Um diagnóstico da educação brasileira e de seu financiamento
 9788574963884

Table of contents :
Sumário
Apresentação
1. Um breve diagnóstico
1.1. O analfabetismo e o ensino superior
1.2. Quantidade versus qualidade no sistema educacional
1. Tentando entender as origens do problema
2.1. Educação: dois grandes passos para trás
2.2. Desigualdade e educação
2.3. Privatização do ensino superior: problemas
2.4. Como foi e é construída a privatização do ensino superior no Brasil
2.5. O estado dos nossos estados
2.6. Mitos e mentiras que embasam nossa política educacional
1. Financiamento da educação pública
3.1. Como surgiu a bandeira 10% do PIB para a educação pública
3.2. Quanto realmente investimos em educação pública?
3.3. Os parcos recursos públicos brasileiros
3.4. Mais recursos para a educação: nada a perder e muito a ganhar
3.5. Educação, crescimento da produção e desenvolvimento social
1. Projetos problemáticos4.1. Muitos projetos, nenhuma solução
4.2. Ensino a distância: um problema a ser superado, não uma solução
4.3. Se outros países podem, por que nós não podemos?
4.4. Considere estes países
1. O que precisamos fazer?
5.1. Temos condições objetivas para estabelecer um bom sistema
educacional. Por que não o alcançamos?
5.2. Precisamos de um sistema público de educação referenciado na
sociedade e nas suas necessidades
Fonte de dados
Sobre o autor

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UM DIAGNÓSTICO

DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA Coleção Educação Contemporânea Esta coleção abrange trabalhos que abordam o problema educacional brasileiro de uma perspectiva analítica e crítica. A educação é considerada como fenômeno totalmente radicado no contexto social mais amplo e os textos desenvolvem análise e debate acerca das consequências desta relação de dependência. Divulga propostas de ação pedagógica coerentes e instrumentos teóricos e práticos para o trabalho educacional, considerado imprescindível para um projeto histórico de transformação da sociedade brasileira. Conheça mais obras desta coleção, e os mais relevantes autores da área, no nosso site: www.autoresassociados.com.br

Otaviano Helene UM DIAGNÓSTICO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA e de seu financiamento Coleção Educação Contemporânea

Copyright © 2017 by Editora Autores Associados Ltda. Todos os direitos desta edição reservados à Editora Autores Associados Ltda. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Helene, Otaviano

Um diagnóstico da educação brasileira e de seu financiamento [livro eletrônico] / Otaviano Helene. – Campinas, SP : Autores Associados, 2017. – (Coleção educação contemporânea) 2 Mb ; ePub Bibliografia. ISBN 978-85-7496-388-4 1. Analfabetismo - Indicadores 2. Educação - Brasil 3. Educação - Brasil Financiamento 4. Educação e Estado - Brasil 5. Educação pública 6. Ensino a distância 7. Ensino superior - Indicadores 8. Política educacional I. Título. II. Série. Índices para catálogo sistemático: E-book – julho de 2017 Conversão EPub – Bookwire EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA . Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira Av. Albino J. B. de Oliveira, 901 | Barão Geraldo CEP 13084-008 | Campinas-SP Telefone: +55 (19) 3789-9000 E-mail: [email protected] Catálogo on-line: www.autoresassociados.com.br Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho” Bernardete A. Gatti Carlos Roberto Jamil Cury Dermeval Saviani Gilberta S. de M. Jannuzzi Maria Aparecida Motta Walter E. Garcia Diretor Executivo Flávio Baldy dos Reis Coordenadora Editorial

Érica Bombardi Revisão Julio Cesar Camillo Dias Filho Cleide Salme Ferreira Capa – Arte-Final Maisa S. Zagria

Sumário Apresentação 1. Um breve diagnóstico 1.1. O analfabetismo e o ensino superior 1.2. Quantidade versus qualidade no sistema educacional 1. Tentando entender as origens do problema 2.1. Educação: dois grandes passos para trás 2.2. Desigualdade e educação 2.3. Privatização do ensino superior: problemas 2.4. Como foi e é construída a privatização do ensino superior no Brasil 2.5. O estado dos nossos estados 2.6. Mitos e mentiras que embasam nossa política educacional 1. Financiamento da educação pública 3.1. Como surgiu a bandeira 10% do PIB para a educação pública 3.2. Quanto realmente investimos em educação pública? 3.3. Os parcos recursos públicos brasileiros 3.4. Mais recursos para a educação: nada a perder e muito a ganhar 3.5. Educação, crescimento da produção e desenvolvimento social 1. Projetos problemáticos

4.1. Muitos projetos, nenhuma solução 4.2. Ensino a distância: um problema a ser superado, não uma solução 4.3. Se outros países podem, por que nós não podemos? 4.4. Considere estes países 1. O que precisamos fazer? 5.1. Temos condições objetivas para estabelecer um bom sistema educacional. Por que não o alcançamos? 5.2. Precisamos de um sistema público de educação referenciado na sociedade e nas suas necessidades Fonte de dados Sobre o autor Apresentação Este livro apresenta um breve diagnóstico sobre a educação no país em seus primeiro e segundo capítulos. Para evitar uma excessiva e maçante citação de dados estatísticos, a descrição é feita com base em poucos indicadores, mas suficientemente amplos para representar bem o nosso atual sistema educacional. Por exemplo, os indicadores do analfabetismo de jovens adultos refletem tanto o presente como o passado recente do nosso sistema educacional – e, dada a incapacidade que esse sistema tem mostrado de recuperar os problemas que cria, um jovem analfabeto ou subescolarizado assim permanecerá por toda a vida, ilustrando algumas das nossas limitações futuras. Os indicadores do ensino superior refletem, por um lado, a evolução do sistema educacional até o final do ensino médio; por outro, seus aspectos quantitativos e qualitativos – incluindo os acadêmicos e sua capacidade de responder, ou não, às necessidades regionais e profissionais do país – indicam nossas possibilidades futuras. Além desses, alguns outros poucos indicadores são suficientes para dar uma visão ampla de todo o sistema educacional do país e sustentar as análises, conclusões e propostas aqui apresentadas. O diagnóstico aqui apresentado toma como uma das referências a realidade educacional de outros países, em particular aqueles cujas possibilidades materiais e características culturais são equivalentes às brasileiras. Dessa forma, podemos saber quão bem ou quão mal estamos nos saindo quando comparados com o que os demais países mostram ser possível. Outra referência usada é quanto à evolução dos nossos indicadores escolares ao longo de várias décadas, permitindo localizar os períodos de avanço, retrocesso e estagnação e estudar suas causas e consequências. Há também algumas análises da relação entre nosso sistema educacional e outros aspectos da realidade brasileira, entre eles a concentração de renda, as possibilidades de desenvolvimento social, cultural e científico do país, as

diferenças regionais e as possibilidades, ou não, de promovermos um aumento da produção de bens e serviços, o que depende fortemente da existência de profissionais bem formados. O diagnóstico deixa claro que nossa situação educacional está aquém do que desejamos, precisamos e podemos ter, além de mostrar que, no Brasil, em lugar de a educação ser um instrumento que ajuda na superação dos grandes problemas nacionais, acaba por reproduzi-los, contribuindo para que eles se perpetuem. A principal causa do nosso atraso educacional é a falta de recursos públicos em quantidade suficiente. Essa questão é abordada no Capítulo 3, no qual é analisada a realidade do financiamento da educação. As vantagens de um aumento dos investimentos em educação pública também aparecem nesse capítulo. Ainda é apresentada uma avaliação de quanto deveríamos investir para superar os atrasos acumulados e viabilizar um futuro mais promissor. Os ganhos sociais, culturais e econômicos desses investimentos são muito grandes e, portanto, compensadores. Destinar um percentual maior do produto interno bruto (PIB) ¹ à educação – reivindicação histórica de entidades e pessoas comprometidas com a construção do futuro – não causa a redução desse indicador. Tal ação faria apenas com que o setor educacional passasse a usar uma parte maior da capacidade de trabalho do país e a educação a ocupar mais tempo das nossas crianças e dos nossos jovens, certamente com ganhos para todos. Além disso, investimentos em educação não apenas promovem o desenvolvimento cultural e social do país como o próprio crescimento do PIB. No quarto capítulo, é feita uma breve análise de vários projetos educacionais e de como eles, por serem frágeis ou por serem apenas instrumentos de propaganda, contribuíram para chegarmos à precária situação atual. A análise dos erros cometidos no passado complementam as informações necessárias para definir o que devemos fazer hoje. Tomando como base os diagnósticos, as comparações internacionais e as do presente com o passado, o último capítulo aponta a direção que devemos seguir. Ele não é um plano nacional de educação, mas sim uma espécie de conclusão lógica dos capítulos anteriores, mostrando que é possível construir um bom sistema educacional – público, republicano e democrático – que cabe em nosso PIB. Tal sistema pode contribuir para que o Brasil supere suas desigualdades de renda, tanto entre as pessoas como entre os diferentes estados e regiões; garanta a todos as condições necessárias para o pleno exercício da cidadania; forme os quadros profissionais de que o país precisa, tanto para aumentar o bem-estar das pessoas como a produção econômica; e coloque o país em uma situação mais confortável nas relações internacionais, aí incluídas as econômicas, culturais e políticas. Todos os dados educacionais, econômicos e populacionais mais recentes citados neste livro correspondem à realidade encontrada por volta de 2010. Entretanto, como a variação absoluta desses dados ao longo do tempo não é muito grande e as variações relativas – de um país em relação a outro, por exemplo – são ainda menores, as conclusões obtidas são duradouras. A maioria dos dados citados tem as fontes mais primárias possíveis. No caso

de informações nacionais, foram usados principalmente dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (I NEP ) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (I PEA ), e quando necessário complementados por dados orçamentários. As fontes da maioria dos dados de outros países são de instituições internacionais, como o Instituto de Estatística (UIS) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (U NESCO ) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre outras. Em alguns casos, foram usados dados de fontes secundárias e informações extraídas de artigos e textos acadêmicos. As fontes são identificadas em notas de rodapé ou no final do livro. Grande parte das informações, análises e ideias aqui contidas foi tema de artigos publicados ao longo de vários anos em diversos periódicos ² , especialmente no Correio da Cidadania , durante o ano de 2012. Cabe assim um agradecimento aos editores desse periódico, em especial à Valéria Nader, pela presteza com que aqueles artigos foram publicados e pelos destaques que a eles foram dados. Vários dos artigos são em coautoria com outros pesquisadores e militantes da causa educacional, especialmente com a amiga, colega e companheira de lutas Lighia Horodynski-Matsushigue, professora aposentada do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e diretora, por algumas vezes, da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (A DUSP ) e do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (A NDES /SN), a quem cabem muitos agradecimentos, inclusive pelas muitas contribuições para este livro. A leitura crítica de muitos dos artigos que embasam este livro, feita pela minha companheira Regina Gonçalves Fontes, foi fundamental. Muito do conteúdo deste livro resultou de discussões e estudos feitos com o grupo de trabalho de política educacional da A DUSP . Cabem, portanto, agradecimentos aos colegas e companheiros que militam ou militaram naquele grupo de trabalho. Como é usual reconhecer, todas as falhas são de responsabilidade apenas do autor. 1 O PIB é a soma de todos os bens e serviços produzidos por um país em um determinado período. Todas as referências a esse indicador neste texto correspondem ao período de um ano. A renda per capita corresponde à divisão do PIB pela totalidade da população; e é ela, e não o PIB, o indicador da possibilidade econômica média das pessoas de um determinado país. Os valores de renda per capita deste livro correspondem ao critério da paridade de poder de compra, que considera não só os valores relativos entre as moedas, como também os preços dos mesmos produtos nos diferentes países. 2 Os artigos foram publicados nos seguintes periódicos: Brasil de Fato , Caros Amigos , Carta Capital , Carta Maior , Correio Braziliense , Correio da Cidadania , Economics Letters , Educação e Pesquisa , Folha de S.Paulo , Jornal da Ciência , Jornal da USP , Jornal do Brasil , Le Monde Diplomatique

Brasil , O Estado de S. Paulo , Página 13 , Revista Adusp , Scientific American Brasil , Universidade e Sociedade e Valor Econômico . 1. Um breve diagnóstico Este capítulo apresenta um diagnóstico da educação brasileira com o objetivo de dar uma ideia da dimensão dos problemas que precisamos superar. A análise é feita com base em alguns grandes indicadores, evitando detalhes que não alterariam as conclusões necessárias para o restante do livro. Diferentemente de outras atividades e necessidades humanas, como a alimentação, não existe um padrão ideal para a educação, abaixo do qual é insuficiente e acima do qual é excessivo. Assim, qualquer diagnóstico é necessariamente comparativo. Os termos de comparação são as exigências impostas por outros aspectos da sociedade, a avaliação comparativa da situação atual com a do passado e a da nossa realidade com a realidade de outros países. Precisamos saber se o sistema educacional está de acordo com as exigências que a sociedade faz das pessoas: se, considerando essa sociedade, o sistema fornece os necessários recursos para que cada um possa nela se integrar a fim de exercer plenamente seus direitos de cidadania; se e como ele contribui para superar ou intensificar os problemas do país; e se o desenvolvimento da educação permite que o país seja realmente soberano em suas relações internacionais. O resultado do diagnóstico assim obtido é suficiente para embasar os temas abordados neste livro e indicar os caminhos que devemos seguir. 1.1. O analfabetismo e o ensino superior Para saber que nível educacional é o necessário para cada um e para toda a sociedade, em um determinado momento histórico e em um determinado país, há que se responder a algumas perguntas. O nível educacional mínimo oferecido para a população permite, a todos, o pleno exercício da cidadania? Os quadros profissionais formados respondem às necessidades do país? O sistema educacional é um instrumento para superar a desigualdade, objetivo especialmente relevante nos países com altos níveis de desigualdade como o nosso, ou está, ao contrário, sendo usado para mantê-la? A evolução da educação formal ao longo do tempo é adequada, permitindo vislumbrar um futuro mais promissor? A educação está promovendo o desenvolvimento social do país? O nível educacional médio da população é suficiente para garantir a soberania nacional diante das demais nações? Inicialmente, vamos examinar alguns desses pontos e, em especial, vamos ver como nos comparamos com os demais países. Não vamos nos estender em análises muito detalhadas. Vamos examinar apenas alguns indicadores que revelam o desempenho recente do sistema educacional e sua evolução ao longo das últimas décadas. O desempenho atual pode ser representado pela taxa de analfabetismo na faixa etária dos 15 aos 24 anos – indicador que reflete a educação básica em anos recentes – e pela taxa de matrícula no ensino superior e o número médio de anos de frequência nesse mesmo

nível – que ilustram nossa capacidade de formação de quadros profissionais para o país. A evolução ao longo das últimas décadas pode ser analisada comparando-se, por exemplo, as taxas de analfabetismo em diferentes faixas etárias. Esses indicadores são suficientes para uma avaliação ampla, embora não detalhada, do nosso sistema educacional. Vamos restringir a comparação internacional aos países da América do Sul, que são participantes da mesma realidade geopolítica e apresentam características culturais, econômicas e sociais próximas às nossas. Os indicadores considerados aparecem na Tabela 1, cuja fonte é o Institute for Statistics, instituto de estatística da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UIS-U NESCO ), consultada no final de 2012. No que diz respeito à alfabetização nas duas faixas etárias consideradas, o Brasil ocupa a segunda pior posição entre os países sul-americanos, apenas melhor que o Peru. Devemos observar que esse país apresenta realidade populacional significativamente diferente da nossa, com maior heterogeneidade linguística, fator que pode dificultar a alfabetização, e maior diversidade de cultura e de atividades econômicas. Esses fatores indicam a existência de dificuldades de escolarização que não existem no Brasil ¹ : nossa população, embora seja uma composição de povos originários de várias partes do mundo, fala a mesma língua e tem basicamente os mesmos valores, tradições e hábitos culturais, ou pelo menos não tão diversificados como a população peruana ² . Tabela 1 Indicadores de analfabetismo e do ensino superior: América do Sul. Os dados correspondem à segunda metade da década de 2000

Fonte: UIS-U NESCO , consultada no final de 2012. (1) Calculado pelo autor com base na Sinopses Estatísticas da Educação Superior – 2011 (I NEP , s.d.). (2) Dados de 2002. Elaboração do autor. Além disso, a porcentagem da população urbana é maior no Brasil (85%) que no Peru (77%) (UIS-U NESCO ), fator que certamente facilita a escolarização. Olhada a questão desse ponto de vista, vale observar que muitos países sul-americanos com maiores percentuais de população rural (Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai e Suriname) têm taxas de alfabetização superiores à nossa. Outro fator que poderia ser usado para explicar eventuais dificuldades educacionais é o econômico, em especial a renda per capita . Entretanto, também não está aí uma possível justificativa para nosso atraso educacional, pois a renda per capita no Brasil é superior à média dos demais países do subcontinente, ao passo que nosso desempenho escolar está abaixo da média. Finalmente, seria possível argumentar que a proporção de crianças e jovens no país é relativamente grande quando comparada com as mesmas proporções nos demais países, dificultando especialmente a alfabetização e a escolarização nos primeiros anos. Entretanto, também não está aí uma possível explicação. Apenas o Uruguai tem uma proporção de crianças e jovens de até 14 anos inferior à brasileira ³ (23,2% da população e 26,1% no

Brasil), sendo a nossa proporção basicamente igual às do Chile (25,2%) e Argentina (25,6%). Em resumo, o Brasil não tem nenhuma dificuldade intrínseca – social, linguística, cultural, econômica, demográfica etc. – para escolarizar sua população em um padrão melhor do que o atual e promover seu desenvolvimento de uma forma mais rápida; se não o faz, é por uma decisão política. Embora a taxa de analfabetismo entre jovens de 15 a 24 anos, de 1,9%, possa parecer baixa, certamente não é. Pelos critérios adotados pela U NESCO , é considerada alfabetizada uma pessoa “que possa entender uma afirmação curta e simples sobre sua vida diária”. Entretanto, para cada analfabeto há cerca de três a quatro vezes mais pessoas apenas rudimentarmente alfabetizadas e o dobro disso com um nível apenas básico de alfabetização ⁴ . Aquele 1,9% é, portanto, apenas a ponta do iceberg ; que esconde uma realidade bem mais cruel. Mantida a proporção entre analfabetos e alfabetizados de forma rudimentar ou de forma apenas básica, podemos concluir que perto da terça parte dos nossos jovens entre 14 e 24 anos tem graves problemas de alfabetização. Como praticamente a totalidade da população brasileira está inserida na mesma realidade de produção e de relações econômicas, o analfabetismo ou a precária alfabetização entre nós tem consequências muito graves: muitos dos jovens entre 15 e 24 anos, e nessas condições, moram em regiões urbanas e disputam posições de trabalho com o restante da população – e todos eles precisam interpretar a mesma realidade e inserir-se no mesmo meio cultural e social. Pessoas que carregarão essa condição pelas próximas décadas, quando as exigências de uma alfabetização completa provavelmente serão ainda mais importantes. Mantida a taxa com que o analfabetismo tem se reduzido no Brasil, demoraremos mais de meio século para atingir os patamares dos países sul-americanos com melhores índices de alfabetização e cerca de um século e meio para atingir os padrões que atualmente estão entre os melhores do mundo. Quanto aos indicadores quantitativos do ensino superior, estamos apenas em melhor posição que a Guiana e o Suriname. Vale lembrar que a Guiana (antiga Guiana Inglesa) e o Suriname (antiga Guiana Holandesa) são países cuja independência ocorreu apenas no final do século XX, carregando assim uma carga histórica pesada – do mesmo tipo daquela carregada pelas excolônias africanas recentemente independentes e que estão entre os países mais pobres do mundo ⁵ . Ainda como comparação, nossa taxa de matrícula no ensino superior, de 26% segundo a U NESCO (ou 33% se considerarmos dados bem mais recentes do que os disponíveis para os demais países), está entre a terça parte e a metade daquelas encontradas na Argentina (71%) ou na Venezuela (78%). Além disso, devemos observar que o Brasil apresenta taxas de privatização do ensino superior maiores do que desses países, fato grave especialmente se lembrarmos que o setor privado não oferece os cursos que mais precisamos e que as condições de estudo e trabalho que promovem, com pouquíssimas exceções, são muito precárias – assunto que será discutido adiante com mais detalhes.

Esse breve balanço apenas mostra que, mesmo comparado com países que ocupam o mesmo espaço geopolítico, nossa situação é bastante preocupante. Evidentemente, uma análise apenas quantitativa é insuficiente para uma visão ampla do problema. Entretanto, os indicadores analisados mostram a dimensão das questões educacionais que temos que enfrentar, que vão dos primeiros anos do ensino fundamental ao ensino superior. 1.2. Quantidade versus qualidade no sistema educacional ⁸ As altas taxas de analfabetismo, bem como a insuficiência do ensino superior, são alguns dos sintomas dos vários problemas quantitativos e qualitativos que afetam o sistema educacional brasileiro. Em nenhum momento da história recente do país, esses problemas foram enfrentados. Educação básica Entre outros importantes problemas quantitativos da educação básica estão, por exemplo, a pequeníssima taxa de atendimento na educação infantil (cerca de 20% na faixa etária até os 4 anos), a altíssima evasão escolar antes mesmo do término do ensino fundamental, na ordem de 30%, e a baixa taxa de conclusão do ensino médio (apenas cerca de 50% daqueles que ingressam no sistema escolar concluem esse nível educacional). Isso significa que, a cada ano, cerca de 1,7 milhão de pessoas entram na idade adulta sem o ensino médio completo, um milhão desses sem sequer o ensino fundamental – números assustadores e capazes de comprometer significativamente nossas possibilidades de desenvolvimento social e cultural, com graves repercussões em nossas possibilidades econômicas futuras. Nas décadas recentes, quando os problemas quantitativos foram enfrentados, o foram em detrimento dos aspectos qualitativos. Exemplo marcante disso é o que ocorreu ao longo da década de 1990, especialmente na sua segunda metade. Nesse período, as taxas de matrícula e de conclusão dos ensinos fundamental e médio aumentaram significativamente. Em 1990, houve pouco mais que um milhão de conclusões do ensino fundamental; já em 2000, esse número havia mais que dobrado, atingindo 2,6 milhões; proporcionalmente, no ensino médio o aumento foi ainda mais expressivo, quase triplicando, passando de cerca de 660 mil conclusões em 1990 para 1,8 milhão em 2000. Entretanto, esse aumento ocorreu sem que fossem fornecidos ao sistema educacional os meios necessários para atender, com a devida qualidade, à tão expressiva ampliação do número de estudantes. Esses meios são formados basicamente por recursos financeiros, necessários para contratar mais profissionais e para construir, equipar e manter escolas: durante aquele período de crescimento das matrículas, os recursos públicos, medidos como percentual do Produto Interno Bruto (PIB), não apenas não cresceram como apresentaram reduções em alguns anos. Como resultado, as condições de estudo e trabalho nas escolas e o desempenho médio dos estudantes foram significativamente prejudicados ao longo do período. Esse fato é revelado pelos resultados apurados pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (S AEB ) dos estudantes de quarta e oitava séries do ensino fundamental e de terceiro ano do ensino médio. A Figura 1

mostra a média aritmética simples dos resultados nas avaliações de português e matemática nas três séries avaliadas, mostrando claramente que, à medida que o número de matrículas aumentava, o desempenho médio diminuía. Em resumo: mais estudantes com os mesmos recursos resultaram em pior desempenho, o que parece óbvio. Figura 1 Desempenho médio nas avaliações da educação básica – S AEB

Fonte: I DEB . Elaboração do autor. Os resultados do I DEB para as várias séries e anos estão disponíveis no sítio do I NEP . A correlação entre indicadores quantitativos, qualitativos e de recursos, observada na segunda metade de década de 1990, é corroborada pelo que ocorreu depois disso. Ao longo da década que se iniciou em 2000, o número de concluintes e matrículas nos ensinos fundamental e médio praticamente estagnou (e em patamares bastante baixos). Entretanto, nesse mesmo período, especialmente na sua segunda metade, os recursos destinados à educação pública (onde está a enorme maioria dos estudantes da educação básica) aumentaram. Esse aumento de recursos foi consequência da melhora na arrecadação de impostos que houve no período – por sua vez, resultado do aumento da produção econômica no setor formal: como os gastos com educação são definidos constitucionalmente com base na arrecadação de impostos, eles também aumentaram. Assim, passou-se a atender a um mesmo número de estudantes com mais recursos, acontecendo o inverso do que ocorreu na década anterior: o desempenho, agora medido pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (I DEB ) ⁷ , melhorou entre 2005 e 2009 de uma média 3,6 para 4,1. Entretanto, pagamos um preço muito alto por essa melhora, pois a exclusão escolar ao longo do ensino fundamental na década de 2000 continuou elevada (na ordem de 25% a 30%), apresentando até mesmo um pequeno aumento no período.

