Teoria política feminista: textos centrais
 9788599279359, 8599279351

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Roberto de Souza Salles Vice-Reitor: Emmanuel Paiva de Andrade Editora da Universidade Feral Fluminense Comissão Editorial Presidente: Mauro Romero Leal Passos Ana Maria Martensen Roland KaleffGizlene Neder Heraldo Silva da Costa Mattos Humberto Fernandes Machado Juarez Duayer Livia Reis Luiz Sérgio de Oliveira Marco Antonio Sloboda Cortez Renato de Souza Bravo Silvia M a r ia Baeta Cavalcanti Tania Vasconcellos

Teoria política feminista textos centrais

Luis Felipe M iguel e Flávia Biroli

H orjzont E

Copyright© 2013 Liás FeBpe Miguele Flávia Biroü

Editora

Eliane Alves de Oliveira

Conselho Editorial Beatri^ Olinto (Unicentro) Flávia BiroH(UnB) JoséMiguelArías Neto (UEL) Márcia Motta (UFRJ) Marie-Hélène ParetPassos (PUC-RS) Piero Ejben (UnB) Rqgna Dakastagnè (UnB) Ricardo Silva (UFSQ Renato Perissinotto (UFPR) Sérgio RmumeBi (UFSQ

Revisão e preparação de texto de referências bibliográficas CamülaBmgpm Revisão técnica da tradução Flávia BiroBeLuis FelipeMiguel

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Teoria política feminista: textos centrais. Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli (organização) —Vinhedo, Editora Horizonte, 2013. ISBN 978-85-99279-35-9

1. Teoria política feminista 2. Teoria política 3. Gênero 4. Organização

CDD 320:300

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Iingua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Editora Horizonte Rua Geraldo Pinhafa, 32 sala 3 13280-000 - Vinhedo - SP Tel: (19) 3876-5162 [email protected] / www.editorahorizonte.com.br

S umário In trodução

teoria política feminista, hoje Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli, 7 C r ít ic a s f e m in ist a s à d ic o t o m ia p ú b l ic o / priva d o

Carole Vateman, 55 Im a g e n s d e relação

Carol Gilligan, 81 R u m o a um a t e o r i a c r í t i c a d a m u lh e r e d a p o lític a :

reconstruindo o público e o privado Jean Bethke Elshtain, 121 “ O p e sso a l é p o l ít ic o ” :

desventuras de uma promessasubversiva Eleni Varikas, 173 R e p e n s a n d o a pr iv a c id a d e :

autonomia, identidade e a controvérsia sobre o aborto Jean L. Cohen, 195 D e se jo e p o d e r

Catharine MacKinnon, 231 P a r a a lé m d o m o d e lo s e n h o r / s e r v a :

sobre O contrato sextud, de Carole Pateman Nancy Fraser, 251 F e m in is m o , c id a d a n ia e p o l ít ic a d e m o c r á t ic a r a d ic a l

ChantalMouffe, 265 O QUE HÁ DE ERRADO COM A DEMOCRACIA LIBERAL?

Anne Phillips, 283 O QUE HÁ DE ERRADO COM A DEMOCRACIA LIBERAL?

Anne Phillips, 305

J u lg a n d o o u tr a s c u ltu r a s :

o caso da mutilação genital Martha C. Nussbaum, 339 O m u l t i c u l t u r a l i s m o é r u im p a r a a s m u l h e r e s ?

Susan Moller Okin, 359

In t r o d u ç ã o

teoria política feminista, hoje Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli Na teoria política produzida nas últimas décadas, a contribuição do fe­ minismo se mostrou crucial. O debate sobre a dominação masculina nas so­ ciedades contemporâneas —ou o “patriarcado”, como preferem algumas — abriu portas para temattzar, questionar e complexificar as categorias centrais por meio das quais era pensado o universo da política, tais como as noções de indivíduo, de espaço público, de autonomia, de igualdade, de justiça ou de democracia1. Não é mais possível discutir a teoria política ignorando ou relegando às margens a teoria feminista, que, neste sentido, é um pensamen­ to que parte das questões de gênero, mas vai além delas, reorientando todos os nossos valores e critérios de análise. Esta coletânea apresenta um panorama, inédito no Brasil, da teoria po­ lítica feminista produzida a partir dos anos 1980, dando continuidade a um esforço que teve, como primeiro fruto, o volume dos mesmos organizado­ res, retfãtãndo o impacto dos éSTHtios de-gênero na teoria política brasileira (Biroli e Miguel, 2012). São artigos e capítulos de livros nunca antes tradu­ zidos para o português, esgotados há muitos anos ou que só circularam em periódicos acadêmicos. Suas autoras são intelectuais de primeira linha, que participaram da definição da agenda contemporânea do feminismo - nos debates teóricos e na prática política - , redefinindo seus limites. Ou talvez seja melhor dizer feminismos, já quê a pluralidade de abordagens é uma das características que a coletânea busca preservar. Como corrente intelectual, o feminismo combina a militância pela igualdade de gênero com a investigação relativa às causas e aos mecanismos de reprodução da dominação masculina. Pertence, portanto, à mesma linha­ gem do pensamento socialista, em que o ímpeto para mudar o mundo esta­ va colado à necessidade de interpretá-lo. Embora um certo senso comum, 1 Ao longo desta introdução, optamos por usar “dominação masculina” como categoria geral, com o pa­ triarcado sendo uma de suas manifestações históricas, o que não é uma visão consensual no feminismo. Entendemos que o patriarcalismo corresponde a uma forma específica de organização política, vinculada ao absolutismo, bem diferente das sociedades democráticas concorrenciais contemporâneas (cf. Elshtain, 1993 [1981], p. 215). Os arranjos matrimoniais contemporâneos também não se adequam ao figurino do patriarcado, sendo mais bem entendidos como uma “parceria desigual” (Fraser, 1997a, ps 229; capítulo 7 desta coletânea), marcada pela vulnerabilidade maior das mulheres (Okin, 1989a, p. 138-9). Em suma, ins­ tituições patriarcais foram transformadas, mas a dominação masculina permanece. Parte importante dessa transformação é a substituição de relações de subordinação direta de uma mulher a um homem por estrutu­ ras impessoais de atribuição de vantagens e oportunidades (Fraser, 1997a, p. 234-5).

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muito vivo no discurso jornalístico, apresente a plataforma feminista como “superada”, uma vez que as mulheres obtiveram acesso à educação, direitos políticos, igualdade formal no casamento e uma presença maior e mais di­ versificada no mercado de trabalho, as evidências da permanência da domi­ nação masculina são abundantes. Em cada uma dessas esferas —educação, política, lar e trabalho - foram obtidos avanços, decerto, mas permanecem em atuação mecanismos que produzem desigualdades que sempre operam para a desvantagem das mulheres. Formas mais complexas de dominação exigem ferramentas mais sofisticadas para entendê-las; nesse processo, o pensamento feminista tornou-se o que é hoje, um corpo altamente elabora­ do de teorias e reflexões sobre o mundo social. O desafio de compreender a reprodução das desigualdades de gênero em contextos nos quais, em larga medida, prevalecem direitos formalmente iguais levou a reflexões e propos­ tas que deslocam os entendimentos predominantes no pensamento político. A denúncia da dominação masculina ou a afirmação da igualdade inte­ lectual e moral das mulheres atravessa os séculos - é possível buscá-las na Grécia antiga, em figuras como Safo ou mesmo Hipátia. Na Idade Média, é importante a obra de Cristina de Pizán (1364-1430), que dedicou vários volumes às mulheres, argumentando que as diferenças físicas são desimportantes em face da igualdade da alma, criada idêntica, por deus, para eles e para elas. A aparente inferioridade feminina era o resultado não de uma natureza diferenciada, mas das condições sociais. As mulheres sabem menos “sem dúvida porque não têm, como os homens, a experiência de tantas coi­ sas distintas, mas se limitam aos cuidados do lar, ficam em casa, ao passo que não há nada tão instrutivo para um ser dotado de razão como exercitar-se e experimentar coisas variadas” (Pizán, 2000 [1405], p. 119). Esta extraordinária afirmação coloca Pizán na fronteira de uma refle­ xão efetivamente feminista. Um pensamento, para se caracterizar como fe­ minista, não se limita à afirmação literária da igualdade de talentos ou de valor entre mulheres e homens, nem à reivindicação política da extensão dos direitos individuais a toda a espécie humana. O feminismo se definiu pela construção de uma crítica que vincula a submissão da mulher na esfera doméstica à sua exclusão da esfera pública. Assim, no mundo ocidental, o feminismo, como movimento político e intelectual, surge na virada do sécu­ lo XVni para o século XIX e pode ser considerado um filho indesejado da Revolução Francesa. Embora tenha havido exceções, sendo Condorcet o nome mais famoso entre elas, a esmagadora maioria dos revolucionários franceses manifestava

Introdução | Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli

desinteresse, quando não hostilidade, pelos direitos da mulher2. Seguiam a trilha de Rousseau, maior inspiração filosófica para a Revolução, para quem a liberdade dos homens não incluía as mulheres, destinadas “naturalmen­ te” ao enclausuramento na esfera doméstica. As margens do debate na Constituinte, surgem demandas pelo acesso das mulheres aos direitos polí­ ticos, expressas pela Sociedade das Republicanas Revolucionárias, de Claire Lacombe (1765 ?) e Pauline Léon (1768-1838), ou isoladamente, por mulhe­ res que rompiam barreiras, como Théroigne de Méricourt (1762-1817) ou Olympe de Gouges (1748-1793). O documento escrito mais importante é a “Declaração dos direi­ tos da mulher e da cidadã”, de Gouges (2003 [1791]). É a transcrição da “Declaração dos direitos do homem e do cidadão” para o feminino, com al­ guns acréscimos significativos. Assim, o artigo X, que estabelece a liberdade de opinião, é redigido por Gouges como uma garantia de que, já que pode subir ao cadafalso, a mulher pode igualmente subir à tribuna. O artigo XI, sobre a liberdade de expressão, ganha a especificação de que toda mulher pode indicar o nome do pai de seus filhos, mesmo que para tal afronte os preconceitos. E, em particular, ela incluiu uma peroração final, conclaman­ do as mulheres a romper com as ideias da época e a exigir seus direitos. Mas o esforço de Gouges ainda não alcança a elaboração sistemática de um entendimento das raízes da opressão sofrida pelas mulheres3. Este resul­ tado será obtido, na mesma época, na Inglaterra, por Mary Wollstonecraft (1759-1797), que é geralmente considerada - por boas razões —a fundadora do feminismo. Sua obra mais importante, Uma vindicação dos direitos da mulber, foi publicada em 1792 e sofreu, também, o influxo da Revolução Francesa4. Sua autora havia publicado, dois anos antes, Uma vindicação dos direitos do ho­ mem, como resposta às Considerações sobre a revolução em França, obra antirrevoludonária de Edmund Burke. Assim, foi também a promessa de emanci­ pação dos homens, pelos republicanos franceses, que levou Wollstonecraft a sistematizar suas reflexões sobre a necessidade de e os obstáculos para a 2 Conforme bem demonstra a coletânea de discursos e escritos da época organizada por Badinter (1991 [1989]). 3 Uma leitura mais positiva do significado da obra (e da vida) de Gouges é feita por Scott (2002 [1996], cap. 2). 4 Na primeira metade do século XIX, uma “tradução” do livro de Wollstonecraft, tão livre que na verdade deve ser considerada uma obra autoral nova, marca o início da reflexão feminista no Brasil. Nas mãos de Nísia Floresta (1809-1885), a reivindicação de igualdade toma-se a afirmação da superioridade feminina, ao ponto, por exemplo, do serviço militar exclusivamente masculino ser defendido com base no maior valor da vida das mulheres: “os marinheiros durante uma tempestade lançam ao mar as cargas [...] menos úteis ao navio” (Floresta, 1989 [1832], p. 86-7).

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emancipação das mulheres: “O direito divino dos maridos, tal como o direi­ to divino dos reis, pode, espera-se, nessa era esclarecida, ser contestado sem perigo” (Wollstonecraft, 2001 [1792], p. 24; ênfase suprimida). O programa desta primeira fase do feminismo tinha como eixos a educação das mulheres, o direito ao voto e a igualdade no casamento, em particular o direito das mulheres casadas a dispor de suas propriedades. Wollstonecraft é uma autora singular pela maneira com que, ao tratar dessas questões (com o foco voltado particularmente para a primeira delas), com­ bina a adesão (quase inevitável) às ideias dominantes da época com elemen­ tos de inusual radie alidade. É assim, por exemplo, que a demanda por educação tem por objetivo exclusivo permitir o livre desenvolvimento da mulher como ser racional, fortalecendo a virtude por meio do exercício da razão e tornando-a plena­ mente independente (Wollstonecraft, 2001 [1792], p. 14). Não há nenhuma concessão ao argumento da “produção de uma companheira melhor para o homem”, que, no entanto, foi comum no feminismo do século XDC Um autor como John Stuart Mill (1806-1873), a despeito de sua defesa veemente da igualdade de direitos, .continua julgando que=“a maior ocupação da mu­ lher deve ser embelezar a vida: cultivar, em seu próprio benefício e daqueles que a rodeiam, todas as suas faculdades de mente, alma e corpo” (J. S. Mill, 2001 [c 1832], p. 106). Nada mais longe da posição de Wollstonecraft O chamado “feminismo liberal”, que nasce no século XV111, desen­ volve-se ao longo do século XIX e tem exatamente Wollstonecraft e Stuart Mill como principais expoentes, é acusado com frequência de possuir um marcado viés de classe. De fato, Stuart Mill afirma, por exemplo, que cuidar da casa não é uma verdadeira ocupação, pois “não significa nada mais do que comprovar que os criados cumpram seu dever” (J. S. Mill, 2001 [c. 1832], p. 105). Mas é necessário cuidado antes de estender este veredito a todo o fe­ minismo anterior ao século XX, sem matizá-lo. Um paralelo entre a ausência de representação política das mulheres e dos operários já aparece na própria Wollstonecraft (2001 [1792], p. 148). Nos Estados Unidos, líderes sufragis_tas...eomo Elizabeth Cady Stanton (1815 1902) c Susan B. Anthony (3-826^ 1906) eram também destaçadas advogadas da abolição da escravatura5. O paralelo entre a escravidão negra e a escravidão feminina era comum entre escritoras dos dois lados do Atlântico, sendo desenvolvido, por exemplo,

5 Ainda que Stanton, por exemplo, não deixasse de afirmar a superioridade das mulheres (anglo-saxãs) diante das “ordens inferiores de chineses, africanos, alemães e irlandeses” (apud Spelman, 1988, p. 8).

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por Harriet Tayior Mill (1807-1858), em seu libelo pelo voto das mulheres (2001 [1851], p. 122). É evidente que as determinações sobrepostas das desigualdades de gê­ nero, classe e raça não aparecem, no feminismo dos séculos XVIII e XIX, da forma como foram desenvolvidas por parte das feministas posteriores. Mas uma feminista de trajetória invulgar como Sojourner Truth (c. 17971883), que foi escrava e empregada doméstica antes de se tornar oradora política, mostra que, se hão era produzida uma reflexão aprofundada, ao menos havia, em parte do movimento de mulheres da época, uma sensibili­ dade para entender a condição feminina de forma bem mais complexa. Ela observa, em seu famoso discurso “Ain’t I a woman?”: Aquele homem diz que as mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carrua­ gens, erguidas para passar sobre valas e receber os melhores lugares em todas as partes. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama ou me deu qualquer bom lugar! E eu não sou uma mulher? Olhem pra mim! Olhem pro meu braço! Tenho arado e plantado, e recolhido em celeiros, e nenhum homem poderia me liderar! E não sou uma mulher? Posso . Jíabalhar tanto quanto e comer tanto quanto um homem —quando consigo o que comer - e aguentar o chicote também! E eu não sou uma mulher? Dei à luz treze filhos, e vi a grande maioria ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei com minha dor de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! E eu não sou uma mulher? (Truth, 1997 [1851]).

Por outro lado, o século X3X viu também o surgimento de um feminis­ mo socialista que, por conta da radicalidade de suas propostas, ficou à mar­ gem das correntes dominantes do sufragismo. Flora Tristan (1803-1844), que foi uma figura pública e escritora influente em sua época, fez da situa­ ção da mulher trabalhadora um dos eixos centrais de seu tratado socialista utópico sobre a união operária, vinculando opressão de classe e de gênero (Tristan, 2008 [1843]). Os escritos de Marx e Engels deixaram um legado ambíguo. Por um lado, fizeram a defesa ardorosa da igualdade entre homens e mulheres, que com eles se tornou parte inextricável do projeto socialista. Por outro, tenderam a ler a dominação masculina como um subproduto da dominação burguesa, anulando a especificidade das questões de gênero que o feminismo sempre buscou destacar. Ainda assim, é impossível negar o im­ pacto que uma obra como A. origem dafamília, dapropriedade privada e do Estado, de Engels (1985 [1884]), teve para vincular a organização da esfera domésti­ ca à sociedade mais ampla. Na passagem do século XIX para o século XX, um corpo plural de pensamento feminista socialista se estabeleceu, incluindo 11

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bolcheviques como Clara Zetkin (1857-1933) e Alexandra Kollontai (18721952) ou anarquistas como Emma Goldmann (1869-1940). No mundo, ocidental, a plataforma feminista inicial foi efetivada ao longo do século XX. Em geral, nas primeiras décadas do século, o direi­ to de voto foi obtido pelas mulheres (embora em países como a Suíça ou Luxemburgo tenha tido que esperar até os anos 1970). As barreiras à educa----ção foram levantadas, com o acesso das mulheres a todos os níveis de ensino chegando a superar o dos homens. Lentamente, os códigos civis passaram a afirmar a igualdade de direitos entre os cônjuges. Com isso, o feminismo foi obrigado a focar em mecanismos menos evidentes de reprodução da subordinação das mulheres. Questões vinculadas à sexualidade e aos direi­ tos reprodutivos, nas quais, aliás, Kollontai e Goldmann foram pioneiras, ganharam saliência. Ao mesmo tempo, as formas de subalternização que continuavam em operação na família, na política, na escola e no trabalho, a despeito dos avanços na legislação, passaram a ser esquadrinhadas. Avulta, neste momento, a figura de Simone de Beauvoir (1908-1986), que ocupa para o feminismo contemporâneo uma posição fundadora ain­ da mais central que a de Mary Wollstonecraft para seus primórdios. Ela se tornou uma espécie de lenda em vida, encarnação da mulher liberada dos constrangimentos da sociedade machista, capaz de fazer o próprio cami­ nho. Sua relação com Jean-Paul Sartre aparecia como a promessa de uma nova conjugalidade, mais livre, equilibrada e satisfatória, uma idealização que ignorava que a ruptura com algumas das premissas predominantes na organização das relações afetivas convivia, no relacionamento entre os dois, com a manutenção de assimetrias muito significativas (Rowley, 2006 [2005]). Mas a influência de Beauvoir se deveu sobretudo à publicação de O segundo sexo, em 1949. Apesar da flagrante falta de unidade na construção do argumento, do subjetivismo extremado que faz com que se passe sem esca­ las da vivência pessoal ou do círculo próximo para a generalização (um traço que marcou negativamente muito do feminismo posterior) e do substrato psicanalítico do qual, embora ciente da misoginia de Freud, não consegue se livrar, o livro representou uma tentativa poderosá de entender a construção social do “feminino” como um conjunto de determinações e expectativas destinado a cercear a capacidade de agência autônoma das mulheres. A fra.se famosa que abre o segundo volume resume com precisão a ideia força da obra; “Não se nasce mulher, torna-se mulher” (Beauvoir, 1949, v. II, p. 16). Afinal, “a mulher não é definida nem por seus hormônios nem por instintos misteriosos, mas pela maneira pela qual ela recupera, por meio 12

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de consciências alheias, seu corpo e sua relação com o mundo” (Beauvoir, 1949, v. II, p. 516). Não é exagero dizer que essa percepção funda o feminismo contempo­ râneo. No que se refere especificamente à teoria política, Beauvoir avançou pouco. Ao que parece, a política era entendida como uma esfera “superestrutural”, alheia a seu foco na posição das mulheres no cotidiano das relações, sobretudo na posição das mulheres de classe média relativamente ao casamento, à sexualidade e ao trabalho. Ainda assim, O segundo sexo teve importância por contribuir para a redefinição das fronteiras da política, in­ dicando a profunda imbricação entre o pessoal e o social, o público e o privado. Abrindo caminho, enfim, para o provocativo slogan “o pessoal é político”, que seria a marca de muito do movimento feminista a partir dos anos 1960. A partir, sobretudo, dos Estados Unidos, nesse momento o movimen­ to feminista ganha inserção e visibilidade inéditas. Como escritora e como uma das fundadoras da National Organization of Women (NOW), Betty Friedan (1921-2006) ocupou uma posição de destaque no processo. Seu li­ vro A místicafeminina, grande sucesso editorial, analisa a infantilização a que as mulheres são submetidas, a fim de se adequarem aos únicos espaços que a sociedade está disposta a dar a elas: “para uma garota, não é inteligente ser muitò inteligente” (Friedan, 2001 [1963], p. 258). A escola, a imprensa, a pu­ blicidade e a psicanálise produziam a ideia de que a mulher necessariamente encontra a plenitude no casamento e na maternidade, estigmatizando aque­ las que não se adequavam como desviantes e necessitadas de tratamento. O livro de Friedan representa um passo atrás em relação a outras correntes do feminismo, apresentando a experiência da classe média branca estaduniden­ se como a condição universal da mulher. O argumento da “infantilização” certamente não se adequa às mulheres trabalhadoras pobres, muitas vezes as únicas responsáveis pela subsistência da família. Uma Sojourner Truth de meados do século XX não se reconheceria no relato de Friedan. Ao mesmo tempo, A mística feminina encontrou enorme ressonância, obtendo a identificação imediata de um grande contingente de leitoras. O que a crítica lê, corretamente, como sua fraqueza é também a fonte de sua força: a capacidade de provocar a adesão do seu público, que se reconhece integralmente na narrativa. Outras obras feministas obtiveram impacto na época, colocando em pauta temas como a repressão à sexualidade feminina (Greer, 1991 [1970]) ou a relação entre a sexualidade masculina e a domina­ ção política (Millett, 2000 [1970]). É possível dizer que este foi o momento 13

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de maior repercussão do pensamento feminista —e a atual ofensiva antifeminista, tão presente no discurso da mídia e de um certo senso comum, é ainda uma reação a ele. O que nós estamos chamando de feminismo contemporâneo (usan­ do “contemporâneo” de forma bastante restritiva) se estabelece no diálogo com essas tradições. Na história, na filosofia, na sociologia, na antropologia, na psicologia ou nos estudos literários, suas contribuições têm ajudado a re­ definir as fronteiras da disciplina. E assim também ocorre na teoria política. Sem pretender fazer um inventário exaustivo ou uma análise em profundi­ dade da presença do feminismo na área, nesta introdução indicamos quatro eixos de discussão gerados ou reconstruídos pela teoria feminista, que hoje não podem ser ignorados por qualquer reflexão séria sobre a política: a dis­ tinção entre as esferas pública e privada, a relação entre igualdade e diferen­ ça, o conceito de identidade e o valor da autonomia.

