Tempo de Transcendência

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Ao falar sobre o tempo da transcendência, é necessário começar definindo o tempo. Quero defini-lo como o grande poeta argentino Martín Fierro o entende. Ele diz que o tempo é “a tardança daquilo que está por vir”. Acho genial essa formulação, pois mostra o processo de realização do tempo (tardança), vindo do futuro em direção do presente.......Page 5
SINGULARIDADE DO CRISTIANISMO......Page 29
EXPRESSÕES DO PATRIARCADO?......Page 33

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Leonardo Boff TEMPO DE TRANSCENDÊNCIA O Ser Humano como um Projeto Infinito Lumensana Publicações Eletrônicas Organização, Digitalização e Projeto gráfico-eletrônico Luiz Edgar de Carvalho Fonte: Leonardo Boff, Tempo de transcendência Editora Sextante, 2000

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Nota Preliminar O profeta é aquele que anuncia e denuncia. Anuncia aquilo para que o ser humano foi essencialmente criado, e denuncia os esquemas que atentam contra o seu destino. É isso que Leonardo Boff faz em Tempo de Transcendência, levando-nos a descobrir dimensões capazes de promover nossa realização e assim conquistar a paz e a felicidade que buscamos. Somos seres de enraizamento e de abertura. A raiz que nos limita é nossa dimensão de imanência. A abertura que nos faz romper barreiras e ultrapassar todos os limites, impulsionando a busca permanente por novos mundos, é nossa transcendência. Leonardo Boff define e ilustra a transcendência. Descreve os lugares privilegiados onde ela se dá, desvendando-a nos grandes e pequenos acontecimentos, dando-nos olhos para enriquecer gestos e momentos do cotidiano. A partir daí denuncia as falsas transcendências com que a cultura atual investe para responder a essa busca fundamental do ser humano, empobrecendo-o e frustrando sua procura. Denuncia mesmo as religiões quando se apresentam como as únicas intermediárias para alcançar o transcendente e procuram enquadrar-nos com suas normas e verdades absolutas. Quem preenche o vazio que existe no ser humano? Boff enumera três respostas a esta questão e identifica-se com

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aquela que dá nome a esse objeto do nosso desejo, chamando-o de Deus, Olorum, Tao, Javé. Mil nomes para essa realidade que brilha, que ilumina e que é a dimensão mais profunda de nós mesmos. Uma reflexão sobre masculino-feminino e sobre a ecologia completa a função profética do texto. A humanidade e o mundo novo serão construídos quando o ser humano se engajar num projeto político que gere alianças, supere divergências e respeite a diversidade, criando uma esplêndida solidariedade cósmica.

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LEONARDO BOFF

TEMPO DE TRANSCENDÊNCIA Ao falar sobre o tempo da transcendência, é necessário começar definindo o tempo. Quero defini-lo como o grande poeta argentino Martín Fierro o entende. Ele diz que o tempo é “a tardança daquilo que está por vir”. Acho genial essa formulação, pois mostra o processo de realização do tempo (tardança), vindo do futuro em direção do presente. 1 – SOMOS SERES DE PROTEST-AÇÃO Creio que a transcendência é, talvez, o desafio mais secreto e escondido do ser humano. Porque nós, seres humanos, homens e mulheres, na verdade, somos protestantes, somos essencialmente seres de protest-ação, de ação de protesto. Protestamos continuamente. Recusamo-nos a aceitar a realidade na qual estamos mergulhados porque somos mais, e nos sentimos maiores do que tudo o que nos cerca. Desbordamos todos os esquemas, nada nos encaixa. Não há sistema militar mais duro, não há nazismo mais feroz, não há repressão eclesiástica mais dogmática que possam enquadrar o ser humano. Sempre sobra alguma coisa nele. E não há sistema social, por mais fechado que seja, que não tenha brechas por onde o ser humano possa entrar, fazendo explodir essa realidade. Por mais aprisionado que ele esteja, nos fundos da Terra, ou dentro

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de uma nave espacial no espaço exterior, mesmo aí o ser humano transcende tudo. Porque, com seu pensamento, ele habita as estrelas, rompe todos os espaços. Por isso, nós, seres humanos, temos uma existência condenada – condenada a abrir caminhos, sempre novos e sempre surpreendentes. Há um grande filósofo italiano que viveu há muitos anos e que me inspirou muito em minha juventude: Michiele Federico Sciacca. Hoje, ninguém mais sabe dele. Escreveu um livro cujo título é L’uomo, questo squilibrato (O ser humano, esse desequilibrado). Não cabe nenhum equilíbrio. Ele sempre está fora do centro, longe do equilíbrio. Ao falar de transcendência como dimensão intrínseca do ser humano, temos que submeter a rigorosa crítica o que as religiões nos legaram. Elas afirmam que o Céu fica lá em cima, onde está Deus, os santos e aquele mundo que chamam de transcendente. Aqui embaixo fica a imanência, onde está a criação sobre a qual nós reinamos. Os dois mundos se justapõem e até se contrapõem. Através de toda a mecânica da oração e da meditação buscamos criar pontes para chegar ao Céu, à transcendência e a Deus. Caso não consigamos por nós mesmos chegar a Deus, as religiões se propõem como mediadoras. Os filósofos, no entanto, nos dizem: “Tudo isso é metafísica”. O que significa: tudo isso é uma representação e uma projeção nossa, não é a realidade originária. É invenção nossa. Talvez a primeira metafísica, a primeira representação do mundo forjada pelos seres humanos, já nos ancestrais – quem sabe quando surgiu a primeira luz de inteligência, há quase dez milhões de anos –, tenham sido as religiões.

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Porque elas são metafísicas, são representações do mundo: céu / inferno, lá / aqui, Deus / mundo, corpo / alma, imanência / transcendência. Uma reflexão mais profunda, entretanto, aquela que busca o pensamento originário, aquele grau zero da existência, se dá conta de que se trata de invenção e de projeção humanas. Quando afirmamos isso, irritamos todos os crentes. Aqueles que defendem os catecismos se sentem desnorteados. Mas nós temos que pensar a realidade, não os catecismos. Eles são interpretações religiosas da realidade e como tais não perdem o seu valor. São, porém, interpretação de algo anterior a eles, algo que queremos decifrar. 2 – A EXPERIÊNCIA ORIGINÁRIA: EX-ISTÊNCIA O que é anterior e o que subjaz às expressões imanência-transcendência? É a experiência do próprio ser humano como um ser histórico, um ser que está se fazendo continuamente. É o que chamamos de experiência originária. Quando falamos filosoficamente em existência, dizemos: ex-istência. Estamos sempre nos projetando para fora (ex), construindo nosso ser. Nós não o ganhamos pronto. Nós o moldamos mediante a nossa liberdade, mediante os enfrentamentos e intimidações do real. Ao reagir, assumir, rejeitar e modelar, vamos construindo a nossa ex-istência. O ser humano é um ser nunca pronto, por isso não há antropologia, há antropogênese, que é a gênese do ser humano. Nessa experiência emerge aquilo que somos, seres de imanência e de transcendência, como dimensões de um único ser humano. Imanência e

