Sobre Economia 9786586620108

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Sobre Economia
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SOBRE ECONOMIA

THEO MARTINS LUBLINER

Biblioteca Básica de Economia

THEO MARTINS LUBLINER

SOBRE ECONOMIA

Ilustrações: Daniel Moreira

1ª edição LUTAS ANTICAPITAL Marília -2020

Editora LUTAS ANTICAPITAL Editor: Julio Okumura Conselho Editorial: Andrés Ruggeri (Universidad de Buenos Aires - Argentina), Bruna Vasconcellos (UFABC), Candido Giraldez Vieitez (UNESP), Claudia Sabia (UNESP), Dario Azzellini (Cornell University – Estados Unidos), Édi Benini (UFT), Fabiana de Cássia Rodrigues (UNICAMP), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Julio Cesar Torres (UNESP), Lais Fraga (UNICAMP), Mariana da Rocha Corrêa Silva, Maurício Sardá de Faria (UFRPE), Neusa Maria Dal Ri (UNESP), Paulo Alves de Lima Filho (FATEC), Renato Dagnino (UNICAMP), Rogério Fernandes Macedo (UFVJM), Tania Brabo (UNESP). Projeto Gráfico e Diagramação: Mariana da Rocha Corrêa Silva e Renata Tahan Novaes Capa: Ciro Martins Lubliner Imagem da Capa: veeterzy (https://unsplash.com/@veeterzy) Impressão: Renovagraf _______________________________________________________________ Lubliner, Theo Martins. L929s Sobre economia / Theo Martins Lubliner ; Daniel Moreira (il.) – Marília : Lutas Anticapital, 2020. 251 p. – Inclui bibliografia ISBN 978-65-86620-10-8 1. Economia. 2. Política econômica. 3. Dívida pública. 4. Desenvolvimento econômico. 5. Economia (Fundamentos) I. Moreira, Daniel. II. Título. CDD 330 _______________________________________________________________ Ficha elaborada por André Sávio Craveiro Bueno CBR 8/8211 FFC – UNESP – Marília 1ª edição – setembro de 2020 Editora Lutas anticapital Marília –SP [email protected] www.lutasanticapital.com.br

à Yalla, que faz florescer diariamente a esperança de um futuro melhor

SUMÁRIO

NOTA..................................................................9 NOTA DO COORDENADOR DA BIBLIOTECA BÁSICA DE ECONOMIA.....................................15 PREFÁCIO.........................................................25 AGRADECIMENTOS..........................................31 APRESENTAÇÃO...............................................33 O QUE É ECONOMIA?......................................37 FORMAÇÃO DO PENSAMENTO ECONÔMICO....42 PARTE I - FUNDAMENTOS DA ECONOMIA........53 Valor Preço Salário e lucro Consumo Dinheiro Inflação Câmbio

PARTE II - TEMAS DA ECONOMIA...................137 Políticas econômicas Dívida pública Mundialização do capital Crise econômica Desenvolvimento econômico Planificação econômica SOBRE O AUTOR............................................249

NOTA ____________________________

O Brasil vive um dos momentos mais difíceis da sua história. Como nos lembra Florestan Fernandes, o golpe fulminante de 1964, que completou 55 anos, se transfigurou nos anos 1980 em “institucionalização da ditadura”. Nos anos 1980 houve uma transição lenta, gradual, segura, sem rupturas e acerto de contas com a ditadura empresarial-militar. Fernando Collor de Melo e sua ira farsesca venceram a eleição de 1989, depois de uma grande manipulação da TV Globo no 2º turno. Fernando Henrique Cardoso aprofundou nosso neoliberalismo, com sua reforma do Estado e um grande ciclo de privatizações, aprimorando a ditadura do capital financeiro. Depois de um curto período de ascensão do lulismo, dentro de uma estratégia de conciliação de classes e algumas concessões à classe trabalhadora (política de melhoria do salário mínimo, geração de emprego, cotas, direito das empregadas domésticas, etc.) tivemos um golpe de novo tipo em 2016, e em 2018 a prisão política de Lula, que abriu espaço para eleição de um novo Collor, com suas soluções meteóricas de inspiração na ultradireita supostamente para “corrigir” os males o país.

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As classes proprietárias declaram guerra aos trabalhadores. No caso brasileiro, interromperam as parcas vitórias da “Nova República”, deram um golpe e enterraram a possibilidade de conciliar as classes sociais, ao ejetar o lulismo do poder. Hoje elas estão promovendo a destruição das bases da “Nova República” num ritmo mais acelerado. Meses atrás o capitão reformado, atualmente na presidência da república, esteve nos EUA para anexar o Brasil como novo protetorado do império estado-unidense. Preparados para este novo ciclo de lutas sociais, onde vai vigorar um longo período de resistência histórica, a Editora Lutas anticapital e nós – coordenadores do Curso Técnico em agropecuária integrado ao ensino médio, com ênfase em agroecologia e agrofloresta, nos colocamos contra o desmonte da nação e nos comprometemos a publicar livros de qualidade acessíveis ao público brasileiro, que tem “sede” de conhecimento crítico. O curso é fruto de uma demanda dos movimentos sociais do campo tendo em vista a escolarização e qualificação da população dentro de um projeto de reforma agrária agroecológica. Somos partidários do estudo da história na perspectiva materialista e dialética. Temos partido, o partido da ciência e somos comprometidos com as lutas emancipatórias da classe trabalhadora.

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Combatendo novamente nas trevas, optamos por convidar algumas autoras e autores a se pronunciar sobre diversos temas candentes que serão imprescindíveis para os alunos e demais interessados. Estamos montando uma série de Livros de Bolso, de caráter introdutório. Já publicamos “Sobre o óbvio” de Darcy Ribeiro, “Quem é o povo no Brasil?”, de Nelson Werneck Sodré, “A conspiração contra a escola pública”, de Florestan Fernandes, “Exército Nacional Libanês”, de Karime Cheaito e “A cidadania burguesa e os limites da democracia” de Claudia Bernava Aguillar, “Autogestão Comunal”, de Claudio Nascimento, “A tragédia educacional brasileira no século XX: diálogos com Florestan Fernandes” de Henrique Tahan Novaes e de Julio Hideyshi Okumura, “As guerras mundiais” de Lincoln Secco e “A revolução chinesa – até onde vai a força do dragão” de José Rodrigues Mao Jr e Lincoln Secco. Também pretendemos publicar livros sobre e de Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Antonio Gramsci, dentre outras e outros pesquisadores brasileiros mais jovens. O Livro de Bolso “Sobre economia” de Theo Lubliner é um excelente convite para a introdução a crítica da economia política. Com uma escrita simples (mas sem cair em simplificações) Lubliner passeia por todas as dimensões da economia, permitindo aos leitores iniciantes na temática uma

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observação crítica de um complexo da realidade supostamente “inatingível”. O leitor também tem em mãos uma síntese agradável da história econômica, da economia mundializada, da economia brasileira, dos clássicos do pensamento econômico, e como não poderia deixar de ser, de todas as temáticas econômicas que fazem parte do cotidiano da classe trabalhadora. Boa leitura!

Marília e Iaras, 11 de setembro de 2020

Alan Salles, Angelo Diogo Mazin, Daniela Bittencourt Blum, Henrique Tahan Novaes, João Henrique Pires, Joice Aparecida Lopes, Lisbet Julca e Rogerio Gomes Coordenadores do Curso Técnico em Agropecuária, com ênfase em agroecologia e agrofloresta, integrado ao ensino médio Escola de Educação Popular Rosa Luxemburgo Convênio UNESP - Centro Paula Souza – Pronera- Incra Bruno Michel da Costa Mercurio, Claudia Maria Bernava Aguillar, Luiz Roman, Natalia Dorini de Oliveira e Theo Lubliner

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Produtores de Material Didático do Curso Técnico em Agropecuária integrado ao Ensino Médio

Alan Salles, Angelo Diogo Mazin, Daniela Bittencourt Blum, Henrique Tahan Novaes, João Henrique Pires, Joice Aparecida Lopes, Lisbet Julca e Rogerio Gomes Coordenadores do Curso Técnico em Agropecuária, com ênfase em agroecologia e agrofloresta, integrado ao ensino médio Escola de Educação Popular Rosa Luxemburgo

Convênio UNESP - Centro Paula Souza – ProneraIncra Bruno Michel da Costa Mercurio, Claudia Maria Bernava Aguillar, Luiz Roman, Natalia Dorini de Oliveira e Theo Lubliner Produtores de Material Didático do Curso Técnico em Agropecuária integrado ao Ensino Médio

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NOTA DO COORDENADOR DA BIBLIOTECA BÁSICA DE ECONOMIA _______________________________________________________________________________________________________________________________________________

A Economia na Arena Política da História

O estudo da economia pode ser realizado por três enfoques: “economia política” (political economy), “ciências econômicas” (economics), ou a “crítica da economia política” (kritik der politischen ökonomie). Tais formas de conceber a economia se traduziram em línguas e regiões europeias que hegemonizaram sua percepção teórica, sobretudo Inglaterra e Alemanha. Numa arena de revoluções e contrarrevoluções, essas visões responderam por uma determinada relação histórica entre as tensões políticas e sociais com o pensamento econômico do seu tempo. Mais que a evolução linear de certas matrizes do pensamento, ou mesmo, reflexões específicas sobre algum tema econômico, o nascimento da “economia política” foi o resultado de um processo histórico no Velho Mundo, em que tanto a História em geral, quanto o pensamento, influíram sob a necessidade de criar uma área do saber destinada a entender a reprodução material de uma época da civilização ocidental. De igual modo, essa dinâmica refletiu a própria mobilidade da riqueza que se intensificou no século XVII em diante, na

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forma de capital usurário e de capital comercial. Por isso seria errôneo buscar nos percussores do pensamento econômico europeu um sistema que não estava constituído ainda. O ambiente intelectual deles extrapolava a economia em si, porque estavam mergulhados em questões como administração pública, política, filosofia, ética e moral, artes de guerra, ciências da natureza etc. Uma vez constituída historicamente uma riqueza móvel que se acumulava na sociedade mercantil da Europa e se projetava como razão revolucionária pelo Iluminismo no século XVIII, temos as condições de captar como o pensamento econômico se autonomizaria das ciências naturais e das teorias morais para consolidar-se numa teoria do valor. A noção de mais-valor exigiria uma teoria para fundamentá-la, cuja problemática passava pela origem do valor (ou da riqueza acumulada) que se expressava em valor de troca. Nesse trajeto, as concepções da crítica ao metalismo (mercantilismo) que justificavam o maisvalor, às causas naturais tal como agricultura (fisiocracia), até chegar ao valor-trabalho, seguiram um caminho tortuoso, sem linearidade. Para enfrentar o enigma da origem da valorização, o pensamento econômico se aproximou das fontes da acumulação do capital. Todavia, a “economia política” do mesmo modo que se encontrava diante de becos analíticos aparentemente sem saída, mostrando clássicas inconsistências entre o real e a teorização, revelava sinais de contradições que não eram meramente escolásticas, mas oriundas

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da dinâmica e do próprio funcionamento difuso desse modo de vida que viria a ser chamado de capitalista. Vários pensadores de seu tempo tiveram inúmeras dificuldades em decifrar a causa do valor, dentre os quais os mais importantes foram Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (17721823). Sujeita a uma naturalização dos interesses econômicos que tentava fundamentá-los mediante frontal oposição à “ordem revelada” do cristianismo medieval, a autonomização da “economia política” através de uma teoria universal da sociedade no final do século XVIII coincidia com a maturação dos ideais civilizatórios da revolução burguesa. Como traço do avanço da modernidade, a luta por um pensamento econômico autônomo e universalizante se dava contra o Antigo Regime e sua existência feudal que impedia o indivíduo de perseguir seus próprios destinos e interesses materiais. No mesmo instante em que a revolução burguesa chegava ao auge, seu caráter progressista se transmutaria para o oposto, em que a defesa da emancipação humana se tornava antagônica ao liberalismo econômico diante do triunfo capitalista no século XIX. Uma decadência civilizacional burguesa se desencadearia de forma conservadora e contrarrevolucionária no desfecho das Revoluções de 1848. Em outras palavras, a industrialização e a ascensão da classe burguesa no mundo encerrariam uma Era da humanidade, sepultando a sua dimensão progressista. Aceitando como a

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fase terminal, a razão econômica burguesa deslocava o escopo das investigações das conjunturas econômicas na arena política da História para uma mera ideologia do capitalismo, em que a abordagem econômica, antes mergulhada nos conflitos reais da luta de classes, se transformava num formalismo matemático prenhe de subjetivismos que eclipsavam as múltiplas dimensões dos acontecimentos, das conjunturas e das estruturas analíticas processuais. A “economia política” tornou-se, com isso, simplesmente “economia” ou “ciências econômicas”, uma mera teoria apologética do capital, na qual sua vulgaridade se manifestaria pelo utilitarismo, marginalismo ou teoria neoclássica. Por meio de autores como Willian Nassau Senior (17901864), Frédéric Bastiat (1801-1850), John Stuart Mill (1806-1873), Léon Walras (1834-1910), William S. Jevons (1835-1882), Carl Menger (18401921) e Alfred Marshall (1842-1924), o pensamento econômico objetivaria a manutenção do sistema, cabendo apenas ajustamentos e melhorias na margem. Sem romper com seus pressupostos fundamentais de reprodução, as tentativas liberais de reformar o capitalismo com a Crise de 1929 tiveram seus momentos mais profícuos no século XX com Joseph A. Schumpeter (1883-1950) e John Maynard Keynes (1883- 1946). Assim como a reação a qualquer possibilidade de crítica dentro ou fora do sistema capitalista surgiu via radicalização liberal de Ludwig von Mises (1883-1973), Friedrich

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Hayek (1899-1992) e Milton Friedman (19122006). As Revoluções de 1848 também anunciaram que em meio ao derretimento civilizacional da universalidade burguesa se ascendeu a oportunidade de trabalhadores assumirem o sentido da História e levarem as promessas da modernidade até as últimas consequências – isto é, para além do capital, única forma de se garantir a emancipação humana. Desse modo, as lutas proletárias também seriam aquelas em que deitavam raízes na necessidade de se construir uma “crítica da econômica política”, em que Karl Marx (18181883) e Friedrich Engels (1820-1895) seriam os pioneiros ao fazerem uma teoria calcada no materialismo histórico. Capaz de mostrar como a origem do valor estava num processo nefasto de acumulação de capital, em que a socialização da sua produção e a apropriação privada ocultavam a exploração da força de trabalho – a geradora de mais-valor, essa teoria se apresentava como uma crítica frontal à classe burguesa e sua recém gestada “ciência econômica”. Ao trazer a perspectiva da gênese de elementos históricos que ajudavam entender a estrutura e dinâmica da acumulação capitalista, esses autores não criaram apenas um pensamento econômico novo, mas uma nova forma totalizante de pensar a sociedade em sua radicalidade, destinada a superar o capital por meio da revolução comunista.

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A História se mostrou avessa à pretensa normalidade das “ciências econômicas”, visto que o processo de concentração e centralização de capital fundamentado pela “crítica da economia política” só exacerbou a contradição. Diferente dos equilíbrios utópicos de concorrência perfeita e de suas curvas subjetivas de preferência do consumidor e do produtor, a maturação da revolução industrial gerou uma grave desarmonia dos mercados por meio de disputas intercapitalistas aguçadas, colonização para suprimento de matérias-primas e alimentos, busca de novos consumidores, violência e acirramento da luta de classes. De promessa concorrencial, o capital se converteu em monopolista cujo imperialismo representou a superestrutura de tal poder. No limiar do século XX o imperialismo também significou a crise do sistema que assumia a face mais bárbara com as guerras mundiais, impulsionando sua negação por meio de revoluções anticapitalistas. Nesse ínterim, a “crítica da economia política” encontrou um espaço analítico de mediação intermediária entre a dinâmica do capital em sua singularidade nos diferentes níveis de abstração e o processo histórico que explicavam as partes nacionais, dominadoras e dominadas, no todo capitalista. Com isso, surgiram importantes contribuições como as de Rudolf Hilferding (18771941), Rosa Luxemburgo (1871-1919) e Vladimir Ilyich Lenin (1870-1924), desvendando a essência dessa nova etapa de acumulação.

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O imperialismo mostrou como as contradições do capitalismo foram levadas a um estágio superior. O crescente movimento de valorização de capital e sua constante exigência de reprodução ampliada produziram rivalidades entre as nações, exacerbação da concorrência intercapitalista e intensificação na exploração da força de trabalho em diferentes regiões. A extroversão produtiva nessa fase também se sustentou pelos nexos creditícios do capital financeiro que levaram a um trustificação da economia, desencadeando choques e abalos monumentais entre conglomerados, nações e trabalhadores. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) (e, depois a Segunda – 19391945) simbolizou a exata dimensão da barbárie que o capitalismo monopolista poderia produzir em nome de sua valorização incessante. Ao tornar cativos os mercados de fornecimentos de matériasprimas em regiões periféricas como Ásia, África e América Latina, e desencadear a conquista de economias nacionais para a exportação de capitais, o imperialismo potencializava o verdadeiro fundamento do capital, qual seja o de acumular apropriando-se de todos os meios possíveis, da mesma maneira que expropriava da maior parte da população os frutos de sua valorização. Em meio a um mundo distinto daquele da Belle Époque, em que a razão burguesa teria que confrontar-se com uma Europa fragilizada pelos destroços humanos e materiais, também estava no horizonte a construção de um projeto universal alternativo com a Revolução Bolchevique de 1917.

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Assim, abriram chances históricas de questionar não apenas a plataforma imperialista de controle capitalista à distância, principalmente em espaços periféricos de domínio colonial ou semicolonial, mas, sobretudo, a de pensar a particularidade das formações capitalistas nacionais a partir de dilemas específicos do mundo subdesenvolvido. Nesse sentido que surgiu em periferias latinoamericanas como a brasileira um pensamento econômico original comprometido com a revolução. Longe de esquematismos oriundos das teorias econômicas formalizadas a partir dos centros do sistema, quanto de dogmatismos autoreferidos de manuais socialistas, floresceu no Brasil um pensamento econômico que defendia a superação de nosso passado colonial para se conceber uma civilização moderna contra a dependência externa e o subdesenvolvimento. Com base na história econômica do Brasil e nos problemas de sua formação, destacaram-se autores como Celso Furtado (1920-2004) e Caio Prado Jr. (1907-1990). Sem a pretensão de esgotar todas as matrizes do pensamento econômico diante de uma gama de autores, esta Biblioteca Básica tem como objetivo articular a economia e sua formulação analítica como reflexo das tensões da sociedade provocadas pelo capitalismo mundial e sua manifestação na economia brasileira. Não se trata de mostrar aqui um material exaustivo de reflexão diletante da economia, mas o de tão somente traduzir didaticamente os efeitos da dinâmica da exploração do capital numa dimensão

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histórica e contemporânea face ao padrão mundial de acumulação. A safra inicial de publicações desta Coleção já apresenta alguns títulos, tais como: a “Introdução à formação econômica do Brasil: herança colonial, industrialização dependente e reversão neocolonial”, sob nossa organização; a análise da conjuntura econômica brasileira recente em “A Marcha do Curupira: o aprofundamento da reversão neocolonial nos Governos Lula e Dilma”, organizado por Theo Martins Lubliner, Maurício Espósito e Leandro Ramos Pereira; o livro: “Introdução à crítica da economia política” organizado por Henrique Tahan Novaes, Rogério Fernandes Macedo e Fábio Castro; e, o presente livro, que se compromete a decodificar para estudantes não universitários a aridez dos fundamentos básicos de economia: “Sobre economia” de Theo Martins Lubliner. Em breve, lançaremos também a reedição da obra clássica de Celso Furtado “A Pré-Revolução brasileira”. Ao todo, são livros que introduzem temas econômicos inscritos nos problemas concretos da História com um horizonte revolucionário. Não delimitadas exclusivamente aos meios acadêmicos, essas obras pretendem apresentar o ensino da economia para públicos mais amplos, geralmente leigos.

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Porém, aqueles que estejam sintonizados com as lutas sociais nos mais diferentes movimentos emancipacionistas que, certamente, necessitam de um diagnóstico alternativo nesse campo do saber tão monopolizado pelos arautos do capital. Campinas, 17 de maio de 2020 Fábio Campos Instituto de Economia – Unicamp

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PREFÁCIO ____________________________________________________

Sobre Economia é uma introdução original e didática ao mundo da economia política. Escrito por Theo Martins Lubliner, mestre pelo Instituto de Economia da Unicamp e professor do Instituto Federal, o livro é destinado ao público interessado em ter um primeiro contato com os mistérios da economia capitalista de nosso tempo. Partindo de uma perspectiva crítica, que explicita o caráter contraditório da relação capital–trabalho, o autor vai paulatinamente apresentando os elementos fundamentais para o entendimento dos problemas econômicos como uma dimensão da luta de classes. Nos capítulos iniciais, Lubliner introduz os fundamentos do pensamento econômico. A unidade do processo de produção, distribuição e circulação de mercadorias – o objeto específico da economia política - é apresentada como um campo de disputa entre capitalistas, detentores dos meios de produção, e trabalhadores, que precisam vender sua força de trabalho para sobreviver. As teorias econômicas são vistas como uma batalha das ideias que divide o pensamento econômico entre visões apologéticas, que racionalizam os interesses do capital, e visões críticas, que procuram desvendar as contradições da acumulação de capital e mostrar a necessidade e a possibilidade de transformações estruturais.

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O método e a teoria de Karl Marx são reivindicados como referências fundamentais para a compreensão da lógica da exploração que alimenta o desenvolvimento capitalista e sua consequência inexorável - a luta de classes. Na parte final, o livro trata de temas candentes do debate econômico. Tendo como referência os problemas concretos da economia brasileira – inflação, dívida externa, dívida pública, crise econômica, desemprego, concentração de renda, desindustrialização –, o autor introduz elementos para a compreensão da especificidade do capitalismo de nosso tempo e seus efeitos devastadores sobre a economia brasileira. O leitor é aqui introduzido aos fundamentos da economia política latino-americana, fundada por Raul Prebisch e aprimorada por Celso Furtado, uma perspectiva que dá ao leitor elementos para pensar os desafios da formação de um sistema econômico nacional na periferia do sistema capitalista mundial - assunto que foi banido do debate nacional pela ditadura militar e retirado definitivamente de pauta pelo vendaval neoliberal. Sobre Economia é um livro generoso. Escrito em linguagem simples e direta, completamente afastado do pedantismo escolástico, e sem nenhuma pretensão acadêmica maior do que a de contribuir para a qualificação do ensino de economia, sobretudo, no ensino médio, seu grande mérito é propor uma conversa inteligente com o leitor.

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Desmascarando a falsa neutralidade da ciência econômica e colocando os problemas econômicos na totalidade dos problemas sociais, o autor resgata a quintessência da crítica da economia política: a interpretação do modo de produção capitalista como um processo historicamente determinado. No momento em que a barbárie capitalista avança em todos os cantos do mundo, assumindo no Brasil a forma de um processo cataclísmico de reversão neocolonial, o livro de Theo Lubliner é um alento de esperança de que as novas gerações superarão a lavagem cerebral que apregoa não existir alternativa à barbárie capitalista. 7 de setembro de 2020 Plínio de Arruda Sampaio Jr Professor aposentado do Instituto de Economia da UNICAMP e editor da plataforma Contrapoder.

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“Seu Metaléxico economiopia desenvolvimentir utopiada consumidoidos patriotários suicidadãos.” José Paulo Paes

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AGRADECIMENTOS ______________________________________________________________________________

Agradeço ao meu irmão Ciro Lubliner, que concebeu a capa e realizou uma correção final cirúrgica do texto; às cuidadosas, valiosas e exigentes contribuições da minha amada companheira Sandra Costa e dos amigos Maurício Espósito, Henrique Tahan Novaes, Plínio Sampaio Jr. e Daniel Moreira, esse também pela disposição e pela criatividade na elaboração de tirinhas customizadas para cada capítulo, o que enriqueceu o livro. Agradeço, por fim, à equipe da Editora Lutas Anticapital pela confiança depositada e pelo esforço militante em incentivar e difundir conhecimentos que contribuam para o pensamento crítico.

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APRESENTAÇÃO _________________________________________________________

Esse livro foi escrito com o intuito de fornecer subsídio teórico e bibliográfico a cursos de economia para leigos em geral, mas, sobretudo, para estudantes do ensino de nível médio e de primeiros anos de graduação. Busquei, portanto, afastar-me daquilo que critiquei em minha dissertação de mestrado: i) a especialização das ciências econômicas em micro e macroeconomia, que empobrecem a análise crítica da realidade; ii) a tentativa de transformar a economia em ciência exata, distanciando-a de seu objeto de estudo fundamental: as relações sociais de produção e de troca; iii) os materiais didáticos ultraespecializados chamados manuais de ensino, que esquartejam os conteúdos a ponto de impossibilitar as conexões necessárias para compreensão a dos fenômenos reais. Por esse motivo a abordagem adotada nesse livro é a da Crítica da Economia Política, pensada sempre à luz da História. Daí a ambiguidade do adjunto adverbial “sobre” presente no título. Utilizo “sobre” no sentido despretensioso e mais direto de “a respeito de” Economia, deixando claro que nenhum livro seria capaz, em tão poucas páginas, de dar conta de toda complexidade que envolve a Economia e os processos históricos necessários ao seu entendimento. E “sobre” em

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certo sentido pretensioso e crítico: “acima” da Economia, já que ela, ao especializar-se, perde sua capacidade analítica, assim, busco resgatar uma visão ampla e irrestrita. No entanto, destaco que me posiciono de tal modo sem me furtar dos temas tratados e de algumas importantes contribuições de outras correntes de pensamento e que são fruto desse processo de especialização das ciências econômicas. Procurei escrever sob a perspectiva da classe trabalhadora e para que os trabalhadores e futuros trabalhadores (no caso de alguns estudantes) descubram, além das formas como são explorados, o processo de desumanização e de barbárie em que nos encontramos nas primeiras décadas desse século. Espero, assim, contribuir para relevar o significado dos termos poeticamente desvendados no verso utilizado como epígrafe deste livro. Portanto, àqueles que estão iniciando essa leitura pensando em aprender como ganhar dinheiro, já adianto: desistam! Aqui você aprenderá, no máximo, o por que você, muito provavelmente, nunca será rico. É a partir dessa perspectiva e dessa crítica introdutória que abordei no livro os principais termos e conceitos, relacionando-os ao contexto de sua formulação e às suas modificações. Isto é, aos momentos históricos em que eles surgiram e àqueles em que foram alterados. Isto porque os termos e conceitos duradouros e úteis são sempre

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aqueles formulados com base nos fatos, sendo capazes de acompanhar as transformações históricas. Nesse sentido, a forma escolhida para a exposição se deu pela separação do livro em duas partes: uma primeira, com os fundamentos básicos para o entendimento dos temas da economia e uma segunda, que aborda alguns dos principais temas debatidos no campo da Economia.

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O QUE É ECONOMIA? __________________________________________________________________________________________

Se a Economia foi palco exclusivo de entendimento e debate entre intelectuais especialistas e a elite, já está mais do que na hora de todos conhecerem seus “segredos”. Aprender Economia é, mais do que nunca, uma necessidade. Isso porque os fenômenos aos quais esse campo da ciência se dedica influenciam diretamente o cotidiano de todas as pessoas. Custo de vida, inflação, desemprego, Produto Interno Bruto (PIB), juros, dívida pública, ajuste fiscal, entre outros, são

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termos recorrentes nos noticiários e nas conversas em todos os lugares, mas sobre os quais pouco se entende. É devido ao desconhecimento sobre esses temas que boa parte da população toma atitudes ou elegem políticos em total desacordo com seus interesses econômicos. Há quem diga, por exemplo, que se todo trabalhador compreendesse o que é “mais-valia” já não viveríamos mais sob as regras impostas pela exploração capitalista. A primeira pista para começar a compreender a Economia é desvinculá-la do termo “economizar”. Pois, se em tempos remotos, onde se encontra a sua origem etimológica1, o termo se resumia ao estudo de alocação de recursos escassos, desde pelo menos o reino da abundância material proporcionado pelo desenvolvimento industrial, o que chamamos de Economia se preocupa em identificar como a humanidade se organiza para produzir e distribuir (ou concentrar)

1 “Localizado no latim medieval como oeconomia, sobre o grego oikonomy, formado a partir da combinação de: oîkos, que se refere à ideia de casa ou morada, com raiz no indo-europeu *weik-(1), no que diz respeito a um grupo de indivíduos, e o verbo némein, interpretado como a ação de gerenciar ou distribuir, com referência no indo-europeu *nem-, por atribuir.” Disponível em: https://etimologia.com.br/economia/. Acesso em 20/04/2020.

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riqueza. O Dicionário Online de Português2, por exemplo, define Economia como a “ciência que analisa e estuda os mecanismos referentes à obtenção, à produção, ao consumo e à utilização dos bens materiais necessários à sobrevivência e ao bem-estar”. Apesar de ser um campo do conhecimento bastante objetivo, concreto e presente no cotidiano das pessoas, seus especialistas costumam ser bastante criticados pela sua linguagem de difícil compreensão. Essa acusação não é de todo infundada. No entanto, o uso de linguagem específica pelos economistas não deve ser criticado de forma generalista. Algumas noções parecem servir para confundir ou ocultar alguma informação valiosa, o que é verdade, mas há conceitos que são importantes para sintetizar ideias complexas. Por isso, o “economês” deve ser analisado criticamente sobre seus excessos, mas o fundamental é que os termos sejam compreendidos por todos e que, quando necessário, os mais complexos sejam “traduzidos” para a compreensão de leigos. Desde já, adianto que a Economia, a despeito de utilizar a matemática, não se constituiu enquanto uma ciência exata. Longe disso, ela é

2 https://www.dicio.com.br/economia/. Acesso em 20/04/2020

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uma ciência social bastante complexa, dadas às transformações constantes das relações sociais. Para a nomenclatura oficial, a Economia (ou Ciências Econômicas) é uma Ciência Social Aplicada, seja lá o que esse “aplicada” signifique de fato, já que não existe um campo das ciências sociais “desaplicadas”. Esse processo de aproximação da Economia com o campo da exatidão, apesar de não ser algo novo, ganhou nova impulsão com a introdução do computador e da possibilidade de testar modelos3. Ainda que a Economia tenha se apropriado de conhecimentos matemáticos e dados estatísticos para analisar e concluir, esse fenômeno de substituição de relações sociais por simplificações técnicas e matemáticas tem empobrecido as análises econômicas. Não se trata de negar os dados. Eles são realmente fundamentais e, na maioria das vezes, esclarecedores. No entanto, estudos quanti-tativos descolados de análises qualitativas são infrutíferos, já que acabam sendo

3 Chamamos “modelo” a simulação de uma situação real mas que são excluídas uma série de variáveis, mantendo-se todas as demais constantes (ceteris paribus) a fim de se obter um resultado objetivo. Por exemplo, pode-se criar um modelo para tentar prever as consequências de um determinado investimento. No entanto, mesmo que se inclua várias possibilidades de acontecimentos possíveis, sempre há algum imprevisto. E, como veremos, esse tipo de incerteza é muito comuns na economia.

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insuficientes para a compreensão do real. Por esse motivo, esses modelos se mostram insuficientes para a análise da realidade cada vez mais complexa.

Sugestões de leitura Aprender Economia, de Paul Singer. Capitalismo para principiantes, de Carlos Eduardo Novaes. Economia Política para Trabalhadores, de Sofia Manzano. Novíssimo Dicionário de Economia, de Paulo Sandroni (org.).

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FORMAÇÃO DO PENSAMENTO ECONÔMICO

Antes de encontrarmos o termo Economia isoladamente na história do pensamento ocidental moderno, o encontramos junto à temática da Política. Embora o termo “Economia Política” já estivesse presente nos escritos da Grécia Antiga para denominar a administração da pólis e tenha reaparecido em 1615 com o francês Antoine Montchrétien, ele só seria difundido e constituído como um campo de estudos de fato com François

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Quesnay4 na França e Adam Smith na Inglaterra no século XVIII. Chama-se Economia Política, portanto, o conjunto de contribuições teóricas iniciado no século XVII e que tinha como problemática central o estudo das novas relações sociais que nasciam da decadência das relações feudais e do surgimento do capitalismo. Se tratava, portanto, de uma interpretação e divulgação das benesses do “novo regime”.

Adam Smith, tido como o “pai da economia”, foi um economista político escocês que viveu entre 1723 e 1790. Foi professor universitário e viveu de 1764 a 1766 na França, onde teve contato com os “economistas” fisiocratas Quesnay e Turgot. Sua

4 Quesnay (1694-1774) era médico e foi o principal expoente da escola dos “fisiocratas”.

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principal obra, “Uma investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações” (mais conhecida apenas como “Riqueza das Nações”), foi publicada em 1776.

