 1

i

130

GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d'El Rey: tropas militares, militarização do cotidiano e poder na capitania do Ceará, século XVIII. (texto inédito).

1 1

! 11 1 1

í

131

Sobre a significativa alteridade do conceito de "honra" no Antigo Regime ibérico e a sua definição como "principio discriminador de estratos y comportamientos" e "principio distribuidor dei reconocimiento de privilégios" ver: MARAVALL, José Antônio. "Funcion dei honor y regimen de estratificación en la sociedad tradicional". In: Poder, honor y é/ites en e/ siglo XVII. Madrid: Siglo XXI, 1989, pp. 13-145. 132 Idem. Analisando a área do açúcar Kalina Vanderley indica o forte caráter de hierarquização social das tropas militares das linhas auxiliares, ressaltando que os oficiais das tropas auxiliares, todos grandes senhores, "são os responsáveis pelos abusos sobre os colonos a seu comando, e, mais importante, exercem completo domínio sobre os colonos livres e pobres de sua jurisdição, tanto quanto seus próprios criados e agregados". SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001, p. 92.

90

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

fez muy soberbo, discompondo e se vadyjando os homens do seu regimento e matando-se aqui hum Xavier de Faria primo de sua mulher, e deixando uma filha natural casada com um fulano da Sylva, que por nome não perca, o qual dizem mandara matar o sogro para se ficar com quatro ou 5 mil cruzados que lhe guardava em dinheiro querendo-se averiguar este delito, o veio buscar a mulher do imputado matador com bastante dinheiro, pelo qual sufocou tudo, ficou o caso sem castigo, e ele mais opulento, e a imitação deste caso sopitava muitos procedimentos, fazendo com isto negócio e conveniências.133

Mas isto não éra tudo. Ainda segundo a circunstanciada denúncia do ouvidor: Costuma, vendo cavalo ou besta boa, mandá-la esconder e comprá-la perdida por muito menos do seu valor, e depois logo aparecem em sua mão, tem ficado culpado em [ilegível] por matar gados alheios para comer, mas tudo vencia e sufocava por ser aqui temido, e reputado poderoso. Estando de camarada ccim hum homem que por nome não perca, em um curral e este tirando leite de uma vaca, aleivosa e atraiçoadamente lhe deu hum tiro, de que esteve em evidente risco de vida; e se livrou como, e da sorte que quis, e se costumava sempre aqui fazer por cavalo, ou dinheiro. No meio desta vila [do Aquiraz] soberba· e desaforadamente sem motivo algum deu uma facada em um juiz de órfãos por nome João da

l t 1

133 AHU.

CT: AHU ACL CU 017, Caixa 3, Documento 159.

1

l

91

Fonseca Machado de que esteve em perigo de vida, e está livre na forma acima. Prendendo lhe um juiz a um seu cunhado criminoso, veio à vila a tempo que se estava vereação, e montado em um cavalo chegou à porta das casas da camara, por serem térreas, e descompôs o juiz e a camara de bêbados e outros injuriosos nomes, e por tudo passava sem castigo. Indo por cabo de uma diligência e entrando despropositadamente o discompor um dos homens que consigo levava se avançou a ele e lhe deu uma grande dentada no rosto. A um filho de João da Silva Salgado tratou muito mal de pancadas sem motivo para tanto. Sendo juiz tirou uma devassa de um tiro que se deu de noite em um homem, e nela ficou culpado e se livrou como quis. Sendo juiz de órfãos largou ou vendeo o ofício a um Manuel Pereira do caso, tal como ele, por cento e cinquenta mil réis que lhe deu. Tornando a ser juiz de órfãos, por subornos notórios e manifestos, entrou a proceder de sorte q ue o culpei, e o tenho preso, tendo-se isto por uma coisa grande, em razão de ser pessoa que sempre fez o que quis, como ele mesmo está dizendo, em zombaria minha. De próximo sem coisa nem motivo bastante tendo nas casas que servem da câmara, pelas não haver próprias, umas razões com um Antônio Teixeira, sem atenção ao lugar e boa gente que nele estava, lhe abriu a cabeça com uma bengala; e logo me veio passar pela porta a cavalo mofando e falando alto sem me ter respeito. É de muito má consciência, avarento em extender as balizas das suàs terras, destemente às justiças, soberbo, rixoso e revoltoso; rico com o alheio, e metido a poderoso; de que tem sido ocasião

José Eudes Arrais Barroso Gomes

92

Um Escandaloso Theatro de Horrores

os interesses particulares com que Vossa Majestade tem sido servido nesta capitania; e como esteja tão mal criada, carece muito do seu real serviço, que se vão castigando alguns, para exemplo de outros; mandando proceder a devassa por estes casos, e pelo que não forem dela; por de alguns estar livre incivilmente, e dos mais de terem sumidos os processos a seu respeito ... 134

Contudo, o mais surpreendente neste caso é o fato de que Jorge da Costa Gadelha recebeu a doação de pelo menos quatro sesmarias, foi vereador, juiz ordinário e juiz de órfãos na câmara de Aquiraz e ocupou nada menos do que os mais elevados postos da hierarquia das tropas milicianas: coronel e mestre-de-campo. 135 Em 1746, o capitão-mor governador da capitania-geral de Pernambuco, D. Marcos de Noronha, relatava as grandes dificuldades encntradas pela junta de justiça da capitania de Pernambuco "para julgar os crimes atrozes nas comarcas de Ceará, Paraíba, Alagoas e Goiana, e os problemas ocorridos devido às distâncias" .136

134

Idem.

lJS PINHEIRO, Francisco José. Formação social do Ceará: o papel do Estado no processo de subordinação da população livre e pobre (1618-1820). Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco, 2006, pp. 77-79. 136 CARTA do governador da capitania de Pernambuco, conde dos Arcos, D. Marcos José de Noronha e Brito, ao rei D. João V, sobre a Junta de Justiça da capitania de Pernambuco, com jurisdição para julgar crimes atrozes nas comarcas de Ceará, Paraíba, Alagoas e Goiana, e os problemas ocorridos devido às distâncias, 30 de julho de 1746. Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos, Pernambuco, caixa 64, documento 5.445.

l

l: I' f 1

I,

93

Apenas poucos meses após a morte do capitão-mor do Ceará, Francisco de Miranda Costa, que morreu rapidamente por doença que desconhecemos, em novembro de 1748 o governador e capitão-mor de Pernambuco, D. Marcos de Noronha, imprimia sobre cera quente o sinete de suas armas para lacrar uma carta que ordenou que seguisse para Lisboa na primeira embarcação com destino àquele porto. Através de tal correspondência informava ao rei D. João V, através do seu Conselho Ultramarino, o mencionado falecimento falando da necessidade de nomear o quanto antes um novo capitão-mor para o governo do Ceará.Ao comentar sobre os possíveis nomes para ocupar o cargo, D. Marcos asseverou que "sem embargo de haver naquele distrito um mestre-de-campo de auxiliares e um sargento-mor do mesmo terço e ambos pretenderem o lugar de capitão-mor, não pudera acomodar o nomear a nenhum deles, porque eram ambos de gênios tão inquietos, que seria meter naquela capitania uma grande desordem se algum destes dois homens fosse encarregado do governo dela".1 37 Assim o governador de Pernambuco desqualificava os oficiais que já serviam no Ceará, prováveis substitutos para o cargo, para que pudesse sugerir ao rei um de seus oficiais, o sargentomor Pedro de Morais Magalhães que, com efeito, tomou posse do posto de capitão-mor do Ceará naquele mesmo ano. Todavia, o que mais chama atenção na carta enviada por D. Marcos de.Noronha ao Consellio Ultramarino, correspondência elaborada a partir de informações contidas em várias cartas que llie haviam chegado da capitania do Ceará, é a impressionante descrição que faz daquela capitania subalterna: ...na capitania do Ceará a maior parte dos habitantes são homens criminosos, que buscão aqueles sertões para ne-

137 AHU. CT:

AHU ACL CU 017, Caixa 5, Documento 333 .

José Eudes Arrais Barroso Gomes

94

lesse refugiarem, e nesta circunstância nem todos os homens tem a capacidade, que baste para aquele governo, 0 qual necessariamente se deve encarregar a pessoa que se faça guardar respeito e a quem temão os mesmos moradores, porque senão serão mais contínuos os roubos e as mortes, que em grande distância de mais de duzentas e cinquenta léguas não podem embaraçar os governadores ainda que continuamente se estejão passando ordens para que se prendão os delinquentes e que se remetão para serem castigados como merecerem, que a execução destas obras encontram mil embaraços, uns pelas grandes distâncias, e outros pela espessura dos mat~s, donde ordinariamente existem os criminosos e a ma10r de todas as dificuldades é haver quem o faça alguma prisão, porque não só temem os homens, a quem estas se encarregão o perigo a que se expõem quando vão fazer estas diligências, mas o seu maior temor é a vingança, que despois lhe sobrevem, e como esta é quase infalível, 0 temor acovarda os homens de tal sorte naquele sertão que a maior parte dos delinquentes ficão sem castigo por ' 1os.138 não haver quem se reso1va a prendePercebemos aqui que, apesar de em meados do século XVIII 0 Ceará já apresentar um estágio avançado d~ seu processo de colonização através do sistema de conce~sao. d: sesmarias, segundo o capitão-general D. Marcos a capit~n:a. e definida como um imenso "sertão" de muitas léguas, terntono de crimes eivado de delinquentes e criminosos refugiados, palco de roubos e mortes onde a impunidad~ gr~ssaria. de~ido às dificuldades de efetuação de prisões e aphcaçao das JUSt1ças

138 Idem.

Um Escandaloso Theatro de Horrores

95

reais por conta de suas grandes distâncias, matas fechadas e, sobretudo, do evidente temor por parte das autoridades coloniais da vingança "quase infalível" dos criminosos no Ceará. Atente-se que ao falar das dificuldades em realizar diligências e prisões nos sertões, tentando assim justificar a sua ingerência concernente à relatada situação de desordem, o capitão-mor de Pernambuco menciona que continuamente passava ordens a seus subordinados "para que se prendão os delinquentes e que ·se remetão para serem castigados como merecerem'', o que denota a anterioridade daquele quadro e da expedição de determinações que visavam coibir a ocorrência de crimes e a impunidade nos sertões cearenses. Em 1763, portanto quinze anos depois da escritura daquela carta, o doutor Victoriano Soares Barbosa, que acumulava os cargos e os salários de ouvidor-geral do crime e civil em toda a capitania do Ceará-Grande e de provedor da Fazenda Real139 da capitania, montava cavalgadura emAquiraz, onde ficava sediada a Ouvidoria Real14 do Ceará, para visitar os

