Teorias da etnicidade
 8571391955

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FUNDAÇÃOEDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador José Carlos Souza Trindade Diretor-Presidente

José Castilho Marques Neto Assessor-Editorial

Jézio Hernani Bomfim Gutierre

PHILIPPE POUTIGNAT

Conselho Editorial Acadêntico

JOCELYNE STREIFE-FENART

Antonio Celso WagnerZanin

Antonio de Pádua Pithon Cyrino

Benedito Antunes Carlos Erivany Fantinati Isabel Maria F. R. Loureiro Lígia M. Vettorato Trevisan MariaSueli Parreira de Arruda

TEORIAS DA ETNICIDADE

"obaKesha

Rosa Maria Feiteiro Cavalari Editora-Executiva

SEGUIDO DE

Christine Rôhrig.

GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS DE FREDRIK BARTH

Tradução Elcio Fernandes

2º Reimpressão

ésitora

f

NESP

FUNDAÇÃO

Copyright O 1995 by Presses Universitaires de France Título original em francês: Théories de Vethnicité. Suivi de Les groupes ethniques et leurs frontiêres.

Copyright O 1997 da tradução brasileira: Fundação Editora da UNESP (FEU) Praça da Sé, 108 01001-900 - São Paulo - SP Tel.: (Oxx11) 232-7171 Fax: (Qoxl 1) 232-7172 Homepage: www.editora.unesp.br E-mail: feuOeditora.unesp.br

SUMÁRIO

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Poutignat, Philippe Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos émicos e suas fronteiras de Fredrik Barth / Philippe Poutignat, Jocelyne StreiftFenart; traduçãode Elcio Fernandes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. - (Biblioteca básica) Título original: Théories de Vethnicité. Bibliografia. ISBN 85-7139-195.5 1. Antropologia social 2. Barth, Fredrik, 1928- 3. Etnicidade 4. Grupos émicos 5. Relações émicas . StreiffFenart, Jocelyne. II. Título. IV.Série.

Prefácio 15

Introdução

19

Parte I

21

Capítulo 1

CDD.305.8

98.2522 Índices para catálogo sistemático: 1. Emicidade: Sociologia

2. Grupos émicos: Sociologia

305.8

305.8

Cet ouvrage, publié dans le cadre du programmedeparticipation à la publication, bênéficie du soutien du Ministêre Français des Affaires Etrangêres, de VAmbassade de France au Brésil ede la Maison Française de Rio de Janeiro. Este livro, publicado no âmbito do programa de participação à publicação, contou com o apoio do Ministério Francês das Relações Exteriores, da Embaixada da França no Brasil e da Maison Française do RiodeJaneiro.

Editora afiliada:

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Associación de Editoriales Universitarias

de América Latina y el Caribe

Assocação Brasileira de

Editoras Universitárias

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Teorias da etnicidade

A etnicidade: um novo conceito para um fenômeno novo? 1 Etnicidade e modernidade 2 A etnicidade como novo paradigma dasciências sociais

33

Capítulo 2 Raça, etnia, nação 1 Os debates do século XIX

é

2 Raça e etnia: confusões persistentes 3 Naçãoe etnicidade: novas questões e novas perplexidades

55

141

Capítulo 3 O que é um grupo étnico?

1 Atribuição categorial O poder de nomear Índices e critérios 2 As fronteiras

1 A etnia, “fantasma dereferência” da etnologia grupo A etnia posta em fichário:as tentativas de objetivação do étnico pela antropologia cultural Asevidências do Moerman, Barth

Os imigrantes em Yankee City modernização 3 O grupo émico'em questão

85

A manutenção dasfronteiras entre os grupos émicos não Asfronteiras depende da permanência de suas culturas

A crise das teorias da

decorrer étnicas são produzidas e reproduzidas pelos atores no

das interações sociais

3 A origem comum A emicidade como parentesco fictício identitários: lembranças e mitos 4 O realce

1 A etnicidade como dado primordial 2 A etnicidade como extensão do parentesco:

o paradigmasociobiológico s: 3 A etnicidade comoexpressão deinteresses comun

173

Conclusão

185

Parte

as teorias instrumentalistas e mobilizacionistas

As teorias da “escolha As teorias do grupo de interesse interno alismo coloni do A teoria racional”

'

: 4 A etnicidade comoreflexo dos antagonismos econômicos 5 A etnicidade comosistemacultural: as abordagens neoculturalistas 6 A etnicidade como formadeinteração social

A abordagem interacional

Fatores decisivos pára a mudança de identidade

1 As aquisições

étnicas O caráter mais relacional que essencial das identidades

O caráter mais dinâmico queestático da etnicidade 2 Os pontos do debate Perenidade versus contingência