É importante ressaltar aqui que as mudanças de regime não se dão de forma harmônica e pacífica. Enquanto a nobreza e o clero lutavam para manter o controle político, a burguesia, que se apropriou do poder econômico através das operações comerciais e da produção industrial, lutava para se tornar a nova classe dominante. A transição do regime feudal para o capitalista, a depender do país, se deu por meio de um grande acordo entre a nobreza, o clero e a burguesia – como no Reino Unido – ou, literalmente, pela decapitação, como no caso clássico da Revolução Francesa. Para além da guerra física, essa disputa envolveu também guerras ideológicas. Entre meados do século XVIII e início do século XIX, a Economia Política fora importante arma científica e ideológica da classe burguesa. No entanto, a partir do século XIX, enquanto se generalizava na Europa como classe dominante, a burguesia passou a abandonar sua bandeira revolucionária de liberdade, igualdade e fraternidade. Isso fez com que sua insígnia e parte dos escritos da Economia Política passassem a ser usados pelos trabalhadores e pelos defensores fiéis

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dos dizeres iluministas5. Esses passaram a usar o arcabouço teórico da Economia Política para denunciar o fato de que, se no Antigo Regime a exploração em evidência era pela apropriação privada da terra, com a industrialização a exploração passou a ser também exercida pelos burgueses sobre os trabalhadores, dado que a origem da exploração estava na propriedade de todos os meios de produção e não só da terra. Nascia dessa condição a Crítica da Economia Política, inaugurada por Karl Marx, que buscou superar os estudos da Economia Política de forma a se tornar um flanco da crítica ao modo de produção capitalista.

5 O Iluminismo foi um movimento intelectual e cultural na Europa Ocidental que, ao longo dos séculos XVII e XVIII, formulou um conjunto de ideias sobre liberdade política e econômica defendido pela burguesia em contraposição ao absolutismo e ao dogmatismo da Igreja Católica Romana.

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Nascido em 1818 na Alemanha, Karl Marx foi um dos mais notáveis pensadores da era moderna. Ao longo de sua vida escreveu dezenas de textos teóricos e militantes em defesa da classe trabalhadora. A síntese de seu trabalho teórico é encontrada no conjunto dos três livros de “O Capital: crítica da economia política”. Apenas o primeiro foi finalizado por ele e publicado em 1867. Os outros dois volumes foram finalizados e publicados apenas após a sua morte (1883), por Friedrich Engels, em 1885 e 1895

Apesar de a Economia Política ter se mostrado um instrumento científico bastante relevante para a compreensão do novo regime, ela havia se tornado imprópria para os novos interesses da burguesia. A partir disso, observouse o surgimento de um novo campo de estudos por meio do que se convencionou chamar de “Teoria

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Marginalista”. Vale lembrar que, já então detentora há muitas décadas do poder econômico, era a própria burguesia que financiava as artes e a ciência. E, como diz o ditado: “quem paga a banda, escolhe a música”. Tratou-se assim da construção de um novo caminho teórico que pulverizasse a análise sobre os interesses divergentes das classes sociais (agora entre burgueses e proletários), colocando como sujeitos da economia apenas indivíduos que buscam maximizar seus ganhos, seja como vendedor ou como consumidor. Inicia-se, com esse processo, uma ruptura entre a análise econômica e política, distanciando-se de uma análise mais completa sobre o funcionamento do sistema econômico. É desse processo que teria nascido o que hoje conhecemos como microeconomia, área que fundamentaria todo o campo dominante (no inglês mainstream) da Economia. Assim, em vez de analisar a produção e a distribuição da riqueza social, que para a Economia Política deveriam caminhar juntas, a microeconomia passou a naturalizar o modo de produção capitalista, reduzindo os horizontes de estudo. A saber: a temática sobre valor e preço foi simplesmente restringida à questão de fixação do preço de mercado; a problematização do funcionamento do modo de produção capitalista foi limitada à problematização das estruturas do mercado e da idealização do mercado concorrencial; e o conflito entre as classes sociais

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foi substituído pelo simplismo dos interesses dos indivíduos6. A partir daí, o empobrecimento da teoria se aprofundaria ainda mais pela estruturação de modelos ideais que, ao usarem e abusarem do mecanismo de “ceteris paribus”7, afastaram-se, cada vez mais, da capacidade de analisar a realidade. Ao conjunto dos formuladores e os herdeiros da Teoria Marginalista chamamos economistas “neoclássicos”. Somente no início do século XX é que a Economia tentaria dar uma resposta à insuficiência da especialização do conhecimento. As recorrentes e persistentes crises do capitalismo, além de revelarem as contradições do modo de produção, desnudaram a insuficiência dos esforços analíticos de seus defensores. Com a grande depressão que

6 Ao longo do livro buscarei deixar essa crítica mais nítida. 7 Essa é a expressão em latim para “todo o mais é constante”. Ela é utilizada pelos economistas para manipular algumas poucas variáveis, mantendo-se todas as outras constantes e, assim, poder chegar a conclusões. O problema é que a realidade envolve inúmeras variáveis e é dinâmica enquanto os modelos são estáticos e simplistas não conseguindo representar os fatos. Portanto, ainda que seja um mecanismo eficiente para modelos e para uma didática mais direta, aplicada, ele é bastante comprometedor para a tentativa de explicar a realidade. [Ver também a nota 3].

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assolou o mundo capitalista na década de 1930 abriu-se um nova lacuna que permitiu, e de certa forma exigiu, à Ciência Econômica explicar fenômenos para além das relações entre agentes econômicos, aos quais os principais economistas neoclássicos haviam se dedicado. Surge, nesse contexto, um conjunto de formulações, disparado a partir das contribuições de John Maynard Keynes, que dariam corpo ao que ficou conhecido como macroeconomia. Assim, enquanto os economistas neoclássicos dedicavam-se ao estudo do comportamento das empresas e dos indivíduos, como se essas relações explicassem o todo da economia e levassem a um equilíbrio geral, a macroeconomia passou a realizar estudos em termos agregados (renda, inflação, taxa de juros, taxa de câmbio, nível de emprego etc.)8, dada a insuficiência da ideia de que as partes explicarim o todo na Economia9.

8 Mais recentemente, alguns autores, reconhecendo a insuficiência da subdivisão da Economia entre microeconomia e macroeconomia, propõe o estudo do que chamam de mesoeconomia. Assim, esse campo seria uma análise intermediária entre os aspectos mais gerais (macroeconomia) e os mais específicos (microeconomia) da Economia. 9 Atualmente, os cursos convencionais de economia tratam a micro e a macroeconomia como campos complementares da análise econômica. Contudo, a formulação original de suas proposições mostram que

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John Maynard Keynes viveu entre 1883 e 1946. Durante esses anos dedicou-se a construir uma teoria sobre a necessidade do Estado regular a tendência caótica da economia capitalista. Sua principal obra, “A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda” inaugurou o que hoje chamamos de macroeconomia.

É bem verdade que, na mesma década de 1930, os economistas neoclássicos tratariam de se apropriar dessas contribuições, formulando a “síntese neoclássica” e que, em boa medida, escanteou a problemática central da gestão do capital apontada por Keynes. No entanto, esse autor lançaria uma forte corrente de pensamento,

as premissas e as conclusões dos “microeconomistas” (neoclássicos) eram diametralmente opostas as dos “macroeconomistas” (keynesianos).

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que influenciaria gerações de economistas – como os keynesianos, os pós-keynesianos e os novokeynesianos – além de um novo campo de pesquisa dentro da Economia. De qualquer forma e, vale dizer, principalmente pelo papel desempenhado pela síntese neoclássica, a macroeconomia cairia no mesmo simplismo analítico com a criação de modelos econômicos. No entanto, a sua conexão com a realidade e as crises recorrentes obrigam seus teóricos a se reaproximarem da realidade. As contribuições de Keynes, ao formarem um corpo teórico próprio, somariam-se às outras duas correntes de pensamento no campo econômico: a marxista, herdeira da Crítica da Economia Política; e a neoclássica (ou liberal), herdeira dos postulados da Economia Política e da Teoria Marginalista. Notemos, portanto, que a Economia, assim como todos os campos da ciência, não possuem neutralidade e não escapam à ideologia (e nem poderiam, pois quem produz ciência possui paixões e interesses). No entanto, é importante desnudar essa questão já que sempre os defensores da ordem atual e representantes das classes dominantes querem fazer crer que suas teorias e formulações representam a isenção e a neutralidade, quando não aspectos naturais e imutáveis.

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Sugestões de leitura História do Pensamento Econômico: uma perspectiva crítica, de Emery Kay Hunt e Mark Lautzenheiser. Smith, Ricardo, Marx, de Claudio Napoleoni Sugestões de filmes/documentários O Jovem Marx. Alemanha. 2017. Raoul Peck, 118 min.

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PARTE I FUNDAMENTOS DA ECONOMIA ________________________________________________________________________________________________________________________________

VALOR

Como dito anteriormente, uma das grandes preocupações teóricas que se instalava com a decadência do Antigo Regime era em relação às determinações da economia de mercado que surgia. Os economistas políticos passaram, então, a estudar a ideia de “valor” para buscar compreender o que fazia uma nação rica, quais eram os mecanismos de distribuição dessa riqueza e o que gerava o bem-estar humano. Não foi difícil perceber que, dado o desenvolvimento acelerado da atividade comercial, o valor estava contido nas mercadorias.

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Isto é, aqueles produtos que começavam a ser fabricados exclusivamente para a comercialização e não mais para o consumo imediato do seu produtor. Essa temática esteve, ao longo de todo o debate da Economia Política, diretamente ligada à questão dos preços pois entendia-se que esses representavam o valor das mercadorias e, portanto, eram o somatório da riqueza de uma nação. No entanto, como os preços variavam constantemente, os primeiros economistas passaram a procurar uma medida de valor que não mudasse com tanta frequência. Se por um lado os preços representavam, momentânea e circunstancialmente, o dinheiro equivalente entre duas mercadorias pelo jogo das forças de oferta e demanda (procura)10, por outro eles não eram uma medida confiável de comparação estável entre diferentes mercadorias. Vale lembrar que, além dos bens, os salários, os alugueis e os juros também são preços. Por isso, as teorias sobre o valor almejaram um princípio explicativo geral sobre os preços relativos a todas as mercadorias.

10 Abordarei essa questão no próximo tópico.

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Teoria do valor-trabalho A primeira grande formulação sobre essa medida foi realizada por Adam Smith. Esse autor encontrou na produção do trabalho humano a fonte de geração de todo valor. Para grande surpresa dos fisiocratas, os “economistas” franceses, que atribuíam à natureza o dom de produzir valor, e para o espanto dos mercantilistas ingleses, que acreditavam que o valor estava contido nos metais preciosos, Smith mostrou que, enquanto os metais eram apenas uma representação de trabalho “guardado”, a natureza não poderia criar mercadoria (e portanto valor) sem a interferência do trabalho humano. Assim, nem a fertilidade da terra, nem a tração animal, nem o “trabalho” da abelha são geradores de valor, uma vez que, sem a mediação humana para plantar, colher, comandar o animal esses recursos da natureza jamais chegariam ao local onde pudessem ser vendidos. Por esse motivo, o autor concluiu que a riqueza das nações está no trabalho e na capacidade de ampliação da sua produtividade através da especialização das tarefas laborais, o que chamamos de divisão social do trabalho. Ainda que não tivesse instituído o termo Teoria do Valor-Trabalho, que seria consolidado com David Ricardo, Smith é tido como seu fundador. Isso porque ele identificou que, em sociedades pré-capitalistas, as trocas eram feitas

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com base no tempo de trabalho utilizado para a aquisição ou a fabricação de uma mercadoria. Esse avanço só pôde ser realizado porque Smith separou os conceitos de valor de uso e valor de troca. Não resta dúvida de que um produto só pode se transformar em mercadoria se ele tiver algum tipo de utilidade (valor de uso). Caso contrário, ninguém possuiria interesse na sua compra. No entanto, o que intrigava Smith e os economistas de sua época era exatamente qual o valor que as mercadorias possuíam para a sua troca (valor de troca). Um fruto colhido na rua e consumido imediatamente possui um valor de uso, a alimentação, mas não é uma mercadoria. Contudo, se esse mesmo fruto fosse trocado por um objeto ou vendido, ele passaria a ser mercadoria. Mas aí, outra questão mais importante aparece: como saber quantas unidades do fruto são equivalentes a uma dada quantidade de outros objetos no ato da troca? É clássico o exemplo dado por Smith de que, se para caçar um veado se gasta o dobro de tempo do que para caçar um castor, então, um veado deverá ser trocado por dois castores. Isto é, quanto maior o tempo de trabalho necessário para produzir determinada mercadoria, maior será o seu valor. Essa linha de pensamento parece cabível, no entanto, ao transportar seu raciocínio para a produção de manufaturas, Smith cometeria um erro crucial. Focado em compreender os condicionantes da economia de mercado e em mostrar de

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que forma os rentistas (nobreza e clero) se apropriavam da riqueza social sem qualquer tipo de contribuição, Smith acabou formulando uma teoria ambígua, já que dava margens ao enaltecimento imediato do trabalhador (o verdadeiro gerador de valor), mas não abria mão de atribuir papel central aos capitalistas (burgueses), buscando ocultar a eminente luta de classes. A partir do desdobramento do esforço em desnudar as relações sociais em formação e de buscar defender a classe burguesa é que Smith incorrerá em suas principais contradições e em deslizes11. A limitação de Smith se mostra clara quando, da sua necessidade ideológica de defender a emergente classe burguesa, ele não poderia afirmar que era o trabalhador o único responsável pela geração de valor. Dessa forma, ele acabou se distanciando da análise sobre a formação do valor – que se dava na esfera da produção – e se

11 Ao explicar o valor da mercadoria em uma sociedade capitalista, Smith trai a sua construção sobre a centralidade do trabalho para o valor de troca e estabelece que o valor de cada mercadoria seria dado não só pelo trabalho (salários), como também pelos juros, pela renda da terra e pelo lucro, como se esses três últimos elementos não fossem uma repartição dos frutos do trabalho. O malabarismo teórico de Smith foi instituir, após ter contribuído com um grande avanço sobre o valor, que a teoria do valor-trabalho se restringia às sociedades pré-capitalistas.

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aproximando de uma análise da esfera da circulação, isto é, das relações de troca. O economista político escocês procurou então construir, em detrimento de suas próprias conclusões, uma teoria da harmonia social entre as classes sociais que levaria ao bem-estar geral, teoria essa que ficaria mais famosa. Passou a defender a hipótese de que se cada indivíduo buscasse, de forma egoísta, seus próprios interesses, haveria, por força de uma “mão invisível”12, uma harmonia social entre as classes que culminaria em uma bonança geral. São essas ideias contraditórias que acabam dando sustentação à sua defesa do laissez-faire13. Quem daria o nome e a maior contribuição à teoria do valor-trabalho seria o já mencionado David Ricardo.

12 O termo não é uma coincidência com relação às “mãos de Deus” que tudo controla. É, na verdade, uma referência direta, já que havia um forte cunho religioso nas suas colocações. 13 Termo em francês criado pelos fisiocratas que significa “deixe ir”, é utilizado na economia para representar a necessidade do mercado de agir sem controle, isto é, sem a intervenção do Estado.

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David Ricardo foi um economista político inglês que viveu entre 1772 e 1823. Filho de um pai rico, Ricardo fez ainda mais fortuna na bolsa de valores. Após ter tido contato, aos vinte e sete anos, com os escritos de Smith, Ricardo passou a dedicar-se aos estudos da Economia Política. Seu principal texto, “Princípios da economia política e tributação”, foi publicado pela primeira vez em 1817 Esse autor retomou as ideias de Smith, mas foi além ao afirmar que o mesmo preceito do trabalho como gerador de valor na sociedade pré-capitalista era verdadeiro também para a sociedade industrial. Isso porque, a utilização das máquinas incorporava parte do trabalho usado na sua construção no produto final que ela vier a produzir. Decompondose os custos de produção de uma determinada manufatura, encontra-se apenas trabalho, sobrando ao final do processo os recursos naturais

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utilizados mas que, sem o trabalho, jamais teriam se transformado em mercadoria sozinhos. Vejamos o exemplo de uma roupa. Se voltarmos ao início do processo produtivo, antes da roupa encontraremos pessoas trabalhando, tecido e máquinas de costura. Se seguirmos esse processo até o fim encontraremos só a matéria prima básica da roupa, o algodão cru, e das máquinas, os minérios componentes do metal e a madeira. Nesse sentido, o trabalho que havia sido utilizado para fabricação das máquinas foi, lentamente, transferido para as mercadorias. Isso fica ainda mais claro se percebemos que toda máquina precisa de manutenção e que ela, com o tempo, se deprecia e se torna inutilizável. Com algumas contribuições pontuais, Ricardo, a partir de sua tese sobre o problema da repartição da renda, qualificou também a teoria do valor-trabalho de uma forma que Smith não havia conseguido. Pelas suas próprias conclusões, Ricardo percebeu que, se todo valor derivava do trabalho, o lucro representava uma fatia do trabalho e que, portanto, um só poderia aumentar em detrimento do outro. Ele acabou assim não desenvolvendo a ideia de que haveria uma exploração da burguesia sobre os trabalhadores. Ao contrário, utilizou sua teoria para defender a necessidade de redução dos salários para aumentar os lucros. Mesmo com esse fator de defesa incontestável da burguesia, sua contri-

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buição abriu fortes precedentes para a construção de uma teoria da exploração, a qual acabou não discorrendo, não por falta de elementos históricos, mas em virtude da fidelidade à classe a qual pertencia. O responsável por desenvolver a teoria da exploração e levar a teoria do valor-trabalho às últimas consequências foi Karl Marx, que chamou seu conjunto de contribuições ao tema de Crítica da Economia Política. Isso se deu, fundamentalmente, pela formulação do conceito de “mais-valor” (ou mais-valia). A partir da tese de David Ricardo de que o lucro era fruto do trabalho, Marx afirmou e demonstrou que o trabalho e somente o trabalho era realmente a origem de todo o valor novo. No entanto, diferente de seus antecessores, Marx mostrou que o salário que remunera o trabalhador é apenas uma parcela do valor por ele criado, geralmente, para cobrir a compra do necessário à sua sobrevivência. Foi da compreensão de que os trabalhadores não vendem o trabalho, mas a sua força de trabalho14, isto é, a capacidade de

14 A relação de trabalho assalariado pressupõe que o trabalhador venda horas do seu dia para trabalhar ao empregador. Assim, ele recebe um determinado salário por essas horas, mas tudo o que ele produzir pertence ao empregador. Portanto, todo o seu trabalho materializado no produto ou serviço criado pertence ao capitalista. O que é pago ao trabalhador não é o seu

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produzir e não o fruto do labor, que Marx pôde explicar esse fenômeno. O raciocínio é que todos os equipamentos e as matérias-primas necessárias à produção são pagos pelo seu valor real. Em função de que não há razão para supor que o seu vendedor o tenha feito por um valor inferior ao real. Assim, enquanto a matéria-prima transfere seu valor diretamente à nova mercadoria, as máquinas e os equipamentos o fazem aos poucos, até que se depreciem por completo (ou se tornem obsoletos pela introdução de artefatos mais modernos). Nesse sentido, cabe ao trabalho novo, isto é, aquele que ainda não estava incorporado na matéria-prima e nas máquinas, criar um “valor a mais” o qual o capitalista possa se apropriar. Isso ocorre porque, durante toda a sua jornada de trabalho apenas uma pequena parte do valor novo gerado pelo trabalhador é pago a ele. Ou seja, se um trabalhador tem uma jornada de trabalho de oito horas, mas em duas horas ele produz o suficiente para remunerar toda a jornada, isso significa que durante as seis horas restantes tudo o que ele produziu será apropriado pelo capitalista. Esse excedente de horas trabalhadas apropriadas pelo capitalista é, portanto, a diferença entre o valor

trabalho, mas a força de trabalho realizada durante as horas trabalhadas.

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total gerado no processo de trabalho menos o valor da força de trabalho. É esse mais-valor, portanto, que remunera, além do lucro, os juros e a renda (ou aluguel). É através da extração de mais-valor que os capitalistas garantem o processo de acumulação de capital, a saber, a transformação, pela produção de mercadorias, do dinheiro em mais dinheiro. Por isso consagrou-se a ideia de que capital é “valor que se valoriza”. Em síntese, para os formuladores da teoria do valor-trabalho e seus discípulos, o valor e, portanto, a riqueza, são criados apenas e exclusivamente no processo de produção de mercadorias através do trabalho humano, cabendo somente à esfera da circulação, isto é, ao mercado de compra e venda, apenas a tarefa de distribuir o valor criado por meio dos mecanismos de “precificação” da riqueza social criada. O que configura a conexão entre valor e preço.

Teoria do valor-utilidade Se por um lado a tomada do poder político da classe burguesa impulsionou as principais teses da Economia Política até meados do século XIX, que a legitimavam como a classe libertadora de toda exploração e capaz de garantir o reino da liberdade, por outro, o impacto das contribuições de David Ricardo (que daria origem aos radicais

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ricardianos) e, principalmente, da Crítica da Economia Política, viraram o jogo. As teorias de enaltecimento do mercado e da classe burguesa, levadas às últimas consequências, desnudaram o fato de que eram os trabalhadores e não os burgueses que criavam todo o valor e, portanto, toda a riqueza social. Por esse motivo, esse campo teórico, até então um instrumento ideológico da burguesia, se tornou uma ameaça. Não tardou para que os seus ideólogos fizessem um grande esforço para refundar esse campo teórico de forma a tornar o jogo novamente vantajoso para a perpetuação de seus privilégios. É desse esforço que, por volta da década de 1870, começaram a surgir as formulações que deram origem à Teoria do Valor-Utilidade ou Teoria Marginalista, em contraposição ao valor-trabalho. A sua compilação teria sido efetivada por Alfred Marshall (1842-1924) a partir da contribuição de seus artífices: León Walras (1834-1910) na França e na Suiça, William Jevons (1835-1882) no Reino Unido e Carl Menger (1840-1921) na Áustria. O grande objeto do conjunto de autores dessa formulação não era propriamente a ideia de valor, mas a de preço. Para eles, o valor estava associado a algo subjetivo, medido pela utilidade atribuída a uma mercadoria e estabelecido individualmente por compradores (demanda) e vendedores (oferta). Desse modo, o valor seria determinado na esfera da circulação e não na

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atividade produtiva, como haviam esclarecido os teóricos do valor-trabalho. Supunha-se que para os consumidores o valor se dava de maneira decrescente em relação à quantidade, isto é, quanto maior a quantidade de bens, menor seria o desejo por novos bens. Consideremos, por exemplo, que uma pessoa queira comprar uma e, somente uma, fruta. Se o vendedor oferecer uma segunda fruta igual, o desejo por ela será menor. Se o vendedor continuar a oferecer mais e mais frutas, chegará a uma quantidade pela qual o comprador não possuirá mais vontade de adquirí-la. Ou seja, pressupõe-se que essas últimas frutas já não possuem mais valor. Já a ótica do vendedor ou produtor é inversa: o valor é crescente em relação ao aumento da quantidade. Ou seja, quanto maior a demanda pelo produto, maior será o desejo do vendedor em ofertálo. Daí o nome “marginalista” para identificar essa teoria, uma vez que se considera que o valor é medido pela quantidade adicional (portanto, “à margem”) de mercadoria desejada por compradores e vendedores. Não é difícil perceber que por essa perspectiva o valor das mercadorias varia como os preços e só funciona no ato imediato da compra, não conseguindo refletir uma medida comum às mercadorias. A saída encontrada pelos seus formuladores foi estabelecer que existe um valor (na verdade, um preço de equilíbrio) determinado

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pelo ponto de encontro entre os níveis de desejo de diferentes compradores e vendedores. Dessa forma só haveria uma combinação possível de equilíbrio entre quantidade e valor, determinado pelo ponto de encontro entre a oferta e demanda. Os economistas marginalistas acabaram misturando o significado de valor de uso e valor de troca já desvendado e explicado por Adam Smith. Assim, ao atribuírem a ideia de valor à ideia de desejo, acabaram criando uma teoria do valor abstrata e impossível de ser mensurada, indo na contramão da Economia Política que buscava uma unidade de medida invariável para explicar o valor. Por esse motivo, no momento de explicar o valor, esses economistas recorreram ao simplismo do preço e, mais ainda, à sua confusão. Nesse sentido, essa teoria não contribuiu de fato para explicar as inquietações daqueles que se preocupavam com a origem do valor nem as complexas relações econômicas capitalistas que se formavam. Além disso, por se tratar de um modelo extremamente reducionista das relações de troca, acabou incorrendo em diversas inconsistências, como por exemplo: i) supor que sempre os custos são crescentes (inclusive, numa economia industrial desenvolvida o que a acontece é o contrário:

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quanto mais se produz, maior o ganho de escala15); e ii) deduzir que todos os agentes econômicos são iguais em interesses e em poder, agindo de modo a maximizar seu próprio interesse. No entanto, por razões mais ideológicas do que propriamente científicas, essa doutrina se tornaria relevante para a formulação de teorias econômicas até os dias de hoje.

Sugestões de leitura O Capital: Crítica da Economia Política, Livro 1, Capítulo 1, de Karl Marx. Economia Política: uma introdução crítica, de José Paulo Netto e Marcelo Braz. O Valor de Marx, de Alfredo Saad Filho.

15 O termo “ganho de escala” ou “economia de escala” é utilizado para explicar quando o aumento da produção gera redução dos custos. Isso ocorre, sobretudo, pela diluição dos custos fixos que são aqueles que, independente da quantidade produzida, serão os mesmos, tais como aluguel, IPTU, IPVA. É isso que explica, por exemplo, que o açúcar mascavo (extrato obtido na etapa inicial do processo da produção de açúcar), seja mais caro que o açúcar refinado (extrato obtido na etapa final de todo o refino).

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Sugestões de filmes/documentários Ilha das Flores. Brasil. 1989. Jorge Furtado, 15 min. O preço do amanhã. Estados Unidos. 2011. Andrew Niccol, 109 min.

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PREÇO

Chamamos preço a representação em dinheiro do valor atribuído às mercadorias no momento exato de sua troca. No entanto, não se pode fazer uma ligação direta e proporcional entre tempo de trabalho (valor) e preços específicos. Isso porque, a formação de preços depende de uma série de condições da esfera da circulação como, por exemplo, o tipo de mercadoria, a estrutura de mercado e a capacidade do capitalista de escolher sua taxa de lucro. A teoria do valor-trabalho contribuiu para a compreensão de que, se há algum setor em que a taxa de lucro é superior a uma média geral, significa que, em termos de valor, esse setor está se apropriando do mais-valor gerado em outro processo no qual a taxa de lucro foi inferior. Pode-se, portanto concluir, mesmo que de modo simplório, que, em um determinado momento estático, a soma de todo o valor gerado pela humanidade (isto é, a soma de todo o tempo de

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trabalho socialmente necessário gerado16) e ainda não consumido é aproximadamente igual a soma do preço de todas as mercadorias existentes17. A ideia de preço indica, então, a atribuição momentânea de um valor monetário (em dinheiro) a uma determinada mercadoria. Em uma economia capitalista (ou de mercado), salvo alguns casos muito específicos, as empresas têm a liberdade de decidir o que e quanto produzirão, bem como quanto cobrarão por suas mercadorias. Assim, de forma geral, se existirem muitos vendedores e/ou poucos compradores, a tendência é de que o preço

16 Chamamos “socialmente necessário” uma espécie de quantidade média de trabalho necessário para a produção. Esse conceito é utilizado para eliminar a crítica sobre o que determina o tempo de trabalho que representa o valor. Por exemplo: enquanto uma grande fábrica produz uma dada peça de roupa em uma hora, uma pequena fábrica demora três horas para fabricar a mesma peça. Se a grande fábrica tiver capacidade de abastecer todo o mercado, o tempo de trabalho socialmente necessário para produção de uma peça de roupa será de uma hora. No entanto, se ela não possuir essa capacidade, o computo do tempo de trabalho socialmente necessário deverá incluir as três horas da fabriqueta. 17 Vale destacar que as possibilidade e variedade de especulação e de controle financeiro dos dias atuais possibilita um descolamento entre preço e valor. Todavia, esse descolamento incorre em crises. Veremos melhor esse caso quando analisarmos as crises econômicas.

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caia. No sentido oposto, caso haja poucos vendedores e/ou muitos compradores, a tendência é de que o preço aumente. É a famosa lei da oferta e da procura. Contudo, dependendo da estrutura de mercado e de situações específicas, vendedores podem ser obrigados a vender a preços fixados pelos compradores.

Estruturas de mercado Em uma economia de mercado de livre concorrência há uma inegável tendência à concentração de capital. Quer dizer, as empresas que se destacam acabam ganhando cada vez mais mercados a ponto de falirem ou comprarem suas concorrentes. Portanto, diferente do que gostariam os economistas neoclássicos, a economia capitalista não caminha para uma situação de concorrência perfeita18. Com o tempo, a tendência é de que haja cada vez menos empresas fornecedoras. A situação em que existem poucas empresas

18 O pressuposto dos economistas neoclássicos é de que, deixada à livre concorrência, ou seja, sem intervenção, a economia tende ao equilíbrio de um mercado em que há várias empresas concorrendo em pé de igualdade. Para eles, isso só não ocorre devido à demasiada intervenção do Estado ou por conta de situações bastante específicas.

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controlando a oferta no mercado chamamos de oligopólio. Quando há apenas uma, chamamos monopólio. No caso do monopólio, o vendedor possui condições de escolher o preço mais alto possível, sendo limitado apenas por quanto os consumidores (demanda) poderiam ou conseguiriam pagar. Por exemplo, se somente uma empresa vende celulares, ela poderá colocar o preço que quiser. Por outro lado, não poderá colocar um preço tão alto que ninguém possa comprar. Assim, a empresa monopolista escolherá o preço que garanta o máximo de lucratividade possível. Isso é o que chamamos de “maximização do lucro”. Por se tratar de uma tendência geral da concorrência, os países capitalistas adotam uma série de regras para coibir e proibir monopólios. Há, por outro lado, exceções para alguns setores específicos, que chamamos de “monopólios naturais”. As características técnicas dos mono-pólios naturais não permitem ou dificultam a existência de concorrência. Esse é o caso do fornecimento de serviços de saneamento e energia nas cidades. Ora, é difícil imaginar que várias empresas poderiam oferecer o serviço de coleta de esgoto e tratamento de uma mesma residência, por conta da

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infraestrutura necessária19. Para esses casos há o controle do Estado para que não haja abusos na formação de preços. Já os oligopólios são bastante comuns e estão dentro da legalidade nas economias de mercado. Além de não serem proibidos, muitas vezes são incentivados para promover ganhos de escala. Ainda que as empresas que formam esses oligopólios sejam concorrentes diretas em um determinado mercado, é comum encontrarmos estratégias de conluio para que diferentes empresas consegam agir como uma espécie de monopólio, controlando o preço. Entre essas práticas, as mais comuns são: i) cartel, quando as principais empresas do mercado se juntam para combinar preços, o que é condenado por lei; ii) truste, que é uma associação a partir da fusão das empresas líderes do mercado; e iii) holding, em que uma só instituição administra um grande número de outras empresas. Outra situação semelhante ao monopólio e ao oligopólio, são o monopsônio e o oligopsônio. Esses casos ocorrem quando há, respectivamente, apenas um ou poucos compradores. Para essas situações há uma determinação dos preços pelos

19 Esse é um exemplo condizente à atualidade. No entanto, nada impede que o desenvolvimento técnico possibilite criar diferentes fornecedores desses tipos de serviços no futuro.

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demandantes, ficando os ofertantes à mercê daqueles. Apesar de pouco perceptiva no dia a dia das pessoas, esse tipo de estrutura de mercado é bastante comum na agricultura produtora de matérias-primas em que uma ou poucas empresas industriais são as únicas compradoras. Esse é o cenário, por exemplo, dos produtores de fumo no sul do Brasil. Há vários agricultores que o produzem, mas pouquíssimas empresas tabagistas que possuem interesse em comprá-lo.

Características das mercadorias Para além da estrutura de mercado, outro elemento que influencia na formação e na fixação de preços são as características específicas das mercadorias. A análise microeconômica costuma utilizar o termo elasticidade (em analogia a capacidade de algo “esticar” conforme a força que se aplica a ele) para especificar as reações das variáveis demanda, quantidade ofertada e preço, quando uma delas se altera. Por exemplo, caso a quantidade ofertada não varie (ceteris paribus) e um vendedor aumente o preço de sua mercadoria, se a demanda cair em uma proporção semelhante à variação do preço, diz-se que ela é elástica. Se a demanda não variar muito, diz-se que a mercadoria é pouco elástica. Caso ela não varie nada, significa que é inelástica, já que não respondeu à variação

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do preço. Utilizaremos aqui essa mesma ideia de elasticidade, mas para classificar tipos de mercadorias que apresentam características semelhantes de forma a representar a realidade não a partir de um modelo, mas a partir de como ela é. Chamaremos, portanto, as mercadorias de elásticas e inelásticas. As mercadorias do tipo elásticas são aquelas em que a oferta pode variar conforme os movimentos da demanda. Isto é, se a demanda aumenta, a oferta pode aumentar junto. Ou seja, no jogo de variações entre preço e quantidade estas podem variar na mesma proporção, mantendo os preços relativamente estáveis. Esse é o contexto de produtos industrializados ou de serviços. Pode-se dizer que, do primeiro instante da cadeia produtiva até o consumidor final, ou seja, dos insumos ao produto acabado, a formação de preço é feita com base nos custos de produção. Quer dizer, de forma geral, os produtores ou vendedores calculam seus custos e a ele adicionam uma taxa de lucro, que os economistas chamam de mark-up. A depender da previsão de demanda e do comportamento dos consumidores, os produtores variam as quantidades produzidas, mas pouco alteram o preço, uma vez que os custos precisam ser cobertos para que a empresa não tenha prejuízo, assim como a taxa de lucro precisa ser atingida para que o investimento seja vantajoso.