O público e o privado Se há algo que identifica um pensamento como feminista, é a re­ flexão crítica sobre a dualidade entre a esfera pública e a esfera privada. Compreender como se desenhou a fronteira entre o público e o privado, no pensamento e nas normas políticas, permite expor seu caráter histórico e re­ velar suas implicações diferenciadas para mulheres e homens —contestando, assim, sua naturalidade e pretensa adequação para a construção de relações igualitárias. Trata-se, como definiu Carole Pateman (1988) em sua análise das teorias do contrato, de expor a história não contada da construção dá esfera pública e dos direitos individuais na modernidade a partir da posição das mulheres. Essa dualidade corresponde a uma compreensão restrita da política, que em nome da universalidade na esfera pública define uma série de tópicos e experiências como privados e, como tal, não políticos. É uma forma de isolar a política das relações de poder na vida cotidiana, negando ou desinflando o caráter político e conflitivo das relações de trabalho e das relações fanuüates. O destaque para-as^exdusões que estão implicadas na conlormação de uma esfera pública mostra que os valores que nela imperam não são abstratos e universais, mas se definiram, historicamente, a partir da perspec­ tiva de alguns indivíduos, em detrimento de outros (Young, 1990a). A pro­ jeção de uma esfera pública homogênea, silenciando sobre a existência de públicos distintos e conflitivos, é um de seus efeitos; a restrição do universo 14

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da contestação pública legítima, por meio da definição do que é do âmbito privado, é outro (Fraser, 1992). A esfera pública estaria baseada em princípios universais, na razão e na impessoalidade, ao passo que a esfera privada abrigaria as relações de caráter pessoal e íntimo. Se na primeira os indivíduos são definidos como manifes­ tações da humanidade ou da cidadania comuns a todos, na segunda é incontornável que se apresentem em suas individualidades concretas e particula­ res. Somam-se, a essa percepção, estereótipos de gênero desvantajosos para as mulheres. Características atribuídas a elas, como a dedicação prioritária à vida doméstica e aos fam iliares, colaboraram para que a domesticidade femi­ nina fosse vista como um traço natural e distintivo, mas também como um valor a partir do qual outros comportamentos seriam caracterizados como desvios. A natureza estaria na base das diferenças hierarquizadas entre os sexos. Nesse quadro, a preservação da esfera privada relativamente à inter­ venção do Estado e mesmo às normas e valores vigentes na esfera pública significou, em larga medida, a preservação de relações de autoridade que limitaram a autonomia das mulheres. Em muitos casos, sua integridade indi­ vidual esteve comprometida enquanto a entidade familiar era valorizada. Em nome da preservação da esfera privada, as garantias aos direitos dos indiví­ duos nafamília foram menores do que as garantias publicamente estabeleci­ das, ainda que estas fossem também diferenciadas e incompletas e variassem segundo a posição social dos indivíduos. A privacidade do domínio familiar e doméstico é vista, por isso, como uma das ferramentas para a manutenção da dominação masculina (Pateman, 1988; Okin, 1989a; Mackinnon, 1989). Mas, ao mesmo tempo, autoras feministas se preocupam com a garantia do direito à privacidade, necessário para o desenvolvimento de afetos e rela­ ções de intimidade, que estão na base de identidades autônomas e singulares (Cohen, 1997; Cornell, 1998). Os problemas para os quais a crítica feminista apontou no pensamento político permanecem presentes em abordagens influentes de autores con­ temporâneos. Para John Rawls (1971), a esfera doméstica e sobretudo as relações familiares são tomadas como dimensões das relações sociais às quais os princípios da justiça não se aplicariam, já que nelas predominaria o afeto (Okin, 1989a; Biroli, 2010). É, também, o que ocorre na abordagem de Jürgen Habermas (1984 [1962]), na qual a definição da esfera pública como espaço em que se dá a discussão entre iguais depende da suspensão dos problemas relativos à desigualdade na esfera privada —e a exclusão das 15

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mulheres, nos seus exemplos históricos, aparece como uma questão contin­ gente (Fraser, 1992). Nos dois casos, a divisão entre público e privado é presumida. O ideal burguês da universalidade se traduz, efetivamente, como participação de­ sigual e hierarquizada na esfera pública —no mundo do trabalho e no da política. A relação com esse ideal, no entanto, ganharia formas distintas no feminismo —e que nem sempre coincidem com o quanto as abordagens são críticas dá dualidade entre o público e o privado. As análises feitas por Susan Okin e por Jean Bethke Elshtain são exem­ plares nesse sentido. Okin (1979,1989a, 1989b) expõe a continuidade entre as posições que mulheres e homens ocupam nas duas esferas, sem romper com algumas das premissas centrais ao liberalismo, sobretudo nas concep­ ções de igualdade e universalidade, que são mantidas como horizontes nor­ mativos. A separação entre as esferas é vista como uma ficção, uma vez que a posição em uma delas, com as vantagens e desvantagens a ela associadas, tem impacto nas alternativas que se desenham, e nas relações que se esta­ belecem, na outra esfera. As barreiras para o exercício do trabalho remune­ rado fora da esfera doméstica, especialmente para o acesso às posições de maior autoridade, maior prestígio e maiores vencimentos, estão associadas ao tempo que a mulher despende no trabalho, não remunerado, na esfera doméstica. No entanto, é. esse trabalho feminino que permite que o homem seja liberado para atender a exigências profissionais que lhe permitem maior remuneração e a construção de uma carreira, assim como para usufruir do tempo livre —livre da rotina profissional, mas também das exigências da vida doméstica. A ficção de que o público e o privado existem como dimensões distin­ tas da vida oculta sua complementaridade na produção das oportunidades para os indivíduos. As expectativas sociais levam ao desenvolvimento de habilidades diferenciadas pelas mulheres e pelos homens. As atividades para as quais são orientados correspondem, por outro lado, a posições diversa­ mente valorizadas, levando não apenas a “diferenças”, mas à assimetria nos recursos. As mulheres são “expostas à vulnerabilidade durante o período de desenvolvimento por suas expectativas pessoais (e socialmente reforçadas) de que serão as principais responsáveis pelo cuidado com as crianças”, o que orienta seu comportamento para a conquista do casamento, já que atrair e manter o suporte econômico de um homem torna-se necessário para o cumprimento do papel que se espera que desempenhem (Okin, 1989a, p. 139). De modo correspondente, o mundo do trabalho se estruturou tendo 16

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como pressuposto que “os trabalhadores” têm esposas em casa. No casa­ mento convencional, o controle dos recursos materiais permanece nas mãos dos homens, mesmo que a dedicação e a rotina de que são fruto dependam do trabalho não remunerado doméstico da mulher. Por isso é necessário redefinir essas esferas e a relação entre elas, ga­ rantindo que exista justiça na esfera privada e que o acesso a posições, em qualquer uma delas, não seja hierarquizado segundo o sexo dos indivíduos. Não há sociedade justa na qual as relações na família sejam estruturalmente injustas; a democracia requer relações igualitárias em todas as esferas da vida, induída a familiar. Nesse caso, o compromisso com a universalidade como ideal normativo significa um compromisso com uma sociedade na qual o fato de se ser mulher ou homem não determine o grau de autonomia e as vantagens/desvantagens dos indivíduos ao longo da vida. O universal opõe-se, assim, ao arbitrário e uma sociedade que supere o gênero é consi­ derada um ideal adequado para o feminismo6. A posição de Elshtain (1993 [1981]) é outra. Nela, o contraponto à uni­ versalidade é a singularidade da experiência feminina. A crítica à dualidade público-privado desemboca, nesse caso, na compreensão de que as ativida­ des da mulher na esfera privada engèndram uma ética distinta, baseada na experiência do cuidado e na gestão dos afetos, que teria impacto positivo se levada para a esfera da política. Ainda que o modo atual de organização das esferas privada e pública seja arbitrário, a experiência que as mulheres desen­ volvem na esfera privada, doméstica e familiar produziria identidades social­ mente significativas e estaria na base de visões de mundo distintas das dos homens —engendrando uma ética fundada na preocupação com o outro, diferenciada da ética da justiça. O problema, portanto, estaria no isolamento da mulher na esfera privada —e não nas atividades que nela se desenvolvem (Elshtain, 1981, p. 333). A posição da mulher na esfera doméstica, nas re­ lações afetivas e de cuidado, é vista, em outras palavras, como a origem de uma linguagem moral distinta e mesmo superior à moral, masculina, vigente na esfera pública (Gilügan, 1982; Ruddick, 1989). Esse tipo de abordagem procurou resgatar não apenas o valor das rela­ ções interpessoais e do cuidado, mas também do trabalho doméstico cotidia­ no, associando a valorização do trabalho fora de casa ao viés de classe média assumido pelo feminismo. Esse viés seria responsável pela pouca atenção 6 É importante nessa posição de Okin (1989a, 1989b) sua adesão ao dispositivo do véu da ignorância (Rawls, 1971), em uma versão da teoria rawlsiana que incluiria as relações de poder na família e seria, as­ sim, adequada da perspectiva da igualdade de gênero.

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à realidade do acúmulo dò trabalho doméstico, desvalorizado, e do traba­ lho malremunerado fora de casa, vivenciada pelas mulheres pobres e pelas mulheres negras (Hooks, 1984). Na critica ao ideal de superação da família —presente nas households de Sulamitah Firestone (2003 [1970]) ou nas comu­ nidades de Nancy Chodorow (1978) —,Elshtain caminha para uma definição da família que se aproxima da visão idílica que o próprio feminismo colocou em questão para que as relações de poder na esfera privada pudessem ser politizadas. A visão de que os laços familiares são nossos “laços humanos mais fundamentais” (Elshtain, 1993 [1981], p. 326, 337), aliada à compre­ ensão de que a experiência das mulheres no cuidado com os outros produz uma sensibilidade moral singular, definiria o “pensamento maternal”7. Essa ambigüidade da esfera doméstica burguesa torna a crítica feminista mais complexa do que a denúncia, em alguns aspectos similar, que o mo­ vimento operário fez e faz à privatização do mundo do trabalho. A esfera privada colocada em xeque pelo feminismo é um espaço de assimetrias e agressões, mas também surge como local de afeto, de desprendimento e de relações desinteressadas (o que não é, evidentemente, o caso da fábrica). Nos dois casos, relações pactuadas entre indivíduos formalmente livres — como no contrato de casamento e no contrato de trabalho —podem resultar na submissão de uns a outros e na alienação da capacidade de autodetermi­ nação dos mais vulneráveis (Pateman, 1988). Mas enquanto a regulação pú­ blica das relações de trabalho corresponde a esforços para a manutenção de graus ampliados de autonomia e proteção para os trabalhadores, a regulação da esfera doméstica e familiar coloca questões distintas. Privacidade e intimidade são vistas, em algumas correntes do feminis­ mo, como valores fundamentais, enquanto em outras o problema enfrenta­ do é, diferentemente, a equivalência entre espaço privado e dominação. A visão de que a violência sexual é constitutiva das relações entre mulheres e homens, assim como a identificação do estupro como arma do patriarcado (Millett, 2000 [1970]) e como arma rotineira de intimidação das mulheres (Brownmiller, 1975, 1999), corrobora a definição de que a privacidade é parte de um ideário que serve à dominação masculina. Sobretudo no femi­ nismo dos anos 1960 e lr970, o afeiu, a sexualidade e o corpo foram politizados por meio de manifestações e de testemunhos que permitiriam levar 7 A posição das feministas negras é mais complexa. Sem negar as assimetrias presentes na esfera doméstica, observam que ela pode assumir a feição de um refugio para integrantes de grupos que sofrem discriminação e opressão sistemáticas na sociedade mais ampla; funcionaria também como um dos poucos mecanismos de suporte para pessoas em posição desprivilegiada. Assim, a “desvalorização da vida familiar na discussão feminista muitas vezes reflete a natureza de classe do movimento” (Hooks, 1984, p. 39).

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a público as perspectivas das mulheres, em um processo que objetivou, ao mesmo tempo, redefinir as regras do jogo e conscientizar as próprias mulhe­ res (Brownmiller, 1975, p. 396-7)8. Essa atuação política fortalece a compre­ ensão de que cabe às teóricas feministas construir categorias de análise que levem em consideração as experiências vividas pelas mulheres. Para Catherine Mackinnon (1989,1993,2005) e AndreaDworkin (1997), a proteção à privacidade na família e nas relações afetivas corresponde à proteção da violência contra as mulheres; não protege afetos, mas agresso­ res. Em vez de proteger a livre definição das identidades e relações afetivas e sexuais, preservaria condutas que são fundamentais para a reprodução da dominação masculina. Em outras palavras, e no tom que é característico de muitos dos textos das autoras, a liberdade para violentar, humilhar e. manter a mulher em posição de objeto é que estaria sendo mantida. As leis contra o assédio sexual e a pornografia, por elas defendidas (Mackinnon, 1987), são baseadas no entendimento de que é preciso romper com, situações que roubam às mulheres a sua voz, enquanto naturalizam a agressão masculina e erotizam a dominação. Para tanto, seria necessário, inclusive,, deslocar os limites da liberdade de expressão e da correlação entre liberdade, privaciclade è afetividade no liberalismo. Como sexo heterossexual eviolênda saò vistos como uma mesma coisa ou como práticas contínuas, a ideia de que as mulheres usufruem da intimidade nessas condições se toma paradoxal9. E nesse quadro, no entanto, segundo as críticas a essas abordagens, que a vitimização das mulheres, juntamente à condenação da “sexualidade masculina” e, segundo algumas leituras, da própria liberação sexual, leva­ ria o feminismo a aliar-se aos setores mais retrógrados da sociedade. Para fazer avançar as leis antipornografia, por exemplo, Mackinnon e Dworkin se aliaram à direita estadunidense, com sua agenda moral conservadora e fortemente ligada a grupos religiosos. O direito ao aborto foi visto como de interesse masculino porque permitiria o controle “das conseqüências re­ produtivas do intercurso, facilitando portanto o acesso sexual dos homens às mulheres”10 (Mackinnon, 1989, p. 168). Esse direito pode ser, no entanto, 8 Para um panorama das ações dos movimentos feministas nos Estados Unidos, em que a bandeira do direi­ to ao corpo codifica a luta contra a violência, pelo direito ao aborto e contra os padrões vigentes de beleza, cf. Dicker (2008). Para um balanço da relação entre os movimentos feministas no Brasil e as diferentes temáticas que se desdobram da politização das relações na esfera privada, como a luta contra a violência sexual e as posições relativas ao direito ao aborto, cf. Alvarez (1990) e Pinto (2003). 9 Essa é uma entre as posições, no feminismo, sobre temas espinhosos como pornografia e prostituição. Para um panorama dos argumentos nesse debate, cf. Coraeü (2000). 10 Ainda aqui, a relação entre a reivindicação feminista pelo “direito ao corpo” e a chamada “revolução sexual” é complexa e polêmica. Não são apenas Mackinnon e Dworkin que julgam que as transformações

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pensado como fundamental para a cidadania igual de mulheres e homens. Sua negação corresponderia a retirar às mulheres o domínio sobre seu corpo, retirando-lhes também o direito à privacidade para decidir sobre questões de forte relevância ética e moral —em outras palavras, a ausência desse tipo de direito à privacidade corresponderia à limitação da autonomia decisional das mulheres (Cohen, 2002). Ficam expostas as conexões entre agenda moral, agenda religiosa, controle do corpo e controle da.sexualidade. — A abordagem mackinnoniana da dominação masculina incluiria, tam­ bém, o risco potencial de retorno a um ideal do feminino que identifica a mulher com o amor e o afeto, em contraste com o estereótipo da agressi­ vidade masculina. Estaríamos, nesse caso, a um passo de um outro resgate, o da vida familiar e da moralidade sexual convencionais. Segundo uma das críticas mais contundentes a esse tipo de abordagem no feminismo norteamericano, “voltamos aos estereótipos de antigamente —à época do velho patriarcado —,quando as mulheres, eternas menores,-recorriam aos homens da família para protegê-las. Exceto que hoje em dia já não há homens para protegê-las (...). Todos os homens são suspeitos e sua violência é exercida em toda parte. A mulher-criança tem de recorrer à justiça, como a criança que pede proteção aos pais” (Badinter, 2005 [2003], p. 41). As palavras de Badinter revelam, porém, como a crítica ao extremismo das posições de Mackinnon com frequência se apoia em visões de senso comum, em que a noção liberal de sujeito autônomo —exatamente aquilo que está posto em xeque —é feintroduzida sem questionamento. Colocando a controvérsia em outros termos, o maior controle e regula­ ção do Estado sobre a esfera familiar foi e é necessário para a criminalização da violência doméstica e de diferentes formas de abuso e uso arbitrário da autoridade contra mulheres e crianças, preservados pela separação entre as esferas. Por outro lado, a separação (ou algum tipo de separação) entre as esferas é necessária para garantir a autonomia dos indivíduos - e considerar que a regulação legal das relações é necessária para proteger as mulheres, inclusive a despeito do que de fato desejem, pode ser uma forma de ferir, em vez de respeitar, sua capacidade de autodeterminação. A privacidade permite, ainda, que as relações afetivas sejam construídas segundo padrões que não estejam necessariamente de acordo com os valores socialmente dominantes. na moral sexual fazem as mulheres passar de uma posição de castidade paia outra de disponibilidade, mas também compulsória e também subordinada. É o que afirma Germaine Greer no prefácio à reedição, 21 anos depois, de seu Thefem ale eunuch (Greer, 1991 [1970]; cf. tb. Levy, 2005). O que está em questão é a impossibilidade da expressão de uma sexualidade “autêntica” e livre enquanto permanecerem as estruturas sociais de dominação.

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Um exemplo é a garantia do desenvolvimento das relações homoafetivas em sociedades fortemente orientadas pela norma heterossexual (Halvorsen e Prieur, 1996). Mas a questão, é claro, não se resolve apenas reservando o espaço privado para seu desenvolvimento, se essas relações continuarem a ser vistas como “alternativas” ou “desviantes”. O valor da privacidade care­ ceria, aqui, de um de seus aspectos mais relevantes, que é a autonomia dos indivíduos na definição do que deve ou não ser tornado púbEco sobre si e sobre suas relações; o controle público compulsório é problemático, mas o silêncio compulsório devido a estigmas e ameaças de violência também o é. Nesse argumento, a autonomia dos indivíduos na definição da sua iden­ tidade é destacada como requisito para a justiça e a democracia (Cohen, 2002). A preservação de um espaço “físico e moral” seria necessária justa­ mente para que os indivíduos “personalizem quem eles são sexualmente” e definam sua vida afetiva sem a imposição do Estado ou de padrões morais dominantes (Comell, 1998). A pluralidade democrática dependeria da ga­ rantia do espaço para o florescimento de identidades baseadas em crenças e práticas distintas, daí a necessidade de que a desconstrução crítica da pri­ vacidade seja acompanhada de uma nova formulação feminista do direito à privacidade. A “hermenêutica da suspeição”, relativamente à dualidade público-privado, teria sido um passo necessário, mas insuficiente para avançar simultaneamente nas garantias para a igualdade de gênero e para' a liberdade dos indivíduos (Cohen, 1997; capítulo 7 desta coletânea). As discordândas que foram expostas referem-se aos limites e sentidos da regulação da esfera privada e ao valor da privaddade. Mas apontam tam­ bém, diretamente, para o problema da construção das identidades de gêne­ ro. Estão em disputa os sentidos da igualdade e da diferença, como valores que orientam, distintamente, os feminismos. A igualdade e a diferença A igualdade é a bandeira “óbvia” levantada por qualquer movimento que queira falar em nome dos oprimidos. Desde as primeiras manifestações de inconformidade com a dominação masculina, as mulheres reivindicam acesso a liberdades iguais àquelas de que os homens desfrutam. Esta igual­ dade de direitos é fundamentada na afirmação da igualdade fundamental entre homens e mulheres —seres iguais necessariamente devem gozar de direitos iguais. Mulheres e homens são iguais em sua humanidade comum ou então (argumento freqüente até meados do século XDQ por terem sido 21

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criados à imagem e semelhança do mesmo deus. As autoras feministas ou pré-femimstas vão enfatizar sobretudo que as mulheres são iguais aos ho­ mens na capacidade intelectual, no potencial de contribuição para a socie­ dade e na virtude, contrapondo-se às visões que, de Aristóteles a Rousseau, legitimavam a inferioridade feminina11. No entanto, a igualdade reivindicada vai ser entendida como a busca pela inserção numa universalidade que não é neutra —já está preenchida com as características do “masculino”. A partir do final do século XX, correntes importantes do pensamento feminista vão recusar o universalismo em favor de algo que vai ser chamado de “política da diferença” (Yòung, 1990a). Há, na base dessa postura, uma crítica ao liberalismo, que sempre se afirmou como uma filosofia da universalidade, como foi mencionado na seção an­ terior. Ao mesmo tempo, porém, pensadores radicais consideram que abrir mão do universal implica a incapacidade de apresentar uma alternativa com­ preensiva à ordem liberal vigente (cf. Zizpk, 2009). Um exemplo particularmente importante da aceitação do masculino como espelho do universal está na própria Simone de Beauvoir. Muitas au­ toras indicaram como, em O segundo sexo, o horizonte apontado é a adoção de comportamentos idênticos aos dos homens na sociedade atual, na relação com a sexualidade, com a família ou com a atividade profissional. Autoras tão distantes entre si quanto Jean Elshtain e Catherine Mackinnon compar­ tilham dessa interpretação. Para a primeira, Beauvoir encarna um tipo de “feminismo repressivo”, para quem a emancipação das mulheres “requer que elas neguem dimensões inteiras de suas vidas e experiências” (Elshtain, 1997, p. 173; cf. tb. Elshtain, 1993 [1981], p. 309). Já Mackinnon questiona a maneira naturalizada pela qual Beauvoir aplica categorias de análise que foram construídas pelas relações de dominação masculina. O trecho de O segundo sexo em que a divisão sexual do trabalho é apresentada como uma das causas da dominação masculina leva ao seguinte comentário: Por que as tarefas a que a mulher dedicou suas forças não lhe deram supremacia sobre o homem ou igualdade com ele? Por que seu trabalho não foi visto como produtivo? [...] Por que a relação da mulher com os processos misteriosos da ________ vida é considerada escravidão, euquariio a do homem (a caça, por exemplo) ê interpretada como conquista da natureza? (Mackinnon, 1989, p. 55). 11 Quanto à diferença em força física, ou ela também é atribuída à educação, ou lembra-se que a marca do progresso da civilização é o declínio da importância da força, argumento presente em 'Wollstonecraft (2001 [1792], cap. 2 e 3).

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Ou seja, não basta exigir o acesso das mulheres às atividades próprias dos homens. É necessário também redefinir os critérios de valoração que fazem com que algumas atividades (as deles) sejam consideradas mais im­ portantes e mais dignas do que outras (as delas). O próprio corpo feminino e seus processos são valorados negativamen­ te por Beauvoir: ela passa a impressão de que são “a anatomia e a fisiologia da mulher, como tais, que determinam, ao menos em parte, sua condição de ausência de liberdade” (Young, 1990b [1980], p. 143). A gravidez e a ama­ mentação são encaradas como formas de alienação; os seios, que ela chama de “glândulas mamárias”, “não desempenham nenhum papel na economia individual da mulher e podem ser extirpados em qualquer momento de sua vida” (Beauvoir, 1949, v. I, p. 57). A ideia de uma opressão masculina funda­ da na biologia é radicalizada em algumas abordagens no feminismo, como na obra de Sulamith Firestone (2003 [1970]), que prega a reprodução artifi­ cial como caminho para a liberação das mulheres e que enuncia com clareza seu débito em relação ao pensamento de Beauvoir12. A maior parte do pen­ samento feminista rejeita a relação determinista entre biologia- e opressão, entendendo que os fatos biológicos, como gravidez, parto ou amamentação, não têm um significado fixo - são ressignificados de acordo com a ordem social (Mackinnon, 1989, p. 58). Da mesma maneira, a igualdade entre os sexos não exige que as mulhe­ res adotem o padrão de comportamento que é hoje visto como masculino — agressividade sexual, éthos competitivo, racionalidade fria, desprezo aos afe­ tos. A recusa deste caminho pode, porém, tanto levar à busca por padrões novos, não marcados pelas relações de dominação, ou mesmo à dissolução da ideia de padrão, numa aposta radical nas singularidades individuais, quan­ to à afirmação da positividade do “feminino”, visto como um conteúdo a ser resgatado de suas manifestações hoje maculadas pela desigualdade de gênero. A positividade da diferença feminina foi anunciada com força pela cor­ rente do chamado “pensamento maternal” ou “política do desvelo”, que eclodiu nos anos 1980 com as obras de jean Elshtain (1993 [1981]), Sara Ruddick (1989) e Nancy Hartsock (1998 [1983]), entre outras. Trata-se de uma corrente importante porque codifica teoricamente um elemento do senso comum que é, muitas vezes, apropriado pelas mulheres còm vistas a seu próprio benefício —por exemplo, na política, quando suas pretensas 12 Outras leituras de Beauvoir optam por ressaltar aspectos opostos de sua obra, em que é privilegiada uma análise crítica da relação entre fisiologia, identidades e dominação (Moi, 1999; Biroli, 2013).

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características de sensibilidade maternal e desinteresse são opostas às práti­ cas corruptas e violentas dos homens. De acordo com a corrente, as mulheres seriam caracterizadas por um senso de justiça diferenciado, que pode e deve ser valorizado socialmente — ponto que foi brevemente mencionado antes nesta introdução. A referência fundadora é o livro da psicóloga estadunidense Carol Gilligan, In a different voice, baseado, pot sua vez, na revisão que a antropóloga Nancy Chodorow fez dos escritos de Freud sobre o impacto psicológico das diferenças anatô­ micas entre os sexos. Para Chodorow, em vez da diferença anatômica, o que interessa é o fato de que as mulheres são as principais responsáveis pelo cui­ dado com os filhos. Assim, a menina possui um modelo (feminino) presen­ te, a mãe, enquanto o menino possui um modelo (masculino) ausente, o pai. Isso faz com que as características masculinas do menino sejam desenvolvi­ das na forma de regras abstratas; já a menina desenvolve suas características femininas a partir de relações concretas e emocionais (Chodorow, 1978). As mulheres possuiriam maior sensibilidade para as necessidades alheias, recu­ sando a abordagem fria que é própria da abordagem masculina da justiça. Este é o ponto que Gilligan desenvolve, através de entrevistas em pro­ fundidade com homens e mulheres. Ela vai recusar o essencialismo em sua abordagem, afirmando que o padrão moral alternativo, que descreve em seu livro, “é caracterizado não por gênero, mas por tema” e que “sua associação com as mulheres é [apenas] üma observação empírica” (Gilligan, 1982, p. 2). No entanto, a apropriação da obra de Gilligan e de Chodorow resvalou com frequência para uma postura essendalista. Como observou Antônio Flávio Pierucd, nos meios de esquerda “não se ousa dizer que elas [as diferenças] são naturais; diz-se que são diferenças culturais, só que irredutíveis. O que, se não dá no mesmo, dá quase” (Pierucci, 1999, p. 111). O “pensamento maternal” e a “política do desvelo” afirmam que as mulheres trazem um aporte diferenciado à esfera pública, por estarem acos­ tumadas a cuidar dos outros e a velar pelos mais indefesos, quando não pelo desejo de legar um mundo mais seguro para seus filhos. Com uma presença feminina mais expressiva nas esferas de poder, haveria o abrandamento do caráter agressivo da atividade política. As mulheres trariam para a política uma valorização da solidariedade e da compaixão, além da busca genuína pela paz; áreas hoje desprezadas nos embates políticos, como amparo social, saúde, educação ou meio ambiente, ganhariam atenção renovada. A presen­ ça feminina possibilitaria a superação da “política de interesses”, egoísta e masculina. 24

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Desde então, a corrente tem sido criticada como uma armadilha que segrega as mulheres em posições predeterminadas e subalternas do campo político (Dietz, 1985; Okin, 1989a; Delphy, 1994 [1992]; Miguel, 2001). E também por legitimar o insulamento tanto de mulheres quanto de homens em papéis e comportamentos estereotipados, que passam a ser vistos como complementares, abdicando, assim, do enfrentaraento com os mecanismos centrais de reprodução das hierarquias de gênero. O debate entre as aborda­ gens maternalistas e suas críticas expõe as dificuldades para a incorporação de atores que foram mantidos fora ou na periferia dos espaços decisórios, muitas vezes colocados entre a alternativa de aderir às práticas e à agenda dominante ou caricaturar a si próprios para preservar o que lhes seria sin­ gular. Por isso, da perspectiva de autoras identificadas com as abordagens maternalistas, o que está em questão é o preço pago pela inclusão políti­ ca das mulheres: para que se tornassem cidadãs, foi demandado “que sua voz específica desse lugar ao discurso simbólico dominante” (Finzi, 1992, p. 139). Mas essa especificidade, por outro lado, é justamente o problema quando corresponde à reposição de identidades que decorrem de processos históricos de oposição entre a esfera pública e a privada, em que a domes­ ticidade feminina correspondeu a restrições a sua autonomia e participação na esfera pública. A tensão entre valorização da diferença e afirmação da igualdade de gênero permeia também a relação do feminismo com o multiculturalismo, corrente que questiona a imposição dos valores ocidentais como se tivessem curso universal e-afirma a necessidade de garantir a vigência de modos de vida minoritários. É evidente a relação com a crítica à universalização do comportamento “masculino”; assim, pode-se dizer que feminismo e mul­ ticulturalismo guardam afinidades eletivas. No entanto, as culturas minori­ tárias são frequentemente aquelas marcadas de maneira mais ostensiva pela dominação masculina. Num texto provocativo, mas lúcido, apresentado aqui como capítulo 12 desta coletânea, Susan Okin indicou que o multicultura­ lismo era “ruim para as mulheres”, defendendo uma primazia absoluta do avanço da igualdade de gênero sobre a preservação de tradições culturais, o que suscitou uma controvérsia que ainda não se esgotou (Okin et ai., 1999). Para complicar ainda mais o quadro, a pretensa proteção aos direitos das mulheres tornou-se uma justificativa comum para intervenções imperialis­ tas, sobretudo no Oriente Médio, como se, mais do que com o petróleo ou outros objetivos geopolíticos, as potências ocidentais estivem preocupadas

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em livrar afegãs ou iraquianas do uso da burca, do casamento forçado ou do apedrejamento por adultério ou pretenso adultério. A discussão com o multiculturalismo envolve também questões relativas à identidade das mulheres, bem como à sua capacidade de agência autônoma em situação de subalternidade. Uma reflexão sobre as demandas cruzadas do feminismo e do multiculturalismo, que considera argumentos como os de Okin, mas também busca tomar mais complexo o entendimento sobre as culturas minoritárias, tem sido levada a cabo por autoras como Anne Phillips (2007, 2011) e Martha Nussbaum (1999). Se a aceitação acrítica da defesa da legitimidade dos grupos de cultura pode impedir a reflexão sobre as desigualdades internas a esses grupos e promover uma visão cristalizada da cultura, reificada em práticas que expressam sobretudo os interesses de alguns dos integrantes do grupo - com frequência e prevalentemente, os homens —, a recusa a considerar as diferenças entre os grupos como uma questão para a democracia pode colaborar para reproduzir as hierarquias en­ tre eles. Os indivíduos podem não ser determinados pelo seu pertencimento a grupos ou definir-se relativamente a ele, “mas eles não têm como escapar das formas de discriminação e das desvantagens infligidas a ‘seus’ grupos” (Phillip, 2007, p. 15). A recusa à universalização do masculino (ou do ocidental), com a valo­ rização da diferença, é importante para evitar a aceitação acrítica de um uni­ verso de valores que está, ele próprio, vinculado às relações de dominação. Ela contribuiu, também, para o aprofundamento da discussão sobre justiça. Autoras feministas foram essenciais para a crítica do “paradigma distributivo” da justiça, segundo o qual a justiça se resolve por meio da distribuição equitativa de recursos ou de direitos (Young, 1990a). Ao lado da redistribuição, impõe-se a necessidade de reconhecimento do valor de modos de vida diversos. A fórmula bidimensional “redistribuição mais reconhecimento” foi apresentada por Nancy Fraser (1997a)13 e gerou uma importante polêmi­ ca, sendo acusada de operar com uma dicotomia simplista entre economia e cultura (cf. Young, 1997; Phillips, 1997; Buder, 1997; Fraser, 1997b, 1997c). Apesar das críticas, ela é útil por indicar, de forma gráfica, as exigências pa_rajelas da igualdade e da difeiença e Lambem a necessidade de superar tanto a vulgata marxista, que julga que todos os problemas podem ser reduzidos a problemas de distribuição da riqueza, quanto o idealismo das “teorias do reconhecimento”, que transformam as disputas materiais em embates por reconhecimento intersubjetivo (Honneth, 2009 [1992],.2003). 13 O artigo original de Fraser foi publicado em 1995.

