Sociedade da Decepção
 9788520425633

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Gilles Lipovetsky

A Sociedade da Decepção

ISBN 978-8S-21M /

apresentação de Juremir Machado da Silva 11, 1 1

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A SOCIEDADE DA DECEPÇAO

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A SOCIEDADE DA DECEPÇAO Gilles Lipovetsky

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Manole

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Título do original em francês: La Sociétéde Déceptio11 Copyright© Éditions Textuel, 2006

Traduçào:Armando Braio Ara Graduado em Ciências Sociaise Jurídicas pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco- USP Especialista em Lingüística e História Moderna da Europa Tradutor especializado nas áreas de Religião, Filosofia, Psicologia e História Revisàotécnica:Juremir Machado da Silva Doutor em Sociologia, escritor, tradutor, pesquisador do CNPq e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS

Sobreo autor

Projetográfico:Departamento Editorial da Editora Manole imagem da capa:www.sxc.hu. Fotógrafo: David Ritter Imagem detalhada de um muro coberto de cartazes publicitários antigos em Seattle, EUA. Dâdos Internacionais de Catalogação na Publicação (CfP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lipovetsky, Gilles, 1944- . A sociedade da decepção/ Gilles Lipovetsky; entrevista coordenada por Bertrand Richard; [tradução Armando Braio Ara]. -- Barueri, SP: Manole, 2007. Título original: La société de déception ISBN 978-85-204-2563-3 J. Lipovetsky, Gilles, 1944- - Entrevistas 1. Richard, Bertrand. li. Título.

CDD-306

07-3549 lndiccs para catálogo sistemático: 1. Análise sócio-cultural : Entrevista : Sociologia 306 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução por xerox. Edição brasileira - 2007 Direitos em língua portuguesa adquiridos pela: Editora Manole Ltda. Avenida Ceei, 672 - Tamboré 06460-120 - Barneri - SP- Brasil Fone: (11) 4196-6000- Fax: (11) 4196-6021 www.manole.com.br [email protected] Impresso no Brasil

Printed in Brazil

Gilles Lipovetsky, nascido em 1944, é professor de filosofia em Grenoble, França. L'ere du vide, publicado na França em 1983, é o seu primeiro livro [tradução para o português publicada pela Editora Manole com o título A erado vazio - Ensaiossobreo individualismocontemporâneo]. Depois, em 1987, publicou pelas Éditions Gallimard L 'empire de I 'éphémere.La mode et son destin dans lessociétésmodernes ["O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas"). Nessa obra, dando continuidade às suas observações sobre a sedução, o efêmero e a diferenciação marginal nas sociedades democráticas, o autor mostra que a "moda perfeita" poderia ser um instrumento de consolidação das sociedatles liberais, veiculo inédito do I Iluminismo e da dinâmica moder.nizadora. Em 1992 publicou Le cré- , pusculedu devoir.L 'éthique indoloredes nouveaux temps démocratiques, lançado no Brasil pela Editora Manole como A sociedadepós-moralista, no qual demonstra que a revitalização dos "valores" e o espírito de responsabilidade que nossa época ostenta não poderiam mascarar a ausência do "retorno da moral" tradicional - rigorosa e categórica -, uma vez que, ao contrário, assistimos à emergência de uma cultura inédita que difunde mais as normas do bem-estar do que as obrigações supremas do ideal, de maneira que agora o rótulo ético está em todos os lugares e a exigência de se dedicar não aparece em lugar nenhum. Em 1997 publicou La troisiemefemme. Permanenceet révolutiondu féminin ["A terceira mulher. Permanência e revolução do feminino"],

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A sociedadeda decepção

obra em que se interroga a respeito da subsistência, no âmago do avançado da pós-modernidade, de um elemento maior em sua alteridade: o feminino. Elemento que revela o quanto a dinâmica democrática não apenas se mantém ligada ao passado histórico como também não vai até o extremo de si mesma.

Sumário

Prefácio Apresentação de JuremirMachadoda Silva

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A espiralda frustração

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ix XV

Conhecemos as culturas do "aviltamento" e da "culpabilidade". No 1 entanto, o hedonismo contemporâneo se conjuga com um clima de! ansiedade e violência no relacionamento social, dando origem a um 1 verdadeiro punhal de decepção. Os indivíduos se deparam com imposições contraditórias, que se somam à histeria e à excitação provocadas i pelo hiperconsumismo. Ao contrário da suposição comum, a decepção atinge mais intensamente os desejos não materiais. O que estaria na raiz j desse fenômeno? ·

Consagração e descréditoda democracia

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O estilo de vida consumista invadiu também a esfera política. Paralelamente, o êxito da democracia liberal não demonstra essa tendência. Daí emerge uma questão inédita: será democracia um bem de consumo como outro qualquer? Gilles Lipovetsky analisa nossa cidadania hipermoderna, capaz de combinar o absenteísmo mais leviano com os mais sinceros surtos de indignação, sempre que houver motivos para se suspeitar de alguma investida contra os princípios do direito e da liberdade. Reflexão sobre o código genético da sociedade democrática contemporânea.

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viii A sociedadeda decepção

Umaesperançasemprerenovada

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O arrojo da investida hiperconsumista, que integra e absorve os mais elevados anseios do gênero humano, determina uma reviravolta em todos os parâmetros morais tradicionais que, há menos de cinqüenta anos, ainda pautavam a nossa conduta. Com isso, a tentativa de combater frontalmente o capitalismo consumidor, além de ineficaz, resulta quimérica. Será na base da "paixão contra paixão" que conseguiremos fazer recuar a hidra consumista.

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Prefácio

Não estamos tão distantes daquele pessimismo fin de siecle,fielmente expresso nestas palavras de Arthur Schopenhauer: "A vida é um pêndulo que oscila entre o tédio e o sofrimento". Des Esseintes, o célebre e irrequieto protagonista retratado por Joris-Karl Huysmans em A 1 rebours,1 destilava sua languidez numa época em que o progresso elidi- J ra o sonho, em que a democracia burguesa tinha ceifado o instinto de . revolta, em que os mais moços, ávidos de aventuras, aportavam tarde 1 demais a um mundo muito antigo. O sentimento de decepção já existia, 1 1 e se expressava sobretudo naqueles que, de bom grado, dispensavam o j cansaço decorrente de uma viagem até Londres, preferindo encontrar os , amigos para sorver calmamente sua cerveja predileta na estação ferro-1 viária do Norte. Essa consideração suscita uma dúvida. Será que, ao caracterizar nossa sociedade hipermoderna como uma "sociedade da decepção", Gilles

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Este romance de Huysmans contém a essência da filosofia do Simbolismo. Consagra o primado da imaginação, concebendo-a como a rainha das faculdades humanas, segundo a definição de Baudelaire. O conde des Esseintes, figura idealizada pelo autor, é emblemático da época: vive em sua casa como se vivesse em um mos- j teiro, e sonha com a progressão contínua dos males no decurso das eras. A perso- 1 nagem se retrai, hermeticamente, do contato com o mundo, não ousando nem 1 mesmo sair em viagem, com medo de decepcionar-se com a realidade. (N. E.) 1

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X A sociedade da decepção

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Lipovetsky, um especialista em hipermodernidade, estaria apenas dando continuidade ao percurso trilhado há mais de um século por analistas diversos, intentando desvendar as várias etapas do mesmo mal-estar social, como fazem, em nossos dias, os estudos de Cioran ou de Houellebecq? A resposta comporta matizes. Evidentemente, o autor de A Era do vazia2não ignora que a decepção em relação à vida, em todos os períodos históricos, sempre corresponde a uma ausência do sentido de ser, a uma insatisfação existencial cujos tentáculos se estendem a todos os campos da atividade humana. Mas a decepção moderna se radicalizou, assumindo proporções indiscutivelmente inéditas em toda a história do Ocidente. Qual a causa disso? Acaso seríamos dotados de uma disposição de espírito mais propensa ao metafísico, mais dada ao spleen3do que nossos antepassados? Certamente não. Em contrapartida, cada um de nós vive em um mundo à parte. A moda, o hedonismo, o nomadismo tecnológico e afetivo, o individualismo avassalador são coisas que a filosofia do consumo sustenta e promove a cada instante, e que servem como fio condutor ao trabalho de Gilles Lipovetsky e como chave interpretativa de nossa modernidade. O que importa saber é que esses fenômenos nos tornaram mais responsáveis por nossa própria felicidade, assim como mais submissos aos seus ditames, um tanto impositivos e bem moldados pelo marketing. Quanto mais amplas e indefinidas são as nossas possibilidades de escolher um futuro individual, mais inimagináveis os recursos disponíveis para criar novos estilos de vida, mais o ideal de harmonia parece estar ao nosso alcance, e mais a privação desses meios ecoa como algo inadmissível e frustrante. Eis no que consiste o império da decepção: liberdade estendida a todos os domínios da vida humana, sobre um fundo de liberalismo áspero e falta de convicção. Daí "o cansaço de si mesmo': os elevados índices de suicídio, a depressão, as diversas dependências ...

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Gilles Lipovetsky, A era do vazio: ensaiossobreo individualismo.Editora Manole; 2005. J Em inglês, sentimento vago de melancolia ou de vazio de alma. (N. E.)

Prefácio xi

Dessa configuração particular das coisas provém uma tendência não exatamente cínica, mas um questionamento constante (embora murcho e abatido) do significado das próprias atitudes, o que nos transforma em crianças mimadas pela sociedade de abundância material. Com essa mania de consumo cada vez mais intensa, acabaremos consumindo até o nosso legado de bens materiais e espirituais que sucessivas gerações de seres humanos aspiraram constituir. Por um lado, desperdícios de toda espécie; por outro, notório desinteresse pela vida pública democrática: talvez não sejamos verdadeiramente dignos das conquistas de nossos antepassados. Todavia, não se encontrará em Gilles Lipovetsky uma leitura moralizante ou metafísica desta era da decepção. Revela, ao contrário, uma aguda percepção inspirada em Pascal, que pretende distinguir as molas propulsaras, as contradições, os rumos insuspeitados de nosso tempo. Com efeito, estamos tentados a incriminar apenas a exacerbação desenfreada do consumismo em meio a uma onda decepcionante como a nossa, de modo a reproduzir a oposição clássica entre um materialismo malvado e a salvação decorrente dos bens da alma e do espírito ... além de esconder a necessidade de se fazer um exame criterioso e metódico de outros aspectos de nossa época. Dentro de uma lógica puramente depreciativa da modernidade, coll}o---lídarcom o extraordinário surto de iniciativas sociais e associações beneficentes? É por isso que hoje, conforme observa Gilles Lipovetsky,não é de bens materiais que estamos mais desprovidos. Um refrigerador, por exemplo, é certamente um bem de consumo que preenche todos os requisitos necessários, sendo essencialmente o mesmo em suas regras básicas de funcionamento e não podendo, por si, nos decepcionar. Talvezo desapontamento teria origem na comparação que, naturalmente, somos levados a fazer entre as nossas posses e as posses alheias. Mas essa também é uma suposição falha, pois é possível que alguém tenha prazer com a posse de um autotnóvel popular tanto quanto um outro com seu veículo de alto padrão. Tampouco essa sensação proviria dos serviços públicos, das denominadas produções culturais - houve tempo em nos dizíamos "desapontados" com a sofrível qualidade de um filme ou de um livro - ou dos insondáveis mistérios do amor, da sexualidade, a intensidade vibrante freqüentemente contrariada de nossas /

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A sociedadeda decepção

existências. Assim, acabamos por deduzir que nossa fonte de desconforto são fatores menos palpáveis, mais especificamente humanos, que encontram no decorrer da vida momentos dignos de lágrimas. E como não se sentir desiludido, chocado. penalizado diante das diversas modalidades de democracia liberal, supostamente inspiradas na observância aos direitos humanos, mas que permitem tanto sofrimento impunemente? É por esse emaranhado de mazelas que Gilles Lipovetsky nos conduz, sempre evitando cuidadosamente o ato de julgar. É certo que esse pensador original, à margem das controvérsias conceituais, que não gosta dos sistemas e se aborrece com os refinamentos do pensamento puro, procura principalmente nos fatos o delineamento de nossa existência real. Nestes últimos tempos, seu método aparece conjugado a uma inegável sensibilidade a tudo que fracassa, a tudo que é falho, a tudo que torna a vida mais melancólica - tal o anelo de Lipovetsky, tantas vezes acusado de ser um otimista incorrigível. É verdade que, quando ingressou no mundo da escrita, em 1983, pretendeu opor-se (para contrabalançar) às idéias cheias de desconfiança muito em voga quando cursava filosofia. Também é verdade que, graças a seu espírito de fruição da vida, que se compraz em deambular pelas cidades examinando os cartazes de publicidade, o comportamento das mulheres, as oscilações da moda., as formas variegadas de prazeres de uns e outros, ele sempre defendeu a tese de que, nas escolhas e nos rumos que adotamos, está presente um grau de liberdade infinitamente maior do que querem reconhecer os hermeneutas da dominação. Em todo caso, seu trabalho consiste atualmente em apresentar os pormenores muitas vezes contraditórios de nosso dia-a-dia, sem se importar como o palavreado teórico de estilo. É evidente, segundo o autor, que a era do consumo, ou do "hiperconsumismo", modificou muito mais a nossa vida do que todas as correntes filosóficas do século XX reunidas, tanto para o bem quanto para o mal. Para o bem, em sua opinião, porque concorreram muito mais para o funcionamento da máquina liberal do que todas as manifestações dos agitadores públicos que tentam nos desalienar da ditadura das grifes com as organizações de baixo custo. Para o mal, porque hoje tudo (ou quase tudo) é considerado com base em esquemas típicos do consumo:

Prefácio xiii

as relações preço/qualidade, prazer/desconforto, competitividade/descrédito. E isso não nos propicia uma dose maior de felicidade. Todavia, se para Gilles Lipovetsky o "fim da História" é algo que categoricamente não poderia existir, resta o direito de trabalhar para que a febre consumista, justamente nos excessos que a caracterizam de modo mais específico,não passe de uma afecção transitória do gênero humano.