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A determinação do mark-up está ligada à taxa média de lucro que se consegue em qualquer negócio, geralmente variando pouco. No caso de uma empresa que compõe o oligopólio ou o monopólio de um mercado, caberá a ela definir seu markup de acordo com sua expectativa de demanda visando a maximização do seu lucro. Por outro lado, se a empresa não tem controle sobre o preço no mercado ao qual participa, o seu mark-up será estabelecido por aquelas empresas que controlam os preços no mercado, já que elas não são formadoras, mas sim “tomadoras de preços”. No caso do lucro baixo a ponto do mark-up ser inferior a taxa de lucro de outros negócios, a tendência é que o investidor migre de atividade. O fato é que cada vez mais as operações financeiras e especulativas são o parâmetro de fixação do markup e, portanto, dos preços. Isto é, o mark-up nunca será mais baixo do que a possibilidade de ganho na bolsa de valores ou de títulos públicos20, locais onde não há a necessidade de investimentos que envolvem imobilização de capital e altos riscos. A esse processo damos o nome de financeirização dos preços. Essas mercadorias elásticas podem ser ainda do tipo padronizadas ou não padronizadas.

20 A questão dos títulos e do mercado financeiro serão explicadas no tópico sobre a Dívida Pública.

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Os produtos padronizados são aqueles que não possuem grande diferenciação entre fornecedores. No caso da indústria são aqueles de baixo valor agregado. Por não haver variações significativas entre os produtos, os compradores podem migrar muito fácil de fornecedor, interferindo mais diretamente na fixação de preços pelo seu poder de barganha. Assim, via de regra, esse tipo de mercadoria possui um lucro reduzido porque, considerando que a qualidade dos produtos é relativamente igual, os compradores darão sempre preferência aos produtos mais baratos. Esse também é o caso do trabalho de baixa qualificação. Nessa situação o ofertante é o trabalhador e o comprador é a empresa. Como o trabalho de baixa qualificação pode ser feito por qualquer um, o seu preço do ofertante acaba sendo baixo. Marx utilizou o conceito de exército industrial de reserva para se referir à massa de trabalhadores desempregados, o que explica os baixos salários, geralmente no nível de manutenção da existência, a garantia pura e simples da sobrevivência. Essa massa de pessoas tentando emprego a “qualquer preço”, impede que um trabalhador tente barganhar maior salário (aumentar seu preço), já que ele pode ser facilmente substituído por outro. Nesses casos, mesmo que o custo de produção ou o custo de vida sejam a base de formação do preço, o demandante exerce forte influência sobre ele.

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Já os produtos não-padronizados são aqueles que, mesmo sendo concorrentes diretos em um mercado, possuem bastante distinção a depender do fornecedor. Esse é, normalmente, o caso de produtos industrializados acabados e serviços de alta qualificação ou especializados. No caso dos produtos, além de mudanças na estética e no funcionamento que lhe garantem exclusividade e uma espécie de “semi-monopólio”, há um apelo significativo da publicidade que busca convencer os compradores das suas vantagens mesmo que isso signifique pagar um preço maior por ele (muito maior do que os custos de produção), gerando assim um lucro superior à média do mercado. Algo similar ocorre com o trabalho de alta qualificação ou especializado, pois é esse, quase sempre, representado por serviços mais difíceis de se encontrar, o que faz surgir um maior poder de barganha na hora de fixar seu preço. As mercadorias inelásticas são aquelas em que, mesmo que haja variação da demanda, há pouca ou quase nenhuma possibilidade de variação na quantidade ofertada, cabendo a variação exclusiva ao preço. Essas mercadorias têm seus preços determinados em espécies de leilões. Isso quer dizer, a partir de uma dada quantidade, quanto os compradores estão dispostos a pagar por elas. Assim, quanto maior a oferta e menor a demanda, menor o preço de mercado e, vice-versa. Nesse caso, os preços não refletem, necessari-

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amente, o custo de produção. É claro que os produtores sempre buscarão, durante as negociações, no mínimo cobrir seus custos. No entanto, dependendo da sua força de negociação, isto é, da estrutura de mercado na qual estão inseridos, eles terão mais chances de êxito ou não. As mercadorias típicas dessa natureza são os bens naturais e extrativos, em virtude de sua quantidade limitada de suas reservas, e os produtos agrícolas. Como o tempo entre a preparação do solo para a plantação costuma ser bastante longo e restrito a épocas do ano, no momento da colheita – instante em que são ofertados esses produtos no mercado – já não se pode mais decidir sobre a quantidade a ser produzida. Será então, por meio dessa quantidade ofertada, que os compradores estabelecerão os preços. Esses preços são cada vez mais fixados a partir de operações financeiras. Isso porque se criou um mecanismo chamado de mercado futuro em que se cria expectativas sobre o resultado da produção. Assim, antes mesmo da colheita, a safra é negociada e renegociada no mercado financeiro. Considerando que no meio desse processo pode haver algum tipo de imprevisto que diminua a quantidade ofertada é comum que, mesmo que o preço aumente pela baixa oferta, o preço sequer alcance os custos de produção, gerando prejuízos.

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Vale ressaltar que estamos aqui tratando de casos gerais. É claro que, caso haja, por exemplo, uma estiagem na Região Norte que ocasione a destruição da produção agrícola e, ao mesmo tempo não ocorra nenhum imprevisto na safra do mesmo produto na Região Sul, os produtores do Norte poderão ter prejuízos e os do Sul superlucros, uma vez que os preços aumentarão pela queda da oferta geral21.

Sugestões de filmes/documentários A Corporação. Canadá. 2014. Mark Achbar e Jennifer Abbott, 225 min. Muito além do cidadão Kane. Reino Unido. 1993. Simon Hartog, 105 min.

21 Por esse motivo, e pensando em não gerar descontrole inflacionário ou desabastecimento à industria e a consumidores, o Estado criou mecanismos de controle sobre os preços internos, estocando produtos, sobretudo grãos. Isso acontece para que haja oferta em tempos de aumento de preço e estocagem em tempos de queda de preço. Contudo, esse tipo de prática só é utilizado, usualmente, para o comércio nacional, uma vez que o controle de preços no mercado internacional é condenado pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

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SALÁRIO E LUCRO

Denomina-se renda o montante de recursos em dinheiro que as pessoas dispõem em um determinado período. Quando se fala em renda de uma família, refere-se à somatória dos recursos obtidos por todos os membros daquela família, seja no formato de salário, juros, lucro, aluguel ou dividendos22. Portanto, quando se busca cobrar o Imposto de Renda, retira-se uma fração do montante de recursos adquiridos por aquela pessoa ao longo de todo o ano.

Chama-se dividendo o lucro obtido por alguém pela propriedade de ações de uma empresa 22

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Porém, há uma consideração importante sobre a origem e a forma de se conseguir renda que precisa ser ressaltada. Enquanto os salários são oriundos da força de trabalho vendida no mercado, as outras fontes de renda (aluguel, lucro, juros e dividendos) são oriundas única e exclusivamente pelo controle da propriedade. Essa fração da renda chamaremos de lucro bruto que é a soma de aluguéis e dos juros ao lucro líquido (dividendos, lucro produtivo e lucro comercial). É nessa diferença que reside a especificidade da divisão das classes sociais no capitalismo. Dito explicitamente: proprietários e não-proprietários dos meios de produção, capitalistas e trabalhadores23. É comum a utilização de nomenclaturas difusas ou quantitativas para dizer das classes sociais, tais como o termo “classe média” ou a terminologia oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que divide as classes em estratos sociais de acordo com o montante de

23 O termo original dos teóricos era burguesia e proletariado, uma vez que essas eram as classes que se formaram pela relação do trabalho assalariado. No entanto, como as relações de trabalho mudaram muito, acredito ser mais abrangente os termos capitalista e trabalhador, sendo o primeiro aquele que vive da renda de sua propriedade, e o trabalhador, aquele que vive da remuneração da venda de sua força de trabalho, o salário.

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renda mensal da família24. A ideia de classe média foi pensada a partir do comportamento e do padrão de consumo e não da propriedade. Portanto, como alertou Paul Singer (1988, p.101), “do ponto de vista econômico, assim como político, o que se considera ‘classe média’ é um conjunto social extremamente heterogêneo e, portanto, como categoria analítica, tem pouco significado”25. Não por acaso hoje se divide ainda a classe média em baixa, média e alta, já que ela é imprecisa. Mais ainda, essa nomenclatura é incapaz de explicar os conflitos políticos, econômicos e sociais que se originam da luta entre classes sociais que possuem interesses diferentes. Isto é, os anseios da classe média alta costumam ser bastante diferentes e opostos aos da classe média baixa. Por essa razão faz muito mais sentido a concepção marxista – inspirada em Smith e Ricardo – sobre classes

24 O IBGE faz a divisão entre “classes” a partir de quantos salários mínimos (sm) as famílias possuem: A, renda acima de 15 sm; B entre 5 e 15 sm; C, entre 3 e 5 sm; D, entre 1 e 3 sm; e E, até 1 sm. Essa divisão é ainda mais falha analiticamente se constatarmos que quem ganha 15 sm possui um padrão de consumo e de vida muito diferente de quem ganha 100 sm. Todavia, para o IBGE, ambos pertencem a mesma classe A. 25 SINGER, Paul. Aprender Economia. 9ªed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

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sociais que as separa em relação à posse e ao controle da propriedade. A posição de classe, bem como sua ideologia, não são uma questão meramente quantitativa, mas essencialmente qualitativa. Ora, vamos examinar uma situação que, apesar de comum na realidade brasileira, é uma exceção na regra da ascensão de classe26: o caso de um jovem jogador de futebol jovem de origem pobre que recebe um salário mínimo, mas que, ao se destacar, passa a receber cem vezes o salário mínimo mensal. Em pouco tempo ele terá como principal fonte de renda os recursos oriundos de seu patrimônio, isto é, de dividendos, aluguel, especulação imobiliária etc., e não mais do seu salário. Seu alto salário

26 É sempre bom lembrar que, apesar da insistência das classes dominantes em enaltecer esses casos isolados, sobretudo através dos meios de comunicação de massa, esses exemplos de migração de classe, eles são, na verdade a exceção. Mesmo no futebol, a esmagadora maioria dos jovens de origem pobre jamais conseguirá o salário de um grande astro. O mesmo ocorre nas grandes empresas. No entanto, é desse discurso, baseado no mito da meritocracia, que se alimenta o sonho e a aspiração de se tornar rico, o que bloqueia a capacidade de desenvolvimento da crítica sobre a estrutura de classes. Vale lembrar ainda que a mudança da classe capitalista para a trabalhadora é muito mais comum do que o contrário, porém bem pouco divulgada, já que caracteriza um exemplo de fracasso.

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mudará rapidamente a sua concepção sobre sua posição de classe apoiada, por exemplo, na alteração subs-tancial de seu padrão de consumo, do meio de convívio social e mesmo de sua opinião a respeito da forma de tributação, passando a defender os interesses dos proprietários e dos ricos. Nesse sentido, a questão quantitativa leva, necessariamente, a uma mudança qualitativa. Algo similar pode ocorrer com um trabalhador que venha a ser promovido à gerência de uma empresa, assim como com artistas ou celebridades de origem pobre. Os economistas marginalistas (ou neoclássicos) e seus discípulos acreditam que o salário é a justa remuneração da produtividade marginal do trabalho e, portanto, o pagamento do valor gerado pelo trabalhador na produção27. No entanto, como vimos no tópico sobre valor, essa concepção deriva de uma tentativa de ignorar a existência de classes sociais e, portando, distancia-se de uma análise precisa e crítica. Quando um capitalista emprega um trabalhador ele lhe oferece um salário não pelo produto de seu trabalho, mas pelo tempo que o

27 Tal como visto no tópico sobre valor, os economistas neoclássicos acreditam que o trabalho, assim como qualquer outra mercadoria tem o seu valor e, portanto, seu preço determinado pela utilidade marginal. Nesse sentido, o empregador só adicionará custos com salários se isso significar maior lucro.

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trabalhador estará a sua disposição para produzir. Essa jornada e o salário variam no espaço e no tempo a depender da correlação de forças, como veremos adiante. Não há, portanto, qualquer ligação direta entre salário e produtividade, como gostariam os marginalistas para explicarem seu modelo com indivíduos maximizadores de seu próprio bem-estar. Como qualquer outra mercadoria, a força de trabalho tem um preço e esse preço é o salário. Portanto, não possui uma relação direta (e sim indireta) com o valor, já que é regulado pela lei da oferta e da demanda e pelas situações já mencionadas no item sobre preço em que os capitalistas (demandantes de trabalho) representam um poder de oligopsônio, uma vez que há pouca demanda e muita oferta. Isto significa, um exército de reserva disposto a receber salários mais baixos para conseguir sobreviver. Veremos adiante que esse cenário só se modifica circunstancialmente pelo ganho de força de negociação dos trabalhadores, via sindicato, ou por redução de oferta de trabalho, como em casos de guerra. A essa altura já deve ter ficado claro que o lucro líquido não é a remuneração do trabalho dos capitalistas, como queria Adam Smith, mas o pagamento pela sua propriedade assim como acontece com a renda da terra (aluguel) e com o juro (posse do dinheiro). Talvez essa ideia estivesse difusa ainda na época de Smith, pois os capitalistas

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participavam ativamente do controle sobre sua propriedade e muitos realmente trabalhavam em seu empreendimento. No entanto, essa ideia se torna infundada em tempos de ampliação da Sociedade Anônima28 em que a propriedade das maiores empresas do mundo é dividida em ações, não havendo relação direta entre os proprietários e a empresa ao ponto de eles se quer conhecerem alguma instalação da empresa da qual são “donos”. Além disso, as compras e vendas de ações são feitas diariamente, o que faz com que constantemente a propriedade mude de mãos. Nessa estrutura, há uma cisão entre os “donos” e os gestores da empresa. Estes, os “gerentes do capital”, ainda que não possuam, necessariamente, a propriedade da empresa na qual trabalham, são os responsáveis pelo controle da propriedade. São eles que decidem sobre a variação do nível de produção, as mudanças de salários (inclusive o seu próprio), e as demissões e

28 A Sociedade Anônima (S/A) é uma forma jurídica específica de propriedade de uma corporação em que não há apenas um tradicional proprietário ou sócios, mas uma série de proprietários detentores de ações. Os donos das empresas costumam ofertar ações nas bolsas de valores tanto para ganharem dinheiro como para arrecadarem capital para ampliação da empresa. Entretanto, para uma empresa “abrir capital” são exigidas uma série de requisitos pelas bolsas de valores.

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admissões. Com a generalização da propriedade por ações nas grandes empresas, esses gestores adquiriram uma importância significativa na ordem capitalista. Isso porque, a busca crescente dos acionistas por dividendos acabou comprometendo a capacidade das empresas investirem e, portanto, a existência da empresa diante de mercados oligopolizados. Por esse motivo surgiu a figura do Diretor Geral (ou CEO – Chief Executive Officer) para salvaguardar a sobrevivência da empresa que se via ameaçada pela fúria dos acionistas. Esse Diretor Geral, até chegar a esse posto ou já pertencia à classe capitalista ou, como exceção à regra, percorreu o mesmo caminho do exemplo do jogador de futebol. O fato é que, apesar de serem “assalariados”, esses gestores acumulam funções dentro dessa classe capitalista pois, além de serem proprietários, desempenham um controle sobre o destino da propriedade. Diferentes do salário dos gestores, que permite a eles serem verdadeiros capitalistas, os salários pagos pela força de trabalho da massa de trabalhadores não constituem, muitas vezes, nem o necessário à reprodução da classe trabalhadora. Sejamos mais claros: o mais-valor representa a subtração entre tudo aquilo que foi produzido pelo trabalhador em seu tempo de trabalho menos aquilo que era necessário à sua reprodução. Relembrando o exemplo utilizado no tópico sobre Valor, em que com apenas duas horas de sua

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jornada o trabalhador já havia produzido o necessário à sua reprodução, concluímos que tudo aquilo que foi produzido nas outras seis horas é o que compõe o mais-valor29. Supostamente, o salário representa essas duas horas de trabalho. No entanto, na maior parte dos casos, o salário é inferior ao equivalente a essas duas horas. Por isso, os trabalhadores, principalmente nos países subdesenvolvidos, sobrevivem em condições abaixo do mínimo necessário para sua reprodução e muito

29 Esses valores não são de todo infundados. Em comunidades ditas primitivas o tempo de trabalho despendido é, em média, de três horas por dia. Se considerarmos que os meios de produção são rudimentares e, portanto, demandam muito trabalho, é muito pouco se comparado com uma sociedade com altíssimo desenvolvimento das forças produtivas. Por outro lado, o exemplo é meramente ilustrativo, uma vez que, por se tratar de uma medida imprecisa, não se pode calcular com exatidão o tempo de trabalho exato que representa o valor necessário à reprodução daquele trabalhador individualmente. Sobretudo porque, com o processo de complexificação da atividade produtiva, as tarefas são extremamente especializadas e os trabalhadores exercem apenas uma pequena função diante de um conjunto gigantesco de outras atividades. O cômputo do valor dessa força de trabalho pelo salário é equivocado, já que confunde a categoria de valor com a de preço e porque, como veremos mais adiante, a força de trabalho é, quase sempre, sub-remunerada.

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próximo do necessário à sua sobrevivência30. Isso só ocorre porque existe aquele já mencionado exército industrial de reserva – uma massa de trabalhadores desempregados que repõe a força de trabalho que morre precocemente –, e também porque possibilita aos empregadores baixar o salário a um nível de miséria, posto que a maioria é obrigada a aceitar trabalhar em condições precárias para sobreviver. Vimos que, se por um lado nem todo valor criado pelo trabalhador é pago a ele pelo seu equivalente, por outro, o mais-valor criado tem como único destino o lucro bruto. Portanto, a ampliação do lucro bruto depende, necessariamente, do aumento da extração do mais-valor e da redução dos salários. Isso pode ocorrer mediante a extração de mais-valor absoluto, quando o trabalhador passa a trabalhar por mais tempo com a mesma remuneração ou relação inferior de remuneração salarial; ou a extração de mais-valor relativo, quando há o incremento de tecnologias que aumentam a produtividade com manutenção salarial ou quando há queda no custo de vida do

30 Não se deve confundir a ideia de reprodução com a de sobrevivência. Isso porque, as necessidades dos trabalhadores não envolvem somente alimentação, habitação, vestuário e itens de primeira necessidade, mas também aspectos culturais que dão sentido à sua existência, como esporte, lazer, educação, saúde etc.

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trabalhador. Apesar de o mais-valor absoluto ser muito mais evidente no dia a dia, como no aumento da jornada de trabalho e nos bancos de horas nunca pagos, o mais-valor relativo é mais silencioso, mas muito eficiente. Ora, é inegável que a tecnologia avança em um ritmo cada vez mais acelerado e, portanto, aumenta a produtividade. No caso da indústria automobilística, as máquinas de montagem não duram mais do que cinco anos na linha de produção até serem substituídas por robôs mais modernos. Da mesma forma, a alimentação da classe trabalhadora é cada vez mais barata e pobre, sendo frequentemente substituída cada vez mais por produtos ultraprocessados que podem até encher a barriga, mas não nutrem. Um dos mecanismos criados, tanto pelas lutas sindicais como pela percepção dos gestores do capital sobre a necessidade de um salário suficiente pelo menos para a sobrevivência dos trabalhadores, foi justamente o salário mínimo. Previsto em lei, supostamente, nenhum trabalhador pode receber menos que o valor determinado pela jornada básica de trabalho. Vale dizer, no entanto, que boa parte dos trabalhadores se quer estão inseridos no mercado formal de trabalho que garantiria esse direito (no Brasil, em 2020, 41,1% da População Economicamente Ativa – PEA está no mercado informal) e, mesmo aqueles que possuem carteira assinada, muitas vezes, recebem salários abaixo do mínimo previsto na lei. Ademais, mesmo o poder de

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compra do salário mínimo pode ser corroído pelo mecanismo da inflação31, o que ocorreu sistematicamente no Brasil desde a sua implementação. O Gráfico 1, a seguir, revela essas oscilações:

Cabe destacar ainda que a ampliação do lucro bruto não deriva somente da exploração direta na atividade industrial, mas também da exploração indireta. Por exemplo, a destinação de recursos públicos à iniciativa privada é um desses mecanismos de extração indireta de mais-valor, uma vez que esses recursos são gerados pelo trabalho e deveriam criar as condições para a reprodução social da classe trabalhadora. O mesmo ocorre com a agricultura camponesa de base

31 Essa questão está desenvolvida no item específico sobre inflação, quando é abordada a diferença entre o salário real e nominal

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familiar que costuma possuir os meios de produção, mas tem seu trabalho sub-remunerado pela estrutura de mercado oligopsonizada. A única diferença é que estes podem, no limite, garantir sua alimentação e as condições básicas de sobrevivência. O que não ocorre nas novas relações de trabalho urbano, em que o trabalhador pode até ser o proprietário dos meios de produção (como um meio de transporte), oferecendo um serviço essencial à reprodução da força de trabalho (o transporte), porém é superexplorado por uma empresa que monopoliza a oferta do serviço. Esse é o caso clássico dos motoristas e entregadores por aplicativos. Sabe-se, pelo menos desde as contribuições de David Ricardo, que a taxa de lucro bruto só pode aumentar em detrimento da taxa salarial e vice-versa. É claro que, em termos absolutos, a massa de lucro bruto e de salário podem aumentar quando há a expansão da receita no caso da unidade empresarial ou de investimento e crescimento econômico. No entanto, em termos relativos, isto é, da divisão entre lucro bruto e salário, um só aumenta se o outro diminuir porque eles fazem parte de um mesmo todo, a renda. Não por acaso Ricardo defendia o salário de subsistência, pois essa seria a forma de maximizar a taxa de lucro e, na sua opinião, aumentar a capacidade de investimento para ampliação da atividade econômica e para o desenvolvimento das forças produtivas.

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Entretanto, nada garante que o aumento do lucro acarretará em aumento automático de investimento. A razão entre o lucro e os custos de produção é o que chamamos de taxa de lucro. E é a partir dessa perspectiva que os capitalistas operam quando fazem seus cálculos para suas aplicações. Como vimos, os produtos elásticos têm seu preço determinado pela soma dos custos ao mark-up que é a taxa de lucro que o capitalista considera como o mínimo razoável para investir seus recursos. Como a taxa de lucro só pode aumentar, dada a fixação do preço no mercado, via redução de salário, os capitalistas buscam transformar seus custos fixos em custos variáveis, em especial a força de trabalho. Isto é, o salário que era pago mensalmente pela força de trabalho independente da variação da demanda, passa a estar atrelado diretamente ao nível da produção e das vendas. Daí toda a mobilização midiática dos capitalistas para aprovação da contrarreforma trabalhista de 2017 no Brasil. Podemos perceber que, ainda que a questão da diferenciação de classe esteja na esfera da produção, isto é, na propriedade e no controle sobre a produção e o produto, o conflito se evidencia sobre a repartição da renda. Para além das disputas intraclasse de distribuição da renda (entre lucro líquido via concorrência, ou entre frações da classe, como disputa entre lucro líquido,

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juros e aluguel, que está se tornando cada vez mais difusa já que a classe capitalista é cada vez mais homogênea, não havendo quase indivíduos com uma só fonte de renda), a batalha fundamental está entre as classes trabalhadora e capitalista, que disputam a forma de distribuição funcional da renda, isto é, a repartição da renda entre lucro bruto e salário. O Índice Gini32, que mede a concentração de renda pela diferença entre as maiores e menores rendas de um país, apesar de relevar os movimentos da repartição da renda, possui dois problemas limitantes: não reflete a origem da renda e não analisa as diferenças patrimoniais, o que desnudaria ainda mais a desigualdade social. É importante esclarecer que nem sempre quando se fala em distribuição de renda se trata de distribuição funcional da renda. Por exemplo, no período dos governos de Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), houve distribuição de renda. No entanto, não de renda funcional. Houve uma

32 Essa medida de desigualdade de renda foi criada pelo estatístico Corrado Gini no início do século XX e é, ainda hoje, o principal coeficiente para medir a desigualdade social. Quanto mais próximo de 0, maior a igualdade da distribuição de renda no país, e quanto mais próximo de 1, maior a desigual. Em 2019, com índice de 0,533, o Brasil ocupava a 7ª posição de país mais desigual do mundo.

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distribuição entre salários mais altos e mais baixos, mas não entre salário e lucro33. A distribuição funcional da renda nesse período se manteve quase estável com um ligeiro aumento para os lucros. Além disso, nesse mesmo período, os 10% mais ricos aumentaram sua participação na renda nacional de 54% para 55,3%34. O mais comum na economia de mercado é que haja uma tendência à concentração da renda em função do lucro bruto. O exemplo mais claro no Brasil foi no período a partir do Golpe Civil-Militar entre 1964 a 1997, quando o Estado agiu ativamente na contenção dos salários através da redução sistemática do poder de compra do salário mínimo, como revela o Gráfico 1. Especificamente durante a Ditadura Civil-Militar (1964-1985), o Estado perseguiu, encarcerou, assassinou e exilou lideranças sindicais, fechou sindicatos e proibiu o direito à greve, em favor do

33 Os dados do período mostram que o item “remuneração” aumentou sua participação no PIB o que se explica pelo aumento do volume de emprego, mas não em relação ao “excedente operacional bruto”, que representam os ganhos de capital, que se mantiveram relativamente estáveis. Para mais detalhes, ver “A distribuição funcional da renda no Brasil e sua reversão a partir de meados da década de 2000” de João Saboia e João Hallak Neto. 34 Os dados foram obtidos no texto “O mito do crescimento com equidade” de Plínio Soares de Arruda Sampaio Júnior.

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aumento dos lucros, fazendo uso da desculpa da necessidade de aumento do lucro (poupança) para elevar investimentos. Nasceu daí a famosa história de fazer o bolo crescer para só depois distribuir. No entanto, como se sabe, passados mais de cinquenta anos, o bolo não foi redistribuído. Como se pode perceber, o Estado exerce importante papel no que se refere à alocação da renda se mostrando, portanto, como mediador dos conflitos de classe. Há situações em que o Estado cumpre um papel diferente do demonstrado. Esse foi o caso dos países industrializados ou em processo de industrialização no período pósSegunda Guerra Mundial, em que se consolidaram uma série de direitos sociais e trabalhistas. Nesses momentos de avanço das lutas trabalhadoras e sindicais, o Estado atua como “árbitro da luta de classes” para manter o direito à propriedade e garantir o processo de acumulação de capital. Os capitalistas são obrigados a abrirem mão de parte da renda para continuarem obtendo lucro. O Estado atua, portanto, como alocador de parte da renda ao cobrar tributos e fornecer serviços universais como educação, saúde, segurança etc., ou pagar juros da dívida pública, tal como veremos no capítulo a seguir. Quando os economistas liberais defendem a ideia de um “Estado mínimo” é em relação à escolha sobre a alocação de recursos, deixando essa tarefa à iniciativa privada (ao dito “mercado”), ficando a

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cargo do Estado somente o controle sobre “abusos” (termo bastante arbitrário, já que são próprios capitalistas que definem o que é abuso por meio de seus representantes políticos). Já os economistas de influência keynesiana acreditam que o Estado deve intervir diretamente nessa alocação para garantir níveis de investimento e consumo (seja por empresas públicas, seja por investimento em infraestrutura, seja garantindo salários mínimos e direitos trabalhistas) que façam com que a economia capitalista não entre em colapso. Sugestões de filmes/documentários Eles não usam black-tie. Brasil. 1981. Leon Hirszman, 120 min. Estou me guardando para quando o carnaval chegar. Brasil. 2019. Marcelo Gomes, 85 min. Extra! Extra! EUA. 1992. Kenny Ortega, 121 min. Pão e Rosas. Reino Unido. 2000. Ken Loach, 112 min.

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CONSUMO

O consumo é peça fundamental para o processo de acumulação de capital. Parece óbvio que toda mercadoria, seja um bem produzido ou um serviço prestado, em algum momento, deverá ser consumida. É com o consumo que se encerra toda a cadeia de pagamentos e, portanto, a realização do processo de acumulação capitalista. Ele é realizado tanto por capitalistas como por trabalhadores. Portanto, advém tanto do lucro bruto como do salário. Todavia, há também uma gritante diferença em relação ao tipo e ao padrão de consumo entre os que utilizam sua fração do

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lucro bruto para o consumo daqueles que utilizam seu salário. Uma primeira consideração é que a fração do consumo dos capitalistas é muito inferior à fração de consumo dos trabalhadores na economia global. Isto é, de todo o dinheiro gasto na economia com o consumo, a maior parte tem como origem o salário. Uma segunda é que, enquanto os trabalhadores utilizam toda ou quase toda sua renda para consumo, os capitalistas, mesmo que consumam itens caros, utilizam apenas uma pequena parcela, sobrando-lhes ainda uma maior parte chamada poupança35. Por isso, a grande parcela do consumo de produtos e serviços na economia provém dos trabalhadores e não dos capitalistas. Além disso, os tipos de produtos consumidos são muito diferentes. Capitalistas costumam consumir itens de luxo que trabalha-dores não podem consumir. No caso de

Esse termo é utilizado na economia para os recursos que não foram utilizados para o consumo. Isso não significa que esse recurso seja depositado, necessariamente, na “caderneta de poupança”. Vários destinos podem ser dados a ele como investimento, aplicações financeiras ou cambiais. A questão é que, diferente dos trabalhadores que às vezes guardam dinheiro em espécie em casa, os capitalistas sempre buscam aplicações que garantam rentabilidade, isto é, dinheiro gerando mais dinheiro, o que chamamos de acumulação de capital. 35

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países subdesenvolvidos há ainda uma particularidade. Isso porque o padrão de consumo assumido pelas classes dominantes nos países pobres se espelha no padrão das elites dos países desenvolvidos, o que leva ao aumento da explo-ração da força de trabalho para garantir, a cada processo de transformação tecnológica, um padrão de consumo modernizado. Ademais, as caracterís-ticas dos capitalistas brasileiros mostram a sua ânsia pelos ganhos de curto prazo – rentistas e especulativos – que fazem com que a parte poupada de sua renda não se converta em investimentos que poderiam contribuir ao desenvolvimento das forças produtivas em seu país de origem. Se somente parte da renda gerada será utilizada para o consumo, uma fatia da produção não será consumida e a acumulação de capital não será consumada. É isso que chamamos de “superprodução” ou “subconsumo”. Com a globalização financeira, nos quatro cantos do mundo, cada vez mais os capitalistas buscam rendimentos altos e rápidos nos quatro cantos do mundo. Esse tipo de aplicação não se confunde com investimentos de longo prazo, que gerariam empregos capazes de cobrir essa defasagem. Portanto, quando há mais concentração de renda, seja entre lucro bruto e salário, seja entre salários, essa deficiência se torna mais aguda. Isso porque os trabalhadores que recebem salários muito baixos tendem a gastar tudo o que recebem,

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possuindo uma propensão a consumir de 100%. Já aqueles que possuem vultuosos salários e/ou que recebem sua fatia do lucro bruto, ainda que diversifiquem sua cesta de consumo e incorporem bens e serviços de luxo, tendem a não gastar tudo que recebem. Foi a partir dessa observação que Michal Kalecki consagrou a ideia de que enquanto os trabalhadores gastam o que ganham, os capitalistas ganham o que gastam. Portanto, quanto maior a concentração de renda, maior a insuficiência do consumo e, por conseguinte, mais limitada a acumulação de capital. Porém, isso não significa a impossibilidade de acumulação, já que a extração de mais-valor permanece. O que ocorre então é a eclosão de crises econômicas36.