º

139 A criação da Real Provedoria do Ceará data de 1725. Até então a arrecadação de impostos na capitania do Ceará era realizada pela provedoria do Rio Grande. No Ceará o ouvidor acumulava a função de provedor, o que só mudaria em 1799 com a extinção da provedoria e criação da Junta da Real Fazenda __do Ceará, um conselho fiscal presidido pelo capitão-mor governador da capitania e diretamente subordinado ao erário português. Em geral os impostos praticados na capitania eram: subsídio de sangue (dízimo real sobre o abate do gado em açougues públicos), subsídio militar, subsídio literário, fintas (impostos especiais) e derramas (cobrança de impostos atrasados). 140 Inicialmente o Ceará fazia parte da comarca de Pernambuco e, devido às grandes distâncias, em I 711 passou a fazer parte da comarca da Paraíba. Mesmo assim os ouvidores dessas comarcas raramente visitavam o Ceará. Só em 1723 foi criada a Ouvidoria Real da capitania do Ceará, sediada na vila de Aquiraz. O ouvidor era o responsável máximo pela aplicação da justiça na capitania e era nomeado pelo rei por período de 3 anos. Anualmente o ouvid or deveria percorrer a sua jurisdição em correição. A segunda comarca do Ceará seria criada apenas em 1816 com sede na vila do Crato, sul da capitania, compreendendo as vilas de São João do Príncipe, Campo Maior de Quixeramobim, Icó, Santo Antônio do Jardim e São Vicente das

96

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

outras e por ser conveniente a meu Real Serviço e ao sossego e paz de meus vassalos evitar a assistência de semelhantes delinquentes me pareceu ordenar vos recomendeis aos capitães-mores das terras do sertão desse governo tenhão muito especial cuidado em prender aos que se refugiam por eles, inquirindo donde vieram e observando [o que] dispõe a ordenação do Reyno.143

sertões da capitania em correição, que consistia na fiscalização do cumprimento das jus~iças reais em cada comarca. Atingindo a povoação de Caiçara141, Victoriano Barbosa enviou mandado ao juiz ordinário da vila de Nossa Senhora da Expectação do Icó, a mais antiga vila do sertão cearense e principal centro comercial do interior, determinando que em virtude das "distâncias dos lugares dos delitos (. .. ) e largo termo dessa vila" notificasse e tivesse prontas para a sua chegada as testemunhas nas devassas dos "crimes de morte" ali ocortidos.142 Dali a três anos, em 1766, registrou-se nos livros daquela mesma vila do Icó um alvará de "Sua Majestade Fidelíssima" remetido ao governo de Pernambuco, encarregado da sua distribuição e publicação, ordenando aos "capitães-mores destes sertões prender as pessoas facinorosas e refugiados". O próprio soberano esclareceu que a necessidade da sua ordem se explicava:

" A~es:r de o al~ar~ em questão fazer referência gen érica aos se:toe~ da capitania-geral de Pernambuco, que incluía o Ceara, fo1 exat~mente como um vasto sertão da capitania per:iambuc~na, ~m~a fechada por matas que há pouco tempo atr~s _ºCeara havia sido definido por um de seus governadores, 0 cap1tão-m_or D. Marcos de Noronha, somando-se a isso o próprio f~to per sz da ordenação da sua publicação em Icó, destacada vila do sertão cearense. Vale salientar ainda que o mencionado alvará fora originalmente lançado em 1728 e, portanto, tratavase de uma reedição que visava reforçar a ordem de perseguição aos ditos "criminosos" e "facín oras" que buscavam refúgio em paragens e brenhas sertanejas, dentre as quais o Ceará. Frequentemente, o discurso dos administradores coloniais, especialmente capitães-mores e ouvidores, aponta que os _refe~idos "crii:iinosos" e "facinorosos" que se refugiavam na cap1tama do Ceara recebiam acobertamento por fazendeiros poder~sos. Segundo Pedro Puntoni, a economia pastoril "que ~cab~na por gerar uma forma societária específica, em face da htoranea propriamente dita (... ) baseava-se em um sistema de trabalho em que a remuneração e a organização social estavam submetidos a regras estritas de dependência e lealdade substanciadas num universo de violência".144 Desse modo'

...por ter a experiência dos grandes e atrozes delitos que tem cometido nas capitanias desse estado muitas pessoas facinorosas dando ocasião a se frequentarem e refugiarernse para os matos mudando-se de urnas capitanias para as

Lavras da Mangabeira. Desmembrada da Relação da Bahia, em 1811 foi criada a Relação do Maranhão que englobava as comarcas do Rio Negro {Amazonas), Pará, Piauí e Ceará. Em 1821 é criada uma outra Relação sediada em Recife com alçada igual à do Maranhão, que incluía o Ceará. Em 1833 a Província do Ceará passa a ser dividida em 6 comarcas: Fortaleza, Crato, Sobq1l, Aracati, Icó e Campo Maior de Quixeramobim. 141

Localizada na região norte da capitania, a povoação de Caiçara seria elevada ao estatuto de vila em 1773 com o nome de Vila Distincta Real de Sobral, importante núcleo populacional que se estabeleceria como principal centro comercial e produtor de gado e charque de toda a ribeira do rio Acaraú. 142 APEC. Livro 14: Registros de portarias, editais, patentes, bandos e ordens régias da câmara da vila de Icó ( 1761-1796). Mandado de justiça de 27 de abril de 1763, fl. 29-29v.

97

'

1 1

1. 1

14 3

144

Idem, Alvará de 13 de março de 1766, fls. 33v-34. PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 23.

98

José Eudes Arrais Barroso Gomes

o acobertamento de criminosos, diretamente relacionado à atributos como violência e lealdade, não estava em desacordo com o universo mais amplo de relações sociais sertanejas, confluindo para a formação de redes de clientelas e valias que caracterizariam as relações de poder nos sertões. 145 Existem indícios de que muitas vezes era justamente em nome de poderosos senhores que alguns dos assassinos e criminosos sertanejos agiam: tratava-se da chamada cabroeira.146 Em 1799, por exemplo, "Antônio de Tal" e José Coelho, ambos classificados pelo escrivão do processo como "cabras", foram considerados culpados pelas punhaladas recebidas por Francisco José, também identificado no auto como "cabra". Todavia, o juiz responsável pela devassa do caso condenou ainda Antônio José de Medeiros, "branco cazado", como "mandatário" do dito crime. 147 Contudo, em algumas ocasiões possivelmente os próprios senhores de terras e gado podem ter atuado muito mais diretamente do que na mera

14 5

"De modo semelhante aos senhores de engenho, os barões do gado e os magnatas do interior (os "poderosos do sertão", como eram chamados) tendiam a se constituir na própria lei". BOXER, Charles Ralph. O império marítimo português {1415-1825). Tradução: Anna Olga de Barros Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 322. 146 "Na composição de uma sociedade marcada pelas relações pessoais, principalmente familiares, o poder dos grupos extensos e abastados se solidificava na composição de uma fiel cabroeira. Esta simbolizava a força de extensas famílias, lutando e votando ao lado de seus chefes. Em troca, estes cabras garantiam proteção da justiça, respeitabilidade por pertencerem a determinados grupos e a própria sobrevivência: haja vista que muitos deles também cultivavam a terra e criavam gado." VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. Op. cit., p. 247. 1 7 4

APEC. Livro 01 : Rool dos culpados (1793-181 7). "Antônio de tal, Cabra [ilegível] Cabra José Coelho [ilegível] culpado na devassa que tirou o Juiz ordinar.0 José Joaquim Borges de Pinho pelas punhaladas dadas em o cabra Francisco José, das quaes [ilegível] o ferim.10 , pronunciado em 7 de dezb.ro de 1799. Antônio José de Medeiros, branco cazado, pronunciado na d.ª devassa como mandataria", fl. l v.

Um Escandaloso Theatro de Horrores

99

situação de mandantes. O caso de João Borges de Pinho parece ser bastante sugestivo a esse respeito. Segundo André Frota de Oliveira, por volta de meados do século XVIII os irmãos Joaquim, Antônio e João Borges Pinho, todos portugueses naturais do Porto, aportaram no Recife decididos a tentar a vida na América. Joaquim e Antônio tomaram um barco com destino à ribeira do Coreaú na capitania do Ceará e lá se dedicaram à criação de gado e ao comércio, ao passo que João, o irmão caçula, rumou para a capitania da Paraíba. No entanto, diz-se que o jovem João, por conta de desavenças na região em que estabelecera sua moradia, acabou por ser vítima de uma "espera'', isto é, uma tocaia, recebendo no corpo uma carga quase mortal de chumbo. Conseguintemente, "depois de tomar vingança daqueles que quiseram assassiná-lo, deixou a capitania da Paraíba em companhia de sua família, vindo estabelecer-se no vale do Timonha, na capitania do Ceará, tornando-se criador de gado nesse úbere trato. Joaquim José e Antônio José Borges de Pinho, com o correr dos anos, prosperaram, vindo ambos a acumular grande fortuna" .148 Apesar dos enfrentamentos e crimes relatados acima terem ocorrido ambos na capitania da Paraíba, foi precisamente no Ceará, junto ao apoio e proteção de seus irmãos, onde João veio buscar refúgio. Restabelecido agora na ribeira do Coreaú, João Borges de Pinho não parece ter sido alvo de qualquer devassa ou responsabilização judicial relativa ao assunto. Ressalto o fato de que precisamente Joaquim José Borges de Pinho, irmão de João, atuava como

148

OLIVEIRA, André Frota de. "Joaquim José Borges Pinho". ln: Os capitães-mores de Granja. (texto inédito). Deixo registrado aqui os meus sinceros agradecimentos ao professor André Frota de Oliveira que me cedeu gentilmente o texto supracitado de sua autoria, ainda lamentavehnente inédito e que se constitui no estudo mais sistemático sobre os capitães-mores de ordenanças de uma mesma localidade da capitania cearense.