Bertrand Richard Coordenador da entrevista

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A sociedadeda (in)comunicação e da (in)diferença

Gilles Lipovetsky é wn pensador alegre. Um pensador da vida como ela é e como ela se dá a ver. Algo muito raro entre os sempre tão sombrios intelectuais. Como pensar quase sempre significa pôr algo em crise, abalar certezas, os intelectuais acabaram por se tornar tristes. São homens e mulheres, muitas vezes,vergados pelo peso de um saber pessimista e rabugento. O conhecimento torna-se para eles um fardo. Quase não há espaço para a leveza no pensamento de muitos analistas do vivido. O pior é que quase não há espaço pru-a-o-'>Além das mágoase dosdissaboresinfligidospela escassezde consumo,nãoseriao casode afirmarmosquetambémo mundodotrabalhopermite constatarcabalmentea ondade choqueda decepção?

A espiralda frustração

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Não é difícil in1aginar o grau de amargura e ressentimento experimentado pelos jovens que permanecem inativos anos e anos a fio, valendo-se de pequenos trabalhos temporários, estágios e outros expedientes, sem garantir seu acesso à sociedade hiperconsumista e, decididamente, impedidos de ter qualquer espécie de auto-estima. No outro lado do pêndulo da vida, em razão do insanável desemprego das pessoas com mais de 50 anos, observamos também uma situação não menos decepcionante. De fato, como poderia um indivíduo não sentir irritação quando se percebe "abandonado após ter sido sugado", "inaproveitável" para todos os efeitos, considerado inútil aos olhos da sociedade? Diante disso, essas pessoas passam por uma sensação de humilhação e de derrocada pessoal, quando, noutros tempos, situações do gênero eram vistas como decorrência natural do próprio estado de vida. Agora, pelo contrário, êxito ou fracasso profissional são atribuídos à responsabilidade exclusiva de cada um. De repente, é a vida em seu conjunto que assume o aspecto de uma grande confusão, inclusive com o sofrimento moral de não estar em condições de prover a si mesmo, ou de construir o próprio edifício da felicidade. Em suma, mesmo os que exercem algum trabalho não estão isentos por completo da crise da desilusão. Inumeráveis estudos descrevem agora gerentes acometidos de estresse, ceticismo, descontentamento, . indiferença: são os novos desiludidosda empresa. Aqueles que obtêm i diplomas e títulos de pós-graduação estão muito distantes de ascender a cargos condizentes com seus anseios e habilitações. Ao mesmo tempo, os assalariados cada vez mais se queixam de não serem bem aproveítados pelo superior hierárquíco, além de não receberem o devido apreço dos demais funcionários ou dos clientes. Nos dias atuais, a "falta de reconhecimento" aparece em segundo lugar (logo depois das pressões em prol da eficíência e dos bons resultados) como fator de risco para a saúde mental do índivíduo no trabalho. A escalada da decepção não é, única e exclusivamente, conseqüência das demíssões, das transferêncías de pessoal ou da gestão causadora de angústia em relação às potencialidades de cada um. Tem raízes também nos ideais individualistas de satisfação pessoal, veiculados em grande escala pela sociedade hiperconsumista. O ideal de bem-estar já

14 A sociedadeda decepção

A espiralda frustração 15

SOCIEDADE HIPERMODERNA É PROPRIAMENTE AQUELA QUE MULTIPLICA AO INFINITO AS OCASIÕES DE

EXPERIÊNCIA

FRUS-

TRANTE, AO MESMO TEMPO QUE DEIXA DE PROPORCIONAR OS ANTIGOS DISPOSI-

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não é meramente de teor material: interpenetrou na própria vida profissional, que deve corresponder agora a uma realização pessoal. Hoje, já não basta trabalhar para manter-se; impõe-se a necessidade de um trabalho que traga prazer, que seja denso em contatos e relacionamentos com os demais, que seja executado "numa atmosfera convidativa".Daí o descompasso crescente entre os desejos de realização pessoal e a realidade profissional, normalmente estressante, desgastante ou fastidiosa. Com efeito, à medida que abandonam os padrões tradicionais, a atividade profissional se torna uma esfera cada vez mais frustrante, ainda que os assalariados não ousem confessá-lo. Destes, a maioria se declara "feliz no trabalho" e "confiante na empresa': mas, curiosamente, pensa que os outros devem estar infelizes e descontentes! , , Vocêdiria quea decepçãotem origemna sensaçãode fracassooperada pelossistemasmoralizadores da felicidade,maisdoque propriamente noenrijecimentodo neoliberalismocomque os indivíduossão confrontados?

Os dois fenômenos atuam conjuntamente e amplificam um ao outro. A exigência de se realizar e de ser feliz se intensifica pelas mesmas razões que causam as dificuldades objetivas para subir de nível. Sob o efeito dessa confluência de fatores, a decepção torna-se uma experiência particularmente forte.

TNOS "INSTITUCIONALIZA-

> Não é sóo liberalismoquemotivaa decepção;tambémo sistemaescolar vigentecontribuipara isso.Dissemina-sea opiniãode que os institu-

DOS " PARA DEBELAR ESSE

tosde ensinojá nãocriamcondiçõesfavoráveisparaa ascensãona escala social.ou seja, queos diplomasdeixaramde representara garantiade , umempregode boaqualidade.E de fato,algumasvezes,quandoo formando provémde umalocalidadeproblemática,os diplomasnemsequerpermitema obtençãode umempregopuroe simples...

MESMO MAL. ''

Essa idéia não é tão verdadeira, já que os diplomados realmente gozam de possibilidades consideravelmente maiores de inserção na vida profissional em relação àqueles que não têm qualificação nenhuma. Todavia, é inegável que, hoje em dia, contrariamente ao que seria desejável, os diplomas são menos capazes de abrir portas a bons

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empregos do que durante as chamadas Trinta Gloriosas 8• Cada vez menos se observa uma ajustada adequação entre o diploma e o nível de emprego. Até as décadas de 1960-70, a instituição escolar republicana e o prolongamento do ano letivo incrementaram a promoção social, estendendo-a também para as camadas menos favorecidas. Essa dinâmica estancou. O êxito escolar e a seleção das elites foram largamente definidos com base no meio social de origem. Só uma pequena parcela dos filhos de imigrantes conseguiam entrar na universidade. Daí a escassez de confiabilidade e as contínuas desilusões perante os estabelecimentos escolares que não preparam convenientemente os alunos (ou raramente chegam a atingir essa meta), no afã de corrigir as desigualdades, atuando como agentes de mobilidade social. Na base da escala social, muitos jovens se questionam acerca da utilidade dos longos estudos, uma vez que estes não propiciam a obtenção de empregos que correspondam a suas expectativas, vendo-se relegados ao desemprego ou ao salário mínimo. As instituições de ensino, que anteriormente eram o veículo condutor de um projeto igualitário e de promoção social, já não desempenham o mesmo papel. A cada ano, 160 mil jovens saem dos estabelecimentos de ensino sem diploma ou qualificação profissional. Dentre os alunos da sexta série, de 20 a 35% são incapazes de ler ou escrever corretamente. A probabilidade de que as crianças oriundas das camadas populares venham a ser gerentes de empresa está visivelmente em baixa. O revés não é menos doloroso do que clamoroso: também a escola se tornou um foco de decepção.

» Seria umaespéciede "melancoliado saber"- para usara expressão do romancistaMichel Rio- que leva muitaspessoasa voltaro olhar para a escolado passado,maispropriamentepara o ensinoda TerceiraRepública,em vezde atentarpara a reformada escolaatual?

É isso mesmo. Contudo, as razões não são exclusivamente de ordem escolar. Durante um bom tempo, não só a escola, mas também o Exér-

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Refere-se ao período das três décadas imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial. (N. E.)

Aespiral da frustração 17

cito, no âmbito da República, estiveram à altura do projeto político de integração nacional das mais diversas camadas de população de imigrantes. Esse modelo já foi coroado de êxito, mostrando-se apto a suscitar o anseio de ser francês, ou seja, a ufania da nacionalidade francesa - assim se deu com meu avô, que veio da Rússia. Essa época passou. Em um grande número de jovens, a sensação de pertencer a uma pátria retrocede, enquanto se agravam os particularismos religiosos e comunitários. O mecanismo de integração, que deveria fazer os franceses se rejubilarem com a própria índole nacional, desmoronou, desconjuntou-se. Como dissociar esse fenômeno da expansão galopante da escassez de emprego, da degradação da situação econômica e social? O desemprego dos jovens e de seus pais origina um sentimento de injustiça e de exclusão. Os jovens das periferias, em certo sentido, estão hiperintegrados à nossa sociedade, com as típicas aspirações de aproveitar as regalias que a vida oferece. Não possuem nem um pouco da mentalidade de imigrantes, desbravadores e empreendedores natos: modelados pelo contexto consumista, participam dos sonhos deste âmbito hipermoderno. Ao mesmo tempo, vivem no batente do cotidiano, eivado de frustrações. Eis porque alguns derivam para a violência, para a delinqüência, enquanto outros são arrastados pela introversão, em busca da própria identidade. Destes, há os que se deixam arrastar pelo islamismo radical, que funciona mais ou menos como instrumento de diferenciação e de afirmação pessoal. A questão não deixa dúvidas: na sociedade hiperconsumista, o êxito na integração da comunidade nacional exige, como condição necessária, a integração pelo trabalho. Entretanto, condição necessária não significa condição suficiente, ainda mais em nossa época, quando se manifesta, de mil modos, a categórica recusa do auto-rebaixamento dos grupos sociais, bem como o direito de cidadania às diferenças de • ordem comunitária. A fim de recolocar nos trilhos a locomotiva da integração, será necessário não apenas um crescimento sustentado, mas a adoção de políticas que levem em conta, desta ou daquela maneira, o problema da diversidade étnico-cultural. Falando claramente, será preciso promover iniciativas que permitam coibir práticas discriminatórias, aquilo de que as minorias costumam ser alvo na

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empresa, na mídia, nos partidos políticos ... No âmbito educacional, igualmente, será necessário fomentar a concessão de bolsas de estudo, sem contar outros dispositivos de apoio, no sentido de favorecer a obtenção de graus universitários aos "excluídos" e aos jovens egressos da imigração. Obviamente, isso só existirá mediante a adoção de políticas apropriadas, em face das diversas minorias existentes. Será preciso, também, lançar mão de outros recursos cabíveis, no terreno do voluntariado, tendentes a assegurar uma maior igualdade de oportunidades.

» No entanto,seria umerro subestimara importânciada vida particular, enquantoesfera"privilegiada"dessaespiralfrustrante...

Nos contextos sociais caracterizados por uma individualização extrema, o terreno da vida íntima é o mais direta e imediatamente afetado pela maré da decepção. Pense na palavra "decepção": imediatamente nos vem à mente a vida sentimental. Isso porque, de l.onge,as maiores desilusões e frustrações que sentimos são muito mais afetivas do que políticas ou consumistas. De fato, quem não terá se deixado levar por alguma paixão ardente? Reafirmar o profundo elo existente entre o amor e a decepção, naturalmente, não representa nenhuma novidade. O dado novo consiste, de fato, na multiplicação das experiências amorosas no decurso da vida. A bem dizer, nossas decepções não serão mais ou menos intensas do que antes, mas sem dúvida se tornaram mais freqüentes. Mas por que a noção de desapontamento ficou de tal modo associada à vida sentimental? De início, desvencilhemo-nos da idéia (tão repisada quão imaginária) que nos quer fazer acreditar que a intensificação das vinculações de natureza econômica tenha exaurido ou sugado as demais dimensões da vida humana, inclusive as relações atinentes ao sentimento e ao amor. É uma idéia antiga, cuja formulação explícita remonta a Marx. Na verdade, não é bem assim. O amor nunca se ausenta do cotidiano humano, sendo constantemente exaltado nas canções, nos filmes, na televisão, nas revistas. Se, por um lado, no mundo hodierno, o utilitarismo mercantil avança, por outro, também se expande o culto ao sentimento. Hoje, de modo geral, as pessoas já

Aespiralda frustração 19

não se casam movidas por conveniências ou vantagens pessoais: só o amor é que dá fundamento à vida conjugal. As mulheres sonham com eterno príncipe dos contos de fadas, e os homens, com o amor. Os 0 pais continuam a abnegar-se pelos filhos e, mais do que nunca, estes recebem as demonstrações de proteção e carinho. Para muitos de nossos contemporâneos, o amor continua sendo a experiência mais ardentemente desejada, a mais emblemática da "vida verdadeira". A realidade é palpável; os modos economicistas de ser não acarretam, de nenhum modo, uma depreciação dos valores afetivos e altruísticos. Em vez de ser um arcaísmo, algo tipican1ente fora de moda, a glorificação do amor condiz perfeitamente com a cultura da autonon:iia individual, que rejeita as imposições prescritivas de natureza c?l~ti~a que restrinjam o direito à busca da felicidade pess_oal.Com_a dmam1ca da individualização, cada um quer ser reconhecido, valonzado, preferido pelos demais, desejável para si mesmo e não confundido com um ser anônimo e "substituível". Se concedemos grande apreço ao amor, é porque, entre outras coisas, esse sentimento correspo~de ~s aspirações narcisistas dos indivíduos, indo ao encontro da valonzaçao de si como pessoa única e diferenciada. Contudo, dessa inconteste realidade na qual o sentimento do amor brilha no firmamento de valores, freqüentemente decorrem pungentes decepções. É o momento em que a cristalização perdeu -seu efeito, dissipando as qualidades e os atrativ?s que a outra pessoa possuía. Na verdade, qual idealização é capaz de se manter, qual sonho pode persistir indefinidamente, quando confrontado com a precariedade natural dos seres e a monótona cantilena da eterna repetição das coisas? Pouco a pouco se percebe aspectos menos amáveis na personalidade da outra pessoa, que incomodam ... O amor é "cego",bem sabemos, mas também é fraco e fugaz. As pessoas que há pouco eram extn~mamente amorosas, de súbito, tornam-se frias, porque os sentimentos não podem ser considerados "objetos" imutáveis, nem as evoluções ~o comportamento humano possuem um caráter sincrônico. A eufona dá lugar ao fastio ou cansaço, incompreensão ou agastamento, dr~maticidade inopinada, com seu cortejo de acidez e, não raro, de antipatia. Separações, divórcios, conflitos relativos à guarda dos filhos,

A espiralda frustração

20 A sociedadeda decepção

ausência de comunicação intima, provável depressão subseqüente, tudo isso atesta as desilusões que podem advir da vida amorosa. Nesse sentido, merece crédito o que diz Rousseau: por ser o homem um ser incompleto, incapaz de bastar a si próprio, sente necessidade de ontros para se desenvolver. Mas se a felicidade depende dos outros, então o homem está fatalmente condenado a uma "felicidade frágil': Depositamos enormes esperanças em determinada pessoa; esta, porém, se afasta de nós rapidamente ou usa subterfúgios para nos evitar; não a possuímos mais; ela muda, nós mudamos. Assim, nossas mais radiantes expectativas se revelam um grande equivoco.

