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Portuguese Pages 244 [247] Year 2024
SóPapos
2017
MD Magno
SóPapos 2 0 1 7
é uma editora da Presidente Rosane Araujo Diretor Aristides Alonso Copyright 2024 MD Magno Texto preparado por: Nelma Medeiros Patrícia Netto Alves Coelho Potiguara Mendes Silveira Jr Revisão: Paula Carvalho Editoração eletrônica e produção Gráfica: Wallace Thimoteo Editado por Rosane Araujo Aristides Alonso
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) _______________________________________________________________________ Magno, MD SóPapos 2017 [livro eletrônico] / MD Magno. -- Rio de Janeiro : Associação Cultural Univercidade de Deus - UD, 2024. PDF ISBN 978-65-88357-19-4 1. Psicanálise 2. Psicologia I. Título. 24-207059 CDD-150 _______________________________________________________________________ Índices para catálogo sistemático: 1. Psicologia 150 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129 Direitos de edição reservados à: Rua Sericita, 391 – Jacarepaguá 22763-260 Rio de Janeiro – RJ Tel.: (021) 2445-3177 www.novamente.org.br
Não ando perdida, mas desencontrada. Cecília Meireles
Sumário
1, 15 Situação contemporânea é rito de passagem para o Quarto Império – Quarto Império exige radical mudança de postura mental – Ficção, delírio e eficácia – Fanfiction como manifestação do Quarto Império – Postura de indiferença e lida com o mundo – Morfômica analisa composição da forma – Melancólicos e proposição de níveis no Revirão: melancolia, gai savoir e criação. 2, 24 Usos da topologia em psicanálise – Possibilidade de acompanhamento do psíquico por via computacional – Teoria das Formações busca gerador comum das proliferações (ou formações) – Gerador comum é fundamento do sintoma: fantasia – Marcel Duchamp mostra engenharia de sua fantasia – Artifício Espontâneo sequestra pulsão para seu próprio lucro – Primário e pressão para reprodução – Freud traz reconhecimento do tesão absoluto – Dissolução de fronteiras e valores exige nova formatação de governo. 3, 35 Hipótese do Revirão em cosmologia – Não há teoria adequada para abordagem do universo até o momento – Tempo como subproduto do movimento entrópico.
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4, 37 Contaminação histórica do conceito de perversão e seu abandono – Explicação para psicopatia é cerebral – Abrangência da Tópica do Recalque – Não congruência entre Autossoma e Etossoma – Anfissexualidade é possibilidade da espécie – Psicopatia pode estar tendencialmente em qualquer Morfose – Autarcia de uma situação por suspensão ideológica da empatia. 5, 45 O Anti-Édipo tem mérito, mas mantém sujeito – Teoria das Formações mostra limitação das definições caracterológicas de uma Pessoa – Modelo polo, foco e franjas e o processo de polarização da Pessoa – Exercício de dissolução de autor em Aboque/Abaque – Fanfiction desbanca autor – Escuta é de formações, não de personagens – Análise ocorre para além da psicanálise – Escotomização, “fatos alternativos” e o fenômeno Trump – Quarto Império força invenção de outra situação cultural – Incompatibilidade entre Islã (Segundo Império) e Cristianismo (Terceiro Império) – Globalização por aglutinação e globalização mediante pulverização – Nefelibatos do futuro serão irreconhecíveis – O planeta está se lixando para nós. 6, 57 Apresentação de O Tempo de Crise, de Michel Serres – Michel Serres pensa contemporaneidade com cacoetes do Terceiro Império – Ideia de sujeito sustentou o Terceiro Império – Teoria das Formações tira centralidade das IdioFormações – Autor é ficção resultante de uma Transa entre formações – Globalização do Quarto Império é por pulverização, não por aglutinação – Ética do respeito radical à diferença, e não amor – “Terra” no Segundo Império não é ecologia. 7, 66 Morte da democracia e Diferocracia como configuração nascente – Trump como efeito de Quarto Império – Parâmetros teóricos maleáveis e dispersivos para lidar com este tempo – Pulverização e redes topológicas mundiais 8
– Império muda para quem pode – Pulverização é deixar diferenças comparecerem – Toda Transa é dissimétrica. 8, 71 Século XX globalizou por aglomeração – Aceleração tecnológica favorece pulverização e formação de redes em detrimento de fronteiras geográficas – Pulverização fez sumir estabilidades que vigoraram até o século XX – Vantagem do pensamento psicanalítico é tratar do singular – Transa entre formações incompatíveis por recurso a uma terceira – Divindade radicalmente abstrata em Mestre Eckhart. 9, 81 Tópica do Recalque, pulverização e precisão – Substituição e modificação tecnológica do Primário – Computador com Revirão será uma Pessoa – Oespírito é secundarização radical – Finnegans Wake aponta situação das línguas no Quarto Império – Primário não acompanha aceleração do Secundário – Análise traz à tona entendimento da situação, mas não oferece o ir lá – Produção secundária de um neo-Primário – Transcendentação na Mística visa escapar de sequestros primários e secundários. 10, 89 Distinção entre equivocação e postura do analista como indiferenciante – Temporalidade em análise é produzida pelo analisando – Postura de Lacan como analista (incoinçable) – Crítica ao “não abrir mão de seu desejo” – Análise é Efetiva quando chega a reconhecimento de Revirão – Reconhecimento de analista é exercício perene entre pares. 11, 96 Sobre O Labirinto da Saudade de Eduardo Lourenço – Maneirismo de Brasil e Portugal – Villa-Lobos e Augusto dos Anjos maneiristas.
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12, 99 Aceleracionismo segundo a Nova Psicanálise – Psicanálise não toma partido de esquerda ou direita – Peso da Neo-Etologia atrasa instalação imperial – Impossibilidade da passagem a não-Haver no nível cosmológico – Vetor de dissolução desfaz estase das estruturas – Quanto mais dissolvido e disseminado, mais singular e evidente – Sociedade em transparência total exige Diferocracia – Espécie humana é começo da emergência da inteligência – Olhar indiferentemente as diferenças como jogos de formações – Análise e HiperRecalque. 13, 108 Reviramento por infinitização da franja – Relações entre raciocínio polar e o Halo Bífido – Polo é situação que pode ser tratada focal ou franjalmente – Olhar desfocado de Cézanne e atenção flutuante de Freud – Duas perspectivas distintas na Mona Lisa – Arte moderna questiona olhar clássico – Bifididade e metamorfose no desenho de Escher – Raciocínio polar e as lógicas da sexuação – Modernistas trazem outro olhar sobre o Brasil. 14, 119 Distinção entre barroco, clássico e maneirismo (Revirão) – Brasil é de expressão maneirista – Estilos Basais são três formas típicas de expressão mental – Expressão facilitada do Inconsciente nas artes – Rigor do artista na sustentação de um estilo – No modernismo, artista quer dizer exatamente sua sintomática – Exemplaridade do I Ching na consideração de formações basais – “Psicanálise como função” – Emergência de Originário numa espécie inicia evolução pós-biológica. 15, 132 Caos como suspensão produtiva passa pelo Ponto Bífido – Acontecimentos tecnológicos Progressivos e regragem Estacionária – Produção de Pessoas e liberação do sexo da ordem reprodutiva. 10
16, 136 Lacan, fim do século XX e do Terceiro Império – Língua é sintoma de Revirão produzindo Secundário – Fundações Mórficas, estética e epigenética – Resistência e corrupção das formações. 17, 140 Sobre a proposta de uma Semasionomia (1976) – Reviramento nas obras de Velázquez e Duchamp – Riqueza civilizatória é cumulativa – Massa resiste à instalação do Quarto Império. 18, 143 Epistemologia é vontade filosófica de dominar o conhecimento – Quentin Meillassoux, Science-fiction e ciência – O que é um milagre? – “Psicanálise é ciência que reconhece a singularidade da HiperDeterminação numa análise” – IdioFormação surge por HiperDeterminação – Produção de uma IdioFormação que não é vida – Possibilidade de composição genética mediante Secundário – Estacionário é maioria no Haver. 19, 149 Identidade da espécie está no Originário – Possível discordância entre Autossoma e Etossoma – Identidade etossomática biologicamente inscrita – Pressão do Primário sobre Secundário – Psicanálise lê a composição de uma Pessoa – Educação, repressão e Juízo Foraclusivo – Transferência envolve dissimetria radical e identificação é tentação de simetria. 20, 161 Vantagens do conceito de Formação sobre o de signo – Distinção entre Próteses secundárias e próteses paraespontâneas – Processo de indiferenciação com indiferença inalcançável – Diferença e neutralidade radicais no Haver – Teoria como Fixão necessária diante da dispersão – Artificialismo do direito romano e co-naturalismo cristão – Decantação tecnológica da psicanálise. 11
21, 172 Formações duras e formações moles segundo a Gnômica – Diferença de vetor entre psicanálise e ciências humanas – Em vez de regragem epistemológica, entendimento de cada transa. 22, 176 Histeria, paranoia e progressividade – Sintomática brasileira na Nova Psicanálise – Heterofagia e viralatice essencial para o século XXI – NovaMente é dispositivo de inclusão generalizada – Primário não é congruente com Secundário – Interpretação absoluta de Lacan devolve o sintoma – Formações que enxergam e seus pontos cegos – Pessoas fogem do século XXI para ficção retrógrada – Brasil não aproveita sua sintomática – Às vezes, sintoma da língua proíbe tradução. 23, 182 Confusão entre ordens do Ser e do Haver em Heidegger – Nome do Pai é teologia – É tudo ficção – Nova Psicanálise tenta constituir psicanálise sem fanatismo – Jung, Freud e Adler como ferramentas – Ficção explicitada e ficção reificada – Nova Psicanálise oferece indiferenciação na consideração do mundo – Parâmetro da espécie é enriquecimento pela disponibilidade da pulsão. 24, 190 No Quarto Império, atitude abstrativa será genérica – Diferocracia é possibilidade de jogo da diferença para além de amigo/inimigo (Carl Schmitt) – Compromisso paranoico das produções do século XX – Quarto Império lidará com ficções como ficções – Análise é de Formações, sem indivíduo.
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25, 194 Consideração do real em Kant, Freud e Lacan – Na Nova Psicanálise, lugar do Real é o da Bifididade – Real e a impossibilidade modal – Sobre mistério e ignorância. 26, 198 Ficção e artificialismo total – Lentidão do Artifício Espontâneo – Creodo Antrópico em espiral – Pensar como risco e suspensão – Haver capitalista gera enriquecimento por acumulação – Obra expressa sintomática do autor. 27, 203 Travessia da fantasia é dar de cara com o impossível (A→Ã) – Nova Psicanálise parte de onde parou Lacan – Obra e análise se produzem na ignorância – Neo-Etologia produz assassinato cultural – Processo de entendimento e de conceituação ainda é incipiente na história da psicanálise – Velocidade de transa na lida com opressão – Trickster funciona em Juízo Foraclusivo – Dissolução do Terceiro Império mediante tecnologia – Cristianismo foi salvação populista do império romano – Disponibilidade de Marcel Duchamp – Pensamento de gradação, e não de estrutura. 28, 215 Sexualidade de cada um é sem gênero – Revirão é competência de não diante da programação primária – Só há usuários ou antenas da civilização. 29, 220 Não há igualdade – Paradigma da Diferocracia é soberania da diferença – O que vence não é uma teoria, e sim a tecnologia. 30, 222 Denegação generalizada no mundo – Bipolaridade da sintomática brasileira – Situação dos Impérios de passagem no Creodo Antrópico – Parâmetro no 13
Quarto Império é “entrega aos processos de disponibilidade” – Transa com tecnologia invade funcionamento das pessoas – Instalação do Terceiro Império na Roma antiga – Quarto Império: sistema de alta disponibilidade e rígida contenção de conflitos. 31, 228 Reificação de uma ficção – Diferença entre ficções é funcional. 32, 229 No Haver não tem leis, tem funcionamentos – Preparar mente para derrocada dos parâmetros do Terceiro Império – Psicanálise vira-lata – O antinatalismo e o pensamento contemporâneo sobre o sofrimento de ter vindo à existência – Me funai!: “Antes não houvesse” – Estupidez da espécie providenciará seu desaparecimento – Passo novo é análogo ao início da civilização – “Me engana que eu gosto” como núcleo da bobagem humana. Anexos Sobre o Autor, 238 Ensino de MD Magno, 239 DATAS Os números abaixo correspondem às seções e datas dos SóPapos 2017, realizados na UniverCidadeDeDeus, sede da NovaMente: Seções: 1: 14 janeiro. 2: 21 janeiro. 3: 26 janeiro. 4: 28 janeiro – 5: 11 fevereiro – 6 e 7: 04 março – 8: 11 março – 9: 25 março – 10: 08 abril – 11 e 12: 27 maio – 13: 03 junho – 14: 24 junho – 15 e 16: 29 julho – 17 e 18: 12 agosto – 19: 19 agosto – 20: 02 setembro – 21 e 22: 30 setembro – 23 e 24: 14 outubro – 25 e 26: 28 outubro – 27: 04 novembro – 28 e 29: 11 novembro – 30 e 31: 25 novembro – 32: 16 dezembro.
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1 Zygmunt Bauman acaba de falecer. Nunca tive paciência de lê-lo, acho-o chato, repetitivo. (Ele tinha direito de ser, tentava descrever a situação de hoje...) Inventou a metáfora do líquido que é interessante, mas é igual a vários autores atuais, que ficam perdidos no meio da situação. E, de certa forma, reclama como salvação um retorno, como fazem os demais. Estão indo para trás, o que é igual ao sintoma contemporâneo: uma corrida para o passado tentando frear o processo. Isso não é possível: se tentarem frear para valer, entraremos em caos. Minha posição, como sabem, é acelerar para a frente. Se não, reinará uma bagunça por tempo demais. Acelerando, de repente encontramos a nova postura mundial. Faço uma pergunta (que pode parecer absurda): Trump tomará posse como Presidente dos EUA no próximo dia 20, isso é bom ou ruim? Não me cabe julgar, o que vejo é que é um acontecimento contemporâneo. Temos que atravessá-lo, pois todas as pequenas convicções políticas estão sendo estouradas e relativizadas. É um verdadeiro rito de passagem para o Quarto Império, o qual não está instalado, mas já está brotando em vários pontos do mundo. Suponho que esse fenômeno – terem votado nele e as doideiras que fica dizendo – faz parte dessa passagem. Não estou falando de valores, e sim de quase que necessidades dentro de um processo. Não gosto da palavra ‘necessário’, pois o que acontece é contingente, mas temos que passar por isso. Bauman é assustado como os outros que veem o caos permear a rotura da sociedade e lamentam o fato de estarmos perdendo a consistência do passado, etc. Essa consistência já foi para o lixo, não vale mais nada. Quanto a nós, precisamos recompor a visão de mundo, pois as emergências – no sentido técnico da palavra – foram tão desarticuladoras das articulações passadas que nada dessa história ficará de pé. Sobrará uma espécie de museu da história da cultura do mundo até o início deste século, quando se esboça a entrada do Quarto Império. Tudo virará peça
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de museu, embora possamos lá colher e zapear fragmentos compondo ad hoc as situações. Como esses autores não têm nosso protocolo – a Tópica do Recalque –, ficam sem facilitações para entender o que está havendo. Pelo fato de termos abandonado as tópicas de Freud e Lacan, abrem-se mais perspectivas de lidar com a situação. Ou seja, paramos de considerar os pensamentos e as ideias e passamos a considerar apenas as formações. A ideia de Formação não tem por trás o prestígio – bem idiota, aliás – que tinham as produções culturais. Na história da filosofia, da política, da arte, de qualquer coisa que tenha sido denominada “história de”, temos grandes dominações produzindo muita coisa e assassinando o resto. O filósofo, por exemplo, propõe aquela coisa dura que, se tem sorte de ganhar poder, obriga o resto a se calar. O assassinato cultural é enorme, pior do que Glauber Rocha dizia. Poderíamos mesmo falar num genocídio cultural. Sempre que algum pensamento caísse no goto do momento e conseguisse poder de instalação, isso acabava com o resto, ninguém mais podia pensar. Só o fato da aparente vitória do comunismo durante setenta anos fez mal demais ao calar muitas pessoas. Não sei se tenho conseguido pelo menos indicar um projeto de transformação de postura que será necessário para a continuidade do projeto do Quarto Império. Custa-se a entender que será preciso uma radical mudança de postura mental. Os ditos intelectuais permanecem querendo analisar a situação mediante ferramentas e posturas antigas, mas não irão a lugar algum e darão com a cara na parede. O que está acontecendo é outra coisa, que já explodiu. Não há mais o processo implosivo de constituição de uma ideia, um pensamento, uma ideologia. Há tempo, chamo meu trabalho de mera ficção. É, portanto, possível, no mundo, fazer uso circunstancial, ou seja, ad hoc, da ficção que melhor couber no momento sem ser em detrimento de outras ficções (aliás, tão ruins quanto aquela). • P – Às vezes, você chama de ficção, outras de delírio. Por que? São o mesmo. Ao delirar, fazemos ficção, ao ficcionar, deliramos. O problema de nossa época está justamente em saber onde fica a fronteira. Ou mesmo estabelecer os lugares em que temos mais delírio ou mais ficção. O que é possível dizer é: considerado determinado polo, talvez tal ficção tenha 16
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maior eficácia do que outra – mas há a franja no meio. A ideia de Conhecimento perdeu o prestígio. Quanto mais o processo se mostrou evidente como acerto de formações – e as pessoas podem não saber discorrer sobre ele, mas sabem sentir que está assim –, mais as formações antigas (que pareciam ser completas, boas teorias, etc.) mostram que aquilo foi só o que deu para fazer, que é o que temos. Além do mais, começa-se pela ficção. Tomem o exemplo de alguém como Einstein, que ficcionalmente fez muitas suposições – é claro que, em sua ficção, cabiam matemática, física... – que não tinha como demonstrar. Propôs formações puramente teóricas que ou não deram certo, ou que só tempos depois viu-se que funcionavam daquele modo, i. e., funcionavam parecido com a ficção feita. A psicanálise teve um papel importante nessa esculhambação do sistema que vigorou até o final do século XX. Só que, depois, ela virou religião, com igrejas que não servem para nada. Podemos adorar o Dr. Lacan pessoalmente, reconhecer seu gênio em sua época – mas ACABOU! Ficar repetindo aquilo é igual a ler um romance do século XVIII. Aquela obra valorosa foi uma composição que se deu no antro do momento. É preciso, portanto, ter cuidado com autores que estão perdidos no meio sem conseguir jogar fora seu enorme patrimônio adquirido durante anos e ir em frente. É uma usura a deles, mas é preciso perder economicamente o valor dos saberes antigos para poder caminhar à vontade. É quase que um budismo intelectual: desapegar-se, não ficar se prendendo. Tenho aqui o livro Fic: Por Que a Fanfiction está Dominando o Mundo, de Anne Jamison. Fanfiction é uma das manifestações do Quarto Império: uma vasta e pesada – tem peso cultural – literatura que acaba com fronteiras e censuras. Rouba de qualquer um, mete a mão e faz o que quer com os textos. Tem um sabor de que gosto bastante e que cultivo desde meu Aboque / Aboque (1964-70): não só a paráfrase como também a paródia. Acharam que esta era uma característica do Pós-Moderno, mas é uma entrada de Quarto Império. Michel Foucault falava no “fim do autor”, coisa que ele próprio não fez. A autoria se tornará o que ela é de fato, ou seja: aconteceu ali, acolá, e não se sabe de quem é, alguém falou. Pior, eu escutei. A autoria é de quem fala ou de quem escuta? Onde está a fronteira? Aquele que escutou foi capturado pela 17
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ficção de tal maneira que entrou nela, portanto é dele. Então, o que temos hoje, sobretudo na literatura, é a dissolução do feito, da apropriação de qualquer modo sem censura e sem fronteiras. Parece difícil nos acostumar com esse tipo de coisa, pois temos todos os vícios do baixo-clero, da propriedadezinha, disso, daquilo. As pessoas ficam perdidas no meio por ficarem segurando sua autoria – e vão morrer disso. Quando se lê a cultura a partir do Quarto Império para trás, morremos de rir da cara de seriedade dos autores em relação às bobagens que escreviam. O futuro é cômico. Meu interesse na Teoria das Formações é as formações serem sem caráter. As teorias psicanalíticas anteriores são caracterizadas. Já o axioma da NovaMente está efetivamente em sua base, mas é neutro. Assim, ao abordar qualquer pensamento mediante a Teoria das Formações, há uma neutralidade por não impor formações, e sim buscar reconhecer quais estão em jogo. Não há nenhum Nome do Pai já definido, o que há são observações de formações e, no final, fica parecido com Wittgenstein: Qual é o jogo? • P – Ao falar em formações sem-caráter não abrimos a guarda para o mau-caratismo? Não ficamos sem critério? Ao falar em sem-caráter, não há desculpa para nenhum mau-caratismo já que tudo tem duas faces. No que se reconhece que o que quer que haja tem duas faces, escolhe-se qual chamar de bom-caráter. Qualquer caminho é defensável teoricamente, mas, na prática, há uma razão política de jogos de necessidades aqui e agora, o que tem um peso sintomático enorme. O conteúdo do aqui-agora é diferente para cada um, mas o aqui-agora está funcionando. Se tentarmos ultrapassá-lo muito rapidamente e com muito vigor, teremos grandes reveses. É, aliás, o que pensam os conservadores contemporâneos. Roger Scruton, por exemplo, está sendo bastante lido aqui, já que o planeta está dando uma guinada para a direita. Eles não são caretas reacionários e pensam que – dito em minha linguagem – existe uma base sintomática funcionando que não pode ser ultrapassada de repente. Há que saber lidar com ela, pois ela é um dos ingredientes que interessam na hora da solução ad hoc. • P – Como acontece numa análise, aliás. Não se pode impor a um analisando que fique bom. Há que acompanhar todo o processo de possibilidade de deslocamento sintomático. Os 18
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conservadores dizem que revolução não funciona por querer, de repente, fazer de outro modo. Basta ver o que aconteceu com a tal revolução russa e mesmo com a francesa. Esta, então, no dia seguinte, transformou-se em terror – e, logo depois, em retrogressão. Em análise com algum analista perspicaz, o analisando tem que saber que o analista o está enxergando bem à frente do que ele, analisando, diz. Mesmo assim, o analista não pode decretar que o analisando fique bom, ele tem que esperar. • P – Sempre que penso sobre jogos de formações e decisões ad hoc, e comparo com uma ordem antiga em que havia alguns critérios minimamente organizadores que deixavam claro a impostura das pessoas, constato lá o vigor de certas contenções que não consigo ver num ambiente de múltiplas possibilidades de acordo com a política do momento. Parece que, aí, tudo é defensável. Do ponto de vista do pensamento, tudo é defensável. Do ponto de vista do mundo, não. Sempre haverá contenções. • P – Há diferença? Não se pode lidar com um cachorro como se fosse um leão. Há que incluir a fenomenologia do sintoma. Muitas vezes, leva milênios para modificá-la. Por que tal critério era de tal época? Porque era o critério vencedor. Venceu sintomaticamente. Tomem o que certos intelectuais franceses chamam de lei celerada e perguntem sobre quantas leis são calhordas? Trata-se, então, de uma contenção para quê, para quem, de onde? A ordem sintomática faz parte do conjunto das formações. Um pensador de qualquer área – política, filosofia, arte... –, a quem, por acaso, tenha ocorrido propor algum salto para a frente, será imediatamente rejeitado, pois sua proposta não combina com o sintoma em vigor. É preciso que, lentamente, o tempo passe para ele ir sendo assimilado ao sintoma dos outros. Lacan dizia que é possível substituir o Real pelo Sintoma – eis aí algo grave. Outra coisa, é estar olhando a situação, tentar descrevê-la e situá-la de modo mais ou menos teórico. Vê-se, então, que o que quer que seja colocado é colocável, mas é factível? Há que fazer a leitura do mundo com máxima isenção, com o que chamo de Indiferenciação, pois os valores são produzidos por quem, como? Está-se imerso numa situação sintomática, a qual, amanhã, pode virar ao contrário. As contenções e a convivência são da ordem
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da política e esta é feita entre, digamos diretamente, putarias, entre sintomas. A calhordice do mundo é o possível, o mundo é calhorda. • P – Poderíamos dizer que uma das diferenças entre teoria e prática é a velocidade, mais alta, mais baixa? Eu diria que a diferença é mais de postura. Diante do mundo, diante de um analisando, se a Indiferenciação for cultivada, não se tem crítica de valores, e sim entendimento de situações. Esta é uma postura, mas se alguém me atacar na rua, eu o matarei, pois aí é outro departamento, o departamento da convivência dos sintomas. Outra coisa, é pensar com Indiferença. Se soubermos pensar assim, será possível melhorar a transa entre sintomas, que poderá ser acolhida com mais simplicidade. Para o analista, trata-se de acolher os sintomas, ele não tem o direito de ter valores, sequer psicanalíticos. É o que Nietzsche chamava transvaloração, que não é alguém mudar de valor, e sim saber que não se trata de valor – trata-se de entendimento e devolução desse entendimento para o outro. Não dá para alguém andar na rua e funcionar como analista. Mesmo porque ninguém o é, analista é uma função. Quando não se está nessa função, é-se um bosta como qualquer outro. A pergunta feita foi sobre uma diferença de velocidade, algo que pode ser pensado em termos de Creodo Antrópico, mas trata-se apenas de uma aposta. Não é possível acelerar demais o Creodo. Muitos autores, pensadores, artistas passaram a vida tentando acelerá-lo, mas sempre caíram na lesma lerda. • P – A diferença de velocidade pode ser pensada em termos de virada, de produção e instalação de um Império novo. A produção da virada tem uma velocidade que a instalação não consegue acompanhar. Esta é mais lenta. No mundo, há sempre uma guerra entre os que querem andar para a frente e aqueles que não deixam porque a instalação sintomática lhes é pesada demais. E outra instalação não é concebível por eles. Alguém instalado em uma forte situação sintomática nem consegue imaginar que não seja assim. O sintoma é duro feito pedra. • P – Trata-se, então, simplesmente de uma questão de poder para produzir a virada. Há muito tempo falo sobre isso – (ainda bem que não escutam)...
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• P – Mas, ao falar em Postura, não estamos falando de uma posição permanente, no consultório e no mundo? Se digo que alguém atacado na rua, reage, ele está inteiramente na postura. Ele viu, o ataque estava claro. Não adianta politizar o que é da ordem da construção. Alguém é analista, e não babaca. Diante do mundo, já que se cultiva a existência dessa coisa chamada analista e se busca aproximar ao máximo dela – e nunca dará para aproximar tudo (caso contrário, o budismo teria dado certo) –, nada impede que se mantenha a postura. Como não se é doido ou babaca, vê-se que a sintomática do outro vai agredir, então, porrada nele. E mais, porrada sem raiva. A criança precisa ser lembrada no Primário de que está agindo despropositadamente. O que vemos nessa proibição de bater é a passagem de monstrinhos reprimidos a monstros desembestados. Não se lida com algo que depende do Primário de maneira secundária. Há um ponto em que é preciso parar aquilo, e não mais ficar conversando. Há muita coisa a que criança precisa obedecer, que, depois, entenderá – e poderá, então, até ficar com raiva do outro que exigiu aquela obediência. Muda-se de registro e vê-se que fazem cobranças indevidas. Pensar em termos de formações é pensar que, aqui, estamos em formações de observação, de suspensão, de teoria, mas, ao entrar na guerra do mundo, sabemos que vimos tudo com serenidade e não podemos aceitar que nos agridam. Lacan dizia que analista não era obrigado a ser imbecil. Não cabe ao analista colocar seus sentimentos na análise. O analisando nada tem a ver com os sentimentos de seu analista. Portanto, enche-se o outro de porrada sem raiva, dentro de sua postura, e não na dele. É, aliás, para o que as artes marciais chamam a atenção. A estratégia de um bom general também é assim. • P – Você chamou a Teoria das Formações de Morfômica para rimar com a Gnômica. O que é Morfômica? É a formação da forma. A Gestalt também tentou entender isso: como é a formação da forma, como é, no sentido mais amplo possível, a composição da forma, como é possível analisá-la, separar seus elementos. É o mesmo que há a fazer com o sintoma, aliás. • P – Às vezes, confundimos o procedimento da Teoria das Formações com o da genealogia proposta por Foucault. Mas o que ele está interessado 21
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em descrever é a naturalização pela forma, e não sua composição. Ele se interessa por formas que são naturalizadas e busca fazer o caminho inverso, de saber como uma forma se reificou. Ele não descreve a formação da forma, e sim certo destino que ela teve. Nele, há um valor de história, digamos, de arqueologia daquele acontecimento que está enterrado em algum lugar. Ele não se pergunta qual é a formação da formação que aconteceu daquele modo. Derrida finge fazer isso, mas não consegue. É o que denomina desconstruir, que acho um pouco forçado. • P – Já Freud falava em construções em análise. Quanto ao que diz Freud, por que tenho que fazer uma construção e não deixo solto? Por que, ainda por cima, faço um diagnóstico e ofereço outra construção? Não é possível deixar o analisando sonhar sozinho? O que o analista tem a ver com o sonho dele? “E, quem sabe, sonhavas meus sonhos / Por fim...”, já dizia Cartola. Ninguém sonha sonho dos outros. Não se trata de trazer ao outro uma construção com os materiais que ele ofereceu. Melhor seria deixá-lo sonhar com esses materiais e construir a loucura dele, e não a minha. Cada um com sua loucura. • P – Você falou que formação é sem-caráter, mas formação não tem caráter? Tem. O caráter é uma formação repetitiva. No tempo em que a sociedade exigia das pessoas que fossem constantes, que, diante delas, soubéssemos com quem estávamos falando, isso é o que era chamado de caráter. Mesmo um assassino, um ladrão, tem um caráter. Olhamos para ele e vemos o caráter ali. Mas hoje sabemos que os caráteres são misturados. Qual é a suposta fronteira entre polícia e bandido? A sociedade inventou a polícia para colocar na fronteira entre ela e o bandido, mas, por lá estar, a polícia tem um pé em cada lado. Uma sociedade mais ou menos estabilizada, montada com lugares marcados, etc., tem que considerar que há a fronteira e a franja. Como lidar com a ambiguidade da fronteira? Nada há de natural, de espontâneo, nela. Mesmo que uma cordilheira seja tomada como fronteira, foi alguém que a tomou assim. Numa situação analítica em que a pessoa traz uma construção sintomática que não alcança, o analista tentará operar isso a partir dos movimentos da pessoa, e será capaz de esmiuçar e desvencilhar essa formação – para descobrir que a cura 22
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é aquela formação. Só que agora ela está vista. É o que Lacan dizia: C’est ça. Notem que há uma diferença entre, por um lado, a pessoa simplesmente ser agida por esse é isso aí, e, por outro, incluir, ver, saber qual é o seu é isso aí. • P – Por que, então, na análise, não somos levados a conviver com o sintoma ao invés de curar o sintoma? Curar o sintoma é exatamente saber conviver com ele. Trata-se de colocar e fazer o sintoma falar no mundo. Não há isso de tirar o sintoma de alguém. Outra coisa, é a pessoa em análise sequer saber que tem o sintoma, ou sequer saber como lidar com ele. Então, ao conseguir a análise da situação, somem muitos efeitos secundários porque a pessoa não mais está sendo atuada pelo sintoma. Ela está dizendo o que quer dizer, e sabe o que está dizendo. Saber aí quer dizer: “Sou uma besta que sabe sintomatizar-se”. É como dizia Fernando Pessoa: “Não me dê conselhos; sei errar sozinho”. O neurótico comum é justo aquele que não sabe errar sozinho. Ele erra erros dos outros. É igual a querer gozar com o pau dos outros – é isso, aliás, que é a tal inveja do pênis. Ninguém é neutro, o que pode é fazer exercícios de indiferenciação, mas há sempre a pergunta: Por que estou eu aqui nesse lugar? Podemos ficar ouvindo malucos falarem, ou podemos tomar a palavra. Não há escapatória da loucura. Ela não tem oposição, é como o não-Haver, não existe a não-loucura. Não há lugar onde alguém possa se situar sem loucura. Em última instância, estamos sempre num projeto louco – mas que, de vez em quando, pode dar bons resultados. Antes de terminar hoje, quero recomendar a leitura de A Tinta da Melancolia, de Jean Starobinski, originalmente publicado em 2012, que acaba de ser lançado aqui. Gosto muito de Starobinski, psiquiatra formado em Letras, que escreveu esse livro excelente. Seu texto me suscitou a seguinte reflexão. Já lhes falei sobre a melancolia e citei o livro Saturne et la Mélancolie, de Klibansky e Panofsky (1964). Sempre que os autores consideram a melancolia, apresentam um dilema. Os melancólicos, digamos, puros são um desabamento total, mas não há criação de nível sem melancolia. Os pensadores são melancólicos, mas não a ponto de cair na nostalgia ou na paralisia. O que acontece, então, que, sem melancolia, não se anda para a frente e, apesar dela, cria-se uma obra? O que a teoria da NovaMente diz é que, considerado um Halo por inteiro e não apenas os alelos, teremos o esquema: 23
anda para a frente e, apesar dela, cria-se uma obra? O que a teoria da NovaMente diz éMD que, considerado um Halo por inteiro Magno e não apenas os alelos, teremos o esquema: Melancolia Gai Savoir
Criação
Então, se ficamos na melancolia, dizemos um monte Então, se ficamos na melancolia, dizemos um monte de babaquices; se fica-de mos no Gai Savoir, que Nietzsche descreveu tão bem, nada dizemos; e se babaquices; se ficamos no Gai Savoir, que Nietzsche descreveu consideramos o terceiro ponto, criamos, saltamos fora das oposições. Há uns tão bem,podres nada na dizemos; se consideramos melancólicos vida, masetampouco “de alegre” onãoterceiro se vai a ponto, lugar algum. Já a terceira posição é a lucidez de saber que uma merda – criamos, saltamos fora das oposições. Háa vida unsé melancólicos então: Vamos à merda. Como se vai lá? Futucando-a, fazendo exame de fezes. podres na vida, mas tampouco “de alegre” não se vai a lugar (O pior é que as pessoas não vão à merda). É como um Espinosa que diz que algum. Já a terceira posição é a lucidez de saber a vida tristeza é covardia e babaquice é esperança, então, onde ficar?que Ele junta os é doisuma e fica merda exorbitando na terceira posição.àE merda. deu certo.Como se vai lá? – então: Vamos 28
2 Vocês estão, aí no Polo de Estudos, fazendo uma distinção entre Razão Demarcadora e Razão Transitiva. Entre Galileu e o momento de galileísmo estendido de que fala Jean-Claude Milner houve uma distinção na ideia de matemática: ela sai do regime de Galileu que dizia ser preciso matematizar tudo. Muita 24
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coisa aconteceu no campo da matemática depois. O pessoal que pensa que poderá formulizar matemicamente transbordou o limite da matemática do tempo de Galileu a ponto de o horizonte da matemática ficar até matêmico, ou seja, sem força de cálculo. Como calcular as fórmulas quânticas da sexuação, de Lacan? Elas apenas orientam matemicamente, sem ser possível calcular? Ao deixar de calcular, suponho que a matemática vire uma metáfora lógica. • P – Na topologia de Lacan também não há cálculo? A topologia usada por Lacan não é a topologia descritiva, que faz certos cálculos de formalização de objetos matemáticos. Lacan usa a topologia combinatória sem calcular, só joga com as transas entre as formas. Mesmo ao escrever as fórmulas quânticas, ele tira de Aristóteles, e não da topologia. • P – Você só usa a banda de Moebius. Para mim, basta. Se ela me garante a estrutura mínima do psiquismo, que chamo de Revirão, não preciso de mais. E não estou interessado em fazer descrições dos acontecimentos psíquicos mediante topologia. Se tivesse que fazer isso – e sugiro que alguém faça –, seria pela lógica da computação, inclusive quando ela extrapola os limites que lhe atribuíam. Caso de Stephen Wolfram, cuja ideia de autômato celular é algo muito sério por demonstrar claramente que uma repetição simples é capaz de virar uma complexidade enorme. Se tivesse condições (tempo e saco), eu me aprofundaria nisso como Lacan o fez em relação à topologia. • P – O que você diz sobre o cálculo parece ser uma questão de horizonte. Segundo o modo que Turing formula a computação, temos que é incomputável enquanto for incomputável. No momento que a matemática tiver progressão suficiente para computar algo antes considerado incomputável, ela será acrescentada na ordem da computabilidade. Ordem esta que é uma maneira de fazer cálculo. É a vertente de Leibniz. Será possível algum dia calcular o procedimento de um fato psíquico. Diante de uma pessoa ligeiramente perturbada em análise, pode-se perceber um verdadeiro leitmotiv, no sentido de Wagner. A todo momento um pequeno caco arrumado como articulação dá a volta, se repete, se amplia e se mistura. É o que está em Wolfram, mas não sabemos fazer o acompanhamento e o cálculo disso.
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• P – Tem a ver com o que você falava sobre a fantasia como elemento mínimo? Não digo que seja a fantasia, mas, eventualmente, pode ser. A proliferação em toda ordem mundial, acho eu, é uma função rebarbativa de algo muito pequeno. Tomem a história da psicanálise, se passarmos a peneira em tudo que foi dito e publicado, veremos que o núcleo é mínimo, um caquinho. Os autores partiram das manifestações, da fenomenologia. Em Freud, ficamos correndo atrás de vários raciocínios que são uma única coisa. Repito que ele não tem culpa nem deve ser julgado por isso. Se não fosse ele e os demais, sequer teríamos como passar a peneira. No caso de Jung, o que temos é uma obra enorme, cheia de configurações, e os junguianos só a proliferam, não tentam passá-la a limpo como Lacan tentou fazer com a obra freudiana. Ficou tão complicada quanto, mas um pouco mais arrumada. Mesmo que discordemos de seus conceitos, ele tentou arrumar. Aliás, a história da ciência também é assim. Para mim, o mais importante é a Teoria das Formações que trata de observar, escutar as formações em jogo nas situações. Tirante a Formação Originária que frequentemente não está atuante, são muitas formações primárias e secundárias presentes. Num analisando, se percebemos certo conjunto razoável de formações passíveis de leitura em sua configuração, isto é fenomenologia, mas como passar a peneira para ver que o que temos a tratar são duas ou três coisinhas? Ao funcionarem essas coisinhas, sua proliferação é gigantesca a ponto de termos que escutar durante muito tempo para poder passar a peneira. Freud escutava aquela loucura toda e ficava anotando rapidamente para não se perder. De Freud para cá, o processo pode ficar mais minimalista. Ao invés de lermos dos fenômenos para seu núcleo expressivo como se fazia antes, é preciso depressa tomar esse núcleo para ver que ele está falando aqui, ali, acolá. Esta é a diferença trazida pela Teoria das Formações. É claro que, se não escutarmos durante muito tempo, nem esse núcleo acharemos, pois a pessoa está perdida em meio às formações. Então, com o tempo, vamos escutando e jogando escuta fora para buscar chegar àquele elementozinho, no sentido de Wolfram, que, ao se repetir, prolifera uma grande complexidade. Quanto mais rápido for esse percurso de limpeza, mais rápido será possível pensar de volta. Qual foi o autômato celular que gerou aquela loucura toda numa análise? É 26
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uma bobagem, e cada pessoa carrega, no máximo, meia dúzia dessas coisinhas. É, aliás, de uma enorme monotonia. • P – Só-depois é que dá para ler? Há que deixar o outro falar e ir escutando, mas há o momento em que sacamos as formações e passamos a, como disse, jogar escuta fora. É igual a tomarmos um carroção algébrico, ir eliminando os excessos para, no fim, sobrar o essencial de um cálculo. Sem a paciência de, às vezes durante anos, escutar a baboseira, sequer perceberemos a repetição. Chega o dia em que entendemos a repetição, e vemos que só temos que mexer na mesma coisa. É a chamada lesma lerda. • P – A Teoria das Formações olharia para uma variação, complexa que seja, e buscaria achar uma espécie de matriz, um denominador comum? Trata-se de um Gerador Comum. Se estudarmos o suficiente um Lacan, um Joyce, Thomas Mann, qualquer um, veremos que apresentam uma grande baboseira para dizer duas ou três coisas. Aquilo prolifera, prolifera, faz um livro grosso, e o pessoal da teoria literária – aliás, não sei se sabem, sou doutor em teoria literária –, por exemplo, prolifera mais, ao invés de encurtar aquilo. Querem, digamos, emular com o escritor, escrevendo mais do que o próprio escritor. O trabalho de crítica deveria ser o contrário. Lacan tentou fazer isso com Joyce, mas não acho que fez bem. • P – Os formalistas russos tentaram isso com conceitos como literariedade... Queriam ser especialistas do especial. Perguntavam sobre a especificidade da sociologia... Não há, o que há é certa tendência que não cabe no cientificismo dos séculos XIX e XX. • P – A ideia de autômato celular é uma criação de Von Neumann, que Wolfram utiliza. Na mesma linha, Mandelbrot diz que sacou a questão quando, ao invés de se perder na produção, se interessou por aquilo que produz o que está sendo produzido, e viu que era redutível a um algoritmo muito simples. Ele viu no fractal o mesmo design de uma região que comparecia de novo na situação inteira. Um dia, descobrirão que conhecimento e isso que chamam de ciência são algo pequenininho. Atualmente, as pessoas mais velhas estão apavoradas com as novas gerações. Elas lhes causam medo por 27
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pouco se importarem com o concerto dos saberes. É assim porque já nasceram metidas em outra situação. Concerto dos saberes é tomar tudo da filosofia de tal autor, de tal outro, e buscar juntar – mas foi apenas o esforço que alguém teve tomando um enema enorme para fazer um cocozinho. Faço a suposição de que, ao acabar o medo – coisa que demorará a acontecer –, ao desprezarem os efeitos secundários das formações de saber, a minimalidade brotará. Teremos, então, toda a história da filosofia em duas páginas. Vocês sabem que já publiquei cinquenta livros, o que é uma vergonha: falar, falar, e não acertar. É, aliás, o que acontece a todos os autores. Como tomar isso tudo e reduzir a uma cartilha de algumas páginas? É justamente o que propõe Wolfram. Como você vai sendo agido pelo processo, aquilo fica enorme – mas é pequenininho. Há que fazer a leitura de volta. As novas gerações já nasceram de saco cheio, não têm mais saco para aguentar essa falação. Os mais velhos dizem que perderão toda a riqueza da produção anterior. Não perderão porque é uma falsa riqueza. O que nela há de patrimônio a ser resgatado é uma coisinha. Eles sofreram muito para fazer esse issozinho, mas azar o deles. Que se jogue o resto fora e fiquemos com o issozinho. • P – Esse núcleo gerador seria o sintoma? Ou a fantasia? É o fundamento do sintoma. Lacan fez grande esforço para destacar a fantasia. Conseguiu? É a pergunta que faço. • P – E Freud teria conseguido em seu texto Bate-se numa Criança? Ele destacou uma manifestação da fantasia numa pessoa. Aquilo já é uma expressão viciada da construção minimal da fantasia. É algo que está no sexo, na prática sexual. As pessoas têm, digamos, duas ou três expressões fortes em sua sexualidade, mas geralmente há uma que é a mais verdadeira e a mais poderosa. Esta já é uma expressão, não é basal. Atrás está o quê? Às vezes, algo pequenininho. É difícil alguém em análise chegar a dizer sua fantasia. É pesado demais e ele fica repetindo a punheta – o nome técnico é este – em volta daquilo. Isto, ao invés de fazer uma decantação para conseguir ver qual é o tesão. Por exemplo, pode ser um simples contraste. Minimalismo pictórico: um quadro todo branco com um risquinho preto – eis aí a fantasia da pessoa. E a pessoa pensa estar fazendo grande coisa quando está apenas repetindo e reficcionando uma coisa mínima. Comparem com a biologia, tomem uma 28
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pessoa fazendo isso e aquilo – mas era apenas um espermatozoide e um óvulo com umas inscriçõezinhas que deu naquilo. • P – Como trabalhar em análise o fato de a fantasia ser um tracinho, um contraste? A via é o que a pessoa fala? O analista abre sua escuta e não fica conteudizando para o outro, deixa-o falar sua besteira. No meio da besteira perceberá certa redundância que nunca falha. Aquilo é repetido de várias maneiras, mesmo quando o analisando conta outra história, a qual, aliás, reduzida a suas articulações, é igual à anterior. É preciso ler daqui para lá para perceber o que isso gera para lá. Então, está-se apenas esperando o analisando parar de ficcionar o mesmo. Se alguém tem uma articulação de fantasia em que o tesão fundamental foi um mero contraste de luz ou de cores, ou um eixo, uma articulaçãozinha, que pertence a uma palavra – não é a palavra –, pode, mediante isso, evitar quinhentas punhetas. São todas diferentes, mas se o analista perceber o devaneio masturbatório de um analisando, verá que ele quer a mesma coisa. Com algumas letras do alfabeto não se escrevem inúmeros livros? É a mesma coisa. • P – O estruturalismo não tentou fazer isso? Não. • P – O estruturalismo é a combinação, e Deleuze é a diferenciação. Para a NovaMente, trata-se da geração. É a caça ao Snark, é mais Lewis Carroll. • P – Você diz que a obra de Duchamp é uma articulação de sua fantasia. A moça deitada no Étant Donnés é a irmãzinha dele. Duchamp é alguém muito bem analisado. Ele fala com clareza o que é. Passou a vida mostrando as ficções que fez sobre sua fantasia, que não é a irmã. Ele tenta mostrar qual é a engenharia que lá está. O grande valor do Grand Verre está aí. É uma complicada engenharia para mostrar o que sobra, que é: Aimée Sélamor. Isto, segundo a frase que eu disse a vocês em 1990. Ele diz de outro modo. O Enforcado Fêmea está lá como resultado final, é o Falo. Notem que não é isso a fantasia fundamental. É a transa – e estamos de novo no transitivo de que vocês falavam no início hoje – entre o maluquete do lado de cá e a formação sedutora do lado de lá. Assim, após produzir uma porção de porcariazinhas tentando mostrar 29
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qual era a lógica – o Ruído Secreto de que lhes falei em 2013 quanto a Haver e Ser é uma delas –, Duchamp vai e volta, fica popular e faz o Étant Donnés em que espiamos aquele bucetão. É a visão folclorizada do que Duchamp já tinha logicamente resolvido em outras obras. Ele quis mostrar para todos como era. Aliás, falando em bucetão, Lacan até comprou o quadro L’Origine du Monde (1866), em que Gustave Courbet, segundo penso, exprime a simplicidade de: “Achei! Estou fazendo tudo só por causa disso”. Quando eu estava em Paris, houve uma grande mostra de sua obra. Fui lá, estudei a exposição e comecei a produzir em francês um texto intitulado L’Atè: Lieu Décourbé, que não consegui terminar e, depois, perdi contato com o que pensei diante daquele seu quadro estranhíssimo intitulado O Ateliê do Artista (1855), com uma pessoa crucificada ao fundo. Comecei, no sentido de Lacan, a topologizar o quadro. Meu interesse era chegar a uma lógica mínima que era empurrada pelo nó borromeano. O que, na época, eu tinha disponível de força era o nó borromeano. Fazia a suposição de que o bucetão de Courbet tivesse nascido desse quadro do Ateliê, que, para mim, tem a matriz da estrutura mental e fantasística de Courbet. E A Origem do Mundo chama-se: L’Ori Gine de Courbet. Sobre os demais artistas e autores que estudei – Velázquez e Guimarães Rosa –, apresentei trabalhos completos, mas não levei Courbet a fundo. • P – A fantasia de Duchamp seria, então, a transa? Eu não diria assim. Sua fantasia é um susto, como é, aliás, a maioria das fantasias. De preferência, na infância. A criança olha alguma coisa e é sequestrada. Ela é sequestrada, mediante um tesão, por uma configuração que, no fundo, é uma pequena combinatória. Se cada um for futucar sua memória de tesão na infância, acabará descobrindo os cacos. Às vezes, são vários momentos diferentes que tomam traços que estão no perímetro e todos juntos fazem uma equaçãozinha. Qualquer entrada que a criança tenha pode ter capturado aqueles traços. Isso pode acontecer em qualquer nível, mas depois que acontece pode ser distribuído. O contraste que mencionei antes, por exemplo, pode ser olfativo, visual... Ao topar com essa equação, a pessoa é sequestrada. • P – Mas isso tudo não tem a ver com a natureza, a vida? Qual é a coisa mais importante para a tal Natureza? A reprodução, ela quer se repetir. Então, foi metido em nós e nos animais uma máquina-sequestro. 30
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Somos sequestrados para poder ver se reproduzimos. Sobretudo, quando estamos mais velhos, percebemos a besteira que é isso. Durante longo período da vida passamos sequestrados pelo tesão para ver se reproduzimos – é uma escravidão. Uma das funções do sexo é escravizar a pessoa. • P – Mas sexo nada tem a ver com reprodução... Como não? Ele foi inventado para isso. A tal natureza inventou esse sequestro chamado tesão por determinadas coisas – pois há tesão em outras, sobretudo no não-Haver – como sequestro em nossa espécie. Quem teria filho se fosse possível nunca ter? É claro que querer ter filho vira uma ideologia com tudo falso. É um Revirão e um sequestro erótico, do tesão, em que aquele que deu o azar de colar fica sequestrado por uma criança... Só se escolhe isso por processo de Revirão: transforma-se a escravidão futura num grande amor contemporâneo. Não existe nada mais narcísico do que o que chamamos amor. É o cúmulo do narcisismo. É, então, uma grande máquina articulada pelo Artifício Espontâneo para pegar a pessoa. Quando certos místicos de certas religiões fazem enormes exercícios para se distanciar do sexo parece pura repressão contra o tesão – mas é um processo de salvação (que nunca dá certo). Mesmo que se consiga escapar do tesão, fica-se escravizado. Basta ver certos exercícios espirituais das religiões, que são, o tempo todo, uma luta contra o tesão. Não dá certo porque o tesão sempre volta. A maior crítica feita a Freud no início da psicanálise foi dizerem que ele era pansexualista, queria colocar tudo no sexo. Mas ele viu com clareza que é o movimento da Pulsão, que é única, domina tudo. E se não soubermos fazer exercícios de deslocamento, ele domina lá embaixo, no mais barato. Isso chega à ordem do estupro, do assassinato, pois está-se sequestrado no nível mais baixo. Era melhor ser Santa Teresa, que fica gozando com Deus – ou com o anjinho. Por isso, foi chamado de sublimação. Em vez de pegar, matar e comer o João da Cruz, ela ia em frente, em frente... Como o não-Haver não há, não tem onde parar. Freud sacou isso com impressionante lucidez. Henri Ellenberger mostra em seu livro sobre o Inconsciente que tudo de que Freud tratava já havia, mas algo não havia antes: o reconhecimento do Tesão Absoluto. Foi isso que Freud levantou: o troço todo é pura sacanagem – é só sexo. Por quê? Porque a tal natureza sequestrou os produtores e reprodutores para seu interesse de continuação. E ainda assim querem dizer 31
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que o capitalismo acabará. Como? Pode se transformar, mas é intrínseco ao processo. A natureza é capitalista e nos escraviza para obter o lucro que ela quer. • P – Muitos dos autores que Ellenberger cita queriam justamente exorcizar essa afirmatividade freudiana. Tomo uma dica de Barbara Cassin, que estamos estudando, que aponta que a lógica de Aristóteles é mais no sentido de dar um fecho possível para aquilo que não fecha. Lacan justamente se aproveita para, abrindo e não fechando, fazer suas fórmulas da sexuação. Freud já fizera uma virada semelhante: aquilo que exorcizavam, ou queriam conter, ele traz para o centro da consideração. Freud tenta fazer algo de que falam pouco: uma regência analítica sobre esse sequestro. Ele não fica solto na sacanagem. Ao contrário, quer uma mestria sobre o processo. É difícil conseguir. Ele diz mesmo que há a sublimação: pode-se fazer uma obra de arte – a qual é pura sexualidade. É preciso ter muito tesão de baixo nível para sublimar e fazer uma obra. Aqueles mais broxas não fazem, o tesão é pouco... • P – Quanto à pressão para a reprodução, uma reportagem publicada esta semana informa que um tubarão fêmea, em cativeiro há muito tempo, sem contato com machos, conseguiu se autofecundar. Os filhotes tinham apenas o DNA da mãe. É o terceiro caso no mundo registrado entre vertebrados. Os pesquisadores não sabem explicar como aconteceu... ...é a Virgem Maria. O próprio Artifício Espontâneo, no que está cerceado em seu processo reprodutivo, pode inventar isso biologicamente. A biologia não é fechada, é mais soft do que pensamos, nascem monstros. Em determinado grupo, em determinado lugar, a pressão de eliminação sobre determinada pessoa pode ter produzido aquilo. E parece que em níveis inferiores da biologia é mais fácil acontecer, pois a exigência de reprodução é maior. • P – Há o caso, nas mulheres, de sintomas da gravidez, inclusive trabalho de parto e produção de leite, sem fecundação. Aí são os efeitos no corpo da mulher do que seria, mas não há o feto na pseudociese. É um desvio etológico verificado em cachorros, gatos... De algum lugar vem a exigência de maternidade. Isso acaba com a antiga ilusão de que o processo é no sentido da procriação do ser. É o etológico que dói e funciona como se fosse aquilo. Melhor é quando homens ficam grávidos, coisa 32
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que também existe: a pseudociese masculina. Chamo atenção para a tese que me ocorreu, que não vi tratada por ninguém – certamente por não terem a Tópica do Recalque que apresentei [em 1992] –, de que tudo isso pode ser resultante apenas da incongruência possível entre Autossoma e Etossoma. Alguém é macho, por exemplo, mas o Etossoma não o é. Digamos que seja fêmeo, então ele fica desesperado e quer sentir essas coisas todas: cortar o pau, ter seios... É como se tivesse nascido com um aleijão. E mais, o Etossoma tem graus de expressão por cima do Autossoma. Não é alguém nascer homem e querer ser mulher, e sim querer ter alguns comportamentos fêmeos. Um dia, isso será visto e calculado em laboratório: cada um é cada um. • P – Aliás, e interessante pensar que o conhecimento científico é sempre aberto, soft. O que vemos atualmente é um verdadeiro fechamento acadêmico. McLuhan, por exemplo, não seria aceito como professor de uma faculdade de comunicação de hoje. O espírito científico está sendo desmoralizado pelo movimento universitário, que exige quantidades de publicação de artigos inócuos, que financia pesquisas sem nada de novo... Passei quarenta anos lá e não admiti que comissão editorial alguma, que acha que tem regras de conhecimento, julgasse ou mexesse no que eu escrevia. Lacan dizia que todo congresso faz parte de certa indecência, mesmo os congressos promovidos por sua Escola. É um fator de desagregação, de destruição do conhecimento. Aquilo sequer serve para ser matéria de estudo. Mas não se preocupem, pois vai piorar. O discurso de posse de Donald Trump é bem expressivo disso. Aliás, é do que o mundo precisa no momento. Ele assustará todo o mundo do lado certo, do lado do susto – como venho avisando há bastante tempo. É uma declaração de guerra. A violência aumentará, com a maioria correndo para trás. Ficaram com medo de terem chegado ao ponto que chegaram. Como a tecnologia sozinha dissolveu quase tudo, fez perder a fronteira e o valor, e como as pessoas não têm formação para governar isso, acharam que iriam se perder, tentam voltar. Só que não tem volta. Há apenas um arremedo de volta que explodirá para a frente. São cinquenta anos de porrada e mais duzentos para a implantação do Quarto Império. Ou seja, antes de ir para a frente, o planeta inteiro correrá para trás. Como não conseguirá retornar pelo fato de a tecnologia continuar aumentando, há 33
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que esperar a competência de governo das novas gerações. Elas já governam a internet, coisa dificílima de fazer. A geração anterior toda morrerá – são os pré-defuntos – e os mais novos, já acostumados com a falta de fronteira e de valor, agirão de outro modo. • P – O movimento de Trump é de voltar? Já é de voltar – e com razão. O pior é isso. A razão nem sempre está do lado certo. Ele dará para trás, o povo achará ótimo... Deixa rolar, as novas gerações é que tomarão a frente. Repito, o que vemos é uma fuga para trás para continuarem vivos, pois ninguém sabe governar para a frente. O mais normal com todos nós é: bater de frente, não saber o que fazer, então voltar. Daqui a cinquenta anos serão outras definições, outros valores, nada disso que ocorre por aqui. O mais emblemático da situação futura é o que a garotada chama de “ficar”. No futuro, todos “ficarão” com muita coisa. Em estudos de filosofia, não serão hegelianos, ficarão com Hegel apenas o necessário para certos entendimentos. Não serão lacanianos... Sabem que há pessoas que inventaram uns troços que podem pegar. Não precisam saber quem inventou a caneta, por exemplo, simplesmente a usam. Haverá também o grupo das pessoas que está sacando, entendendo sem fanatismo e sem essa atual sacralidade do saber. Quanto a nós aqui, é melhor nos prepararmos para o que está vindo. Se não, ficaremos para trás. Temos que entender que, por baixo, por cima ou por dentro da situação que ainda parece estável, está tudo ruindo. Os mais velhos, com seus hábitos e vícios, pensam estar no mesmo mundo de antes. Não estão, são uma geração de analfabetos tecnológicos. A mentalidade já é outra, aquela acabou. O que está por vir é: a disponibilidade para entrar em jogo, para rapidamente sacar o jogo que está sendo jogado no conhecimento, na política, na economia. O poderio que se desenvolve é dentro da disponibilidade de jogar. Já lhes disse que o projeto técnico-comunicacional é altamente dissolvente, dissoluto. Aquilo que prezávamos antes nada vale, era apenas cacoete nosso de geração. • P – Em 1985, você falou em Pomba Adâmica. Ela já explodiu. Nada ficará de pé. Parece ainda estar de pé porque é preciso um prazo. Como lhes disse, imaginei cinquenta anos de dissolução e, depois, as novas gerações levarão duzentos anos construindo o Quarto Império. Ele terá que ser construído passo a passo. Talvez nem demore tanto, pois a 34
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tecnologia pode crescer bem mais rapidamente do que já cresceu. As pessoas não precisam entender o que estão fazendo quando sabem fazer. Basta ver hoje todos indo a bancos, fazendo contas, medidas, etc., com boa performance. Antes, era preciso ser gênio para imaginar uma pequena aritmética. • P – Está também claro para todos que é preciso saber programar para ter inserção no mundo. A alfabetização eletrônica é fundamental hoje. Me sinto um analfabeto. Não me incomodo tanto por estar na saideira. Já aqueles que estão na chegadeira, que tratem de se virar. • P – Você fala em “retorno de Freud” diferentemente do “retorno a Freud”, de Lacan, em função de haver em Freud o germe da razão transitiva? Não falei em retorno de Freud em função disso, mas ele está mais perto de uma razão transitiva do que Lacan. O estruturalismo bloqueia essa razão, e Freud estava mais aberto a ela. Lacan falou em retornar a Freud, coisa aliás que nada tem a ver com sua produção, e sim com seu sintoma, de começar tudo de novo. Ele quis tomar emprestado o sintoma de alguém que não estava sabendo de nada para fazer de conta de que estava no mesmo lugar.
3 • P – Barbara Cassin, em Il n’y a Pas de Rapport Sexuel: Deux Leçons sur “L’Étourdit” de Lacan (2010), escrito com Alain Badiou, menciona Demócrito e seu não-nada. Como ele é um atomista, o Espaço é preenchido... E é mesmo. Observem como os físicos, agora que descobriram a energia e a matéria escuras, ficaram perdidos. Para mim, o Universo é de molho, não há espaço vazio ou coisas do tipo. Imaginem um líquido sutil, o universo boia 35
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dentro dele. Tampouco engulo a tal expansão permanente: se houve Big Bang, haverá Big Crunch. Os físicos estão num momento em que as coisas estão se afastando e correndo, mas para onde? Os cosmólogos, depois de descobrirem que o universo está em expansão e acelerando, dizem que vai acabar. Não vai! Está tudo correndo para um lugar. • P – A expansão acelerada não significa que seja infinita. Imaginem que a geometria desse movimento seja curva, conforme disse Einstein. Vemos todos correndo aqui porque o centro está do outro lado. Estão todos correndo para lá. É como está em meu Revirão: tudo corre para lá, lá junta tudo, e há outro Big Bang. Estamos vendo todos correndo e parece expansão, mas não é. Numa bola, se estivermos num ponto e todos correrem para o outro lado, só veremos expansão. • P – E se for um tipo de curvatura que não é bola? O espaço é curvo ou absolutamente neutro. É como diz Guimarães Rosa sobre Deus: “É curvo e lento”. Acho que o Haver é constante, permanente e retornante. • P – O universo é infinito? O universo não tem tamanho. É possível imaginar, para o futuro, uma quantidade neutra, que se chama A. Qual é seu tamanho? Não é mensurável. A ideia de infinito é só uma ideia. Na matemática, temos o infinito, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande. Por quê? O infinito é o quê? Falta muito a ser descoberto, não sabemos nada. Acho que o universo é uma respiração. Vejam que não cabe ficar aprisionado a um conceito. Justamente falta um conceito. O pessoal fica falando, por exemplo, em ETs, em Extraterrestres. Como sabem, faço a suposição de que, se houver discos voadores, não terão gente dentro, serão máquinas. Podemos pensar o que quisermos, mas não temos teoria alguma capaz de fazer com que alguém saia de uma distância x, infinitamente grande, e chegue aqui em dez minutos. E se este fato houver, qual é a teoria para ele? Durante o século XX, acreditamos demais nos saberes. A partir de agora, da entrada de Quarto Império, está tudo em radical mudança nas ideias de conhecimentos, de saberes. Teoria é conjetural, serve apenas para segurar um pouco. Como disse, quando os físicos toparam com a suposição – mera suposição – de uma energia escura, ficaram perdidos. Suponho mesmo que a 36
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energia escura respira. Quanto a isto, acho que algumas teorias arcaicas são perfeitas: o universo é cíclico, vai e volta. Não volta o mesmo, não há reencarnação. Ele volta outro, é sempre outro. É a ideia de Diferença e Repetição, de que fala Deleuze. Para quem tem cabeça euclidiana, o universo, se for infinito, será o quê, onde parará? Há que parar, se não, enlouquecemos. Com cabeça euclidiana, pensamos o universo dentro do espaço. Se retirarmos isto, e dissermos que ele é infinito, será infinito para onde? E se o universo for apenas um lugar sem tamanho? Será preciso arrumar um matemático para equacionar isto. O infinitamente grande consigo pensar, mas não o infinito. Ele está ligado à ideia de mensuração, que é uma categoria. Assim como não existe uma categoria chamada Tempo. Existe o movimento entrópico produzindo modificações, mas não no mesmo ritmo. Se estamos em tal lugar e o ritmo da entropia for x, podemos contar a transformação. O tempo é a resultante da transformação. Como a entropia come – e ela não é a mesma para todos –, parece que é tempo. Então, não interessa saber a idade de alguém ou de algo, interessa, sim, saber qual é o funcionamento aqui e agora. Já imaginaram quando os físicos conseguirem equacionar o que é a matéria escura? Pode ser uma bolha, uma espuma... O melhor é deixar a cabeça aberta e fazer ficção.