100

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

juiz ordinário da vila de Granja em_17~9 e, no ano seguinte, seria nomeado capitão-mor da mesma vila, sendo dessa forma nada menos do que o encarregado da prisão dos criminosos e refugiad os no termo d a vi·1a. 149 . . . Muito provavelmente, não f01 mera comcidenoa o fato de que em 1767 as autoridades coloniais sentiram.ª necessidade de publicar no Ceará a determinação de que sena considerado crime de "lesa-majestade" qualquer "pessoa que resistir a justiça ou impedir qualquer execução de diligência", 0 que depõe no sentido de que no Ceará a resistência a ~risões e o impedimento de execuções judiciárias não se tratanam de . . 150 acontecimentos incomuns. Isso fica evidenciado quando em 11 de abril daquele mesmo ano a cadeia de Fortaleza foi arrombada, o que teve corno consequência a fuga de 25 presos. 151 A mesma cadeia da vila de Fortaleza, a principal prisão da capitania, para onde deveriam ser enviados os criminosos da capitania, foi - f ora a últ"ima vez, novamente arrombada em 1787.152E essa nao visto que em 20 de março de 1810 o "preto forro" morado~ em Acaraú de nome Anastácio Ferreira de Melo era pronunciado culpado pelo "arrombamento e fugida dele mesmo e outros da A

cadeia" da vila de Fortaleza.153 Contudo, a cadeia de Fortaleza não detinha a exclusividade de ser a única a ser arrombada com frequência na capitania. Em sua Memória sobre a capitania independente do Ceará escrita em 1814, Luiz Barba Alardo de Menezes, que havia governado o Ceará entre 1808-1812, mencionou que o distrito da vila de São João do Príncipe, no sertão dos Inhamuns, merecia "o maior cuidado da polícia, por ter sido sempre o coito de facinorosos da capitania do Piauí, que a viva força, de dia, sem temor das justiças, nem dos moradores da villa tem tirado, algumas vezes, os presos da cadeia". 154 Em um requerimento à rainha D. Maria I datado de 1788, José Correa acusava o coronel Manuel Martins Chaves de ter sido o mandante dos cinco homens responsáveis pelo resgate de Antônio de Melo Paes que se achava preso na cadeia de Sobral em 1780.155 Além disso, nas Memórias escritas por Alexandre Mourão o arrombamento de cadeias públicas figura ao lado das numerosas agressões e assassinatos ocorridos no Ceará nas primeiras décadas do século XIX. 1 56



153 APEC. Livro 01: Rool dos culpados (1793-18 17), "Anastacio Ferreira de Mello preto forro morador em Acaracú culpado na Devassa de Arrombam.'º e fugida de elle mesmo e outros da cadeia desta Villa pronunciado pello Juiz ordinario Manuel Ferr.ª Guim!5 em 20 de março de 1810. Prezo na Cad.ª desta V ª", fl. 5v.

149 APEC. Livro Ol: Rool dos culpados (1793-1817). " ...na devassa que tirou o Juiz ordinar.º José Joaquim Borges de Pinho", fL lv. APEC. Livro 18: Termos de juramento e posse da capitania do Ceará (1767-1840). Termo de Jurame?to q' da o Cap.m Mor das Ordenanças da Villa da Granja Joaquim José Borges de Pinho do Posto de Capitão Mor das Ordenanças da Vª da Granja, 12 de março de 1800, fl. 45. 150 APEC. Livro 14: Registros de portarias, editais, patentes, bandos e ordens régias da câmara da vila de lcó (1761-1796), Alvará de Lei de 3 de [ilegível] de 1767, fls. 40v-43v. 15 1 STUDART, Guilherme. Datas e factos para a história do Ceará. Edição facsimilar. Tomo I: Ceará colônia. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, p. 315. 152 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 11, Documento 645.

101

154

MENEZES, Luiz Barba Alardo de. Op. cit., p. 49.

155

\

1

1

t rr.

AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 12, Documento 662. Apud: VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. "Os régulos do sertão e o império lusitano: território e poder na capitania do Ceará na segunda metade do século XVIIl". ln: Anais do I Encontro Nordestino de História Colonial. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2006, p. 11. 156

"Memórias de Alexandre Mourão". ln: RIC. Tomo XLI, 1927, pp. 3-158. Apud: VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. "Apresentando a Família a partir da violência: tramas, tensões e cotidianos no Ceará (1780-1850)". ln: Documentos - Revista do Arquivo Público do Ceará. Fortaleza: Arquivo Público do Ceará, 2006, p. 16.

102

José Eudes Arrais Barroso Gomes

Em julho de 1775, o capitão-mor do Ceará Antônio José Victoriano Borges da Fonseca verificou irregularidades nos livros de contabilidade da câmera de Fortaleza e do cartório e cofre dos órfãos, o que o levou a suspender o secretário do governo José Gomes de Oliveira Gato do exercício do cargo e ordenar ao tabelião da vila de Fortaleza, Luis Marreiros de Sá, que intimasse o dito escrivão a "mostrar legalmente por documento autêntico, que tem justas as referidas contas do~ referidos cofres da câmera, e órfãos, sem dizer coisa alguma"'. Porém, o que torna curiosa a intimação feita a Oliveira Gato obrigando-o a provar sua honestidade no exercício do cargo de secretário do governo é a notificação feita pelo capitão-mor Victoriano ao escrivão suspenso: ...não apareça em minha presença, nem me fale senão por petisão, quando lhe seja preciso, nem venha ao quartel da minha residência, e nem finalmente tenha comunicação alguma com meus familiares.157 Nesse caso, a atitude do capitão-mor de precaver qualquer tipo de assédio ou hostilidade proveniente do escrivão investigado procura resguardar não somente a si: sua preocupação estende-se à sua residência e família. Conforme a isso, o capitão Victoriano, que à altura já vivia no Ceará e o governava fazia dez anos, pondera que naquela situação o seu lar e familiares poderiam se tornar alvos de ameaças e retaliações por parte de Oliveira Gato, o que parece indicar que na capitania do Ceará a violência despertava temores até mesmo na sua autoridade militar e governativa máxima, o capitão-mor, e ameaçava inclusive ir bater a sua porta à procura de sua família. 157 APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1 762-1804). Portaria de 7 de julho de 1775, fi. 45.

Um Escandaloso Theatro de Horrores

103

Apenas um ano depois, registrou-se na vila de Icó: ...a insólita e execranda [ilegível] se opunham, e resistiam, não só às execussões das justiças ordinárias, mais ainda aquelas que imediatamente ordenava por este governo em diligências do real serviço, em auxílios das justiças de Sua Majestade [ilegível] a proibida resolução e refúgio de desertores, facinorosos, vagabundos, e homicídios ... No mês de julho daquele mesmo ano de 1776, o capitãomor Antônio José Victoriano Borges da Fonseca remetia para as diversas vilas da capitania a cópia de um bando 158 circular que recebera do seu superior, o governador e capitãogeneral de Pernambuco José César de Menezes. Como José Victoriano já era bastante conhecedor da realidade cearense, o conteúdo do assunto tratado por tal documento não lhe era estranho. No texto do bando, após a invocação da "obediência e fidelidade dos vassalos para com os soberanos debaixo de cuja real proteção vivem felizmente dominados" e até mesmo do "Santíssimo Padre Benedito XIV", José Cezar de Menezes afirmava em demorado discurso:

158 "BANDO: Ordem ou decreto,

em geral dos Governadores e Capitãoes Generais, que é proclamado em pregão público ou afixado em lugar ou veículo de circulação pública (editais, cartazes, jornais). O mesmo que édito ou mandato proibitório. Em geral, corresponde a questões cotidianas, relacionadas ao cumprimento de ordens . pontuais. Muitas vezes, funciona como documento de correspondência, no sentido de fazer cumprir, em jurisdição mais limitada, uma ordem mais ampla e de origem superior". BELLOTO, Heloísa Liberalli. "Glossário de espécies documentais". ln: ARRUDA, José Robson de Andrade (coord.). Documentos manuscritos avulsos da Capitania de São Paulo (1618-1823): Catálogo 2 Mendes Gouveia. Bauru: Edusc; São Paulo: Fapesp/lmprensa Oficial do Estado, pp. 794-795.

104

José Eudes Arrais Barroso Gomes

Me foi verdadeiramente representado a inesperada, insólita e execranda temeridade com que muitos e alguns dos principais habitadores dos sertões destas capitanias atrevidamente se opunhão e resistiam não só às execussões das justiças ordinárias, mas ainda aquelas que imediatamente se ordenava por este governo em diligências do real serviço em auxílio das justiças de Sua Majestade, praticando por uma parte a proibida recepção e .refúgio de desertores, facinorosos, vagabun. dos e homicidas, e por outra ousadamente procurando aos mesmos cabos das diligências e juízes executores das leis para desviá-los de sua obrigação com ameaças e abomináveis máximas, persuadindo-lhes outrossim a que se interessem mais na condescendência do que injustamente lhes pedem como vizinhos que com eles sempre viveram do que nas recomendações e ordens deste governo trienalmente sucedido e muito remoto das suas povoações: atendendo a gravidade destes insultos e as perniciosas consequências que resultão, e podem nascer se se não administrar a justiça, castigar os culpados e terem efeito as execuções das leis e ordens do real serviço por ocorrer como devo todo este prejudicial inconveniente, e cortar logo desde o seu princípio esta odiosa e detestável máxima como de sediciosos, rebeldes perturbadores do sossego público contagiosos a sociedade civil e infames réus. do abominável crime de lesa-majestade. Determino a todos os governadores, capitães-mores, comandantes e justiças ordinárias de cada uma destas capitanias que em suas respectivas jurisdições façam caçar os agressores e réus de tão péssimos delitos já mencionados e aos neles compreendidos prender, e remeter a minha presença para se proceder

Um Escandaloso Theatro de Horrores

105

como for de justiça, e juntamente lhes ordeno que do mesmo modo o observem sempre que algumas pessoas de qualquer condição ou estado se oponhão as execussões das deligências que por mim ou pelas justiças lhes forem emcarregadas ainda que seja ecleziástico secular ou regular, suplicando para este efeito da minha parte todo o auxílio necessário à mais vizinha jurisdição militar ou civil...159

Como está textualmente dito, fazendo coro com a série de indícios que venho inventariando, o bando versa sobre a ocorrência de crimes, a resistência e impedimento da execução das ações e diligências judiciais, as distâncias dos sertões e o refúgio de criminosos, além da determinação de que todas as autoridades judiciais e militares deveriam se encarregar em coibir toda essa sorte de práticas criminosas tão "abomináveis" e "proibidas". Apontando a consecução de tão "escandaloso" estado de desordem em sua jurisdição, o governador José Cezar de Menezes afirma que o impedimento da execução das justiças, os assédios e amea,ç as a autoridades e o acobertamento de criminosos eram praticados por não menos que "muitos e alguns dos principais habitadores dos sertões", o que o leva a ordenar que se deveriam prender aqueles que se opusessem .às diligências das justiças reais independentemente de sua "condição" ou "estado", não excluindo-se nem mesmo eclesiásticos. A este respeito, vejamos o comentário feito por Henry Koster no início do século XIX sobre os Feitosa, poderosa família do sertão dos Inhamuns, então liderada por José Alves Feitosa:

159

APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). Bando de 11 de julho de 1766, fls. 54-55.

