Só mais um esforço

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Vladirnir Safatle

Só mais um esforço

Copyright © 2017 Três Estrelas - selo editorial da Publifolha Editora Ltda.

Sumário

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a permissão expressa e por escrito da Publifolha Editora Ltda., detentora do selo editorial Três Estrelas. EDITOR Alcino Leite Neto EDITORA-ASSISTENTE Rita Palmeira PRODUÇÃO GRÁFICA Iris Polachini CAPA Roman lar FOTO DA CAPA Policiais militares na Esplanada dos Ministérios, durante protesto contra o governo, em Brasília, em 24/5/20171 Marcelo Camargo/Agência Brasil

6

Prefácio Michael Lõwy

14

O último capítulo, ou História sucinta da decomposição de um país

40

Um problema de imagem

58

O esgotamento da Nova República

78

O esgotamento do lulismo

106

Junho de

120

Para além da melancolia: em direção ao grau zero da representação

135

Anexos Sem medo 137 Nós acusamos

PROJETO GRÁFICO DO MIOLO Mayumi Okuyama EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Jussara Fino PREPARAÇÃO Fernanda

Guimarães

REViSÃO Ana Cecília Agua de MeIo, Isabel Cury e Carmen T. S. Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Cll') (Câmara Brasileirado Livro, SP, Brasil) Safatle, vladimir Só mais um esforçol V1adimirSafatle. São Paulo: Três Estrelas,

2017.

ISBN 978-85-68493-42-7

Análise (Filosofia)2. Brasil- História 3. Brasil- Política e governo 4. Democracia - Brasil 5. Direita e esquerda (Política) 6. Filosofiapolítica 7. Política- Brasil- História J. Título. 1.

2013 e

o esgotamento da esquerda brasileira

COO-320.01

Índices para catálogo sistemático: 1.

Filosofiapolítica

320.01

Este livro segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor desde ,. de janeiro de 2009 .

...,JTRÊS JESTRELAS

AI. Barão de Limeira, 40\, 6° andar CEP 01202-900, São Paulo, SP Tel.: (li) 3224-2186/2187/2197 [email protected] www.edítorajestrelas.com.br

320·01

sn.,~

(1990),

140

Prefácio Michael Lõwy

Vladimir Safatle, professor de filosofia na Universidade de São Paulo, é um pesquisador internacionalmente

reconhecido; seus

livros sobre Lacan, Hegel e Adorno foram traduzidos em várias línguas e têm sido objeto de seminários e debates na França e nos Estados Unidos. Mas Safatle não é apenas um acadêmico de primeira ordem. Ele é também - o que não é tão frequente - um pensador comprometido com a causa dos oprimidos e dos explorados, um homem de esquerda autêntico, que usa sua pluma para denunciar os crimes e as injustiças do sistema capitalista e para propor alternativas radicais. Este livro, Só mais um esforço - título que homenageia o Marquês de Sade, participante ativo da Revolução Francesa -, é uma notável contribuição a uma futura refundação da esquerda brasileira em novas bases, críticas, subversivas e antissistêmicas. Safatle desenvolve uma análise e um ponto de vista que se destacam nitidamente do conformismo

ambiente

c da velha e sempre repetida política de conciliação de classes, que tanto estrago fez à história da esquerda - e não só brasileira. Temos na Europa, lembra Safatle, uma longa lista de capi-

tulações da social-democracia.

Tony Blair, Gerhard Schrõder,

7

Massimo d'Alema e, finalmente, François Hollande são algu-

os documentos constitutivos do

mas das figuras típicas desse reformismo

do capitalismo como indispensável à plena democratização

sem reformas. No

PT [...] já

advogavam a superação da

vida brasileira.

Brasil, o fenômeno tomou a forma de um populismo sui gene-

ris, não sem certas analogias com o de Getúlio Vargas. Com E O documento

suas medidas sociais, Lula elevou o nível de vida de amplas

acrescenta:

camadas sociais desfavorecidas, em um modelo de integração da população pelo consumo que não mexeu com o consenso

Semelhante convicção anticapitalista, fruto da amarga experiên-

neoliberal e não diminuiu em nada o caráter profundamente

cia social brasileira, nos fez também críticos das propostas social-

desigual da sociedade brasileira. Essa política de conciliação

-democratas. As correntes social-democratas não apresentam, hoje,

e ajustes gradualistas acabou se esgotando, e tivemos então o

nenhuma perspectiva real de superação histórica do capitalismo.

golpe parlamentar

contra Dilma Rousseff, seguido por uma

sucessão de medidas ultrarreacionárias,

que constituíram

Crítica acertada, que se aplica perfeitamente aos governos

um

verdadeiro pesadelo neoliberal. Nesse modelo cada vez mais

do

autoritário,

-luz desse radicalismo originário de 1990.

a gestão pelo medo substitui a democracia

libe-

ral. Aplica-se aqui plenamente o dito do milionário americano Warren Buffett: "Quem disse que não há luta de classes? É claro

sua origem, era antipopulista vimentismo. encontro

Eu acrescentaria:

nacional

do partido

de

2003

(PT), em

e crítico do nacional-desenvol-

2016,

cuja prática se encontra a muitos anos-

Safatle acredita que o lulismo foi o último modelo de coniliação de classes; esse ciclo populista acabou definitivamente.

diretas no Brasil- uma hipótese nada segura, considerando

a

alergia à democracia das classes dominantes brasileiras -, não se

era mesmo anticapitalista. No

pode excluir a possibilidade de uma vitória de Lula ou de outro

em 1990 - pouco depois da

representante da centro-esquerda.

queda do Muro de Berlim e do anunciado "fim do socialismo" -, o PT aprovou um documento intitulado "O socialismo petista", em que afirmava o seguinte:

Esse compromisso de raiz com a democracia nos fez igualmente

O lulismo só será superado

c seu espaço político for ocupado por uma força de esquerda radical, disposta a assumir o conflito social. Uma das contribuições precisamente

8

a

Tenho opinião um pouco diferente: se houver no futuro eleições

que há uma, e estamos vencendo". Safatle observa que o Partido dos Trabalhadores

PT

a proposta

tir de um programa

mais importantes de refundação

efetivamente

deste livro é

da esquerda, a par-

antissistêmico:

democra-

anticapitalistas - assim como a opção anticapitalista qualificou de

ia direta, gestão coletiva dos recursos públicos, de sistemas

modo inequívoco a nossa luta democrática. [...] Por isso mesmo,

I crédito e do patrimônio

ecológico, confisco de aparelhos

9

produtivos para serem geridos pelos próprios trabalhadores, salário máximo, restrição do direito à propriedade privada. Só uma esquerda que não tem medo de dizer seu próprio nome, que assume a luta de classes e se identifica com o proletariado como sujeito político com força revolucionária - principal tese da teoria marxista da revolução -, será capaz de superar os impasses a que nos levou um "reforrnísmo fraco", que confundiu política com gestão. Este livro corajoso, polêmico, instigante é não apenas uma análise, um estudo e um diagnóstico da atual conjuntura his-

Franceses, só mais um esforço

tórica do Brasil, mas um chamado à ação: "Agora não é hora

Se quiserdes ser republicanos.

de medo. Agora é hora de luta".

Michael Lii1ry éfilósofo franco-brasileiro, diretor de pesquisas emérito do (Centre National de Ia Recherche Scientifique), em Paris. É autor, entre outros, de A teoria da revolução no jovem Marx (2012) e A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano (2014), ambos publicados pela Boitempo.

CNRS

10

SADE

Aos que estão a ponto de emergir

o último

capítulo, ou História sucinta da decomposição de , um paIS

Ele falava como se mata O animal selvagem Oua piedade Seus dedos tocaram o outro rio. RENÉCHAR

Deixai os mortos enterrarem seus mortos. DEUS (AO QUE PARECE)

Para muitos, o Brasil parece ter se transformado em uma incógnita. Um país que, depois de elevado pela imprensa mundial à ondição de potência emergente, virtual quinta economia do mundo, é visto agora como um território ti

elerada. Um país completamente

I parlamentar.

em desagregação

à deriva depois de um gol-

Para outros, ele simplesmente

expressa hoje,

ti forma mais brutal, os impasses de um processo que deve s r compreendido ti

em sua dinâmica global. Reconstruir o sen-

10 dessa dinâmica aparece como condição necessária para 15

entendermos de que forma um país pode chegar a impasses tão

na América Latina, onde a descolonização

espetaculares em um prazo tão curto de tempo. Pois a história

século

brasileira é, na verdade, o último capítulo de outra história.

logo inscritos como lutas eminentemente

Ela é o setor mais influente da história latino-americana,

assim, de forma mais clara, a configuração de conflitos sociais

que,

XIX.

Isso permitiu que os embates populares não fossem

por sua vez, está vinculada, nas últimas décadas, à ascensão

em que questões transnacionais

da esquerda ao poder.

dessem aparecer na linha de frente.

A experiência da esquerda latino-americana

ocorrera ainda no nacionais, ganhando

de classe e desigualdade pu-

Lembremos, então, como a experiência latino-americana

no governo,

também faz parte de outra

conheceu, nestas últimas décadas, dois eixos principais. No pri-

história. Na verdade, ela é o último capítulo da história da es-

meiro, encontramos um modelo de polarização social normal-

querda mundial no século xx. O que podemos chamar de "ex-

mente marcado por reformas estruturais

periência latino-americana

poder e por processos de incorporação popular populista. Foi o

nos primeiros anos do século

XXI,

de governo de esquerda", ocorrida

nos últimos vinte anos em países como Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua,

nas instituições do

que ocorreu em países como Venezuela, Equador, Bolívia e Niarágua. Esse modelo, autodenominado

"bolivariano", vendeu-

Peru, EISalvador, Haiti e Honduras, foi o término de uma longa

-se como "o socialismo do século

história mundial marcada pela tentativa de consolidar políticas

dependente de dinâmicas de constituição

XXI",

mas foi em larga medida de corpos políticos

redistributivas, regulação dos agentes econômicos e integração

lue remetem ao populismo do século

das massas aos jogos eleitorais. Que essa história tenha encon-

investimento libidinal maciço em figuras personalizadas do po-

trado na América Latina um de seus terrenos fundamentais;' eis

der, como na Venezuela. Essas dinâmicas identificatórias foram

algo a ser creditado a uma conjunção de dois fatores.

sua força momentânea

Primeiro, a América Latina teve, até a década de 1990, um déficit contínuo de integração popular aos processos de decisão política, pois essa integração

se deu normalmente

de forma frágil, pelas vias do populismo, e intermitente, tendo

XX,

com o consequente

e sua fraqueza final. O caso mais com-

plexo desse grupo, por ser o mais bem-sucedido, é o da Bolívia, m sua organização institucional inovadora, seu crescimento , onômico ininterrupto '111

(média de 5,1% entre 2006 e 2014, 4,2%

2016: um dos maiores crescimentos

da América Latina),

sido rompida várias vezes pela ascensão de ditaduras militares,

s 'LI conceito de "Estado plurinacional" e seu aprofundamento

em especial de meados dos anos 1970 até o fim dos anos 1980.

ti ' participação popular nos processos decisórios do Estado

Segundo, enquanto a luta pela integração popular aos processos de decisão política em continentes como Ásia e África foi travada no âmbito de lutas coloniais, o mesmo não ocorreu

16

(mesmo os juízes do Supremo Tribunal são agora eleitos). No segundo

eixo, encontramos

um modelo de gestão

so ial marcado, ao contrário, pela conservação

de estruturas

17

institucionais de incorporação

próprias à democracia

liberal e por processos

popular também caracterizados como popu-

listas. Esse é o modelo que vigorou no Brasil e na Argentina, principalmente,

mas em menor grau no Uruguai, no Chile,

no Peru, em EI Salvador e, por algum tempo, no Paraguai. Tal

principalmente,

para expor as dinâmicas de esgotamento

de

modelos globais que apenas começam a ser sentidas em países d centro do capitalismo. Nesse sentido, o fracasso da experiência latino-americana, m especial em seu setor mais avançado - capitaneado

pelo

modelo representou uma experiência retardatária que procu-

Brasil-, não é apenas algo que diz respeito a uma região perifé-

rou realizar políticas de redistribuição

o espaço

rica do capitalismo mundial: ele representou a paulatina toma-

político próprio à democracia liberal, acreditando que poderia,

da de consciência de que o tempo da democracia liberal e seus

de alguma forma, repetir certas estratégias de gestão da social-

a ordos não mais existia. Nós havíamos chegado tarde demais.

-democracia europeia do pós-Segunda

Por isso, a experiência latino-americana

respeitando

Guerra Mundial. Esse

expôs, de forma mais

modelo entrou em colapso mais ou menos ao mesmo tempo

xplícita, o que o resto do mundo começará a descobrir de

em todos os países, à exceção do Uruguai, que soube mobi-

~ rma dramática. Ela trouxe como saldo a consciência de que

lizar pautas de reconhecimento

uma política de conciliação impulsionada

para consolidar

e liberalização

de costumes

a adesão popular, e do Paraguai, que sofreu

um golpe de Estado parlamentar ticas pós-ditadura,

em

Resultado de polí-

2012.

ele foi uma paradoxal e única articulação

entre horizonte reformista social-democrata tegração política populista.

por ajustes gradua-

listas, facilmente anulados no primeiro retorno ao poder dos núcleos dirigentes tradicionais

(como vemos claramente no

Brasil desde o golpe parlamentar de

2016),

não tem mais lugar.

e modelo de in-

O que não deveria impressionar

ninguém, pois pensar a América Latina é algo que exige saber

NÃO HÁ LÁGRIMAS

PELO FIM DA DEMOCRACIA

LIBERAL

operar com paradoxos e contradições sem superação. Seria bom começar nossa análise assim. O Brasil tende a se ver como a maior ilha do mundo, procurando análises de seus processos político-sociais

lembremos

orno a conhecemos,

como a democracia

liberal, tal

é uma invenção recente, consolidada

como se sua estru-

a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Ela respondia a

endógena. Melhor seria, no

um sistema de acordos e equilíbrios entre setores sociais an-

perceber como se dá nosso modo

tagônicos e vitoriosos ao final da guerra. Sua base de sobre-

tura causal fosse completamente entanto, se procurássemos

desenvolver

Nesse contexto,

de integração a movimentos globais, não apenas para denun-

vivência foi a capacidade de orientar a política na direção de

ciar como, em certos momentos,

uma espécie de "luta pela conquista

acabamos por mimetizar,

com atraso, processos socioeconômicos

transnacionais,

mas,

do centro". Assim, por

exemplo, os partidos de esquerda europeus foram moderando

19

seus horizontes de ruptura institucional para acabarem como

representou nenhuma modificação substancial na detenção de

gestores do chamado Estado de Bem-Estar Social. Mesmo os

meios de produção, mas um compromisso frágil com quem es-

partidos comunistas europeus, fortes até o final dos anos 1970,

perava pôr o sistema abaixo. Tal oportunidade

com votações que podiam chegar a 30% (como no caso do

dos anos 1970, por meio de uma conjunção improvável entre

Partido Comunista Italiano), seguiram essa lógica de respeito

crise econômica e crítica cultural. Uma crise provocada não pelo

ao horizonte institucionalliberal,

custo da Previdência Social, mas, por um lado, pelo desmante-

retirando de circulação a luta

veio em meados

por mutações institucionais profundas, agindo no esquadro de

lamento do colonialismo que sustentava a social-democracia

uma "coexistência pacífica", até o momento em que perderam

(principalmente em países como França e Reino Unido), garan-

de vez sua força e sua relevância.

tindo acesso monopolista

Da mesma forma, os partidos de direita foram levados

a mercados, além de mão de obra

imigrante barata, seguindo uma lógica colônia-metrópole.

Seria

de uma espécie de mínimo social a

difícil o Estado de Bem-Estar Social sobreviver sem sua solida-

ser respeitado, mesmo agindo com vista a promover a libe-

riedade ao colonialismo e suas facilidades econômicas. Por ou-

ralização da economia e a desregulamentação

tro lado, a crise do sistema encontraria seu segundo elemento

a aceitar a conservação

gradativa das

defesas trabalhistas contra a espoliação. Há de se lembrar que

impulsionador

a constituição do Estado de Bem-Estar Social foi, de certa for-

um fator ligado às consequências das ambivalências das políti-

ma, uma criação conjunta de esquerda e direita. Não é possível

cas coloniais no Oriente Médio. A crise do petróleo de 1973, que

contar a história da formação do Estado-Providência

representará a primeira crise global do pós-guerra, quebrou o

alemão,

árabe, ou seja, ainda

pelos

iclo mais constante de crescimento no século xx, produzindo

nem contar a história do seu símile fran-

uma insegurança econômica profunda, que seria aproveitada

por exemplo, sem passar pelas políticas implementadas democratas-cristãos,

no conflito Israel-mundo

r novos discursos de reforma social.

cês sem passar pelo gaullismo.

Alguns podem achar estranho o papel da crítica cultural

Exatamente por ser uma formação de compromisso, a democracia liberal e seus gestores do Estado de Bem-Estar Social

neste processo de esgotamento da democracia liberal, mas ele é

estavam fadados a durar pouco. Não porque ela produziria letar-

real, Para tanto, foi necessária uma inversão peculiar, dessas que

gia econômica e baixa competividade, mas porque o patronato,

o capitalismo

intocado em suas posses, aproveitaria a primeira oportunidade

no Ocidente a ascensão da crítica à estrutura disciplinar do Es-

para aumentar rendimentos, reduzindo os elementos do custo

tudo e das instituições, a recusa da sociedade do trabalho com

salarial e criando condições para uma verdadeira reedição dos

SCllS

processos de acumulação primitiva. A social-democracia

do proliferação de dispositivos de controle social nas esferas

20

não

se mostrou hábil em operar. Maio de 68 produziu

processos extensivos de alienação social e a consciência

21

da reprodução material, do desejo e da linguagem. Tratava-se

Valelembrar como, cinco anos depois de assumir o governo do

de uma crítica totalizante ao capitalismo como sistema econô-

Reino Unido, Thatcher produzira simplesmente

mico e como modo de existência, que devia ser lida no âmbito

produção industrial, o fim de fato do salário mínimo, dois anos

de uma sequência histórica ligada à Comuna de 1871 e à Revo-

de recessão e o pior índice de desemprego da história britânica

lução Russa de 1917.1 Maio de 68 esperava, com isso, permitir a

desde o fim da Segunda Guerra (11,3%, em abril de 1984).

emergência de sujeitos políticos com força para produzir trans-

o declínio da

Os arautos do modelo econômico atual gostam de se ver

formações globais na forma de vida, em direção a modelos ca-

como vencedores de um embate no qual teriam demonstrado

pazes de recusar tanto o sistema burocrático soviético quanto a

ao mundo que o capitalismo neoliberal era a melhor forma, até

democracia liberal. Esses sujeitos emergiram, mas com menos

mesmo a única, de produzir riqueza, inovação e bem-estar. As

força do que se imaginava. Com eles também emergiram tanto

experiências de esquerda teriam falhado por criarem apenas

sujeitos claramente reativos, dispostos a lutar pela preservação

uma sociedade letárgica, presa na sustentação

da ordem e de suas tradições, quanto simulacros de revolta. Este

ineficiente e pesado. Ou seja, tais experiências teriam sido ul-

é o ponto mais importante: analisar tais simulacros de revolta,

trapassadas pela lei inexorável da eficiência econômica, lei que

que, mesmo sem expor sua natureza de forma clara, usavam a

desconhece ideologias, que conheceria apenas "resultados".

potência da sedição para empurrar o mundo para fora da de-

Nesse sentido, lembremos

Entretanto, os "resultados" mostram outra coisa. Mostram, por exemplo, como o nível de pobreza nos

mocracia liberal. Não para além dela, mas para aquém. como o primeiro tremor no

de um Estado

EUA

caiu progres-

ivamente até meados da década de 1970, voltando a subir exa-

leva

tamente com a ascensão das políticas neoliberais, nunca mais

neoliberal de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, no início dos

tendo novamente caído de forma sustentada. Em 2015, ele atin-

anos 1980. Nos Estados Unidos, o pacto criado pelo New Oeal,

gia 13,5% da população," mais do que em 2007. Os índices de

de Franklin O. Roosevelt, conservado por décadas, foi desmon-

desigualdade, por sua vez, aumentaram exponencialmente

tado por uma política de retração do Estado, de desregulação

últimos trinta anos. No período 1910-20, a renda dos 10% mais

progressiva da economia e redução de impostos para os mais ri-

ricos representava

cos. O mesmo foi feito no Reino Unido, sob o fogo de uma luta

-americana. Essa porcentagem cai para 35% em 1950, chegando

pacto que sustentou

a democracia

liberal se deu com;

nos

entre 45% e 50% da renda nacional norte-

incessante contra os sindicatos e as categorias profissionais. Dados do us Census Bureau, Current Population 1

Para uma discussão adequada da significação política de Maio de 68, ver,

principalmente:

22

Badiou, Alain.A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo,

2015.

h ttps:llwww.census.gov/data/tables/time-series/demo povjpov-oi.html.

Survey. Disponível em:

1income-poverty 1cps-

Acesso em: 17/6/2017.

23

a 33% em 1970. A partir de então, volta à casa de 45% a 50% entre 2000 e

2010.3

A isso, alguns chamam de "sucesso". Tal

fenômeno só pode ser chamado de sucesso se lembrarmos

da

11

qual as decisões econômicas estariam submetidas à orien-

tação política das deliberações de gestão e limitação da força de transformação

dos conflitos de classe. Pollock chega a falar

afirmação do milionário Warren Buffet: "Quem disse que não

irn uma substituição de problemas econômicos por problemas

há luta de classes? É claro que há uma, e estamos vencendo".

administrativos, criando um horizonte "racional" de gestão de . nflitos sociais graças às promessas de integração da classe trabalhadora pela consolidação de uma lógica da providência e da

o

NEOLIBERALISMO

É UM DISCURSO

MORAL

a sistência social generalizada que teria a capacidade de limitar o processos de espoliação econômica.

A verdade é que essa política de choque e fim de padrões mínimos de solidariedade doutrinação

Nesse sentido, Maio de 68 demonstrará a fragilidade dessa

social só poderia ser sustentada pela

.rença na possibilidade

estatal de uma nova moral. No fundo, é isso que

o neoliberalismo

sempre foi: mais do que uma doutrina eco-

de regulação de conflitos no interior

le um capitalismo de Estado, evidenciando como as formas de r gulação da classe trabalhadora

não foram capazes de impe-

nômica de resultados miseráveis, um discurso moral capaz de

dir a consolidação

fundamentar

que visavam ao caráter disciplinar desse mesmo Estado-Provi-

novas formas de sujeição social.

de revoltas nos países centrais - revoltas

Lembremos como, durante certo tempo, o modelo do Es-

dência outrora visto como o modelo perfeito de gestão social.

tado de Bem-Estar Social, com seu capitalismo de Estado, fora

u seja, as revoltas de Maio de 68 e a força de sedição de seus

visto como uma espécie de modelo perfeito de gestão de éo?fli-

.onflítos mostraram

tos sociais." Friedrich Pollock, em um ensaio clássico, insistia na

1.0 capitalismo de Estado e de suas estratégias de providência.

tese da passagem inexorável de um "capitalismo privado" para

s próximos modelos de gestão nas sociedades capitalistas,

os limites das promessas

um capitalismo de alta regulação estatal, fosse ele totalitário (na-

li

zifascismo) ou democrático (social-democracia) - capitalismo

E tava evidente a impotência

de integração

quisessem ter eficácia real, deveriam operar de outra forma. do discurso de integração atra-

vés da identificação com a figura do cidadão do Estado-Nação omum. Seria necessário deslocar os processos de regulação 3 Ver: Piketty, Thomas. Capital in the Twenty-First Century. Belknap: Harvard, 2014,

p.