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transcendência não são aspectos inteiramente distintos, mas dimensões de uma única realidade que somos nós. Então, a afirmação de base de uma atitude radicalmente filosofante, que procura ver atrás das coisas, detecta aquele motor secreto que faz nascer tudo e que move o surgimento das projeções: a própria ex-istência humana sempre em aberto, sempre se construindo. Usando uma metáfora, eu diria que somos seres de enraizamento e seres de abertura. Primeiramente nos sentimos seres enraizados. Temos raiz, como uma árvore. E a raiz nos limita, porque nascemos numa determinada família, numa língua especifica, com um capital limitado de inteligência, de afetividade, de amorosidade. Ademais, temos a dimensão sã e também a dimensão patológica. Porque não somos só homo sapiens sapiens. Somos hoje, fundamentalmente, homo demens, duplamente demens, coisa esquecida na modernidade iluminista. Hoje somos dementes, em grau supremo. É a nossa situação. É o nosso arranjo existencial. Eis nosso enraizamento, nossa imanência. Mas somos simultaneamente seres de abertura. Ninguém segura os pensamentos, ninguém amarra as emoções. Elas podem nos levar longe no universo. Podem estar na pessoa amada, podem estar no coração de Deus. Rompemos tudo, ninguém nos aprisiona. Mesmo que os escravos sejam mantidos nos calabouços e obrigados a cantar hinos à liberdade, são livres, porque sempre nasceram livres, e sua essência está na liberdade. Então, possuímos essa dimensão de abertura, de romper barreiras, de superar interditos, de ir para além de todos os

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limites. É isso que chamamos de transcendência. Essa é uma estrutura de base do ser humano. 3 – TRANSCENDÊNCIA: CAPACIDADE DE ROMPER INTERDITOS Inicialmente, a dimensão de transcendência não tem nada a ver com as religiões, embora elas procurem monopolizar a transcendência. Elas afirmam: “Deus está na transcendência, habita numa luz inacessível, e nós temos sua revelação, a chave para falarmos Dele”. Isso é pura metafísica, uma tradução da experiência originária, mas não é a experiência originária. Se assim é, podemos então dizer: todos os tempos são tempos de transcendência. O tempo do homem de Neandertal era tempo de transcendência; o australopiteco piticino, que era uma mulher, Luci, era uma mulher de transcendência. Ela deixou as florestas da África e começou a andar na savana árida, e, como ali era muito seco, foi preciso desenvolver o cérebro para sobreviver. Assim, lentamente, irromperam como seres humanos. Os demais irmãos que ficaram na floresta, cheios da abundância dos meios de vida e das frutas, continuam lá como primatas até hoje. Então, o sertão, a seca, o deserto são a pátria da humanidade, da transcendência. Fomos obrigados a transcender os limites impostos pelo meio para podermos viver. Então, transcendência, fundamentalmente, é essa capacidade de romper todos os limites, superar e violar os interditos, projetar-se sempre num mais além. Para dar um exemplo dessa dimensão, vamos escolher a primeira página do Gênesis, a famosa história de Adão e

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Eva. Ela pode ser lida em muitos códigos. O cristianismo, a tradição judeu-cristã, lê num código religioso, fala de pecado original, tudo aquilo que já sabemos. Mas a leitura antropológica e filosófica descobre aí o ato supremo do ser humano: “Você não pode comer da fruta proibida; se comer, você morre.” E o ser humano tem o prazer de violar o interdito, de fazer a coisa proibida. Não existe tentação maior. E ele viola, descobre a sua realidade de transcendência, se transforma em humano. Isso faz com que essa passagem bíblica seja grandiosa, reveladora da essência da liberdade. Mas voltemos ao Brasil. Os carajás têm um mito fantástico. A cultura carajá no Bananal é riquíssima em mitos preciosos, e este especialmente dá bem a dimensão da transcendência. Segundo o relato dos carajás, o Criador os fez imortais. Eles viviam como peixes na água, nos rios, nos lagos. Não conheciam o sol, a lua, as estrelas, nada, apenas as águas. No fundo de cada rio onde estavam havia sempre um buraco de onde saia uma luz com grande intensidade. E este era o preceito do Criador: “Vocês não podem entrar nesse buraco, senão perderão a imortalidade.” Eles circundavam o buraco, deixando-se iluminar com as cores e sua luz, mas respeitavam o preceito, apesar de ser grande a tentação. “O que tem lá dentro?” Até que um dia, um carajá afoito se meteu pelo buraco adentro. E caiu nas praias esplêndidas do rio Araguaia, que são praias alvíssimas, belíssimas. Ficou maravilhado. Viu o sol, pássaros, paisagens soberbas, flores, borboletas. Por onde dirigia o olhar ficava cada vez mais boquiaberto. E quando chegou o entardecer, e o sol sumiu, pensou em voltar para os irmãos. Mas aí apareceram a lua e as estrelas. Ficou ainda mais embasbacado e passou a noite se

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admirando da grandiosidade do universo. E quando pensou que já ia avançado na noite, o sol começou a despontar. Ao lembrar-se dos irmãos, ele retornou pelo buraco. Reuniu todos e contou: “Irmãos e irmãs, meus parentes, vi uma coisa extraordinária, que vocês não podem imaginar.” E descreveu sua experiência. Aí, todos queriam passar pelo buraco luminoso. Então, os sábios disseram: “Mas o Criador é tão bondoso conosco, nos deu a imortalidade, vamos consultá-lo.” E foram consultar o Criador, dizendo: “Pai, deixe-nos passar pelo buraco. É tão extraordinária aquela realidade que o nosso irmão afoito nos descreveu.” E o Criador, com certa tristeza, respondeu: “Realmente, é uma realidade esplêndida. As praias são lindíssimas, a floresta apresenta uma biodiversidade fantástica.” (O Criador já falava o nosso dialeto moderno.) E continuou: “Vocês podem ir para lá, mas há um preço a pagar. Vocês perderão a imortalidade.” Todos se entreolharam e se voltaram para o carajá afoito que primeiro violara o preceito. E decidiram passar pelo buraco, renunciando à imortalidade. A divindade então lhes disse: “Eu respeito a decisão que tomaram. Vocês terão experiências fantásticas de beleza, de grandiosidade, mas tudo será efêmero. Tudo vai nascer, crescer, madurar, decair e por fim morrer. Vocês participarão desse ciclo. É isso que querem?” E todos, unanimemente, afirmaram: “Queremos.” E foram. Cometeram o ato de suprema coragem para terem a liberdade de viver a experiência da transcendência. Renunciaram à vitalidade perene, renunciaram à imortalidade. E até hoje estão lá, os carajás, naquelas praias lindíssimas. Se um dia vocês forem visitá-los, vão encontrálos rolando nas areias, mergulhando nas águas muito