4 Não canso de lhes dizer que o conceito de Perversão é mal construído, contaminado por ter sido, antes de mais nada, uma posição comportamental de ordem policial. Imaginem um bando de médicos, psiquiatras, etc., vivendo num ambiente de conceituação policial de certos comportamentos. É muito 37
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difícil alguém escapar de um conceito, sobretudo porque a sociedade em que trabalhavam, ela, por inteiro, tinha assimilado a norma de comportamento em que aquele que fazia tal ou qual coisa era definido como perverso. Ao invés de dizerem que não se tratava daquilo, tinham que explicar no regime em que aquilo estava funcionando. Aí, inventam o conceito de perversão na ordem psiquiátrica para dar conta da situação policial. Foi preciso passar bastante tempo para que se questionasse por que o conceito foi parar na ordem psiquiátrica. E essa monstruosidade foi parar na psicanálise a ponto de Lacan tentar, por via estrutural, desenhar uma formulação para ela. Em seu Kant com Sade (1963) temos uma tentativa de topologia da deformação que cria o perverso. Ou seja, ao invés de questionar a existência política e policialmente suja do passado quer dar conta explicando como aquilo é dentro da estrutura do que está produzido. Isso é absurdo. Felizmente, esse pensamento é terminal, e acho que sequer explica o Marquês de Sade. Tomei do modo que pude e, ajudado por Georges Lanteri-Laura com seu Lecture des Perversions: histoire de leur appropriation médicale (1979), vi o quão difícil é estar numa compleição de pensamento, de raciocínio, e saltar fora dela. O mais comum é ficarmos girando em círculos querendo dar conta de dentro. Para sair, é preciso uma série de acontecimentos ao redor – uma mudança de mundo, de comportamentos, de conceitos –, e já haver alguns que começaram a fazer crítica da própria ideia de perversão. Se observarem o que eu estava fazendo, verão a dificuldade em que estava ao dar passinhos para direcionar para outro lugar. Na ocasião, falei em perversidade, etc., mas isso morreu quando acabo com o conceito de perversão e digo que é Morfose Progressiva – e que não é necessariamente ruim, pois ela é também aquela que faz um Lacan e um Freud produzirem suas obras. Só Progressivamente alguém faz aquilo. Querem chamar de perversão? Chamem. Então, Freud é um “perverso”... Aliás, há bastante gente que diz isso. Ele não dizia que criança tem sexo? Já ouvi isso de catedrático da UFRJ. Escolham. Falei em perversidade, foi o caminho que arranjei no percurso – e não falo mais. O mesmo me aconteceu com a questão do Sujeito, que é uma bagunça em minha obra. Para me livrar dele, tentei redesenhá-lo inúmeras vezes – até entender que não era nada daquilo e jogá-lo no lixo. 38
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Em hipótese alguma, hoje, aceito o conceito de perversão, nem como perversidade. Seja qual for a Morfose – Progressiva, Regressiva ou Estacionária –, se bater em certo tipo de pessoa, ela funcionará segundo o esquema que essa pessoa tem. Então, o que digo é que há o que chamavam de Psicopatia, o antigo pepezão, a qual não é uma Morfose. Quem me deu luz quanto a isso foi Ramachandran. Alguém com déficit de neurônios-espelho tem uma falta radical de empatia. Empatia é algo que segura as transas. Se queremos fazer maldade com alguém, xingamos, dizemos que vamos matar, etc., mas ao chegarmos perto dele aquilo se transforma. É preciso estar em suspensão de empatia para executar aquilo. Então, ou porque você é um psicopata no sentido de ter deficiência cerebral, ou teve tanto ódio que ultrapassou a empatia. É isso, e nada tem a ver com perversão. O problema está em que trabalhamos em certa área do conhecimento e até o final do século XX, e sobretudo nele, criou-se o mau hábito de, se entrarmos numa linha de pensamento, ter que explicar tudo dentro dela. Um sociólogo, por exemplo, deve tudo explicar sociologicamente. É uma burrice – aliás, já abandonada pelo século XXI. O que nos cabe saber é que não há explicação psicanalítica para o que seja um psicopata, a explicação é cerebral. E como se comporta aquele que tem esse defeito cerebral? Aí é outra história. Sabendo que tem essa deficiência, vamos para o lado do Secundário verificar como ele joga com isso no mundo. A mania de especificação e de especialidade deu em muita porcaria no século XX. Uma das mais vigorosas reações a esse tipo de comportamento foi a mania de holismo em seu final. Também é demais, pois não conhecemos todas as áreas e teremos sempre que perguntar para o outro. É um dos motivos de terem nascido as Ciências Cognitivas, que reconheceram que é preciso haver transa: a filosofia, a psiquiatria, a psicanálise, as ciências da linguagem... Tenho que transar esses discursos, pois, às vezes, não há esse conhecimento no meu. Os fenômenos de final do século e início do século XXI decorrem de as pessoas perderem esse mau hábito da especialização. Vejam um exemplo meu: caiu-me na cabeça – como já disse, as coisas caem do céu, ninguém inventa nada – a ideia de uma Tópica nova sem a qual muitos raciocínios não serão entendidos. Sua importância está em abrir caminhos onde não havia. Primário, Secundário e Originário abrem vias enormes de entendimento apenas por não terem caído por aqui antes. A simples estruturação 39
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de uma tópica é falha, não dá conta de tudo, apenas dá certo arranjo. Freud fez duas, ou seja, não ficou satisfeito com a primeira. Aí vem Lacan, passa Freud a limpo e apresenta: Real, Simbólico e Imaginário, que é bem mais abstrata e solta. Entretanto, tem limitações por não poder considerar topicamente o que vem do Primário e ficar chamando de imaginário, etc. Hoje, sei que é Primário, Secundário e Originário – e pior, que o Primário é composto de Autossoma e Etossoma –, o que é uma faca capaz de recortar coisas como o que prezo mais no momento: a discussão sobre gênero, sexualidade, comportamento. Essa tópica esclarece colocando que o Autossoma não tem compromissos obrigatórios com o Etossoma, e isto geneticamente. Não há formações de compromisso no Primário. Se certo sexo macho ou fêmeo ainda por cima tiver vocação para homem ou mulher, para masculino ou feminino, será um acontecimento como qualquer outro. Não tem obrigação porque não tem construção em coerência. Se aparece uma coerência por tudo estar de um único lado, isto, na verdade, é uma limitação: a pessoa só tem um lado, deu o azar de nascer com tudo de um lado só, goza muito pouco, tadinha. Freud achava que todos eram bissexuais, que a espécie é bissexual. Não é, ela pode ser bissexual ou porque alguns nascem sem congruência entre Autossoma e Etossoma, ou porque foi subvertida pelo Secundário. A bissexualidade em Freud parece ser tábua de salvação, mas não é, é um erro. Secundariamente, aquilo pode ser um pouco mexido – só um pouco, não mexe tudo. A falta do conceito de Primário gerou isso de ficarem discutindo gênero, etc., mas não é o caso, pois a constituição primária da pessoa é absolutamente combinatória. Repetindo, não há coerência obrigatória na formação primária. Observem o mundo e verão que não há. Um homem negro que transa com uma mulher branca, como será seu filho? Não sabemos. Há pouco saiu a notícia de uma mulher que teve filhos gêmeos, um negro e um branco. Aliás, em vez de bissexual falei em anfissexual, já que é possível entrar na anfissexualidade porque ou temos o Primário assim ou porque subvertemos secundariamente. Mas entendam que não é que a espécie seja anfissexual, é possível ser. E alguns são mesmo, porque não há congruência entre Autossoma e Etossoma. A pessoa nasce com Autossoma macho, cheio de barba e pelos – e é uma “moça”. Terá que lutar com aquela barba e aqueles pelos durante toda a vida. 40
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• P – Como abordar essa deficiência de neurônios-espelho do ponto de vista da psicanálise? Uso o termo antigo de psicopatia, que não tem muita clarificação, para considerá-lo hoje sob a luz das pesquisas do cérebro que nos ajudam a entender melhor. Ramachandran fala em deficiência de neurônios-espelho sobretudo a respeito dos autistas, mas posso generalizar. Em nossas experiências de consultório e de vida, percebemos que a pessoa não tem empatia, mas tem o resto (o que não é o caso do autista). É, aliás, alguém que vai ao analista para jogar – já tive vários casos assim, que despachei logo que entendi a situação. Não se conversa com psicopata. Ele não tem relações empáticas, e lida com outros que têm só em função de seus interesses. • P – Na sutileza de incluir o dado neuronal que resulta em comportamento não empático, a fobia também compareceria como o negativo da situação? Sim. Basta ver o caso que já mencionei aqui de Gilles de Rais, tal qual é narrado por Georges Bataille (Le Procès de Gilles de Rais, 1959). É aquele psicopata que passava por cima de tudo e todos a ponto de sentar sobre bebês para que morressem asfixiados na hora em que ele gozasse – vejam que imaginação fértil. Era um poderoso senhor feudal, amigo de Joana d’Arc, junto a quem lutou em batalhas, mas que, um dia, foi juridicamente pego. Quando isso aconteceu, ele se desmanchou em fobias e medos pânicos. Aliás, quanto a isso, seria interessante saber como anda a cabeça de certas pessoinhas aqui do Brasil que foram pegas, perderam tudo e não sabem o que fazer da vida. Elas cheiram a psicopatia, a qual tem algo esquisito: revela uma burrice tal por parte da pessoa, que deixa o rabo todo de fora – para ser pega. Chama-se: Revirão. Digo “para ser pega” porque o Inconsciente não dá conta da linha reta, aquilo revira e a pessoa não sabe onde cai. O melhor seria revirarmos numa boa... • P – A psicopatia se daria em qualquer Morfose? Um psicopata pode estar tendencialmente em qualquer uma das Morfoses. A deficiência de neurônios-espelho é como qualquer deficiência de órgão importante, acarreta limitação. O que se pode, por exemplo, esperar de uma criança que tenha nascido com algum tipo de deficiência nos neurônios-espelho? Autismo, psicopatia, coisas assim. 41
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• P – Déficit de atenção? Não sei se deve ser incluído aí. Mas é grande a quantidade de gente com TDAH no planeta. Quando a tendência é leve, as pessoas discordam de que seja TDAH. Já disse para algumas mães levarem seus filhos para serem avaliados e os laudos apontaram que não havia TDAH, mas eu disse que estavam errados, que elas deviam se preparar pois eram crianças TDAH sim. Os avaliadores e seus testes não sabem medir aquém de certo gradiente. Nesse caso, a pessoa até parece ser normal, no sentido usual. O pior é que, se não se trata quando a criança é bem nova, ela estará prejudicada para sempre. Minha hipótese é que, se há essa deficiência – que não sei onde fica –, é preciso tratar cedo com serenidade, mas com muita dureza, muita disciplina, para ser possível montar um aparelho de segurança. Isto, para a criança criar um processo de comportamento para ela. Como, em geral, as famílias são destrambelhadas, o tratamento fica difícil. Não gosto de atender gente menor porque pai e mãe estão envolvidos demais. Quando atendi alguns porque me pediam, vi que eram fake e disse para não deixarem de fazer pressão sobre eles. Há o caso de uma menina que tocava e cantava nas reuniões da escola, os pais e os professores aplaudiam. O analista, que entendia de música, pediu que ela trouxesse o violão, tocasse e cantasse para ele. Constatou o fake de tudo aquilo, que ela não sabia tocar, que não entoava nota alguma, e até o inglês em que cantava era capenga. Ela olha para o cantor e pensa que basta a aparência para sair o som. Depois que isso lhe foi dito, ela nunca mais se aproximou do violão... As famílias nada faziam. É assim que se estraga uma criança que, ainda por cima, é TDAH: o fake vira verdadeiro. A pessoa já é fake de nascença, e ainda dão corda. • P – Em 2015, você já tinha abandonado o termo perversidade e sugeriu o termo maldade. É o equivalente à psicopatia? Você também falou em Autarcia, que é quando a formação é tomada como poder absoluto. Na ordem jurídica, chama-se: abuso de poder. Mas é maldade propriamente dita. Não se trata de maldadezinha histérica ou obsessiva, e sim da ruindade mesmo. Notem que, se há autarcia, a pessoa não é necessariamente psicopata porque a situação é que pode ser psicopática. O que aconteceu na Alemanha nazista, por exemplo, foi o psicopata ter conseguido estabelecer um poder, uma conjuntura de situação social e as pessoas 42
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terem embarcado naquela psicopatia. Ao serem pegas, essas pessoas dirão que estavam apenas obedecendo ordens. Então, não que sejam psicopatas, e sim que ideologicamente a empatia foi suspensa. Eis algo que vemos acontecer no teatro e no cinema. Certos papeis de psicopatas só são cumpridos pelos grandes atores se ficarem imbuídos daquela realidade – e, como alguns declaram, podem mesmo se perder ali, escapar do palco. Nesse caso, é Stanislavski e não Brecht que está com a razão. Em termos religiosos, numa civilização pré-colombiana sabemos que o povo se comprazia em assistir sacerdotes arrancarem o coração de uma pessoa viva e o exibirem. Não é uma maravilha? Como se produz um desligamento dessa natureza numa massa de gente por via de ideologia e, pior, de recurso filosófico? O que acontece é um fenômeno igual ao que há pouco falei sobre a pessoa, pode nascer sexualmente para um lado só, mas por via secundária passar para outro. Como se instala uma formação dessa monstruosidade apoiada e aplaudida por muitos? Todos estamos disponíveis a isso. • P – É possível acompanhar a implantação de uma situação cujos conteúdos ideológicos são de base regressiva? Tomem um qualquer Congresso Nacional e vejam a quantidade de burros, bandidos e psicopatas que lá está. Aprovam leis as mais apavorantes e psicóticas. É preciso, portanto, manipular a política para além ou para aquém de certas verdades jurídicas. • P – O fato de a massa aderir, e mesmo ajudar a instalar, à psicopatia... Ela não trata como psicopatia, e sim como uma fixação regressiva. Ela se segura naquilo como um ideologema de garantia. A fundação é psicopática, mas o pessoal não é psicopata ou psicótico. Eles montam um aparelho psicótico. Há muito isso nas religiões, cujo pessoal de cima é composto por inúmeros psicopatas. • P – Cabem aí os chamados borderline? Não entendo o porquê desse termo. Já o usei muito, mas não uso mais. É border do quê? O pessoal não sabe o que é e chama assim porque não inclui o conceito de Primário. O tal borderline é alguém que fica querendo abrir brechas no Primário ou reconstituí-lo. Há nele uma luta esquisita com o Primário. Quando conseguimos projetar uma tópica nova, é preciso rever tudo em função dela. Ou seja, em função dessa nova construção, como ler o resto? Um 43
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dia, haverá condições de mapear com exatidão uma pessoa, descrever como alguém está autossomaticamente constituído de tal modo, etossomaticamente de tal outro e com variações aí dentro. • P – O vetor da Progressividade pode comparecer tanto na ordem criativa, artística, quanto na ordem da psicopatia? Não. Pode até ser que algum artista tenha sido psicopata. Há uma confusão antiga aí, pois não é possível romper certas barreiras a não ser progressivamente. A ordem Progressiva tira virgindades, ela é ultrajante para a virgindade do pensamento, mas não se trata de psicopatia aí já que uma pessoa Progressiva tem os indícios de neurônios-espelho, de empatia. Entretanto, ela toma certa área de pensamento que ousa: Sapere aude, como dizia Kant (aliás, a única coisa a salvar nele). É uma ousadia que custa caro, aliás, os outros não suportam. Pode mesmo matar a pessoa. • P – Mas não se pode pensar num artista do crime? Vejam que Stockhausen ficou mal falado – e morreu no ostracismo – por declarar que a explosão das torres gêmeas em Nova York era o cúmulo da obra de arte. A questão é: é possível que uma resultante tenha características de obra de arte independentemente de seu modo de produção? Notem que a resultante daquele ato assassino e destruidor choca como a novidade e a reconstituição de uma obra de arte. Como ler isso? Daqui para lá ou de lá para cá? O ato poético aí só é reconhecível de lá para cá, e não ao contrário. Ou seja, há um acontecimento da pior espécie, mas que resulta em algo que tem as características de uma obra de arte, que toca as pessoas do mesmo modo que ela. Como sair dessa? Não é o artista produzindo na intenção da obra, da significação, mas o acontecido tem as características da obra. A comoção do mundo em torno disso é bem parecida com a catarse grega. Precisamos entender que gente não presta, só faz merda. Lembrem-se de que o ato destrutivo como obra está instalado na história da arte. E se isso continuar vai bater lá no fundo, não se sai mais de lá. Deleuze fala de sem fundo. Ideia, aliás, de que não gosto, pois penso para cima: Cai do céu. Aqui na Terra só tem fundo, o abismo é para cima. • P – Uma das quatro vias régias de acesso ao Cais Absoluto que você coloca em 1996 é o caminho da guerra e da morte.
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A guerra é uma arte. Como sabemos quem venceu a guerra? Pela consideração da composição da guerra e sua resultante.
5 • P – Em nosso Polo de Estudos, estamos lendo o Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia (1972), de Gilles Deleuze e Félix Guattari. No capítulo 2, “Psicanálise e Familismo: a Sagrada Família”, os autores elaboram o valor que o Édipo ganha na psicanálise e fazem a oposição quanto ao que seria produtivo, ferramental, no conceito de Inconsciente. Encarecem também a Pulsão. Freud tinha certo gosto, se não mesmo uma paixão, por mitologia, regiões históricas: Roma, Grécia... Além do mais, foi lá buscar ferramentas para lidar com o que encontrava porque era muito parecido no tempo dele. O tal Édipo imperava mesmo na cultura, dado o aprisionamento das pessoas no bloco familiar, era aquela coisa rançosa. Então, como as pessoas apresentavam aquela historinha que ele comprou, trouxe uma analogia para generalizar. Deleuze tem razão em sua crítica. E por que ele não pode suportar édipos e outras coisas? Porque seu princípio é maquínico: com aquelas maquininhas, resolve o entendimento. Entretanto, tenho a impressão de que ele não foi capaz de abolir o sujeito – como Foucault tampouco, aliás. Não sei se por causa de Guattari, fico desconfiado de que o sujeito está lá de pé. • P – Por causa de Guattari, vem a ideia de subjetividade e, pelo lado de Deleuze, há certa reverência que sempre manteve para com Kant. Ele não fala muito nesse cara, mas está lá. Se achasse que deu o passo de que eu precisava, eu não precisaria trabalhar, ele já teria feito. Gosto muito do Anti-Édipo, me fez muito bem. Li no dia seguinte que saiu. Li tanto que meu 45
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exemplar está arrebentando. Li para fazer a comparação, acho-o maravilhoso – mas ficou faltando. Havia ainda uma excrescência qualquer de que eu não gostava: falta um pedaço. Qual? Acabar realmente com o tal sujeito, eliminá-lo. Daí que sugiro a vocês algo que acho que não desenvolvi muito bem até hoje (às vezes, não tenho saco, fica muito comprido, é muito longo). O importante para nós é a Teoria das Formações: pensar sobre ela, lidar com ela, para tirarmos de circulação o sujeito, o ego, essas coisas. O esboço da Teoria das Formações já está dado, mas é preciso exercitá-la na conversa, no ato, pois é difícil para nós ocidentais, herdeiros de Grécia e Europa, tirar o sujeito. Mesmo porque ele está gramaticalmente embutido em nossa língua de maneira muito forte. Se falássemos outra língua talvez fosse mais fácil. Há línguas que não têm sujeito. Acho que o japonês é uma delas. • P – Não há Eu em japonês? Eu não é necessariamente sujeito, pode ser a nomeação da pessoa. Uma criança, por exemplo, dirá “Joãozinho”, que é o nome dela: “Joãozinho é isso assim-assim”. Aí, a enchemos de porrada para ela assumir um sujeito e uma subjetividade, mas ela está falando correto. E nem por isso deixa de ter uma polaridade. Não é necessariamente sujeito ou ego, e sim uma polaridade de formações. Paramos com esse troço se concebemos os polos como constituindo formação e, portanto, concebemos a rede entre esses polos e todos os outros polos que não estamos considerando ou não estamos vendo. A definição caracterológica de uma pessoa é algo pequeno, pesado e sintomático demais, mas, na verdade, onde termina sua rede? No sol? Em Marte? Já lhes disse que há um polo, o foco, as franjas, e o fato de estar polarizado apenas significa que o polo é lugar de emergência de uma situação. Já o foco está constituído dentro de uma configuração mais compacta, figée, como se diz em francês. Ele é muito pesado, fechado, repetitivo, mas se prestarmos atenção em nossos movimentos de pensamento, de sonho, etc., vai embora, vai para longe. E não ficamos perdidos, e sim desencontrados. Como dizia Cecília Meireles: “Não ando perdida, mas desencontrada”. • P – A Teoria das Formações é uma porrada narcísica muito grande. Mas Freud e outros já tinham dado porrada em Narciso. Na Teoria das Formações, uma pessoa é mera resultante. 46
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• P – E muito fragmentada. Não é preciso ser fragmentada, basta ser a rede muito longa. Em termos de narcisismo, toma-se determinado foco do polo e investe-se nisso repetidamente o tempo todo. Da minha geração para trás, qualquer deslize na escola em que você saísse de sua personalidade, tomava porrada. Às vezes, porrada física, mas podia ser ficar de castigo. Foucault é bom para descrever esse tipo de configuração que vai fechando, e acabamos olhando só para o foco. E quando a coisa resvala, ficamos apavorados, mas não adianta porque resvala: o sonho, o comportamento abrupto... Frequentem Fernando Pessoa – que tem um nome perfeito: Pessoa – para verem como ele é, como ele quis ser: absolutamente dispersivo quanto à função de foco. É difícil alguém realmente sair de um foco e entrar noutro estilisticamente, etc., tem que se desdobrar. Somos herdeiros de uma época intelectualista em que nada é pior do que falta de caráter. Se um escritor variasse um pouquinho o estilo, diriam que já estragou. São séculos dessa porcaria. Se faz uma guerra com isso, você se dá bem, mas se dá mal lá fora. Como sabem, entre 1964 e 1970, escrevi um livro intitulado Aboque/ Abaque1 em que tentava me destruir: “Agora vou fingir que sou Oswald, agora fingirei ser Rosa...” – não chega a ser Fernando Pessoa, que é bem mais rigoroso. Aí, mais recentemente, descobri que eu era pós-moderno bem antes da moda e, em 2017, começo a descobrir algo pior ainda: sou fic. • P – Fanfic. Magnific... Se aplicarmos o modo de pensamento literário de hoje, veremos que está lá. A modalidade hoje é essa. • P – A expressão fanfiction vem da turma de computação. Parte de interessados em determinada obra – a série cinematográfica Crepúsculo que ficou muito famosa, por exemplo – e começam a agregar várias pessoas que trocam ideias a respeito. Só que alguns vão desenvolvendo pedaços que achavam que podiam ir adiante: um personagem a mais, a continuação da história... Vejam que o autor está sendo dissolvido. Isso vem nascendo desde o final do século XX. No Aboque/Abaque, cito uma frase de Foucault: “Mais de um, como eu sem dúvida, escrevem para não mais possuir um rosto. Não me perguntem quem sou e não me mandem permanecer o mesmo: esta é uma moral 1Texto republicado em: MD Magno, Literadura (Rio de Janeiro: NovaMente, 2018, p. 27-203).
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de estado-civil; a que rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”. E notem que Foucault tem sujeito à beça. • P – E algumas narrativas se tornam outras narrativas, aparentemente diferentes daquela, porque brotaram de dentro dela. Os dois casos mais estudados são Crepúsculo e 50 Tons de Cinza. Este, aliás, é o primeiro capítulo quase integral daquele, com mudança de nomes dos personagens. Em vez de ser um vampiro, é um empresário sádico. É um caso interessante, pois a autora foi processada por plágio – e ganhou. Qual é a noção de plágio? • P – O Enclausurado, último livro de Ian McEwan, é um pedaço que faltava em Hamlet. É a construção de como foi o assassinato do pai, que não é relatado no original. Com muita dificuldade, Freud tentou distinguir a realidade externa da realidade psíquica. Então, do ponto de vista psíquico, Hamlet é real? É secundariamente real. Aliás, quero ver a fanfiction de Sade. E a descoberta não é que alguém agora esteja fazendo fanfiction, e sim que só se fez isso. A pessoa recebe um patrimônio e vai continuando. Esse negócio de autor é um mito. • P – Não foi Proust que disse que só havia um autor, que todos estavam escrevendo o mesmo livro? Eu pensava que Borges é que tinha dito. É algo que parece que resolve completamente O Livro, de Mallarmé, que é: O Livro (“tout, au monde, doit aboutir à un livre”). Aliás, podiam convidar uns ETs para ver se a escrita ficava diferente. Retomando, insisto em que precisamos utilizar a Teoria das Formações. Falamos sobre ela, mas o exercício de pensar em conformidade é difícil. E isso vai bater na Escuta. Temos a escuta viciada pela cultura. Diante de nós está uma pessoa que é mais do que uma pessoa, é um ego – e não podemos escutar aquilo. O que vemos são só formações jogando. • P – Não escutamos o que o outro está dizendo? Escutamos segundo certo filtro que incorporamos. No caso da Teoria das Formações, temos que mudar de filtro: o ouvido é outro. A configuração da pessoa não interessa, pois sabemos que é mentira. Lacan chamava de semblant.
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A configuração que vemos é inteiramente falsa, pois o cego somos nós, não estamos vendo. • P – Então, ao invés de ficarmos hipnotizados por determinada configuração, egoica ou subjetiva, trata-se de entender o que escutamos e tomar como uma resultante de diversas formações. Há que escutar justamente essas formações. Estamos diante de uma malha complicada e vamos escolhendo, ouvindo, sacando aqui, ali. O que a pessoa nos apresenta é mentira, é maluquice de querer se apresentar como personagem – e aquele personagem é falso. Está na cara que vem com fragmentos de nossa cultura: um fragmento católico aqui, um intelectual ali... Aquilo se nos apresenta como um teatro concreto, mas se os fragmentos forem mexidos, movimentados, a pessoa pode desmontar. Desmontar no bom sentido. É o que seria a cura psicanalítica. Não é guérison, e sim o tratamento psicanalítico. Aí, por ter parado de fingir, é possível ver a pessoa produzir efeitos importantes, mudar. Pior será se conseguir enganar e acharmos que ela é aquele personagem. • P – Não pode acontecer de chegar alguém que já tenha passado esse estágio, que já tenha passado um pouco a limpo? Nunca conheci no consultório. Conheço em livro. • P – Alguém que já tenha passado por análise? Quando já fez análise é pior ainda... • P – Não há outro analista no planeta que… Não, só tem eu. Se você não pensar assim, não faz análise. Tem que desconfiar de todos os outros. • P – Mas você já não disse que qualquer um pode servir de analista para qualquer um? Pode – se consigo fazer isso. Cuidado com as frases, a citação da frase veio sem um sentido. • P – Se a pessoa for analisanda, consegue? Não. Só se for analisada. Ou seja, se ultrapassou o regime da Análise Propedêutica, pode usar os outros como analista. Gente que não passou não consegue, às vezes não consegue nem usar o analista que tem.
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• P – Uma pessoa chegar ao ponto de poder ser considerada analisada, não ser fake, é algo que só será possível através do contato com o analista, no consultório de análise? Não. Ela pode falar com Deus. Se vira. • P – Em texto, há gente que dá esse testemunho. Em outras culturas, em que não existe psicanálise, há gente que ultrapassou tudo isso. Se desconsiderarmos o budismo como religião – Buda não estava fundando religião alguma, ele é como se fosse um filósofo grego com sua escola de pensamento –, veremos que ia para esse lugar. Melhor do que nós, talvez. Não se trata da mitologia psicanalítica de que só nela ocorre análise. A psicanálise é apenas uma tentativa ocidental. E mais, precisa ser reformulada a cada vez, se não, vira aquela coisa horrorosa de religião, de Freud ser aquele que escreveu a Bíblia. O que fez foi uma tentativa rigorosa, dificílima. Só! Aliás, de qualquer autor deve-se dizer que é preciso andar mais para a frente, pois jamais é bem aquilo que pôde trazer. Lacan foi brilhante quanto a isso: “O que é a psicanálise? É a pergunta ‘o que é a psicanálise?’” Ditos lacanianos são tão estúpidos que nem essa frase ouvem. Se alguém mexe um pouquinho naquela teoria, acham abominável – e ficam rezando para a Bíblia de Lacan. Lacan não era isso. Uma pessoa que diz que “a psicanálise é a pergunta ‘o que é a psicanálise?’” destroçou tudo, terá que refazer de cada vez. Ele não a definiu como isso-e-isso, e sim como a pergunta “o que é?” – e é isso que a psicanálise é. • P – Para haver potência na intervenção, no gozo, deverá ser a partir de suas próprias formações, de sua herança? Não é a partir, e sim depois delas. Se a pessoa não der conta dessas formações, como será gozar por aí? Em qualquer pessoa há um lugar que é original, e esse lugar tem que falar. • P – Ela aprende a falar? Não é importante desentulhar? Não é desentulhar, é: analisar. A cultura é uma lata de lixo. A pessoa não vai desentulhar e jogar fora, e sim pegar cada pedacinho, colocar na boca, cheirar... Aí, em dado momento, poderá brotar um troço que é uma configuração singular. As pessoas evitam isso a todo custo, parece-lhes mais confortável comprar pronto. Freud já falava em singularidade. Em nosso caso, trata-se de a pessoa com-siderar, de preferência analiticamente, as suas formações. Não é 50
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colocar ou desconfigurar suas configurações, e sim dar a vez de aparecer uma. Então se, ao invés de com-siderar e analisar, ficar repetindo, com medo, nada vai aparecer. • P – Cada um tem a sua psicanálise? Se tiver. Frases feitas são uma coisa horrorosa. As pessoas dizem que cada um tem a sua. Tem? Procure saber você mesmo, não são os outros que têm. A espécie humana é de macacos, estamos longe de chegar perto desse entendimento. Como conseguimos um monte de aparências teatrais – sala, mesa, ar refrigerado, avião... –, esquecemos que é tudo porcaria, muito fácil (tanto é que a gente fez). • P – Você falou sobre não escutar o outro, não escutar o que vem de lá para cá… Não. Trata-se de escutar o que está lá. • P – O mais comum é que a gente não escuta. A maior parte do que fazemos é projetar, não escutamos. E pior, se estamos projetando, estamos projetando o quê? Já estamos projetando o outro. • P – Minha questão é pragmática. Numa conversa importante de trabalho em que deveria haver certo esclarecimento, ao perceber que o outro não tem abertura, não está escutando, o que fazer se temos pouco tempo e é preciso reverter a situação sob risco de grande prejuízo? Não faz nada, deixa ele ficar estúpido. • P – Mas é uma situação de trabalho e a coisa tem que ser decidida. De nosso ponto de vista, não tem jeito. Você tem que achar a solução possível. E qual é a solução possível? Ou seja, qual é a resultante da situação? Basta olhar para a política brasileira hoje: ninguém achando a resultante, e muito menos as origens da situação. • P – Houve uma época em que, na falta de certo entendimento das partes, remetia-se a um papel, a um escrito, e aquilo resolvia a situação. Hoje, mostra-se que foi escrito numa mensagem de WhatsApp enviada pelo outro e ele continua dizendo que não é aquilo. Ou seja, o que está escrito já não vale. É escotomização: a pessoa não vê. É, aliás, o caso de muitos velhos que, diante do espelho, se veem como adolescentes. Basta dar um passeio pelo Shopping para vê-los. Nitidamente não se enxergam. O que acontece na 51
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cabeça dessas pessoas? Têm uma preferência, fizeram uma escolha – e aquilo vai ter que ser. • P – Mas no caso que relatei estava escrito. Não adianta. Se adiantasse, para que serviria o sistema jurídico? Para chegar a uma conclusão que é nenhuma – mas vale a conclusão. Acabou. Isso existe demais, é cotidiano. Frequentemente, vemos que a pessoa é um ladrão sem vergonha, canalha, está no poder, no governo, etc., e convence que é alguém maravilhoso. E ainda há aquele que sabe que não é, que está roubando descaradamente, mas não é ladrão e ponto! Tomem um presidente de câmara, com dinheiro no exterior, uma fortuna com certa nomeação que não é “conta bancária”. Questionado se tinha conta respondeu que não. Pior é que tem razão, pois ninguém o questionou sobre o que tinha no exterior. • P – A escotomização é uma recusa em nível inconsciente? É um processo de exclusão por recalque. Aquilo não há – e acabou. • P – Mesmo estando escrito num papel? Não importa, vai-se interpretar o papel. Diz Nietzsche que “não há fatos, só há interpretações”. Digo o contrário, que só há fatos, não há interpretações, porque o fato desse que foi mencionado há pouco na pergunta não é o fato do outro. Para ele, é fato: a leitura dele é um fato. Ou seja, está diante de uma situação e sua leitura não é uma interpretação, é um fato. Isto porque, se formos procurar qual é o fato, ninguém o acha. Então, ao contrário de Nietzsche que diz que só há interpretações, prefiro dizer que são fatos. Para entendermos o outro temos que mudar de registro. Vejam, por exemplo, que o fenômeno Trump nos Estados Unidos está correto. Não estou dizendo que está bom, e sim que é uma formação correta. Correto quer dizer: a tendência é essa, o discurso na virada é esse. Uma secretária dele até falou na televisão sobre “fato alternativo” – está correto. • P – Não é assim que faz a historiografia? Diz que houve tal acontecimento que ninguém computou. Não é porque ninguém computou alguma informação. É porque é. • P – O caso dizia respeito à contestação de haver muita gente na posse de Obama e pouquíssimas pessoas na de Trump. Coisa que pode ser atestada pelas fotos. 52
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Temos que entender nossa época. Isso é um fato da foto. E o resto? A foto diz isso, e o resto diz o quê? Vejam a dificuldade que é entrar no Quarto Império e gerir esses acontecimentos. É por causa disso que a porradaria vai durar cinquenta anos até arrumarem outra maneira de lidar que não fique pedindo esse tipo de prova. Há que inventar essa maneira. Estamos no caminho de ter que inventar outra situação cultural. • P – E qual seria? Não sei. Se soubesse, ficaria milionário. O que é preciso entender é que as articulações até o final do século XX perderam validade. Esse mundo acabou. • P – Estão chamando isso de era da pós-verdade. Por quê? Acreditávamos, por impregnação pelos ouvidos e pelas leituras, que a verdade era possível de ser atingida. Nunca foi. Ela seria “atingível” segundo aquele regime. Mudou o regime, qual é verdade? • P – Mas havia papeis, documentos. O documento está viciado, é feito segundo um tipo de cultura. Não sei como fazer para as pessoas entenderem que o século XX acabou. E junto com ele morreu tudo, mas as pessoas ainda estão lá, não morreram. Estamos vivendo os cinquenta anos de conflito que prometi, o que é maneira de dizer, pois qualquer número serve. Não emergiu ainda, dentro do social e da cultura, algum aparelho compatível com a situação atual. Então, a porradaria grassa, já que se promete uma coisa e se faz outra. O único jeito é sair na porrada com ele. Vejam que temos lá um negócio chamado Islã e aqui outro chamado Cristianismo. Como isso vai conviver no século XXI? O Islã é Segundo Império, o Cristianismo é Terceiro. Já está na hora de passar para o Quarto. A luta não é entre culturas e religiões, e sim entre estruturas radicalmente incompatíveis. E ninguém é capaz de jogar os dois fora e partir para outra coisa. Repetindo, o Islã é Segundo Império e o fato de lá terem acontecido pensadores da melhor qualidade nada quer dizer, pois na Igreja católica também apareceram pensadores maravilhosos, apesar dela porcaria. Dizer Islã é dizer Submissão. Submissão é pai, é nome do pai, não é colega, não é irmão. O Terceiro Império aqui no Ocidente veio dizer que o pai está no céu, que é o pai de nós todos, é o amor, o irmão, etc. Por isso que chamei os três primeiros Impérios de: AMÃE, OPAI
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e OFILHO. Aqui, nesta paróquia de macacos é assim, em outro planeta não sei como é. • P – O título do último romance de Michel Houellebecq é Submissão por isso. Submissão quer dizer Islã. Você não tem a meta da submissão no cristianismo. Nele, a meta é o amor – que nunca deu certo, como sabemos. Precisamos, nós aqui, conceber a radicalidade da dissolução do que era. E não é porque alguém chegou lá e destruiu. É porque o movimento levou a isso, e a grande responsável é a tecnologia. Vejam outra guerra anunciada no planeta: nacionalismo x globalismo. Por quê? Não estavam todos se encaminhando para a globalização? Porque a globalização está errada. Quiseram fazer uma globalização por aglutinação, por juntar toda a Europa, daqui a pouco juntar toda a América, isso iria juntando e viraria um global. Não vira porque o movimento de pensamento, de movimento tecnológico, etc., é contra agregações. Para globalizar, há que pulverizar primeiro. A Inglaterra já se recusou. E mais, se começar a separar tudo – e acho que vai separar –, começará a separar dentro do separado. Isso porque o momento é de distinção e de pulverização. As singularidades pessoais não suportarão mais ter que viver segundo a diferença do outro. Por quê? Porque têm recurso: todos têm dispositivos móveis na mão – e vai piorar. As pessoas ainda estão danadas da vida por se verem invadidas em sua privacidade. A privacidade acabou! E no momento em que a privacidade acaba, a moralidade tem que acabar junto. Não tem saída, pois cada um está exposto, e cada um pode ser indecente, imoral para outro. Como toda diferença ficará exposta, há que inventar uma moral assim. Essa é a dificuldade de inventar uma cultura de Quarto Império. O Terceiro Império pensou tudo direito – ou seja, de acordo com o Terceiro Império: vamos ajuntando, globalizando, até virar um planeta só, de preferência com governo único. As Nações Unidas foram inventadas nesse espírito. Mas não dá certo porque os movimentos de rearticulação, de inteligência, de fala, de produção, de tecnologias, etc., dissolveram o projeto. • P – Tem que rearranjar, regredir um pouco... Não se trata bem de rearranjar. O que acontece é que o pessoal foi andando, chegou num ponto em que não sabe o que fazer – é o abismo, então: 54
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Vamos correr para trás! Correm para trás não pela estratégia de retornar, e sim por estarem com medo. O planeta está acuado, e está deprimido. Chegou-se à beira do abismo e ficaram apavorados. O nome do abismo é: “Não sei o que fazer”. Então, o que a gente faz? Corre para trás, pois lá a gente “sabia” – mas não dará certo porque o lá de trás não funciona mais. Falo em duzentos anos de implantação: vai-se caminhar, gerações morrerão – e surgirá o gênio do século de lá. • P – Então, a Inglaterra fez bem com o Brexit? E farão mais. No Brasil já há grupos que querem separar, do sul, do nordeste, do norte. Desintegrar para pulverizar, e se fará a globalização com o pó. A globalização será assim: é tudo singular, então vamos juntar tudo, tudo isso é aceitável, essa bagunça é a ordem. A globalização que vemos é falsa, vai virar Totalização. Uma globalização por aglutinação acaba como a União Soviética e precisa arranjar um Stalin para tomar conta. A globalização só é viável no caminho contrário: pulverização. Aliás, o comportamento, a sintomática, já está sendo pulverizada, mesmo que não esteja na lei. • P – Sloterdijk usa a metáfora da espuma em vez das esferas. Bela metáfora. Eu falo na nuvem, nos nefelibatos. Temos que fazer o esforço de imaginar o que será uma pessoa daqui a trezentos anos. Será irreconhecível para nós, mesmo porque não haverá ninguém vivo dos que estão vivos agora. Várias gerações estarão completamente desfeitas da configuração atual. E sabemos que a cabeça dos garotos de hoje já não é igual à nossa. Dá para conversar, mas há coisas que são inconcebíveis para nós. Quem tem razão são eles, pois vamos morrer e eles vão ficar aí. Os donos do pedaço não somos nós, e após nossa morte terá outros donos. • P – Pelo menos, sabemos que a neutralidade é impossível no Quarto Império. No entanto, devemos tentá-la. Isso me fez lembrar de Alain Badiou. • P – Toda conversa tem que ser colocada num contexto. Se não, vira papo de maluco. A humanidade é incapaz de fazer algo que não seja papo de maluco. Trata-se de escolher em qual loucura queremos estar: a do hospício, a do 55
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congresso nacional, a da NovaMente... Antigamente, todos sabiam o que era loucura e o que era razão. Sabiam de onde? Hoje, temos que ver qual loucura preferimos, em qual nos sentimos bem – ou menos pior. O planeta está doido pela falta de registro. Notem, por exemplo, que os polos acadêmicos e as universidades estão se mostrando ser uma asneira no mundo inteiro. Acabou, isso é um fóssil do ponto de vista do ensino, da cultura, e do trânsito urbano. Quanto tempo levará para ser enterrado? Saindo da academia para os colégios, vemos que a garotada não suporta mais aquela baboseira, pois os dispositivos móveis são a porta para eles. • P – Mas não há concorrência sempre? A concorrência vai piorar, será muito mais dispersiva. Então, como organizar a zorra? Não sei. As pessoas têm que viver o conflito, entrar na produção. Falei em duzentos anos para produzir, mas é um número como ficção, é a minha ficção. Outro dia, li que o salto tecnológico que chegará em dez anos deixará a tecnologia atual no chão. É mais veloz, mais compacta, etc. O movimento é forte demais. Todos, dos garotos de cinco anos aos velhos, têm um aparelhinho móvel nas mãos, mas quando ele se tornar uma velharia, um obsoleto, como será a cabeça das pessoas? Vai pulverizar. Notem que já podemos nos perguntar: se vivemos metidos em internet, de onde somos cidadãos? Qual é o polo, o foco e a franja de cidadania de uma pessoa? Ainda têm aparência de serem os mesmos, mas não são, estão se dissolvendo. Sou de onde, então? Sou cidadão das nuvens. Quanto a mim, estou por aqui há muito tempo, farei oitenta anos, e desde quando me lembro até hoje, tudo já mudou radicalmente umas duas ou três vezes. Como aprendi depressa, me adaptei, etc., sei que aquele garoto do ginásio que fui não entenderia mais nada agora. Como vim acompanhando junto as mudanças, posso ter a impressão de que se trata da mesma pessoa. Não é o caso. Tanto é que, se pesquisar, sei que encontrarei pessoas que ainda não saíram daquele ginásio por mais velhas que estejam. Consequência: isso tudo para elas é uma loucura, não entendem nada: tudo é imoral, tudo faz mal. • P – Mas o fóssil pode durar muito tempo. Sim. E haverá fóssil mesmo lá no Quarto Império. • P – Nasce muita gente já fóssil, fossilizada. 56
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Minha geração teve que fazer adaptações muito difíceis para poder sobreviver mentalmente. Lembro-me bem de meus esforços para conseguir entrar no mundo de novo a cada vez. • P – A propósito, corre um boato de que um meteoro vai destruir o mundo no próximo dia 16. Há muito tempo, espero por ele. Gosto dessa ideia de meteoro. Direi agora uma barbaridade. Esse negócio de ecologia é tudo bobagem, não vale nada, alguém inventou essa parana de que precisamos salvar o planeta. O planeta está se lixando, ele se recompõe sozinho, não precisa de nós. Então, temos que fazer depressa, pois o meteoro vem aí... Os cientistas não dizem que não vai acontecer, e sim que vai acontecer, só não sabem quando. Seremos os dinossauros da nova ordem biológica.
6 Pedi a Patrícia Netto Coelho que nos apresentasse brevemente o livro Tempo de Crise, de Michel Serres. Ele nos interessa por traçar um paradigma do pensamento que está rolando por aí em tempos de crise contemporânea. Nele, podemos perceber a diferença entre a suposição de Sujeito e a ideia de Teoria das Formações. Teoria esta que é a resultante mais importante de nosso trabalho, e possibilita intervir de modo efetivamente diferente e novo na situação atual, no sentido do entendimento e da busca por soluções. Como sabem, concebo a história da categoria de sujeito bem típica de Terceiro Império, excessivamente cristã em termos do Ocidente. Temos funcionado – os filósofos inclusive – como se não fosse uma categoria inventada, como algo que houvesse fundamentalmente nas pessoas. Muitos já demonstraram 57
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que não é: Deleuze, Foucault, Alain de Libera... No que vivia referido a Lacan, passei anos lutando com essa ideia e cheguei mesmo a inventar o Sujeito da Denúncia e o Sujeito da Renúncia – até concluir que se tratava de Renúncia de Sujeito. E o que se faz quando se larga de mão a categoria de Sujeito? A primeira coisa é saltar fora do século XX, inclusive de Lacan. Já lhes disse que considero Lacan alguém que, genial e soberbamente, encerrou o século e talvez a era no sentido do pensamento, mas é preciso saltar fora do Terceiro Império e acompanhar o que acontece por aí de emergências de Quarto Império. Aliás, elas estão na cara, embora as pessoas insistam em reclamar, em vez de acelerar o processo. E poderemos ver como um pensador tão brilhante quanto Michel Serres não consegue largar o sujeito e fica correndo atrás do próprio rabo. Sujeito é algo tão Terceiro Império que desemboca no “amor”. Essa mentalidade de curar mediante amor só fez besteira, levou imediatamente ao ódio. *** O Tempo de Crise, segundo Michel Serres Patrícia Netto Coelho O livro é um ensaio escrito em 2009 por ocasião da crise financeira das bolsas e do mercado iniciada no ano anterior. O título, Tempo de Crise, pode ser entendido de duas maneiras: (a) apontamento de uma crise em curso, e (b) entendimento de uma crise que tem uma duração e um alcance – daí a ideia de Tempo – bem maiores do que apenas o momento atual. Trata-se, pois, de saber que crise é essa e, de modo amplo, sua dimensão e seu impacto no mundo. São três capítulos e uma Introdução, na qual temos uma arqueologia da palavra crise. Há, pelo menos, três fontes para seu sentido. Uma fonte jurídica, em que crise significa uma operação de juízo, de julgamento, de decisão, de cortar uma situação em dois lados. Uma fonte médica, em que há a ideia de evento que rompe com um estado qualquer, cujo processo de cura significa não retomar o estado anterior, e sim produzir uma nova condição. E a fonte filosófico-histórica, em que a crise é vista como modelo de pensamento, no qual se buscam critérios e parâmetros de avaliação, e também estabelecer uma 58
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lei capaz de operar os juízos. Ao final, temos que a crise, na qual ainda estamos envolvidos, precisa ser adequadamente pensada, caso contrário algum tipo de “carnificina” ocorrerá em função dos impasses em jogo. Ele dá o exemplo da crise de 1929 que, a princípio, era financeira, mas teve a Segunda Guerra Mundial como resultante e mais de cem milhões de mortos direta e indiretamente dela decorrentes. O capítulo 1 enumera seis acontecimentos expressivos da grande transformação pela qual o mundo está passando, e que são responsáveis pelo final de uma época. Talvez como nunca antes estejamos vivendo uma defasagem sem precedentes. Por exemplo, a enorme dissimetria entre a ordem financeira envolvida no “cassino financeiro” atual e o valor gerado pelo trabalho, duas ordens de produção de valor que não se comunicam. Outra defasagem é entre o “cenário midiático” e a atual e real condição humana. O cenário midiático é o “pão e circo” contemporâneo. A pergunta, então, é: diante dessas transformações de largo alcance e impacto, como se dimensiona a novidade que elas trazem? Não é apenas crise no sentido da falência de certas formas de vida, de pensamento e de instituições, e sim de emergirem novas formas de existência. Uma espécie de hipótese que percorre o livro é: o tamanho da novidade é proporcional ao tamanho da era que ela está superando. A novidade será mais radical à medida que o tempo anterior que ultrapassa for mais longo. O primeiro acontecimento enumerado é a agricultura, no sentido do esgotamento da população rural mundial a partir do século XX (que, para Serres, é quando termina o Neolítico). Hoje, são menos de dois por cento da população vivendo no campo, os demais estão nas cidades. MD Magno – A tecnologia dispensou as pessoas, que, por não entenderem isto, continuam a produzir crianças demais – as quais já nascem condenadas ao desemprego. É preciso saber que, mesmo após o término de um Império, várias formações anteriores permanecem e funcionam. Neste sentido, é, sim, fim do Neolítico. O homem animal racional aristotélico, que é político, só exerce sua humanidade dentro dos muros da cidade, da pólis. O segundo acontecimento é o transporte, a mobilidade crescente em termos do planeta inteiro. Tudo pode ser transportado, inclusive pandemias, em relação às quais não temos grandes 59
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recursos para lidar. E a possibilidade de pandemia global é um horizonte bastante próximo. O terceiro acontecimento é o progresso: a dilatação do tempo de vida, das condições de saúde decorrentes do desenvolvimento do conhecimento químico e farmacêutico, o controle da sexualidade, da reprodução e do nascimento. O quarto é a demografia, a recomposição acelerada da paisagem humana em várias escalas (família, aposentadoria, herança, sucessão, transmissão, guerra). É uma nova demografia não estática, cuja dinâmica redesenha territórios e formas de organização. O quinto acontecimento é a emergência do conectivo, da primazia da conexão em detrimento do coletivo, com impacto direto sobre o conhecimento (que passa a depender da conexão, e não mais de coletividades), sobre a memória disseminada nos regimes de armazenamento e de registro, sobre a relação com o espaço (que passa a ser pensado em termos topológicos, e não mais geográficos). Como o espaço se virtualiza, o que importa são as relações de vizinhança, e não tanto a localização física das práticas humanas. O sexto acontecimento são os conflitos, cujo evento mais marcante foi a Segunda Guerra Mundial, uma virada sem precedentes na história à medida que, pela primeira vez, a espécie criou condições de exterminar-se por inteiro. MDM – Apesar de ser uma situação de guerra diferente das anteriores, é perfeitamente característica do Terceiro Império. Serres chama de Tanatocracia. Somos mais potentes que a natureza em nos matar. Com ela, surgem objetos-mundo, que, em termos de dimensão, são análogos ao planeta: bomba atômica, internet, nanotecnologia... Continuando, se anteriormente havia parâmetros internos de comparação para dimensionar as transformações pelas quais a espécie passava, não há mais essa possibilidade para avaliar o tamanho da mudança em curso. MDM – Há sim. Os embates e efeitos desses seis acontecimentos afetarão todos sem exceção: ensino, universidade, guerra, terrorismo, direito, vínculo, cidade, religiões, instituições... Nada sairá ileso na nova configuração. Serres situa três acontecimentos de ruptura na década de 1960 que não foram devidamente observados, estudados ou identificados. O primeiro, um tipo de revolução camponesa que culmina na mencionada transferência da população do campo para a cidade; o segundo, o Concílio Vaticano II; e, terceiro, os movimentos estudantis 60
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de 68. São acontecimentos-índice da transformação por abalarem a tríade das instituições indo-europeias: religião, exército e economia. MDM – De nosso ponto de vista são as crises de destituição do sentido do Terceiro Império, que começou a ser minado por baixo. A história da espécie é a história das várias hegemonias tidas por cada uma dessas três instituições. Na antiguidade, hegemonia religiosa; na modernidade, hegemonia baseada no exército; e na contemporaneidade, hegemonia da economia sob a forma de capitalismo financeiro (abalada com a crise de 2008). Experienciamos atualmente a inversão de uma relação milenar em que a condição humana sempre foi pensada como finita ante a infinitude da natureza. Agora é o mundo e a natureza que se mostram com a face de limitação e de finitude, e a infinitude passa a ser experimentada pela espécie nos casos da razão, investigação, desejo, vontade, história, potência, consumo, que são experiências de franja. MDM – Formação alguma dessas aí tem consistência. Onde começa uma e termina outra? A nova era que se desenha é o que chamam de antropoceno, termo também usado por Serres. O capítulo 2 detecta as formações próprias do mundo que surge. E o capítulo 3, ‘Conhecimento e Comportamentos’, analisa os acontecimentos da nova espécie que emerge desse mundo referida à franjalidade e à infinitude. MDM – Ficaria mais preciso se fosse abordado mediante os conceitos de Polo, Foco e Franja. O que Serres denomina as coisas do mundo, na verdade, é como o mundo se apresenta ao longo da história da espécie desde a antiguidade, passando pela modernidade até o momento contemporâneo. Na nova configuração das relações da espécie com o mundo teríamos a Biogeia já proposta em outro livro, O Contrato Natural (1990). Ela implica outra ideia de globalização com novas relações entre os códigos naturais, culturais... A globalização, aliás, estava aí desde o surgimento da espécie, cuja competência inclui a ultrapassagem das fronteiras. E a novidade atual “exige pensar, agir e viver frente ao mundo”. Na Biogeia trata-se de uma nova síntese – que tem a ver com a ideia de Contrato
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Natural – entre as leis físicas e humanas, entre Newton e Sólon, entre Montesquieu e Einstein... Mas Biogeia é um novo sujeito. *** MDM – Pedi à Patrícia que fizesse esse resumo para acompanharmos o pensamento do Terceiro Império. E é preocupante verificar os autores aprisionados na perspectiva de pensar assim a contemporaneidade e a possibilidade de renovação. Serres é bem exemplar dessa postura de querer corrigir por dentro. Do mesmo modo, aliás, que fazem as populações por falta de noção da possibilidade de dar um passo adiante. Como, de repente, aqui e ali, emergem sintomas de Quarto Império, o pessoal fica perplexo por não estar acostumado a isso. Para um psicanalista (que o fosse), ficaria mais fácil entender. PNC – Desde que a Biogeia aparece no texto como personagem, Serres mostra um fim do jogo até então estabelecido – um jogo dual entre a espécie e o mundo. Esse velho cacoete acabou. Desde O Terceiro Instruído (1991), aí sim, Serres inventa essa saída que é compatível com a NovaMente. Na época, até escrevi uma carta para ele, que me respondeu. Ele sai do pensamento binário e vai para o ternário. Isto ocorre com ele mais ou menos ao mesmo tempo que ocorre comigo. O melhor de seu pensamento é justamente a lógica ternária que ele contrapõe à lógica binária. PNC – Mas essa nova relação a três ainda é entre sujeitos. Ele diz mesmo que é preciso inverter, pois o sujeito está lá fora. Talvez pense estar dando uma de Kant, de revolução copernicana... PNC – Ele diz: nem Ptolomeu, nem Copérnico... Quer tomar o mundo como sujeito. Pode tomá-lo como quiser, mas assim nada se resolve justo por continuar aprisionado à ideia de sujeito. E mais, esse sujeito externo acontece, mas não conversa diretamente com a gente. A gente é que inventa uma fala dele. Reforço, então, que foi a ideia de sujeito que ultimamente sustentou o Terceiro Império. Mesmo que essa categoria não aparecesse com evidência, lá estava desde a Idade Média. A ideia de sujeito propõe imediatamente a de objeto. Ao propor a ideia de sujeito em contraposição 62
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ao – ou “diante de” – objeto, este é uma coisa e sujeito é o autor, o centro, a personalidade do mundo. E, digo eu, foi a ideia de sujeito que nos fez tratar muito mal a Terra. Os ecologistas ficam querendo consertar algo que é sem conserto possível. A meu ver, a Terra funciona sozinha. Além disso, a ideia de sujeito colocou o outro na ideia de coisa: o outro não é dialogável: “Eu” comando, “Eu” faço, “Eu” conheço... Serres propõe uma inversão, mas ela não é possível. O Haver fala através de nós, não fala sozinho, apenas se expõe. Em nossa proposta, a importância da Teoria das Formações como resultante fundamental da teoria da NovaMente, uma vez que não coloca as ideias de sujeito e de objeto, é no sentido de ter que retirar a centralidade das IdioFormações – ao usar este termo, sai o termo “humano” –, inclusive de dentro delas. A centralidade é só um polo resultante aqui e agora, é uma resultante dessa polaridade aqui e agora. Um pequeno defeito cerebral ou psicológico muda isso. Não há sujeito fixado. Lacan teve o mesmo problema e fez grande esforço para dar conta dele. Mas, ao invés de abolir o sujeito – não havia condições em seu momento –, coloca um sujeito intervalar, com definição circular (sujeito é o que um significante representa para outro, e significante é o que representa o sujeito para outro significante...). Isto significa que o sujeito é do Outro, o que justifica ele dizer que o Inconsciente é estruturado como uma linguagem. Ou seja, ele coloca tudo sobre o aparelho da linguagem e o sujeito é intervalar nas conexões significantes do Outro. Outro este que nos domina, é o grande Inconsciente. Isso funcionou como ideia até o finalzinho do século XX, mas já não funciona mais, pois mesmo esse sujeito aí é muito pesado. Ao me inscrever como pessoa falante na ordem do Outro, da linguagem, realmente estarei estruturado como essa linguagem sabida inclusive gramaticalmente. Seu esforço de dissolução é grande, mas a consideração de oposição entre sujeito e objeto ainda está viva. Não precisamos de sujeito ou de objeto, que é um vício do passado. E o Terceiro Império é o rei da subjetividade. Como essa ideia está sumindo do planeta, suponho que esses autores, filósofos, cientistas, etc., estejam atolados no pensamento de Terceiro Império sem conseguir dar passos. O pessoal da literatura, do pensamento maluquete, é melhor. Já falei de Paul B. Preciado, por exemplo, que apresenta uma explosão da relação sujeito e objeto. Esse tipo 63
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de gente é que começa a enxergar. Nosso momento é de abolição das ideias de homem e de autor, sobre as quais Foucault falou bastante. A ideia de sujeito não mais interessa, é uma IdioFormação aqui localizada. O sujeito do Terceiro Império é o “autor” não apenas de sua obra como do mundo. Autor é a ficção resultante de uma transa entre formações, a qual por acaso surgiu dentro do polo fulano de tal. Pensar desse modo a próxima era é o que interessa, e já estamos lidando com isso. Serres coloca a questão da política mundial de globalização. Ele acha que sempre houve globalização, mas ela foi tomada como projeto bem clarificado e quase que imposto às sociedades no mundo de Terceiro Império. Globalização significa, para ele e para os demais autores, um processo aglutinador. Como já existia um tal Estados Unidos da América, aqui também era Estados Unidos do Brasil e a Europa também decide fazer seus Estados Unidos chamando de União Europeia, os autores pensaram que haveria um bloco americano, um europeu, um oriental, e que tudo se aglutinaria num mundo só com um governo superior. Como venho dizendo, esse sonho do Terceiro Império faliu redondamente, não dá mais. A Europa já está se separando, o Brasil, tadinho, não tem condições de se separar, embora já tenha havido tentativas. Sou a favor de separar, pois a ideia de globalização do Quarto Império não é por aglutinação, e sim por pulverização. Seria uma ideia de mundialização por desagregação – coisa não suportável por esses autores. Como seria a desagregação? As formações secundárias – países, estados... – vão se separando, na sequência se separarão por dentro, o que significa alguém ser cidadão não de tal lugar, e sim de suas transas. Nesse caso, trata-se de uma topologia do mundo e do planeta, e não mais de uma geografia. Por incrível que pareça, esse é o caminho contemporâneo da mundialização. Vai-se globalizar a poeira, a nuvem (que já está aí). Grandes configurações como a nacionalidade desaparecerão. É como uma análise levada adiante corretamente: vai-se pulverizando as formações de uma pessoa de modo que ela possa misturar elementos que pertenciam a formações anteriormente fechadas – e ela vai ficando disponível para fazer qualquer tipo de arranjo ad hoc. • P – Serres, no final do livro, faz a junção entre as ciências humanas e as ciências duras. Considera a Biogeia, que poderá ter expressão por parte 64
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dos novos cientistas, que serão laicos, não servirão a interesses militares ou econômicos. Quem são esses cientistas? Isso é pura ingenuidade. É a paz perpétua, de Kant. Vejam que é decepcionante alguém com uma obra portentosa como a dele, membro da Academia Francesa, com formação militar na Marinha, dizer esse tipo de coisa. • P – Ele conclui que estamos passando do hard para o soft, que, este, é a inteligência, cujo modo fundamental é a passagem do ódio para o amor. É a passagem da burrice para a estupidez. É Terceiro Império. Nada bacana se fundará com amor e ódio. Não é preciso de amor ou ternura de ninguém, e sim do respeito e da consideração, como está escrito em meu poema teórico Chega de Amor (1982). • P – Outros autores contemporâneos, mesmo trazendo grandes reflexões, ao proporem uma saída ética também recaem no Terceiro Império: Peter Sloterdijk, Alain Badiou (que chegou ao universal do cristianismo paulino), Jean-Claude Milner... São pessoas muito mais formadas do que nós. Então, como sair da fôrma? Dei apenas um semestre de aula em Vincennes, mas foi suficiente para perceber como aquilo é pegajoso. Se bobeasse, ficaria igual a eles. Meu seminário ao voltar era horrível, pois aquele cartesianismo contamina. Que ética é possível no quadro do mundo? A ética do respeito radical à diferença – e, portanto, com a diplomacia como lugar de resolução. E mais, sem indiferenciar não há como aceitar a diferença. Mas há uma dominação de Terceiro Império em vigor no Ocidente. Não sei como é a expressão do Oriente em termos de Terceiro Império, é diferente. François Jullien nos ajuda a entender. • P – Deleuze não se inclui entre esses aí. Ele tem lucidez, não se deixa levar por isso, embora, no fundo, mesmo tendo dado uma sacudida violenta, também seja cartesiano. Só não gosto quando ele chama o Maneirismo de Barroco. Ele era alguém caminhando para o Quarto Império. Em Foucault também não tem essa coisa de amor. O que tem é tesão. Aliás, já disse que ele foi a pessoa mais inteligente que conheci. Era inteligente cotidiano, veloz, não apenas em livro. Pega a situação na hora e dá conta. Em Lacan, não se trata de inteligência, e sim de rigor.