26

[ed. bras.: O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca,

4 Ver: Pollock, Friedrich. "State Capitalism: its Possibilities and Limitations". In: Arato, Andrew; Gebhardt, Eike. The Essential Frankfurt School Reader. Nova York: Continuum, 1983, pp. 71-93.

24

social para uma outra cena. De onde se seguia o fortalecimen-

2014].

t

de um modelo de gestão social por meio da expropriação Ia economia pulsional e da regulação psíquica, em uma lógica

prevista décadas antes pela Escola de Frankfurt.

25

Saía assim de cena o capitalismo de Estado para que um capitalismo de expropriação libidinal ganhasse hegemonia. Ele saía de cena para que a economia como design psicológico e injunção moral pudesse tomar a frente do trabalho de sujeição social. E é nesse ponto que começa a história da ascensão da

Nesse sentido, notemos como é de sua natureza de discurso moral que vem a verdadeira força do neoliberalismo,

longe

pessoas ricas em Florença eram, em larga medida, os mesmos havia quase quinhentos anos, desde 1427 até 2011.5 Deve ser por mérito e pela capacidade dessas famílias de educar seus filhos para ter coragem diante do risco.

A necessidade do neoliberalismo

que a ascensão do neoliberalismo peculiar desdobramento

no final dos anos 1970 é um

dos impulsos de Maio de 1968.6 Essa

tese deve ser levada a sério. De fato, nunca entenderemos

das pretensas "evidências de sucesso". foi imposta a nós como

uma injunção moral, como uma moral baseada em uma versão muito particular da coragem como virtude. Coragem para assumir o risco de viver em um mundo no qual pretensamente através da inovação, da flexibilidade e da

criatividade. Todos esses valores colocados em circulação por Maio de 68 contra o caráter alienante da sociedade do trabalho assumiram, nas mãos dos arautos do neoliberalismo, ção completamente

como os sobrenomes das

Atualmente, conhecemos estudos que defendem a tese de

era neoliberal.

só se sobreviveria

um sintomático estudo mostrando

uma fei-

inesperada.

,

Assumir riscos no livre-mercado apareceu, assim, como a expressão maior de maturidade viril, como saída da minoridade a que estariam submetidos aqueles pretensamente

infanti-

lizados pela demanda de amparo do Estado-Providência.

Esse

neoliberalismo sem nos perguntarmos

o

o que ele tem (ou tinha)

de utopia realizada. Ideais de flexibilidade, de fim do emprego, de crítica ao Estado, de aumento

da capacidade

individual

de

decisão estavam presentes na revolta estudantil de Maio de 68.

À sua maneira, o neoliberalismo fornecia uma versão para todos esses ideais, mas agora esvaziando-os

de seu fundamento

na crítica social ao capitalismo e coordenando-os uma lógica de generalização da forma-empresa do "empreendedorismo".

no interior de e da gramática

Essa ilusão baseada na construção de

um símile da revolta - essas histórias de empreendedores

com

'ara de hippies que começam em garagens e terminam no topo do processo produtivo global- durou décadas, impulsionada, no final dos anos 1980, pelo colapso do socialismo real no Leste

mantra levava os sujeitos a acreditar que, se eles fracassassem economicamente,

seria por culpa absolutamente

individual, ') Barone, Guglielmo; Mocetti, Sauro. "Intergenerational

por culpa da minha incapacidade "reciclar" como uma garrafa

PET.

de me reinventar,

de me

Enquanto essa moral do risco

simulado era brandida em voz alta, dois economistas

italia-

nos (Guglielmo Barone e Sauro Mocetti) divulgaram, em 2016,

26

l.ong Run: Florence 11.1.060,

1427-2011".

Mobility in the Very

Bank ofltaly Temi di Discussione (Working Paper),

abro 2016.

() Ver, principalmente,

o clássico de Luc Boltanski e Eve Chiapello: O novo

I'splrito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes,

2012.

27

Europeu. Essa é a especialidade do capitalismo: criar símiles de

sua terceira via, o novo centro de Gerhard Schroeder, os ex-

revolta, vampirizar a força de transformação

-comunistas de Massimo D'Alema, a volta dos democratas com

Mas o fato fundamental do neoliberalismo representou

global.

só agora fica visível: a ascensão

como política de Estado e discurso moral

a destruição contínua da democracia liberal e de

seus pactos. Restringindo paulatinamente

o horizonte de polí-

Bill Clinton e seu neoliberalismo reconhecimento

misturado com discursos de

de minorias e grupos identitários," demons-

traram ser outra coisa. Na verdade, tratava-se de uma capitulação. O que se viu foi apenas a consolidação

da falência da

ticas públicas, impondo a versão de que, no que diz respeito à

social-democracia,

economia, "não há escolha", mesmo diante do caráter suicida

certa forma, deveriam representá-Ia. A França de Lionel Jospin

do sistema financeiro internacional, explícito desde a crise dos

parecia um ponto fora da curva, já que foi nesse país que, em

subprimes, o neoliberalismo conseguiu esvaziar a política e suas

1995, ocorreu a última grande greve geral de defesa do Estado

instituições. Seu mundo é a reedição de um mundo pré-politico,

de Bem-Estar. A social-democracia

no qual as relações sociais se resumem à gestão militarista da

último suspiro, criando reduções da jornada de trabalho sem

segurança e às garantias da perpetuação

redução salarial (35 horas), políticas de intervenção estatal na

dos modos atuais de

seu enterro pelos próprios atores que, de

francesa ainda tentou um

circulação de riqueza. Aos poucos, ficou evidente como a po-

economia, mostrando

lítica mundial, depois de esvaziada da possibilidade de decidir

mas sua capitulação final foi ainda mais brutal pelas mãos do

modificações efetivas na esfera da economia, tornara-se uma

neoliberalismo militarista de François Hollande, o mais impo-

mera pantomima,

pular presidente da Quinta República.

composta de personagens

exímios em de-

monstrar sua impotência.

"

como a Previdência não era deficitária,

É nesse horizonte de capitulação que a experiência brasileira se insere. Colaborava para isso um fantasma a assombrar a esquerda latino-americana: o da via chilena abortada. O Chile, sob

A ESQUERDA MUNDIAL

BRASILEIRA

EM UM HORIZONTE

o governo Allende, foi uma das mais impressionantes experiências da esquerda latino-americana

DE CAPITULAÇÃO

de um socialismo democrático.

na tentativa de constituição Seu modelo único conjugava

É verdade que os anos 1990 pareciam, inicialmente, implicar

mudanças estruturais e procurava garantir uma sociedade po-

certa retração desse horizonte

liticamente plural. Sabotado de forma sistemática pelos Estados

neoliberal com a ascensão do

que se chamou à época de "onda rosa". Era a volta da "esquerda" europeia em países centrais corno França, Reino Unido, Alemanha e Itália. Mas o novo trabalhismo de Tony Blair, com

28

7 Ver, por exemplo: Fraser, Nancy. "Feminism, Capitalism and the Cunning

f History". New Left Review, n. 56, mar.fabr.

2009·

29

Unidos (o que levou o governo Clinton a pedir desculpas ao

públicos, o desmonte de mecanismos de distribuição de renda

Chile pela política de destruição implementada

pelo Departa-

e a elevação dos interesses do sistema financeiro mundial à

mento de Estado sob o comando de Henry Kissinger), o modelo

condição de dogma ínquestíonável. Esse processo, que agora

naufragou em meio a locautes e desabastecimento.

mostra sua face mais completa, começa de maneira evidente

Esse fracasso foi um dos maiores golpes contra a esquerda latino-americana,

um golpe que dura até hoje. O diag-

nóstico corrente insistia no isolamento e sua incapacidade Democracia

de estabelecer

da Unidad Popular

alianças com o centro (a

"concertações"

maior do setor governista da

esquerda brasileira por seu próprio colapso. As políticas implementadas depois da derrubada de Dilma Rousseff, como a limitação de gastos públicos pelos vinte anos seguintes, com

assim como os que viram de

a decomposição anunciada do Estado brasileiro, a reforma pre-

perto o colapso da via chilena, cresceram uma segunda experiência

se reconhecer a responsabilidade

As

Cristã) tendo em vista a governabilidade.

novas gerações da esquerda,

no segundo governo Dilma Rousseff (2015-16). Por isso, há de

acreditando

que

evitaria tal cenário, gerenciando

e conciliações.

videnciária e o desmonte dos direitos trabalhistas, aproveitaram-se de uma guinada neoliberal do próprio governo petista que, ao entregar sua política econômica a alguém como Joa-

Mas coalizões não significam apenas partilha de cargos de

quim Levy, permitiu a consolidação do discurso de que a única

governo. Significam simbioses e partilhas de modos de gestão

saída para a situação de crise seria adotar o mesmo modelo de

social, assim como respeito a interesses que os membros de sua

políticas econômicas

que havia falhado no resto do mundo.

coalização representam. Em um horizonte mundial de conversão da "esquerda" à gestão de um neoliberalismo

"com rosto

mais humano", os resultados tendiam a empurrar a esquerda, como formuladora

o

MEDO É NOSSO ÚNICO LEGADO

de políticas, à irrelevância,

Isso ficou evidente com a crise de 2008 e com a ausên-

Nesse processo global de capitulação, os partidos de esquerda

cia de alternativas ao modelo econômico falimentar. O Brasil

foram simplesmente

podia anunciar ter ultrapassado

sua função de contraponto,

o primeiro impacto da crise

dizimados, já que eles perderam de vez sem coragem para trilhar outra

de

via. O que ocorreu no Brasil nos últimos anos não está fora

seu capitalismo de Estado, mas o caminho posterior seria ou-

dessa história geral, foi apenas uma versão mais trágica de um

tro. Paulatinamente,

processo global. Nesse sentido, a ascensão política contem-

operando

políticas proto-keynesianas

e de consolidação

seu destino foi se revelando o mesmo de

todos os atores políticos mundiais forçados a aplicar a mesma

porânea de Donald Trump, de Marine Le Pen e do Alternativa

política de "austeridade", com as contenções de investimentos

para a Alemanha, além da vitória do Brexit, são partes de um

30

31

mesmo fenômeno.

Essas escolhas expressam o desconforto

Reagan e Thatcher, o neoliberalismo

aparecia em sua novida-

com a ausência de escolha no âmbito da democracia liberal.

de como um novo bloco ideológico, com seu ideário de que,

Elas demonstram, na verdade, que a democracia liberal acabou,

como dizia Thatcher: "Não existe esse negócio de sociedade,

que seu acordo não existe mais. De fato, a crise econômica le-

existem apenas indivíduos e famílias". Ora, a crise de

vou populações a ir em direção ao extremo, em vez de aceitar

a prova final de como esse ideário produzira apenas catástrofe

as normas e a dogmática econômica que vigoravam no centro

econômica e uma sociedade desigual e injusta; por isso, daque-

do espectro político.

le momento em diante, a adesão social a tal bloco ideológico

Deve-se assumir que a extrema direita foi capaz de cons-

2008

não poderia mais ser feita a partir do compartilhamento

era

de

tituir uma resposta política, ouvindo o descontentamento

sistemas de crenças, de convicções comuns. Ninguém acredita

social, a insegurança

mais (a não ser algumas sumidades intelectuais brasileiras) que

de pauperização

produzida

por um sistema econômico

e aumento da vulnerabilidade.

Ela não acre-

o futuro projetado pelo modelo neoliberal seja algo melhor do

ditou no conto do fim da sociedade do trabalho. Ao contrário,

que o presente. No máximo, nos vendem um futuro de condo-

falou ao povo como "trabalhadores",

mínio fechado fortemente vigiado.

dição de "trabalhadores e se aproveitando

mesmo que sob a con-

nacionais", tendo clara compreensão

do fato de o Estado-Nação

apenas uma máquina paranoica

ser atualmente

de gestão do medo através

da lógica da fronteira e do território.

Em uma era de intensi-

Ou seja, o neoliberalismo como fazia ainda nos anos

1980.

não vende mais promessas, Ele vende o medo, ou antes a

distopia de uma sociedade militarizada, cuja brutalidade será escondida pela circulação em larga escala de frivolidade mi-

ficação brutal dos regimes de trabalho, de achatamento/dos

diática, pelo culto de celebridades industrialmente

salários e de precarização,

e de violência asséptica estilizada. Por isso, nesse seu estágio

não haveria como falar em fim da

produzidas

de empregos está-

distópico, o modelo neoliberal encontrará na extrema direita

veis, com a proliferação de arranjos sazonais, não eliminou o

seu aliado preferencial. Sua gestão social será a de uma guer-

vínculo social fundamental

ra civil contínua. Ele aprimorará

sociedade do trabalho. A baixa produção

entre reconhecimento

e trabalho.

sua incitação do terrorismo

Ele apenas deixou tal vínculo mais precário, mais intermitente

para criar alguma forma de coesão social. Pois nossos governos

e desesperador.

produzem o terrorismo através de sua lógica militarista e internão

vencionista, através da naturalização do racismo ordinário, que

como

ganha cada vez mais direito de circulação, ampliando os efeitos

não tinha as mesmas ca-

do ressentimento social. Dessa forma, os governos atuais são os

Essa associação entre neoliberalismo e protofascismo deveria nos surpreender.

O retorno do neoliberalismo

política de Estado, a partir de

2008,

racterísticas da primeira ascensão, no final dos anos

1970.

Com

verdadeiros estimuladores da consolidação da extrema direita,

33

pois assim seus gestores liberais podem aparecer, em uma

a fonte de nossa revolta, dar um rosto preciso à nossa falta é a

batalha milimetricamente

estratégia principal de construção de adesão social. São certas

desenhada contra um inimigo per-

feito, como guardiães da razão e da tolerância. A eleição fran-

leis, certos políticos corruptos, certas empresas gananciosas,

cesa de

certos grupos privilegiados por políticas de Estado, certos parti-

2017

demonstrou

isso de forma muito clara. O medo .

maior do mundo financeiro e de seu aparato midiático não era

dos, certas relações de poder que devem ser o objeto da revolta.

a ascensão de Marine Le Pen, mas a possibilidade de vitória do

Essa localização é uma forma de gestão da revolta, fornecendo

candidato de esquerda [ean-Luc Mélenchon, com seu discurso

pautas locais e figuras sazonais de ira e catarse coletiva.

de reinstauração política e luta contra o poder econômico. Foi contra ele que, por fim, o sistema de gestão do medo se voltou. Ele era o verdadeiro problema, pois quebrava a polaridade forja-

OS IMPASSES

DA POLÍTICA

DAS DIFERENÇAS

da entre extrema direita "nacional" e liberalismo "cosmopolita". Lembremos, a esse respeito, como o capitalismo, em sua

Nesse contexto, o que antes era a esquerda aparece como uma

fase atual, não pode ser descrito como uma sociedade da sa-

força política supérflua, pois incapaz de organizar um discur-

tisfação administrada,

o de alternativa

como era sua versão social-democrata

para os teóricos da Escola de Frankfurt. Ele é atualmente uma

econômica

global. Ela não conhece mais

crítica estrutural alguma, o que nada tem a ver com a distin-

e

ão arcaica entre reforma e revolução. Uma crítica estrutural

o desencanto quanto às possibilidades de realização de si ofere-

pode, inclusive, impulsionar processos cada vez mais amplos

cidas pela vida social são atualmente os afetos fundamenta~s de

de reformas. É ela que impedirá a paralisia. Mas o fato é que

socialização.

não há sequer reformas efetivas no horizonte da esquerda, ou

sociedade da insatisfação administrada. O descontentamento

Somos socializados

por meio não da partilha

de expressões positivas de expectativas

de realização social,

.eja, depois de abandonar a noção de revolução, a esquerda abandonou

mas da produção de nosso desencanto

e de sua inscrição no

até mesmo o horizonte das reformas. Mais ainda: em países como

imaginário social. Trata-se de controlar a gramática de nossa

França, Espanha, Grécia, Alemanha (já que o Partido Social-

revolta, estabelecer os objetos de nossa indignação. O poder

-Democrata

não funciona mais através da enunciação dos objetos de nosso

União Democrata-Cristã

desejo: ele funciona através da gestão da nossa falta; é uma

boques de austeridade.

máquina de inscrição social do desencanto. Isso é feito, por exemplo, por meio de estratégias que esvaziam a crítica estrutural em prol de "críticas locais". Localizar

34

enquanto,

da Alemanha -

-

SDP -

CDU)

governa há anos com a

foi ela quem levou a cabo os

Tudo o que restou à esquerda, por

foi apoiar-se em políticas de reconhecimento

de

lireitos de setores vulneráveis da população, como mulheres, negros, comunidades

LGBT, entre

outros.

35

Este é um ponto maior de impotência: a luta por reconhe-

Notemos

que essa força de implicação

cimento funciona atualmente como uma espécie de compen-

necessariamente

o resultado

sação à inexistência de um discurso econômico

salidade positiva

fundada

com clara força de transformação

e com capacidade

plicar as classes empobrecidas. tais pautas, profundamente cação concreta

Conseguimos

de im-

transformar

justas em si, na única modifi-

que a esquerda

é capaz hoje de oferecer, já

que estamos todos comprometidos modelo econômico,

de esquerda

com a gestão do mesmo

divergindo apenas sobre a intensidade

da aplicação das mesmas políticas. Nossas lutas, entretanto, não devem ser organizadas

a partir de tais pautas; devem ser

geradas a partir delas, o que é algo totalmente

diferente do

que vemos hoje.

emergência

de alguma forma de univerna crença na possibilidade

extensiva de predicados

toriamente

pela incapacidade

atualmente

da esquerda

como

de lutar pela

de um sujeito político com força de implicação

genérica, ou seja, com capacidade de implicar todo e qualquer sujeito em um mesmo movimento

de emergência de corpos

de

gerais. Ela não é obriga-

por uma universalidade por partilha de

produzida

atribuição. Ela é a possibilidade de nós organizarmos

as lutas

sociais emergindo como sujeitos não saturados por determinações predicativas. Ela é a possibilidade

de permitir a cons-

tituição de corpos políticos no interior dos quais os usos de identidades serão apenas estratégicos. Várias consequências dessa impossibilidade

de enfraquecimento

demandas

políticas

corpos políticos, as

tendem a perder sua dimensão

mental de persuasão experiências

político vêm

de implicação genérica. Primeiro, por

não sermos mais capazes de constituir

Na verdade, tais embates funcionam compensação

atribuição

genérica não é

retórica

linguísticas

funda-

para se transformarem

de autoexpressão.

em

Falo apenas em

meu nome, expresso minhas demandas devidas de reparação sem preocupar-me

muito com a constituição

de campos de

políticos. Insisto nesse ponto há anos, ao afirmar a necessidade

fala que possam ser incorporados

de passarmos de uma política das diferenças a uma política da

um, o que sempre foi a base fundamental

indiferença." Não é estranho que tenhamos hoje grande força

implicação. Opero por bloqueios, paralisias e pela expressão

de mobilização por pautas específicas, mas nenhuma capaci-

da minha revolta, sem nenhuma

dade de criar constelações capazes de colocar todas essas lutas

criar implicações genéricas ou como evitar a emergência de

em processo de unificação.

sujeitos reativos.

por todos e por qualquer da força política de

preocupação

sobre como

Nesse sentido, a ação política se transforma experiência

de auto expressão, reduzindo-se

em mera

à realização de

8 Remeto ao primeiro capítulo de A esquerda que não teme dizer seu nome (São Paulo: Três Estrelas,

2012)

emergência (São Paulo:

N-l

e ao manifesto Quando as ruas queimam: manifesto pela

demandas

edições,

é uma redução da política à gestão social de demandas

2016),

ambos de minha autoria.

de reparação

e compensação.

O que, no fundo, de

37

amparo. Mesmo que tais demandas se expressem de forma

apresentado ao mundo como o grande modelo bem-sucedido

violenta, elas se fundamentam

de conciliação

na constituição

poderes capazes de ampará-Ias, meu poder devido, paradoxalmente

e procura de

de garantir o exercício do reforçando o poder cons-

e crescimento,

imprensa conservadora

a ponto de ser vendido, pela

mundial, como paradigma de novas

tentativas de gestão da esquerda (a ser seguido, por exemplo,

tituído. Por isso, são sempre demandas locais de modificação

pela Grécia do Syriza). A história recente do Brasil será, pois,

na estrutura legal, nunca exigências globais de transformação

a história do colapso do último grande modelo de conciliação

dos modos de reprodução

da democracia

material da vida. Para tanto, deve-

liberal. Coube ao Brasil a honra duvidosa de

riam ser demandas de um sujeito político capaz de se colocar

terminar um ciclo mundial de forma catastrófica.

como agente global, o que é impossível quando se começa

Brasil realizar o que dizia T. S. Eliot: "É desta forma que o mun-

fazendo a defesa de seu próprio lugar de fala.

do termina, não com um estrondo, mas com um lamento".

Coube ao

Nesse contexto, o que a América Latina mostrou, e o Brasil em primeiro lugar, é que, para a esquerda ter um sentido de existência, ela não deve ter medo de dizer seu nome. Aqueles que procuram reeditar a esquerda pregando uma política conciliatória de conquista do centro do espectro político, que temem introduzir

novos temas políticos - como o esvazia-

mento do Poder Legislativo e do Poder Executivo em prol de mecanismos

de democracia

novos temas econômicos

direta -, que temem introd'U~ir

- como justiça tributária

radical,

confisco de aparelhos produtivos para que sejam geridos pelos próprios trabalhadores,

salário máximo, gestão coletiva

de recursos públicos, de sistemas de créditos e patrimônios ecológicos, renda mínima, restrição do direito à propriedade privada - têm os olhos voltados para um tempo que não existe mais. Eles já erraram demais para acreditarem,

daqui para a

frente, poder liderar qualquer processo político efetivo.

É no interior compreender

desse contexto

o caso brasileiro.

que devemos

procurar

Durante anos, o Brasil foi

39

Um problema de imagem

Quem aprendeu inicialmente a se curvar e a inclinar a cabeça diante do "poder da história" acaba, por último, dizendo "sim" a todo poder. NIETZSCHE

Cada época tem a sua imagem. Há momentos sência de tempos históricos determinados

nos quais a es-

encontra sua figura

sensível. A ditadura militar teve, por exemplo, a figuração precisa de sua barbárie na foto de Vladimir Herzog enforcado em uma cela, com os joelhos dobrados quase no chão. Demonstrava-se, assim, o descaso com qualquer princípio elementar de verossimilhança.

O arbítrio não precisa ser verossímil, ele

pode dizer que alguém morreu enforcado, mesmo sendo materialmente impossível enforcar-se a uma distância tão pequena do chão. Na verdade, essa é a essência mesma de uma ditadura: um regime no qual você deve acreditar que alguém morreu enforcado, mesmo que uma foto demonstre exatamente o contrário.