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matéria, sendo, pois, altamente apreciada. No âmbito da vida amorosa, pelo contrário, equivale ao mais rotundo fracasso. Cadaumde nósdepositaenormesesperançasnosoutros.Esperanças demais?

Talvez,mas não se deve deduzir daí que tenhamos que adotar a tese da auto-suficiência e da indiferença com relação aos outros. Em vez de dispensar a existência dos outros, seria melhor rever o grau de exigência que temos quanto aos outros. Isso é fácil de dizer, mas difícil de realizar. Isso remeteao problemado funcionamentoda economiado desejo.

Tudoo quefoi dito sobreo amoré convincente.Entretanto,não é evidenteque a lógicaconsumistatambémtem influênciana lógica da edificação do relacionamentoamoroso?O imperativodo desempenhoideal, as qualidadesquedevemosostentar,nãosãovirtualidadesque nosreduzemà condiçãode "partículas"no mercadoda concorrênciaamorosaou

AntoineCompagnon, em Os cincoparadoxosda modernidade',um estudo que se aplica ao campoda estética,mostracomoa modernidadeacabou por abraçaro novona arte, não pelo conteúdoque ele poderiaveicular, maspelomeroaspectoda novidade.Mutatismutandis,o mesmoraciocínio não valeria para o terreno da vida sentimentale sexual, com uma

sexual,comobemdemonstrou Michel Houellebecq,entre outros?Decerto, o sentimentoé algoquepermanece.Nessesentido,seria razoávelconcluir que foi a formade externá-losque passoupor umatransfonnação, distanciando-se dospadrõesde exteriorizaçãooutroraconsagrados? Desde a década de 1950, os mais perspicazes observadores dos fenó-

espéciede desejosemobjetivo?

menos sociais apontaram uma realidade: a vida sexual tomara a feição de wn domínio inspirado nos hábitos do consumo. Para sermos mais exatos, não se trata de dizer que caminhamos de experiência sexual em experiência sexual, mas sim, que caminhamos de experiência amorosa em experiência amorosa ... Em certo sentido, essa reviravolta no terreno afetivo está em conformidade com a lógica da novidade que nunca se exaure, enquanto algo inerente ao hiperconsumismo. Contudo, a vida amorosa não se pauta pelas mesmas coordenadas da vida subjetiva, dado que, intrinsecamente, a primeira pressupõe o desejo de conquistar algo "que não acabe" (o amor eterno), bem como uma conduta "desinteressada': Apesar de todas essasmudanças, a relação amorosa jamais equivalerá a uma mera relação de prestação de serviços ou de intercâmbio de mercadorias. No âmbito do consumo, a idéia de modificação contínua corresponde à própria natureza da

Não penso assim. Para falar a verdade, o culto do novo no campo sexual tende a declinar. Na imprensa feminina, há uma superabw1dância de artigos em torno da temática: "faltam homens'~ Foi-se o tempo em que o cinema e a literatura punham muito mais em cena a figura prototípica de Don Juan. A inclinação masculina ?e buscar namoro ou aventura amorosa é, hoje, bem menos protuberante. Os jovens estão rapidamente morando juntos. É como se a conquista da "outra metade" tivesse deixado de ser alvo prioritário, ou um fator inequívoco de diferenciação em face dos outros, no contexto de um universo cultural que dá primazia à atenção para consigo mesmo, ao relacional, à comunicação de teor intimista. À obsessão do quantitativo sucede o primado da qualidade do sentimento, do entendimento mútuo, da cumplicidade tácita, dos projetos elaborados a dois. Na época do hiperindividualismo, damos menos ênfase à experiência pela experiência do que ao "experimental"; menos à escolha do "par ideal" do que ao extravasamento da emoção. 9

Les Ci11qParadoxesde la modernité,publicado no Brasil pela UFMG. (N. E.)

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A espiralda frustração

A sociedadeda decepção

->> Ao mesmotempo,não estamosdiante de umtipo de desapontamento especificamente sexual?

Está em voga conceber o hedonismo sexual desenfreado como uma imposição tirânica, como experiência geradora de aborrecimentos, fadiga, insatisfação lancinante. Melhor do que ninguém, Houellebecq foi bem-sucedido ao retratar o clima depressivo e frustrante característico do período pós-1968. Coube-lhe mostrar que a dinâmica da economia liberal incorporou a atmosfera da sexualidade, revivendo o mesmo clima de "veemente recusa" da frustração, da exclusão e da desigualdade. O quadro esboçado contém elementos de verdade: já que cada um de nós está rodeado de solicitações sexuais, o real é forçosamente mais frustrante, particularmente quando a vida sexual está realmente carente. A questão torna-se mais premente quando o conceito de felicidade fica conjugado ao erotismo luxuriante. Contudo, a essas notas desfavoráveis,eu gostaria de contrapor algumas considerações menos carregadas. Em primeiro lugar, é exagero fazer um balanço da situação tão categoricamente negativo: recordemos que, de cada quatro francesas consultadas, três se declaram satisfeitas na esfera da vida sexual. Em segundo lugar, o erotismo assumiu uma configuração mais diversificada, de um hedonismo mais característico, mais liberto de entraves, para grande número de pessoas: veja os homossexuais, as mulheres, os jovens ... Por isso, seria inexato pretender que os homens vivam num estado de grande impacto destrutivo ou apreensão pelo fato de as mulheres serem mais experimentadas do que eram antigamente. Sem dúvida, seria exagero imaginar que a angústia do homem contemporâneo nunca possa ser estancada. Tampouco seria correto estabelecer como diagnóstico a ocorrência de um revés generalizado em matéria de revolução sexual. A sensação de fracasso, no que diz respeito ao instinto da sexualidade, é conseqüência natural de certa fase da vida, dependendo dos altos e baixos desses períodos, com os seus respectivos êxitos e insucessos.

•> Isso significaque o fenômenoseria mais de caráter antropológicoe menossocietário? Digamos que a ausência de erotismo na vida, a banalização das rela-

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ções e a escassez de interlocução entre os indivíduos são fato~es que geram mais aflição e abatimento do que a liberação sexual em si. Nesse campo de ação, a revolução sexual levou a cabo tudo aquilo que era de se esperar. Seria utópico imaginar que ela garantisse um estado de orgasmo permanente a 6 milhões de indivíduos. No âmbito das sociedades em que a vida sexual é livre, a sensação habitual de frustrações e descontentamentos constitui o quinhão de cada pessoa. A felicidade na ordem do sensível não pode entrar na plataforma de nenhum partido político: depende, inevitavelmente, de atrativos, preferências e pendores individuais. É impossível agradar, constantemente, a todos. ~ Mais um pontoreferenteà vida privadaque vai tomandoum alcance sempremaior:quaisas correlaçõesentreo consumoe a decepção?

Os primeiros estudiosos do fenômeno "consumista" não titubearam em empregar a expressão "a maldição da abundância". No entender desses analistas, o paraíso da mercadoria só pode dar origem a carências e profundo desgosto. Por quê? Porque, quanto mais somos estimulados a comprar compulsivamente, mais aumenta a insatisfação. Desse modo, a partir do momento em que conseguimos preencher alguma necessidade, surge uma necessidade nova, gerando um ciclo em forma de "bola de neve" que não tem fim. Como o mercado sempre nos sugere algo mais requintado, aquilo que já p_ossuímosacaba ficando invariavelmente com uma conotação decepc1onante. Logo, a sociedade de consumo incita-nos a viver num estado de perpétua carência, levando-nos a ansiar continuamente por algo que nem sempre podemos comprar. Assim, ficamos implacavelmente distantes da condição de plenitude, sempre descontentes, condoídos em razão de tudo aquilo que não podemos proporcionar a nós mesmos. O cons~mo no sistema de mercado seria um pouco como o tonel das Dana1desJO,que orquestra com sucesso o descontentamento e a frustração de todos.

As Danaides foram condenadas, no Tártaro, a encher de água um tonel sem fundo. Compara-se ao tonel das Danaides o insatisfeito cujos desejos nada é capaz de saciar, o pródigo que dissipa à medida que recebe, etc. (N. E.)

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24 A sociedadeda decepção A espiraldafrustração

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, Essaé sua condiçãode existência.

''

Ü QUE GERA DECEPÇÃO

NÃO É TANTO A FALTADE CONFORTO PESSOAL,MASA DESAGRADÁVELSENSAÇÃO DE DESCONFORTOPÚBLICO E A CONSTATAÇÃO DO CONFORTOALHEIO. ) )

De seu revigoramento, certamente. Contudo, não é também a mola propulsora da decepção? Numa tentativa de dar resposta ao problema, convém fazer uma remjssão ao trabalho de Albert Hirschman, Bonheurprivé, actionpublique••(Fayard, 1983), cujo mérito convém destacar: constitui uma das raras obras que põem em destaque os diferentes potenciais da decepção relacionados com as diferentes categorias dos bens comercializáveis. Interessante ... Ouerdizer que nem todas as formasde consumopossuemo mesmopoderde causardecepção?

Segundo Hirschman, os bens que verdadeiramente se consomem pelo uso (a alimentação é o exemplo prototípico) ocupam uma posição privilegiada, na medida em que são capazes de nos proporcionar graus intensos de fruição, continuamente renovados, e mesmo assim nos resguardam da decepção. Por sua vez, os bens duráveis trazem consigo a característica de poderem desapontar o consumidor. É por isso que só causam prazer na ocasião da compra ou quando são utilizados pela primeira vez (é o caso do refrigerador, do automóvel, do. barbeador elétrico). Nesse âmbito, muito depressa se instala uma espécie de oposição entre conforto e prazer. Da mesma maneira, os bens de serviço são fontes de decepção, pois suas qualidades estão, via de regra, aquém de nossas melhores expectativas. A meu ver, Hirschman supervalorizou o potencial de desapontamento a que os bens de consumo duráveis podem dar origem. Por um lado, cumpre fazer notar que, quando,' por exemplo, o refrigerador deixa de nos proporcionar satisfação plena, não se trata, para falar em termos mais precisos, de desapontamento ou decepção. Simplesmente a sua função utilitária sai de nossa cogitação. Como é apenas wn instrumento de bem-estar material, ou seja, de comodidade, nós o deixamos de lado. Podemos ficar habituados à utilização da geladeira, mas, quando esta não funciona a contento, seria impróprio falar em decepção. Por outro lado - e Hirschman não ignora esse aspecto do "Interesses privados, ações públicas'; do original em inglês Shifting Tnvolvernents: Privat·eInterestand PublicAction, sem tradução publicada em português. (N. E.)

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A sociedadeda decepçào

problema -, cada vez mais os objetos de fácil transporte ou manuseio (telefone, computador, canal de TV a cabo, leitor de DVD, iPod etc.) causam mais facilmente a decepção porquanto constituem prazeres estéticos ou emocionais que se renovam. Em outras palavras, com as novas tecnologias, não é o meio que ilude, mas a mensagem que ele veicula. Isso, porém, não é empecilho para os brados de protesto contra a vida "informatizada": não é tão rápido quanto deveria! Isso porque o novo consumidor quer tudo aqui e agora,e a menor deficiência ou limitação pode deixá-lo furioso. Inquestionavelmente, a ânsia de velocidade máxima passou a ser um novo elemento passível de suscitar irritação e descontentamento. Parece-me que, a diversos títulos, seria conveniente inverter os termos do modelo interpretativo aventado por Hirschman. Em nossos dias, são mais propriamente os bens não duráveis que suscitam um cardume de insatisfações e frustrações. Entretanto, como afirmar que, hoje, por exemplo, a alimentação represente um elemento que se contraponha à decepção, quando presenciamos um número crescente de pessoas que se queixam da má qualidade alimentar, da gororoba que é servida, da comida sem sabor? No fundo, a própria alimentação tornou-se fator de ansiedade, por causa dos organismos geneticamente modificados, das gorduras e dos açúcares, dos corantes e tratamentos químicos que se consideram nocivos à saúde. O ato de se alimentar, nos dias atuais, costuma vir associado à idéia de culpabilidade ou de infração contra as boas normas da vida sadia. Primeiro, porque recebemos as informações veiculadas pela mídia, que se faz de porta-voz da ciência médica. Desse modo, como que insensivelmente, o bom garfo tradicional vai cedendo terreno ao homem que come receoso e desconfiado. Depois, porque a época contemporânea é caracterizada pela obsessão em torno da silhueta ideal e das dietas. Nos Estados Unidos, uma alta proporção de mulheres chega a declarar que a luta pelo peso ideal é o objetivo fundamental de suas vidas. Isso é um tanto preocupante, mas é assim.