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PNC – No pensamento da NovaMente, o viés metanoico me parece bem explícito. É uma forma de criticar a paranoia do sujeito. A ideia é evitar toda paranoia, cujo dono, aliás, é o século XX. O dono da histeria é o século XIX. PNC – A mesma operação hierárquica que constrói a ideia moderna de sujeito não tem um correlato na filosofia antiga, que é a ideia de Terra, de pertencimento? Daí Serres dizer que o paradigma do novo conhecimento é ecológico. O pessoal do Segundo Império não pensava assim, pensava que esse pedaço aqui é meu, que é preciso cuidar bem pois é dele que sobrevivo. PNC – Carl Schmitt, por sua vez, trabalha a ideia de Nomos da Terra... Mas o que sustenta essa ideia não é a posse da terra? Não é o planeta. Lá para trás, com ou sem filosofia, o que valia era ter terra. Um senhor feudal, por exemplo, era o dono da terra, que emprestava para outros. Era o dono do terreno, não estava dialogando com o planeta, e sim com seu quintal. Isso bate na filosofia como a ideia de fundamento. • P – Foncier, em francês, é: terra e fundamento. Sim.
7 Com isso, estamos diante da morte da democracia – que já vai tarde, aliás (é falsa, fingida, uma grande mentira). Qual seria, então, a configuração nascente? O que há bastante tempo chamo Diferocracia. Nela, o poder emana 66
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da diferença (e não do povo). A construção política do mundo será a partir do respeito à diferença. As atuais moções que consideram as diferenças étnicas, raciais, sexuais como tendo direitos são um começo, e isso não é pensável mediante teoria de sujeito e objeto. Trata-se de buscar saber onde estão as formações, e as formações têm que ser procuradas na consideração ad hoc dessas formações, não podem ter prazo de vigência como o de um presidente governar por cinco anos. Ele tem que ser trocável a qualquer momento. Notem que o grande fenômeno atual em termos de política no mundo chama-se: Trump. Não o estou defendendo, e sim dizendo que é o fenômeno iniciante desse caso. O pessoal não consegue entendê-lo, pois o aborda com perspectiva de Terceiro Império. Ele é totalmente pirado – no sentido de que sua cabeça não mais pertence a esse mundo. É um corretor de imóveis, ou seja, alguém que pensa ad hoc, precisa cercar a situação para conseguir vender, não cabe ter princípios aí. Como e por que são outra história. Isso é essencial ao capitalismo, e lá no capitalismo é a essência do Quarto Império: pensar ad hoc. Ele diz e se desdiz, o que pode ser abominável, mas, repito, é uma cabeça de Quarto Império. Não estou dizendo que ele tenha consciência disso, mas é um efeito de Quarto Império surgido num lugar dificílimo, aliás, a presidência dos EUA. Pudemos também ver em seu discurso de posse que não havia preconceito nele, mas apenas administração. • P – Mas não era manipulação? Esse é o tipo de conceito que não serve. Precisamos entender o mais rápido possível que manipulação é o tempo todo e por todos, nada distingue. Se os parâmetros sumiram, o que estaria eu fazendo ao falar o que falo procurando encaminhar um pensamento? Pura manipulação. Não é pecado nem é sujo, só existe isso. Se não houver boa manipulação na cozinha, por exemplo, a comida resultará horrível. Várias palavras perderam o tabu e podemos entender que qualquer propaganda é sempre enganosa. É o “me engana que eu gosto” que nos habita por não suportarmos este mundo pesado em que estamos sem essa enganação. Estamos no tempo da pós-verdade, do pós-tudo, em que a ideia de mentira não vigora. E o que chamamos de Nova Psicanálise é pós-psicanálise. François Laruelle falou em não-filosofia, mas se trata de pós-filosofia porque os parâmetros teóricos não governam mais. Precisamos de parâmetros teóricos 67
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que sejam tão maleáveis, tão dispersivos, para lidar em nossa situação atual. É preciso, portanto, inventar ferramentas adequadas, as quais sempre terão limitações, mas não estarão configurando as formações, e sim lidando com elas. Tomem a história da psicanálise, mesmo em Freud, com Édipo que é figuradíssimo, e vejam a tentativa dos autores de configurar sintomas, uma nosologia – é tudo falso. Não conseguem deixar em aberto, pulverizado, e adhocmente lidar com a situação. • P – Não havia preconceito da parte dele? Essa é uma palavra difícil. Estamos acostumados a chamar de preconceito formações fixadas. Ao dizer que Trump não o tem, quero dizer que ele é uma espécie de Macunaíma, sem vergonha na cara, joga o que for necessário no momento. Se qualquer fato estiver empecilhando algo, ele dirá que não pode. Mais adiante, poderá dizer que pode. Os políticos da América não conseguem entendê-lo, para onde vai... • P – Já Obama é reconhecido como bom pela população. Ele é a fina flor do Terceiro Império bem-educado, finíssimo, sabe jogar com suas lutas políticas e afetações. Mas nosso momento não é aquele, não é possível tomar os parâmetros do passado para medir o que acontece hoje em todas as áreas. Já estamos dentro dos cinquenta anos de conflito de que falo, e depois ainda teremos duzentos para a implantação do Quarto Império. Aí é que haverá a busca por soluções compatíveis com o novo panorama. Repito, ainda não estamos procurando essas soluções, e sim correndo para atrás. Após essa corrida, após verificarem que não dará certo, correremos para a frente já tendo alguns pensadores apontando o que fazer. E Trump é a corrida para a frente em meio a essa porralouquice característica da entrada do novo Império. Esperem, por exemplo, para ver o que acontecerá na França com a Le Pen. Não importa se ganhará a eleição, e sim que isso já emergiu como jogo radical de diferenciação. E mais, voltar ao fechamento – fato que já ocorreu várias vezes na história – não é dar para trás. Na verdade, esse retorno é pulverização, a qual acontecerá em todo o planeta. Basta ver que a ideia de União Europeia é cristã, de Terceiro Império, de união dos irmãos. Não há irmão no Quarto Império, o que há é: os caras – é preciso saber como se faz com eles. Então, quero dizer que o Quarto Império está carregando Trump, e não o contrário. 68
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Espero que os EUA explodam por dentro. Eles já são meio explodidos, pois as leis dos estados não são as mesmas. Depois da pulverização, as redes topológicas é que se tornarão grandes partidos mundiais. Tal grupo pertencente à rede prefere tal coisa, tal outro prefere tal outra. E não será preciso de maioria alguma, pois os dois terão que ganhar espaços. Como fazer isso? Não sei. Não estou fazendo utopia ou defendendo o que acontece, e sim tentando entender como está acontecendo. Como imaginar uma diplomacia capaz de jogar bem com a pulverização? Notem que as próprias redes não são fixas, pode-se mudar de rede. Mas como as pessoas são sintomatizadas demais, certos sintomas duram. Não faço proselitismo, apenas suponho estar acontecendo assim e que a situação está indo nessa direção. Não há que tomar partido de ninguém, nem de analisando. Toma-se o partido da situação, ela amarra ali, não interessa qual seja. O analisando que se vire, pois o analista não pode se imiscuir aí. Já disse que analista é uma função que algumas pessoas podem exercer. Dentro dessa função, a pessoa não tem opinião formada sobre quase nada, a não ser os aparelhos que consiga inventar para poder lidar com a situação. Todos precários, aliás. • P – Mas não é muito difícil exercer esse governo das diferenças? Sempre haverá alguma formação hegemônica. Não é difícil, é impossível, como Freud já ensinou. Montar um comportamento tendencial é diferente de achar que vai fazer alguma utopia. Sempre haverá conflito. Acho que o futuro será tão ruim quanto é hoje, só que diferente, com outros tipos de produção. Apenas as moscas mudarão. O que haverá é: lucro. Funcionar em termos de Terceiro Império, por exemplo, tem muito lucro em relação ao Segundo, mas é a mesma vida, a mesma coisa. Basta lembrar que não suportaríamos mais viver lá. O grande conflito guerreiro do momento é entre a civilização cristã e a muçulmana, e notem que não há possibilidade de juntá-las. Por quê? O cristianismo é Terceiro Império puro e o Islã é Segundo, não dá para conversarem. Não se trata de diferença de gosto religioso, e sim de uma mentação impossível. O cristianismo até teria mais condições de entender o outro por já ter ultrapassado aquilo, mas o Islã não tem condição de dialogar. Então, não é para acreditar que um Império ultrapassa o outro, ele ainda carrega muita coisa dele. Basta observar que há multidões que ainda estão no Primeiro 69
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Império. O Império muda para quem pode, mas continua cercado de gente de Impérios anteriores. Tento enfiar a cabeça no Quarto Império e, se o pensamento da psicanálise sobreviver – talvez nem precise, a tecnologia também poderá substituí-la –, será preciso esse entendimento. Freud, não canso de dizer, é alguém do século XIX arrumando e organizando um pensamento dentro das possibilidades de seu momento. Lacan finge estar repetindo Freud, mas está carregando o pensamento para o século XX. Só que isso acabou. Vejam que, no fundo, isso tudo é um sofrimento. Quando me vi sem pai nem mãe, logo depois que voltei da Europa, voltei de Lacan, entendi mais ou menos o que estava acontecendo. Então, pulava fora ou tinha que fazer alguma coisa. Se notarem desde meus primeiros textos, verão essa tentativa de fazer algo. No meio, falei um monte de besteiras, justo por ser difícil sair. Hoje, tenho certa clareza porque o mundo está ficando como eu disse que ficaria. Não sou alguém que viu antes, e sim durante. Alguns veem, são antena, os demais não querem ver. • P – O que você quer dizer com pulverizar? É a diferença entre a concentração e a dispersão de formações. O pensamento freudiano é centrípeto: um aparelho bem montado e fechado, em que tudo conflui para o mesmo lugar. Lacan não consegue pulverizá-lo, mas abstrai: mantém, na teoria e na prática, as formações com nomes e comportamentos novos. Acabou, repito. Para a Nova Psicanálise, cada caso é um caso mesmo. Não é que cada pessoa que nos procure seja um caso, e sim que cada formação nela é um caso. Se observarmos o analisando desse modo, veremos que aquilo não junta. Jogamos com ele, e ele que se resolva. Jogamos para ele ter acesso. O que mais vemos são, por exemplo, duas formações constituintes de uma pessoa, que são poderosas e incompatíveis. Isso não pode ser resolvido por determinação política ou militar que exigirá que se escolha uma delas. O que se faz é sustentar as duas até que conversem. Se conversarem bem, quem sabe se não haverá uma terceira saída? As pessoas não são inteiras, o que lá há são formações que não se dão umas com as outras, nunca conversaram. Como fazer para conversarem? Temos que empurrar para onde é preciso articular. • P – Pulverização da diferença não é reificação da diferença.
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Não é. É deixar as diferenças comparecerem, e a governança daquilo terá que dar conta na diferença. São transas de formações. O processo é transativo, não é hierárquico. Do ponto de vista governamental, as formações diferentes têm que ser aceitas com o mesmo valor. • P – Esse jogo está na dependência do desejo de simetria? Todas as transas são dissimétricas. O desejo de simetria terá que entender o que é castração. Quando se deseja radicalmente a simetria, bate-se no não-Haver (que não há), o que repercute para cá e exige que a pessoa se manque.
8 Há pessoas aí com questões sobre o que falei da vez anterior. Gostaria de esclarecer para que possamos passar adiante. • P – Você falou em pulverização e mencionou Donald Trump. Acho difícil vê-lo nesse sentido, pois parece mais uma figura de contenção do processo de pulverização. As medidas que toma parecem regressivas: estabelecimento de fronteiras... Ele não sabe o que está fazendo, também não vê. É regressivo, mas, como eu disse, o que parece regressão, o que parece estar dando para trás, não é exatamente dar para trás. A aparência será essa. Estou esperando ver o que acontece com a Le Pen nas eleições francesas para isso ficar mais claro. Não estou torcendo, só esperando, pois a tendência é essa. Se, geograficamente, fizermos de conta que há um monte de países em algum continente – Europa ou algo parecido –, veremos as fronteiras desenhadas historicamente: vieram caminhando do passado e viraram essa estagnação geográfica de fronteiras com recursos legais e diplomáticos em que não se mexe mais. E aqueles que ali 71
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vivem estão plenamente sintomatizados em certa língua e certo comportamento cultural. Às vezes, são diferentes uns dos outros, mas a regra é: cada um dentro de seu quintal. A hipótese vencedora no século passado foi a formação de um pseudoestado capaz de arrolar os outros e ter algum tipo de legislação geral. Então, se for feito um contorno nos Estados para fazer um só – União Europeia ou coisa dessa ordem –, teremos que não há bem um governo central, mas há uma legislação comum. É contra ela que alguns países se rebelaram, começando pela Inglaterra. Vejam que é esta a mentalidade do século XX: para globalizar, é preciso fazer uma coalescência dos Estados que já existem. Como disse da vez anterior, a vontade de globalização é velha, antiga. Depois da Segunda Guerra, fundaram a ONU, uma figura decorativa que não faz o governo central de coisa alguma. Os Estados Unidos, no passado, fizeram sua guerra e unificaram os estados, o que já é algo dessa natureza. O Brasil, sobretudo por questões de fundação portuguesa, também montou um aparelho assim, tanto é que antigamente se chamava Estados Unidos do Brasil. O resto da América do Sul são países isolados que podem fazer uma instituição de transa diplomática, mas cada paisinho daquele é um. O Uruguai, por exemplo, era um estado do Brasil que se separou, mudou de língua. Pequenos estados fazem uma federação. Aqui temos o governo federal, que possui mais poder de comando do que os governos estaduais. Isso tudo é histórico e o que há são grandes blocos que se formaram no passado: América do Norte, Estados Unidos, Europa, Brasil, etc. Já havia uma figura de coalescência de estados para fazer um governo de segundo grau. A Europa é mais antiga do que as Américas, era toda separada e era o mundo que existia. Como entrou na mentalidade de globalização, resolveu que era melhor fazer um estado só de alguma maneira, mas nunca conseguiu. A União Europeia é um negócio meio proforma, com moeda comum, etc. A Inglaterra nem quis entrar nessa moeda, não cedeu. Houve também a URSS, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que já explodiu à medida que o governo central fracassou. Não explodiu porque a mentalidade de globalização lá tenha explodido, e sim porque o governo central faliu. A propósito, alguns autores contemporâneos dizem que essa coisa de direita e esquerda não interessa mais, agora é: junta ou separa. Há o pessoal a favor de juntar e o pessoal a favor de separar. Disse tudo isso para enfatizar o que nos 72
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interessa do ponto de vista do entendimento da mente da época: o século XX tem a mentalidade de aglomerar, de ajuntar. Nesse ínterim, aparece um processo diabólico – no sentido grego: ‘através do lance’ – de transa por via de tecnologia. Todos conhecem, estão usando e é um processo que vai crescer estupidamente: computador quântico... Será um choque para as pessoas, uma comoção geral, maior que a invenção da internet e essas coisas. Acontece, então, que a geo-grafia – com países, estados e suas fronteiras – começa a perder sentido à medida que as pessoas estão fazendo transas de interesse de grupo. Já há, portanto, um processo de separação em vias de ser conseguido e, se separarem demais, até lugares muito compactos como Estados Unidos e Brasil podem começar a querer forçar separações, com blocos de estados para um lado ou para o outro. Estados do sul do país já tentaram uma revolução de separação. Alegavam que eram ricos e não tinham que carregar o nordeste nas costas – estes que se danassem. Então, quero dizer com Pulverização que há um bando de cruzamentos que nada tem a ver com as fronteiras, e sim com redes que constituem quase que uma cidadania. Não sei se isso chegará a acontecer no futuro, mas poderão existir cidadãos dessas redes, de certa patota de rede, que não são definíveis por seus países, sequer por suas línguas. Se perguntarmos a alguém “quem é você?”, ele dirá que é de tal rede (que corre o planeta todo). Com o passar do tempo, as pessoas se considerarão não brasileiros, mas de tal rede. Podem ter nascido em algum lugar, mas sua referência já não será geográfica, e sim topológica. Mesmo que tenham passaporte francês ou brasileiro, a mentalidade está vazando as fronteiras. A suposição que faço quanto ao que vem por aí é que, quanto mais esse movimento acelerar, mais será possível que, na geografia, as coisas venham a se separar, rachar – ou seja, pulverizar por dentro. No Brasil, há décadas, uma vontade de separação está no ar. Nos Estados Unidos, com a zorra que o cara está fazendo lá, podem recomeçar a querer a separação de grupos. O que chamo de pulverização é a geografia ir borrando e a topologia tomar força. Assim como há a nuvem da informação em algum lugar, haverá a poeira das situações do planeta. Quanto tempo leva para pulverizar, não tenho ideia. A geografia ainda está valendo, mas até quando? E mais, suponho que haverá um momento em que a geografia parecerá ainda estar valendo, mas já não está. A recalcitrância 73
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sintomática pode continuar dizendo que alguém é francês ou inglês, mas não adiantará colocar alfândegas se for possível cruzar fronteiras pela internet. Como se faz uma alfândega topológica? Ou inventarão, ou nunca existirá. • P – No mundo do crime já é mais ou menos assim. Os presídios viraram escritórios. Políticos lá presos, por exemplo, estão com tecnologia e continuam dando ordens. Prisão é um raciocínio de sociedade geográfica. Ainda estão mandando. São semi-presos, não são todo-presos. Mesmo que confisquem seus computadores, recebem visitas de pessoas que levam as informações. É o que estou chamando de pulverização. Onde a pessoa estiver, estará cada vez mais conectada. O que estará valendo é a pátria da rede. Tenho a impressão de que, em algumas décadas, as redes se consolidarão como se fossem times de futebol. Ser “Flamengo” é ser de tal rede. Isso deteriorará as fronteiras. Vejam o caso do dinheiro, como acusar alguém de ter dinheiro na Suíça se a Suíça dele é aqui? Se está aplicando seu dinheiro numa rede que tem pé aqui, então não é fora, não é evasão de divisas. Ainda lidamos com o dinheiro da maneira antiga, mas já estamos vendo que o papel moeda vai desparecer. Então, é divisa de quem? Quem é o dono? É o que quero dizer com Pulverização. E se, depois disso, acontecer uma globalização, será da poeira, e não de aglomeração de estados geográficos. A poeira inventará um jeito de transa entre as redes – e, aí sim, vira uma globalização mesmo. • P – A constituição em rede já não é uma globalização? É começo, mas a geografia e os estados ainda mandam demais. Como fazer a extradição de alguém alegando que tirou dinheiro daqui e colocou na Suíça? Aliás, a própria Suíça perdeu a graça por estar entregando os nomes dos que lá aplicam. Entrou no roldão da rede financeira de denunciar por ainda estar valendo o jogo geográfico de que “tal dinheiro veio do Brasil, logo é brasileiro”. Mas a pulverização acontecerá com a nacionalidade das pessoas, que podem ser de origem brasileira, ter nascido no Brasil, falar português, mas estão tão promiscuídas na rede que perdem o pé, estão em outra, não têm como se encontrar brasileiras. Têm cacoetes de origem como a língua, mas se a comunicação ficar veloz demais, o que acontecerá com as línguas? Já notaram que o português acabou, que estamos falando outra coisa.
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• P – O que se pratica no Brasil, embora se chame de língua portuguesa, já produziu tanta estranheza dos pontos de vista fonológico, morfológico, sintático e semântico que praticamente se caracteriza como outra língua. É como a família, que ainda chamamos assim, mas está desconfigurada. Estruturalmente, a língua também já tem outra configuração: desaparecimento do subjuntivo, unificação do quadro pronominal e do quadro das concordâncias, utilização da regência, das preposições... O que mais me irrita é o uso do objeto direto e do indireto. • P – O objeto indireto sumiu, tudo virou direto. Por exemplo, o pessoal diz: “o filme que eu gosto”. Não se diz mais “de que eu gosto”. O erro acabou, não falamos mais português, e sim neoportuguês. Na época do Império Romano, o pessoal das altas camadas falava e escrevia em latim clássico, e a massa embaixo falava errado segundo os de cima. Aí virou latim vulgar. Depois, aquilo começou a se pulverizar e virou as línguas neolatinas, que, por sua vez, começaram a ter vários pequenos regimes diferentes, os dialetos. Então, do ponto de vista linguístico, a coisa está se pulverizando há muito tempo e continuará a se pulverizar. Hoje, no Brasil, a televisão está equalizando tudo e vai pulverizar nos detalhes. Antes, saíamos do Rio para o Nordeste, a língua podia ser a mesma, mas a fala era outra. Não mais. Assim, no futuro, para tal caso, estaremos numa rede, para tal outro, em outra. É o que chamo de mentalidade ad hoc, que está se montando no mundo. Não se pode predefinir nada, pois depende da ocasião, da transa. As pessoas terão que se acostumar com o fato de que lidam com as coisas e tomam decisões para cada situação, cada problema. Como, durante décadas, isso será incompatível com o que está assentado, podemos imaginar a zorra que se criará. O sistema mundial ainda está geográfico, com códigos jurídicos diferentes, etc. • P – Já temos a deep web, que é o submundo da internet. Lá há comércio de pedofilia, tráfico de órgãos, de armas, etc. Vejam que é a dissolução radical. É preciso estudar isso. Vão se criando redes, sub-redes e meta-redes, que começam a ser a referência de existência dessas pessoas. Não é mais o caso de alguém se dizer francês ou brasileiro porque efetivamente não é. Ele é um troço que apenas está dentro daquela geografia. Se uma globalização plena, daqui a uns séculos após a entrada do 75
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Quarto Império, dissolver todas as fronteiras no sentido de livre passagem, de não haver guardas, onde alguém morará? Depende. Na pulverização, o vento bate e a poeira se modifica. Acabou a estabilidade pelo menos aparente que vigorou até o final do século XX, e jamais haverá de novo. Só se destruírem a tecnologia. As estabilidades sumirão. Então, como será a economia de um lugar sem estabilidade? Terá que lidar, por exemplo, com pequenos estados de redes flutuantes, com as pessoas novas, nascidas daqui a cem anos para já entrarem nesse ritmo de jogo. Temos um jogo ainda todo amarrado. Por exemplo, até o final do século XX, tinha-se a obrigação de ser macho ou fêmea, masculino ou feminino. Esse pedaço já acabou. A pessoa não está mais presa à geografia de seu corpo, e sim à topologia de seus tesões. Notem que, para arrumar isso, há aparentes retrocessos. O casamento gay é um, pois, ao invés de insistir, era preciso acabar com o casamento velho. Retornando ao caso Trump, parece um retrocesso, mas não é. É um jogo com a rede do mundo, na tentativa de fracionar. Ele está fracionando, separando e conseguindo algo com que não sei se contava (parece que não): ao fazer esse jogo, os estados passaram a fracionar. Há o grupo daqueles que querem determinada lei e outro grupo que não quer. Isso é lento. A não ser que já haja estudiosos acompanhando isso hoje, ainda é muito difícil mapear. O fracionamento não tem cara própria. Não há um único jeito de fracionar, e sim vários. • P – Uma IdioFormação pode ser pulverizada? Já está pulverizando. Os ignorantes parecem não saber, mas a vantagem do pensamento psicanalítico desde sua fundação por Freud, partindo daquele melê do século XIX, é tratar do singular. Por que Lacan dizia que a psicanálise é a ciência do singular? Porque não é possível fazer grupos de analisandos. Alguém tem grupo de analisando histéricos? Obsessivos? Não existe isso. Cada um é um caso. E é misturado. Então, como jogar esse jogo diferente? Quem sabe jogar esse jogo é a psicanálise. Se os ditos psicanalistas não forem umas bestas, já estão submetidos a uma ordem de pulverização de sintomas. Na prática do analista que tenta sê-lo, cada pessoa que atende é outro universo. Se alguém chega a essa posição mental de psicanálise, ou seja, da função psicanalista – que não é uma pessoa –, já está no exercício de não generalizar seu consultório, de ver que é uma zorra de poeira. Está tudo empoeirado. 76
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E mais, quem consegue chegar a esse lugar, tem vertigens. Sai uma pessoa, entra outra e passam-se alguns segundos para sintonizar com aquela estação. Muda-se de estação, dá vertigem. • P – Às vezes, num caso há dois casos. Acontece. • P – Por isso Deleuze gosta da palavra esquizo? É uma ideia de divisão. Não gosto da história da palavra, pois nada disso tem a ver com esquizo-frenia. Na mesma época em que Deleuze usou essa palavra, escrevi um textinho falando em Esquizousia. Aí é possível usar esquizo como separação, mas não frenia. Intitulei Alffabbetto e Esquizousia: Tal Espaço Tau (1972) para mostrar esse quebra-quebra. O modelo não é a esquizofrenia, a paranoia ou a histeria – são modelos que foram para o brejo –, trata-se de formações. Não há neurose, e sim Morfose (Estacionária, Regressiva e Progressiva). É preciso ficar medindo os movimentos da pessoa: para um lado, para outro? Observem, por exemplo, os movimentos atuais de estado e cultura que parecem Regressivos, mas que, segundo o sistema novo, não o são. São, sim, Progressivos – e é isso que precisa ser entendido. Não sei se o “Trampo” junta coisa com coisa, mas, querendo ou não, está fazendo isso. Do ponto de vista da história da América, parece estar regredindo ao querer fechar, mas o que diz é: “Acabou esse papo. Não sou presidente do mundo, e sim dos Estados Unidos, o resto que se dane, que se vire”. O que nos importa é que, com sucesso ou bagunça, está pulverizando. • P – Estou lendo o texto de Deleuze sobre Bartleby, de Melville. Diz ele que, nos Estados Unidos, há nos escritores, na política e na história do país a ideia da federação, do múltiplo, o que seria o contrário da Europa. É uma nação de imigrantes, onde não pesaria o nome da família, pois todos são estrangeiros, meio forasteiros. Há no pensamento americano a ideia da estrada, on the road, de estabelecer novos laços... Como disse, a mundialização começou bem antes. Já estava em Colombo. A Europa pensava que existia sozinha, mesmo sabendo que havia uma Ásia, meio esquisita. Eu diria que os heróis da mundialização são os portugueses, e não os espanhóis, não é Colombo. 77
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• P – Os Estados Unidos não tiveram rei. Tiveram sim, como nós. O deles ficava na Inglaterra. O que têm é uma pulverização de estado maior do que a nossa. As leis de cada estado diferem, eles respeitaram essa diferença. Aqui, a lei é a mesma. Algumas leis estaduais são bobagem, não modificam muita coisa. Vocês devem ter lido no jornal que Caetano Veloso está fazendo show no Uruguai. Aí, Paula e um amigo foram para a rua fumar maconha e mandaram um e-mail para o Brasil dizendo o que fizeram. Ou seja, a pessoa dá um pulinho ali do lado e dá um dedo para os brasileiros e para a polícia. Esse aspecto de pulverização dificilmente ocorrerá no Brasil, pois aqui um estado não pode fazer uma lei de permissão e outro não. Isso não existe na constituição brasileira. De vez em quando, pode parecer que tudo se junta de novo aqui, mas só é porque o pessoal tem cagaço do movimento. Qualquer movimento é algo amedrontador para as pessoas, tudo tem que ficar parado, pois a neura vencedora é a Estacionária. Mas a coisa está andando, não tem mais jeito. Vão parar toda a tecnologia? Não interessa a país algum. A tecnologia vagabundinha que usamos é decorrente da alta tecnologia de foguetes, de guerras, é lá que está o troço. Já se está tentando fugir do planeta, fazer uma colônia não sei onde. Não conhecemos a alta tecnologia, não temos seu uso, está em outro lugar, com os generais americanos, mas não está aqui. Há mesmo uns malucos dizendo que, na topologia da Terra, os buracos de minhoca são localizáveis e que, se a tecnologia conseguir mapeá-los, não haverá mais isso de viagem longa, de ir para o espaço: entramos aqui num buraco de minhoca e saímos em outra região desse universo ou em outro universo. Eles pretendem sonhar – pois é sonho – em como controlar a tecnologia de modo a entrar num buraco de minhoca, descobrir como se fossem o Cabral aonde vai dar a calmaria, chegar ao novo mundo e então voltar. Então, essa história de buraco de minhoca que parecia um delírio de Einstein, parece ser algo navegável. • P – Progressivo seria aquele que lá foi e ficou. Mas há negócios. Pode-se lá descobrir que estão interessados em um negócio que tem aqui. Então, vamos negociar. A nuvem é lá em cima e a poeira cá embaixo. E como se vive num lugar em que se troca de universo? Como é a cabeça capaz disso? Que cabeça lida com isso com simplicidade? Como é a mente de alguém que convive nesse tipo de situação? Tenho para mim que, 78
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para quem convive com isso, a situação é capaz de destruir a possibilidade do Estacionário. Não há como estacionar, ou, se não, o estacionamento é mínimo. Isso já aconteceu na história. Se tomarmos as histéricas que proliferaram até o século XIX, veremos que aquilo acabou, não se encontra mais. Talvez em igrejas Universais, no candomblé, ainda haja uma meia dúzia delas dando chiliques, mas é tudo procurado. No genérico sumiu. Quem destruiu o ataque histérico, onde ele se dissolveu? Na prática do mundo algumas barreiras caem sozinhas. O recalque desapareceu porque o mundo mudou. Tais recalques sumiram. Pulverização é isso. • P – Em termos a Teoria das Formações, poderíamos dizer que o Estacionamento se dissolveu por ter havido conversa entre duas formações que até então se mostravam incompatíveis. É uma afirmação de tudo. Tudo é afirmativo. Na mesma pessoa nos deparamos com duas formações tão incompatíveis que ela fica dilacerada ou perdida. Então, se corre para um lado, cria um caso, se corre para o outro também cria. Como fazer? Não adianta fazer uma escolha e dizer que tal lado está errado e tal outro está certo. Isso seria ideologia do analista. Cabe, sim, mostrar que existem duas formações que têm que conversar, ou juntadas numa só. O analisando, então, que se vire, pois o analista não sabe – tem que vir a saber – como se faz para transar com duas formações de vetores opostos. Como não se juntam e caminham, uma fica pressionando contra outra. Cada formação é recalcante da outra e vice e versa. É uma situação em que a pessoa se sente muito mal. É sintomaticamente pesado para ela. Como fazer? Freud já provou que o Inconsciente não tem não. Não é pragmático, é do mundo. O Inconsciente é tudo sim. É como o conceito mais abstrato que fazem de Deus. Se há um Deus onipotente, isso tudo é d’Ele: o cocô e o ouro. É tudo divino e maravilhoso, como está na musiquinha. Por isso, os gnósticos resolveram contestar o deus que estava no poder da Igreja. Diziam que era um deus menor, que toma partido, mero demiurgo. Mestre Eckhart, sem se chamar de gnóstico, fez a definição mais bacana (e imediatamente quiseram colocá-lo na fogueira, mas, sabiamente, morreu antes). Para ele, Deus é um princípio ativo dentro de nós, que só tem sim. O nome disso é: Inconsciente. A igreja católica sempre foi maniqueísta e seu deus não pode ser um Deus – é, sim, no mínimo, um babaca, um Trump. O processo de invenção da divindade 79
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em mestre Eckhart é algo supremo, é psicanálise pura. Leiam seus Sermões e o verão em processo de levar o Deus à altura do abstrato radical – e consegue. • P – O problema é que as formações entram em guerra. As formações, separadamente, encontram formações incompatíveis por serem sintomáticas. Toda formação é sintomática. Não há uma definição isolada de sintoma. Se é formação, é sintomática. Seus efeitos são sua própria constituição. Como resolver quando há duas formações incompatíveis? É preciso partir para uma terceira. Elas têm que conversar e ajeitar uma terceira formação, uma nova ideologia de sobrevivência, uma mudança de entonação ideológica. E como a psicanálise pode resolver isso nas pessoas? Operando de tal maneira que possam ficar à vontade em um terceiro lugar que não é nem uma coisa nem outra. Acho isso possível. Há um “sacrifício” prévio por parte do analisando. Não é sacrifício de uma formação ou de outra, e sim o de dissolver, pulverizar sintoma. Aí ele fica livre para escolher um teatro, fazer um teatro novo, uma peça nova. • P – Em termos de Teoria das Formações, você disse que a privacidade não é necessária. Para a análise, não, mas é necessária para o mundo. A privacidade em análise não é para análise, é para o mundo. Quando acabar a privacidade do mundo, faz-se o quê? • P – Há também a questão do sigilo. Não há sigilo para a psicanálise. A única coisa que interessa é: se a pessoa confia em que há sigilo, ela é capaz de se abrir. Suponhamos que o mundo acabe com o sigilo – e suponho que, um dia, vai acabar: se encontrássemos uns ETs que estejam três milênios à nossa frente, veríamos que são transparentes, neles não há a menor crítica do outro, não lhes é possível fazer crítica, pois o macaco olha seu rabo –, não se poderá fazer crítica ou comentário da diferença. Isto se chama: Diferocracia. É possível, sim, tentar governar a diferença. Ou seja, se a pessoa tem um sintoma de que não quer abrir mão, mas que é prejudicial para o outro, cabe uma intervenção não no sentido de falar mal daquele sintoma, e sim de coibir sua ação sobre os outros. Isto, com todo respeito. Já imaginaram um mundo assim?
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• P – Seria de grande transparência, mas de grande respeito. Quer dizer, tem-se a contrapartida. Já escrevi: Chega de amor. Amor é um troço venenoso. • P – O psicanalista aí funcionaria – se é que haveria um – para orquestrar o teatro das situações? Nem isso. Nada tem a ver com o analista, que apenas está colaborando com o outro para ele tratar de suas formações. Ele nada tem com aquilo, não é de sua conta. • P – Você já disse que a Diferocracia, essa transparência, não se instalará para todos. Nada se instala para todos. Basta ver que estamos lidando com multidões de Primeiro Império até hoje. Tomem aquela moça chamada Nossa Senhora: há Nossa Senhora de tudo para segurar o Primeiro Império. No século XII, a Igreja saca que uma massa ainda estava no Império da Mãe, então inventa uma Virgem Maria. Faz isto por não estar conseguindo trazer o pessoal recalcitrante do Primeiro e do Segundo para o Terceiro Império. Acha melhor dar uma mãe para eles.
9 • P – Você disse que texto teórico com muitas páginas não é sério... Uma obra decente tem no máximo cem páginas. • P – Vila-Matas diz isso em História Abreviada da Literatura Portátil. Ele aprendeu com Duchamp. Também acho. O resto é lixo. 81
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• P – Tenho em mãos Arte & Fato, livro seu de 1990, com seiscentas e vinte páginas. Caramba. Não pode ser bom. Tem que ser igual a Wittgenstein, que só fez um livro, o resto é falação. • P – E algumas desdizendo o que fez. Isso é muito bom. • P – Por que a NovaMente se viu na exigência de fazer uma Tópica nova, a Tópica do Recalque (1992)? Isso é emergente e emergencial. Que situação de mundo exige isso? E como se constroem os entendimentos da razão dessa tópica, que não são os pregressos? Penso que, num tempo de aceleração da diferenciação e da multiplicidade, quanto mais se diferencia, mais é necessária a precisão. Isto porque começa a emergir o caso: a situação específica da formação, e não da Pessoa ou do grupo. Então, no seio mesmo da generalização e da pulverização, a precisão se torna cada vez mais exigida. Trazer o Primário, por exemplo, como precisão dentro da Tópica é uma resposta a isso, a atender à precisão dessa formação. Inclusive com um Secundário que, por conta mesmo da aceleração, vem mostrando que se começa a transcrever o Primário, a ler com maior precisão suas movimentações. E mais, a evolução tecnológica, consiga ou não, na verdade, tem a intenção de substituir o Primário. Por isso, tem que conseguir lê-lo. • P – Substituir e melhorar. Substituir e melhorar de ida e de volta. Não só tomando o Primário e transcrevendo para o Secundário, com o que se pode produzir maquinismos de equivalência, mas também o outro lado: já que se conseguiu ler e intervir, voltar para cá e modificar o Primário. Isso borra as fronteiras. Qual será a definição de vida nessa situação? • P – Um Primário modificado é Primário ainda? Questão difícil. É uma imitação, uma mimese produzida mediante Secundário. Suponhamos um planeta em que qualquer espécie bios já tenha sumido. O Primário deles é aquilo, é o que tem. Qual é o Primário do computador? É o que chamam de Hard. Vejam que as fronteiras vão se apagando. O Primário genérico costuma ser espontâneo e, pelo que sabemos, é de carne, algo assim, de base carbono, nunca vimos outro. Entretanto, com a entrada do 82
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Originário, o Secundário vai tomando posse, invadindo tudo de tal modo que, se for produzido um robô quase completo, i. e., quase igual a uma Pessoa em termos de competência, de performance, será um Primário novo. • P – Nesse caso, ainda poderíamos falar em Autossoma e Etossoma? Sim. Mais ainda que no outro caso, pois isso é nítido no computador. Os programas e aplicativos nele inseridos são seu Etossoma. O computador se comporta mediante o Etossoma que lhe for emprestado. • P – Instalados os programas, os softwares, no Hardware, eles seriam o Secundário da máquina? Acho que não, pois para ter esse Secundário, terá que ter brotado nela o Originário. E ela produzirá seu próprio Secundário, que certamente não será o nosso. Sim, mas se, no futuro, um maluco conseguir um computador com Revirão, aí teremos uma Pessoa. Será um computador que ganha autonomia a partir da inclusão de um Revirão. O que está acontecendo na entrada do Quarto Império é as fronteiras se tornarem inúteis. Por que eu disse que o Quarto Império é Oespírito? Não tem espiritismo aí, são simplesmente: os processos comunicacionais, não importa onde estejam, numa pessoa de carne e osso ou de lata. É plausível pensar em alguém, daqui a um tempo, sentado diante do computador conversando com ele. Ele não está perdido, e sim conversando. Isso, pensado num tempo anterior, seria considerado coisa de maluco. Mas onde está a fronteira entre isso e o psicótico que, há cem anos, conversava com alguma máquina? Onde fica a fronteira entre loucura e não loucura se a loucura está instalada, está se tornando concreta? É possível, daqui a algum tempo, haver um computador delirante. Nada impede que, se um computador ganhar autonomia, comece a delirar. O que fazer com ele? Qual remédio lhe dar? As pessoas, hoje, já estão metidas na coisa, mas não estão visualizando que está entrando outra Era – que chamo de Quarto Império – em que as fronteiras, em todos os sentidos, têm que desaparecer. O que vale é a transa entre os processos. Como mostrei da outra vez, passa-se por cima de qualquer coisa, da ideia de País, etc. Isso tudo vai ficar muito frouxo. Pode não acabar do ponto de vista decorativo: o mapa lá está, quem nasce em tal lugar é isso assim-assim – mas não é mais. E mais, a comunicação acelerada destituirá as línguas. Com o uso frequente de máquinas de tradução, a língua de alguém ficará completamente 83
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invadida pelas outras. Duzentos anos é o tempo de implantação disso. É o que Joyce apontou com Finnegans Wake, um texto de Quarto Império. Está tudo misturado lá, até em português. A diferença que haverá é gíria, jargão, não é língua. Vai ficar um linguão esquisito, e os lugares terão jargão. • P – Há, atualmente, modos condenados pelos gramáticos como o chamado gerundismo: “eu vou estar verificando, eu vou estar comprando, eu vou estar encomendando...” Dizem que é importação do inglês: “I’ll be thinking”... Não é só a importação, e sim reformação radical da língua. Aliás, acho bacana, pois, há tempo, escrevi um texto intitulado Gerúndio (1973) que quer dizer: a geração permanente. Estou gerundiando... Por outro lado, Oespírito é a hegemonia da transação informativa. Espiritual é isso: a secundarização radical, quase sem encosto algum no Primário. Temos, por exemplo, que entender o que se passa na cabeça de alguém que escreve um troço como o Finnegans Wake (1939), que está fora de época, está lá na frente. Lacan achou que fosse psicose, mas não é. São poucas as pessoas que, como Joyce, enxergam (não o que está lá adiante, e sim) que, pelo andamento da carruagem, vai chegar em determinado lugar – e elas dizem o que viram. Todo grande criador é isso, não está à frente de seu tempo. Ninguém anda à frente de seu tempo, o que consegue é supor que, dado que a situação está assim, ela dará acolá. E daí começa a descrever aonde supõe que dará. Às vezes, dá lá. Acho que Joyce acertou na mosca. • P – Ele levou dezessete anos escrevendo o Finnegans. É um parto dificílimo conseguir dizer o que está pensando. E geralmente resulta num grosso volume. Conseguir dizer em poucas páginas é um esforço muito grande. • P – Em sua tese de Doutorado (1979), você estudou Guimarães Rosa. Seu raciocínio foi que, primeiro, ele escreve Grande Sertão: Veredas (1956), com quase quinhentas páginas, para, só-depois, conseguir chegar às Primeiras Estórias (1962), com cento e oitenta. Ou seja, as primeiras estórias chegam concisas é no final. Essas seriam as Primeiras se tivesse conseguido escrever a tempo, mas teve que passar por um monte de escritas para conseguir chegar ali. • P – Uma bela frase de Rosa é: “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”. 84
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E se não soubermos navegar a barquinhos de papel, não atravessaremos o Atlântico e descobriremos o Brasil. Primeiro, foi necessário navegar a barquinhos de papel. • P – O fato de hoje estarem testando carros sem motoristas, por exemplo, pode ser considerado uma visão do que está por vir? Coisas como essa são bem menos difíceis do que se imagina. Depois que alguém faz, é simples. Mas antes, ele está atolado em sua neura e não consegue dar um passo. Além disso, qualquer grande formação sintomática tem característica de neura, é igualzinho. Então, o difícil não é pensar isso, e sim largar de pensar o que está atrás. Começamos a funcionar repetindo as porcarias prévias. • P – Existem ainda aqueles que insistem em salvar o Primário carbono. Estejam à vontade. Tudo vale, por que não? Só acho difícil, pois o Primário carbono não viaja bem. Se for enviado para as estrelas, apodrece no caminho. • P – A carne é fraca. E agora está comprovado que é. Se houver uns ETs passeando por aí, qual é o Primário deles? Suponho que não seja carbono, pois estraga fácil. Como sabem, estou fazendo apenas oitenta anos, e está tudo estragado, é uma miséria – e nem aprendi nada direito ainda. • P – O Secundário não é adequado a esse Primário nosso, ou vice-versa. Se o Secundário acelera, o Primário não aguenta. Ele fica doente. É muito esforço para o macaquinho pensar um pouco além. Sabe-se que o trabalho chamado intelectual, cerebral, é mais cansativo do que qualquer outro. O desgaste fisiológico é maior. Aí a pessoa adoece de pensar besteira. • P – Nietzsche falava na Grande Saúde – mas adoecemos. Quando chegará a Grande Saúde que permite todo mundo ser Nietzsche? • P – Sabe-se que o fôlego no pensamento, às vezes, conversa com o fôlego nas outras áreas da vida da pessoa. Uma coisa auxilia a outra. E alguém travado no pensamento, fica travado na vida. E há que romper, passar por cima. Algo difícil de entender é que a análise não pode fazer mais para uma pessoa do que conseguir trazer à tona, 85
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como diz Lacan, “significantes” recalcados, etc., e fazer o entendimento de sua situação. Ela só chega até aí, e o que fazer com aquilo depois? Onde está a coragem de “já entendi, portanto, é assim que vou agir, que vou pensar”? A maioria faz análise, tem uma noção do chamado “si mesmo” e lá fica, não tenta romper, passar por cima das formações solidificadas. São neuróticos. Passar por cima é no tapa. Freud chamava de perlaboração, mas é mais do que isso, a pessoa tem que ir lá. Quando estava em Paris, assisti ao filme Para Além do Bem e do Mal (dirigido por Liliana Cavani, 1977) sobre a relação de Nietzsche, Lou Salomé e Paul Rée, que achei interessante por vê-los invadindo a própria alma com a frequentação de lugares excluídos. Eles foram lá. Nietzsche entrava em pânico, Lou era muito sacana e pouco se lixava. Como se vai lá? A análise não oferece isso. O que pode dizer é “vá à luta’’, mas não tem esse exercício. • P – A Análise Efetiva implicaria esse exercício? Se for muito longe, sim. Mas pode ser uma Análise Efetiva com certo cagaço, como todos temos. • P – Você fala do analista que faz uma “cirurgia em si mesmo”. O que não é fácil, e não se vai muito longe. Já imaginaram, por exemplo, a cabeça de um Rimbaud? É um caso para estudarmos. Paul Verlaine era o poeta todo encagaçadinho, todo francezinho, e Rimbaud passava por cima dele. Passou por cima da literatura da época, e com dezoito anos (não começou, mas) parou de escrever. Então, depois daquilo tudo, terminada essa fase, fez o quê? Foi ser contrabandista de armas na África. Ou seja, quis ir lá dentro ver como é o lixo – e ganhar dinheiro com aquilo. Que cabeça esquisita. • P – Então, como você define o Primário? Se defino, já estou no Secundário. Portanto, não posso definir o Primário fora do Secundário. • P – Parece, às vezes, que não é só uma questão de borramento de fronteira, de tópica. Às vezes, é possível entrever um desaparecimento do Primário por invasão do Secundário. Pode acontecer, mas tem maluco para tudo. É possível haver uma região qualquer do universo, onde o pessoal andou tanto que a última produção é o Primário de carbono perfeito. Isto porque tudo retorna. O Secundário começa a tornar o Primário atual desnecessário. Mas, depois, como os cientistas são 86
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loucos, ficam com nostalgia daquela formação e vão querer criar um antigo Primário muito bem feito. • P – Mas a espontaneidade, a produção espontânea, não faz parte da ideia de Primário? Por isso, chamei de Neo-Primário. O Secundário dá a volta e quer imitar o espontâneo mediante o artifício. Isso gira, já temos hoje muita imitação do espontâneo. A tecnologia tem uma porção de pequenas imitações do espontâneo, mas que não têm autonomia porque não reviram. Se conseguirem – quem sabe mediante qubits, algo assim – instalar um processo de reviramento, surgirá a autonomia. • P – A ideia de gozo está ligada a prazer, a satisfação? Não necessariamente. • P – Mas a gente só goza no Primário? Não. Por exemplo, você agora está aí gozando no Secundário. Está masturbando o Secundário numa boa. • P – Então, o gozo pode ser sem qualquer base primária? Sim. Não precisa necessariamente ser esse sequestro violento que é a sexualidade submetida à ordem da reprodução. Se alguém passa pelo objeto certo, fica louco, não sossega enquanto não comer. É um sequestro dessa maquininha que está pouco se lixando para a pessoa, pois só quer se reproduzir. • P – O que pega aí? Já expliquei n’O Pato Lógico (1979): Excitação, Incitação e Recitação. É o diálogo de formações. Não tem nenhum querer. O terrível é isso: a pessoa está eroticamente sequestrada por algo, pode lutar muito para conseguir esse algo, mas o mérito dessa luta é pequeno, pois ela está lutando a favor de uma compulsão. Há mesmo alguns loucos – às vezes, abominados pelos demais – que querem lutar ao contrário, não se deixar sequestrar. Muitos deles estão nas chamadas religiões, na Índia, etc. Submetem-se a práticas como a do celibato, no cristianismo. O pessoal aí não consegue muito, é uma putaria, mas o celibato traz a ideia de não ser sequestrado pela ordem reprodutiva. É uma guerra contra o sequestro do sexual primário. É bem interessante, nada tem de inferior. • P – A Mística seria isso?
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É um pouco melhor. É um exercício de transcendentação total, até do Secundário. Sempre recomendo a leitura dos textos de Mestre Eckhart, que é brilhante, nem parece um místico, e sim um intelectual. Trata-se de não se deixar sequestrar pelo Primário ou pelo Secundário. É difícil como o diabo. Em termos de Budismo, por exemplo, quer-se paralisar o gozo no Secundário. Em última instância, mediante a meditação vai-se acabar o pensamento, estar em suspensão total. • P – Trata-se aí de suspender qualquer desejo? Não. Qualquer articulação está em suspenso. Querem paralisar o Secundário. Duvido que consigam, mas, às vezes, chegam bem longe. O interesse da psicanálise é ter disponibilidade, o que também é muito difícil. Uma coisa é comportar-se no mundo de acordo com as exigências do mundo para não se ferrar. Outra, é ter disponibilidade mental, não fazer apenas porque a polícia lá está – pois, se não estiver olhando, faz-se. • P – Há que conhecer vários protocolos. Porque são meros protocolos inventados por alguém e que foi imitado pela macacada, e viraram um sintoma coletivo. Por exemplo, como se formou a ordem jurídica no mundo? Se considerarmos desde os homens pré-históricos, veremos algumas pessoas com poderes excepcionais que, por serem mais fortes, por exemplo, resolveram na porrada organizar o mundo segundo sua vontade, e isso foi crescendo, crescendo... Então, são apenas protocolos de regime de convivência, mas, por repetição, aquilo se torna sintomático. E a pessoa deixa de estar referida a uma lei por estar referida a seu sintoma. É claro que não se pode ter uma sociedade sem limitações, mas, se nos referirmos à Diferocracia, cabe a pergunta: a limitação precisa ser sintomática? Não pode ser simplesmente secundária, e a obedecermos por mera conveniência? A humanidade tem que caminhar muito para conseguir tratar as questões caso a caso. Isto porque as coisas se dão no regime do sintoma. Qualquer código jurídico foi produzido sintomaticamente, e entra na cabeça dos juristas sintomaticamente. Ou seja, no fundo, vira moral.
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10 • P – Há o relato de uma analisanda que mencionou a Gestapo a propósito de um sonho. Lacan se levanta, acaricia seu rosto e diz: Geste à peau. Para ele, trata-se de equivocação. Este é um movimento parecido com a Indiferenciação? A equivocação de Lacan é, sobretudo, linguística. É um geste à peau só para equivocar a moça – pois, quando a Gestapo entra na casa dela, não tem carinho. • P – Mas, no que se mostra o outro lado, não se indiferencia? O primeiro lado perde a força. Será? A equivocação, em Lacan, depende de uma escuta que se surpreendeu com uma frase que, para ela, perdeu o sentido e ganhou de novo. Não é comum ouvirmos algo e estranhar, pois ouvimos de outro lugar, com outra significação? Às vezes, com outra significação permitida pela língua? Nos confundimos porque a língua equivoca. Isso não é o mesmo que uma postura de Indiferença. Esta é como se – e acho que vou falar besteira, mas é para ser didático – equivocássemos antes ainda de escutar: “Estou fora, não sei o que foi dito”. Lacan não tinha Revirão, tinha apenas a equivocação. Aliás, em geral, usa-se o termo de modo errado, como se fosse um erro. Equi-vocar é: vocar com o mesmo peso. Lacan não está na postura de dar o mesmo peso ao que ouve. Para ele, mediante a língua, o dito do outro bate em equivocação. É para isso que chama a atenção. É um pouco mais barato do que Indiferenciação. Esta é mais cara, dá mais trabalho, é mais difícil. • P – Podemos dizer que, do ponto de vista da Teoria das Formações, quanto àquilo que bate com deslocamento por via linguística, não sabemos que outras formações estão ligadas, as quais podem tornar a equivocação inerte, perder a força? Há que continuar, insistir, ana-lysis, quebrar a força sintomática para abrir espaço para o exercício de Indiferenciação. A análise, então, precisaria ser mais invasiva e, se for o caso, solicitar um exercício de Indiferenciação. 89
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Há algo aí que não pode ser dito. A análise não tem que ser invasiva, ao contrário, tem que se retirar. Invasivo é Lacan. • P – Mas o movimento da ana-lysis não invade a formação e a quebra? Ela se desmonta por ter sido co-movida, vai se quebrando em pedacinhos. Isso não depende de alguma postura do analista, e sim do próprio acontecimento. Não é porque o analista faz uma coisa invasiva. • P – A Indiferenciação seria, então, mais do ponto de vista da posição do analista? Sim. E o que vai gerar é outra história. Vi Lacan fazer isso várias vezes. A meu ver, é algo espontâneo na escuta, mas é linguístico demais. Equivocação é: tomar o que você disse e mostrar que o que você disse não é necessariamente o que você disse, é outra coisa. • P – Não é necessariamente o alelo oposto? Não. É outro sentido da coisa. O maior perigo dessa formulação de Lacan é ter virado brincadeirinha de ditos analistas, que ficam tomando e “equivocando” as palavras. Na verdade, são imbecis. Não se pode dizer nada que escutam outra coisa. Isso não funciona. Um dia, o analisando se dá conta e ele mesmo faz o chiste, não precisa do analista. Mas há que lembrar que Lacan estava no olho do furacão estruturalista e linguístico. E também lembrar que se trata de work in progress. Se não acompanharmos os movimentos do autor, não saberemos o que está pensando. Ele pensou uma coisa, depois verificou que tem um passo a mais. Se prestarmos a atenção, veremos que o Lacan do começo não tem a ver com o do fim. Do ponto de vista teórico, até a equivocação ele largou. Não tinha mais a equivocação, era um processo radical quase de nadificação. • P – Mas, mesmo na postura indiferenciante, um dos atos analíticos não seria equivocar? Pode ter algum efeito. Não é obrigado. Pode-se dar uma pequena rasteira no analisando confundindo-o um pouco, mas isso é o bobajal cotidiano da análise – análise também tem besteirol. O que importa, pelo menos em nossa reflexão, é a Postura do Analista como Indiferenciante. Há quinhentas maneiras de ela funcionar. Não se trata de ficar atento a um discurso cuja língua permite, ou produz, equivocações sérias. A Indiferenciação é mais grave: é a Postura permanente do analista, que pode gerar n coisas, até o silêncio. Quero 90
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dizer que, em última instância, o que importa é a Formação do Analista. Não gosto desse negócio de “técnicas de psicanálise”, pois, ao contrário, é a arte que virá a partir da Postura de Indiferenciação. Dou um exemplo: o analisando pensar que está sacaneando o analista, na medida em que joga nele o sintoma de rejeição que ele, analisando, tem. É comum isso de dar uma rejeitada no analista por precisar resolver seu problema com a rejeição. Talvez até para saber o que o analista fará com aquilo. Como este se cala, o analisando passa mal. Só faltava essa de analista ficar se lamentando: “Pô, o cara me rejeitou”. E mais, as pessoas não entendem certas falas. No tempo do rebuliço do Colégio Freudiano, final dos anos 1980, o pessoal me criticava porque começou a defenestrar gente, cada um se jogando pela janela, e eu dizia: “Já vai tarde!” Não é uma boa equivocação? Sempre expliquei que a pessoa que não fica, já vai tarde. Tomou meu tempo, e por que só agora vai? Por que não antes? Esse era o raciocínio. É um tipo preciso de resposta, fica de uma ambiguidade, ou mesmo equi-vocação, extrema. A pessoa pensa estar sacaneando o outro, como este se lixa, ela vai sacanear quem, o quê? • P – Mas não é esperado que o analisando reproduza justo com o analista a questão que ele tem que resolver? É normal ocorrer, mas o que se faz com isso? Não cabe dizer ao analisando que ele “não percebe que está rejeitando porque...” Dá-se um golpe mais sério ao ignorar a rejeição. A função da escansão temporal em análise é importante. Se o analista não esperar o movimento da repetição e da escansão – e é esse movimento que cria o tempo (o tempo não existe) –, na primeira sessão dirá tudo. O tempo da análise não é do analista, e sim do analisando. A temporalidade em análise é produzida pelo analisando. Há uns que são rapidinhos, outros de uma lerdeza tamanha. Ou, se não, o sintoma é tão pesado, que aquilo custa demais. Como disse, não gosto do termo usado por vários autores de psicanálise: técnica analítica. Se falarmos na arte da psicanálise já gosto mais, embora técnica e arte sejam sinônimos. Ao falarem em técnica, penso na garotada que sai da faculdade de psicologia e fica desesperada ao ser encaminhada a atender pessoas. Não tem condição nem de ser atendida, quanto mais de atender, não tem condição de ser analisando e já está recebendo maluco. Outro dia, uma menininha recém-formada estava no hospital Pinel lidando com os 91
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internos. Como estava em desespero por não saber o que lhes dizer, falei para não dizer nada, não se meter na vida dos outros. • P – Eles já escutam vozes demais... Então, se ficar quieta já está ajudando. Ficam em ansiedade por fazerem a suposição de que alguém, em algum livro, em algum lugar, tem uma técnica que deve ser aplicada. É o caso de dizer: “Vamos começar com a seguinte técnica: cala a boca, não se mete”. • P – Quanto à Postura do Analista, você citou Philippe Sollers que dizia que Lacan era inencurralável (incoinçable). A gente tentava encurralá-lo, e não conseguia. É um dos maiores talentos que existe para uma pessoa. Ele escorregava feito sabonete, com qualquer um. Você tentava empurrá-lo para um canto, e ele caía fora. Esse comportamento foi que me ensinou a Indiferenciação, e não a equivocação dentro da sessão. Ou seja, não adianta me apertar, sou sabonete, escorrego e caio fora. É um grau altíssimo de Indiferenciação. E isso não era só em análise, ele era assim com as pessoas, com aquelas mulheres que viviam loucas com as loucuras que fazia com elas – e ele pouco se lixava. Mesmo porque se tratava de “não abrir mão de seu desejo”. Ele resolvia ir sexualmente para cima de uma analisanda, e ia. Essa é, aliás, a teoria de Lacan. Como sabem, não concordo com que “não abrir mão de seu desejo” seja a ética da psicanálise. Qual desejo, o de baixo ou o de cima? E quando alguém deixa, imediatamente, de funcionar seu desejo em relação ao outro, está fazendo o quê com isso? Esta pergunta tem que ficar. Quando alguém cede quanto a seu desejo imediato, como saber se é um desejo? É o desejo associado ao sintoma, ou o movimento desejante? Qual é? O que quero dizer é que desejo nomeado é sintomático. Então, digo que ninguém abre mão do seu desejo. E mais, Lacan ao dizer isso está afirmando outra coisa que também diz: “Ama teu sintoma como a ti mesmo”. • P – Você também diz que sintoma não é virtude. Uma coisa é dizer a um analisando: “Se deseja isso, deseje, nada nem ninguém tem a ver com isso, pois você é sintomatizado como qualquer um” – ele não quer abrir mão de seus tesões pessoais. Outra, é estar no lugar de uma função que se chama função analítica. Desse lugar, não se pode pensar que surge o desejo, que se abre mão dele... Isto porque o desejo de última instância 92
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é fugaz, no sentido de que se encaminha para um ponto de fuga na perspectiva: o desenho não é aqui, é Lá. Entender isso faz parte do processo de Indiferenciação. E mais, o que o analista tem a ver com o analisando? Nada tem a ver com a vida dessa pessoa enquanto analisanda. É possível ter vários tipos de relações com as pessoas, mas, desde o lugar do analista, se tiver a ver com essa pessoa, quem vai pirar é ele. A pessoa enlouquece, faz as coisas mais doidas, e o analista preocupado, tendo a ver com ela: acabou a análise. O que teria eu a ver com alguém que quer se matar, por exemplo? Não sou médico, psiquiatra, da polícia, do exército da salvação... Aliás, acho muito justo ele querer, porque também quero. Eu me mato todo dia, vivo me matando ao fazer as coisas que faço. O nome disso é: suicídio. Notem que é uma posição difícil, pois, frequentemente, por ficar chacoalhando o sintoma dele, parece que o analista está se metendo na vida do outro. Não é uma futrica social, o que está sendo feito é um trabalho de tentativa de análise, de desmanchar aquilo. Mas não é isso a análise, são apenas artifícios cotidianos. Quem faz análise é o analisando, é ele que faz a sua análise. O analista lá está, sobretudo, para que entenda que o mundo está se lixando para ele. • P – Freud dizia que, ao final da análise, a transferência acaba, haveria sua dissolução. Freud sonhava que a análise terminava quando se dissolvia a transferência. O mito de Lacan era a pessoa sair do imaginário, entrar no simbólico, e aquilo virar transferência de trabalho. • P – Você fala em Vínculo Absoluto e que a transferência não acaba. Para qualquer pessoa na situação humana, é impossível não ter a transferência posta em algum lugar. Pode-se chamar de Deus, do que quisermos, mas ela está em algum lugar. • P – Você também falou em passagem da Análise Propedêutica para a Análise Efetiva. Isso é possível funcionar: alguém, mediante sua análise, chegar a um reconhecimento do Revirão em sua pessoa, em sua vida. Reconhece o grande distanciamento até de sua própria história, por passar a vê-la como se fosse de qualquer um. Aí, vai continuar a análise para sempre. Pode escolher alguém para escutá-lo, ou não. Mesmo porque há alguns que, como Lacan, fazem seminário, 93
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ou seja, continuam sua análise. Aproveitei essa carona, e vivo fazendo minha análise aqui. Já há um monte de volumes publicados, cheios de bobagem... • P – Aí já é Análise Efetiva. No entanto, não são todos que conseguem retomar esse percurso da análise… A pessoa pode mudar de registro. Às vezes, não quer deixar de ter um analista, faz questão (até para torrar o saco do próximo), mas está em Análise Efetiva. Ela sabe fazer, e o outro praticamente vira uma testemunha. Não precisa mais do analista, mas quer o testemunho de alguém. • P – Depois do final da Análise Propedêutica, a Análise Efetiva não pode continuar em relação aos analisandos? Em alguns momentos, o processo tem efeito analítico: algo que se passa lá, rebate aqui como já visto. Já vi isso – e preciso continuar vendo. Aí entra a crítica do tal de sujeito que, com todos os fedores antigos que tem, de Descartes até Kant, etc., é um engodo. Nietzsche dizia que é uma superstição – e é. Quem está fazendo análise, enquanto analisando? Quem está fazendo análise é um caso. Não é ninguém, não é uma pessoa, e sim um troço que aconteceu – e que está cheio de formações sintomáticas e tem um Primário resistente, estúpido. É um polo de formações, com todas as suas redes, que está em movimento, dói, em algum lugar. O analista vai lidando com aquele troço. • P – Podemos chamar esse troço de Pessoa? Isso resulta em uma Pessoa? Sim. Uma Pessoa é um troço muito amplo e vago, é uma Zona, em todos os sentidos. • P – Há distinção entre o que você disse sobre nada ter a ver com os analisandos e a continuidade da Análise Efetiva na ressonância sobre os analisandos? Nada tenho a ver com o analisando. E mais, se conseguir chegar à Análise Efetiva, qualquer um servirá. Você já reparou que, no geral, as pessoas não escutam nada ou ninguém? Vamos a um restaurante e o que vemos é um bando de gente, todos falando ao mesmo tempo, vão lá vomitar suas coisas, ninguém está falando com o outro. Se foi possível a uma pessoa ultrapassar o nível da Análise Propedêutica, o que quer que alguém diga, em qualquer lugar, é com ela. E por que não o analisando? Ele está falando e ela repara que tal coisa tem a ver com ela. A gente faz análise para aquilo que tem a ver conosco 94
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não nos interessar em relação a análise do outro. O que tem a ver conosco é que temos que isolar. • P – Você fala em Análise Propedêutica a continuar em Análise Efetiva. Esta, na verdade, seria o início da Análise propriamente. Para Lacan, havia um Fim de Análise. São duas posturas diferentes. Lacan inventou um dispositivo cujo processo de reconhecimento é suspeito. Naquele negócio de passante, passador, passar, fulano dizer que é analista, entra uma quantidade enorme de interesses, de gostos, etc. O outro vai definir quem é analista. Em nosso trabalho, ninguém é definido analista ou não, todos sempre estão em processo. Se a pessoa se acha na possibilidade de atender outro – o que nada tem a ver com sua análise, pois o Estado permite qualquer psicólogo, médico, etc., fazer isso –, é um reconhecimento permanente. Ela fica permanentemente no exercício de receber reconhecimento de alguns colegas. Não tem mais do que isso para fazer. Trata-se do exercício perene de conseguir reconhecimento de alguns pares. Não há fim de análise porque há um negócio chamado polo, o qual tem foco e tem franjas. Onde acabam as franjas? Não há fim de análise porque a pessoa será surpreendida logo adiante. O que ela tem é um estofo, um bom exercício analítico, etc., que a possibilita receber outro para escutar. Até onde vai sua franja? Vai até que possa, daqui a pouco, ficar assustada com algo que nunca viu, mas que estava lá? • P – A pessoa recebe intervenções até da televisão. Por que não? Mas é preciso que esteja aberto do lado de cá. Se estiver fechado, nada, nem ninguém, nem o chamado analista, lhe servirá de analista – aquilo é uma pedra. Agora, se tiver abertura do lado de cá, vai-se andando, dá uma topada e descobre que é para ela. • P – E é bom ter acontecido, tinha que acontecer mesmo. Como mencionei há pouco, alguns até de certa importância no Colégio Freudiano produziram de propósito uma sacanagem para derrubar a instituição e a mim. Mas nunca ninguém fez tão bem a mim. Hoje, quero que morram, mas só falta agradecer porque fiquei livre para fazer o que queria, o que pensava. Tiraram-me um monte de amarras, fiquei livre. Pensam estar fazendo mal, mas estão ajudando você a se liberar. Já que não tenho compromisso com essas 95
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pessoas, e nem com Lacan, penso o que quero. Quando estamos submetidos a determinados juízos, julgamentos, opiniões, ficamos nos segurando. Se não estamos submetidos, chegamos aonde quisermos – nem que seja à loucura total, também serve. • P – Importante é continuar pensando. Quem é mais lacaniano, ou freudiano? Aquele que segue o que Lacan ou Freud disseram, ou aquele que faz o mesmo que eles fizeram? Ao fazer isto, verifica-se que eles estavam tão perdidos quanto qualquer um.