41

Os primeiros quinze anos do século imagem paradigmática, paradoxalmente,

XXI

também têm sua

ao menos no Brasil. Essa imagem é,

uma repetição. Trata-se de Lula encarnando

a figura de Getúlio Vargas, repetindo a foto que sintetizou o desejo de instauração

do Brasil como Estado-Nação

micamente independente.

econo-

Lula vestido com um macacão da

Petrobras, sorrindo com as duas mãos sujas de petróleo. Mãos que prometiam

aos brasileiros e ao mundo a emergência de

uma potência reconciliada consigo mesma e com a sua história. A autossuíiciência em energia era apenas uma ocasião para

\

,fi.

o Brasil dobrar o tempo sobre si mesmo e recuperar uma de suas maiores fantasias sociais: a da reconciliação social através do crescimento, da unidade e do progresso. Não foram poucos aqueles que anunciaram que o Brasil chegaria ao final de

2020

como a quinta economia do mundo, embalado por grandes investimentos feitos à ocasião da Copa do Mundo e das Olimpíadas. O sorriso de Lula reencarnando

Vargas era a expressão

máxima desse anúncio. Que a primeira experiência de longa duração da esquerda brasileira no poder tenha afinal se realizado como uma reencarnação,

eis algo que deveria nos dizer muito. Alguém

deveria ter atentado para esse paradoxo aparente. Ao final, a história da esquerda brasileira no poder terá sido a história de uma mutação paulatina na qual toda a sua força de transfor-

o jornalista

Vladimir Herzog, morto nas dependências São Paulo, em 25 de outubro de 1975, aos 37 anos.

42

do DOI/Codi, em

mação foi se esvaindo, para se transmutar

na força de ressur-

reição de espectros, como se acabássemos

por nos encontrar

no interior de um tempo no qual o passado nunca passa. Há de se lembrar sempre deste ponto: o Brasil é um país no qual

43

mesmo as notícias de jornal parecem, muitas vezes, repetir notícias passadas. Um país preso à repetição compulsiva

de

seus próprios impasses. É preciso, então, enunciar claramente:

a primeira expe-

riência da esquerda brasileira no poder foi a repetição de uma estratégia populista de governo de extração getulista. Seu fim melancólico

e catastrófico

é, na verdade, a expressão da im-

potência não da esquerda como horizonte de transformação social, mas do espectro que a colonizou quando ela alcançou o governo.

Na verdade, tal história

que acaba por se encontrar

da esquerda

no populismo,

no poder,

mas em um po-

pulismo estranham ente adaptado aos limites da democracia liberal, é ~ prova maior da premissa freudiana de que o tempo histórico é um tempo de espectros que ganham vida nos gestos de sujeitos que não sabem o que fazem porque repetem gestos imemoriais, assumem vestimentas

antigas, falam

Em abril de 2006, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mostra as mãos com petróleo em plataforma da Petrobras na Bacia de Campos (RJ).

como se estivessem em outra cena. Os atores podem achar que estão apenas a fazer uma "citação" histórica, a usar a história como mera estratégia para aumentar

decisões banais

o que realmente queremos dizer com ele. Pois é fácil reduzir o

de governo e dar-lhes o ar de grandiosidade.

No entanto, tais

populismo

a uma espécie de injúria, como se fosse a expres-

atores não estão usando nada, eles estão sendo inconscien-

são da irracionalidade e do primado das identificações afetivas

temente usados por um processo de repetição histórica que

personalistas em política. Os liberais gostam de descrever o po-

reencenará

pulismo como a explosão do irracional e do afeto em política,

batalhas e reconstruirá

impasses. Se a esquerda

quiser voltar a ter relevância no cenário nacional, há de se

como se a democracia corriqueira fosse o domínio desencanta-

esconjurar certos espectros.

do da razão. Eles precisam chamar de "populistas" todos os que

Mas uma afirmação como essa corre o risco de ficar sem

expõem a irracionalidade da pretensa racionalidade econômica

sentido, já que "populismo" é um desses termos que podem di-

que vendem como inquestionável, criando assim um amálgama

qualificá-lo melhor, explicar

entre todas as forças novas no interior do espectro político,

zer muitas coisas. Será necessário

44

45

seja ele à esquerda ou à direita. Os liberais precisam dar a im-

De fato, na Proclamação da República, o Brasil conseguiu rapi-

pressão de que todo apelo a um poder anti-institucional,

damente tecer um pacto de oligarquias locais que transformava

a uma

emergência da soberania popular, é convite ao autoritarismo,

a democracia

como se as instituições que eles defendem não fossem a prova·

núcleo positivista da República e seus militares permitiu ao

maior da impotência

Brasil se consolidar como um país de oligarcas, com seus votos

da vontade popular e do autoritarismo

em um regime de fachada. O afastamento

do

das oligarquias financeiras que as controlam. A maneira como

de cabresto, seus coronéis que passavam cargos públicos de pai

se usa o conceito de "populismo" atualmente é a comprovação

para filho, sua gestão da inércia, da concentração

de que eles anseiam por um povo mudo, prisioneiro de institui-

e do imobilismo social através da violência bruta contra toda

ções que funcionam sob uma lógica de interesses muito clara,

emergência possível de lutas populares. Greves tratadas como

normalmente interesses daqueles que financiam as campanhas

crime, manifestações

eleitorais dos "representantes"

dem pública: parece que estamos falando dos dias de hoje, mas

do povo.

de riquezas

populares vistas como distúrbios da or-

Precisamos de análises mais complexas, pois, por nunca

isso era a República Velha. Enquanto isso, a imprensa cobria

ter sido capaz de pensar o populismo de forma adequada, em

toda a pantomima como se aquela associação de latifundiários

sua verdade e em sua falsidade, em sua potência e em sua fra-

fosse uma verdadeira república.

queza, em sua economia libidinal e em seu circuito de afetos, o Brasil nunca foi capaz de compreender

a si mesmo, com-

O compositor nal do século

XIX

francês Jacques Offenbach compôs no fiuma ópera-bufa chamada A vida parisiense.

preender onde o país sempre fracassa e onde ele sempre perde

Mais do que uma opereta razoável, a peça de Offenbach é um

a enorme energia de transformação

que é capaz de acumúl~r.

documento sobre os brasileiros e como nossas oligarquias im-

Voltaremos outras vezes a esse tema, a fim de esclarecer

periais eram vistas na época. Em dada altura da peça, que é uma

o que devemos entender por populismo nesse contexto, mas

história de festas e amores da alta burguesia francesa, aparece

comecemos por uma hipótese: falar da história política brasi-

um brasileiro, que canta: "Eu sou brasileiroj Eu tenho ouroj

leira é, necessariamente,

de um pêndulo.

Venho do Rio de Janeiroj Mais rico que antesj Paris, retorno

Esse pêndulo tem uma força inaudita e conseguiu puxar todos

mais uma vez". Ouro na mala, diamantes na camisa, o brasi-

os atores políticos para um de seus polos, transformando-os

leiro conta como passou seis meses na esbórnia, esbanjando

em repetições de atores passados.

até não ter mais nada. "Pobre e melancólico", ele retoma à sua

Tal movimento

falar da permanência

pendular

par oligarquia-populismo.

pode ser descrito através do

Ou seja, a história brasileira é uma

oscilação contínua entre governos oligárquicos e populistas.

jovem América para roubar mais uma fortuna e gastá-Ia novamente em Paris. De fato, nada melhor do que uma ópera-bufa parisiense para explicar o que era o Brasil: um país cujo Estado

47

tinha como única função real conservar

os rendimentos

de

Digamos então que a especificidade

da emergência

do

uma elite rentista e perdulária, com seu consumo conspícuo

povo como sujeito político no populismo vem do fato de sua

a chocar o mundo exterior, enquanto sua população perma-

incorporação

necia paralisada em meio à miséria. Não é surpreendente

demandas sociais contraditórias,

que

tal imagem pareça tão atual. Foi o populismo

ser feita através de um pacto frágil entre várias vindas de setores antagô-

nicos. Tais demandas contraditórias

varguista que quebrou essa República

são integradas em uma

série cujo "ponto de basta", ou seja, cujo eixo de significação,

de oligarcas e fez o pêndulo da história brasileira ir para seu

será dado pelo líder populista.

outro polo. Para o bem ou para o mal, foi Vargas quem fez,

integrou várias camadas da população

pela primeira vez, a incorporação

ao

políticos, mas colocando suas demandas no interior de uma

processo político. O filósofo argentino Ernesto Laclau foi um

série de significantes na qual se encontravam também deman-

dos poucos a conseguir escapar da desqualificação genérica do

das da burguesia nascente, das oligarquias descontentes com

populismo, ao mostrar como este descrevia uma característica

os pactos paulistas, entre outras. Consolidava-se, assim, outra

fundame~tal

pendularidade,

da democracia,

poração, através da construção

de massas populares

a saber, a capacidade de incordo "povo", de classes sempre

expulsas do poder.' O populismo

é uma forma de emergên-

cia do povo como sujeito político, de constituição

de corpos

Assim, por exemplo, Vargas ao campo dos atores

na qual demandas populares e exigências de

oligarcas precisavam agora conviver. Seus conflitos precisavam naquele momento ser procrastinados através de um impressionante balé político feito de avanços e recuos. Não por outra ra-

políticos populares, mas não é a única forma. Na verdade, na

zão, dizia Vargas: "Meu problema não são meus inimigos, mas

lógica do populismo, esse processo cobra um preço alto,q1.fe

meus aliados". Por ser o ponto de convergência de demandas

é constantemente

contraditórias,

diferido até chegar o momento

conta simplesmente

no qual a

o poder deve ser ocupado por um significan-

não pode ser paga. E, quando fica claro

te vazio que parece poder ser preenchido pelos mais diversos

a todos que a conta não pode ser paga, o sentimento de frus-

conteúdos por não denotar nenhuma referência específica. Isso

tração e agressividade contra as próprias lideranças no poder

permitia que Vargas se transformasse em referência tanto para

torna-se insuportável.

a esquerda quanto para conservadores, tanto para democratas quanto para simpatizantes

do fascismo.

Mas é claro que há um limite da estratégia. Enquanto há 1

Laclau, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas,

2013.

Discuto

mais detidamente a hipótese de Laclau nos dois primeiros capítulos de: Safatle, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica,

2016.

espaço para crescimento,

o conflito entre demandas

pode

ser adiado e todos têm a sensação de estarem ganhando algo. Quando o crescimento

trava, a inércia cresce até a implosão

49

do consórcio de governo. Uma implosão que, normalmente,

e exclusivamente

a partir de si mesmo. Mas ele depende do

à série

espírito do mundo para conseguir, de fato, avançar. E foi isso

populista. Ao sair do governo em 1945, Vargas dará lugar a seu

que ocorreu no período pós-Segunda Guerra. A dinâmica dos

próprio ministro da Guerra, representante da ala conservadora

processos mundiais levou o pacto populista brasileiro a um

que negociara com o nazismo, Eurico Gaspar Outra. Já Lula

ponto de não retorno, algo que o Chile conseguiu realizar no

verá o projeto que ele representava ser golpeado pelo próprio

começo da década de 1970, com o governo Salvador Allende e

vice-presidente

a combinação inovadora de socialismo e democracia.

é capitaneada pelo próprio setor oligarca, incorporado

de Dilma Rousseff.

Se aceitarmos

tal leitura, diremos que a grande carac-

terística dos anos 1945-64 foi a autonomia das demandas

populares

lenta e crescente

em relação ao quadro de controle

Foi contra transformação

a realização

possível

desse horizonte

de

que as oligarquias se associaram aos militares

para impor uma ditadura civil-militar. Durante vinte anos, o

e de paralisia do populismo,

mesmo que o Brasil sempre te-

Brasil foi submetido

nha sofrido da incapacidade

de constituir processos de forte

centração de renda, de crescimento

a uma política econômica

de alta con-

da desigualdade,

e a um

densidade eleitoral fora do esquadro do populismo. Cabe ob-

regime corrupto, no qual a classe empresarial financiava apa-

servar como o possível candidato da esquerda mais radical à

relhos de tortura

e terrorismo

de Estado e cargos públicos

eleição abortada de 1965 era Leonel Brizola, herdeiro direto do

eram distribuídos

a banqueiros

e empresários

getulismo. Era o problema da emergência

Olavo Setúbal, o banqueiro do Itaú, foi prefeito de São Paulo,

das organizações

(por exemplo,

de larga escala fora do modelo populista de incorporação que se

cargo que lhe foi dado pelos militares por sua participação ati-

mostrava (e que até hoje se mostra) como limite da imaginà'ç~o

va na ditadura). Ou seja, a ditadura militar brasileira não era

política brasileira.

exatamente uma ditadura militar, mas uma associação civil-

De toda forma, essa autonomia lenta se alimentou do cenário mundial de radicalização das lutas populares, com suas revoluções vitoriosas, assim como da hegemonia mundial da

-militar para o retorno

do sistema de coronel ato e oligar-

quias locais. E então veio a Nova República. Nada de nossa situação

esquerda no campo cultural das ideias, do abalo constante do

atual é compreensível sem reanalisarmos o que foi o modelo de

sistema de formas tradicionais de vida pela continuidade

redemocratização

experiências

artísticas de vanguarda

das

e das fortes relações de

infinitamente

diferida da Nova República,

como ela dizimou a força de transformação

acumulada desde

associação entre intelectuais e classes populares. Como disse

o golpe militar. Proponho fazer isso no próximo capítulo, até

anteriormente,

porque se trata de defender a tese de que nos encontramos hoje

o Brasil age muitas vezes como se fosse a maior

ilha do mundo, tentando explicar sua dinâmica política única

50

diante de um triplo esgotamento:

um esgotamento

da Nova

51

República, como era histórica, um esgotamento como modelo de desenvolvimento

do lulismo,

econômico e social, e um

a anunciar o fim da democracia

liberal. No Brasil, a revolta

pegou a esquerda desprevenida, enfraquecida e acomodada à

esgotamento da esquerda brasileira, em sua tentativa de cons-

ilusão de perpetuação

tituir uma saída para além do pêndulo oligarquia-populismo.

da esquerda preferiu abraçar o discurso de desqualificação da

infinita no poder. Por isso, uma parte

revolta, o que a livraria de ter de encarar sua própria obsolescência e envelhecimento.

ideia de que apenas o que pode ser representado

A TERCEIRA IMAGEM

politicamente, Antes de entrarmos

O preço de tal covardia, travestida da

nessa proposta de diagnóstico,

há de se

pode existir

foi alto.

A foto tem sua ironia. Pouco antes, a massa estivera enfu-

lembrar que os últimos quinze anos da história brasileira ti-

recida diante do Congresso Nacional, ameaçando

veram ainda uma segunda foto paradigmática

A Polícia Militar tentou impedir, mas não conseguiu fazer nada

presente o prenúncio

e ela talvez re-

de uma história que ainda não existiu.

melhor do que empurrar

quebrá-lo.

a massa para o lado, fazendo com

Essa foto não é uma repetição, não é o retorno de um espectro

que sua fúria destruísse o primeiro edifício público à frente: o

a colonizar o presente. Ao contrário, é a imagem do que nunca

Palácio Itamaraty. Como eu disse, a foto não deixa de ter sua

fora visto na história brasileira, do que sempre esteve em latên-

ironia. Ela mostra a destruição de um substituto. Para salvar o

cia sem nunca subir à cena principal do político. De certa for-

Congresso com seus oligarcas, outro objeto é oferecido para

ma, a história brasileira, para além da repetição infindável de

ser sacrificado em um ritual de expiação da revolta. Essa estra-

seus impasses, passará necessariamente

tégia será utilizada uma segunda vez, de maneira simbólica e

por esta foto: tratá-se,

da foto do Palácio Itamaraty em chamas. Nesse momento, as

bem-sucedida,

no golpe de

2016.

ruas das principais cidades brasileiras começaram a queimar.

Mas essa imagem não será apenas a expressão de uma ar-

Essa foto representa, pela primeira vez na história brasi-

madilha criada de forma astuta por uma oligarquia exímia na

leira, a emergência de uma revolta sem comando ou controle

arte de se perpetuar. Ela será o eixo dos últimos anos da histó-

com força suficiente para destituir o poder. Lembremos mais

ria brasileira em outro sentido, mais forte. Pois a fúria popular

uma vez daquele momento: estam os em

contra o Itamaraty era a encarnação do verdadeiro medo que

manifestação

2013

no meio da maior

de revolta popular da história brasileira. À sua

sempre assombrou

este país, a saber, o medo da insurreição

maneira, ela repete uma sequência de revoltas populares que

de uma massa amorfa e descontrolada, de força negadora bru-

ocorreram no mundo, de Túnis a Santiago, de Istambul a Nova

ta, que encarnaria todas as décadas e séculos de revolta muda

York, de Madrid a Tel Aviv, do Cairo à Islândia - as primeiras

e surda. Uma força que não se submeteria

52

mais ao poder do

53

Essa insurgência, com sua negação bruta, que pareceu ser uma ferida aberta que poderia não mais parar de sangrar, foi o motor que levou parcelas da população brasileira, depois de 2013,

a reagir e abraçar de forma cada vez mais descomplexada

os discursos protofascistas

de ordem e de justificação da vio-

lência estatal. Pode parecer paradoxal esse resultado, mas não será a primeira vez na história que as latências de uma revolta popular dão espaço à emergência de um sujeito reativo. Já em outras manifestações de junho, a saber, as de 1848, Marx percebera como a revolta popular produzira ao final a incorporação de parcelas do povo não em um proletariado

com força revo-

lucionária, mas em um símile obscuro, um lumpemproletariado.3 Esse lumpemproletariado, Manifestantes invadem o Palácio Itamaraty, em Brasília, em 2013, dia em que uma série de protestos ocorreu no país.

20

de junho de

de transformações,

longe de ser um verdadeiro sujeito

como alguns teóricos políticos atuais pro-

curam acreditar, será responsável por transformar a negação e sua força de abertura em direção ao que ainda é impredicado em demanda de uma ordem mais brutal e cínica, que iria emergir com a ascensão de Napoleão

Estado, à lógica de suas representações.

Em outras palavras,

Nesse sentido, notemos

III.

como foi o medo da potência

uma expressão acabada da clássica ideia de Maquiavel: quan-

de abertura de uma negação bruta que deu carta de alforria

do o povo fala e sobe à cena da política, ele diz simplesmente

ao fascismo nacional. Até

"não", sem nenhum atributo a mais.' Uma negação sem predicações

Bolsonaro, ao culto da ditadura militar e ao discurso aberta-

é e sempre será o começo da verdadeira política.

mente violento era residual. A força que tal adesão ganhou é

2013,

a adesão a figuras como Jair

resultado de uma reação; ela é a constituição 2

"Porque o objetivo do povo é mais honesto

do que o dos grandes: es-

tes querem oprimir, aquele não quer ser oprimido"

de um sujeito

reativo que emerge como efeito colateral de todo verdadeiro

(Maquiavel, Nicolau.

O príncipe. São Paulo: Atena Editora, 1957, p. 60). Ou seja, a emergência do desejo popular é negativa, trata-se do desejo de não ser oprimido. Uma negação que, se incorporada,

54

pode ser portadora

de transformações.

3 Ver: Marx, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2017.

55

acontecimento." Que seja apenas um sujeito reativo aquele que

e frivolidade que invade a vida de todos via consumo maciço

até agora emergiu, isso significa apenas que a esquerda brasileira

de produtos da indústria cultural, de abandonar

não estava pronta para a revolta. Ela não foi capaz de nomear novos

turas de organização

sujeitos políticos diante do colapso evidente do lulismo. Por

Essa esquerda, o último ator a confiar no sistema moribundo

tal razão, por mais que isso possa soar a alguns como uma

de gestão de conflitos próprio à democracia liberal, precisava

constatação dolorida, essa esquerda precisava morrer.

morrer. Ela acabou.

A esquerda

que tínhamos

dirigistas, centralistas,

suas estru-

hegemonistas.

até então (e tal diagnóstico

não se resume a um partido específico, mas a todos os atores constituídos)

não estava à altura das exigências do tempo

presente. Cabe qualificar melhor essa afirmação, pois sempre que alguém insiste no descompasso

entre a esquerda e o pre-

sente é para expressar um sentimento inconfesso de demissão, um desejo incontrolável de abraçar os pressupostos

liberais e

garantir seu lugar na fila das benesses dos que aprenderam que alguns chamam de "os fundamentos

o

da economia". Não, a

esquerda não estava à altura das exigências do tempo presente porque ela tinha medo de dizer seu nome, de operar no interior de conflitos de classes (já que o lulismo representou transformação

apenas a

do conflito de classe em discurso estratégico

a ser mobilizado em momentos de fraqueza do poder), de constituir o campo genérico de identificação proletária, de romper com o modelo de acumulação baseado na predominância

dos

interesses financeiros, de sair das dinâmicas de representação e avançar em direção à implementação democracia

de mecanismos

de

direta, de fazer a crítica da cultura da anestesia

4 Sobre a noção de sujeito reativo, ver principalmente:

des mondes. Paris: Seuil,

Badiou, Alain. Logiques

2010.

57

o esgotamento

da

Nova República o pavor

é muito maior com o desaparecimento

do que com a morte.

A morte, não, você vê o cadáver do cara, acabou. Não tem mais que pensar nele. O meu destino, se eu falhar, vai ser esse. Já quando você desaparece - isso é ensinamento estrangeirovocê causa um impacto muito mais violento no grupo. Cadê o fulano? Não sei, ninguém viu, ninguém sabe. Como? O cara sumiu como? PAULO MALHÃES1

GOVERNAR

É FAZER DESAPARECER

o Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência. Nunca entenderemos o Brasil se não compreendermos o tipo de violência que funda seu Estado. Pois entender como o Estado

1

Depoimento

18/2/2014.

à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, em

Arquivo

CNV, 00092.002760/2014-83.

Por estranha coincidência

(mas deve ter sido mera coincidência mesmo), o coronel e torturador

Paulo

Malhães morreu assassinado dias depois desse seu depoimento.

59

brasileiro funciona é entender como ele administra o desapa-

invulneráveis, mesmo em tempos de "redernocratização",

recimento

é um dos pontos mais impressionantes

e o direito de matar. Essa é sua verdadeira forma

Este

dos últimos trinta anos

de governo, uma atualização do secular poder soberano e seu

no Brasil, a saber, a maneira como suas políticas de desapa-

direito de vida e morte.

recimento permaneceram

Com uma mão, ele massacra parte da população através

intocadas, seja nos governos

FHC,

seja nos governos Lula e Dilma. Não foi apenas uma lógica

de seu aparato policial, a encarcera em um espaço de não direi-

de "segurança nacional" que ficou imune a toda revisão. Foi a

to, permite a criação de zonas urbanas e rurais de anomia nas

natureza do Estado brasileiro e de seu direito de vida e mor-

quais a violência e a morte são invisíveis, nas quais os corpos

te sobre a população

desaparecem sem deixar rastos. Sobre essa parte da população,

político-eleitorais.

o Estado não tem apenas o direito de vida e morte, ele tem o

desaparecimento

direito de desaparecimento.

Porque o eixo fundamental

que pairou para além das modificações Os governos passaram,

mas a gestão do

ficou.

Não foram poucos os teóricos que perceberam

do

a neces-

processo de gestão é gerir a invisibilidade. Sobre essa violência,

sidade de as reflexões sobre a biopolítica contemporânea

não haverá marcas, não haverá nomes, não haverá imagens, não

rem complementadas

haverá afeto nem identificação.

"tanatopolitica".'

Com outra mão, o Estado brasileiro promete a uma parce-

se-

por uma "necropolítica'? ou por uma

Pois não se trata apenas de descrever as re-

lações entre instauração do poder e modos de administração

la amedrontada reunida em condomínios fechados que ele será

dos corpos e de gestão da vida. Trata-se de insistir na rela-

ainda mais duro contra o crime. Assim, governa-se gerindo

ção entre poder e políticas do desaparecimento

a invisibilidade e alimentando

Não são apenas regimes totalitários que se fundam a partir da

uma dinâmica de guerra civil.

e da morte.