Grupos étnicos e suas fronteiras, de Fredrik Barth

A interdependência dos grupos étnicos A perspectiva ecológica A perspectiva demográfica

O estado atual do debate sobre a etnicidade

como A etnicidade como fenômeno político versus a etnicidade Coação situação Substância versus processo simbólico

A fixação de símbolos

A associação das identidades e dos padrões valorativos

Capítulo 5

versus opção

,

Abordagem geral Definindo grupo étnico Osgrupos étnicos como “suportes de cultura” Grupos émicos comotipo de organização social Asfronteiras dos grupos étnicos Os sistemas sociais poliétnicos

as teorias neomarxistas

123

As fronteiras émicas são manipuláveis

pelos atores

Capítulo 4 A etnicidade, definições e conceitos

A abordagem de Fredrik Barth Conclusão

A dialética exógeno/endógeno

As fronteiras entre os grupos émicos são mais ou menos As fronteiras étnicas não representam barreiras estáveis

o: Leach, empirismo contra as “ingenuidades” do etnólog

2 Dos “imigrantes” aos “étnicos”

Capítulo 6 O domínio da etnicidade: as questões-chave

,

A persistência das fronteiras culturais Identidade étnica e recursos materiais Osgrupos étnicose a estratificação O problema davariação

da periferia Minoriais, párias e características organizacionais

Contato cultural e mudança

Variação no contexto das relações étnicas

Grupos étnicos e a evolução cultural

229

Referências bibliográficas

PREFÁCIO

A ideologia jacobina de nossa república, em nome do dogma da unidade do Estado-nação, sempre negou a diversidade étnica da população francesa. Uma consequência, num país onde a pesquisa em ciências sociais depende especialmente de financiamento público, é que o estudo das relações interétnicas jamais tenha obtido, ali, um lugar importante. As próprias noções de etnia ou de grupo étnico são suspeitas, especialmente de comprometimento ou de cumplicidade com a ideologia racista. A audácia dos dois pesquisadores que nos oferecem este livro (e suas conclusões demonstram que são conscientes disso) está no fato de terem se questionado - e de questionar-nos - quanto à significaçãoe a validade de um conceito bem difundido (a bibliografia deles confirma isso) nas ciências sociais anglo-saxônicas, quando elas tomam como objeto as migrações de populações de origem e de cultura diferentes e suas relações ao entrarem em contato ou conviverem no seio de uma mesma sociedade global. e

É compreensível que uma sociedade comoa dos Estados Unidos da América, cuja população é quase totalmente originária de

10

PHILIPPE POUTIGNATE JOCELYNE STREIFF-FENART

uma imigração proveniente de todasas partes do mundo, tenha-se preocupado com questões práticas e científicas suscitadas pelas relações interétnicas e interculturais. Mas a maioria dos franceses não está interessada em saber que sua nação formou-se historica-

mente por meio da conquista, da migração ou da anexação de povos muito diferentes e também por umaimigração proveniente de diferentes regiões da Europa central ou meridional, inclusive das

“colônias”, de modo que muitos dos cidadãos franceses da atualidade são descendentes de imigrados que se integraram a nós durante o século XIX ou na primeira metade do século XX. Foi necessário, depois da Segunda Guerra Mundial e da descolonização, que nossa república se defrontasse com dois tipos de fenômenos políticos e sociais para que despertasse de seu sono

regionadogmático. O primeiro foi o ressurgimento dos movimentos

listas e dasreivindicações das minorias etnolingúísticas. Qual não

foi a surpresa quando se descobriu que na França ainda existiam bretões, bascos, occitanos, corsos, que não admitiam ser reduzidos

a sobrevivências folclóricas do Antigo Regime! Havia, então,

“emias” no Estado-nação, apesar da Constituição - que grande escândalo! O segundo fenômeno foi a imigração (inicialmente encorajada entre 1945 e 1965, em seguida contida, depois reprimida) de operários vindosdas antigas “colônias” da África do Norte e da África negrae o afluxo dos requisitantes de asilo, fugindo dos regimes comunistas e das ditaduras latino-americanas e africanas

(sem esquecer os coronéis gregos e os generais turcos). E assim, ao

mesmo tempo que se propagavam em nosso pais a xenofobia e o

racismosob diversas formas, pôdeter início o desenvolvimento de uma-reflexão e de uma pesquisa quanto às relações interétnicas sem atihgir a amplitude quejá alcançavam nos Estados Unidos, até

mesmo na Grã-Bretanha.

TEORIAS DA ETNICIDADE

1

franceses demonstram ter dos trabalhos americanos. À hegemo cação comuni da nia lingúística dificulta a reciprocidade no campo científica.