11 Saiu uma nova edição de O Labirinto da Saudade: Psicanálise mítica do destino português (originalmente publicado em 1978), de Eduardo Lourenço. Achei bacana, pois essa palavra só existe em português. Ele é uma das figuras mais poderosas da teoria literária de Portugal. Gosto muito de seu modo de abordar as coisas. É interessante para nós por tomar uma atitude que chama de psicanalítica. Ele não é psicanalista, mas seu livro deve ter influência de Bachelard, que falava em psicanálise do fogo e pegava as dicas de Jung. Lourenço quer ser freudiano e, bem ou mal, levanta uma série de dados e questões de Portugal, que deveríamos saber já que herdamos várias formações da neurose portuguesa. O que ele chama de psicanálise é a referência freudiana em algumas coisas. Além disso, não tem a chatice de ficar citando Freud, quer uma referência psicanalítica como quem diz: “Para entender Portugal, há que fazer a psicanálise de Portugal”. Seu dedo aponta cada uma das mazelas da neura portuguesa. São várias coisas que herdamos: a bagunça, certa noção de inferioridade... 96
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Mostra também um Portugal bipolar, parecido conosco: sentir-se inferior e, ao mesmo tempo, uma arrogância intelectual. Vale a pena ler, pois nos enxergamos um pouco ali dentro, ele vai no ponto. E mais, gosto dele por uma questão puramente narcisista. Em [25 de julho de] 1984, fui chamado para falar num congresso na UERJ [XVI Congresso Brasileiro de Língua e Literatura] e, na hora do debate, disse que era preciso pararmos, aqui, com a ideia de Barroco, pois tanto Portugal quanto o Brasil eram maneiristas. O pessoal estranhou. Não sabia que Lourenço estava presente, e depois veio me dizer que eu tinha razão, que Portugal é maneirista, que Camões é maneirista... Achei ótimo por ele ser a maior autoridade em língua portuguesa sobre o assunto. • P – A designação histórica de colocar o começo da história do Brasil na conta do Barroco provavelmente se deve a duas coisas. Primeira, à falta de uma teoria razoável sobre o Maneirismo até o século XX. Ele era desprestigiado e o que havia eram o Clássico e o Barroco – e o que não fosse clássico só poderia ser barroco. Colocaram nessa conta de Gregório de Matos para cá. Segunda, designaram um barroco mineiro e outros, que não são Barroco. A designação já atrapalha. O próprio Barroco já era desprestigiado por seu nome. “Barrueco” é uma pérola com defeito, que não era redondinha. Então, quando viram que aquilo era meio torto, chamaram assim. • P – Como é o Maneirismo na música? No Brasil, temos Villa-Lobos, por exemplo, que é bem maneirista. Acho, aliás, uma piada maravilhosa ele compor as Bachianas Brasileiras. Aquilo é maneirista, não é clássico nem barroco. • P – Você já disse inúmeras vezes que Aleijadinho era maneirista. E mesmo aquelas igrejas e arquitetos em Minas Gerais são maneiristas: é tudo torto. E há autores que chamam a atenção para a parafernália que é um quadro maneirista, é um labirinto. • P – Colocaríamos Augusto dos Anjos entre os maneiristas? Ele metia o que aprendera de biologia dentro da poesia. É até engraçado ele ter um soneto todo clássico, e podre por dentro. E é de um pessimismo radical. Augusto exagerava, parecia estar decepcionado, com um sofrimento
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radical, estragado pela tuberculose – tudo mentira. Seu poema mais didático pedagógico é: Versos íntimos Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de sua última quimera. Somente a Ingratidão – esta pantera – Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O homem, que, nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija!
Notem que é de um Maneirismo radical, um quiasmo radical. E sua obra é pequena, um livro só. Eu o sabia todo de cor (Eu e outras poesias [1912]). Tinha essas maluquices de adolescente, também sabia O Navio Negreiro (1870), de Castro Alves, de cor. Imaginem a influência pesada que alguém como ele exerce. O que ele fez comigo?
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12 Em função de um texto recente que vocês me enviaram, quero falar sobre o Aceleracionismo. Mesmo antes de conhecer esse pessoal, acho que já declarei que assumo plenamente a posição aceleracionista, tanto dos pontos de vista teórico e científico, quanto político. A psicanálise, desde o começo, é um instrumento poderoso de aceleração. À medida que se esforça por deslocar os Estacionários, deslocar a Morfose Estacionária, é um acelerador da cultura, de tudo. Não se trata apenas de produzir velocidade, é aceleração mesmo. Quando realmente se entra no estado de espírito da psicanálise, temos uma força gravitacional para o outro lado. Mas há um aceleracionismo de esquerda e outro de direita, e há os anarcocapitalistas, que são aceleracionistas médios. Não é o caso de fazer escolha aí, pois nossa posição, como sempre, é em Revirão. Então, dado que isso tudo é incipiente e a humanidade sofre de recalques terríveis, eu já pensava que o próprio movimento tecnológico e a dissolução das formações culturais, a dissolução das fronteiras nacionais, se encaminhariam, primeiro, para essa postura do aceleracionismo de esquerda que, se funcionar, depois virá o de direita, que é o correto. O aceleracionismo de esquerda supõe que o desenvolvimento tecnológico dissolverá essa joça toda, e a favor do homem. Há certo humanismo boboca nisso, mas, para começar, tem que ser por ali, pois a esquerda faz a suposição de que o avanço extremo da tecnologia dará à humanidade um sentido novo. Suposição que está no interesse de sustentar a espécie humana como tal, e que o mundo será robotizado a nosso favor. • P – Dizem eles que se promoverá a justiça social e a igualdade. Coisa que nunca haverá em planeta algum. Mas não estou interessado nisso, e sim no fato de suporem que um avanço extremo da tecnologia liberta o proletário. Ou seja, haverá um proletariado de máquinas, de robôs. Então, acabou o proletariado, pois o proletariado é de máquinas, e a humanidade será bem servida, etc. Não acho isso, e sim apenas que começará por aí. Ao pensarem 99
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em revolução aceleracionista, ou acelerada, pensam que será isso, que serão libertados pelas máquinas. O que acho é que já está começando por aí. Donas de casa, por exemplo, já não precisam varrer chão, pois há um robozinho para fazer isso... Os dois principais da esquerda são Alex Williams e Nick Srnicek – autores de Acelerar: Manifesto por uma política aceleracionista (2013) –, e Nick Land é o da direita. Diz este que o aceleracionismo, a aceleração da cultura promovida pela tecnologia, eliminará o homem. Também acho: se andar para a frente, a espécie estará dispensada de existir. É este, para mim, o processo evolutivo verdadeiro: assim como saímos dos macacos e chegamos aqui, sairemos daqui e chegaremos ao robô absoluto. Se a espécie continuar existindo, será tal qual um jardim zoológico, mais ou menos como Peter Sloterdijk, referindo-se a Platão, fala em parque humano. Isso está longe ainda. Já lhes disse que serão, no mínimo, duzentos anos para implantar o Quarto Império. E mesmo que a tecnologia corra demais, ainda está sobrando uma massa gigantesca de pós-macacos. Eles falam em pós-capitalismo, e não têm coragem de arrancar o termo capitalismo. Isto porque, repito eu, não dá, o processo psíquico é capitalista, seja com máquinas ou com pessoas. Há várias formas de capitalismo, mais ou menos “selvagens”, mas isso é outra história, pois o processo é capitalista. Não é possível a destruição do capitalismo. Pensam que ele tem idade, fundação – não tem. A grande tirada de Lacan foi dizer que o Inconsciente é capitalista. E não adianta mexer nele, pois muda de forma. Aliás, ninguém é comunista, é só maneira de falar. Stalin e Mao Tse-Tung são comunistas?! O que nos interessa, como disse, é não termos que fazer opções entre as duas posições, pois, dada a situação sintomática do encaminhamento, a esquerda parecerá estar vencendo, mas chegará o momento em que o pessoal vai desistir. Como dizem, a inteligência é que será imposta, e não a espécie. A inteligência vencerá sozinha. Ou seja, o pós-capitalismo maquínico – eles se utilizam muito de Deleuze para pensar – está pouco se lixando para as espécies vivas, só quer fazer a sustentação da inteligência do Haver. Suponho que, se a coisa se encaminhar, será para esse lado. Por exemplo, em geral, ao se falar em ETs, supõem que há homenzinhos dentro de uma nave. Acho que nada disso esteja lá, pois a “Pessoa” já é aquele troço voando. Pode ser até que haja alguns em lugares subdesenvolvidos, 100
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mas, dado o material de sua construção, é difícil atravessar certas coisas. Este corpo de carbono, por mais trabalhado que esteja, não suporta passar por certas situações físicas. Ao passo que uma máquina, construída com materiais que talvez ainda não conheçamos, passa. E mais, a nave é “uma Pessoa”, pois tem Primário, Secundário e Originário. Aquilo é constituído primariamente, depois surge o Originário dentro do Primário, e o Secundário brota com o mínimo de dor. Notem que o que mais nos atrapalha é a dor. É só lembrar que alguém promete que vai nos encher de porrada, e obedecemos – e ficamos estúpidos. Aquele troço pouco se lixará para dor, pois trata-se apenas de trocar algumas peças. Sem dor, ficamos mais inteligentes. • P – Você diria que há um implícito vetor tanático na ideia de aceleracionismo? O vetor é tanático à medida que o não-Haver não há mesmo e, portanto, essa morte jamais será encontrada. Se não há, aquilo fica repetindo e se complexificando. Então, não interessa à psicanálise tomar partido de esquerda ou de direita, e sim pensar a viabilidade disso. Dado que a macacada ainda está no poder – e há macaco à beça: pós-macaco, neo-etologia... –, o que se tentará primeiro é a libertação da madame com um robozinho para limpar chão. • P – Não entendo bem por que você pensa num tempo de duzentos anos para a instalação do Quarto Império... Porque é preciso que gerações morram. Mesmo que a tecnologia saia correndo à frente, as pessoas continuam estúpidas. Você acha que, comparativamente com a máquina, as pessoas que hoje estão o dia inteiro com computadores e dispositivos móveis na mão cresceram? De modo algum, apenas aprendem a usar e a mudar de comportamento. Já a máquina não tem as amarras que temos, tem as suas, que são puramente tecnológicas. Na próxima geração de aparelhos – que é daqui a um ano – aquilo já foi virado. Ou seja, a macacada, embora com maquininhas futuras na mão, não vai para lá. É empurrada para outros comportamentos, mas não vai. Como sempre, meia dúzia de pessoas no planeta anda para a frente e inventa computadores, etc., o resto é macaquice, segue um roteiro, uma sequência que tem que repetir. Ora, qualquer macaco faz isso, basta ensiná-lo, mas ele não entra no espírito de articular do mesmo modo que a máquina. Se assim fizermos, não será preciso ser engenheiro ou 101
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entender como a máquina funciona matemática e fisicamente porque, a qualquer botão apertado, teremos uma resposta, não ficaremos inibidos, transaremos. A maquininha transa em qualquer de seus níveis possíveis no momento, nós não. Temos uma capacidade infinita de transação e assimilação que não usamos. Por quê? Porque há formações dominantes – portanto, recalcantes – em que não mexemos. Por isso, é preciso esperar umas duas gerações morrerem. • P – Esse é um raciocínio referido ao Creodo Antrópico. Se o aceleracionismo de direita é o que prevalecerá no futuro, é porque, o Secundário prevalecendo, como você prevê no Quarto Império, desaparecerá a ideia de espécie. Essa ideia acaba. E mais, pensem no Quinto Império, sobre o qual não faço a menor ideia. Já imaginaram que loucura? O Quarto está sendo de dificuldade extrema, então, como será pular daí para o radical abstracionismo? Apenas sinto no ar um cheiro de Quarto Império comparecendo. Depois, nem consigo imaginar. A demora não é porque a estrutura imperial seja lenta, e sim porque o neo-macaco é pesado, não anda para a frente. É preciso, então, morrer uma geração. Qualquer pessoa com idade próxima à minha viveu o suficiente para ver radicais transformações em comportamento humano social – e nem isso consegue mudar a aparência geral. Por exemplo, certa geração entre dezoito e vinte e cinco anos já perdeu a virgindade social e vemos que gente um pouco mais velha – da minha geração, então, é um monte de múmias – ainda tem inibições terríveis. Isso se deve a um monte de recalques sobre coisas as mais fundamentais, sobretudo o sexo. É tudo amarrado, não veem que se trata de brincadeira, besteira, bobagem. Os garotos pouco se lixam para os ancestrais, fazem o que lhes dá na telha, na hora que querem. Imaginem, então, quando isso for uma transa de robôs. Isso porque há algo que não é arredável, não há como ultrapassar: o sexo – e não interessa se for de lata. Como sabem, segundo nossa visão, o sexo é o corte radical entre o Haver e o não-Haver, que vai funcionar das mais diversas maneiras: atormenta, dá tesão... Imaginem os robôs com tesão em quê? Na Lua? Deve ser maravilhoso. • P – A exemplo dos humanos, que são sequestrados pelo tesão, os robôs também seriam?
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Não tem saída aí, eles corresponderão às suas formações. Se o axioma “Haver desejo de não-Haver” está correto, Secção é o corte do Impossível de atingir, e cada um gozará como pode. Sei lá como o robô goza. Em última instância, há sempre um roça-roça entre Haver e não-Haver. Só roça, pois não chega Lá – tal qual a sexualidade do neo-macaco, que roça, roça, e suspende, não chega Lá. Notem que sempre há um circuito fechado, ou seja: formações. Para entendê-las, tem que haver um início, um fechamento. Se não, não são formações. E qual é a última instância das formações? Se dissolvermos o universo inteiro, o que sobra? Os físicos dizem que não fica nada, mas nada já é muita coisa, não é não-Haver. Se nada é muita coisa, a menor Quebra de Simetria explode tudo isso de novo porque é dissimétrico. Se esse nada, que não é não-Haver, continua em seu destino de querer não-Haver, a coisa vai explodir, e este raciocínio não está na física. Não é possível a ideia de que o universo vai expandindo, expandindo, fica frio e morre. Como o universo gozaria em última instância? A explosão do Haver é a última gozada – depois, começa tudo de novo, é um inferno. Notem que Nietzsche inventou um processo de reestruturação mental dos pós-macacos, que é fazer a suposição do eterno retorno. Que eu saiba, ele não está dizendo o que digo, que pode retornar eternamente, mas passa perto: está ensinando uma maneira de nos mancar. Se imaginarmos que tudo que estamos fazendo é repetir eternamente, vamos nos virar para não fazer porcaria. Ou seja, se isso vai se repetir eternamente, é insuportável. Então, há que ficar no mundo, no procedimento da grandeza, do super-homem, seja lá o que for. Caso contrário, repetiremos essa titica eternamente. O pior é que, se não fizermos isso, o Haver fará, mas não com a mesma forma. Se o Haver explodir de novo, pode ser radicalmente outra coisa, e não isso que está aqui. • P – A hipótese de Martin Bojowald é que, ao recomeçar, o universo é amnésico. Ele só tem lembrança da última forma, que é a única capaz de lembrar de si mesma. Mas logo ela explode e esquece. Oblivion! • P – Jean-Claude Milner fala de um Périplo Estrutural – que, aliás, é título de um livro dele (2002), no qual, podemos ver boas indicações para o que você diz sobre Lacan ser um pensador terminal – que me leva a pensar que,
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na verdade, o passo seguinte ao estruturalismo talvez seja esse que começa a ser dado agora: o pós-estruturalismo é o aceleracionismo. Sim. Não adianta chamar os pós de pós. • P – Fica genérico e vazio. O verdadeiro é isso que está nascendo agora. • P – O estruturalismo é uma espécie e estase da estrutura. Já você reconhece que a estrutura é dinâmica, então ela é transformacional, mas segundo um vetor que é aquele apontado pelo aceleracionismo, o da dissolução. O que acho bacana é não ter conhecido esses autores e ver como pensamos quase igual. Isto porque o que se oferece é isso, e eles estão vendo. É aí que o conceito de autoria fura. Quem é o autor? Eu? Não, sou uma espécie de escravo. Tomo um termo bem brasileiro: sou “cavalo” do Haver. O Haver baixa em você, e você fala. Acho fascinante esta nossa época, em que a tecnologia vai mostrando o que é capaz de fazer. Basta ver a atual situação do Brasil: a merda toda flutuando, a bandidagem se mostrando... A tecnologia é que fez isso, é só seguir os rastros: tirou a máscara de quase todos. Daí que, antes ainda dos robôs, nossa espécie perderá totalmente a noção de privacidade. E como ela ainda sustenta certa moralidade, acabou a moralidade: se todos não prestam, se todos são uns sacanas, então é normal. Acabou a vergonha. É a transparência total. Faço a suposição de que a maioria esteja enganada quanto à competência tecnológica já existente, pois ainda não está disseminada. • P – Não seria o caso de supor que a disseminação da tecnologia em nossas vidas venha reduzir nossa autonomia? É o contrário. À medida que ela pulveriza as formações, a sua poderá falar alto. • P – Falar alto, por quê? Porque não falamos alto. Imagine se pudéssemos falar alto, coisa que não fazemos, apenas dizemos algumas coisas. Estamos de tal maneira enredados num conjunto de formações, numa rede tão careta, tão precária, que precisamos fazer vinte ou trinta anos de análise para começar a falar. Sim ou não? Falar é dizer o que há aqui, e não falar dos outros. Então, quanto mais dissolvido e disseminado, mais singular e evidente. Não tem como esconder coisa alguma: 104
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vai-se exprimir diretamente a sua formação – o que será considerado normal e correto por todos. Basta olhar para a guerra que está implantada no mundo atual. Não estou falando de guerra com tiro, pois esta é de uma inferioridade radical, algo velho demais, e sim da guerra de aceitação do próximo em termos de gênero e sexo. Será uma besteira, pois na situação de tecnologia disseminada ninguém pensa nisso. A consideração será de que ali se exprime tal singularidade, ponto! É o que chamo de Diferocracia, se ela houver algum dia. E não adianta fazer algum partido diferocrático, eleger deputado, etc. Ao contrário, a Diferocracia terá que surgir como função direta dentro do social. Coisa que é lá para o meio ou fim do Quarto Império. Então, como fazer com uma sociedade sem resquício algum de privacidade, em que todos estão nus, o rei e nós? Qual arranjo político para a convivência? Não se chama polícia alguma para fazer inquérito, pois sabe-se tudo a respeito da pessoa. A formação que se chama Eu ficará à mostra. E não adianta querer fingir, pois todos estão vendo. Já pensaram que coisa esquisita será a dissolução de toda a filosofia e tudo virar folclore? O que interessa é estarmos sabendo isso ou aquilo: junta para cá, articula para lá... Falar em René Descartes não tomará mais que dez linhas. As religiões virarão coisa de macaco mesmo, de macacada. No entanto, suponho que possa emergir Arreligião radical, abstrata, sem necessidade de deus algum. É um processo de transação entre as pessoas. Eu escrevi Psicanálise: Arreligião (2002). • P – O Quinto Império certamente será só de cérebros transando? Não faço noção. Acho perfeita a tese de Nick Land: o universo só quer saber da inteligência, faz todas as confusões para a inteligência emergir dentro dele. Quanto a nós, somos uma espécie de começo da emergência da inteligência. Já imaginaram uma ultra-inteligência abstratíssima de cérebro? Por isso, disse que quase tudo que fazemos é folclore. Temos comoções bárbaras, primitivas demais. Por exemplo, num grupo do tamanho pequeníssimo como este aqui reunido, qual é a capacidade (não de tolerar, mas) de ser a diferença, de funcionar na diferença, de simplesmente aparecer uma diferença e dizer que é uma diferença? Não há isso, o diferente é abominável, “osotro” não presta – que nem nós, aliás. É uma guerrilha de posições e ninguém olha para o próprio rabo. Mas o outro é igualzinho, só que com outra cara. Há que 105
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acontecer esse entendimento. É o gato escondido com o rabo de fora? Não, é o rabo escondido com o gato de fora. • P – É o sorriso do gato. Lewis Carroll sacou isso: o gato de Cheshire. A nós importa pensar que, desde o começo, bem antes da atual pressão tecnológica, é esse o veio da psicanálise. Foi o primeiro discurso a sacar que o vetor é ao contrário do que se pensa usualmente. • P – Trata-se de acolher a diferença do outro? Não tem que acolher, é a diferença. A diferença está transando aí. Ela transa, e quem é eu? Eu é isso. O vetor da psicanálise é contrário em relação aos outros discursos. Estes são mestrias daqui para lá: despejam regra. O funcionamento da psicanálise, desde o começo, é de lá para cá. Ao olhar para o suposto outro, é eu, só que tem uns ingredientes engraçados, diferentes... Ao partir daqui para lá, a estrutura responsável é parecida com o que Freud chamava de ego. Então, os outros são sempre ruins, o bom sou eu. Tenho críticas a todo mundo, ao invés de ficar perplexo, de achar engraçado não ter ainda visto tal diferença. Sem esse vetor, a psicanálise é nada. É o que Freud chamava de neutralidade do analista. Como é possível olhar indiferentemente? E a diferença surge porque não é minha ou sua, e sim um jogo de formações – o que não quer dizer que tenho que ter anuência pelas diferenças. Não é questão de suportar o outro. Preferir manifestar minha diferença, não exclui nada ter contra a sua. Só não quero sair da minha porque, se sair, não gozo, e aí fica chato. A mentalidade que está entrando no mundo é essa, corram atrás. Se não, o chamado psicanalista é um inútil, não serve para nada. • P – Ainda vale o que Lacan dizia sobre uma análise levada muito longe poder levar à psicose? Isso é indecidível. Em nossos termos, a pessoa vai à análise, vai dissolvendo, dissolvendo, e há um núcleo duro. Se ele virar imperativo, ferrou, ela é psicótica. • P – Mas então a análise não foi levada longe. Por isso que se chama núcleo duro. Se dissolver o núcleo duro, acabou, não tem ninguém ali. Lacan inventou o fim da análise: em algum momento, aqui é absolutamente precário. Ele mesmo disse que uma análise levada longe 106
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demais pode fazer surgir a psicose. Ou seja, se a pessoa tem um núcleo de última instância, indissolúvel pelos métodos possíveis, ela está simplesmente dominada por um HiperRecalque. • P – Jamais se saberá se é uma imensa loucura ou uma imensa lucidez. Não faço a menor ideia. É maluco beleza, a verificar. Não sei, nunca vi. É bem diferente do que Lacan também diz, e acho que seja verdadeiro, que, para o pré-psicótico, a entrada em análise vira psicose. Isto porque ele entra em embate com a situação e, em meus termos, o HiperRecalque salta fora e segura. Ou seja, ele se fecha em torno do HiperRecalque, e imediatamente aparece a psicose. Não há HiperRecalque em Lacan. • P – Você chamou de loucura de saída e loucura de chegada. De saída, algum defeito na máquina impede que funcione de maneira apropriada. De chegada, é a pessoa extremar a abstração do pensamento e acabar se arrebentando. Você dá o exemplo de Nietzsche. Com Nietzsche podemos pensar isso, mas é preciso saber que aquilo se chama sífilis. • P – Você fala também do músico, do matemático... ...que ficam meio maluquinhos, mas não é uma chegada muito longe. É uma chegada que atordoa completamente. A pessoa fica pirada por excesso ou por falta? Às vezes, pensamos ser uma psicose, mas não é. A pessoa não está psicótica, está completamente perdida, para lá de Marrakesh. Numa psicose ninguém está perdido, tem certezas, sabe de tudo. Então, muitas vezes, vemos alguém perdido e achamos que é psicótico. Não é, estourou a bolha e não sabe mais o que pensar. Já os macacos têm um excelente mecanismo de defesa. Ao chegar a certo nível, cansam. Aliás, eu estou chegando perto: acabar o saco, não querer saber. É uma defesa macacal, cerebral. O cérebro cansa e não quer saber de mais nada. Acho isso uma grande salvação.
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13 • P – A Teoria das Formações trabalha com polo, foco e franja. No caso da franja, poderíamos dizer que sua infinitização substituiria a operação de Revirão? Simplesmente substituir, não. Se o polo for infinitizado, invocará o Revirão, invocará o contrário. E uma das maneiras de invocar o oposto é ir muito longe dentro do movimento. • P – É possível situar um polo num dos alelos do Revirão? Em caso afirmativo, para cada polo teríamos também o anti-polo. Sim. • P – Mas é difícil situar o polo em um alelo, já que o alelo é necessariamente resultante de uma operação de recalque. Não importa, é um polo. Toda a história do conhecimento – ocidental e oriental, suponho eu – é polar, justamente porque abandonou um pedaço. É um polo. • P – Mas um polo é um alelo, ou um Halo? Um polo é um alelo. Ao pensar em polarização do halo, já estamos cá embaixo, e não Lá em cima, pois o halo nada recalca. • P – O halo tem a possibilidade de inscrição do recalque? Não. O halo é completo. Aliás, chamei de halo significante (1987) em homenagem a Lacan. • P – Depois, você fala em halo bífido. O halo vem em substituição à hemiplegia do significante. Há que supor que, para além de qualquer recalque, o ponto é bífido, há Bifididade. No que entram as formações, qualquer formação – primária, secundária... –, elas começam a recortar, ou seja, a funcionar como recalque. Então, o comparecimento de uma formação que já sofreu recalque é polar. Assim, se quisermos falar que o halo é um polo, fica meio difícil... Podemos até fazer isso, mas é um polo bipolar. 108
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• P – Sempre achei que o polo fosse bipolar. Então, qual seria a diferença entre foco e polo? Se falarmos do halo significante, se tomarmos o Ponto Bífido, ele é polar, mas é polar enquanto extra-recalque, fora do recalque. Se suspendermos um recalque, irá necessariamente bipolarizar. É do que o chamado obsessivo sofre: ser acossado por uma exigência de complementação da qual não dá conta. Isto porque, para pensar o mundo, é melhor pensar bifidamente. Já para agir no mundo, mesmo que seja de maneira verbal, etc., há que fazer o recalque. Não tem saída, pois o mundo é partido. O próprio Haver é partido. As formações do Haver com as quais convivemos, que é isso tudo que está aqui, são só metade. A diferença entre polo e foco é: temos um polo, o qual contém foco e franja. O foco é a centralidade, digamos, do polo. Se não o fizermos proliferar, ele ficará duro, um caroço, um núcleo duro. E se o fizermos proliferar, um dia iremos nos perder. Quando nos perdermos, provavelmente cairemos do outro lado. Ou seja, podemos produzir Revirão pela proliferação das potências de um polo. É o que vemos acontecer muito com os poetas: vão falar de tal coisa e, quando percebemos, já estão em Marrakech, já estão no contrário – Fernando Pessoa é mestre nisso. Qualquer formação é polar, mas é constituída de foco e franja. Nós, naturalmente, já conversamos e vivemos apontando focos dentro do polo. É preciso uma desenvoltura de desempenho aberto para caminharmos em direção à franja – e lá longe iremos nos perder, perder o foco. Não apenas perder o foco, como começar a sair do polo. • P – Do ponto de vista descritivo, em que consiste mudar de uma perspectiva focal para uma perspectiva polar? Não há perspectiva polar. O polo se apresenta para nós. Qualquer coisa que indicarmos, estaremos mostrando que é um polo. Polo este que poderá ser tratado focal ou franjalmente. As ideias de foco e de franja são um nível inferior à de polo, pois o polo é constituído por foco e franja. Aliás, quanto mais focal, mais estúpido. Se abrimos a franja, lá adiante perdemos o foco. É só lembrar do doutor Lacan, que começava a falar em seu seminário e, de repente, achávamos que pirou. Era evidente que apresentou algo focalmente, mas foi desenvolvendo, e todos lá presentes se perdiam. O mesmo acontece quando o lemos: o troço vai se esgarçando, se esgarçando, e não sabemos mais se ele 109
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está falando de algo ou de seu avesso. É típico do estilo de Lacan, e foi com ele que percebi isso. Notem, então, que colocar uma questão polar e focalizar no polo tem a ver com a ideia de saber, com a suposição, por exemplo, de que o saber científico é focal. Não é. Se começamos a mexer nele, vemos que vai se perdendo, se perdendo, e, depois, nos perguntamos se não é exatamente o contrário. Por que o pessoal não dá conta da física contemporânea, por exemplo? Trata focalmente e se perde na franja. Há físico da maior importância que diz que a teoria dos quanta é incompreensível. O que quer dizer incompreensível? O que é compreender? É focalizar. A teoria vai se dispersando, se dispersando, e o cientista se perde. • P – Aí, vai-se não para o conhecimento, e sim para a ignorância. Vai-se para a ignorância ou, se não, para um delírio de totalidade. A vontade dos técnicos vindos da física de construir o computador quântico é uma loucura dessa ordem. Aliás, gostaria muito de ver um computador quântico funcionando. Primeiro, por fazer a suposição de que ele vai ficar a cara do que tenho dito. Segundo, para ver onde separamos e tomamos uma decisão se ele apresenta os dois alelos. É uma escolha puramente, mais nada. Para que lado ir? Há que escolher, pois qual é o lado certo? Não tem lado certo. Já, quando se ataca algo do ponto de vista focal, tem lado certo. • P – Podemos chamar o que você disse sobre o olhar Cézanne (1975) de um olhar franjal? Sim, ele tem um olhar aberto. Na época, eu não tinha esses conceitos, mas é exatamente isso: Cézanne não focaliza nada. Custei a descobrir o que era aquela coisa esquisita em sua pintura. Quando vivo, foi maltratado como artista, pois o pessoal o achava esquisitíssimo. Dava para entender um Van Gogh, por exemplo, pois ele tinha uma pincelada fulgurante, etc., que era para dentro, um modo de focar. Difícil era entender uma pintura borrada como a de Cézanne. O seu é um olhar que atravessa. Quando vi o retrato dele diante de uma pintura das banhistas, entendi por causa de seus olhos: não olham para uma coisa, e sim através, lá longe. Nós, em geral, olhamos para as pessoas de maneira recalcada. Psicanalista precisa prestar atenção a isso, pois, para Freud, ao falar em atenção flutuante, trata-se da atenção desfocada: não ficar focado no que o analisando está dizendo – e deixar rolar. Não olhar, não ouvir o que 110
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ele está dizendo, e sim colocar o ouvido para lá daquela fala. Igual à pintura de Cézanne: ele não olha e faz alguma deformação, alguma interpretação, digamos, algum tratamento, olhando o modelo ali. Ao contrário, toma o modelo e olha para o infinito, através do modelo. Coloquem a mão de vocês diante dos olhos e olhem através que perceberão do que se trata. Cadê a mão? Qual dedo está mexendo? Quando entendi isto, passei a olhar o quadro assim: através dele. • P – Você entendeu por causa do olhar dele? Ele foi tão preciso que pintou um autorretrato com o olhar assim. O olhar dele é paralelo, não é convergente ou divergente. É olhar através: desfocalizar e ver através – o que é uma operação franjal, e não um Revirão. • P – Isso seria ver o recalcado? Não. É escapar do foco. Aí, vai-se na franja, a qual começa a bagunçar, a desmanchar tudo. Para perceber, olhem lá longe e pintem a mão que estão vendo. • P – Mas olhando através não desrecalcamos o que está atrás da mão? Olhando para a mão, não recalcamos o fundo? Não se trata de forma e fundo, não é questão de Gestalt. O através não tem fundo, olha para o infinito, o qual não faz fundo. Uma prova é a dificuldade em entender a Mona Lisa, de Leonardo, que muitos acham ser um grande mistério. Mas se analisarmos do ponto de vista do que, naquela época, dominava a cabeça de Leonardo e dos artistas do renascimento, veremos que era a ideia de perspectiva exata, algo bastante conhecido hoje. Ficamos olhando para o quadro, e o olhar fica esquisito. É o sorriso da Mona Lisa? Não. O que Leonardo fez foi colocar a figura perfeitamente comum da Mona Lisa de acordo com suas taras com a Virgem Maria, com a sacanagem que ele tem com aquele milhafre, como Freud mostrou. Olhamos para ela e tentamos calcular a perspectiva, não dela, mas a do fundo. Se prestarmos a atenção, veremos que ele pinta a mesma paisagem atrás da Mona Lisa de um lado e de outro em perspectivas diferentes, uma como se estivesse olhando de baixo e outra de cima. E junta isso no quadro pelo céu infinito, que é neutro, é o mesmo para qualquer perspectiva. Assim, começa-se a invadir a franja, e fica esquisito. Leonardo coloca duas perspectivas exatíssimas, de pontos de vista diferentes, e cola uma na outra no céu: o olhar passa para um e outro lado, e está tudo bem, ainda que fique 111
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esquisito. É diferente de Cézanne, que olha paralelo. Não é desfocar e olhar para o recalcado, e sim olhar diretamente para o Ponto Bífido, lá atrás: não é isso, nem aquilo – ou é tudo. Diante de um céu absolutamente sem nuvens – mesmo supondo que seja azul por causa da espessura, etc., isto não interessa agora –, se olharmos para a paisagem olhando para o céu, o que pintaremos? Como sai a pintura, como sai a paisagem? É o caso de Cézanne. Custei muito a entender isso. Retomando a Mona Lisa, repito que, nela, os dois lados são os mesmos, só muda a perspectiva. Temos a impressão de que há uma paisagem atrás e ela está na frente, mas não é a mesma paisagem, são duas. Leonardo só pôde colar uma com a outra mediante o neutro, que é o céu. Ele é cheio de truques lógicos, pega o espectador pela torção da lógica do que está sendo mostrado. Mesmo hoje, há a possibilidade de pensar que o famoso Sudário, de Turim, por exemplo, tenha sido feito por ele. A propósito, temos Marcel Duchamp que tomou a Mona Lisa e fez o L.H.O.O.Q. O que estava dizendo com isso? Que é o autorretrato de Leonardo. A Mona Lisa é a Rrose Sélavy. Duchamp entendeu, colocou o bigode na Mona Lisa e escreveu L.H.O.O.Q, cuja sonoridade, em francês, é: elle a chaud au cul, ela está com tesão no rabo. E quem estava com tesão no rabo? Leonardo. Duchamp bateu o olho e percebeu. • P – Retornando ao que você trazia antes, há uma ideia primeira que suporta o raciocínio de foco e franja: a homogeneidade. Por exemplo. • P – E o que você descreve como franja é a possibilidade de infinitização, de vazamento... De dissolução, de análise. • P – Mas continuo sem entender o que seja o polo. Já foco e franja, imagino que sejam expedientes descritivos... Foco e franja são posturas diante do polo. • P – Eu me perco entre dizer que é formação e dizer que é polo... É uma formação escolhida por mim como polo. Simplesmente só porque a coloco diante de mim. Polo é uma situação: a formação está situada e é possível considerá-la do ponto de vista focal ou franjal. Ou podemos até dançar entre os dois. Na verdade, aprendi isso com esses artistas. Houve crítico que 112
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disse que Cézanne tinha um defeito de visão. Mas se quisesse, ele faria pintura clássica. Em vez disso, o que fez foi inventar um olhar que atravessa o polo, desfoca e, ao mesmo tempo, pinta o que está focado desfocando. Se continuar, continuar, a tela ficará em branco, ou em preto, como é o caso de Rothko. Se elaboramos bastante o conceito de cor e nossas transas com a percepção das coisas, o céu é preto, o mar é preto, eu sou preto... Até o olhar é capaz de ser completamente desfocado, e nós funcionarmos quase como um cego. Cézanne não tem como pintar uma franja por inteiro, mas pode mostrar que está olhando para além do foco, que não pode tirar o foco que está em sua frente, mas vai desfocando, desfocando – e, de repente fica um borrão. • P – E não é uma questão de escala, e sim de intensidade. E de postura. Como escolho olhar para aqui, ou através disso? O que nada tem nada a ver com Picasso, que quer apresentar as formas das coisas mediante mais de uma perspectiva ao mesmo tempo. • P – Seriam vários focos simultâneos? Vários focos simultâneos, mas na mesma figura. O que o pessoal questionava com a arte moderna? O olhar dos acadêmicos e dos clássicos. Estão questionando o olhar: o mundo não é assim como pintam, tem muitas possibilidades de visão. Tomem um maluquinho tipo Marc Chagall, que vê o mundo fantasticamente, na base da fantasia. Ele pinta a fantasia que vê. A arte moderna começou e continuou questionando o olhar. Tomem também Georges Braque que, mais do que Picasso – este roubou um pouco dele, que ficou parecendo alguém de segunda, mas é de primeiríssima, muito mais sutil (Picasso pintou igualzinho a ele durante um período) –, tem um olhar que vê tudo fragmentado. Qual é o olhar? Ele não é doido, coloca o modelo na frente, uma pessoa, faz um retrato – e pulveriza tudo. Está olhando para onde? Picasso começou a ser cubista imitando Braque, mas ao descobrir qual era o olhar de Braque, pensou que o olhar dele, Picasso, não podia ser aquele, que tinha que ter o dele. Aí inventou o cubismo propriamente dito. Ao olhar um modelo colocado dentro do cubo, teremos uma forma se o projetarmos para cá, e outra se o projetarmos para lá. O cubismo desenha todas essas perspectivas numa figura só. • P – Desenha todas essas possibilidades...
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Às vezes, nem todas, coloca apenas dois ângulos, vira o rosto da mulher para cá e outra coisa para lá... De algum modo, quando as pessoas se acostumam com o olhar que o artista inventou, começam a ver certo, como ele. Ele ensina um olhar novo, mas quando começou a fazer aquilo, era tido como monstruosidade, coisa de maluco. Depois, vamos nos acostumando culturalmente com aquele olhar e percebemos que ele está vendo de vários ângulos ao mesmo tempo. • P – Escher seria uma tentativa de descrição de transições de foco e franja? Escher é uma tentativa de deformar a perspectiva enquanto desenha. Aquilo não funciona em terceira dimensão. Olhamos, e nos convencemos de que é possível passar daqui para lá, mas não se pode fazer isso na realidade, só no desenho. Escher é aquele que transformou o desenho em desenho – fora dali não há. • P – É pensamento e pensador. Sim. Ao colocar a mão desenhando a si mesma, não sabemos qual está desenhando qual, é puro desenho. Ele expôs a ideia de desenho, que é bem diferente de uma escultura, é absolutamente plano. • P – Falei em transições porque Escher chamou assim e também tem uma série intitulada Metamorfose. Ele vai desenhando e o modelo vai virando outra coisa, vai para a franja. O mesmo modelo vai se modificando, e vira outra coisa. Um nome excelente: transições. Há também pintores que não são de olhar, são só de raciocínio. O suprematismo, por exemplo, é mero raciocínio, não tem modelo. Em nosso caso, espero que já tenham percebido que um analisando chega completamente desenhado, completamente figurativo. Ele vai falando, falando, e cadê a figura? Aí tomamos uma formação boiando para cá, um sintoma boiando para lá, e vemos que o cara – o cara é nós – é uma montoeira de formações que, às vezes, nem juntam direito, são díspares, nada têm nada a ver umas com as outras. Mas Escher abordou questões interessantíssimas. Por exemplo, a perspectiva, tomada no sentido plano, que nem é representação do modelo, e sim representação da perspectiva. É segundo grau da perspectiva. Mostra a pessoa subindo e descendo ao mesmo tempo. O engraçado é que ele arranca uma dimensão do modelo, e 114
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fica bífido. Se fizermos a perspectiva do quadro dele conforme o renascimento pensou, veremos que é polar, é focal, tudo direitinho. Aí, ele toma a ideia da perspectiva, em que, no papel, pode-se passar uma coluna por cima da outra – não se pode fazer isso na realidade ou na perspectiva exata – e, então, bifidiza. A pessoa está subindo e descendo. Essa gente já pensou tudo para nós, é só ir lá e catar. A maioria dos artistas de grande porte está questionando nossa percepção do mundo. O renascimento – depois o classicismo, o academicismo... – impôs que “o mundo é assim”. Vê-se isso na própria fotografia, a máquina que foi criada sobre a visão da perspectiva exata do renascimento, em que os fotógrafos passaram a modificar o olhar da câmera. Tira-se a foto e pensamos que é assim? Não, é assim porque aquela câmera é careta. Como o fotógrafo não é careta, força-a a ver de outro modo. A câmera é a mesma, renascentista, mas ele enfia o modo de olhar dentro da câmera. Ou seja, os artistas estão questionando o que se chama de realidade. Qual é a realidade, é de quem, qual delas? • P – Man Ray faz muito isso. Não à toa foi amigo de Duchamp. E há fotógrafos que fazem o contrário: ao invés de inventarem outro olhar, tornam-no hiper-focado. Ansel Adams, por exemplo, cuja câmera tinha um filme de grande tamanho. Em suas fotos, quase tocamos as coisas, são uma hiper-focalização. Estão todos de brincadeira com a realidade. Qual dessas é a realidade, qual é mais realista? Leonardo ou Picasso? • P – Gente supostamente com TDAH relata experiências de hiper-foco e hiper-atenção, de desconectar-se de tudo e ficar horas olhando... Autista bate na coisa, e aquilo é de uma realidade tão violenta que ele não consegue sair. Esses artistas não estão fazendo retratinho do mundo, e sim pensando com a forma. A maneira de olhar renascentista foi imperativa, imperial, durante muito tempo. Todos pintavam com o olhar do outro. Então, passaram a não mais olhar: colocavam o olhar renascentista na frente e iam pintando. Aliás, voltando a Leonardo, sua técnica de colocar duas perspectivas na mesma paisagem é chinesa. Observem que as grandes paisagens chinesas têm mais de um ponto de vista. Vemos as pessoas passando na ponte, o pintor está olhando assim e, ao levantarmos o olho, ele sai. No renascimento, o ponto de vista é fixo: se o 115
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pintor desenha aqui e depois ali, são dois pontos de vista diferentes. Nada têm a ver um com o outro, mas como está no céu, tudo bem. O que chamo de ponto de vista é no sentido renascentista. E mais, a perspectiva renascentista só tem um ponto de vista, nem dois tem. Não tem profundidade como nosso olho tem. Temos dois pontos de vista ao mesmo tempo, o que dá profundidade. Então, como inventam a profundidade? Leiam o Tratado da Pintura, de Leonardo, para ver como ele faz aquilo tudo. Lá poderão ler sua cabeça constituindo um olhar. É interessante ler o que os verdadeiros artistas escrevem: tentam dizer como constituíram essa visão, esse olhar. Paul Klee tem livro assim, Kandinsky também. Ponto, Linha, Plano é o título do livro de Klee. Nós temos uma educação focal: isso está certo / está errado, isso se vê assim / assado, isso pode / não pode – tudo focalizado. Se questionarmos qualquer desses focos, aonde iremos? Na literatura, ocorre o mesmo, basta olhar o mundo com o olho de Joyce. Não apenas Ulysses, mas também Finnegans Wake. Que mundo é aquele? É assim que é a realidade para Joyce. A literatura, aliás, tem olhares demais. Nela é mais fácil, mais espontâneo, perceber do que nas artes visuais – foi mais fácil pular fora. • P – Agora que temos a Fanfic, explodiu de vez... Sim. Qual é o foco? E se formos muito longe, perde-se o sentido. Há que dar a volta, uma arrumada, se não, virará loucura. O que eu estou falando tem tudo a ver com a análise. Não se pode bancar o psicólogo que tem focalização ocidental, escolar, etc. Qualquer coisinha que saia da perspectiva é patológico: saiu da perspectiva, tem que tratar – esse é o psicólogo. Quanto mais a psicanálise anda para a frente, mais sai do foco. Se lermos de novo o próprio Freud, veremos como é focal. O tal Édipo é um foco bárbaro, muito forte. Tomou uma historinha local, familiar, e transformou em universal. Isso não existe. • P – Do ponto de vista das fórmulas, das lógicas, dos estilos e da sexualidade, poderíamos dizer que o que se anota como Sexo Consistente é uma vontade de universalização a partir do foco? E um foco muito concretamente apresentado, que é anatomia do desgraçado. Freud chegou a dizer a barbaridade “a anatomia é o destino” – um excesso de focalização. 116
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• P – E Lacan fala da consistência como focalização no objeto. Mas o objeto de Lacan tem a decência de não ser. • P – E o Sexo Inconsistente já é desfocado? Já é desfocado. É muito ambíguo, digamos. Lacan chamou de masculino e feminino, homem, mulher, o que nada tem nada a ver aí. Cada um tem o foco que tem. • P – O Inconsistente é franjal? O Inconsistente é ambíguo, repito, e não necessariamente franjal. Podemos tomá-lo do lado de cá e querer considerá-lo como franjal, mas ele é simplesmente desfocal: sai do foco e considera a ambiguidade da formação. É o mesmo que dizia de Cézanne, que não é franjal. Se for franjal, chegará ao infinito. • P – Podemos pensar os Estilos artísticos – Clássico, Barroco e Maneiro – a partir das noções de polo / foco / franja? Nada têm a ver. São três olhares diferentes. Há que perguntar aos artistas que quiseram ir para Lá. Por exemplo, Rothko: pintou uns quadrados, e quis ir (e “chegou”: pintou tudo preto e se matou). É pesado passar por uma experiência dessas. • P – Você distingue os pretos de Rothko? Não são pretos, não existe preto absoluto. Tomem as roupas pretas – eu, como sempre, estou de preto agora –, se colocarem óculos escuros verão algo banal, que a cor da calça é diferente da do paletó. Se olharem direto para todos que estão aqui, verão muitos que parecem estar de preto. Depois, coloquem um ao lado do outro, olhem com óculos escuros, e verão que aparecem as cores. Quebra-se um pouco a luminosidade, e vemos a cor: a calça é de uma cor, o paletó de outra. • P – Há a notícia de que já se produziu um material com absorção de 99,96% da luz. Esse aí quer ser preto mesmo. Querem pintar o preto absoluto, vai ser muito difícil, o branco é mais fácil. Leio aqui que é o vantablack e só de olhar, tenho medo, parece que vou cair num abismo. • P – É uma maneira de produzir perspectiva?
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Sim. É o abismo. Olhei pra isso e tive uma pequena vertigem. Entendem qual foi o problema de Rothko? • P – Mais ou menos o que você sentiu aí? Muito mais! Voltando às formações estilísticas, são concepções estilísticas diferentes. É claro que o artista que está dominado pela focalização renascentista teve que, ele, passar por um processo para produzir outra visão. Se quisermos, poderemos dizer que, na passagem de uma para outra, houve um movimento franjal, mas aquilo se decantou num estilo que pegamos e vemos. Ou seja, focalizou de outro modo. Não é uma experiência como a de Cézanne, que se desfaz para Lá. Eles criticaram, e caíram em outra focalização. E mais, é muito difícil alguém, numa vida só, conseguir ficar mudando de focalização. Um dos poucos que conseguiu foi Marcel Duchamp. De qualquer modo, são maneiras de olhar. E mais, teremos certa dificuldade com a psicanálise se não aprendermos a olhar e ver outra coisa. • P – Isso que você falou vale para a visão e também para a audição? Sim. E para o impacto com o mundo. Olhar para o mundo e entender que não era nada daquilo. • P – Em nossa tradição, sobretudo do século XX, tivemos alguns autores que olharam e puseram no mundo uma nova maneira de ver o Brasil: Oswald, Lobato, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro... Com todos os compromissos teóricos que assumiram, viram o Brasil e quiseram descrevê-lo. É claro que com forte influência europeia, mas eles pularam fora daquela visão, fizeram outra. Podemos imaginar, por exemplo, que quando Macunaíma, de Mário de Andrade, foi publicado devia ser algo esquisito para todos. Outro, Oswald de Andrade, se não tivesse certa indicação europeia, certamente teria sido assassinado. Por que Tarsila precisou ir à Europa para inventar aquela pintura? Porque a Europa já tinha: Ulysses é de 1922, Macunaíma é de 1928. Foi um olhar sobre o Brasil, mas o olhar não foi brasileiro. • P – E Macunaíma é um olhar diferente dele, Mário, que era alguém bem configurado, recalcado, quase que sem sexualidade... ...e Macunaíma tem todas. No mundo, Mário se comportava de um jeito, entre quatro paredes, soltava as frangas – e com exemplaridade europeia: Joyce, Mallarmé... 118
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• P – Macunaíma já é um personagem tomado de outro escritor, Koch-Grünberg. É um herói venezuelano-amazonense, cuja narrativa foi tomada de várias histórias, de vários outros personagens, e retranscritas, refeitas. Sua operação é maneirista. É quase Fanfic. Acho esse livro genial, é o Orlando (de Virginia Woolf) brasileiro. Este também foi publicado em 1928. • P – Virginia morre em 1941, dois anos depois de Freud. Aliás, Freud morre em 1939 – estava esperando eu nascer, se não, ficaria entregue às baratas. Ele ficou um pouco mais tranquilo e pensou: “Agora está entregue!” – literatura fantástica é assim. A propósito, já ouviram falar em Colson Whitehead, autor de O Trem Subterrâneo? Quero muito ler seu livro. Ele é um herdeiro de Borges e Garcia Marques. Agora, tomem tudo isso, coloquem como cabeça de analista, daquele que supõe poder ocupar esse lugar, e verão que tudo fica relativizável. A cada situação, há que buscar a chave adequada. Não se pode ser psicólogo. Diante do analisando, nada estamos entendendo, não entendemos o que está falando. Se entendermos, não entenderemos. Lacan fazia a metáfora de que o analisando está falando uma língua estrangeira. Leva tempo para aprender a falar essa língua.
14 Deleuze chama o Maneirismo de Barroco, ou chama o Barroco de Maneirismo, mistura tudo. Não sacou a diferença, e Lacan tampouco. Pode não ser óbvia, mas vários autores importantes que realmente observaram e pensaram, viram que, com Michelangelo, tanto na escultura como na pintura, tem início 119
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um outro estilo que não é o que mais tarde se nomeará Barroco. Já olharam bem a loucura que é o fundo da Capela Sistina? O teto também é um pouco, mas o fundo, onde está o chamado Juízo Final, é maneirista: tudo desproporcional, com movimentos radicais de corpo que não existiam no Clássico. Michelangelo inventou o que ficou sendo chamado de forma serpentinata por ser torcida. • P – Mas o Barroco também não é cheio disso? O Barroco é uma frescurada. Basta lembrar que a nobreza da época é uma veadagem só. O Barroco tem aquilo de ir desmunhecando e não parar mais. • P – E o Maneirismo não? O Maneirismo é: Revirão. Se quisermos uma geometria, teremos que o Clássico é uma circunferência; o Maneirismo, um oito-interior; e o Barroco, uma espiral. Isso é assim mesmo quando os artistas fazem seus desenhos. São três geometrias, vemos o movimento de três concepções de espaço e de corpo se contrastando radicalmente. Entrem numa igreja bem barroca – que não há no Brasil, pois aqui é maneirista –, e verão que é um desbunde, uma exacerbação, uma desmunhecação geral de ouros, de figuras. O Brasil, ao contrário do que muitos supõem, não é barroco. • P – Se formos ao Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro... ...veremos que é pseudo-barroco. Tem um pouco daquele excesso, mas os artistas brasileiros não chegam ao Barroco francês, por exemplo. É um negócio meio acochambrado. O Mosteiro de São Bento tem forte tendência ao barroco, mas não acho que o seja. Por outro lado, tomem as figuras de Aleijadinho e vejam que são maneiristas. Não se pode julgar o país pelas interferências impositivas de cima ou de fora. Notem que, enquanto a Europa estava começando a produzir o que chamam de arte moderna, acontece aqui a Missão Artística Francesa de 1816, que é uma imbecilidade acadêmica, mas que dominou por ter poder. Então, diríamos que o Brasil é acadêmico por causa desses idiotas? Não. O Brasil mesmo está no Aleijadinho, no pessoal daqui. Essas importações são imposições externas da Igreja, do Estado... Mas quando o país se manifesta com seu talento e sua ignorância – há isso também: Aleijadinho é um ignorante da produção artística, só tem talento –, ele exprime o que sente: é maneirista. 120
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• P – Vilém Flusser comenta que um europeu olha isso aqui no Brasil e sabe definitivamente que não é barroco. É outra coisa qualquer, mas barroco não é. Ele fala positivamente, diz que vê aqui uma mostração diferente e muito rica, que não é barroca. E critica certa tradição crítica brasileira que chamou a manifestação artística no Brasil, sobretudo a colonial, de barroco. A colonial é uma imposição externa, e mesmo assim não é barroco. • P – Cézanne, sobre quem você falou de outra vez, é maneirista? Cézanne é modernista. Como existem tendências para cada lado dentro do Modernismo, até poderíamos aproximar a tendência de Cézanne para o Maneirismo – mas não é um maneirismo. • P – El Greco é maneirista? Aquela gente ali do renascimento – até os grandes clássicos –, acabou fazendo um trabalho maneirista: Leonardo, Rafael... Quanto a Rafael, já fiz um seminário sobre ele [Rafael-la dos Santos: a trans-figuração do Falanjo (1985)]. Quanto a Leonardo, basta olhar para o fundo da Mona Lisa. Conforme disse da vez anterior, é tudo classiquinho direitinho, mas o fundo não cabe na pintura clássica. E ele disfarça bem, pois não temos como perceber sem análise. • P – Mas o Davi, de Michelangelo, é clássico, não é? Não sei. Você já viu as posições do garoto? Aquilo é um pouco difícil para ser clássico. O classicismo imita o grego clássico. E o grego também tem seus maneirismos. Laocoonte, por exemplo, é uma escultura de mentalidade maneirista na Grécia. • P – O Partenon seria uma tentativa de classicismo na arquitetura? Não é uma tentativa, ele fez. • P – Mas tiveram que entortar várias colunas para parecer... Isso é uma questão geométrica, visual, e não um problema estilístico. Se colocamos uma coluna reta de cima em baixo, nós a enxergamos para dentro. Então, eles a engordam no meio para parecer que era reta. Este processo é a êntase, que é calculada na mesma proporção dos outros elementos. Era um cálculo difícil e chato que tínhamos que fazer no meu tempo de estudo na Escola de Belas Artes. • P – Um aspecto marcante do Maneirismo é os artistas sempre às turras com a canônica da época. De algum modo, estavam virando, quebrando, 121
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desfazendo, passando por cima... Depois, no caso de Aleijadinho, temos que ele, sabendo ou não, tampouco sofreu a pressão de a escultura só poder ser em mármore. Esculpia no material que aparecesse: pedra sabão, madeira, até madeira vagabunda... O Maneirismo é uma contestação da imposição clássica. É afirmarem que não é assim que veem. • P – O Barroco também não é uma contestação? Não sei se é. O Barroco é um processo de transformação da Igreja por causa da Contrarreforma. Aquilo é pensado. A Contrarreforma produziu essa arte em aspiração, digamos: a espiral é uma aspiração para o céu, contra a aparência terráquea do protestantismo. É uma resposta ao protestantismo, e não uma contestação ao Clássico. • P – Então, você diria que não tem nada de Barroco na Grécia antiga? Nitidamente barroco, não. Mas de maneirista tem. O estilo chamado helenístico já não é clássico. E mais, notem que o Maneirismo não é uma virada entre isto e aquilo, e sim outro estilo, contestando o estilo clássico. Já o Barroco nasce de outra proposição. A Igreja estava uma porralouquice só, parecia o Brasil de hoje: uma esculhambação financeira, uma coisa horrorosa... O protestantismo chegou de pé no chão. A revolta de Lutero foi contra isso para falar direto com Deus, não precisar de intermediário, não precisar ficar dando dinheiro a pastores (estes agora já aprenderam, estão quase católicos)... E a Igreja, como resposta, exacerbou o processo, inventou o Barroco manipulando os psiquismos contra a seriedade de Lutero. • P – A Contrarreforma seria um marketing da Igreja para reconquistar os fiéis? Um aparelho de publicidade, catequese e contestação ao protestantismo. E o pessoal caiu na conversa, pois aquilo é deslumbrante. Lacan dizia ter orgasmos ao visitar o Barroco italiano. Ficou absolutamente épaté, ou coisa assim, diante da escultura O êxtase de Santa Teresa (1647-1652), de Bernini, que é barroquérrima, aquele negócio desvairado. Donde, é de se pensar que os homens são clássicos e as mulheres são barrocas (Lacan não disse isso, estou brincando)... Felizmente, tem turma ali que é meio para lá, meio para cá.