» As grifes,o luxo, os atrativosda publicidade... todoesse universode sonhonão resultaem umamontanhade decepções?

A espiralda frustração 27

Será que, efetivamente, o consumidor sente frustração quando não pode comprar roupa de marca? Guardará mágoa ou ressentimento por passar as férias num camping e não em um hotel quatro estrelas? Não creio. Todo e qualquer consumidor, desta ou daquela forma, tem condições de encontrar derivativos sem conta, recorrendo à utilização de produtos ou serviços não tão dispendiosos. Em se tratando da busca do prazer (ao menos segundo a concepção vigente), o mais importante não é o preço da coisa, mas a mudança que ela pode provocar em nossa rotina, isto é, seu poder de novidade, a experiência e a aparência de aventura que ela pode nos proporcionar ... Numa perspectiva global, o consumo engendra maiores satisfações do que desapontamentos, pois é uma ocasião propícia para a renovação da existência cotidiana, enquanto miúdo "acontecimento" apto a romper a monotonia do dia-a-dia, sendo capaz, em certa medida, de "arejar e rejuvenescer" a atmosfera daquilo que experimentamos habitualmente. Com efeito, se o consumo do que é comercializado é bem menos frustrante do que presume a maioria, isso está associado à circW1stância de ser um excelente recurso para alterar a rotina de nossa vida diária, pois a novidade é indiscutivelmente um dos mais elementares componentes do prazer. '> Não se poderia retorquirque essa satisfaçãoé artificial ou, pelo menos,que apresentaum grauontológicodeficiente?Na obra-primade Huysmans,Às avessas, o conde Des Esseintes,herói celibatário do romance,emborapretendessefazer uma viagemmais longa a Londres,

fica porfim satisfeitocom um encontrocom os amigosna estaçãoferroviária do Norte para tomar cerveja. De modo semelhante,o consumo hipermoderno nãopredisporiaos indivíduosa diminuirouamesquinhar as modalidadesde prazer?

Afinal, o que é um prazer verdadeiro?Sabemos que há uma vastíssima gama de propensões ou pendores humanos, o que é uma realidade insofismável. Em matéria de prazer ou de felicidade, cumpre admitir como válido até aquilo que possa chocar nossas opiniões particulares. Não me alinho com as leituras aristocráticas e moralistas que ambicionam estabelecer padrões hierárquicos de vivências hedonistas.

A espiralda frustração 29

28 A sociedadeda decepç!lo

De qualquermodo,é inegávelqueestamosem presençade umaespécie de reconstituiçãodo fenômenode classes,como a recriminaçãode uma pessoaque não possuios instrumentos ou as "ferramentas"necessáriaspara desfrutarde umabela sonata,para tomarum exemplodo universocultural.

A questão é outra. Doravante, é no próprio âmago de cada classe que se pode constatar a pluralização dos gostos. As desigualdades sociais de acesso à cultura são incontestáveis. Contudo, é preciso também levar em conta uma escala individual de valores, de índole heterogênea, subjetiva e mesmo heteróclita, no tocante à faculdade de apreciar as belezas ou defeitos das obras de espírito ou das produções das artes. Com a desestruturação dos modelos de classe e a individualização dos modos de ser e de viver, a imprevisibilidade dos comportamentos culturais cresce notavelmente. Sem dúvida, é lamentável que nem todos saibam apreciar uma sonata de Haydn ou de Chopin, mas não podemos insistir na expressão desse lamento. Isso porque os mesmos indivíduos que não se comprazem com esses compositores podem gostar de outras formas de arte, como pintura, literatura, teatro, cinema, e assim por diante. A decepçãoinflacionadanãoterá sido umaconseqüênciado desaparecimentoda sociedadede classes?

As desigualdades de ordem econômica ampliam-se e as disparidades sociais nos modos de vida saltam aos olhos. Contudo, nossa época é marcada por uma grande desestruturação das culturas de classe. Em síntese, já não existem atributos exclusivos de classe, modos de vida específicos para cada grupo social. Vivemos num contexto em que as diferenciações sociais se reproduzem ao máximo e, simultaneamente, a~ aspi_rações da moda, o ideal de bem-estar, os lazeres múltiplos d1fund1ram-se em todos os patamares da sociedade. Cada qual intenta desfrutar daquilo que de melhor existe no mercado: todas aquelas antigas contenções e refreamentos de classe caíram em desuso. É nessa atmosfera que uma nova espécie de consumidor se manifesta em exuberância: o "consumidor-turbinado" nômade, cada vez menos circunscrito aos ambientes da própria categoria social, cada vez mais

imprevisível, fragmentado, individualizado. Esse process~ ~e d~sreg~lamentação social, acompanhado dos imperativos ind1v1dua1smais extremados no que diz respeito ao conswno, é um dos vetores da escalada da decepção. Nessaordemdo consumofrustrante,quepapel competeaos outros?

Ao fim e ao cabo, o mau uso dos bens públicos desperta mais indignação do que o uso de bens particulares. Com efeito, de que os consumidores se queixam mais freqüentemente? Dos engarrafamentos de trânsito, das praias superlotadas, do processo de descaracterização da paisagem natural por obra das construtoras de edifícios ou da inv~são de turistas, da repugnante promiscuidade nos transportes colel1vos, do barulho dos vizinhos, etc. Em outras palavras, o que gera decepção não é tanto a falta de conforto pessoal, mas a desagradável sensação de desconforto público e a constatação do conforto alheio. Não surpreende, portanto, que seja no âmbito dos serviços, baseado no relacionamento entre as pessoas, que a decepção é mais freqüente. Manifestações de crítica são muito comuns contra o corpo docente das instituições de ensino, contra o mau funcionamento da lntern:t, contra o despreparo da classe médica. Isso é o que, de modo muito especial, nos leva a falar em "paradoxo da saúde": quant~ mai_s0_1úvel dos serviços médico-hospitalares tende a melhorar, mais rotineiras e ' recorrentes são as demonstrações de insatisfação e inconformidade diante das lacunas que aparecem. Mas, em outra perspectiva, entretanto, convém não esquecer que, diferentemente do que ocorria no passado, os elos e_ntreas pessoas e a esfera do consumo estão cada vez mais entranhad(?S, Muito daquilo que compramos, não o fazemos com a finalidade de granjear a estima deste ou daquele, mas sobretudo visando a nós mesmos, isto é, tendo como objetivo aperfeiçoar os nossos meios de comunicação com o semelhante, melhorar o desempenho físico e a saúde do corpo, buscar sensações vibrantes e variadas formas de emoção, vivenciando experiências sensitivas ou estéticas. É nessa acepção que o espírito de consumo em benefíciodo outro, típico das antigas sociedades de classe, retrocede, dando lugar ao consumo para si. Em re!;umo, o consumo

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individualista emocional asswne agora a dianteira em relação ao consumismo ostentador de classe. Simultaneamente, a tendência dominante é aceitar com maior naturalidade que outros possuam algo que não temos, porque a atenção de cada individuo está hoje mais voltada para a sua própria experiência íntima do que para o desempenho dos demais. Ao contrário dos primórdfos da era democrática, que muito contribuiu para a disseminação do sentimento de inveja, na atual fase do hiperindividualismo conswnista, muito mais raramente nos deparamos com aquele indivíduo que se djlacera interiormente por falta de poder aquisitivo para comprar o mesmo automóvel de alta qualidade do vizinho. A inveja provocada pelos bens não-comercializáveis (amor, beleza, prestígio, êxito, poder) permanece inalterável, mas aquela provocada pelos bens materiais diminui.

Aespiralda frustração 31

do aparecer um tipo humano "despojado de tradiçõe,~",ávi~o ~e novidades e de bem-estar. Baudelaire já asseverava que a cunos1dade se tornara uma paixão fatal, irresistível!".Importa recordar, contudo, que os prazeres humanos foram desfrutados no âmbito de e_s~r~turas sociais e contextos culturais que pouco se alteraram por milenios. A repetição reiterada dos hábitos ancestrais tampouco ~epr~sentou um fator impeditivo para a difusão de formas de espa1recunento que requeriam graus de concentração mais ou menos in~en~os(pa~satempos diversos, folguedos originais, composiçõ~s mus1ca1sem ntmo de dança, jogos e festas dionisíacas). A economia m~derna de consumo não expressa miraculosamente a verdade do deseJOhumano. Ao contrário ela contribui principalmente para estimular o homem, para desvi~culá-lo dos preceitos sociais que se reproduziam de geração em geração, e fazê-lo imergir num estado de agitação permanente.

Caberiafazeroutrascorrelaçõesentreo consumoe a decepção?

Aonde leva a escalada consumista? O que faz com que o neoconsumidor esteja eternamente correndo? Será, em última análise, a pressão da oferta, do marketing e da publicidade? Isso não explica tudo. Não se poderia compreender o ímpeto presente no comprador compulsivo sem relacioná-lo com o dinamismo dos valores hedonistas de nossa cultura, e também com o aumento do nosso mal-estar, com os numerosos fracassos enfrentados na vida pessoal. O hiperconswnismo desenvolve-se como um substituto da vida que almejamos, funciona como um paliativo para os desejos não-realizados de cada pessoa. Quanto mais se avolumam os dissabores, os percalços e as frustrações da vida privada, mais a febre consumista irrompe a título de lenitivo, de satisfação compensatória, como um expediente para "reerguer o moral". Em razão disso, pressagia-se um longo porvir para a febre conswnista. No que concerneao capitalismode consumo,que se efetivana dinâmicada novidade,ele nãoconstitui,emsi mesmo,umsistemaeconômico formidavelmente adaptadoaosanseiosdoespíritohumano?

O capitalismo de consumo não criou todas as peças da cultura do novo. A era democrática favoreceu largamente essa tendência, fazen-

Tambémse propalaaqui e ali que,na origemdossurtoscontemporâneos de fervor religiosoou no ressurgirdo interessepelo esoterismo, estariaa decepçãoproduzidapela vida materialistaconsu~ista.

.

Para dizer a verdade, grossomodo,até os adeptos dos moV1IT1entos religiosos não recusam de maneira ascética os deleites do consumo, embora não sejam muito apegados a eles. Ao que parece, a reafirmação do fator religioso estaria mais propriament~ asse~tada na ~b:olescência das grandes visualizações utópicas u111versahstas,no v1s1vel declinio da fé nas grandes "concepções seculares", na desagregação ou desarticulação das estruturas comunitárias. Uma vez privados d~s habituais sistemas de referência de envergadura transcendental, muitos indivíduos buscam a sua tábua de salvação num renovado tributo a antigas ou novas manifestações de religiosidade. Para tanto, bastará, muitas vezes, que estas se proponham a oferecer visões panorâmicas mais ou menos bem concatenadas, significados específicos até certo ponto concludentes, parâmetros de conduta admis~íveis, formas de integração comunitária apreciáveis ... Justamente aquilo de que ':"rece homem atual, premido pelo torniquete do caos que angustia, da 0 incerteza que asfixia e do vazio que deprime! Em suma, o enfático reavivar da propensão a crer não provém tanto do intumescimento ou da

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exacerbação da oferta de mercado quanto da ausência de um senso de coletividade e de inserção comunitária. À vista disso e de modo análogo, o ressurgir das novas "religiões de índole emocional" é indissociável da decepção experimentada perante as Igrejas institucionais "frias", "petrificadas': nas quais imperam convencionalismos arbitrários ou divagações quase que puramente abstratas. Com efeito, nada disso propicia respostas que correspondam aos anseios da pessoa de hoje - quais sejam, algo que satisfaça a sua sôfrega busca de engrandecimento espiritual ou a correlata necessidade de se consagrar, de corpo e alma, a um ideal religioso, no afã de compartilhar experiências sensíveis com outros. O sentimento de frustração que se abate sobre o indivíduo hipermoderno, sedento de ebulição interior, não tem como causa única e exclusiva o consumismo exacerbado. Visto em profundidade, diríamos que a raiz do problema reside no universo de racionalidade da modernidade conjugado com a presença de instituições religiosas "burocratizadas", que não permitem mais o contato direto, sensível, de arrebatamento pelo divino. ;,.-,Nessequadro,comopensaro consumismo culturalno interiorda civilizaçãofrustrante?