Em resumo, o que ocorreu nas décadas de 1990 e 2000 ilustra bem como a educação anda no Brasil: quando problemas quantitativos são enfrentados, os qualitativos pioram; e uma melhora nos indicadores qualitativos só ocorre quando em detrimento dos quantitativos. Comparação internacional Quando o desempenho dos nossos estudantes é comparado com o desempenho dos estudantes de outros países, nossos problemas qualitativos assustam ainda mais. Há um programa internacional de comparação do desempenho de estudantes de 15 anos de idade que tenham menos que três anos de defasagem idade-série, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (P ISA ) – programa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que examina a proficiência em leitura, matemática e ciências) ¹⁰ –, que em sua versão de 2009 avaliou estudantes de 65 países. Menos de 1% dos nossos estudantes de 15 anos de idade atinge, na média do desempenho em leitura, ciências e matemática, os dois níveis superiores de uma escala que vai de 1 a 6, padrão atingido por cerca de 10% dos estudantes dos países mais desenvolvidos. No outro extremo, daqueles que nem sequer atingiram o primeiro nível da escala, estão 21% dos nossos estudantes de 15 anos, contra 5% dos países da OCDE (e 3% dos membros da OCDE que fizeram parte do bloco socialista e apenas 1% dos finlandeses). A diferença é muito grande, e seria ainda maior se fossem incluídos na amostra todos os nossos jovens de 15 anos de idade, muitos dos quais não foram considerados no levantamento por já terem sido excluídos da escola ou por apresentar defasagem idade-série superior a dois anos – problemas que praticamente inexistem nos países mais desenvolvidos e, entre os países da OCDE, existem apenas no México. Nessa comparação internacional, o objetivo não é fazer um ranqueamento dos países para ilustrar como estamos mal. O objetivo é entender nossas possibilidades de inserção soberana entre as demais nações quando países muito menos populosos do que o nosso ou algumas regiões dos países mais populosos têm um número maior de estudantes bem preparados (níveis 5 e 6 na escala do P ISA ) do que em todo o Brasil. Ensino superior Uma análise nos faz concluir que há dois problemas a serem enfrentados no ensino superior: sua qualidade é comprometida pelo pequeno número de estudantes bem preparados que conclui o ensino médio e pela enorme privatização do setor. De fato, o Brasil é um dos recordistas mundiais em privatização e, talvez para desgosto dos defensores do liberalismo, os Estados Unidos (EUA) não estão entre esses. E, pior, privatização dominada por instituições mercantis que, como regra, oferecem cursos com apelo mercadológico, em regiões geográficas e áreas do conhecimento que não correspondem nem às necessidades de profissionais do país nem às carências das diferentes regiões. Essa privatização nos fez, em comparação com os demais países, ter uma concentração muito alta de estudantes em cursos de baixo retorno cultural, social e econômico e poucos deles (ou pouquíssimos) em áreas relacionadas ao desenvolvimento do setor produtivo e à promoção do bem-estar da população.

Assim, a expansão do ensino superior por meio do setor privado – coisa para a qual todos os governos federais e muitos dos estaduais e municipais contribuíram durante o último meio século, e continuam a contribuir – comprometeu, de forma gravíssima, a qualidade do sistema. Esse comprometimento rebaixa as expectativas, tanto dos estudantes como da população em geral, quanto ao que é – ou deveria ser – um ensino universitário. Isso que não apenas viabiliza a aceitação desse rebaixamento dos cursos como cria as condições para que ele se intensifique ainda mais no futuro, fechando um círculo vicioso. Talvez a aceitabilidade que o ensino a distância em nível superior está recebendo hoje seja um exemplo de que um primeiro rebaixamento da qualidade cria as condições para rebaixamentos maiores no futuro: alguém poderia imaginar, há poucas décadas, um curso superior de licenciatura com duas horas de aulas presenciais por semana e três anos de duração? Certamente, não. Se hoje, no Brasil, esse tipo de curso é aceitável, é porque os critérios de qualidade difundidos entre a população e os estudantes são extremamente baixos. O futuro será igual ao passado? É fundamental reverter essa situação, enfrentando simultaneamente os problemas qualitativos e quantitativos. Entretanto, para que essa tarefa faça parte das agendas governamentais (dos municípios, dos estados e da União), muita luta ainda é necessária, inclusive e especialmente com o objetivo de aumentar os recursos públicos dirigidos ao setor educacional. Caso o país continue a trilhar os mesmos caminhos, não há dúvidas de que reproduzirá, no futuro, as mesmas características atuais, continuando com um padrão educacional insuficiente, abaixo mesmo daquele encontrado em países que apresentam maiores dificuldades. Continuará a oferecer apenas a poucos os instrumentos necessários para garantir o pleno exercício da cidadania e deixará de formar os quadros profissionais necessários para garantir o bem-estar da população e viabilizar o aumento da produção econômica. O capítulo seguinte, ao examinar a evolução da educação brasileira ao longo dos últimos cem anos, estenderá, em certo sentido, a análise apresentada até agora. 1 Essas observações não pretendem, evidentemente, minimizar as consequências do analfabetismo em nenhum país, mas apenas examinar algumas condições que podem facilitar ou dificultar a escolarização de uma população. 2 No Brasil há cerca de 800 mil indígenas, 0,4 % da população. Entretanto, grande parte desses fala o português e/ou está integrada ao restante da população. 3 Dados divulgados pelo sítio da NationMaster. Acesso em: dez. 2012. 4 Indicador de Alfabetismo Funcional 2011 , Instituto Paulo Montenegro e Ação Educativa. Disponível em: < http://www.imp.org.br >. Acesso em: dez. 2012.

5 A taxa de alfabetização juvenil do Suriname, relativamente alta em comparação com os demais países, sugere que esse país pode estar enfrentando seu atraso educacional já nos níveis iniciais. 5 Os dados citados nesta seção correspondem àqueles disponíveis no sítio eletrônico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (I NEP ) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no início de 2012, correspondendo à situação por volta de 2010. 6 O I DEB passou a ser o indicador adotado pelo Ministério da Educação (MEC) para medir a qualidade da educação a partir de 2005. 7 O P ISA é um programa que inclui testes padronizados de leitura, matemática e ciências, aplicados a cada três anos a estudantes de 15 anos de idade de dezenas de países. Os percentuais citados correspondem a valores médios dos desempenhos nas três áreas avaliadas. 2. Tentando entender as origens do problema 2.1. Educação: dois grandes passos para trás No início do século XX, o sistema escolar brasileiro fornecia à população uma escolaridade média ¹ de cerca de dois anos. Essa média evidentemente inclui tanto a enorme massa daqueles que não frequentavam escola alguma como as pouco mais de duas mil pessoas que, a cada ano, naquela época, registravam seus diplomas de curso superior. Após quase um século, essa média ainda é de apenas dez anos aproximadamente. A evolução da escolarização fornecida pelo sistema educacional num período de pouco mais de oitenta anos (veja gráfico na Figura 2) ² não foi regular. Além de alguns períodos de variações não muito intensas na taxa de crescimento, há dois períodos recentes de estagnação, ou mesmo de retrocesso, bastante longos, um deles se iniciou pouco antes de 1980 e outro, por volta do ano 2000. Foram dois enormes passos para trás em uma caminhada já problemática. Figura 2 Escolaridade média (em anos) da população ao deixar o sistema escolar

Fonte: Helene (2012, pp. 197-216). Elaboração do autor. Antes de analisarmos esses dois períodos e procurar possíveis explicações para suas origens, é necessário observar que há alguma incerteza estatística nos valores mostrados no gráfico da Figura 2 (da ordem da espessura da curva), cuja origem está nas incertezas das próprias informações usadas para avaliar a escolaridade média, tais como a população em diferentes faixas etárias, a defasagem idade-série, o número de concluintes nos diferentes níveis educacionais etc. Apesar dessa incerteza, é evidente a ausência de qualquer evolução positiva da escolaridade nas décadas de 1980 e de 2000. A crise da década de 1980 pode ser entendida pelo que ocorreu imediatamente antes dela. Grande parte do crescimento da escolaridade média oferecida pelo sistema educacional durante o período militar em virtude do fim do exame de admissão para o antigo ginásio (cujo início coincidia com o que é a quinta série ou o sexto ano do ensino fundamental atualmente) – fato do qual os leitores mais velhos devem se lembrar – e com isso os estudantes que estavam represados ao final do ensino primário passaram a fluir pelo sistema. Entretanto, como não havia um programa consistente que fosse capaz de continuar incluindo novos alunos, quando esse efeito de desrepresamento se esgotou, começou um longo período de estagnação e retrocesso. Esse período coincide com a crise econômica que, como a educacional, marcou a falência do projeto imposto pela ditadura militar. Muito provavelmente, a crise econômica, cujo período mais intenso coincide com a década de 1980, também deve ter contribuído com a crise educacional do mesmo período, pois a frequência escolar, mesmo que não implique pagamento de mensalidade, gera despesas e perda de renda da família dos estudantes. Assim, não é surpreendente que, inexistindo mecanismos que compensem o efeito econômico provocado pela frequência escolar, uma crise econômica tenha reflexos na educação. Esse período de estagnação só foi superado a partir de 1990, e isso pode estar relacionado a vários fatores. Um deles pode ter origem na Constituição

de 1988 e nas movimentações sociais que ocorreram na mesma época, quando os direitos sociais passaram a fazer parte de discussões políticas, levando à eleição de candidatos comprometidos com esses direitos ou menos avessos a eles. Outro efeito foi o surgimento de políticas de progressão continuada – infelizmente transformadas, na prática, em aprovação automática –, que tirou do caminho dos estudantes, pelo menos parcialmente, a reprovação, desestimulando a evasão escolar. Outro fator que pode ter contribuído para o aumento de matrículas e conclusões de curso na década de 1990 – e, portanto, para a escolaridade média da população fornecida pelo sistema educacional – foi o processo de municipalização do ensino fundamental. Essa expansão de matrículas pode ser fruto da seguinte lógica: com a municipalização, parte dos recursos antes gastos pelos estados foi transferida aos municípios, juntamente com os estudantes e na proporção destes; essa transferência de recursos certamente interessava aos poderes instituídos nos vários municípios, não necessariamente porque isso permitiria que as prefeituras dessem melhores respostas às necessidades dos munícipes, mas, sim, porque daria mais poder (recursos, funcionários, prédios escolares etc.) aos prefeitos. Assim, atrair alunos passou a ser interessante aos prefeitos ³ . Todos esses efeitos, entretanto, parecem ter se esgotado por volta do ano 2000, quando as matrículas e as conclusões de curso nos ensinos fundamental e médio pararam de crescer ou foram reduzidas. É possível supor que os mecanismos que contribuíram para o aumento das matrículas na educação básica ao longo da década de 1990 foram insuficientes para atingir os segmentos mais desfavorecidos da população e seus efeitos se esgotaram por volta do ano 2000. Como não surgiram outros instrumentos para atrair novos estudantes, em especial os mais pobres, e mantê-los nas escolas, entramos em um novo período de crise. A retração que afetou a educação básica na década de 2000 foi tão forte que mesmo o aumento das matrículas no ensino superior ao longo da última década foi insuficiente para “puxar para cima” a escolaridade média da população. Caso não ocorressem as crises educacionais das décadas de 1980 e de 2000, a conclusão do ensino fundamental já poderia estar universalizada por volta de 2010 e, na mesma época, o ensino médio seria completado pela grande maioria da população urbana do país. Entretanto, não foi essa a opção dos governos, em especial dos municipais e estaduais, em cujas escolas está a grande maioria dos estudantes da educação básica. Precisamos dar um passo adiante Estudar apenas os indicadores quantitativos, como feito aqui, fornece uma visão bastante restrita da realidade educacional, pois há um vínculo estreito entre os aspectos qualitativos e quantitativos que, se não considerado, pode apenas trocar o problema de lugar, sem resolvê-lo, como discutido na seção anterior. Entretanto, esses indicadores ajudam a entender um pouco da nossa história, dão alguma ideia das tarefas que temos pela frente e mostram o que deveria e o que não deveria ter sido feito. Em particular, a crise educacional que se iniciou por volta do ano 2000, cuja estagnação dos

indicadores quantitativos marcou toda a década, coincide com o período de vigência do Plano Nacional de Educação encerrado em 2011, cujas metas mais importantes não foram atingidas (ao contrário, nos afastamos ainda mais de várias delas), mostrando que, se queremos mudar a realidade, é necessário mais do que promulgam as leis. É possível que venhamos a superar a atual crise educacional apenas quando novas ações efetivas forem adotadas. Uma delas certamente deve ser a criação de mecanismos de gratuidade ativa, uma vez que a escola, mesmo que gratuita, induz despesas intoleráveis para os segmentos mais pobres (a conclusão do ensino fundamental entre a metade mais pobre da população é, principalmente por fatores econômicos, a exceção, não a regra), as quais precisam ser compensadas para que os jovens e as crianças continuem estudando ⁴ . Outra ação fundamental deve ser a de aumentar a remuneração dos professores e dos demais trabalhadores da educação, que tem sido, ao longo das últimas décadas do século XX e pelo menos na primeira do século XXI, equivalente a aproximadamente metade da remuneração dos demais trabalhadores com igual nível de formação escolar e que se dedicam às profissões para as quais foram formados. Esse aumento, além de permitir uma vida mais confortável, com reflexos no trabalho, permitirá também a redução da jornada de trabalho e, portanto, mais tempo disponível para o professor se dedicar ao estudante. É necessário ainda aumentar o número de trabalhadores no setor educacional para viabilizar classes menores, atendimentos especiais, quando necessário, e o aumento do número de horas de permanência nas escolas. Essas devem ser mais bem equipadas com laboratórios, bibliotecas, salas de estudo quadras esportivas e tudo o mais que torne a presença na escola mais atrativa e os resultados educacionais mais significativos. Essas ações, combinadas com outras, poderão melhorar as condições das escolas públicas de educação básica de tal forma que ensinar, estudar e aprender sejam atividades prazerosas. Essas conquistas passam necessariamente por aumento de recursos públicos. 2.2. Desigualdade e educação O Brasil chegou a ser, há não muito tempo, o país com a pior distribuição de renda em todo o mundo. Embora essa situação tenha melhorado na década de 2000, continuamos em uma péssima posição – entre 115 países relacionados pelo Banco Mundial, o Brasil é o terceiro país em que os 10% mais pobres têm menor participação na riqueza nacional e a quinta nação no que diz respeito à participação dos 10% mais ricos (veja Tabela 2). A renda não se concentra por um processo natural, como se nos quintais de alguns nascessem frondosas árvores de dinheiro e nos quintais de outros, raquíticos arbustos de moedinhas. A renda se concentra como consequência de políticas explícitas que incluem o próprio sistema econômico, a ausência ou não de reformas agrária e urbana democráticas, a repressão ou o diálogo com os movimentos sociais organizados, as alíquotas de impostos diretos e o combate ou não à sonegação, a existência ou não de impostos sobre o patrimônio, entre várias outras.

Há dois processos relacionados à educação que contribuem fortemente para a reprodução futura da concentração de renda no Brasil: a renda das pessoas depende fortemente da quantidade e da qualidade da educação formal que receberam; e, formando um círculo vicioso, a educação das crianças e dos jovens depende, também fortemente, de sua renda familiar. A combinação desses dois fatores faz com que nossa política educacional seja um dos principais fatores de concentração de renda e de reprodução de desigualdades. Tabela 2 A) Distribuições de renda por domicílio. Participação dos mais ricos e dos mais pobres na renda nacional (%) nos países mais desiguais B) Distribuição de renda nos Estados Unidos (EUA) e situação típica dos países europeus Fonte: Tabela elaborada pelo autor com base em informações divulgadas pelo Banco Mundial, sítio consultado em março de 2012. Círculo vicioso: renda-escolarização-renda Um aspecto especialmente perverso da desigualdade do nosso sistema educacional é o “desperdício” de pessoas. Como a desigualdade exclui das escolas enormes contingentes populacionais, e grande parte dos não excluídos apresenta graves deficiências de formação, nossas possibilidades de desenvolvimento social, cultural e do sistema de produção de bens e serviços são gravemente comprometidas, uma vez que não podemos contar com a contribuição produtiva da maioria dos nossos jovens: por mais dedicados, brilhantes e interessados que pudessem vir a ser, eles já foram descartados. Um dos principais fatores responsáveis pela exclusão escolar é a renda. A participação dos estudantes provenientes dos segmentos mais pobres da população cai significativamente ao longo das séries escolares, e praticamente a totalidade das crianças provenientes do terço mais pobre da população abandona a escola antes do final do ensino fundamental. Como a enorme maioria dessas crianças que deixam a escola prematuramente não frequentou as classes de educação infantil, a educação formal oferecida a elas restringe-se aos poucos anos de escolaridade no ensino fundamental, em geral em escolas precárias, com uma permanência diária abaixo de quatro horas e com muitas “aulas vagas”. Resultado: os investimentos educacionais feitos em favor dessa terça parte de crianças que abandonam a escola antes do final do ensino fundamental, cujos valores anuais são próximos ao piso do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (F UNDEB ) ⁵ , não excederão, ao longo de toda a vida, alguns poucos milhares de reais. No outro extremo, entre os mais ricos, a educação começa nos primeiros anos de vida e dura pelo menos duas décadas, com valores mensais de investimento que superam os mil reais, ou muito mais que isso se forem incluídos aí investimentos com educação extraescolar (cursos de línguas, atividades esportivas, aulas particulares etc.). Ao longo de toda a vida, esses investimentos podem superar centenas de milhares de reais.

Portanto, as desigualdades na educação formal são gigantes. E esses contingentes com enormes diferenças educacionais, ao deixarem a escola, conviverão em uma mesma sociedade. Ninguém pode ter dúvida do que acontecerá. O círculo vicioso renda-educação-renda se fecha visto que a renda de uma pessoa depende fortemente de sua educação formal, tanto quantitativa quanto qualitativamente, coisa que salta aos olhos ⁶ . Cada ano adicional de escolaridade de um trabalhador implica aumento de renda significativo, cuja intensidade depende do estágio de desenvolvimento do país, do nível escolar médio da população e do sistema econômico adotado. No caso do Brasil, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (P NAD ) de 2011 ⁷ , levantados e divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que cada ano adicional de estudo corresponde a um aumento médio de renda superior a 10%. Quando consideramos os níveis mais avançados de escolarização (após o ensino médio), esse aumento atinge 25%, também por ano adicional de estudo. Além dessa dependência da renda com o número de anos de estudo, há também uma dependência com a qualidade da educação recebida, e, novamente, essa também depende fortemente da renda familiar dos estudantes. Em resumo, nossas terríveis desigualdades econômicas e sociais entram nas escolas pela porta da frente, com a conivência, o apoio e a subvenção explícitos por parte das autoridades municipais, estaduais e federais, fazendo com que nosso sistema escolar trate de forma extremamente diferente os pobres e os ricos. Evidentemente, isso ocorre com o apoio total das elites econômicas, para as quais as desigualdades não devem ser enfrentadas e superadas, mas suas consequências devem sim ser combatidas sempre que incomodarem. Nosso sistema educacional é um importante instrumento a perpetuar a desigualdade, garantindo nossa permanência por longo tempo entre os países mais desiguais do mundo. Com um sistema educacional tão desigual quanto o nosso, não é surpreendente que a renda média dos 10% mais ricos seja 56 vezes maior que a renda média dos 10% mais pobres. Romper com a situação atual Para construirmos um país realmente republicano, precisaríamos romper com essa situação e criar um sistema educacional no qual todos, independentemente da origem social e das possibilidades econômicas, sejam tratados de forma igualitária. Escolas com infraestrutura adequada, professores e educadores que sejam remunerados adequadamente e instrumentos de gratuidade ativa que compensem os custos induzidos pela frequência à escola são fundamentais. Devemos lembrar que a renda per capita familiar de quase metade das crianças e dos adolescentes entre 0 e 17 anos é inferior a meio salário mínimo, segundo dados de várias P NAD s. Se considerarmos que grande parte da renda familiar é gasta com moradia, alimentação, energia elétrica e outras despesas inescapáveis, o que resta para as outras atividades é extremamente pouco. Assim, uma simples passagem de ônibus adicional por dia, um pequeno lanche ou qualquer outra despesa associada à frequência à

escola podem estar totalmente fora do alcance familiar. Para os segmentos mais favorecidos, essas despesas podem passar despercebidas, mas para os segmentos mais desfavorecidos elas são insuportavelmente altas. Não há nenhuma limitação real e objetiva que nos impeça de construir uma escola igualitária e democrática: excluímos crianças e jovens prematuramente das escolas e as condenamos a uma vida adulta com baixa remuneração por uma opção política ditada pelas elites. Essas não abrirão mão, por bem, de nenhum de seus privilégios, por mais que eles possam ser danosos para a sociedade. 2.3. Privatização do ensino superior: problemas O ensino superior privado no Brasil atingiu proporções totalmente descabidas: estamos entre os três ou quatro países com maiores taxas de privatização e possivelmente o maior em privatização por meio de instituições mercantis. Entretanto, como a propaganda é muito intensa, muitas pessoas acabam por esquecer ou minimizar as muitas características negativas desse sistema e ver apenas os poucos – se existentes – lados positivos. A campanha a favor do ensino superior privado é tão grande que o próprio Ministério da Educação (MEC) veiculou, no início de 2012, propaganda na qual apontava as vantagens de um financiamento público que promovia a inserção do aluno em uma instituição privada! Alguém poderia imaginar o inverso, instituições privadas fazendo propaganda das vantagens da educação pública? Grande parte dos pais, familiares e amigos dos jovens que hoje completam o ensino médio não frequentou o ensino superior, e a maioria dos que o fizeram, inclusive seus próprios professores no ensino médio, frequentou instituições privadas. Assim, não existe um referencial contundente que permita avaliar os diferentes tipos de cursos superiores e de instituições. Consequentemente, cursos e instituições que em nada contribuem para o país, e mesmo para os próprios estudantes, acabam formando um campo fértil para os negócios e rebaixando ainda mais os critérios para julgamento do que deve ser um curso superior. O resultado é que o aumento da privatização, ao rebaixar os padrões de exigência da população, acaba por dar uma aparência de legitimidade à própria privatização. E aquela absurda propaganda feita pelo MEC, bem como muitas equivalentes feitas por governos estaduais, que também incentivam a privatização do ensino superior, contribui ainda mais para transformar em aceitáveis cursos e instituições que deveriam ser inaceitáveis. São muitos os problemas do ensino superior privado, e as mensalidades cobradas não estão entre os piores deles. Um primeiro aspecto diz respeito ao retorno social e cultural dos cursos que são promovidos. Como regra, as instituições privadas não oferecem seus cursos em áreas de conhecimento prioritárias para o país nem nas regiões onde eles seriam mais necessários. O principal – ou mesmo único – critério é o financeiro: são oferecidos cursos de grande poder de atração, muitas vezes por simples modismo, nas regiões onde há clientela e não onde há necessidade. Isso ocorre não apenas naquelas instituições de caráter puramente mercantil e voltadas ao lucro puro e simples, mas até mesmo nas instituições confessionais, filantrópicas

ou comunitárias, pois essas também dependem das planilhas de custo para se viabilizarem. O ensino superior no Brasil, quando comparado com o dos demais países, caracteriza-se por uma pequena participação da população na idade adequada e por uma distribuição pelos diferentes campos profissionais que privilegia diversos cursos nas áreas de administração (muitas vezes adjetivadas e enfeitadas por palavras como competências gerenciais , gestão financeira , gestão de qualidade , gestão logística , empreendedorismo etc., denotando o aspecto mercadológico que têm) e em outras atraentes ou da moda em detrimento das áreas fundamentais para o bem-estar das pessoas e para a produção de bens e serviços. Essa opção pela oferta de cursos atraentes e vendáveis pode ter a seguinte origem. Uma instituição pode oferecer um curso de boa qualidade, com uma carga horária adequada; talvez, assim, consiga um grande faturamento por estudante, mas conseguirá poucos estudantes. Entretanto, se oferecer um curso mais barato, terá menor faturamento por estudante, mas, em contrapartida, conseguirá um número muito maior de alunos. Como em qualquer atividade comercial, os principais objetivos são o faturamento, o lucro e as altas remunerações que pode gerar. O que vemos hoje é a combinação desses fatores. Mesmo as instituições confessionais acabam por seguir a mesma lógica, pois, ainda que possam não ter como objetivo maximizar o lucro ou o faturamento, precisam maximizar o número de estudantes, uma vez que são braços importantes de divulgação e de formação de quadros das correspondentes religiões. Distribuições dos estudantes pelas diferentes áreas de conhecimento A Tabela 3 ilustra como se distribuem os formandos de alguns cursos em instituições federais, estaduais, municipais e privadas. Enquanto nas instituições federais e estaduais cerca de 5% a 6% dos formandos estão nas áreas de gerenciamento e administração, nas instituições privadas eles são 23%! Nos cursos de engenharia e medicina – duas áreas fundamentais, uma para o aumento da produção de bens e outra para o bem-estar da população – a situação se inverte: as instituições privadas têm percentuais de concluintes muito abaixo daquele observado nas instituições federais e estaduais. E nas duas áreas de ensino mais carentes em professores para a educação básica, física e química, as diferenças são gritantes, ilustrando bem a total ineficiência do setor privado em responder às necessidades do país. Tabela 3 Distribuição dos formandos (%) em algumas áreas de conhecimento nas instituições públicas e privadas (cursos presenciais)