O segundo e não menorinteresse deste livro é de tomar partido - não sem nuanças - no debate teórico e de seclassificar claramente na linhagem fundada por Fredrik Barth na década de 1960.

É poresse motivo quese nos oferece, em anexo, uma tradução do seu texto introdutório à obra coletiva publicada sob sua direção em 1969 sobre a organização social da diferença de cultura. Barth

substituiu uma concepção estática da identidade étnica por uma concepção dinâmica. Ele entendeu muito bem e faz entender que essa identidade, como qualquer outra'identidadecoletiva (e assim. também a identidade pessoal de cada um), é construída e transformada nainteração de grupossociais através de processos de exclusão e inclusão que estabelecem limites entre tais grupos, definindo os que os integram ou não. Então, o que importa é procurar saber

em que consistem tais processos de organização social através dos quais mantêm-se de forma duradoura as distinções entre “nós” e “os outros”, mesmo quando mudam asdiferenças que, para “nós”, assim como para “os outros”, justificam e legitimam tais distinções. Pois, escreve Barth, em tais processos “os traços que levamos em conta não são a soma das diferenças “objetivas mas unicamente “aqueles que os próprios atores consideram como significativos”. Desse modo, as mesmas características diferenciais podem mudar designificação ou perdera significação no decorrer da história do grupo; e diversas características podem suceder-se adquirindo a mesma significação. Encarada nessa perspectiva, a etnicidade não é um conjunto... .. intemporal, imutável de “traçosculturais” (crenças, valores, 'símbo-

los, ritos, regras de conduta, língua, código de polidez, práticas de

O primeiro e grande interesse da obra de Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart é o de informar-nos sobre as discussões teóricas entre pesquisadores de língua inglesa no que diz respeito ao próprio conceito de emicidade. Digamos, de passagem, que

vestuário ou culinárias etc.), transmitidos da mesma forma de gera-

tivessem um conhecimento tão extenso e tão aprofundado dos trabalhos realizados na Europa quanto os dois pesquisadores

ndo vou de modoincontestável a problemática e o método, instiga

gostaríamos muito que os sociólogos e antropólogos americanos

ção para geração na história do grupo; ela provoca ações e reações

entre este grupoe os outros em umaorganização social que não cessa de evoluir. Essa abordagem mais sociológica que emológica do objeto de pesquisa representado pelas relações interétnicas reno-

o pesquisador a se questionar como, por meio das mudanças so-

12

ciais, políticas e culturais de sua história, os gruposétnicos conseguem manter os limites que os distinguem dos outros.! É seguindotal orientação apontadapela obra de Fredrik Barth que Philippe Poutignate Jocelyne Streiff-Fenart efetuaram suas próprias pesquisas, aliando a investigações de campo umareflexão teó-

rica'cujo fruto é o presente livro. Depois de apresentar uma história e uma visão geral dos problemas de debates teóricos na atualidade sobre o conceito de etnicidade, eles apresentam no último capítulo uma problemática, enunciada nas quatro “questões-chave”, que, sob meu ponto de vista, marcam um progresso do conhecimento em relação ao texto de Barth. Com efeito, o ponto fraco deste é que

13

sa qualquer, que eles se formaram no curso de uma história comum que a memória coletiva do grupo nunca deixou de transmitir de modo seletivo e de interpretar, transformando determinados fatos e determinados personagens lendários, por meio de um trabalho do imaginário social, em símbolos significativos da identidade étnica. E esta refere-se, sempre, como o indica a definição proposta no início do capítulo 5, a uma origem comum suposta. É porisso que Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart acrescentaram com muita pertinência às questões “barthianas” dos limites ou linhas demarcatórias entre os grupos e da colocação em relevo doscritérios de pertença na interação social (questões que são co:

locadas em relação a qualquer identidade coletiva) a questão espe-

os conceitos muito gerais de organização e de interação sociais são

cífica da etnicidade: a da fixação dos símbolos identitários -que

geração, de clube ou de sindicato, de seita ou de congregação...)

te (ou ateu)”; “quando eu era de esquerda” ou “antes que eu me tornasse de direita”, “quando eu era cidadão de tal Estado” ou

aplicáveis à análise de todo tipo de identidade coletiva (religiosa; profissional, corporativa, política, familiar, de classe social ou de isto é, toda vez que está em causa um limite entre “eles” e “nós”. É

aí que se apagaa própria noção de etnicidade: continua sem respos-

ta a questão desaber o que é especificamente “étnico” na oposição entre “eles” e “nós” e nos critérios de pertença que fundam esta oposição. Certamente Barth concorda que “traços culturais diferenciadores” riscam a linha de demarcação entre os grupos étnicos, mas pouco lhe importando quais, uma vez que podem variar no decorrer do tempo e ao sabor das interações com outros grupos. E é muito rapidamente que ele indica que, nos casos de confronto político entre grupos étnicos (quando, de acordo com ele, atenuam-se as diferenças culturais), “é preciso dar bastante atenção à revitaliza-

ção de determinadostraços tradicionais escolhidose à instauração -——de tradições históricas para justificar os idiomase a identidade”.