106

José Eudes Arrais Barroso Gomes

Os desertores eram bem recebidos por ele [José Alves Feitosa] e os assassinos que haviam cometido o crime vingando injúrias. O ladrão era repelido e mais aqueles que, para entregar-se ao saque, tinham tirado a vida de outrem.16

º

A observação de Koster indica não apenas a confirmação da recepção e proteção de criminosos prestada por uma das "principais" famílias cearenses do período, como também a perpetuação desse tipo de prática através de décadas. Subjacentemente ao acobertamento de criminosos estabelecia-se uma situação de dívida para com os poderosos fazendeiros sertanejos que deveria ser paga com fidelidade e implicava na incorporação de tais fugitivos e criminosos às tropas de "cabras" daqueles senhores, que .passavam a lhes servir sob o estatuto de "agregados". Entrevemos aqui também a lógica de funcionamento de determinado código de honra no sertão: era acolhido pelos fazendeiros o indivíduo fora-da-lei, seja desertor ou assassino, ao passo que se rejeitava o ladrão e o saqueador latrocida, estes últimos autores de crime contra a propriedade, que no Ceará concentrava-se exatamente nas mãos de poderosos grupos familiares que dominavam os sertões e que em diversas situações descumpriam e ignoravam as ordenações régias. 161

°

Um Escandaloso Theatro de Horrores

107

Vimos anteriormente os comentários de Koster sobre os desmandos dos Feitosa no interior da capitania do Ceará. Dentre as variadas transgressões das leis régias por poderosos membros da família Feitosa, sem sombra de dúvida o caso de maiores repercussões foi o já bastante conhecido assassinato de Antônio Barbosa Ribeiro, juiz ordinário de Vila Nova d'El Rey, morto em sua própria residência no ano de 1795. A descrição do homicídio, que contou com a participação de mais de trinta homens armados, assim como a perseguição aos acusados, tornam-se aqui redundantes posto que já detidamente discutidas por outros autores.162 Vale observar que os primeiros acusados pelo crime foram justamente o "cabra" Felipe Néri e alguns de seus parentes, prepostos dos Feitosa, sendo que só posteriormente o ouvidor encarregado do processo chegaria até os membros da família Feitosa. Depois de concluída a devassa do crime e decretada a prisão dos acusados, o temor das autoridades coloniais em efetuar as prisões, bem como a aberta resistência dos condenados em se submeter a qualquer punição judicial ficaram tão conhecidos como a própria ocorrência do assassinato. Dez anos após o crime, quando finalmente os acusados são presos, o capitão-mor João Carlos Augusto de Oeynhausen163 relatou a dificuldade em efetuar a prisão de Manuel Martins Chaves e seu sobrinho Francisco Xavier de

16

KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução, prefácio e comentários .de Luís da Câmara Cascudo. l ª edição em 1816. 12ª edição. 2 vols. Río de Janeiro, São Paulo, Fortaleza: ABC editora, 2003, p. 184. 161

A respeito de tal código de honra sertanejo em que o valor da propriedade sobrepuja a vida disse Capistrano de Abreu: "Reinava respeito natural pela propriedade; ladrão era e ainda é hoje o mais afrontoso dos epítetos; a vida humana não inspirava o mesmo acatamento". ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800 & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 224. Segundo Auxiliadóra Lemenhe, "particularmente a história cearense é pródiga em fatos que ilustram a ampla margem de poder dos fazendeiros. Controle sobre a composição das câmaras municipais, interferência

nas decisões metropolitanas relativas à localização das vilas, sobre a cobrança de impostos, sobre as ordenanças, poder para organizar exércitos particulares, que lhes davam os instrumentos de domínio não só contra concorrentes, mas também contra a própria administração portuguesa~'. LEMENHE; Maria Auxiliadora. Op. cit., p. 75. 162 Uma excelente discussão do caso encontra-se em: VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. Op. cit., pp. 190-202. 163 João Carlos Augusto d'Oeynhausen e Gravenburg, futuro Marquês de Aracati, foi capitão-mor governador da capitania do Ceará (1803-1 807), capitão-mor governador de Mato-Grosso, governou a capitanià de São Paulo como seu último capitão-general (1819-1822), e foi senador pelo Ceará na reaberta Assembléia Geral do Império.

108

Um Escandaloso 1heatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

164

109

Araújo , mandantes do crime e membros da família Feitosa ' ressaltando acerca da "cabroeira":

os serviços e a conduta de Manoel Martins Chaves, Oeynhausen foi ainda mais contundente:

... prendi com a maior prudência e cautela a Manoel Martins Chaves e seu decurião e sobrinho Francisco Xavier de Araújo Chaves, únicos autores de todas as desordens daquele distrito, e além destes, mais vinte ou trinta dos seus protegidos, cujos crimes depois se tem provado ... 165

...as continuadas resistências às justiças de Vossa Alteza Real, e à autoridade dos seus governadores, e finalmente à morte, à desgraçada morte do juiz ordinário da Vila Nova d'El Rey, daquele zeloso magistrado, [ilegível] que ali não amparava a Manoel Martins e seu conluio, tambem não sei que no tempo do meu governo não tinha feito serviços alguns a Vossa Alteza Real, senão os de amparar e de alistar na sua numerosa quadrilha os inimigos das suas leis e da humanidade, fazendo da sua pousada um receptáculo de criminosos e um baluarte contra a autoridade de Vossa Alteza Real, dos seus governadores e das suas justiças - tais são os seviços de Manoel Martins Chaves de que tenho conhecimento...166

Na sua informação ao Conselho Ultramarino sobre

1 1 [.

164

Note-se que os três mandantes do assassinato do juiz ordinário de vila Nova d'El Rey: "Bernardino Gomes Franco, Manoel Martins Chaves e seu sobrinho Francisco de Araújo Chaves possuíam também, todos eles, patentes do oficialato das tropas de segunda linha locais: capitão-mor de ordenanças, coronel e capitão de cavalaria miliciana, respectivamente". GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d 'El Rey: tropas militares, militarização do cotidiano e poder na capitania do Ceará, século XVI~!. (texto inédito). Me foi possível localizar o termo de juramento e posse de Bernardino Gomes Franco em: APEC. Livro 18: Termos de juramento e posse da capitania do Ceará (1767-1840). Tenno de Juram.10 q' por seu Procurador 0 Cap.m Mor Antônio de Castro Vianna dá Bernardino Gomes Franco pelo Posto de Capitão Mor da Ordenança de V.ª nova de El Rey em 18 de outubro de 1792, fl. 35. O mesmo livro informa que Antônio Martins Chaves, provavelmente filho de Manoel Martins Chaves, assumia o posto de capitão-mor da vila de São João do Príncipe em 1828 ? que ~ndica q~e a condenação de Manoel Martins Chaves não fora suficiente pare: impedir a tradição dos Martins Chaves na obtenção de patentes de comando das tropas auxiliares na região dos Inhamuns. APEC. Livro 18: Termos de juramento e posse da capitania do Ceará (1767-1840). Termo de Juram. 1º do Cap.mór da Villa de S. João do Príncipe An.10 Mis. Chaves por seo Bastante Procurador Angelo José da Expectação Mendonça em 21 de novemnro de 1828, fls . 122-123.

1 J

!

E acrescentou em tom de alarme: ... em cada correição se tiravão de vinte até trinta devassas de morte só no distrito de Vila Nova d'El Rey: que os Criminosos autores de muitas mortes eram [ilegível] à justiça por terem asilo seguro na morada de Manoel Matins Chaves, indo-se augmentando consideravelmente desta moda a guarda de corpo de Manoel Martins Chaves, e um colôio que não sendo logo desbaratado, dentro em pouco tempo seria mais forte de que as m.ª5 forças militares deste país (. ..)já não se atrevia abrir correição o ouvidor geral, porque ali era absoluto o poder dos réus, e irrisória qualquer outra

165

APEC. Livro 270: Officios e cartas do governo da Capitania do Ceará a Sua Alteza Real e Conselho Ultramarino (1804-1807). Officio dirigido ao Cons. 0 Ultramarino, em que informa sobre o requerimento de Manoel Miz Chaves, 22 de novembro de I 806, fls. 13v-18.

1116

Idem.