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• P – É preciso não confundir entre a história das emergências artísticas em épocas e culturas com o que você chamou de Estilos Basais (Clássico, Barroco e Maneiro). Os quais nada têm a ver com as épocas. Estas é que têm a ver com eles. São três formas típicas de expressão que as épocas tomam. E todas as épocas, suponho, têm as três. Mas dizer que comparecem em qualquer tempo não significa que seja obrigatório, que temos que tomar todo artista e meter dentro do saco. Eles comparecem por aí. • P – E houve época em que certos estilos foram recalcados. Só tinha uma única e poderosa expressão hegemônica. O poder pode dizer que tal expressão não é a arte dali. A arte egípcia, por exemplo, é altamente determinada pelo Estado faraônico. A União Soviética, por sua vez, impôs um academicismo da pior espécie. Não é a questão de ser clássico, e sim de ser acadêmico, que é uma espécie de decadência do pensamento plástico. Estudei numa Escola de Belas Artes, a mesma de onde saiu gente como Oscar Niemeyer, que era rachada ao meio. O poder era dos acadêmicos, e os modernos ficavam em luta permanente. Era a história funcionando dentro da sala de aula: os acadêmicos com o poder de nos reprovar ou não. Lá não se passava no vestibular sem fazer um desenho acadêmico. E qualquer professor que resolvesse fazer concurso para catedrático, poderia ser o mais moderno, tinha que fazer desenho acadêmico de uma estátua grega. Já os artistas do modernismo para cá não têm necessariamente que saber desenhar academicamente, eles fazem o desenho deles. Picasso, aliás, sabia, por ter sido de uma escola de arte acadêmica. • P – Duchamp sabia? No início, ele tem quadros meio impressionistas... Duchamp é um rebelde. Esses quadros dele são imitação da época. Depois, tentou competir com Picasso, fazendo um cubismo esquisitíssimo: Nu descendo a escada... O problema de Duchamp chama-se: Picasso. Este era, aliás, o complexo dos artistas da época: Como ser enorme com a existência de Picasso? Não há melhor lugar para caçar as expressões do Inconsciente do que no mundo das artes. Nele, as pessoas falam mais à vontade, sem compromisso com conhecimento que queira dar conta “objetivamente” da realidade. Pintura, 123
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literatura, música, etc., não têm compromisso de correspondência com uma explicação clarificadora, tratam a realidade com certa compreensão e expressão. A ciência quer saber como funciona de forma que seja possível repetir o acontecimento do Haver, da natureza, se quiserem. Já os artistas exprimem aquilo do modo como pensam e sentem – é uma expressão. Um edifício construído segundo um quadro barroco, ele cairá. O maluco que tentou fazer parecido foi Gaudí, mas primeiro deu uma estrutura de engenharia correta e depois desmunhecou por cima, é uma loucura hiperbarroca. E a psicanálise tem tudo a ver aí, pois uma maneira de se aproximar do Inconsciente é entender bem essa gente em todas as artes. É um lugar onde o Inconsciente está solto, as regras são poucas, ou você as inventa. Quando as regras são ditadas por determinado poder, vira um academicismo, uma obrigação de classicismo que logo-logo foi rompida. O classicismo é uma imposição, mas não um academicismo. E a própria Igreja entrou em outra, acompanhou o processo porque precisou se modificar. O academicismo tem regra, é by the book. Tem que fazer assim, assim-assim. Se não fizer, está errado. • P – E se há certo e errado, tem uma moral... Esse foi o drama da arte soviética, estragou-se tudo. • P – Haveria então quatro classificações? Clássico, barroco e maneirista, mas também os modernistas, que não se enquadram bem. Não são obrigados a ser estilisticamente desses três campos. Aí soltou a franga. Mas se não houver um mínimo de coerência para segurar a obra, é porra-louquice. Picasso não é porra-louca, ele pensa topologicamente. Não uma topologia matemática de fazer cálculos, mas uma percepção topológica do mundo, que chamaram de cubismo. Como disse de outra vez, se colocarmos o modelo dentro de um cubo, considerarmos suas projeções nas seis faces do cubo e as misturarmos, dará no cubismo. Por isso, é cubismo: considera o espaço geométrico euclidianamente, com seis faces. Então, a deformação segue a mistura das faces. Mas isso tudo na sensibilidade, e não no cálculo. No cálculo vira geometria descritiva. Precisamos sempre ter em mente que o artista verdadeiro tem algum rigor, nem que seja a descoberta de sua própria percepção e manter a expressão disso. Mas vemos muita coisa por aí que é de
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araque, não tem sustentação estilística. O artista, este, tem um estilo que tem razão de ser, nem que seja meramente psicológica. • P – Se achamos o algoritmo da razão de ser desse estilo, não é mais um estilo, e sim algo que qualquer um pode pegar e fazer igual? Isso acontece com qualquer arte, pois os epígonos, os copiadores, estão soltos. No Rijksmuseum, em Amsterdã, há centenas de pequenos quadros da época de Vermeer, com alguns quadros dele no meio. Notamos na mesma hora que os demais são imitação. Fica evidente, tinha uma sala lá que era essa aula. • P – O primeiro andar do museu Van Gogh também é assim. Van Gogh é extremamente rigoroso. Como? Que estilo é aquele? É dele, ninguém tem igual. Depois, tem igual, é cópia. Tanto é que, antes, ele não era reconhecido, era considerado aberração ou esquisitice. Algo que ninguém fazia antes dele era modelar o espaço no pincel. O espaço dele é modelado no pincel, além do colorido. Olhem bem e verão que a pincelada determina a constituição do espaço. Ou tirem uma foto em preto e branco do quadro, olhem e só verão a pincelada. Esses artistas não estão brincando em serviço, são excelentes, são gente de estilo. Gisêlda Santos aqui presente era minha aluna quando eu dava aula de história da arte no colégio dela nos anos 1960. Era engraçado, pois, como era no escuro com projeção de slides, ao acender a luz via um bando de crianças de outras turmas sentadas sobre os armários. Viam a sala escura passando filme e ficavam curiosos. • P – Sobre o que você falou sobre os estilos basais, com expressões lógicas... São estilos basais daquela época, tal como se apresentavam na época. Não sei se se apresentam com tanta clareza em outras épocas. • P – Parece-me que o Modernismo – do início do século XX para cá, nas artes plásticas e na literatura – é uma pletora de expressões que já eram indiciais dentro do Maneirismo. Você diria que os modernistas frequentemente se valem de manejos maneiristas? Não necessariamente. Mencionei os suprematistas, por exemplo, que são a tentativa de um classicismo radical. E há outras tentativas. • P – O Modernismo, sobretudo na literatura, parte de elementos que, dentro de um Maneirismo mais antigo, eram conquistas pesadas, difíceis, mas 125
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que se tornaram banais. Temos: paródia, pastiche, cópia, paráfrase, inversão, espelhamento de texto. A literatura moderna é quase que só isso, levado a graus extremos. Parece-me, então, que o que foi raridade em certo momento, principalmente pela repressão e pelo recalcamento postos pelo Clássico e pelo Barroco, pôde se expressar no Modernismo de tantas e quantas maneiras. Os artistas têm uma reivindicação de liberdade. E há a individuação exacerbada do artista. No caso das obras do Clássico, do Barroco, etc., cada um tem seu estilo. São diferentes, mas mais ou menos dentro do mesmo cânone. No Modernismo, o estilo é acompanhado por uma recomposição de tudo, do espaço, é outro cânone. Ou seja, cada um diz o que é seu. O tal do artista quer dizer exatamente sua sintomática, e que o resto se dane. É para falar de sintoma? Então, é o meu. Isso também estava nos outros, mas dentro de uma canônica que os amarrava. Há coisa mais louca do que a obra de Duchamp, mais “foda-se”? • P – No Modernismo a expressão é mais singular do que no Clássico? Neste há cânone dirigindo o processo. É canônico como na Grécia. • P – Na Grécia, as categorias não ficavam entre Apolo e Dionísio? Esse aí é o sentimento da coisa. As categorias são: dórico, jônico, coríntio – e com absoluta aparência do que vem depois como Clássico, Barroco e Maneiro. Está tudo na Grécia como cânone. A canônica dórica é clássica. Por exemplo, o Partenon, que foi citado há pouco, é regrado por um único elemento: frações estabelecidas do diâmetro da base da coluna dórica. O diâmetro da base é a unidade e todos os outros elementos são frações ou multiplicações desse diâmetro. Aí entra a êntase para disfarçar o erro de perspectiva que o olho tem, mas é um disfarce calculado, com regras. Em meu tempo na Escola de Belas Artes, havia a matéria Arquitetura Analítica, cuja prova durava uma semana. Tínhamos que fazer planta baixa, fachada e perspectiva de um Partenon, de um templo românico, ou de um templo gótico que fosse sorteado. Era legal por entendermos a estrutura canônica da arquitetura (não a estrutura arquitetônica, pois não sabíamos construir). • P – Há regra em tudo, inclusive numa suruba, não é? Para entrar numa suruba dionisíaca, tinha regras, não é de araque.
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• P – Paulo César Pereio, ator gaúcho famoso nos anos 1980, disse numa entrevista que do que mais se envergonhava foi ter sido expulso de uma suruba por mau comportamento. Eis a prova de que há regra em todo o lugar. Aliás, esse aí é mais para enlouquecido. Não é psicose, e sim loucura de drogas, disso daquilo... O que acho chato é ele ter enfiado muito isso na cabeça do Tunga, estragou um pouco. • P – O trabalho de Tunga é ótimo... Como já lhes contei, considero que fiz o parto do artista. Eu dirigia o teatro do colégio André Maurois no final dos anos 1960, e trabalhava com uns meninos entre dezesseis e dezoito anos. Um deles, arquiteto hoje, chamado Everardo, me disse que tinha um amigo – não era de lá do colégio –, que fazia uns desenhos muito especiais. Queria que eu conversasse com ele, pois diziam que era maluco, e ele estava ficando meio pirado com isso. Falei para ir à minha casa. Chegou lá aquele menino de dezesseis anos com sua pasta de desenhos. Quando vi, eram geniais. Disse-lhe: “Sua visão está correta, é isso mesmo”. Publicamos vários na revista LUGAR, nos anos 1970. Mas ele tinha alucinações, o desenho corria atrás dele no meio da rua de tanta perseguição. Digo que fiz o parto, por ter-lhe dito: “É por aqui! Vamos por aqui!” Nesse tempo, tudo que fazia, comentava comigo, pedia a minha visão, etc. Depois, ele foi adiante. Fiz sua primeira exposição na casa de Eduardo Sued, na Gávea, cuja sala fora transformada em uma pequena galeria. Lá nós nos reuníamos todo sábado para bater papo. Era uma boa turma, muitos se tornaram conhecidos depois: Sued, Ronaldo Brito, Tunga, Jorginho Guinle... A segunda exposição, cujo catálogo escrevi, foi no Museu de Arte Moderna [1974]. • P – Sued ainda pinta. Tem um estúdio no Itanhangá. Sued é excelente, sua pintura é da melhor qualidade. Já me convidou para ir lá, nunca fui. Tenho uma foto com ele e Marilia Valls na exposição de Antonio Manuel. • P – Você falou dos estilos, mas enfatizou os Estilos Basais da Expressão Mental. Ou seja, não se trata apenas da expressão artística, qualquer expressão mental os manifestaria. Porque é igual às manifestações da sexualidade.
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• P – Para entender melhor o que você está dizendo sobre o que é basal, temos em Ars Gaudendi, de 2003, uma boa indicação. Trata-se de “radicalizar a diferença de postura; e procurar, de modo minimalista, formações patemáticas de base. Já lhes falei dos Patemas da Psicanálise e se conseguirmos distinguir as formações patemáticas de base, teremos condições de, a cada caso, a cada momento, distinguir estas formações do que podemos chamar de formações-conteúdo, que estão metidas e embutidas nessas formações de base, o que, sem a distinção, resulta em enorme confusão na clínica” (p. 71). São formações primárias, secundárias e a originária, que é uma só, e isso se configura de algum modo. A formação originária movimenta qualquer coisa – e um dos modos de sua expressão é a pessoa enlouquecer, girar junto com o Originário. Vejo aqui que, na ocasião, até citei o I Ching, que estou ligando às formações de base. Seu inventor, sei lá quem terá sido, conseguiu tomar três elementos, fazer uma combinatória e depois dobrar. Ele começa de dois, mas a configuração é de três. Os orientais são um pouco mais inteligentes que o Ocidente: configuraram no três. Primeiro, temos 0 e 1, mas a configuração são três elementos. E ainda rebatem esses três elementos sobre outros três. Acho genial, pois, do ponto de vista puramente lógico, não tem mais que isso. Isso é o que tem. Então, o I Ching propriamente dito são só os traços. Aí, o pessoal começa a comentar e aquilo prolifera. Mas é uma leitura radical e mínima. Essas são as formações de base no I Ching. Em nosso caso, são as formações patemáticas de base. Para eles, é claro que os dois traços se constituem como configurações mínimas, mas só com esses não vamos a lugar algum, é um ou outro. É, aliás, a burrice ocidental: macho ou fêmea, masculino ou feminino... Como não são estúpidos, viram que, onde quer que apareça uma configuração, são necessários pelo menos três para poder fazer uma combinatória. Portanto, entram com o terceiro elemento. E mais, as pessoas são assim, não são apenas binárias como o Ocidente privilegia. Não encontramos alguém yin ou alguém yang, isso não existe. Esse raciocínio combina perfeitamente com Freud. • P – São várias forças atuando, e com algumas passagens. Por isso, tem uma combinatória: um pode ser dois yin, outro dois yang, etc. Ao dobrar os trigramas, temos os sessenta e quatro hexagramas – daí é que vem a conversa toda. Acho mesmo que o I Ching [Tratado das Mutações] talvez 128
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seja o melhor texto produzido pela humanidade: só tracinhos. Comparado com ele, a Bíblia é uma estupidez. • P – Ao apresentar a grade da Patemática (2003), você aponta que é preciso nos habituar a falar segundo seus termos sobre a Morfologia do Gozo. São três os seus movimentos mínimos: Progressivo, Estacionário e Regressivo, cada um com mais ou menos de positivo e de negativo, além de ativo e reativo. É um escantilhão de leitura. É um jogo enorme. E trata-se de observar qual escantilhão está em jogo a cada caso. • P – Ela não serve para diagnosticar no sentido de enquadrar as pessoas. Ninguém estaria fora dos Patemas. Foi o mínimo de leitura que consegui. • P – Você fez isso inspirado na escrita do I Ching? Não sei se inspirado, mas talvez influenciado. • P – No I Ching temos duas linhas, e a terceira que é a da virada, uma linha de passagem. O terceiro traço equivoca, torna os dois primeiros ambíguos, e temos uma passagem. Para onde? Para a repetição, onde isso vai se reconfigurar. Notem que a computação ocidental é só binária. Se não fizer jogos dentro do texto, equivocar, é muito pobre, careta. Por isso, precisamos da computação quântica. O que seria um computador produzido como o I Ching? • P – O próprio pessoal de inteligência artificial já supõe que no cruzamento da biologia e da computação, da informática de forma geral e do entendimento de que – pós-Darwin para cá – é possível entender o organismo vivo como polo de algoritmos. Ou seja, que o entendimento disso pela teoria da informação e sua complexificação será capaz de dar uma grande revirada sobre o pensamento do mundo hoje. Isso no binário ainda. Se o binário for equivocado pelo processo, será ótimo, já perdeu a virgindade. Algoritmos são capazes de fazer leituras muito mais amplas. • P – Algoritmos têm se desenvolvido muito. Daqui a pouco, será possível termos uma versão provavelmente mais correta de nós do que o que nós mesmos entendemos como sendo nós.
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Como a psicanálise pode – porque deve – chegar perto disso? Faço a suposição de que nesse momento ou a psicanálise morre ou se adapta. Adaptando-se, poderá usar esses mecanismos como corroboração no processo. Isto porque o que há na psicanálise não é o conteúdo que dizemos, mas o processo. Qualquer um que sirva, está bom: o processo freudiano, o lacaniano, o que quero, aquele que surgirá no computador... Interessa que haja possibilidade de exposição da constituição psíquica de uma pessoa. Já imaginaram quando a psicanálise puder se misturar com isso? • P – A computação, tal qual calculam, supera um grande problema mental que temos: as narrativas que nos habitam. Somos cheios de narratividades, que embargam nosso entendimento. Não é isso que é a psicanálise? A pessoa está cheia de porcaria na cabeça, não a deixando deslanchar, e temos que ir reduzindo, reduzindo... É um trabalho imenso, difícil e lento. • P – A Teoria das Formações nos dá muito mais chances para esse entendimento. Mas quero que apareça mais um passo, em que as formações sejam amplamente – absolutamente, jamais serão – visíveis, até por computação. • P – Tenho dificuldade de entender essa evolução de lá para cá, esse novo passo da psicanálise. Isso porque pensamos em pessoas, e não na psicanálise como função. A psicanálise como função sobrevive, pois não designa nada fixamente. Encontramos fixações, mas a psicanálise não designa nada. Por isso, é preciso pensá-la passando por uma computação dessa ordem, e alguém podendo assessorar a pessoa para se deslanchar ali dentro. Mas, antes disso, será loucura: a travessia é coisa de doido. • P – Será a lógica da ampliação de possibilidades de leitura algorítmica da pulverização. Caso em que o algoritmo consegue ler mais amplamente e dar um melhor cenário, uma melhor configuração do que essa falação mostra. Além do fato incontestável de que, mediante esse procedimento, a franja aumenta enormemente. Foi dito que temos narrativas na cabeça, o que se deve a termos foco demais. Polarizamos a situação e focalizamos demais. Mas se tivermos um aparelho de proliferação, isso irá longe. 130
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• P – Se as possibilidades de ler o Primário em suas manifestações etológicas, por exemplo, se aprimoram, ganhamos mais informação sobre a pessoa. O que é o processo evolutivo de uma espécie que se tornou movimentada pelo Originário? Qualquer IdioFormação que surja no Haver, por ser IdioFormação, contém Primário, Secundário e Originário, e quanto mais leve for seu Primário, mais rápido é o Revirão e, portanto, mais amplo o Secundário. Com isso, quero dizer que, quando surge uma IdioFormação em qualquer lugar, com qualquer base primária, o processo evolutivo salta com frequência enorme. Não é preciso que nossa espécie já tenha um processo evolutivo na carne. Nosso corpo é resultante de um processo evolutivo biológico. Outros podem até aparecer, mas é muito lento. Então, porque há Revirão, o processo evolutivo vira pelo avesso, não é mais dentro de nós, é do lado de fora, é tecnológico. E a tecnologia não é senão a evolução darwiniana das IdioFormações. Ou seja, já pusemos do lado de fora uma porção de coisas – roda, motor... –, e agora estamos colocando cérebro. O cérebro está virando do lado de fora, então temos que comprar um novo, pois o nosso é muito frágil. E se comprarmos um, aquilo vai mexer conosco de tal maneira que seremos capazes de ficar um pouco mais leves. Ou, se não, um pouco mais doidos. Para acompanhar minimamente o que o cérebro está fazendo, teremos que entrar em acordo com ele. Não é algo passivo. É vai-lá-vem-cá. Não há sujeito ou objeto aí, só formações transando. Notem que não se trata de uma evolução biológica, é pós-biológica. E mais, não esquecer que a espécie humana é retardada, imbecil. Vejam, por exemplo, aqueles documentários sobre animais selvagens: um bicho dando chifrada na cabeça do outro para transar com a fêmea... Somos parecidos com isso até hoje. É um bando de animais, não damos um passo à frente porque o Primário é burro. Aqui é o Planeta dos Macacos, como sempre digo. Além disso, estamos numa situação dificílima – não é só o Brasil que é essa monstruosidade política – porque estamos virando macacos definitivos. O pessoal reacionário, seja de que ordem for, fica culpando a tecnologia. Mesmo gente como Heidegger faz isso. Não se dão conta de que é simplesmente o cérebro do lado de fora. Nosso cérebro virou para o lado de fora e ficou mais limpo, menos abarrotado de sintomas. Então, não adianta culpar a tecnologia, pois é 131
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a mesma coisa funcionando em outro nível de apresentação. Se nós do lado de cá não conseguirmos entrar na era desse cérebro externo, estaremos ferrados, viraremos macacos, morreremos. Já imaginaram uma sociedade realmente civilizada? Vocês acham que terá Estado Islâmico, Vaticano, Igreja Universal, favela...? Isso é coisa de macaco, de sub-raça. Não tendo isso, a conversa é generalizada de tal modo que não temos fixação possível. A única fixação é saber que há aqui um polo. Para quê? Sei lá! Quem é você? Não faço a menor ideia! Se tomei aqui, agora faço. Daqui a pouco, não faço mais. As pessoas têm caráter, pode? Se uma pessoa consegue transar com isso que está nascendo, vai ficando cada vez mais funcional. Só tem função, não tem definição.
15 • P – Em AdRem (2008), p. 93, diz você que “a IdioFormação nossa nasceu em cima de um Primário de canhestro. Aliás, é espantoso como um Primário tão vagabundo tenha resultado nisso. É um Primário sem quase estabilidade alguma, em região alguma. O Princípio Antrópico deve funcionar caoticamente, e não aleatoriamente”. Não entendi o sentido de caótico nesse raciocínio. Essa definição de caos não está boa. É caoticamente no sentido científico contemporâneo. O caos é o produtivo, o construtivo, e não desordenado. É dele que saem as coisas. Aliás, já estava na Grécia, o caos grego é criador da ordem. Eles acham que criação se dá no caos. Digamos que seja o que dá certo substrato ao que chamo de HiperDeterminação: algo que salta fora e quando cai, cai arrumado (notem que isso é uma metáfora). Entendo o caos como, primeiro, inarredável e, segundo, uma forma de suspensão, aquilo que Hegel chama de Aufhebung. Mas é melhor do que Hegel, é mais para o lado 132
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científico. É interessante Hegel ter percebido e chamado de Aufhebung, suspensão. Quando ocorre, é suspensão das oposições. Se imaginarmos que há o que chamo de Terceiro, de Ponto Bífido, é esse lugar em que não se sabe para que lado vai cair. E vai cair, ordenadamente. Lembrem-se de que falei que, ao invés de tese, antítese e síntese, o que temos é: tese, anti-tese, ek-tese e pro-tese. A Ek-tese é onde mora o caos. • P – Mesmo no campo das Teorias do Caos, da Complexidade e da Informação não há acordo sobre uma definição para caos. Cada uma definiu segundo seu protocolo. É assim mesmo. Essas formações explicativas tentam explicar o que é o caos justo por não saberem o que é. Aliás, toda teoria de qualquer coisa está tentando explicar o que não sabe. Se soubesse, estava fácil. Cachorro não faz teoria, pois já sabe tudo, sabe ser cachorro, não precisa fazer nada, quem não sabe somos nós. A proliferação de conhecimento de qualquer ordem é o sintoma da ignorância. Nosso sintoma é a ignorância. A gente não sabe, e então ficamos produzindo saberes. Se soubéssemos, calaríamos a boca. Por isso, fundamentalmente, não existe conflito algum entre qualquer pensamento e outro. Os conflitos são frescuras sociais, acadêmicas. Por que conflituar com outro pensamento se aquele é tão ruim quanto o meu? Essa vontade de saber é algo que terá que sumir da história do planeta. Nada há para “discutir”. Se quisermos comparar um pouco, ou usar dois ou três achados ao mesmo tempo, é o que há a fazer. Não cabe dizer “meu saber é o que está certo” – (é óbvio que meu saber é o que está certo)... Estamos num momento de virada maravilhoso, tudo está virando. A virada vai demorar, mas será completa, o que é maneira de dizer, será enorme, não há completude. O que está prejudicando o andamento da “música” é a maioria Estacionária. Só um pequeno grupo de pessoas é Progressivo, muito pouca gente ainda. Como digo, isso ficará curado por um negócio chamado morte: a morte cura tudo. Ou vocês imaginam que aqueles que nascerão daqui a cento e cinquenta ficarão igual a isso que temos aí agora? As pessoas estão sendo subvertidas pelos acontecimentos, sobretudo tecnológicos. Tudo que o homem inventou para ver se segurava um pouco a maluquice faliu, acabou. Como as pessoas não sabem, estão vivendo tempos passados, lá atrás, mas já acabou. Por exemplo, uma das coisas interessantes de hoje é a reprodução in 133
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vitro, sem útero, com útero artificial. Reprodução do quê? Do que quisermos: filhos, etc. Então, que família é essa que já pode fazer filho de duas mulheres sem barriga de aluguel, ou de dois homens? Por que não se faz? Porque os Estacionários estão nos comandos, nas leis, nas regras. Digo isso não porque farão, e sim porque já fizeram. Com bichos já anunciaram. Se fizeram com gente, está escondido (e certamente foi feito). E mais, se for possível eliminar a maioria das doenças que têm facilitação genética? E ainda – o que é mais assustador para os carolas – misturar materiais de outros animais na espécie? Ficaremos com competências enormes, organizadas, nomeadas. Muito do que está congelado na biologia, não sai dos laboratórios por causa da estupidez dos Estacionários, mas só o fato de lá existir já acabou com as definições pregressas. Não somos animais. Se fôssemos, saberíamos tudo e seríamos alguma coisa. Como nossa regência é pressionada pelo Primário, mas a regência é do Secundário, acabou, não há como regrar isso. A regragem não é consentânea com a possibilidade, e sim com o atraso. A regragem é Estacionária. Se o útero artificial já foi construído, não é mais preciso de barriga de aluguel. Daí que o sexo futuro é puro brinquedo, e vale qualquer coisa: tudo é bom, quanto mais diferença, mais gostoso. O sexo ainda está aprisionado à reprodução, mas quando isso explodir, para que servirá o sexo? A fabricação de crianças não terá cópula, será em laboratório. Ou seja, o passado realmente passou. • P – Mas ainda estamos pensando em termos de uma base primária de carbono. Lá para a frente, sabe-se lá o que acontecerá. Mas só de fazer uma combinatória infinita na base carbono, quero ver discutirmos a diferença entre as pessoas. • P – Essa combinatória infinita garantiria o surgimento da maquininha do Revirão? Para ser IdioFormação tem que ter o Revirão. Portanto, já vem com Revirão, porque a base é de gente. Estou falando da produção de pessoas. Como a base é a nossa base, a mistura pode ser enorme, mas é três por cento, digamos, o resto é nosso. Não é cruzamento, e sim composição. Vai-se compor um genoma. É igual à música, faz-se uma musiquinha e sai uma pessoa parecida 134
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com qualquer um, mas cujas competências são absolutamente outras. Sempre que houver a produção de uma formação, ela será configurada. Só é diferente porque se misturaram coisas. Entram em jogo coisas como o epigenético, por exemplo. O pessoal da biologia já descobriu entre os primatas que a função “facilidade de alimentação” produz animais com comportamento pacífico. É a diferença entre o Chimpanzé e o Bonobo. O chimpanzé é exclusivista: tem o animal alfa que sai na porrada para dominar as fêmeas, um mata o outro... Isto porque a história do desenvolvimento que resultou neles é de carência alimentar. Então, saem na porrada para ver quem sobrevive. Já os bonobos, que foram produzidos em lugar de fartura, não gostam de brigar, todos transam com todos numa boa. E como as fêmeas transam entre si, fazem uma amizade serena e dominam os machos, elas é que mandam. Não têm dominação agressiva, mas determinam tudo, porque se amam. Os machos também transam, fazem tudo isso, mas não sabem muito, porque as fêmeas é que mandam, sem briga, sem porrada. Tudo que era pecado no Terceiro Império é maravilha no Quarto Império. O sexo só vai prestar quando todos transarem com todos. Freud tinha razão: é pela via do sexo que tudo é compreensível, sempre é pela via do sexo – pelo deceptivo, é claro. Tenho pena de não ficar para ver, mas deve ser engraçado daqui a cento e cinquenta anos observar os comportamentos de “talvez”. Alguém perguntar ao outro quem ele é, e ter como resposta: “Sabe que não sei, diga aí”. É bacana por ser o triunfo do Revirão, o triunfo do vetor, a evolução veio para isso.
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16 Mas vejam o quanto a psicanálise está atrasada, é cheia de preconceitos e velharias. Eu não estava brincando ao dizer que Lacan é um pensador terminal. Ele fechou um tempo, encerrou com chave de ouro, e ser lacaniano hoje é o mesmo que ser neo-troglodita. O pessoal não consegue ver que foi um grande acontecimento para encerrar um tempo (não só da psicanálise, mas) do mundo. Agora chega, vamos começar a pensar direito porque isso aí acabou concretamente. Como a maioria é Estacionária, parece que todos estão vivendo o antigo, mas mesmo os Estacionários estão sendo carcomidos por dentro por um celular desses que têm nas mãos. Já repararam que gente tipo Deleuze tenta abrir para a frente? A meu ver, abrem mal, ainda são cheios de regras de composição. Lacan tem o discurso de entender até ali e encerrar o ciclo. Acabou o século XX junto com o Terceiro Império. E insistir naquilo é pura boboquice, é funcionar como um fóssil no meio do acontecimento. Lacaniano já é um fóssil hoje. Digamos que, compativelmente com o século XX, Lacan decidiu o valor determinativo da linguagem: “O homem é um ser falante”. Não é! A fala é mero epifenômeno. O importante não é ela, e sim o que a produz: o Revirão. Importante é que há Secundário, o qual, mediante Revirão, etc., funciona de tal maneira que acaba aprisionando num sintoma horrível chamado língua. É um sintoma horroroso, não podemos falar com todo mundo por não saber a língua do outro... Uma língua é um Estacionário. Há quanto tempo existe o sonho da língua universal? Quando garoto, estudei esperanto, até sabia falar um pouco, pensei que pudesse dar certo. O sonho de língua universal é a tentativa de escapar de um Estacionário chamado língua. Nisso, Lacan acertou: a língua é um sintoma. É, portanto, bobagem continuar achando que se trata da espécie falante. Colocar assim foi importante para desenhar o final do século XX, mas já temos declarações de muita gente nas artes plásticas, na física, que não pensa com a língua. Já mencionei que Einstein declarou que via as 136
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articulações matematicamente, que não passavam por sua fala. E muito artista pensa plasticamente. Segundo Lacan, por trás disso, tem a língua. Não tem, há gente que pensa para fora da língua. Só por isso, vemos como lacanianos estão atrasados, viraram o convento do século XX. O que acontecerá conosco? O que acontecerá com as possibilidades da psicanálise? Atualmente, ela ainda é importante, eficaz. Por quê? Porque estão todos no Estacionário. Como será o Estacionário futuro? Ele não acabará, não pensem que há paraíso em algum lugar, é a mesma porcaria, só que tem progresso, riqueza. Muita coisa ruim pode acabar, mas não será o paraíso, pois sempre se arranja um jeito de inventar alguma caraminhola para ser infeliz. Como vai ser? Tomando só o que aconteceu recentemente em relação a Lacan – esqueçamos Freud, Jung, etc. –, é tristonho ver aqui em nossa região uma maioria imensa de macacos psicanalíticos, um bando de primatas lacanianos. Dá pena, pois aquilo não anda, é paralisado. Por outro lado, em seus laboratórios, biólogos estão se lixando para o que achamos. Quero ver como dar conta quando aquilo sair do laboratório. Nem sei o que fazem, o que não podem é confessar, pois a polícia vem em cima. O que não estarão fazendo escondidinhos? O Secundário começa a vencer as oposições do Primário, a passar por cima e manipulá-lo. Não se sabe aonde vai dar. Deve ser muito engraçada uma civilização daqui a dois mil anos. • P – Eles estão mexendo nas Fundações Mórficas? São elas que estão sendo mexidas. Um cientista desses, em seu laboratório, está mexendo nelas, dentro do Primário, o que resulta em possibilidades enormes. • P – Diz você que “as fundações mórficas não são estritamente primárias. Elas têm base primária, mas sofrem o impacto das experiências, permanecem nas experiências. É como no caso das Formações Epigenéticas. Por isso, as chamei de estéticas. É uma experiência estética que reconfigura, que rearfirma até, mas com certas configurações básicas” (AdRem, 2008, p. 107). Se tomarmos por certo o que diz a epigenética, essa experiência é estética no sentido do termo aesthesis: sensibilidade do biológico diante do mundo externo. Para a epigenética, desde o feto a pessoa está sofrendo consequências da amamentação da mãe, dos ritmos, aquilo está mexendo, variando. 137
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E a variação é necessariamente dependente de fatores estéticos, no sentido genérico do termo. • P – Como fica, então, a psicanálise? Ela sempre foi tida como dependente da fala. A fala é interessante e importante na psicanálise, mas dá para fazer psicanálise em silêncio dos dois lados. Aliás, Lacan tentou isso, uma troca – direi um nome pesado – de afetações sem conversa. Mas temos que andar para a frente, pois não é bem isso, e tampouco é o que estou dizendo. • P – Se houve análise, houve troca de afetações. Freud dizia que, para entender a psicanálise, é preciso haver a convicção interna de que ela funciona. Esta convicção não é uma afetação? Trata-se de perceber que certos nós vão se desfazendo. Ou seja, sempre é o Estacionário que começa a andar. Ele estava paralisado e mexeu, e é reconhecível que mexeu. Além disso, a psicanálise pode acabar. De repente, em algum momento, não fará falta, ou terá virado outra coisa. Repetindo, ela ainda é eficaz por estarmos cercados por um bando de Estacionários dominados pela cultura. O tipo de cultura que têm é uma prisão. Então, o que fazer? Subverter o culturema da pessoa. • P – Você já disse que qualquer pessoa poderia fazer análise com qualquer coisa. Digo que a Análise Efetiva é assim. Se a pessoa conseguir ultrapassar certo limite de seu Estacionário, a toda hora poderá estar em análise. • P – A tradição oriental tem a prática da suspeição da fala, do discursivo. Como fazer o mínimo de suspensão do sintoma língua sem tentar cair fora? O Koan, o fazer silêncio, por exemplo, são tentativas de escapar do sintoma língua. Outra maneira é ser poliglota, manejar várias línguas para escapar de um sintoma único. Como os orientais tentam escapar da língua e da fala em geral mediante exercícios de cair fora, vira aquela coisa misteriosa, religiosa. Não se trata disso, de ginásticas. Em geral, as pessoas insistem religiosamente em seu sintoma. Raramente vemos alguém fazer esforço de travessia para algo contra sua construção sintomática, querer passar para lá e ver como é. Isto, sim, é libertador – para quem consegue. 138
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• P – Os sintomas estão na língua, ou se expressam nas afetações? É a mesma coisa, os sintomas são formações. Ou seja, vice-versa, qualquer formação é sintomática. Se ela está se formando como certa formação, é um sintoma, não tem jeito. Pode até ser bom, prático, utilitário, mas é sintomático. • P – Por isso, é resistente. A resistência é das formações. Ninguém teve mais competência do que Espinosa para dizer isso. Seu termo é: Conatus. • P – Diz ele que é: Perseveração na existência e resistência à destruição. Qualquer formação é conatus, não tem saída. Só por ser formação ela persiste. A função analítica pode passar para o lado da biologia. Ou seja: o Secundário interferindo radicalmente no Primário. Estou falando do cientista que vai ao laboratório e mexe lá, o que também é interferência do Secundário no Primário, mas é indireto. • P – As resistências não ganham sempre? São muito fortes. Se sempre ganhassem, estaríamos ainda na pré-história. Ganham sempre na gentalha, que é o lixo do progresso. Gentalha não pensa, é Estacionária demais, quer matar quando vê alguém se mexer, é um bicho neo-etológico. Apesar disso, quando a minoria produz algo – que, de saída buscam destruir –, acabam gozando com aquilo, tomam um gostinho e querem também, mas sem participar nem um pouco do progresso. Eles só utilizam o progresso. É a situação civilizatória bastante complexa em que estamos vivendo, cercados por um bando de animais neo-etológicos. Alguns poucos fazem, e quando fazem a lei os persegue. Mesmo assim escapolem, fazem escondidinho e não mostram, pois os de fora não entendem nada. A resistência é enorme, mas, por outro lado, os resistentes são corrompíveis. Já escrevi em algum lugar que a corrupção – corruptio, em latim – tem um lado bom. A pessoa é reacionária, escrota, etc., mas é vendável – como todos, aliás. Acaba vendida ao uso de uma nova invenção. E mais, se conseguimos corromper uma estrutura biológica, ela pode ficar maravilhosa. Vejam que temos que sair dos sentidos únicos da língua. O nome disso está em Nietzsche: Transvaloração. Algo é bom ou ruim para quê? Como? Quando? Não tem valor agregado à coisa – o valor é ad hoc.
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17 • P – Falávamos sobre a Semasionomia, proposta como teoria da arte em 1976. Você a coloca como projeto a ser desdobrado, não retoma o termo a seguir, mas podemos considerar que ela se desenvolve na Nova Psicanálise e na ideia de Revirão. E lá já está posta a chance de HiperDeterminação, de o artista nela se perder. É algo antigo, que abandonei. Nunca desenvolvi como técnica específica. Se alguém quiser fazer a operação da Semasionomia, aplicá-la em qualquer área, precisará de mais recursos. Na ocasião, eu implicava com Julia Kristeva... • P – Você estava implicando com a semanálise, a semiótica e a semiologia. Hoje, você fala em Est’Ética para pensar a questão da Criação em diferença para com a criatividade. Para sair das ideias de estrutura, de nomós, de lei, de governo... • P – Mesmo você achando que não a aplicou, podemos dizer que a Semasionomia é operativa em sua ideia de com-sideração e nas análises das obras de Guimarães Rosa, de Velázquez, de Marcel Duchamp... Já que você está dizendo, então é. • P – É importante a distinção que, na sequência, você fará entre Criação e criatividade. Qual estratégia aplicar para reconhecer a HiperDeterminação numa Criação como a de Velázquez? Eis algo difícil demais. Ao trabalhar a obra de Velázquez é justo o que estou procurando. Achei? Não sei. • P – E em Duchamp? Ele é o mais esforçado para deixar a coisa virar sozinha. Imagino que o próprio Velázquez – pintando divinamente segundo os interesses da corte de Filipe IV, com toda a arrumação cristã, etc. –, um dia, faz uma crítica radical daquele mundo com o quadro Las Meninas (1656). Coloca lá o liliputiano e a anã que, mesmo existindo na corte, poderiam não ter sido incluídos. Ele faz um enorme esforço de apagamento e apenas mostrar o reviramento. O que terá 140
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acontecido para conseguir fazer isso? Espero ter mostrado que ele efetivamente perseguiu esse entendimento ao colocar o espelho e tudo girando em torno dele, espelho. Mas, repito, o que terá acontecido para ele acabar fazendo aquele quadro louco? Os comentadores, Foucault inclusive, leem de modo corrente, de modo científico, querem saber o que lá estaria representado, o olhar da dominação, daquela ordem de governança... Pode ter isso também, eles não estão errando, mas não é o que faz o quadro ser estupendo. Se deixarmos de olhar para as bonitezas que lá estão, a cabeça gira. Duchamp, por sua vez, pôde ser mais radical, pois já era característico de sua época. O que fazer com seu Vidrão? Dele nem podemos dizer que é o rei, a rainha... Depois, ele simplifica. Toma a mesmíssima coisa e faz o Étant donnés, só que agora é folclórico, trabalha com o que as pessoas podem sentir. Há uma xota, etc., mas produz a mesma vertigem no espectador. No Vidrão, não temos a mesma vertigem, pois é preciso certo refinamento para lidar com ele. E se paramos e começamos a pensar, aí ferrou. O Étant donnés é o mesmo, mas para todos, para a gentalha entrar um pouco ali. • P – Você diz que, quando isso acontece, o artista se perde. Isso é a invasão da HiperDeterminação no processo? Não adianta perguntar a Duchamp o que lá está. Ele não sabe, a ocorrência escapa de sua mão. Ele é lúcido, lógico, jogador de xadrez, mas se meteu numa trip em que se perdeu, aquilo andou sozinho. A ideia de não saber é compatível com nossa composição cerebral, que é pobre, não temos como acompanhar. Um hiper-computador pode acompanhar muito mais longe, até falhar. De tanto acumular, através dos milênios, nossa composição parece rica, mas é a acumulação que é rica. A lata de lixo do mundo é riquíssima. Nossa complexidade é somatória. Milênios de civilização para surgir uma coisinha nova aqui, outra ali. No computador, a complexidade está disponível por inteiro. Imaginem, então, uma HiperDeterminação com a cabeça do hiper-computador. Perto dele, somos macaquinhos de circo. A pobreza da espécie é suficiente para fazer muita coisa, mas o que interessa é a civilização, a acumulação que é pouca. Se um ET três mil anos à nossa frente em termos de civilização chegar aqui, achará que é uma roça. Já imaginaram a acumulação de quem tem três milênios a mais? Ela foi muito longe, o que, aliás, prova que o Haver é capitalista. Os 141
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princípios socializantes, mormente os comunistas, querem barrar a desigualdade do Haver. Eles têm um ressentimento com o Haver. O Haver em suas formações não é e jamais será todo por igual. Então, como administrar esse “não é” para não ficar tão ruim? É possível minorar as diferenças muito graves, e isso deve ser feito, mas jamais será igual. O regime é da Diferença. • P – A propósito, não entendo bem o que, há alguns encontros (item 12 acima), você disse sobre o aceleracionismo de esquerda ganhar num primeiro momento. Isto ocorrerá porque é muito grande a quantidade de macacos. Então, vão acelerar para trás e cada vez mais rápido. Em minha vizinhança, em poucos meses, apareceram quatro igrejas. E vai piorar, pois a massa que pede por isso é enorme. Daí ser preciso muitas gerações morrerem. O pessoal que vai nascendo, mesmo convivendo com essa situação, sofre um impacto muito grande do outro lado. As crianças manejam computadores logo depois de nascerem, o que vai “estragar” suas cabeças. No geral, as gerações, diante de qualquer medinho, aceleram para trás. E chegará um momento em que os que pensam diferente não poderão falar publicamente, terão que fundar sociedades secretas. O planeta está desvairado. O pessoal vivia da religião do saber, que estava arrumado, mas como os parâmetros se demonstraram impossíveis de continuar a ser sustentados, só resta esperar alguns séculos para o Quarto Império se instalar de outro modo. A condição de mudança está nas altas camadas de pensamento, que não podem fazer muita coisa atualmente, pois a macacada não permite.
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18 • P – Falávamos também sobre a relação da psicanálise com a ciência. Em AdRem (2008), p. 102, temos que “a postura do analista, sobretudo quando teoriza o que faz, quando procura um conhecimento que possa garantir sua prática, sua postura é científica, e não filosófica”. A implicância aí é com a ideia de ciência tal qual definida pela epistemologia. Como ela é reconsiderada a partir da psicanálise, pode-se afirmar que a psicanálise é uma ciência. Fazendo bem barato, o que mais qualifica uma operação enquanto científica?: Querer saber como funciona para ver se é possível repetir de maneira secundária. Este não é o caso da filosofia. Portanto, não adianta pespegar filosofices na psicanálise, pois ela também quer saber como está funcionando aqui e agora. Isso é ciência. Os epistemólogos fracassaram, falaram um monte de bobagens. Alguns são tão sérios que confessam que a epistemologia é uma vontade da filosofia de dominar o saber, o conhecimento. É uma vontade de dominação que pertence ao campo da filosofia. • P – Mais adiante, diz você que, para a psicanálise, trata-se de saber “como gente funciona, como as pessoas funcionam. A psicanálise é a ciência da Pessoa. Da pessoa humana? Não, da Pessoa, pois não sei se toda Pessoa é humana”. Depois, diz que, na psicanálise, “há certa prognose, mas que é mais ou menos, não é nem probabilística, e sim caótica, no sentido da teoria do caos, no sentido da fractália das coisas”. Suponho que, no campo do pensamento de hoje, já há esse entendimento. Mesmo na filosofia há uma garotada, em torno de seus trinta-quarenta anos, que se parece comigo e estou gostando. Alguns pertencem à turma do realismo especulativo e outros ao aceleracionismo, do qual falamos antes aqui. Acabei de ler Méthaphysique et Fiction des Mondes Hors Science (2013), de Quentin Meillassoux. É meio perdido, não acha nada, mas é interessante por tentar mostrar que o que chamamos Science-fiction tem relação comprometida com a ideia de ciência. Para escrever uma ficção, por mais louca que seja, diz 143
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ele que é preciso, em última instância, obedecer à ideia de permanência, de constância do saber na ciência. A coisa é enlouquecida, mas tem uma obediência à ideia de repetição que há no campo científico, i.e., que as leis do Haver são constantes, são sempre as mesmas, e não há como escapar delas. Ele promete ter descoberto em alguma literatura e tenta fazer a teoria do que seria o contrário disso: a possibilidade de fazer uma ficção, aproximadamente científica, que reconhecesse que as leis do Haver podem não ser constantes, que são contingentes. Eis algo que está dentro de nosso plano teórico: buscar a possibilidade de escrever uma história como se fosse da ordem da Science-fiction, que não mais estivesse dependente da constância das leis da natureza, digamos, das leis do Haver. É o mesmo que, ao colocar a ideia de HiperDeterminação, brincando com Hegel, quis dizer com Ek-tese: caiu fora, borrou – ela pode surgir. Aí faço a pergunta esquisita: o que é um milagre? Existe? É óbvio que existe. O folclore é bobo por atribuí-lo à intervenção de algum santo, de Deus, mas a ideia intrínseca do que possa ser é: uma lei da natureza que foi desobedecida. Acho mesmo que, regionalmente, dadas as circunstâncias, acontece a HiperDeterminação – e isto, mais do lado do Secundário. Se não contarmos com a HiperDeterminação, não conseguiremos mexer no psiquismo de ninguém. Quando se consegue abalar o psiquismo, ele salta fora e cai em algum outro lugar – isso é o milagre. Analista tem que fazer milagre... É a produção científica do milagre. Trata-se, portanto, da ideia de HiperDeterminação cuja teoria esses autores tentam formular. Ou seja, surge um aleatório que escapa da repetição da lei natural. Notem que o Vaticano exige três milagres para considerar alguém santo (os quais, aliás, têm que ser atribuídos a tal pessoa que esteja torcendo para o time católico). Então, não cabe chamar de milagres os achados científicos, pois estes são cabíveis na ordem científica da repetição da lei. Tanto é que são reconduzidos à ordem do conhecimento da ciência, i.e., à repetição inexorável do Haver. Já o milagre é alguém tentar trazer para a ordem do conhecimento científico e aquilo não caber porque é o conhecimento científico que é careta. O milagre é um acontecimento bruto, ficará sempre sem explicação, ele não se repete e não é “cientifizável” por ser HiperDeterminado. Esta é a ideia de HiperDeterminação que busquei trazer. É difícil equacionar a psicanálise em seu aspecto científico, tanto é que muitos debocham de nossa situação. Quanto 144
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a isso, Lacan teve a brilhante saída de dizer que a psicanálise é a ciência do singular, o que é um oximoro. Ela não é a ciência que vai explicar o singular, é a ciência que tenta reconhecer a singularidade da HiperDeterminação numa análise. Justo por isso, não aceito a ideia de fim de análise. Ao acontecer a HiperDeterminação, acabou qualquer transa, nada se sabe dizer sobre o acontecido, sabe-se apenas acolher. • P – Se você está dizendo que a contingência é soberana, a rigor, não há necessidade no Haver. Há, sim, necessidade, mas ela é abalável, passível de HiperDeterminação. Como o Haver se apresenta mais frequentemente como formações Estacionárias, os cientistas têm suas chances. A ideia de necessidade é que supõe que, como a maioria das formações do Haver se nos apresenta com cara de permanência, de repetição, aquilo que é estranho, que não dominamos, fica parecendo extra. Mas não é, pois o Haver tem regiões de HiperDeterminação. Pode até ser no corpo de uma pessoa, que é o que a Igreja fatura como milagre. Como a ignorância é enorme ficamos sem saber com precisão se é uma HiperDeterminação ou se era nossa ignorância do modo de funcionamento regulável do Haver. É uma zona que não temos como capturar. Então, um dia, alguém mexendo numa situação, tentando equacioná-la, encontra o processo repetitivo e chama aquilo de científico. E o resto? Quando não sabemos se é nossa ignorância ou um acontecimento? A HiperDeterminação faz acontecer e não sabemos qual é a passagem de uma a outro. A formação era x, sofre um processo de HiperDeterminação, caotiza e cai em y – jamais saberemos o que aconteceu no meio. Entretanto, podemos estar enganados, estar diante de algo de extrema ignorância e pensar que foi um milagre, mas era só ignorância. • P – No caso da psicanálise, existe a operação que é da ordem do milagre? Existe essa possibilidade. Ao tentar fazer teoria psicanalítica, seja de que ordem for, estamos tentando regularizar o processo. Entretanto, a psicanálise já opera – isto é, tem um escopo teórico para guiá-la – esperando que essa regularização seja derrogada na análise de uma pessoa. Se não, não há possibilidade de crescimento da teoria. A única repetição que se dá no milagre é a repetição da HiperDeterminação em algum lugar. Há, portanto, a ambiguidade 145
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de a HiperDeterminação se repetir, mas não temos controle sobre isso, justo porque é hiper, extrapola. • P – Se a psicanálise é considerada uma ciência, isto não significa que ela também buscaria a repetição? Como disse, a ciência é a vontade de querer saber como funciona. A repetição é posterior. Enquanto o cientista não armou o processo de repetição como reconhecido, só quer saber como funciona. O poder repetir é continuação do ato científico, que fará com que aquilo seja reconhecido como científico. A epistemologia se arrebenta, quebra a cara nessa hora. Já a psicanálise como ciência do singular é, quase que na imitação do cientista, tentar entender como funciona, mas tem um funcionamento interno que extrapola o reconhecimento do funcionamento. Se não, será psicologia que pensa ser ciência no sentido epistemológico, de armar um conhecimento, dar conta do processo e explicar que funcionou assim-assim. No mundo psicanalítico, também temos essa vontade, está em Freud, mas, no campo analítico, é outra ciência. La scienza nuova, como dizia Vico... • P – Aí ela não ficaria mais próxima da arte? Não confundir os campos. A arte não está nem um pouco interessada na repetição. Sem querer, ela repete, mas está interessada na expressão de algo que nem ela, a ciência ou ninguém sabe dizer. Daí, ela diz um troço. Depois que um artista consegue dizer repetidamente sua sintomática, é possível ler e descrever essa sintomática. Ele expôs sua sintomática mediante outra coisa, mas não está fazendo ciência e tampouco psicanálise. E mais, se consegue o que chamo obra-de-arte, ele se perdeu. Aí, sim, é do mesmo nível. A função do artista é: perder-se. Se “entendemos” sua obra, ela acabou, não presta para nada, é só bonitinha. O artista precisa se perder de seu sintoma. Se não trabalhar acuado por sua sintomática, estará apenas imitando. Ao conseguir expor sua construção sintomática, ela passa a se repetir na obra. Então, se ele faz algo e se perde – nem que, pelo entendimento da obra, aquilo tenha revirado –, aí está perto de uma HiperDeterminação. Ou, se não, é uma HiperDeterminação. É difícil saber isso. • P – A emergência de IdioFormação no Haver é da ordem dessa indecidibilidade de ser ou não milagre, de ser ou não HiperDeterminação? 146
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Uma IdioFormação surge por HiperDeterminação. • P – À revelia de todas as previsões? O pessoal fica procurando pessoas no espaço sideral. Se não acontecer uma HiperDeterminação, elas não aparecem. Ou talvez não apareça a vida. Faço a suposição de que na alta complexidade do químico, do físico, da tendência ao biológico, em suma, algo determina o aparecimento da chamada vida. Por isso, não se entende como faz. Se um cientista doido, daqui a uns duzentos anos, conseguir fazer a vida emergir no laboratório, o que terá conseguido é arrumar de tal maneira que surgiu uma HiperDeterminação. Não foi ele quem fez. Há uma passagem aí que ele não entende. O que fez foi arrumar uma situação que, de repente, propiciou a HiperDeterminação. Isso pode acontecer, mas, por outro lado, não sei por que vida é algo tão importante assim. Como sabem, gosto muito de Nietzsche, mas não sou vitalista. Acredito em robôs... Notem que o pessoal procura a emergência da mesma coisa chamada vida e da mesma coisa chamada espécie HiperDeterminada como humana. Suponho que isso não seja necessário, pois é possível encontrar algo como IdioFormação que não seja vida. Ou seja, procuram a reprodução disto aqui, mas será que a repetição é disto aqui? Para mim, pode emergir vitalmente de muitas maneiras. Há cientistas sérios dizendo que, em algum planeta, a IdioFormação tenha sido produzida a partir de lagartos, por exemplo. Estou sendo mais radical ao pensar na possibilidade de aparecer algo que seja uma IdioFormação que não é vida. Tenho certeza de que aparecerá justo porque deve ser impossível brotar uma IdioFormação de lata em algum lugar. Por outro lado, a tendência desta nossa IdioFormação macaco, careta, é produzir o salto da nova IdioFormação, que não é vida – e nós seremos dispensados. Talvez a emergência de IdioFormação que não é vida dependa de passar pelos processos secundários da IdioFormação que é vida. Suponho que, se chegarmos a algum lugar, mesmo antes de produzir essa robótica, tenhamos que fazer um longo processo civilizatório de composição genética para retirar a espécie de dentro do macaco. Continua-se com esta aparência, mas será uma composição genética mais disponível. Ou seja, a sintomática primária será bem mais disponível: uma intervenção secundária no Primário dirigindo as formações, tomando emprestado o que vem do Haver e montando. É, aliás, algo 147
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que já está sendo feito com as ideias de macho e fêmea, de família, etc., que são macaquices evidentes hoje. Só não mexem aí porque as leis são imbecis e proibidoras. Qual é a situação familiar de uma criança efetivamente resultante de seis pais biológicos? Quem é ela? • P – É literalmente o complexo de Édipo. É o caso de dizer. A suposição que fazem é que, uma vez retiradas as proibições legais, um casal quererá ter filhos, mas sem tais e quais doenças. Para tanto, pedirá emprestados genes de outros, mas assumirá como filho seu. Aí temos a caretice de volta, sem situação de Estado para corrigir. • P – Ao se dizer não vitalista, você não está fazendo esse nosso Primário corresponder a vida? Qual será a diferença se a outra IdioFormação também terá um Primário? A diferença é que não doerá tanto. Ela terá domínio sobre o funcionamento do Primário. Por exemplo, um astronauta numa nave está praticamente impossibilitado de chegar ao extremo de nosso sistema planetário. A outra IdioFormação suportará bem a viagem por não ser bio, não apodrecer demais, estragar-se desse modo. Atravessará distâncias, pressões e temperaturas extremas numa boa por não ser vital. Com uma bela indústria de produção de IdioFormações, as partes danificadas são substituídas sem problemas. Haver desejo de não-Haver significa que esta nossa espécie quer morrer como espécie, quer acabar e deixar seus herdeiros (que não são desta espécie). Imaginemos uma IdioFormação tão bem constituída a ponto de poder escolher qual formação colocar em função, qual afetação a tomará em dado momento. No fundo, é a realidade do lúdico. Atualmente, as ideias sobre gênero, isso e aquilo, transformaram, junto com a biologia capaz de transformar o que quiser, o sexo em mero divertimento. Então, seja qual for a anatomia de alguém, não há que ficar fazendo regras de funcionamento. Pode até ser um brinquedo assassino, mas é brinquedo. Isto por estar se desapegando da reprodução. A sexualidade deixa de ser uma imposição do Haver, ou seja, da natureza, para se fazer a reprodução. Como ela poderá se dar em laboratório, ou a sexualidade desaparece ou vira brinquedo, mera combinatória a ser aplicada onde se quiser. Cada um goza onde quer. Estamos chegando perto disso.
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• P – Já temos disponível o ciberespaço que lembra muito o Inconsciente freudiano como vale-tudo de possibilidades. E também a nanotecnologia que sonha manipular quaisquer formações. Já estamos no regime do possível, mesmo que ainda não amplamente distribuído. Mas o paradigma da macacada continua sendo o da própria neurose. Ela produz leis segundo sua neurose. Os cientistas sempre foram perseguidos pela burrice da maioria da espécie. Em meu tempo de garoto leitor de gibis, sempre torci pelo Dr. Silvana contra o Capitão Marvel. O pessoal tem medo de acontecerem alguns monstros em laboratório, mas eles já acontecem há tempo, basta olhar para algum Congresso Nacional para vê-los em plena atividade. • P – Ao falar desse movimento caótico, do salto que ocorre sem possibilidade de ser acompanhado, você está apontando raridade que caracteriza a HiperDeterminação. As formações do Haver são demasiadamente reativas. Trata-se do Conatus, de Espinosa. Quando algo se agrupa em formação imediatamente produz sua resistência por querer permanecer do modo que se formou. Não conseguirá porque a entropia come o processo, mas o esforço é de continuar sendo formação. Toda e qualquer formação tem características de Estacionário. No universo, a neurose é a maioria.