Parece-me que tal engajamento teórico, muito admissível enquanto hipótese de trabalho (faz-se bastante necessário que se tome o objeto por um determinado lado), negligencia demais o Piada “ : . : ” = ai +: atorde que os “traços culturais diferenciadores” não são uma coiecra

TEORIAS DA ETNICIDADE

PHILIPPE POUTIGNAT E JOCELYNE STREIFF-FENART

y

cons

1 Traduzir “boundaries” por “limites” parece-mepreferivel, porque “fronteiras” evoca demasiadamente uma confusão entre a etnia e o território, da qual nós conhecemos muito bem as consequências ideológicas e políticas.

fundam a crença em uma origem comum. Pode-se ouvir alguém dizer: “quando eu era católico” ou “antes de me tornar protestan-

“antes de me tornar cidadão de tal Estado”; “quando eu era bancário” ou “antes de me tornar advogado” - contudo jamais se ouvirá quem diga: “quando eu era bretão (ou valão, ou acadiano, ou tutsi)” nem “antes de me tornar corso (ou flamengo, ou judeu, ou hutu)”.

Do mesmo modo, os autores deste livro afirmam de modo muito sensato que “o que diferencia, em última instância, a identidadeétnica de outras formas de identidade coletiva é o fato de ela ser orientada para o passado”. Eu o constato entre meus amigos acadianos, tão ligados ao conhecimento de sua genealogia a partir do ancestral chegado da França. Mas este passado não é o daciência histórica; é aquele em quese representa a memória coletiva, É uma “história mítica”, ou pelo menos legendária, na qual determinados soberanos (como aquele da “Grande Desordem” para os acadianos: a deportação de 1755) tornam-se simbolos destas “significações imaginárias sociais” das quais Cornelius Castoriadis mostrou-nos a operação instituinte,criadora de sentido, a organização e a interação sociais. Se, como o sugerem as últimaslinhas de Phi” lippe Poutignate Jocelyne Streiff-Fenart,a tarefa da pesquisa em antropologia das relações interétnicas é “descobrir o sentido”, no que

——

14

PHILIPPE POUTIGNAT E JOCELYNE STREIFF-FENART

me diz respeito, eu não iria buscartal sentido na relação com os processos de organização social, mas muito preferencialmente na relação com os processos decriação e deinterpretação do imaginário social, ou seja, no sistema poético dos agrupamentos humanos.

Esse campo é ainda umafloresta virgem onde os sociólogos hesi— tam em aventurar-se. É verdade queseus instrumentoshabituais de investigação não são muito apropriados para nela abrir umapicada. Talvez um trabalho de equipe interdisciplinar que não excluisse a análise literária conseguisse mais facilmente chegara isso...

INTRODUÇÃO

Jean-William Lapierre

O debate sobre a imigração que, a partir da década de 1970, ocupou periodicamente o primeiro plano da cena política francesa pareceter recentemente mudadode natureza. As questões voltadas paraa utilidade econômica dos imigrados ou para os custos sociais acarretados por sua presença foram paulatinamente dando” lugar a interrogações relativas a umá identidade nacional francesa, além do mais, como uma provocação à integração européia. Esta evolução, juntamente com a ansiedade quesuscita, surge de modo sensível no discurso social sobrea imigração: a imagem do “trabalhador imigrado” - estigmatizado como o aproveitador que chega para tirar o pão dosfranceses - ou das famílias prolíficas - denunciadas como bocasa serem alimentadas inúteis para a economia nacional foi substituída por uma visão dos imigrados como grupos portadores de um projeto coletivo ameaçador. O temapolítico do perigoislâmico, fantasmagorizado em relação ao caso de Creil ou aos

debates sobre a construção das mesquitas, tomou o lugar do tema cultural da incompatibilidade dos modosde vida simbolizado pelo estereótipo do sacrifício ritual do carneiro na banheira.