Fonte: Sinopses Estatísticas da Educação Superior – 2010 (I NEP , s.d.). Elaboração do autor. Essa distorção tem se agravado à medida que mais e mais instituições mercantis têm surgido. Assim, se hoje 23% dos concluintes das instituições privadas estão nas áreas de gerenciamento e administração, como mostra a Tabela 3, em 1999 esse percentual era de “apenas” 14%. Evidentemente, não se trata aqui de defender que as instituições privadas tenham cursos em áreas de conhecimento mais necessárias ou que eles sejam mais bem distribuídos pelo país. Afinal, a educação, desde a básica até a superior, não é apenas um direito das pessoas. É também um direito das pessoas que ela seja pública e administrada em respeito às possibilidades e necessidades do país e de suas diferentes regiões. Apenas assim podemos ter um sistema que responda às necessidades regionais, aos anseios da população e às necessidades de formação de profissionais das diferentes áreas de conhecimento. A distorção da distribuição dos formandos pelas diferentes áreas é de responsabilidade combinada do setor público e das instituições privadas. Embora o setor público (ainda) distribua seus cursos de forma adequada, sua responsabilidade deve-se à pequena participação na oferta de vagas e à retração sistemática ocorrida ao longo do último meio século. Na próxima seção, veremos que, no ano de 2010, apenas cerca de 20% das conclusões de cursos superiores presenciais ocorreram em instituições públicas. Se considerarmos apenas as instituições federais e estaduais, uma vez que as municipais apresentam estrutura bastante próxima das instituições privadas ⁸ , esse percentual cai para 19%. Qualidade dos cursos nas instituições privadas Outro problema criado pela privatização está relacionado à qualidade dos cursos oferecidos – que, com poucas exceções, são sofríveis, como mostram as inúmeras avaliações feitas pelo setor público, por órgãos de classe e por entidades ligadas ao ensino de várias profissões. Mesmo usando truques para melhorarem o desempenho em avaliações do governo ⁹ , os cursos oferecidos pelo setor privado mostram-se significativamente piores que os mesmos cursos oferecidos pelo setor público. Por causa disso, a contribuição que dão às diferentes áreas de conhecimento é limitadíssima, se não até mesmo negativa. Em muitos casos, mesmo as perspectivas profissionais oferecidas aos estudantes são muito pequenas ou nulas. Outra vertente de

problemas que mostra a inadequação das instituições privadas é o tratamento dado aos seus docentes, em grande parte contratados como professores horistas, com baixa remuneração, carga de trabalho e número de alunos incompatível com o ensino superior, a pesquisa e as atividades de extensão. Um último fato. Os programas de subsídios públicos para instituições privadas, tanto os mantidos pelo governo federal como por governos estaduais, que tanto têm contribuído para o crescimento do setor privado, acabam por incentivar maus cursos. Por exemplo, em muitas áreas estratégicas e nas quais temos graves carências, a participação dos formandos do Programa Universidade para Todos (P ROUNI ) está bem abaixo até mesmo do que se observa na já baixa média das instituições privadas ¹⁰ . 2.4. Como foi e é construída a privatização do ensino superior no Brasil A privatização do ensino superior brasileiro não ocorreu por um processo “natural”. É comum se afirmar que a privatização ocorre por uma incapacidade de o setor público financiar a educação superior e que as instituições privadas contribuem para suprir essa deficiência. Nenhuma das duas coisas parece condizer com a verdade. Como será discutido nesta seção, o financiamento da educação superior pública é tão menor quanto maior for a capacidade financeira local e a potencial clientela do setor privado. Quanto à segunda hipótese, a discussão apresentada na seção precedente mostrou que a setor privado não está suprindo a ausência do setor público, como mostram as áreas de conhecimento dos cursos oferecidos pelo setor privado; ao contrário, está se aproveitando dessa ausência. Uma das características do ensino superior brasileiro nas últimas várias décadas é a constante redução da participação das instituições públicas na sua oferta: em 1960, cerca de 60% das matrículas eram em instituições públicas; por volta de 2010 elas atingiram 25% e com uma tendência de continuar reduzindo (veja Figura 3). Na década de 1960, período marcado pelo regime militar, a participação do setor privado cresceu de 40% até pouco mais que 60% das matrículas. Após duas décadas sem aumento expressivo dessa participação, a privatização voltou a crescer após 1990, período marcado pela expansão do neoliberalismo, continuando a aumentar, de forma até mais rápida, ao longo da década seguinte. Figura 3 Distribuição de matrículas em instituições públicas e privadas no início das décadas indicadas

Elaboração do autor, com base nos Anuários Estatísticos do IBGE, diversos anos, e Sinopses Estatísticas da Educação Superior, I NEP . O que aconteceu na década de 1980, quando a taxa de privatização permaneceu praticamente estável, ao contrário de ter sido um sinal de que o setor público passava a ter uma postura mais positiva, ilustra um dos muitos problemas que a privatização apresenta. A década de 1980 foi marcada por uma profunda recessão econômica e consequentemente pela redução de renda das pessoas e pelo aumento do desemprego. Como consequência, aquela crise econômica afetou fortemente as possibilidades que as pessoas tinham de arcar com mensalidades escolares, afastando os estudantes, como obviamente seria esperado. Esse fato ilustra bem um dos graves problemas da privatização da educação: que, quando privatizada, em vez de ser um instrumento que possa ajudar a suportar uma crise econômica (fixando os jovens por mais tempo no setor educacional e assim reduzindo a pressão sobre o emprego) e a criar condições necessárias para superá-la (preparando a força de trabalho do país), passa a ser um fator que intensifica a própria crise e a projeta no futuro, uma vez que promove a redução da formação de quadros profissionais. Subsídios ao setor privado Se “conseguimos” atingir a taxa de privatização de matrículas de 75%, é porque ao longo do tempo todos os níveis governamentais contribuíram para isso por meio de incentivos financeiros, diretos e indiretos, por meio de legislações e por deixarem espaço livre para a atuação do setor privado. No campo financeiro, tanto a União como os estados e municípios têm contribuído, ao longo dos últimos cinquenta anos, cada um de sua forma, para o aumento da privatização. Essas subvenções ocorrem na forma de isenções de taxas, contribuições sociais e impostos (nacionais, estaduais e municipais) para as instituições de ensino, abatimento de despesas com educação privada no imposto de renda de pessoa física, repasses diretos de recursos públicos para entidades privadas, pagamento da mensalidade do aluno ou financiamento dela pelo setor público, convênios com organizações não governamentais (ONGs) ligadas a instituições privadas, entre diversas outras. Como já estamos acostumados com todas essas práticas, o que faz com que muitas pessoas as considerem positivas, vale a pena esmiuçar uma delas, talvez até a mais aceita como adequada, justa e necessária: o

abatimento no imposto de renda de pessoas físicas das despesas educacionais. Esse abatimento, que encontra enorme apoio nas classes mais privilegiadas e mesmo reclamações por considerarem--na pequena, é na prática uma distorção do que se esperaria de um sistema tributário ou de um subsídio a uma atividade essencial. Como o abatimento das despesas educacionais ocorre antes do cálculo do imposto devido, quanto maior for a renda de uma pessoa, maior será o abatimento do imposto. No caso de pessoas com alta renda, o governo subsidia 27,5% das despesas com educação privada passíveis de serem abatidas. Já no caso de uma pessoa com renda modesta, eventuais despesas educacionais podem ser subsidiadas em proporções bem menores do que 27,5% ou mesmo não terem subsídio algum. Uma espécie de Robin Hood às avessas ¹¹ . Embora possa parecer que é o contribuinte que está sendo beneficiado, quem de fato recebe essa subvenção é a instituição de ensino. Por exemplo, alguém de alta renda que tenha pago R$1.000,00 para uma instituição de ensino receberá do governo, na forma de abatimento de imposto de renda, R$275,00; ou seja, gastou, de fato, R$725,00, ao passo que a instituição recebeu, também de fato, o R$1.000,00 pagos. (Alguém de baixa renda que tenha gasto o mesmo valor não terá redução alguma do imposto devido.) Em última instância, o abatimento no imposto de renda é um subsídio às instituições privadas de educação, sendo o contribuinte apenas um intermediário na transação financeira. Embora seja apenas um exemplo, esse fato mostra como as políticas de transferência de recursos ao setor privado podem ser distorcidas ou disfarçadas. Uma redução dos impostos por causa de despesas educacionais só seria justificável (embora inadequada) se a redução fosse inversamente proporcional à renda, subsidiando mais quem ganha menos, não da forma que é hoje, com subsídios tão maiores quanto maior for a renda da pessoa. Evidentemente, não há nenhuma dificuldade técnica para se fazer isso: se o país subsidia mais quem menos precisa e menos quem mais precisa, é porque é para ser assim mesmo. A legislação ajuda a privatização Além das ações financeiras e econômicas em favor da privatização da educação, há muitas ações no campo legal que caminham no mesmo sentido. Novamente, em vez de detalhar as muitas formas de como isso ocorre, vamos apenas ilustrar algumas delas. Uma universidade é um tipo de instituição cujas atribuições incluem, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) ¹² , desenvolver a pesquisa científica e tecnológica, conferir diplomas com validade nacional, criar e extinguir cursos e definir seus currículos, desenvolver atividades de extensão universitária, entre outras. Para isso, seria esperado que tal tipo de instituição tivesse em seu quadro pessoas altamente qualificadas para essas atividades, o que, no mundo acadêmico, corresponde aos doutores. Entretanto, ainda que possa parecer absurdo, a LDB não exige doutores no corpo docente de uma universidade: a sutil redação daquela lei exige que pelo menos um terço do seu corpo docente tenha “titulação acadêmica de mestrado ou doutorado”. A partícula “ou” revela a real intenção do legislador: uma universidade no Brasil não precisa de doutores! Essa

redação é desrespeitosa na medida em que a palavra doutorado está apenas enfeitando o texto, sem nenhuma consequência prática; se a frase acabasse em “mestrado”, estaria dizendo exatamente a mesma coisa. Além disso, exigir uma terça parte dos docentes com determinada titulação não significa que eles venham a exercer a terça parte das atividades desenvolvidas pelas instituições, pois se pode atribuir àquela terça parte uma carga de trabalho (didática ou de qualquer outro tipo) de apenas algumas poucas horas semanais, concentrando as tarefas acadêmicas em profissionais sem as titulações citadas. Para desenvolver aquelas atividades, os docentes universitários deveriam contar com as necessárias condições de trabalho, o que significaria contratos em tempo integral e, preferencialmente, dedicação exclusiva à instituição. Entretanto, a LDB exige que uma universidade tenha pelo menos “um terço do corpo docente em regime de tempo integral”, uma redação que efetivamente diz muito pouco. Se a essa terça parte do corpo docente for atribuída uma carga didática alta e/ou muitas tarefas administrativas, a lei estará sendo cumprida sem de fato garantir as condições necessárias para a pesquisa e as atividades de extensão universitária previstas pela LDB. Essa legislação não está respondendo a nenhuma necessidade real das instituições universitárias nem refletindo impossibilidades objetivas, uma vez que na época da elaboração da LDB, meados da década de 1990, o país já tinha um número de mestres e doutores formados suficiente para viabilizar universidades realmente merecedoras desse nome. De fato, a legislação apenas favorece as instituições privadas, em especial as de caráter mercantil, e isso é um desrespeito ao país. Mantê-la da forma que está, quando o país aumentou por um fator três o número de pessoas com formação em nível de pós-graduação, é um erro múltiplo: não se aproveitam adequadamente os quadros formados, não se oferecem cursos adequados aos nossos estudantes de graduação e limitam-se as possibilidades de desenvolvimento cultural, científico e tecnológico do país. A ausência do setor público abre espaço ao setor privado Além dos subsídios e da legislação, uma terceira forma de favorecimento ao setor privado ocorre por meio da insuficiência de vagas oferecidas pelo setor público, o que abre o necessário espaço para o crescimento das instituições privadas. Uma evidência dessa prática é que a falta de vagas públicas nada tem a ver com as dificuldades financeiras do setor público, diferentemente do que é dito com frequência. Tanto é assim que a privatização é maior exatamente nos estados com maiores possibilidades econômicas e orçamentárias, os quais maiores contribuições dão ao orçamento federal. São Paulo é um caso exemplar: é exatamente nesse estado que a ausência do setor público é mais marcante, como mostra a Tabela 4. A porcentagem de matrículas em instituições privadas em São Paulo – 87% – é bem maior do que nos demais estados – 69% – (dados do final da década de 2000). Mesmo quando a comparação é feita em relação à população total, a privatização paulista é maior do que nos outros estados por um fator dois, como mostram os dados da Tabela 4: em São Paulo, há uma matrícula no ensino superior público para cada 220 habitantes, contra uma matrícula para cada 124 habitantes nos demais estados. A mesma situação se repete em relação aos

concluintes do ensino médio: em São Paulo, há uma vaga em instituições públicas para cada oito concluintes, situação duas vezes pior do que nos demais estados, nos quais a relação é de uma vaga pública para cada quatro concluintes. Tabela 4 Privatização do ensino superior presencial em São Paulo e nos demais estados

Fonte: Sinopses Estatísticas do Ensino Superior – 2009 (I NEP , s.d.). Essa maior privatização em São Paulo é totalmente compatível com a hipótese de que a ausência do setor público é estratégica, não fruto de uma impossibilidade econômica ou financeira. Consequências As políticas de privatização, quando associadas com a distribuição dos cursos oferecidos pelas instituições privadas nas diferentes áreas do conhecimento, fazem com que alguns indicadores da educação superior no Brasil estejam em completo desacordo com o que se observa em outros países com possibilidades econômicas equivalentes ou mesmo mais modestas que as nossas. Essa característica nos coloca em uma situação bastante frágil. Evidentemente, não se está defendendo que haja uma competição entre os países, coisa que, ao contrário, devemos combater. Entretanto, uma força de trabalho mal preparada, distribuída de forma inadequada pelas diferentes áreas profissionais e quantitativamente insuficiente fragiliza o país nos embates internacionais e compromete nossa soberania. Consequentemente, não conseguimos sequer criar um ambiente que permita lutar por uma relação mais saudável entre as nações e que priorize as cooperações em lugar das competições. 2.5. O estado dos nossos estados Como já mostrado, há um claro círculo vicioso no nosso sistema educacional: quanto maior a renda da família de uma criança, ou de um jovem, maior será o número de anos de estudo que completará e melhor será a escola frequentada; e, uma vez que a renda de um adulto depende de sua escolarização, a renda futura de uma criança ou jovem será tão maior quanto maior for sua renda familiar atual, voltando para o início do círculo.

O mesmo se repete nos diferentes estados: onde o poder aquisitivo da população é menor, os indicadores educacionais estão significativamente abaixo da média nacional; inversamente, nos estados com maiores rendas per capita , os indicadores estão acima da média, como mostram os gráficos das Figuras 4 e 5. A Figura 4 mostra os resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (I DEB ) de 2009 e as rendas per capita dos diferentes estados. Cada um dos pontos corresponde a um estado e a linha contínua ilustra a tendência média. Como é evidente, há uma forte correlação entre os dois indicadores. Embora haja exceções – alguns estados apresentam resultados do I DEB bem acima ou bem abaixo da tendência geral –, a regra “quanto maior a renda per capita no estado, maior o valor do I DEB ” é clara. Infelizmente, as exceções positivas, que poderiam indicar uma política efetiva no intuito de reduzir as diferenças educacionais no país, são meramente frutos de variações casuais e aleatórias, pois outros indicadores reproduzem a regra. Figura 4 Média do resultado do I DEB de 2009 de oitava série/nono ano para todas as escolas, independente do vínculo administrativo, e renda per capita dos estados

Fonte: I NEP ; IBGE, onde estão disponíveis, respectivamente, os resultados do S AEB e as rendas per capita dos estados. O sítios foram consultados em junho de 2012. Elaboração do autor. Figura 5

Taxa de conclusão do ensino superior (%) nos diferentes estados

Fonte: I NEP ; IBGE, onde estão disponíveis, respectivamente, os resultados do S AEB e as rendas per capita dos estados. O sítios foram consultados em junho de 2012. Elaboração do autor. A Figura 5 mostra a relação entre a renda per capita e a taxa de conclusão do ensino superior ¹³ , outra ilustração da regra “quanto menor a renda per capita do estado, pior seu indicador educacional”. Novamente, embora haja exceções, fica claro que o desempenho educacional depende fortemente das possibilidades econômicas da população: quanto mais pobres os habitantes de um estado, menores as taxas de conclusão do ensino superior. Embora a análise tenha se restringido apenas a dois indicadores, todos os demais confirmam a regra. As consequências dessas correlações entre o desempenho educacional e a renda per capita são graves. De modo especial, uma vez que a escolaridade da população é um fator importante para viabilizar o crescimento da produção econômica e o desenvolvimento social, se nada for modificado na política educacional, ao lado de contínua atuação sobre os aspectos econômicos da questão, os estados e regiões mais pobres continuarão mais pobres, inviabilizando a superação de um dos maiores problemas que afligem o país: as enormes desigualdades regionais. Além dessa forte correlação entre o desempenho educacional e as condições econômicas, quando os estados brasileiros são comparados com outros países, vemos que o indicador educacional de cada um deles está abaixo daquele que se observa em países com rendas per capita equivalentes. Assim, enquanto nos estados mais pobres as taxas de matrícula se aproximam da realidade de países como Índia ou Marrocos, os estados mais ricos apresentam taxas de matrícula próximas das da Turquia ou Tailândia – em todos os casos, países de renda per capita inferior a dos estados

correspondentes. Da mesma forma, estados que apresentam as maiores taxas de matrícula no ensino superior estão abaixo, ou até muito abaixo, das mesmas taxas em países como Uruguai, Cuba ou Argentina. Esses fatos mostram que as diferenças entre os estados não são, por assim dizer, na boa direção, alguns estados “puxando” os indicadores educacionais para cima e dando, portanto, uma contribuição para o país. Ao contrário, todos os estados estão “puxando” os indicadores para baixo. Reconhecendo que apenas indicadores quantitativos não abarcam toda a penosa realidade da nossa educação – marcada por um atendimento precário da educação infantil ao ensino superior –, as correlações entre indicadores econômicos e indicadores educacionais bastam para mostrar que não temos realmente uma política educacional que vise superar os problemas nacionais: as várias medidas adotadas nas últimas décadas não quebraram o círculo desastrosamente vicioso renda-escolaridade-renda existente tanto em nível individual, discutido anteriormente, como nas diferentes regiões do país. Uma política educacional que respeite os ideais republicanos não deveria permitir que fatores econômicos nela interferissem da maneira aqui mostrada. Em se tratando de diferenças econômicas entre pessoas, a forma de se evitar que a desigualdade entrasse nas escolas seria por meio de instrumentos de gratuidade ativa, que compensassem as despesas pessoais e familiares direta e indiretamente geradas pela frequência à escola. E, no caso de estados e municípios, ações públicas deveriam compensar suas diferenças econômicas. Em resumo, nosso sistema educacional está simplesmente reproduzindo as desigualdades, e a educação entre nós sendo uma espécie de subproduto da economia e não um fator de desenvolvimento pessoal e de emancipação nacional. Não podemos ter dúvidas, portanto, de qual será o perfil do país nas próximas décadas, quando aqueles que hoje estão (ou não) nas escolas formarem a população adulta. 2.6. Mitos e mentiras que embasam nossa política educacional Muitas das decisões políticas brasileiras são justificadas com base em mitos que parecem reais ou mentiras que parecem verdades. Vamos ver alguns casos relacionados à educação. Mitos da educação básica Há um mito que afeta não apenas a educação, mas também outros setores de interesse coletivo. Esse mito pode ser resumido na frase “ o problema não é falta de recursos, mas sim falta de gestão ”. Esse mito parece real, pois em qualquer atividade, seja ela executada pelo setor público, seja pelo privado, é sempre possível encontrar alguma parte do todo que é ou parece mal gerida. Evidentemente, os problemas localizados devem ser enfrentados e corrigidos. Entretanto, não é com base nas exceções ou em casos especiais e particulares que devem ser construídas as políticas públicas, mas sim com o que acontece em todo o setor. No caso da educação básica, é evidente que o problema é provocado pela falta de recursos, pois os investimentos por mês e por estudante no setor público foram, em muitos casos, da ordem de

R$200,00 em 2012 – valor calculado com base no F UNDEB . É, portanto, um absurdo dizer que não há problemas de recursos. Os principais repetidores dessa afirmação fazem parte do grupo econômico cujos jovens e crianças frequentam escolas com investimentos várias vezes superiores a esse valor e jamais aceitariam colocá-los em escolas de R$200,00 mensais. Quando a falta de recursos é demonstrada, aparece outro mito: “ apesar dos recursos limitados, é possível ter boas escolas, como mostram alguns exemplos ”. De fato, às vezes surge alguma escola pública sem nenhuma característica especial (como ser uma escola técnica, um colégio militar ou um colégio de aplicação, por exemplo) e que tem bons indicadores. Isso prova o que foi anteriormente afirmado aqui? Certamente, não. O Brasil tem perto de duzentas mil escolas públicas de educação básica que apresentam uma característica média no que diz respeito ao desempenho dos estudantes, à infraestrutura disponível, ao quadro de professores etc. Entretanto, como é natural se esperar, as escolas apresentam grande heterogeneidade, tanto por causa da variedade de vínculos institucionais que elas têm quanto pela própria heterogeneidade dos estados, dos municípios e da população que atendem. Portanto, as características de cada escola podem variar bastante. Assim, se a média é ruim, encontraremos muitas escolas – a grande maioria – que podem ser classificadas, como tal, de ruins; mas encontraremos também muitas outras que devem ser classificadas de péssimas e outras de aceitáveis. Algumas ainda estarão abaixo do que poderíamos considerar péssimas, pois podem acumular, em um determinado ano, professores desmotivados e em quantidade insuficiente, estudantes despreparados e com enormes dificuldades materiais, graves problemas estruturais, absoluta falta de recursos, além de diretor desinteressado etc. Eventualmente, entre as cerca de duzentas mil escolas, encontraremos algumas que apresentam bom desempenho, também por fatores apenas aleatórios e casuais, por terem em certo momento um quadro de professores completo, um corpo de estudantes que, também casualmente, tenha condições sociais favoráveis, professores com “pique”, sem sobrecargas etc. Portanto, achar algumas escolas distantes da média, seja para um lado, seja para o outro, apenas mostra que a média é uma combinação do todo e que as características de cada parte desse todo, quaisquer que elas sejam, apresentam variações. Ilustrações de que a existência de boas escolas públicas é fruto da mera flutuação aleatória em torno de uma média ruim são fornecidas por vários indicadores, como os resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica do Estado de São Paulo (I DESP ). Entre as mais de 3.500 escolas que oferecem o ensino médio, apenas três apresentaram, em 2011, um desempenho acima de 5,0 em uma escala que vai de 0 a 10, sendo o melhor resultado igual a 5,98 e o mais baixo 0,33. Está evidente a variação em torno de uma média baixa.

E a prova de que o bom desempenho é fruto apenas de variações aleatórias pode ser ilustrada pela escola estadual que obteve 5,8; o melhor resultado em 2010, que foi reduzido para 1,5 no ano seguinte ¹⁴ – resultado que a colocou entre a terça parte com pior desempenho. Ou seja, uma escola pública típica estará bem acima ou bem abaixo da média apenas por fatores casuais, acidentais e aleatórios, que podem ocorrer ou deixarem de ocorrer de um ano para outro. Em resumo, não devemos tomar nossas decisões de políticas públicas com base nas exceções, mas sim nas regras. Outro mito amplamente aceito, até mesmo em algumas áreas profissionais, é o de que o ensino pode se dar “ à prova de professor” . Explicando: propalase que basta um bom material didático para o aprendizado acontecer, mesmo com professor sem condições de trabalho adequadas, sem boa formação e sem motivação. Isso é contrário a tudo o que as pesquisas vêm consistentemente mostrando ¹⁵ . De modo particular, esse mito desconsidera totalmente o que a psicologia da educação vem demonstrando, cada vez com mais força: que o processo de ensino-aprendizagem é um processo interacional, dialético, que depende sobremaneira de uma sintonia adequada entre professor e aluno. Contudo, é esse mito que embasa iniciativas governamentais em muitos estados e municípios, tais como o ensino a distância (EaD) ou a profusão de a postilas (algumas até de boa qualidade) distribuídas em escolas públicas e também privadas, destinadas às camadas de menor renda. Ora, um professor sem autonomia, forçado a seguir o ritmo e o conteúdo específico determinados alhures, pode no máximo treinar seus alunos a responderem corretamente a certas questões, a resolver certos problemas, mas será incapaz de dar-lhes a possibilidade de desenvolver seus próprios instrumentos de compreensão, inclusive do mundo que os rodeia. Será que não é isso mesmo o que a política assim aplicada, no fim e ao cabo, pretende? Concluindo: sem devolver e reforçar a autoestima e a presença do professor como líder da classe, não haverá milagres que possam transformar o pretenso ensino em verdadeiro aprendizado . Ou seja, sem professor bem formado e reconhecido pela sociedade, o que envolve remuneração digna, não sairemos do pântano em que estamos metidos. Alguns mitos do ensino superior ¹⁶ Um dos mitos relativos ao ensino superior é de que o investimento para manter um estudante em um curso de graduação em uma instituição pública é maior do que em uma instituição privada, o que concorda com outro mito: o de que a administração pública é ineficiente enquanto a privada é eficiente. Aquele mito é construído com base na simples divisão do orçamento de uma instituição pública pelo número de estudantes de graduação e comparando esse resultado com as mensalidades de uma instituição privada. Isso está errado por várias razões. Uma instituição pública tem em seu orçamento várias despesas não correspondentes à educação. Por exemplo, Universidade de São Paulo (USP), Universidade