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Ao mesmo tempo, a incorporação do valor da diferença introduz um novo conjunto de problemas, com os quais o discurso da igualdade “sim­ ples” não precisava lidar14. São as “ciladas da diferença”: na história das ideias políticas, a diferença sempre foi empunhada pelas correntes conser­ vadoras e elitistas, como a manifestação de desigualdades naturais que legi­ timavam as hierarquias sociais. E o novo discurso da compatibilização da igualdade com a diferença é uma “teorização toda feita em filigrana”, que impede qualquer simplificação e, portanto, não nutre o ativismo político (Pierucci, 1999, p. 37). A afirmação de uma diferença estruturante do comportamento das mu­ lheres é apropriada, muitas vezes, pelo discurso antifeminista, que apresenta a posição subalterna delas na sociedade como um efeito de suas escolhas au­ tônomas. Uma demonstração precoce deste risco, muito citada na literatura, é o chamado "caso Sears”, de 1978. Levada aos tribunais estadunidenses por práticas discriminatórias, que impediam que suas funcionárias obtivessem promoções, a empresa apoiou-se numa especialista “feminista” para afir­ mar que eram as mulheres, menos competitivas e menos focadas no mundo do trabalho, que não tinham interesse em ser promovidas (Milkman, 1986; Scott, 1999 [1989], cap. 3; Pierucci, 1599, p. 35-49). É Nancy Fraser quem alerta para o risco de ver a diferença como sem­ pre positiva e como necessariamente vinculada à variação cultural, ignoran­ do como ela reflete também a desigualdade econômica e política (Fraser, 1997a, p. 184-5). Assim como a igualdade não pode ser transformada na “mesmice” ('sameness), como argumentam as teóricas da diferença, cabe lem­ brar que as diferenças são diferentes entre sr. algumas precisam ser valorizadas, outras mereceriam ser abolidas (Fraser, 1997a, p. 204). Essa complexidade é abraçada pela teoria política feminista, servindo de combustível para seu debate interno.

A identidade e a diferença A d ism ssão soh re a diferença ressurge, d e o u tra form a, n o Hphatp snhrp

a identidade feminina. A mulher é o sujeito do feminismo, mas a categoria 14 Mas é importante anotar que o próprio conceito de igualdade também se tomou mais complexo do que era até o começo do século XX. Por um lado, os indivíduos são reconhecidos como diferentes entre si, por seus talentos, deficiências e preferências, o que complica a relação entre distribuição de recursos, igualdade de capacidades e bem-estar subjetivo (cf. Dworkin, 2000; Sen, 2009). Por outro, injunções de eficiência podem justificar desigualdades que ampliem a satisfação geral, como no “princípio da diferença” de Rawls (1971). Para resenhas da discussão, cf. Phillips (1999) e Calíinicos (2000).

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“mulher” foi construída em meio a relações marcadas pelo patriarcado e pela dominação masculina15. Muito do pensamento feminista inicial ainda adere, de forma pouco crítica, às noções de maior sensibilidade das mulhe­ res, como fazem John Stuart Mill ou Harriet Taylor Mill; ou, pelo menos, à ideia de que as mães possuem uma ligação especial e uma responsabilidade especial para com os filhos, diferente dos pais, o que está presente mesmo nos escritos de MaryWoUstoriecraft. A solução encontrada para o problema passou pela distinção entre sexo e gênero, que se tornou central para o feminismo, com o primeiro termo se referindo ao fenômeno biológico e o segundo, à construção social. O par sexo/gênero codifica o “não se nasce mulher, torna-se mulher” de Simone de Beauvoir: o que aceitamos como a feminilidade não é a expressão de uma natureza, mas o resultado do trabalho de pressões, constrangimentos e expectativas sociais. Para citar uma formulação que se tornou canônica, o gênero “é a organização social da diferença sexual”, o que não significa que reflita algo fixo; ao contrário, “gênero é o conhecimento que estabelece sentidos para as diferenças físicas” (Scott, 1999 [1989], p. 2). Embora algumas autoras tenham chamado a atenção pata os casos de hermafroditismo, por vezes apresentando estimativas infladas de sua inci­ dência na população (Fausto-Sterling, 1993), em geral “sexo” é considerado uma variável dicotômica simples e perene. O sexo biológico é responsável pelo dimorfismo sexual da espécie humana e pela possibilidade da gravidez e da amamentação, exclusiva das mulheres. Já as características de tempera­ mento e de comportamento que são associadas à feminilidade pertencem ao universo do gênero. De fato, o feminismo tem enfrentado historicamente todas as correntes que buscam estabelecer um embasamento pretensamente científico para a ideia de que o comportamento de homens e mulheres é determinado pela natureza, da psicanálise à sodobiologia. Até o “instinto maternal”, que para o discurso convencional é a quintessência da natureza da mulher, foi revelado como produto histórico (Badinter, 1980). O deslocamento do sexo para o gênero acrescenta ambigüidade ao su­ jeito do feminismo —a mulher em nome de quem se fala é, ela mesma, produto das relações de dominação que se deseja abolir. Daí a polêmica vinculada ao pensamento maternal, discutida acima. E, na direção oposta, a posição de feministas pós-estruturalistas, que repelem qualquer tentativa de

15 Duas úteis revisões desta discussão, por caminhos diferentes do que seguimos aqui, são encontradas em Costa (2002) e Mariano (2005).

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fixação de uma identidade feminina como redutora e repressiva, como Julia Kristeva (1981 [1979]) ou Judith Butler (2003 [1990]). O alerta de que a categoria “mulheres” é “produzida e reprimida pelas mesmas estrutruras de poder por intermédio das quais busca-se a emancipa­ ção” (Butler, 2003 [1990], p. 19) indica o problema de trabalhar nos termos de uma dicotomia que é fundante do próprio sexismo. Mas é menos razoá­ vel a derivação principal que Buder extrai daí, de que a um sistema binário de sexos não precisa corresponder um sistema binário de gêneros, uma vez que a relação sexo/gênero não é necessária, nem automática. “A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimérica entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito” (Buder, 2003 [1990], p. 24). Essa afirmação desloca a discussão para um campo irrelevante, pois o que está em jogo não é uma hipótese. Nós vivemos um sistema binário dos gêneros, historicamente construído, no qual cada gênero está intimamente associado a um sexo biológico. O feminismo, assim, não se estabelece contra uma “hipótese”, mas contra o modelo dado de relação sexo/gênero. Por outro lado, o gênero refletir “o sexo ou ser por ele restrito” é próprio do sentido de gênero. Sem essa vinculação, podemos ter algum tipo de “perfor­ mance”, mas não há porque considerá-la “gênero”. Mesmo as performances trangressoras que tanto fascinam Buder —drag queens, jemmelhutch —só ga­ nham esse estatuto na medida em que parodiam o sistema binário, isto é, a relação mimética estabelecida entre sexo e gênero16. Por fim, a recusa a conceder qualquer validade à categoria coletiva “mu­ lheres” pode ter interesse acadêmico, mas inviabiliza por completo a atuação do feminismo como movimento político —já que ele deixaria de se referir a qualquer grupo social concreto. Assim, independentemente do impacto das provocações das autoras pós-estruturalistas, o feminismo permanece às voltas com a identificação do seu sujeito, a mulher. Uma contribuição importante à discussão, no âmbito do próprio pósestruturalismo, foi dada por Gayatri Spivak (1985), que cunhou a expressão “essendalismo estratégico”. Os grupos em posição subalterna, como é o caso das mulheres, tendem a ser reduzidos a uma “essência” simplificadora 16 Sem querer estender a discussão, cabe observar que a opção de Butler por discutir os papéis de gênero por meio da categoria da “performance” é, em si mesmo, problemática. O termo “performance” remete a ama descontinuidade entre o sujeito e seu comportamento. Antes de falar em performance, ela fala em “mascarada”, o que reforça este entendimento. O que significa que há de existir um sujeito anterior ao comportamento, à performance. Assim, curiosamente, Butler recai de forma implícita na noção de uma identidade sexual original, autêntica, que é descolada dos papéis perfonnáticos de gênero.

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e estereotipada, que tanto nega a multiplicidade de suas experiências quanto naturaliza os efeitos da dominação. Como vimos, é contra essa simplifica­ ção que o feminismo enfatiza os problemas da utilização da categoria “mu­ lheres”. Spivak propõe um uso estratégico de categorias essendalizadoras, entendendo que elas são necessárias para a produção da identificação, sem a qual a mobilização política não se realiza. Ela mesma reconhece os pro­ blemas desta posição, uma vez que é fácil desconsiderar as recomendações de “vigilância” e passar do essencialismo estratégico para o essencialismo actítico. Mas a noção de essencialismo estratégico tem o mérito de vincular a reflexão feminista pós-estruturalista com o imperativo, próprio da ação política, da construção da unidade na diferença. Outro deslocamento importante foi a substituição da noção de identi­ dade, muito mais abrangente, pela de perspectiva sociaL A demanda por pre­ sença política das mulheres deixou paulatinamente de ser enunciada como a busca pela representação de uma identidade comum e unificada ou mesmo de interesses unívocos, sendo apresentada como a necessidade de dar voz a determinadas perspectivas sociais. De acordo com a definição mais in­ fluente, a perspectiva social é “o ponto de vista que membros de um grupo têrn sobre processos sociais por causa de sua5posição neles” (Young, 2000, p. 137). É um ponto de partida, não de chegada; e captura o fato de que os integrantes de grupos em posição subalterna têm vivências comuns entre si, indisponíveis a quem não os integra. Assim, a avaliação prioritária pela apa­ rência física, a responsabilização automática pela gestão da vida doméstica e pelo cuidado com os mais vulneráveis, a expectativa de que sejam menos racionais e mais emotivas, a menor atenção concedida a seus interesses e desejos ou o temor difuso da violência sexual são elementos da experiência de “ser mulher” numa sociedade marcada pela dominação masculina, que os homens - por mais solidários ou feministas que sejam - tipicamente não vivendam. Estes elementos não geram uma “identidade”, nem levam ne­ cessariamente a um entendimento similar dos próprios interesses. Mas são parte da perspectiva das mulheres e de um conhecimento sobre o mundo social que só elas têm condição de expressar. Na própria formutacão-de Younp;. a icfaçarr entre a experiência vivida e a produção de uma visão sobre o mundo é problemática (Miguel, 2010). Para ela, o feminino é “um conjunto de expectativas normativamente dis­ ciplinadas impostas aos corpos das mulheres por uma sociedade dominada pelos homens” (Young, 2005, p. 5) —e a perspectiva das mulheres é o subs­ trato comum da experiência feminina nessa sociedade. É esta experiência, 30

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produzida pela dominação, que precisa ser valorizada e integrada nos espa­ ços de tomada de decisão, como forma de avançar na superação da própria dominação. O recurso às ideias de essencialismo estratégico e de perspectiva so­ cial pode indicar caminhos, mas não resolve outra tensão crucial, entre o recurso a uma identidade feminina (ou a traços mitigados do que seria essa identidade) e a admissão da multiplicidade de vivências das mulheres numa sociedade que é marcada por diversas outras clivagens, além do gênero. A experiência das mulheres em posição de eEte - brancas, educadas, burguesas ou pequeno-burguesas, heterossexuais —tende a ser apresentada como a experiência de todas as mulheres. Essa crítica, que era feita, como já visto, a John Stuart Mill ou Betty Friedan, foi estendida ao pensamento feminista em geral por Elizabeth Spelman, numa obra de tom polêmico. O ponto central do argumento é que a noção genérica de “mulher” fun­ ciona, no pensamento feminista, da mesma forma que a noção genérica de “homem” na filosofia ocidental, obsurecendo a heterogeneidade (Spelman, 1988, p. ix). Mas não é qualquer grupo de mulheres que aparece-como igual a essa mulher abstrata; os problemas das hispanas e das negras, por exemplo, não são estendidos para as mulheres em geral (Spelman, 1988, p. 3-4). Autoras citadas e criticadas por Spelman argumentam que a forma mais paradigmática de sexismo é verificada tendo por objeto as mulheres que não sofrem outras formas de opressão —tomá-las como modelo permite identificar um sexismo puro, não contaminado por outros tipos de precon­ ceito. Esse raciocínio será depois assumido por Catharine Mackinnon, que observa, em polêmica com Spelman, que “a mulher branca que não é pobre ou operária ou lésbica ou judia ou deficiente ou velha ou jovem não divide sua Opressão com nenhum homem” (Mackinnon, 2005, p. 30; ênfase supri­ mida). Ou, mais importante, que a categoria “mulher” não é uma essência abstrata, e sim a resultante das particularidades concretas das diferentes mu­ lheres (Mackinnon, 2005, p. 87). Mas o que está na base desta opção, diz Spelman, é a crença de que as diversas relações de dominação são simplesmente somadas; uma trabalhadora, uma negra ou uma lésbica sofreriam do mesmo sexismo que qualquer outra mulher, apenas adicionado, conforme o caso, à dominação de classe, ao racismo ou à homofobia. O mais significativo efeito prático desta crença é que o monopólio da expressão política das mulheres por porta-vozes burguesas brancas (assim como da expressão dos trabalhadores ou dos negros por porta-vozes ho­ mens) deixa de aparecer como um problema (Spelman, 1988, p. 177). Do 31

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ponto de vista da teoria, ela nega o sentido de interseccionalidade das diversas formas de opressão: o fato de que elas não se adicionam simplesmente, mas geram padrões de subordinação e de violência física e simbólica que preci­ sam ser entendidos em sua singularidade. Uma importante e plural corrente de feministas negras tem avançado nesta discussão, destacando-se trabalhos como ps de Bell Hooks (1981, 1984), Audre Lorde (1984) e Patricia Hill Collins {1990, 2004), entre outras. A crítica de muitas feministas a Spelman foi feita, muitas vezes, com base em injunções pragmáticas: ela estaria comprometendo a unidade na ação contra o sexismo. Uma tentativa de resposta ao cerne do seu argumen­ to foi apresentada por Catharine Mackinnon, cuja teoria repousa exatamen­ te na percepção de uma unidade fundamental da experiência feminina sob a dominação masculina. A despeito das diferenças de classe, raça, orientação sexual ou outras, as mulheres seriam uma categoria unificada como con­ seqüência da violência de um sexismo que se dirige a todas, sem distinção. “Constituída por todas as suas variações, o grupo ‘mulheres’ pode ser visto como tendo uma história social coletiva de desempoderamento, exploração e subordinação, que se estende até o presente” (Mackinnon, 2005, p. 25). A experiência das mulheres não é uniforme, mas é possível e necessário buscar os elementos comuns17. Entre o reconhecirnentò das diferenças (e das hierarquias internas ao grupo das mulheres) e a identificação de um núcleo de vivências comuns, a partir do qual se definiria uma voz unificada, o feminismo mantém uma rica discussão intema. Ela atravessa a polêmica sobre o multiculturalismo, refe­ rida antes, e desemboca nos debates sobre a “política de presença” (Phillips, 1995), a representação política feminina e o acesso à voz. Uma vez mais, a teoria feminista tem levantado perguntas difíceis de responder e contribuído para que lancemos um olhar mais apurado sobre a realidade social.

Autonomia, dominação e opressão O indivíduo abstrato do liberalismo tem sido, como se viu nas seções anteriores, alvo de críticas e redefinições no debate feminista. Ele se define em relação a uma esfera pública burguesa e a um conjunto de valores que o feminismo critica, expondo sua relação com a dominação de classe e de 17 Até porque, entre os grupos oprimidos, as mulheres seriam aquele com a identidade coletiva mais fraca: “Quando mulheres negras se referem a ‘pessoas que se parecem comigo’, é entendido que estão falando de pessoas negras, não de mulheres” (Mackümon, 2005, p. 27).

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gênero. Valores caros ao feminismo, ainda que controversos, como auto­ nomia e liberdade individual, são marcados por essa herança. A defesa da autonomia das mulheres nas abordagens feministas é, assim, acompanhada de redefinições que ora destacam a pouca efetividade desse ideal nas socie­ dades liberais —reconhecendo, no entanto, seu valor como orientação nor­ mativa —, ora defendem que ele expressa um ideal masculino de afirmação da individualidade. As garantias iguais para a autonomia dos indivíduos nas sociedades li­ berais esbarram no fato de que a posição concreta dos indivíduos, e não sua caracterização abstrata, define possibilidades e organiza distintamente o acesso a recursos. Por isso, boa parte do debate sobre autonomia no fe­ minismo converge, se não em outros aspectos, no entendimento de que é preciso, a partir da posição das mulheres e de outros grupos em condição de subaltemidade nas democracias contemporâneas, analisar criticamente os limites de ideais e normas que colaboram para suspender as desigualdades sociais concretas como questões políticas de relevância primordial - colo­ cando, portanto, obstáculos a seu enfrentamento. A ênfase do pensamento liberal no caráter voluntário das escolhas in­ dividuais é um exemplo do que vem sendo criticado (Pateman, 1985 [1979], 1988). Nesse caso, a ausência de coerção implica a possibilidade do exercício da liberdade, ainda que as escolhas voluntárias - no sentido de não coagi­ das - dos indivíduos os conduzam a relações de subordinação. Restrições à autonomia de alguns são constitutivas das sociedades liberais nas quais for­ malmente a autonomia estaria garantida a todos os indivíduos. Estão na sua base - na medida em que essas sociedades se organizaram da oposição entre esfera pública, domínio da autonomia e da liberdade civil, e esfera privada, domínio da sujeição e das hierarquias “naturais”. Os contratos de casamento e de trabalho são exemplos do trânsito, e das acomodações, entre as duas esferas. Neles, indivíduos livres, mas socialmente vulneráveis relativamente a outros, decidem livremente firmar contratos nos quais abrem mão de parte de sua possibilidade de autodeterminação, incluído em muitos casos o con­ trole sobre o próprio corpo (Pateman, 1988). As muitas mudanças ocorridas nas últimas décadas não podem, evi­ dentemente, ser ignoradas. Em muitos sentidos, tiveram impacto para as oportunidades das mulheres e sua possibilidade de maior autonomia —com o acesso ampliado à educação formal e ao mercado de trabalho, com a cres­ cente criminalização da violência doméstica e sexual, com os deslocamentos, ainda que não sejam rupturas, na divisão sexual convencional do trabalho, 33

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nos sentidos atribuídos à femininidade e à masculinidade, na moral sexual convencional. Ainda assim, permanece a tolerância social a muitas das for­ mas de subordinação diretamente conectadas a relações de poder nas quais as diferenças de gênero são fundamentais. A subordinação das mulheres aos homens na esfera doméstica está longe de ser uma realidade superada, mas se redefine em relações nas quais a objetificação e mesmo a exaltação da be­ leza feminina são formas de controle, ainda que não determinem a sujeição das mulheres a um homem em especial (Wolf, 2002 [1991]). A divisão sexual do trabalho doméstico continua a ter peso determinante nas oportunida­ des das mulheres em muitos países nos quais formalmente a igualdade de gênero avançou bastante na segunda metade do século XX e o casamento, assim como o divórcio, incidem distintamente sobre as expectativas e opor­ tunidades de mulheres e homens. E possível considerar que os mecanismos da dominação masculina são hoje mais impessoais, isto é, não coincidem necessariamente com as restrições impostas por homens determinados a mulheres determinadas, e ao mesmo tempo mais fluidos, isto é, não corres­ pondem necessariamente a restrições legais e a impedimentos institucionali­ zados. Mas isso não significa que a subordinação das mulheres não continue a ser reproduzida nas sociedades. O valor da autonomia, que aqui podemos provisoriamente considerar, com Pateman (2009 [2002]), como a realização da igualdade pela garantia aos indivíduos de autodeterminação e participação nas decisões coletivas, está em muitos sentidos apartado dos ideais liberais e das formas históricas de sua realização. E os mecanismos que restringem a autonomia dos indiví­ duos não são tratados, ou não são adequadamente tratados, na maior parte das abordagens liberais da democracia e da justiça. Por avançar na análise crítica de formas de subjugação e das restrições à autonomia que existem mesmo sem a presença de coerção física aberta, o feminismo define proble­ mas e fornece ferramentas para a análise das relações cotidianas de poder —e de como elas impactam a participação dos indivíduos em diferentes esferas da vida social (Biroli, 2012). A divisão sexual do trabalho é um dos motores, como foi dito, da definição de posições distintas para mulheres e homens. Ela está na base do acesso diferenciado a recursos, a tempo —para dedica­ ção ao trabalho, mas também ao tempo livre —, a experiências distintas e ao desenvolvimento de aptidões que se convertem em alternativas. Tem relação direta, também, com a socialização diferenciada de meninas e meninos, com a construção diferenciada de horizontes de possibilidade para mulheres e homens, desde a infância. Esse é um dos sentidos em que nascer homem 34

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ou mulher tem impacto sobre as possibilidades de exercício da autonomia. As “preferências adaptativas” ou “aprendidas” são, por isso, um problema central para a análise crítica da reprodução das desigualdades de gênero, le­ vando a discussões que superam a oposição entre autonomia e coerção em direção a compreensões mais complexas e matizadas dos processos sociais que levam a restrições diferenciadas da autonomia das mulheres e dos ho­ mens (Nussbaum, 2008 [2000]; Phillips, 2010). A importância distinta do casamento para mulheres e homens, em mui­ tas sociedades, assinala uma parte dos problemas que esse debate expõe. A “opção” por ocupar as posições convencionalmente definidas no casamen­ to, por outro lado, incide de maneira distinta sobre as suas vidas. Um exem­ plo, bastante fincado ná experiência das mulheres de classe média, mas ainda assim útil para a exposição desse problema, é o da mulher que, ao casar-se ou ter filhos, opta por não mais exercer trabalho remunerado, ativando a divisão sexual convencional do trabalho. Assim fazendo, torna-se depen­ dente financeiramente do cônjuge ou de outros familiares, tem suas redes e aptidões não domésticas e/ou profissionais diminuídas, torna-se vulnerável no caso de uma separação ou sente-se vulnerável demais para escapar a uma relação violenta ou que simplesmente não deseja mais manter. Sua decisão, ainda que “autônoma” e não coagida quando vista de forma isolada, termina por inseri-la em “ciclos de vulnerabilidade socialmente causada e distinta­ mente assimétrica” (Okin, 1989a, p. 138). O fato de que decisões não coagidas colaborem, correntemente, para reproduzir as condições de maior vulnerabilidade das mulheres conduz à problematização do efeito de condicionantes estruturais, econômicas e insti­ tucionais sobre as alternativas disponíveis para os indivíduos (Young, 2011). Nesse caso, as análises mantêm o valor da autonomia, mas procuram des­ vinculá-lo de noções correntes da responsabilidade individual. O indivíduo autônomo não é aquele que determina inteiramente a sua vida; esta é uma abstração que colabora para valorizar quem está em posição vantajosa em determinados contextos e arranjos institucionais, ao mesmo tempo em que caracteriza como desviantes aqueles que não “dão conta” de si. Em outras palavras, as formas sociais de produção da vulnerabilidade são enfocadas, em vez de presumir que as ações individuais poderiam ser explicadas como desdobramentos de ações responsáveis ou falhas que levariam à autonomia e independência (no primeiro caso) e à dependência e inaptidão para cuidar de si e dos seus (no segundo caso).