Alguns países criam unidade através da guerra e da constitui-

administração

do extermínio e do assassinato de Estado. Prin-

ção do inimigo externo. O Brasil cria coesão através da cons-

cipalmente em países da América Latina e da África, e também

tituição de inimigos internos. Desde o tempo em que ele se

no Brasil, não é possível compreender o poder sem passar pela

constituiu através de genocídios indígenas nunca reconhecidos

consolidação das forças policiais e parapoliciais como aparatos

como tais, ficou claro que ele próprio já era o seu pior inimigo. Essa lógica encontrou

sua forma mais bem-acabada

de Mbembe, Achille. "Necropolitics", Public eulture

governo na ditadura militar (1964-85). Pois a ditadura militar

2

brasileira foi a consolidação

3 Ver: Esposito, Roberto. Bíos: Biopolitics and Philosophy. Minneapolis: lJniversity

de um modelo de gestão sempre

presente na história nacional, mas que a partir de então ganharia estruturas e aparatos institucionais

60

que se mostraram

ofMinnesota

Press,

2008.

15:1,2003.

O uso do termo que sugeri em O circuito dos afetos vai

em outra direção, já que visa pensar o lugar das experiências de desintegração no interior de uma biopolítica positiva.

61

de execução extrajudiciária constante e sobretudo sem passar

democracia ateniense começava a chegar ao fim, o espírito do

pelo Estado como instância de desaparecimento.

povo produziu

Nesse sentido, lembremos

como os fascistas fizeram de

limites do poder. Ela é o verdadeiro núcleo do que podemos

Auschwitz o paradigma da catástrofe social. Contra isso, o sé-

encontrar

culo xx cunhou o imperativo "fazer com que Auschwitz nunca

saber, Antígona.

mais ocorra". Mas podemos nos perguntar o que exatamente

uma das mais belas reflexões a respeito dos

nesta tragédia que não cessa de nos assombrar,

a

Muito já foi dito a respeito dessa tragédia, em especial de

aconteceu em Auschwitz que sela esse nome com o selo do que

seu pretenso conflito entre as leis da família e as leis da polis.

nunca mais pode retomar. Todos conhecem a resposta-padrão.

Mas eu diria que no seu seio pulsa a seguinte ideia: o Estado

Auschwitz

deixa de ter qualquer legitimidade quando mata pela segunda

é o nome do genocídio industrial,

do projeto de

eliminação de todo um povo. Infelizmente, a história conhece

vez aqueles que foram mortos fisicamente, o que fica claro na

a recorrência de barbáries dessa natureza.

interdição legal a todo e qualquer cidadão de enterrar Polinices,

A dimensão realmente nova de Auschwitz não está no de-

e a todo e qualquer cidadão de reconhecê-Io

como sujeito, a

sejo de eliminação, mas no desejo sistemático de apagamento

despeito de seus crimes. Pois não o enterrar só tem um signi-

do acontecimento,

Há de se ouvir mais

ficado: não acolher sua memória através dos rituais fúnebres,

uma vez esta frase trazida pela memória de alguns sobreviven-

anular os traços de sua existência. Uma sociedade que trans-

tes dos campos de concentração,

forma tal desaparecimento

de desaparecimento.

frase que não terminava de

em política de Estado, como dizia

sair da boca dos carrascos: "Ninguém acreditará que fizemos

Sófocles, prepara sua própria ruína, elimina sua substância

o que estam os fazendo. Não haverá traços nem memória". Um

moral. Não tem mais o direito de existir como Estado. E é isto

crime perfeito, sem rastros, sem corpos, sem memória. Só a

que acontece a Tebas: ela sela seu fim no momento

fumaça que se esvai no ar das câmaras de gás.

não reconhece mais os corpos dos "inimigos do Estado" como

Nesse sentido, Auschwitz

teve o triste destino de expor

o núcleo duro de todo totalitarismo.

Pois o totalitarismo

não

em que

corpos a serem velados.

É dessa forma que algo de fundamental do projeto nazista

é apenas fundado na violência estatal contra setores da po-

e de todo e qualquer totalitarismo

pulação que questionam a legalidade do poder. Ele é fundado

realização plena na América do Sul. A Argentina forneceu uma

nesta violência muito mais brutal do que a eliminação física:

imagem perfeita dessa catástrofe social: o sequestro de crianças

a violência da eliminação

Como dizia Lacan, a

de desaparecidos políticos. Porque a morte física só não basta.

morte simbólica pode ser mais dura que a morte física. Não

Faz-se necessário apagar os traços, impedir que aqueles capa-

é por outra razão que, no momento em que a experiência da

zes de portar a memória das vítimas nasçam. E a pior forma

62

simbólica.

mais brutal alcançou sua

de impedir isso é entregar os filhos das vítimas aos carrascos.

internacionais contra a tortura, que apaga os rastos, que opera

Não são apenas os corpos que desaparecem, mas os gritos de

por desaparecimento

dor que têm a força de cortar o contínuo da história.

tadura, seja sob uma "democracia". Uma estrutura imóvel no

Mas há uma situação ainda pior. Pois podemos lembrar como a Argentina conhecerá uma extensa justiça de transição. Da mesma forma, no Chile, carrascos como Manuel Contrera

e continuará a operar, seja sob uma di-

tempo, resistente a toda e qualquer mudança, indestrutível. Um Leviatã descontrolado

sob a capa do Estado de Direito.

O resultado é inapelável. Nenhum outro país protegeu

foram condenados à prisão perpétua, e as Forças Armadas se

tanto seus torturadores,

viram obrigadas a fazer um mea-culpa pela implementação

das conservassem seu discurso de salvação através do porrete,

de uma ditadura militar. O único país que realizou de maneira

integrou tanto o núcleo civil da ditadura aos novos tempos -

bem-sucedida

de redemocratização

esta profecia foi o Brasil: a profecia da violência

sem trauma aparente. É importante

permitiu tanto que as Forças Arma-

quanto o Brasil. Há de se lembrar, por

exemplo, que o Brasil é o único país da América Latina onde os

lembrar disso mais uma vez, porque nossa

casos de tortura aumentaram

em relação à ditadura militar,"

"redernocratização", a constituição do que chamamos de "Nova

Prova maior da generalização de um modus operandi de exceção

República", foi baseada na tese de que o esquecimento dos "ex-

agora aplicado de maneira extensiva à gestão social da popula-

cessos" do passado seria o preço doloroso, mas necessário, a

ção. Por isso, nenhum outro país latino-americano

ser pago para garantir a estabilidade democrática eliminando o

lapso tão brutal de sua "democracia" como o nosso, com uma

trauma da violência estatal. Uma violência que aparentemente

polícia militar que age como manada solta de porcos contra a

não teria recorrido à morte sistemática, haja vista os números

própria população que paga seus salários. Nenhum outro país

menores de mortos e desaparecidos se comparados aos de ou-

latino-americano

tras ditaduras latino-americanas.

da classe média a clamar nas ruas por "intervenção militar", a

No entanto, esses números

teve um co-

precisa conviver com um setor protofascista

escondem uma violência ainda mais brutal. Pois não signifi-

ponto de invadir o plenário do Congresso Nacional com suas

ca nada dizer que a ditadura brasileira teria matado menos do

bandeiras. Tudo isso demonstra algo claro: a ditadura brasileira

que várias de suas congêneres latino-americanas.

venceu. Como um corpo latente sob um corpo manifesto, ela

Ela matou

menos porque havia alcançado um grau de violência que fez

se conservou e a qualquer momento pode novamente emergir.

desse tipo de brutalidade algo desnecessário. Ou seja, foi capaz de aprimorar um regime de violência que outras nem mesmo imaginaram ser possível: a violência da certeza da onipotência de um Estado que administra a morte enquanto assina tratados

4 Ver: Sikkink, Kathryn. The Justice Cascade: How Human Rights Prosecutions Are

Changing World Politics. Nova York: w.w. Norton,

2011.

ACORDOS

NACIONAIS

DE SI PARA CONSIGO

esse bloqueio político que paralisou as possibilidades e econômicas brasileiras.

MESMO

sociais

Toda retomada da imaginação política no Brasil passa por uma

Esse sistema de travas tinha como um de seus fundamen-

meditação sobre a Nova República como expressão das ilusões

tos a Lei de Anistia imposta pelos militares em uma votação

nacionais de uma sociedade capaz de superar seus conflitos,

na Câmara dos Deputados, na qual o governo contou apenas

sem nunca encará-I os de fato. A volta da imaginação política

com os votos de seu próprio partido. Lembremo-nos

no Brasil passa pelo fim das ilusões de conciliação e pela com-

fato: a lei proposta pelo governo recebeu

preensão das causas do fracasso de nossa "redemocratização

(todos da Arena) e

infinita". Pois há de se lembrar como o fim da ditadura foi feito

composição

através não de um acordo, mas de uma verdadeira capitulação

era formado por vários parlamentares

das forças democráticas

forma indireta) -

a um modelo de conciliação políti-

201

votos favoráveis

votos contrários de um Congresso cuja

era resultado

206

206

deste

contra

de uma série de casuísmos

201:

e que

biônicos (escolhidos de

a isso se chamou "conciliação". Eis

de

algo tipicamente brasileiro: uma conciliação baseada em uma

mudança. Modelo que serviu apenas para degradar todo ator

lei imposta, que recebeu votos apenas dos membros do partido

político que ganhasse o comando do país, qualificando-se elei-

que a propôs. Essa lei, que nunca mais seria questionada, livra-

toralmente como gestor dos novos consórcios de poder.

va da cadeia aqueles que haviam participado de terrorismo de

ca que serviu para paralisar todo ímpeto mais profundo

Lembremos os momentos

principais desse processo his-

tórico. Com a derrota das Diretas-Já e a confirmação pacto entre

PMDB

de um

e PFL, estava selada a "governabilidade" entre

nós. Ela se fundaria na conciliação

contínua

com um setor

Estado, enquanto lá deixava os membros da luta armada que haviam se envolvido em "crimes de sangue". É sempre bom lembrarmos

que vários participantes

da luta armada não fo-

ram beneficiados pela Lei de Anistia, tendo permanecido

pre-

de trânsfugas da ditadura, na gestão de seus interesses fisio-

sos mesmo depois de 1979. A maioria desses presos começou

lógicos locais, na conservação

a ser liberada a partir de 1981 devido a uma decisão judicial de

e, principalmente,

de seus direitos oligárquicos

no bloqueio de toda tentativa de julgar o

que eles fizeram e continuariam

a fazer. A Nova República foi

fundada na exigência de integrar o arcaísmo ao poder, com suas relações empresariais

espúrias e suas blindagens midiá-

ticas. Definida essa exigência de conciliação,

criou-se uma

comutação das penas. O que significa que, de maneira precisa, a Lei de Anistia simplesmente não existiu para os participantes da luta armada envolvidos em crimes de sangue. Na verdade, a Lei de Anistia tinha como finalidade maior criar no país a ideia de que ações "revanchistas" deveriam ser

espécie de centro de gravidade do poder que tragava todos

desqualificadas,

os ocupantes do Palácio do Planalto para o mesmo lugar. Foi

da". Isso significava, entre outras coisas, que deveríamos nos

66

já que a "conciliação"

havia sido "negocia-

acostumar

com a presença dos que geriram o país durante

o período ditatorial. Eles não iriam desaparecer, não seriam alvos de julgamento.

suas ações

Na verdade, eles seriam os

Em seu governo no Rio de Janeiro, entre 1982 e 1987, BrizoIa foi capaz de algumas realizações notáveis, mesmo que não tenha conseguido fazer seu sucessor, o então vice-governador,

grandes fiadores da Nova República. Ou seja, a Lei de Anistia

Darcy Ribeiro. Na eleição presidencial de 1989, Brizola chegou

foi o fundamento

a ser um dos favoritos, mas sua dificuldade para entrar em São

normativo

dos modelos de gestão social e

governabilidade que nos acompanharam Sua perpetuação lembremos

nas últimas décadas.

foi a chave da paralisia social brasileira. Mas

mais urna vez corno a colonização

transformação

das forças de

social se deu, pois foi um processo lento, corno

urna sequência de dominós que caem, urna peça após a outra.

Paulo e sua campanha antiquada, ainda ligada à era do rádio, excluíram-no

do segundo turno. Seu personalismo

sistematicamente

todos os que poderiam

colaborar

afastou para a

consolidação de seu partido. Não lhe restou outra coisa senão o ocaso. Entretanto,

corno eu gostaria de insistir, seu traba-

lhismo, ou ao menos o populismo ao qual ele dava sequência, será paradoxalmente PEQUENA

HISTÓRIA

ESQUERDA

DA DESINTEGRAÇÃO

DA

BRASILEIRA

o horizonte último da Nova República.

Com o processo de impeachment

de ColIor e sua renúncia

(1992), parecia que a ascensão da esquerda ao poder era inevitá-

vel. Dois anos depois da eleição de ColIor, a população se unia Nos primeiros anos da Nova República, três grupos acabaram

para pedir seu afastamento. Mas eis que o modelo de concilia-

por ocupar o espaço da esquerda nacional: o trabalhismo de Bri-

ção da Nova República falou mais alto, e a aliança

zola e seu

que levou Sarney ao poder, reencarnou

PDT;

a "social-democracia" tucana; e o PT e sua aliança

PMDBfpFL,

na figura de Fernando

com intelectuais, sindicalistas e setores progressistas da Igreja

Henrique Cardoso, com sua esquizofrenia

Católica, vinculados à Teologia da Libertação. Durante certo tem-

misturar discursos aprendidos no Seminário Marx com prá-

po' foi Brizola quem apareceu corno o setor eleitoralmente mais

ticas neoliberais e alianças com Antônio Carlos Magalhães e

consistente da esquerda, com seu enraizamento no Rio de Janei-

Jorge Bornhausen.

ro e no Rio Grande do Sul. Ele representava o maior medo dos

crônica capaz de

Era cômico ver citações de Gramsci e Hegel serem por ele

militares, pois a vitória significaria recompor certa conexão com

utilizadas para justificar a miséria política da Nova República,

o movimento trabalhista dos anos 1960, o mesmo que a ditadura

mas, bem, desde Memórias póstumas de Brás Cubas qualquer ob-

quis dizimar. Isso implicaria retorno a um modelo de incorpora-

servador da realidade nacional sabe que amansar contradições,

ção das massas à cena política baseado na força do populismo de

transformando-as

Vargas e sua desestabilização do governo das oligarquias.

especialidade. Para um país que tivera liberais escravocratas,

68

em urna informidade

sem gosto, é nossa

não era realmente surpreendente

se deparar com alguém que

dizia ser Marx o melhor intérprete do capitalismo

enquanto

Lei de Responsabilidade

Fiscal) que estabelecia urna hierarquia

nos gastos públicos, dando ao pagamento dos credores finan-

alegremente empurrava seu país para as mais predatórias po-

ceiros predominância

líticas neoliberais.

que chegou ao paroxismo

De fato, a ascensão do

PSDB

ao poder representou o aban-

sobre os investimentos

públicos, algo

com a lei de 2016 de congelamen-

to dos gastos públicos para garantir o pagamento

de juros e

dono de um momento de ensaio de políticas econômicas he-

serviços da dívida pública.' Nesse sentido, não será estranho

terodoxas que se mostraram incapazes de impor sua dinâmica

descobrir que, de 1995 a 2004, a participação

em governos, corno o de José Sarney (1985-90), que nunca es-

renda nacional caiu 9%, enquanto a participação das rendas de

tiveram de fato engajados nos conflitos que urna visão neo-

propriedade subiu

keynesiana representaria

para os interesses da elite financeira

dos salários na

12,3%.6

O resultado da era

FHC

não poderia ser mais claro: além

brasileira. A experiência inflacionária dos anos 1980 legitimou

de se deparar com mares de lama periódicos,

que o PSDB impusesse ao país um programa de ajustes (o Plano

corrupção que explodiam a todo momento, compras de votos

Real) que preparou o país para ser um entreposto de valoriza-

e financiadores de campanha se transformando

ção do capital internacional através de urna política de choque

rios de privatizações, o Brasil viu-se diante de racionamento

internacionalmente

apagão, desindustrialização,

utilizada. Ela se baseava em abertura co-

escândalos de em beneficiáe

dependência em relação ao Fundo

mercial e financeira, o que impediu o Brasil de criar qualquer

Monetário Internacional (um dos maiores empréstimos forneci-

forma de lei para conter a circulação de capital especulativo,

dos pelo

sem falar nas privatizações generalizadas, cujo dinheiro foi em

e crescimento pífio. Tudo isso forneceu as bases para o cenário

larga medida gasto para conter ataques especulativos. Há certa

dos últimos anos

ironia em lembrar corno as privatizações

das figuras mais impopulares da política nacional durante bom

vendidas à população

foram inicialmente

corno esforço de capitalizar o Estado

para investir nos setores sociais, isso em um governo que, ao

FMI

havia sido para o Brasil), desigualdade persistente

FHC,

que, não por acaso, fizeram dele urna

tempo, a despeito do esforço propagandístico

da imprensa bra-

sileira para fornecer de seu governo urna imagem mais positiva.

final, entregou ao país universidades sem dinheiro para pagar conta de luz. Tais políticas eram ainda seguidas por taxas de juros entre as mais altas do mundo, que destruiriam

de vez o parque in-

dustrial brasileiro e transfeririam renda do Estado para o setor financeiro nacional, assim corno por urna política fiscal (via

70

5 Ver: Santos, Fábio Luis. Além do

PT:

a crise da esquerda brasileira em perspectiva

latino-americana. São Paulo: Elefante, 2016; e, principalmente: Brasil delivery. São Paulo: Boitempo, 2008.

Paulani, Leda.

6 Ver: Pochmann, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social

brasileira. São Paulo: Boitempo,

2012.

71

Eliminado Brizola, eliminado o tucanato, sobrava o

foram uma armadilha autoconstruída

PT.

para pegá-Io no primei-

Uma análise honesta mostraria que a última coisa a fazer seria

ro escândalo, que foi o do Mensalão. O modelo do escândalo já

procurar reeditar mais uma rodada da política conciliatória

dizia tudo: um sistema de financiamento

da Nova República. O final não seria diferente daquele que

truído a partir do mesmo modelo utilizado anteriormente pelo

tragou o governo

PSDB.

O caminho

FHC,

indicava, desde o início, que seria preciso mo-

dificar a estrutura promíscua

só que muito mais brutal e dramático.

política brasileira, combatendo

entre o capital, o empresariado

e fortalecer mecanismos

a relação

e a casta política,

de democracia direta, reformando

OS estrategistas do

PT

de campanhas cons-

devem ter imaginado que estavam

diante de um sistema blindado. Estourá-Io equivaleria a colocar em risco todos os atores da Nova República. Por isso, ele seria deixado intacto.

a

Sabemos que não foi o que aconteceu. Os setores hegemô-

função do Congresso como caixa de ressonância dos interesses

nicos da imprensa brasileira têm o dom de apagar informações,

oligárquicos.

de reconstruir narrativas do dia para a noite, de um modo que

O programa mais urgente era uma refundação

política da institucionalidade

nacional através do aumento da

deixaria morto de inveja George Orwell com seu 1984. Afinal,

participação popular nos processos decisórios e administrati-

alguém se esqueceu de que o fato de o próprio presidente do

vos do Estado. Isso permitiria mobilizar a força popular para

partido de oposição

retirar o país do sistema de travas que lhe havia sido imposto

do Mensalão (Eduardo Azeredo e seu

pela "redernocratização".

ignorado por revistas e jornais em campanha declarada contra

foi a previdenciária:

Mas a primeira reforma apresentada

aparecer como o criador do esquema PSDB)

foi simplesmente

um modo de mostrar ao mercado que o

o governo, como fez a Veja? Em qualquer lugar do mundo, a des-

Brasil não seria uma Venezuela, que o PT estava lá para ser visto

coberta de que o maior escândalo envolvendo o governo fora a

como mais um ator na grande história da conciliação nacio-

adaptação de um esquema gestado pela própria oposição seria

nal. Desde aquele momento, já anunciado na "Carta ao povo

uma notícia bombástica. No Brasil, ela é irrelevante.

brasileiro", com seu tom de capitulação

geral, a sorte estava

Assim, foi por pouco que tudo não acabou entre

lançada. Sobrou espaço apenas para tentar reeditar a lógica

e

nacional-desenvolvimentista,

momento, mobilizações

cujo sucesso momentâneo

será

analisado no próximo capítulo deste livro. Só que, com o

PT,

a complacência

diciário com a corrupção anteriores, não funcionaria PT

72

da imprensa e do Ju-·

do Estado, tão clara nos governos da mesma forma. A rendição do

ao modelo de conciliação nacional e seu pacto de corrupção

2006.

2005

Salvou o governo o fato de a direita temer, naquele populares. Elas ainda eram uma ex-

clusividade da esquerda. Toda tentativa da direita de ir às ruas, como no caso do movimento

Cansei, demonstrou-se

fraca,

mesmo a despeito de doses maciças de auxílio da imprensa, que noticiava como fato maior manifestações

de cinquenta

pessoas no centro das capitais brasileiras.

73

Com a reeleição de Lula e sua popularidade não foram poucos os que acreditaram

consistente,

que a lição tinha sido

sacrossanto ao patrimonialismo vam o desdobramento

da nossa elite ociosa bloquea-

do crescimento e nunca foram tocados.

aprendida, que era hora de enfim escapar do sistema de travas

Por causa desses bloqueios, as promessas

das conciliações da Nova República. Mais uma vez, nada mais

uma sociedade rica e de pleno emprego gerariam uma frustra-

falso. A convivência

ção relativa (como dizia Tocqueville) insuportável. Ela explodiu

com os arcaísmos

provocou uma regressão duradoura

da política nacional

das práticas políticas de

em

2013,

não realizadas de

nas mãos de Dilma Rousseff.

todos. De tanto conviver com a oligarquia, você acaba por se parecer com ela, pensar como ela. Não haveria transformação política alguma.

EU TERIA

PREFERIDO

ROBESPIERRE

Lula compensava tudo isso com a crença de que ele agora era a reencarnação

de Vargas, capaz de operar em um modelo

Faltava, no entanto,

extenso de unificação de interesses. O trabalhismo morto com

gotamento

Brizola ressuscitava pelas mãos de uma esquerda, como a do

de abandonar

PT,

que, em seu nascedouro,

era não trabalhista

nacíonal-desenvolvimentisrno.

e crítica do

Não eram apenas os sonhos

do nacional-desenvolvimentismo

que se reencarnavam

na es-

um elemento

que faria com que o es-

do modelo fosse também os ocupantes

o desejo irresistível

do novo condomínio

E, nesse ponto, entra a corrupção.

do poder.

Talvez um dia a esquerda

brasileira, ou ao menos aquela que operou no governo, entenda que a política é indissociável

de julgamentos

morais.

querda, mas também a crença de que o sistema de conciliação

A razão é relativamente

da Nova República expressava o lugar natural da política bra-'

respeito da partilha do poder e da riqueza, a política é uma

sileira desde sempre, de que a esquerda poderia, no máximo,

luta a respeito de formas de vida e modos de existência. Ela não

levar essa política na direção do modelo varguista de grandes

é apenas um problema de redistribuição,

alianças, mesmo que não compactuasse

ligado à possibilidade de criar formas de vida novas.

autoritário.