PHILIPPE POUTIGNAT E JOCELYNE STREIFF-FENART

16

TEORIAS DA ETNICIDADE

Paralelamente a este deslizamento nas representações, assiste-

seu seio? Mesmoassim, é preciso não tomar as palavras pelas coisas, na ocorrência de termos como “magrebinos” ou “beurs”, para

se a um deslocamento das questões urbanas ligadas à imigração. Dos problemas de co-habitação e de gestão das relações de vizinhança entre francesese imigrados (temascentrais da ação dos pesquisadores sociais na década de 1970), passou-se ao problema das periferias não mais comolugarde divisão e deluta entrefranceses e imigrados, mas como espaço de segregação socioétnica gerando uma nova categoria de atores urbanos definidos, em parte e do modo mais visível por sua revolta violenta e incontrolada contra a

os grupos por eles designados, mas analisar tais processos de de-

signaçãoe de atribuição de identidades comoconstitutivos do fenô-

meno que nos propomosa estudar.

.

Para descrever tais processos de atribuição categorial e de orga-

nização dasrelações sociais a partir de diferenças culturais presumidasessenciais, as ciências sociais anglo-saxônicas dispõem há mais

de vinte anos de um conceito: o.conceito de etnicidade. Na França, a palavra é carregada de imaginários ligados à imagem-repositória

sociedade e o Estado (Body-Gendrot, 1993). Certamente por não

terem sido ouvidos, os “beurs”! cívicos, organizadores das marchas para a integração, foram substituídos pelos zulus saqueadores de

de um “modelo americano” que eleva.a existência de grupos étni-

cos e sua constituição a forças políticas no seio da nação. Ele evoca irresistivelmente o espectro de um “comunitarismo émico” totalmente oposto à tradição nacionalfrancesa que fundamenta a democracia na ligação direta, não-mediatizada por grupos, entre o cidadão e o Estado. Geralmente conclui-se disso, sem maiores exames, que a noção de etnicidade “tipicamente americana” não é

supermercados.

Tal endurecimento das representações sociais e das tensões urbanasligadas à imigração caminhalado a lado com uma reafirmação constante do modelo francês de integração, que se apoiou sempre em um laço suposto indissolúvel entre os aspectos jurídi-

transponível para a análise dasituação francesa (Schnapper, 1991). Assim,deixemosclaro logo deinício: a noção de etnicidadetal

cos e culturais da “naturalização” do estrangeiro. Diferentemente

das sociedades anglo-saxônicas, que atribuem voluntariamente um estatuto oficial à diferença émica ou racial, na tradição francesa proíbe-se, de acordo com o que a Constituição prescreve, diferenciar os cidadãos segundo sua raça, sua origem ou sua religião. Assiste-se, assim, a um desnível crescente entre as categorias jurídicas de “Franceses” e “Estrangeiros”, as únicas legítimas nasclassificações oficiais, e as categorias operantes nas relações sociais, sobre as quais se fundam asdiscriminações em relação àqueles quesão recebidos, seja qual for sua nacionalidade, como “racialmente” ou “etni-

qual foi forjada não pela sociologia americana, mas de maneira

mais geral pela comunidadecientífica: de língua inglesa, consiste

amplamente não em atestar a existência dos grupos étnicos, mas em colocar tal existência como problemática, ou seja, em colocar

comoproblemática a consubstancialidade de uma entidade social e de umacultura pela qual define-se habitualmente o grupo étnico. Teorizar a etnicidade não significa fundar o pluralismo étnico como modelo de organização sociopolítica, mas examinar as moda: lidades segundo as quais uma visão de mundo “étnica” é tornada

camente” diferentes (Simon, 1993).

pertinente para os atores.

Será que tais transformações justificam as profecias mais ou menos catastróficas quanto ao futuro da sociedade francesa como um mosaico de emias e quanto à morte anunciada do modelo de assimilação-“à francesa”? Será que elas convencem as ciências sociais a despertarou a abrir os olhos da sociedadefrancesa paraa realidade que representaria a presença efetiva de “grupos étnicos” em

Em lugar da questão, tornada lancinante, da integração! do grupo X ou Y em uma sociedade global que se supõe ela mesma integrada, a problemática da etnicidade propõe outras: aquelas

que encontraremos nos escritos de autores como Moerman2 Ouda assimilação... Aqui pouco importa definir de um modo preciso os termos que, qualquer queseja a definição técnica que se lhes dê, não funcionam socialmente senão em razão de sua imprecisão.

Jovens nascidos na França, filhos de imigrantes árabes. (N. T.)

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18

PHILIPPE POUTIGNAT E JOCELYNE STREIFF-FENART

(quando, como, por que se prefere a identidade X?), Drummond (de que forma as pessoas definem a X-itude?), ou Barth (de que forma os limites entre o grupo X e o grupo Y são mantidos?). E

provável que tais questões não pareçam apresentar um interesse

'

imediato para aqueles que procuram soluções rápidas ao que os —.-—anglo-saxões denominam“problemaracial” e os franceses “problemada imigração”. Contudoelas nos parecem essenciais para colo“carmos as bases de umainterrogação verdadeiramente sociológica



quanto aos fenômenos interémicos da França contemporânea.