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A análise das formas correntes, mas diferenciadas, de restrição à au­ tonomia dos indivíduos se definiria no feminismo também como crítica à compreensão da autonomia como descolamento ou distanciamento do in­ divíduo em relação a outras pessoas. As relações de dependência são, nesse caso, elevadas a questões sociais e políticas relevantes, afastando-nas do es­ tigma do desvio que as define em análises que enfatizam a responsabilidade individual. A valorização da intersubjetividade, das interações e do cuidado com os mais vulneráveis aproxima algumas dessas análises às correntes mater­ nalistas. A própria Elshtain (1997) discute o fato de que as representações correntes do indivíduo silenciam sobre as formas de dependência e os afetos - e avança para a definição desses como a base para valores que se afastam, justamente, do valor da autonomia. O contraponto entre ética do cuidado ou relacionai e ética da justiça seria, nesse caso, organizado pela valorização alternativa da empatia e da autonomia. Essa oposição foi criticada porque desconsideraria a complementaridade possível entre os princípios da em­ pada e da universalidade, em noções de justiça redefinidas a partir da pro­ blemática de gênero (Okin, 1989b), mas também porque não expressaria suficientemente o fato de que a valorização das relações de cuidado não prescinde de garantias para a autonomia individual (Ruddick, 1995). Em algumas dessas abordagens, a autonomia foi definida como um mito - o mito do indivíduo que determina a si mesmo e independe das relações de sociabilidade nas quais se situa, assim como dos contextos institucionais em que sua vida toma forma (Fineman, 2004). Mas essa é uma estratégia das correntes que trabalham para colocar as relações de dependência como questões políticas de primeira ordem. A objeção, nesse caso, é ao fato de que a privatização das relações de cuidado e de dependência oculta seu impacto diferenciado na vida de mulheres e homens —as primeiras são tipicamente prejudicadas por estarem na posição de cuidar dos mais vulneráveis, em atividades não remuneradas ou malremuneradas. Essa forma de privatiza­ ção impede, ainda, a tematização adequada das conexões entre dependência e desigualdades. Um dos caminhos propostos para redefini-las, no debate teórico e na prática política, é a distinção entre relações de dependência indesejáveis —aquelas que restringem a autonomia dos indivíduos porque estão em posições de vulnerabilidade socialmente causada —e formas incontomáveis de dependência, que são parte da vida em qualquer sociedade e precisariam ser adequadamente tratadas. Sem um tratamento adequado, as últimas são fatores importantes na reprodução das primeiras, isto é, de 36

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formas indesejáveis de dependência e das desigualdades de gênero e de clas­ se (essa é, em linhas gerais, a orientação de Fineman, 2004; cf. também McLain, 2006; Macedo e Young, 2003). A privatização do cuidado com os mais vulneráveis, associada à visão convencional sobre as responsabilidades de cada um dos sexos, resultaria na redução sistemática da capacidade de . . _____________ agência autônom a pelas mulheres. ___ Os debates sobre autonomia no feminismo colaboram, assim, para tra­ zer novos ângulos às análises sobre a acomodação entre direitos formais e desigualdades. A noção liberal de autonomia como independência absoluta em relação ao mundo social é descartada como enganosa. Ela falha tanto em reconhecer que somos todos seres sociais quanto - o que é mais importante - que a organização da vida em comum é crucial para reduzir o espaço de autonomia de alguns (ou algumas). O foco deixa de estar exclusivamente na coerção física ou nas restrições legais, incorporando os padrões de sociali­ zação que estruturam expectativas e comportamentos, bem como o acesso aos recursos materiais. Em sentidos distintos, e mesmo conflitivos, estes debates redefinem a noção de autonomia e produzem deslocamentos nos entendimentos correntes. Este tem sido um dos prindpais efeitos das críti­ cas elaboradas a partir da posição das mulheres nas relações de poder e de sua espedfiddade, relativamente aos homens, no usufruto dos dirdtos nas democracias contemporâneas.

Impactos na teoria e na política Em todos os eixos aqui discutidos, fica claro que o feminismo não agrega, simplesmente, problemas e abordagens ao campo da teoria política. Os problemas definidos a partir da análise da posição da mulher nas sodedades oddentais impõem novas perspectivas para as teorias preocupadas com a democracia e uma nova agenda para os movimentos interessados em aprofundá-la. São deslocamentos que exigem a revisão dos tópicos conside­ rados rdevantes nas abordagens hegemônicas e dos pressupostos teóricoconceituais que as organizam. Novos temas e âmbitos das relações de poder passam, também, a ser considerados objetos legítimos da teoria política. Quando a dicotomia entre a esfera pública e a esferâ privada é questio­ nada, a própria noção de política é redefinida. Junto à ressignificação das fronteiras entre o público e o privado, a crítica à noção abstrata de indivíduo e a crítica à universalidade e à imparcialidade inddem diretamente sobre as premissas do liberalismo. Mesmo nas abordagens que tiveram e têm como 37

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objetivo a realização das promessas do liberalismo, essas críticas tensionam seus limites (Pateman, 1989). Pode-se dizer que o feminismo expõe as contradições na associação de liberalismo e democracia. Isso se dá porque as análises motivadas pelas hierarquias de gênero nas sociedades contemporâneas demonstram, perma­ nentemente, o insulamento da política em relação às desigualdades sociais. A democratização das relações de poder é o tópico por excelência da teoria política feminista. As formas de subordinação que convivem com a univer­ salização dos direitos políticos e da cidadania são tomadas como problemas —e análises da democracia que não as enfrentam reduzem ou mesmo abrem mão de seu caráter crítico. Da mesma forma, a compreensão de que a demo­ cracia exige a democratização de todas as esferas da vida redefine a agenda nos debates teóricos e na prática política. A maior parte das análises contemporâneas da democracia e da justiça, os dois grandes eixos da teoria política hoje, mantém-se, porém, bem anco­ rada nas premissas do liberalismo e em concepções restritas da democracia. Os laços entre universalidade e igualdade têm no liberalismo um caráter normativo - o que não é irrelevante, mas é no mínimo insuficiente quando desigualdades profundas e formas sistemáticas de exclusão são toleradas e naturalizadas. O fato de que os valores universais sejam, na realidade, o des­ dobramento das perspectivas de alguns indivíduos e de que esses indivíduos te­ nham sido, historicamente, masculinos, brancos e proprietários coloca uma série de questões para a crítica democrática. O feminismo ressalta, em parte importante de suas abordagens, que os valores universais correspondem, na , realidade, aos valores daqueles que estão em posição privilegiada na socieda­ de. Neutralizados por processos históricos que fazem deles as referências le­ gítimas para a definição dos direitos e dos desvios, reforçam potencialmente as desvantagens daqueles que têm sua experiência, suas identidades e seus interesses invisibilizados ou estigmatizados. A crítica feminista leva, assim, à redefinição da própria noção de igual­ dade. As sobreposições entre desigualdades materiais e baixo reconhecimento dos indivíduos vêm sendo tematizadas nesse percurso, comn fni__ discutido nas seções anteriores. O diagnóstico das diferenças que o femi­ nismo vem produzindo - diferenças de gênero, mas também na vinculação e sobreposição com sexualidade, raça e classe social —ganha amplitude em análises dos obstáculos à igualdade nas democracias ocidentais. A igualdade pensada como oportunidade igual de acesso a direitos e espaços tais comojá definidos poderia colaborar para produzir novas separações e para reproduzir, 38

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silenciosamente, as formas de marginalÍ2ação existentes. Nem sempre a de­ manda por direitos iguais é, por exemplo, acompanhada pela confrontação de normas e instituições que respaldam a divisão sexual do trabalho e a heteronormatividade. A inclusão pode, assim, ser promovida de maneira incompleta e restrita, sem operar transformações nas instituições básicas da sodedade (Comell, 1998). O feminismo mobiliza —diversamente, nas suas diferentes vertentes — demandas por condições nas quais a igualdade seja efetiva e as diferenças sejam reconhecidas, mas não hierarquizadas. As desvantagens de grupos so­ ciais determinados no acesso à participação política e a recursos materiais e simbólicos se tornam, assim, um problema de primeira ordem para a teoria e a prática democrática. A crítica à presença reduzida de mulheres nos espaços convencionais da política é um exemplo. Ela parte do entendimento de que o acesso desigual dos grupos aos espaços dedsórios é um problema para as democracias. A discrepância entre o grupo dos representantes e tomadores de dedsão e o grupo dos representados e afetados por essas dedsões é um índice de que algo não vai bem. O sentido dessa afirmação fica mais claro quando se recorda que não está muito distante o momento em que a baixa presença das mulheres na política foi atribuída à falta de interesse e a tendências de­ correntes do seu sexo biológico. Com as análises feministas e seu impacto, a baixa partidpação das mulheres passaria a ser diretamente reladonada às hierarquias de gênero e aos mecanismos cotidianos que colaboram para a sua reprodução. Mas o prindpal avanço está no fato de que esse diagnóstico leva, nas teorias da representação, ao argumento de que a eliminação dos obstácu­ los à partidpação das mulheres não é sufidente. E necessário que existam políticas voltadas para a incorporação dos grupos marginalizados (Phillips, 1999) - como as políticas de ação afirmativa que prevêm cotas nos cargos de direção dos partidos políticos, nas listas deitorais e/ou no parlamento. De um lado, fica colocada a necessidade de incorporação dos grupos m arginalizados para a democratização da política. A subrepresentacão é alçada a um problema central. De outro lado, torna-se necessário compre­ ender como tomam forma, socialmente, os padrões de exclusão baseados no sexo. As teorias feministas, em diálogo permanente com pesquisas em­ píricas e com a atuação dos movimentos feministas, incprporaram outras dimensões da vida social a suas análises da subrepresentaçâo das mulheres, propondo modelos mais complexos. O âmbito e a amplitude dos problemas 39

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que incidem nas dinâmicas da participação e da representação política são, assim, redimensionados. Destacam-se, entre essas abordagens, as análises críticas 1) do cará­ ter patriarcal das instituições políticas liberais; 2) dos padrões culturais e de socialização que constroem o político como espaço masculino; e 3) dos constrangimentos estruturais para a participação política das mulheres, por possuírem, em geral, menos recursos e menor tempo livre do que os ho­ mens —são eixos que definem algumas das principais vertentes explicativas da subrepresentação política das mulheres (como foram apresentadas em Miguel e Biroli, 2011). A baixa presença das mulheres na política vem sendo explicada por uma série de fatores, entre os quais se pode mencionar —como parte de uma lista certamente bem maior —a subordinação das mulheres na esfera privada e as expectativas sodais distintas para mulheres e homens; a relação entre os papéis sociais de gênero e a produção das ambições políti­ cas; a correspondência entre a divisão sexual do trabalho e as oportunidades de participação política, incluidos aí problemas tão diversos quanto a dispo­ nibilidade de tempo e a existência de redes de contato que permitam acesso aos partidos políticos, ao apoio e financiamento necessários para concorrer a cargos eletivos. A prevalência de identidades convencionais de gênero, in­ clusive nas estratégias das próprias mulheres quando tomam parte em com­ petições por candidaturas ou cargos, asssim como as chances de sucesso na construção das carreiras políticas também precisam ser consideradas. As justificativas para que mais mulheres estejam presentes na política representativa variam bastante (Miguel, 2001). Em todos os casos, no en­ tanto, a exclusão, a presença numericamente menor e a posição m arginal em relação aos homens serão tomadas como um índice de que a política representativa precisa ser democratizada. Ainda que não exista uma relação direta entre a presença de mulheres na política e a promoção de determinadas agendas —a representação substanti­ va de interesses identificados como feministas, por exemplo - , é incontomável o fato de que as decisões vêm sendo tomadas, predominantemente, por alguns segmentos da população. E essa realidade inclui as situações em que são definidas as normas e as alocações de recursos que incidem diretamente sobre a vida das mulheres. O direito ao aborto, e a negação desse direito, por exemplo, tomaram forma, historicamente, em espaços políticos caracteriza­ dos pela subrepresentação das mulheres —por outro lado, modificaram-se, quando isso ocorreu, a partir das pressões de movimentos feministas pela indusão do aborto na agenda política. 40

Introdução | Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli

O debate sobre o aborto coloca em pauta questões fundamentais para a democracia e a cidadania. O direito ao aborto é condição necessária para o acesso pleno das mulheres à esfera política e sem ele metade da popula­ ção permanece limitada em sua condição de indivíduos autônomos. É um exemplo incisivo da acomodação entre igualdade formal e desigualdades de gênero, sobretudo no que diz respeito ao direito individual à autodetermina­ ção. Nesse caso, a igualdade fundamental para a democracia é ferida justa­ mente porque os indivíduos são desigualmente considerados em seu direito ao autogoverno. Um dos aspectos que precisam ser considerados, nesse caso, é que de­ finição do aborto como questão do âmbito moral, e não político. As abor­ dagens feministas têm procurado definir o direito ao aborto como questão política, ressaltando que sua complexidade e seu peso na definição dos di­ reitos individuais é maior do que vem sendo considerado —na teoria e na prática, em muitas democracias. O direito ao aborto envolve a possibilidade de autonomia plena de cerca de metade do demos, isto é, a soberania da mulher em relação a seu corpo. Considerando que para a tradição liberal a propriedade de si mesmo é a base indispensável para o acesso à cidadania, a criminalização do aborto gera uma grave assimetria, impondo às mulheres limitações no manejo do próprio corpo com as quais os homens não sofrem (cf. Miguel, 2012). A tematização do direito ao corpo envolve a exigência de que a proprieda­ de de si, nos termos definidos pelo próprio liberalismo, seja extensiva a todos os indivíduos. Mas ela está em descontinuidade, ou mesmo ruptura, com a concepção liberal do indivíduo porque expõe os limites de uma abstração. Não é simplesmente que os direitos não sejam de fato universalmente usu­ fruídos, eles precisariam ser definidos a partir da posição específica e con­ creta dos indivíduos. Assim, para as mulheres, a manutenção ou interrupção de uma gravidez tem um impacto distinto daquele que tem para os homens porque afeta diferentemente sua integridade física (Thomson, 1971) - e esse fato nem mesmo depende de que se considere o modo como, em sociedades organizadas por relações de gênero convencionais, o cuidado com as crian­ ças incide de maneira distinta sobre mulheres e homens. O direito ao aborto nem sempre é tratado, no entanto, como um direito que se define a partir da noção liberal de “propriedade de si”. A noção de autogoverno, que envolve o controle sobre o próprio corpo, pode ser vista como distinta e incompatível com a tradição dos direitos individuais funda­ mentada no direito de propriedade (Pateman, 2009 [2002]). O aborto seria 41

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discutido, também, no âmbito do direito à privacidade. Nesse caso, ressaltase que a negação desse direito fere as garantias à autonomia individual, à inviolabilidade da personalidade e ao controle sobre questões fundamentais à definição da própria identidade (Cohen, 2002). Essa abordagem incide diretamente sobre a relação que se estabelece, no liberalismo, entre direitos individuais e esfera privada. Enquanto a propriedade privada e a liberdade para estabelecer contratos, inclusive aqueles que produzem relações de co­ mando e subordinação (Pateman, 1988), vêm sendo em geral garantidas pe­ las instituições nas sociedades liberais contemporâneas, o mesmo não pode ser dito do direito à privacidade. As garantias para a privacidade da entidade familiar corresponderam historicamente ao isolamento da esfera familiar re­ lativamente aos critérios de justiça —e aos direitos individuais. A consideração dos problemas relativos à privacidade levaria a pelo me­ nos dois argumentos, nem sempre harmoniosos: o direito à privacidade sig­ nificou garantias distintas, historicamente, para mulheres e homens (o que, em geral, está na base de argumentos na direção de maior regulamentação da esfera familiar, como os de Okin, 1989); o direito à privacidade é fundamen­ tal para garantir a autonomia dos indivíduos, garantindo, entre outras coisas, que as necessidades julgadas relevantes pelos próprios indivíduos, segundo os valores morais que lhes são caros, sejam protegidas das concepções majo­ ritárias numa sociedade (Cohen, 2002). O direito ao aborto corresponderia, nesse sentido, à garantia de autonomia decisional para as mulheres. Um ponto comum às diferentes abordagens mencionadas é, portanto, a compreensão de que o direito ao aborto é necessário para a autodetermi­ nação das mulheres - seja ela pensada como direito ao próprio corpo (codi­ ficado ou não como “propriedade de si”), como direito ao autogovemo ou como direito à privacidade18. O debate sobre justiça foi também bastante impactado pelas exigências feministas de democratização das diferentes esferas da vida e de crítica aos mecanismos cotidianos, correntes, de reprodução das desigualdades de gê­ nero. Elas levaram a questionamentos, distintos entre si, do âmbito restrito das reflexões liberais sobre a justiça. As teorias da justiça seriam pouco exi-gentes- na medida em que"desronsidétam relações cte poder e expenencias relevantes —para as mulheres, mas não apenas. E seriam falsas ou pouco 18 A posição de Catherine Mackinnon de que nas sociedades nas quais o domínio dos homens sobre as mulheres se estabeleceria, predominantemente, pelo sexo levou a autora, como mencionado anteriormente, a considerar o direito ao aborto como vantajoso para os homens, mais do que para as mulheres, porque liberaria os primeiros das responsabilidades relativas ao sexo. Para críticas a essa posição, conferir Cohen (2002) e Badinter (2005 [2003]).

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efetivas nos critérios e orientações normativas que propõem porque operam com uma abstração: o indivíduo. A obra de John Rawls é exemplar desses limites: nela, a preocupação com critérios de justiça que produziriam rela­ ções menos desiguais esbarra no fato de que ias características específicas dos indivíduos - e, com isso, o que define as relações de poder entre eles e justifica coüdianamente a subordinação de alguns ao comando de outros — são suspensas em nome da imparcialidade. As críticas feitas por Súsan Okin (1989a), já mencionadas anteriormen­ te, destacaram os efeitos da exclusão da vida familiar e doméstica dos de­ bates contemporâneos sobre justiça. Em muitos sentidos, é novamente a pressuposição da dualidade convencional entre esfera pública e esfera priva­ da que permite suspender as relações de poder na esfera doméstica como tó­ pico paia as análises. Definem-se, assim, uma esfera na qual as exigências de justiça fazem sentido e outra na qual as injustiças são vistas como toleráveis. Definidas a partir de uma perspectiva masculina e fundadas na separa­ ção convencional entre o público e õ privado, as teorias da justiça não seriam capazes de abordar problemas fundamentais para o entendimeoto de como as injustiças de gênero são reproduzidas nas sociedades contemporâneas. O problema é, em outras palavras, que as teorias, as normas e as práticas da jus­ tiça liberal - vista como masculina (Mackinnon, 1989, 2005) —silenciam so­ bre a dominação e a opressão de gênero. As relações de gênero são suspen­ sas e a realidade abordada é, por isso, uma abstração pouco satisfatória. A aplicação de critérios de justiça à vida familiar não é, no entanto, unanimente acolhida no feminismo (mais uma vez, a preocupação com a privacidade é um dos fatores que determinam matizes nessas análises, como se pode ver em Cohen, 2002, e Cornell, 1998). Em outro exemplo de diferenças internas ao feminismo, a ênfase à necessidade de justiça na esfera privada produziu análises que foram acompanhadas pelo esforço para situar as relações ca­ racterizadas como de dependência e de cuidado ao centro do debate sobre justiça (Folbre, 1994; Held, 1995; Macedo e Young, 2003; Fineman, 2004). Mas elas foram, em alguns casos —sobretudo naqueles em que aderiram à oposição entre ética do cuidado e ética da justiça, já mencionada—,criticadas por reproduzirem estereótipos que estao na base da reprodução das desigualdades de gênero (Dietz, 1985) ou por discutirem de maneira inadequada os limites à autonomia das mulheres (Friedman, 1995). A análise dos problemas relativos à produção das preferências nas de­ mocracias se tornou, também, mais complexa com a crítica feminista às condições, assimétricas, em que são produzidas. E um debate fecundo, que 43

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produz ou tensiona abordagens recentes na teoria política, como as teo­ rias da diferença e do multiculturalismo, e que define novos contornos para debates sobre 'temáticas caras ao feminismo —e, deve-se anotar, bastante polêmicas —,como pornografia, prostituição e barriga de aluguel, para citar apenas algumas. Nelas, as relações de gênero são consideradas na análise das condições institucionais e do contexto de normas e valores nos quais as preferências são produzidas (Sunstein, 2009 [1991]). Os mecanismos es­ truturais que produzem horizontes e alternativas distintas para mulheres e homens são levados ao centro das análises, estabelecendo uma distância crítica, também aqui, entre as teorias feministas e o indivíduo abstrato do pensamento e das instituições liberais. O universo da política que emerge das contribuições do feminismo é, assim, bem mais complexo do que aquele operado pelo pensamento liberal dominante. É questionada a visão da política como esfera à parte, na qual os direitos concedidos a todos servem como garantia suficiente da igualdade. O feminismo vinculou, de forma irrevogável, a política à esfera da privaci­ dade, da intimidade e da sexualidade. Tal como outras correntes às margens do mainstream da teoria política —como o socialismo, que denunciou o iso­ lamento entre política e economia, ou o ambientalismo, que introduziu na política as questões relacionadas ao mundo natural —,ele ampliou as exigên­ cias de uma leitura crítica das instituições políticas contemporâneas e dos desafios para sua democratização efetiva.

O plano deste livro Os capítulos que se seguem não pretendem oferecer um panorama completo da teoria política feminista das últimas décadas - deve ter fica­ do claro, por esta introdução, que seriam necessários vários volumes para cumprir essa tarefa. Eles apresentam algumas das contribuições mais signi­ ficativas e que encontraram maior ressonância nas discussões posteriores, com a preocupação de abranger posições plurais e diversas. Em alguns dos 12 textos que se seguem, as questões de gênero são centrais. Em outros, são menos proeminentes. Mas, mesmo nestes, temos uma teoria feminista, não apenas porque todas as autoras aqui incluídas têm trajetórias marcadas pela análise da dominação masculina, mas sobretudo porque são reflexões que nascem das discussões do feminismo e que permanecem delas tributárias, mesmo quando expandem seu alcance para outras formas de assimetria e de dominação presentes na sociedade. . 44

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Carole Pateman abre o volume com uma discussão sobre o sentido da dicotomia público/privado e sua centralidade para o feminismo. Uma das principais pensadoras políticas da atualidade, com contribuições incontornáveis para a teoria da democracia, a britânica Pateman tomou-se influente pela leitura que fez das teorias contratualistas, mostrando como a definição de uma esfera pública restrita era primordial em sua elaboração. No texto aqui traduzido, ela discute a relação entre feminismo e liberalismo, indican­ do como, ao denunciar o casamento entre igualdade jurídica e subordinação no espaço doméstico, o discurso feminista desafia os limites da percepção liberal. O segundo capítulo, da psicóloga estadunidense Carol Gilligan, é um texto fundante da corrente chamada de “pensamento maternal” ou “ética do cuidado”. Trata-se de uma revisão crítica da teoria dos estágios do desen­ volvimento moral de Lawrence Kohlberg, de quem foi assistente. Ela busca mostrar que, ao lado de um padrão de julgamento moral baseado na univer­ salização de princípios abstratos, há outro, igualmente legítimo, preocupado com as necessidades concretas daqueles que estão próximos. Gilligan é cau­ telosa ao indicar que a vinculação de diferentes padrões a homens e mulhe­ res é uma “constatação empírica” que se explica por modos de socialização primária diferenciados, não por características biológicas (uma cautela que nem'sempre é reproduzida por suas seguidoras). Sua obra busca validar a expressão das mulheres como um registro diferente, mas não inferior ou desviante, na discussão sobre os problemas de interesse coletivo. No capítulo 3, a filósofa estadunidense Jean Bethke Elshtain amplia essa compreensão, em uma análise que é devedora dos estudos de Carol Gilligan. Uma das principais representantes do “pensamento maternal” e de um feminismo politicamente conservador, Elshtain produziu revisões im­ portantes do pensamento político, expondo o silêncio sobre a esfera privada e as relações de gênero que caracterizou suas principais correntes e autores. Mas toda sua análise converge para a valorização de uma ética fundada nas relações afetivas e para a valorização da fam ília. A ideia de “invasão” do privado pelo público, presente em suas discussões, vai na contramão de boa parte da crítica ao isolamento da esfera privada relativamente a critérios de justiça. A vivência das mulheres na esfera privada é vista por ela como a base para a reconstrução da política. A partir da perspectiva das mulheres, e sobretudo das mulheres enquanto mães, a experiência social poderia ser, segundo Elshtain, reescrita.

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Eleni Varikas, autora do quarto capítulo desta coletânea, retoma a aná­ lise feminista à dicotomia entre o público e o privado expondo variações na compreensão de que “o pessoal é político”. Critica às abordagens matemalistas e preocupada em refletir sobre os sentidos, para o feminismo, da ressignificação da política e do exercício do poder, a autora discute a correlação entre a liberdade política e a redefinição da liberdade privada. A obra de Varikas é dedicada à revisão do pensamento moderno de uma perspectiva feminista, a contribuições para a teoria e a epistemologia feministas e, mais recentemente, aos estudos pós-coloniais. Nascida na Grécia, mas com ati­ vidade profissional em Paris, ela é, nesta coletânea, a única representante do feminismo francês - embora as autoras aqui presentes, em sua maioria vinculadas a universidades e centros de pesquisa nos Estados Unidos e na Inglaterra, com ele dialoguem. O feminismo francês vem sendo caracteriza­ do, sobretudo, por análises, diversas entre si, das identidades, da sexualidade e da diferença. Sofreu, em muitas de suas correntes, forte influência da psi- t canálise e das teorias do discurso. O quinto capítulo também tem como ponto de partida a crítica femi­ nista à dualidade entre a esfera pública e a esfera privada. Mas nesse caso o foco está na proposição de uma concepção normativa da privacidade, em uma análise que é ao mesmo tempo orientada pela preocupação com as relações desiguais de gênero e pelo valor da privacidade. A cientista políti­ ca estadunidense Jean L. Cohen, que produziu também estudos influentes sobre sociedade civil e democracia, destaca o direito à privacidade entre os direitos fundamentais para a garantia da integridade individual e do igual respeito aos indivíduos. A análise das correlações entre privacidade e au­ tonomia colabora para uma visão mais complexa e remodelada do que fica garantido quando se define a privacidade como um direito sem a suspensão das questões colocadas pelo feminismo. Ao problematizar a simples denúncia, que algumas feministas fazem, do caráter opressivo da esfera privada, Cohen se coloca na contramão de pensadoras como a jurista estadunidense Catherine A. Mackinnon, autora do capítulo seguinte desta coletânea. Em sua obra e em seu ativismo jurídico, Mackinnon sc esforça para ampliaro controle do poder publico sobre relações e comportamentos convencionalmente vistos como privados —foi uma das responsáveis pela tipificação do crime de assédio sexual e é referência na luta por leis antipornografia. O texto aqui traduzido é uma conferência que sintetiza alguns aspectos centrais do seu pensamento, em particular o cará­ ter inerentemente agressivo da sexualidade masculina e a impossibilidade 46

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de aceitar como autônoma qualquer escolha realizada sob circunstâncias de opressão. A radicalidade das posições de Maddnnon, bem como o tom provocador com que gosta de enunciá-las, faz com que elas sejam, muitas vezes, folclorizadas. No entanto, ela contribui para desnaturalizar comportamentos e tornar mais complexa a discussão sobre a agência dos grupos dominados. No capítulo 7, Nancy Fraser empreende um diálogo com a obra de Carole Pateman, buscando apontar os limites à aplicação do conceito de “patriarcado” para as sociedade contemporâneas. Teórica política estaduni­ dense, conhecida sobretudo por suas contribuições ao debate sobre justiça, Fraser observa que a dominação masculina, hoje, deve ser entendida como um fenômeno muito mais estrutural e menos individualizado do que no passado. Ela critica os modelos teóricos nos quais a mulher é ápresentada como sujeita ao domínio de um homem particular porque obscurecem as transformações que fizeram com que a igualdade legal possa conviver com a permanência de padrões de subordinação. De maneira mais geral, Fraser indica que o contrato exaltado pela teoria liberal, apesar dos aspectos criti­ cados por Pateman, pode ser vivido como libertador por aqueles (e aque­ las) que estavam antes submetidos a formas menos limitadas de dominação, como as vigentes na família patriarcal tradicional. Ressalta, assim, aspectos da relação entre o feminismo e o liberalismo que estão presentes também no texto de Varikas. Já a cientista política belga (radicada no Reino Unido) Chantal Mouffe atravessa, no capítulo 8 desta coletânea, algumas das polêmicas centrais do feminismo - sobre o público e o privado, sobre a igualdade e a diferença. O texto aqui apresentado é parte de uma obra bastante marcada pela preo­ cupação com o reconhecimento, epistemológico e prático, das diferenças. Ela discute alternativas que permitam recusar o congelamento da categoria “mulher” num único registro discursivo, sem com isso impossibilitar a ação política comum das mulheres. Esta última envolve, também, a articulação com outros grupos sociais oprimidos, na luta pela construção de uma socie­ dade mais democrática. No capítulo 9, a cientista política britânica Anne Phillips, uma das teóricas feministas de maior influência nos debates contemporâneos, discute os impactos da incorporação do gênero à análise das democracias. Neste texto, as tensões entre o pensamento liberal e o pensamento feminista ficam bastante claras. Para Phillips, que dedicou boa parte de sua obra à análise da representação política a partir de problemas e abordagens bastante en­ raizados nos debates no feminismo, a democracia não pode estar acima das 47