Esse era nosso horizonte

com seu militarismo final. E assim Lula saiu

simples: mais do que um embate a

mas um problema

De maneira astuta, o filósofo italiano Giorgio Agamben

do governo com a maior aprovação da história recente do país.

afirmou: "O verdadeiro problema da esquerda italiana é que

Tudo isso, porém, tinha prazo de validade. Podia-se per-

seus membros, no fundo, gostariam de ter a vida que leva Ber-

ceber que o crescimento

provocado pelo lulismo tinha limi-

tes claros. Como pretendo desigualdade

brasileira persistente,

em polo de rentabilização

74

mostrar

no próximo

capítulo, a

a transformação

lusconi". Era sua maneira de dizer: não é possível combater Berlusconi se você não recusar radicalmente

uma forma de

do país

vida baseada na fixação doentia às ideias de propriedade, pos-

do sistema financeiro e o respeito

se, bens e primado do indivíduo. Uma vida que alguém como

75

Berlusconi representa tão bem. Pois se você se deixa afetar da

Entender isso nos pouparia de ouvir aqueles que tratam a

mesma forma que aqueles contra os quais combate, se você

corrupção corno um "fato social" inerente ao funcionamento

no fundo deseja da mesma forma, então chegará o dia em que

do capitalismo. Pois, mais do que um fato social, ela tem urna

você fará as mesmas coisas. Esse é o verdadeiro sentido de urna

dimensão irredutível de deliberação individual. A norrnativi-

bela frase de Pepe Mujica: "O poder não muda as pessoas, ele

dade dos fatos sociais opera, em larga medida, na inconsciência

apenas mostra quem elas realmente são". Assim, em um país

dos sujeitos. No entanto, ninguém ainda mostrou a possibi-

corno o Brasil- que sempre teve de aturar urna elite rentista e

lidade de alguma forma de corrupção

ociosa, que vive de "patrimônios"

revelia dos próprios sujeitos agentes. Por isso, em vez de um

e é especializada em tornar

inconsciente,

feita à

de assalto o bem público corno se fosse posse privada, socia-

discurso vergonhoso

lizando dívidas e privatizando

de análise sociológica, a respeito de casos sistemáticos de cor-

ganhos -, ser revolucionário

e muitas vezes complacente,

travestido

começa por ter decência em relação à função pública e respeito

rupção, valeria mais a pena apresentar urna dessolidarização

absoluto pelo bem comum.

absoluta com os responsáveis por urna das mais imperdoáveis

O mínimo que se pode dizer a respeito é que a esquerda no

práticas criminosas,

a saber, a privatização

poder não entendeu nada quanto a esse ponto. Ela deveria ter

e a destruição

apresentado, em vez das políticas de austeridade contra a po-

devido à corrupção do Estado.

das possibilidades

do bem comum

de criação de adesão social

pulação pregadas pelo neoliberalismo, urna política de governo austera, ou seja, um governo formado por aqueles dispostos a ter absoluta virtude jacobina e desapego material. Aos que acham que algo dessa natureza

soa corno pregação religio-

sa, sugiro a leitura de O Estado e a revolução, de Lênin, a fim de descobrirem o que se fala no livro a respeito da corrupção do Estado e de seus funcionários. Não há atenuantes, não há "contextualizações".

Pois toda e qualquer corrupção

é destruição

da noção de bem comum e, ao mesmo tempo, destruição da possibilidade de falar em nome do bem comum. Ela destrói o

éthos do enunciador que se quer anunciado r do novo. Na política, tão importante quanto o que você fala é a sua legitimidade. Portanto, a corrupção é sempre o começo do fim da política.

77

o esgotamento do lulismo Governo popular, ministério reacionário. Por muito tempo, terá de ser assim. GETÚLIO

Entre

2003

e

2014,

desenvolvimento

o Brasil foi o laboratório socioeconômico

VARGAS

de um modelo de

que parecia extremamente

bem-sucedido não apenas para os propagandistas

do governo,

mas para toda a imprensa mundial. No entanto, esse modelo se esgotou de forma brutal, em uma reversão de expectativas ocorrida em um prazo extremamente

curto.

Antes de o governo Dilma cair, o modelo, que recebeu a alcunha de "lulismo", tinha terminado. Já a política econômica do segundo mandato da presidente se movia fora do modelo lulista, atualizando

os fundamentos

de uma teoria neoliberal

do choque de austeridade que será radicalizada por aqueles que lhe tomaram o poder. Mas, em um paradoxo que deveria nos fazer pensar, as figuras políticas que comandaram

o desmonte

final do lulismo haviam sido, em vários momentos, operadores

79

centrais do próprio consórcio governista petista. Ou seja, os

personalidade

atores do pós-golpe

no, com Hugo Chávez, ou equatoriano,

parlamentar

de 2016 não eram outros

carismática

(como vemos no caso venezuelacom Rafael Correa), a

senão os próprios negociadores do consórcio governista nos

esquerda brasileira pôde experimentar-se

governos Lula-Dilma, agora associados aos oposicionistas der-

durante tempo suficiente para moderar suas aspirações e ope-

rotados nas urnas, nas quatro últimas eleições presidenciais.

rar uma transformação

Diante de uma revolta popular contra o poder, eles simples-

constituída de grupos que reuniam de trotskistas a liberais de

mente usaram a tática milenar de sacrificar o sócio mais novo

esquerda, de sindicalistas a representantes da esquerda católica

do consórcio do poder (a saber, o PT) para que pudessem con-

e intelectuais, o PT chegou à eleição de 2002 como um partido

tinuar gerindo o Estado como nunca deixaram de fazer.

muito próximo da social-democracia

Mas retomemos

o sentido do movimento

importante.

nos governos locais

Formado por uma frente

europeia.

de ascensão da

Isso não estava claro para muitos, que ainda tinham do

esquerda ao governo a partir do seu setor até então mais orga-

PT a imagem de um partido que prometia romper com o FMI,

nizado: o Partido dos Trabalhadores.

reverter todas as privatizações

Sua ascensão se deu por

movimento gradual e contínuo, conquistando

paulatinamente

e implementar

conselhos po-

pulares para a discussão do orçamento. Mas as primeiras me-

prefeituras e estados da federação, ampliando sua bancada de

didas econômicas, todas de cunho liberal, como a reforma da

deputados em um movimento

Previdência e o aumento do superávit primário, indicavam um

sempre ascendente (8 deputa-

dos em 1982, 16 em 1986, 35 em 1990, 49 em 1994, 58 em 1998

governo de continuidade com relação às políticas econômicas,

e 91 em 2002). Seu candidato a presidente, Luiz Inácio Lula da

embora com um pouco mais de sensibilidade social e de inter-

Silva, participou

de cinco eleições, sempre aumentando

sua

vencionismo

quantidade

de votos (16,08% dos votos em 1989,27,07%

em

que cientistas políticos, como André Singer, chamaram de "re-

1994,31,71%

em 1998, 46,44% em 2002 e 48,61% em 2006 -

formismo fraco",' ou seja, baseado em reformas pontuais da

econômico

do que seus antecessores - modelo

estrutura social, sem quebra da ordem institucional vigente.

números do primeiro turno). Esse movimento ascendente contínuo expressou a conso-

Outra vez, diferentemente

de outros países latino-ame-

lidação do setor mais organizado e permeável a movimentos

ricanos que passaram por governos de esquerda, o Brasil não

sociais da esquerda brasileira como alternativa de governo.

reformou sua Constituição nem mudou as regras dos proces-

Mas colocar-se como alternativa de governo implicou, ao me-

sos eleitorais (como Venezuela, Equador, Bolívia). Da mesma

nos nesse caso, moderar paulatinamente

forma, não quebrou contratos (como a Argentina) ou impôs

tura institucional. transformação

80

as promessas de rup-

Por não ser o resultado de um impulso de

capitaneado pela ascensão fulgurante de uma

1

Ver: Singer, André. Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

restrições à circulação de capitais. Nesse sentido, talvez seja o Chile o país mais próximo da experiência brasileira na América Latina.

2010,

lugar do mundo, independentemente

do país e da realida-

de local. Seu discurso será o mesmo na Grécia, na Islândia,

Apesar disso, ao final do governo de dois mandatos de Lula, em

observar como eles falam sempre a mesma coisa em qualquer

o Brasil havia conhecido um forte processo de ascen-

são social e de fortalecimento do o Instituto Data Popular,

de seu mercado interno. Segun42

milhões de pessoas entraram

na Letônia, na Espanha. Tal repetição

mostra, na verdade,

como essa "análise" é apenas um mantra ideológico entoado para esconder processos reais, nada mais que isso. Vejamos onde estão, de fato, tais processos.

na chamada "nova classe média", na última década. O salário mínimo foi elevado em de

25%

para

45%

do

50%

PIE,

acima da inflação, o crédito passou

a economia brasileira chegou a ser a

o

TRIPÉ

DO LULISMO

sexta maior do mundo, deixando para trás (por um momento) a Grã-Bretanha. Foram inauguradas catorze novas universidades federais e realizados mais de 7 mil concursos públicos para professores universitários. Todos lembrarão a maneira como o modelo brasileiro era saudado pela imprensa mundial como uma das mais eficazes invenções de gestão social das últimas décadas, capaz de conjugar respeito aos princípios da economia liberal, crescimento e inserção social. Revendo tais números,

nos perguntar se ele podia, de fato, perdurar por muito tempo. interna ele mobilizava, qual era sua

fragilidade estrutural? Seria bom levantar essa discussão para sabermos se, afinal, algo semelhante poderia ser reeditado ou se seu destino era mesmo o colapso, pois atualmente a pletora de economistas

e simpatizantes

duziu o lulismo. No campo econômico, consistiu na transformação do Estado em indutor de processos de ascensão através da consolidação

de sistemas de proteção social, de aumento

real do salário mínimo e de incentivo ao consumo (graças a políticas como a criação do crédito consignado Família). Tais ações demonstraram-se

hoje, é o caso de se perguntar

onde e como esse processo quebrou. Ou talvez devêssemos Que tipo de contradição

Tentemos inicialmente descrever o sistema de acordos que pro-

vemos

liberais apontar os

gastos excessivos do Estado, o "estatismo", a "irresponsabilidade fiscal" como causa da crise atual do modelo. É interessante

e do Bolsa

fundamentais

para o

aquecimento do mercado interno, com a consequente consolidação, por um momento, de um nível de quase pleno emprego. A esse respeito, lembremos que a taxa de desemprego chegou a ser de

4,6%

em dezembro de

2012,

a menor da série histórica.

Na outra ponta do processo, o governo Lula se autocompreendia como estimulador da reconstrução

do empresariado

nacional em seus desejos de globalização. Para tanto, a função de bancos públicos de investimentos como grandes financiadores do capitalismo nacional, por exemplo, o Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social

(BNDES),

consolidou-se

de vez, além de o Estado brasileiro

tornar-se

empresas nacionais em via de globalização,

"parceiro" de em especial na

em única condição possível de "governabilidade",

retirando

da pauta dos debates políticos toda e qualquer modificação

América Latina. Dessa forma, o lulismo representou o projeto

estrutural

de um verdadeiro capitalismo de Estado brasileiro, retoman-

peculiaridades de Lula foi ser capaz de estabilizar tal círculo de

do um modelo proto-keynesiano

alianças, recorrendo, inclusive, de forma sistemática, às tradi-

e

1950

1960

adotado no Brasil nos anos

cionais práticas de corrupção imanentes ao Estado brasileiro.

sob o nome de "nacional-desenvolvimentísrno".

Nesse modelo, o Estado aparece como principal investidor da economia, transformando-se e orientando

em parceiro de grupos privados

o desenvolvimento

de infraestrutura.

através de grandes projetos

O Brasil conseguiu chegar a

2017

nos modos de gestão do poder. Uma das grandes

como um

Esse é um ponto central. A ilusão fundamental

do lulis-

mo consistiu em acreditar que seria possível a sua conservação no poder através da mera gestão do processo de ascensão social. No entanto, a eliminação da tarefa de transformação

país onde dois dos principais bancos de varejo são públicos,

da institucionalidade

onde as duas maiores empresas são estatais (Petrobras e

vação de núcleos de poder e modelos de negociação que não

Distribuidora)

e a terceira maior é uma companhia

BR

de mine-

política brasileira significava a conser-

apenas paralisariam o governo, mas preservariam

a estrutura

ração privatizada (Vale), mas com grande participação estatal

oligárquica do Congresso Nacional e do Poder Judiciário, assim

via fundos públicos de pensão. Não são muitos os países entre

como a capacidade de intervenção dos setores econômicos no

os do

processo político.

G20

que têm configuração semelhante.

Sendo assim, podemos dizer que a expectativa produzida

Como disse anteriormente,

o lulismo acreditou superar

por essa nova versão do capitalismo brasileiro de Estado basea-

tal problema repetindo um modo de gestão de conflitos po-

va -se, por um lado, no fortalecimento

líticos que encontra suas raízes brasileiras na era Vargas. Lula

do mercado interno por

meio da introdução de massas de cidadãos pobres no universo

aprimorou

do consumo. Ou seja, uma integração da população através da

dos conflitos entre setores da sociedade civil para o interior

ampliação da capacidade de consumo. Por outro lado, baseava-

do Estado. Sua estratégia

-se na associação entre Estado e burguesia nacional, por meio

todos os atores que potencialmente

do que o governo esperava consolidar uma geração de empre-

conflitos sociais complexos.

Assim, durante o seu governo,

sas capazes de se transformar

o conflito entre economistas

monetaristas

com forte competitividade

em multinacionais

brasileiras

no mercado internacional.

No campo político, o acordo produzido pelo lulismo baseou-se na transformação

de grandes alianças heteróclitas

tal modelo ao governar através da transposição

tistas encontrou tral e o Ministério ecologistas

consistia

em integrar poderiam

guarida nas disputas

ao Estado representar

e desenvolvimenentre o Banco Cen-

da Fazenda. A luta entre agronegócio

incrustou-se

e

nos embates entre o Ministério da

Agricultura e o do Meio Ambiente. Do mesmo modo, as que-

operação no Estado brasileiro. Tais grupos se aproveitariam

relas entre os militares e os defensores dos direitos humanos

da primeira crise popular de frustração

expressaram-se

o governo, operando

na colisão entre o Ministério

da Defesa e a

interior, usando sua

própria base.

Secretaria Nacional de Direitos Humanos. O que seria, em situações normais, sintoma de esquizofrenia política foi visto como astúcia de conciliação,

em seu próprio

para colocar abaixo

graças

Em catorze anos de governo de esquerda no Brasil, não foi dado um passo sequer em relação à constituição

à posição de Lula como "mediador universal", um presiden-

canismos

te capaz de ser reconhecido

conselhos consultivos sem poder deliberativo ou vinculante

por todas as partes em conflito

de democracia

de me-

direta, a não ser a proliferação

de

como alguém que estava do seu lado. Isso deu ao governo uma

nenhum. Ou seja, eram meros espaços formais de gestão de

oportunidade

um simbolismo vazio de efetividade. O preço que a esquerda

momentânea

de "ganhar em todos os tabulei-

ros", fazendo-se, ao mesmo tempo, governo e oposição. Um

pagaria por abandonar

exemplo paradigmático

disso foi a visita ao Brasil de George

regimes de governabilidade, abraçando o discurso do "respeito

Ao ser recebido no Palácio da Alvorada, o presiden-

à estabilidade democrática", uma estabilidade na desagregação, ou

w. Bush.

te americano

pronunciou

um discurso no qual tecia fortes

a pauta central da transformação

dos

seja, o preço de pura e simplesmente abandonar a política para

elogios a Lula, descrevendo o Brasil como o mais importante

se dedicar à gestão, seria a morte. Ela repetiria o mesmo pro-

parceiro dos Estados Unidos na região. Enquanto isso, grandes

cesso que destruiu o Estado de Bem-Estar Social em solo eu-

manifestações

ropeu. Como os detentores dos aparelhos de produção e seus

ocorriam nas ruas contra a presença de Bush,

organizadas pelo partido ... do presidente Lula. A alguns, Luíci

representantes

fornecia a ação; a outros, fornecia o discurso e a promessa de

intocados, eles se aproveitariam

que, "assim que a correlação de forças permitisse",

trutural para colocar abaixo o modelo.

decisões

no interior da gestão do Estado permaneceram da primeira instabilidade es-

diferentes seriam tomadas. Do ponto de vista eleitoral, a estratégia parecia eficaz e insuperável, criando a imagem de que seria possível avançar continuamente

o ESGOTAMENTO

DO TRIPÉ

sem rupturas e sem grandes modificações na

ordem institucional. No entanto, essa eficácia era apenas uma

De fato, eis que chegou aquilo que Tocqueville chamou um dia

ilusão. O populismo lulista conservava o poder de oligarquias

de "frustração relativa". O conceito tentava explicar por que as

dissidentes que haviam se associado ao consórcio governista.

revoltas populares e revoluções, muitas vezes, não são feitas

Da mesma forma, deixava intocados

pelos mais desfavorecidos,

86

núcleos de poder em

mas por grupos que esperavam

mais do que conseguiram.

Não são os mais pobres que fazem

Por outro lado, a despeito dos avanços ligados à ascensão

no interior de um

social de uma nova classe média, o Brasil continuava um país

processo de ascensão social incompleto. Ou seja, há uma ten-

com níveis brutais de desigualdade. Na verdade, o lulismo não

são que impulsiona a ação de revolta. Tensão entre a satisfação

representou uma política de combate à desigualdade, mas uma políti-

esperada e a satisfação realmente conseguida. Isso talvez expli-

ca de capitalização dos pobres, o que é algo totalmente diferente.

que por que Tocqueville afirma: "O regime que uma revolução

A posição brasileira no índice Gini, que mede a desigualdade,

destrói tem um valor quase sempre melhor que o do regime

era clara. Em 2013, havíamos enfim chegado ao nível de 52,9

imediatamente anterior, e a experiência ensina que o momento

(quanto mais próximo de zero, menos desigual). Mas esse era

mais perigoso para um mau governo é comumente aquele em

o mesmo nível que o Brasil tinha em 1960. Ou seja, tudo o que

que ele começa a se reformar".

havíamos conseguido foi retomar o nível de desigualdade de

revoluções, mas aqueles que se encontram

Nesse sentido, poderíamos

utilizar tal raciocínio e dizer

1960, continuando

mais desiguais do que países como Índia,

que o governo Dilma não foi capaz de realizar as expectativas

China, Rússia, Argentina, México e Peru. Eis a verdadeira di-

de desenvolvimento

mensão do movimento feito nessas últimas décadas.

social produzidas por Lula, criando uma

profunda frustração relativa. Mas, mesmo que isso seja verda-

De fato, é preciso lembrar que os rendimentos

do setor

de, fica a questão de saber de onde viria tal incapacidade e o que

mais rico da população brasileira, com sua característica pa-

exatamente se esperava desse segundo momento da esquerda

trimonialista

e rentista, não só continuaram

brasileira no poder.

conservaram

seu ritmo de crescimento. Isso criou problemas

No plano econômico, tudo se passou como se o governá

típicos de países emergentes

intocados como

de rápido crescimento,

como

acreditasse que a continuidade bastaria. Dilma acreditava poder

Rússia, Angola etc. Como uma larga parcela da nova riqueza

ser uma espécie de "Brejnev do lulismo", simplesmente geren-

circula pelas mãos de um grupo bastante restrito com deman-

ciando a inércia. Já a composição do ministério de seu primei-

das de consumo cada vez mais ostentatórias,

ro governo era um sintoma claro: ausência de formuladores de

fora incapaz de modificar tal situação através de uma rigorosa

política, inexistência de horizonte de aprofundamento

de refor-

política de impostos sobre a renda (como taxação de grandes

mas. Sua tentativa de enquadrar o sistema financeiro através da

fortunas, de consumo conspícuo, de herança etc.), criou-se um

redução dos spreads bancários se demonstrará

pífia, sua políti-

quadro no qual a parcela mais rica da população pressionava o

ca de desoneração, procurando acender o "espírito animal" do

custo de vida para cima. Não por acaso, entre as cidades mais

empresariado

caras do mundo naquele período estavam Luanda, Moscou

nacional, se mostrará não apenas ineficaz, mas

nociva ao Estado brasileiro, devido à perda de receitas.

88

como o governo

e São Paulo. Basta lembrar, por exemplo, como o preço dos

89

imóveis brasileiros triplicou entre 2004 e 2013, o que não de-

educação, saúde e transporte. "Queremos escolas padrão Fifa",

veria nos impressionar,

foi o que ouvimos nas ruas brasileiras.'

investimento

já que a especulação

imobiliária

preferido de elites patrimonialistas

Acrescentava-se continuarem

éo

ociosas.

a isso o fato de os salários brasileiros

baixos e sem previsão de grandes modificações.

Como mostrou Ruy Braga, a remuneração

de 93% dos novos

empregos criados na primeira década do século

chega até

XXI

No entanto, esse era o verdadeiro limite do modelo lulista. Não se trata apenas de um limite relacionado à justiça distributiva, mas de um verdadeiro problema econômico. praticamente

Por ter

metade de seu salário corroído por gastos com

educação, saúde e transporte, a nova classe média precisava li-

um e meio salário mínimo. Em 2014, 97,5% dos empregos cria-

mitar seu consumo, recorrendo muitas vezes ao endividamento.

dos estavam nessa faixa. Ou seja, não deveríamos nos deixar

O endividamento das famílias brasileiras em 2015 era de 45%. Em

enganar pelo fato de os membros da "nova classe média" terem

2005, era de 18%. Por outro lado, o dinheiro gasto com educa-

iniciado seu acesso ao consumo. Eles continuavam

ção e saúde não volta para a economia, mas apenas alimenta a

balhadores pobres, generalizando

a ser tra-

o fenômeno bem descrito

concentração de renda na mão de empresários de um setor que paga mal a seus funcionários e tem baixo índice de investimen-

como "produção do precariado".' Uma alternativa para a melhoria da renda das famílias seria a redução dos itens que devem ser pagos por elas, graças à criação de serviços sociais públicos e gratuitos.

Mas uma

to. Empresários que preferem aplicar no mercado financeiro do país, com suas taxas de juros entre as mais altas do mundo. Mas podemos dizer que a constituição

de um núcleo de

família da "nova classe média brasileira" devia gastar quase

serviços públicos é o limite do modelo brasileiro tentado pelo

metade de seus rendimentos

com educação e saúde privada',

lulismo porque se trata de algo que só poderia ser feito através

além de transporte público de péssima qualidade. As famílias

de uma reforma fiscal capaz de capitalizar o Estado. Lembremos

que passaram a fazer parte da nova classe média precisaram

que, no Brasil, a maior alíquota de imposto de renda é de 27,5%,

começar a pagar por educação e saúde, a fim de escapar dos

porcentagem mais baixa do que a de países de economia liberal,

péssimos serviços do Estado e garantir a continuidade

como os Estados Unidos e a Inglaterra. Se realizasse uma re-

da as-

censão social para seus filhos. Não por outra razão, uma das bandeiras fundamentais foi exatamente

das manifestações

a inexistência

forma fiscal com aquele objetivo, o governo acabaria acirrando

de junho de 2013

de bons serviços públicos de

3 Segundo o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde, os gastos da classe média com saúde aumentaram classe média com educação

2

Braga, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo:

Boitempo,

90

2012,

p.

34;

A rebeldia do precariado. São Paulo: Boitempo,

2017.