36 Abordaremos esse tema no tópico sobre Crises Econômicas.

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Michal Kalecki (1899-1970) foi um importante economista que publicou escritos anteriores aos de Keynes e que continham as mesmas explicações sobre os valores agregados. Contudo, o fato de ser polonês – a e marxista – contribuiu para ocultar o seu protagonismo no debate econômico

Os processos de aumento dos salários e o barateamento do custo de vida experimentados na Europa e nos EUA no período do pós-guerra geraram transformações profundas na sociedade capitalista. Entretanto, ao contrário do que se faz parecer, apesar de o desenvolvimento das forças produtivas ampliar o consumo de massa de produtos outrora exclusivos aos capitalistas, as distinções sociais pelo consumo não desaparecem, mas sim saltam. Por exemplo, quando a classe trabalhadora passa a poder comprar um automóvel ou a viajar de avião, a classe capitalista ou se

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encontra em uma máquina ultramoderna que já quase não se pode comparar ao automóvel que o trabalhador pode comprar, ou se translada apenas por helicópteros e jatos particulares. Nesse momento de transformação tiveram destaque o sistema de crédito para a aquisição de bens de consumo, a produção voltada à obsoles cência e, principalmente, a publicidade. O crédito, que era bastante restrito ao investimento, passou a ser largamente utilizado para compra de bens de consumo, sobretudo os duráveis, fazendo com que os trabalhadores passassem a poder adquirir aqueles produtos, antes de exclusividade dos capitalistas, comprando em parcelas e pagando juros consideráveis por isso. Os engenheiros industriais, percebendo que os produtos de altíssima qualidade e de longa duração eram bastante interessantes ao consumo, mas pouco funcionais à acumulação, criaram o mecanismo de obsolescência programada. Ou seja, bens de consumo duráveis que se deterioram mais rápido e, portanto, que possuem um prazo de validade muito curto, ou que se tornam inutilizáveis. Esse último é o caso clássico dos aparelhos eletrônicos que não podem ser mais atualizados quando surgem novos sistemas operacionais, ou quando a memória física do equipamento já não comporta a atualização obrigatória de aplicativos e programas. Além desse mecanismo, criou-se também a obsolescência perceptiva. Essa é

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utilizada para que as pessoas pensem que os produtos se tornaram obsoletos sem que eles tenham se tornado de fato. Esse é o caso da moda. Foi por conta disso que a publicidade adquiriu um papel central da maioria das corporações, recebendo vultuosos recursos. Os mecanismos publicitários transformaram substancialmente o entendimento dos trabalhadores sobre o que é necessário à sua reprodução material e social. Cada vez mais se amplia a necessidade real e fictícia sobre o que seriam bens essenciais, sobretudo os eletrônicos. Esse não é um problema em si. A questão é que com esse processo, criou-se também a patologia do consumismo que tem feito do trabalhador um mero consumidor, como queriam os economistas marginalistas. Nas sociedades de consumo, a ação de comprar se mostra como a (im)possível resolução de todos os problemas da vida, principalmente aqueles psiquiátricos, porém ela, na verdade, só aumentam a angustia social. É muito comum não se encontrar alimentos de qualidade, mas aparelhos eletrônicos modernos em lares de famílias pobres. Esse tipo de constatação abre a possibilidade para os capitalistas e seus porta-vozes tecnocratas repetirem que os pobres não melhoram de condições materiais porque não possuem disciplina para poupar dinheiro, não sabendo fazer as melhores escolhas de consumo para o seu bem-estar. São

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recorrentes também as falas de defensores do capitalismo que indicam a necessidade de instrução dos pobres sobre o controle do orçamento familiar. No entanto, esses mesmos tecnocratas escondem que são eles também que difundem – através dos Aparelhos Ideológicos do Estado37 – a ideologia do consumo como satisfação individual e a necessidade de aproximação dos padrões de consumo das classes dominantes através de publicidade direta ou indireta. Além disso, buscam ocultar o fato de que a vida material do trabalhador vem sendo precarizada paulatinamente para garantir a acumulação de capital e que há uma série de mecanismos enganosos (sobretudo o crédito e o parcelamento) que facilitam o consumo de bens “supérfluos” que acabam endividando a maioria das famílias trabalhadoras. Para além dos problemas relacionados ao aumento desenfreado do consumo e da infelicidade, esse impulso ao consumismo de massa para aumentar as possibilidades de acumulação de

O termo Aparelhos Ideológicos do Estado, formulado pelo filósofo franco-argelino Louis Althusser (19181990), é utilizado para definir o conjunto de instituições comandadas pelos capitalistas e geridas por tecnocratas para difundir a ideologia da classe dominante e doutrinar as classes subjugadas. Essas instituições são, por exemplo, as escolas, as igrejas, os meios de comunicação de massa ou mesmo a família. 37

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capital tem gerado sérios problemas ambientais e, consequentemente, de saúde humana. Esses problemas se iniciam com o extrativismo predatório, que contamina solo, água e ar, passando por toda cadeia produtiva e comercial que os aprofunda, até chegarem ao consumidor final quando os produtos e suas embalagens se tornarem resíduos. Por mais que várias iniciativas de destinação mais apropriadas desses resíduos sejam criadas diariamente, elas estão longe e nunca serão suficientes para resolver o problema, uma vez que a lógica do consumo não está mais baseada nas necessidades humanas, mas nas necessidades de realização da mercadoria que garantirá a acumulação de capital. Porém, esta, diferente dos recursos naturais, é infinita. Sugestões de filmes/documentários A história das coisas. Estados Unidos. 2007. Louis Fox, 21 min. Comprar, Jogar Fora, Comprar: a história secreta da obsolescência programada. França. 2010. Cosima Dannoritzer, 53 min.

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DINHEIRO

Não é difícil compreender o que é o dinheiro. Se perguntarmos a qualquer pessoa ela dirá que é um objeto que se usa para comprar alguma coisa. E o dinheiro é, em boa medida, isso. Dinheiro é, essencialmente, o que os economistas chamam de “meio de troca”. Isto quer dizer: um objeto utilizado para a intermediação de uma troca. Se perguntarmos o que é uma moeda, no entanto, dirão que é um objeto metálico equivalente ao dinheiro. Nesse ponto, precisamos fazer um adendo em relação aos termos adotados pela economia. Na economia se costuma utilizar o termo moeda para representar diferentes operações para além das várias faces dos meios de troca, seja na sua forma física, chamada “dinheiro”, seja em nota ou metais. A utilização da moeda tem origem na necessidade de se viabilizar e facilitar trocas

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cada vez mais complexas e intensas. Isso não significa dizer que o escambo (troca direta de uma mercadoria por outras sem intermédio do dinheiro) desapareceu com o uso da moeda, mas que ele se tornou insuficiente para alguns tipos de troca. Aliás, mesmo com escambo há registros de utilização da moeda, enquanto conceito, através de registros contáveis de débito e crédito, mesmo sem que houvesse um objeto que intermediasse essas trocas. No entanto, a utilização de objetos que intermediassem essas trocas foram comuns em diferentes sociedades e épocas. Ao longo da história os seres humanos utilizaram vários tipos de objetos para representar um equivalente geral entre as mercadorias. Dentre esse objetos encontramos o gado, o arroz, o milho, o sal (daí o termo salário), entre outros. É curioso perceber que esses objetos escolhidos eram abundantes em suas respectivas sociedades e não raros (como os metais preciosos), exemplo do milho entre os Incas e os Astecas e do arroz na Ásia, e possuíam essa função exatamente porque, além de terem um valor de uso, isto é, poderiam ser consumidos além de trocados, eles representavam seu valor de troca, já que haviam deman-

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dado trabalho para sua produção. Portanto, esses meios de troca continham, em si, um lastro. Contudo, muitos desses objetos apresentavam limitantes para o acompanhamento do comércio. Um desses limitantes se referia à função assumida pela moeda de “reserva de valor”. Quer dizer, um objeto que poderia ser guardado para ser utilizado posteriormente. Isso porque, alguns objetos eram facilmente danificados, perecíveis, além de custosos para manutenção e armazenagem. Caso fosse caro manter ou guardar a moeda, ela acabava se tornando inviável. Outro limitante estava na possibilidade da moeda se desenvolver enquanto “unidade de conta”. Ou seja, como parâmetro para as trocas. Para isso, ela preci-sava ser facilmente fracionável, divisível. O que se deu para que se estabelecesse a troca entre diferentes mercadorias de valores distintos, sendo necessário um objeto que pudesse se dividir ao máximo. Portanto, com o desenvolvimento das trocas e com a incorporação das funções de meio de troca, reserva de valor e unidade de conta à moeda e após diversas experiências, chegou-se a necessidade de um objeto capaz de reunir características de durabilidade, divisibilidade

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homogênea e de fácil transporte. Assim, passouse a usar, por volta do século VII A.C., os metais como meio de troca, sobretudo o ouro, a prata e o cobre. No início do uso dos metais como moeda, o seu valor estava associado ao preço do peso do metal utilizado, uma vez que os metais possuem outra finalidade que não só a troca. Ou seja, se a moeda era composta por dez gramas de ouro, essa medida significava exatamente o que ela valia. Com o tempo foram sendo incorporados outros metais mais baratos às moedas para enganar seus receptores, o que foi respondido com uma rigorosa fiscalização dos Estados de forma a dar confiança às operações. Hoje, as moedas metálicas são feitas de níquel e, obviamente, o valor delas não possui relação com o preço do níquel, mas sim com a marca gravada nela garantida por uma relação de confiança estabelecida pelo Estado. Apesar de a utilização dos metais como moeda nos remeter a séculos antes de Cristo, foi com o desenvolvimento do comércio entre países da Europa e da Ásia durante a decadência da Idade Média que a sua utilização tomou grandes proporções. Ganharam importância nesse contexto os ourives que eram os artesãos responsáveis por cunhar as moedas. Ainda que

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o Estado tenha passado a exercer rígido controle sobre a cunhagem da moeda, o exercício cabia aos ourives. Como se tratava de uma atividade bastante arriscada e que demandava segurança, logo muitas pessoas passaram a guardar seus metais com os ourives, pagando-lhe uma taxa por esse serviço. Em contrapartida, essas pessoas recebiam um documento (recibo) que declarava o montante depositado. Percebendo que boa parte do montante depositado não era sacado pelos depositantes por longos períodos, os ourives passaram a emprestar os metais depositados a outras pessoas e a cobrarem juros por isso. No entanto, a prática da usura não se limitou a emprestar o dinheiro dos outros. Percebendo que os recibos emitidos se transformavam em ordens de pagamentos emitidas, passando a circular no mercado como meios de troca, os ourives começaram também a fornecer empréstimos não mais com ouro, mas com papéis. Ora, a utilização de papel havia se tornado muito mais segura e eficiente do que o uso de metais, devido ao peso e ao maior controle sobre a sua origem. Daí surgiu o princípio do “papel-moeda”, isto é, um documento de garantia do equivalente em metais preciosos depositados. Entretanto, com a

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emissão desses títulos para além da quantidade de ouro depositado, os ourives passaram a emitir moeda e quebraram o lastro entre a soma dos valores previstos nos recibos e a quantidade de ouro38. O juro, como se pode perceber, é o preço da moeda e é determinado por aqueles que possuem a sua propriedade ou simplesmente o seu controle. A moeda se tornou, assim, uma mercadoria particular pois, apesar de não poder ser consumida (diferente dos metais que poderiam ser usados para outros fins), podia ser trocada repetidamente. Com esse movimento os ourives deixaram de exercer seu ofício e passaram a se transformar em banqueiros.

38 Apesar de a emissão de papel-moeda ter rompido com o lastro, o ouro e a prata continuam sendo utilizados como moeda, principalmente para trocas comerciais. Isso porque, uma determinada moeda nacional não possui, a princípio, valor na economia de um outro país. Por esse motivo, por um bom tempo houve uma tentativa dos Estados Nacionais de manter o lastro para estabelecer confiança em seus papéismoeda. No entanto, esse lastro foi completamente extinto na década de 1970. Veremos no tópico sobre câmbio como isso funcionou e se modificou ao longo do século XX.

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Os agora banqueiros começaram a criar moeda. Ainda que sem lastro, esses papéis circulavam como meios de troca. No entanto, quando esse tipo de prática era descoberto, os depositantes corriam para resgatar seus metais, levando o banqueiro à falência, já que ele quase sempre não possuía todo o equivalente para reembolso. Essas falências crescentes criaram a necessidade de que os títulos emitidos pelos banqueiros tivessem alguma relação com as quantidades de metal depositados. Por isso, os Estados Nacionais passaram a ter maior controle sobre essa atividade, criando um banco que regulasse essas práticas e desse mais confiança a essas operações. Esse banco é hoje chamado Banco Central (BC)39. Dentre outras tarefas, em uma economia de mercado, o BC possui o papel de controle sobre esses depósitos, estabelecendo um montante mínimo (chamado de encaixe obrigatório ou depósito compulsório40) que

39 Assim como no Brasil, na maioria dos casos esse banco é conhecido como Banco Central. Nos EUA ele é conhecido como Federal Reserve (Fed). 40 O encaixe não possui apenas a função de ter, fisicamente, guardado um montante de dinheiro, mas fazer com que um deposito não crie a possibilidade de geração infinita de crédito, já que ele é feito em

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deve ser deixado em seus cofres, enquanto o restante pode ser utilizado pelos banqueiros para empréstimo, legalizando assim a prática de bancos privados poderem criar moeda. Quando o banco está com baixa liquidez41, isto é, pouca moeda e, portanto, com dificuldade em realizar os resgates, ele recorre ao BC. Assim, o papel fundamental do BC é dar credibilidade à moeda de forma que as pessoas aceitem que o “valor” contido em um pedaço de papel é realmente aquele que está impresso nele. Quando essa confiança é rompida, a moeda perde seu valor42.

porcentagem, tornando, portanto, o valor de novos empréstimos decrescente. Abordaremos mais o papel do BC e de seus mecanismos de controle sobre a criação de moeda no tópico sobre Políticas Econômicas em Política Monetária. 41 O termo liquidez é utilizado para comparar recursos que fluem de forma mais lenta com aqueles que podem circular de forma mais ágil, os mais líquidos, preservando seu valor. A moeda é o bem mais líquido, pois ela é aceita por qualquer um a qualquer momento. Já um bem físico como, por exemplo, um automóvel, é menos líquido, pois a troca de um automóvel por dinheiro ou por outro bem costuma ser mais lenta, dado que é necessário encontrar alguém interessado nele, sem contar o fato de que ele pode ter seu preço reduzido caso seu comprador perceba a pressa do proprietário em vendê-lo 42 Abordaremos essa situação no item Inflação.

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O simples empréstimo de dinheiro depositado representa o primeiro mecanismo de criação de moeda. Quando consideramos que o crédito adquirido também é depositado no mesmo banco ou em outro, percebemos que o crédito é, na verdade, um multiplicador de moeda. Se, por exemplo, o encaixe estabelecido pelo BC for de 10%, com um deposito inicial de $1.000,00 pode-se criar novos $9.000,0043. Pode parecer estranho, mas ainda é assim que se cria moeda: pelo crédito. Além de conceder dinheiro em forma de crédito aos demandantes o que, a princípio, não existia, os bancos comerciais ainda recebem juro por isso. O banco comercial então, ao receber depósitos ou tomar dinheiro emprestado a juro baixo (que não necessita de encaixe), o utiliza para emprestar a outros com juros altos. A diferença entre o juro tomado e o cobrado é o que chamamos de spread bancário. Ao Estado, através do Tesouro Nacional, coube a função de imprimir o papel-moeda que pode estar depositado nos bancos comerciais e

43 Depositando-se $1.000,00 deve-se guardar $100,00 e pode-se emprestar $900,00. Esse novo depósito deve guardar $90 e emprestar $810 e assim sucessivamente até o final do processo, quando aqueles $1.000,00 iniciais acabam se transformando em um montante de $10.000,00.

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no BC ou estão circulando entre empresas e indivíduos, o chamado “papel moeda em poder do público”. Portanto, a quantidade de dinheiro impresso não representa o montante de moeda criada pelos bancos comerciais em forma de credito. Essa diferença se amplia ainda mais nos dias atuais em que as operações financeiras são majoritariamente eletrônicas, operadas através de transferências e utilização de cartões plásticos44. Com essas modificações coube ao BC também o controle dessas operações eletrônicas para assegurar o nível do depósito compulsório e o de crédito. Ora, parece um absurdo que uma empresa privada possua o controle de emitir moeda que ainda não existe e ainda cobrar juros por emprestar essa moeda a alguém. Mais ainda, que as empresas com essa capacidade são poucas e, portanto, configuram um oligopólio. O Estado, obviamente, possui também condições de criação de moeda, seja imprimindo-o ou simplesmente realizando operações eletrônicas para pagar fornecedores ou servidores públicos. No entanto, como veremos no tópico sobre

44 Atualmente, pouco mais de 60% da moeda em circulação é papel-moeda. O restante já é realizado de forma “virtual”.

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Políticas Econômicas, esse mecanismo tem sido, cada vez mais, inibido pela legislação, cabendo ao Estado apenas o mínimo controle dessas operações realizadas pelos bancos comerciais. Tudo isso não só parece um absurdo, como é. No entanto, é assim que a criação de moeda funciona na economia de mercado. Sugestões de filmes/documentários Dinheiro como dívida. Canadá. 2006. Paul Grignon, 47 min. Sugestões de leitura Moeda: de onde veio, para onde foi, de John Kenneth Galbraith.

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INFLAÇÃO

Ainda que a definição do que é a inflação não seja de conhecimento universal, ela é sentida por todos. Isso porque inflação significa, pura e simples-mente, o aumento dos preços. Assim, mesmo que o trabalhador não saiba definir o que é inflação, ao chegar ao mercado ele percebe, facilmente, que os preços aumentaram e que o seu salário já não é suficiente para comprar o que podia antes. O que chamamos de inflação então, representa um aumento geral dos preços. Não é um conceito concreto, ainda que o aumento do preço e a perda do poder de compra da moeda seja bastante real. A inflação é um índice que mede, através de metodologias específicas aplicadas por diferentes

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órgãos de pesquisa45, o aumento generalizado dos preços ou, em casos raros, de queda, o que é nomeado como “deflação”. Conhecer a inflação é fundamental para os trabalhadores poderem exigir o mínimo a se exigir de aumento salarial de forma a manter seu poder de compra. Por isso, quando há um aumento salarial correspondente ao aumento da inflação não se deve utilizar o termo “aumento salarial” e sim, “reajuste”, já que, com esse acréscimo apenas o salário nominal aumentou e não o salário real, que representa o poder de compra. Ademais, é importante conhecer a metodologia do cálculo. Isso porque, muitas vezes os índices não são suficientes para explicar o impacto real na vida dos trabalhadores. Guardadas as especificidades da metodologia de cada órgão de pesquisa, elas usam de modo geral um parâmetro sobre a cesta de consumo da população, o que inclui lazer, alimentação, vestuário, moradia (aluguel, água, luz etc.) entre outros. O cálculo da inflação é então uma média ponderada sobre o

45 Os principais índices que medem a inflação no Brasil são: IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) e INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) calculados pelo IBGE; IPC (Índice de Preço ao Consumidor), IPA (Índice de Preços ao Produtor Amplo) e IGP (Índice Geral de Preços), calculados pela FGV (Fundação Getúlio Vargas).

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aumento de cada item dessa cesta de consumo. Contudo, sabe-se que, a depender do nível de salário das pessoas que o utilizam, basicamente, para moradia e alimentação, um aumento significativo de algum desses itens fará com que a “inflação” sentida por esse trabalhador seja muito maior. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é, atualmente, o índice utilizado pelo Banco Central do Brasil e, portanto, pelos governos e pelas empresas como parâmetro para negociações salariais. Esse índice busca medir a variação de preços de bens e serviços negociados no comércio varejista referente ao consumo das famílias com rendimento entre um e quarenta salários mínimos, com as seguintes ponderações: Alimentação – 25,21%; Transportes e Comunicação – 18,77%; Despesas Pessoais – 15,68%; Vestuário – 12,49%; Habitação – 10,91%; Saúde e Cuidados Pessoais – 8,85%; e Artigos de Residência – 8,09%. Ainda que o IPCA seja um índice relevante para se medir a variação de preços no mercado, ele é insuficiente para se calcular o impacto real do aumento de preços dos mais pobres, sobretudo porque há uma diferença gritante entre a cesta de consumo de uma família que recebe um salário mínimo e a de outra que tenha como renda quarenta vezes mais.

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Imaginemos o seguinte cenário: uma pessoa recebe um salário de R$ 1.000,00 (salário nominal) e gasta metade com alimentação e a outra metade com moradia, sendo que nesse período a inflação anunciada pelo governo foi de 5%. Se o seu salário nominal se mantiver o mesmo, a partir da inflação anunciada, isso significará que o poder de compra desse salário (salário real) cairá para R$950,00. No entanto, se considerarmos que no mesmo período os gastos com moradia se mantiveram iguais e os com alimentação aumentaram 20%, isso significará que, na prática, o poder de compra desse salário (salário real) caiu para R$ 900,00, sendo os mesmos R$ 500,00 iniciais para moradia e apenas R$ 400,00 para alimentação46. Mesmo conhecendo a inflação na prática, os leigos ficam longe de conhecer as reais causas da inflação. Isto é, as razões de haver inflação. Como vimos no item anterior sobre preços, quem decide, de forma geral, em primeira e última instância, pelo aumento dos preços são os setores oligopolizados. Nesse sentido, fica evidente quem são os responsáveis pela inflação. As razões que os levam a aumentarem os preços variam, e sobre esse

46 Sobre a variação do salário mínimo real no Brasil, ver o Gráfico 1 presente no tópico sobre Salário e Lucro.

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assunto existe muita controvérsia entre os economistas. Para os economistas chamados monetaristas a causa da inflação é a quantidade de moeda posta em circulação na economia. O raciocínio é simples: como qualquer outra mercadoria, o dinheiro em abundância perde seu valor de mercado, baixando, portanto, seu poder de compra. Para esses economistas, a responsabilidade sobre a inflação é, assim, do governo e de suas autoridades monetárias que acabam injetando muita moeda na economia ou que permitem aos bancos comerciais emitirem crédito e, dessa maneira, criarem moeda de forma desmedida. Portanto, para esses teóricos, para conter a inflação bastaria o governo controlar o crédito, aumentando o encaixe bancário e recolhendo dinheiro pelo mecanismo da dívida pública. No entanto as coisas não são tão simples quanto parecem. Isso porque o crédito é um mecanismo fundamental para aumento da capacidade produtiva (investimento). Com o crédito reduzido, a economia capitalista desacelera, ocasionando aumento do desemprego e recessão, fatores que freiam o processo de acumulação de capital. Já os economistas estruturalistas defendem que a inflação advém do aumento de preços de produtos e serviços e não do aumento da criação de moeda. Para esses, é o sentido contrário. É a expansão dos preços de bens e produtos que

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força a necessidade de se injetar mais moeda na economia. Além disso, o próprio mercado é capaz de regular o preço da moeda no médio prazo, sendo assim, havendo muita moeda em circulação os preços se reajustarão. Nesse caso, a inflação é um mero reajuste de valores. O fato é que a inflação é consequência de um instrumento dos oligopólios e monopólios para aumentar temporalmente sua taxa de lucro, seja pela venda de seus produtos e serviços mais caros no mercado, ou pela demora no repasse desses ganhos extras ao salário. Isto é, cada empresa busca aumentar seus preços (se assim o puderem, caso dos monopólios e oligopólios). A questão é que, ao fazê-lo, todas as outras fazem o mesmo, uma vez que toda a economia está interligada. Assim, criase a inflação. A Inflação acaba sendo um instrumento de redução do salário real em um lapso de tempo, até que o salário nominal seja reajustado. Vejam, quando a inflação é divulgada os produtos já foram comprados com o aumento de preço. Portanto, no ato da utilização do salário, ele já não valia mais aquilo que seu detentor, o trabalhador, achava que ele realmente valia. Você pode estar agora se perguntando: mas então quando esses monopólios e oligopólios não utilizam esse mecanismo que causa inflação? Quando a demanda está baixa e o aumento de preços pode ocasionar perda de vendas e, portanto, de lucro. Salvo exceção de produtos essenciais, os

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outros produtos estão suscetíveis a essa situação. Esse é outro instrumento defendido pelos economistas liberais para conter a inflação: o aumento do desemprego para que assim caia a demanda e, consequentemente, a inflação. Isso ocorre, pois eles defendem que o aumento dos preços é oriundo de uma demanda elevada para bens e serviços limitados. Todavia, como vimos, essa lógica só valeria para produtos inelásticos em que a oferta não pode variar junto com a demanda. Há ainda os que defendem a tese da inflação de custos. No entanto, esses se esquecem de que os custos para um foram, anteriormente, o preço de venda para outro. Assim, segue-se a lógica de que o aumento de preço se dá pelo fornecedor. Quando a inflação foge ao controle, ou seja, fica muito alta, ela se torna inercial, sendo que os cálculos sobre a rentabilidade dos capitalistas ficam extremamente difíceis e, muitas vezes, impraticáveis. Nesse momento, aqueles que usufruem desse mecanismo começam a se preocupar. O caso clássico no Brasil ocorreu entre o final da década de 1980 e início da de 1990 quando a inflação chegou a quase 2000% em 1989 e a 2500% em 1993. Com esse processo os salários e os preços eram reajustados diariamente. Havia corrida aos mercados para que as pessoas aproveitassem enquanto seu dinheiro no bolso valesse algo. Esse processo, de aumento de demanda para estocagem, aumentava ainda mais a

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inflação, gerando um ciclo vicioso. Para correção foi preciso criar planos econômicos e trocas de moedas para se tentar escapar da situação. Graças a esses eventos paira ainda hoje um fantasma da inflação sobre o Brasil. Em 1986, com o Plano Cruzado, tentou-se uma espécie de mecanismo de planejamento por meio do congelamento de preços, isto é, de proibição por decreto no aumento dos preços. No entanto, antes mesmo de tentar resolver os pontos de estrangulamento para que os salários pudessem voltar a crescer e a economia retomasse sua atividade econômica com a inflação controlada, a pressão política foi tamanha que o plano não durou muito e fez com que o governo trocasse toda a sua equipe econômica de orientação heterodoxa, por outra com uma perspectiva ortodoxa47, e que apenas aprofundou o problema inflacionário. É justo mencionar que a equipe econômica que instituiu o Plano Cruzado foi, de alguma forma, traída pelas ambições eleitorais do partido governista à época, o Partido Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Isso porque, o congelamento dos preços havia conseguido controlar a inflação o que gerou uma enorme satisfação entre os trabalhadores. Embriagados pelo apoio popular,

47 Essas nomenclaturas serão explicadas no tópico sobre Políticas Econômicas.

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o governo que tinha ambições nas eleições municipais, estendeu o congelamento para além do planejado pela equipe econômica, gerando um contra-ataque ferrenho por parte dos grandes oligopólios. A inflação só seria contida após esse processo com o Plano Real em 1994. Contudo, isso ocorreria a um preço muito alto, já que todas as políticas voltadas ao crescimento econômico ficaram engessadas com o compromisso de conter a inflação48. É importante ressaltar, por fim, que a inflação se tornou um instrumento de alocação de recursos escassos aos que possuem dinheiro. Isto é, quando há muita demanda por algum produto que é escasso, ou seja, uma situação em que há pouca oferta, os capitalistas aproveitam para aumentarem o preço e, portanto, seu lucro, o que faz com que apenas aqueles que possuem recursos possam adquirir determinado bem ou serviço. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o aumento de 35% sobre o preço da carne bovina em novembro de 2019. Nesse sentido, a inflação se torna, também, um instrumento de segregação social. Veremos no último tópcio como a escassez é gerida em uma economia planificada sem, necessariamente, o preço subir.

Abordamos essa temática mais adiante no tópico sobre Políticas Econômicas. 48

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CÂMBIO

A palavra “câmbio”, tanto em espanhol quanto em português, significa “troca” ou “transformação”. Porém, em economia, essa “troca” é bastante específica. Para nós, “câmbio” é a troca entre diferentes moedas. Como vimos, a moeda, assim como toda mercadoria, possui um preço que, em seu caso, chamamos juro. Mas o que torna a moeda ainda mais especial é que ela também possui um segundo “preço”, que é da comparação entre diferentes moedas. Isso porque cada Estado Nacional costuma ter sua própria moeda já que esse é um importante mecanismo de soberania nacional (ainda que ela não a garanta). Há somente algumas exceções, quando países adotam a moeda de outro, sobretudo o dólar. Damos a essas economias que não fabricam dólares, mas o adotam como moeda nacional, o nome de “dolarizadas”.

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Assim, quando ocorrem trocas comerciais entre diferentes países, é inevitável que se faça uma comparação de preços entre essas moedas. É essa relação que denominamos “taxa de câmbio”. Por ser uma relação entre moedas, quando uma dada moeda nacional valoriza, dizemos que a taxa de câmbio baixou, enquanto, quando a moeda nacional se desvaloriza, dizemos que a taxa de câmbio aumentou. Vejamos um exemplo: se com R$ 1,00 (um real) se compra US$ 1,00 (um dólar), temos uma taxa de câmbio de 1 R$/US$. Caso a taxa de câmbio aumente para 2 R$/US$, significa que serão necessários dois reais para se comprar um dólar, o que indica uma desvalorização do moeda brasileira em à moeda estadunidense49. Para as trocas comerciais internacionais não basta existir uma relação de preço entre as moedas das nações envolvidas. É necessário que haja meios de pagamento aceitáveis entre os diferentes países para que o comércio internacional se realize já que, salvo em casos pouco prováveis em que a troca é exata, um ou outro ficará com a

49 A forma adotada aqui é a chamada direta, isto é, quando a comparação da moeda nacional se dá em relação à estrangeira. Há também a forma “indireta”, que é a comparação da moeda estrangeira em relação a nacional.

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sobra50. A lógica é a mesma que vimos no tópico sobre o dinheiro. Dinheiro é, essencialmente, um meio de pagamento que precisa ser aceito pelos participantes da troca para exercer esse papel. Ora, o real é aceito no Brasil para trocas internas, mas por que algum país haveria de aceitar trocar mercadorias com o Brasil por reais? Isso ocorrerá apenas se houver perspectiva por parte da nação estrangeira de gastar a moeda brasileira mais adiante. No entanto, o mais comum é que os países aceitem uma moeda que os outros países também utilizam como meio de pagamentos, posto que a comercialização se dá com várias outras nações. Como já vimos, a utilização de metais preciosos, sobretudo o ouro, exerceu um papel importante como moeda no desenvolvimento comercial, já que era aceito como meio de paga-mento tanto na Europa como na Ásia, notadamente durante o período de colonização em que houve uma grande introdução de metais preciosos na economia. Apesar de, nesse período, já existirem os títulos e o dinheiro, eles costumavam ser aceitos apenas localmente ou entre circuitos comerciais mais restritos. Por esse motivo, por um longo tempo, esse papel ficou a cargo dos metais preciosos.

50 Há casos de parcerias e de acordos bilaterais em que não se envolve moeda, fixando-se a troca pelas quantidades e não pela moeda. Mas o mais comum é mesmo que as mercadorias sejam trocadas por moeda.