Relativamente às décadas de 1950 e 1960, a mudança operada em nossos dias reveste-se de capital importância. A partir de então, as denúncias incidem menos sobre o objeto em si, e mais sobre o rebaixamento dos valores culturais à condição de bens de compra e venda. Aquilo que poderíamos designar como um "produto dos sentidos" gera muito mais decepção do que os bens duráveis. Não haveria como catalogar o número de vezes em que um filme nos desapontou, assim como uma representação teatral, um concerto, um romance ou um ensaio. Não esqueçamos, aliás, que a televisão, diariamente, absorve aproximadamente três horas e meia da vida diária dos franceses, sem contar a constante mudança de canal de TV com o controle remoto. Ora, esse comportamento exprime um pequeno enfado, uma espécie de microdecepção continua do espectador. A TV é um objeto que nos decepciona sistematicamente, mas nem por isso deixamos de assisti-

la a todo instante. Noutros termos, tem um visgo que nos cativa, mesmo sabendo que, milagre, do aparelho, não sai... Uma última palavra sobre um aspecto particularmente emblemático da sociedade da decepção: a arte contemporânea. Ela dá origem a uma experiência frustrante para a grande maioria do público, que julga que "nada ~aquilo é arte", que não tem nenhum valor, nenhum interesse, "seja lá o que for". No decurso dos séculos e dos milênios, as criações artísticas foram uma fonte incomparável de deslumbramento e deleite para os sentidos. Hoje, pelo contrário, o que presenciamos é uma espécie de tédio provocado pela repetitiva desconstrução das coisas, pelas instalações minimalistas ou conceituais, pela videoarte onde nada de relevante acontece. Anne Cauquelin aduz que a "rebeldia", isto é, o desejo de contrariar as propostas doutrinárias, é agora uma ação voluntária e deliberada, um instrumento de trabalho reivindicado pelos artistas (Petít traité d'art contemporain, Le Seuil, 1996). Por aí podemos avaliar a originalidade de nossa época. Nas sociedades tradicionais, o sistema cultural era profundamente associado ou interiorizado (sem rejeição, sem inação), enquanto a vida material era bem difícil. Hoje, é o contrário que aparece: há uma superabundância de satisfações de ordem material, enquanto as decepções de ordem cultural proliferam como nunca. ,, Todavia, não podemosomitir que as grandes exposiçõesobtêm extraordináriaaceitação...

As exposições que atraem centenas de milhares de visitantes apresentam as figuras célebres e consagradas da arte: elas não_comportam riscos. Com efeito, quando ocorre alguma decepção, não é tanto pelas obras ali expostas quanto por causa do afluxo excessivo de visitantes. Nada que diga respeito à arte contemporânea: pouco mais de 1% ou 2% da população revelam interesse pela matéria. Estamos diante de uma situação inédita: nos contornos de uma sociedade tradicional, a oferta era reiterativa, sendo as predileções culturais de uma mesma índole, de acordo com certos padrões, e em consonância com o que se apresentava ao público apreciador de arte. No momento atual, o mercado multiplica ao infinito o cardápio ou o

34 A sociedade da decepção

s~tor ~e ofertas e, de forma concomitante, as preferências e ojerizas se d1vers1ficam ao máximo, num composto de tal modo heterogêneo que _cada pessoa é praticamente um caso único. Em conseqüência, 0 sentimento de decepção proveniente do consumismo cultural é crônico, insanável.

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Fortuitamente. e em sentidocontrárioa todoesse processode padro-

nizaçãodo mundocontemporâneo, o senhorconstataa existênciade uma extremadiversidade ...

Como prova da massificação do mundo, comumente recorremos aos exemplos clássicos: o jeans, a Coca-Cola e o McDonald's. Contudo, observemos o que se passa na esfera do cinema, da música, da literatura: o cenário é totalmente diverso. Em 2004, as editoras norte-americanas publicaram mais ou menos 190 mil títulos. Em 2005, na França, foram editadas 68 mil obras, metade de publicações novas, metade de reedições. No terreno cinematográfico, em torno de setecentos longas-metragens sairam dos estúdios de Hollywood; na frança, foram 240 filmes. Deduzimos daí que o capitalismo hipercomercial se desenvol~e com a diversificação galopante da oferta, com a multiplicação da vanedade dos produtos culturais. É a inflação de novidades e O encurtamento do tempo de vida das obras que são o problema, e não a uniformização do universo cultural. Resumindo, vivemos em uma sociedade da superabundância de ofertas e da desestabilização das culturas de cl~sse.' ~ão e~sas condições que criam as condições propicias para uma tnd1v1duaJ1zação extrema das preferências de cada um.

Consagração e descrédito da democracia

Gilles Lipovetsky, seria o caso de dizennosque a esferapolíticaacabousendo"poupada"da avalanchehiperconsumista? Ou,pelocontrário. terá servidode chamarizparaa espiralfrustrante,tal quala conhecemos? A democracia liberal, em sua própria estrutura, gera a decepção. 1 Segundo Claude Lefort, isso se deve à própria indeterminação da democracia, que implica um poder que não é de ninguém, um poder 1

que é objeto de uma competição cujo resultado depende de eleições. Essa concorrência pacífica pelo exercício do poder pode conduzir tanto a uma mudança de governo quanto à renovação do mandato do 1 mesmo governante. Portanto, constitucionalmente falando, há vencedores e vencidos. Moral da história: decepção para os últimos. De resto, o domínio dos que triunfam também não está totalmente isen- · to de um futuro que possa levar à frustração. Basta lembrar que, de modo sistemático, dois anos após o slogan à la Rimbaud, "Mudar de vida", sobrevém a "tradicional reviravolta" de François Mitterrand, cujos eleitores já se sentiam traídos desde 1981. Em nossos dias, o eleitorado de direita tem um comportamento cor1 porativista diante dos governos aliados que fracassam em estabelecer o serviço mínimo de transporte público ou em flexibilizar as leis tra-

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Consagração e descréditoda democracia

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balhistas. Nesse contexto, nosso século registra uma ampla corrente de desconfiança, de ceticismo, de descrédito diante do sistema político. De cada quatro franceses, três suspeitam da classe política. Nos últimos vinte anos, em todos os países, a proporção da perda de confiança na classe política só aumenta. Incapaz de cumprir suas promessas e de encontrar soluções viáveis para os constantes problemas do desemprego, da insegurança, da imigração, o poder político é tido como ineficiente, burocrático, alheio às verdadeiras aspirações dos cidadãos. Essa atmosfera de suspeita diante da responsabilidade dos homens públicos é reforçada pela idéia de que sua conduta é pautada, sobretudo, pela indisfarçável satisfação de seus interesses pessoais, pela ânsia de se reelegerem, pela obsessão em fazer pesquisas de popularidade ... Outras tantas formas de conduta alimentam um desencanto pela política, que não cessa de crescer e se manifesta bem mais abertamente do que antes, em virtude do declínio da influência partidária sobre o eleitorado e identidades políticas menos "movediças': Sob o influxo dessa contínua desconfiança e decepção, os votos de protesto se multiplicam: os eleitores pretendem condenar tais práticas viciosas das elites e dos partidos governamentais, considerados "incapazes': cínicos, apegados a seus privilégios e desprovidos de coragem política. ,,,, "Abaixoos privilégios!"Há umcheirode populismopor aí...

O populismo volta à ativa. A extrema-direita arrebata sucessivos triunfos eleitorais, os movimentos contestadores emergem por quase toda parte, numa Europa que repudia o establishment e as elites do mundo político. Ao mesmo tempo, o discurso xenófobo ressurge e torna-se moeda corrente. Contudo, convém não analisar o panorama hodierno pela ótica do passado: o conflito entre os eleitores atuais e os representantes eleitos nada tem em comum com a confrontação que havia no período entreguerras. Aqueles que eram tidos como "totalmente podres" são agora considerados "totalmente nulos': O brado contra o parlamentarismo despiu-se de sua nota virulenta e, por sua vez, a miragem de derrubar a democracia perdeu o seu antigo atrati-

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vo. A decepção contemporânea não está dissociada do respeito à ordem democrática pluralista. A política caiu no descrédito, os plebiscito tornam-se mais freqüentes. A época individualista hipermoderna transcorre em meio à pacificação política dos sentimentos de decepção.

» Alémdosvotosde protesto,tambémo abstencionismo progride.O que é, então,a cidadaniahipermoderna? Desde a década de 1980, o abstencionismo acha-se em franca expan-

são. Instaurou-se, de fato, como um fenômeno permanente da vida politica atual. Há sempre uma porção minoritária de indivíduos q~e simplesmente nunca vota, ou quase nunca, ao passo que cada vez ma1s eleitores votam de forma intermitente, dependendo da natureza da disputa ou dos competidores. Em 2002, menos da metade dos eleitores votou em cada um dos turnos das eleições; dois de cada três eleitores com 25 anos que votaram só uma vez não vêm votando regularmente. Esse é um estigma do neo-individualismo, que corresponde não tanto a uma despolitização de caráter absoluto quanto a uma desregulamentação dos índices de comparecimento às urnas. Deline~a-se, assim, um novo perfil de cidadão: alguém que vota com regulandade cada vez menor, que participa e se mobiliza "quando quer". O efeito disso é que ao voto-dever sucede o voto à la carte:o comportamento consumista invadiu até mesmo o exercício da cidadania. A recusa de lançar mão da arma do voto, por vezes, denuncia um descontentamento latente, uma decepção entranhada, uma desconfiança indefinida, algo que caminha em sentido contrário às vias traçadas pelos candidatos ou pela contenda política. De qualquer modo, essas elevadas taxas de abstençã~ concorrem para aumentar a crise de representatividade democrática, na qual estamos imersos.

»

De quemodocaracterizaresseconjuntode inovaçõesrelativasà polí-

tica?

O general de Gaulle dizia: "Toda política que não faça sonhar_ está condenada ao fracasso".O que aconteceu com o ânimo das ambições políticas? Diante do triunfo da modernidade, a transformaç~o mais radical que se operou foi que deixaram de existir os grandes sistemas

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condutores da esperança coletiva, as utopias capazes de fazer sonhar, os grandes objetivos que prometiam um mundo melhor. Até a construç~o _daEuropa está longe de acontecer, e muito! A idéia de progresso dilum-se, em favor dos dispositivos sociais para combater o desempreg?,. obte: a redução da dívida pública, modernizar os órgãos admm1strat1vos, fortalecer o caráter competitivo das economias. Os ~randes vision~rios são trocados cada vez mais por políticos especializados em genr as pressões inevitáveis do presente, por governantes que prometem um mal menor e cujo objetivo essencial é a modernização da sociedade, o controle da crise, a adaptação forçada da nação ao mundo globalizado. Cada vez mais, a imagem de um poder incapaz de fo1jar conscientemente um futuro promissor - esse é o dever da esfera politica -, um poder "tecnocrático" de ações reformistas que, em vez de escolhidas, são praticamente impostas pelas evoluções e p_ressõesdo mw1do histórico. Nesse contexto, não espanta que os cidadãos ~e considerem cada vez mais vítimas de um grande engano. Dessa soCiedade doente de desemprego e desorientada diante da ruína dos projetos políticos estruturantes só pode advir o ceticismo, 0 distanciamento dos cidadãos em relação à coisa pública, a decadência da militância partidária. Muitos cidadãos não se importam com a vida política, não estão interessados nas plataformas dos partidos e não confiam em nenhum candidato para governar o país. De cada dez franceses, seis consideram-se "um pouco" ou "nem um pouco" interessados pela política; na faixa dos 18 aos 29 anos, mais de 70% têm essa opinião. Filmes e jogos de futebol conseguem índices de audiência claramente maiores do que as emissões de teor político. No momento atual, tem muito mais repercussão o fato de a França não ganhar a Copa do Mundo do que os resultados de urna eleição. Há pelo menos vinte anos a despolitização toma vulto, englobando até mesmo os que acabaram de concluir o curso universitário, depois de longos estudos. Amplo alheamento em relação à coisa pública, grande investimento na satisfação pessoal: quimicamente, essa é a fórmula do individualismo hipermoderno puro. De resto, é um desengajamento mais causado por uma globalização cultura] enaltecedora do consumo e do

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desenvolvimento da própria personalidade do que por uma decepção política. Doravante, o sentido da existência não é mais buscado e encontrado no campo da política, mas alhures. ,

Pode-seafirmar.compropriedade, quea iniciativadoscidadãosficou

relegadaà condiçãode item ultrapassado?

Nem a indiferença nem o troca-troca partidário conseguem eliminar as lutas coletivas e os compromissos públicos, principalmente quando centrados na defesa dos direitos humanos, na defesa do ensino ou na proteção do meio-ambiente. O repúdio à guerra no Iraque gerou uma grande mobilização de europeus. O referendo sobre o projeto de uma Constituição Européia suscitou debates acalorados. Não é bem um abandono radical da coisa pública que se manifesta, mas sim uma sensibilização mais pragmática em busca de políticas concretas, mais próximas das preocupações dos cidadãos. ::,, Comas desilusõescoletivase a erosãoda influênciados diferentes organismosintermediários- sindicatos.partidos.classessociais-. de quemodoa democraciapolíticapoderiaser reabilitada?Quaissãoossintomasdessadesestabilização dasidentidadespolíticas?Enfim,quaissão as formasatuaisde pertencimento político?

A despeito de uma profunda despolitização e do enfraquecimento do antagonismo entre direita e esquerda, a maioria dos franceses (60%) resiste a se situar politicamente. Contudo, importa frisar que mais de um terço dos franceses declara não estar afinado "nem com a esquerda, nem com a direita", julgando que nenhuma delas possui competência para rurigir o país. Ao mesmo tempo, a volatilidade e a fluidez eleitoral são maiores do que antes. Embora sempre haja quem se diga de rureita ou de esquerda, toma vulto a idéia de que essa classificação está "superada" ou é prejudicial. Uma pesquisa de 2006 realizada pelo Ifop 1 demonstra que 60% dos franceses não vêem diferenças significativas entre os dois campos adversários, declarando-se abertamente favoráveis a um governo de coalizão entre direita e esquerda. Assim 1

Ifop é um instituto francês especializado em pesquisas de mercado. (N. E.),

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como a noção de consciência de classe vai regredindo, as afinidades e identificaç.ões políticas estão em processo de diluição. Por isso, a caracterização politica contemporânea é muito menos formadora de identidade social do que em outros tempos. Enquanto a intensidade da identificação partidária se mostra em baixa, a subjetivação da identidade política avança. Esse evidente r~_tr~cesso~o poder de influência dos partidos e das ideologias messia?1cas é drretamente proporcional ao crescimento do contingente de eleitores que não seguem a doutrina de nenhum partido. Atualmente, o número dos que se declaram favoráveis a algumas idéias do paitido no qual pretendem votar é maior do que o número dos que se declaram favoráveis a quase todo o programa partidário. O mesmo que acontece com a política acontece com a religião: cada vez mais prolifera~ "as c~enças independentes", questões de princípio sem participaçao, fidelidade sem unidade. Em acréscimo, os eleitores manifestam uma crescente propensão a hesitar, a esperar as campanhas eleitorais para se decidir. Nas democracias hipermodemas, predomina O eleitor "tático': que mantém distância e autonomia individualista diante dos parti~os que ganham os votos. O momento é da identidade política refletida e desinstitucionalizada.