Estadual Paulista (U NESP ) e Universidade Estadual de Campinas (U NICAMP ), as três universidades estaduais paulistas, incluem em seus orçamentos o pagamento de aposentadorias – ao passo que as aposentadorias das instituições privadas são pagas por órgãos previdenciários –, mantêm orquestras e museus, fomentam várias atividades culturais, complementam os orçamentos das atividades de atendimento de seus hospitais. Além disso, as instituições públicas têm atividades de pesquisa que raramente existem nas instituições privadas, as quais são cobertas por seus próprios recursos. Portanto, a simples divisão do orçamento das instituições públicas pelo número de estudantes de graduação, sem antes redirecionar essas outras despesas públicas para os correspondestes setores (previdência, cultura, saúde, ciência e tecnologia etc.), não é o correto. A comparação do custo de um estudante também não deve ser feita pela média das instituições sem especificar as áreas de conhecimento, pois há grandes diferenças de custo entre os diferentes cursos oferecidos. Os investimentos necessários para manter um estudante de graduação em um curso com grande carga didática, que tem vários laboratórios complexos, cujas aulas não podem ter um número excessivamente grande de estudantes, podem ser cinco ou mais vezes superiores aos investimentos em um curso onde não há laboratórios e cuja carga horária seja bem menor. Como as instituições privadas concentram seus estudantes em cursos com esse último perfil, comparar apenas a média dos orçamentos público e privado por estudante, sem precisar a área de conhecimento, falseia totalmente a realidade. Quando a comparação é feita área por área, vemos que a realidade é bem diferente do mito. Quando consideramos estudantes de graduação em um mesmo curso em instituições públicas e privadas, vemos que os investimentos são bastante próximos e, não raramente, maiores nas instituições privadas do que nas públicas. Se considerarmos cursos de qualidade equivalente, os investimentos por estudante de graduação em instituições públicas são menores do que em instituições privadas ¹⁷ . Aqui vai outro mito. Há uma afirmação bastante divulgada de que as universidades públicas privilegiam os estudantes economicamente mais favorecidos em detrimento dos menos favorecidos, portanto contribuindo para aumentar ainda mais as desigualdades e injustiças no país. Isso é verdade? Vamos ver. Infelizmente, a seleção econômica é um processo plenamente presente no sistema educacional brasileiro, do começo ao fim. Entretanto, no ensino superior essa seleção ocorre não pelo vínculo institucional do estabelecimento, mas sim pelo tipo de curso procurado. E, em cada tipo de curso, os estudantes mais favorecidos estão nas instituições privadas, não nas públicas. Os estudantes provenientes dos estratos mais favorecidos da população estão nos cursos mais procurados, de maior prestígio social, que levam a profissões mais bem remuneradas: medicina é o exemplo mais conhecido. Nos cursos que levam a profissões com menores remunerações, os quais são menos procurados (como os de formação de professores), estão concentrados os estudantes dos segmentos economicamente mais desfavorecidos: a pedagogia talvez seja o exemplo mais típico. E, como

regra, em cada um dos cursos – considerando a área de conhecimento e sua qualidade – a renda média dos estudantes de uma instituição privada é superior à renda média dos estudantes de uma instituição pública. Vamos aos números ¹⁸ : a renda familiar média dos estudantes de medicina é cerca de três vezes superior à renda média dos estudantes de pedagogia, ilustrando bem como ocorre a seleção econômica pelo tipo de curso. Mas a renda média dos estudantes de um determinado curso nas instituições privadas é até 30% superior à dos estudantes nas instituições públicas. Talvez um dos mecanismos que explicam essa última característica seja o ilustrado pelo seguinte exemplo. Dois estudantes, um dos estratos mais pobres e outro com maior renda, disputam uma vaga em um determinado curso em uma instituição pública e ambos têm insucesso, acabando por desistir. Ao mais pobre resta procurar outro curso menos competitivo ou abandonar os estudos; o mais favorecido poderá se inscrever em uma instituição privada que ofereça aquele curso desejado e pagar por ele. Como já apontado no caso da qualidade das escolas, há exceções a essa regra; mas ela existe e é muito marcante. Outro mito ainda é quanto à existência de vagas ociosas nas instituições privadas de ensino superior, usado para justificar a criação do P ROUNI ¹⁹ . Os dados estatísticos disponíveis no início de 2012 mostram que para as 2,67 milhões de vagas oferecidas em cursos presenciais pelo setor privado houve apenas 1,18 milhão de ingressantes (44% de taxa de aproveitamento, apesar de haver um número de inscrições praticamente igual ao número de vagas) ²⁰ , o que poderia sugerir alguma ociosidade. Entretanto, as vagas não ocupadas de forma alguma podem ser consideradas ociosas, pois não correspondem a salas de aula, professores, bibliotecas, prédios, equipamentos, laboratórios etc. sem ocupação. Ao contrário, as instituições privadas sabem, de antemão, que aquelas vagas oferecidas não serão ocupadas e, se são oferecidas, é apenas por uma estratégia de mercado – a de oferecer todas as possibilidades aos potenciais clientes, mesmo sabendo que haverá interessados apenas para uma fração delas. Isso não é diferente da estratégia de vendas de um supermercado, que satura totalmente o campo de visão dos potenciais compradores, de tal forma que, qualquer que seja a direção que olharem, encontrarão um produto à venda. Como as vagas oferecidas, aqueles produtos todos não serão vendidos, mas precisam estar lá por razões apenas mercantis e de comércio; portanto, a exposição não é ociosa. O número de vagas muito além do que aquelas que serão ocupadas, em vez de indicar ociosidade, revela o enorme poder que as instituições privadas de ensino têm, pois, ainda que venha a haver pressão para que maus cursos sejam fechados, há uma enorme margem de manobra que lhes permitirá continuar oferecendo vagas e cursos abundantemente. A sobra de vagas, em vez de denotar uma ociosidade, mostra, de um lado, o seu próprio uso em uma estratégia tipicamente comercial e, de outro, a permissividade dos órgãos públicos em autorizar – e incentivar – a criação de instituições, cursos e vagas sem que haja demanda ou necessidade. Há muitos outros mitos relativos à educação no Brasil, e desconstruí-los é necessário. Entretanto, mitos são mitos, e, para cada um que for desconstruído, outro poderá ser criado. Portanto, precisamos ficar

permanentemente atentos para evitar que eles surjam e cresçam, pois os estragos que podem fazer são numerosos e duradouros. E o apoio encontrado por muitas políticas danosas ao país e à maior parte da população, e não apenas ao setor educacional, depende da crença nesses mitos. 1 A escolaridade média fornecida à população pelo sistema educacional corresponde ao número médio de anos de estudo daquelas pessoas que deixam o sistema escolar em um determinado ano do calendário. 2 O gráfico apresentado foi construído com base no artigo de Otaviano Helene (2012), “Evolução da escolaridade esperada no Brasil ao longo do século XX”, Educação e Pesquisa , São Paulo, F EUSP , vol. 38, n. 1, pp. 197-216, jan./mar. 3 É importante observar que o aumento do número de estudantes sem o aumento, nas mesmas proporções, de recursos, implicou uma piora do desempenho estudantil na mesma época, como já apontado no capítulo anterior. 4 A frequência escolar pode provocar aumento de despesas e perda de rendimento, esta última não apenas por dificultar a dedicação do estudante a atividades remuneradas como também por impedir que ele colabore com tarefas domésticas – cuidar de idosos ou irmãos menores, preparar refeições etc. – permitindo, assim, que outras pessoas mantenham atividades remuneradas. Os programas de gratuidade ativa precisam, portanto, ir além da distribuição gratuita de material escolar e uniforme, do fornecimento de refeições, do oferecimento de transporte gratuito, entre outras ações mais comuns. É necessário que haja ajuda financeira direta, recurso que, por sinal, é adotado por vários países, compensando a perda de renda provocada pela frequência escolar. 5 O F UNDEB corresponde a um valor mínimo de investimento educacional de R$200,00 por mês e por estudante (valores de 2012). 6 Há exceções, obviamente, e algumas pessoas com pouca escolarização têm sucesso profissional e mesmo altas rendas. Entretanto, a regra seguida de forma majoritária é de que a renda aumenta com o grau de escolarização. Por causa das poucas exceções, muitos, desatentamente, pensam que a regra inexiste ou é muito frágil; outros, às vezes por má-fé, reforçam esse engano. 7 A P NAD é uma pesquisa por amostragem domiciliar, feita periodicamente pelo IBGE, que investiga diversas características socioeconômicas da sociedade. 8 A maioria das instituições municipais são, de fato, instituições privadas, tanto do ponto de vista jurídico como na prática de contratação docente, dos cursos oferecidos, da cobrança de mensalidade e da desvinculação entre ensino, pesquisa e extensão.

9 No início de 2012, surgiram na imprensa vários fatos envolvendo a manipulação, por parte de instituições privadas, das avaliações feitas pelo MEC. 10 Dados divulgados em 2012 mostram que menos de 0,2% dos concluintes do P ROUNI se formou em cursos de medicina, contra cerca de 1% na média das instituições privadas e entre 2,3% e 4,6% nas instituições estaduais e federais. 11 Essa mesma distorção ocorre com as despesas de saúde ou com dependente. Quanto maior a renda de uma pessoa, maior a redução do imposto devido; pessoas com menores rendas terão menores reduções ou mesmo nenhuma redução. 12 A LDB de 1996 é a lei básica de regulamentação da educação brasileira. 13 Calculada segundo a metodologia descrita no artigo de Otaviano Helene (2012), “Evolução da escolaridade esperada no Brasil ao longo do século XX”, Educação e Pesquisa , São Paulo, F EUSP , vol. 38, n. 1, pp. 197-216, jan./mar. 14 Folha de S.Paulo , São Paulo, 31 mar. 2012. Disponível em: < http:// www1.folha.uol.com.br/saber/1069860-notas-das-melhores-escolas-paulistasdespencam-em-exame-veja.shtml >. Acesso em: mar. 2012. 15 Ver, entre outros, a comparação entre o desempenho dos alunos da Finlândia e dos EUA no item “Considere estes países” do Capítulo 4 deste livro. 16 Alguns argumentos aqui usados aparecem também no artigo de Otaviano Helene e Lighia Horodynski-Matsushigue (2005), “Educação superior: desconstruindo mitos”, edição 466. Disponível em: < http:// www.correiocidadania.com.br/antigo/ed466/pol3.htm >. Acesso em: mar. 2012. 17 O artigo de Otaviano Helene (2010), “O custo do aluno na universidade”, mostra as estimativas do investimento necessário para manter um estudante em um curso de graduação na USP em diferentes áreas de conhecimento. ( Jornal da USP , São Paulo, nov. 2010. Disponível em: < http:// espaber.uspnet.usp.br/jorusp/?p=12555 >. Acesso em: mar. 2012) 18 Essa informação é confirmada por vários questionários socioeconômicos preenchidos por estudantes em vestibulares ou no antigo Exame Nacional de Cursos (conhecido por “Provão”), bem como em levantamentos feitos pelo IBGE. Veja, por exemplo, Otaviano Helene (2006), “O que as avaliações permitem avaliar”, em João E. Steiner e Gerhard Malnic (Org.), Ensino superior: conceito e dinâmica , São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, pp. 309-320. 19 19O P ROUNI é um programa federal que transfere recursos para instituições privadas de ensino superior que recebem estudantes que preencham certas condições econômicas e escolares.

20 As instituições federais e estaduais ofereceram 386,9 mil vagas e tiveram 381,1 mil ingressantes, um aproveitamento de quase 99%. Os dados são da Sinopse Estatística da Educação Superior (I NEP /MEC, 2010). 3. Financiamento da educação pública Nosso país acumula muitos atrasos educacionais e, além disso, por não estar escolarizando adequadamente suas crianças e jovens, vem aumentando esse passivo. Feita essa consideração, podemos ainda afirmar que, para que se tenha uma mudança nesse quadro, será necessário investir bem mais do que hoje investimos em educação pública. Estimativas fundamentadas mostram que os recursos públicos devem atingir 10% do Produto Interno Bruto (PIB) e permanecer em patamares relativamente altos até que os atrasos sejam superados e o sistema educacional seja consolidado. Diante disso, cabe a pergunta: a educação é cara? A resposta é: não. Quando destinamos uma parte maior do PIB à educação, não estamos reduzindo o PIB de coisa alguma; estamos apenas destinando ao setor educacional uma parte dele. Vamos continuar produzindo energia elétrica, veículos, papel etc. e também criando empregos e aumentando a renda das pessoas, mas privilegiando o setor educacional. Da mesma forma, ao aumentar as atividades educacionais, que ocupam principalmente o tempo das crianças e dos jovens, não estamos reduzindo o tempo de que eles dispõem, apenas estamos dirigindo uma parte maior dele para atividades educacionais. Ao transferir uma maior parte do PIB para a educação, alguns setores terão sua parte no PIB reduzida, evidentemente; da mesma forma e também evidentemente, ao ocuparmos uma maior parte do tempo dos jovens e das crianças com a atividade educacional, o tempo destinado para outras atividades será reduzido. Nos dois casos, pode haver ganho, desde que façamos essas transferências de forma planejada e adequada. 3.1. Como surgiu a bandeira 10% do PIB para a educação pública A defesa de 10% do PIB para a educação pública é uma bandeira hasteada desde as discussões ocorridas por ocasião da elaboração do Plano Nacional de Educação 2001/2011 – e na esteira da Constituição de 1988. Em sua defesa estiveram muitas pessoas e entidades comprometidas com uma educação democrática, igualitária e republicana, que garanta a todos os plenos direitos de cidadania e ao país a formação da força de trabalho de que precisa. Mas de onde saiu este valor: 10%? Será que precisamos realmente disso? Como 10% pode parecer cabalístico ou apenas um valor “redondo”, adequado para fazer campanhas públicas, é bom revermos sua origem, que de fato é técnica, baseada em estimativas rigorosas e correspondente a um valor tipicamente encontrado nos países que superaram seus atrasos educacionais. Proposta da sociedade brasileira para um Plano Nacional de Educação: berço dos 10% do PIB

Após o fim do período ditatorial, muitas entidades representativas da sociedade civil (sociedades científicas, sindicatos, associações estudantis e de trabalhadores da educação, associações de dirigentes da educação pública, órgãos ligados a confissões religiosas, entidades representativas de movimentos sociais organizados, entre várias outras) passaram a se articular em um fórum nacional na defesa da educação pública. Essa articulação permitiu a criação de espaços de estudo e discussão, viabilizou a realização de campanhas públicas e levou à elaboração de projetos educacionais ¹ . Um desses projetos foi o Plano Nacional de Educação, preparado pela comissão organizadora do II Congresso Nacional de Educação, realizado em 1997, conhecido a partir de então como PNE – Proposta da Sociedade Brasileira (PNE-PSB). Essa proposta de PNE foi apresentada como projeto de lei ao Congresso Nacional em 1998 e a ele foi, logo a seguir, apensado o projeto apresentado pelo executivo federal ² . O PNE-PSB continha detalhes quanto às necessidades de financiamento, o que inexistia no projeto governamental, inclusive mostrando que elas eram crescentes ao longo de alguns anos, atingindo cerca de 10% do PIB ao final de sua vigência de dez anos. Não cabe aqui descrever detalhadamente os cálculos feitos no PNE-PSB ³ , mas indicar apenas um breve resumo da metodologia adotada. Isso será suficiente para mostrar as bases que levaram à estimativa dos 10% do PIB. Na época, final da década de 1990, tínhamos um determinado padrão quantitativo e qualitativo de atendimento da população nos diferentes níveis e modalidades educacionais. O objetivo era atingir um novo patamar em dez anos, condizente com as necessidades e possibilidades do país. A Tabela 5 apresenta de forma bastante resumida algumas das metas que se esperava atingir após o período de dez anos. (Além delas, que servem apenas como exemplos, havia metas para a educação especial, para a educação de jovens e adultos e para a pós-graduação, objetivos a serem respeitados e atingidos no que diz respeito aos povos indígenas, detalhamentos de como as metas deveriam respeitar as diferenças regionais do país e de como se daria a autonomia escolar, metas relativas ao analfabetismo e à formação de professores, entre várias outras.) Evidentemente, as metas estavam acopladas umas às outras. Afinal, para expandir o ensino médio, por exemplo, precisamos formar professores no ensino superior e aumentar a taxa de conclusão do ensino fundamental, o que implica reduzir a evasão nesse último nível. Por sua vez, a expansão do ensino de graduação depende tanto dos formandos do ensino médio como da expansão da pós-graduação. Assim, foi necessário um trabalho de sistematização para estabelecer a consistência entre os tempos de atingimento das várias metas. Resolvida essa parte do problema, restava estimar os custos. Isso foi feito usando-se vários referenciais, entre eles a realidade orçamentária na época e os investimentos médios por estudante nos vários países, estes últimos medidos não em dólares ou outra moeda qualquer, mas sim em relação à renda per capita nacional. Afinal, a renda per capita reflete tanto os custos das várias atividades como as possibilidades econômicas reais de cada país. Os investimentos anuais médios por pessoa na educação infantil e nos

ensinos fundamental e médio foram estimados então em 25% a 30% da renda per capita e no superior em 60%, com base em relações aplicadas internacionalmente. Bastava, portanto, combinar esses percentuais com o número de crianças e jovens a serem atendidos pelo setor público para se chegar a uma boa estimativa dos investimentos necessários para viabilizar a educação da qual precisamos. O resultado mostrou que seriam necessários recursos crescentes ao longo do tempo, os quais chegariam a cerca de 10% do PIB em dez anos. Estavam automaticamente incluídos nesse percentual do PIB o aumento dos salários dos trabalhadores do setor educacional, em especial dos professores, a redução do número de crianças e jovens nas salas de aula, a criação de instrumentos de gratuidade ativa, a manutenção das instalações escolares e a instalação de laboratórios, bibliotecas e demais espaços e vários outros insumos necessários para construir um sistema educacional de qualidade. Tabela 5 Situação no final da década de 1990 e metas do PNE-PSB para o período 2001-2011 Fonte: PNE-PSB (1997). Elaboração do autor. O que vai ficar de fora? A previsão do PNE-PSB era passarmos de um gasto abaixo dos 4% do PIB estimado àquela época, meados da década de 1990, para perto dos 7% já no início do plano, crescendo anualmente, à medida que novas crianças e jovens fossem sendo incorporados ao sistema educacional e a evasão fosse sendo reduzida, até atingir cerca de 10% do PIB em dez anos. Embora a projeção fosse para um período de dez anos, após superarmos os aspectos mais graves do nosso atraso escolar, os quais exigiam gastos transitórios (analfabetismo adulto, falta de professores e redução das taxas de repetência, por exemplo), poderíamos, depois daquele prazo, reduzir os investimentos para patamares mais baixos, típicos daqueles países que já têm seus sistemas educacionais consolidados. Mas, infelizmente, o Congresso Nacional acabou por aprovar um PNE para o período 2001-2011 que, embora incluísse várias das metas e propósitos do PNE-PSB, reduziu a previsão de investimentos a apenas 7% do PIB ao fim do período de sua vigência. Mas mesmo esse valor foi vetado pela Presidência da República. Assim, chegamos a uma situação que lembra a esquizofrenia, com duas realidades opostas e incompatíveis: havia metas a serem cumpridas, mas não os necessários recursos para tal. Esse é, evidentemente, um problema sem solução. A consequência óbvia é que as metas simplesmente não seriam cumpridas, como de fato não o foram. Em relação a algumas delas, nos afastamos ainda mais do planejado, como são os casos das taxas de conclusão dos ensinos fundamental e médio, que ficaram entre a estagnação e o retrocesso ao longo da década de 2000.

O veto aos parcos 7% do PIB e suas consequências não podem ser esquecidos. Sem recursos suficientes, jamais construiremos um sistema educacional que dignifique o país e as pessoas. Os 10% estimados não foram “tirados da cartola”; esse valor foi resultado de cálculos baseados em dados da realidade. Além disso, esse valor está bem de acordo com o que foi, ou é, aplicado nos diversos países que superaram, ou estão superando, os atrasos educacionais. Portanto, como corolário desses fatos, um valor abaixo do que o estimado é insuficiente para superar nossos problemas. Afinal, se nenhum país conseguiu superar seus atrasos escolares sem investir pesadamente em educação, evidentemente o Brasil também não conseguirá. Por não termos aplicado os necessários 10% do PIB (os investimentos por volta de 2010 estavam pouco abaixo dos 5% desse indicador), não cumprimos as metas e deixamos de fora, excluídos do sistema educacional, enormes contingentes de jovens e crianças. Os números são fantasticamente altos: por exemplo, a cada ano, cerca de sessenta mil pessoas analfabetas são incorporadas à população adulta; perto de um milhão de pessoas abandona, também a cada ano, o sistema escolar antes do final do ensino fundamental; assim, por causa da falta de recursos, dez milhões de pessoas deixaram de concluir o ensino fundamental durante a vigência do PNE 2001-2011. Grande parte dos que não são expulsos do sistema educacional frequenta escolas desmotivadoras, tem professores (quando tem, pois há aulas vagas em profusão neste país) sobrecarregados e sem condições de dar a devida atenção aos estudantes e consequentemente deixa a escola com enormes deficiências. Se as metas do PNE, cuja vigência acabou no início de 2011, tivessem sido cumpridas, nossas realidades sociais, econômicas e culturais seriam bem diferentes. Como serão os próximos planos de educação? Se continuarmos a restringir os recursos, devemos deixar explícito o que e quem vamos “deixar de fora”. Vamos continuar remunerando muito mal os educadores? Vamos continuar tolerando a evasão escolar nas taxas atuais? Vamos continuar com graves deficiências na formação de quadros profissionais para o país? Vamos continuar usando o sistema educacional como um fator de marginalização das pessoas e de concentração de renda? Vamos continuar tendo inúmeras escolas precaríssimas? Vamos continuar sonegando a muitos o direito de plena cidadania? Ou vamos fazer um pouco (ou muito) de cada uma dessas coisas? De onde sairão os recursos? O Brasil tem aplicado em educação pública, nas últimas décadas, valores que variaram entre não muito mais do que 2% até perto de 5% do PIB. Embora crescente, sendo os valores mais altos atingidos em meados da década de 2000, os investimentos continuam insuficientes. Apesar disso, muito frequentemente surgem objeções ao seu aumento. Uma objeção aparece na forma de pergunta, habitualmente feita por aqueles que não apostam em uma educação democrática: “de onde sairão os recursos”? Uma resposta óbvia para isso é: “do mesmo lugar que saíram os recursos dos países que superaram seus atrasos educacionais”, ou seja, de impostos e contribuições sociais. Mas quem faz essa pergunta é

normalmente o mesmo que repete o falso discurso de que o Estado, no Brasil, é superdimensionado e suga recursos da sociedade, uma afirmação de quem desconhece, porque quer desconhecer, a realidade orçamentária de outros países e, por interesse próprio ou apenas por repetir o que ouve, acaba por defender uma política de estado mínimo – mínimo esse abaixo daquele que é praticado até mesmo nos países mais liberais. Entretanto, como aquela pergunta é recorrente, assim como é recorrente a falsa afirmação de que há recursos públicos e o que falta é uma boa gestão, é necessário respondê-la. 3.2. Quanto realmente investimos em educação pública? Há pelo menos duas razões pelas quais devemos conhecer os gastos com educação pública. Uma delas é em virtude das exigências legais, uma vez que a Constituição da República, as constituições estaduais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e as leis orgânicas municipais estabelecem valores mínimos para aqueles gastos. Outra razão é para que possamos saber se o quanto investimos é suficiente para garantir a educação de que precisamos. E quanto o Brasil gasta efetivamente em educação pública? Embora a pergunta possa parecer impertinente, uma vez que há vários órgãos públicos que cuidam do assunto, ela é totalmente cabível e, infelizmente, tão necessária hoje como foi no passado. Segundo dados sistematizados e divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (I NEP ), os investimentos públicos totais em educação no Brasil, em 2010, foram de 5,8% do PIB ⁴ . Esse percentual seria insuficiente para garantir uma educação minimamente aceitável, ainda que não tivéssemos enormes atrasos, na forma de altíssima evasão escolar, falta crônica de professores em várias áreas (física e química, especialmente), pequeníssimo atendimento na educação infantil, salas de aula superlotadas, pequeno número de horas de permanência nas escolas, remuneração insuficiente para os trabalhadores da educação, enormes contingentes de analfabetos e de pessoas que foram excluídas do sistema educacional antes da conclusão do ensino fundamental? Mas, além disso, será que investimos realmente 5,8% do PIB em educação pública? A resposta para essa pergunta é não. A regulamentação do que pode ser considerado gasto com educação é bastante fluida, permitindo incluir, como educacionais, várias despesas que nada têm a ver com educação. Além disso, como aquela regulamentação só tem efetividade quanto aos gastos mínimos constitucionais e legais, a inclusão de outras despesas além daqueles mínimos na qualidade de educacionais ocorre de forma ainda mais arbitrária do que permite a já tolerante legislação. Segundo nota de rodapé na tabela em que o I NEP apresenta o valor de 5,8% do PIB, vemos que se inclui a “estimativa para complemento da aposentadoria futura do pessoal ativo” ⁵ , uma despesa que não corresponde à educação em nenhum sentido e que nem sequer foi realizada, pois trata-se de uma complementação futura . Embora não haja o detalhamento de quanto significa esse “complemento futuro”, estima-se que ele possa corresponder a cerca de 20% dos gastos com pessoal ⁶ e, portanto, a um

valor próximo a 1% do PIB, fazendo com que aquele valor esteja, de fato, abaixo dos 5% do PIB. Além disso, segundo a mesma nota de rodapé citada, estão “computados nos cálculos os recursos para bolsa de estudo, financiamento estudantil e a modalidade de aplicação: Transferências Correntes e de Capital ao Setor Privado”. Ora, se as bolsas de estudo correspondem a programas de iniciação científica, mestrado, doutorado ou pós-doutorado, elas já são computadas entre os investimentos em ciência e tecnologia. Ao computá-las também como investimentos em educação, está se fazendo uma dupla contabilidade e estão se inflando artificialmente os investimentos educacionais com investimentos feitos por órgãos voltados ao fomento do desenvolvimento científico e tecnológico. Caso as bolsas sejam uma referência ao Programa Universidade para Todos (P ROUNI ) ou a outros programas equivalentes mantidos por governos estaduais, elas são de fato subsídios para a educação privada e não investimentos em educação pública. Quanto ao financiamento estudantil, caso se refira ao Fundo de Financiamento Estudantil (F IES ) (programa do Ministério da Educação [MEC] usado para financiar o ensino de graduação em instituições privadas), e às transferências ao setor privado citados na mesma nota, eles só estão incluídos naqueles 5,8% do PIB por um jogo de palavras que mistura “investimento público com educação”, título da tabela citada, com investimentos na “manutenção e desenvolvimento do ensino público”, como define a LDB. Jogo de palavras e outros truques Esse jogo de palavras é muito grave, pois um leitor comum está despreparado para ele e entenderá “investimento em educação pública” quando o que está escrito é “investimento público em educação”, o que evidentemente inclui repasses a instituições privadas, sejam elas instituições de ensino ou organizações não governamentais (ONGs) com outras finalidades. Caso o jogo de palavras fosse apenas um caso isolado, já seria inaceitável. Entretanto, a legislação educacional brasileira e as contabilidades públicas estão cheias de artimanhas equivalentes. Vejamos alguns outros exemplos. Na parte de financiamento da educação aparecem diversos truques. A Constituição exige que o setor público destine à manutenção e ao desenvolvimento do ensino pelo menos 18% da arrecadação de impostos no caso da União e 25% no caso dos municípios, dos estados e do Distrito Federal. (Os percentuais para os municípios e estados podem ser maiores se as leis orgânicas municipais e as constituições estaduais assim o exigirem.) Evidentemente, a intenção da redação da Constituição era de que, de toda a capacidade financeira daquelas esferas de governo, 18% ou 25%, pelo menos, correspondesse à educação. Entretanto, como as contas públicas são fechadas apenas no final do exercício fiscal (um ano), a verificação de que a legislação foi cumprida ou não é feita somando-se, em moeda corrente, os gastos ao longo do ano. Por causa da inflação, mesmos valores nominais medidos em moeda corrente aplicados no início e no final do ano