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Devido à colonização e à injeção de ouro e prata na economia global, no decorrer do final do século XIX as principais potências mundiais, como Alemanha, EUA, França, Inglaterra e Japão conseguiram garantir o lastro de suas moedas em ouro e prata, o que conferia credibilidade. Esse período ficou conhecido como do “padrão-ouro”. Todavia, a restrição ao aumento da liquidez causado pelo descompasso entre a exploração mineral nas colônias e o desenvolvimento industrial acelerado, levava a recorrentes crises e limitava o crescimento econômico, dado que a quantidade de moeda não poderia aumentar junto com os preços. Esse tipo de prática ficou conhecido como “eutanásia do crescimento econômico” que atingia, principalmente, os países com balança comercial desfavorável, isto é, aqueles com mais importações do que exportações, que perdiam ouro de forma acelerada. A guerra comercial, que envolvia a influência sobre territórios colonizados, levou aos conflitos que marcaram a Primeira Guerra Mundial. Após sistemáticas crises causadas pela limitação da expansão da liquidez e pela concentração do ouro nos países mais ricos que exportavam mais do que importavam, em 1944 se realizou uma conferência na cidade de Bretton Woods, EUA, para se propor soluções ao problema. Findada a Segunda Guerra Mundial, os EUA se destacaram como a grande potência econômica

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capitalista mundial. Não por acaso firmou-se um acordo (chamado Acordos de Bretton Woods) em que se substituiu o padrão-ouro (já em decadência) pelo padrão dólar-ouro. É importante destacar o significado político desse acordo, uma vez que havia uma outra proposta, encabeçada pelo economista inglês John M. Keynes de criação de uma moeda internacional para que a liquidez mundial não fosse controlada por nenhum país especificamente. No entanto, o poderio militar e econômico dos EUA, que possuíam na época cerca de 80% da reserva mundial de ouro, forçou a adoção do dólar e do ouro como meios de pagamento a serem aceitos no comércio mundial. Para tanto, os EUA se comprometeram a manter a sua taxa de câmbio fixa em US$ 35,00 por onça de ouro (uma onça equivale a cerca de 28,35 gramas), enquanto todos os outros países deveriam manter também sua taxa de câmbio na mesma equivalência ao dólar estadunidense. Assim, caso houvesse variação na demanda e na oferta por dólares na economia dos outros países, os governos deveriam intervir comprando ou vendendo o dólar no mesmo preço pré-fixado. Por exemplo, se aumentasse a oferta de dólares, pressionando uma queda do preço, o BC do governo deveria intervir comprando ao preço fixado, mais alto. Caso houvesse um aumento de demanda, pressionando para um aumento do preço, o BC deveria vender dólares ao preço mais

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baixo. Ora, é claro que esse sistema beneficiava os EUA. Afinal, eles eram (e são) os donos da impressora de dólares, enquanto os outros países, caso precisassem vender seus dólares, poderiam esgotar suas reservas, sendo obrigados a adquirirem empréstimos. E foi exatamente o que ocorreu. Para esses empréstimos foi criado o Fundo Monetário Internacional (FMI) que, composto por um fundo de moedas de seus membros associados, deveria garantir o fechamento das contas através de empréstimos. Obviamente, a maior parte do fundo era composto por dólares e, portanto, o país mais influente e mais presente no fundo eram os EUA. Junto ao empréstimo o FMI impunha também medidas econômicas a serem executadas pelos governos locais, transformando o órgão em um importante instrumento de imposição de políticas econômicas dos países ricos aos países pobres. Os endividamentos crescentes dos países pobres, que viviam (e vivem) sucessivos aumentos inflacionários acompanhados pelo aumento do volume de meios de pagamento, fizeram com que não pudessem garantir os equilíbrios das contas externas, tendo que recorrer aos empréstimos, endividando-se enormemente. Assim, os países de maior inflação acabavam obtendo uma desvalorização maior de sua moeda em relação àqueles que possuíam menor inflação, o que mostrou que era questão de tempo para o sistema criado em Bretton Woods colapsar. A ausência de reajustamento da

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taxa de câmbio, isto é, a manutenção das desvalorizações tornou-se uma prática comum para a contenção da inflação nos países pobres. Ademais, a manutenção da taxa de câmbio com inflação alta levaria ao aumento dos custos de produção, encarecendo as exportações, que é exatamente o principal meio de aquisição de divisas51. Por esse motivo os países passaram a desvalorizar sua moeda propositalmente. Aproveitando-se da necessidade de aquisição de dólares por todos os países e por ser o detentor da “fábrica de dólares”, os EUA passaram a ter vantagens na compra de produtos estrangeiros. Porém, eles fizeram uso do benefício não só para comprar produtos, mas também para adquirir empresas, sobretudo na Europa, que havia sido destruída na segunda grande guerra. Foi assim que as multinacionais estadunidenses adentraram fortemente no mercado europeu. Como, supostamente, os EUA possuíam lastro, ou seja, uma equivalência entre os dólares emitidos e ouro em suas reservas, muitos países optaram por fazerem reserva cambial em títulos públicos dos EUA já que, diferente do ouro, aqueles rendiam juros, possibilitando a realização de

51Chama-se “divisas” o conjunto de meios de pagamento estrangeiros, tanto de moeda como de outros meios conversíveis, tais como letras de câmbio (título de crédito), cheques e ordens de pagamento.

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pagamentos internacionais com esses títulos. Foi assim que se criou o mercado de “eurodólares”, isto é, títulos em dólar sob propriedade de bancos centrais europeus, utilizados para pagamentos internacionais. Não tardou para que houvesse uma desconfiança grande sobre esse mecanismo e alguns países, seguindo o exemplo da França, passaram a trocar dólares por ouro, caracterizando uma “corrida ao ouro”. Esse movimento reduziu significativamente as reservas de ouro dos EUA, ameaçando o padrão dólar-ouro estabelecido em Bretton Woods. Era claro que já não havia lastro e que a utilização do dólar estava baseada na confiança quanto à solidez da economia estadunidense. No entanto, a diminuição sistemá-tica das reservas de ouro ligou o sinal de alerta do governo dos EUA. Assim, em 1971, o governo dos EUA decidiu adotar o sistema de câmbio flutuante, isto é, em que o preço do dólar e do ouro deveria variar de acordo com as flutuações de oferta e demanda do mercado, pondo fim ao câmbio fixo e ao padrão dólar-ouro. Daí em diante, o ouro passou a ter um “preço político” determinado pelos interesses dos principais Estados detentores. O dólar tornou-se, assim, a principal moeda utilizada para a grande maioria das trocas no comércio internacional e, portanto, a principal moeda de reserva da maioria dos países capitalistas no mundo. Sua hegemonia só seria contestada

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após a introdução do euro em 2002 e, mais recentemente, pelo yuan, dada a importância comercial global exercida pela China. Porém, enquanto os EUA forem a principal potência econômica mundial, o dólar continuará sendo o principal meio de pagamento do comércio mundial. Por esse motivo, quando nos referimos à taxa de câmbio brasileira estaremos tratando mais diretamente da relação entre o real e o dólar estadunidense. O rompimento do padrão dólar-ouro levaria a uma sequência de crises, a saber, aos dois choques do petróleo e à crise da dívida dos países periféricos, dentre eles o Brasil. Veremos no próximo tópico como a manipulação da taxa de câmbio (Política Cambial) possui um papel importante na condução de Políticas Econômicas. Todavia, observaremos também como o processo de aceleração da dívida externa, tanto para cobrir déficits no Balanço de Pagamentos como para investimentos, implicou em uma limitação de sua aplicação em um primeiro momento. Mais ainda, notaremos como a adoção do câmbio flutuante após o Plano Real tornou a Política Cambial infértil. Enfim, por se tratar de uma moeda pouco desejada no mercado interna-cional, o Real tem sua variação atrelada à oferta e demanda das moedas fortes (como dólar e euro), e à inflação interna, o que mostra uma das faces da dependência da economia brasileira.

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PARTE II TEMAS DA ECONOMIA _________________________________________________________________________________________________________________________________

POLÍTICAS ECONÔMICAS

Denominamos políticas econômicas as medidas que os governos podem adotar para impactar, direta ou indiretamente, a atividade econômica. Essas políticas são divididas em fiscal, monetária e cambial e a sua aplicação depende muito da concepção teórico-ideológica dos seus promotores. De forma geral, podemos

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separar as concepções econômicas em ortodoxas e heterodoxas, sendo os que estão do lado da heterodoxia defensores da participação efetiva e direta do Estado e aqueles do lado da ortodoxia os que defendem a menor participação e intervenção por parte da esfera pública. No entanto, não se trata de uma simples diferenciação quantitativa, mas essencialmente qualitativa. Reparem que o termo “Estado mínimo” não cabe ser aqui utilizado, já que, para ambos, o Estado precisa existir e ser forte para garantir os mecanismos de acumulação e de oportunidades de negócio para a iniciativa privada. A diferença fundamental está no fato de que, enquanto os heterodoxos acreditam que o Estado deve possuir uma participação ativa de planejamento e de indução da atividade econômica (inclusive na atividade produtiva através de empresas públicas), para a ortodoxia o Estado deve ser austero e ter uma participação passiva diante das forças do mercado, apenas regulando alguns supostos “desequilíbrios”. Esse é o motivo pelo qual as classes dominantes, em tempos de bonança, flertam com os economistas orto-

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doxos e, em tempos de crise, recorrem às políticas heterodoxas52. É importante não confundir essa classificação com o espectro político de esquerda e direita. Isso porque, apesar de toda a ortodoxia ser liberal e de direita, na heterodoxia se encontra parte da direita, a exemplo dos socialdemocratas, que defendem um Estado forte e atuante, mas com o objetivo de criar condições para que a iniciativa privada realize o processo de acumulação, bem como parte da esquerda socialista que defende a participação da Estado no sentido de suplantar a propriedade privada. De antemão, já adianto que nenhuma política econômica é a razão única de mudanças econômicas53. Sem dúvida, aquela que possui maior poder de influência sobre a atividade econômica e a inflação é a política fiscal. Porém,

52 Essa tem sido uma regra de forma geral ao longo da história, mas que vem sendo quebrada pelos países subdesenvolvidos, após a hegemonização da ideologia neoliberal. Ao contrário dos países desenvolvidos, em momentos de crise, parte desses países tem adotado políticas restritivas, como retrocessos em direitos sociais e trabalhistas e ajuste fiscal que só têm causado aprofundamento das crises. 53 Essa ideia não é consenso entre todos os economistas, sobretudo entre aqueles que utilizam modelos para sua análise.

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mesmo ela, isolada, não é capaz de realizar qualquer política econômica sem uma combinação com as outras modalidades e com uma leitura minuciosa do contexto econômico não só interno mas também internacional. A análise econômica pressupõe uma visão cuidadosa sobre a totalidade de fatores econômicos e políticos e não sobre algumas poucas variáveis como o fazem os escritores de manuais de macroeconomia. Somente nesses escritos é que o mecanicismo e o automatismo das consequências das políticas econômicas costumam funcionar, em longas e cansativas páginas54.

54 A esmagadora maioria dos cursos de economia ao redor do mundo utiliza nas bibliografias das disciplinas de macroeconomia apostilas, mais conhecidas como “manuais”. Neles, cria-se situações inexistentes em que se pode isolar praticamente todas as variáveis a fim de se simplificar uma situação e um exemplo. No entanto, sempre surge uma situação real que acaba desmentindo a simplificação dos fenômenos econômicos. Um bom é exemplo é o caso de “estagflação”, em que uma economia convive com inflação mesmo tendo estagnação econômica e, portanto, baixa demanda. Para essas situações, vão se criando exemplos de exceção, que logo se mostram, em sua somatória, as regras. Essa ação garante também, de alguma forma, também garantem a publicação de novos manuais, enriquecendo ainda mais os seus autores.

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Política fiscal

A política fiscal diz respeito à gestão sobre os recursos públicos. Isto é, sobre as receitas e as despesas do Estado. As receitas, como bem se sabe, são oriundas, sobretudo, dos tributos. Mas não só. Veremos adiante, no item sobre a Dívida Pública, que a receita pode ser adquirida por empréstimos e pela emissão de títulos. Assim, a política fiscal trata das escolhas do governo sobre os mecanismos, as formas e as quantidades de arrecadação de recursos e quais serão as aplicações prioritárias. Abordemos, primeiro, das formas de arrecadação compreendendo o que são e quem contribui com os tributos. Ainda que na linguagem comum se denomine imposto todo e qualquer tributo, existe uma diferença de nomenclatura. Dentre os tributos, os mais comuns são as taxas, as contribuições e os impostos. As taxas são pagamentos relacionados diretamente a serviços públicos, como coleta de lixo e iluminação pública. Já o que se chama de contribuição são cobranças vinculadas diretamente à sua futura despesa, como por exemplo o Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), que deve

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ser toda destinada à Seguridade Social. Impostos são as cobranças que não possuem uma destinação específica preestabelecida, no entanto são as que mais incidem sobre a renda do trabalhador e, por isso, estão sempre em maior evidência. Os impostos costumam ser sempre lembrados e demonizados pela grande mídia que formula a opinião pública. Afinal, quem não odeia os impostos? Contudo, esquece-se, ou oculta-se propositalmente, da necessidade de sua existência para a aplicação desses recursos. É difícil encontrar alguém que considera justa a carga tributária paga. A grande maioria das pessoas acredita que paga muito imposto, e essa impressão não é a toa. Isso porque a crítica à forma de cobrança de tributos e sua aplicação devem estar sempre juntas. Vejamos um exemplo: é muito comum encontrarmos lares no Brasil compostos por mães que cuidam e sustentam seus filhos sozinhas. Imaginemos que essa mulher possua um trabalho de empregada doméstica que a remunere com R$ 1.000,00 e ela precisa sustentar, além de si mesma, mais quatro crianças. Geralmente, um salário desses é suficiente (quando sim) apenas para despesas com moradia (incluindo aluguel e contas) e alimentação (quase sempre péssima). As

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despesas com saúde, educação, segurança e lazer, por exemplo, não são custeadas por essa mulher diretamente, mas por meio dos impostos. Por pior que possam ser os serviços ofertados pela escola, pelo hospital, pela polícia e pelos espaços públicos, eles existem. Suponhamos que para o empregador as despesas totais com a contratação (supondo que ela possua carteira assinada, o que é historicamente incomum no Brasil) sejam de, aproximadamente, R$ 1.700,00 mensais55. Imaginemos que o empregador não precise mais pagar impostos e que ele possa remunerar essa mulher com os R$1.700,00 sem deduções56. A questão é: será que essa mesma mulher, agora com os

55 O custo com tributação e direitos trabalhistas como férias, décimo terceiro, adicional de férias, seguridade social costuma representar um adicional ao salário líquido de 67%. Ou seja, se o trabalhador recebe em sua conta R$ 1.000,00, isso significa que, para o empregador, esse trabalhador lhe custou, no total, cerca de R$ 1.670,00. 56 Claro que essa suposição é irreal e meramente ilustrativa, posto que o empregador sempre buscará pagar o mínimo necessário a seus funcionários. Nesse caso, se ele fosse liberado das contribuições e dos direitos trabalhistas, obviamente, continuaria pagando R$ 1.000,00 e não os R$ 1.700,00. Como vimos, isso é possível graças ao exército industrial de reserva.

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R$1.700,00, seria capaz de pagar aos quatro filhos um plano de saúde da mesma qualidade que o Sistema Único de Saúde (SUS)? Será que essa mulher conseguiria pagar escola privada para os quatro filhos? Será que ela poderia pagar segurança privado ou ter algum tipo de lazer? É claro que não. Além disso, essa trabalhadora estaria desamparada em caso de necessidade de afastamento, seja por doença, por gravidez ou por qualquer outro motivo. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), baseado nos termos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, realiza um estudo mensal sobre o salário mínimo necessário para garantir o pagamento desses serviços básicos para uma família de quatro pessoas e conclui que, havendo já a garantia dos serviços públicos básicos, esse salário precisaria ser cerca quatro vezes o salário mínimo nominal57. E, por mais que se propagandeie os supostos ganhos com redução de impostos, o salário mínimo jamais aumentaria em quatro vezes com essa medida.

57 Em abril de 2020 o salário mínimo era de R$1.045,00. Para o Dieese ele deveria ser de R$4.673,06.

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Pois bem, é claro que sem tributação não haveria oferecimento desses serviços básicos. Portanto, a redução da tributação só interessa àqueles que não usufruem desse serviços. Isso é, aqueles que pagam plano de saúde, escola privada aos filhos, que moram em condomínios fechados e que não frequentam espaços públicos de lazer58. Essas pessoas são as que chamamos de classe média. Aos ricos interessa muito a tributação. Não sobre eles, é claro, mas sobre os trabalhadores, já que eles, apesar de não usarem os serviços públicos, são beneficiados com o pagamento de juros da dívida pública, da qual são credores. Os empresários repetem insistentemente que se paga muito imposto no Brasil, mas reclamam isso de forma individual. Quer dizer, os empresários, ou setores organizados querem pagar menos impostos, porém não querem que os outros deixem de pagar. Caso haja uma redução da arrecadação a própria

58 Vale dizer ainda que essas pessoas podem pedir restituição do imposto de renda pago nesses serviços privados básicos, como saúde e educação. Isto é, recebem de volta o imposto pago pelo uso desses serviços.

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iniciativa privada condenaria seus ganhos financeiros59. Estudemos, então, a realidade da estrutura tributária no Brasil. Quase 50% da receita é oriunda da tributação sobre o consumo, 25% é sobre a folha salarial, 20% é sobre renda, lucro e ganhos de capital60 e apenas 5% sobre a propriedade. Entretanto, se comparado a outros países pode-se perceber que essa não é uma estrutura normal, natural ou imutável. Na Dinamarca, por exemplo, a receita é composta por 30% de tributos sobre o consumo, 65% sobre renda, lucro e ganho de capital, 1% sobre folha salarial e 4% sobre propriedade61. Isso significa que, no Brasil, os pobres e a dita classe média pagam mais impostos que os ricos tanto em

59 Abordaremos os mecanismos da Dívida Pública mais adiante. 60 Em todo o mundo, apenas o Brasil e a Estônia não tributam dividendos (lucro adquirido pela propriedade de ações de empresas). No Brasil, até 1995 os lucros e os dividendos eram tributados em 15% pelo Imposto de Renda Retido da Fonte (IRRF). No entanto, essa cobrança foi extinta pela Lei nº9.249, promulgada como presente de natal aos ricos, no dia 26 de dezembro de 1995. 61 Esses dados são aproximados, baseados no relatório da Receita Federal de 2017 que compara o Brasil aos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

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termos absolutos, isto é, a somatória dos tributos totais pagos, como em relativos, que correspondem à porcentagem do tributo sobre a renda total. Para a questão distributiva, costuma-se dividir os tributos entre progressivos e regressivos. Isto é, cobrar mais de quem possui mais, no caso do progressivo, ou cobrar menos de quem possui mais, no caso do regressivo. O imposto sobre a renda é um ótimo exemplo de imposto progressivo. Quando maior a renda, aumenta-se não só o valor absoluto, mas também a alíquota62. No Brasil, no entanto, ainda que o Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) seja progressivo, sua alíquota máxima não ultrapassa os 27,5% e esse valor é pago por todos aqueles que recebem mais do que R$4.664,6863. Em alguns países europeus, a alíquota máxima ultrapassa 50%. Ou seja, uma pessoa que possui renda de US$1 milhão, nos

62 “Alíquota” é a denominação percentual do tributo. 63 A última atualização da tabela foi feita em 2015. Hoje, em 2020, a inflação acumulada no período já é de 32%. Isso significa que alguém que recebia dois salários mínimos em 2015 não pagava esse imposto e em 2020 passou a pagar. Portanto, cada ano que passa sem reajuste da tabela, mais pessoas de baixa renda passam a pagar esse imposto.

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países nórdicos, tem deduzido mais de U$500 mil, enquanto no Brasil, ela teria recolhido, no máximo, U$275 mil. A tributação pode ser direta da fonte (como o IRPF) ou indireta, quando incide sobre a produção e o consumo (como o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS). Essa última incide sobre o preço, mas a anterior também, porque os ofertantes de bens e serviços imputem os impostos nos preços. Nesse sentido, ainda que o pagador seja, no último caso, o comprador, e no primeiro o “vendedor”, em última análise é sempre o consumidor final que arca com os tributos, já que eles estão na base do cálculo dos preços. Só fogem a essa regra os ganhos sobre dividendo, imposto sobre fortuna e herança – e, por isso, seria esse tipo de tributo o que garantiria maior capacidade de distribuição de renda. No caso do Brasil, que é uma república federativa, há diferentes competências sobre os tributos. Isto é, há tributos específicos para as receitas da união, dos estados e dos municípios. Um dos problemas hoje é que a maior parte da receita dos estados provém do ICMS. Assim, quando há crise e cai o consumo, reduz-se acentuadamente a arrecadação dos estados.

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Após vermos a forma de arrecadação, vejamos o modo de alocação das receitas para política fiscal. Esse mecanismo permite ao Estado64 concentrar ou distribuir renda. Ou seja, da mesma forma que se pode escolher taxar mais os ricos do que os pobres, pode-se escolher destinar mais os recursos para bens e serviços utilizados por pobres do que por ricos. Todavia, na estrutura tributário brasileira, ocorre justamente o contrário. É bom lembrar que os gastos da União antecedem a sua arrecadação. Isto é, os pagamentos dos governos são efetuados através de uma “criação temporária de moeda nova”, mas que é “liquidada” através da arrecadação ou da emissão de dívida pública em momento posterior. No entanto há um limite legal impostos para a expansão dos gastos que está associado à expectativa sobre a arrecadação. Segundo prevê a Constituição Federal de 1988, existem três leis orçamentárias que balizam as

64 Já deve ter ficado claro que estamos utilizando a palavra “estado” com letra minúscula para nos referirmos à unidade federativa – por exemplo, Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pará e Paraná – e com letra maiúscula para representar a entidade representante dos três poderes – executivo, legislativo e judiciário – da república.

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contas públicas: o Plano Plurianual (PPA), que planeja os gastos durante o mandato do governo; a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que define as metas fiscais de curto prazo; e a Lei Orçamentária Anual (LOA), que consiste propriamente na lei a ser seguida pelo Poder Executivo. Há previsões legais sobre o mínimo a ser gasto em áreas previstas como dever do Estado ofertar à população de acordo com a constituição, como educação e saúde65. Como vimos, chamamos de impostos aqueles recursos manejáveis e que a sua alocação cabe às decisões do poder executivo (seja na esfera municipal, estadual ou federal), mas que deve ser aprovada pelo poder legislativo (também nas três esferas). Vimos também que contribuições são recursos já vinculados ao seu destino final, cabendo ao governo apenas executá-los. No entanto, existe um mecanismo chamado

65 Por outro lado, em dezembro de 2016 foi aprovada a Emenda Constitucional nº95 que, pela primeira vez na história mundial, estabeleceu um teto de gastos e congelamento dos investimentos em áreas sociais, por 20 anos. E apesar disso, não determinou um teto aos gastos com juros da dívida publica. Isto porque o objetivo é exatamente esse, usar recursos públicos para enriquecer ainda mais os detentores de títulos.

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Desvinculação das Receitas da União (DRU) que permite a utilização desses recursos para outros fins que não os preestabelecidos66. Há ainda os subsídios que são “impostos ao contrário”, isto é, quando o governo dá incentivos para alguma atividade ou setor. Esse é o caso do agronegócio, que é financiado por meio de empréstimos com juros abaixo da inflação. É muito comum escutarmos de economistas liberais, como forma de explicar porque o governo precisa fazer ajuste fiscal, que ninguém deve gastar mais do que arrecada. É recorrente ainda se dar o exemplo de uma família que faz suas contas para não se endividar, evitando entrar em uma “bola de neve”. Contudo, é uma enorme desonestidade e um desserviço o que esses economistas fazem quando estabelecem essa comparação, uma vez que eles sabem que, em termos de medidas econômicas, é um absurdo comparar a situação de uma família, com receita limitada e que depende, geralmente, de um salário fixo, com um Estado que pode imprimir moeda, concentrar

66 A DRU, criada em 1994 com data para terminar, permitia que 20% das contribuições fossem realocadas. Após sistemáticas prorrogações, em 2016, esse valor passou a 30%.

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um montante expressivo de recursos e emitir títulos públicos com taxa de juros escolhida por ele próprio. Mesmo que ainda equivocada, seria menos desonesta a comparação com uma empresa com capacidade de investimento. Ora, por que uma empresa se endivida? Porque possui expectativa de ganhos superiores futuros. O mesmo pode ocorrer com o Estado que, ao adquirir dívida, pode investir e, proporcionando crescimento econômico, pode aumentar sua receita através do lucro de empresas públicas ou da tributação para pagar as dívidas. A crítica se encontra então no fato de que a elevação dos gastos do governo poderia aumentar a inflação. No entanto, como vimos no item sobre Inflação, seu aumento pode ser freado também pelo controle estatal desde que este não esteja completamente sujeito às ordens da classe dominante. A política fiscal pode ainda ser utilizada para manter a atividade e/ou a estabilidade econômica. Isso não significa dizer que há apenas uma receita. A depender da corrente de pensamento, pode-se adotar políticas cíclicas ou anticíclicas. Dentro da heterodoxia, de acordo com a corrente teórica, há aqueles que acreditam que, em momentos de crise econômica, o Estado pode aumentar a tributação (sobretudo sobre

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aqueles com maior condição de pagamento), emitir títulos públicos ou até mesmo criar moeda para aumentar seus gastos e, assim, reativar a atividade econômica. Entretanto, para a ortodoxia, para se conter uma crise, o Estado deve adotar medidas de austeridade, reduzindo tributação e gastos (o famoso ajuste fiscal) para criar condições e incentivar a iniciativa privada a investir e reativar a atividade econômica. Os exemplos históricos têm mostrado que a primeira opção tem tido maior êxito, como o New Deal, que recuperou a economia estadunidense após a grande depressão da década de 1930 e o fracasso das políticas neoliberais nos países latino-americanos desde a década de 1980.

Política monetária Os títulos públicos, que são “empréstimos” adquiridos pelo Estado, são instrumentos que podem aumentar a receita e, portanto, ser utilizados para política fiscal67. Mas eles também podem ser usados como política monetária, pois,

67 A explicação sobre o que são os títulos públicos e quais são os mecanismos de sua emissão estão presentes no tópico sobre Dívida Pública.

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ao se comprar de volta os títulos, o governo injeta moeda na economia e, ao emitir título, retira. Apesar de parecer complicado, o mecanismo é simples: quando o governo emite um título, seus compradores entregam dinheiro ao governo que pode utilizá-lo para algum gasto ou para guardá-lo. Por outro lado, quando o governo compra seus títulos de volta ele entrega dinheiro aos seus credores que, por sua vez, o colocam em circulação. Esse é o mecanismo conhecido como mercado aberto (ou open market). Essa é a principal função da política monetária em uma economia de mercado: controlar a liquidez, isto é, a quantidade de moeda em circulação68. Lembrando (como vimos no item sobre Dinheiro) que os principais responsáveis pela criação de moeda em uma economia de mercado são os bancos comerciais (privados e públicos), cabendo à política monetária apenas imprimir dinheiro (de acordo com a demanda) e controlar a liquidez. O controle de liquidez da economia pode ser feito de diferentes maneiras i) pela compra e venda de títulos públicos; ii) pela variação do encaixe (depósito compulsório que os bancos comerciais precisam deixar no BC); iii)

68 Sobre “liquidez”, ver o tópico sobre Dinheiro.

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pela mudança na taxa de redesconto (que é a taxa cobrada pelo BC dos bancos comerciais que precisam de liquidez); iv) e pelo controle seletivo de crédito através da criação de linhas específicas; e v) pela manipulação da taxa do Sistema Especial de Liquidação e de Custória (Selic). A venda de títulos públicos, como vimos, reduz a liquidez da economia pois retira dinheiro de circulação. Assim como o controle direto sobre linhas de crédito, o aumento do depósito compulsório, ao obrigar os bancos comerciais a deixarem mais dinheiro no BC, diminuem sua capacidade de ofertar novos créditos e, portanto, de criar moeda. No mesmo sentido, ao aumentarem a taxa de redesconto, o BC, desincentiva os bancos comerciais a buscar maior liquidez. As medidas contrárias, obviamente, causam o aumento da liquidez. A taxa Selic é considerada a taxa básica de juros porque, como o governo paga essa taxa de empréstimo de forma muito segura, nenhum agente financeiro estaria disposto a emprestar a quem quer que seja em território nacional por uma taxa de juros mais baixa. Desse modo, ela possui a capacidade de influenciar o aumento das demais taxas de juros do mercado. A taxa Selic elevada é, portanto, um instrumento de

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contenção da inflação já que ela eleva a taxa de juros geral do mercado, tornando o empréstimo desvantajoso e, portanto, reduzindo o investimento69. A queda no investimento ocorre também pela diferença do custo de oportunidade. Isso porque, geralmente, títulos públicos com altas taxas de juros se mostram mais vantajoso e rentáveis do que aplicações em investimento que envolvem maiores riscos e só se traduzem em retorno no longo prazo. Além da manipulação da taxa Selic, o governo pode induzir as variações de juros e de linhas de créditos, bem como a criação de moeda, através de seus bancos públicos e de capital misto70. No caso do Brasil, esses bancos

69 O termo “investimento” é utilizado na economia como aplicação de recursos na economia real com vistas a ampliação do dinheiro investido inicialmente. Portanto, especulação na bolsa e ganhos financeiros não estão aí incluídos. 70 Esse termo é utilizado quando há ações sob controle tanto do setor público quanto do privado. Isso pode ocorrer tanto pela “estatização” de parte de uma empresa, o que é pouco comum no Brasil, ou pelo processo de privatização de uma empresa pública. A depender do interesse estratégico do governo, o Estado pode exercer sua maior participação na empresa, como é o caso, por exemplo, do Banco do Brasil e da Petrobrás. No entanto, os agentes privados exercem forte influência sobre as decisões dessas empresas,

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são Caixa Econômica Federal, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Banco do Brasil, Banco da Amazônia e Banco do Nordeste, sendo os dois primeiros (ainda) de capital exclusivamente público e os outros três de capital misto. Pela experiência brasileira, nada garante que a redução da taxa Selic levará a uma queda da taxa de juros do mercado – uma vez que, mesmo existindo bancos públicos, os bancos comerciais privados no Brasil compõem um oligopólio poderosíssimo –, nem assegurará que os capitalistas passarão a investir, já que a maioria migra para aplicações seguras e de curto prazo no exterior desde a década de 1990 quando o fluxo de capitais foi facilitado, nem tampouco que aumentará a inflação71. Supostamente, quando o governo reduz sua taxa básica de juros, a tendência é que os capitalistas, ao invés de optarem pela aquisição de títulos públicos, optem por aplicações mais rentáveis como investimentos. No entanto, em

uma vez que possuem interesse na valorização de suas ações e no aumento de seus dividendos. 71 Em 2019 presenciamos quedas constantes na taxa Selic, alcançando os números mais baixos da história. Por outro lado, a inflação fechou o mesmo ano abaixo da meta estabelecida e o PIB cresceu apenas 1,1%.

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momentos de incertezas mais agudas os capitalistas optam por ter uma rentabilidade menor, todavia mais segura, para garantir a liquidez de seus recursos. Essa situação, que é mais regra do que exceção já que vivemos momentos constantes de crises, causa o que chamamos de “armadilha da liquidez”. Isto é, o momento em que a política monetária perde condições de induzir o investimento. Por esse motivo, se por um lado o aumento da taxa de juros leva, quase automaticamente, os capitalistas a comprarem título públicos (a não ser que haja uma desconfiança grande ou iminente possibilidade de moratória72), a redução da taxa de juros não garante um aumento da atividade produtiva, confirmando as limitações da política monetária. Deve ter ficado claro até aqui que, diferente da política fiscal, que é capaz de aquecer a atividade econômica por meio do aumento de gastos e investimentos de forma direta, a política monetária, através do controle

72 Diferente de famoso “calote”, a “moratória” é uma disposição legal utilizada pelos Estados Nacionais para suspender, temporariamente, o pagamento de uma dívida. Ela pode ser utilizada em caso de guerra, de crise econômica aguda ou quando há estado de calamidade.

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da liquidez, possui condições limitadas de impulsionar o crescimento econômico e controlar a inflação. Se, por um lado, a redução da liquidez costuma ser eficiente para a contenção do crescimento (sobretudo pela restrição ao crédito) e do aumento inflacionário, o aumento da liquidez não é um mecanismo automático de aquecimento da economia. Isso porque esse aumento da liquidez precisa ser convertido em elevação do consumo e do investimento sem causar hiperinflação. Uma das primeiras grandes dúvidas daqueles que estão começando a estudar política econômica é: por que o governo, ao invés de contrair empréstimos e emitir títulos da dívida pública, não passa a criar moeda e aplicar em forma de gastos e investimento? Após a exposição do tópico sobre inflação já deve ter ficado claro que essa medida em uma economia de mercado levaria a um processo inflacionário generalizado (chamado de hiperinflação) ocasionado pelo movimento dos oligopólios que, sabendo da injeção de dinheiro e do aumento da capacidade de compra da demanda, aumentaria seus preços. Na melhor das hipóteses, no médio prazo, o preço dos bens se equalizaria à nova quantidade de moeda em circulação, sem efeito real, mas com impacto significativo sobre o preço

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da moeda nacional em relação às moedas estrangeiras, o que afetaria diretamente a política cambial. No entanto, se em condições “normais” da economia de mercado a expansão desmedida de gastos e investimento a partir da criação de moeda pelo Estado pode causar hiperinflação, em momentos de crise isso não necessariamente ocorre. Dado que nessas situações o desemprego costuma ser muito alto e a demanda muito baixa de forma que, mesmo aumentando a demanda, os oligopólios não poderiam aumentar muito seus preços, uma vez que isso significaria redução nas vendas e, possivelmente, redução do lucro. Além disso, em momentos de demanda muito baixa, o incentivo ao consumo e ao investimento é desejoso para a acumulação de capital.