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verdes, mas profundamente livres. Talvez seja a cultura que mais aprecia a liberdade. Os carajás fizeram a experiência da transcendência. Essa passagem é a transcendência que revela a grandiosidade do ser humano, mas também sua dramaticidade, pois ele deve morrer tendo sempre o desejo de viver. 4 – SER HUMANO: UM NÓ DE RELAÇÕES O que é o ser humano, então? É um ser de abertura. É um ser concreto, situado, mas aberto. É um nó de relações, voltado em todas as direções. Já dizia o grande “filósofo” (comunicador) Chacrinha: “Quem não se comunica se estrumbica.” É só se comunicando, realizando essa transcendência concreta na comunicação, que o ser humano constrói a si mesmo. É só saindo de si, que fica em casa. É só dando de si, que recebe. Ele é um ser em potencialidade permanente. Então, o ser humano é um ser de abertura, um ser potencial, um ser utópico. Sonha para além daquilo que é dado e feito. E sempre acrescenta algo ao real. Emile Durkheim, um dos fundadores da sociologia, fala da singularidade do ser humano como ser social, capaz de criar utopia, de acrescentar algo ao real. É algo exclusivo dele, nenhum animal é capaz de utopia. Por isso, ele cria símbolos, cria projeções, cria sonhos. Porque ele vê o real transfigurado. Essa capacidade é o que nós chamamos de transcendência, isto é, transcende, rompe, vai para além daquilo que é dado. Numa palavra, eu diria que o ser humano é um projeto infinito. Um projeto que não encontra neste mundo o quadro para sua realização. Por isso é um

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errante, em busca de novos mundos e novas paisagens. A conclusão que tiramos desse fato é que não devemos nos deixar enquadrar por ninguém, por papa nenhum, por governo nenhum, por ideologia nenhuma, por revelação nenhuma. Por nada no mundo, porque tudo é menor. O ser humano é um projeto ilimitado, transcendente, não dá para ser enquadrado. Ele pode, amorosamente, acolher o outro dentro de si. Pode servi-lo, ultrapassando limites. Mas é só na sua liberdade que ele o faz, é só quando se decide a isso, sem nenhuma imposição. Não há nada que possa enquadrálo, nenhuma fórmula cientifica, nenhum modo de produção, nenhum sistema de convivialidade. Nem mesmo o nosso moderno sistema globalizado, dentro do pensamento único que afirma “não há alternativa para ele”, reforçado pelo fundamentalismo da economia de hoje, que garante que “só existe o modo de produção capitalista global, com sua ideologia política, o neoliberalismo, não há outro caminho a seguir”. Essa concepção supõe um conceito pobre do ser humano. Transforma-o, no fundo, num mero consumidor, que só tem boca para consumir, mas não possui cabeça para projetar. Quem defende e pratica essa concepção não está interessado em formar um cidadão criativo, capaz de pensar por si e plasmar o seu próprio destino. Está interessado em gerar consumidores, agalinhados em seus poleiros, perdidos da sua identidade de serem águias. Em nome da nossa transcendência, protestamos contra esse modo de realizar o processo de globalização que, em si, representa um patamar novo da história humana. O ser humano é um ser criativo, pensa alternativas. E, se não consegue pensar, resiste e se rebela, levanta-se e protesta, ocupa terras e funda uma outra ordem, um outro

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direito difuso ligado à vida, ligado à liberdade. Não é o direito que enquadra, que privilegia, que afirma “essa é a norma, isso é o correto, isso é o constitucional.” A vida, especialmente quando submetida a coação, busca e cria outras formas de ordenação. É sua transcendência que lhe confere essa liberdade criativa. Liberdade pelo menos de protestar e de se insurgir. E quando a opressão é de tal forma pesada, em face da qual não se pode mais fazer nada, pelo menos pode-se protestar, pode-se fazer uma absoluta recusa. Pode-se torturar o ser humano, e até matá-lo, mas ninguém lhe tira essa sua capacidade de se opor. Então, meus irmãos e minhas irmãs, olhem ao redor e vejam os sistemas que nos querem enquadrar hoje. Na educação, na família, na escola, nas religiões. Não nos deixemos mediocrizar, mantenhamos nossa grandeza, nossa capacidade de vôo, nossa capacidade de transcendência. 5 – LUGARES PRIVILEGIADOS DE EXPERIÊNCIA DA TRANSCENDÊNCIA Onde fazemos quotidianamente a experiência da transcendência? Considero que há alguns eixos existenciais pelos quais todos nós passamos e onde fazemos uma experiência de transcendência límpida, cristalina, que não precisa de explicação, de nenhuma retórica interpretativa. Para mim, a experiência mais fundamental, aquela que toca a profundidade de nós mesmos, é a do enamoramento. Quando a pessoa se enamora, a outra vira uma divindade. Não se mede sacrifícios, o tempo não conta. Você cancela tudo, chega a mentir para se encontrar com a pessoa amada. Por que? Porque você sai de si e vai ao encontro do outro. É

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uma experiência de êxtase, extática, fora da realidade. Não há quem não se enamore. Machado de Assis, no Dom Casmurro, descreve o fenômeno do enamoramento com referência a Capitu: “Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu amava-me. E as minhas pernas andavam, desandavam, estavam trêmulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhes fosse comparável a qualquer outra sensação da mesma espécie.” Eis uma experiência de transcendência. Experiência do encontro entre duas pessoas que se enamoram e se amam. E quando se dá a intimidade sexual, expressão do amor, uma se perde para dentro da outra e esquece-se o tempo. Vive uma experiência mística, de antecipação da eternidade. Todos os místicos, quando estão no auge do seu enamoramento com Deus, falam do esponsal: “do amado na amada transformado”, como diz São João da Cruz. Porque esta é uma experiência suprema, em que os seres humanos saltam na direção do outro, numa fusão gratificante. É uma experiência só comparável à da intimidade, da erótica. A experiência da transcendência se manifesta de modo especial na cultura popular, que é a cultura massacrada do salário mínimo, da destruição do horizonte utópico, da frustração de que, no fundo, nada mais vai mudar. Conheço um torcedor que antes de um grande jogo, decisivo, vai até dormir mais cedo para que o tempo passe mais depressa, tal é o desejo de ver seu time jogar. Quando chega o dia compra antecipadamente a entrada, vai ao estádio e aí