..,>Seránessecontextode "fragmentação" políticaquedevemosinterpretar o que Michael Walzer chamade "novotribalismo"? Perfeitamente. O desengajamento político a que assistimos é contem~o_râneod~' um im~ulso rumo à idéia de comunidade e o respeito às diferenças . Ao cnar um vazio, a dinâmica da individualização e 0 refluxo das grandes visões político-ideológicas trouxeram a necessidade de ~e id~ntificar com comunidades particuJares (étnicas, religiosas ~u regionais). Quando os pólos universais de determinação da identidade perdem sua condição de abstrações inatingíveis, os indivíduos voltam-se para suas comunidades particulares mais próximas. A identificação individual vai deixando de se configurar como adesão a princípios políticos gerais, atendendo cada vez mais a referenciais da história, da cuJtura, da religião, da etnia. Em síntese, vemos uma explosão de identidades que engendra um processo de bakanização

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social,2 feito de uma multiplicidade de minorias e grupos que se desconhecem ou se hostilizam reciprocamente. Numtempode despolitização, o quemais alimentaa decepção?

Quatro elementos essenciais, a meu ver, destilam no âmago das estruturas sociais o fel da desilusão. Em primeiro lugar, o fenômeno da descrença nas utopias, caractedstico de nosso tempo. As mega-ideologias do século XX quiseram esconder tudo aquilo que pudesse contrariar o sonho idilico de um exuberante amanhã. Ao dissimular a realidade, elas se protegeram, ao menos por certo tempo, do ceticismo, da desconfiança e do desen'>Ouerdizer entãoque a família tornou-seummerocontrapesopara as frustrações,para ondese dirigemas esperançasde bem-estare realização pessoalque nãose concretizamem outrosespaços?

De qualquer modo, a família constitui um lugar que, por si, incute confiança, o que contrasta visivelmente com a atmosfera de desconfiança que paira sobre a empresa e a política, a mídia e as pessoas em geral. Sobre esse último ponto, observe que apenas dois em cada dez franceses acreditam que se pode confiar na maioria das pessoas. Inúmeras categorias sociais despertam notória desconfiança (imigrantes, usuários de drogas, jovens que moram em repúblicas), ao contrário do círculo de relações mais próximo de cada pessoa, onde é a confian-

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ça que importa. A esse respeito, a reviravolta em relação ao feitio tradicional de sociedade não poderia ser mais protuberante. No passado, era comum que membros da família olhassem com desconfiança para os demais familiares e para os vizinhos mais próximos. Jáa família contemporânea constitui um refúgio protetor, onde reina a confiança, onde se cultivam o auxilio mútuo e a solidariedade. Assim, ela atua como uma instância consoladora, um porto seguro em face de um mundo exterior agressivo e angustiante. >;, A este retratogenéricoda sociedadede decepçãopoderíamosaduzir umimportantecrescimentodo sentimentode solidão?

O sentimento de solidão manifesta-se "de vez em quando" ou "muito freqüentemente" em mais de um terço da população européia. Está subentendido na individualização dos modos de vida, na desagregação dos vínculos coletivos, no esvaziamento das instituições da família e da religião. Hoje, 6 milhões de franceses estão vivendo sozinhos; em Paris, metade dos lares é constituído por um único indivíduo. Os mais velhos vivem num isolamento cada vez maior, permanecendo cada vez mais tempo nesse estado de abandono. Numerosos estudos indicam a catástrofe do isolamento afetivo e social por que passam os desempregados. Sobre um plano totalmente diferente, a disseminação de sitesde relacionamentos na Internet ilustra a importância social do sentimento de solidão, bem como do desejo de fazê-lo cessar. Seria ;inadequado abordar o problema sem uma referência ao altíssimo per/ centual de suicídios e tentativas de suicídio ( 160 mil tentativas por ano na França), principalmente entre os jovens, situação que aponta a fragilidade do indivíduo hipermoderno, muitas vezes confrontado por uma solidão interior insuportável. Contudo, para não circunscrevermos o quadro a essa realidade tão trágica, consideremos outro fenômeno típico de nossa época: a paixão pelos animais domésticos. Na França, são mais de 56 milhões; metade dos lares franceses possui ao menos um animal de estimação. Esse verdadeiro entusiasmo pelos animais deve ser creditado, em parte, ao altíssimo desgaste dos víncuJos pessoais que predomina em nosso tempo. Todavia, apenas em certa medida o interesse exagerado pela

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companhia de um gato ou cachorro constitui uma maneira de se proteger das decepções nascidas do convívio humano. Ao contrário das pessoas, o animal é, por excelência, um ser que jamais causa decepção: ninguém espera dele algo que ele não possa oferecer. Gostamos dos animais porque eles estão sempre ao nosso lado, e são sempre iguais a si mesmos. Nesse sentido, jamais poderemos dizer que eles nos enganaram. O animal de estimação representa uma garantia contra as expectativas frustrantes, ao mesmo tempo que é uma forma de compensação dos diversos gêneros de desgostos vividos pelo homem contemporâneo.

» Interesseexageradopelosanimaisdomésticos,carênciasmanifestas em relação à família,apesarde sua naturezareconfortante(recordemos, paraesseefeito,a hecatombedoverãode 2003,quandoa extensãodoflageloda seca deixouà vista de todoso espantosograude isolamentodas pessoasidosas).Podemosdizer que estamosem plena regressãomoral, psicológicae afetiva?

Na sociedade da desilusão, enquanto os mais velhos vestem-se de forma descontraída e já não querem aparentar a idade, jovens adultos brincam como crianças nos parques temáticos, circulam de patinetes, compram ursinhos de pelúcia. "Adolescente eterno", síndrome de Peter Pan ... À luz desses fenômenos, alguns vêem a abolição das diferenças entre as idades em benefício de uma "infantilização universal" da humanidade. O igualitarismo extremado teria assim levado a um estado de indistinção entre crianças e adultos, culminando com um estado pueril geral. Mas esse diagnóstico é convincente? Não julgo dessa maneira. A pergunta fundamental é: de que espécie de "regressão" se trata? Não se pode considerar os jovens de uma sociedade por sua substância. A humanidade ficou realmente mais "infantil"? Não é isso que vemos: o fenômeno que está sendo analisado pertence, em mais profundidade, à esfera da simulação lúdica. O hiperconsumidor brinca com a divisão das idades, ao invés de as abolir ou ignorar. A criança não se tornou um modelo para o adulto. Aparentar "menos idade do que se tem" é a uma aspiração contemporânea legítima, mas "voltar a ser criança",

HIPERCONSUMIDOR BRINCA COM A DIVISÃO DAS IDADES, AO INVÉS DE AS ABOLIR OU IGNORAR. A CRIANÇA NÃO SE TORNOU UM

MODELO

ADULTO.''

PARA

o

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não. As normas de comportamento vigentes em cada idade são socialmente distintas e requerem condutas diferenciadas, o que os profissionais do marketing sabem muito bem. Uma mulher de 40 anos não se apresenta como uma adolescente de 15 anos nem "freqüenta" os mesmos locais. Ora, o que está em jogo, então? O novo consumidor procura esquecer, evadir-se, escapar do peso da responsabilidade de ser alguém, por um breve instante que seja. Não é uma regressão psicológica, mas uma liberação transitória das coerções adicionais do trabalho, das pressões e preocupações do cotidiano. Portanto, o fenômeno corresponde mais à expressão de uma sociedade lúdico-hedonista legitimando todas as formas de prazer do que de uma sociedade que nega a divisão das idades. Aqueles mesmos indivíduos que adoram regressar ao travesseiro podem ter sido, algumas horas antes, negociantes intransigentes ou totalmente concentrados no trabalho. A consumação regressiva ocorre porque se intensificam as exigências do governo de si mesmo. O ímpeto da era hiper-individualista coincide muito mais com uma reflexividade inquieta do que com o retorno à infância. >, Apesarda naturezalúdico-hedonista do fenômenoque o senhorapon-

ta, é irretorquívela constataçãode que os sofrimentosinterioresproliferamem ritmovertiginoso. A sociedadeda decepçãonãoseria,sobretudo, umasociedadedepressiva?

A fase hipermoderna está associada a uma espantosa maré de depressão e de mal-estar generalizado. Na França, as taxas de depressão foram multiplicadas por sete, entre 1970 e 1996: 11% dos franceses atravessaram recentemente alguma crise depressiva, e 12% deles afirmam ter passado por uma ansiedade generalizada ao longo dos últimos seis meses. Ao mesmo tempo, porém, 90% dos europeus declaram-se felizes ou muito felizes,apesar do desemprego em massa e do sentimento de insegurança crescente. A esse propósito, formularei duas observações. A primeira é que a síndrome do fracasso contemporânea não coincide com a imagem de uma decepção abissal e de uma irremediável prostração. A segunda é que a sociedade da decepção é aquela na qual os indivíduos sentem dificuldade em admitir o próprio desapontamento ou

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insatisfação. De fato, no âmbito de uma sociedade em que o insucesso é tido como evidência de fracasso, em que se prefere suscitar inveja do que compaixão, uma confissão dessa natureza dificilmente é expressa. Além disso, a ninguém compraz aumentar sua própria depressão, declarando-se infeliz, uma vez que, se resolvesse comparar sua situação com a de alguém mais desafortunado, encontrará motivos para não se sentir o ser humano mais prejudicado pela sorte. Fazlembraro métodoCoué...1 É provável. De cada dez franceses, nove se dizem felizes ou muito feli-

zes em seus empregos; todavia, metade dos assalariados refere sentir prazer no exercício de sua atividade profissional e apenas um terço reconhece seu trabalho como um meio de desenvolvimento pessoal. Ao mesmo tempo, as pessoas se declaram otimistas em relação a si, mas pessimistas em relação aos outros. Daí se depreende que a decepção atinge uma escala macrossocial, mas de nenhum modo está na origem da estagnação ou da inércia individual, muito pelo contrário. Mesmo no contexto territorial francês, onde a atividade empresarial é bem menos intensa do que nos demais países europeus, 27% das pessoas declaram cultivar a esperança de que, no futuro, poderão criar o seu próprio empreendimento; anualmente, surgem cerca de 70 mil novas associações; presume-se um total de 30 mil artistas plásticos; as práticas esportivas e expressivas (fotografia, cenografia, literatura, blogs,música) proliferam; os indivíduos não param de se informar e de se formar, de viajar, de exercitar-se para manter a forma. Nossa sociedade contemporânea é depressiva e frustrante apenas sob um fundo de ativismo generalizado e expressão individual para todas as 1

O princípio de Coué é o reconhecimento da superioridade da imaginação sobre a vontade. Émile Coué começou a popularizar a chamada auto-sugestão consciente em princípios do século XX,uma espécie de auto-hipnose genérica. Ele dizia: uma vez que toda sugestão não passa de auto-sugestão, as sugestões que podemos formular a nós mesmos são mais imperiosas e incisivas do que aquelas que fazemos a ~utrem. Em outras palavras, "não é a sugestão feita pelo hipnotizador que desencadeia a hipnose; é a própria mente da pessoa que produz o fenômeno. Logo, só quando assume o caráter de auto-sugestão é que uma sugestão pode concretizarse''. (N. E.)

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direções. Não é com um imobilismo que se associa a era da decepção, mas com a construção voluntarista de si e com a redistribuição permanente dos elementos de nossa vida. '>>Mas a construçãode si nãoé justamenteo que é maisdifícil de alcançar,e por issocausadecepção?

Na época em que estamos ingressando, a construção de si pode ser entendida de várias formas, menos como uma operação fácil ou rotineira. Entregue a si próprio, doravante o indivíduo deve forjar inteiramente o seu perfil, sem contar com o apoio consolidado dos antigos padrões de conduta coletiva e religiosa. Logicamente, quando cada pessoa sente o peso da própria responsabilidade e quando mais nada pode obstruir a projeção de suas esperanças, é quase impossível não ser vítima de decepção. >. Em última instância, a sociedade da decepção não induz a certo "menosprezo do outro",a umaformade anomiamoralgeneralizada?