correspondem a valores reais bem diferentes. Assim, investimentos feitos em dezembro “puxam” os percentuais aplicados nominalmente para cima. Como grande parte das despesas educacionais é com pagamentos de pessoas, o efeito do décimo terceiro salário pago no final do ano, embora possa corresponder ao mesmo poder aquisitivo do salário do início do ano, pode ser muito maior em termos nominais. Nos períodos de alta inflação, quando os preços chegaram a aumentar quase por um fator dez ao longo do ano, esse efeito era extremamente importante: as exigências legais eram nominalmente obedecidas, mas eram, em termos reais, totalmente desrespeitadas. Outra prática é a dupla contabilidade. Isso pode ocorrer quando uma esfera do governo repassa recursos a outra esfera com finalidades educacionais: se ambos consideram aqueles valores como aplicações em educação, o mesmo montante é somado duas vezes. Então, também são (ainda são?) computados duplamente os investimentos feitos com recursos emprestados: uma das vezes quando os recursos são gastos e outra quando a dívida é paga. Outra má prática, ainda, é computar gastos com pagamento de aposentadorias – que, de fato, são gastos previdenciários –, como se fossem investimentos em educação. Essa prática é inclusive permitida na legislação previdenciária do estado de São Paulo (lei n. 1.010/2007) ⁷ quando afirma que “os valores dos benefícios pagos pela SPPREV [São Paulo Previdência – o sistema estadual paulista de previdência do setor público] serão […] computados para efeito de cumprimento de vinculações legais e constitucionais de gastos em áreas específicas”. Entre 2000 e 2003, despesas com o programa então denominado Bolsa Escola foram incluídas como educacionais; embora inegavelmente essas despesas contribuam para as condições de vida das pessoas e, portanto, para a frequência à escola, elas não são despesas educacionais em nenhum sentido, devendo estar apenas na alínea da seguridade social. Além dos exemplos anteriores de como as contas de educação podem ser maquiadas, há muitos outros: debitar de forma totalmente arbitrária nas contas de uma secretaria de educação despesas que nada têm a ver com suas atribuições como, por exemplo, o asfaltamento de uma rua onde há uma escola; fazer repasses arbitrários de recursos para ONGs; assinar revistas e outros periódicos sem nenhuma motivação realmente educacional; ou incluir como despesas educacionais os salários de professores cedidos a órgãos não educacionais. A lista de truques contábeis é muito longa. Mas esses exemplos são suficientes para mostrar que precisamos de uma legislação que defina o que pode e o que não pode ser considerado investimento em educação pública, de preferência adotando critérios rigorosos, como os recomendados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (U NESCO ). Outra providência é definir a forma de distribuir os investimentos feitos em diferentes áreas quando uma mesma instituição executa outra atividade além da educacional, como ocorre nas universidades públicas, que promovem o ensino, as pesquisas científica e tecnológica, mantêm hospitais e também, como ocorre com as universidades estaduais paulistas, pagam

aposentadorias. Assim, a contabilidade malfeita falseia tanto os dados referentes à educação como a outras áreas (por exemplo, parte dos investimentos educacionais feitos em universidades – as estaduais paulistas entre elas – é computada como investimentos em ciência e tecnologia). Correções levando em conta essas distorções e estimativas independentes feitas com base nos orçamentos públicos indicam que os investimentos correntes em educação situavam-se, na segunda metade da década de 2000, na faixa dos 4,5% do PIB. 3.3. Os parcos recursos públicos brasileiros Podemos estimar os gastos efetivos com educação pública com base em vários procedimentos independentes. Um deles, por exemplo, é considerar as arrecadações de impostos da União, dos estados e dos municípios, uma vez que os recursos para educação pública são definidos nas constituições ou nas leis orgânicas municipais como proporções daquelas arrecadações. Outro procedimento é usar os dados do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (F UNDEB ), cujas estimativas são definidas por lei, o número de matrículas na educação básica e o orçamento das instituições públicas de ensino superior. Esses dois procedimentos indicam que os gastos correntes com educação pública no Brasil estão próximos ou mesmo abaixo dos 4,5% do PIB, bem longe do valor divulgado de 5,8%. Essas estimativas e a realidade do sistema educacional brasileiro mostram que os investimentos atuais são insuficientes para absorver a demanda quantitativa por educação e garantir sua qualidade. Portanto, a questão fundamental é como aumentar os recursos públicos para a educação pública até atingir idealmente um valor próximo a 10% do PIB. Essa questão pode ser desdobrada em pelo menos duas. Destinar 10% do PIB para a educação poderia comprometer outras atividades? Como fazer para aumentar os recursos para a educação pública em cerca de 5% do PIB? A resposta à primeira questão é não, conforme já discutimos antes. Vamos ver então essa segunda questão. Há uma enorme propaganda contra o setor público no Brasil, em especial no que diz respeito à arrecadação de impostos, taxas e contribuições sociais. Entretanto, os municípios, os estados e o governo central arrecadavam, por volta de 2010, apenas cerca de 34% do PIB, valor muito abaixo do que se observa nos países mais organizados. Apenas uma parte daqueles 34% do PIB é destinada aos setores de interesse social. O superávit primário do setor público na segunda metade da década de 2000, com pequenas variações ao longo dos anos, foi da ordem de 2,5% a 3% (cerca da terça parte desse valor corresponde aos superávits de estados e municípios e o restante, aos da União). Como esses recursos são usados para pagamento dos juros ou amortização de dívidas, resta para todas as demais despesas da União, dos estados e dos municípios alguma coisa próxima a 31% ou 32% do PIB. Cerca de 5% a 6% do PIB é correspondente a despesas dos poderes legislativos e judiciários, das Forças Armadas e de segurança pública. Ainda

há despesas internas do funcionamento das máquinas administrativas e de várias secretarias ou ministérios cujas finalidades não correspondem diretamente a atividades de interesse social, mas que são financiadas por recursos públicos. Assim, resta não mais do que 25% do PIB para todas as despesas de caráter social: educação, previdência, saúde, assistência social, habitação, desenvolvimento urbano, desenvolvimento agrário, seguro desemprego, saneamento, cultura etc. É impossível, com aquele valor, responder adequadamente a todas as demandas. É evidente que precisamos aumentar os recursos públicos no Brasil ⁸ . Qualquer um que tenha alguma paciência para fazer cálculos e gaste algum tempo examinando as contas públicas de outros países, industrialmente avançados ou não, mas que têm um setor público que responde adequadamente às necessidades de suas populações, pode verificar que é impossível responder à demanda social com tão poucos recursos. Com aqueles pouco mais de 20% do PIB para tantas tarefas, o resultado é a barbárie: quase um terço de crianças excluído da escola antes de completar os nove anos de educação obrigatória, mais do que um terço de trabalhadores excluído do sistema previdenciário, um sistema de saúde pública totalmente insuficiente, enormes bolsões de miséria, dezenas de milhões de pessoas vivendo em habitações totalmente precárias, falta de infraestrutura urbana etc. O discurso das elites Em muitos países, as arrecadações públicas superam, e às vezes em muito, os 45% do PIB. Além disso, em diversos países os governos trabalham com déficits públicos bastante altos ⁹ ; portanto, gastando mais do que arrecadam, e não com superávits, situação típica no Brasil. Mesmo excluindo a recente crise do capitalismo neoliberal, intensificada no final da década de 2000, que fez com que os déficits públicos superassem, não raramente, os 10% dos PIB, déficits maiores que 3% do PIB eram muito comuns. Em anos mais recentes, os países da Zona do Euro trabalharam com déficits públicos superiores aos 6% do PIB ¹⁰ . Somando esses déficits com as arrecadações, os gastos públicos totais excedem a metade do PIB. Entre os países onde isso acontece, estão aqueles capitalistas mais organizados (tipicamente os países europeus, em especial os nórdicos), países de economia intermediária como Grécia e Líbia (esse último caso, os dados são anteriores às ações da Organização do Tratado do Atlântico Norte – O TAN ), vários países cuja renda per capita ¹¹ se aproxima da brasileira (Ucrânia, Bielorrússia, Portugal, Cuba ou Sérvia, por exemplo) e diversos países bastante pobres (como Lesoto e Burundi). Mesmo nos EUA, os gastos públicos totais, da ordem de 6,1 trilhões de dólares em todos os níveis governamentais em 2011 ¹² , correspondem a 40% do PIB, bem mais que no Brasil. Além disso, nos EUA, grande parte da saúde coletiva e do sistema de aposentadoria é administrada e contabilizada externamente ao sistema público. Se os recursos correspondentes a essas atividades forem adicionados aos gastos públicos, os EUA apresentariam uma situação bastante próxima da realidade dos outros países aqui citados anteriormente.

Apesar da pequena e insuficiente arrecadação pública no Brasil, há uma campanha muito ampla, bancada fortemente pelas elites e divulgada pela mídia, contra seu aumento. A base ideológica desse discurso é do tipo “tudo para o crescimento econômico, nada ou apenas migalhas para o desenvolvimento, em especial para o desenvolvimento social”, e a forma pela qual esse discurso é disseminado é o continuado libelo contra os impostos. Essa disseminação é tão impactante que muitas pessoas cuja renda depende estritamente da arrecadação de impostos e outras contribuições, como os funcionários públicos, aposentados e pensionistas, por exemplo, assumem o discurso sem perceberem que caso haja uma redução de impostos, sua remuneração será reduzida em proporções ainda maiores, uma vez que há gastos que não podem ser reduzidos. Como gerar mais recursos públicos Há muitas distorções no sistema tributário brasileiro. A alíquota máxima do imposto de renda, de 27,5%, é muito baixa, mesmo quando comparada com países de forte tradição liberal, como é o caso dos EUA. Nesse país, a alíquota máxima de imposto de renda só foi inferior a 60% antes de 1930 e depois de 1980, com a implantação da política liberalizante do presidente Ronald Reagan (conhecida como reaganomics ). Em 2012, após os períodos Reagan e Bush, portanto após as reduções de impostos sobre as rendas altas, as quais têm sido questionadas, inclusive durante a eleição presidencial daquele ano, quando venceu as tendências contrárias às reduções, ela ainda é de 35%, significativamente superior à brasileira. Além do imposto de renda nacional, nos EUA há impostos de renda estaduais na maioria dos estados, cujas alíquotas máximas são da ordem de 10%, e municipais em alguns casos. No caso de países europeus, as alíquotas máximas dos impostos de renda superam, em muitos casos, os 50%. Portanto, nossa alíquota máxima de 27,5% está em total desacordo, mesmo para o que se espera de países capitalistas. As baixas alíquotas do imposto de renda no Brasil são responsáveis pela distorção entre impostos diretos e indiretos, estes últimos gravando a todos, independentemente da renda, portanto socialmente injustos. Ausência ou valores irrisórios nos impostos de propriedade, em especial das grandes fortunas, é outra distorção típica da política de impostos no país, em desacordo até mesmo com o que se observa nos EUA ¹³ . Além dessas fortes diferenças entre a arrecadação de recursos públicos no Brasil, quando comparada com a realidade de outros países, temos aqui não apenas níveis intolerantemente altos de sonegação como várias isenções fiscais que são socialmente inaceitáveis. Trabalho do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (I PEA ) de 2011 ¹⁴ sobre possíveis fontes de recursos para a educação aponta nove possíveis alterações nas políticas de impostos capazes de gerar uma arrecadação adicional da ordem de 6% do PIB, sem nenhum impacto negativo nas atividades econômicas do país ou no bemestar das pessoas. Além dessas, são apontadas, no mesmo documento, outras dez possibilidades de aumento de arrecadação que, combinadas com o valor anterior, poderiam nos colocar em um patamar próximo daquele ocupado pelos países menos injustos ou menos

desorganizados. Além dessas correções, o mesmo documento aponta que cada ponto percentual de redução na taxa básica de juros geraria, na época correspondente ao trabalho citado, 0,6% do PIB em recursos públicos adicionais (para a União, os estados e os municípios). Um setor público insuficiente Outra maneira de verificar a insuficiência do setor público brasileiro é examinando o número de pessoas que nele trabalham e comparar com outros países; o que é feito na Tabela 6 ¹⁵ . Mesmo para atingir um patamar baixo como o dos EUA, Alemanha ou de alguns países sul-americanos, precisaríamos aumentar o número de trabalhadores no setor público em mais do que 40%. Para atingir padrões conquistados pelos sistemas sociais dos países do norte da Europa, precisaríamos entre duplicar e triplicar os trabalhadores do setor público brasileiro. Apenas com mais recursos e maior número de trabalhadores no setor público, poderemos responder às necessidades sociais do país. Da maneira que está, certamente não. Tabela 6 Porcentagem da força de trabalho empregada pelo setor público

Fonte: OCDE (2011); I PEA (2009).

Elaboração do autor. Contudo, há um tipo de discurso, baseado na comparação da arrecadação pública brasileira com a de outros países de menor renda, no qual se argumenta que, comparativamente a esses, o setor público brasileiro tem uma participação muito maior no PIB. Primeiro, essa argumentação não é inteiramente verdade, como já mostrado: há muitos países de renda per capita próxima à brasileira cujos setores públicos são bem mais presentes, quer essa presença seja medida na forma de arrecadação em relação ao PIB, quer seja medida na forma de trabalhadores do setor público em relação ao número total de trabalhadores do país. E esses países apresentam uma situação social mais favorável quando comparados com outros em que o setor público é mais restrito. Assim, pode-se fazer uma contraposição àquela argumentação com uma pergunta: é melhor se parecer com países pobres, plenos de demandas sociais sem resposta, do que com os países, pobres ou não, onde os setores públicos são capazes de responder às necessidades e aos anseios da população, em especial nas áreas de educação, saúde, previdência, infraestrutura, habitação, justiça e segurança? Em resumo, há amplas possibilidades de aumentar os recursos públicos destinados aos setores de interesse social. A luta por mais recursos para o setor público e a denúncia de quem e quais setores se beneficiam com as políticas fiscais brasileiras deveriam estar em uma pauta conjunta de todos os movimentos comprometidos com a educação, a previdência social, a saúde, a habitação, os desenvolvimentos urbano e agrário e todos os demais setores de interesse social e coletivo. Talvez, assim, pudéssemos fazer uma campanha contra discursos sobre o “custo Brasil”, “uma das maiores cargas tributárias do mundo” e outros equivalentes. 3.4. Mais recursos para a educação: nada a perder e muito a ganhar Atrasos escolares como os nossos, na forma de um absoluto e insuficiente índice de atendimento na educação infantil, de grande quantidade de analfabetos e de adultos com poucos anos de estudo, de evasão escolar muito alta ao longo do ensino básico e falta de profissionais qualificados, comprometem gravemente e de forma definitiva o futuro de um país. Para superar essa situação, precisamos elevar os investimentos diretos em educação pública. Mas será que aumentar esses investimentos pode comprometer outras atividades do país, em particular as atividades econômicas? A resposta é não, e isso por várias razões – algumas delas aqui já apontadas. Antes de mais nada, é necessário considerar que os investimentos em educação têm altas taxas de retorno, ou seja, são pagos em pouco tempo. Portanto, aumentar esses investimentos não apenas não compromete a economia como, ao contrário, contribui para dinamizá-la. Outra razão é que, apesar das nossas limitações econômicas, há margens para aumentar os investimentos, especialmente em um período de crescimento da produção acima do crescimento populacional. O financiamento público da educação em outros países

O gráfico da Figura 6 mostra a média dos investimentos públicos em educação no período entre 1988 e 2010, como percentuais dos PIBs, em diversos países (foram incluídos apenas países com mais de cinco milhões de habitantes, os quais apresentaram dados anuais para pelo menos metade do período analisado) ¹⁶ . Como vemos, o Brasil ocupa uma posição intermediária, com recursos insuficientes até mesmo se o país não tivesse grande contingente de crianças e jovens e os atrasos educacionais que apresenta. Se continuarmos nessa posição, continuaremos mantendo nossa situação educacional atual: precária e insuficiente até mesmo para garantir as condições necessárias para uma real e permanente inserção soberana entre os demais países. Os países que apresentam bons indicadores educacionais, ou que os têm melhorado significativamente, estão no grupo daqueles que fazem investimentos mais altos em educação. Também estão nesse grupo aqueles países que apresentam condições sociais melhores do que outros com as mesmas possibilidades econômicas. Cuba, Dinamarca e Suécia são os três que mais esforços investiram em educação no período correspondente aos dados do gráfico. No outro extremo, com menores taxas de investimento em educação, estão aqueles países que apresentam as piores situações tanto educacionais como também as sociais em geral: Camboja, Emirados Árabes Unidos ¹⁷ e República Dominicana são, entre aqueles cujos dados estão representados na figura, os três que menos investiram. No que diz respeito aos investimentos em educação, não estamos em posição confortável em relação a várias dezenas de países, como mostra a Figura 6. Se ficarmos no atual patamar, não vamos superar as barreiras que impedem o aumento da produção econômica, nem promover o desenvolvimento social, nem enfrentar as desigualdades de renda e recuperar, ainda que em parte, nossos atrasos educacionais. Se nos deslocarmos na direção à direita do gráfico, isto é, se investirmos menos do que 4% do PIB em educação pública – como chegamos a fazer em alguns anos –, vamos nos aproximar de países que são totalmente dependentes e/ou que apresentam indicadores sociais catastróficos. Não podem restar dúvidas sobre para qual direção devemos nos deslocar. Figura 6 Investimento público em educação (média entre 1988 e 2010) como percentual do PIB. Países com mais de 5 milhões de habitantes e com pelo menos 7 dados no período analisado

Fonte: UIS-U NESCO . Elaboração do autor, com base em dados disponibiliizados pela UIS-U NESCO , sítio consultado em abril de 2012. Mais e melhor educação cabem no PIB Uma maneira de verificarmos que é possível o aumento dos recursos para a educação pública é analisando a evolução recente da economia nacional. Entre 2004 e 2011, o PIB brasileiro cresceu perto de 25% acima do crescimento populacional, ou seja, o crescimento foi suficiente para absorver o aumento da população e, além disso, aumentar da quarta parte o valor econômico da produção por pessoa. Se uma fração desse aumento da produção fosse destinada à educação, poderíamos atingir investimentos significativamente mais altos do que os atuais sem afetar negativamente outras atividades nacionais. Ao contrário, dependendo da forma como o aumento da produção per capita fosse transferido para a educação e outras áreas de interesse social, poderia haver ganho nos dois lados: haveria melhora para os níveis educacionais da população ao mesmo tempo em que se inibiria um consumismo destrutivo. É necessário lembrar que, ao se transferir parte do aumento da produção econômica para a educação, não estaríamos reduzindo ou estancando seu crescimento: a indústria da construção civil seria aquecida, mais intensamente na forma de reformas e construções de equipamentos escolares; o número de empregos formais também cresceria, com maior concentração na forma de trabalhadores em educação; a renda pessoal também cresceria, mas na forma de melhor remuneração de professores e outros trabalhadores do setor educacional; haveria aumento da produção de veículos para atender à demanda gerada pelo setor educacional, incluindo aí seus trabalhadores. Da mesma forma, o aumento do consumo de eletricidade ou de equipamentos elétricos, eletrônicos e de informática também ocorreria, mais concentradamente entre trabalhadores da educação e nas instituições educacionais. Enfim, comparando com a realidade de outros países, considerando as possibilidades de transferência de recursos para o setor público e ainda a realidade da produção econômica, vemos que é totalmente viável aumentar os investimentos em educação pública, bem como em outros setores de interesse social. O que nos impede de fazer isso? Será por ignorância, ou há um propósito pouco nobre por trás de tais decisões?

3.5. Educação, crescimento da produção e desenvolvimento social A educação escolar formal é um instrumento de promoção de vários aspectos da atividade humana. No campo da saúde, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (U NICEF ) tem apontado insistentemente os benefícios que um bom ensino fundamental pode ter para a saúde infantil e materna, incluindo entre suas principais campanhas a defesa de uma melhor escolarização para as meninas. A relação entre a educação e o desenvolvimento psicológico da criança é ponto central de muitas linhas de estudo em psicologia; é impossível o desenvolvimento científico e tecnológico sem que haja um desenvolvimento educacional concomitante; a relação entre educação e democracia é tema de muitos debates e artigos científicos especializados. E não há como superar definitivamente as desigualdades (de renda, regionais e de possibilidades de inserção social) sem, entre outras coisas, termos um sistema educacional igualitário e democrático. Enfim, a educação é fundamental para o desenvolvimento social de um país, qualquer que seja o aspecto considerado. Como uma espécie de corolário desse fato, um mau sistema educacional tem consequências negativas na saúde de uma população, nas possibilidades de desenvolvimento e integração social das pessoas, no desenvolvimento social e cultural, na produção, absorção e disseminação do conhecimento científico, na construção da democracia e na superação das desigualdades. Por essas razões, a destinação de uma parte do esforço de um país à educação de sua população, ainda que ela tenha um custo econômico, já seria plenamente justificada. Mas isso não é tudo. Além de fundamental para qualquer forma de desenvolvimento, a educação é uma atividade cujos investimentos apresentam um alto retorno econômico. Esse retorno econômico, tema de trabalho acadêmico de muitos pesquisadores em diversos países, tem sido estimado de várias formas, usando diferentes perspectivas econômicas e também diferentes técnicas de análise. Há duas maneiras complementares de analisar as consequências econômicas da educação: uma é a perspectiva individual e a outra, a nacional.

A perspectiva individual é analisada observando-se a relação direta entre a renda de uma pessoa e seu nível educacional. Analisando dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em diversos censos e programas de amostragem domiciliar, podemos concluir que cada ano adicional de escolarização leva a um aumento médio da renda pessoal da ordem de 10% a 20% (essa variação reflete a época, a região do país e o nível escolar considerado). Uma relação direta entre renda pessoal e escolarização é encontrada em todos os países capitalistas e mesmo em países socialistas, embora mais intensa nos países de economia mais liberal e bem menos intensa nesses últimos. Essa relação é relevante quando consideramos o efeito da desigualdade escolar sobre a desigualdade da renda das pessoas e das diferentes regiões do país, como já apontado. Subescolarizar uma criança é um ato que tem consequências econômicas para toda sua vida futura e quase certamente na de seus filhos e dependentes. Da perspectiva nacional, um trabalho do I PEA ¹⁸ , de 2011, compara os impactos de diferentes ações sobre o crescimento da economia e demonstra que, a cada R$1,00 investido em educação pública, há um aumento de R$1,85 no PIB. Ou seja, além de todas as vantagens sociais, os investimentos em educação mais que são pagos. Essa observação no documento do I PEA quanto ao caso brasileiro também é verificada em todos os países: as taxas de retorno econômico dos investimentos em educação são altíssimas, até mesmo mais altas que investimentos diretos no setor produtivo. O efeito da educação sobre o PIB indica que quase 40% da diferença de renda per capita entre o Brasil e os EUA pode ser explicada pela diferença de escolarização da população dos dois países ¹⁹ . Em outras palavras, caso tivéssemos o mesmo nível educacional daquele país, mesmo que as demais condições de produção de bens e serviços permanecessem inalteradas, nossa renda per capita seria cerca de duas vezes maior do que é hoje. Outro trabalho na mesma linha ²⁰ mostrou que a diferença entre a renda per capita brasileira e a argentina, que em 2010 era cerca de 50% superior à nossa, é em razão basicamente da diferença educacional, uma vez que todas as demais condições relacionadas à produção econômica são, em termos per capita , iguais nos dois países. Diversos trabalhos ²¹ têm avaliado o impacto da educação no crescimento real da produção e na renda per capita dos EUA ao longo do século XX. Há vários trabalhos acadêmicos, tanto no Brasil como em outros países, mostrando que os impostos gerados por atividades econômicas viabilizadas por investimentos em instituições educacionais, que, portanto, não existiriam se aqueles investimentos não tivessem sido feitos, são a cada ano bem maiores que as despesas feitas, também anualmente, para a manutenção daquelas instituições. Não há dúvidas sobre as vantagens sociais dos investimentos em educação e também de que ela é um instrumento importante para propiciar o aumento da produção de bens e serviços, pois se paga em pouco tempo. E, não custa repetir, o outro lado dessa moeda é o fato de que nosso atraso educacional

não apenas é um gravíssimo entrave para o aumento da produção econômica como um dos fatores a agravar nosso desenvolvimento cultural, político e social. Economizar em educação é uma péssima ideia, e, mesmo do ponto de vista estritamente econômico ou financeiro, essa economia sai muito caro. 1 Uma revisão histórica dessa articulação (e das lutas às quais ela deu origem e força) pode ser encontrada no artigo de Maria da Graça Nóbrega Bollman (2010), “Revendo o Plano Nacional de Educação: proposta da sociedade brasileira”, Educação e Sociedade , Campinas, C EDES , vol. 31, n. 112, pp. 657-676, jul./set. 2 O artigo de Ivan Valente e Roberto Romano (2002), “ PNE: Plano Nacional de Educação ou Carta de Intenção? ” , Educação e Sociedade , Campinas, C EDES , vol. 23, n. 80, pp. 96-107, set., relata as várias etapas pela qual passaram as duas propostas de PNE. 3 O PNE da sociedade brasileira pode ser encontrado em vários sítios da internet, como em: < http://www.adusp.org.br/files/PNE/pnebra.pdf >. Acesso em: nov. 2012. Nele aparecem o diagnóstico da realidade educacional de então, as metas a serem atingidas e os recursos necessários para tal. 4 Percentual do investimento total em relação ao PIB por nível de ensino . Disponível em: < http://portal.inep.gov.br/indicadores-financeiroseducacionais >. Acesso em: abr. 2012. 5 I NEP (s.d.), Percentual do investimento total em relação ao PIB por nível de ensino . Disponível em: < http://portal.inep.gov.br/web/guest/estatisticasgastoseducacao-indicadoresfinanceiros-p.t.i.nivel_ensino.htm >. Acesso em: dez. 2012. 6 Veja matéria divulgada pelo Laboratório de Informática (ICHF), Universidade Federal Fluminense. Disponível em: < http://www.uff.br/ichf/ labinfo/index.php?url=noticias >. Acesso em: abr. 2012. 7 São Paulo (2007), Lei complementar n. 1.010 , de 1º de junho de 2007. Disponível em: < http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/ lei%20complementar/2007/lei%20complementar%20n. 1.010,%20de%2001.06.2007.htm >. Acesso em: jul. 2012. 8 O financiamento da saúde pública sofre com problemas similares aos da educação. Sobre esse tema, veja o artigo de José Noronha (2012), “O SUS e as serpentes que já saíram dos ovos”. Disponível em: < http:// www.viomundo.com.br/voce-escreve/jose-noronha-o-sus-e-as-serpentes-queja-sairam-dos-ovos.html >. Acesso em: abr. 2012. 9 Esse fato apenas atingiu a opinião pública após a crise econômica que se iniciou na segunda metade década de 2000 nos países europeus e a crise fiscal dos Estados Unidos (EUA).