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ninguém o contém. Ele freme, ele treme e na hora do gol experimenta um salto para a transcendência. É o delírio, é o grito, é o abraço, é o gozo, é o êxtase. Ou então, quando chega o carnaval, e a sua escola desfila e ganha, se não tem um foguete, mas uma arma, ele chega a dar tiros para o ar, tal é a experiência de saída de si mesmo, de límpida transcendência. Quando refletia sobre a transcendência para esta palestra, li num jornal uma notícia reveladora de uma experiência dupla de transcendência. Pobres sem-terra de favelas, que nunca tinham estado num shopping, resolveram se organizar para visitar um, sem nenhuma intenção de assaltar, de fazer confusão, nada. “Vamos visitar um shopping.” E foram, na pobreza em que estavam, descalços, sujos, roupas malcheirosas, sinais da cultura da miséria. E no shopping Rio Sul do Rio de Janeiro se deu a experiência de uma dupla transcendência. Eles ficaram encantados. Um oásis de consumo, uma beleza sem contradições. Cada loja mais linda do que a outra. Numa um deles entrou, até experimentou uma roupa. Que coisa bonita! Um paraíso encantado de produtos. Nunca tinham visto tal profusão. Se há um paraíso terrenal, de produtos materiais, o shopping o realiza. Mas o realiza só para alguns. Então aqueles semterra tiveram uma experiência fantástica de transcendência de seu melancólico cotidiano. E os donos das lojas e os freqüentadores do shopping também tiveram uma experiência de transcendência. “Como é possível que esses venham para cá?” Alguns fecharam as lojas. “Vão nos assaltar, vão nos roubar.” E eles, nada disso. Só queriam visitar. “São ETs que vieram de outros planetas, de outros

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continentes, e entraram nesse país fechado do moderno consumo. Eles não cabem aqui. São os zeros econômicos, não são nem produtores, como querem ser consumidores? Não contam na contabilidade nacional, como querem estar aqui?” Vejam, a transcendência ocorre nessas experiências do cotidiano banal, do nosso dia-a-dia. Para uma cultura mais elaborada há outras experiências de transcendência: ante uma peça de teatro, um livro, um filme. “Que beleza de enlevo!”, “Vou ver uma grande artista”. Assisti três vezes ao filme A Vida é Bela, de Bengnini. É uma experiência fantástica de transcendência feita por uma criança no transfundo da guerra e do campo de concentração judeu, alimentando o sonho de ganhar como presente um tanque de guerra. Apesar daquele horror do nazismo e do campo de concentração que cristaliza a negação de toda a dignidade humana, a possibilidade do ser humano de ultrapassar, de viver a transcendência, de garantir o sonho e o humor finalmente acaba se realizando: encontra o tanque de guerra real, tanque que o vem libertar a ele e a sua mãe. Nesse contexto não posso deixar de lembrar as memórias de Rudolf Hess, diretor nazista do campo de extermínio em Auschwitz. Conta que sua função era a de conduzir os judeus à câmara de gás. Fez até os cálculos de quantos ele, sozinho, enviara às câmaras de extermínio, e, se bem me lembro, cerca de um milhão e trezentas mil pessoas, homens, mulheres e crianças. Foi julgado em Nuremberg e na prisão, antes de ser enforcado, teve tempo de escrever suas memórias. O que impacta é a frieza com que o faz. Absolutamente convencido da retidão de seu

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comportamento, pois obedecia ordens de Hitler, o Führer. “E o Führer, o Chefe, sempre tem razão.” E aí pratica o mal com absoluta boa vontade. Agora entendemos a frase de Pascal: “Nunca fazemos tão perfeitamente o mal senão quando o fazemos com boa vontade.” Mas há um momento no livro que me abalou e não posso esquecê-lo: é o momento de transcendência dele. Foi quando mandou para a câmara de gás uma mulher com cinco crianças. A mulher intuiu o que ia acontecer. Ela então suplicou de joelhos que ele poupasse as crianças. Por um instante ele ficou embaraçado, perplexo, sem saber o que fazer. Mas com um gesto brusco mandou que levassem todos, a mulher e as crianças. Nas suas memórias, comenta: “Aquele olhar da mulher não posso jamais esquecer. Ele me persegue sempre, até os dias de hoje, porque havia nele tanto enternecimento, tanta súplica, tanta humanidade, que eu me senti o inimigo de minha própria humanidade.” É uma experiência de transcendência, pelo reverso, possível até no nazismo mais brutal. A transcendência principalmente se dá no encontro com as pessoas. Às vezes, acontece: você está numa crise existencial, sem rumo, e encontra alguém que tem palavras seminais, que lhe acende uma luz, que coloca a mão no seu ombro, que aponta um caminho. Não como o mestre, que diz “Vá por aí”, mas despertando o mestre escondido em você e ajudando-o a definir um caminho de sentido. Você tem então uma experiência de transcendência, de ruptura de seu círculo fechado, de apoio existencial libertador. Surge então o sentimento de veneração por essa pessoa que se transforma, por um momento, em um mestre, capaz de despertar o seu herói interior adormecido.

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Não me furto de oferecer uma experiência pessoal de transcendência no encontro. Em I998 fui visitar Dom Hélder no Recife, em sua igrejinha das Candeias e a meiaágua onde vivia pobremente. Sempre fomos muito amigos. Jamais esqueço do bilhetinho manuscrito que me fez chegar a mim e a meu irmão Clodovis, também teólogo (a quem Dom Hélder considerava como um filho querido). Marcamos um encontro às dez horas. Quando cheguei, a freira que cuidava dele me disse: “Olha, Dom Hélder estava muito cansado e foi descansar. Acho que adormeceu. Se quiser, eu o mostro dormindo.” E eu fui ver. Fiquei dez minutos, quinze minutos talvez, contemplando aquele passarinho dormindo. Com seu habitozinho branco, parecia um Gandhi com as suas canelinhas de fora, finas, suspirando profundamente. E eu fiquei enlevado, porque saía dele tanta irradiação, tanta leveza, tanta santidade, tanta transcendência, que era algo do outro mundo que irrompia ali. Fiz a reverência indiana, inclinei-me profundamente, sai de fininho e disse: “Olha, entre tantos diálogos que tive com Dom Hélder, este foi o mais profundo.” Essa imagem eu quero guardar dele. O sono de um profeta, de um Gandhi, de um anjo da paz. São pessoas iluminadas. Cada um de nós encontra em sua vida pessoas iluminadas. É talvez um avô, uma avó, um tio que sofreu muito, um amigo entranhável, uma amiga confidente. Às vezes pode ser até o pipoqueiro ou a manicure que escutam e sabiamente ponderam e opinam com visões surpreendentes, verdadeiramente fantásticas. Tenho alguns amigos das camadas populares que eu acho geniais. Deviam estar nas universidades falando, nos púlpitos pregando e nós só escutando e aprendendo. Martin Heidegger, que eu considero o maior filósofo do