No primeiro capítulo, esboçaremos as condições nas quais O conceito de etnicidade emerge nas ciências sociais americanas no decurso da década de 1950; nos dois capítulos seguintes, mostra-

remos de que forma esta noção é construída no prolongamento de debates mais antigos sobre a noção de etnia e suas relações com as de raça e de nação, mas também partir de uma retomada

do problema da noção de grupo étnico tal qual era tradicionalmente utilizada em sociologia e antropologia. Um guarto capítulo será consagrado ao exame de diferentes abordagens da etnicidade; e o quinto capítulo delimitará o estado atual do debate, sobre as questões teóricas que ele levanta e sobre aquelas que deixa em suspenso. Enfim, tentaremos em um sexto capítulo uma problematização da noção a partir dos elementos que fundam a especificidade e condicionam a emergência das identidades étnicas. De modo a permitir ao leitor que melhor aprecie as apostas teóricas do debaté atual sobre a noção de etnicidade, apresentare-

mos em uma segunda parte da obra a tradução de um dostextos mais influentes neste domínio: a introdução de Fredrik Barth para a obra Ethnic groups and boundaries, publicada em 1969 e que continua sendo, desde então, o texto mais frequentemente citado nas publicações especializadas.

PARTEI

TEORIAS DA ETNICIDADE

CAPÍTULO 1

A ETNICIDADE: UM NOVO CONCEITO PARA UM FENÔMENO NOVO?

O termo “etnicidade” tem umautilização completamente nova

naliteratura científica de língua francesa.! Emboraele tenha sido introduzido no meio acadêmico francês desde 1981, durante uma

mesa-redonda organizada por Françoise Morin no âmbito da Associação Francesa dos Antropólogos, permaneceu praticamente inusitado até hoje no vocabulário sociológico ou etnológico, e só muito recentemente começaa ser utilizado nosestudos sobrea imigração, o racismo, o nacionalismo ou violência urbana (Dubet & Lapeyronnie, 1992; Delannoi & Taguieff, 1991; Body-Gendrot, 1993; Wieviorka, 1993). Tal reticência em adotar uma noção contu-

do onipresente nasciências sociais anglo-saxônicas desde a década

de 1970 deve ser relacionada com falta de interesse tradicional1 Com raríssimas exceções, como por exemplo Raveau (in L'autre et Vailleurs; 1976) ou Michaud que o utiliza para designar a consciência de pertânca a um grupo étnico (Michaud, 1978, p.115). Notaremos, ao contrário, a voga passageira do termo “etnismo” no decorrer da década de 1960, especialmente nos

escritos de François Fontan e Guy Héraud, respectivamente dirigentes do Partido Nacionalista Occitano e do Partido Federalista Europeu (Fontan, 1961; Heéraud, 1968). Ver também Simon, 1970.

ue

22 posar

TEORIAS DA ETNICIDADE

PHILIPPE POUTIGNATE JOCELYNE STREIFF-FENART

mente manifestado pelas ciências sociais francesas quanto às relações interétnicas e ao problema das minorias. Os organizadores da

mesa-redonda da Associação Francesa dos Antropólogos de 1981

acentuaram que, com a exceção notável das pesquisas pioneiras levadasa efeito por autores como Roger Bastide ou George Balandier, o domíniointerémico representou durante muito tempo a zona de sombrada antropologia francesa (Bulletin de PAFA, 1981)? , Em sua forma inglesa, as primeiras utilizações comprovadas do termonas ciências sociais remontam à década de 1940. Em suas primeiras acepções, a etnicidade designa simplesmente a pertença a

um grupo outro que não anglo-americano (o único grupo branco a

não ter uma “origem nacional”) e é utilizado como umavariável independente entre outros (especialmente a raça ou a religião) cujo efeito sobre o comportamento dosindivíduos é estudado. Em suas Yankee City Series, Warner, que foi provavelmente o primeiro autor americanoa utilizar-se do termo,” indica queele entendea ernicidade como umadas características que modificam o sistema social e são modificadas por ele, e as outras características são a idade, o sexo a religião. Depois de ter denominado os dez gruposde diferentes origens que compõem a comunidade urbana estudada por ele, deixa claro quetais grupos serão denominados ethnic, com exceção do primeiro (os riativos ou yankees) (Warner & Srole, 1945). Apenas alguns poucos pesquisadores, como os Hugues, acentuam o caráter etnocêntrico deste uso da noção de etnicidade que manifesta antes de tudo que tem “o poder de nomear”. Em um texto publicado em 1952, eles realçam que, rompendo com as definições 2 Evocandosuas primeiras experiências de pesquisadora sob a orientação Roger Bastide, Françoise Morin fala do “desprezo” com que os antropólogos “orto-

doxos”. consideravam aqueles que nas décadas de 1960 e 1970 escolheram este campo de pesquisa (Morin, 1982-1983). Quanto às razões do subdesen-

== volvimento das pesquisas francesas sobre a etnicidade e as relações interétniCas, ver Simon, 1982-1983; Schnapper, 1989; Beaud & Noiriel, 1990. Quan-

to ao “silêncio” da ciência política francesa sobre as minorias regionais, ver Coulon, 1978.