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diferenças sexuais, mas deve ser redefinida com base nelas. Em seus estudos sobre gênero e sobre multiculturalismo, destacam-se temas como diferença, identidade, deslocamento do indivíduo para o grupo e a análise de caminhos para a ampliação da participação política. Em muito sentidos, o capítulo 10, da cientista política estadunidense íris Manon Young (1949-2006), é complementar ao anterior. Em sua produção acadêmica, a autora teve uma preocupação constante com ã chamada política da diferença. Foi uma das principais responsáveis pelo avanço da análise feminista das relações entre justiça e diferença para além das fronteiras do feminismo. Nesse contexto, o capítulo aqui apresentado discute criticamen­ te noções fundamentais para o pensamento liberal, como as de universali­ dade e imparcialidade. Em um dos textos em que mais sè afasta não apenas do liberalismo, mas também dos ideais deliberadonistas que marcaram parte de sua obra, Young propõe uma concepção de justiça fundada no reconhe­ cimento de que as perspectivas e interesses são sempre parciais e situados. Já as autoras dos dois capítulos que encerram o livro apresentam po­ sições que, embora sejam críticas, estão bem mais próximas às correntes dominantes da teoria liberal. No texto aqui publicado, a filósofa estaduni­ dense Martha Nussbaum aborda as tensões entre a defesa dos valores e cos­ tumes singulares a uma cultura e a defesa do direito das mulheres a escolhas autônomas' e ao controle sobre si e sobre seus corpos. Analisando vários argumentos, que colocam em questão a crítica explícita à mutilação genital feminina, Nussbaum defende uma distinção clara entre consentimento, aquiescência em situações nas quais é muito difícil não consentir e não con­ sentimento. Para a autora, nesse texto e em outros momentos em sua produ­ ção intelectual, a igualdade de gênero depende da superação de uma série de obstáculos ao exercício efetivos dos direitos individuais pelas mulheres, que vão das restrições materiais e no acesso a recursos de educação e cultura às restrições relativas ao controle sobre a própria sexualidade. A filósofa política Susan Moller Okin (1946-2004) nasceu na Nova Zelândia, mas esteve vinculada durante a maior parte de sua carreira a uni­ versidades nos Estados Unidos. E uma das teóricas feministas de maior im­ pacto nos debates contemporâneos sobre justiça e democracia. Destacam-se, em sua obra, a revisão crítica do pensamento político e posições, rediscutidas muitas vezes na literatura internacional, sobre a aplicação de critérios de justiça às relações intrafamiliares e sobre as contradições entre o feminismo e o multiculturalismo. O texto aqui apresentado como o capítulo 12 versa sobre esse último tema. Nele, Okin expõe, em tom que foi considerado 48

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provocativo e polêmico, os riscos que a valorização das tradições e comu­ nidades de cultura representam para a igualdade de gênero. Sua obra é mar­ cada, ao mesmo tempo, pela crítica ao liberalismo e por valores liberais que foram por ela considerados incontornáveis para a afirmação da igualdade entre mulheres e homens. A pluralidade das posições aqui presentes expõe a riqueza da produção feminista na área de teoria política nas últimas décadas. Os textos ãpresentam um conjunto de problemas e de abordagens que têm impacto para a análise não apenas das relações de gênero, mas dos limites das democracias contemporâneas. Como pensamento engajado, desde sua origem, o feminis­ mo reúne —e os textos aqui apresentados o comprovam —o esforço teórico de compreensão da política com a ambição de contribuir para sua recons­ trução, em bases mais justas e mais democráticas. Referências ALVAREZ, Sonia E. Engendmng dmocracy in Brasil. Princeton: Piinceton Univeisity Press. ARNEIL, Barbara (1999). Poãtics andfeminism. Oxford: Blackwell Publishers. BADINTER, Elisabeth (2005 [2003]). Rumo equivocado: o feminismo e alguns destinos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. BADINTER, Elisabeth (1980). Un amour en phts. histoire de 1’amour matemel. Paris: Flammarion. BADINTER, Elisabeth (org.) (1991 [1989]). Palavras de homens (1790-1793). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. BEAUVOIR, Simone de (1949). Le deuxieme sexe. Paris: Gallimard. 2 v. BIROLI, Flávia (2010). “Gênero e família em uma sociedade justa: adesão e critica à imparcialidade no debate contemporâneo sobre justiça”. Revista de Sociologia e Política, v. 18, n°36, p. 51-65. BIROLI, Flávia (2012). “Agentes imperfeitas: contribuições do feminismo para a análise da relação entre autonomia, preferências e democracia”. Revista Brasileira de Ciência Política, n° 9, p. 7-38. BIROLI, Flávia (2013). “Autonomia, opressão e identidades: a ressignificação da experi­ ência na teoria política feminista”. Revista Estudos Feministas, v. 21, n° 1, p. 81-105. BIROLI, Flávia e MIGUEL, Luis Felipe (orgs.) (2012). Teoriapolítica efeminismor. aborda­ gens brasileiras. Vinhedo: Horizonte. BOURDIEU, Pierre (1980). Le senspratique. Paris: Minuit. BROWNMUJLER, Susan (1975). Against our will. men, women and rape. New York: Fawcett Books. BROWNMELLER, Susan (1999). In ourtime-, memoir o f a revolution. New York: Delta. 49

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O ideal da imparcialidade e o público cívico | íris Marion Young

bastante firme o discurso sobre sentimentos do discurso sobre normas. Seu modelo da própria linguagem, além disso, depende muito de um paradigma de argumentação discursiva, retirando a ênfase aos aspectos metafóricos, retóricos, lúdicos e corporificados da fala que são um aspecto importante do seu efeito comunicativo (Young, 1987; Keane, 1984, p. 169-72). Apesar das possibilidades de uma ética comunicativa, o próprio Habermas mantém um compromisso com o “ponto de vista moral”, como o de um “outro genera­ lizado”, no qual o sujeito que raciocina abstrai-se de seus próprios contextos concretos de necessidade, desejo e compromisso, e considera os outros tam­ bém a partir desse ponto de vista geral. Dessa forma, mantém uma distinção entre um domínio público de direitos e princípios e um domínio privado de necessidade contextualizada (Benhabib, 1986, p. 348-351). Por fim, a alega­ ção de que os participantes do diálogo implicitamente buscam o consenso é uma reminiscência da unidade ideal do público cívico. Como discutido antes, muitos autores afirmam que a socieda.de corpo­ rativa do bem-estar é despolitizada por meio da institucionalização do plu­ ralismo de grupos de interesse5. Assim como Barber demanda um público democrático forte, muitos desses autores também demandam a reinstituição de um público cívico em que os cidadãos transcendam seus contextos, necessidades e interesses particulares para atender o bem comum. Venho afirmando, no entanto, que esse desejo de unidade política suprime a dife­ rença e tende a excluir, do público, algumas vozes e perspectivas, porque o privilégio e a posição dominante de alguns grupos permite que eles formu­ lem o “bem comum” em termos influenciados por sua perspectiva e seus interesses particulares. Contrariamente à descrição de Barber, por exemplo, o problema do pluralismo baseado nos grupos de interesse não é que ele seja plural e par­ ticular, mas que seja privatizado. Institucionaliza e incentiva uma visão do processo político que é egoísta e centrada no interesse próprio; cada parte entra na concorrência política por bens e privilégios escassos apenas para maximizar seu próprio ganho, e não precisa ouvir nem responder às reivin-dicações dejoutros pelo seu próprio bem. Assim, o pluralismo de grupos de interesse dá pouco espaço a afirmações de que algumas partes têni a respon­ sabilidade de atender às reivindicações de outras, porque estas são necessita­ das e oprimidas. Os processos e, muitas vezes, os resultados da negociação entre grupos de interesse ocorrem, ainda, em grande parte privadamente,

5 Essa discussão foi feita pela autora no capítulo 3 de Justice and thepolitics o f difference (NRT).

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não sendo revelados nem discutidos em um fórum que realmente inclua todos os potencialmente afetados pelas decisões. A repolitização da vida pública não exige a criação de um domínio pú­ blico unificado no qual os cidadãos deixem para trás suas filiações de grupo, histórias e necessidades particulares para discutir um mítico “bem comum”. Em uma sociedade diferenciada por grupos sociais, profissões, posições políticas, diferenças de privilégio e opressão, regiões, e assim por diante, a percepção de qualquer coisa como um bem comum só pode ser resultado da interação pública que expressa particularidades em lugar de suspendê-las. Aqueles que buscam a democratização da política em nossa sociedade, em minha opinião, devem reconceituar o significado do público e do privado e a relação entre eles, para romper decididamente com a tradição do republi­ canismo iluminista. Embora haja boas razões teóricas e práticas para manter nma distinção entre público e privado, essa distinção não deve corresponder a uma oposição hierárquica entre razão e sentimento, masculino e feminino, universal e particular. O sentido básico de público é o que é aberto e acessível. O público, em princípio, não é excludente. Embora seja geral nesse sentido, essa concepção de um público não implica homogeneidade nem a adoção de um ponto de vista geral ou universal. De fato, em espaços e fóruns públicos abertos e acessíveis, devem-se esperar encontrar e ouvir aqueles que são diferentes, cujas perspectivas, experiências e filiações sociais sejam diferentes. Para pro­ mover uma política de inclusão, então, os democratas participativos devem promover o ideal de um público heterogêneo, em que as pessoas se desta­ quem com suas diferenças reconhecidas e respeitadas por outras, embora, talvez, não totalmente compreendidas. O privado, como aponta Hannah Arendt (1958, p. 58-67), está etimologicamente relacionado à privação. Da forma como é tradicionalmente concebido, o privado é aquilo que deve ser escondido da vista ou o que não pode ser dado a ver. Está ligado a vergonha e imperfeição. Como diz Arendt, essa noção do privado implica a exclusão, do público, dé aspectos físicos e afetivos da vida humana. Em vez de defini-lo como aquilo que o público exdut, sugiro, o privado deve ser definido, como em uma das correntes da teoria liberal, como o aspecto da vida e da atividade de qualquer pessoa do qual ela tem direito de excluir outras. O privado, nesse sentido, não é o que as instituições públicas excluem, mas o que o indivíduo escolhe retirar da vista do público. Com o crescimento das burocracias estatais e não estatais, a proteção da priva­ cidade se tornou uma questão pública candente. Na sociedade capitalista

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de bem-estar, a defesa da privacidade pessoal se tornou não apenas uma questão de manter o Estado fora de certos assuntos, mas de exigir regula­ mentação positiva por parte do Estado para garantir que tanto suas próprias agências quanto organizações não estatais, tais como as empresas, respeitem as demandas de privacidade dos indivíduos. Essa maneira de formular os conceitos de público e privado, que é ins­ pirada nas confrontações feministas com a teoria política tradicional, não nega sua distinção. Nega, no entanto, uma divisão social entre as esferas pública e privada, cada uma com diferentes tipos de instituições, atividades e atributos humanos. O conceito de público heterogêneo implica dois prin­ cípios políticos: a) nenhuma pessoa, nenhuma ação ou nenhum aspecto da vida de uma pessoa deve ser forçado à privacidade; e b) nenhuma instituição ou prática social deve ser excluída a priori da condição de tema apropriado para a expressão e a discussão pública. A concepção moderna do público, já argumentei, cria uma concepção de cidadania que exclui da atenção púbücá a maioria dos aspectos particu­ lares das pessoas. A vida pública deve sei “cega” em relação a raça, sexo, idade, e assim por diante, e todas as pessoas devem entrar em condições idênticas no público e em sua discussão. Essa concepção do público resul­ tou na exclusão de pessoas e aspectos de pessoas da vida pública. Nossa sociedade ainda força pessoas ou aspectos das pessoas à priva­ cidade. A repressão da homossexualidade talvez seja o exemplo mais mar­ cante. Nos Estados Unidos de hoje, a maioria das pessoas parece ter a visão liberal de que as pessoas têm o direito=de ser homossexuais, desde que man­ tenham suas atividades privadas. Chamar a atenção, em público, para o fato de que se é homossexual, fazer demonstrações públicas de afeto homosse­ xual ou até mesmo reivindicar publicamente as necessidades e direitos dos homossexuais provoca ridicularização e medo em muitas pessoas. Nossa sociedade está apenas começando a mudar a prática de manter deficientes físicos e mentais fora da vista do público. Há quase um século, as mulheres “respeitáveis” têm acesso a espaços públicos e expressão pública, mas as normas predominantes ainda" nos pressionam á privãtizar as manifestações mais evidentes da nossa feminilidade - menstruação, gravidez, lactação para mantê-las fora do discurso público, da opinião pública e da considera­ ção pública. Por extensão, as crianças devem ser mantidas fora da vista do público e, claro, suas vozes não devem receber expressão pública. O slogan feminista “o pessoal é político” expressa o princípio de que nenhuma prática ou atividade social deve ser excluída, como tema impróprio

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para discussão pública, expressão ou escolha coletiva. O movimento con­ temporâneo de mulheres problematizou publicamente muitas práticas que eram consideradas demasiado triviais ou privadas para discussão pública: o significado dos pronomes, a violência doméstica contra as mulheres, a prá­ tica de os homens abrirem portas para as mulheres, o abuso sexual de mu­ lheres e crianças, a divisão sexual do trabalho doméstico, e assim por diante. As políticas socialista e populista requerem a problematização públi­ ca de muitas ações e atividades consideradas propriamente privadas, como a forma como indivíduos e empresas investem seu dinheiro, o que pro­ duzem e como produzem. A sociedade corporativa do bem-estar permite que diversas grandes instituições cujas ações têm um enorme impacto sobre muitas pessoas definam sua atividade como privada, dando-lhes o direito de excluir outras. Democratas participativos interessados em minar opres­ sões causadas economicamente, como a exploração e a marginalização, ge­ ralmente requerem que algumas ou todas as atividades dessas instituições sejam submetidas a decisões públicas democráticas. Esses exemplos mostram que o público e o privado não correspondem facilmente a esferas institucionais, como trabalho versus família, ou Estado versus economia. Na política democrática, o ponto onde a linha da privaci­ dade deve ser traçada se torna, em si, uma questão pública (Cunningham, 1987, p. 120). O propósito de proteger a privacidade é preservar as liber­ dades de ação, oportunidade e participação individuais. A reivindicação de qualquer instituição ou coletivo à privacidade, ao direito de excluir outros, só pode ser justificada como garantia para um alcance justificado da priva­ cidade individual. Como sugeri no início deste capítulo, desafiar a oposição tradicional entre público e privado, que se alinha com a oposição entre universal e par­ ticular, razão e afetividade, implica desafiar uma concepção de justiça que a opõe ao cuidado. Uma teoria que limita a justiça a princípios formais e universais, que definem o contexto em que cada pessoa pode buscar seus objetivos pessoais sem prejudicar a capacidade das outras para ir em busca dos seus, implica não apenas uma concepção muito limitada de vida social, como sugere Michael Sandel (1982), mas uma concepção muito limitada de justiça. Como virtude, a justiça não pode se opor a necessidade, sentimen­ to e desejo pessoais, mas designa as condições institucionais que possibi­ litam às pessoas satisfazer suas necessidades e expressar seus desejos. As necessidades podem ser expressas em sua particularidade em um público heterogêneo.

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J ulgan do

o u tras c u lt u r as:

o caso da mutilação genital1 M.artha C. Nussbaum

Em junho de 1997, o Conselho de Apelações da Imigração do Serviço de Imigração e Naturalização (INS) dos Estados Unidos concedeu asilo po­ lítico a uma mulher de 19 anos, do Togo, que havia fugido de casa para esca­ par à prática de mutilação genital2. Fauziya Kassindja é filha de Muhammed Kassindja, proprietário bem-sucedido de uma pequena empresa de cami­ nhões em Kpalimé. Seu pai se opunha à prática ritual, lembrando-se dos gritos de sua irmã durante o ritual e do sofrimento resultante de uma infec­ ção por tétano que ela desenvolveu depois. Hajia, sua esposa, relembrava a morte da irmã mais velha por uma infecção associada a esse ritual, tragédia que levou a família de Hajia a isentá-la do corte, e ela própria também era contra a prática para suas filhas. Durante sua vida, Muhammed, sendo rico, conseguiu desafiar os costumes da tribo Tchamba-Kunsuntu, à qual perten­ cia. Ambos analfabetos, os Kassindja enviaram Fauziya a um internato em Gana para que ela_pudesse aprenderjinglês e ajudar o pai em sua empresa. Enquanto isso, suas quatro irmãs mais velhas se casaram com-homens de sua própria escolha, genitais intactos. A família de Fauziya era, portanto, uma anomalia na região. Rakia Idrissou, a extirpadora genital local, disse a um repórter que as meninas costumam passar pelo procedimento entre os quatro e os sete anos. Se fo­ rem fracas, são seguradas por quatro mulheres; se forem mais fortes, exigem cinco mulheres, uma para se sentar sobre seu peito e mais uma para cada braço e perna. Elas devem ser mantidas paradas, segundo ela, porque, caso se movam de repente, a lâmina de barbear usada para a cirurgia pode cortar fundo demais. Entretanto, quando Fauziya tinha 15 anos, seu pai morreu. Sua mãe foi sumariamente expulsa da casa por parentes hostis e uma tia assumiu o controle do domicílio, pondo fim aos estudos de Fauziya. “Nós não quere­ mos meninas indo muito à escola”, disse a ria a uma repórter do: The-New York Times. Então, o patriarca da família providenciou para que Fauziya se tornasse a quarta esposa de um eletricista, e o futuro marido insistiu em que 1 Tradução de Verso Tradutores do original “Judging other cultures: the case of genital inutilation”. Sex and socialjustice. Direitos cedidos por Oxford University Press. 2 Sobre o tema ver Dugger (1996a e 1996b). Para histórias relacionadas, ver MacFaquhar (1996, A3); Dugger (1996c e 1996d,Al),

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ela fizesse a operação genital antes. Para evitar o casamento e a mutilação que o teria precedido, Fauziya decidiu sair de casa; sua mãe lhe deu 3 mil dólares da herança de 3.500, que era o seu único sustento. N o dia do casa­ mento, Fauziya deixou a casa da tia, chamou um táxi, e, com nada além das roupas que vestia, pediu ao motorista para levá-la ao outro lado da fronteira, a Gana, cerca de 30 quilômetros de distância. Uma vez em Gana, ela tomou um voo paia a Alemanha e, com a ajuda de pessoas que se tornaram suas amigas naquele país, tomou outro voo para os Estados Unidos. Ao desembarcar em Newark, ela confessou que seus documentos eram falsos e pediu asilo político. Depois de semanas de detenção em uma insa­ lubre e opressiva prisão da imigração, Fauziya recebeu assistência jurídica —mais uma vez, com a ajuda de sua mãe, que contatou um sobrinho que trabalhava como zelador na região de Washington. Juntando 500 dólares, o sobrinho contratou uma estudante de direito da American University, Miller Bashir, para tratar do caso de Fauziya. Inicialmente, Bashir não teve êxito, e um juiz de imigração da Filadélfia negou o pedido de asilo. Por meio dos firmes esforços de ativistas, jornalistas e do corpo docente da faculdade de direito da American University, ela recorreu da recusa com sucesso. A decisão do recurso afirmou que a prática da mutilação genital constitui per­ seguição e concluiu: ‘Termanece a situação em que as mulheres têm poucas alternativas jurídicas e podem enfrentar ameaças à sua liberdade, ameaças ou atos de violência física ou ostracismo social por se recusarem a submeter-se a essa prejudicial prática tradicional ou por tentarem proteger suas filhas”. Nos últimos anos, a prática da mutilação genital feminina tem estado cada vez mais presente nos noticiários, gerando um complexo debate sobre as normas culturais e o valor das funções sexuais. Este capítulo pretende des­ crever e ordenar alguns aspectos dessa polêmica. Antes, porém, uma palavra sobre nomenclatura. Embora as discussões, por vezes, usem as expressões “circuncisão feminina” e “clitoridectomia”, a expressão genérica padrão para todos esses procedimentos na literatura médica é “mutilação genital fe m in in a ” (MGF). A “clitoridectomia”, como regra, designa uma subcategoria, que será descrita em breve. A expressão “circuncisão feminina” tem sido rejeitada por médicos internacionais porque sugere a analogia falaciosa à circuncisão masculina, que se acredita não ter qualquer efeito ou ter um efeito positivo sobre a saúde física e as funções sexuais3. Anatomicamente, o grau de corte nas operações do sexo feminino aqui descritas é muito mais 3 Além disso, a operação masculina, tanto no judaísmo quanto no islã, está ligada a participação na comu­ nidade masculina dominante, e não a subordinação.

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elevado. (O equivalente masculino da clitoridectomia séria a amputação da maior parte do pênis. O equivalente masculino da infibulação seria a “re­ moção de todo o pênis, suas raízes de tecidos moles e uma parte da pele escrotal”4.) Esta discussão se restringe a casos que envolvem a remoção substancial de tecido e/ou comprometimento funcional; não faço qualquer comentário sobre os procedimentos puramente simbólicos que não envol­ vam a remoção de tecido, e estes não são incluídos na rubrica “mutilação genital feminina” por agências internacionais que estudam a ocorrência do procedimento5. Três tipos de corte genital costumam ser praticados: 1) Na clitoridectomia, uma parte ou a totalidade do clitóris é amputada e a hemorragia é estanca­ da por pressão ou por um ponto de sutura. 2) Na extirpação, o clitóris e os pequenos lábios são amputados. O sangramento costuma ser estancado por sutura, mas a vagina não é coberta. 3) Na infibulação, o clitóris é removido, parte ou a totalidade dos pequenos lábios é cortada, e são feitas incisões nos grandes lábios para criar área cruenta. Essas áreas são costuradas ou mantidas em contato até se curar, na forma de uma capa de pele que cobre a uretra e a maior parte da vagina (FGM, p. 10-1, com desenhos anatômicos). Aproximadamente 85% das mulheres que se submetem a mutilação genital fazem o tipo 1 ou o tipo 2; a infibulação, que responde por apenas 15% do

4 Nahid Toubia, Female Genital Mutilation. A Callfor Global Action (doravante FGM), 1995, p. 5. Toubia foi a primeira mulher a ser cinzrgiã do Sudão. Ela é consultora da Organização Mundial da Saúde, vicepresidente do Projeto de Direitos das Mulheres da Human Rights Watch e diretora do Global Action against FGM Project na Escola de Saúde Pública da Universidade Columbia. Outras discussões médicas são Toubia (1994, p. 712 e ss.); Tstri, Wasseiheit e Haaga (1997, p. 32-33), com bibliografia; El-Saadawi, e Dualeh e Fara-Watsame (1982); Howson et al (1996); World Health Organization (1994, p. 416 e ss.); e Heise (1994, p. 221-229). 5 Ver FGM, 10, sustentando que a circuncisão ritualística nunca envolve apenas a remoção da pele em tomo da glande, sem dano à parte sensível do órgão - embora essas “circuncisões femininas em estilo masculino” tenham sido documentadas em contextos cirúrgicos modernos. Nesse sentido, uma extensa contribuição re­ cente ao debate parece não levar em conta a questão principal. Obiora (1997, p. 175-378), começa atacando a campanha contra a operação como exemplo de paternalismo e condescendência ocidentais, mas, no final, conclui-se que o que ela própria aceitaria pode estar limitado a uma perferação meramente simbólica. Ela recomenda “clinicalizar” a prática, ou seja, permiti-la, mas exigir que seja feita em um contexto de hospital ou clínica; ela sugere intensamente que, nesses contextos, nenhum tecido seria removido, ocorrendo apenas uma perfuração simbólica. Entretanto, sua própria posição normativa continua extremamente incerta, pois ela não questiona o que realmente está ocorrendo em contextos clínicos no Djibuti, que adotou a solução da medicalização, e onde não há qualquer razão para se supor que a mera perfuração esteja sendo preferida em detrimento de formas tradicionais da prática. Ver Gunning (1992, p. 445-60), que enfatiza que a campanha do Djibuti se concentrou em uma passagem da infibulação a uma cirurgia menor; dada essa ênfase, ainda se remove uma quantidade considerável de tecido sob a forma medicalizada do procedimento; Obiora tampouco declara que súa própria aprovação da medicalização dependeria de a operação ser meramente simbólica.

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total, ainda representa 80% ao 90% de todas as operações em alguns países, por exemplo, Sudão, Somália e Djibuti. A prática da mutilação genital feminina continua sendo extremamente comum na África, embora seja ilegal e enfrente grande resistência na maioria dos países onde ocorre6. A Organização Mundial de Saúde estima que, em geral, no mundo de hoje, entre 85 e 115 milhões de mulheres já passaram por essas operações. Em termos percentuais, por exemplo, 93% das mulhe­ res no Mali sofreram mutilação genital, 98% das mulheres na Somália, 89% no Sudão, 43% na República Centro-Africana, 43% na Costa do Marfim e 12% no Togo7. E relatado um número menor de operações atualmente em países como Austrália, Bélgica, França, Reino Unido e Estados Unidos. A mutilação genital feminina está ligada a problemas de saúde amplos e que, em alguns casos, duram a vida toda. Entre eles, estão hemorragia, infecção e abscesso no momento da operação, dificuldades posteriores para urinar e menstruar, pedras na uretra e na bexiga devido a infecções repeti­ das, crescimento excessivo de tecido cicatridal no local, o que pode causar deformações, dor durante a relação sexual, infertilidade (com implicações devastadoras para ãs outras chânces que uma mulher tem na vida), trabalho de parto obstruído, além de rompimentos e dilaceramentos prejudiciais du­ rante o parto (FGM; Toubiá, 1994, p. 224-37). As complicações da infibulação são mais graves do que as da clitoridectomia e da incisão, mas a falsa percepção de que a clitoridectomia é “segura” costuma fazer com que se ignorem as complicações. Tanto nos países implicados quanto fora deles, as feministas se organi­ zaram para exigir a abolição dessa prática, citando riscos à saúde, seu impacto nas funções sexuais e as violações da dignidade e da escolha associadas à sua natureza compulsória e não consensual. Essas oponentes receberam a ade­ são de muitas autoridades em seus respectivos países, tanto religiosas quanto seculares. N o Egito, por exemplo, tanto o ministro da saúde, Ismail Sallem, quanto o novo chefe do Al Azhar, a principal instituição islâmica do país, apoiam a proibição da prática. A OMS tem aconselhado os profissionais de 6 Vinte e quatro países têm legislação ou regulamentação ministerial contra a MGF em si. Vários outros cobrem a prática sob leis relacionadas ao abuso infantil; ela também é ilegal segundo a Convenção dos Direitos da Criança (CDC) e a Convenção para Eliminar todas as Formas de Violência contra a Mulher (CEFVM), ratificada pela maioria dos países em questão. Ver FGM44. 7 Ver FGM 25, relatando dados da OMS. Outra valiosa fonte de dados é o Country Reports on Women Rights Practices for (1996), um relatório apresentado pelo Departamento de Estado norte-americano ao Comitê de Relações Externas do Senado e ao Comitê de Relações Internacionais da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos (1997). Os dados, organizados por país, são semelhantes aos da OMS. Ver, também (Human Rights are Woman’s Right, 1995, p. 131-4).