10 Ver sítio da Comissão Europeia. Disponível em: < http:// epp.eurostat.ec.europa.eu/cache/ITY_PUBLIC/2-2110 2011-AP/EN/ 2-21102011-AP-EN.PDF >. Acesso em: abr. 2012. 11 Renda per capita medida usando a paridade de poder de compra. 12 Disponível em: http://www.usgovernmentspending.com/ totalspending2011 USrn >. Acesso em: abr. 2012. 13 Nos EUA, as grandes fortunas são taxadas no processo de herança. Quando John D. Rockefeller morreu, em 1937, 70% do patrimônio foi recolhido na forma de imposto sobre bens herdados (“Legacy for one billionaire: death, but no taxes”, New York Times , 8 jun. 2010). Após algumas décadas de recuo, a alíquota máxima do imposto sobre grandes heranças naquele país foi reduzida a 35%, devendo subir para 55% em 2013. Veja, por exemplo, o verbete Estate tax in the United States da Wikipédia. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/EstatetaxintheUnited_States >. 14 “Financiamento da educação: necessidades e possibilidades”, Comunicados I PEA , n. 124, dez. 2011. Disponível em: < http:// www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/ 111214_comunicadoipea124.pdf >. Acesso em: jul. 2012. 15 Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (2011). Government at a glance, 2011 . Fonte para Costa Rica, Panamá, Venezuela, Uruguai, Argentina Paraguai e República Dominicana: I PEA (2009). “Emprego público no Brasil: comparação internacional e evolução”. Nesse documento do I PEA , o Brasil aparece com 12,5% dos trabalhadores na administração direta e indireta do setor público e nas empresas estatais. 16 Institute for Statistics (UIS-U NESCO). Sítio acessado em abril de 2012. O dado brasileiro pode estar superestimado pelas razões já discutidas. Entretanto, optou-se por mantê-lo para preservar a unicidade da fonte. 17 Os Emirados Árabes Unidos, apesar de terem uma renda per capita mais do que quatro vezes superior à brasileira, da ordem de 48 mil dólares pelo critério da paridade de poder de compra em 2010, têm taxas de analfabetismo quase exatamente iguais às nossas, apresentando talvez o maior desencontro entre as possibilidades econômicas de um país e o seu padrão educacional. 18 Comunicados do I PEA (2011), “Gastos com a política social: alavanca para o crescimento com distribuição de renda”, n. 75, 3 fev. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/ 110203_comunicadoipea75.pdf >. Acesso em: jul. 2012. 19 Fernando de Holanda Barbosa Filho e Samuel de Abreu Pessôa (2010), “Educação e crescimento: o que a evidência empírica e teórica mostra?”, Revista Economia , p. 265, maio/ago. Disponível em: < http:// www.anpec.org.br/revista/vol11/vol11n2p265_303.pdf >. Acesso em: jul. 2012.

20 Samuel de Abreu Pessôa (s.d.), “Avaliação do nacionaldesenvolvimentismo com ênfase no atraso educacional”, VII Seminário de Economia , Belo Horizonte (Apresentação). Disponível em: < www.sebh.ecn.br/seminario7/sebh7artigo_samuel.pdf >. Acesso em: maio 2012. 21 Veja, por exemplo, Claudia Goldin e Lawrence F. Katz (2001), “The legacy of U.S. educational leadership: notes on distribution and economic growth in the twentieth century”, American Economic Review , vol. 91, pp.18-23. Disponível em: < http://www.economics.harvard.edu/faculty/katz/files/ legacyaea.pdf >. Acesso em: maio 2012. 4. Projetos problemáticos OBrasil viu nas últimas décadas uma profusão de projetos educacionais “salvadores”, sempre com a promessa de que depois deles tudo seria diferente. Mas isso nunca aconteceu: antes e depois de cada um desses projetos, o país manteve praticamente a mesma posição relativa quando comparado com outros países. Por exemplo, há cerca de quarenta anos, o Brasil ocupava a terceira pior posição no que diz respeito à inclusão de jovens no ensino superior entre os onze países da América do Sul para os quais há dados disponíveis; atualmente, ocupamos a segunda pior posição. Em relação aos demais países, andamos para trás. Outro exemplo: quanto à taxa de alfabetização na faixa dos 15 aos 24 anos, o Brasil permaneceu, no mesmo período de quarenta anos, em penúltimo lugar, inicialmente apenas melhor que a Bolívia e mais recentemente apenas melhor que o Peru (ver Tabela 1) ¹ . Muitos dos projetos vêm vestidos de roupas que lhes dão uma aparência de seriedade. Aí estão as inúmeras iniciativas que visam avaliar o sistema educacional e o desempenho de alunos e professores. Outro conjunto é formado por aqueles que parecem modernos, por carregarem uma espécie de mística existente nas novas tecnologias: o ensino a distância (EaD) é o mais marcante deles. Ora, as avaliações seriam úteis se seus resultados fossem usados para localizar e corrigir os problemas encontrados; entretanto, elas são usadas para ranqueamentos inúteis e para punir ou premiar professores e estudantes. O EaD, na forma que foi implantado no Brasil e fortemente estimulado pelas empresas de informática, não apenas em nada contribuirá para o desenvolvimento da educação brasileira como é mais uma dificuldade no caminho do nosso sistema educacional. Se quisermos realmente saber qual o projeto educacional do país, o melhor não é consultar programas ou projetos governamentais, nem escutar promessas feitas em campanhas eleitorais: para conhecer o real projeto educacional brasileiro, o melhor é olhar para a realidade. 4.1. Muitos projetos, nenhuma solução Vários dos muitos projetos, planos e programas que prometeram um salto de qualidade na educação nacional ficaram conhecidos por suas siglas, como M

OBRAL , C IEP , C IAC , C AIC e CEU, F UNDEF e F UNDEB ² , por exemplo; outros, por seus nomes, como Escola Padrão , Plano de Desenvolvimento da Educação , Alfabetização Solidária e Plano Decenal de Educação para Todos . Outras iniciativas sem nomes especiais incluem a municipalização da educação, a reforma do ensino médio da década de 1970 e as várias reformas universitárias. Vários projetos do tipo parceria públicoprivado ou “adote uma escola” aparecem de tempos em tempos, como o Acorda, Brasil , da década de 1990. Se alguns desses fizeram uma contribuição positiva à educação, nenhum proporcionou o apregoado “salto”. Propostas como a cobrança do ensino público superior e de uma espécie de trabalho civil obrigatório (um período em que os formados em instituições públicas de ensino superior trabalhariam para a sociedade, retribuindo aquilo que receberam) são outras que não raramente ressurgem no panorama nacional. Outros tipos de ação incluem as inúmeras avaliações, as quais – diferentemente do que se espera de uma real avaliação, que serviria para diagnosticar problemas e corrigi-los – têm sido “vendidas” como verdadeiras soluções, transmutando diagnóstico em remédio. Algumas dessas avaliações são usadas para “premiar” professores cujos estudantes tiveram algum sucesso (punindo os demais, já que a ausência de um prêmio, para qualquer fim prático, é idêntica a uma punição), prática que tem se mostrado danosa em outros países, como será discutido na seção 4.3 deste capítulo. O Exame Nacional do Ensino Médio (E NEM ), por exemplo, é uma dessas avaliações. Sua história e a justificativa para sua existência exemplificam bem como as avaliações são usadas na prática. No início, o E NEM era justificado como um instrumento de orientação e autoavaliação dos estudantes e como referência para as escolas públicas de ensino médio. Depois, quando passou a ser usado como critério de acesso ao ensino superior, adquiriu um caráter de justiça social, na medida em que seria capaz de reconhecer habilidades e competências daqueles que não frequentaram escolas adequadas e, portanto, tendo deficiências de conteúdo. Dessa forma, o E NEM daria iguais chances para os estudantes, independentemente das condições econômicas. Posteriormente, foi justificado como o fim do vestibular, apesar de ser – paradoxalmente – exatamente um vestibular, com todas as suas características e seus defeitos. Finalmente, no momento em que este texto está sendo escrito, pretende-se que ele passe adicionalmente a substituir ou integrar o sistema de avaliação da educação básica no caso do ensino médio, continuando a ser um vestibular. Em resumo: preserva-se apenas a sigla e muda-se o conteúdo: uma espécie de solução à procura de um problema. No campo legal, tivemos várias ações, tais como uma nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), em 1996, e um Plano Nacional de Educação (PNE) para o período 2001/2011. Alguns projetos mais recentes incluem o ensino a distância – como a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (U NIVESP ), em São Paulo, ou a Universidade Aberta do Brasil, em nível nacional –, programas federais – como o Programa Universidade para Todos (P ROUNI ) e o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (R EUNI ) – e estaduais – como o paulista Programa Escola da Família.

Projetos inoperantes Apesar da grande quantidade de projetos, e independentemente dos reais compromissos dos responsáveis por suas implantações, nenhum deles foi capaz de alterar de forma realmente perceptível os padrões educacionais como se buscava (ou se dizia buscar). Essa afirmação pode ser comprovada observando-se indicadores escolares e educacionais que cada um deles pretendia alterar. Vejamos alguns casos. O M OBRAL , projeto de alfabetização funcional, foi criado em 1967 e seria executado em dois períodos de quatro anos cada, o primeiro voltado a pessoas de até 30 anos de idade e o segundo a adultos com mais de 30 anos. Sua promessa de reduzir mais rapidamente o analfabetismo não foi perceptível: as reduções das taxas de analfabetismos antes, durante e depois de sua vigência foram estritamente iguais, mostrando que ele em nada alterou nossa realidade. Em uma comparação internacional, vemos que na segunda metade da década de 1960, antes do início do programa, o Brasil apresentava uma taxa de analfabetismo ligeiramente melhor que a média mundial e praticamente igual às taxas de analfabetismo do México e da Colômbia. Por volta de 1990, portanto depois do período do M OBRAL , nossa taxa de analfabetismo era pior que a média mundial, e México e Colômbia passaram a apresentar taxas menores que o Brasil. Ou seja, fomos incapazes até mesmo de acompanhar o que estava ocorrendo nos demais países. Outro exemplo de inoperância de nossos programas educacionais é fornecido pelos C IEP s, projeto do antropólogo Darcy Ribeiro criado no Rio de Janeiro durante o governo de Leonel Brizola, certamente um projeto que estava realmente comprometido com a educação pública. Apesar disso, o projeto C IEP foi incapaz de alterar, para melhor, os indicadores escolares cariocas. Em 1980, cerca de 90 mil crianças e jovens concluíram o ensino fundamental no Rio de Janeiro (21,6 mil deles pela rede estadual). No final daquela década, o número de conclusões estava praticamente inalterado (89 mil conclusões, 21,5 mil delas na rede estadual), apesar do significativo aumento populacional na faixa etária correspondente ao ensino fundamental, mostrando que a evasão escolar aumentou durante a prometida “revolução da educação pública”. O PNE 2001/2011 mostra mais um exemplo. Apesar de suas metas preverem a universalização da conclusão do ensino fundamental (por sinal, obrigatório desde a Constituição de 1988) e a ampliação da oferta do ensino médio, o número de concluintes em 2010 foi praticamente idêntico àquele de 1999 (2,48 milhões no ensino fundamental e 1,79 milhão no ensino médio), mesmo havendo o crescimento populacional nas faixas etárias correspondentes às respectivas idades de conclusão. O número de abandono simplesmente cresceu durante o período de vigência daquele PNE, atingindo perto de 30% até o final do ensino fundamental e 50% até o final do ensino médio. Esses exemplos incluem projetos de diferentes épocas, abrangências e níveis governamentais e ilustram o que foi aqui afirmado anteriormente: os projetos educacionais não são capazes de alterar nossa realidade educacional. Éramos e continuamos a ser um país com padrões educacionais bastante ruins e abaixo do que nossa capacidade econômica mostra ser

viável: praticamente todos os nossos indicadores educacionais são piores que os valores típicos dos mesmos indicadores encontrados em países com renda per capita equivalente à nossa. As razões pelas quais muitos programas educacionais não tiveram o sucesso esperado são evidentes: falta de recursos que realmente os viabilizassem, ou um não real envolvimento dos responsáveis pelas implantações, ou uma descontinuidade no seu andamento ou simplesmente porque não eram realmente projetos educacionais, mas apenas factoides. A causa mais comum talvez seja a combinação de todos esses fatores. O PNE 2001/2011 ilustra bem os erros Parece que aprendemos muito pouco ao longo de tantas décadas, pois novos projetos têm surgido, repetindo exatamente os mesmos erros passados. (Isso, obviamente, supondo que esses projetos pretendam realmente alterar nossa realidade escolar e não sejam apenas instrumentos de propaganda.) O PNE 2001/2011 ³ ilustra bem isso. Não havia recursos suficientes para viabilizá-lo. Se quiséssemos atingir as metas nele previstas, precisaríamos iniciar sua implantação dedicando à educação pública perto de 7% do PIB. A incorporação de novas pessoas ao sistema educacional e sua melhoria fariam com que a necessidade de recursos crescesse até cerca de 10%. A não existência de recursos já seria suficiente para inviabilizá-lo. Além disso, os poderes executivos estaduais, municipais e federal, que são os agentes responsáveis pela educação pública, pouco ou nada fizeram para cumpri-lo. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal não cumpriram suas tarefas, embora o PNE exigisse que esses organismos acompanhassem sua execução, localizassem as deficiências e distorções e fizessem as necessárias leis complementares para que as metas fossem atingidas. Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais também não se sentiram responsáveis por nenhuma das metas e simplesmente se omitiram. Os órgãos responsáveis pela ordem jurídica também nada fizeram, apesar de uma lei nacional não estar sendo (e não ter sido) cumprida. E os Conselhos de Educação, nacional, estaduais e municipais, apesar de terem como função zelar pela qualidade do ensino e pelo cumprimento da legislação educacional, igualmente nada fizeram. Infelizmente, o panorama continua inalterado. O Brasil continua a fazer planos, projetos e programas sem que as normas e legislações que os criam garantam não só as condições necessárias para que sejam executados – não definem a base de financiamento nem as responsabilidades dos vários entes e entidades –, mas também a continuidade das ações e as providências que devem ser tomadas quando os objetivos e as metas não estiverem sendo cumpridos. Talvez nosso sistema educacional já esteja intoxicado por tantos e tantos remédios, na forma de planos, projetos e programas, e os seus reais problemas sejam agravados por eles. 4.2. Ensino a distância: um problema a ser superado, não uma solução

Em qualquer direção que se olhe, o cenário da educação no Brasil comporta algum projeto “salvador” que serve como uma espécie de barreira a dificultar uma análise objetiva da realidade. Como em uma batalha, esses inúmeros projetos funcionam como proteção dos muitos flancos frágeis de nossa política educacional. Qualquer análise crítica pode ser “respondida” ao se apontar para algum desses projetos e afirmar que ele permitirá superar o problema analisado, bastando esperar. E, sempre que um projeto se mostra inoperante, outro surge para ocupar seu lugar. Um desses projetos, o ensino a distância (EaD) em nível superior, é apresentado como uma solução – especialmente para a falta de professores no país. Entretanto, ele é de fato um enorme problema. O EaD cresceu de forma muito expressiva ao longo da década de 2000, passando de pouco mais de seis mil vagas para 1,7 milhão em 2010, número praticamente igual ao de concluintes do ensino médio, que foi de 1,8 milhão em 2010 ⁴ . Não há nenhum sentido nisso, ainda mais se considerarmos que o número de vagas em cursos presenciais já é muito superior ao número de formados no ensino médio. Quem ganha com isso é certamente o setor privado, que detém mais de 97% das vagas em EaD, conquistando assim um enorme poder de barganha e de pressão sobre eventuais ações que órgãos responsáveis pelo controle do sistema educacional possam vir a ter no futuro para corrigir a distorção criada. Quem oferece EaD e para que áreas? Nos processos de estudo, ensino e aprendizado, não devemos abrir mão de nenhuma possibilidade: aulas expositivas, laboratórios, estudos individuais ou em grupo, apostilas, listas de exercício, visitas a museus, consultas a bibliotecas etc. Os instrumentos de ensino a distância, na forma de e-mails , telefonemas, sítios, vídeos, sons, ambientes virtuais, blogs etc., também podem e devem ser usados. Portanto, não há nada contra o ensino a distância como um instrumento a mais que possa favorecer o processo de aprendizado. No entanto, isso que foi dito no parágrafo anterior nada tem a ver com a forma com que o EaD se instalou no Brasil: entre nós, o EaD não é algo a mais para se oferecer aos educadores e educandos, mas algo que pretende ocupar, e está ocupando, o lugar que deveria ser do ensino presencial, em especial no que diz respeito à formação de professores. A educação é a área com maior participação nas vagas oferecidas no EaD (perto de 40% delas em 2010), o que inclui a formação de professores nas diversas modalidades. A área de gerenciamento e administração ocupa o segundo lugar, com cerca de 30% das vagas, apesar de uma das distorções do sistema de ensino superior brasileiro ser exatamente o fato de a proporção de estudantes e formados nessa área ser excessivamente alta quando comparada com o que ocorre nos demais países, distorção provocada pela alta privatização da nossa educação superior, como discutido na seção 2.3 (ver Tabela 3). Ciências sociais, computação, serviço social e contabilidade têm, cada uma, cerca de 5% das vagas.

Áreas com maior prestígio social e maior controle por parte de conselhos de classe e de outros órgãos ou ministérios além do MEC (como ocorre com cursos na área de saúde) têm uma participação nas vagas bem menor ou mesmo nula. Assim, na área de engenharia, apesar da importância da profissão para o desenvolvimento do setor produtivo, a reconhecida carência desses profissionais e a grande procura por parte dos estudantes têm menos do que 1% das vagas oferecidas em EaD. Enfermagem também tem menos do que 1% das vagas e odontologia e medicina, nenhuma. Evidentemente seria possível argumentar que é natural medicina e odontologia serem incompatíveis com o EaD por exigir uma experiência prática com pessoas; mas o mesmo argumento não valeria para enfermagem? E para professores, cuja totalidade da vida profissional será em contato direto com pessoas (os estudantes), o argumento não seria ainda mais forte? E para professores nas áreas de biologia, física e química, como formá-los sem um intenso contato com práticas experimentais e de laboratório? Não restam dúvidas de que as proporções das vagas oferecidas em EaD não estão relacionadas às necessidades nacionais de profissionais. Em vez disso, elas são em número tão maior quanto mais frágil e menos controlada é a profissão e mais “vendável” for o curso. A quem se destina o EaD no Brasil hoje As argumentações em defesa do EaD no Brasil são baseadas em uma série de erros de avaliação ou de desconhecimento do porquê a realidade é como é. Uma constante nas justificativas do EaD é a necessidade de professores no país, especialmente de professores para o ensino médio e as séries finais do ensino fundamental. A premissa é correta: realmente faltam professores em salas de aula, principalmente nas escolas públicas, e os que atuam estão sobrecarregados. Mas qual a causa disso? É realmente a falta de professores formados, a impossibilidade de formá-los em cursos presenciais ou o desinteresse de jovens por essa atividade? Não é verdade que de modo geral não existam professores em quantidade suficiente para atender à demanda: eles e elas existem, mas cerca de um milhão de pessoas com cursos de licenciatura estariam fora das salas de aula no final da década de 2000. Esse número de professores que não se dedicam ao ensino corresponde a cerca de 70% das pessoas que concluíram cursos de licenciatura nos últimos 25 anos anteriores e que, portanto, estão na idade profissionalmente ativa. A explicação para o fato de esses professores não estarem nas salas de aula é fornecida pelas condições de trabalho, pelo baixo prestígio da profissão, pelo desrespeito profissional que sofrem, até mesmo por parte dos responsáveis pela execução das políticas educacionais do país e, com grande peso, pelas condições salariais.

Há apenas duas áreas em que o número de professores é inferior à necessidade: física e química. Mas mesmo nessas duas áreas, há um enorme número de professores formados fora das salas de aula. Grande parte deles poderia ser incorporada ao quadro de professores ativos caso houvesse melhores condições de trabalho. Se na média de todas as áreas, cerca de 70% dos formados não dão aulas, em física esse percentual chega a 75% e em química salta para 80%. Na grande maioria dos casos, a falta de professores não é, portanto, consequência de uma real inexistência de pessoas formadas e nem mesmo de falta de vagas em cursos de licenciatura presenciais ou de jovens interessados pela profissão. Mesmo nas duas áreas citadas, química e física, além de haver um grande número de formados fora das salas de aula, há uma possibilidade de formação de um número significativamente maior em cursos presenciais. A procura de jovens por cursos superiores que levem à formação de professores nas áreas de física e química é maior do que a média de todas as profissões: como mostra a Tabela 7, mais de 60% das vagas oferecidas nos cursos de formação de professores de física e química são ocupadas; porcentagem significativamente superior à média em todas as áreas, que é de 51%. O problema surge posteriormente, no abandono durante o curso: enquanto a relação entre concluintes e ingressantes é de 52% em todas as áreas, em física e química as relações são de 26% e 38%, respectivamente. Conclusão: há jovens interessados; entretanto, e possivelmente alertados pelas condições salariais e de trabalho que encontrarão pela frente, muitos deles abandonam seus sonhos. E finalmente, como já dito, entre 75% e 80% dos formados em física e química estão fora das salas de aula. A Figura 7 ilustra esta situação: para cada 100 vagas oferecidas em cursos de licenciatura, há 61 ingressantes e 20 concluintes. E, por fim, apenas quatro das 100 vagas iniciais levam a um professor em sala de aula. Portanto, se conseguíssemos preservar boa parte desses candidatos a professores de química e física, em poucos anos superaríamos a deficiência de professores nessas áreas, um tempo certamente inferior ao tempo já decorrido desde que experiências com EaD, como a Universidade Aberta do Brasil (federal) ou a U NIVESP (no estado de São Paulo), começaram a ser implantadas. O problema de formação de professores, portanto, é bem diferente daquele que os defensores do EaD dizem que esse sistema solucionará. Tabela 7 Vagas, ingressantes e concluintes em cursos presenciais

Fonte: Sinopses Estatísticas da Educação Superior – 2010 (I NEP , s.d.). O setor privado se valeu do EaD para oferecer cursos mais baratos, aproveitando-se da redução dos custos operacionais. Por volta de 2010, houve uma redução do ingresso em cursos presenciais ao mesmo tempo em que ocorria um aumento nos correspondentes cursos do EaD, em especial nas licenciaturas. Isso confirma um fato grave: o de que o EaD no Brasil surge em substituição ao ensino presencial, mostrando que pode estar havendo um rebaixamento ainda maior no nível de formação de professores no país. Talvez o EaD seja um bom exemplo de uma coisa que acontece frequentemente no Brasil: quando um problema é localizado, em vez de tentar resolvê-lo ou pelo menos reduzi-lo, tenta-se tirar proveito dele. Assim, há um enorme interesse por parte das instituições de ensino privado no intuito de explorar as possibilidades mercantis do EaD. Para isso, nada melhor que disfarçar esse interesse na forma de uma preocupação social: a formação de professores. Figura 7 Professores de física e química ⁵

Estimativa baseada em informações disponibilizadas pelo I NEP e pelo Ministério da Educação (MEC), sítios consultados em abril de 2012.