76,16%

54%

foi de

entre 28

2002

e

2012.

O gasto da dita nova

bilhões de reais em

2012,

dos quais

foram apenas com matrícula (Instituto Data Popular) - e aumentou

11% em 2013.

91

conflitos de classe e quebraria a aliança política que o sustentava.

esquecido que os países que mais crescem, como China, Rússia

Ou seja, o avanço em políticas de combate à desigualdade invia-

e Índia, são aqueles com forte intervenção

bilizaria a governabilidade

ou, para ser mais claro, inviabilizaria

estatal na econo-

mia). Melhor seria se esses economistas se perguntassem sobre

essa governabilidade que, de toda forma, nunca poderia servir à esquerda

o impacto da desigualdade e dos processos de oligopolização

brasileira, pois era simplesmente um sistema de gestão da paralisia social.

no baixo crescimento brasileiro.

Como se não bastasse, a política lulista de financiamento estatal do capitalismo nacional levou ao extremo as tendências monopolistas

da economia do país. O capitalismo brasileiro é

hoje um capitalismo monopolista

A NARRATIVA

DO "DESASTRE"

de Estado. O Estado é, aqui,

o financiador dos processos de oligopolização e cartelização da

Neste ponto, vale um adendo. Pois, dentro da narrativa hege-

economia. Exemplo pedagógico disso foi a incrível história do

môníca construída para explicar a crise brasileira, encontra-se

setor de frigoríficos. O Brasil era, em

a tentativa de afirmar que o grande vilão foi o Estado. Em todos

2017,

o maior exportador ]Bsl

os meandros dos cadernos de economia dos jornais diz-se, pela

o mercado de frigorí-

boca de seus analistas, que o primeiro governo Dilma teria

mundial de carne, graças à constituição do conglomerado Friboi, com dinheiro do

BNDES. Entretanto,

ficos era, até há pouco tempo, altamente concorrencial, dispondo

"feições estatistas e intervencionistas",

de vários players. Hoje, ele é monopolizado,

calabro final das contas públicas e orçamentos

pois uma empresa

comprou todas as demais, utilizando-se de dinheiro do

BNDES. Em

de déficit. A crise brutal a partir de

responsáveis pelo des-

2015

com previsão

seria, assim, a prova

vez de impedir o processo de concentração, o Estado o estimulou ..

do fracasso gerencial do capitalismo de Estado brasileiro, não

Com isso, atualmente não há setor da economia (telefonia, avia-

restando outra solução senão aceitar, de vez, a boa e sã cartilha

ção, produção de etanol etc.) que não seja controlado por cartéis. O que significa serviços de péssima qualidade, carnes com pape-

do liberalismo. Há, no entanto, várias ilusões de ótica nesse raciocínio.

lão, ausência de concorrência e baixos índices de inovação.

Primeiro, chamar o governo Dilma de estatista e intervencio-

Sugiro procurar nesses dois fatores uma das causas do baixo crescimento

da economia brasileira nos últimos anos. Ou

nista é dificilmente defensável. Como insisti antes, seu governo privatizou

(com o estratagema

da "privatização branca" das

seja, economistas pagos regiamente por bancos e consulto rias

concessões) aeroportos, rodovias, portos e ferrovias. Ele tam-

entoam, de maneira infinita, o mantra do alto custo da produ-

bém abriu a exploração do pré-sal para empresas estrangeiras,

ção devido a impostos, do alto custo da mão de obra devido aos

entregando 60% da maior reserva de petróleo da camada sali-

direitos trabalhistas e da intervenção estatal (como se tivessem

na para quatro empresas estrangeiras e contrariando, com isso

92

93

(para variar), promessas de campanha. Acrescente ao bolo uma

ser mais estruturais, basta perguntar sobre a origem da dívida

política de desoneração

pública brasileira, cuja parte substancial é resultado da trans-

uma renúncia fiscal de

e redução de impostos que produziu e 2015.

formação de dívidas privadas de empresas e bancos em dívidas

Em outro lugar do mundo, um conjunto de políticas dessa natu-

públicas. Quer dizer, no capitalismo, o Estado sempre inter-

reza dificilmente seria chamado de estatista e intervencionista.

vém. A única questão real é: a favor de quem?

327,16

bilhões de reais entre

2011

Na verdade, esse debate procura esconder o que realmente

Nesse sentido, mais honesto seria lembrar que o que entrou

A dicotomia liberalismo versus

em crise com o fim do lulismo foi a crença de que seria possí-

estatismo que parece comandar boa parte do nosso debate é

vel "gerenciar" o capitalismo brasileiro com ajustes pontuais

uma falácia. O capitalismo nunca foi liberal. Ele simplesmen-

que permitiriam

te oscila em sua história, respondendo

do Estado" entre empresários, sistema financeiro e sindicatos.

entrou em crise a partir de

2015.

a pressões de conflitos

recuperar um modelo de "pacto no interior

sociais e da força de interesses setoriais, sobre como regular e

Modelo cujas raízes se encontram no sistema de equilíbrio de

mediar demandas. Nenhum desses economistas

que trazem

moldes getulistas. Se a bomba explodiu na mão da esquerda na-

Adam Smith no coração reclamou quando o governo norte-

cional é por terem os seus setores hegemônicos acreditado que

-americano, em plena crise de

usou dinheiro público para

era seu destino ressuscitar tal modelo. Melhor teria sido escapar

salvar bancos privados, como o Citibank. Também não consta

da falsa dicotomia entre capitalismo estatista e capitalismo li-

que algum deles tenha reclamado quando a Comunidade Euro-

beral e fazer aquilo que a esquerda brasileira sempre prometeu

peia despejou dinheiro público em seu combalido sistema fi-

fazer: recusar-se a operar no interior da lógica do capitalismo,

nanceiro, permitindo que tal dinheiro fosse usado até para pagar "

fortalecendo alternativas de confisco de aparelhos produtivos,

stock-options de executivos cujo maior feito gerencial fora quebrar

práticas de autogestão e pulverização de agentes econômicos.

bancos. O que não é de se estranhar, já que a questão liberal

Acrescente-se a isso, ainda, o fato de o segundo governo

2008,

nunca foi "como diminuir o Estado", mas "como privatizar o

Dilma, depois de fazer uma guinada neoliberal

Estado, colocando-o a serviço dos interesses do empresariado

aprofundou o processo recessivo ao aplicar a política que seus

nacional ou da classe de financistas".

opositores de direita sonhavam, ter sido alvo de um impressio-

Nós já vimos isso ocorrer milhares de vezes em terras brasileiras. Basta lembrar como o "liberal" governo

FHC

usou

que apenas

nante terrorismo econômico. O Brasil foi obrigado a conviver com uma sistemática sedição no Congresso, capitaneada por

dinheiro do contribuinte para salvar bancos falidos através do

seu então presidente, que, por meio de pautas-bomba,

Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação

mente sabotou o que restava da economia. No interior desse

e ao Fortale-

cimento do Sistema Financeiro Nacional). Ou, se quisermos

94

processo, a crise cresceu em proporções

simples-

exponenciais. Nesse

95

sentido, as análises liberais que lemos hoje são simplesmen-

e movimentos sociais ligados à esquerda. Essa foi a consequên-

te desonestas.

cia de seu atrelamento

conciliatório

Elas atribuem ao esgotamento

de um modelo

(e longe de ser claro representante

ao governo, mesmo que o resultado

de políticas

concreto de tal atrelamento tenha sido mínimo já que os movi-

econômicas de esquerda) a conta de um processo multifatorial,

mentos tiveram suas pautas muito pouco atendidas e perderam

no qual, além dos equívocos internos do modelo, havia urna

quase toda a sua força. Essa integração de tais movimentos no

política sistemática de destruição da economia tendo em vista

núcleo de gestão do Estado era um fenômeno que simplesmente

a aceleração da queda do governo.

repetia as dinâmicas clássicas do populismo latino-americano.

O que ocorreu depois foi simplesmente

a realização das

O segundo fenômeno foi a demissão da classe intelectual

políticas de desmonte do Estado brasileiro com que os liberais

de sua função histórica de responsável pelo tensionamento

tanto sonhavam, mas que nunca seriam capazes de apresen-

processos políticos. A classe intelectual contemporânea

tar em um processo eleitoral, pois seriam rechaçados pelos

esconder sua demissão política por meio da pretensa crítica

eleitores. Um ano depois da implementação

a desejos de "dirigisrno" e a urna política baseada na crença

o Brasil conheceu

mais brutal que

de urna política de choque neoliberal,

números eram claros: 14 milhões de desempregados,

os

3,6 mi-

lhões de pessoas voltando à pobreza apenas no ano de

2017,

de

tende a

da força indutora de "vanguardas letradas". Não há, no entanto, processo político sem um ato de nomeação mento - ato que exige a mobilização

do aconteci-

da capacidade da classe

setores da economia com capacidade ociosa de até 60% e um

intelectual

setor da imprensa nacional tendo alucinações e delírios com

redimensionar

urna "retomada" da economia cuja realidade só se fazia sentir'

plesmente urna descrição, ainda mais quando estamos a falar

em um universo paralelo.

de processos políticos populares. Ela é um ato performativo

de criar ressonâncias

espaçotemporais

e, assim,

dinâmicas sociais. Urna nomeação não é sim-

que redimensiona a capacidade de transformação

dos agentes.

No entanto, a demissão política dos intelectuais foi o reA PRODUÇÃO

DO VAZIO POLÍTICO

sultado da convergência de três fatores. Primeiro, vivemos em um movimento global de bloqueio das relações entre univer-

Já no plano social, o modelo lulista trouxe corno saldo final um

sidade e sociedade civil. Isso se deve a urna forma de gestão

vazio vindo da decomposição do corpo político brasileiro e do

social que promete aos intelectuais a ascensão ao posto de con-

esgotamento da esquerda. Dois fenômenos foram importantes

sumidores

para chegarmos a esse ponto. O primeiro foi o esvaziamento da

das universidades

legitimidade de associações (corno sindicatos, centrais sindicais)

ção cujos métodos são tão opacos quanto dignos do Pai Ubu.

de serviços globais, graças à internacionalização e à submissão delas a processos de avalia-

97

Aos poucos, as universidades

foram se transformando

em

intelectuais se transformar

em presidentes da República, pre-

"guetos de luxo": um misto de agências de viagens para coló-

feitos, ministros e secretários de Estado. Normalmente,

quios internacionais

intelectuais que se serviam do discurso do "é necessário fazer

e consumo de produtos culturais globais

eram

com espaço para a produção especializada de um saber cujos

alguma coisa", "temos uma responsabilidade

resultados, muitas vezes, não são sequer publicados na língua

Entretanto, isso nunca significou entrar no Estado para implo-

do inglês em língua

dir por dentro sua estrutura arcaica. Na verdade, tratava-se de

franca implica retornar a uma situação medieval na qual a classe

fornecer ao Estado um melhor discurso de justificação de seus

intelectual não pode mais ser lida pela população nacional da

arcaísmos, além de produzir ajustes em seu funcionamento

qual ela faz parte. Com isso, seus intelectuais foram, cada vez

posteriormente, garantir benesses de consultorias e assessorias.

mais, perdendo relevância como referências para a reflexão da

Os intelectuais não transformaram

sociedade sobre si mesma.

integraram a ele. Com isso, ficou cada vez mais clara a impotên-

local de seus países, já que a transformação

O Brasil, que conheceu no passado gerações de intelectuais públicos de forte capacidade da vida social, viu seus professores

de influência no interior universitários,

em larga

para com o país".

e,

o Estado brasileiro, eles se

cia da classe intelectual como classe de transformação política. Por fim, do ponto de vista político, o esforço do setor hegemônico

da classe intelectual brasileira pareceu ter se es-

medida, se demitirem dessa função, como se sustentá-Ia fosse

gotado com a eleição de Lula. Boa parte dos descaminhos

expressão de alguma forma de "ausência de rigor" e diversio-

governo foi colocada na conta da legitimidade

dos intelec-

nismo em relação às atividades acadêmicas. Melhor teria sido

tuais que um dia o apoiaram ou que continuaram

a apoiá-lo.

se a classe intelectual tivesse sustentado

O simples abandono

o tripé político que

do

do apoio não foi uma operação bem-

a ela compete, a saber, trabalho de base com setores desfavo-

-sucedida. Como os intelectuais não tiveram discernimento

recidos e vulneráveis, luta pela conquista da opinião pública

suficiente para imaginar

através da ocupação da imprensa e articulação internacional

necessário

em redes de pesquisa, tendo em vista a análise de processos

outro lado, a repetição

político-sociais

governo soava, para muitos, como estratégia para diminuir a

globais.

Um segundo fator foi a relação profunda entre classe inte-

o que poderia ocorrer? Teria sido

fazer uma auto crítica que nunca aconteceu. reiterada do lado bem-sucedido

no espaço público, devido ao medo de instrumentalização

-se da classe intelectual como um dos setores mais importantes

pela mídia conservadora.

de seus quadros de gestão. O Brasil viu,

nos últimos vinte anos, uma impressionante

quantidade

de

do

força crítica diante dos erros, que não eram mais comentados

lectual e gestão do Estado brasileiro. A Nova República serviu-

para o fornecimento

Por

Aos poucos, parte da mídia criou seus próprios intelectuais conservadores,

repetindo, algumas dezenas de degraus

99

abaixo, um fenômeno que os franceses viram nos anos 1970,

hora, bastando lembrar do antigo

com os nouveaux philosophes. Como se não bastasse, o próprio

Reino de Deus, presentes no consórcio governista desde o iní-

governo foi paulatinamente

cio), assim como ao legitimar a indústria cultural (afinal, era

se afastando da órbita dos intelec-

PL

e da Igreja Universal do

tuais de esquerda. Assim, reduzindo a força dos movimentos

hora de abandonar a prática "elitista" de criticar o que se vende

sociais e a capacidade crítica e de mobilização

como "popular", era hora de uma política cultural de simples

da classe inte-

lectual, a esquerda só poderia ficar à deriva.

adesão), foi a expressão de uma concepção de política própria

Dessa forma, o fim não poderia ter se dado de outra maneira. O movimento perança ("A esperança

eleitoral que iniciou prometendo

a es-

venceu o medo", era o que se dizia)

da lógica de negociação sindical. Tal lógica se resume à gestão do modo atual de trabalho e produção, buscando produzir uma redistribuição

um pouco

passou seu tempo de existência gerindo expectativas através

mais extensa do "serviço dos bens", como dizia Lacan. Ou seja,

de compensações

trata-se de uma lógica de extensão do modelo atual de sociali-

mobilizando

simbólicas e terminou tentando sobreviver

apenas o medo como afeto político central; da

zação e de produção de subjetividades, não de sua transforma-

esperança ao medo como afeto político. Medo de quem diz,

ção. "Que o operário da Volkswagen tenha também seu carro

em momentos

e suas férias" e, se possível, que suas lideranças façam parte

eleitorais: "Sei que você está decepcionado,

mas, se eu estiver fora do poder, as coisas serão muito piores".

dos novos fundos de pensão: podemos ver nisso o resultado

No entanto, quem termina por ser o gestor do medo social,

máximo da generalização de lógica sindical. Não é de hoje que

depois de ter prometido a emergência de um novo corpo polí-

sabemos como o sindicalismo tem um flerte irresistível com

tico através da esperança, só pode acabar por levar os que um

a conservação.

dia nele acreditaram à melancolia, à paralisia e à mais simples e completa demissão.

Que ao final desse processo tenhamos tendências conservadoras-religiosas produzindo a hegemonia ideológica de seto-

Essa primeira experiência da esquerda brasileira no poder

res pobres da população, eis algo que não deveria surpreender

pode ao menos servir para deixar claro como não há instaura-

ninguém, pois, como não houve de fato instauração política,

ção política que não seja acompanhada

a reinscrição social de sujeitos foi feita pelos setores conser-

de dinâmicas de trans-

formação de sujeitos. Política é um processo de transformação

vadores que já trabalhavam havia anos à espera apenas de um

de sujeitos que redimensionam

momento

sua capacidade de ação e ima-

mais propício para constituir hegemonia.

Insista-

ginação. O lulismo, ao se associar, por um lado, a processos de

mos neste ponto. Processos efetivos de instauração

política

integração social via consumo e, por outro, a relações inces-

produzem transformações

tuosas com grupos evangélicos (que foram aliados de primeira

preendem a si próprios, na maneira como eles se relacionam

100

na maneira como os sujeitos com-

101

com a história, como se relacionam

com a sua própria po-

Há várias formas de apresentar esse ponto, cuja elaboração

tência. Um corpo político que emerge traz no seu bojo novos

sistemática ultrapassaria os limites de um livro de intervenção

sujeitos. Nada disso aconteceu no Brasil, e deveríamos começar

como este. Mas talvez seja possível introduzi-Io

por pensar a partir da discussão a respeito desse ponto.

que, como ocorre em nosso tempo, o século uma sequência impressionante

lembrando

XIX

conheceu

de revoltas, movimentos e in-

satisfação social oriundos de crises econômicas profundas em SER PROLETÁRIOS

todos os lados da Europa. Tal como agora, as ruas queimaram em sequência. Mineiros da Silésia, operários ingleses, tecelões

Há uma lição de Marx que a esquerda brasileira deveria tirar

franceses: todos pararam fábricas, quebraram máquinas, mon-

desse seu primeiro fracasso. A teoria marxista da revolução

taram barricadas, desafiaram a ordem instituída. No entanto,

é, mais do que uma teoria das crises, uma teoria da emergên-

essa multiplicidade

cia de sujeitos políticos com força revolucionária.

Crises as

tasma que assombrava aquele tempo quando todas as ruas em

podem ocorrer, mas se não

chamas foram vistas como a expressão de um só corpo políti-

mais profundas

do capitalismo

houver a realização política de processos novos sujeitos, nenhuma

de emergência

de

crise será a porta para a superação

do capitalismo.

de revoltas só se transformou

em um fan-

co, um só sujeito em marcha compacta pelo desabamento

de

um mundo que teimava em não cair. Um sujeito político só emergiu quando os mineiros deixa-

No caso de Marx, tais sujeitos têm nome: proletários.

ram de ser mineiros, os tecelões deixaram de ser tecelões e se

Como insisti em outro lugar, o conceito de proletário não está'

viram como um nome genérico, a saber, "proletários", a descri-

presente no pensamento

ção de quem é totalmente despossuído, de quem é ninguém. Foi

marxista apenas como a categoria

sociológica dos trabalhadores

que têm somente sua força de

quando a multiplicidade das vozes apareceu como a expressão

trabalho. Ele é uma categoria ontológica que diz respeito a cer-

da univocidade de um sujeito presente em todos os lugares, mas

to modo de existência com grande força revolucionária,

com a consciência de sua ausência radical de lugar, que a revolta

é um

modo que depõe regimes de existência baseados na proprie-

deixou de ser apenas revolta. Pois essa força de síntese de outra

dade, no individualismo

ordem que aparece através da univocidade da nomeação era a

possessivo e na identidade, com seus

sistemas defensivos e projetivos."

condição para que a imaginação política entrasse em operação, permitindo a emergência de um novo sujeito. De certa forma,

4 Para uma discussão

mais detalhada desse ponto, remeto ao capítulo

de: Safatle, Vladimir, O circuito dos afetos. op. cit.

102

VII

é isto que nos falta: precisamos ser, mais uma vez, proletários. Lembremos destas frases de Marx e Engels:

103

o proletário

é desprovido de propriedade (eigentumslos); sua

Sendo assim, podemos dizer que ser proletário significa,

relação com mulheres e crianças não tem mais nada a ver

principalmente,

"vincular-se ao que não tem nome". Em

com as relações da família burguesa; o trabalho industrial

quando no Brasil as ruas começaram a queimar e setores pro-

moderno, a moderna subsunção ao capital, tanto na Ingla-

tofascistas apareceram

terra quanto na França, na América como na Alemanha, reti-

jornalista, após entrevistar um manifestante, perguntou o seu

raram dele todo caráter nacional. A lei, a moral, a religião,

nome. Ele respondeu:

são para ele preconceitos burgueses que encobrem vários

frase não poderia ser mais clara. Como um Ulisses redivivo

interesses burgueses.'

diante de gigantes Polifemos que parecem vir atualmente

2013,

envoltos na bandeira nacional, uma

"Anota aí, eu sou ninguém". De fato, a de

todos os lados, ele encontrou na negação de si a astúcia maior Como vemos, o proletariado tir da pauperização

não é definido apenas a par-

extrema, mas da anulação completa de

para conservar seu próprio destino. Por mais paradoxal que possa inicialmente

parecer, "eu sou ninguém" é a mais forte

vínculos a formas tradicionais de vida. Tais vínculos não são

de todas as armas políticas. Pois quem controla o modo de

recuperados

visibilidade e nomeação

em um processo político de reafirmação

controla o que vai aparecer e como

tenham uma na-

se construirão circuitos de afetos. Por isso, a negatividade sem-

uma moral e uma religião. Tais

pre foi uma astúcia daqueles que compreendem que a liberdade

não se trata de permitir que os proletários ção, uma família burguesa,

de si,

normatividades

são negadas em uma negação sem retorno.

passa pela capacidade de destituir o Outro da força da enun-

O proletariado

é uma heterogeneidade

ciação dos regimes de visibilidade possíveis. "Eu sou ninguém"

social que simples-

mente não pode ser integrada sem que sua condição passiva' .

é, na verdade, a forma contraída de: "Eu sou o que você não

se transforme em atividade revolucionária. Por isso, ao ser des-

nomeia e não consegue representar". Foi isto que faltou à ex-

provido de propriedade, de nacionalidade, de laços com modos

periência brasileira: permitir a emergência de proletários. Esse

de vida tradicionais e de confiança em normatividades

que era ninguém continua até agora sem possibilidade

estabelecidas,

ele pode transformar

política de transformação

seu desamparo

sociais em força

incorporar

de se

em um corpo político.

radical das formas de vida.

5 Marx, Karl; Engels, Friedrich. Manifest der Kommunistischen Partei. Disponível em: http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx bourprol.htm.

104

-engels /1848/ manifestji-

Acesso em: 18/6/2017.

105

Junho de 2013 e o esgotamento da esquerda brasileira Eu vi fermentar pântanos enormes, nassas Nas quais nos juncos apodrecia todo um Leviatã. RIMBAUD

Nada que se refere ao destino e às dificuldades da esquerda brasileira pode ser compreendido das manifestações

sem uma meditação a respeito

de junho de

2013:

Tais manifestações

são

certamente o conjunto mais importante de revoltas populares da história brasileira recente, não por aquilo que elas produziram, mas por aquilo que elas destruíram. A partir delas, todo o edifício da Nova República entrou paulatinamente

em colapso.

Mas, além disso, algo mais terminou: a primeira parte da longa história da esquerda brasileira chegou ao fim. Durante décadas, desde a criação do Partido Comunista Brasileiro, nos anos governar

1920,

a esquerda brasileira procurou

o país criando hegemonia

tando com lideranças

popular.

de forte capacidade

como Luís Carlos Prestes, até os anos

Mesmo con-

de mobilização,

1960,

o máximo que

107

a esquerda conseguira fora fazer composições no interior

demonstra como as narrativas que procuram vincular

de um governo "getulista de esquerda", que já nascera frágil

uma sedição das classes médias não se sustentam.'