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saúde a não participar da prática desde 1982 e repetiu sua forte oposição a ela em 1994; a prática também foi condenada pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, a Unicef, a World Medication Organization, o Minority Rights Group International e a Anistia Internacional (Amnesty International, p. 132-4). Ao mesmo tempo, contudo, outros autores começaram a protestar, di­ zendo que a crítica à mutilação genital é inadequada e “etnocêntrica”, uma demonização de uma outra cultura, quando temos muitas razões para en­ contrar defeitos na nossa8. Eles também fizeram a acusação de que o foco nesse problema envolve uma glamorização ocidental do prazer sexual que é inadequada, especialmente quando julgamos outras culturas cujas normas morais são diferentes. Para encontrar essas posições, não precisamos recor­ rer a debates acadêmicos. Nós as encontramos em nossos estudantes de graduação, que tendem a ser relativistas éticos nessas questões e hesitam em fazer qualquer juízo negativo de uma cultura que não a sua, pelo menos inicialmente. Por parecer importante que qualquer pessoa interessada em transformações políticas nesta área entenda esses pontos de vista em sua forma popular e não acadêmiea, vou ilustrá-los a partir de textos de estu­ dantes que encontrei em minhas aulas e em minha pesquisa para um livró sobre educação liberal, acrescentando alguns pontos do debate acadêmico9. Muitos alunos, assim como alguns participantes do debate acadêmico, são relativistas culturais gerais, sustentando que é sempre indevido criti­ car as práticas de outra cultura, e que as culturas só podem ser julgadas 8 Uma defesa africana que influenciou muitos observadores ocidentais é a de Jomo Kenyatta (1938, p. 130-162). Para uma visão antropológica relacionada, ver Fontaine (1985, p. 109-12 e 166-80). Obiora apre­ senta um panorama de outias perspectivas antropológicas, mas, infelizmente, não reconhece a amplitude da resistência das mulheres africanas à MGF. Ver o comentário de Cunning, com referências, e também os comentários da ativisía africana Seble Dawit citados em “Prefàce”(1997, p. 28). Um relatório da ONU mostra que a solicitação para que se usasse o termo “mutilação feminina” em vez de “circuncisão feminina” na descrição da prática veio de mulheres africanas, e não de pessoas de fora. Ver Report o f the United Nations Seminar on Traditional Practices Affecting the Health of Women and Children, Subcommission on Prevention of Discrimination and Protection of Minorities, Commission on Human Rights 43d. Sess. 32, U.N. Doc. E/CN.4/Sub.2/1991/48 (1991). Em alguns momentos, Obiora parece reconhecer que a “cultura” cias de uma ideologia “ocidental” exótica. Outras técnicas africanas de MGF podem ser encontradas em AsmaA’Haleem (OEF International, 1992), disponível em ONU/IJNIFF.M; Abdalla (1982); Koso-Thomas (1992); Dorkenoo (1994); Assad (1980). Para um tratamento geral das questões de direitos humanos na perspectiva islâmica, ver An-Na’im (1990). 9 Para mais discussões sobre trabalhos de estudantes em uma disciplina sobre controle e modelagem do corpo feminino na Universidade S t Lawrence, ver Cultivating humanity: a classical defense o f reform in higher education (1997, cap. 6). Um exemplo de artigo acadêmico que poderia ser facilmente lido como uma promoção dessas afirmações é Tamir (1996, p. 21-2). Ver, também, a resposta de Tamir a críticos na edição seguinte, onde ela esclarece sua posição, sugerindo que não pretendia apoiar qualquer das quatro afirmações na forma como as enunciei aqui.

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adequadamente por suas próprias normas internas. De fato, essa posição ge­ ral implicaria considerar as criticas dos ocidentais à mutilação genital femi­ nina como um equívoco, mas não por quaisquer razões que dizem respeito especificamente à mutilação genital em si. Por isso10, vou me concentrar aqui em quatro críticas que, embora influenciadas pelo relativismo, não chegam a defender a tese geral relativista: 1) É moralmente errado criticar as práticas de outra cultura a não ser que se esteja preparado para ser igualmente crítico com relação a práticas comparáveis quando estas ocorrem na sua própria cultura. (Assim, uma tí­ pica reação de estudante é criticar o “etnocentrismo” de uma postura que sustenta que a cultura da própria pessoa é a referência para “os princípios e práticas que são apropriados para todas as pessoas”11.) 2) É moralmente errado criticar as práticas de uma outra cultura a não ser que a própria cultura de quem critica tenha erradicado todos os males de um tipo comparável (Tamir, 1996, p. 21)12. (Assim, um trabalho de gra­ duação típico comenta que a crítica à mutilação genital é inaceitável “quan­ do se consideram os problemas domésticos que temos em nossas próprias culturas”.) 3) A mutilação genital feminina está moralmente em pé de igualdade com as práticas das dietas e da moldagem do corpo na cultura dos Estados Unidos. (Observei que em vários cursos esta comparação cumpria um papel central, e a comparação foi sugerida muitas vezes por meus próprios alunos. Na mesma linha, o filósofo Yael Tamir escreve que “as concepções oci­ dentais de beleza feminina^incentivam as mulheres a passar por uma ampla gama de processos dolorosos, desnecessários em termos médicos e poten­ cialmente prejudiciais” [id., ibid].) 4) A mutilação genital envolve a perda de uma capacidade que pode não ser especialmente fundamental para as vidas em questão, e à qual os ocidentais atribuem um significado desproporcional. Assim, as “referências à clitoridectomia costumam revelar uma atitude paternalista em relação às mulheres, sugerindo que elas são essencialmente seres sexuais” (FGM, 22). ____ F.ssas são acusações importantes, que devem ser enfrentadas. O argumento feminista não deve ser condescendente para com as mulheres dos países em desenvolvimento que têm suas próprias visões sobre o que é bom. Esse tipo de condescendência é ainda mais prejudicial quando vem 10 Citações de trabalhos de estudantes são da disciplina na S t Lawrence. 11 Para análise de um (típico) ensaio de ahmo que promovia essa tese, ver Cultivating humanity, cap. 4. 12 Compare com Obiora (1997, p. 318-20).

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de mulheres que relutam em criticar os defeitos de sua própria cultura, pois, nesse caso, lembra a pior presunção do colonialismo do tipo “fardo do h o ­ mem branco”. Nossos alunos certamente têm razão ao dizer que conter o próprio julgamento até ter ouvido atentamente as experiências dos mem­ bros da cultura em questão é parte crucial da deliberação inteligente. Por outro lado, a prevalência de uma prática e o fato de que, ainda hoje, muitas mulheres a endossam e perpetuam não devem ser tomados como palavra fi­ nal, pois também há muitas mulheres em culturas africanas que lutam contra ela. Há, também, o fato de que as mulheres que contribuem para perpetuá-la podem fazê-lo em condições de intimidação e de desigualdade econômica e política. Como, então, devemos responder a essas acusações muito comuns? A primeira tese é verdadeira, e é útil que sejamos lembrados disso. Os norte-americanos têm criticado com muita frequência outras culturas sem examinar suas próprias falhas culturais, mas a falta de autocrítica não chega a ser um problema grave para eles em relação a essás questões. Não faltam críticas à imagem do corpo feminino ideal óu a dietas destinadas a produzilo. N a verdade, as feministas norte-americanas parecem ter dedicado uma atenção consideravelmente maior a esses problemas de seu próprio país do que à mutilação genital, a julgar pelo sucesso de livros como 0 mito da beleza, de Naomí Wolf, e Unbearabk wágbt (Peso insuportável), de Susan Bordo. Na verdade, uma revisão da recente literatura feminista sugere que o problema possa estar exatamente na direção oposta, em um foco exagerado em nossos próprios problemas. Nós cedemos ao nardsismo moral ao nos flagelar por nossos próprios erros enquanto deixamos de prestar atenção às necessida­ des daqueles que pedem a nossa ajuda à distância. A segunda tese é certamente falsa. É errado insistir em limpar a própria casa antes de responder a chamadas urgentes de fora. Deveríamos ter dito “tirem-as mãos do apartheid'’ porque continua existindo racismo nos Estados Unidos? Ou, durante a Segunda Guerra Mundial, “tirem as mãos do so­ corro aos judeus” pois, nas décadas de 1930 e 1940, todas as nações que tinham judeus estavam envolvidas em práticas antissemitas? É e deve ser di­ fícil decidir como alocar nosso esforço moral entre abusos locais e distantes. Trabalhar contra ambos é urgentemente importante, e as pessoas tomam decisões legítimas diferentes sobre suas prioridades. Mas o fato de um ser humano necessitado morar casualmente no Togo, em vez de em Idaho, não o torna menos meu semelhante, menos merecedor do meu compromisso moral. E deixar de reconhecer o sofrimento de outro ser humano porque

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estamos ocupados elevando a nossa própria cultura a níveis morais maiores superiores parece o cúmulo da estupidez e do provincianismo morais. Poderíamos acrescentar que a mutilação genital feminina não é, como tal, prática de uma única cultura ou um único grupo de culturas. Ainda nos anos 1940, médicos norte-americanos e britânicos realizavam operações dessa natureza para tratar “problemas” femininos, como masturbação e lesbianismo (id., p. 7). Tampouco existe qualquer grupo cultural ou religioso em que a prática seja universal Nas palavras de Nahid Toubia, a mutilação genital feminina é uma questão que dÍ2 respeito a homens e mu­ lheres que acreditam na igualdade, na dignidade e na justiça para todos os seres humanos, independentemente de sexo, religião, raça ou identidade étnica .... Ela representa uma tragédia humana e não pode ser usada para colocar africanos contra não-africanos, um grupo religioso contra outro, ou mesmo mulheres contra homens (Toubia, 1995, p. 233).

Se fosse verdadeira, a terceira tesé poderia sustentar uma decisão de dar prioridade ao local em nossa ação política (embora, não necessariamente, fala e escrita): se dois abusos são moralmente iguais e temos informações loçais melhores sobre um deles, e estamos mais bem posicionados politica-. mente para fazer algo a respeito, parece sensato optar por focar nossas ações nesse abuso aqui e agora. Mas a terceira tese é verdadeira? Certamente não. Listemos as diferenças. 1) A mutilação genital feminina é realizada à força, enquanto as dietas feitas em resposta a imagens culturalmente construídas de beleza são uma questão de escolha, por mais sedutora que seja a persuasão. Poucas mães restringem a alimentação de suas filhas a níveis insalubres para torná-las ma­ gras; na verdade, a maioria das mães de meninas anoréxicas fica horrorizada e profundamente entristecida pela condição de suas filhas. Em contraparti­ da, durante a mutilação genital, meninas pequenas, muitas vezes de apenas quatro ou cinco anos, costumam ser seguradas à força por um grupo de mu­ lheres adultas, como no Togo, e não têm qualquer chance de escolher outra opção. Às escolhas envolvidas nas dietas com frequência não são totalmente autônomas, e podem sei psodato de desinformação-e poderosas forçasso^ ciais que pressionam as mulheres para fazer escolhas, às vezes perigosas, que elas não fariam de outra forma. Devemos criticar essas pressões e a ausência de autonomia total criada por elas. Mesmo assim, a distinção entre pressão social e força física também deve continuar sendo destacada, tanto moral quanto juridicamente. (Da mesma forma, a linha entre a sedução e o estu­ pro é difícil de traçar, e com frequência se transforma na distinção enganosa 346

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entre uma ameaça e uma oferta, e em questões igualmente difíceis sobre quais ameaças de danos eliminam o consentimento.) No entanto, devemos fazer essa distinção da melhor maneira que pudermos e reconhecer que exis­ tem diferenças relevantes entre mutilação genital e dietas para emagrecer, como estas costumam ser praticadas nos Estados Unidos. 2) A mutilação genital feminina é irreversível, enquanto a dieta está, como bem se sabe, longe de ser irreversível. 3) A mutilação genital feminina costuma ser realizada em condições que, em si, são perigosas e insalubres —condições a que nenhuma criança deve ser exposta; as dietas não o são. 4) A mutilação genital feminina está ligada a problemas de saúde amplos e que, em alguns casos, duram a vida toda. (Na região de Kassindja, as m or­ tes são racionalizadas pela sabedoria popular de que o sangramento abun­ dante é sinal de que a menina não é virgem.) Fazer dieta só está associado a problemas dessa gravidade em casos extremos de anorexia e bulimia que, mesmo assim, são reversíveis. 5) A mutilação genital feminina geralmente é feita em crianças sem ida­ de para consentir, mesmo se o consentimento fosse solicitado; as dietas envolvem, sobretudo, adolescentes e jovens "adultas13. Mesmo quando as crianças têm mais idade, o consentimento não é solicitado. E típica a decla­ ração de um pai de uma menina de 12 anos, da Costa do Marfim, prestes a ser cortada. “Ela não tem escolha”, afirmou. “E u decido. O ponto de vista dela não é importante”. Sua esposa, que pessoalmente se opõe à prática, concorda: “Isso é com o meu marido”, ela afirma. “O homem toma as de­ cisões sobre as crianças”14. 6) Nos Estados Unidos, mais mulheres do que homens completam o ensino fundamental, e mais mulheres do que homens completam o ensino médio; a alfabetização dos adultos é de 99% para homens e mulheres. No Togo, a alfabetização feminina adulta é de 32,9% (52% da dos homens), no Sudão, de 30,6% (56% dos homens), na Costa do Marfim, de 26,1% (56%), em Burkina Faso, de 8% (29%). O analfabetismo é um obstáculo à indepen­ dência^ outros obstáculos são introduzidos pelajiepmdência.ecoriôrnica.. e falta de oportunidades de emprego. Esses fatos sugerem limites às noções de consentimento e escolha, mesmo quando aplicados às mães ou parentes

13 “African Ritual Pain.” 14 Toubia encontrou casos raros em que mulheres que foram submetidas a clitoridectomia e mesmo a infibulação intermediária a convenceram de que tiveram orgasmo. Ela atribui isso a habilidades psicológicas incomuns, juntamente com as capacidades de fontes secundárias de estimulação sexual.

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que realizam a operação, que podem não estar cientes do grau de resistência à prática em suas próprias sociedades e em outras cuja semelhança seja rele­ vante. A esses limites, podem-se acrescentar aqueles que são impostos pela impotência política, a desnutrição e a intimidação. A esposa do patriarca no clã de Fauziya Kassindja disse a uma repórter que se opõe à prática e teria fugido como Fauziya se pudesse, mas, mesmo assim, vai permitir a operação de sua filha bebê. “E u tenho que fazer o que meu marido diz”, ela conclui. “D ar ordens não é para as mulheres. Eu sinto o que aconteceu com o meu corpo, eu me lembro do meu sofrimento, mas eu não posso impedir isso para a minha filha.” 7) A mutilação genital feminina significa a perda irreversível da capaci­ dade para um tipo de funcionamento sexual que muitas mulheres valorizam imensamente, e acontece em geral quando elas não têm idade para saber qual o valor que isso tem ou não tem em sua própria vida. N o caso raro em que a mulher pode fazer a comparação, ela geralmente relata profundo pe­ sar. Mariam Razak, vizinha dos Kassindja, tinha 15 anos quando foi cortada, com cinco mulheres adultas segurando-a. Ela tinha tido relações sexuais com o homem que agora é seu marido antes daquele momento e achou satisfatório. Agora, ambos dizem, as coisas são difíceis. Mariam compara a perda a ter uma doença terminal que dure a vida_toda. “Agora”, diz o marido dela, “algo se perdeu naquele lugar (...) eu tento fazê-la sentir prazer, mas não funciona muito bem”15. 8) A mutilação genital feminina está inequivocamente ligada aos costu­ mes da dominação masculina. Mesmo suas justificações oficiais, em termos de pureza e decoro, apontam para aspectos da hierarquia sexual. E típica a declaração do agricultor egípcio Said Ibrahim, chateado com a proibição do governo: “Eu devo ficar olhando sem fazer nada enquanto minha filha persegue homens?” Ao que Mohammed Ali, 17 anos, acrescentou: “Proibir [a mutilação] deixaria as mulheres enlouquecidas, como as dos Estados Unidos”. As relações sexuais construídas por essa prática são relações em que o intercurso sexual se torna um veículo para o prazer masculino unilate­ ral, e não para o prazer mútuo16. Por outro lado, a imagem do corpo feminino ideal difundida na mídia norte-americana tem desdobramentos múltiplos e complexos, incluindo os 15 Encontrei reflexões valiosas sobre esse ponto em “Suffering and Sexuality”, de Grant Comwell, uma descrição de sua experiência no Quênia como paite de um grupo docente da Universidade S t Lawrence. 16 Toubia sugere a analogia mais pertinente com os implantes artificiais de seios, que envolvem de fato graves riscos à saúde, mas não prejudicam o funcionamento da mesma forma.

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da dominação masculina, mas também incluindo os de aptidão física, inde­ pendência e redução da maternidade na adolescência. Essas diferenças ajudam a explicar por que não há uma campanha séria para tornar ilegais os anúncios sobre programas de dietas ou as fotos de mulheres magras na Vogue, enquanto a mutilação genital feminina é ilegal na maioria dos países em que ocorre17. (No Sudão, a prática é punida com pena de prisão de até dois anos.) Essas leis não são bem aplicadas, mas sua existência indica um amplo movimento contra a prática nos países envol­ vidos. Mulheres de regiões onde a prática é tradicional dão evidências de que sua concordância com ela, quando existe, deve-se a intimidação e falta de opções; mulheres de regiões adjacentes, onde a prática não é tradicional, costumam deplorá-la citando riscos à saúde, perda de prazer e sofrimento desnecessário18. Essas diferenças também explicam porque Fauziya Kassindja conseguiu conquistar o asilo político. Não veremos argumentos semelhantes em defesa do asilo político para mulheres norte-americanas que foram pressionadas pela cultura a ser magras - por mais que continue sendo correto criticar as normas da beleza feminina exibidas na Vogue (como alguns anunciantes já começaram a fazer), as práticas de algumas mães e as muitas pressões ocultas que se combinam para produzir distúrbios alimentares em nossa sociedade. Da mesma forma, embora a perspectiva de enfaixamento dos pés do tipo tradicional chinês (em que os ossos dos pés eram quebrados repetidamente e a carne apodrecia19), na minha opinião, fosse motivo para asilo político, a presença de anúncios de sapatos de salto alto certamente não seria, ainda que possa haver muitos problemas associados a esse costume. Até mesmo a publicação de artigos incitando as mulheres a passar pela mutilação genital feminina deve ser considerada totalmente diferente de se forçar uma mulher a se submeter ao procedimento. Como, então, a mutilação genital feminina se justifica tradicionalmente, quando se justifica? Em termos sociais, é altamente provável que a mutila­ ção tenha surgido como o equivalente funcional da reclusão de mulheres. As africanas, ao contrário deindianas, paquistanesas e outras, são grandes pro­ dutoras agrícolas. Não há barreiras para o trabalho da mulher fora de casa e, na verdade, toda a organização da agricultura na África costuma se basear na 17 Encontrei descrições dessas visões, em um povoado do Quênia, nos manuscritos de Eve Stoddard, Grant Comwell e dos membros do Giupo de encontros da Universidade S t Lawrence. 18 Para uma descrição particularmente vivida dessa prática, ver Chang (1991). Ver, também, Dworkin (1974, p. 95-116), com citações de memórias e estudos acadêmicos. 19 Sobre os dois estilos de organização agrícola, ver a obra clássica de Boserup (1986(1986 [1971]).

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centralidade da mão de obra feminina20. Na índia, a pureza das mulheres é assegurada tradicionalmente pela reclusão; na África, esta garantia não exis­ tia, e surgiu outra forma de controle. Mas é claro que esta história funcional não justifica a prática. Que argumentos estão disponíveis atualmente? Hoje em dia, existe um consenso geral de que não há qualquer exigên­ cia religiosa para se realizar a mutilação genital feminina. A declaração mais citada do profeta Maomé sobre a prática (de uma resposta a uma pergunta durante um discurso) torna o processo não essencial, e a força de sua decla­ ração parece ter sido desencorajar o corte extenso em favor de um tipo mais simbólico de operação? (Kenyatta, 1938). A única referência à operação no Hadith a classifica como um makrama, ou prática não essencial. A mutilação genital feminina simplesmente não é praticada em muitos países islâmicos, incluindo Paquistão, Argélia, Tunísia, Arábia Saudita, Irã e Iraque. Defesas que apelam à moralidade (a prática impede as mulheres de fazer sexo extraconjugal) encontram eco porque se conectam à sua provável justificação original, mas pressupõem um quadro inaceitável das mulheres como inde­ centes e infantis. Por mais que sejam tratados com sinceridade, esses argu­ mentos não devem ser aceitos por pessoas com um interesse na dignidade dãs mulheres. As defesas em termos de beleza física são mais complicadas, porque sabemos o quanto as culturas diferem naquilo que consideram belo, mas mesmo as percepções de beleza (também em questão no enfaixamento dos pés chinês) devem se render ante evidências de comprometimento da saúde e das funções sexuais. Argumentos que alegam que, sem a prática, as mulheres não serão aceitáveis aos homens podem indicar algo verda­ deiro em circunstâncias locais (como também era o caso do enfaixamento dos pés) e podem, portanto, fornecer uma justificativa para que famílias específicas cedam ao costume como o mal menor (embora isso aconteça menos agora do que anteriormente, devido à resistência generalizada a essa 20 Ver (Toubia, 1995, p. 236); cf. FGM, 31. Maomé disse aos que o escutavam para “circuncisar”, mas não “mutilar*’, pois não destruir o clitórís seria melhor para o homem e feria brilhar o rosto da mulher - uma ori­ entação que muitos interpretam como a ordem para uma “circuncisão de tipo masculino na qual o prepúcio é removido, tomando o clitórís ainda mais sensível ao toque” (Toubia, 1995, p. 236). Ver, também, Lucas (t-993? p. 53). Obiora ataca cste^aagümento contrário à defésãde base religiosa dizendo que "a afirmação original sobre a posição só se aplica a pessoas dispostas a denegrir a religião nativa africana como uma farsa” (1997, p. 350). Mas o simples fato de que a prática é anterior à chegada do islã e do cristianismo à Africa não demonstra que ele seja religioso em vez de cultural, e Obiora não apresenta qualquer argumento que nos ajude a distinguir as duas esferas. Além disso, a discussão jurídica deve ser se a prática é defen­ dida como parte de um sistema religioso de crença hoje em dia, e não se ela teve essa conexão em algum momento. De qualquer forma, como Obiora observa, mesmo nos Estados Unidos, com seu entendimento muito liberal da liberdade religiosa, a proteção do bem-estar e da saúde das crianças geralmente tem sido considerada como prioridade em relação ao interesse dos pais de iniciar as crianças na prática religiosa. Ver Prince v. Massachusetts (1944).

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prática na maioria das áreas onde ocorre). N o entanto, é evidente que esses argumentos não podem justificai a prática em termos morais ou legais; da mesma forma, os argumentos aconselhando escravos a se comportar se não quiserem apanhar talvez sejam um bom conselho, mas não podem justificar a instituição da escravidão. O ãrgumento mais forte em favor da prática apela à continuidade cultu­ ral. Jomo Kenyatta e outros enfatizaram o papel constitutivo desempenha­ do por esses ritos de inidação na formação de uma comunidade e o efeito desintegrador da interferência (FGM, 29). Por essa razão, Kenyatta se opôs à criminalização da cirurgia e recomendou um processo mais gradual de educação e persuasão. Embora se deva ter alguma simpatia para com essas preocupações, ainda é importante lembrar que uma comunidade não é uma unidade orgânica misteriosa, mas uma pluralidade de pessoas com diferentes relações de poder entre si. Não é tão óbvio que o tipo de coesão gerado pela subordinação e por danos às funções seja algo a ser perpetuado. Além disso, 60 anos após a ambivalente defesa de Kenyatta, vemos amplas evidências de resistência dentro de cada cultura, e não há razão para pensar que a prájdca é mantida viva, acima de tudo, pelas próprias extirpadoras, paramédicas que desfrutam de alta renda e grande prestígio na comunidade em funçao de sua ocupação. Essas mulheres muitas vezes têm status de sacerdotisas e exercem grande influência sobre as percepções sociais (Tamir, ano?, p. 21). Os países que agem contra a prática certamente devem providenciar a segurança econômica dessas mulheres, mas isso não sigmfica considerá-las como intérpretes imparciais da tradição cultural. Nos casos em que esses rituais de iniciação ainda sejam considerados como uma valiosa fonte de so­ lidariedade cultural, eles certamente podem ser praticados (como já são, em alguns lugares) usando uma operação meramente simbólica que não remova tecido algum. Tratemos, agora, da quarta tese. Um tema secundário nos recentes de­ bates feministas sobre a mutilação genital feminina é o ceticismo em relação ao valor humano das funções sexuais. A filósofa Yael Tamir, por exemplo, argumenta que feministas hedonistas norte-americanas atribuíram demasiado valor ao prazer. Ela sugere que são os interesses dos homens, acima de tudo, que estão sendo atendidos com isso, porque o prazer sexual feminino em nossa sociedade é “visto como uma medida do poder sexual e' das con­ quistas dos homens” e porque os homens consideram as mulheres que não gostam de sexo mais intimidantes do que as que gostam.