Política cambial A política cambial consiste nos mecanismos de manipulação da taxa de câmbio. Ou seja, o preço da moeda brasileira no exterior e, consequentemente, o preço das outras moedas na economia brasileira. Como toda mercadoria, a moeda também é negociada no mercado e seu preço varia de acordo com oferta e demanda. A

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depender da conduta do governo, pode haver diferentes políticas de taxa de câmbio: i) flutuante, que varia livremente de acordo com oferta e demanda; ii) fixo, que é determinada pelo BC; iii) misto, com o estabelecimento de limites máximo e mínimo em que ela pode flutuar; e iv) múltiplo, quando há diferentes taxas para diferentes transações. À exceção da taxa de câmbio flutuante, todas as outras exigem uma grande reserva em moeda estrangeira para que o BC possa intervir na economia de mercado. No caso da taxa de câmbio fixo ou múltiplo, o BC precisa, sempre, garantir o mesmo preço fixado. No caso da taxa mista, o BC atua como mais um agente econômico no jogo de compra e venda de moeda, só que com uma grande capacidade de influenciar o preço. Se a demanda por moeda aumentar muito, de modo que o seu preço tenda a aumentar e, portanto, reduzir a taxa de câmbio, o BC passa a vender moeda, elevando a oferta a fim de baixar seu preço. Caso ocorra o contrário, a demanda cair e o preço da moeda também, o BC atua como um comprador, fazendo com que haja uma pressão para que seu preço se eleve. Vale destacar que, mesmo com a atuação do BC, essas variações, no caso do

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câmbio flutuante e misto, não são automáticas, dependendo da conjuntura econômica global. Ainda que seja razoável imaginar que quanto maior o controle do BC sobre a taxa de câmbio melhor para se estabelecer medidas de incentivo à economia, não existe, a princípio, uma taxa de câmbio ideal. Isso porque, se por um lado a moeda valorizada favorece as importações, uma vez que torna os produtos estrangeiros mais baratos, ela desfavorece as exportações que são um importante mecanismo para países de moeda fraca adquirirem reserva cambial. No sentido contrário, a moeda desvalorizada favorece as exportações, já que os produtos nacionais se tornam mais baratos no mercado internacional, porém inibe as importações, dado que os produtos estrangeiros se tornam mais caros. Caberá, portanto, à estratégia do governo e à concepção políticoideológica das autoridades a decisão sobre o valor e a a forma de controle (ou descontrole, no caso do câmbio flutuante) da taxa de câmbio. Durante os períodos de incentivo à industrialização no Brasil, experimentou-se o sistema de câmbio múltiplo. Considerando que a importação resulta em perda de reservas, os governos estabeleceram taxas de câmbio baixas para importações de bens de capital que impulsi-

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onassem a indústria nacional, incentivando-as, e altas para importações de bens de luxo que não serviam à industrialização, mas somente ao deleite da aristocracia. No entanto, esse tipo de prática é hoje condenado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e por qualquer manual neoclássico. Para uma economia que seja dependente de exportações de commodities e matériasprimas em geral para aquisição de divisas, o câmbio desvalorizado será mais vantajoso pois esses produtos se tornam mais baratos na economia global. Contudo, nenhum país é só exportador. Por esse motivo, como esses países são, geralmente, muito dependentes de importação de máquinas e equipamentos (que são mais caros que produtos primários), o câmbio não pode estar muito desvalorizado para não tornar a importação inviável. No caso da China, que é uma grande exportadora global, mas que desenvolve tecnologia de ponta e produtos industrializados, ou seja, não depende muito de importação de bens caros, compensa ter sua moeda desvalorizada e, por esse motivo, assim como por sua capacidade de reserva, é que ela adota o modelo de câmbio fixo. Países que dependem muito da importação de produtos básicos (alimentos por exemplo) e não são

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grandes exportadores, podem manter sua taxa de câmbio baixa, isto é, sua moeda valorizada. Portanto, quando a taxa de cambio é flutuante, o governo abre mão de fazer política cambial, já que fica à mercê das forças de mercado, tentando apenas conter flutuações vultuosas, não tendo condições de influir sobre o que seria melhor para a economia nacional. Quando há valorização ou desvalorização persistente e acentuada em um sistema de câmbio flutuante, o que é muito comum nas economias subdesen-volvidas, marcadas por crises e pela especu-lação, o BC intervém fazendo leilões das moedas fortes para conter movimentos abruptos. Esse é o regime vigente no Brasil desde 1999, e é por esse motivo que a taxa de câmbio do Real oscilou tanto durante as últimas duas décadas. *** Munido do receituário das reformas neoliberais a partir da década de 1990, os sucessivos governos brasileiros desde então, criaram uma série de leis que engessaram a possibilidade de utilização de instrumentos de política econômica (cambial, monetária e fiscal) para a indução do crescimento da economia

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nacional, usando-os exclusivamente para a contenção da inflação e o pagamento da dívida pública. É o famoso “tripé-macroecômico” que combina câmbio flutuante, metas fiscais (mecanismos para garantir o superávit primário, isto é, a redução dos gastos do governo) e o Sistema de Metas de Inflação. O poder da política fiscal de impulsionar a demanda e estimular o crescimento econômico foi limado através da Lei de Responsabilidade Fiscal (nº101, 05/2000), que exige o cumprimento de superávit primário para pagamento dos juros e de amortização da dívida pública que explodiu com a taxa Selic em níveis estratosféricos pela justificativa de controle da inflação e de acúmulo de reservas internacionais para garantir o câmbio valorizado. Essa situação gerou uma relação umbilical entre o setor privado e os títulos públicos que deixaram de ser um instrumento de política econômica para se tornarem uma das melhores opções de rentabilidade financeira. As sucessivas nomeações de figuras ligadas diretamente ao setor financeiro e bancário para presidência do BC, que migram ora do setor privado ao público, ora do público ao privado, como na metáfora da porta giratória, é o escracho da promiscuidade entre o Estado e

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os rentistas que sangram os recursos públicos para amplificar sua riqueza. Sugestões de leitura Economia: que bicho é esse?, de Rosa Maria Marques entre outros.

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DÍVIDA PÚBLICA

Dívida é uma obrigação que se contrai quando se toma dinheiro emprestado a ser devolvido o montante (chamado “principal”) com juros. Porém, diferente da dívida privada, que cada qual adquire de acordo com a sua condição, vontade, necessidade e consciência, a dívida pública é contraída por um determinado governo, mas a obrigação de pagá-la é de toda a população, bem como das gerações futuras. Denomina-se dívida pública bruta a soma das dívidas dos governos federal, estaduais e municipais e dívida líquida a subtração entre a

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dívida bruta e os ativos financeiros do Estado (reservas cambiais e fundos soberanos). Trataremos aqui especificamente da dívida do governo federal, pois ela possui maior complexidade e qualidades diferentes das outras. Como já vimos, a receita do governo federal advém não só de impostos, mas também de empréstimos e títulos públicos. Os empréstimos são feitos com instituições financeiras internacionais. Essa é uma forma bastante eficiente para adquirir recursos com celeridade e assim obter divisas. No entanto, são cobradas taxa de juros altas, visto que, se um país precisa recorrer a essa medida para fechar suas contas, é porque ele já chegou a certo ponto de desespero, o que diminui seu poder de barganha. Esse tipo de dívida é a famosa “dívida externa”, dado que ela é contraída em moeda estrangeira, geralmente, para fechar o balanço de pagamentos73 quando as reservas cambiais estão se esgotando.

73 O balanço de pagamentos é um registro da contabilidade nacional que indica a entrada e a saída de reservas cambiais. Isto é, a entrada e a saída da moeda estrangeira. Quando há mais saída de divisas do que entrada, significa que o Banco Central (BC) precisa utilizar suas reservas para a conta ser fechada. Quando há mais entrada do que saída, esses recursos são armazenados pelo BC para possível uso futuro. O balanço de pagamentos é composto, entre outras

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A dívida externa brasileira foi criada no início do Império, por meio de um primeiro empréstimo feito em libras esterlinas (moeda inglesa). Isso se deu a partir de uma suposta dívida que o Brasil possuía com sua ex-metrópole, Portugal. O fato, bastante curioso, não assusta aqueles que sabem que o processo de independência do Brasil se resumiu a um grande acordo entre o rei de Portugal Dom João e a elite local, que nomeou o príncipe Dom Pedro (até então príncipe regente) imperador do Brasil. O problema maior é que, desde então, essa dívida só aumentou. Durante a Ditadura Civil-Militar, a dívida externa teve o seu primeiro grande aumento exponencial depois que o governo realizou uma artimanha que ficou conhecida como estatização da dívida externa brasileira74. Isso ocorreu

contas, pelas balanças de serviços (reais, como transporte e turismo, e financeiros, como juros, lucros e dividendos) de capitais (como investimentos diretos e empréstimos) e comercial (importações e exportações). Esta última, que na verdade compõe um conjunto chamado de transações correntes, representa o item mais importante para a garantia de divisas, uma vez que, no Brasil, ela movimenta o maior volume. 74 Esse foi um mecanismo bastante astuto utilizado pelas empresas brasileiras para trocar suas dívidas em dólar por dívidas em moeda nacional (a época o

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porque, enquanto o governo usava as empresas públicas para adquirir empréstimos em dólar no exterior, ele trocava as dívidas em dólar das empresas brasileiras por obrigações em moeda nacional, à época, o Cruzeiro. Esse mecanismo foi utilizado, obviamente, por pressões do empresariado brasileiro que via sua dívida crescer por conta da desvalorização cambial acelerada do período, uma vez que, enquanto seu faturamento era em cruzeiros, sua dívida era em dólar. O problema maior foi que, esses empréstimos do governo brasileiro foram firmados com juros flutuantes, isto é, a dívida variaria junto com a taxa básica de juros estabelecidas pelo governo estadunidense75. Assim, quando no final da década de 1970 os EUA dobraram sua taxa básica de juros, a dívida externa brasileira explodiu, aumentando de pouco menos de US$ 6 bi em 1970 para mais de US$ 100 bi em 1985. O segundo momento de explosão do endividamento externo ocorreu durante as reformas neoliberais do governo Fernando Henrique Cardoso, quando a expressão “dívida eterna” ficou conhecida. Isso porque a manutenção da taxa de câmbio valorizada (no início do Plano Real nossa

Cruzeiro), enquanto essas dívidas eram assumidas pelo Estado brasileiro. 75 Abordamos esse episódio no item sobre a mundialização do capital.

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moeda chegou a estar mais valorizado que o dólar) e os baixos saldos da balança comercial exigiram sucessivos empréstimos para aumentar a reserva de divisas e para fechar o balanço de pagamentos. Assim, de US$ 150 bi no início do governo FHC, a dívida externa passou a quase US$ 250 bi em oito anos. Em 2008, o então presidente Lula anunciou publicamente que havia pago a dívida externa. Entretanto, não foi exatamente o que ocorreu. A dívida externa continua existindo, mas a um nível supostamente controlável pelo tamanho das reservas cambiais criadas que possibilitou, inclusive, que o Brasil se tornasse credor do FMI. Foi esse aumento da aquisição de divisas (pelo aumento das exportações para a crescente demanda chinesa por comódites brasileiras) que permitiu ao governo trocar a dívida externa pela dívida interna. O mecanismo utilizado para esse pagamento foi a emissão de títulos públicos. Ou seja, trocou-se dívidas em dólar por dívidas em real, o que, a princípio garante maior soberania, uma vez que o Brasil é o responsável pela emissão de reais. Contudo, as dívidas se tornaram ainda maiores já que a taxa de juros era muito superior. A peculiaridade da dívida interna – além do fato de ser calculada em Real – é que o governo decide qual a taxa de juros que quer pagar pelo crédito adquirido. Esse é outro elemento que diferencia a dívida privada da pública. Ora, por

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acaso alguma pessoa física é capaz de ir ao banco ou pedir dinheiro a um agiota e dizer quanto quer pagar de juros? É claro que não! Mas o governo pode! Então por que temos taxas de juros tão altas no Brasil? O argumento oficial é de que apenas com juros altos os capitalistas teriam interesse em comprar títulos brasileiros, já que temos uma economia muito mais instável, o que os faria buscar aplicações em países de economia mais segura e estável. No entanto, quem costuma utilizar esse argumento esconde o principal fator: o lobby76 e o poder daqueles que ganham muito dinheiro com essas operações. A Secretaria do Tesouro Nacional (pertencente ao antigo Ministério da Fazenda, hoje Ministério da Economia) é a responsável por emitir os títulos da dívida pública e o Comitê de Política Monetária – COPOM (pertencente ao Banco Central) é o responsável por definir a principal taxa de juros a ser paga, a famosa taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e de Custódia). Os títulos públicos são vendidos a indivíduos através do Tesouro Direto ou mediante leilão pelo Tesouro

76 O termo, que dá nome a “profissão” de lobista, é utilizado para designar atividades de pressão de grupos organizados de interesses privados sobre políticos e órgãos públicos. Isso pode ser tanto pelo oferecimento de recursos e suborno quanto até mesmo com ameaças e chantagem.

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Nacional a empresas financeiras cadastradas no Banco Central (BC). Os seus valores são calculados com base na forma como os juros são pagos, a saber: pré-fixados, quando os juros e o principal são definidos antes da data de resgate; ou pósfixados, que são atrelados a algum índice, seja a inflação, a taxa Selic ou a taxa de câmbio. Esse títulos podem ser negociados e renegociados no mercado financeiro até serem liquidados (pagos em sua totalidade) ou renovados pelo governo. Vale lembrar que, apesar de a Selic ser a taxa base de juros dos títulos públicos, ela não é a única. Assim, boa parte da dívida pública é feita com juros mais altos do que o estabelecido para a Selic. Como vimos, desde as reformas neoliberais do governo FHC, quando se instalou o “tripémacroeconômico”, a dívida pública deixou de ser um instrumento de política fiscal, isto é, de ser um mecanismo de indução ao crescimento econômico para, apenas, cobrir déficits recorrentes. Desde então as políticas econômicas têm focado exclusivamente no combate à inflação e na garantia da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ou seja, para a geração de superávit primário de forma a “honrar as obrigações”77 da dívida pública.

77 Os termos “honrar” e “obrigações” são utilizados, na linguagem da economia vulgar, em substituição às palavras “pagar” e “dívidas”, respectivamente. Os termos foram colocados entre aspas para ironizar a

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O resultado primário é aquele que subtrai as receitas fiscais do total de gastos não financeiros, tais como seguridade social, educação, segurança e infraestrutura. Quando a receita é superior às despesas, chamamos superávit primário. Quando as receitas são inferiores às despesas, chamamos essa situação de déficit primário. É nessa última situação que contrair dívidas se torna uma necessidade, já que o dinheiro arrecadado não foi suficiente para fechar as contas. No entanto, às vezes, mesmo quando há superávit primário, é necessário adquirir dívidas. Isso porque, acrescentadas as despesas financeiras, essa conta pode ser negativa. Esse é o caso em que há déficit nominal78. Portanto, se o superávit primário é insuficiente para pagar as

sua carga hiperbólica que busca atribuir às dívidas um caráter sagrado. Esse aspecto advém, no primeiro caso, da percepção de que um calote é uma atitude de falta honra; e, no segundo, de que não há nenhuma possibilidade de deixar de pagar as dívidas, por se tratarem de obrigações. No entanto, não deixa de ser curioso o fato de que aqueles que utilizam esses termos costumam não pagar suas dívidas, enquanto as pessoas mais pobres aceitam essas conotações e se sentem mal quando deixam de pagar alguma conta. 78 Chamamos, portanto, “resultado nominal” (com déficit ou superávit) quando as contas financeiras são acrescentadas.

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dívidas, ou seja, quando o resultado nominal é negativo (deficitário), se torna necessário adquirir novas dívidas para pagamento de juros e para a amortizaração79 de dívidas antigas. Parece razoável realizar superávit primário para pagar as dívidas. Mas só se esquecermos que essa redução de gastos significa menos recursos à educação, saúde, segurança, infraestrutura etc. É nessa situação em que nos encontramos há alguns anos, mesmo com os (incon)sequentes ajustes fiscais que retiraram recursos de serviços básicos para pagamento de juros e amortização de dívida, graças à exorbitante taxa de juros praticada pelos governos brasileiros desde a introdução do Plano Real80. Quando há déficit nominal é necessário pagar dívidas antigas com “novas” dívidas. Essa prática, conhecida como rolagem da dívida, pode ocorrer tanto pela emissão de novos títulos como pela renovação de dívidas antigas. É comum que

79 Amortização é o termo utilizado quando se paga o principal da dívida. Por exemplo, se alguém adquire R$ 100,00 de empréstimo a 10% de juros, os juros serão de R$ 10,00 e o principal de R$ 100,00. Assim, quando se encerra o prazo de pagamento, o devedor deve pagar os R$ 110,00. 80 A taxa Selic chegou, em termos nominais, a 48% em 1999, enquanto a inflação se mantinha abaixo de 9%.

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alguns economistas afirmem que a dívida interna não é um problema já que os déficits são pagos por rolagem de dívida. Todavia, esse mecanismo não pode ser utilizado eternamente. Isso porque, em momentos de crise, os capitalistas buscam receber o pagamento do título adquirido para terem liquidez e migrar para aplicações mais seguras no exterior. No caso brasileiro, essa afirmação por parte de alguns economistas é ainda mais falaciosa, uma vez que o pagamento de juros e amortizações não é feito somente com rolagem da dívida. Apesar de o patrimônio nacional não entrar na conta de subtração da dívida pública bruta para se chegar à dívida líquida, a retórica do processo de privatizações que se iniciou no final da década de 1980 e foi bastante intenso durante a década de 1990, além de propagandear a ineficiência das empresas públicas, utilizava-se do argumento de que com a arrecadação das vendas seria possível pagar a dívida. Como podemos ver, não foi o que ocorreu. Do ponto de vista contábil seria muito mais racional utilizar o lucro obtido pelas empresa públicas para pagamento de dívidas do que privatizá-las. A empresa Vale S.A (antiga Companhia Vale do Rio Doce), por exemplo, foi vendida à iniciativa privada em 1997 por R$ 3,3 bi e, só em 2018, obteve um lucro líquido de R$ 25,7 bi. A dívida pública hoje, no ano de 2020, é muito maior do que era antes das privatizações, demonstrando que o real objetivo das privatizações estava ligado

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diretamente aos interesses dos capitalistas brasileiros e estrangeiros de se apropriarem de empresas com potencial lucrativo. Além disso, como visto no item sobre Política Fiscal, os governos têm utilizado, sistematicamente, o mecanismo de Desvinculação da Receita da União (DRU) para drenar recursos previstos inicialmente para fins específicos para pagamento de juros e amortizações. Como vimos também, a receita da Lei Orçamentária Anual (LOA) advém do orçamento fiscal e da seguridade social. Os recursos da seguridade social, ainda que estejam vinculados aos direitos constitucionais, como Previdência Social e o Sistema Único de Saúde é, repetidamente, usado para outros fins, sobretudo para pagamento de juros e amortização da dívida pública, respaldado pela DRU. A Auditoria Cidadã da Dívida realiza, anualmente, os cálculos sobre o orçamento federal e as despesas primárias e financeiras. Os dados são bastante chocantes, visto que cerca de 40% do orçamento federal (que ultrapassa R$1 tri desde 2018) é destinado a juros e amortizações da dívida, sendo que essa porcentagem tem uma tendência de aumento anual. Para se ter noção, gasta-se pouco mais de 4% com saúde e de 3% com educação. Ainda que o Tesouro Nacional não disponibilize os dados detalhados sobre o que é exatamente pagamento de juros e amortização e que parte da receita seria oriunda da emissão de mais títulos (o

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que não muda nada já que novos títulos são receita de qualquer forma e poderiam ser utilizados para investimento81), esses cálculos revelam o desvio de recursos que são públicos a mãos de poucas famílias abastadas detentoras da maior parte dos títulos. O que propõe a Auditoria Cidadã da Dívida é, conforme previsto na Constituição Federal de 1988, a disponibilização transparente dos dados sobre a dívida pública para que se possa realizar um estudo minucioso sobre a origem e os valores já pagos nos moldes feitos no Brasil e no Equador nas décadas de 1930 e 2000, respectivamente, e que acabou reduzindo as dívidas significativamente. Há controvérsias sobre as consequências de uma auditoria. Os defensores do status quo e os amedrontados dizem que isso poderia gerar desconfiança e colocar em cheque o compromisso do Brasil em pagar sua dívida. Ora, não parece razoável se preocupar com o “ânimo do mercado”

81 É bem verdade que a “regra de ouro”, prevista no art. 167 da Constituição Federal de 1988, proíbe a emissão de títulos para o pagamento de despesas correntes. No entanto, o momento que estamos vivendo durante a escrita desse livro, de explosão do endividamento para custear os gastos provenientes dos impactos do COVID-19, coloca isso à prova. Não seria possível utilizar esse mecanismo para resolver os problemas de saúde, educação, moradia e saneamento de toda a população brasileira?

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quando se está pagando, às custas de vidas humanas, dívida que não deveriam ser pagas. De qualquer forma, países que já decretaram moratória ou anunciaram calote não deixaram de ser atraentes ao capital especulativo, principalmente quando prometem ganhos acima da média. O próprio governo brasileiro decretou moratória em 1987. Por fim, vale ressaltar que não se trata aqui de ignorar a importância da dívida pública para o funcionamento da economia de mercado. Todos os países que se industrializaram após o século XX o fizeram com intensa intervenção estatal e com base em dívida. Se utilizados na forma de investimento público, os recursos originados de dívidas podem aumentar a atividade econômica e levar ao aumento da arrecadação para posterior quitação da dívida. O problema consiste, entretanto, no fato de que as dívidas são utilizadas, quase sempre, apenas para pagar novas dívidas e para drenar recursos públicos para um pequeno grupo de capitalistas82. Não é por acaso que os países de economias mais desenvolvidas possuem dívidas altíssimas.

82 Em 2018, mais de 40% dos títulos públicos pertenciam aos bancos, e a mesma quantidade pertencia a fundos de pensão e de investimentos, sendo que a maioria desses fundos é gerenciada por bancos.

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Uma boa forma de medir isso é a relação entre a dívida e o Produto Interno Bruto (PIB). Em 2019, essa relação era para os EUA e para o Japão de 107% e 238%, respectivamente. O Brasil, por outro lado, possuía uma relação entre dívida e PIB de cerca de 76%. A diferença está no fato de que, além de terem capacidade de autofinanciamento pelo dinamismo de suas economias e por suas moedas serem demandadas internacionalmente (sobretudo o dólar), a taxa básica de juros desses países costuma ser mais baixa que a inflação, enquanto no Brasil ela costuma ser muito superior à inflação. Nesse sentido, a tendência é que a dívida brasileira aumente em uma velocidade muito maior. E claro, há um limite para esse crescimento que, provavelmente, levará a uma crise profunda, pois a dívida não corresponderá mais à capacidade de pagamento. Sugestões de leitura O circuito fechado do endividamento: debate econômico e evolução da Dívida Pública Brasileira entre 2000 e 2015 (dissertação), de Jean de Jesus Peres. Relatórios anuais da Auditoria Cidadã da Dívida, disponíveis em: http://auditoriacidada.org.br

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Sugestões de filmes/documentários Dívida Pública Brasileira: a soberania na corda bamba. 2014. Carlos Pronzato, 62 min.

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MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL

Como vimos na introdução, o objeto de estudo da Economia é o processo de produção e distribuição de riqueza. A Economia Internacional é, então, o campo da Economia que se ocupa de estudar a produção e a distribuição das riqueza entre as nações. Ou seja, diferente das analises marginalistas, em que os “sujeitos” da economia são os indivíduos produtores e consumidores, para a Economia Internacional os agentes são os países. O objetivo do estudo econômico entre nações não trata apenas do comércio internacional, mas

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também da estruturação produtiva, o que se convencionou chamar de Divisão Internacional do Trabalho (DIT), e do fluxo global de capital. Posicionar as nações como centro de análise não significa, no entanto, deixar em segundo plano o estudo sobre a divisão das classes sociais porém, ao contrário, colocá-la em sua manifestação em escala global. Nesse sentido, para a compreensão da atual economia capitalista aos olhos da Economia Internacional, faz-se fundamental uma análise sobre sua gênese e o processo histórico que lhe deu corpo. Assim, é necessário um estudo cuidadoso sobre a origem e o desenvolvimento do comércio mundial, passando pela particularidade do desenvolvimento capitalista nos diferentes países, bem como a inserções destes na ordem capitalista global. Como se sabe, a origem do comércio mundial (que culminaria no modo de produção capitalista) está no desenvolvimento do comércio entre mercadores europeus e asiáticos tendo, além das rotas de transporte terrestre, se desenvolvido no Mar Mediterrâneo pela facilidade de locomoção em termos de velocidade e capacidade de carga. Por esse motivo a Península Itálica e Constantinopla (hoje Istambul, Turquia) se tornaram os principais polos de escoamento de mercadorias. Enquanto saiam dos portos “italianos” metais preciosos e produtos agrícolas, de Constantinopla saiam as

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manufaturas (com destaque para os tecidos de seda) e as especiarias indianas e chinesas. Contudo, o aumento dos preços consequentes da tomada de Constantinopla pelos turcos no final do século XV fez com que os europeus buscassem rotas alternativas, de modo a intercambiar diretamente com indianos e chineses. Foi em consequência desse processo que se iniciaram as grandes navegações e, por força do acaso ou não, os espanhóis (e posteriormente os portugueses) acabaram encontrando metais preciosos em abundância em Abya Yala83, o que garantiu um novo respiro ao comércio com o oriente, dando novas dimensões ao comércio mundial. Esse contato direto dos europeus com o comércio de além-mar significou um verdadeiro saqueio das riquezas naturais no “novo mundo”84.

83 Esse termo, utilizado pelos povos originários, refere-se ao que, hoje, se chama “América”. Segundo Porto-Golçalves, em “Entre América e Abya Yala”, o nome “(…) se inscreve, recentemente, no léxico político dos chamados povos originários, que, em luta contra processos históricos de cunho colonial e neocolonial, afirmam sua própria identidade como sujeitos políticos (…)” 84 Consta no “Archivo de Indias”, que somente entre os anos 1503 e 1660, desembarcaram apenas em Sanlúcar de Barrameda, na Espanha, cerca de 185 toneladas de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da “América”.

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Essa reconfiguração das principais rotas e produtos comercializados só seria alterada com a introdução dos produtos maquinofaturados ingleses a partir da segunda metade do século XVIII. Não por acaso esse processo ficou conhecido como primeira revolução industrial, quando o algodão inglês, graças ao aumento exponencial da produtividade e aos baixos preços, passou a substituir a seda oriental. Esse processo não significou apenas uma mudança quantitativa no processo de circulação de mercadorias mas uma mudança qualitativa em termos de geração de riqueza pois, além de aumentar a produção de forma inimaginável para a época, difundiu-se o trabalho assalariado. Rapidamente, a Inglaterra passou a ser o novo “imã” mundial de metais preciosos. Por isso, outras nações metropolitanas passaram a buscar efetivar seus processos de industrialização. As colônias, obviamente, acabaram ficando distantes dessa possibilidade, com exceção dos EUA, que lograram sua independência já no final do XVIII. No Brasil, por exemplo, o reino português proibiu que se instalasse fabricas de tecidos. Índia e China, que já possuíam a manufatura bastante desenvolvida, acabaram perdendo mercado mundial pela concorrência e pelas investidas beligerantes e colonialistas. Assim, com a corrida pela industriali-zação, começou a ser desenhada a primeira rodada de DIT entre países metropolitanos e independentes

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industrializados, e colônias fornecedoras de matéria-prima para a indústria. Durante o início do século XIX houve uma importante contribuição da Economia Política feita por David Ricardo. O notável teórico, a saber, também um capitalista inglês, desenvolveu a Teoria das Vantagens Comparativas. Com o objetivo claro de defender a indústria e os interesses ingleses, ele formulou uma teoria positiva sobre o livre comércio, incriminando barreiras alfandegárias que impedissem a exportação inglesa em favor das indústrias nacionais dos países que cogitavam se industrializar. Para Ricardo a especialização produtiva, independente de se o país era exportador de maquinofaturas ou de produtos primários, seria vantajosa já que os ganhos de escala levariam a um rebaixamento do custo de produção e, consequentemente, dos preços, que proporcionariam ganhos de concorrência no comércio mundial. Portanto, não importaria se as vantagens eram naturais (no caso dos países de abundantes recursos naturais e clima propício à agricultura) ou adquiridas (no caso da indústria), o autor, valendo-se do exemplo do Tratado de Panos e Vinhos (ou Tratado de Methuen) entre Portugal e Inglaterra, defendia que, em comparação, as vantagens seriam mútuas. Talvez essa teoria valesse para o período pré-industrial, mas não para o que já observava Ricardo no início do século XIX, com o despontar

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da Inglaterra como potência econômica, marítima e militar. Essa teoria, no entanto, oculta (talvez propositalmente) que a indústria havia se tornado o centro dinâmico da economia global. A indústria passou a determinar o que deveria ser extraído em termos de combustíveis fósseis e minérios, e ser produzido na agricultura para abastecê-la de insumos, tornando os países de economia exclusivamente agrícola dependentes dessa demanda oligopsonizada. Além disso, a atividade industrial apresentava um desenvolvimento tecnológico e ganhos de produtividade muito maiores do que a produção agrícola, o que se refletia em maiores taxas de lucro. Vimos no item sobre preços que os produtos agrícolas costumam ter seu preço fixado pela demanda (oligopsonizada), enquanto os produtos industrializados são precificados pela oferta, o que garante taxas de lucro maiores e mais seguras. Ora, além disso, parece óbvio hoje em dia que é muito mais desvantajoso exportar toneladas de algodão cru do que comprar uma pequena parcela de roupas. Afinal, como vimos, há muito mais trabalho incorporado no processo industrial, ou seja, geração de valor. A questão é que, além de produzir muito valor, os países industrializados também se apropriam desse valor no jogo dos preços. Exemplos mais atuais são ainda mais elucidativos: é necessário, no mínimo, uma tonelada de soja para se comprar um smartphone

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de média qualidade. Ou ainda, são necessárias milhões de toneladas de ferro bruto para se comprar um avião. Além disso, não há dúvida que o avanço tecnológico tornou o custo e o tempo de produção de um smartphone ou de um avião muito mais barato do que o de uma tonelada de soja e milhões de toneladas de ferro, respectivamente. Podemos ainda ir além e constatar, empiricamente (o que, é óbvio, não poderia ser constatado por David Ricardo), que os países que se industrializaram e continuaram se industrializando são os países mais ricos e, portanto, aqueles que dominam o comércio mundial e o fluxo de capital na atualidade. Voltemos ao processo histórico. Enquanto a maioria dos países cedia à pressão inglesa (seja econômica ou militar) implementando o livre comércio e firmando acordos comerciais com a Inglaterra, na segunda metade do século XIX, alguns países, com destaque para França, Alemanha, Itália, Bélgica, Japão e EUA, adotaram políticas protecionistas que garantiam seu processo de industrialização, tendo como promotor o Estado e como força motriz, os mercados internos. Essas medidas protecionistas significavam a proibição ou a restrição via tributação de produtos que eram importados, mas que o Estado desejava que fossem produzidos nacionalmente. Essa medida não era nenhuma novidade, já que a

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Inglaterra também a utilizou sempre que surgiam ameaças à sua hegemonia industrial. A partir desse processo forjou-se a Teoria da Indústria Infante, que defendia o sacrifício inicial dos consumidores, dado que os preços eram inicialmente mais caros e os produtos muitas vezes de menor qualidade. Assim, a indústria nacional nascente poderia ganhar robustez para, posteriormente, abrir as fronteiras para o livre comércio e concorrer em pé de igualdade com os produtos dos países de industrialização já consolidada. Chamamos de capitalismo concorrencial esse período que se estendeu até o último quarto do século XIX e que permitiu que alguns países se industrializassem. Isso porque nas últimas duas décadas desse mesmo século, com a concentração de capital em poucas mãos e a sua centralização em poucos países, ocorreu um processo de monopolização do comércio mundial que além de fechar as portas para os países que ainda não haviam se industrializado, catalisou a disputa concorrencial entre as potências industriais. Essas décadas marcaram a transição do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista. Uma vez que os mercados internos desses países já mostravam seus limites de expansão, seus governos passaram a buscar fontes seguras de recursos naturais, além de novos e garantidos mercados consumidores, o que só poderia ocorrer por meio de uma nova colonização. Essa disputa

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por novas colônias na África e na Ásia levaria ao desfecho da primeira grande guerra, período chamado de Imperialismo que motivou uma série de estudos de inspiração marxista sobre a essência beligerante do capitalismo e a funcionalidade das guerras para o processo de acumulação de capital85. Como resposta dos trabalhadores aos horrores da primeira guerra, o mundo assistiu à Revolução Russa em 1917. Apesar de localizada em um país pouco industrializado e com características feudais, essa revolução teve um impacto profundo na análise econômica, já que passou a ser uma contraposição à economia de mercado e significou a tentativa de construção de uma economia planificada. Além disso, a Revolução Russa ressuscitou o espectro que rondou a Europa por toda a segunda metade do século XIX, de onde advinha o pânico dos capitalistas de uma tomada do poder pelos trabalhadores. As consequências da Primeira Guerra Mundial foram desastrosas para os países envolvidos. Isso porque, boa parte da indústria voltou-se à produção de equipamentos e insumos para guerra, deixando de exportar e perdendo mercado nos países não industrializados. Alguns

85 Dentre os autores desses estudos estão Rosa Luxemburgo (1871-1919), Vladimir Lenin (1870-1924) e Rudolf Hilferding (1877-1941).