110

José Eudes Arrais Barroso Gomes

Um Escandaloso Theatro de Horrores

autoridade, não procurando estes a justiça senão para tirarem cartas de seguro, que eram cartas patentes de impunidade, que o dito ministro não podia negar sem risco de vida... 167

Contudo, o assassinato do juiz ordinário de Vila Nova d'El Rey,AntônioBarbosaRibeiro,eml795,nãofoioúnicocrimecontra um magistrado em terras cearenses, pois antes disso o fazendeiro Geraldo Monte, líder da família Monte, e seus homens haviam assassinado um juiz ordinário entre as vilas de Icó e Lavras, lugar que após o crime ficou conhecido pela denominação de "Juiz".168 Segundo Tristão de Alencar Araripe, quando as sangrentas lutas entre as famílias Monte e Feitosa se arrefeceram, "Geraldo Monte retirou-se para a sua fazenda Boqueirão, onde faleceu", sendo que posteriormente veio a livrar-se das incriminações judiciais que lhe foram feitas. 169 Assim como no caso do português João Borges de Pinho, não existem evidências de que Geraldo Monte recebeu qualquer tipo de condenação judicial por seus crimes. Outro atentado contra importante autoridade régia no Ceará, que faz menção à ocorrência de assassinatos na capitania, é mencionado por Tristão de Alencar. Diz ele:

bárbaro assassinato na pessoa de Afonso Paes, homem notável do lugar; e porque o dito comandante do presídio tomasse veemente interesse pela prisão dos assassinos, mandando soldados para os capturar, os assassinos vieram ao presídio e de uma emboscada junto a casa da residência do mesmo capitão [na vila de Fortaleza], na noite de 11 de agosto de 1708, dispararam-lhe um tiro de clavina, cuja bala fraturou-lhe um braço. 170

Mais precisamente em dezembro de 1778, nos deparamos novamente com o capitão-mor Antônio José Victoriano Borges da Fonseca que, como vimos, apenas dois anos antes havia distribuído a cópia do bando que procurava repreender a ocorrência de crimes e abusos na capitania. Naquele mês Victoriano nomeou o tenentegeneral de ordenanças Ignácio Aranha de Vasconcelos como comandante da vila de Granja.171 Ordenou Victoriano que o novo comandante se apressasse em tomar logo a posse do dito posto e declarou que Ignácio Aranha assumia aquela patente com a responsabilidade de imediatamente: ...fazer prender aos criminosos, perturbadores da paz e inquietos, aqueles entregando-os à justiça, e a estes castigando-os em tronco economicamente, como tão bem aos que se tomão de bebidas que por elas são costumados a fazerem distúrbios, remetendo à minha

Este governador [Gabriel da Silva Lago, capitão-mor do Ceará entre 1705-1709] fora a Pernambuco, deixando no governo interino o capitão do presídio Carlos Ferreira. Havia sido perpetrado na ribeira do Choró um

167

111

Ibidem.

16 8 ARARIPE.

Tristão de Alencar. Op. cit., p. 160. O "auto de vestoria" dos ferimentos do capitão Carlos Ferreira foi publicado em: "Tentativa de assassinato do governador interino Carlos Ferreira: auto de vestoria na pessoa do offendido". ln: RIC, tomo VI, 1892, pp. 215-216. 169

Idem.

170

Idem, p. 142. APEC. Livro 18: Termos de juramento e posse da capitania do Ceará (17671840). Termo de juram.to que dâ Inácio Aranha de Vasconcelos de Ten.• Gen.ª 1 da Vila da Granja, 14 de dezembro de 1778, fl. 17. 17 1

112

José Eudes Arrais Barroso Gomes

ordem para a cadeia desta Fortaleza à aqueles que bem lhe parecer para nela serem castigados com aquela severidade que merecerem, tomando para o referido soldados da ordenança de que é tenente- general. 172 Estamos aqui diante de mais uma menção ao turbulento cotidiano da capitania do Ceará, desta feita através da recémfundada vila de Granja173 situada na foz do rio Camocim, na ribeira do Coreaú. Para além da menção ao gosto popular por bebidas alcoól~cas 174, e das alegadas desordens decorrentes 172 APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). Portaria de 14 de dezembro de I 778, fi. 58v.

173

Um Escandaloso Theatro de Horrores

113

disso, Victoriano apresenta sumariamente o padrão básico de funcionamento do sistema de manutenção da ordem pública na capitania: os oficiais das tropas de milícias e ordenanças de cada localidade seriam ali os responsáveis pelo cumprimento da lei e manutenção da ordem colonial, devendo prender os seus infratores e remetê-los à cadeia do Forte de Nossa Senhora da Assunção, na vila de Fortaleza, conhecida· como "cadeia do crime" .175 Vale ressaltar que como parte da punição o criminoso devia ser "castigado" em "tronco", o que remete ao sistema de punições característico do Antigo Regime e ainda tão em voga na Europa durante o século XVIII, baseado em punições corporais e execração pública que, no caso em questão, se realizaria através de acoite público em tronco, instrumento de punição utilizado com escravos e, portanto, dotado de carga simbólica degradante numa sociedade escravista. 176

Antiga povoação de Macaboqueira, sede da freguesia de São José da Macaboqueira, erigida vila em 1773. 174

Em carta à rainha datada de 1787, o ouvidor Manuel Magalhães Pinto e Avelar também fez menção ao hábito bastante popular entre os moradores da capitania de beber "águas ardentes chamadas cachaças", chegando a sugerir à Rainha D. Maria I que a sua apreciação e consumo eram tamanhos que uma das soluções para a geração de renda para as câmaras locais seria a arrematação dos impostos sobre tais bebidas, assim como afirma que já havia feito com sucesso a câmara de Sobral. Para fundamentar a sua sugestão, Avelar argumenta que "atendendo a natural inclinação das gentes d'América para a dita bebida, poucos gêneros do pais estarião em igual rezão, como este, de poderem assegurar hum rendimento sólido, e certo as câmaras". Além disso, o ouvidor Avelar também fez questão de declarar que: "por que sendo incrível, como he, a decedida paxão, que tem todos os habitadores da América por esta bebida, ella he a fonte da maior parte dos execrandos delictos, e frequentes atentados, e assassinos, que se cometem nestes Certoens; assim como tão bem o he da inata estupides, inação, e amada ociozidade das gentes deste Continente; donde parece que nada haveria mais justo e apressiavel, que o projecto de fazer dirivar para a sociedade cômodos, e utilidades daquela mesma fonte, que a igualm.1• de prejuizos e desordens". O ouvidor menciona ainda que o preço médio de venda da cachaça na capitania era de 200 à 240 réis o quartilho (cerca de 350ml), sendo que esse valor incluía um lucro de cerca de 100 por cento obtido por carregadores e vendedores que intermediavam a importação do produto proveniente das capitanias da Bahia e Pernambuco. AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa II, Documento 644.

175 "No Brasil colonial, as fortalezas funcionavam regularmente como prisões para corsários, amontinados e mesmo criminosos comuns". VAINFAS, Ronaldo (dír.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 98. 176 FOUCAULT, Michel. Op. cit. Note-se que tal sistema de punições respeitava, contudo, critérios de classificação e posição social. Um exemplo de proporções espetaculares a respeito do sistema de punições adotado na época foi a execução em janeiro de I 759 dos culpados pela tentativa de assassinato de Dom José I, ocorrida em 1758, em um grande palco em praça pública: "O duque de Aveiro foi condenado a ser despedaçado vivo: teria os braços e as pernas esmagados, seria exposto em uma roda para todos o verem e queimado vivo, e suas cinzas seriam jogadas no mar. O marquês de Távora Velho teria a mesma sorte. A marquesa de Távora seria decapitada. As pernas e braços dos outros membros da família seriam quebrados na roda, mas antes seriam estrangulados, diferentemente do marquês e do duque, cujos membros seriam quebrados com eles vivos. (... ) O tratamento dos conspiradores não estava em desarmonia com os costumes europeus do século XVIII. Em I 775, o malsucedido assassino de Luís XV da França, Robert-François Damiens, foi submetido a todas as formas de castigo fisico em uso na época, até que finalmente, horas depois, o coup de grâce foi administrado. O incomum no caso dos Távoras e do duque de Aveiro foi a posição social das vítimas". MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Tradução: Antônio de Pádua Danesi. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 88. Somente em meados do século XVIII surgiriam

114

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gonies

Em 1777 a população do Ceará enfrentou uma terrível seca que ficou conhecida como a "Seca dos Três Setes", o que certamenteinfluencioua deflagração de "distúrbios"não somente no termo da vila de Granja, mas na capitania de maneira geral. No entanto, apesar das devastadoras marcas deixadas pelas secas na sociedade colonial cearense, a ocorrência de atos de violência na capitania do Ceará, como venho procurando mostrar, esteve muito longe de se resumir à períodos de estiagem que, sem embargo, certamente contribuíam para o seu acirramento. Essa consideração aponta na direção de que a ocorrência de secas não explica a presença da violência na vida do sertão cearense, cujas causas profundas devem ser vasculhadas no constante fazer e refazer de suas relações sociais e de poder. Em 1779, ano seguinte à nomeação do comandante de Granja, foi a vez do ouvidor José da Costa Dias e Barros representar à Rainha D. Maria I acerca da situação de desordem na qual, em sua opinião, encontrava-se a capitania. Acompanhemos o que ele nos diz: Logo que entrei na administração da justiça deste lugar, e no giro da correição desta comarca do Ceará, admirei com dor e impaciência o seu deplorável estado. Vi em terror os continuas assassínios, os roubos e todos os insultos os mais execrandos perpetrados por uma multidão incompreensível de homens facinorosos e libertinos, que infestavam este dilatado estado. Vi com um bem pungente desprazer a justiça geralmente desobedecida e sem forças nem meios para fazer seus ofícios e inspirar o respeito. Eu divizei logo que a causa próxima desta geral desor-

importantes transformações no sistema de justiça criminal. TAYLOR, David. Crime, policing and punishment in England (1 750-1914). New York: St. Martin, 1998.

115

dem consistia por uma parte em que compreendendo esta comarca doze vilas, quase todas (e ainda mesmo esta Capital) não tem uma cadeia pública, nem casas de câmara, servindo de uns casebres informes, construídos de paus e barro, que só servem de irrisão e de escândalo, mas de nenhuma segurança aos presos; e por outra parte vi que os oficiais de justiça eram pela maior parte uns homens pusilânimes e destituídos dos importantes requisitos para bem e fielmente fazerem os seus deveres.177 Fica claro que grande parte da ênfase dada pelo ouvidor à sua descrição do "deplorável estado" da justiça na capitania servia-lhe como atenuante das suas próprias responsabilidades àquele respeito. Contudo, mais do que repetir o comprometido quadro de fragilidade da justiça no Ceará que José da Costa Dias dizia descortinar-se perante seus olhos, o ouvidor conjectura que a razão desse estado de precariedade era o fato de que o Ceará inteiro possuía apenas uma comarca abarcando suas então 12 vilas distribuídas ao longo de vasto território, o que se somaria à pusilanimidade dos oficiais de justiça e ao estado de ruína das cadeias públicas. Cabe acrescentar que através das notas de viagem do botânico George Gardner percebemos a permanência do reduzido número e do estado de precariedade das cadeias cearenses ainda em fins da década de 1830178 . Como havia anotado anteriormente, uma segunda comarca na capitania, sediada na vila do Crato, seria criada apenas em 1816, porém, a valer-se novamente do relato de Gardner, essa iniciativa não parece ter surtido efeitos lá muito animadores. 177 AHU.