3 De acordo com os resultados da “caça aos ancestrais” realizada por Sollors (1986) e contrariando a afirmação de Glazer & Moynihan (1985), que arribuíam sua paternidade a Riesman.

23

anteriores dos grupos étnicos (aquelas da antropologia cultural), os americanos começam falar de determinados grupos como ethnics,” ao passo queoutros não o seriam: “Se numa dada comunidade, n representa o numero de grupos segundoa antiga definição, ao passo que n-1 representa o número de grupos segundo a nova definição. Um dentre eles não é émico. Ou seja, o grupo étnico originário da comunidade. E existem as pessoas quesão étnicas, a

saber, aqueles quediferem dele e que, por isso, não são considerados como membrosintegrais da sociedadelocal” (Hughes and Mac Gill Hugues, 1952, p.137).º Esta utilização é ainda corrente em numerosas pesquisas americanas (National Opinion Research Center) que incluem desde 1963 questões relativas à identificação étnica. Neste tipo de pesquisas, a questão da definição resolve-se antecipadamente pela equivalência ethnicity = foreign stock, a atribuição de uma etnicidade particular que é estabelecida a partir da resposta dosentrevistados brancos à pergunta: “De qual pais veio a maioria

de seus ancestrais?” As duasprimeiras definições não-tautológicas da noção de que temos conhecimento são as de Wallerstein (1960) e de Gordon (1964) que, em contextos muito diferentes (a sociedade americana

para Gordone a África do Oeste para Wallerstein) utilizam o ter4 Comoo assinala Sollors, talutilização da palavra “étnico” para designar contrastivamente e muitas vezes negativamente povos “outros” é congruente com as raízes etimológicas do termo etnicidade (ethnikos). No mundo grego, otermoethnos fazia referência aos povos bárbaros ouaos povos gregos não organizados segundo o modelo da Cidade-Estado, ao passo que c termolatinoethnicus designava, na tradição eclesiástica do século XIV,os pagãos em oposição aoscristãos (Sollors, 1986). É precisamente comreferência a estes sentidos antigos da noção que os Hugues refutam a concepção dos gruposétnicos que eles caracterizam comoa concepção “minus one”. Na medida em que o termo “émi-

co” sempre foi utilizado para designar as pessoas “diferentes de nós mesmos” e na medida em que somos todos diferentes de outras pessoas, “somostodos

étnicos”. É 5 Kantrowitz utiliza assim os dados do US Census of Population para estabelecer

índices de segregação residencial segundoa etnicidade (foreign stock) e a raça,

Greeley a dos NORC's Surveys para estabelecer correlações entre indices de su-

cesso econômico e a pertença a grupos “étnico-religiosos” (Kantrowite, 1973; Greeley, 1974).

PHILIPPE POUTIGNAT E JOCELYNE STREIFF-FENART

TEORIAS DA ETNICIDADE

mo etnicidade para designar não a pertença étnica mas os senti-

nal da década de 1960, de um tipo de conflito e de reivindicações

---mentos que lhe estão associados: o sentimento de formar um povo (sense of peoplehood) partilhado pelos membros de subgruposno interior das fronteiras nacionais americanas, ou o sentimento de leal“dade (feeling of loyalty) manifestado em relação aos novos grupos émicos urbanos pelos africanos destribalizados. Tais definições surgem de forma bastante contraditória com aquelas utilizadas nas pesquisas quantitativas que prevêem em seus códigos umacasa re-

servada às pessoas que “não conhecem sua emicidade” (NORC'S Survey, 1972). Encontramosentãode saída, na utilização do conceito de etnicidade, uma oposição entre concepções objetivistas e subjetivistas que se vai encontrar de forma recorrente no debateteórico

sobre a identidade étnica.