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século XX, apesar do seu nazismo inicial, não quis sair de Friburgo, que é uma cidadezinha bem pequena. Ele quis ficar lá porque seus grandes amigos, seus interlocutores de pensamento, eram Camponeses, lenhadores da Floresta Negra com quem ele mantinha grandes diálogos. Ele dizia: “Aqui estão os pré-socráticos.” Aqueles do pensamento originário, que não estão na metafísica das igrejas, nem na metafísica da modernidade, nem na metafísica das universidades, estão no chão da vida, em grau zero, colados à realidade fundamental da ex-istência como expliquei anteriormente. Heidegger dava a entender: “Aqui alimento minha reflexão. Não vou a Berlim, a capital da Alemanha, com uma cátedra prestigiosa de filosofia. Fico aqui com meus lenhadores.” Escreveu um belíssimo texto dando as razões de sua permanência na província. Como filósofo, ele vivia às voltas com a transcendência. Encontrou e identificou a fonte de onde para ele germinava a transcendência, cristalina, no trato amical e franco com os camponeses. 6 – TUDO O QUE É SÃO PODE FICAR DOENTE: A PSEUDOTRANSCENDÊNCIA Há também uma pseudotranscendência que a cultura atual promove de forma inflacionada. Acho que todo esse universo do marketing, do show bizz, do entretenimento nacional e mundial são os campos onde se produz uma experiência de pseudotranscendência. As menininhas ficam loucas quando vêem um artista de televisão e podem tocálo. Deliram quando encontram a Xuxa, porque a Xuxa é uma fonte de transcendência construída artificialmente. Quando o padre Marcelo Rossi canta, muitos cristãos deliram. É como se baixasse o Espírito Santo neles por

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força da evocação de emoções. Julgo tais manifestações de pseudotranscendência. E a maior de todas elas é a droga. Ela permite uma viagem fantástica, feita não pela espiritualidade, mas pela química. A religião, a arte, o cinema podem ser drogas. Com elas rompem-se todos os limites, vive-se a onipotência e se voa para além dos limites da condição humana cotidiana. O problema da droga não é a viagem, é a volta da viagem, quando então não se suporta mais o cotidiano. O cotidiano que é a imanência, que é a rotina chata, a obrigação diuturna de trabalhar, de levantar, de seguir horários, de pagar contas, tudo isso é estafante e enervante. Então, é muito melhor viajar, saltar para fora dessas limitações, artificialmente, a preço de destruir a liberdade e a vida. Julgo que o critério para saber se a transcendência é boa, se potencia o ser humano ou o diminui, está na resposta que damos a essa pergunta: em que medida tal experiência ajuda a enriquecer e a assumir o cotidiano? Ela representa uma fuga ou um álibi para o cotidiano, um endeusamento e uma fetichização daquilo que representa sentido para nós? Se a experiência não amplia nossa liberdade, não nos dá mais energia para enfrentar os desafios do cotidiano, comum a todos os mortais, não nos faz mais compassivos, generosos e solidários, podemos seguramente dizer: fizemos uma experiência de pseudotranscendência. Saímos mais empobrecidos em nossa realidade essencial, que é a de existências que se constroem com decisões de liberdade, assumindo honestamente os desafios e estando à altura deles. Precisamos compreender e assimilar em nossas atitudes que não é só poeticamente que habitamos o mundo, quer dizer,

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com enlevo, transfiguração e alegria, mas também habitamos o mundo prosaicamente, vale dizer, com sua opacidade, com seus limites e seu enraizamento inevitável. Dessa situação objetiva nenhuma droga nos liberta, só uma existência que saiba equilibrar transcendência e imanência como dimensões de toda existência humana. Então, as pseudotranscendências exploram essa capacidade de ultrapassagem do ser humano, mas não lhe conferem a experiência de uma plenitude duradoura. Não é a droga que permite a experiência da viagem, é a química presente nela. É diferente a viagem feita a partir de um trabalho de busca de sua identidade e de um caminho espiritual mais árduo. Um trabalho onde domesticamos passo a passo os demônios que nos habitam, sem recalcálos, sem cortar-lhes os chifres, mas controlando-os e canalizando a energia poderosa deles para o nosso crescimento. Porque eles ensejam uma experiência mais global da realidade, permitindo que a luz ilumine as trevas e que a nossa parte sã cure a parte doentia. Essa é a experiência de transcendência fecunda, verdadeiramente humana. 7 – O DESEJO E A TRANSCENDÊNCIA Somos todos seres desejantes. Talvez o desejo seja a nossa experiência mais imediata e, ao mesmo tempo, mais profunda. Coisa que já Aristóteles vira e que Freud colocou como eixo fundamental para entender o motor interno humano. A nossa estrutura de base é o desejo. E faz parte da dinâmica do desejo não ter limites. Não desejamos só isso e aquilo. Desejamos tudo. Não queremos só viver muito, queremos viver sempre. Desejamos a imortalidade. E nos

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frustramos, porque o princípio da realidade nos mostra que somos mortais. Vamos morrendo devagarzinho, em prestações, cada dia, até acabarmos de morrer. Mas o nosso desejo é sempre virgem, sempre quer viver mais, quer prolongar o tempo, quer transcender a morte. A grande chave da pseudotranscendência é manipular nossa estrutura de desejo, é canalizar toda nossa potencialidade de desejo para uma coisa limitada e identificar essa coisa com a totalidade da realidade. É então que nos frustramos porque o desejo quer o todo e só alcançamos a parte. A propaganda do cigarro Marlboro é como um sacramento da Igreja Católica que age ex opere operato – age por si mesmo, automaticamente. Quem fuma Marlboro, nos prega o marketing, tem as mulheres mais esplêndidas, dirige uma Ferrari luzidia, desfila por paisagens soberbas. Basta fumar Marlboro para ter essa experiência de plenitude. Pura ilusão. As meninas bonitas não querem saber de fumo, nem querem que você fume por perto. Os carros da Ferrari são fruto da lavagem de dólar da droga. E essas experiências, assim como as paisagens belíssimas, existem só no imaginário. Não produzem nada, fornecem apenas uma ilusão e manipulam nossos sentimentos. Mas o grave é isso, que permitem a ilusão da realização do desejo infinito identificado com um objeto finito. Devemos passar por todos esses objetos, dizendo fundamentalmente: “O obscuro objeto do desejo humano não é este ou aquele ser, esta ou aquela realidade. Não é um automóvel, não é uma mulher esplêndida, não é escrever um livro, não é fazer teatro, não é ser isso ou aquilo. É mergulhar no ser, captar a nossa sintonia com a totalidade, é sentir que somos chamados ao ser pleno, e não ao pedaço do ser.” Vivemos no finito. Tudo o que tocamos é limitado. Mas

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o nosso desejo é infinito, é ilimitado. Então, para sermos fiéis aos apelos de nossa interioridade, preciso manter essa abertura infinita. Quando confundimos essa realidade parcial com a totalidade da realidade, vem a ilusão do fetiche, a ilusão do endeusamento, da idolatria, dos falsos deuses. Considero que uma das funções importantes da razão crítica é des-construir as realidades, é desfazer os imaginários construídos em função de interesses de grupos e confrontar o ser humano coma sua realidade fontal. Então descobrimos nossa dialética fundamental. Cada ser é diabólico (que desagrega) e ao mesmo tempo sim-bólico (congrega), cada um é Adão, cada um é Cristo, cada um é águia que voa alto e, simultaneamente, é galinha que cisca cá embaixo. Temos raiz e temos abertura, como já referimos anteriormente. Somos como uma árvore, fundados no chão que nos dá força para enfrentar as tempestades. Mas também temos a copa, que interage com o universo, com as energias cósmicas, com os ventos, com as chuvas, com o sol e as estrelas. Sintetizamos tudo isso, transformamos em mais vida a nossa abertura. E se não mantemos a abertura – a copa –, o tronco estiola, as raízes secam e a seiva já não flui. Morremos. A dialética consiste então em manter juntos o enraizamento e a abertura. Imanentes, mas abertos à transcendência. 8 – QUAL É, FINALMENTE, O OBSCURO OBJETO DO DESEJO? Falamos antes do ser humano como um ser desejante ilimitado, um projeto infinito, um ser de abertura: aberto ao outro, aberto ao mundo, aberto em totalidade. E aqui surge