CT: AHU ACL CU 017, Caixa 9, Documento 564.

178 GARDNER,

George. Op. cit., pp. 89-108.

116

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

117

Na Ribeira de Crateús, confins desta com a capitania do Piauí, se haviam congregado muitos facinorosos, que andando carregados de armas de fogo e brancas se ocupavão nos exercícios de uma vida ociosa, roubando, ferindo, matando e insultando por todos os modos os moradores pacíficos, com tão pouco respeito às justiças que publicamente executavão as suas temeridades, e até nos templos entravão armados, como fica dito, e me referiu o visitador-geral deste bispado... O mesmo que na sobredita ribeira de Crateús acontecia, me constou se estava praticando na Ribeira de Mossoró, limites desta capitania com a do Rio Grande do Norte, e para obviar os progressos que já iam fazendo muitos fadnorosos que naquele distrito, me constou residiam, e · de alguns que tendo já feito assassínios e roubos sabidos, se tinhão passado à referida capitania do Rio Grande do Norte, insultando de lá os moradores desta... Porão sempre estes sertões o refúgio daqueles homens que em outras capitanias cometiam algum crime, e lhes não era difícil conseguir, porque sem passaporte entravam e saião sem embargo algum, como e quando queriam, e assim vinham'continuando nos seus aburdos. Para obviar estes ingressos determinei por ordens que expedi a todos os lugares marítimos e aos comandantes dos mais lugares para que não permitissem que neles entrassem, nem deles saíssem sujeitos alguns sem passaportes que ?S le~itimassem para seguir suas viagens ...180

Além da observação de que o grande número de crimes consistia em coisa corriqueira no cotidiano da capitania, em carta datada de março de 1783 o capitão-mor João Baptista Azevedo Coutinho de Montaury considerava que o Ceará se distinguia das capitanias vizinhas exatamente pela "falta de observância das leis e ordens de Sua Majestade": Em toda esta Capitania se supunhão os homens na liberdade natural, cometendo todo o gênero de atrocidades e despotismos, tendo só por lei a sua vontade, e por melhor direito a maior força: ninguém se admira que morra um, ou muitos homens a tiro de espingarda ou de bacamarte, e menos que acabe na ponta de uma faca, nos fios de uma espada ou a pauladas, porque isso é coisa muito ordinária, nem é necessário que o morto ofendesse o matador, por que este por um módico preço não recuza ser verdugo, e satisfazer paixões particulares de outrem por ser a solidão deste numeroso continente acomodada para todo o gênero de iniquidades ... ... se não olha para parte alguma desta Capitania, em que se não vejão roubos, adultérios, estupros, e assassínios...179 Ainda segundo o capitão-mor Montaury, os crimes e atos de violência aconteciam com frequência ainda mais elevada nas áreas fronteiriças da capitania, o que justificaria a imposição do uso de passaportes pela população:

No entanto, o próprio capitão-mor teve que reconhecer que aquelamedi4aforaineficaznãosomentepelalocalizaçãodoslugares 179 BNRJ. Setor de Manuscritos. 11-32, 24, 031. Documentos sobre a capitania do Ceará. Fundo: Coleção Ceará. Carta do capitão-mor João Baptista Azevedo Coutinho de Montaury, 12 de março de 1783, p. 72.

180

1

Idem, pp. 73-74.

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

118

E disse ainda o ouvidor mais adiant e: Metade dos habitadores desta comarca são vadios sem ofício ou vagabundos por natureza; com o os Árabes: uns e outros n ão vivem mais que de furtos de gados, de que abunda o país, andando sempre forast eiros em toda a parte: se a policia os apan ha ou são castigados pela justiça desculpão-se que não trabalham porque não tem em quê, nem meios para o poder fazer, nem quem os ajude em o trabalho, sendo cert o que uma pessoa só a nada se pode aplicar com proveito; muito mais em uma terra destas. Esta resposta que me tem sido dada por alguns, que tenho intentado castigar e reduzir a algum serviço, não deixa de mostrar algumas aparênsias de razão: e esta cauza, por que eu quisera que as câmaras com seus respectivos destrictos se aplicassem com t oda a actividade a juntar estas gentes de concerto com os ouvidores, e forne cer-lhe com os seus novos rendimentos os meios necessários para poderem ser úteis à sociedade, de que são cargas infructuozas. 183

de fronteira da capitania, mas sobretudo pelo acobertamento de criminosos pelos "senhores de gado" cearenses: Vendo que estas ditas ordens não podiam bem executarse pela situação dos mesmos lugares, e por que muitos senhores de gados conservavão nas fazendas muitos indivíduos criminosos e desertores com o diabólico interesse de serem executores das suas paixões, com prejuízo notável de outras fazendas, de que roubavão gados para se sustentarem, da República e da Real Fazenda, como por várias representações me foi patente... 181

Em outra carta, esta dirigida à rainha D. Maria I acerca da situação econômica da capitania em 1787, o ouvidor da capitania, Manuel Magalhães Pinto e Avelar, comentou: É sabido em Portugal, conhecido de todos o quanto abundão os sertões do Brasil de homens facinorosos, vadios e matadores, chegando em muitas partes até ao excesso de não reconhecerem subordinação às justiças e autoridade régia: o qual vício penso eu nascer em grande parte da impossibilidade que há de os castigar e ter seguros até sua condenação pela falta que há em toda esta capitania de cadeias públicas; não havendo em todas as vilas dela mais que duas que as tenhão, que são a do Aracati e Sobral; e ainda mesmo estas mal constnúdas e pouco seguras, de sorte que anualmente estão sendo arrombadas pelos presos, que escapando ao merecido castigo como que se animão a irem perpetrar novos atentados, sempre impuníveis e sempre crirnínosos.182

181 Idem,

p. 75.

182 AHU.

CT: AHU ACL CU 017, Caixa 11, Documento 644.

119

Vê-se aqui que Manuel Magalhães Pinto e Avelar repete a nada original constatação sobre o elevado número de "homens facinorosos, vadios e matadores", roubos e assassinatos na capitania cearense. 184 No entanto, ao relatar a existência de homens que classificou de "vadios sem oficio

183

184

Idem.

Sobre a existência de indivíduos " desclassificados" na América portuguesa, Laura de Mello e Souza afirma que: " Longe de ser pacífica, essa existência teve grandes percalços, um dos maiores tendo sido a inimizade constante das autoridades coloniais, do Poder Constituído que, através de medidas altamente repressivas, nunca deixou de envolver os vadios em suas redes tentaculares". SOUZA, Laura de Mello e. Op. cit., p. 90.

·· ···-··-···--··-··---··--··- - - · - - - - - · - - · - - - - - · - - - - - - - - - - : - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

120

José Eudes Arrais Barroso Gomes

ou vagabundos", o ouvidor revelou que muitos deles quando capturados afirmavam entregar-se ao crime em virtude da falta de quem os oferecesse trabalho, assim corno de meios para que pudessem trabalhar por sua própria conta. Ainda mais surpreendente que essa afirmação é o fato de o próprio ouvidor Avelar não só ponderar que tal argumento era na realidade procedente, mas ainda de sugerir que as câmaras das vilas da capitania deveriam desenvolver projetos de apoio que possibilitassem a integração desses grupos ao mundo produtivo, para que dessa forma pudessem se tornar "úteis à sociedade, de que são cargas infructuozas". Em outras palavras, o ouvidor acaba reconhecendo que no Ceará levas de indivíduos estariam compulsoriamente excluídos do mundo produtivo e que esse processo de exclusão guardaria· urna evidente conexão com o quadro geral de crimes e roubos na capitania. 185 Em 1789, o capitão-mor Luís da Mota Feo e Torres mandou que se publicasse nos Inharnuns um edital "a respeito

185

Uma observação bastante importante é o fato de que logo em seguida o ouvidor Avelar ressaltou como uma das causas daquela situação a "grande carestia" dos "itens, e ferramentas percizas para a agricultura". Idem. Assim, esse fato pode ser um dos fatores que justificaria a raridade de ferramentas agrícolas na capitania e a sua consequente ausência nos inventários coloniais cearenses analisados por Otaviano Vieira: "Não era comum nos inventários a avaliação de lotes de terras destinados às plantações, ou referências a instrumentos agricolas como enxada, arado ou foice. Tais inventários eram extremamente detalhados, onde muitas vezes citavam-se bens que não tinham valor. Essa debilidade de referência à agricultura talvez ocorresse pelo pouco valor de produtos agrícolas, e por ser secundária a atividade de plantio. Outra explicação possível para a raridade de referências à agricultura nos inventários era uma ausência de plantações nas fazendas. Ou, caso os plantios existissem, poderiam se encontrar sob a posse de agregados - que dificilmente deixavam inventários. Poderia-se também especular o próprio papel da grande fazenda na produção de gêneros agricolas, e atribuir esse papel à pequena propriedade". VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. Op. cit., pp. 79-80.