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Estou disposta a concordar com Tamir nesse ponto: a atenção dada à mutilação genital me parece um tanto desproporcional, entre os muitos abusos graves que o mundo pratica contra as mulheres, como nutrição e cui­ dados de saúde desiguais, ausência do direito de reunião e de caminhar em público, ausência de igualdade perante a lei, ausência de igualdade de acesso à educação, infanticídio e feticídio seletivo por sexo, violência doméstica, estupro conjugal, estupro sob custódia policial e tantos outros. Ao contrário de Tamir, acredito que a principal razão para esse foco não seja um fascí­ nio pelo sexo, mas a possibilidade relativa de lidar com a mutilação como problema prático, considerando-se que ela já enfrenta ampla resistência e, na verdade, é ilegal e, por isso, não é apoiada por religião alguma. É muito mais difícil enfrentar a desigualdade jurídica das mulheres perante os tribu­ nais islâmicos, a fome generalizada que elas sofrem, seu analfabetismo, sua sujeição a agressões e violência. Mas, certamente, Tamir tem razão em dizer que não devemos focar nesse abuso específico enquanto relaxamos nossa determinação de fazer mudanças estruturais que aproximem as mulheres da igualdade plena no mundo como um todo. E ela também pode ter razão ao sugerir que o fascínio com a mutilação genital contém pelo menos um elemento sensacionalista ou mesmo las eivo. Tamir, no entanto, não se limita a criticar o foco desproporcional na mutilação genital feminina, e sim oferece uma depreciação mais geral da importância do prazer sexual como elemento do desenvolvimento humano. Esta parte de seu argumento é falha por não fazer uma distinção crucial: entre uma função e a capacidade de escolher essa função. Criticando seus oponentes por sua suposta crença de que a capacidade para o prazer sexual é um bem humano central, ela escreve: As freiras fazem um voto de celibato, mas não costumamos condenar a igreja por impedir suas religiosas de desfrutar de tuna vida sexual ativa. Além disso, a maioria de nós não acha que Madre Teresa leva uma vida pior do que a de Cicdolina, embora esta afirme ter experimentado um grande número de orgasmos. E verdade que às freiras se oferece vida espiritual em troca de bens terrenos, mas, nas sociedades onde é feita a clitoridectossa, a vida p ie n ad e ser mãe e cuidar dos filhos é oferecida em troca. Alguns podem afirmar^ com razão, que tuna mulher pode funcionar como esposa e mãe e, ao mesmo tempo, ex­ perimentar prazeres sexuais. Outros acreditam que a devoção total a Deus não exige juramento de celibato. N o entanto, apesar de tudo, estes pontos de vista são uma questão de convenção21 (Tamir, 1997, p. 21). 21 Obviamente, no passado, muitas mulheres foram forçadas a se tomar freiras por suas famílias; nessa

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Há uma série de estranhezas nesse argumento. (É difícil, por exemplo, saber o que pensar da afirmação de que a possibilidade de combinar prazer sexual com maternidade é uma mera “questão de convenção”.) Mais impor­ tante, no entanto, Tamir caracteriza equivocadamente o debate. Nenhuma oponente feminista da mutilação genital está dizendo nem sugerindo que o celibato é ruim, que as freiras têm uma vida de carências, que o orgasmo é a razão de ser da existência. Não conheço oponente que não concordasse com a afirmação de Tamir de que as mulheres “não são meras agentes se­ xuais, que sua capacidade de levar uma vida rica e gratificante não depende unicamente da natureza de sua vida sexual”. Mas há uma grande diferença entre jejuar e passar fome; da mesma forma, também existe uma grande di­ ferença entre um voto de celibato e a mutilação genital. O celibato envolve a escolha de não exercer uma capacidade à qual as freiras, sendo católicas ro­ manas ortodoxas, atribuem considerável valor humano22. Seu exercício ativo é considerado bom para todos esses seres humanos, exceto para alguns, e até mesmo para estes, é a escolha de não usar uma capacidade que se tem (como no caso de jejum) que é considerada moralmente valiosa. (Um católi­ co deve considerar que uma sobrevivente de mutilação genital feminina não pode alcançar o bem cristão do celibato.) A mutilação, ao contrário, envolve renunciar completamente à própria possibilidade das funções sexuais - e, como eu disse, bem antes de se ter idade para fazer essa escolha23. Todos sabemos que pessoas cegas ou que não conseguem andar podem levar uma vida rica e significativa, mas todos deploraríamos práticas que, deliberada­ mente, incapacitassem as pessoas nesses aspectos, e tampouco pensaríamos que os críticos dessas práticas estão dando importância indevida ao andar ou à visão na vida humana. Será que as próprias mães dessas meninas podem fazer uma escolha informada sobre o valor do prazer sexual feminino? Elas foram imersas em crenças tradicionais sobre a impureza das mulheres; sem alfabetização nem educação, como acontece com grande parte, elas têm dificuldade de buscar paradigmas alternativos. Como aponta o relatório da imigração, a situação delas se torna mais difícil em função de medo e impotência. Igualmente situação (que ainda pode existir em alguns países), o celibato cristão é mais diretamente comparável à MGF. 22 Assim, não surpreende que os cristãos tenham estado entre os principais adversários da prática. Ver FGM, p. 32, que enfatiza o papel de líderes cristãos ao levantar a questão no parlamento britânico. Toubia observa, contudo, que a igreja copta tem silenciado em relação à MGF e a igreja ortodoxa da Etiópia a apoia ativamente. 23 Ver, contudo, o poema 65 de Catulo, quando um devoto de um culto asiático se castra a serviço da deusa - e é então prontamente tratado pelo pronome feminino!

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importante, sua própria experiência da vida sexual não pode ter incluído prazei orgástico se elas mesmas passaram pela mutilação quando meninas; mesmo se não passaram, é muito provável que tenham vivenciado o ca­ samento e a vida sexual como uma série de insultos à sua dignidade, dada a onipresença da violência doméstica e do estupro conjugal. Se acreditam que a mutilação genital é ruim para suas filhas, como é o caso de uma parte significativa das mulheres entrevistadas nas histórias recentes, elas não têm poder para implementar suas escolhas, e têm muitos incentivos para ocultar suas opiniões. Esses fatos não mostram que as mulheres que tiveram uma experiência mais afortunada com casamento e sexualidade estejam come­ tendo um erro ao afirmar que a capacidade para o prazer sexual deve ser preservada para quem talvez escolha exercê-la. Certamente há algo errado com qualquer situação social em que as mulheres sejam vistas apenas ou principalmente como objetos sexuais, mas criticar essas percepções nada tem a ver com a defesa da mutilação genital. Tamir tampouco nos apresenta qualquer razão para supor que a im­ portância do prazer sexual das mulheres seja uma construção mítica do ego masculino. Várias mulheres já disseram apreciar muito o sexo, e não há razão para pensar que todas sejam vítimas de falsa consciência. Provavelmente é verdade que alguns homens consideram as mulheres que não gostam de sexo mais intimidantes do que as que gostam, mas seria bastante perverso negar prazer a si próprias simplesmente para intimidar os homens. Além disso, na situação que estamos examinando, no caso da mutilação genital, o medo masculino que existe certamente é o da agência sexual das mulheres, que é sinal de que a mulher não é simplesmente uma posse e pode até mes­ mo experimentar o prazer com alguém que não seja seu proprietário. Seria muito improvável que as mulheres africanas pudessem conquistar poder e intimidar os homens fazendo mutilação genital. O ataque a essa prática faz parte de uma tentativa mais geral das mulheres de assumir o controle de suas capacidades sexuais; portanto, é semelhante aos ataques contra o estupro, o estupro conjugal, o assédio sexual e a violência doméstica. É exatamente esse desafio ao controle masculino tradicional que muitos homens conside­ ram ameaçador. N a parte final de sua discussão sobre a mutilação genital feminina, Ysel Tamir imagina um país chamado Libídia, onde mulheres com clitóris au­ mentados artificialmente descobrem que não podem fazer outra coisa que não sexo e, por isso, procuram remover o clitóris para ter uma vida me­ lhor. Desta forma, ela sugere que o prazer sexual prejudica outras valiosas 354

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funções humanas, de modo que se pode plausivelmente considerar sua re­ moção como uma coisa útil, um pouco como uma ida ao dentista para se livrar de um dente enfermo. Ela expressa uma ideia platônica sobre a rela­ ção entre continência e criatividade intelectual, que pode ser verdade para alguns indivíduos, algumas vezes, mas certamente não é um dado universal da experiência humana. D e fato, Platão afirma no Fédon que a vida mental seria muito melhor se os apetites do corpo pudessem ser postos de lado na medida do possível, embora nem mesmo ele tenha sustentado essa posição com absoluta coerência nem sugerido a mutilação genital como solução. Aristóteles, por outro lado, considerou que alguém que fosse insensível à gama completa dos ptazeres do corpo estaria “longe de ser um ser huma­ no”. Não precisamos decidir qual pensador está certo - nem para quais pessoas cada um deles está certo —para decidir de forma sensata que a mutilação genital feminina não é como uma apendicectomia, que envolve a remoção de uma capacidade de cujo valor a história e a experiência já disse­ ram muito. As pessoas podem escolher se e como exercê-la, assim como nós também escolhemos se e como usar nossas capacidades atléticas e musicais. A crítica interna vem mudando lentamente a situação nas nações em que a mutilaçãcT genital feminina tem sido praticada tradicionalmente. O filho de 18 anos do patriarca da família Kassindja disse a repórteres que que­ ria se casar com uma mulher que não tivesse sido cortada, porque os profes­ sores em sua escola do ensino médio haviam influenciado seu pensamento. Atualmente, o patriarca é a favor de tornar a prática opcional, para desen­ corajar outras fugitivas, que dão má reputação à família. O próprio fato de que a idade parà o corte no Togo venha diminuindo constantemente (de 12 para 4), com objetivo de (segundo a extirpadora) desestimular fugitivas, fornece evidências de uma resistência cada vez maior à prática. Mas muitos dos homens e mulheres nas nações implicadas que estão lutando contra esta prática são pobres, desiguais perante a lei, analfabetos, fracos ou têm medo, e muitas vezes, tudo isso. Não há dúvida de que eles querem ajuda externa. Também não há dúvida de que eles encontram oposição local —como sem­ pre acontece quando se age para mudar um costume profundamente enrai­ zado e conectado a estruturas de poder. (Como sugeri, algumas das pessoas envolvidas têm fortes interesses pessoais, econômicos e de prestígio na ma­ nutenção do status quo.) Suzanne Aho, diretora da Agência para a Proteção e Promoção da Família, do Togo, explica que tenta aconselhar os homens sobre os direitos de escolha das mulheres,_mas se depara com o peso morto

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do costume. D o patriarca Kassindja, ela diz: ‘“Você não pode forçá-la’, eu disse a ele. Ele entendeu, mas disse que é uma tradição”. Esses defensores da tradição estão ávidos, muitas vezes, para rotular seus adversários internos como ocidentalizantes, colonialistas e qualquer ou­ tra coisa ruim que possa carrear o sentimento público. Por isso mesmo, o pai de Fauziya foi acusado de “tentar agir como um branco”. Contudo, esta forma de desviar a crítica interna não deve intimidar pessoas de fora que já refletiram sobre o assunto, ao mesmo tempo em que ouviam os relatos das mulheres que estiveram envolvidas na realidade da mutilação genital. A acu­ sação de “colonialismo” supostamente significa que as normas de um grupo opressor estejam sendo assimiladas sem pensar, geralmente para agradar a esse grupo. Não é isso que está acontecendo no caso da mutilação genital feminina. N a ONU, na Human Rights Watch, em muitas organizações em todo o mundo e em inúmeros vilarejos locais, a questão tem sido debati­ da. Até o não muito progressista Serviço de Imigração e Naturalização dos Estados Unidos foi influenciado pelos dados que coletou. O vigor da resis­ tência interna deve dar confiança às pessoas de fora que trabalham para se opor à prática. Muitas vezes, a pressão externa pode ajudar um grupo inter­ no relativamente impotente que está lutando para conseguir uma mudança. Em suma, autoridades internacionais e nacionais que têm sido respon­ sabilizadas por sua lentidão em reconhecer abusos específicos de gênero como violações dos direitos humanos estão começando a entender que os direitos das mulheres são direitos humanos, e que a liberdade em relação à mutilação genital feminina está entre eles. Sem abandonar uma maior pre­ ocupação com toda a lista de abusos que as mulheres sofrem nas mãos de costumes e indivíduos injustos, devemos manter a mutilação na lista de práticas inaceitáveis que violam os direitos humanos das mulheres, e deve­ mos sentir vergonha de nós mesmas se não usarmos quaisquer privilégios e poderes que tenhamos para fazê-la desaparecer para sempre.

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O MULTICULTURALISMO É « U IM PARA AS MULHERES ? 1

Susan Moller Okin

Até algumas décadas atrás, a expectativa típica era a de que os grupos minoritários —imigrantes e povos indígenas —fossem assimilados às culturas majoritárias2. Hoje, essa expectativa assimilacionista é frequentemente con­ siderada opressiva, e muitos países ocidentais estão procurando conceber novas políticas que sejam mais condizentes com a persistência de diferenças culturais. As políticas apropriadas variam segundo o contexto: países como a Inglaterra, com igrejas nacionais ou educação religiosa apoiada pelo Estado, acham difícil resistir às demandas por estender o amparo estatal às escolas religiosas de minorias; países como a França, com tradição de um ensino público estritamente secular, digladiam-se sobre a questão de perm itir ou não que as vestimentas exigidas pelas religiões minoritárias sejam usadas nas escolas públicas. Mas, embora tenha passado despercebida no debate atual, uma questão é recorrente em todos os contextos: o que fazer quando as exigências das culturas ou religiões minoritárias se chocam com a norma da jigualdade de gênero que, gelo menos formalmente, é endossada pelos Estados liberais (independentemente do quanto estes continuem a violá-la em suas práticas)? No final dos anos 1980, por exemplo, uma aguda controvérsia pública se desencadeou na França a propósito de as meninas magrebinas freqüen­ tarem a escola usando o tradicional véu muçulmano, considerado uma peça de vestimenta apropriada para as jovens adolescentes após a puberdade. Os ferrenhos defensores da educação secular alinharam-se contra essa prática, juntamente com algumas feministas e com os nacionalistas de extrema direi­ ta; grande parte da velha esquerda apoiou as demandas multiculturalistas por flexibilidade e respeito à diversidade, acusando seus oponentes de racismo ou de imperialismo cultural. Nessa mesma ocasião, entretanto, o público manteve-se virtualmente silencioso quanto a um problema de importância imensamente maior para muitas mulheres imigrantes arábico-francesas e africanasi-a^poUganaia.------------------------------ ------ ------V ------------- Durante a década de 1980, o governo francês quietamente permitiu que homens imigrantes trouxessem múltiplas esposas ao país, ao ponto 1 Tradução de Verso Tradutores do original “Is multiculturalism bad for women?H. Is multiculturalism bad fo r woman?. Direitos cedidos por Princeton University Press. 2 Agradeço a Elizabeth Beaumont pela assistência na pesquisa e a ela e Joshua Cohen pelos profícuos comentários a uma versão anterior deste artigo.

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I

de estimar-se existirem atualmente 200.000 famílias poligâmicas em Paris. Qualquer suspeita de que. a preocupação oficial com os véus cobrindo a cabeça fosse motivada por um impulso no sentido da igualdade de gênero vê-se contraditada pela tranqüila adoção de uma política permissiva com relação à poligamia, apesar do ônus que essa prática impõe às mulheres des­ sas culturas e das amplamente conhecidas advertências feitas por elas3. Essa questão rião galvanizou qualquer oposição politicamente efetiva. Entretanto, quando os repórteres finalmente vieram a entrevistar as mulheres envol­ vidas em relações poligâmicas, eles descobriram o que o governo poderia ter aprendido anos antes: que as mulheres afetadas pela poligamia viam-na como uma instituição escassamente suportável, mas inescapável em seus países africanos de origem, e como uma imposição intolerável no contexto francês. Apartamentos superlotados e falta de espaço privado para cada es­ posa levavam a uma imensa hostilidade, ressentimento, e mesmo violência tanto entre as esposas como contra as crianças umas. das outras. Em parte por causa da pressão sobre o sistema de previdência e as­ sistência social gerada por famílias constituídas por 20 ou 30 membros, o governo francês recentemente decidiu reconhecer apenas uma esposa e con­ siderar anulados todos os outros casamentos. Mas, :o que acontecerá com as outras esposas e filhos? Tendo ignorado por tanto tempo a visão das mulheres sobte a poligamia, o governo agora parece estar abdicando de sua responsabilidade pela vulnerabilidade que sua política temerária infligiu às mulheres e crianças. A acomodação promovida pela França com relação à poligamia ilus­ tra uma tensão profunda e crescente entre o feminismo e a preocupação multiculturalista com a proteção da diversidade cultural. Penso que nós — especialmente aquelas que se consideram politicamente progressistas e se opõem a todas as formas de opressão —fomos demasiado apressadas em assumir que feminismo e multiculturalismo são ambos coisas boas e facil­ mente harmonizáveis. Argumentarei que, em vez disso, há uma considerável possibilidade de tensão entre eles —mais precisamente, entre o feminismo è a defesa multiculturalista dos direitos de grupo para as cnlturasmiaoritárias. Seguem algumas palavras para explicar os termos e o foco de meu argu­ mento. Entendo por feminismo a convicção de que as mulheres não devem fi­ car em desvantagem em virtude de seu sexo, devem ter sua dignidade huma­ na reconhecida como equivalente à dos homens, e devem ter a oportunidade de poder viver suas vidas tão plena e livremente, segundo suas escolhas, 3 International Herald Tribme, 2/2/1996, seção de noticias.

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O multiculturalismo é ruim para as mulheres? | Susan M oller Okin

como ocorre com os homens. Multiculturalismo é algo mais difícil de definir, mas o aspecto particular com qu^estou preocupada aqui é a alegação, feita no contexto de democracias basicamente liberais, de que as culturas ou mo­ dos de vida minoritários não são suficientemente protegidos pela prática de assegurar os direitos individuais de seus membros e, por conseguinte, estes deveriam ser também protegidos por meio de direitos ou privilégios espe­ ciais degntpo. N o caso francês, por exemplo, o direito de contrair casamentos poügâmicos constituiu claramente um direito de grupo, não disponível para o resto da população. Em outros casos, os grupos reivindicaram direitos a se autogovernar, a ter representação política garantida, ou a ser dispensados do cumprimento de certas leis de aplicação generalizada. As demandas por tais direitos de grupo estão crescendo —das popu­ lações indígenas originais, passando pelas, minorias étnicas ou grupos reli­ giosos, até os povos anteriormente colonizados (pelo menos quando pes­ soas destes últimos emigram para o Estado anteriormente colonizador). Argumenta-se que esses grupos têm suas próprias “culturas societárias”, as quais —como diz Will Kymlicka, o mais notável defensor contemporâneo dos direitos dos grupos culturais —proporcionam a seus membros “modos de vida significativos através de todo o espectro das atividades humanas, in­ cluindo a vida social, educacional, religiosa, recreativa, e econômica, abran­ gendo tanto a esfera pública como a esfera privada” (Kymlicka, 1995, p. 76 e 89)4. Como as culturas societárias desempenham um papel tão dissemina­ do e fundamental nas vidas de seus membros, e porque tais culturas estão ■ameaçadas de extinção, as culturas minoritárias deveriam ser protegidas por direitos especiais. Esse é, em essência, o argumento em favor de direitos de grupo. Alguns proponentes de direitos de grupo argumentam que deveriam ser concedidos direitos ou privilégios de grupo, mesmo às culturas que “des­ consideram os direitos [de seus membros individuais] em uma sociedade liberal” (Margalit e Halbertal, 1994, p. 491), se sua condição minoritária põe em risco a sobrevivência da cultura. Outros não afirmam que todos os gru­ pos minoritários deveriam ter direitos especiais, mas antes que tais grupos —mesmo os não liberais, que violam os direitos de seus membros individu­ ais, exigindo que se conformem às crenças ou normas do grupo —têm o direito de “ser deixados em paz” em uma sociedade liberal (Kukathas, 1992, p. 105-139). Ambas as alegações parecem claramente inconsistentes com 4 Ver também Kymlicka (1989). Deve-se observar que o próprio Kymlicka não defende direitos de grupo abrangentes e permanentes paia os imigrantes voluntários.

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o valor liberal básico da liberdade individual, que requer que os direitos do grupo não se anteponham aos direitos individuais de seus membros; por conseguinte, não tratarei aqui dos problemas adicionais que elas apresentam para as feministas (Okin, 1998, p. 661-84). Contudo, alguns defensores do multiculturalismo limitam, em grande medida, a sua defesa dos direitos de grupo a grupos internamente liberais.5 Mesmo com essas restrições, femi­ nistas - isto é, todos os que endossam a igualdade moral entre o homem e a mulher - deveriam permanecer céticos. Argumentarei nesse sentido.

Gênero e cultura A maioria das culturas está repleta de práticas e ideologias com respeito ao gênero. Suponha, então, que uma cultura endosse e facilite de variadas formas o controle dos homens sobre as mulheres (mesmo que informal­ mente, na esfera privada da vida doméstica). Suponha também que haja dis­ paridades de poder razoavelmente claras entre os sexos, de tal modo que seus integrantes mais poderosos, os masculinos, estejam em geral em po­ sição de determinai e articular as crenças, práticas e interesses do grupo. Sob tais condições, os direitos de grupo são potencialmente e, em muitos casos, de fato, antifeministas. Eles limitam substancialmente a capacidade das mulheres e meninas dessa cultura para uma vida com dignidade humana igual à dos homens e meninos, e para viver vidas de sua livre escolha, como é facultado a estes últimos. Por pelo menos duas. razões os defensores de direitos de grupo para minorias nos Estados liberais não trataram adequadamente dessa simples crítica a tais direitos. E m primeiro lugar, eles tendem a considerar os gru­ pos culturais como monolíticos, prestando mais atenção às diferenças entre grupos do que às diferenças internas a eles. Especificamente, eles conferem pouco ou nenhum reconhecimento ao fato de que os grupos culturais mino­ ritários, da mesma forma que as sociedades em que eles existem (embora em maior ou menor extensão), são eles mesmos organizados pelo gênero, com substanciais diferenças de poder e de condições favoráveis entre homens e mulheres. Em segundo lugar, os defensores dos direitos de grupo dedicam pouca ou nenhuma atenção à esfera privada. Algumas das mais persuasivas defesas liberais dos direitos de grupo frisam que os indivíduos necessitam de “uma cultura própria” e que é somente no interior dessa cultura que as 5 Por exemplo, Kymlicka (1989, esp. cap. 8). Kymiicka não aplica aos grupos que denomina “minorias nacionais” o requisito de que sejam internamente liberais, mas não tratarei aqui desse aspecto de sua teoria.

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pessoas podem desenvolver um sentimento de autoestima e de respeito pró­ prio, bem como a capacidade para decidir que tipo de vida é bom para elas. Mas esses argumentos negligenciam tipicamente tanto os diferentes papéis que os grupos culturais impõem a seus membros como o contexto em que são inicialmente formadas a percepção de si e as capacidades das pessoas e no qual a cultura é inicialmente transmitida —o domínio da vida doméstica ou familiar. Quando se corrigem essas deficiências, por meio da atenção às diferen­ ças internas e à arena privada, duas conexões particularmente importantes entre cultura e gênero aparecem de modo destacado, ambas ressaltando a força dessa crítica simples aos direitos de grupo. Em primeiro lugar, a esfera da vida pessoal, sexual e reprodutiva funciona como um foco central em muitas culturas, como um tema dominante nas práticas e normas culturais. Grupos religiosos ou culturais são muitas ve2es particularmente preocupa­ dos com o “direito da pessoa” —as leis referentes a casamento, divórcio, custódia dos filhos, divisão e controle do patrimônio familiar, e herança (Singh, 1994, p. 375-96, esp. p. 378-89). Como regra, portanto,-é provável que a defesa de “práticas culturais” tenha vim impacto muito maior sobre as vidas das mulheres e meninas do que sobre ás dos homens e meninos, visto que uma quantidade muito maior do tempo e energia das mulheres é dedicada a preservar e manter o lado pessoal, familiar e reprodutivo da vida. Obviamente, uma cultura não se resume a arranjos domésticos, mas estes efetivamente proporcionam um foco importante na maior parte das culturas contemporâneas. O lar é, afinal de contas, o lócus onde grande parte da cul­ tura é praticada, preservada e transmitida aos jovens. No entanto, a distribui­ ção de responsabilidades e poder no lar tem um impacto significativo sobre quem pode participar e influenciar nas partes mais públicas da vida cultural, nas quais se fazem as normas e regulações tanto da vida pública como da vida privada. Quanto mais uma cultura exija ou espere das mulheres na es­ fera doméstica, menos oportunidade elas terão de alcançar a igualdade com os homens em qualquer dessas esferas. A segunda conexão importante entre cultura e gênero encontra-se no fato de que a maioria das culturas tem como um de seus principais

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propósitos o controle dos homens sobre as mulheres6. Considerem-se, por exemplo, os mitos fundadores da antiguidade grega e romana, do judaísmo, do cristianismo è do islamismo: eles estão repletos de tentativas de justificar a subordinação das mulheres e o controle sobre elas. Esses mitos consistem de uma combinação de negações do papel das mulheres na reprodução; das apropriações pelos homens do poder de se reproduzirem; da caracterização das mulheres como excessivamente emotivas, não confiáveis, más, ou sexu­ almente perigosas; e de recusas a reconhecer os direitos das mães à guarda dos filhos (Sharma, 1987 e Hawley, 1994). Pense-se em Atenas, nascida da cabeça de Zeus, e em Rômulo e Remo, criados sem uma mãe humana. Ou em Adão, criado por um Deus masculino, que depois (pelo menos segundo uma das duas versões bíblicas da estória) criou Eva de uma parte de Adão. Pense-se em Eva, cuja fraqueza desencaminhou Adão. Pense-se naquelas ge­ nealogias paternas sem fim no Gênesis, nas quais é completamente ignorado o papel primordial das mulheres na reprodução, ou nas justificações textuais da poligamia outrora praticada no judaísmo, ainda praticada em muitas par­ tes do mundo islâmico e (embora ilegalmente) pelos Mórmons em algumas partes dos Estados Unidos. Considere-se também a estória de Abraão, um ponto de inflexão no desenvolvimento do monoteísmo (Delaney, 1998)7. Deus ordena que Abraão sacrifique “seu” amado filho. Abraão prepara-se para fazer exatamente o que Deus exige dele, sem nem mesmo contar a Sara, a mãe de Isaac, e muito menos pedir sua opinião. A absoluta obediência de Abraão a Deus faz dele o modelo.central e fundamental de fé para as três religiões. Embora o poderoso impulso para controlar as mulheres - e para culpálas e puni-las pela dificuldade dos homens em controlar seus próprios im­ pulsos sexuais —tenha sido consideravelmente abrandado nas versões mais progressistas e reformadas do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, ele permanece forte em suas versões mais ortodoxas ou fundamentalistas. Além disso, ele não se encontra de modo algum confinado às culturas ocidentais ou monoteístas. Muitas das tradições e culturas do mundo, incluindo as pra­ ticadas nos Estados nacionais anteriormente conquistados ou colonizados 6 Não posso discutir aqui as raízes dessa preocupação masculina, a não ser dizer (seguindo as teóricas femi­ nistas Dorothy Dmnerstein, Nancy Chodorow, Jéssica Benjamin e, antes delas, o antropólogo jesuíta Walter Ong) que parece ter muito a ver com o fato de os cuidados primordiais com a criação dos filhos estarem a cargo das mulheres. Ela também está claramente relacionada com a incerteza quanto à paternidade, que agora pode ser superada pela tecnologia. Se essas questões estão na raiz daquela preocupação por controlar as mulheres, então não se trata de um fato inevitável da vida humana, mas de um fator contingente que as feministas têm considerável interesse em mudar. 7 Observe-se que na versão corânica não é Isaac, mas Ismael que Abrão prepara para o sacrifício.