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uma questão filosófica, que é também teológica e que não podemos nem devemos escamotear: quem preenche esse vazio profundo dentro de nós? Qual é o objeto adequado ao nosso desejo infinito, que nos satisfaz e nos traz descanso? Por que quero o infinito e só encontro o finito? Quero o ilimitado, a totalidade, e só encontro fragmentos? Aqui se revela o ser humano como um ser protestante e insatisfeito. Não há psicologia nem analista que o cure. Digo aos meus amigos psicanalistas: não tentem curar as pessoas dessa angústia infinita, porque o ser humano não é curável. Esse mal infinito que o habita é a sua grandeza, é o seu dinamismo, é a sua essência. É a partir dessa excentricidade que ele poderá encontrar sua cura. Considero que ha três atitudes possíveis com relação à abertura ao ilimitado, ao inominável, à atitude de expectativa e de espera do ser humano. Há muitas, mas vou me limitar às três que acho possíveis. Uma, vivida por tantos existencialistas, como Sartre, que se recusam a aceitar a transcendência. Esta primeira atitude considera o ser humano uma paixão absurda, um ser que quer o absoluto, mas está condenado a viver o relativo. Para preparar esta reflexão, li o O Ser e Nada, que é o grande livro de Sartre. A terceira parte tem um capítulo inteiro sobre a transcendência. Fui ver o que ele diz e verifiquei que é exatamente o que eu estou falando aqui. Sartre afirma que a fenomenologia do ser humano, isto é, a descrição de como se manifesta e de como funciona o ser humano, reside em revelar que ele é um ser em si, mas que se abre sempre para o outro, que se abre ao mundo, que se abre à totalidade. Esta é a condição humana básica. Mas ele se recusa a aceitar que essa abertura tenha um objeto. Para

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ele, o ser humano é uma mola distendida para o universo, e tanto sua angústia quanto sua grandeza é aceitar-se nesse empuxo para o aberto puro e simples, sem objeto definido Há uma outra posição de muitos de nossos intelectuais que são agnósticos que não querem se definir com referência à abertura e à transcendência. Eles sofrem com a falta de resposta. É uma atitude digna, porque é muito dolorosa e corajosa. Sentem o desejo do espírito, identificam um eventual objeto do desejo, mas temem aderir a ele. E acabam mantendo distância. Preferem a indefinição, manter-se no aberto, com as inseguranças e angústias existenciais que tal decisão comporta. Eu entendo essas pessoas. Às vezes tiveram experiências negativas com aqueles que, na História, se arvoraram e se apresentaram como portadores da transcendência. Grupo de filósofos, representantes de visões de mundo e de religiões oferecem um transcendente tão medíocre, tão cruel, que mais vale ser um ateu alegre do que um crente desse tipo de transcendência menor. Por isso devemos ter uma atitude compreensiva para com esses agnósticos e decifrar atrás deles uma interrogação existencial, frustrada pelas formas muito materializadas e pouco dignas da natureza da transcendência, como vem apresentada. Mas há uma atitude, e essa é das religiões, que tem a inaudita coragem – acho que é coragem mesmo – de dar um nome a esse objeto do nosso desejo, chamando-o de Deus, de Olorum, de Tao, de Javé, de mil outros, Pai, Filho, Espírito Santo, não importa o nome. Eles invocam o nome de Deus no sentido mais originário da palavra Deus, que, em sânscrito, significa a realidade que brilha e que ilumina. Nessa perspectiva, Deus tem pleno sentido. Deus só tem sentido existencial se for resposta à busca radical do ser

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humano por luz e por caminho a partir da experiência de escuridão e de errância. Ou simplesmente pela experiência iluminadora de sentido que deriva da vida, da majestade do universo, da inocência dos olhos da criança. Aquele Deus ex-maquina pregado por religiões ou anunciado por dogmas não preenche, necessariamente, essa busca humana, porque vem de fora para dentro e de cima para baixo. Mas há uma outra experiência de Deus, a que nasce dessa ansiedade do ser humano. Ao dizer “Deus” (essa palavra de reverência que, por respeito, sequer balbuciamos) apontamos para a direção de onde nos poderá vir uma resposta. Então esse nome Deus está no lugar de mistério, de inominável, de indecifrável, de fonte originária, geradora de todo ser. Neste Deus o ser humano pode descansar, pois se sente conatural com Ele. O ser humano, vivenciando-se como projeto infinito, encontra, finalmente, um Sujeito igualmente infinito, seu conatural. Os grandes místicos, seja da tradição do cristianismo, do taoísmo, do sufismo e do muçulmanismo, todos representam Deus dessa forma. Considero Rumi, sufi muçulmano, o maior místico de todas as tradições religiosas do amor. Ninguém falou melhor do amor do que ele, nem São João da Cruz, o místico do amor divino. Era contemporâneo de São Francisco de Assis, mas vivia na Pérsia, e um não sabia do outro. Ele tem poemas fantásticos sobre o amor em todas as suas formas. O amor erótico, o amor dos sentidos, o amor espiritual, o amor ao outro, o amor a Deus. Ele tem um pequeno poema que diz assim: “Quando estás comigo, o amor não me deixa dormir. E quando não estás comigo, as lágrimas não me deixam dormir. Teu amor chegou ao meu coração e partiu feliz. Depois retornou e me colocou o gosto do amor. Mas mais

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uma vez foi embora. Timidamente lhe pedi que ficasse comigo alguns dias. Então veio, sentou-se junto a mim e se esqueceu de partir.” A tradição mística diz que a dimensão mais profunda de nós mesmos é aquilo que chamamos de “Deus”. E reflete, afirmando que a tarefa do ser humano é passar do Deus que temos para o Deus que somos, na nossa profunda radicalidade. São João da Cruz, o místico ardente, diz em vários lugares dos seus escritos: “Nós somos Deus”. E como tinha medo da Inquisição, que ia mandá-lo para a fogueira, colocava vírgula e dizia: “Somos ‘Deus’ (vírgula) por participação”. Porque, se dissesse “Deus”, pura e simplesmente, atiçariam os fósforos contra ele. Santa Teresa afirma a mesma coisa. Então, o ser humano é conatural com essa suprema realidade. Porque o ser humano é um projeto de absoluta abertura e, por isso, é um mistério indecifrável. Por mais que o definamos, sempre sobra alguma coisa a ser definida e a ser respondida. Deus deve ser pensado nessa direção. Então, se Deus tem algum significado, deve ser entendido assim, como o objeto secreto da busca humana, o nome da reverência, do pulsar do nosso coração, aquele que se esconde atrás de todos os caminhos, que nos conduz, finalmente, e nos sustenta. São Paulo, nos Atos dos Apóstolos, dialogando com os gregos de Atenas, lhes anuncia o “Deus desconhecido” que, na verdade, é o mais conhecido, porque, dizia, “Nele vivemos, nos movemos e existimos, porque somos também de Sua linhagem”. Traduzindo para a nossa linguagem: nós nunca vamos a Deus, nós nunca saímos de Deus, porque