Um Escandaloso Theatro de Horrores

121

dos vagabundos, criminosos, desertores e que usam de armas proibidas". Declarava o edital: Faço saber aos que este edital virem que tendo me sido presente que apesar das providencíssimas ordens de Sua Majestade e dos multiplicados bandos dos meus predecessores para se não consentirem vadios e ociosos no distrito desta capitania, se tem assaz augmentado o seu número, e consequentemente o dos roubos, assassínios e insultos que a cada passo cometem valendo-se do excessivo uso de armas proibidas em desprezo das leis da soberana e dos sítios desertos por onde vagão e discorrem fugindo de viverem em sociedade civil, ~mbrenhados como feras nos matos do que resultão gravíssimos danos à Real Fazenda e ao socego público e particular dos moradores pacíficos que vivendo nas suas fazendas se não podem considerar seguros de serem assaltados daqueles perversos indivíduos vagabundos: me pareceo portanto ordenar (como pela presente ordeno) a todos os comandantes de distritos e oficiais de milícias que da publicação deste em diante não consintão nos mesmos distritos sujeitos alguns que não verifiquem o ofício, trabalho ou negócio de que vivem, e os obriguem a ir viver nas povoações ou vilas mais vizinhas: que os donos de fazendas não conservem nelas agregados alguns fora daqueles homens que ocupão nas suas fábricas, contanto que não sejão criminosos ou desertores, e que sabendo são tais, prendam e remetam à cadea mais vizinha como parte da su a conduta a entregar aos juízes ordinários, que o achando alguns com armas proibidas, sejão brancas ou de fogo, especialmente nas vilas ou povoações,

122

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

tado grandemente aquele número e excitado o meu cuidado a providenciar a obviar todas as desordens, que de semelhantes princípios demandão; e para de algum modo o conseguir, tenho sido obrigado a usar de alguns castigos arbitrários, também pelos contínuos rogos dos prejudicados, visto que não há cadeias seguras para tantos ladrões e malfeitores, e nem se poderião, ainda que as houvesse, conservar com vida tantos indivíduos em prisão sem terem sustento.187

lhes façam apreensão nelas e as remetão ao armazém da Fortaleza.186

Desse modo, Feo e Torres referiu-se ao aumento do de "vadios ~ ociosos" na capitania que, segundo ele, andariam a causar gravíssimos danos à Real Fazenda e ao socego público e particular" através de "roubos, assassínios e insultos". As suas considerações ganham maior importância pelo fato de terem sido feitas um ano antes do início da devastadora seca de 1791-1793, que ficou conhecida pela denominação de "Seca Grande" na memória popular e foi a~~ntad_a pelos contemporâneos como responsável pela diz~rr:açao ~e grande parte do rebanho da capitania, o que tena mc~us1ve provocado o declínio da indústria do charque na economia cearense. Mais uma vez, verifica-se que a ocorrência de secas não se sustenta enquanto fator explicativo exclusivo para a violência do cotidiano na capitania. A respeito dessa mesma violência, um relatório do capitão-mor Luis da Mota Feo e Torres de 1792, escrito portanto durante a Seca Grande, informa que: núme~o

O mal hábito da plebe deste continente, a sua situação de acomodação para insultos e furtos de gados sempre dispersos nestes vastos sertões, fazem que esta capitania seja de longos tempos um viveiro e receptáculo de ladrões e facinorosos: o excessivo uso das armas e a fome que geralmente se experimenta no presente ano e teve princípio no passado, unido à ingênita preguiça que domina estes povos, tem augmen-

O capitão-mor faz alusão às constantes reclamações que alegava vir recebendo e menciona a falta de segurança das cadeias na capitania, referindo-se ainda ao elevado número de criminosos no Ceará, que seria tão grande que seria impossível sustentá-los presos. Feo e Torres chega até mesmo a confessar que se utilizava de "castigos arbitrários" para tentar conter a situação, o que acaba indicando que alei não era cumprida nem por ele mesmo, principal responsável pelo seu zelo. 188 Chaino a atenção aqui para o fato de que, justamente naquele ano de seca, o capitão-mor Feo e Torres referiu-se em seu relatório ao rei a uma alegada "ingênita preguiça" que segundo ele dominaria os povos da capitania e que, assim como a "fome" generalizada e o "excessivo uso de armas", teria relação direta com o grande número de criminosos e a ocorrência de crimes na capitania, dentre os quais ressalta o furto de gados. O discurso sobre a alegada "preguiça" dos moradores da capitania era frequentemente acionado pelas autoridades régias locais: o próprio capitão-mor Feo e Torres associou

187 AHU. 186 APEC.

Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). "Edital para os Inhamuns a respeito dos vagabundos, criminozos, dezertores; e que uzão de armas prohibídas", 25 de novembro de l 791, fts. 67v-68.

123

188

CT: AHU ACL CU 017, Caixa 12, Documento 687.

Laura de Mello e Souza observa que na manutenção do sistema colonial o próprio poder constituído associava intimamente o cumprimento da lei e o exercício da violência. SOUZA, Laura de Mello e. Op. cit., pp. 116-129.

124

José Eudes Arrais Barroso Gomes

criminalidade a ociosidade e vadiagem em 1789; já o ouvidor Manuel Magalhães Pinto e Avelar, por sua vez, referiu-se em 1787 à "amada ociosidade das gentes" dos sertões cearenses1ª9; e o autor da Memória geográfica abreviada da capitania do Ceará considerou em 1816 que além da "ocorrência de secas", do "furto de gados" e da "frequência dos crimes de morte", entre as causas do entrave do desenvolvimento da capitania deveriam "entrar em linha de conta a preguiça, o prejuízo de não servir homem forro, ainda que seja preto". Tratavase, assim, da utilização daquilo que Laura de Mello e Souza chamou de "ideologia da vadiagem" adaptada às condições locais cearenses ou, em outras palavras, a versão que aquele discurso assumiria nos sertões da pecuária. 1 90 ' Engrossando a reincidente descrição feita pelos funcionários régios do cenário de crimes e violência na capitania, o governador Bernardo Manuel de Vasconcelos escrevia ao então príncipe regente D. João VI em primeiro de janeiro de 1800:

Um Escandaloso Theatro de Horrores

são entre eles usuais. A história de crim~s, semelhantes das gentes do novo mundo, depois de verdadeira, que mais pode faltar senão que a pena daqueles que a escreveram fosse guiada pela experiência de ouvir e ver junto a si feitos tão bárbaros, acompanhados de acidentes de tal natureza que deixam em suspensão o espírito se o delito é mais feio, se o modo de apertrar. Tauá, Inhamuns e Serra dos Cocos, distantes desta vila [de Fortaleza] mais de 100 léguas, junto às extremas das capitanias do Maranhão e Piauí e outras terras do sertão repetidas vezes no círculo do ano é theatro d'estes horrores, e quando os persegue a justiça passam-se para aquelas capitanias. 191 E passados dois anos, em 30 de set~mbro de 1802 escreveu novamente o governador Bernardo Manuel de Vasconcelos ao real soberano sobre:

Passo agora a dizer do caráter e qualidades moraia dos povos desta capitania: um gentio turbulento e receoso, a vingança por meios fracos e sinistros, e os assassínios

189 AHU.

... a indizível dificuldade que por falta de justiça havia sempre de se capturarem os réus de crimes, logo que os commetessem, ficando deste modo impunidos os seus autores e as leis iludidas pelos facinorosos, os quais achando em menos de um dia nas extremas da capitania da Bahia com que confina o Tauá a sua segurança por se ignorarem os seus delitos, ficavam assim desembaraçados para perpetrarem outros iguais ou maiores naquela colônia, tendo ao mesmo passo escapado ao castigo que nesta mereciam.192

CT: AHU ACL CU 017, Caixa li , Documento 644.

190

"À perplexidade do homem livre pobre e constantemente desclassificado, a camada dominante opôs um corpo bastante organizado de formulações, cujas raízes lançam seus frutos ainda hoje, pois foram incorporados e reelaboradas pela nossa tradição autoritária. Em síntese, a camada dos homens pobres era tida como uma outra humanidade, inviável pela sua indolência, pela sua ignorância, pelos seus vícios, pela mestiçagem ou pela cor negra de sua pele; habitantes de uma terra rica e farta, esses homens nada faziam para dela conseguir frutos: preferiam viver de expedientes e de esmolas, descurando do futuro, repudiando as formas permanentes da atividade econômica e abraçando um modo de vida itinerante e imprevidente. ( ... )A indolência e a preguiça - transcendentes por todo o Brasil- grassavam entre a gente livre pobre, "gente degenerada de costumes". SOUZA, Laura de Mello e. Op. cit., pp. 219-220.

125

191

"Documentos para à história do governo de Bernardo Manoel de Vasconcellos (Collecção Studart)". ln: RIC, tomo XXVIH, 1914, p. 333 . 192

Bernardo Manuel de Vasconcelos em 30 de setembro de 1802. Idem, p. 365.

126

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

Um d.etalhe que merece ser destacado aqm e o desconhecimento de Bernardo Manuel acerca dos limites da capitania que governava já há três anos, posto que a capitania da Bahia não limitava com o Tauá cearense, como afirma. De qualquer modo, essa constatação acaba por evidenciar a extensão da capitania como um dos motivos mais reincidentemente apontados pelos capitães-mores para justificar o cenário de crimes e impunidade no Ceará. O autor da Descrição abreviada da capitania do Ceará, escrita em 1816, relatou a "facilidade de se manter de furto de gados, a frequência dos crimes de morte, que perde logo dois homens o morto e o agressor, que ordinariamente escapa não só pela fugida e dificuldade de se apanhar nos longos matos, mas pela indiferença com que os habitantes olham para o crime de morte e a prontidão com que acoitam a dão passagem aos criminosos".193 O mesmo autor considerou que muitas fazendas de gado na capitania serviam "de valhacouto a vadios, que a título de criação de gados vivem sendo daninhos e ladrões nas fazendas vizinhas". 194 Ainda segundo ele, entre as causas das dificuldades do desenvolvimento da capitania estariam o "pouco amor ao luxo bem entendido e nenhum horror ao crime, com 'que tanto se tem familiarizado o povo da capitania, que é ponto de honra e caprixo defender e acoitar o homicida". 1 95 Como foi visto, o longo inventário acima aponta a reincidente referência à violência, ocorrência de crimes e fragilidade de imposição da justiça régia :ha capitania do Ceará ao longo de todo o século XVIII, na maioria das vezes através

127

da constrangedora confissão dos próprios agentes do poder instituído, sobretudo capitães-mores e ouvidores. 196

4.2 Cotidiano em armas: o disseminado uso de armas e sua proibição Para o europeu acostumado a viajar com relativa segurança, sem recurso ao porte de armas, o encontro de viajantes trigueiros com ar de salteadores, cada qual armado de pistolas, espada, adaga, faca e espingarda, dá idéia muito desfavorável da moral desta gente. Assassinatos e roubos são frequentes entre eles, raramente se verificando um sem o outro ... George Gardner, 1838197 Constando-me tão bem que na Ribeira dos Caratiüs nos confins desta Capitania com a de Piauí, se havia congregado um gran de número de facinorosos, que sem temor algum de Deus nem das Justiças se ocupavão somente em roubar e mat ar, andando carregados de armas de fogo e facas , com tal atrevimento que até aos sagrados templos e seus ministros perdião o respeito assistindo ao tremendo sacrifício da missa os ho-

196

193

"Descrição geográfica abreviada da capitania do Ceará ...;•. Op. cit., p. 13.