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desses países de maiores dimensões e população e, portanto, com capacidade de expansão do mercado interno como Brasil, México, Rússia e China, a partir de seus respectivos contextos, viram-se “obrigados” a produzir aqueles produtos industrializados outrora importados. Esses países passaram assim por um processo de industrialização. Bastante tímido, é verdade, já que se restringia à indústria leve – sobretudo tecido e alimentos –, produtos que haviam sido objeto da primeira revolução industrial. Por esse motivo essa industrialização ficou conhecida como retardatária. No entanto, ao longo da primeira metade do século XX, atravessou-se não só a Primeira Guerra, mas uma crise econômica violenta em 1929 e, em seguida, à segunda guerra mundial que fragilizou ainda mais a capacidade de controle e a influência no mercado mundial dos países industrializados. Esse período turbulento abriu possibilidade para uma nova onda de industrialização desses países “retardatários”, permitindo agora avanços no sentido de constituição da indústria pesada (já típica da segunda revolução industrial). Essa forma de industrialização provocada pela necessidade, mas também pela intenção de alguns Estados Nacionais, acabou ficando conhecida como Industrialização por Substituição de Importações. Portanto, não pretendia abastecer o mercado mundial com os produtos, e sim garantir

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o abastecimento do mercado interno e, ao mesmo tempo, fortalecer a indústria nacional. A partir dessa possibilidade de industrialização aberta pela conjuntura, formulou-se a Teoria da Deterioração dos Termos de Troca em contraposição à teoria prevalecente das vantagens comparativas e que teve importante impacto no debate econômico nos países subdesenvolvidos, sobretudo na América Latina. A tese central era de que havia deterioração dos termos de troca dos países exportadores de produtos primários, uma vez que os preços dos produtos industrializados tendem sempre a subir em relação aos preços dos produtos primários, causando um ciclo vicioso de incorporação de progresso técnico e de incapacidade dos mesmos ganhos em salários dada a diferença de produtividade. Isso porque as lutas sindicais próprias ao setor industrial converteram os ganhos de produtividade em maiores salários, condição necessária ao desenvolvimento econômico, o que não havia ocorrido com os países exportadores de produtos primários, onde os salários beiram o nível de subsistência por herança de seu passado colonial. É a partir dessa perspectiva que se cria a ideia de que a Divisão

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Internacional do Trabalho separou o mundo entre centro e periferia.86 Contudo, a oportunidade de processos de industrialização fora abalada pela reconfiguração geopolítica. Como já vimos, com o final da segunda guerra, os EUA selaram sua hegemonia entre os países capitalistas inundando o mundo com dólares após os Acordos de Bretton Woods e o Plano Marshall87, endividando o mundo e comprando empresas em toda parte. Em paralelo, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), liderada pela Rússia, passava a representar uma potência de polarização com o mundo capitalista liderado pelos EUA, o que acirrou a disputa pela influência dos territórios, sobretudo após a Revolução Chinesa, em 1949. Esse conflito deu início à Guerra Fria que, apesar de não representar uma guerra direta entre as grandes potências, representou batalhas descentralizadas, como as guerras da Coreia (1950-1953), do Vietnã (1962-1975), do Afeganistão (1979-1989), e as guerras civis em Cambodja (1967-1975), Angola (1975-2002), Moçambique (1977-1992), entre outras.

86 Abordaremos esse assunto com mais detalhes no tópico Desenvolvimento Econômico. 87 Plano chefiado pelo secretário de estado dos EUA, George Marshall, que financiou boa parte da reconstrução dos países europeus atingidos pela Segunda Guerra Mundial.

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O contexto de polarização global e a possibilidade iminente de revoluções socialistas na Europa fez com que a classe trabalhadora europeia conseguisse importantes conquistas em termos de direitos sociais e trabalhistas e de ganhos salariais, criando um Estado de bem-estar social. Como vimos anteriormente, o aumento salarial leva, necessariamente, à redução do lucro bruto. Por esse motivo as empresas que estavam muito centralizadas nos seus países-sede passaram a buscar instalações nas regiões de força de trabalho barata, em especial nos países de industrialização retardatária, onde já existia infraestrutura estabelecida. Os economistas chamam essa forma de investimento de Investimento Externo Direto, visto que as empresas matrizes passaram a construir plantas fabris nesses territórios e não mais simplesmente exportar suas mercadorias para esses países, aproveitando-se do mercado consumidor interno e passando, rapidamente, a exportar para o restante do mundo. Esse processo, que se chama transnacionalização do Capital, significou o início da ingerência generalizada das grandes corporações sobre os Estado Nacionais. Dessa forma se reconfigurou a Divisão Internacional do Trabalho: os países-sede das empresas multinacionais passaram a centralizar o controle gerencial e absorver remessas de lucro, enquanto os países das filiais começaram a produzir e a exportar produtos primários ao mesmo tempo que

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outros permaneceram com sua economia especializada na atividade agrícola e extrativista. O gatilho contra a “ameaça comunista” na América Latina teria sido disparado após o triunfo da Revolução Cubana em 1959 quando os EUA passaram a exercer uma forte influência no continente. Entretanto, ao contrário do que havia feito na Europa com o Plano Marshall, que garantiu o ressurgimento da indústria europeia, dando sobrevida a potências econômicas que concorriam com os EUA no mercado mundial, a estratégia foi a utilização da força, provocando e financiando golpes e ditaduras militares a partir da década de 1960, e a dependência pelo endividamento a juros altos e flutuantes. Ao final da década de 1960 e entrada dos anos de 1970 consolidava-se o que chamamos de terceira revolução industrial, que significou o desenvolvimento da robótica, da eletrônica e das tecnologias de informação e comunicação, liderada pelos países com capacidade de investimento, notadamente Japão, EUA e Alemanha. Esse processo significou um afunilamento do protagonismo do desenvolvimento industrial e a reafirmação da DIT estabelecida desde o início do século XX. Se o desenvolvimento do transporte ocorrido ao longo de toda a primeira metade do século XX permitiu a migração das plantas fabris pelo globo, o desenvolvimento das tecnologias de

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comunicação e informação tornou possível também o fluxo instantâneo de capital. Operações comerciais e de migração de capital que duravam dias ou anos no caso de planejamento de investimento, passaram a durar poucas horas. Hoje, com a internet, essas operações duram apenas segundos. Essa nova possibilidade de mobilidade de capital gerou maior instabilidade econômica nos países dependentes já que, como vimos, em momentos de desconfiança e de crises o capital busca aplicações seguras como os títulos públicos de países ricos, mesmo que esses possuam juros baixos. A acumulação de capital, outrora restrita às fronteiras nacionais e ligada diretamente à atividade industrial, passou a romper todas as barreiras que ainda existiam para a sua mundialização. Esse processo, iniciado na década de 1970 e que representou a sobreposição dos interesses das grandes corporações à legislação de praticamente todos os países capitalistas, rom-pendo qualquer restrição à acumulação, denominamos Mundialização do Capital. Com isso, os países de industrialização retardatária afundados no endividamento externo se tornaram ainda mais vulneráveis. Decretado o fim da “ameaça comunista” com a dissolução da URSS em 1991 e a fragilidade dos países devedores que, vale dizer, optaram por não organizarem um boicote generalizado, os novos empréstimos do FMI para cobrir os déficits no

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balanço de pagamentos foram acompanhados por um receituário bastante rígido e ideológico, impondo a agenda já implementada no Chile na década de 1970 e sistematizada pelo Consenso de Washington (1989). Esse conjunto de medidas ficou conhecido como reformas neoliberais e impunha: superavits fiscais para pagamento de dívidas; corte nos gastos públicos; abertura comercial; privatizações das empresas estatais; redução de direitos trabalhistas e previdenciários; câmbio flutuante; e abertura ao mercado de capitais. Ainda que a tragédia já estivesse anunciada, a implementação dessa agenda neoliberal mostrou sua essência perversa, provocando empobrecimento generalizado da classe trabalhadora em todo o mundo, maior vulnerabilidade econômica, redução do raio de manobra do uso de políticas econômicas, e desmonte do aparato industrial, o que significou, para os países subdesenvolvidos, a abdicação de sua soberania nacional. Mesmo os países que já haviam internalizado uma dinâmica industrial, acabaram mergulhando em um processo de desindustrialização e de reespecialização produtiva em produtos agrícolas e minerais para exportação, além de incentivar os capitalistas a especular, aplicando seus recursos em fontes de ganho de curto prazo, e desincentivando o investimento de longo prazo.

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Nesse contexto, renasceu a velha Teoria das Vantagens Comparativas de David Ricardo, outrora como tragédia, agora já como farsa88. Vestida em nova roupagem, engana-se os desavisados com o discurso de que a implementação de maquinário, insumos sintéticos e da transgenia representa um processo de transformação da produção agrícola que leva ao progresso. Oculta-se, no entanto, que o controle sobre a produção e dos preços desses insumos e equipamentos se localiza em escritórios no centro do capitalismo mundial enquanto os latifundiários ficam com um potencial risco de perder a produção89. Além disso, ao se tornarem comódites90, essas mercadorias não só possuem

88 Essa é uma referência à célebre primeira frase do livro “O 18 de Brumário de Luiz Bonaparte” de Karl Marx, em que ele escreve: “Em algumas passagens de sua obra, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. 89 Vale dizer que, no caso da “agricultura familiar”, esses arcam com todos os prejuízos. Já quando a perda é dos latifundiários, quem paga a conta é o Estado, ou melhor, o conjunto da população. Nesse caso privatiza-se os ganhos e socializa-se os prejuízos. 90 Comódite ou, do original em inglês, commodity (mercadoria) ou “commodities”, no plural, é o nome dado às mercadorias que são utilizadas como matéria-

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seu preço fixado pela demanda oligopsonizada, mas também sofrem oscilações especulativas do mercado financeiro restando aos países produtores pouca apropriação do lucro em épocas de boa safra e altos prejuízos em épocas de perdas de produção. Nesse novo cenário de concorrência monopolista em que o protecionismo é condenado pela Organização Mundial do Comércio, aprofunda-se a formação de blocos econômicos (já existente desde o final da segunda guerra mundial) na tentativa de se estabelecer acordos bilaterais e vantagens alfandegárias para produtos nacionais e estratégicos. O conjunto de países europeus, apesar do histórico secular de conflitos, foi o que mais avançou nesse sentido ao criar a União Europeia, que permitiu a livre circulação da força de trabalho e instituiu uma moeda comum, o Euro. No entanto, menos de duas década depois da consolidação das fases de coesão do bloco com a adoção de moeda única, a coalizão já demonstra um desgaste, sobretudo das economias mais desenvolvidas, que recebem muitos migrantes em busca de emprego e melhores salários. Esses países perderam o controle sobre suas próprias políticas econômicas,

prima para a atividade industrial, possuindo caraterís ticas de homogeneização e de baixa perecividade, o que possibilita sua negociação nas bolsas de valores. Dentre esses produtos estão o ouro, o petróleo, a soja e o milho.

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principalmente a monetária (com exceção do Reino Unido, que nunca abriu mão da sua própria moeda, a libra esterlina), e sua blindagem contra crises nos países mais pobres do bloco, provocando a primeira ruptura que foi o chamado Brexit, termo que significa a saída do Reino Unido do bloco, ocorrida em 2020. Além dos países europeus, do Japão e dos EUA, apenas poucos países asiáticos, em especial a China e a Coreia do Sul, que, por razões que perpassam o planejamento econômico e a geopolítica, conseguiram ultrapassar as barreiras da terceira revolução industrial, se tornando desenvolvedores e fornecedores mundiais de produtos de alta complexidade tecnológica. Além de se tornar potência econômica e tecnológica, a China, por exemplo, se coloca hoje como uma nova potência militar, reconfigurando as disputas por mercados, e gerando novas guerras comerciais, o que ameaça a hegemonia estadunidense e aponta para desastrosos e sequentes conflitos futuros.

Sugestões de leitura A globalização do capital: uma história do Sistema Monetário Internacional, de Barry Eichengreen. A mundialização do capital, de François Chesnais.

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Sugestões de filmes/documentários Germinal. França. 1995. Claude Berri, 155 min. Tempos modernos. Estados Unidos. 1936. Charles Chaplin, 87 min.

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CRISE ECONÔMICA

O termo “crise” nos remete à ideia de turbulência momentânea de uma certa ordem que parece funcionar bem. As crises econômicas também são momentos de instabilidade e estão ligadas a problemas relacionados à produção e à distribuição de riqueza, ora provocados por fatores endógenos ao modo de produção, ora advindos de fatores exógenos. No modo de produção capitalista, que é o objeto de nosso interesse, as crises econômicas não ocorrem somente por fatores exógenos mas, fundamentalmente, pelos endógenos e, mais ainda, são funcionais ao grande capital e necessárias ao processo de acumulação. Até a generalização da produção industrial, as causas das crises econômicas estavam ligadas quase que exclusivamente a fatores externos à

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comunidade envolvida. Além de fenômenos sociais específicos, como guerras e doenças típicas da vida urbana, as grandes crises econômicas estavam relacionadas geralmente a fenômenos naturais e inesperados, como terremotos, tempestades, furacões, estiagens, geadas etc., que provocavam a perda abrupta e em grande escala da produção agrícola, custando vidas e comprometendo gerações seguintes. Além desses tipos de crises, que continuam ocorrendo, com o advento da revolução industrial passaram a surgir crises econômicas cíclicas e sistêmicas não por falta de produção mas, ao contrário, pelo “excesso” de produção e com espaços mais curtos entre uma crise e outra, ou seja, entre a depressão, a retomada, o auge e, novamente, outra crise. As crises econômicas típicas do capitalismo não significam, de imediato, perda de produção e de vidas, mas ameaça ao processo de acumulação de capital. Ora, se considerássemos no capitalismo que a fome e a miséria são crises econômicas (como deveria ser levado em conta, já que há excesso de produção enquanto muitos passam fome) concluiríamos que o modo de produção capitalista está sempre em crise. Porém, para os analistas econômicos, esse não é o caso. Ou seja, mesmo que vivamos em crises humanitárias e civilizacionais permanentes, não necessariamente estamos vivendo uma crise econômica no capitalismo.

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Vimos nos tópicos sobre valor, salário e lucro que no modo de produção capitalista o lucro se nutre de uma produção extra – chamada maisvalor – que, além de exceder as necessidades da reprodução da força de trabalho (muitas vezes paga com salários insuficientes para tal), é apropriada privadamente pelos capitalistas, que consomem apenas uma pequena parcela dos seus ganhos. Parece óbvio, portanto, que se a capacidade do sistema de consumir é inferior ao que se produz, será uma questão de tempo para que mercadorias sobrem no mercado e que, ao não serem consumidas, não encerrem o ciclo de acumulação. Assim, quando as grandes empresas em um mercado oligopolizado deixam de vender, gerase desconfiança generalizada no sistema, diminuise a produção geral, aumenta-se o desemprego e a pobreza no curto prazo e se para de investir, causando problemas de médio e longo prazo. Podemos notar que são das decisões individuais dos capitalistas que se gestam as crises, já que elas funcionam no sentido oposto ao da necessidade de acumulação. Contrariando a crença de Smith, verifica-se que quando um capitalista demite empregados para enxugar sua folha salarial e aumentar seu lucro, ele acaba também por diminuir o número de consumidores. Por esse motivo, é ainda mais correto dizer que a crise não é exatamente de superprodução, mas de subconsumo.

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É justo admitir que as crises de superprodução existiram na prática com a produção em massa, o chamado modelo fordista91. Ainda que reduzisse os custos pelos ganhos de escala, a produção em massa não poderia ser absorvida permanentemente por um mercado consumidor restrito. Esse “problema” só sofreria importantes modificações com as transformações toyotistas92. Isso porque, com a ideia de redução de estoques, o famoso just in time, a indústria passou a trabalhar com a previsão de demanda93, o que resolveu a questão da superprodução mas não a do subconsumo.

91 Vale dizer que o modelo leva esse nome porque Henry Ford (1863-1947) implementou a linha de montagem, que aumentou exponencialmente a produção de bens de consumo e reduziu significativamente seus custos, entretanto, a produção em massa já era realizada em todo setor industrial desde o princípio da revolução industrial. 92 Esse termo se deve a transformações na produção e na gestão implementadas pela Toyota e que mudaram o paradigma produtivo industrial. 93 A técnica de previsão de demanda, como o próprio nome diz, busca desenhar cenários a partir de experiências anteriores para produzir somente o que, provavelmente, será vendido de forma a não aumentar os custos com estocagem e desperdícios. No entanto, ainda que as crises sejam iminentes, essas previsões não podem antecipá-las.

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Karl Marx foi o principal autor a compreender e explicar essa tendência incontrolável do modo de produção capitalista a crises econômicas. Apesar de não possuir uma grande amostragem, o altíssimo rigor analítico de sua obra tornou sua contribuição clássica e ainda mais genial com o passar do tempo. Lembremos que Marx escreveu quando a revolução industrial estava consolidada apenas em alguns poucos países europeus e nos EUA e ele vivenciou poucas crises que eram, ainda, muito localizadas, já que faleceu em 1883, antes da consolidação do capitalismo monopolista. Por esse motivo suas obras são revisitadas periodicamente, a cada crise que assola a economia mundial. Para além do problema decorrente da distribuição de riqueza que leva ao subconsumo, Marx ainda descreveu como causa das crises econômicas no capitalismo a tendência à queda da taxa de lucro na esfera da produção. Segundo o autor, a substituição de trabalho vivo (trabalhadores) por trabalho morto (imobilizado nas máquinas e na matéria-prima) reduz a capacidade do sistema de criar mais-valor, dado que sua fonte se encontra no trabalho vivo, restringindo assim a possibilidade de acumulação de capital. Sabe-se que o desenvolvimento tecnológico gera novos postos de trabalho, comumente mais qualificados, mas não há dúvidas de que a substituição de força de trabalho por máquinas provoca mais desemprego do que novas vagas.

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Uma ponderação aqui é importante. Marx, em sua análise sobre a tendência da queda da taxa de lucro, não trata de unidades fabris especificamente, mas do conjunto do sistema. Portanto, quando há o incremento de tecnologias por uma determinada empresa os seus proprietários conseguem aumentar seu lucro já que reduzem os custos de produção e só são obrigados a baixarem o preço de venda depois que seus concorrentes conseguirem implementar a mesma tecnologia. No entanto, o autor alerta que é o conjunto do sistema que perde em termos relativos de geração de novo valor. Essa é uma das grandes contradições desse modo de produção, pois, enquanto capitalistas buscam aumentar seu lucro individualmente, eles contribuem para a redução da taxa de lucro de todo o sistema. Assim, mesmo que o sistema aumente sua massa de lucro (o lucro total), a taxa de lucro tende a cair. No lado oposto ao da perspectiva marxista, os economistas liberais consideram as crises econômicas anomalias diante do funcionamento perfeito e idealizado do mercado. Por esse motivo, geralmente, para esses economistas as causas das crises estão associadas ou à atuação incompetente dos gestores do Estado, visto que, se deixado livre, o mercado funcionará em sua plenitude; ou ao excesso de ganância de alguns que burlam as regras do sistema. Não há entre esses economistas uma explicação estrutural das crises, mas apenas

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sua manifestação conjuntural que, na realidade, são os catalisadores da crise e não os causadores. É como se eles responsabilizassem aquele que jogou o último balde de água em uma represa já transbordando e não aqueles que a encheram por completo. Se, por um lado, dificilmente se prevê qual será o motivo específico de seu estopim, uma vez que, historicamente, as crises eclodem por diferentes razões – por disputas políticas, pelo acirramento da luta de classes, por escândalos envolvendo grandes agentes financeiros, por falta de liquidez, por especulação financeira etc. – por outro, é sabido que haverá crises, sobretudo após períodos de boom econômico. Isso é o que a história dos últimos duzentos anos tem mostrado: crises ocorrendo, em média, a cada dez anos. Na primeira metade do século XIX as crises eram bastante localizadas dado que a existência da produção industrial e das bolsas de valores estavam restritas a poucos países. Esse foi o caso do colapso da bolsa de Londres em 1825 e da crise financeira nos EUA em 1837. No entanto, como vimos, a industrialização de mais países na metade daquele século e o aumento da dependência da produção industrial por parte de países não industrializados começou a dissipar os efeitos das crises, tornando-as cada vez mais amplas. Esse foi o caso do pânico no mercado financeiro londrino em 1847 que, rapidamente, espalhou-se para

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praticamente toda a Europa. O mesmo ocorreu na crise de 1857, tendo como ponto irradiador o território alemão. O pânico instaurado em 1873 a partir dos EUA teria sido a primeira demonstração de uma crise explicitamente vinculada à superprodução e ao subconsumo, com efeitos globais já em um capitalismo fortemente monopolizado. Foi como “solução” para essa crise que se iniciou a corrida das grandes potências por novas colônias que, como já vimos, culminou em um conflito bélico até então sem precedentes, a primeira guerra mundial. Em 1890, com a quebra de um banco na Argentina, o mundo viveu uma crise pela primeira vez disparada fora do circuito central de produção e das finanças. Logo se espalhando pela Inglaterra, o principal centro financeiro do mundo, e então ao restante do globo, acirrando as disputas imperialistas. Após essa sequência de crises, o problema tomou uma proporção de outra ordem. Isso porque, em momentos de guerras de proporções mundiais, a crise voltou a ser de subprodução. Isto é, em conflito, os países voltavam suas atividades econômicas e seus recursos para esforços da guerra e para a produção de equipamentos bélicos, reduzindo a produção e o fornecimento global de bens de consumo. No entanto, isso não impediu que a grande crise seguinte fosse a de maiores proporções globais, e por conta de suas caracterís-

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ticas de superprodução. A famosa Grande Depressão que assolou a economia global durante boa parte da década de 1930, teve como fonte catalisadora a quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929. Os efeitos dessa crise só seriam amenizados com a implementação de medidas, pela primeira vez, contrárias ao ideário liberal que imperava no discurso econômico. A resposta ao efeito em cadeia de queda da produção e aumento do desemprego, que já perdurava por três anos, se deu por meio de uma forte intervenção estatal. O New Deal (1933-1937) promoveu o que se nomeia como “políticas anticiclicas”. Ou seja, em plena crise e, portanto, com queda de arrecadação, o governo estadunidense expandiu seus gastos, sobretudo em obras públicas, para reaquecer o consumo e, consequentemente, a produção e o emprego. Em 1936, com a publicação do livro “A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, Keynes selou, em termos teóricos, a importância dos gastos governamentais não só para superar crises, mas para evitá-las, representando um novo paradigma para a Economia, marco inaugural da “macroeconomia”. Em sua teoria, Keynes explicou que a demanda real, que ele chamou de demanda efetiva, era inferior à demanda esperada. Portanto, a depender do mercado, sempre haveria uma defasagem negativa entre a oferta e a demanda esperada. Por esse motivo, somente o gasto do

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governo, que não depende nem da renda estabelecida nem de expectativas94, seria capaz aumentar o nível de emprego até o pleno emprego95, cobrindo a defasagem entre a demanda efetiva e a demanda esperada, de forma a absorver toda a oferta. Assim, evitaria-se crises de superprodução. Após a Grande Depressão, as crises tipicamente capitalistas voltaram a ser suplantadas por mais uma guerra de proporções globais.

94 O cálculo do produto interno bruto de uma economia, que pode ser feito sob a perspectiva da demanda, é composto pela somatória entre o consumo de trabalhadores e capitalistas, os investimentos, os gastos do governo e as exportações subtraídas das importações. Desses itens, apenas o consumo e as importações dependem da renda nacional, sendo que os demais são gastos autônomos. No entanto, o investimento está subordinado a expectativas futuras (que podem ser pessimistas) e as exportações à demanda de outros países. Por esse motivo resta ao gasto do governo o papel de ampliar a demanda. 95 “Pleno emprego”, diferente do que aparenta, não significa que toda a população economicamente ativa está empregada. Esse termo é utilizado para designar o ponto em que os postos de trabalho existentes na economia são capazes de absorver toda a oferta. Considerando que em uma economia de mercado há sempre pessoas desempregadas procurando trabalho, costuma-se admitir que uma economia se encontra em pleno emprego quando ela possui uma taxa de desemprego de, no máximo, 6%.

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A segunda guerra mundial, que perdurou de 1939 a 1945, representou uma grande destruição em quase todo o território europeu e japonês além da perda de milhões de vidas. Ora, se essa guerra foi capaz de gerar uma espécie de “demanda ilimitada” (já que enquanto ela não chegou ao fim, a demanda por equipamentos, armamentos e munições era crescente) não houve então crise de superprodução. Vale dizer que o mecanismo da guerra e da indústria bélica para evitar crises é ainda bastante utilizado pelas potências militares. Ademais, quando a guerra terminou, houve a necessidade de reconstrução de todo o capital destruído, de moradias, edifícios, fábricas, equipamentos, bens de consumo duráveis etc. Por conta disso, durante a guerra e por um certo período, não houve uma significativa crise de superprodução. Além desses fatores, o período pós-segunda guerra foi marcado por um fortalecimento da luta sindical que aumentou o poder de barganha dos trabalhadores sobre os capitalistas. Tanto devido à baixa oferta de trabalho, uma vez que a população economicamente ativa havia sido dizimada com a guerra reduzindo substancialmente o exército industrial de reserva, quanto pela “ameaça comunista”, as classes dominantes nos países capitalistas europeus foram obrigadas a ceder a pressões, sobretudo em termos salariais e em direitos sociais (como o previdenciário) e trabalhistas. Em alguns países, a exemplo da Alemanha,

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inclusive se montou um sólido Estado de bem-estar social, garantindo o pleno emprego e o aumento do consumo. Por outro lado, como vimos, as empresas multinacionais passaram a buscar maiores oportunidades de acumulação instalando fábricas nos países em que classe trabalhadora não gozava do mesmo poder. Não por acaso, as crises começaram a ter como epicentro não mais as grandes potências capitalistas, mas os países de industrialização retardatária. Assistiríamos a uma grande crise de proporções globais que já se anunciava na década de 1960, porém mas que eclodiu apenas na década de 1970. Como consequência do desmanche do padrão-ouro com o fim do Acordo de Bretton Woods em 1971 e em decorrência dos embates da Guerra do Yom Kippur, os países de maior produção mundial de petróleo – a principal fonte de energia e de insumo para a indústria química – resolveram aumentar arbitrariamente seu preço em 1973, chegando, em 1974 a quadruplicá-lo. Com os conflitos permanentes no Oriente Médio, em 1979 ocorre o segundo choque do petróleo. Em resposta aos choques do petróleo e à inundação de dólares pelo mundo, em especial pelos países produtores de petróleo (“petrodólares”), que provocaram um aumento inflacionário nos EUA, o governo estadunidense elevou a 20% sua taxa básica de juros, causando uma explosão da dívida externa dos países que haviam adquirido empréstimo a juros

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flutuantes, em especial os países latino americanos. Não tardou para que esses países não conseguissem pagar suas dívidas. Em 1982 o governo mexicano declarou moratória, marcando a chamada crise da dívida. Com a decadência do Estado de bem-estar social no centro do capitalismo – vale dizer, por novas pressões sobre a queda da taxa de lucro – e da eclosão de sucessivas crises decorrentes de políticas econômicas de alguns governos, passouse a refutar a máxima keynesiana. É bem verdade que já no ano seguinte da sua inauguração, em 1937, os economistas liberais haviam feito uma releitura de sua teoria – que ficou conhecida como síntese neoclássica –, apontando para o fato de que ela consistia em um caso excepcional. Mas foi sobretudo a partir da década de 1980, que a teoria keynesiana sofreria as suas derrotas mais severas, com o ressurgimento do discurso liberal e a formulação de políticas neoliberais que voltariam a aumentar o ritmo e a intensidade das crises econômicas, principalmente nos países pobres e endividados. Nesse países, notadamente de passado colonial e de democracia burguesa frágil, o capital não havia permitido um Estado protetor dos direitos trabalhistas. Ao contrário, reforçou-se o papel deste como protetor e propulsor dos privilégios da elite local e facilitador da expropriação do seu povo.

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O mundo assistiria, a partir daquela década, inúmeras crises emergirem. A queda no Índice Dow Jones em 1987, a desvalorização do peso mexicano em 1994, a crises asiática de 1997 e russa de 1998, a falência de milhares de empresas de telecomunicações em 2000, a queda global das bolsas de valores após os ataques de 11 de setembro de 2001 e a moratória argentina no mesmo ano foram crises que abalaram, em diferentes proporções, a economia mundial. Finalmente, em 2008, ocorreria a maior delas desde 1929, a crise subprime que eclodiu com o problema das dívidas imobiliárias nos EUA, e que se globalizou de forma instantânea pela circulação de títulos podres montados por essas dívidas impagáveis, causando uma recessão global96. Ora,

96 O termo “subprime” é utilizado para designar empréstimos de alto risco pela possibilidade de inadimplência dos devedores, ou seja, de calote. A crise ficou conhecida como subprime porque bancos de todo o mundo haviam comprado pacotes com essas dívidas que seus vendedores sabiam ser impagáveis, sobretudo as dívidas hipotecárias de estadunidenses. Por isso, esses pacotes são chamados de “títulos podres”. No momento em que alguns detentores desses pacotes tentaram efetivar sua cobrança e não obtiveram sucesso, começaram a vendê-los de forma acelerada, causando um “efeito manada” (quando outros passam a vender por medo) e, consequentemente, uma queda acentuada nas principais bolsas de valores do mundo.

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a compra e revenda de títulos pobres, isto é, que não valem nada de fato, é uma demonstração de que o capital já não encontrava mais mecanismos seguros de acumulação. O impacto foi tão grande que houve uma política deliberada dos EUA para salvar os grandes bancos (too big to fail, em uma tradução não literal: “grande demais para quebrar”), tamanho pavor sobre os seus possíveis efeitos. Aqui então selou-se o papel do Estado na Era Neoliberal: garantir a confiança no sistema e impedir a falência das grandes corporações para garantir o processo de acumulação. Em 2009 iniciaria uma profunda crise da dívida na zona do Euro que abalou a União Europeia. O processo de financeirização da economia global e a desregulamentação sobre o fluxo de capitais acelerou e globalizou ainda mais os ciclos de crises, dado que suas operações são baseadas em especulação. Nota-se um descolamento acentuado entre os ativos financeiros (ações de empresas, dívidas e depósitos bancários) e a “economia real”. Pesquisas apontam que os ativos financeiros têm crescido de forma muito mais acelerada do que o Produto Mundial Bruto há décadas, de forma que aqueles já representam um montante quatro vezes superior a este97. Portanto,

97 Segundo o McKinsey Global Institute, em 2006, o volume dos ativos financeiros teve aumento de 17%, somando US$167 tri, enquanto o Produto Mundial

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em período de crise, em que há quedas abruptas nas bolsas de valores e “perdas de capital”, o que há em um primeiro momento é, na verdade, uma reaproximação dos valores reais da economia até que se comece a se “queimar” capital de fato. Mas vejam, esse processo não é uma anomalia do modo de produção capitalista, mas sim a sua evolução. Tampouco é ele que causa a crise. Como vimos, é mais um estopim que se repete desde o início do século XIX, só que agora com uma velocidade dantesca. A questão é que, ao evoluir para outros mecanismos mais versáteis de apropriação de valor global, esse processo acelera as crises causadas pela queda da geração de mais-valia e pelo subconsumo. Em 2020, ainda que no calor dos acontecimentos, podemos dizer que vivemos uma crise, aparentemente sem precedentes que, apesar de ter eclodido por conta de uma pandemia viral, é a continuidade do que teve início em 2008. O PIB chinês, que vem representando o combustível do crescimento econômico mundial nas últimas duas décadas, sofreu repetidas quedas desde a crise suprime. Ora, fica claro que, apesar da magnitude dos efeitos da pandemia, que matará centenas de milhares de pessoas (quiçá milhões), o valor gerado

Bruto cresceu nesse mesmo ano 8%, somando US$ 48,3 tri.

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pelo trabalho não se esvai em tão pouco tempo e que, na verdade, o processo de acumulação, aprofundado pela bolha especulativa, dá mais um sinal de esgotamento. Entretanto, isso não significará a ruína do capitalismo, uma vez que a cada grande crise enquanto a maior parte das pequenas e médias corporações quebram o grande capital sobrevive e, quando a poeira baixa, este compra toda a massa falida por preços irrisórios. Por esse motivo os grandes capitalistas não temem a crise em si, visto que historicamente seus antepassados sobreviveram ilesos graças ao Estado. Eles temem, na verdade, a reação da classe trabalhadora. Por isso, as consequências dessa crise que já dura mais de uma década, dependerão das respostas dadas pelo Capital e pela luta organizada dos trabalhadores. Sugestões de filmes/documentários Capitalismo: uma história de amor. Canadá. 2009. Michael Moore, 127 min. Sugestões de leitura Crise: o movimento dialético do conceito em O Capital de Karl Marx, de Jadir Antunes e Hector Benoit.

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DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

A palavra “desenvolvimento” está inegavelmente ligada a uma ideia de progresso e melhoramento. Isto é, significa algo que está em constante mudança em um sentido positivo. A sua variação, o “desenvolvimento econômico”, foi, por muito tempo, tratada como sinônimo de “desenvolvimento” por conta da grandes esperanças depositadas pelos teóricos modernos sobre os efeitos da industrialização. Isso porque, mesmo com toda a barbárie característica do período de industrialização na Europa, os efeitos sobre a vida material eram assombrosos, causando no imaginário coletivo, ainda que por caminhos diferentes – tanto entre os pensadores liberais como entre comunistas – que o desenvolvimento das

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forças produtivas levaria a humanidade à libertação do trabalho e ao reino da liberdade. No entanto, a história nos mostra que, até o presente, o capitalismo tem significado concentração de renda, globalização da miséria, mais trabalho e problemas ambientais inequívocos. Por isso, o termo “desenvolvimento econômico” foi fragmentado, surgindo variantes como desenvolvimento humano, desenvolvimento sustentável, desenvolvimento nacional, entre outros. O inegável é que, em geral, as populações dos países que vivenciaram as revoluções industriais entre os séculos XVIII e XIX gozam, ainda hoje, de maior bem estar do que os povos dos países que nunca se industrializaram ou que só se industrializaram a partir do segundo quarto do século XX98. Por esse motivo, a ideia de “desenvolvimento econômico” está ligada a transformações positivas no âmbito da produção industrial e da distribuição da riqueza gerada por ela. Ora, mesmo que os processos de industrialização nesses países

98 É claro que há pobreza em toda parte do globo, inclusive em países desenvolvidos. Contudo, enquanto os ricos de países pobres possuem uma vida material muito parecida com os ricos dos países ricos, é evidente que ser pobre em países subdesenvolvidos é muito pior em termos materiais do que ser pobre em um país desenvolvido. Além disso, existem muito mais pobres nos países subdesenvolvidos do que em países desenvolvidos.