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—os quais certamente abrangem a maior parte dos povos da África, do Oriente Médio, da América Latina e da Ásia —, são claramente patriarcais. Eles também possuem elaborados padrões de socialização, rituais, costumes matrimoniais, e outras práticas culturais (incluindo sistemas de propriedade sobre bens de raiz e controle de recursos) voltados para colocar sob o con­ trole dos homens a sexualidade e as capacidades reprodutivas das mulheres. Muitas dessas práticas tomam virtualmente impossível que as mulheres es­ colham viver independentemente dos homens, que decidam ser celibatárias ou lésbicas, ou ainda não ter filhos. Os praticantes de alguns dos mais controvertidos desses costumes — clitorectomia, poligamia, casamentos entre crianças ou casamentos forçados —algumas vezes os justificam expKcdtamente como necessários para con­ trolar as mulheres, admitindo abertamente que esses costumes se mantêm por insistência dos homens. Em uma entrevista concedida à repórter Celia Dugger, do New York Times, praticantes de clitorectomia da Costa do Marfim e de Togo explicaram que essa prática “ajuda a assegurar a virgindade de uma jovem antes do casamento e, posteriormente, a sua fidelidade, reduzin­ do o sexo a uma obrigação marital”. Como disse uma mulher que realiza a clitorectomia em outras mulheres, “o papel da mulher na vida é o de cuidar dos filhos, tomar conta da casa e cozinhar. Se ela não tiver sido cortada, ela pode se preocupar com seu próprio prazer sexual” (New York Times, 5/10/1996, A4)8. N o Egito, onde uma lei que proibe a clitorectomia foi recentemente derrubada por um tribunal, os partidários dessa prática dizem que ela “refreia o apetite sexual das jovens e torna-as mais atraentes para o casamento” (New York Times, 26/6/1997, A9). Ademais, em tais sociedades, muitas mulheres não têm uma alternativa viável ao casamento. Nas culturas poligâmicas, igualmente, os homens prontamente reco­ nhecem que essa prática está de acordo com seu próprio interesse e constitui um meio de controlar as mulheres. Como disse, em entrevista recente, um imigrante do Mali: “Quando minha mulher está doente e eu não tenho outra, quem irá cuidar de mim? (...) mulher independente é encrenca. Quando há muitas, elas são obrigadas a ser educadas e comportadas. Se se comportam mal, você ameaça arranjar outra esposa”. As mulheres, aparentemente, vêem a poligamia de forma muito diferente. As imigrantes africanas de língua francesa negam gostar da poligamia e dizem não apenas que “não tiveram outra escolha” como também que suas ancestrais na África igualmente não 8 Nessas culturas, o papel desempenhado pelas mulheres mais velhas na perpetuação dessas práticas é importante, mas complexo, e não pode ser tratado aqui.

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gostavam (International HeraldTribme, 2/2/1996, seção de notícias). Quanto ao casamento de crianças ou outras formas de casamento forçado, essa prá­ tica é claramente uma forma de controlar com quem as meninas ou jovens mulheres se casam, mas também de assegurar que sejam virgens na ocasião do casamento e, frequentemente, de aumentar o poder do marido através de uma significativa diferença de idade entre esposos e esposas. Considere-se, também, a prática —comum em grande parte da América Latina, do Sudeste Asiático rural e de partes da África ocidental —de pres­ sionar ou mesmo exigir que uma vítima de estupro se case com o estuprador. Em muitas dessas culturas —inclusive em 14 países das Américas Central e do Sul os estupradores são legalmente perdoados se se casam ou (em alguns casos) simplesmente se oferecem para casar-se com suas víti­ mas. Claramente, o estupro não é visto nessas culturas como uma agressão violenta à própria jovem ou mulher, mas antes como uma séria ofensa a sua família e à honra familiar. Casando-se com a vítima, o estuprador pode ajudar a restaurar a honra da família e livrá-la de uma filha, que, como um “bem danificado”, tornou-se inapropriada para o casamento. No Peru, essa lei bárbara foi emendada para pior em 1991: os corréus por um estupro praticado por uma gangue são agora perdoados, todos, se apenas um deles se oferece para casar-se com a vítima (as feministas estão lutando para que a lei seja revogada). Como explicou um taxista peruano: “O casamento é a coisa certa e apropriada a oferecer após um estupro. Uma mulher estupra­ da é um item usado. Ninguém a quer. Com essa lei, a mulher pelo menos conseguirá um marido” (NewYork Times, 12/3/1997, A8). É difícil imaginar um destino pior para uma mulher do que ser pressionada a casar-se com o homem que a estuprou. Mas destinos piores efetivamente existem em algu­ mas culturas —notavelmente no Paquistão e partes do Oriente Médio árabe, onde mulheres que prestam queixa por estupro são muito frequentemente acusadas elas próprias da séria transgressão muçulmana da ^ina, o sexo fora do casamento. A lei permite açoitar ou prender tais mulheres, e a cultura faz vistas grossas para o assassinato ou para a pressão ao suicídio de uma mu­ lher estuprada, por parte de seus parentes, na intenção de restaurar a honra_ da família (Richardson, 1994, esp. p. 240-3, 262-3, 282-4). Deste modo, muitos costumes baseados na cultura visam ao controle das mulheres, que buscam torná-las servis aos desejos e interesses dos ho­ mens, especialmente no aspecto sexual e reprodutivo. Algumas vezes, ade­ mais, a “cultura” ou as “tradições” estão tão estreitamente vinculadas com o controle das mulheres que ambas as coisas são virtualmente equivalentes.

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Em uma reportagem recente sobre uma pequena comunidade judia orto­ doxa que vive nas montanhas do Iêmen, o líder mais velho dessa pequena seita poligâmica é citado dizendo: “Somos judeus ortodoxos, m u ito ciosos de nossas tradições. Se formos para Israel, perderemos o controle sobre nossas filhas, nossas esposas e nossas irmãs”. Um de seus filhos acrescen­ tou: “Somos como os muçulmanos, não permitimos que nossas mulheres descubram seus rostos” (Agence Trance Presse, 18/5/1997, seção de notícias internacionais). Assim, a servidão das mulheres é apresentada como virtu­ almente sinônimo de “nossas tradições”. (Ironicamente, de um ponto de vista feminista, a matéria intitulava-se ‘Tequena comunidade Judia do Iêmen prospera com uma mescla de tradições”. Somente a cegueira com relação à servidão sexual pode explicar esse título; é inconcebível que o artigo pu­ desse ter esse título se fosse sobre uma comunidade que praticasse qualquer tipo de escravidão a não ser a escravidão sexual.) i Enquanto virtualmente todas as culturas do mundo têm passados cla­ ramente patriarcais, algumas —principalmente, mas não exclusivamente, as culturas liberais ocidentais —se distanciaram deles muito mais do que outras. Naturalmente, as culturas ocidentais ainda praticam muitas formas de dis­ criminação sexual. Dão mais importância à beleza, corpo e juventude nas mulheres e à realização intelectual, habilidade e força nos homens. Esperam que as mulheres desempenhem, sem retribuição econômica, bem mais da metade do trabalho não pago relacionado ao cuidado da casa e da família, independentemente de também desempenharem um trabalho assalariado fora de casa; em parte por causa disso e em parte por sofrerem discrimina­ ção no local de trabalho, as mulheres têm muito maior probabilidade que os homens de se tomarem pobres. Meninas e mulheres estão também sujeitas a muita violência (ilegal) por parte dos homens, incluindo a violência sexual. Contudo, nas culturas mais liberais, as mulheres têm legalmente garantidas as mesmas liberdades e oportunidades que os homens. Nessas culturas, além disso, com exceção de algumas famílias fundamentalistas religiosas, a maio­ ria das famílias não transmite às filhas uma ideia de que elas tenhàm menos valor que os meninos, que suas vidas devam ficar confinadas à domesticida­ de e ao serviço aos homens e às crianças, e que sua sexualidade seja impor­ tante apenas no casamento, a serviço do homem, e com fins reprodutivos. Esta situação, como vimos, é bastante diferente da situação das mulheres em muitas das outras culturas do mundo, incluindo muitas daquelas de onde vêm os imigrantes para a Europa e a América do Norte. 367

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Direitos de grupo? A maioria dás culturas é, portanto, patriarcal; e muitas (embora não todas) minorias culturais que reivindicam direitos de grupo são mais patriar­ cais do que as culturas que as rodeiam. De modo que não é surpreendente que a importância cultural de manter o controle sobre as mulheres salte aos olhos nos exemplos dados na literatura sobre diversidade cultural e direitos de grupo no interior de Estados liberais. Todavia, embora evidente, ela é raramente tratada de maneira explícita9. Em um artigo sobre direitos legais e reivindicações de base cultural de vários grupos imigrantes e de ciganos na Grã-Bretanha contemporânea, Sebastian Poulter menciona os papéis e o status das mulheres como “um exemplo muito claro” do “choque de culturas” (Poulter, 1987, p. 589-615). Nesse texto, Poulter discute as demandas, apresentadas por membros de tais grupos, no sentido de obter tratamento legal especial por conta de suas diferenças culturais. Algumas dessas demandas não têm a ver com gênero; por exemplo, a de um professor muçulmano que obtém permissão para estar ausente ao trabalho durante parte das tardes de sexta-feira, com vistas a realizar suas preces, e as reivindicações de crianças ciganas por exigências escolares menos rigorosas, por conta de seu estilo de vida itinerante. Mas a imensa maioria dos exemplos relaciona-se a desigualdades de gênero: casa­ mentos de crianças, casamentos forçados, sistemas de divórcio desfavoráveis às mulheres, poligamia, e clitorectomia. Quase todos os processos judiciais discutidos por Poulter originaram-se de queixas de meninas ou mulheres de que seus direitos individuais estavam sendo truncados ou violados pelas práticas de seus próprios grupos culturais. Em um artigo recente da filósofa política Amy Gutmann, a metade dos exemplos tem a ver com questões de gênero —poligamia, aborto, assédio sexual, clitorectomia e reclusão das mulheres (purdah) (Gutmann, 1993, p. 171-204). Isso é bastante típico na literatura sobre questões multiculturais subnacionais. Além disso, na prática, a mesma ligação entre cultura e gênero ocorre na arena internacional, na qual os direitos humanos das mulheres são frequentemente rejeitados, pelos líderes de países ou grupos de países, como incompatíveis com suas várias culturas (Afkhami, 1995; Moghdam, 1994; Okin, 1997). De modo similar, a imensa maioria das “defesas culturais”, que estão sendo crescentemente invocadas nos casos criminais envolvendo minorias 9 Ver, contudo, Parekh (1996, p. 251-84), onde ele discute e critica diretamente diversas práticas culturais que desvalorizam o status das mulheres.

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culturais nos Estados Unidos, está relacionada ao gênero —em particular ao controle masculino sobre mulheres e crianças10. Ocasionalmente, citam-se defesas culturais na explicação da violência esperada entre homens ou do sacrifício ritual de animais. Muito mais comum, no entanto, é o argumento de que, no grupo cultural do acusado, as mulheres não são seres humanos de igual valor, mas antes subordinadas, cuja função primária (se não única) é a de servir sexual e domesticamente aos homens. Com efeito, os quatro tipos de casos em que as defesas culturais foram utilizadas com maior sucesso fo­ ram: 1) rapto e estupro de mulheres por homens de origem Miao [Hmong\u que alegam serem suas ações parte de sua prática cultural de poj niam, ou “casamento por captura”; 2) assassinato da esposa por imigrantes de países asiáticos e do Oriente Médio, por esta ter cometido adultério ou tratado o marido de maneira humilhante; 3) assassinato de crianças, por mães japo­ nesas ou chinesas que tentaram sem sucesso o suicídio e que, com base em seus padrões culturais, alegam ter sido levadas a essa prática culturalmente perdoável —assassinato dos filhos e suicídio —quando motivadas pela ver­ gonha causada pela infidelidade do marido; e 4) na França - embora já não mais nos Estados Unidos, em parte porque a prática foi criminalizada, mas apenas em 1996 - a clitorectomia. Em um grande número desses casos, o testemunho de especialistas sobre a experiência cultural do acusado resultou em retirada ou abrandamento da acusação, declarações culturalmente funda­ mentadas de mens rea 12, ou sentenças significativamente reduzidas. Em um caso recente bastante conhecido nos Estados Unidos, um imigrante da zona rural do Iraque fez com que suas duas filhas, de 13 e 14 anos, se casassem com dois de seus amigos, de 28 e 34 anos. Subsequentemente, quando a fi­ lha mais velha fugiu com seu namorado de 20 anos, o pai buscou a ajuda da polícia para encontrá-la. Quando a localizaram, o pai foi acusado de abuso de menor e os dois maridos e o namorado foram indiciados por estupro. A defesa dos iraquianos baseia-se, em parte, em suas práticas culturais de casamento (New York Times, 2/12/1996, A6). Como mostram esses quatro exemplos, os réus não são sempre homens, nem as vítimas sempre mulheres. Tanto o imigrante chinês em Nova York, que agrediu a mulher por adultério, levando-a à morte, como a imigrante japonesa na Califórnia, que afogou seus filhos e tentou afogar-se porque 10 Para uma das melhores e mais recentes exposições sobre isso, e para citações judiciais relativas aos casos a seguir mencionados, ver Coleman (1996, p. 1.093-167). 11 Miao ou Hmong - grupo de agricultores seminômades das montanhas do sudeste da China e das áreas adjacentes do Laos, Vietnã do Norte e Tailândia (N.T.). 12 Mens rea - estado mental do acusado (N.T.).

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o adultério do marido desonrava a família, valeram-se de defesas culturais para conseguir abrandar as acusações (de homicídio doloso para homicídio culposo). Poderia parecer, então, que a defesa cultural teve um viés favorável ao homem, no primeiro caso, e à mulher, no segundo. Mas, embora réus de ambos os sexos fossem levados a julgamento, nos dois casos a mensa­ gem cultural é similarmente tendenciosa em termos de gênero: as mulheres (e as crianças, no segundo caso) são consideradas ancilares em relação aos homens e devem suportar a culpa e a vergonha por qualquer desvio com respeito à monogamia. Independentemente de quem seja o culpado de in­ fidelidade, a esposa sofre: no primeiro caso, sendo brutalmente assassinada por conta da fürk do marido por sua vergonhosa infidelidade; no segundo, por ficar tão envergonhada e estigmatizada pelo fracasso representado pek infidelidade do marido que é levada a suicidai-se e matar os filhos. De novo, a ideia de que as meninas e mulheres são antes de tudo serviçais dos homens - que sua virgindade antes do casamento e sua fidelidade durante o casa­ mento são suas virtudes preeminentes —surge em muitas das declarações feitas em defesa de práticas culturais. As culturas ocidentais majoritárias, em grande medida em função do émpenho das feministas, fizeram recentemente substanciais esforços para obstar ou limitar os subterfúgios para brutalizar mulheres. Não vai longe o tempo em que, rotineiramente, os homens eram menos responsabilizados por matar suas esposas se caracterizassem sua conduta como crime passio­ nal, cometido sob o impulso do ciúme e da ira pela infidelidade da mulher. E também não faz muito tempo que as mulheres vítimas de estupro que não tivessem um passado inteiramente celibatário e que não lutassem na resis­ tência ao estupro —mesmo quando fazê-lo significasse correr risco maior —eram rotineiramente consideradas culpadas pelo ataque sofrido. Em certa medida, as coisas mudaram hoje em dia, e as dúvidas sobre a tendência às defesas culturais decorrem em parte da preocupação no sentido de preser­ var os avanços recentes. Outra preocupação diz respeito a que tais defesas podem distorcer as percepções sobre as culturas minoritárias ao chamar a atenção para seus aspectos negativos. Mas talvez a preocupação principal _ seja ã de que, ãò deixar de proteger as mulheres e, algumas vezes, as crian­ ças das culturas minoritárias da violência masculina e ocasionalmente da materna, as defesas da cultura violam os direitos das mulheres e das crian­ ças a igual proteção das leis (Coleman, 1996). Quando uma mulher de uma cultura mais patriarcal chega aos Estados Unidos (ou á‘oútro Estado oci­ dental basicamente liberal), por que deveria ela ser menos protegida contra

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a violência masculina do que o são as demais mulheres? Muitas mulheres de culturas minoritárias têm protestado contra o duplo padrão que está sendo aplicado em favor de seus agressores (Rimonte, 1991, p. 1.311-26).

Defesa liberal Apesar de toda essa evidência de práticas culturais que controlam e subordinam as mulheres, nenhum dos defensores proeminentes de direitos multiculturais de grupos tratou adequadamente, ou mesmo diretamente, das perturbadoras conexões entre gênero e cultura ou dos conflitos que comumente surgem entre feminismo e multiculturalismo. A discussão de Will Kymlicka é representativa a esse respeito. Os argumentos de Kymlicka a favor dos direitos de grupo baseiam-se nos direitos do indivíduo, e confinam tais privilégios e proteção aos grupos culturais internamente liberais. Seguindo John Rawls, Kymlicka enfatiza a importância fundamental do autorrespeito na vida da pessoa. Argumenta que o pertencimento a uma “estrutura cultural rica e segura” (Kymlicka, 1989, p. 165), com sua própria linguagem e história, é essencial tanto para o desenvolvimento do autorrespeito como para dar às pessoas um contexto em que possam desenvolver a capacidade de fazer escolhas sobre como conduzir sua vida. As minorias culturais necessitam, portanto, de direitos especiais porque, caso contrário, suas culturas ficam ameaçadas de extinção, e a extinção cultural provavelmente solaparia o autorrespeito e a liberdade dos membros do grupo. Em suma, os direitos especiais colocam as minorias em uma posição igualitária em relação à maioria. O valor da liberdade tem um papel importante na argumentação de Kymlicka. Consequentemente, exceto em raras circunstâncias de vulnerabi­ lidade cultural, um grupo que reivindica direitos especiais deve govemar-se por princípios liberais reconhecíveis, não podendo infringir as liberdades básicas de seus próprios membros, pela imposição de restrições internas, nem discriminar entre eles com base no sexo, raça, ou preferência sexual (Kymüdc-ar44^9r |>,44H=223-l5.5=8)-JEs5^L-exigêricia.Ade.grande importância para uma justificação consistentemente liberal de direitos de grupo, porque uma cultura “fechada” ou discriminatória não pode proporcionar o contex­ to para o desenvolvimento individual que o liberalismo requer, e porque, de outra forma, os direitos coletivos poderiam resultar em subculturas de opressão no interior de sociedades liberais, e facilitadas por estas. Como diz Kymlicka, “impedir as pessoas de questionar seus papéis sociais herdados 371

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pode condená-las a vidas insatisfatórias e, mesmo, opressivas” (Kymlicka, 1995, p. 92). Gomo reconhece Kymlicka, essa exigência de regras internas liberais elimina a. justificação de direitos de grupo para os “muitos fúndamentalistas de todas as extrações políticas e religiosas que pensam que a melhor comu­ nidade é aquela em que são prosctitas todas as práticas religiosas, sexuais, ou estéticas, exceto as suas preferidas”, pois a promoção e o apoio a essas culturas solapam “a própria razão que tínhamos para nos preocupar com o pertencimento cultural —o fato de ele permitir significativa escolha indivi­ dual” (Kymlicka, 1989, p. 171-2). Mas os exemplos que citei anteriormente sugerem que muito menos culturas minoritárias do que Kymlicka parece acreditar terão condições de reivindicar direitos de grupo sob sua justifica­ ção liberal Embora possam não impor aos outros as suas crenças e práticas, e pareçam respeitar as liberdades civis e políticas básicas das mulheres e meninas, muitas culturas não as tratam, especialmente na esfera privada, com nada parecido com a preocupação e respeito com que tratam os ho­ mens e meninos, nem permitem que elas desfrutem das mesmas liberdades. A discriminação contra as mulheres e o controle da liberdade feminina são praticados, em maior ou menor extensão, por virtualmente todas as culturas, mas especialmente pelas religiosas e as que buscam no passado - em textos antigos ou tradições veneradas —as orientações ou regras sobre como viver no mundo contemporâneo. Algumas vezes, mais culturas minoritárias pa­ triarcais existem em meio a culturas majoritárias menos patriarcais; outras vezes, o inverso é verdadeiro. Em qualquer dos casos, o grau em que cada cultura é patriarcal e sua disposição para tomar-se menos patriarcal deve­ riam ser fatores cruciais no julgamento das justificativas para os direitos de grupo —uma vez que se leve a sério a igualdade das mulheres. Kymlicka vê, claramente, as culturas que discriminam aberta e for­ malmente as mulheres - negando-lhes educação, ou o direito de voto, ou a possibilidade de assumir cargo público - como não merecedoras de direitos especiais (Kymlicka, 1989, p. 153,165). Mas, frequentemente, a discrimina­ ção sexual é muito menos evidente. F m muitas cukuras-, o controle estrito sobre as mulheres é imposto na esfera privada pela autoridade dos pais efe­ tivos ou simbólicos, muitas vezes agindo por intermédio, ou com a cumpli­ cidade, das mulheres mais velhas. Em muitas culturas nas quais os direitos civis e liberdades básicas das mulheres são formalmente assegurados, a dis­ criminação praticada contra as mulheres e meninas no plano doméstico não apenas limita severamente suas escolhas, mas também ameaça seriamente 372

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seu bem-estar e suas vidas (Sen, 1990). E tal discriminação sexual - seja mais severa ou mais branda —tem muitas vezes fortes raízes culturais. Embora Kymücka corretamente se oponha à concessão de direi­ tos de grupo às culturas minoritárias que praticam a discriminação sexual ostensiva, seus argumentos em favor do multiculturalismo deixam de regis­ trar o que em outra parte ele reconhece: que a subordinação das mulheres é frequentemente informal e privada è que virtualmente nenhuma cultura atual, minoritária ou majoritária, conseguiria ser aprovada em seu teste de “ausência de discriminação sexual” se este fosse aplicado à esfera privada (Kymlicka, 1990, p. 239-62). Os que defendem direitos de grupo, a partir de fundamentos liberais, precisam tratar desses tipos de discriminação ge­ nuinamente privados e culturalmente reforçados, pois o autorrespeito e a autoestima requerem certamente mais do que o simples pertencimento a uma cultura viáveL Seguramente, o fato de a cultura de alguém ser protegida não é suficiente para que esse alguém tenha capacidade de “questionar seu papel social herdado” e possa fazer escolhas sobre a vida que pretende ter. Pelo menos tão importante para o desenvolvimento do autorrespeito e da autoestima é o nosso lugar dentro de nossa cultura. E é pelo menos tão pertinente para nossa capacidade de questionar nossos papéis sociais o fato de nossà cultura instilar-nos e impor-nospapéis sociais específicos. Na medida em que a cultura a que pertence uma menina é uma cultura patriarcal, seu desenvolvimento saudável é posto em risco em ambos esses aspectos.

Parte da solução? Não é claro de modo algum, portanto, de um ponto de vista feminista, que os direitos de grupos minoritários sejam “parte da solução”. Eles po­ dem, muito bem, exacerbar o problema. N o caso de uma cultura minoritária mais patriarcal no contexto de uma cultura majoritária menos patriarcal, não é possível argumentar, com base em autorrespeito e liberdade, que os membros femininos da cultura minoritária têm um claro interesse em sua preservação; N a verdade, essas mulheres ptxàenam estar em uma situação muito melhor se a cultura em que nasceram viesse a se extinguir (de modo a que seus membros se integrassem à cultura envolvente menos sexista) ou, preferencialmente, fosse estimulada a se modificar de maneira a reforçar a igualdade das mulheres —pelo menos no grau em que esse valor é assegura­ do na cultura majoritária. Naturalmente, seria preciso levar em conta outros aspectos, tais como, o grupo falar outra língua que mereça ser protegida 373

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ou sofrer preconceitos como a discriminação racial. Mas seriam necessá­ rios importantes fatores contrários para contrabalançar a evidência de que uma cultura restringe severamente as escolhas das mulheres ou solapa seu bem-estar. O que alguns dos exemplos discutidos anteriormente ilustram é como práticas culturalmente aceitas, opressivas às mulheres, podem com frequên­ cia permanecer ocultas na esfera privada ou doméstica. N o caso do casa­ mento de crianças iraquianas, mencionado mais acima, se o próprio pai não tivesse recorrido aos agentes estatais, a situação de suas filhas poderia muito bem não ter se tornado pública. E quando o Congresso, em 1996, aprovou uma lei criminalizando a clitorectomia, diversos médicos americanos se opu­ seram a ela com base em que ela dizia respeito a uma questão privada que, como um deles disse, “deveria ser decidida entre um médico, a família, e a criança” (New York Times, 12/10/1996, A6)13. É preciso que haja circuns­ tâncias mais ou menos extraordinárias para que tais abusos contra meninas e mulheres se tornem públicos ou para que o Estado tenha condições de intervir no sentido de protegê-las. E evidente, portanto, que muitos casos de discriminação de base cultu­ ral contra as mulheres no âmbito doméstico podem nunca aparecer na esfe­ ra pública, na qual os tribunais podem impor os direitos das mulheres, e os teóricos políticos podem rotular tais práticas como antiliberais e, portanto, como violações injustificadas da integridade física ou mental das mulheres. Estabelecer direitos de grupo para que algumas culturas minoritárias pos­ sam ser preservadas pode não ser do melhor interesse das meninas e mulhe­ res dessas culturas, ainda que beneficie os horiiens. Os que propõem argumentos liberais a favor dos direitos de grupo precisam, então, ter um cuidado especial em examinar as desigualdades no interior desses grupos. E particularmente importante considerar as desigual­ dades entre os sexos, dado que elas têm menor probabilidade de vir a públi­ co, sendo, portanto, menos perceptíveis. Além disso, as políticas elaboradas para responder às necessidades e reivindicações de grupos minoritários pre­ cisam levar a sério a urgência de representar adequadamente os membros menos poderosos de tais grupos. Para ser consistente com os fundamen­ tos do liberalismo, a atenção aos direitos dos grupos culturais minoritários precisa objetivar, em última instância, o aprofundamento do bem-estar dos membros desses grupos, de modo que não exista nenhuma justificativa para assumir que os autoproclamados líderes dos grupos —invariavelmente seus 13 Opiniões similares foram expressas na National Public Radio.

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membros-mais velhos e do sexo masculino —representam os interesses de todos os membros dos grupos. A menos que as mulheres —e, mais espe­ cificamente, as mulheres jovens (dado que as mais velhas são muitas ve 2es cooptadas no sentido de reforçar a desigualdade de gênero) —sejam plena­ mente representadas nas negociações sobre direitos de grupo, seus interes­ ses podem ser antes prejudicados do que promovidos pela concessão de tais direitos.

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