Elaboração do autor. Mais justificativas falsas em defesa do EaD Embora seja o setor privado o grande beneficiário do EaD, o setor público tem colaborado, e muito, para defender esse tipo de ensino inadequado para a formação inicial em quaisquer profissões, em especial naquelas que são caracterizadas pela forte interação pessoal, como as licenciaturas. Ao oferecer, ele mesmo, cursos a distância, e por meio de universidades sérias e tradicionais, acaba por legitimar esse tipo de ensino. Vejamos alguns argumentos usados pelo setor público para defender o EaD. Nos discursos e documentos, além dos argumentos relacionados à falta de professores, aparecem também os argumentos econômicos. Um deles, usado pelo governo estadual paulista e publicado na página eletrônica da então existente Secretaria de Ensino Superior, afirmava que o estado de São Paulo “investe 10% de sua receita líquida na educação superior”, argumento que soa forte para justificar o EaD, principalmente para uma população que tem pouca familiaridade com os temas relacionados aos detalhes dos orçamentos públicos e de universidades. Quando, entretanto, consideram-se esses detalhes, verifica-se que os investimentos em ensino de graduação são da ordem da terça parte daquele valor! Ou seja, aquela é uma informação simplesmente falsa. Os investimentos em ensino superior de graduação feitos pelo governo estadual estão abaixo de 0,3% do PIB estadual, sendo, portanto, baixíssimos. Outro argumento também repetido pelo setor público na defesa do EaD baseia-se na hipótese de que as pessoas não têm acesso à educação presencial, o que torna necessário implantá-lo. Ora, o EaD está sendo oferecido basicamente à população urbana, não havendo, portanto, o problema da distância. Se pessoas não têm acesso ao ensino presencial, não é por dificuldade de deslocamento, falta de tempo ou qualquer outra razão equivalente. A principal razão para explicar a “dificuldade de acesso” é a simples inexistência de vagas nas universidades públicas: no Brasil, especialmente no estado de São Paulo, muitos dos estudantes matriculados em cursos a distância residem em municípios ou mesmo em bairros onde há instituições públicas de ensino superior presencial e de qualidade, mas que não oferecem vagas em quantidade suficiente. Enfeita-se esse tipo de argumento com o exemplo do ribeirinho da Amazônia, mas oferece-se o EaD para os moradores das regiões urbanas que não teriam nenhuma dificuldade para frequentar aulas presenciais em uma boa universidade pública. Se há jovens interessados e preparados que querem frequentar cursos superiores e não podem fazê-lo por razões econômicas, devemos usar instrumentos adequados de gratuidade ativa (tais como alojamento, bolsas de estudo etc.) que permitam que eles frequentem cursos presenciais. O retorno social e econômico seria muito maior do que oferecer EaD. Alguns problemas do EaD ⁶

O EaD apresenta vários problemas de ordem acadêmica e social. Entre eles estão a quase inexistência da possibilidade de programas de iniciação científica e a falta de perspectiva de prosseguir os estudos em nível de pósgraduação. No EaD, muito provavelmente os estudantes também não terão acesso fácil a boas bibliotecas nem ao necessário contato pessoal com outros estudantes e professores da mesma área e, muito menos, com estudantes e professores de áreas diferentes (ao frequentarem disciplinas optativas ou encontrá-los nos espaços comuns, por exemplo), coisas fundamentais para uma boa formação superior e uma das características essenciais das universidades. No ambiente universitário presencial, ocorre uma série de atividades extremamente importantes para a formação geral, tais como seminários, debates, cursos de extensão, diversas programações culturais, além da possibilidade de se frequentar uma enorme gama de disciplinas optativas. Essas atividades, bem como as aulas práticas e de laboratório, são inexistentes ou muito raras no EaD. E, evidentemente, o ensino presencial pode oferecer todos os recursos existentes no EaD. O ambiente universitário oferece oportunidades importantes para estudantes provenientes dos segmentos menos favorecidos (que serão os principais usuários do EaD), como o acesso a práticas esportivas, alimentação subsidiada, atendimento médico e odontológico, entre várias outras. No EaD essas coisas ou não existem ou são de difícil acesso. O EaD pressupõe que o processo de ensino e aprendizagem ocorra majoritariamente em casa. Ora, o ambiente de moradia não é, em geral, um bom ambiente de estudo, em especial para jovens das camadas menos favorecidas, para os quais um local isolado e silencioso é algo simplesmente inexistente. As aulas presenciais, nas quais os estudantes ficam imersos em um – e apenas um – assunto, são fundamentais no processo de ensino e aprendizagem. Adotar o EaD como substituto do ensino presencial comprometerá gravemente a qualidade da formação dos profissionais de que o país precisa. Os diversos países que usam o EaD, em proporções muito inferiores àqueles números citados anteriormente, o fazem direcionando essa forma de ensino àqueles que realmente não podem ter acesso ao ensino presencial, como prisioneiros, pessoas absolutamente impossibilitadas de locomoção, aqueles que trabalham em tempo integral (esses últimos são oferecidos sobretudo nos países e em cursos nos quais a educação superior é exclusivamente, ou quase exclusivamente, em tempo integral), militares engajados, entre outros. No Brasil, entretanto, tem se adotado o EaD em substituição ao ensino presencial, o que poderá comprometer gravemente a qualidade da formação inicial dos profissionais, em especial se o profissional assim “formado” tiver que atuar na “formação” de outros profissionais, como é o caso do professor.

Em particular, formar professores por meio do EaD poderá comprometer duas gerações: a dos próprios professores formados e a de seus alunos. Além disso, contribuirá ainda mais para um rebaixamento dos critérios que a sociedade tem para julgar o que é e o que não é educação superior e ensino universitário. Transformando solução em problema Por volta de 2010, o Brasil tinha um número de doutores já superior a 100 mil e cerca de 200 mil mestres que não completaram o doutoramento, perfazendo um total de 300 mil pessoas potencialmente preparadas para a docência em nível superior. Nessa mesma época, aqueles números estavam crescendo, a cada ano, a taxas próximas a 12 mil, no caso de doutores, e 40 mil no caso de mestres. Esses profissionais têm plenas condições de contribuir para um ensino superior presencial de qualidade e o fariam com competência, pois foi para isso que se formaram. Entretanto, grande parte desse contingente é subutilizada, especialmente em relação àqueles que concluíram a pós-graduação mais recentemente. Perder a oportunidade de associar o interesse e a capacidade de trabalho dessas pessoas em cursos superiores presenciais às necessidades e possibilidades do país é um erro duplo: a um mesmo tempo, desperdiçamos os recursos investidos e os esforços feitos para formar essas pessoas e oferecemos um ensino superior, via EaD, precário. Descartar a possibilidade de aproveitar os quadros já formados em nosso ensino superior presencial e enveredar pelo caminho do EaD não parece muito inteligente. Os países desenvolvidos que adotam o EaD o fazem como algo adicional à educação presencial, não como algo que a substitua. Alguns deles, como a Austrália e a Espanha, pensam o EaD como produto de exportação de serviços. As elites dos países mais desenvolvidos certamente não optam pelo ensino a distância nem para a formação de seus jovens nem para a escolha dos profissionais que as assistem. E – também certamente – as profissões de maior prestígio social jamais considerariam a hipótese de optar pelo EaD. Resolver velhos problemas é bem melhor que criar novos Atualmente, quase a metade dos jovens é obrigada a abandonar a educação básica antes da conclusão e menos da metade dos que a concluem o fazem no período diurno. Se além desses fatores considerarmos a precariedade das escolas públicas, onde na maior parte dos casos está a enorme maioria dos jovens que terminam a educação básica, concluiremos que a fração de jovens que completa o ensino médio com bases suficientemente sólidas para continuar seus estudos é muito pequena. Dentro dessa dura realidade, o EaD nada resolverá. Ao contrário, oferecer EaD a um contingente de jovens que, já nas atuais circunstâncias, tem dificuldades de entender o que é um ensino universitário em nada contribuirá para o desenvolvimento social e cultural do país. Oferecer uma aparente alternativa, na verdade um desvio, reduzirá ainda mais o aproveitamento da capacidade intelectual de nossos jovens e não resolverá nem o problema da exclusão nem da falta de quadros profissionais para o país, apenas mudará a forma pela qual esses problemas ocorrem. Não é preciso ser um especialista em Brasil para perceber que o EaD é

destinado aos mais pobres, cujos filhos terão professores formados, também, a distância. Com certeza não é isso que queremos. Deixaram o EaD crescer descontroladamente e quase totalmente dominado pelo setor privado mercantil, então passamos a ter mais uma tarefa pela frente: lutar para reverter essa situação. Cabem algumas perguntas. Por que os órgãos responsáveis permitiram que o EaD atingisse as enormes proporções que atingiu? Por que governos legitimam o EaD da forma que o fazem? É possível que as respostas sejam assustadoras. 4.3. Se outros países podem, por que nós não podemos? Vamos estender as comparações entre os indicadores brasileiros e os de outros países incluindo explicitamente o aspecto econômico. O objetivo é responder à pergunta: será que é viável termos um padrão educacional melhor do que temos hoje ou isso é apenas um sonho irrealizável, que não cabe na nossa realidade econômica? Em outras palavras, será que há barreiras objetivas (econômicas ou culturais, por exemplo), de difícil superação, que nos impedem de construir um melhor sistema educacional? Para responder a questões desse tipo, um bom caminho é comparar a educação em diversos países com possibilidades materiais equivalentes às nossas. Para isso, retomando e ampliando para outros países algumas das comparações internacionais feitas no início deste livro, a Tabela 8 mostra alguns indicadores educacionais de seis países cuja renda per capita está imediatamente abaixo da brasileira e outros seis cuja mesma renda está imediatamente acima, segundo compilações do UIS-U NESCO , consultadas em maio de 2012. São, portanto, países com possibilidades econômicas praticamente equivalentes às nossas. Vamos ver então no que eles diferem no que diz respeito à educação. Os dados relativos ao analfabetismo na faixa etária de 15 a 24 anos ilustram a realidade de um passado recente da educação; o analfabetismo adulto reflete um passado mais remoto; e a taxa de matrícula no ensino superior mostra os esforços atuais em um setor mais sofisticado do sistema educacional. Portanto, os três indicadores em conjunto refletem os compromissos dos diversos países com a educação em um período relativamente amplo. Dos doze outros países com condições materiais equivalentes às nossas, apenas a Tunísia, o Peru e o Irã têm taxas de analfabetismo adulto superiores à nossa. Quanto ao analfabetismo de jovens entre 15 e 24 anos, dos doze países, apenas o Peru, a Tunísia e o Panamá apresentam piores desempenhos. E quanto às taxas de engajamento no ensino superior, apenas o Azerbaijão apresenta valor inferior ao nosso. Existem possíveis explicações (evidentemente, explicações não são justificativas) para alguns aspectos educacionais daqueles países com indicadores piores do que os nossos. No caso da Tunísia e do Irã, as

questões culturais, em especial aquelas relacionadas à religião, podem estar entre as explicações: ambos os países têm religiões oficiais (o islamismo), cujas normas são leis da sociedade civil. No caso da Tunísia, ainda hoje encontramos indicadores educacionais bastante diferentes para homens e mulheres, revelando possivelmente um traço de sua tradição religiosa. Quanto ao Irã, devemos lembrar que as últimas décadas foram marcadas pelo processo de ruptura por ocasião da Revolução Islâmica (iniciada em 1978), pela longa e desgastante guerra com o Iraque (1980-1988) e mais recentemente por pressões econômicas e militares estrangeiras, fatores que certamente tiveram e têm tido influências negativas em seu sistema educacional. O Peru tem alguma heterogeneidade linguística e populações que habitam regiões bastante diferentes e com tradições culturais também diferentes, fatos que podem ajudar a explicar seu baixo desempenho educacional. Além disso Peru e Panamá têm apresentado grande instabilidade institucional em períodos mais recentes: o ex-presidente, Alberto Fujimori, foi condenado e preso por graves violações dos direitos humanos; um dos presidentes recentes do Panamá, Manuel Noriega, tem como pontos de destaque em sua carreira a ligação com a Central Intelligence Agency (CIA) e com o narcotráfico, tendo sido sequestrado pelo governo estadunidense e condenado à prisão nos Estados Unidos (EUA). A situação específica do ensino superior no Azerbaijão pode ser entendida, pelo menos parcialmente, em razão do fim da União Soviética. Até final da década de 1980, aquele país apresentava uma taxa de inclusão no ensino superior de 25%, bastante alta para a época e cerca de duas vezes maior que a brasileira no mesmo período. Com o fim da União Soviética, a taxa de engajamento no ensino superior chegou a decrescer até 15% em 1998, voltando a crescer lentamente desde então. O fim da União Soviética e a crise que se seguiu podem ter sido fatores importantes a afetar a educação superior naquele país. A guerra com a Armênia e movimentos separatistas são outros fatos que podem ter tido consequências na vida social e educacional do país. Não temos muitas explicações para o Brasil estar assim tão mal colocado quando comparado com países de iguais possibilidades econômicas. Se pelo menos tivéssemos indicadores iguais à média dos demais países com mesmas condições materiais que as nossas, vale dizer, com renda per capita equivalente, ainda estaríamos em situação bem melhor do que estamos, como mostra a Média ( exclusive Brasil ) da Tabela 8. A pergunta óbvia é: por que não podemos ter um sistema educacional pelo menos igual à média dos demais países com mesmas oportunidades materiais? Por que comprometemos o futuro de nossas crianças e jovens e, por extensão, o futuro do país, mantendo um sistema educacional tão precário se temos condições que nos permitem não fazer isso? Tabela 8 Indicadores econômicos e educacionais de países com renda per capita próxima à brasileira

Fonte: UIS- UNESCO – com exceção da renda per capita cubana, cuja fonte é CIA The World Factbook, consultada em maio de 2012. *A taxa brasileira de matrícula no ensino superior indicada pela U NESCO , de 26%, corresponde ao mesmo período daquelas dos demais países; o valor 33% foi calculado com base no número de matrículas fornecido pelo I NEP em seu anuário de 2011 e nos dados referentes à população, fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), correspondendo, portanto, a um período mais recente. Elaboração do autor. 4.4. Considere estes países O país “A” têm um sistema de ensino bastante orientado pelos e para testes aplicados periodicamente aos estudantes. Como o desempenho dos estudantes nesses testes é considerado fundamental, professores são premiados ou punidos em razão dos resultados obtidos por seus alunos. Escolas podem ser entregues à eficiência da administração privada com o objetivo de melhorar o desempenho dos estudantes. Como os testes são em habilidades de leitura, matemática e ciências, com a mesma finalidade de melhorar o desempenho dos estudantes nessas áreas, aulas de artes, história e atividades físicas são reduzidas em favor das disciplinas incluídas

nos testes. Esse país “A” aplica, entre investimentos públicos e privados, 7,4% do seu PIB em educação. As dificuldades econômicas desse país têm sido atribuídas aos professores, que preparam mal suas crianças e seus jovens. Por causa disso e considerando os resultados dos alunos, professores ineficientes devem ser descartados rapidamente e normas e leis que dificultam ou impedem isso têm sido eliminadas. No país “B” não há testes padronizados aplicados aos estudantes. Segundo um pesquisador acadêmico desse país, caso os professores fossem avaliados com base em testes aplicados a seus alunos, eles simplesmente se afastariam da profissão “e não retornariam até que as autoridades abandonassem essa ideia maluca”. As escolas do país “B” são administradas apenas pelo setor público, e professores e professoras são estáveis, sendo muito difícil removê-los de suas funções. Nesse país, os professores têm liberdade do que e de como ensinar, desde que os currículos nacionais sejam respeitados. Esse país aplica, no total, 7% do PIB em educação e sua renda per capita é cerca de 20% inferior à renda per capita do país “A”. Como se saem os estudantes desses dois países quando submetidos aos testes padronizados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (P ISA ), que são aplicados a estudantes de 15 anos de idade e que avaliam a capacidade de leitura e os conhecimentos de matemática e ciências? Será que os estudantes do país “A”, mais rico, os quais têm suas escolas e seus professores orientados para os testes se saem melhor? Não. Os estudantes do país “B” se saem melhor, por vezes até muito melhor. Isso é paradoxal? Não. De fato, há aspectos fundamentais que explicam esse aparente paradoxo. Os países “A” e “B” são respectivamente os EUA e a Finlândia ⁷ , e os resultados obtidos no P ISA aplicado em 2009 aparecem resumidos na Tabela 9. O desempenho dos estudantes é classificado em níveis de um a seis em cada uma das três áreas avaliadas. Os valores que aparecem na Tabela 9 correspondem a médias simples dos resultados naquelas áreas avaliadas. Além de a média finlandesa ser significativamente superior à média estadunidense, aquele país tem um percentual muito menor de estudantes com desempenho muito baixo (abaixo do nível 1) e um percentual significativamente maior de estudantes classificados no nível mais alto (nível 6). Possivelmente refletindo a menor desigualdade de renda, a dispersão relativa das notas recebidas pelos estudantes finlandeses, de 16%, é menor do que a dispersão das notas dos estadunidenses, de 19%. Tabela 9 Resultados do P ISA 2009 (médias simples dos resultados em leitura, matemática e ciências)

Fonte: P ISA (2012). Elaboração do autor. O que pode explicar as diferenças entre os dois países? Certamente, o modelo educacional dos dois países faz a grande diferença. Entretanto, tentaram procurar explicações para a diferença de desempenho entre os dois países em várias causas, evitando culpar o estilo empresarial de administração escolar nos EUA, baseado em avaliações permanentes de estudantes e em premiações e punições aos professores pelo desempenho de alunos e de escolas onde trabalham. Um dos argumentos se apoiou no fato de haver maior homogeneidade étnica populacional da Finlândia, um argumento de viés racista. Entretanto, essa alegação não sobreviveu, uma vez que, entre os 65 países ou regiões participantes do P ISA , havia países homogêneos e heterogêneos nos dois extremos da classificação. Ou seja, o desempenho não está correlacionado com a homogeneidade da população. Outro argumento baseou-se no tamanho relativo das duas populações, mais que 300 milhões nos EUA e 5,4 milhões na Finlândia. Entretanto, esse argumento também não prosperou. Primeiro, porque – como no caso da heterogeneidade da população – há países populosos e não populosos distribuídos entre os de melhor e pior desempenho: não há uma correlação entre o tamanho do país e o desempenho de seus estudantes. Além disso, nos EUA, como em muitos países mais populosos, a educação é administrada autonomamente pelos estados e – a maioria deles têm populações menores que a finlandesa além de esses estados menos populosos não apresentarem indicadores de desempenho escolar melhores do que os estados mais populosos. As explicações estão em outros pontos. Uma delas é quanto às condições de trabalho dos professores. Embora em ambos os países os salários iniciais na carreira sejam aproximadamente os mesmos, após 15 anos de experiência os professores finlandeses são mais bem pagos, existindo, portanto, alguma motivação de caráter econômico para continuar se dedicando à profissão. Outro fator é que na Finlândia há uma distribuição de renda bem mais homogênea do que nos EUA e, portanto, salários aproximadamente equivalentes nos dois países podem significar reconhecimentos sociais muito diferentes. Outro aspecto diz respeito às condições (educativas e acadêmicas) de trabalho dos professores. Na Finlândia, ideias que incluem a cultura dos testes, dos vouchers (que permitem mercantilizar o acesso às escolas), do pagamento de professores segundo o desempenho dos seus estudantes em testes padronizados e da competição e avaliação centralizada dos professores são totalmente rejeitadas. Provas são usadas apenas para informar aos professores o andamento do trabalho, jamais para classificar, punir ou recompensar alunos e professores ou para intervir nas escolas, como ocorre nos EUA. Como a profissão é respeitada e há boas e agradáveis condições de trabalho, as instituições de formação de professores são bastante procuradas e formam excelentes profissionais. Avaliações comparativas por meio de testes, prêmios e punições não fazem parte do panorama educacional finlandês. A responsabilidade e a liberdade

de adaptar o ensino aos seus estudantes são práticas usuais das escolas, dos diretores e dos professores. Investimentos públicos versus privados E quanto ao financiamento? Afinal, os EUA aplicam um percentual maior do seu PIB em educação – 7,4%, contra 7,0% na Finlândia. Considerando a renda per capita dos dois países, vemos que os investimentos nos EUA são cerca de 40% superiores aos finlandeses. Há aqui outro paradoxo? E esse fato não estaria em desacordo com a luta pelo aumento dos investimentos em educação pública no Brasil? A resposta é não para as duas perguntas. O financiamento da educação na Finlândia é quase totalmente público, com apenas 0,2% do PIB correspondendo a gastos privados. Nos EUA, os gastos privados chegam a 2,0% do PIB. Portanto, o gasto público anual por estudante em comparação com a renda per capita é mais alto na Finlândia do que nos EUA, como mostra a Tabela 10. Na Finlândia, o setor público investe, por estudante, quase 30% da renda per capita nacional, contra cerca de 22% nos EUA. Aparentemente, a relevância dos investimentos por estudante parece estar relacionada não apenas ao valor total, mas especialmente à origem pública ou privada da fonte ⁸ . No Brasil o investimento por estudante nas redes públicas é inferior a 15% da renda per capita . Tabela 10 Investimentos públicos e privados em educação e investimentos públicos por estudante como percentual da renda per capita

Fonte: Tabela elaborada pelo autor com dados divulgados pela UIS-U NESCO , sítio consultado em maio de 2012. Com quem devemos aprender? A comparação entre os dois países, EUA e Finlândia, mostra que caminho tomar. Premiação e punição de professores e estudantes e intervenção em escolas com base no desempenho dos alunos em testes padronizados, feitos à exaustão, não são uma boa ideia – nem mesmo para se conseguir bom desempenho em testes padronizados! Professores muito bem formados, respeitados e com liberdade de trabalho são condições fundamentais para o bom funcionamento de um sistema educacional. Escolas administradas pelo setor público, por mais que se insista na suposta eficiência de uma administração empresarial, são melhores quando todas as demais condições

são equivalentes. Respeito às necessidades dos estudantes, tanto individuais como coletivas, é outro caminho para se construir um bom sistema educacional. Uma melhor distribuição de renda pode também tanto contribuir para a qualidade de vida dos professores como para o desempenho dos estudantes. Além dos fatores considerados, vários outros problemas afetam o sistema estadunidense de educação. Entre esses problemas estão: o fundamentalismo religioso, que interfere nos currículos das escolas em algumas localidades; a inexistência de recursos materiais e institucionais que impeçam que as desigualdades entrem nas escolas e afetem seu funcionamento; a existência de grandes contingentes populacionais marginalizados, especialmente no que diz respeito a crianças vivendo em situação de pobreza; ensino superior pago, mesmo quando público, constituindo-se numa barreira a mais no caminho dos estudantes; tratamento negativamente diferenciado para crianças e jovens provenientes de famílias de imigrantes. Como e com que intensidade cada um desses fatores afeta o desenvolvimento educacional das crianças e dos jovens naquele país tem sido motivo de estudos acadêmicos. Embora a comparação até aqui tenha sido apenas entre Finlândia e EUA, as conclusões se repetem quando examinamos outros países. Por exemplo, para a comparação entre quatro países latino-americanos similares em vários aspectos e com renda per capita entre 9 e 12 mil dólares anuais (pelo critério de Paridade do Poder de Compra – PPC), podemos ver Cuba, Venezuela, Brasil e Colômbia: os dois primeiros, menos afetados por políticas de avaliação quantitativa e por práticas liberais do tipo vouchers , mostram indicadores educacionais quantitativos e qualitativos melhores ou muito melhores que os dois últimos. Ainda entre outros quatro países também similares quanto à renda per capita (próxima a 15 mil dólares) e demais características, podemos ver Argentina, Uruguai, Chile e México: os dois primeiros, menos liberalizados e menos voltados a uma educação de resultados (nos testes), apresentam melhores desempenhos. Cabe assim uma pergunta impertinente. Por que, apesar das evidências, imitamos – no Brasil e especialmente no estado de São Paulo – políticas e práticas educacionais e sociais que já se mostraram tão perniciosas em muitos países? Por que não aprendemos com aqueles que melhor acertam? 1 Dados do Institute for Statistics da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UIS-U NESCO ). 2 M OBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização, 1967; C IEP – Centro Integrado de Educação Pública ( Brizolões ), 1983; C AIC – Centro de Atenção Integral à Criança, 1991; C IAC – Centro Integrado de Atendimento à Criança, 1991; C AIC – Centros de Atenção Integral à Criança, 1992; CEU – Centro Educacional Unificado, 2001; F UNDEF – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, 1996; F UNDEB – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, 2007. 3 Brasil (2001), Lei n. 10.172 , de 9 de janeiro de 2001. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2001/lei-10172-9-

janeiro-2001-359024-normaatualizada-pl.pdf >. Acesso em: jul. 2012. As metas previstas no PNE 2001/2011 aparecem no anexo da lei aqui mencionada. 4 Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (I NEP ), Sinopses Estatísticas da Educação Básica – 2010 e Sinopses Estatísticas da Educação Superior – 2010. 5 O problema da falta de professores não é provocado por falta de vagas em cursos presenciais, de interessados pelas profissões nem de concluintes de cursos de licenciatura. De cada 100 vagas de ingresso oferecidas, apenas quatro levam a um professor atuante. 6 Muitos dos argumentos desta seção foram levantados pelo grupo de trabalho de política educacional da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo – Seção Sindical (A DUSP ), e divulgados em publicações dessa entidade. 7 Parte das informações e das análises deste texto é baseada no artigo de Diane Ravitch (2012), “Schools we can envy” (Escolas que nós podemos invejar), New York Review of Books , mar. A autora ocupou cargos relativamente altos na Secretaria de Educação dos EUA (equivalente ao nosso Ministério). 8 Vale a pena observar aqui que esse mesmo efeito da maior eficiência dos gastos públicos em relação aos gastos privados existe também na área de saúde. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os EUA gastam em saúde, por pessoa, mais de 18% de sua renda per capita , contra uma média de 9% a 10% nos países europeus mais avançados. Apesar disso, seus indicadores de saúde são piores. De fato, a mortalidade infantil nos EUA é mais de 50% superior à dos países europeus mais avançados, e a expectativa de vida é entre um e dois anos menor. Mais um paradoxo? Não. Novamente, a grande diferença é possivelmente consequência do fato de que mais da metade dos gastos com saúde nos EUA é privado, contra cerca da quinta parte nos outros países considerados. Portanto parece que, como em educação, os gastos privados são muito menos eficientes que os gastos públicos no que diz respeito a alcançar os objetivos básicos que se esperaria. 5. O que precisamos fazer? 5.1. Temos condições objetivas para estabelecer um bom sistema educacional. Por que não o alcançamos? Nosso sistema educacional está muito aquém do que poderia estar, considerando nossa realidade social, econômica e cultural. Ou seja, temos condições objetivas de construir um sistema educacional mais abrangente, de melhor qualidade e muito mais inclusivo. O que foi feito no nosso passado para que chegássemos à atual situação?

A grande maioria da população brasileira (87%) habita regiões urbanas e, portanto, não tem nenhuma dificuldade de acesso às escolas. Não há também, mesmo nas menores cidades brasileiras, dificuldades intrínsecas para fixar professores e outros profissionais de educação necessários para implantar instituições de educação básica. Apenas para ilustrar com uma comparação internacional: dos quase vinte países com percentuais da população vivendo em regiões urbanas entre 80% e 90%, faixa dentro da qual o Brasil se encontra, apenas dois apresentam taxas de analfabetismo de jovens e de jovens adultos (de 15 a 24 anos) maiores que as nossas: Arábia Saudita e Gabão (os dados são do Institute for Statistics da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UIS-U NESCO ). Nossa taxa de analfabetismo nessa faixa etária é típica de países nos quais cerca de 40% da população é rural, portanto muito menos urbanizados do que o nosso. Evidentemente, não se está argumentando que jovens que vivam em zonas rurais possam ser analfabetos: o que se está mostrando é que não temos nenhuma dificuldade em fixar crianças ou jovens no sistema educacional que possa ser atribuída ao local de moradia das pessoas. Em resumo, muitos dos nossos jovens analfabetos de 15 a 24 anos moram ou moraram, na idade em que deveriam ter sido alfabetizados, ao lado de escolas. Não há também nenhuma dificuldade intransponível para bem escolarizar a população rural: professores podem residir nas regiões rurais e alunos podem se deslocar. A renda per capita também não é um fator que possa explicar nosso atraso educacional. Embora ela não seja elevada, mais investimentos em educação – e, portanto, mais crianças e jovens ocupados com a frequência escolar e um maior número de pessoas se dedicando à atividade educacional – não comprometeriam outras atividades essenciais, diferentemente do que poderia acontecer em países muito pobres. Ou seja, apesar das enormes concessões feitas à qualidade, estamos ainda muito aquém do que poderíamos estar quanto aos indicadores quantitativos considerando nossa capacidade de financiamento, como já mostrado com base nos dados da Tabela 8. Não temos também problemas com grande diversidade linguística, fator que pode dificultar a escolarização das crianças e dos jovens e a formação de professores em alguns países, pois praticamente a totalidade da nossa população fala a mesma língua. Muitos países apresentam limitações impostas pelas tradições religiosas. Entre elas estão a obrigatoriedade de ensinar conceitos ligados a religiões, reservar horários para as atividades religiosas, destinar recursos para o financiamento de instituições de formação religiosa ou mesmo, em casos extremos, dificultar a frequência escolar de meninas. Nenhuma dessas limitações está presente no Brasil. Também não tivemos guerras internas ou externas, o que poderia criar dificuldades educacionais pela necessidade de se reconstruir a infraestrutura destruída, pela perda humana que compromete a formação da força de trabalho do país, pelo número de órfãos provocados pela guerra etc. Não está também aí a explicação para nossas dificuldades.