2013

a

Então vieram as manifestações de maio, iniciadas em

(Ioão Goulart). Durante toda a ditadura militar, a esquerda conseguiu conservar-se como legatária das promessas

Porto Alegre e coordenadas por movimentos autonomistas

de transformação social e chegou ao final da ditadura com

contrários ao aumento nas tarifas de transporte público. Ma-

vários grupos com capacidade de governo, além de clara

nifestações contra as condições abusivas dos transportes pú-

hegemonia cultural. Com o esgotamento do lulismo, no en-

blicos são uma constante na história brasileira, assim como

tanto, os últimos atores políticos da Nova República se viam

é constante a reação violenta do braço armado do poder. No

testados no governo. Os resultados desse teste se mostravam

entanto, naquele momento estava em marcha um descolamen-

distantes da expectativa popular. Havia, porém, uma chance

to da enunciação do descontentamento em relação a seus re-

de reorientação, de ruptura da esquerda com seu núcleo go-

presentantes tradicionais, todos eles comprometidos com o

vernista e de consolidação de uma aliança de outro tipo com

consórcio governista e com a gestão de sua paralisia. Daí o

setores descontentes. Ela se daria com uma revolta popular

movimento de greves espontâneas e a ascensão de estruturas

de larga escala. Esse era o sentido das manifestações de 2013.

autonomistas. Ou seja, o horizonte social estava marcado, ao

Uma chance que não foi aproveitada.

mesmo tempo, por uma frustração relativa com a paralisia

Notemos inicialmente como tais manifestações já haviam

produzida pelo lulismo e por uma crítica à representação po-

sido anunciadas. Depois de um número baixo de greves no

lítica (incluindo aí partidos, sindicatos, associações, movimen-

período

tos, meios de comunicação etc.).

um processo crescente se inicia entre

2013,

2010

no ano). O processo explode

Há ainda de se lembrar que, diferentemente do que acre-

que conhecerá o maior número de greves desde o

ditam alguns, o Brasil não está fora do mundo. Não é possível

greves no ano) e 2012

(445

em

2003-08,

(877

fim da ditadura (quando se inicia a série histórica), ou seja,

entender junho de

2013

sem seu contexto mundial. Lembre-

apenas no setor privado. Taisgreves

mos que os jovens que iniciaram as manifestações em maio

começaram no início do ano, com movimentos de grevistas

foram os mesmos que fizeram os movimentos de ocupação

autônomos em relação a seus sindicatos e centrais, como ocor-

em

2.050

greves, sendo

1.106

2011

em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador.

reu nas greves de garis e de bombeiros dos primeiros meses de 2013. Talfenômeno era sintomático: tratava-se de trabalha-

1

Ver, principalmente,

a interpretação

de Ruy Braga em A revolta do precariado,

dores que não reconheciam mais suas "representações" e que

em que defende a tese de as revoltas de

procuravam deixar claras sua insatisfação e precariedade. Isso

à emergência do precariado e dos limites das promessas de ascensão social.

108

2013

estarem organicamente vinculadas

109

Movimentos inspirados nos Occupy ocorreram em várias cida-

ser compreendida

des do mundo. Esses movimentos,

todos eles, impulsionados

em diversos movimentos

pela Primavera Árabe, voltaram-se

contra a associação entre

norte-americanas.

democracia liberal e políticas de espoliação econômica potencializadas a partir da crise de profundamente

espontânea

2008.

Eles tiveram uma dimensão

em seu início e mostraram

duas

sem o engajamento

daqueles que agiram

de ocupação nas principais cidades

No Brasil, o movimento

cindiu-se rapidamente

Sua ampliação se dá principalmente quando massas de manifestantes

em dois.

a partir de 17 de junho,

saem às ruas em resposta à

vias possíveis de consolidação. Em um primeiro caso, a incor-

violência policial que ferira mais de cem pessoas em São Paulo.

poração política se deu através dos atores mais estruturados no

A partir desse momento, aparecem também grupos ligados a

momento da eclosão da revolta e de seu adensamento popular.

discursos nacionalistas

Foi o caso da Tunísia, com o Ennahda, e do Egito, com a Irman-

basicamente, no consórcio governista. Começam lutas internas

dade Muçulmana: grupos islâmicos com forte penetração po-

e brigas nas próprias manifestações

pular devido à prática de políticas de assistência. Nesses casos,

e direita. Seria o início de um processo de embate político nas

houve um aggiornamento conservador

ruas que posteriormente

do movimento,

o que

levou tais grupos ao poder. Mas tal processo não seria capaz de constituir hegemonia e levaria, nos dois casos, tais grupos

e a uma pauta anticorrupção,

focada,

entre grupos de esquerda

exporá as clivagens ideológicas do

país. Clivagens que muitos gostariam de dizer inexistentes. Mas no Brasil, ao contrário da Tunísia ou do Egito, não

a serem alijados por novas mobilizações populares. Se o Egito

havia grupo conservador claramente organizado, a não ser os

entrou em uma via ditatorial, com o retorno dos militares ao

partidos tradicionais (rechaçados pelas manifestações) e os se-

poder, a Tunísia conhecerá um processo efetivo de ampliação

tores hegemônicos

da participação popular no governo.

processo de constituição

Em um segundo caso, a incorporação política se dará através da constituição

imanente de novos modelos de organiza-

ção e programas. Foi assim, principalmente,

na Espanha, com

a criação do Podemos, a partir dos Indignados,

e sua rápida

que procuravam

da imprensa. Tais setores começaram um de hegemonia através de narrativas

ora caracterizar as manifestações

a partir da

violência e do "vandalismo", ora construir lideranças fictícias e focar as pautas múltiplas (mais serviços públicos, fim da violência policial, recusa da representação,

contra a

PEC

37 e as

ascensão à condição de terceiro partido nacional, responsável

políticas discriminatórias,

pela gestão de cidades como Madri e Barcelona. Mas foi algo

corrupção. Mas, para que tal processo de organização

que ocorreu também nos Estados Unidos, com a candidatura-

símile de revolta funcionasse, era necessário afastar a popula-

-movimento do socialista Bernie Sanders, que abriu uma nova

ção do núcleo originário dos manifestantes.

porta à esquerda americana. Uma candidatura

bra de adesão popular a operar para que o setor conservador

110

impossível de

entre outras) no tópico exclusivo da de um

Havia uma que-

111

tomasse a frente, o que ele finalmente fará em março de nas manifestações

2015,

mais preparadas pela imprensa e mais in-

fladas em números da história da república (graças à ajuda da

de

2013,

foi alcançado quando manifestantes foram responsáveis

pela morte involuntária de um cinegrafista, no início de Mas essa quebra do ímpeto das manifestações de

2013

Para quebrar a adesão popular, o cerne da estratégia seria

tar com manifestações sem comando definido, as organizações

utilizar o braço armado do poder. Ou seja, tratava-se de ope-

da esquerda brasileira descobriram

rar, de forma extensiva, no interior de uma tática de incitação

quarenta anos atrasadas, pelo menos. Suas estruturas

policial da contraviolência

profundamente

festações de

2013)

dos manifestantes, 2017

não

seria possível sem a decomposição da esquerda. Ao se confron-

"contabilidade criativa" da polícia).

de prisões arbitrárias (em

2014.

de infiltração,

ainda havia presos pelas mani-

e de lógica de exceção. Como dizia a polícia

de Gênova, por ocasião dos confrontos

com manifestantes

subitamente que estavam

dirigistas, hegemonistas,

eram

centralizadas e hie-

rárquicas, sem condição de produzir a incorporação

política

do processo de revolta. Seu sistema de representação, com seus sindicatos, movimentos,

uniões de estudantes, havia entrado

e da morte do ma-

em um processo de cooptação por aparelhos de governo, o que

nifestante Carlo Giuliani: "A função da polícia não é impor a

levou a uma desqualificação de sua legitimidade pelas manifes-

ordem, mas gerir a desordem". Ou seja, a função da polícia é

tações e a uma posição esquizofrêníca, na qual tais instituições

gerar e gerir zonas de anomia. Frase que vale para a realidade

tentavam equalizar demandas de manifestações sem se colocar

brasileira, em especial para o momento

claramente em oposição ao governo. Por esse motivo,

antiglobalização

no início dos anos

2000

pós-junho

de

2013.

2013

foi

A prática policial, no Brasil inteiro, mostrou desde o início não

inicialmente produzido por movimentos autonomistas

apenas sua brutalidade e seus traços dignos da ditadura mili-

vínculo partidário explícito. A força de transformação

tar, mas também a sua função de produzir desordem e geri-Ia

só poderia ser incorporada

por movimentos

no interior de uma lógica de desqualificação de demandas, de

trutura aberta e horizontal,

imunes à lógica do controle e da

atores e de produção do medo social.

adesão inoculada em tantas estruturas de esquerda. Até hoje,

Há de se lembrar que mesmo o governo dito esquerdista e seus aliados não temeram responder à indignação popular com

e sem de

2013

políticos de es-

nada disso foi tentado no Brasil. No entanto, ficou evidente, também, a inoperância da clas-

a criminalização, através da aprovação de uma lei antiterrorista

se intelectual para potencializar

em um país cuja única prática terrorista efetiva até agora foi o

dos intelectuais brasileiros ficou entre o discurso do choque

terrorismo de Estado. O objetivo de quebrar o ímpeto de uma

("não estamos entendendo nada e será necessário muito tempo

revolta que vinha produzindo ao menos uma manifestação por

para compreender")

dia em cidades brasileiras, entre os meses de junho e novembro

mento, por não saberem o que fazer diante de um povo que

112

a revolta. A grande maioria

e o discurso de desqualificação do movi-

113

não aceitava mais ser representado próprio

"governo

e que se voltava contra o

do povo". Um povo que se volta contra

o governo do povo não poderia ser um povo. Para tais intelec-

descontrole, sem existência de cúpula, mas com disciplina de adesão a decisões. Em vista da paralisia completa do governo diante de tais

tuais, até hoje, 2013 não foi uma revolta popular, mas o início

revoltas e da incapacidade

do fascismo brasileiro.

constituir como um intérprete qualificado das novas demandas,

Ficava clara, entretanto, a inadequação de seus esquemas de

de todo o setor da esquerda de se

foi a direita que soube captar o momento, absorvendo de vez

pensamento a processos históricos que operam através da emer-

um discurso anti-institucional.

gência de acontecimentos. Estávamos diante de acontecimentos

direita voltava às ruas, procurando

que irrompiam de forma imprevista em situações aparentemente

titucional da política, enquanto a esquerda brasileira havia se

estabilizadas, forçando o início de um movimento de procura

transformado no mais novo partido da ordem. Com tal força, a

por processos de incorporação em corpos políticos ainda por vir.

direita, mesmo não tendo ganhado as eleições de 2014, impôs

Movimentos que tendiam a destituir todos os atores constituídos

uma dinâmica acelerada de desabamento do governo e de inci-

até então, dando forma a uma soberania pensada como poder

tação a um golpe parlamentar travestido de legalidade, capita-

destituinte, pois tais acontecimentos

neado por um processo jurídico capaz de práticas criminosas

não eram produzidos no

Pela primeira vez desde 1984, a mobilizar a força anti-ins-

interior de um trabalho de ação política contínua realizada por

como grampear advogados de réus (o que implica quebra de

atores claramente definidos e representáveís.' Eles eram fruto da

todo princípio elementar de defesa dos cidadãos contra o Esta-

acumulação muda de expectativas não realizadas e da tentativa

do) e divulgar tais grampos em cadeia nacional. Enquanto isso,

de forçar situações em direção a dinâmicas políticas ainda não

tudo o que os setores majoritários de esquerda fizeram foi cla-

constituídas e sem nenhuma garantia de controle. Para quem se

mar pela legalidade e pela ordem. As cartas tinham se invertido.

acostumou a pensar a partir da lógica do "necessitarismo" his-

Lembremos de um ponto fundamental:

a política é indis-

tórico, isso significava andar de cabeça para baixo.

sociável da capacidade de incorporar forças anti-institucionais.

Assim, faltava mais do que organização

Faz parte de certa ilusão liberal, partilhada por vários setores

prévia. Faltava

capacidade de criar atores políticos e produzir organizações

do que antes foi chamado de "esquerda", confundir sistemati-

com força de implicação genérica a partir de acontecimentos.

camente política e gestão. Isso pressupõe aceitar que vivemos

Para tanto, seria necessário aceitar a emergência de espaços de

em sociedades que já teriam alcançado consenso em relação a seus valores normativos

2

Sobre o conceito de "poder destítuinte",

ver, principalmente:

Giorgio. O uso dos corpos. São Paulo: Boítempo, 2017, pp. 295-311.

114

Agamben,

fundamentais.

Mais importante,

que já teriam alcançado consenso em relação a sua gramática de conflitos sociais. Ou seja, que já teriam definido quais as

115

condições para a regulação de conflitos no interior de um ho-

Nesse sentido, só há política onde é possível ouvir forças

rizonte de "Estado de Direito". É fundamental que tal consenso

anti-institucionais,

gramatical seja imposto à força, pois é ele que define os limites

gulação institucionalizados

da política em sua capacidade de transformação.

romper o pacto frágil que sustenta a democracia liberal de duas

mais autoritário

Não há nada

do que dizer: "Posso ouvi-lo, mas desde que

você fale minha língua, que compartilhe

meus valores".

Pois há de se lembrar que podemos ter duas formas gerais

que colocam em questão os modos de re-

formas: empurrando

de conflitos. Essas forças podem

a experiência social para uma reconfigu-

ração, tendo em vista o fortalecimento

da soberania popular, a

incorporação de um poder popular continuamente

reprimido,

de conflitos sociais. A primeira refere-se à disputa sobre a apli-

ou produzindo

cação de normas já partilhadas. Por exemplo, podemos admi-

cial a regredir em direção ao esvaziamento da soberania popu-

tir a igualdade como valor normativo fundamental

lar e ao fortalecimento

e produzir

conflitos, por entender que tal valor não é aplicado da forma

o contrário, ou seja, levando a experiência sode um poder autárquico de comando.

Esse é o limiar no qual a vida política brasileira se encontra.

devida como ocorre quando mulheres saem às ruas por compreender que seus salários mais baixos são um desrespeito ao princípio constitucional

de igualdade. Nesse caso, operamos

DEPOIS DO FIM

no interior de uma gramática social de conflitos aceita por todos os lados do embate.

Diante desse cenário, a tendência brasileira agora é de desagre-

No entanto, podemos também ter conflito exatamente a

gação. Com uma casta política que bloqueou todo processo

respeito da gramática de conflitos. Podemos dizer que ela define

de renovação, com uma paralisia em relação à compreensão

uma forma de regulação social que elimina certas possibilidades

de processos de emergências de novas modalidades de corpos

de enunciado, que joga na invisibilidade certas formas de sujeitos,

políticos, o país tende a deslocar-se paulatinamente

que impede a escuta de certas formas de demanda. Não é a falta

modelo cada vez mais autoritário e desprovido de qualquer le-

de comunicação que nos coloca problemas, mas a incapacidade

gitimidade. Os sistemas de pactos ruíram e não é mais possível

de ouvir o que não se submete à estrutura de legitimação e poder

reeditá-los. Todas as "reformas" apresentadas

que a comunicação impõe. Como diz Jacques Ranciêre: "O que

visam à destruição das defesas trabalhistas e ao fortalecimento

faz da política um objeto escandaloso é ela ser a atividade que

das dinâmicas de produção da desigualdade, no pior dos pe-

tem por racionalidade própria a racionalidade do díssenso".'

sadelos neoliberais. Nesse cenário, não é surpreendente

em

para um

2016

e

2017

que,

diante do crescimento da resistência contra a espoliação, a elite 3 Rancíêre, Jacques. La Mésentente: politique etphilosophie. Paris: Galilée, 1995.

116

dirigente brasileira jogue todas as suas forças na brutalização

117

do discurso social, na criminalização

da oposição e no uso

recorrente de seu braço armado para gerir conflitos.

suas ações disponíveis visando "regular" o desenvolvimento monopolista

do capitalismo.

É claro que sempre pode haver algum setor da esquerda

Nesse sentido, o Brasil repete o momento histórico mun-

nacional disposto a contrapor-se a tal cenário através da regres-

dial, quando vemos, de maneira cada vez mais clara, a política

são à fixação em um horizonte

populista perdido, tentando

tendendo em direção aos extremos, depois do colapso da de-

reeditar atores políticos que terão a consistência de fantasmas,

mocracia liberal. Até agora, foi a direita que compreendeu isso

um pouco como ocorre na Argentina e seu peronismo infinito.

mais rapidamente, sabendo deslocar-se sem muita dificuldade

No entanto, é mais seguro acreditar que estamos a entrar em

em direção ao extremo. Podemos imaginar dois cenários: um

uma era histórica de acirramentos

deles é a radicalização

de conflitos sociais, sem a

do autoritarismo

de Estado brasileiro,

ilusão de que existiria uma espécie de gramática social parti-

em que seu poder já não esconde a ausência completa de legi-

lhada que poderia mediá-Ios.

timidade e seus expedientes de defesa de processos cada vez

Note-se ainda que não deve ser descartada a incorporação do descontentamento

social por um populismo

conservador

mais brutais de espoliação e de concentração. zonte de brutalização

Em um hori-

dos conflitos sociais e trabalhistas, não

baseado em um "radicalismo residualmente individualista" que

será surpresa para ninguém uma guinada final em direção a

se organiza discursivamente

um autoritarismo

a partir da "luta contra os privi-

légios" (em geral apenas os "privilégios" do Estado, inclusive aqueles supostamente

oferecidos a grupos mais vulneráveis

ainda mais explícito.

O segundo cenário passa pela reconfiguração

da esquer-

da brasileira em sua capacidade de enfrentamento,

de pensa-

do ponto de vista social) e da "igualdade perante a lei" con-

mento, de polarização e de vitória. Tal reconfiguração teria de

jugado na forma da meritocracia

modelo cujo eixo

começar por uma refundação. Se isso está longe ou perto, não

no Brasil se deu através do populismo de [ânio

cabe a nós dizer. Na verdade, nem sequer é importante sabê-lo.

paradigmático

Quadros." Tal populismo

liberal-

baseia-se na captura conservadora

do processo de empobrecimento

dos estratos médios, mas é

incapaz de impedir tal empobrecimento

devido à limitação de

4 O modelo desse processo foi descrito de forma extensiva por: Weffort, Francisco. O populismo na política brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1978. É dele a caracterização desse populismo conservador como "um radicalismo pequeno-burguês que mistifica um reformismo

operário" (p. 37).

118 119

Para além da melancolia: em direção ao grau zero da representação Por que não introduzir uma desconfiança na desconfiança e não temer que o medo de errar já seja o próprio erro? [...] Pois o assim chamado medo do erro

é, antes, medo da verdade. HEGEL

o esgotamento

da esquerda brasileira depois do colapso do

lulismo é algo a ser encarado diretamente.

Ele pode aparecer

como um momento privilegiado para uma inflexão em direção a práticas políticas mais condizentes com o tamanho das lutas e desafios que temos pela frente. Em um cenário mundial no qual as ilusões das conciliações da democracia liberal foram desfeitas e onde a política tende a ir para os extremos, cabe à esquerda não temer recuperar sua radicalidade. Para tanto, antes de qualquer discussão a respeito de práticas de governo, faz-se necessária uma análise de psicologia social. Em situações como essa, é fácil percebermos

sujeitos e

forças políticas em posição melancólica, como se estivessem

121

paralisados pela perda de um objeto do qual parece impossível

Por isso, há de se desconfiar dessa desconfiança em relação

fazer o luto. Freud descrevera muito bem a melancolia como

à nossa força e começar por nos perguntarmos

"amor por objetos perdidos". Esse amor internaliza tais obje-

perda não seria exatamente

tos, transformando

Há de se recusar toda forma de amparo e de cuidado, afirmar

investimentos de objetos em identificações

e, com isso, levando tais objetos internalizados sombra sobre o Eu, paralisando-o

a jogarem uma

se o medo da

aquilo que deveria ser perdido.

nosso desamparo, um desamparo reativo a toda colonização. Um desamparo que é condição inicial da verdadeira criação, pois

através de autorreprimen-

das ("como deixei o objeto ser perdido?") ou de reversões do

é afirmação de um desabamento que nos joga para fora das for-

amor pelo objeto em ódio pelo mesmo. Nos dois casos, temos

mas de vida que se impuseram a nós de maneira hegemônica. Nesse sentido, lembremos de um ponto central. Do ponto

apenas fixação e, no máximo, ressentimento. Ora, é certo que o poder age em nós utilizando-se

dessa

de vista da governabilidade

atual, uma das estratégias maiores

lógica da melancolia.' Ele gere a experiência da fixação em um

de gestão da paralisia social é a dissociação

objeto perdido, impede que o luto seja feito, alimenta nossas

e política. Ela visa alimentar essa ilusão de impotência

dinâmicas de ressentimento

nos faz acreditar que as decisões a respeito de nossas vidas

e a crença em nossa própria im-

entre economia que

potência, pois os modos de coerção do poder não são apenas

são muito complexas para serem geridas por nós mesmos. Tal

externos e físicos. Eles são principalmente

dissociação parte da defesa de que decisões econômicas

psíquicos. Trata-

não

-se, sobretudo, de paralisar a imaginação, levar sujeitos a des-

poderiam se submeter ao desejo político da mesma forma que

confiarem de sua própria força, aderindo ao poder não por

a razão não poderia se submeter aos interesses e crenças. Ao

convicção,

menos é isso que gostariam

mas por mera impotência.

Uma experiência

de

de nos levar a acreditar. Assim,

impotência que deixa sujeitos vulneráveis a figuras de autori-

no que chamamos atualmente de "democracia", as instâncias

dade que prometem

cuidado e amparo, que rompe, por isso,

econômicas exigem "autonomia", ou seja, exigem poder operar

toda instauração possível de sujeitos políticos. Pois, lá onde há

a partir de sua própria lógica. O que significa: operar a partir

demanda de amparo, nunca há política, há apenas a reiteração

dos interesses de seus próprios atores, como se estivéssemos

de estruturas de poder já em operação que encontram,

a lidar com um império no interior do império. É assim, sob a

dessa

forma, uma nova chance de perpetuação.

capa de um discurso tecnocrata, que assistimos à reedição de processos de acumulação primitiva, de concentração,

de pau-

perização de camadas cada vez mais extensas da população 1

Para uma análise das relações entre melancolia e poder, ver: Butler, Judith.

The Psychic Life af Pawer: Thearies in Subjectian. Stanford: Stanford University Press, 1996.

122

e de precarização

absoluta que visam criar um nível de inse-

gurança capaz de deixar todo e qualquer sujeito inadaptado à

123

ordem econômica no limiar da morte social. Uma verdadeira

porque opera com a corrupção

reedição bancária do poder soberano de vida e morte.

das decisões, com a sabotagem contínua da soberania popular.