194

Idem, p. 9.

Em termos gerais, parecem ter sido bastante comuns os lamentos dos administradores coloniais, de forma que nesse ponto o Ceará não se constituía em exceção. SOUSA, Laura de Melo e. Op. cit., pp. 91 -92. Minha leitura sobre o caso cearense é que os agentes coloniais, diante de uma inegável realidade de relativo descontrole, buscavam utilizar o quadro de desordem e dificuldades no sentido de dirimir sua ingerência e enaitecer os seus alegados esforços.

195

Idem, p. 30.

197

GARDNER, George. Op. cit., p. 84.

128

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

mens com espingardas na mão, pistolas e bacamartes na cinta, e as mulheres com facas ... João Baptista de Azevedo Coutinho de Montaury, capitão-mor da capitania do Ceará, 1782.198

Como fica claro na citação de Gardner acima e na descrição fornecida por Koster sobre a indumentária do sertanejo em viagem, que incluía chicote, espada e pistola pederneira, os viajantes estrangeiros que vieram ao Ceará nas primeiras décadas do século XIX não deixaram de destacar um importante aspecto da vida cotidiana nos sertões cearenses que estava diretamente relacionado ao cenário de violência que disseram encontrar no Ceará: a ampla difusão do uso de armas pelas populações sertanejas. rigo~o~o livro quinto das Ordenações Filipinas, que cons1st1a no cod1go de leis pelo qual se baseava a governança da América portuguesa, já trazia a preocupação com o controle e a normalização do uso de armas. 199 Não obstante a isso, no Ceará por repetidas vezes as autoridades coloniais tentaram coibir o uso indiscriminado de armas através de leis e regulamentos que ~mpunham a aplicação de penalidades pecuniárias, prisão e ate mesmo degradantes açoites públicos aos portadores de armas proibidas.

.?

Havia mencionado páginas atrás a determinação régia de 1761 que trazia, entre outras medidas controladoras, a ordem de que "se não consentissem armas de qualidade alguma" em posse dos ciganos que habitavam os sertões. Referime também ao édital de 1789, que buscava punir aqueles que fossem considerados "vagabundos, criminosos, desertores e que usão de armas proibidas"; assim como ao relatório de 1792 do capitão-mor Luis da Mota Feo e Torres, no qual o mesmo afirmava que o "excessivo uso de armas" consistia em uma das razões para o grande aumento do número de "insultos" e "furtos de gados" verificados naquele ano de seca. Ainda nesse sentido, a carta do capitão-mor do Ceará João Baltasar de Quevedo Homem de Magalhães ao rei D. José 1, datada de 1760, é certamente um dos mais interessantes documentos sobre o uso de armas no Ceará do período. Esta carta trata-se, na verdade, de uma coletânea de representações sobre a proibição do uso de armas de fogo que haviam sido decretadas pelo ouvidor da capitania, o já citado Victorino Soares Barbosa. Segundo as próprias palavras do ouvidor, a motivação daquela proibição se dava "a fim de se obviarem os execrandos delictos que com qualquer qualidade de armas de fogo de pederneiras [pistolas] se custumavam cometer assim curtas, como com espingardas, de que geralmente o abuso tem facillitado a todos o entenderem podem licitamente usar destas espingardas, ou davinas [carabinas] de quatro palmos para cima nesta mesma comarca" do Ceará. 2 Como reação imediata à citada proibição do uso de armas de fogo na capitania, o capitão-mor João Baltasar escreveu carta ao rei na qual, utilizando-se da habitual retórica empregada pelas autoridades setecentistas, se diz

ºº

19

~ ~xposição de João Baptista Coutinho de Montaury, 31 de dezembro de 1782. B1bhoteca do Palácio Nacional da Ajuda. Ms. Av. 54-XIII-16, n. 141ª, ft. 4v. 199

Segundo a opinião de Fernando Almeida, "no que tange ao Direito Penal, 0 Livro 5º das Ordenações Filipinas era de um rigor que tocava as raias do ridículo". ALMEIDA, Fernando Mendes de. "O direito português no Brasil". ln: HOLANDA Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. Tomo I: época colonial' 2º volume: administração, economia, sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil' 1997, p.47. '

129

200

AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 07, Documento 480.

131

José Eudes Arrais Barroso Gomes

Um Escandaloso Theatro de Horrores

estar investido do papel de "Procurador" do povo do Ceará e informa à "Sua Majestade Real" sobre:

defesa dos vassalos sertanejos, "expecialmentenos remontados sertões deste Brasil onde girão tanta qualidade de vadios, mal feitores e facinorosos, além dos mais perigos em que andão os viangeros, e por causa das muitas feras de que se compõem estes sertões". Acrescentou ainda que em consequência de "semelhante excesso" do ouvidor inviabilizavam-se as diligências destinadas à captura de criminosos pelas tropas de ordenanças devido ao fato de que tanto os seus soldados quanto oficiais ameaçavam negar-se a cumprir o real serviço, temendo o pagamento de "justificações" à justiça em razão do porte de armas, que se via agora, segundo a sua ótica, radical e autoritariamente tornado ilegal. Apresentando os motivos acima, o capitão-mor concluiu gravemente: "Faz-se impossível Senhor, a observância de semelhantes leis, ainda tendo lugar pelos dilatados e perigosos desertos destes sertões". Apesar da famosa rixa entre o capitão-mor João Baltasar e o ouvidor Victorino, o que torna a carta de João Baltasar bastante significativa, no entanto, é a representação contrária à proibição do uso de armas que trazia em anexo, assinada por todos os oficiais da câmara de Icó. As figuras 3 e 4 abaixo, retiradas da História Militar do Brasil escrita pelo cearense Gustavo Barroso, apresentam armas de fogo utilizadas na América portuguesa ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. Apesar de Gustavo Barroso apresentá-las em seu livro como armamentos utilizados pelas tropas militares coloniais e pelo exército brasileiro, que só surgiria na segunda metade do século XIX, aparecem com frequência na documentação colonial cearense como artefatos de utilização cotidiana pelos moradores do Ceará setecentista, especialmente aspopulares pistolas de pederneira, espingardas, carabinas e clavinas.

130

...a grande consternação em que se acha todo o povo desta capitania por causa do edital que mandou fixar em todas as partes públicas da comarca o ouvidor-geral atual Victorino Soares Barboza para efeito de proibir totalmente aos habitadores desta capitania toda a qualidade de armas de fuzil ou pederneira, assim curtas como compridas ... 2 1

º

Escrevendodeformaapôremevidênciaasuaindignação, talvez originada muito mais por um conflito de autoridade com Victorino do que pela a proibição ou não do uso de armas na capitania202, João Baltasar acusou o ouvidor, dizendo que ao publicar as novas leis sobre a proibição de armas de fogo de cano curto determinadas por El Rey D. José I, havia incluído a reedição de duas "antiquíssimas" leis proibitivas do uso de armas criadas pelo rei Felipe II de Espanha e que remontavam, portanto, ao período da União Ibérica (1580-1640). O capitãomor alegou a arbitrariedade daquela medida argumentando que as armas eram instrumentos que se faziam necessários à

201 202

Idem.

É bastante conhecido o conflito entre o capitão-mor João Baltasar de Quevedo Homem de Magalhães e o ouvidor Victorino Soares Barbosa, de cuja polêmica não tratarei aqui por considerar uma disputa ainda bastante obscura e merecedora de investigações. Segundo Tristão de Alencar Araripe: "Este governador [João Baltasar] e o ouvidor Vitorino Soares tiveram indecente contenda. O ouvidor queixou-se do governador imputando-lhe prevaricações, ao passo que este acusava o ouvidor de querer assassiná-lo, chegando a convidar pessoas para semelhante atentado. Este ouvidor passou como arbitrário, foi arguido de vender a justiça e dilapidar os dinheiros públicos; o que é certo é que comprou fazendas de gado no Riacho-do-Sangue e arrematou dízimos reais por interposta pessoa, a qual faliu sem pagar o débito à Real Fazenda''. ARARIPE. Tristão de Alencar. Op. cit., p. 146.

132

Um Escandaloso Theatro de Horrores

José Eudes Arrais Barroso Gomes

Figura 2

ARMAS DE FOGO: SÉCULOS XVI, XVII E XVIII

.t .

.

z· ·. ..

····~

No ano seguinte à publicação da proibição do uso de armas de fogo na capitania cearense, era chegada a vez das armas ditas brancas. Assim, em 25 de julho de 1762 registravase na câmara da vila de Icó, uma das mais antigas vilas cearenses que funcionava como importante entreposto comercial na porção central da capitania, exatamente no cruzamento dos dois maiores caminhos do Ceará, a Estrada Geral do Jaguaribe e a Estrada das Boiadas, uma outra lei régia que determinava que: ... nenhuma pessoa de qualidade, estado ou condição que seja possa trazer consigo faca das proibidas (...) mas de qualquer forma que seja fabricada( ...) a ponta dela se puder fazer ferida penetrante nem outrossim possa trazer adaga, punhal (...) ou estoque [tipo de espada comprida], ainda que seja de (... ) tesouras grandes (...) outra qualquer arma ou instrumento quer seja composto de ferro, aço, bronze ou de outro metal e ainda de faca que com a ponta se podem fazer ferida penetrante e só poderão trazer de espada de marca ou espadins que não tenham menos de três palmos de comprimento fora o punho e trazendo-o à sinta para que se possa ver todas as mais armas e instrumentos, além dos sobreditos que unicamente permito se possam trazer na forma declarada fi.cão prohibidas e condenados ... 203

Fonte: BARROSO, Gustavo. História militar do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935, p. 102.

Figura 3

ARMAS DE FOGO: SÉCULO XIX

14.J:itii.p.icl. cm 'rn11M~ 4o ~•ln. Toww 011 P•~ p&l'll lalaftl&fta. d. 11.u.. j, ... f.Udr'W. -. .. . t, O.lo•.t. bt.a..~r ~ .. Jl.tbmà uma. _ f , C.t•ld11a do · rob.IDG t