Em resumo, não temos nenhuma impossibilidade real de construir um sistema educacional democrático, igualitário e de boa qualidade. Essa afirmação pode ser corroborada pelos fatos de que muitos países com condições equivalentes às nossas têm sistemas educacionais significativamente melhores; e muitos países hoje considerados desenvolvidos conseguiram, quando suas realidades econômicas eram equivalentes às nossas atuais, desenvolver seu sistema educacional de forma muito melhor do que o fazemos hoje. Então, se não há explicações do porquê chegamos aonde chegamos, o que o país fez de tão errado em sua política educacional? Educação básica abandonada Se tivéssemos feito apenas alguns poucos erros, provavelmente nossa situação seria bem melhor do que é. Entretanto, fizemos muitos deles. A educação infantil é caracterizada por um baixíssimo atendimento (menos de 20% das crianças até 4 anos de idade frequentam creches), por um atendimento grandemente terceirizado e feito de forma não profissional, com consequências na escolarização e no desenvolvimento futuro das crianças. Muitos veem a creche não como um espaço educativo, mas apenas como um local “ importante para as famílias que precisam trabalhar e não têm com quem deixar os filhos menores ”, expressão amplamente usada. Atendendo a poucas crianças e com práticas e conceitos totalmente errados, nossa educação começa mal. A precária educação infantil é um dos fatores que fazem com que o sistema educativo comece dessa maneira. Nos períodos de êxodo rural, fato que ocorreu principalmente nas décadas de 1960 e 1970, as cidades receberam muito mal seus novos habitantes, com evidências no setor habitacional que perduram até hoje e com graves consequências na escolarização. Nesse período, em especial na década de 1970, enquanto muitas dessas crianças citadinas eram simplesmente excluídas da escola, outras contribuíam para aumentar o número de matrículas no ensino fundamental sem que houvesse o necessário aumento nos recursos materiais e no número de professores. Assim, a escola pública iniciou um processo de decadência, coincidindo com o período no qual as escolas privadas passaram a atender às elites, que até então frequentavam as escolas públicas. A década de 1980 foi marcada por vários discursos que objetivavam desqualificar o sistema público de ensino e seus profissionais, fornecendo assim as bases (ideológicas?) para seu sucateamento. Uma sala de aula vazia ou uma escola pública que não fosse integralmente utilizada (porque, por exemplo, grande parte da população a que atendia migrou para outras regiões da cidade, mas ainda havendo pessoas para serem atendidas na mesma região e, portanto, havendo necessidade da escola) eram usadas como pretensos exemplos de ociosidade do sistema. O afastamento de professores por problemas de saúde não era tratado como um problema de saúde, mas sim, segundo até mesmo ocupantes de altos cargos na área educacional, como uma evidência da postura irresponsável daqueles profissionais. Esses e outros discursos equivalentes levaram à criação de uma falsa frase, abundantemente usada até mesmo por ocupantes de

secretarias de educação, de que “ dinheiro, tem; o problema é que é mal utilizado ”. Discursos como esses, associados ao fato de que os 10% mais ricos deixaram de ser usuários da escola pública, foram usados como base para fazer com que a população fosse obrigada a “engolir” o sucateamento do sistema público de educação básica, que se intensificou nas décadas seguintes. Nosso ensino superior: insuficiente, privatizado e consequentemente ruim Muitos erros afetam o ensino superior. Um deles é o despreparo dos estudantes que chegam às suas portas, principalmente daqueles quase 90% oriundos das escolas públicas, com falhas graves em sua formação básica: em grande parte, enfrentaram e enfrentam dificuldades materiais muito intensas, as quais prejudicam o desempenho escolar. Esse fato já seria suficiente para impactar o desenvolvimento de um ensino superior de qualidade. Mas há outras questões que se superpõem a ele. Talvez o problema mais grave seja a privatização desqualificada e desqualificadora desse nível de ensino. O enorme aumento da privatização (em 2011, cerca de 75% dos estudantes estavam matriculados em instituições privadas) ocorreu, principalmente nas últimas décadas do século XX e no início do século seguinte, por meio de instituições mercantis fortemente comprometidas com suas planilhas financeiras. O limitadíssimo controle, federal ou estadual, que deveria assegurar a qualidade dos cursos, se mostrou totalmente insuficiente para enfrentar o poder dos controladores daquelas instituições. Ou, dito de outra forma, passou-se a autorizar o funcionamento de instituições em uma escala que ia além da capacidade de controle do setor público. Os cursos oferecidos por aquelas instituições privadas e os locais em que se instalam têm como principal critério, se não único, a viabilidade financeira do empreendimento e não as necessidades da população, das diferentes regiões do país ou das várias profissões. Assim, são oferecidos cursos que em nada contribuem para o país e que levam a um rebaixamento dos critérios de julgamento, por parte da população, do que deveriam ser uma instituição de ensino superior e uma universidade. Esses cursos e instituições são favorecidos por programas de subsídios ou financiamento direto, tanto por parte do governo federal como de governos estaduais, que têm por objetivo viabilizar os empreendimentos, não promover o ensino superior no país. Evidência de que essa afirmação é verdadeira são os critérios adotados pelos programas governamentais de subsídio, que desconsideram a região geográfica onde se instalam, as áreas de conhecimento contempladas e a qualidade dos cursos oferecidos. Essa privatização fez com que o Brasil apresentasse uma distribuição de estudantes pelas diferentes áreas de conhecimento em total desacordo com nossas necessidades e com a prática dos países que levam educação a sério. Mais recentemente, especialmente após 2005, tivemos um aumento absolutamente irresponsável dos cursos a distância. Por volta de 2010, como já apontado, o Brasil tinha um número de vagas nessa modalidade de ensino e nas mãos de instituições privadas praticamente equivalente ao número de formados no ensino médio. Quando o número de vagas em cursos presenciais – também controlados pelo setor privado – já é maior que o

número de concluintes do ensino médio e muito maior que as realmente ocupadas, algumas perguntas óbvias, e cujas respostas podem ser assustadoras, são: o que se pretende com isso? Por que os responsáveis pela educação no país, especialmente em nível federal, permitiram que isso acontecesse? Avaliem as avaliações Todo o nosso sistema educacional é acompanhado de um enorme sistema de avaliação: citados em ordem aleatória, Sistema de Avaliação da Educação Básica (S AEB ), Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (I DEB ), Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (E NADE ), Prova Brasil, Exame Nacional do Ensino Médio (E NEM ), Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (S ARESP ), Índice Geral de Cursos Avaliados da Instituição (IGC), Conceito Preliminar de Curso (CPC), Provinha Brasil, avaliação trienal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (C APES ), além de censos escolares e de professores, estão – no momento em que este livro está sendo escrito – entre os instrumentos de avaliação mais conhecidos. Avaliações são coisas úteis, pois permitem acompanhar o desenvolvimento de várias atividades, localizar problemas e, portanto, agir. Entretanto, não é para isso que a avaliação está sendo usada no Brasil. Muitas vezes, um sistema de avaliação educacional é apresentado como um instrumento que por si mesmo terá o poder de corrigir os problemas; assim, quando isso não ocorre e os problemas começam a ficar cada vez mais transparentes, o sistema de avaliação é mudado, o que vem acontecendo com espantosa facilidade, em especial quando o poder executivo do correspondente nível de governo muda de mãos. Dessa forma, a sequência histórica é perdida, dificultando para a população perceber o que está acontecendo. Outro uso bastante amplo da avaliação é premiar ou punir professores segundo o desempenho de seus alunos. A comparação entre a Finlândia e os EUA, este último adotando essa prática de prêmio/punição, ao passo que o primeiro a repudia veementemente, mostra com clareza que o efeito desse tipo de uso das avaliações é intensamente negativo. Um sistema monitorado por testes, voltado para os testes, que remunera ou pune professores em razão dos resultados de seus estudantes em testes é ruim até mesmo para obter bons resultados em testes: os estudantes finlandeses se saem melhor em testes padronizados, aplicados a estudantes de vários países, do que seus colegas estadunidenses, como mostrado anteriormente. Os resultados das avaliações do sistema educacional deveriam ser considerados instrumentos para indicar as ações que deveriam ser adotadas para localizar e corrigir políticas e práticas inadequadas ou erradas. Entretanto, sua exacerbação e seu uso como instrumento de propaganda governamental em todos os níveis contribuíram para que a educação fosse vista como mercadoria e os resultados das avaliações como uma informação útil para que cada um possa, dentro de suas possibilidades financeiras, comprar aquela que melhor atenda a seus interesses. Podemos apresentar como evidência desse uso indevido da avaliação frases como esta: “ na importante missão de escolher o melhor para os nossos filhos, segue lista das melhores escolas, considerando o E NEM ”. A afirmação foi pega ao

acaso na internet, mas repetida à exaustão a cada vez que um novo resultado desse exame é divulgado. Assim, a avaliação contribui para exacerbar a mercantilização da educação, não para melhorá-la. Nas honestas palavras da secretária de educação de um grande município, que aparecem em sua página eletrônica, “ a avaliação do desempenho dos alunos na esfera municipal permitirá, também, melhorar o desempenho deles para as avaliações estaduais ”. Mas ela está enganada. Repetindo mais uma vez a comparação entre Finlândia e EUA, um sistema educacional sólido, responsável, respeitador de professores e estudantes e avesso às avaliações por meio de testes padronizados é melhor até mesmo para que se obtenham bons resultados em testes padronizados. O uso que se faz das avaliações e de seus resultados no Brasil reflete como a educação é vista e entendida pelos responsáveis por sua oferta: uma mercadoria. O enfoque político precisa ser mudado Esses fatos, que apenas ilustram, mas não esgotam os problemas que acumulamos, não são exatamente erros isolados. Entretanto, eles refletem a própria política educacional implantada no país: um sistema educacional excludente, sem nenhum compromisso com os ideais igualitários e republicanos, de baixa qualidade, insuficiente, muito aquém daquilo que poderíamos ter, desrespeitando professores e estudantes. Evidentemente, suas consequências são e serão terríveis: reproduzimos as desigualdades, não formamos os quadros de que o país tanto precisa, não damos a todos as mesmas oportunidades de se desenvolverem como pessoas e marginalizamos enormes contingentes populacionais. É necessário reverter essa situação e para isso precisamos fazer exatamente o inverso do que fizemos até agora. 5.2. Precisamos de um sistema público de educação referenciado na sociedade e nas suas necessidades Uma das principais tarefas que temos hoje no Brasil é a construção de um sistema educacional laico, de qualidade, democrático, igualitário, que responda aos anseios e necessidades da população e que promova não só o desenvolvimento cultural e social do país, mas também o necessário aumento da produção de bens e serviços.

Para isso, não adianta apenas enfrentar um ou alguns dos muitos e graves problemas do nosso sistema educacional. Precisamos enfrentar todos os problemas, pois a superação de uns depende da superação de outros. Afinal, como melhorar e aumentar o ensino médio, por exemplo, sem aumentar e melhorar o ensino fundamental que o antecede ou sem formar professores no nível superior, este último dependente dos concluintes do próprio ensino médio? Como aumentar e melhorar a educação infantil sem formar profissionais especializados para isso? Como formar bons professores sem corrigir as enormes distorções do ensino superior? Ou seja, todos os problemas educacionais estão ligados entre si e o enfrentamento deles precisa ser feito globalmente. Se hoje os problemas se retroalimentam negativamente, precisamos fazer com que suas soluções passem a se retroalimentar positivamente. Precisamos melhorar cada nível e cada modalidade educacional A educação infantil é primordial para o desenvolvimento integral das crianças, como sua socialização, o desenvolvimento de sua personalidade, a ampliação de seu universo, o desenvolvimento de linguagens, entre tantas outras coisas. Essas funções devem ser cumpridas respeitando-se as identidades culturais e o ambiente em que vivem as crianças. Tarefas como essas não podem ser feitas dentro de um esquema que entenda a creche como um local onde as crianças são depositadas para que os pais ou responsáveis possam trabalhar, como é tão comumente dito, até mesmo por pessoas responsáveis pela elaboração e execução das políticas educacionais. Para que possamos responder às necessidades das crianças, são necessários profissionais bem formados, infraestrutura adequada e projetos pedagógicos corretos e bem executados. Esses são alguns passos fundamentais para que, já nos primeiros anos, a educação comece por um bom caminho. O nosso ensino fundamental é ruim e só está universalizado em seu ingresso, talvez apenas no primeiro dia de aula do primeiro ano escolar. A partir daí, começa o terrível processo de exclusão escolar. Universalizar o ensino fundamental até o último ano é uma tarefa que já deveríamos ter executado há um bom tempo. Aumentar o número de horas de permanência nas escolas e dar atenção adicional e adequada àquelas crianças que delas necessitem corresponde a tarefas fundamentais a serem cumpridas. Necessitamos, portanto, também de escolas com infraestrutura adequada, professores bem formados e com condições de propiciar a cada criança a atenção que ela merece e de criar as circunstâncias necessárias para seu desenvolvimento pessoal. A atual realidade brasileira (como a renda per capita e o fato de que a enorme maioria da população mora em regiões urbanas ou próximas a elas) oferece as condições necessárias para que tenhamos um ensino médio praticamente universalizado até sua conclusão; meta que infelizmente estamos longe de atingir. Essa é outra das tarefas que o país deve cumprir rapidamente. Não fazer isso implica manter ou mesmo intensificar nossa profunda crise social e não fornecer os meios necessários para que nossos jovens adultos possam tanto gozar dos plenos direitos de cidadania como dar suas contribuições para a formação da força de trabalho do país. Mas não podemos aceitar um ensino médio que responda às demandas de um

“mercado de trabalho”, não apenas porque devemos repudiar uma ideologia que trata pessoas como mercadorias – mercadorias que sabem trabalhar –, mas porque também, ao responder a demandas imediatas, como são as feitas pelo “mercado de trabalho”, estaremos substituindo a educação por um treinamento que rapidamente se tornará defasado e anacrônico. O ensino superior apresenta um nível de privatização que está contribuindo, e muito, para levar sua qualidade a patamares inacreditavelmente baixos. Essa privatização diminui as expectativas que a população, os estudantes e os professores do ensino médio têm daquilo que seja uma universidade, o que favorece ainda mais a aceitação de um ensino superior rebaixado. Esse é um círculo vicioso que precisa urgentemente ser rompido. Para isso é necessário enfrentar energicamente projetos como a privatização e o ensino a distância, entre outros. Há uma grande dívida acumulada para com todas aquelas pessoas que foram abandonadas no meio do caminho educacional – ou que nem sequer tiveram chance de começar a percorrê-lo – ao longo do nosso desastrado passado. Precisamos pagá-la. E isso não pode se resumir apenas a programas de alfabetização: é necessário um programa educacional complementar que forneça, ainda que tardiamente, as oportunidades perdidas por essas pessoas. Para cumprir essas e todas as demais tarefas, precisamos de professores bem formados, bem remunerados, não sobrecarregados e respeitados pela sociedade, além de escolas que ofereçam as necessárias condições de trabalho: escolas onde estudar e ensinar sejam atividades compensadoras e agradáveis. Precisamos de instituições educacionais capazes de fazer aquilo que esperamos delas As condições adequadas de ensino e aprendizagem nas escolas dependem de infraestrutura adequada (como laboratórios didáticos, bibliotecas etc.), salas com número razoável de alunos e, fundamentalmente, de professores motivados e com tempo para realmente se dedicarem a seus estudantes. A frequência escolar implica despesas diretas e indiretas bastante altas e muitas vezes fora do alcance das famílias. Esse é um dos fatores, em todo o mundo, que intensificam o abandono escolar entre as comunidades mais pobres. Assim, precisamos de instrumentos de gratuidade ativa, que compensem essas despesas e transformem a escola pública em uma escola gratuita de fato, para todos, independentemente da renda familiar dos estudantes. Programas de gratuidade ativa, além de alimentação, uniformes escolares, transporte e materiais escolares gratuitos, devem incluir outros aportes materiais, inclusive na forma monetária. Afinal, a frequência escolar não apenas impede ou dificulta muito as eventuais atividades econômicas desenvolvidas pelos estudantes, como também impede que eles forneçam suportes às famílias – como cuidar da casa, de idosos ou de outras crianças – para que outras pessoas trabalhem. A importância da gratuidade ativa é evidente quando lembramos que cerca de terça parte das famílias mais pobres vivem com uma renda total inferior a R$1.200,00 por mês, a valores de 2012. Subtraídas as despesas absolutamente essenciais com moradia e

alimentação, que nos segmentos mais pobres comprometem mais da metade da renda familiar, restam perto de R$150,00 por mês e por pessoa para todos os outros gastos; evidentemente, qualquer gasto ou qualquer perda de renda induzidos pela frequência à escola são impossíveis de ser tolerados. Não é inesperado, portanto, que nesse segmento mais pobre a evasão escolar antes do final do ensino fundamental seja a regra. Se queremos eliminar a evasão escolar e melhorar as condições de estudo e desempenho dos alunos, precisamos tirar essa barreira econômica do caminho. Nosso sistema de ensino é discriminador, tratando diferentemente ricos e pobres, o que é totalmente inaceitável em um país que se pretende republicano. Apenas um sistema educacional público – em todos os níveis – é capaz de alterar essa realidade perversa. Programas de subsídios a entidades privadas de ensino – tão em moda nos países mais vitimados pelas políticas neoliberais – em lugar de compensar a ausência do setor público, como se costuma afirmar para justificá-las, fomentam instituições que se beneficiam dessa ausência, fortalecendo-as. O ensino superior deve ser distribuído, entre as várias áreas geográficas, de conhecimento e de formação de profissionais, dentro de um planejamento que responda às necessidades do país, respeite as vocações das diferentes regiões, promova o desenvolvimento social e viabilize o aumento da produção de bens e serviços. Apenas um sistema público pode satisfazer essas condições. Ideias como o ensino a distância, subsídios diretos e indiretos à educação privada, escolas pautadas por avaliações e punição a professores, entre tantos outros modismos impostos por uma política liberal extremada, são coisas incompatíveis com uma escola de qualidade referenciada na sociedade. Uma mudança significativa do sistema escolar não é alguma coisa que se consiga em pouco tempo. Afinal, ela envolve processos de formação de pessoas, e isso se mede na escala de vários anos. Como essa escala de tempo está além das durações típicas de mandatos políticos, é mais fácil fazer promessas e propostas irrealistas do que investir em projetos educacionais consistentes. Quando essas promessas e propostas se mostrarem não cumpridas, os detentores do executivo já serão outros e os novos ocupantes dos cargos responsáveis pela educação poderão fazer propostas equivalentemente irrealistas; sempre se descolando das gestões anteriores, até mesmo quando pertencem ao mesmo partido político. Assim, é necessário que todas as pessoas comprometidas com os valores socialmente justos fiquem atentas o tempo todo e denunciem, rápida e veementemente, cada um dos muitos projetos demagógicos ou simplesmente falsos, sempre plenos de palavras e frases de efeito e vazios de conteúdo e de orçamento, bem como aqueles que os apresentam. Se quisermos saber quais são de fato os projetos educacionais brasileiros, o melhor é consultar a realidade do que está acontecendo – ela é resultado do real projeto em andamento – e não os discursos. Conhecemos os problemas e as soluções

Nós temos informações suficientes para localizar em todo o território brasileiro quais são os problemas educacionais em cada um de seus níveis e modalidades. Com os levantamentos feitos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (I NEP ) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), se necessário complementados por informações coletadas por outros órgãos nacionais e estaduais, sabemos onde estão as escolas e os professores, quantos são os analfabetos, qual a evasão escolar em cada canto do país e em cada nível de ensino, quais os recursos destinados à educação em cada município, qual é e qual deveria ser a relação alunos por professor em cada sala de aula, qual a remuneração dos professores e quanto esta deveria ser para que pudessem se dedicar à tarefa que têm, qual a deficiência de cada escola. Sabemos também onde estão as instituições de ensino superior, suas características, deficiências, qualidades e vocações e com quantos professores contam em seus quadros. Enfim, temos todos os detalhes necessários para realmente desenvolver nosso sistema educacional; e o país tem recursos para isso. Não há, portanto, nenhuma justificativa objetiva para não mudarmos nossa realidade educacional. Se isso não é feito, não é por desconhecimento ou impossibilidades materiais. Fonte de dados Os dados citados neste livro têm como fonte organismos nacionais e internacionais identificados a seguir, cujos sítios eletrônicos foram consultados entre meados de 2012 e início de 2013. É importante lembrar que os organismos internacionais não fazem seus próprios levantamentos; apenas sistematizam e reproduzem dados coletados pelo governo dos diferentes países. Portanto, possíveis vieses dos países informantes não são impossíveis. Muitas vezes, diferentes agências nacionais e internacionais apresentam valores distintos para um mesmo dado especialmente por causa do uso de diferentes procedimentos. Os dados usados neste livro correspondem aos mais recentes disponíveis na época em que ele foi escrito. Como dados internacionais dependem da consolidação feita pelos diferentes países e de sua sistematização pelos organismos que os divulgam, eles correspondem à realidade de alguns poucos anos antes da publicação, seja ela em papel ou eletrônica. Entretanto, como dados sociais e econômicos variam pouco de um ano para outro, mesmo em países que apresentam mudanças consideradas rápidas pelos padrões internacionais, as pequenas variações em nada comprometem as conclusões e análises qualitativas que deles se podem extrair. As principais fontes consultadas foram: 1) IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. É um organismo federal cujas atribuições incluem as geociências e as estatísticas demográficas, econômicas e sociais. O IBGE faz vários levantamentos, como o censo e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), e sistematiza dados de outras fontes, especialmente as governamentais. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br >.

2) I NEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. É o órgão vinculado ao MEC responsável por promover estudos e pesquisas educacionais. Disponível em: < http://www.inep.gov.br >. 3) I PEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. É uma instituição vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Além de fornecer suporte técnico para as formulações de políticas, sistematiza, analisa e divulga dados coletados em diversas instituições públicas. Disponível em: < http://www.ipeadata.gov.br >. 4) UIS–U NESCO – Institute for Statistics – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. A UIS é o setor estatístico da U NESCO responsável pelo desenvolvimento de metodologias adequadas para sistematizar o levantamento de dados bem como divulgá-los. Disponível em: < http://www.uis.unesco.org >. 5) Banco Mundial. É um organismo internacional que coleta, sistematiza e divulga informações e dados econômicos e financeiros. Disponível em: < http://www.worldbank.org >. 6) OMS – Organização Mundial da Saúde. É a entidade da Organização das Nações Unidas (ONU) voltada para questões de saúde pública em nível internacional. Disponível em: < http://www.who.int >. 7) OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Entidade que coleta e divulga dados internacionais. É a instituição coordenadora do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (P ISA ). Disponível em: < http://www.oecd.org >. Alguns dados adicionais foram obtidos nas seguintes publicações e páginas eletrônicas da rede de computadores: • www.nationmaster.com . Sítio que coleciona e divulga diversos dados estatísticos coletados por organismos nacionais e internacionais. Em geral, indica a fonte primária dos dados divulgados. •Wikipédia. É uma fonte secundária para diversos dados (tais como populações dos diversos países). Usualmente, ela informa a fonte primária do dado divulgado. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org > ou < http:// wikipedia.org >. •The World Factbook. Mantido pela Central Intelligence Agency (CIA), divulga alguns dados relevantes não encontrados em outras fontes. A renda per capita cubana, considerando-se o critério da paridade do poder de compra citada neste livro, tem como fonte esse sítio. Disponível em: < https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook >. •Comissão Europeia. É um órgão que coleta e divulga informações sociais e econômicas, especialmente as relacionadas aos países da União Europeia, da qual é um órgão executivo. Disponível em: < http://ec.europa.eu/ index_en.htm >.

•A publicação Indicador de alfabetismo funcional 2011 , do Instituto Paulo Montenegro e do movimento Ação Educativa, apresenta e analisa dados referentes ao analfabetismo. Disponível em: < http://www.ipm.org.br >. Alguns dados que aparecem ao longo do livro e cujas fontes não estão indicadas foram calculados pelo autor com base em informações colhidas nas fontes aqui identificadas ou em outras citadas ao longo do texto. Sobre o autor Otaviano Helene Otaviano Helene é, desde 1977, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP). Sua atuação profissional inclui, entre outras atividades, a publicação de diversos trabalhos científicos e a autoria ou coautoria de livros especializados. Como militante na área de política educacional, participou da construção do Plano Nacional de Educação – Proposta da Sociedade Brasileira , no final da década de 1990, e do Plano Estadual de Educação – Proposta da Sociedade Paulista , no início da década de 2000, este último atualizado em 2015. Esses planos foram apresentados como projetos de lei à Câmara dos Deputados e à Assembleia Legislativa paulista. É autor de vários artigos publicados na imprensa e de trabalhos acadêmicos sobre política educacional. É também autor ou coautor de alguns livros, entre eles Um diagnóstico da educação brasileira e de seu financiamento (2013) e Análise comparativa da educação brasileira: do final do século XX ao início do século XXI (2017), publicados pela Editora Autores Associados. Foi presidente e vice-presidente da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp) e, no início de 2003, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais “Anísio Teixeira”.