Passou a ser lugar-comum estabelecer uma identificação entre o individualismo e o egoísmo, ou ao mais completo cinismo. Desse ponto de vista, a sociedade hipermoderna de mercado corresponderia a uma movimento indutor da obsessão pelo cada um por si, o que levaria as pessoas a se mostrarem insensíveis pelo próximo, obcecadas pelo dinheiro e pelo interesse pessoal. Mas a realidade não se limita a estes mal traçados contornos. Há outros fenômenos em curso, que nos levam a matizar esse quadro excessivamente pessimista. Existem mais de quatrocentas ONG que desfrutam de um estatuto consultivo junto ao Conselho Europeu. Na França, 80% das associações são conduzidas ou impulsionadas por grupos de voluntários, que, em 2004, perfaziam o significativo total de 12 milhões de indiví.duos, dos quais 27% eram franceses com mais de quinze anos; além disso, 3,5 milhões de voluntários concedem ao menos duas horas por semana para prestar serviços a urna entidade beneficente. E o fenômeno progride. Da mesma maneira, podemos constatar o significativo crescimento das atividades filantrópicas: quase metade dos franceses se mostra solidária aos demais, doando dinheiro a associações diversas. O intercâmbio

solidário propaga-se numa progressão satisfatória, ainda que incipiente. As agências de classificação que avaliam empresas sob o ponto de vista ético se multiplicam. Os investimentos e aplicações financeiras, que se concretizam nas empresas, obedecem não só a critérios de índole financeira, mas também comportam índices sociais e ambientais; os fundos de investimento socialmente responsáveis, ano após ano, vão de vento em popa. Com toda certeza, o individualismo problemático não é sinônimo de retraimento completo em relação às necessidades alheias; os indivíduos continuam revelando particular apreço pelas noções de respeito, auxílio mútuo e solidariedade. Muitos espíritos bem-intencionados nutrem O ardente propósito de legar um planeta mais habitável às gerações vindouras. E, diante da corrupção, dos crimes e da violência perpetrada contra o semelhante, ainda se ergue um brado unísson? de indignação. Claro, o que presenciamos é, sobretudo, uma pluralidade de comportamentos éticos tipicamente "indolores" e circunstanciais, sem obrigações ou grandes sacrifícios (doações para o Teleton, onda de solidariedade em favor das vítimas do tsunami ...). Em todo caso, os impulsos de compaixão de massa não deixam de atestar que indivíduo fortemente autocentrado ainda possui nma sensibilidade 0 altruísta capaz de se mobilizar diante do infortúnio de seu semelhante. O homem contemporâneo não é mais egoísta e "desumano" que anteriormente: naquela vida tradicional, a inveja carcomia facilmente os vínculos de amizade entre os seres, e o caráter sagrado do dever não pôde impedir o livre curso das Grandes Guerras mundiais nem os campos de extermínio. Hiperindividualismo quer dizer extinção completa dos valores e•dos ideais de abnegação. Essa é apenas uma de suas vertentes, não a única. O individualismo não é, de nenhum modo, incompatível com senso de responsabilidade e exigências éticas.

>:->No seu entender,o "crepúsculodo dever" (título de uma de suas obras)znão seria tão desesperadorassim.Observamos novasformasde

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A sociedadepós-moralista:o crepúsculodo dever, publicado no Brasil pela Editora Manole. (N. E.)

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protesto,novasmanifestações de inconformidade quevãocontraa hipertrofia da sociedadehiperconsumista, movimentoscontraa publicidade desenfreadae, sobretudo.contraa globalizaçãomaciça.Comoo senhor analisaessesnovossurtosde indignação?

Uma das principais características da hipermodernidade é o fato de que ela exclui a possibilidade de uma outra forma mais confiável de organização mundial que não seja baseada no mercado e na democracia. No entanto, esse contexto desfavorável não foi capaz de extinguir o espírito de contestação radical, que se faz notar principalmente pela presença de movimentos hostis à globalização, dos propugnadores de sistemas contrários ao desenvolvirnentismo, dos inin1igos da onda publicitária que caracterizam a propaganda como o símbolo por excelência da comercialização da vida. Mas qual seria o alcance dessas intervenções? Furar os pneus dos 4x4, rabiscar os painéis de publicidade no metrô, corromper logotipos, organizar o "dia de não comprar nada", tudo é tão irrisório, verborrágico e "descartável" quanto os próprios objetos comerciais denunciados pelos novos militantes. Chegamos assim à época do "radicalismo bugiganga': da dissidência lúdicoespetacular, extraordinariamente conexa com o espetáculo da publicidade. Aliás, o que há não é apenas a cumplicidade dessas correntes com o universo que eles criticam. Longe de fazer descarrilar o sistema, eles fornecem novos combustíveis à ordem dominada pela mídia e pela publicidade. Não se trata de potencial subversivo, mas apenas de um novo componente de uma sociedade de entretenimento midiático. A eficácia dos opositores da publicidade sobre o funcionamento da economia de mercado é extremamente reduzida, para não dizer nula. Em compensação, a mídia é pródiga em conceder ampla divulgação para os seus "feitos". Trata-se de uma rebelião confortável, uma contestação-diversão que serve para alimentar as páginas dos jornais. Essas iniciativas em nada modificam a estrutura de mercado vigente, mas fornecem novas idéias para o marketing e a publicidade. Paradoxalmente, ajudam a apurar o espírito de renovação e o senso de criatividade do marketing que supostamente pretendem abolir. E acrescento que, se é verdade que o império do consumo ainda está nos primeiros

passos (a China e a índia são para lá de incipientes na matéria), os "engajados" contra a publicidade correm o risco de serem eternos frustrados! Entretanto, tais embates fazem ver que a felicidade do mundo dos negócios não preenche inteiramente as aspirações do ser humano; elas expressam a busca de perspectivas alheias ao consumismo descartável e à agressividade do mercado. Ao menos uma boa notícia: o capitalismo hiperconsumista não conseguiu transformar os indivíduos em puros compradores. O mercado é, indubitavelmente, uma força dotada de grande potência, mas não um poder incontrastável e ilimitado; a "ditadura das marcas" jamais impedirá o livre exercício do espírito crítico ou de um sadio distanciamento em relação à volúpia do consumo. A prova disso é o surgimento de uma consciência antimarcas testemunhada pelo incontestável sucesso mundial do livro de Naomi Klein, assim como as parcelas crescentes da população que se declaram "anticonsumistas". Presenciamos, outrossim, aquilo que se poderia chamar de "atitude de liquidação": doravante, avalia-se o grau de perspicácia, desenvoltura e astúcia da pessoa pela capacidade de comprar mais barato. Desse modo, à medida que as marcas impõem seu domínio onipresente, os indivíduos revelam maior independência perante seus ditames. ;,,>

Haveriaentãoalgumavirtudenessesmovimentos de protesto?

Falando claramente: a força de irradiação dessa consciência crítica ou desconfiada em face do arbítrio consumista não surgiu graças ao ímpeto dos ativistas inimigos da propaganda. O principal artífice desse surto é o próprio capitalismo. Em relação ao consumismo hipertrofiado, o baixo custo e as liquidações favoreceram muito mais a formação de barreiras de autodefesa do que qualquer forma de resistência à publicidade comercial. Com efeito, atualmente, os artigos "em liquidação" correspondem geralmente a material de muito boa quali• vezes mais . por uma 1ogomarca.? dade; nesse caso, por que pagar tres Trata-se, pois, de uma dinâmica de distanciamento e desfidelização com relação às marcas. Esse realinhamento do mercado é que torna o consumidor mais "esperto" ou crítico, e não as ações "transgressoras"

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QUANTO

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MAIS FRUS-

TRANTE É A SOCIEDADE, MAIS ELA PROMOVE AS CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA UMA RE-OXIGENAÇÃO DA VIDA. ''

dos militantes avessos à publicidade. Por um lado, a dinâmica do mercado que diversifica os preços e as ofertas; por outro, a individualização do social e o enfraquecimento dos modelos culturais de classe; e por fim, o acesso amplo à informação proporcionado pela mídia e pela internet: uma feliz conjugação desses três fatores leva o consumidor a ser mais exigente em matéria de qualidade, preço e prestação de serviços. Graças a esse novo contexto, o hiperconsumista dispõe de um poder e uma liberdade de escolha que até então não existiam. Ele pode perfeitamente sopesar as possibilidades e variar suas compras, beneficiarse de um leque real de alternativas em termos de preço, adquirir produtos e serviços que antes eram reservados à elite (viajar de avião, por exemplo). Logo, sob o "fascismo das marcas", o poder do Homo consumericusaumenta. Se é inegável que presenciamos uma consolidação do poder da sociedade mercantilizada, ela não se separa de uma grande autonomia do consumidor-protagonista social. "'> O senhordizquenossosistemanãoé totalitário.Contudo,nãose poderia pensarquea caracterizaçãodessesmovimentos antipublicidade como subversivos comprovaa formidávelcapacidadede deglutiçãodessesistemaque,porforça de tudoabsorver,nãoautorizamaisa contestaçãoverdadeira?

Nas últimas quatro décadas, propalou-se muito acerca da capacidade de "reabilitação" do capitalismo. Tanto que, no decorrer da década de 1960, as mais veementes censuras foram dirigidas contra a inserção da classe operária nas estruturas oficiais do capitalismo. Hoje, a denúncia tem como alvo o "pensamento único", o desaparecimento dos modelos de ruptura, a absorção da vanguarda artística na quermesse dos departamentos de cultura e dos museus. A constatação procede: tudo quanto ostenta um matiz de "transgressão", radicalismo ou subversão tende a se dissolver na atmosfera difusa do consumo e da comunicação. Os hippies e os punks saíram de moda; a boemia e o inconformismo foram assimilados pela nova burguesia "conectada"; os livros subversivos são vendidos a preço de ouro; o luxo beira a provocação. É evidente que as novas sociedades liberais "agüentam"

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muito bem os golpes desferidos pela contestação, inclusive dos setores que se dizem mais radicais. Se a subversão não existisse, seria preciso inventá-la. A esse propósito, ocorre-me formular duas observações. Em primeiro lugar, constitui elementar reducionismo circunscrever o fenômeno da contestação institucionalizada à surrada lógica de distinção e de consumo na livre-concorrência. Algo de muito mais profundo entra em cena: uma realidade que não é senão o culto do Novo, como elemento consubstancial à civilização moderna, democrática e individualista, conforme tivemos ocasião de assinalar. Se a dissidência cultural foi tão bem absorvida, não foi somente porque ela permite estabelecer uma distinção simbólica e social, mas também porque ela é um retrato perfeito do princípio do Novo. Em segundo lugar, a absorção sistemática das manifestações de dissidência não equivale a um sinal de neototalitarismo. Mais propriamente, indica uma sociedade em mutação contínua, vertiginosamente criativa, que se alimenta de seus próprios desvios para se auto-renovar e reinventar constantemente. Uma vez que tudo é assimilado com muita rapidez, é necessário "reinjetar" o novo sem parar, o que é exatamente o oposto da sociedade totalitária, que é capitaneada pelo poder político e se empenha cm conjllrar qualquer irrupção de novos elementos. Mesmo admitindo que ainda há radicalismo, seria equivocado identificá-lo com as Grandes Recusas de outrora (anticapitalismo, anticonsumismo, antidesenvolvimentismo), que, no contexto atual, emergem como uma retórica fantasiosa. O novo perfil de radicalismo (para nos exprimirmos dessa maneira) consiste na redescoberta contínua das linhas demarcatórias dessa renovada ânsia de transformação; nas vanguardas intelectuais, científicas e técnicas, que promovem alterações efetivas do real, sem as ilusões culturais inerentes ao ativismo esquerdista. Não sofremos uma carência de "recusas': mas um déficit de "certezas" e de inteligibilidade daquilo que tem existência real. Com efeito, a tecnociência tem um caráter mais subversivo do que o político e o cultural; ela é a verdadeira força-motriz da "revolução permanente': e certamente o será cada vez mais. No cenário de uma sociedade hipermoderna, a tecnociência é a mais

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racional das instituições, mas ao mesmo tempo a mais transgressiva, a mais desestabilizadora dos referenciais do nosso mundo. O senhorfalou sobrea antipublicidadecom certa insolência.No que diz respeitoà antiglobalização, o senhorrecorreriaao mesmoviés irônico? Não devemosreconhecerque,em matériade reduçãoda dívidados paísesmais pobres,umadeterminadacorrenteideológicaavessaà gl~balização,especificamente ostrabalhosde JosephStiglitz,tenhaexercido umainfluênciarelevante?

Conforme bem assinala Stiglitz, as manifestações contrárias à globalização tiveram o inegável mérito de suscitar um exame de consciê~cia nos líderes mundiais. De fato, elas chamaram atenção para os efeitos nocivos da abertura dos mercados financeiros, para as promessas não cumpridas da globalização e para o flagrante insucesso das grand~s instituições econômicas internacionais. Inequivocamente, elas contnbuíran1 com o processo de cancelamento da dívida de certos paises mais pobres, com tratados sobre o fornecimento de medicamentos genéricos aos países pobres, com o projeto de lei que desc~nta das passagens aéreas uma pequena taxa de solidariedade para_aJuda~ as nações menos desenvolvidas. Nesse sentido, a vertente a_n~1~l?bahzação se constitui corno um contra-poder capaz de dar v1S1bÜ1~ade às clamorosas injustiças e fomentar o debate público a esse respeito. Todavia, esse aspecto não deve ocultar nem as confusões de identidade nem o esvaziamento programático do fenômeno. Em última análise, quais concepções ideológicas estão contidas nesses grupos contrários à globalização, urna vez que o movimento se ap~esenta co_m_o um mosaico heterogêneo, formado por terceiro-mund1stas, por uumigos do imperialismo, por nacionalistas de esquerda, por correntes marxistas e alternativas ecológicas? Sem unidade visível, o "movimento unificador dos movimentos" não propõe nenhum esboço de modelo alternativo, nenhum programa convincente, nenhum sistema substitutivo apto a injetar um antídoto eficaz contra a pobreza e as desigualdades. Dar um basta ao horror capitalista? Mas o que instituir no lugar dele? Ninguém ignora os resultados trágicos a que nos conduziram as economias controladas pelo Estado. "Desglobalizar", res-

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taurar as medidas protecionistas? Isso seria subestimar tudo quanto a formidável dinâmica das exportações proporcionou, principalmente para o crescimento econômico da Ásia oriental. E quem não sabe que um surto de nacionalismo comercial significaria a morte das empresas exportadoras? Que tal extinguir "a ditadura dos mercados"? Sim, mas como? Se "um ou t ro mun do e, poss1ve , l", certamente não será por meio da taxação dos fluxos de capital internacional que isso vai se realizar, nem mesmo a título de esboço do grande projeto anunciado. O imposto Tobin não constituiu barreira eficaz para obstar os êxodos massivos dos fundos especulativos, e teria sido incapaz de evitar a crise asiática de 1997. Sem dúvida, é um dever incontornável denunciar os erros cometidos pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial, concentrando nossas críticas sobre os "fundamentalistas do mercado". No entanto, nada disso pode servir de pretexto para pôr a globalização capitalista no banco dos réus, enquanto fenômeno que levou a uma evidente diminuição dos índices de pobreza e concorreu para a alfabetização de milhões de indivíduos. Efetivamente, não existe uma só modalidade de economia de mercado: nossa missão é edificar uma globalização menos anárquica e mais preocupada com a justiça social. Quanto às formas para atingir esse objetivo, o movimento contrário à globalização não tem nada a declarar: apenas levanta problemas, sem propor nenhuma saída viável. Assim, não será pelo radicalismo encantador do antiliberalismo econômico que conseguiremos traçar as grandes linhas de uma outra globalização, mas sim pela própria racionalização do capitalismo. Algunspropõemo numerusclausus,em relaçãoàs comprasde bens duráveis,para limitaro consumo.Issotambémnãopoderiaser cogitado?