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tivessem sido traumáticos, com expropriações, trabalho infantil, extrema pobreza e exploração, ao final da segunda guerra mundial eles passaram a viver um período de bonança em que a riqueza não só era produzida em grande escala mas também relativamente distribuída, garantindo melhores condições de vida para o conjunto da população. Por essas razões a temática do desenvolvimento econômico foi e ainda é palco de intensos debates, desde o início do século XX, entre intelectuais de países pobres preocupados com as condições impostas pela divisão internacional do trabalho que concentram a renda e socializam a pobreza. Não por acaso, as principais contribuições teóricas e os principais debates ocorreram nos países latino-americanos sob a forma de “desenvolvimento nacional”. Nesses países, boa parte da intelectualidade das classes dominantes passou a buscar mecanismos que legitimassem a industrialização frente a necessidade imposta pelo período que durou entre as duas guerras mundiais e que restringiu as importações de produtos industriais. A experiência do modelo de Industrialização por Substituição de Importações foi inicialmente sistematizada e defendida na América Latina por Raúl Prebisch que, no comando da Comissão Econômica Para América Latina e o Caribe

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(CEPAL)99, formulou uma crítica à Teoria das Vantagens Comparativas aos olhos dos países latino-americanos, explicando as desvan-tagens da especialização na exportação de produtos primários diante da importação de produtos industrializados, colocando a industrialização como condição necessária ao desenvolvimento dos países de passado colonial.

Raúl Prebisch, nascido em 1901 na Argentina, foi um dos mais notáveis economistas latino-americanos. Dedicou sua vida a criar um corpo teórico autêntico que não incorporasse as determinações teóricas nem receitas prontas fabricadas nos países desenvolvidos para os países subdesenvolvidos. Assumiu a coordenação da CEPAL em 1949, mesmo ano em que

99A CEPAL é uma comissão da ONU fundada em 1948.

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publicou uma de suas principais obras, “O desenvolvimento econômico na América Latina e alguns de seus principais problemas”. Faleceu em 1986 no Chile

Junto a Prebisch esteve Celso Furtado, o economista brasileiro que realizou a melhor e mais completa leitura sobre a formação econômica do Brasil e sobre os impasses ao desenvolvimento econômico.

Nascido no sertão paraibano em 1920, Celso Furtado foi o mais notável economista brasileiro. Ingressou na CEPAL em 1949 e atuou, ativamente, tanto em cargos de planejamento e gestão pública como na produção bibliográfica. Foi o principal expoente da criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Entre as dezenas de livros e textos escritos sobre os problemas do subdesenvolvimento brasileiro, destaca-se o livro “Formação Econômica do Brasil”

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publicado em 1959 e que se tornou bibliografia base dos cursos de economia no país. Faleceu em 2004 desiludido com a possibilidade do desenvolvimento nacional sob os marcos do capitalismo dependente

O núcleo central das ideias da CEPAL consistia em mostrar como a divisão internacional do trabalho instituída na fase monopolista do capitalismo criou uma estrutura global entre países centrais, irradiadores das inovações tecnológicas, de produtos e serviços de alto valor e da demanda econômica global; e países periféricos, passivos em relação às determinações do centro das decisões econômicas. Seria essa estrutura que impedia a superação do subdesenvolvimento nos países pobres, que só poderiam construir seu próprio desenvolvimento com reformas políticas (democratização), econômicas (industrialização) e sociais (distribuição funcional da renda) nas estruturas nacionais, enfrentando a dependência externa (sobretudo tecnológica) e o extremo desequilíbrio social herdado do período colonial. Foi a partir do seu arcabouço teórico que a CEPAL fundou o campo conhecido como “nacional desenvolvimentismo” e, por isso, constituíram uma “escola de pensamento” conhecida como dos economistas “estruturalistas”, já que defendiam mudanças estruturais. Para Furtado, além dos condicionantes externos, as características dos capitalistas brasileiros garantiam a perpetuação do

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subdesenvolvimento e da dependência, uma vez que a extrema concentração de renda é o mecanismo que garante as sucessivas rodadas de modernização dos padrões de consumo (baseados no consumo da elite internacional) desejadas graças ao seu mimetismo cultural. Em contraposição às ideias cepalistas que levavam inevitavelmente a um questionamento da ordem vigente, passou-se a formular uma ideia etapista do desenvolvimento. Isto é, uma visão de que não haveria uma correlação necessária entre desenvolvimento e subdesenvolvimento, mas que os países que desejassem se desenvolver deveriam passar por diferentes estágios. Essa perspectiva etapista foi difundida por Walt Rostow em seu livro Etapas do Desenvolvimento Econômico: um manifesto não comunista publicado em 1960 e inspirado claramente na experiência dos países que haviam se industrializado até o final do século XIX quando, como vimos, o capitalismo ainda não havia se monopolizado. O fato é que, apesar de essa teoria não ter se tornado praticável aos países capitalistas durante o século XX, quando o processo de monopolização do capital criou barreiras ao desenvolvimento dos países capitalistas pobres, ela se tornou ideologicamente bastante eficiente, colocando a industrialização como condição não só necessária, como propunha a CEPAL, mas suficiente ao desenvolvimento. Foi a partir dessa perspectiva etapista que foram cunhados termos

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muito utilizados hoje em dia para se referir aos países subdesenvolvidos que lograram algum tipo de industrialização; esses são países ditos “em desenvolvimento” ou “emergentes”, expressões que dão a entender que esses nações estariam em processo de aproximação dos países centrais. A questão é que, já ao final da década de 1960, o modelo de Industrialização por Substituição de Importações começou a mostrar fortes sinais de esgotamento. Isso porque, além dos gargalos de infraestrutura – energia, transporte e comunicação – restringirem a capacidade de expansão industrial mais acelerada, o processo de industrialização tinha se tornado, desde a década de 1950, quase todo dependente de empresas multinacionais em termos de técnica e tecnologia e do capital estrangeiro para investimento e financiamento. A esse aspecto, somou-se o fato de que o ciclo de golpes militares na América Latina interrompeu as lutas sindicais, que estavam conseguindo transformar os ganhos de produtividade do processo de industrialização em aumentos salariais100. No entanto, esse fenômeno, que deveria esgotar rapidamente o mercado interno foi ocultado pelo acelerado crescimento econômico do período no Brasil, vulgarmente conhecido como “milagre

100 Ver o gráfico da série temporal do salário mínimo real no item sobre salário e lucro.

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econômico” (1969-1973), baseado em dívida externa e graças à gigantesca massa de trabalhadores não incluídos no circuito formal de trabalho. Junto ao modelo de Industrialização por Substituição de Importações, entrava em crise o projeto do nacional desenvolvimentismo. Esse processo significou uma cisão sobre o processo de compreensão da dependência no final da década de 1960 e início da de 1970. Se por um lado, dentre os teóricos da economia, o campo marxista, que por algum tempo esteve convencido da necessidade de aliança entre a chamada “burguesia nacional” e o proletariado para o desenvolvimento nacional, formou a Teoria Marxista da Dependência101, por outro houve um processo de releitura reacionária das contribuições cepalinas. Enquanto para os marxistas da teoria da dependência se tornara necessária a ruptura total com o imperialismo para cessar o fluxo de mais-valor da periferia ao centro do capitalismo para criar condições ao desenvolvimento econômico, para a leitura reacionária o capital internacional se mostrara condição necessária à industrialização, medida suficiente ao

101 Seus principais autores são: Ruy Mauro Marini (1932-1997), André Gunder Frank (1929-2005), Theotônio do Santos (1936-2018), Vânia Bambirra (1940-2015), Orlando Caputo e Roberto Pizarro.

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desenvolvimento102. Lançava-se, a partir dessa perspectiva, uma profunda confusão sobre o significado original de desenvolvimento econômico, ora confundindo-o com a industriali-zação em si103, ora confundindo-o com o simples crescimento econômico. Celso Furtado, principal expoente brasileiro da CEPAL, desiludido com o processo de industrialização levado a cabo nos países periféricos, aprofundou sua crítica sobre a necessidade de ruptura com os nexos da dependência. A partir da década de 1970, passou a se dedicar a apontar os limites desse processo e as suas consequências nefastas. No livro O mito do desenvolvimento econômico de 1974, o autor trata não só da insuficiência da industrialização para a superação do subdesenvolvimento, mas de como ela aprofundou a dependência e a desigualdade social, além de abordar também os problemas ambientais causados por esse modelo.

102 Dependência e Desenvolvimento na América Latina (1969) de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto e Além da Estagnação (1972) de Maria da Conceição Tavares e José Serra representaram duas das principais contribuições nesse sentido. 103 A tese da “teoria da dependência” de FHC e Faletto levaria ainda a um enfoque específico, chamado “capitalismo tardio” difundido pelos professores fundadores do Instituto de Economia da Unicamp.

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Enquanto se enfraquecia as teses originais da CEPAL e o nacional desenvolvimentismo, crescia a influência, até então remota, dos economistas liberais no debate sobre o desenvolvimento econômico. A formulação das teses neoliberais, amparadas pela experiência da ditadura chilena, começaram não só a ganhar espaço no debate público, mas a penetrar nas formulações teóricas da própria CEPAL, com o chamado neoestruturalismo, que definiria o que se denominou “nova CEPAL”. Sem negar a importância da industrialização, seus artífices defendem a tese de que os países “em desenvolvimento” deveriam aguardar a abertura de “janelas de oportunidades” criadas por novas revoluções tecnológicas, a fim de se modernizarem. Enquanto não fosse possível atravessar alguma janela aberta, esses países deveriam investir e modernizar a produção de mercadorias que dispunham de maior competitividade no mercado internacional. Isto é, em completa oposição às teses originais da CEPAL, os neoestruturalistas resgatam a ideia de especiali-zação produtiva da teoria das vantagens comparativas e afirmam que esse seria o mecanismo capaz de mitigar paulatinamente a desigualdade social em direção a maior equidade. A partir da década de 1980, à exceção dos fieis defensores do nacional desenvolvimentismo extemporâneo e daqueles que insistiam em negar que o modelo de industrialização adotado aprofun-

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dou o dependência (tecnológica e financeira) e o subdesenvolvimento (aumento da pobreza e da miséria, expropriações das populações camponesas, inchaço de grandes cidades, aumento da violência etc.), o debate sobre o desenvolvimento econômico nos meios intelectuais e institucionais foi escanteado, dando espaço para a preocupação exclusiva sobre o controle da inflação, o fechamento do balanço de pagamentos e o crescimento econômico. Já tratamos, em tópicos anteriores, da questão do balanço de pagamentos e da inflação. Vejamos agora o que significa o crescimento na economia. O crescimento econômico é mensurado a partir da comparação entre o Produto Interno Bruto (PIB) de um período e outro. O PIB representa tudo aquilo que foi produzido na economia de um país, seja em bens ou serviços, ao longo de um determinado tempo, geralmente em um ano104. No entanto, o PIB é uma medida simplesmente quantitativa. Mesmo a computação

104Existem diferentes formas de se calcular o PIB: pela ótica da produção, que pode somar os preços de bens e serviços pagos por consumidores (finais e intermediários) ou pela soma do valor agregado ao longo da cadeia produtiva; pela ótica da despesa que soma tudo que foi gasto pelos agentes econômicos, isto é, consumo, investimento e gastos do governo; ou da renda, que representa a somatória entre salários, lucro bruto e tributos.

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da divisão na participação dos três setores da economia – primário, que representa a produção de matéria-prima; secundário, que congrega as atividades industriais; e terciário, o setor de serviços –, ou da formação bruta de capital fixo105 não representam, necessariamente, mudanças qualitativas no sentido atribuído à ideia genuína de desenvolvimento econômico. É bem verdade que, historicamente, as economias capitalistas desenvolvidas passaram a ter uma participação cada vez menor do setor primário em detrimento do aumento da participação do setor secundário em seu PIB. Contudo, a partir do processo de transnacionalização do capital, a participação do setor terciário tem aumentado em detrimento do setor secundário. Isso tem ocorrido porque esses países passaram a concentrar as atividades de gestão e de informação enquanto suas fábricas têm se deslocado para os países pobres. Alguns países subdesenvolvidos também têm vivenciado um aumento da participação do setor terciário e uma

105 “Formação bruta de capital fixo” é a operação que registra a ampliação da capacidade futura da produção de forma constante. Ou seja, bens de capital como máquinas, equipamentos e instalações. Portanto, se esse indicador reduz, significa que a produção e, consequntemente, o emprego, tendem a cair no futuro.

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queda do setor secundário em seu PIB. Entretanto, isso não significa dizer que esse movimento seja resultado de desenvolvimento. Ao contrário, isso tem ocorrido porque esses países vivenciam um processo de desindustrialização, deslocando uma massa de trabalhadores precarizados à atividade comercial e de serviços em geral, além de aumentar a participação do setor primário, já que se especializam, cada vez mais, na produção de comódites para exportação. Na verdade, os países subdesenvolvidos que têm apresentado melhor desempenho e dinamizado sua economia são justamente aqueles que estão aumentando a participação da indústria no PIB. Entre os anos 2004 e 2013, por exemplo, o Brasil vivenciou um crescimento médio de 3,6%, mesmo tendo passado pela recessão de 2009, o que são números significativos para a série histórica brasileira. Todavia, esse crescimento não significou desenvolvimento econômico. Isso porque, as suas variações se mostraram muito dependentes das exportações de comódites aos países centrais e não resultaram em mudanças estruturais da economia nacional, vide a onda de desemprego e decadência vivida após 2013, que fizeram milhões de trabalhadores voltarem a uma condição miserável. No mesmo período, por outro lado, a China cresceu a uma média de 9,34%, tendo crescido acima dos 9% nos anos seguintes à crise de 2008. Além disso, o crescimento chinês teve como base a

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incrementação da produção de altíssima tecnologia e de ganhos de produtividade repassados aos salários. No mesmo intervalo de tempo, os EUA cresceram uma média de 1,78%, bem abaixo do Brasil, e isso não significou que o Brasil tenha se desenvolvido mais do que os EUA nesses dez anos. Nesse período, aliás, forjou-se uma “nova corrente teórica”, o neodesenvolvimentismo. Trajado com o antigo discurso do nacional desenvolvimentismo, mas com as práticas neoestruturalistas e neoliberais, essa tentativa de formulação teórica durou apenas até a crise se aprofundar em 2013, mostrando a vulnerabilidade da economia brasileira e como esses anos de crescimento econômico sustentado pela exportação de produtos primários não só não garantiu o desenvolvimento econômico como também aprofundou o subdesenvolvimento e a depen-dência. Isso ocorreu a um custo altíssimo em termos ambientais (pelo aumento do desma-tamento e do uso de agrotóxicos e adubos sintéticos) e políticos, já que (re)empoderou forças políticas das mais retrógradas do país, a saber, os latifundiários do agronegócio, herdeiros da velha aristocraria rural. Ora, como ficou claro, o crescimento econômico sólido é, na verdade, uma consequência do desenvolvimento econômico e não a sua causalidade. Mais ainda, o crescimento econômico dos países subdesenvolvidos, na verdade, é dependente do desenvolvimento econômico dos países

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desenvolvidos. Imbuída pelo pensamento hegemônico neoliberal, a ilusão de que o crescimento econômico, seja qual fosse sua razão, acompanhada pela inclusão da massa populacional ao consumo, sem distribuição funcional da renda – isto é, entre salário e lucro bruto – levaria o Brasil ao desenvolvimento econômico, frustrou mais uma geração de economistas bem intencionados, mas teoricamente atordoados. Não por acaso a euforia com a descoberta de petróleo na camada pré-sal em parte do território marítimo brasileiro durou tão pouco. O resultado prático desses anos tem sido de desindustrialização e distanciamento do que poderia se chamar de desenvolvimento econômico, na contramão dos caminhos trilhados, por exemplo, pela China e pela Coreia do Sul, que se tornaram protagonistas no desenvolvimento das tecnologias típicas da terceira revolução industrial. Na realidade, vivemos um processo que tem transformado a economia brasileira e latino americana em uma espécie de colônia moderna. Ao apagar a necessidade de uma revolução democrática como elo fundamental do desenvolvimento econômico, transformando-a em um aspecto estritamente moral, alguns economistas contribuíram para reduzir essa temática a simplismos macroeconômicos. Mais ainda, abriram caminho para “soluções” antigas – repaginadas pelo ideário neoliberal – pautadas na noção de que o que limita

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o desenvolvimento brasileiro seria a falta de espírito empreendedor e de “capital humano”, ou ainda, que o futuro promissor do Brasil é se tornar o celeiro do mundo.

Sugestões de leitura A marcha do Curupira: o aprofundamento da Reversão Neocolonial nos Governos Lula e Dilma, organizado por Theo M. Lubliner, Leandro R. Pereira e Maurício Espósito. Entre a Nação e a Barbárie: uma leitura das contribuições de Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Celso Furtado à crítica do capitalismo dependente, de Plínio S. de Arruda Sampaio Jr. Pequena Introdução ao Desenvolvimento – Enfoque Interdisciplinar, de Celso Furtado.

Sugestões de filmes/documentários O Longo Amanhecer. Brasil. 2004. José Mariani, 73 min. O Mundo Global visto do lado de cá. 2006. Brasil. Silvio Tendler, 96.

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PLANIFICAÇÃO ECONÔMICA

A diferença essencial entre a economia planificada e a economia de mercado é que, enquanto essa última se fundamenta na propriedade privada e na livre iniciativa, isto é, quando o proprietário possui o direito de decidir sobre o que fará com seus recursos e seu patri-mônio, a primeira se baseia em uma centralização das decisões no Estado que sobreponha os interesses públicos aos privados, colocando a riqueza a serviço de quem mais necessita. A ideia da economia planificada é que as mercadorias sejam produzidas de acordo com o seu valor de uso e não pelo seu valor de troca. Ou seja, pensando em satisfazer as necessidades coletivas e não o desejo individual pelo lucro.

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Não se deve confundir a ideia de planificação com a de planejamento econômico, uma vez que essa última representa apenas uma tentativa de direcionar parte dos investimentos privados em uma economia de mercado tendo em vista o interesse público. Obviamente, não existe uma economia de mercado “pura”. Como vimos no tópico sobre crises, as inconstâncias e as repetidas crises econômicas no capitalismo, bem como a correlação de forças resultante das lutas de classes e as condições históricas, levaram a diferentes estruturações das economias de mercado com diversos graus de planejamento e de hierarquização entre interesses públicos e privados. Se por um lado os economistas liberais seguem insistindo que as crises são forças do acaso na economia de mercado e os fiéis defensores racionais do capitalismo passaram a formular teorias para tentar controlá-lo e assim mitigar suas consequências, por outro os críticos ao modo de produção capitalista começaram a propor sua supressão, implantando um sistema de planificação econômica. Isso porque, a tendência descontrolada da iniciativa privada, ao contrário do que gostariam os liberais, não leva a uma harmonização social e ao bem comum, mas ao aumento de desigualdades e a crises persistentes e cada vez mais profundas. Assim, esse sistema de planificação, através da centralização de todas as decisões econômicas no Estado, poderia criar

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condições para o fim das crises de superprodução, garantiria o fim do desemprego e uma justa e equânime distribuição da renda. Esse sistema foi experimentado pelos países do chamado “socialismo real” por uma razão bastante óbvia: a centralização das decisões econômicas para o bem público não poderia existir sem uma forte resistência dos proprietários dos meios de produção e, por isso, teriam que ser frutos de processos revolucionários e de abolição da propriedade privada. De fato esse países lograram a centralização das decisões econômicas, porém enfrentaram outros problemas graves. Sobretudo porque todos os países que passaram por esses processos revolucionários ainda não haviam consagrado suas revoluções industriais e viviam sob um regime aristocrático e até mesmo semifeudal. Por esse motivo esses países, apesar de planificados, viveram por alguns momentos de crises de subprodução, como era característico do período pré-industrial. Por outro lado, as crises globais de superprodução ou não os afetaram ou afetaram muito poucos os países que ainda possuíam muita dependência do comércio exterior, principalmente de produtos industrializados. O controle da produção de acordo com as necessidades e não segundo as expectativas de lucro garantiram que não houvesse nem crises de superprodução nem desperdícios. No mesmo sentido, a organização central da economia

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envolvia o controle sobre os preços internos, evitando a existência de inflação. Vimos que a razão única da inflação em uma economia de mercado é o aumento de preço dos capitalistas diante de uma possibilidade de aumento do lucro, geralmente, ligado ao aumento da demanda e à pouca oferta ou ao controle monopolizado da oferta. Em uma economia planificada não existe a fixação de preços sob o controle de oligopólios que manipulam o jogo da oferta e da demanda. Por outro lado, nos países que planificaram sua economia ocorreram situações de queda da oferta por falta de produção ou de importação. Nesse caso, os preços se mantiveram estáveis e o Estado passou a determinar a quem seriam destinados esses recursos escassos. Um exemplo elucidativo era o do iogurte em Cuba. Como a sua produção era muito baixa naquele país, o governo exigia que ele fosse destinado às famílias com crianças pelo sistema de racionamento das cestas básicas, até que se expandisse a produção. Somente após o abastecimento mínimo dessas famílias é que o excedente podia ser vendido pelas cooperativas agrícolas a um preço mais alto. Quando não havia esse tipo controle, obtinham os produtos aqueles que conseguissem comprar primeiro. Isso é o que gerava aquelas enormes filas, consagradas em fotos estampadas nos meios de comunicação dos países capitalistas, que as divulgavam como propaganda negativa do “socialismo real”.

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Já a taxa de câmbio é sempre fixa. Isso porque o Estado é o único comprador e vendedor da moeda nacional. No entanto, quando o país de economia planificada possui relações comerciais com países de economia de mercado que resultam em déficit no balanço de pagamentos, ele precisa criar mecanismos para obter divisas para não ficar impedido de importar. Enquanto a URSS era a grande potência centralizadora da produção industrial dos países de economia planificada isso não consistia em um problema. Na maioria dos casos as trocas eram bilaterais e sequer envolviam moeda, como um escambo. Contudo, com o desmonte da URSS, os países dependentes dessas trocas tiveram que ampliar seu comércio com países de economia de mercado. Cuba, por exemplo, criou duas moedas: o peso cubano, de circulação interna, e os pesos conversíveis, atrelados a moedas estrangeiras e que compram produtos importados em território nacional e pagam serviços de turismo no país, com o intuito de arrecadá-las em maior quantidade para a utilização em importações. Em relação à criação de moeda, diferente dos países capitalistas em que os bancos privados são os responsáveis por criar moeda através do credito, na economia planificada esse papel cabe, exclusivamente, ao Estado. Portanto, enquanto os países de economia de mercado utilizam seus Bancos Centrais para tentar induzir o

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comportamento dos bancos comerciais para controle da liquidez, da inflação e do crédito, nos países planificados é o próprio Estado que o faz sem qualquer tipo de mediação. Assim, além do controle, o eventual juro cobrado pelo empréstimo é gerido pelo próprio Estado. E a sua emissão é limitada, obviamente, pela produção real. Caso haja descompasso, ainda que não haja inflação, haverá desabastecimento, visto que as pessoas não encontrarão mercadorias para serem compradas, mesmo com o dinheiro em mãos. No que se refere à tributação, como toda a produção é controlada e centralizada pelo Estado, não há cobranças semelhantes aos dos países de economia de mercado. Ora, se o Estado é o mediador entre todas as trocas, não é necessário que se pague para depois se tributar. No entanto, quando há algum tipo de abertura para a iniciativa privada (o que tem se tornado mais comum nas últimas décadas), seja internamente ou seja de empresas estrangeiras em território de economia planificada, aí sim há regras de tributação, geralmente com carga bastante alta. Das conquistas pleiteadas pelos países que planificaram a economia duas são inegáveis: a industrialização acelerada em tempos de monopolização da economia global e a distribuição da renda diante da escassez de recursos. Todavia, isso não ocorreu de forma homogênea entre todos os países. Se por um lado os países de menor popu-

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lação e recursos tiveram maior sucesso com a distribuição de renda, por outro, se tornaram dependentes dos países de maiores dimensões populacionais e territoriais que levaram adiante processos bastante acelerados de industrialização, como a Rússia na URSS e a China. Isso porque, nesses países, houve controle sobre o deslocamento de uma grande massa populacional para a atividade industrial, ao mesmo tempo em que se aumentou a produção agrícola e de insumos através da reforma agrária ou pela coerção (o que não ocorreu sem conflito, como no processo de industrialização nos países capitalistas, mas em um intervalo muito mais curto). Isso permitiu que fosse possível construir infraestrutura básica de transporte, energia, comunicação e bens de capital, além de se garantir as necessidades mais básicas da maior parte da população, tais como alimentação e moradia. A dependência dos países de menor capacidade de escala em relação aos países industrializados foi sustentada por um longo período de abundância. No entanto, quando a URSS entrou em declínio, o cenário foi dramático. Cuba, por exemplo, que havia garantido níveis de concentração de renda baixíssimos, pleno emprego, e educação, saúde e moradia universalizados, mas que se especializou na produção de níquel, canade-açúcar, laranja e tabaco, acabou sofrendo não só com falta de produtos industrializados (sobre-

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tudo petroquímicos), porém com a falta de alimentos durante o “período especial”. A saída encontrada, nesse caso, foi se abrir para a atividade turística, com objetivo de adquirir divisas. Hoje, com o incentivo da produção de alimentos por toda sua extensão, o país já se aproxima da soberania alimentar e tem também, através de acordos de cooperação, desenvolvido sua indústria. É bem verdade que algumas economias de mercado, com destaque aos países nórdicos, conseguiram baixíssimos níveis de desigualdade e graus altíssimos em termos de desenvolvimento tecnológico. Entretanto, isso só se fez possível porque há forte controle e planejamento estatal sobre os interesses privados, o que constitui economias de mercado atípicas e inaplicáveis em outras partes do mundo. Isso porque, vale lembrar, esses países – como Suécia, Noruega e Dinamarca, por exemplo – não têm histórico recente de colônia, possuem população pequena e criaram um sólido Estado de bem-estar social (fruto da luta sindical) financiado pelo lucro de suas multinacionais que exploram a força de trabalho e os recursos naturais de países subdesenvolvidos106. Esse caso evidencia que, diferente do que defendem os economistas liberais, a desigualdade, seja social ou interna-

106 Vale lembrar que a maioria desses países possuem, ainda hoje, dezenas de territórios colonizados em todos os continentes.

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cional, não é resultado da meritocracia, mas sim de razões estruturais e históricas que só foram superadas através da planificação econômica ou pelo forte regulamento em uma economia de mercado com características bastante singulares. Vale lembrar também que, logo após a segunda guerra mundial os países potência do “socialismo real” estiveram envolvidos na Guerra Fria o que gerou uma corrida armamentista contra os países capitalistas, levando à concentração de recursos para o desenvolvimento tecnológico e militar, o que impulsionou o processo de industrialização, mas implicou em uma exploração da força de trabalho não prevista pela idealização da planificação. O caso das corridas espacial e atômica entre EUA e URSS é clássico. Portanto, boa parte dos recursos gerados pela planificação não tiveram como finalidade o bem-estar populacional, mas a preparação para uma guerra iminente que, vale dizer, não chegou as vias de fato entre as grandes potências, porém ocorreu por todo o globo. Além disso, desde o final dos anos de 1960 já se via um esgotamento do desenvolvimento industrial no leste europeu. Isso porque, atingido determinado grau de bem-estar social, cessam também os estímulos à continuidade do desenvolvimento tecnológico. Ora, a princípio isso não possui o menor significado, não fosse a propagação dos padrões de consumo e do bem-estar alcançados no lado ocidental da Europa. Por esse motivo

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começaram uma série de inclinações da planificação por mecanismos de mercado, implementando uma espécie de “socialismo de mercado”, que não significava nem a planificação “pura” nem uma economia de mercado. Isso porque o interesse pelo lucro e pelos ganhos privados se mostraram muito mais eficientes no desenvolvi-mento das forças produtivas – isto é, nos ganhos de escala, na redução de custos e no desenvolvimento tecnológico – do que a motivação ou a coerção do Estado centralizador. Esse processo teve como exemplo pioneiro as reformas na antiga Iugoslávia e na Hungria. Posteriormente, essas reformas ocorreram na China, ao final da década de 1970, na URSS, anos antes de sua dissolução e desde a década de 1990, mas em menor proporção, em Cuba. Salvo exceções, os países de economias planificada não criaram novas forças produtivas e novas formas de sociabilidade, mas apenas adaptaram as mesmas formas estabelecidas nas economias de mercado, algo acompanhado pelas constantes modernizações dos padrões de consumo dos países capitalistas. A China, sem dúvida, é o grande exemplo de “sucesso” de desenvolvimento das forças produtivas na combinação entre uma economia planificada e de mercado. Isso porque esse desenvolvimento tem se convertido em ganhos materiais ao conjunto da sua gigantesca população e em mudanças para uma economia que se, até a

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década de 1980 era pouco promissora, hoje desponta como a próxima maior potência mundial. Contudo, fica difícil imaginar o cumprimento do seu planejamento secular de transformar uma economia cada vez mais imersa na lógica de mercado em uma sociedade comunista. Por outro lado, não se pode ser ingênuo, uma vez que esse processo tem também transformado a China em uma potência tecnológica e militar e uma guerra de proporções mundiais é sempre uma possibilidade aberta em tempos de capitalismo monopolista. Cuba, por sua vez, é um exemplo notável dessa exceção. Talvez porque conseguiu generalizar entre seu povo um sentimento de pertencimento à Revolução de 1959 (o que explica a sobrevivência do regime durante o “período especial”) e pelas contribuições teóricas e exemplares de Che Guevara a respeito da solidariedade e da entrega individual para o bem coletivo. Naquele país a população vive de maneira bem simples em termos materiais e não há grandes estímulos ao consumismo a não ser pelas novelas brasileiras e pelos jogos esportivos assistidos na televisão por quase toda a população. Contrariando a máxima liberal de que os seres humanos são seres naturalmente egoístas, a pequena ilha se transformou em uma das maiores referências mundiais em saúde, não por motivações financeiras, mas por prezar pelas vidas humanas.

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Um dos grandes problemas generalizados da experiência de planificação econômica foi que a centralização total das decisões do Estado criou uma espécie de “classe de burocratas” que, no lugar da classe capitalista, passou a explorar o conjunto de outros trabalhadores, seja por concentração das decisões que não dialogam com a necessidade da maioria da população (menor democracia), seja por terem privilégios ou vantagens em questões materiais. A combinação entre hierarquização e concentração de poder já demonstrou, empírica e historicamente, ser ineficiente107. Isso porque, em uma economia que preza pelos interesses públicos, é imprescindível que o conjunto da população participe dessas decisões a fim de realizar, de fato, o interesse público. Por esse motivo, a maior tarefa posta hoje à planificação econômica é a radicalização da democracia ao seu mais alto grau, a democracia direta, seja no ambiente de trabalho, seja na tomada de decisões políticas e econômicas, para enfim realizar a fase superior de uma sociedade comunista visualizada por Karl Marx em

107 Até mesmo as teorias da Administração de Empresas já trabalham nessa perspectiva por identificar perdas de produtividade. Daí a tentativa de garantir aos trabalhadores (outrora funcionários, hoje colaboradores) um sentimento de pertencimento à empresa, podendo até mesmo ter voz em conselhos diretivos.

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Crítica ao Programa de Gotha em que a produção deverá ser feita “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual segundo suas necessidades”. Sugestões de leitura A economia cubana: experiências e perspectivas (1989-2010), de José Luis Rodríguez García Sistema planificado na União Soviética: lições históricas e visão atual, de Irina Mikhailova Sugestões de filmes/documentários O Invasor Americano. EUA. 2015. Michael Moore, 120 min. S.O.S Saúde. EUA. 2007. Michael Moore, 123 min.

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SOBRE O AUTOR _______________________________________________________________________

Theo Martins Lubliner é graduado em Ciências Econômicas pela Unicamp, fez mestrado na mesma instituição que culminou na defensa da dissertação “A Esquerda da Ordem: da defesa da industrialização à inserção subalterna na ordem global – estudo sobre o currículo do Instituto de Economia da Unicamp”. Atualmente é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da UnespMarília, onde elabora uma tese sobre o ensino de economia para a classe trabalhadora. É docente do Instituto Federal de Sergipe, onde ministra disciplinas para o ensino médio/técnico.

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