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estamos sempre dentro de Deus. Este é o pensamento radical, a experiência de fundo de onde nascem os muitos caminhos espirituais. Pois todos os caminhos conduzem a Deus. A dimensão de fé, a dimensão mística, a dimensão de uma visão mais originária e profunda consistem em ver que cada caminho não é errância. Cada Caminho é caminho para a fonte. Por isso, por mais diversas que sejam as religiões, todas elas falam do mesmo, do mistério, de Deus. 9 – TRANSCENDÊNCIA: SINGULARIDADE DO CRISTIANISMO Quais as conseqüências mais imediatas de tomar consciência da transcendência? Porque transcendência não é algo que temos ou não temos. Todos têm. Transcendência não se ganha, não se perde, é uma situação do ser humano que foi condenado a viver essa dimensão, a violar os interditos, a superar os limites. Esta é a sua estrutura, é a sua singularidade no processo cosmogênico, no conjunto dos seres. Precisamos transformar essa dimensão da transcendência num estado permanente de consciência e num projeto pessoal e cultural. Devemos cultivar esse espaço e fazer que a sociedade, a cultura e a educação reservem espaços de contemplação, de interiorização e de integração da transcendência que está em nós. Hoje talvez essa dimensão esteja encoberta por cinzas, pois a cultura é extremamente materialista e pobre de espírito. Mas, apesar de criar sedativos para a transcendência ou deslocá-la para regiões privatizadas, a cultura não consegue sufocar a transcendência.

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E a experiência de transcendência produz em nós, inicialmente, um enorme sentimento de leveza e de humor, porque, a partir dela, relativizamos as coisas todas e nos capacitamos a rir delas. Nada consegue absorver tudo. Nada me define completamente. Nada é definitivo. A realidade, o real, é apenas uma real-ização das potencialidades existentes no universo. Não estamos encurralados e aferrolhados a um arranjo existencial. Podemos rompê-lo e enriquecê-lo. Os dramas que sempre nos acompanham são descarregados de seus ônus opressivos. Por pior que seja o mal, ele nunca é absoluto. Podemos estar além dele. E, finalmente, a esperança é a última que morre. E por mais prostrados que estejamos, sempre podemos dar um salto, pelo menos recorrer ao direito de espernear e de protestar. Este direito nos é sempre preservado, ninguém pode destruí-lo. Por fim, qual é a singularidade do cristianismo em face dessa experiência universal da transcendência? A experiência que o cristianismo traz não é propriamente a transcendência. Isso nos legaram os gregos. A tradição judeu-cristã fala em transcendência. Somos convidados não apenas a superar e a voar para cima, mas, fundamentalmente, a descer e a buscar o chão. A experiência que o cristianismo procura articular e comunicar é essa: o Deus, que circunda toda a realidade, emergiu do mais pobre. Nasceu no meio de animais, se identificou com o crucificado, se fez esmoler para conseguir o amor de cada um e para eliminar as distâncias entre os seres humanos, se fez o último dos homens. O texto bíblico diz que ele se fez carne, se fez verme, se fez servo, se fez escravo de toda humana criatura. Depois ele

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desceu ao mais profundo, foi até os infernos. Quando o Credo cristão diz que o Deus encarnado (Cristo), ao morrer, foi aos infernos, significa que ele desceu até aquela dimensão na qual estamos absolutamente sozinhos, para onde não podemos levar ninguém, sequer a pessoa amada: é o momento pessoalíssimo da nossa morte. Se ele desceu até lá foi para nos dizer: “Mesmo que você vai até o inferno, eu estou com você. Você não vai sozinho, eu vou junto.” Se ele desceu tão fundo - transdescendência -, pode subir para o mais alto - a transcendência. Ao mergulhar dentro da fragilidade humana, Deus uniu, na encarnação, transcendência e imanência. Então, Deus desceu, desceu para o mais baixo. E a atitude mais grandiosa do ser humano na leitura cristã é vergar-se como o bom samaritano sobre o outro caído. É o amor que desce. Não devemos nos abaixar diante de ninguém, menos ainda cair de joelhos. Só podemos fazê-lo, sem perder a dignidade, inclinando-nos diante do caído na estrada, para elevá-lo e resgatá-lo. Essa transdescendência se ordena à transcendência e salvaguarda a sanidade da transcendência. Atrás do caído se esconde o próprio Deus, pois, no entardecer da vida, seremos julgados não porque tivemos transcendência e comungamos muitas vezes, não porque obedecemos a todos os dogmas e nos filiamos às igrejas, ou porque fomos bons dizimistas ou cidadãos honrados. Não seremos julgados por nada disso. Seremos julgados por aquele mínimo de amor que tivermos tido pelo sedento, pelo nu, pelo faminto. Quem assumiu essa transcendência escuta as palavras benditas: “Vinde. Herdai o reino.” Por isso, para o cristianismo, o importante não é a transcendência nem a imanência. É a transparência, que é a presença da transcendência dentro da imanência. Não é a epifania, o Deus que vem e se anuncia. É a diafania, o Deus

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que, de dentro, emerge para fora, de dentro da realidade, do universo, do outro e do empobrecido. Portanto, a singularidade do cristianismo está na transparência desse homem concreto, Jesus de Nazaré, homem como nós, que morreu não num acidente de estrada na Palestina, mas morreu na cruz, num processo de insurgência, porque tomou partido dos pobres, dos humildes, transparência que permite captar a transcendência divina. Ele internalizou a experiência ao dizer: “Você é filho, você é filha de Deus. Em você se encontra o absoluto. E por isso, ao amar o outro, você ama a Deus, e o amor a Deus e o amor ao próximo são um amor só, são um movimento só.” Nada mais grandioso que tal estado de consciência. A transparência é poder ver no outro Deus nascendo da profundidade de seu coração. Essa é a singularidade do cristianismo, não raro obnubilado pelo excesso de doutrinas e de dogmas que se agregaram a essa experiência originária. 10 – O DEUS DESCONHECIDO PRESENTE EM NOSSAS ANGÚSTIAS E como nós estamos no centenário de morte de Nietzsche, com muitas celebrações, quero terminar com uma oração belíssima desse desesperado filósofo alemão que pregou a morte de Deus e fez a crítica mais violenta do cristianismo, mas o fez a partir de uma experiência radical do Deus vivo. Quando anuncia a morte de Deus, ele fala do Deus que tem que morrer mesmo, porque é o Deus das nossas cabeças, o Deus inventado, o Deus da metafísica, o Deus que não é vivo. Ele fez uma oração que traduzi, sem chegar a transmitir todo o seu teor poético. O titulo é A