Na verdade, temos aqui uma guerra civil contra setores pauperizados,

mas guerra travestida

de racionalidade

eco-

do Estado, com a opacidade

Ela só pode ser superada através da instauração dadeira democracia

de uma ver-

direta, algo que ainda não conhecemos.

nômica, de "remédio amargo, porém necessário". E há de se

A democracia real é o melhor remédio contra as juntas finan-

perceber a recorrência

ceiras que procuram governar nossas vidas e nos acostumar

estratégica de um discurso de infan-

tilização da crítica, último capítulo de um autoritarismo

que

à impotência.

de toda oposição

Insistamos no ponto que a esquerda do final do século xx

efetiva. Pois quem critica tal racionalidade só poderia ser como

fez questão de esquecer, a saber, que a soberania popular não

uma criança que crê na onipotência

incapaz

se representa. Um povo livre nunca delega sua soberania para

de lidar com o princípio de realidade que ensina que só posso

quem quer que seja. Ele a conserva sempre junto de si. Passar

gastar o que ganho, criança que vive em um mundo de fanta-

sua soberania para outro é perdê-Ia. É como passar minha von-

sias, em vez de encarar a virtude moral da austeridade.

tade a outro e esperar que a vontade de outro tenha alguma for-

só pode se impor através da invisibilidade

do pensamento,

Nunca a economia apareceu de forma tão evidente como

ma de identidade absoluta com a minha vontade. Deputados

aquilo que ela sempre foi: um modo de gestão social, modo de

e presidentes não são "representantes"

organização disciplinar das minhas vontades, do meu tempo,

são seus "comissários",

das minhas atividades e cuja força não vem do que ela seria

Por isso, uma verdadeira democracia deveria ter, ao lado dos

capaz de realizar, mas do medo que é capaz de gerir. Atual-

poderes Executivo e Legislativo, a figura da assembleia popular

mente, o discurso econômico

a ratificar leis ligadas a orçamentos, reformas constitucionais,

é o principal gestor de nossa

melancolia social.

do povo: no máximo

como dizia Jean-Jacques Rousseau.

situações de emergência, guerras, assim como apor seu aceite ou sua recusa a tudo aquilo que uma minoria qualificada da população percebe como objeto de discussão em assembleia.

UMA SOCIEDADE

Ela deve ainda ser mais do que um poder de ratificação ou des-

DESCONTROLADA

tituição. As estruturas Contra isso, a esquerda deve compreender de transformações

econômicas só pode se ampliar a partir do

momento em que garantirmos

uma esfera de reinvenção po-

lítica. A economia que conhecemos

124

que o horizonte

hoje só pode prosperar

de assembleia devem ser um poder de

deliberação, como eu gostaria de mostrar mais à frente. O povo deve ter as estruturas

institucionais

que lhe permitam

conti-

nuamente se defender de quem procura lhe usurpar o poder. Ele deve se expressar através do grau zero da representação.

125

Na verdade, essa ideia implica insistir que o Estado deve

ao mesmo tempo.

Quanto

mais representações

diversas,

deixar de ser um espaço de deliberação política para ser um

mais plural a sociedade. No entanto, por mais diversas que

mero espaço de implementação

tais representações

de deliberações que ocorrem

sejam, elas devem partilhar algumas coi-

em seu exterior. Tais deliberações políticas deixam de se dar

sas. Pois a representação

no interior do Estado e de seu corpo de gestão para se darem

contagem, tem sua gramática, tem seus acordos. Aceitar sua

em assembleia popular. Insistiria nesse ponto porque nenhum

gramática significa aceitar como as lutas se darão e em qual

programa de esquerda digno desse nome pode retirar de seu

espaço, como os conflitos serão resolvidos.

eixo central o fim da representação

existir politicamente

política. Acreditar que po-

tem suas regras, tem seus modos de

Nesse sentido,

é, ao menos para tal forma de pensar,

demos "governar" respeitando os marcos institucionais da go-

aceitar se submeter

vernabilidade atual é a pior de todas as ilusões. A "democracia"

gem, gramáticas e acordos. A essa submissão chamamos nor-

atual é ingovernável, a não ser através da violência policial e

malmente "democracia". Mas o que aconteceria

da anestesia cultural. Insistamos mais nesse ponto. Uma das ideias fundamentais da política moderna é a noção de representação. demos a compreender

a essas regras, a esses modos de conta-

Apren-

o espaço político como um espaço

representação?

se abandonássemos

a noção de

Não são poucos os que clamam que isso ge-

raria o caos completo, a tirania, a desordem e todas as figuras imagináveis da catástrofe. Um pouco como esses cartógrafos

de conflitos organizado a partir de uma dinâmica específica de

medievais que desenhavam o mundo até certo ponto e depois

constituição de atores. Essa dinâmica estaria necessariamente

dele colocavam monstros e abismos. Maneira de levar os na-

ligada aos processos de representação.

vegadores a não querer ir mais longe.

Assim, só poderiam

participar do campo de conflitos políticos aqueles que se submeteram à representação,

ou seja, aqueles que representam

No entanto, a representação

é hoje um arcaísmo político

que visa apenas nos afastar de uma democracia real. Na verda-

algo, que falam em nome de um "lugar" que representam,

de, quem defende a representação,

seja esse "lugar" um grupo, um setor de interesses, um parti-

da, encontra nela um bom álibi para esconder seus desejos de

do, uma associação. Em suma, o pressuposto

controle, para filtrar a sociedade construindo

uma multiplicidade

central aqui é:

não se apresenta de forma imediata, ela

uma imagem da

emergência popular mais fácil de controlar. Pois, definindo as condições de representação, sou capaz de controlar a fronteira

só pode existir como algo representado. Várias consequências

seja a direita, seja a esquer-

se seguem daí. Por exemplo, dentro

entre a existência e a inexistência política. Mas a verdadeira

dessa visão, uma sociedade plural serià aquela que permiti-

tarefa política hoje não é consolidar mecanismos

ria a emergência

É criar uma sociedade descontrolada.

126

de vários representantes

e representações

de controle.

127

Pensemos

um pouco

temos atualmente sociedade

a respeito

todas as condições

de deliberação

contínua

cia digital. Em sociedades virtual,

através

técnicas

baseada

técnicas

de uma espécie

é a deliberação

serão o reconhecimento cisórios

velada. No entanto,

cia antipolítica,

cracia, tal exterioridade direta. Pela soberania

Dessa

o juízo

de-

dos que não existem

apenas

cos fossem mento.

é diretamente sua opinião. do, minha

sobre orçamento,

e desinteressado?

a imagem

No entanto,

mais acabada vale observar

proporcional

demo-

sobre isso juízos errados e interpretem

tudo mal é o cúmulo

necessária

popular

deram

não conta,

porque

que estou de fato investido

fluência,

um processo

de poder

de transformação

aqueles

a inteligência

daqueles cotidianos

constantes). levando

que podem

Por outro

de

baseado

no sufrágio

que estão efetivamente (como

As políticas

os enfermeiros,

educacionais

saber o que realmente

como

nun-

estudantes

funciona

em um sistema

e

ou não.

dessa natureza.

durante

entre dois modelos universal

prática

de saúde nunca consi-

em conta professores,

lado, lembremos

po houve um embate

sei que, no fun-

um bom tem-

de democracia:

e outro baseado

um

no acaso, quer

Quando

de decisão

subjetiva

prática

de

Não por acaso, na "demo-

sobre políticas

nos processos

e usuários

vê como incapazes

são os que têm a inteligência

Não há nada de democracia

popular

da irrelevância

que nada vai mudar.

percebo

políti-

tecnocrata

para as decisões corretas.

ca são decididas

e do conheci-

que o desinteresse

à consciência

médicos

gastos etc. para um

do preparo

técnicas"

cracia" atual as decisões

sob a con-

Como se nossos

Ou seja, desinteresso-me opinião

e que eles não façam

envolvidos

técnicas

povo despreparado

tratar de tudo nas costas dos cidadãos

decidir "questões

falamos isso, sempre há os que dizem: mas como

passar decisões

é, com efeito, uma virtude rara. Querer, portanto,

Esses que a democracia

dição de proprietários. Quando

Suspender

eo

a partir da lógica

pela soberania

senão a partir

da estupidez."

uma instân-

Em uma verdadeira

é recuperada



de Estado são trata-

das poucas coisas que não podem ser escondidas.

que de maneira

é o mercado:

assuntos

dos nas suas costas e ela não faz conjecturas

central

do Estado que delibera

e organizada

e do monopólio.

popular",

o que disse Espinosa:

ou juízo, quando os principais

No fundo, algo já acontece

suas decisões

da "ignorância

Não é de se admirar que não exista na plebe nenhuma verdade

proces-

de processos

liberal, mesmo

anti-igualitária

da concentração

de se lembrar

deixar de ser um Estado

a exterioridade

obriga a implementar

em imaginar

e a implementação

no pensamento

Além do que, a respeito

em uma democra-

para ser um cuja função

que se dão no seu exterior.

dessa maneira

ocorrer.

para criar uma

de ágora virtual.

forma, o Estado pode paulatinamente cuja função

Primeiro,

que têm nível quase total de conexão

não há mais dificuldades

sos decididos

de dois pontos.

e in-

começa

2

a

Espinosa, Baruch de. Tratado político. São Paulo:

WMF

Martins Fontes,

2009,

pp.80-1.

128

129

rt

dizer, baseado na escolha de cidadãs e cidadãos ao acaso para

Isso exige uma outra forma de organização

desempenhar

só pode emergir quando a deliberação política voltar às mãos

funções públicas.

Esse segundo

modelo era

da produção que

muito mais imanente do que o primeiro. O que significaria,

da imanência da soberania popular. Seria estéril e vão pensar

por exemplo, se os membros do parlamento,

que a imaginação social necessária para tanto estará disponível

ao menos uma

parte deles, fossem escolhidos ao acaso dentre a generalidade

a nós antes da efetivação de nosso desejo de reinstauração

de cidadãs e cidadãos brasileiros, evitando com isso a consti-

vida política. Tal imaginação é uma consequência da transfor-

tuição de uma casta profissional de políticos que acabarão por

mação política, e não sua causa.

pensar apenas em sua própria sobrevivência?

Muitos dizem

da

Por outro lado, o Estado deve garantir processos de desins-

que, antes, seria necessário "educar o povo". Como se o povo

titucionalização

real ainda não existisse, como se fosse necessário criá-lo. Mas

lação à vida. Uma sociedade realmente democrática não é uma

melhor seria se perguntar quem então educará os educadores,

sociedade na qual todas as suas possibilidades estão já legisladas

como já se perguntava Marx em seu tempo, diante de tais ím-

e previstas sob a forma do direito. Uma sociedade realmente

petos pedagógicos.

democrática tende à abolição do direito prescritivo, para que

Notemos que, nesse contexto, governar não pode aparecer

resultantes do retraimento

as múltiplas formas de constituição

do direito em re-

da experiência social, de

mais como dirigir, muito menos operar na "governabilidade"

produção de modos de existência, possam se dar de forma plás-

que nos é imposta como a única possível. Governar aparece

tica e imprevista. Mas para que a abolição do direito prescritivo

como uma forma de garantir as condições para que os sujeitos

não seja um convite ao fortalecimento

se dirijam a si mesmos.' Para tanto, o Estado deve passar por

deve acompanhar tal desinstitucionalização

uma mutação. Ele deve tender a uma forte regulação dos pro-

biopolíticas por uma forte regulação das relações econômicas,

cessos econômicos

tendo em vista a garantia da igualdade e da liberdade social. Uma

até a abolição da sociedade do trabalho,

da espoliação, o Estado das suas estruturas

sociedade que submete a atividade humana ao mero processo

sociedade democrática

de valorização

não

laços familiares, afetivos, modos de existência e determinação

e das estru-

são completamente plásticos, enquanto as relações econômicas

do valor, pois os processos regulatórios

devem visar apenas à limitação da concentração

é uma sociedade na qual as formas de

turas de monopólio. Eles devem liberar a atividade humana da

são profundamente

sua colonização

se liberar de sua condição atual de trabalho como produção do

pelas formas do trabalho produtor de valor.

reguladas até que a atividade humana possa

valor. Nessa sociedade, o Estado não prescreve, ele reconhece o 3 Note-se que se trata aqui de sujeitos, não de indivíduos. Para essa distinção,

que a sociedade produz de forma soberana.

remeto a Safatle, Vladimir. O circuito dos afetos, op. cito

130

131

pelo igualitarismo radical. É tendo isso em vista que a política

NÃO MAIS CERTAS PERGUNTAS

se recusa a ser a mera prática degradada de ajustes diante das Neste ponto, não é difícil ouvir o desejo de perguntas como:

impossibilidades

"Mas o que fazer?". Sim, pois tudo o que foi dito se refere a

para a política, "a dialética se corrompe em sofística quando

como decisões devem ser tomadas, não ao que fazer. Este livro

se fixa pragmaticamente

poderia então terminar com uma espécie de programa econô-

e isto não podemos nunca esquecer, a política é a crença im-

mico que visasse mostrar a falácia do velho mantra neoliberal

provável e aparentemente

de que não há saída possível a não ser através de nosso sacri-

de outra forma. Nada de realmente grande no mundo foi feito

fício no altar da espoliação final. Terminaríamos

sem essa paixão. Há de se deixar para trás o culto da finitude e

discutindo

como, por exemplo, os números do rombo da Previdência são majorados, como seria possível conservá-Ia através de outras políticas, como a justiça tributária

que impõe "sacrifícios" a

do presente. Como disse Adorno, e isto vale no passo mais próximo". Na verdade,

louca de podermos ser outros, viver

não temer o que é desmedido em nós. Nada da força concreta da política retornará a nossas vidas se não formos capazes de escutar a pressão por outros modos

quem pode pagar (através de impostos sobre grandes fortunas,

de existência. Talvez a boa questão comece por tentar enten-

sobre lucros e dividendos, sobre herança etc.) ou a auditoria

der por que perdemos a capacidade de escutar tais pressões,

e a moratória

o que nos faz achar atualmente que a única forma possível de

do pagamento

dos serviços da dívida pública.

Pois todas as respostas a perguntas do tipo "o que fazer?" são

existência é essa que nos oprime. Ou seja, a boa questão não

reflexões estratégicas que avaliam contextos locais e imediatos.

é "o que fazer?", mas "o que aconteceu com nossa imaginação

Tais reflexões, sem dúvida, têm sua importância. outra dimensão do problema que fica normalmente

Mas há

política para que perguntemos

desesperadamente

a outros so-

intocada,

bre o que fazer?". Por isso, se me permitem, a respeito dessas

talvez a mais relevante, pois a política não é apenas a abertura

questões, como dizia Bartleby, eu preferia não. Sim, eu preferia

a alternativas produzidas por pensamentos

não. Que um poeta fale então em nosso lugar:

estratégicos imer-

sos na análise de situações que exigem ações e reações. Ela é também a insistência em coordenar ações a partir da pressão

Você diz:

por outros modos de existência. Toda traição política começa

Nossa causa vai mal.

com o esquecimento

A escuridão aumenta. As forças diminuem.

de tal insistência, com sua desqualifica-

ção como mera "abstração" ou "utopia". No entanto, essa é a

Agora, depois que trabalhamos por tanto tempo

dimensão mais concreta da política, pois é daí que ela tira sua

Estamos em situação pior que no início.

força para continuar a ser "política", com seu impulso de luta

132

133

Mas o inimigo está aí, mais forte do que nunca. Sua força parece ter crescido. Ficou com aparência de invencível. Mas nós cometemos erros, não há como negar. Nosso número se reduz. Nossas palavras de ordem Estão em desordem. O inimigo Distorceu muitas de nossas palavras Até ficarem irreconhecíveis.

Daquilo que dissemos, o que é agora falso: Tudo ou alguma coisa? Com quem contamos ainda? Somos o que restou, lançados fora Da corrente viva? Ficaremos para trás Por ninguém compreendidos e a ninguém compreendendo? Precisamos ter sorte?

Isto você pergunta. Não espere Nenhuma resposta senão a sua." Essa resposta existe, ela só espera sua fala.

4 Brecht, Bertolt. "Não espere nenhuma resposta". In: Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de: Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2003.

134

Anexos

Sem medo

Não haverá mais política brasileira como conhecemos até agora. Daqui para a frente, ela irá em direção aos extremos. Uma sociedade, quando passa por mobilizações

populares como

as que vimos nas últimas semanas, fica para sempre marcada, mesmo que pareça, durante certo tempo, retomar aos trilhos normais. Como uma ferida que nunca cicatriza completamente, os gritos populares voltam a todo momento

fragilizando

os acordos políticos conquistados. Nesse sentido, devemos nos preparar para um embate de outra natureza. Quando a política popular ganha as ruas em uma reação em cadeia, todo o espectro de demandas sobe à cena. Uma contradição de exigências que pode dar a impressão de estarmos em um buraco negro da política. No entanto, não há que temê-Ia, pois tal contradição é a primeira manifestação de um novo conflito de ideias que servirá, a partir de agora, de eixo de combate. Por isso, a política brasileira não se dará mais no interior de partidos que há muito perderam sua função de caixa de ressonância dos embates sociais. Ela será decidida nas ruas. Foi assim em países como Tunísia e Egito. As manifestações foram engendradas

por jovens estudantes

esquerdistas

137

e sindicatos com demandas muito parecidas com as nossas:

da "nossa terra". É verdade. Não temos problemas

democracia direta, reconstrução

declararmos

de serviços públicos gratui-

em nos

sem nação, sem pátria, sem identidade, porque

tos e de qualidade, Estado de Bem-Estar Social, luta contra

nos apegamos a um desejo de igualdade que desconhece fron-

corrupção

teiras. Mas, e isto eles verão, nosso desejo é mais forte. Agora

e corruptores.

contentamento muçulmanos

No entanto,

rapidamente

o des-

social mobilizou também salafistas e setores nacionalistas-conservadores

serem mais organizados, primeiro momento, manifestações

eles conseguiram

não é hora de medo. Agora é hora de luta.'

de toda ordem. Por se impor em um

dando a impressão de que os frutos das

foram parar no colo errado.

De fato, há uma luta em torno do rumo da maior mobilização popular recente do país. Por exemplo, setores conservadores da imprensa nacional, amigos até a hora da morte do imaculado são Demóstenes

Torres, tentam impor sua velha

pauta de sempre, a saber, indignação seletiva contra corruptos, mas silêncio tumular contra os corruptores

(empreiteiras,

bancos e empresários). Mas que os que lutaram durante todos esses anos por universidades mais democráticas,

mais impos-

tos para os ricos e mais serviços sociais para os pobres, direitos iguais aos homossexuais e causas ecológicas radicais recolham suas bandeiras,

eis algo que a história nunca perdoará. Não

haverá perdão para os que baixam os braços no momento em que a luta começa. De fato, agora é hora de compreender

que o verdadeiro

embate começou e será longo. Mas nada disso poderia ser diferente. Um dia teríamos que nos confrontar duramente com aqueles que têm o despudor de se chamarem "nacionalistas" em uma época onde a "nação" só significa fronteira, limite, ex-

1

pulsão da diferença e defesa dos bons valores preconceituosos

partidos, mas nas ruas". Folha de S.Paulo, 22/6/2013, Cotidiano, p. 02.

Texto originalmente

publicado como: "Política não se dará mais dentro dos

________________________________________ ~.i _

139

Nós acusamos

políticas oligárquicas e palacianas só poderiam redundar em um golpe parlamentar denunciado no mundo inteiro. Por isso, eles temem toda possibilidade

de eleições gerais. Eles gover-

narão com a violência policial em uma mão e com a cartilha fracassada das políticas de "austeridade" na outra. Políticas que nunca seriam referendadas em uma eleição. Com tais personagens no poder, não há mais razão alguma para chamar o que temos em nosso país de "democracia". Diante da gravidade da situação nacional e da miséria das alternativas que se apresentam:

Nós acusamos o governo Dilma de ter colocado o Brasil na maior crise política de sua história.

Nós acusamos o governo interino que agora se inicia de

cândalos de corrupção

A sequência

de es-

não foi uma invenção da imprensa,

já nascer morto. Nunca na história da República brasileira um

mas uma prática normal de governo. De nada adianta dizer

governo começou com tanta ilegitimidade e contestação po-

que essa prática sempre foi normal, pois a própria existência

pular. Se diante de Collor o procedimento

da esquerda brasileira

esteve vinculada

um momento de reunificação nacional contra um presidente

expulsar os interesses

privados da esfera do bem comum,

rejeitado por todos, diante do governo Dilma o impeachment

moralizando

foi o momento em que tivemos de construir um muro a sepa-

querda brasileira no governo façam sua auto crítica implacá-

rar a Esplanada dos Ministérios em dois. Esse muro não cairá,

vel. Por outro lado, a busca de uma conciliação

ele se aprofundará

apenas levou o governo a se descaracterizar

de impeachment

cada vez mais. Aqueles que apoiaram Dil-

ma e aqueles que, mesmo não a apoiando, muito bem o oportunismo de instrumentalizar

foi

compreenderam

de uma classe política à procura

as instituições

impossível

por completo,

a abraçar o que ele agora denuncia, distanciando-o

de seus

próprios eleitores. O caráter errático deste governo foi a mão que cavou sua própria sepultura.

sua própria sobrevivência não voltarão para casa. Este será o

lição à esquerda como um todo.

Nós acusamos os representantes

de

públicas. Que os setores da es-

a revolta popular contra a corrupção para

governo da crise permanente.

à possibilidade

Nós acusamos

Que essa errância sirva de

aqueles que nunca quiseram

encarar o

deste governo interino

dever de acertar contas com o passado ditatorial brasileiro e

de serem personagens de outro tempo, zumbis de um passado

afastar da vida pública os que apoiaram a ditadura como res-

que teima em não morrer. Eles não são a solução da crise po-

ponsáveis diretos pela instauração desta crise. A crise atual é a

lítica, mas são a própria crise política no poder. Suas práticas

prova maior do fracasso da Nova República. Que um candidato

140

141

fascista (e aqui o termo é completamente Jair Bolsonaro tenha hoje

20%

adequado)

como

das intenções de voto entre os

política que este país viveu nos últimos tempos, que lembre que o Brasil sempre surpreendeu

e surpreenderá.

Este não é o

eleitores com renda acima de cinco salários mínimos mostra

país de Temer, Bolsonaro, Cunha, Renan, Malafaia, Alckmin.

quão ilusória foi nossa "conciliação nacional" pós-ditadura.

Este é o país de Zumbi, de Prestes, Pagu, Lamarca, Francisco

O fato de nossas cadeias não abrigarem nenhum torturador

[ulião, Darcy Ribeiro, Celso Furtado e, principalmente,

deveria servir de claro sinal de alerta. Tal fato apenas serviu

Há um corpo político novo que emergirá quando a oligarquia

para preservar os setores da população que agora abraçam um

e sua claque menos esperarem.'

nosso.

fascista caricato e saem às ruas com palavras de ordem dignas da Guerra Fria. Por isso, a cada dia que passa, percebe-se como esse setor da população

se julga autorizado

a cometer novas

violências de toda ordem. Isso está apenas começando. Nós acusamos setores hegemônicos da imprensa de regredirem a um estágio de parcialidade há muito não visto no país. Diante de uma situação de divisão nacional, não cabe à imprensa incitar manifestações de um lado e esconder as manifestações de outro, transformar-se em tribunal midiático e parcial, julgando, destruindo moralmente alguns acusados e preservando outros, deixando mesmo de se interessar por vários escândalos quando estes não atingem diretamente o governo. Essa postura apenas servirá para explodir ainda mais os antagonismos e para reduzir a imprensa à condição de partido político. Neste momento em que alguns se inclinam a uma posição melancólica

diante dos descaminhos

do país, há de se lem-

brar que podemos sempre falar em nome da primeira pessoa do plural, e esta será nossa maior força. Faz parte da lógica do poder produzir

melancolia,

nos levar a acreditar em nossa

fraqueza e isolamento. Mas há muitos que foram, são e serão

1

como nós. Quem chorou diante dos momentos

de S.Paulo,

142

de miséria

Texto originalmente

publicado um dia após o golpe parlamentar

em: Folha

13/5/2016, Ilustrada, p. c8.

143