Essa é uma velha discussão: como determinar o que é supérfluo e o 3 que é necessário? Qual a linha divisória entre as necessidades reais e as "fictícias"? Será que chegaremos ao ponto de impedir que os turistas viajem de avião, por constituir um desperdicio de energia? Os J

É conhecida a boutade de Voltaire:"O supérfluo, esta coisa tão necessária...''.(N. E.)

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adversários da transformação da vida em mercadoria têm razões para afirmar que o ímpeto desenfreado ao consumo não traz felicidade. Contudo, sua investida contra o que consideram "inútil" está muito impregnada de espírito ascético. Alguns de nossos prazeres se edificam com base em frivolidades, fruições ligeiras, pequenos luxos: esta é uma das dimensões do desejo e da existência humana. Não seria descabido presumir que, nas condições atuais, essa parte fútil é excessiva, mas não é o caso de pleitear sua erradicação pura e simples: o prejuízo superaria em muito o benefício auferido. Somente um sistema político autoritário e antidemocrático poderia impor tamanho transtorno à vida cotidiana. A "simplicidade voluntária" se tornaria muito rapidamente uma simplicidade despótica. Em todo caso, essa utopia não tem qualquer chance de se concretizar, de tal modo contraria as aspirações do indivíduo democrático no sentido de desfrutar prazeres acessíveise diversificados. Por outro lado, nada disso impede que sejam apresentadas e aprovadas algumas medidas fiscais com o objetivo de reduzir, por exemplo, o consumo de produtos muito poluentes ou que ignoram a necessidade de preservação do meio ambiente.

» Comopensara esperançaem umasociedadeda decepção?Emborao senhorjá tenha destacadoo pessimismocontemporâneo, a esperança nãodeveser apenaso simplesequilíbrioentredecepçõese prazeres:é também. resgataro gostopor progredir,porser melhor.

As razões para ter esperança não são nada desprezíveis. Para começo de conversa, a própria globalização permite entrever para milhões de pessoas a possibilidade de escapar do subdesenvolvimento. O fato de a nova ordem econômica dar origem a desigualdades enormes não é razão para se subestimar essa outra faceta da realidade. Muito menos o progresso técnico-científico deve nos causar desespero. No decorrer das duas últimas décadas, houve um aumento na expectativa de vida correspondente à proporção de três meses por ano. Uma menina tem atualmente 50% de chances de chegar aos 100 anos. Uma vida mais longa e com mais saúde: isso não é pouco. Portanto, não sejamos insensíveis agora que estamos tão próximos de concretizar esse antiqüíssimo anseio da humanidade.

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Mas também existe, numa perspectiva totalmente diversa, outro fator que deveria gerar certa dose de otimismo. Uma das características predominantes de nossas sociedades é que os modos de vida estão cada vez mais abertos - em outras palavras, são cada vez mais mutáveis, menos predeterminados socialmente, sempre baseados em um amplo leque de alternativas, escolhas e padrões. É evidente que o fluxo de ansiedades, depressões e feridas na auto-estima são grandes inimigos. No entanto, temos o privilégio de contar com uma grande variedade de estímulos e oportunidades para contornar as circunstâncias adversas. A época atual tem isso de característico: ela fornece uma infinidade de expedientes para combater e eliminar, sem demora, as mazelas que nos afetam. Em tempos de hiperindividualismo, o viver compreende muito mais oscilações, alternâncias e mudanças freqüentes, numa sociedade que se esforça para promover a "revisão': a possibilidade de escapar dos problemas por meio da construção de novos caminhos. Ao ampliar o futuro e suas opções, a sociedade hipermoderna aumenta as nossas potencialidades de agir, de refazer a vida, de recomeçar a caminhada com pés renovados. Em suma, por mais numerosos que sejam os motivos para insatisfação e decepção, serão igualmente numerosas as oportunidades de nos desvencilharmos. A sociedade contemporânea é uma sociedade de desorganização psicológica que se reflete no processo de revigoramento subjetivo permanente, mediante uma pluralidade de "propostas" que permitem reviver a esperança da felicidade. Quanto mais frustrante é a sociedade, mais ela promove as condições necessárias para uma re-oxigenação da vida.

» Mas isso nãoseria ilusórioe "artificial"? A ilusão também é uma condição essencial para escapar do pessimismo tétrico. Desse ponto de vista, pode-se falar de uma espécie de sabedoria da ilusão. Se, por um lado, a sociedade individualista da hiperescolha nos deixa perdidos, por outro, ela nos "salva" na medida em que nos fornece mais oportunidades para nos reorientarmos, para nos projetarmos para novos desafios. Evitemos a expressão "tirania da felicidade': apesar de vivermos num contexto social em que a infelici-

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dade causa forte sensação de culpa. Entretanto, uma outra dimensão existe, que corresponde à quantidade de esperança num futuro melhor que a crescente oferta de felicidade (espetáculos, viagens, jogos, competições esportivas, técnicas psicocorporais) consegue nos proporcionar. Então a esperança aumenta as ilusões e as decepções? Sem dúvida. Mas como viver sem a esperança, sem a idéia de "outra vida"? O grau zero de esperança, sim, é terrível. E como não ver que esse convite ao bem-estar pleno também favorece o renascer da confiança num futuro diferente, auxiliando-nos na árdua tarefa de intervir nos elementos geradores de nossa infelicidade? A época hipermoderna tem muitos defeitos, mas pelo menos ela nos permite imaginar e, freqüentemente, empreender alterações em nossa vida pessoal. Resumindo, ela pavimenta as vias do possível ao oferecer uma multiplicidade de caminhos para a conquista da felicidade.

:>>Presenciamosum recrudescimentodas investidascontrao capitalismo consumista.Emque medidaé possívelfazer recuara predominância do mercado?Mais precisamente,a sociedadeatual nospermitediversificar tantoassimnossosobjetivosde vida,a despeitoda influênciado consumismo?

Denunciar de uma vez todo o universo hiperconsumista não me parece um bom procedimento. Nem tudo é negativo, bem ao contrário. Sobretudo, lançar dardos contra o nosso sistema de vida não é um caminho eficaz para conter os malefícios do excesso de consumismo. Não conseguiremos afastar o influxo deletério do consumo sobre nossa existência com críticas baseadas em princípios morais e intelectuais. Como antídoto contra a paixão consumista, só mesmo paixões rivais. É oportuno recordar a célebre proposição 7 do livro IV da Ética de Spinoza: "Uma afecção só pode ser reduzida ou extirpada por uma afecção contrária e mais forte que a afecção a reduzir". Fazendo odesdobramento dessa análise, o objetivo primordial a ser almejado consiste em oferecer aos indivíduos outras metas, outras iniciativas capazes de mobilizar paixões diferentes daquela do _consumo. É desse modo, e só desse modo, que conseguiremos refrear a compulsão de compra.

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Mas por que exatamente fixar como meta a redução do modo de vida consumista? O consumismo não é um mal em si, mas somente enquanto hipertrofiado ou intumescido, incapaz de atender a todas as aspirações humanas, uma vez que estas não se restringem aos desejos de gozo imediato. Conhecer, aprender, criar, inventar, progredir, ganhar auto-estima, superar a si mesmo: tantas são as obrigações e os ideais que os bens comercializáveis não podem satisfazer. O homem não é um ser que só adquire bens; é também um ser que pensa, que cria, que luta, que constrói. Deveríamos tomar como divisa esta máxima de sabedoria: aja de tal forma que o consumismo não seja onipresente ou hegemónico, quer em tua vida, quer na dos outros. Por quê? Para que não tenha um efeito devastador sobre a nossa natureza. Infelizmente, é para isso que tende o ímpeto do consumo, especialmente para as parcelas de população mais marginalizadas, que não têm outro objetivo senão comprar, comprar de novo, e comprar mais. É nesse sentido que o mundo consumista é perigoso: ele amputa as outras potencialidades, as outras dimensões da vida propriamente humana. Nós devemos lutar contra o desgaste e a destruição do hiperconsumismo, que subtrai de cada um a capacidade de se construir, de compreender o mundo, de se superar. Para tanto, queixumes e lamentos rnoraJistas não servirão para muita coisa. Somos chamados a pôr em funcionamento algo que designarei como uma política desdobrada sobre uma ética das paixões, sempre tomando como base a idéia de que o homem é feito de "elementos contraditórios': segundo a expressão de Pascal. A satisfação imediata e fugaz que o consumismo engendra no homem não deve ser objeto de execração. Por outro lado, seria um erro fazer uma exaltação entusiástica do hiperconsurnismo, uma vez que este se mostra tão inadequado às exigências de formação do homem (pelo menos à luz de uma autêntica perspectiva humanista). Toma-se imperioso fornecer às crianças e aos indivíduos em geral os padrões e os parâmetros intelectuais que a concepção consumista só faz embaralhar e confundir. Da mesma maneira, para uma formação sólida, é preciso que se mostrem perspectivas mais variadas em todas as áreas da atividade humana (esporte, trabalho, cultura, ciência, arte ou música). O importante

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é que, através dessas paixões, o homem aprenda a diminuir ~ ~preço pelo mundo do consumo, encontrar sua razão de viver em atividades que não sejam compras reiteradamente efetuadas. P~~se nos_gra~des inventores, nos grandes empresários, nos grandes pohticos: nao s~o os prazeres consumistas que os motivam, que alimentam _suas vidas, simplesmente porque sua atividade ou seu trabalho são incomparavelmente mais repletos de atrativos estimulantes. . . Essa resolução demanda novos projetos políticos e pedagógicos, Já que os mecanismos do mercado se revelam insuficientes ~ara tanto: eles não estão à altura de seu designio. Não poderemos dispensar o concurso efetivo do Estado e das famílias, o papel da escola, das iniciativas voluntárias em prol dos mais desfavorecidos, para que a aquisição hedonista de bens comercializáveis não se afigure como o alfa e o ómega da vida moderna. Há algumachance de que essa democraciapós-consumista que o senhoracabade proporcomtantaênfasepossavingaralgumdia?

Estou convencido de que chegará o dia em que a cultura consumista não terá O mesmo impacto, a mesma importância na vida humana. Em todo caso, essa cultura é uma invenção recente na história: seu início remonta ao final do século XJX e ganha uma amplitude considerável a partir da década de 1950. Ela não passa de um "pequeno parêntese" na sucessão das eras humanas. Como imaginar que uma cultura possa ter uma duração indefinida? Aliás, em que pese os seus méritos nada desprezíveis, a civilização consumista não é capaz de acobertar lacunas notórias. Ela promove a desestruturação dos indivíduos, debilitando-os psicologicamente. A felicidade dos seres não avança na mesma proporção em que se avolumam as riquezas. Em suma, ela não está à altura da grandeza da condição humana. Nesse sentido, mais dia, menos dia, a primazia do consumismo será abrogada. Obviamente, ainda não chegamos lá. Nesse mo~ento, só um_a minoria do planeta aufere vantagens desse modelo de vida; os demais ficam na porta, impacientes e entusiasmados com a perspectiva de que, brevemente, desfrutarão dos benefícios observados. ~-ontud_o, num futuro ainda longlnquo, inevitavelmente ocorrerá uma mversao

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de valores". Não estou cogitando algo à maneira de um "superhomem" ou de uma revolução no modo de produção; mais propriamente, penso em uma reviravolta cultural que promova a reavaliação das prioridades da existência, da hierarquia das finalidades, da função dos prazeres imediatos nesse novo sistema de valores. Em dado momento, os homens descobrirão o lado "picante" da vida longe do hedonismo consumista, sem que a humanidade tenha de abandonar a idade democrática: organizar-se-á uma espécie de "democracia pósconsumista". A partir daí, será edificado um novo ideal de vida que, sem reatar com o estilo de vida ascético, abdicará da felicidade consumista enquanto eixo central e predominante da existência. Novos objetivos empolgantes inflamarão o sentido da existência e traçarão outros caminhos para a felicidade. Por uma dessas ironias próprias à História, Nietzsche ("Fazei-vos duros") e Marx ("O trabalho, condição primeira da existência!") poderão figurar como profetas, não do super-homem e do comunismo, mas da sociedade posterior ao mundo hiperconsumista.