Porém, o termo etnicidade só irá realmente impor-se nas ciências sociais americanas a partir da década de 1970, e irá conhecer

desde então o sucesso crescente, comprovado pela criação de uma

revista especializada (Ethnicity, criada em 1974) e por um número impressionante de obras, a maioria das vezes coletivas, que o fazem surgir em sua titulação. No decorrer dá década, os colóquios, as conferências, os programas de pesquisa organizados sobre o tema

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qualificadas como “étnicas”, que surgem de forma simultânea nas sociedades industriais e nas sociedades do Terceiro Mundo, e se produzem igualmente nas nações ditas pluriétnicas, assim como naquelas supostas culturalmente homogêneas: regionalismos na França e na Grã-Bretanha, conflitos lingúísticos no Canadá e na Bélgica, problema das nacionalidades no leste europeu,tribalismo na África. Em 1974, Greeley estimava que, desde a Segunda Guerra Mundial, os conflitos étnicos levaram à morte em torno devinte

milhões de pessoas; à mesma época, Connorcalculava que quase a metade dos Estados do mundo eram, em graus diversos, tocados por este tipo de conflito, ao passo que Daniel Bell, um dos teóricos

mais destacados da “sociedade pós-industrial”, sustentava que, com a destruição dos sistemas imperialistas nos antigos países coloniais e a erosão das antigas estruturas de autoridade nas sociedades

ocidentais, a competição entre os grupos étnicos estava a partir de

então em todos oslugares transformada na norma(Greeley, 1974; Connor, 1973; Bell, 1975).º Se o conceito de emnicidade se impõe no decorrer desse perío-

do,é precisamente para abranger o que têm em comum todosesses

irão multiplicar-se, a tal ponto que se pôde caracterizar esse período

fenômenos de competição e de conflito nos quais os grupos se

do nasciências sociais é correlato ao aparecimento repentino,no fi

onipresente” do mundo contemporâneo (R. Cohen, 1978). Essa qualquer coisa nova seria a emergência da pertença étnica como ca-

como o da emergência da “indústria acadêmica da etnicidade” (Basham & De Groot, 1977).' Esta carreira fulgurante de um conceito até então quase ignora-



6 Pode-se citar especialmente: Van den Berghe, 1970; Te Selle, 1973; Greeley,1974; Bell & Freeman, 1974; Cohen, 1974b; Glazer & Moynihan, 1975; Despres, 1975; Bennet, 1975; Henry, 1976; Said & Simmons, 1976; Giles, 1977; Gordon, 1978; Holloman & Arutinov, 1978. Uma análise dos artigos de revistas de um modo oude outro concernentes ao

fenômeno étnico e às relações interétnicas abrange particularmente bem a data divisória representada pela década de 1970 neste campo de pesquisa. Antes desta data, apenas 10% dos artigos tratando dessas questões comportam em seustítulos, em seus subtítulos, em seu resumo ou nas palavras-chave defini-

das pela revista o termoethnicity. À partir de 1971 a referência explicita a este

termo aparece, segundo os períodos, em 40% e 55% dosartigos (Rinaudoet

al., 1991)

opõem em nome de sua pertença étnica. Trata-se de levar em conta o fato de que “algumacoisa nova surgiu” (Glazer & Moynihan, 1975), que fez repentinamente da pertença étnica “uma realidade

8 No decotrer da década seguinte,os balanços dos confrontos étnicos evidenciam

a permanência e a mesmaescalada deste tipo de conflito no mundo con-

temporâneo. De acordo com Nietschmann, 80% dos conflitos armados no decorrer da década de 1980 confrontavam gruposétnicos com os Estados (Nietschmann, 1987). Tambiah arrola umalista impressionante: confrontos entre chineses e malaios na Malásia, gregos e turcos em Chipre, judeus é ou: tras minorias de um lado,e “grandes russos” de outro na União Soviética,ibo,

hausa e yoruba na Nigéria, indígenas doleste e crioulos na Guiana, singaleses

e tamouls no Sri-Lanka, sihks e hindus na Índia, fidjianose indígenas no Fid-

ji, pathanse bihari no Paquistão, cristãos e muçulmanosno Líbano,israelenses e palestinos, só para citar os mais conhecidos (Tambiah, 1989, p.337).

RREe

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PHILIPPE POUTIGNAT E JOCELYNE STREIFF-FENART

TEORIAS DA ETNICIDADE

tegoria pertinente para a ação social e a crescente tendência de fazer derivar dela lealdades e direitos coletivos. Se, no período precedente, os vínculos étnicos eram encarados como fontes potenciais de

etnicidade reunidos por Glazer & Moynihan(1975), eles se dedicam a fenômenostão diferentes quanto os das minorias na China, das questões lingúísticas na Índia, aos problemas de nacionalidade na União Soviética, ou à posição dos negros na sociedade ame-

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lealdade, concorrendo com a nação (Geertz, 1963), impõe-se cada

vez-