19 • P – Falávamos sobre Gênero. Como pensar Identidade e Identificação numa IdioFormação cuja anatomia é macho, por exemplo, mas o etossoma é fêmea. Levamos décadas – no século XX, sobretudo – com cada ciência querendo mostrar sua especificidade, sua diferença das outras, e tendo que se 149
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restringir à sua especificidade. Daí a velha psicanálise e algumas psicologias reduzirem tudo à identificação no sentido psi, o que virou o defeito grave de buscar remeter tudo ao Secundário. Freud nem tanto, pois falava em predisposições, que não sabia bem o que eram. Depois dele, Lacan inclusive – tirando o Seminário 20, em que incorpora um pouco a coisa na mulher, mas a mulher enquanto fórmula... Não se esqueçam de que, ali, não se trata de mulheres enquanto corpos, mesmo que fale de corpo en passant. Acho mesmo que não gostei disso na hora de verter o texto e tirei o corpo (Encore / Un corps), que ficou praticamente intocado no título em português: Mais, Ainda. Mas quanto mais a psicanálise andou para a frente no tempo, acho que por imitação do comportamento das outras ciências, ela foi se remetendo a acontecimentos no Secundário. Tudo era no Secundário. Então, o conceito de identificação na psicanálise é extremamente psi. Outras coisas não entram. E isso está errado. • P – O biológico também tem identificação? Sim, há identificações. Por exemplo, a criança ser cuspida e escarrada o pai. Isso funciona por ser uma pressão do Primário pedindo significações nesse campo. Então, temos identificações dos mais variados tipos, com qualquer coisa, com qualquer animal. O totem numa tribo primitiva, por exemplo, significa determinadas formações que parecem representar muito bem o que se passa na pessoa, ou no grupo das pessoas. É uma questão de formações. Se fizermos o rol das formações que tal pessoa inclui, veremos a quantidade enorme do que chamamos de identificação. A pessoa foi passando pela vida, colheu uma formação aqui, outra ali, um professor, um amigo... É um pot-pourri de formações que foram compradas por ela, que foram assimiladas como suas. • P – E a questão da Identidade aí? O que falei sobre Identidade é no nível Originário, no qual cada um é absolutamente idêntico a qualquer outro. É dali para baixo que as diferenças se organizam. Não há identificação no nível Originário. Nele, é idêntico, e por construção de base: a coisa que identifica a espécie é o Revirão. Então, aí, todos são idênticos. Isso funciona dentro da história da pessoa aderindo a formações que vão sendo acumuladas, desde o Primário até o Secundário. Vocês falaram na questão de Gênero. Por exemplo, o menino pensa que é menina, então a psicanálise, e mesmo outras psicologias, vai procurar na história sua 150
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identificação com a mãe... Pode até ter, mas o que importa de começo é que não há obrigação de formação entre o Autossoma e o Etossoma. Freud não tinha essa ferramenta para pensar. Assim, uma vez que etossomaticamente há uma discordância, isso facilita para a pessoa copiar formações que encontra. Mas, basicamente, é primário. Supondo mesmo que, mediante identificações secundárias, seja possível encontrar certas equivocações no nível do gênero. Pode ser que isso exista, mas é muito fraco, não tem a força do Primário. É apenas uma imitação teatral de alguma coisa, não tem base para aquilo querer se exprimir radicalmente. Digo assim porque as criancinhas de hoje, quando as deixam se manifestarem, vemos que é radical. O garoto pequeno recusa a genitália que tem. Aquilo não é dele, é esquisito em sua vida. • P – Há casos relatados de meninas por volta dos dois anos de idade dizerem que queriam ser chamadas por nomes masculinos e recusarem a se vestir como meninas. É como se fossem meninos. Não é “como se fossem”, são meninos com a genitália errada. Arranjaram piruzinhos para eles? Tenho pena de meninas que querem ser meninos porque é difícil, ainda não inventaram cirurgia adequada. O contrário é mais fácil... Aliás, atualmente, dada a elasticidade das apresentações, cada vez mais olho para certas pessoas e não sei se são homem ou mulher. Não estou falando de travestis ou de gente com problema de gênero, fico na dúvida, sobretudo em relação à garotada de catorze, quinze anos. Acho isso ótimo, pois fica ambíguo e estamos no palco, depende de para que lado vamos representar. • P – Há uma frase sua de 2016 (final do item 15) que nos trouxe certa dificuldade: “Não se pode perseguir alguém pela anatomia que tem, pois é etossomaticamente que tem gênero contrário. A vigência secundária o fez escolher certo caminho. Aquele que sofre de seu gênero por razões primárias, não tem identificação, o que tem é identidade. Ele tem um autossoma macho e identidade fêmea no etossomático”. Identidade fêmea, é isso mesmo? Sim. Não confundir com o Originário, onde aquilo é uma Identidade: todos são idênticos entre si. Quando se passa para o nível Primário, não é uma identificação, e sim identidade. É fechado, concreto. É como a impressão digital na carteira de identidade. Mas a identidade do Primário autossomático pode não corresponder à identidade etossomática, a qual também é identidade, aquilo está 151
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lá escrito, está biologicamente inscrito. O etossomático está inscrito, não tem saída. É possível relativizar através do Secundário, inventar o que quisermos, mas a pressão do Primário é muito forte. Imaginem outra situação de identidade primária, o negro, em que há extrema dificuldade em mexer secundariamente e trocar. Michael Jackson tentou de todas as maneiras. É igual à questão de gênero, que aliás parece que ele não tinha. Ele passou a vida brigando com a cor, que é autossomática. Supondo que, em sua cabeça, ele, etossomaticamente, repudiasse a negrura, podemos entender que passasse a vida lutando para ficar branco. Quando alguém luta dessa maneira, não acho que seja uma questão secundária, e sim que recusa, não suporta, por se ver branco. Aí passa diante do espelho e não gosta nada do que lá vê refletido. E o contrário também ocorre, a pessoa se vê negra. • P – Você até diz que é uma lesão. É lesão genética. Em qualquer parte do corpo talvez isso seja encontrável. • P – Vemos também nos consultórios casos de meninas magras que se veem gordas no espelho. Assim como o contrário. Não é incomum vermos andando por aí mulheres gordas, velhas, com vestidos de adolescentes magrinhas. Elas se veem sílfides no espelho. • P – E também homens velhos se portando como se fossem garotões... Sim. E talvez aí haja uma boa parte secundária. Entretanto, suponho que a produção de significações por pressão primária seja muito grande. Por pressão etossomática, as significações são forçadas para a pessoa. • P – Tenho dificuldade em entender o etossomático como pressão do Primário. Sempre pensei o etossomático como resultado de muita formação secundária. Se fosse assim, viva Lacan! Quem dera! Lacan ficaria feliz, por causa de sua pressão para reduzir tudo ao Secundário. O etossomático não tem pressão secundária alguma. A não ser que a pessoa produza isso. Quer dizer, a partir do Secundário, ela resolve lutar contra o Primário. Então, pode fazer várias transformações. Ou, pelo menos, ter vários comportamentos contra a pressão do etossomático. Mas o etossomático nada tem a ver com o Secundário, é 152
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absolutamente primário, está inscrito. Haja vista, hoje, aos biólogos que estão manejando em laboratório, como se fosse um texto, a construção genética das pessoas. Começam com os animais, mas, na moita, mexem nas pessoas. Se não tivessem experimentado, não saberiam tanto. Depreendemos isso do que têm dito. À medida que tomam o genético – deixemos de lado o epigenético, que é depois da fecundação e da gestação –, verificam que é apenas um texto, mais nada. Sabem situar um gene e recortar, como se faz ao revisar um texto, trocam-se frases que estão ruins. Por isso, digo que a noção de família vai explodir. A não ser que ela vire secundária. Ou seja, família é um conjunto de pessoas que resolveu se chamar assim, sem pressão primária. Uma criança resultante de genes de seis-sete pessoas, que usei outro dia como exemplo, pode parecer que pertence a uma família, mas não é mais assim. Ela é um Frankenstein, uma mistura de pedaços, hoje possível em laboratórios com os genes. O que quero dizer é: escreveu-se o texto, colocou-se para funcionar e produzir uma IdioFormação, está inscrito – Maktub! –, não tem saída. Mas nossa espécie tem saídas: mediante o Secundário, resolver mudar (não isso, mas) a performance disso. Não pode mudar isso, mas, misturando aqui e ali no Secundário, pode mudar a performance. • P – No final dos anos 1940, as mães tinham o hábito de vestir meninos de meninas. À força disso – e tenho relatos de vários casos, muitos retratos me foram mostrados –, esses meninos se identificaram com as meninas. Isso é Secundário, nada tem a ver com Primário. Podemos supor que, além dessa pressão secundária, também tivessem uma ambiguidade no Primário, isto ajudaria, pois é dinâmico, musical. Temos que procurar saber qual é a composição, escutar a música da pessoa. Acho mesmo que a ideia de composição é a que mais valerá no futuro, pois a leitura poderá ser feita com bastante facilidade. A psicanálise ou não mais existirá, ou terá que incluir essa leitura. A capacidade de leitura de uma pessoa está cada vez maior, e teremos um quadro claro de sua composição primária. E, em cima disso, temos o Secundário. A biologia há tempo fala em texto da pessoa. Cada um tem seu texto, é imexível, o que o faz ter forte tendência para essa composição. Tomem crianças canhotas – isso está inscrito nelas –, que o pessoal força a ir para a direita. Acho isso bom, foi o que aconteceu comigo. Michel Serres trata disso em seu livro Le 153
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Tiers-Instruit (1992), de que gosto muito. Fica-se com uma disponibilidade para a direita e para a esquerda na mente. Tenho, então, coisas canhotas e coisas forçadas para o destro. • P – Os ambidestros têm mais facilidade? O negócio é ser Leonardo da Vinci, que escrevia o mesmo texto com duas canetas. Não era de lá para cá, e sim ao contrário, especularmente mesmo. Para ler, era preciso colocar diante do espelho. Quando queria esconder seus textos das pessoas, escrevia assim. • P – Dada a maranha Autossoma, Etossoma e Heterossoma, o que significa dizer que o Heterossoma subverte o Primário? O Heterossoma subverte o comportamento, a funcionalidade espontânea do Etossoma. O pessoal da psicossomática supõe que, em certas situações, acidentalmente, o Secundário invade o Autossoma e cria modificações. Por exemplo, doenças, tumores... Acho difícil à beça ser assim, pois o Autossoma é teimoso. É mais fácil haver algum erro, envelhecimento, no processo de reprodução das células. • P – Não entraria aí o sistema imunológico, que sofre de questões secundárias, como poluição... A poluição invade primariamente. O fato de ela ter sido acrescentada por via secundária não a torna secundária. O Primário, ou seja, o Espontâneo chamado natureza, também é cheio de veneno. A natureza é uma porcaria, e faz um monte de porcarias com a gente. Joguem alguém na Floresta Amazônica para ver o que ela faz: mosquito, cobra, lagarto, piranha... O que precisamos reconhecer e incluir com urgência é o entendimento de que a ordem primária é poderosíssima, e é um grande auxiliador na hora da produção de uma Estrutura Estacionária. As pessoas, às vezes, desistem de operar secundariamente porque o Primário é impeditivo demais. Tomem uma pessoa burra, qual é o estatuto burrice? Acho que há, nela, uma forte pressão primária, uma verdadeira recusa, que não é psíquica, e sim primária. Ela entra em pavor se tiver que elaborar certos raciocínios. Ao ensinar matemática a uma criança burra, vê-se que ela entra em pânico. O pessoal fica procurando psicologicamente o que seja isso. Suponho que posa ser psicológico também, mas há criança que é burra, o que significa que o Estatuto Estacionário excessivo do Primário impede até o Secundário 154
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de se movimentar. A pressão primária é tão grande que é difícílimo para essa criança aceitar a ordem secundária. É um verdadeiro animal. Repetindo, existe uma pressão etossomática que é fortíssima. Por isso, falei em Neo-Etologia. A meu ver, uma criança burra é um fato neo-etológico. É tão bicho que tem pouca elasticidade mental. Ela fala, responde, etc., mas não acompanha coisas muito abstratas. Talvez mediante um tratamento especial e intensivo fique um pouquinho mais inteligente. Outro exemplo, uma criança TDAH. Aquilo lá está inscrito. Podemos tentar modificações por pressão secundária, por disciplinação do Secundário, mas jamais sairá. A constituição é primária, no nível do etossomático. • P – Podemos dizer o mesmo em relação à depressão? Há pessoas em que é da ordem do Primário. Não quer dizer que não possamos ficar meio deprimidos secundariamente, mas o que chamam de depressão profunda é etossomático. Assim como há pessoas que são alegres. Pode acontecer qualquer desgraça, e elas são “vitais”. O bom humor impera, aconteça o que acontecer. O que importa para nós é que a psicanálise nasceu muito bem, mas é abusiva. Então, como limpar, encurtar, para ir à sua operatividade possível? Abusivo é querer o tempo todo subsumir os funcionamentos à composição secundária mediante psicanálise. Qual seria a função do psicanalista, se ele tiver recursos de leitura – mediante a produção de outros, pois não é ele quem produz essas leituras –, se sabe que a pessoa constitucionalmente é aquilo? Não cabe dizer que, por exemplo, a hipoglicemia que perturba a vida de alguém foi criada secundariamente, ou porque o pai, o Édipo... A pessoa tem aquela constituição. Então, como poderá arrumar secundariamente uma contenção ou um aproveitamento para ela? Isso é possível. • P – Às vezes, a suposição de que tudo se resolve no Secundário acaba atrasando o desenvolvimento de tecnologias que efetivamente ajudariam nas resoluções. É nesse lugar aí que, no nível de outras ciências, falam mal da psicanálise. Porque é abusivo encantar-se pelo psiquismo, e querer explicar tudo por ele. Não há explicação nesse nível. Trata-se de procurar o nível da explicação, o qual servirá para ser o controlador da situação – mas não vai curar nada. A pessoa 155
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vai aprender que tem tal coisa assim-assim, que tem tal tendência, e buscar, mediante formações secundárias, criar uma disciplina para lidar com aquilo. Isso pode aumentar sua capacidade de gestão do problema. No caso de uma criança TDAH, é preciso que ela saiba cedinho que o é, e que os pais exerçam uma função disciplinar extrema. Ela continuará TDAH, mas terá formações secundárias disciplinares que controla. Acho que, se a criança nasceu TDAH, é preciso disciplina radical. Ficar explicando tudo analiticamente é burrice, estupidez. Criança é um bicho, um animal, que tem um Revirão. Trata-se de civilizá-la no berço, e há momentos de disciplina radical, para que possa arrumar um Secundário firme capaz de controlar outras coisas. Como sabem, sou contra certo pedagogismo contemporâneo, em que se permite às crianças fazer o que quiserem e, depois, “conversar” com elas. Conversar o quê, se o repertório ainda não entrou? A criança aprende muito por intervenções no Primário autossomático. A disciplina de que se falava antigamente era estúpida: tinham uma concepção de mundo e disciplinavam dentro dela. Estou falando de uma disciplina ad hoc e referida aos movimentos internos da criança. É referida aos movimentos internos da criança. Não é porque tem que ser assim ou assado. • P – E essa onda atual de fazer escolas no modelo militar? Acho a educação militar excelente, sobretudo para adolescentes. Passei por ela e agradeço. • P – Mas trata-se de introduzir uma ideologia em escolas civis. Está errado. É claro que uma escola militar é ideologicamente composta. Mas eu escolhi ir, ninguém obrigou. Lá você, com quinze, dezesseis anos de idade, tem um sentimento de sua responsabilidade e de sua potência também. Não é só obediência, é potência de intervir no mundo, etc. Lá na escola militar, você, aos dezoito anos, está no terceiro ano e é superior ao resto todo. Se estiver de serviço, seu serviço é comando do quartel. É algo duro como o diabo porque, se der o azar de cair no domingo, os oficiais terão ido para casa, o oficial de dia estará dormindo lá em cima, ou terá ido dar uma voltinha. E se acontece alguma coisa, você é que manda no quartel. Isso é um terror! Com essa idade, tem que ficar o dia inteiro atento a tudo, pois você é responsável por qualquer pequeno problema. Então, passa por situações difíceis, em que vê sua potência, e não é sua obediência. Nada tenho contra exércitos, tenho 156
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contra a burrice típica do Exército Brasileiro, que é positivista e kardecista e faz uma força enorme para juntar as duas coisas. Tenta provar cientificamente o espiritismo, é uma esquizofrenia na cabeça deles. • P – Essa pancadaria em cima da disciplina veio em função dos anos 1960 e 70. Havia uma ideologia anti-disciplinar, anti-poder... Tinham razão, pois o que era disciplinar era estúpido, ideológico. Não era partir da constituição da criança e corrigir sua performance, para qualquer lado. Não é para o lado que você quer, e sim para corrigir a deficiência da pessoa, dar-lhe o material para melhorar. • P – Daí que qualquer instância proibitiva, repressora, recalcante era tida como negativa. Entendam que crianças nascem para ser reprimidas. Não se pode deixá-las soltas. Primeiro reprime-se (depois, manda para o analista). Não há educação sem repressão, faz parte, mas é possível ter uma relação com o processo que seja transformar o que é reprimido em Juízo Foraclusivo. Desde o início, operar a criança sabendo a modalidade e a funcionalidade da repressão. É difícil, mas acho possível. E não pode ser chantagem emocional do tipo “porque seu pai fica muito triste”... Sempre lidei com criança e adolescente assim, com dureza, e eles gostavam quando eu era professor de primeiro ano ginasial. Isso lhes dá uma referência: eu entrava na escola, e a pivetada vinha me abraçar. Outros professores comentavam: “Você tem açúcar?” – Eu tenho a chibata. E mais: eles se sentem mais seguros, pois têm um norte visível. • P – Mas há também o fato de ser preciso entender uma ordem, não apenas obedecer. Sim, mas a criança não tem condições de compreender. Por isso, tem que passar por uma fase de obedecer cegamente. Mesmo que se dê uma explicação correta, ela não entenderá, pois é muito complexa, difícil. Diz-se, então, uma metaforazinha, uma coisa qualquer, para convencê-la, e não para ela entender. Não dá para conversar com criança assim pequenininha. Entretanto, notem que é preciso considerar o “por quê?” vindo dela. A resposta a “por que não posso fazer tal coisa?” pode ser: “porque eu não quero”. Assim, ela tem uma referência de autoridade, não de conhecimento. À medida que sua capacidade de conhecimento aumenta, é possível começar a conversar. 157
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• P – É algo que também serve no processo de uma análise. Não adianta ficar explicando. Há momentos em que se diz: “Faça isso!” E tem mais, se não fizer, não se atende mais a pessoa. • P – Poderíamos dizer que, em geral, os pais estão demissionários da posição de “faça assim porque estou mandando”? Se a criança entende que o pai ou mãe se responsabilizam pelo que mandam, pode pensar que há adulto que se responsabiliza por ela. Aí é o outro lado: o lado da potência. • P – Neurologistas dizem que a criança não desenvolveu ainda o sistema executivo pré-frontal, e precisa do exemplo dos pais para vir a utilizá-lo. Quem tem que saber são o pai e a mãe, não ela. Isso é fundamental para nosso entendimento do que possa ser a análise. No momento atual, há uma inversão porque a psicologia de décadas atrás resolveu que não se pode fazer isso com as crianças, tem que conversar. Mas, repito, qual repertório ela tem? Repertório zero, há que enfiar-lhe um na raça. • P – Essa inversão tem produzido uma série de sociopatas, ou mesmo pessoas inutilizáveis. E desarvoradas, sem contenção. Temos que levar essas coisas em consideração para saber como se passa a peneira para saber onde é a nossa intervenção. • P – Você falou sobre a diferença entre identificação e transferência. Esta seria mais aberta, mais ampla. É possível uma ordem qualquer transferencial sem identificação alguma? Não. Qual é a relação entre o educador e o educando que garante a aceitação da autoridade? A transferência. Você se apresenta de tal maneira que a definição de Lacan serve: você é o sujeito suposto saber. A criança não só obedece, ela acha que você sabe o que está fazendo. O jogo da transferência não é só analítico. Mesmo na universidade, numa turma de alunos, vemos uma forte transferência por causa da postura do professor. E há que usar isso para eles crescerem. É transferencial. • P – Aristides Alonso – A primeira palestra sua a que assisti foi em 1976 na Universidade Federal Rural/RJ. O título era: A transferência da 158
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transferência. Você já mostrava que a escola estava cada vez mais demissionária quanto a esse lugar transferencial que você está apontando. A criança, o aluno, o povo, qualquer um, não tem que se identificar com a pessoa no caso da transferência. Ela supõe que o outro tem uma superioridade de saber, de alguma coisa. Ou seja, em meu lugar, de minha ignorância e de minha incompetência, tem alguém que não é ignorante, nem incompetente. Ele pode servir para mim como orientação. Isso não é identificação. • P – A confusão entre transferência e identificação foi feita pela Escola Americana. Segundo ela, a pessoa tem necessariamente que se identificar com o analista. Não tem. Você identifica alguma coisa no analista, mas não se identifica com ele. A análise, o magistério, tudo isso precisa de transferência. Ou seja, precisa que eu diga: essa pessoa me serve para orientação, suponho que ela pode me conduzir – e é um alívio porque não sei me conduzir. Quando você transfere, tem um reconhecimento de sua incompetência. Não é identificação – e, consequentemente, às vezes, o processo identificatório fica passional. • P – Há um termo que entra em jogo quando se fala em identificação, identidade e transferência: a Fantasia. Para que haja processos identificatórios, certamente há algo empuxando, organizando – formações que antecedem o acontecimento. A fantasia seria um elemento organizador, promotor de identificações e transferências? A fantasia é sexual. No caso das identificações, não são de alguma maneira projeções da fantasia? Não necessariamente. • P – É possível haver identificações sem que ela esteja aí conectada? Sim. Basta ver que as fantasias, ou seja, as construções eróticas que sustentam os processos de gozo, frequentemente nada têm a ver com os demais comportamentos da pessoa. Até nos assusta quando surge a fantasia, pois não estávamos esperando por aquilo, não é o comportamento da pessoa. É comum alunos jovens com tesão se dirigirem a professores. Não estão identificados com ele, e sim com tesão. Em suas cabeças, acham que o professor é responsável pelo tesão. Aí não se trata de transferência, e sim de fantasia: há no professor algo que bate em seu tesão. Pode ser o caso de ele ser mais velho. Ou seja, estão com tesão no pai e pensam que é com o professor, por exemplo. 159
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A identificação é de outra ordem, é ouvirem e procurar se identificar com ele através de estudo, de falar, de mostrar que sabem. Isso é outra história. Supostamente, com razoável certeza, é notório que Lacan, de vez em quando transava com alguma analisanda. Para fazer o mínimo de juízo disso, o que interessa saber é de quem era o tesão. Quem era o dono do tesão, o administrador da transa? Se era dele, pode ficar à vontade, mas, se for do analisando, acho que não se deve aceitar. Analisando, seja macho ou fêmea, querer transar com o analista por razões sintomáticas não deve ser aceitável. Entrar na insistência passional ou repetitiva é sintoma dele para ser analisado. • P – Em seu livro, La Vie Avec Lacan, Cathérine Millot relata que transava com Lacan, mas sua análise continuava, nunca parou. Ela nunca seduziu Lacan. Lacan a seduziu. • P – Mas qual seria a diferença entre a transferência e a identificação? Nessas relações distantes, a transferência é mais frequente do que a identificação. A transferência é distante, não é próxima. Coloca-se a pessoa em um lugar de orientação. Por isso, Lacan chama a transferência de sujeito suposto saber. Tiremos o sujeito, é: a suposição de que o outro sabe o que pode me transmitir para eu chegar a algum lugar. Não estou identificado com ele, mesmo porque ele é muito grande para eu pensar que sou igual. Qualquer pessoa, a mais estúpida que seja, colocada em transferência, fica enorme. E a transferência muito forte, às vezes, faz o analisando não conseguir falar. Vai falar o quê? Será uma vergonha se disser uma besteira. Isso não é identificação. • P – Na transferência de trabalho, como Lacan chamava, a identificação tem que estar em baixa para que se possa produzir com mais pragmatismo? Ela envolve uma dissimetria radical. A identificação é uma tentação de simetria.
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20 • P – Em AdRem (2008), p. 147, respondendo à pergunta sobre “qual seria a vantagem de usar o conceito de formação generalizadamente, e não o de signo?”... ...é completamente vantajoso. Primeiro, porque o conceito de signo está infectado pelo século passado. Ele não nos interessa, é coisa de semiologia... O conceito de Formação é aberto, aplicável a toda e qualquer... formação, a toda e qualquer configuração. Qualquer coisa que tenha um limite de configuração é uma formação. Aí, distribuímos as formações como quisermos. Cada um pode fazer sua lista. Estamos no século das listas. Já lhes recomendei o livro A vertigem das Listas (2009), de Umberto Eco, que é bem a nossa época. Eco foi esperto, viu cedo que aquilo é tipicamente Quarto Império: manejamos listas de formações, mais nada – algumas delas nada tendo a ver com outras. Isto, inclusive nas formações cerebrais e nas congruências entre Autossoma e Etossoma. Não há congruência necessária, o que, a meu ver, muda a posição de escuta do próprio analista. Que configurações ele ouve hoje? Se tomarmos Freud, parece que tudo no psiquismo é coerente. Não é. Aquilo é século XIX. Lacan tentou matemizar genericamente, até mesmo com intenções de universalidade... Isso pifou! Hoje, sabemos que o psiquismo é completamente doido. Para um mínimo de congruência, há que montar um aparelho de arrumação – que será frágil. Seja no que chamam de ciência, de filosofia, etc., os aparelhos são frágeis. O possível é ter uma boa ferramenta para fazer isso que o psiquismo não faz por ser aloprado. Então, montamos formações de governança que, num lugar, chamamos de filosofia, noutro, ciência. E todos precários, ruins, não dão conta. O que entrou no Quarto Império foi, finalmente, descobrirmos a precariedade generalizada. Isso exige uma postura diferente e uma arrumação ad hoc, mas com a invenção de alguma chave de governança, pois não temos. • P – O conceito de signo é dispensável? Não tem muita utilidade. O que respondi lá em 2008? 161
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• P – Você diz: “O que quer que haja aparece como formação. Comparecerá como signo, se comparecer: se houver transa, houve signo e significação. Uma pedra não faz signo para outra pedra que esteja a seu lado, não têm transa, embora as duas tenham transa com a gravidade. Tudo é signo para nós. Se não está sendo agora, pode ser amanhã. Então, tudo é formação, mas tal formação é signo para quem, para o quê? Se não está sendo signo, não o é. A não ser que se vá generalizando aos poucos. Como disse, se uma pedra e outra não têm transa, uma não é signo para a outra, mas ambas são signos para a gravidade. Assim, poderemos dizer que, para algo, algo eventualmente é signo”. É isso. • P – Por que uma pedra não é signo para outra e ambas são para a gravidade? Porque são afetadas por formações, por uma formação chamada “gravidade”. Isso faz sentido, empresta significação. Signo é algo que faz sentido, empresta significação. As pedras não estão conversando entre si, a não ser que as coloquemos para conversar. Um escultor, por exemplo, olha para uma pedra e para outra e tem uma conversa, ele está lendo significação. Mas aí já foi por intervenção do Secundário. No Espontâneo, elas [as pedras] estão transando com a gravidade. Então, quando se levanta a pedra e ela cai, nasce Newton. Segundo o folclore, ele percebeu uma correlação entre a queda da maçã e sua cabeça: são transas lá de formações. E ele tinha uma formação que, em terceira instância e secundariamente, tenta ler aquela significação. • P – Acho ainda útil seu conceito de signo – Significante / significado / Gnomo (S/s/G) (1989) – por me ajudar a entender a ideia mais geral de “o Inconsciente se estrutura como se o engaja”. O signo é um engajamento, inclusive Secundário. É um engajamento que tem ao mesmo tempo uma operação de fixação e outra de deslizamento. Ele engata e desengata. É exemplar em qualquer operação articulatória de engajamento. Ajuda a explicar... Sim. Se você acha útil, use e me ensine. Às vezes, no desenvolvimento de uma questão, escapa alguma coisa que deixa o trabalho confuso. De outra vez, um de vocês disse algo que achei que estava errado, e estava. Mas fui procurar em minha cabeça e vi que eu tinha certa responsabilidade, que tinha emprestado o erro para quem disse. Não é que 162
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o que eu disse esteja errado,MD17-Completo-Rev-MD e sim que o que não disse faltou. Me pareceu que a pessoa, ao falar em “o Primário do Haver”, estava chamando as consistências do Haver, sobretudo quando produzidas como prótese, de Primário. Para esclarecer, faço o seguinte quadro:
Haver Artifício Espontâneo
Autosoma / Etossoma)
(Revirão)
1ar / 2ar / Or
Artifício Industrial
Prótese Para Espontânea
//
Secundária
Há uma hierarquia. Vamos partir do Haver, que é o que há – e se dissermos “tudo que há”, já estragou o raciocínio –, e tem se manifestado assim há Há uma hierarquia. Vamos partir do Haver, que é o que há – e se séculos. Não sei se vai mudar, mas está assim. Ele se apresenta como o que dissermos chamavam “tudo quedehá”, já estragou o deste raciocínio –, e tem se antigamente natureza. Não gosto nome porque atrapalha pensar. Então, assim digo que Haver, aqui, apresentado como Artifício manifestado háo séculos. Nãotem seisese vai mudar, mas está Espontâneo. Um dos Artifícios Espontâneos que apareceram foi a vida, as assim. Ele se apresenta como o que antigamente chamavam de espécies vivas: as animais e a nossa. E dentro do Artifício Espontâneo tem um natureza. gosto nome porqueque atrapalha Então, negócio queNão nasceu novodeste chamado Revirão, é igual aopensar. Haver em algum
digo que o Haver, aqui, tem se apresentado como Artifício Espontâneo. Um dos Artifícios163 Espontâneos que apareceram foi
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lugar. Muitas formações não têm essa formação, mas por causa dela é que apareceu esta espécie nossa constituída de Primário, Secundário e Originário (1ar / 2ar / Or). As outras conhecidas só têm Primário: Autossoma e Etossoma. Em nossa espécie, o Secundário intervém no Haver e cria o Artifício Industrial. Só qualquer formação que tenha produzido Secundário, certamente por via do Originário, é capaz de (e é reconhecível por) produzir o Artifício Industrial, que é como uma imitação do Artifício Espontâneo. Ora, o que sai desta nossa espécie? Saem Próteses, todo tipo de prótese, que são as formações produzidas mediante Secundário pela espécie revirante, seja ela qual for. Quais tipos de próteses são possíveis? Há as Próteses Secundárias, que são o que se produz de saber disso e daquilo, mas também há as próteses que não podemos chamar de primárias, por não serem desse campo. O nome é: Próteses ParaEspontâneas. O Primário é uma formação do vivo, então, quando, mediante Secundário, inventamos algo novo para dentro do aparelho espontâneo e que funciona, lida, transa com ele, estamos produzindo algo na imitação do Espontâneo, uma Prótese ParaEspontânea. • P – Uma fissão nuclear é ParaEspontânea? Sim. • P – E por que não se pode chamar isso de Prótese Secundária? Quando você está falando, está fazendo uma prótese secundária, mas se for produzir algo no mundo, construir uma casa, vai fazer uma Prótese ParaEspontânea. Imitou-se o abrigo do Espontâneo, saímos da caverna e fizemos uma pseudo-caverna, uma para-caverna. Então, não são próteses da mesma ordem. Produzir uma canção, por exemplo não é da mesma ordem da imitação imediata do Espontâneo. • P – A intervenção analítica é secundária? É uma prótese estritamente secundária. • P – Uma edição genética, de que você falava outro dia, é ParaEspontânea. Sim. • P – Uma música não estaria imitando o canto de um passarinho? Ambas as próteses estão imitando. Mas acontece que a produção se satisfaz no Secundário. Temos razão ao escutar a música e pensar que parece 164
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com um passarinho, etc., pois o limite é flou, a fronteira é vaga. Já falar de uma música é um pouco mais complexo, pois ela tem toda uma produção material. As fronteiras são borradas, mas, pelo menos metodologicamente, nos ajuda distinguir do que estamos falando. Ao fazer uma filosofia, é cópia do quê? Ao caminhar com isso, chegamos numa canção, numa sinfonia, e entra uma materialidade – instrumentos, etc. – que é utilização secundária de uma grande produção ParaEspontânea. Alguém cantando pode, sim, estar imitando um passarinho, mas a distinção é importante para não nos enganarmos ao pensar que, se cai de novo no Haver como prótese, então é igual ao Primário. Não é. Primário só existe no vivo, é da formação do vivo, que tem modulações possíveis, tanto é que apareceu nas IdioFormações com essa loucura. Agora, antes de mais nada, entendam que tudo aqui está sob a égide do Haver, são formações do Haver. • P – Alunos já me perguntaram se uma árvore é do Primário. Uma árvore é viva, você pode dizer que é Primário, tem Primário. Aliás, estão descobrindo que árvore tem memória, que conversa com outra. Entretanto, ao tomar o Espontâneo, com o vivo, a chamada natureza, as pedras, as árvores, os passarinhos, acho que não se trata do conceito de Haver, nem o de natureza. Assim, isso dá a volta e, em última instância, o próprio conceito de Haver é uma produção secundária. Ou seja, é difícil tentar arrumar o Haver, pois ele come o próprio rabo, é Ouroboros. Outro dia, numa livraria, vi o livro (que não vou ler por ser muito grosso) A Invenção da Natureza, de Andrea Wulf (2015), sobre Alexander von Humboldt. O título é perfeito, talvez Humboldt tenha sido aquele que inventou o conceito de natureza com precisão. Vista desse ponto de vista, a natureza é uma prótese. Então, se começarmos a pensar muito, borra tudo, fica só o Haver. Fazer esses estratagemas, essas distinções, é tentativa de compreensão, de arrumação, mas não é o que há lá no Haver, e sim outra coisa. Temos sempre que lembrar que, em última instância, sou eu que estou dizendo isso. O Haver não disse nada. Ele só se apresentou. • P – A música tonal, então, estaria mais próxima da Prótese ParaEspontânea? Ela é mais natural, como se diz. Inclusive, do ponto de vista vocal. Já para cantarolar uma peça dodecafônica, de Schoenberg ou de Alban Berg, tem que ser cantor profissional. Quando escutamos os passarinhos, etc., é de uma 165
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extrema facilidade tonal. Você entende o “tan tan tan tan” da Quinta Sinfonia, de Beethoven. O pessoal diz que foi “o destino batendo à sua porta”, mas o fato é que ele ouviu um passarinho e fez uma sinfonia maravilhosa em cima do “tan tan tan tan”. O passarinho estava só cantando. • P – O “tan tan tan tan” seria um leitmotif? É um inciso. Leitmotif é outra coisa. • P – Leitmotif está na literatura. A literatura copiou de Wagner. O leitmotif denuncia o personagem, como nas novelas da televisão: entra o personagem, toca a música dele. Já Beethoven toma um inciso musical e opera com ele vastamente. Quando entra o inciso, não está representando personagem algum. Ele é ele mesmo. • P – Podemos dizer que o Haver tem uma Tópica: Artifício Espontâneo e Artifício Industrial? A Tópica da IdioFormação é outra: Primário, Secundário e Originário. Sim, mas a IdioFormação é uma formação espontânea do Haver. Ninguém fabricou. Aquela história da Bíblia é “artifício” demais. IdioFormação é qualquer formação que compareça dentro do Haver, aqui ou noutra galáxia, que tenha a competência do Revirão. E mais, se encontrarmos um robô por aí com essa competência, ele é colega, é uma IdioFormação, uma Pessoa. O fato de seu Primário ser diferente é outra história. Se tem Primário que gera Secundário mediante Originário, é IdioFormação, onde quer que seja. • P – A Indiferença é produzida ou é dada no Haver? Diante das diferenças, é impossível produzir Indiferença. Olhamos, é diferente. Só haveria Indiferença no Haver se ele tivesse, como alguns dizem que tem, momentos de neutralidade absoluta. Então, não é que se produziu Indiferença, e sim que a Indiferença surgiu por desmonte das diferenças. Vamos supor que exista esse momento no Haver. Quem sabe se antes do Big Bang, que é produtor de diferença, era uma formação absolutamente neutra e explosiva, sem diferenças? Suponho que isso não exista. Mesmo pensando com os físicos, só existe o Big Bang porque o Haver jamais consegue se apresentar simetricamente. A repercussão do não-Haver dentro do Haver imediatamente cria dissimetrias, não há simetria. Então, se esse raciocínio dos físicos estiver certo, podemos pensar que jamais há Indiferença no Haver. O Haver não consegue 166
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ser Indiferente porque não achamos Indiferença em materialidade alguma. A Indiferença é uma postura das Pessoas, aqui, e pode ser uma postura das outras IdioFormações. Que postura? A pessoa está vendo que tudo é diferente, mas ela se põe com Indiferença diante de qualquer atribuição de valor, de juízo... Indiferença que é, sobretudo, de caráter secundário. É como se pensássemos numa matemática pura, que não existe. E tem mais, a gente também não consegue. É um vetor, é permanecer no cultivo da Indiferenciação para poder perceber a diferença. Então, se me apresento imediatamente com minha diferença, já estraguei boa parte da minha Indiferenciação. Mas tenho a obrigação – é a ética da psicanálise – de, diante das formações, operar constantemente para ter uma Indiferenciação de valor, de juízo, de tudo. É isso que quero chamar de Indiferenciação. É uma experiência que se tem que cultivar. Georges Bataille chamava de “experiência interior”. • P – No esquema do Revirão, o Real lá está colocado como lugar de Neutralidade. Não podemos, então, entender que ela, a Neutralidade, seria dada de saída? A suposição é que existe no Haver um lugar de Neutralidade, para além ou para aquém do Big Bang, por exemplo. Se o conceito de Big Bang presta para alguma coisa, é um momento de diferenciação. E podemos supor que, antes dele, para cá do não-Haver, podia ser tudo neutro. Mas em relação ao não-Haver é dissimétrico porque o não-Haver não comparece. E se, conforme dizem alguns físicos, o Haver tem um momento de absoluta neutralidade, ele não explodirá por ter diferença, e sim por encontrar a Diferença. A Diferença é não-Haver. A Diferença é que não há. Por mais que o Haver se esforce para sumir, surge a Diferença porque, do outro lado, o não-Haver não há. A Diferença interna, chamemos assim, ao Haver é produzida pelo esforço de passar para o Outro lado, que não há, aliás, mas que supostamente há do lado de cá. Então, o Haver, por mais Indiferente que seja, esbarra na Diferença e explode. Retomando, vamos supor que internamente ao Haver possa acontecer uma Neutralidade Radical, ficar tudo igual, como supõem os físicos que seja a Entropia Absoluta (na qual não creio, aliás). Olhando para dentro do Haver, pensam que um dia isso entrará em entropia radical, morrerá de inanição. Não acho que acontecerá porque o empuxo d’ALEI, seu vetor, não deixa isso ficar parado, vai querer que passe a 167
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não-Haver – e não consegue. Por quê? Porque mesmo que esteja inteiramente neutralizado, ele há. Então, no esforço de não-Haver, o Haver se borra todo, explode. Ele faz tanta força... Aí começa a ficar confuso. O Haver é vivo? Dá a impressão de que é, mas com um mecanismo, digamos, compulsivo dentro dele. Portanto, não é necessariamente vivo. • P – Aí temos a questão genérica: o que é vivo? Há mecanismos compulsórios dentro do Haver que não têm parecença alguma com o vivo. Mas como aquele compulsório funciona, confunde e parece que é vivo. Qual é o limite entre o vivo e o não-vivo? É preciso entender, primeiro, que fazemos teoria. Fazer teoria é uma maluquice para a gente tentar sobreviver com a gente mesmo. Inventamos algo para colocar um mínimo de ordem no mundo, para não enlouquecermos. A função do saber é não nos deixar enlouquecer de vez: produzir uma loucura paralela, adequada e temporária. É a tentativa de organização, de produção, de uma loucura organizada para dar conta de a gente não se perder numa loucura dispersiva. Então, inventamos filosofia, teoria, ciências, o diabo, tudo precário. E isso não está dizendo as formações do Haver, e sim as com-siderando. Não existe discurso algum que diga o Haver. As religiões tentam fingir que existe: Deus faz e acontece... Guimarães Rosa tem a frase perfeita sobre o limiar entre conhecimento e desconhecimento: “A espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente”. Uma filosofia é isso, uma piada. A filosofia, aliás, me parece mais piada por ser muito cor de rosa, meio veada, desmunheca e sonha muito, não tem a secura da ciência. E qual é o estatuto disso tudo? Notem uma coisa bem clara no pensamento científico mais arrojado, que é o da física. Falam em átomo, que ninguém sabe o que é. Fizeram a invenção de que há umas bolinhas, nas quais não se sabe o que tem. É uma teoria que, operada no laboratório, até funciona – com um limite. Tem hora que não funciona. Por quê? Porque as epistemologias são paranoias na tentativa de escrever e descrever como é o conhecimento. Mas isso faliu, e quem está certo é o pessoal da ficção. Tudo é ficção. Como sabem, escrevo a minha com x: Fixão. Estou fazendo uma fixão, tentando fixar uma ideia. • P – Uma vez, você escreveu: Fique são. 168
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É para não ficar doido. A loucura é a mesma, só que algumas pessoas têm certa arrumação. Aqueles chamados de malucos perderam o rumo, mas são tão doidos quanto os demais. O que resultou em termos de século XXI, que foi produzido no século XX contra a ideia de epistemologia, etc., foi a linhagem daqueles que apostam que não se sai de dentro da ficção, nem fazendo ciência pura ou matemática. É puramente ficcional. Já recomendei que lessem A filosofia do Como Se (1911), Die Philosophie des Als Ob, que Hans Vaihinger levou trinta anos escrevendo. É um autor que ficou esquecido décadas para os cultivadores da ideia de ciência. Mas ele tem linhagem, inclusive no Brasil. Seu descendente é Wolfgang Iser e, aqui, Luiz Costa Lima, que é brilhante. Assim como tenho linhagem – Freud, Lacan... –, a linhagem deles também ocorreu aqui. Luiz é de extremo valor quanto a essa ideia de que não se escapa da ficção. Aliás, houve um tempo em que nós dois éramos vedetes da PUC, que não gostou e nos expulsou. Ele continua lá porque entrou na justiça, tinha nove anos de casa, eu tinha dois ou três. Achei a expulsão uma boa prova. No Brasil, não dão tanta bola para ele por não ser aquela esquerda da ideia de A Dialética da Natureza (Caio Prado Jr.), dois volumes de epistemologia marxista. • P – Quanto à distinção entre Próteses ParaEspontânea e Secundária, poderíamos pensar em Quentin Meillassoux citado por você da vez anterior? Em seu livro Métaphysique et Fiction des Mondes Hors-Science é como se tivéssemos uma ficção mais ParaEspontânea e outra mais Secundária? Por exemplo. Ou seja, faz-se uma ficção que pretende ser mais aderida às formações espontâneas, uma ficção que é ParaEspontânea por pretender ser ficção em cima de formações espontâneas do Haver. • P – Ela é constrangida pelas formações espontâneas? Sim. A outra faz ficção em cima das formações secundárias. Aí, é loucura geral, faz-se o que quer, diz-se qualquer coisa. Mesmo assim, procuramos certa verossimilhança. Entendem a confusão que é? Acho perfeita a linhagem de Vaihinger. Não venham com epistemologia, pois é apenas uma ficção do lado do Secundário (é claro que misturada um pouco com o do Primário). • P – No contexto do que está sendo tratado hoje, retomo o Direito Romano, cujo aspecto artificialista você já ressaltou. Como falar em direito natural dentro do direito romano? 169
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• P – Uma das características da instalação do rosto do Terceiro Império por via cristã é ele ter estragado um pouco esse artificialismo. O Terceiro Império cristão é co-naturalista. A religião cristã não permite a inclusão do aspecto da ficção. Ela finge estar fazendo um Artifício ParaEspontâneo, e convence as pessoas. Basta ver nos EUA o que chamam de Design Inteligente: Deus fez isso e aquilo... É a maluquice de fazer uma ficção absolutamente deslocada do Espontâneo, mesmo com citações sobre dilúvio e coisas concretas (que jamais aconteceram propriamente daquele modo). A pessoa ouve, crê naquilo, e nunca mais pensa. O Deus do cristianismo é concreto, tanto é que se repetiu na carne do outro, lá embaixo. Os deuses greco-romanos são maluquetes, não têm co-naturalidade, mexem nas coisas, na natureza, fazem o diabo, não têm ética sexual... Zeus, quando lhe dava tesão, ia para cima de tudo, de gente e de animais. Já o cristianismo bolou algo enlouquecedor: Deus, que tem um filho dileto que é como nós (mas ele é dileto, nós somos a porcaria, o chiqueiro); a pombinha da virgem... Como não aceitam que seja ficção, aquilo é. Então, é uma paranoia concreta. Qualquer religião é essa coisa, mas a construção do aparelho religioso greco-romano é diferente, e tem a dignidade de declarar-se politeísta. A Igreja Católica – não direi todo o cristianismo – é politeísta, tem um Deus, mas cada um compra um santo para si. Os santos é que fazem os milagres, e não Deus. Há contestação disso no protestantismo, no qual se fala direto com Deus, não tem intermediário. E podemos dizer, por exemplo, que o Islamismo é monoteísta, mas a Igreja Católica é politeísta descarada. • P – Essas duas vertentes são bem nítidas na literatura. Há escritores cuja tentativa é fazer uma composição ficcional que seja quase que retrato do mundo que estão vivenciando, e há aqueles que fazem uma diluição, uma transformação artificialista. Por exemplo, Eça de Queiroz praticamente busca fazer um arquivo daquela sociedade portuguesa. Já Lewis Carroll busca fazer um arquivo do modo operatório, do funcionamento do articulado da arte. Sim. Suponho que essa arrumação ajeita uma âncora para nós. • P – Há também o caso de se inventar algo bem artificialista, mas que, em sua instalação na cultura, por ter algum tipo de sucesso de mundo, de discurso que se ideologiza, com o tempo vai se decantando de tal modo que 170
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vira, praticamente, uma prótese co-naturalizada. Seria uma passagem de uma Prótese Secundária para uma Prótese ParaEspontânea? É uma imitação, mimese. • P – Uma decadência mimética? Sim. O que é o marxismo? Ele quer funcionar “como se” fosse uma Prótese ParaEspontânea, mas é tão convincente que o pessoal esquece que não o é e trata como se fosse. E mais, não funciona. Basta olhar para o tal Império Soviético. Algo é fake ali, e ele desaba. • P – E há os que propugnam salvá-lo transformando em marxismo matemático. O que é pior ainda. Aí a crença vai se firmar, pois matemática é coisa séria. • P – É a reificação da reificação. É meu problema com Alain Badiou. Comecei acompanhando o que apresentava. Quem sabe ele é colega? Mas vi que não era e abandonei. Perdi um tempo enorme. • P – Sempre me pergunto de que maneira ideias abstratas em certo momento se tornam crenças em outro momento. O pessoal acha que é aquilo mesmo. Como nós. É o mesmo processo. A diferença que existe entre nossa atividade e as demais é entendermos que foi fabricada uma âncora da loucura para a gente lidar com o mundo de hoje. Lá para trás, cada um inventou a sua. Eles acham que isso é mesmo a descrição de uma formação espontânea. • P – Seria uma alucinação? Não. Alucinação é só para alguns santos, que veem coisas. É uma deliração. Nossa produção é delirante? Não pode deixar de ser, pois, em seu regime ficcional, ela delira um pouco. Só que a gente admite estar produzindo uma formação para ancorar a loucura e entender o mundo contemporâneo. Preciso entender o mundo em que vivo. Se digo que o lacanismo já era é porque Lacan entendeu muito bem o mundo em que estava. E como a coisa corre muito depressa, já mudou. Eles não fazem isso. Algum desses aí inventa uma história, tira de acontecimentos, ou toma pedaços de várias coisas, como é o caso do cristianismo, e faz um sincretismo religioso, que parece limpo, mas não
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tem pé nem cabeça. E diz: “Isto foi o que é. É assim!” Ou seja, diz que isso é Artifício Espontâneo, aconteceu, é dado. • P – Se tomarmos o primeiro texto de Alan Turing sobre os números computáveis, que é resultante de grande abstração, e um aparelho celular móvel, veremos uma decadência tecnológica em vias de reificação – que, aliás, começa a se tornar até uma extensão primária. E é. Só que não é completa. Enquanto a coisa não decair na tecnologia, não tem futuro. O futuro é virar anedota. Tomem a matemática, da mais simplória aritmética aos cálculos complicados, que se decantou em maquininhas de cálculo. Não é preciso dominá-la por inteiro para ser caixa de supermercado, por exemplo. A aritmética virou uma apertação de botões. A pessoa não sabe o que está fazendo, quem faz o cálculo é a máquina. Mas vamos ao que interessa: Como a psicanálise pode se decantar em tecnologia? Acho possível produzir algoritmos futuros de leitura das formações. E não seria como horóscopo, pois este é uma tentativa de tomar um modelo ficcional e dizer que a realidade é essa: você é isso, aquilo...
21 • P – Em A Rebelião dos Anjos, página 51, temos que “A ciência é sempre ciência de formações primárias”. Você está falando das ciências humanas e de três tipos de Conhecimento: o absoluto, o compreensivo e o científico. Suponho que estava apontando que o modelo das ciências são as ciências duras, as quais, em relação a nós, tratam do Espontâneo, incluindo o Primário. E as ciências humanas ficam querendo imitar. Tomem, por exemplo, a vontade de exclusão que há nas epistemologias ao afirmarem que tal conhecimento 172
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“não é ciência”. A escolha é da forma de ciência ou do chamado objeto da ciência? Se escolho objetos duros, a ciência é dura. Se escolho objetos moles, a ciência tem que ser mole. Há um vício do século XX de achar que o que não é semelhante às ciências duras não é ciência e, às vezes, nem conhecimento é. Digo que estão errados, falando bobagem, e que é preciso ultrapassar o século XX que é paranoico demais. Basta lembrar das porcarias que fez. Lacan, às vezes chamou atenção para isso, ao falar da connaissance paranoïaque. As ciências duras e as humanas têm objetos, como dizem, diferentes. Então, como funcionariam de modo igual se o objeto é outro? • P – Se nos referirmos a Foucault, por exemplo, teremos que as ciências humanas não seriam ciências, e sim poder. E as ciências duras são o quê? São muito mais poder, fazem até bomba atômica. Temos que nos despedir desse tipo de ideia. • P – Como a Gnômica, com base na Teoria das Formações, pensa as ciências humanas? Como transa entre formações. É simples: se transo entre formações duras, a transa é dura; se transo entre formações moles, a transa é mole. O vício, como disse, é o processo epistemológico que durou séculos e se exacerbou no século XX: achar que se não for possível ter o mesmo tipo de manejo sobre certos conteúdos, como se tem sobre um átomo – que já lhes disse que é uma besteira, ninguém sabe o que é, é uma ficção –, não é conhecimento. Como aquilo funciona mais ou menos, dá para fazer uma bombinha atômica, etc., fica parecendo que essa ciência é a rainha da cocada preta. Não é. Parece que é porque o objeto da física é fácil. O nosso é difícil à beça. Essa concepção tem que ser jogada no lixo. É claro que ainda está durando, vai durar, vai ficar essa masturbação acadêmica em cima da epistemologia, que não serve para nada, nem para os cientistas, que fazem as coisas à revelia dos epistemólogos. É preciso pensar de outra maneira. • P – Jogar fora a epistemologia, mas não as ciências humanas? Qual é o grau de cientificidade de um discurso? Uma tribo primitiva tem um grau de cientificidade que é o deles. Até o final do século XX, no fundo, mesmo antes de ser nomeado assim, todos eram estruturalistas. A própria psicanálise falava em “estrutura da psicose, da neurose...” Há que parar com isso 173
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e saber que tem graus. Quanto de psicose você tem? Quanto de histeria, de obsessão? Vamos fazer uma tabela? Isto porque todas essas formações estão por aí. Não há aquele que é um psicótico. Além do mais, psicose, histeria e neurose são termos péssimos, um monte de bobagem de século XIX. Temos que pensar em termos de formações e considerar qualquer transa de qualquer formação com qualquer formação. O que está acontecendo na transa disso com aquilo? Aí, vai-se fazer a descrição da transa, de quais são as interferências destas formações com aquelas, e, ad hoc, tirar uma consequência. Aliás, é o que o cientista faz em seu laboratório. Não abre um livro de epistemologia para mexer nas coisas, fica lá vendo a transa. E as ciências humanas são a ciência de certo modo de transar, são resultantes de certo modo de com-siderar transas. • P – Qual é a diferença da psicanálise para com as ciências humanas? A diferença é de vetor. As ciências humanas costumam caminhar para um lado, a psicanálise é do contra, caminha ao contrário. É o sintoma dela. Se, em qualquer tipo de ação de conhecimento, só é possível funcionar mediante formações, não existe formação alguma, por mais simplória e pequenininha, que não seja sintomática. Não existe o grau zero do sintoma. O grau zero do sintoma é o Nada. Então, se lidamos sempre com formações mais limpas, mais sujas, mais carregadas, menos carregadas, mais complexas, menos complexas, em qualquer ordem estamos lidando com o que podemos chamar de sintoma. Todos somos sintomatizados. Lacan ousou dizer a frase “ama teu sintoma como a ti mesmo”, que acho errada, pois sintoma sei o que é, já “ti mesmo” não sei. • P – A diferença de vetor significa que as ciências humanas reforçariam os sintomas e a psicanálise teria uma tendência à dissolvência? A psicanálise tende não a dissolver, e sim a indiferenciar. Sintoma não se dissolve. Você não vai deixar de ser você mesmo nunca, pois para ser você mesmo, só recorrendo à sua ordem sintomática. O que difere não é deixar de ter o sintoma, e sim que a burrice diminui e você pode investir melhor o sintoma por ver que está aplicando mal seu capital. Donde a ideia de Diferença Radical. A diferença não é redutível, nem para defunto. Ela vai permanecer como diferença tal. Os efeitos, as transas e os investimentos é que mudam. Se tomarmos na infância uma pessoa estúpida, com dificuldade para tudo, etc., e conseguirmos levar aquela sintomática para outro lugar de investimento, poderemos ter alguém 174
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brilhante depois. Dizem que os professores de Einstein, não sei se é verdade, achavam-no um menino burro. Como ele investiu em outro lugar, deu no brilho que deu. E há o contrário, o confronto da inteligência com a burrice dos maiores. A criança, o adolescente, diz uma coisa brilhante, o professor diz que não é aquilo e dá nota zero. Mas o garoto é bom, para e pensa sobre o que está dizendo. Ele está solto e só pensou algo que não é costumeiramente pensável em sua idade. A besta é quem? É a epistemologia do professor. Não deixa de ser uma epistemologia, ele pensa que sabe qual é a verdade, qual é a diferença. Quando se elimina o que chamo de “caga-regra” – este é o nome técnico –, a coisa fica bem mais solta na concepção de mundo e de conhecimento: são transas. Trata-se de ver que transa é aquela. Esse sintoma epistemológico funcionou paradigmaticamente de maneira forte até o final do século XX, que é mais ou menos lá pelos anos 1980. Aí tivemos, vinte anos antes, uma espécie de revolução comportamental, sexual, de investimento em tudo, que bagunçou o coreto, mas não trouxe solução alguma. A solução tem que vir agora no século XXI. Até o fim do século XX, a coisa foi careta. Falava-se em revolução sexual em 1960, mas ela está começando agora, quando passa a entrar na sociedade a ideia de formações com suas transas. Não é possível regrar e dizer que isso aqui é uma coisa, aquilo outra, e aqueloutro outra. Trata-se, sim, de entender cada transa e buscar assimilar. Levado para sexualidade, para gênero, tudo isso que se discute hoje, vemos que essa gente toda era externa à ordem erótica. Coisa que acabou, pois sabemos que esta espécie, mais do que as outras, não tem definição nessa ordem. Já lhes expliquei que é porque o Autossoma não é obrigatoriamente congruente com o Etossoma. Mais frequentemente, não é. É menos frequente parecer haver uma congruência. Então, quando alguém diz estar fazendo sociologia e não psicologia, está fazendo o quê? Que diabo é isso? Onde é a fronteira entre a sociologia e a psicologia? Ele está olhando para certo tipo de coisa, recorrendo a conhecimentos, aplicando – e resultou em quê? Não sabemos, é o resultado. Não é uma questão de certeza epistemológica, e sim de acreditar ou não, como diz o próprio Popper. E acho que nem é questão de acreditar, pois quem acredita é doente. Usa-se ou não, toma-se tal ferramenta ou não.
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22 Neste nosso país, que é uma zorra, uma loucura, temos uma situação sintomática, uma formação ou, pelo menos, um resultado sintomático, que é excelente para entendermos isso – e não usamos. Não queremos falar em termos de nossa sintomática. Ao observar a minha construção sintomática, vejo que tem muitas origens, de vários níveis, Primário, Secundário, de família, de país, de cultura, tudo isso é sintoma. Aí tomamos a história da psicanálise – o livro de Henri Ellenberger, The Discovery of the Unconscious: The History and Evolution of Dynamic Psychiatry (1970), é bom para isso (ele não sabe o que está falando, mas descreve direito) – e vemos que Freud constituiu a psicanálise inteirinha, a dele, como século XIX, como, alguém de língua alemã, de Viena, ou seja, perfeitamente compatível com sua sintomática. Você não tem outra coisa para dizer senão o que é você mesmo. Ou, se não, fica repetindo o sintoma de outros, toma a ferramenta emprestada e usa. Se você resolve tomar como é aqui, como é que aqui fala, o que fala aqui, e usar essa formação, e se, depois, observa os resultados, você lê o sintoma da pessoa. Freud é tão evidente com sua sintomática. E o Dr. Lacan? Aquele francesão, vice-cartesiano, ou pós-cartesiano, com aquela parafernália francesa, literária, etc. Além disso, católico, com mesma paranoia século XX. Ele nasceu da paranoia lá da Aimée. E mais, tem aquela transa com outra paranoia completa que é a de Salvador Dalí. Não canso de repetir que o tema do século XX é a paranoia, é tudo parana. Antes, o século era histérico. Freud funcionou em cima da histeria. Lacan chegou a dizer que a neurose obsessiva é um tipo de funcionamento da histeria. Não acho. Acho que são do mesmo campo Estacionário, mas com vetores opostos. Então, Freud nasceu da histeria e Lacan da paranoia. Se for falar de mim, direi que nasci da perversão, que não é perversão alguma. É Progressividade. Quem chamava de perversão eram os paranoicos lá de trás. Se observarmos o que está acontecendo em nossa época em temos de comportamentos, de 176
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textos de revistas, etc., não é tudo perverso? Não é a maior sacanagem? Tudo que antigamente não podia, agora está virando bandeira. Este século é Progressivo e, assim sendo, facilita até a exacerbação do que se chamava perversão, que, repito, não é perversão alguma. Chamaram o bebezinho de perverso polimorfo, mas sabemos que o que ele tem é a sexualidade polimorfa. Tem tudo polimorfo, aliás. Assim, como dizer hoje, com a sintomática de século XX, com minha sintomática pessoal? Vemos o mundo coalhado de lacanianos, mas aquilo está podre, acabou. Foi genial em sua época, mas a coisa se superou a si mesma. Quando chegou no fim, Lacan perdeu as estribeiras. Até nisso era gênio. Perdeu as estribeiras, por estar procurando algo que não tinha cacife para encontrar, não tinha cacife sintomático para entrar em outra. Considero que meu trabalho pode não ser o representante lídimo do século, mas é o meu representante de mim. É sintomaticamente de século XXI: morreu o século XX, fui assassinando as formações devagarinho, e caí dentro do século XXI. É absolutamente brasileiro, daqui, da sintomática nossa. Eu sou o ABA PORU da Psicanálise. Qual é a nossa sintomática? Vamos descrever. Qual é a sintomática deste país? Duas pessoas foram excelentes na sacação dessa sintomática. Em primeiro lugar, a Semana de Arte de 1922, sobretudo na figura de Oswald, com Tupi or not Tupi e com nós somos heterofágicos. Traduzi para heterofágico. Ele chamou de antropofágico, por causa da metáfora do pessoal que comeu o bispo sardinha lá na história pregressa do país. Tomou como símbolo do que chama de antropofagia, e era bem palatável para entenderem sua ideia. Mas preferi chamar de Heterofagia. Ou seja, você faz questão de comer o outro. Esta é a sintomática brasileira: estar sempre colhendo dos outros. A outra pessoa que brilhantemente, pelo avesso, disse a nossa sintomática foi Nelson Rodrigues: “Complexo de vira-lata”. Está errado porque não é complexo de vira-lata, e sim Vira-latice Essencial. Somos vira-lata sem complexo. Ou seja, é o mesmo que Heterofagia. Vira-lata é o quê? É lixo. Lixo é o quê? É cultura. Lacan, a propósito da publicação de seus seminários, até falava em poubellication, “aquilo que publixo”. A cultura é o lixo de todo o passado. Temos, portanto, duas coisas maravilhosas: estamos sempre interessados, fuçando (1) a vida, o conhecimento, o país dos outros (é tudo turista); e (2) o lixo da cultura. É o que serve, pelo menos, para o século XXI. Isso é conhecimento, é movimento 177
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de entendimento de cultura. O Brasil tem a palavra – os brasileiros é que não têm, porque não tomam a palavra. Esse é o caminho. É ao que me obrigo há décadas. Tive a sorte de chegar em Paris quando era o canto do cisne. Ouvi aquilo e entendi que acabou, que estava acabando, que não tinha mais. Daí, a partir de meu retorno, comecei discretamente – para não me matarem logo (tentaram, mas não conseguiram) – a me obrigar a dizer do modo que era o modo de meu sintoma, o sintoma de meu país, de minha língua, de meu tempo. Era esse o sintoma que foi tomar a palavra. Difícil à beça. É só acompanhar meus seminários para ver como eram pernósticos no começo. Daí que a NovaMente é um dispositivo teórico capaz de inclusão generalizada. É um dispositivo. Para ser capaz de inclusão generalizada, observem que tenho dado dicas do que tenho a impressão de ter acontecido através do que digo e publico, mas sem quase conteúdo algum, nem sobre psicanálise. Não digo “isso é isso, aquilo é aquilo”. E onde está o conteúdo? Nos outros autores. Leiam todos, pois algum há de servir aqui, outro ali, etc. Que tenho a ver com Freud brigar com Jung na implantação da psicanálise? Nada. O que tenho é um patrimônio enorme, que vou absorver, tomar para mim e usar onde for bom. Então, se acabou, agora faço o quê? Construo um aparelho teórico de captação disso e de descrever minimamente algum funcionamento segundo o momento atual. Como se pode jogar Adler fora, se encontramos um monte de gente com aquela sintomática que ele descreveu (que era a dele)? • P – Ellenberger diz que Freud, no final, se utiliza de Adler ao falar em impossibilidade de ultrapassar o rochedo da castração. Seria seu “protesto masculino”. Por exemplo, é o que ele pôde ler. Já eu, acho essa história de “rochedo de castração” e de “protesto masculino” uma besteira. Para com isso. Sempre tem um veado no fundo de cada machão. A cabeça do século XIX é: “Homem é homem, mulher é mulher”. Mas isso é mais ou menos, tem graus. Do mesmo modo que o Autossoma não é necessariamente congruente com o Etossoma, o Primário não é necessariamente congruente com o Secundário. Melhor ainda: raramente o Primário é congruente com o Secundário. São dois tipos de níveis, o Autossoma é um e o Etossoma, outro, outra formação. Elas combinarão mais ou menos ou não. Isso, aliás, é da ordem da biologia, que está descobrindo essa 178
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não congruência em laboratório. E estou dizendo mais, que o Primário não é congruente com o Secundário. Fazer o quê? Por isso que a espécie é doida. Aí começamos a inventar até corpos novos. O que é um unicórnio? Um animal que existe secundariamente, há até desenho dele. Então, ele existe – e com invasão no Primário. E mais, algum cientista a fim de brincar no laboratório de repente produz um e ele nasce aí. À medida que se compreende que o software é mais poderoso do que o hard, pode-se obrigar a chamada natureza a se comportar como quisermos. Aliás, não tenho essa vocação naturista. Acho a natureza muito ruim, cheia de mosquitos, dilúvios, tsunamis... • P – Parece que você disse hoje algo novo: a incongruência entre Secundário e Primário. Você dizia que o Secundário imitava o Primário... Imitar não é ser o mesmo. Ele imita o funcionamento – e, por ser software, passa para o lado da incongruência. Por exemplo, alguém descobrir a composição, inclusive topológica, do DNA, está fazendo o quê? Uma leitura do que pode ser o DNA, e só chegou a ela porque pôde imitar lógica e tecnicamente o Primário que lá estava. Uma vez feita a leitura, ele quer mexer naquilo. Sempre cito Guimarães Rosa: “Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois” (Tutaméia). Imitam-se os funcionamentos da tal natureza e, depois, nos viramos para superá-los. Lacan, no fundo, tinha certa noção de que aquele momento tinha acabado. Inventou a Interpretação Absoluta. Era muito raro em minha época – no começo, era diferente, analisandos de então que deem depoimento – que ele fizesse uma interpretação direta do que a pessoa disse. Eu perguntava a outros analisandos e alguns tinham lembrança de, dentro do conteúdo do que disseram, Lacan ter feito uma intervenção. Comigo, só fez isso umas duas vezes. Então, se você está em processo de análise, dentro de uma transferência bem construída, bem transada, qual é a Interpretação Absoluta, aquela que serve para qualquer caso? É: C’est ça! É aquela que devolve para você sua existência pessoal insubstituível e única: “É isso!” Fazer o quê? A pessoa vai lá, blá-blá-blá, e ouve: É isso! Na presença dele, isso tinha uma força terrível. Você chegava crente que estava (des)abafando e recebia: É isso! A Interpretação Absoluta devolve o sintoma, coloca um espelho na frente do sintoma para ele se enxergar. Não é bacana? Isso não impede que o analista converse, não 179
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impede nada, mas, em último caso, vai fazer o quê?: É isso! A dificuldade de qualquer pessoa em sua relação com a vida é: enxergar-se. Está em Sócrates: “Gnothi Seauton”. Aliás, acho isso uma besteira, pois “seauton”, si-mesmo, não existe. Se existisse “si-mesmo”, o Sujeito sequer conseguiria ter a definição de Lacan. Para com-siderar as formações que estão por aqui, do lado de cá, ou tentar enxergá-las, tenho que usar uma formação que enxerga, e ela vira um ponto cego. A formação que enxerga é um ponto cego. Então, quem me enxerga aqui? Alguma ou algumas formações que não consigo ver por serem formações videntes, as outras são cegas. Por isso, a psicanálise inventou isso de você falar com o Outro, pois há lá umas formações sintomáticas que conseguem até ver as que você não vê. Entendem a complicação? O analista não se enxerga, mas enxerga os outros. É um pobre coitado cego. Tirésias de Divan. • P – É o Édipo. Voltamos ao Édipo que, para poder enxergar, furou os olhos. • P – Podemos dizer que, em termos da cultura, do que está acontecendo atualmente, verifica-se um grande trabalho, um esforço enorme, para justamente impedir que essas formações videntes se instalem? O pessoal está fugindo do que está brotando como século XXI, como outra cultura. A maioria está dando para trás. Temos que ter uma ficção para sobreviver, mas há ficções imbecis e ficções brilhantes. O que faz um psicótico, um paranoico? Como perdeu as ficções, inventa uma terrível, absoluta, para sua vida. • P – Dentro do que você chamou de momentos fecundos da Morfose Regressiva – composição, estatuação, catástrofe e ruína –, parece que estamos vivendo as sobras da catástrofe e da ruína. São pedaços que se formam e viram instrumentos de guerra, de batalhas interpessoais... É mais ou menos como o que acontece com o psicótico. Como não têm cacife para entender o que está acontecendo – pois é atordoante, terrível, e é preciso pensar –, o que as pessoas fazem para ter algum alívio é correr para a ficção lá de trás. • P – São cacos das ficções, sequer chega a ser uma ficção completa. São pedaços. É alguma narrativa (está na moda falar em narrativa) que segura as pessoas, deixa-as ficar um pouco em paz. Lacan falava do pobrezinho 180
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do avestruz – que, aliás, nada tem a ver com isso – que fica com a cara enfiada enquanto o outro vem e depena sua bunda. É o que vai acontecer, e não tem volta, todos terão a bunda depenada. Só discordo da imagem do avestruz. Para mim, é o símbolo – ou alegoria, não sei – da psicanálise. Não existe esse negócio de que enfia a cara na areia. O que faz é enfiar a cara no meio das plantas para comer, está sempre fuçando. E mais: o analista é o “estômago de avestruz”, engole tudo. Então, se não saltarmos fora, ficaremos igualzinho a esse pessoal retrógrado. Basta ver ditas instituições psicanalíticas por aí virando igrejas: lacanianas, freudianas... Não têm um movimento atual. Se estiverem em processo, não serão igreja ou religião. Se deixarem anquilosar, congelar, virarão uma seita. • P – Essa sintomática brasileira – vira-latice essencial, Heterofagia – não seria uma utopia? A rigor, o Brasil é um país com muita exclusão, muita violência, é quase bárbaro. Não é a sintomática que nasceu aqui. Ela funciona sub-repticiamente apesar disso tudo. • P – Sempre que você fala em Heterofagia, em sintomática brasileira, penso a questão da afirmatividade radical, anterior à denegação: Bateu, está escrito. E nessa transa com o “outro”... Bateu, valeu. E é transa com o Mesmo. Já lhes disse que, para mim, não há Grande Outro. É o Grande Mesmo, a Lesma Lerda. • P – Estrangeiros percebem que, no Brasil, a resultante é uma afirmação radical. Comentam que é um país que tem chance de futuro. Dizem que brasileiro é alegre, etc., o que quer dizer que, no fundo, tem um “foda-se”. Isso é ótimo: “Tô todo fodido, mas – foda-se”. Há esse sintoma aqui. O problema é não aproveitar nossa sintomática. Por outro lado, nota-se que uma geração nova está começando a aproveitar. • P – Como na fenomenologia há o Ser-aí, dizem que a contribuição filosófica do Brasil é o Tô-nem-aí... Maravilha. Dasein é o cacete. Anotem isso. Como se diz “tô nem aí” em alemão? Susanne Bial − Acho que o sintoma alemão não permite dizer isso.
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O que você está dizendo me fez lembrar que, quando estava em Paris, me sentei durante meses com Jean-Michel Ribettes naquela mesa da Brasserie Lipp, no Boulevard Saint-Germain. Ele queria traduzir as “Primeiras Estórias” de Guimarães Rosa para o francês. Não deu em nada. Eu dizia: “Não sei como é em francês, mas deve ser mais ou menos assim…” Ele respondia: “On ne dit pas ça en français”. Foi assim muitas vezes até que desisti. Disse-lhe: “O que é que se diz em francês? Também não temos o hábito de dizer em português como Rosa diz, mas ele diz”. Parece que a língua francesa é tão cartesiana que não consegue traduzir Rosa. E é verdade, pois li a tradução francesa do Grande Sertão e é uma porcaria. Às vezes, um sintoma proíbe a tradução. Temos que dar uma volta. Alemão talvez jamais diria: “Tô nem aí”.