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Oração ao Deus Desconhecido. Antes de prosseguir em meu caminho e lançar o meu olhar para a frente uma vez mais, elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de quem eu fujo. A Ti, das profundezas de meu coração, tenho dedicado altares festivos para que, em cada momento, Tua voz me pudesse chamar. Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras: “Ao Deus desconhecido”. Sei, sou eu, embora até o presente tenha me associado aos sacrílegos. Sei, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo. Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servi-Lo. Eu quero Te conhecer, desconhecido. Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida. Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero Te conhecer, quero servir só a Ti. (Friedrich Nietzsche) 11 – TRANSCENDÊNCIA E IMANÊNCIA: EXPRESSÕES DO PATRIARCADO? Se eu tivesse sido mais rigoroso, deveria ter dito no início da palestra que falo aqui como homem, na tradição patriarcal, numa cultura da dualidade que se expressa pelas categorias imanência e transcendência. Na verdade, essa terminologia e outras dualidades afins são da cultura patriarcal, são da cultura hegemonizada pelos homens. Mulher não se move nessas dualidades, porque tem uma experiência holística, inclusiva e blobalizadora. Ela pensa com o corpo, nós homens pensamos com a cabeça. Ela pensa com a totalidade da sua realidade, o

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que a torna muito mais próxima da experiência originária, mais afim à realidade da vida. Nós homens estamos nos autoexilando deste mundo integrador. A universidade, a cultura moderna e o processo técnico-científico são produções do patriarcado. Por isso ele é violento, dilacerador e produtor de dualidades e rupturas. Por serem as principais portadoras da anima (princípio feminino), as mulheres têm uma visão mais integradora, que não dissocia, está mais próxima da Fonte e por isso é muito mais espiritual. A divindade não é para elas um problema, é a solução dos problemas. Para nós, homens, não: a divindade é sempre um problema não-resolvido, porque se situa só na cabeça e não na totalidade. Em razão disso tudo, eu deveria ter começado minha palestra alertando para o fato de que falo como homem. Apesar desta omissão subjetiva, não cometi um erro objetivo, pois tentei des-construir as expressões transcendência-imanência (produtos do masculinismo) para chegar a uma dimensão mais originária, mais feminina, onde nos encontraremos com a tradição das grandes mães e dos valores do matriarcado. Ademais, estimo que seja este o grande desafio do século XXI: fazermos o novo pacto de gêneros, uma nova aliança homemmulher, superando a guerra secular dos sexos. Mais e mais não nos definimos pelo sexo, mas pelas qualidades pessoais. Juntos, na diferença de homem e mulher, podemos construir uma humanidade una, diversa e fecunda nessa diversidade. Precisamos conscientizar tal visão, transformá-la num projeto político, torná-la verdadeiramente a nova utopia que poderá dar sentido a uma humanidade emergente finalmente orientada pela colaboração e buscando convergências na diversidade.

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12 – A PARTIR DE ONDE EMERGE HOJE O HORIZONTE UTÓPICO? Considero que o nicho básico capaz de gerar utopias salvadoras, isto é, um patamar novo de civilização, veio da reflexão ecológica. Não da ecologia reduzida ao meio ambiente, porque estamos cansados de meio ambiente, queremos um ambiente inteiro. Mas uma ecologia que inclui o ser humano com a sua mente e coração, entrando num outro estado de consciência, numa nova veneração diante de cada ser. Esta é uma ecologia também espiritual, uma ecologia integral. A partir disso falamos cada vez menos de meio ambiente para falarmos, com mais objetividade, de comunidade de vida, comunidade terrenal, comunidade cósmica. Hoje, o maior desafio nos vem da ecologia social (que se preocupa com a pobreza / desenvolvimento / comunidade de vida), que é a mais violada de todas, porque dois terços dos seres humanos não têm sustentabilidade em sua vida. Atualmente o ser mais ameaçado da criação não é o mico-leãodourado, não é o uirapuru, nem o ursinho panda da China, mas o ser humano pobre, condenado a morrer antes do tempo. Desse nicho da reflexão ecológica (que inclui as contribuições da nova física, da cosmologia, da biologia genética e das ciências da Terra) se está elaborando uma nova ótica, capaz de gerar uma nova ética. Nela o que conta, fundamentalmente, como lei suprema do universo não é a vitória do mais forte pela seleção natural. Se assim fosse, os dinossauros ainda existiriam, pois eram os seres mais gigantescos e fortes da natureza. A lei suprema do universo, que permitiu que todos nós chegássemos até aqui, é a da cooperação de todos com todos. É

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a da solidariedade cósmica, porque tudo tem a ver com tudo, em todos os pontos, em todos os momentos, em todas as circunstâncias, numa rede de inter-retro-dependências de todos com todos, não permitindo que ninguém seja excluído (como o faz nosso sistema social mundializado que exclui 2/3 dos seres humanos). Cada um sendo cúmplice e responsável pela vida do outro. É nessa sinergia que o universo funciona. Vamos, pois, tomar essa constante cosmológica como orientação, fazendo que as nossas sociedades funcionem da mesma forma sinergética, cooperativa e solidária: com projeto político consciente, com propósito, com práticas adequadas, com estratégias de viabilização. Nós podemos salvar essa nave espacial azul e branca, a Terra, apesar de seus recursos escassíssimos e de seu equilíbrio extremamente fragilizado. É essa cooperação universal, essa solidariedade cósmica que gera uma nova utopia e abre espaço para a esperança. Vivemos agora uma travessia difícil entre os velhos deuses que ainda persistem, que não acabaram de morrer, e os novos que estão nascendo, que não acabaram de nascer. Tal fato faz com que seja difícil esse entretempo que estamos vivendo. Mas temos que aprender a visualizar e a amar o invisível. Sonhar com as potencialidades desse novo que emerge e apostar nele. Fazer a nossa revolução molecular (cada um se envolve no processo de mudança) nessa direção, em vez de ficarmos esperando, inertes, a grande aurora, porque sem a nossa própria revolução pessoal essa aurora revolucionária nunca virá. Cada um tem que construir o novo a partir do lugar onde se encontra: a nova sinergia, as parcerias, as redes. Essa atitude

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significa acumulação de energia necessária para a grande ruptura. É daí que virá um outro patamar, uma outra estruturação do equilíbrio dinâmico e aberto, uma nova fase da civilização. Quando ocorrer, então ter-se-á inaugurado o novo milênio e nós, que tivermos participado das revoluções moleculares, surgiremos como cidadãos de um novo tempo, para a consciência, para a humanidade, para a própria MãeTerra. FIM de Tempo de Transcendência de Leonardo Boff