23 A questão do Ser, que vocês estão estudando aí, é um cacoete da filosofia. Que filósofo diz qual é o Ser (dele)? Heidegger? Este nada disse, ficou chovendo no molhado. O que é isso, o Ser? Uma dor? Confunde ele Ser com Haver? • P – Às vezes, Heidegger parece querer expressar algo da ordem da derrelição, da perplexidade, mas se enrasca e expressa nos compromissos de Ser. Ele calça em linguagem (na língua grega e na alemã)... Foi aí que separei. Ser é o que se diz a respeito de qualquer emergência no Haver. Há situações quanto às quais temos que rebolar muito para dizer o que são. Já citei Bruit Secret (Ruído Secreto), de Marcel Duchamp, que considero perfeito para distinguir. Lá dentro há um troço que faz barulho, mas não se sabe o que é. Suponho, então, que tudo isso esteja embrulhado na ideia de Ser 182
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de Heidegger (Dasein, Ex-sistência...). Ele exemplifica bem essa coisa de Ser, da ordem do Logos, que atravessou a filosofia. Então, é pura ficção. • P – Lacan bebeu muito aí. São os defeitos de Lacan, que têm sobra de Heidegger e do famigerado Kojève. • P – Há também o estruturalismo. O estruturalismo poderia ser mais leve. Por que esse peso? Alguém pode me explicar o que é o Nome do Pai? O nome disso é Teologia. Custamos a ver, mas, ao lembrar de Kojève, fica claro que Lacan tomou emprestada uma Teologia. O que atravessa o comportamento intelectual – não direi filosófico, pois não é o dele – de Kojève é uma posição teológica. Lacan nunca falou nisto, mas se ancorou numa ideia de sustentação da Lei que não tem definição senão por fora. O que sustenta a lei do quê? Só Deus. Acho isto uma influência de Kojève. O que é a foraclusão do Nome do Pai? É, segundo Lacan, o mesmo que foraclusão da Lei. Ou seja, não entrou na cabeça da pessoa uma ideia de Lei. O que, historicamente, sustenta uma lei? Deus. Aí passaram manteiga e tornaram a sustentação democrática. Mas cadê o povo? O poder emana do povo, a ordem de valores, etc., vem do povo. O que é esse povo? Povo só tem folclore, mitologia. Quem é o soberano? Democracia é uma grande mentira, não existe e nunca existiu em lugar algum. Foi uma vontade de existência, mas é o apelido de um joguinho de cena para alguns tomarem o poder, os valores... • P – É a denúncia de Carl Schmitt: o poder se sustenta numa vocação teológica. A democracia faz o truque de alegar que tudo se decide na ordem parlamentar representativa. Ele, que era teólogo, denunciou isso. A resultante que pode ser o miolo da Nova Psicanálise se resume a: É tudo ficção. A ficção mais absurda, quando tomada como referência, passa a ser o nomeador soberano do Poder. O errado é raramente qualquer pensamento declarar que é ficção. Estamos perdidos, não sabemos onde estamos, quem somos, para onde vamos, e aí inventamos uma ficção. Pode ser Branca de Neve ou qualquer outra coisa – e faz-se um Estado, uma religião, como pura ficção. Digamos que, de origem, tenha um valor poético, mas no que se congela tal ficção e diz-se que ela é a referência, a verdade, isso e aquilo, acabou! 183
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• P – Podemos falar em ficção no sentido de agregar pessoas? Ela é útil no sentido mesmo de criar uma sobrevivência, uma maneira de governo, de organização. E justo o que não é analisado na política, no social, etc., é que são ficção. Pessoas que pretendem determinar o encaminhamento mediante poderes fazem questão de romper esse entendimento, e querem que acreditemos naquilo. Mas, se tomarmos como ficção, só pensaremos ad hoc – o que é a mentalidade que está chegando com o Quarto Império: a mentalidade de, ao procurar a referência, manter a pergunta sobre qual é. A própria ciência também é ficção, mesmo sendo uma ficção que tenta ter o máximo de verossimilhança em relação às coisas, ou sei lá o quê, e operar de tal maneira que, às vezes, funciona. A ideia de átomo, por exemplo, funciona dentro daquela ficção, mas tem o limite da transa ficcional com uma realidade que não se sabe. Já as pessoas acreditarem em átomos, isto é religião. Isto por não poderem lidar com um fenômeno que chamam de átomo, que não sabem o que é, e sobre o qual se cria uma ficção parecida com o que ele parece que é. Não se toma como ficção nem mesmo na cabeça de cientistas, ainda que eles sejam os que mais estejam perto de ter uma desconfiança de que é preciso fabular. A Nova Psicanálise – que também é uma ficção – é a tentativa de constituir uma psicanálise sem fanatismo. Notem que estou dizendo que é tentativa. Os cientistas, às vezes, se esquecem de que estão utilizando um modelo de abordagem, e ficam fanáticos: são eisteinianos, darwinianos... Há uma imbecilidade nas pessoas que precisa ser curada o tempo todo. Em última instância, como tudo é ficção, temos que ter um cuidado enorme para não virar religião. Por isso, falei em Psicanálise: Arreligião. Como sabem, é uma ambiguidade: evita-se a religião, mas cuidado!, a tendência de toda e qualquer ficção é virar religião. Elas têm isto na alma. As pessoas aderem a uma ficção para não ficarem perdidas. Mas como é muito difícil suportar a ideia de derrelição radical, ao invés de recorrerem a várias possibilidades, tomam uma e transformam em referência e pensamento radicais únicos. Digo, então, tomei o que sabia de psicanálise – é só com isto que posso trabalhar – e tentei montar um aparelhinho abstrato, que, repito, também é uma ficção (Haver desejo de não-Haver, Revirão, etc.), e que, se for utilizada como ferramenta para a psicanálise, não
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serei fanático. Isto porque este aparelho toma tudo que se pensou a respeito de psicanálise e tudo que se pensou no mundo – ele inclui tudo. Diante de um problema, onde buscar uma ideia que esclareça sobre ele? Em Jung, por exemplo. Não interessa a briguinha – de veados, aliás – entre Freud e Jung. Se fossem mais sérios, não ficariam assim. Por que o próprio Jung chama o que faz de psicologia analítica? Porque opera nas resultantes, no fait divers, nos acontecimentos. Por isso, sua obra é uma montoeira de coisas. Ele só lida com fatos em geral derivados de certa concepção de psiquismo. Freud faz o trabalho contrário, tenta operar nas organizações, e não nas resultantes. Não conseguiu fazer muito bem, pois estava começando. Dizer isto não o desmerece, pois ele foi enorme: fez muito mal o que tinha para fazer. Como não tinha outra coisa, veio com Édipo, etc. Aí, briga com Adler. Por quê? Por que Adler era alguém viciado em sua própria história (como todos, aliás), por que era um ser “inferior”? Ele se tratava como um ser inferior. Inventou o complexo de inferioridade, que existe mesmo, mas é apenas uma organização patológica entre outras. Então, depois de Freud e todos os outros, não dá para tirar um denominador comum, algo para baixar a febre dessa história de pouco mais de cem anos, que ainda não teve tempo para crescer? Não é possível um aparelhinho enxuto por mais ficcional que seja? Como disse, tentei para meu uso aprontar esse aparelho, um aparelho que pode até buscar fora da psicanálise – na história, na filosofia, na arte... – argumentos de intervenção e de cura. Isto porque é tudo a mesma coisa, apenas com cenários diferentes. Tudo se articula do mesmo jeito, não há outro jeito de gente se articular. • P – Poderíamos dizer que a psicanálise seria a teoria e a prática da ficção como Fixão, como você chama? Ou seja, a ficção acrescentada da ideia de fixação. Minha pergunta parafraseia Eli Zaretsky que diz que a psicanálise foi a primeira teoria e prática da vida pessoal. Há que pensar sobre isto. Por que a psicanálise seria a dona da ideia de ficção? Em toda a história do pensamento, fica tácito que se está fazendo ficção. No fundo, os autores têm certa ideia disto, mas não declaram. Aquele que mais gosto de citar é Popper que, depois de dizer o que era e não era ciência, diz que é preciso acreditar que é o que ele diz. Então, por que não disse no início, 185
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antes de ficar despejando regra no planeta sobre o que é e o que não é ciência? Se o fizesse, veríamos depois, com mais clareza, a fabulação que ele aprontou a respeito. Mas como pensar, quanto a isso, a literatura, a história da crítica? A história da literatura é ficcional visando uma verossimilhança qualquer. Ainda por cima, a crítica vem dizer o que é isso que se ficcionou e como. • P – Há teóricos que são sensíveis à questão. Por exemplo, Wayne C. Booth, com A Retórica da Ficção (Lisboa: Arcádia, 1980), em que, sobre o Livro de Jó, menciona a frase: “Jó é um homem bom e temente a Deus”. Há um narrador aí. Como pode ele afirmar que Jó era bom e temente a Deus? A não ser que se constitua como narrador absoluto, consciente de todo o processo. Trata-se de um narrador que é determinante. Ele determinou que é assim. Como cortam esse pedaço, a tendência é reificar. Isto, quanto a qualquer ficção. Meu pavor é alguém vir a colocar em natureza o que eu trouxe como ficção. É uma questão de ter colhão – esta é a palavra certa em português – para não naturalizar as coisas, para andar em cima de nuvens, apavorado, com medo, sabendo que está tudo errado, que nada se sabe... Acho que, se a psicanálise funciona, é para levar qualquer um a esse estado. Mas levar alguém próximo a esse estado sem abandonar o Mundo. A postura é que é outra. Vejam, por exemplo, alguém como Jacques Derrida, que me dá grande irritação. Ele inventa um negócio que chama de desconstrução, que nada mais é do que análise, e prova o óbvio para qualquer um que pense: o que quer que se apresente discursivamente – parede, natureza, etc., também são discursos – sofre de um logocentrismo que, posto sob a mira da desconstrução, se mostra como nada, pois foi construído. Ou seja, descobriu a pólvora. Só que, no que se encaminha em seu projeto de tudo desconstruir, chega à ideia de que apenas um Messias poderá dar sentido a isso. Para que serve esse encaminhamento? Para sabermos que tudo é construído? Podemos analisar tudo para saber que é mera construção, mera produção de formações, mas formações que estão aí e temos que lidar com elas. Dizer que fodeu tudo, que só um Messias pode nos salvar, é algo pré-cristão... • P – No caso dele, seria uma teoria incompleta da ficção? É isso. Fico irritado porque ele salta fora das formações que são duras e com as quais temos que lidar. Não cabe chamar Messias algum, e sim voltar cá 186
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para dentro, pois há o que fazer. Eu o li no começo, no tempo da Gramatologia, mas não tenho mais paciência com ele. Apresentou uma diferença dentro do pensamento francês que, este, aliás, já é a paranoia total. O século XX não é apenas paranoico na política, mas também no pensamento. É preciso rifá-lo, sair dele. E Derrida, então – que é argelino, vem de um mundo de mentalidade muçulmana, no qual não se pode falar ou fazer arte, pois só há a escrita –, faz a gramatologia. É seu cacoete, como qualquer um tem o seu. Eu tenho o meu, meu sintoma é assim, pega ou larga. Mas, no caso dele, não é tomado como cacoete, e sim como diferença. • P – Você gostou quando ele disse que a psicanálise era “sem álibi”. Mas, na ordem da ficção, acabou o álibi. Isso aí é a morte do século XX, junto com Lacan. Embora Lacan tenha sido mais esperto do que essa gente toda: dá uma volta aqui, outra ali, escorrega, fala difícil... Ele sobra mais do que os outros, mas, repito, é fechamento de século XX. Sobretudo, da França. Nada no mundo representou teórica e artisticamente o século XX como a França: todos os pensadores e artistas são comprometidos. E Derrida vai ao extremo. Os americanos o adoram. O que eles, que são completamente mercado, veem nele? Não dá para dizer que seja um pensamento sustentável, pois vai e não volta. Pensamento sustentável vai lá fora e volta para lidar com o mundo, com o Haver. Esse aí fica olhando para o céu à espera do Messias. • P – O pensamento da NovaMente fala desse vai e volta como: a análise, em sua prática, é arte de transformar o sonhador em artista; Análise Propedêutica e Efetiva; a conjugação de nominalismo e realismo; a Pessoa como obra de arte em progresso... E isto é teoria e prática da ficção. A Nova Psicanálise é isso, mas não sei se é a única a ser assim. • P – Brecht fez isso com seu efeito de estranhamento. Ele quebrou a cara, pois as pessoas querem o me-engana-que-eu-gosto. E o teatro é o lugar do me-engana-que-eu-gosto. Ele pensou em colocar a verdade no palco. Isto não é possível. Basta ver que quem venceu foi Stanislavski, aquele que criou o me-engana-que-eu-gosto de alto nível. Está aí na TV Globo, no cinema norte-americano... E os cineastas que querem sair disso são piores ainda, pois o resultado fica mais enganador.
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Derrida é sem esperança, é desesperado. E o mundo que apresenta é desesperador – mas fica esperando o Messias. Coisa que os judeus já tinham inventado há milênios, e estão até hoje esperando. Ao dizer que a Nova Psicanálise é uma tentativa de produzir uma psicanálise sem fanatismo, não estou dizendo que ela seja capaz de analisar tanto que chegue ao zero. Isto, aliás, é algo importante na Cura: a análise deve caminhar até a pessoa chegar ao ponto de poder exercer a Indiferenciação. É Indiferenciação na consideração do mundo, e não de ser indiferente, mesmo porque não se consegue isto. A consideração do mundo a mais indiferenciada possível é um work-in-progress, não se chega lá. A Nova Psicanálise, portanto, não é Derrida porque oferece parâmetros. Os antropólogos talvez quererão me matar, pois vivem – e Lévi-Strauss incentivou isso – da ficção de que os primitivos são sociedades e culturas diferentes, que temos que respeitar, etc. Para mim, esta ideia se resume em: se houver um cataclismo, isso que vivemos não será possível, então, é bom haver uma reserva para sabermos como se começa de novo. Então, deixemos os índios e as onças lá, pois podemos precisar deles. É um backup. Os antropólogos, sobretudo os de hoje, não sabem disto que estou dizendo. Fico até com pena, pois o backup é deles, e não meu. Se estou definindo esta espécie chamada de humana – a qual, aliás, é absolutamente dispensável – como pertencente ao campo de uma espécie genérica chamada de IdioFormação, o que a caracteriza é o Revirão. E se é o Revirão que a caracteriza, nós, mesmo de carne e osso, somos uma espécie que tem um parâmetro que é: enriquecimento pela disponibilidade da Pulsão. Se somos constituídos em termos de Revirão, qualquer coisa que pararmos é Morfose Estacionária. Uma neurose, uma Morfose dessas, pode durar séculos, mas ela não qualifica, não define a espécie. Então, de saída, temos por definição que esta espécie não pode parar, ela inventa todo tipo de merda... Ela tem um encaminhamento permanente, ao qual não interessa no que vai dar. Pode dar na desgraça. É, aliás, até melhor dar lá, acabar com esta espécie – e ela ter antes já inventado outra IdioFormação um pouco menos estúpida. Esta nossa é estúpida demais por funcionar dentro do macaco e não conseguir muita abstração.
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Quanto a mim, não tenho respeito por diferença cultural alguma, simplesmente aceito que ela haja. Mas, se não andar, não respeito. Isto, não porque tenha a ideologia do progresso, e sim porque: Revirão dixit. Se esta é a característica que suponho haver na espécie, ela não para. Pode até ser devagar, demorar séculos em determinada estação, mas o que a caracteriza, repito, é o enriquecimento, obter cada vez mais. Isto é que é cultura, civilização: não parar, ir à lua, essa loucura que nos caracteriza – e não a paralisia do índio, que é Morfose Estacionária no sentido de que devem coibir os poetas que nasçam lá. Não é possível não nascerem índios que inventem uma formação diferente. Mas, como a sociedade é pequena, dura, enrijecida, são logo calados. Se abrirem a boca, tomam porrada no ato. No pensamento da psicanálise não cabe esse tipo de raciocínio caro a antropólogos. O enriquecimento, repito, é produzido, conseguido por disponibilidade da Pulsão. A Morfose Estacionária mata a disponibilidade. Se entramos em nosso regime específico de IdioFormação, a disponibilidade vai enriquecendo tudo. É mito não do progresso, e sim do enriquecimento, da produção cada vez maior e mais sofisticada de lixo. Stephen Hawking, uma cabeça excepcional, outro dia alertou a humanidade para o perigo de apostar demais na tecnologia, pois ela vai acabar com a espécie humana. Bacana! Espero que acabe logo. Mas ele, com a cabeça que tem, quer frear o processo das IdioFormações? • P – Logo ele que só consegue transmitir o que pensa por causa da tecnologia. Não acabou com a humanidade dele. Pelo contrário, deixou-o vivo e falando. Vejam o tamanho da neura, que pega até em alguém brilhante. Não há que ter medo de que esta nossa espécie acabe, e sim acelerar, acabar logo para sobrarem IdioFormações mais disponíveis. Nossa espécie tem dor de barriga, câncer, é preciso acabar com isso. É plausível hoje – e muita gente já sabe disso – surgir uma civilização robótica que, no entanto, é gente porque revira, fala, etc., e que, quando sente essas coisas ruins que sentimos, troca uma peça e resolve o assunto. Pode-se substituir todas as peças da pessoa e ela continuar a mesma. Esta é a suposição de imortalidade, pois, mesmo que seu hardware se destrua, seu software está armazenado em outro lugar. Ou seja, para acabar com
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ele, há que acabar com o sistema solar. Aliás, não há dúvida de que o sistema solar acabará. A não ser que mudemos para outra galáxia, o sol comerá tudo. • P – E o verão está chegando aí... Pois é.
24 A postura do que chamo NovaMente é de uma abstração radical, uma crítica radical das formações entendendo que são meras formações, mas não diz para sentarmos e esperar um Messias, e sim que há que voltar e lidar com as coisas. O que espero que o Quarto Império faça – não é uma esperança, e sim que estou esperando acontecer – é que, se chegar lá, a atitude abstrativa será genérica. É capaz de eliminar muita doencinha do Terceiro Império que, por exemplo, é cheio de gente fazendo filho desbragadamente. Isto sempre foi bom para produzir escravos, mas eles já não são mais necessários hoje. O que se faz com essa gente? Lixo antropológico – é o que acontecerá. Uma multidão dentro de campos que, por vergonha, não serão chamados “de concentração”. Como a mentalidade de Terceiro Império ainda está vigendo, a maioria está correndo para trás assustada com a falta de referência e com as grandes transformações. Teremos, pois, longos períodos de obscurantismo radical. Querem colocar no mundo aquilo que sustenta a estupidez retrogressiva de suas igrejas, inclusive “psicanalíticas”. Mas isso, no final, virará lixo, pois, ao mesmo tempo, a minoria pensante está pensando e produzindo em avanço. Basta imaginar que quando a mentalidade celular estiver dentro de nós, e não apenas nos aparelhos, será difícil sustentar o movimento de atraso. 190
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• P – Pode-se dizer que o que você traz como “é tudo ficção”, nos dois sentidos de ficção e fixão, é um desdobramento de sua teoria do Artificialismo? O Artifício Espontâneo, como chamo, não é muito legal com a gente. E mais, não adianta ficar brincando de salvador porque o planeta será desgastado, queiramos nós ou não. Outra civilização que morar aqui não precisará dessas coisas “naturais” a que estamos acostumados, de que sofremos e que são repressoras. Por isso, digo que não será preciso da reserva defendida pelos antropólogos. Será outro tipo de IdioFormação. Repressora é qualquer formação que iniba o movimento da disponibilidade, que fica segurando: é a estupidez de ficar paralisado. Para vermos que é uma neura radical, basta tomar qualquer religião, que chega no limite e quer eliminar os outros para ela ser a única verdade. • P – No Quarto Império não caberia essa eliminação? No Quarto Império, as pessoas gostando ou não, começa a aparecer quase como necessidade o respeito pela Diferença. É o que chamo Diferocracia. Há que brotar um modo de convivência entre grupos, etc., em que esteja claro que um está estacionado aqui, outro acolá, e que o movimento de um serve para algumas coisas e o do outro para outras. Não estou dizendo que isso virará uma generalidade – coisa que, se existir, só acontecerá no Quinto Império –, e sim que o Quarto Império terá que reconhecer esse respeito pela Diferença. Não é possível termos fanatismos, sobretudo os científicos. O que vemos hoje são patotas religiosas brigando dentro da ciência numa imbecilidade de sentido eclesiástico. Fora da ciência é pior ainda. Não há disponibilidade psíquica de querer para si o que quer que preste, venha de onde e de quem vier. É possível cada um seguir seu caminho dentro da ficção que escolheu e se aproveitar de resultados de outros caminhos, de outras ficções. Esta seria a postura do Quarto Império. • P – Retomo Carl Schmitt, que define o conceito do político por via da relação amigo/inimigo. O extremo é a eliminação do outro. A política é isso. Ela, que não é filosofia ou psicanálise, vive da relação amigo/inimigo. Minha pergunta é sobre a possibilidade de se constituir uma Diferocracia em que não se trate de amigo/inimigo, em que se tenha saído do jogo político da história e se esteja na Diferença e no jogo da Diferença, com
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todo respeito. Se alguém quiser continuar índio, que o faça, mas não queira me levar para lá. Schmitt tem certa razão, pois até agora a história foi assim. O século XX não serve de exemplo para ninguém. Todas as suas produções, além de serem extremamente sintomáticas, são comprometidas demais. Com muita frequência, não são um processo de disponibilização, e sim um aparelho de guerra. Isto porque estão sendo pressionadas pelos outros aparelhos. Acho mesmo que toda a obra de Foucault, o que a fez ser como foi, resulta da opressão sobre sua homossexualidade, a qual acabou o matando. É uma obra maravilhosa, mas é preciso entender que é de tanta pressão sobre a pessoa que o século XX a produz. Vejam também o fanatismo do significante. Não é a seu uso que me refiro, pois podem continuar usando, e sim, repito, ao fanatismo. O Nome do Pai, então... E quanto ao “l’inconscient est structuré comme un langage”, de Lacan, vocês sabem que mudei para “comme on l’engage”. Isto porque é também, mas não só, dependente da linguagem. Vejam que não dá para sustentar o século XX. Nem Einstein é sustentável. A teoria da relatividade, que foi genial em seu momento, já está sendo criticada pelo pessoal da teoria das cordas e por outros. Aliás, jamais se deve dizer que algo é impossível de ser provado. Outro dia, li numa revista francesa (Science & Vie, julho 2016) a chamada de capa: Pourquoi on ne saura jamais... Dans quel univers vit-on vraiment? Que ressent l’autre? E por aí vai. Como sabem eles, hoje, que jamais saberemos? Parece Sócrates que dizia “só sei que nada sei”. Alguém precisava ter dito para ele parar de falar merda, pois ele sabia um monte de coisas. O que ele tinha era uma ignorância imensa, mas não que nada soubesse. Não vai dar para passar por cima do Quarto Império, tratem de acelerar os processos de sua implantação. • P – Como o Quarto Império lidará com as ficções? Lidará sabendo que são ficções. Como disse, trata-se de usar a ficção supostamente mais adequada, seja qual for ou de quem for. Só há ficção, a qual sempre acaba sendo fixada. • P – É o caso dos contos de fada, que acabaram sendo quase que co-naturalizados pelas versões de Walt Disney. Já lhes disse que há muito tempo pretendo escrever um livro intitulado Cantos de Fodas. Mas observem que têm a ver com o desejo das pessoas, de 192
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meninas que queriam (e querem até hoje) ser Cinderela, encontrar um príncipe que lhes deem um palácio... Disney coloca lá para elas se identificarem. O século XX continua rolando por aí para nada. Mesmo a tecnologia está em retardo. Não me canso de repetir que a maioria das pessoas está apavorada e correndo para trás. Temos que tomar cuidado, pois elas matam gente. • P – A nova versão do filme Blade Runner que está nos cinemas, ao contrário do original, de 1982, é retrogressiva, é: “queremos família”, “queremos reprodução”... Isso vai proliferar geral. Estamos de novo no regime das sociedades secretas. Só nelas será possível falar o que se pensa. • P – No Livro de Areia, diz Borges que o melhor lugar para se esconder um livro é a biblioteca. Você publica, ele vira lixo e ninguém vai ler. Quem da massa leu Ulisses, de Joyce? Lacan falava que as pessoas diziam não conhecer sua tese de doutorado, mas por que ela esgotou? Ninguém leu? A referência direta do Terceiro Império, como sabem é o Secundário. Estamos saindo dele. O Quarto Império, referido entre Secundário e Originário, é dilacerado, e o será até o fim como também foi o Segundo Império, cuja referência ficava entre Primário e Secundário. Ou seja, o Quarto Império é dilacerado por não ter referência única, como tampouco teve o Segundo. Quando este se estabiliza mais ou menos, começa a inventar o Terceiro Império. Temos que ter noção disso, mas é preciso saber que o Quarto Império não é para nós. Podem anotar que a situação ficará pior do que está, pois ainda não estamos no momento de destruição do Terceiro e, mais, estão todos correndo para trás. Correndo de volta aos “bons tempos” do Terceiro Império. • P – Em 1995, você falou da clínica como “aparelho de simulação da suspensão dos recalques” e que se tratava de analisar formações, e não indivíduos. Cada pessoa carrega uma massa de formações estacionárias dos mais diversos níveis. Não há indivíduo algum aí, e sim a resultante de uma baderna de formações (religião, país, etc., uma verdadeira lata de lixo). Vemos analisandos durante décadas no consultório analisarem muita coisa, mas sem tomar noção – têm mesmo uma recusa – de um cristianismo radical do qual não conseguem 193
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se livrar, o qual prejudica suas vidas. É uma formação que faz lastro, que pesa lá no fundo, e, ali, eles não saem do lugar. É algo difícil para qualquer um de nós fazer uma crítica extrema de sua formação. Para fazer isto, é preciso pensar a partir de um suposto ponto de vista indiferente.
25 Para entendermos o escopo geral, é preciso saber a diferença entre Kant, Freud e Lacan no modo de considerar o Haver e o Real. Eles não têm a categoria do Haver, mas têm a abordagem do que querem que seja o Real. As posturas são diferentes. O Real de Kant está do lado de fora, é tangível, mas não é dizível, digamos assim. Em Freud é esquisito, o Real é meio fantasmagórico. O Real de Lacan não é kantiano, está dentro, esbarramos nele aqui dentro, está metido nos tropeços, nas falhas, é daqui para lá. Não gosto disto, pois é meio idealista. A história não serve, não vale nada, não impõe nada? Antes, só tinha o lado de fora, o que também era uma falha. Meu Real não é o mesmo de Lacan, é dentro-e-fora, pode ser acionado de qualquer lado. A Teoria das Formações não tem sujeito nem objeto, então é interseção e interferência de formações, não quer saber se estão dentro ou fora. • P – Kant também chega a admitir que o Real pode ser uma ilusão da razão, pode ser projetado. Mesmo Lacan também oscila. Felizmente, ninguém tem capacidade de ficar preso de um lado só, mas cada um tem sua tônica. O Real de Kant me afeta de lá para cá. O de Lacan tem sujeito, é dentro. Sempre temos que imaginar que há fora e dentro. Na transa das formações, não sabemos apontar até o extremo limite o que é de lá e o que é de cá, mas no mais concreto dessas formações temos certa noção de dentro e fora. 194
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• P – O Real de Freud é fantasmagório por ele falar em realidade psíquica, em umbigo dos sonhos... Aí é que Lacan deita e rola. Freud é macio, mas reaparece em Lacan muito forte, opressivo. O que eu disse nada tem a ver com isso. Já li texto me colocando como pós-estruturalista, mas, repito, nada tenho a ver aí. • P – Em 1987, você publica uma série de Maravalhas. Entre elas, uma intitulada Quando eu era lacaniano. Um trecho: “Mas de Lacan eu fui analisando e bom discípulo – e muita coisa já curei e aprendi: E agora até já tenho o que elaborar e transmitir. [...] Quanto a mim, estou aqui – presente e apresentado – sem ser representante de mais nada e mais ninguém”. É melhor isso. Sem essa perspectiva, confundiremos tudo. Sujeito é uma alegoria esquisita. Se não compramos pronta essa ideia, ela não funciona. Depois de aceitá-la por um tempo, não deu mais. • P – Em última instância, a ideia de dentro e fora está na dependência de haver Revirão. Este, instalado numa IdioFormação, torna-a disponível para transar nesse regime de avessamento. Se não tivesse competência para capturar isso, ela seria arrastada sem reagir, retornar e devolver funcionando na mesma operatividade. Então, o Real fica nessa conversa. E quando fica aí, seu Ponto é Bífido. O lugar do Real é o da Bifididade. Como não conseguimos pegá-lo, as histéricas ficam desesperadas e os obsessivos ficam pulando daqui para lá e de lá para cá. O Real de Lacan é até bacana. Ele coloca tudo na realidade psíquica, isto é, naquilo que faz buraco, furo, brecha. O Real funciona assim. Meu design não é esse. • P – Lacan não seria kantiano ao situar o Real na condição de impossibilidade? Isso também faço. O Real é impossível – mas capaz de gerar possibilidades. Ao supor poder nomear o Real no Ponto Bífido, tento abordá-lo e vejo que não fecha. Se fechasse, as histéricas seriam felizes. Somos afetados por ele, sem conseguir pegá-lo. É a diferença entre Haver e Ser. Na ordem do Ser, digo coisas sobre o Haver, mas sem conseguir pegá-lo. Assim como não se consegue pegar o Real do Revirão. Posso conjeturar o Ponto Bífido, mas não pegá-lo.
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• P – Sempre entendi o não-Haver como o Impossível Absoluto. O Real não é não-Haver. Real não é não-Haver, mas se comporta de maneira que não podemos dizê-lo. Ou fazemos literatura histérica, ou ficamos para lá e para cá. É uma impossibilidade de dizê-lo, a não ser como Ser, no regime do verbo ser. • P – Você, então, está modalizando a Impossibilidade? Por isso, há o Impossível Absoluto e o impossível modal. O impossível que estou atribuindo ao Real é o modal. Ele, portanto, é modalmente impossível. O outro é absolutamente impossível. • P – O sentido de modal é de que, em algum tempo e espaço, há a possibilidade de Revirão? É meu sonho. Não é possibilidade de Revirão, e sim de poder dizê-lo ali naquele ponto, daquele modo. Por mais que o psiquismo imponha um lugar de reviramento, não se conseguiria esgotar as possibilidades de dizer esse Real. Este é o impossível modal. Aí tentamos de novo, de novo, fazemos um trabalho de artes plásticas para dizer isso, e nos perdemos... • P – O impossível modal, por exemplo, diz respeito ao fato de não voarmos por não termos asas. Então, inventamos o avião e voamos. Aí conseguimos efetivamente voar... E, aí, ficamos doidinhos sem saber o que estamos fazendo. • P – Mas, quanto ao Real, nesse caso, não seria o Impossível Absoluto? Não, porque ele caiu no regime da realidade, e ficamos perdidos de novo. Ao voarmos, aquilo não se apresenta como Real, e sim como realidade produzida. Olhamos para o avião e ficamos perplexos do mesmo jeito. Se não, seria o saber absoluto. Já notaram a quantidade de gente que tem medo de avião? Por quê? Porque aquilo é inexplicável. Como uma lata enorme, pesada e cheia de gente pode sair do chão? Com o verbo, produzimos várias realidades, mas não dizemos tudo. • P – Então o impossível modal se modaliza como impossível mesmo? Não é reversível. Em dado momento, tal coisa é impossível e suponhamos que se consiga proteticamente torná-la possível. Isto virou outro problema, talvez maior. No decorrer da história, ao produzir arquivos cada vez maiores de conhecimento, 196
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notem que esta espécie vai se infantilizando, permanece criança durante mais tempo. É tanta coisa que é preciso processar para fazer uma teoria que não se consegue fazer aos trinta anos. Lá nos inícios, pessoas como Alexandre e Júlio Cesar fizeram tudo que fizeram nessa idade. • P – O Real de Lacan e de Kant é, então, situável só no nível modal? O Real de Lacan é reconhecido como fazendo parte das lacunas do Inconsciente. Temos que conceber que, em Kant sobretudo, o Real é aquilo em que a gente esbarra do lado de fora. Lacan chegar a falar em, de repente, ele nos bater na testa, mas esse movimento de bater na testa é do lado de cá. Em Kant não, o Real está lá e esbarramos nele. É uma diferença sutil. • P – É preciso sempre lembrar que, antes de Lacan, há Freud. Sim. O Real de Lacan está no Inconsciente. Também posso dizer que está, pois Haver e Inconsciente são a mesma coisa. Só que meu Real é absolutamente ambíguo, é dentro/fora, tem transa. • P – O Real de Lacan é posto pela negativa, é o que não cessa de se inscrever. O seu é afirmativo, produtor de formações, é uma máquina de geração. Não sei se é afirmativo, e não é uma máquina. O Real faz parte de uma máquina e acaba sendo gerador. Mas não vejo positividade radical nisso. Ele é teoricamente situado como a Bifididade do Revirão. É, portanto, o lugar do Ponto Bífido, do qual os matemáticos (que não sabem disso) dizem ser não-orientável. Definem pela negação, mas digo que é bi-orientado. Vejam que ele é situável como aquilo que não está lá. Há um mistério aí. • P – Em 1988 [De Mysterio Magno], você diz que não há mistério. E repito, mistério não há, mas nossa posição diante daquilo é misteriosa. Não que aquilo seja mistério, e sim que, em nossa transa com aquilo, fica misterioso. O que há, então, em vez de mistério? Ignorância, que é a mesma coisa. O misterioso é o que ignoro, não tenho como abordar. Chamo de mistério esse acontecimento da minha impossibilidade de abordagem. De repente, acende-se, faz-se uma luz, e acaba o mistério. Se acaba, é porque não havia, era só ignorância. O ponto é: vem de cá ou de lá? Em meus raciocínios, não há linha direta, há sempre que considerar de onde vem, de cá ou de lá. Dependendo do lugar de onde se olhe, é outra coisa. Ao olhar a partir de nossa ignorância que 197
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não se sabe, estamos dentro do mistério. Aí, podemos entrar na ignorância que se sabe. Então, é pura ignorância. Nosso primeiro impacto com a ignorância é ficar perplexo. É isso que chamam de mistério, mas mistério é uma estupidez. Alguns autores dizem que há coisas impossíveis de saber e chegam a alegar uma limitação cerebral para jamais sabermos. Mas como alguém pode saber se daqui a cem anos não haverá algum cruzamento materialmente posto entre o cérebro e a computação? Não podemos dizer que algo é impossível, pois o Impossível é Impossível mesmo, o resto é só modalmente impossível. Mesmo dizendo que é ignorância, não gosto de jogar fora a palavra mistério porque a situação que a pessoa sente não é ignorância. Ela sente misterioso – e, aí, produz Deus, etc. Historicamente, ela fica afetada.
26 • P – Nas Maravalhas, de 1987, você diz; “Daí o valor do Poeta (...) no sentido específico e no mais amplo do termo – pois ele é aquele que amplia (de qualquer forma, por qualquer meio) o escopo humano, aproximando-o do escopo divino. O Poeta é aquele que se movimenta ‘vers un signifiant nouveau’. (...) Neste sentido, poiésis é mímesis”. Outro dia, você falou que “tudo é ficção”. Qual é o tamanho desta afirmação? Ela abrange o Primário? Chamo a natureza de Artifício Espontâneo. Essa coisa – que está aí paralisada, que pouco se mexe – funciona do mesmo jeito, é da mesma ordem de articulação. Por isso, podemos falar em mimese. • P – Do ponto de vista da pragmática do termo ficção, ele parece ter uma inserção mais visível na ordem do Secundário. 198
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Porque o Secundário é soft, mais macio, direto. Não se consegue mexer com facilidade numa montanha, por exemplo. • P – Nas teorias conhecidas sobre ficção não há essa passagem para um Artificialismo Total. A suposição no âmbito desta nossa ficção NovaMente é que só é possível conhecer o Artifício Espontâneo, ou seja, que não é Secundário, porque não é diferente do Artifício Industrial. Pode ser mais congelado, ser uma articulação menor, mas é a mesma coisa. Isto nada tem a ver com o humano, que é regional demais. Repetindo, é a mesma coisa, as pessoas é que confundem as paralisias e, tal qual o chamado neurótico, insistem em imitar o Espontâneo. Pensam poder ser uma arara, por exemplo, como diz o índio. A produção espontânea, no regime total, não é Estacionária, e sim lenta. Guimarães Rosa definiu Deus como gordo e lento – mas não é Estacionário. Como temos uma velocidade maior no Secundário, pensamos que o Espontâneo é estável e, com medo da velocidade da maluquice de nossa cabeça, começamos a copiar a árvore, a montanha, etc., que parecem gente “decente”, com “caráter”... Uma teoria da química é só uma teoria, uma ficção, mas consegue se aproximar bastante das formações espontâneas a ponto de poder manipular dentro de certos limites. É possível fazer uma teoria física louca, como a do átomo, por exemplo, mas que é tão perto, tão mimética em relação às outras formações, que ela venha a funcionar, ainda que em parte. Isto porque é a mesma coisa, repito. Se não fosse, não haveria abertura. Entrar-se-ia por onde? A oposição homem / natureza durou tempo demais e é uma asneira. A vontade humana de literatice, de produção de historinhas, é porque olhamos para o mundo, aquilo faz uma comichão, e precisamos dar uma arrumada, ainda que seja inventar um romance sobre uma situação que vimos. Fazemos, então, uma ficção para dar conta daquilo que, efetivamente, nada entendemos. • P – Em termos de Creodo Antrópico, você disse que, uma vez chegando ao Quinto Império, voltaríamos ao Primeiro Império... Mas em outra volta da espiral. A ficção que posso fazer é que isso gira infinitamente. Algum historiador que a aceite poderá procurar na história até hoje quantas vezes virou. Se virou, passou de Primeiro para Segundo, para Terceiro Império... Tudo lá no regime do Primeiro, pois isso é fractal e holográfico. 199
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Considerando o planeta, vemos que há uma espécie esquisita que, por algum mistério, por algo que ignoramos, virou gente e tem Revirão. Essa fase é muito mais longa que os períodos subsequentes. Quantas fases há ali dentro? Que podemos chamar de Primeiro, Segundo, Terceiro Império...? São pequenas transformações. Em nossa história, na história deste bicho que apareceu aqui, quero supor que, em termos de grandes momentos, estejamos entrando no Quarto Império deste pedaço histórico. Ou seja, neste pedaço de acontecimento aqui, estamos entrando no Quarto Império desta “tchurma”. Considerem essa gente torcendo os miolos para falar de ETs. Nada tenho a criticar, pois não sei. Dizem, por exemplo, que no momento é impossível entender como é a cabeça dos ETs por estarem milênios à nossa frente. Se eles existirem e esse pessoal tiver razão, os ETs já terão dado muitas voltas no Creodo, e considerariam esta nossa situação muito atrasada, um planeta dos macacos, longe de um assentamento disponível para pensar e fazer. Nele, o que mais há é um bando de Estacionários: são constituídos como uma neurose, são uma neurose. De tal modo que não é que seja impossível vir a saber sobre ETs, e sim que, nas condições atuais, não há como pensar isso. Alguém tem que fabricar o conceito até para pensarmos. E isto não cria caos algum, apenas na cabeça daqueles que querem imaginar essa situação com as ferramentas de hoje. Então, mesmo que pareça caótico, qual ordem há nele? Heidegger, apesar de ter sido quem foi, dizia algo importante: “Pensar é o maior dos riscos” – deslocamos nossa segurança e ficamos em suspenso. Sairemos disso ou não? Estamos lidando com a loucura. Ao ousarmos pensar – que não é repetir o que já se sabe –, estamos no risco da loucura justo por suspender as seguranças anteriores. Daí, é preciso correr, produzir outras seguranças e fazer aquilo funcionar. Se não, ficamos sem nada, piramos. Não se trata de gracinha, e sim de necessidade. Fazemos ou sucumbimos. • P – O conceito de infinito, por exemplo, física e cosmologicamente, é uma produção desse tipo, misteriosa. Além disso, é perigosa. Basta ver o que aconteceu a Giordano Bruno. Matematicamente, é um conceito mais abordável. Os matemáticos, quanto a isso, são melhores do que nós, pois deixam em suspenso. Por exemplo, desenvolvem uma equação enorme, complexa, que, ao final de todos os 200
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cálculos, resulta em infinito sobre infinito. Isto não é: 1. Infinito sobre infinito é: indeterminado. Ou seja, não sabemos. Assim, ao infinitizar, batemos na ignorância. Mas continuam e dizem poder levantar a indeterminação – e fazem tudo de novo para bater onde? No mesmo lugar. É o que, em matemática, chama-se: levantar a indeterminação. • P – Ao falar de o Quinto Império retornar ao Primeiro, você usou a expressão Neo-Primário, depois trouxe o tema das próteses e falou de Formações ParaEspontâneas. Estas formações têm correlação com esse Neo-Primário? São praticamente a mesma coisa. Acho tudo muito simples, mais ou menos como a cabeça de Stephen Wolfram. Ao acompanhar, é que fica complicado, mas o complexo não tem que nascer do complexo. Difícil é chegar na simplicidade. Na história de fazer coisas, a cada produção é preciso entender como foi montada: entender o começo e a diferença. Se misturarmos, nos perdemos. Um Descartes, mesmo sendo genial, brilhante, matemático, não podia pensar essas coisas de que estamos falando aqui, pois não partiu do mesmo começo. Mesmo assim a ideia de progresso fica difícil. Não gosto dessa palavra, muito menos na bandeira, aquele positivismo da pior espécie. O que exijo é a ideia de enriquecimento, de acumulação – que não é necessariamente progressivo. Comparado com um homem pré-histórico, somos infinitamente mais ricos em todos os sentidos. Isto porque – e agora repito algo difícil de entrar na cabeça das pessoas – o Haver é capitalista, é acumulativo, vive procurando lucro. O capitalismo não nasceu com data, como queria Marx, ele é o que há. Dentro dele, cabe nos virarmos para arrumar um pouco as coisas, se não, é guerra. Quanto mais alguém acumula, mais quer que o outro morra. Como governar isso? Será impossível, como Freud já repetiu, mas dá para ajeitar. • P – Então, em última instância, a acumulação é progressiva. Não é a acumulação anal, obsessiva. Freud falava da acumulação anal para nada. Os tais acumuladores que vemos hoje expostos até em programas de televisão não têm riqueza, aquilo é cocô. A tendência é de enriquecimento, todos querem ficar mais ricos de qualquer coisa. E quando não querem ficar mais ricos, temos que tomar cuidado, pois podem nos matar. • P – O marketing hoje diz: “Você pode tudo”. 201
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“Você pode”, este é o lema correto. Como dizia Barack Obama: “Yes, we can”. Tudo depende do ponto de partida e da concepção com que aquilo foi montado. Querer tudo que posso é bem diferente de “poder tudo”. Mesmo porque quem saberia definir esse “tudo” que você pode? Você não sabe. • P – Esse enriquecimento de que você falou é modal? Sim. Pertenço a uma espécie que pode encher o Haver de próteses que ele nunca fez. Mas foi o Haver que fez, pois aquilo está no Haver. O Haver enriquece à nossas custas, somos escravos. Por isso, Bartleby diz: “Melhor não!” A situação é de escravo. Fernando Pessoa falava de nós como “escravos cardíacos das estrelas”. E não tem que ser por questões de astrologia. • P – De outra vez, você disse que a obra de Foucault dependia do século XX, paranoico, que ela era dependente da pressão sobre a homossexualidade dele. A obra de qualquer um sempre é devedora de pressão? Procure a fantasia de qualquer autor e verifique isso. Os textos de Foucault, em última instância, são contra o mundo que quis ser contra ele. Você não faz nada fora de você. Pode indiferenciar ao máximo, mas abrirá a boca sintomaticamente. Se imaginarmos alguém que fale para além da sintomática, ele dirá tudo. Isto não existe. Falando grosseiramente: “Você caga o que você come”. Em Foucault fica claro porque ele declara sua sintomática, mas muitos autores, ainda que movidos por ela, não sabem dizê-la. Qual é a sintomática de Descartes, por exemplo? Ele fez aquilo tudo para quê? Acho que ele queria inventar o Deus. Qual a função mais precípua da psicanálise? É devolver o analisando para ele. O analista nada tem a ver como aquilo, ele não é o analisando. Justamente porque, supostamente, o não analisado pensa – e agora deturparei a frase de Rimbaud – que je est un autre. Não no sentido de Lacan, e sim no sentido de um outro especular. Este é o valor da transferência: pendura-se em alguém por pensar que ele sabe tudo e que chegaremos lá naquele lugar. Não chegaremos, pois volta para nós. Lá já está ocupado, tem gente, é uma coisa... privada...
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27 Quanto ao que vocês estão estudando sobre a travessia da fantasia, em Lacan, notem que as pessoas se confundem demais porque há três Lacans. Lacan são três. E frequentemente ele fazia algo que confunde ainda mais. Percebia um fracasso, sobretudo teórico, saltava fora, não explicava se estava saindo e nem por quê. Mas, se prestamos a atenção, na sequência vemos que jogou fora, foi falar de outra coisa, sem dar satisfação a ninguém. Está certíssimo, aliás – o que que ele tem com isso? A igreja lacaniana é que insiste em carregar os três Lacans na cabeça. Devemos conhecê-los, estudá-los, para saber sobre o percurso, por exemplo. Como já lhes disse, encontrei Lacan um pouco tarde. O primeiro contato foi com os textos, acho que em 1970-71, depois pessoalmente em 1975. Em 1977-78 fiquei em Paris fazendo análise e dando aula em Vincennes. O Lacan que conheci no consultório era o último, já não tinha nada daquilo que o pessoal contava que ele fazia antes. Achei ótimo, aquele era o Lacan de verdade. Pensando rigorosamente, o que Lacan chama de “travessia da fantasia” é você bater realmente de cara com o Impossível – e agora direi segundo meu esquema – enquanto não-Haver não há. Quanto a isso, falava em des-ser e em destituição subjetiva, que não são categorias minhas – já que resolvi abolir sujeito e objeto –, e sim um cacoete da filosofia, sobretudo da filosofia francesa, cartesiana. Como é perfeitamente possível pensar sem sujeito e sem objeto, propus o que chamei de Teoria das Formações. Então, segundo o esquema que armei como substrato de todo o processo da psicanálise, temos de saída: Haver desejo de não-Haver. Em Lacan, isso é lá no final e é: atravessar a fantasia. Estou chamando assim, ele mostra de outro modo, mas é: você saber que suas identificações são absolutamente fajutas; que elas podem resvalar; que este troço aqui em que estamos é nada. Você sabe disso, entretanto, você está no mundo, passou por essa experiência de negativação total, tem um know-how de experiência de zero, é decepção o tempo todo. Justo o que o neurótico não 203
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consegue, pois fica decepcionado e paralisa. Não sabe gozar com as coisas. Reclama que tudo “é uma merda” e não dá o passo de: “Vamos à merda”. Quando você consegue atravessar, sabe que é assim, pode ficar decepcionado por algum pouco tempo, mas não fica arriado. Tomem o caso de Lacan. Começou pertencendo à Sociedade Francesa de Psicanálise, foi até presidente. É uma história esquisitíssima, mas muito interessante porque é evolutiva: vai tomando porrada, e vai crescendo. Não só se decepciona como sofre perseguição da IPA e várias tentativas de derrubá-lo – e vemos que era forte, que não parou de crescer. Constituía um processo teórico preciso, percebia que não era bem aquilo, então partia para outro processo teórico... A meu ver, chega lá no final – e era até esquisito porque parecia não estar presente tanto no seminário quanto no consultório (eu achava aquilo ótimo: eu ia lá aprender) – pensando: “O que tenho com isso?”, “Ça ne m’intéresse pas”. E foi esse último Lacan que deu a dica de onde você deve começar: continuar a partir dali (e não voltar para antes). Se tomarem meus ditos seminários, verão como fico oscilando, hesitando, me virando – até que, mais ou menos na década de 1980, achei, comecei a falar dali e ficou radicalmente diferente. E vejo que ainda hoje as pessoas têm dificuldade de engolir que o conceito fundamental da psicanálise é um só (e não quatro) – Haver desejo de não-Haver −, que ele resolve todas as questões e comporta a travessia da fantasia. • P – Quando seus textos começam a ser teóricos por via da psicanálise nos anos 1970, lá no Senso Contra Censo, você pega justamente a partir da ideia de travessia da fantasia e está cruzando com um elemento que já é uma espécie de antessala do Século XXI: a questão do Artifício. Um dos efeitos de entender que o Impossível Absoluto não há é que tudo se artificializa. Você desnaturaliza, desconaturaliza, por esse caminho primeiro que foi a arte: a obra de arte como função analista e o processo da análise como processo de constituição do artista. E depois, nos anos 1990, temos a Pessoa como obra de arte e a análise como art in progress (ou trabalho em progresso). Nesse período – extremamente fecundo para mim –, eu não sabia que sabia. Para você produzir um trabalho importante, você não pode saber. Você faz, mas não sabe que está sabendo. Lá adiante é que entendi o que disse. É como a análise. A coisa está funcionando, produzindo, você sabe, mas não sabe 204
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que está sabendo, você ainda está dentro, misturado com o troço. Aí, um dia, entende o que disse há dez anos. Então, começa a saber que está sabendo. É assim com qualquer um que esteja produzindo. Vejam que você não sabe, mas não pode parar porque, se não, nunca vai saber. Se não continua fazendo sem saber, nunca vai saber. A coisa de repente se esclarece, você entende e tem que passar a borracha em cinquenta por cento do que foi dito, pois agora tem um paradigma que entende. Entendo, mas não entendo – ainda tem isso: entendo, mas aquilo escapa de minha mão. Se não, vira meu, mas não é meu, eu é que sou dele. Se começo a obedecer ao entendimento que se deu, é ele que está falando, e estou obedecendo, correndo atrás. É difícil entenderem que o processo de produção é assim em qualquer área. Tomem a chamada história de qualquer campo de saber e de produção e verão que é exatamente assim: a coisa se produziu na ignorância. Na história da arquitetura, por exemplo, temos que as pessoas saíram da caverna e tinham que morar em algum lugar. Aí, começaram a tapar, a colocar uns pedaços de pau de tal modo – e aquilo acaba virando coluna grega. A pessoa se dá conta do que fez: inventou a coluna e não sabia. De começo, nos chamados “homens da caverna”, era a utilização do espontâneo. A primeira arquitetura é utilizar o espaço e representar coisas nas paredes para aquilo parecer um espaço próprio (já que não foram eles que o fizeram). A primeira intervenção que tiveram foi se inscrever nas paredes das cavernas, para ser a arquitetura deles: transformaram o Artifício Espontâneo em Artifício Industrial mediante a pintura. Um dia, saíram da caverna. Aí, precisam de uma coluna, se não, como segurar o teto? Eles não sabiam o que estavam fazendo. Mais tarde, já começam a pensar sobre o que foi feito e a organizar segundo um processo de história da arquitetura. Em todas as áreas é assim, repito. Vejam que a história da pintura é anterior à da arquitetura: já estavam produzindo pintura corporal, de parede... A da escultura também: já faziam aqueles bonequinhos. • P – Isso é o Inconsciente. O Inconsciente fala. E o que estava falando? Coisas absolutamente necessárias ao Primário: morar, não tomar chuva... O Secundário, por mais primitivo que fosse, estava arrumando uma transa com o Primário e a transa do Primário com o Artifício Espontâneo, externo. Animal não faz arquitetura. 205
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O fato de terem um programa de construir ninho ou casa de barro não pode ser chamado de arquitetura, pois é um saber sabido lá dentro deles, não evolui, não parte dali para outra coisa, fica assim para sempre. Tal espécie, sabe-se lá como, ganhou um saber e fica repetindo. Aliás, tem a mesma estrutura de uma Morfose Estacionária. Raramente escorrega um pouquinho. Se quiserem saber o que é uma Morfose Estacionária, acompanhem o comportamento dos animais, é uma coisa paralítica. Notem também que há muita gente que não só pessoalmente dentro do mundo apresenta uma Morfose Estacionária própria, como repete sem o menor questionamento a Morfose do momento histórico. Fica ali décadas, às vezes séculos, como um animal. É o que chamo de Neo-Etológico. E mais, se alguém começar a questionar, esse alguém deve ser eliminado, pois causa uma comoção enorme no resto todo. Estavam crentes que estavam muito bem de vida, com tudo resolvido, etc., e alguém vem lhes dizer que não era nada daquilo. Em vez de ouvirem, matam a pessoa para ela não fazer turbulência. Nosso caro Glauber Rocha inventou o termo “assassinato cultural” para designar isso que é constante na história e muito frequente no Brasil até hoje. • P – Poderíamos dizer que a análise de qualquer brasileiro precisa passar por esse pedaço: analisar a prática de assassinato cultural que está nele? Sim, porque ele assassina culturalmente as suas funções, e não só a dos outros. Alguma coisa mexeu, fez turbulência aqui, ele mata aquilo lá – para matar aqui. • P – É igual à homofobia. A pessoa mata o dito veado por ela ser mais veada do que todos. É o veado propriamente dito, por carregar aquilo dentro dela com terror. Isso em psicanálise é tão óbvio que sequer adianta comentar. Temos, então, a questão da história da psicanálise. Ela acabou? Claro que não, sequer chegou a começar direito. O processo de entendimento e de conceituação da psicanálise ainda é muito retardado. Por outro lado, há que considerar que só tem cento e poucos anos. Vejam o esforço de Freud para poder armar um arcabouço mínimo, com um monte de bobagem lá dentro. Depois dele, temos aqueles analistas discordando, fazendo proposições, todos enrolados com algum problema importante, e acrescentando casuisticamente. 206
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Nenhum acrescenta intrinsecamente, apenas apresenta a casuística de certas visões. Só com Lacan é que veio uma reestruturação da psicanálise. • P – Em que sentido você falou em “zerar as formações”? Sobretudo, no sentido de suas identificações. Lacan, ao falar em des-ser, está se referindo a você começar a estranhar o que supostamente, historicamente, é seu. Você até ainda funciona segundo algumas formações que são necessariamente sintomáticas, mas elas são estranhas. Não são mais “é meu, é assim”. Você não sabe, é mais ou menos... Então, as formações não afetam a pessoa: são reconhecíveis por ela, sem afetação. É a diferença que faço entre recalque e Juízo Foraclusivo. Algo pode ser retirado por atrapalhar o que se faz agora, mas não está excluído por neurose. Por neurose, aquilo está atrapalhando tudo, mas não temos acesso. No Juízo Foraclusivo, ao contrário, é cada vez menos recalque, simplesmente transa, está-se disponível para as transas. E mais, entendam que agir assim é difícil, raro, raríssimo e incompleto. Nunca vai se completar. • P – Quanto à travessia de fantasia, você disse que começou de onde… ...Lacan parou. • P – Haveria aí uma referência à demarcação entre o que você colocou como Análise Propedêutica e Análise Efetiva? Não posso comprar essa ideia por completo, pois não tenho ponto de vista de onde julgar que o que começou, no que o outro terminou, é a validade absoluta. Não é. Espero que lá na frente alguém encontre coisa melhor. • P – Foi o máximo de abstração possível naquele momento. É parecido com uma Análise Efetiva. Por exemplo, na passagem de Freud a Lacan, podemos perceber que Lacan não só fez sua análise, como tomou a obra de Freud, leu, leu e fez outra – que ele tem a cara de pau de dizer que é “retorno a Freud”. Isto, do ponto de vista social, pois, do ponto de vista científico – prefiro usar esta palavra –, não é cara de pau. Toda vez que você retorna, faz outra coisa, em cima de seu retorno. Se tomarmos a obra de Lacan e olharmos para Freud, veremos que é outra coisa. Mas essa outra coisa está tentando dar conta do que aconteceu lá na anterior. E Lacan deu conta muito bem. Seu trabalho é genial – só que, repito, acabou! É um percurso difícil como o diabo: ele foi tentando junto com seu século arrumar aquilo até chegar 207
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à desistência, à de-sistência, a cada vez mais tirar a consistência do teórico. Fica um esquema de travessia, o resto é anedota. Então, quando falo em zerar as formações não é que elas sumam, e sim que se mostram como anedota. Espero que alguém aqui já tenha chegado a esse lugar para poder corroborar com minha falação: olha-se em volta, e só tem anedota. E continua-se vivendo com anedotas, às vezes da pior espécie, destrutivas, de uma burrice tal, e que aí estão tidas como coisa importante. O que é, por exemplo, a emergência de um Estado Islâmico em nossa contemporaneidade? Que doença, que neura é essa? Consegue ser mais estúpido do que Igreja Católica, o que é algo bem difícil de conseguir. A Igreja Católica Romana – a Ortodoxa não conheço, pode ser igual ou pior – sabe transar com o mundo que lhe é contemporâneo e dá um jeitinho de sobreviver com o mesmo poder, mas não muda sua base Estacionária. Justo por isso junta tanta gente em volta, junta os Estacionários daquela ordem em torno de uma “verdade”. É verdade? É claro que é verdade, dizem todos. • P – O Islamismo seria Regressivo? Tem toda pinta de Regressão. Lacan faz uma distinção estrutural entre o Estacionário e o Regressivo. Para ele, há uma diferença estrutural. Para mim, não há essa diferença. Há, sim, diferença de força, de poder. O Regressivo é HiperRecalcado, mas o esquema é sempre o mesmo. Assim como o Progressivo é sub-recalcado, dribla os recalques. No passado, as pessoas, sobretudo a polícia e depois a medicina, ficavam impressionadas com aqueles que conseguiam passar por cima do recalque. Até do recalque oficial, que dava cadeia, morte, execução. Diziam que eram “perversos”, quando simplesmente não eram babacas. Mas viram babacas quando não fingem ser iguais ao outro. Aí são babacas demais. É a diferença entre Galileu Galilei e Giordano Bruno. Galileu é menos babaca do ponto de vista de sua sobrevivência. Pensou: “Deixa eu dar uma arrumada para ficar em prisão domiciliar, e não ir para a fogueira”. Bruno insistiu em seu “não aceito” – e foi para a fogueira por não saber lidar com o opressor. Ao nos depararmos com o opressor, temos que ter velocidade de transa, se não, estamos ferrados. Em certa época de minha vida, estava duro, quase na miséria, era estudante, já estava casado e estava difícil sobreviver. Aí me indicaram um emprego numa Escola Batista. Fui lá falar com o pastor responsável pela escola. Eu 208
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precisava daquele emprego, que, junto com aulas que dava no Colégio de Aplicação, em curso de contabilidade, etc., daria para viver. Lá cheguei, sentei-me para ser entrevistado. Depois de um tempo, acendi um cigarro e fui conversando. Aí ele diz: “Gostei de seu currículo, de sua pessoa, etc., mas não damos emprego a fumantes, aqui não entra cigarro”. Como sair dessa rapidamente? Respondi: “E vou lhe agradecer, pois só assim consigo parar com essa porcaria de fumar”. Ele me achou encantador, me deu o emprego – e lá dentro nunca fumei, só fora. Isso é o opressor, que diz: “Vou te matar de fome, porque não quero que você fume”. Ele poderia ter dito: “Aqui dentro, não pode fumar” – mas o que disse foi: “Não pode ser fumante”. Vejam que é preciso ter disponibilidade. Na época, eu tinha vinte e poucos anos, mas consegui me safar (é claro que conheço Freud desde os dezessete, fiz análise a partir dos dezenove, então, já tinha certa velocidade de transa). • P – Você foi malandro... Isso não é malandragem, é deixar de ser imbecil. Em antropologia, chama-se trickster, que traduzem por embusteiro, aquele que faz truques. Mas, para mim, é o nome do Revirão. • P – Velocidade implica várias coisas. Uma delas, é a disponibilidade, não acreditar no jogo do outro... Nem acreditar no seu. Há pouco, comprei um livro grosso de antropologia – cujo autor não me lembro agora – sobre a função trickster em várias culturas. Li umas partes e, no final, ele insere quem? Marcel Duchamp, Picasso..., aqueles que deram a volta e viraram a arte ao contrário. Querem qualificar os trickster da antropologia como espertos, trambiqueiros, malandros, 171, mas o autor diz que há uma diferença enorme, pois eles são os que, na sociedade, entram nesse lugar esquisito e dão um golpe para ela ir para a frente. Em qualquer transa, fazem com que vá andando para adiante. A meu ver, o que justifica o termo antropologicamente é a pessoa agir não sintomaticamente, e sim no que chamo de Juízo Foraclusivo: “Pode ser isso, aquilo, aquiloutro...” Ao contrário do recalque que diz “isso não pode, aqui não pode”, a referência está numa possibilidade. Já para o dito psicótico não é que não pode, e sim que o HiperRecalque gere todo o processo de sua vida. É aí que não concordo com a ideia, brilhante, de Lacan sobre a foraclusão do Nome do Pai, pois tem 209
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um sabor de teologia. As intervenções do Lacan intermediário – não o meu Lacan, o meu analista, que é outro, o terceiro –, que são as mais citadas por discípulos e analisandos, etc., são intervenções de quê? De trickster. A pessoa fala algo, ele vira, aquilo não é mais aquilo, é isso, e ela fica perdida entre os dois. Em minha análise, as intervenções de Lacan não têm nada desses truques, são a seco, são navalha. • P – A publicidade se utiliza muito desses truques. O tempo todo. Daí o pessoal achar que ela é mau-caráter. Mas a ideia de Macunaíma, em Mário, e a do reviramento que há em Oswald são isso. Eles são inteiramente analíticos. Qual é a cura? A cura é Macunaíma: há uma Pessoa ali dentro, a qual tem muito pouco compromisso com as situações dela. Então: virou o mundo, ela também vira. Por que não? O bacana é ser branco, então sou branco – mas tem que lidar com os negros, então, sou preto. Está tudo lá, eles sacaram. Quem inicialmente sacou isso sem nomear, foram os surrealistas. Lacan andava com eles e começou a nomear. Lacan é certo efeito dos surrealistas. Ele ficou misturado com aquele bando de loucos: Picasso, Duchamp, André Masson... O que foi fundamental em sua vida porque os surrealistas estavam virando as coisas. O mais safado era Duchamp, que virou tudo de cabeça para baixo. Lembrem que Lacan não tinha ferramentas próprias e o mundo científico, tecnológico, etc., tampouco. Quando ofereceram ferramentas chamavam-se: estruturalismo, linguística, antropologia de Lévi-Strauss... Lacan pegou o que tinha. Então, em vez de partir direto para os finalmentes, levou décadas construindo ali no meio, com as ferramentas que o século ofereceu. Alguém de hoje não precisa disso porque a ferramenta nem precisa ser científica, pode ser puramente tecnológica. O computador dissolve tudo. A Internet, por exemplo, é completamente sem caráter. Nela, a mentira corre solta igualzinho à suposta verdade. Aliás, já estão pensando em como intervir para recalcá-la, pois, se deixar solto, é igual ao Inconsciente, que come qualquer troço que surgir. Se não vier a barreira chamada “consciente” recortando, proibindo, recalcando, etc., vale tudo. Como fazer se a Zorra está de tal maneira que alguém muito brilhante é capaz de desestabilizar os Estados Unidos, por exemplo? Não estou falando de Trump, e sim de coisa pior, de dar uma enlouquecida na organização
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binária do Estado americano. Degringola aquilo tudo. Quem governa o quê? Como acertar de novo? Será um período de loucura total. • P – Será um tipo de assalto à nuvem, não mais a bancos. E já começou. Já estão assaltando e pedindo resgates em bitcoin. Assalto mesmo, assalto virtual. O mundo presente e o futuro cada vez mais viverão em nível de computação, situado fora. O sistema está jogado no ar. Deve ser muito engraçado, divertido, o Terceiro Império desmilinguido e o pessoal fazendo uma força desgraçada para voltar para ele. É o que fazem agora, a maioria correndo para religião, se esforçando para voltar para o antigo – mas não tem volta. Durante certo tempo, conseguirão por causa do medo da maioria. Haja vista ao estapafúrdio prefeito evangélico desta cidade – mas ainda vai piorar. Ou seja, antes de degringolar, haverá um enorme esforço para voltar e que fará mal a muita gente. Só que quebrarão a cara, não serão vencidos pelo outro lado, e sim vão desmilinguir por dentro. Aquilo não funciona: volta, volta e aí emperra. O mundo cresce para lá, para cá, aquilo desaba e fica podre. Chega num limite da curva em que aquele funcionamento só prejudica, e até as pessoas lá de dentro começam a ficar apavoradas. Mas isso pode durar um século ou dois. Não canso de dizer que o Terceiro Império se montou mediante uma anedota que colou, e mediante grandes esforços de poder. Não fosse Constantino, aquilo podia ter morrido ali como qualquer seitazinha da época. Cristão era apenas uma entre um monte de seitas disputando público contra o paganismo greco-romano. Por que aquele bando de maluquetes que se supunha cristão de certo modo deu nisso? Porque Constantino resolveu se salvar em cima de um aparelho populista. Salvou o Império em cima de um populismo que viu que colava, que até as outras igrejinhas podiam ser reduzidas àquela. De começo, o cristianismo é uma bagunça, um grupo é cristão assim, outro assado, é uma zona. Constantino juntou tudo, deu prebendas, salvou o Império – e deu poder a uma anedota que está vencendo até hoje. Poderia ter sido outra. A dos Gnósticos, a nosso favor. Não foi. • P – Foi uma anedota adequada, corroborada por outra do sonho da cruz inventado por Constantino. É a maior invencionice, ele era espertérrimo.
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• P – Na América Latina, a anedota colou. Mas no lado do Japão não deu certo. O Japão tinha uma religião forte, já instalada, com poder. Era a religião do império, dos imperadores. A religião do Império, em Roma, estava esfacelada. Vejam também que a religião do budismo é outra porcaria. Sidarta Gautama é genial, nada tinha de religião, era um pensamento como de qualquer escola grega, Pitágoras, os Stoa... Ele fez o jardim dele no Oriente, um modo de comportamento para você viver bem. Facilmente, transformaram numa religião e numa igreja. Basta ver que a Igreja Lacaniana já colou. Até isso aqui, a NovaMente, se bobear, vira igreja. Nunca viajei para China, Índia, esses lugares, mas o que vejo em filmes é uma palhaça igual à Igreja Católica, cheio de crenças, de santos diferentes. Gautama não falou nada disso. Então, no geral, passa a funcionar igual a uma neurose. Lacan fez uma limpeza legal. Em Freud ainda era muito anedotário: ele construía certos aparelhos, sobretudo mediante metáforas como Édipo, essas coisas. Lacan fez uma limpa e, a meu ver, chegou ao lugar certo. Por isso, digo que é um pensamento terminal. Agora, há que procurar para a frente. O que pude achar foi isso que está aí. Se alguém achar melhor, que apresente. Repito, o lacanisno imediatamente virou uma grande igreja internacional, com poderes, etc., mas o Dr. Lacan não era essa bobagem que vemos aí, pensava sem parar. • P – Podemos dizer que a Formação em psicanálise inclui tornar-se um trickster? Com certa malandragem? Não é preciso chamar de malandragem. Chamemos de disponibilidade. O que não se entende em certo tipo de malandro – não aquele que dá golpinhos – como um Marcel Duchamp é o fato de ter destituído a significação de toda a história da arte e ter colocado uma proposta. Do ponto de vista de quem está morando do lado de cá, ele parece um bandido, um pilantra que fez o que fez com a arte. Mas, depois que cola, o que fazer? Ele colou, e toda a arte contemporânea descende dele. Não se fez nada depois dele que não seja inserível num de seus projetos. • P – Ele chegou a perceber isso? Ele era muito esperto, sabia. Prestem atenção naqueles risinhos seus, na sacanagem que fez com a Mona Lisa, com o mictório, jogando na cara das 212
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pessoas: “Vocês são uns babacas, acreditam nas piores merdas”. Pensem na ousadia que é assinar com pseudônimo um mictório e colocar na exposição. Ninguém conseguiu dizer mais nada. Vai dizer que não é? Houve crítico que disse que era a cara da Nossa Senhora. • P – Octavio Paz diz que ele é um bufão das artes. Octavio Paz é finíssimo. Duchamp demoliu tudo, demoliu geral. Tomem um descendente direto dele, Andy Warhol, que transformou o mercado da publicidade em arte de alto nível e foi em frente. Qual é a diferença? Ele não estava inventando nada, era contemporâneo de Duchamp, tomou os ícones da época: Marilyn Monroe, Liz Taylor, Michael Jackson... Para mim, o nome disso é: disponibilidade. A pessoa tem uma mente disponível, não está presa a certos roteiros, conteúdos, está ali, espreitando. São esses que fazem o mundo andar, ficam olhando e, ao perceberem para onde está indo, elas vão para lá. Por que conseguem perceber para onde está indo? Por não estarem presos a anedota alguma. Até conhecem as anedotas, mas sabem que é tudo anedota, é tudo igual. • P – Você diria, então, que a disponibilidade hoje está na tecnologia, e não numa pessoa? A disponibilidade está no ar. Mas, dado que as pessoas são Estacionárias, são capazes de conviver com essa disponibilidade como um animal. Não há gato e cachorro convivendo por aí? Não quero saber de sujeito, então Pessoa é uma resultante, que porta a possibilidade de reviramento radical – mas não usa. Por definição, todos são gênios, mas ficam burros. O que fazer? O entorno procura a estupidez e a maioria deixa por ficar mais barato do que ter que estar em conflito. O sistema paga bem. Já sabemos que a prostituição é universal, como disse Marx, e que é (não a mais antiga, mas) a única profissão. O sistema é prostituído, só tem puta, só tem puta − inclusive eu. Não se consegue viver sem estar se vendendo – mas há alguns momentos em que aquilo fica demais. Então, como dar conta disso analiticamente sem colocar panos quentes mediante separações entre o que é e o que não é prostituição? Não há possibilidade de alguém estar vivo e funcionando sem estar se vendendo. Sempre se vende de alguma maneira, sempre cede por causa de uma sobrevivência. É uma questão de grau. Notem que tento eliminar a ideia de estruturas permanentes na psicanálise para mostrar que tudo são graus de articulação. Qual é o grau 213
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de Estacionamento de uma pessoa? Vários. Não são todos que têm a mesma potência neurótica. Um é muito, outro é pouco, o outro é tanto que é psicótico, e outro que não é quase nada. O pensamento do século XXI é o pensamento de gradação, e não de estrutura. Qual é a definição da Morfose Estacionária? É ter certa paralisia. Só isso, não é preciso mais. Depois, podemos ver quais são os jeitos da paralisia. Aí, andamos para trás, e temos a paralisia cada vez maior, a Morfose Regressiva. Andamos para a frente, e a paralisia pode ficar bem menor a ponto de virar Morfose Progressiva. Onde fica a fronteira entre a Progressiva e a Regressiva, por exemplo? Por que frequentemente vemos o pessoal embananado quanto a certas configurações que parecem psicóticas, mas não é psicose? Porque é uma questão de grau, e não de estrutura em que isso é isso, aquilo é aquilo. • P – Daí termos, outro dia, falado sobre a diferença entre a razão demarcatória e a razão transitiva. Sim, é outra razão, transitiva. Falo em gradação por ter vindo de Lacan, etc., mas, sem querer, passei a fronteira. Fui andando e quando vi estava num país estrangeiro. Então, o que vou fazer? Entender que um pensamento gradual nada tem a ver com um pensamento formal. Podemos até fazer uma definição, mas não que afirme que “histeria é isto assim-assim”, e sim que Morfose Estacionária tem uma força recalcante de tal maneira que não se mexe. E não se mexe de algumas maneiras, talvez duas, pelo menos, mas sem passar por fronteira alguma, é direto, contínuo. Esta geometria é que é não-euclidiana, pois a do lacanismo, por mais topológica que seja, ainda tem cheiro de Euclides, com fronteiras claras, tem cheiro de teologia, de geometria quadrada, não é gradual. Ressalto que Lacan não é tão estúpido, pois não acreditava em conteúdo. Buscava a estrutura da pessoa e como ia se comportar. Tratava-se de observá-la. Nele, não há as definições da nosologia antiga em que o obsessivo se comporta assim, a histérica assado. Está tudo misturado. Ao observarmos alguém em análise, vemos que aquilo é flou, gira, não fica parado.
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28 • P – Retomo o que você trouxe em 2015 e 2016 sobre o sexo sui generis, em que a questão de gênero é recuada para antes ainda da performatividade cultural, para a consideração do Primário. Aí a situação é complexa, há que lidar com as formações autossomáticas e etossomáticas, com a não necessária associação entre elas, e com o fato de como isso também ocorre em outras espécies animais (e no humano é mais complexo ainda). São Fixões da Sexualidade – título de minha palestra no TecMen: Tecnologias da Mente (FACHA/RJ), quarta-feira passada –, ou seja, são fixações que entram no jogo da expressão sexual de uma Pessoa. Assim, diante da complexidade de formações, não é só de gênero que se trataria, mas do Estilo de cada um, no sentido da singularidade? Essa história de gênero não serve para muita coisa. Confunde mais do que esclarece. Basta pensar que as pessoas têm defeitos anatômicos. Achamos que são dois, mas elas têm vários. Portanto, não é preciso pensar em gênero para entendermos. Gênero só o alimentício. Se já foram para o lixo sujeito e objeto, agora também vai o gênero – estamos chegando ao século XXI. • P – A questão do gênero esteve na pauta esta semana. A vinda de Judith Butler para falar num evento em São Paulo causou tumulto por parte de grupos reacionários. Isto não impede que eu a ache um pouco fraca. • P – Até queimaram um boneco em forma de bruxa para execrar seu ativismo “maléfico” quanto ao gênero. Aliás, nem foi sobre gênero que ela veio falar, e sim sobre “os fins da democracia”. Quanto a isto, acho mesmo que estamos usando armas ineficazes ao denunciar o que está ocorrendo de reacionário aqui e no mundo. Na abertura do evento, Vladimir Safatle termina sua fala com um trecho das teses de Walter Benjamin “Sobre o conceito da História” que me pareceu no mínimo ineficaz para endereçar a questão a contrario do que estava acontecendo. Cita ele: “O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um 215
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sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente”. Estamos em plena regressão. Aguentem! Todos estão correndo para trás, e não adianta chiarmos. Essa fala de Safatle é coisa de Derrida, de cujo messianismo já falei aqui da outra vez. E Judith Butler até pensa ser lacaniana... Acho isso tudo muito velho. Penso que não vai colar por aí, isso já passou. Há que colocar outra coisa em pauta. • P – Para ela, gênero é performance cultural, diferentemente da anatomia. Qual é a diferença para com o que traz a Nova Psicanálise? A diferença é que não temos fronteira. O Primário, nesse sentido, já é afetado de diversas maneiras, e não apenas por dois sexos. As ficções do Artifício Espontâneo são as mais diversas. Como não somos animais, não quer dizer que iremos funcionar assim, pois o Secundário entra e faz uma bagunça. Faz até, às vezes, a pessoa optar por outra coisa. O que é uma bobagem, pois se optar por outra coisa será um problema sério, uma trabalheira bem grande. O pessoal de herança supostamente lacaniana aposta demais no Secundário, como se não houvesse determinação alguma, determinação – agora usarei uma palavra difícil – discursiva alguma no próprio Primário. Por isso, digo que ninguém é do sexo de ninguém, em todos os sentidos. A sexualidade de cada um, quando não é imposta por comportamentos delimitados secundariamente, é sem gênero. Há que entender cada um como é. O bicho, este, nasce aproximadamente de dois sexos. Digo aproximadamente porque nem sempre nasce assim, há muitos outros “defeitos” além desses dois. • P – Se o gênero não é só performático, como entender o papel do Primário, do Autossoma e do Etossoma? O que o bicho já traz? Um trejeito? Traz coisa de computador. O quê, enquanto Autossoma, alguém traz ao nascer? O desenho que chamam de anatômico. Aí já começa a ficar esquisito. Basta estudar os casos para ver que há garotos com peru grande, com peru 216
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pequeno, com quase peru, meninas com xota fechada, aberta... São milhares os casos, quase parecidos. Este é o Autossoma. O Etossoma está escrito genética e epigeneticamente na criança. É inscrição, ou seja, é código, programa. Um dia, quem sabe, computadores poderão fazer o levantamento da programação genética e epigenética, tanto do ponto de vista do Autossoma quanto do Etossoma, de uma criança ao nascer. Bebês pequenos já têm comportamentos diferentes um do outro. Há, portanto, uma programação. Só que esta espécie tem um programa muito esquisito, muito doido, que é sua competência de não, sua competência de revirar. Suponho que, além desta competência, houve crescimento cerebral, muita coisa, mas o que importa é existir a competência da reversão, que é aquela que dá chance a haver linguagem falada. Isto porque a linguagem é, sobretudo, dependente de sim e não. Os demais animais só têm sim, o discurso deles é aquele e não outro. Eles não reviram. A entrada do não é o que chamo Revirão, que está constituído cerebralmente. Os cientistas que procurem achar onde. Já é uma vantagem terem achado os neurônios-espelho. Portanto, a competência de reviramento – é claro que junto com todo o resto: um cérebro avantajado, etc. – permite à pessoa cair nas linguagens. Se não houver sim e não, repito, não haverá linguagem, mas apenas um código fechado. Observem que a criança nasce num lugar, começa a colar nas funções primárias, nas secundárias, que estão disponíveis como neo-etológicas, isto é, culturais. Ela vai embarcar nelas. Isso cola de tal modo que vai bater no queixo, em nossa dificuldade de falar uma língua estrangeira, pois a máscara facial é outra. Que tipo de exercício fizemos com nossa anatomia? O mais difícil para falar parecido com o estrangeiro é aprender sua máscara. A máscara gruda em nosso corpo por termos feito ginástica de tal modo, e ela ficará assim. Há pessoas com habilidade de rapidamente colocar a máscara da outra língua. Crianças bilíngues mudam de máscara no ato de falarem com o pai francês ou com a mãe brasileira, por exemplo. Isto porque as duas máscaras foram montadas ao mesmo tempo. Vejam, pois, que há aí um cruzamento em que o Secundário, ao funcionar, é mesmo capaz de viciar o Primário, e vice-versa. Por isso, não quero saber de sujeito, objeto ou gênero. São imposições culturais inventadas num certo dia, num certo século, por certas pessoas. Se passarmos a borracha nisso, o que teremos são zilhões de formações. Então como, no futuro, se fará, 217
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no computador, o levantamento de todas as formações visíveis de uma pessoa? Há algumas que são invisíveis. • P – Então, o bebê já nasce com comportamentos inscritos? O comportamento, o Etossoma, está inscrito no bebê, mas ele tem abertura. Chama-se: neotenia. Lacan se utiliza disto como argumento para falar do estádio do espelho, mas ele não sabia o que era. Para mim, a criança teria esse “defeito” – que chamo de Revirão. Ela é prematura. Para nascer como outro animal que, em poucos dias, já anda, precisaria ficar quase dois anos no útero da mãe. Lacan atribuía a abertura do programa ao fato de ser prematura, mas acho que o fato de ser prematura é um dos ingredientes do crescimento da espécie. O que ela porta é o processo do Revirão. Para organizar isso, tentei uma ordem com: Primário (com Autossoma e Etossoma), Secundário, e Originário (a maquininha que permite que fique revirando). • P – Por outro lado, é como se essas manifestações regressivas que vemos ocorrer quisessem manter a espécie humana do jeito que está. Isto, sem considerar as modificações do Primário que você encarece no sentido de viabilizar o vigor do Quarto Império. Primeiramente, esses aí são trogloditas (que não fazem a menor falta apesar do estardalhaço que aprontam). Eles se fecharam para sempre, não por serem maus, e sim por serem estúpidos, por não conseguirem mover nada. Aquilo virou uma Morfose Estacionária radical com forte tendência para a Regressiva, ou seja, para a mentalidade psicótica. São absolutamente rigorosos, aliás. Eles estão com medo e fazem como as tribos primitivas ao se depararem com alguma nova tecnologia: inventam deuses. Ou seja, diante de um pensamento novo, de uma mentalidade nova, têm que reduzir ao tamanho deles para não ficarem o tempo todo angustiados. Aí queimam bruxas na fogueira. Mas é pior do que o que você está dizendo, pois o que querem é manter a espécie humana do jeito que era. Eles quebrarão a cara porque a espécie humana vai acabar. Se o sol acabará, quanto mais nós. O mecanismo da Morfose Estacionária é tentar regular qualquer entrada de formações que desloquem sua posição paralisada. A análise é algo difícil por sabermos, desde Freud, que a resistência é enorme, mas tem uma grande aparência de segurança. As pessoas morrem de medo de mudar, pois, se o fizerem, parece que o mundo acabará. 218
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Aí, buscam permanecer paralisadas em algo (o que fazem muito mal, aliás) que lhes dá a impressão de estarem seguras. É um mundo que não muda de lugar. Se, ao contrário, deixassem solto, fariam análise em três semanas. De vez em quando, nos deparamos com pessoas que têm talento para serem analisandas, que não têm tanto cagaço, e o trabalho vai rápido. Há que fazer a leitura da gradação dos processos. Vejam, por exemplo, a quantidade de garotos por aí andando e olhando para seus aparelhos móveis. São pessoas que passaram a usá-los, a modificá-los, e foram afetadas por eles – mas jamais produziriam aquilo. Foi uma pessoa em algum lugar, que, por ser solta e genial colocou aquilo no mundo. Há, pois, uma enorme riqueza de processos – que vai da moda ao avião –, com as pessoas vivendo uma civilização que não é delas. São apenas usuárias. Isto faz diferença, pois a situação fica culturalmente capaz de assimilar os produtos da tecnologia como uso, mas as pessoas não são capazes de colocar esses produtos no mundo. Ou seja, o mundo fica mais civilizado, e as pessoas utilizam um monte de coisas que são benesses de outras pessoas. Por isso, reagem quando se quer dar um passinho à frente, acham que não mais reconhecerão o mundo. É preciso ter claro que, como já disse, a humanidade é igual a espermatozoide, só um chega lá, o resto vai para o lixo. O Haver, aliás, me parece ser assim: um desperdício enorme para uma pequena coisa brotar. O resto está no jogo, mas é figuração, é como que um suporte. A ideia do “gênio” é besteira, pois a pessoa é apenas uma antena solta. O pessoal que é Estacionário está antenado nela. Ou seja, o funcionamento de cada um é uma porcaria, mas o total não é, está antenado, pega a sobra. McLuhan citava Ezra Pound sobre o poeta ser antena da raça. Os demais figurantes só lá estão para o filme ficar pronto. • P – É o caso de Alan Turing que, mediante um texto seminal de apenas trinta e seis páginas, vem formatar o mundo que vivemos hoje. Isto, após a construção do Eniac pelos norte-americanos, da evolução que ocorre da IBM à Microsoft, à Apple, e da passagem de ênfase do hard para o software... Sempre foi assim. A pessoa que inventou o machado de pedra na pré-história, inventou-o mediante todo mundo. A pessoa não é gênio, é apenas um pobre coitado em cuja cabeça caiu um raio. Ele é, como já lhes disse, vítima. Já notaram que ela está a serviço dos outros? Turing, por exemplo, que foi 219
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massacrado. A invenção surge sobre alguém, a reação externa pode ser violenta, mas passa o tempo e o texto vence. Vence por desgaste dos outros discursos. Foi o que aconteceu a Espinosa e a outros. Isto é simplesmente o jogo da coisa, é assim que funciona, não há mérito ou demérito, e sim acontecimento.
29 O sexo masculino foi uma referência pregnante e paralisante durante muito tempo por motivos de valoração da reprodução. Mas o Primário desliza sozinho – não é preciso recorrer ao Secundário para deslizar –, tem um peso muito grande e, ao entrar na chamada cultura, no Secundário, como chamamos, funciona como uma Morfose Estacionária. Aí, a pessoa fica presa no desenho morfótico que sua sociedade lhe impõe. Ela fica numa situação horrível, pois como ficará supostamente igual às outras? E as outras todas iguais estão fingindo que são iguais. Digo agora algo que não deveria dizer: o conceito de igualdade é que estraga tudo. Não há igualdade, tudo é diferente. Ao dizer que acho Butler ainda um pouco boba, é por ela lutar, como está dito em seu livro, pela igualdade entre os sexos. O conceito de igualdade precisa ser derrubado. Se podemos pensar em equi-valência, em valor igual, em direitos quase iguais, isto não é igualdade. Minha sugestão de Diferocracia entra aí. Democracia não existe em lugar algum, pois quem ganha é a maioria, que pode ser 50% mais 1. O que fazer com os 49% restantes? Não penso segundo democracia alguma, tenho pensamento aristocrático. E se é para termos uma sociedade mais funcional, é preciso, sim, haver direitos iguais – para os Diferentes. O primeiro direito no Código é: o direito à Diferença. E mais, o paradigma da Diferocracia é: o 220
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soberano é a Diferença. Tentem, pois, articular a ideia de soberano – do ponto de vista político, filosófico, sociológico, o que for – com a ideia de Diferença. Ou seja, se a meta é uma Diferocracia, o soberano é a Diferença. A democracia é fake ao dizer que o soberano é o povo, pois o que nela há são oligarquias plutocráticas. No Brasil, a atual operação Lava-jato já provou que o que temos são oligarquias boçais e plutocráticas. As eleições são uma grande farsa, pois só chegam a se candidatar aqueles que conseguem passar na peneira. Pessoas como Safatle, Butler, etc., estão lá atrás sem conseguir andar para a frente. São cheias de palavrório, daquela coisa acadêmica, chata, que já acabou. A garotada de hoje não quererá saber disso, pois tem computador e o diabo para usar. Entretanto, é esse pessoal que está querendo tomar o poder. Não quer dizer que não o tomem, mas, ainda que após um século, quebrarão a cara, pois não dá para estancar a tecnologia. Qualquer telefonezinho desse de bolso subverte a ordem. Quem, há bastante tempo, tem razão quanto a isso é McLuhan: o meio é a mensagem. Não é uma teoria que vence, e sim a engenhoca. Ela ganha todas as paradas por ser uma prótese atuante e poderosa. Basta imaginar que a pré-história não tinha uma caneca como esta que tenho na mão – é um artifício genial. Estamos acostumados a viver com as extensões do corpo, como chamava McLuhan. Esse pessoal intelectual me irrita por ter a cabeça formatada por Hegel, Marx, e por um suposto Lacan hegeliano-kojèviano. Temos que entender que Lacan, antes de morrer, teve tempo para jogar tudo isso no lixo.
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30 O problema não é haver denegação, e sim que quase só há denegação. A maioria denega noite e dia. Se não, se mataria... É preciso lembrar que a denegação tem o lado – não sei se positivo – de manter muita gente viva. Quantos podem encarar a suposta realidade? Basta andar na rua para ver, sobretudo mulheres – que ainda têm mais permissão que os homens para fazer merda –, como se vestem. Quase todos de maneira denegatória, sem se enxergar fisicamente: como se fossem sílfides ou garotões esguios. São caricaturas. Observem a ausência generalizada de semancol. Aliás, melhor, observem o próprio rabo. A falta de semancol corresponde à não percepção de si – portanto, faz parte do processo denegatório. Num país sem educação como o Brasil, é mais evidente ainda. Não se pode falar disto muito claramente, pois as pessoas não concordarão e não quererão ouvir. • P – Essa má educação é por falta de investimento ou é um processo religioso? A maioria parece acreditar que a religião educa. Sempre foi assim. Antigamente, víamos pessoas muito bem-educadas catolicamente, por exemplo. Nem isto há mais. Hoje, o destrambelhamento é genérico e sem princípio algum de civilidade. A pessoa poderia, por exemplo, ser neurótica enquanto bem-educada, mas não, é neurótica enquanto porra louca. Isto faz enorme diferença, pois ficamos sem saber por onde abordar cada um. Nosso país é uma piada. Ao mesmo tempo que tem virtudes que outros não têm, que são altamente nossas, por outro lado é uma vergonha. Basta olhar a história de nossa República. Tínhamos um imperador refinado, culto, inteligente, que foi tirado para colocarem uma porcaria como Deodoro da Fonseca. Depois dele, há coisa pior como Floriano. Só dois ou três foram presidentes respeitáveis: Prudente de Morais, Fernando Henrique Cardoso... É preciso saber em que país vivemos, pois temos virtudes imbatíveis, sintomas brasileiros ótimos para o século XXI. São meio massacrados, mas estão aí. E também temos essa joça que nos acompanha diariamente. É algo bipolar: dá um passo para cá e outro 222
contemporâneos que têm tratado do Brasil, vejo que não estão entendendo a situação atual de2017 tentativa de entrar no Quarto SóPapos Império, pois tomam um protocolo sociológico e discutem faits
para lá. Ao ler autores contemporâneos que têm tratado do Brasil, vejo que não divers, ou tomam um atual protocolo histórico semnoaQuarto visão Império, de uma estão entendendo a situação de tentativa de entrar pois tomam um aprotocolo sociológico e discutem faits divers, ou tomam um ideia como nossa dos Cinco Impérios: protocolo histórico sem a visão de uma ideia como a nossa dos Cinco Impérios:
1Ar
2Ar
1o. Império 2o. Império Amãe
Opai
3o. Império Ofilho x
Or 4o. Império 5o. Império Oespírito
Amém
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Não fazemos filosofia, sociologia, nada disso. Temos ferramentas psicanalíticas – quando conseguimos produzir alguma. Estamos saindo do Terceiro para o Quarto Império. O Segundo ainda está de retrocesso. O problema do Quarto Império é da mesma natureza daquele do Segundo: são Impérios de passagem (um, para o 2Ar, e outro, para o Or). Não estávamos presentes ao Segundo – embora, quanto a inúmeros aspectos, ainda estejamos nele (pois os Impérios não acabam) –, mas suas remanescências estão aí hoje. Deve ter sido uma passagem bem difícil, deve ter demorado milênios para entrar no Segundo – e, depois, para conseguir sair dele. Já estamos mergulhados no Quarto Império, o que não significa que ele funcione para todos os grupos. Vemos que esses Impérios divididos entre duas posições puxam para dois lados. Sua tendência é ficar num jogo de força de cordas tensionadas para cá e para lá. Se conseguirem sair, irão para adiante. Aí teríamos efetivamente o Quarto Império. Chamo-o de Oespírito por ser a ideia contemporânea, técnica e tecnológica, de que tudo é redutível à Informação, ao soft. E o hard tem que obedecer ao soft que, este, é completamente doido. Ser doido significa não ter amarras definitivas. Então, onde amarrar meu burro? Neste momento, a perspectiva é de cinquenta anos de conflitos violentos, e de duzentos até o Quarto Império conseguir se implantar como tal. O que podemos entender é que ele é um Império dilacerado entre dois, o Terceiro e 223
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o Quinto. Como já lhes disse inúmeras vezes, a maioria em todo o mundo está apavorada, pois qual é o parâmetro no regime d’Oespírito? Efetivamente, se o entendêssemos, seu parâmetro seria a entrega aos processos de disponibilidade. Aqueles vivos neste momento não têm condições de suportar isto. Uma meia dúzia consegue, mas a extensa maioria, em sua vida, corre para trás, para o Terceiro: recrudescências de religiões, de ideologias idiotas... Preferem isso à loucura que supõem acontecer se abandonarem o parâmetro anterior. O que fazem é, então, reforçar este parâmetro. Entretanto, há uma minoria que tem mais força. Não por pensar melhor, e sim por produzir coisas dissolventes. Ou seja, a minoria está produzindo a dissolução. E se a deixarem produzir, vai dissolver. É preciso, então, esperar morrer essa gente toda, essa velharia. Por isso, falei em duzentos anos, quando todos os vivos hoje estarão mortos. Aí começa a entrar uma gente muito especial. Tenho um pequeno exemplo em minha casa. A pessoa que lá trabalha tem quarenta anos de idade e, além de já ser avó, tem uma filha de três. Vi esta menina com o telefone móvel da mãe fazendo tudo, manejando-o com uma desenvoltura que não tenho. Não sei fazer aquilo que ela faz. Quando penso o que possa ser a cabeça de alguém como ela, lembro-me de McLuhan: o meio é a mensagem. Esse troço produzirá em sua cabeça uma sintomática tal que aquela do Terceiro Império não mais conseguirá invadir, mesmo que ela, a criança, queira. A família pode querer catequizá-la, pode ser de classe baixa, mas não adiantará, pois essa nova sintomática invadirá tudo. Isto porque ela vai funcionar no mundo já segundo esse novo modo, que é dissolvente. Há, pois, que passar esse tempo, esperar morrerem essas gerações, as cabeças irem se transformando e, lá na frente, não teremos mais as pegas de hoje. A sintomática será esta, e não a ideologia. Esse é o Quarto Império, Oespírito, em que tudo é jogo de significação, de linguagem... Vai-se, então, lidar com o Primário mediante o Secundário. • P – Supondo que esse correr para trás também terá ocorrido na implantação do Segundo Império, pergunto sobre a diferença em relação ao Quarto Império. Não é mais difícil enfrentar o movimento reativo de tentar voltar ao Terceiro Império, pois o que temos consolidado, sedimentado, em
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termos de formações culturais é muito maior do que aquilo que havia no Primeiro Império? As consolidações do Secundário são hoje uma carga enorme. Faço a suposição de que a passagem de Primeiro para Segundo Império tenha demorado milênios, que tenha havido muita porradaria, muita confusão. Como disse antes, não vimos acontecendo, vimos isto consolidado em segundos impérios muito recentes. • P – Você diria que chegamos muito mais rápido ao Quarto Império se compararmos com o tempo de percurso do Primeiro ao Segundo Império? Sim. Hoje, ao mesmo tempo que há mais forças regressivas, há também mais forças dissolventes. Tenho a impressão de que é uma questão de tempo: o vetor do Quarto Império vencerá. Não se vai parar a tecnologia, pois ela dá muito tesão. Então, uma massa vai morrendo e a garotada que vai nascendo nunca mais será igual a mim. Para a massa retrogressiva que vemos aí hoje nada adianta, psicanálise ou qualquer outra coisa. Aquilo está consolidado de tal modo que só resta chamar a morte para dar jeito. • P – Como o Brasil suporta tanta psicopatia no poder? É o vigor do império cristão, que aprendeu de Roma. A mentalidade nuclear do Império Romano é de Segundo Império. Como aquele pessoal aturou um Calígula? Repito, a mentalidade de cada um lá é Segundo Império, é: o Pai – e ninguém ousa mexer. Foi preciso haver uma decadência, começar tudo a se desmembrar, a invasão de várias seitas (não apenas do cristianismo ou de apenas um modo de ser cristão) e o imperador, que estava com medo, escolheu uma das seitas, a que parecia mais rentável. Investiu nela e inventou um Terceiro Império cristão, que é algo terrível. Minha aposta é que, se deixassem nas mãos de Julio Cesar, se aqueles imbecis da história romana não o tivessem matado, ele se encaminharia para um Terceiro Império leigo. Ele estava segurando o império, e não uma república, mas seu jeitão era de arrebentar. Basta lembrar do De Bello Gallico, que eu era obrigado a ler e decorar na escola, para ver que ele estava puxando para o Terceiro Império. Como o assassinaram, tivemos que aturar o império cristão no Ocidente, que é uma bosta. Com Julio Cesar teríamos uma quebra sucessiva do patriarcalismo romano exagerado e a invenção do império dos irmãos sem Cristo. Ele era competente e sabia que acreditar no 225
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Rubicão era coisa de romano de Segundo Império. A tradução brasileira de alea jacta est é: Rubicão é o caralho! Calígula, um garoto imbecil, doido, psicopata (morre aos vinte e sete anos), Heliogábalo e Nero faziam o que queriam num império cuja ideologia não permitia ação alguma contra eles. Era um terrível princípio de obediência igual ao da Idade Média, em que o Senhor tinha até o direito de desvirginar as donzelas no dia do casamento. A situação atual, então, é uma maioria correndo para trás e uma formação puxando para a frente. Como a maioria corre para trás, mas não quer deixar de usar a tecnologia, a tecnologia ganha. Eles não abrirão mão da tecnologia para serem de Terceiro Império. Ontem mesmo, tivemos no país a guerra da sexta-feira negra, a Black Friday, em que multidões se digladiavam para comprar coisas. É isso: Roma dava pão e circo, hoje dão show e computador. A tecnologia já está dissolvendo há bastante tempo. E mais, acreditamos que temos autonomia, que pensamos, mas somos apenas uns bonecos: a maior parte de nossas ações é predeterminada, marcada. Com certo esforço de criação, com aposta no Revirão, cai-se fora um pouco. Em geral, o que há são pessoas com uma determinação tal que não se dissolve, que não entendem que elas não falam, que são faladas, como dizia Lacan. Ficamos, pois, com a doce ilusão de estar escolhendo coisas, mas, quando se consegue fazer isto, é muito pouco. Perceber que estamos sendo agidos por formações já é um avanço enorme. Aí, é possível procurar se, além disso, usamos um pouco o Revirão, se damos algum passinho. As coisas têm quase nenhuma coerência, é tudo uma loucura. Basta ler muito filósofo importante para ver o quanto estão perdidos, mesmo tendo inventado uma razãozinha nova. Por outro lado, a época é muito interessante. Aqueles vivos daqui a duzentos viverão uma época mais descrente, mais à vontade, disponível – e debaixo de mais porrada. Democracia é algo que está acabando, é algo grego demais para nós. Será necessário inventar um sistema muito duro, férreo, para segurar o conflito da diferença extrema. Uma rigidez junto com uma disponibilidade total. Como será? Não sei. • P – É de se notar que as obras de ficção, chamadas de distópicas, apresentam um futuro em que existem sistemas de contenção muito pesados. Só
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que isto é geralmente visto como sendo, lá no futuro, um processo regressivo, que terá dizimado a questão democrática. Fizeram grande esforço para a democracia existir, mas nunca existiu – e, visivelmente hoje, terminará em breve. Só é possível a suposição de um final de Quarto Império e começo do Quinto com um processo soft de alta disponibilidade e a invenção de um sistema rígido de contenção dos conflitos. E isto não é regressivo. Não é imposição de algum grupo, de uma pessoa, de um imperador ou de uma oligarquia. De dentro virá a necessidade da articulação de um processo repressivo com o qual se conviverá bem desde que não se atrapalhe os outros. • P – Você falou que o momento do Quarto Império é a quebra de qualquer contenção... ...das atuais. As referências atuais morrerão todas, mas não a contenção. O novo e rígido sistema de contenção não afetará as pessoas, pois elas não mais serão os estúpidos de hoje e terão disponibilidade para entender. Dou um exemplo pseudo-pragmático. Se alguém tem a mente de um matemático, está absolutamente em contenção de acordo com as possibilidades de regra da matemática. Não será a vontade de alguém, e sim algo retirado – e os computadores aí estão para que isto seja feito – da própria conjuntura. Ela oferecerá um sistema de contenção que é leve. Não é difícil a um teórico obedecer radicalmente aos princípios que regraram sua invenção. Ele está contido, mas é um divertimento. Já lhes disse que alguém não é o produtor de uma teoria, é a teoria que o produz. Ele está obediente. Já uma pessoa imbuída de ideologia fica em pânico só em ouvir isto. Mas observem que se trata de um uso de tudo que ninguém está impondo, a coisa é que está se impondo. Para mim, está tão na cara que o movimento está indo nessa direção.
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31 • P – A questão da Ficção é antiga em sua obra. Trata-se da Fixão, como você escreve. Mais que isto, você enfatiza o quanto uma ficção entra em processo de decadência até sua co-naturalização como reificação violenta... A pessoa fica empedrada numa ficção. • P – ...em outro momento, você diz que, nesta nossa espécie, é forte a tendência de acoplar o que é da ordem do Ser ao Haver. Você diz também que isto funciona como um processo de psicotização. A tendência sendo de eliminar a disjunção que há entre um e outro. A tarefa da psicanálise seria, então, de permanentemente lembrar esta disjunção? É a paz do animal. As pessoas querem ser felizes, e não pensar que esse acoplamento é impossível. • P – Depois de ler a extensa Introdução da Filosofia do Como Se, de Hans Vaihinger, faço um comentário provisório e uma pergunta. Tive a impressão de que a posição de Vaihinger é ainda antiga quanto à ideia de ficção. Como estava atravessado por Nietzsche, pela questão da interpretação, ele apenas vê um lado da ficção, aquele da ordem de uma formação falsa. A consideração atual não pediria um passo a mais como a ideia de um Artificialismo Total, na conta de sua positivação como Fixão? Isto porque se de fato é Fixão não é preciso distinguir entre ficções mais ou menos fictícias, melhores ou piores. Não se sabe onde está a fronteira. A diferença é funcional. O fato de alguém escolher uma ideologia ou uma teoria já é uma besteira. Diante de um problema, a solução é ad hoc, há que buscar a peça que melhor se encaixe. Com isto, acaba qualquer fanatismo do tipo ser lacaniano, ser da IPA, essas porcarias. Como, hoje, temos um enorme dispositivo computacional de pesquisa, maior do que qualquer pessoa, podemos com facilidade procurar a melhor ferramenta para resolver aqui e agora tal ou qual problema. Para outro caso será outra ferramenta. Lembro-me de que recomendei a leitura do livro de Robert Nozick,
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Anarquia, Estado e Utopia (1974), em que ele dizia que uma filosofia coerente tem que dar conta de tudo. Vejam que o que digo é uma ideia antiga.
32 • P – Você disse que é a lei que institui o crime... Existem leis celeradas, imbecis ou criminosas, do ponto de vista simplesmente de meu interesse. A lei sempre é abusiva por bater de frente com o desejo. • P – A ideia de leis da natureza... A natureza não tem leis, tem funcionamentos – que as pessoas estudam e pensam que são leis. Não foi ela que os chamou de leis. Mesmo os físicos hoje sabem que as “leis” da física não funcionam como esperavam. Aquilo é da ordem do Secundário, foi chamado de lei na imitação do discurso jurídico. • P – Rupert Sheldrake disse que não há leis na natureza, há hábitos. Nem hábitos, há funcionamentos. Funciona mais ou menos assim. Como? Não sabemos. Estamos saindo de uma época em que até final do século XX – que termina em 1980 – predominou a tentativa de regulação de tudo. O século XX acabou e isso foi junto, não dá mais. O que temos são funcionamentos, tentativas de organização. É claro que o Terceiro Império ainda está parcialmente em vigor, então vemos todo tipo de maluquice por aí, são rebarbas culturais do passado, mas, do ponto de vista do que se pensa no século XXI, acabou. Por exemplo, não se deveria hoje acreditar mais em filosofia, sobretudo no sentido acadêmico. Certas considerações podem ser interessantes, mas a filosofia passada não serve para nada, é pura literatura. Se quiserem se divertir com Platão, tudo bem, embora ele seja meio chato... 229
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• P – Podemos brincar de esconde-esconde na caverna... É o caso de dizer. Acabou uma era, mas tão definitivamente que a próxima, que já está chegando, é difícil de a gente manejar. Teremos que esperar umas três gerações para as pessoas já nascerem dentro do fenômeno novo. Para as gerações vivas hoje, mesmo aqueles com um ano de idade, é difícil. A impregnação do passado é muito violenta, e não serve mais para quase nada. Estamos repetindo besteira, seremos atropelados pelo século. Ou, se não, a gente faz corpo mole e dança junto, é o jeito. As ias – filosofia, sociologia, psicologia... – perderam os parâmetros, não servem mais, foram abaladas. Então, os parâmetros estão lá, mas servem para quê? A academia já foi para o lixo antes de ir. Antigamente, ia depois. Quem quiser se preparar para o século XXI que esqueça tudo isso. Os próprios parâmetros da velha psicanálise não servem mais, embora um monte de psicanalistas insista em continuar escrevendo besteira. As grandes narrativas não são mais interessantes. No máximo, compra-se um livro de citações bonitas do passado. É o que sobrou. Mesmo um filósofo é apenas exemplo de um pequeno comportamento, e não de um pensamento. Temos um vício cultural de valorização extrema de narrativas literárias. É preciso preparar a mente para essa derrocada, essa sapucaia, esse lixo geral, e para o que vai sobrar, que são coisas que as pessoas desvalorizam, mas é só o que vai sobrar. Não vai sobrar por uma questão de mudança de hábito e boçalidade, e sim porque aquilo tudo era mero ensaio para chegar aonde deve. Tomem o filósofo tal e vejam que, lá, há uma coisinha, uma frase, que presta, o resto vai para o lixo. Minha tentativa é seca – mas vai para o lixo também. Não sei se notam que o que trago nada tem a ver com a história da psicanálise. Tem uma hesitação de começo, pois também não sabia fazer, tive que aprender, mas é a secura de uns pontinhos, de um conceito organizador de todo o processo, a Pulsão (Haver desejo de não-Haver), de pensar em termos de funcionamento, etc. É uma maquininha de usar sobre qualquer situação, e a partir de qualquer informação. Está livre para qualquer informação: pegamos para nós – sou o inventor da psicanálise vira-lata. Daí que repito que é preciso mudar depressa o cérebro, se não iremos para o lixo daqui a pouco, pessoalmente. Pedi que lessem sobre um autor sul-africano, David Benatar, cujo livro Better Never to Have Been: The Harm of Coming into Existence (2006) 230
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desenvolve suas ideias sobre o antinatalismo. Alguns acharão assustador o que ele diz, mas suponho ser a verdade do século XXI: pensar sobre o sofrimento de ter vindo à existência. Aliás, o que traz é tão velho quanto o pensamento grego: Me funai! – Antes não houvesse. Ou seja, é uma questão antiga com uma resposta também antiga: Antes eu não tivesse nascido. Diz ele que vivemos uma época em que é preciso providenciar o fim da reprodução no mundo até a extinção da espécie. Isso jamais acontecerá, as pessoas são estúpidas – e estúpido faz filho. • P – A procriação é um sintoma muito forte e, na maioria das vezes, as pessoas têm filhos sem a menor noção do que fazem. Vi hoje na livraria um livro cujo título é As Mães Arrependidas. Suponho que as mães, sem dizer, um dia se arrependem: Fui botar isso aqui para quê? Repito, a espécie é estúpida, não vai parar. A sintomática do Primário que pede a procriação ainda tapeia. Hoje, temos alguns elementos tecnológicos de anticoncepção, mas durante milênios não tivemos: a pessoa fica sequestrada pela Pulsão, a qual arrasta o Primário junto – só morrendo para parar com isso. Então, as pessoas são sequestradas sexualmente, sequestradas por fantasia, por isso, por aquilo... No passado – Idade Média, budismo... –, houve enormes esforços de suspensão da libido. São evidentemente esforços de não procriação. Há também a saída do homossexual, em que se pode continuar com a libido em franco funcionamento sem reprodução. Talvez se devesse praticar por aí. Pensem o que pensarem, considero que a maior maldade que se faz com uma pessoa é colocá-la no mundo. Não existe maldade pior. Nem matar a pessoa é tão ruim. O crime dos crimes, o crime radical, é colocar a pessoa lá sem a menor possibilidade de escolha. • P – Nietzsche falava disso como sendo niilismo. Por que filósofo tem essa mania de criticar o niilismo? É uma das maneiras de pensar. • P – Há anos, vi um filme inglês sobre haver uma única mulher grávida no mundo, e toda a população se esforçava para que essa criança pudesse nascer. É a posição oposta, salvar de qualquer maneira. E é o quê? Denegação da morte, denegação do desaparecimento: a espécie vai desaparecer. O que 231
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quero considerar é justo isso, que, não como o autor disse, esta espécie, aqui neste globo, vai desaparecer. Os de lá de fora não conhecemos, embora certamente existam. Esta espécie aqui, além de ser, do ponto de vista do Primário, grosseira, do ponto de vista do Secundário no empuxo do Primário, é estúpida, devagar, pensa mal. Mas, se meu teorema enquanto ficção tiver algum sentido, há um detalhe: como esta espécie, chamada de humana até hoje, faz parte das IdioFormações, ela é a consciência do Haver. O Haver é inconsciente, mas produz sua consciência de Haver. Espécies que funcionam mais ou menos como nós – e certamente aí pelo espaço há coisa melhor, pois passou muito mais tempo – são a consciência do Haver. Ficamos bestas pensando ser indivíduos, mas somos simplesmente uma massa fracionada e pulverizada da consciência do Haver. É isso que estamos fazendo aqui, sem ter pedido – mas agora é tarde. Faço a suposição, repito, de que a espécie será extinta. Isto porque, se observarmos o que acontece na tecnologia, dentro de pouco tempo teremos, por um lado, o que Peter Sloterdijk chama de parque humano – que prefiro chamar de grandes campos de concentração – e, por outro, uma minoria competente para seu momento. Então, aquilo vai morrer sozinho para lá (e talvez algum dominador tenha a inteligência de mandar pararem de procriar). Sobrará uma elite, uma elite espontânea – e não política – no sentido de: onde brotar pensamento adequado, fará parte da elite – justo porque brotou. E pior – ou melhor –, com o crescimento extremo da tecnologia, que já começou, essa gente que sobrar inventará seu substituto. Estamos prestes a inventar nosso substituto, ou seja, passaremos a bola para outro tipo de consciência do Haver que não tenha um macaco em sua base. Portanto, se doer, doerá bem menos. Lembram-se do que chamei de Vínculo Absoluto? É: doer, doer em qualquer um, ignorante ou não, do mesmo jeito. Esse é o vínculo absoluto que há entre os humanos. Já vi especialistas dizendo que falta pouco para a máquina ensinar a máquina. Quando isso acontecer, será algo difícil para nós aqui entendermos. • P – Vi uma entrevista em que Fernanda Torres dizia que o que interessa é a consciência. Achei engraçado, pois, em nossa geração, pensava-se mais na importância do entendimento do Inconsciente. Freud inventou aquilo tudo para quê? Para você tomar consciência. Ela está falando correto. É preciso reduzir o Inconsciente à consciência. Ou 232
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seja, aumentar a consciência no sentido da aproximação do Inconsciente. Ficar igual não ficará, mas o que interessa é a consciência cada vez mais ampliada. Acho que não estamos longe de isso começar a acontecer. O simples fato de a inteligência artificial funcionar sozinha nos coloca na posição de ser os macacos dessas máquinas. Desculpem-me por dizer, mas a espécie é da pior qualidade, muito ruim, faz cocô, coisa fedorenta. O resíduo da alimentação das máquinas, às vezes, é considerado ruim por poluir, mas o nosso é pior. O fato de parecer orgânico e ser retroalimentado pela natureza não o torna menos pior. • P – Por esse raciocínio, é possível pensar que a tecnologia capacite as pessoas a se alimentar de pílulas e excretar outra coisa... Nem isso. Temos o sol, é só ficar no sol. Por que não uma espécie que, como a árvore, faz fotossíntese? Por que não podem fazer algo parecido? Nós aqui sempre inventamos a coisa mais grosseira, que tem que sofrer um processo de evolução para se refinar. Os primeiros automóveis imitavam as locomotivas. Hoje, um automóvel de ponta já tem protótipos sem motorista, levantam voo, são anfíbios, submarinos. Comento isso por se tratar de outra postura mental, é outra mente, é NovaMente. • P – Essa nova espécie produziria menos lixo? A nossa produz demais. Suponho que sim, já que não é base carbono. Inclusive, menos lixo mental. Nosso lixo mental é imenso: bibliotecas enormes... Para eu conseguir dizer meia dúzia de coisas, já publiquei cinquenta volumes – é uma vergonha. Alguém que pensa direito, diz numas vinte páginas. É assim porque não conseguimos pensar direito. Mas isso tudo vai acabar, pois estamos diante de um passo novo, parecido com a passagem do troglodita para o início da civilização. Do homem da caverna para o homo sapiens propriamente dito houve um passo radical. E quando se conseguir completar o passo, teremos o que suponho ser o Quinto Império, sobre o qual nem quero pensar por não ter competência. O passo será a produção do Quarto Império, com todos os seus conflitos. Por ser um Império intermediário é partido entre duas posições, a do Terceiro e a do Quinto. Então, ele dará para trás, dará para a frente..., é uma guerra. Quando se conseguir encaixar o Quarto Império direitinho, o Quinto será o término da passagem (e, repito, nem fazemos ideia de como será). Além do mais, segundo os cientistas, este planeta pode ser exterminado de duas maneiras. Uma vem 233
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de cima, por algum asteroide; a outra, de baixo, daquele tampão dos EUA, Yellowstone: uma boca de vulcão a explodir. • P – E uma guerra nuclear? Isso me parece bobagem. Um país fica ameaçando o outro, mas para um maluco puxar o gatilho tem que ter muito colhão, ou ser completamente psicótico. Ficarão brincando de Guerra nas Estrelas. Quero ver segurarem um asteroide do tamanho do Rio de Janeiro, ou Yellowstone, ou ainda a fenda de San Andreas, na Califórnia, capaz de causar um megaterremoto, desestabilizar o planeta todo e produzir uma era do gelo. E eu, o que tenho com isso? Estou na saideira... • P – Observo que, entre a geração atual e a minha, há uma diferença. É bem comum escutar mulheres dizerem que não querem ter filhos. Antigamente, era impensável para determinados grupos não incluírem a questão filho. Sobretudo, os cristãos e a produção de escravos que o sistema pedia. Não houve abolição da escravatura, e sim sua ebulição. Deixaram de colocar os negros como escravos para usar todo mundo. Conseguiram a igualdade de pares. O núcleo da bobagem humana é sempre vencer o “me engana que eu gosto”. Prestem atenção, a dificuldade em análise é sobretudo essa: me engana que eu gosto, que me sinto menos mal. • P – É sempre uma denegação? Basta ver, no mundo inteiro, as mães lidando com as crianças. Se têm alguma comoção, choro, vem a enganação imediata: engana-se a criança – e ela fica feliz. Não se aproveita a ocasião para ela tornar-se lúcida. É tudo muito ruim nesta espécie. Por exemplo, a sexualidade – que é a coisa mais importante, não inventaram nada melhor até hoje – é denegada o tempo todo. Não se fala nela, não se pode praticar direito, e é uma coisa que sequestra as pessoas. Bertrand Russell, uma figura admirável, diz num livro que já mencionei aqui que os pais gostam de afirmar sobre um filho que “será um grande engenheiro”, mas, se estiver mexendo no peru, não dirão que será um grande fodedor. • P – Dirão “tira a mão daí”, “é pecado”. Pecado é o sobrenome da tentativa de dominação. Se o tal garoto começar a entender as coisas muito cedo, certas dominações não irão colar.
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• P – A sexualidade é reprimida por ser algo difícil de lidar, é trabalhosa... É trabalhosa por estar submetida a um Secundário completamente distorcido. • P – Mas hoje não temos a repressão que havia antes. Temos sim, pode tirar o cavalo da chuva. • P – Parece que tudo virou questão de assédio sexual. Chama-se: neurose. A cantada virou assédio. Isso faz parte do retrocesso. É uma Morfose Estacionária que está apelando para trás. • P – Mas há o lado de a pessoa usar seu lugar de poder no mundo para assediar o outro sexualmente contra sua vontade. Contra a vontade não pode. Mas cantar pode. Se alguém me dá uma cantada, não é um elogio? • P – Quanto mais cedo entende a sexualidade, mais difícil é a pessoa se deixar dominar. É o caminho por onde vai-se entender a sacanagem presente em todas as transas. Para aqueles que estão nascendo com Internet, etc., assédio e repressões fantasiosas de pecado virarão bobagem. Sexo é um brinquedo. Foi massacrado e vilipendiado, mas existe para brincar. E quando a pessoa está por dentro, aquilo não cola: “Não vem que não tem, estou sabendo”. Esse processo cultural do Estacionário é uma imbecilidade. E pior, é no interesse de alguém. Isso tem que ser visto na economia, pois sempre há alguém ganhando nas situações. Pensem no poder e na riqueza da Igreja Católica em seu auge comparativamente até com os reis. Rei era titica, tinha que ficar pedindo benção para o Papa. Foi preciso muito colhão e grande posição de força para um Henrique VIII, na Inglaterra, dizer que ia fazer o que queria e, mais, que iria tornar-se o chefe da igreja. • P – Quanto à posição do analista, se for essa mente nova de que você fala, é preciso entender que tudo que temos até agora como psicanálise fica velho, algo que já está no lixo. Acabo de receber dois volumes publicados pela Funarte em que me pediram para publicar um texto meu, Aimée Sélamor, extraído de uma seção do Seminário de 1990. Me pediram permissão, eu dei. Mas não gostei de ver que mexeram no texto. Sei lá quem são essas pessoas, publicaram dois grossos 235
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volumes em que está tudo misturado. Há psicanalistas escrevendo um monte de porcaria. Podem consultar, pois joguei no lixo de nossa biblioteca. É sintomático, a essa altura, fazerem um livro desse. Sobretudo, porque a psicanálise não interessa a mais ninguém. • P – Se houver psicanalista lá adiante, ele deverá ser a função que promove a aceleração dos processos mentais. Se você pode neutralizar a mente, indiferenciar ao máximo, seu tempo entra aí. Se você não tem barreiras na visão, você não está delirando, está vendo. Só não está vendo quem já tem o olhar preparado. No geral, as pessoas não veem, elas olham. Tomem a diferença lacaniana entre ver e olhar: o olhar está preparado, não vê nada. As pessoas olham o mundo, não veem. • P – Fiquei confuso, pois você falou n’O Triunfo do Olhar (1975) em relação a Cézanne... No caso de Cézanne, o triunfo é que o olhar dele neutralizou. • P – Neutralizar é que permite ver? Dado que fazemos parte de uma cultura, de uma época, etc., não costumamos ver, e sim olhar. Se já temos o olhar preparado, não vemos nada e tampouco é possível criar algo novo. Temos que ficar perplexos e ver: “Nunca pensei que pudesse ver isso”. O mesmo ocorre em análise: analista cego não escuta. Se deixa solto e tem alguma experiência, as pessoas entregam de bandeja. Se não joga nenhum olhar, vê o que está ali. Assim como projetamos nosso olhar na visão, também projetamos nossa escuta. As pessoas não escutam, repito. Se analisando escutasse, sua análise duraria um mês. Ele não escuta, a frase é encaixada num lugar errado. • P – E quando encaixa no lugar certo? O sentido vem imediatamente. Uma pessoa burra é aquela que não escuta coisa alguma, é o surdo radical. Não adianta falar com ela, pois é paralisada, aquilo não mexe. Neurose é uma forma de burrice. Inteligência é a rapidez de articulação. Quanto mais rápido, mais inteligente. Observem certos analisandos e verão que voltam se referindo a uma frase dita na sessão anterior, mas que não foi escutada, nem é a mesma frase. Azar o dele, ficará décadas amarrado naquilo. Se o analisando estiver em surto amoroso, erótico, com alguém, esse alguém pode estar lhe dizendo tudo na cara e ele não escuta. 236
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• P – Você falou em alienação prazerosa (2004). É um bom nome. É: me engana que eu gosto. O outro pode estar dizendo que é um grande salafrário, que vai sacanear, e a pessoa está ouvindo “eu sou um amorzinho, te amo, te adoro”.
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Sobre o Autor
MD Magno (Prof. Dr. Magno Machado Dias): Nascido em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, Brasil, em 1938. Psicanalista. Bacharel e Licenciado em Arte. Bacharel e Licenciado em Psicologia. Psicólogo Clínico. Mestre em Comunicação; Doutor em Letras; Pós-Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Maria (RS, Brasil). Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Professor Associado do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII (Vincennes), quando era dirigido por Jacques Lacan. Fundador do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (instituição psicanalítica). Fundador da UniverCidadeDeDeus (instituição cultural sob a égide da psicanálise). Criador e Orientador de NovaMente, Centro de Estudos e Pesquisas, Clínica e Editora para o desenvolvimento e a divulgação da Nova Psicanálise. Atualmente, além de sua atividade como Psicanalista, após os Seminários (1976-1999), os Falatórios (2000-2010), os SóPapos (2011-2021) e as Oficinas Clínicas, realizados ininterruptamente, continua o desenvolvimento de sua produção teórico-clínica (work in progress) mediante envio de textos e comentários aos integrantes da NovaMente (a serem publicados).
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Ensino de MD Magno
MD Magno vem desenvolvendo ininterruptamente seu Ensino de psicanálise desde 1976, ano seguinte à fundação oficial do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. 1. 1976: Senso Contra Censo: da Obra de Arte Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 216 p. 2. 1976/77: Marchando ao Céu Seminário sobre Marcel Duchamp. Proferido na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro (Parque Laje). Inédito. 3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 3ª ed., 220 p. 4. 1978: Ad Sorores Quatuor: Os Quatro Discursos de Lacan Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 276 p. 5. 1979: O Pato Lógico Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 2ª ed., 252 p. 6. 1980: Acesso à Lida de Fi-Menina Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 316 p. 7. 1981: Psicanálise & Polética Quatro sessões, sobre Las Meninas, de Velázquez, reunidas em Corte Real, 1982, esgotado. Texto integral publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 498 p. 239
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8. 1982: A Música Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 2ª ed., 329 p. 9. 1983: Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987. 2ª ed., 264 p. 10. 1984: Escólios (Escolhos) Parcialmente publicado em Revirão: Revista da Prática Freudiana, n° 1. Rio de Janeiro: Aoutra editora, jul. 1985. Texto integral a sair. 11. 1985: Grande Ser Tão Veredas Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 292 p. 12. 1986: Ha-Ley: Cometa Poema // Pleroma: Tratado dos Anjos Publicados em: O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final Publicados em: O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 14. 1988: De Mysterio Magno: A Nova Psicanálise Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1990. 208 p. 15. 1989: Est’Ética da Psicanálise: Introdução Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 238 p. 16. 1990: Arte&Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2018. 2a. ed. rev., 628 p. 17. 1991: Est’Ética da Psicanálise - Parte II Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2018. 2ª ed., 622 p. 18. 1992: Pedagogia Freudiana Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. 172 p.
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19. 1993: A Natureza do Vínculo Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 274 p. 20. 1994: Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 310 p. 21. 1995: Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 264 p. 22. 1996: “Psychopathia Sexualis” Santa Maria: Editora UFSM, 2000. 453 p. 23. 1997: Comunicação e Cultura na Era Global Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 408 p. 24. 1998: Introdução à Transformática: Por uma Teoria Psicanalítica da Comunicação Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2004. 156 p. 25. 1999: A Psicanálise, Novamente: Um Pensamento para o Século II da Era Freudiana: Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 224 p. 26. 2000: “Arte da Fuga” Publicado em: Revirão 2000/2001. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 27. 2001: Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito Publicado em: Revirão 2000/2001. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 28. 2002: Psicanálise: Arreligião Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 248 p. 29. 2003: Ars Gaudendi: A Arte do Gozo Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 340 p.
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MD Magno
30. 2004: Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2010. 260 p. 31. 2005: Clavis Universalis: Da cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 224 p. 32. 2006: AmaZonas: A Psicanálise de A a Z Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 198 p. 33. 2007: A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009. 210 p. 34. 2008: AdRem: Gnômica ou MetaPsicologia do Conhecimento Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2014. 158 p. 35. 2009: Clownagens Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2012. 210 p. 36. 2010: Sic Transit (a sair) 37. SóPapos 2011 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2016. 218 p. 38. SóPapos 2012 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2021. 242 p. 39. SóPapos 2013 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2016. 218 p. 40. Razão de um Percurso (Conferências Simplórias 2013, para divulgação da Nova Psicanálise, realizadas na Universidade Candido Mendes) Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2015. 41. SóPapos 2014 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2019. 284 p.
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SóPapos 2017
42. SóPapos 2015 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2016. 176 p. 43. SóPapos 2016 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2018. 188 p. 44. SóPapos 2017 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2024. 246 p. 45. SóPapos 2018 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2020. 216 p. 46. SóPapos 2019 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2021. 306 p. 47. SóPapos 2020 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2023. 510 p. 48. SóPapos 2021 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2022. 237 p. 49. 2022 (a sair) 50. 2023 (a sair) 51. 2024 (a sair)
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Obra Literária
1. Oferta do Meu Mistério Livro composto e reproduzido pelo autor (mimeografado). Rio de Janeiro, 1966. 2. Aboque/Abaque: Crestomatia Rio de Janeiro: Editora Rio, 1974. 200 p. 3. Sebastião do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro / Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, 1978. 142 p. 4. CantoProLixo Aoutra editora / Matias Marcier, 1985. 90 p. 5. Kaluda (O Nando e Eu) Letras, Revista do Mestrado em Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS), edição especial, jan/jul 1995, p. 254-285. Republicado em: PUCHEU, Alberto (org.). Poesia (e) Filosofia: por poetas-filósofos em atuação no Brasil. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. p. 29-50. Terceira publicação: Et Cetera: Revista de Literatura e Arte, n. 3, março 2004, p. 170-177. Curitiba: Travessa dos Editores. ISSN 1679-2734. 6. S’Obras (1982-1999) Coletânea de poemas. Curitiba: Travessa dos Editores, 2002. Editada por Fábio Campana, com coordenação gráfica e editorial de Jussara Salazar. 7. Literadura Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2018. 564 p. 244
Este livro foi composto nas fontes Amerigo BT, Apple Symbols, Times New Roman e Wingdings.
14/05/2024, 09:50
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